Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O AMOR FOI MAIS FORTE / Corin Tellado
O AMOR FOI MAIS FORTE / Corin Tellado

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O AMOR FOI MAIS FORTE

 

A fazenda de Mônica vinha sendo sabotada, mas ela não acreditava que isso fosse possível. Sabendo disso, Dick North ofereceu-se para ser capataz de sua fazenda e presenciou vários incidentes com o rebanho, inclusive contra sua própria vida...

Para Mônica, Dick era corajoso, fascinava-a a inexperiência dele no amor, e sua disposição a fazer tudo por ela. Mônica não sabia se o que sentia por ele era amor, afinal, estava noiva de outro.   

 

Mônica Keir olhava em frente. Seus olhos azuis tinham uma expressão distraí­da. Dir-se-ia que estava sozinha, mas a seu lado estava Timothy Fresson falando sem parar.

Mônica se apoiava na balaustrada do terraço enquanto seus olhos seguiam as evoluções dos peões que trabalhavam den­tro do curral que formava um círculo, den­tro do qual se selecionavam potros para a venda do dia seguinte.

— Não valem grande coisa — disse Ti­mothy. — Este ano não fez uma boa apa­nhada. Tem certeza de que são todos do­mados?

Mônica não respondeu.

Vestia traje de montar de um tom ver­de, a blusa de manga curta, negra, e no pescoço um lencinho verde e branco, ata­do no estilo vaqueiro.

— Suponho que também venderá gado amanhã.

Mônica assentiu. Timothy olhou em torno.

— Já selecionou-a?

— Estão fazendo-o — e de má vonta­de: — Ontem contratei um novo capataz.

— Mas, Mônica, isso é perder tempo. Não lhe disse que podia contar comigo?

Mônica não moveu um só músculo de seu lindo semblante de pele morena, onde os olhos azuis tinham um brilho inusita­do. O cabelo preto e curto agitou-se, es­palhando um suave perfume de alfazema.

— É o que não entendo — dizia ainda Timothy com certa irritação contida. — Que contrate gente nova, quando não po­de pagar a que já tem a seu serviço.

Mônica o fitou de uma forma cortante.

— Não se meta em meus métodos, Ti­mothy. Sabe quanto isto me aborrece.

— Sou seu noivo, não?

— Mas não meu marido.

— Porque você não quer.

Outra vez Mônica agitou a cabeça.

Era bonita, tinha uma personalidade bem definida, e o demonstrou desde a mor­te de seu pai, três anos antes.

— Deixemos isso — retrucou Mônica com ar cansado. — Se não se importa, irei até lá saber quantos cavalos estão prontos para enviar amanhã.

— Não acha que seria melhor se nos casássemos, evitando-lhe estes trabalhos?

— Já falamos disso, não?

— Escute, Moni, escute, por favor. Mi­nha fazenda fica do outro lado da colina. Você sabe que é uma boa propriedade. Sa­be o que dizem meus pais todos os dias? Que devemos nos casar, unir nossos des­tinos e nossas terras, que isso evitaria pa­ra você toda essa luta que começou há tanto tempo. Já chega, Moni. Por muito que faça, por muito que se desdobre, que trabalhe e contrate homens novos, nunca poderá pagar a, hipoteca que pesa sobre sua fazenda. Seu pai não foi lá muito inte­ligente... você sabe.

Mônica se voltou com uma violência incomum nela.

— Não mencione meu pai — disse en­tre dentes. — Eu o proíbo, Timothy. Fale de mim e de você, mas não torne a citar meu pai. Foi um homem inteligente, ou­viu? Você o sabe. Mas... o que podia ele fazer com duas filhas menores, sem varões em sua descendência, e com uma doença incurável de cinco anos? Nunca lhe falaram disso? Se não sabia, fique sabendo, e não torne a duvidar da capacidade de meu pai. Enquanto teve saúde, pôde levar isto avante — desceu o primeiro degrau do ter­raço. — Agora, se me dá licença, vou con­versar um pouco com o novo capataz e acertar certas coisas.

Timothy mordeu os lábios.

Era um homem alto, forte, de vinte e oito anos. Cabelos louros, olhos escuros, um tipo quase elegante. Vestia-se na mo­da, em contraste com, a simplicidade da jovem.

— Escute, Mônica, dou-lhe minha pa­lavra de que nunca abandonarei sua tia e sua irmã.

Mônica o fitou interrogante. Tinha uma forma especial de levantar uma so­brancelha, de sorrir com sarcasmo.

— O que quer dizer, Timothy?

— Quero dizer que... adotaremos sua irmã.

— Adotá-la? Minha irmã tem aqui a sua parte. Metade da fazenda é dela, e a outra metade também, e eu luto pelas duas, enquanto Inma se dedica a estudar para ajudar-me algum dia a salvar tudo isto da ruína.

— Quer dizer que vai esperar que sua irmã termine a Faculdade de Direito?

— Vou esperar pagar a hipoteca.

— Isso é loucura. Os pastos são ruins. O gado se perde por aí. Falta-lhe pessoal suficiente para ajudá-la. Os capatazes que contrata vão abandonando-a a cada dia. Não gostam de ser mandados por uma mulher. As colheitas são péssimas este ano... De onde vai tirar dinheiro para pa­gar esta hipoteca? Sabe quanto falta para pagá-la?

— Um ano exato. Mas eu pedirei pror­rogação ao banco.

— Sabe quantas já pediu?

— Timothy, o que há? — desafiou-o, — Só porque quer que me case com você, devo vender tudo de qualquer jeito?

— De qualquer jeito, não — refutou ele. — Isso não. Mas, casando-se comigo e unindo sua terra com a minha, tudo irá muito melhor. Meu pai se incumbirá de pagar sua hipoteca.

Já o sabia. Vender-se assim, não. Não era tanto seu amor por Timothy.

— Deixemos isso — cortou. — Estão me chamando ali.

Deu ordens concretas aos peões, dei­xou-os dentro do curral e ao dar a volta se encontrou com uma cara nova que a olhava de forma rara.

— Quem é o senhor? — perguntou detendo-se.

Sem precisar ser uma psicóloga, Mônica constatou que o homem, quem quer que fosse, um louro de olhos verdes, era um tímido.

— Sou..., sou... — tinha a voz rou­ca e confusa. — Sou... o novo capataz.

Mônica sorriu, levemente.

— Ah — só essa exclamação da jovem, após olhar o rapaz de cima abaixo — Quero vê-lo depois disso aí. É preciso que esses cavalos estejam bem lustrosos ama­nhã. Ah, e que não fujam de noite. É isso — acrescentou meio amarga, — o que cos­tuma acontecer. Ou fogem, ou morrem de uma epidemia. Preciso vendê-los amanhã. Virão buscá-los às nove em ponto.

— Sim, senhorita.

— E procure que esses homens cum­pram com seu dever. Ponha um vigia ou dois esta noite. Não quero que ocorra o mesmo de outras vezes.

Notou a dúvida nele. Parecia querer dizer algo.

— O que é? Deseja dizer-me algo?

— Não sei... o que houve nas outras vezes. Entrei ontem, nesta fazenda e ain­da...

— Vejo-o daqui a uma hora. Passe em meu escritório.

Seguiu o seu caminho. O capataz a se­guiu com o olhar.

Naquele momento, o olhar dele não era tímido. Tinha um brilho raro. Uma ex­pressão admirativa.

Depois girou sobre si e foi para o cur­ral.

— Hoje ficarei de guarda — disse.

Os peões o fitaram. Um deles gritou assombrado:

— O senhor?

— Sim, eu.

— Mas... por que o senhor? Se não vai durar aqui nem duas semanas. E de­pois, o que teme?

Não disse o que temia, nem se ficaria ali duas semanas ou mais. Com voz firme insistiu:

— Daqui a uma hora, quero que te­nham terminado este trabalho. Quando eu chegar, podem sair todos. Eu ficarei.

— Mas, escute...

— O que deseja, Jim?

O rapaz mordeu os lábios.

— Nada, senhor.

— Bem, não quero ver ninguém aqui durante a noite. Dispararei no primeiro que aparecer.

— Mas... isso não é o habitual.

— Passará a sê-lo, a partir deste ins­tante.

— Escute, capataz...

O capataz olhou, para quem tentava falar.

— Como se chama?

— Eu... Lionel...

— Bem, Lionel, não me interessa o que tenha que me dizer. Se dentro de uma hora não estiver tudo pronto, escolherei os homens e os ajudarei a terminar.

Era a primeira vez que ocorria aquilo em muito tempo.

Lionel e Jim se olharam.

Um disse, apos aquela troca de olha­res:

— Suponho que não terá inconvenien­te em que esta noite eu vá à cidade.

— Não o tenho, se amanhã às oito da manhã estiver a postos para nos ajudar com o gado

— É sábado, capataz.

— Pode chamar-me North, que é meu nome. Quanto a ser sábado e amanhã do­mingo, tanto faz. Uma vez na ferrovia poderão dispor do dia, e, claro, lhes serão pagas horas extras.

— Jim.

— O que é?

— Jamais nos pagaram horas extras. Não há dinheiro.

— De qualquer jeito, amanhã recebe­rão seu pagamento extra — fez uma pau­sa e exclamou: — Agora trabalhem. Volto logo. Espero que tudo ande direito. Que não haja contratempos.

 

— Sente-se, Moni — insistiu tia Jacqueline pela quinta vez. — Parece uma fera enjaulada. Tudo irá bem, vai ver. Cho­veu bastante este inverno, a colheita foi boa, segundo dizem. O gado está cada dia mais gordo.

Mônica se deteve. Era esbelta e flexí­vel.

— Mas você sabe — disse angustiada, — que estão acontecendo coisas estranhas nestes últimos tempos. Papai deixou uma hipoteca, certo, mas não a fez porque a fazenda andasse mal, nem porque o gado se perdesse, nem. porque as colheitas se malograssem sob o tempo. Se o fez foi pa­ra curar-se, e durante cinco anos, entre médicos e hospitais, gastou-se muito. Não gosto do que está acontecendo, tia. Repa­re no detalhe. Se quando papai faleceu tu­do fosse bem, não se perdessem, cavalos dispersando-se, não morresse parte do gado por aquela inesperada epidemia, não faltasse água por causa dos desvios nos rios, hoje a hipoteca estaria paga. Foi ao ban­co e deram uma prorrogação, mas... se amanhã não consigo embarcar esses ca­valos, se a semana que vem perco mais de cem cabeças de gado, tudo terá termina­do para mim. E eu jurei que salvaria esta fazenda, lembra-se?

— Sim, Mônica, mas você só tem vinte anos. Mal sabe sobre cavalos e colheitas... Por que não casa com Timothy?

Outra vez, Timothy. Claro, gostava de­le. Mas a sua maneira. Não se sentia arre­batada por uma paixão, por isso não tinha pressa em casar-se com Timothy.

— Para mim — disse cortante — a solução não está no casamento. Isso não é um recurso para mim, tia. O dia que me casar, será por uma necessidade física e moral. Entende?

— Mas é que você já está cansada... — argumentou a dama.

Mônica fez um gesto de teimosia.

— Não entendo porque o azar me per­segue há dois anos. De qualquer jeito, não me caso enquanto não resolver o proble­ma da fazenda. E depois, por que hei de me casar e de unir as duas fazendas, a minha e a dos Fresson? Eles têm uma filha, e um dia se casará. O marido irá viver ali, não? Por que tenho que ir morar com os Fresson? O que Timothy venha para cá. Temos Inma, não? Inma tem tanta parte aqui como eu.

— Mas Inma está estudando, minha querida. Uma vez formada, se instalará na cidade, aposto. Você lhe daria sua parte em dinheiro e...

— Não! Esta casa é dos Keir e conti­nuará sendo até que caia de velha, ou irá parar, no pior dos casos, no banco.

— Isto sim, seria doloroso.

— E por que hão de juntar-se as duas fazendas?

— Não seja teimosa, Moni, pelo amor de Deus. Pouco posso ajudá-la nesta ca­deira de rodas. Sei que já tentou tudo, mas de que lhe adiantou? Só conta com dois ou três homens fiéis, do tempo de seu pai. O resto, é gente nova. Nem sabe de onde procedem. Talvez sua negligência se­ja o motivo de que tudo vá mal. Os próprios capatazes. Quantos teve, desde que seu pai morreu? Dezenas, e todos já se foram. Não gostam que uma mulher lhes dê ordens. Sabe o que eu faria em seu lu­gar?

A jovem suspirou.

— Sei. Venderia.

— De fato. Vender ou casar-se. As duas coisas, separadamente, são quase iguais.

— Não e não. Prometi a meu pai que salvaria isto, e o farei, acima de tudo. Só preciso de um capataz que fique aqui mais tempo. Um homem honrado, que me aju­de. Só isso. E a propósito, o novo capataz está me esperando no escritório.

— Moni...

— Não adianta, tia, não vai me con­vencer. Vou lutar, não sei até quando, mas lutarei. Até já.

E, já na porta, a jovem, se deteve.

— A que horas regressa Inma da cida­de?

— É sábado... Suponho que está para chegar.

— Já sabe, tia, não conte nada do que se passa a ela. Não quero que Inma se preo­cupe, ela tem que estudar, e só.

Dito o qual, saiu.

Mônica se sentou atrás de sua mesa e revolveu alguns papéis. Na realidade, nenhum deles valia grande coisa. Faturas, documentos bancários, lista do pessoal... Ultimamente vendeu as jóias que her­dou de sua mãe, para pagar algumas coi­sas. Claro que respeitou a parte que cabia a Inma.

Inma! Sim, Inma era como uma filha, para ela.

Verdade que só tinha menos três anos que ela, mas era como se fosse toda uma vida de diferença. Bateram à porta.

— Entre.

O capataz entrou. Mônica o convidou a sentar-se. O homem sentou-se, conservando o gorro entre as mãos.

Era de estatura comum. Nem bonito nem feio. Tinha o cabelo de um louro cin­za, liso. Os olhos esverdeados. Vestia cal­ça parda de montar, camisa de xadrez de manga comprida.

Um homem como outro qualquer, mas algo dizia a Mônica que aquele iria durar no posto de capataz. Parecia-lhe um ho­mem trabalhador e honesto.

— Não me disse seu nome — come­çou Mônica com toda a suavidade que pô­de.

— Chamo-me Dick North.

— Qual é a sua idade?

— Bem — hesitou, — vinte e seis.

— Só? — não pôde deixar de assom­brar-se — É que, por seu aspecto rude, parecia ter mais.

— Só... — mostrou suas mãos, após pequena pausa. — Olhe... Estão acostu­madas a trabalhar.

De fato. Eram mãos fortes, morenas, calejadas. Mãos pessoais e nervosas. Mãos que sabiam trabalhar, sem dúvida.

— O pior — disse Mônica com simpli­cidade, — é que nesta fazenda não se gas­tarão mais do que já estão.

Fitou-a interrogante. Mônica fez um gesto vago. Um gesto de infinito cansaço.

— Nesta fazenda — disse — os capatazes não param.

Foi espontânea a resposta.

— Eu pararei.

Outra careta de Mônica.

— Todos... dizem o mesmo — retru­cou, e sem esperar resposta, acrescentou: — Onde trabalhou antes?

Outra hesitação.

— Em muitos lugares e em muitas coi­sas. Fui desde carregador de cais em Londres, até tapeceiro em Bristol. Passei por tudo, mas como nasci em uma granja, sempre gostei mais de agricultura... — notava-se sua timidez, seu nervosismo. — Trabalhei em várias granjas, mas só fui capataz em uma.

— Posso saber por que a deixou?

— As coisas iam mal e ninguém ten­tava remediá-las. Gosto de me sacrificar por algo positivo... Por isso, um dia, quan­do chegou um capataz que estava traba­lhando aqui e contou algumas coisas des­ta fazenda, decidi apresentar-me... E mesmo, outro dia a ouvi numa loja, no centro de Luton.

— A mim?

— Sim. Eu carregava provisões para a granja, e a ouvi lamentar-se com o do­no do armazém. Dizia que o capataz se mandara... Então perguntei qual o seu nome, e quando voltei à granja onde tra­balhava, tornei a ouvir seu nome pelo ca­pataz antigo. Isso é tudo.

— Acabará se cansando, como os ou­tros, Sr. North.

— Acredito que não. Mas se isso acon­tecer... lhe darei tempo para arranjar outro, antes de ir-me.

Era distinto.

Claro em sua expressão, timido ao fa­lar, mas honesto, sem dúvida.

— Tenho uma boa equipe — disse Mônica — mas não sei o que lhe passa. Ou falta quem os dirija, ou não sei fazê-lo.

— A senhorita sabe.

— Quem lhe disse?

Não parecia explícito. Dir-se-ia que lhe custava olhar de frente, e que cada pala­vra que pronunciava, era um sacrifício para ele.

— Nota-se — disse apenas.

— Mas os resultados são negativos. Te­nho uma hipoteca pesando sobre minhas melhores terras. Tenho um ano para pa­gá-la, e as coisas não me ajudam.

— É o inexplicável.

— Por quê?

— Porque o inverno foi bom. Nem choveu demais, nem houve estiagem. Dei uma volta pela fazenda. É grande, a terra é boa. Não entendo porque... as colheitas foram ruins.

— À última hora — lamentou-se Mônica em tom cansado, — sempre ocorre algo. Ou um incêndio que acaba com meus pastes e minhas colheitas, ou as plantações secaram, ou nos falta água nos córre­gos por destruir-se as represas.

— Isso me parece sabotagem, Srta. Keir.

— Pode me chamar Mônica. Falava de sabotagem...

— Claro... Mas não me dê atenção. Sou desconfiado.

— E pessimista.

— De fato — hesitou. — Sou, e mui­to. Mas, por isso mesmo, cuido muito do que está sob minha responsabilidade. Não deixo nada ao acaso.

— É casado?

Nick fez expressão desolada.

— Não.

— E o diz de um modo...

— É que nunca se me ocorreu... ca­sar-me.

Mônica não queria se aprofundar na vida daquele homem. Bastava que lhe fos­se útil. Levantou-se, acabando com a en­trevista.

— Bem, espero que o senhor fique mais tempo aqui do que os outros ficaram. Faça com que os cavalos passem uma noi­te tranqüila. Viajarão amanhã e se tudo sair bem... terei adiantado muito. E na segunda-feira ao amanhecer, começaremos a selecionar as reses. Há muitas cabeças pelos pastos, espalhadas. Também preciso vendê-las. Mesmo vendendo durante um mês, não ganharei a metade da soma da hipoteca.

— Compreendo, senhorita.

Mônica mencionou seu salário, acres­centando:

— Terá uma percentagem na venda do gado e nas colheitas.

Era suficiente, mesmo porquê, ele não precisava de muito para viver.

— É suficiente, Srta. Mônica.

— Obrigada por sua compreensão. A verdade é que nunca encontrei um capataz como o senhor. Não sei se é sincero ou se trata de ganhar minha confiança.

— Tento ser honesto.

— Tomara que seja assim, Sr. North.

Ele assentiu com a cabeça e ia se diri­gir à porta, quando Mônica o deteve com umas palavras quase desconcertantes,

— Tenho uma irmã estudando em Luton, e não gostaria que ela soubesse do que está ocorrendo aqui. Aliás, poucas pessoas o sabem, apenas uns dois ou três peões que trabalham aqui desde o tempo de papai.

Dick sentiu vontade de poder ajudá-la, consolá-la.

Era a primeira vez que encontrava uma moça de vinte e poucos anos lutando por uma coisa tão séria, tão positiva.

E era bonita, também.

— Deixe comigo, senhorita — disse apenas. — Mas... me pergunto... por que tem tanta confiança em mim.

— Tenho que ter, a menos que descon­fie até de mim mesma.

— Quando me conhecer melhor, con­fiará mais em mim.

— Deus queira.

— Alguma coisa mais, Srta. Mônica?

— Nada mais. Ponha homens de con­fiança cuidando dos animais.

Não disse que ele mesmo ficaria fazen­do isso.

Mais tarde, conversando com sua tia, perguntou Mônica:

— O que você acha? Será que este fi­cará?

— Não sei. De qualquer jeito, você de­via desistir...

— Não desisto, tia Jacqueline. Lutarei até o fim.

— Está perdendo os melhores anos de sua vida.

Mônica sorriu.

— E sabemos em verdade quais são esses anos melhores, tia Jacqueline?

 

Inma era jovem, alegre, frívola.

Cada vez que chegava em casa em sua moto velha, com sua roupa amalucada e os livros debaixo dos braços, contava tudo o que ocorrera na Universidade. Os amigos que tinha, as conquistas que fazia, os de­sejos que tinha de unir-se a um homem por toda a vida.

— Aparecem muitos — dizia, feliz, — mas eu não ligo para nenhum... São ho­mens maravilhosos, mas como maridos... detestáveis.

— Lembre-se que primeiro deve termi­nar os estudos.

— Deixe comigo. Isso é moleza.

— Cuidado com as gírias, Inma.

— Oh, Mônica, não seja antiquada. Claro, vivendo presa aqui, parece mesmo uma velha — e de repente, Inma baixou a voz: — Vi um homem novo aqui... Quem é?

— O novo capataz. Suponho que se refira a ele.

— Não é bonito.

— Inma, não comece com essas coisas.

— Podia ter arranjado um bonitão, ao menos eu me distraia quando estou nesta prisão verde.

— Deixe de ser tão vazia — resmun­gou tia Jacqueline.

Inma apanhou seus livros e se levan­tou.

Era bonita e graciosa. Tinha os olhos azuis como a irmã, mas com menos ex­pressão.

— Irei para meu quarto, para trocar de roupa. Dentro de uma hora ou duas, virão uns amigos buscar-me. Durmo em casa de Emily.

— Outra vez? — perguntou tia Jac­queline aborrecida.

— Deixe-a — interveio Mônica. — Precisa aproveitar a vida. Chegará o tem­po em que enfrentará preocupações.

Inma riu alegremente.

— Que pessimismo, querida Moni. Sa­be o que eu faria em seu lugar? Mandava tudo isto para o diabo, casava-me com Timothy e tratava de viver.

Por toda resposta, Mônica começou a folhear o livro de contas, pensando que não valia a pena discutir aquilo.

Quando Inma se retirou, tia Jacqueline começou a falar.

— Você faz muito mal. Acha que se seu pai vivesse, concordaria com você?

— É possível que não. Mas como papai não vive, resta-me agir por minha conta.

Anoitecia.

Mônica trabalhava, e tia Jacqueline foi para seu quarto. Mais tarde, Inma saiu com seus amigos.

Após o jantar, Mônica saiu para o ter­raço e contemplou de longe o movimento inquieto dos cavalos presos no círculo que formava a paliçada.

Decidiu ver por si mesma como ia tu­do. Desceu e, lentamente, sob a luz da lua, dirigiu-se à paliçada. A noite era amena, e era gostoso caminhar. Cheirava a terra banhada pelo orvalho, a gado sadio, a flo­res, a noite acesa por mil aromas distintos.

A voz de um peão a deteve a poucos metros.

— Já lhe disse, capataz, sou responsá­vel. A Srta. Mônica tem plena confiança em mim.

— Não duvido — ouviu Mônica a voz do capataz. — Há quantos anos está tra­balhando nesta fazenda?

— Uns dois ou três.

— O suficiente para que a Srta. Môni­ca confie em você.

— Por isso mesmo, capataz. Pode ir dormir tranqüilo.

Mônica não via nenhum dos dois ho­mens.

— Vou ficar aqui — ouviu como dizia Dick North.

Mônica ficou intrigada.

— Se não sabe, fique sabendo que a menos de um quilômetro, temos uma cida­de onde há um bar com garotas.

Um silêncio. Depois...

— Por que não vai você, Jim?

— Ora, já passei dessa idade. Mulhe­res agora só me trazem aborrecimentos. Mas você é jovem. Na sua idade...! Hum. Eu era o diabo. Dormia cada noite com uma garota.

— Há gostos para tudo.

— Não me diga que você é...? Será possível...?

— Cuidado com o que diz, Jim.

— Desculpe. Quer que vá pegar uma garrafa de uísque? Para estas noites de plantão, a Srta. Mônica deixa uma garra­fa a nossa disposição. Se prefere conha­que... também posso trazê-lo, capataz.

— Não bebo, Jim.

— Bem — notava-se que este último estava alterado, — se vai ficar aqui, não precisa de mim. Mas se acontecer algo es­ta noite, não venha amanhã a patroa pedir contas a mim.

— Eu responderei por sua ausência. Pode ir dormir.

— Escute aqui, pretende mesmo con­tinuar no emprego?

— Pretendo, Jim.

— Diabo de homem.

E Mônica o viu passar, furioso, sem enxergá-la.

Estranha a atitude de Jim.

Claro que, normalmente, Jim era um bom peão. Trabalhador e responsável. Ver­dade que em várias ocasiões, em casos co­mo aquele, dormiu na paliçada e os ca­valos fugiram, perdendo-se uma venda muito importante. Bem, mas um descuido qualquer um comete, e Jim tentou pagar os prejuízos de seu próprio bolso. Não, Jim era um bom empregado.

Viu-o dirigir-se ao dormitório dos peões e falar com Sam, seu companheiro. Os dois pareciam acalorados, mas Mônica não sou­be o que discutiam.

Mônica entrou na paliçada, e o capataz, ao vê-la, ficou rapidamente de pé.

— Srta. Mônica...

— Boa noite, Dick. Estava dando uma volta e vim até aqui — e fingindo não ter ouvido a conversa de há pouco, comentou: — Como é que está o senhor aqui?

Notou que se aturdia um pouco.

— Estou de guarda.

— E os peões, por que não estão?

— Prefiro... ficar.

— E por quê?

Ele deu de ombros. Segurava o gorro e o cachimbo entre os dedos.

— Pode fumar — disse ela com suavi­dade. — Não precisa tanta cerimônia co­migo, Dick.

 

E sem que ele respondesse, perguntou rapidamente:

— Posso sentar-me um pouco?

— Claro, Srta. Mônica. Sente-se, por favor.

E se retirou, para que ela sentasse na pedra.

— Sente-se também, Dick. Aqui tem outra pedra, talvez não tão cômoda quan­to esta, mas é melhor que ficar de pé.

Dick hesitou, mas acabou se sentando.

— Meu pai também fumava cachim­bo — comentou a jovem.

— Ah.

— Faleceu há três anos, mas ficou doente durante cinco. Daí veio nossa ruí­na. Mas acho que foi bem empregado, não lhe faltou, assistência.

Dick assentia sem atrever-se a pergun­tar nada.

Mônica pensou que era um homem in­trovertido. E ela desejava saber algo mais sobre a pessoa que se dispunha a ajudá-la.

— Tem pais?

— Não — foi a breve resposta..

— Nem irmãos...?

— Não.

Notava-se que não queria falar dele.

Mas a jovem insistiu ainda:

— Está sozinho no mundo, então.

— Estou com os outros.

Ele apenas sorriu de leve. Ao fazê-lo, seu rosto moreno pareceu abrir-se um pou­co.

— Com que outros?

— Os demais humanos. Não é pouco, verdade...?

Mônica se desconcertou.

— Não — disse. — Encarando-se as­sim, não é pouco. O caso é que os outros pensem igual ao senhor.

— Isso nem sempre ocorre.

— Certamente.

Houve uma pausa.

Ia acender um cigarro, mas Dick se antecedeu e acendeu-o para ela. Seus olhos se encontraram.

— De onde saiu, Dick? — perguntou à queima-roupa.

Seguiu-se um silêncio.

Alguma coisa dizia a Mônica que aquele homem era diferente. Ou era um hipócrita completo, ou um ser extraordi­nário. E Mônica já estava duvidando de que fosse honesto, porque seu natural pes­simismo a fazia duvidar de tudo.

— Não me disse de onde saiu — insis­tiu a jovem após uma pausa que pareceu a ela mesma embaraçosa.

— Já lhe disse.

— Onde se criou? Em Londres?

— Em Croydon. Em um asilo.

Disse-o sem raiva. Até com suavidade.

— Lamento — disse ela depois.

— Por quê? — e após fumar e expelir fumaça, acrescentou: — Aprende-se muito vivendo nestes lugares. Se você se revoltar, torna-se até um delinqüente, mas se se conforma com sua sorte, pode-se se tornar alguém. Essa experiência pode aju­dar a diferençar o bem do mal, a riqueza da pobreza. Sabe, eu nunca pensei em fu­gir dali. Terminei o curso primário, de­pois, já trabalhando, continuei os estudos, mas desisti depressa, era duro demais. Fiquei só com o trabalho, a cultura é um dom como a beleza, a bondade ou a rique­za.

Tornou a dar de ombros.

Como Mônica, aturdida ainda, nada dissesse, ele mesmo continuou:

— Não pense que me ofendeu. É natu­ral que queira saber quem sou e de onde venho. Pois é isso. Não tive tempo de go­zar a vida, de modo que só sei trabalhar e cumprir com meu dever.

— Creio que é muito, Dick. Obrigada por sua sinceridade e simplicidade.

— Boa noite, Srta. Mônica.

A jovem já se ia, mas de repente, se deteve.

— Diga-me, Dick, por que não permi­tiu que Jim ficasse, em seu lugar?

Dick hesitou um segundo. Depois...

— Pelo que sei, em outras ocasiões se­melhantes, Jim deixou o gado escapar, e foi um custo até reuni-lo, de modo que a senhorita perdeu a chance de vendê-lo, perdendo dinheiro. E ainda teve que pa­gar pelo transporte, o que foi um prejuízo muito grande.

— Como sabe de tudo isto?

— Já disse, ouvi-a quando se lamenta­va com o dono do armazém — e antes que ela pudesse retrucar, acrescentou: — Por isso decidi fazer à minha maneira. Dormi­rei eu aqui.

Mônica se foi com a sensação de ansie­dade. Em que aquele homem pensava, se ali todos eram fiéis e honestos?

De repente, no meio da noite, ouviu gritos desaforados e o trotar de cavalos. Levantou-se espavorida.

Vestiu um roupão sobre o pijama, alisou o cabelo com a mão e, em alguns sal­tos, estava junto à paliçada.

O capataz agarrava Sam pela nuca, com firmeza. Jim e mais três peões sur­giram, ajeitando a roupa. Ninguém repa­rou nela. Olhavam para o capataz e Sam, que se debatia em mãos do primeiro.

— Já disse que fui só apanhar meus cigarros. Que culpa tenho de que você não estivesse na porta...?

O capataz deu um murro em Sam, e começou a gritar:

— Cuidem dos cavalos. Você, você e vo­cê, arrumem a paliçada que se estragou. Atrás dos cavalos. Fugiram dez.

Foi uma correria. A própria Mônica, sem ligar para Sam, ajudava a segurar a paliçada, para que os peões a arrumassem. Os cavalos trotavam pelo bosque. O capataz, a cavalo, dava ordens, atravessa­va o caminho dos potros fugitivos.

Uma hora depois, os dez cavalos ha­viam voltado à paliçada, e Mônica ainda estava ali.

Sam havia desaparecido. Os outros peões respiravam fundo, cansados. Jim xingava todo mundo.

O capataz, por sua vez, olhava para Mônica. Vista assim, de pijama e roupão, era... algo surpreendente. Ele jamais ha­via visto uma mulher vestida assim.

Por fim, Mônica reparou no seu olhar e ficou corada.

— Volto já — disse, virando-se. — Quero saber o que aconteceu aqui.

No caminho para casa, ia pensando.

Por que Sam fizera aquilo? Não pediu cigarros a Dick por quê? Por que teve que romper a paliçada do lado oposto ao que Dick vigiava?

Quando voltou à paliçada, os olhos de Dick eram distintos. Dir-se-ia que jamais a vira naqueles trajes íntimos.

— Chamem Sam — Mônica secamente Jim disse de má vontade.

— Está na cama.

— Que venha, seja como for — gritou Mônica, furiosa. — Vá buscá-lo, Dick.

O capataz girou sobre si. Depois, a jovem disse ao capataz:

— Recuperaram-se todos os cavalos?

— Perderam-se dois, mas se a senhorita me permite, penso pagá-los tirando do ordenado de Sam.

— Talvez Sam tenha agido involunta­riamente.

— Bem, se o fez voluntariamente, despeço-o agora mesmo, ou me despeço eu, se a senhorita me desautoriza.

— Esperemos que ele fale — acalmou-se ela. — Deve ter alguma desculpa plau­sível.

Sam apareceu. Já maduro, cabelos gri­salhos, envergonhado....

— Srta. Mônica, estou tão confuso...

— Diga-me porque fez o que fez.

— Srta. Mônica, estou aqui há muitos anos, se fiz o que fiz, foi por sofrer de insônia... precisava fumar. Ia entrar pela porta, mas o capataz estava atravessado nela. Sim, creio que era ele. Assim, re­solvi saltar pela parte de trás e como sa­be, ali a paliçada está meio podre. Foi um acidente, juro. Não pode mandar-me embora — juntou as mãos suplicando. — Lembre-se do quanto fiz quando seu pai estava doente. Nem me queixei quando contratou capatazes, esquecendo-se de mi­nha antigüidade. Tenha piedade, Srta. Mônica.

— Retire-se — disse a jovem com um nó na garganta. — Amanhã falaremos de novo no assunto. — Olhou para o capataz: — Também falaremos, Sr. North.

— Pois não, senhorita. Agora, lhe peço um favor.

— Diga.

— Não vou precisar de muitos homens para conduzir o rebanho. Deixe Sam e Jim aqui...

Os dois iam rebelar-se, mas o capataz foi taxativo:

— Ou eles, ou eu. Escolha, senhorita.

— Jim — disse Mônica algo coibida. — Vá dormir e leve Sam. Creio que pre­cisa descansar.

E girando, não deu tempo a que re­trucassem.

 

Inma, como fazia em todas as manhãs de domingo, contava à irmã o que fizera na noite da véspera.

— Conheci um cara sensacional. Mas é remelento.

— Inma, não seja bruta.

— Não é pena que um homem bonitão seja remelento?

— Inma, pelo amor de Deus.

Inma ria.

Ela também gostaria de poder rir, mas eram tantas as preocupações, tantos os problemas!

— Posso trazer esta tarde alguns ami­gos meus aqui.

Quando Inma trazia seus amigos da ci­dade, todo o estoque de uísque desapare­cia. Comiam todo o presunto e queijo e todas as conversas.

Mas ela jamais dizia que não a Inma.

— São uns caras fabulosos, Moni. Vo­cê os conhece.

Mônica não prestava atenção. Pensava no capataz e os três homens que saíram àquela manhã com os cavalos, e encon­trariam o vagão esperando-os às onze ho­ras. Eram doze e trinta.

— Desta vez — dizia Inma, — você tem que participar. Convidará Timothy, não?

Timothy? Ah, sim. Não o via desde o dia anterior.

— Moni, me diga, como pode passar a vida entre esses homens broncos? Por que não deixa tudo nas mãos de Sam?

Inma não sabia de nada. Se, tendo ela à frente de tudo, as coisas estavam naque­le pé, como deixar as mãos de um criado?

Ouviu-se o trote dos cavalos.

— Chegaram — disse, sem se conter.

— Quem, Moni? — espantou-se Inma.

Mônica se dominou. Levantou-se e dis­se lentamente:

— Os que levaram os cavalos. Dê a sua festa, Inma. Agora, com licença, vou ver o pessoal.

Pouco depois, em seu escritório, espe­rou por North. Este não demorou. En­trou firme, suarento, aspecto cansado.

— Entre — disse Mônica. — E feche a porta.

Dick obedeceu. Depois, acercou-se à mesa.

Sem dizer palavra, Dick depositou na mesa um bolo de notas. Tinha o gorro na outra mão e não fumava.

— Conseguiu — disse Mônica com an­siedade.

Dick não pareceu abalar-se. Fitou-a.

— Consegui — disse indiferente. — Mas nunca lhe ocorra confiar a Sam ou a Jim uma coisa como esta.

— Mas...

— Não tenho motivos concretos para duvidar deles, mas desconfiado como sou, prefiro não pensar no que houve ontem, pois se pensar, os condeno. Entende-me?

— Entendo. Mas... Sam está aqui há mais de vinte anos.

— Um dia, pode-se ter uma fraqueza.

— O que quer dizer?

— O pior é que não sei o que quero dizer. De todo modo, é o que digo. Como é domingo, tomei a liberdade de pagar os três rapazes que me acompanharam.

— Fez bem. E depois do ocorrido — mostrou as notas — é a primeira vez que me entregam todo o dinheiro. Não só os rapazes merecem um prêmio, o senhor mais do que todos.

E estendeu uma nota para o capataz, que a recusou.

— Cumpri apenas com meu dever, senhorita.

— Mas é que nenhum capataz fez is­so e creio que também tentavam cumprir com o seu dever.

— Não cumpriam — cortou. — Co­briam as aparências, isso é diferente — e sem transição, acrescentou: — Segun­da-feira começaremos a reunir o gado es­palhado pelos montes. Tratei do assunto com o comprador dos cavalos. Daqui a dez dias, ele virá apanhar duzentas cabeças de gado.

Mônica abriu muito os olhos.

— Mas, Dick, jamais reuniram tantas cabeças aqui.

Dick disse de modo estranho:

— Mas existem, não?

— Claro. E até mil. Mas difíceis de reunir, acredite.

Por toda resposta, Dick pôs um do­cumento na mesa.

— Que é isso?

— O contrato de compra. Assine-o e me devolva. Eu me incumbirei de reunir o gado contratado. Se não entregar esse gado com destino a Luton, outro fazendei­ro o fará, e o comprador parece que foi amigo de seu pai, prefere fazer negócio com o gado dos Keir.

— É o que não aceitam — disse Moni se emocionando — os outros fazendeiros. Sr. Morton foi amigo íntimo de papai. Ele me compra o gado sempre que eu lhe posso vender, mas, apesar de termos mais de mil cabeças, nunca consigo reunir mais de cinqüenta, e dessas, ainda se perdem umas vinte e oito, pelo menos.

Dick já ia saindo, quando falou:

— Desta vez... nós reuniremos as duzentas.

Antes que ele saísse, ela perguntou:

— Dick... como o conseguirá?

— Descansando de dia e vigiando e trabalhando amanhã.

— Dick..., por que o faz?

— Costumo sempre cumprir com o meu dever, doa a quem doer.

E não acrescentou o que suspeitava, porque não era de fazer acusações sem ter antes provas concretas.

— Obrigada por tudo, Dick — disse Mônica emocionada. — Durma a manhã e à tarde, vá até a torre. Inma oferece uma festa a seus amigos. Gostaria de vê-lo ali.

Ele, em uma festa?

Só mesmo rindo. Mas, para vê-la...

— Obrigado.

— Irá, ou terei que mandar chamá-lo?

— Procurarei evitar-lhe trabalho, Srta. Mônica.

— Obrigada mais uma vez, Dick. É a primeira vez que encontro um homem como você.

Dick saiu sem esperar uma frase mais, nem dar resposta ao agradecimento da jo­vem.

Se ele estava ali, naquela fazenda, foi porque viu aquela jovem no armazém e fi­cou profundamente impressionado. Isso era tudo.

Ele não era altruísta, nem um samaritano. Ele era um homem que nunca co­nheceu uma mulher, que nunca amou.

Mas começava a sentir coisas estranhas dentro de si.

Coisas que produziam um ímpeto até então desconhecido.

Foi por isso e por nada mais, que ele estava na fazenda dos Keir.

 

Timothy apareceu às duas da tarde, algo sufocado. Como sempre, não parecia um filho de granjeiro.

Elegante, bonito, impecável. A princí­pio, seu jeito cativou Mônica, mas atual­mente estava tão habituada a ele, que quase se enjoava de vê-lo.

— Então, um capataz novo — disse en­tre dentes.

Mônica o fitou assombrada.

— Acho que lhe tinha dito. Não sabe da proeza que ele fez?

— Chama proeza conduzir uma mana­da de cavalos?

— É a primeira vez que o consigo.

— Mônica, não se fie em um desco­nhecido.

Mônica se sufocou. Sentia, de súbito, uma raiva incontida. Mas ela sabia conter-se.

— Mas em Sam, posso confiar.

Timothy franziu o cenho.

— O que houve com Sam?

— Entrou pela parte mais frágil da paliçada, burlando a vigilância do capataz, rompeu-a e eu quase perdi metade da ma­nada. O que me diz disso? Sam devia ze­lar por meus interesses, e não destruí-los.

Timothy freou sua ira. Se Mônica fos­se mais observadora, teria notado uma transformação no rosto do noivo. A con­tenção que estava fazendo para não es­tourar.

— É melhor esquecermos isso — dis­se. — É domingo, acho que podemos nos divertir na cidade.

— Timothy, você sabe...

Timothy tentou beijá-la. Mas Mônica o afastou com um gesto suave mas firme.

— Mônica, somos noivos...

— Esqueça isso, Timothy. Estávamos falando do meu novo capataz. Vou fazer tudo para conservá-lo.

— Bem, faça o que quiser. Eu ainda acho que devia se casar logo comigo. Da­ria a Inma sua parte, que com minha aju­da e a de meu pai, poderia ser bem mais forte.

— Já disse que não quero que Inma saiba o que acontece.

— Não vou contrariá-la. Mas nós temos o direito de ser felizes. Por que essa sua mania de levantar algo que está no chão?

— O que disse? Agora que começo a respirar, que tenho um bom colaborador, pede-me que deixe a luta?

— E o que represento para você?

Mônica começava a pensar que não sa­bia mais o que Timothy representava para ela.

— Esqueça isso — disse meio cansada. — De momento, fico aqui, e você fica se quiser.

— Mônica, está me despedindo? Quer romper nosso compromisso? É isso o que quer?

— Não. Mas pretendo levantar minha fazenda, e quando o conseguir, pensarei em mim mesma.

— Então já seremos velhos, renegan­do tudo e esquecendo que a juventude está passando.

— Só tenho vinte anos, Timothy.

— Às vezes, quando fala, parece uma velha. Sabe o que lhe digo? — apontava-lhe o dedo em riste. — Seu pai, em seu leito de morte, devia tê-la confiado a nós. A mim e a meu pai. Papai lhe fez uma boa oferta de compra e eu me casaria com você naquele mesmo momento.

— Você sabe que não quero me desfa­zer de minhas terras. Não vou destruir o que papai construiu com sacrifício. Luta­rei enquanto tiver forças, e só morta de­sistirei. Minhas terras são ricas, têm tudo para dar certo. Acontece é que não tive quem me ajudasse de fato, parece que a fatalidade bateu à minha porta desde que papai faleceu. Agora, tenho um bom capataz, estou esperançosa.

Timothy esteve a ponto de explodir, mas se conteve.

— Iremos a Luton — decidiu. — Você e eu, para celebrar este seu triunfo.

Mônica respirou melhor. Aquilo era outra coisa.

— Inma oferece uma festinha hoje aos amigos — disse.

— Não pense que vou me meter com esses meninões.

— As festas de Inma costumam ser boas.

— Sabe por experiência? — zombou.

Mônica sorriu.

É, talvez fosse melhor ir a Luton com seu noivo.

— Está bem — decidiu. — Espere-me às cinco. Venha me buscar a esta hora.

— Ora, é melhor às quatro.

— Está bem, teimoso. Sempre conse­gue o que quer.

Timothy aproveitou para beijá-la nos lábios.

Ao separarem-se, Mônica corou. O capataz passava pelo jardim e seus olhos verdes, desconcertantes, a fitaram de uma forma especial.

Mônica se agitou. Fingiu que não o viu e se foi com Timothy jardim abaixo. Mas lhe parecia sentir o fogo de um olhar, reprovador, as suas costas.

Não soube nunca porque quis justifi­car-se. Aquilo era uma tolice.

Mas o fato é que, toda arrumada, des­ceu ao terraço às três e meia. Estava lin­da, com um vestido verde, decotado, leve e gracioso.

Em dado momento, deparou com o capataz arrumado para sair. Vestia calça bege e camisa marrom. Parecia mais alto e mais esbelto.

— Vai... à cidade? — perguntou o mais natural possível.

Ele mal moveu um músculo do rosto.

Fitava-a.

— Não — disse. — Vou dar uma volta pelo campo.

— Não pretende ir à festa de minha ir­mã?

— Não.

— Eu vou à cidade com meu noivo...

Ele a fitou interrogante. Sem dúvida desconhecia aquele noivado. Mas ela não queria que a visse beijando-se com um homem, como se ela fosse uma frívola que beijava todo mundo.

— É meu noivo... — implicou. — Timothy Fresson.

— Os que pretendem comprar suas ter­ras — disse de modo raro.

Mônica levantou uma sobrancelha.

— Quem lhe disse... que o preten­dem?

— Creio que a senhorita mesma. Não sei ao certo. São esses, não?

— Bem..., sim. Somos noivos há mui­to tempo.

Ele não parecia interessado no que ela dizia.

Olhava para um ponto qualquer.

— Divirta-se, Srta. Mônica.

— Obrigada.

Viu-o afastar-se.

Inma apareceu neste momento no ter­raço.

Ao ver sua irmã vestida, gritou:

— Então vem a minha festa?

— Vou com Timothy à cidade

— Oh!

Os carros dos amigos de Inma come­çavam a chegar.

Inma segurou sua irmã pelo braço.

— Escute, falta-nos um rapaz. À úl­tima hora, o pai de Richard ficou doente e este não pôde vir.

Mônica teve uma idéia luminosa.

— Veja, ali, perto do rio vai Dick Korth, o capataz.

— E daí?

— Convide-o.

— Boa idéia. Vou atrás dele — e gri­tando para seus amigos: — Vou arranjar um cara que substitua Richard. Fiquem à vontade. Já está tudo pronto.

Os jovens convidados iam passando e saudando Mônica:

— Está uma beleza.

— E vai sair com o noivo, sem graça.

— Tenho pena de nós, Mônica.

— Nós a adoramos.

— Loucos — disse rindo. — São uns loucos, varridos...

Quase em seguida apareceu Timothy ao volante de seu carro de corridas.

 

Voltou já bem tarde. Ao deixá-la em frente à sua casa, Timothy a beijou demoradamente.

— Basta, Timothy.

— Nunca me deixa beijá-la como que­ro.

— Por favor.

Via uma chispa ao longe.

Dick?

Com certeza. Sentiu-se nervosa. Não sabia porque ficava tão agitada só em pen­sar que Dick a vira beijando-se com Ti­mothy. Cedo ou tarde ia casar-se com ele. O que tinha que se beijassem?

Ficou louca para se ver dentro de ca­sa. Era tarde, já. Uma hora da madrugada.

Talvez duas horas mais tarde se fosse o capataz e os outros a caminho dos cam­pos e montes, procurando o gado para vender na semana seguinte.

E se fosse saber o que tinha o capataz que dizer sobre aquela saída de madru­gada?

Não. Que bobagem. Já sabia o que iam fazer.

— Boa noite, Moni.

Ah, Timothy ainda estava ali.

— Até amanhã, Timothy.

O carro se foi, em desabalada carreira. Ela levantou uma sobrancelha. Havia se divertido?

Bem... Sim, por que não? Tinha ape­nas vinte anos.

— Iremos dentro de duas horas.

Ficou paralisada. Não o viu chegar. Virou a cabeça.

— Oxalá... tudo corra bem, Dick.

— Isso espero.

Tinha o cachimbo apertado entre os dentes.

Já não vestia calça bege e camisa mar­rom. Usava culotes de pano verde escuro. Uma camisa lisa, de um tom pardo, arre­gaçada até o cotovelo e aberta no peito.

— Estive na festa — disse de repente.

— Sim? Divertiu-se?

— Bastante. Sua irmã é encantadora e seus amigos muito simples.

— Quem lhe fez companhia?

— Sua irmã. Inma se deu logo conta de minha timidez.

— Ah.

— Bem, Srta. Mônica, desejo-lhe um bom descanso. Não voltarei em toda a se­mana.

— Não voltará?

— Primeiro — ouviu-o dizer, pois esta­va contra a luz e não lhe enxergava o rosto — faremos uma paliçada, de qual­quer jeito. Será num lugar mais adequa­do. Iremos reunindo ali as reses e vigiando-as. Creio que os rapazes que levo são de confiança, mas não me fio nos que apareceram ali, de outras granjas. Lem­bre-se que todos desejam vender o gado a bom preço, mas de momento, só podem fazê-lo, se a senhorita falhar ao compra­dor. Seu pai assinou a exclusividade por dez anos. E ainda faltam cinco para que se expire esse prazo.

— Isso eu sei.

— Por isso lhe digo que porei vinte olhos em cada rês — e de súbito: — Boa noite, Srta. Mônica.

— Uma vez instalado — disse à meia voz, não sabia o que lhe passava — faça-me o favor de enviar um emissário para dizer-me em que parte estão. Irei vê-los e levar-lhes provisões.

— Deixe isso para qualquer peão.

— Prefiro ir eu.

— Como queira. Boa noite, senhorita.

— Boa...

 

— Mas... — parou na porta de seu quarto. — O que faz em minha cama?

Inma se sentou e esfregou os olhos.

— Esperava-a.

— Mas — Mônica entrou e foi tiran­do a roupa. — Você é uma dorminhoca.

— Adormeci em sua cama.

— Inma — de repente teve medo de que o capataz tivesse contado aquelas coi­sas a sua irmã. — Por que me esperou?

Foi falando e entrando no banheiro. Deixou a porta entreaberta, para po­der ouvir o que sua irmã dizia.

— Estive dançando com seu capataz.

— Ah.

— Imagine, ele não sabe dançar. E me pisou umas cem vezes em toda a noite.

Mônica apareceu atando o cinto do robe.

Debaixo usava um pijama azul escuro.

O cabelo solto. Sem pintura nenhuma. Estava linda.

Inma a fitou entre carinhosa e admirativa:

— Você está linda, mana.

— Deixe de bobagem. Estava dizendo...

— Que Dick não sabe dançar. E nem flertar, nem beijar, nem nada.

— Inma!

— Não me olhe com esse horror. Não o provoquei para me beijar. Não seja mal­dosa. Gosto de flertar, mas sei aonde de­vo parar.Verdade — começou a rir — que aprincípio tentei conquistá-lo. Uma coisadiferente, sempre agrada. Mas de­pois, ao dar-me conta de sua inexperiên­cia...

Mônica exclamou, sem se conter:

— Inexperiência?

— Absoluta — confirmou Inma como se conhecesse muito bem os homens, e em parte era verdade, pois conhecia um gran­de número deles. — Tão inexperiente, Moni — acrescentava Inma — que me deu pena.

Mônica decidiu escutar sua irmã com calma. E claro, não duvidava do que Inma dizia.

Aos dez anos, já ia a Luton sozinha. Aos quinze, namorava, aos dezesseis qua­se ficou noiva, aos dezessete terminou tu­do e quase aos dezoito, sua idade atual, tinha uma legião de amigos.

— Exatamente, Moni... Vejo que es­tá incrédula, mas é a pura verdade. Nunca dançou antes, nem beijou uma garota.

— Inma!

— Não se espante. É um tipo que dis­farça sua timidez com uma audácia que não existe. Aposto como é um homem casto.

— Será?

— Aposto.

— Como o qualifica? De bobo, inocen­te, anormal?

— De homem, apenas. Homem que não teve oportunidades. Homem que teve muito o que fazer em sua vida, e se es­queceu do sexo oposto.

— Por doença? — assombrou-se Mônica.

— Que nada! Por discrição. Por me­do. Por timidez.

— Mas, garota... que coisas você diz.

— Você entende muito de reses e de cavalos, e de gado leiteiro. E de como se maneja um trator, quando e como chega a colheita. Também conhece algo de um tipo teimoso, mentiroso e bobo como Timothy.

— Inma!

— Desculpe. É que não simpatizo com esse paspalho.

— Inma, já disse...

— Desculpe outra vez, Mônica. Na realidade, não a esperava para falar do bobo do seu noivo. E sim para contar-lhe coisas surpreendentes de um homem novo que conheci esta tarde.

Mônica se levantou nervosa.

Deu algumas voltas pelo quarto e foi sentar-se outra vez à cabeceira da cama, onde sua irmã continuava deitada, com as mãos sob a nuca.

— Comecemos com calma, Inma.

— Que calma, que nada. Conto-lhe a realidade. Não é que eu seja uma vamp, que bobagem! Mas conheço bem os ho­mens, e para sua tranqüilidade, ainda sou virgem. Flerto muito, divirto-me, mas não me deito com nenhum sujeito.

— Inma, que modos...

— Não preste tanta atenção em mi­nha linguagem. Estou sendo sincera, ape­nas. Sabe por que você não se atreve a falar como eu? Porque você vive em um mundo reduzido. O meu é mais amplo, mais verdadeiro. O fato de que seja livre em minha linguagem deve demonstrar-lhe que não o sou em meus atos. Essa era a hipocrisia das mulheres de antiga­mente. Muitos não-me-toques, muita fala polida e depois, haja filhos ilegítimos..., mais do que hoje.

— Inma, você me assusta...

— Mas não estamos falando de mim — continuou a outra, serena. — Falamos do grande fenômeno que é Dick North.

— Apaixonou-se por ele...?

Inma deu um salto.

— Caramba — disse rindo. — Acha que me apaixono como quem toma um aperitivo?

— Bem...

— Claro que não, Moni. Falo do que descobri em Dick. Sabe, sem querer ele me abriu sua alma. Nunca namorou. Nem teve amantes. Nem nada de nada.

— Não me diga. Ele mesmo o disse?

— Eu fui descobrindo. Com jeitinho. Não me pergunte como consegui, não sa­beria explicar. Só sei que Dick é isso que lhe digo. Um homem casto, puro.

Mônica a reteve nervosamente.

— Inma... me dá medo que fale as­sim.

Inma olhou para a irmã mais velha como se esta fosse uma garotinha tola.

— O que queria? Que falasse como uma freira, e em seguida fosse me deitar com meus amigos?

— Cuidado com o que diz, Inma. Se papai levantasse a cabeça...

— Se a levantassem, poderia deitá-la tranqüilamente, pois veria que sua filha tem juízo e moral suficiente para defen­der-se neste mundo porco, cheio de men­tiras.

— Parece uma cética.

— Pois sou otimista. O bastante oti­mista para me dar conta da mentira humana.

— Será que Dick descobriu tudo isso?

— Sei lá. Mas, sabe? Começo a pen­sar que é tão corajoso que tanto lhe da­ria que o descobrisse eu ou você, ou qual­quer de seus amigos.

— Tem amigos?

— Passou a ter agora. A turma toda gostou dele, e passaremos a convidá-lo para todos os nossos programas.

Retirou-se, finalmente.

Mônica ficou pensativa. Dick, um ho­mem casto. Não se equivocava Inma?

Inma era tão frívola! Bem, sensata também. Sim, sim, sensata dentro de sua frivolidade, ainda que pareça paradoxal e contraditório.

Deitou-se.

O paspalhão do Timothy! Por que In­ma dizia isso? E por que não simpatizava com ele?

Ela o estimava. Claro, gostava muito dele.

Ouviu o trote de cavalos e se levantou, apagou a luz e foi até a janela.

Cinco cavaleiros se perdiam no pátio. Reconheceu-o. Erguido, firme na sela.

Depois, viu-o afastar-se por entre os arbustos.

Atrás dos cavaleiros ia a carroça com as provisões e todo o material necessário para marcar o gado.

"Irei levar-lhes comida fresca", pensou.

Jamais o fez até então. Claro, jamais também teve um capataz como aquele, que amanhecia no campo. Que levava to­dos os cavalos a seu destino e voltava com dinheiro.

— Esqueci de lhe dizer uma coisa.

Virou-se para a porta.

Ali estava Inma, descalça, de pijama.

— Mas — agitou-se, fechando a cor­tina. — Não se deitou ainda? Não tem que acordar cedo amanhã para ir à facul­dade?

Inma deu de ombros.

Depois, sentou-se à beira da cama, en­quanto Mônica a fitava algo confusa. Ainda se ouvia o trotar dos cavalos.

— Aonde vão esses agora?

— Reunir o gado. Sabe que temos um contrato de venda... É preciso levar o ga­do para ser transportado dentro de uma semana.

— E quem dirige a expedição?

— Dick North.

— Tem força para isso. Se não me en­gano, você tem perdido bastante gado esta temporada passada, e muda de capatazes como quem muda de sapato.

— Bem, você não veio aqui para me falar sobre isso.

— Não. Para meter-me, como sempre, aonde não fui chamada.

Mônica franziu o cenho.

— Vai me falar de Timothy.

— Exato. Ele não é o homem ideal para você. É pedante, tolo, infantil e presunçoso...

— Inma!

— Desculpe, mas detesto esse tipo de homem que sabem tudo, e quando se che­ga ao fundo, vê-se que não sabem nada.

— Não sei porque fala assim, dele.

— Porque sei que ele não é de nada. Formou-se em advocacia, mas eu não o aceitaria como meu advogado nem que fosse o último do mundo. Aquilo só sabe ter pose por causa do nome e da fortuna do pai e do avô. É um cara vazio, bobalhão. Homem com H maiúsculo mesmo, é Dick North...

— Será que está apaixonada por ele?

— E você, será que se tornou tão ca­reta quanto Timothy? — gritou Inma. — O que tem a ver amizade, estima, com amor? Porque para mim, o amor tem algo mais que amizade, admiração e considera­ção. Tem sexualidade.

— Inma, você me assusta.

— Devia se assustar era com seu noivo imbecil.

E saiu em disparada. Mônica ficou tão assustada quanto aturdida.

Passou dois dias sem ter notícias do capataz e sua equipe. No terceiro dia, já de noite, viu um vaqueiro chegar.

— Esse é um cavalo novo — observou Mônica.

— Sim, senhorita. No caminho para lá, encontramos uma manada estupenda e o capataz domou cinco potros e nos deu a cada um. Os cinco que montávamos antes, estão na paliçada.

— Tudo vai bem com Dick?

— Por enquanto, sim. O capataz me manda dizer-lhe onde estamos acampados. Aqui neste gráfico, fica a nossa posição.

 

Na manhã do dia seguinte, deu ordem para preparar uma carroça com comida fresca, e ela mesma a levaria.

— Pelo visto — comentou sua tia sem ironia, — esse novo capataz vale mais que os outros. Esperemos que o gado chegue a seu destino. Sabe de uma coisa, Mônica? Há mais de seis meses que uma manada não chega inteira à ferrovia, o que faz com que outros fazendeiros, em particular os Presson, vendam o seu a duplo preço.

— Ontem, Sr. Smith veio me ver, a fim de contratar a venda de cem cabeças. Se conseguir essa venda, terei batido um record na temporada. De todo modo — continuava Mônica explicando, — assinei o contrato de venda para daqui a quinze dias, tendo em conta que já transcorreram quatro, desde que os peões se foram.

— Que diz seu noivo de tudo isto? Su­ponho que seu afã por casar-se é de que venda tudo isto, ou o junte a sua fazenda, lhe tenha passado um pouco.

— Não lhe passou nada. Continua pensando que venderei ou me casarei, e por isto todo meu afã de luta terá cessa­do — baixou a voz. — Não conte nada a Inma do que está acontecendo. Ao menos sobre os apuros econômicos que estamos passando. Assim que eu voltar do acam­pamento, irei a Luton falar com o diretor do banco. Com o dinheiro que já tenho, poderei pagar os juros.

— Não me diga que vai sozinha.

— Por que não?

— Não sei. Mas você não tem muitos amigos no vale.

Mônica fez um ar de espanto.

— Não os tem — acrescentou a tia, — porque se tivesse o gado pronto, venderia com maiores facilidades e melhor preço. Todos os outros fazendeiros têm que con­duzir o gado a Luton, e isso custa dinhei­ro. Você, em troca, vende-o a menos de meia milha, e basta-lhe deixá-lo acampa­do ante a parada do trem, e todos os ris­cos, uma vez levado o gado até lá, correm por conta do comprador. Essa é a razão da inveja dos outros, e por isso eu acho que você corre perigo. Se você desaparece, os fazendeiros podem unir-se, e então o contrato de exclusividade que você tem, pode passar a eles. Entende a razão agora?

Mônica ficou pensativa.

Tia, você também acha que aqui se passa algo errado? De que nem tudo o que ocorre é obra da fatalidade?

— Bem, não sei. Mas, quem é que pensa assim?

— O novo capataz.

— Vê-se que não é um tolo.

— Não sei o que está ocorrendo no acampamento. Estou ansiosa para chegar lá e saber. Se Inma aparecer, não lhe conte nada. Deixe que seja feliz.

— Enquanto você se consome fazendo o que caberia a um homem fazer, verda­de?

Mônica a encarou seriamente.

— Prefere que eu me case com Timothy?

— Bem, se você o ama, a opinião dos outros não conta — respondeu a dama energicamente.

Amava seu noivo?

Começou a namorá-lo pouco depois da morte de seu pai. Primeiro os Fresson tentaram comprar a fazenda com todos os pastos e gado. Quase se tornaram seus inimigos, quando ele se negou a vender. Mais tarde, bem mais tarde, Timothy co­meçou a freqüentar sua casa, veio a ami­zade, e depois... começou o namoro. Isso foi tudo.

— Até a noite.

— Se vai chegar tarde, peça que o capataz a acompanhe, John ou qualquer dos rapazes.

— Está bem, tia Jacqueline.

Pouco depois, encontrava-se no cami­nho para o acampamento. Não pensava em nada determinado.

Quando chegou, viu Dick reforçando a paliçada. Havia muitas cabeças de gado naquele círculo, e dois peões marcavam reses ao lado de uma fogueira.

Desmontou da carroça quando Dick a viu.

— Bom dia, Srta. Mônica.

— Olá, Dick — e foi quando o fitou fixamente, como se pudesse ver castidade naqueles olhos verdes.

Mas aqueles olhos não mostravam na­da definido. Olhavam calmamente, nada mais.

— Como está indo tudo, Dick? Trou­xe vinho e conhaque, além de comida fresca. Pão torradinho e quente e carne as­sada esta manhã — falava rapidamente, para que Dick não visse seu aturdimento. — Espero que os rapazes estejam se por­tando bem.

— E eu espero que John não tenha dado nossa localização.

Foi a breve resposta de Dick.

Mônica o fitou intensamente, e depois fez um comentário, que logo após se ar­rependeu de tê-lo feito.

— Pelo que vejo, não têm água para banhar-se.

Dick nem se abalou. Mas, disse sem muita amabilidade:

— Água temos, o que nos falta é tem­po.

Mônica corou e decidiu cortar aquela conversa, interessando-se pelo motivo que a levou ali.

— Quantas cabeças de gado já reuniu?

— Oitenta, por enquanto. Espero que antes da semana, tenhamos reunido duzentas.

— Só precisamos de cem para esta par­tida — e mostrou o documento. — Con­tratei a venda de cem cabeças para den­tro de uma semana, de modo que, uma vez reunidas, é preferível que as conduza diretamente ao ponto de encontro.

— Supondo-se que no caminho para lá, percamos algumas cabeças, prefiro le­var duzentas, pois como suponho que den­tro de outras duas semanas terá assinado contrato de venda de outras tantas, já teremos caminho adiantado.

— Por que supõe que se perderão? — perguntou de modo estranho, com voz al­go vibrante.

— Porque até agora, desde há muito tempo, nunca chegou ao apeadeiro uma partida completa. E às vezes nada, pelo que me contam.

— Isso é o lamentável — lamentou-se Mônica, dando uns passos para a paliçada, e sendo seguida por Dick. — Dick... se você sabe que esta fazenda não conse­guirá ressurgir, por que ficou?

Dick estava ao seu lado.

— Ressurgirá agora — disse ele, com voz firme. — Eu lhe garanto.

— Por sua causa?

— Porque evitarei intromissões. Não quero Jim, nem Sam no meu grupo. Dei­xe-os em casa e que cuidem das colheitas de qualquer jeito, e esperemos que não apareça fogo nas plantações de trigo.

Mônica pestanejou.

— Você está louco. Quer me dizer que tudo o que aconteceu aqui na fazenda, foi premeditado por outros?

— E como se arruína uma fazenda? De duas maneiras. Abandonando-a ou sabotando-a.

— Eu não a abandonei.

— Exato. Trabalha demais, até. Dor­me tarde, acorda, cedo, vigia tudo, ama­nhece no campo... e no entanto, aconte­cem coisas que destroem, ou uma colhei­ta, ou uma manada. O que acha disso?

— O que está pensando? — sufocou-se Mônica sob aquele olhar tão sério.

Dick fez um gesto vago. Deu de om­bros.

— Não penso em nada definido. Te­nho refletido no que ouvi de sua boca no armazém de Luton. Não cheguei a uma conclusão, e o que faço é reunir dados.

Uma sombra de temor passou pelos olhos de Mônica.

— Dick — balbuciou, — se pensa isso, por que fica aqui? Porque se meu gado corre perigo de se dispersar, você corre perigo maior, pois uma bala pode atingi-lo de algum lugar. Por que se expõe tanto?

— Por você — disse ele com naturali­dade.

Mônica sentiu uma profunda emoção invadi-la. Ao mesmo tempo, uma inquie­tação indescritível.

Evitou-lhe o olhar. Não quis saber por que fazia aquilo por ela. Teve medo de ouvir sua resposta.

— Não quer saber por que razão fico?

Deu a volta sobre si mesma e começou a caminhar pelo prado, agitando nervosa­mente o chicote no ar. Dick ia atrás dela.

— Não esqueçam de nada — ordenava aos peões, ao mesmo tempo que a seguia. — Você, Marck, pregue bem essa tábua. Tem que reforçá-la, e cuidado para que o gado não fuja.

Mônica se deteve e girou.

Seus olhos se encontraram. Dick sorriu.

— Espero não incomodá-la com o fumo — indicou o cachimbo que fumava. — Pena não ter cigarros para oferecer-lhe.

— Nunca fumo pela manhã — disse ela com voz abafada.

— Fez bem — e súbito, acrescentou: — Já a admirava. Não é comum encon­trar-se uma garota de vinte anos capaz de lutar com uma dezena de fazendeiros ri­vais.

— Nunca... soube — balbuciou Mônica, — que meus vizinhos fossem meus ini­migos.

— Inclusive o filho de um deles, que é... seu noivo.

Mônica corou.

— E a beija — murmurou Dick som­briamente.

— Proíbo-o...

— Sim, sim, perdoe.

Sua voz se tornava mais sombria que seus olhos.

Mônica sentiu uma coisa rara.

— Não tem... importância, Dick

— Que Timothy Fresson a beije, ou que eu o tenha visto e o comente?

Não era tão tímido como dizia Inma. Nem podia ser casto. Não tinha por que sê-lo.

Não soube o que responder. Deu-lhe raiva que ele, em um caso como aquele, em que ela desculpava sua intromissão quase grosseira, usasse de ironia que ma­chucava.

Quando começou o andar de novo, ou­viu outra vez os passos de Dick. E sua voz. Aí sim, notou sua timidez.

— É que me machucou, Srta. Mônica.

Machucou-o? O quê?

Virou-se rapidamente.

— Sim, machucou-me — insistiu, encarando-a. — Vê-la nos braços de outro homem.

Mônica ficou tão assombrada, que não soube o que dizer. Chegou a engolir em seco.

— Sou um tolo, bem sei. Nunca pen­sei que o fosse tanto. Sabe por quê? Por­que é a primeira vez que me ocorre.

Mônica não soube o que dizer. Mas teve medo de não dizer nada.

Assim, virando-se, disse à meia voz:

— Vi o acampamento. Trouxe-lhes pro­visões frescas. Tenho que me apressar. Compreenda.

— O que devo compreender? A tola si­tuação que eu mesmo provoquei?

— Dick..., estou noiva. Vou me ca­sar.

— Agora? Quando?

— Não sei.

— Srta. Mônica...

Mas se calou. E depois, com um sor­riso forçado:

— Na verdade, sou um tolo completo — disse com amargura. — Não me expli­co como isto me ocorreu.

— Is... isto?

— O que está me ocorrendo. E depois, o que sei eu de mulheres? Riria de mim, se conhecesse minha vida. Eu mesmo, quando penso nela, rio. Rio com amar­gura.

— Dick..., eu o estimo.

Mas sentiu que sua estima por ele au­mentava, tomava volume e peso.

— Agradeço sua estima, Srta. Monica, mas...

— Mas...?

Sentia-o quase roçando-a com seu cor­po. Sentia até o calor dele. Chegou a pensar no que ocorreria se se entregasse a ele. Um homem casto!

Era uma loucura.

— Devo ir-me — sussurrou sem res­ponder.

— É bom vê-la aqui, senhorita. É como... fosse noite fechada e o sol ilumi­nasse tudo, de repente.

Mônica subiu na carroça, sem olhar para Dick. Mas ele quase se encostava na boléia.

— Esse cavalo está mal, Srta. Mônica. Deixe-me acompanhá-la em meu cavalo até a encruzilhada. Por favor...

Tinha jeito de criança grande. De criança inocente que pedia a um pai pobre um brinquedo caro.

— Deixe-me ir, por favor...

Assentiu com um breve movimento de cabeça.

Ele deu algumas ordens aos peões e montou em um lindo cavalo.

— Lacei-o e domei-o. Separei um para a senhorita. Será seu melhor cavalo, senhorita.

A jovem se sufocou.

— Por quê... o fez?

— Não posso dar-lhe nada melhor. Quero que tenha algo meu. O cavalo es­tava em suas terras, mas eu o domei...

Mônica apertava as rédeas com força, como se assim desafogasse tudo aquilo que estava sentindo.

— Não siga a estrada — ouviu-o dizer. — O atalho é mais curto e melhor; deve chegar à granja antes da noite cair. Dei­xe-me ir a seu lado? Conheço melhor o atalho.

Não lhe disse que sim, mas viu-o pu­lar do cavalo para a carroça, sentando-se ao seu lado na boléia.

Ao contato de seu braço, teve aquela estranha sensação de entrega... Era ab­surdo! Mas ela estava sentindo o que nun­ca sentiu junto a Timothy!

Ao tirar-lhe as rédeas das mãos, seus dedos se misturaram. Ficaram assim. Presos, como que paralisados, cálidos, sim, muito cálidos ao unir-se.

— Não sei o que se passa comigo, Srta. Mônica. Ou talvez saiba e tenha medo de sabê-lo.

— Meus..., meus dedos...

— Oh, é verdade.

Mas não os soltou. Apertou-os ainda mais.

Mônica, assustada, teve uma sensação de vazio, ou ao contrário, de plenitude.

Subitamente, puxou sua mão.

— Acho... que posso conduzir, e você voltar, Dick.

— Não me prive do maior prazer da minha vida — e murmurou, como se pen­sasse em voz alta: — Vi-a naquele dia na loja, falando com o dono. Depois, ouvi seu capataz. Ele a deixara para não ter que lutar com seus rivais vizinhos. Viram o que eu vi de longe. E não quiseram lutar. Mas é que antes não a haviam visto.

— Cale-se, Dick. Sabe o muito que co­meço a estimá-lo.

— Só que isso... não me basta.

— Chantagem? — alterou-se. — Só ficará aqui em troca de... meu favor?

Fitou-a espantado.

— Acha-me capaz disso?

Não. Não o achava. Sentia que nele havia pureza de sentimentos, de intenções.

— Desculpe-me. Não queria ofendê-lo. Mas não quero que... me diga o que sente.

— Não sei dizê-lo, verdade? É a pri­meira vez que me acontece. É tolice sentir e pensar assim. Mas, de todo jeito ficarei a seu lado. Até que se case, ficarei neste condado de Bedford. Depois, sim, irei em­bora. Irei, mas não deixarei de pensar na senhorita — deu uma estranha risada. — É absurdo que depois de defender-me o quanto pude neste mundo, evitando pro­blemas e complicações, vivendo pacifica­mente, encontre-me com emoções tão inesperadas. Pensará que sou um aproveita­dor.

Disse-o rapidamente. Não soube se pelo que Inma lhe contou, ou porque o pen­sava assim depois de ouvi-lo.

— Sei que não é um aproveitador.

Fitou-a ansioso.

— De verdade o sabe?

— Sim.

— Obrigado, Srta. Mônica.

A caleça atravessava o tortuoso atalho. Saltava de vez em quando, e ao fazê-lo, os ombros dos dois se tocavam.

Mônica estava nervosa, confusa, agita­da...

 

Além, não muito longe, avistava-se o caminho que levava à fazenda.

— Agora posso ir sozinha, Dick.

— Ainda falta um pouco.

— Os rapazes ficaram sozinhos...

— Já estudei todos eles — disse segu­ro. — Esses são de confiança. Procure despedir Jim e Sam, que se vendem.

— Está louco.

— Se não o fizer, se arrependerá.

A caleça chegava ao caminho.

Dick freou. Virou um pouco o rosto.

— Já pode pegar as rédeas — disse entre risonho e triste. — Creio que foram os momentos melhores em minha vida.

— Obrigada, Dick.

— Posso... pedir-lhe um beijo?

Mônica ficou tensa.

— Dick... — balbuciou. — Você sabe que... estou noiva... Que...

Dick não fez mais que um movimento.

Prendeu seus dedos. Apertou-os com an­siedade.

— Riria de mim se lhe dissesse que jamais beijei uma garota.

Mônica se sufocou.

Soube que o faria. E que ninguém lhe perguntasse por quê. Mas tentou defen­der-se daquela súplica quase infantil.

— Srta. Mônica, não sou dado a ca­prichos. Sou assim, porque as circunstân­cias da vida jamais me puseram ante uma mulher. Não sou menos homem por isso, como sou. Não há nada oculto, ou em mim.

— Por favor, entenda.

— Sim, eu entendo, Srta. Mônica. Mas... não posso remediá-lo. É como e... como se encontrasse um desvalido na rua, descesse da caleça e lhe sorrisse dando-lhe uma esmola. Não estou me rebaixando nem me humilhando. É que necessito de sua amizade, e depois seu amor. Sei, não me olhe com esse espanto. Não sei con­quistar uma mulher, nem dizer-lhe coisas bonitas. Sou rude, não de todo, até, mas... a parte do amor desconheço. É raro, eu sei. Para outra mulher, isso pareceria ab­surdo. Mas a senhorita é compreensiva, sensível, e sei que não rirá de mim, mas outra teria rido. Zombado. E isso sim, me magoaria. Com a senhorita sou sincero, pois sei que não fará nada disso.

Mônica quase tremia. Sentia uma emo­ção profunda.

Aquilo era novo para ela. Novo o ho­mem, nova a situação, nova a circunstância.

E ele continuava com os olhos fixos nela, na mão fina perdida entre seus de­dos rudes.

— Srta. Mônica, é... como uma ne­cessidade espiritual.

— Dick, solte meus dedos. Está... me machucando...

— Oh, perdão. Sabe? Amo-a.

— Oh, Dick...

— Perdoe-me que lhe diga assim. De­pois, quando se casar com ele, me irei daqui. Mas enquanto é solteira... eu a admirarei e amarei em silencio.

— Por favor...

— Não me dá um beijo — disse ma­goado.

Mônica fechou os olhos. Teria que beijá-lo. Não sabia como. Na face, e que tudo terminasse logo.

Acercou-se mais e beijou-o no rosto.

Não soube como foi. Que movimento Dick fez. Como pôde chegar a seus lábios.

Foi algo estremecedor.

Dick nem a tocou. Mas seus lábios, ao sentir aqueles outros entreabertos nos seus, se estremeceram e beijaram por sua vez.

Então, Mônica teve medo. Medo de sua ousadia.

Medo da força íntima daquele homem puro que não sabia beijar, e que a desar­mava e a emocionava.

Separou-se depressa.

— Mônica, eu...

— Não diga nada.

Nunca se sentiu tão agitada. O que estava se passando com ela?

— Desça, Dick.

— Tem pena de mim, verdade?

Queria que ele esquecesse aquele ins­tante. Afinal, ele o havia pedido, mas as­sim como ocorreu, ela o provocou.

Vaidade feminina? Vontade de desper­tar no homem casto o desejo sexual?

Curiosidade em saber como agiria ante a primeira mulher? Não era dessas.

Ela também era virgem e pura. Seu noivado não passara os limites do beijo.

— Não tenho pena de você — disse à meia voz, como se lhe vibrasse algo por dentro. — Talvez o admire.

— E lhe causo pena.

— Nunca se admira quem se tem pena.

— Quer me consolar.

— Por favor, já chega.

— Pergunto-me se, dentro de minha timidez, de minha ignorância, sou um ou­sado.

— Creio que..., que...

— Diga-me a verdade, Mônica; não quero mentiras em minha vida, nem em meus sentimentos, nem em meus amigos.

Ela não conhecia sua verdade.

Ou melhor, julgou viver com ela, e de repente, não sabia se a havia usado ou procurado sem achá-la. Se a havia usado sem direito a ela, porque na realidade a ignorava.

— Tampouco me inspira pena.

— Medo também não, verdade?

Medo?

Pois bem, medo, sim. Um medo terrí­vel, material ou psicológico, não sabia dizê-lo.

— Monte em seu cavalo, Dick.

— Não me odeia. E isso me basta. E por favor, antes de casar-se com Timothy, pense um pouco. Só um pouco, Mônica.

Não disse mais nada. Envolveu-a em um longo olhar, que lhe chegou ao fundo da alma, e depois saltou sobre o potro.

Ainda lhe gritou, já se afastando a ga­lope:

— Dentro de uma semana, estarei no apeadeiro.

Não lhe pediu que voltasse.

 

— Aconteceu algo no acampamento. Não sei o que se passa à noite. Cinqüenta cabeças de gado se dispersaram. Dick deu uma batida pelas cercanias acompanhado dos peões. Não viu as reses nem os sabotadores.

— Mas... por que sabotagem?

— É o capataz quem diz.

— Que bobagem. Outras vezes aconte­ceu. Rompe-se a paliçada — defendia não sabia o quê, — e o gado se dispersa.

— De qualquer jeito, não sei se pode­remos cumprir o contrato de venda. Ain­da faltam algumas cabeças e amanhã se deve empreender o caminho para o apeadeiro. Vários fazendeiros já arrumaram seu gado para ocupar a venda que você não poderá fazer, a menos que surja um milagre.

Não esperou mais.

Nem caleça nem nada. Nem contaria a Jacqueline aonde iria. Nem preocupar-se por mais nada.

Tinha que vender aquele gado. Chegar a tempo ao apeadeiro. E para isso, decidiu ir ela mesma ao acampamento.

Ao sair da granja, encontrou Timothy a cavalo.

— Eh, eh, Moni, aonde vai?

Mônica ficou tensa na sela.

Usava um traje negro de montar. Os cabelos soltos ao vento, os olhos muito azuis, quase escuros naquele momento, por causa do ódio que sentia não sabia contra o quê.

Deixou Timothy para trás, sem lhe dar resposta.

Nunca soube o tempo que levou para chegar, nem quando viu Dick meio vesti­do, com o tórax descoberto, despenteado, marcando o gado e dando ordens.

Ao vê-la, apenas gritou:

— Vá embora, Mônica, Temos que ter­minar isto até a madrugada, e não pode­mos perder tempo. Deixe-nos sós.

— Não poderá — gritou de cima do cavalo — reunir o gado suficiente.

— Ou morro, ou o reúno.

— Dick, o que pensa do ocorrido?

— Já lhe disse — gritou sem deixar de trabalhar.

Ia de um lado para o outro. Não pa­recia o homem que a beijou. Trabalhava. Lançava sobre ela um olhar de vez em quando, suava e não cessava de dar or­dens.

— Será melhor desistir, Dick — supli­cou-lhe.

Fitou-a furioso.

— Desistir? Nem sonhando.

— Mas não poderá.

— Poderei. Não poderei conseguir o amor da mulher que amo, mas poderei com o gado. Isso eu juro.

Ficou calada. Confusa.

— Por favor, Mônica, vá embora. Ama­nhã terá notícias minhas. Eu mesmo le­varei o dinheiro.

— Mas... se lhe faltam muitas ca­beças.

— Veja.

Pelo riacho cruzava uma manada con­duzida por dois peões, lançando tiros sem cessar.

— São pelo menos trinta cabeças. À noite reunirei o que falta. Chegarei ao apeadeiro, prometo-lhe.

— Dick...

Ele lhe acercou devagar.

— Farei por você, Mônica. Apenas por você.

— Você é tenaz.

— Para você, sim.

E procurou sua mão. Apertou-a com força.

— Mas agora, vá. Tenho muito que fazer.

Ele mesmo deu um tapa no cavalo e Mônica teve que afastar-se.

Chegou tarde. Inma já estava em ca­sa. Timothy também, fumando tranqüi­lamente um cigarro.

Ao vê-la entrar, esbaforida, comentou rindo:

— Se deixasse de lutar tanto, de contratar novatos e se casasse...

— Gosta muito das minhas terras, não, Timothy? — enfrentou-o de repente.

Ele a olhou desolado. Ao menos, era a impressão que dava naquele momento.

— Tenho mais terras do que necessi­to. Afinal de contas, tenho minha profissão.

— Que não exerce.

— Moni, que diabo tem você?

— Estou cansada.

— Não tenho culpa de que nada con­tra a correnteza.

— E acha que assim não se chega a uma meta.

— Acho.

— Pois se engana. Seja como for, vou alcançá-la. E enquanto não o conseguir, não me caso.

Timothy se agitou pela primeira vez. Perdeu sua fleuma.

— É estranho que, sendo tão feminina, lute assim — disse acalmando-se. — É melhor então que eu a ajude.

— Para que tenha que estar agradeci­da a você a vida toda, não é assim?

— Para casar-nos o quanto antes.

Mônica respirou profundamente. Demorou a responder. Quando o fez, sua voz era vazia:

— Não sei se me casarei com você, Ti­mothy.

O homem deu um salto, perdendo a compostura.

Gostava de Mônica. Gostava muito, apesar de ser fria e indiferente. Mas quan­do casasse, mudaria. E além de Mônica atraí-lo, atraía-o a situação de sua fazen­da. Tinha pastos fabulosos, rios, embora as vezes se rompessem as represas... Dan­do um dote a Inma, ficava tudo em casa. Era um bom negócio e não estava dis­posto a perdê-lo. Mulher jovem, bonita, fina, e acima de tudo dona de uma fa­zenda que era a inveja de todos os fazen­deiros da região.

— Você não está em seu juízo, Moni — disse dominando-se. — Sabe que eu a amo, e que me ama.

Amava-o? Sacudiu a cabeça.

— Estou cansada — disse, baixo, — não quero falar em amor. Interessa-me al­go mais importante.

— Mais do que o amor?

— Neste instante, muito mais. Afinal, a fazenda e sua situação econômica, são parte de minha vida. E não descansarei até levantá-la. Prometi a meu pai e a mim mesma, e nunca tive quem me ajudasse. Agora, tenho. Tenho um bom capataz e lhe garanto que o gado vai estar no apeadeiro amanhã.

Timothy deu uma risadinha.

— Mas, pelo que dizem, sumiram al­gumas cabeças. Não terá o número que foi tratado pelo contrato.

— O que vai agradar muito a seu pai, não?

— O que... o que está dizendo?

— Você me ouviu.

E sem mais aquela, entrou em casa. Timothy ia segui-la, mas uma bengala se pôs em seu caminho. Ali estava a velha sentada na cadeira de rodas.

Assim que se casasse com Mônica, mandaria tia Jacqueline para um asilo.

— Com licença, senhora...

— Lamento, mas você ouviu. Mônica quer ficar em paz.

— É minha noiva.

— Isso eu não sei. O que sei. — con­tinuava com a bengala atravessada na en­trada.

— Anda ouvindo pelos cantos, senho­ra?

— Estou em minha casa, meu caro, e não tenho culpa de que as pessoas falem alto.

— Maldita...

Se foi furioso.

Acabaria aquilo o quanto antes. Quem atrapalhava ali? Já o sabia. Intrometido dos diabos. Se não se ia por bem, o capataz se iria por mal, ou o que é pior, o levariam ao cemitério.

Enquanto Timothy se ia, Mônica man­dava chamar Sam e Jim ao seu escritório.

— Pode falar, Srta. Mônica.

— Quero saber onde estiveram os dois ontem à noite.

Ambos fizeram expressão de idiotas.

— Onde? — saltou Jim. — Que per­gunta! Dormindo. A senhorita nos libe­rou do trabalho no acampamento. Fize­mos o que pudemos aqui, e à hora de sem­pre nos deitamos.

— Quem mais havia no pavilhão que possa confirmar o que dizem?

Respondeu Sam com muita arrogância. Seguro do que dizia, ou pelo menos, de que ninguém poderia desmenti-lo:

— Ninguém. Foram todos para o acampamento.

— Ou seja, não há quem possa asse­gurar que vocês passaram a noite no pa­vilhão.

— Supomos que não.

— De acordo. Esta noite poderei con­firmá-lo, porque vocês irão dormir e eu mesma os fecharei por fora.

— Que diabo é isto, Srta. Mônica?

— Isto é desconfiança. Quando o gado chegar ao apeadeiro, continuaremos a conversa. De momento, vocês vão dormir muito tranqüilos esta noite. Andando.

 

Passou a noite sem dormir.

Felizmente, Inma não percebeu nada e de manhã, foi para a faculdade, sem ver agitação da irmã mais velha.

Em compensação, tia Jacqueline viu tudo. Em sua cadeira de rodas, seguia sua sobrinha, e a cada momento, quando a via fitar o relógio, dizia com voz suave:

— Acho que desta vez o consegue. — No meio da manhã, não pôde mais.

— Vou soltar Jim e Sam. Desta vez, se aconteceu algo, não foram eles.

— Não seja ingênua, Moni — murmu­rou a inválida. — Nas fazendas vizinhas há tipos dispostos a vender sua alma ao diabo por umas libras.

— Você pensa como... Dick.

— Não sei como pensa Dick, mas não ando muito de acordo com essas lamen­táveis coincidências. É hora de abrir os olhos. A qual dos fazendeiros interessam mais suas pastagens?

— Aos Fresson.

— Justo.

— Mas vou me casar com Timothy.

— Não basta. Quando se ambiciona tanto, não basta conseguir o caudal por meio de um casamento. E depois... toda a vida teriam que lhe estar agradecidos, e esse tipo de gente prefere que se agra­deça a ela.

— Tenho que ver isso para acreditar.

— Isso vai ser difícil, mesmo que na manada de hoje perca oitenta cabeças de gado, e o que é pior, perca a vida de al­guns de seus melhores homens.

Foi uma manhã odiosa.

Às doze, o gado estava entregue ou perdido, e decidiu subir no velho carro e chegar ao apeadeiro.

Chegou ali à uma hora em ponto, viu como o vagão se afastava carregado de gado, e na estação ficavam seis homens rodeando algo que estava caído no chão.

Chegou até ali.

— Dick — gritou. E olhando para to­dos os peões, perguntou aturdida: — O que houve?

— Não sabemos, Srta. Mônica — disse um deles. — Dispararam contra ele quando saíamos do acampamento, mas ele..., lutando com o ferimento, apertando o sangue que lhe saía do ombro, cavalgan­do, multiplicando-se, conseguiu que o ga­do chegasse a tempo.

— Esteve de pé até agora, mas assim que recebeu o dinheiro e o vagão se foi, desmaiou.

— Carreguem-no — agitou-se emocio­nada. — Levem-no com cuidado até o carro. Dirija com cuidado, John, enquan­to eu lhe faço um curativo.

Enquanto colocavam o ferido no carro, ela ia perguntando e se informando.

— Só perdemos vinte reses, mas como havíamos trazido mais cinqüenta... — explicou um dos peões.

Já sabia de tudo quanto lhe interes­sava.

— Você, John dirija. E você, Marck, vá à cidade buscar Richard Dunn. Diga-lhe que preciso dele. Ele curará Dick.

Naquele momento o ferido abriu os olhos.

— Mônica — gritou. — O dinheiro. O dinheiro...

— Acalme-se, Dick. Já o tenho comi­go. O gado foi entregue. Você venceu. Ferido, mas venceu.

Dick cerrou os olhos. Lançou um sus­piro e ficou de novo inconsciente.

— Perdeu muito sangue — murmurou Mônica segurando a cabeça masculina. — Depressa, John. Dirija depressa.

Chegaram à fazenda às duas em pon­to. Richard Dunn estava ali com sua maleta.

— Outra vez, Moni. Mas, o que há nesta comarca?

— Desta vez, apesar do ocorrido, con­seguiu-se enviar o gado. Mas tudo se deve a esse homem valente, Richard. Ajude-me. Está sangrando muito.

Todos rodeavam o carro. Até tia Jacqueline, olhava do terraço.

— Levem-no para minha casa — or­denou Mônica.

Era a primeira vez que um emprega­do do rancho, no estado em que estava o capataz, era conduzido a casa dos Keir.

— Para o quarto do térreo — disse Mônica.

— Assim se faz, Mônica — aplaudiu-a Richard. — Seu pai teria feito o mesmo. Acho que isto começa a ficar em ordem.

 

Foram dias de indescritível tensão. Aquele quarto do andar térreo da fazen­da dos Keir, mais parecia um quarto de hospital. Durante mais de cinco dias, Dick esteve entre a vida e a morte, não pelo ferimento em si, mas pelo sangue perdido. À base de transfusões, de mil cuidados, nos quais se revezavam as ir­mãs, tia Jacqueline e até a cozinheira, conseguiu-se salvar o capataz.

Todos os peões jovens doaram sangue, e embora fossem dias de horrível tensão, poucos vizinhos o souberam.

As investigações que Mônica efetuou aqueles dias, não deram grandes resulta­dos, porque, como não queria que sua ir­mã Inma ficasse sabendo o que se passa­va, carecia de liberdade suficiente para levar a bom fim tais investigações.

Não obstante, teve uma conversa curio­sa com Sam e Jim. Chamou-os ao seu es­critório e os encarou.

— Vocês não puderam sair do pavi­lhão, já que a chave ficou em meu bolso toda a noite e toda a manhã, mas não há dúvida de que alguém, quem quer que se­ja, tentou dispersar o gado e evitar a ven­da do mesmo. É o que quero saber. O que sabem sobre o parti­cular?

— O capataz morreu? — perguntou Jim como resposta.

— Não morreu, nem morrerá desta vez. Ficará conosco, o que quer dizer que aca­baram as sabotagens noturnas a respeito do gado — olhou para Sam. — Desde a morte de meu pai, perdi mais dinheiro por estas causas, do que ganhou ele em toda sua vida. Verdade que para tratá-lo foi preciso fazer-se uma hipoteca. Verda­de, também, que se ganhou dinheiro com as colheitas, mas nem sempre pude cum­prir os contratos, e isto significa para mim uma perda horrível. Vocês foram empre­gados de papai, seus amigos. Pergunto-me que pretendem agora. São velhos e cansados. Em minha casa, estariam seguros para o resto da vida. Mas, tendo descoberto que são cúmplices de não sei quem, tenho que despedi-los. Não me olhem com esse espanto. Lamento-o. Mas não posso submeter-me a mais provas, nem há dúvidas que fariam mais para prejudicar-me. Atualmente, os dois são um perigo nesta fazenda.

— Não diga que nos acusa pelo de on­tem à noite.

— Claro que não, mas vocês sabem quem lhes pagou para desbaratar meus planos.

— Senhorita...

— Lamento — cortou Mônica num tom cansado. — Podem ir o quanto antes — estendeu dois envelopes. — Aqui têm seu dinheiro. Não tenho obrigação de pa­gar-lhes, mas não quero que saiam daqui de bolsos vazios.

Sam e Jim se fitaram.

— Não pode despedir-nos.

— Não posso tê-los aqui, sabendo que são pagos por outros para destruírem meus planos.

Mônica os viu partir com muita má­goa. Afinal, estavam ali há muitos anos, e tinham sido empregados de seu pai.

Uma tarde daquelas, teve uma con­versa com Timothy.

— Não cabe a menor dúvida de que algo estranho está se passando com mi­nha fazenda. Tentaram impedir o gado de chegar a seu destino. Sempre pensei que fosse obra do azar. Agora, sei que foi coisa planejada por alguém. Pergunto-me o que pretendem. Verdade que tenho um contrato de vendas vantajoso, mas nin­guém fica com o gado em suas terras. Sempre se vende. Da forma que eu faço, conduzindo-o ao apeadeiro, ou levando-o à estação de Luton. A quem beneficia que eu perca o contrato?

— Escute, Moni, é melhor que nos ca­semos, e me ocupe destes pormenores. Talvez, como você diz, não seja culpa do azar, mas não é fácil acusar alguém em concreto. Enfim, você é frágil demais para se ocupar com isso. Casemo-nos e verá como papai e eu acabamos com tudo isto.

— Acabam, sim, disso tenho plena cer­teza.

— O que quer dizer?

— Suponho que, casada com você... terá cessado a luta, não acha?

— Moni!

— Não me casarei com você, Timothy. Durante esses dias tão horríveis para mim, não senti desejo algum de consolar minha amargura em seu carinho. Isso é um sinal de que não há amor por você.

— Mas... o que diz?

— Que não vamos continuar a farsa. Não o amo. E sem amor, não me caso. Devolvo-lhe a palavra.

— O que há? — agitou-se Timothy. — Tudo mudou entre nós desde que che­gou esse bastardo de uma figa.

— Se se refere a Dick...

— Refiro-me a ele, sim. O que há com você? Será que se apaixonou por um tipo que nem sabe de onde vem?

Era o que ignorava. Não amava Timothy, disso estava cer­ta, mas nada sabia de concreto quanto ao capataz.

— Não desistirei, Moni — disse ainda Timothy, ao montar em seu cavalo. — Voltarei. Voltarei sempre.

Mônica ficou sozinha e lentamente, deu a volta.

Anoitecia. Inma não havia chegado ainda. Ela iria ficar um pouco no quarto com o capataz.

 

Tinha o braço na tipóia, e com a mão livre segurava o cachimbo.

Parecia menos moreno. As sardas es­tavam mais visíveis e os olhos brilhavam mais.

— Boa noite, Dick.

Fitou-a longamente.

— Olá, Mônica. Como vai tudo? O mé­dico me prometeu que me daria alta no domingo pela manhã. Disse que podia le­vantar-me amanhã mesmo, para poder sair o domingo e dar um passeio. Acho que há muito o que fazer por aí.

E, como ela continuava de pé, fitando-o sem dizer nada, ele lhe mostrou uma cadeira junto a seu leito.

— Sente-se um pouco, Mônica.

Estava de escuro. Calças e camisa pespontados de branco. O cabelo estava preso numa trança só, o que lhe dava um encanto todo especial.

— Mônica, estou lhe causando muitos transtornos...

— Eu lhe devo muito, Dick. E espero que fique definitivamente conosco.

Dick a fitou demoradamente.

— Já lhe disse. Irei embora no dia em que se casar com Timothy. Sei que nada posso esperar. Afinal, quem sou eu? Nem ao menos sei conquistar uma mulher. Co­mo Timothy, por exemplo. Imagino que começou desde jovem a conviver com moças, a saber se desenvolver no meio delas, a falar com elas, a dizer coisas bo­nitas, a convencer e conquistar.

— A que tipo de mulheres, Dick? — perguntou Mônica.

Ele suspirou.

Olhou em frente. O cachimbo se con­sumia sozinho, preso entre os dedos ner­vosos, agitados naquele instante.

— A você, por exemplo. Sabe dizer coi­sas. Olhar com paixão. Sei lá! E depois, tem dinheiro. Quando se nasce rodeado de tudo, pensa-se que se tem direito a tudo. Quando se nasce sem nada e se vi­ve sem nada, não tendo nem quem cuide de um resfriado, acha-se que não tem direito a nada. Não é uma novidade, verdade? — olhou em torno. Tanta amar­gura em sua voz, e no entanto, tanta re­signação em seu olhar. — É a primeira vez que alguém se interessa por mim. Todos vocês são bons, Mônica, mas... ar­rependo-me de ter vindo para cá.

— Como?

— Sim, arrependo-me. Eu era um ca­ra tranqüilo. Não me abalava por nada. Nunca estive apaixonado. Nunca pensei em dormir com uma mulher. Agora, tudo é diferente, e me vejo atado de pés e mãos, e amordaçado.

— Dick... — tremia-lhe um pouco a voz. — Por você?

Deixou de olhar para o vazio. O ca­chimbo até caiu de seus dedos.

Mônica se apressou em pegá-lo. Quan­do levantou a cabeça, encontrou a de Dick pendurada fora da cama.

— Mônica... estou apaixonado por você. Mas, não se assuste. Irei embora. Sei que sou um estúpido.

Mônica apertou os lábios. Queria dizer-lhe que não era estúpido. Que ela, junto a ele sentia uma emoção desconhecida, que jamais sentiu nada por ninguém.

Dizer-lhe também que se sentia bem a seu lado, e embora tentasse esquecê-lo, não podia... não podia esquecer aquele beijo fugaz, lento... aberto...

Ficou assim, como que paralisada, sem levantar-se de todo. Dick estendeu a mão livre. Segurou o queixo da jovem.

— Mônica... não tema, me irei.

A jovem abriu a boca para dizer-lhe que ela não queria que se fosse. Mas não disse nada.

Tornou a cerrar os lábios.

— Mônica...

— Não faça nada.

— Mas eu morro de ansiedade por fa­zê-lo.

— Pare. Ainda está fraco. Precisa des­cansar. É melhor que eu me vá.

— Espere.

E não soube como se viu procurando com a boca de Mônica.

Beijou-a longamente. Com aquela len­tidão inexperiente ou muito natural do homem que não se precipita nunca, que não sabe mergulhar na alma feminina.

Mas Mônica, sob aquele beijo, pergun­tou-se se, de fato, Dick não sabia conquis­tar.

Separou-se, por fim.

— Mônica... não se vá.

Tinha que ir. Tinha medo que ele no­tasse o quanto estava agitada.

— Mônica...

— Durma.

— Está... zangada comigo.

Não estava. Talvez consigo mesma. Talvez com aquelas emoções precipitadas que se agrupavam nela.

— Voltarei mais tarde.

Ao sair do quarto, deparou com Inma.

— Como está Dick? — perguntou Inma.

— Venha — sussurrou Mônica, puxan­do sua irmã pelo braço. — Venha, quero contar-lhe algo.

— Estou apaixonada, Inma.

— Por Timothy?

— Por Dick.

Inma suspirou e sorriu. Parecia, alivia­da e feliz.

— Graças a Deus você acordou a tem­po, mana.

— Então... acha natural que eu ame Dick.

— Não seria natural era passar por sua vida sem sabê-lo, Moni.

Mônica ficou rígida, tensa.

— Eu o soube, Moni, soube-o desde o princípio. De tudo. De nossa situação eco­nômica precária. A luta que vem travando com os capatazes que se vão. As mentiras dos fiéis servidores de papai. A demissão de Jim e de Sam e as trapaças de Timothy.

Mônica se deixou cair sentada na ca­ma. Olhava para Inma com expressão de­solada.

— Digo-lhe algo mais, querida Moni. Timothy me disse.

Agora, Mônica deu um salto.

— Como? Quando? Onde?

— Que importa quando e onde? Im­porta o porquê. Eu o sei. Para que me fosse. Para que pedisse meu dote e lhe deixasse em paz. Para que assim os Fresson tomassem conta de tudo, e você, po­bre desvalida, tivesse que agradecer-lhes sua generosidade. Não, Moni. Tenho ob­servado você em silêncio. Quando conhe­ci Dick, soube que esse homem, e não ou­tro, era o seu. Os dois puros, os dois ino­centes. Os dois tenazes, os dois completos.

— Quer dizer... que me falou de uma castidade imaginária, para que me inte­ressasse ele?

Inma teve que rir.

— Não, querida. Da castidade de Dick, tenho certeza. Calculo que a esta altura, você também tem.

Assentiu com força.

— Quando lhe falei de Dick, você já o conhecia muito. Vira-o por dentro. Não sabia o que você vira, mas era algo que lhe agradara. Olhe, Moni, se quer saber se estou de acordo com seu amor por ele, estou. O que importa, Moni, é o espírito. E você precisa de Dick. Que ele seja seu capataz ou seu peão, que importa? É seu homem. E você sua mulher.

— Inma... você vê as coisas de um modo...

— Conhecerá o amor — insistiu Inma com sua filosofia particular. — E o co­nhecerá em toda sua plenitude, e aprende­rá com Dick a gozá-lo, e o que é melhor, ele aprenderá com você. Isso é o que im­porta.

Mônica tremia, sem saber o que dizer.

— Precisa desse homem, Moni. E ele de você. Com Timothy, seria apenas mais um casamento, sem significação maior. Fuja disso. Viva sua vida e viva-a direito. Plenamente.

 

Tentou dizer à tia Jacqueline. Não o seu amor por Dick, que na realidade não era nada, porque por muito que lhe disses­se Inma, ela não estava convencida do que sentia, e desejava. Sobre Inma, que sabia de tudo.

Mas não pôde.

Talvez tia Jacqueline já soubesse que Inma sabia.

Decidiu afastar aquele assunto e se de­dicou a outro que a perturbava demais.

O que se passava com sua sensibili­dade?

Toda sua alma vibrava e o coração, e cada uma de suas fibras do corpo.

Aquilo que sentia, era realmente amor?

Precisava passar no quarto de Dick antes de ir para o seu.

Foi um suplício a refeição, e não pela pressa que tinha em ir vê-lo. Oh, não! Não seria para dizer-lhe nada. Apenas pa­ra vê-lo, ouvi-lo.

— Vou ver como está Dick — disse levantando-se.

Jacqueline olhou para Inma e esta pa­ra sua tia.

Sorriam. Mas Moni não viu nada. Bateu à porta do quarto de Dick.

— Já vou me retirar — disse entran­do. — Vim vê-lo antes...

— Entre, Moni. Estou lhe dando mui­to trabalho.

E quando ela esteve a seu lado, ines­peradamente, segurou-lhe a mão. A mão de Moni, suave e fina, que lhe caía ao lon­go do corpo.

Mas era sensível.

Tinha uns dedos cálidos e tremiam en­tre os seus.

— Moni... — fitava-a suplicante. — Fui um tolo...

— Um...

— Sim, um tolo. Não devia beijá-la. Não devia, verdade?

Devia. Ela precisava dos beijos de Dick.

— Sente-se a meu lado, Moni.

E a puxava pela mão. Moni caiu no banquinho. Não olhava. Não se atrevia. Era tudo novo, emocionante, distinto. Surpreendente.

— Assim que estiver bom, irei embo­ra. Sinto deixá-la nessa confusão. Querem arruiná-la. E os principais são os Fresson.

Puxou sua mão. Estava tensa. Dava-se conta de que, subconscientemente, foi o que pensou desde o início.

E a maior prova tinha no ocorrido en­tre Inma e Timothy.

— Moni... não se altere tanto. Há coisas assim. Dizem que o dinheiro move montanhas, desperta ódios, abre todas as portas, e o que é pior, inventa toda classe de falsidades e hipocrisias. Eu prefiro não ter nada. Nem cavalo, meu ideal definido às vezes, outras vezes não... Assusta-me cavalgar sozinho e ver o dia nascer e mor­rer, e como a noite se prolonga. Sabe, Mo­ni, se voltasse a começar, pediria, se pu­desse, nascer onde nasci, crescer onde cres­ci, e manter-me casto até esta idade.

Moni pestanejou.

Confessava-o assim, com uma natura­lidade impressionante. A jovem estava atô­nita.

— Sim, Moni, a primeira mulher em minha vida, é você; e, já vê, fica aqui e eu sigo meu caminho.

Disse-o, impulsiva.

Não soube se por necessidade física, ne­cessidade espiritual, por compaixão, por piedade, por paixão.

— Fique!

Vibrava-lhe a voz.

Dick se inclinou para um lado da ca­ma. Estava mal acomodado, por causa do braço ferido, mas daquele jeito podia ver Mônica mais de perto.

— Por quê, Moni?

— Não..., não sei.

— Tenho medo de ficar. Nunca me conheci. Agora, sim. Agora sei que a ado­ro, que a necessito, que a amo com loucu­ra. Agora sei que perderia a cabeça com uma mulher, quando sempre procurei fu­gir dessas complicações.

Moni tentou levantar-se, mas de súbi­to, ele a reteve por um braço. Atraiu-a pa­ra si. E seus lábios abrindo-se sobre os de­la, fez com que Moni se relaxasse e corres­pondesse aquele beijo doce, maravilhoso.

Depois, ela fugiu. Fechou a porta. E ele respirou novamente, passando a ponta dos dedos sobre os lábios.

 

Bem cedo, John lhe disse:

— Sam e Jim estão de volta. Em seu escritório, Srta. Mônica. Jim chorava e Sam parecia um trapo.

— Mas... por que voltaram?

— Não sei. Dizem que querem contar-lhe algo.

Uma complicação a mais. Depois de uma noite em branco, pensando em Dick e em tudo o que lhes ocorria, lá vinham Sam e Jim. Não saberia despedi-los nova­mente.

Não hesitou. Foi ter com Dick e nem bateu à porta, como as outras vezes.

— Dick.

— Entre.

Ele estava de pé. Vestia calça bege e camisa marrom: tal como o viu uma vez. Aquele domingo...

— Moni... o que houve?

— Sam e Jim voltaram.

Dick puxou-a pela mão.

— Você está tremendo. Por causa de­les?

— Não.

Era por ele. Porque sentia todos os mús­culos do corpo de Dick em seu próprio corpo.

— Moni... está tremendo...

Aprendia a beijar.

— Deixe...

— Não posso, Jim e Sam?

— Esqueça-os, Fresson lhes pagava. Agora não os quer... e eles voltam para você. Esses... não a enganarão mais — beijava-a ao falar, pro­curava-lhe os lábios. — Aceite-os. São ve­lhos demais. E já tiveram uma lição de vida.

Conseguiu fugir dele.

 

Estava ainda sufocada quando entrou em seu escritório.

Ainda sentia os lábios úmidos e quen­tes...

— Srta. Mônica... — começou Jim, — viemos lhe contar tudo.

Não queria saber de nada. Já sabia de­mais.

Levantou a mão, parecia que ia dizer algo, mas sua voz não saiu.

— Srta. Mônica — gemeu Sam. — Nós a enganamos. Estavam nos pagando. So­mos velhos...

— Silêncio.

— É que... não podemos ir-nos. So­mos velhos...

— Vão para seus alojamentos.

— Então... nos aceita?

— E que posso fazer? Caso-me, com o capataz. Não poderão enganar-me nunca mais. Ninguém me enganará mais...

— Srta. Mônica...

Com certeza iam dizer um montão de palavras elogiosas, mas ela sentiu pena e amargura. Pena de não poder crer neles. Amargura de ter que vigiá-los futuramen­te. Sempre. Ela, que detestava viver en­tre mentiras, entre falsidade, tinha dois homens falsos em sua equipe de peões. Mas não tinha forças para jogá-los na rua.

— Contaremos tudo nessa denúncia, Srta. Mônica.

Que denúncia? Ah, sim... Não, claro que não. Pensava em si. Eles falavam daquilo que ela não queria mais ouvir falar.

— Srta. Mônica...

— Vão para seu trabalho — disse.

E sua voz tinha uma doçura especial. Mas não era para eles. Era para Dick.

Para a lembrança de Dick. Para o de­sejo de Dick...

Dois tolos, dois novatos, dois inocentes.

Mas não importava. Aprenderiam um com o outro.

Seria uma aprendizagem perturbadora, voluptuosa, inefável.

— Quer dizer que podemos... ficar?

De que falavam?

Ah, sim.

— Claro — disse distraída. — Podem. Podem ficar.

Os dois se precipitaram sobre ela.

— Srta. Mônica...

Ajoelhavam-se a seus pés.

Não queria vê-los humilhados assim.

Não suportava.

Por isso foi para a porta, ordenando:

— Levantem-se. E não me enganem mais. Eu os jogaria no meio da rua; e se vão ficar, não o devem a mim. Devem-no ao capataz.

Fugiu.

Necessitava estar só.

Ordenar suas idéias.

Claro que não denunciaria Timothy. Isso nunca. Não por estimá-lo. Que dispa­rate! Porque sabia que tudo iria bem no futuro. Porque estaria amparada por Dick, porque os dois formariam uma frente inex­pugnável.

Foi ao cruzar o corredor que viu aque­la mão saindo do quarto de Dick.

Deteve-a.

Segurou-se àquela mão e logo se viu ao lado de Dick.

— Dick...

— Moni, querida... É uma necessida­de beijá-la... É como... se disso depen­desse minha vida.

 

Timothy mordia os lábios. Tudo era festa na fazenda vizinha. Ninguém ignorava o que se passava. Anoitecia. O pai de Timothy estava uma fera.

— Você foi um imbecil. Que homem é você? Chega um tolo imberbe... Um ga­roto, e a leva, a tira de você. Como é pos­sível?

Timothy não o ouvia.

Do terraço de sua casa via Inma, seus amigos, os criados... O velho carro que le­varia Dick... e Moni.

Moni. Ele gostava de Moni. Mesmo que ela não tivesse nada, ele a amaria do mes­mo jeito. E Moni ia ser de outro homem. Provavelmente, estava sendo já.

 

Ela queria dizer-lhe coisas. Falar da granja, do que fariam com a hipoteca, de tudo aquilo.

Mas Dick não falava nada disso. Ele a amava.

E de que forma ele a amava...

— Dick... você me deixa tonta.

— Não gosta de se sentir assim?

— Gosto — faltava-lhe a voz. — Ado­ro você.

— Sou um novato — ria Dick emocio­nado, beijando-a demoradamente, como se estivesse meio louco, — mas teremos fi­lhos maravilhosos. Não sei quantos, Moni. Sei que serão sadios e bonitos. E nós sere­mos uma família muito feliz, muito unida.

— Louco, louco.

— Não é boa essa loucura? Diga, digo. Não é boa?

— Sim, Dick.

Depois, calaram-se.

Onde estavam? O que importava!

Em um motel qualquer de um lugar qualquer. Mas aquele recanto não era qual­quer coisa, porque, ainda o sendo, eles o estavam tornando formidável, inolvidável, inefável.

— Está calada. Moni.

— É que... que...

— Sei o que é.

— Sabe?

Não sabia se sabia. Que diferença fazia? Estava ali com ela e seus sentimentos eram seus sentimentos.

Moni se aconchegava mais a ele, mer­gulhava os dedos em seu cabelo, beijava-o também, longamente.

A noite prosseguia. Ao longe, ficava a granja e suas confusões, seus problemas.

As ambições dos outros.

Eles só tinham uma ambição, e a esta­vam saciando.

 

                                                                                            Corin Tellado

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades