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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O DESTERRO DE SHARRA / Marion Zimmer Bradley
O DESTERRO DE SHARRA / Marion Zimmer Bradley

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O DESTERRO DE SHARRA

 

A mais perigosa ferramenta de magia existente em todo o planeta Darkover era a lendária e abominável Matriz de Sharra. Dando forma à imagem de uma mulher acorrentada envolta em chamas, esta matriz era a derradeira arma que restava das Eras do Caos, uma época em que o laran tinha andado descontrolado e durante a qual, os conflitos entre Domínios quase tinham destruído toda a vida no planeta.

A matriz de Sharra fora desterrada para fora do mundo, para um dos distantes planetas do Império Terráqueo, confiada à responsabilidade de um dos nobres que mais haviam sofrido com o seu uso: o Lorde Comyn Lew Alton. Contudo, quando Lew foi forçado a regressar a Darkover para lutar pelos seus direitos de sucessão, viu-se obrigado a trazer consigo esta perigosa matriz. Assim que Sharra regressou ao planeta, a sua imagem flamejante espalhou-se por toda a parte, desencadeando eventos capazes de modificar a face do planeta e dos seus Sete Domínios, e ao mesmo tempo de alterar todo o futuro de Darkover.

 

 

O segundo ano de desterro

Este era o lar dos meus antepassados.

Mas eu sabia, agora, que nunca seria o meu lar.

Os meus olhos doíam-me ao fixarem o horizonte onde o Sol se ia afundando, um estranho Sol amarelo, não vermelho como um Sol deveria ser, um Sol ofuscante que me ofendia os olhos. Mas agora, por um instante logo antes do crepúsculo, tornava-se repentinamente vermelho e enorme, mergulhando por detrás do lago numa repentina glória carmesim que me fazia sofrer com saudades de casa; e sobre a água uma faixa carmesim... Fiquei a olhar até se desvanecerem as derradeiras cintilações de cor; e por cima do lago, pálida e prateada, a lua solitária da Terra exibia o mais fino e elegante dos crescentes.

Durante o dia tinha chovido, e o ar estava carregado de estranhos odores. Não precisamente estranhos, pois eram conhecidos, de algum modo, nas profundezas dos meus genes. Os meus antepassados haviam descido das árvores deste mundo, haviam vivido a longa evolução que lhes dera moldes humanos e que os levara mais tarde a enviar as naves colonizadoras, uma das quais - eu tinha ouvido contar a lenda - se despenhara em Darkover e ali se fixara, criando nesse mundo raízes tão profundas que eu, desterrado do mundo natal da minha raça e agora ali regressado, achava estranho o lugar da minha origem e ansiava pelo mundo para onde a minha gente se exilara.

Eu não sabia desde quando nem durante quanto tempo o meu povo habitara em Darkover. As viagens entre as estrelas têm estranhas anomalias; as enormes distâncias interestelares pregam singulares partidas ao tempo. Nunca haveria qualquer hipótese de a gente do Império Terráqueo dizer, há três mil anos, ou há quinze mil anos, qual a nave colonizadora que fundara Darkover... O tempo decorrido na Terra era de cerca de três mil anos, e todavia o tempo decorrido em Darkover aproximava-se mais dos dez mil, pelo que Darkover tinha uma história quase tão longa como a história de civilização e caos do planeta Terra. Eu sabia há quantos anos a Terra enviara a astronave, muito antes da difusão do Império Terráqueo de estrela para estrela. Sabia também quantos anos haviam decorrido em Darkover. Mas não havia qualquer forma de que até o mais exigente dos historiadores conseguisse conciliá-los: eu próprio já desistira há muito de o tentar.

Tão-pouco era eu o único a sentir-se desesperadamente sacudido por lealdades contraditórias, tão profundas como o próprio ADN nas minhas células. A minha mãe nascera na Terra, debaixo deste céu impossivelmente azul e desta Lua descolorida; contudo ela tinha amado Darkover, casara com o meu pai darkoveriano e dera-lhe filhos e, finalmente, tinha sido depositada para o seu descanso final numa sepultura anônima nas Colinas de Kilghard em Darkover.

E quem me dera estar agora repousando ao seu lado...

Por um instante não estava certo de que esses pensamentos não seriam meus. Depois apaguei-os, ferozmente. O meu pai e eu éramos muito próximos... não a vulgar proximidade de uma família telepática do Comyn (se bem que isso, por si só, pudesse parecer bastante estranho para os terráqueos à nossa volta) mas entretecidos por receios comuns, por perdas comungadas... por experiências e dores compartilhadas. Vendo-se com um filho bastardo, rejeitado pela sua casta porque a minha mãe era uma semiterráquea, o meu pai não se poupara a intermináveis sofrimentos para me fazer ser aceite como um Herdeiro Comyn. Até ao dia de hoje nunca soube se isso teria sido em meu proveito ou no seu próprio. As minhas fúteis tentativas de rebelião envolveram-nos a todos na abortiva revolta provocada pelos Aldarans, e Sharra...

Sharra... Chamas ardendo na minha mente... a imagem de uma mulher feita de chamas, acorrentada, irrequieta, tranças de fogo ressurgindo numa ventania de fogo, pairando... elevando-se, saqueando... Marjorie apanhada nas chamas, soltando gritos estridentes, definhando...

Não! Misericordiosa Avarra, não!

Escuridão de negrume. Isola-te de tudo. Fecha os olhos, baixa a cabeça, vai-te embora, não vás para além, não vás para parte nenhuma...

Dor. Agonia flamejando na minha mão...

- Custa muito, Lew? - Atrás de mim podia sentir a suavizante presença da mente do meu pai. Fiz um aceno, cerrando os dentes, batendo violentamente com o doloroso coto da minha mão esquerda contra o corrimão, deixando-me inundar pela fria estranheza da alva orla da lua.

- Raios, sinto-me bem. Deixe-se de... - Fiz um esforço para encontrar a palavra justa, e tudo o que encontrei foi: - ... de pairar em cima de mim...

- O que queres que faça? Não posso isolar-me de tudo - replicou ele, calmamente. - Tu estavas... como direi?... a emitir os teus pensamentos. Quando fores capaz de guardá-los para ti, deixar-te-ei em paz com eles. Em nome de todos os deuses, Lew! Trabalhei como técnico na Torre de Arilinn durante dez anos!

Achou por bem não dar pormenores. Nem precisava de fazê-lo.

 Durante três anos, talvez os mais felizes da minha vida, também eu tinha sido mecânico de matrizes na Torre de Arilinn, trabalhando com os complexos cristais de matrizes que ligavam telepatas e mentes entre si, fornecendo sistemas de comunicação e outras tecnologias ao nosso mundo tão deficitário em metais e em maquinaria. Eu tinha aprendido, em Arilinn, o que significava ser telepata, Comyn da nossa casta, dotado ou amaldiçoado com a junção de mentes e com a hipersensibilidade das outras mentes ligadas à minha. Aprendíamos a não nos intrometermos; aprendíamos a não permitir que os nossos pensamentos se imiscuíssem nos dos outros, a não sentir demasiadamente o sofrimento ou as necessidades dos outros, a permanecer estranhamente sensíveis mas ao mesmo tempo sem aceitarmos intromissões ou exigências.

Tudo isto também eu tinha aprendido. Mas o meu controlo fora esgotado pela matriz do nono nível que eu, estupidamente, tinha tentado dominar com um círculo de telepatas mal treinados.

Esperávamos, com toda a presunção, restaurar a velha tecnologia darkoveriana de alto nível, transmitida como uma lenda de geração para geração desde as Eras do Caos. E quase o havíamos conseguido, fazendo experiências com as velhas artes darkoverianas a que as gentes do povo chamavam bruxaria e magia. Sabíamos que na realidade essas artes constituíam uma tecnologia complexa que seria talvez capaz de fazer qualquer coisa, propulsionando naves espaciais que colocariam Darkover a par do Império em vez de continuarmos a ser um dos seus parentes pobres, dependentes do Império Terráqueo: um planeta frio e parco em metais.

Quase o tínhamos conseguido... mas Sharra era demasiado poderosa para nós, e a matriz que durante anos estivera acorrentada, alimentando pacificamente de fogo as forjas dos ferreiros das montanhas, conseguira libertar-se, saqueando e grassando nas montanhas.

 Uma cidade tinha sido destruída. E eu... também eu ficara destruído, consumido por aqueles fogos monstruosos, e Marjorie... Marjorie estava morta... E agora dentro da minha própria matriz nada conseguia ver senão chamas e destruição e Sharra...

Cada telepata tem de se afinar ou sintonizar com a pedra-matriz que usa. Aos onze anos de idade tinha recebido a minha; se ela me fosse retirada eu morreria prontamente. Não sei bem o que são as pedras-matrizes; algumas pessoas dizem tratar-se de cristais que ampliam as emanações psicoeléctricas da actividade cerebral nas áreas "silenciosas” em que residem os poderes Comyn. Outros chamam-lhes uma forma vital alienígena, simbiótica com os poderes especiais do Comyn. Qualquer que seja a verdade, um telepata Comyn trabalha através da sua matriz; as matrizes maiores, de múltiplos níveis, nunca são sincronizadas com o corpo e a mente de cada mecânico individualmente, sendo contudo transmitidas e transformadas através da matriz de cada um.

Mas Sharra tinha estendido as suas garras para nós, puxando-nos para o fogo...

- Basta! - O meu pai falou com a violência que era peculiar a um Alton, impondo a sua mente sobre a minha, expulsando a imagem. Uma grata escuridão desceu atrás dos meus olhos; depois pude ver de novo a Lua, ver algo que não fossem as chamas.

Depois ele prosseguiu calmamente, enquanto eu repousava os olhos cobrindo-os com a minha mão válida:

- Podes não acreditar agora, mas já estás melhor, Lew. Aquilo surge-te quando deixas de estar na defensiva, eu sei. Mas há longos períodos em que podes quebrar a influência da matriz de Sharra...

Interrompi-o iradamente:

- Quando não estou a falar disso, queres tu dizer.

- Não - disse ele -, quando o efeito não está presente. Tenho estado a monitorizar-te. Já não é tão mau como foi durante aquele primeiro ano. No hospital, por exemplo, não conseguia recuperar-te durante mais do que umas tantas horas de cada vez. Agora passam-se dias, mesmo semanas...

Todavia eu nunca seria livre. Quando tínhamos partido de Darkover, com a esperança de conseguir salvar a minha mão queimada nas fogueiras de Sharra, levara comigo a matriz de Sharra, escondida na sua ornamentada espada; não por desejar levá-la mas porque, depois do que acontecera, não podia afastar-me dela tal como não podia separar-me da minha própria matriz. Esta pendia de um cordão em volta do meu pescoço, onde permanecia desde o meu décimo segundo ano, e não podia removê-la sem dor e sem prováveis danos cerebrais. Havia-me sido tirada por uma vez - num acto deliberado de tortura - e eu estivera mais próximo da morte do que desejo recordar-me. Provavelmente, se a matriz tivesse sido mantida afastada de mim durante mais um dia, eu teria morrido, de falha cardíaca ou de algum acidente cerebral.

Mas a matriz de Sharra... tinha de algum modo subjugado a minha. Não precisava de usá-la pendurada ao pescoço, ou de estar em contacto físico com ela, mas não podia afastar-me para além de uma certa distância crítica, senão a dor começaria a fazer-se sentir, com as imagens do fogo invadindo-me o cérebro, como se fosse estática a obscurecer tudo o mais. O meu pai era um técnico competente, mas nada podia fazer: os técnicos da Torre de Arilinn, onde tinham tentado salvar a minha mão, também nada puderam fazer. Por fim tinham-me levado para fora do meu mundo, numa vã esperança de que a ciência terráquea pudesse fazer alguma coisa. Fora uma acção ilegal o meu pai Kennard Alton, o Guardião do Domínio Alton, ter abandonado Darkover ao mesmo tempo que o seu Herdeiro. Mas ele fizera-o, apesar disso, e por tal acção eu sabia que deveria sentir-me grato para com ele. Porém tudo o que sentia era cansaço, raiva, ressentimento.

Devias ter-me deixado morrer.

O meu pai foi postar-se à luz da ténue lua e das estrelas. Mal podia discernir o seu contorno: alto, outrora pesado e imponente, agora recurvado com a doença óssea que desde há muitos anos o estropiava, mas ainda poderoso, dominador. Eu nunca tinha a certeza de estar a ver a presença física do meu Pai ou a sua força mental, a qual subjugava a minha vida desde que, tinha eu onze anos de idade, ele abrira à força a minha mente ao dom telepático dos Altons, o dom da conexão forçada, mesmo com não-telepatas, que caracteriza o Domínio Alton. Ele fizera-o porque não havia outro modo de provar ao Conselho Comyn que eu era merecedor de ser o Herdeiro Alton. Mas desde então eu tinha tido de viver com aquilo e sob o ascendente dele.

A minha mão latejava onde eu batera com o que restava do braço. Era peculiar, aquela dor; podia senti-la nos meus quarto e sexto dedos... como se tivesse queimado uma unha. E contudo nada havia ali, nada excepto a cicatriz vazia... Tinham-me explicado o que era: a dor fantasma, os nervos que continuavam presentes no resto do braço. Demasiado real para uma dor fantasma. Por fim os médicos terráqueos, e até mesmo o meu pai, tinham compreendido que nada mais havia a fazer com a mão, e fizeram o que devia ter sido feito logo ao princípio: cortaram-na. Nada havia a fazer, mesmo com a sua justamente famosa ciência médica. A minha mente ainda sentia repulsa com a recordação da coisa medonha e retorcida que coroara a sua derradeira técnica experimental de regeneração. Aquilo que existe nas células do corpo e ordena à mão que seja uma mão, com palma e dedos e unhas, e não uma garra ou uma pluma ou um olho, tinha sido queimado por Sharra, e por uma vez, através da droga, eu tinha visto aquilo em que a minha mão se transformara... Tenho de forçar a minha mente a afastar-se disso também... Haverá alguma coisa em que seja seguro pensar? Fiquei a olhar para o calmo céu onde os últimos vestígios de carmesim já se tinham desvanecido.

- É pior ao crepúsculo, parece-me - disse ele. - Ainda não tinha acabado de crescer quando vim pela primeira vez à Terra.

Costumava vir para aqui ao pôr do Sol para que os meus primos e meios-irmãos não vissem. Acabamos por ficar tão fartos... - Estava de costas voltadas para mim, e de qualquer modo estava já demasiado escuro para ver qualquer coisa excepto o vulto obscuro da sua presença, mas mesmo assim, algures na minha mente, podia ver o seu meio sorriso oblíquo e depreciativo. - ... de ver sempre a mesma Lua velha. E os meus primos terráqueos achavam vergonhoso que um rapaz da minha idade chorasse. Por isso certifiquei-me, depois da primeira vez, de que eles não voltariam a ver-me chorar.

Há um ditado em Darkover: Só os homens riem, só os homens dançam, só os homens choram. Mas tinha sido diferente para o meu pai, pensei com inveja feroz.  Ele viera para cá por sua livre vontade, e com um propósito: construir uma ponte entre os nossos povos, Terráqueos e Darkoverianos.

 Larry Montray, o seu amigo terráqueo, ficara em Darkover para ser adoptado pelo Domínio Alton; Kennard Alton viera para aqui para receber uma educação terráquea nas ciências deste mundo. Mas eu? Eu tinha vindo para cá como exilado, desfeito, estropiado, com a minha adorada Marjorie morta porque eu, como o meu pai antes de mim, tentara construir uma ponte entre o Império Terráqueo e Darkover. E eu tinha melhores razões: era um filho de ambos os mundos, porque Kennard, todo Comyn, se havia casado com a meia-irmã de Montray, Elaine. Por isso tentei; mas tinha escolhido o instrumento errado - a matriz de Sharra - e fracassei, e continuei vivo, com tudo aquilo que tornara a vida real para mim morto ou abandonado num mundo a meia Galáxia de distância. Até a esperança que persuadira o meu pai a trazer-me para aqui - a esperança de que a minha mão, queimada nos fogos de Sharra, talvez pudesse ser poupada ou regenerada - acabara por ser pior do que uma miragem. Apesar de tudo o que eu tinha suportado, até isso desaparecera. E encontrava-me aqui num mundo odiado, estranho e ao mesmo tempo familiar.

Os meus olhos estavam a habituar-se à escuridão; agora podia ver o meu pai, um homem nos finais da meia-idade, corcovado e estropiado, com o cabelo em tempos resplandecente de cor agora encanecido, o rosto profundamente enrugado pelas dores e pelo sofrimento.

- Lew, queres regressar? Seria mais fácil para ti? Eu vim para cá por uma razão: no desempenho de uma missão formal. Era uma questão de honra. Mas nada te prende aqui. Poderás apanhar a nave e regressar a Darkover quando te aprouver. Deveremos ir para casa, Lew? - Não olhou para a minha mão; não precisava de fazê-lo.  Isso tinha fracassado; não havia razão para permanecer aqui aguardando um milagre.

(Mas eu podia ainda sentir aquela dor informe em redor do polegar, como se a unha tivesse sido arrancada. E o sexto dedo doía-me como se o tivesse entalado num torno, ou queimado. Era estranho. Assombrado pelo fantasma de uma mão inexistente.)

- Lew, vamos para casa? - Sabia que ele queria, pois esta terra estranha estava a matá-lo, também. Mas a seguir ele disse o que não devia ter dito.

- O Conselho quer que eu regresse. Eles sabem, agora, que não irei ter mais filhos. E tu foste reconhecido como Herdeiro de Alton; quando me vim embora eles disseram que era ilegal o Lorde do Domínio Alton e o seu Herdeiro abandonarem o Domínio ao mesmo tempo. Se tu regressasses, o Conselho seria forçado a reconhecer...

- O Conselho que vá para o inferno! - exclamei, tão alto que o meu pai estremeceu. Surgiam outra vez as velhas manobras políticas.

 Ele não tinha desistido de levar o Conselho a reconhecer-me, e isso transformara a minha infância num pesadelo, forçando-o a dar o perigoso e pungente passo de provocar o despertar prematuro do meu dom do laran. Mais tarde, o Conselho tinha também originado a minha ida ao castelo dos meus parentes em Aldaran e a desastrosa tentativa de aplicar o poder de Sharra, e Marjorie... Bati com força a porta da minha mente, um lugar fechado, negrume, negrume. Não iria pensar novamente nisso, não iria, não iria... Não queria ter nada a ver com aquele maldito Conselho, nem com o Comyn, nem com Darkover... Voltei-lhe as costas e comecei a caminhar na direcção da cabina no lago, sentindo-o atrás de mim, perto, demasiado perto... Sai da minha mente! Sai! Deixa-me só! Bati com a porta da minha mente como se fosse a porta da cabina, ouvi esta abrir-se e fechar-se, senti-o perto de mim apesar de ter os olhos fechados. Não me voltei nem olhei para ele.

- Lew! Não, raios, não me escorraces outra vez, escuta-me! Julgas que és a única pessoa no mundo a saber o que é perder-se um ser amado? - A sua voz era áspera, mas era a aspereza que eu reconhecia; significava que, se a sua voz tivesse soado menos áspera, talvez ele estivesse a chorar. Eu tinha levado vinte e dois anos a aprender que o meu pai podia chorar.

- Tu tinhas dois anos de idade e a tua irmã falecera à nascença. Sabíamos ambos que não haveria mais filhos. Elaine... - Ele nunca dissera o nome dela diante de mim, se bem que eu soubesse qual era por intermédio dos meus amigos; sempre se lhe tinha referido por um distante e formal "a tua mãe”. - ... Yllana... - prosseguiu, dizendo desta vez a versão darkoveriana do nome - ... sabia tão bem como eu como era frágil o estatuto de um homem com um único filho. E, ainda para mais, tu não eras uma criança robusta. Acredita, eu não lhe exigi nada. A decisão foi dela. E durante quinze anos suportei esse fardo. E tentei nunca deixar Marius sentir que a vida dele me tinha custado a de Yllana...

Ele nunca me dissera isto. Podia constatar, pela rudeza da sua voz, que lhe fora difícil dizê-lo. Tinha sido por sua livre decisão que a minha mãe arriscara a vida dando à luz o meu irmão Marius. Mas Marjorie não tivera possibilidade de escolha... Fogo. Chamas rapaces irrompendo no céu, as vastas asas das chamas. Marjorie, ardendo, consumindo-se nas chamas de Sharra... Caer Donn, o mundo. Darkover, tudo em chamas...

Baixei furiosamente a barreira de negrume para cobrir a minha mente, ouvi-me gritar "Não!” com toda a força do meu ser, e de novo levantei no ar o braço estropiado para com ele bater em qualquer coisa que pudesse provocar uma pura dor física que me invadisse o cérebro até me impedir de pensar noutra coisa. Ele não devia forçar-me a olhar para isto, obrigar-me a ver que eu tinha destruído a única coisa que amara ou que alguma vez poderia amar...

Como se estivesse muito longe ouvi-o chamar o meu nome, senti o toque dos seus pensamentos carregados de preocupação... Apertei mais a barreira, senti a escuridão baixar sobre mim. Fiquei imóvel, sem ouvir, sem ver, até que ele se foi embora.

 

O DESTERRO

Darkover: o terceiro ano de desterro Regis Hastur encontrava-se numa varanda do Castelo do Comyn debruçado sobre Thendara e sobre o vale que se espraiava à sua frente, admirando a cidade e, para além desta, a Cidade Comercial terráquea. Por detrás dele estava o castelo, envolto em sombras pelas montanhas. Diante deste estendia-se a Cidade Comercial terráquea, e para além dela o espaçoporto... e os altaneiros arranha-céus dos edifícios do quartel-general terráqueo. Como já sucedera muitas vezes, Regis pensou: Isto tem uma certa beleza alienígena.

Durante muitos anos ele tivera um sonho: ao atingir a maioridade iria deixar Darkover para trás, arranjar passagem numa destas astronaves terráqueas, e partir para viajar entre estrelas, estranhos sóis e mundos múltiplos que ultrapassavam a sua capacidade de imaginação.

 Deixaria atrás de si tudo o que ele odiava na vida: a sua incómoda posição de herdeiro de uma antiga casa e de uma Regência que se tornava um anacronismo maior a cada ano que passava; a contínua pressão para se casar, jovem como era, para fornecer herdeiros à dinastia dos Hasturs; o potencial desconhecido do laran, aquela capacidade psíquica introduzida de nascença em ossos e cérebros e genes.

Deixaria para trás o governo dos Domínios em contenda, cada um deles lutando por algo diferente no mundo em constante mutação que era o Darkover moderno. Regis tinha dezoito anos, tendo atingido legalmente a maioridade três anos antes, ajuramentado a Hastur. Sabia agora que nunca tornaria realidade o seu sonho.

Não teria sido o primeiro dos Comyn a abandonar Darkover e a fixar-se no Império. O espírito de aventura, o engodo de uma sociedade diferente e de um vasto e complexo universo, tinham atraído para o Império mais do que um darkoveriano, mesmo da mais alta nobreza.

O Domínio Ridenow, pensou ele. Esses não fazem segredo da sua convicção de que Darkover deveria alinhar-se com o Império, passar a fazer parte deste mundo moderno. Lerrys Ridenow tem viajado por todo o Império, e sem dúvida voltará a cantar-lhe louvores nas reuniões do Conselho da presente temporada. Kennard Alton foi educado na Terra, e encontra-se lá agora, com o seu filho Lew. E então Regis tentou imaginar onde estaria agora Lew, algures naquele estranho universo.

Se eu estivesse liberto do encargo da herança de Hastur também partiria, para nunca mais regressar. E uma vez mais sentiu-se assoberbado pela tentação daquilo que projectara quando era uma criança rebelde no seu primeiro ano ao serviço dos Cadetes da Guarda, o aprendizado obrigatório para todos os filhos do Comyn. Ele e o seu amigo Danilo tinham planeado tudo em conjunto: partiriam a bordo de uma das naves terráqueas, encontrando algures um lugar para ambos... perdendo-se na imensidade de um milhar de mundos diferentes. Regis sorriu, reminiscente, sabendo que tudo tinha sido um sonho de crianças. Para o melhor ou para o pior, ele era o Herdeiro de Hastur, e o destino de Darkover fazia parte da sua vida, tão intimamente como o corpo ou o cérebro. Danilo era o Herdeiro de Ardais, tendo sido adoptado por Lorde Dyan de Ardais, que não tinha descendência, e estava a ser preparado para aquele elevado cargo como Regis fora preparado para o seu. O ano anterior tinha sido para ambos o seu terceiro ano nos cadetes, como oficiais juniores aprendendo comando e autocomando. Fora uma época pacífica; mas agora já tinha acabado. Regis tinha passado o Inverno na cidade de Thendara, assistindo a sessões nas cortes, lidando com magistrados da cidade, enviados diplomáticos dos outros Domínios e das Vilas Secas para além dos Domínios, representantes dos Terráqueos e do Império; aprendendo, por outras palavras, a ocupar o lugar do seu avô como representante dos Domínios.

Danilo tinha feito apenas uma ou duas rápidas visitas à cidade desde aquela Noite de Festival em que a época das sessões do Conselho fora dada por finda; regressara ao Castelo Ardais com Dyan para aprender a gestão do Domínio que passaria a ser seu se Dyan falecesse ainda sem filhos. Depois, segundo constara a Regis, Danilo tinha sido chamado de regresso a Syrtis pela grave doença do seu próprio pai.

Por que razão estará Danilo agora tão repentinamente no meu pensamento? Mas logo soube: não era um telepata poderoso, mas o laço que, por juramento, o ligava a Danilo, era forte. Voltou abruptamente as costas ao panorama da cidade e do espaçoporto que se estendia à sua frente, fechando as cortinas atrás de si ao ir para dentro.

É o sonho fútil de um rapazola, ficar ali a pensar nas estrelas. O meu mundo é aqui. Dirigiu-se ao salão exterior dos aposentos dos Hasturs justamente quando um servo entrava à procura dele.

- Dom Danilo Syrtis, Herdeiro e Guardião de Ardais - anunciou, e Danilo entrou no salão, um jovem esbelto e de aspecto agradável, com cabelos escuros e olhos negros. Regis avançou para o estreitar num formal abraço de parente, mas por cima do ombro viu o servo sair da sala e o cumprimento formal transformou-se num caloroso amplexo mútuo.

- Dani! Que gosto tenho em voltar a ver-te! Não podes imaginar como a cidade é aborrecida no Inverno!

Danilo sorriu, olhando para Regis com afecto. Era agora um pouco mais alto do que o seu amigo.

- Mesmo assim não me importava de viver aqui. Posso jurar-te que o clima de Ardais tem muito em comum com o mais gélido dos infernos de Zandru. Não me parece que Lorde Dyan tenha aguentado mais frio do que isso no mosteiro de Nevarsin!

- Dyan ainda está em Nevarsin?

- Não, veio-se embora no último Inverno. Estivemos juntos em Ardais durante todo o Inverno; ensinou-me muitas coisas que, segundo ele, eu tinha de saber como Regente do Domínio. Depois fomos ambos para o sul, para Thendara. É estranho, nunca imaginei que a companhia dele pudesse dar-me prazer, mas não poupou esforços para me preparar devidamente para o lugar que irei ocupar...

- Ele é capaz de tudo em benefício da sua própria casa... disse Regis com secura.

- Contudo, quando o meu pai faleceu foi muito prestável.

- Isso também não me surpreende - retorquiu Regis. - Fizeste-te um rapaz bonito, Dani, e Lorde Dyan sempre apreciou a beleza num rapaz...

Danilo riu-se. Agora podiam ambos rir-se a respeito daquilo, mas três anos antes não tinha sido motivo para risotas.

- Ora, já estou velho de mais para Dyan... ele prefere rapazes ainda imberbes, e como podes ver... - Com um dedo nervoso retorceu o pequeno bigode escuro que lhe adornava o lábio superior.

- Só me admira que não tenhas preferido deixar crescer a barba completa!

- Não - insistiu Danilo, com uma estranha e calma persistência.

 - Agora conheço-o melhor. E posso dar-te a minha palavra de que Dyan nunca me dirigiu uma palavra ou um gesto que não possa existir entre pai e filho. Quando o meu pai morreu, ele concedeu-lhe todas as honrarias, dizendo que era um prazer prestar homenagem a quem o tinha merecido, e que talvez isso compensasse as honrarias que ele dispensara a alguns dos seus parentes que não o mereciam. - O velho Lorde de Ardais tinha falecido havia três anos, louco e senil após uma longa e lamentável vida de deboche.

- Dyan disse-me uma vez algo parecido com isso – concordou Regis. - Mas mudemos de assunto. Folgo muito em ver-te aqui, bredu. Presumo que este ano vás tomar assento no Conselho, entre os Ardais?

- Foi o que Dyan disse - respondeu Danilo. - Mas o Conselho só se reunirá a partir de amanhã, e esta noite... Bem... desde há anos que eu não vinha a Thendara.

- Raramente me aventuro a andar na rua - disse Regis, numa voz tão calma que nem parecia amarga. - Não consigo andar meio quilómetro pelas ruas sem uma multidão a seguir-me...

Danilo começou a formular uma resposta irreverente; mas conteve-se, e a antiga simpatia recomeçou a tecer-se entre ambos, um toque mais íntimo do que quaisquer palavras. Era o toque telepático do laran, da fraternidade jurada e não só.

Bem, tu és o Herdeiro de Hastur, Regis; faz parte do teu fardo seres quem és. Aliviá-lo-ia se pudesse, mas ninguém poderá fazê-lo. Nem tu irias permitir... Tu consegues aliviá-lo só com a tua compreensão; e agora que estás aqui já não me sinto sozinho...

Não eram necessárias palavras. Passado algum tempo Danilo disse com naturalidade:

- Há uma taberna frequentada pelos oficiais da Guarda; ao menos esses estão acostumados à presença dos Comyn e não pensam que nós todos somos abortos ou monstros, ou que caminhamos sem tocar no solo como alguns heróis das antigas lendas. Poderíamos ir até lá tomar uma bebida sem que ninguém olhasse para nós.

Ao menos a Guarda do Castelo de Thendara sabe que somos humanos, com todas as fraquezas e defeitos dos humanos, e por vezes ainda mais... Regis não estava inteiramente certo de que este pensamento era seu ou se o teria captado de Danilo. Atravessaram o grande labirinto do Castelo Comyn, saindo para as apinhadas ruas da primeira noite do Festival.

- Às vezes, durante o Festival, venho até cá mascarado – disse Regis.

Danilo sorriu.

- O quê? E privas todas as raparigas da cidade das alegrias do amor sem esperança?

Regis fez um gesto nervoso, o gesto de um esgrimista que concede um toque. Danilo sabia que lhe tinha tocado perto do nervo, mas não piorou as coisas com um pedido de desculpa. De qualquer modo, Regis captou-lhe o pensamento: O Regente está de novo a insistir com ele para que se case, raio do velho tirano! Ao menos o meu pai adoptivo compreende a razão por que eu não me caso. Depois Danilo conseguiu escudar os seus pensamentos, e dirigiram-se ambos à taberna situada próximo dos portões do Pavilhão da Guarda.

A sala da frente estava repleta de cadetes jovens. Alguns dos rapazes saudaram Regis, que se viu assim obrigado a dirigir-lhes uma palavra ou duas. Por fim conseguiram alcançar a sala das traseiras, mais sossegada, onde apenas alguns oficiais mais maduros estavam a bebericar. A sala estava envolta em penumbra mesmo àquela hora, e alguns dos homens saudaram Regis e o seu companheiro de forma amistosa, regressando logo em seguida aos seus afazeres; não era uma manifestação de inimizade, mas apenas uma forma de concederem ao Herdeiro Hastur a única privacidade com que ele poderia contar nos dias que decorriam. Ao contrário dos rapazes da sala exterior, os quais apreciavam a certeza de que até o poderoso Lorde Hastur era forçado por lei e por tradição a corresponder às suas saudações e a reconhecer a existência deles, estes oficiais estavam cientes do fardo que Regis suportava e dispunham-se a deixá-lo em paz se ele assim o desejasse.

O locandeiro, que também o conhecia, trouxe-lhe a sua bebida usual sem lhe perguntar.

- O que vais beber, Dani?

Danilo encolheu os ombros.

- Disso que ele te trouxe.

Regis começou a protestar, mas depois riu-se e deitou vinho para a caneca; a bebida, de qualquer modo, era apenas uma justificação. Pegou na sua pesada caneca, deu um gole e disse:

- Agora conta-me tudo o que te tem acontecido enquanto estiveste longe. Lamento o que se passou com o teu pai, Dani; gostava dele e tinha a esperança de trazê-lo para a corte algum dia. Estiveste nas Infernais durante todo este tempo?

As horas foram passando enquanto conversavam, com o vinho meio esquecido entre eles. Por fim escutou-se o rufar de tambores vindo do Salão da Guarda, anunciando o recolher, e Regis agitou-se, soerguendo-se no assento, para a seguir se rir ao lembrar-se de que já não estava obrigado a responder à chamada.

- Estás transformado num soldado! - comentou Danilo, gracejando.

- Gostava daquela vida - disse Regis passado um momento.

- Sabia sempre exactamente o que era esperado de mim, e quem mo exigia, e o que tinha de fazer. Se tivesse havido guerra, seria diferente. Mas as piores situações que precisava de enfrentar eram os tumultos de rua, ou a escolta de bêbedos até ao calabouço se estivessem a provocar distúrbios, ou a investigação de alguma casa assaltada, ou forçar alguém a prender um cão maçador. No ano passado houve um distúrbio na praça do mercado - não, isto tem piada, Dani; a mulher de um condutor de gado tinha-o deixado porque, dizia ela, fora dar com ele metido na sua própria cama com a sua própria prima! Invadiu-lhe a estrebaria e soltou os animais que ele trouxera para vender! Havia mesas emborcadas e louça partida por toda a parte... Calhara-me ser o oficial do dia, pelo que tive de resolver a situação! Um dos cadetes queixou-se-me de que tinha saído da sua casa justamente para não precisar de andar a correr atrás dos animais do pasto durante todo o dia! Bem, por fim conseguimos recolher todas as animálias, e eu tive de ir apresentar o relatório à magistrada da cidade. As cortes multou a mulher em doze reis pelos danos provocados pelos animais, mas quem teve de pagar a multa foi o marido! Este bem protestou que tinha sido ele a vítima, e que a culpada era a mulher, mas a magistrada - era uma Renunciante - disse que era para ele aprender a conduzir em privado as suas experiências amorosas, de modo a não insultar ou humilhar a esposa!

Danilo riu-se, mais pela expressão divertida no rosto de Regis do que pelo episódio. Na outra sala podia ouvir os cadetes a empurrarem-se uns aos outros e altercando enquanto pagavam as contas e iam regressando à caserna.

- Pareceu-me ter visto um dos filhos da tua irmã entre os cadetes lá fora. Devem estar já bastante crescidos.

- Ainda é cedo para isso - disse Regis. - Rafael tem só doze anos, e o jovem Gabriel apenas onze... É possível que Rafael já tenha idade para estar nos cadetes, mas o pai dele, que é o Comandante da Guarda, talvez tenha achado que ainda é demasiado cedo... ou então talvez seja essa a opinião da minha irmã, o que vai dar na mesma.

Danilo parecia espantado.

- Gabriel Lanart-Hastur é o Comandante da Guarda? Como foi que isso aconteceu? Kennard Alton não chegou a regressar?

- Nunca mais deu sinal de si; nem se sabe mesmo se estará morto ou vivo, disse o meu avô.

- Mas o Comando da Guarda do Castelo é um privilégio dos Altons - protestou Danilo. - Como terá ido parar às mãos dos Hasturs?

- Gabriel é o parente mais próximo dos Altons de Armida. Com Kennard e o seu herdeiro ambos fora do mundo, o que poderiam fazer?

- Mas haverá certamente outros Altons com um parentesco mais próximo do que o teu cunhado - protestou Danilo. - O outro filho de Kennard, Marius... esse deve ter já uns quinze ou dezasseis anos.

- Esse, mesmo se fosse reconhecido como herdeiro de Alton disse Regis -, não teria idade suficiente para comandar a Guarda. E o irmão mais velho de Kennard tinha um filho, aquele que foram encontrar na Terra... mas esse é técnico chefe na Torre de Arilinn, e sabe tanto de comandar soldados como eu sei de fazer bordados! De qualquer modo, a sua educação terráquea constituiria um impedimento; não lhe causa problemas lá em Arilinn, mas não o querem em Thendara a recordar-lhes que existem terráqueos no próprio coração do Conselho Comyn! - A voz dele parecia amargurada. - Conseguiram ver-se livres de Lew Alton, e no ano passado o Conselho recusou-se uma vez mais a conceder a Marius qualquer direito ou dever de um filho Comyn. Segundo me disse o meu pai... - o seu sorriso apenas lhe esticou ligeiramente os lábios - ... eles acham que se enganaram no que diz respeito a Lew, e não vão repetir o erro, dizem. Sangue terráqueo, sangue mau, traição...

- Lew não merece que o tratem assim - disse Danilo, calmamente.

 - Seja como for, ao menos Kennard está isento de qualquer suspeita de traição e devia ser consultado.

- Pensas que não foi isso mesmo o que eu lhes disse? Já tenho idade suficiente para ter assento no Conselho e para escutar os meus anciãos, Dani, mas julgas que me escutam quando sou eu a falar? O meu avô disse que sabia que Lew e eu tínhamos sido bredin quando eu era miúdo... sugerindo com isso que talvez a minha avaliação não fosse isenta. Se Kennard estivesse aqui para ser consultado, talvez o escutassem. A maioria das pessoas escuta-o. Contudo não estão a menosprezar Marius, se bem que não lhe tenham concedido o estatuto de Alton de Armida; nomearam Gabriel seu tutor, e enviaram-no para o quartel-general terráqueo, para ali receber uma educação terráquea apropriada. É mais culto do que tu ou eu, Dani, e o que ele aprendeu ali talvez faça mais sentido nestes tempos do Império e das viagens estelares do que isto... - Fez um aceno englobando a taberna e os guardas com as suas espadas. Regis concordava plenamente com o Convénio darkoveriano, o qual proibia o uso de qualquer arma eficaz para além do alcance do braço de quem a empunhasse, insistindo em que quem provocasse a morte tinha de correr o risco de morrer também. De qualquer modo, as espadas não eram apenas armas, mas símbolos de um estilo de vida que parecia não fazer qualquer sentido perante um império interestelar.

 Danilo interpretou-lhe os pensamentos, mas abanou teimosamente a cabeça.

- Não concordo contigo, Regis. Marius merece mais do Conselho do que uma educação terráquea. Não me parece que Kennard precisasse de partir para fora deste mundo, ou pelo menos deveria ter continuado aqui até agora. Hastur devia mandá-lo regressar imediatamente... a não ser que o teu avô ambicione mais um Domínio para ficar sob a tutela dos Hasturs. Segundo parece, já tomou posse do Domínio de Elhalyn... ou haverá alguma razão para que Derik não tenha ainda sido coroado, aos dezoito anos de idade?

Regis fez uma cara de desagrado.

- Não conheces o nosso príncipe. Apesar de ter dezoito anos, não passa de uma criança de dez, ou pelo menos assim parece. O que o meu avô mais desejaria era ver-se livre do peso da Regência de Thendara...

Danilo levantou um sobrolho céptico mas não disse nada. Regis insistiu:

- Derik não se encontra ainda apto a governar. O Conselho adiou a sua coroação até ele ter vinte e cinco anos. Existe precedente para isso, e se Derik tem dificuldade em alcançar a idade adulta e a sabedoria, bem... isso dar-lhe-á tempo suficiente. Se assim não for... pois bem, poremos esse falcão a voar quando as suas rémiges estiverem crescidas.

- E se Derik, na opinião de Hastur, nunca estiver apto a governar? - inquiriu Danilo. - Houve tempos em que os Hasturs governavam todos estes Domínios, e a rebelião contra a sua tirania fragmentou os Domínios numa centena de pequenos reinos!

- E foram os Hasturs que voltaram a reuni-los, nos tempos do Rei Carolin - disse Regis. - Também eu costumo ler História. Pelo amor de Aldones, Dani, pensas que o meu avô está ansioso por ser rei de todo este mundo? Ou será que eu te pareço um tirano?

- Claro que não - respondeu Danilo. - Mas, por princípio, cada um dos Domínios tem de ser forte... e independente. Se Lorde Hastur não pode coroar Derik - e, pelo pouco que sei a seu respeito, não me parece muito parecido com um rei - deveria procurar algures um Herdeiro para Elhalyn. Perdoa-me, Regis, mas não me agrada ver tanto poder nas mãos dos Hasturs; primeiro a Regência a controlar o Herdeiro da Coroa, e agora também os Altons sob o domínio Hastur. E ao Domínio de Alton incumbe o comando da Guarda do Castelo. Para onde se voltará Hastur a seguir? Lady Callina de Valeron continua por casar; irá Lorde Hastur promover talvez o casamento dela contigo, trazendo assim o Domínio de Aillard também para a regência dos Hasturs?

- Tenho idade suficiente para ser consultado a respeito do meu casamento - ripostou Regis com secura. - E asseguro-te que, se ele tem algum plano deste género, não mo confiou. Achas que o meu avô é uma aranha no centro de uma semelhante teia?

- Regis, não estou a tentar provocar uma disputa contigo. Danilo levantou o jarro de vinho; Regis recusou com um aceno de cabeça, mas Danilo insistiu em atestar a caneca, levou-a aos lábios e pousou-a na mesa sem ter provado. - Sei que o teu avô é um homem bom, e quanto a ti... ora, tu sabes bem o que penso de ti, bredhyu. - Disse o termo usando a inflexão familiar e Regis sorriu, mas Danilo prosseguiu acaloradamente: - Tudo isto estabelece um precedente perigoso. A seguir a ti poderão vir a reinar Hasturs inaptos para exercerem tanto poder. Poderá surgir o dia em que todos os Domínios se tornarão vassalos de Hastur.

- Pelos infernos de Zandru, Dani! - disse Regis com impaciência. - Pensas seriamente que Darkover irá permanecer independente do Império durante tanto tempo, ou que o Comyn governará os Domínios quando esse dia chegar? Parece-me que Marius Alton é o único, de entre todos nós, que estará adequadamente preparado para a direcção que Darkover terá de seguir.

- Esse dia chegará - replicou Danilo calmamente - sobre os cadáveres do Domínio de Ardais.

- Não tenho dúvidas de que nesse dia também haverá cadáveres de Hasturs, mas acabará por chegar. Escuta, Dani - prosseguiu, empenhadamente -, compreendes verdadeiramente a situação? Há algumas gerações, quando os Terráqueos chegaram cá, tudo aconteceu apenas porque calhou encontrarmo-nos no local errado no momento certo: um planeta situado entre as espirais superior e inferior da Galáxia, exactamente onde eles precisavam de instalar um espaçoporto como encruzilhada e ponto de trânsito para o tráfego do Império. Teriam preferido um planeta desabitado, e estou convencido de que consideraram transformar Darkover nisso mesmo... Até que descobriram que éramos uma colónia terráquea perdida...

- ... e S. Valentine-das-Neves jaz enterrado em Nevarsin - interrompeu Danilo, exasperado. - Ouvi dizer tudo isso quando éramos prisioneiros em Aldaran há três anos, Regis!

- Não, escuta... Os Terráqueos deram connosco, falando línguas há muito mortas na Terra; mas éramos um mundo primitivo, que tinha perdido a sua tecnologia, ou assim pensavam. Atribuíram-nos a classificação de Mundo Encerrado, para que não fôssemos perturbados por convulsões sociais demasiado rápidas; fazem-no em todas as sociedades primitivas, para que estas possam desenvolver-se ao seu próprio ritmo. Depois constataram que não éramos um planeta tão primitivo como primeiro tinham pensado, e tomaram conhecimento do nosso laran, da nossa tecnologia das matrizes. Descobriram que as mentes encadeadas nos círculos das Torres podiam minerar metais, propulsionar veículos voadores, todas essas outras coisas... Quiseram adoptar a tecnologia das matrizes, e tentaram consegui-la por todos os meios.

- Regis, isso não é novidade nenhuma, mas...

- Queres escutar ou não? Sabes tão bem como eu: alguns darkoverianos desejaram, e ainda desejam, as vantagens da tecnologia terráquea, um lugar no Império, a classificação de Darkover como uma colónia com expressão política, representação no Senado do Império, todas estas coisas. Outros, especialmente no Comyn, acharam que a cidadania no Império destruiria o nosso mundo e a nossa gente, que nos transformaria em apenas mais uma colónia igual a uma dúzia de outras, dependentes do comércio terráqueo, dos metais e luxos vindos de outros mundos, dos turistas... Até agora têm feito valer as suas opiniões. Concordo que terá de haver mudanças em: Darkover. Mas pretendo que elas surjam a um ritmo que possamos assimilar.

- E eu pretendo que elas nunca surjam, seja como for - disse Danilo.

- Quem o pretenderia? Mas os Terráqueos estão cá, quer queiramos quer não. E eu não desejo ser acusado de tentar manter os nossos povos num estado primitivo, bárbaro, para que a minha família e eu possamos conservar os nossos poderes supersticiosos sobre eles!

Tinha falado mais acaloradamente do que pretendia, esquecendo-se de quem eles eram. Uma voz lânguida ouviu-se:

- Bravo! O Herdeiro de Hastur atingiu a idade adulta e aprendeu que os Terráqueos são uma realidade, não uma corja de papões decididos a assustarem as crianças pequenas!

Regis sobressaltou-se. Tinha-se esquecido de que não estavam sós. Deu meia volta e encarou um indivíduo alto e magro, de cabelos claros, com a marca do Comyn nas suas feições angulares, elegantemente trajado com afectadas roupagens darkoverianas mas com ricos pelames adornando a sua capa. Regis fez uma vénia, com o rosto composto em rígida polidez.

- Primo - cumprimentou. - Não te tinha visto, Lerrys.

- Nem eu a ti, Dom Regis - replicou Lerrys Ridenow -, mas, quando gritas tão alto que os Terráqueos podem ouvir-te no seu Quartel-general do outro lado da cidade, que razões terei para fazer de conta que não te escuto? Folgo em saber que compreendes a situação. Espero que isto signifique que haverá mais um defensor da sanidade no Conselho deste ano, e que os Ridenow não precisarão de estar sozinhos contra aquele indeciso conclave de solteironas de ambos os sexos!

Regis reagiu com rigidez:

- Não julgues que estou totalmente em acordo contigo, Dom Lerrys. Repugna-me pensar no tipo de convulsões sociais que surgiriam se nos transformássemos apenas em mais uma colónia terráquea...

- Mas nós somos mesmo apenas mais uma colónia terráquea - ripostou Lerrys. - E quanto mais depressa o reconhecermos melhor será. Convulsões sociais? Ora! O nosso povo anseia pelas coisas boas que a cidadania terráquea lhe trará, e está pronto a aceitar o resto, logo que se vir confrontado com um facto consumado. Pura e simplesmente, o nosso povo não tem um desenvolvimento intelectual suficiente para saber o que realmente pretende, e os Hasturs, e os valorosos lordes do Comyn, certificaram-se de que nunca o terá!

Lerrys soergueu-se do assento.

- Haverá necessidade de nós estarmos aqui a gritar de uma mesa para a outra? Queres fazer-nos companhia, primo... e o teu amigo também? - Usou a inflexão íntima do termo "amigo”, com as suas implicações, e Regis, irritado, deitou um olhar a Danilo, desejando que este recusasse o convite; mas não existia uma causa razoável para a recusa. Lerrys era Comyn, e era também seu parente. Não havia motivo para a sua antipatia.

A não ser, talvez, o facto de termos mais em comum do que eu desejaria. Ele não se cansa de proclamar aquilo que eu, por atenção ao meu avô, conservo discretamente dentro de limites. Invejo-o, talvez, por ele ser o filho mais novo de uma casa Comyn menor, por não se encontrar permanentemente sob o escrutínio público. Tudo o que ele faz não se torna imediatamente assunto de mexericos ou de censura.

Foram sentar-se à mesa de Lerrys e aceitaram uma nova rodada de bebidas, a qual nenhum deles desejava. Depois de mais uma ou duas rodadas, pensou ele, desculpar-se-ia de algum modo e a seguir ele e Danilo iriam jantar a qualquer lado; o primeiro toque de recolher já tinha soado há algum tempo; dentro em pouco far-se-ia ouvir no Salão da Guarda o toque final de recolher e ele poderia inventar um incidente algures para justificar o atraso. Os locais onde ele costumava jantar seriam demasiado modestos para Lerrys e para os seus elegantes sequazes; quase todos eles, conforme podia ver, eram darkoverianos, mas usavam aprimorados trajes terráqueos; não o uniforme funcional dos espaçoportos, mas peças brilhantes e coloridas vindas dos mais remotos recantos do Império.

Lerrys, servindo o vinho que mandara vir, prosseguiu, reiniciando a conversa que tinha interrompido.

- Pensando bem, somos terráqueos; merecemos todos os privilégios da nossa herança. Toda a gente dos Domínios poderia tirar benefício da medicina e da ciência terráqueas... para não falarmos já da educação! Sei que sabes ler e escrever, Regis, mas tens de concordar que constituis uma excepção feliz. Mesmo de entre os cadetes, quantos poderão fazer mais do que escrevinhar o nome e soletrar o manual das armas?

- Penso que têm a educação bastante para fazerem aquilo que terão de fazer em toda a sua vida - disse Regis. - Para que teriam eles de sobrecarregar-se com disparates sem nexo, que é o que a maioria dos escritos acabam por ser, em última análise? Já existem eruditos que cheguem neste mundo... e até no Império, bem vistas as coisas.

- E se os mantivermos incultos - ripostou Lerrys com um sorriso sardónico -, será mais fácil conservá-los numa servidão supersticiosa sob o domínio do Comyn, com lendas fabulosas sobre a autoridade divina conferida aos Hasturs, parentes dos deuses...

- Concordo certamente contigo quanto a ser indesculpável esse tipo de escravidão mental - disse Regis. - Se tivesses escutado o que eu estava ainda há pouco a dizer, constatarias que estava a protestar contra essa espécie de tirania. Mas não podes afirmar que somos terráqueos e nada mais. - Debruçou-se sobre a mesa, tomou a mão de Lerrys e encostou a palma da sua mão à dele, contando os seis dedos; em seguida tocou no pequeno saco de cabedal pendente ao pescoço, onde repousava a pedra de matriz; um ténue calor, uma palpitação...

- Os poderes do Comyn são verdadeiros.

- Oh, o laran - disse Lerrys com um encolher de ombros. Mesmo alguns dos terráqueos que nos visitam conseguem desenvolvê-lo; até isso faz parte da nossa herança terráquea, e podemos ensinar-lhes alguma coisa sobre isso, também... Por que razão terá o laran de ser limitado apenas ao Comyn? Em troca dele passaríamos a beneficiar da sua ciência, com um melhor conhecimento do controlo do tempo atmosférico, o que seria uma autêntica dádiva divina nas Infernais... Talvez pudéssemos tornar cultivável o deserto das Vilas Secas, e colocar ao alcance dos Domínios algumas das montanhas agora intransponíveis do Muro em Redor do Mundo. Astronomia, viagens interestelares... e, em troca disso, o laran e o conhecimento distribuídos por toda a Galáxia...

- Isso poderia ser perigoso, demasiado perigoso para se difundir de forma indiscriminada por todo o Império - disse com acanhamento um dos jovens companheiros de Lerrys. – Estavas presente quando Caer Donn foi destruída pelo fogo, Lerrys?

- Eu estava - interveio Regis, olhando incisivamente para o jovem estranho. - Eu conheço-vos. Sois Rakhal... Rafe...

- Rakhal Darriell-Scott, z'par servu - disse o jovem. – Na zona terráquea tratam-me por Rafe Scott. Vi o que o laran descontrolado pode fazer... e espero não ter de tornar a ver!

- Não há o perigo de que isso se repita - disse Lerrys. -A matriz de Sharra foi destruída. Que se saiba, essa era a última das antigas matrizes das Eras do Caos que existia no nosso mundo.

Além disso, se ainda houver algumas poderemos aprender a controlá-las e a usá-las, sem precisarmos de nos escondermos como as banshees se esquivam da luz do Sol, fazendo de conta de que não existem. Podes crer, os Terráqueos não estão menos ansiosos do que tu de nunca verem o laran descontrolado desse modo.

- E, aconteça o que acontecer - interveio outro jovem -, haverá sempre os que podem usar o laran e os que não podem. Havia também neste jovem algo de familiar a Regis, que supunha tratar-se provavelmente de algum parente de Rafe Scott. Regis não estava com muita vontade de recordar aquela ocorrência no Castelo Aldaran, e os tempos horríveis durante os quais Sharra andara à solta, devastando os montes do outro lado do rio. Ele e Danilo, evadindo-se de Aldaran, tinham estado prestes a morrer naquelas colinas...

- Seja como for, somos todos terráqueos - disse Lerrys -, e o Império é a nossa herança, por direito e não como privilégio; não devíamos ter de solicitar cidadania no Império nem os benefícios do Império. Impuseram-nos a condição de Mundo Fechado, mas já é tempo de rectificarmos esse erro. Antes de podermos fazê-lo, temos de reconhecer que o Império Terráqueo é o nosso governo legítimo, em vez da aristocracia e dos mandões locais! Compreendo que tu, Regis, gostasses de conservar o teu lugar na oligarquia, mas presta atenção: perante um Império que abrange um milhar de mundos, o que poderá interessar o que os campónios pensam dos nossos nobres? Enquanto isto for um Mundo Fechado, a aristocracia local pode conservar os seus poderes e privilégios pessoais. Mas logo que aceitarmos que fazemos parte do Império Terráqueo - não que desejemos fazer parte do Império, mas que já o somos efectivamente, e portanto sujeitos às suas leis - então todos os cidadãos de Darkover poderão reclamar esse privilégio, e...

- Talvez haja muitos que não considerem isso um privilégio... - interrompeu Danilo acaloradamente, e Lerrys interrompeu-o, indolente:

 - Interessará realmente o que tais pessoas possam pensar? Ou melhor: ao negar-lhes esse privilégio, não estarás simplesmente a proteger os teus, Lorde Danilo, como administrador de Ardais...?

Mas, antes que Danilo pudesse responder a isso, registrou-se um alvoroço na sala da frente; depois Dyan Ardais entrou com passos largos na sala interior, onde estavam sentados os poucos oficiais seniores, bem como os Comyn. Dirigiu-se prontamente à mesa destes.

- Saudações, parentes - fez uma ligeira vénia. Danilo, como era apropriado a um filho adoptivo na presença do chefe do seu Domínio, pôs-se em pé e ficou aguardando reconhecimento ou ordens.

Dyan era alto e parco de carnes, um darkoveriano montanhês criado nas Infernais. Regis sempre o conhecera trajando vestes negras quando não envergava o seu uniforme ou as cores cerimoniais do seu Domínio; davam-lhe um ar de gélida austeridade. Como acontecia com muitos homens das montanhas, o seu cabelo não possuía o genuíno tom arruivado do dos Comyn, mas era espesso, encaracolado e negro.

- Danilo - disse ele -, tenho andado à tua procura. Já devia calcular que iria encontrar-te aqui; e na companhia de Regis, obviamente.

Regis sentiu o ligeiro piscar irónico do toque telepático, familiar e irritantemente íntimo, como se Dyan tivesse feito algum gesto ligeiramente impróprio em público, por exemplo esguedelhando Danilo como se este fosse um garoto de oito ou nove anos; nada suficientemente sério para justificar um protesto sem perda de dignidade. Regis sabia que Dyan gostava de ver Danilo pouco à vontade e confuso; o que ele desconhecia era a razão para isso. Mas a fisionomia do lorde de Ardais mostrava-se inexpressiva e indiferente.

- Querem ambos vir jantar comigo? - perguntou Dyan. Tenho algo para te contar, Danilo, que afectará os teus planos para a época do Conselho, e, como sei que a tua primeira reacção seria ir contar tudo a Regis, achei melhor falar a ambos em simultâneo para poupar tempo.

- Estou às vossas ordens, sir - disse Danilo com uma ligeira vénia.

- Fazes-nos companhia, primo? - inquiriu Lerrys, e Dyan encolheu os ombros. - Uma bebida, talvez.

Lerrys deslocou-se no banco corrido para dar lugar a Dyan e ao seu jovem companheiro; Regis não reconheceu o jovem, e Lerrys olhou para Dyan com um ar inquisitivo.

- Não se conhecem? Merryl Lindir-Aillard.

- Sois aparentado com Domna Callina, vai dom? Não tenho ideia de vos já ter sido apresentado.

- Sou seu meio-irmão, sir - respondeu Merryl, e Regis podia escutar na mente do outro jovem, como um eco, a pergunta que ele não se atrevia a formular: Lorde Dyan chamou-lhe Regis; será este o neto do Regente, o Herdeiro Hastur, e o que estará a fazer aqui no meio dos outros, como qualquer pessoa normal...? Era o ressentimento mental do costume, tão cansativo para ele.

- Ides então tomar assento no Conselho este ano?

- Tenho essa honra; cumpre-me representá-la no Conselho enquanto os seus deveres de Guardiã em Arilinn a retêm lá - respondeu Merryl, e o desagradável ressentimento telepático prosseguiu: em qualquer outro Domínio o assento no Conselho pertencer-me-ia, mas neste Domínio, por culpa do Conselho, a hierarquia é transmitida pela linha feminina, e é o estafermo da minha meia-irmã quem manda, como todas as mulheres...

Regis fez um esforço para se barricar, e o protesto telepático cessou.

- Nesse caso - disse com delicadeza -, dou-vos as boas-vindas a Thendara, parente.

O jovem esbelto e de tez morena sentado entre Lerrys e Rafe Scott disse com timidez:

- Sois irmão de Callina, dom Merryl? Então devo também acolher-vos como meu parente; Linnell, a meia-irmã de Callina, foi adoptada comigo em Armida, e trato-a por breda. Ela tem-me falado de vós, parente.

- Receio não conhecer todos os parentes de Domna Callina - retorquiu Merryl com um ar indiferente. Regis retraiu-se perante a reprimenda mascarada que Merryl dirigira ao rapaz, e repentinamente soube quem este devia ser: o filho mais novo de Kennard, Marius, que o Conselho nunca chegara a reconhecer, e que tinha sido educado entre os Terráqueos. Regis não o conhecia pessoalmente, mas isso nada tinha de surpreendente; deslocavam-se em órbitas diferentes, e não tinha voltado a vê-lo desde infante de colo.

Agora deveria ter os seus quinze anos. Parecia não ter dado pelo remoque de Merryl; estaria de tal forma habituado a insultos que já aprendera a ignorá-los, ou tinha apenas aprendido a parecer não se ralar? Com um extra de cortesia, Regis disse:

- Dom Marius, não te tinha reconhecido, primo.

Marius sorriu. Tinha olhos negros, como os de um terráqueo.

- Não vos desculpeis, Lorde Regis; são raros os membros do Conselho que o fazem. - E novamente Regis escutou a parte não verbalizada da frase, ou os que estariam dispostos a admiti-lo, se o fizessem. Lerrys, disfarçando o silêncio incómodo que se seguiu, deitou vinho num copo e passou-o a Dyan com um comentário inócuo sobre a pouca qualidade do vinho naquela locanda.

- Mas como membro da Guarda, primo, certamente terás aprendido a ignorar isso.

- É difícil imaginar agora que usaste o uniforme da Guarda, Lerrys - retorquiu Dyan com um toque de afabilidade.

- Com efeito, cumpri a minha obrigação de jovem Comyn - respondeu Lerrys com um sorriso -, tal como todos nós. Mas não me recordo de te ter visto entre os cadetes, Merryl.

Com um esgar, Merryl Lindir-Aillard explicou:

- Pois foi, na altura em que devia prestar serviço nos cadetes apanhei uma febre. E a minha mãe, que era uma mulher tímida, receou que eu me derretesse com as chuvas de Verão... e mais tarde, quando o meu pai faleceu, disse que eu fazia falta em casa. - A voz de Merryl tinha um toque de amargura. Com um sorriso, Danilo comentou:

- O meu pai também pensava assim, e era idoso e frágil. Deixou-me ir, contudo, sabendo que o serviço nos cadetes iria fazer-me bem; mas ficou radiante quando regressei a casa. Não é fácil avaliarmos onde seremos mais necessários, parente.

- Penso que todos nós já experimentámos isso – comentou Dyan.

- Não perdeste grande coisa - disse Lerrys. - Pelos infernos de Zandru, parente! Hoje em dia quem vai precisar de ter prática do Manejo de espada ou punhal? Os Cadetes - ressalvando a vossa Presença, Lorde Regis - são um anacronismo nos tempos que correm, e quanto mais cedo o admitirmos, considerando-os apenas como uma Guarda de honra com um uniforme vistoso, melhor ficaremos. A Guarda policia a cidade, mas devíamos aproveitar a oferta terráquea de nos enviarem a Força Espacial para lhes ensinar as modernas técnicas policiais. Sei que deves sentir-te defraudado, Merryl, por teres perdido aquilo que todos os membros jovens das famílias Comyn têm de experimentar, mas passei três anos nos Cadetes e mais dois como oficial, e podia ter passado muito bem sem isso. Desde que te sintas garboso envergando uma capa dos guardas - e olhando para ti posso constatar que não terás problemas com isso - já sabes tudo aquilo de que precisas. Aliás, tenho a certeza de que Dyan já to disse.

- Não há necessidade de seres ofensivo, Lerrys – ripostou Dyan com rigidez. - Mas não seria de esperar outra coisa de ti: passas mais tempo em Vainwal a explorar prazeres diferentes do que aqui em Thendara cumprindo os teus deveres de Lorde Comyn! Parece ser esse o clima do dia. Não te culpo disso: quando os Altons negligenciam o seu dever, o que poderemos esperar de um Ridenow?

- Tens ciúmes? - perguntou Lerrys. - Ao menos em Vainwal não preciso de esconder as minhas preferências, e se os Altons podem desperdiçar o seu tempo mandriando pelo Império, quem te confere o direito de me criticares?

- Também não deixo de criticá-los... - começou Dyan acaloradamente.

- Lorde Dyan - interveio Marius Alton, zangado -, tinha-vos na conta de serdes amigo do meu pai... ao menos o suficiente para não pretender julgar os seus motivos!

Dyan encarou-o de frente e disse com uma voz arrastada:

- Quem diabo serás tu?

- Sabeis bem quem eu sou - retorquiu Marius -, ainda que vos divirta fingir que não me conheceis! Sou Marius Montray-Lanart de Alton...

- Ah, o filho daquela Montray... - disse Dyan, usando o termo depreciativo significando fedelho ou enjeitado.

Marius respirou fundo e cerrou os punhos.

- Se Kennard, Lorde Alton, me reconhece como seu filho, não me importa que alguém prefira não o fazer!

- Esperem um momento... - começou Lerrys, mas Merryl

Lindir interveio:

- Teremos alguma necessidade de escutar isto, até aqui, em Thendara? Não vim para aqui para me sentar a beber com terráqueos bastardos... nem com espiões terráqueos!

Marius pôs-se em pé de um salto, irado:

- Espiões terráqueos? O capitão Scott é meu convidado!

- Como já disse, espiões e bastardos terráqueos! Não vim para aqui para isso!

- Não - ripostou Marius -, parece-me que vieste para aqui para receber uma lição de boas maneiras... e estou disposto a dar-ta!

 - Empurrou a cadeira para trás e deu meia volta à mesa, com a mão apoiada no punhal. - Lição número um: não se critica o convidado de ninguém... e eu estou aqui como convidado de Lorde Lerrys, e o capitão Scott como meu convidado. Lição número dois: Ninguém pode vir para Thendara lançar calúnias sobre a linhagem de qualquer pessoa. Agora pede desculpa ao capitão Scott e retracta-te do que disseste a respeito do meu pai... e da minha mãe! E vós também, Lorde Dyan, ou chamar-vos-ei igualmente a prestar contas!

Bravo! pensou Regis olhando para o irado jovem, de punhal na mão, agachado numa pose de prontidão para a luta. Merryl pestanejou, e a seguir sacou o seu punhal e recuou, preparando espaço para se movimentar.

- Será um prazer, meu Alton bastardo... - disse.

Lerrys tentou aproximar-se, e pousou a mão no pulso de Marius.

- Esperem um momento...

- Não intervenhais, sir - disse Marius entre dentes, crispado.

Óptimo, o rapaz tem coragem! Tem um belo aspecto, também, à sua maneira! Pelos infernos de Zandru, por que razão não teria Kennard... Por um momento Regis não conseguiu identificar a origem do pensamento, até que Dyan disse em voz alta:

- Guarda o teu punhal, Merryl! Ordeno-te! Tu também, rapaz! O Conselho nunca reconheceu o casamento do teu pai, mas não é difícil constatar que és mesmo filho dele! Marius hesitou, e depois baixou o punhal que empunhava.

Merryl Lindir-Aillard rosnou:

- Estás com medo de lutar comigo? És como todos os Terráqueos: sempre prontos a lutar à distância com as suas armas de cobarde, mas receosos do aço a descoberto.

Lerrys meteu-se entre eles, dizendo:

- Isto aqui não é lugar para uma contenda! Pelo nome de Zandru...

Regis viu que os clientes da taberna tinham recuado, formando como que um anel de espectadores. Quando os parentes guerreiam, os inimigos aproximam-se para alargar a brecha. Dar-lhes-á prazer assistir a uma rixa entre Comyn?

- Acabem com isso, os dois! Isto não é um albergue de bandidos!

- Separem-se, ambos! - disse uma nova voz autoritária, e Gabriel Lanart-Hastur, Comandante da Guarda, avançou de rompante.

- Se querem lutar, façam um desafio formal, e deixem-se de contendas estúpidas! Estarão ambos embriagados? Lerrys, tu que és oficial deves saber que qualquer desafio só é válido se ambos os desafiadores estiverem sóbrios! Marius...

Com os punhos cerrados, Marius exclamou:

- Ele insultou os meus pais, parente! A honra do Domínio de Alton...

Calmamente, Gabriel disse:

- Deixa a honra do Domínio nas minhas mãos até teres mais idade, Marius.

- Estou suficientemente sóbrio para o desafiar! - insistiu Marius, acaloradamente -, e aqui mesmo lhe lanço o repto...

- Merryl, meu grande idiota... - disse Dyan com grande empenho, pousando a mão no ombro do outro -, isto pode tornar-se sério...

- Que eu seja amaldiçoado se me vou bater honrosamente com um bastardo terráqueo - gritou Merryl, enraivecido, e depois voltou-se sobre Gabriel Lanart-Hastur, dizendo: - Prefiro lutar contigo, ou com todo o teu maldito Domínio... se conseguir fazer com que algum deles volte aqui para Darkover, que é onde todos deviam estar! Mas o vosso Lorde Alton não é melhor do que qualquer um dos seus bastardos, gandaiando por todo o Império quando são necessários no Conselho...

Gabriel deu um passo em frente, mas houve um reluzir de fogo azul e Merryl recuou titubeante. O bofetão telepático ribombou como um trovão na mente de todos os presentes.

REFREIA ESSA LÍNGUA ESTÚPIDA, IMBECIL. DESDE HÁ MUITO TENHO SUSPEITADO DE QUE DOMNA CALLINA É QUEM VESTE AS CALÇAS NA VOSSA CASA, MAS SERÁ NECESSÁRIO QUE O COMPROVES AQUI, PUBLICAMENTE? TERÁ O TEU CÉREBRO DESCAÍDO PARA ONDE PODES SENTAR-TE EM CIMA DELE?

Isto foi seguido por uma imagem obscena; Regis viu Merryl retrair-se. Sentiu-o também na mente de Danilo, o qual conhecia bem o que era ser ofendido por Dyan, impiedosamente, com vigor sádico, até ter ficado incapaz de resistir mais, enfrentando-o com uma espada desembainhada... Regis, sentindo a emoção de Danilo, foi para junto dele. O rosto de Merryl estava exangue, e por um instante Regis imaginou que ele iria pôr-se a chorar, ali na presença de todos.

Depois Dyan disse em voz alta, friamente:

- Lorde Regis, Danilo, creio que temos um jantar ajustado. Dom Lerrys, agradeço-vos a bebida. - Fez um aceno a Regis, e depois voltou as costas a todos. Regis e Danilo nada poderiam fazer excepto segui-lo. Merryl ainda empunhava distraído o seu punhal; embainhou-o e seguiu-os também. Olhando de relance para trás de si, Regis viu que a tensão se tinha evaporado; Gabriel falava acaloradamente com Marius, mas não fazia mal: não havia rancor, Regis sabia-o, no seu cunhado, e além disso, na ausência de Kennard, Gabriel era o tutor de Marius.

Cá fora Dyan voltou-se para Merryl, dizendo-lhe:

- Tinha tencionado convidar-te a juntares-te a nós, pois quero que tu e Regis se conheçam. Mas talvez seja melhor que te conserves à distância até aprenderes a comportar-te na cidade, rapaz!

Logo da primeira vez que te levo à companhia do Comyn, consegues ver-te envolvido numa contenda estúpida!

Nem o tom nem as palavras precisariam de ser substituídos se ele estivesse a falar com um rapazola de oito ou nove anos envolvido numa rixa por causa de um jogo de berlindes. Por muito indesculpável que o comportamento de Merryl tivesse sido, Regis estava com pena do jovem que, ruborizado, aceitava sem uma palavra a reprimenda de Dyan. Ora, ele bem o merecia. Engolindo em seco, Merryl disse por fim:

- Deveria ter ficado impávido ao ser insultado por terráqueos e meio-terráqueos, parente? - Usou o termo na versão íntima que podia significar tio, e Dyan não o repreendeu; estendeu o braço e tocou-lhe ligeiramente na face.

- Parece-me que o insultante foste tu. E há um modo certo e um modo errado de fazer estas coisas, kiyu. Vai pensando no modo certo. Ver-nos-emos depois.

Merryl afastou-se, mas já não parecia um cachorro que tivesse sido pontapeado. Regis, bastante desconfortável, seguiu Dyan pela rua fora. O Lorde Comyn cruzou o portal do que parecia ser uma taberna pequena e discreta. Lá dentro reconheceu o local pelo que era, mas Dyan encolheu os ombros e disse:

- Aqui não iremos encontrar-nos com outros Comyn, e não me vai custar nada evitar companhias como as de há pouco! – Um novo vestígio de pensamento não verbalizado, se prezas a tua privacidade, rapaz, vai-te acostumando a lugares como este, era tão ligeiro que Regis podia ignorá-lo se assim o desejasse.

- Como quiserdes, parente.

- A comida aqui é bastante boa - disse Dyan - e já tinha encomendado o jantar. Não precisarás de ver mais ninguém aqui dentro, se assim preferires. - Seguiu um obsequioso servo até um compartimento ornado com carmesim e dourados, e falou de lugares-comuns, a respeito da decoração, a respeito da suave música de instrumentos de cordas que se fazia ouvir, enquanto vários criados jovens chegavam trazendo comida de todos os géneros.

- É música das montanhas, tocada por um grupo de quatro irmãos - disse Dyan. - Ouvi-os quando estavam ainda em Nevarsin, e fui eu quem os aconselhou a virem para Thendara.

- Uma bela voz - comentou Regis, escutando o límpido tiple do intérprete mais jovem.

- A minha era melhor, em tempos - disse Dyan, e Regis, avaliando a indiferença na voz dele, sabia que ela escondia sofrimento.Há muitas coisas que desconheces a meu respeito; essa é uma delas. Não voltei a cantar desde que perdi a voz, se bem que, enquanto estive no mosteiro por algum tempo no último Inverno, tenha participado no coro. O ambiente era tranquilo no mosteiro, apesar de eu não ser cristoforo nem nunca o serei; pois a religião deles é demasiado acanhada para mim. Penso que algum dia virás a dar-me razão, Danilo.

- Eu não sou um bom cristoforo - replicou Danilo -, mas é essa a fé do meu pai e será também a minha, creio, até que encontre outra melhor.

Dyan sorriu e disse:

- A religião é um entretenimento para mentes ociosas, e a tua não é suficientemente ociosa para isso. Mas não faz mal nenhum a um homem na vida pública ajustar-se um pouco à religião do povo, se a concordância fica à superfície e não contamina o seu pensamento sério. Sou da mesma opinião que os que dizem, mesmo em Nevarsin, que não há religião mais elevada do que a verdade. E isso não é uma blasfémia, filho adoptivo: escutei-o dos lábios do Padre-Mestre. Mas mudemos de assunto... Tenho uma coisa para te dizer, Danilo, e achei que devia poupar-te o trabalho de correres imediatamente para verter tudo para os ouvidos de Regis. Resumidamente: sou um homem de impulsos, como deves saber desde há muito. No ano passado residi por algum tempo em Aillard, e a irmã gémea de Merryl gerou-me um filho, nascido há dez dias. Entre outros assuntos do Comyn, estou aqui para tratar de legitimá-lo.

- Os meus parabéns, pai adoptivo - disse Danilo com correcção.

Regis pronunciou igualmente uma frase delicada.

- Surpreendes-te, Regis? Eu próprio estou um pouco surpreso. De um modo geral, mesmo para me divertir, não sou pessoa de amar mulheres, mas, como disse... sou uma criatura de impulsos. Marilla Lindir não é parva nenhuma: as mulheres Aillard são mais espertas do que os seus homens, e tenho razões para o saber. Acho que lhe agradou a ideia de dar um filho a Ardais, visto que os filhos nascidos na família Aillard não têm hipótese de herdarem esse Domínio. Creio que sabes como estas coisas podem acontecer... ou serás demasiado jovem para isso? - perguntou com um alçar das sobrancelhas e com um toque de malícia. - Bem, foi o que sucedeu, e quando soube que ela estava grávida não disse nada. Poderia ser uma filha para Aillard, e não um filho para Ardais, mas tive o cuidado de mandar examiná-la e de me certificar de que a criança era minha. Não falei do caso quando nos encontrámos no solstício do Inverno, Danilo, porque poderia acontecer qualquer coisa; mesmo depois de saber que Marilla estava a gerar um filho, ela poderia abortar espontaneamente, ou a criança poderia nascer morta ou defeituosa, pois os Lindirs têm sangue Elhalyn. Mas nasceu saudável e encontra-se bem.

- Os meus parabéns novamente, nesse caso - disse Danilo.

- Não penses que isto irá modificar alguma coisa em relação a ti - disse Danilo. - A vida das crianças é... incerta. Se ele tiver algum infortúnio antes de crescer, nada se alterará; e, caso eu morra antes de ele ter atingido a maioridade, deverás ter-te já casado entretanto, sendo nomeado Regente em seu nome. De qualquer forma, quando ele largar os cuidados da mãe não sou pessoa para me encarregar de criar uma criança, nem tomaria tal responsabilidade com a minha idade. Dentro de pouco tempo tratarei de procurar um casamento adequado para ti; Linnell Lindir-Aillard está prometida ao príncipe Derik, mas há outras raparigas Lindir, e há também Diotima Ridenow, que tem agora quinze ou dezasseis anos, e... bem, há ainda bastante tempo para se tomar uma decisão. Não me parece que tenhas muita pressa em consorciar-te... - acrescentou com ironia.

- Sabeis bem que não tenho, pai adoptivo.

Dyan encolheu os ombros.

- Qualquer rapariga deverá servir, dado que te poupei o trabalho de teres de assegurar um Herdeiro para Ardais; poderemos escolher uma que seja jeitosa e que se contente com tratar da tua casa e governar as tuas propriedades - disse ele. - Uma ficção legal, por assim dizer. - Voltou o olhar para Regis, e acrescentou: E enquanto estamos neste assunto, devo-te os meus parabéns também; o teu avô falou-me da rapariga Di Asturien e do vosso filho... que deverá nascer neste dez dias, achas que sim? Haverá um casamento em perspectiva?

Choque e raiva inundaram Regis. Tencionava contar isto a Danilo na melhor oportunidade.

- Não tenho qualquer intenção de me casar por agora, parente - retorquiu com rigidez. - Não mais do que vós.

Os olhos de Dyan rebrilharam com malícia divertida ao dizer:

- Teria por acaso dito alguma coisa indevida? Nesse caso, Regis, retiro-me para que faças as pazes com o meu filho adoptivo. Levantou-se e fez-lhes uma vénia com grande cortesia. - Podem encomendar aquilo que desejarem, vinho, comida, ou... entretenimento; são ambos meus convidados esta noite. - Fez uma nova vénia e deixou-os, levando no braço a sua ampla capa forrada de peles, a qual ondulava atrás de si como se fosse uma coisa viva.

Passado um minuto Danilo disse, com uma voz que parecia entorpecida:

- Não lhe ligues, Regis. Ele tem inveja da nossa amizade, é só isso, e está a disparar às cegas. E acho também que se sente parvo: ter um filho bastardo com a idade que ele já tem...

- Dou-te a minha palavra de que tinha intenção de te contar disse Regis, desconsolado. - Estava só à espera de melhor ocasião. Queria contar-te antes que viesses a saber por algum mexerico.

- Por que motivo pensas tu que eu tenho alguma coisa a ver com os teus namoricos com mulheres?

- Conheces bem a resposta para isso - disse Regis, em voz baixa mas furiosa. - Não tenho namoricos com mulheres. Sabes que coisas como esta não podem deixar de me acontecer por eu ser Herdeiro de Hastur. Os Herdeiros Comyn são como cavalos de cobrição para os Domínios, é só isso e mais nada! O próprio Dyan não gosta da situação mais do que tu, mas mesmo assim falou em arranjar-te um casamento. E que eu seja amaldiçoado se me casar com alguém que eles escolham para mim, como se eu fosse um garanhão. O caso de que ele falou não passa disso. Crystal Di Asturien é uma jovem muito simpática; dancei com ela em meia dúzia de bailes públicos. Achei-a amável e agradável de conversar, e... - encolheu os ombros - que mais poderei dizer-te? Ela desejava gerar um filho Hastur. Não é ela a única. Vou ter de me desculpar por fazer aquilo que tenho de fazer, ou preferirias que eu não desfrutasse disso?

- Claro que não me deves desculpas nenhumas. - A voz de Danilo soava fria e inerte.

- Dani... - suplicou Regis -, será que vamos permitir que a malícia de Dyan venha cavar um fosso entre nós, depois de uma amizade tão longa?

O rosto de Danilo suavizou-se.

- Nunca, bredbyu. Mas não estou a compreender; tu já tinhas um herdeiro... adoptaste o filho da tua irmã.

- E Mikhail continua a ser o meu Herdeiro - retorquiu Regis -, mas a herança Hastur não podia depender da vida de uma única criança. O meu avô não irá exigir que me case... contanto que eu tenha descendência para a linhagem dos Hasturs. E não pretendo casar-me - acrescentou. A promessa não dita ficou pendente no ar entre eles.

Um criado chegou, numa reverência prolongada, perguntando se os vai domyn desejariam mais alguma coisa: vinho, guloseimas, jovens companheiros... Fez incidir um pesado ênfase sobre esta última sugestão, e Danilo não pôde deixar de fazer uma careta de aversão.

- Não, não. Nada mais. - Hesitou, deitando um olhar a Regis.

 - A não ser que tu...

- Sou um libertino apenas em relação a mulheres - disse Regis com secura -, mas aparentemente dei-te motivo para pensares de outro modo.

- Se vamos ter de guerrear - declarou Dani com um arquejo -, façamo-lo ao menos ao ar livre e não num lugar como este!

Regis sentiu um intenso arrebatamento de amargura. A culpa tinha sido de Dyan, maldito seja!

- Pois olha - declarou -, este parece-me ser o local ideal para este género de rixa entre amantes... e acho que, se o Herdeiro de Hastur e o seu favorito têm de guerrear, será melhor aqui do que no Castelo Comyn, onde todos os Domínios acabariam por ouvir tudo, mais cedo ou mais tarde!

E uma vez mais pensou: Este é um fardo pesado de mais para eu suportar!

 

Vainwal - Império Terráqueo: o quinto ano de desterro Dio Ridenow viu-os primeiro no átrio do hotel de luxo frequentado por humanos e humanóides em Vainwal, mundo dos prazeres. Eram homens altos, robustos, mas o que atraiu os olhos da rapariga foi a refulgência do cabelo ruivo do mais velho dos dois, o cabelo arruivado dos Comyn. Aparentava ter mais de cinquenta anos e caminhavamanquejando; as suas costas estavam arqueadas, mas era fácil perceber que em novo tinha sido corpulento e formidável de aspecto.

Atrás dele caminhava um homem mais novo trajando indiferentemente, com cabelo escuro e sobrancelhas negras, soturno, com olhos cinzentos de aço. Tinha um ar de deformidade, de sofrimento, que Dio aprendera a associar a estropiados de nascença; todavia não apresentava nenhum defeito visível excepto algumas cicatrizes irregulares que lhe atravessavam uma das faces. As cicatrizes repuxavam-lhe um dos lados da boca, dando-lhe um ricto de sarcasmo, e Dio afastou os olhos com uma sensação de repulsa; para que haveria um lorde Comyn de trazer semelhante pessoa no seu séquito?

Era óbvio que o homem era um lorde Comyn. Havia cabeças ruivas noutros mundos do Império, e bastantes mesmo na Terra; mas ele exibia um forte timbre facial, uma expressão étnica: darkoveriano, Comyn, inegavelmente. E o cabelo do homem, vermelho de labaredas, era agora salpicado de grisalho. Mas o que estaria ele a fazer aqui? Melhor ainda, quem seria ele? Era raro deparar com darkoverianos tão longe do mundo da sua origem. A rapariga sorriu; qualquer pessoa poderia fazer-lhe essa mesma pergunta, pois também ela era darkoveriana e estava bem longe da sua terra. Os seus irmãos vinham até aqui com frequência porque, basicamente, não se interessavam por intrigas políticas; mas mesmo assim eram frequentemente forçados a defender e justificar a sua ausência.

O lorde Comyn atravessou o grande átrio com lentidão, coxeando, mas com um género de arrogância que atraía todos os olhares.

Dio continuava a observá-lo, mas disfarçadamente; o homem movimentava-se como se merecesse ser precedido pelos seus gaiteiros pessoais e apresentar-se calçando botas altas e trajando uma ampla capa rodopiante, e não o simples e incaracterístico vestuário terráqueo que efectivamente usava.

E, ao identificar aquele vestuário terráqueo, Dio soube imediatamente quem ele era. Apenas um lorde Comyn, que ela soubesse, tinha-se efectivamente casado, di catenas e com toda a cerimónia, com uma mulher terráquea. Conseguira resistir ao escândalo, o qual, em qualquer caso, havia ocorrido antes de Dio ter nascido. A própria Dio não o tinha visto por mais de duas vezes em toda a sua vida, mas sabia tratar-se de Kennard Lannart-Alton, Lorde Armida, auto-exilado Chefe do Domínio Alton. E agora ela sabia também quem era o homem mais novo, aquele dos olhos soturnos; era certamente Lewis, o filho "mestiço” de Kennard, que saíra terrivelmente diminuído de uma rebelião algures nas Infernais, vários anos antes. Dio não tinha muito interesse por tais coisas, e de qualquer modo ainda andava a brincar com bonecas quando aquilo acontecera. Mas a meia-irmã de Lew, Linnell Aillard, tinha uma irmã mais velha, chamada Callina, que era Guardiã em Arilinn. E Linnell tinha falado a Dio a respeito dos ferimentos de Lew, tendo-lhe dito que Kennard o levara para a Terra na esperança de que a ciência médica terráquea pudesse ajudá-lo.

Os dois Comyn estavam parados junto do computador central da recepção do hotel; Kennard estava a transmitir algumas ordens rigorosas a respeito da sua bagagem aos servos humanos que eram um dos toques de ostentação do hotel. Dio tinha sido criada em Darkover, onde os servos humanos eram a regra e os servos-robô a excepção; era, portanto, capaz de aceitar sem embaraço este tipo de serviço. Muitas pessoas, contudo, não podiam disfarçar a sua timidez ao serem servidas por seres humanos e não por servomecs ou robôs. A atitude de Dio em relação a tais coisas tinha-lhe conferido uma aura especial entre os outros jovens de Vainwal, muitos dos quais situados entre os novos-ricos num Império em constante expansão, que frequentavam com assiduidade os mundos de prazer como Vainwal, pouco sabendo dos requintes da boa vida, incapazes de aceitar o luxo como sendo uma parte natural da sua existência.

O sangue, cogitava Dio observando Kennard e o modo exactamente correcto como ele falava com os servos, vinha sempre à superfície. O homem mais novo voltou-se; Dio podia agora ver que uma das suas mãos estava escondida numa dobra do casaco e que ele se movia com dificuldade, esforçando-se para segurar só com a outra mão algumas peças de equipamento que aparentemente não desejava confiar a ninguém. Kennard falou-lhe em voz baixa, mas Dio conseguiu captar o tom impaciente das suas palavras, e o outro lançou ao pai um olhar mal-humorado, um ricto de zanga que fez Dio tremer, constatando subitamente que não tinha vontade de voltar a olhar para ele. Contudo, do ponto onde se encontrava não poderia sair do átrio sem se cruzar com eles.

Tinha vontade de baixar a cabeça e fazer de conta que eles não estavam ali. Com efeito, uma das delícias dos mundos de prazer como Vainwal era poder ser-se anónimo, liberto dos constrangimentos de classe ou de casta vigentes no mundo de cada um. Não os cumprimentaria, concedendo-lhes a privacidade que desejava para si mesma. Contudo, ao cruzar-se com eles o homem mais novo, não tendo dado pela aproximação de Dio, fez um movimento desajeitado e foi colidir com ela. Aquilo que ele transportava escorregou da sua mão válida e caiu para o chão com um ruído metálico; resmoneando em voz baixa algumas palavras de raiva, agachou-se para apanhar o que tinha caído.

Era algo comprido, estreito, cuidadosamente embrulhado. Mais do que qualquer outra coisa, parecia ser um par de sabres de duelo, e isso bastaria para justificar os seus cuidados, pois frequentemente tais sabres eram preciosas peças herdadas de gerações anteriores, as quais não deviam ser confiadas aos cuidados de outros. Dio desviou-se, mas o homem atrapalhou-se com a sua mão válida e conseguiu apenas afastar o embrulho ainda mais. Sem pensar, Dio dobrou-se para apanhar o objecto e entregá-lo - estava mesmo aos seus pés mas o homem estendeu o braço e empurrou-a para um lado.

- Não toque nisso! - exclamou. A voz dele era áspera, mal cuidada, com um tom dissonante que a arrepiou. Dio constatou que o braço que ele conservara escondido debaixo do casaco terminava numa manga vazia e cuidadosamente dobrada. Ela olhou-o indignada, enquanto ele repetia com aspereza: - Não toque nisso! Ela apenas tentara ajudá-lo!

- Lewis! - A voz de Kennard reflectia reprovação; o outro resmungou algo parecido com um pedido de desculpa e recolheu nos braços os sabres de duelo, se fosse esse o conteúdo do embrulho intocável, virando-se desajeitadamente para esconder a manga vazia.

Subitamente Dio sentiu um estremeção, uma impressão profunda que lhe penetrava nos ossos. Por que razão se sentiria ela tão afectada por aquilo? Já tinha visto homens feridos, deformados mesmo; decerto a perda de uma mão dificilmente justificaria um comportamento tão estranho, com um ricto afrontoso e uma recusa total de olhar outro ser humano nos olhos.

Com um ligeiro encolher de ombros ela começou a afastar-se; não havia motivo para gastar tempo ou cortesias com este sujeito antipático cujos modos eram tão repelentes como o seu rosto! Mas, ao voltar-se, foi dar de caras com Kennard.

- Sois certamente minha conterrânea, vai domna! Não sabia da existência de outros darkoverianos em Vainwal.

Ela fez-lhe uma vénia.

- Chamo-me Diotima Ridenow de Serrais, meu Lorde, e estou aqui com os meus irmãos Lerrys e Geremy.

- E Lorde Edric?

- O Lorde de Serrais ficou em casa, em Darkover, sir, mas nós estamos aqui com a sua permissão.

- Pensaria que estivésseis destinada a uma Torre, Dama Dio.

Ela abanou a cabeça e sentiu um rubor subindo-lhe ao rosto.

- Assim aconteceu quando eu era criança; fui convidada a prestar serviço em Neskaya ou Arilinn. Mas preferi outra coisa.

- Bem, bem, nem todos sentem a vocação - disse Kennard com amabilidade, e ela notou o contraste entre o encanto do pai e o silêncio grosseiro do filho, que se imobilizara sem pronunciar sequer a mais elementar palavra de cortesia! Seria o seu sangue terráqueo que lhe sugara o menor vestígio do encanto do pai? Decerto que não, pois as boas maneiras podiam ser aprendidas mesmo por um terráqueo. Em nome da abençoada Cassilda, não poderia ele ao menos olhar para ela? Dio sabia que era apenas a cicatriz repuxando-lhe o canto da boca que lhe dava ao rosto uma expressão de escárnio permanente, mas ele parecia ter adoptado essa expressão na sua própria alma.

- Então Lerrys e Geremy encontram-se cá? Recordo-me bem de Lerrys na Guarda - disse Kennard. - Estão hospedados neste hotel?

- Temos uma suite no nonagésimo andar - respondeu Dio -, mas eles estão no anfiteatro, assistindo a uma prova de dança gravitacional. Lerrys é um amador desse desporto e alcançou as semifinais, mas rasgou um músculo no joelho e os médicos não lhe permitem que continue.

Kennard fez uma vénia.

- Queira transmitir a ambos os meus cumprimentos – disse -, e o meu convite para os três serem meus convidados amanhã à noite, quando se disputar aqui o final da prova.

- Estou certa de que eles ficarão encantados - disse Dio, e fez as suas despedidas.

Naquela noite os irmãos contaram-lhe o resto da história.

- Lew? Esse foi o traidor - disse Geremy. - Foi a Aldaran como enviado do seu pai e atraiçoou-o, participando numa rebelião ao lado dos piratas e bandidos de lá. Parentes da mãe dele, na verdade.

- Julgava que a esposa de Kennard era terráquea - disse Dio.

- Semiterráquea; os familiares da mãe dela eram Aldarans disse Geremy. - Acredita: o sangue Aldaran não é de confiança. Dio sabia-o; o Domínio de Aldaran separara-se dos Sete Domínios há tantas gerações que Dio nem sabia quanto tempo teria já decorrido, e a perfídia de Aldaran era proverbial.

- O que estavam eles a fazer?

- Quem sabe... - disse Geremy. - Depois tentaram abafar tudo. Parece que possuíam uma espécie de supermatriz, talvez roubada à gente das forjas; nunca ouvi a história toda, mas parece que Aldaran andava a fazer experiências com ela e conseguiram atrair Lewis. Ele tinha sido educado em Arilinn, pois o velho Kennard concedera-lhe todas as vantagens. Sabíamos que nada de bom poderia sair daquilo; destruíram metade de Caer Donn quando a coisa ficou descontrolada. Depois disso ouvi dizer que Lew mudou outra vez de casaca e atraiçoou Aldaran como antes nos tinha atraiçoado; juntou-se a uma dessas bruxas das montanhas, uma das filhas bastardas de Aldaran, semiterráquea ou qualquer coisa, e ficou com uma das mãos inutilizada num fogo. Foi bem feito. Mas acho que Kennard não podia admitir o erro que tinha feito, depois de tanto trabalho para que Lew fosse declarado seu Herdeiro. Teriam conseguido regenerar aquela mão? - Agitou no ar três dedos, perdidos num duelo havia alguns anos e recuperados pela medicina terráquea, ficando como novos. - Não? Talvez o velho Kennard tivesse achado que o filho devia ficar com uma recordação da sua traição.

- Não - interveio Lerrys. - Estás mal informado, Geremy. Lew não é má pessoa. Estive com ele na Guarda. Ele fez todos os possíveis para controlar a imagem de fogo quando esta ficou desgovernada, mas a rapariga morreu. Ouvi dizer que eles se tinham casado. Um dos monitores de Arilinn contou-me que se tinham esforçado para salvá-la. Mas a rapariga já não tinha salvação, e a mão de Lew... - encolheu os ombros. - Dizem que ele teve sorte por só ter perdido a mão. Pelos infernos de Zandru, que coisa mais terrível de enfrentar! Ele foi um dos telepatas mais potentes que já trabalhou em Arilinn, segundo me disseram; mas conheci-o melhor na Guarda. Um sujeito sossegado, talvez um bocado retraído, mas simpático para quem o conhecia bem. Mas não era fácil de conhecer.

Teve de fazer frente a muita gente que pensava que ele não tinha o direito de estar onde estava, e acho que isso acabou por torná-lo azedo. Gostava dele, ou teria gostado se ele me deixasse; era muito melindroso, e, se alguém tentasse ser simpático com ele, pensava logo que estavam a tratá-lo com condescendência; e punha-se na defesa.

Lerrys riu-se silenciosamente.

- Ele era tão retraído com as mulheres que eu cometi o erro de pensar que era... como poderei dizer... alguém que partilhasse as minhas inclinações, e fiz-lhe uma determinada proposta. Ele não disse muito, mas eu não voltei a falar-lhe daquilo! - Soltou um riso abafado.

 - Seja como for, aposto que ele não tinha nada de agradável para te dizer, pois não? Foi uma novidade para ti, não foi, maninha, conhecer um homem que não se arroja aos teus pés passados alguns minutos? - Serrazina, tocou-lhe com um dedo na ponta do queixo.

Dio ripostou, impertinente:

- Não gosto dele; é malcriado. Espero que fique sempre bem longe de mim.

- Acho que podias sair-te pior - considerou Geremy. - É o Herdeiro de Alton, não sei se sabes, e Kennard já não é jovem, e casou-se tarde. É capaz de não ficar por muito mais tempo neste mundo.

Edric havia de gostar bastante se te tornasses Lady de Alton, mana.

- Não. - Lerrys pôs um braço protector em volta de Dio. Podemos arranjar melhor do que isso para a nossa irmã. O Conselho nunca voltará a aceitar Lew, considerando o que se passou com Sharra. Eles nunca aceitaram o outro filho de Kennard, apesar de todos os esforços de Ken, e Marius vale tanto como dois Lews. Logo que Kennard desapareça, irão procurar noutro lado um Chefe para o Domínio de Alton; não faltam pretendentes. Não, Dio... - suavemente fez a irmã voltar-se para ele - sei que não há aqui muitos jovens da tua estirpe, e Lew é darkoveriano e razoável de aparência, do ponto de vista feminino. Mas conserva-te afastada dele. Sê delicada, mas mantém-te à distância. Gosto de Lew, por assim dizer, mas ele pode ser perigoso.

- Não tens motivo para te preocupares sob esse aspecto - retorquiu Dio. - Nem sou capaz de o encarar.

Contudo, no seu íntimo, onde lhe doía, ela sentia uma dúvida magoada. Pensou na rapariga desconhecida com quem Lew se casara, a qual tinha morrido para o salvar da ameaça da deusa do fogo. Portanto, tinha sido Lew quem provocara aqueles fogos, para a seguir arriscar a vida e a integridade física para os dominar? Sentiu-se estremecer de novo com grande temor. Como seriam as suas recordações, que pesadelos teria ele de reviver, noite e dia? Talvez não fosse de espantar que ele caminhasse isolado, num ricto mal-humorado, sem uma palavra amável para ninguém.

Em redor da orla do campo de gravidade-nula pequenas mesas cristalinas estavam suspensas no ar, com as suas cadeiras aparentemente pendentes de correntes de estrelas. Na realidade estavam todas cercadas por redes de energia, pelo que se algum dos convivas caísse da sua cadeira (e, num local onde o vinho e as bebidas espirituosas corriam tão abundantemente, alguns deles caíam mesmo), não se estatelaria, mas a ilusão era empolgante, trazendo uma expressão momentânea de espanto e interesse até ao rosto fechado de Lew Alton.

Kennard era um anfitrião generoso e amável; tinha obtido lugares mesmo junto à orla do campo de gravidade, mandando vir os melhores vinhos e acepipes. Estavam sentados sobre o abismo recamado de estrelas, admirando os dançarinos abaixo deles, libertos da gravidade rodopiando e rodando através do vazio, pairando como pássaros em voo livre. Dio estava sentada à direita de Kennard, em frente de Lew, o qual, após aquele primeiro relampejo de reacção à ilusão de espaço longínquo, permanecia imóvel, com uma expressão distante no rosto carregado e marcado pelas cicatrizes.

Para além deles as galáxias irrompiam em labaredas e espalhavam-se, e os dançarinos, semi-vestidos com lantejoulas e véus ondulantes, adejavam nas correntes de estrelas, como aves exóticas. A mão direita de Lew, evidentemente artificial e quase privada de movimento, jazia imóvel sobre a mesa, envolta numa luva negra. Aquela mão sem vida constrangia Dio; a manga vazia parecera-lhe, de algum modo, mais honesta.

Apenas Lerrys parecia encontrar-se perfeitamente à vontade, tendo acolhido Lew com um toque de verdadeira cordialidade, mas Lew respondia-lhe apenas com monossílabos, e Lerrys acabou por se cansar de tentar manter uma conversação e inclinou-se sobre o abismo dos dançarinos, estudando os finalistas com inveja declarada, falando apenas para comentar a perícia ou a imperícia de cada concorrente. Dio sabia que ele bem desejava encontrar-se entre eles. Decididos os vencedores e distribuídos os prémios, a gravidade foi ligada e as mesas desceram, em suaves órbitas espirais, até ao chão. A música começou a tocar, e outros dançarinos foram ocupar a pista de dança, rebrilhantes e transparentes como se tivessem rodopiado no mesmo golfo de espaço onde os dançarinos da gravidade tinham remoinhado em voo livre. Lew murmurou qualquer coisa a respeito de ir-se embora e chegou a soerguer-se da cadeira, mas Kennard mandou vir mais bebidas e Dio ouviu-o repreender Lew disfarçadamente; tudo o que ela escutou foi: "Raios, não te podes esconder para sempre...”

Lerrys levantou-se e afastou-se discretamente. Pouco depois viram-no entrar na pista de dança acompanhado por uma mulher de aspecto requintado que reconheceram como sendo uma das concorrentes na prova, no seu traje azul recamado de estrelas agora coberto por véus de escumilha prateada.

- Como ele dança bem - disse Kennard com jovialidade. Foi pena ter de desistir da competição. Parece-me contudo pouco apropriado para a dignidade de um lorde Comyn...

- "Comyn” não tem aqui qualquer significado – comentou Geremy, a rir-se -, e é por essa razão que viemos para cá, para fazermos coisas impróprias para a dignidade do Comyn no nosso mundo! Confessa, parente: não foi por isso que vocês vieram para cá, para terem aventuras que pareceriam inconvenientes, ou pior ainda, nos Domínios?

Dio estava a observar os dançarinos, invejosa. Talvez Lerrys regressasse para dançar com ela. Viu contudo que a bailarina que participara na prova, talvez sabendo que Lerrys tinha sido forçado a desistir, tinha-o levado consigo para conversarem com os outros finalistas.

 Agora Lerrys estava a conversar com intimidade com um jovem de aspecto agradável, com a cabeça ruiva quase encostada à do rapaz. O dançarino trajava apenas redes de fio dourado, com alguns plastrões dourados a assegurar um mínimo de decência e cabelos pintados num impressionante tom azul. Seria duvidoso, agora, que Lerrys estivesse lembrado da existência de mulheres, para não se falar já de irmãs. Kennard observou a direcção do olhar da rapariga.

- Estou a ver que estais desejosa de vos juntar aos dançarinos, Lady Dio, e será um prazer escasso para uma jovem donzela dançar com os seus irmãos, segundo tenho ouvido a minha irmã adoptiva queixar-se, e mais recentemente também as minhas filhas adoptivas... Estou há muitos anos incapaz de dançar, damisela, pois de outro modo não me negaria ao prazer de dançar convosco. Mas sois demasiado jovem para dançar num lugar público como este excepto com parentes...

Dio abanou a cabeça, pondo a esvoaçar os caracóis louros, e exclamou:

- Eu faço o que me agrada, Lorde Alton, aqui em Vainwal, e danço com quem quiser! - Depois, tomada por algum mafarrico de tédio ou de travessura, voltou-se para o carrancudo Lew: Contudo temos aqui um parente... quer dançar comigo, primo?

Lew levantou a cabeça e olhou irado para ela, e Dio vacilou, arrependida do que tinha dito. Este não era homem para namoricos, alguém com quem pudesse trocar algumas frases ligeiras! Ele lançou-lhe um olhar mortífero, mas mesmo assim levantou-se da cadeira.

- Estou a ver que o meu pai assim deseja, damisela. Quereis dar-me a honra? - A voz áspera era contudo amistosa, desde que não se observasse a expressão do seu olhar. Estendeu a Dio o seu braço válido. - Tereis de me perdoar se vos pisar os pés. Há muitos anos que não danço. Não é uma arte muito apreciada na Terra, e os anos que lá vivi não foram passados onde os bailes eram comuns.

O estafermo, pensou Dio, isto era ser-se arrogante! Ele não era o único deficiente físico no universo, ou no planeta, ou mesmo neste salão... O seu próprio pai estava tão diminuído fisicamente que mal conseguia pôr um pé diante do outro, e não tinha pejo em dizê-lo! Contudo, ele não lhe pisou os pés; movia-se tão levemente como um sopro de vento, e passado muito pouco tempo Dio deixou-se conquistar pela música e pelo puro prazer da dança. Estavam bem um para o outro, e passados poucos minutos dançando em perfeito ritmo - ela bem sabia que estava a dançar com um darkoveriano, pois em nenhum outro lugar do Império civilizado se conferia tanta importância à arte da dança como em Darkover - Dio levantou os olhos e sorriu-lhe, baixando as barreiras mentais de um modo que qualquer Comyn teria reconhecido como um convite para o toque telepático da sua casta.

Por um instante os olhos de Lew fixaram-se nos dela, e Dio sentiu-o a aproximar-se, como se por instinto, congraçado pela sintonia entre os seus corpos. Depois, sem aviso, ele fechou com força a barreira entre ambos, deixando-a sem fôlego com a violência do acto. Dio necessitou de todo o seu auto-domínio para não soltar um grito perante a dor daquela rejeição, mas não quis dar-lhe a satisfação de saber que a tinha magoado; limitou-se a sorrir e continuou a apreciar a dança a um nível normal: o movimento, a sensação de estar em perfeita harmonia com os passos dele.

Porém, intimamente sentia-se entontecida e confusa. O que teria ela feito para merecer tão brutal rejeição? Nada, certamente; o seu gesto fora ousado, decerto, mas não indecente. Ele era um homem da sua própria casta, telepata e parente, e, se achasse não poder aceitar a intimidade oferecida, existiam modos mais suaves de recusar ou de se afastar.

Como Dio nada fizera para merecê-la, a rejeição devia ter sido provocada pela convulsão existente no âmago de Lew, nada tendo a ver com ela. Por isso continuou a sorrir, e quando a dança abrandou para um movimento mais romântico, e os casais de dançarinos à volta de ambos estavam a aproximar-se mais, prestes a abraçar-se, quase instintivamente ela chegou-se mais a Lew. Por um instante ele ficou rígido, imperturbável, e Dio receou que Lew pudesse também rejeitar o toque físico; mas passado um instante o braço dele cingiu-a. Através do toque, apesar das defesas mentais de Lew estarem bem apertadas, Dio sentiu a carência de afecto que o consumia...

Quanto tempo já teria decorrido, pensou Dio, desde que ele tocara uma mulher? Demasiado, estava certa disso. Os Comyn telepatas, particularmente os Alton e os Ridenow, eram dados por muito exigentes a respeito disso; eram hipersensíveis, demasiado receosos dos toques casuais ou acidentais. Eram raros os Comyn capazes de tolerar relações amorosas fortuitas.

Havia excepções, claro, pensava Dio; o jovem Herdeiro de Hastur tinha fama de mulherengo, mais propício a procurar executantes musicais ou mecânicas das matrizes, mulheres sensíveis, capazes de partilharem com ele uma intensidade emocional, não mulheres vulgares da cidade. Até o seu irmão Lerrys era promíscuo à sua maneira, com tendência para procurar quem comungasse dos seus próprios interesses... Um olhar rápido disse-lhe que ele estava a dançar com o jovem das redes douradas, uma exuberante intimidade de prazer repartido na dança.

A dança abrandou de ritmo, as luzes baixaram de intensidade, e Dio reparou que à sua volta os pares se abraçavam. Um miasma de sensualidade quase visível parecia pairar como névoa sobre todo o salão. Lew apertou-a contra si, inclinando a cabeça; ela levantou o rosto, novamente encorajando o toque que ele rejeitara. Lew não baixou as suas barreiras mentais, mas os lábios de ambos tocaram-se.

 Ao beijarem-se, Dio sentiu-se invadida por um lento fluxo de excitação sonolenta. Quando se separaram os lábios dele sorriam, mas havia ainda uma grande tristeza nos seus olhos. Lew observou o grande salão cheio de pares dançantes, muitos deles entrelaçados em íntimos abraços.

- Isto... isto é decadente - disse ele.

Ela sorriu, chegando-se mais a ele.

- Decerto não tanto como o festival do solstício de Verão nas ruas de Thendara. Não sou demasiado jovem para saber o que se passa depois das luas desaparecerem no horizonte.

A voz áspera de Lew parecia mais suave do que habitualmente.

- Os teus irmãos iriam procurar-me para me lançarem repto.

Ela levantou o queixo e disse, com ar zangado:

- Não estamos agora nas Colinas de Kilghard, Dom Lewis, e não permito que qualquer pessoa, nem mesmo um irmão meu, me diga o que posso ou não posso fazer. Se os meus irmãos desaprovam a minha conduta, sabem que podem vir pedir explicações a mim, e não a ti!

Lew riu-se, e com a sua mão válida tocou nas pontas do cabelo de Dio. Era, pensou ela, uma mão bela, sensível e robusta, sem ser excessivamente delicada.

- Portanto mandaste cortar o cabelo e declaraste a independência de uma Amazona Livre, parente? Prestaste também o juramento delas?

- Não - respondeu ela, chegando-se-lhe de novo. - Sou demasiado atraída por homens para fazer uma coisa dessas.

Quando ele sorria, pensou Dio, era formoso; até a cicatriz que lhe distorcia o rosto dava ao seu sorriso um pouco mais de ironia e animação. Dançaram juntos durante quase todo o serão, e antes de se separarem combinaram encontrar-se de novo no dia seguinte, para irem à caça nas grandes reservas cinegéticas do planeta do prazer. Quando se despediram, Kennard estava a observá-los benevolentemente, mas Geremy parecia taciturno e ensimesmado, e, quando os três chegaram aos luxuosos aposentos que ocupavam, inquiriu iradamente:

- Porque fizeste tu aquilo? Bem te tinha dito para te conservares afastada de Lew! Um enredamento com aquela estirpe dos Altons é o que menos desejamos!

- Como te atreves a tentar dizer-me com quem poderei dançar? Eu não censuro a tua escolha de amigas e prostitutas, pois não?

- Tu és uma dama do Comyn! E quando te comportas tão devassamente como aquilo...

- Toma tento na língua! - explodiu Dio. - Estás a insultar-me! Danço uma noite com um homem da minha casta, porque os meus irmãos não me arranjam outro par, e já estás a imaginar-me na cama com ele! E mesmo que o faça, Geremy, garanto-te uma vez mais que farei como desejar, e nenhum de vocês nem mais ninguém poderá impedir-me!

- Lerrys - apelou Geremy. - Não poderás tentar convencê-la?

Mas Lerrys estava a observar a irmã com admiração.

- Assim é que é, Dio! Para que servirá estarmos num sítio estranho de um Império civilizado se teimamos em manter o espírito provinciano e os hábitos tacanhos de um planeta atrasado? Faz o que quiseres, Dio! Geremy, deixa-a em paz!

Geremy abanou a cabeça, zangado, mas estava também a rir-se.

- Ora tu! Sempre na defesa dela, como se fossem gémeos!

- E porque não? - disse Lerrys. - Porque pensas tu que aprecio os homens? Porque, para meu infortúnio, a única mulher que conheço com um espírito de homem e uma força de homem é a minha própria irmã! - Deu-lhe um beijo, a rir-se. - Diverte-te, breda, mas não te magoes. Ele talvez estivesse com boa disposição nesta noite, ou mesmo com inclinação para o romance, mas parece-me que também pode ser cruel.

- Não - de repente Geremy ficou sóbrio -, não estou a brincar: não quero voltar a ver-te com ele, Diotima. Uma noite ainda se aceita, para seres cortês com os nossos parentes; concordo com isso, e peço-te desculpa se insinuei que tinha sido mais do que simples cortesia. Mas nada mais, Dio, acabou-se. Lerrys disse-te o mesmo, quando não estava a querer contradizer-me! Se não acreditas que só pretendo o teu bem, sabes decerto que Lerrys pensa como eu. Escuta-me, irmã: há numerosos homens neste planeta com quem poderás dançar, namoriscar, caçar... bem, raios, até deitar-te com eles, se é isso o que queres! Mas não te metas com o bastardo meio-mestiço de Kennard Alton... estás a ouvir-me? Digo-te já, Dio: se me desobedeces, vais arrepender-te!

- Pronto! - interveio Lerrys, ainda a rir-se, ao mesmo tempo que Dio abanava a cabeça num gesto de desafio. - Agora estragaste tudo, Geremy; fizeste-lhes praticamente a cama para eles se deitarem! Não sabes que não há ninguém que possa obrigar Dio a fazer seja o que for?

Na reserva de caça, no dia seguinte, escolheram os cavalos e os grandes falcões, que se pareciam com os falcões verrin das Colinas de Kilghard. Lew estava sorridente, bem-disposto, mas parecia a Dio que ele se mostrava um pouco chocado, também, por vê-la em calções de montar e botas.

- Sempre és a Amazona Livre que disseste não ser! - troçou ele.

Ela respondeu com um sorriso, dizendo:

- Não, eu disse-te por que razão nunca poderia ser uma coisa dessas. - E quanto mais o vejo, pensou ela, mais estou certa disso. Mas quando ando a cavalo com as saias de montar que uso em Darkover sinto-me como um gato doméstico com luvas de cabedal! Gosto de me sentir livre quando monto, pois de outro modo não seria melhor ficar em casa a bordar almofadas?

- Porque não, realmente? - respondeu ele, a sorrir, e na sua mente, que finalmente não lhe doía, ela viu reflectida a recordação de uma mulher sorridente, de cabeleira ruiva, cavalgando sem sela pelas colinas... A imagem obscureceu-se repentinamente para logo desaparecer. Tentou imaginar quem seria a mulher e sentiu um ligeiro e rápido despeito.

Lew montava bem, se bem que a mão artificial o atrapalhasse um pouco; podia usá-la, de certo modo, mas tão desajeitadamente que Dio achava que ele estaria melhor usando apenas a mão válida. Talvez até um gancho metálico funcional fosse mais útil para ele. Mas talvez fosse demasiado orgulhoso para isso, ou receasse que o considerassem repelente. Transportava o falcão num poleiro especial fixado na sela, como as mulheres em Darkover faziam, em vez de o segurar no pulso como a maioria dos montanheses; quando ela reparou nisso, ele ruborizou-se e virou-se zangado, soltando uma imprecação em voz baixa. De novo Dio pensou, com aquela ira súbita que Lew parecia despertar nela com tanta facilidade, porque será ele tão sensível, sempre na defensiva? Pensará ele que toda a gente se rala com que ele tenha duas mãos, ou uma ou três?

A reserva de caça tinha sido cuidadosamente arranjada, transformando-se num cenário belo e variado com colinas baixas que não cansavam os cavalos, planícies uniformes, uma variedade de fauna silvestre, colorida vegetação proveniente de uma dúzia de mundos. Mas enquanto cavalgavam ela ouviu-o suspirar ligeiramente, e a seguir comentar em voz baixa:

- Isto aqui é belo. Mas o Sol... está como que errado... Gostaria de... - e calou-se de súbito, do mesmo modo como era capaz de desligar o cérebro, bruscamente, rejeitando-a com brutalidade.

- Sentes saudades da tua terra, Lew? - perguntou Dio.

Ele comprimiu os lábios.

- Sinto. Por vezes... - disse, mas tinha-a rechaçado de novo, e Dio voltou a sua atenção para o falcão que transportava na sela.

- Estas aves estão muito bem treinadas.

Ele fez uma qualquer observação indiferente, mas ela conseguiu captar-lhe o pensamento de que as aves suficientemente treinadas para serem usadas por qualquer recém-chegado eram como prostitutas: totalmente desinteressantes. Tudo o que ele disse em voz alta foi: - Prefiro treinar os meus.

- Gosto de caçar - disse ela -, mas não tenho a certeza de que seria capaz de treinar uma ave desde o princípio. Deve ser bastante difícil.

- Não é difícil para quem possua o dom dos Ridenow, na minha opinião - comentou Lew. - Muitos dos membros do teu clã possuem sensibilidade a todos os animais e aves, além do dom para que foste procriada, o dom de entender inteligências de natureza diferente e estabelecer contacto com elas...

Ela sorriu e encolheu os ombros.

- Nos tempos que correm há pouco disso. O dom dos Ridenow, na sua forma original... bem, acho que já estará extinto. Contudo Lerrys pensa que esse dom seria muito útil no Império Terráqueo, para tornar possível a comunicação com não-humanos. Será muito difícil treinar falcões?

- Não é fácil, para falar verdade - respondeu Lew. - É preciso tempo e paciência. E de certo modo é necessário pôr a nossa mente em harmonia com a da ave, e isso é assustador; são animais selvagens. Mas eu consegui fazê-lo, em Arilinn, bem como algumas das mulheres de lá. Janna Lindir é uma excelente treinadora de falcões, e ouvi dizer que é mais fácil para as mulheres... se bem que a minha irmã adoptiva Linnell nunca tivesse conseguido apreender, por ter horror às aves. Acho que é como domar cavalos, como o meu pai costumava fazer... antes de ficar tão diminuído fisicamente. Tentou ensinar-me, há pouco... há bastante tempo. - Falando animadamente destas coisas, pensou Dio, Lew parecia transformado.

A reserva estava bem fornecida com uma grande variedade de caça, miúda e grossa. Passado algum tempo soltaram os falcões, e Dio, deliciada, viu o seu elevar-se nas alturas, descrever meia volta e lançar-se com asas robustas em perseguição a um bando de pequenas aves brancas, directamente acima deles. O falcão de Lew seguiu atrás do outro, mergulhando velozmente e capturando uma das pequenas aves em pleno voo. A ave branca debateu-se lastimosamente, com um longo grito arrepiante. Dio tinha caçado com falcões ao longo de toda a sua vida; estava a observar a luta com interesse mas, quando alguns pingos de sangue tombaram da ave moribunda, salpicando-os, constatou que Lew estava a olhar fixamente para o alto, com o rosto sem cor e crispado de horror. Parecia paralisado.

- Lew, o que foi?

Com voz tensa e áspera, ele respondeu:

- Aquele som... não consigo suportá-lo... - e encobriu os olhos com os dois braços. A mão artificial, enluvada de negro, bateu-lhe desajeitadamente no rosto. Com uma imprecação, Lew arrancou-a do pulso e arremessou-a para o chão debaixo dos cascos do cavalo.

- Não, não é nada bonita - escarneceu, enraivecido -, como o sangue, e a morte, e os gritos de seres moribundos. Se estas coisas lhe dão prazer, lamento-o bastante, minha rica senhora! Talvez isto também lhe dê prazer! - Levantou no ar o toco horrivelmente cicatrizado, sacudindo-o furiosamente; depois, fez o seu cavalo dar meia volta puxando as rédeas com a mão válida e cavalgou para longe, como se estivesse a ser perseguido por todos os demónios de todos os infernos.

Dio ficou a olhá-lo, consternada. Depois, esquecendo os falcões, seguiu atrás dele num galope desabrido. Algum tempo depois conseguiu alcançá-lo, cavalgando a par dele. Lew puxava as rédeas com uma só mão, tentando controlar a montada; contudo, enquanto ela observava, horrorizada, ele perdeu o domínio do animal e foi arremessado para fora da sela, caindo pesadamente no solo, onde ficou sem se mover.

Dio desmontou do seu cavalo e ajoelhou-se ao lado de Lew. Este tinha ficado inconsciente com a queda, mas, enquanto ela tentava decidir onde poderia ir buscar auxílio, abriu os olhos e fixou-a sem a reconhecer.

- Está tudo bem - disse ela. - O cavalo atirou-te ao chão. Consegues sentar-te?

Ele sentou-se com dificuldade, como se o toco lhe doesse; viu-a a olhar, encolheu-se e tentou escondê-lo numa dobra da capa de montar. Desviou o olhar, e o tecido cicatrizado retorceu-lhe a boca numa careta disforme, como se estivesse prestes a chorar.

- Deuses, domna! Eu não pretendia... - murmurou, quase inaudivelmente.

- O que aconteceu, Lew? Por que motivo perdeste a calma e fugiste daquela maneira? Que fiz eu para te zangar?

- Nada, nada... - Confuso, abanou a cabeça. - Eu... eu não posso suportar ver sangue, agora, ou imaginar algum animal inofensivo morrendo para meu prazer... - disse, e a sua voz parecia exausta. - Tenho caçado durante toda a minha vida, sem sequer pensar nisso, mas quando ouvi aquela pequena ave branca a gritar e vi o sangue, de repente tudo surgiu de novo à minha frente e recordei-me... Oh! Possa Avarra ter piedade de mim! Recordei-me... Dio, vai-te embora, por favor, em nome da misericordiosa Avarra, Dio...

O seu rosto contorceu-se de novo, e depois começou a chorar, grandes soluços roucos e convulsivos, com a face disforme e contraída, tentando voltar-se para que ela não visse.

- Eu vi... demasiada dor... Dio, não... Vai-te embora, vai-te embora, não me toques...

Ela lançou os seus braços em volta de Lew, puxando-o para si. Por um momento ele resistiu freneticamente, mas depois deixou que ela o abraçasse. Dio estava também a chorar.

- Nunca imaginei... - sussurrou ela. - A morte na caça... estou tão habituada a ela que nunca me pareceu real. Lew, o que aconteceu, quem morreu, o que foi que aquilo te fez recordar?

- Marjorie... - disse ele com voz rouca. - A minha esposa. Morreu, ela morreu horrivelmente no fogo de Sharra... Dio, não toques em mim, não sei por que motivo faço sofrer todos aqueles em quem toco... Vai-te embora antes que te faça mal. Não quero magoar-te também...

- É demasiado tarde para isso - disse ela, amparando-o, sentindo em si toda a dor que ele sentia. Lew levou a sua mão válida ao rosto dela, tocando-lhe nos olhos humedecidos, e ela sentiu que as defesas dele se fechavam de novo, mas desta vez sabia que não era rejeição, apenas as defesas de um homem insuportavelmente magoado, incapaz de aguentar mais.

- Ficaste ferida, Dio? - perguntou ele, com a mão a demorar-se no rosto dela. - Tens sangue na cara.

- É sangue da ave. Também te salpicou - respondeu Dio, e limpou os salpicos. Lew tomou a mão dela na sua e levou-lhe os dedos aos lábios. Sem saber porquê, este gesto fê-la desejar chorar de novo. Perguntou: - Magoaste-te ao cair?

- Nem por isso - disse ele, ensaiando cautelosamente os músculos.

 - No hospital do Império, na Terra, ensinaram-me a cair sem me magoar, quando eu estava... antes de isto cicatrizar. - Moveu o toco com dificuldade. - Não consigo habituar-me àquela maldita prótese. Safo-me melhor só com a mão válida.

Era isso que ela supusera.

- Porque é que a usas, então? Se é apenas pelo aspecto, por que razão pensas que eu me importo?

O rosto dele parecia sem vida.

- O meu pai importa-se. Pensa que, quando uso a manga vazia, estou a... a fazer gala da minha mutilação, a exibir a minha desgraça. Ele odeia tanto a sua própria deficiência física que eu prefiro não mostrar a minha na presença dele.

Dio pensou rapidamente, e depois decidiu o que poderia dizer.

- És um homem adulto, e ele também. Ele tem uma forma de enfrentar a sua imperfeição, e tu tens a tua; é fácil ver-se que os dois são muito diferentes um do outro. Achas que ele ficaria realmente zangado se escolhesses outro modo de fazer face ao que te aconteceu?

- Não sei - respondeu Lew -, mas ele tem sido tão bom para mim, nunca me culpando por estes anos de exílio, nem pela maneira como estraguei todos os seus planos. Não quero magoá-lo ainda mais. - Levantou-se, foi buscar a coisa grotesca e sem vida dentro da luva preta, olhou para ela por um instante e depois guardou-a no alforge. Atrapalhou-se ao tentar dobrar com uma só mão a manga vazia sobre o toco; ela preparava-se para ir ajudá-lo, mas decidiu que era cedo de mais. Lew olhou para o céu. - Parece-me que os falcões ficaram definitivamente perdidos, e vão fazer-nos pagá-los.

- Não será preciso. - Soprou no apito de prata que trazia pendurado ao pescoço. - São aves cujo cérebro foi modificado de forma a não poderem deixar de acorrer ao chamamento do apito...estás a ver? - Apontou para dois distantes pontos no céu, aumentando rapidamente de tamanho, espiralando e a seguir pousando nos poleiros das selas, onde ficaram aguardando pacientemente os seus caparões. - O seu instinto de liberdade foi definitivamente apagado.

- São como certos homens que eu conheço - comentou Lew, colocando o caparão na sua ave. Dio imitou-o, mas nenhum deles fez menção de montar. Dio hesitou, e depois decidiu que ele devia estar farto de olhares polidamente afastados e pretensões de cortês alheamento.

- Precisas de ajuda para montar? Posso ajudar-te, ou preferes que chame alguém?

- Agradeço, mas sou capaz de montar sem ajuda, ainda que pareça desajeitado. - Sorriu repentinamente, e o seu rosto deformado pelas cicatrizes pareceu de novo simpático a Dio. – Como sabias tu que me faria bem ouvir isso?

- Eu nunca fui realmente magoada - explicou ela -, mas houve um ano em que tive um febrão e perdi todo o meu cabelo, que não voltou a crescer durante meio ano, e eu sentia-me tão feia que nem podes imaginar. E o que me incomodava mais era ouvir as pessoas dizerem que eu estava muito bonita, que o meu vestido ou o meu lenço me ficavam tão bem, fazendo de conta que nada se passava de anormal. Isto fazia-me sentir miserável, como se eu estivesse a fazer um grande espalhafato sem nenhuma razão. Assim, se eu estivesse realmente estropiada acho que iria odiar que as pessoas me fizessem fingir que nada se tinha passado e que nada de mal se passava comigo. Peço-te que nunca penses que precisas de fingir comigo.

Ele respirou fundo.

- O meu pai enfurece-se sempre que alguém parece reparar que ele coxeia, e por uma ou duas vezes, quando tentei oferecer-lhe o apoio do meu braço, quase me deitou ao chão.

Contudo, pensou Dio, na noite passada Kennard usou a sua deficiência física para me convencer a dançar com Lew. Porquê?

- É a maneira que tem para fazer face à sua vida e à sua imperfeição - disse. Repentinamente Lew começou a tremer. - Por vezes... – disse - ... por vezes é difícil acreditar nisso. - E ela recordou-se de que o dom de Alton era a conexão forçada. A intensa proximidade de Kennard com o seu filho, a sua profunda ambição por ele, eram bem conhecidas em Darkover. Essa proximidade devia tornar-se por vezes uma tortura, tornando difícil a Lew distinguir os seus próprios sentimentos e emoções. - Deve ser árduo para ti: ele é um telepata poderoso...

- Para falar com franqueza - disse Lew -, deve ser difícil para ele compartilhar tudo aquilo por que tenho passado ao longo destes anos, e houve um tempo em que as minhas barreiras não eram tão fortes como agora. Foi decerto um suplício para ele. Mas isso não torna tudo menos difícil para mim. E se Kennard não quer aceitar nenhuma fraqueza em Lew... mas Dio não quis seguir essa linha de pensamento.

- Não estou a tentar meter-me onde não sou chamada. Se não quiseres responder, basta que mo digas, mas... Geremy perdeu três dedos num duelo. Os médicos terráqueos conseguiram fazê-los crescer outra vez, ficando como novos. Por que motivo não tentaram fazer o mesmo com a tua mão?

- Fizeram-na crescer - disse ele. - Por duas vezes. - A sua voz era inexpressiva, sem qualquer emoção. - Até que não aguentei mais. Não sei bem como, o padrão das células... tu não és uma técnica das matrizes, pois não? Seria mais fácil explicar isto se conhecesses alguma coisa sobre a divisão das células. Não sei se poderás compreender... o padrão das células, o conhecimento existente nas células, que faz de uma mão uma mão e não um olho ou uma unha dos pés, ou uma asa, ou um casco, tinha sido danificado irremediavelmente. O que cresceu no extremo do meu braço foi... Respirou fundo, e ela viu o horror reflectido nos seus olhos. – Não foi uma mão - disse por fim. - Não estou certo do que teria sido, e não quero saber. Tinham-se enganado nos fármacos, e quando acordei dei com aquilo. Dizem-me que gritei até ter a garganta ferida. Não me recordo. A minha voz nunca mais normalizou. Durante meio ano não consegui falar acima de um sussurro. - A sua voz áspera estava despida de qualquer emoção. - Durante anos não voltei a ser quem tinha sido. Agora vou-me aguentando, porque... porque é preciso. Já posso enfrentar a certeza de que estou... estropiado. O que não posso enfrentar - prosseguiu, com súbita violência -, é a necessidade que o meu pai tem de fazer de conta que estou... inteiro!

Dio sentiu uma vaga de raiva intensa, e não sabia bem se seria dela ou do homem à sua frente. Nunca se sentira tão completamente cônscia do seu laran, o dom dos Ridenow, que era uma partilha de emoções, uma empatia total, mesmo com não-humanos, com alienígenas... Nunca tivera muita experiência dele, mas agora parecia sacudi-la até ao âmago. A sua voz estava insegura ao dizer:

- Comigo nunca precisas de fazer de conta, Lew. Posso olhar para ti tal como és, sempre, todo tu.

Ele apertou-a num amplexo rude, puxando-a para si. Não era bem um abraço.

- Rapariga, saberás o que estás a dizer? Não deves saber.

Ela sentiu-se como se as suas próprias barreiras estivessem a dissolver-se, como se começasse de algum modo a fundir-se com o homem que estava à sua frente.

- Se tu és capaz de suportar o que tens suportado, eu posso suportar conhecer aquilo que tiveste de suportar. Lew, deixa que to prove.

Bem no interior da sua mente Dio pensou, porque estarei a fazer isto? Contudo, sabia que quando tinham estado nos braços um do outro na noite anterior, na pista de dança, mesmo por detrás das barreiras levantadas das defesas de Lew, os seus corpos como que haviam estabelecido um pacto. Por mais barricados que estivessem um do outro, algo em cada um deles tinha-se estendido para o outro aceitando o que cada um deles era, plenamente e para sempre. Dio levantou o rosto para Lew. Os braços dele cercaram-na em grata surpresa, e ele murmurou, ainda hesitante:

- Mas tu és tão jovem, chiya, não podes saber... eu merecia ser vergastado por causa disto... mas já se passou tanto tempo, tanto tempo... - e ela sabia que ele não se referia à coisa mais óbvia. Dio sentiu-se dissolver naquela plena consciência dele, as barricadas a recuarem... a memória de dor e horror, a sexualidade esfomeada, as provações que tinham ultrapassado toda a resistência humana... o negro e envolvente horror da culpa, de um ser amado que morrera, autoconsciência, autocrítica, mutilação quase alegremente aceite como expiação por continuar vivo quando ela estava morta...

Num abraço desesperado e ávido ela apertou-o contra si, sabendo que era por isto que ele mais ansiava: alguém que soubesse de tudo isto e mesmo assim pudesse aceitá-lo sem fingimentos, que o amasse apesar de tudo. Amor: seria isto amor, a certeza de que ela aceitaria de bom grado todo este sofrimento para lhe poupar outro momento de sofrimento ou culpa.

Por um instante ela viu-se tal como era, reflectida na mente dele, mal se reconhecendo, arrebatada, calorosa, toda mulher, e por um instante gostou de si mesma pelo que ela se tornara aos olhos dele; depois a analogia quebrou-se e esbateu-se como uma maré, deixando-a aterrada e combalida, deixando lágrimas e ternura que nunca poderia diminuir Só nessa ocasião ele baixou o rosto para beijá-la, e ao aceitar o beijo, rindo-se, Dio disse-lhe num sussurro:

- Geremy tinha razão.

- O que disseste, Dio?

- Nada, meu amor - respondeu ela, aliviada. - Anda, Lew, os falcões estão irrequietos, temos de devolvê-los às cavalariças. Seremos reembolsados do que pagámos porque não chegámos a caçar, mas quanto a mim acho que fui plenamente recompensada. Consegui aquilo que mais desejava...

- E isso era o quê? - inquiriu ele, a brincar, mas ela sabia que não precisava de responder. Separaram-se para subir para as suas montadas, mas ela sentia que de algum modo ainda se tocavam, ainda estavam abraçados.

Lew levantou um braço no ar e exclamou:

- Já que acabámos por não caçar, ao menos façamos uma corrida. Qual de nós irá chegar primeiro aos estábulos? E partiu a cavalgar. Dio apertou os calcanhares no quadril da sua montada e perseguiu-o, sorrindo. Ela sabia tão bem como ele como e onde o dia iria terminar.

E foi apenas o início de uma longa temporada em Vainwal. Iria ser um comprido e maravilhoso Verão. Apesar de saber que havia escuridão à sua frente, e que esta se aproximava cada vez mais dela, Dio estava pronta a enfrentá-la. Para além da escuridão poderia ver o que Lew tinha sido e o que poderia ser de novo... se ela tivesse a força e a coragem necessárias para o ajudar a prevalecer. Cavalgou atrás dele, exclamando:

- Espera por mim, Lew, chegaremos juntos! - e ele refreou ligeiramente a sua montada, sorridente, e esperou por ela.

 

Narrativa de Lew Alton - Vainwal: o sexto ano de desterro.

Pensava que me tinha esquecido de como era ser-se feliz. Todavia, naquele ano em Vainwal fui feliz. O planeta é mais do que a cidade decadente do mundo dos prazeres. Talvez tivéssemos saído de lá - mas não, possivelmente, para regressar a Darkover mas o meu pai achava o clima benéfico para a sua deficiência, e preferia permanecer na cidade onde podia encontrar termas de água quente e banhos minerais, e por vezes, suspeitava eu, companhia que ele pudesse tolerar. Tenho cismado por vezes a respeito disso; mas, apesar de sermos muito chegados, há algumas coisas que não poderíamos partilhar, e essa era uma área problemática de privacidade da qual sempre tentei manter-me afastado. Parece-me que isso é já bastante difícil no caso de pais e filhos normais.

Quando tanto o pai como o filho são telepatas, aquilo torna-se ainda mais difícil. Durante os meus anos em Arilinn, trabalhando nos relês telepáticos como mecânico das matrizes, tinha aprendido muito a respeito da privacidade e da importância que esta assume quando todos aqueles que nos cercam estão ainda mais chegados a nós do que a nossa própria pele. Costumava existir um velho tabu que impedia uma mãe e o seu filho adulto de trabalharem nos relês ao mesmo tempo, ou um pai e a sua filha núbil. O meu pai era capaz de Mascarar os seus pensamentos melhor do que a maioria. Em tempos descrevi a alguém este género de coisa como vivendo sem a nossa própria pele. Ao longo destes anos de desterro tínhamos estado tão próximos que houve ocasiões em que nenhum de nós estava certo da autoria dos pensamentos que tínhamos. Quando dois homens solitários vivem em proximidade, acabam por se irritar mutuamente de vez em quando. Junte-se a isto o facto de um deles se encontrar gravemente enfermo e pelo menos intermitentemente insano, e a situação torna-se ainda pior. E somos ambos telepatas extremamente potentes, e houvera longos períodos de tempo em que eu não tinha qualquer controlo sobre o que estava a pensar. Quando voltei a recuperar uma boa parte da minha saúde houve longos períodos em que existia entre nós pelo menos tanto ódio como amor. Tínhamos estado demasiado próximos por demasiado tempo.

Uma grande parte da razão para me sentir grato a Dio era isto mesmo: ela viera quebrar um ponto morto, interrompendo aquele enfermiço excesso de preocupação com que cada um de nós reagia aos pensamentos do outro. Se se tivesse tratado de uma relação entre mãe e filho, ou entre pai e filha, ou entre irmão e irmã, ao menos existiria um tabu que poderíamos quebrar. Para uma relação entre pai e filho não havia uma tão dramática escapatória; pelo menos era o que nos parecia, se bem que eu não possa jurar que isso nunca tivesse entrado na nossa mente. Tínhamos ambos uma idade suficiente para tomar uma tal decisão, estávamos longe do mundo que nos impregnara com tais tabus, e estávamos ambos sozinhos num universo que nos era estranho, entre os pobres de espírito que nunca saberiam - e nunca se interessariam em saber - que níveis de decadência decidiríamos explorar. Todavia, talvez fosse essa a única coisa que nunca tentámos partilhar, e penso que isso talvez tenha sido a única maneira de conservarmos a nossa sanidade mental.

O meu pai também ficou prontamente encantado com Dio, e parece-me que se lhe sentia genuinamente grato, sobretudo por ela ter vindo interromper a nossa mútua preocupação doentia. Contudo, satisfeito como ele estava por ganhar alguma liberdade da minha presença constante, e por ficar livre de receios pela continuação da minha sanidade mental (e, apesar de ele os ter escondido cuidadosamente de mim, eu não podia ignorá-los por completo, e um homem continuamente vigiado à procura de indícios de insanidade acabará por duvidar da sua própria sanidade), a chegada de Dio tinha contribuído para ele ficar mais isolado. O meu pai era incapaz de admitir as suas incapacidades; isso seria algo que Kennard Alton nunca poderia fazer. Contudo, eu via-o a piorar diariamente, e sabia que acabaria por chegar a altura, se ainda não tivesse chegado, em que ele iria precisar de mim. Estivera disponível sempre que eu tinha precisado dele, e por isso não seria capaz de o deixar desamparado, sujeito à devastação da idade e da enfermidade. Por isso Dio e eu montámos um lar na orla da cidade, onde ele poderia visitar-nos sempre que disso necessitasse, e no extravasamento da nossa própria felicidade era-me bastante fácil dedicar algum tempo a fazer-lhe companhia.

Bem, nós éramos felizes. Quando perdi Marjorie, no horror daquela última noite em que Caer Donn desapareceu em chamas, ela e eu estávamos a tentar colmatar a falha que Sharra tinha provocado na tessitura do mundo, preparados ambos para morrer. Mas não aconteceu assim: Marjorie morreu, mas eu continuei vivo, e algo tinha sido destruído em mim naquela noite. Não num golpe súbito, mas, como a minha mão, putrefazendo-se e supurando e criando terríveis  formas inumanas. Dio penetrara sem receios em todo aquele horror, e depois disso eu tinha sarado por completo.

Nenhum de nós pensava em casamento. O casamento di catenas, o matrimónio ritual e formalizado dos Domínios, era uma solene junção de patrimónios, um assunto mútuo envolvendo duas famílias, duas casas, para a criação de filhos abrangendo heranças e laran, Aquilo que Dio e eu tínhamos era tão profundamente pessoal que não sentíamos qualquer desejo ou necessidade de chamar qualquer das nossas famílias ao assunto. Com Marjorie, metade do meu amor por ela tinha sido o desejo de vê-la como minha esposa a viver comigo em Armida, criando crianças que partilharíamos em comum, a antecipação de longos anos de tranquilidade no nosso adorado lar.

Com Dio era algo diferente. Quando Dio ficou grávida, no segundo ano da nossa vida em comum, não nos sentimos realmente felizes com o facto. Mas talvez os nossos corpos tivessem reagido àquilo que as nossas mentes se recusavam a saber, um sentimento que residia no fundo do nosso ser, um desejo de continuidade, algo que prevaleceria depois de termos falecido, o desejo enraizado da única imortalidade ao alcance de todos.

- Eu não preciso de dar à luz a criança, se tu não a desejares - disse Dio, enroscada ao meu lado na sala de estar, que se erguia bem acima das luzes de Vainwal, luzes coloridas, estendidas festi vamente ao longo das ruas. Havia sempre aqui algum género de festival, ruído e alegria e confusão e a procura do prazer.

Ela encontrava-se suficientemente perto de mim para sentir o meu estremecimento instintivo.

- Mas tu queres tê-la, não queres, Lew? - disse ela.

- Não sei, e a verdade é essa, Dio. A verdade... Ressentia-me da intrusão no nosso idílio de qual quer outro ser, por mais desejado que ele fosse, alguém que iria inevitavelmente destruir a profunda proximidade que nos unia. Dio deixaria de estar exclusivamente preocupada com as minhas necessidades e os meus desejos, e era desta forma, egoisticamente, que eu reagia à ideia de ela se encontrar grávida. A verdade, também... Recordava-me com angústia daquela noite - a derradeira noite da sua vida - em que soube que Marjorie carregava no ventre a criança que ela não chegaria a dar à luz. Eu tinha sentido aquela vida em embrião tal como agora sentia a semente de vida crescendo em Dio, e a minha própria alma rejeitava a ideia de vê-la extinguir-se. Talvez fosse apenas excesso de susceptibilidade, mas a verdade era que, de forma egotista, eu desejava que esta criança sobrevivesse.

- Quero-a e não a quero - disse eu. - Tu mesma terás de decidir se a queres; a escolha é tua. Decidas o que decidires, farei o possível para me sentir bem com a tua decisão.

Durante longos minutos ela ficou a observar as mudanças de luzes na cidade aos nossos pés. Por fim, disse:

- Isto irá alterar a minha vida de forma que nem posso imaginar. Tenho receio de me modificar tanto. É a ti que eu quero, Lew, e não ao teu filho - e descansou a cabeça no meu ombro. Parecia-me que ela continuava tão ambivalente como eu. - Ao mesmo tempo, é uma coisa que... que saiu do nosso amor. Não posso deixar de desejar... - Calou-se e engoliu em seco, indo depositar a mão, qua se protectoramente, sobre o seu ventre. - Amo-te, Lew, e amo o teu filho porque é teu. E isto é uma coisa que... bem, que poderia ser diferente e mais forte do que qualquer de nós, mas também fazendo parte daquilo que temos juntos. Achas que isto faz algum sentido?

Acariciei-lhe os cabelos. Naquele momento ela parecia-me infinitamente preciosa, mais ainda do que já tinha sido, talvez mais do que alguma vez tornaria a ser.

- Estou receosa, Lew. É demasiado importante. Não me parece que tenha o direito de decidir uma coisa tão vasta como isto. Talvez a decisão tenha sido já tomada por algo que nos ultrapassa.Nunca pensei muito a respeito de Deus, ou dos Deuses, ou de quem quer que seja. Não consigo deixar de sentir que nos aguarda algo terrível, e não quero perder um só minuto da felicidade que poderíamos ter juntos. - Repetiu o pequeno gesto de descansar a mão sobre o ventre, como se pretendesse resguardar a criança no seu interior. Depois prosseguiu, num sussurro assustado: - Sou uma Ridenow. Não é apenas uma coisa, Lew, está viva. Posso senti-la viva... não a mover-se, pois só sentirei isso daqui a alguns meses. Mas posso senti-la aqui. Está viva e parece-me que deseja viver. De qualquer forma, desejo que ela viva, desejo senti-la viva. Tenho receio das modificações que irá provocar, mas quero tê-la, Lew; quero esta criança.

Pousei a minha mão sobre a dela, tentando sentir o que ela sentia, e captei - talvez fosse a minha imaginação - a sensação de algo vivo. Relembrei o pesar insondável que sentira ao saber que Marjorie não viveria para me ofertar o seu filho. Seria apenas a recordação desse pesar, ou estaria realmente a sentir um pesar maior que nos aguardaria? Talvez tenha sido nesse momento que aceitei finalmente a ideia de que Marjorie tinha desaparecido, de que a morte era para sempre, que não haveria reunião neste mundo ou no próximo. Mas debaixo da minha mão e da de Dio havia vida, um regresso de esperança, algo no futuro. Já não estávamos apenas a viver um dia a seguir a outro, firmemente agarrados a um prazer muito nosso, mas a vida prosseguia e haveria sempre mais vida para viver. Beijei-a na testa e nos lábios, e depois inclinei-me para lhe beijar a barriga também.

- Quer seja o bebé rapaz ou menina - disse eu -, também eu o quero, preciosa. Obrigado. O meu pai, evidentemente, ficou deliciado; mas preocupado também, e não quis dizer-me a razão. Agora que já não estávamos tão chegados ele era capaz de esconder de mim os seus pensamentos.

Ao princípio Dio sentia-se bem e andava resplandecente, sem nenhum dos pequenos problemas de que algumas mulheres se ressentem durante a gravidez; afirmava que nunca se tinha sentido tão feliz ou tão saudável. Eu ia observando as alterações no seu corpo com divertimento e prazer. Foi uma época de alegria. Aguardámos ambos o nascimento da criança, e começámos até a falar da possibilidade - que até então eu nunca quisera contemplar - de algum dia regressarmos juntos a Darkover, partilhando com o nosso filho ou a nossa filha o mundo em que tínhamos nascido.

Filho ou filha. Incomodava-me não saber qual seria. Dio não possuía muito laran, e não fora instruída no uso do pouco que tinha. Podia sentir a presença e a vida do bebé, mas isso era tudo; não era capaz de determinar de que sexo seria, e quando lhe disse que não compreendia isto respondeu-me com espírito que uma criança por nascer não tinha consciência do seu próprio sexo, e consequentemente ela não podia ler-lhe a mente. Os médicos terráqueos poderiam tirar uma amostra de sangue e executar uma análise aos cromossomas para logo determinar o sexo da criança, mas isto parecia-nos um método doentio e desumano de o sabermos. Pensei que talvez Dio desenvolvesse a sensibilidade para o sentir, ou, se tudo o mais falhasse, acabaríamos por saber quando o bebé nascesse. Quer fosse rapaz ou rapariga, amá-lo-ia da mesma forma. O meu pai preferia que fosse um rapaz, mas eu recusei-me a pensar nesses termos.

- Esta criança, mesmo se for um rapazinho, não será herdeiro de Armida. Esquece-te - disse-lhe, e Kennard replicou com um suspiro:

- Pois não, não será. Tens sangue Aldaran, e o Dom dos Aldaran é a pré-cognição. Não sei por que razão ele nunca será herdeiro de Armida, mas não será. - E depois perguntou-me se eu tinha monitorizado Dio para estarmos certos de que tudo estava a correr bem.

- Os médicos terráqueos dizem que tudo está normal - respondi-lhe defensivamente. - Mas, se queres monitorizá-la, fá-lo tu.

- Não sou capaz, Lew. - Era a primeira vez que ele me confessava uma fraqueza. Olhei cuidadosamente para o meu pai pela primeira vez, parecia-me, desde há muitos meses, e vi os seus olhos afundados na face, as mãos disformes e quase inutilizadas. Era como se a carne estivesse a desfazer-se dos ossos. Tentei contactá-lo mentalmente como antigamente tinha feito por muitas vezes, mas ele rejeitou o toque, cerrando as suas barreiras. Depois respirou fundo e olhou-me bem nos olhos. - O laran por vezes enfraquece com a idade. Talvez não seja mais do que isso. Já estás livre de Sharra, não estás? Tu tens sangue Ridenow; tu e Dio são primos. A esposa do meu pai era uma Ridenow, bem como a mãe dele. Uma mulher com laran que esteja a gerar uma criança precisa de ser monitorizada.

Soltei um suspiro. Esta era a mais simples das técnicas que aprendera em Arilinn; uma criança de treze anos pode aprender a monitorizar as funções do corpo, nervos, canais psíquicos. A monitorização de uma mulher grávida e da criança que está a gerar é um pouco mais complexa, mas mesmo assim não se reveste de qualquer dificuldade.

- Está bem... irei tentar.

Mas eu sabia que ele estava a sentir-me encolher por dentro. A matriz de Sharra estava arrumada no canto mais inacessível do armário mais inacessível dos aposentos que partilhava com Dio, e desde há mais de dois dezdias que eu não pensava nessa servidão em especial. Mas a verdade era que também não usava há muito a minha matriz pessoal nem tentava aplicar qualquer poder do meu laran, excepto o mais simples, o de ler pensamentos não verbalizados que nenhum telepata poderá bloquear por completo da sua mente.

- Quando? - insistiu ele.

- Cedo - declarei, interrompendo-o.

Sai! Sai da minha mente! Entre ti e Sharra, acabo por não ter um bocado de mente só minha! Ele vacilou perante a violência do meu pensamento, e senti dor e arrependimento. Apesar de tudo o que se passara entre nós, amava o meu pai, e custava-me ver aquela expressão de angústia no seu rosto. Estendi a minha mão para ele.

- Não estás bem de saúde, sir. O que te dizem os médicos terráqueos?

- Sei bem o que eles me diriam, e por isso não lhes perguntei ripostou, com uma centelha de humor, e depois regressou à anterior seriedade: - Promete-me, Lew, se achas que não consegues monitorizar Dio, então promete-me... Lerrys ainda se encontra em Vainwal, se bem que esteja prestes a partir para a temporada do Conselho. Se não és capaz de monitorizá-la, manda chamar Lerrys e pede-lhe que o faça. Ele é um Ridenow...

- E Dio é uma Ridenow, e tem direitos patrimoniais de laran e o direito legítimo de tomar assento no Conselho - repliquei. Lerrys entrou em conflito com Dio por ela não se ter casado comigo; disse que os filhos dela deveriam ter direitos legítimos ao Domínio de Alton! - Praguejei, com tal violência que o meu pai estremeceu de novo, como se eu o tivesse agredido ou se lhe tivesse apertado as mãos disformes num torno.

- Quer queiras quer não, Lew - insistiu o meu pai -, o filho de Dio é filho do Herdeiro de Alton. Digas ou penses o que quiseres, nada irá modificar esse facto. Poderás repudiar os teus direitos de primogenitura, ou renunciar a eles, mas não poderás rejeitá-los em nome do teu filho.

Praguejei de novo, dei meia volta e deixei-o. Ele veio atrás de mim, em passadas incertas, com uma voz cheia de irritada urgência:

- Vais contrair matrimónio com Dio?

- Isso só a mim diz respeito - respondi, erguendo uma nova barreira. Podia fazê-lo, agora, sem penetrar numa negrura do nada.

Premindo os lábios, ele retorquiu:

- Tinha jurado que nunca iria forçar-te a casares, ou exercer pressão para que o fizesses. Mas lembra-te: recusares-te a decidir equivale a tomar uma decisão. Se te recusas a decidir se te casarás com ela, terás decidido que o teu filho irá nascer nedestro, e há-de vir a altura em que o lamentarás amargamente.

- Quando chegar a altura, lamentá-lo-ei - repliquei, com voz áspera.

- Perguntaste a Dio como ela se sentirá?

Ele saberia certamente que nós tínhamos discutido o assunto interminavelmente, ambos com relutância de nos casarmos à maneira terráquea, mas ainda menos dispostos a puxar o meu pai e os irmãos de Dio para o tipo de discussões e acordos relativos à posse de bens de raiz que teriam de ser entabulados antes que nos pudéssemos casar di catenas. Fosse como fosse, isso não tinha qualquer relevância aqui em Vainwal. Tínhamo-nos considerado casados à luz daquilo a que os Darkoverianos chamavam casamento livre a partilha de uma cama, uma refeição, uma lareira - e nada mais desejávamos; tornar-se-ia tão legal como qualquer casamento di catenas assim que o nosso filho nascesse. Mas agora constatava também que, se o nosso filho nascesse nedestro, nada herdaria de mim.

Se eu morresse, Dio teria de passar a depender dos seus parentes Ridenow. Acontecesse o que acontecesse, precisava de zelar pelo futuro dela. Quando lhe expliquei o caso desta forma, por uma questão de lógica simples e prática, Dio acedeu prontamente, e no dia seguinte dirigimo-nos à sede administrativa do Império em Vainwal para registarmos o nosso casamento. Esclareci as questões legais, para que, na eventualidade de vir a falecer antes dela, ou antes que o nosso filho atingisse a maioridade, ela pudesse herdar tudo o que me pertencesse, na Terra ou em Darkover, e o nosso filho teria direito idêntico aos meus bens. Algures a meio destes procedimentos reparei que nós ambos, sem qualquer combinação prévia, tínhamos começado a referir-nos à criança como "ele”. O meu pai tinha-me recordado de que eu era em parte Aldaran, e que a pré-cognição era um dos dons da família. Devia ser por isso. E, sabendo isso, sabia tudo o que necessitava de saber, e por isso para que iria dar-me ao trabalho de monitorizá-la?

Um ou dois dias depois, Dio disse-me, repentinamente, quando estávamos sentados a tomar o pequeno-almoço na nossa sala que se debruçava sobre a cidade:

- Lew, menti-te.

- Mentiste-me, preciosa? - Olhei para o seu rosto ingénuo. De um modo geral um telepata não pode mentir a outro, mas existem diferentes níveis de verdade ou de mentira. Dio tinha deixado crescer o cabelo que agora estava suficientemente longo para ser atado na nuca, e os seus olhos tinham a cor que é tão comum em mulheres de cabelo claro e que tanto pode ser azul como verde ou cinzento, consoante a saúde, a disposição e aquilo que elas estão vestindo. Trajava um vestido solto de tom verde - o seu corpo estava a engrossar - e os olhos rebrilhavam como esmeraldas.

- Menti, sim - repetiu. - Tu pensaste que tinha sido por acidente... que eu tinha engravidado por acidente ou distracção. Foi propositado. Desculpa.

- Mas porquê, Dio? Eu não fiquei zangado, apenas perplexo. Ao princípio não queria que isto tivesse acontecido, mas agora já estou perfeitamente satisfeito com isto.

- Lerrys tinha ameaçado levar-me de volta para Darkover para esta temporada do Conselho - explicou ela. - Uma mulher grávida não pode viajar no espaço. Foi a única maneira de que me lembrei para ter a certeza de que ele não poderia obrigar-me a partir.

- Ainda bem que o fizeste - disse eu. Não conseguia já encarar a vida sem Dio. - E agora, creio eu, ele irá usar o conhecimento de que estou casado e tenho um filho - comentei. Era a primeira vez que me dispunha a perguntar a mim mesmo o que aconteceria ao Domínio de Alton, quando tanto o meu pai como eu próprio estávamos auto-exilados. O meu irmão Marius nunca tinha sido aceite pelo Conselho, mas, se não existisse realmente nenhum outro Herdeiro Alton, talvez eles tivessem de tirar o melhor partido da situação, aceitando-o como herdeiro. De outro modo o Domínio iria provavelmente parar às mãos do meu primo Gabriel Lanart; ele casara-se com uma Hastur, e tinha tido três filhos e duas filhas da sua esposa Hastur. Eles tinham originalmente desejado conceder a Gabriel o Domínio, bem como o comando da Guarda, e o meu pai ter-se-ia poupado a muitas canseiras se o tivesse permitido. De qualquer modo, era o que acabaria por acontecer, pois eu nunca iria regressar a Darkover.

O tempo ficou desfocado. Vi-me ajoelhado na sala de uma alta torre, e no exterior a última luz rosada do Sol vermelho estava a pôr-se nos altos píncaros das montanhas de Venza por detrás de Thendara. Ajoelhava-me à cabeceira de uma menina com cinco ou seis anos, de cabelos louros e olhos dourados... os olhos de Marjorie... Eu estivera assim ajoelhado ao lado de Marjorie... e tínhamo-la visto ambos, a nossa filha, aquela criança... mas isto nunca tinha chegado a suceder, nunca iria suceder, Marjorie estava morta... morta... Um grande fogo ardia no meu cérebro... e Dio estava ao meu lado, com a mão pousada no punho de uma enorme espada...

Emergi abalado, deparando com Dio a olhar para mim, chocada e em desespero.

- A nossa filha, Lew...? E em Darkover...?

Agarrei-me ao encosto de uma cadeira para me equilibrar. Passados alguns momentos disse, ainda a tremer: - Tenho ouvido falar num tipo de laran, pensei que tivesse existido apenas nas Eras do Caos, que permite ver não só o futuro, mas muitos futuros, alguns dos quais podem nunca se tornar realidade: todas as coisas que talvez algum dia aconteçam. Talvez... talvez algures na minha herança Alton ou Aldaran exista algum vestígio desse laran, fazendo-me ver coisas que poderão nunca acontecer. Eu já tinha visto aquela criança uma vez, com Marjorie, e pensei que fosse a filha dela. Indistintamente notei que tinha dito o nome de Marjorie em voz alta pela primeira vez desde a sua morte. Poderia recordar sempre o seu amor, mas ela já recuara para muito longe, e eu estava também curado disso. - Marjorie - disse de novo. - Pensei que fosse a nossa filha; ela tinha os olhos de Marjorie. Mas Marjorie morreu sem ter dado à luz a minha filha, portanto o que eu pensei ser uma visão verdadeira do futuro nunca chegou a tornar-se realidade. Mas agora vejo-a de novo. O que significará isto, Dio?

Com um sorriso hesitante, ela disse:

- Agora desejava que o meu laran tivesse sido melhor explorado. Não sei, Lew. Não faço ideia do que isso significará. Nem eu sabia, mas aquilo tornava-me desesperadamente inquieto. Não falámos mais no caso, mas acho que aquilo penetrou em mim, alterando a minha disposição.

Mais tarde no mesmo dia ela disse que tinha uma consulta marcada com um dos médicos do hospital do Império Terráqueo; podia ter escolhido qualquer uma das muitas parteiras existentes em Vainwal, que atraía dúzias de culturas diferentes, mas, dado que ela não poderia ser atendida como seria em Darkover, preferia a fria impersonalidade do hospital terráqueo. Fui com ela. Agora, pensando no caso, parece-me que ela se mantinha muito silenciosa, acabrunhada talvez pelo peso de alguma presciência. Saiu da sala da consulta com um ar preocupado, e o médico, um jovem franzino e apreensivo, convocou-me com um gesto para ir falar com ele.

- Não se alarme - disse logo de entrada. - A sua esposa acha-se perfeitamente bem de saúde, e o ritmo cardíaco da criança é forte e regular. Mas há coisas que não compreendo, Mr. Montray-Lanart...

 - O meu pai e eu usávamos ambos esse nome na Terra, porque Alton é um Domínio, um título, e não um nome de família, enquanto que Lorde Armida nada significava aqui. - Reparei na sua mão; será um defeito congénito? Perdoe-me a pergunta...

- Não - respondi secamente. - Foi o resultado de um acidente grave.

- E o senhor não tratou de regenerá-la ou de fazê-la crescer de novo?

- Não. - A resposta foi definitiva, e desta vez o médico compreendeu que eu não desejava falar no assunto. Sei que existem culturas nas quais há tabus religiosos contra aquele género de coisa, e não me importava de que ele pensasse que eu era um desses idiotas.

Era melhor do que ter de falar do assunto. Ele parecia preocupado, mas disse:

- Existem gémeos na sua família, ou outros partos múltiplos?

- Qual é a razão da sua pergunta?

- Examinámos o feto com radiossons - explicou -, e parece haver... alguma anomalia. Deverá preparar-se para a possibilidade de existir alguma... deformidade menor, a não ser que se trate de gémeos; o nosso equipamento não conseguiu captar exactamente aquilo que pretendíamos. Os gémeos ou os partos múltiplos po dem deitar-se uns sobre os outros, e isso pode criar imagens bem estranhas.

Abanei a cabeça, não querendo pensar naquilo. Mas a minha mão não era uma deformação congénita, e assim para que haveria eu de estar preocupado? Se Dio estava com gémeos, ou qualquer coisa desse género, não era de surpreender que não pudéssemos identificar o sexo dos fetos. Quando eu saí, Dio perguntou-me o que o médico dissera.

- Disse-me que lhe parecia que estavas grávida de gémeos.

Ela também parecia preocupada:

- O médico disse-me que a placenta estava numa posição difícil, pelo que não podia observar o corpo do bebé como desejaria - explicou ela. - Mas havia de ser agradável eu ter gémeos Um rapaz e uma rapariga, talvez. - Encostou-se ao meu braço, dizendo: - Ainda bem que não vai demorar muito mais. Talvez nem chegue a quarenta dias. Estou cansada de carregar com ele, ou com eles... e há-de ser bom deixar-te andar com eles ao colo durante algum tempo!

Levei-a para casa, mas quando chegámos aguardava-nos uma mensagem no comunicador que fazia parte de todos os apartamentos no Império; o meu pai estava doente e queria falar comigo. Dio ofereceu-se para me acompanhar, mas estava cansada depois da excursão da manhã, pelo que lhe mandou desejos de melhoras e pediu-lhe desculpa de não ir vê-lo, e eu parti sozinho para a cidade.

Esperava ir encontrá-lo acamado, mas fui dar com ele levantado, andando de um lado para o outro com os pés a arrastar. Fez-me sinal para me sentar e ofereceu-me café ou uma bebida, o que recusei.

- Estava à espera de vir dar contigo na cama. Bem me parece que devias estar deitado - disse eu, arriscando-me a enfrentar a sua ira, mas ele limitou-se a suspirar, dizendo:

- Queria despedir-me de ti; é possível que tenha de regressar a Darkover. Chegou uma mensagem de Dyan Ardais...

Fiz uma careta. Dyan era amigo do meu pai desde que ambos eram crianças, mas nunca simpatizara comigo, nem eu com ele. O meu pai viu a minha expressão e disse com rispidez:

- Ele acolheu o teu irmão quando eu não estava presente para defender os seus interesses, Lew. É ele quem me tem enviado todas as notícias que recebo...

- Não me culpes disso! - exclamei eu acaloradamente. - Nunca te pedi para me trazeres para aqui! Nem mesmo para Darkover!

Ele encolheu os ombros.

- Não estou disposto a discutir contigo a esse respeito. Dyan foi sempre um bom amigo do teu irmão...

- Se eu tivesse um filho - disse com veemência -, havia de lhe desejar um amigo melhor do que aquele porta-sandálias!

- Nunca concordámos a respeito disto, e parece-me que nunca havemos de concordar - disse o meu pai -, mas Dyan é um homem de honra, e o seu objectivo máximo é o bem do Comyn. Agora informa-me que o Conselho está prestes a passar por cima de Marius e a entregar formalmente o Domínio de Alton a Gabriel Lanart-Hastur.

- Será isso uma tragédia? Podem entregar-lho! Não o quero!

- Quando tiveres um filho teu, irás compreender, Lew. E já não há-de faltar muito tempo, também. Acho que devias regressar comigo a Darkover, e resolver o assunto durante esta temporada do Conselho.

Ele sentiu a minha recusa como um grito de raiva, quando lhe respondi, muito simplesmente:

- Não. Não posso e não quero. Dio está demasiado grávida para viajar.

- Poderás estar de regresso antes do nascimento da criança insistiu. - E terás entretanto decidido adequadamente o seu futuro.

- Terias tu sido capaz de abandonar a minha mãe?

- Não. Mas o teu filho devia nascer em Armida...

- Nem vale a pena pensar nisso - ripostei. - Dio encontra-se aqui, e aqui deverá ficar até o bebé nascer. E eu ficarei com ela.

O suspiro dele era pesado, como o roçagar de folhas do Inverno.

- Não estou ansioso por fazer a viagem sozinho, mas, se não quiseres ir, terei de ir mesmo. Poderia ficar aqui a cuidar de Dio, Lew. Não sei se conseguirei suportar o clima das Colinas de Kilghard. Contudo, não vou permitir que Armida escape das nossas mãos à revelia, nem deixarei que ignorem os direitos de Marius sem estar certo do que ele pensa a respeito disso. - Enquanto ele falava senti-me dominado por uma vaga de recordações... Armida nas faldas das Colinas de Kilghard, inundada de sol, as grandes manadas de cavalos pastando nas altas planuras, os riachos correndo impetuosos ou congelados em charcos irregulares, torrentes aprisionadas enquanto se moviam; a neve cobrindo as colinas, uma linha de árvores escuras contra o céu; o incêndio florestal que nos assolara quando eu tinha dezassete anos e a longa fileira de homens dobrados sobre as suas enxadas, num trabalho insano; o acampar na linha do fogo, partilhando cobertores e malgas de comida, a satisfação de ver o incêndio finalmente extinto e de saber que o nosso lar estava em segurança por mais uma temporada... o cheiro das resinas e as kireseth em flor, douradas e azuis, espalhando pólen em pleno Verão... o pôr do Sol sobre os telhados... a linha do horizonte para além de Thendara...

 As quatro luas penduradas umas atrás das outras no céu penumbroso do solstício... a minha casa. A minha casa, também, amada e rejeitada... Vai-te! Seria que as minhas próprias recordações não eram só minhas?

- Ainda há tempo, Lew. Não irei partir antes de um dezdias.

Diz-me depois o que decidires.

- Já decidi - repliquei, e afastei-me sem esperar pelas perguntas ansiosas que sabia estarem prestes a surgir, as suas escrupulosas inquirições a respeito de Dio, os seus amáveis votos pelo bem-estar dela.

A decisão já estava tomada. Eu não queria regressar com o meu pai; Dio não podia ir e portanto eu também não podia, era tão simples como isso. Não precisava de escutar o milhar de recordações que me puxavam para lá...

Foi nessa noite que ela me pediu para monitorizar a criança. Talvez tivesse sentido a minha agitação; talvez, naquele modo curioso que os amantes têm de partilhar as preocupações e os receios (e Dio e eu, mesmo depois do primeiro ano e mais que tínhamos de vida em comum, continuávamos a ser amantes), ela tivesse sentido a inundação das minhas recordações, fazendo-a ansiar por uma reafirmação. Comecei por recusar. Mas aquilo significava tanto para ela...

E eu estava livre agora, livre daquilo durante meses de cada vez; certamente surgiria uma ocasião em que eu estaria totalmente livre. E tratava-se de uma coisa tão simples...

Além disso, o que o médico terráqueo me dissera enervava-me também. Gémeos: seria essa a resposta mais simples; mas, quando ele me perguntara a respeito de defeitos congénitos, constatei que me sentia seriamente preocupado, que sempre estivera desde que tinha sabido da gravidez.

- Vou experimentar, querida. Teria de experimentar alguma vez...

Uma coisa mais, talvez, a redescobrir com Dio; uma cura mais, uma liberdade mais, como a virilidade que eu tinha redescoberto nos seus braços. Com a minha mão válida peguei desajeitadamente no pequeno saco de cabedal que trazia ao pescoço, no qual guardava o cristal azul, resguardado no seu embrulho de sedas isoladoras.

O cristal caiu-me na mão, transmitindo a sensação de estar quente e vivo, um bom sinal sem o fulgor instantâneo, a chama, o fogo. Aconcheguei a pedra azul na palma da mão, tentando não me recordar da outra vez em que fizera o mesmo.

Tinha sido com a outra mão: a pedra furara-me a palma... Não era a minha matriz pessoal, mas sim a matriz de Sharra... Chega!

Repeli a recordação, fechando os olhos por um instante, tentando ajustar-me ao suave ritmo da pedra. Tanto tempo se passara desde a última vez em que tocara na matriz. Finalmente senti que me tinha ajustado à pedra e abri os olhos, observando calmamente as profundezas azuladas em que pequenas luzes tremeluziam e espiralavam como coisas vivas. Talvez fossem.

Desde há muitos anos que não fazia uma monitorização. É a primeira tarefa confiada aos jovens aprendizes nas Torres: sentam-se no exterior de um círculo de matrizes e, graças aos poderes da pedra estelar que amplifica os dons de cada um, ficam de vigia aos corpos dos trabalhadores cuja mente se encontra algures executando a tarefa do círculo. Por vezes os trabalhadores das matrizes, em profundo contacto uns com os outros através das pedras estelares, esquecem-se de respirar ou perdem o domínio de coisas que deviam estar sob o controlo dos seus sistemas nervosos autónomos, e é função do monitor certificar-se de que tudo se encontra bem. Mais tarde, o monitor aprende técnicas mais difíceis de diagnóstico médico, penetrando nas complexas células do corpo humano... Já se tinha passado muito tempo. Lentamente, cuidadosamente, fiz o exame inicial; os pulmões e o coração estavam a executar o seu trabalho de conduzir o oxigénio até às células, as pálpebras piscavam automaticamente para conservarem lubrificadas as superfícies dos olhos; havia um certo esforço nos músculos das costas devido ao peso da gravidez... Eu estava a examinar coisas superficiais. Ela sentia o toque; apesar de os seus olhos estarem fechados, senti-a sorrindo para mim.

Custava-me acreditar que, lentamente, hesitando como um noviço, estava uma vez mais a tomar contacto com a pedra matriz após um intervalo de seis anos, se bem que até agora mal tivesse tocado na superfície. Ensaiei fazer um toque mais profundo...

Fogo. Queimando-me a mão. Dor... uma agonia afrontosa... na mão que já não existia. Ouvi-me a soltar um grito lancinante... ou seria então o som dos gritos de Marjorie... e perante os meus olhos fechados o vulto de fogo elevou-se nas alturas, agitando as madeixas no vento da tempestade de fogo, como uma mulher, alta e envolta em correntes, com o corpo e os membros e o cabelo tudo a arder... Sharra!

Deixei cair a pedra matriz como se ela estivesse a queimar-me a mão válida; senti a dor quando ela se separou do meu corpo, tentei apanhá-la com a mão que já não existia... Sentia-a ali, sentia a dor ardente através de cada dedo, dor nas linhas da palma, nas unhas a arder... Soluçando com a dor, guardei atabalhoadamente a matriz no seu saco em volta do pescoço e fiz um esforço mental para esquecer a imagem de fogo, sentindo-a extinguir-se lentamente até se apagar. Dio estava a olhar para mim com uma expressão horrorizada.

- Desculpa, bredhiya, não pretendia assustar-te... - disse-lhe, com os lábios hirtos e procurando desajeitadamente as palavras.

Ela puxou-me para si, e enterrei a cabeça no seu peito. Depois Dio sussurrou:

- Lew, eu é que deveria pedir-te desculpa... não sabia que aquilo podia acontecer... nunca devia ter-te pedido... Avarra tenha Piedade, o que foi aquilo?

Respirei fundo, sentindo ainda a dor na mão que não existia. Custava-me dizer as palavras em voz alta. O vulto de fogo ainda estava atrás dos meus olhos, incandescendo. Pestanejei, tentando repelir a imagem, e disse:

- Tu sabes.

- Mas como... - murmurou ela.

- Não sei bem como... mas a maldita coisa está sincronizada com a minha própria matriz. Sempre que tento usá-la, vejo... só aquilo. - Engoli em seco e disse com voz entaramelada: - Julgava que já me tinha livrado dela. Julgava que estava... estava curado, e livre daquilo...

- Porque não a destróis?

O meu sorriso não era mais do que uma careta dolorosa.

- Talvez essa fosse a melhor solução. Porque tenho a certeza de que morreria ao mesmo tempo... muito rapidamente e de modo nada agradável. Mas sou demasiado cobarde para isso.

- Oh, não, não, não... - Ela aproximou-se mais de mim, abraçando-me desesperadamente. Engoli em seco, respirando com ruído, sabendo que isto era mais doloroso para ela do que para mim: Dio, uma Ridenow muito preceptiva, era incapaz de suportar qualquer sofrimento. Havia ocasiões em que eu chegava a pensar se aquilo que ela sentia por mim seria amor, ou se ela me dera o seu corpo, o coração, o conforto, como alguém que tenta acalmar uma criança aos berros por não poder tolerar o seu choro e tudo fará, mas tudo, para que ela se cale...

Mas fizera-me bem saber que Dio sofria com a minha dor, que eu agora devia tentar controlar de qualquer modo.

- Dá-me alguma coisa de beber, por favor. - Quando ela me trouxe a bebida, tendo-se acalmado um pouco com a necessidade de coligir os seus pensamentos e de procurar algo de beber, sorvi-a lentamente, tentando aplacar a minha mente. - Lamento muito, estava convencido de que já me encontrava livre daquilo.

- Não posso suportar esta situação - disse ela impetuosamente -, não posso suportar que tu penses que precisas de te desculpar a mim... - Estava a chorar, também. Pousou a mão sobre o bebé e disse, tentando gracejar: - Ele já se inquieta quando ouve a mãe e o pai a discutir!

Tomei logo a deixa e tentei também gracejar, dizendo com humor exagerado:

- Pois bem, devemos calar-nos, nesse caso, para não acordarmos o bebé!

Ela veio sentar-se ao meu lado no sofá, recostando-se ao meu peito, e perguntou, com ar grave:

- Lew, lá em Darkover... há lá técnicos das matrizes que poderiam libertar-te, não há?

- Pensas que o meu pai não fez tudo o que podia fazer? E ele foi Primeiro em Arilinn durante quase dez anos. Se não pôde fazê-lo é provavelmente porque ninguém poderá.

- Não - retorquiu ela -, mas tu estás melhor: já não acontece tão frequentemente como durante os primeiros anos, pois não? Talvez agora eles possam encontrar maneira...

O comunicador deu sinal e fui atender. Já calculava: era a voz do meu pai.

- Lew? Encontras-te bem? Senti-me inquieto... - Isso não me surpreendia. Todos os telepatas neste planeta, se houvesse outros, deviam ter sentido aquele choque. A voz distante do meu pai tentou animar-me. - Já não te acontecia há muito tempo, pois não? Não deixes que isso te desanime, Lew, deixa que o tempo acabe por curar-te...

Tempo? O resto da minha vida, pensei, segurando o porta-voz do comunicador debaixo do queixo com o toco do braço esquerdo, enquanto que com os dedos da mão válida não cessava de alisar as sedas isoladoras da minha matriz. Nunca mais. Nunca voltaria a tocar na matriz, enquanto esta... esta coisa... continuasse à minha espera. O que eu disse ao meu pai não passou de ruído superficial, de banalidades de encorajamento, e ele deve ter dado por isso, mas não insistiu; talvez soubesse que eu iria desligar o comunicador, recusando-me a atender de novo. Tudo o que ele disse foi:

- Daqui a dez dias há uma nave que fará escala em Darkover. Reservei uma passagem dupla, e fiz também uma reserva para a nave que partirá dez dias depois daquela, pelo que se houver qualquer coisa que me impeça de embarcar na primeira seguirei na segunda, e está também reservado um lugar para ti. Acho que devias vir comigo; isto que aconteceu esta noite não terá sido suficiente para te provar que terás de enfrentar a situação, mais cedo ou mais tarde?

Esforcei-me para não lhe gritar a furiosa recusa que me assaltava  a mente. A distância e o comunicador mecânico bloqueavam os pensamentos; bem vistas as coisas, era esta a melhor maneira de falar com o meu pai. Até consegui agradecer-lhe a sua tentativa de ser amável. Mas depois de lhe ter recusado de novo e de ter desligado o comunicador, Dio comentou:

- Ele tem razão, e tu sabe-lo. Não podes viver desta forma o resto da tua vida. O mal começou em Darkover, e é lá que deve terminar. Não podes passar o resto da vida arrastando esse... esse terrível embrulho atrás de ti. Segundo sei - tu disseste-me qualquer coisa, em tempos - não consegues livrar-te dele...

Abanei a cabeça.

- Não... está permanentemente a importunar-me. Podes crer, bem tentei...

Tentara abandoná-lo, ao deixarmos a cabana no lago na Terra onde vivêramos enquanto a minha mão sarava, depois do fracasso final e da amputação. Parti em viagem, tendo percorrido quase meio mundo até que - com o vulto de fogo sempre por detrás dos meus olhos, ofuscando-me a vista e os sentidos - tinha sido forçado a regressar, para juntar o embrulho à nossa bagagem... passando a transportá-lo comigo, qual monstruoso incubo, qual demónio a obsidiar-me permanentemente, algo de que nunca me veria livre, como a presença constante do meu pai na minha mente.

- A questão é académica - disse. - Tu não podes ir, e eu não posso deixar-te. Era isso o que o meu pai queria.

- O bebé é capaz de não nascer senão daqui a uns quarenta dias, pelo menos... Talvez pudesses ir e regressar...

- Nada sei a respeito de bebés - ripostei -, mas sei que chegam quando lhes apetece, e não quando os aguardamos. – Mas porque seria que esse pensamento me trazia tanta angústia e tanto receio? Talvez fosse apenas a consequência do impacto de Sharra sobre os meus nervos despedaçados.

- Mas... e quanto aos outros? Tu fazias parte de um círculo completo de matrizes ligado à matriz de Sharra, não fazias? Por que razão os outros não morreram?

- Talvez tivessem morrido - respondi. - Marjorie morreu.

Ela era a nossa... a nossa Guardiã. E eu tomei o seu lugar quando ela foi consumida. - Agora sentia-me capaz de falar a respeito disso, quase desapaixonadamente, como se estivesse a discorrer sobre qualquer coisa que acontecera há muito tempo e a outra pessoa. – Os outros não tinham um contacto tão apertado com Sharra. Rafe não passava de uma criança. Beltran de Aldaran, o meu primo, estava fora do círculo. Não acho que eles tivessem de morrer ao perderem o contacto com a matriz, ou mesmo quando esta foi levada para fora do mundo. O contacto era feito através de mim. Num círculo de matrizes, quando existe uma matriz de alto nível é a Guardiã que fica ligada a essa matriz e, a seguir, às pedras-matrizes individuais dos telepatas do seu círculo. Eu era um mecânico de matrizes de alto nível. Tinha ensinado Marjorie a estabelecer esse contacto, pelo que, por assim dizer, eu fora o Guardião da Guardiã...

- E os outros? - insistiu Dio. Não gostei de que ela teimasse em fazer-me perguntas, mas sabia que mais cedo ou mais tarde teria de enfrentar este interrogatório, pois de outro modo ela nunca acreditaria que eu tinha realmente explorado todas as possibilidades de me libertar. E eu devia-lhe isso; Sharra também lhe tocara, agora, se bem que a uma distância segura, e tocara até no nosso filho.

- Os outros? - perguntei. - Kadarin e Thyra? Não sei o que lhes terá acontecido, nem sequer onde eles estariam quando... quando tudo aconteceu.

Ela insistiu:

- Se tu não eras capaz de deixar para trás a matriz, eles não morreriam logo que esta fosse levada para outro mundo?

Fiz uma nova careta ao tentar sorrir, e disse:

- Tenho essa esperança. - Mas logo nesse instante sabia que não era verdade. Kadarin: tínhamos sido amigos, irmãos, parentes, unidos num sonho partilhado que aproximaria Darkover da Terra, sarando a nossa herança despedaçada... Pelo menos era isso o que tínhamos partilhado ao princípio. Passei distraidamente os dedos pelas cicatrizes do rosto. Tinha sido ele quem me causara essas cicatrizes. E Thyra: a meia-irmã de Marjorie, e companheira de Kadarin. Tinha-a amado, odiado e desejado... Não era capaz de pensar que ela estava morta. Sabia que ela continuava viva algures, e que Kadarin vivia também. Não podia explicar como, mas sabia-o.

Era a milésima razão, e a mais importante de todas, para que nunca mais pudesse regressar a Darkover.

Depois de Dio adormecer fiquei por muito tempo sentado na sala exterior do apartamento, olhando para as luzes da cidade que se estendiam à minha frente, as luzes que nunca eram apagadas, pela noite fora. Em Vainwal a busca do prazer não cessa, tornando-se mais frenética à medida que os ritmos do dia acalmam, quando as outras pessoas estão a dormir. Lá em baixo talvez eu pudesse encontrar algum alívio. Não tinha sido essa, afinal, a razão da minha vinda para Vainwal, para esquecer deveres e responsabilidades? Mas agora tinha esposa e filho, e devia-lhes algo. O dedo mindinho de Dio significava mais para mim do que todos os prazeres inexplorados de Vainwal.

E o meu filho... Zangara-me quando o meu pai o tinha dito, mas era verdade. Ele devia nascer em Armida. Quando chegasse aos cinco anos de idade levá-lo-ia ao colo, como o meu pai fizera comigo às cavalitas, para lhe mostrar o grande caudal de cavalos selvagens atravessando o vale...

Não, já tinha renunciado a tudo isso. Haveria outros mundos para o meu filho. Dúzias, centenas deles, um Império deles, e mais para além. Fui deitar-me ao lado da minha adormecida esposa, e adormeci também. Mas mesmo através do meu sono movimentavam-se intranquilos sonhos. Vi outra vez a minha mão, o horror que crescera ali, avançando para dentro do corpo de Dio, arrebatando a criança, extraindo-a coberta de sangue gotejante e morrendo aos poucos... Acordei com o meu próprio grito a ecoar-me nos ouvidos, e deparei com Dio olhando para mim com uma expressão chocada.

Tapei-a carinhosamente, beijei-a, e fui dormir para a outra sala, onde os meus pesadelos não lhe perturbariam o sono. Desta vez adormeci tranquilamente e sem pesadelos. Foi Dio quem me acordou com o despontar do dia, dizendo hesitante:

- Lew, sinto-me tão esquisita... Parece-me que o bebé está prestes a chegar. Ainda é cedo, mas acho que devo ir para termos a certeza.

Era ainda bastante cedo; contudo os Terráqueos tinham-se especializado nisto, produzindo úteros artificiais para as criancinhas separadas demasiado cedo das suas mães, e a maioria delas davam-se muito bem naquele sustentáculo artificial da vida, apesar de se encontrarem longe dos pensamentos e da ternura das suas mães. Tenho tentado frequentemente imaginar se a causa para que tantos terráqueos nasçam sem laran, nem vestígios sequer, será aquele distanciamento do mais íntimo dos contactos pelo qual a mãe ensina o pequenino coração e todas as outras coisas no corpo nascediço a funcionarem como devem... O corpo pode crescer sustentado e alimentado artificialmente, mas o que acontecerá à mente e ao laran?

Bem, se isto viesse danificar o laran do bebé prematuro, paciência, desde que lhe salvasse a vida... O meu próprio laran tinha-me trazido bem poucos benefícios. E certamente não iria prejudicar esta criança ficar por algum tempo afastada das nossas preocupações e receios, e de tormentos como aquele que certamente experimentara durante a minha desventurada tentativa de monitorizar a sua mãe. Devia ter sido essa tentativa que provocara este parto prematuro, e Dio sabia-o de certeza, mas não me censurou por isso, e uma vez, ao falar-lhe das minhas dúvidas, ela fez-me calar, dizendo:

- Também eu queria ser monitorizada. Por isso eu seguia animado ao percorrermos as ruas, das quais todos excepto alguns retardatários tinham desaparecido nestas horas acinzentadas antes do nascer do Sol. O hospital terráqueo apresentava-se pálido e austero na semi-penumbra, e Dio estremeceu quando o rápido elevador nos conduziu até aos pisos mais elevados, que eles reservavam para os casos de maternidade, distantes dos ruídos e do tumulto do barulhento mundo do prazer. Disse-lhes quem eu era e o que estava a acontecer, e um funcionário assegurou Dio de que um técnico chegaria dentro de momentos para conduzi-la a um quarto.

Sentámo-nos em peças de mobiliário incaracterísticas e desconfortáveis, à espera. Passado algum tempo uma mulher nova entrou na sala. Trajava uniforme de enfermeira, exibindo o curioso emblema de bastão e serpente dos serviços médicos terráqueos. Tinham-me dito que se tratava de um antigo símbolo religioso, mas ninguém parecia saber mais do que eu sobre o seu significado. Mas havia algo naquela voz que me fez prestar atenção e exclamar com prazer:

 - Linnell!

 A rapariga de uniforme era a minha própria irmã adoptiva. Só Avarra saberia o que ela estava a fazer em Darkover, trajando aquele curioso uniforme, mas corri para ela e tomei-lhe as mãos na minha, repetindo o seu nome. Podia tê-la beijado, e quase o fiz, mas a jovem enfermeira recuou, surpreendida.

- O que é isto... não estou a entender! - exclamou ela, indignada, e eu pestanejei, compreendendo que tinha cometido um erro grosseiro. Mas mesmo agora, fixando-a melhor, não podia deixar de sacudir a cabeça e dizer:

 - É extraordinário! É mais do que uma parecença! Você é tal e qual a Linnell!

 - Mas não sou ela, evidentemente - replicou a rapariga, com um sorriso gélido e intrigado. Dio riu-se.

- É verdade - disse. - Você é parecidíssima com a irmã adop tiva do meu marido. É muito, muito parecida com ela! E como é estranho depararmos com a sósia de uma parente próxima, aqui em Vainwal ainda por cima! Mas é óbvio que Linnell nunca teria vindo para aqui, Lew; ela é demasiado convencional. És capaz de imaginar Linnell usando este uniforme?

Claro que não podia imaginá-lo. Pensei em Linnell com a sua pesada saia de tartã e sobrecamisa bordada, com o cabelo pendendo sobre as costas em lustrosas tranças castanhas... Esta rapariga trajava uma túnica branca e calças compridas justas às pernas... Uma darkoveriana numa vestimenta destas seria tida como vítima incipiente da febre dos pulmões, e Linnell teria morrido de modéstia ofendida. Havia uma pequena etiqueta com um nome escrito nela.

Eu já conseguia decifrar as letras terráqueas, não muito bem mas melhor do que Dio conseguia. Li-as com lentidão.

- K-a-t-h...

- Kathie Marshall - disse ela, com um sorriso amistoso. Não lhe faltava sequer a covinha perto do canto direito da boca, e a pequena cicatriz que Linnell tinha no queixo e que obtivera quando ela e eu tínhamos ido cavalgar por um desfiladeiro interditado nos terrenos de Armida: os nossos cavalos tinham tropeçado, deitando-nos ao chão.

- Se não se importa - pedi-lhe -, poderá contar-nos como fez essa cicatriz?

- Ora, tenho-a desde os meus dez anos - disse ela. - Parece-me que foi num acidente com um trenó de ar; levei quatro pontos.

Abanei a cabeça, estupefacto.

- A minha irmã adoptiva tem uma cicatriz igual a essa, e no mesmo local. - Mas Dio fez um movimento desabrido, como se estivesse com dores, e instantaneamente a mulher, desconhecida mas familiar, não Linnell mas Kathie, era toda solicitude profissional.

- Anotou o tempo entre contracções? Óptimo. Venha, vou conduzi-la até ao seu quarto para se deitar... - e quando Dio se voltou para mim, agarrando-me a mão num pânico súbito, tentou tranquilizá-la: - Não se preocupe: o seu marido pode vir para junto de si logo que o doutor a tenha examinado para saber o que está a passar-se. Não se preocupe - disse de novo, agora para mim, e a expressão no seu rosto era exactamente como a de Linnell, compenetrada, doce e amável. - Ela parece muito saudável, e nós poderemos fazer muito, mesmo que a criança nasça antes do tempo. Não se preocupe com a sua esposa, nem com o seu filho.

Em menos de uma hora fui chamado para o quarto de Dio, que estava deitada na sua cama envolta numa asséptica bata hospitalar; a decoração do quarto era bastante agradável, como tudo em Vainwal: plantas verdes por toda a parte, padrões de tremeluzentes arcos-íris nas janelas; seriam hologramas de laser, pareceu-me, mas eram agradáveis de ver, distraindo a mente da mãe em perspectiva daquilo que a aguardava.

- O nosso coridom comporta-se da mesma maneira quando uma das suas éguas premiadas está prestes a parir - comentou Dio com secura. - Afagando-a e murmurando palavras de conforto aos seus ouvidos, em vez de a deixar em paz para ela fazer o que tem a fazer. Observaram-me de todos os lados com máquinas capazes de saber tudo a respeito do bebé incluindo a cor dos olhos, mas não me dizem nada.

Deixaram-me ficar a fazer-lhe companhia durante os primeiros estágios, esfregando-lhe as costas, dando-lhe golos de água, lembrando-a de como devia respirar; mas todos nós sabíamos que era demasiado cedo, e eu estava receoso. Sentia também o receio de Dio, a tensão de sobressalto, mesmo através dos seus cuidadosos esforços para se relaxar, para cooperar com o inexorável processo que es tava a enviar o nosso filho para o mundo, não preparado e antes do tempo. Observámos os arcos-íris, jogámos às cartas uma ou duas vezes, mas até eu reparei numa omissão: nenhum de nós falava no futuro nem sugeria um nome para a criança prestes a nascer. Disse a mim próprio que estávamos à espera até sabermos se precisávamos de dar o nome a um rapaz ou a uma rapariga, era só por isso. De hora a hora eu era mandado para o corredor, enquanto eles a examinavam.

 Quando o dia já caminhava para o crepúsculo, depois de um desses intervalos, a jovem enfermeira, Kathie, disse-me:

- Agora vai ter de ficar aqui, Sr. Montray; a senhora vai ser levada para a cirurgia. As coisas não estão a correr como deviam, e este bebé vai ser muito prematuro, e por isso vamos precisar de to dos os tipos de suporte para ele, ou para ela, até ao momento em que nascer.

- Mas eu quero o meu marido comigo - exclamou Dio, quase a chorar e agarrando-se com força à minha mão válida.

- Eu sei - disse Kathie com suavidade. - Decerto que isso traria muito conforto aos dois, mas, como sabem, temos de pensar, primeiro na criança. Assim que o bebé nascer, deixaremos o seu marido subir também para lhe fazer companhia. Mas agora não, receio bastante. Lamento.

Tomei Dio nos meus braços, tentando transmitir-lhe confiança com o meu abraço. Sabia como ela se sentia, e deixei-me afundar no seu corpo, na sua dor. Em Darkover nenhum telepata, nenhum Comyn, permitiria que o afastassem da mulher que ia dar à luz o seu filho, partilhando com ela a sua provação, para que também tomasse consciência do preço de uma criança... Mas não estávamos agora no nosso mundo, e nada poderíamos fazer.

- Ele está aterrorizado - disse Dio num sussurro, com voz tremente, e também eu me assustei ao vê-la a chorar. Tinha-me acostumado à sua coragem, à inabalável força com que por tantas vezes ela tinha amparado os meus receios. Bem, agora era a minha vez de ser forte.

- Eles farão por ti o melhor que puderem, preciosa. – Tentei enviar-lhe toda a espécie de pensamentos calmantes, envolvê-la e ao bebé num banho de calma e conforto; por influência deste vi a dor esvair-se do seu rosto, e ela suspirou e sorriu para mim.

- Não te preocupes comigo, Lew; estaremos bem - disse ela, e beijei-a de novo. Kathie fez um gesto à outra enfermeira para recuar, para que eu pudesse levantar Dio nos meus braços e colocá-la na cama de rodas que usariam para conduzi-la até aos seus sacrários secretos. Os braços dela envolveram-me, mas eu sabia que tinha de deixá-la partir.

Caminhei sem destino pelos corredores, cheirando os penetrantes odores hospitalares que me recordavam do meu próprio ordálio, ciente da dor fantasma na minha mão ausente. Teria preferido residir no nono e mais gélido dos infernos de Zandru do que ao alcance destes odiosos cheiros. Podia sentir o medo de Dio, embaciado pela distância e pela minha própria lassitude, e podia ouvi-la clamando por mim... Poderia tentar abrir caminho à força até ficar junto dela, mas de nada teria servido, neste mundo estranho em que nos encontrávamos. Na nossa casa, sob o nosso Sol vermelho, teria podido partilhar com Dio o seu sofrimento, num estreito contacto mental com ela. Nenhum homem permitiria que a sua esposa enfrentasse sozinha os rigores do parto. Como poderíamos nós agora compartilhar do nosso filho quando eu, o progenitor, tinha ficado isolado do seu nascimento? Mesmo à distância podia sentir o pavor de Dio, ainda que corajosamente dissimulado, e também a sua dor, até que tudo se confundiu sob a influência de fármacos. Por que razão lhe teriam feito isso? Dio era saudável e robusta, bem preparada para o parto; nunca teria desejado esta inconsciência forçada, e eu sabia que ela nunca a pediria. Tê-la-iam drogado contra a sua vontade?

Desprezei-me por a minha aversão pelo ambiente hospitalar, e o horror que sentia ao recordar o hospital terráqueo onde tinham tentado sem êxito salvar-me a mão, me terem impedido de fazer o que devia ter feito. Devia ter ficado em contacto mental com ela, devia ter estado telepaticamente presente a cada momento, mesmo que me tivesse sido impossível estar fisicamente presente. Faltara-lhe, e sentia-me cheio de apreensão.

Tentei acalmar o meu desespero crescente. Dentro de poucas horas iríamos ter o nosso filho. Devia ter entrado em contacto com o meu pai durante este interminável dia. Ele teria vindo ao hospital para aqui me fazer companhia. Bem, iria informá-lo assim que o nosso filho nascesse.

Poderia eu vir a ser para o meu filho um pai como Kennard fora para mim, lutando incessantemente para me ver aceite, tentando proteger-me de qualquer insulto ou aviltação, esforçando-se por me conceder todos os privilégios e deveres de um filho Comyn? Tinha a esperança de que não iria ser tão severo para o meu filho como o meu pai tinha sido para mim; teria com certeza menos razão para isso. Contudo, de certo modo, podia agora compreender o que o levara a ser tão duro.

Que nome daríamos ao rapaz? Dio objectaria se eu quisesse dar-lhe o nome de Kennard? O meu próprio nome era Lewis-Kennard; o irmão mais velho do meu pai chamara-se Lewis. Talvez Kennard-Marius, em homenagem ao meu pai e ao meu irmão. Ou iria Dio desejar dar-lhe o nome de um dos seus irmãos, talvez o de Lerrys, o seu favorito? Lerrys tinha-se zangado comigo, talvez não fosse querer dar o seu nome ao meu filho... Estava a brincar com estes pensamentos para disfarçar o meu nervosismo desesperado, a minha preocupação crescente em face da demora... Porque seria que não me diziam nada?

Talvez devesse agora usar o comunicador existente no átrio do hospital para falar com Kennard, dizendo-lhe onde me encontrava e o que estava a acontecer. Ele havia de querer estar informado, e constatei que neste momento teria acolhido de bom grado a sua companhia. O que iria ele pensar, perguntei a mim próprio, ao deparar com a jovem enfermeira Kathie, que era tão parecida com Linnell? Talvez nem desse pela parecença, talvez eu me encontrasse simplesmente num estado hiper normal que exagerara uma semelhança ligeira, transformando Kathie numa sósia da minha irmã adoptiva. Bem vistas as coisas, não são raras as raparigas que ostentam uma covinha e uma pequena cicatriz algures no rosto. Também é frequente as mulheres jovens de ascendência terráquea queiramos ou não, Darkover foi colonizado a partir de uma única estirpe homogénea, daí a nossa forte similaridade étnica - possuírem cabelos castanhos, olhos azuis, um rosto em forma de coração e uma voz doce, mas nasalada. A minha própria agitação fizera o resto, exagerando. Talvez Kathie até não fosse nada parecida com Linnell, e eu acabaria por constatá-lo na eventualidade improvável de observá-las lado a lado...

Talvez fosse a minha exaustão crescente, ou o esforço que despendia para não ceder ao sono: pareceu-me por um instante que podia vê-las uma ao lado da outra, Linnell no seu traje do Festival do solstício, e de algum modo parecendo mais velha, cansada, e Kathie, ao lado dela, vestindo também roupas de Darkover... enquanto que por detrás delas parecia-me haver uma escuridão indecisa...

Escutei um som ligeiro e dei meia volta, deparando com a jovem enfermeira que tanto se parecia com Linnell... Sim, era mesmo parecida com ela: a semelhança não era uma ilusão; ao refazer na minha mente a imagem de Linnell tinha ficado, mais do que nunca, convencido disso.

Quem me dera encontrar-me agora em casa, nas colinas próximo de Armida, andando a cavalo na companhia de Marins e de Linnell, com o velho coridom Andres a ameaçar castigar-nos por galoparmos a tal velocidade que Marius e eu tínhamos rasgado os nossos calções de montar enquanto que os cabelos de Linnell tinham  ficado de tal forma emaranhados pelo vento que a sua ama não ia conseguir penteá-los devidamente... Por esta altura Linnell lá devia estar casada com o príncipe Derik, e este teria sido já coroado, pelo que a minha irmã adoptiva era agora uma rainha...

- Sr. Montray?

Sobressaltado, perguntei:

- O que se passa? Como está Dio? O bebé? Está tudo bem? Ela parecia-me mortificada, comprometida, e não foi capaz de me olhar nos olhos.

- A sua esposa encontra-se bem - disse com suavidade -, mas a Dr.a DiVario precisa de falar consigo, a respeito do bebé.

Fiquei satisfeito por ver que se tratava de uma médica, satisfeito por Dio ter sido poupada à indignidade de ser vista por um homem. Por vezes um telepata forte pode transcender a diferença entre sexos, mas aqui, entre pessoas sem capacidades psíquicas, eu sabia que Dio teria preferido ser tratada por alguém do seu próprio sexo.

A médica parecia exausta e constrangida, e eu reparei que, se ela não tinha empatia, no forte sentido do dom dos Ridenow, possuía pelo menos aquela consciencialização rudimentar que separa os médicos indiferenciados dos que são realmente bons profissionais.

- Sr. Montray-Lanart? A sua esposa encontra-se bem; poderá ir visitá-la dentro de momentos - anunciou, e eu sussurrei uma prece de agradecimento à Mãe Avarra, uma prece que eu nem sabia que recordava. Depois perguntei:

- E a criança?

Ela baixou a cabeça e eu soube imediatamente; pensei o pior.

- Faleceu?

- Era demasiado cedo - disse ela -, e não pudemos fazer nada.

- Mas... - protestei, como um tonto -, os sistemas de apoio vital, os úteros artificiais... Há bebés que nascem ainda mais prematuramente do que este, e que resistem...

Ela ignorou o meu protesto. Parecia tensa, ao dizer:

- Não deixámos que a sua esposa o visse. Assim que soubemos... pusemo-la a dormir. Lamento muito, mas pareceu-me ser a forma mais segura; ela estava muito agitada. Deve estar prestes a sair do efeito da anestesia, e é melhor que esteja com ela. Mas primeiro... - prosseguiu, e olhou para mim com uma expressão que eu reconheci, desconfortavelmente, como sendo de piedade - ... terá de ir vê-lo. É da lei, para que não possa acusar-nos de termos surripiado uma criança saudável... - e eu recordei-me de que existia um próspero mercado de crianças para adopção, para mulheres que não queriam sujeitar-se ao desconforto de dar à luz. Senti a angústia da médica, e isto fez-me de algum modo recordar um sonho... não me lembrava dos pormenores, algo a respeito do médico que me dissera aqui, há poucos dias, que eu deveria preparar-me para enfrentar uma deformidade de algum tipo... algo terrível, sangue, horror...

A médica conduziu-me a uma pequena sala despida, com armários e portas fechadas e pias de lavagem, e um tabuleiro coberto por um pano branco.

- Lamento muito - disse ela, e levantou o resguardo.

Há muito tempo eu tinha cruzado os véus da anestesia para deparar com o horror que crescera no extremo do meu braço. As mensagens, arquivadas nas profundezas das células, que diziam à mão para ser uma mão e não um pé ou um casco ou uma asa de pássaro... Tinha-me posto a gritar até ficar com a garganta em ferida... Mas nenhum som se me escapou desta vez. Fechei os olhos com força, e senti no ombro a mão compassiva da jovem médica. Creio que ela sabia que eu me sentia aliviado por o nosso filho jazer ali, sem vida, pois certamente não poderia tê-lo deixado viver. Nunca com um aspecto daqueles. Sentia-me também aliviado por não ter sido a minha mão que...

... trespassara o corpo de Dio para dele arrancar a criança ensanguentada, com garras, coberta de plumagem, um horror indescritível... Inspirei longamente e abri os olhos, fixando inexpressivo aquela coisa horrivelmente deformada que jazia sem vida à minha frente. O meu filho. Teria Kennard sentido o mesmo ao ver o que Sharra tinha feito de mim? Por um instante desejei poder ainda refugiar-me na escuridão da insanidade. Mas era demasiado tarde para isso. Disse, sem saber o que dizia:

- Sim, sim, estou a ver - e voltei a cara. Os danos provocados nas células tinham-se aprofundado mais do que eu suspeitara, peneirando no próprio plasma da minha semente.

Nenhum filho meu se sentará jamais às minhas cavalitas para observar os cavalos em Armida... Apesar de lhe ter voltado as costas, ainda me parecia ver o horror diante dos meus olhos. Nem sequer era humano. E todavia, monstruosamente, estivera vivo ainda na noite anterior... A Deusa mostrou-nos a sua misericórdia...

- A minha esposa está ciente...? - perguntei.

- Acho que sabe que estava deformado em demasia para viver - disse suavemente a médica -, mas não tem ideia da extensão da deformidade, e se for sábio nunca lhe contará. Diga-lhe uma mentira simples... ela acreditará em si; as mulheres, acho eu, não desejam saber mais do que aquilo que têm de saber. Diga-lhe uma verdade simples, que o coração da criança deixou de bater. Guiou-me para fora da sala, para longe daquilo que eu voltaria a ver repetidamente nos meus pesadelos. Tocou-me de novo no ombro, piedosamente, e disse: - Nós podíamos ter tentado reanimar o coração. Teria desejado isso? Por vezes incumbe ao médico tomar decisões...

- Estou-lhe muito grato - disse, convictamente.

- Deixe-me levá-lo até junto da sua esposa.

Dio estava deitada no leito para onde a tinham trazido, parecendo estonteada e muito pequena, como uma criança que tivesse chorado até adormecer, com vestígios de lágrimas ainda presentes no rosto. Tinham-lhe coberto o cabelo com uma touca branca, aconchegando-a debaixo dos cobertores; uma das suas mãos agarrava-se à macieza do cobertor como uma criança segurando um brinquedo. Chegava-me às narinas a adstringência da droga que a cercava; a sua pele cheirava ao mesmo quando me inclinei para beijá-la.

- Preciosa...

Ela abriu os olhos e recomeçou a chorar.

- O nosso bebé morreu - murmurou ela. Oh, Lew, o nosso bebé... não conseguiu sobreviver...

- Tu encontras-te bem, querida. É só isso o que me interessa - sussurrei-lhe, tomando-a nos meus braços.

Mas por detrás dos meus olhos aquilo continuava presente, aquela coisa, o horror, algo que nada tinha de humano... Dei por Dio procurando debilmente o conforto da conexão mental comigo, ela que sempre tinha sido a mais forte de nós dois.

Senti-a imediatamente recuar perante o que via ali, aquela coisa jazendo fria e impessoal num tabuleiro cirúrgico, numa sala fria e despida, não humana, terrível, como um pesadelo... Gritou, repelindo-me; gritou e tornou a gritar, como eu gritara ao ver o que tinha tomado o lugar da minha mão, gritou e gritou e esbracejou para me afastar enquanto eu tentava confortá-la, esforçando-se por rechaçar aquele horror...

A médica acorreu, pondo-a a dormir, receosa de que ela se magoasse de novo, e afastou-me dali. E quando regressei, depois de me ter barbeado e lavado e de ter negociado grotescos preparativos para a cremação do que devia ter sido o nosso filho, disposto a aceitar todas as culpas pelo que tinha acontecido, se Dio assim o desejasse ela suportara comigo todos os meus horrores e pesadelos, e agora eu podia dar-lhe as forças que lhe faltavam - Dio já não estava lá.

- A sua esposa deixou o hospital já há diversas horas - disse-me a médica, quando eu fiz uma cena exigindo que me dissessem o que eles tinham feito com a minha esposa. - O irmão dela veio buscá-la, e levou-a daqui.

- Ela pode estar agora em qualquer lado - disse eu -, em qualquer parte do Império.

O meu pai soltou um suspiro, apoiando a cabeça na mão magra e deformada.

- Ela não devia ter-te feito uma coisa destas.

- Não posso culpá-la. Nenhum homem devia ter feito uma coisa daquelas a qualquer mulher... - Cerrei os dentes para suster o dilúvio de auto-recriminações. Se ao menos pudesse ter barricado os meus pensamentos... Se me tivesse submetido a uma monitorização para ter a certeza de não haver danos no meu plasma genético... Podia ter sabido... Devia ter sabido, ao constatar que a minha mão não voltara a crescer como uma mão, mas antes como um pesadelo...

A dor no braço era agora distante, medonha, mas era bem-vinda por amortecer a dor de ter perdido Dio. Mas eu não a culpava. Ela já tinha suportado tanto por minha causa, e agora isto... Não, no lugar dela nunca me teria deixado ficar nem durante dezdias, e tinha usufruído da sua presença, do seu conforto, durante um ano e meio...

- Podíamos mandar procurá-la - disse o meu pai. – Existem investigadores, pessoas que se especializam em procurar desaparecidos, e os cidadãos de Darkover têm dificuldade em confundir-se com os cidadãos do Império...

Mas ele falara pouco seguro de si, e abanei a cabeça.

- Não. Ela tem toda a liberdade para ir aonde quiser. Não é minha prisioneira nem minha escrava. - Se o amor que existira entre nós se tinha desvanecido em consequência da tragédia, quem poderia condená-la? Mesmo assim continuava-lhe grato. Dois anos antes uma coisa como esta ter-me-ia destroçado, envolvendo-me num turbilhão de agonia e desespero e auto-comiseração suicida. Agora sentia um pesar incomensurável; aquilo que Dio me havia dado nunca seria destruído pela sua ausência. Eu não me encontrava curado talvez nunca me curasse por completo - mas estava novamente vivo, e poderia viver com qualquer coisa que acontecesse. Tudo o que ela me dera constituiria para sempre uma parte de mim.

- Ela tem toda a liberdade para partir. Talvez algum dia ela aprenda a viver com o que aconteceu, e regresse então para mim. Se o fizer, eu estarei pronto. Mas ela não é minha prisioneira, e se regressar para mim será por desejar regressar.

O meu pai olhou para mim durante longos momentos, talvez receando que eu me fosse novamente abaixo. Mas passado algum tempo deve ter acreditado que eu falava com franqueza, e começou a discorrer sobre outro assunto.

- Não existe agora qualquer razão que te impeça de regressar comigo a Darkover, para pormos em ordem o que resta da herança Alton.

Pensei em Armida, espraiando-se numa dobra das Colinas de Kilghard. Tinha pensado em visitá-la com o meu filho às cavalitas para ele ver os cavalos, ensinando-lhe tudo o que eu tinha aprendido, vendo-o crescer ao meu lado, levando-o a fazer comigo a sua primeira missão de prevenção dos fogos florestais... mas não. Aquilo tinha sido uma louca esperança. Marius continuava incólume; seriam os filhos dele quem iam dar continuidade à linhagem dos Alton, se esta continuasse a existir; o assunto deixara de ter qualquer coisa a ver comigo. Encontrava-me transplantado, excisado das minhas raízes, exilado... e a dor que isso provocava era menor do que a da tentativa de regresso.

- Não! - exclamei, e o meu pai não tentou convencer-me. Talvez soubesse que eu estava no limite da minha resistência, que já suportara demasiado, que não tinha mais forças para continuar a lutar.

- Não vais querer regressar ao lar que partilhaste com Dio, pelo menos por agora - disse o meu pai, e eu perguntei a mim mesmo como ele saberia. O apartamento estava recheado de recordações.

Dio, enredada nos meus braços, admirando comigo as luzes da cidade. Dio, com o cabelo caindo sobre as costas, na sua camisa de noite, brincando prazenteiramente com uma domesticidade que era nova e divertida para nós ambos. Dio...

- Fica aqui durante alguns dias... - disse ele. Se ela regressar, se ela me quiser...

- Ela saberá onde poderá encontrar-te - disse. E nesse preciso momento tive a certeza de que Dio nunca mais regressaria.

- Fica comigo durante alguns dias. Depois vou apanhar a nave para Darkover... e poderás regressar à tua casa, ou ficar aqui sozinho. Não pretendo... - olhou para mim com uma expressão de piedade que não se atreveu a expressar em palavras, e prosseguiu: Não pretendo imiscuir-me. - Pela primeira vez na minha vida senti que o meu pai falava comigo como a um seu igual, a outro homem, e não a uma criança. Soltei um suspiro e disse:

- Agradeço-te, Pai. Aceito o convite.

Não voltei a pensar na matriz de Sharra, embrulhada e isolada e arrecadada no recanto mais distante do armário mais remoto do apartamento que eu partilhara com Dio nas extremas da cidade, também nenhum de nós falou do assunto durante o último dezdias que passámos na sua casa. O meu pai não chegou a embarcar na primeira nave que partiu. Acho que ele desejou passar comigo esse tempo que lhe restava, que lhe custava deixar-me totalmente só num planeta que se tornara tão estranho para mim, como se lá não tivesse vivido durante perto de dois anos.

Ainda faltavam cinco dias para que a segunda das naves em que ele tinha marcado passagem partisse do espaçoporto de Vainwal.

Eram poucas as naves que tinham como destino final o planeta Cottman IV, como os Terráqueos chamavam a Darkover. Mas havia muitas que faziam escala por lá: situava-se entre os braços espirais superior e inferior da Galáxia, o que fazia do planeta um local ideal para se situar um entroncamento. Por volta do meio-dia o meu pai perguntou-me, com alguma hesitação, é certo, se eu estaria disposto a fazer-lhe companhia numa visita a um dos grandes palácios do prazer da cidade, no qual a principal atracção era umas termas gigantescas, cópia das existentes numa famosa cidade terráquea nas quais a prática do banho se transformara numa das belas-artes.

Desde há muitos anos o meu pai era deficiente motor; uma das minhas primeiras recordações era a das termas de Armida, e de, após um dia gélido passado na sela do meu cavalo, me ter deixado ficar mergulhado até ao pescoço nas cálidas águas das termas. Não eram apenas os enfermos ou os diminuídos físicos que apreciavam isso. Por todo o Império, e mais especialmente nos mundos do prazer onde nada é tabu, as termas servem de ponto de encontro para aqueles cujo interesse não é limitado à água quente e aos repousantes banhos minerais. Talvez a atmosfera da nudez relaxada contribua para o colapso das inibições. Muitos tipos de entretenimento ali oferecidos pouco ou nada têm a ver com os banhos.

A enfermidade do meu pai e a sua evidente deficiência física davam-lhe as razões mais óbvias e respeitáveis para a sua presença ali; dispunha também de massagistas que podiam dar alívio às suas dores musculares. Eu raramente visitava locais deste género; houvera tempos em que era uma agonia para mim ver-me em tais ambientes, e as mulheres que ali se reuniam à procura de homens cujas inibições fossem aliviadas pela atmosfera das termas não eram, para falar com franqueza, de um tipo que me atraísse muito. Mas o meu pai parecia mais estropiado do que habitualmente, e os seus passos eram mais incertos. Ele poderia ter contratado um massagista para o acompanhar, ou mesmo alguém que o transportasse numa cadeira de rodas - em Vainwal podia-se dispor de todo o tipo de cuidados, desde que se pudesse pagar - mas no seu presente estado eu não o confiaria aos cuidados de pessoal assalariado. Acompanhei-o às termas, deixei-o à porta dos banhos quentes, e fui ao restaurante tomar uma bebida. Fiquei ali sentado durante algum tempo observando um grupo de bailarinos fazendo as coisas mais extravagantes com as suas anatomias, a seguir rejeitei os convites das mulheres - e dos homens - que costumavam visitar os espectadores tentando encontrar clientes suficientemente excitados pelo espectáculo para contratarem uma exibição mais privada. Mais tarde assisti a outro espectáculo, desta vez em holograma, um drama musical que narrava uma antiga lenda do amor e da vingança do deus do Fogo: alguém raptara e violentara a esposa de um dos deuses colegas do deus do Fogo, mas este declarara-a casta, sem contudo conseguir convencer o marido da vítima.

Mas a ilusão das chamas que cercavam o actor que fazia de deus do Fogo enervava-me, e por isso abandonei o restaurante com passos incertos. Dirigi-me a um dos bares para tomar mais uma bebida, e foi aí que o massagista do meu pai me encontrou.

- Sois Lewis-Kennard Lanart...

Senti-me inquieto, sabendo que algo se passava, e preparei-me para enfrentar novas tragédias.

- O meu pai... O que se passa com o meu pai?

- Está livre de perigo agora - disse o massagista, remexendo nervosamente na toalha que trazia nas mãos. - O calor da sauna foi demasiado para ele, e desmaiou. Chamei um médico - acrescentou, na defensiva. - Queriam levá-lo para o hospital terráqueo, mas ele recusou. Disse que só precisava de uns minutos de descanso, e que alguém viesse chamar-vos para o levar para casa.

Tinham chamado um camareiro para o ajudar a vestir-se, e ele estava agora a bebericar um cálice de conhaque forte. Parecia muito pálido, mais magro do que eu reparara. Cingiu-me um sentimento de dor e compunção.

- Deixa-me levar-te para casa, pai - e chamei um dos peque nos táxis aéreos que nos depositou prontamente no topo do nosso edifício. Eu não tinha sentido o seu desespero nem o seu colapso: esti vera absorto a observar aqueles malditos bailarinos!

- Não tem importância, Lew - disse ele mansamente. – Tu não és o meu tutor. - Por algum motivo aquela observação fez-me sentir bisonho, perturbado. Desta vez o meu pai não teimou em per manecer de pé, aceitando reclinar-se numa peça de mobiliário do apartamento, um macio sofá flutuante, recusando-se contudo a recolher ao leito.

- Pai, não estás decerto a pensar partir para Darkover daqui a cinco dias? Não serás capaz de aguentar a viagem! E o clima de Thendara...

- Foi lá que nasci - declarou com firmeza. – Conseguirei aguentar. Além disso, não tenho outra alternativa, a não ser que te decidas a ir em meu lugar, poupando-me a esse trabalho.

Com um sentimento misto de raiva e desespero, exclamei:

- Isso não é justo! Não podes pedir-me tal coisa!

- Mas é o que te peço - ripostou. - Estás agora suficientemente robusto para o fazeres. Não to pedi antes, porque não estavas preparado. Mas agora não há razão para que não o faças.

Reconsiderei, ou pelo menos tentei. Mas tudo em mim repudia va a ideia. Regressar: pisar com os meus próprios pés aquele recanto do inferno onde tinha enfrentado morte e mutilação, rebelião, amor e traição...

Não, não. Pelo amor de Avarra, não...

Ele suspirou, pesadamente.

- Algum dia terás de enfrentar isso, Lew. E não tenho desejos de enfrentar o Conselho sozinho. Só posso contar ali com um único aliado...

- Com Dyan... E ele ajudar-te-á mais se eu não estiver presente.

 Ele odeia-me, Pai.

O meu pai abanou a cabeça.

- Parece-me que estás enganado. Ele prometeu... - e depois suspirou. - Mesmo assim, seja como for terás de regressar algum dia...

Não podes viver assim, Lew. Em Darkover existem especialistas na tecnologia das matrizes que talvez sejam capazes de encontrar um meio de te livrares de Sharra...

- Eles bem tentaram - disse. - Tu próprio me disseste que eles tinham tentado antes de me trazeres para outro mundo, mas que não tinham conseguido; foi por isso que tivemos de trazer a matriz para fora do nosso mundo, pois não poderias separar-me dela sem me destruíres...

- Estavas então mais frágil. Já se passaram anos. Poderias sobreviver, agora.

Um milhar de remorsos, terrores, agonias desabou sobre mim. Se não tivesse acontecido a minha desesperada tentativa para monitorizá-la, talvez Dio não tivesse encetado prematuramente o trabalho do parto...

E aquele monstruoso horror teria continuado a viver, a respirar...

Mas Dio talvez tivesse compreendido. Talvez não me tivesse odiado, talvez não me tivesse repelido, horrorizada, perante o monstro que eu tinha concebido, o monstro em que me transformara...

Liberto de Sharra, teria sido possível de algum modo inverter os danos? O elo de ligação com aquela matriz gigantesca que conseguira danificar as minhas próprias células... Se eu tivesse tido coragem para lhe resistir, libertando-me de Sharra, talvez o horror não tivesse conseguido tocar o nosso filho... Ao menos eu poderia então ter sido monitorizado, para saber o suficiente, antecipadamente, antes de conceber um filho... e poderia ter avisado Dio, para que ela não tivesse de sujeitar-se a semelhante perda...

- Não me parece que tivesse feito qualquer diferença. O mal já estava feito ainda antes de ter conhecido Dio. - Eu sabia que ele estava ciente da imagem na minha mente, daquele monstruoso fracasso com a minha mão... mas nunca poderíamos ter a plena certeza.

- Algum dia. Algum dia, talvez.

Ele ia dizer alguma coisa, mas logo fechou a boca. E, ainda que eu pudesse escutar com toda a nitidez na minha mente as palavras que ele não disse... preciso de ti, Lew, não posso partir sozinho... sentia-me grato por ele não ter usado aquela derradeira arma, a sua fraqueza, para me persuadir. Sentia-me culpável por não me ofere cer para o fazer, mas era-me impossível, impossível...

 Ele cerrou os olhos.

 - Preciso de descansar. - Saí e deixei-o só.

 Pus-me a andar de um lado para o outro no apartamento, tem tando decidir se deveria regressar ao mundo multifacetado do pla neta dos prazeres para me encharcar na bebida até deixar de pensar nos horrores e nas recriminações que me assolavam a mente. O meu pai precisava de mim; ele sempre fizera, sem limitações, tudo aquilo de que eu necessitava enquanto estava doente ou sem forças, e ago ra sentia-me incapaz de ser tão generoso para com ele como ele tinha sido para mim. Mas não iria deixá-lo só. Não poderia fazer o que ele pretendia de mim, mas faria tudo aquilo que pudesse.

 Não sei quanto tempo se passou até ouvir a sua voz, aquele gri to de terrível dor, ressoando e ecoando através das salas. Sei agora que não houve qualquer grito, que tudo aconteceu tão rapidamen te que ele nunca poderia ter emitido qualquer som, mas era um grito de agonia. Enquanto corria para o seu quarto, tropeçando com a pressa, a voz dele explodiu na minha mente como naquele primeiro contacto em que fizera despertar o meu laran quando eu tinha onze anos de idade: uma dor como a morte e o inflexível comando que eu não consegui abafar:

LEW! TENS DE IR, POIS EU NÃO POSSO... TENS DE REGRESSAR A DARKOVER E LUTAR PELOS DIREITOS DO TEU IRMÃO E PELA HONRA DOS ALTONS E DO DOMÍNIO... TENS DE REGRESSAR E LIBERTAR-TE DE SHARRA... LEW, ORDENO-TE! É ESSA A MINHA ÚLTIMA VONTADE, O MEU DESEJO DERRADEIRO...

E a seguir um fluxo de amor e ternura e um momento de pura alegria.

- Elaine! - gritou ele na minha mente. Yllana adorada.

Entrei então no seu quarto, e deparei com ele já morto, mas no seu rosto havia um terno sorriso de felicidade.

 

O VULTO DE FOGO

Darkover: o fim do desterro

Alguém batera à porta. RegisHastur esforçou-se por acordar dos seus sonhos confusos e deu consigo nos seus aposentos pessoais no Castelo Comyn, com o camareiro discutindo em sussurros obstinados com alguém que se encontrava parado à porta, insistente. Regis colocou um roupão forrado de peles a envolver-lhe os ombros e foi ver o que estaria a passar-se.

- Vai dom, este... esta pessoa insiste em falar convosco, mesmo a esta hora desregrada...

- Bem, já estou acordado - ripostou Regis, pestanejando.

Durante um momento não reconheceu o jovem robusto e de olhos negros que permanecia à porta, e o sorriso oblíquo do rapaz dizia-lhe que este sabia-o.

- Não nos encontrámos muitas vezes, e creio que nunca fomos apresentados formalmente - disse o jovem. - Pelo menos depois dos meus oito ou nove anos de idade. Chamo-me Marius, e venho aqui solicitar-vos um favor.

Agora Regis já reconhecera o filho mais novo de Kennard. Tinha-o visto de passagem, algures em Thendara, cerca de três anos antes; talvez na companhia de Lerrys Ridenow?

- Claro que me recordo de ti, parente. - Ao dizer aquela palavra, parente, o reconhecimento formal de um seu par, pensou tardiamente em como o seu avô se sentiria vexado. Ele bem sabia que o Conselho não se poupara a esforços para evitar conceder esse reconhecimento formal ao filho mais novo de Kennard.

Contudo eles tinham colocado o próprio Regis nas mãos de Kennard para ser criado como filho adoptivo entre as idades de nove e doze anos. Regis e Lew tinham sido bredin, irmãos juramentados.

Como poderia ele agora recusar esse reconhecimento ao filho de Kennard e irmão de Lew, o qual, de acordo com todos os padrões de honra e decência, era também irmão adoptivo de Regis? Mas ele havia descurado essa obrigação. Mesmo agora o seu camareiro estava a observar Marius como se o jovem fosse um bicho de cem pés que o homem encontrara na sua tigela de papa.

- Entra, Marius - disse Regis. - O que poderei fazer por ti?

- Não é por mim - respondeu Marius -, mas por um amigo. Tenho estado a residir, esta temporada, na casa do meu pai em Thendara. Não me sinto exactamente bem-vindo no Castelo Comyn.

- Eu sei, e lamento-o, Marius. O que poderei dizer? Não tomo decisões pelo Conselho, mas isso não significa que concorde com elas. Mas entra, não fiques aí no vestíbulo. Tomas alguma coisa? Erril, toma-lhe conta da capa.

Marius abanou a cabeça.

- Não há tempo para isso, receio bem. O meu amigo... tu conhece-lo. Disse-me ele, um dia, que ambos foram prisioneiros em Aldaran, e que tu sabes alguma coisa a respeito de... - Marius parecia inquieto, e baixou o tom de voz como se fosse dizer alguma obscenidade - ...de Sharra.

Nesse momento Regis recordou-se do sonho que tivera, o monstruoso vulto de fogo flamejando e assolando tudo no seu pesadelo, astronaves desfazendo-se em chamas...

- Recordo-me - disse ele - e demasiado. O teu amigo... trata-se de Rafe Scott, não é? - Lembrava-se também de tê-los visto juntos em Thendara. Isso mesmo: na companhia de Lerrys Ridenow, que apreciava o contacto com Terráqueos. - O que aconteceu, Marius?

Entretanto a sua mente precipitava-se em contraponto, isto não pode estar a acontecer, ao longo de todos estes anos nunca sonhei com Sharra, e agora... isto é mais do que uma coincidência.

- Ele era meu convidado - disse Marius -, e os servos ouviram-no a chorar e vieram acordar-me; mas quando fui vê-lo ele não me reconheceu, e continuou a chorar, delirando a respeito de Sharra... Não consegui fazer com que me ouvisse. Poderias... poderias vir vê-lo?

- Do que precisas é de um curandeiro - ripostou Regis. Não tenho qualquer jeito para esse tipo de coisa... - e deu por si cismando se Danilo, que tinha sido prisioneiro com ele durante aquelas semanas em Aldaran e que também fora tocado pelo vulto de fogo, teria igualmente acordado de terríveis pesadelos a respeito de Sharra. E o que poderia isso significar?

- Lorde Regis - interveio o camareiro, escandalizado -, não estais decerto a pensar em sair com este... a esta hora da madrugada a pedido de um qualquer?

Regis tinha estado a pensar em recusar. Do que Marius precisava era de um curandeiro, ou, então, de um técnico de matrizes. Regis tinha passado uma temporada numa Torre, aprendendo a controlar o seu próprio laran para que este não o tornasse doente ou conduzisse à loucura, mas não dispunha da especialização necessária para realizar curas da mente ou do corpo com recurso a uma matriz, e o que sabia a respeito de Sharra era bem pouco. Sabia apenas que durante todo aquele tempo a sua própria matriz ficara ensombrada, pelo que não lhe poderia tocar sem ver aquele assolador vulto de fogo... Contudo as palavras do seu servo irritaram-no de novo.

- Não sei se poderei ajudar-te muito, Marius, e desconheço por completo o jovem Scott. Não o vejo há muito tempo, e nunca falei com ele. Mas irei como amigo - disse ele, ignorando o olhar furibundo do servo. - Traz-me a minha roupa, Erril, e as botas. Se me deres licença enquanto me visto...

Vestindo-se apressadamente, pensou que talvez fosse ele o único telepata ainda nos Domínios que teria tido qualquer experiência, mesmo indirecta, com Sharra. O pouco que sabia dela não o animava a aprender mais.

Mas o que poderá isto significar? A matriz nem sequer se encontra em Darkover! Foi levada por Lew e Kennard para o seu desterro... Molhou a cara com água gelada, esperando aclarar a sua confusão.

 E subitamente compreendeu o que poderia ter acontecido...

Sou o responsável por isto. Enviei a mensagem, e o meu avô ficará muito zangado comigo quando souber que fui eu. E já estou a sofrer as consequências das minhas acções.

Passou-lhe pela mente a recordação do que acontecera, como se estivesse a reviver tudo. Tinha-se passado já uma vintena de dezdias. Na sua qualidade de Herdeiro de Hastur tinha tomado conhecimento de uma decisão tomada pelas cortes, o organismo dirigente de Thendara. Estava comprometido por sua honra a não discutir com estranhos as suas decisões, mas o que deveria fazer quando a honra entra em conflito com a honra. Tinha acabado por recorrer ao único homem em Darkover que poderia ter interesse na revogação dessa decisão.

Dyan Ardais tinha-o escutado com um leve sorriso a aflorar-lhe aos lábios, como se pudesse avaliar quanto isto custava a Regis... ter necessidade de se apresentar a Dyan como suplicante, solicitando-lhe favores. Regis concluíra, irado:

- Desejas vê-los fazendo isto a Kennard?

Dyan tinha franzido a testa, então, e fizera-o repetir tudo.

- O que é, precisamente, que eles tencionam fazer?

- Na primeira sessão do Conselho, este ano, vão declarar confiscados todos os bens de Kennard, por ele ter abandonado Darkover; e vão colocar Armida nas mãos de Gabriel Lanart-Hastur! Apenas porque é ele quem comanda a Guarda, e porque está casado com a minha irmã!

- Não vejo que alternativas eles possam ter.

- Kennard tem de voltar para casa - exclamou Regis, furioso.

 - Eles não deviam poder fazer isto nas suas costas! Deviam dar-lhe uma oportunidade para apresentar o seu protesto! E além disso Kennard tem outro filho!

Após um longo silêncio, Dyan dissera:

- Certificar-me-ei de que Kennard toma conhecimento, pelo menos. Depois, se ele decidir não regressar para apresentar a sua reclamação... bem, acho que então a lei terá de seguir o seu curso. Deixa o caso comigo, Regis. Já fizeste tudo o que podias.

E agora, passadas semanas, apressando-se para acompanhar Marius, Regis sentia-se curioso: mesmo se Kennard tivesse regressado, decerto não seria suficientemente tonto para trazer a matriz de Sharra de volta para Darkover, pois não?

Talvez, pensou, talvez seja apenas um pesadelo... talvez não seja a assustadora coincidência que estou a imaginar. Talvez o pesadelo de Rafe se tenha transferido para a única pessoa em Thendara que tinha sido tocada por Sharra, forçando-me também a fantasiar...

Atirou a sua capa sobre os ombros e disse para Marius:

- Vamos, então. Erril, chama o meu guarda-costas. - Não desejava a companhia deste; mas também sabia que, mesmo a esta hora, não poderia percorrer as ruas de Thendara sem escolta; e, ainda se pudesse, tinha sido forçado a prometer ao seu avô que nunca o faria.

Já tenho mais de vinte anos e sou adulto, Contudo, como herdeiro do meu avô, Herdeiro de Hastur, sou forçado a respeitar as suas ordens... Aguardou a chegada do homem, no seu uniforme da Guarda, e partiu ao longo dos corredores do Castelo Comyn e das ruas desertas de Thendara, com Marius caminhando em silêncio ao seu lado.

Já se tinham passado muitos anos desde a última vez em que Regis entrara na casa citadina de Kennard Alton. Situava-se no extremo de uma ampla praça pavimentada com seixos redondos, e esta noite encontrava-se às escuras excepto quanto a uma luz solitária na traseira. Marius guiou-o até junto de uma porta lateral.

- Espera aqui -, ordenou Regis ao guarda-costas. O homem arguiu um pouco em voz baixa:

- O Vai Dom devia acautelar-se, talvez fosse ingressar numa armadilha - mas Regis replicou furiosamente que uma tal afirmação era injuriosa para o seu parente, e o Guarda, que conhecera Kennard como seu comandante e provavelmente também Lew como cadete e como oficial, acalmou com um resmungo.

Contudo, depois de o guarda-costas ter ficado para trás, Regis pensou que talvez a companhia do homem pudesse vir a ser-lhe útil. Confiava em Marius, mas Rafe Scott era um terráqueo, e era notória a indiferença destes quanto a códigos de honra. Além disso, Rafe tinha também laços de parentesco com aquele maquiavélico traidor Kadarin, que, sendo amigo de peito de Lew, acabara por atraiçoá-lo, agredindo-o e torturando-o e forçando-o a servir Sharra bem contra a sua vontade...

Do interior da casa obscurecida ergueu-se um clamor, um grito, um uivo de terror, como se nenhuma garganta humana fosse capaz de libertar semelhante grito. Por um instante Regis sentiu por detrás dos seus olhos o clarão das chamas... o primevo terror do vulto de fogo, assolador, rapace... até que conseguiu repudiá-lo, sabendo que era o terror na mente do outro que ele captava e lia. Conseguiu barricar a sua mente, e voltou-se para Marius que, lívido de pavor, se imobilizara ao seu lado. Não sabia se este dispunha de laran suficiente para captar a imagem, ou se era a angústia de Rafe que o afligia.

Kennard provara ao Conselho que Lew tinha o dom de Alton, e eles tinham-no aceite. Mas não aceitaram Marius; quereria isso significar que o filho mais novo de Kennard era totalmente desprovido de laran?

- Lembra-te, Marius, que não sei se poderei fazer alguma coisa por ele. Mas preciso de vê-lo.

Marius acenou a concordar, e dirigiu-se a um aposento interior. Um servo permanecia trémulo diante da porta, receoso de entrar.

- Não houve qualquer alteração, Dom Marius. Andres está com ele.

Regis lançou um rápido olhar de reconhecimento ao homem grisalho e corpulento, vestido com roupas darkoverianas – apesar de ser terráqueo, Regis sabia-o - que tinha sido coridom chefe, ou intendente, em Armida durante a permanência ali de Regis quando criança. Rafe Scott estava sentado muito direito, olhando para nada que Regis pudesse ver; quando este entrou no aposento ouviu-se novamente aquele uivo infernal, animalesco, de terror e pavor. Mesmo através das suas fortes barreiras Regis podia sentir o calor das chamas, fogo, tormento... uma mulher, sacudindo madeixas de cabelo em chamas...

Regis sentiu cada pêlo dos seus antebraços, cada cabelo individual do seu corpo, eriçar-se e ficar de pé, como se fosse algum animal na presença de um inimigo primordial. Marius tinha perguntado qualquer coisa a Andres numa voz baixa e ansiosa, e o homem abanou a cabeça.

- Tudo o que me foi possível fazer foi agarrá-lo para que ele não se magoasse.

- Quem dera que Lerrys estivesse na cidade - disse Marius.

- Os Ridenow sabem fazer frente a inteligências alienígenas, a presenças que não pertencem a esta dimensão.

Regis olhou para o rosto aterrorizado do rapaz que estava à sua frente. Só tinha visto Rafe uma única vez, e por uns instantes apenas; recordava-se dele como um garoto, um rapaz de treze anos, em Aldaran. Tinha então achado que o rapaz era demasiado jovem para ser admitido num dos círculos de matrizes. Agora deveria ter uns dezanove ou vinte anos...

Já não é um rapazola, então. É um jovem. Contudo, tendo vivido entre terráqueos, não recebeu os ensinamentos que poderiam tê-lo preparado para enfrentar coisas como esta.... mas Lew tinha sido treinado em Arilinn, e tudo o que lhe puderam ensinar não bastou para evitar que se queimasse nos fogos de Sharra...

De nada serviria convocarem um simples técnico de matrizes. Eles podiam fazer muitas coisas - abrir fechaduras sem chave, localizar objectos perdidos mediante a sua clarividência ampliada pelas matrizes, lançar conjuras da verdade em negociações nas quais uma simples dose de confiança mútua de nada serviria, diagnosticar doenças obscuras, até mesmo executar operações simples sem fazer sangue. Mas Sharra estaria fora do seu âmbito ou da sua competência. Melhor ou pior, Regis, que pouco sabia, conhecia tanto a respeito de Sharra como qualquer outra pessoa.

Sentindo a mais intensa repulsão contra tocar aquele horror, Regis aproximou-se mais, apertou com força a matriz que trazia pendurada ao pescoço para acalmar a sua mente, e tentou encetar um ligeiro contacto com a mente de Rafe. Ao sentir aquele estranho toque Rafe entrou outra vez em convulsões, como se estivesse de novo tomado pelo horror, e gritou:

- Não! Não, Thyra! Mana, não...

Durante uma fracção de segundo Regis viu e reconheceu a imagem na mente de Rafe, uma mulher, não o horror com cabelos de chamas que era Sharra mas apenas uma mulher, arruivada, com lábios vermelhos e olhos que tinham uma curiosa cor dourada...

Então Rafe pestanejou e a imagem sumiu-se, e ele olhou para Regis com inteligência no olhar. Regis notou, com alguma surpresa, que os olhos de Rafe eram também dourados, como os da mulher que acabara de ver.

- O que se passa, porque estás a fixar-me desse modo? - inquiriu Rafe. Pestanejou de novo e olhou como perdido à sua volta.

- Marius, o que aconteceu?

- Diz-mo tu - replicou Marius, zangado. - Só sei que acordaste a casa toda a gritar e a delirar a respeito de., de... - hesitou, e foi Rafe quem por fim lhe forneceu a palavra em falta.

- De Sharra - disse ele, e Regis sentiu-se aliviado, obscuramente, como se lhe tivessem tirado um peso de cima.

- Não era capaz de fazer com que me ouvisses – prosseguiu Marius. - Era como se não me conhecesses.

Rafe franziu a testa e disse:

- Lamento ter-te perturbado... mas para que foste tu arrancar o Hastur da sua cama, e a esta hora da noite? - Olhou para Regis com uma expressão de apologia e desespero. - Lamento muito. Deve ter sido apenas um sonho mau, nada mais.

Lá fora rompia a madrugada. Embaraçado, Marius disse:

- Posso pedir-te para fazeres as honras da minha casa, Lorde Regis, tomando o pequeno-almoço connosco? É um pobre pedido de desculpas por ter perturbado o teu descanso...

- Será um prazer, primo - disse Regis, usando um termo um pouco mais íntimo do que o formal parente mas não tão íntimo como irmão adoptivo. O seu avô iria ficar zangado quando soubesse, mas nem os ferreiros das forjas de Zandru seriam capazes de remendar um ovo partido, e o que estava feito estava feito.

Marius deu as suas ordens a Andres, e Regis acrescentou:

- Pede aos servos para alimentarem o meu Guarda nas cozinhas, por favor.

Quando os servos saíram, Marius perguntou:

- O que aconteceu, Rafe? Ou não sabes mesmo?

Rafe abanou a cabeça.

- Não me parece que tenha sido um sonho - disse. - Vi a minha irmã Thyra, e ela... ela transformou-se de novo em Sharra. Tive medo...

- Mas por que razão isso iria acontecer agora, quando nada de parecido sucedeu ao longo dos últimos seis anos? - inquiriu Regis.

- Quase tenho medo de vir a saber - ripostou Rafe. – Julgava que Sharra tinha desaparecido... ou que estivesse dormente, pelo menos aqui em Darkover...

- Mas Sharra não está em Darkover - disse Regis. - Os Altons levaram-na para outro mundo, talvez para a Terra. Nunca cheguei a saber porquê...

- Talvez - comentou Rafe - porque aqui em Darkover nunca poderia ser controlada, provocando mais danos... - e remeteu-se ao silêncio, mas Regis, vendo a imagem na sua mente, recordou-se de que o velho espaçoporto terráqueo em Caer Donn, nas montanhas, tinha desaparecido envolto em chamas. - Se tivesse ficado cá, Kadarin era capaz de ter tentado recuperá-la - prosseguiu Rafe.

- Não sabia que ele continua vivo - disse Regis.

Rafe suspirou.

- Pois. Desde há anos não vejo nenhum deles. Andaram a monte durante muito tempo. - Parecia prestes a acrescentar mais alguma coisa, e depois encolheu os ombros e disse: - Em circunstâncias normais eu teria gostado de saber que Thyra ainda está viva, mas agora...

Com dedos trémulos agarrou a matriz que tinha pendurada ao pescoço.

- Eu era ainda uma criança quando o círculo de Sharra foi desfeito, e depois... depois fiquei em estado de choque. Estive doente durante muito tempo. Quando melhorei, disseram-me que Marjorie tinha morrido, que Lew tinha levado a matriz para outro mundo e que nunca mais regressaria... e depois constatei que não podia usar a minha pedra estelar. Eu tinha participado em tudo, e pensei que a minha pedra estelar ficara consumida ao quebrar-se a ligação com a matriz de Sharra. Mas agora não estou bem certo disso...

Desembrulhou a pedra. Era, pensou Regis com frieza, uma pedra muito pequena, uma jóia azul, facetada, defeituosa. Rafe observou-a atentamente; dentro dela havia uma chama carmesim, tão nítida que até Regis e Marius podiam ver o vulto de fogo. Guardou a pedra, com dedos titubeantes ao tentar puxar o cordão do pequeno saco de cabedal.

- O que poderá isto significar? - perguntou, num sussurro.

- Só pode significar uma coisa - disse Regis. - Significa que Kennard regressou. Ou Lew. Ou ambos. E que, por qualquer razão, trouxeram consigo a matriz de Sharra.

No primeiro dia da temporada do Conselho, Regis Hastur chegou cedo à Câmara de Cristal. Por um momento tentou decidir se deveria ingressar pela entrada dos Hastur - no corredor em redor da Câmara havia uma entrada privada para cada um dos Domínios, com uma pequena antecâmara em que os membros do Domínio poderiam reunir-se particularmente por um momento antes de se apresentarem formalmente ao Conselho - mas depois encolheu os ombros e, parando para trocar uma palavra amiga com o Guarda postado à porta, cruzou a entrada principal.

Lá fora estava um dia de sol brilhante, e a luz jorrava através dos prismas do tecto que davam o nome à câmara; era como estar-se no coração multicor de um arco-íris. A Câmara de Cristal formava um octógono espaçoso; pelo menos agora parecia espaçoso, pensou Regis, pois no apogeu dos poderes Comyn deveria ter parecido apertado para todos aqueles que tinham direito a estar presentes.

 Regis ocupava um dossel central cujas amplas portas duplas eram guardadas por Guardas da sua confiança; os outros sete lados do octógono eram destinados a cada um dos sete Domínios, todos divididos entre si por balaustradas de madeira e ocupados por bancos corridos e alguns camarotes fechados por cortinas, para que os lordes e damas de cada Domínio pudessem observar os procedimentos sem serem vistos ou manter a sua privacidade até se iniciar a sessão do Conselho. Um dos segmentos estava desocupado, tal como estivera desde que Regis ou qualquer dos seus parentes vivos se lembrava. Regis recordava-se de que o avô lhe dissera, quando ele era rapaz, que o Domínio de Aldaran permanecia vago desde que ele, ou qualquer dos seus parentes, pudesse recordar-se. O antigo Sétimo Domínio, Aldaran, exilara-se do Comyn há tanto tempo que ninguém podia lembrar-se porquê; as razões, se na realidade tivessem existido, tinham-se dissipado durante as Eras do Caos. Ele tinha sempre visto aquele segmento assim desocupado desde que atingira a idade de assistir ao Conselho: bancos vazios e poeirentos, um espaço vazio na parede onde outrora se exibira o estandarte da dupla águia de Aldaran.

As cortinas estavam também corridas em volta do camarote do Domínio de Alton. Tinha permanecido vazio durante as cinco últimas épocas; agora, ao iniciar-se a sexta, Regis imaginava que Lew ou Kennard ou ambos estariam ali, para fazerem frente à anunciada ameaça de se declarar vago o Domínio de Alton para o colocar formalmente nas mãos de Gabriel Lanart-Hastur como seu Guardião. Mas teria algum deles regressado? Regis não podia acreditar que Kennard fosse capaz de ter regressado sem fazer ao menos uma visita de cortesia a Lorde Hastur, e não tinha conhecimento de semelhante visita. Por outro lado, se Lew tivesse voltado, achava difícil de aceitar que não tivesse já mandado palavra ao próprio Regis.

Éramos amigos. Acho que Lew já me teria dado indicação da sua chegada. Mas nada constara, e Regis começava a sentir-se preocupado. Talvez Lew e Kennard tivessem decidido deixar o Domínio sair das suas mãos sem contestação. Num futuro que parecia inevitável, uma suserania feudal sobre um Domínio enorme poderia deixar de ter qualquer significado. Marius encontrava-se financeiramente bem; Kennard possuía vastas propriedades para além da Grande Casa de Armida. Talvez, pensava Regis, ele ficasse em melhor situação se não tivesse de encarar uma administração feudal do antigo Domínio, do mesmo modo que o próprio Regis preferiria ver-se livre das modificações que ameaçavam chegar à sociedade de Darkover; que coubesse a Gabriel a ingrata tarefa de enfrentá-las.

Olhou em volta da Câmara; podia ver alguém a mover-se por detrás das cortinas corridas do recinto de Ridenow, talvez a esposa de Lorde Edric ou alguma das suas filhas crescidas. Bem, os Ridenows não tinham falta de filhos e filhas. Não eram aparentemente amaldiçoados com a esterilidade que afligia alguns dos Domínios mais antigos. A linhagem directa dos Aillard tinha-se extinguido; uma linhagem colateral, a família Lindir-Aillard, regia aquela Casa, com Lady Callina como regente formal do Domínio. Ela tinha uma irmã mais nova, Linnell, que tinha sido outra das filhas adoptivas de Kennard, e um irmão que pertencia ao círculo de Dyan Ardais, se bem que Regis não soubesse (e não lhe interessasse saber) se o rapaz era o amante e favorito de Dyan ou apenas um pendura. Mais recentemente, Merryl Lindir-Aillard tinha sido visto com frequência na companhia do jovem príncipe Derik Elhalyn. Uma vez o avô de Regis, Danvan, o Lorde Hastur, tinha expressado algum desprazer pelas companhias que o príncipe parecia preferir.

- Não me parece que preciseis de vos preocupardes, sir - respondera Regis, um pouco secamente. - Independentemente do que Merryl possa ser, Derik é um grande apreciador de mulheres. Merryl é apenas um lisonjeador.

E por causa do que ele era, telepata - e, apesar de haver amortecedores telepáticos em toda a Câmara de Cristal, estes não tinham sido ainda ligados ou ajustados - Regis não se surpreendeu ao ouvir o Guarda à porta afirmar, com uma voz muito diferente daquela com que o acolhera, amistosamente mas com respeito, e que agora reflectia apenas uma deferência monótona:

- Não, vai dom, ainda é cedo; está aqui apenas o Lorde Regis Hastur.

- Ainda bem - disse a voz estrídula do jovem príncipe. Desde a última sessão que não vejo Regis - e Regis deu meia volta e fez uma vénia a Derik Elhalyn, mas este ignorou a vénia e veio dar a Regis um abraço de parente.

- Por que motivo vieste tão cedo, primo?

Regis sorriu e disse:

- Talvez devesse perguntar-vos o mesmo, meu Lorde. Não estava ciente de ter chegado adiantado, e não esperava ser o primeiro a chegar. - Haveria uma ou duas pessoas, mesmo no Comyn, às quais ele podia ter adiantado, com toda a franqueza: O meu avô estava outra vez a importunar-me a respeito de estar decidido a ajustar o meu casamento durante esta sessão, e eu afastei-me para não ter de discutir novamente com ele. Contudo, apesar de Derik ser três anos mais velho do que Regis, alto e apessoado, semelhantes assuntos adultos pareciam-lhe despropositados ao conversar com Derik.

O Domínio de Elhalyn tinha em tempos sido um feudo de Hastur; ainda que, na realidade, todos os Domínios tivessem outrora descendido dos lendários Hastur e Cassilda, os Elhalyn tinham mantido o seu parentesco com Hastur durante mais tempo do que os restantes.

 Havia algumas centenas de anos, os reis Hastur tinham confiado as suas funções cerimoniais, e o próprio trono, aos Hasturs de Elhalyn. A mãe de Regis fora irmã do rei Stephen, e por isso o tratamento de “primo” não era apenas por cortesia. Regis conhecia Derik desde que ambos eram crianças; contudo, quando Regis chegou aos nove anos de idade já se tornara aparente que ele era o mais esperto e inteligente, tendo começado a tratar Derik quase como um irmão mais novo. O Regis adulto pensava por vezes que era por essa razão que ambos tinham sido separados, tendo ele sido enviado para adopção em Armida, para que o jovem príncipe não se sentisse muito inferiorizado. Enquanto iam crescendo tornara-se dolorosamente óbvio que Derik era lento de raciocínio. Poderia ter sido coroado aos quinze anos, a idade em que um rapaz atingia legalmente a maioridade - com essa idade Regis fora declarado Herdeiro de Hastur, com todas as responsabilidades inerentes a esse cargo - mas a coroação de Derik tinha sido adiada, primeiro até aos dezanove anos, e depois até que alcançasse os vinte e cinco.

E nessa altura? cismava Regis com frequência. O que irá o meu avô fazer quando se tornar dolorosamente óbvio que Derik não estará mais preparado aos vinte e cinco anos do que estava aos quinze?

Muito provavelmente iria coroar o jovem, conservando a Regência não oficial aos olhos de todo o Darkover, como muitos Hasturs haviam feito ao longo dos séculos.

- Vamos precisar de um novo estandarte quando eu for coroado - disse Derik, encostado ao anteparo do recinto dos Elhalyn.

- O estandarte velho está todo puído.

Merryl Lindir-Aillard, parado atrás dele, disse com suavidade:

- Mas o estandarte velho já assistiu à coroação de uma centena de reis Elhalyn, sir. Concentra-se nele toda a tradição do passado.

- Pois bem, já é tempo de criarmos aqui novas tradições disse Derik. - Porque não estás de uniforme, Regis? Já não pertences à Guarda?

Regis abanou a cabeça.

- O meu avô precisa de mim nas cortes.

- Não me parece justo nunca me terem deixado prestar serviço nos cadetes, como fazem todos os filhos do Comyn – comentou Derik. - Há tantas coisas que não me deixam fazer! Acaso pensarão que eu não estou preparado?

Era precisamente isso o que todos pensavam, mas Regis não teve a coragem necessária para o declarar, dizendo apenas:

- O meu avô disse-me uma vez que tinha sido cadete-mestre durante algumas temporadas, mas tiveram de substituí-lo porque todos os cadetes jovens tinham receio dele por ser um Hastur.

- Mas eu havia de gostar de usar um uniforme dos cadetes disse Derik, ainda amuado, e Merryl ripostou, melifluamente:

- Não iríeis gostar, meu príncipe. Os cadetes não apreciam ter Comyn no meio deles... tornariam miserável a vossa vida. Não seria assim, Dom Regis?

Regis estava prestes a declarar, comigo foi só durante o primeiro ano, até constatarem que eu não estava a usar os privilégios da minha posição para obter favores especiais que não tinha merecido. Achou contudo que isso seria demasiado para a compreensão de Derik, limitando-se a dizer:

- Não há dúvida de que eles me deram bastantes problemas...

- Mesmo que tenham adiado a minha coroação, não voltarão a adiar o meu casamento - disse Derik. - Lorde Hastur prometeu-me falar com Lady Callina para se anunciar o meu noivado com Linnell neste Conselho. Parece-me que devia pedi-lo antes a ti, Merryl, pois o tutor dela és tu, não és?

- De acordo com a forma como o Comyn se encontra organizado, sir - respondeu Merryl -, a linhagem Aillard é regida pela linha feminina. Contudo, Lady Callina está muito ocupada com o seu trabalho nas Torres; talvez seja possível dispor o assunto de forma a que a dama não precise de se preocupar com assuntos menores como este.

- Callina ainda é Guardiã em Neskaya... aliás, em Arilinn, Dom Merryl? - perguntou Regis. Usou o trato formal, irritado com o modo como o jovem estava a plantar na mente de Derik a ideia de que talvez ele, Merryl, devesse ser consultado antes da tutora legítima do Domínio. Merryl fez uma careta e respondeu:

- Não, creio que ela foi trazida para cá para servir como Guardiã trabalhando com a Mãe Ashara.

- Abençoada Avarra! A velha Ashara ainda vive? - perguntou Derik. - Ela era usada pela minha ama como papão para me assustar quando eu tinha seis anos de idade! Seja como for, Callina não vai estar ali por muito tempo, pois não, Merryl? - Sorriu para o amigo, e pareceu a Regis que haveria ali alguma combinação secreta.

 - Mas eu nunca vi Ashara, e acho também que ninguém a viu... A minha tia-avó Margwenn foi sua Subguardiã, há muitos anos, antes de eu ter nascido; já ela dizia que só a via muito raramente. Ashara deve ser tão velha como a avó de Zandru!

Regis estava a tentar recordar-se do que constaria a respeito da antiga Guardiã da Torre Comyn.

- Acho que teríamos ouvido dizer se ela tivesse falecido comentou. - De qualquer forma, deve ser demasiado velha para tomar uma parte activa nos assuntos do Comyn. Ela é Hastur, ou é Elhalyn? Parece-me que nunca o soube.

Derik abanou a cabeça.

- Do pouco que sei - disse -, ela podia até ser irmã adoptiva da Cassilda das lendas! É capaz de ter sangue chieri... ouvi dizer que eles são incrivelmente longevos.

- Nunca vi um chieri - disse Regis. - Nem ninguém deve ter visto, acho eu, nos tempos presentes, se bem que Kennard me tenha dito uma vez que, há muito tempo, ainda ele era adolescente, numa viagem às montanhas com o seu irmão adoptivo tinha sido recebido numa habitação chieri. Por falar nisso, acho que o nosso avô é capaz de viver tanto tempo como um chieri - e sorriu. - Por mim tudo bem; possa o seu reinado ser longo! Não estou nada ansioso por tomar posse do Domínio de Hastur!

- Pois eu estou mais do que pronto para receber o Domínio de Elhalyn - disse Derik amuado. - O meu primeiro acto será arranjar uma esposa nobre para ti, Regis.

Mas antes que pudesse alongar-se sobre o assunto registrou-se uma movimentação no sector de Ardais, e Dyan Ardais cruzou a entrada na traseira desse sector, ingressando num dos camarotes privados. Danilo vinha com ele, e Regis foi falar-lhe com brevidade, enquanto via Derik e Merryl separarem-se para se dirigirem aos seus respectivos Domínios.

- Dom Regis - como sempre fazia diante de estranhos, Danilo foi excessivamente formal -, o vosso Herdeiro virá hoje tomar assento no Conselho?

- Não. Mikhail tem apenas onze anos. Terá tempo bastante para isso quando for declarado adulto - respondeu Regis. Seis anos antes, num ambiente de perigo, tinha adoptado como seu herdeiro o filho mais novo da sua irmã Javanne.

Mikhail está com onze anos. Dentro de dois anos terá idade suficiente para ingressar no Corpo de Cadetes e depois para assumir todas as responsabilidades de um filho Comyn. Os filhos mais velhos de Javanne, Gabriel e Rafael, estão agora nos cadetes; têm quinze e catorze anos, respectivamente. Se o pai deles, o Gabriel mais velho, for nomeado administrador do Domínio Alton, serão eles Alton ou Hastur? A hierarquia transmite-se do parente com a posição mais elevada; portanto eles são Hastur...

Olhou de relance para Dyan Ardais. O Senhor de Ardais trajava como de costume de negro absoluto, quebrado apenas pelo cintilante símbolo preto e prata do seu Domínio, sóbrio e elegante.

- Não está ninguém presente do Domínio de Alton... – disse Regis, dirigindo-se a Dyan, e não era bem uma pergunta. Dyan, melhor do que ninguém, saberia se Kennard tinha regressado... Talvez eu devesse falar-lhe do que aconteceu há duas noites, a respeito de Marius, e de Rafe Scott... e de Sharra.

Mas Dyan replicou:

- Regis, o Domínio não irá cair sem disputa nas mãos dos Hasturs. Prometo-te isso. - E Regis, observando os olhos metálicos e inexpressivos do Lorde de Ardais, ilegíveis como se estivessem cerrados, sabia que não poderia perguntar-lhe abertamente o que ele teria preparado. Fez uma vénia e regressou ao seu lugar, debaixo do estandarte do abeto azul e prata dos Hasturs.

Homens e mulheres começavam agora a chegar, instalando-se debaixo dos estandartes dos diferentes Domínios. Um indistinto zumbido dizia a Regis que alguém estava a ajustar os amortecedores telepáticos; quando o Castelo Comyn e a sua Câmara de Cristal tinham sido edificados partira-se do princípio de que todos os que estariam presentes, todos os que tivessem direitos consanguíneos nos Domínios, possuíam o dom do laran, e por tradição havia amortecedores telepáticos distribuídos a intervalos estratégicos por toda a Câmara, para impedirem coscuvilhices involuntárias (ou mesmo voluntárias).

Todos os presentes, pensava Regis, são meus parentes, ou deviam ser. Todos os membros do Comyn descendiam dos lendários sete filhos de Hastur e Cassilda. A lenda chamava deus a Hastur, filho de Aldones, que era o Senhor da Luz. O deus Hastur, dizia-se, tinha prescindido da sua divindade por amor a uma mulher mortal.

Qualquer facto verdadeiro que pudesse existir por detrás da lenda achava-se ocultado pelo tempo e pela pré-história, ainda antes das Eras do Caos terem vindo cindir os Domínios numa centena de pequenos reinos, e no final dessas Eras, apesar da linhagem Hastur ter reivindicado os seus poderes, quase todas as Torres estavam destruídas, e o laran do Comyn nunca tinha chegado a restabelecer-se.

E contudo, pensou ele, os Terráqueos afirmam, e dizem que podem provar, que todos os que estão aqui em Darkover, os Sete Domínios, o Comyn e tudo o mais, descendem de uma nave colonizadora que fez aqui uma aterragem forçada. Colonos terráqueos.

Qual será a verdade? Mais importante ainda, o que significará a verdade? De onde vieram as lendas? Se somos todos Terráqueos, de onde teria vindo o laran, os poderes do Comyn? Durante as Eras do Caos, Regis sabia pelos livros de História que lera em Nevarsin, tinha havido uma época de grande tirania, durante a qual o Conselho Comyn estabelecera um programa de procriação controlada para fixar os dons de cada Domínio nos seus filhos e filhas; a tecnologia das matrizes tinha alcançado o seu apogeu, chegando até a interferir nos genes das crianças Comyn.

E continuamos a ressentir-nos das consequências daquele programa de procriação e de intromissão genética. Derik é um exemplo disso, e muitos dos Ardais são instáveis. O pai de Dyan esteve louco durante décadas até morrer, e alguns membros do Conselho acham até que o próprio Dyan não é muito seguro da cabeça.

Javanne Lanart-Hastur, acompanhada pelo marido Gabriel, atravessou as portas traseiras do recinto dos Hasturs. Abraçou Regis, numa revoada de perfume, caracóis, folhos, e foi ocupar o seu lugar. Gabriel - alto, encorpado, usando o uniforme de Comandante da Guarda do Castelo - acenou amistosamente a Regis ao sentar-se. O segundo filho do casal, Rafael, um garoto de treze anos, magrizela e de cabelos negros que recordava Regis da sua própria imagem ao espelho quando tinha aquela idade, fez uma vénia a Regis e sentou-se numa das bancadas traseiras. Trajava o uniforme dos cadetes e trazia um sabre à cintura.

Dentro de dois anos terei de inscrever Mikhail no corpo de cadetes. E, pelo nome de Aldones, Senhor da Luz, e de Zandru, senhor de todos os infernos, que sentido fará ter de mandar o Herdeiro de Hastur para os cadetes, tal como eu fui mandado e como Javanne envia zelosamente os seus filhos? Claro, se Mikhail vai um dia herdar o poderio dos Hasturs - e ainda não encontrei mulher com quem deseje casar-me, e por isso é provável que Mikhail venha a herdar - terá de aprender a comandar. Contudo, com o Império em Darkover, com a inevitabilidade de um império interestelar à nossa porta, haverá certamente alguma maneira melhor de educar o Herdeiro de Hastur do que pondo-o a aprender esgrima e o código dos duelos e a treinar-se no combate sem armas e na melhor maneira de conservar os ébrios afastados das ruas! Regis soltou um suspiro, pensando na revoada de protestos que inevitavelmente surgiria se ele, o Herdeiro de Hastur, decidisse dar ao seu filho a educação terráquea que Marius, o filho de Kennard, tinha recebido.

E onde estava Marius? Deveria ter já chegado ao recinto do Domínio de Alton! Já tinha idade suficiente, agora, e se desejasse reclamar o Domínio, antes que este fosse declarado vago, teria de fazê-lo imediatamente!

Talvez se tivesse rendido ao inevitável, ou tivesse decidido deixar a Gabriel a administração do Domínio. Regis suspirou de novo, recordando-se de quando dissera ao seu avô que preferia deixar o Domínio para os filhos de Javanne.

Pelo menos um dos meus filhos deveria receber uma educação terráquea. Não sendo Mikhail, pensou, então o seu filho gerado por Crystal di Asturien. Era ainda demasiado cedo para se pensar nisso; o garoto não teria ainda dois anos, e Regis tinha-o visto menos de uma dúzia de vezes. Tinha outras duas crianças, duas filhas, produto de ligações similares. Os Terráqueos educam as suas filhas; tratarei de assegurar que elas recebam ao menos alguma educação, se bem que isso me possa trazer dissabores: as suas mães são suficientemente convencionais para pensar que já é uma honra ter um filho de um Herdeiro Hastur. Sabia perfeitamente que as mulheres não tinham tido qualquer interesse nele para além desse facto e do seu aspecto agradável; as mulheres perseguiam-no por isso, e já estava a tornar-se enfadonho.

Nesse momento a sua linha de pensamento foi interrompida por um forte brado dos Guardas postados à porta.

- Danvan Hastur de Hastur, Tutor de Hastur, Regente de Elhalyn e do Comyn!

Regis pôs-se de pé, tal como todos os presentes, enquanto o seu avô - Hastur de Hastur, um homem de idade, com os cabelos grisalhos ainda retendo alguns tons dourados, trajando o azul e prata cerimonial dos Hasturs - entrava na Câmara de Cristal, encaminhando-se lentamente para o seu lugar. Sentou-se na fileira da frente e passeou o olhar pela Câmara.

- Parentes, nobres, Comynari - disse, numa voz opulenta.

- Dou-vos as boas-vindas ao Conselho. Alteza... - fez uma vénia a Derik -, quereis ter a bondade de fazer a chamada dos Domínios?

Portanto Lorde Hastur decidira dar a Derik alguns privilégios e responsabilidades, por mais ocos e cerimoniosos! Derik levantou-se e avançou. Como os Hasturs, vinha vestido de azul e prata, com a coroa dourada dos Elhalyns bordada sobre o emblema do abeto.

- Eu próprio falo por Hastur de Elhalyn - proclamou. Hastur de Hastur?

Danvan Hastur levantou-se e fez uma vénia, dizendo:

- Estou aqui ao vosso serviço, meu lorde Derik.

- Ardais?

Dyan Ardais levantou-se com uma mesura.

- Dyan-Gabriel, Tutor de Ardais.

- Aillard?

Assistiu-se a uma pequena movimentação por detrás das cortinas de um dos camarotes no recinto dos Aillards, e Callina Aillard, magra e pálida, exibindo a formal vestimenta cinzenta e carmesim dos Aillards, disse calmamente:

- Para servir-te, vai dom. - Regis reparou em Merryl, com ar taciturno, num assento um pouco abaixo da sua meia-irmã, acompanhado por uma mão-cheia de famílias vagamente aparentadas: Lindir, Di Asturien, Eldrin. Regis nunca tinha visto a maior parte deles.

- Ridenow de Serrais.

Este vinha fora da ordem, pensou Regis; o Domínio de Alton tinha uma dignidade mais elevada do que os Ridenow. Mas talvez Derik quisesse dar a Alton mais tempo para responder.

- Falo por Ridenow, e estou aqui às vossas ordens, vai dom disse Edric Ridenow. Um homem imensamente gordo, para lá da meia-idade, Edric estava acompanhado pelos seus filhos adolescentes e por um pequeno rebanho de irmãos; Regis reconheceu Lerrys e Auster, que tinham prestado serviço na Guarda como oficiais. Havia outros que ele não conhecia. Viam-se também algumas mulheres atrás das cortinas dos camarotes privados. Os Ridenow viviam na raia das Vilas Secas e, apesar de não seguirem os hábitos das Vilas Secas acorrentando as suas mulheres, sempre as mantinham em maior isolamento do que a maioria dos Domínios das montanhas.

- Alton? - chamou Derik, e por algum motivo pareciacontente. Silêncio.

- Alton de Armida, Alton de Mariposa...

Gabriel Lanart-Hastur levantou-se do seu assento no recinto

Hastur e disse:

- Pela sexta vez respondo pelo Domínio de Alton, como Regente durante a ausência dos legítimos reclamantes.

Derik fez uma mesura e depois voltou-se para Lorde Hastur, inquirindo:

- Pergunto-lhe agora?

Regis viu o avô vacilar ligeiramente mas confirmar com um aceno, e Derik disse:

- Esta resposta foi aceite durante cinco anos. Agora, no sexto ano, é tempo de declarar vago o Domínio de Alton de Armida e de aceitar a pretensão do próximo Herdeiro. Gabriel Lanart-Hastur de Edelweiss, aproximai-vos.

Regis comprimiu os lábios. Gabriel, ou o próprio Hastur Velho, teriam ensaiado Derik para isto; o jovem príncipe não tinha a perspicácia suficiente para o fazer por si. Gabriel levantou-se e avançou até ao centro da câmara sob as luzes do arco-íris. Ele era, na opinião de Regis, um pretendente razoável. Era um homem honesto; era o neto de uma das irmãs do pai de Kennard, o que lhe conferia sangue Ridenow e Alton; tinha comandado a Guarda durante seis anos na ausência de Kennard; era casado e tinha concebido diversos filhos.

Dyan prometera que a transferência não passaria sem protesto; de que estaria ele à espera? Regis olhou para o recinto de Ardais, mas Dyan permanecia sentado, sem sorrir, com o rosto inexpressivo.

Danvan Hastur avançou lentamente para o centro do salão e parou junto de Gabriel. Regis podia ver que Javanne se remexia excitada.

- Gabriel Lanart-Hastur, Alton de Mariposa - disse Hastur com voz calma. - Ao longo de seis anos regestes o Domínio de Alton na ausência de Kennard-Gwynn Lanart-Alton de Armida e do seu herdeiro legítimo Lewis-Kennard. Em face da continuada ausência destes dois, suplico-vos que renuncieis ao estado de Regente-Herdeiro do Domínio e que assumais o de Tutor de Alton e Lorde Alton de Armida, sobre todo o Domínio de Alton e sobre aqueles que lhe devem lealdade e fidelidade. Estais preparado para assumir a tutoria sobre o vosso povo?

- Estou preparado - disse Gabriel calmamente.

- Declarais solenemente que vos sentis apto a assumir esta responsabilidade? Haverá algum homem que possa contestar o vosso direito a esta solene tutoria do povo do vosso Domínio?

Gabriel pronunciou a resposta ritual correcta:

- Sujeitar-me-ei a tal contestação.

Ruyven di Asturien, subcomandante da Guarda e comandante da guarda de honra, veio postar-se ao lado de Gabriel e sacou da bainha a sua espada, entoando com voz forte:

- Haverá aqui alguém que conteste a valia e a legítima tutoria de Gabriel-Alar, Lorde Alton?

Seguiu-se um minuto de silêncio. Regis olhou para Dyan, que continuava impassível como antes. O jovem Gabriel, sentado na retaguarda do recinto de Hastur, estava a observar o pai com grande agitação. Irá Gabriel nomear o jovem Gabriel seu Herdeiro? Pensou Regis. Ou tomará a medida mais correcta de se declarar disposto a adoptar Marius como seu Herdeiro, conferindo-lhe o reconhecimento do Conselho? Juro pelo Senhor da Luz que, se não o fizer, fá-lo-ei eu mesmo...

Então, de dois recantos do salão, surgiram duas respostas:

- Eu contesto...

- E eu também.

Lentamente, Marius emergiu do camarote acortinado do vazio recinto de Alton, dizendo:

- Ninguém poderá contestar a valia do meu primo Gabriel, meus lordes; mas eu contesto a sua legítima tutoria. Sou Marius-Gwynn Lanard Alton e Aldaran, filho de Kennard Alton, e seu legítimo herdeiro na ausência do meu irmão mais velho, Lewis-Kennard, e reclamo o Domínio de Alton e a Casa de Armida.

E da retaguarda do recinto Ardais surgiu um homem que Regis não reconheceu: um homem alto e de ombros largos, com cabelos ruivos flamejantes e ligeiramente grisalhos. Desceu lentamente os degraus e disse:

- Contesto Gabriel-Alar Lanart-Hastur, valia e tutoria; ele é Regente, e não Herdeiro. Posso reclamar legitimamente o Domínio de Alton, apesar de há muitos anos ter renunciado a ele em favor de Kennard Alton; agora reclamo-o como Regente por Kennard, visto que Dom Gabriel violou a sua Regência ao reclamar o Domínio para si.

Danvan Hastur declarou formalmente:

- Não vos reconheço, explicai a natureza da vossa reclamação. - Contudo Regis sabia, pela expressão no rosto do seu avô, que este conhecia o homem, ou pelo menos sabia quem ele era. Deitou um rápido olhar a Dyan e, apesar dos amortecedores telepáticos, captou o pensamento, como vês, Regis, prometi-te que o Domínio não ficaria incontestado, e agora confundi-os com dois reclamantes, e não apenas um.

O estranho homem de cabelos ruivos declarou:

- A minha mãe foi Cleindori Aillard; o meu pai foi Lewis Lanart-Alton, primogénito de Valdir, Lorde Alton. E o meu nome, apesar de nunca o ter usado ao longo de todos os anos que passei em Arilinn, é Damon Lanart-Aillard, e desde há vinte anos sou Segundo na Torre de Arilinn como técnico e tenerézu. - Empregou o termo arcaico para significar Guardião. - Posso reclamar direito de Conselho, através da minha mãe e do meu pai; e fui casado com Elorie Ardais, filha de Lorde Kyril e meia-irmã de Lorde Dyan.

- Não reconhecemos este homem como um Aillard! - exclamou Merryl, saltando apressado os degraus quase até chegar ao espaço central. - Ele é um impostor terráqueo!

- Silêncio, sir - disse Lorde Hastur com firmeza. – Não pode falar pelo seu Domínio! Lady Callina?

- Conheci Jeff... Dom Damon ... durante muitos anos em Arilinn. A sua linhagem é Alton e Aillard. Se ele tivesse tido uma filha, esta estaria onde eu estou agora. É verdade que foi adoptado na Terra; contudo abrigou-se debaixo do Véu em Arilinn, e eu estou aqui pronta a testemunhar que ele possui o dom de Alton em ple na medida.

 - Iremos permitir que uma mulher preste testemunho sobre este género de coisa? - inquiriu Merryl.

E Derik declarou:

Dom Merryl tem o direito de falar em nome de Aillard...

- Não na presença de Lady Callina, mas apenas na sua ausência - disse Hastur de modo incisivo. - Temos, portanto, dois reivindicadores, e os tempos em que tais reclamações podiam ser resolvidas pela espada já terminaram para sempre. - Regis recordava-se da última vez em que se tinha assistido a uma tal contestação nesta sala. Dyan tinha sido raptado, e ele, um esgrimista de primeira, poderia ter logo resolvido o caso por recurso à espada. Mas, sabia mente, tinha-se recusado a fazê-lo. Criara aparentemente um pré cedente.

- Em apoio à pretensão de Gabriel temos a sua Regência dos assuntos do Domínio durante os últimos seis anos e o seu comando da Guarda do Castelo, e certamente ninguém poderá afirmar que desempenhou esses cargos sem mérito. Marius Lanart-Montray... - disse, voltando-se para Marius e falando para ele directamente, e Regis reparou que era esta a primeira vez que Lorde Hastur admitia a existência de Marius. Não se lhe dirigira usando o título reclamado como herdeiro de Kennard, Lanart-Alton, mas reconhecera a sua existência, e isso era mais do que fizera até agora. - Marius Lanart-Montray, dado que haveis apelado à justiça perante o Comyn, somos forçados por lei a escutar a natureza da vossa reclamação.

Marius tinha vestido as cores verde e negro do seu Domínio; trajava uma capa cerimonial exibindo a divisa dos Altons e a sua insígnia. Trazia, reparou Regis, a espada que pertencera ao seu pai. Sem dúvida Andres havia-a guardado propositadamente para este dia.

Com voz pouco firme, Marius disse:

- Declaro que sou o verdadeiro e legítimo filho de Kennard, Lorde Alton, e de Elaine Aldaran-Montray.

Hastur declarou:

- Não reconhecemos quaisquer direitos do Domínio de Aldaran sobre o Comyn.

- Mas isso tem de ser alterado - declarou o príncipe Derik, avançando um passo -, porque neste dia prometi em casamento a irmã do meu querido amigo, primo e leal escudeiro Merryl Lindir-Aillard com Lorde Beltran de Aldaran; e, mercê do casamento deste com Lady Callina, que será minha cunhada após o meu casamento com Linnell Lindir-Aillard, o Domínio de Aldaran será reintegrado no Comyn. Callina soltou uma curta mas nítida exclamação, e Regis percebeu que isto era novidade para ela! Merryl estava sorridente como um gato doméstico, um gato que acabou de devorar um pássaro engaiolado e finge lamber apenas alguns pingos de leite agarrados aos seus bigodes. Dyan inclinou-se para diante, com uma expressão de desânimo.

Mal disfarçando o tom de reprimenda na sua voz, Danvan Hastur exclamou:

- Meu príncipe, devíeis ter-me informado particularmente a respeito disto!

- Porquê? - quis saber Derik, sem tentar disfarçar o seu olhar insolente. - Haveis protelado a minha coroação para além da idade com que qualquer outro rei em Thendara acedeu ao trono, meu Lorde Hastur, mas não podeis recusar-me o direito de ajustar um bom casamento para o meu leal escudeiro.

Hastur murmurou qualquer coisa por entredentes. Parecia uma imprecação... ou seria uma prece? Não poderia refutar abertamente o Herdeiro do trono, e, pensou Regis, era bem feito que o seu avô se encontrasse agora numa situação difícil por nunca ter encarado o facto de Derik não poder vir a ser coroado, pois devia ter tentado pô-lo de lado com toda a legitimidade.

Com uma expressão de reprovação, Hastur disse:

- Falaremos deste assunto mais tarde, meu príncipe; ousarei agora recordar-vos de que é o Domínio de Alton que está em jogo?

- Mas Marius é em parte Aldaran, e a reclamação de Aldaran é agora legítima... - insistiu Derik. Parecia a Regis que o seu avô se encontrava prestes a dizer a Derik que, se não se sentasse e fechasse a boca, mandá-lo-ia sair do salão, e isso arruinaria a falsa máscara de competência de Derik. Mas Linnell Aillard, dobrando-se sobre a balaustrada, disse calmamente qualquer coisa a Derik, e este calou-se.

Marius estava obviamente tentando pôr em ordem os seus pensamentos, ao dizer:

- Contesto a tutoria de Gabriel; ele não possui o dom de Alton e não tratou de mandar monitorizar-me para se determinar se eu o tenho ou não.

Olhando directamente para Marius, Gabriel perguntou:

- Acaso afirmais possuir o dom de Alton?

- Não sei - respondeu Marius. - Não fui experimentado. E vós? Afirmais tê-lo? - e foi então interrompido por uma exclamação de surpresa emitida pelo Guarda postado à porta. - Que os deuses nos protejam! Sois vós, sir?

Uma figura alta e magra entrou na Câmara de Cristal. Trajava roupas terráqueas; um dos braços terminava numa manga dobrada à altura do pulso. O seu cabelo negro, espesso e encaracolado, estava salpicado de grisalho, e o rosto apresentava-se emaciado e cober to de cicatrizes.

- Sou Lewis-Kennard, Lorde Alton, Guardião de Armida disse ele numa voz áspera e tensa -, e imploro a vossa indulgência, meus lordes, por chegar atrasado a esta assembleia. Como podeis ver, acabo de aterrar, e vim imediatamente sem sequer parar para vestir as cores cerimoniais do meu Domínio.

Um rebuliço geral, reflectindo-se em todas as direcções das paredes da Câmara de Cristal, abafava a voz de Hastur, que tentava desesperadamente impor a ordem. Por fim disse algo a Gabriel, o qual gritou, com a sua voz estentórica de sargento-mor:

- O Conselho está suspenso durante meia hora! Voltaremos então a reunir para tentarmos perceber o que está a passar-se!

 

 (narrativa de Lew Alton)

Não tenho jeito para enfrentar multidões; nenhum telepata tem, e sou pior do que a maioria. Segundos após Hastur ter mandado interromper a sessão estavam todos à minha volta e, apesar dos amortecedores telepáticos, a mistura de curiosidade, horror, choque de rancor vindo de algures - era mais do que eu podia suportar.

Abri caminho até ao corredor externo, e momentos depois Marius estava ao meu lado.

- Lew - disse ele, e abraçámo-nos. Depois recuei um pouco para o observar.

- Não te teria reconhecido. Não passavas de um girino magrizela... - disse-lhe. Agora estava alto, quase tão alto como eu, robusto, de ombros largos: um homem. Podia ver a expressão de choque no seu rosto ao observar as cicatrizes na minha cara, o braço que terminava numa manga dobrada. Não sei se o nosso pai lhe teria dito alguma coisa - e ele era apenas uma criança quando tudo acontecera - mas só Deus sabe os boatos que ele tinha ouvido no Comyn. Bem, eu estava habituado àquela expressão de choque no rosto das pessoas quando me viam; bastava-me recordar a primeira vez que olhara para um espelho depois de tudo ter terminado. Acabavam por habituar-se, e se não se habituavam não ficavam por perto o tempo suficiente para que isso importasse. Por isso disse-lhe apenas: - Folgo muito em ver-te, irmão. Onde está Andres?

- Está em casa - disse Marius. - Ficou à espera. Não o deixei vir comigo esta manhã. Acontecesse o que acontecesse, não o queria misturado nisso. Já não é tão jovem como era. – Captei também a parte não dita. Ele não queria que alguém pensasse que o reclamante do Domínio Alton queria um guarda-costas terráqueo ou iria necessitar dele. Eu já não pensava em Andres como um terráqueo; tinha sido um segundo pai para mim, e o único pai que Marius tivera durante aqueles anos cruciais entre a infância e a idade adulta.

Também isso tinha sido por culpa minha. Depois, enfurecido, expulsei esse pensamento. Nenhuma lei exigira que o meu pai aplicasse toda a sua atenção no filho mais velho. Eu não tivera nada a ver com isso, mas Marius fora relegado para segundo plano devido a mim, e mesmo enquanto nos abraçávamos eu estava a imaginar em que medida ele se ressentia de tal facto. Mesmo agora talvez Marius achasse que eu chegara bem a tempo de sacar o Domínio das suas mãos.

Mas havia outros no Comyn que nada veriam em Andres excepto a sua origem e o seu nome terráqueo. Andres contava-se entre a meia dúzia de pessoas, ou ainda menos, que eu estava interessado em encontrar aqui em Darkover.

Um dos outros aguardou calmamente por detrás de Marius até que o nosso abraço afrouxou e recuámos um pouco.

- Então, Gabriel? - inquiri.

- Então, Lew? - disse ele como resposta, quase com a mesma entoação. - Não há dúvida de que escolheste um péssimo momento para surgires!

- Tenho a certeza de que terias preferido que ele esperasse um dia ou dois, até que já tivesses o Domínio bem arrecadado na tua carteira - retorquiu Marius com aspereza.

- Não sejas tonto, rapaz - disse Gabriel sem qualquer rancor, e lembrei-me de que o filho mais velho de Gabriel teria a idade de Marius, ou talvez pouco menos. - O que poderia eu pensar, sem recebermos palavra de Kennard? A propósito, Lew: como vai o velhote? Com pouca saúde para viajar?

Eu não quisera que Marius recebesse a notícia daquele modo, mas Gabriel captou-a na minha mente ainda antes que eu a verbalizasse, e Marius também. Gabriel disse qualquer coisa de condolente e Marius começou a chorar. Gabriel colocou um braço sobre os seus ombros enquanto ele se esforçava por recuperar a compostura. Era ainda suficientemente novo para se envergonhar de ser visto a chorar em público, mas atrás dele um outro meu parente nada fazia para disfarçar as lágrimas que lhe escorriam no rosto.

Eu já não o via desde que saíra de Arilinn, e ali, apesar de todos saberem que era o filho do irmão mais velho do meu pai e que poderia ter reivindicado legitimamente Armida antes do meu pai e de mim, ele atribuíra uma grande importância, um ponto de honra, a exibir o nome do seu pai adoptivo terráqueo; era Lorde Damon unicamente em ocasiões cerimoniosas. Fora disso conhecíamo-lo apenas como Jeff Kerwin. Enquanto ele me olhava, com as lágrimas traçando-lhe o rosto, eu recordava-me dos laços estreitos que ligavam os membros do círculo de Arilinn. Talvez fosse essa a única vez em que me sentira verdadeiramente feliz, verdadeiramente em paz, em toda a minha vida.

- Trouxeste-o ao menos para casa, primo, para descansar aqui? - perguntou-me ele.

Abanei a cabeça.

- Tu conheces as leis terráqueas - admoestei-o. – Regressei assim que... que o sepultaram.

Jeff suspirou e disse:

- Ele foi como um pai para mim, também, ou como um irmão mais velho. - Voltou-se para Marius, abraçando-o, e disse: - Não te via desde que eras criança... um bebé, na realidade.

- Temos portanto aqui quatro pretendentes ao Domínio Alton - disse uma voz simultaneamente severa e melodiosa atrás de nós. - Mas em vez de disputarem vigorosamente o Domínio, como seria de esperar tratando-se de montanheses, parecem entregues a um festival de amor! Que emocionante espectáculo, esta reunião!

Marius deu meia volta e exclamou:

- Ouça, seu... - Tinha as mãos apertadas em punhos, mas eu toquei-lhe no braço com a minha mão válida.

- Não lhe ligues, mano. Ele não sabe nada. Lorde Dyan, vós fostes amigo do meu pai, e haveis de gostar de saber o seguinte: Está sepultado em Vainwal, e no último dia da sua vida, escassos minutos antes de morrer, a sua morte foi muito rápida e inesperada, falou amavelmente de vós, dizendo que tínheis sido um bom amigo do meu irmão.

Enquanto falava daquele último dia, recordando-me... sentia a cabeça zunindo. A minha última ordem! Regressa, Lew, regressa e luta pelos direitos do teu irmão... Com aquele derradeiro comando ainda a ecoar-me na mente, abafando tudo o mais, sentia-me até preparado para tratar Lorde Dyan civilmente.

Dyan olhava fixamente para diante, com os maxilares cerrados, mas eu podia ver os músculos da garganta dele a moverem-se. Nesse momento senti-me mais próximo de simpatizar com Dyan Ardais do que nunca antes, ou desde então. O seu esforço para não chorar, como se fosse um rapaz ainda suficientemente novo para ter vergonha de verter lágrimas, emocionou-me como nenhum outro comportamento poderia ter feito. Jeff também estava emocionado, ao ponto de descansar a mão no ombro de Dyan. Lembrei-me de que Jeff tinha sido casado com a meia-irmã de Dyan - eu nunca a conhecera, pois tinha falecido antes de eu ter chegado a Arilinn – e ao olhar para ambos percebi como Jeff fora persuadido a abandonar Arilinn para vir para aqui, quando tinha tanto interesse pela Regência de Alton - ou pela política do Comyn - como pela vida amorosa das banshees. Menos, ainda, pois teria provavelmente alguma curiosidade intelectual a respeito das banshees. O silêncio prolongou-se.

... regressa e luta pelos teus direitos, pelos direitos do teu irmão...

Interminavelmente, um sem-fim a assolar-me a mente... Por um instante pareceu-me impossível que eles não ouvissem também. Finalmente Gabriel disse:

- Durante toda a minha vida ele esteve presente, uma figura de gigante. Custa-me acreditar que tenha desaparecido.

- Também a mim - disse Jeff. Olhou repentinamente para mim, e eu vi a minha cara reflectida na sua mente e senti-me chocado.

- Pelos infernos de Zandru, Lew! Vieste directamente do espaçoporto para aqui? - Confirmei com um aceno e ele perguntou:

- Quando foi que comeste pela última vez?

Pensei um pouco e por fim respondi:

- Não consigo recordar-me. Enfiaram-me tantas drogas a bordo... Ainda estou confuso. A minha última ordem... regressa... Foi para abafar aquele interminável clamor na minha mente que levei a mão à cabeça, mas Jeff segurou-me o braço.

- Não consegues pensar devidamente no estado em que te encontras, e pensar devidamente é a primeira coisa que vais precisar de fazer. Além disso, não é conveniente apresentares-te perante o Conselho usando roupas terráqueas. Talvez fosse uma novidade, durante uns momentos, mas seria capaz de levar as pessoas a pensarem coisas erradas. Dyan...?

O senhor de Ardais acenou, e Jeff prosseguiu:

- Estou alojado nos aposentos de Ardais, e não sei se estará alguém a ocupar os de Alton...

- Só os zeladores - disse Gabriel, com um sorriso irónico. Posso ser presunçoso, mas não sou tão presunçoso como isso...

- Anda, então - disse Jeff. - Poderemos arranjar-te qualquer coisa para comeres, algumas roupas decentes...

- Nas tuas ele ficaria a nadar, Jeff - disse Dyan. Observou-me de relance. - Estás mais magro do que eras. Diz-lhes para te arranjarem algumas roupas das minhas.

Jeff conduziu-me rapidamente ao longo do corredor; senti alívio ao afastar-me, pois alguns dos Comyn e dos outros presentes na Câmara de Cristal tinham regressado ao vestíbulo. Vi alguns usando as cores de Ridenow, e o rebrilhar de dourado e verde fez-me pensar em Dio.

Estaria ela aqui? Iria ela confrontar-me de um momento para o outro, gritando: Monstro! Iria ela pensar que eu tinha vindo para forçá-la a regressar, como se a cerimónia terráquea tivesse feito dela uma prisioneira minha?...

O seu toque, a sua compreensão... isso poderia até ter acalmado o tumulto na minha mente... Todavia o nosso amor não tinha sido suficientemente forte para resistir a tragédia. Como poderia eu esperar isso... Aquela coisa horrível... nenhum homem teria o direito de fazer uma coisa dessas a uma mulher...

 - Calma - disse Jeff. - Estamos quase a chegar. Senta-te. Empurrou-me para uma peça de mobiliário. Era uma sensação de fantasia, de dejà vu, pois eu não tinha ideia de já ter estado nos aposentos de Ardais. Contudo o meu pai conhecera-os bem, supunha, porque Dyan tinha sido o seu amigo mais íntimo quando ambos eram jovens... Pelos infernos de Zandru, seria possível que eu nunca mais estivesse certo de quais os pensamentos, as sensações, as emoções que eram minhas e quais as que pertenciam ao meu pai? O contacto forçado que despertara o meu dom de Alton aos onze anos de idade tinha sido bastante desagradável, mas aquele derradeiro aperto mortal na minha mente... Estremeci, e quando Dyan me trouxe uma bebida encostei-me ao seu ombro por um momento, deixando que ele me apoiasse. Memórias de um Dyan mais jovem invadiram -me com um calor de afecto, um calor quase sensual que me chocou até aos ossos, e desci prontamente as barreiras ao mesmo tempo que me libertava do seu apoio. Esvaziei o copo sem dar pelo que estaria a beber. Era a potente aguardente firi das Colinas de Kilghard.

 - Obrigado. Estava mesmo necessitado, mas um pouco de sopa talvez caísse melhor, ou então qualquer coisa mais sólida...

- Se bem me recordo - disse Dyan -, também o teu pai era alérgico às drogas terráqueas. - Usou o termo terráqueo para “alérgico”, pois não existia palavra semelhante em casta. - Se fosse a ti, não iria insistir em comer nada sólido durante algumas horas. Dentro de alguns minutos vão trazer-te qualquer coisa para comeres, mas não dispões de tanto tempo assim. Podíamos pedir um adiamento de um ou dois dias, se quisesses. - Olhou em redor, viu Marius atar dando-se por perto, e perguntou-lhe: - Onde está Gabriel?

 - Ele faz parte da guarda de honra - explicou Marius. - Tinha de regressar, segundo disse.

- Bolas! - ripostou Jeff, mal-humorado. - Vamos ter de reunir uma conferência de família.

Os lábios de Dyan comprimiram-se.

- É melhor mantermos Gabriel afastado - disse. - Não passa de um lacaio dos Hastur. Sempre suspeitei de que foi por isso que o velho Hastur o consorciou com aquela moça... com a neta dele. Espero que tenhas tido o senso suficiente para não deixares que te levassem ao casamento e que gerasses um filho, Lew?

Com um esforço que me estremeceu, fiz descer uma barreira. Já bastava que eu nunca fosse conseguir tirar da memória aquela coisa inumana que devia ter sido o meu filho. Se alguma vez ele tivesse de ser partilhado, nunca o seria com Dyan. Este bem podia ter sido o amigo e confidente favorito do meu pai; nunca seria o meu. Sacudi o braço com que ele me apoiava e pus-me em pé.

- Vejamos então essas roupas. Não, não me importo de usar as cores de Ardais...

Contudo, Marius tinha mandado um serviçal à nossa casa citadina com ordens para me trazer uma capa e outras roupagens do nosso Domínio. Olhei para o espelho, e vi-me transformado. Poderia até esconder a mão em falta numa dobra da capa, se o desejasse. Marius entregou-me a espada que tinha sido do nosso pai e coloquei-a à cinta, tentando não pensar na matriz de Sharra.

Não estava muito longe de mim; não poderia tolerar uma grande distância entre mim e a matriz... Eu bem tentara, uma vez mais, deixá-la em Vainwal, pensando que desta vez poderia ver-me livre dela... mas logo tinha sentido a ardência, o clamor ofuscante... Quase perdera a nave ao constatar que não poderia abandoná-la, pois abandoná-la seria a minha morte... não que me importasse muito de morrer... estaria melhor morto do que escravizado desta forma...

- Ao menos já pareces um Comyn - disse Jeff. - Vais precisar de lhes fazer frente no seu próprio terreiro, Lew.

Apressei-me a compor os atilhos da túnica, tentando demonstrar a minha arte de maneta porque sentia Marius a observar-me. Os olhos de Dyan passaram de relance pela manga vazia.

- Fartei-me de dizer a Kennard que aquela mão teria de ser decepada - comentou ele. - Já em Arilinn deveriam tê-lo feito, mas ele não deixava de ter esperanças de que os Terráqueos poderiam fazer alguma coisa. A ciência terráquea era uma das poucas coisas em que ele continuava a acreditar, mesmo depois de ter perdido a fé em quase tudo.

O silêncio prolongou-se. Jeff, que tinha visto a mão em Arilinn e tentara salvá-la, estava prestes a dizer alguma coisa, mas enviei-lhe um comando mental para ficar em silêncio. Talvez um dia eu pudesse discutir o assunto com Jeff, mas nunca com Dyan; e não com qualquer pessoa, aqui e agora.

Dio tinha-a aceitado... Interrompi essa linha de pensamento, receoso do que ela poderia provocar. Mais cedo ou mais tarde, acho eu, voltarei a vê-la, e gostaria de lhe afiançar que ela está livre... que não é minha prisioneira ou escrava, que não está ligada a mim...

Alguém bateu ligeiramente à porta e um dos servos de Hastur, de libré azul e prata, entrou para apresentar os cumprimentos do Regente e solicitar que os lordes de Ardais e Alton regressassem ao Conselho.

Com um ligeiro recurvar dos lábios, Dyan disse:

- Ao menos não haverá agora qualquer razão para declarar vago o Domínio.

Era verdade. Ao princípio não houvera nenhum reclamante legítimo; agora eram quatro. Perguntei a Marius, enquanto percorríamos o corredor a caminho da Câmara de Cristal:

- Tens o Dom de Alton?

Marius tinha os olhos negros da nossa mãe terráquea. Sempre pensara que os olhos negros eram inexpressivos, ilegíveis.

- Não faço a menor ideia - respondeu ele. - Por várias maneiras tem-me sido dado a entender que seria uma insolência intolerável tentar determiná-lo. Mas estou razoavelmente certo de que Gabriel não o tem.

- A razão da minha pergunta - disse eu, exasperado -, é que eles irão insistir comigo para que declare um Herdeiro. - Sabia que ele poderia captar a parte que eu não dissera em voz alta, que preferiria partir do princípio de que ele possuía o dom, sem recorrer às tácticas de choque que o meu pai tivera de usar para despertar o meu próprio dom.

- Talvez seja irrelevante - comentou Dyan. - Toda a gente sabia que eu não tinha o Dom de Ardais; isso não os impediu de me declararem Herdeiro e Regente do meu pai. - O Dom de Ardais, a telepatia catalítica, a faculdade de despertar o laran latente, havia sido considerado extinto até ter sido descoberto em Danilo. Isso fez-me pensar em Regis, tentando imaginar por que razão ele não tinha vindo saudar-me. Bem, se houvesse uma conspiração para colocar o Domínio de Alton sob a tutela de Hastur, não me surpreenderia que ele não estivesse disposto a encarar-me imediatamente.

... luta pelos direitos do teu irmão... última ordem...

Sacudi a cabeça para me libertar do chocalhar insistente, e regressei à Câmara de Cristal acompanhado pelos meus parentes. Uma conferência apressada estava a decorrer por detrás das cortinas do recinto de Hastur. Por uma vez na vida sentia-me contente pela existência dos amortecedores telepáticos, que reduziam a um nível aceitável o ruído que ecoava na minha cabeça. Quando a sessão foi por fim reaberta, Danvan Hastur pôs-se em pé e disse:

- Depois de não haver nenhum reclamante legítimo ao Domínio de Alton, agora temos quatro, e a situação precisa de ser analisada. Requeiro que adiemos a investidura formal de Lewis Alton por sete dias, até que termine o período de luto do Conselho por Kennard Alton.

Eu não poderia protestar que eles dessem ao meu pai aquilo que lhe era devido. Marius tinha vindo tomar assento ao meu lado no recinto de Alton. Reparei que a esposa de Gabriel, Javanne Hastur, fora sentar-se entre os Hasturs, ao lado de um rapaz moreno e esguio muito parecido com Gabriel e que devia ser o seu filho mais velho. O próprio Gabriel, que estava junto da guarda de honra, via-se assim aliviado de qualquer confusão sobre se deveria sentar-se com os Hasturs ou com os Altons, e eu achava provável que ele tivesse planeado tudo desse modo. Sempre tinha simpatizado com Gabriel, e achava que ele falava sempre com franqueza. Quando o meu paradeiro e de meu pai era desconhecido, ele havia reclamado o Domínio por ordens de Hastur. Na minha opinião, não tinha motivos para me preocupar com ele. Os meus olhos procuraram o velho Hastur, uma figura pequena e inflexível, encanecido, muito direito, como a rocha em que se apoiava o próprio castelo, e imutável como ela. Seria ele o verdadeiro inimigo que eu tinha de enfrentar?

E porquê? Sabia que ele nunca simpatizara muito comigo, mas eu tinha tido a delicadeza de acreditar, até agora, que ele não o fizera por motivos pessoais; eu era, para ele, apenas um lembrete desconfortável da teimosia do meu pai ao casar-se com a mulher errada, e ele agira como se o meu sangue terráqueo e Aldaran fosse apenas um erro do qual eu não era culpado. Mas agora tudo me parecia confuso: Hastur estava a comportar-se como meu inimigo, e Dyan, que sempre me detestara, procedia como meu parente e amigo. Não estava a entender nada. Na retaguarda do recinto Hastur reconheci Regis. Não parecia ter mudado muito; estava mais alto e mais largo de ombros, e o rosto dantes pueril apresentava-se agora ensombrado por uma rala barba arruivada, mas ainda tinha a boa aparência dos Hasturs. As mudanças deviam residir no interior; seria de esperar que ele tivesse vindo cumprimentar-me, e o rapaz que eu conhecera tê-lo-ia feito, mais depressa ainda do que Marius. Eu tinha, com efeito, estado mais próximo de Regis do que do irmãozinho de quem me tinha separado um fosso de seis anos.

Hastur estava a chamar-nos à ordem de novo, e vi o príncipe Derik, no recinto de Elhalyn, acompanhado por diversas pessoas que eu não conhecia. Seriam provavelmente as suas irmãs mais velhas com as respectivas famílias, ou alguns dos conhecimentos dos Elhalyn, Lindirs talvez, Di Asturiens, Dellerays. Mentalmente contei pelos dedos; por que razão Derik não teria ainda sido coroado?

Lembrava-me de que ele tinha sido dado por muito imaturo ainda aos dezasseis anos, mas agora já estaria bem entrado na casa dos vinte. Havia muita coisa que eu desconhecia; estava a ser atirado para o Conselho sem ter tido tempo para conhecer o que se tinha passado! Por que motivo, em nome dos provavelmente inexistentes deuses do Comyn, teria eu decidido regressar?

... última ordem... luta pelos direitos do teu irmão... Apesar dos amortecedores, a ordem do meu pai continuava a reverberar-me na mente, até fazer-me pensar seriamente, como tinha acontecido durante a viagem, se teria havido danos no meu cérebro! A ira desbragada de um Alton pode matar; eu sempre o soubera, e o dom mental do meu pai era invulgarmente possante. Agora, com ele já falecido, deveria estar livre daquela voz dominadora na minha mente.

 Parecia-me estar mais comprometido do que nunca, mais atormentado. Iria eu alguma vez livrar-me daquilo? Marius reparou nos meus gestos de nervosismo e aproximou-se mais para me perguntar:

- O que se passa, Lew? - Mas eu sacudi vigorosamente a cabeça e sussurrei:

- Nada. - Sentia aquela estranha impressão de estar a ser observado de algures. Na verdade, contudo, sempre tinha tido essa sensação quando presente no Conselho. Fiz um esforço para me controlar e para me concentrar no que estava a decorrer.

Hastur declamou, com ar grave:

- Meu lorde Derik, antes do Conselho ter sido interrompido...

- Foi-me possível ouvir o que ele tencionara dizer, transtornado ... pela chegada de um inesperado Herdeiro de Alton... - ao menos admitia que eu era isso - ... vós tínheis falado de uma aliança que havíeis feito. Podereis explicar-nos qual aliança, vai dom?

- Creio que será melhor deixar que Merryl o faça - disse o príncipe Derik -, visto dizer respeito aos Aillards.

Merryl ia a sair com lentidão do recinto, mas foi detido por uma límpida voz feminina.

- Oponho-me a isso - disse a voz, que eu reconheci. – Dom Merryl não pode falar pelos Aillards. - Ao levantar o olhar vi a minha prima Callina atravessando lentamente o centro do recinto.

Parou junto da balaustrada e aguardou. Aquela voz cristalina perturbava-me; tinha-a ouvido pela última vez quando Marjorie morrera. Ela tinha morrido nos braços de Callina. E eu... Uma vez mais parecia-me poder sentir a antiga agonia na minha mão ferida, arrepelando-me nervos e dedos e unhas que há muito tinham deixado de existir... Isto era uma loucura; esforcei-me por recuperar o domínio sobre mim mesmo e escutar o que Callina estava a dizer:

- Por uma questão de cortesia, Lorde Hastur, no que diz respeito ao Domínio dos Aillards eu devo ser convidada a dar o meu consentimento antes de Dom Merryl falar.

Ela era esbelta e de aspecto franzino, e trajava com o esplendor cerimonial e os véus carmesim de uma Guardiã no Conselho, e eu, que passara anos em Vainwal vendo mulheres que pareciam livres e vivazes, pensei que ela parecia uma prisioneira, com os pesados mantos e os ornamentos cerimoniais que sobrecarregavam o seu corpo frágil fazendo-a parecer agrilhoada, como uma criança tentando usar as roupas de um adulto. Os seus cabelos, do pouco que conseguia ver rebrilhando através do véu, eram longos e escuros como vidro negro estirado na fieira Merryl voltou-se para ela com uma expressão de ódio puro, e disse:

- Foi-me confiada a administração dos assuntos do Domínio enquanto vós estivestes isolada em Neskaya e depois em Arilinn, senhora minha; deverei agora entregar-vos de novo tudo isso, por um capricho vosso? Parece-me que a forma como tenho administrado o Domínio reflecte a minha competência; como será a vossa?

- Não ponho em dúvida a vossa competência – respondeu ela, e a sua voz era como prata derretida. - Contudo, quando as vossas disposições para as alianças do Domínio me dizem respeito, tenho o direito legítimo de questioná-las e, se necessário, de vetá-las. Respondei ao que Hastur vos perguntou, meu irmão. - Ela usou a versão mais formal e distante dessa palavra. - Não posso comentar antes de saber o que estará a ser proposto.

 Merryl parecia embaraçado. Eu mal o conhecia; desconhecia a maioria dos Aillards mais jovens, se bem que a irmã mais nova de Callina, Linnell, fosse minha irmã adoptiva. Agora Merryl estava a saltitar nervosamente de um pé para o outro olhando para Derik, o qual mostrava um sorriso tolo e não ia em seu auxílio, e por fim disse:

 - Tomei as medidas necessárias para que Lady Callina consolide uma nova aliança, ligando-se pelo casamento com Dom Beltran de Aldaran.

Vi uma expressão de choque tomar conta do rosto de Callina, mas não fui capaz de me conservar em silêncio, exclamando:

 - Vocês devem estar todos loucos! Como disseram? Uma aliança com Aldaran? Beltran de Aldaran?

Hastur deitou-me um olhar de reprovação, e Derik disse:

- Não conheço razões que a impeçam. - Parecia estar na defensiva, muito inexperiente. - Os Aldarans já se aliaram pelo casamento a um dos principais Domínios, como vós, Dom Lewis, devereis saber melhor do que ninguém. E nos tempos que correm, com os Terráqueos à nossa porta, bem me parece que devemos aproveitar esta oportunidade para fazer regressar a sua lealdade ao Comyn.

Ele estava a repetir isto como uma criança repete uma lição aprendida. Tentei discernir quem lhe teria ensinado essa teoria. Olhando de relance para Merryl, decidi que não precisaria de ir muito longe à procura da resposta. Fosse como fosse... uma aliança com Aldaran? Com aquele maldito clã de renegados?...

- Desde quando estará uma Guardiã sujeita aos caprichos do Conselho? - inquiriu Callina. - Sou por direito próprio a regente do Domínio de Aillard, e não presto vassalagem a Dom Merryl. Penso não ser necessário continuarmos a discutir este... – Quase podia ouvi-la a seleccionar mentalmente um adjectivo que não fosse ofensivo, e por fim decidiu-se: - ...este plano mal-avisado. Lamento, meu príncipe: recuso-me.

- Recu... recusais? - Derik voltou-se para olhá-la, espantado. Ela fez um gesto de impaciência; o véu descaiu, revelando os seus cabelos escuros entrançados com pedras preciosas.

- Não tenho qualquer desejo de me consorciar nesta ocasião - declarou. - Quando o tiver, serei certamente capaz de encontrar um esposo adequado. E bem me parece que não irei procurá-lo no Domínio de Aldaran. Sei a respeito desse Domínio mais do que desejaria saber, e posso afirmar-vos que mais valia que nos entregássemos já aos abomináveis Terráqueos do que entrarmos em alianças com aqueles... - Uma nova selecção mental, uma esforçada procura de um termo justo - ...com aquele Domínio renegado e exilado.

- Domna, vós fostes mal informada - interveio Dyan. A voz dele tinha aquele estranho timbre de cortesia indiferente que ele sempre usava ao dirigir-se a mulheres. - Os Aldarans já não andam ao colo dos Terráqueos. Beltran quebrou a aliança com a Terra, e por essa razão, não havendo outra, não me parece que nos convenha continuarmos isolados de Aldaran. - Voltou-se para o Conselho e explicou: - A aliança com Aldaran dar-nos-ia mais força, e é disso que necessitamos agora, de nos unirmos contra a pressão do Império Terráqueo. Sem dúvida, existem alguns entre nós prontos a entregar-nos aos Terráqueos... - Os seus olhos desviaram-se para o recinto dos Ridenow - ...mas há outros que permanecem leais ao nosso mundo e aos antigos modos. É a esses, estou certo disso, que Beltran pertence. Os nossos antepassados - por razões que decerto lhes pareceram justas - expulsaram do Comyn o Domínio de Aldaran. Existiam então sete Domínios; hoje em dia deveriam existir de novo sete Domínios, e esta medida, tenho a certeza, captaria a imaginação da gente comum.

- Eu sou uma Guardiã! - disse ela.

Dyan encolheu os ombros e ripostou:

- Existem outras. Se Beltran solicitou uma aliança com o Domínio Aillard...

- Nesse caso afirmo em nome dos Aillards que não aceitaremos - disse Callina, voltando-se inesperadamente para mim. E aqui está alguém que pode provar a verdade do que afirmo.

 - Seus loucos malditos e incríveis! - ouvi a minha voz dizer, e enquanto Hastur se virava para mim, escutei um distúrbio de vozes, depois um burburinho, depois um clamor, e compreendi que, uma vez mais, tinha provocado uma perturbação no Conselho, atirando-me de cabeça para uma discussão sobre a qual eu nada sabia. Mas dera o primeiro passo, e agora tinha de prosseguir.

- Os Terráqueos são já por si bastante maus. Mas aquilo em que os Aldarans nos envolveram... - Procurei controlar-me. Não iria, não poderia dizer o nome daquele voraz terror que deflagrara nas montanhas, que destruíra Caer Donn envolta em chamas, que me havia cauterizado a mão e a sanidade mental...

 - Tendes de estar a favor desta aliança - comentou Derik. - É que, se reconhecermos os Aldarans, deixará de estar em causa a vossa legitimidade, não será assim?

Pus-me a olhar para ele, tentando decidir se Derik seria idiota a este ponto ou se a sua afirmação tinha uma profundeza que de algum modo me escapava; ninguém parecia predisposto a questioná-la. Isto era como um daqueles pesadelos em que pessoas perfeitamente comuns dizem as coisas mais inconcebíveis que todos aceitam como normais.

Dyan Ardais interveio sem rodeios:

- Não existe qualquer questão de legitimidade. O Conselho aceitou o filho mais velho de Kennard, e isso é um facto consumado. Senta-te e escuta, Lew. Estiveste longe daqui durante muito tempo, e talvez mudes de opinião quando souberes o que tem acontecido desde que te foste embora. Talvez não vá alterar o teu estatuto, mas poderá mudar o do teu irmão.

Olhei de relance para Marius. Era certo que o reconhecimento de Aldaran faria muito para lhe alterar a legitimidade ou a ilegitimidade. Mas pensaria realmente Dyan que isso poderia fazer com que o Conselho ignorasse o sangue terráqueo do meu irmão? Dyan prosseguiu, com a sua poderosa voz musical num tom persuasivo e amável:

- Penso que é o teu ódio a falar, e não o teu bom senso. Membros do Comyn... - disse, olhando em redor. - Creio que todos podemos concordar que Dom Lewis tem motivos para ter ideias preconcebidas. Mas tudo se passou há muito tempo. Escuta o que temos a dizer, está bem?

Ouviu-se um murmúrio geral de aprovação. Sentia-me capaz de fazer frente à hostilidade de Dyan, mas isto... Raios o partissem!

Ele tinha sugerido - não, ele declarara-o - que eu merecia a compaixão de todos: um aleijado com antigos ressentimentos, tentando, logo ao regressar, reavivar uma velha rixa! Concentrando-se magistralmente em todos os sentimentos não declarados, a sua compaixão, a admiração e a amizade que tinham dedicado ao meu pai, dera-lhes uma boa razão para ignorarem aquilo que eu dissera.

O pior de tudo era que eu não tinha a certeza de que Dyan estava errado. A rebelião em Aldaran, na qual eu tinha tido um papel desastrosamente obstinado, tinha sido, como todas as guerras civis, um sintoma de algo seriamente errado na cultura, e não um objectivo em si. Os Aldarans não eram os únicos em Darkover que se tinham deixado conquistar pelo Império Terráqueo. Os irmãos Ridenow tinham quase desistido de fingir prestar vassalagem ao Comyn... e também não eram os únicos. O Comyn, pelo menosoficialmente, evidenciara-se quase isolado contra o engodo do Império Terráqueo, que prometia um mundo tornado mais fácil, maissimples, graças à tecnologia terráquea e a uma aliança abrangendoas estrelas. Eu tinha sido um fácil bode expiatório para ambas as partes, com o meu sangue terráqueo de um lado e, do outro lado, o facto de que Kennard, educado na Terra, voltara todavia as cós tas ao Império, tornando-se um dos mais firmes apoiantes da prudência do Comyn. Talvez todos os filhos se rebelem contra os seus pais por uma questão de princípio, mas poucos podem ver a sua rebelião pessoal transformar-se numa tal tragédia, ou fazer abater semelhante desastre sobre a sua cabeça e sobre as das suas famílias.

 Eu tinha sido arrastado para a rebelião, e o meu tremendo laran, apurado em Arilinn, fora colocado ao serviço da rebelião de Beltran e de... mesmo agora ainda não era capaz de dizer o nome, nem sequer de mim para mim. A minha mão válida apertou a matriz para logo a soltar, como se me queimasse.

Sharra. Rapace, enfurecida, uma cidade em chamas... Que raio estaria eu fazendo aqui, duas vezes assombrado e atormentado pela voz do meu pai... Lerrys Ridenow pôs-se em pé, voltando-se para Lorde Edric a aguardar permissão para falar; Edric concedeu-lhe o mais ligeiro sinal de reconhecimento:

 - Com a vossa permissão, meus lordes. Gostaria de dizer que toda esta discussão talvez seja fútil. Já lá vai o tempo em que as alianças podiam ser cimentadas através de matrimónios com mulheres relutantes. Lady Callina é uma Guardiã, e também a regente independente de um Domínio. Se Aldaran deseja regressar ao Comyn através de um casamento...

 - Isso era o que vós queríeis, não era? - exclamou Merryl.

- Estabelecer uma óptima aliança para um dos vossos, e alinhar Aldaran com o resto dos bajuladores a lamber o rabo dos Terráqueos...

- Basta! - exclamou Callina com aspereza, mas foi-me possível observar a ténue mancha de cor que lhe tingia a face. Ela era demasiado antiquada, e demasiado educada, para o repreender directamente pela obscenidade, mas não deixou de dizer: - Não te dei permissão para falares!

- Pelos infernos de Zandru - berrou Merryl. - Podereis fazer calar aquela mulher, Lorde Hastur? Ela nada sabe a respeito disto... tem passado a vida toda encerrada numa Torre a seguir a outra... e agora apresenta-se aqui como títere da velha Ashara, mas iremos nós aceitar esta ideia absurda de que uma virgem profissional enclausurada saberá alguma coisa a respeito da condução do seu Domínio? O nosso mundo encontra-se à beira da destruição. Iremos ficar aqui sentados ouvindo uma rapariga a guinchar que não deseja casar-se com este ou com aquele?

Callina estava lívida; deu um passo em frente, com a mão a agarrar o pescoço onde eu sabia que ela escondia a sua matriz. Com voz baixa mas que alcançava o tecto abobadado da Câmara de Cristal, ela disse:

- Merryl, a regência do Domínio não está em discussão aqui. Poderá chegar a altura em que queiras disputá-la. Não poderei conservá-la pela força das armas... mas não deixarei de lutar por ela com todos os meios ao meu alcance. - Depositou a mão na matriz, e pareceu-me escutar um ressoar indistinto semelhante a uma trovoada longínqua. Sem lhe ligar, voltou-se para Gabriel e disse: Meu lorde comandante, estais encarregue de manter a paz nesta câmara. Executai o vosso dever.

Gabriel colocou a mão no braço de Merryl e falou-lhe em voz baixa e insistente. Apesar dos amortecedores telepáticos não tive dificuldade em captar as implicações do que Gabriel lhe dizia: que, se Merryl não se sentasse e ficasse calado, ele trataria de o expulsar à força. Cerrando os dentes, Merryl olhou para Dyan Ardais, como que a pedir-lhe apoio, e depois para o príncipe Derik.

Constrangido, este disse:

- Vá lá, Merryl, isso não é maneira de falar diante de damas. Falaremos mais tarde do assunto, meu caro rapaz. Haja aqui paz e calma, a qualquer preço.

Merryl enterrou-se no assento, furibundo. Com voz calma, Callina prosseguiu:

- Quanto a este casamento, parece-me que todos os presentes sabem que não é um casamento que está em discussão. É o poder, meus lordes, o poder no Comyn. Por que razão não damos às coisas os seus nomes correctos? A questão que temos perante nós, e parece-me que o meu irmão o sabe tão bem como eu, é esta: desejaremos colocar este tipo de poder do Comyn nas mãos dos Aldarans? Parece-me que não. Encontra-se ali sentado alguém que poderá confirmar a verdade do que digo. Quererás dizer-lhes, Dom Lewis, a razão pela qual seria imprudente colocar todo esse poder nas mãos de Aldaran, ou confiar nele?

Senti a minha testa cobrir-se de suores frios. Sabia que deveria explicar, calmamente e sem pressas, como em certa altura eu confiara em Beltran, e como tinha sido... atraiçoado. Precisava de falar com toda a calma e sem emoções excessivas. Contudo, ter de expor tudo aqui, no Conselho, perante todos aqueles parentes que tinham tentado negar-me o meu próprio lugar neste salão... Não seria capaz. Sentia a minha voz estrangulada na garganta, e sabia que, se tentasse falar, falharia por completo. A voz do meu pai, as chamas vorazes de Sharra, as contínuas vibrações arrítmicas da discordância telepática... a minha cabeça era um pandemónio.

 Porém Callina continuava à espera de que eu começasse a falar, e abri a boca, esforçando-me por encontrar palavras. Ouvi apenas um crocitar sem significado. Por fim consegui dizer:

- Tu... tu sabes. Tu estavas lá em Arilinn...

E logo me encolhi perante a piedade expressa nos olhos de Callina ao dizer:

- Estava presente quando Lew chegou a Arilinn com a sua esposa, depois de ambos terem arriscado a vida para quebrarem a ligação com Sharra.

- Sharra não é relevante aqui - disse Dyan com aspereza. A ligação foi quebrada e a matriz novamente controlada. Agora estamos a falar de Beltran de Aldaran. Também ele tem um forte interesse em assegurar-se de que nada de parecido sucederá de novo. Quando a Lew... - Os seus olhos voltaram-se para mim. - Lamento dizer isto, parente, mas aqueles que se intrometem com forças tão poderosas como as de Sharra não deverão queixar-se se ficarem... magoados. Não posso deixar de pensar que Lew atraiu sobre si os seus problemas, e aprendeu a lição, tal como Beltran aprendeu a dele.

Baixei a cabeça. Talvez ele tivesse razão, mas isso não facilitava nada. Tinha de aprender a viver com o que acontecera, de um modo ou outro. Isso não significava que estivesse disposto a ouvir Dyan sermonear-me a esse respeito.

Regis Hastur levantou-se do seu lugar no recinto de Hastur. Sem olhar para mim, disse.

- Não sou capaz de entender como Lew possa ter alguma culpa do sucedido. De qualquer forma, não creio que possamos confiar em Beltran. A culpa foi deste, e de Kadarin. E Lew era parente de Beltran, e seu convidado, e encontrava-se sob a salvaguarda da sua hospitalidade. Ele aprisionou-o, aprisionou-me também, e raptou Danilo tentando forçá-lo a usar o seu laran no círculo de Sharra. E se Beltran tratou um parente desta forma - voltou-se para mim e fez um gesto que parecia ser um mudo pedido de desculpas por fazer incidir todos os olhos sobre mim - como poderá alguém confiar nele?

Podia ler o horror estampado nos olhos virados para mim; mesmo através dos amortecedores telepáticos esse horror invadiu-me a mente, o choque e o horror... as cicatrizes no meu rosto, o braço terminando abruptamente no pulso, o pavor que me assaltara, manifestado por Dio ao ver na minha mente a monstruosidade que tinha sido o nosso filho. Misericordiosa Avarra, esta agonia não irá ter fim? Apoiei a testa nos braços, escondendo o rosto, escondendo o braço mutilado. Marius pousou a mão no meu ombro; quase não a sentia ali. A voz de Danilo, trémula de emoção, retomou a história onde Regis a deixara.

- Foi tudo obra de Beltran; deu ordens para que Lew fosse amarrado e agredido, e retirou-lhe a sua matriz pessoal. Todos vós do Comyn que já estiveram numa Torre sabeis o que isso significa! E porquê? Porque Lew lhe suplicou que tivesse cuidado com Sharra, que a confiasse a uma das Torres para se tentar encontrar um modo de controlá-la. E olhem para a cara de Lew! Este... este torturador é o homem que desejais convidar cortesmente para o Comyn, para se consorciar com a regente de um Domínio que é a Guardiã de Ashara?

A voz de Dyan era como um zorrague ao dizer:

- Não te dei permissão para falares!

Danilo voltou-se para ele. Estava lívido.

- Meu lorde, com todo o respeito, estou apenas a narrar a verdade daquilo que testemunhei com os meus próprios olhos, e é relevante para o que está a ser discutido perante o Comyn. Usufruo do direito de tomar assento no Conselho; será que devo manter-me em silêncio?

Com desaprovação patente na voz, Hastur interveio:

- Está a parecer-me que hoje é o dia em que todos os fogosos membros mais jovens dos Domínios têm ganas de falar perante o conselho sem permissão dos seus superiores! - Os seus olhos fixaram-se em Merryl e em Danilo, e a seguir em Regis, e este engoliu em seco.

- Com a vossa permissão, sir, apenas posso repetir o que o meu escudeiro disse: estou a prestar testemunho daquilo que eu próprio vi e testemunhei. Quando vemos os nossos anciãos e... e os nossos superiores prestes a darem um passo que não dariam de forma honrosa se estivessem conhecedores de todos os factos... nesse caso... - hesitou de novo, quase a gaguejar -... nesse caso, em defesa da honra do Comyn, temos a obrigação de dá-los a conhecer. Ou então, sir, deveremos crer que o Comyn considera de nula importância o facto de Beltran ter sido capaz de atraiçoar, e de torturar, um seu familiar? - As palavras de Regis eram impecavelmente corteses, bem como o tom; mas os seus olhos pareciam emitir faíscas.

- Tudo isso - disse Dyan - sucedeu há já bastante tempo... - Mesmo assim - prosseguiu Regis -, antes de trazermos Beltran de Aldaran para o Comyn, quer por direito conjugal quer por qualquer outro modo, não deveremos primeiramente assegurarmos de que ele já aprendeu a reavaliar aquilo que aconteceu? - E a seguir Regis disse aquilo que eu sabia que deveria ter sido dito por mim próprio: - Em nome de todos os deuses, desejaremos que caia sobre Thendara o género de calamidade que aconteceu em Caer Donn? Desejaremos... Sharra?

Lerrys Ridenow avançou para o centro da plataforma. Não tinha voltado a vê-lo depois do meu casamento com Dio, mas ele não mudara: esbelto, elegante, agora trajando roupas darkoverianas, o verde e ouro do Domínio de Ridenow, mas exibindo o mesmo donaire com que se apresentara no vestuário usado no mundo do prazer.

- Vais exorcizar de novo o papão de Sharra? - exclamou. Sabemos todos que a ligação foi quebrada e que a matriz foi controlada de novo. A matriz de Sharra já não traz problemas para ninguém, ou melhor... - prosseguiu, levantando a cabeça e inclinando-a ligeiramente para um lado ao lançar-me um olhar cheio de significado -, talvez possa trazer grandes problemas para Lew Alton, mas nesse caso a culpa é toda dele...

Como poderia ele saber disso? Dio deve ter-lhe contado... Como pôde ela?... Como pôde ela revelar-lhe o que era tão pessoal para mim? E que mais lhe teria ela dito, que mais lhe teria revelado? Eu confiara nela implicitamente... A minha mão apertou-se num punho, e controlei com esforço uma arremetida de náusea. Recusava-me a acreditar que Dio me tivesse atraiçoado desta forma.

Contudo, ao meu lado, Marius pôs-se em pé. Sobressaltei-me, e estive prestes a voltar-me para ele para lhe recordar que ele não tinha qualquer voz aqui... mas depois lembrei-me de que ele era um dos pretendentes oficiais ao Domínio de Alton; ninguém poderia ignorar a sua existência.

 

Com uma voz sumida Marius declarou:

- Isso não é verdade, Dom Lerrys. A matriz está... está activa de novo. Lorde Regis, contai-lhes o que vistes... em casa do meu pai, ainda não há três dias...

- É verdade - disse Regis, e o seu rosto tinha perdido toda a cor. - A matriz de Sharra está novamente activa. Mas eu não sabia naquele momento, que Lew Alton tinha regressado a Darkover.

Creio que ele a trouxe consigo no seu regresso.

Eu não tinha tido qualquer hipótese de evitá-lo, mas era-me impossível  dizer-lhes isso. Enquanto Regis falava eu escutava-o, como que petrificado. Agarrei a manga de Marius e disse:

- Rafe... Rafe está em Thendara...

Mas não cheguei a ouvir a resposta de Marius.

Rafe encontrava-se em Thendara.  Isso significava que Kadarin e Thyra estariam... algures.

O mesmo poder-se-ia dizer da matriz de Sharra.

E o mesmo poder-se-ia dizer - que todos os deuses de Darkover  nos ajudassem - de mim mesmo...

 

Enquanto contava a história do que tinha visto em casa de Kennard na noite em que Marius viera chamá-lo, tomado pelo pânico, Regis não deixava de observar Lew, mal o reconhecendo, a ele que tinha sido como um irmão durante a sua infância. Lew fazia-lhe lembrar, pensou Regis involuntariamente, alguma coisa exposta num campo para afastar os pássaros! Não era pela extrema magreza, nem por parecer exausto, nem mesmo pelas terríveis cicatrizes. Não: era algo nos olhos dele, algo assombradiço e terrível.

Passados seis anos, ainda não conseguiu encontrar a paz?

Certamente seria apenas por Lew estar fatigado da viagem, e ainda a ressentir-se do choque da morte súbita do pai. Regis sabia que, quando tivesse tempo para pensar, também ele iria lastimar a morte daquele homem bondoso e simpático que tinha sido seu pai adoptivo e seu amigo, que o iniciara na arte da esgrima e que lhe tinha  dado a única família e o único lar que conhecera. Mas agora não havia tempo para pôr luto. Sobriamente, concluiu a sua narrativa:

- ...e quando tentei olhar para dentro da minha própria matriz  foi como tinha sucedido nas Infernais, durante aquele tempo em que Sharra andava à solta e Lew permanecia escravizado. Apenas conseguia ver o Vulto de Fogo.

Do seu lugar entre os Altons o homem alto e arruivado que viera  de Arilinn, e que era um dos parentes de Lew - Regis ouvira o seu nome apenas de passagem e não se lembrava dele - interveio para dizer:

- Acho perturbadora essa afirmação, pois, como podereis ver, a minha matriz pessoal apresenta-se isenta de qualquer mácula.   Com dedos grossos que pareciam mais apropriados para o punho de uma espada, ou para o martelo de um ferreiro, soltou destramente  o cordão de seda que trazia ao pescoço; Regis pôde ver de relance  um rebrilhar azul-pálido antes do homem tapar de novo a matriz.

- E a minha também - disse Callina, calmamente e sem se mover. Regis sabia que ela, como Guardiã, conhecia o estado da sua matriz sem precisar de lhe tocar. Por vezes Regis desejava ter decidido ficar numa Torre, para ser treinado no uso de todo o seu laran latente, fosse ele como fosse. Habitualmente, quando lhe vinha tal  desejo era quando via um técnico especializado trabalhando com uma matriz. A sua vocação não tinha sido suficientemente forte para  o reter numa Torre, resistindo às pressões do clã e da casta, e ele sabia que, para um verdadeiro mecânico ou técnico, a vocação tinha de ser mais forte do que qualquer outra solicitação.

- E quanto à tua matriz, Lew? - perguntou Callina.

Lew encolheu os ombros, com um movimento que pareceu a Regis ser a última reacção desesperada de um homem de tal forma derrotado que já não havia força nele para combater esta derradeira vergonha. Sentiu vontade de gritar a Callina: Não vês o que lhe estás  a fazer? Por fim Lew disse, inexpressivamente:

- Nunca estive... livre dela.

Mas os outros presentes na Câmara de Cristal começavam a  impacientar-se. A qualidade da luz ambiente já se modificara, enquanto  do outro lado das janelas o Sol Sangrento aproximava-se da  linha do horizonte e começava a perder-se nas neblinas do crepúsculo; agora a luz era álgida e austera. Por fim alguém, algum nobre  menor do Domínio de Ardais, exclamou:

- O que terá tudo isto a ver com o Conselho? - Com voz melancólica Callina ripostou:

- Rezai a todos os deuses para que nunca saibais como tudo  isto poderá ter a ver connosco, comynari. Nada há que possa ser feito aqui, mas temos de investigar isto... - Olhou para o parente de  Lew vindo de Arilinn e perguntou: - Jeff, haverá alguns outros técnicos aqui presentes?

O homem abanou a cabeça.

- Só se a Mãe Ashara conseguir fornecer-nos alguns. - Voltou-se  para os Hasturs e perguntou, dirigindo-se ao avô de Regis: Vai Dom, ser-vos-á possível suspender o Conselho durante alguns dias até podermos analisar isto, para sabermos por que motivo se registrou  este... esta eclosão de uma força que julgávamos estar devidamente  controlada?

Hastur franziu a testa, e Derik protestou estridentemente:

- É demasiado tarde para se deter esta aliança, Lorde Hastur, e de qualquer modo não me parece que Beltran ainda tenha qualquer coisa a ver com Sharra. Creio que ele aprendeu bem a sua lição! Não concordas, Marius?

Regis viu Lew agitar-se e olhar para Marius com desânimo, e pensou se Lew teria conhecimento dos laços entre o irmão e Rafe Scott... laços que provavelmente o ligariam também aos Aldarans.

Bem, estes eram parentes de Marius, familiares da mãe dele. Cometemos  um grande erro, pensou com tristeza, devíamos ter conservado  Marius ligado a nós por laços de amizade e de parentesco.

Repelimo-lo; para onde poderia ele voltar-se, se não para os Terráqueos,  ou para os Aldarans, ou para ambos? E agora parece que teremos  de aceitá-lo como o Herdeiro de Alton. Parecia óbvio que Lew não se encontrava em condições de aceitar a regência do Domínio de Alton, mesmo se o Conselho pudesse ser levado a aceitá-lo aqui.

Houve em tempos um laran que permitia prever o futuro, pensou  Regis, e existiu entre os Hasturs. Quisera eu possuir um pouco desse dom!

Não tinha chegado a ouvir o que Marius dissera, mas o seu avô parecia perturbado ao dizer a seguir:

- Não pode haver qualquer hipótese de aliança com Aldaran até sabermos mais a respeito deste... - hesitou, e Regis viu o lábio do velho recurvar-se numa expressão de repulsa - ...desta ressurgência  de Sharra.

- Mas é isso o que estou a tentar dizer-vos - disse Derik, exasperado.

- Enviámos a mensagem a Beltran, e ele estará aqui na Noite  do Festival! - E, ao ler cólera e desânimo no rosto do velho Hastur, Derik acrescentou, defensivo, petulante, como um rapazinho  apanhado a fazer uma maldade: - Bem, eu sou o lorde de Elhalyn! Era o meu direito... não era?

Danvan Hastur aceitou a taça de vinho morno e condimentado  que o seu camareiro lhe colocara na mão e descansou os pés num escabelo de madeira esculpida. A sua volta os serviçais moviam-se em silêncio, acendendo as lanternas. A noite caíra, a noite do dia em que não tivera outra solução senão dissolver o Conselho.

- Devia enviar uma mensagem para saber como Lew se encontra  - disse Regis, - ou então ir pessoalmente saudá-lo. Kennard  era meu amigo e meu pai adoptivo: Lew e eu éramos bredin.

- Nos tempos que correm podias certamente encontrar um amigo menos perigoso - retorquiu Hastur com aspereza. - Essa aliança não te trará bem nenhum.

Zangado, Regis replicou:

- Não escolho os meus amigos baseados na sua validade política,  Sir!

. Hastur ignorou o responso com um encolher de ombros.

- Ainda és suficientemente jovem para te dares ao luxo de criar amizades. Eu convenci-me de que Kennard era um bom amigo... tal vez por demasiado tempo. - Quando Regis se preparava para afastar-se,  ele prosseguiu - Não, espera. Preciso de ti aqui. Mandei chamar Gabriel e Javanne. A questão perante nós é esta: o que iremos fazer a respeito de Derik? - Vendo que Regis parecia desinteressado, disse com impaciência: - Tenho a certeza de que não achas que ele deve ser coroado! O fulano não passa de um idiota!

Regis encolheu os ombros.

- Não estou a ver que alternativas possas ter, avô. É pior ainda do que se ele fosse mesmo um idiota; nesse caso toda a gente concordaria  que não poderia ser coroado. O problema é que Derik possui  nove décimos de juízo, faltando-lhe apenas o décimo mais importante... - Sorriu, mas sabia que não havia qualquer hilaridade na graçola.

Mas Danvan Hastur não sorriu, limitando-se a dizer:

- Numa posição mais baixa, mesmo como regente de um Domínio, o caso não seria tão importante: ele vai consorciar-se com Linnell Lindir-Aillard, que não é tonta nenhuma. Derik ama-a, e cresceu com a certeza de que as Aillards são por direito próprio as regentes aceites pelo Conselho, pelo que deverá deixar-se guiar por ela. Lembro-me de quando o meu pai promoveu o casamento de um dos membros Ardais menos estáveis com uma das mulheres dos Aillards; Lady Rohana era a verdadeira regente daquele clã, mesmo até ao tempo de Dyan. Contudo, para usar a coroa dos Hasturs de Elhalyn... - abanou lentamente a cabeça - e nos tempos a que estamos  prestes a chegar? Não, não me atrevo a arriscar.

- Não sei se terás o poder necessário para decidires entre arriscar  ou não arriscar, avô - comentou Regis. - Se, aqui há anos, tivesses enfrentado o facto de que Derik nunca estaria apto a ser coroado,  talvez quando ele tinha doze ou quinze anos, colocando-o então  sob um tutor... Quem será agora o novo Herdeiro de Elhalyn?

O rosto de Danvan Hastur contraiu-se numa careta, realçando as rugas que lhe cruzavam o rosto, das faces até ao queixo.

- Custa-me crer que sejas tão ingénuo, Regis.

- Não sei ao que estará a referir-se, avô.

Danvan Hastur suspirou e disse deliberadamente, como se estivesse  explicando qualquer coisa a uma criança com recurso a imagens  coloridas:

- A tua mãe, Regis, era irmã do rei Stephen. A sua única irmã.

- Para o caso de Regis não ter captado as implicações daquilo, acrescentou com secura: - És tu quem se encontra mais próximo da coroa... mesmo adiante dos filhos das irmãs de Derik. O mais velho desses filhos tem três anos de idade. Há ainda mais uma criança de colo.

- Aldones! Senhor da Luz! - resmungou Regis, e a imprecação  era todavia uma prece. Palavras que ele dissera de brincadeira a Danilo, vários anos antes, regressavam agora à sua memória. “Se és meu amigo, Dani, não queiras impingir-me uma coroa!” - Se eu o tivesse posto de lado - disse o avô -, quem teria acreditado que eu não estava simplesmente a tentar consolidar o poder  nas minhas próprias mãos? Não que isso tivesse sido uma má medida, nos tempos que então decorriam... mas ter-me-ia feito perder  o apoio popular de que necessitava para manter a ordem num  reino sem coroa. Fui adiando, na esperança de que todos acabariam por constatar que Derik era realmente inapto.

- E agora - retorquiu Regis -, toda a gente há-de pensar que  estás a tentar depor Derik assim que ele tomar uma decisão contra ria à tua.

- O problema é que esta proposta aliança com Aldaran talvez não fosse uma ideia tão má - disse o avô, parecendo abatido - se  pudéssemos ter a certeza de que os Aldarans estão definitivamente  fora da influência terráquea. O que aconteceu durante aquela história de Sharra parece ter quebrado a proximidade entre Terráqueos  e Aldaran. Se pudéssemos trazer firmemente os Aldarans para o nosso lado...

- Avô, pensas francamente que os Terráqueos vão empacotar  o seu espaçoporto e partir?

O velho negou com um sacudir da cabeça.

, - Quero que lhes voltemos as costas por completo. Parece-me  que o meu pai fez um grande disparate ao permitir que Kennard  fosse educado na Terra, e parece-me também que eu reforcei ainda  mais esse disparate ao reconhecer Lew para o Conselho. Não, é evidente que o Império Terráqueo não se irá embora. Mas os Terráqueos talvez nos respeitassem mais se nós não tivéssemos estado  sempre a espreitar por cima do muro. Nunca devíamos ter deixado  os Ridenow saírem de cá. Devíamos ter dito aos Terráqueos: "Construam o vosso espaço-porto onde tiver que ser, mas em troca disso  deixem-nos sós, e tratem da vossa vida sem nos envolverem nela."  Regis abanou a cabeça.

- Não teria resultado. Não se pode ignorar um facto, e o Impe rio Terráqueo é um facto. Existe. Mais tarde ou mais cedo acabará por nos afectar de um modo ou de outro, por mais que nos esforcemos  para fazer de conta que não existe. E não podemos esquecer-nos de que somos colonos da Terra, ou que o fomos em tempos...

- O que fomos em tempos não interessa - ripostou Danvan  Hastur. - As galinhas não podem voltar a ser ovos.

- É precisamente isso o que estou a afirmar, sir. Fomos espolia dos das nossas raízes, e encontrámos um modo de vida que implicava aceitarmos pertencer a este mundo, compelidos a viver dentro das suas restrições. Isso resultou enquanto permanecemos isolados, mas, assim que regressámos ao contacto com um... - calou-se, a ordenar  ideias - ... com um império que abrange as estrelas e que considera um facto normal saltitar de mundo em mundo, não podemos  pensar em continuar como éramos.

- Não vejo porque não - disse Hastur. - Os Terráqueos nada têm que nos possa interessar.

- Nada que vos possa interessar, talvez, sir. - Regis fez um esforço para não olhar abertamente para o serviço de café em prata  que estava sobre a mesa do avô, mas este percebeu a sua intenção  e disse:

- Estou pronto a dispensar quaisquer luxos terráqueos, se isso encorajar todas as pessoas a fazerem o mesmo.

- Conforme já disse, sir, isso não vai resultar. Tivemos de recorrer  aos Terráqueos durante a última epidemia de febre dos Pisteiros.

Há também indícios de alterações no clima, e precisaremos de ajuda tecnológica. Haverá vítimas mortais se não encontrarmos uma alternativa, mas, se as deixarmos morrer quando a medicina terráquea poderia ajudá-las, seremos alguma coisa mais do que tiranos?

Sir, uma coisa que ninguém pode controlar é o conhecimento.

Podemos usá-lo para o bem ou para o mal... como o laran - acrescentou,  com expressão lúgubre, lembrando-se de que o seu próprio laran lhe tinha trazido tanto sofrimento que, em certa altura, estivera  disposto a permitir que o dom lhe fosse permanentemente apagado  do cérebro. - Mas não podemos fazer de conta de que nunca existiu, nem acreditar que o nosso destino é permanecer neste mundo  como se nada mais existisse no universo.

- Estarás a querer dizer que teremos inevitavelmente de fazer parte do Império Terráqueo? - perguntou-lhe o avô, com um olhar tão furioso que Regis desejou nunca ter iniciado esta discussão.

- O que estou a dizer, sir, é que, quer nos aliemos a eles quer não, o Império Terráqueo é já um facto da nossa existência, e que as decisões que tomarmos, quaisquer que sejam, terão de ser tomadas com o pleno conhecimento de que os Terráqueos existem. Se logo de princípio lhes tivéssemos recusado permissão para construírem o seu espaçoporto, talvez - repito, talvez - eles nos tivessem voltado as  costas, partindo para o construir noutro sítio. Duvido bastante. Mais  provavelmente teriam usado a força suficiente para abafar a nossa ! rebelião, não deixando de construí-lo do mesmo modo. Poderíamos ter tentado resistir... e talvez, se ainda dispuséssemos das armas da Era do Caos... talvez tivéssemos conseguido expulsá-los, mas não sem nos destruirmos ao mesmo tempo. Lembre-se do que aconteceu numa só noite quando Beltran virou a matriz de Sharra contra  eles... - Calou-se por um momento, estremecendo. - Essa não é a  pior das armas das Eras do Caos, mas rezo para que eu nunca tenha  de ver uma das piores. E não dispomos agora da tecnologia das Eras  do Caos, pelo que essas armas tornaram-se incontroláveis. E não  , pensará decerto que poderemos expulsar os Terráqueos com as espadas dos Guardas, nem mesmo se armássemos todos os espadachins  de Darkover.

: O avô ficou em silêncio, com a cabeça apoiada nas mãos, durante tanto tempo que Regis chegou a imaginar que dissera algo imperdoável, e que a próxima acção de Danvan Hastur seria deserdá-lo  como a um traidor.

Mas tudo o que eu disse é verdade, e ele é suficientemente honesto para o reconhecer.

- Tens razão - disse Danvan Hastur, e Regis sentiu-se involuntariamente estupefacto; tinha crescido com a certeza de que o seu  avô era apenas minimamente telepata e nunca usava a fala mental  se pudesse evitá-lo; tão raramente, de facto, que por vezes esquecia -se da existência de qualquer laran em qualquer deles.

.; - Eu seria tão tolo como Derik se tivesse a pretensão de que  Darkover poderia enfrentar sozinho qualquer coisa do tamanho do  , Império Terráqueo. Mas recuso-me absolutamente a permitir que  Darkover se transforme numa colónia da Terra e nada mais do que isso. Se não podemos conservar a nossa integridade perante a cultura e a tecnologia terráqueas, talvez não mereçamos sobreviver.

- Não é tão grave como isso - comentou Regis. - Aliás, É essa uma das razões pelas quais Kennard foi educado na Terra:

,. para demonstrar que o nosso modo de vida é viável, mesmo para  ., nós, e que não necessitamos de aceitar os aspectos piores da sua tecnologia, por exemplo não precisamos de adaptá-la até ao nível em que a nossa própria ecologia sofrerá. Não poderemos tolerar o tipo de tecnologia que eles têm em alguns dos seus mundos, por exemplo;

temos escassez de metais, e até uma agricultura demasiado intensiva  destruiria em duas gerações as nossas florestas e o solo arável.

Cresci ciente desse facto, e o avô também. Os Terráqueos sabem-no, do mesmo modo. Têm leis contra a destruição de mundos, e não vão dar-nos nada que não lhes solicitemos. Mas com todo o respeito, avô, parece-me que já andámos demasiado na direcção oposta, e continuamos  a insistir em mantermos o nosso povo num estado... - procurou  hesitante as palavras certas - ... num estado de barbarismo, num estado feudal em que restringimos até a mente do nosso povo.

- O nosso povo não sabe o que é melhor para eles - disse Hastur, desesperadamente. - Olha para os Ridenow, desperdiçando metade das suas vidas em lugares como Vainwal, desertando o nosso povo quando este mais necessita de governantes responsáveis! Quanto  às pessoas comuns, essas olham para os luxos que a cidadania terráquea  lhes poderia trazer... julgam elas... e esquecem-se do preço que teria de ser pago.

- Talvez eu confie mais nelas do que o avô, sir. Acho que, se lhes déssemos mais educação, mais conhecimentos... talvez distinguissem  melhor aquilo que estão a enfrentar e percebessem as razões  pelas quais o avô reage contra.

- Já vivi mais tempo do que tu - assinalou o velho com secura  -, o suficiente para saber que a maioria das pessoas querem aquilo que lhe traga maior proveito com menos esforço, sem nunca pensarem nas consequências a longo prazo.

- Isso não é sempre verdadeiro - comentou Regis. - Veja o exemplo do Convénio.

- O Convénio - ripostou Hastur - foi imposto ao povo por um homem recto, quando o povo já estava assustado e exausto por uma série de guerras suicidas, e foi mantido apenas porque os detentores  dessas antigas armas as destruíram antes que pudessem ser usadas de novo, levando para a cova o segredo do seu uso. Mas vê o que tem acontecido! - Recurvou o lábio. - De vez em quanto alguém  desenterra uma arma antiga e usa-a... em autodefesa, segundo garante. És demasiado novo para te lembrares de quando os homens-gato  enxameavam todas as terras das Colinas de Kilghard, ou de quando a gente das forjas usou Sharra contra alguns bandidos, aqui há algumas gerações. Se as armas existem, há sempre quem acabe por usá-las, e que se danem as consequências a longo prazo! O teu próprio  pai foi vitimado por armas contrabandeadas da Zona Terráquea.

Por aí podes avaliar o mérito do Convénio para defender o nosso modo de vida!

- Mesmo assim continuo a pensar que isso poderia ser evitado se as pessoas tivessem sido devidamente avisadas das consequências - disse Regis -, mas não estou a dizer que precisamos de ser uma colónia terráquea. Nem mesmo os Terráqueos o exigem.

- Como poderás tu saber o que eles pretendem?

- Tenho falado com alguns deles, sir. Sei que não aprovas, mas penso que é melhor saber o que eles estão a fazer...

- E, em resultado disso - disse friamente o avô -, vens para aqui fazer a sua defesa.

Regis tentou dominar uma vaga de exasperação, e por fim disse:

- Estávamos a falar de Derik, avô. Se ele não pode ser coroado, qual é a alternativa? Porque não poderemos simplesmente casá-lo com Linnell e confiar em que ela saiba controlá-lo?

- Linnell é demasiado boa para Derik - disse Danvan Hastur  - e detesto vê-lo ficar cada vez mais sob a influência de Merryl.

Não tenho confiança no fulano.

- Merryl é um tolo e um exaltado - disse Regis - e é perigosamente  indisciplinado. Mas parece-me que Lady Callina poderá dar-nos aí uma ajuda... se o avô não lhe atar as mãos permitindo que Merryl ajuste o seu casamento. Não confio, nem poderei confiar, nos Aldarans, agora que Sharra se encontra de novo à solta.

- Não posso mostrar-me directamente contra o herdeiro do trono, Regis. Se o faço perder kihar - deliberadamente, Danvan Hastur usou o termo intraduzível das Vilas Secas significando integridade  pessoal, honra, dignidade - perante o Conselho, como poderá  Derik reinar sobre eles depois disso?

- De qualquer modo ele não poderá fazê-lo, avô. Vais permitir-lhe  que se case com Callina para ele não dar parte de fraco perante o Conselho? Se tiveres de coroá-lo, e parece-me que vais precisar de fazê-lo, terás de lhe dar a saber antes de ser coroado que o Conselho  poderá sempre vetar as suas decisões, pois de outro modo deixá-lo-ás  tiranizar-nos de todas as maneiras. Callina Lindir é regente de um Domínio por direito próprio, e tem sido Guardiã em Neskaya e em Arilinn, e agora aqui sob as ordens de Ashara. E quanto à perda do kihar de Callina?

O avô fez uma expressão carrancuda, e Regis percebeu - se bem que não fosse através da telepatia - que Hastur tinha também relutância em conferir a Callina muito poder no Conselho.

A não ser que esteja seguro de que ela irá apoiá-lo e às suas teorias  isolacionistas. De outro modo preferirá ajustar o seu casamento, apenas para fazê-la sair do Conselho!

- Estarás disposto a casares-te com ela?

- Com Callina? - perguntou Regis com horror. - Ela deve ter já vinte e sete anos!

- Não é propriamente senil - retorquiu o velho secamente -, mas estava a referir-me a Linnell. Ela é demasiado boa para aquele imbecil do Derik.

Que Evanda se amerceie de mim? Estará o velho a dedilhar de novo aquela corda? - Sir, Derik e Linnell namoram-se desde que o cabelo de Linnell era curto de mais para ser entrançado! E o avô encorajou-os.

Ela é a única mulher que Derik talvez permita que o domine.

Iria destroçar o coração dos dois! Para quê separá-los agora?

- Gostaria de estar firmemente aliado com os Aillard...

- Mas já estamos, sir, com Linnell prometida a Derik. Mas não estaremos por muito mais tempo se o avô os alienar deixando Callina humilhar-se ao permitir o casamento contra a vontade dela... e ainda por cima com Aldaran - disse Regis. - E estás a esquecer-te  do mais importante, avô.

- Do quê? - O velho soltou um bufo de descrença, levantando-se  e andando impacientemente de um lado para o outro. Desta trapalhada toda com a matriz de Sharra?

- Não vês o que está a acontecer, avô? Derik fez tudo nas nossas  costas, e Beltran vai estar cá na Noite do Festival. Isso quer dizer que já se encontra na estrada, a não ser que tenha arrumado as coisas  com os Terráqueos o suficiente para arranjar uma ou duas máquinas  voadoras, e não é tarefa fácil voar sobre as Infernais. Recordava-se de alguém lhe ter dito que as Infernais tinham sido profanamente  baptizadas com nomes ainda mais terríveis pelos únicos Terráqueos que haviam tentado voar sobre elas em qualquer engenho  mais lento e de vôo mais baixo do que um foguetão; as montanhas  constituíam um verdadeiro pesadelo de correntes de ar ascendentes e descendentes e de padrões térmicos desenfreados. Portanto, quando ele chegar cá, o que é que lhe vais dizer? “Por favor,  Lorde Aldaran, dai meia volta e regressai de novo a casa, pois mudámos de ideias!” O velho Hastur fez uma careta.

- Por muito menos do que isso têm sido declaradas guerras em Darkover.

- E os Aldaran nunca tiveram muito respeito pelo Convénio comentou Regis. - Teremos de deixar Beltran casar-se com Callina, ou teremos de insultá-lo dizendo-lhe, talvez em público: “Lamentamos,  Lorde Aldaran, mas a mulher não está disposta a aceitar-vos”, ou então dizemos-lhe que o nosso Príncipe e Soberano é um pateta a quem não podemos sequer confiar a negociação de um matrimónio para o seu escudeiro! Seja como for, Beltran sairá ofendido! Avô, muito  me custa acreditar que não tenhas previsto esse dia!

Hastur deixou-se cair no seu cadeirão com entalhes dourados, dizendo:

- Sabia que não podíamos confiar em Derik para tomar qualquer  decisão importante. Afirmei repetidamente que não gostava de vê-lo acompanhado por Merryl! Mas como poderia eu prever que Merryl teria a insolência de pretender falar em nome do seu Domínio,  ou que Aldaran iria escutá-lo?

- Se o avô tivesse reconhecido o facto de que Derik é um néscio...

bem, não exactamente um néscio que precise de alguém que cuide dele, mas certamente desprovido da capacidade de decisão até de um garoto de dez anos, quanto mais de um presuntivo Herdeiro do Trono - disse Regis, e depois suspirou, prosseguindo: - Sir, o que está feito está feito. Não adianta dissecar o que devíamos ter feito. A questão agora é determinar como poderemos resolver isto sem desencadear uma guerra.

- Será que Callina consentiria em casar-se com ele, apenas submeter-se à cerimónia como uma simples formalidade... - começou  Hastur, mas interrompeu-se quando o seu criado pessoal entrou  no salão, parando junto da porta.

- O que é?

- Domna Javanne Lanart-Hastur e o seu consorte, Dom Gabriel.

Regis levantou-se para ir beijar a mão da irmã e acolhê-la no salão. Javanne Hastur era uma mulher alta e de aspecto agradável, já trintona, com os traços fisionómicos dos Hasturs. Olhou para ambos de relance e inquiriu:

- Estiveste novamente a discutir com o avô, Regis? - Falava como se estivesse a repreendê-lo por ter subido a uma árvore rasgando  os seus melhores calções compridos.

- Não estive a discutir - respondeu ele prontamente. - Estivemos  simplesmente a trocar impressões sobre a situação política.

Gabriel Lanart fez uma careta e disse:

- Já isso é bastante mau.

- E eu estava a lembrar ao meu neto e Herdeiro - disse Danvan  Hastur com aspereza -, que ele já está demasiado velho para continuar solteiro, sugerindo-lhe que poderíamos até casá-lo com Linnell Aillard-Lindir, se isso o convencesse a organizar a sua vida.

Pelo amor de Evanda, Regis, do que é que estarás à espera?

Regis tentou controlar a raiva que o invadia e disse:

- Estou à espera, sir, de conhecer uma mulher com quem possa  dispor-me a passar o resto da minha vida. Não estou a recusar casar-me...

- Folgo com isso - bufou o avô. - É... indigno para um homem  da tua idade continuar solteiro. Não digo nada a respeito do jovem Syrtis; é um homem bom, um companheiro adequado para ti.

Mas, nos tempos que estão prestes a chegar, uma das coisas de que não precisamos é que alguém aponte com desprezo o Herdeiro de Hastur como um amante de homens!

- E se for, sir? - perguntou Regis calmamente.

O seu avô estava a contestar esta noite demasiados factos intragáveis.

Agora ele que digerisse mais este. Javanne parecia chocada e consternada. Era verdade que aquilo não era coisa que se dissesse na presença de uma irmã, mas no fim de contas, pensou Regis defensivamente,  o seu avô estava perfeitamente ciente da situação.

- Disparate! - proclamou Danvan Hastur. - Tu ainda és jovem, é só isso! Mas se já tens idade suficiente para alimentares opiniões tão vincadas, e se eu devo realmente encará-las a sério, então  deves estar preparado para me convenceres de que estás suficientemente  evoluído para seres ouvido. Quero ver-te casado, Regis, antes que o ano chegue ao fim.

Então vais ter de esperar durante muito tempo, avô, pensou Regis,  mas não o disse em voz alta. Javanne franziu a testa, e ele percebeu  que a irmã, que possuía uma sensibilidade telepática superior à do avô, entendera o seu pensamento.

- Até Dyan Ardais deu um herdeiro ao seu Domínio, Regis comentou Javanne.

- Pois também eu dei - ripostou Regis. - O teu próprio filho, Javanne. Não ficarias agradada se ele fosse o Senhor de Hastur a seguir  a mim? E tenho outros filhos de diversas mulheres, se bem que eles sejam nedestro. Estou perfeitamente capaz, e sem qualquer sacrifício  pessoal, de gerar filhos para o Domínio. Contudo, não estou  disposto a aceitar um matrimónio que não passará de um embuste, de um logro, apenas para agradar ao Conselho. Quando conhecer uma mulher com quem deseje casar-me, quero estar livre para me casar com ela. - Enquanto falava, tinha a sensação de que estava caminhando ao lado de alguém, e a avassaladora emoção que o invadia era diferente de tudo o que alguma vez sentira, excepto naquela súbita primeira efusão de amor e gratidão quando Danilo tinha despertado o seu laran e ele se permitira aceitá-lo, e a si próprio.

Contudo, ainda que soubesse da presença de uma mulher ao seu lado, não era capaz de lhe ver o rosto.

- És um tolo romântico - disse Javanne. - O casamento não tem nada a ver com isso. - Mas ao dizê-lo sorria, e Regis reparou no olhar compreensivo que ela deitou a Gabriel. Javanne era uma mulher afortunada: sentia-se satisfeita com o seu casamento.

- Quando encontrar uma mulher que me convenha tão bem como Gabriel te convém, mana, casar-me-ei com ela - disse Regis, tentando que as emoções não se reflectissem no seu tom de voz. Prometo-te isso. Mas não conheci ainda essa mulher, e não estou disposto  a casar-me apenas para agradar ao Conselho, ou a ti, ou ao avô.

Com um ar carregado, Javanne comentou:

- Não gosto de ouvir dizer que o Herdeiro de Hastur é um amante de homens. E se não te casares depressa, Regis, é isso que se dirá, e o escândalo irá rebentar.

- Se for isso que se disser, nada poderemos fazer para o impedir  - retorquiu Regis, exasperado. - Não irei viver a minha vida receando as línguas do Conselho! Há muitas coisas que me preocupam  mais do que aquilo que o Conselho poderá pensar da minha vida amorosa, com que na verdade eles nada têm a ver! Pensava que tínhamos vindo aqui para falar de Derik e dos outros problemas que enfrentamos no Conselho! E também para jantarmos... e ainda  nada vi de comida ou de bebida! Iremos continuar a discutir a minha vida pessoal enquanto os serviçais tentam conservar quente o nosso jantar, receosos de nos interromperem enquanto discutimos a data do meu consórcio?

Regis estava prestes a abandonar tempestuosamente o aposento, e o avô sabia-o.

- Poderás pedir para servirem o jantar, Javanne? - perguntou Danvan Hastur. Quando ela saiu para fazer o que lhe era pedido, Hastur chamou alguém para tomar conta da capa de Gabriel.

- Poderias ter trazido contigo o teu filho, Gabriel.

Gabriel sorriu e disse:

- Ele está de serviço na guarda esta noite, sir.

Hastur fez um aceno.

- Como se comporta ele nos cadetes, então? E Rafael? Esse está no primeiro ano, não é?

Gabriel sorriu e respondeu:

- Estou a fazer um grande esforço para não dar muita importância  a Rafael, parente. Deve estar a passar pelos problemas que afligem qualquer rapaz da sua posição nos cadetes, como o jovem Gabriel no ano passado, ou Regis, ou Lew Alton; ainda me lembro de ter dado a Lew algumas aulas especiais de defesa pessoal. Fizeram-lhe  a vida bem negra! Creio que o próprio Kennard teve os mesmos problemas quando era cadete do primeiro ano. Eu não tive, mas não me encontrava na linha directa de sucessão do Comyn. Soltou um suspiro e prosseguiu: - Lamento bastante o que se passou  com Kennard. Vamos sentir a sua falta. Vou continuar a comandar  os Guardas até que Lew esteja capaz de tomar decisões... Ele encontra-se realmente doente, e esta história da matriz de Sharra não ajudou nada. Mas quando ele se restabelecer...

- Não pensas certamente que Lew esteja apto a reger o Domínio  de Alton, pois não? - inquiriu Hastur, chocado. - Viste tudo tão bem como eu! O rapaz está um destroço!

- Rapaz é favor... - interveio Regis. - Lew é seis anos mais velho do que eu, o que quer dizer que está a aproximar-se da casa dos trinta. É justo aguardamos que ele se recomponha da perda do seu pai, e da viagem de Vainwal até cá. Kennard disse-me uma vez que os troços mais longos da viagem têm de ser percorridos sob a influência de sedativos. Mas quando ele se restabelecer disso...

Hastur abriu a boca para falar, mas, antes que pudesse dizer qualquer coisa, Javanne declarou:

- O jantar está na mesa. Vamos entrar? - e tomou o braço do marido. Regis seguiu-os, com o avô. A mesa tinha sido posta numa sala adjacente, com toalhas elegantes e louça da mais fina; Javanne, reagindo a um aceno do avô, chamou os criados para deitarem vinho  nas taças. Gabriel, ao colocar o seu guardanapo sobre os joelhos,  comentou:

- Lew encontra-se válido, presumo?

- Perdeu uma das mãos; estará apto a comandar a Guarda, apesar de estropiado?

- Há um precedente para isso - disse Gabriel. - Há duas ou três gerações Dom Esteban - que era meu bisavô e também de Lew, parece-me - comandou a Guarda durante dez anos sentado numa cadeira de rodas depois de ter perdido as duas pernas na Guerra dos Homens-Gato. Temos também o caso de Lady Bruna, que empunhou a sua espada e foi uma comandante notável, quando o Herdeiro era um bebé de colo... - Encolheu os ombros. - Lew é capaz de se vestir  sozinho e de cuidar de si apenas com uma mão... vi-o fazê-lo.

Quanto ao resto, bem, ele foi em tempos um excelente oficial. Se ele quiser que eu continue a comandar a Guarda... é o chefe do meu Domínio, e farei o que ele mandar. E os rapazes estão a crescer, e temos  também de contar com Marius, que não teve treino militar mas possui uma educação perfeita.

- Uma educação terráquea - comentou Hastur com secura.

- O saber é o saber, avô - disse Regis, lembrando-se de que estivera a pensar durante o Conselho que talvez fizesse mais sentido que Mikhail fosse educado pelos Terráqueos do que enfiá-lo nos Cadetes  para aprender esgrima e disciplina militar. - Marius é inteligente...

- ... e tem alguns amigos terráqueos que deixam muito a desejar  - disse Javanne com desdém. - Se não se tivesse envolvido com eles não teria provocado, hoje no Conselho, toda aquela discussão a respeito de Sharra!

- E nesse caso continuaríamos a ignorar o que se está a passar  - ripostou Regis. Quando anda um lobo à solta na pastagem, o que nos importa se o pastor perde uma noite de sono? E de quem é a culpa de Marius não ter tido treino nos Cadetes? Tenho a certeza de que se comportaria lá tão bem como eu. Escolhemos entregá-lo aos Terráqueos e agora, receio bem, teremos de viver com aquilo que fizemos dele. Assegurámo-nos de que um Domínio, pelo menos, permaneceria  aliado aos Terráqueos!

- Os Alton estiveram sempre muito prontos a negociar com os Terráqueos - disse Hastur. Desde os tempos em que Andrew Carr se ligou pelo casamento àquele Domínio...

- O que está feito está feito - disse Gabriel -, e não há necessidade  de voltarmos a debater o assunto, sir. Não vejo quaisquer sinais de Lew se ter sentido tão feliz entre os Terráqueos que agora será incapaz de reger convenientemente os Alton...

- Falas como se ele estivesse prestes a ser o Regente do Domínio  - disse Hastur.

Gabriel pousou a colher, deixando a sopa escorrer para a toalha.

- Uma coisa era eu reclamar o Domínio quando não sabíamos se Lew estaria vivo ou morto. Mas o Conselho aceitou-o como Herdeiro  de Kennard, e nada há a fazer. Cabe a ele, como regente do Domínio, decidir o que fazer a respeito de Marius, mas acho que irá nomeá-lo seu Herdeiro. Se se tratasse de Jeff Kerwin eu poderia contestá-lo, pois este não quer o Domínio, não foi preparado para o herdar...

- Um terráqueo? - perguntou Javanne com espanto.

- Ele não é um terráqueo. Jeff, ou, melhor dizendo, Dom Damon,  não tem nenhum sangue terráqueo. O pai dele era o irmão mais velho de Kennard. Foi adoptado na Terra e cresceu a pensar que era terráqueo, e usa o apelido do pai adoptivo terráqueo, nada mais explicou Gabriel, pacientemente, e não pela primeira vez. - Ele tem menos sangue terráqueo do que eu. O meu pai chamava-se Domenic Ridenow-Lanart, mas era do conhecimento geral que o seu verdadeiro  pai tinha sido Andrew Carr. Este e Damon Ridenow casaram-se  com irmãs gémeas...

Danvan Hastur enrugou a testa.

- Isso aconteceu há já muito tempo.

- É curioso como uma geração ou duas disfarçam o escândalo - comentou Gabriel com um sorriso. - Julgava que tudo isso tinha  sido já resolvido, quando Lew deu provas de possuir o Dom de Alton. Ele tinha-o, e eu não, e pronto.

Calmamente, Danvan Hastur declarou:

- Quero-te na regência do domínio de Alton, Gabriel. É esse o teu dever para com o clã Hastur.

Gabriel pegou na colher, franziu o sobrolho. Limpou a colher com o guardanapo e introduziu-a de novo na sopa. Ingeriu uma colherada  ou duas antes de dizer:

- Cumpri o meu dever para com o clã Hastur quando lhe dei dois, não, três filhos, sir, um deles destinado a ser o Herdeiro de Regis. Mas também jurei lealdade a Kennard. Pensais mesmo que vou contestar ao meu primo o seu direito legítimo como Herdeiro de Alton?

Pois isso, pensou Regis, observando a cara do velho, é exactamente  aquilo que Danvan Hastur pensa. Ou pensava.

- Os Alton estão aliados com a Terra - disse Hastur. - Não fazem segredo disso. Kennard, e agora Lew, e Marius também, possuem  educação terráquea. A única forma de conseguirmos conservar  o Domínio de Alton do lado de Darkover é dispormos de um homem forte a mandar, Gabriel. Contesta-o de novo, antes que o Conselho volte a reunir-se; não me parece que ele esteja disposto a resistir.

-Senhor da Luz, sir! Pensais com toda a franqueza... - Gabriel  calou-se, e depois disse - Não sou capaz de o fazer, Lorde Hastur, e não o farei.

- Pretendes ver um peão semi-terráqueo de Sharra a mandar no Domínio de Alton? - perguntou Javanne, olhando fixamente para o marido.

- Compete a ele decidir - disse Gabriel, impassível. - Jurei obedecer a qualquer ordem legítima que vós entendesses dar-me, Lorde Hastur, mas não considero uma ordem legítima quando me mandais contestar o verdadeiro regente do meu Domínio. Perdoai-me,  sir, mas isso está muito longe de constituir uma ordem legítima.

O velho Hastur replicou com impaciência:

- O que é importante neste momento é que os Domínios permaneçam  unidos. Lew não se encontra apto...

- Se ele não está apto, sir... - e Gabriel parecia preocupado ao dizê-lo -, então isso depressa se tornará óbvio.

- Julgava que o tinham deposto como sucessor de Kennard depois da rebelião de Sharra - disse Javanne, estridentemente. E agora tanto ele como o irmão permanecem ligados a Sharra...

- Tal como eu próprio estou, mana - interveio Regis. - Ou não estavas a prestar atenção?

Ela fixou-o com o olhar e disse, descrente:

- Quem, tu?

Regis pegou na sua matriz com dedos hesitantes, extraindo-a com dificuldade do invólucro sedoso. Lembrou-se de que Javanne o ensinara a usá-la, muitos anos antes, e ela recordou-se também, pois a sua expressão zangada depressa se suavizou ao lançar-lhe um sorriso. Havia uma antiga imagem na mente dela, como se a rapariga  que ela tinha sido - também ela sem mãe, tentando fazer de mãe do seu irmãozinho bebé - se tivesse inclinado sobre ele como tantas  vezes fizera quando ele era pequeno, erguendo-o nos braços. Por um momento a mulher de rosto duro, a mãe de filhos crescidos, desapareceu, transformando-se na irmã gentil e amorosa que ele em tempos tinha conhecido.

Regis disse com voz mansa:

- Lamento muito, breda, mas as coisas não desaparecem só por as recearmos. Não queria que tivesses de assistir a isto. - Suspirou  e deixou o cristal azul cair-lhe na mão em concha.

Enfurecido, chamejando na sua mente, o vulto de fogo... uma enorme figura encrespada, uma mulher alta, banhada em chamas, com o cabelo erguendo-se em labaredas irrequietas, com os braços aprisionados por correntes douradas... Sharra!

Quando ela a vira, seis anos antes, no apogeu da rebelião de Sharra, o seu laran tinha sido recentemente despertado; adicionalmente,  ele estava semimorto com a doença do limiar, e Sharra era apenas mais um dos horrores de então. Quando a tinha visto por uns instantes em casa de Marius sentira-se chocado em demasia para reparar. Agora algo gélido tomava-lhe a garganta; a carne rastejava-lhe  nos ossos, e cada pêlo do seu corpo eriçava-se lentamente, primeiro  nos antebraços e depois propagando-se por todo o corpo.

Regis sabia, sem saber como saberia, que estava perante um velho inimigo da sua raça e da sua casta, e algo no seu ser, na profundeza das células, na fundura dos ossos, também o sabia e o reconhecia.

A náusea invadiu-o, e sentiu na boca o gosto amargo do terror.

Confuso, pensou: mas Sharra tinha sido usada e acorrentada pela gente das forjas, e certamente estou apenas a recordar-me da destruição que Sharra provocou, uma cidade envolta em chamas...

não é pior do que um fogo florestal - mas sabia que isto era algo bem pior, algo que ele não podia compreender, algo que se esforçava por atraí-lo... reconhecimento, pavor, um fascínio quase sexual no seu significado...

- Aaahhhh... - Era uma inalação de puro horror; ele ouvia, via, sentia a mente de Javanne, o seu terror a propagar-se, enredado.

Javanne agarrou-se à sua própria matriz, escondida debaixo do vestido,  como se esta estivesse a queimá-la, e Regis, com um poderoso esforço, expulsou da mente e dos olhos o Vulto de Fogo que ardia na sua matriz. Mas Javanne continuava agarrada à dela, com terror  e alucinação...

Algo em Regis, há muito dormente, há muito ignorado, parecia desenrolar-se nele. Como quando um proficiente esgrimista empunha o seu florete sem saber que lances irá aplicar nem a que golpes irá responder,  sabendo apenas que vai ser capaz de enfrentar o seu oponente,  Regis sentiu aquela estranheza apoderar-se dele e comandar o que fez a seguir. Penetrou nas profundezas do fogo, e libertou delicadamente  a mente de Javanne, concentrando-se tão poderosamente que nem chegou a tocar no Vulto de Fogo... A sua irmã, como se fosse um títere cujas cordas tivessem sido cortadas, afundou-se numa cadeira, e Gabriel amparou-a com uma expressão torva.

- O que fizeste tu? - exclamou. - O que foste fazer à tua irmã?

Javanne, semi-inconsciente, pestanejava. Regis, com cautelosa decisão, embrulhou a sua matriz e depois disse:

- Sharra é perigosa também para ti, Javanne. Não queiras voltar  a chegar-te a ela.

Danvan Hastur tinha estado a observá-los, espantado, enquanto  o neto e a neta permaneciam paralisados de terror. Depois, ao retirarem-se,  Regis recordou-se, fatigado, de que o seu avô possuía pouco laran. Nem ele próprio percebia o que tinha feito, sabendo apenas que estava trémulo, exausto, tão cansado como estivera no ataque aos incêndios florestais durante três dias e três noites. Sem saber  o que estava a fazer estendeu a mão para uma travessa com pães quentes, barrou um deles com mel e engoliu-o num instante, sentindo  o açúcar devolver-lhe as forças.

- Foi Sharra - disse Javanne num sussurro. - Mas o que foi que tu fizeste?  E Regis, surpreendido, apenas pôde resmungar: - Não faço a menor ideia. ;

 

(narrativa de Lew Alton)

Nunca cheguei a saber como consegui sair da Câmara de Cristal. Tenho a impressão de que Jeff me transportou ao colo quando o Conselho  interrompeu a sessão em plena discordância, mas aquilo de que a seguir me lembro perfeitamente foi dar por mim ao ar livre, acompanhado por Marius e Jeff. Endireitei-me com esforço.

- Para onde vamos?

- Para casa - disse Marius. - Para a casa citadina dos Alton;

pensei que não irias sentir-te confortável nos aposentos dos Alton no Castelo, e eu nunca cheguei a morar lá... pelo menos desde que o nosso pai se foi embora. Tenho estado a residir aqui com Andres e uma governanta ou duas.

Não me lembrava de ter estado na casa citadina desde os meus tempos de criança. Começava a escurecer; uma chuva fina e gelada fustigava-me o rosto, esvaziando-me a mente, mas fragmentos de pensamentos isolados atingiam-me provenientes dos que por nós passavam na rua, bem como aquele batimento insistente:

... última ordem... regressa, luta pelos direitos do teu irmão...

Iria eu alguma vez ver-me livre daquilo? Tentei impacientemente controlar-me enquanto atravessávamos a ampla praça, mas parecia-me  vê-la, não como se apresentava, escura e tranquila, com uma ou outra luz solitária aqui e ali, a luz nocturna de algum serviçal, mas como se a visse através dos olhos de outra pessoa, vibrante de luz e calor humano derramando das portas abertas e das janelas brilhantemente  iluminadas, de companheirismo e de amor e de felicidade passada... Constatei, pelo braço de Jeff envolvendo-me os ombros, que ele estava a ver a praça como ela tinha sido, e afastei-me dele, recordando-me que ele tinha sido casado e que a esposa lhe morrera entretanto. Também ele tinha perdido um ente querido...

Mas Marius ia já a subir as escadas, chamando excitadamente, como se fosse mais novo do que como eu o via:

- Andres! Andres! - e um momento depois o velho coridom de Armida, amigo, tutor, pai adoptivo, estava a olhar para mim com uma expressão de espanto e de boas-vindas.

- Jovem Lew! Eu... - Deteve-se, chocado e condoído, ao deparar  com as cicatrizes no meu rosto, a mão ausente. Engoliu com esforço, e a seguir disse com voz rude: - Tenho muito gosto em ver-vos  aqui. - Retirou-me a capa dos ombros, conseguindo dar-me um ligeiro toque de afecto e pesar. Calculei que Marius lhe teria dado conhecimento do que acontecera ao meu pai; felizmente não me fez perguntas, limitando-se a informar: - Disse à governanta para preparar  um aposento para vós. Para vós também, sir? - perguntou a Jeff, que recusou com um aceno, dizendo:

- Obrigado, mas estão à minha espera noutro local... Estou aqui como convidado de Lorde Ardais, e não me parece que Lew se encontre em condições de suportar esta noite uma longa conferência familiar. - Voltou-se para mim e perguntou: - Dás-me licença? sustendo a mão sobre a minha testa a alguns centímetros de distância, num toque de monitor, passando depois sobre a cabeça e ao longo do corpo. O toque era-me bastante familiar, tão reminiscente dos anos que passara em Arilinn, o único local onde me lembrava de me ter sentido totalmente feliz, totalmente em paz, que os meus olhos encheram-se  de lágrimas.

Era apenas isto o que eu desejava: regressar a Arilinn. Mas era já demasiado tarde para isso. Com os infernos que residiam no meu cérebro e que ninguém ousaria espreitar, com a minha matriz maculada  por Sharra... não, agora não iriam aceitar-me numa Torre...

A mão de Jeff apoiava-me solidamente o braço, empurrando-me  para uma cadeira. Através dos restos das drogas que haviam destruído o meu controlo senti a sua solicitude, o choque de Andres perante o meu estado, e voltei-me para eles, fechando num punho a minha mão válida, ciente da dor fantasma como se por reflexo tentasse também apertar a mão em falta, sentindo vontade de lhes gritar, enraivecido, até perceber que eles estavam todos preocupados  comigo, partilhando a minha dor e angústia.

- Fica quieto, deixa-me acabar de te monitorizar. - Quando terminou, Jeff disse: - Nada de errado, fisicamente, excepto fadiga e a ressaca provocada por aquelas malditas drogas que os Terráqueos  te enfiaram. Terás por acaso algum dos antídotos vulgares, Andres? - Quando o velho abanou a cabeça numa negação, acrescentou  secamente: - Claro, não é o género de coisa que se compre normalmente numa botica ou na lojeca de um ervanário. Mas tu precisas de dormir, Lew. Haverá algum raivannin cá em casa?

O raivannin é um dos fármacos desenvolvidos para uso nos círculos  das Torres, encandeado nas mentes de um círculo telepático...

Existem outros; o kirian, que baixa a resistência ao contacto telepático,  é talvez o mais comum. O raivannin tem uma acção que é quase o oposto da do kirian, provocando o desligar das funções telepáticas.

Davam-mo habitualmente, em Arilinn, para acalmar um pouco a tortura e o horror que eu difundia após a morte de Marjorie... abafando-os o suficiente para que o resto do círculo da Torre não tivesse de compartilhar comigo cada momento de agonia. Habitualmente  era administrado aos moribundos ou aos loucos, para não atraírem toda a gente para o seu tormento interior...

- Não - disse Jeff, pesaroso. - Não é a isso que me refiro.

Acho apenas que te iria fazer bem dormires uma noite descansado.

Estou a lembrar-me de uma coisa: Há na cidade alguns mecânicos de matrizes devidamente habilitados, e eles sabem que sou o Primeiro em Arilinn. Não terei qualquer dificuldade em adquirir o produto.

- Indica-me onde posso ir - disse um homem novo, entrando apressado na sala -, e eu irei buscá-lo; conheço muitos deles, e sabem  que eu possuo laran. Lew... - Deu meia volta e postou-se diante  de mim. - Reconheces-me?

Foquei os meus olhos com dificuldade, vi olhos ambarinos com reflexos dourados... os olhos de Marjorie! Rafe Scott vacilou perante a agonia daquela recordação, mas chegou-se a mim e abraçou-me.

- Vou encontrar algum raivannin para ti - prometeu. - Parece-me  que bem precisas...

- O que estás tu a fazer na cidade, Rafe? - Ele era ainda criança  quando eu o atraíra, com Marjorie, para o círculo de Sharra. Tal como eu, era portador daquela inextirpável mácula... não Fechei a mente, com um esforço que me tornou lívido como a morte.

- Não te lembras? O meu pai era terráqueo, o capitão Zeb Scott. Um dos terráqueos domesticados de Aldaran - disse-o com amargura, com um retorcer cínico do lábio, demasiado cínico para alguém tão novo. Devia ter a idade de Marius. Eu não sentia já qualquer curiosidade, apesar de ter ouvido Regis descrever o que tinha  visto, e sabia que ele era amigo de Marius. Rafe saiu logo para a noite chuvosa, cobrindo a cabeça com uma capa darkoveriana.

Jeff sentou-se ao meu lado, com Marius do lado oposto. Não conversámos muito; não me encontrava com forças para o fazer. Só com muito esforço resisti a enroscar-me sob o impacto de tudo isto.

- Não chegaste a dizer-me, Jeff, o que vieste fazer à cidade.

- Dyan insistiu comigo para que viesse - disse ele. - Não quero o Domínio, e disse-lho; mas ele ripostou que a apresentação de um novo reivindicador serviria para confundir o assunto, atrasando  a resolução até que Kennard pudesse regressar. Não me parece  que ele estivesse à tua espera.

- Tenho a certeza de que não estava - interveio Marius.

- Não tem importância, mano. Dispenso o afecto de Dyan retorqui. - Ele nunca simpatizou comigo... - Mas mesmo assim sentia-me confuso por aquele momento de conexão, quando por um instante o tinha visto através dos olhos do meu pai...

... cativante, estimado, irmão do peito... mesmo, por uma vez ou duas, íntimos como dois miúdos poderiam ser... Rejeitei o pensamento.

De certo modo a rejeição era uma espécie de inveja. Solitário  no Comyn, eu tinha tido poucos bredin, poucas ofertas de afecto mesmo em momentos de crise. Seria possível que invejasse isso ao meu pai? A sua voz, a sua presença, eram um clamor na minha  mente...

Precisava de contar a Jeff o que tinha acontecido. Desde que Kennard despertara em mim, tão violentamente, o dom latente de Alton, o dom da conexão forçada, quando eu mal tinha saído da infância,  ele estivera sempre presente, com os seus pensamentos a abafarem  os meus, sufocando-me, deixando-me muito pouco no tocante ; a vontade própria, até que eu conseguira libertar-me, e no desastre da rebelião de Sharra tinha aprendido a recear essa liberdade. Depois,  ao morrer, a sua incrível força caindo sobre a minha mente numa explosão a que não pude resistir...

Assombrado por fantasmas; metade do meu cérebro cauterizando  as memórias de um morto...

Nunca iria poder ser mais do que um aleijado, mutilado de  mente e corpo? Por vergonha não poderia suplicar a Jeff mais auxílio  do que aquele que já me dera...

- Se precisares de ajuda, Lew - disse ele com sobriedade -, conta comigo. - Mas eu abanei a cabeça.

- Eu estou bem, só preciso de dormir, mais nada. Quem é agora  o Guardião em Arilinn?

- É Miranie, vinda de Dalereuth; não sei a que família pertence, pois nunca fala a seu respeito. Janna Lindir, que era a Guardiã  quando estavas em Arilinn, casou-se com Bard Storn-Leynier, e têm dois filhos; mas Janna pô-los para adopção, e voltou para... -, Neskaya como Monitora-Chefe. Precisamos de telepatas fortes,  Lew; gostaria que voltasses, mas acho que irão precisar de ti no  Conselho.

!; Vi-o vacilar de novo, ligeiramente, perante a minha reacção. Sabia bem em que estado me encontrava, e ele também o sabia, pois  : todas as minhas emoções estavam a ser difundidas a toda a força.

Andres, terráqueo e sem qualquer laran visível, sentia mesmo assim ! a angústia de Marius, pois tinha vivido com uma família telepática !: desde antes de eu ter nascido.

- Poderei ir procurar um amortecedor e pô-lo a funcionar, se desejarem - disse, imperturbável.

- Isso não será necessário... - comecei a dizer, mas Jeff interrompeu-me com firmeza.

- Óptimo. Faz isso. - E pouco tempo depois as familiares  pulsações arrítmicas começaram a cruzar-me a mente, ocultando-a dos outros - pelo menos o seu conteúdo específico - mas, quanto  a mim, substituindo a dor aguda por uma forte náusea. Ouvi indistintamente  Marius contar a Andres o que tinha acontecido no Conselho. Andres, como eu previa, compreendeu imediatamente o que mais importava.

- Pelo menos reconheceram-te; tinham posto em causa o teu direito à herança, mas desta vez o velho tirano foi forçado a admitir  a tua existência - comentou Andres, com um ar de desdém. É um começo, rapaz.

- Julgas que isso me interessa? - perguntou Marius. - Durante  toda a minha vida não tenho merecido sequer que eles cuspam  em cima de mim... e de repente...

- É aquilo por que o teu pai lutou durante toda a vida - disse Andres, e Jeff acrescentou com seriedade:

- Ken estaria orgulhoso de ti, Marius.

- Como se eu acreditasse... - replicou o rapaz com desprezo.

- Tão orgulhoso que nem foi capaz de regressar uma única vez...

Baixei a cabeça. A culpa também era minha, culpa de Marius não ter tido um pai, um parente, um amigo, ficando sozinho e ignorado  pelo orgulhoso Comyn. Senti alívio quando Rafe regressou, dizendo que tinha localizado um técnico licenciado na rua das Quatro  Sombras, e que este lhe vendera algumas onças de raivannin. Jeff preparou o fármaco, dizendo:

- Quanto...?

- O menos possível - respondi. Tinha tido alguma experiência  de amortecedores químicos, e não queria ficar desamparado, ou incapaz de acordar se penetrasse num daqueles terríveis pesadelos em que ficasse de novo aprisionado em horrores atrás de horrores, com demónios de fogo irrompendo e assolando os mundos...

- Só o suficiente para que não precises de dormir sob o efeito do amortecedor - disse Jeff. Para minha vergonha tive de deixá-lo levar a poção aos meus lábios, mas logo que a engoli, fazendo uma careta perante a sua forte adstringência, comecei a sentir que as perturbações do amortecedor telepático reduziam gradualmente de intensidade, amaciando-se, até que, lentamente, tudo tinha desaparecido.

Parecia-me estranho encontrar-me totalmente sem sensibilidade telepática, estranho e perturbador, como se estivesse tentando ouvir  debaixo de água com os ouvidos tapados; por mais doloroso que  o contacto telepático tivesse sido, agora sentia-me entorpecido, às  cegas. Mas a dor desaparecera, bem como o clamor da voz do meu !pai. Pela primeira vez desde há dias, parecia-me, estava livre daquilo;

continuava a existir por baixo dos espessos cobertores da droga, mas ! eu não precisava de lhe dar atenção. Aspirei uma longa e voluptuosa  inalação de calma.

- Estás necessitado de dormir. O teu quarto está preparado! disse Andres. - Levo-te para cima ao colo, rapaz... e não vale a pena protestares; carreguei contigo por esta escada acima antes de usares  calções, e estou pronto a fazê-lo de novo sempre que seja preciso.

Era verdade que agora me sentia capaz de adormecer. Com um  novo suspiro, pus-me em pé, tentando equilibrar-me,  - Então eles não foram capazes de fazer nada a respeito da  mão? - perguntou Andres.

- Nada. Era demasiado tarde. - Agora podia dizê-lo calma mente; com efeito, depois daquele sinistro cenário do nascimento e  morte do filho de Dio sentia-me apto a aceitar o facto. - Tenho  uma mão mecânica, mas não a uso muito, a não ser que esteja a fazer algum trabalho pesado, ou por vezes quando ando a cavalo.

Não aguenta muito esforço, e atrapalha-me. Governo-me melhor sem ela, na realidade.

- Preparei para ti o quarto que era do teu pai - disse Andres.

- Deixa-me ajudar-te a subir a escada.

- Obrigado. Não é preciso, francamente. - Sentia-me exausto, mas tinha a cabeça desanuviada. Dirigimo-nos para o vestíbulo,  mas quando começávamos a subir a escada a sineta da entrada repicou e ouvi um dos servos debatendo algo; depois alguém passou por ele e vi a figura alta e arruivada de Lerrys Ridenow.

- Perdoa-me por ter vindo aqui incomodar-te... Procurei-te nos aposentos dos Alton no Castelo Comyn - disse. - Preciso de falar contigo, Lew. Sei que já é tarde, mas o assunto é importante.

Cansadamente, voltei-me para ele. Lerrys vestia agora um traje darkoveriano, elegante e à moda, com as cores do seu Domínio.

Com a reacção automática de um telepata treinado na presença de alguém em quem não confia, procurei contactá-lo mentalmente, mas lembrei-me de que me encontrava sob o efeito do raivannin, à mercê do que ele decidisse dizer-me. Os que não possuem poderes telepáticos  devem sentir-se como eu agora me sentia.

- Não sabia que vinhas para cá - disse Lerrys. - Deves calcular  que não gozas aqui de grande popularidade.

- Isso não me faz muita diferença - retorqui.

- Nós não temos sido grandes amigos, Lew - disse ele. É provável que isto te soe a falso, mas lamento bastante a morte do teu pai. Era um homem bom, e um dos poucos no Comyn com o necessário bom senso para olhar os Terráqueos sem ver neles cornos  e caudas. Viveu entre os Terráqueos o tempo suficiente para saber  em que direcção iríamos eventualmente caminhar. - Soltou um suspiro, e comentei:

- Não vieste certamente visitar-me numa noite chuvosa para me apresentares condolências pela morte do meu pai.

Ele abanou a cabeça.

- Pois não - disse. - Não vim. Desejava sinceramente que tivesses tido o bom senso de ficar por lá. Se assim tivesse sucedido, não teria necessidade de te dizer o que vou dizer-te. Mas estás aqui, e eu estou aqui, e tenho mesmo de to dizer. Conserva-te longe de Dio, ou dou cabo de ti.

- Foi ela que te mandou dizeres-me isso?

- Sou eu que to digo - ripostou Lerrys. - Isto aqui não é Vainwal. Estamos agora nos Domínios, e... - Calou-se de repente.

Desejei com todo o meu coração poder ler o que havia por detrás daqueles olhos verdes transparentes. Parecia-se com Dio, o malvado,  e a dor voltou a atacar-me, a dor provocada por o amor que existia entre mim e Dio não ter sido suficientemente forte para nos permitir ultrapassar a tragédia.

- A nossa cerimónia do casamento foi terráquea. Não tem qualquer validade nos Domínios. Aqui ninguém o reconheceria.

 Calei-me e engoli em seco. Tinha de o fazer, antes de poder prosseguir:

- Se ela desejasse voltar para mim... eu... eu aceitá-la-ia de bom grado. Mas não vou forçá-la a fazê-lo, Lerrys, não tenhas receio.

Serei eu algum meliante das Vilas Secas, capaz de acorrentá-la a mim?

- Mas está a chegar o tempo em que todos seremos terráqueos - retorquiu Lerrys - e não quero vê-la então ligada a ti.

Senti-me como se estivesse a lutar debaixo de água; não conseguia  alcançar a mente dele, os seus pensamentos eram para mim uma incógnita. Pelos infernos de Zandru, seria isto o que significava não ter laran, cego, surdo, mutilado, nada sobrando excepto a visão  e a audição vulgares?

- Será isto o que Dio deseja? Porque não vem então ela mesma dizer-mo?

Agora uma raiva cega explodia na cara de Lerrys; para ver isso eu não precisava do laran. Contorceu o rosto e cerrou os punhos;

por um instante contraí-me, pensando que ele ia agredir-me e sem saber como conseguiria defender-me, com uma só mão, se me atacasse.

- Raios te partam! Não percebes que é isso mesmo que lhe quero poupar? - exclamou, com voz a alcançar níveis de histeria.

- Não achas que já a fizeste sofrer o bastante? Quanto pensas tu que ela pode suportar, meu... meu malvado? - A sua voz foi-se abaixo. Passados alguns momentos conseguiu controlá-la de novo.

- Não quero que ela tenha de voltar a ver-te, maldito. Não quero que ela guarde qualquer recordação daquilo por que teve de passar!

- gritou, desvairado. - Vai ao quartel-general terráqueo e trata de dissolver aí o teu casamento... e se não o fizeres, juro-te, Lew, lanço-te  um repto e dou a tua outra mão a comer aos kyorebni! Com as drogas que tinha tomado, estava demasiado entorpecido  para reagir.

- Está bem, Lerrys. Se é isso o que Dio deseja, não voltarei a importuná-la - disse com dificuldade.

Ele deu meia volta e saiu ruidosamente da casa; Marius ficou a vê-lo afastar-se, perguntando depois:

- Em nome de todos os deuses, o que foi que se passou aqui?

Não me sentia capaz de entrar em explicações.

- Conto-te amanhã - disse, e subi a escada com esforço até ao quarto do meu pai. Andres acompanhou-me, mas não lhe dei atenção; atirei-me para cima da cama do meu pai e adormeci como um morto.

Mas sonhei com Dio a chorar e a gritar o meu nome enquanto a separavam de mim no hospital.

Quando acordei, a minha cabeça estava desanuviada, e parecia-me  estar novamente na plena posse dos meus pensamentos.

O ambiente em casa tinha assumido o carácter de qualquer reunião familiar; Marius veio sentar-se na beira da cama, conversando comigo  como se fosse o jovem que eu conhecera, e entreguei-lhe os presentes  que me tinha lembrado de trazer de Vainwal, produtos da tecnologia terráquea: binóculos, uma máquina fotográfica.

Ele agradeceu, mas pareceu-me que ele os achava mais apropriados  para uma criança; por uma vez referiu-se-lhes como “brinquedos”.

O que teria constituído um presente adequado para um adulto? Explosões de contrabando, talvez, em desafio ao Convénio?

A verdade é que Marius tinha tido uma educação terráquea; seria  ele um dos que consideravam o Convénio um anacronismo tonto, a ética pueril de um mundo condenado à rusticidade? Suspeitava também de que ele sentia pouco a morte do pai. Não o culpava por isso: o pai abandonara-o há muito tempo.

Disse-lhes que tinha assuntos a tratar no quartel-general terráqueo,  sem me abrir em explicações.

- Tens sete dias para o fazeres - assegurou-me Jeff depois do pequeno-almoço. - Eles adiaram a transferência formal do Domínio  até chegar ao fim o período ritual de luto pela morte de Kennard.

E agora trata-se apenas de uma formalidade, pois aceitaram-te como Herdeiro quando tinhas quinze anos.

Havia também a questão de se saber se iriam aceitar Marius.

- Estúpidos ignorantes! - manifestou-se Andres. - Decidirem  a valia de um sujeito pela cor dos seus olhos!

Ou pela cor do seu cabelo; senti Jeff a pensar nisso, recordando-se dos tempos em que, em Arilinn, quase todos os Comyn tinham tido os seus cabelos no verdadeiro tom vermelho do Comyn.

- Talvez devesse tingir os meus cabelos, e os de Marius, para ;. ficarmos mais parecidos com eles - comentei num desabafo, não inteiramente por brincadeira.

- Não poderia alterar a cor dos meus olhos - disse Marius  com secura, e eu pensei com emoção nos tons marinhos constante mente variáveis dos olhos de Dio. Mas Dio odiava-me agora, e tudo aquilo pertencia ao passado; e quem poderia culpá-la?

- Irão contestar-me - comentei. - E se o fizerem... raios,  não posso combatê-los com uma só mão.

- Estúpido anacronismo, nos tempos que correm - disse Marius,  previsivelmente -, pretender-se decidir à espadeirada uma coisa  , tão importante como a herança de um Domínio... Andres - tínhamos-lhe dito para se sentar connosco à mesa; coridom ou não, ele tinha sido nosso guardião e pai adoptivo durante uma boa parte da nossa vida - interpelou-o, com igual secura:

- Achas que faria mais sentido disputá-la com explosores ou invadindo-se os Domínios numa guerra total?

Jeff estava reclinado na sua cadeira, com um copo à sua frente.

- Lembro-me de ter ouvido explicar, na Torre, a razão pela qual se instituiu a contestação formal com espadas - comentou. Houve um tempo em que a contestação formal pela regência de um  Domínio era disputada com o Dom desse Domínio... e quem ganhava era o contestante cujo laran fosse mais forte. Naquele tempo os Domínios criavam homens e mulheres como se fossem cabeças de gado para desenvolverem esses dons, e o Dom de Alton, na sua  plena força, pode matar. Duvido de que Gabriel esteja disposto a  tentar esse tipo de duelo contra ti.

- Depois do que se passou na noite de ontem não estou assim  ; tão certo de poder ganhar, se assim acontecesse - confessei. - Tinha-me esquecido de onde provém a imunidade dos Comyn. - Em  Arilinn, os mecânicos e técnicos de matrizes em adestramento disputavam por vezes falsas batalhas com o laran, mas eu tinha aprendido a controlar o meu laran ainda durante a adolescência; as batalhas a sério com o laran eram agora proibidas.

O Convénio não foi inventado para proibir os explosores ou as armas de fogo, mas sim as antigas armas de laran, que eram tão terríveis como qualquer coisa que o império terráqueo pudesse produzir...

- Não acredito que Gabriel vá contestar-te - disse Andres.

- Mas eles são capazes de perguntar por que razão, com a idade que tens, não estás casado, e se terás um filho legítimo para teu herdeiro.

Senti o repuxão das cicatrizes no meu rosto ao fazer uma careta.

- Estou casado, sim, mas não por muito tempo; foi essa a razão  da visita de Lerrys - expliquei. - E não tenho filhos, nem esperança  de vir a tê-los.

Marius estava prestes a fazer-me perguntas, mas Jeff calou-o com um olhar cheio de significado. Ele conhecia bem aquilo de que eu estava a falar.

- Receávamos, em Arilinn, que aquilo viesse a acontecer, mas a técnica da monitorização das células a esse nível perdeu-se algures durante as Eras do Caos. Alguns de nós estamos trabalhando de novo para dominar essa técnica... é mais rápida e mais segura do que alguns dos trabalhos sobre o ADN que eles estão a fazer no Império...

Terás por acaso gerado alguns bastardos antes de teres partido para fora deste mundo?

Tinha tido aventuras na minha juventude, mas, se por acaso tivesse  gerado algum filho - tinha feito a pergunta a mim mesmo a rapariga em questão teria decerto tido muito orgulho em dar-mo a conhecer. E Marjorie morrera sem dar à luz.

- Eles talvez aceitassem Marius se eu conseguisse despertar nele o Dom de Alton - sugeri. - Talvez fossem forçados a fazê-lo. A Lei Comyn diz que tem de haver um Herdeiro nomeado, uma sucessão garantida. Quando deixaram que Kennard me levasse para fora, deram  o seu consentimento tácito para Marius ser aceite como Herdeiro  presuntivo. A lei é bastante clara. - Não me agradava a ideia de tentar determinar se o meu irmão teria o Dom de Alton usando as  tácticas de choque que o meu pai empregara em mim, e não conhecia qualquer outro sistema. Sobretudo numa altura destas. E, com a  minha matriz no estado em que encontrava, tudo o que poderia fazer era dar uma demonstração dos poderes de Sharra! Ela chamava-me, os fogos tentavam atrair-me de novo... Mas agora tinha outras coisas em que pensar.

- Marius deveria ser ensaiado antes da contestação formal disse eu. - Tu és o Primeiro em Arilinn, não és? Podes encarregar -te disso, verdade?

- Certamente - respondeu Jeff. - Porque não? Creio que ele tem algum laran, talvez o dom de Ridenow... há sangue Ridenow na  linhagem de Alton, e Ardais também; a mãe de Kennard era Ardais e eu sempre suspeitei de que ele tinha um toque de telepatia catalítica.

Marius tinha estado a atacar um pão amanteigado. Agora disse,  sem levantar o olhar:

- O que eu tenho, parece-me, é o Dom de Aldaran. Sou capaz  de prever o que vai passar-se. Não com muita antecipação, nem com bastante nitidez, mas o Dom de Aldaran é a pré-cognição, e eu... eu  tenho isso.

Ele era capaz de ter recebido isso da nossa mãe meia-terráquea.

Naqueles tempos os dons andavam bastante emaranhados, consequência dos casamentos entre Domínios. Olhei fixamente para ele e inquiri:

- Como podes tu saber do Dom de Aldaran?

- Os Aldarans são os únicos parentes que tenho! - respondeu ele, com impaciência. - Raios, Lew, os Comyn não pareceram  muito prontos a aceitar-me como seu parente! Passei um Verão com  Beltran... porque não?

Este era mais um factor com que precisava de contar.

- Sei bem que ele te prejudicou - prosseguiu Marius, na defensiva -, mas a vossa rixa era privada, bem vistas as coisas. Que  querias tu? Que eu declarasse uma rixa de sangue por três gerações ! devido ao que se passou? Seremos nós tão primitivos como os Terráqueos dizem?

Não havia resposta para isso, mas eu não sabia o que poderia dizer.

- Seria útil a todos disporem de alguma informação sobre o futuro - disse por fim. - Se tens realmente esse Dom, pelo amor de Aldones diz-me o que vai acontecer se eu reclamar o Domínio? Irão aceitar-te como meu Herdeiro?

- Não sei - confessou, e uma vez mais pareceu-me jovem, vulnerável,  um rapaz com metade da sua idade. - Tentei informar-me.

Disseram-me que por vezes isso acontecia, não poder prever com clareza  tratando-se de mim próprio ou de alguém que me é chegado...

Assim era, com efeito, e por esse motivo pus-me a pensar, não pela primeira vez, em qual seria a utilidade de um tal Dom. Talvez antigamente, quando os Aldaran eram capazes de prever o destino de regentes, de reinados, mesmo do planeta... e isso conduziu-me a um novo e inquietante pensamento: talvez os Aldaran, com a sua capacidade de preverem o futuro, tivessem sabido que Darkover iria juntar-se ao Império Terráqueo, e por essa razão haviam-se aliado com a Terra. Teria Beltran cortado verdadeiramente com eles depois da rebelião de Sharra?

Bem, existia um modo de o saber, mas agora não havia tempo para isso. Avancei inquieto até à janela, observando a azáfama na praça empedrada. Homens conduziam animais para o mercado, operários movimentavam-se carregando ferramentas: uma actividade  calma e familiar. Nesta estação do ano havia apenas uma ligeira  camada de neve empoada nas pedras do pavimento; o Festival, e o Solstício do Verão, estavam prestes a chegar. Contudo, regressado  há pouco de Vainwal, parecia-me que estava frio, pelo que fui pôr a minha capa de mais agasalho. Que os Terráqueos me chamassem  bárbaro, se quisessem; estava de volta a casa e vestiria os agasalhos que o meu mundo exigia. O forro de peles sabia-me bem mesmo nesta estação, e embrulhei-me na capa. Marius e Jeff ofereceram-se  para me acompanharem; mas isto era um assunto de ordem  particular e tinha de tratar dele pessoalmente, e por isso recusei a companhia.

O dia estava resplandecente; o Sol, enorme e vermelho - os Terráqueos chamavam-lhe a Estrela de Cottman, mas para mim era apenas o Sol, e apresentava-se como um Sol deveria apresentar-se erguia-se sobre o horizonte, começando a libertar-se das camadas de nuvens matinais, e havia duas pequenas sombras no céu onde Liriel e Kyrddis estavam em declínio. Dantes tinha sido capaz de dizer em que mês estávamos, e em qual dos três dez dias do mês, pela posição das luas; sabia também o que se poderia plantar em cada estação, ou quais os animais que estavam com o cio e quais aqueles prestes a parir; há um mês chamado o Mês do Cavalo porque mais de três quartos das éguas irão parir antes que o mês acabe, e há uma quantidade  de facécias a respeito do Mês do Vento porque é nele que os garanhões e os chervines e outros animais têm o cio; acho que, quando  as pessoas dependem muito da terra, trabalham tanto que têm pouco tempo para o cio, como também acontece com os garanhões, a não ser na época apropriada, e isso transforma-se depressa numa graçola incómoda.

Mas toda aquela terra... esses conhecimentos eram apenas uma ténue memória, mas supunha que, se aqui vivesse por algum tempo, depressa se reavivariam. Percorrendo aquelas ruas matinais sentia-me  confortável debaixo da luz matinal e das luas toldadas, havia algo no meu cérebro que as luzes tão minhas conhecidas mitigavam e alimentavam. Já tinha estado em vários planetas que tinham entre uma e seis luas - com mais do que isso, as marés tornam o local inabitável - e sóis amarelos, vermelhos ou azuis-claros; pelo menos sabia que este Sol não iria queimar a minha pele até ficar avermelhada  ou acastanhada!

Com que então Marius, além de possuir uma educação terráquea,  tinha o Dom de Aldaran. Isto poderia ser uma combinação perigosa,  e eu gostaria de saber como o Conselho iria reagir quando soubesse. Aceitá-lo-iam, ou iriam exigir que eu adoptasse um dos filhos de Gabriel?

Era um longo trajecto a pé desde o bairro da cidade onde o meu pai e os seus antepassados tinham mantido a sua casa citadina e os portões da Zona Terráquea. Soprava um vento agreste, e sentia-me  tolhido. Não estava habituado a este tipo de caminhada, pois durante seis anos tinha vivido num mundo, tanto na Terra como em Vainwal, em que os assuntos urgentes podiam ser resolvidos por meio de comunicadores mecânicos. Em qualquer ponto do Império poderia ter resolvido as formalidades para a dissolução de um matrimónio  através de comunicadores e ecrãs de vídeo; se tivesse sido realmente necessário apresentar-me em pessoa, poderia dispor, de um momento para o outro, de numerosos tipos de transporte mecânico.

Darkover nunca se interessara muito pela construção de estradas; são precisas máquinas, mão-de-obra humana ou a intervenção de matrizes para se dispor de estradas boas, e o nosso mundo nunca quisera pagar o preço de qualquer das três hipóteses. Eu tinha investido  a minha quota de tempo numa Torre, assegurando o tipo de comunicações que se pode obter através dos relês accionados telepaticamente; fizera também a parte que me competia nos trabalhos de mineração e de purificação química de minerais. Tinha monitorizado,  e tinha formado monitores. Sabia como era difícil encontrar o talento necessário para o trabalho com matrizes, mas sabia também  que já não era exigido da minha casta, pelo facto de possuir laran,  passar a vida atrás das paredes das Torres trabalhando para as pessoas servidas por elas.

Seríamos nós, os Comyn, os soberanos do nosso povo graças ao laran... ou seríamos antes os seus escravos? E quem era o quê?

Um escravo é sempre um escravo, mesmo se, graças ao seu trabalho  com o laran, o povo que ele serve o cerca com todo o tipo de luxos e acata todas as suas palavras. Uma classe protegida depressa se torna uma classe explorada e exploradora. Veja-se o exemplo das mulheres.

Os portões do quartel-general terráqueo, hirtos e sombrios, erguiam-se  perante mim, com um astronauta trajando cabedal negro guardando os seus portões. Dei o meu nome e o guarda usou o seu comunicador; aceitaram que eu vinha para tratar um assunto legítimo,  e deixaram-me entrar. O meu pai não se poupara a esforços para me arranjar uma dupla cidadania, e os Terráqueos asseveravam  que Darkover era, de qualquer modo, uma colónia terráquea, o que significava que era sua política conceder direitos de cidadania a qualquer pessoa que se desse ao incómodo de solicitá-los. Nunca tivera interesse em votar nas eleições dos representantes no Senado Imperial ou no Parlamento, mas suspeitava de que Lerrys nunca deixara  de o fazer. Não tenho muita fé nos governos parlamentares que têm por hábito escolher não o homem mais apto para a função mas  aquele que mais agrada ao temperamento da maioria, porque, de  . um modo geral, as maiorias têm uma propensão para estar erradas, , como nos demonstram a longa história da cultura e o constante ressurgimento de certos tipos de escravatura e de fanatismo religioso.

Não confiava na capacidade do Império para tomar decisões por  Darkover, e por que razão deveriam os Darkoverianos ter qualquer  voz na tomada de decisões para mundos como por exemplo o de  Vainwal? Mesmo em grupos pequenos, como o Conselho Comyn,  os políticos são homens que gostam de dizer aos seus pares o que estes  devem fazer, sendo portanto basicamente criminosos. Eu rara mente pensava a respeito disto, e preferia que fosse assim. O meu pai tentara, repetidamente, assinalar as falhas nesse raciocínio, mas eu tinha coisas melhores a fazer com a minha vida do que preocupar -me com a política.

Coisas melhores? Teria eu realmente alguma coisa a fazer com  a minha vida? No fundo do meu cérebro parecia-me haver um rumorejar meu conhecido. Repeli resolutamente os pensamentos, convencido  de que, se me concentrasse nesse rumorejar, veria tratar-se do clamor da voz do meu pai, da constante irritação da matriz de  Sharra no meu cérebro... não, eu não queria pensar nisso.

O meu casamento era uma linha num computador, pouco mais  do que isso. A minha profissão? Quando eu tinha deixado para trás este mundo, drogado e apenas meio vivo depois de ter sido esturricado  nos fogos de Sharra, o meu pai tivera de indicar a nossa profissão, escolhendo tanto para ele como para mim a de mecânico de matrizes. Boa piada! Ele podia ter dito que era rancheiro - Armida produz perto de uma vigésima parte dos cavalos transaccio nados nas Colinas de Kilghard - ou, devido ao seu posto de  comandante dos Guardas, soldado, ou ainda, dado o seu assento  no Conselho, o equivalente a Senador ou a Membro do Parlamento.

Contudo, conhecendo a mística que os Terráqueos associam à nossa tecnologia das matrizes, classificara-se como Técnico de Matrizes, e a mim como mecânico. Boa piada! Eu era incapaz até de monitorizar  um seixo retirado da caverna das gentes das forjas! Pelo menos  enquanto a minha matriz estivesse dominada por Sharra...

Ainda havia técnicos e Guardiões em Darkover. Talvez eu pudesse  ser libertado... mas mais tarde, muito mais tarde. A minha presente missão era já de si bastante complicada. Lewis-Kennard Montray-Lanart, habitante de Cottman Quatro - que era como o Império se referia a Darkover - profissão, mecânico de matrizes, residência,  Armida, nas Colinas de Kilghard, residência temporária dei-lhe o nome da rua e da praça da casa citadina. Não desejava que o Castelo de Comyn fosse envolver-se nisto! - Nome da esposa:

Diotima Ridenow-Montray. Segundo nome próprio da esposa. Não me parecia que ela tivesse algum, respondi. Talvez tivesse, mas sem o usar; metade dos Ridenow de Serrais davam às filhas o segundo nome próprio de Cassilda, talvez por existirem algumas dúvidas sobre  o seu estatuto como descendentes genuínos de Hastur e Cassilda, que de qualquer modo talvez nunca tivessem existido. Residência da esposa. Bem, ela estava certamente entregue aos cuidados do irmão,  e por isso indiquei a propriedade de Serrais, onde os Ridenow deviam residir, desejando ardentemente que todos eles estivessem lá. Motivo para a dissolução do matrimónio?

Parei aqui, incerto do que deveria dizer, e o funcionário, que agia como se os amores como este fossem desfeitos centenas de vezes  por dia, como talvez acontecesse no formigueiro da população do Império, disse-me com irritação que eu tinha de indicar um motivo  para a dissolução do casamento. Pois bem, eu não poderia dizer  que era por o irmão dela me ter ameaçado de morte se não o fizesse!

O funcionário sugeriu:

- Por esterilidade, se ambos desejavam ter filhos; por impotência,  ou por diferenças irreconciliáveis nos estilos de vida; por deserção...

Esse serviria; ela tinha-me indubitavelmente desertado. Mas o funcionário continuava a debitar hipóteses.

- Por alergia ao planeta ou à residência da parte contrária; por incapacidade para o sustento dos filhos do matrimónio; por inabilidade do pai para conceber prole se ambos desejam ter filhos...

- Essa é suficiente - disse, apesar de saber que, por princípio, tanto esta cláusula como a da esterilidade eram raramente citadas ;. como motivo de divórcio; usualmente citavam-se razões menos ofensivas por consentimento mútuo, como a deserção ou a diferença ir reconciliável de estilos de vida. Mas era o que Dio queria, e eu iria citar a razão verdadeira.

Lentamente, o funcionário introduziu a razão em código no ! computador; ficava agora registrado que eu era incapaz de conceber  uma prole viável. Bem, aquilo que Dio tinha dado à luz naquela noite de calamidade já devia constar algures nos registros daquele  hospital terráqueo em Vainwal... Abafei uma imagem agonizada de . Dio, sorrindo para mim enquanto falava do nosso filho... não.

Tudo acabara já. Ela desejava estar livre de mim, e eu não me conservaria  agarrado a uma mulher que tinha todas as razões para me  desprezar.

Enquanto o funcionário concluía os pormenores, um comunicador apitou algures, e ele olhou para mim ao responder.

- Mr. Montray, se quiser ter a bondade de passar pelo gabinete do Legado ao sair...

- Do Legado? - perguntei, alçando os sobrolhos. Tinha vis to uma vez o Legado Terráqueo, um funcionário empertigado chamado Ramsay, quando ele estivera presente numa conferência em  que eu tinha feito serviço de Guarda de Honra, nos tempos em que  eu ainda era um dos oficiais do meu pai. Talvez ele desejasse também  apresentar-me condolências pela morte do meu pai, aquela es pécie de formalidade social desprovida de qualquer significado que  não se limitava apenas a Darkover ou à Terra.

- Já terminámos - anunciou o funcionário, e vi o nosso casamento, e o nosso amor, reduzidos a algumas linhas de dados sem  qualquer valor, gravados algures num computador. A ideia encheu -me de repugnância.

- É só isto, então?

- A não ser que a sua esposa conteste o divórcio dentro de um  dezdias - respondeu o funcionário. Sorri com amargura. Não iria fazê-lo. Eu já provocara bastantes distúrbios na vida dela; não podia  censurá-la por não desejar mais.

O funcionário apontou-me na direcção do gabinete do Legado, mas quando lá cheguei (lamentando, devido aos olhares que atraía, não ter posto a minha mão artificial) constatei que o Legado não era o homem de quem me recordava, e que este se chamava Dan Lawton.

Conhecia-o de passagem. Era até meu parente afastado, mas com um parentesco mais próximo de Dyan... e este era no fim de contas um primo do meu pai. A história de Lawton era parecida com a minha, se bem que inversamente: era filho de pai terráqueo e de mãe aparentada com os Comyn. Poderia ter reclamado um assento  no Conselho Comyn, se assim o tivesse desejado, mas escolhera  outra coisa. Era alto e magro, com cabelos mais próximos do que os meus do vermelho do Comyn. Cumprimentou-me amistosamente  mas não com entusiasmo excessivo, e para meu alívio não me estendeu a mão; é um costume que eu desprezo, sobretudo por já não estar capaz de dar um aperto de mão apropriado. Mas não se esquivou a olhar-me nos olhos; não são muitos os homens que queiram, ou possam, olhar um telepata nos olhos.

- Ouvi falar do que aconteceu ao teu pai - disse ele. - Já deves  estar farto de ouvir condolências formais, mas eu conhecia-o e gostava dele. Com que então, estiveste a residir na Terra. Gostaste de estar lá?

- Estás a sugerir que devia ter ficado por lá? - repliquei, irritado.

Ele abanou a cabeça.

- Nada tenho a haver com isso. És agora Lorde Armida, se não me engano?

- Creio que sim. Depende do Conselho confirmar-me como tal.

- Bem precisamos de ter amigos no Conselho - retorquiu ele.

- Não me refiro a espiões; refiro-me a pessoas que compreendam a nossa maneira de ser e que não pensem automaticamente que todos os Terráqueos são monstros. Danvan Hastur tratou de fazer com que o teu irmão mais novo recebesse uma educação aqui no Quartel-general  terráqueo; foi educado como se fosse filho de qualquer senador: política, história, matemática, idiomas; tu próprio não hesitarias em encaminhá-lo nessa direcção logo que ele tivesse a idade apropriada.

Sempre esperei que o teu pai concorresse a um lugar no Senado  Imperial, mas não consegui persuadi-lo a que o fizesse. Talvez o teu irmão.

- Talvez seja essa uma direcção apropriada para Marius, se o  Conselho não o aceitar como meu herdeiro formal - repliquei, conciliador. Isto faria mais sentido do que colocá-lo no comando da Guarda. Gabriel pretendia esta função para si mesmo, e de certeza  desempenhava perfeitamente as funções inerentes. - Falarei com ele a esse respeito.

- Antes de ser elegível para o Senado Imperial - explicou Dan Lawton -, Marius vai precisar de residir em três planetas diferentes durante um mínimo de um ano em cada, e demonstrar compreender as suas diferentes culturas. Não é já demasiado cedo para que comece  a tratar disso. Se ele estiver interessado, poderei arranjar-lhe algum pequeno posto diplomático algures... em Samarra, talvez, ou em Megaera.

Não sabia se Marius estaria interessado pela política. Disse-lho,  acrescentando que iria perguntar-lhe. Talvez fosse uma alternativa  viável para o meu irmão. E não iria precisar de testá-lo para saber se tinha o Dom de Alton... não precisaria de me arriscar a matá-lo pelas minhas mãos... como o meu pai tinha corrido o risco de me matar...

- Sabes se ele é também um mecânico de matrizes?

Neguei com um aceno da cabeça.

- Não me parece. Não sei mesmo até que ponto ele será telepata.

- Existem telepatas em alguns mundos - disse ele. - Não muitos, e esta é a única cultura em que eles são aceites sem discussão.

Mas, se ele se sentisse mais confortável algures onde os poderes  telepáticos e extra-sensoriais são aceites como triviais...

- Hei-de perguntar-lhe. - Tinha a esperança de que, quando lhe falasse no caso, Marius não iria pensar que eu estava a tentar ver-me  livre dele. Historicamente, os irmãos eram aliados; na realidade, contudo, era frequente serem rivais. Marius precisava de saber que eu não pretendia disputar o Domínio com ele! Fiz menção de me retirar.

- Haverá mais alguma coisa?

- Na realidade - disse Lawton -, havia mais uma coisa.

Que saberás a respeito de um homem chamado Robert Raymon Kadarin?

Senti um arrepio. Sabia demasiado a respeito de Kadarin, daquele  maldito traidor, que em tempos fora meu amigo, quase meu irmão, que retirara a matriz de Sharra das suas forjas, entregando-ma,  provocando estas cicatrizes, obrigando Marjorie a sujeitar-se ao poderio de Sharra... não Forcei-me a parar de pensar nisso, com os dentes cerrados.

- Ele já deve ter morrido.

- Também pensávamos que tivesse - disse Lawton. - Até pelo decorrer da natureza e do tempo, seria natural que já tivesse morrido. Já pertencia aos serviços secretos terráqueos consideravelmente  antes de eu ter nascido... ora, antes mesmo do meu avô ter nascido, o que significa que terá agora uns cem anos, ou mais ainda.

Lembrei-me dos seus olhos cinzentos, incolores... Havia sangue  chieri nas Infernais, como houvera em Thyra, na própria Marjorie  e na sua desconhecida mãe. E os montanheses, com sangue chieri semi-humano, tinham uma vida anormalmente longa, como também acontecera com alguns dos velhos reis Hastur.

- Seja como for, não viverá por muito tempo se se cruzar no meu caminho - declarei. - A vida dele pertence-me, onde, quando e como eu puder; se o encontrar, toma nota, mato-o como a um cão.

- Uma rixa de sangue...? - perguntou Lawton, e eu respondi:

- Sim. - Ele era um dos poucos terráqueos capazes de o compreender.

Nas montanhas, uma rixa de sangue por resolver prevalece sobre qualquer outra obrigação... Eu poderia, se fosse necessário, protelar o procedimento formal para contestar o Domínio Alton invocando  a rixa de sangue à moda antiga.

Devia tê-lo morto enquanto podia... Pensava que ele estava morto.

Eu tinha estado fora deste mundo, esquecendo o meu dever, a minha  honra... Já o julgava morto... e uma voz sussurrou na minha mente, mas prestes a bradar uma vez mais, a minha última ordem... regressa a Darkover, luta pelos direitos do teu irmão... o Domínio  de Alton não poderia sobreviver com a mácula de uma rixa de sangue por resolver...

- Que motivo tens para pensar que ele continua vivo? - perguntei. - E que razão te leva a falar-me dele? Tenho estado longe daqui, e de qualquer forma não seria provável que ele estivesse escondido debaixo da minha capa!

- Ninguém te acusou de lhe dares abrigo - esclareceu Lawton.

- Sei contudo que tu e ele foram aliados durante a rebelião e a crise de Sharra, quando Caer Donn foi destruída...

Prontamente, antecipando perguntas, comentei:

- Decerto ouviste uma parte da história contada por Beltran...

- Nada disso. Nem sequer conheço o actual Lorde Aldaran replicou Lawton. - Só o vi uma única vez. Sabes que há uma forte semelhança entre vós os dois? São primos, não são?

Confirmei com um aceno. Tenho visto gémeos que são menos parecidos do que Beltran e eu; e houve um tempo em que essa semelhança  me dava satisfação. Tocando nas cicatrizes do meu rosto, ripostei:

- Já não somos muito parecidos.

- Mesmo assim, olhando de relance, qualquer pessoa que conheça  ambos poderá confundir um com o outro - declarou Lawton. - Meio grama de cosmético bastaria para encobrires essas  cicatrizes. Mas isso não vem ao caso; o que é que Kadarin tem a ver : com Beltran e contigo?

Fiz-lhe um relato breve e monótono da história. Incitado por ; Beltran de Aldaran, enquanto o velho Lorde Aldaran - que era meu tio-avô - jazia moribundo, o homem chamado Kadarin tinha  ido buscar a matriz de Sharra à gente das forjas.

- O nome “Kadarin” é apenas uma provocação - expliquei.  Nas Infernais, qualquer degenerado é conhecido pelo vitupério de  “filho do Kadarin”, e ele adoptou esse nome.

- Era um dos melhores membros dos nossos Serviços Secre tos até sair - disse Lawton -, ou pelo menos é isso que consta nos registros. Nessa altura eu ainda não tinha acabado a escola. Seja como for, ele tinha a cabeça a prémio; estivera a prestar serviço em Wolf, e ninguém sabia que tinha regressado a Darkover até que a crise de Sharra rebentou.

Tentei reagir a uma recordação: Kadarin, seco de carnes e matreiro,  sorridente, falando-me das suas viagens pelo Império; tinha-o  escutado com o fascínio de um adolescente. Também Marjorie o escutara. Marjorie... o tempo deslizou; por um momento vi-me percorrendo  as ruas de uma cidade agora destruída pelas chamas, de mãos dadas com uma rapariga sorridente e com olhos ambarinos, compartilhando de um sonho que juntaria Terráqueos e Darkoverianos  como iguais. Contei a história inexpressivamente, o melhor que podia.

- Beltran, com Kadarin, tinha um plano: formar um círculo em volta de uma das velhas matrizes de alto nível, para demonstrar aos Terráqueos que dispúnhamos de uma tecnologia, de uma ciência,  muito nossa. Era uma das matrizes capazes de propulsionar máquinas  voadoras, de minerar metais... Pensávamos que, depois de aprendermos a controlá-la, poderíamos oferecê-la ao Império em troca de algumas das ciências do Império. Formámos um círculo...

um círculo de Torre, mas sem a Torre: um círculo de mecânicos de matrizes...

- Não sou especializado na tecnologia de matrizes - disse Lawton -, mas tenho alguns conhecimentos. Podes prosseguir.

Eram apenas tu e Kadarin e Beltran, ou havia outros?

- A meia-irmã de Beltran, chamada Thyra; dizia-se que a mãe dela tinha sangue chieri e fora enjeitada pela gente das florestas.

Ela, a mulher chieri, não me recordo do seu nome, também teve dois filhos, um rapaz e uma rapariga, de um dos oficiais terráqueos de Lorde Aldaran, um certo capitão Scott.

- Conheço o filho dele - disse Lawton. - Chama-se Rafael Scott... queres tu dizer que ele era um dos vossos? Não devia ter então  mais de nove ou dez anos, pois não? Vocês seriam capazes de usar uma criança para o que queriam fazer?

- Rafe tinha doze anos - esclareci - e o seu laran estava desenvolvido,  pois de outro modo nunca poderia ser um dos nossos.

Conheces o bastante a respeito de Darkover para saber que se uma criança tem a idade suficiente para funcionar como homem, ou como mulher, então poderá fazê-lo, sem mais delongas. Sei que vocês  terráqueos estão habituados a não exigir responsabilidades aos vossos jovens até muito depois de estarem crescidos; nós não agimos assim. Mas teremos de discutir costumes sociais agora? Rafe era um de nós. E Thyra também, e igualmente a irmã de Rafe, chamada Marjorie. - E então calei-me. Era-me impossível falar agora de Marjorie; nunca agora, com as antigas feridas abertas de novo.

- A matriz descontrolou-se, e metade de Caer Donn foi consumida  pelas chamas. Mas deves conhecer a história. Marjorie morreu.

Eu... - Encolhi os ombros, movendo ligeiramente o coto do braço.

- Quando vi Rafe pela última vez, não me pareceu acusar os efeitos  do que aconteceu. Mas pensava que Kadarin, bem como Thyra, estivessem mortos.

- Da mulher nada sei - disse Lawton. - Não me constou nada. Não iria reconhecê-la mesmo se ela entrasse aqui neste momento.

Mas Kadarin continua vivo. Foi visto em Thendara ainda não há um dezdias.

- Se ele está vivo, ela também estará - comentei. - Kadarin daria a sua vida antes de permitir que acontecesse alguma coisa a Thyra. - Um sentimento de culpa atacou-me de novo: Eu deveria ter morrido antes de Marjorie, Marjorie... e nesse momento fui assaltado  por um pensamento inquietante. Thyra era Aldaran, mas também era chieri. Teria ela previsto o regresso de Sharra a Darkover,  tendo chegado a Thendara atraída por aquela irresistível força, mesmo antes que eu próprio soubesse que iria trazê-la para cá?

Não seríamos nós nada mais do que meros peões daquela malvada  coisa?

- O que é Sharra? - perguntou Lawton. - Apenas uma matriz...

- Sharra é de facto uma -matriz. Mas é uma matriz de nível muito elevado, nono ou décimo... - respondi, tentando fugir à pergunta dele. - De um modo geral, uma matriz de nível nono só pode ser accionada ou controlada por um mínimo de nove telepatas  qualificados.

- Mas depreendo que será mais do que isso...

- Pois - retorqui. - Talvez seja... não sei bem o que é. A gente  das forjas pensava que Sharra era o talismã que controlava a deusa que trazia o fogo para as suas forjas...

Lawton interrompeu-me.

- Não estou a pedir-te um relato das superstições darkoverianas  a respeito de Sharra. Ouvi histórias dos cabelos flamejantes...

- Não são histórias - declarei. - Não estavas lá quando Caer Donn foi incendiada, pois não? Sharra surgiu... e pegou fogo às naves espaciais...

- Hipnotismo! Alucinação! - comentou Lawton com nervosismo.

- Mas o fogo foi verdadeiro - afirmei - e podes crer que o Vulto de Fogo foi também verdadeiro. - Fechei os olhos com força, como se pudesse ver novamente o fogo, como se a minha matriz estivesse  sintonizada com o fogo daquela matriz mais poderosa e mais antiga...

Talvez Lawton tivesse um toque de laran - eu nunca tive a certeza  disso, mas muitos terráqueos têm-no, sem que saibam o que é, nem como usá-lo - pois perguntou-me:

- Achas que ele veio a Thendara por tu estares aqui... para tentar  recuperar a matriz de Sharra?

Era isso o que eu mais receava. Acima de tudo, era isso o que eu mais receava: a matriz novamente nas mãos de Kadarin...

... e eu um escravo involuntário da matriz, ardendo, ardendo, colado ao Vulto de Fogo...

- Matá-lo-ia antes que isso acontecesse - disse.

Os olhos de Lawton fixaram-se por um momento na minha mão válida. Depois disse:

- Ele tem a cabeça a prémio no Império. E tu és um cidadão do Império. Se desejares forneço-te uma arma, para te protegeres de um criminoso notório sob sentença de morte, e concedo-te o direito legal de o executares.

Para minha eterna vergonha, constatei que tinha receio de Kadarin.

E a ética do Convénio - dissera-o uma vez o meu pai, cinicamente  - desfaz-se diante do medo ou de uma vantagem pessoal.

O pai de Regis Hastur tinha morrido vinte anos antes, deixando os  Domínios para serem governados por um filho ainda por nascer,  porque um qualquer bando de rebeldes tinha pegado em armas contrabandeadas por razões que certamente consideravam suficientemente  importantes para ignorarem o Convénio.

Depois disse, com um estremecimento:

- Não, obrigado. Talvez já não esteja apto a pegar numa espada,  mas duvido de que seja capaz de disparar com a necessária destreza. Lutarei com ele, se for necessário. Só me tirará a matriz de Sharra por cima do meu cadáver.

- O teu cadáver não nos servirá de nada se Kadarin tomar posse da matriz de Sharra - ripostou Lawton com impaciência -, e de momento não estou interessado na tua honra nem no Convénio.

Estás disposto a encarar a hipótese de levares a matriz para a Zona Terráquea, para nós podermos proteger-te com armas eficazes?

isto era um assunto darkoveriano. Deveria eu esconder-me por detrás da bainha de uma túnica terráquea, guardado pelas pistolas e explosores deles, armas de cobardes?

- És parvo e teimoso - disse Lawton sem rancor. - Não  posso obrigar-te, mas tem cuidado, raios, tem muito cuidado, Lew. - Era a primeira vez que me tratava pelo nome, e mesmo apesar da minha raiva senti-me comovido; estava necessitado de amigos, mesmo  se fossem terráqueos. E sentia respeito por este homem. - Se mudares de ideias - disse ele -, ou se precisares de uma arma, ou de um guarda-costas armado, diz-me. Precisamos de amigos no Conselho, como sabes.

- Não posso prometer ser teu amigo, Lawton - disse-lhe com  relutância.

Ele fez um aceno e respondeu:

- Eu compreendo. Mas... - Hesitou, e olhou para dentro dos meus olhos. - Mas eu prometo ser teu amigo. Lembra-te disso, se precisares. E a minha oferta mantém-se.

Ao sair, levado pelos longos elevadores até ao piso térreo, ia pensando no que ele me dissera. Cá fora o vento estava gélido, e o céu apresentava-se carregado de nuvens; mais tarde iria nevar. Espantava-me  a rapidez com que recuperava a minha percepção do tempo atmosférico. Neve, em pleno Verão! Por vezes acontecia. Em tempos, um nevão de Verão tinha salvo Armida durante um terrível  incêndio florestal em que vários dos nossos edifícios já tinham sido consumidos. Mas também não era frequente, e talvez fosse um presságio de infortúnio. Bem, isso não constituiria uma surpresa.

Não perdi tempo a observar as naves espaciais. Já me tinha fartado  delas. Apressado, aconchegando a minha capa em volta dos ombros para combater o vento frio, percorri as ruas. Precisava de regressar o mais rapidamente possível aos aposentos dos Alton no Castelo Comyn, tomar posse deles demonstrando considerar-me o chefe legítimo do Domínio de Alton, Lorde Armida. Por outro lado, a matriz de Sharra, que havia sido deixada na casa citadina, salvaguardada  apenas pelo facto de ninguém saber onde ela estava, ficaria  em maior segurança no Castelo Comyn. Melhor ainda, levá-la-ia para a Torre Comyn e pediria à minha prima Callina, que era agora a Guardiã, que a guardasse no laboratório de matrizes da Torre, protegida por uma tranca de matrizes. Kadarin seria capaz de assaltar  a casa citadina, capaz mesmo de penetrar no Castelo, mas não me parecia que ele pudesse invadir um laboratório na Torre Comyn, sob a protecção de uma Guardiã. Se ele conseguisse fazê-lo, estaríamos  todos mortos e já nada interessaria.

Tendo tomado esta decisão, sentia-me melhor. Era bom respirar não os cheiros mecânicos da Zona Terráquea mas os aromas limpos e naturais da minha parte da cidade: o eflúvio de especiarias saído de uma cozinha, o calor de uma forja onde alguém estava a ferrar uma parelha de animais de carga: um grupo de Renunciantes, com o cabelo  cortado tão rente que era difícil determinar se se tratava de homens ou mulheres e envergando grosseira roupa de caminheiros, preparando-se  para uma expedição às colinas a acompanhar uma dama fortemente  velada transportada numa liteira. Os odores limpos de animais, os aromas frescos das plantas hortícolas. Thendara era uma cidade bela, se bem que eu preferisse estar nas Colinas de Kilghard...

Poderia partir para lá. Tinha ali propriedades que precisavam de mim. Armida era minha agora... o meu lar. Mas havia a reunião do Conselho, e também era necessário lá. Escutei um chamamento vindo do outro lado de uma praça: uma patrulha de jovens Guardas. Levantei o olhar, e Dyan Ardais distanciou-se da patrulha e veio em passos largos direito a mim, com a sua capa militar espanejando atrás de si.

Este encontro era a última coisa que eu desejaria. Em rapaz tinha detestado Dyan com uma antipatia avassaladora; depois, mais crescido,  pensara que uma parte da minha aversão talvez fosse devida ao facto de ele ter sido amigo de meu pai, enquanto que eu, filho bastardo, solitário, sem amigos, invejava todas as atenções que o meu pai dedicava a todos os outros. A proximidade doentia entre o meu pai e eu não tinha sido totalmente provocada por ele, e agora sabia isso. De qualquer forma, Kennard já tinha falecido, e teria de me libertar de algum modo da sua influência e da sua voz, real ou imaginada, na minha mente.

Dyan era meu familiar, era Comyn, e tinha sido amigo do meu irmão e do meu pai. Por isso acolhi-o com civilidade, e ele reciprocou  formalmente. De Comyn para Comyn, era a primeira vez na minha vida que ele me cumprimentava como a um seu igual.

Depois abandonou a formalidade e disse:

- Preciso de falar contigo, primo. - O termo, um pouco mais íntimo do que “parente”, pareceu-me ser tão difícil para ele como para mim. Encolhi os ombros, apesar de não me sentir à vontade.

A conversa com Lawton deixara-me, ainda mais do que antes, desesperadamente  desconfortável a respeito da matriz de Sharra; ansiava  por vê-la guardada num local seguro antes que alguém - por este “alguém” refiro-me a Kadarin, que era o único que, na minha opinião, poderia chegar-lhe - tivesse conhecimento da sua presença  em Darkover através da reactivação da sua matriz pessoal, pois que, se isso acontecera com a minha matriz, poderia certamente acontecer com a dele. E, logo que ele soubesse que a matriz de Sharra  estava regressada a Darkover, o que iria fazer? Eu não precisava de perguntar: sabia-o bem.

- Há ali uma taberna; queres tomar uma bebida comigo? Preciso  de falar contigo, primo.

Hesitei; não sou grande bebedor, seja quando for.

- Ainda é cedo para mim. Obrigado. E estou com alguma pressa. Poderá esperar?

- Seria melhor não esperarmos - ripostou Dyan. - Mas posso  caminhar contigo, se preferires. - Compreendi com algum atraso que aquilo tinha sido um gesto de amizade. Encolhi os ombros.

- Como queiras. Não conheço muito bem esta zona da cidade.

A taberna era acolhedora, e não demasiado sombria, se bem que eu tivesse sentido um arrepio na espinha ao penetrar na sala às escuras, seguido por Dyan. Ele conhecia evidentemente o estabelecimento,  porque o auxiliar do balcão veio logo trazer-lhe um jarro antes que Dyan o tivesse encomendado. Serviu um pouco da bebida  no meu copo; estendi a mão para o interromper.

- Só um pouco, obrigado. - Era mais um ritual do que qualquer  outra coisa; bebemos ambos, e no fundo da minha mente pensei  que, se o meu pai pudesse saber, teria ficado satisfeito por me ver bebendo afectuosamente com o seu amigo mais íntimo. Bem, não me custava prestar desta forma uma homenagem à sua memória. Vi Dyan olhando para mim e percebi que ele compartilhava deste pensamento;

bebemos em silêncio ao descanso em paz do meu pai.

- Vamos sentir a falta dele no Conselho - disse Dyan. - Conhecia  toda a maneira de ser dos Terráqueos, e não estava seduzido por ela. Será que... - e os seus olhos fixaram-me por um momento com toda a sem-cerimónia, observando as cicatrizes, a manga vazia.

Mas eu já estava bastante habituado àquilo.

- Não me sinto particularmente atraído pela maneira de ser dos Terráqueos - comentei -, ou, mais exactamente, do Império.

O próprio planeta Terra... - fiz um encolher de ombros - ... há quem o ache um mundo de beleza, se nos habituarmos a viver debaixo  de um Sol amarelo e a ter as cores todas confundidas. Confere-se  um certo... estatuto... a quem descende de velhas raízes terráqueas, ou a quem reside lá por algum tempo, mas eu não fiquei cliente. No que se refere ao Império...

- Tu viveste por muito tempo em Vainwal - disse Dyan -, mas não és um decadente como Lerrys, todo dedicado ao prazer e... aos entretenimentos exóticos.

Aquilo pareceu-me ser uma pergunta.

- Posso bem viver sem os luxos do Império - retorqui. O meu pai achou o clima de lá favorável à sua saúde. Eu... - Hesitei,  perguntando a mim mesmo por que razão me resolvera a ficar lá: inércia, lassitude de morte, indiferença, até ter conhecido Dio, e a partir de então qualquer lugar passara a ser tão bom como qualquer  outro, conquanto que ela estivesse comigo. Se Dio me tivesse pedido, teria eu estado disposto a regressar a Darkover? Possivelmente,  se o assunto tivesse sido abordado antes de se ter tornado impossível para ela encetar uma viagem. Porque não teríamos nós regressado antes de ela engravidar? Ao menos aqui ela poderia ter sido monitorizada, teríamos tido algum aviso atempado da tragédia...

Fiz um esforço para repudiar esses pensamentos. O que não tem remédio remediado está: tínhamos feito o melhor que podíamos, na ignorância, e não desejava carregar com esse fardo de culpa juntamente  com tudo o mais.

- Fiquei com o meu pai. Ele queria que, logo que ele morresse, eu voltasse para cá. Foi esse o seu desejo derradeiro. - Disse-o cautelosamente,  receoso de que o clamor na minha mente recomeçasse logo que fosse invocado, mas não passou de um murmúrio.

- Tu podias ocupar o lugar do teu pai no Conselho - disse Dyan -, ficando com o mesmo tipo de poder que ele exercia.

Devo ter feito uma careta de repugnância, porque ele disse, meio zangado.

- És louco? Fazes falta no Conselho, conquanto que não te alies aos Ridenow tentando puxar-nos todos para o Império!

Abanei a cabeça.

- Não tenho veia política, Lorde Dyan. Além disso... sem ofensa...

gostaria de ter algum tempo para decidir por mim, antes que cada uma das partes interessadas me venha dizer o que devo pensar.

Esperava que ele tivesse um acesso de raiva ao escutar a reprimenda,  mas limitou-se a sorrir, aquele sorriso feroz e lupino que era, à sua maneira, atraente.

- Muito bem; ao menos mostras que és capaz de pensar. Enquanto  avalias a situação, analisa as capacidades do nosso príncipe.

Há bastantes precedentes: o Conselho sabia que o meu próprio pai era louco como um kyorebni sob os efeitos do Vento Fantasma, e trataram de lhe aparar as garras.

Tinham nomeado Dyan regente do seu pai, e, num dos seus intervalos  lúcidos, o velho Dom Kyril concordara com a medida.

- Derik não tem nenhum parente próximo - comentei. Não é ele o único Elhalyn adulto?

- As irmãs dele estão casadas - disse Dyan -, se bem que não estejam tão próximas da nobreza como poderiam estar se tivéssemos  sabido que um dos maridos delas poderia ter de ser nomeado regente dos Elhalyns. O velho Hastur pretende colocar Regis no lugar  de Derik, mas o rapaz está a reagir mal, e quem poderá censurá-lo  por isso? Já lhe basta ter de reger Hastur, quanto mais estar carregado com uma coroa! Nos tempos que correm uma coroa é uma aberração; do que precisamos é de um Conselho forte, formado por indivíduos com poderes equiparados. E também temos a Guarda;

não que algumas dúzias de homens brandindo espadas possam fazer muito contra os Terráqueos, mas sempre poderão manter o nosso povo do lado certo do muro.

- Quem comanda agora a Guarda? - perguntei, e ele encolheu  os ombros.

- Qualquer um. Ninguém. Gabriel, sobretudo. Eu próprio ocupei  o cargo durante dois anos, pois Gabriel parecia pouco amadurecido.

- Lembrava-me de Dyan ter sido um dos melhores oficiais da Guarda. - Passado esse período, o comando passou para ele.

- Que lhe faça bom proveito - comentei - Nunca tive muita inclinação para a carreira das armas.

- É uma parte intrínseca do Domínio - declarou Dyan acaloradamente.

- Parece-te que não estarias disposto a cumprir o teu dever comandando a Guarda?

- Precisarei de me reencontrar primeiro - disse, e logo acrescentei,  animadamente: - O que será mais importante, encontrar alguém  que seja competente no comando da Guarda, gostando do que faz, ou encontrar alguém que tenha nas veias o sangue mais apropriado?

- São igualmente importantes - respondeu com uma expressão  de gravidade. - Especialmente nos tempos que correm. Com os : Hasturs anexando Domínio atrás de Domínio, Gabriel é precisa mente o oposto do homem que seria necessário para comandar a  Guarda; devias bater com o pé e forçá-los a retirarem-lhe o comando o mais depressa possível.

Quase me pus a rir.

- Bater com o pé? Gabriel era capaz de me transformar num laçarote para ornamentar o cabelo da esposa, e fazê-lo com uma das mãos atadas... - Calei-me prontamente: uma tal figura de retórica era, no mínimo, infeliz. - Mal seria capaz de disputar um  duelo com ele; estarás a sugerir que mande assassiná-lo?

- Estou certo de que a Guarda respeitar-te-ia por intenção ao  teu pai.

- Talvez.

- E se não estiveres disposto a aceitar o comando da Guarda, o  que tencionas fazer? Regressar a Armida e criar cavalos? - disse  Dyan, envolvendo as suas palavras num tom de desprezo. Senti-me invadido pela dor ao recordar como desejara levar o meu filho para lá.

- Talvez não fosse má ideia.

- Irás ficar sentado em casa a tratar dos teus afazeres enquanto  Darkover cai nas mãos do Império? - inquiriu com desdém. - Tal vez fosse melhor ires esconder-te atrás dos muros de uma Torre! Por  que não vais com Jeff para Arilinn... ou será que eles também te  curaram dessa vocação?

A raiva invadiu-me. Como se atrevia Dyan, sob a desculpa do  parentesco e da sua amizade com o meu pai, esgravatar desta forma  feridas mal saradas?

- Ensinaram-me em Arilinn - retorqui com calma aparente - a discutir esses assuntos apenas com pessoas que se preocupem por eles. Serás por acaso um monitor, ou mecânico, ou técnico, Lorde Dyan?

Sempre pensara que a frase “negro de raiva” era apenas uma  força de expressão; vi-a agora tomar forma, com o sangue a escurecer e congestionar o rosto de Dyan até recear que ele iria sucumbir,  vitimado por uma apoplexia. Recordei-me então, demasiado tarde, de que Dyan estivera por pouco tempo numa Torre, e que ninguém, nem mesmo o meu pai, tinha conhecido a razão da sua saída. O que eu pretendera ser uma reprimenda, um modo de lhe dizer para me deixar em paz, fora interpretado como um terrível insulto pessoal...

um ataque ao seu ponto mais fragilizado.

- Nem monitor, nem mecânico ou técnico, grande estafermo disse ele por fim, derrubando a cadeira ao pôr-se de pé -, nem ferramenta  para as forças de Sharra, meu degenerado insolente! Volta para Armida para criar cavalos, ou vai para uma Torre se alguém te aceitar, ou vai para o inferno se Zandru te quiser, mas não te intrometas  na política do Conselho, estás a ouvir-me?

Deu meia volta e afastou-se com passos rápidos, e fiquei a olhar para ele, chocado e desesperado, sabendo que tinha transformado no pior dos inimigos um homem que estivera pronto a tornar-se meu amigo.

 

A Torre Comyn elevava-se acima do Castelo, incluída no vasto aglomerado  de construções que se alcandorava sobre Thendara, mas estando todavia isolada dele, mais antiga do que o restante; incomensurável mente idosa, feita de um antigo arenito avermelhado que, fora dela, apenas se podia encontrar nas mais velhas casas arruinadas da Cidade Velha. Regis nunca tinha subido até aqui.

Dirigindo-se a um servo não-humano, Regis ordenou:

- Vai perguntar a Domna Callina Lindir-Aillard se poderá receber Regis Hastur.

Os olhos escuros do serviçal observaram-no longamente, perscrutadores e vigilantes; o servo era humanóide no aspecto e na inteligência, mas Regis não foi capaz de sacudir a sensação de que estava a dirigir-se a um cão, corpulento e não completamente amistoso. Durante  a sua breve sessão de treino na Torre de Neskaya, Regis tinha conhecido os kyrri de pelagem prateada, mas não conseguira habituar-se a eles. O humanóide observou-o mais longamente, pareceu -lhe, do que um humano o teria feito; depois fez um aceno breve e gracioso da sua cabeça prateada e afastou-se num deslize silencioso.

Regis tentou imaginar, remotamente e de forma quase inconsciente, como o kyrri iria transmitir a sua mensagem a Callina. A origem dos kyrri perdia-se nas Eras do Caos. Teriam eles, na realidade,  sido um produto daquele monstruoso programa de procriação que a estirpe dos Hasturs executara durante séculos para fixar os dons  de Comyn nas famílias dos Sete Domínios? A genética modificada  pelo poder do laran e da tecnologia das matrizes tinha produzido resultados mais estranhos do que os kyrri. Ou teriam eles origens ainda mais remotas no tempo, fazendo parte da pré-história da estrela  de Cottman antes da chegada dos colonizadores terráqueos que, perdidos no espaço, lhe tinham dado o nome de Darkover? Regis  suspeitava de que nem nas Torres havia a certeza daquilo que os kyrri eram, nem de como tinham passado a ser os serviçais tradicionais  da Torre. Aceitara-os como um facto adquirido; aprendera a manter-se fora do alcance dos dolorosos choques eléctricos que eles podiam transmitir quando excitados ou ameaçados, e tinha sido tratado  pelas suas estranhas mãos, desprovidas de polegares, quando teria sido insuportável ter próximo de si algum telepata humano capaz  de lhe ler a mente ou de entrar nela.

Mas tudo isto situava-se à superfície da sua mente e nada tinha a ver com o desassossego subjacente que o trouxera até aqui. Por um momento pensou que deveria ter procurado Callina nos aposentos  dos Aillard, confiando nas suas relações de amizade com Linnell, a qual, tal como ele próprio, tinha crescido em Armida e era irmã adoptiva de Lew e de Marius. Regis nunca dissera mais do que uma dúzia de palavras a Callina, todas elas formais e cerimoniosas, e poderia  ter conversado com Linnell como com uma parente, enquanto que Callina era algo mais do que isso, Guardiã em Neskaya e depois em Arilinn, tendo sido enviada para aqui como Subguardiã na mais antiga das Torres, inactiva desde há muito mas ainda albergando a idosa Ashara, a qual ninguém que ele conhecia se recordava de ter visto fora da Torre... nem, como Danvan Hastur lhe dissera em tempos,  ninguém sequer que fosse do conhecimento dele, e o avô estava  próximo de ter cem anos de idade. Certamente que alguém do próprio círculo de Ashara, se por acaso o tivesse, ou alguma das suas servas, deveria vê-la ocasionalmente...

Ashara devia ter sido em tempos uma mulher comum, pelo menos  tão comum como uma mulher Comyn poderia ser, mas não imortal, sendo apenas uma pessoa longeva, do mesmo modo como alguns dos Hasturs tinham uma vida longa. Havia sangue chieri misturado no sangue dos Domínios. Regis sabia pouco a respeito dos chieri, mas tinha ouvido dizer que eles eram imortais e belos, vivendo ainda num vale remoto ao qual o género humano nunca tinha chegado. Até o seu próprio avô apresentava sinais de ser um daqueles Hasturs cujo reinado podia abranger gerações... era uma coisa afortunada para o Comyn, estar Danvan Hastur presente para ser vir como Regente durante estes anos perturbados... Regis sentiu os seus pensamentos ameaçarem esgueirar-se para canais inesperados, como se alguma outra mente lhes tivesse tocado ao de leve; sobres saltou-se, pestanejou como se por um instante tivesse adormecido em pé; sentiu a pele arrepanhar-se, e foi tocado por qualquer coisa... Experimentou uma ligeira náusea nas profundezas do seu corpo. Uma sombra caiu sobre o portal da sala, e Callina Aillard surgiu ali.

Regis não a tinha visto chegar. Senhor da Luz!, praguejou em silêncio,  a transpirar; teria ele estado ali profundamente adormecido mas em pé, com um sorriso de idiota no rosto e o vestuário desordenado  ou pior ainda? Sentia-se exposto, desesperantemente desconfortável. Callina era Guardiã, e inquietante. Conseguiu soltar um cumprimento formal: Su servo, Domna...

Ela não estava agora trajando a formal túnica carmesim que envergara na Câmara de Cristal, o vestuário tradicional que definia uma Guardiã como um ser especial, intocável, sacrossanto. Apresentava-se usando um longo vestido de lã azul ajustado ao corpo, com gola alta, cingido com um cinto de cobre composto por placas quadradas do precioso metal, exibindo ao centro de cada placa uma volumosa pedra semipreciosa azul; e o seu cabelo, enrolado sobre a nuca, estava apanhado por uma fivela de filigrana de cobre de valor incalculável.

- Vem por aqui, e depois poderemos conversar, se assim desejares. Não faças barulho; não perturbes os relês. - A voz de Callina era tão fraca que mal agitava o ar entre eles, e Regis seguiu-a em bicos de pés, como se uma passada normal fosse como que um grito.

Atravessaram uma ampla câmara silenciosa, despida, com ecrãs de relês, vazios e azulados, e outras coisas que Regis não reconheceu;

em frente de um dos ecrãs sentava-se uma jovem, enroscada num as sento macio. O seu rosto tinha a estranha expressão ausente de um telepata com a mente concentrada nos relês, comunicando com as outras Torres, com outros telepatas. Regis não reconheceu a rapariga,  e Callina evidentemente mal reparou nela; na realidade era como se apenas o corpo dela estivesse ali na sala com eles.

Callina abriu uma porta silenciosa no extremo oposto do salão,  e ambos cruzaram-na entrando numa pequena e confortável sala privada, com cadeiras e divãs baixos e uma janela alta com vidros  coloridos, atirando luzes de prisma ao longo da sala; mas lá fora estava escuro e, se não se estivesse em pleno Verão, Regis pensaria  que estava a nevar. Callina fechou silenciosamente a porta atrás deles, indicou-lhe um assento e enroscou-se noutro, enfiando os pés debaixo de si e tapando-os com a orla do vestido azul, dizendo  com voz calma:

- Então, Regis, o Velho Hastur enviou-te para me perguntares  se eu irei aceitar a cerimónia de casamento com Beltran, só para que o Conselho não se sinta embaraçado?

Regis sentiu o rosto a arder; teria ela lido a sua mente enquanto ele estivera ali estancado, adormecido de pé como um papa-moscas? Respondeu com sinceridade:

- Não, ele não me mandou cá, mas é verdade que me falou nisso ao jantar, ontem à noite. Não creio que ele pudesse ter a arrogância  de formular tal pergunta, Lady Callina.

Suspirando, Callina disse:

- Derik é um truão execrável. E eu não tinha qualquer ideia do que aquele meu tonto irmão andava a fazer nas minhas costas, ou de que Derik era suficientemente estúpido para escutá-lo. Linnell ama Derik; ficaria com o coração despedaçado se alguém os separasse.

Como pode ela interessar-se por semelhante idiota... - Callina  abanou a cabeça, exasperada. - Merryl nunca se habituou à ideia de ter nascido um Aillard e de estar subordinado à Regente feminina  do Domínio. E não me parece que venha a habituar-se.

- O meu avô sugeriu contudo que talvez estivesses disposta a sujeitar-te à cerimónia unicamente como uma formalidade - disse Regis.

- Talvez isso fosse para ele mais fácil do que dizer a Beltran aquilo que de outro modo terá de lhe dizer - comentou Callina -, que este casamento foi idealizado por um jovem sequioso de poder e por um príncipe demasiado estúpido para perceber que está a ser manipulado.

- E não te esqueças - disse Regis com secura -, por um Regente  demasiado preguiçoso ou desleixado para controlar o seu inepto principelho...

- Pensas realmente que é só por preguiça ou desleixo? - perguntou  Callina, e Regis disse:

- Não quero pensar que o meu avô tenha conspirado contra o Chefe de um Domínio...

Recordou-se então de uma conversa que tivera com Danilo uns três anos antes, tão fresca como se tivesse sido hoje: desta forma Domínio após Domínio cai nas mãos dos Hastur; o de Elhalyn já se encontra sob regência de Hastur, e a seguir o de Aillard com Derik  consorciado com Linnell, pensou Regis, o que seria mais fácil ainda com Callina casada e exilada para o longínquo Aldaran. E ele tinha testemunhado as maquinações do seu avô contra os Alton.

- Não, ele nunca o poderia ter feito - disse Callina, e um ligeiro  sorriso cruzou-lhe os lábios -, mas talvez tenha permanecido em segundo plano enquanto Merryl e aquele imbecil do Derik criavam  uma tal situação que agora sou forçada a participar no jogo para não embaraçar gravemente o Comyn.

- Callina, nem o próprio Hastur poderá forçar a Regente de um Domínio a casar-se sem o consentimento dela. E tu és a Guardiã de Ashara; o que iria ela dizer?

- Ashara... - Callina ficou em silêncio por um momento, como se o próprio som daquele nome despertasse algum mal-estar no seu rosto calmo. Parecia preocupada. - Raramente vejo Ashara.

Ela passa muito do seu tempo em meditação. Eu poderia representar todo o seu poder perante o Conselho, mas receio que... - Calou-se a meio da frase. - Tu não foste treinado numa Torre, pois não?

Regis abanou a cabeça.

- Recebi apenas o treino suficiente para poder controlar o meu Dom sem ficar doente, mas não sou um telepata completo, e o meu avô precisava de mim em Thendara.

- Parece-me que és mais telepata do que pensas, parente disse Callina, com um olhar de cepticismo.

Aquela calma proclamação de confiança enervou-o um pouco. Franziu o cenho, pronto a protestar.

- Não tenho qualquer utilidade nos relês, e não foram capazes  de me ensinar muita coisa a respeito das técnicas de monitorização...

- Talvez tenhas razão - disse ela. - Nas Torres apenas ensaiamos  as capacidades que sejam úteis para as funções em que elas se especializam: a monitorização, a faculdade de manter o contacto com um ecrã de matrizes para usar os poderes de mineração e de manipulação... Nos tempos que correm, parece ser esse o único tipo de laran que as Torres consideram úteis. Mas estás agora a constatar  que existe mais no teu laran do que acreditavas... Não é verdade, primo?

Regis retraiu-se como se ela tivesse colocado os dedos numa ferida  cuja existência ele ignorava.

- É melhor que me fales do teu laran - disse ela. - Bem vi como captaste a presença de Sharra no Conselho. Mostra-me a tua matriz, Regis.

Apreensivo, Regis levou a mão ao pequeno saco de veludo, desfez  os nós do cordão, e aparou na palma da mão o pequeno cristal, que ali ficou jazendo, azul e plácido, com pequenas luzes distantes rebrilhando no interior da pedra; nenhum indício de fogo, nenhum sinal do rapace Vulto de Fogo...

- Desapareceu! - exclamou, surpreendido.

- E tu estavas à espera de que continuasse lá - comentou Callina. - Francamente, parece-me que será melhor que me contes tudo a respeito daquilo.

Regis continuava a olhar para a sua matriz, descrente. Passado um momento conseguiu proferir bruscamente algo a respeito do que se passara: como Javanne tinha sido capturada pela imagem, como ele conseguira, sem qualquer esforço, libertar da matriz a mente de Javanne.

- Foi como se... Tinha-a visto, uma vez, desfazer ponto por ponto um desenho que lhe tinha saído mal num bordado... Acho que terá sido uma coisa parecida, se bem que eu nada saiba a respeito  de bordados...

- Mas eu sei - interveio Callina - e é precisamente isso o que te deve ter parecido.

- O que teria eu feito? - Só ao constatar que a sua voz estava  trémula Regis tomou consciência de estar amedrontado. Como poderia eu ter feito aquilo? Julgava que seria necessário um telepata poderoso, talvez mesmo uma Guardiã, para que tais ressonâncias  pudessem ser controladas...

- A história registra a existência de alguns Guardiões do sexo masculino - disse Callina, abstracta. - Bons guardiões, poderosos.

Apenas durante as últimas centenas de anos a função de Guardião  tem sido reservada a mulheres. E até há poucas gerações elas estavam sempre trancadas, tratadas como se fossem feiticeiras, virgens  sagradas, objectos rituais de grande poder e veneração. O rosto dela tinha uma expressão fria, irónica. - Agora, evidentemente,  nestes tempos iluminados, somos mais conscientes... Hoje em dia uma Guardiã precisa apenas de ser centropolar... o centro do seu círculo de matrizes, aquela que suporta os anéis de energon.

Regis, o treino que recebeste nas Torres será suficiente para entenderes  aquilo de que estou a falar?

- Creio que sim. Os termos são-me familiares, se bem que não esteja convencido de que compreendo tudo. Eles nunca se convenceram  de que eu possuía o poder suficiente como telepata para me deixarem trabalhar num círculo, e além disso precisavam de mim aqui. Contudo, se eu não estava sequer apto a trabalhar como monitor  nunca poderia ter feito um trabalho de Guardião sem estar devidamente  treinado, ou estarei enganado? - A voz dele fraquejou, mas já não se sentia tão amedrontado: Callina classificara o caso como um problema técnico, e não como alguma terrível falha existente  em si próprio.

- Mas o trabalho de uma Guardiã está hoje em dia ao alcance de qualquer técnico devidamente treinado, conforme já disse - comentou  ela. - Kennard era um técnico, e podia fazer praticamente  tudo o que Elorie de Arilinn era capaz de fazer, excepto tomar conta do centro de um círculo. Creio que Jeff poderia fazê-lo se fosse necessário, e se a tradição lho permitisse. E tu és um Hastur, e a tua mãe era uma Hastur de Elhalyn. O que sabes a respeito do Dom de Hastur, Regis?

- Pouca coisa - respondeu ele com sinceridade. - Quando era rapaz, uma leronis disse-me que eu nem tinha o laran mais vulgar.

- A recordação que ele tinha disso, como sempre, era a dor em múltiplos níveis, a impressão de que era indigno de seguir as passadas  dos Hasturs que o tinham precedido, mas ao mesmo tempo uma sensação de liberdade, de se encontrar livre do percurso traçado para os filhos de Hastur, um trajecto que ele teria de percorrer, quisesse ou não...

- Mas o teu laran foi despertado... - disse Callina, como que a perguntar, e ele confirmou com um aceno. Danilo Syrtis, amigo, escudeiro, irmão ajuramentado, e uma das últimas pessoas que se sabia possuírem o dom quase extinto da telepatia catalítica... Danilo  tinha feito despertar o laran de Regis, concedendo-lhe a herança do Comyn. Mas não tinha sido inteiramente uma bênção, pois significara  a perda da sua liberdade. Agora tinha de aguentar a carga, arcar com a herança de todos os Hasturs, e abandonar o seu sonho de se libertar desses intoleráveis laços...

Tenho sido um bom Herdeiro dos Hasturs; fiz o meu dever, comandei  a Guarda, tomei assento no Conselho, adoptei o filho da minha irmã nomeando-o meu Herdeiro. Dei até filhos e filhas ao clã dos Hasturs, ainda que não me tivesse casado com as mulheres que os geraram...

- Conheço um pouco a respeito desses laços - disse Callina, e pareceu a Regis que a sua voz fria tinha um tom complacente. Sou uma Guardiã, Regis, não uma Guardiã do novo estilo, que é apenas uma técnica altamente especializada, mas uma Guardiã à antiga. Fui treinada por Elorie de Arilinn, que era irmã adoptiva de Dyan, como sabes... Cleindori e Dorilys de Arilinn libertaram as Guardiãs ao reduzirem as antigas superstições àquilo a que agora chamam a ciência da mecânica das matrizes, e elas já não precisam de desistir das suas vidas mantendo-se enclausuradas, virginais...

Mas eu fui treinada à moda antiga, Regis, e depois de ter servido em Arilinn e em Neskaya vim para cá, precisamente por ser a única mulher nos Domínios treinada à moda antiga. Ashara exigiu que assim fosse, e eu, que tinha o treino à antiga e permanecia virgem, porque nunca tinha sentido qualquer desejo de me casar ou de largar  o meu posto, nem que fosse por uns anos, para me casar ou para ter um amante... - O seu sorriso era ténue, quase invisível. - Sentia-me  satisfeita com o meu trabalho, e nunca conhecera um homem capaz de me instigar a abandonar a minha vocação. Por isso fui escolhida  para servir sob as ordens de Ashara, eu que era a regente de um Domínio por direito próprio... simplesmente por ser como era.

- Por um instante pareceu a Regis que havia terror nos olhos dela.

Pensou: terá ela tanto receio de Ashara? O medo parecia ser uma emoção improvável numa Guardiã. O que levaria as mulheres a terem medo? Elas não tinham de ir combater nas guerras vindouras, pois estariam em segurança e protegidas...

- Que sabes tu a respeito do Dom de Hastur? - perguntou Callina de novo, insistentemente.

- Pouco, como já te disse. Cresci a pensar que nem sequer tinha  laran vulgar...

- Mas, seja ele o que for, está latente em ti - comentou ela, pensativa.

- E tu? Saberás o que é o Dom de Hastur? - disparou Regis.

- Ashara deve saber... - retorquiu Callina, mordendo o lábio,  e Regis perguntou a si mesmo o que teria isso a ver com o caso.

Como se estivesse falando consigo mesma, Callina prosseguiu: : O Dom de Ardais é a telepatia catalítica, a faculdade de despertar o laran noutras pessoas. Os Ridenow são os melhores monitores porque são empáticos... Os vários dons acham-se agora tão baralhados, devido aos casamentos consanguíneos, que é raro encontrar -se qualquer dos antigos dons em toda a sua pujança. E são tantas as superstições e as tradições que dificultam uma visão límpida dos dons... Há uma tradição de que o dom original dos Hasturs pode ; ter sido aquilo que foi ensinado aos Guardiões: a faculdade de trabalharem com outras matrizes, sem as complicadas salvaguardas que um Guardião deve possuir. Originalmente, o termo “Guardião” ela usou a palavra casta, tenerésteis - significava aquele que retém, aquele que guarda. Um Guardião, nos termos mais simples, colocando-se  de parte a função de trabalhar no centro dos anéis de energon,  é aquele que conserva as outras matrizes no grupo ressonando umas com as outras. O trabalho com as outras matrizes, e não apenas  com a matriz pessoal, exige uma perícia muito especial. Como já disse, essa perícia está ao alcance de alguns técnicos de alto nível.

Será que...? - Hesitou por um instante, e depois prosseguiu: - Os Hasturs, de um modo geral, têm uma vida longa e atingem tarde a idade adulta. O laran normal despertou em ti já bastante tarde; tinhas  então quinze anos, não foi? E talvez fossem apenas os primeiros  rumores do laran que eventualmente terás. Que idade tens agora?

Vinte e um? Isso quer dizer que a tua matriz foi despertada mais ou menos durante a crise de Sharra...

- Eu estava nessa altura nas montanhas, e a minha matriz ficou obscurecida, tal como aconteceu com todas as matrizes que estavam  próximas da matriz de Sharra - disse Regis.

E além disso ele estava então a passar por uma intolerável crise pessoal provocada pelo despertar do seu legado, pela sua decisão de se aceitar tal como era e não como o seu avô e o Comyn queriam que ele fosse, não sabendo ainda se iria admitir a redescoberta de si mesmo e o indesejado fardo dos Hasturs ou, em vez disso, sepultar tudo, viver uma vida simples sem uma coisa nem a outra, uma vida sem laran, sem responsabilidade. Mas agora havia esta nova dimensão  do seu laran, e ele não podia sequer prever quais os novos fardos  que este iria impor-lhe.

- Deixa-me esclarecer bem isto - pediu Callina. - Enquanto estavas nas montanhas durante a rebelião de Sharra a tua matriz estava  obscurecida; não podias usá-la devido a... àquilo que vi na matriz  de Lew na mesma altura, o Vulto de Fogo. Mas mais tarde, quando Sharra já tinha sido levada para fora deste planeta...

- Tornou-se límpida - respondeu Regis -, e aprendi a usá-la  sem qualquer vestígio de Sharra. Foi só quando Lew a trouxe de volta para Darkover...

Callina fez um aceno.

- Mas mesmo assim limpaste a tua matriz - disse ela. - Será fácil confirmar se terás um talento natural para a função de Guardião.

- Retirou a sua matriz pessoal do pequeno saco de cabedal que trazia ao pescoço. Segurou-a, liberta do seu isolamento, na palma  da mão e perguntou: - Serás capaz de harmonizar ressonâncias e tocar na matriz sem me magoares?

Regis olhou para longe, engolindo em seco; tinha a mente cheia daquele dia no Castelo Aldaran, quando vira Kadarin sacar a matriz  de Lew, atirando este para o chão em convulsões violentas, um destroço guinchante e desconexo...

- Não ia saber por onde começar - murmurou. - E teria medo de tentar. Era capaz... era capaz de provocar a tua morte.

Ela abanou a cabeça.

- Não, isso não seria possível, não aqui e com todas as minhas salvaguardas. Experimenta.

A voz dela era baixa e neutra, mas aquilo era uma ordem, e Regis,  transpirando, diligenciou penetrar mentalmente no cristal azul depositado na palma de Callina. Tentou recordar-se de como tinha entrado na mente de Javanne e fez um esforço para destrinçar a mente de Callina da sua matriz, como se se tratasse de fios entrançados  numa tapeçaria. Sentiu uma pressão estranha e desagradável contra o cérebro e resistiu-lhe, enojado. Seria aquilo Callina? Levantou  o olhar, hesitante, incapaz de reconciliar aquela força gélida e pesada com a mulher sorridente e amável que se encontrava diante  dele.

- Eu... não sou capaz - disse por fim.

- Não penses em mim! Harmoniza as ressonâncias com a matriz,  foi o que eu disse!

Isto é uma loucura. Conheço Callina desde que me conheço.

É absurdo ter receio dela! Repetiu a tentativa, sentindo a palpitante força vital, os seus pensamentos resguardados; ela possuía a mais resistente  barreira que Regis alguma vez encontrara. Supunha que isso teria alguma coisa a ver com o facto de Callina ser uma Guardiã.

Captou apenas fragmentos, uma luz que, jorrando através de uma janela, lhe magoava os olhos, a consciência subliminal da presença de Regis, é um bonito rapaz, o modo como essa reacção feminil o irritava... Sentiu de novo o pulsar da matriz, e tentou ajustar a sua respiração àquela pulsação... Um rosto desenhou-se tenuemente no seu espírito, frio, distante, fazendo-o arrepiar-se como se estivesse sem roupas em plena geada... belo, terrível, estranho... Repeliu essa imagem, e também a sensação de medo, e forçou-se a ingressar na matriz, sentindo a ressonância, a vida gélida da pedra, as luzes rebrilhando  em consonância com o seu respirar, com o correr do sangue  nas suas veias... Deu por si a estender a mão, inconscientemente, e fechou os dedos à volta da matriz, retirando-a da mão de Callina...

olhos frígidos distantes, pálidos e incolores como metal... Suores frios banhavam-lhe a mente...

A dor fendeu a cabeça de Callina e Regis soltou prontamente a matriz, deixando-a cair na mão dela. Callina pestanejou, e ele sentiu-a  controlar a estocada de dor.

- Bem - disse ela -, tens talento ao menos para isso, mas não sei até que ponto o teu talento poderá ir. Vi alguma coisa, como que uma visão... - Callina hesitou, à procura de palavras; sentiu-o  partilhar essa precipitação e controlou-se prontamente.

Tinha sido totalmente diferente do contacto de Regis com Javanne,  e totalmente diferente também do contacto que ele tivera com as mulheres que, por pouco tempo, haviam sido suas amantes...

Seria isso devido ao facto de ela ser uma Guardiã, aquela estranha  coisa gélida que encontrara na mente dela, uma leronis do tipo antigo, obrigada a permanecer virgem, a não tocar em qualquer  homem com a mais pequena sugestão de sexualidade? Ou teria  sido mesmo Callina? Também Regis sentia a cabeça doer-lhe fortemente.

- Se foste capaz de fazer aquilo - disse Callina -, e se te foi possível limpar uma matriz depois de ter sido tocada por Sharra... mordeu o lábio, e Regis viu-lhe o rosto trespassado de novo pela dor.

- Possuis um dom que desconhecemos. Talvez nos possa ser útil... - e ele captou as palavras que ela receava pronunciar, talvez pudesse  ajudar-nos a controlar a matriz de Sharra, a libertar o filho de Kennard do domínio daquela... daquela coisa terrível... Um segundo de terror; algo insaciável, voraz, a estender-se... Mas logo desapareceu, ou teria alguma vez chegado a existir?

- Vai dizer a Lew Alton que traga a matriz de Sharra para aqui, onde ficará em segurança... Não há tempo a perder. Talvez tu possas  ajudar a libertá-lo...

- Teria receio de tentar - disse ele, estremecendo.

- Mas não deves ter medo - declarou ela, insistente. - Se tens um dom desses... - e Regis sentiu que ela não estava a encará-lo como um ser humano, como o próprio Regis, mas apenas como um Dom, um problema estranho e confuso para uma técnica de matrizes,  um problema que tinha de ser resolvido e decifrado. Isso preocupava-o; por um instante desejou forçá-la a vê-lo como um ser humano, um homem diante de uma mulher. Ela tinha um ar distante,  fria e estática de feições, e durante um momento Regis lembrou-se da curiosa face empedernida que lhe cruzara a mente como uma visão  na matriz... Seria também essa Callina? Qual das duas era real?

Depois, tão prontamente que ele não podia estar certo do que tinha visto, desapareceu, e Callina era apenas uma mulher de aspecto frágil,  esbelta, complexada, num felpudo manto azul, olhando para ele e apertando as fontes com ambas as mãos como se lhe doessem.

- Deverás partir agora - disse ela -, mas certifica-te de que a matriz de Sharra é trazida para aqui... - e abriu a porta para a câmara de relês. Quando a atravessavam, a jovem enroscada diante do ecrã de relês levantou a cabeça e acenou, e Callina, fazendo sinal a Regis para que saísse para a câmara exterior, aproximou-se dela com passos silenciosos. Passados alguns momentos foi ter com ele na câmara exterior. Estava pálida, e parecia perturbada.

- É mais grave do que eu pensava - disse. - Lilla recebeu notícias através dos relês... Beltran está em marcha. E vem acompanhado  por uma escolta tão grande que pode ser considerada um exército. Deve chegar cá na Noite do Festival, aqui às portas de Thendara. Misericordiosa Avarra... - sussurrou. - Isto Vai provocar  uma guerra nos Domínios! Como pôde Hastur permitir que isto acontecesse? Como pôde Merryl fazer-me uma coisa destas? Será que me odeia assim tanto? E Regis não tinha qualquer resposta para lhe dar.

Como não havia mais nada que pudesse fazer, Regis regressou aos seus aposentos, meio decidido a enfrentar o avô para lhe dizer que o plano de Derik tinha produzido frutos inesperados, que aquilo poderia  significar a guerra nos Domínios se Callina se recusasse a fazer-lhes  a vontade. Mas o criado pessoal do seu avô disse-lhe que o Regente tinha ido conferenciar com as cortes, e Regis resolveu seguir para a casa citadina dos Alton. Poderia ao menos transmitir a mensagem  de que a matriz de Sharra estaria mais segura na Torre Comyn.

Contudo, ao chegar próximo da casa, viu uma figura familiar envergando as cores verde e negra do Domínio de Alton. Lew tinha-se  modificado bastante nos últimos anos; Regis mal o conhecera no Conselho, mas o seu modo de andar era o mesmo, e Regis reconheceu-o  agora, se bem que estivesse a vê-lo de costas. Começou a caminhar  mais depressa para o apanhar, receoso de usar o velho toque de mentes.

Mas Lew deve ter sentido uma presença atrás de si, porque deu meia volta e aguardou que Regis o alcançasse.

- Olá, Regis, há quanto tempo não te via...

- Assim é, primo - disse Regis, e envolveu-o num abraço de parente, encostando a cara ao rosto crivado de cicatrizes. Depois recuou,  dizendo sorridente: - Ia à tua procura, e eis que te encontro no meu caminho... Onde irás tão cedo?

- Não é tão cedo como isso - ripostou Lew, observando o céu com um olhar entendido. - Não é demasiado cedo para Dyan me ter oferecido uma bebida... ou uma discussão, raios o partam!

- Dyan não é pessoa com quem se deva discutir - comentou Regis sobriamente. - Como foi que te meteste nisso?

Lew soltou um suspiro.

- Nem sei. Alguma coisa que ele me disse. Talvez ele que quisesse  dizer vai para o inferno!, ou ofendeste-me!, mas pareceu-me mais uma declaração de guerra. - Calou-se, perturbado. - Queres fazer-me companhia até à minha casa? Sinto-me inquieto, sem razão nenhuma. Mas gostava de conversar contigo.

- E eu trago uma mensagem da leronis para ti - anunciou Regis. Ia começar a falar mas ficou mudo, subjugado por uma avassaladora  convicção de que não deveria pronunciar aquele mal-agoirado  nome, Sharra, ali na rua. Isso requeria privacidade, e uma sala bem protegida. Disse apenas: - Devias mudar-te para o Castelo Comyn, para os aposentos dos Alton. É o habitual durante as reuniões  do Conselho, e se fores visto a residir em alojamentos apropriados  terão mais dificuldade em contestar os teus direitos...

- Já tinha pensado nisso - retorquiu Lew. - Os Terráqueos costumam dizer que a posse é indiciadora de propriedade. Mas não me parece que tenha de me preocupar com Jeff, e o problema principal  poderá ser levá-los a aceitar Marius como meu Herdeiro. Não sei se ele terá chegado a sujeitar-se ao teste habitual quando tinha cerca  de treze anos; não tivemos ainda tempo para falar dessas coisas.

- Isso talvez nada signifique - disse Regis -, mesmo se ele nunca foi testado. Lembra-te, disseram que eu não tinha laran nenhum...

- Tenuemente, veio-lhe ao pensamento uma antiga recordação  de amargura. - Ao menos, se se chegar à conclusão de que Marius não tem nenhum laran, não irás enviá-lo para Nevarsin para ser educado lá, pois não?

- Só se ele quiser ir - disse Lew com amabilidade. - Um rapaz  com inclinação para os estudos e que pretenda possuir uma boa educação não perderá uma oportunidade para estudar lá, mas Marius,  segundo ouvi dizer, possui já a melhor educação que os Terráqueos  podiam dar-lhe. Devo um agradecimento ao teu avô por ter conseguido isso.

- Ele não o fez para te ser simpático. Pelo contrário... - Tinha  sido, e sabiam-no ambos, um modo de afirmar que Marius deveria  seguir o seu destino entre os Terráqueos, e não entre os seus. Enquanto estiveste longe deves ter aprendido muito a respeito do que os Terráqueos tinham para oferecer...

- Não tanto quanto teria gostado; estive internado em hospitais  durante uma grande parte do tempo - disse Lew, e por detrás daquele rosto crivado de cicatrizes Regis pressentiu muito do que Lew nunca lhe contaria, sofrimento e a aceitação final da mutilação.

Mas durante a convalescença, com efeito, teria dado em doido se não tivesse qualquer coisa para fazer. Experimentei fazer topografia, cartografia; há zonas das Colinas de Kilghard, e a maior parte das Infernais, que nunca foram devidamente cartografadas. Será melhor encarregarmo-nos disso, em vez de permitir que os Terráqueos o façam  apenas por não querermos ensinar aos nossos as técnicas necessárias.

Parece incrível que eles possuam um serviço cartográfico e topográfico em Darkover e que nós não tenhamos nenhum.

- Tenho pensado em confiar aos Terráqueos a educação dos meus filhos - disse Regis. - Mas creio que iria ter de enfrentar a oposição do meu avô. Talvez fosse melhor serem educados por alguém  que possua uma educação terráquea, como Marius ou como tu mesmo, em vez de enviá-los para fora do planeta, ou para a Cidade  do Comércio...

Com um súbito sorriso radioso que fez Regis esquecer-se, de uma vez para sempre, das marcas horríveis no rosto de Lew, este disse:

- Vivi demasiado tempo no Império; pareces-me muito novo para teres família. Mas estás já com vinte e um anos... devia ter-me lembrado de que Hastur não iria deixar passar muito tempo antes de te ver casado. Terei muito gosto em apadrinhar os teus filhos. Quem é a tua esposa? Quantos filhos...

Regis abanou a cabeça.

- Isso tem sido outro constante motivo de discussão com o meu avô. Adoptei o filho da minha irmã, mais ou menos quando tu saíste do planeta... - Fez uma pausa, hesitante, pensando que Lew não teria estado então capaz de registrar esse acontecimento. Mas Lew fez um aceno e disse:

- Estou a lembrar-me. Falaste-me disso em Aldaran.

- Tenho um filho nedestro e duas filhas - disse Regis. O mais velho tem já três anos; daqui a mais dois anos irei apresentá-lo ao Conselho. E Mikhail vai já nos onze anos. Quando tiver doze, hei-de  trazê-lo a Thendara para me encarregar pessoalmente da sua educação. - Sorrindo, prosseguiu: - Tenho acumulado muita experiência  debatendo esse assunto com o meu avô. Acho-me capaz de orientar a educação do meu filho. Não vou permitir que cresça na ignorância.

- Tens toda a razão; temos respeitado os velhos métodos por demasiado tempo - comentou Lew. - Lembro-me de ouvir o meu pai dizer que quando tinha quinze anos era já oficial da Guarda, mas era incapaz de ler ou escrever, e tinha muito orgulho nisso. Quando foi viver entre os Terráqueos, estes consideravam-no um idiota, porque  ninguém com um dedo de inteligência tem o direito de deixá-la inculta...

- Os monges de Nevarsin deploram-no tanto como um Terráqueo  - disse Regis. - Devia sentir-me grato por o meu avô ter assegurado que eu teria um mínimo de instrução. - Ao menos no mosteiro de Nevarsin aprendera a ler e a escrever, a fazer algumas contas simples e a ler toda a História darkoveriana de que se dispunha,  e que não era muita.

- Kennard tratou de pôr-me a aprender a ler e a escrever disse Lew -, ainda que tenha de confessar que não tive muito êxito nisso. Enquanto permaneci no hospital tentei recuperar o tempo perdido; mas ainda é habitual os rapazes crescerem com a ideia de que a instrução elementar é uma coisa pouco máscula... talvez porque os estudiosos não têm tempo para se dedicarem à aprendizagem do uso das armas. Evidentemente, quando os Domínios eram um campo  de batalha ano após ano, o mais importante na educação de um rapaz era adestrar-se no uso da espada e de outras armas. Quando eu era rapaz os bandidos abundavam nas Colinas de Kilghard. Durante  séculos Armida teve de ser defendida pela força das armas.

Kennard nunca seria criticado se me tivesse mantido ali para defender  as suas terras, em vez de me enviar para uma Torre...

Regis captou também a parte não verbalizada do discurso de Lew: que o seu trabalho na Torre de Arilinn, os seus conhecimentos da tecnologia das matrizes, tinham conduzido à rebelião de Sharra e à espada que não era uma espada, a espada que abrigava Sharra.

E então viu-a crescendo, desenvolvendo-se por detrás dos olhos de Lew, a expressão de horror que desceu sobre o rosto de Lew, sentiu  o seu próprio cabelo eriçar-se enquanto as chamas se inflamavam na sua mente... Sharra! Olhou para Lew. O homem sorridente, o parente com quem estivera a discutir calmamente os méritos da educação terráquea em comparação com a de Darkover, tinha desaparecido; o rosto de Lew mostrava uma palidez de morte que realçava  as cicatrizes como se estas tivessem sido marcadas a fogo, e os seus olhos arregalavam-se de horror, fixando-se em nada que Regis conseguisse  ver. Mas ambos estavam a vê-lo, o raivoso e voraz vulto da Deusa de Fogo, retorcendo-se contra as correntes, labaredas elevando-se  contra o céu... Sharra não estava na silenciosa rua em que os dois se encontravam, não estava sequer neste mundo, mas estava ali, ali na mente de ambos, horrivelmente presente para qualquer deles...

Regis respirou com força, obrigando-se a controlar a tremura das mãos. Procurou contactar a mente de Lew, tentando fazer o que tinha feito com a de Javanne, extrair o vulto de fogo da tessitura dos pensamentos de Lew... e encontrou algo em que nunca tinha tocado.

Javanne tinha visto Sharra apenas na mente dele; Rafe apenas vira a matriz... isto era algo diferente, algo mais perigoso: viu um rosto,  chupado, lupino, cabelos incolores, olhos pálidos sem cor, e um rosto de mulher como uma chama irrequieta...

- Kadarin! - arquejou, e nunca chegou a saber se o exclamara  em voz alta. A expressão de horror deixou os olhos de Lew.

- Depressa! - disse. - Era isto que eu receava...

Começou a correr, e Regis, ao acompanhá-lo, podia sentir a dor intensa como fogo na mão de Lew, a mão que não existia, um fogo fantasma... mas suficientemente real para fazer o suor cobrir a testa de Lew enquanto este corria aos tropeços, com a mão válida apertando  o punho da adaga que trazia à cintura...

Chegaram a uma ampla praça; ouviram guinchos, gritaria. Regis  nunca estivera no interior da mansão citadina dos Altons, mas já a tinha visto por fora. Meia dúzia de Guardas uniformizados combatiam ao centro da praça; Regis não podia ver com quem eles estavam a lutar. Lew gritou “Marius!” e subiu os degraus correndo.

A porta abriu-se repentinamente, e no mesmo instante Regis viu chamas saindo de uma janela alta. Um dos oficiais da Guarda estava a tentar dar ordem a uma linha de combate ao fogo que passava baldes de água de mão em mão desde o poço mais próximo e de um poço mais pequeno situado no jardim por detrás da casa, mas a confusão era total.

Lew estava a fazer frente nos degraus a um homem alto cujo rosto Regis não conseguia ver, brandindo a adaga com a sua mão válida. Deuses! Ele só tem uma mão! Regis correu, sacando a sua espada da bainha, e viu Andres debatendo-se com um bandido trajando  à maneira das montanhas... mas o que estariam os montanheses  a fazer aqui em Thendara? Os Guardas correram para os degraus, enquanto um oficial gritava para os incitar. Era difícil, na confusão, distinguir os amigos dos inimigos; Regis conseguiu chegar  junto de Lew, protegendo-lhe a retaguarda, e por um instante, ao alçar a espada, viu um rosto que reconheceu...

Magro, de olhos pálidos, lábios retraídos num ricto feral... Kadarin  parecia mais velho, mais perigoso. Tinha o rosto a sangrar: Lew conseguira de algum modo retalhá-lo com a adaga. Atrás de Regis registrou-se  um forte estampido, como uma explosão; a seguir os Guardas  começaram a afastar todos dos degraus, gritando com urgência, e a casa deformou-se lentamente e explodiu para o alto. Regis foi forçado  a cair de joelhos pela deslocação de ar. Depois ouviu-se um chamamento  nítido numa voz de mulher, e repentinamente os bandidos desapareceram da praça, evaporando-se no labirinto de ruas como a névoa nas montanhas. Entontecido, Regis levantou-se do chão, vendo  os Guardas afadigando-se entre os destroços da mansão. Um grupo de servas aterrorizadas pranteava a um canto do jardim. Andres,  com a jaqueta em desordem e o rosto raiado e enegrecido de fumo, uma bota semi-descalça, desceu mancando os degraus e inclinou-se  sobre Lew. Jeff aproximou-se e ajudou Lew a sentar-se.

Numa voz frágil e perturbada Lew perguntou:

- Viste-o?

Regis baixou-se e colocou-lhe a mão num ombro.

- Não tentes levantar-te já. - Escorria sangue no rosto de Lew, proveniente de um corte na testa; ele tentou limpá-lo dos olhos com a mão válida.

- Já estou bem - disse, e tentou levantar-se. - O que aconteceu?

Jeff Kerwin olhou para o punhal que tinha na mão e que não estava  sequer manchado de sangue.

- Tudo aconteceu tão depressa... Estava tudo calmo, e de um momento para o outro havia bandidos por toda a parte e uma das criadas gritava que a casa estava a arder... Pus-me a defender a minha  vida. Não tinha pegado numa arma desde o meu primeiro ano em Arilinn!

Lew exclamou repentinamente:

- Marius! Por todos os deuses, onde está Marius? Onde está o meu irmão? - Uma vez mais tentou pôr-se em pé, ignorando os esforços de Andres para segurá-lo. O horror estava de novo nos seus olhos, e Regis podia ver na sua mente a enorme imagem flamejante de Sharra, elevando-se cada vez mais sobre Thendara... e contudo nada havia ali. A rua estava calma e os Guardas tinham já controlado  o incêndio; registrara-se algo como uma explosão nos pisos superiores,  e um enorme buraco tinha-se aberto no telhado. Com enorme irrelevância Regis pensou que agora Lew não poderia deixar  de se mudar para os aposentos no Castelo Comyn que desde tempos imemoriais estavam reservados para o Domínio de Alton.

Com mãos cuidadosas Jeff tocou no corte na testa de Lew.

- Está feio - comentou. - Vais precisar de alguns pontos.

Mas Lew repeliu-o. Regis agarrou-o; tapou-lhe os olhos com a mão, e tentou contactar-lhe a mente, esforçando-se por expulsar dela o voraz vulto de fogo... Lentamente, lentamente, as chamas extinguiram-se  na mente de Lew e os seus olhos regressaram à normalidade.

Vacilou, e deixou-se apoiar ao braço de Jeff.

- Viste-o? - perguntou de novo com ansiedade. - Kadarin! Era Kadarin! Eles apanharam a matriz de Sharra?

Cambaleando sob o efeito de semelhante possibilidade, ampliada  ainda pelo horror sentido por Lew, Regis compreendeu repentinamente  que era aquilo o que Callina tinha receado.

- Marius! Marius! - insistiu Lew, e calou-se, com a voz abafada  por um soluço.

- Misericordiosos deuses! Isto não! O meu irmão, o meu pobre  irmão... Caiu desfalecido nos degraus, como um títere cujos cordéis  tivessem sido cortados, ombros estremecendo de dor e choque.

Jeff veio ampará-lo como a uma criança, e, com a ajuda de Andres, levou-o degraus acima. Mas Regis ficou imobilizado, fixando o horror  para lá do horror...

A matriz de Sharra estava na posse de Kadarin.

E Marius Alton jazia morto algures no interior da casa incendiada,  com uma bala terráquea enterrada no coração.

 

(narrativa de Lew Alton)

- Toma! - Jeff colocou-me um espelho na mão. - Não está tão perfeito como um médico terráqueo poderia fazer - não tenho grande prática  - mas deixou de sangrar, e é isso o que interessa.

Recusei o espelho. Às vezes era capaz de olhar para o que Kadarin  tinha feito à minha cara, mas agora não. Contudo nada disto era por culpa de Jeff, e ele fizera o seu melhor. Tentando parecer irreverente,  disse-lhe:

- Justamente aquilo de que estou precisado: mais uma cicatriz para equilibrar a cara.

Ele tinha-me examinado muito cuidadosamente, para se certificar  de que o golpe na cabeça não tinha deixado efeitos secundários;

mas o corte era apenas uma ferida superficial, e felizmente não chegara a atingir-me a vista. Tinha uma enxaqueca mais ou menos do tamanho do Castelo Comyn, mas à parte isto parecia não haver danos.

Através de tudo aquilo houvera o obsidiante grito que não podia  ser silenciado, como um ribombar na minha mente; ... para Darkover, luta pelos direitos do teu irmão... e que agora nunca poderia  ser mitigado. Marius estava morto, e a minha mágoa era imensa, não apenas pelo irmãozinho que eu perdera mas também pelo homem que ele começara a ser e que agora nunca chegaria a conhecer. Mágoa, mas culpa também, porque enquanto eu estava longe Marius estivera abandonado, talvez, mas vivo. Poderia ter acabado por perder o Domínio; mas, como terráqueo, poderia ter usufruído de uma vida boa em qualquer lado. Agora a vida e a oportunidade estavam perdidas. (E debaixo da mágoa e da culpa havia uma camada mais profunda de ambivalência que eu me recusava  a ver: um traço de alívio, por já não ser preciso expor-me ao risco daquele terrível teste do dom de Alton, arriscando-me a matá-lo  como o meu pai se arriscara a matar-me...)

- Agora a tua única alternativa é mudares-te para os aposentos  dos Altons no Castelo Comyn - disse Jeff, e eu confirmei com um aceno e um suspiro. A mansão, pelo menos por agora, estava inabitável. Gabriel tinha chegado com uma nova equipa dos Guardas  para proceder ao rescaldo do incêndio, e ofereceu-se para escalar  homens para montarem guarda às ruínas e evitarem saques, até podermos arranjar quem reparasse o telhado para tornar a casa habitável  de novo. Todas as divisões estavam cheias de fumo, e as mobílias  apresentavam-se enegrecidas e arruinadas. Tentei sem êxito fechar os olhos e as narinas àquele cenário e ao cheiro. Tenho... um forte horror ao fogo, e agora - sabia-o, bem no fundo da minha mente - se lhe desse rédea solta o vulto de fogo surgiria de novo, irado, voraz, pronto a destruir... e a destruir-me ao mesmo tempo. Não que isso me importasse muito, agora... Andres parecia ter envelhecido vinte anos. Aproximou-se de mim, perguntando hesitante:

- Para onde... para onde devemos levar Marius?

Era uma boa pergunta, pensei; uma óptima pergunta, mas não sabia como poderia responder-lhe. Marius nunca tivera cabimento no Castelo Comyn, pelo menos desde que tinha a idade suficiente para reconhecer a sua existência: nunca tinham dado por ele enquanto  vivo, e agora, depois de morto, não se interessariam.

- Levem-no para a capela do Castelo Comyn - sugeriu Gabriel,  serenamente. Olhei para ele, surpreendido e pronto a protestar,  mas ele prosseguiu: - Ofereçam-lhe isso depois de morto, parente, já que não lho deram em vida.

Vi por uma vez apenas o seu rosto inerte. A bala que lhe tinha roubado a vida deixara-lhe a face sem marcas. Depois de morto parecia-se  com o irmãozinho de que me recordava.

Agora sentia-me verdadeiramente sozinho. Tinha sepultado o meu pai em Vainwal, próximo do meu filho, que nunca tinha vivido a não ser nos sonhos que eu partilhara com Dio antes de ele nascer.

Agora o meu irmão ia jazer numa tumba anónima, como era tradição,  nas margens do Lago de Hali, onde todos os Hasturs descansavam  por fim. Um milhar de legalidades separava-me de Dio.

Nunca devia ter voltado para aqui! Olhei sem ver para a neve que salpicava a rua lá fora, e constatei que já não me interessava onde poderia estar, aqui ou em qualquer outro lado. Andres, esmagado  e envelhecido; Jeff, que deixara o seu mundo de adopção trocando-o  por Darkover; e Gabriel, que tinha a sua própria família mas que agora, mais do que qualquer outra coisa, era um Alton. Ele que tomasse conta do Domínio... Eu deveria ter chamado Marius para o meu lado, tirando-o daqui antes que isto tivesse acontecido...

Não! Seguindo por aí eu iria encontrar apenas um interminável  arrependimento, nunca deixando de escutar mentalmente a voz do meu pai, porque isso era tudo o que me restava do meu passado, vivendo complacentemente com fantasmas e mágoa e um sentimento  de culpa... Isso não. A vida seguia em frente, e talvez algum dia pudesse interessar-me de novo, mas agora havia duas coisas que tinha de fazer.

- Kadarin encontra-se na cidade - disse a Gabriel. - Tem de ser localizado. Não posso deixar de realçar até que ponto ele é perigoso.

É perigoso como uma banshee, ou como um lobo louco de fome...

E tinha a matriz de Sharra em seu poder! Talvez conseguisse despertá-lo de novo, o irascível vulto de fogo capaz de destruir o Castelo Comyn e os muros de Thendara como garavetos num fogo florestal...

E havia ainda pior: também eu tinha sido predestinado a Sharra...

Não poderia falar disso a Gabriel. Nem sequer a Jeff. Tentei convencer-me de que Kadarin nada poderia fazer, nada sem ser ajudado  por alguém. Mesmo se conseguisse despertar as forças de Sharra, sozinho ou com Thyra - a qual estaria de certeza ainda viva também - os fogos virar-se-iam contra eles, consumindo-os igualmente, tal como eles me haviam queimado e destruído. Podia   sentir a minha mão ardendo de novo, ardendo nos fogos de Sharra...

podia senti-la agora mesmo, a ardência a que os médicos terráqueos  tinham chamado a dor fantasmal... assombrado, disse a mim mesmo chegando à orla da histeria, assombrado pelo fantasma do meu pai e pelo fantasma da minha mão... e parei de repente, à bruta. Se continuasse assim também seria capaz de endoidecer.

- Arranja-me qualquer coisa de comer - disse bruscamente a Andres -, arranja-nos de jantar. Depois levaremos Marius para a capela no Castelo Comyn, onde iremos velá-lo durante o resto do Conselho. Os zeladores serão todos homens de Alton; reconhecer-me-ão  como Herdeiro do meu pai. E ainda há mais alguém que precisa  de ser informada: Linnell.

Os olhos de Andres suavizaram-se. - Pobre Linnie - sussurrou.

- Ela era a única pessoa no Comyn que se preocupava com Marius. Mesmo quando mais ninguém se lembrava de que ele existia,  Marius foi sempre o seu irmão adoptivo. Ela mandava-lhe prendas  por ocasião dos Festivais, e nos dias de guarda ia cavalgar com ele... Tinha-lhe prometido, quando ambos eram crianças, que, se ele fosse o primeiro a casar-se, ela seria dama de honor da esposa dele, e que, se fosse ela a casar-se primeiro, Marius iria conduzi-la ao altar. Ela veio cá ainda não se passou um dezdias, para lhe dizer que tinha sido ajustado o seu casamento com Derik, e ambos estiveram  muito divertidos conversando a respeito do casamento... e o velho calou-se então, subjugado pela emoção.

Eu não tinha falado com Linnell desde que regressara. Tinha pensado, quando fui falar com Callina a respeito de tornar segura a matriz de Sharra, que teria então uma boa oportunidade para lhe apresentar os meus cumprimentos... Ela estava mais próxima da idade de Marius, mas tínhamos sido bons amigos, como irmão e irmã. Contudo não houvera tempo. Agora o tempo estava a esgotar-se  para nós, e precisava de falar com Callina, não apenas como minha parente mas também como Guardiã.

Também eu tinha sido predestinado a Sharra... eles bem poderiam  atrair-me a qualquer momento para aquela tenebrosa coisa...

Baixei-me sobre o corpo de Marius e tirei-lhe da cintura a sua pequena adaga. Oferecera-lha quando ele tinha dez anos de idade; não fazia ideia de que a tinha conservado ao longo de todos estes anos. Durante o tempo passado em Vainwal tinha-me desabituado de usar armas à cinta. Enfiei-a na bainha vazia da minha bota, espantado  com o modo como o gesto permanecia automático passados  todos estes anos.

Antes que Sharra consiga atrair-me de novo para si, esta adaga irá encontrar o meu coração...

- Levem-no para o Castelo - disse, e segui lentamente atrás da pequena e penosa procissão através da ligeira neviscada de Verão.

Sentia-me quase grato pela forte dor de cabeça que me impedia  de pensar demasiado no rosto de Linnell quando tivesse de lhe participar esta morte.

Marius repousou naquela noite no Castelo Comyn, na capela, debaixo das velhas abóbadas de pedra, das pinturas murais. Do seu nicho silencioso a Abençoada Cassilda, vestida de azul e com uma flor-estrela na mão, velava eternamente pelos seus filhos. O meu pai nunca se preocupara grandemente com os deuses, criando-me pelos mesmos princípios. Marius, depois de morto, encontrava-se mais próximo do Comyn do que alguma vez estivera em vida. Olhei para os Quatro Deuses representados nos quatro cantos da Capela Avarra, a mãe negra do nascimento e da morte; Aldones, o Senhor da Luz; Evanda, a mãe alva da vida e do crescimento; e Zandru, o Senhor negro dos Nove Infernos - e, como se estivesse a exercer pressão sobre um dente dorido, senti o toque escaldante de Sharra algures na minha mente...

Sharra tinha sido acorrentada por Hastur, o qual era o filho de Aldones, o qual era o Senhor da Luz...

Fábulas, contos de fadas destinados a assustar crianças ou a consolá-las no escuro. O que teriam os Deuses a ver comigo, que era portador dos fogos de Sharra como uma torrente raivosa que um dia talvez derretesse o meu cérebro... como já me tinha queimado a mão...

Contudo, ao sair da capela, pensei: O fogo é verdadeiro, suficientemente  real para destruir a cidade de Caer Donn, suficientemente  real para destruir Marjorie, para cauterizar a minha mão com feridas que nunca iriam sarar, e por fim para me destruir, até à profundeza  das células, de tal forma que a criança que eu concebera veio à luz transformada numa coisa monstruosa, inumana... Isso não é uma fábula. Algo terá de haver por detrás das lendas. Se existe alguma resposta, algures sob as quatro luas, terá de ser do conhecimento  das Guardiãs, ou então ninguém a conhecerá.

Cá fora olhei para o céu nocturno, que aclarara um pouco, e para o vulto escuro da Torre por detrás do Castelo. Ashara, a mais idosa das Guardiãs em Darkover, talvez conhecesse a resposta. Mas primeiro trataria de sepultar o meu irmão. E teria também de participar  o seu falecimento à minha irmã adoptiva, para que ela pudesse  verter por ele as lágrimas que eu já não era capaz de ressumar.

Marius foi sepultado dois dias mais tarde. Foi uma procissão pequena a que o conduziu até Hali: Gabriel e eu, Linnell, Jeff e Andres,  e, para minha surpresa, Lerrys Ridenow, que respondeu com brusquidão ao meu olhar de interrogação:

- Gostava do rapaz. Não como podes pensar, raios te partam, mas era um bom rapaz, e não tinha muitos parentes que lhe dirigissem  uma palavra amiga como quem atira um osso a um cão. Precisávamos  dele como Herdeiro de Alton; teria sido capaz de levar algum bom senso ao Conselho, e todos os deuses sabem que bem poderíamos usar mais um pouco de bom senso!

Lerrys pronunciou mais umas palavras parecidas com aquelas junto da sepultura, onde era tradicional recordar algumas boas lembranças  do falecido, palavras que transcenderiam o pesar e dariam aos presentes algo para estes evocarem quem ali ficava sepultado.

Veio-me à memória a amargura do meu pai por a minha mãe não ter sido inumada aqui; era praticamente a minha primeira recordação.

Elaine deu dois filhos ao Comyn, e apesar disso não permitiram que o seu corpo descansasse entre as crianças de Hastur. Agora, parado junto da sepultura do filho da minha mãe, dei por mim a pensar no derradeiro grito do meu pai a dilacerar-me a mente, mas logo a seguir...

logo a seguir, também: Elaine! Yllana... minha amada! Teria o seu cérebro moribundo captado uma visão, existiria na morte esse género de mercê, ou haveria, de algum modo, qualquer coisa para além da morte? Eu nunca acreditara nisso: a morte era o fim. Todavia,  ainda que o meu pai também nunca tivesse acreditado, no seu último momento soltara um grito a acolher alguém, alguma coisa, e a sua derradeira emoção tinha sido de espanto e de alegria. Qual seria a verdade? Também Marius parecera em paz, se bem que a sua morte tivesse sido terrivelmente súbita.

Talvez algures, apesar da galáxia de estrelas que os separava, algures para além do tempo e do espaço, Marius soubesse que o último  pensamento do meu pai tinha sido nele... luta pelos direitos do teu irmão... ou até que, mesmo agora, algures, ele estava com a mãe cuja vida ele tirara ao nascer...

Não, isto era um disparate mórbido, fábulas para confortar os sofredores.

Todavia, aquele grito de alegria, de deleite...

Bem, ficarei a saber quando morrer, ou então nunca conhecerei  a diferença, pensei cinicamente.

Lerrys terminou o seu breve discurso e deu um passo atrás. Não fui capaz de falar, excepto para dizer uma breve frase ou duas:

- Os últimos pensamentos do meu pai foram para o seu filho mais novo, que ele muito amava, e só lastimo que o meu irmão nunca tivesse chegado a sabê-lo.

Linnell usava uma capa escura, cinzenta e espessa, quase demasiado  pesada para a sua frágil constituição. Com a voz tolhida pelas lágrimas, disse:

- Nunca cheguei a conhecer os meus próprios irmãos, pois foram  levados para longe de mim. Quando Marius e eu éramos muito novos, ainda antes de sabermos que éramos rapaz e rapariga, ou o que isso significa, ele disse-me uma vez: “Linnie, digo-te uma coisa: tu podes ser o meu irmão e eu serei a tua irmã.” - E, mesmo a chorar,  ela riu-se.

Sem dúvida, pensei, Marius era mais irmão dela do que aquele arrogante fedelho, Merryl! Era perto do meio-dia; o Sol vermelho estava alto, lançando sombras bem definidas através das nuvens que cobriam a superfície do Lago de Hali. Aqui neste litoral, dizia a lenda, o antepassado de todos os Comyn, Hastur, filho do Senhor da Luz, tinha caído do céu, e aqui encontrara Cassilda, a Abençoada, e aqui esta tinha dado à luz o filho que fora o pai de todo o Comyn... e que verdade haveria nessa lenda? As colinas elevavam-se para além de Hali, distantes, envoltas em sombra, e por cima delas pairava indistinta uma pálida lua azul no céu colorido. Na outra margem do lago erguia-se a capela  de Hali, onde repousavam as relíquias sagradas dos Comyn, desde os dias em que se tinham conhecido os portentosos poderes da sua mente ... Nós éramos apenas uma sombra, um resquício, um eco dos poderes que tinham sido conhecidos nos Sete Domínios nos tempos antigos. Outrora erguiam-se muitas Torres sobre os Domínios,  telepatas nos relês enviavam mensagens a grande velocidade de umas para as outras, muito mais rapidamente do que era possível  com os sinais mecânicos do Império Terráqueo; os poderes mentais,  aliados aos das matrizes, propulsionavam engenhos voadores, extraíam metais do âmago do planeta, observavam o interior do corpo e curavam doenças, saravam ferimentos, controlavam a mente de animais e aves, aprofundavam o plasma das células e sabiam se uma criança por nascer seria dotada de laran de um tipo específico... sim, e naqueles tempos desencadeavam-se guerras com armas estranhas e terríveis, de entre as quais Sharra era uma das menores...

Algures no interior das paredes alvas e reluzentes daquela capela escondiam-se  outras armas, e talvez alguma delas pudesse ser eficaz contra Sharra...

Nunca iria ter a certeza. Quando o Convénio foi estabelecido, tudo o que se sabia a respeito dessas armas tinha também sido destruído,  e talvez tivesse sido melhor assim. Quem poderia ter previsto, naquele tempo, que os descendentes do Comyn, iriam, sabe-se lá como, descobrir o antigo talismã de Sharra e despertar aquele raivoso  fogo?

Olhei para as margens do lago com um súbito estremecimento.

Kadarin! Kadarin tinha a matriz de Sharra na sua posse, e talvez  tentasse atrair-me à força para ela...

Há tempos, em Aldaran, Kadarin - com a ajuda de Beltran - tinha reunido dúzias de crentes fanáticos à sua volta, prontos a permitirem que a sua emoção embrutecida transvazasse e fosse atraída para os furiosos fogos de Sharra, dando mais força a todo aquele poderio mental que se transformou nas chamas destruidoras lançadas contra a cidade. Poderia ele trazer de novo uma tal força para Thendara, poderia ele recapturar-me para soltar toda a capacidade  de destruição presente na minha mente? Estremeci, olhando para as montanhas, sentindo que, sem saber como, estava a ser observado,  que Kadarin me espiava de algures, aguardando o momento propício para me capturar, para me forçar a regressar ao pólo de energia de Sharra, a alimentar aquela pecaminosa chama!

E Sharra elevar-se-á e destruir-me-á no fogo... todo o meu ódio, toda a minha raiva, todo o meu tormento...

Rafe Scott não se encontrava presente junto da sepultura. Contudo,  tinha sido um dos poucos amigos do meu irmão. Teria Kadarin  conseguido atraí-lo também, puxando-o para Sharra? Uma vertigem tomou conta de mim: vi cavaleiros, um exército avançando na estrada, marchando sobre Thendara...

A mão de Andres no meu ombro amparou-me.

- Calma, Lew - sussurrou. - Isto está quase a terminar.

A seguir vamo-nos embora, e então poderás descansar.

Queria lá saber do descanso! Com tudo isto a acontecer-nos, com a matriz de Sharra à solta e novamente nas mãos de Kadarin, nos tempos mais próximos não iria ter possibilidade de descansar.

Ruído de cascos! Retesei-me, levando a mão ao punho da frágil  espada cerimonial que me tinham convencido a envergar para aquela ocasião. Seria Kadarin, mais a sua gentalha, pronto a capturar-me,  arrastando-me para, uma vez mais, ser escravo de Sharra?

Mas os cavaleiros aproximaram-se lentamente do sepulcro, e vi que usavam o uniforme da Guarda do Castelo. Regis Hastur desmontou  do seu cavalo e aproximou-se do sepulcro. Ignorava o que lhe teria acontecido; ele estivera presente quando Marius tinha morrido e a casa fora destruída...

Regis parou por um momento diante da sepultura e disse calmamente:

- Não conhecia Marius bem, e tenho pena disso. Mas uma vez ouvi-o dizer, numa taberna, o género de palavras de que precisamos no Conselho. A sua morte pesa sobre a cabeça dos que aqui se encontram,  e aqui prometo que irei ter a coragem de dizer as palavras que ele não teve oportunidade de formular no Conselho.

Olhou para mim, expectante, e atrás dele vi a figura alta e esguia  de Dyan Ardais, nos cerimoniais tons cinzento e negro do seu Domínio. Dyan aproximou-se da sepultura e olhou para ela; mas não falou, apenas apanhou um punhado de terra que lhe deitou silenciosamente  para dentro. Depois, após um longo silêncio, disse:

- Descansa em paz, parente; e possam todas as loucuras e iniquidades  que conduziram ao teu nascimento repousar aqui contigo.

- Afastou-se da sepultura e disse-me: - Lorde Regis persuadiu-me de que era conveniente dar-te a minha protecção; nos tempos que correm temos inimigos, e os Comyn não devem viajar sem guarda.

Iremos escoltar-te até ao Castelo.

Deixei em silêncio o sepulcro do meu irmão, e encaminhámo-nos  para os nossos cavalos. Enquanto Lerrys montava, disse-lhe a meia voz:

- Foi muita bondade tua teres vindo até aqui, parente. Estou-te  grato.

O seu rosto pálido escureceu ao dizer-me com ferocidade:

- Não foi por ti, palonço, foi por Marius! - Voltou-me as costas, içando-se para a sela com um movimento ágil de dançarino.

Usava roupas darkoverianas e uma espessa capa de lã e cabedal para se proteger do frio agreste das montanhas, desdenhando as elegantes  sedas e os tecidos sintéticos dos mundos do prazer.

Subi desajeitadamente para a sela apoiando-me na minha mão válida. Do alto do seu cavalo Regis disse:

- Devia ter vindo mais cedo, mas achei necessário obter autorização  para trazer Guardas. Nunca tive oportunidade para te dizer que Beltran está em marcha e traz consigo o que poderia chamar-se um exército. Beltran não simpatiza contigo. E se Kadarin anda à solta...

- Não me digas que Hastur não ia ficar satisfeito se Beltran me apanhasse... ou se eu partisse o pescoço! - exclamei com um esgar.

Regis fixou o olhar na saliência da sua sela e disse com muita calma:

- Também eu sou Hastur, Lew. O meu avô e eu temos tido conflitos até agora, e havemos de continuar a tê-los. Mas tens de acreditar em mim: ele nunca desejaria que caísses nas mãos de Kadarin.

Isso aplica-se independentemente do que ele poderá pensar pessoalmente a teu respeito. E não te guarda qualquer rancor. Foi estúpido  e obstinado a respeito de Marius, admito-o. Mas, independentemente  do que o meu avô possa sentir, tu és Lorde Armida e chefe do Domínio Alton, e ele nada poderá fazer contra isso, e aceitá-lo-á  com a devida boa vontade. O teu pai era um bom amigo dele.

Desviei o olhar para as montanhas. Danvan Hastur nunca tinha  sido desagradável comigo. Peguei nas rédeas e pusemo-nos a caminho,  lado a lado, durante algum tempo. A neblina vinda do Lago do Hali flutuava em farrapos na nossa pista e cobria a sepultura silenciosa  de Marius onde ele descansava entre os Comyn anteriores ao seu tempo. As suas preocupações tinham chegado ao fim; as minhas  estendiam-se à minha frente no caminho. A minha mão válida estava ocupada a controlar as rédeas que não poderia soltar para apertar o punho da minha espada, e sentia-me inquieto, como se algures  ao fundo da mente pudesse ver Kadarin cercado pelos seus fanáticos,  como se pudesse ver os estranhos olhos dourados de Thyra, tão parecidos com os de Marjorie. Onde estaria Rafe? Teria também ele sido apanhado por Kadarin? Rafe receava Sharra, quase tanto como eu, mas seria capaz de fazer frente a Kadarin?

E eu seria capaz? Iria deixá-los forçar-me a regressar para aqueles  horríveis fogos? Da outra vez não tinha tido a coragem de morrer...

Iria eu agora viver subjugado por Sharra, sem coragem para morrer?

Gabriel ia cavalgando à frente dos Guardas, e reparei que incluíra  os dois filhos no seu pequeno destacamento: Rafael, esbelto e de olhos cinzentos, como um Regis mais novo e mais amorenado, e Gabriel, jovem e encorpado, com cabelos arruivados que me recordavam  os do meu pai. Supunha que, mais tarde ou mais cedo, iria ter de adoptar um deles como meu Herdeiro, pois certamente não teria mais filhos... Ouvi Regis dizer qualquer coisa e percebi que me tinha deixado arrastar para muito longe.

- Sabes se Marius tinha algum filho, Lew?

- Decerto que não - respondi. - Ou então, se tinha nunca mo disse... - Mas eram tantas as coisas que ele nunca tivera tempo de me dizer. Nunca tinha sido rapaz, se bem que Lerrys o tivesse tratado  como tal; tinha vinte anos ao morrer, e com essa idade eu passara  três anos em Arilinn, mais três anos como cadete e depois como oficial na Guarda, e tinha-me deixado entregar à escravidão e ao fogo de Sharra. - Acho que talvez seja possível. Porquê?

- Não estou bem certo - respondeu Regis -, mas o meu filho adoptivo Mikhail, o filho de Javanne, disse-me que o seu irmão Gabriel lhe tinha falado de um boato que circulava entre os Guardas,  pouco antes do início do Conselho. Toda a gente sabia, claro, que o Domínio de Alton ia ser dado por confiscado, e - perdoa-me, Lew - que não iam permitir que o filho mais novo de Kennard o herdasse, devido à sua educação terráquea. Constava também que o Conselho, ou alguém, tinha descoberto uma criança Alton, e iam declará-la Herdeiro do Domínio, sujeito à Regência de Hastur. Qualquer  coisa desse género. Deves recordar-te dos boatos que costumavam  correr entre os cadetes, mas este parecia mais persistente do que era habitual.

Abanei a cabeça.

- Não me parece impossível que Marius tenha concebido um filho, nem, já agora, que o meu pai tenha deixado um ou dois filhos bastardos; ele não me contava tudo a respeito da sua vida. Parece-me  contudo que eu acabaria por saber...

- É possível que alguma mulher tenha tido um filho dele, fruto de uma ligação amorosa casual, sem dizer nada a ninguém enquanto ele vivia - comentou Regis, e captei a parte que ele não queria verbalizar,  de que existiam muitas mulheres desejosas de usufruírem o estatuto de gerar um filho com laran, como ele próprio podia testemunhar...

- E nenhuma mulher ousaria mentir a respeito disso a um telepata,  a um Comyn - prossegui. - Parece-me contudo que, se isso fosse verdade, o teu avô já teria agido.

- Concordo contigo - disse Regis, levantando a mão para chamar Gabriel Lanart-Hastur para junto de nós.

Penso que, se aquilo se passasse comigo, não teria hesitado em interrogar os rapazes que tinham transmitido o boato, mas talvez Regis achasse impróprio da sua dignidade interrogar alguns adolescentes.

Quando Gabriel se aproximou de nós, Regis perguntou-lhe:

- Cunhado, o que se passa com esta história que está a ser ventilada entre os cadetes, a respeito de uma criança Alton?

- Nada sei a esse respeito, Regis. Rafael disse-me qualquer coisa, e da forma que ouvi tratar-se-ia de um bastardo meu - respondeu  Gabriel, bem-humorado, e dei por mim a pensar que, se eu tivesse uma esposa de língua desabrida como Lady Javanne, teria muito cuidado em evitar que ela ouvisse falar de algum bastardo meu! O sorriso de Gabriel era comprometido. - Garanti ao meu filho que aquilo nada tinha a ver comigo, mas há outros parentes Alton  nos Domínios. Se houver alguma verdade no que consta, quem estiver a esconder o garoto irá certamente revelá-lo quando o Conselho  voltar a reunir-se. - Acrescentou, com olhar apreensivo: Tu já não és muito popular aqui, Lew. Os Guardas seriam capazes de te seguirem até ao inferno - ainda se fala do excelente oficial que tu eras - mas estás muito longe de ser o Guardião de Alton.

Por um momento senti-me enfastiado com tudo aquilo. Ocorreu-me  que o melhor que teria a fazer, ao chegar a Thendara, era entrar  em acordo com Gabriel a respeito do Domínio e depois apanhar uma nave que me levasse dali para fora, para longe de Darkover e de Sharra e de tudo o mais... mas depois pensei em Armida, tão longe nas Colinas de Kilghard, e do meu lar ali. E recordei-me, como uma dor que me roesse as entranhas.

Kadarin tinha a matriz de Sharra em seu poder. Por duas vezes eu tentara deixar tudo para trás, num outro planeta... e por duas vezes tinha sido arrastado para aquilo. Eu era escravo e desterrado de Sharra e esta nunca me deixaria partir, e por isso tinha de fazer-lhe  frente e destruí-la, fosse como fosse... e, se necessário, enfrentar também Kadarin e os seus apaniguados...

Enfrentá-los? Sozinho? Mais valia lutar com todos os exércitos  de Beltran, empunhando na mão válida a minha frágil espada cerimonial... Eu não era nenhum herói lendário do Comyn, armado com uma espada mágica!

Olhei na direcção do Lago de Hali e da refulgente capela na sua margem longínqua. Podia sentir Regis e Gabriel imaginando que eu estava a despedir-me do derradeiro local de repouso do meu irmão.

Na verdade, estava a pensar se, em toda a história do Comyn, existiria  alguma arma capaz de vencer Sharra.

Ashara devia saber. E, se ela soubesse, também a minha parente Callina saberia.

- Gabriel, Regis, com a vossa permissão, tenho de ir falar com Linnell. Ela amava Marius e está novamente a chorar... - Avancei com a minha montada, sentindo de novo um formigueiro nas minhas  costas, uma sensação de estar a ser observado, e soube que algures,  talvez no meio de algum pequeno bando de rufiões ou através da matriz, Kadarin estava a vigiar-me... mas, como Regis e Dyan tinham  trazido um destacamento da Guarda, ele não ousaria atacar-nos  agora.

Kadarin dispunha de armas terráqueas. Marius morrera atingido  por uma bala na cabeça. Mesmo assim, ele não seria capaz de enfrentar  todo um destacamento de Guardas... Portanto eu estava de momento em segurança. Talvez.

Ignorando o formigueiro de aviso, avancei para ir falar com Linnell, para tentar confortar a minha irmã adoptiva...

Linnell tinha os olhos avermelhados e o rosto manchado, mas começava a parecer mais conformada. Tentou sorrir-me.

- Deve doer-te muito a cabeça, Lew... Foi um corte feio, não foi? Jeff disse-me que teve de lhe aplicar dez pontos. Devias estar na cama.

- Cá me vou aguentando, mana - disse-lhe, usando o termo bredilla como se ela fosse ainda a criança que eu conhecera. Mas Linnell devia ter agora uns dois ou três e vinte, uma mulher alta e ponderada, com uma bonita cabeleira castanha e olhos azuis. Creio que poderia considerar-se bonita, mas na vida de cada homem há duas ou três mulheres - a mãe, as irmãs - que a sua mente recusa considerar como mulheres. Linnell tinha sempre sido apenas a minha  irmã mais nova. Perante os seus olhos grandes e complacentes desejei subitamente poder contar-lhe tudo a respeito de Dio. Mas não desejava sobrecarregá-la com aquela terrível história; ela ainda se encontrava desgostosa pela morte de Marius.

- Ao menos ele foi sepultado como membro de pleno direito do Comyn - comentou ela -, com todas as honrarias que lhe eram devidas; até Lorde Ardais veio render-lhe homenagem, bem como Regis Hastur. - Eu estava prestes a fazer um comentário cínico: de que serviriam as honrarias a um morto?, mas contive-me; se Linnell encontrava naquilo algum conforto, isso bastava-me. A vida seguia em frente.

- Lew, ficarias muito incomodado se Derik e eu nos casássemos  logo a seguir ao Festival?

- Incomodado porquê, breda! Ficaria muito feliz por ti. Aquele casamento tinha andado no ar desde que Linnie pusera de parte as suas bonecas. Derik era obtuso e não a merecia, mas ela amava-o, e eu sabia-o.

- Mas... acho que devia continuar de luto por... por Kennard, e pelo meu irmão...

Soltando as rédeas por um momento, debrucei-me desajeitadamente  para lhe afagar o ombro.

- Linnie, se o pai ou Marius se encontram agora em algum sítio  onde possam ter conhecimento do que se passa aqui... - coisa em que eu não acreditava, pelo menos na maioria dos casos, mas não podia admiti-lo a Linnell - ... achas então que os seus fantasmas podem  sentir inveja da tua felicidade? Eles amavam-te, e teriam muito prazer em ver-te feliz.

Ela fez um aceno de compreensão e sorriu para mim.

- Foi isso mesmo que Callina me disse; mas ela é tão pouco apegada às coisas deste mundo... Não gostaria de que alguém pensasse  que não estava a mostrar o meu respeito pela memória deles...

- Não te preocupes com isso - repliquei. - Precisas de ter parentes e familiares, agora mais do que nunca. Na falta de um pai adoptivo ou de um irmão adoptivo, estás necessitada de um esposo que cuide de ti e que te ame. E se alguém disser alguma coisa a sugerir  que não estás a demonstrar o teu respeito por eles, manda-me essa pessoa e eu mesmo elucidá-la-ei.

Ela resistiu às lágrimas e sorriu, como um arco-íris através das nuvens.

- E tu és agora o Senhor do Domínio - disse -, e compete-te  determinar o luto que deve ser respeitado. Além disso, Callina é a Regente do meu Domínio. Portanto, se posso contar com a permissão  de ambos, direi a Derik que poderemos consorciar-nos no dia seguinte ao do Festival... E durante o Festival Callina vai ser prometida a Beltran...

Fiquei a olhar para ela, boquiaberto. Com tudo o que estava a acontecer, continuaria o Conselho decidido a ir por diante com esta loucura suicida?

Estava precisado de falar com Callina, e não havia tempo para delongas.

Quando cruzámos os portões da cidade Andres perguntou-me se eu estaria disposto a falar com os operários que tinham sido contratados  para repararem a casa citadina. Comecei a protestar - sempre  lhe obedecera sem hesitação - mas lembrei-me repentinamente de que já não lhe devia qualquer explicação.

- Trata tu disso, pai adoptivo - disse-lhe. - Tenho outras coisas que preciso de fazer.

Havia algo na minha voz que o sobressaltou; olhou para mim e depois disse numa voz estranhamente constrangida:

- Certamente, Lorde Armida - e baixou a cabeça no que era certamente uma vénia. Enquanto se afastava identifiquei o que estivera  presente no seu tom de voz: tinha falado comigo exactamente como sempre falara com o meu pai.

Os olhos de Linnell ainda estavam avermelhados, mas ela parecia  calma.

- Preciso de ir falar com Callina, mana - disse-lhe. - Achas que ela me receberá?

- Ela costuma estar na Torre a esta hora, Lew. Mas podias vir antes cear connosco...

- Prefiro não protelar tanto, breda. Trata-se de um assunto urgente.

- Continuava a sentir um formigueiro nas costas, como se Kadarin estivesse a observar-me por detrás de algum maciço de arbustos  ou escondido num beco escuro e apertado. - É melhor ir procurá-la já.

- Mas tu não podes... - começou ela a dizer, mas logo se calou  ao lembrar-se de que eu tinha passado três anos numa Torre.

Eu nunca tinha estado na Torre do Comyn, se bem que tivesse visitado o Castelo em todos os Verões da minha vida excepto durante  os anos passados em Arilinn. Tinha conversado com os técnicos  dos relês, mas não me parecia que ainda existissem muitos telepatas que tivessem conseguido atravessar os véus isoladores.

E achava mesmo que, entre os que mantinham os relês em funcionamento,  não restariam muitos que tivessem chegado a conhecer a velha Guardiã, Ashara. O meu pai dissera que ninguém que ele conhecia  se recordava de tê-la visto. Talvez, pensei, uma tal pessoa nunca  tivesse chegado a existir!

Aparentemente Callina sabia da minha vinda; veio ao meu encontro  e fez-me sinal para atravessar com ela a câmara dos relês dei pela presença de uma rapariga ainda jovem diante do ecrã, mas não a reconheci - passando por uma câmara interior até chegarmos  àquilo que devia ter sido o antigo laboratório das matrizes (pelo menos era isso que lhe chamaríamos em Arilinn). Não me era difícil acreditar que a sala fora construída havia muito tempo, nas Eras do Caos ou ainda antes disso. Havia ecrãs monitores de matrizes  e outros equipamentos de cuja utilidade eu não tinha a menor  noção. Constatei que não me agradava imaginar o nível de matriz que se tornaria necessário para usar algumas destas coisas.

Podia sentir as vibrações calmantes de um amortecedor telepático especialmente modulado que filtrava os sons harmónicos sem impedir  o pensamento. Havia um imenso painel a respeito de cujo tremeluzir  de vidro derretido eu nunca me aventuraria a formular conjecturas; poderia ter sido um daqueles quase lendários ecrãs psicocinéticos.

Por entre estas coisas espalhavam-se as prosaicas ferramentas  vulgares da arte do mecânico de matrizes: grades, cristais em bruto, um tubo de soprar vidro, chaves de parafusos e ferros de soldar, pedaços de pano isolador. Com um aceno,Callina mandou-me  sentar.  - Estava à tua espera - disse - desde que soube que eles se tinham apoderado da matriz de Sharra. Deve ter sido Kadarin, creio.

- Não o vi, mas mais ninguém poderia ter-lhe tocado sem provocar  a minha morte. E ainda estou por cá, infelizmente!

- Continuas sintonizado com ela, nesse caso? Trata-se de uma matriz ilegal, não é?

- Não está presente nos ecrãs em Arilinn - expliquei. - Eles tinham constatado isso quando Marjorie morrera. Mas esta era uma Torre mais antiga, e alguns indícios dela poderiam permanecer aqui.

- Se me deres o padrão - disse ela -, poderei tentar encontrá-la.

- Conduziu-me até junto do ecrã monitor, o qual rebrilhava com numerosos reflexos diminutos, um para cada matriz licenciada  existente em Darkover. Callina fez um gesto de que bem me recordava; manobrei desajeitadamente o cordão da matriz que trazia ao pescoço, desviei o olhar enquanto esta caía na palma da minha mão mas vi os fogos carmesim que existiam no seu interior... A pedra  continuava a reagir à matriz de Sharra; não me serviria de nada.

Enquanto a usasse, qualquer pessoa na posse da matriz de Sharra poderia localizar-me... e pareceu-me - mas devia ter sido apenas a minha imaginação - que podia sentir a presença de Kadarin, observando-me  através dela...

Callina pegou na minha matriz, controlando tão cuidadosamente  as ressonâncias que não senti qualquer choque ou dor, e depositou-a  num suporte existente em frente do ecrã, cujas luzes começaram a piscar lentamente; Callina inclinou-se para diante, em silêncio, absorta, inexpressiva. Por fim soltou um suspiro.

- Não é uma matriz monitorizada. Se pudéssemos localizá-la, talvez conseguíssemos até destruí-la... se bem que a destruição de uma matriz do nono nível não seja uma tarefa que eu esteja desejosa  de tentar, e para mais sem ajuda. Talvez Regis... - Olhou pensativa  para a minha matriz mas não explicou a sua ideia, e dei por mim a imaginar o que Regis poderia ter a ver com o assunto. - Podes fornecer-me o padrão? Se os outros - Kadarin, Thyra - estavam a usar matrizes que ressoavam com a Sharra...

- Thyra, pelo menos, era uma telepata sem preparação. Não sei onde ela terá obtido a sua matriz, mas tenho a certeza de que esta não está monitorizada. - Ela devia tê-la recebido do velho Kermiac de Aldaran, que já treinava telepatas lá nas montanhas antes  do meu pai ter nascido. Se Kermiac não tivesse morrido, toda a história do círculo de Sharra teria sido diferente.

Tentei mostrar-lhe o padrão contra o ecrã mas apenas se viam manchas difusas rodopiando na superfície azul, e ela fez-me um sinal  para eu pegar na minha matriz e guardá-la.

- Não devia ter-te deixado tentar isto, tão cedo após um ferimento  na cabeça. Vem comigo.

Callina fez-me repousar num cadeirão confortável numa sala mais pequena, enquanto me observava, pensativa. Por fim, disse:

- Por que motivo vieste aqui, Lew? O que querias de mim?

Eu não tinha a certeza. Não fazia qualquer ideia do que ela poderia  fazer - se efectivamente pudesse fazer alguma coisa - a respeito  da voz fantasmal na minha mente, a voz do meu pai. Fosse esta um verdadeiro fantasma ou a reverberação das células cerebrais danificadas pelo seu derradeiro apertão na minha mente, acabaria por se dissipar mais cedo ou mais tarde; disso estava eu certo. Callina  também pouco poderia fazer quanto ao facto de a matriz de Sharra se encontrar nas mãos de Kadarin e de Thyra, ou quanto à presença deles aqui em Thendara. Respondi com impaciência:

- Nunca devia tê-la trazido para Darkover!

- Não me parece que tivesses alguma alternativa - comentou ela com sensatez. - Se estás sintonizado com ela...

- Então também eu não devia ter regressado!

Desta vez ela não me contradisse, limitando-se a encolher ligeiramente  os ombros. Eu estava aqui em Darkover, e a matriz de Sharra também.

- Pensas que Ashara poderá saber alguma coisa a respeito de Sharra? - perguntei. - Ela tem uma longa história... - e calei-me, hesitante. A voz de Callina censurou-me:

- Ninguém pede para consultar Ashara!

- Nesse caso talvez já seja tempo de alguém o fazer.

A voz dela era inexpressiva, remota, ao responder:

- Talvez Ashara consinta em receber-te. Irei saber. - Por um instante pareceu-me muito diferente da rapariga que conhecia, a minha  prima, a minha parente. Quase me senti receoso dela.

- Deve ter havido um tempo em que os telepatas saberiam como controlar coisas como a matriz de Sharra. Sei que ela era usada  pela gente das forjas para trazer o metal até às suas fornalhas.

Foi também usada como arma. Se a arma não foi destruída, por que motivo teriam eles destruído as defesas contra ela?

Callina sobressaltou-se ligeiramente, como se tivesse estado muito longe e o som da minha voz a trouxesse de onde quer que estivera.

Lembrava-me de ter visto aquela expressão no rosto de Marjorie,  o pungente isolamento de uma Guardiã, sozinha mesmo no centro de um vasto círculo. De algum modo isto fazia-me reviver a solidão dos meus dias em Arilinn. Callina e eu não tínhamos estado lá ao mesmo tempo, mas ela fazia parte daquilo, ela recordava-se, e sentíamo-nos confortáveis um com o outro.

- O que poderá Kadarin fazer com a matriz? - perguntou.

- Nada só por si - respondi -, mas ele tem Thyra para controlá-la.

- Mesmo ao princípio ele precisara de Thyra para controlar  a matriz; ela adaptava-se melhor do que Marjorie à vontade dele, tendo-se esta rebelado finalmente, tentando fechar o portão daquele outro mundo ou outra dimensão através do qual Sharra tinha invadido  este mundo com o seu fogo raivoso... - Se ele quisesse - disse -, poderia incendiar Thendara à volta do Comyn, ou ir à Cidade Comercial e sacar dos céus uma daquelas malditas naves espaciais!

A matriz tem força para tanto; mas acontece que ele não dispõe de um número suficiente de telepatas para controlá-la como se fosse uma matriz do nível nove propriamente dita. Isso ela não é: é algo profano, uma arma, uma força... - Calei-me. Tal como Callina, eu tinha sido treinado nas Torres, e por isso tinha a obrigação de saber controlar-me. As antigas fábulas davam poderes mágicos às matrizes,  chamavam-lhes portões para a feitiçaria e para estranhas magias.

Eu conhecia a ciência de que elas fazem parte. Uma matriz é uma ferramenta,  tão boa ou tão má como quem a utiliza, um dispositivo para ampliar e dirigir o laran, o poder psíquico especial e altamente desenvolvido do Comyn e dos do seu sangue. Os supersticiosos poderiam  falar de deuses e de poderes mágicos, mas eu sabia que não era assim. Apesar disso, o vulto de fogo chamejava na minha mente, uma figura de mulher, alta e imponente, ofuscante... e agora exibia o rosto de Marjorie. Marjorie, competente e destemida, envolta nas chamas-ilusão de Sharra, e depois... depois a desfazer-se gritando em agonia enquanto as chamas se consumiam... e a minha mão ardendo  como um archote debaixo de matriz...

Callina estendeu a mão e tocou ligeiramente na minha testa, onde Jeff tinha cosido a espadeirada. Sob o seu toque o fogo extinguiu-se.

Dei por mim ajoelhado aos seus pés, com a cabeça curvada sob o seu próprio peso.

- Mas ele atrever-se-ia? - perguntou Callina. - Decerto que nenhum homem sensato...

Retorqui, notando a amargura na minha própria voz:

- Não tenho a certeza de que ele seja um homem... e menos ainda de que seja sensato.

- Mas o que poderia ele esperar conseguir com tal proeza, a não ser que seja simplesmente louco e destrutivo? - perguntou Callina. - Teria certamente de pôr a mulher em risco... ela chama-se  Thyra, não foi o que disseste? Ela era a sua...? - Hesitou, e eu abanei a cabeça. Nunca tinha chegado a compreender a relação existente  entre Kadarin e Thyra. Não era uma relação normal de amantes,  mas algo simultaneamente menos e mais do que isso. Baixei a cabeça; também eu me tinha sentido atraído pela beleza sombria de Thyra, tão parecida e ao mesmo tempo tão diferente de Marjorie.

Eu fizera a minha escolha, e Marjorie tinha sido destruída... Voltei-me  para Callina, enraivecido, e ela disse com suavidade: - Eu sei, Lew. Eu sei.

- Tu sabes! Agradece aos deuses por não saberes... - atirei-lhe,  numa fúria cega. O que poderia ela saber daquilo, daquele fogo irado, agitando-se vorazmente entre os dois mundos...

Mas debaixo dos seus olhos calmos a minha raiva dissolveu-se prontamente. Sim, ela sabia. Naquele tenebroso dia em que eu me tinha virado contra Kadarin com o desespero de um homem que sabe estar já condenado à morte, derrubando o portão entre os mundos  e afastando Sharra deste mundo, eu fizera um esforço derradeiro  colocando-me e a Marjorie entre os dois mundos. Os Terráqueos chamavam a isto telecinesia. Tínhamo-nos refugiado na câmara de matrizes em Arilinn, ambos terrivelmente feridos, Marjorie moribunda.

Callina lutara por salvá-la, mas Marjorie tinha morrido nos seus braços. Baixei a cabeça, assombrado de novo por aquela recordação  gravada a fogo no meu cérebro: Callina amparando Marjorie  nos braços, o momento de paz que naquele último minuto tinha descido sobre o seu rosto. Sim, ela sabia.

Tentando raciocinar calmamente sem reviver aquele horror, respondi  finalmente à sua pergunta:

- Não me parece que, se ele fosse são de espírito, iria colocar Thyra em risco; mas não tenho a certeza de que compreenda o perigo  que existe, e se a matriz tem-nos a ambos como reféns... não creio que ele tivesse qualquer alternativa... - Eu sabia como a matriz  podia controlar um trabalhador, como ela se tinha apoderado de um círculo cuidadosamente equilibrado como era o nosso, partindo  então para executar o seu voraz trabalho de destruição.

- Sharra... alimenta um desejo de destruição - comentei incertamente.

- Parece-me que foi feita nas Eras do Caos, escapando de qualquer controlo, matando tudo o que pudesse matar, queimar, destruir... Penso que já não existe ninguém capaz de controlá-la. Durante anos, sabia-o, a matriz de Sharra tinha repousado inofensiva  nos altares da gente das forjas, um talismã invocador da sua Deusa do Fogo, iluminando os seus altares, levando o fogo às suas forjas e fornalhas, e a Deusa no interior da matriz, satisfeita com os seus adoradores, não tinha sido despertada para este mundo... E eu tinha-a lançado à solta em Darkover: eu, um complacente bonifrate nas mãos de Kadarin. E ele utilizara a minha própria raiva,  a minha própria concupiscência, os meus próprios fogos interiores... Isto era um despropósito supersticioso. Respirei fundo e disse:

- Nas Eras do Caos havia muitas armas deste tipo, e algures deveria haver defesas ou a memória de defesas contra elas. Portanto,  talvez Ashara soubesse. - Mas iria ela demonstrar qualquer interesse,  afastada como estava deste mundo?

Callina captou a dúvida não verbalizada e disse:

- Não sei... Eu... tenho receio de Ashara... - Podia vê-la estremecendo.

- Tu pensas que estou aqui em segurança - prosseguiu  -, isolada... longe dos problemas do Conselho e do Comyn... Merryl odeia-me, Lew, e é capaz de fazer tudo para me impedir de ter algum poder no Conselho Comyn. E agora há esta aliança com Aldaran... Como sabes, Beltran está a trazer um exército para junto  dos portões de Thendara. Se, por fim, lhe recusam esta aliança... Achas que ele conhece os poderes de Sharra, ou que será capaz de usá-la como arma? Eu não sabia. Beltran era meu parente; em tempos tinha confiado  nele, como igualmente confiara em Kadarin. Mas Sharra tinha também tomado posse dele, e eu ainda pensava que era por essa razão  que ele revelava agora uma tal paixão pelo poder... Sim, ele também  devia ter sido alertado sobre a presença de Sharra.

- Não podem forçar-te a casar com Beltran sem mais delongas! - exclamei. - És a Chefe de um Domínio, e Guardiã...

- Também eu pensava assim - retorquiu Callina, calmamente.

- Mas, se não fosse Chefe de um domínio, ele não iria querer-me... Não acho que é pela minha pessoa que Beltran se interessa. Se ele apenas desejasse ingressar no Comyn através de um casamento,  existem outras mulheres tão próximas como eu do centro do poder. Alanna, irmã de Derik, enviuvou no ano passado. Quanto  ao facto de eu ser Guardiã, não me parece que o Conselho pretenda  ver uma Guardiã no poder. E se eu me casar... - encolheu os ombros -, esse problema deixa logo de existir.

Lembrei-me das antigas histórias de que uma Guardiã só conserva  o seu poder através da castidade. É um disparate, evidentemente,  uma asneirada supersticiosa, mas, como todas as superstições, também esta tem uma base de verdade. O laran, num telepata Comyn, reside nos mesmos canais que as forças sexuais do corpo.


O principal efeito secundário, nos homens, é que um trabalho prolongado  ou intenso nas matrizes veda temporariamente esses canais ao sexo, e o homem passa por um demorado período de impotência.

É essa a primeira coisa a que um homem que trabalha nas Torres  precisa de se habituar, e alguns não conseguem aceitá-lo. Acredito que para muitos isto poderá parecer um preço exorbitante. Para as mulheres não há uma salvaguarda física equiparável.

Quando uma mulher trabalha no centro de um círculo, suportando as tremendas forças ampliadas das matrizes encadeadas, ela tem de conservar os canais físicos livres para esse trabalho, sob pena de explodir  em chamas como um archote. Um contra-fluxo de três segundos,  quando eu tinha dezassete anos de idade, tinha-me deixado na mão uma cicatriz que nunca chegou a sarar, do tamanho de uma moeda de prata. E uma Guardiã está no próprio centro desses fluxos. Enquanto trabalha no centro dos ecrãs, a Guardiã tem de permanecer casta por razões práticas que nada têm a ver com a moralidade.

É um fardo penoso; poucas mulheres aceitam suportá-lo por mais de um ou dois anos. Nos tempos antigos as Guardiãs faziam  voto de manter a função durante toda a vida, e eram veneradas  e tratadas quase como deusas, vivendo afastadas de outros seres humanos. Hoje em dia a Guardiã tem apenas de guardar castidade enquanto funciona activamente como Guardiã, após o que poderá largar a sua função, viver a vida como desejar, casar-se e ter filhos se for essa a sua vontade. Eu sempre pensara que Callina iria escolher  este caminho, pois era a Chefe de um Domínio, e a sua filha primogénita herdaria o Domínio de Aillard. Ela leu os meus pensamentos e abanou a cabeça, dizendo com secura:

- Nunca tive qualquer desejo de me casar, e nunca conheci um homem que me tentasse a abandonar a Torre. Que motivos poderiam  levar-me a suportar um fardo duplo? Janna de Arilinn - ela foi tua Guardiã, não foi? - deixou o seu posto e deu à luz dois filhos, e depois pô-los para adopção, e regressou ao seu trabalho. Mas eu servi bem o meu Domínio; tenho irmãs, Linnell casar-se-á em breve,  e mesmo Merryl acabará, suponho, por encontrar uma mulher disposta a aceitá-lo. Não há qualquer necessidade... - Mas soltou um suspiro, quase em desespero. - Estaria disposta a casar-me se houvesse outra que tomasse o meu lugar... mas com Beltran nunca.

Misericordiosa Avarra, com Beltran nunca!

- Ele não é um monstro, Callina - comentei. - Na verdade, é até muito parecido comigo.

Ela voltou-se para mim, enraivecida, e a voz prendeu-se-lhe na garganta.

- Portanto, também tu achas que devo casar-me com ele? Um homem capaz de trazer um exército contra Thendara, forçando pela chantagem os meus familiares a dar-lhe a mulher mais poderosa do Conselho para executar os seus planos? Malvado! Pensas que sou uma coisa, um cavalo que pode ser negociado no mercado, um xaile que é vendido a quem mais oferecer? - Calou-se, mordeu o lábio para abafar um soluço, e fiquei a olhar para ela; parecera-me tão fria, tão remota, tão controlada, mais uma boneca mecânica do que uma mulher... Agora, contudo, parecia arder de paixão, como uma harpa dedilhada ainda a vibrar. Pela primeira vez constatava que Callina era uma mulher, e era bela. Nunca me parecera real, até agora; tinha sido apenas uma Guardiã, remota, intocável. Agora via a mulher, como que apanhada numa armadilha, frenética por detrás  daquela barricada, tentando contactar-me.

Descansou o rosto nas mãos e começou a soluçar, dizendo-me, através das lágrimas:

- Garantiram-me que, se não aceitar casar-me com Beltran, os Domínios ficarão mergulhados numa guerra!

Não fui capaz de me conter: estendi os meus braços para ela, e puxei-a contra mim num abraço forte.

- Não te casarás com Beltran - exclamei, enfurecido. - Matá-lo-ei  primeiro, parente! - E nesse momento, enquanto a mantinha  encostada a mim, percebi o que nos tinha acontecido. Não era como parente minha que eu jurara abrigá-la e protegê-la. Ia mais fundo do que isso: ia até ao tempo em que ela tinha sido a única mulher no Comyn a compreender a minha rebelião contra o meu pai, até ao tempo em que ela lutara para salvar a vida de Marjorie e compartilhara a minha agonia e desespero. Ela tinha sido treinada nas Torres, era uma recordação da única época boa em toda a minha  vida, era o símbolo do meu lar e de Arilinn e de um tempo em que eu tinha sido feliz e verdadeiro e em que achara a vida digna de ser vivida, um tempo em que não me tinha sentido amaldiçoado.

Segurei-a, tremendo de medo, contra mim; desajeitadamente toquei nos seus olhos marejados de lágrimas. Havia por detrás dela algo mais, algum pavor mais profundo, mais terrível. Murmurejei:

- Não poderá Ashara proteger-te? Ela é Guardiã do Comyn. Decerto não irá permitir que te separem dela deste modo.

Estávamos já em completa comunhão mental; podia sentir a sua raiva, os seus receios, o seu orgulho ultrajado. Agora havia também  terror. Com uma voz apenas perceptível, como se receasse ser escutada, ela sussurrou:

- Oh, Lew, tu não sabes... tenho medo de Ashara, tanto medo... Preferiria até casar-me com Beltran, só para poder ver-me livre dela... - A sua voz fraquejou e ficou estrangulada. Agarrou-se  a mim com terror e desespero, e apertei-a contra o peito.

- Nada receies - murmurei, e senti a ternura trémula que pensara nunca mais voltar a conhecer. Queimado e devastado como me encontrava, coberto de cicatrizes, mutilado, demasiadamente assombrado  pelo desespero para levantar a minha mão válida para me defender... mesmo assim sentia-me capaz de lutar até à morte, de me debater com um animal acossado, para salvar Callina de uma tal sorte.

... Todavia existia algo entre nós. Não ousei beijá-la; seria apenas  por ela ser ainda uma Guardiã e sentir-me refreado pelo velho tabu? Mas amparei a sua cabeça contra o meu peito, acariciando o seu cabelo escuro, e senti que já não estava sozinho, desenraizado, sem família nem amigos. Agora havia alguma razão por detrás da minha resistência desesperada. Agora havia Callina, e prometi a mim próprio, com todas as fibras que me restavam da minha vontade, que por intenção dela iria lutar até ao fim.

 

- Há apenas uma coisa boa a respeito da temporada do Conselho - disse Regis, ensonado -, que é a oportunidade de voltar a ver-te uma vez por outra.

Danilo, descalço e parcialmente vestido à janela, sorriu-lhe.

- Ora, ora! Achas que essa será a melhor forma de encarares o último dia do Conselho?

Regis soltou um gemido e sentou-se na cama.

- E tinhas mesmo de me recordar disso... Queres que mande vir o teu pequeno-almoço?

Danilo abanou a cabeça, esfregando o queixo, pensativo.

- Não posso ficar; Lorde Dyan tinha-me convidado para jantar  com ele a noite passada, disse-me mesmo que poderia levar-te comigo se eu quisesse; mas eu respondi-lhe que tinha outro compromisso  anterior. - Sorriu para o amigo. - Portanto ele insistiu que teria então de ser ao pequeno-almoço. Suponho que vou ter de vestir o traje do Conselho. - Fez uma careta de desprazer. - Sem pretender faltar ao respeito que é devido aos nossos dignos antepassados,  conheces algum traje mais feio do que as vestes cerimoniais do Conselho? Tenho a certeza de que o estilo não mudou nada desde os tempos de Stephen IV.

Regis soltou um riso abafado, preparando-se para sair da cama.

- Desde muito antes disso, certamente... Estou convencido de que foram desenhadas pela bisavó de Zandru.

- E ela obrigava o bisneto a usá-las de castigo quando ele se comportava pior do que era habitual - riu-se Danilo. - Ou achas então que elas podem ter sido desenhadas por cristoforos, para nos penitenciarmos pelos nossos pecados enquanto estamos reunidos no  Conselho?

- Estarmos reunidos no Conselho já é penitência demasiada  ripostou Regis, carrancudo.

- E as cores de Ardais: cinzento e negro, que taciturnas! Achas que será por isso que Dyan é tão sorumbático... por ter usado negro  e prata no Conselho durante tantos anos? Se eu fosse ainda o teu escudeiro, ao menos poderia usar azul e prata!

- Vamos ter de conceber uma vestimenta especial para as tuas lealdades divididas -disse Regis, a fingir-se sisudo. - Talvez um axadrezado negro e azul. Bastante apropriado, parece-me, para qualquer  pessoa submetida à influência de Dyan... como as minhas cós telas estiveram quando ele era o meu mestre-de-armas! - Passados  todos estes anos, Regis já conseguia fazer humor com aquilo. Mas  Danilo franziu o sobrolho.

- Ele voltou a falar no meu casamento, há um dia ou dois. Creio que o seu filho nedestro tem três anos de idade, e parece saudável e capaz de alcançar a idade adulta. Ele quer que eu o adopte, segundo me disse. Diz que não tem tempo nem inclinação para o criar... e para que eu me encarregue dessa tarefa tenho de ter uma casa própria e uma esposa. Disse compreender que eu esteja relutante...

- Não faz mais do que a obrigação dele - comentou Regis secamente.

- Em todo o caso afirmou que era o meu dever, e que teria o cuidado de me arranjar uma esposa que não me incomodasse muito.

- O meu avô lê pela mesma cartilha...

- Parece-me - prosseguiu Danilo - que acabarei por escolher  uma esposa capaz de arranjar uma dama de companhia que lhe seja dedicada; depois de eu lhe dar um filho ou dois para criar não ficará chorosa se me ausentar do seu leito e da sua lareira. Nessa altura  devemos ficar ambos satisfeitos.

Regis vestiu a túnica e os calções, e enfiou os pés em botas de trazer  por casa.

- Tenho de ir tomar o pequeno-almoço com o meu avô; terei  muito tempo para envergar mais tarde o traje de cerimónia. Não vejo qualquer interesse em assistir ao Conselho... quase todos os discursos  que hoje vou ouvir podia já recitá-los de cor!

Danilo suspirou.

- Há ocasiões em que penso que Lorde Dyan... e alguns outros  que eu poderia nomear... prefeririam ver regressar as Eras do Caos a enfrentar as realidades! Regis: o teu avô pensará realmente que os Terráqueos ir-se-ão embora se fizermos de conta que não existem?

- Não sei o que o meu avô pensa, mas sei o que me dirá se eu não tomar o pequeno-almoço com ele - disse Regis, apertando os atilhos da sua túnica. - E, pensando melhor, o Conselho é capaz de não ser tão previsível como eu supunha; parece que vamos voltar a ter sete Domínios. Sabias que Beltran trouxe para cá um exército, que está aquartelado acima de Thendara?

- Ouvi dizer que ele lhe chamava uma guarda de honra - disse Danilo. - Eu nunca pensaria, quando éramos seus convidados - deu à palavra uma inflexão irónica - em Aldaran, que ele tinha tanta honra para guardar.

- Na minha opinião - retorquiu Regis, recordando o tempo em que ele e Danilo haviam sido prisioneiros no Castelo de Aldaran  - o que ele precisa é de um exército para impedir que a pouca honra que tem acabe por lhe fugir... Irão realmente aceitá-lo no Conselho?

- Não me parece que tenham alternativa - disse Danilo. Quaisquer que sejam as suas razões, não estou a gostar nada disto.

- Nesse caso, se te derem oportunidade para falares no Conselho,  será melhor que o digas - comentou Regis. - Dyan está à tua espera, e o meu avô estará igualmente a esperar por mim. É melhor  que te vás embora.

- Será esta a hospitalidade dos Hasturs? - disse Danilo, gracejando.

 Mas deu a Regis um rápido abraço apertado, e saiu. Regis ficou à porta do quarto, vendo Danilo cruzar o vestíbulo exterior do aposento e dar de caras com Lorde Hastur.

Danilo fez uma vénia e cumprimentou-o, bem-humorado:

- Uma boa manhã para vós, meu lorde?


  Danvan Hastur fez uma careta de dissabor, debitando uma quase inaudível saudação que soou como um grunhido, e continuou a andar sem levantar a cabeça. Danilo pestanejou de surpresa, mas saiu sem dizer mais nada. Regis, apertando os lábios, exasperado, foi pentear-se e pediu ao seu criado pessoal que lhe preparasse o traje cerimonial para se apresentar no Conselho.

Do outro lado da janela a neblina começava a dissipar-se. Ao alto, do outro lado do vale, ele podia ver o Quartel-General terráqueo,  um arranha-céus branco mas avermelhado pelo brilho do Sol vermelho. O seu criado pessoal ocupava-se com as vestes. Regis olhou para elas com uma expressão de desagrado.

Estou farto de fazer coisas sem melhor razão do que os Hasturs terem-nas sempre feito desse modo, pensou, e o criado estremeceu nervosamente, como se os inquietos pensamentos de Regis pudessem  alcançá-lo. Talvez pudessem.

Olhou taciturno para o arranha-céus, pensando que, se o seu avô tivesse sido esperto, ele poderia ter tido o mesmo tipo de educação terráquea que o pobre Marius tivera. Sobretudo se ele encara realmente  os Terráqueos como o inimigo, pois um homem sagaz sabe medir o seu inimigo e conhece a sua força.

Regis imobilizou-se, com o pente a meio caminho do cabelo. Subitamente sabia por que razão Danvan Hastur não o fizera.

O avô está convencido de que qualquer um que tenha sido educado  na Terra irá necessariamente adoptar os modos terráqueos. Não confia em mim, nem na eficácia daquilo que me ensinaram. Será, portanto, assim tão forte a atracção exercida pelos Terráqueos e pelo seu modo de ser?

O seu avô, na pequena sala dos dejejuns, estava ainda de sobrolho  carregado quando Regis puxou a cadeira para se sentar. Regis disse um delicado bom-dia e esperou que o servo saísse do aposento.

- Meu avô, se não podes ser cortês para com o meu irmão juramentado,  terei de procurar alojamento noutro local.

- Estás à espera de que te dê a minha aprovação? - inquiriu o velho, com frígido desagrado.

- Estou à espera de que admitas que sou um homem adulto, com o direito de escolher os meus companheiros - ripostou Regis ardorosamente. - Se eu trouxesse uma mulher para passar a noite aqui, e se ela fosse uma mulher digna de respeito, acolhê-la-ias ao menos com civilidade. Danilo é tão bem nascido como eu... ou como o avô, sir! Se eu falasse dessa forma a um dos seus amigos, dirias  que eu era merecedor de uma boa sova!

O velho Hastur premiu os lábios, e até um não-telepata seria capaz de lhe ler o pensamento: isso era uma coisa diferente!

- Avô - prosseguiu Regis, irado -, ninguém me pode acusar de andar no bródio por tascas de má fama, arrastando na lama o bom-nome de Hastur ao ser visto em bordéis ou em locais como a Gaiola Dourada, ou tendo por minha conta um concubino perfumado,  como fazem os das Vilas Secas...

- Silêncio! Como ousas falar-me de tais coisas? - Hastur cerrou  os dentes, enfurecido. Apontou para a mesa do repasto. - Senta-te  e come; vais chegar atrasado ao Conselho. - Vendo Regis hesitar, ordenou-lhe com secura: - Faz o que te digo, rapaz! Esta não é uma boa altura para birras!

Regis cerrou os punhos. Uma súbita onda de cólera quase o entonteceu. Friamente, declarou:

- Sir, foi esta a última vez que me falaste como a uma criança!

- Deu meia volta e saiu do aposento, ignorando o estupefacto “Regis!”  emitido pelo avô.

Ao atravessar os labirínticos corredores do Castelo Comyn os seus punhos permaneciam cerrados, e ele sentia-se como se um peso lhe comprimisse o peito. Tinha sido apenas uma questão de tempo: esta discussão tinha estado a acumular-se durante anos, e ainda bem que já tinha saído cá para fora.

Descontando agora, sempre fui um neto obediente, sempre fiz tudo o que ele me mandava fazer; jurei obedecer-lhe na sua qualidade  de Chefe do meu Domínio. Mas não posso permitir-lhe que fale comigo como se eu ainda tivesse dez anos de idade... isso nunca.

Quando Regis chegou aos aposentos de Ardais estava ainda a resistir  a uma fúria que lhe era completamente alheia. A criada que veio abrir-lhe a porta disse-lhe num tom totalmente automático:

- Su serva, dom... - para logo a seguir lhe perguntar: - Sentis-vos  bem, sir?

Regis fez um aceno.

- Estou bem, sim... mas vai dizer aLorde Danilo para vir já falar comigo.

A mensagem foi enviada, mas foi prontamente respondida pelo próprio Danilo, saindo para a antecâmara:

- Regis! O que estás a fazer aqui?

- Venho perguntar-te se posso tomar o pequeno-almoço contigo  - disse Regis, mais calmamente do que se sentia, e Dyan, surgindo  à porta, já envergando o traje cerimonial negro e prateado do Conselho, disse prontamente:

- Sim, vem e junta-te a nós, meu caro amigo! De qualquer forma,  queria ter uma oportunidade para falar contigo.

Dyan regressou à sala do pequeno-almoço, e Danilo perguntou em voz baixa:

- O que se passa?

- Conto-te depois, se não te importas. O meu avô e eu trocámos  algumas palavras azedas - respondeu Regis. - Fiquemos assim  por agora, está bem?

- Ponham mais um lugar para Dom Regis - ordenou Dyan.

Regis sentou-se à mesa. Danilo olhou para ele, um rápido relance interrogador enquanto desdobrava um guardanapo, mas não perguntou  nada, e Regis sentiu-se-lhe grato.

Ele deve saber que tive uma discussão com o meu avô, bem como qual foi a razão. Mas nada mais disse, a não ser para elogiar a refeição. Dyan comeu frugalmente, um pouco de pão e fruta, mas tinha encomendado um sortimento de pães quentes, carne grelhada e rissóis fritos; quando Danilo comentou a abundância, Dyan disse, com uma ênfase cómica:

- Tenho bastante experiência de avaliar os... apetites... de gente jovem. - Captou por um momento o olhar de Regis, e este baixou os olhos para o seu prato.

Quando já tinham terminado o repasto e se entretinham com a fruta, Dyan disse:

- Bem, Dani, estou muito satisfeito por Regis ter vindo fazer-nos  companhia; precisava mesmo de falar com ambos. Os assuntos  correntes do Conselho já foram discutidos; esta será a sessão final, e devido ao luto por Kennard protelou-se muita coisa para esta última sessão. E ainda há muito a fazer. A herança de Alton tem de ser decidida...

- Pensei que isso tinha ficado resolvido com o regresso de Lew - disse Regis, sentindo-se desanimado ao perceber as intenções  de Dyan.

Dyan soltou um suspiro.

- Eu sei que ele é teu amigo, Regis, mas tens de encarar a realidade  sem sentimento, está bem? É uma pena que Kennard tenha falecido  sem o ter deserdado formalmente...

- Para que haveria ele de fazer isso? - perguntou Regis, ressentido.

- Não te faças obtuso, rapaz! Se ele não tivesse ficado gravemente  ferido e doente, sabes tão bem como eu que teria de ser julgado  perante o Comyn por traição, devido ao que aconteceu com a Sharra, sendo formalmente exilado. Não tenho qualquer má vontade contra ele... - mas Dyan desviou o olhar, constrangido, enquanto Regis o encarava de frente - ... e não tenho qualquer desejo de ver o filho de Kennard desterrado ou despojado dos seus bens. Lew não tem filhos, nem é provável que venha a ter, segundo algo que eu ouvi... não, não me perguntes onde. Talvez se conseguisse chegar a um acordo nos termos do qual ele ficaria com Armida, ou com os rendimentos desta, ou ambas as coisas, de forma vitalícia, mas...

- Calculo que pretendas colocar Gabriel no lugar dele - disse Regis. - Já tenho ouvido essa cantiga cantada pelo meu avô; não imaginava que também tu a cantasses!

- Agora que Marius faleceu, parece razoável, não achas? Não me agradaria ver a herança de Alton nas mãos dos Hasturs. Mas existe  realmente uma criança Alton. Entregue para adopção num Domínio  bom, leal, talvez mesmo confiada ao príncipe Derik e a Linnell, essa criança poderia reavivar a honra do Domínio de Alton.

- Um filho de Marius? Ou de Kennard?

- Prefiro não dizer nada até que os preparativos estejam concluídos  - esquivou-se Dyan -, mas dou-te a minha palavra de honra  de que a criança é um Alton, e com potencial de laran. Regis, tu és amigo de Lew; não poderás convencê-lo a afastar-se e desistir do Domínio em troca de uma garantia de que durante toda a sua vida ficará na posse de Armida sem qualquer limitação? O que achas deste  plano?

Acho que tresanda, pensou Regis, mas procurou um modo mais diplomático de o dizer.

- Porque não o propões a Lew? Ele nunca foi ambicioso e, se esta criança é um Alton, talvez concorde em adoptá-la e nomeá-la seu Herdeiro.

- Lew é demasiado terráqueo - ripostou Dyan. - Viveu no Império durante anos. Não lhe confiaria agora a tarefa de criar um Herdeiro Comyn.

- Parente! - disse Danilo, no modo mais formal; depois fez uma pausa e aproximou-se impacientemente de uma janela. Regis e Danilo estavam ligeiramente em contacto mental, e Regis podia ver, através dos olhos do amigo, a paisagem do alto desfiladeiro acima de Thendara e as fogueiras do bivaque do exército de Beltran. Abruptamente  Danilo deu meia volta e disse acaloradamente a Dyan: Afirmas não confiar em Lew devido à sua educação terráquea e também  por causa de Sharra! Esqueces-te de que Beltran, que está bem próximo daqui, também participou na rebelião de Sharra? E é esse o homem que pretendes trazer para o Comyn como parceiro de pleno direito?

- Beltran dedicou-se a desfazer aquilo que o seu pai tinha feito.

Kermiac era um lacaio dos Terráqueos; mas, quando Beltran se tornou  Lorde Aldaran, renunciou a isso...

- E renunciou à honra, ao decoro, e às leis da hospitalidade interveio Danilo, irado. - Tu não estavas lá, sir, quando ele decidiu  por fim entrar em acção! Vi Caer Donn a arder!

Dyan encolheu os ombros.

- Uma cidade terráquea... Foi pena ele não ter pegado fogo a mais uma ou duas enquanto estava com as mãos na massa! Não estás  a ver? Beltran poderá usar Sharra contra os Terráqueos para nos dar uma posição de vantagem se eles continuarem a... a abusar da nossa boa vontade e a lesar o nosso mundo.

Regis e Danilo olharam para ele, horrorizados. Por fim Regis disse:

- Parente, parece-me que falas desse modo porque pouco conheces  a respeito de Sharra. Não pode ser domada desse modo, e usada como arma...

- Não precisaríamos de usá-la - disse Dyan. - Os Terráqueos  também se recordam de Caer Donn e da destruição do seu espaçoporto.

 A ameaça seria suficiente.

Que necessidade temos nós de fazer uma tal ameaça aos Terráqueos? Vivemos no mesmo mundo! Não poderemos destruí-los sem nos destruirmos ao mesmo tempo!

Dyan perguntou, zangado:

- Também tu, Regis, foste seduzido pelo Império? Nunca pensei  ver o dia em que um Hastur diria palavras de traição!

- Parece-me que o que tu dizes é pior do que traição, Dyan disse Regis, tentando acalmar-se. - Não posso acreditar que faças aquilo que censuraste em Lew: conluiar-te com Beltran para este fazer  regressar das Eras do Caos todos estes terrores! Eu conheço Beltran;

 tu não o conheces.

- Achas que não o conheço? - inquiriu Dyan, com um brilho  estranho nos olhos.

- Se realmente o conheces, e mesmo assim insistes nesta aliança...

- Olha lá! - disse Dyan com rudeza, interrompendo-o. Aquilo que agora enfrentamos é a própria sobrevivência do Comyn, como bem sabes. Precisamos de um Comyn forte, firmemente unido contra aqueles que nos entregariam aos Terráqueos. Os Ridenow já se passaram para o outro lado... ou não ouviste o discurso favorito de Lerrys? Já não podemos contar com eles. Não podemos também contar com Lew, um aleijado, um semi-terráqueo, que nada tem a perder! Não contemos também com os Elhalyn... - Quando Danilo se preparava para protestar fez-lhe um gesto a exigir silêncio. - Se não sabes que Derik é um idiota, és a única pessoa no Conselho que o desconhece. Esquece-te dos Aillard; Domna Callina é uma mulher asilada, uma Guardiã, residente numa Torre; ela não poderá fazer muito, mas eu tenho alguma influência, graças a Aldones, sobre Dom Merryl. - O seu sorriso era lupino. - Quantos restam? Os três aqui presentes, Merryl, e o teu avô, e este tem mais de cem anos e, apesar de se encontrar ainda no seu perfeito juízo, não durará para sempre!

 Em nome de todos os infernos gelados de Zandru, Regis, será preciso que eu diga mais alguma coisa?

E é este o fardo de ser um Hastur, pensou Regis penosamente. Isto é apenas o começo. Cada vez mais virão ter comigo para tomar decisões.

- Pensas que isso significa termos de formar uma aliança com  Aldaran, mesmo à custa de atraiçoarmos os Chefes legítimos de dois  Domínios? - perguntou.

 - Dois Domínios? - ripostou Dyan. - Lew devia ter sido exilado há seis anos, e parece-me que estamos a ser generosos com ele.

- E Domna Callina? Será que uma Guardiã nada mais é do que uma mulher, sujeita a ser forçada a casar-se por uma aliança política?

 - Se ela desejasse continuar a ser uma Guardiã - disse Dyan,  enfurecido -, devia ter ficado na sua Torre, abstendo-se de se intrometer nos assuntos do Conselho! Diz-me, Regis: vais ficar ao meu  lado no Conselho, ou preferes juntar-te aos Ridenow e entregar-nos ; aos Terráqueos sem lutares por Darkover?

 Regis baixou a cabeça. Apresentado o caso desta maneira, parecia-lhe não ter alternativa. Dyan atraíra-o ardilosamente para uma armadilha que o obrigava a concordar, e, de um modo ou de outro, iria atraiçoar alguém. Lew era o seu amigo juramentado desde a infância.

 Recordou-se dolorosamente dos anos que tinha passado em Armida, saltitando como um cachorro atrás de Lew, usando as roupas  que já lhe tinham deixado de servir, cavalgando, caçando com  falcões, combatendo ao seu lado nas linhas de contra-fogo quando as Colinas de Kilghard irrompiam em chamas; recordou-se de um vínculo  ainda mais forte, ainda mais antigo do que aquele que o ligava a Danilo: a primeira lealdade intensa da sua vida. Lew, seu amigo juramentado  e seu irmão adoptivo.

Talvez fosse esta a melhor alternativa. Lew dissera, repetidamente,  que não pretendia ter qualquer poder no Comyn. Decerto Regis não poderia permitir que Dyan acreditasse que ele iria tomar posição contra os Hasturs e a favor dos Terráqueos. Regis engoliu em seco, tentando ponderar as suas lealdades. Apesar de toda a rudeza  de Dyan, sabia que este era um avaliador sagaz da realidade política. A ideia de Darkover e dos Domínios nas mãos dos Terráqueos,  apenas mais uma colónia de um Império que abrangia as estrelas,  era-lhe difícil de aceitar. Contudo, parecia-lhe não haver um caminho intermédio.

- Nunca irei aceitar o uso de Sharra - disse, penosamente. É aí que traço a minha fronteira.

- Se te aliares firmemente a mim - disse Dyan -, nunca precisaremos  de cruzar essa fronteira. Se assumirmos uma posição de força, a ameaça bastará...

- Não posso acreditar nisso - disse Danilo. - Sharra... Calou-se, e Regis sabia que Danilo estava a ver o que também ele via, o monstruoso vulto de fogo, abafando todas as matrizes nas proximidades, extraindo força mesmo daqueles que a odiavam... morte, destruição, holocausto!

Dyan sacudiu a cabeça.

- Vocês eram crianças então, os dois, e assustavam-se facilmente.

 A matriz de Sharra não é mais do que uma arma, uma arma poderosa mas nada mais do que isso. Certamente... - voltou a sorrir  com o seu sorriso lupino - ... vocês não acreditam que se trata de uma deusa de alguma outra dimensão, ou que Hastur acorrentou Sharra para esta ser libertada apenas no fim do mundo... Ou será que acreditam? - Dyan sorriu novamente, e prosseguiu: - Regis, talvez sejas tu o Hastur que terá de acorrentá-la desta vez!

Ele está a gracejar comigo, pensou Regis, mas ao mesmo tempo um terrível calafrio eriçou-lhe todos os pêlos do corpo. O Deus Hastur, pai e ancestral de todos os Hasturs, acorrentou Sharra... e eu sou também Hastur. Será esta a tarefa que me está reservada?

Sacudindo a cabeça para tentar aclará-la, Regis estendeu o braço e encheu de novo o seu copo com jaco, bebericando-o lentamente, mal apaladando a fragrância amarga do chocolate. Zangado, disse a si mesmo para não ser supersticioso. A matriz de Sharra era apenas uma matriz, um instrumento mecânico para ampliar os poderes psíquicos; tinha sido produzida por mãos e mentes humanas, e através  de outras mentes e mãos humanas poderia ser contida e tornada  inofensiva. Nas mãos de Beltran - e de Kadarin - seria uma arma tenebrosa, mas por outro lado não havia razão para que Beltran chegasse a utilizá-la. Kadarin era um ser humano, e tanto o Comyn como os Terráqueos tinham posto a sua cabeça a prémio. Talvez tudo não tivesse de ser tão grave como ele receava.

Olhou firmemente para Dyan, dizendo:

- Dou-te a palavra de um Hastur, parente, de que não ficarei imóvel a ver o nosso mundo ser entregue aos Terráqueos. Talvez não concordemos quanto aos métodos para isso ser evitado; mas estamos de acordo quanto ao resto.

Ao dizê-lo teve consciência de que estava a tentar agradar a  Dyan, como se fosse ainda um rapazola e Dyan o seu cadete-mestre.

Dyan e o avô encontravam-se do mesmo lado, procurando alcançar o mesmo objectivo. Todavia ele tinha discutido com o seu  avô; e agora estava a esforçar-se para concordar com Dyan. Porquê? perguntou a si mesmo. Será apenas porque Dyan me compreende e me aceita tal como sou?

- Agradeço-te este excelente pequeno-almoço, primo - disse bruscamente. - Agora tenho de ir embora e de me meter naquelas malditas vestes cerimoniais do Conselho, e tentarei persuadir o meu  avô de que Mikhail ainda é demasiado jovem para ficar sentado durante uma longa sessão de discursos. Seja ou não o Herdeiro de Hastur, não passa de um rapaz de onze anos! Dani, encontramo-nos depois na Câmara de Cristal - e saiu da sala.

Mas foi com Lerrys que ele se encontrou à entrada da Câmara de Cristal. Lerrys trajava as cores do seu Domínio mas não as vestes  cerimoniais, e olhou para Regis com ar trocista.

- Traje de fantasia completo, estou vendo. Tenho a esperança de que Lew Alton terá o bom senso necessário para se apresentar  esta manhã vestindo algo parecido com as roupas terráqueas.

- Isso não me pareceria muito sensato - retorquiu Regis. não se adaptam a este clima, e ainda para mais iriam ofender as pessoas sem nenhuma justificação. O que poderá interessar o modo como nos vestimos no Conselho?

- Não interessa, realmente. É isso o que pretendo dizer. É por essa razão que me irrita ver uma dúzia ou mais de pessoas adultas comportando-se como se fizesse alguma diferença o tipo de vestuário  que usamos!

Regis tinha estado a pensar o mesmo enquanto envergava as incómodas  e arcaicas vestimentas, mas por alguma razão exasperava-o ouvir Lerrys dizê-lo.

- Nesse caso - retorquiu -, por que razão estarás a usar as cores do teu clã?

- Não sou o primogénito, como te deves recordar - respondeu  Lerrys -, e também não sou o Chefe ou o Herdeiro de Serrais;

se eu me rebelasse, eles limitavam-se a mandar-me embora por não respeitar os costumes, como se fosse um rapazinho malcriado que se veste de cerimónia por brincadeira. Mas se tu, o Herdeiro de Hastur, ou Lew, que é o chefe de Armida na ausência de outro - não existe mais ninguém agora - se recusassem a seguir esse costume, talvez conseguissem modificar as coisas... coisas que nunca serão mudadas a não ser que tu, ou alguém como tu, tenha a inteligência e a coragem  necessárias para alterá-las! Constou-me que Lorde Damon, como é o nome dele? Jeff?, voltou para Arilinn. Gostaria que ele tivesse  ficado. Foi educado na Terra, mas mesmo assim é suficientemente  telepata para se tornar um técnico em Arilinn. Deve ter levado uma lufada de ar fresco para Arilinn, e parece-me que é também altura  de se quebrarem algumas janelas na Câmara de Cristal!

Ignorando o resto do longo discurso de Lerrys, Regis disse sobriamente:

- Gostava de ter a tua certeza de que eles aceitem Lew na ausência  de outro. Já ouviste alguma coisa a respeito de um boato de que encontraram um filho de um dos Altons e que vão colocá-lo, como uma figura de proa, no lugar de Lew?

- Sei que se fala na existência dessa criança - disse Lerrys. Não conheço todos os pormenores. Marius sabia, mas creio que não teve oportunidade de dizer a Lew. Tu encontraste-o primeiro, não foi?

Regis olhou para ele, desesperado e enfurecido...

- Pelos infernos de Zandru! Atreves-te a dizer que eu tive alguma  coisa a ver com a morte de Marius?

- Tu pessoalmente, não - replicou Lerrys -, mas não me parece  que teríamos de procurar muito para encontrarmos o assassino,  pois não? Acho tudo demasiado conveniente para aquele grupo de velhos sequiosos de poder no Conselho.

Regis estremeceu mas tentou impedir que Lerrys notasse a sua consternação.

- Deves estar louco - disse por fim. - Se o meu avô... e parece-me  que é Lorde Hastur quem estás a acusar... tivesse tencionado mandar assassinos cuidar de Marius, para que teria ele esperado tanto  tempo? Foi ele quem tratou com os Terráqueos para que Marius recebesse uma educação esmerada, e sempre soube onde Marius se encontrava. Para que haveria ele de esperar até agora para mandar alguém matá-lo?

- Não vais querer dizer-me que um rapaz com a idade de Marius  tinha inimigos pessoais, pois não? - inquiriu Lerrys.

Não no Comyn... como aliás também não tinha lá amigos pés soais, pensou Regis, e disse com rigidez:

- Isso é uma ofensa à honra dos Hasturs, Lerrys. Aviso-te para  não repetires essa monstruosa calúnia fora desta sala, quando não...

- Quando não, fazes o quê? Puxas da tua espadazinha e cortas-me  em pedaços com ela? Regis, estás a agir como um garoto de doze anos! Acreditas francamente em toda esta varredura de está bulo a respeito da honra dos Hasturs? - Mesmo através da sua ira, algo na voz de Lerrys atingiu Regis. A sua mão tinha ido tocar na adaga, sem que ele tivesse dado por isso; largou o punho, dizendo:

- Não amesquinhes essa honra, Lerrys, só porque nada sabes a seu respeito.

- Regis - disse Lerrys, com uma voz tenebrosamente séria -, ? acredita em mim, não estou a insinuar que tu pessoalmente és outra  coisa que não um modelo de integridade. Mas não seria a primeira  vez que um Hastur fica impávido a ver alguém sendo assassinado,  ou pior ainda, porque essa pessoa não se ajustava aos planos do  Comyn. Hás-de perguntar um dia a Jeff quem assassinou a mãe dele, por ela ter ousado dizer que uma Guardiã do Comyn não era uma virgem sacrossanta encerrada em Arilinn para ser venerada.

Ele próprio escapou por duas ou três vezes de ser assassinado por o Conselho não o considerar conveniente para os seus planos a longo  prazo. Não podemos sequer culpar os Terráqueos; o assassínio político tem sido uma arma favorita em Darkover desde as Eras do Caos. Sabes o que os Terráqueos pensam de nós?

- O que os Terráqueos pensam de nós terá algum interesse? - disse Regis, esquivando-se à pergunta.

- Claro que tem bastante interesse! Quer tu queiras quer não... - e ficou por ali. - Ora, para que hei-de estar a desperdiçar palavras  contigo? Não és melhor do que o teu avô, e para que havia eu de te fazer o mesmo discurso que tenciono apresentar no Conselho, se eles não me calarem primeiro? - Começou a afastar-se de Regis, que o segurou por um braço, retendo-o.

- Talvez o meu avô não tenha lastimado muito a morte de Marius  - disse -, mas estou disposto a jurar com a minha mão nos fogos  de Hali que ele nada teve a ver com este assassínio! Eu estava presente quando pegaram fogo à casa citadina de Alton. Marius foi morto por homens que tentavam apoderar-se da matriz de Sharra... e que se apoderaram dela, como sabes. Não pensarás certamente que o meu avô teve alguma coisa a ver com isso, pois não?

Lerrys olhou-o por um momento; depois disse, insolente:

- Tu és pior do que Lew... ou então tens estado a falar com ele. Lew vê em Sharra um papão que se esconde debaixo de todas as camas! É bastante conveniente, não achas? - Afastou-se de Regis e dirigiu-se para a Câmara do Conselho.

Pensativo, Regis seguiu-o. Quase todos os membros do Conselho  já se encontravam no interior dos seus respectivos recintos, e o seu avô já estava de pé, pronto a iniciar a chamada dos Domínios.

Hastur deitou um olhar iracundo a Regis, vendo-o entrar quase a par de Lerrys Ridenow, mas viu que estes logo se separaram, encaminhando-se  cada um deles para o respectivo recinto.

Não teria sido a morte de Marius o resultado de um acidente, como Regis pensara, tendo morrido ao defender a casa do seu pai contra uns invasores que procuravam algo cuja natureza nem sequer  conhecia? Certamente Marius nada saberia a respeito da matriz de  Sharra, excepto que era perigosa. Recordou-se da noite em que ele  viera solicitar o seu auxílio em benefício de Rafe Scott.

 Por onde andará ele? Talvez Lew saiba. Se eu fosse o jovem  Scott, acho que estaria escondido dentro da Zona Terráquea sem  nunca pôr o nariz de fora enquanto Kadarin andasse à solta com a matriz de Sharra; e penso que se Lew tivesse juízo faria a mesma coisa. Mas Lew não era esse género de pessoa. Os Terráqueos são cobardes, pensou, com a mente a deambular por tudo o que ele tinha  considerado como certo ao longo da sua vida; o seu próprio pai tinha sido morto numa guerra porque algum cobarde tinha escolhido  usar armas terráqueas que matam à distância; depois parou e ; pôs-se a reflectir sobre isso.

 Não podem ser todos cobardes, do mesmo modo que nem todos  os lordes Comyn são honrados e briosos... pensou. E, enquanto Derik fazia a chamada dos Domínios, pensou: Terei de ir à Zona Terráquea para saber o que Rafe Scott conhece a respeito da matriz  de Sharra. A não ser que ele se tenha aliado a Kadarin... mas não é  essa a ideia que tenho de Rafe Scott!

 Um por um, dos seus recintos, os Comyn dos Sete Domínios  responderam pelas suas Casas. Quando “Alton” foi chamado, Regis  viu Lew, trajando as vestes cerimoniais da sua casa, dar um passo em frente, dizendo:

 - Estou aqui por Alton de Armida. - Regis tinha antecipado  uma contestação, mas esta não surgiu, nem mesmo vinda de onde  Dyan estava sentado ao lado de Danilo, debaixo do estandarte de Ar dais. Iria a contestação ser mais insidiosa do que isto, apenas uma  pressão aplicada sobre Lew para permanecer sossegado em Armida  e adoptar o garoto Alton que eles tinham encontrado algures? Iriam  permitir-lhe que conservasse a chefia nominal de Alton em troca de  alguma outra concessão? Regis constatou que não podia sequer ar riscar uma conjectura. E porque estaria Dyan tão certo de que Lew  não teria filhos?

 Até o próprio Dyan, que é um amante de homens, tem um filho, e perdeu outro ainda infante. Eu próprio gerei diversos filhos. Por que razão Lew não poderá casar-se e ter todos os filhos que quiser?

Voltou a olhar para Lew e notou que, quando Callina se levantou para responder pelo seu Domínio, Lew observava-a intensamente, tão intensamente que lhe pareceu, mesmo através da espessa interferência  dos amortecedores telepáticos da Câmara de Cristal, que por um instante era capaz de ler os pensamentos de Lew.

Mas Callina é uma Guardiã! Contudo, não seria a primeira Guardiã a desistir da sua exaltada posição para se casar... nem a primeira nem a última. Antes de mais nada teria de treinar a sua sucessora,  mas Lew não é um rapaz impulsivo; poderia esperar o tempo que fosse necessário. Parece-me que poderiam até vir a ser felizes.

Seria uma coisa boa voltar a ver Lew feliz. A chamada dos Domínios tinha terminado, sem referência a Aldaran. Parecia a Regis haver alguém naquele recinto, por detrás das cortinas, e tentou imaginar quem poderia ser, mas Derik, concluída a sua tarefa, tinha-se afastado, e Hastur estava a ocupar o seu lugar para presidir à sessão. Supostamente, esta sessão final do Conselho iria completar todos os assuntos por resolver, qualquer coisa que tivesse  sido deixada em aberto desde o início das sessões. Na realidade,  Regis sabia-o, qualquer pequena trivialidade seria proposta para discussão, qualquer coisa capaz de encher o tempo até que o cansaço, ou mesmo a fome, levasse o Conselho ao seu termo, após o que a discussão dos assuntos pendentes ficaria adiada para o ano seguinte. Regis supunha que talvez fosse por isso que Hastur não contestara Lew quando este tinha falado por Armida; o verdadeiro problema da herança de Alton seria resolvido discretamente, através  de pressões pessoais, por detrás do cenário, e não discutido em Conselho. Ele tinha visto estas tácticas serem usadas noutras ocasiões. E agora, ignorando o sinal de Dyan, Hastur acenava a Lerrys Ridenow,  que se tinha levantado para ser reconhecido.

Lerrys avançou para o espaço central onde os arcos-íris dos prismas no tecto faziam incidir luzes coloridas sobre o pavimento claro e as paredes. Fez uma vénia, e Regis pensou, desapaixonadamente,  que o jovem era bonito como um gato: cabelos vermelhos, esbelto, flexível, com as feições delicadamente traçadas dos Ridenow;

 mais belo, pensou, do que qualquer das mulheres presentes na Câmara de Cristal. Perguntou a si mesmo por que razão estaria ele a notar isto num ambiente tão solene.

- Meus lordes - disse Lerrys -, tenho ouvido muitas coisas nesta Câmara desde que o Conselho começou. Todos vós... - e rodou  a cabeça para olhar em volta da sala -, tendes estado a falar a respeito de assuntos sérios como casamentos, e heranças, e reparações  ao telhado do Castelo... bem, talvez não literalmente, mas é a isso que tudo se resume, discutindo com toda a seriedade coisas que poderiam ser resolvidas em três minutos com um pouco de bom senso. Pretendo saber quando será que vamos falar acerca de coisas realmente sérias. Por exemplo... - e desta vez o seu olhar em redor da sala era duro e provocante -, quando será que iremos enviar o nosso representante ao Senado do Império? Quando será que iremos nomear um Senador com credenciais adequadas? Quero saber quando,  ou se, iremos iniciar uma investigação apropriada sobre quem assassinou Marius Alton e pegou fogo à Casa de Alton? E quero saber  quando será que iremos participar como iguais no Senado do Império, em vez de nos mantermos debaixo de um protectorado terráqueo  como um mundo primitivo e bárbaro com uma cultura feudal  em que ninguém pode tocar, como se fôssemos selvagens a aproximar-nos do ponto em que iremos esfregar dois paus um contra  o outro e adorar o deus do fogo que produz a faísca!

O desdém na sua voz era contundente.

- Eles deixam-nos sozinhos, quando deviam estar a reverenciar-nos  como a primeira e mais prestigiosa das suas colónias!

- Esse tipo de reverência - era uma chicotada de Dyan - podemos  dispensar perfeitamente!

Lerrys voltou-se para ele, e disse:

- Que raio sabes tu a respeito dos Terráqueos? Já ousaste alguma  vez avançar o suficiente para dares um passeio no interior da Zona Terráquea e para visitares um dos seus edifícios? Já fizeste alguma  vez qualquer coisa na Zona Terráquea para além de uma visita a algum dos seus exóticos bordéis? Com o devido respeito - que aliás não é muito forte, Lorde Dyan - deverias ficar calado até saberes o que dizes!

- Sei que estás a tentar transformar-nos todos em Terráqueos... - protestou Dyan, e Lerrys cortou-lhe a palavra:

- A transformar-nos todos em Terráqueos? Raios! Somos todos  Terráqueos, ou será possível que este facto significativo te tenha sido escamoteado pelo teu louco pai, e por todos os nossos antepassados? Se há aqui alguém que desconhece que em tempos fomos uma colónia terráquea, chegou a altura para que esse idiota eremítico  conheça a verdade!

Tentando reprimir a discussão, Danvan Hastur proclamou:

- Este assunto foi previamente debatido pelos teus superiores, Dom Lerrys. Estamos todo de acordo em que não desejamos fazer parte da Terra...

- Estão todos de acordo... - escarneceu Lerrys. - Quantos de vós estarão de acordo? Todos os quinze ou dezasseis? Qual é a população de Thendara, de acordo com o último censo, ou estaremos  demasiado atrasados para sabermos quantos somos nós? O que pensam que eles diriam, se lhes perguntássemos se desejam continuar  a idolatrar-vos, aristocratas, a família de Hastur, os filhos dos deuses, e toda essa conversa sem nexo, ou se preferem ser cidadãos livres do Império, com uma voz no seu próprio governo, e sem necessidade  de se reverenciarem perante os poderosos Comyn? Perguntem-lhes,  alguma vez!

Edric Ridenow, Lorde Serrais, levantou-se pesadamente do seu assento para dizer:

- Temos governado estas terras desde tempos imemoriais e sabemos  o que a nossa gente quer. Volta para o teu lugar, Lerrys! Não te dei permissão para falares!

- Não, não me deste - retorquiu Lerrys, acalorado -, e eu falei, de qualquer forma. É necessário que se diga isto! Sou um cidadão  do Império, e pretendo ter voz activa naquilo que está acontecendo!

- Pensas realmente que o que disseste te dará uma tal voz? inquiriu Lorde Hastur. Pareceu a Regis que ele estava genuinamente curioso. - Acusaste Lorde Dyan de falar sem ter um verdadeiro conhecimento  dos Terráqueos. Poderás acusar-me do mesmo? Tenho lidado com eles durante a maior parte da minha longa vida, Lerrys, e posso garantir-te que eles nada têm que nós possamos desejar. Mas não posso ficar aqui sentado e deixar-te falar fora de vez no Conselho.

 Peço-te que te sentes até que o teu irmão e senhor te dê autorização  para falares.

- Quem em todos os infernos de Zandru concedeu ao meu irmão  hierarquia sobre a minha voz? - perguntou Lerrys, furioso. Eu sou Comyn, ainda que possam não desejar admiti-lo, e tenho o direito de ser ouvido...

- Gabriel - disse Hastur com toda a calma -, faz o teu dever.

Regis interveio:

- Deixa-o falar, avô. Quero ouvir o que ele tem a dizer. - Mas foi acolhido por um coro de protestos, e Gabriel, empunhando a espada  da guarda de honra, aproximou-se de Lerrys e disse-lhe discretamente:

- Sentai-vos, Dom Lerrys. Silêncio.

 Lerrys ripostou:

 - Não permito...

 - Não me deixais outra alternativa, sir. Perdoai-me. - Gabriel fez um gesto para a escolta de Guardas, que agarraram Lerrys  com rudeza; ele tentou resistir com cotoveladas e empurrões, mas possuía uma compleição ligeira e os Guardas eram dois homens encorpados  e robustos, e não tiveram qualquer dificuldade em dominá-lo,  levando-o em peso até ao seu lugar. Abruptamente, com um ou dois pontapés bem aplicados, Lerrys conseguiu libertar-se, enfrentando a assembleia com ar de desafio.

 - Não interessa - disse. - Não vou perturbar mais o vosso  precioso Conselho de truões. Não o merecem. Agora mandem assassinar-me como fizeram com Marius Alton, porque estou do lado errado da vedação política! Todos vós sois idiotas, e assassinos, porque tendes medo de escutar os factos! Sois um maldito anacronismo,  todos vós, aí sentados a brincar aos lordes e damas, tendo aos vossos pés um Império que abrange as estrelas! Pois bem, raios, ide para  o inferno conforme escolherdes, que eu ficarei aqui a observar! Riu-se, com um riso ruidoso e repleto de escárnio, deu meia volta fazendo  rodopiar atrás de si a capa e os longos cabelos claros, e abandonou  a Câmara de Cristal.

Regis ficou imóvel, estupefacto. Lerrys tinha dado voz aos pensamentos  que ele próprio nunca até agora ousara verbalizar... e ele limitara-se a ficar sentado como um paspalho, sem se atrever a falar,  sem pôr em causa a intervenção de Gabriel. Raios! Devia ter-me colocado ao lado de Lerrys, formulando algumas daquelas perguntas! Sou o Herdeiro de Hastur, eles não teriam podido silenciar-me tão facilmente!

Disse a si mesmo que não tinha tido outra opção, que Lerrys fora excluído devido ao seu desrespeito pelos costumes do Conselho  e não pelo que estivera a dizer. Tinha-os praticamente acusado de assassínio, e ninguém falara para o negar, pensou Regis com um súbito estremecimento. Seria apenas por considerarem a acusação demasiado ridícula para contestá-la? Não gostaria de ter de considerar  a alternativa.

Um dos nobres menores, um Di Asturien do litoral do Lago Mirien - Regis conhecia-o ligeiramente; tinha tido um breve caso com uma das filhas do sujeito - levantou-se e acenou a Lorde Hastur  para ser reconhecido. Hastur confirmou com um meneio da cabeça,  e o homem dirigiu-se ao local do orador.

- Meus lordes - entoou -, não ponho em causa a vossa sabedoria,  mas parece-me que são necessárias algumas explicações.

Nos tempos que decorrem, quando nós que estamos no Conselho somos tão poucos, para que deverá o príncipe Derik casar-se no interior  do Comyn? A sua descendência será dividida entre os dois Domínios envolvidos; não seria preferível que o príncipe Derik se consorciasse fora do Conselho, trazendo a este uma aliança forte?

Também Linnell Lindir-Aillard deveria casar-se com algum homem que trouxesse sangue novo para o Conselho. Desejo igualmente assinalar  que os dois têm um parentesco muito chegado. Com todo o respeito, sir, chamo a vossa atenção para o facto do círculo íntimo do Comyn já se encontrar extremamente diluído devido aos casamentos  consanguíneos. Não estou a sugerir que regressemos aos velhos tempos em que se mantinham registros genealógicos das famílias com laran, meu lorde, mas qualquer criador de cavalos poderá confirmar que um excesso de alianças consanguíneas produz maus resultados nas linhas de sangue.

Isso é verdade, pensou Regis olhando para Callina, a qual tinha um aspecto tão frágil que parecia que um sopro de ar a derrubaria, e para o rosto macilento e idiótico de Derik. Javanne tivera sorte, ao casar-se fora do Comyn. Os seus filhos eram todos saudáveis e robustos.

 Quanto a Derik... Olhando para o jovem príncipe, Regis perguntou  a si mesmo se Derik seria capaz de conceber alguma coisa excepto uma fiada de patetas como ele. E subitamente sentiu o sangue  arrefecer; olhou para Derik e nada viu, nada excepto uma caveira  sorridente... uma caveira, a rir-se... Esfregou os olhos com as mãos, e Derik permanecia ali sentado com o seu sorriso bonacheirão de idiota.

Hastur disse serenamente:

- Tendes uma certa razão, sir. Mas o príncipe Derik e a comynara  Linnell foram namorados de infância, e seria cruel separá-los agora. Há outros que podem trazer sangue novo ao Conselho.

Regis pensou, cinicamente: Talvez seja isso o que estou a fazer, concebendo filhos nedestro onde me apetecer... As mulheres parecem  não objectar, nem os seus pais, pois eu sou Hastur de Hastur...

O seus pensamentos diluíram-se ao ver Lady Callina levantar-se, alta e majestática nas suas vestes cerimoniais carmesim.

- Não aceito a intromissão do Conselho neste assunto - disse ela, pálida como a morte. - Linnell é minha pupila! Já dei o meu consentimento para o seu casamento, e isso basta!

- Intromissão, Senhora? - ripostou Di Asturien. - Estranha maneira de pôr o assunto. Os casamentos no Comyn são ajustados pelo Conselho, não é verdade?

- Eu sou a Chefe do Domínio de Aillard. O casamento de Linnell  não está pendente do acordo ou do desacordo do Conselho.

- Mas o casamento do príncipe está - insistiu o velho. - Protesto,  e decerto há outros que pensam como eu!

- Não poderei eu escolher a minha própria esposa, sir? - inquiriu  Derik, delicadamente. - Ou terei de imitar um habitante das Vilas Secas e arranjar meia dúzia de esposas e barraganas? Até um príncipe deve ter algumas áreas de escolha pessoal.

- O que diz a dama a respeito disso? - perguntou o idoso Di Asturien, e Linnell, sentada à sombra de Callina, enrubesceu e encolheu-se.

- O casamento foi aprovado há muito tempo pelo Conselho - disse Linnell, quase num sussurro. - Se alguém quisesse protestar,  deveria tê-lo feito há anos. Derik e eu fomos prometidos um ao outro quando eu tinha catorze anos, e ele doze. Houve tempo suficiente  para protestos antes disto, e antes que... antes que nos habituássemos  um ao outro.

- Isso foi há muito tempo, e o Conselho era mais forte então disse o velho, quezilento. Não faltam mulheres nos Domínios com sangue bom. Ele não precisava de escolher uma irmã da Chefe de outro  Domínio.

- Com todo o respeito, sir - interveio Lorde Hastur -, já escutámos  o que tínheis a dizer. Haverá mais alguém no Comyn que pretenda falar a respeito disto?

- Não quero ouvir mais nada - exclamou Callina, pálida de raiva. - Dei o meu consentimento a este matrimónio, e não há ninguém  com poderes legais para alterar isto.

- E se alguém tentar - disse Derik -, irei desafiá-lo seja onde for. - Baixou a mão para o punho da sua adaga.

Por um momento pareceu a Regis estar a observar o Conselho tal como Lerrys o tinha visto: uma garotada altercando sobre brinquedos,  aquele desdenhoso: “Puxas da sua espadazinha e cortas-me em pedaços com ela?” Derik tinha falado como a honra e a lei do Comyn exigiam, e contudo fizera lembrar um idiota fanfarrão. Derik  era um idiota, certo, mas teria alguma vez tido uma oportunidade  para ser outra coisa? Não.

Mas Hastur prosseguia, calmamente, de acordo com o costume, ao dizer para Di Asturien:

- Sir, estais preparado para aceitar o desafio do príncipe Derik?

O velho retraiu-se.

- Que os deuses não permitam, sir! Eu, desafiar Hastur de Elhalyn e o meu legítimo príncipe? Estava apenas a formular a questão, Lorde Hastur, nada mais do que isso... - Fez uma vénia a Derik. - Su serva, Dom. - E Regis, vendo o digno idoso batendo em retirada, quase servil, escutou de novo o comentário de Lerrys:

“...a brincar aos lordes e damas...” Como se justificaria, se não fosse a ascendência, que um tonto como Derik forçasse um homem honrado e idoso, de excelente linhagem e com um longo serviço prestado ao seu país, a amesquinhar-se de tal forma?

Por vezes também me sinto assim. Desde o tempo em que tinha  dez anos de idade, com os Guardas a seguirem-me por todo o lado como se fossem as minhas preceptoras, por receio de que eu quebrasse uma unha... Porquê, em nome de todos os deuses?

De novo envolto em preocupações, não prestou atenção às palavras  que Hastur dizia a seguir, mas despertou subitamente quando  Hastur chamou:

- O Sétimo Domínio! Aldaran!

Nesse momento Regis ouviu uma voz que nunca pensara voltar  a escutar, falando por detrás da cortina corrida; depois as argolas  da cortina entrechocaram-se com um ligeiro tilintar metálico, e um homem alto surgiu à balaustrada do recinto.

Parecia-se com Lew; com mais idade, livre de cicatrizes, mas a semelhança era inegável; poderia ser algum irmão mais velho de Lew.

- Estou aqui por Aldaran - disse. - Sou Beltran-Kermiac, Lorde de Aldaran e Scathfell!

E o silêncio estupefacto na Câmara de Cristal foi estilhaçado pela exclamação de Lew:

- Protesto!

 

 (narrativa de Lew Alton)

Eu não sabia que ia protestar até ouvir-me a fazê-lo.

Ouvi-os chamarem o nome de Aldaran, e percebi que isto estava  realmente a acontecer: não era um pesadelo. Tinha ouvido aquela voz em pesadelos, demasiadas vezes. Ele continuava tão parecido  comigo que tenho visto gémeos menos idênticos do que nós.

Contudo agora ninguém poderia confundir-nos.

Senti-me dominado pela amargura: era ele quem tinha trabalhado  para invocar Sharra, mas ali estava, incólume, enquanto que eu, que tanto padecera para deter a tempestade de fogo que ele provocara  e para conter Sharra novamente, para que não devastasse o nosso mundo desde a Baía das Tempestades até ao Muro em Redor do Mundo, ali estava eu, coberto de cicatrizes e mutilado, mais um proscrito do que ele.

- Protesto! - gritei de novo, descendo aos saltos até chegar ao centro do espaço aberto, para aí o enfrentar.

- Ainda não pedimos um repto formal - disse Hastur com brandura. - Tendes de expor a razão do vosso protesto.

Fiz um esforço para controlar a voz. Por mais intenso que fosse o meu ódio - e sentia-o a intensificar-se até ficar capaz de me engolir  - precisava de falar agora calmamente. A histeria apenas iria prejudicar a minha causa; quaisquer que fossem os protestos, as acusações incoerentes que pululavam na minha mente, eu tinha de arguir a minha causa com serena racionalidade. Procurei agarrar firmemente a presença que residia na minha mente, as estranhas memórias que eu ali carregava: como teria falado o meu pai? Ele fora usualmente capaz de forçá-los a fazer o que ele desejava.

- Declaro... - comecei, tentando firmar a minha voz perante a enxurrada. - Declaro... a existência... de uma rixa de sangue por resolver. - A rixa de sangue era tida, em todos os Domínios, como uma obrigação que sobrepujava qualquer outro considerando. A vida dele pertence-me; aqui a reclamo. Até este momento os nossos olhos não se tinham encontrado; levantou a cabeça e olhou para mim, céptico, preocupado. Desviei o olhar. Não desejava lembrar-me de que em tempos tinha chamado primo e amigo a este homem. Deuses! Como poderia ele estar ali a olhar calmamente para mim e a dizer, como agora me dizia:

- Não sabia que te sentias assim, Lew. Culpas-me então de tudo? Como poderei desculpar-me? Podes crer que não fazia qualquer  ideia da existência de semelhante desavença.

Desculpá-lo! Apertei o coto do meu braço com a mão válida, ansioso por gritar: Como posso desculpar-te por isto? Poderás devolver-me  seis anos da minha vida, poderás devolver-me... Marjorie?

Por uma vez na vida sentia-me grato pela presença dos amortecedores  telepáticos, sem os quais tudo isto teria ecoado pela sala com toda a força do hiper-desenvolvido contacto mental dos Altons... mas limitei-me a repetir:

- A tua vida pertence-me, quando, onde e como eu puder.

Beltran abriu ligeiramente os braços, como se dissesse: “O que significa tudo isto?” Ao ver a expressão de perplexidade nos seus olhos, confesso que por um momento duvidei da minha própria sanidade  mental. Teria sonhado com tudo aquilo? As minhas unhas firmaram-se  no pulso, e disse a mim mesmo: isto não foi um pesadelo. Hastur disse com rispidez:

- As vossas palavras nada significam aqui, Lorde Armida. Lembrei-me, após um segundo de choque: este era o meu nome, não o do meu pai; agora era eu o Lorde Armida. - Esqueceste-vos prosseguiu Hastur - que a rixa de sangue é proibida aqui no Comyn, como entre iguais. - Era uma redundância, pois a palavra comyn significava precisamente iguais em dignidade ou posição.

- E eu declaro que não tenho qualquer ressentimento contra o meu primo de Alton - disse Beltran calmamente. - Se ele crê que há uma rixa de sangue entre nós, deve ter sido originada numa altura da sua vida em que ele estava... - e eu podia sentir todos no Conselho pensando no que ele parecia evitar dizer por benevolência: numa altura da sua vida em que ele estava louco...

A própria existência do Comyn, os Sete Domínios da parentela de Hastur, pressupunha uma aliança que proibia as rixas de sangue, a imunidade do Comyn, imunidade essa de que Beltran, maldito seja, agora beneficiava. Pudesse Zandru atirar-lhe caudas de lacrau! Haveria  algum modo de acabar com esta farsa?

De onde eu agora me encontrava não podia vê-la, mas Callina levantou-se e avançou, com os seus véus carmesim de Guardiã esvoaçando  atrás de si como se soprados por uma brisa invisível. Voltei-me  quando ela falou: ali estava Callina, estranha, fria, remota, muito diferente da mulher que estreitara nos meus braços, prometendo-lhe  o meu apoio. Também a voz dela soava distante e invulgarmente  nítida, como se viesse não dela, mas através dela.

- Meu lorde Aldaran, na minha qualidade de Guardiã do Comyn tenho o direito de vos perguntar isto: Tereis jurado fidelidade  ao Convénio?

- Quando eu tiver sido aceite no Comyn - respondeu Beltran  -, estarei pronto a jurar.

Callina apontou para as janelas e disse:

- O vosso exército encontra-se lá fora, empunhando armas terráqueas, em desobediência ao Convénio. Deveremos aceitar-vos no Comyn quando vós não jurastes ainda observar a primeira lei do Comyn, em troca de vos acolhermos entre nós?

- Logo que prestar juramento ao Comyn - disse Beltran com uma suavidade sedosa -, a minha Guarda de Honra depositará essas  armas nas mãos da minha prometida esposa.

Vi Callina estremecer ao ouvir estas palavras. Havia amortecedores  telepáticos espalhados por toda a sala, mas ainda assim parecia-me  poder ler os seus pensamentos.

Se eu não concordar com este casamento, isso significará guerra. A última guerra nos Domínios dizimou o Comyn. Beltran seria capaz  de nos aniquilar.  Olhou para ele e disse, deixando cair as palavras num silêncio de morte:

- Sendo assim, meu lorde Aldaran, se estais disposto a aceitar uma noiva relutante... - Hesitou; eu sabia que ela não iria olhar para mim, mas senti o desespero por detrás das suas palavras. - ...nesse caso concordo. Que a cerimónia de compromisso se realize na Noite do Festival.

- Assim seja, então - declarou Beltran, com aquele sorriso que era como uma máscara encobrindo o que realmente sentia, e fez uma vénia. Fiquei imóvel, como se os meus pés tivessem criado raízes no pavimento da Câmara de Cristal. Iriam eles realmente fazer  isto? Iriam vender Callina a Beltran, para evitar a guerra? Não haveria ninguém capaz de levantar a mão contra esta monstruosa injustiça?

Num derradeiro apelo, exclamei:

- Ireis vós então aceitá-lo no Conselho? Ele está comprometido com Sharra!

Beltran voltou-se para me encarar, e disse:

- Também tu estás, primo.

Nada havia que eu pudesse responder a isso. Desejei nesse momento  fazer o que Lerrys tinha feito e abandonar o Conselho, amaldiçoando  todos. Nunca fiquei bem certo do que aconteceu então. Sei que comecei  a regressar ao meu lugar, tendo já dado alguns passos na direcção  do recinto de Alton quando escutei um grito, uma voz de mulher. Por um momento parecia-se tanto com a voz de Dio que fiquei paralisado; depois Derik gritou também, e dei meia volta para ver Beltran  recuar um passo e levantar os braços à sua frente, como se estivesse a resguardar-se de alguma coisa.

Depois ouviram-se gritos vindos de todos os lados, brados de pavor e de terror; recuando um pouco para dentro do meu recinto vi-o também, pairando no ar acima de nós, em pleno desenvolvimento,  ameaçador...

O vulto de uma mulher acorrentada, cabelos em chamas, agitada,  rapace, tornando-se cada vez mais alta, com o violento crepitar dos fogos florestais... Sharra! O vulto de fogo, Sharra... Agora, sabendo  que isto era um pesadelo criado no inferno, recuei também, fugindo das chamas que ameaçavam lamber-nos, do cheiro a queimado,  do fluxo de terror, de ódio, o recanto do inferno que se abrira para mim havia já seis anos...

Agarrei-me ao auto-controlo que ameaçava escapar-me, antes que acabasse por me pôr também aos berros, enxovalhando-me se me pusesse a gritar como uma mulher. O Vulto de Fogo estava ali, sem dúvida; pairava e tremeluzia e agitava-se acima de nós, com as formas de uma mulher com a cabeça atirada para trás, três vezes da altura de um homem, as chamas lambendo-lhe o cabelo. Marjorie!

Marjorie, a arder, ensombrada por Sharra... até que consegui recuperar  a faculdade de raciocinar.

Não, isto não era a Sharra que eu conhecera. O coração batia-me  desenfreadamente com o pavor, mas não havia na sala um verdadeiro  cheiro de fogo, as cortinas dos recintos não ardiam onde as chamas lhes tinham tocado... Isto era uma ilusão, nada mais do que isso, e imobilizei-me, cerrando o punho da minha mão válida, sentindo  as unhas furarem a carne, sofrendo a antiga dor das chamas na mão que já não existia... uma dor fantasma, pois isto nada mais era do que um fantasma, uma representação de Sharra... Eu saberia  reconhecer a Sharra verdadeira sentindo o corpo e a alma subjugados  por aquele monstruoso vulto...

O Vulto de Fogo estendeu um braço... um braço de mulher lambido  pelo fogo... e Beltran não suportou mais e recuou, fugindo da Câmara de Cristal. Agora que já sabia o que era, aguentei-me firme, vendo-o a desertar e tentando imaginar quem teria provocado aquilo.

Kadarin, onde quer que estivesse, desembainhando a espada e evocando  o Vulto de Fogo? Não. Eu estava comprometido com Sharra, de corpo e alma; se Kadarin, igualmente comprometido com aquela coisa profana, a tivesse invocado, também eu teria ficado consumido pelas chamas... Agarrei-me com força ao balaústre do recinto, dando  tratos à imaginação. Os Comyn agitavam-se de um lado para o outro, clamando na confusão. Dois ou três deles tinham-se também posto em fuga pela porta traseira dos seus recintos.

Callina? Nenhuma Guardiã profanaria o seu cargo daquela maneira, usando-o para criar terror. Eu poderia tê-lo feito - ainda agora sentia o calor das chamas na minha matriz inútil - mas sabia  que não o fizera. Beltran, comprometido do mesmo modo com  Sharra? Não, ele tinha-se mostrado o mais aterrorizado de todos, pois também vira Caer Donn ser devorada pelas chamas.

O Vulto de Fogo consumiu-se numa derradeira labareda e desapareceu,  como uma vela soprada pelo vento. Danvan de Hastur, Regente do Comyn, mantivera-se imóvel, mas estava lívido como a morte, e amparava-se ao balaústre diante de si enquanto falava, palavras rituais quase sem significado.

- Declaro... a Sessão do Conselho... encerrada por este ano; todos os assuntos que lhe foram presentes ficam suspensos até que  no próximo ano nos tornemos a reunir...

 Um a um, os poucos membros que não se haviam já precipitado para a saída abandonaram silenciosamente a Câmara, envergonhados e chocados pelo seu terror. Eu, que tinha enfrentado a realidade de Sharra, dei por mim a pensar como eles reagiriam a  uma manifestação a sério. Contudo o meu coração continuava  a martelar um pouco; um pavor inculcado nos ossos, um portal apenas ligeiramente aberto entre os mundos para deixar passar aquela sombra monstruosa... Eu tinha visto esse portal meio aberto, e sabia que ele se abria sobre o fogo e o inferno, como sobre o coração  vivo de um vulcão.

Então, por detrás de Danvan Hastur vi Regis, imóvel e muito direito, com a mão tocando ligeiramente na sua matriz. Não olhou para mim, não olhava para coisa nenhuma, mas eu soube, tão claramente como se houvesse falado: Regis! Regis tinha invocado aquela imagem! Mas porquê? Por que e como?

Ele baixou a mão. Podia ver-lhe finas gotas de suor em redor da testa, mas a sua voz soava normal:

- Queres apoiar-te no meu braço, avô?

- Quando precisar de ajuda estarei embrulhado na minha mortalha - resmoneou o velho, e, de cabeça levantada, abandonou  a Câmara. Agora apenas Regis e eu restávamos ali.

Consegui recuperar a voz, dizendo com amargura:

- Foste tu que fizeste aquilo. Não sei como nem porquê, mas foste tu o autor! Primo, como serás capaz de brincar com coisas tão sérias?

A mão dele afastou-se da matriz, pendendo sem vida junto ao corpo, como se lhe doesse. Talvez lhe doesse mesmo; eu estava agitado  de mais para me preocupar. Por fim Regis disse numa voz tensa, quase um sussurro:

- Aquilo deu-nos tempo. Mais um ano. Eles não poderão... não poderão pôr em causa o teu direito ao Domínio de Alton, ou aceitar Beltran no Conselho, durante mais um ano. O Conselho foi encerrado. - Depois vacilou, e amparou-se debilmente no balaústre.

- Põe a cabeça entre os joelhos - disse-lhe com aspereza, e fiquei  a observá-lo enquanto ele ali permanecia, de cabeça baixa, até que um pouco de cor lhe regressou ao rosto. Finalmente endireitou-se  no assento.

- Peço desculpa se a... a imagem... te assustou - disse. - Foi a única coisa que me veio à ideia para suspender este Conselho, esta farsa. Queria que eles vissem aquilo que precisavam de temer. A maioria  deles não faz qualquer ideia.

Lembrei-me de Lerrys me ter dito:

- Tu vês Sharra como um papão que se esconde debaixo de todas  as camas... Não, ele não dissera isso a mim, mas a Regis. Olhei para ele, confundido, e disse:

- Existem aqui amortecedores telepáticos. Eu não devia ser capaz  de ler a tua mente, nem tu a minha. Pelos infernos de Zandru, Regis, o que estará a passar-se?

- Talvez os amortecedores não estejam a funcionar - disse Regis com uma voz mais forte, e agora ele parecia-me completamente  racional, se bem que receoso, como tinha todo o direito de estar. Também eu estava receoso.

- A imagem não me assustou - expliquei -, a não ser durante  um momento, ao princípio. Já vi a realidade de Sharra. O que me assusta, agora, é o facto de teres podido fazer aquilo, com os amortecedores espalhados por toda a sala. Não fazia ideia de que possuías tanto laran, se bem que soubesse, claro, que tinhas algum.

Que género de laran será capaz de fazer aquilo? - Dirigi-me ao amortecedor telepático mais próximo e rodei os comandos até que as ondas arrítmicas se dissiparam. Agora podia sentir a agitação e o receio de Regis em toda a sua intensidade, e desejei não poder.

Numa voz tensa, ele disse:

- Não sei como fiz o que fiz. Palavra que não sei. Estava aqui parado atrás do meu avô, ouvindo Beltran falar com toda a calma, e desejando que houvesse algum modo de lhes demonstrar como tudo tinha sido... e então... - Molhou os lábios com a língua, e prosseguiu, vacilante: - Então aquela coisa apareceu, o... o Vulto  de Fogo.

- E Beltran aterrorizou-se e fugiu prontamente da sala - comentei.

 - Achas que ele sabe que Kadarin tem a matriz de Sharra em seu poder?

- Não consegui ler-lhe os pensamentos. Não estava a tentar, claro... - A sua voz fraquejou de novo. - Não estava a tentar fazer  nada... Apenas... apenas aconteceu!

- Haverá alguma coisa no teu laran que desconheças? Sabemos tão pouco acerca do Dom de Hastur, seja ele o que for - comentei, tentando acalmá-lo. - Mas vejamos a parte positiva: fez com que Beltran fugisse daqui. Bom seria se ele só parasse de fugir ao chegar às Infernais! Mas infelizmente não teremos essa sorte!

Estava desejoso de que ficássemos por ali, mas ao voltar-me para a saída Regis segurou-me por um ombro.

- Como teria eu sido capaz de fazer uma coisa daquelas? Não compreendo! Tu... tu acusaste-me de brincar com coisas sérias! Mas eu não brinquei, Lew, palavra que não!

Não sabia o que poderia responder-lhe. Deambulei pela sala, desligando os restantes amortecedores. Podia sentir o medo dele, quase pânico, aumentando de intensidade à medida que os amortecedores  iam deixando de interferir com o contacto telepático. Cheguei  a perguntar a mim mesmo, zangado, que razão teria ele para estar tão assustado, quando era eu quem estava ligado a Sharra, era eu quem tinha de viver noite e dia com o terror de que, algum dia, Kadarin iria desembainhar a Espada de Sharra e, com esse gesto, fazer-me regressar àquele terrível portal entre os dois mundos, àquele recanto do inferno que eu uma vez franqueara e que tinha roubado a minha mão, o meu amor... a minha vida...

Reagi firmemente ao pânico. Se não parasse com isto agora, o meu próprio temor e o de Regis reforçar-se-iam mutuamente e acabaríamos  por chegar à histeria. Recorrendo ao que era capaz de recordar  do treino recebido em Arilinn, consegui regular o ritmo da minha respiração, e senti o pânico ceder.

Mas Regis continuava sentado na cadeira para onde eu o empurrara,  lívido de terror. Dei meia volta e fiquei surpreendido ao ouvir a minha própria voz, a voz calma e distante de um mecânico de matrizes, imparcial, profissionalmente tranquilizante, como já não ouvia há demasiado tempo.

- Não sou um Guardião, Regis, e a minha própria matriz é inútil de momento, como bem sabes. Poderia tentar sondar-te em profundidade para tentar descobrir...

Vi-o retrair-se, e não podia censurá-lo por isso. O dom de Alton  não é coisa com que se brinque, e conheço técnicos experientes, com muitos anos de treino nas Torres, que se recusam a lidar com este dom de conexão mental tão intensamente concentrado. Eu talvez  conseguisse fazê-lo, se fosse indispensável, mas não tinha muita vontade de experimentar. Poder-se-ia dizer que tem semelhanças com uma violação: a deliberada subjugação de uma mente, a submissão  forçada de outra personalidade, a invasão definitiva. Apenas  os provavelmente inexistentes deuses de Darkover saberão por que razão um tal dom terá sido inculcado na linhagem Alton, para forçar a conexão mental com um ser relutante, paralisando a sua resistência. Sei que Regis também o receava, e não posso censurá-lo por isso. O meu pai tinha despertado o meu próprio dom daquela maneira, quando eu ainda era rapaz; tinha sido a única maneira de forçar o Conselho a aceitar-me, de os convencer de que eu, um estranho  e meio-Terráqueo, possuía o Dom de Alton... e aquela experiência  deixara-me doente durante semanas. Não me agradava pensar em fazer o mesmo a Regis.

- Talvez pudesses ser sondado numa Torre, por algum Guardião,  possivelmente - sugeri, e então lembrei-me de que aqui no Castelo Comyn havia uma Guardiã. Estava sempre a esquecer-me:

Ashara, da Torre Comyn, devia ser já incrivelmente idosa; nunca a tinha visto, nem o meu pai antes de mim... mas agora Callina encontrava-se  lá como sua substituta, e Callina era minha parente, e de Regis também.

- Callina poderia dizer-te - exclamei -, se ela quisesse.

Ele acenou a concordar, e senti o seu pânico diminuindo de intensidade. Ao falarmos sobre o caso, calmamente e com imparcialidade,  como se se tratasse de um simples problema da mecânica do laran, o temor tinha-se aliviado um pouco.

Contudo também eu me sentia intranquilo. Quando finalmente saí da Câmara de Cristal até os corredores e os vestíbulos estavam vazios; o Conselho Comyn destroçara-se e os membros tinham seguido  os seus caminhos. O Conselho tinha terminado. Nada restava excepto o baile da Noite do Festival, no dia seguinte.

Ao sairmos da Câmara deparámos com o jovem Syrtis, que quase  ignorou a minha presença, aproximando-se apressado de Regis.

- Voltei para ver o que te teria acontecido! - exclamou, e, quando Regis lhe sorriu, afastei-me em silêncio, sentindo-me a mais ali. Ao distanciar-me deles pareceu-me identificar uma das minhas emoções: estaria eu invejoso do que Regis compartilhava com Danilo? Não, decerto que não.

Mas encontro-me sozinho, sem irmão, sem amigos, sozinho contra os Comyn que me odeiam, e não há ninguém que fique ao meu lado. Durante toda a minha vida tinha residido à sombra do meu pai; e agora que essa sombra já não existia sentia-me incapaz de suportar a solidão. E Marius, que devia ter ficado ao meu lado...

também Marius tinha sido morto pela bala de um assassino, e ninguém  no Comyn, com a excepção de Lerrys, tinha sequer questionado  esse assassinato.

Senti-me novamente enervado ao identificar um novo elemento  do pesar que experimentava por Marius. Era o alívio, um alívio resultante de não ter já de ensaiar o seu laran, como o meu pai ensaiara  o meu; já não iria ter de invadi-lo impiedosamente, talvez para senti-lo morrer sob aquele terrível assalto à sua identidade.

Ele tinha morrido, mas não pelas minhas mãos, não devido aomeu laran. Eu soubera que o meu laran podia matar, mas nunca tinha matado  ao usá-lo.

Regressei pensativo aos aposentos dos Altons. Eram o meu lar, tinham-no sido durante uma longa parte da minha vida, mas ainda assim pareciam-me vazios, repletos de ecos, desnudados. Dava-me a impressão de ver o meu pai em todos os recantos desocupados, do mesmo modo que a sua voz ainda ecoava na minha mente. Andres,  afadigado, orientando os outros servos que se ocupavam a dispor  os pertences que tinham sido recuperados da casa citadina, interrompeu o seu trabalho e aproximou-se, exigindo saber o que me tinha acontecido. Eu não sabia que aquilo, fosse o que fosse, estava  espelhado no meu rosto, mas deixei que ele me trouxesse uma bebida e fiquei a bebericá-la, pensando de novo no que Regis tinha feito na Câmara de Cristal e que assustara Beltran, mas, provavelmente,  não o bastante.

Não me parecia que Beltran desejasse mergulhar os Domínios numa guerra. Contudo, conhecia a sua imprudência, e achava que não deveríamos apostar nele, especialmente quando estava em jogo o seu orgulho ultrajado, o orgulho dos Aldarans.

- Tu escutas as mexeriqueiras da criadagem - disse a Andres.

- Diz-me, sabes se Beltran foi recolher-se nos aposentos dos Aldarans aqui no Castelo Comyn?

Andres acenou lugubremente, e tive a esperança de que Beltran tê-los-ia encontrado carregados de bichos e de piolhos, pois tinham permanecido por usar desde os tempos das Eras do Caos. O facto de nunca lhes ter sido dado qualquer outro uso dizia alguma coisa a respeito do Comyn. Andres continuava a pairar sobre mim, resmungando:

- Não estarás a planear fazer-lhe uma visita lá, espero!

Não estava mesmo. Havia apenas uma única maneira no mundo  para eu alguma vez estar próximo do meu primo, e essa era se ele me tivesse atado de pés e mãos e amordaçado. Já me atraiçoara anteriormente,  e nunca iria dar-lhe uma nova oportunidade. Afundado na miséria daquele momento, confesso para minha vergonha, pensei por um instante na escapatória que Dan Lawton, na Zona Terráquea,  me propusera: esconder-me algures fora do alcance de Sharra... Mas isso não seria uma solução viável, pois iria deixar Regis e Callina à mercê do que quer que fosse que funcionava a favor do Comyn.

Não me encontrava completamente só. O pensamento de Callina  reconfortava-me; eu jurara permanecer ao seu lado. E não tinha  ainda falado a sós com a minha parente Linnell, excepto junto da sepultura do meu irmão. Estávamos na véspera da Noite do Festival,  quando era de tradição em todos os Domínios fazerem-se ofertas  de frutos e flores aos membros femininos da família. Nem a mais mesquinha família de Thendara deixaria passar a manhã do dia seguinte  sem distribuir pelas suas mulheres ao menos algumas flores ou uma mão-cheia de frutos secos, e eu nada tinha feito para dar uma prenda a Linnell. Estivera realmente afastado de Darkover por demasiado tempo.

Não faltariam vendedores de flores e de fruta nos mercados da Cidade Velha, mas ao encaminhar-me para a porta hesitei, sem vontade  de ir mostrar-me de novo. Raios, durante o tempo em que tinha  vivido com Dio quase me esquecera da minha cara riscada por cicatrizes, da mão que me faltava, e agora estava a comportar-me como se tivesse sido mutilado de novo. Dio! Onde estaria Dio? Teria  eu escutado de verdade a sua voz na Câmara de Cristal? Disse a mim próximo com aspereza que isso não interessava; onde quer que Dio pudesse encontrar-se, se ela tivesse escolhido não vir ter comigo  estaria perdida para mim. Mas, mesmo assim, custava-me descer até ao piso térreo do enorme castelo e seguir para a Cidade Velha tendo de passar por entre a impropriamente designada Guarda de Honra de Beltran.

Alguns deles reconhecer-me-iam, lembrar-se-iam de mim...

Até que finalmente, desprezando-me pela demonstração de fraqueza,  pedi a Andres para tratar de comprar algumas flores para eu dar a Linnell no dia seguinte. Deveria igualmente mandar algumas a Dio? Não estava bem a par do que as regras da cortesia ditavam quanto à situação. Lá longe no Império, isso sabia-o, um marido e uma esposa separados podiam encontrar-se como amigos; aqui em Darkover uma tal coisa seria impensável. Bem, encontrava-me em Darkover agora, e, se Dio nada queria de mim, era natural que também  não estivesse à espera de que lhe oferecesse uma prenda pelo Festival. Ela tem Lerrys para lhe mandar flores e frutos, pensei com amargura crescente. Se Lerrys estivesse diante de mim naquele momento,  acho que lhe teria batido. Mas o que iria isso resolver? Nada.

Passado um momento peguei numa capa, coloquei-a aos ombros, mas, quando Andres me perguntou onde eu ia, nem lhe respondi.

Os meus pés conduziram-me para baixo, cruzando pátios e jardins cobertos, atravessando partes do castelo que me eram desconhecidas.

 A certa altura dei por mim num pátio por baixo dos desertos aposentos dos Aldarans, desertos ao longo de toda a minha vida e até agora. Uma parte de mim queria ir lá e enfrentar Beltran, para lhe exigir... para lhe exigir o quê? Não sabia. Outra parte de mim desejava, cobardemente, atravessar a cidade, refugiar-se na Zona Terráquea, e depois... depois o quê? Não podia abandonar Darkover enquanto a matriz de Sharra estivesse aqui; eu bem tentara. Mais de uma vez. Significaria a minha morte, uma morte que não seria rápida nem fácil.

Talvez eu estivesse melhor morto, mesmo com aquela morte, pois estaria finalmente liberto de Sharra... Uma vez mais pareceu-me  que o Vulto de Fogo bramava diante dos meus olhos, uma vibração  no meu sangue, um terror frio e uma labareda voraz e pestilencial como licor a escorrer-me nas veias... Não: isto era real. Retesei-me, olhando para as montanhas por detrás da cidade.

Algures ali ardiam estranhas labaredas, uma incrível matriz do nono nível retorcia o espaço à sua volta, um portal abria-se, e o fogo corria nas minhas veias... Havia fogo diante dos meus olhos, fogo através do meu cérebro...

Não! Estou certo de que não clamei em voz alta aquela furiosa negativa; se o fiz, ninguém me ouviu, mas escutei os ecos no pátio a toda a minha volta, e lentamente, lentamente, regressei à realidade.

Algures lá fora Kadarin andava à solta, e com ele a matriz de Sharra, e Thyra que eu odiara, amara, desejara e temera... mas eu morreria antes que me arrastassem de novo para aquilo... Deliberadamente, resistindo ao chamamento na minha mente, levantei no ar o coto do meu braço e bati com ele numa laje, com toda a força. A dor foi incrível;

 fez-me faltar o ar, e os meus olhos encheram-se de lágrimas, mas essa dor era verdadeira: nervos e músculos e ossos ofendidos, não um fogo fantasma varrendo-me o cérebro. Cerrei os dentes e voltei as costas às montanhas e àquele chamamento, àquele canto de sereia que pulsava na minha mente, e entrei no Castelo.

Callina. Callina poderia expulsar estes demónios da minha cabeça. Desde há muitos anos, desde que era criança, que não visitava a ala Aillard do Castelo Comyn. Um criado silencioso veio ao meu  encontro, conseguiu não pestanejar mais do que uma vez ao olhar para a ruína da minha cara, e conduziu-me a uma sala de recepção . onde, segundo me disse, iria encontrar Domna Callina acompanhada  por Linnell.

 A sala era espaçosa e brilhante, cheia de sol e de cortinas de  seda, com plantas verdes e flores, como um jardim interior. Notas  suaves de uma harpa ecoavam na sala: Linnell estava a dedilhar o  rryl, mas ao ver-me entrar pô-lo de parte e correu para mim, aceitando um abraço e um beijo com o privilégio de uma irmã adoptiva,  e encolhendo-se, hesitante, ao tocar no coto do meu braço.

- Não tem importância - disse eu. - Não consegues magoar-me.

 Não te preocupes com isto, maninha. - Olhei para ela, sorrindo. Era a única pessoa neste mundo que me acolhera com verdadeira satisfação, pensei, a única que não tinha tentado avaliar o significado do meu regresso. Até Marius tinha tido de pensar no que a minha vinda iria originar em termos do direito ao Domínio. Até mesmo  Jeff. poderia ter de deixar Arilinn para ocupar o seu lugar no Conselho.

 - A tua pobre mão... - comentou Linnell. - Os Terráqueos  não conseguiram fazer nada por ela?

Nem com Linnell tinha vontade de falar no assunto.

- Quase nada - respondi -, mas tenho uma mão mecânica que costumo usar quando quero passar despercebido. Usá-la-ei quando  dançar contigo na Noite do Festival, está bem?

- Só se tu quiseres - disse ela, muito compenetrada. - Não me preocupo com a tua aparência, Lew. Serás sempre o mesmo para mim.

Abracei-a, emocionado tanto pelo seu sorriso de aceitação como pelas palavras. Acho que Linnell era uma mulher bela; nunca fui capaz  de vê-la senão como a pequena irmã adoptiva com quem tinha disputado alucinantes corridas a cavalo pelas colinas. Dera-lhe açoites  por partir os meus brinquedos ou por levá-los sem a minha autorização,  e confortara-a quando ela chorava com dores de dentes.

- Estavas a tocar o teu rryl - disse-lhe. - Toca mais um pouco  para mim, sim?

Linnell pegou novamente no instrumento e começou a tocar a balada de Hastur e Cassilda:

As estrelas espelhavam-se na praia, A solitária charneca vestia-se de negro. Em silêncio estavam as rochas e as árvores A filha de Robardin caminhava sozinha, Levando nas mãos uma teia de ouro Numa reluzente roca brilhando na noite...

Tinha ouvido Dio cantá-la, se bem que Dio não tivesse uma voz de cantar... Por onde andaria Callina? Precisava de falar com ela...

Linnell apontou, e vi, num nicho por detrás do fogão de sala, Callina e Regis Hastur sentados num acolhedor divã e tão absortos no que estavam a dizer que nenhum deles dera pela minha entrada na sala. Senti um momentâneo fulgor de ciúme; pareciam tão confortáveis,  tão em paz um com o outro... até que Callina olhou para mim e sorriu-me, e eu soube que nada tinha a recear.

Aproximou-se de mim; desejei poder tomá-la nos meus braços, num amplexo que seria muito mais do que um simples abraço dado a uma parente; mas ela estendeu a mão e tocou-me no pulso, o to que de pluma com que uma Guardiã me cumprimentaria, e com aquele gesto automático a frustração meteu-se de permeio, como uma espada desembainhada.

Uma Guardiã. Nunca tocada, nunca desejada, nunca o motivo  de um pensamento sujo... Uma frustração irritante, mas ao mesmo  tempo uma reafirmação: era assim que ela me cumprimentaria se estivéssemos  ambos em Arilinn, onde me sentira feliz... Mesmo se tivéssemos sido amantes reconhecidos durante anos, ela tocar-me-ia  apenas assim.

Mas os nossos olhos encontraram-se, e ela disse com gravidade:

- Ashara vai receber-te, Lew. É a primeira vez, parece-me, em mais de uma geração, que ela aceita falar com alguém vindo do exterior. Quando lhe falei da matriz de Sharra, disse que poderia levar-te  até ela.

- Também eu gostaria de lhe falar - disse Regis. - Talvez saiba alguma coisa a respeito do Dom de Hastur... - mas calou-se ao ver o olhar reprovador de Callina ao dizer-lhe:

- Ela não te convidou. Nem eu posso levar alguém à sua presença  sem que ela o solicite.

Regis recuou como se o tivessem empurrado. Pestanejei, olhando  com espanto para esta nova Callina, para a máscara impassível do seu rosto, os olhos e a voz de uma estranha empedernida. Um instante depois ela voltava a ser a Callina que eu conhecia, mas tinha testemunhado a modificação, e sentia-me intrigado e consternado. Eu teria dito algo mais, teria talvez assegurado a Regis que pediríamos à idosa leronis para lhe conceder uma audiência, mas Linnell reclamou-me de novo.

- Vais afastá-lo já de mim? Depois de termos estado sem nos  vermos durante tantos anos? Lew, tens de me falar a respeito da  Terra, dos mundos do Império!

- Haverá tempo bastante para isso, certamente - garanti-lhe, sorridente, olhando para a luz que começava a esmorecer. - Ainda não caiu a noite... mas nada tenho de bom para te contar a respeito  da Terra, chiya. Não trago boas recordações. Estive quase sempre internado em hospitais... - e ao dizê-lo lembrei-me de outro hospital  em que o doente era Dio e não eu, e de uma certa enfermeira jovem, de cabelos escuros e rosto amável. - Sabes uma coisa? Não, decerto que não podes saber: tens em Vainwal uma sósia perfeita, tão parecida contigo que uma vez chamei-a pelo teu nome, convencido  de que eras tu mesma!

- Palavra? Como era ela?

- Ora, eficiente, competente... até a voz dela era como a tua respondi. E logo me calei, recordando o horror daquela noite, o vulto  monstruoso, chocantemente deformado, que deveria ser o meu filho... Tinha as minhas barreiras corridas, mas Linnell viu a crispação  do meu rosto e estendeu a mão para acariciar as minhas cicatrizes.

- Irmão adoptivo - disse ela, dando ao termo a inflexão íntima  que o transformava numa expressão de carinho -, não fales de hospitais e de doenças e de dor. Já se acabou, estás agora aqui em casa, connosco. Não penses mais no que se passou.

- E aqui em Darkover há problemas bastantes para te fazerem esquecer daqueles que tiveste no Império - disse Regis com um sorriso  comprometido, juntando-se a nós à janela, onde o sol enfraquecera  diluído pelas nuvens do entardecer. - O Conselho não foi devidamente encerrado; duvido de que não voltemos a ouvir falar dele. E decerto que voltaremos a ouvir falar de Beltran... - Callina  estremeceu ao ouvir o nome, e depois disse, olhando impacientemente  para as nuvens: - Vamos, não devemos deixar Ashara à nossa espera.

Uma serva envolveu-a num abafo que era como que uma sombra  cinzenta. Saímos e descemos as escadas, mas no primeiro patamar  algo me fez olhar para trás, vendo Linnell emoldurada pela luz que emergia da porta da sala, com os cabelos castanhos refulgindo com reflexos acobreados e o rosto compenetrado mas sorridente; por um momento aquela sensação de tempo desfasado que assombra  o dom de Alton, talvez um toque de pré-cognição herdado da parte aldarana do meu sangue, fez-me fixá-la, desfocada, enquanto o passado, o presente e o futuro tudo se misturava, e vi uma sombra  cair sobre Linnell, e uma tenebrosa convicção...

Linnell estava condenada... a mesma sombra que ofuscara a minha vida iria também cair sobre Linnell e cobri-la e consumi-la...

- Lew, o que se passa?

Pestanejei, voltando-me para Callina ao meu lado. Aquela certeza,  aquele momento doentio em que a minha mente deslizara para  fora da esteira do tempo, já estava a desvanecer-se como um sonho à luz do dia. A confusão, a sensação de calamidade, persistia; desejei  correr pelas escadas acima e tomar Linnell nos meus braços como se pudesse resguardá-la da tragédia... mas quando olhei de novo para cima a porta estava fechada e Linnell tinha desaparecido.

Transpusemos a arcada e entrámos num pátio. Estava a chuviscar,  os borrifos ligeiros do princípio do Verão, e, ainda que nesta  estação não chegassem a transformar-se em neve, havia neles pequenos traços de granizo. As luzes estavam já a desvanecer-se na  Cidade Velha, ou não chegavam a trespassar a neblina; para além  delas, do outro lado do vale, o refulgente néon da Cidade Comercial projectava sobre as nuvens baixas berrantes laivos vermelhos e alaranjados. Dirigi-me à varanda gradeada que se abria sobre o vale e ali me deixei ficar por uns momentos, ignorando a chuva no meu  rosto. Dois mundos espraiavam-se diante de mim; contudo eu não  . pertencia a nenhum deles. Haveria, em todo o Império que abarcava  as estrelas, algum mundo em que me pudesse sentir-me em casa?

- Gostaria de estar lá em baixo esta noite - disse, penosamente  - ou em qualquer lugar afastado deste castelo do inferno...

- Mesmo na Zona Terráquea?

- Mesmo na Zona Terráquea.

 - Por que razão não estás, nesse caso? Não há nada que te  mantenha aqui - retorquiu Callina, e ao ouvi-la voltei-me para ela.

A sua capa de teia de aranha esvoaçou ao vento como uma fina neblina quando a puxei para os meus braços. Por um instante, assustada, e resistiu à pressão dos meus braços; depois deixou de resistir  e agarrou-se a mim. Mas os seus lábios permaneciam fechados e indiferentes como os de uma criança sob o meu beijo insistente, e isso fez-me regressar à razão com o choque do déjà vu... algures, alguma vez, num sonho ou na realidade, isto já me tinha acontecido, até mesmo as chicotadas de chuva nas nossas caras... Ela deve-o ter sentido também, pois levantou as mãos entre nós, empurrando-me suavemente. Mas depois deixou que a sua cabeça fosse encostar-se ao meu ombro.

- E agora, Lew? Misericordiosa Avarra, e agora?

Eu também não sabia. Por fim fiz um aceno na direcção da mancha carmesim de néon que era a Cidade Comercial.

- Esquece Beltran. Casa-te comigo, agora, esta noite, na Zona Terráquea. Confronta o Conselho com um facto consumado para que eles o mastiguem e o engulam... Eles que solucionem os seus próprios problemas, e que não se escondam detrás de umas saias de mulher pensando que podem resolvê-los com uns casamentos!

- Se eu ousasse! - murmurou ela, e na sua voz impassível de Guardiã treinada senti a presença das lágrimas que ela aprendera a reter. Mas suspirou, repelindo-me com relutância, e disse: - Poderemos  esquecer-nos de Beltran, mas ele não se irá embora só por nós não estarmos presentes. Tem um exército aguardando junto aos portões  de Thendara, equipado com armas terráqueas. E, além disso... - hesitou, e depois prosseguiu: - Poderemos esquecer-nos facilmente  de... Sharra?

Aquela palavra arrancou-me do meu devaneio de paz. Pela primeira  vez em anos, Sharra não tinha sido sequer um sussurro de maldade na minha mente; nos braços de Callina eu chegara mesmo a esquecê-la. Ela poderia estar presa à Torre pelos seus votos de Guardiã, mas eu também não estava liberto. Em silêncio, voltei as costas ao panorama das cidades gémeas que se estendia lá em baixo e deixei-a guiar-me por outro lance de escadas e outra série de pátios  isolados, até que me senti praticamente perdido no labirinto que era o Castelo Comyn.

Ela e eu, perdidos no dédalo que os nossos antepassados tinham  tecido para nós...

Mas Callina avançou sem hesitações através da intrigante confusão,  e finalmente guiou-me até uma porta de onde partia uma escadaria que parecia subir interminavelmente, e em seguida transpusemos  uma porta oculta e aí aguardámos, bem juntos, enquanto  o elevador ascendia lentamente.

Diz a lenda que esta Torre foi construída para a primeira das Guardiãs Comyn quando Thendara não passava de uma aldeia de cabanas de vime agachada à sombra da primeira das Torres. Procedia  de muito, muito longe no nosso passado, dos tempos em que os fundadores do Comyn acasalavam com os chieri, introduzindo na nossa linhagem estranhos poderes não-humanos, e em que os Deuses  conviviam com a Humanidade, quando Hastur era o filho de Aldones  que era o filho da luz... Disse a mim mesmo para me deixar de superstições: esta Torre era realmente antiga, e alguma da maquinaria  das Eras do Caos ainda resistia aqui, mas nada mais era do que isso. Os ascensores que se deslocavam por si mesmos, graças  a alguma força que eu não podia identificar, eram bastante comuns na Zona Terráquea. Que motivo haveria para que isso me aterrorizasse aqui? O cheiro dos séculos decorridos pairava entre estas paredes e nas sombras que deslizavam por nós, como se nos aproximássemos cada vez mais das Eras do Caos e mesmo de épocas anteriores a elas... Finalmente o elevador parou, e vimo-nos perante  um pequeno painel de vidro que era uma porta, com luzes azuis por detrás.

 Não vi nela qualquer puxador ou maçaneta, mas Callina estendeu  o braço e a porta abriu-se. Avançámos, penetrando no... azul.

Azul, como o coração vivo de uma jóia, como as profundezas  de um lago transluzente, como os mais cavados abismos do céu da Terra ao meio-dia. Azul, a toda a nossa volta, atrás de nós, por baixo  de nós. Estranhas luzes espelhavam e prismatizavam de tal forma a sala que esta parecia não ter dimensões, parecia ser simultaneamente imensurável e terrivelmente limitada, parecia ser tudo ao mesmo tempo. Encolhi-me, sentindo a presença de espaços imensos por baixo e por cima de mim, o primitivo pavor de cair; mas Callina prosseguiu  sem hesitações através do azul.

- Sois vós, filha e meu filho? - disse uma voz débil mas nítida, como água de Inverno escorrendo debaixo de gelo. - Vinde, estou à vossa espera.

Então, e apenas então, na glacial claridade consegui focar suficientemente os meus olhos no azul para discernir o grande trono esculpido em vidro e a pálida figura de uma mulher sentada nele.

Imaginara que nesta audiência formal Ashara vestiria a roupagem  cerimonial carmesim de uma Guardiã. Em vez disso envergava uma veste que absorvia e espelhava a luz de tal forma que a tornava quase invisível; uma figura diminuta e muito direita, não maior do que uma criança de doze anos. As suas feições eram quase descarnadamente  puras, tão isentas de rugas como as de Callina, como se a mão do tempo tivesse alisado as suas próprias marcas. Os olhos, compridos e grandes, eram também incolores, se bem que sob uma luz mais normal fossem talvez azuis. Havia uma ténue e indefinível semelhança entre a jovem Guardiã e a idosa, como se Ashara fosse uma Callina incrivelmente mais antiga, ou Callina uma Ashara embrionária,  ainda não antiga mas carregando as sementes da sua própria  invisibilidade translúcida. Comecei a crer que as histórias eram verdadeiras, que ela era praticamente imortal, que vivera aqui sem se modificar enquanto os mundos e os séculos tinham passado sobre  ela e para além dela...

- Estiveste então para lá das estrelas, Lew Alton? - disse ela.

Não seria justo dizer que aquela voz era agreste. Não era suficientemente  humana para o ser. Indiferente, incrivelmente remota; era tudo isso. Soava como se o esforço de conversar com pessoas reais,  vivas, era demasiado para ela, como se a nossa vinda tivesse perturbado  a paz cristalina em que residia.

Callina, habituada a isto - ou assim eu supunha - murmurou:

- Tu vês todas as coisas, Mãe Ashara. Conheces, portanto, aquilo que temos de enfrentar.

Um tremeluzir de emoção passou sobre o seu pacífico rosto, e ela pareceu solidificar-se, tornar-se menos translúcida e mais real.

- Nem mesmo eu posso ver todas as coisas. Não tenho poderes,  agora, fora deste palácio.

- Ajuda-nos contudo com a tua sabedoria, Mãe - murmurou Callina.

- Farei o que terei de fazer - respondeu Ashara, remotamente.

 Apontou. Havia um banco transparente aos seus pés, de vidro  ou cristal; eu não o tinha visto, e não sabia porquê. Talvez não tivesse estado ali, ou talvez ela o tivesse esconjurado; nada me surpreenderia agora. - Senta-te aqui e conta-me. - Apontou para : a minha matriz e disse: - Dá-ma, e deixa-me ver...

 Agora, recordando-me, relatando, já não sei se tudo isto sucedeu ou se foi algum sonho bizarro a esconder a realidade. Um tele pata, mesmo que tenha sido treinado em Arilinn, não faz certamente o que eu fiz então; sem sequer pensar em protestar, passei sobre a cabeça com a minha mão boa a tira de couro à qual a minha ma triz estava atada, atrapalhei-me um pouco com o envoltório de seda,  e entreguei-lha, sem pensar sequer em resistir. Coloquei-a simples mente na mão dela.

 É esta a primeira lei de qualquer telepata: ninguém toca numa matriz sintonizada, excepto a sua própria Guardiã, e mesmo assim apenas depois de um longo período de harmonização das ressonâncias. Mas sentei-me aos pés da antiga feiticeira e depositei a ma triz na sua mão, sem parar para pensar, e, ainda que algo dentro de mim se retesasse na expectativa de uma agonia incrível - lembrava-me de quando Kadarin me tinha despojado da minha matriz, e de ; como eu entrara então em convulsões - nada aconteceu; era como  se a matriz continuasse pendurada ao meu pescoço.

E fiquei calmamente sentado a observar.

Bem no interior do quase invisível azul da matriz havia lume, estranhas luzes... Vi o rebrilhar de fogo, e o grande tremeluzir raivoso... Sharra! Não o Vulto de Fogo que nos tinha aterrorizado no Conselho, mas a própria Deusa, em chamas furiosas... Ashara fez  um aceno com a mão e tudo desapareceu.

- Sim, essa matriz conheço eu há muito... e a tua esteve em  contacto com ela, não foi?

Baixei a cabeça e disse:

 - Como haveis visto.

 - O que poderemos fazer? Haverá algum modo de nos defendermos...

 Ashara fez um gesto a Callina para que se calasse.

- Nem mesmo eu posso alterar as leis da energia e da mecânica - disse ela. Olhando em redor da sala eu não podia estar tão certo disso. Como se tivesse ouvido os meus pensamentos, ela disse: Gostaria que soubesses menos da ciência dos Terráqueos, Lew.

- Porquê?

- Porque agora andas em busca de causas, de explicações, o sofisma de que cada acontecimento tem de ter uma causa precedente.

 A mecânica das matrizes é a primeira das ciências não-causais  - disse Ashara, parecendo ter captado no ar ou na minha mente aquela frase técnica terráquea. - A tua própria busca de estrutura,  causa e realidade produz a causa que procuras, mas não é a causa verdadeira... Será que isto faz qualquer sentido para ti?

- Nem por isso - confessei. Tinha sido ensinado a considerar uma matriz como uma máquina, um dispositivo simples e eficaz para ampliar os impulsos psi e a energia eléctrica do cérebro e da mente.

- Mas isso não deixa qualquer espaço para coisas como Sharra... - disse Ashara. - Sharra é uma verdadeira Deusa... Não, não abanes a cabeça. Talvez possas chamar demónio a Sharra, mas ela não é mais demónio do que Aldones é um Deus... São entidades,  mas não deste normal mundo tridimensional em que resides.

A tua mente acharia mais fácil pensar neles como Deuses e Demónios,  e na tua matriz e na de Sharra como talismãs para invocar esses  demónios ou para os banir... São entidades de um outro mundo, e a matriz é o portal que os traz até aqui - prosseguiu. - Tu sabe-lo,  ou soubeste-o em tempos, quando foste capaz de fechar o portal  durante algum tempo. E para uma tal invocação Sharra exige sempre um sacrifício; por isso ficou com a tua mão, e Marjorie cedeu  a sua vida...

- Calai-vos! - supliquei, vacilando.

- Mas existe uma arma melhor para bani-la - disse Ashara.

- Segundo diz a lenda...

Callina sussurrou:

- Sharra foi acorrentada pelo filho de Hastur, o qual era o Filho  de Aldones, o qual era o filho da Luz...

- Disparate! - exclamei ousadamente. - Superstição!

- É o que pensas? - Ashara pareceu reparar que ainda estava a segurar a minha matriz; entregou-ma descuidadamente e envolvia  com dificuldade no envoltório de seda e meti-a no saco de couro que pendurei ao pescoço. - O que sabes da espada das sombras? perguntou.

Também isso era uma lenda; Linnell cantara-a naquela noite, a respeito dos tempos em que Hastur caminhava pelas praias do  lago e amava a Bendita Cassilda. A lenda falava do ciúme de Alar, que caldeara na sua forja mágica uma espada das sombras destinada a banir, e não a matar. Ferido por esta espada, Hastur teve de  regressar aos seus reinos de luz... mas a lenda contava que Camilla, a maldita, tinha ido ocupar o lugar de Cassilda nos braços de Hastur,  recebendo assim a espada das sombras no seu coração e ficando  nestes reinos para todo o sempre...

 Com hesitação, comentei:

 - A matriz de Sharra é alojada no punho de uma espada...

 uma tradição, nada mais, por se tratar de uma arma...

- O que pensas que aconteceria a alguém que fosse chacinado com uma espada como esta? - perguntou Ashara.

Eu não sabia. Nunca me tinha ocorrido que a Espada de Sharra  poderia ser usada como uma espada, apesar de ter carregado com aquela maldita coisa por metade da Galáxia. Era simplesmente o estojo  que a gente das forjas havia fabricado para alojar a matriz de  Sharra. Mas constatei que não iria gostar de pensar no que aconteceria a alguém trespassado por uma espada possuída e dominada  pela matriz de Sharra.

- Portanto começas a compreender - disse ela. - Os teus antepassados conheciam muito a respeito destas espadas. Já ouviste  falar da espada de Aldones?

 Pois, mais outra lenda antiga...

- Acha-se escondida entre as coisas sagradas em Hali - respondi -, coberta por um feitiço para impedir que alguém com sangue  Comyn se aproxime dela, para ser desembainhada apenas quando o fim do Comyn estiver para breve, e o desembainhar dessa espada será o fim do nosso mundo...

- Sim, a lenda mudou - disse Ashara, com algo que num rósto mais sólido, mais humano, poderia ser um sorriso. - Presumo que saibas mais de ciências do que de lendas... Diz-me, o que é a Lei de Cherilly?

 Era a primeira lei da mecânica das matrizes: enunciava que nada  era único no espaço e no tempo à excepção de uma matriz; que cada coisa existente no universo possuía um e apenas um duplicado exacto,  à excepção de uma matriz; que uma matriz era a única coisa que era inteiramente única, pelo que qualquer tentativa para se duplicar uma matriz iria destruí-la e também ao pretenso duplicado.

- A Espada de Aldones é a arma contra Sharra - disse Ashara.

Mas eu conhecia o suficiente a respeito das coisas sagradas existentes  em Hali para saber que, se a espada de Aldones estivesse escondida  lá, era como se estivesse noutra Galáxia; e disse-o.

Há coisas assim em Darkover; não podem ser destruídas, mas são tão perigosas que também não podem ser confiadas ao Comyn ou uma Guardiã. Todo o engenho das grandes mentes das Eras do Caos tinha sido devotado a escondê-las de modo a não fazerem perigar  ninguém.

A rhu fead, a Capela sagrada de Hali - tudo o que restava da Torre de Hali, que fora consumida pelo fogo durante as Eras do Caos - era um desses esconderijos. A Capela propriamente dita era guardada como o Véu em Arilinn; ninguém que não fosse de sangue  Comyn poderá penetrar no Véu. Este acha-se de tal forma carregado  de feitiços e guardado por matrizes e outras armadilhas que se algum estranho, não sendo possuidor de sangue Comyn, se atrevesse  a entrar, a sua mente seria totalmente esbulhada, de tal forma que, ao chegar ao interior, estaria transformado num idiota sem capacidade  para saber ou recordar o motivo da sua vinda.

Contudo, no interior da Capela os Comyn de há um milhar de anos tinham posto tais coisas fora do nosso alcance para todo o sempre. Estão protegidas por um sistema que é o oposto do usado no Véu. Um estranho poderia livremente pegar nelas; só que não poderia de forma alguma penetrar na Capela. E ninguém com sangue  Comyn poderia chegar sequer a tocar nelas sem morrer instantaneamente.

- Todos os tiranos sem escrúpulos, ao longo de um milhar de anos do Comyn, têm-se esforçado por solucionar esse quebra-cabeças  - comentei.

- Mas nenhum deles tinha uma Guardiã do seu lado - disse Ashara.

Callina perguntou:

- Um terráqueo?  - Ninguém que tivesse sido criado em Darkover - explicou Ashara. - Talvez algum estranho que nada soubesse das forças existentes aqui. A mente dele estaria selada contra as forças daqui, ; pelo que não saberia sequer da sua existência. Iria simplesmente ultrapassá-las, guiado pela sua ignorância.

 - Que maravilha! - comentei com sarcasmo. - Tudo o que  terei de fazer é visitar algum planeta situado a trinta ou quarenta  anos-luz daqui e convencer alguém a regressar comigo a este planeta, sem lhe explicar nada para que ignore o que deve recear, e de pois inventar algum modo de o fazer ingressar na Capela sem ficar  transformado num idiota, e esperar que ele me faça um presente da Espada de Aldones depois de lhe pôr a mão em cima!

Os olhos incolores de Ashara lançaram-me um relampejo de desprezo, e repentinamente senti-me envergonhado pelo meu sarcasmo.

- Já visitaste o laboratório de matrizes daqui? Já viste o seu monitor?

Recordei-me subitamente do que esse monitor era: um dos quase lendários transmissores psicocinéticos... instantaneamente, através do espaço, talvez através do tempo...

 - Há centenas de anos que ninguém tenta isso!

 - Eu sei o que Callina é capaz de fazer - disse Ashara, com  o seu estranho sorriso. - E estarei sempre convosco... Levantou-se, estendendo as mãos para nós. Tocou na minha; a mão dela estava fria como a de um cadáver, como a superfície de  uma jóia... A sua voz era quase imperceptível, e por um instante pareceu-me  ameaçadora.

Callina contraiu-se ao ser tocada, e, ainda que o seu rosto mantivesse a impassibilidade de uma Guardiã, tive a sensação de que ela estava a chorar.

- Não!

- Callina! - A voz baixa era suave, inexorável. Lentamente, Callina estendeu as mãos, deixando que as mãos dela lhes tocassem...

A sala desvaneceu-se. Ficámos flutuando num espaço azul, imenso, incomensurável, um vazio indizível como um espaço sem estrelas, grandes abismos de nada. Em Arilinn tinha aprendido a deixar o meu corpo para trás, a penetrar naquele sobremundo de realidade onde o corpo não conta, onde nós existimos apenas como pensamentos criando formas com o nada do universo, mas esta não era nenhuma região do sobremundo que eu conhecesse. Pairei, incorpóreo,  numa névoa entorpecedora. Depois o vazio entre estrelas foi saturado por uma chispa, um relampejo de força, uma torrente de vida, que se transmitiu a mim; podia sentir-me como uma rede de nervos vivos, um rendilhado de força viva. Cerrei com força a mão que me tinha sido amputada, e senti novamente todos os seus nervos e tendões.

Depois, repentinamente, um rosto desenhou-se na minha mente. Não sou capaz de descrever esse rosto, apesar de saber, agora, o que ele era. Vi-o por três vezes, ao todo. Não existem palavras humanas  para o descrever; era belo para além da imaginação, mas era terrível para lá de tudo o que se possa imaginar. Não era sequer malévolo,  não da forma como os homens desta vida entendem a malevolência;  não era suficientemente humano para o ser. Era... odioso.

Ardeu por detrás dos meus olhos durante apenas uma fracção de segundo, mas eu soube que tinha olhado directamente através dos portões do inferno.

Esforcei-me para regressar à realidade. Vi-me de novo na sala azul de gelo de Ashara; teria chegado a sair dela? As mãos de Callina  ainda agarravam a minha, mas Ashara tinha desaparecido.

O trono de vidro estava vazio, e, enquanto olhava para ele, desapareceu  igualmente, dissipando-se na cintilação espelhada da sala.

Teria Ashara chegado a estar ali? Sentia-me aturdido e desorientado,  mas Callina desfaleceu contra mim; amparei-a, e a sensação do seu corpo inerte nos meus braços trouxe-me de volta à realidade.

O toque da sua túnica macia, das pontas dos seus cabelos contra a minha mão, parecia-me tocar nalgum nervo vivo em mim. Apertei-a  contra mim, enterrando o meu rosto no seu ombro. Ela exalava um cheiro quente e doce, com uma fragrância subtil que não era de perfume ou de cosmético, apenas o suave aroma da sua pele, que me entontecia. Queria continuar a ampará-la, mas ela abriu os olhos e recuperou prontamente a consciência. Baixei a cabeça. Não ousava tocar-lhe, e não lhe tocaria contra a sua vontade, mas por um momento  entontecedor desejei-a mais intensamente do que já desejara alguma mulher. Seria apenas por ela ser uma Guardiã, sendo-me portanto proibida? Endireitei-me de novo, frio e dorido, com o meu rosto gelado na zona que estivera encostada ao peito de Callina, mas já recuperara o controlo. Ela parecia alheada, ignorando a torrente  de sentimentos que me assolava. Claro, ela era uma Guardiã, tinha aprendido a ultrapassar tudo isto, a ser imune à paixão...

- Callina - disse-lhe -, prima, perdoa-me...

O mais leve vestígio de um sorriso iluminou-lhe o rosto.

- Não tem importância, Lew. Quem me dera... - deixou o resto por dizer, mas compreendi que ela não estava tão isolada do meu próprio tormento como me parecera.

- Não sou mais do que humana - disse ela, e de novo o leve toque de pluma no meu pulso, o toque de uma Guardiã, deu-me outro  alento. Era como uma promessa, mas separámo-nos, sabendo que iria sempre existir uma barreira entre nós.

- Onde está Ashara? - perguntei.

Uma vez mais um ligeiro sorriso inquieto subiu-lhe ao rosto.

- É melhor que não me perguntes - murmurou. - Nunca irias acreditar na resposta.

Franzi a testa, e senti-me de novo perturbado pela estranha parecença,  a imobilidade de Ashara no rosto calmo de Callina. Não podia deixar de conjecturar sobre a existência de um elo entre as Guardiãs. Abruptamente, Callina encaminhou-se para alguma porta invisível, e vi-me com ela no exterior, num patamar de pedra, sólido,  e perguntei a mim mesmo se a sala azul de gelo existira alguma vez, ou se tudo aquilo tinha sido apenas um sonho bizarro.

Um sonho, pois ali estivera eu, incólume e com as duas mãos. Alguma coisa acontecera. Mas eu não sabia o que poderia ter sido.

Regressámos à Torre por outro caminho, e Callina guiou-me através da câmara de relês até à sala cheia de estranhos e misteriosos artefactos das Eras do Caos. Estava calor ali; despi a capa e deixei que o calor permeasse o meu corpo enregelado e o braço que me doía, enquanto Callina se atarefava silenciosamente pelo laboratório,  ajustando amortecedores especialmente modulados, até que finalmente apontou para o amplo e tremeluzente painel de vidro, cujas profundezas me fizeram pensar na sala azul-gelo de Ashara.

Fiquei a olhar, estupefacto, para aquelas nebulosas profundezas. Feitiçaria?

 Leis desconhecidas, ciências não-causais? Confundiram-se e tornaram-se uma só. O dom que eu carregara no meu sangue, o elemento  bizarro na minha linhagem que me tornara Comyn, telepata,  laranzu, técnico de matrizes... eu tinha sido criado e treinado para coisas como esta; para que haveria de receá-las? Contudo tinha  medo, e Callina sabia-o.

Tinha sido treinado em Arilinn, a mais antiga e poderosa das Torres, e ouvira alguma coisa - não muito - a respeito de ecrãs como este. Era um duplicador... transmitia o padrão que se pretendesse; capturava imagens e as realidades por detrás delas... Não, é impossível explicar, eu não sabia - e continuo a não saber - o suficiente a respeito dos ecrãs, incluindo a forma como eles funcionavam,  mas supunha que Callina saberia, e que eu estava ali apenas para reforçá-la com o poder do Dom de Alton, para lhe transmitir poder, como - o pensamento pôs gelo a correr-me pelas veias como eu transmitira poder para o despertar de Sharra. Bem, parecia-me  justo: poder por poder, ressarcimento por traição. Tinha permitido  que Kadarin me usasse para o despertar de Sharra sem conhecer o suficiente a respeito dos perigos, e aqui estava eu a repetir o mesmo erro. A diferença era que confiava em Callina. Mas até isso me assustava: houvera um tempo em que também tinha confiado em Kadarin,  em que lhe chamara amigo, irmão juramentado, bredu.

Interrompi os meus pensamentos. Tinha de confiar em Callina; não havia outra alternativa. Fui colocar-me diante do ecrã.

Reforçado pelo ecrã eu podia procurar, com forças telepáticas ampliadas cem vezes, mil vezes, aquilo que pretendêssemos. De entre todos os milhões e biliões de mundos no espaço e no tempo, haveria algures uma mente com as características de que precisássemos,  com uma dada intuição... e uma dada falta de intuição. Graças ao  ecrã poderíamos sintonizar as vibrações dessa mente com este específico  lugar no espaço e no tempo, aqui, agora, entre os dois pólos do ecrã. Com o espaço aniquilado pela matriz, poderíamos transferir  os - bem, chamemos-lhes energons, um nome tão apropriado como qualquer outro - transferir os energons dessa determinada mente e do respectivo corpo, e trazê-los para aqui. A minha mente formava palavras como transmissor de matéria, hiperespaço, viagem dimensional; mas estas eram meras palavras. A realidade era o ecrã.

Deixei-me cair numa das cadeiras situadas diante do ecrã, ajustando  um calibrador que me permitiria sincronizar ressonâncias entre mim e Callina, ou, mais precisamente, entre a sua matriz e a  minha. Sem levantar o olhar, disse:

- Vais ter de desligar o ecrã monitor, Callina.

Ela concordou com um aceno.

- Existe um relê secundário através de Arilinn. - Tocou nos  comandos, e a superfície do monitor, um ecrã de vidro, grande, mas com metade do tamanho do ecrã gigante à minha frente, piscou aos arrancos e depois escureceu, desviando deste relê todas as matrizes monitorizadas existentes em Darkover. Uma grelha crepitou, emitindo um sinal diminuto mas nítido; Callina escutou atentamente  algum som que eu não conseguia ouvir; a mensagem era inaudível,  e eu estava demasiado preocupado para penetrar nos relês. Callina : escutou durante um momento, e depois falou, em voz alta, talvez  em atenção a mim, ou talvez para concentrar os seus próprios pensamentos para o relê.

- Sim, eu sei, Maruca, mas cortámos os circuitos principais  aqui em Thendara; vais ter de monitorizar daí. - De novo uma pausa silenciosa para escutar, e depois comandou: - Levanta uma barreira de terceiro nível em volta de Thendara! É uma ordem directa do Comyn! Observa e executa! - Voltou-se para mim, suspirando.

- Aquela rapariga é a telepata mais barulhenta do planeta! Agora toda a gente com um pouco de telepatia em Darkover saberá  que alguma coisa está a acontecer esta noite em Thendara!

Não tínhamos tido qualquer alternativa, e disse-lho. Ela foi ocupar o seu lugar diante do ecrã, e eu esvaziei a mente, preparando-me  para qualquer coisa que ela quisesse de mim. Que tipo de alienígena nos conviria mais? Contudo, sem volição própria, pelo menos da minha parte, um padrão começou a formar-se no ecrã.

Vi os símbolos indistintos no instante antes do meu nervo óptico sofrer uma sobrecarga que me fez perder a consciência; depois dei por mim cego e surdo por aquele instante de sobrecarga que é sempre  aterrorizador, por mais que nos habituemos.

Gradualmente, privado dos sentidos externos, encontrei a orientação  dentro do ecrã. A minha mente, abarcando distâncias astronómicas,  atravessou em fracções de segundo galáxias inteiras e partes de espaçotempo subjectivo. Vagos toques de consciência, fragmentos de pensamentos, emoções que flutuavam como sombras... destroços do universo mental.

Então, antes de ter sentido contacto, vi um fulgor rubro-branco no ecrã. Algures uma outra mente havia-se ajustado ao padrão que tínhamos lançado como a uma rede, e ao encontrarmos a inteligência  que se lhe adaptava ela ficou logo capturada.

Projectei-me, incorpóreo, dividido num bilhão de fragmentos subjectivos, estendido por um vasto golfo de espaçotempo. Se alguma  coisa acontecesse agora, eu nunca regressaria ao meu corpo, ficando a flutuar para sempre na curva do espaçotempo.

Com infinita cautela verti-me para a mente alienígena. Houve uma disputa curta mas terrível. A outra mente ficou embebida, enlaçada,  na minha. O mundo era um holocausto de fogo da cor do vidro derretido. O ar contorcia-se. O fulgor no ecrã era uma sombra,  e depois um sólido, e depois uma escuridão que se dissipava...

- Agora! - Eu nada disse, apenas atirei o comando a Callina; depois uma luz despedaçou-me os olhos, senti um choque dilacerante  rasgar-me o cérebro, o pavimento pareceu oscilar, e Callina foi arremessada, cambaleante, para os meus braços enquanto os energons  cauterizavam o ar e o meu cérebro.

Semi-atordoado, semiconsciente, vi que o ecrã estava vazio, e a mente alienígena tinha-se libertado da minha.

E numa pilha desordenada no chão, onde caíra junto à base do ecrã, jazia uma mulher franzina e de cabelos escuros.

Constatei, passado um momento, que ainda estava a amparar Callina nos meus braços; soltei-a no preciso instante em que ela se moveu para se libertar de mim. Foi ajoelhar-se junto da estranha mulher, e eu segui-a.

- Ela não está morta?

- Claro que não. - Com os instintos das pessoas treinadas em Arilinn, Callina estava já a tomar-lhe o pulso, ainda que o dela continuasse  fraco e irregular. - Mas aquela... transição... quase nos matou, e nós sabíamos o que poderíamos esperar. Podes calcular como isto lhe terá custado a ela?

Suaves cabelos castanhos, caindo-lhe sobre o rosto, escondiam as feições da mulher, afastei-os com cuidado, e imobilizei-me, com a mão ainda a tocar-lhe a face, espantado.

- Linnell... - sussurrei.

- Não - interveio Callina. - Ela está a dormir no seu quarto... - Mas a voz fraquejou-lhe ao olhar para a rapariga. Reconheci-a  então: era a jovem enfermeira que eu tinha visto naquela terrível noite no hospital terráqueo em Vainwal. Apesar de saber, como eu sabia,  o que tinha acontecido, receei que a minha mente fraquejasse.

Aquela transição tinha-me também custado muito, e tive de fazer um esforço para acalmar a minha pulsação e o ritmo da respiração.

- Misericordiosa Avarra - murmurou Callina. - O que fizemos  nós?

Evidentemente! pensei. Evidentemente! Linnell era parente próxima  de nós dois: irmã, irmã adoptiva. Tínhamos falado com ela nessa mesma noite. O padrão estava à mão. Contudo, eu continuava  sem perceber: porquê Linnell? Porque não me teria duplicado a mim próprio, ou Callina?

Tentei pôr a explicação em palavras simples, mais para meu próprio benefício do que por intenção de Callina.

- É a Lei de Cherilly. Tudo o que existe no universo - tu, eu, aquela cadeira, o fontanário no espaçoporto de Port Chicago - tudo o que existe tem um, e apenas um, duplicado exacto. Nada é único excepto uma matriz; até os átomos possuem diferenças diminutas na órbita dos seus electrões... Há equações destinadas a calcular o número de variações possíveis, mas não possuo conhecimentos de matemática suficientes para calculá-las. Jeff talvez fosse capaz de tas recitar todas.

- Portanto esta é... a gémea idêntica de Linnell...

- Mais do que idêntica: apenas uma vez num milhão, aproximadamente,  acontece um gémeo ser o duplicado de outro, de acordo com a Lei de Cherilly. Esta é a gémea verdadeira de Linnell: as mesmas  impressões digitais, os mesmos padrões das retinas e das ondas cerebrais, o mesmo tipo sanguíneo. Não será provavelmente igual a Linnell no que se refere à personalidade, porque os duplicados do ambiente de Linnell estão distribuídos por toda a Galáxia. - Apontei  para a pequena cicatriz no queixo da rapariga; voltei para cima o seu pulso flácido revelando a marca do Comyn embebida na carne.

- Talvez seja um sinal congénito - disse -, mas é igual ao Selo de Linnell, estás a ver? A carne e o sangue são idênticos; o mesmo tipo sanguíneo, e até os cromossomas. Se os monitorizasses em profundidade,  verias que são idênticos aos de Linnell.

Callina não se cansava de observá-la.

- Nesse caso ela poderá viver... neste ambiente que lhe é estranho?

- Desde que seja idêntica - respondi. - Os seus pulmões respiram  a mesma proporção que os nossos do oxigénio presente no ar, e os seus órgãos internos estão ajustados para a mesma gravidade.

- Podes pegar-lhe ao colo? - perguntou Callina. - Apanhará  um choque terrível se recuperar os sentidos neste lugar.

Sorri sem vontade de rir.

- Não se livrará dele, de qualquer forma. - Mas consegui pegar  nela só com uma mão; era frágil e leve, como Linnell. Callina seguiu  à minha frente, afastando cortinas, e indicou-me onde poderia depositá-la, num canapé numa pequena sala despida de decoração, talvez reservada para que os trabalhadores nos relês pudessem uma vez por outra repousar aqui, em vez de terem de regressar aos seus alojamentos. Tapei-a, pois a sala estava fria.

- De onde virá ela? - murmurou Callina.

- De algum mundo com uma gravidade equivalente à de Darkover,  o que reduz ligeiramente as opções - respondi, não desejando  ser mais específico. Não conseguia recordar-me do nome da enfermeira, alguma sílabas terráqueas de difícil enunciação. Não sabia  se ela iria reconhecer-me. Ia ter de explicar tudo a Callina, mas o rosto dela estava vincado pela exaustão, fazendo-a parecer doentia,  com o dobro da sua idade.

- Deixemo-la dormir para aliviar o choque. Também nós estamos  necessitados de descanso.

Descemos até ao piso térreo da Torre. Callina parou à porta comigo, com as suas mãos levemente apoiadas na minha. Parecia fatigada, macilenta, mas encantadora para mim após o perigo partilhado,  a intimidade provocada pelo trabalho das matrizes, uma proximidade maior do que a da família, maior do que a dos amantes...

 Inclinei-me para beijá-la, mas ela voltou a cabeça, pelo que o meu beijo foi pousar numa madeixa de cabelo fino, macio, odoroso. Baixei a cabeça e não insisti. Ela tinha razão. Teria sido um disparate; estávamos ambos exaustos. Murmurou, como se concluindo uma frase que eu tivesse iniciado:

- ... e tenho de ir ver se Linnell se encontra bem...

 

A manhã do Festival surgiu avermelhada e brumosa. Regis Hastur, agitado, viu o Sol nascer e disse ao seu criado pessoal para tratar de enviar flores à sua irmã Javanne.

Também devia mandar prendas às mães dos meus filhos... Ser-lhe-ia  muito simples tratar de lhes enviar cestos de frutos e flores, mas sentia-se profundamente deprimido e, paradoxalmente, solitário.

Não há qualquer razão para que me sinta solitário. O meu avô teria muito prazer em negociar um casamento para mim, e eu poderia  escolher para esposa qualquer mulher de Thendara, e ter muitas  concubinas como um habitante das Vilas Secas, e ninguém me criticaria, nem mesmo se eu escolhesse ao mesmo tempo um favorito  ou dois.

Parece-me, quando penso no assunto, que estou sozinho unicamente  porque prefiro estar sozinho, sem ser responsável por ninguém...

... excepto por toda a maldita população dos Domínios! Não posso ter vida própria... e não quero casar-me apenas para que me aceitem tal como sou!

Havia só uma pessoa em Thendara, reflectiu Regis, a quem realmente  desejaria enviar uma prenda, e, devido aos costumes, não podia  fazê-lo. Não iria degradar o que existia entre Danilo e ele com a presunção de se tratar de uma ligação convencional. Deixou-se ficar sentado à sua janela alta, olhando a cidade, reflectindo sobre o modo como a sessão do Conselho tinha acabado no dia anterior, assustado por ter feito o que fizera ao exibir o Vulto de Fogo perante todos eles. Sem saber como, sem se ter treinado mais do que o estritamente necessário para poder usar o seu laran sem cair doente, adquirira um novo Dom que não sabia possuir, como também não  sabia o que fazer com ele. Pouco conhecia sobre o Dom de Hastur, e suspeitava de que o seu avô não soubesse muito mais do que ele.

Se, ao menos, Kennard ainda estivesse vivo, poderia ir procurar o amável parente que ele aprendera a tratar por “Tio” e expor-lhe as suas incertezas. Kennard tinha passado anos em Arilinn e sabia tudo o que havia a saber sobre os poderes do Comyn. Mas Kennard já tinha falecido, debaixo de um Sol distante e estranho, e Lew parecia  conhecer pouco mais do que ele próprio. Além disso, Lew tinha os seus problemas pessoais.

Nesse momento foi chamado para o pequeno-almoço com o avô. Por um instante pensou em mandar recado de que não tinha fome - havia exposto a sua opinião ao avô, e não estava disposto a fazer cedências - mas depois recordou-se de que, apesar de tudo, estava-se em pleno Festival, e durante esse dia os parentes deviam pôr de lado as suas querelas. De qualquer modo, teria de enfrentar o seu avô no grande baile nessa noite; talvez fosse melhor encontrar-se  previamente com ele.

Danvan Hastur acolheu o seu neto com uma vénia e em seguida abraçou-o, e Regis, quando foi tomar o seu lugar à mesa bem carregada,  reparou que o avô tinha mandado vir todos os seus acepipes favoritos. Supunha que isto era o mais parecido com um pedido de desculpas que alguma vez iria receber do idoso senhor. Havia café da Zona Terráquea, que era por si só um grande luxo, e vários tipos de bolos e fruta, além da mais tradicional ementa de papas de aveia e pães de frutos secos. Enquanto se servia, Danvan Hastur anunciou:

- Mandei entregar um cesto de fruta e doces a Javanne, em teu nome.

 - Talvez devesses ter confiado em que não me iria esquecer, sir - disse Regis, sorridente -, mas com toda aquela caterva de mildagem os doces não irão certamente estragar-se.

 Mas ao pensar na irmã veio-lhe à memória o estranho poder que  ele, sem saber como, adquirira sobre a matriz de Javanne quando tinha sido endemoninhada por Sharra... Não compreendia, e não havia ninguém a quem pudesse perguntar. Deveria ir exigir a audiência  com Ashara que Callina lhe tinha negado? A matriz de Lew estava ensombrada por Sharra; talvez eu pudesse ter também poder sobre ela...

Mas receava tentar para depois fracassar. E então recordou-se de que havia outra matriz, e uma que estava ao seu alcance, que tinha sido ensombrada por Sharra, se bem que a maior distância do que a de Lew, o qual tinha estado no próprio coração das chamas de Sharra. Rafe Scott continuava refugiado na Zona Terráquea, e Regis não podia criticá-lo por isso. Mas saberia Rafe que Beltran estava de volta,  ameaçando-os a todos? Sim, iria fazer uma visita a Rafe ainda naquela  manhã.

Recusou uma nova chávena de café. Apesar de estar grato pelo gesto do seu avô, a verdade era que não apreciava muito o café. Empurrou  a sua cadeira para trás, enquanto um servo anunciava:

- Lorde Danilo, Guardião de Ardais.

Hastur cumprimentou Danilo com afável cortesia, e convidou-o  a sentar-se à mesa. Regis percebeu que o avô estava a realçar um ponto concedido. Mas Danilo, fazendo uma vénia a ambos, disse:

- Venho aqui com uma mensagem de Lorde Ardais, sir. Beltran de Aldaran trouxe a sua guarda de honra para dentro dos muros da cidade e convida-vos a testemunhar a sua formal rendição das armas terráqueas nas mãos da sua esposa prometida, Lady Aillard.

- Envia um mensageiro para lhe dizer que lá estarei dentro de alguns momentos - disse Hastur, levantando-se da cadeira. - Regis,  acompanhas-me?

- Por favor dispensa-me, avô, tenho uma incumbência a cumprir  noutro local - respondeu Regis, e o avô, apesar de não parecer  agradado, não lhe fez qualquer pergunta.

- Deixo-vos sozinhos, então - disse, e saiu. Regis descobriu que o apetite tinha regressado; verteu numa chávena o café que tinha  recusado, encheu outra chávena para Danilo, e passou-lhe a bandeja de bolos de mel. Danilo serviu-se de um e disse, bebericando o café com curiosidade.

- Isto é um luxo dos Terráqueos, não é? Se Lorde Dyan fizer o que pretende fazer, não haverá mais disto aqui...

- Posso bem passar sem isso - disse Regis. Pegou numa mão-cheia  de frutos caramelizados e ofereceu-os silenciosamente a Danilo; este, aceitando os doces, sorriu-lhe e disse:

- Pois, e eu também não tenho nenhuma prenda do Festival para ti. Não me chamo Dyan para dar presentes aos seus favoritos como eu faria com a minha irmã se tivesse alguma.

Não há necessidade de darmos presentes um ao outro... Mesmo assim, era um sinal que eu gostava de poder transmitir...

Em voz alta, interrompendo um momento de intimidade que era mais intenso do que qualquer carícia física, Regis disse:

- Preciso de ir à Zona Terráquea, Dani; tenho de ir ver se o capitão Scott está conhecedor do que se passa...

- Irei contigo, se desejares - ofereceu Danilo.

- Agradeço, mas não há necessidade de fazeres zangar o teu pai adoptivo - respondeu Regis -, e se agires contra a sua vontade  ele tomará isso como uma provocação. Mantém a paz, Dani; já existem demasiadas disputas no interior do Comyn, não precisamos de mais. - Pôs de parte o seu bolo de mel, perdendo repentinamente o apetite uma vez mais.

- O meu avô vai ficar zangado por eu não estar presente para testemunhar a entrega das armas terráqueas pelos homens de Aldaran. Mas Beltran nunca simpatizará comigo, faça eu o que fizer, e prefiro não assistir a esta... - Tentou encontrar a palavra justa, considerou e rejeitou “farsa”, e limitou-se a encolher os ombros. Dyan poderá confiar em Beltran, mas eu não confio - acrescentou, e afastou-se.

Pouco tempo depois Regis disse o seu nome e o propósito da visita ao guarda da Força Espacial, no seu uniforme negro de cabedal,  de serviço à entrada da Zona Terráquea. O homem fitou-o intrigado,  como bem podia estar, pois via ali à sua frente um dos Hasturs mais poderosos com uma simples escolta constituída por um único Guarda! Usou o seu comunicador, e passado um momento  disse:

- O Legado receber-vos-á no seu gabinete, Lorde Hastur.

Regis não era Lorde Hastur; esse era o título do seu avô, mas não se poderia esperar que um elemento da Força Espacial fosse versado  em cortesia e protocolo. Lawton, no gabinete do Legado, levantando-se  para o cumprimentar, dirigiu-se-lhe adequadamente usando o seu título correcto, e disse-o até com a pronúncia apropriada,  o que não era muito fácil para um terráqueo. Na verdade, Lawton era meio-darkoveriano.

- Honrais-me, Lorde Regis - disse Lawton -, mas não esperava  ver-vos aqui. Tenciono estar presente no baile desta noite no Castelo Comyn, pois o Regente enviou-me um convite formal.

- Vim para falar com Rafe Scott - explicou Regis -, mas não queria fazê-lo sem o vosso conhecimento e ser acusado de espionagem,  ou de coisa pior.

Lawton não reagiu.

- Preferireis recebê-lo aqui? Ou nos aposentos dele?

- Nos seus aposentos, creio.

- Enviarei alguém para vos indicar o caminho - disse Lawton. - Mas, primeiramente, uma pergunta: Conhecereis de vista o homem a que chamam Kadarin?

- Creio que o reconheceria, se o visse. - Regis recordava-se da imagem que tinha visto na mente de Lew, no dia em que a casa citadina dos Altons fora incendiada.

- Que possibilidades teríamos de encontrá-lo, se enviássemos a Força Espacial à Cidade Velha? Haverá lá alguém interessado em tentar escondê-lo da justiça?

- Ele é também procurado pela Guarda de lá - respondeu Regis. - É quase certo que ele foi responsável por um incêndio com explosão usando explosivos contrabandeados... - Descreveu resumidamente  a Lawton aquilo que tinha testemunhado.

- A Força Espacial talvez pudesse encontrá-lo mais rapidamente  do que os vossos Guardas... - sugeriu o Legado Terráqueo.

Regis abanou a cabeça.

- Decerto que poderiam - disse -, mas, podeis crer, eu não vos aconselharia a enviá-la para lá.

- Deveria haver um tratado para que pelo menos pudéssemos localizar um criminoso procurado pela justiça - disse Lawton com expressão severa. - Como as coisas estão agora, assim que ele põe os pés na Cidade Velha fica fora do alcance dos nossos homens... tal como ficará igualmente livre dos vossos Guardas se por acaso regressar  sub-repticiamente à Cidade Comercial. Gostaria de saber por que razão não podemos ter ao menos esse tipo de cooperação.

Também eu gostaria, sir. Se fosse eu a mandar, poderias contar com ela. Mas não sou eu quem manda, e o meu avô não pensa do mesmo modo. Regis reparou subitamente que se envergonhava das opiniões do seu avô. Ao longo dos últimos anos tinha havido por muitas vezes uma certa cooperação com os Terráqueos, mais especialmente  após a epidemia, quando a divisão médica terráquea tinha  enviado um especialista para os ajudar. Mas agora Kennard, que dera início a esse tipo de cooperação, estava morto, e parecia que aquela aliança informal estava a deteriorar-se. Regis lamentava que Lawton não tivesse o laran suficiente para não precisar de lhe explicar tudo isto através do instrumento da palavra, vagaroso e desajeitado.

Com hesitação, disse:

- Não é boa esta altura para se falar disso, Mr. Lawton. Iria exigir uma série de negociações. Lidaremos com Kadarin se o encontrarmos,  e suponho que fareis o mesmo se ele for apanhado aqui.

Mas esta não é uma altura propícia para se pensar numa cooperação  formal entre a Guarda e a Força Espacial. O importante é que aquele fulano Kadarin seja apanhado e neutralizado, qualquer que seja a jurisdição que o faça.

Lawton bateu na mesa com um punho furioso.

- E enquanto falamos sobre isso ele ri-se de nós ambos... exclamou. - Ainda há poucos dias o orfanato da Cidade Comercial foi assaltado, e um dos dormitórios foi invadido. Nenhuma criança foi agredida, e ninguém foi raptado, mas as crianças desse dormitório  sofreram um susto terrível. Descreveram o assaltante à Força Espacial,  e é provável que tenha sido Kadarin. Não sabemos o que ele estava a fazer aqui, e conseguiu escapar de novo Talvez esteja escondido  na Cidade Velha. E ouvi dizer que Beltran de Aldaran trouxe um exército para Thendara...

Isso era um assunto do Comyn; Regis não estava disposto a discuti-lo  com um terráqueo, por mais amistoso que este fosse. Com alguma rigidez, disse:

- Neste preciso momento, sir, Lorde Aldaran está fazendo um solene juramento de respeitar o Convénio, fazendo entrega de todas as suas armas terráqueas. Sei que o velho Kermiac de Aldaran era um aliado dos Terráqueos, mas creio que Beltran não pensa do mesmo modo.

- Mas foi Beltran, e não Kermiac, quem incendiou o espaçoporto  em Caer Donn e meia cidade ao mesmo tempo - disse Lawton.

 - Como poderemos ter a certeza de que Beltran não trouxe os seus homens até aqui para se juntar a Kadarin e tentar algum truque no espaçoporto de Thendara? Afirmo-vos que temos de encontrar Kadarin  antes que ele se descontrole outra vez. Talvez não saibais que o Império tem autoridade soberana sobre todas as suas colónias quando  existe alguma ameaça a um dos seus espaçoportos; estes não se encontram  de forma alguma sujeitos à autoridade local, mas sim sob a autoridade interplanetária do Senado. O vosso povo não tem qualquer  representação no Senado, mas sois uma colónia terráquea e eu disponho da autoridade necessária para enviar a Força Espacial... Isto parece o que Lerrys estava a dizer.

- Se pretendeis manter boas relações com o Conselho Comyn, não vos aconselho a que o façais. A Força Espacial aquartelada na Cidade Velha seria considerada como...

Como um acto de guerra. Darkover, com espadas e a sua Guarda,  combatendo a majestade interplanetária do Império?

- Porque pensais que vos digo isto? - perguntou Lawton, com um toque de impaciência, e Regis pensou se o homem teria lido os seus pensamentos. - Precisamos de encontrar Kadarin! Poderíamos  deter Beltran e submetê-lo a interrogatório. Tenho a autoridade necessária para encher toda a vossa desditosa cidade com os Serviços Secretos terráqueos e a Força Espacial de molde a que Kadarin passe  a representar tanto perigo como um fósforo aceso num glaciar! Parecia irado. - Preciso da vossa cooperação para que não tenha de fazer precisamente isso; uma das minhas tarefas é impedir que suceda a Thendara o que sucedeu a Caer Donn!

- O acordo nos termos do qual vós tendes de respeitar o governo  local...

- Mas se o governo local estivesse a dar guarida a um criminoso  de alto perigo teria de me sobrepor ao vosso precioso Conselho!

 Não compreendeis? Este é um planeta do Império! Já vos demos muita folga; a política do Império é permitir que os governos locais conservem a sua autoridade, desde que não provoquem danos aos assuntos interplanetários. Mas, entre outras coisas, sou responsável pela segurança do espaçoporto!

Enfurecido, Regis exclamou:

- Estais a acusar-nos de darmos abrigo a Kadarin? Também nós temos a cabeça dele a prémio.

- Mas tende-vos demonstrado notavelmente ineficazes para que ele seja localizado - comentou Lawton. - Encontro-me também  sob pressão, Lorde Regis. Estou a tentar resistir aos meus superiores,  que não conseguem compreender por que razão sou tão paciente com o vosso Conselho com Kadarin à solta, e ... - hesitou  - ... e Sharra. Portanto também sabes o que as chamas de Sharra podem fazer... Lawton parecia zangado.

- Estou a fazer o melhor que posso, Lorde Regis, mas encostaram-me  à parede. Estou sujeito à mesma pressão que vós. Se desejardes  ficar do nosso lado, encontrai Kadarin e entregai-o a nós.

De outro modo... não terei alternativa. Se me recusar a tratar do assunto  serei simplesmente substituído, e alguém se encarregará de fazê-lo,  alguém sem o mesmo interesse que eu em manter este mundo em paz. - Lançou um longo suspiro. - Desculpai-me, não foi minha intenção sugerir que a culpa fosse vossa, ou sequer que podereis fazer  alguma coisa. Mas, se tiverdes alguma influência junto de qualquer  membro do Conselho, será melhor que lhe faleis no assunto.

Vou mandar alguém indicar-vos o caminho até aos aposentos do capitão  Scott.

A voz de Rafe disse um descuidado “Entre!” quando Regis lhe bateu à porta; quando entrou, Rafe deu um salto da cadeira.

- Regis! Perdão: Lorde Hastur...

- “Regis” é suficiente, Rafe - disse Regis. Eles tinham crescido  juntos. - E não me venhas com aquele discursozinho formal sobre a razão que me leva a honrar a tua casa... - Um sorriso iluminou  o rosto de Rafe, que fez um gesto para que Regis se sentasse.

Regis sentou-se, olhando curiosamente à sua volta; nas suas muitas visitas à Zona Terráquea nunca tinha estado numa residência privada,  apenas em locais públicos. O mobiliário parecia-lhe grosseiro, mal fabricado e mal concebido, desconfortável. Evidentemente, este era o alojamento de um homem solteiro, sem criados nem muitos bens pessoais de carácter permanente.

- Posso oferecer-te uma bebida, Regis? Vinho? Sumo de fruta?

- É demasiado cedo para vinho - respondeu Regis, mas constatou  que aquela longa conversa com o Legado o deixara com sede.

Rafe dirigiu-se a uma consola, tocou em vários comandos; uma taça feita de algum material artificial, liso e branco, materializou-se e um fluxo de líquido amarelo pálido encheu-a prontamente. Rafe entregou  a taça a Regis, produziu e encheu outra para ele próprio, e em seguida foi sentar-se também.

Tirando pequenos sorvos do líquido fresco e acídico, Regis disse:

- Vi o que aconteceu à tua matriz. Descobri... - Repentinamente  percebeu que não fazia a menor ideia de como iria dizer isto.

- Descobri... quase por acidente... que possuo um certo... um certo poder sobre... não sobre Sharra, apenas sobre... matrizes que tenham sido... contaminadas... por Sharra. Permites-me que experimente  com a tua?

Rafe fez uma cara de desagrado.

- Vim para aqui para poder esquecer-me de tudo isso - disse.

 - Parece-me estranho ouvir falar de matrizes aqui. - Fez um gesto abrangendo a sala de plástico meio-desguarnecida.

- Talvez não te encontres aqui tão seguro como pensas - avisou  Regis com sobriedade. - Kadarin foi visto na Zona Terráquea.

- Onde? - quis saber Rafe. Quando Regis lho disse, reclinou-se  na cadeira, lívido como a morte. - Sei o que ele queria. Tenho de falar com Lew... - e perdeu a fala. Levou a mão à matriz que trazia pendurada ao pescoço, e desembrulhou-a. Segurou-a em silêncio  na palma da mão. Regis olhou fixamente para ela e viu que começava a chamejar e rebrilhar com aquela assustadora evocação, o Vulto de Fogo na mente de ambos, a exalação e o terror de uma cidade em chamas...

Tentou reavivar a memória do que tinha feito com a matriz de Javanne, e viu-se, após uma breve disputa, a transformar lentamente o Vulto de Fogo numa sombra, um farrapo, nada...

A matriz ficou a fitá-los, azul e inocente. Rafe respirou ruidosamente,  com a cor regressando pouco a pouco ao rosto.

- Como fizeste aquilo? - quis saber.

Era uma excelente pergunta, pensou Regis com indiferença. Pena era que não tivesse uma resposta do mesmo modo excelente.

- Não sei. Talvez tenha alguma coisa a ver com o Dom de Hastur...  seja ele o que for. Sugiro que experimentes aplicá-lo.

Rafe parecia assustado.

 - Não tenho conseguido sequer tentar... desde que... - mas  segurou o cristal entre as mãos. Passado um momento um globo de  luz fria surgiu a pairar por cima das suas mãos entrelaçadas, flutuou  lentamente pela sala, desvaneceu-se. Rafe suspirou de novo. - Parece estar... liberta...

 Talvez eu possa agora encarar Lew e repetir isto...

Os olhos de Rafe ampliaram-se, fixados em Regis. Sussurrou:

- Filho de Hastur... - e fez uma vénia, um gesto arcaico, inclinando-se quase até ao chão.

Impaciente, Regis ripostou:

- Deixa-te disso! O que é que sabes a respeito de Kadarin?

- Não poderei dizer-te agora. - Rafe parecia estar indeciso entre aquela arcaica reverência e uma exasperação perfeitamente vulgar. - Juro que não posso; é uma coisa que tenho de dizer primeiro a Lew. Não seria... honroso nem correcto. Quereis ordenar-me que vos diga, Lorde Hastur?

- Claro que não - respondeu Regis com uma expressão sombria -, mas gostaria que me dissesses do que estarás a falar.

- Não posso. Tenho de ir... - Calou-se e suspirou. Depois  disse: - Beltran está na cidade. Não quero dar de caras com ele. Poderei ir ao Castelo Comyn? Prometo que te explicarei tudo então. Trata-se de... de uma questão de família. Podes pedir a Lew Alton que me receba nos seus aposentos no Castelo? Talvez ele não esteja disposto a encontrar-se comigo... Eu fazia parte daquilo... parte da rebelião de Sharra. Mas era também amigo do irmão dele. Pede-lhe, em memória de Marius, que me receba.

- Pedir-lho-ei - respondeu Regis, mas sentia-se mais intrigado  do que nunca.

Quando deixou a Zona Terráquea, o Guarda que seguia atrás dele pôs-se acanhadamente ao seu lado e disse:

- Permitis que vos faça uma pergunta, Lorde Regis?

- Pergunta - disse Regis, incomodado pela deferência arcaica. Fui um cadete às ordens deste homem, que era um oficial experiente  enquanto eu ainda mal sabia o que andava a fazer! Por que razão terá ele de pedir permissão para me falar?

- Sir, o que se passa na cidade? Todos os Guardas foram convocados  para uma cerimónia qualquer...

Repentinamente, Regis recordou-se: a sua missão na Zona Terráquea  tinha-o levado para longe, quando este dia poderia vir a ser apontado como um dos mais importantes na história dos Domínios.

O Sétimo Domínio de Aldaran estava prestes a ser reintegrado no Comyn com todo o cerimonial, e como penhor disso ia jurar respeito  ao Convénio... Ele devia ter estado presente. Não que acreditasse que Beltran respeitaria qualquer juramento por mais tempo do que lhe conviesse!

- Vamos à muralha da cidade - disse ele -, pelo menos veremos  dali uma parte da cerimónia.

- Obrigado, meu lorde - agradeceu o Guarda com deferência.

Havia escadas no interior da muralha da cidade, e por elas puderam  subir ao topo da ampla muralha, cruzando-se com guardas postados a intervalos fazendo a continência a Regis à sua passagem.

Regis podia ver, espalhados abaixo deles, os homens da chamada Guarda de Honra de Aldaran. Devem ser centenas deles, pensou Regis, é verdadeiramente um exército, capaz de tomar de assalto os muros de Thendara. Vê-se bem que ele não confia na nossa boa vontade.

Num pequeno grupo reunido à frente dos homens Regis podia ver Beltran acompanhado por diversas figuras envoltas em coloridas capas, os lordes Comyn vindos para assistir à cerimónia. Sem reparar  que o fazia, Regis apurou a sua visão com o laran, e subitamente era como se estivesse a poucos metros do seu avô, magro e muito direito no cerimonial manto azul e prata dos Hasturs. Edric de Serrais  encontrava-se também lá, e Lorde Dyan de Ardais, e o príncipe  Derik, e Merryl. Danilo estava ao lado de Dyan, ambos trajando idênticas vestes cerimoniais de Ardais, e Merryl, nas roupas cinzentas  e carmesim dos Aillards, fazia companhia a Callina, que estava ligeiramente afastada dos restantes, embrulhada no seu sombrio manto cinzento, com o rosto parcialmente velado como convinha a uma dama Comyn no meio de estranhos.

Um a um, os homens de Beltran aproximavam-se, depositavam os seus explosores terráqueos diante de Lady Callina, ajoelhavam-se  e pronunciavam a breve fórmula que vinha dos tempos do rei Carolin de Hali, quando se estabelecera o Convénio, segundo a qual ninguém poderia usar uma arma para além do extremo do braço que a manejava, para que qualquer homem disposto a matar se sujeitasse  ao risco de morrer também... Callina parecia enregelada e mal disposta.

- Poderemos aproximar-nos um pouco mais, sir? Não consigo vê-los nem escutá-los - pediu o Guarda.

- Vá, se quiser - respondeu Regis. - Eu vejo bem daqui. A voz dele tinha um tom distraído; na verdade era como se estivesse lá em baixo, a alguns passos de Callina. Podia até sentir a sua fúria íntima; ela era um simples peão neste jogo e, como Regis, encontrava-se  à mercê do Conselho Comyn, sem poderes para se rebelar sequer  como Regis poderia fazer.

Regis tinha-se queixado uma vez, há muito tempo, de que o percurso era muito difícil para um filho do Comyn, um percurso que ele tinha de seguir, quisesse ou não... Mas mais fortes ainda eram as forças que peavam as filhas do Comyn. Ele devia ter formulado este pensamento mais intensamente do que supunha, pois viu Callina rodar ligeiramente a cabeça e olhar, intrigada, para o ponto em que Regis sentia estar e, não podendo vê-lo, franzir um pouco a testa.

Regis captou o pensamento de Callina: Ashara poderia proteger-me, mas o seu preço é demasiado alto... Não quero ser o títere dela...

A cerimónia parecia interminável; sem dúvida Beltran tê-la-ia estruturado dessa forma, para que as testemunhas do Comyn pudessem  avaliar a sua força. Havia já uma volumosa pilha de armas terráqueas, explosores e pistolas de nervos, aos pés de Callina, Em nome de Aldones, o que pensará Beltran que iremos fazer com elas?

Entregá-las aos Terráqueos? Como poderemos saber se ele guardará outras tantas em Aldaran?

Beltran fez uma demonstração do seu poderio esperando conseguir  impressionar-nos. Agora precisamos de uma  contra-demonstração,  para que ele não se vá embora convencido de ter feito algo que nós não tínhamos a força necessária para o obrigar a fazer...

Os seus olhos fixaram-se nos de Dyan Ardais. Dyan voltou-se, olhando para o ponto distante na muralha onde Regis se encontrava.

Sem pensar, Regis fez uma coisa que nunca fizera antes e que desconhecia  ser capaz de fazer: entrou em contacto mental com Dyan, sentindo a força do homem e o seu desespero pelo modo como este evento colocava Beltran numa posição de força.

Reforça-me, Dyan, para fazer aquilo que tenho de fazer! Sentiu os pensamentos de Dyan, surpreendido pelo inesperado contacto, uma emoção da qual Dyan não estava conscientemente ciente... su serva, Dom, a veis ordenes emprézi. com uma modulação que o colocava sob as ordens de Regis, agora e para sempre, na vida e na morte, à disposição de um Hastur... Uma vez, nas linhas de combate  aos incêndios durante o seu primeiro ano como oficial da Guarda,  Regis tinha sido enviado com Dyan para onde um incêndio florestal grassava nas colinas de Venza, nas proximidades de Thendara,  e ao levantar o olhar dera por si trabalhando lado a lado com Dyan, fatigado até ao extremo, partilhando esforço com todos os seus nervos e músculos. Era como se estivessem envolvidos numa luta, costas com costas, de espada em punho, cada um protegendo o outro como um escudeiro e o seu senhor... Sentiu a força de Dyan a intensificar a sua ao emitir cegamente a sua energia telepática... afastem-se! Era um grito de advertência, telepático e não vocal, mas todos os assistentes o escutaram, recuando. A enorme pilha de armas começou a ficar incandescente, avermelhou-se, atingiu um tom rubro-branco...

As armas desapareceram, vaporizaram-se; por um instante pairou  no local um intenso cheiro pestilento, mas também isso desapareceu.

 Callina estava imóvel, lívida como a morte, fixando com o olhar o buraco vazio e enegrecido no pavimento onde elas tinham estado. Regis sentiu o toque de Dyan quase como um abraço de parente; depois separaram-se de novo...

Ficou sozinho, olhando do seu isolado posto de vigia na muralha  para o espaço vazio onde a enorme rima de armas tinha estado.

Ouviu a voz do avô, tomando as rédeas deste evento como se ele próprio tivesse sido a sua figura central:

- Ajoelhai-vos agora, Beltran de Aldaran, e jurai o Convénio perante os vossos pares aqui reunidos - disse, usando a palavra Comyn. Ainda um pouco aturdido perante a destruição que havia ensombrado o seu gesto dramático de entregar as armas, Beltran ajoelhou-se e disse as palavras rituais.

- E agora - prosseguiu, aproximando-se de Callina e inclinando-se  para lhe beijar as pontas dos dedos - reclamo a minha prometida esposa.

Ela estava rígida, confiando-lhe apenas as extremidades frias dos seus dedos, mas disse, numa voz dificilmente audível:

- Assinarei esta noite o contrato esponsalício, assim o juro.

Regis não estava a vê-la agora; encontrava-se demasiado longe,  mas sabia que ela estava gélida de raiva, e não poderia criticá-la por isso.

E então captou outro pensamento desgarrado que mal reconheceu: Não necessito destas armas, pois tenho às minhas ordens uma outra, muito melhor do que qualquer coisa que os Terráqueos produziram até hoje...

Seria Dyan? Não reconhecia o toque. E também não seria capaz  de reconhecer o toque de Beltran: quando estivera prisioneiro no Castelo de Aldaran era ainda rapaz, sem laran, por despertar, pelo que desconhecia a “voz” mental de Beltran.

Mas então um estremecimento gelado perpassou-o, pois sabia em que arma alguém estaria a pensar. Seria Beltran louco ao ponto de pensar em usar... aquilo?

E se eu tenho poder sobre Sharra, serei eu quem terá de enfrentá-la?

Ele possuía um certo poder sobre o Vulto de Fogo, pelo menos quando se manifestava numa matriz. Mas nem Rafe nem Javanne tinham estado completamente dentro de Sharra. Regis não se considerava  capaz de libertar a matriz de Lew como libertara as deles.

Lew tinha estado intimamente comprometido com Sharra... e Regis  tentou afastar essa ideia.

Contudo, tinha de arriscar... mas primeiro precisava de transmitir  o recado de Rafe. Uma breve busca disse-lhe que Lew não se encontrava entre a multidão ao seus pés, e Regis constatou que se passava alguma coisa com o seu laran para a qual ele não se encontrava  preparado: estava a usá-lo quase descuidadamente, sem esforço.

Será isto, então, o Dom de Hastur?

Pôs logo de parte esse pensamento, esse receio, e seguiu à procura  de Lew. Quando acabasse por encontrá-lo já Rafe estaria prestes  a chegar, e Regis sentia que Lew não desejaria confrontá-lo sem estar preparado.

Também Regis não estava preparado para ver Lew ao deparar com ele quando o velho Andres o conduziu aos aposentos dos Altons.

 Não lhe pareceu, por um momento, que estava perante Lew, não lhe pareceu sequer que se tratasse de uma pessoa, apenas uma rodopiante massa de forças, uma presença de raiva, o toque de uma voz conhecida... Kennard? Mas ele está morto... e uma instantânea consciência do pavoroso Vulto de Fogo. Regis pestanejou e conseguiu  por fim fazer convergir a presença física de Lew, tomar o controlo  das novas e terríveis dimensões do seu próprio laran. O que estaria a acontecer-lhe? Nunca utilizara o laran desta forma, somente o usara ocasionalmente... mas agora até a mais ligeira cedência mental parecia significar que ele poderia voar como um falcão, em total liberdade, relutante em aceitar de novo o caparão... Regis fez um esforço para contê-lo, obrigou-se a ver Lew em vez de lhe tocar simplesmente. Mas o toque produziu-se da mesma forma, e através da sua textura reconheceu algo que sentira ao estabelecer contacto com Dyan. Muito simplesmente deu por si dizendo em voz alta:

- Mas evidentemente; ele era primo do teu pai, e parente próximo  dos Altons. Lew, não sabias que Dyan possui o Dom de Alton?

É evidente, era desta maneira que ele podia forçar o contacto mental com Danilo, é desta maneira que ele dá a conhecer a sua vontade e zela para que seja respeitada... Mas isto é um uso abusivo... utiliza-o desta forma para impor a sua vontade ... e este é o mais grave crime que pode ser cometido por quem usa o laran... Ele nunca recebeu treino para o seu uso... Foi expulso da Torre... O Dom de Alton pode matar, e eles mandaram-no embora, sem treino, sem conhecer o seu próprio poder...

Talvez este tenha despertado tarde, como o meu, crescendo subitamente  como o meu cresceu, como quando eu crescia demasiado para a minha roupa nos meus tempos de miúdo... Não sou suficientemente  forte para controlar esta coisa monstruosa que é o Dom de Hastur...

Com toda a sua força Regis interrompeu o fluxo dos pensamentos  e disse com voz trémula:

- Lew, podes ligar um amortecedor? Não estou... acostumado a isto.

Lew concordou com um aceno, dirigiu-se prontamente a um comando, e passado um momento Regis começou a sentir a suavizante  vibração, enevoando os padrões. Estava de novo sozinho, na plena posse da sua mente. Exausto, deixou-se cair numa cadeira.

Dyan não tem culpa. O Conselho não cumpriu o seu dever ao colocá-lo à solta, com o seu Dom em estado bruto, descontrolado...

Tal como aconteceu com o meu! Regis suspendeu de novo o fluxo dos seus pensamentos, reflectindo, com desânimo e irritação, que o amortecedor deveria ter-se incumbido disso. Antes de poderem  falar, a porta abriu-se e Rafe entrou, sem ter sido anunciado.

O rosto de Lew ensombrou-se, mas Rafe disse:


- Primo! - com um ar tão patético que Lew lhe mostrou um sorriso embaraçado, dizendo: - Entra, Rafe. Nada disto é por culpa tua; és também uma vítima.

- Demorei todo este tempo a ganhar coragem para te dizer isto - disse Rafe - mas precisas de saber. Uma coisa que o Legado  disse esta manhã fez com que não me atrevesse a protelar mais.

Quero que venhas comigo, Lew. Há uma coisa que precisas de ver.

- Não podes dizer-me o que é? - inquiriu Lew.

Rafe hesitou e depois disse:

- Preferia dizer-to em particular... - com um olhar culpado a Regis.

A voz de Lew era brusca.

- Seja o que for que tenhas a dizer-me, não tenho segredos para Regis. Não sou merecedor de tanta confiança, pensou Regis, mas encerrou  a mente, não desejando mais fugas telepáticas como as que ultimamente parecia incapaz de suster.

- Não havia aqui ninguém que pudesse tomar conta - disse Rafe. - Por isso fui ter com a tua irmã adoptiva, que concordou em cuidar dela.

- De quem, pelo amor dos deuses! - exclamou Lew, e logo a seguir a sua mente saltou para uma conclusão. - Da tal criança de que muito se tem falado entre os Guardas?

Rafe acenou a confirmar e indicou o caminho. Não foi contudo Linnell quem eles encontraram, mas sim Callina.

- Já sabia - disse ela numa voz sumida. - Ashara contou-me... Não existem muitas crianças do sexo feminino nos Domínios capazes de ser treinadas como eu fui, e parece-me... parece-me que Ashara tem pretensões a ela... - e calou-se, engasgada pelas palavras. Apontou para uma sala interior. - Ela está além... Estava com medo por se encontrar num local desconhecido, e consegui que ela adormecesse.

Num pequeno leito dormia uma garota de cinco ou seis anos. Os seus cabelos, de um tom avermelhado de cobre recentemente cunhado,  caíam-lhe sobre o rosto triangular salpicado de sardas de ouro pálido. Murmurava no sono, ainda profundamente adormecida.

Regis sentiu o alvoroço atravessar Lew, como um poderoso choque eléctrico. Já a vi antes disto... Um sonho, uma visão, um sonho pressentido...  ela é minha! Não do meu pai, não do meu irmão falecido, é minha... o meu sangue sabe-o...

Regis sentiu o espanto e a recognição de Lew. Em voz baixa, disse:

- Sim, tens razão. - Quando olhara pela primeira vez para o rosto do seu filho nedestro acabado de nascer tinha havido um momento  de recognição, de certeza absoluta, este é o meu filho, nascido  da minha própria semente... e nunca existira qualquer dúvida na sua mente; não tinha precisado de monitorizá-lo para saber que aquele era o seu próprio e verdadeiro filho.

- Mas quem foi a mãe dela? - perguntou Lew. - Sei que houve algumas mulheres na minha vida, mas por que razão ela nunca mo disse? - Calou-se quando a menina abriu os olhos...

Olhos dourados, ambarinos; uma cor estranha, uma cor que ele nunca vira, excepto por uma só vez... Regis ouviu o grito rouco e arquejante que Lew não conseguiu suster.

- Não! - gritou. - Não pode ser! Marjorie morreu... morreu... morreu, e a nossa criança morreu com ela... Misericordiosa Evanda, estarei a enlouquecer?

Os olhos de Rafe, tão parecidos com aqueles de que Lew se recordava,  viraram-se compassivamente para os dois.

- Marjorie não, Lew. Esta é a filha de Thyra. Foi Thyra a sua mãe.

- Mas... Não, isso não pode ser - disse Lew, ofegante. - Eu nunca... nunca lhe toquei... Nunca tocaria sequer nos dedos daquela  bruxa...

- Não estou certo do que terá acontecido - disse Rafe. - Eu era muito novo, e Thyra... não me contava tudo. Mas houve uma ocasião, em Aldaran, em que estiveste drogado... e sem saber o que fazias...

Lew cobriu o rosto com a mão, e Regis, incapaz de se desligar, captou todo o terrível fluxo dos pensamentos dele.

Ah Deuses, Misericordiosa Evanda, pensei que tudo tinha sido um sonho... ardendo, ardendo de raiva e desejo... Marjorie nos meus braços, mas, de um modo tresloucado como acontece nos sonhos,  a transformar-se em Thyra enquanto a beijo... Foi Kadarin que me fez isto... e lembro-me de Thyra a soluçar nos meus sonhos, chorando  como nunca o tinha feito, nem mesmo ao morrer o seu pai... A culpa não foi dela, Thyra era também um bonifrate nas mãos de Kadarin...

- A menina nasceu algum tempo depois do incêndio de Caer Donn - disse Rafe. - Alguma coisa aconteceu a Thyra quando esta criança nasceu; parece-me que chegou a endoidecer durante algum  tempo... Não me recordo bem; era então muito novo, e tinha estado bastante doente depois do... do incêndio. Pensei, é claro, que a criança era filha de Kadarin, pois ele e Thyra tinham estado juntos  durante tanto tempo...

E Regis seguiu também os pensamentos de Rafe, uma assustadora  imagem de uma mulher enlouquecida debruçando-se sobre a criança que não desejara gerar, concebida por um homem drogado e inconsciente mediante um truque vergonhoso, uma criança que tinha  sido necessário esconder para ficar em segurança...

A menina estava já acordada, sentada no leito, olhando curiosamente  para todos com aqueles enormes olhos ambarinos. Viu Rafe e sorriu-lhe ao reconhecê-lo. Depois olhou para Lew, e Regis sentiu, como se fosse um soco, o choque da criança ao observar aquele rosto  crivado de cicatrizes. Lew tinha um ar ameaçador. Bem, não posso  criticá-lo por isso... descobrir, daquela forma, que fora drogado, usado... Regis tinha visto Thyra apenas por uma ou duas vezes, e por pouco tempo, mas mesmo assim tinha captado de algum modo a tensão de raiva e desejo existente entre Thyra e Lew. E tinham estado  juntos, comprometidos com Sharra...

A garota endireitou-se, tensa como um pequeno animal acossado. Regis podia sentir de novo o choque de Lew perante a súbita e assustadora semelhança com Marjorie. Depois Lew disse, com voz áspera mas controlada:

- Não te assustes, chiya. Não sou agradável de ver, mas podes crer que não costumo comer meninas pequenas.

A garota sorriu. Tinha um rosto encantador, formando um pequeno triângulo. Um dente sobressaía ao meio do seu sorriso.

- Disseram-me que tu és o meu pai.

- Deuses! Creio que sim - disse Lew. Creio que sim... Sei que .! sou, raios! Estava agora totalmente aberto, e Regis não podia barrar-lhe os pensamentos. Sentou-se acanhado na beira do pequeno  leito. - Como te chamas, chiylla?

- Marja - respondeu ela, com timidez. - Quer dizer... Marguerida. Marguerida Kadarin. - Sussurrou o nome no suave dialecto  montanhês. O nome de Marjorie! - Mas prefiro que me chamem Marja. - Ajoelhou-se em cima da cama, voltada para ele.

- O que aconteceu à tua outra mão?

Regis conhecia suficientemente os filhos de Javanne - e os seus também - para saber como as crianças podiam ser directas, mas Lew sentiu-se desconcertado pela franqueza de Marja. Pestanejou e respondeu:

- Ficou ferida, e eles tiveram de ma cortar.

Os olhos ambarinos da criança eram enormes. Regis podia sen ti-la a pensar no que Lew lhe dissera.

- Oh, que pena... - e a seguir disse, experimentando a pala vra com a língua: - ... Pai. - Estendeu um braço e tocou-lhe com a sua pequena mão na face riscada por cicatrizes. Lew engoliu em  seco e puxou-a contra si, baixando a cabeça; mas Regis sabia que ele estava emocionado, quase a chorar, e uma vez mais não foi capaz  de barrar os pensamentos de Lew.

Vi esta criança uma vez, ainda antes de Marjorie e eu sermos  amantes. Vi-a numa aparição, e pensei que esta visão significava que Marjorie geraria um filho meu e que tudo estaria bem connosco...

Previ isso, mas o que não previ foi que Marjorie estaria morta durante  anos até que esta minha filha e eu nos encontrássemos...

- Onde cresceste, Marja?

- Numa casa grande com muitos outros rapazes e meninas disse ela. - São órfãos, mas eu sou outra coisa. É uma palavra feia  que a senhora directora disse que eu nunca nunca devia repetir, mas  eu posso dizer-ta em segredo.

- Não digas - disse Lew. Podia adivinhar o que seria. Regis lembrou-se de que ainda existiam aqueles que lhe tinham chamado bastardo, mesmo depois de ter sido reconhecido como Herdeiro de Alton. Lew aconchegara-a agora no seu colo, na curva do braço.

Se eu soubesse, teria regressado mais cedo. Teria de algum modo compensado Thyra por aquilo que não me recordava de lhe ter feito.

Ao ver o olhar interrogativo de Regis, Lew levantou a cabeça, explicando com afinco:

- Fui drogado com afrosona. É uma droga que cria hábito; vive-se uma vida normal, mas esquecemos de um momento para o outro o que está a acontecer, nada retendo excepto sonhos simbólicos... Tinha ouvido dizer que, se contássemos a um psiquiatra aquilo de que nos lembrávamos dos sonhos que tínhamos tido enquanto  drogados, ele poderia ajudar-nos a recordar o que verdadeiramente  acontecera. Mas eu não quis saber... - e a voz ficou-lhe presa na garganta.

Devia ter sido depois deles terem escapado de Aldaran, pensou Regis; Marjorie e Lew tinham fugido juntos, e Kadarin forçou-os a regressar, e drogou-o, obrigando-o a servir como o pólo do poder para Sharra... Não admira que ele não tenha desejado recordar-se.

- Não importa - disse Lew ao ler os pensamentos de Regis, e abraçou-se à criança com tal força que esta lamuriou em protesto.

- Ela é minha, seja como for.

Ele é feio, mas é simpático. Ainda bem que é meu pai. Todos olharam espantados para ela; tinha tocado nas suas mentes. Mas as crianças nunca têm o Dom..., pensou Regis - Thyra era meio-chieri, segundo se dizia - comentou Lew calmamente. - Não há dúvida de que Marja o possui. Não é comum,  mas também não é caso único. O teu Dom despertou cedo, não foi, Rafe? Tinhas tu nove ou dez anos?

Rafe acenou a confirmar, e disse:

- Lembro-me de o nosso... pai adoptivo, Lorde Aldaran... nos ter falado da nossa mãe. Era filha de um dos homens da floresta.

 E Thyra... - hesitou, sem vontade de dizê-lo.

- Continua - disse Lew. - Diz, seja o que for.

- Tu não conhecias Thyra... Ela era tal como os chieri: emmasca. Ninguém tinha a certeza de ela ser rapaz ou rapariga. Lembro-me dela assim, quando eu era ainda muito novo, mas só um pouquinho.

 Depois chegou Kadarin... e pouco tempo depois ela passou a usar  roupas de mulher e a considerar-se mulher... Foi nessa altura que pássámos a chamar-lhe Thyra; antes disso, ela tinha outro nome. Tu não sabias que ela e Beltran eram da mesma idade, e que já tinha mais de vinte anos quando Marjorie nasceu.

Lew sacudiu a cabeça, estupefacto. Regis captou-lhe o pensamento:

 Tinha a certeza de que ela teria uns três ou quatro anos mais do que Marjorie, não mais... e este pensamento era acompanhado por um tumulto de imagens, ressentimento, e desejo: Thyra tocando  a sua harpa e olhando para Lew com uma expressão de fúria apaixonada, o rosto de Thyra transformando-se repentinamente no de Marjorie... Marjorie dizendo suavemente: “Estavas um bocadinho apaixonado por Thyra, não estavas, Lew?”

Lew pousou a criança no chão.

 - Vou ter de encontrar uma ama para Marja; não há nenhuma  mulher nos meus aposentos para tomar conta dela. - Baixou-se e  beijou as faces rosadas da filha. - Fica aqui com a minha parente Linnell, filhinha.

Ela agarrou-lhe a mão e perguntou, trémula:

- Agora vou morar contigo, não vou?

- Vais, pois - respondeu Lew com firmeza, e fez um gesto a Regis e Rafe para que saíssem com ele. - Eles irão usá-la para te depor...- advertiu Regis.

- Estou bem certo de que vão tentar - comentou Lew com ar severo. - Um títere facilmente domável nas mãos dos Hasturs não, não me refiro a ti, Regis, mas ao velho, e a Dyan, e àquele meu precioso parente Gabriel... O Conselho nunca confiou muito na linha masculina dos Altons adultos, pois não? Portanto exilam-me para Armida ou para uma Torre, e tomam a seu cargo a educação desta criança da maneira que eles acharem melhor. - O rosto de  Lew crispou-se, e ele fechou a mão válida com tanta força que Regis sentiu-se feliz por não ser o objecto da sua ira.

- Eles que tentem - acrescentou, contorcendo a mão como se estivesse a agarrar o pescoço de alguém. - Eles que experimentem, malvados! Ela é minha, e se pensam que ma podem levar outra vez, estão muito enganados!

Regis e Rafe trocaram olhares com uma mistura de alívio e desânimo. Regis tinha alimentado a esperança de que alguma coisa, de algum modo, viria arrancar Lew da sua terrível apatia, algo que o fizesse interessar-se de novo por alguém ou por qualquer coisa. Parecia  agora que algo tinha feito precisamente isso. Bem, o vento tinha levantado... e muita coisa iria acontecer até que acalmasse de novo!

 

 (narrativa de Lew Alton)

O dia estava a escurecer, com o crepúsculo a aproximar-se. Observando do alto a cidade eu podia ver as ruas começando a encher-se com as multidões risonhas, mascaradas, da Noite do Festival. Deveriam esperar  que eu aparecesse como representante do Domínio de Alton no grande baile do Castelo Comyn; isso fazia parte de eu ser quem era. Ainda que ninguém tivesse dado até agora nenhum passo evidente  para me demitir do meu lugar como Chefe do Domínio, eu tinha a intenção de não lhes dar nenhuma abertura para me acusarem  de estar a negligenciar qualquer parcela dos meus deveres. Agora,  entre outras coisas, tinha de arranjar fosse como fosse alguém que pudesse cuidar adequadamente de Marja. Andres defendê-la-ia com a vida, se soubesse que ela era minha filha, mas uma criança daquela  idade precisava de uma mulher que olhasse por ela, que a vestisse  e lhe desse banho e se certificasse de que ela tinha brinquedos apropriados e companhia. Regis ofereceu-se para colocá-la a cargo de Javanne; a irmã dele tinha filhas gémeas que eram mais ou menos  da idade de Marja. Agradeci-lhe mas recusei; Javanne Hastur nunca tinha simpatizado comigo, e o marido dela, Gabriel Lanart-Hastur,  era um dos principais interessados no Domínio. A última coisa que eu desejaria fazer era confiar esta criança ao seu cuidado.

Pensei pesarosamente em Dio. Tinha-me apressado excessivamente  a dissolver o nosso casamento. Ela havia de querer a minha filha, e, como o nosso filho tinha falecido, talvez ela tivesse permitido  que esta viesse ocupar o lugar que ficara vago... mas não; isso seria pedir demasiado, que ela amasse como sua a filha de outra mulher. Quando pensava nela vinha-me à superfície o antigo sofrimento  e ressentimento. De qualquer forma, se ela estivesse aqui eu poderia consultá-la sobre a melhor maneira de criar uma menina...

Tentei imaginar também o que Callina sentiria a respeito disto, mas logo a seguir lembrei-me de que Callina se tinha comprometido a casar-se com Beltran.

Só por cima do meu cadáver, jurei silenciosamente. Deixei Marja aos cuidados de Andres (ele dissera que conhecia uma mulher aceitável,  esposa de um dos escudeiros do meu pai, que poderia tomar conta de Marja se a levasse comigo para Armida), e fui procurar Callina.

Esta parecia deprimida e atormentada.

- A rapariga já acordou - disse. - Ficou histérica quando despertou; tive de lhe dar um sedativo. Já se acalmou um pouco, mas não fala o nosso idioma e sente-se assustada num local desconhecido.

 Lew, o que iremos fazer agora?

- Só saberei depois de falar com ela. Onde é que está?

Tanta coisa acontecera entretanto que eu quase me tinha esquecido  do plano de Ashara e da mulher que fora trazida através do Ecrã. Tinha sido transferida para uma sala espaçosa nos aposentos  Aillard. Quando lá chegámos ela estava deitada em cima da cama, com o rosto enterrado na coberta, e parecia ter estado a chorar,  mas foi um rosto provocador e sem lágrimas que ela voltou para mim. Continuava a ser uma sósia de Linnell, talvez ainda mais agora, decentemente vestida com roupas que supus - correctamente  - pertencerem à própria Linnell.

- Por favor diga-me a verdade - disse ela com firmeza, ao ver-me entrar. - Estarei louca e prisioneira de alguém? - Falava num dos dialectos que eu bem conhecia ... o que não admirava, pois tinha estado a conversar longamente com ela naquela noite em Vainwal quando o meu filho nascera e morrera. E quando este pensamento  se cruzou na minha mente vi no seu rosto que ela também se recordava.

- Mas eu conheço-o! - exclamou a rapariga. - O homem que tinha só uma mão, o homem que teve aquele... aquele... aquela coisa terrivelmente deformada... - O meu rosto deve ter assumido uma expressão estranha, pois ela interrompeu-se de repente, para perguntar a seguir: - Onde estou eu? Porque me raptou, trazendo-me  para aqui?

- Nada tem a recear - respondi-lhe calmamente. Lembrei-me de que dissera a mesma coisa a Marja; também ela tinha tido medo de mim. Mas eu não poderia tranquilizá-la com as mesmas palavras que usara com uma criança de cinco anos. - Permita que me apresente. Chamo-me Lewis-Kennard Montray-Lanart, zpar servu...

- Sei bem quem é - retorquiu ela sem hesitações. - O que eu não sei é como vim parar aqui. Um Sol vermelho...

- Se não perder a calma, explicarei tudo - disse-lhe. - Lamento, não me recordo do seu nome...

- Kathie Marshall - respondeu a rapariga.

- Terranan!

- Sim. Mas sei que não estamos na Terra nem em Vainwal - disse ela, com voz trémula mas sem exibir qualquer sinal de medo.

- Os Terranan chamam a este planeta “Estrela de Cottman” - expliquei. - Nós chamamos-lhe Darkover. Trouxemo-la para cá porque precisamos da sua ajuda...

- Devem estar loucos - ripostou a rapariga. - Como pode ria eu ajudar-vos? E, mesmo se pudesse, por que motivo pensam que iria ajudar-vos? Depois de me terem raptado?

Era uma pergunta razoável, na minha opinião. Tentei contactá-la  mentalmente; se ela não era capaz de compreender o nosso idioma, pelo menos desta forma ficaria com a certeza de que não  desejávamos o seu mal.

Callina interveio:

- Trouxemos-te para aqui porque foste geminada mental mente com a minha irmã Linnell...

Ela recuou.

- Mentes geminadas? Isso é ridículo. Pensam que eu acredito nesse género de coisa?

- Se não crês - retorquiu Callina calmamente, como explicas  o facto de poderes compreender o que estou a dizer-te?

- Ora! Estás a falar Terran... não! - disse a rapariga, e eu vi o terror regressar à sua mente. - Em que língua estou a falar aqui...?

Logicamente, sendo ela a dupla de Linnell, segundo a Lei de Cherilly teria potencialmente laran; pelo menos poderia compreender-nos  agora.

- Tínhamos a esperança de podermos convencer-te a ajudar-nos  - disse Callina. - Mas não haverá qualquer imposição, e menos  ainda qualquer emprego de força.

- Onde estou eu, então? , - No Castelo Comyn, em Thendara.

- Mas isso é no outro extremo da Galáxia... - sussurrou, e voltou-se apressadamente para a janela, observando a luz vermelha do Sol poente. Vi as suas brancas mãos apertar uma dobra da cortina.

 - Um Sol vermelho... - balbuciou. - Tenho pesadelos assim,  dos quais me custa despertar... - Estava de tal forma lívida que temi que ela desmaiasse; Callina pôs um braço à volta dos seus ombros, e desta vez Kathie não a repudiou.

- Tenta acreditar em nós, criança - disse Callina. - Encontras-te  aqui, em Darkover. Trouxemos-te para cá.

- E quem és tu?

- Callina Aillard, Guardiã do Conselho Comyn.

- Já tinha ouvido falar nos Guardiões - disse Kathie, e depois  prosseguiu, nervosamente: - Isto é tudo uma loucura! Não podem pegar numa cidadã terráquea e transportá-la de uma ponta à outra da Galáxia! O meu... o meu pai irá desfazer o planeta todo à minha procura! - Tapou o rosto com as mãos. - Quero ir para a minha casa!

Eu desejava nunca termos começado com esta coisa. Estava a recordar-me da auréola de ruína, fatalidade, morte que tinha visto em redor de Linnell... Misericordiosa Evanda, teria sido ainda na noite passada? Ignorava se isto teria de alguma forma feito perigar Linnell; o que aconteceria quando duplos de Cherilly se encontravam?

 Não havia sequer uma lenda para me guiar. Veio-me à memória  uma antiga lenda das Colinas de Kilghard, acerca de um chefe montanhês, ou talvez de um lorde bandido - naquele tempo seria difícil distinguir entre ambos - que tinha encontrado o seu duplicado,  podendo desta forma comandar o seu exército situando-se em dois lugares ao mesmo tempo, mas não conseguia lembrar-me de mais do que isso, nem fazia qualquer ideia do que teria acontecido ao seu duplicado ao chegar ao fim dos seus dias. Talvez o chefe bandido tivesse permitido que o seu duplo fosse enforcado pelos seus próprios  crimes. De qualquer forma, devia ter tido um fim desgraçado.

Iria a presença desta mulher pôr Linnell em perigo? Havia uma precaução que eu poderia tomar: podia colocar uma barreira protectora  em volta da sua mente, para que ela pudesse conservar a sua invulnerabilidade, o seu completo desconhecimento destas forças darkoverianas. Tinha a esperança de que, ao tocar a sua mente para lhe dar conhecimento do idioma, não tinha violado já esse desconhecimento.

 Ao menos certificar-me-ia de que mais ninguém iria fazê-lo. O que eu pretendia efectivamente fazer era colocar uma barreira  em volta da sua mente para que qualquer tentativa para estabelecer  contacto telepático com Kathie, ou para dominar a sua mente, fosse imediatamente desviada para mim, através de uma espécie de circuito derivativo instalado na barreira.

Não faria qualquer sentido tentar explicar-lhe o que eu tencionava  fazer. Teria de começar por explicar-lhe a própria natureza dos dons do laran, e, dado que, como dupla exacta de Linnell, ela tinha potencial de laran, quando eu terminasse a explicação ela poderia ficar vulnerável às forças darkoverianas. Agindo com a máxima suavidade  possível, estabeleci contacto com a sua mente.

Foi um instante de dor penetrante em cada nervo, e depois tudo passou, e Kathie estava a soluçar convulsivamente.

- O que foi que fizeram? Senti-te... foi horrível... mas não, isso é uma loucura... ou estarei mesmo doida... o que aconteceu?

- Porque não esperaste até ela compreender? - perguntou Callina.

 Mas eu tinha feito o que tinha de fazer, e fizera-o agora porque queria ver Kathie bem protegida por uma barreira antes que alguém a visse e se pusesse a conjecturar. Mas doía-me vê-la chorar; nunca tinha suportado as lágrimas de Linnell. Callina olhou para Kathie sem saber o que fazer para acalmá-la.

- Vai-te embora, eu trato disto - disse-me. E quando o choro de Kathie adquiriu novo ímpeto, Callina repetiu: - Lew, vai-te embora.

Subitamente sentia-me irritado. Por que razão Callina não confiava em mim? Fiz-lhe uma vénia profunda, disse:

- Su serva, domna - com a minha voz mais gélida e irónica, dei meia volta e afastei-me.

E naquele momento, ao afastar-me enraivecido de Callina, tranquei  a ratoeira sobre todos nós.

Ao cair a noite todas as luzes do Castelo Comyn começaram a brilhar; por uma vez em cada viagem de Darkover à volta do seu Sol, o Comyn, os citadinos de Thendara, os lordes montanheses com negócios nas terras baixas, os cônsules e embaixadores de outros mundos e os terráqueos da Cidade Comercial misturavam-se todos durante a Noite do Festival com grandes manifestações de cordialidade.

 O Festival envolvia toda a gente de alguma importância no planeta, e começava com um grande espectáculo dançante no vasto salão de baile da cidade.

Séculos de tradição faziam da ocasião um evento mascarado, para que Comyn e plebeus pudessem misturar-se sem distinções. Por respeito à tradição coloquei uma estreita meia máscara, mas não fiz qualquer esforço para me disfarçar, tendo posto a minha mão mecânica  unicamente para não ser muito diferente dos outros. O meu pai, pensei perversamente, teria aprovado. Postei-me num dos extremos  do salão a conversar, para passar o tempo, com um par de terráqueos que trabalhavam no departamento espacial, e logo que me foi decentemente possível afastei-me e encaminhei-me para uma das janelas, de onde fiquei a observar as quatro luas em miniatura que tinham surgido no firmamento quase em conjunção.

Atrás de mim o grande salão resplandecia com cores e trajos representando todos os recantos de Darkover e muito da sua história. Derik envergava uma complexa e berrante máscara das Eras do Caos, mas tinha o rosto descoberto: uma parte das suas atribuições como príncipe era manter-se sempre visível para os seus vassalos. Reconheci Rafe Scott, também, com a máscara e o azorrague de um duelista kifirgb, não lhe faltando sequer as luvas com garras.

No sector que a tradição reservava às raparigas jovens, a máscara  de Linnell, forrada de lantejoulas, era uma fraca imitação de um disfarce. Os olhos de Linnell rebrilhavam com a deliciosa convicção  de que todos os olhares se fixavam nela; como comynara, todos  a conheciam em Darkover - pelo menos nos Domínios - mas ela raramente conhecia alguém fora do apertado círculo dos seus primos  e das poucas companhias permitidas a uma dama do Domínio Aillard. Agora, por detrás da sua máscara, podia falar com perfeitos  desconhecidos, ou mesmo dançar com eles; a excitação que isso lhe provocava era quase insuportável para ela.

Ao seu lado, igualmente mascarada, vi Kathie. Pensei se isso seria outra das ideias brilhantes de Callina. Bem, não faria mal nenhum; com o circuito de derivação que eu lhe instalara ela encontrava-se  devidamente barricada, e não haveria melhor maneira de lhe provar que não era uma prisioneira mas sim uma convidada de honra. Todos pensariam provavelmente que ela seria alguma nobre  menor do clã Aillard.

Linnell sorriu para mim quando me aproximei dela.

- Lew, estou a ensinar à tua prima vinda da Terra algumas das nossas danças. Imagine-se, ela não as conhecia. A minha prima vinda da Terra. Devia ser outra das ideias de Callina. Bem, isso explicaria a ligeira dificuldade com que ela falava darkoveriano.

- Nunca me ensinaram a dançar, Linnell - disse Kathie com suavidade.

- Não te ensinaram? O que foi que estudaste, então? Lew, não é costume dançar-se na Terra?

- A dança faz parte integrante de todas as culturas humanas respondi com secura. - É uma actividade de grupo iniciada com os movimentos em conjunto das aves e dos antropóides, e é também uma representação social das técnicas de acasalamento de todos os primatas  superiores. Entre as culturas semi-humanas, como a dos chieri, transforma-se num padrão estático de comportamento semelhante à embriaguez. Sim, é costume dançar-se na Terra, e em Megaera, Samarra, Alfa Dez, Vainwal, e na realidade de um extremo ao outro da Galáxia. Para mais informações, há na cidade palestras sobre antropologia; não estou para aí caído. - Voltei-me para Kathie com o que supunha ser modos de primo. - E se fôssemos antes dançar?

Enquanto dançávamos disse a Kathie:

- É natural que não soubesses que a dança é uma disciplina importante  para as crianças daqui; tanto Linnell como eu aprendemos a dançar assim que começámos a andar. Eu recebi apenas instrução básica - depois disso segui para artes marciais - mas Linnell nunca parou de praticar. - Lancei um olhar de afeição a Linnell, que estava  a dançar com Regis Hastur. - Fui a um baile ou dois em Vainwal. Achas os nossos bailes assim tão diferentes?

Mas enquanto falava não deixava de estudar cuidadosamente a terráquea. Kathie tinha coragem e inteligência, segundo podia ver.

Bem tinha precisado delas para se apresentar aqui, depois do choque  que sofrera, e representar o papel que lhe tinha sido tacitamente distribuído. E possuía outra qualidade rara: parecia não reparar que o braço que envolvia a sua cintura era diferente de qualquer outro braço. Isso não era comum; até Linnell lhe tinha lançado um olhar rápido e furtivo. Bem, Kathie trabalhara em hospitais, talvez tivesse visto coisas piores.

Com aparente irrelevância Kathie perguntou:

- Então Linnell é tua prima, tua parente?

- É minha irmã adoptiva; foi educada em casa do meu pai. Não somos parentes consanguíneos, excepto na medida em que todos  os Comyn possuem uma ascendência comum.

- Ela é muito... bem, é como se fosse realmente minha irmã gémea. Sinto-me como se a tivesse sempre conhecido. Adorei-a assim  que a vi. Mas tenho medo de Callina. Não é que ela tenha sido desagradável comigo - ninguém poderia ser mais amável - mas parece sempre tão distante, como se não fosse humana!

- É uma Guardiã, e elas são ensinadas a não mostrar emoções, é só isso.

- Se não te importas... - disse Kathie, tocando-me no braço -, é melhor não dançarmos. Em Vainwal sou uma boa dançarina, mas aqui sinto-me como um elefante tropeçudo!

- Talvez não tenhas aprendido tão intensamente como nós.

- Para mim essa era a coisa mais estranha a respeito da Terra: a indiferença com que consideravam o único talento que distingue o homem dos quadrúpedes. Há um ditado em Darkover: só os homens  se riem, só os homens dançam, só os homens choram. Mulheres  que não sabiam dançar: como poderiam elas possuir uma verdadeira beleza?

Comecei a acompanhar Kathie até ao sector onde as jovens aguardavam, e, ao voltar-me, vi Callina entrar no salão de baile.

E para mim a música tinha acabado.

Já tinha visto a noite negra do espaço interestelar pintalgado com cem milhões de estrelas; era com isso que Callina se parecia, num vestido de tecido transparente que lembrava um pedaço arrancado  àquele céu, com o cabelo escuro envolto em pálidas constelações.

 Escutei respiros entrecortados, arquejos de admiração vindos de todos os lados.

- Como ela é bela! - sussurrou Kathie - Mas o que é que aquele traje representa? Nunca vi nada parecido...

- Não faço a menor ideia - respondi, mas estava a mentir.

A história era contada na Balada de Hastur e Cassilda, a mais antiga  lenda do Comyn: Camilla, chacinada pela espada-sombra em lugar da sua esperta irmã, penetrara nos reinos da escuridão sob a sombra de Avarra, a Dama Negra do nascimento e da morte... Não tinha a menor ideia da razão pela qual uma mulher na véspera dos seus esponsais, por mais desagradável que o matrimónio pudesse ser, escolheria apresentar-se com um tal vestido. O que aconteceria se Beltran de Aldaran compreendesse o significado daquilo? Seria difícil  conceber um insulto mais directo, a não ser que ela se tivesse apresentado mascarada de carrasco público!

Pedi licença a Kathie e encaminhei-me para Callina. Concordava  que este matrimónio era uma farsa doentia, mas ela não tinha o direito de embaraçar a família desta forma. Contudo Merryl chegara  primeiro perto dela, e escutei a parte final do seu sermão.

- Uma bela exibição de despeito... envergonhar-nos a todos diante dos nossos convidados, quando Beltran teve um gesto tão generoso...

- Ele que fique com a sua generosidade, no que me diz respeito  - disse Callina. - Meu irmão, não sou capaz de mentir. Este vestido agrada-me; adapta-se perfeitamente ao modo como tenho sido tratada pelo Comyn em toda a minha vida! - O seu riso era musical e amargo. - Beltran está disposto a suportar piores insultos  do que este em troca dos direitos de laran no Conselho Comyn!

Espera e verás!

- Pensas que vou dançar contigo enquanto tu vestes essa... - A voz fraquejou-lhe; estava encarniçado de fúria.

- Faz como quiseres - respondeu Callina. - Estou disposta a comportar-me de um modo civilizado. Se não fazes o mesmo, o prejuízo  é teu. - Voltou-se para mim e disse, quase ordenou: - Lorde Alton dançará comigo. - Estendeu-me os braços e eu avancei; mas este atrevimento era estranho nela, e inquietou-me. Callina era uma Guardiã; em público sempre se mostrara tímida, apagada, modesta em extremo. Esta nova Callina, atraindo todos os olhares num trajo escandaloso, espantava-me. E o que iria Linnell pensar?

- Lamento que Linnell me veja assim - disse ela -, mas este vestido está de acordo com a minha disposição. E além disso fica-me  bem... não achas?

Ficava mesmo, mas o coquetismo com que ela me olhava chocou-me  e alarmou-me; era como se uma estátua pintada tivesse ganho  vida, começando a cortejar-me. Bem, ela tinha-me perguntado.

- Estás muito bela - disse-lhe com voz rouca, e puxei-a para um recanto, comprimindo-lhe a boca com a minha, com força e fúria.

 - Callina, Callina... não vais levar por diante esta louca farsa do casamento, pois não?

Durante um instante ela ficou passiva, espantada, e depois retesou-se,  inclinando-se para trás e repelindo-me com frenesi.

- Não! Não faças isso!

Deixei os meus braços descaírem e fiquei a olhar para ela, com a fúria a aquecer-me lentamente o rosto.

- Não foi assim que agiste na noite passada, nem ainda agora!

 O que pretendes tu na realidade, Callina?

Ela baixou a cabeça e disse com amargura, como se estivesse muito longe de mim:

- O que eu pretendo interessará realmente? Quem mo terá perguntado alguma vez? Sou apenas um peão neste jogo de xadrez, para ser deslocado conforme lhes aprazer!

Tomei a sua mão na minha, e ela não a rejeitou.

- Callina, tu não precisas de fazer isto! - disse-lhe com veemência.

- Beltran está desarmado, já não representa uma ameaça...

- Preferias que renegasse a minha jura?

- Renegada ou morta seria melhor do que casada com ele retorqui, com a raiva a fervilhar dentro de mim. - Tu não sabes quem ele é!

- Mas eu dei a minha palavra... - disse ela. - Eu... - Levantou  o olhar para mim e repentinamente o seu rosto contorceu-se,  num choro: - Não poderás poupar-me a isto?

- Terás pensado alguma vez que há coisas a que poderias ter-me  poupado? - inquiri. - Como queiras, Callina: desejo felicidades  a Beltran com a sua esposa. - Voltei-lhe as costas, ignorando o seu grito abafado, e afastei-me.

Não sei se tinha pensado para onde iria. Pelo menos, para longe  dali. Um telepata nunca se sente à vontade no meio de multidões, e tenho sempre dificuldade em encará-las. Sei que se abriu um caminho  para mim por entre os dançarinos; depois, inesperadamente, uma voz chamou:

- Lew! - e estaquei, olhando para Dio.

Trajava um agradável vestido verde, com ornatos brancos; o cabelo  ondulava suavemente em volta do rosto, e nada fizera para disfarçar  as sardas douradas que lhe pintalgavam as faces. Parecia rósea e saudável, muito diferente da mulher lívida, gasta, histérica que eu vira pela última vez no hospital em Vainwal. Esperou uns momentos, e depois disse, como dissera da primeira vez que tínhamos estado frente a frente:

- Então não me convidas para dançar, Dom Lewis?

Pestanejei. Devia ter parecido um idiota, olhando para ela com a boca aberta.

- Não sabia que estavas em Thendara!

- Por que razão não havia de estar? - retorquiu ela. - Pensas que sou uma inválida? Onde julgavas que poderia estar, na temporada das reuniões do Conselho? Contudo nem me fizeste uma visita de cortesia, e não me mandaste flores na manhã do Festival! Estás assim  tão zangado comigo por eu ter perdido as estribeiras?

Um casal que dançava estacou a meio passo de nós, e a mulher, que eu desconhecia, disse com irritação:

- Precisam de estar a entupir a pista de dança? Se não querem dançar, ao menos saiam do caminho daqueles que querem!

Segurei no cotovelo de Dio, não com muita suavidade, e conduzi-a  para fora da pista.

- Lamento... não sabia que querias que te oferecesse flores.

Desconhecia que estivesses em Thendara.

Subitamente toda a minha amargura veio à tona.

- Não estou a par das mesuras devidas a uma esposa que me abandonou!

- Que te abandonou... - Calou-se de repente e ficou a olhar para mim. Depois, com um visível esforço para acalmar a voz, disse:

- Abandonei-te? Pensei que te divorciavas de mim por eu não ser capaz de te dar um filho normal...

- Quem te disse isso? - perguntei, segurando-a pelos ombros até que ela protestou; aliviei o aperto, mas prossegui acaloradamente:

 - Voltei ao hospital! Disseram-me que já tinhas saído, acompanhada pelos teus irmãos...

A cor dissipou-se gradualmente do seu rosto, até as sardas sobressaírem  nas faces lívidas.

- Lerrys enfiou-me na nave antes de eu poder andar... - disse  ela. - Teve de me levar ao colo. Disse-me que tu, como Chefe de um Domínio, não poderias casar com quem não pudesse dar-te um Herdeiro...

- Que Zandru lhe atire caudas de lacrau! - praguejei. - Ele veio ter comigo, pouco depois de eu ter chegado aqui... ameaçou matar-me... disse que tu já tinhas sofrido demasiado. Dio, juro-te que julguei que era isso que tu desejavas...

Os olhos dela começavam a encher-se de lágrimas, e vi-a morder  o lábio. Dio sempre detestava chorar onde poderiam vê-la. Estendeu  um braço para mim, e depois recolheu-o e disse:

- Vim aqui ao Festival na esperança de te encontrar, e vejo-te nos braços de Callina! - Voltou-me as costas e começou a afastar-se;

 segurei-a por um ombro. :

- Lerrys só sabe provocar estragos - disse eu. - Temos de esclarecer isto com ele, e já! Ele está cá, aquele malvado?

- Como te atreves a falar assim do meu irmão? - protestou Dio, inconsistentemente. - Só fez o que julgava ser o melhor para mim! Naquela altura eu estava histérica, não queria voltar a ver-te, nunca mais...

- E eu estava a respeitar os teus desejos - retorqui, respirando fundo. - Dio, de que servirá tudo isto? O que está feito, está feito.

Fiz o que julgava que tu querias...

- Vim aqui para te encontrar e para averiguar se era aquilo o que tu querias - exclamou Dio -, e vejo que já estás a consolar-te  com aquele palito da Guardiã! Espero que ela te atinja com relâmpagos  quando lhe tocares... É o que bem mereces!

- Não fales dessa forma a respeito de Callina - disse-lhe com finalidade.

- É uma Guardiã juramentada; para que quer ela o meu marido?

- Tu tornaste bem claro que eu já não era o teu marido...

- Nesse caso, porque fui eu quem foi notificada do divórcio?

Como fui idiota... - Parecia estar novamente prestes a chorar. Pus o meu braço em volta dela, tentando confortá-la, mas ela afastou-me  prontamente. - Se é isso o que queres, que te faça bom proveito! Tu e Callina...

- Não sejas tola, Dio! - interrompi-a. - Callina vai ficar prometida  a Beltran dentro de uma hora! Não consegui convencê-la...

- Mas bem tentaste - retorquiu Dio. - Eu estava a ver-te...

Soltei um suspiro. Dio estava desejosa de fazer uma cena. Eu ainda pensava que poderíamos sanar isto em privado, mas estava também na defensiva. Ela tinha-me feito passar por parvo, e não eu a ela, e tinha também tido todo o direito de me deixar, depois do sofrimento que lhe causara. Mas não desejava ser recordado novamente  da tragédia, que continuava muito viva na minha memória.

- Dio, esta não é a ocasião nem o local...

- Poderás encontrar uma ocasião melhor? - Ela estava furiosa,  e não podia criticá-la por isso. Se Lerrys estivesse ali, parece-me que teria sido capaz de o matar. Afinal ela não me tinha deixado por sua própria vontade. Contudo, ao olhar para o seu rosto irado compreendi  que não havia maneira de voltarmos atrás.

Várias pessoas estavam a observar-nos com curiosidade, o que não me surpreendia. Eu, pela minha parte, devia ter estado a emitir as minhas emoções - que eram essencialmente as de uma grande confusão - por todo o salão de baile. - É melhor que dancemos - disse, e toquei-lhe no braço. Não era uma dança de abraçar, felizmente; não desejaria uma tal intimidade, aqui e agora, com tudo o que existia entre nós. Avancei para o anel masculino exterior, e Dio deixou que Linnell tomasse lugar ao seu lado e a puxasse para o círculo. Era estranho, pensei, que Linnell, a minha parente mais próxima, não soubesse do nosso casamento de pouca duração nem do modo desastroso como terminara. Não era exactamente o género de história que se podia contar a uma jovem prestes a casar-se. Vi como ela olhava para Derik ao puxá-lo para o seu lugar na pista de dança. Depois a música começou a soar e entreguei-me a ela enquanto  a marcação da dança trazia Dio para junto de mim, com uma pequena vénia, afastando-se de novo. Por fim, quando a dança terminou,  ficámos de novo frente a frente e repetimos a vénia. Vi Derik dar o braço a Linnell, e fiquei novamente a sós com Dio.

- Posso ir buscar-te um refresco? - perguntei-lhe com toda a formalidade.

Os olhos dela brilhavam de lágrimas.

- Precisas de ser tão formal? Será isto apenas um jogo para ti?

Abanei a cabeça, enfiei a minha mão debaixo do seu braço e guiei-a até ao bufete. A cabeça dela mal chegava à altura do meu ombro. Tinha-me esquecido de como ela era pequena; sempre a tinha  recordado como se fosse um pouco mais alta. Talvez fosse a sua postura habitual, orgulhosa e independente; talvez fosse apenas o facto de em Vainwal, como muitas mulheres, ter calçado apenas sapatos  de salto alto, enquanto que aqui tinha voltado a adoptar as sandálias baixas e macias que as mulheres usavam nos Domínios.

O verde pálido do seu vestido fazia-lhe o cabelo refulgir num tom de ouro avermelhado.

 A nossa separação não precisava de ser definitiva. Dio como Lady Alton, e poderíamos residir em Armida... e por um instante senti-me subjugado por um dilúvio de saudades das colinas do meu lar, das longas sombras ao anoitecer, do modo como o Sol descia  sobre a linha de altas árvores por detrás da Casa Grande. Eu poderia  ainda reviver tudo isto, poderia tê-lo com Dio...

As longas mesas de comes e bebes estavam carregadas com todos os tipos de acepipes que se poderiam imaginar. Enchi para ela uma taça de um sumo de frutas vermelho e adocicado; ao prová-lo, descobri  que o sumo tinha sido fortemente reforçado com alguma bebida  alcoólica incolor, pois um simples copo fazia-me sentir tonto. Dio, observando-me a beber, pôs a sua taça de parte sem provar, dizendo:

- Não quero ficar embriagada aqui esta noite. Passa-se qualquer coisa... não sei o que é, mas estou assustada.

 Escutei-a com seriedade. As intuições de Dio batiam sempre certas, e ela pertencia à família dos Ridenow supersensíveis. Mesmo assim, insisti:

- O que se passa? Será por haver aqui esta noite tantos terráqueos e pessoas de outros mundos? - Lawton estava lá, com diversos funcionários do Quartel-General Terráqueo, e ocorreu-me  subitamente que não sabia como Kathie reagiria se de repente visse os uniformes terráqueos, se iria pedir a sua protecção acusando-nos de rapto ou pior ainda. A maioria dos terráqueos nada sabia da tecnologia  das matrizes, e alguns estavam prontos a acreditar em tudo a seu respeito. E estava certo de que aquilo que Callina e eu tínhamos  feito era contra alguma lei.

Dio encontrava-se em ligeiro contacto mental comigo e voltou-se  para mim dizendo com aspereza:

- Não consegues deixar de pensar em Callina nem por um instante,  mesmo quando estás a falar comigo?

 Mal podia acreditar nisto: Dio era ciumenta?

 - Importas-te, preciosa?

 - Não devia, mas importo-me - respondeu ela, olhando para  mim, subitamente séria. - Pensava que não me importaria... se ela te quisesse... mas não quero ver-te sofrer. Parece-me que não sabes tudo a respeito de Callina.

- E tu, evidentemente, sabes?

- Era eu quem devia ter ido para a Torre Comyn, para ser treinada  como substituta de Ashara - disse Dio. - Não quis ser simplesmente  um fantoche de Ashara. Tinha conhecido uma das suas outras Subguardiãs. Por isso assegurei-me de que seria... - hesitou, corando um pouco. - ... desqualificada.

Podia compreender isso. Não há agora qualquer motivo para que uma Guardiã tenha de ser uma virgem juramentada, isolada, sacralizada, quase idolatrada. Com boas razões, permanecem celibatárias  enquanto funcionarem como Guardiãs num círculo, mas não à maneira antiga, supersticiosa, ritualista. Houve tempos em que quando uma mulher escolhia ser Guardiã ingressava numa longa vida de alienação, castidade, separação; agora não, contudo. Todavia,  por alguma razão Ashara escolhia as suas Subguardiãs de entre aquelas que tivessem sido treinadas enquanto virgens, e o método usado por Dio era certamente tão bom como qualquer outro para escapar àquela sentença.

De repente compreendi a razão para Callina me ter rejeitado. O casamento com Beltran seria uma cerimónia vazia, encenada politicamente; Callina não tinha qualquer intenção de desistir da sua posição de Guardiã em substituição de Ashara. Isto era capaz de ser um elogio para mim; ela bem sabia que eu não iria aceitar aquele tipo de separação. Ela não sentia indiferença por mim, e dera-mo a saber. E por essa razão não se atrevia a deixar-me chegar perto dela.

Era portanto uma loucura, uma dupla loucura, amar alguém que me era proibido. Todavia, assustava-me a ideia de que ela talvez  fosse cair debaixo da custódia de Beltran. Ficaria ele satisfeito com um acordo formal, nos termos do qual ele teria o nome de consorte,  sem mais nenhum privilégio? Callina era uma mulher bela, e Beltran não era indiferente...

- Lew, estás outra vez tão longe de mim como se estivesses em Vainwal - queixou-se Dio com irritação, e pegou na taça de sumo que eu lhe preparara. Fiquei a olhar para ela, sem saber o que surgiria a seguir. Eu era um tonto por pensar, mesmo por um momento, em Callina, que me era proibida, que se tinha colocado fora do meu alcance...

 Guardiã ou não, a esposa de Beltran ser-me-ia proibida; eu era Comyn juramentado e eles tinham-lhe conferido imunidade Comyn. Isso era um facto que eu não podia ignorar. E esta história com Dio erguia-se entre mim e qualquer tipo de vida que pudesse construir para mim. Reconheci, com um sentimento de humilhação, que não me competia dizer “fico com esta mulher” ou “fico com aquela”; o que era necessário era saber qual delas me aceitaria. Eu parecia não ter voto na matéria, e de qualquer forma não era nenhuma  grande prenda para qualquer mulher. Mutilado, amaldiçoado, assombrado... Combati uma doentia vaga de auto-comiseração e levantei  o olhar para Dio.

- Tenho de ir apresentar os meus respeitos à minha irmã adoptiva. Queres acompanhar-me?

- Porque não? - respondeu ela encolhendo os ombros, e seguiu-me. Sentia um desconforto irritante, meio telepático. Vi Callina dançando com Beltran, e teimosamente afastei o olhar. Se era isso o que ela queria, tudo bem. Maldosamente, desejei que ele tentasse beijá-la. Quanto a Lerrys, a Dyan? Se eles tinham vindo ao baile, estavam  mascarados e irreconhecíveis. Podia estar presente metade da colónia terráquea, e eu não daria por isso.

Mas Linnell estava a dançar com alguém que eu não reconhecia; dirigi-me para onde Merryl Aillard e Derik conversavam indolentemente,  num recanto. Derik parecia congestionado, e a sua voz era espessa e insegura.

- Boa noite, Lew.

- Derik, viste Regis Hastur? Como está ele mascarado?

- Sei lá... - disse Derik, numa voz indistinta. - Chamo-me Derik, e não sei mais nada. Tenho até dificuldade em lembrar-me disso. Devias experimentar este sumo.

- Belo espectáculo - sussurrei. - Derik, seria bom que te lembrasses de quem és! Merryl, não poderás levá-lo daqui para fora até ele ficar mais sóbrio? Derik, não entendes que estás a dar espectáculo  aos terráqueos e à nossa gente?

- Tá-me a parecer que te esqueces de quem és - ripostou Derik  numa voz arrastada. - Não tens nada a ver com o que faço... seja como for, não tou bêbedo...

- Linnell deve estar muito orgulhosa de ti - respondi com brusquidão. - Merryl, vai enfiá-lo debaixo de um duche frio ou qualquer coisa, está bem?

- Linnell tá zangada comigo - disse Derik num tom de íntima comiseração. - Nem quer danc...

- Quem haveria de querer? - resmoneei, apoiando-me em ambos os pés para resistir à vontade de lhe dar um pontapé. Já era bastante mau precisar-se de uma Regência nos tempos que corriam.

Mas, quando o presuntivo herdeiro da coroa dá um espectáculo de bebedeira perante meia Thendara, ainda se tornava pior. Resolvi ir procurar Hastur, que tinha autoridade que eu não possuía e alguma influência junto de Derik, ou pelo menos assim eu esperava. Merryl tinha, mas não podia contar com ele. Percorri com o olhar aquela confusão de máscaras à procura de Danvan Hastur, ou mesmo de Regis. Ou quiçá conseguisse encontrar Linnell, que talvez pudesse persuadi-lo a abandonar o salão até lhe passar o efeito.

Uma das máscaras atraiu-me subitamente o olhar. Já tinha visto  imagens de arlequins como este em velhos livros na Terra: um trajo colorido, com um gorro bicudo sobre um rosto coberto por uma máscara, chupado e de aspecto desagradável. Não era a fantasia  em si, que era apenas grotesca, mas como que uma espécie de atmosfera... Disse a mim mesmo para não imaginar coisas.

- Pois, também não simpatizo com ele - disse Regis ao meu lado. - E também não gosto da atmosfera deste salão... ou desta noite.

- Tenho a sensação de que já o vi anteriormente - disse eu.

Não fazia ideia do que estava prestes a dizer até me ouvir a dizê-lo:

- Sinto-me... sinto-me como se o inferno estivesse prestes a escancarar  as suas portas!

Regis acenou gravemente, dizendo:

- Tens um pouco do Dom de Aldaran, não tens? Presciência...

- Reparou que Dio estava ainda ao meu lado e fez-lhe uma vénia: Saudações, vai domna. Sois a irmã de Lerrys, não sois?

Olhei de novo para o homem mascarado de arlequim. Tinha a sensação de que o conhecia, de que o seu nome me estava na ponta da língua. Ao mesmo tempo senti um curioso arrepio de medo; que motivo me impediria de me recordar, de reconhecê-lo?

Contudo, antes de conseguir lembrar-me, as luzes da abóbada foram desligadas. O salão ficou imediatamente inundado pela luz do luar. Escutou-se um suave “A-ahh-” de admiração de todos os presentes enquanto através da transparência da abóbada surgiam as quatro luas flutuando nas alturas, em perfeita conjunção, umas acima das outras: o violeta pálido de Liriel, o verde-mar de Idriel, o tremeluzir de cauda de pavão de Kyrddis e o desmaiado tom de pérola de Mormallor. Senti um ligeiro toque no meu braço e voltei-me  para Dio. Não foi assim que imaginei que voltaríamos para casa juntos...

Por um instante não tive a certeza de que o pensamento teria sido dela ou meu. Vários pares iam-se dirigindo para a pista para a dança do luar que era tradicionalmente uma dança para casais comprometidos; vi Linnell aproximar-se de Derik - estivesse embriagado ou não, Linnell considerava-se prometida a ele e portanto obrigada a participar. Subitamente senti-me incapaz de resistir ao antigo laço, à antiga atracção: tomei Dio nos meus braços e conduzi-a até ao centro da pista de baile. Por cima do ombro dela vi que Regis estava sozinho junto da pista, com uma expressão calma e indiferente, apesar  das damas que insistiam em postar-se convenientemente próximo  dele, na eventualidade de Regis optar por uma delas. Sentia Dio confortável e familiar nos meus braços. Seria isto o que eu sempre desejara? Constatei que me melindrava aquele seu sorriso de quem aceitava tanta coisa como certa. Contudo o ritmo da música martelava-me  no sangue. Tinha-me esquecido disto, da sensação de me encontrar  em total sintonia com alguém, de reagirmos identicamente a cada música como se fôssemos um único corpo. Como já fizera uma vez, ela entrou em contacto mental comigo, quase involuntariamente,  e o toque mental surgiu entre nós, uma junção mais cerrada do que qualquer intimidade física... proximidade, refúgio, realização  pessoal. Enquanto o acorde final da música ressoava na noite, apertei-a contra mim e beijei-a, com força.

O silêncio que se seguiu foi como que um anticlímax. Dio desviou-se  dos meus braços, e senti-me outra vez enregelado e sozinho.

As luzes, acendendo-se de novo debaixo da abóbada, captaram-na olhando para mim com um sorriso estranho.

- Então, sempre me deste um pouco de ti... - disse ela com suavidade. - Teria alguma vez sido algo mais do que isso, Lew... só o facto de eu ser uma mulher e tu te sentires sozinho e... necessitado? Nunca terá sido nada mais do que isso?

- Não sei, Dio. Juro que não sei - respondi penosamente. Poderemos pôr isso de parte por agora, para o resolvermos noutra oportunidade, quando... quando metade de Thendara não estiver a observar-nos?

Inesperadamente, ela declarou com uma expressão grave:

- Não creio que iremos ter muito mais tempo. Estou assustada,  Lew. Algo está terrivelmente errado. À superfície tudo parece estar  como sempre esteve. Mas há qualquer coisa... qualquer coisa que não devia estar aqui, e não sei o quê...

Dio possuía o dom de hipersensibilidade dos Ridenow, e eu confiava nos seus instintos. Mas o que poderia eu fazer? De certeza nada poderia acontecer aqui, ninguém ousaria atacar qualquer de nós na presença da Cidade e de todos os convidados aqui reunidos.

Contudo, Regis tinha manifestado idênticas preocupações, e eu próprio  sentia-me inquieto.

Ao avançar por entre a multidão, à procura de Linnell ou de Callina, deparei-me novamente com o estranho mascarado de arlequim. Quem conheceria eu assim alto e esguio, e por que motivo me pareceria ele tão estranho e ao mesmo tempo tão familiar? Era demasiado  alto para ser Lerrys, e contudo parecia-me que a hostilidade que ele irradiava era muito semelhante à que eu sentira em Lerrys quando este me tinha advertido de que eu devia conservar-me afastado  de Dio. (E Dio estava ao meu lado. Iria Lerrys cumprir as ameaças, aqui e agora?)

Continuei avançando. Tinha falado com Regis esquecendo-me de me referir a Derik; havia tanta coisa na minha mente, e parecia-me que tinha vagueado sem destino por entre esta maldita e barulhenta  multidão durante toda a noite, e as minhas barreiras começavam a  ; soltar-se. Não seria capaz de suportar por muito mais tempo este  chocalhar inarmónico. Alguns cadetes juntavam-se ao longo das mesas do banquete, atacando com avidez os acepipes ali amontoados,  deliciados com a folga do rancho do quartel. Entre eles reconheci os  dois filhos de Javanne, Rafael e o Gabriel mais velho. Provavelmente algum deles considerava-se ainda o meu Herdeiro...

Eu não tenho nenhum filho. Nunca irei ter um filho, mas tenho  uma filha, e lutarei pelo seu direito de herdar Armida quando eu morrer... e senti-me tomado por uma doentia sensação de futilidade. Res Restaria ainda alguma coisa para herdar, depois de Beltran ocupar o seu  lugar no Conselho Comyn e destruir-nos a todos? Não seria melhor pegar em Marja - e em Dio também, se ela aceitasse - e regressar  à Terra, ou a Vainwal, ou partir para um dos mundos situados no extremo  mais longínquo do Império, onde poderíamos construir uma vida nova para nós?

Não sou um lutador. Posso lutar, se for forçado a isso, e o meu  pai, desde o dia em que fui capaz de agarrar o punho de uma espada, bem tinha tentado certificar-se de que eu seria bom naquilo, mas eu aprendera só porque não tinha outra alternativa. Mas nunca gos tei, apesar dos seus esforços para que me tornasse exímio no mane jo das armas, no combate desarmado, nas artes guerreiras.

Até as suas derradeiras palavras tinham falado em batalhas...

Podia ouvi-las agora, encapelando-se dentro de mim como se estivessem a ser ditas neste momento e não apenas recordadas: Regressa a Darkover, luta pelos direitos do teu irmão e pelos teus...

 ... e tinha-me empurrado para este inferno em ebulição...

- Para que estarás tão carrancudo, Lew? - inquiriu Linnell numa amável reprimenda. - Julgava que estávamos numa festa!

 Tentei moldar o meu rosto num sorriso sociável. Por vezes preferiria  encontrar-me no mais frio dos nove infernos de Zandru do  que estar no meio de uma multidão onde teria de me mostrar comunicativo,  e esta era uma dessas ocasiões, mas não desejava estragar a satisfação de Linnell.

- Desculpa - respondi -, a minha cara já é bastante feia sem que me ponha a fazer caretas.

- Tu não és feio para mim, irmão adoptivo - disse ela, num tom carinhoso. - Gostava que o teu rosto não tivesse marcas, mas só porque isso significaria que não tinhas sofrido tanto como sofreste. As flores que me mandaste eram lindas. - Em seguida acrescentou: - Vês? Estou a usar algumas delas a enfeitar o meu vestido.

Sorri-lhe, comprometido, e disse:

- Vais ter de agradecer a Andres, pois foi ele que as escolheu.

Mas ficam-te bem, de facto. - Também Linnell me parecia uma flor, rosada e resplandecente, a sorrir para mim.

- Vi-te a dançar com Derik; espero que tenhas recomendado a Merryl que o leve daqui para fora até que ele fique sóbrio!

- Mas ele não está ébrio, Lew - replicou Linnell com toda a seriedade, pousando a mão no meu pulso. - Foi só que teve a pouca sorte de sofrer um dos seus acessos precisamente na Noite do Festival... Fica assim às vezes; quando era mais novo costumavam retê-lo  na cama e fora das vistas. Ele nunca bebe, porque a bebida fá-lo ficar muito pior; nem sequer toca no vinho às refeições. Zanguei-me  com ele porque tinha tomado uma bebida... um sumo de fruta que tinha sido reforçado com o potente firi, e ele não quis ofender Merryl recusando-se a beber...

- Foi uma partida mesquinha; eu também provei um pouco... - comentei. - Gostaria de saber quem terá sido o autor, levando Derik a beber a mistela... - Eu tinha algumas suspeitas. Lerrys, por exemplo, havia de gostar de ver o nosso rei presuntivo, pobre desgraçado,  a fazer uma figura ainda mais triste do que era habitual.

- Deve certamente ter sido por acidente, Lew - disse Linnell, chocada. - Ninguém seria capaz de fazer uma coisa dessas propositadamente,  pois não? O sabor é mesmo agradável, eu nem notei que havia qualquer coisa misturada lá; só por acaso não bebi mais do que um copo, e o pobre Derik, coitado, não está suficientemente habituado a beber para saber que uma coisa com gosto a fruta podia  fazê-lo piorar tanto...

Portanto, alguém com interesses inconfessáveis em demonstrar a incompetência de Derik tinha-se certificado de que ele iria ingerir uma bebida de gosto inofensivo que realçaria os seus vários impedimentos  e confundi-lo-ia mais do que nunca. Seria Merryl? Este era supostamente seu amigo. Lerrys? Este seria capaz de fazer qualquer coisa que nos atirasse para os braços do Império Terráqueo, e possuía  o tipo de mente capaz de apreciar uma artimanha suja como aquela. Intrigava-me que Dio, saída daquela família, fosse tão franca  e íntegra.

- Pois bem, ele parecia mesmo embriagado, e estou certo de que quem o viu terá pensado o mesmo - comentei.

- Quando estivermos casados - disse ela, sorrindo gentilmente -, hei-de me certificar de que ninguém poderá levá-lo a fazer coisas destas. Derik não é sempre um tonto, Lew. Sei que não é esperto, e irá certamente necessitar sempre de alguém como Regis - ou como tu, Lew - para o orientar em questões de política. Mas ele conhece as suas limitações, e irá deixar-se guiar. E certificar-me-ei também de que não será Merryl quem o vai guiar.

Linnell poderia parecer uma jovem frágil e susceptível, mas por detrás de tudo isso existia também bom senso e espírito prático.

- É pena que não sejas tu a Chefe do Domínio, mana - comentei.

 - Ninguém iria conseguir forçar-te a casares com Beltran.

Reparei que Kathie estava a dançar com Rafe Scott, e fiz votos de que ela tivesse tido o necessário bom senso para não lhe contar nada. E por detrás dela estava o arlequim que me perturbava tão profundamente...

 Raios, quem seria ele?

- Lew, quem é Kathie? Quando estou perto dela sinto-me terrivelmente  estranha. Não é o facto de ser tão parecida comigo; é mais como se ela fosse uma parte de mim. Sei o que ela vai fazer antes que o faça... Sei, por exemplo, que vai voltar-se para cá, pronto,  estás a ver? E vai dirigir-se para aqui... e depois sinto uma espécie  de dor, como se tivesse de lhe tocar, de abraçá-la. Não sou capaz de me manter afastada dela! Mas quando chego mesmo a tocar-lhe tenho de recuar, não posso suportar...

Linnell estava a retorcer as mãos nervosamente, prestes a rebentar  num choro ou num riso histérico, e ela não era rapariga para se afligir com trivialidades. Se aquilo estava a afectá-la de tal modo, o caso poderia ser sério. O que aconteceria, perguntei a mim mesmo,  quando os duplos de Cherilly se encontravam?

Bem, estava prestes a descobrir, fosse o que fosse. Kathie, logo que acabou de dançar, encaminhou-se para Linnell. Estaria ela a executar alguma maliciosa partida mental na minha prima? Mas não; Kathie desconhecia os poderes darkoverianos, e, ainda que possuindo laran potencial, nada poderia atravessar aquele bloqueio que eu tinha erigido em redor da sua mente.

Linnell tocou na mão de Kathie, quase com timidez; em resposta  imediata, Kathie pôs um braço à volta da cintura de Linnell, e ambas caminharam enlaçadas durante um ou dois minutos, e a seguir,  com um movimento súbito, Linnell libertou-se e aproximou-se  de mim.

- Está ali Callina - anunciou.

A Guardiã, soberba no seu vestido de estrelas, abriu caminho por entre o dédalo de dançarinos procurando novos pares e dirigiu-se  às mesas da restauração.

- Onde tens estado, Callina? - quis Linnell saber. Olhou para o vestido com lamentoso espanto, mas Callina não fez qualquer esforço  para se justificar. Entrei em contacto mental com ela, mas senti apenas a estranha, gélida, rígida presença que já sentira por uma ou duas vezes junto de Callina, uma porta ruidosamente fechada e trancada, fria e melindrada.

- Ora, Derik chamou-me de parte para me contar uma longa e estonteada história... Pareceu-me ter-te ouvido dizer que ele nunca bebia, Linnell? Não chegou a contar-me tudo; o vinho acabou por tomar conta dele. Que Derik nunca se deixe conquistar por um inimigo  pior. Mandei Merryl procurar o seu criado pessoal para o levarem  até aos seus aposentos, e por isso vais ter de encontrar outro par para a dança da meia-noite, minha querida. - Olhou sobranceiramente  em redor da sala. - Acho que vou ter de dançá-la com Beltran. Hastur está a acenar-me: talvez pretenda iniciar já a cerimónia.

- Queres que vá contigo?

Callina respondeu, com indiferença:

- Não tenciono conferir a esta farsa o aparato de um casamento,  Linnie. Não pretendo também arrastar qualquer parente comigo... Porque pensas tu que me certifiquei da ausência de Merryl?

- Oh, Callina... - disse Linnell, tentando abraçá-la, mas ela retraiu-se, deixando Linnell de braços estendidos, sofrida e espantada.

- Não sintas pena de mim, Linnell - disse Callina com nervosismo.

 - Não poderia aceitar isso. - Tinha quase a certeza de que o que ela pretendia dizer era: “Não poderia suportar isso”... Não sei o que eu poderia ter dito ou feito naquele momento se ela se tivesse voltado para mim. Mas em vez disso afastou-se de nós; com olhos velados, azuis de gelo com os de Ashara, passou por mim em silêncio. Amargurado e sem saber o que fazer, fiquei a vê-la afastando-se  por entre a multidão, envolta naquele seu vestido que era um lembrete de morte, perdição, sombras.

Devia ter previsto tudo nesse momento, ao vê-la deixar-me sem uma palavra nem um toque, silenciosa e remota como a própria Ashara,  construindo uma ilha solitária com a sua tragédia e isolando-se de todos nós. Vi Beltran, ao lado de Hastur, adiantar-se uns passos para acolhê-la, e ela deu-lhe apenas uma vénia formal e não um abraço. Ouvi as pulseiras sendo aferrolhadas nos pulsos de ambos.

- Separados na carne, mas nunca no espírito; possam ambos ser apenas um só - proclamou Hastur. E por todo o salão esposas cingiram esposos, amantes cingiram amantes, para trocarem o beijo protocolar. Callina era a consorte de Beltran, o matrimónio estava legalizado, a partir do momento em que Hastur libertara a mão dela.

Não me voltei para ver se Dio estaria perto de mim. A verdade era que, naquele momento, tinha-me esquecido da sua existência, de tal forma me encontrava envolvido na angústia de Callina.

A dança a seguir aos esponsais era sempre, por tradição, destinada  a pares casados ou prometidos. Callina, com o privilégio da noiva, conduziu Beltran até à pista, mas moviam-se tocando apenas as pontas dos dedos. Vi Javanne e Gabriel encaminharem-se sorridentes  para a pista de dança; o Regente fez uma vénia a uma idosa viúva, uma das parentes afastadas de Callina, e começaram ambos a acompanhar a tranquila música.

- Regis - disse Linnell com animação -, vais decepcionar esta noite uma vez mais todas as mulheres solteiras dos Domínios?

- Mais vale decepcioná-las agora do que mais tarde, parente - ripostou Regis, sorridente. - Mas vejo que também tu não estás  a dançar. Onde pára o nosso real primo?

- Está adoentado; alguém lhe deu um pouco de ponche mais potente do que ele pensava - explicou Linnell -, e Merryl levou-o  daqui para fora, e por isso não tenho parente nem amante com quem possa dançar esta noite... a não ser que tu queiras dançar, Lew. És mais meu irmão do que Merryl alguma vez já foi - acrescentou,  com um toque de contrariedade.

- Perdoa-me, Linnie, mas prefiro não dançar - respondi, e pensei  se ainda estaria um pouco ébrio; sentia-me irrequieto, quase nauseado.

 Seria apenas o desconforto geral de um telepata quando as multidões estão a cercá-lo de muito perto?

- Olha, até Dyan está a dançar com a viúva do velho mestre-de-armas  - disse Linnell - e Dio com Lerrys... olha, não achas que ele é um grande dançarino? - Segui o olhar dela. Vi o irmão dançando com a irmã, muito juntos nos braços um do outro, mais como amantes do que como irmãos, e por um instante desejei atravessar  correndo a pista e, ultrajado, lembrar Lerrys de que Dio era minha... mas senti-me incapaz de me mover. Se tentasse dançar, acabaria  decerto por me estatelar, apesar de ter bebido bem pouco daquela  condimentada mistela.

Fazendo uma reverência a Linnell, Regis anunciou:

- Dançarei contigo como substituto de Derik, se assim desejares,  prima. Parece que sou o herdeiro de Derik... mas possa o seu reinado  ser longo - acrescentou, com um sorriso amargo.

- Não, será melhor não - respondeu ela, pondo-me uma mão no braço -, mas podes ficar e conversar comigo enquanto a dança durar... Lew, conheces aquele homem ali, com a máscara de arlequim? Quem é a mulher que está com ele?

Por um instante não consegui localizar o arlequim que anteriormente  atraíra a minha atenção, mas finalmente vi-o, dançando com uma mulher alta com cabelo acobreado escuro, espessas ondas maravilhosas  que lhe desciam até ao meio das costas. A marcação da   dança fê-los voltarem-se eventualmente na minha direcção e, apesar de a mulher ter uma máscara a cobrir-lhe o rosto, reconheci-a repentinamente,  reconheci os dois, mesmo por detrás da odiosa máscara de arlequim.

Thyra! Nenhuma máscara poderia escondê-la de mim... Durante  um momento pareceu-me que a matriz que eu trazia ao pescoço  ardia com o fogo de Sharra. Fiquei em choque, incapaz de me mover, observando o meu declarado inimigo e tentando desesperadamente  deduzir que motivo os traria até aqui, até ao próprio coração  de Thendara, com Kadarin condenado à morte tanto pelos Terráqueos como pelo Comyn! Apertei com a minha mão válida o punho da adaga que trazia à cintura, desejando não ter colocado a mão artificial que me dificultaria os movimentos. Kadarin e Thyra, dançando ousadamente no baile de máscaras do Comyn...

Mas agora, terminada a dança, todas as máscaras iam sendo removidas; arranquei a minha usando a mão mecânica, pois a outra  continuava agarrando firmemente a minha adaga. Pensaria ele que eu não ia atacá-lo aqui por estarmos a meio de um baile?

Reparei que Regis também o havia reconhecido. Dei um passo em frente, e Regis segurou-me por um braço.

- Calma, Lew - murmurou. - É isso o que ele quer que faças,  que te atires a ele sem pensar.

A matriz que eu tinha ao pescoço estava subitamente viva e em chamas. E uma voz sussurrou na minha mente: ... Estou aqui! Estou aqui... Toda a tua raiva, toda a tua fúria de luxúria frustrada, solta-as sobre eles para me servires, queimando,  ardendo...

Sharra! A voz de Sharra, sussurrando como um fantasma frenético  na minha mente, a fúria de toda a minha frustração, saltando para me atraiçoar... Os olhos de Thyra, fixados nos meus, a chama vermelha dos seus cabelos parecendo erguer-se em labaredas à volta  dela! E repentinamente envolveu-a por completo, enquanto ela parecia tornar-se mais alta, agigantando-se sobre nós até alcançar o tecto do salão de baile, e então vi a comprida e magra mão de Kadarin,  a mão de um chieri, relampejar e empunhar a espada, aquela espada...

A espada convocou-me. Eu tinha-a carregado involuntariamente por meia galáxia por não poder deixá-la para trás, e agora ela chamava-me,  chamava-me... Meio inconsciente, deixei a minha adaga recolher-se na bainha; o meu lugar era ao lado de Kadarin, dando força à Deusa, vertendo através dela toda a minha raiva e terror e frustração... A minha mão subiu até à matriz que tinha pendurada ao pescoço. Vi uma mulher, cujo nome não conseguia recordar, fixando-me com enormes olhos azuis... Ouvi-a murmurar um nome que eu já não associava a mim próprio, mas ela nada representava para mim, e vi um homem jovem com o rosto de um inimigo mortal...

Hastur, ele era Hastur... o inimigo mortal, o primeiro a atacar!

Senti a mão dele apertando-me o braço e repeli-o com uma força inusitada, fazendo os seus joelhos cederem espalhando-o no chão; e entretanto o padrão de ódio e medo, de um misto de amor e aversão, martelava-me o cérebro... Dei um passo, e em seguida outro, na direcção de onde a Deusa irrompia em chamas por cima de mim.

Tenho de regressar... de regressar a Sharra, regressar ao vulto imortal que para sempre se eleva em chamas acima de mim, de me queimar no fogo purificante... Ela estava lá, Marjorie, chamando-me  do interior das labaredas de Sharra, aqueles feiticeiros olhos ambarinos, a cascata de cabelo vermelho arremessando alucinadas faíscas e chamas, e o cheiro do fogo, enquanto eu ardia por ela com luxúria e terror...

Aquele que eu sabia ser o meu inimigo mortal estava a segurar-me  agora com ambas as mãos enquanto eu me debatia caminhando  passo a passo, por entre os gritos da multidão, para onde Sharra ardia...

- Não, raios, Lew - gritou ele. - Tu não vais, nem que tenha  de te matar primeiro dando-te uma morte limpa... - e atacou-me  com a sua adaga, riscando uma linha de sangue no meu braço bom. A dor fez-me hesitar, recuperando um pouco o domínio de mim mesmo, tentando saber o que estava a acontecer.

- Regis, ajuda-me! - ouvi a minha voz a suplicar.

- A tua matriz! Deixa-me... - Antes que eu pudesse reagir, ele estendeu para mim a sua adaga e cortou o cordão que segurava a minha matriz à volta do pescoço; retesei-me, na expectativa de uma agonia intolerável... uma vez Kadarin tinha-ma tirado, provocando-me  uma série de convulsões... mas mesmo através do saco de cabedal e do isolamento e seda senti o toque...

O vulto de Sharra vacilou, abateu-se... Eu não sabia o que Regis  estava a fazer, mas, fio por fio, pareceu-me que o aperto de Sharra  ia-se aliviando no meu cérebro. Continuava a escutá-la, uma voz suave e insidiosa sussurrando na minha mente...

Regressa para mim, regressa, vinga-te de todos aqueles que te desprezaram e te apoucaram... regressa, regressa...

... para Darkover e luta pelos direitos do teu irmão e dos teus... Mas agora era a voz do meu pai: nunca pensara que havia gostar de escutar aquela voz obsidente na minha mente, mas agora fazia-me regressar inteiramente a mim mesmo, como um mergulho num ribeiro gelado. Depois também isso deixei de ouvir, e fiquei a olhar para Kadarin e Thyra onde ambos se encontravam, a espada de Sharra ainda na mão de Kadarin e o cabelo de Thyra ainda a agitar-se  com as derradeiras faíscas da chama moribunda.

Gabriel separou-se de Javanne e deu uns passos rápidos na direcção  de Kadarin, de espada empunhada. Talvez tivesse visto apenas  surgir no salão um homem que era procurado pela justiça; nunca cheguei a saber se o Vulto de Fogo tinha sido real ou se alguém além de mim próprio o teria visto. Kadarin rodopiou, empurrando Thyra à sua frente, ao mesmo tempo que Gabriel chamava a Guarda e os jovens cadetes acorriam vindos de todos os lados do salão. Empunhei  de novo a minha adaga e corri também para ele, e depois estaquei,  paralisado...

O ar parecia carregado de uma luz fria e cintilante. Kadarin e Thyra estavam também imóveis, e vi Kathie apanhada entre eles.

Não lhe tocavam fisicamente, mas havia algo que a sacudia como se estivesse apanhada por algum ser invisível provido de garras  que logo a lançou para o lado e agarrou Linnell. Esta ficou retesada  como se estivesse atada de pés e mãos. Parece-me que ela gritou, mas o próprio conceito do som tinha definhado na escuridão  que se intensificava em redor de Kadarin e de Thyra. Linnell fraquejou, fantasmagoricamente retida pelo ar vazio; depois caiu, batendo no pavimento com um impacto esmagador, como se algo a tivesse sacudido e depois largado. Tentei correr para ela, gritando maldições sem som, mas não podia mover-me, e mal podia ver.

Kathie atirou-se ao chão ao lado de Linnell. Parece-me que ela era a única pessoa capaz de se movimentar em todo o salão. Ao levantar  Linnell nos seus braços vi que o rosto torturado desta estava já suavizado e livre de horror; por um momento Linnell permaneceu imóvel, em repouso, e depois o seu corpo contorceu-se num espasmo de estalar ossos para logo se afrouxar, um corpo pequeno e flácido com a cabeça repousando no seio da sua gémea.

Por cima dela o Vulto de Fogo cresceu de novo durante um instante,  com os rostos de Kadarin e de Thyra resplandecendo no seu interior... até que tudo se dissipou, e por um momento aquela fria e odiosa máscara que eu tinha visto na Torre de Ashara pairou diante dos meus olhos...

... até desaparecer por completo. Havia apenas um ligeiro movimento  no ar, e Kadarin e Thyra haviam também desaparecido. As luzes reacenderam-se e ouvi Kathie gritar, e escutei também os gritos  da multidão enquanto eu abria caminho brutalmente até chegar junto de Linnell.

Ela estava morta, evidentemente. Soube-o ainda antes de colocar  a mão sobre a de Kathie numa vã tentativa de lhe sentir a pulsação.

Linnell jazia num patético montículo, repousando no colo de Kathie. Atrás dela, painéis enegrecidos e chamuscados indicavam o local onde a distorção se extinguira e de onde Kadarin e Thyra haviam  desaparecido. Callina abriu caminho por entre a multidão e veio inclinar-se sobre Linnell. À minha volta ouvia o barulho da multidão do Festival a desvanecer-se. Gabriel mandou sair a Guarda numa tentativa que eu sabia ser infrutífera, pois Kadarin não teria saído do castelo assumindo qualquer forma reconhecível, e uma busca  pelos terrenos em volta do castelo não serviria de nada, mesmo se o Legado Terráqueo juntasse as suas forças às nossas na caça ao homem  que todos procurávamos. A multidão acumulava-se à nossa volta,  e ouvi aquele terrível som de aversão e curiosidade que percorre qualquer agrupamento de pessoas quando acontece uma tragédia.

Hastur disse alguma coisa, e as pessoas começaram a abandonar silenciosamente  o salão. Pensei: É esta a primeira vez em centenas de anos que este Festival é interrompido.

Regis permanecia muito direito como se fosse um dos pilares do Castelo, com o rosto lívido e a mão ainda apertando a sua matriz.

O Dom de Hastur. Não sabíamos o que era, mas tínhamos testemunhado  o seu poder, agora pela segunda vez.

Callina não havia soltado uma única lágrima. Estava apoiada no meu braço, tão tolhida pelo choque que nem havia pesar nos seus olhos. Apenas parecia confusa. Agora a minha maior preocupação  era levá-la para longe da curiosidade da multidão. Era estranho  eu não ter pensado em Beltran uma única vez, apesar de a pulseira do matrimónio estar ainda aplicada em volta do pulso de Callina.

Os seus lábios moveram-se.

- Então era isto o que Ashara tinha planeado... - sussurrou.

Desmaiou, caindo flácida nos meus braços.

 

O DOM DE HASTUR

Depois de Lew ter transportado Callina para fora do salão de baile, o primeiro  pensamento de Regis Hastur foi para o seu avô. Correu para o local onde o tinha visto pela última vez observando os dançarinos; encontrou-o lá, pálido e combalido, mas ileso.

- Linnell morreu... - disse Regis, e Danvan Hastur levou a mão ao peito sobre o coração e disse, ofegante:

- E o príncipe, o que aconteceu a Derik? - Tentou pôr-se em pé mas caiu para trás, e Regis disse:

- Não te movas, avô... eu trato de tudo. - Fez um aceno a Danilo, que atravessou o salão correndo.

- Fica aqui - disse-lhe. - Zela para que ninguém incomode o lorde Hastur.

Danilo abriu a boca para protestar, mas desistiu, respondendo:

- A vos ordenes... - Regis abriu caminho por entre o aglomerado  de pessoas, vendo que Gabriel se dirigia a Beltran, o qual permanecia imóvel, de boca aberta.

- Lorde Aldaran - disse Gabriel Lanart-Hastur -, entregai-me  a vossa espada, por favor.

- Mas eu nada fiz...

- Mesmo assim... - retorquiu Gabriel, impassível. - Vós estivestes há tempos entre aqueles que tentaram introduzir Sharra entre nós. A vossa espada, sir. - Meia dúzia de guardas, com as espadas prontas a ser empunhadas, avançaram para ele, e Beltran respirou fundo, olhando de guarda para guarda, evidentemente calculando  as suas possibilidades; depois encolheu os ombros e entregou  a sua espada, de punho para diante, a Gabriel.

- Conduzam-no para os aposentos de Aldaran - disse Gabriel  - e certifiquem-se de que ele não sai de lá, seja por que motivo  ou pretexto for, até que o Regente fale com ele e se convença da sua inocência. Assegurem-se de que não recebe quaisquer... - hesitou  - ...quaisquer visitas não autorizadas.

O príncipe! Tenho de ir ver o que terá acontecido a Derik. Apesar  de não se encontrar no salão de baile, se as suas barreiras estavam  descidas... Para onde o terá Merryl levado, em nome de todos os deuses?

Regis subiu apressado as escadarias, correndo ao longo dos corredores  e vestíbulos. Nos aposentos de Elhalyn havia luzes acesas, e escutou um agudo queixume lamuriento proveniente de lá. Soube nesse momento que tinha chegado demasiado tarde. Derik jazia parcialmente  caído sobre um divã; Merryl, ao seu lado, estava deitado sobre o corpo de Derik, como se no derradeiro momento tivesse tentado  resguardar o seu amigo e senhor de alguma ameaça invisível.

Estava a soluçar, mas Derik permanecia imóvel, e quando Regis lhe tocou já se encontrava frio. A lamúria vinha de uma dama idosa que tinha sido a ama de Derik quando este era criança, e que cuidara desde então do seu enfermiço pupilo. Regis olhou com expressão lamentosa para o corpo inerte do jovem.

Merryl pôs-se em pé, tentando controlar as lágrimas, dizendo:

- Não sei... repentinamente ele gritou como se estivesse a lutar  com alguma coisa, e caiu desta maneira...

- Foste tu, Merryl, quem pensou que seria engraçado fazer com que o príncipe ficasse embriagado esta noite?

- Embriagado? -Merryl olhou espantado para ele. - Ele não estava embriagado... a única coisa que bebeu foi um pouco de sumo de fruta, tão adocicado que eu nem fui capaz de ingeri-lo! Ele não estava... - Então começou a fazer-se luz na mente de Merryl, que fez um esforço para interpretar a verdade. - Então foi por isso que... Dom Regis, teria alguém adulterado aquela bebida por pura maldade?

- A maldade deles foi pior do que pensavam - disse Regis com severidade, sem saber de novo quem teria pregado uma partida tão cruel. Talvez Lerrys, na esperança de que Derik desse um triste espectáculo de embriaguez perante o Comyn e os convidados terráqueos,  para demonstrar que o Domínio de Elhalyn se encontrava em mãos incompetentes? Se fosse assim, ele havia-se excedido e a brincadeira descambara em morte. Regis não acreditava que Lerrys tivesse sujado as mãos encarregando-se pessoalmente do feito, mas uma judiciosa espórtula a algum das dezenas de criados teria assegurado  a realização do serviço. - Se as barreiras de Derik tivessem estado meio-normais, ele teria dado luta, e talvez tivesse vencido, tal como eu e Lew...

Merryl estava agora chorando copiosamente, desvergonhado. Regis sempre pensara que Merryl se havia pendurado ao príncipe, lisonjeando-o, para o seu próprio benefício; agora constatava que o jovem tinha genuinamente nutrido uma estreita amizade pelo príncipe. E Regis via-se obrigado a transmitir-lhe outra má notícia.

- Lamento ter de te dizer isto... Linnell também faleceu.

- A pequena Linnie? - Merryl esfregou os olhos, mas parecia  atordoado e desgostoso. - Não parece possível. Eles estavam tão felizes esta noite, os dois... O que aconteceu, Regis?

Regis constatou que mal podia dizer o nome.

- O Castelo foi invadido. Alguém tentou invocar... - Ele forçou  os seus lábios a pronunciarem o nome, mas este saiu apenas como um sussurro de terror; o Vulto de Fogo estivera ainda há pouco na sua mente - ...Sharra.

Com uma voz dura e carregada de veneno, Merryl exclamou:

- Isto foi obra daquele bastardo Alton! Juro que hei-de matá-lo!

- Não farás nada disso! - ripostou Regis. - Os... invasores... Kadarin e os seus... estavam a tentar atrair Lew de volta para  eles, e Lew deu luta e foi... foi ferido. - Recordou-se de novo do  sangue escorrendo pelo braço de Lew em resultado do ferimento que  ele próprio lhe infligira, mas não se sentia arrependido. Tinha sido  necessário fazer alguma coisa desse género para que Lew voltasse a ! si, dando-lhe forças para poder resistir a Sharra.

Parece-me que exerço algum poder sobre o Vulto de Fogo. Mas sem Lew nada teria podido fazer.

- Merryl, tenho de ir participar ao meu avô o que sucedeu ao príncipe Derik. Já não podes fazer nada por ele, rapaz - acrescentou  sentidamente, e não lhe pareceu estranho tratar Merryl por “rapaz”,  apesar de este ser apenas um ou dois anos mais novo do que ele. - Era melhor ires visitar as tuas irmãs.

- Não sou Chefe do Domínio - disse Merryl. - Elas não precisam de mim... Abruptamente um temor respeitoso espalhou-se-lhe  no rosto, e Merryl ajoelhou-se.

- O príncipe Derik está morto. Possa o vosso reino ser longo, Príncipe Regis de Hastur e Elhalyn!

- Pelos infernos de Zandru! - murmurou Regis. Tudo sucedera  tão depressa que ele não tinha chegado a compreender: aquilo que ele mais receara acabava de lhe acontecer. Derik tinha falecido, jovem e sem filhos, e ele, Regis, era quem se encontrava mais próximo  do trono. Todas as implicações desse facto atordoavam-no; tinha  agora uma hierarquia mais elevada do que mesmo a do seu avô, pois deixava de existir a necessidade de uma Regência. Sou o Senhor do Comyn. Eu, Regis Hastur.

Cobriu o rosto com as mãos. Tudo aquilo era difícil de absorver,  e repentinamente constatou que a batalha com Sharra o tinha deixado esgotado e exausto, muito mais do que supusera. Receou estatelar-se no chão, pois os seus joelhos recusavam-se a mantê-lo de pé. E ainda não estou habituado ao laran que empreguei esta noite. Usei-o para livrar Lew das garras de Sharra, sem saber como nem porquê. Senhor da Luz! Como irá tudo isto terminar?

Hesitante, tentando encontrar as palavras certas, Regis disse:

- Vai procurar Lorde Hastur, Merryl; tenho de lhe participar a morte de Derik... - Uma parte dele desejava esconder-se, fugir como uma criança, porque logo que o seu avô tivesse conhecimento  disto o processo seria inexorável, rolando sobre ele e esmagando-o  como uma daquelas grandes máquinas de remoção de terras que ele vira a trabalhar no espaçoporto terráqueo. Eu, governar o Comyn?

- Deixai-me cobri-lo primeiro - disse Merryl. Olhou de novo para o cadáver do príncipe; baixou-se e beijou-o na testa, e a seguir tirou a sua própria capa e estendeu-a suavemente sobre Derik, cobrindo-lhe  o rosto; ajustou-a em volta do corpo como se estivesse a confortar uma criança adormecida. Depois disse, com voz insegura:

- Havia muitas coisas boas a respeito de Derik que as pessoas ignoravam - e Regis pensou que Derik não poderia ter um melhor epitáfio.

Tantas mortes! Senhor da Luz, onde irá isto terminar? Marius Alton. Linnell. Derik. Irá Sharra acabar por destruir tudo o que resta  do Comyn ?

- Às vossas ordens, meu príncipe - disse Merryl, e partiu.

Quando o Sol vermelho se ergueu sobre o Castelo Comyn na manhã seguinte ao Festival, Derik e Linnell jaziam lado a lado na capela do castelo, juntos na morte como tinham estado em vida.

Danvan Hastur tinha aplicado nos braços de ambos as braceletes matrimoniais em cobre, as cadenas que teriam usado apenas alguns dias mais tarde. Regis sentia um pesar pungente: eram ambos tão novos, e podiam ter sido Rei e Rainha do Comyn. Teria sido mais justo dar a Derik a coroa que lhe tinha sido negada durante tanto tempo.

Eu não a quero. Mas nunca ninguém me perguntou o que eu queria.

A morte de Derik, e a ascensão de Regis ao trono, já tinham sido proclamadas em Thendara, mas a coroação só ocorreria passado  algum tempo, e isso agradava a Regis. Precisava de tempo para assimilar o que tinha acontecido.

Sou o Senhor do Comyn... qualquer que seja o significado que isso possa ter nestes tempos de destruição.

- Vais ter de nomear Conselheiros - dissera-lhe o avô, quase a primeira coisa que lhe tinha dito, e o primeiro pensamento de Regis  fora: Quem me dera que Kennard ainda estivesse vivo.

Danvan Hastur não era um telepata poderoso, mas tinha captado  isso, e disse com suavidade:

- Também eu desejaria isso, meu rapaz, mas vais ter de te governar  sem ele. O homem mais forte no Comyn é Lorde Ardais, e ele sempre foi teu amigo, e foi o teu cadete-mor na Guarda. Se fores esperto, rapaz, vais providenciar para que ele seja escolhido como um dos teus principais conselheiros.

Sim, pensou Regis. Acho que Dyan é meu amigo. Pelo menos gostaria mais de tê-lo como amigo do que como inimigo. Disse mais ou menos o mesmo a Danilo quando se viram a sós, acrescentando:

- Espero que não vás importar-te... de ser escudeiro de um príncipe, Dani.

Dez dias antes Danilo teria considerado isto uma piada irreverente. Agora limitou-se a olhar para Regis com uma expressão muito séria e disse:

- Sabes que farei tudo o que puder por ti. Apenas desejaria que isto não tivesse acontecido. Sei que também não querias.

- Pedi ao meu avô para se encarregar dos funerais públicos de Derik e... e de Linnell - disse Regis com ar soturno. Compete a mim zelar pelos vivos. Suponho que Gabriel e os seus homens não tenham conseguido localizar Kadarin... nem os homens da Força Espacial, também.

- Pois não, mas há desordens na cidade, Regis, provocadas pela presença da Força Espacial do lado darkoveriano, participando  nas buscas - disse Danilo. - Se não os mandares sair talvez haja uma guerra civil.

- O que é importante é que Kadarin seja encontrado - protestou  Regis, mas Danilo abanou a cabeça. - O que é importante neste momento é que haja paz em Thendara, Regis, e tu sabe-lo tão bem como eu. Diz a Lawson para retirar os seus sabujos, ou Gabriel será incapaz de manter o controlo sobre os Guardas. Se eles tornarem  Thendara demasiado quente para abrigar Kadarin durante alguns  dezdias, tanto melhor; se ele não puder mostrar o nariz na praça do mercado sem que um Guarda o agarre, então não teremos de preocupar-nos com ele. Mas precisamos de pôr aqueles terráqueos  fora da Cidade Velha, quando não, como já te disse, vai haver  uma guerra!

Com um suspiro, Regis declarou:

- Parece-me que devemos ser capazes de trabalhar em conjunto,  Terráqueos e Darkoverianos, contra um inimigo comum, como fizemos no caso da febre dos Pisteiros, da última vez que houve uma epidemia. Uns quantos homens da Força Espacial à procura de um criminoso não farão mal a ninguém em Thendara...

- Mas é a presença deles - argumentou Danilo -, e o povo de Thendara não os quer cá!

Continuava a parecer a Regis que a maior prioridade era apanhar  Kadarin e eliminar a ameaça de ele tentar invocar Sharra novamente. Mas também sabia que aquilo que Danilo dissera era verdade.

- Acho que vou ter de fazer um pedido pessoal ao Legado disse, exausto -, mas terei de ficar aqui para resolver as coisas entre  os Comyn. O meu avô... - interrompeu-se, mas sabia que Danilo  estava a captar as palavras que ele não se atrevia a dizer.

O meu avô envelheceu de um dia para o outro; sempre soube que era muito idoso, mas até à Noite do Festival ele nunca tinha exibido a sua idade.

- Talvez ele tenha suportado o seu fardo ao longo de todos estes  anos - sugeriu Danilo calmamente -, por saber que Derik não poderia governar no seu lugar se ele largasse a Regência... mas agora  confia em ti para conservares o Comyn no seu lugar.

Regis baixou a cabeça como se este novo fardo tivesse sido fisicamente  colocado sobre ele, como um objecto de grande peso. Sempre  soube que este dia acabaria por chegar; por muitas vezes manifestei o desejo de que o meu avô não me tratasse como uma criança, e agora, quando já não o faz, tenho medo de ser um homem adulto mandando em mim próprio como nos outros. Tinha de tomar  uma decisão. Disse:

- Manda uma mensagem ao Legado, pedindo-lhe como um favor  pessoal a mim - realça isso, Dani, como um favor pessoal a mim - que mande retirar da Cidade Velha os homens uniformizados  da Força Espacial, limitando à Cidade Comercial a acção destes. Ou melhor ainda: Escreve a mensagem e dá-ma a assinar, e envia-a pela mais prestigiosa escolta que encontrares.

Com um sorriso hesitante, Danilo disse:

- Nunca pensámos que chegaria a isto quando estávamos juntos  em Nevarsin e aprendi a escrever com melhor caligrafia do que tu. Agora podes servir-te de mim como teu secretário particular.

Regis sabia o que Danilo estava a tentar dizer sem usar palavras. Como Herdeiro de Hastur ele tinha estado bastante visível, sempre no olhar do público, mas fizera o seu dever para assegurar herdeiros para o Domínio de Hastur, e quanto ao resto, costumava dizer a si próprio, insistentemente, não sou o único amante de homens  nos Domínios! Contudo agora, como Príncipe do Comyn, seria  ainda mais intensamente o representante público do Comyn.

Séculos atrás, o clã dos Hasturs havia separado os Domínios de Hastur e Elhalyn, ambos pertença desse clã, reservando aos Elhalyn todos os deveres cerimoniais e públicos relacionados com a coroa.

- Uma coroa enfiada num pau, é isso o que eles querem - disse com ar soturno. - Uma coisa que eles possam pendurar no mercado, para que todos lhe prestem homenagem! - Pensou, mas não disse, que os Domínios tinham estado efectivamente sem um rei durante todos os vinte e dois anos da Regência, desde que o príncipe  infante Derik ficara sem pai, e os Domínios não lhe tinham sentido  a falta.

- O que deveremos fazer é assegurar que continuem a existir Domínios para governar - disse Regis, depois da mensagem ter sido escrita. - Derik talvez não seja o único a morrer. E quem iremos enviar  com esta mensagem?

- Lerrys? - sugeriu Danilo. - Ele conhece pessoalmente o Legado...

Regis abanou a cabeça.

- Lerrys simpatiza demasiadamente com os Terráqueos... Eu não garantia sequer que ele entregasse a mensagem - disse. - Na opinião de Lerrys, os Terráqueos têm todo o direito de estar aqui, visto que somos uma colónia terráquea. Talvez Merryl?

- Não seria capaz de manter a calma - retorquiu Danilo prontamente.

Hesitante, Regis declarou:

- Eu enviaria Lew Alton, mas ele foi ferido na Noite do Festival...

E está pessoalmente envolvido neste negócio de Sharra.

- O que achas, Danilo, se eu pedisse a Lorde Ardais para ir...

- Acho que ele teria muito prazer em ir entregar esta mensagem  ao Legado - respondeu Danilo -, pois ele sabe o que poderá resultar da presença de homens uniformizados da Força Espacial, e está sempre desejoso de manter calma a população.

- Não quero ordenar-lhe que o faça - disse Regis. - Sei que ele não gosta de se misturar com os Terráqueos, mas talvez esteja disposto a fazê-lo se eu lho pedir como Lorde Elhalyn...

E novamente a tragédia o oprimiu; Derik era mais velho do que ele próprio, e contudo morrera sem deixar sequer um filho nedestro para dar continuidade ao seu nome. Amara Linnell e tinham ambos aguardado o seu casamento, pelo que Linnell poderia ter gerado o seu Herdeiro; e agora estavam ambos mortos.

E eu nunca gostei muito de qualquer mulher, mas tenho dois filhos e uma filha, porque não hesitei em usar uma mulher para esse fim. Deuses! Que ironia!

Contudo não irei compartilhar o meu trono com qualquer mulher,  pelo menos durante algum tempo, ou até que conheça alguma com quem esteja disposto a compartilhar também a minha vida.

- Eu próprio pedirei a Dyan - disse Regis, olhando para o Sol que subia no céu e repentinamente cônscio de que ainda não tinha  dormido e estava exausto. - Ele é capaz de estar ainda a dormir, mas por esta razão não se importará de que o acordem.

Mas nos aposentos dos Ardais apenas foram encontrar serviçais, e um deles disse a Danilo que Lorde Ardais tinha saído bem cedo.

- Sabe onde ele estará?

- Pelos infernos de Zandru, sir, não sei! Pensais que o lorde Ardais conta as suas idas e vindas a gente como eu?

- Raios! Agora vou ter de correr por todo o castelo à procura dele - disse Regis, tentando imaginar se Dyan teria ido ao pavilhão da Guarda para ver se, oficial experiente como era, poderia ser útil a Gabriel, ou se mais simplesmente teria deixado o salão de baile mais cedo em alguma missão privada e estaria ainda deitado com algum novo favorito. Se fosse assim, talvez não estivesse ainda a par da destruição que grassara no Comyn!

Teria sido ainda no dia anterior que estivera a discutir esta mesma possibilidade - o envio da Força Espacial à Cidade Velha para procurar Kadarin? Tinha nessa altura recomendado que não o fizessem; mas Lawton tinha autoridade para o fazer, e agora Kadarin  tinha surgido em pleno Castelo Comyn, para tentar atrair Lew Alton de volta para as suas colunas... Teria ele algum direito de impedir  que Lawton tentasse encontrar este homem que era procurado por assassínio e outros crimes, tanto pelos Terráqueos como pelos Darkoverianos?

- Talvez Gabriel saiba - disse ele -, e há guardas à porta dos aposentos Aldaran; talvez possam dizer onde Gabriel se encontra: no Pavilhão da Guarda, ou lá fora à procura do nosso foragido!

A série de salas reservadas aos Aldarans no Castelo Comyn tinha  permanecido vazia de ocupantes desde que Regis podia recordar-se; situava-se numa ala do castelo que Regis nunca tinha visitado. Dois guardas corpulentos estavam de serviço à porta, que se encontrava fechada do exterior. Fizeram a continência a Regis, que os saudou delicadamente.

- Darren, Ruyven... preciso de falar com o meu cunhado. Sabem  se Dom Gabriel se encontra no Pavilhão da Guarda, ou se partiu  para a cidade? Tenho de localizar Lorde Ardais...

- Mas eu posso dizer-vos onde Lorde Ardais se encontra, sir - disse o guarda Ruyven. - Está ali dentro, conversando com Lorde  Aldaran.

Regis franziu a testa e disse:

- Ouvi o capitão Lanart-Hastur dar ordens para que ninguém fosse autorizado a falar com Aldaran...

- Eu não o ouvi dizer isso, sir, só entrei ao serviço ao alvorecer  - retorquiu Ruyven - e de qualquer forma... - Olhou para as botas, mas Regis sabia perfeitamente o que o homem estava pensando: iria ele dar ordens a um lorde do Comyn, e, além disso, a quem tinha sido seu oficial superior durante muitos anos?

- Deixe lá, Ruyven - disse Regis. - Mas terá também de nos deixar entrar para falarmos com ele.

Quando era pequeno, Regis sentira curiosidade a respeito dos aposentos Aldaran, sempre trancados e vazios. Quando o guarda lhes abriu a porta reparou que um cheiro a mofo e a vazio ainda se mantinha agarrado às paredes e aos reposteiros bordados com a águia bicéfala de Aldaran. Foram encontrar Beltran na sala de visitas  principal; alguém lhe trouxera o pequeno-almoço, e estava a comer papa de aveia e pão de nozes de um tabuleiro apoiado no colo. Dyan estava sentado numa cadeira próxima, bebendo qualquer  coisa quente de uma caneca. Olhou com curiosidade para Regis,  mas Beltran sorriu-lhe abertamente. Regis tinha-se esquecido de como este e Lew eram parecidos, mesmo apesar das cicatrizes.

- Bem, Regis - disse Beltran -, finalmente ficamos quites; foste como parente ao meu castelo e eu aprisionei-te... e agora venho  como parente ao teu, e aprisionas-me. Parece-me justo que também  tenhas o teu dia de glória.

Era de esperar, reflectiu Regis, que Beltran o colocasse imediatamente  na defensiva. Disse com rigidez:

- Uma palavra convosco, se me permitis, Lorde Ardais. - Não tencionava discutir assuntos do Comyn na presença de Beltran.

- Lorde Aldaran está interessado nos assuntos do Comyn lembrou Dyan.

- Não neste caso - retorquiu Regis friamente. - Estais ciente,  Lorde Dyan, de que o príncipe Derik faleceu durante a noite?

- Que tenha uma boa viagem - disse Dyan.

- Parente! - protestou Danilo, e Dyan voltou-se para ele com ferocidade.

- Pelos infernos de Zandru, precisarás de ser tão hipócrita?

Todos nós sabemos que Derik era um fraco, tão apto para governar  como o meu filho de três anos! Talvez agora surja alguma força no Comyn, para podermos falar com os Terráqueos como eles merecem!

Regis replicou com rigidez:

- Agora incumbir-me-á falar com os Terráqueos. É por essa razão que eu venho aqui: desejo que ajais como meu emissário junto deles, levando-lhes uma mensagem...

Dyan interrompeu-o.

- Há apenas uma mensagem que eu levarei aos Terráqueos, Lorde Regis, e vós, um Hastur, conheceis o que essa mensagem diz: saiam daqui! Saiam do nosso mundo, do nosso planeta, e levem o vosso Império convosco! Senhor da Luz! Isto é pior do que eu pensava! Dyan prosseguiu, exaltado:

- Nós começámos bem, tu e eu, Regis, destruindo as armas terráqueas. Agora temos de ter a coragem de dar continuidade a essa mensagem com outra mais forte, apontada directamente a Thendara! Será possível que ele acredite que destruí as armas de Beltran como uma mensagem para os Terráqueos?

- Lorde Dyan, este não é o local indicado para discutirmos a política Comyn a longo prazo - disse Regis. - Para já, o Legado enviou a Força Espacial para a cidade; escrevi um pedido formal para que esta Força seja retirada, para que a Guarda possa fazer o seu trabalho  tentando localizar um criminoso e assassino... Tens conhecimento  de que o ataque de Kadarin na noite passada custou a vida do príncipe Derik e de Linnell, e esteve prestes a destruir também Lorde Alton?

- Essa perda seria bem menor do que as outras - retorquiu Dyan friamente. - Com a morte de Derik, temos uma oportunidade  para demonstrar a nossa força. O teu avô perdeu muito tempo a agradar aos dois lados, Regis, e os Alton têm tentado dar-lhe apoio. Chegou a altura de mostrar aos Terráqueos qual é a nossa posição, e agora temos Beltran do nosso lado, com uma mensagem mais forte  do que qualquer outra...

Regis percebeu que devia ter desconfiado disto logo desde o princípio. Num sussurro - mal podia fazer-se ouvir - perguntou:

- Parente, estás realmente a pensar em propor o uso da Sharra  contra os Terráqueos?

- Não estou a propor, estou a referir um facto - disse Dyan.

Os que não se aliarem a nós... - levantou o olhar para Regis, fixando-o com uma expressão inequívoca - ...são traidores do Comyn, e, para o bem do nosso mundo, para a sobrevivência de Darkover, deviam ser silenciados! Pelos infernos de Zandru, Regis, não percebes que esta é a única hipótese para que Darkover sobreviva  sem se transformar precisamente naquilo que eles nos chamam, apenas mais uma colónia terráquea?

- A existência do Comyn - disse Regis calmamente, tentando  não demonstrar o horror que sentia - é baseada no Convénio.

O emprego de Sharra como uma arma é contrário ao estipulado no Convénio...

- E enquanto continuamos a observar esse amaldiçoado convénio  - disse Dyan com ferocidade - eles vão-nos cercando, até que nos enterrem por fim! Somos como coelhos cornudos diante de uma matilha de lobos... e tu ficas aqui pacificamente sentado a dizer  “ba-a-a” enquanto os lobos nos mostram as queixadas! Pensas realmente que poderemos enfrentar o Império com as nossas espadas  e apenas seis dúzias de Guardas?

- Por que motivo partes do princípio de que teremos de enfrentar  o Império?

- Regis, custa-me a crer que tu, um Hastur, estejas a dizer uma coisa dessas! Vais entregar-nos tão docilmente aos Terráqueos?

- Claro que não - respondeu Regis -, mas desde há gerações  que não há em Darkover uma verdadeira guerra. O meu pai foi morto numa guerra ilegal contra as armas terráqueas...

- Não será essa uma razão suficiente para que os expulsemos do nosso mundo?

Regis respirou fundo, cerrando os punhos para manter a calma e não gritar o seu desacordo. Não sabia se Dyan estaria doido ou se acreditaria realmente no que estava a dizer. Dyan olhou para ele e o seu rosto suavizou-se um pouco ao dizer:

- Tu não dormiste, e aconteceu muita coisa numa só noite.

Não é esta a melhor altura para discutirmos o que teremos de fazer a respeito dos Terráqueos. Já comeste alguma coisa desde a noite passada? - Regis abanou a cabeça, e Beltran interveio, dizendo:

- Senta-te connosco e compartilha da nossa refeição. Poderemos  discutir política mais tarde. Regan... - chamou o seu servo.

- Traz pratos para Lorde Hastur e Lorde Danilo. - E antes que eles soubessem o que tinha acontecido viram-se sentados à mesa do pequeno-almoço, sendo servidos de papa de aveia e coelho-cornudo  grelhado. Regis não sentia fome, mas conhecia o suficiente sobre  a mecânica das matrizes para saber que a batalha com Sharra o havia deixado exausto e sem forças. Comeu vorazmente, enquanto Beltran, pondo de parte a hostilidade, se comportava como um anfitrião perfeito...

Quando os Terráqueos se forem embora, poderemos aplicar de novo o Convénio sem o mau exemplo deles...

Mas se tencionamos mesmo usar Sharra contra eles, iremos ter de enfrentar não somente os Terráqueos que se encontram aqui mas também todo o Império Terráqueo, com todas as suas miríades de mundos... E Sharra não poderá ser controlada desta forma, e voltar-se-á contra os que a usarem, e destruirá...

- Não desejo qualquer mal ao meu primo de Alton - anunciou  Beltran. - Gostaria de fazer a paz com ele. O seu Dom é necessário  para o uso de Sharra, e ele foi treinado nas Torres. Constitui o factor de segurança para que Sharra possa ser utilizada, com o seu controlo e a sua força. Poderás auxiliar-me a convencê-lo disto,  Regis?

- Parece-me que seria inútil - disse Regis calmamente. - Parece-me  que ele iria preferir morrer.

- Isso dependeria dele - disse Dyan com aspereza - e não de nós. Mas se ele escolher colocar-se ao lado dos Terráqueos, então  terá de suportar as consequências...

- Não - disse Beltran. - Creio que ele é o único ser vivo que detém o Dom de Alton.

- Estás enganado! - exclamou Dyan. - Existe uma criança Alton, uma filha de Lew.

Beltran encolheu os ombros.

- Uma rapariga. Do que precisamos é de um homem, que tenha  a força dos Altons.

Portanto vou ter de guardar aquele segredo. Dyan, sem treino, desconhece a natureza do seu próprio Dom. Sabe que não tem o Dom de Ardais... Adoptou Danilo por ter descoberto que o Dom de Ardais tinha passado para Dani através de uma das filhas nedestro  do pai de Dyan. Mas desconhece, e nunca poderá conhecer, o seu próprio Dom de Alton... Regis olhou desesperado para Dyan, só agora perfeitamente ciente do que Dyan sempre significara para ele. Conhecia a crueldade de Dyan, mas nunca se sentira capaz de o culpar totalmente por isso, cônscio das forças poderosas que o dominavam,  cônscio de que Dyan era um homem obcecado e desesperadamente  infeliz.

Dyan é um reflexo de mim próprio, daquilo que eu muito facilmente  poderia ser. Como poderei culpá-lo? Mas não posso deixá-lo  destruir os Domínios ao perder-se nesta louca aventura de uma Guerra Santa contra os Terráqueos, nem que eu tenha de o matar...

Na noite passada, forçado pela amarga necessidade, feri Lew, que é mais do que um amigo, mais do que um irmão para mim. Agora parece que terei de condenar Dyan - que mais não é do que aquilo que eu poderia ter sido - a uma morte de alienado. Que direito  tenho eu de fazer tudo isto?

Pousou o garfo, sentindo que a hospitalidade de Beltran estava a sufocá-lo. Manteve-se fortemente barricado para impedir que os outros captassem uma sugestão sequer dos seus pensamentos.

- Perdoai-me, vai domyn, aguardam-me noutro local. Dani, vem comigo - disse, levantando-se e dando meia volta. - Falaremos  disto numa ocasião apropriada, Lorde Dyan.

Tenho de ir ver o que sobra do Comyn depois da noite passada. Talvez já nada exista para eu governar!

 

 (narrativa de Lew Alton)

O vermelho deprimente de um novo fim do dia estava a diluir-se quando acordei; a minha cabeça palpitava com o ferimento meio sarado que Kadarin me fizera, e o braço estava a arder com o longo corte produzido  pela adaga de Regis. Deixei-me ficar deitado, pensando por um momento que tudo não passara de um pesadelo delirante provocado  pela concussão. Depois Andres entrou, e as profundas rugas  de pesar no seu rosto disseram-me que tudo tinha acontecido.

Também ele amara Linnell. Aproximou-se e lançou-me um olhar carrancudo ao remover as ligaduras da cabeça para inspeccionar os pontos, e depois examinou o ferimento no braço.

- Serás talvez o único homem em Darkover capaz de ir ao baile da Noite do Festival e regressar a casa neste estado - resmungou  Andres. - Em que género de luta te envolveste?

Portanto ele só fora informado da morte de Linnell; nada sabia da monstruosa visitação de Sharra. O corte doía-me, mas era apenas  um ferimento superficial. Teria dificuldade em movimentar o braço durante algum tempo, mas não tinha ressentimentos. Regis tinha feito a única coisa que podia, libertando-me do chamamento de Sharra.

- Foi um acidente - disse-lhe -, não foi intencional. - Ele que pensasse o que quisesse. - Arranja-me qualquer coisa de comer, e umas roupas. Tenho de ir saber o que está a acontecer...

- Estás com cara de quem precisa de passar um dezdias na cama - disse Andres, mal-humorado. Depois a sua verdadeira preocupação  por mim veio à superfície: - Rapaz, já perdi dois de vós!

Não te atires atrás de Marius e de Linnell! O que será que está a passar-se que não pode aguardar até amanhã? Cedi e aquietei-me. Algures lá fora Sharra andava à solta. Possivelmente... mas eu saberia se eles viessem ao Castelo Comyn (estaria  eu já definitivamente liberto? Não me atrevia a olhar para a minha matriz para me certificar) e nada havia a ganhar saindo à procura  de sarilhos. Fiquei a ver Andres resmoneando pelo quarto, um som calmante que eu recordava da minha infância. Quando Marius ou eu púnhamos os nossos cavalos a galopar a uma velocidade excessiva  e acabávamos por estatelar-nos, partindo um dedo ou uma clavícula, ele tinha resmungado exactamente do mesmo modo.

Marius e eu nunca tínhamos tido as desavenças e brigas juvenis  da maioria dos irmãos que eu conhecia; houvera uma grande diferença  de anos entre nós. Quando ele deixara de usar bibe, ficando capaz de se afirmar, já eu estava crescido e ingressado no corpo de cadetes. Mal tinha começado a conhecer o tipo de homem que o meu irmão era quando ele foi afastado de mim e levado para longe.

Depois eu tinha-o arrastado também para o inexorável destino que me perseguia. Mas ao menos ele tivera uma morte limpa, uma bala através do cérebro, e não a morte pelo fogo que me aguardava, porque  agora que Kadarin andava à solta com a espada de Sharra eu sabia  como iria morrer, e procurava adaptar-me à ideia. O plano de Ashara, com o auxílio do novo e espantoso Dom de Regis Hastur que parecia exercer de algum modo poder sobre Sharra - talvez conseguisse destruir a sua matriz, mas eu sabia sem sombra de dúvida  que seria destruído com ela.

Bem, era isso que tinha esperado por mim ao longo de todos estes anos, trazendo-me de volta a Darkover no momento previsto, para a morte prevista, que eu devia ter partilhado com Marjorie.

Tínhamos planeado a nossa morte... Lembrava-me daquela manhã  no Castelo Aldaran quando, reféns da destruição que Sharra estava a espalhar por toda a parte, aspergindo fogo sobre o espaçoporto  em Caer Donn, me tinham permitido acordar do efeito das drogas que me haviam mantido, prisioneiro passivo, acorrentado à destruição e conferindo poder a Sharra. Nunca chegara a saber por que motivo me tinham deixado libertar das drogas; não fora certamente  nenhuma ternura que Kadarin nutria por qualquer de nós.

Mas Marjorie e eu tínhamos estado preparados para morrer... sabíamos  que teríamos de morrer ao fecharmos o portão para este mundo chamado Sharra. E assim ela e eu, juntos, havíamos destruído  o portão...

Mas depois eu, usando todo o poder daquela matriz, peguei nela e na Espada e mergulhámos através do espaço - os Terráqueos chamam-lhe telecinética, e eu nunca voltei a fazê-lo - até Arilinn, onde Marjorie morreu devido às suas terríveis queimaduras, enquanto  que eu...

... enquanto que eu sobrevivi, ou uma parte de mim sobreviveu,  e ao longo de todos estes anos nunca cessei de me desprezar por não a ter seguido na morte. Agora sabia por que razão tinha sido poupado: Kadarin e Thyra continuavam vivos, e tinham conseguido  - não sei de que maneira - recuperar a matriz, atacando novamente Darkover com o seu fogo. Desta vez não haveria tréguas; e quando Sharra estivesse destruída nenhum de nós restaria com vida. Por isso precisava de pôr as minhas coisas em ordem.

Chamei Andres e perguntei-lhe:

- Onde está a menina?

- Relia - é a ajudante da cozinheira - tomou conta dela hoje, e deitou-a no quarto que era de Marius quando ele era garoto - disse Andres.

- Se eu viver, talvez possa levá-la para Armida - disse-lhe -, mas se me acontecer alguma coisa ... não, pai adoptivo, escuta, nada é certo nesta vida. Agora que o meu pai e o meu irmão já se foram... Serviste-nos a todos com fidelidade durante um quarto de século. Se alguma coisa me acontecesse, irias sair de Darkover?

- Não sei. Nunca pensei nisso - respondeu o velho. - Vim para cá com Dom Kennard quando éramos ainda novos, e a vida tem sido boa; mas parece-me que vou acabar por regressar à Terra.

- Depois acrescentou, com um riso sem humor: - Tenho tentado  imaginar como seria voltar a estar debaixo do meu próprio céu azul, e ver uma lua como a lua deve ser, nada como estas coisitas.

- Apontou para a janela, do outro lado da qual se podia observar o rosto empalidecido da Idriel, esverdeada como uma jóia vista através  da água.

- Traz-me qualquer coisa em que possa escrever. - Quando ele satisfez o meu pedido, escrevinhei com a minha mão válida, dobrei  o papel e lacrei-o.

- Não posso deixar-te Armida - disse. - Acho que ficará para Gabriel, pois faz parte do Domínio de Alton. Legar-ta-ia se pudesse,  podes crer. Mas se levares este papel para o Legado terráqueo na Cidade Comercial, isto levar-te-á para a Terra, e eu preferiria que fosses tu a adoptar Marja e não a esposa de Gabriel. - Domna Javanne  Hastur nunca tinha simpatizado comigo; não tenho dúvidas de que faria o melhor possível pela parente de Gabriel, mas isso seria  um “melhor possível” bastante frio e impessoal. Andres, por outro  lado, cuidaria da minha filha em atenção ao meu pai e a Linnell, se não em atenção a mim.

- A minha mãe, e o meu pai por morte dela, tinham lá algumas  terras; essas podem passar para ti.

Andres pestanejou, e reparei que tinha lágrimas a aflorar-lhe aos olhos, mas tudo o que disse foi:

- Deus me poupe de alguma vez ter de usá-las, vai dom. Mas farei o meu melhor pela menina se alguma coisa acontecer. Sabes que a protegerei com a minha vida.

- Talvez tenhas de fazê-lo - disse-lhe num tom sombrio. Não sabia porquê, mas repentinamente sentia-me com arrepios gelados; o sangue corria frio nas minhas veias, e por um instante, à luz moribunda  que tingia a sala de vermelho, parecia-me que as paredes estavam  cobertas de sangue. Será este então o local da minha morte?

Só por um momento, pois o efeito logo desapareceu. Andres dirigiu-se  à janela e correu ruidosamente as cortinas.

- O Sol sangrento! - disse ele, soando como uma imprecação. Depois enfiou num bolso o papel que eu lhe tinha dado, sem olhar para ele, e saiu.

Aquilo já estava resolvido. Agora apenas teria de fazer frente a Sharra. Bem, o que tem de ser tem muita força. Amanhã Kathie e eu seguiríamos para Hali, e o plano que eu tinha engendrado, para encontrar a espada de Aldones e usar esta derradeira arma contra Sharra, iria ter sucesso ou falharia. Acontecesse o que acontecesse, muito  provavelmente eu não viveria para assistir a outro pôr do Sol. Sentia  a cabeça em fogo com os pontos na testa. Cicatrizes a condizerem com as que Kadarin tinha feito na minha cara... Bem, havia um antigo  ditado segundo o qual os mortos no céu estão demasiado felizes  para se importarem com o que acontece ao cadáver, seja ele bonito ou feio, enquanto que os mortos no inferno já têm muito que os apoquente... Quanto a mim, nunca tinha acreditado quer no céu quer no inferno; a morte não era mais do que um interminável nada e escuridão.

Contudo, parecia-me ouvir de novo o derradeiro grito do meu pai, directamente no meu cérebro... Regressa a Darkover e luta pelos  teus direitos, pelos direitos do teu irmão! Esta é a minha última ordem... e depois, enquanto a vida o abandonava, aquele último grito de alegria e ternura: Yllana, minha amada!

Teria ele, naquele momento final, visto alguma coisa para além desta vida, estaria a minha quase olvidada mãe à espera dele naquele  último portal? Os cristoforos crêem em algo semelhante a isto, bem sei; Marjorie tinha acreditado. Estaria Marjorie à minha espera  para lá do fogo de Sharra? Eu não podia, nem ousava, pensar assim.

E se isso acontecesse - sorri, um pequeno sorriso amargo o que iríamos nós fazer quando Dio também surgisse lá? Mas ela já teria perdido os seus direitos sobre mim... Se o amor era o critério, talvez ela fosse procurar Lerrys para além dos portões da morte. E o que aconteceria aos esposos e esposas dados em casamento a cônjuges  que eles desprezavam, casados por dever ou por laços familiares  ou conveniência política, para os quais a vida de casado era uma espécie de inferno e a morte uma libertação misericordiosa? Poderia  algum deus justo exigir que ficassem atados um ao outro numa interminável vida posterior? Expulsei da minha mente todos estes disparates e tentei, através da dor aguda na cabeça e da ardente palpitação  no braço ferido, preparar-me para adormecer.

A derradeira luz avermelhada enfraqueceu e extinguiu-se. Uma ligeira abertura nos cortinados mostrou-me um pálido luar esverdeado  incidindo sobre a minha cama. Parecia fresco, talvez arrefecesse a minha febre... Ouvi um passo e um roçagar e um murmúrio suave.

- Lew, estás a dormir?

- Quem está aí?

A escassa luz captou um reflexo de cabelo claro, e Dio, com o rosto tão pálido como a pálida lua, olhou para mim. Virou-se e abriu as cortinas que Andres tinha corrido, deixando o luar penetrar  no quarto e as luas em quarto minguante espreitarem sobre o seu ombro.

A frescura do luar parecia arrefecer o meu rosto febril. Cheguei a imaginar, sem curiosidade, que tinha adormecido e sonhava que ela estava ali, imóvel e calada. Os seus olhos estavam inchados e transbordando de lágrimas.

- Lew, tens a cara tão quente... - murmurou, e depois aproximou-se  e colocou algo frio e refrescante na minha testa. - Abandonaram-te  aqui sozinho desta forma?

- Eu estou bem - disse-lhe. - Dio, o que aconteceu?

- Lerrys foi-se embora - sussurrou ela -, passou-se para os Terráqueos; embarcou e jura que nunca mais voltará... tentou convencer-me  a seguir com ele... tentou mesmo obrigar-me, mas desta vez eu não quis ir... Disse-me que era de morte ficar aqui... com as coisas que vão acontecer ao Comyn...

- Devias ter ido com ele - disse-lhe friamente. Agora não poderia  protegê-la, nem cuidar dela, com Sharra enfurecida e Kadarin vagueando como um animal selvagem, com Thyra ao seu lado, prontos a arrastar-me de volta àquele mesmo recanto do inferno...

- Não partirei quando outros têm de ficar e lutar - disse ela.

- Não sou cobarde a esse ponto... - Mas estava a soluçar. - Se ele acha mesmo que somos parte de um Império, devia ter ficado cá lutando  por isso...

- Lerrys nunca foi um lutador - comentei. Bem, também eu não era, mas não me tinham dado a escolher; a minha vida estava já predestinada. Mas agora não tinha forma de confortar Dio. Disse-lhe  com suavidade: - A luta também não é tua, Dio. Não foste arrastada para esta disputa. Poderias ter uma vida boa noutro ponto.

Ainda não é demasiado tarde.

Lerrys era um dos Ridenow hipersensíveis; o Dom de Ridenow tinha sido introduzido no Comyn para previsão dos horrores das Eras do Caos; era um Dom que se tornava obsoleto agora que o Comyn já não se distribuía pelo espaço e pelo tempo como a lenda dizia que acontecera no apogeu das Torres. Como aqueles que combatem  fogos florestais usam pássaros engaiolados para os informarem  quando as concentrações de gases venenosos e de fumo atingem níveis perigosos para os seres vivos, porque o pássaro engaiolado morrerá antes que os homens tomem consciência desse perigo, também  os Ridenow serviam agora para avisar os Comyn menos sensíveis  da presença de forças que nenhum homem poderia tolerar.

Não me espantava que ele tivesse agora fugido de Darkover... Quem me dera poder fazer o mesmo!

- Dio, não devias ter vindo aqui a esta hora...

- Pensas que me preocupo com isso? - perguntou ela, e a voz estava prenhe de lágrimas. - Não me mandes embora, Lew. Eu não te pedirei nada, mas deixa-me ficar aqui contigo esta noite...

Deitou-se ao meu lado, com a cabeça encaracolada repousando no meu ombro, e provei sal quando a beijei. E repentinamente dei conta de que, se eu tinha mudado, Dio mudara também. A tragédia daquela coisa no hospital, daquilo que deveria ter sido o nosso filho, era uma tragédia também para ela, mais para ela do que para mim, pois carregara-o dentro de si durante meses. Contudo eu tinha-me deixado absorver pelo meu próprio pesar, não deixando espaço nenhum  para ela. Dio entrara na minha vida quando eu pensava que tudo tinha já acabado para mim, dando-me um ano de felicidade, e eu tinha a obrigação de recordar essa felicidade e não o horror e a tragédia no final.

Apertando-a contra mim, murmurei:

- Quisera que tudo tivesse sido diferente. Quisera ter-te tido por mais tempo...

Ela beijou a minha face recoberta de cicatrizes com uma ternura  que, de algum modo, nos fez aproximar mais do que uma paixão ardente.

- Não importa, Lew - disse ela suavemente na escuridão. Eu sei. Dorme, meu amor, estás exausto e ferido.

Passado um momento senti que ela tinha adormecido nos meus braços, e fiquei inerte, acordado, com os olhos ardendo de mágoa.

Tinha amado Marjorie com o primeiro ardor de um rapaz inexperiente,  todo ele chama e desejo; nunca tínhamos chegado a saber como evoluiríamos, pois Marjorie não tivera tempo para isso. Mas Dio tinha entrado na minha vida quando eu já era um homem maduro,  tendo adquirido através do sofrimento a capacidade de amar verdadeiramente, e nunca dera por isso. Depois tinha-a deixado afastar-se de mim logo na primeira convulsão. A tragédia partilhada  deveria ter-nos aproximado mais, mas eu permitira que ela nos separasse.

Se ao menos eu pudesse continuar a viver, encontraria algum modo de compensar Dio, se tivesse tempo para lhe dizer como eu a amava... Mas já é tarde de mais; tenho de deixá-la afastar-se, para que não sofra muito por mim...

Mas por esta noite irei simular que existirá algo para além da manhã, que ela e eu e Marja poderemos encontrar um mundo algures,  e que o fogo de Sharra irá extinguir-se inofensivamente perante  a aliança entre a Espada de Aldones e o Dom de Hastur...

Parecia-me que estava já a sonhar, mas continuei a segurar Dio adormecida nos meus braços, até que finalmente, já próximo da alvorada,  adormeci também.

A luz avermelhada do sol acordou-me, e o bater de uma porta algures nos aposentos de Alton. Dio... teria ela estado realmente aqui? Não tinha a certeza; mas as cortinas que ela abrira para deixar  entrar o luar permaneciam abertas ao sol, e havia um fino cabelo  dourado na minha almofada. A dor na cabeça e no braço ferido tinha-se aliviado, sendo agora apenas uma sensação penosa. Sentei-me  na cama, sabendo que tinha chegado a altura de agir.

Enquanto me vestia para montar não parava de cogitar. Certamente  o que restava do Comyn partiria hoje ou amanhã para Hali para assistir às pompas fúnebres de Linnell... e também de Derik.

Talvez fosse melhor seguir com eles, para não atrair atenção, e depois  escapar despercebido para a rhu fead...

Não. Não havia tempo para isso. Tinha amado Linnell e ela fora a minha irmã adoptiva, mas eu não podia esperar para dizer palavras de ternura e pesar junto do seu túmulo. Nada poderia fazer  já por ela, e de qualquer modo Linnell já não se encontrava capaz  de saber se eu estava ou não presente ao ser sepultada. Por sua intenção eu poderia apenas tentar assegurar-me de que a terra que ela amara não seria devastada pelos fogos de Sharra. Talvez pudéssemos  também fazer algo por Callina; não duvidava de que Beltran morreria connosco quando fechássemos aquele portal pela última vez. E então Callina ficaria livre.

Fui procurá-la, e encontrei-a na sala onde tinha visto Linnell a tocar o seu rryl, naquela noite antes de termos partido para a Torre de Ashara. Callina estava sentada diante da harpa, com as mãos descansando  no colo, tão lívida e imóvel que tive de lhe falar por duas vezes antes que ela desse pela minha presença, voltando então para mim um rosto parado, um rosto tão frio e distante, tão parecido com o de Ashara, que me senti chocado e horrorizado. Sacudi-a com força, e por fim dei-lhe um sopapo na face, até que ela reagiu, com vida e fúria na sua pálida cara.

- Como te atreves?

- Callina, perdoa-me, estavas tão distante... não conseguia fazer  com que me ouvisses... estavas como que num transe...

- Oh não, não pode ser... - disse ela num sobressalto, levando  as mãos à boca, consternada. - Não, é impossível... - Engoliu em seco, combatendo as lágrimas. - Sentia-me como se não conseguisse  suportar a minha dor - disse ela -, e pensei que Ashara poderia  dar-me paz, aliviar a mágoa... a mágoa e a culpa, porque se eu não tivesse... se não tivesse usado o ecrã contigo, se não tivéssemos encontrado aquela rapariga, Kathie... Linnell estaria ainda viva...

- Tu não podes saber isso - disse-lhe com rudeza. - Não há maneira de sabermos o que poderia ter acontecido quando Kadarin  empunhou... aquela espada. Kathie poderia ter morrido em vez de Linnell, ou poderiam ter ambas morrido. De qualquer forma, não te culpes. Onde está Kathie?

- Recusei-me a vê-la - disse Callina, trémula. - Era como... como se estivesse a ver o fantasma de Linnell, e não poderia suportar...

- Durante alguns momentos receei que Callina voltasse a entrar  em transe.

- Não há tempo para isso, Callina! Não sabemos o que Beltran ou Kadarin poderão estar a planear - exclamei. - Não dispomos de muito tempo; as coisas poderão reiniciar-se a qualquer momento.

- Como pudera eu dormir a noite passada, com tudo isto pendendo  sobre as nossas cabeças? Mas ao menos já recuperara as forças necessárias para aquilo que tinha de fazer. - Onde está Kathie?

Por fim Callina soltou um suspiro e indicou-me o caminho até onde Kathie tinha dormido. Estava deitada num sofá, acordada, seminua,  observando os azulejos, mas sobressaltou-se quando entrei e tapou-se com um cobertor.

- Saia daqui! Oh, és tu outra vez! O que queres agora!

- Não é aquilo que pareces estar à espera - respondi secamente.

- Quero que te vistas e venhas connosco. Sabes andar a cavalo?

- Claro que sei. Mas para que é...

Procurei nos armários até encontrar algumas roupas que tinha visto Linnell usar. Senti-me repentinamente afrontado por ver estes tecidos, estes bordados, ainda intactos e com o perfume de Linnell ainda retido nas dobras, quando a minha irmã adoptiva jazia arrefecida  na capela, ao lado do seu falecido amante. Atirei-as, quase enfurecido, para cima do sofá.

- Estas servem para montar. Veste-as. - Sentei-me para aguardar que ela se vestisse, mas o seu olhar irado fez-me recordar os tabus terráqueos. Levantei-me, ruborizado. Como poderiam os Terráqueos ser tão imodestos ao ar livre e tão recatados dentro de casa? - Tinha-me esquecido. Chama-me quando estiveres pronta.

Uma estranha interjeição abafada fez-me voltar para trás. Ela estava a olhar desanimada para o braçado de roupa, revirando as peças para um lado e para o outro.

- Não tenho a menor noção de como poderei enfiar-me nestas  coisas.

- Depois do que ainda agora estavas a pensar de mim - disse-lhe  com firmeza -, podes estar certa de que não vou dar-te qualquer  ajuda.

Ela corou também.

- E além disso como é que vou poder montar a cavalo envergando  uma saia comprida?

- Pelos infernos de Zandru, rapariga, que mais poderias tu vestir? - São as roupas de montar que Linnell usava; se elas as vestia,  também poderás usá-las. - Linnell havia-as vestido para ir ao funeral de Marius.

- Nunca usei nada parecido com isto para andar a cavalo, e certamente não vou começar agora - explodiu. - Se queres que eu vá a qualquer parte montada num cavalo, vais ter de me arranjar  algumas roupas decentes!

- Essa roupa pertencia à minha irmã adoptiva; são perfeitamente  decentes.

- Raios, nesse caso arranja-me algumas roupas indecentes!

Ri-me. Tinha de me rir.

- Vou ver o que posso encontrar, Kathie.

Os aposentos dos Ridenow estavam quase desertos àquela hora, à excepção de uma serviçal que lavava o chão de pedra, e ainda  bem que assim era. Não tinha qualquer desejo de me cruzar com Lorde Edric. Ocorreu-me que Dio e eu nos tínhamos casado sem a permissão do Senhor do seu Domínio.

O casamento entre pessoas livres não pode ser dissolvido depois  da mulher ter dado à luz uma criança, excepto por consentimento  mútuo.

Mas essa era a lei darkoveriana. Dio e eu tínhamo-nos consorciado  segundo a lei do Império... Porque estaria eu a pensar nisto, como se ainda houvesse tempo para voltarmos atrás e remediarmos tudo o que tinha corrido mal entre nós? Ao menos teria de vê-la uma vez mais. Perguntei à serviçal se Domna Diotima poderia receber-me,  e passado um momento Dio, envergando um roupão comprido,  entrou no salão principal parecendo ainda ensonada. O seu rosto iluminou-se quando me viu, mas não havia tempo para isso.

Contei-lhe o meu problema, e ela deve ter lido o restante na minha expressão e nos meus modos.

- Kathie? Sim, lembro-me dela no... no hospital - disse Dio.

- Ainda tenho as minhas roupas de montar, aquelas que usei em Vainwal; ela deve ser capaz de usá-las. - Soltou uma risada, mas logo se controlou. - Sei que não há motivo para risota. Mas não posso deixar de pensar... não faças caso; vou ajudar Kathie a vesti-las.

- E eu vou entretanto ver se consigo arranjar alguns cavalos para nós - disse, e desci apressado, por uma antiga e pouco conhecida  escadaria, até ao pavilhão da Guarda. Felizmente encontrei lá um Guarda que me conhecia do tempo em que eu era cadete.

- Hjalmar, podes arranjar-nos alguns cavalos? Preciso de ir a Hali.

- Certamente, sir. Quantos cavalos?

- Três - respondi passado um momento -, um deles com selim  de dama. - Kathie poderia montar como Dio costumava, com uma perna de cada lado da montada e usando calções compridos, como uma Amazona Livre, mas Callina decerto não seria capaz.

Disse a Hjalmar onde os cavalos deviam ser entregues, e regressei, indo encontrar Kathie airosamente trajada com a túnica e os calções  que tinha visto Dio usar.

Eu era feliz naquele tempo, mas não o sabia, e agora é tarde de mais, agora e para sempre.

Um certo poeta terráqueo disse que as palavras mais tristes em qualquer língua são: “Tarde de mais.” A porta abriu-se num arranco e Regis entrou, dizendo:

- Aonde vais? Será melhor eu ir contigo.

Abanei a cabeça.

- Não. Se suceder alguma coisa... se não tivermos êxito... serás  tu a única pessoa capaz de fazer frente a Sharra.

- É precisamente por isso que tenho de ir contigo - replicou Regis. - Não, deixa as mulheres aqui...

- Kathie pelo menos terá de ir - disse eu. Vamos a Hali, à rbu fead - e acrescentei, quando ele ainda parecia confuso: - É possível  que Kathie seja a única pessoa neste mundo capaz de alcançar a Espada de Aldones.

Os olhos de Regis esbugalharam-se, e ele disse:

- Há uma coisa qualquer que eu preciso de recordar... O meu avô disse-me uma vez... Não, não sou capaz de me lembrar. A sua testa enrugou-se no esforço de se concentrar. - Talvez seja importante,  Lew!

Talvez fosse realmente importante. A Espada de Aldones era a derradeira arma contra Sharra. E Regis tinha ultimamente parecido  possuir um curioso poder sobre Sharra. Mas, fosse ele o que fosse,  não tínhamos tempo a perder enquanto ele tentava recordar-se.

Regis advertiu:

- Se Dyan te vir, serás impedido de continuar. E Beltran tem o direito legal de reter Callina. Como tencionas sair do Castelo?

Guiei-os até aos aposentos de Alton. Os Altons, há numerosas gerações, tinham projectado esta parte do castelo, reservando para si mesmos algumas rotas de fuga. Perguntei-me por que razão eles teriam naqueles tempos tentado proteger-se dos seus pares no Comyn, e repentinamente ocorreu-me que esta não era certamente a primeira vez, na longa história do Comyn, que havia disputas entre  os clãs.

Mas talvez fosse a última.

Forcei a minha mente a divagar, procurando certos pormenores  no desenho do pavimento. O meu pai tinha-me falado desta rota de fuga, mas não se dera ao trabalho de me ensinar como lhe ter acesso. Franzi a testa, tentando ensaiar, delicadamente, a tranca de matriz que dava acesso à escadaria secreta.

Do quarto nível, no mínimo! Comecei a pensar se teria de recorrer  ao meu velho jogo de ferramentas de mecânico de matrizes para executar o equivalente mental ao uso de uma gazua numa fechadura  vulgar. Desviei ligeiramente a minha concentração...

... Regressa a Darkover... luta pelos direitos do teu irmão, pelos  teus direitos...

A voz do meu pai; contudo, pela primeira vez, ela não me melindrava.

Naquele seu contacto final que ele me obrigara a aceitar, tinha a certeza de que teriam estado presentes algumas das suas recordações;

como poderia explicar de outra forma o modo súbito e emotivo como eu reagira a Dyan? Agora encontrava-me com os bicos  dos pés sobre o padrão apropriado e, sem parar para pensar em como fazê-lo, empurrei algo invisível...

 ... até à segunda estrela, para o lado e depois através do labirinto...

A minha mente procurou os padrões apropriados; a certa altura  a memória hesitante que não era a minha desdobrou-se em coisas  sem nexo e evaporou-se, deixando no ar um aroma pungente de limão, mas agora eu já me encontrava bem no interior do padrão  e foi-me possível desenredar o último desvio da tranca. Por baixo de mim o pavimento inclinou-se; dei um salto para o lado, enquanto um troço do pavimento se movia para baixo apoiado em maquinaria invisível, revelando uma escadaria escondida, escura e poeirenta.

- Sigam-me de perto - avisei. - Nunca cheguei a descer por aqui, mas vi-a aberta uma vez. - Fiz um gesto para que descessem comigo a imunda escada; Kathie franziu o nariz reagindo ao cheiro a mofo, e Callina apertou as saias contra as pernas num gesto de enfado, mas ambas avançaram, seguidas por Regis e Dio. Atrás de nós o quadrado de luz dobrou-se sobre si mesmo e desapareceu.

- Teria sido bom se o meu tetra-tetra-tetra-avô tivesse pensado em pôr aqui uma luz - desabafei. - Isto aqui está tão negro como os... - suspendi a tempo a obscenidade usada na caserna, substituindo-a  por: - ... bolsos de Zandru. Ouvi Dio soltar um riso meio reprimido, e soube assim que ela estava em contacto mental comigo.

Suavemente, Callina anunciou:

- Eu posso produzir luz, se precisares dela.

Kathie soltou um grito assustado quando uma bola verde de fogo pálido cresceu na palma de Callina, espalhando-se como fosforescência  sobre a sua mão de seis dedos. A sobreluz não era novidade  para mim, mas era uma cena digna de ser vista, a Guardiã com as mãos estendidas para a frente lançando uma pálida incandescência  que nos alumiava a descida. Os dedos estendidos desfaziam  teias pegajosas, e por uma vez pareceu-me ter visto diminutos olhos rebrilhantes seguindo-nos no escuro, mas ignorei-os, vigiando os degraus debaixo dos meus pés. Seguíamos Callina de tão perto que ela teve de nos avisar, com uma voz suave e preocupada:

- Tenham o cuidado de não tocarem em mim. - De uma vez Kathie escorregou no pavimento estranhamente viscoso e falhou um ou dois degraus até eu conseguir ampará-la. Ia tacteando a parede com a minha mão válida, ignorando o que poderia estar agarrado a ela, e a certa altura a escadaria virou inesperadamente numa curva  cega para a direita; se não fosse a luz pálida de Callina teríamos dado um passo em falso, mergulhando sabe-se lá até onde. Um de nós soltou inadvertidamente da parede um seixo que só passado algum  tempo ouvimos bater no fundo. Prosseguimos, e sentia o meu sangue palpitando com força nas têmporas. Raios! Esperava não ser obrigado a passar novamente por aqui. Preferia enfrentar Sharra e metade dos demónios de Zandru!

Continuámos a descer, interminavelmente, até me parecer que já decorrera metade do dia enquanto percorríamos a escadaria e o labirinto a que ela conduzia, mas Callina ia-nos mostrando o caminho  em passinhos delicados, como se estivesse pisando o chão de um salão de baile.

Finalmente a passagem terminou diante de uma porta de aspecto  maciço. A luz dissipou-se das mãos de Callina quando esta tocou na porta, e eu tive de lutar com a trave de madeira que a trancava.

Estava a ver que não conseguia levantá-la com uma só mão, mas Dio veio em meu auxílio; a porta abriu-se e a claridade veio assaltar  os nossos olhos dilatados pela escuridão daquele malfadado túnel. Semicerrando os olhos, descobri que nos encontrávamos na Rua dos Caldeireiros, exactamente onde dissera a Hjalmar para trazer  os cavalos. Ao fundo da rua, repleta com o tinido de muitos martelos afeiçoando metal, havia um estabelecimento de ferreiro, e vi Hjalmar aguardando-nos ali com os cavalos.

O Guarda reconheceu Callina, apesar de esta se apresentar envolta  numa grosseira capa escura; perguntei a mim mesmo se a teria  pedido emprestada a uma das serviçais ou se teria simplesmente entrado no alojamento destas, pegando na primeira capa que estava  à mão.

- Vai domna, permiti que vos ajude a montar...

Ela ignorou-o voltando-se para mim e, desajeitadamente, com uma só mão, ajudei-a a subir para o selim. Kathie montou sem qualquer  problema, e voltei-me para Dio.

- Sabes onde te encontras? Como vais regressar?

- Não pelo mesmo caminho! - respondeu com veemência. Não te preocupes, hei-de encontrar o caminho. - Apontou para o castelo, que parecia estar a grande altura sobre nós nas vertentes da cidade; tínhamos vindo de muito longe. - Ainda sinto que devia ir convosco...

Abanei a cabeça. Eu não iria arrastar Dio para isto. Estendeu-me  os braços, mas fingi não reparar. Não suportava despedidas, agora não. Disse para Regis:

- Ajuda Dio a regressar em segurança! - e voltei as costas a ambos. Icei-me desastradamente para a sela, e pus-me a caminho sem olhar para trás, concentrando-me em guiar os cascos do cavalo sobre os godos da calçada.

Saímos da Rua dos Caldeireiros e atravessámos os portões da cidade sem termos sido reconhecidos, e começámos a subir a estrada  que conduzia ao desfiladeiro. Olhei para trás uma vez e vi-os lá em baixo, o quartel-general terráqueo e o Castelo Comyn frente a frente, com a Cidade Velha e a Cidade Comercial entre ambos, como tropas agrupadas em volta de dois gigantes em pé de guerra.

Voltei-lhes resolutamente as costas, mas não fui capaz de deixar de pensar neles. Eram a minha herança, ambas e não apenas uma delas, e por mais que tentasse não conseguia considerar a batalha próxima como Terráqueos contra Comyn, mas antes como Darkover contra Darkover,  uma contenda entre os que estavam prontos a lançar males antigos sobre o nosso mundo ao serviço do Comyn e os que estavam  prontos a protegê-lo desses males.

Em tempos aliara-me ao mal antigo de Sharra. Não interessava que eu tivesse tentado fechar o portal; tinha sido eu quem primeiro invocara Sharra, malbaratando o laran que era a minha herança, atraiçoando Arilinn que me ensinara a usar esse laran. Agora iria destruir esse mal, ainda que me destruísse ao mesmo tempo.

Contudo neste momento, ao respirar o vento gelado do alto desfiladeiro, o vento carregado de neve que soprava vindo do glaciar eterno, podia esquecer-me de que esta talvez fosse a minha derradeira viagem. Kathie estava a tiritar; tirei a minha capa e coloquei-a sobre os seus ombros enquanto cavalgávamos lado a lado. Ela protestou:

- Vais ficar gelado! - mas eu ri-me e abanei a cabeça.

- Não, não, tu não estás habituada a este clima; isto para mim é tempo de andar em mangas de camisa! - insisti, envolvendo-a nas dobras da capa. Ela embrulhou-se melhor, ainda a tiritar. - Estamos  quase a ultrapassar o desfiladeiro, e fará menos frio nas margens  do lago Hali.

O Sol vermelho estava bem alto, quase no zénite; o céu apresentava-se  livre de nuvens, num belo tom pálido de malva: era um dia perfeito para um passeio a cavalo. Quisera ter um falcão pousado na minha sela, quisera ter partido de Arilinn caçando aves para a minha  ceia. Olhei para Callina e ela sorriu-me, partilhando o meu pensamento,  pois fez um ligeiro movimento como se estivesse a lançar um falcão verrin para o ar. Kathie, com as suas volumosas ondas de cabelo castanho, fez-me também pensar nos meus passeios a cavalo com Linnell pelas Colinas de Kilghard quando éramos crianças. De uma vez tínhamos ido até Edelweiss, apanhando uma rija sova do nosso pai ao chegarmos a casa já de noite. Só agora constatava que o que parecera um cruel castigo a crianças de doze e nove anos tinha  na realidade sido algumas ligeiras palmadas nos ombros aplicadas  por um pai que se ria para nós, menos zangado do que grato por termos escapado aos bandidos ou às aves-banshee. Recordava-me  agora de que ele nunca batera a sério em qualquer de nós. Mas uma vez, quando me tinha esquecido de cuidar de um cavalo depois de o ter levado a galopar, confiando-o a um inexperiente moço de estrebaria,  ameaçara-me de que, se voltasse a fazê-lo, ia ficar sem ceia e obrigava-me a dormir no chão com as minhas roupas de montar ainda molhadas, em vez de ter um banho quente e uma boa cama à minha espera.

Rígido como o meu pai tinha sido - e houve vezes em que o odiei - parecia-me que só agora, enfrentando a minha própria morte,  estava totalmente cônscio de como ele nos tinha amado, de como os planos que ele fizera para nós tinham sido frustrados. Estava prestes a dizer: “Linnie, recordas-te...”, quando me lembrei de que Linnell estava morta e que a rapariga que seguia à minha frente, compondo uma capa à sua volta com os mesmos gestos de Linnell, era uma estranha, uma terráquea estranha.

Voltei-me para Callina, e os nossos olhos encontraram-se. Callina  era verdadeira, Callina representava todos os dias que eu tinha passado em Arilinn, Callina era o tempo em que me sentira feliz fazendo  nas Torres o trabalho que eu adorava fazer. A pulseira de cobre  no seu pulso esquerdo, símbolo do seu compromisso com Beltran, era uma piada de mau gosto, uma obscenidade, inteiramente  irrelevante. Pus-me a sonhar com o dia em que eu iria arrancá-la  do seu pulso para atirá-la à cara de Beltran...

Callina era uma Guardiã que nunca poderia ser tocada, nem sequer por um pensamento pecaminoso... mas agora ela seguia ao meu lado, voltando para mim o seu rosto pálido e sorridente. E eu pensei: ela já não era uma Guardiã, pois o Comyn tinha-a casado com Beltran como se estivesse a negociar uma égua de cobrição; mas, se ela podia ser dada a Beltran, o Comyn não poderia protestar  - depois de Callina enviuvar devidamente de Beltran, pois enquanto  eu vivesse Beltran não consumaria o casamento - se ela posteriormente se entregasse a mim.

E depois... Armida e as Colinas de Kilghard... e o nosso próprio  mundo a aguardar-nos... Ela sorriu para mim, e por um instante  o meu coração rodopiou dentro de mim perante aquele sorriso.

Depois regressei à realidade: a única saída passava através de Sharra,  e era muito duvidoso que eu estivesse vivo para ver o pôr do Sol.

Ao menos Beltran, que como eu se tinha comprometido com Sharra, seguiria comigo para a escuridão. Mas os olhos dela continuavam a procurar os meus, e, contrariando toda a sanidade mental imaginável,  eu sentia-me feliz.

Abaixo de nós estendia-se agora o pálido litoral de Hali, com a longa fileira de árvores desaparecendo na neblina. Aqui, segundo dizia a lenda, o Filho de Aldones caíra do céu, tornando as areias para sempre espelhadas e rebrilhantes... Olhei para o pálido reflexo das areias do litoral, sabendo que estas areias eram constituídas por algum mineral reluzente, mica ou granada, desfeito pelo bater das ondas de algum vasto mar interior que aqui desaguara muito antes deste planeta ter criado vida. Contudo o portento persistia: neste reluzente  litoral Hastur tinha repousado, e até aqui tinham chegado Camilla, a Maldita, e a Abençoada Cassilda, antepassada do Comyn, para cuidarem dele...

As sombras estavam a prolongar-se: o dia ia avançado, e uma das luas, a grande Liriel violeta, começava a subir por cima do lago, minguando um pouco. Teríamos talvez duas horas antes do pôr do Sol, e descobri que não me agradava a ideia de regressar a Thendara  na escuridão. Bem, montaríamos esse potro quando ele crescesse  o suficiente para aceitar uma sela; o nosso objectivo residia no interior da rhu fead, a velha capela que era o local sagrado do Comyn.

A capela erguia-se à nossa frente, uma estrutura de pedra, branca  e rebrilhante. Em tempos tinha existido aqui uma Torre; fora destruída  nas Eras do Caos, consumida naqueles tempos malditos por uma arma de laran ao lado da qual a matriz de Sharra não passava de um brinquedo. Sofreámos os cavalos junto à margem do lago, onde a neblina se acumulava esbranquiçada ao longo do litoral.

A escassa relva rosada diluía-se na areia. Pontapeei um seixo, que foi afundar-se, rodopiando lentamente, na superfície nebulosa do lago.

- Aquilo não é água, pois não? - perguntou Kathie, intrigada.

Eu não sabia o que seria. Hali era o mais próximo de meia dúzia  de lagos de nuvens cujas profundezas não são água, mas sim uma espécie de gás inerte... capaz até de sustentar vida; uma vez eu tinha passeado por pouco tempo no fundo daquele lago, observando  estranhas criaturas, nem peixes nem aves, que nadavam, ou voavam,  naquela água-nuvem. Dizia a lenda que em tempos estes lagos tinham sido de água como quaisquer outros, e que nas Eras do Caos um feiticeiro, trabalhando com o laran de então, os criara com a sua peculiar estrutura gasosa mais as curiosas avespeixes que voavam ou nadavam neles... Eu achava que aquilo era tão provável como a balada que conta que as lágrimas de Camilla se tinham misturado com a água, transformando-a em nuvens, quando Hastur escolhera Cassilda para sua consorte. Agora não havia tempo para contos infantis nem para baladas!

Confusa, Kathie insistiu:

- Mas decerto eu já estive aqui noutra ocasião...

Abanei a cabeça.

- Não. Tens apenas algumas das minhas recordações, nada mais.

- Nada mais! - A sua voz tinha um toque de histeria. Disse-lhe:

- Não te preocupes com isso - e toquei-lhe no pulso, desajeitadamente.

- Anda, vem por aqui.

Dois pilares elevavam-se diante de nós, e um cintilante arco-íris tremeluzia como geada no meio deles: era o Véu, como o Véu de Arilinn, impedindo a entrada de quem não pertencesse ao Comyn:

Se os genes de Kathie fossem idênticos aos de Linnell, ela não teria dificuldade em ultrapassar este Véu... mas o teste não era apenas físico  mas também mental: ninguém desprovido de laran do tipo do Comyn... e Kathie fora trazida para aqui precisamente devido à sua imunidade a esse padrão mental Comyn.

- Mesmo estando bloqueada - expliquei a Kathie -, isto iria esvaziar por completo a tua mente. Vou ter de reter a tua mente completamente debaixo da minha. - Parecia estar a falar com uma total certeza interior, sabendo precisamente o que poderia fazer, e num pequeno recanto da minha mente sentia-me espantado comigo  mesmo. Ela esquivou-se ao primeiro toque da minha mente, e preveni-a num tom inexpressivo:

- Tem de ser. O Véu é uma espécie de campo de forças, sintonizado  com o cérebro Comyn; sem isto não sobreviverias por mais de dois segundos.

Inclinei-me e tomei-a nos meus braços.

- Não irá doer-me, mas não me resistas.

Fiz contacto com a mente dela; abafei-a, anulei a resistência...

Algures no fundo da minha memória lembrei-me de como receara fazer isto a Marius. Era uma espécie de estupro, e repugnava-me; mas disse a mim mesmo que sem uma dominação completa ela não poderia sobreviver... - A primeira lei de um telepata é nunca penetrar numa mente relutante...

Mas ela consentira; disse isso a mim mesmo, e sem mais delongas  cobri a última resistência e a mente dela desapareceu, completamente  absorvida pela minha e escondida nela. Em seguida atravessei o arco-íris tremeluzente...

Senti-me espicaçado por um milhão de pequenas agulhas, uma força sem nome perfurava-me como uma chuva estranhamente penetrante...

Estava lá dentro, tinha ultrapassado o Véu. Depositei Kathie em pé e recuei, tão suavemente como podia, mas ela caiu sem forças no chão. Callina ajoelhou-se ao lado dela, esfregando-lhe  as mãos, e passado um momento Kathie reabriu os olhos.

Havia portas e longas passagens diante de nós, enevoadas como se a rhu fead se tivesse enchido com a nuvem gasosa do Lago. Quase esperava ver as estranhas aves-peixes nadando lá. Aqui e ali havia nichos  repletos de coisas tão estranhas que eu nem podia imaginá-las; por detrás de um arco-íris de cores vi uma essa onde jazia um corpo  de mulher, ou uma efígie de cera, ou um cadáver: não sabia o quê; tinha uma longa cabeleira de um tom vermelho pálido; e parecia-me  que o corpo de mulher era demasiado realista para ser irreal, que os seus seios se levantavam e baixavam suavemente enquanto ela dormia; mas o tremeluzir do arco-íris permanecia sereno, como se ela tivesse ali jazido numa morte inalterada e incorruptível durante milhares de anos. Por detrás de outro arco-íris estava uma espada descansando num vasto escudo antigo, mas o punho e o escudo brilhavam  coloridos, e eu soube que esta não era uma simples arma e também não era aquilo que procurávamos. Regis devia ter vindo connosco, pensei. Como irei reconhecer a Espada de Aldones quando  a encontrar?

- Eu saberei - disse Callina calmamente. - Ela está aqui. Abruptamente a passagem descreveu um ângulo, mudou de direcção, e foi dar a uma capela com arcadas brancas e tendo ao fundo algo semelhante a um altar, e, por cima deste, feita ao estilo dos mais antigos  mosaicos, uma imagem da Abençoada Cassilda com uma florestrela  na mão. Num nicho de parede havia mais um dos arcos-íris tremeluzentes, mas ao aproximar-me dele senti uma dor intensa e soube que este era um dos que estavam inteiramente protegidos dos Comyn... Tinha chegado a altura de ver se Kathie poderia mesmo tocar nestas coisas protegidas. Callina estendeu as mãos, que logo recuaram espontaneamente. Como se tivesse ouvido os meus pensamentos  - e talvez tivesse - Kathie perguntou:

- Ainda estás a tocar a minha mente?

- Um pouco.

- Retira-te, então. Por completo...

Isso fazia sentido; se este campo de forças estava regulado para repelir os Comyn, o mais ligeiro toque da minha mente pô-la-ia em perigo. Retirei-me por inteiro, e ela começou a avançar desenvolta para o arco-íris, e atravessou-o.

Desapareceu numa névoa penumbrosa. Depois uma língua de fogo saltou para o tecto; desejei gritar-lhe para não ter medo, pois era apenas um truque, uma ilusão. Mas nem a minha voz conseguiria  penetrar através do campo de forças destinado a filtrar os Comyn. Numa silhueta pouco definida, ela passou através do fogo; talvez nem tivesse dado pela sua presença. Escutou-se um ribombar de trovão que percorreu a capela, fazendo tremer o chão como se fosse um terramoto. Kathie voltou a atravessar o arco-íris. Trazia uma espada na mão.

Portanto a Espada de Aldones era uma espada autêntica, longa e rebrilhante e mortífera, e de uma têmpera tão fina que fazia com que a minha espada parecesse um brinquedo de chumbo. No punho, através de uma fina cobertura isoladora de seda, jóias azuis reluziam e fulguravam.

Era tão parecida com a espada de Sharra que não consegui evitar  um arrepio ao olhar para ela. Mas a espada de Sharra parecia agora uma falsificação de inferior qualidade, uma cópia apagada da preciosidade que eu estava a admirar. Estava alojada numa bainha de excelente cabedal; algumas palavras, desenhadas num fino bordado  com fio de cobre, ornavam a face da bainha.

- O que diz aí? - perguntou Kathie, e dobrei-me para ler a inscrição, mas estava escrita num dialecto casta tão antigo que não consegui interpretá-la. Callina deitou-lhe um olhar, e passado um momento traduziu-a.

Esta espada será desembainhada apenas quando tudo o mais terminar para os filhos de Hastur, e então a desacorrentada ficará dominada.

Bem, de qualquer forma o mundo que conhecêramos estava a terminar; e Sharra permanecia desacorrentada. Mas eu não ousaria extrair a espada da sua bainha. Lembrava-me do que tinha acontecido  a Linnell ao ser confrontada com a sua duplicata, e eu... eu tinha  sido ligado à matriz de Sharra; mesmo agora ainda não me achava livre, pelo menos totalmente.

Tínhamos a Espada de Aldones na nossa posse; mas eu ainda não sabia como ela poderia ser usada. A desacorrentada ficará dominada.

Mas de que maneira?

Um prurido de energia, não desagradável, subiu-me pelo braço  acima; era como se a espada desejasse ser puxada, saltar da sua bainha...

- Não! - preveniu Callina, e eu relaxei-me, soltando o ar retido  nos pulmões, devolvendo a espada ao cabedal; tinha-a puxado apenas uns centímetros para fora.

- Eu encarrego-me dela - disse Callina, e suspirei aliviado. Ela era uma Guardiã; sabia como manusear matrizes desconhecidas.

E, enquanto a espada de Sharra era um esconderijo para uma matriz poderosa, a Espada de Aldones era - eu sabia isto, sem saber  como o saberia - em si mesma uma matriz, e perigosa de manejar.

Se Callina se sentia capaz de correr esse risco, não iria discutir com ela a tal respeito.

- Está bem - disse eu. - Vamo-nos embora daqui.

A última luz do Sol estava a diluir-se quando saímos da rhu fead.

As mulheres seguiam à minha frente; Kathie já não necessitava da minha salvaguarda. O Véu servia apenas para impedir que aqueles que não tinham sangue Comyn entrassem na capela; não ocorrera aos meus antepassados nas Eras do Caos a necessidade de impedir que alguém saísse. Fui-me deixando ficar para trás, desejoso de explorar  algumas das estranhas coisas ali existentes.

Então Kathie soltou um grito, e vi os derradeiros raios de sol rebrilharem  em aço. Dois vultos, formas escuras contra a luz, surgiram diante dos meus olhos; reconheci Kadarin, de espada na mão, e ao seu lado uma mulher, esbelta e vital como uma chama negra.

Ela já não se parecia muito com Marjorie, mas mesmo assim reconheci Thyra. Kathie chocou comigo ao recuar, e afastei-a suavemente  para enfrentar o meu inimigo juramentado.

- O que pretendes?

Estava a protelar. Havia apenas uma coisa que Kadarin poderia  pretender de mim, e o meu sangue transformou-se em gelo com o horror daquela recordação, e a matriz pendurada ao meu pescoço  começou a palpitar com fogo...

Volta para mim, regressa para o fogo... e eu acabarei com todos  os teus ódios e apetites, todos os teus receios e angústias nas minhas  próprias chamas, grassando sem correntes, ardendo, ardendo para sempre...

- Escondendo-te outra vez atrás de mulheres? - escarneceu Kadarin. - Bem, entrega-me isso que a Guardiã transporta, e talvez  vos deixe partir... se puderem! - Atirou a cabeça para trás e riu-se sonoramente, com aquele estranho riso que tinha ecos de um grito de falcão. Não se parecia agora com um homem, nem com qualquer coisa humana; os seus olhos eram frios e incolores, quase metálicos, e o seu cabelo sem cor estava muito comprido, esvoaçando  em volta da cabeça; as mãos com que segurava a espada eram longas e magras, mais parecidas com garras do que com mãos.

E todavia existia nele uma beleza estranha, ali especado com a cabeça  inclinada para trás, rindo-se com aquele riso louco. - Porque não tornas as coisas mais fáceis para ti, Lew? Sabes que acabarás por fazer tudo o que eu quiser. Dá-me isso... - e apontou para a Espada de Aldones - e eu deixarei as mulheres partir em liberdade,  e não terás mais isso para te atormentar...

- Antes disso hei-de ver-te congelado no mais frio dos infernos  de Zandru... - exclamei, sacando da minha adaga. Postei-me diante dele. Houvera tempo em que talvez pudesse vencê-lo a esgrimir; agora, com uma só mão, um ferimento na cabeça e um corte profundo no meu braço válido, não me parecia ter qualquer hipótese.

Mas talvez pudesse obrigá-lo a dar-me uma morte limpa.

- Não... Espera, Lew - disse Callina calmamente. - Este é... Kadarin? - Nada havia na sua voz excepto desprezo, nem um vestígio de medo. Vi uma sombra de desânimo no rosto de Kadarin,  mas ele já não era suficientemente humano para reagir às palavras.

Numa tenebrosa paródia aos seus modos civilizados de outros tempos, declarou:

- Robert Raymon Kadarin, para servirti, vai domna.

Ela levantou ligeiramente a Espada de Aldones nas suas mãos.

- Venha buscá-la... se puder - disse ela, apresentando-lha com ar convidativo. Gritei:

- Callina... não!... - e até Thyra vociferou algo incompreensível,  mas Kadarin rosnou:

- Essa fanfarrice não vais servir-vos de nada... - e soltou sobre  ela, arrancando-lhe a espada das mãos...

As mãos de Callina explodiram em fogo azul, e Kadarin foi arremessado  para trás, envolto numa refulgência azulada; a Espada de Aldones flamejou com o brilho de limalha de cobre deitada ao lume, e ficou caída no chão entre nós, enquanto que Kadarin, atordoado  e quase sem dar por si, tentava pôr-se em pé, rosnando uma obscenidade de esgoto que só eu entendi.

Calmamente, Callina disse:

- Agora também eu não posso pegar nela, uma vez que tocou em Sharra; Kathie...

Lentamente, hesitante, Kathie ajoelhou-se e estendeu a mão, devagar, timorata, como se receasse que aquela mesma explosão de energia azul a atirasse sem sentidos para o chão. Mas a sua mão fechou-se  sobre o punho sem incidente. Talvez aquilo fosse para ela apenas uma espada. Respirou profundamente.

Thyra exclamou:

- Deixa-me...

- Não, ave bravia - insistiu Kadarin. Por um instante enxerguei,  através da coisa monstruosa em que ele se transformara, um vestígio do homem que eu em tempos amara como a um irmão, na antiga ternura com que ele puxou Thyra para si, mantendo-a segura.

- Também tu não podes tocar nela... mas o cão dos Alton não poderá  igualmente pegar-lhe. Estamos assim num impasse. Eles que se vão; surgirá outra ocasião, noutro lugar... - Olhou de novo para mim, enfurecido, pois o momento de gentileza e de humanidade já se dissipara. - E nada te protegerá então; aquele que foi tocado pelas  chamas do cabelo será de novo reclamado por Sharra para ela.

E então os próprios infernos arderão nas labaredas de Sharra...

- Pelos Deuses acima de nós! Em tempos isto tinha sido um homem, e meu amigo! Agora já nem podia odiá-lo; ele não era suficientemente humano para isso.

Ele era Sharra, alojada no corpo de um homem que em tempos fora humano... e que assim o desejara, tendo-se rendido voluntariamente  àquela coisa monstruosa em que se transformara! Mal podia distinguir Thyra ao lado dele, através da ilusão das labaredas encrespadas  que grassavam entre nós...

- Não! - gritou Thyra. - Agora não! Agora não! - e as chamas esbateram-se. Agora podia vê-la com nitidez; nunca houvera  qualquer fogo. Aproximou-se de mim, de mãos estendidas, apenas uma mulher, pequena e frágil, com ossos pequenos como os de uma ave. Estava vestida à homem para montar a cavalo, e o seu cabelo tinha o mesmo sumptuoso tom acobreado do de Marjorie, e os seus olhos, límpidos e ambarinos como os de Marjorie, fixaram-se  nos meus com a sua antiga e doce expressão meio trocista; e recordei-me  de que a tinha amado, de que a tinha desejado...

Tentando estabelecer um semi-esquecido contacto mental comigo,  ela disse:

- O que fizeste com a minha filha? Com a nossa filha?

Marja! Por um momento parecia-me que podia sentir o toque de doces recordações, Marjorie confundindo-se com Thyra nos meus braços, uma chama viva, o toque da mente-criança...

Thyra tinha já estabelecido o contacto, e a expressão do seu rosto modificou-se.

- Ela está contigo, então?

- Tu não a querias, Thyra - respondi calmamente. - Foi uma partida cruel pregada a um homem drogado, e tu mereces toda a miséria que essa partida te trouxe...

Por um momento esquecera-me de mantê-la vigiada, esquecera-me  de que ela agora nada mais era do que um bonifrate nas mãos de Kadarin... e nesse momento uma estocada de agonia atravessou-me  o ombro, e o meu coração sentiu o transe da morte, e eu soube que o punhal de Thyra me tinha ferido...

Cambaleei com o choque do que me acontecera. Callina amparou-me  nos seus braços; mesmo através da dor e do súbito desespero... isto era o fim, e Sharra ainda andava à solta, eu tinha morrido depressa de mais, eu tinha morrido... espantou-me a força com que ela me mantinha em pé. Kadarin deu um salto em frente e sacou Thyra de cima de mim.

- Não! Não é desta maneira... ainda precisamos dele... ah, o que foste fazer, Thyra... mataste-o...

Senti-me a perder a consciência, senti a escuridão baixando para me cobrir os olhos, ouvi um ruído terrível que me assaltava os tímpanos... Seria assim a morte, dor e ruído e uma luz ofuscante?

Não, era um helicóptero terráqueo que pairava sobre nós, pousando,  e gritaria, e uma voz que se tornou repentinamente nítida.

- Robert Raymon Kadarin, estás preso em nome do Império, acusado de... senhora, largue esse punhal; tenho aqui uma pistola de nervos e posso rebentar consigo. O senhor também... largue essa espada.

Através da escuridão indecisa diante dos meus olhos distingui os uniformes escuros dos homens da Força Espacial. Devia ter sabido  que eles iriam localizar Kadarin, de um modo ou outro, e com armas terráqueas proibidas aqui nos Domínios. Poderia instaurar-lhes  um processo, pensei debilmente, eles não têm o direito de estar  aqui. Nunca deste modo. Nunca com explosores fora da Cidade Comercial. Devia ser eu a prendê-los, em vez de eles nos prenderem a nós.

Depois afundei-me numa escuridão que era realmente como a morte, e tudo o que podia sentir era uma imensa lástima por tudo o que deixava por fazer. Depois até isso deixei de sentir.

 

Dio ficou a ver os cavalos afastando-se, e quando ambos deixaram a Rua dos Caldeireiros pareceu a Regis que a mulher estava a chorar, mas ela sacudiu a cabeça e uma ou duas gotas brilhantes saltaram a voar.

Dio olhou para ele, quase em desafio, e disse:

- Bem, Lorde Hastur?

- Prometi que vos acompanharia em segurança de regresso ao Castelo, Domna - disse ele, oferecendo-lhe um braço.

Ela riu-se; era como um arco-íris saindo das nuvens.

- Agradeço-vos, meu lorde. Não é necessário. Tenho caminhado  sem guarda por lugares piores do que este.

- Tendes razão, estivestes fora deste mundo - retorquiu Regis,  sentindo de novo a antiga ânsia, a antiga inveja; apesar de todo o seu sofrimento, Lew era mais livre do que ele próprio, com todos os mundos de um Império interestelar ao seu alcance. Ah, se pudesse seguir para além dos estreitos céus do seu próprio mundo, visitar as estrelas... Sabia agora que nunca iria. Para o melhor ou para o pior, o seu destino estava aqui, fosse ele como fosse: uma coroa não desejada,  o novo laran que lhe pesava tanto que se sentia prestes a fender-se  em dois como uma borboleta ao separar-se do casulo que a constringe. Ele era Hastur; o resto tinha de pôr de parte, todos os seus velhos sonhos, como os piões e as bolas coloridas da sua infância.

Caminhando ao lado de Dio ao longo da Rua dos Caldeireiros, dobrando depois a esquina para entrarem na estrada que conduzia ao Castelo Comyn, escutava os sussurros, via a multidão que se juntava  à sua volta com espanto e temor respeitoso.

- Comyn...

- É o próprio Lorde Hastur... o príncipe...

- Não, decerto que não, o que estaria ele a fazer aqui na rua, sem escolta...

- É mesmo o príncipe Hastur, vi-o na Noite do Festival...

Regis não conseguia percorrer uma rua estreita e pouco importante  sem atrair uma multidão. Lew, um homem marcado e desfigurado, sem uma mão sacrificada aos fogos de Sharra, era apesar  de tudo mais livre do que ele. Se algum homem parasse a olhar para Lew, era apenas por pena ou por curiosidade, e não por esta confiança cega, por esta certeza de que, acontecesse o que acontecesse  a Darkover, o clã de Hastur protegeria todos.

Como o meu laran, também isto é demasiado para mim... demasiado  para qualquer mortal que não seja um Deus!

Puxou uma dobra da sua capa sobre a cabeça para lhe esconder  os cabelos vermelhos, continuando desprotegido do assalto mental  da multidão, espanto, admiração, curiosidade...

Não posso dançar ou passear com uma mulher sem que o meu nome fique ligado ao dela...

- Lamento, Dio - disse ele, tentando fazer humor -, mas receio  ter-vos já feito passar por minha futura rainha; é pena termos de decepcioná-los. Suponho que agora terei de explicar também ao meu avô que não tenciono casar-me convosco!

Dio mostrou-lhe um ligeiro sorriso oblíquo.

- Não tenho qualquer desejo de ser rainha - disse ela -, e creio que Lorde Danvan ficaria escandalizado se fosse essa a vossa intenção...

Depreciei-me ao relacionar-me com outros homens em Vainwal,  e agora sou a irmã do traidor que fugiu de Darkover para o Império...

- Eu não sabia que Lerrys se tinha ido embora - disse ele com suavidade. - Mas não o critico por ele ter fugido, Dio. Quem me dera poder fugir também. E se és a irmã de um traidor, isso não faz de ti uma traidora; mas o facto de te teres mantido cá quando outros  fugiram só aumenta o teu valor.

Tinham chegado diante dos portões do Castelo Comyn; Regis viu um dos Guardas olhando fixamente para ele, sem escolta e acompanhando Lady Dio Ridenow, e apesar de não tentar ler a mente do homem sentiu o seu choque e espanto: Lorde Regis, aqui e sem guarda-costas, e com uma mulher... e sentiu igualmente o secreto  prazer do Guarda por possuir este pedaço de mexerico para distribuir pelos seus amigos. Tudo o que Regis fazia dava origem a intrigalhadas, e ele estava intensamente cansado disso.

Atravessou o pátio, desejoso de dizer a Dio uma ou duas palavras  delicadas e separar-se dela. Tinha demasiados problemas para querer partilhá-los com uma mulher, mesmo se houvesse alguma mulher com quem ele desejasse partilhar alguma coisa para além de um breve momento de paixão ou de prazer. E abruptamente, ao olhar para Dio, sentiu-se dilacerado pelo desespero dela.

- O que se passa, Dio? - perguntou mansamente, e captou a resposta na sua mente.

Ele estava tão certo de ir morrer! Tudo o que ele vê é a sua própria  morte... Eu não me importaria de o acompanhar na morte, mesmo nisso, mas ele só pensa em Callina...

Regis sentiu-se atordoado pela intensidade da dor de Dio. Nenhuma  mulher o amara daquela forma, nenhuma lhe mostrara aquele  tipo de lealdade e dedicação.

Ele foi morrer, foi atirar-se contra a morte ao procurar a arma para vencer Sharra...

Regis sentia que ele próprio devia ter acompanhado Lew, ou que devia ter purificado a matriz dele como fizera com a de Rafe.

O que lhe daria este estranho poder, não sobre Sharra mas sobre o Vulto de Fogo? Kadarin encontrava-se algures, com a matriz de Sharra na sua posse, e Lew poderia cair-lhe nas mãos...

Devia ter ido com Lew, ou purificado a sua matriz. Ou ao menos  devia ter exigido que Callina o conduzisse a Ashara, para que a antiga Guardiã do Comyn lhe explicasse este novo e monstruoso Dom de Hastur. Lew, ao menos, foi treinado nas Torres, conhece as forças que possui... e também as suas fraquezas. Enfrenta a morte com perfeito conhecimento, não encandeado como eu pela ignorância!

Para que lhe serviria ser Hastur, e lorde do Comyn, se nem sequer  sabia o que este novo laran poderia trazer-lhe?

Dio estava a tentar esconder as lágrimas. Uma parte dele desejava  tranquilizá-la, mas não lhe sobrava conforto para ela e em qualquer  caso Dio não queria ouvir mentiras piedosas; ela pertencia ao clã dos Ridenow supersensíveis, e vê-las-ia imediatamente pelo que elas eram. Disse calmamente:

- É possível que iremos todos morrer, Dio. Mas, se me dessem a escolher, preferiria morrer impedindo que Sharra destrua Darkover,  tanto a dos Terráqueos como a do Comyn. E Lew pensará como eu, e tem o direito de escolher a sua própria morte... e de pagar pelos  erros cometidos...

- É possível. - Dio voltou-se para ele, já sem tentar disfarçar as lágrimas, e Regis compreendeu que isto era uma espécie de aceitação.

- É estranho; conheci tantas das suas... das suas fraquezas, o seu lado gentil, que me esqueço de como ele é forte. Nunca iria fugir  para os Terráqueos por ter medo, nem mesmo se lhe queimassem a outra mão...

- Pois não - disse Regis, sentindo-se subitamente mais próximo  dela do que da sua própria irmã -, ele nunca o faria.

- E tu também não, pois não? - disse ela, sorrindo-lhe através  das lágrimas nos seus olhos.

Ele é Hastur... e permanecerá fiel ao Comyn... e depois surgiu a pergunta inevitável e curiosa, mesmo para Dio: Porque nunca teria  ele casado? Poderia certamente ter qualquer mulher que ele quisesse... decerto não é verdade que seja, como Lerrys ou Dyan, apenas um amante de homens, pois tem tido mulheres, tem filhos nedestro...

E então Regis sentiu um regresso do desespero e da dor de Dio, o nosso filho, de Lew e meu, aquela coisa pavorosa, e eu repeli-o... foi apenas porque me sentia tão doente e enfraquecida, não foi porque  o odiasse ou culpasse, e depois Lerrys levou-me consigo, antes que eu pudesse ter-lhe dito... Misericordiosa Avarra, ele tem sofrido  tanto, e voltei a fazer-lhe mal, todo aquele horror, quando tinha prometido que ele nunca teria de se esconder de mim...

... e morrerá pensando ainda que eu o tinha repelido por causa daquele horror...

Repentinamente Regis constatou que estava a sentir inveja de Lew. Como ele tem sido amado! Eu nunca soube o que era amar assim  uma mulher ou ser amado... E hei-de morrer sem nunca saber se seria capaz de um tal amor...

Claro, ele tinha conhecido mulheres. Era capaz de sentir uma súbita  paixão, de tomá-las com prazer, dado e recebido; mas logo que o facho da mútua luxúria se extinguia, por vezes ainda antes de a mulher saber estar grávida com o filho dele, Regis tornava-se cônscio  do que elas sentiam por ele: prazer pela sua beleza física, orgulho por terem atraído a atenção de um Hastur, cupidez pelo privilégio de gerarem um filho de Hastur. Qualquer uma daquelas cinco ou seis mulheres teria prontamente aceite casar-se com ele, pelo estatuto que isso lhe conferiria; mas Regis nunca sentira por nenhuma delas mais do que um breve assomo de paixão e desejo, temperado por uma vaga repulsa por saber que aquilo que elas sentiam por ele era baseado  em avidez e vaidade.

Mas nunca este tipo de amor desinteressado... irei morrer sem jamais saber se sou capaz de atrair esse género de amor de uma mulher?

Ninguém alguma vez me amou tão desinteressadamente excepto  Danilo, e isso é diferente, é o amor entre camaradas, um companheirismo partilhado... uma coisa que todos os homens parecem  menosprezar, algo para pôr de lado terminada a adolescência... não haverá nada mais do que isto? Porque será que Lew é capaz de atrair este tipo de amor, e eu não?

Contudo, com o que pendia sobre eles também não havia tempo para isto. Ia voltar-se para dar a Dio alguma palavra de conforto quando repentinamente um guincho de terror desesperado lhes atacou  a mente, um grito mudo de desespero e pavor e pânico extremo.

Uma criança, uma criança está a gritar aterrorizada... Regis não estava  certo de quem seria esse pensamento, seu ou de Dio, mas logo reconheceu a criança que tinha gritado com um tal pavor agonizante,  e empurrou Dio à sua frente e correu, correu como um ser possesso direito aos aposentos Alton.

Marja! Mas quem teria aterrorizado de tal maneira uma criança?

As grandes portas duplas dos aposentos Alton estavam escancaradas,  balouçando numa só dobradiça. O velho Andres jazia numa poça do seu próprio sangue, caído de través no limiar da entrada onde fora prostrado.

Defendera a menina com a sua própria vida, tal como tinha jurado  fazer... Regis sentia-se desesperado; também ele tinha sido aceite  e apadrinhado pelo velho coridom. Só então se apercebeu de que Andres ainda se movia debilmente, apesar de ter perdido a fala. Ajoelhou-se,  com as lágrimas acumulando-se-lhe nos olhos pelo velho e fiel amigo, e Andres, com as suas derradeiras forças, sussurrou:

- Dom Regis... meu rapaz...

Regis sabia que o velho já não via; os seus olhos moribundos estavam já vidrados. Via apenas um rapaz de dez anos, o filho adoptivo  de Kennard, o amigo juramentado de Lew. E com as suas últimas  forças Andres construiu uma imagem na mente de Regis...

Depois a imagem desvaneceu-se e nada restava com vida na sala excepto o próprio Regis. Levantou-se, desfeito pela dor.

- Beltran! Mas como, pelos infernos de Zandru, terá ele conseguido  chegar até aqui, quando o deixei firmemente aprisionado...

Nem precisou de perguntar. Tinha deixado Beltran com Lorde Dyan; e este tinha concordado com Beltran que Sharra era a derradeira  arma contra os Terráqueos... Lew estava fora do alcance de ambos, mas restava uma criança Alton...

Restava uma criança Alton, dotada do Dom, apesar de ter apenas  cinco anos de idade, e com o laran da sua casa... e do seu sangue  chieri. Regis sentiu-se doente; poderia algum ser humano rebaixar-se ao ponto de usar uma criança pequena em Sharra? Tinha razões para saber que Dyan podia ser cruel, podia não ter escrúpulos,  mas isto?

Regis deu-se conta de que, enquanto isto se passava, estivera a ouvir algures na sua mente, com cada vez maior intensidade, os terríveis  gritos da criança, a súbita chama e o terror do Vulto de Fogo... e tudo desapareceu, tão repentinamente que por um instante sentiu-se  chocado, pensando que Marja teria morrido subitamente de terror,  ou sido silenciada por um golpe de terrível crueldade...

Que loucura era esta? À sua volta reinava o silêncio da morte nos aposentos dos Altons, entrecortado pelos arquejos horrorizados de Dio, parada à porta, mas escutava algures uma voz sua conhecida, ou seria um toque telepático e não uma voz?

Louco, isto não é coisa para uma menina! Eu tenho a força necessária  e não sou de melindres... Não sou um dos vossos eunucos educados nas Torres, deixa-me ocupar esse lugar em vez de alguém em que não podes confiar... e a seguir um riso silencioso de zombaria.

Não, ela não está morta, está fora do teu alcance, mais nada... mete-te com alguém do teu tamanho, Beltran!

- Senhor da Luz! - Regis sobressaltou-se, percebendo o que acontecera. Dyan escolhera Sharra. Apesar de todos os avisos, penetrara  por sua própria vontade naquele horror que tinha custado a Lew a mão e a sanidade mental, e que ainda agora confundia Regis com pavor... Quer isto dizer que Lew está livre? Não, nunca, nunca, continua  ligado a Sharra... Lorde Hastur! Lorde Regis!... Um serviçal chegou arfando à sua procura e parou chocado, olhando para o corpo inerte do velho coridom jazendo no chão.

- Deuses do céu, sir! O que aconteceu?

Agarrando-se a coisas calmas e normais, Regis respondeu:

- Este homem morreu defendendo a propriedade e a filha do seu senhor... do seu filho adoptivo. Merece um funeral digno de um herói. Vai procurar alguém que possa encarregar-se disso, está bem?

- Levantou-se lentamente, olhando para o morto e para os servos que se acumulavam à porta do aposento. Depois voltou-se para o homem que viera procurá-lo.

- Sir, o lorde Hastur... o vosso avô, sir... ordenou... - confuso,  o homem mudou de abordagem: - ...solicitou que vós fosseis  procurá-lo...

Regis soltou um suspiro. Tinha estado à espera disto. Que exigências  contraditórias iria o seu avô fazer-lhe agora? Olhou de relance  para Dio e soube que ela não suportaria ficar de fora do que estava a acontecer. Bem, ela tinha o direito de saber.

- Acompanha-me - disse. - Lew e eu fomos bredin em tempos,  e tu tens direitos sobre mim, também.

Foi encontrar o avô na pequena sala de visitas dos aposentos de Hastur. Ao vê-lo, Danvan Hastur exclamou:

- Graças a Aldones! Encontro-te por fim! O Legado Terráqueo enviou uma mensagem pessoal para ti, Regis, qualquer coisa a respeito  de um capitão Scott e da permissão para autorizar armas terráqueas...

- Olhou para o neto, mas mal conseguiu exibir uma fraca cópia da sua velha firmeza. - Não sei como conseguiste colocar-te numa posição em que os Terráqueos podem mandar nas tuas idas e vindas, mas acho que vais ter de resolver isso...

Ele está velho. Agora sou eu o verdadeiro poder de Hastur e ambos o sabemos, mas ele nunca o aceitará, pensou Regis, e respondeu  à parte não dita das palavras do avô, quaisquer que tivessem  sido essas palavras.

- Não te preocupes, avô. Irei tratar do assunto. - Sentia de repente uma profunda compaixão pelo velho, que tinha passado tantos  anos retendo na mão o poder do Comyn sem sequer possuir o apoio do laran.

Ele tem tido todos os problemas de um Hastur e nenhuma das suas regalias, pensou, mas logo se sentiu chocado consigo mesmo.

Regalias? Este monstruoso laran que ameaçava esmagá-lo, fazendo-o  carregar com o terrível conhecimento de um poder cujas forças não podia sequer imaginar?

O Dom de Hastur! Melhor: a Maldição de Hastur!

Sentia-se como se os seus braços e pernas fossem demasiado grandes para ele, como se estivesse a caminhar entre o solo e o céu, com os pés mal tocando no chão, e tudo isto sem saber porquê. Desesperadamente,  desejava ter Danilo ao seu lado, mas não havia tempo sequer para enviar uma mensagem ao seu escudeiro, e, em qualquer caso, se Dyan se tinha atirado temerariamente para o perigo  e o terror de Sharra, Danilo era Lorde Ardais, pois Dyan estava praticamente morto, como aliás todos eles; que Danilo ficasse fora de tudo aquilo, se pudesse.

- Irei imediatamente - disse ao homem da Força Espacial que trouxera a mensagem. Dio deu meia volta para o seguir, mas ele disse:

- Não. É melhor que fiques aqui. - Não convinha agora que uma mulher o entravasse, especialmente quando Danilo não estava disponível para lhe dar apoio.

- Mas vou mesmo! - disse ela, decidida. - Sou uma cidadã terráquea, e não podes proibir-me de ir!

Não valia a pena discutirem. Fez um sinal ao homem da Força Espacial para deixá-la ir também, e ambos tomaram lugar no veículo  de superfície. Regis nunca viajara antes num veículo terráqueo;

agarrou-se sem fôlego enquanto o carro avançava rapidamente através  das ruas, afugentando homens, mulheres e cavalos, rugindo e trepidando  sobre o empedrado. Temos de proibir estes veículos, são demasiado perigosos em ruas antigas e movimentadas como estas, pensou Regis irrelevantemente. Depois de ultrapassados os portões da Cidade Comercial o pavimento tornava-se um pouco mais liso, mas Regis continuou precariamente agarrado ao que podia, sem querer demonstrar o seu receio a Dio, a qual estava obviamente habituada  a este tipo de transporte de cortar a respiração. Cruzaram os portões do quartel-general terráqueo, e o condutor do veiculo mal perdeu tempo a apresentar ao guarda um livre-trânsito qualquer, prosseguindo  depois a grande velocidade sobre um piso anormalmente regular  até chegar à entrada do arranha-céus. Subiram no elevador, com Dio teimosamente atrás dele em todo o trajecto, até chegarem ao gabinete  de Lawton.

Rafe Scott, lívido como a morte, estava lá, e Lawton não desperdiçou  palavras. Fez um gesto, e Rafe deitou tudo cá para fora.

- Kadarin foi para Hali! Descobri subitamente que eu estava a ler a mente de Thyra... não faço ideia porquê...

Mas Regis sabia porquê. Podia sentir a presença de Sharra através  e em redor de Rafe, uma chama monstruosa e obscena, incorpórea,  incipiente... e Rafe tinha feito parte daquela antiga união.

Kadarin, empunhando a Espada. Thyra. Beltran... Dyan, que temerariamente se atirara para dentro do vulcão... E Lew, algures... implicado, comprometido, votado à morte...

- Então? Autorizais-me a enviar um helicóptero, e homens devidamente  armados com explosores, para prenderem Kadarin em Hali? Ou ireis ficar preso à letra do vosso Convénio enquanto eles trabalham com qualquer coisa que se encontra ainda mais distante do Convénio do que uma super-bomba capaz de rebentar com um planeta?

Se eu vou autorizar? Quem pensa ele que eu sou? Mas logo a seguir,  na súbita humildade do poder reconhecido e receado, Regis sabia  que não podia continuar fugindo à responsabilidade. Respondeu:

- Sim, autorizo. - Conseguiu escrever o seu nome, apesar de a mão lhe tremer, no formulário que Lawton lhe apresentava. Lawton  falou para uma espécie de comunicador.

- Tudo bem; Hastur autorizou-o. - Deixem seguir o helicóptero.

- Eu quero... - Deveria seguir com o helicóptero. Talvez possa  ainda fazer alguma coisa por Lew... ou pela sua matriz, se estiver  sincronizada com Sharra...

Lawton abanou a cabeça.

- Demasiado tarde. Já levantaram vôo. Agora só poderemos esperar.

Esperaram, enquanto o Sol se afundava lentamente por detrás do desfiladeiro da montanha. Esperaram, enquanto o tempo se ia arrastando.

E por fim Regis viu o helicóptero, um diminuto ponto negro pairando sobre o desfiladeiro, aproximando-se mais, cada vez mais.

Dio pôs-se em pé, gritando:

- Ele está ferido! Tenho... tenho de ir para junto dele... - e correu para o elevador. Simultaneamente Lawton reagiu a uma luz que piscava, escutou, e a expressão no seu rosto alterou-se.

- Bem - disse a Regis com ar soturno -, esperámos tempo demasiado, ou alguém o fez. Prenderam Kadarin, de facto, mas parece  que ele conseguiu cometer mais um homicídio enquanto toda a gente observava. Vêm trazê-lo para os serviços médicos. É melhor irmos também.

Regis seguiu-o, ao longo das assépticas paredes brancas da Divisão  Médica. Um elevador zumbiu suavemente até parar e os homens da Força Espacial removeram de lá os prisioneiros. Dio tinha olhos apenas para Lew, transportado por dois homens uniformizados.

Regis não podia ver se ele estaria vivo ou morto; o rosto dele estava lívido, a cabeça pendia-lhe para um lado, e toda a frente da camisa estava empapada em sangue.

Bredu! Regis sentiu-se tomado por choque e dor. Dio apertava a mão flácida de Lew, chorando agora sem tentar disfarçar. Atrás deles,  Kadarin caminhava algemado entre dois guardas. Regis mal o reconheceu, tão velho e desvairado se apresentava, como se alguma coisa o consumisse por dentro. Também Thyra estava algemada. Kathie  parecia pálida e assustada, e um dos guardas transportava Callina  ao colo, aparentemente desmaiada. Colocaram-na numa cadeira e disseram a alguém para trazer sais para cheirar, e passado um minuto  Calina abriu os olhos; mas vacilou, agarrando-se à cadeira. Kathie  aproximou-se prontamente dela e amparou-a. Um elemento do pessoal clínico disse-lhe alguma coisa e ela respondeu:

- Sou enfermeira, e tomarei conta dela; é melhor cuidarem de Mr. Montray-Alton; a mulher apunhalou-o, e parece ter acabado com ele... ainda estava vivo quando o helicóptero aterrou, mas isso nada significa.

Regis olhou para a longa espada que Kathie tinha deixado deslizar  para o chão, e algo dentro dele, algo no seu sangue, subitamente  despertou e gritou dentro das suas veias.

ESTA ESPADA É MINHA!

Foi apanhá-la; parecia ajustar-se perfeitamente às suas mãos. Callina abriu os olhos, fixando-o com um olhar estranho, frio, azulado.

Quando Regis levantou a espada nas suas mãos, observando as letras gravadas na bainha, parecia estar simultaneamente em toda a parte, não apenas onde o seu corpo se encontrava mas como se os contornos do seu corpo se tivessem expandido para absorver tudo o que estava na sala. Tocou em Callina e viu-a com uma estranha visão dupla, a mulher que ele conhecia, a calma Guardiã, recatada e amável, e ao mesmo tempo parecendo estar revestida de algo diferente,  frio e azulado, como gelo, algo estranho e frio como pedra.

Tocou em Dio e sentiu a enxurrada do seu amor e preocupação e receio; tocou em Kadarin e recuou. ESTE É o INIMIGO, ESTA É A BATALHA... ainda NÃO, ainda não! Tocou em Lew.

Dor. Frio. Silêncio. Medo e a chama devoradora...

Dor. Dor no coração, dor penetrante... Regis ingressou na dor, era essa a única maneira de o explicar, e sentiu as células despedaçadas,  o sangramento da vida... NÃO, NÃO permitirei que seja assim!

O gotejante silêncio que era Lew foi repentinamente assaltado por uma dor terrível, e a seguir por calor e vida, e então Lew abriu os olhos e sentou-se, olhando para Regis. Os seus lábios mal se moveram ao sussurrar:

- O que és tu?

E Regis escutou-se a dizer, de uma grande distância:

- Hastur.

A palavra nada significava para ele, mas a ferida hiante tinha-se fechado, e em redor dele os médicos terráqueos olhavam-no, espantados,  e na sua mão estava esta espada que parecia, agora, ser mais de metade dele próprio.

E repentinamente Regis sentiu-se aterrorizado e fez regressar a espada à sua bainha, e de súbito o mundo estava de novo numa só peça e ele estava de volta ao seu corpo. Estremecia com tanta força que mal se sustinha de pé.

- Lew! Bredu... estás vivo!

 

Narrativa de Lew Alton - conclusão 

Nunca cheguei a lembrar-me de nada daquela viagem de helicóptero até ao quartel-general terráqueo, nem de como cheguei ao gabinete de Lawton; a primeira consciência que tive foi de dores infernais e da sua repentina cessação.

- Lew! Lew! Consegues ouvir-me?

Como poderia não ouvi-la? Ela estava a gritar-me praticamente ao ouvido! Abri os olhos e vi Dio, com o rosto molhado de lágrimas.

- Não chores, amor - disse-lhe. - Estou bem. Aquela gata do inferno! Thyra deve ter-me apunhalado, mas parece que não me magoou muito.

Mas Kathie fez Dio recuar quando estava prestes a dobrar-se sobre  mim, e disse com secura profissional:

- Só um momento, ele quase ficou sem pulsação. - Pegou num instrumento qualquer e cortou-me a camisa; depois ouvi-a soltar  uma exclamação de espanto.

No local onde o punhal de Thyra tinha penetrado, perigosamente  perto do coração, havia apenas uma pequena cicatriz de aspecto  antigo, clara e com melhor aspecto do que as cicatrizes no meu rosto.

- Não acredito - protestou ela. - Vi-a, e mesmo assim não acredito. - Pegou em qualquer coisa fria e húmida e limpou as manchas ainda pegajosas de sangue semi-seco que se agarravam à minha pele. Olhei pesaroso para a camisa arruinada.

- Arranjem-lhe uma camisa ou qualquer coisa - ordenou Lawton, e trouxeram-me uma túnica, feita de papel ou de alguma fibra não tecida similar. Tinha uma textura frio e algo escorregadia que eu achei desagradável, mas não estava em condições de ser exigente; além disso, os cheiros a hospital estavam a desestabilizar-me.

- Vamos ter de ficar aqui por muito tempo? - perguntei. -Não  estou ferido... - e só então deparei com Regis, com a Espada de Aldones à cintura e um olhar de descrença no rosto. Mais tarde disseram-me o que ele tinha feito; mas naquele momento - quando tudo já me parecia tão absurdo - achei natural que a Espada tivesse  ido parar às mãos da única pessoa neste mundo capaz de manuseá-la.

 Creio que originalmente tinha planeado que Callina, ou talvez Ashara, na sua qualidade de Guardiãs, ficassem com ela. Agora via que ela estava na posse de Regis, e tudo o que eu podia pensar era, ah, pois claro, ele é Hastur.

- Onde está Thyra? Terá conseguido fugir?

- Nem pensar - retorquiu Lawton, com gravidade. - Está numa cela, lá em baixo, e ali vai ficar.

- Porquê? - perguntou Kadarin. A sua voz estava calma; fiquei a olhar para ele, espantado, incapaz de acreditar nos meus olhos. Em Hali ele tinha-me surgido como algo muito diferente de humano; agora, curiosamente, parecia-se com o homem que em tempos eu conhecera, civilizado e urbano, até simpático. - Do que - Tentativa de homicídio de Lew Alton, aqui presente!

- Seria difícil fazer com que essa acusação fosse provada disse Kadarin. - Onde está o ferimento alegadamente produzido?

Lawton olhou irritado para a camisa manchada de sangue que me tinham retirado.

- Temos testemunhas oculares da ocorrência - respondeu. Entretanto vamos mantê-la presa por... ora, raios! Por assalto, violação  de propriedade alheia, porte de arma escondida, linguagem incorrecta  num local público... até por atentado ao pudor se for necessário! O que importa é que vamos conservá-la presa, e a ti também; vamos ter de te fazer algumas perguntas a respeito de um certo homicídio e do fogo posto numa casa em Thendara...

Kadarin olhou directamente para mim, dizendo:

- Acredita no que quiseres, Lew; eu não matei o teu irmão.

Nem o conhecia de vista; só depois soube quem ele era, quando me disseram na rua quem tinha morrido. Para mim ele era simplesmente  um jovem terráqueo que eu não conhecia; e de qualquer forma não fui eu quem o matou mas sim um dos meus homens. Lamento o sucedido, pois tinha dado ordens para que ninguém fosse maltratado. Tu sabes o que eu procurava, e por que razão eu tinha de procurá-la.

Olhei para este homem e soube que não poderia odiá-lo. Também  eu tinha sido forçado a fazer coisas que nunca sonhara fazer, pelo menos no meu perfeito juízo. Sabia o que o levara a fazer aquilo. Estava agora presa à sua cintura, mas através dela eu podia ver o homem que tinha sido meu amigo. Voltei-lhe as costas. Havia demasiadas  coisas entre nós. Não tinha o direito de condená-lo, especialmente  agora, quando através da minha matriz podia sentir a atracção irresistível daquela coisa maldita.

Regressa para mim e vive para sempre no meu fogo vivificador e imortal... e por detrás da minhas pálpebras surgiu o Vulto de Fogo, entre mim e o que eu podia ver com os meus olhos físicos: Sharra, e eu fazia ainda parte dela, ainda amaldiçoado. Dei um passo na direcção  dele; ainda hoje não sei se a minha intenção seria agredi-lo ou juntar a minha mão às dele no punho da espada que escondia a matriz  de Sharra.

Ódio e amor confundiam-se, como se tinham confundido para o meu pai, cuja voz ainda agora pulsava na minha mente. Regressa... regressa...

Mas então Kadarin retraiu-se um pouco e o conjuro quebrou-se.

- Se quiserem atirar-me para uma cela - disse ele -, então façam-no,  mas acho justo avisá-los de que talvez não fique lá por muito  tempo. Tenho... - e tocou ligeiramente no punho da espada de Sharra - um importante compromisso noutro local.

- Levem-no daqui - disse Lawton. - Metam-no numa cela de máxima segurança, e ele que tente sair de lá.

Kadarin poupou-lhes o trabalho de o levarem em peso; levantou-se  da cadeira para acompanhar os guardas com aparente boa disposição. Um deles disse-lhe:

- Entregue-me a espada primeiro, se faz o favor.

Kadarin ripostou, com aquele seu sorriso impecável:

- Leve-a, se assim desejar.

Observando-os, quis gritar um aviso aos homens da Força Espacial; eu sabia que não era uma espada. Um deles estendeu a mão... e levantou voo até ao extremo da sala, batendo com a cabeça na parede e caindo inerte. O outro olhou para Lawton e voltou a olhar para Kadarin, receoso, e com razão.

- Não é uma espada, Lawton - disse eu. - É uma arma matricial.

- Será a tal... - e eu confirmei com um aceno. Não havia qualquer maneira - a não ser que primeiro matassem Kadarin de separá-la dele. Não tinha sequer a certeza de que o poderiam matar  enquanto a espada estivesse na sua posse, pelo menos usando uma arma normal. Mas avisei-os:

- Não o metam com Thyra numa mesma cela.

Não que a distância pudesse fazer alguma diferença, quando aquela espada fosse desembainhada. E seria eu forçado a ir com eles? De qualquer forma, senti alívio ao ver Kadarin, e com ele a matriz  de Sharra, longe da minha vista. Comecei a levantar-me, mas o jovem médico fez-me sentar de novo.

- Não vai para lado nenhum, pelo menos para já!

- Estarei preso, nesse caso?

O médico olhou para Lawton, o qual disse, com má cara:

- Nada disso! Mas se tentar sair daqui pelo seu próprio pé é capaz de se estatelar! Fique calmo e deixe o Doutor Allison examiná-lo. Qual é a sua pressa?

Tentei pôr-me em pé. Mas por qualquer razão encontrava-me tão fraco como um coelho-cornudo acabado de nascer. Deixei o jovem médico examinar-me com os seus instrumentos.

Odiava hospitais, e o cheiro estava a irritar-me, trazendo-me recordações  de outros hospitais noutros mundos, recordações que preferia não enfrentar por agora, mas parecia não haver alternativa. Reparei em Kathie conversando com um dos médicos e, como na Noite do Festival, pensei se ela iria acusar-nos de rapto ou pior ainda. Bem, se o fizesse, a história era tão improvável que ninguém acreditaria nela.

Vainwal situava-se a meia galáxia de distância! Ocasiões havia em que nem eu próprio acreditava.

Antes que o doutor acabasse de escutar o meu coração e de conferir todas as funções do meu corpo - quis até que eu desmontasse  a minha mão mecânica, examinando-a e perguntando-me se ela funcionava convenientemente - Regis tinha regressado à sala.

Parecia preocupado e distante. Ao lado dele estava Rafe Scott.

- Vi Thyra - declarou abruptamente.

Também eu, pensei, e preferia não ter visto. Ainda que a sua tentativa de me matar não tivesse resultado, sentia-me incapaz de pensar nela. A culpa não era inteiramente dela; era tanto uma vítima de Kadarin como eu próprio, talvez uma vítima solícita, ansiando pelo poder de Sharra. Mas ao pensar na mulher lembrei-me da criança, e vi o rosto de Regis modificar-se. Eu não estava habituado a isto, pois Regis nunca fora um telepata muito sensível, mas começava a compreender que este novo Regis, com o súbito despertar do Dom de Hastur, era muito diferente do jovem que eu conhecera durante uma grande parte da minha vida.

- Tenho más notícias para ti, Lew - disse ele -, as piores.

Andres... - A sua voz fraquejou, e eu soube imediatamente. Durante  aqueles descuidados anos em Armida, Andres tinha sido como um pai também para mim.

O meu pai, Marius, Linnell... agora Andres. Agora, mais do que nunca, eu ficava completamente só. Tinha medo de perguntar, mas perguntei na mesma:

- E Marja?

- Ele... defendeu-a com a sua vida - respondeu Regis. - Beltran... estava prestes a levá-la para Sharra, pois ela tem o Dom de Alton. Dyan...

Eu estava preparado para ouvi-lo dizer que Dyan tinha participado  nisto. Não estava preparado para o que ele me disse a seguir:

- Não sei bem como, ele conseguiu escondê-la algures. Não fui capaz de encontrar qualquer vestígio dela, nem mesmo telepaticamente.

 Não sei onde ele a tem escondida, mas onde quer que se encontre está fora do alcance de Sharra. Dyan... sabias que ele tem o Dom de Alton, Lew?

Com a confusão tinha-me esquecido. Mas devia ter calculado claro. O poder de impor a sua vontade noutra mente, mesmo contra  a resistência desta... e além disso Dyan tinha sangue Alton; ele e o meu pai tinham sido primos direitos. A mãe do meu pai era irmã do pai de Dyan, e havia ainda outras linhas de parentesco, estendendo-se  a gerações anteriores.

Uma vez, sujeito a uma terrível pressão, eu usara um poder pouco  conhecido dos Altons: tinha-me teleportado de Aldaran para a Torre de Arilinn. Talvez Dyan, por alguma razão, tivesse feito o mesmo a Marja... mas poderia tê-la levado para qualquer parte de Darkover, desde Armida até ao Castelo Ardais nas Infernais... ou para o orfanato da Cidade Comercial onde ela fora criada. Quando tivesse tempo, teria de ir procurá-la, usando meios físicos ou telepáticos. Não me parecia que Dyan pudesse escondê-la de mim permanentemente,  nem sequer que ele desejasse fazê-lo. Mas, antes disso, Kadarin ainda conservava a matriz de Sharra em seu puder, e se ele quisesse usá-la eu não poderia continuar a contar comigo mesmo.

Tentei avisar Regis a respeito disto. Ele tocou na Espada de Aldones e olhou para mim, com uma expressão grave.

- Esta é a arma contra Sharra. Desde que a pus à cintura... há muitas coisas que eu sei - disse, com ar estranho -, coisas que não tinha aprendido. Sei desde há dias que tenho um estranho poder sobre  Sharra, e agora, com isto... - Era como se alguém estivesse a falar atrás e através do Regis que eu conhecia; parecia exausto, anos mais velho do que aqueles que tinha. Mas uma vez por outra, quando eu o olhava nos olhos, o outro Regis, o jovem que eu conhecia,  espreitava através deles, e parecia-me assustado. Não podia criticá-lo  por isso.

- Mostra-me a tua matriz - pediu.

Recusei-me a fazê-lo. Só na presença de uma Guardiã.

- Só se Callina estiver cá - disse, e Regis voltou-se para um dos médicos e perguntou-lhe o que acontecera a ela.

- Estava quase desfalecida - disse Kathie. - Levei-a para um dos cubículos, para descansar. Deve ter sido todo aquele sangue...

Isto alertou-me para o perigo. As mulheres de Darkover não desfalecem sem um forte motivo. Mas tive de fazer uma cena para que me levassem até junto dela; fui encontrá-la num dos pequenos cubículos, sentada e imóvel, lívida e com um olhar fixo, como se fosse a própria Ashara, olhando para nada que pudéssemos ver neste  mundo...

Regis soltou-lhe um grito, e eu também, mas ela permaneceu estática, olhando para distâncias incomensuráveis. Por fim tentei contactar-lhe a mente, e senti-a muito distante, em alguma gélida diversidade... e depois ela teve um sobressalto, olhou para mim, e regressou a si mesma...

- Estavas em transe, Callina - disse-lhe, e ela olhou para nós, consternada. Creio que, se nesse momento ela tivesse confiado o seu segredo a nós, talvez tudo tivesse sido diferente... mas minimizou aquele curioso transe, dizendo frivolamente:

- Estava só a repousar, nada mais... meio adormecida. O que foi, o que querem de mim?

Calmamente, Regis explicou-lhe:

- Quero ver se podemos limpar a matriz de Lew, libertando-o da matriz de Sharra. Fi-lo para Rafe. Acho que poderia tê-lo feito também para Beltran, se mo tivesse pedido. - Captei a parte disso que ele não quis dizer: Beltran estava ainda ansioso por usar Sharra, considerando-a a derradeira arma para impedir a sujeição aos Terráqueos... como uma forma de chantagem para obrigá-los a partirem  para sempre do nosso mundo.

E Dyan, temerário e desesperadamente ansioso de poder que o enfraquecido Conselho Comyn não lhe queria conceder, seguira-o em sujeição a Sharra... Eu podia sentir o pesar de Regis perante isto, e subitamente, durante um momento, vi Dyan pelos olhos de Regis; o parente maduro, fascinante, mundano, de quem o jovem Regis tinha  gostado e a quem admirara... e que depois receara, ainda com o extremo fascínio que era muito parecido com o amor... o único parente  que o aceitara por completo. Eu tinha visto Dyan apenas cruel, ameaçador, duro: um mandão, um homem ansioso por poder e usando-o  com modos brutais e nada subtis, um homem aplicando sadicamente  o seu poder sobre cadetes e parentes mais novos. Nunca conhecera este outro lado de Dyan, e isso dava-me que pensar. Teria  eu, afinal de contas, avaliado incorrectamente o homem?

Não; ou então nem mesmo o seu amor pelo poder o teria levado  a tentar apoderar-se daquela definitiva perversão dos poderes Comyn: o fogo de Sharra... Tinha-me queimado nesse fogo, e Dyan tinha visto as cicatrizes. Contudo, com a sua suprema arrogância convencera-se de que poderia ter êxito onde eu falhara, forçando Sharra a servi-lo, ser amo e não escravo do fogo de Sharra... e Dyan nem sequer tinha sido treinado numa Torre!

- Mais razão ainda, Lew, para que sejas libertado - argumentou  Regis. Um momento depois passei o cordão de cabedal por cima da minha cabeça e desembrulhei desajeitadamente as sedas.

Por fim deixei a matriz cair-me na mão, e vi a resplandecência escarlate  cobrir o tremeluzir azul do interior da pedra...

Callina concentrou a sua atenção em mim, sincronizando ressonâncias,  até poder recebê-la na sua mão, com o toque treinado de uma Guardiã e não excessivamente doloroso. Então senti na minha mente algo como uma luta de tracção, o chamamento renovado de Sharra. Regressa, regressa e vive na vida dos meus fogos, e através dela senti Marjorie... ou seria Thyra? No meu abraço arderás para sempre numa paixão intensa...

Senti Regis, através disto, como se ele estivesse tentando penetrar-me  no cérebro, embora sabendo que era apenas a minha matriz em que ele tocava, desemaranhando-a fio por fio... mas quanto mais trabalhava nela mais forte eu sentia o chamamento, a pulsação de Sharra batendo-me na mente, até me sentir a arder em agonia...

A porta abriu-se de rompante e Dio entrou na sala, correndo para mim, afastando Callina com um empurrão.

- O que é que estão a fazer-lhe? - exclamou, enfurecida.

As chamas diminuíram de intensidade e morreram; Regis apoiou-se  numa peça do mobiliário, entontecido, mal conseguindo manter-se  de pé.

- Quanto pensam que ele é capaz de suportar? Não acham que já sofreu bastante?

Deixei-me cair numa cadeira, e disse:

- Eles estavam só...

- Estavam só a avivar o que é melhor que fique adormecido - exclamou Dio. - Podia senti-lo até ao oitavo piso acima deste... Podia senti-los a recortar-te... - e passou as mãos sobre mim como se esperasse ver-me coberto de sangue.

- Está tudo bem, Dio - disse eu, sabendo que a minha voz não era mais do que um murmurejar exausto. - Aprendi a suportar...

- O que te levará a pensar que és capaz de suportar tudo? perguntou-me, zangada, e Regis tentou explicar, desesperado:

- Se Kadarin sacar a espada de Sharra...

- Se o fizer, ele terá de combater, mas não podem deixá-lo recuperar  as forças suficientes para poder enfrentá-lo?

Eu não sabia. Rafe nunca tinha estado mais próximo do que a camada  externa do círculo que tínhamos formado em volta de Sharra; eu estivera no seu próprio âmago, controlando a força e o fluxo do poder de Sharra. Estava perdido, e sabia-o. Sabia o que Callina e Regis  tinham estado a tentar fazer, e estava-lhes grato, mas para mim já era demasiado tarde.

Os meus olhos fixaram-se em Callina, e vi tudo à minha volta com uma nova claridade. Ela representava tudo o que era passado para mim: Arilinn, e o meu próprio passado; Marjorie morrera nos seus braços, e depois eu tinha encontrado nela o primeiro oblívio que conhecera. Parente, Guardiã, todo o passado... Sofria de pesar por não poder viver para levá-la para Armida, para reclamar o meu próprio passado e o meu próprio mundo. Um amor mais negro reclamar-me-ia,  com o fogo selvagem de Sharra a fluir-me nas veias, a escura ligação a Thyra que se fizera Guardiã daquele monstruoso círculo de Sharra. Fogo e luxúria e uma tortura interminável e labaredas... Callina poderia chamar-me para si, mas era demasiado tarde, agora e para sempre demasiado tarde. Dio estava a dizer-me qualquer coisa, mas eu tinha regressado a um tempo antes dela ter entrado na minha vida, e mal me recordava do seu nome.

O que estaríamos a fazer entre estas quatro paredes brancas?

Alguém entrou na sala. Não reconheci o homem, mas pelo modo como me falou sabia que era alguém que eu devia conhecer. Um dos malditos terráqueos, um daqueles que iriam morrer nas chamas de Sharra quando a ocasião fosse propícia. As palavras dele eram simples sons sem significado, e não as compreendi.

- Aquela mulher, Thyra! Tínhamo-la colocado numa das nossas  celas de maior segurança, e desapareceu... de um momento para o outro, fugiu de uma cela de máxima segurança! Foi através de alguma  bruxaria vossa?

Louco, pensando que qualquer cela poderia reter a prioresa e Guardiã de Sharra, a nascida no Fogo...

O espaço rodopiou à minha volta; escutei o ribombar de um trovão e vi-me no empedrado do pátio principal do Castelo Comyn, com os pés pisando os símbolos ali enlaçados... e soube que Kadarin  tinha desembainhado a Espada. Kadarin encontrava-se ali, com a sua cabeleira pálida ondulando a um vento invisível, com as mãos apoiadas nos ombros de Thyra, os olhos metálicos frios e ameaçadores,  e Thyra...

Thyra! Chamas elevavam-se dos seus cabelos acobreados, faíscas  tremeluziam nas pontas dos seus dedos. Segurava nas mãos a Espada de Sharra, com labaredas frias correndo do punho à extremidade.

 Thyra! A minha amante, o meu amor... o que estaria eu a fazer aqui, longe dela? Ela levantou a mão e chamou-me com um aceno, e eu comecei a avançar, impassível, sem estar cônscio do movimento. Ela sorria quando ajoelhei aos seus pés na pedra, sentindo toda a minha força escorrer para ela, e para aquele fogo que se projectava  das suas mãos...

Depois a chama saltou azul e bravia até às alturas do castelo, e percebi que Regis tinha desembainhado a Espada de Aldones. Estavam  ali, ali fisicamente, parados diante de mim, Regis e Callina, e ela estendeu-se para mim, envolvendo-me no azul frio do limbo gelado de Ashara, e então já não estávamos no pátio do Castelo mas nos espaços cinzentos do sobremundo... Muito abaixo de nós podia ver os nossos corpos como minúsculos brinquedos observados de uma grande altura, mas a única realidade no mundo era aquelas duas espadas,  uma avermelhada de chamas e a outra azul gélido, cruzadas e empurrando-se uma à outra, e eu...

Eu era um títere, uma migalha de força no mundo astral, algo  que se esticava entre elas até se quebrar... A voz de Callina, fazendo-me  pensar em Arilinn e em todo o meu passado; o chamamento  trauteado de Thyra, sedutor e apelativo, com memórias de ânsias e  fogo e poder... Sentia-me dilacerado no meio delas, transformado  numa ligação entre os dois círculos, Regis e Callina com a Espada  de Aldones, Thyra e Kadarin, cada um deles puxando-me furiosa mente para criar um terceiro círculo, para lhes ceder o meu poder...

 E depois surgiu uma nova força nos círculos interligados... algo frio  e arrogante e brutal, um toque áspero como o da força do meu pai,  o Dom de Alton que tinha aberto ao poder o meu próprio dom,  mas este não era o toque do meu pai... Dyan! E ele nunca simpatizara  comigo, e eu agora estava à sua mercê...

 Não me importava de morrer, mas não desta forma... Uma vez  mais, estava na minha mente o último grito da voz do meu pai, e estávamos tão intimamente enlaçados que podia ver Dyan olhando  para Regis através de mim, com fervor e um pesar infinito por se  encontrarem no final em campos opostos. Desejaria colocar-me ao  teu lado quando fosses rei de todo o Darkover, meu galante primo  Hastur... e depois, através de mim, eu podia sentir o toque de Dyan  na memória do grito aniquilador do meu pai, o último pensamento  na sua mente moribunda...

 E Dyan, num momento de angústia e sofrimento: Kennard! Meu primeiro e único amigo... meu primo, meu parente, bredu... e não existe agora outro ser vivo portador do teu  sangue, e se eu ataco agora ter-te-ei morto para além da morte ou  de qualquer imortalidade... e em seguida um descuidado pensa mento final, quase uma gargalhada: este teu filho nunca foi digno  deste tipo de poder... E abruptamente eu estava livre, livre de Sharra, empurrado para longe, e naquele momento de liberdade fiquei trancado na conexão  de Regis e Callina, o círculo selado do poder...

O Vulto de Fogo elevou-se no ar até à altura do castelo, até à altura da montanha, com uma causticante negrura no seu coração...

 mas, vindo de Regis, elevado agora à altura de um gigante e ; segurando a Espada de Aldones pronta a atacar, um incandescente relâmpago gelado atingiu o coração de Sharra... Sharra foi envolta  em correntes pelo Filho de Hastur que era o Filho da Luz... E envolto na sua capa de luz viva Aldones chegou!

Agora nada havia para ver, nenhuma forma humana, apenas fogo atingindo cada vez mais alto, o faiscar da matriz de Sharra saltando  do centro daquela negrura, e o âmago brilhante através dos véus que envolviam a figura do Deus, parecido com Regis na sua forma, mas Regis alcançando cada vez mais alto, não um do clã de Hastur mas o próprio Deus...

Duas matrizes idênticas não podem coexistir no mesmo espaço ao mesmo tempo; e já uma vez anteriormente, segundo contava a lenda, Sharra tinha sido acorrentada pelo Filho de Aldones, que era o Filho da Luz...

Não posso explicar a lenda, mesmo agora, apesar de ter assistido  a ela. Tinha sentido o toque demoníaco de Sharra. Um bem infinito  é tão assustador, à sua maneira, como um mal infinito. Não tinha sido Regis e Kadarin combatendo com espadas identicamente forjadas, uma delas a cópia da outra. Não tinha mesmo sido uma matriz lutando contra outra matriz, se bem que isso estivesse mais próximo da verdade. Algo tangível e muito real tinha lutado detrás de cada uma das espadas, algo que não se situava de forma alguma neste plano de realidade, e que apenas através das espadas podia manifestar-se  e posicionar-se nesta dimensão. Relâmpagos faiscavam entre elas, envoltos na aura de arco-íris que Regis e Hastur formavam,  serpenteando nas labaredas em cujo coração Thyra resplandecia  como um pedaço de carvão incandescente.

E depois, durante um instante, senti aquela arrogância final expandir-se,  Dyan fulgurando no espaço, com uma expressão mordaz e curiosa no seu rosto de falcão. Então por um momento, parece-me,  a ligação interrompeu-se e as espadas eram apenas espadas, e numa fracção de segundo estávamos de novo no pátio do Castelo e os godos pareciam instáveis debaixo dos meus pés. E sei que naquele  momento ele poderia ter-nos exterminado aos dois...

Por um momento Thyra surgiu diante de mim, de novo apenas uma mulher, se bem que o Vulto de Fogo continuasse a dançar à sua volta, e o cheiro a queimado espalhava-se no ar, e a garganta dela apresentava-se nua à minha adaga...

Eu tinha jurado que a mataria, em represália pela minha mão.

Contudo, naquele momento apenas me podia lembrar de que houvera  uma ocasião em que ela tinha estado diante de mim, apenas uma rapariga assustada pelos seus poderes cada vez maiores. Mesmo  se os próprios Deuses me tivessem então colocado uma adaga na minha mão eu não poderia tê-la atacado, e por um instante pareceu-me  que uma importante pergunta vibrava no sobremundo e neste mundo e através de todos os universos da minha mente.

O que preferes: o Amor do Poder, ou o Poder do Amor?

E tudo o que havia em mim projectou-se para Kadarin, a quem em tempos eu amara como a um irmão, e para a jovem e bela Thyra, que eu, tanto como Kadarin, tinha destruído. Nunca consegui explicar  isto, mas soubera, naquele ardente instante de provação, que preferia morrer no fogo de Sharra a ter de magoar qualquer deles ainda mais do que já tinham sido magoados. Tudo em mim gritava um enorme e derradeiro Não!

E depois estávamos de novo combatendo no cinzento limbo do sobremundo, e as duas espadas cruzavam-se e irrompiam em chamas  como relâmpagos entrelaçados...

Por fim as chamas esmoreceram, e um enorme negrume baixou sobre o coração da matriz de Sharra. Vi uma chama de fogo intenso expandir-se para dentro, e um grande vórtice parecia ter-se aberto para um vasto e rodopiante nada. Para esse nada foram arrastados Kadarin e Thyra, duas diminutas figuras que desapareciam remoinhando,  cada vez mais afastadas uma da outra, e um vasto e mudo grito de dor e desespero e no último instante, tão ténue que nunca cheguei a saber se o teria ouvido ou não, um repentino grito de alegria  e redescoberta que me fez escutar novamente o último grito do meu pai...

- Adorada...

Silêncio e nada, e escuridão... e o vasto e amaldiçoado Rosto que eu tinha visto no azulado sobremundo de Ashara...

E depois vi-me parado à luz difusa da alvorada no pátio empedrado  do Castelo Comyn, diante de Regis, que agora era de novo um jovem hesitante, com a Espada de Aldones na mão semilevantada, e Callina ao lado dele, pálida como a morte. Não havia em parte alguma  qualquer sinal de Kadarin ou de Thyra, mas estatelado nos godos  do chão à nossa frente, despedaçado e moribundo, Dyan Ardais jazia, com o corpo enegrecido como se estivesse queimado. A Espada de Sharra estava quebrada na sua mão. Não havia quaisquer jóias no punho da espada; eram agora simples seixos, chamuscados e feios, os quais, assim que foram tocados pelos primeiros raios de sol, evaporaram-se  em pequenas gotas de fumo ascendente, desaparecendo para sempre... do mesmo modo como o poder de Sharra tinha partido deste mundo para todo o sempre.

Regis enfiou a Espada de Aldones na sua bainha e ajoelhou-se ao lado de Dyan, chorando sem peias. Dyan abriu os olhos doloridos,  e por um instante vi neles sinais de reconhecimento, e também de dor para além do ponto em que a dor deixa de ter qualquer significado. Porém, se Regis estava à espera de uma palavra, ficou desapontado,  pois os olhos de Dyan voltaram-se para ele durante uma fracção de segundo mas depois fixaram-se em algo que não pertencia  a este mundo. Contudo, pela primeira vez desde que eu o conhecia,  o rosto de Dyan tinha uma expressão de paz e satisfação.

Se ele tivesse desejado matar-nos a todos. Sharra teria triunfado... Ajoelhei-me também ao lado do seu corpo, concedendo-lhe uma morte de herói, enquanto Regis o cobria com a sua capa. Ele continuava agarrado à Espada de Aldones, da qual todo o brilho e força se tinham desvanecido; a lâmina estava enegrecida em todo o seu comprimento, como se retivesse o estranho fogo que ela tinha extinguido. Passado um momento Regis depositou a Espada de Aldones  sobre o peito de Dyan, como a espada de um herói caído que é colocada sobre este para com ele ser sepultada. Nenhum de nós protestou. Depois Regis pôs-se em pé, e os raios do Sol nascente tocaram-lhe  os cabelos... alvos de neve.

Tudo tinha acabado, e contra todas as expectativas eu estava livre, e vivo... Após incontáveis e ilimitadas privações, tinha-me libertado. Voltei-me para Callina, e finalmente, sabendo que estávamos  livres, apertei-a nos meus braços e colei aos seus os meus lábios esfomeados.

E todo o desejo feneceu-me no coração e na mente ao olhar para os olhos gélidos de Ashara. Eu devia ter calculado, desde sempre.

Passado um momento ela era de novo Callina, agarrada a mim e a chorar, mas eu tinha visto. Soltei-a, horrorizado, e, quando os meus braços a libertaram, Callina caiu lentamente para o chão, onde ficou jazendo, inerte, ao lado de Dyan.

Ajoelhei-me de novo. Voltei-a, apoiando-a nos meus braços, mas ela continuava imóvel, já fria. E eu agora sabia...

Há muitas gerações uma poderosa Guardiã, da estirpe dos Hasturs,  tinha retido todo o poder do Comyn... e ao envelhecer tinha relutantemente  renunciado ao seu poder, concentrando-o na estirpe dos Aillards, e muitas dessas mulheres tinham sido suas Subguardiãs, cedendo  os seus poderes a Ashara, e esta, cuja carne fracassara e vivia agora dentro da matriz, tinha passado a residir no corpo e na personalidade  da sua mais recente Guardiã, como se fosse uma peça de roupa... e destas a minha jovem parente tinha sido a mais recente.

Tinha-me intrigado o facto de nunca poder tocar-lhe a mente, a não ser por alguns segundos uma vez por outra...

Uma vez mais, aquela assustadora pergunta do sobremundo parecia  bater-me no coração: o Amor do Poder, ou o Poder do Amor?

Sou capaz de jurar, até ao dia em que morrer, que Callina chegou  a amar-me...

Se não fosse assim, teria aquela antiga feiticeira Hastur arriscado  o fim da sua mente imorredoira, e todo o seu poder, pela minha libertação da servidão de Sharra? Sozinhos, Regis e eu nunca teríamos  podido enfrentar aquele último estertor do fogo de Sharra; contudo,  com Callina a atirar temerariamente todos os poderes de Ashara para a refrega, através do corpo do jovem Hastur que era seu parente afastado, para que a força do primeiro Hastur - fosse ele quem fosse ou o que fosse - pudesse manifestar-se através da Espada  de Aldones... foi possível a Regis assumir desta forma a majestade  e o poder do Filho da Luz, mesmo enquanto aquele que retinha Sharra assumia o Vulto de Fogo...

Também Dyan, no final, não pudera aliar-se com Sharra para delapidar o seu clã. Durante toda a sua vida tinha pugnado pela honra do Comyn, se bem que por caminhos estranhos, e no final agira primeiro para proteger a minha filha, depois para me proteger,  e finalmente tinha sido incapaz de abater Regis...

O Amor do Poder ou o Poder do Amor? Seria verdade que aquela pergunta me invadira também a mente durante os momentos  finais daquela batalha?

Algures acima de mim no castelo escutei um som, não com os meus ouvidos físicos mas no mais recôndito da minha mente; liberto  agora da presença constante de Sharra, tomei consciência do choro de uma criança, uma criança telepata, sozinha, esfomeada, assustada, gritando pela mãe que estava morta e pelo pai que ela temia mas que também amava. E eu sabia onde ela estava. Vi Regis,  de ombros ligeiramente curvados pelo seu novo e terrível fardo,  com o cabelo incrivelmente embranquecido naquela debilitante batalha, e vi-o voltar-se fatigadamente para o castelo; teria o seu avô sobrevivido àquela batalha final que devia certamente ter ressoado  na mente de todos os Comyn? Sim: Danilo foi cuidar dele, transmitir-lhe a sua força...

Regis ouvira também o choro, e voltou-se para mim, com um sorriso cansado.

- Vai cuidar da tua filha, Lew; ela precisa de ti, e... - inacreditavelmente  sorriu de novo - ... ela tem idade suficiente para ter o Dom, mas não para o conservar dentro de limites razoáveis. Se não vais confortá-la, acabará por endoidecer toda a gente no castelo... toda a gente na cidade... com o seu choro!

Entrei e corri escadas acima direito ao único lugar onde Dyan sabia que eu não procuraria Marja e onde ela ficaria escondida e em segurança: os aposentos dos Ridenow, que Lerrys e Dio tinham partilhado. Ao atravessar as amplas portas exteriores, apressando-me para chegar ao quarto vazio, vi Dio segurando Marja no colo, mas sem conseguir silenciar o seu choro até que me dobrei sobre elas e tomei ambas nos meus braços.

Marja parou de chorar e voltou-se para mim; a gritaria telepática  tinha acalmado, e apenas restavam alguns soluços suaves enquanto  se agarrava a mim.

- Pai! Pai! Estava tão assustada, e tu não vinhas e não vinhas e eu estava sozinha, toda sozinha e havia um fogo, e eu chorei e chorei e ninguém me ouvia a não ser esta senhora que não conheço que chegou e tentou pegar-me ao colo...

Acalmei a histérica efusão apertando-a contra mim.

- Está tudo bem, chiya - trauteei, segurando-a com um braço  e Dio com o outro. - Está tudo bem. O pai está aqui... - Não podia dar a Dio um filho só seu, mas esta criança do meu sangue tinha  sobrevivido a todo o holocausto que grassara no Comyn... e eu nunca mais zombaria do poder do amor que nos tinha salvo aos dois. Tinha desejado morrer; mas estava vivo e, miraculosamente, acima de tudo, sentia-me contente por estar vivo, e a vida era boa para mim.

Rindo-me, pousei Marja no chão e puxei novamente Dio para os meus braços. Nem por uma vez me falou de Callina. Talvez ela soubesse, talvez tivesse participado naquela grande batalha de que eu, mesmo agora, começava a duvidar... Teria alguma vez acontecido,  a não ser na minha mente? Nunca cheguei a saber.

- Ainda vamos a tempo - disse eu - para anularmos aquela acção de divórcio terráqueo. Creio que ainda não se passaram dez dias... ou teria perdido a noção do tempo?

Ela riu-se, um sorriso irresoluto.

- Dez dias? Não, ainda não.

Marja interrompeu-nos lançando uma nova exigência telepática.

Tenho fome! Estou assustada. Pára de beijá-la e abraça-me outra vez!

Dio apertou-a entre nós.

- Vamos já arranjar-te um enorme pequeno-almoço, chiya disse-lhe com voz carinhosa -, e depois alguém vai ter de te ensinar as maneiras mais elementares da vida numa família telepática. Se vais fazer isso de cada vez que eu beijar o teu pai, ou qualquer outra coisa,  minha filha, receio ter de começar a fazer ruídos como uma daquelas  madrastas perversas dos contos de fadas! Vais ter de aprender a ter maneiras, antes de mais nada!

Incrivelmente, aquilo fez-nos rir a todos. E depois voltámos à Zona Terráquea para anular o processo de divórcio que se tornava desnecessário. Algures no trajecto - não me recordo onde - parámos  numa loja de comidas e mandámos vir pão quente e papa de aveia, e toda a gente que olhava para nós convencia-se de que eu tinha  saído cedo para tomar o pequeno-almoço com a minha esposa e a nossa filha. Descobri que gostava da sensação. Já não pensava que estavam apenas a olhar para as minhas cicatrizes.

Se Dio não tivesse aceite Marja... Mas ela não era esse género de pessoa. Ela quis a minha filha, e entreguei-a ao seu cuidado.

A dor nunca iria abandoná-la, por aquela deplorável monstruosidade  que deveria ter sido o nosso filho. Mas Dio nunca vivia no passado. E agora tínhamos todo o futuro à nossa frente.

Marja não largou a minha mão nem a de Dio quando entrámos  na Zona Terráquea. Olhei por uma só vez para o Castelo Comyn, que se avolumava atrás de nós. Sabia que nunca mais voltaria lá. Mas voltei, por uma única vez. Foi apenas uns dias mais tarde, mas Marja já tinha começado a chamar “Mãe” a Dio.

 

- Rei coroado? Mas rei de quê? - perguntou Regis, abanando suavemente  a cabeça diante do avô. - Sir, com todo o respeito, o Comyn na realidade não existe... Lew Alton sobrevive, mas não deseja ficar em Armida... e eu não consigo encontrar qualquer razão para ele ficar. Os Ridenow já se curvaram perante o inevitável, e requereram a cidadania terráquea. Dyan está morto, e o filho dele é uma criança de três anos. A Dama de Aillard está morta, tal como a sua irmã; ninguém resta de entre os Aillard, excepto Merryl... e a sua irmã-gémea,  que é a mãe do filho de Dyan. Os Elhalyn já se foram...

Pensas ainda que devemos tratar os Terráqueos como inimigos? Parece-me  ter chegado a altura de aceitarmos que somos o que eles dizem  que somos, uma das suas colónias perdidas, e requerer o estatuto de colónia protegida, para podermos manter o nosso mundo tal como está, imune à invasão tecnológica do Império, mas ao mesmo tempo  fazendo parte dele.

Danvan Hastur baixou a cabeça, e disse:

- Sabia que acabaríamos por chegar a isto. O que é que desejas  fazer, Regis?

Com a sua nova e terrível sensibilidade, Regis sabia o que o seu avô estava a sentir, e por isso a sua voz era muito carinhosa ao dizer ao idoso senhor:

- Pedi a Lawton para vir ver-te, avô. Lembra-te de que ele é parente  consanguíneo de Ardais e de Syrtis: podia ter o seu lugar no Comyn.

Dan Lawton entrou na sala e, para surpresa de Regis, fez uma profunda vénia e ajoelhou-se aos pés de Danvan Hastur.

- Zpar servu, vai dom - disse com voz velada.

- Que paródia é esta? - inquiriu Hastur.

- Sir, não é paródia nenhuma - disse Lawton sem se levantar. - Estou aqui para vos servir de qualquer forma que esteja ao meu alcance, Lorde Hastur, para me certificar de que os vossos costumes  antigos não irão ressentir-se.

- Pensei que já não passávamos de mais outra colónia terráquea...

- Parece-me que não compreendeis o que um mundo do Império  significa, vai dom - disse Lawton calmamente. - Significa que tereis o direito de definir o que Darkover será no futuro. Sois vós que habitareis Darkover sozinhos. Podereis partilhar ou não partilhar os vossos conhecimentos, se bem que eu alimente a esperança  de que nos será permitido conhecer algo a respeito da tecnologia  das matrizes, para que nada como este episódio de Sharra possa repetir-se sem o nosso conhecimento. Apenas vós - vós, povo de Darkover, e não vós pessoalmente, com todo o respeito, sir - podeis  determinar quantos terráqueos poderão fixar-se aqui, e em que termos. E, como os vossos interesses terão de ser protegidos na Federação  de mundos que constitui o Império, tendes o direito de nomear,  ou eleger, um representante no Senado do Império.

- Um bonito pensamento - disse Danvan Hastur com cansaço  - mas quem restará que mereça a nossa confiança, depois de tantas mortes no Comyn? Pensam que vou nomear aquele malandro  chamado Lerrys Ridenow, apenas porque ele conhece os costumes  do Império?

- Eu próprio servir-vos-ia com prazer - disse Lawton - porque  amo o mundo em que nasci e também é o vosso, Lorde Hastur, apesar de ter decidido viver como terráqueo. Também eu nasci debaixo  do Sol Sangrento, e há sangue Comyn nas minhas veias. Mas penso que a minha tarefa situa-se aqui, para que possa haver uma voz darkoveriana na Cidade Comercial terráquea. Contudo, Regis encontrou um candidato.

Fez um gesto para a porta, e Lew Alton entrou na sala. O seu rosto riscado de cicatrizes parecia agora calmo, sem a tensão e o tormento  que nele tinham residido durante tanto tempo. Regis, olhando para ele, pensou: Aqui está um homem que se libertou dos seus fantasmas. Quem me dera que eu pudesse também libertar-me dos meus.

Dentro dele algo despertou a recordação de um tempo em que ele era mais do que humano, estendendo-se desde o centro do mundo até ao céu, manejando um poder monstruoso... mas agora não era mais do que humano, e sentia-se pequeno, sem força, prisioneiro de uma só mente e de um só crânio...

- Um homem que tanto conhece Darkover como a Terra disse Regis calmamente. - Lewis-Kennard Montray-Alton de Armida,  primeiro Representante de Cottman IV, conhecido por Darkover,  no Senado Imperial. - Lew aproximou-se e fez uma vénia diante de Lorde Hastur.

- Com a vossa permissão, sir, seguirei na nave que parte para as estrelas ao pôr do Sol, com a minha esposa e a minha filha. Terei muito gosto em prestar serviço durante uma legislatura, durante a qual podeis ensinar o povo de Darkover a escolher os seus próprios representantes...

Danvan Hastur estendeu-lhe a mão, dizendo:

- Teria muito gosto em ver o vosso pai nesse posto, Dom Lewis.

 O povo de Darkover e eu próprio temos motivo para estarmos agradecidos aos Alton.

Lew fez uma nova reverência e disse:

- Espero poder servir-vos bem - ao que Hastur respondeu:

- Possam todos os deuses abençoar-vos e dar-vos uma viagem segura.

Regis deixou o avô conversando com Lawton - estava convicto  de que viria o tempo em que gostariam um do outro e se respeitariam,  se ainda não o fizessem - e dirigiu-se à antecâmara com Lew. Despediu-se dele com um abraço de parente, e perguntou:

- Voltarás para cá quando o teu período de serviço terminar, Lew? Precisamos de ti em Darkover...

Uma momentânea expressão de dor cruzou o rosto de Lew, ao responder:

- Não me parece. Lá fora... no rebordo do Império... existem novos mundos. Eu... eu não posso olhar para trás.

Houvera demasiadas mortes aqui...

Regis estava prestes a perguntar: “Para que precisas de partir num novo exílio?”, mas engoliu em seco e baixou a cabeça. Passado um momento levantou-a e disse:

- Seja então, bredu. Para onde quer que vás, os deuses irão contigo. Adelandeyo.

Sabia que nunca voltaria a ver Lew, e sentia-se pesaroso ao vê-lo  sair da sala. O Império pertence-lhe, e mil milhões de mundos atrás de mundos. Mas o meu dever é ficar aqui. Eu sou... Hastur. E isso era suficiente. Quase.

Quando o Sol vermelho começou a pôr-se atrás do alto desfiladeiro,  Regis estava com Danilo numa varanda que deitava para a Zona Terráquea, vendo a grande nave terráquea elevar-se no céu, a caminho das estrelas. Para onde eu nunca poderei ir. E ele leva consigo o último dos meus sonhos de liberdade e de poder... O que preferirei: o Amor do Poder ou o Poder do Amor?

E repentinamente compreendeu que na realidade não invejava Lew. Certo: nenhuma mulher o amara como Lew tinha sido amado, mas Dyan, na sua morte, tinha deixado um legado brilhante de outro  tipo de amor; alguma coisa que ele ouvira, e que mal recordava dos seus anos em S. Valentine-das-Neves, voltou-lhe repentinamente à memória.

- Dani, como é aquela coisa que os cristoforos dizem... maior amor ninguém conhece...

Danilo respondeu, no mais antigo dialecto da língua casta, o dialecto  que eles tinham falado no mosteiro:

“Maior amor nenhum homem conhece do que aquele de quem dá a sua vida pelo seu semelhante.”

Dyan havia dado a sua vida por todos eles, e com a sua morte Regis tinha alcançado uma nova certeza: o amor é o amor, venha de onde vier e de que forma vier. Talvez um dia ele amasse uma mulher dessa maneira; mas se esse dia nunca surgisse, aceitaria o amor que era seu sem vergonha nem arrependimento.

- Nunca serei rei - disse. - Sou Hastur, e isso é suficiente. Um eco soprou-lhe na mente, uma memória que nunca viria por completo à superfície.

Quem és tu?

Hastur... e desvaneceu-se, como uma ruga na superfície do Lago.

- Vou precisar de muita... de muita ajuda, Dani - disse.

E Danilo respondeu-lhe, usando ainda o mais antigo dialecto de Nevarsin:

- Regis Hastur, sou o teu escudeiro, tanto na vida como na morte.

Regis passou o lenço pelo rosto; a neblina da noite estava a condensar-se  nas primeiras gotas de chuva, mas sentia-as quentes nos olhos.

- Anda - disse -, o meu avô não pode ficar sozinho por muito  tempo, e precisamos dos seus conselhos sobre como criar os nossos  garotos, Mikhail e o filhito de Dyan. Não podemos ficar aqui fora toda a noite.

Voltaram-se e entraram lado a lado no Castelo. A última luz extinguiu-se  no céu, e a grande nave, a caminho do Império, era apenas  mais uma estrela entre cem mil outras.

 

                                                                                           Marion Zimmer Bradley

 

 

                      

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