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O HOMEM INVISÍVEL / H.G.Wells
O HOMEM INVISÍVEL / H.G.Wells

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O HOMEM INVISÍVEL

 

          Quem não gostaria de experimentar as sensações de ser invisível? Subtrair-se ao olhar de seus semelhantes, que delícia! Ser livre para bisbilhotar sem ser pressentido, desvendar segredos e presenciar atos e fatos que normalmente se ocultam a todos, que perspectiva sedutora! A idéia de ser invisível acarreta uma noção de extrema liberdade, de livre-arbítrio, e traz consigo a de impunidade, pois o indivíduo se furtaria não só à vista dos homens como à lei e à justiça.

          O Homem Invisível, de H. G. Wells, mostra, porém, como essa liberdade e essa impunidade são ilusórias. Griffin, o físico que inventa um meio de se tornar invisível, deixando-se embriagar pela noção do incrível poder de que dispõe, percebe de imediato o outro lado da questão: em pleno inverno, só pode andar nu para não se denunciar, o que lhe provoca espirros e gripe; vê-se obrigado a usar permanentemente máscara e roupas para "existir" e comunicar-se com o mundo; não consegue, e em grande parte devido a seu gênio irascível, estar em boas relações com ninguém, o que lhe frustra as ambições de ser "reconhecido" como gênio e como uma pessoa especial. Ao invés disso, é caçado como um marginal da pior espécie, um inimigo público, o símbolo da maldade e da estranheza que o homem comum enxerga em tudo aquilo que não compreende.

          E ele próprio, por fim, parece aceitar e desejar essa marginalidade. Mais ainda: ciente de que a invisibilidade é uma força, um poder de que se acha investido, sonha com um reinado de Terror sobre as pequenas aldeias que atravessa. Todavia, tendo-se acumpliciado com um vagabundo ao qual confia os livros em que estão escritos os seus trabalhos e a fórmula secreta, em código, de como se fazer invisível, vê-se roubado e recorre a um antigo companheiro de faculdade, a quem conta seu segredo, e que o atraiçoa chamando a polícia. Na perseguição que se segue, o Homem Invisível é morto, e seu corpo vai aos poucos aparecendo aos olhos de todos.

          Não se trata de um romance escrito apenas para entretenimento. H. G. Wells não se limita a desenvolver uma história, seu propósito é fazer o leitor refletir. O fim trágico de Griffin, quando dispunha de um invento revolucionário que poderia ser utilizado em favor de todos, revela a incompreensão desse mesmo invento não só de parte do público mas também do próprio inventor, que pretendia usá-lo em proveito exclusivamente pessoal. Em vez da glória e do poder, Griffin obtém apenas o ódio, o medo e a repugnância. E como todo ser de exceção, é visto com temor e desconfiança.

          Aliás, o leitor habitual de Wells já deve ter percebido que em seus romances de antecipação, desde A Máquina do Tempo, Wells coloca o problema da dificuldade ou mesmo da total incomunicação do ser dito excepcional com seus semelhantes. Em 0 Homem Invisível esta incomunicação atinge o limite da rejeição total com a perseguição e morte do inventor. E o fato de caracterizar Griffin como um albino contribui naturalmente para reforçar essa idéia. Griffin já era, antes de sua descoberta, um ser de exceção, um marginal dentro da sociedade, estigmatizado pelo seu mal incurável. O que provavelmente o fez tão irritadiço e certamente colaborou para a sua ruína.

         

       A CHEGADA DO ESTRANHO

          O estranho chegou no início de fevereiro, em um dia gélido, arrostando o vento cortante e a neve que não cessava de cair, a última nevada do ano. Caminhava pela colina, vindo, ao que parecia, da estação da estrada de ferro de Bramblehurst e segurava uma pequena valise negra na mão calçada com uma luva grossa. Estava agasalhado da cabeça aos pés e a aba do chapéu de feltro macio ocultava-lhe cada centímetro do rosto, exceto a ponta brilhante do nariz; a neve tinha se acumulado em seus ombros e peito, acrescentando uma orla branca ao peso que carregava. Cambaleando, entrou na "Coach and Horses", aparentemente mais morto do que vivo e deixou cair a maleta. — Fogo — implorou — por caridade! Um quarto e fogo! — Batendo com os pés no chão, sacudiu a neve no bar e seguiu a sra. Hall até a sala de visitas, para falar de negócios. E, com aquela preliminar e mais a concordância imediata quanto às condições, além de um par de soberanos jogados sobre a mesa, tomou aposentos na estalagem.

          A sra. Hall acendeu o fogo e deixou-o lá, saindo a fim de preparar-lhe, ela mesma, uma refeição. Um hóspede que vinha a Iping no inverno já era uma sorte extraordinária, ainda mais um hóspede que não barganhava, e estava disposta a mostrar-se digna de tal felicidade. Logo que o bacon começou a fritar e Millie, a apática empregada, espertou um pouco, graças a algumas expressões bem escolhidas de desdém, levou a toalha, pratos e copos para a sala e começou a arrumá-los com o maior éclat. Embora o fogo estivesse ardendo vivamente, ficou surpresa ao ver que o visitante ainda estava de chapéu e casaco, de pé, dando-lhe as costas e contemplando, através da janela, a neve que caía no pátio. Suas mãos enluvadas entrelaçavam-se atrás e parecia absorto em pensamentos. Observou que a neve derretida que ainda lhe salpicava os ombros estava pingando no tapete. — Posso pegar seu chapéu e casaco, senhor — disse —, e secá-los bem na cozinha?

          — Não — respondeu ele, sem se voltar.

          Sem muita certeza de tê-lo ouvido, estava prestes a repetir a pergunta.

          Então ele virou a cabeça e olhou-a por cima do ombro. — Prefiro continuar assim — disse, enfaticamente, e ela notou que usava grandes óculos escuros com protetores laterais, e que bastas suíças sobre a gola do casaco escondiam-lhe completamente o rosto.

          — Muito bem, senhor — replicou. — Como quiser. Daqui a pouco a sala estará mais quente.

          O estranho não respondeu e desviou novamente o rosto; e a sra. Hall, percebendo que suas tentativas de conversa eram inoportunas, acabou de pôr a mesa com movimentos bruscos e rápidos e apressou-se a sair da sala. Quando voltou, ele ainda estava de pé no mesmo lugar, como um homem de pedra, as costas encurvadas, a gola voltada para cima e a aba gotejante do chapéu virada para baixo, ocultando-lhe por completo o rosto e as orelhas. Pousou o prato de ovos e bacon sobre a mesa com um alarido considerável e elevou a voz, em vez de falar com naturalidade. — Seu almoço está servido, senhor.

          — Obrigado — retrucou ele de pronto e não se moveu até que ela fechasse a porta. Só então deu meia-volta e aproximou-se da mesa.

          Quando a sra. Hall passou por trás do bar, para ir até a cozinha, ouviu um som que se repetia a intervalos regulares. Crique, crique, crique, continuava, o som de uma colher mexida rapidamente em círculos, dentro de uma vasilha. — Aquela garota! — exclamou. — Vejam só! Esqueci-me completamente da mostarda. É a moleza dela! — E, enquanto acabava de bater a mostarda pessoalmente, deu algumas alfinetadas verbais em Millie, por sua excessiva lerdeza. Tinha cozido o presunto e os ovos, posto a mesa e tudo o mais, enquanto Millie (que ajudante!) nem conseguira aprontar a mostarda. E ele, um novo hóspede, querendo ficar! Encheu o pote de mostarda e colocando-o, com certa solenidade em uma bandeja de chá dourada e preta, levou-o até a sala.

          Bateu e entrou em seguida. Ao fazê-lo, o hóspede moveu-se rapidamente, de tal forma que apenas conseguiu ver, de relance, um objeto branco desaparecendo por baixo da mesa. Parecia que ele estava apanhando alguma coisa do chão. Com um ruído seco, pôs o pote de mostarda sobre a mesa e, então, notou que o sobretudo e o chapéu tinham sido tirados e colocados em uma cadeira diante do fogo. Um par de botas molhadas ameaçava enferrujar o guarda-fogo de aço da lareira. Resolutamente, dirigiu-se para as peças de vestuário. — Acho que agora posso levá-las para secar

          — disse, em um tom que não admitia contestação.

          — Deixe o chapéu — disse o hóspede em voz abafada e ela, voltando-se, viu que tinha erguido a cabeça e estava sentado, observando-a.

          Por um momento ficou imóvel, olhando-o, de boca aberta, demasiado surpresa para falar.

          Segurava um pano branco — um guardanapo que trouxera

          — diante da porção inferior do rosto, de forma a encobrir a boca e maxilares, o que explicava a voz surda. Mas não fora isso o que espantara a sra. Hall, e sim o fato de que toda a testa, acima dos óculos azuis, estava envolta em uma atadura branca, e outra lhe encobria as orelhas, sem deixar nem um pedaço de rosto à mostra, a não ser o nariz rosado e pontiagudo. Este era de um rosa claro e brilhante, exatamente como parecera desde o princípio. Vestia um paletó de veludo castanho-escuro, com uma gola alta forrada de linho preto virada para cima, em volta do pescoço. O cabelo espesso e negro, soltando-se como podia embaixo e entre as ataduras que se cruzavam, projetava-se formando caudas e chifres esquisitos, dando-lhe a aparência mais estranha que se poderia conceber. Aquela cabeça tapada e envolta em bandagens era tão diferente do que seria capaz de imaginar que, por um momento, ficou rígida.

          Ele não baixara o guardanapo e ficara segurando-o, como via agora, com a mão enluvada e castanha, fixando-a com seus impenetráveis óculos azuis. — Deixe o chapéu — repetiu, falando distintamente através do guardanapo branco.

          Os nervos dela começavam a recuperar-se do choque que haviam sofrido. Recolocou o chapéu sobre a cadeira perto do fogo.

          — Não sabia, senhor — começou — que. . . —  e calou-se, desconcertada.

          — Obrigado — disse ele secamente, olhando dela para a porta e depois para ela novamente.

          — Vou secá-las muito bem, imediatamente, senhor — falou, levando as roupas do aposento. Relanceou outra vez para a cabeça enfaixada de branco e para os óculos azuis, enquanto ia saindo; mas o guardanapo ainda se mantinha diante do rosto dele. Sentiu um, pequeno calafrio ao fechar a porta e sua expressão demonstrava claramente surpresa e perplexidade. — Nunca — sussurrou.

          — Que coisa! — Dirigiu-se para a cozinha, silenciosamente, e tão preocupada estava que, ao chegar, nem lhe ocorreu perguntar a Milhe que trapalhada fazia no momento.

          O visitante permaneceu sentado, atento aos passos que se afastavam. Olhou atentamente para a janela, antes de tirar o guardanapo e recomeçar a refeição. Comeu um pouco, lançou um olhar desconfiado para a janela, comeu mais um pouco, depois levantou-se e, com o guardanapo na mão, atravessou o aposento e desceu a persiana até a musselina branca que resguardava as vidraças inferiores. Isso deixou a sala na penumbra. Depois, com um jeito mais tranqüilo, voltou à mesa e à sua refeição.

          — O pobre-coitado sofreu um acidente ou fez uma operação ou qualquer coisa semelhante — disse a Sra. Hall. — Puxa! Que susto me deram aquelas ataduras!

          Pôs um pouco mais de carvão no fogo, desdobrou o cabide de pé e pendurou o casaco do viajante. — E aqueles óculos! Ora, ele parece mais um escafandro do que um homem de verdade! — Pendurou o cachecol em uma extremidade do cabide. — Segurando aquele guardanapo em cima da boca o tempo todo. Falando através dele!.. . Talvez a boca também tenha sido ferida — talvez.

          Deu uma viravolta, como alguém que, de repente, lembra-se de algo. — Deus me abençoe! — exclamou, mudando bruscamente de assunto; — você ainda não fez as batatas, Millie?

          Quando a Sra. Hall foi tirar a mesa do almoço, sua impressão de que a boca do estranho devia ter sido cortada ou desfigurada no acidente que supunha que sofrerá foi confirmada, pois ele estava fumando um cachimbo e, durante todo o tempo em que permaneceu na sala, nem uma vez afrouxou o cachecol de seda no qual havia enrolado a parte inferior do rosto para levar a boquilha aos lábios. Isso, no entanto, não era por distração, pois observou que a olhava de vez em quando, vendo-a soltar fumaça. Estava sentado em um canto, de costas para a persiana e, tendo comido e bebido, e estando confortavelmente aquecido, falou com menos daquela agressividade lacônica de antes. O reflexo do fogo emprestava aos grandes óculos uma espécie de vivacidade com toques avermelhados que até então lhes faltara.

          — Tenho alguma bagagem na estação de Bramblehurst — disse, e perguntou-lhe como poderia fazer para que a mandassem. Educadamente, inclinou a cabeça enfaixada para demonstrar que agradecia a explicação dela. — Amanhã! — protestou. — Não há uma entrega mais rápida? — e pareceu desapontado quando ela lhe respondeu — Não. — Tinha certeza? Não havia nenhum homem para ir até lá de charrete?

          Sem a menor relutância a Sra. Hall respondeu às perguntas e encetou uma conversa. — A estrada é íngreme pela colina, senhor - disse, respondendo à indagação sobre a charrete; e depois, aproveitando a oportunidade, acrescentou: — Foi lá que uma carruagem virou há mais de um ano. Morreu um senhor, além do cocheiro. Em um instante acontecem acidentes, não é?

          Mas o visitante não se deixou levar tão facilmente. — É verdade — concordou, falando através do cachecol e olhando-a calmamente com os óculos impenetráveis.

          — Mas levam muito tempo para sarar, não acha, senhor?... Tom, o filho de minha irmã, cortou o braço com uma foice, caiu em cima dela no campo de feno e, Deus me abençoe, ficou três meses sem poder trabalhar, senhor. O senhor mal acreditaria. Isso me deu um verdadeiro horror de foice, senhor.

          — Compreendo perfeitamente — disse o visitante.

          — Houve uma ocasião em que ficou com medo de ter que fazer uma operação — tão grave era o seu estado, senhor.

          O estranho riu inesperadamente, o riso como um latido que ele parecia morder e matar na própria boca. — Ficou?

          — Ficou, senhor. E não foi nada divertido para os que cuidaram dele, como eu — já que minha irmã estava tão ocupada com os filhos menores. Havia ataduras a serem colocadas e retiradas, senhor. Por isso, se permite que tenha a ousadia de lhe dizer, senhor . ..

          — Pode me arranjar fósforos? — interrompeu o visitante asperamente. — Meu cachimbo apagou.

          A Sra. Hall calou-se prontamente. Decerto que era uma grosseria da parte dele, depois de ter-lhe contado tudo o que fizera. Olhou-o ofegando por um segundo e lembrou-se dos dois soberanos. Saiu para buscar os fósforos.

          — Obrigado — disse ele secamente, quando os trouxe, e voltou-lhe as costas olhando novamente pela janela. Nada fazia para encorajá-la. Evidentemente um assunto que envolvia operações e bandagens lhe era desagradável. Afinal nem "ousara lhe dizer" coisa nenhuma. Mas a desconsideração a havia irritado, e ela descontou em Millie a tarde inteira.

          O visitante permaneceu na sala até as quatro horas, sem pedir desculpas por sua intromissão. Ficou a maior parte do tempo absolutamente imóvel; dava a impressão de estar sentado na escuridão crescente, fumando ao clarão da lareira, ou talvez cochilando.

          Uma ou duas vezes, um ouvinte curioso poderia tê-lo escutado dirigindo-se às brasas e, por um período de cinco minutos, seus passos foram ouvidos caminhando pela sala. Parecia estar falando sozinho. Depois, a cadeira rangeu; tinha se sentado outra vez.

        

         AS PRIMEIRAS IMPRESSÕES DO SR. TEDDY HENFREY

          Às quatro horas, quando já estava escurecendo e a Sra. Hall procurava encher-se de coragem para entrar e perguntar ao hóspede se gostaria de tomar chá, Teddy Henfrey, o relojoeiro, apareceu no bar. — Por Deus, Sra. Hall — disse ele — o tempo está horrível para se usar botas leves! — Lá fora a neve caía mais depressa.

          A Sra. Hall concordou e depois, vendo que ele trazia sua maleta, teve uma idéia brilhante. — Já que está aqui, Sr. Teddy — falou — gostaria que desse uma olhada no velho relógio da sala. Está funcionando e bate as horas corretamente e bem alto; mas o ponteiro de horas não sai das seis.

          E mostrando o caminho, foi até a porta da sala, bateu e entrou.

          Ao abri-la, viu que o visitante estava sentado na cadeira de braços, aparentemente cochilando, com a cabeça enfaixada caída para um lado. A única luz era o brilho avermelhado do fogo, que se refletia em seus olhos como sinais luminosos fechados de estrada de ferro, e o pouco que restava da claridade do dia entrava pela porta aberta, deixando nas trevas o rosto inclinado para baixo. A ela, tudo parecia rubro, sombrio e indistinto, tanto mais que acabara de acender o lampião do bar e seus olhos estavam ofuscados. Mas, por um segundo, teve a impressão de que o homem que via tinha uma boca enorme, completamente aberta — uma vasta e incrível boca que engolia totalmente a porção inferior do rosto. Foi uma sensação momentânea: a cabeça enfaixada de branco, os olhos de óculos monstruosos e o grande vazio embaixo. Ele moveu-se, endireitou-se na cadeira e ergueu a mão. Ela abriu completamente a porta para que a sala ficasse mais clara e viu-o com maior nitidez, o cachecol cobrindo-lhe o rosto, exatamente como já o vira segurar o guardanapo. As sombras a haviam confundido, pensou.

          — O senhor se importaria que este homem entrasse para ver o relógio? — perguntou, recuperando-se do choque inesperado.

          — Para ver o relógio? — repetiu ele, olhando ao seu redor, meio sonolento e falando através da mão; depois, completamente acordado, respondeu: — Claro que não.

          A sra. Hall saiu para buscar um lampião e ele levantou-se e espreguiçou-se. A luz chegou e o sr. Teddy Henfrey, ao entrar, deparou com aquela criatura enfaixada. Como contou depois, foi "colhido de surpresa".

          — Boa-tarde — disse o estranho, encarando-o como uma lagosta, segundo o sr. Henfrey, vivamente impressionado pelos óculos escuros.

          — Espero — desculpou-se o sr. Henfrey — que não esteja sendo incômodo.

          — De modo algum — retrucou o estranho. — Embora tenha entendido que esta sala seria minha, para meu uso particular — concluiu, dirigindo-se à sra. Hall.

          — Pensei, senhor — desculpou-se a sra. Hall — que preferiria que o relógio estivesse.. . — Quase ia dizendo "perfeito".

          — Realmente — disse o estranho — realmente, ainda que, via de regra, goste de ficar só, sem que me perturbem. Mas,

          na verdade, estou satisfeito por consertarem o relógio — acrescentou, percebendo uma certa hesitação na atitude do sr. Henfrey. — Muito satisfeito. — O sr. Henfrey pretendia pedir desculpas e retirar-se, porém aquela declaração o tranqüilizou. O estranho permaneceu de pé, de costas para a lareira, com as mãos entrelaçadas. — Depois — disse — quando o conserto do relógio estiver concluído, acho que gostaria de tomar chá. Mas não antes que tenha sido reparado.

          A sra. Hall ia saindo — dessa vez não tentou puxar conversa, pois não queria ser repelida diante do sr. Henfrey, quando o visitante perguntou-lhe se tinha tomado alguma providência sobre a bagagem em Bramblehurst. Esta informou-o de que falara com o carteiro e que um mensageiro poderia trazê-la de manhã. — Tem certeza de que isto é o mais cedo possível? — insistiu ele.

          Com visível frieza, ela assegurou-lhe de que tinha.

          — Deveria explicar — acrescentou ele —, que estava realmente com muito frio e muito cansado para fazer na ocasião, que sou um pesquisador e faço experiências.

          — Verdade, senhor? — disse a sra. Hall, muito impressionada.

          — E que minha bagagem contém aparelhos e instrumentos.

          — Que são coisas de fato muito necessárias, senhor — comentou a sra. Hall.

          — E, naturalmente, estou ansioso para prosseguir com minhas pesquisas.

          — Claro, senhor.

          — Meu motivo para vir para Iping — continuou ele com um modo levemente enfático —, foi o desejo de solidão. Não quero ser interrompido em meu trabalho. E, além de meu trabalho, um acidente. ..

          — Foi o que pensei — murmurou a sra. Hall para si mesma.

          — Faz com que precise de certo isolamento. Algumas vezes, meus olhos ficam tão fracos e doloridos que tenho que me fechar no escuro, horas a fio. Trancar-me. Algumas vezes, de quando em quando. No momento, decerto que não. Nessas ocasiões, a menor perturbação, a entrada de outra pessoa na sala é uma fonte de

          extrema contrariedade para mim. É bom que essas coisas sejam entendidas.

          — Certamente, senhor — replicou a sra. Hall. — E se me permite a ousadia de perguntar. ..

          — Acho que isso é tudo — disse o estranho com aquele ar calmo e irretorquível de finalidade, que podia assumir quando queria. A sra. Hall guardou a pergunta e a simpatia para outra ocasião mais oportuna.

          Depois que a sra. Hall saiu, ele ficou de pé em frente da lareira, com o olhar parado, como descreveu o sr. Henfrey ocupado em consertar o relógio. Tinha tirado não só os ponteiros e o mostrador, como também o mecanismo e procurava trabalhar tão lenta, silenciosa e discretamente quanto podia. O lampião estava junto dele e o quebra-luz verde projetava uma luz brilhante em suas mãos e na moldura e engrenagens, deixando o resto do aposento na sombra. Quando ergueu os olhos, manchas coloridas agitaram-se diante destes. Sendo de natureza essencialmente curiosa, tinha tirado o mecanismo — um procedimento inteiramente desnecessário — com a intenção de demorar sua partida e talvez encetar uma conversa com o estranho. Mas este permanecia ali, totalmente mudo e imóvel. Tão imóvel que começou a enervar o sr. Henfrey. Sentia-se só no aposento e olhou mais uma vez; lá estavam, cinzentas e indistintas, a cabeça enfaixada e as grandes lentes azuis contemplando-o fixamente, com uma névoa de manchas verdes flutuando diante deles. A visão parecia tão fantástica a Henfrey que, por um minuto, permaneceram fitando-se sem qualquer expressão. Depois Henfrey baixou novamente o olhar. Que posição mais desconcertante! Gostaria de dizer alguma coisa. Poderia observar que o tempo estava muito frio para aquela época do ano?

          Ergueu os olhos outra vez, como se fosse fazer mira para aquele tiro inicial. — O tempo... — começou.

          — Por que não termina e vai embora? — perguntou a figura rígida, evidentemente em um estado de irritação penosamente controlada. — Tudo o que tem a fazer é fixar o ponteiro de horas em seu eixo. Está, simplesmente, fazendo cera.. .

          — Muito bem, senhor, só mais um minuto, senhor. Esqueci. .. __E o sr. Henfrey concluiu a tarefa e se foi.

          Foi-se, mas extremamente contrariado. — Que diabo! — exclamou, falando sozinho, enquanto caminhava com dificuldade pela neve derretida, em direção à aldeia; — claro que um homem tem o direito de examinar um relógio de vez em quando.

          Depois: — Não se pode olhar para o senhor? É horrível!

          E mais uma vez: — Parece que não. Se a polícia estivesse procurando o senhor, não poderia estar mais disfarçado e enfaixado.

          Na esquina de Gleeson avistou Hall, que havia se casado recentemente com a hospedeira do estranho no "Coach and Horses" e que passara a cocheiro da charrete de Iping até Sidder-bridge Junction, quando, ocasionalmente, a requisitavam. Vinha em direção a ele, de volta de lá. Era evidente, pela maneira com que guiava, que Hall tinha "parado um pouquinho" em Sidderbridge. — Oi, Teddy — cumprimentou ao vê-lo.

          — Você está com um personagem muito esquisito em casa!

          — disse Teddy.

          Amavelmente, Hall freou. — Que quer dizer? — perguntou.

          — Um freguês esquisito, hospedado no "Coach and Horses"

          — explicou Teddy. — Cruzes!

          E continuou, fazendo a Hall uma descrição detalhada do grotesco hóspede. — Até parece um disfarce, não acha? Por mim, gostaria de ver a cara de um homem que estivesse hospedado em minha casa —, disse Henfrey. — Mas as mulheres são tão confiantes, quando se trata de desconhecidos. Ele alugou aposentos e nem sequer deu o nome, Hall.

          — Não me diga! — exclamou Hall, que era um homem de compreensão meio lenta.

          — É verdade — confirmou Teddy. — Por semana. Seja quem for, não pode livrar-se dele em menos de uma semana. E tem muita bagagem para chegar amanhã, segundo disse. Esperemos que não haja pedras nos caixotes, Hall.

          Contou a Hall como sua tia em Hastings tinha sido lesada por um estranho com malas vazias. Assim, deixou Hall vagamente desconfiado. — Vamos embora, minha velha — disse à égua. — Acho que tenho que ver de que se trata.

          Teddy seguiu caminho, com a consciência consideravelmente aliviada.

          Mas, ao invés de "ver de que se tratava", Hall, ao voltar, foi duramente censurado pela mulher devido ao tempo que se demorara em Sidderbridge e suas perguntas conciliadoras foram respondidas asperamente e sem nenhuma objetividade. Mas a semente de suspeita que Teddy plantara tinha germinado, a despeito da falta de estímulo. — Vocês mulheres não sabem tudo —, disse o sr. Hall, decidido a descobrir mais sobre a personalidade do hóspede, na primeira oportunidade. E depois que o estranho foi deitar-se, mais ou menos às nove e meia, o sr. Hall entrou agressivamente na sala, correu os olhos detidamente sobre os móveis da mulher, só para mostrar que o estranho não era o dono ali e examinou atentamente e com certo desprezo uma folha de computação matemática que o homem deixara. Quando foi dormir, recomendou à sra. Hall que olhasse cuidadosamente a bagagem que ia chegar no dia seguinte.

          — Cuide de sua vida, Hall, que eu cuido da minha — respondeu a sra. Hall.

          Estava mais do que inclinada a responder bruscamente a Hall porque o estranho pertencia, sem dúvida, a uma variedade esquisita de estranhos e, em seu íntimo, não estava nem um pouco segura a respeito dele. No meio da noite acordou de um sonho com cabeças brancas enormes, parecidas com nabos, que a seguiam na extremidade de pescoços intermináveis e que tinham enormes olhos negros. Mas, sendo uma mulher sensata, afugentou seus terrores, virou para o outro lado e adormeceu de novo.

 

          AS MIL E UMA GARRAFAS

          Foi assim que, a nove de fevereiro, no início do degelo, aquela criatura extraordinária veio do desconhecido para a aldeia de Iping. A bagagem chegou no dia seguinte, em meio à neve semiderretida. E realmente era uma bagagem singular. Havia, de fato, um par de malas como seriam necessárias a qualquer homem racional, mas além disso havia uma caixa de livros — grandes e grossos, alguns dos quais em uma escrita incompreensível, e talvez mais de uma dúzia de engradados, caixotes e embrulhos, contendo objetos acondicionados em palha que pareceram a Hall, que puxava a palha com uma vaga curiosidade, garrafas de vidro. O estranho, embuçado em um casaco, chapéu, luvas e cachecol, saiu, impaciente, ao encontro da carroça de Fearenside, enquanto Hall trocava um ou dois dedos de prosa, preparando-se para ajudar a levar as coisas para dentro. O homem saiu, sem notar o cachorro de Fearenside que farejava, sem muito interesse, as pernas de Hall. Andem com esses volumes — disse ele. — Já esperei demais.

          E começou a descer os degraus em direção à traseira da carroça, como se fosse pegar um dos caixotes menores.

          Mas assim que o cachorro de Fearenside o avistou, começou a eriçar-se e a rosnar selvagemente e quando ele precipitou-se degraus abaixo, o cão deu um pulo hesitante, depois saltou diretamente para a mão do estranho. — Opa! gritou Hall pulando para trás, pois não era nenhum herói diante de cães. E Fearenside deu um berro: — Deitado! — e apanhou o chicote.

          Viram que os dentes do cachorro tinham escorregado da mão, ouviram um pontapé, viram o cão dar um pulo para o lado agarrando a perna do estranho e ouviram o barulho da calça rasgando-se. Então a extremidade do chicote de Fearenside atingiu o animal e este, ganindo de medo, escondeu-se atrás das rodas da carroça. Tudo fora questão de meio minuto. Ninguém falou: todos gritavam. O estranho lançou um rápido olhar para a luva rasgada e para a perna, deu a impressão de que ia abaixar-se para vê-la, depois voltou-se e subiu rapidamente os degraus e entrou na estalagem. Ouviram-no apressar-se pelo corredor e subir a escada sem tapete que levava a seu quarto.

          — Você, seu estúpido, você! — disse Fearenside subindo na carroça com o chicote na mão, enquanto o cachorro o observava através dos aros da roda. — Venha cá! É bom que venha!

          Hall estava parado, de boca aberta. — Ele foi mordido — disse. — É melhor ir ver como está — e afastou-se, seguindo os passos do estranho. No corredor, encontrou a sra. Hall. — O cachorro do carroceiro o mordeu — disse.

          Foi diretamente para cima e, como a porta do hóspede estivesse aberta, empurrou-a e ia entrando sem nenhuma cerimônia, pois era naturalmente bondoso.

          A veneziana estava descida, e o quarto na penumbra. Viu, de relance, algo extremamente esquisito, o que parecia um braço sem mão acenando em sua direção e um rosto constituído por três grandes manchas imprecisas sobre um fundo branco, muito parecido com a superfície de um amor-perfeito descorado. Então foi atingido violentamente no peito, jogado para trás e a porta fechada e trancada em sua cara, tudo tão depressa que não teve tempo de assimilar coisa nenhuma. Um acenar de formas indecifráveis, um galope e uma pancada. Ficou parado no pequeno patamar escuro, imaginando o que poderia ter visto.

          Passados uns dois minutos, juntou-se ao pequeno grupo que se formara diante do "Coach and Horses". Ali estava Fearenside contando tudo de novo, pela segunda vez; e a sra. Hall reclamando que o cachorro dele não tinha o direito de morder seus hóspedes; ali estava Huxter, o dono do armazém do outro lado da estrada, curioso; e Sandy Wadgers, da forja, imparcial; além de mulheres e crianças — todos dizendo tolices: — Não o deixaria me morder, eu sei —; — Não é direito ter cachorros assim —; __Mas então por que o mordeu? — e outras coisas no gênero.

          O sr. Hall, contemplando-os do alto dos degraus e ouvindo, começou a achar inacreditável que tivesse visto acontecer alguma coisa muito extraordinária lá em cima. Além do mais, seu vocabulário era demasiado limitado para comunicar suas impressões.

          — Ele diz que não quer ajuda — falou em resposta à pergunta da mulher. — É melhor que levemos a bagagem para dentro.

          — Devia fazer uma cauterização imediatamente — opinou o sr. Huxter. — Especialmente se a perna está inflamada.

          — Eu daria um tiro no cão, é isso que faria — disse uma mulher do grupo.

          De repente, o cachorro começou a rosnar outra vez.

          — Vamos com isso — gritou uma voz colérica à porta; e ali estava o hóspede embuçado, com a gola virada para cima e a aba do chapéu voltada para baixo. — Quanto mais depressa vocês trouxerem essas coisas para dentro, mais satisfeito ficarei. — Um espectador anônimo declarou depois que tinha mudado as calças e luvas.

          — Está machucado, senhor? — indagou Fearenside. — Sinto muito que o cachorro.. .

          — Nem um pouco — respondeu o estranho. — Nem arranhou a pele. Andem depressa com essas coisas.

          Depois, afirmou o sr. Hall, ele xingou baixinho.

          Logo que o primeiro caixote foi levado à sala, de acordo com as instruções dele, o estranho atirou-se sobre ele, com grande ansiedade e começou a abri-lo, jogando a palaha para todos os lados, sem a menor consideração pelo tapete da sra. Hall. E começou a retirar garrafas — pequenas garrafas gordas, contendo pós, garrafinhas esguias cheias de líquidos brancos e coloridos, garrafas azuis caneladas, com etiquetas nas quais se lia "Veneno", garrafas com bases arredondadas e gargalos finos, grandes garrafas de vidro verde, grandes garrafas de vidro branco, garrafas com tampas de vidro e marcadas com vidro fosco, garrafas com pequenas rolhas, garrafas com tampas de madeira ou rolhas de tonel, garrafas de vinho, garrafas de óleo de salada — colocando-as em fila sobre o aparador, sobre o console, sobre a mesa embaixo da janela, pelo chão, nas prateleiras das estantes — por todos os lugares. A loja do farmacêutico em Bramblehurst não tinha nem a metade. Era um espetáculo inédito. De caixote após caixote saíam garrafas, até que os seis ficaram vazios e um monte de palha sobre a mesa; as únicas coisas que saíram daqueles caixotes, além das garrafas, foram numerosos tubos de ensaio e uma balança cuidadosamente acondicionada.

          Logo depois que os caixotes ficaram vazios, o estranho foi até a janela e começou a trabalhar, sem dar a menor atenção à palha jogada por todos os lados, ao fogo que tinha se apagado, à caixa de livros ainda do lado de fora, ou às malas e ao resto da bagagem que tinham carregado para cima.

          Quando a sra. Hall levou-lhe a refeição, já estava tão absorto no trabalho, pingando pequenas gotas que tirava das garrafas para os tubos de ensaio, que nem a ouviu, até que ela tivesse varrido o monte de palha e posto a bandeja sobre a mesa, talvez com um pouco mais de barulho, ao ver o estado em que estava o chão. Ele voltou ligeiramente a cabeça e logo desviou-a outra vez. Porém deu para que visse que tinha tirado os óculos; estavam a seu lado, sobre a mesa, e ela teve a impressão de que suas órbitas eram extraordinariamente vazias. Logo recolocou os óculos e depois virou-se e confrontou-a. A estalajadeira estava prestes a reclamar da palha pelo chão, quando ele se adiantou.

          — Gostaria que não entrasse sem bater — disse, no tom de exasperação exagerada que parecia uma característica dele.

          — Bati, mas pareceu-me...

          — Talvez batesse. Mas, em minha pesquisa — uma pesquisa realmente muito urgente e necessária — a menor perturbação, o barulho de uma porta. . . Tenho que lhe pedir que...

          — Certamente, senhor. Pode fechar a chave, se quiser, o senhor sabe, a qualquer hora.

          — Uma idéia muito boa — disse o estranho.

          — Essa palha, senhor, se me permite observar.. .

          — Não o faça. Se a palha a incomoda, inclua-a na conta. — E continuou a murmurar, dirigindo-se a ela, palavras que poderiam parecer xingamentos.

          Estava tão esquisito, de pé, tão agressivo e enraivecido, garrafa em uma das mãos e tubo de ensaio na outra, que a sra. Hall ficou amedrontada. Mas era uma mulher decidida. — Nesse caso, senhor, gostaria de saber o que consideraria.. .

          — Um xelim. Acrescente um xelim. Decerto que um xelim é o bastante?

          — Está bem — concordou a sra. Hall, apanhando a toalha e começando a desdobrá-la sobre a mesa. — Se isso lhe convém, naturalmente.. .

          Ele voltou-lhe as costas e sentou-se, com a gola do casaco levantada na direção dela.

          Durante toda a tarde trabalhou com a porta trancada e, como afirmou a sra. Hall, em silêncio a maior parte do tempo. Mas em uma ocasião houve uma pancada e o som de garrafas tilintando, como se a mesa tivesse levado um encontrão; o barulho de uma garrafa quebrada, por ter sido violentamente atirada no chão, e depois o ruído de passos rápidos pela sala. Temendo que tivesse acontecido alguma coisa, ela foi até a porta e escutou, sem se dar ao trabalho de bater.

          — Isso não pode continuar — resmungava o estranho enfurecido. — Não pode continuar. Trezentos mil, quatrocentos mil! Aquela multidão imensa! Fui enganado! Posso levar a vida inteira! Paciência! Realmente, paciência! Tolo e mentiroso!

          Houve um barulho de botas ferradas nos tijolos do bar e, muito relutante, a sra. Hall teve que desistir de ouvir o resto do monólogo. Quando voltou, a sala estava novamente em silêncio, a não ser pelos breves estalidos da cadeira dele, e o tilintar ocasional de uma garrafa. Tudo tinha acabado. O estranho voltara ao trabalho.

          Quando ela lhe levou o chá, viu vidro quebrado sob o espelho côncavo e uma mancha dourada que fora limpa descuidada-mente. Chamou a atenção para aquilo.

          — Ponha na conta — retrucou ele secamente. — Pelo amor de Deus, não me aborreça. Se houver algum estrago, ponha na conta —; e continuou conferindo uma lista, no caderno diante dele.

          — Vou lhe dizer uma coisa — confidenciou Fearenside misteriosamente. A noite ia caindo e estavam na pequena cervejaria "Iping Hanger".

          — Então? — perguntou Teddy Henfrey.

          — Esse sujeito de quem está falando, o que meu cachorro mordeu. Bem... Ele é negro. Pelo menos as pernas são. Vi através do rasgão na calça dele e na luva. Era de se esperar que aparecesse algo rosado, não acha? Bem, não havia nada. Só negrume. Estou lhe dizendo, é tão negro quanto meu chapéu.

          — Por Deus! — exclamou Henfrey. — É um caso muito extravagante. Ora, o nariz dele é tão cor-de-rosa que parece pintado!

          — É verdade — disse Fearenside. — Sei disso. E vou lhe dizer o que penso. Aquele homem é malhado. Preto aqui e branco acolá — em manchas. E tem vergonha disso. É uma espécie de mestiço e a cor dele é manchada, em vez de misturada. Já ouvi falar disso. É o que acontece com os cavalos, como qualquer um sabe.

        

         O SR. CUSS ENTREVISTA O ESTRANHO

          Contei as circunstâncias da chegada do estranho a Iping com uma certa profusão de detalhes para que o leitor compreenda a curiosa impressão que causou. Mas, com exceção de dois incidentes fora do comum, os pormenores de sua estadia podem ser mencionados muito superficialmente, até o extravagante dia do Festival do Clube. Houve inúmeras escaramuças com a sra. Hall no campo da disciplina doméstica, mas até o fim de abril, quando começaram os primeiros sinais de penúria, ele a derrotava com o fácil expediente de um pagamento extra. Hall não o apreciava e toda a vez que ousava, falava da conveniência de se livrarem dele; mas manifestava sua antipatia principalmente dissimulando-a ostensivamente e evitando o visitante tanto quanto possível. — Espere até o verão — dizia a sra. Hall, conciliadora — até que os artistas comecem a chegar. Então, veremos. Ele talvez seja um tanto arrogante, mas contas pagas em dia são contas pagas em dia, diga você o que quiser.

          O estranho não ia à igreja e, na verdade, não fazia a menor diferença, nem em seu vestuário entre o domingo e os outros dias não religiosos. Trabalhava, na opinião da sra. Hall, sem a menor regularidade. Alguns dias descia cedo e atarefava-se sem parar. Em outros, levantava-se tarde, andava pelo quarto, resmungando alto, horas a fio, fumava, e dormia na poltrona junto à lareira. Não tinha a menor comunicação com o mundo para além da aldeia. Seu humor continuava a ser imprevisível; a maior parte do tempo tinha a atitude de um homem que sofria uma provação quase insuportável e, de vez em quando, partia, arrancava, esmagava ou quebrava coisas, em acessos espasmódicos de violência. Parecia viver sob uma irritação crônica, da maior intensidade. O hábito de falar sozinho em voz baixa ia se agravando cada vez mais, porém, embora a sra. Hall ouvisse atentamente, tudo lhe parecia sem pé nem cabeça.

          Raramente saía durante o dia mas, ao cair da tarde, tremendamente embuçado, quer o tempo estivesse frio ou não, fazia-o, escolhendo os caminhos mais desertos e sombreados por árvores ou encostas. Seus óculos enormes e o horrível rosto enfaixado, sob o toldo do chapéu, surgiam da escuridão repentina e desagradavelmente diante de um ou outro trabalhador a caminho de casa; e Teddy Henfrey, tropeçando à saída do "Scarlet Coat", uma noite, às nove e meia, assustou-se vergonhosamente com a cabeça do estranho, que parecia uma caveira (estava caminhando de chapéu na mão), subitamente iluminada pela luz da porta aberta. As crianças que o viam à noite sonhavam com fantasmas e era discutível se ele detestava os garotos mais do que estes o detestavam, ou o inverso — mas, certamente, havia uma aversão bem definida de ambos os lados.

          Era fatal que uma pessoa de aparência e comportamento tão incomuns se tornasse assunto freqüente em uma aldeia como Iping. As opiniões estavam muito divididas quanto à sua ocupação. A sra. Hall era suscetível nesse ponto. Quando interrogada, explicava cautelosamente enunciando as sílabas com cuidado, como quem teme algum perigo oculto, que ele era um "pesquisador experimental". Quando lhe perguntavam o que significava ser um pesquisador experimental respondia, com um toque de superioridade, que a maioria das pessoas instruídas sabia e então explicava que "descobria coisas". Seu hóspede sofrerá um acidente, dizia, que havia, temporariamente, lhe arroxeado o rosto e as mãos; e como era sensível, evitava exibir publicamente o fato.

          Longe dos ouvidos dela, havia a opinião geralmente aceita de que era um criminoso tentando fugir da justiça e enrolando-se de tal forma que se ocultaria completamente dos olhos da polícia. A idéia surgira da mente do sr. Teddy Henfrey. Mas não se sabia da ocorrência de nenhum crime de qualquer importância cometido em meados ou no final de fevereiro. Elaborada na imaginação do sr. Gould, o novo assistente da Escola Nacional, essa teoria apontava o estranho como um anarquista disfarçado que preparava explosivos e resolveu empreender operações de investigação, de acordo com sua disponibilidade de tempo. Em geral, estas consistiam, principalmente, em olhar o desconhecido com muita atenção, sempre que se encontravam, ou em fazer perguntas a respeito dele a pessoas que nunca o haviam visto. Mas não descobriu nada.

          Outra escola de pensamento seguia o sr. Fearenside e aceitava a teoria de que era malhado ou coisa semelhante; como, por exemplo, Silas Durgan, que tinham ouvido assegurar que "se ele quisesse exibir-se nas feiras, faria fortuna em um piscar de olhos" e sendo um pouco teólogo comparava-o com o homem que só tinha um talento. E ainda uma outra corrente de opinião explicava o caso todo considerando o estranho como um maluco inofensivo. Isso tinha a vantagem de justificar tudo, sem maiores especulações.

          Entre os grupos principais, havia os indecisos e os acomodados. O povo de Sussex tem poucas superstições e só depois dos acontecimentos do início de abril a cogitação do sobrenatural foi murmurada pela primeira vez na aldeia. Mesmo assim, só as mulheres acreditaram nisso.

          Mas, o que quer que pensassem, todos os habitantes de Iping concordavam plenamente em sua repulsa a ele.

          A irritabilidade que demonstrava, embora pudesse ser compreensível para um trabalhador intelectual urbano, era surpreendente para aqueles calmos aldeões de Sussex. A gesticulação frenética que presenciavam vez por outra, o caminhar apressado depois que a noite caía, ultrapassando-os velozmente em cantos escuros, a brutalidade desumana com que rechaçava todas as tímidas tentativas de curiosidade, o gosto pela penumbra que levava ao fechar de portas, abaixar de venezianas e à extinção de velas e lampiões — quem poderia concordar com tudo aquilo? Davam-lhe passagem quando atravessava a aldeia, mas quando se ia, os jovens humoristas levantavam a gola dos casacos, abaixavam a aba dos chapéus e seguiam-no em passadas nervosas, imitando-lhe o jeito furtivo. Naquela época, havia uma canção muito popular, chamada o "Homem Fantasma"; a srta. Statchell a tinha cantado em um concerto na sala de aula da escola (a fim de ajudar a angariar fundos para a iluminação da igreja) e, daí por diante, todas as vezes em que dois ou mais aldeões estavam reunidos e o estranho aparecia, sempre algum deles assoviava um ou dois compassos da canção, mais ou menos agudos ou graves. E as criancinhas que tinham se atrasado também lhe gritavam "Homem Fantasma!" e fugiam, medrosamente alvoroçadas.

          Cuss, o clínico-geral, estava roído pela curiosidade. As ataduras excitavam-lhe o interesse profissional e as mil e uma garrafas despertavam-lhe um respeito invejoso. Durante todo o mês de abril e o de maio, ansiou por uma oportunidade de falar com o estranho; até que, ao se aproximar a festa de Pentecostes, não pôde agüentar mais e arranjou a desculpa de uma lista de contribuições para contratar uma enfermeira para a aldeia. Ficou surpreso ao descobrir que o sr. Hall desconhecia o nome de seu hóspede. "Ele deu um nome" — disse a sra. Hall, numa afirmativa completamente infundada — mas não ouvi direito. — Achava que pareceria uma idiotice não saber o nome do homem.

          O sr. Cuss bateu na porta da sala e entrou. De dentro, veio uma imprecação perfeitamente audível. — Perdoe minha intromissão — desculpou-se e então a porta fechou-se e a sra. Hall foi excluída do resto da conversa.

          Ouviu o murmúrio de vozes nos dez minutos seguintes, um arrastar de pés, uma cadeira atirada para o lado, um riso curto, passos apressados até a porta e Cuss apareceu, o rosto lívido, olhando fixamente para trás, por cima do ombro. Deixou a porta aberta e. sem sequer relancear para ela, passou pelo corredor; desceu os degraus e seguiu-se o ruído de passos caminhando velozmente pela escada. Levava o chapéu na mão. Ela deixou-se ficar, atrás da porta aberta, olhando para a sala. Depois ouviu o estranho rindo baixinho e seus passos atravessaram o aposento. De onde estava, não podia ver-lhe o rosto. A porta da sala bateu, e tudo ficou em silêncio outra vez.

          Cuss foi direto à aldeia, procurar Bunting, o vigário. — Estarei louco? — foi dizendo bruscamente, ao entrar no pequeno escritório humilde. — Tenho cara de maluco?

          — Que aconteceu? — perguntou o vigário, pondo um peso sobre as folhas soltas de seu próximo sermão.

          — O sujeito da estalagem. ..

          — Bem?

          — Dê-me alguma coisa para beber — pediu Cuss, sentando-se.

          Quando seus nervos se acalmaram, graças a um copo de xerez barato — a única bebida de que o vigário dispunha — contou-lhe a entrevista que acabara de ter. — Entrei — arfou — e comecei a pedir uma contribuição para o Fundo destinado a pagar a enfermeira. Tinha posto as mãos nos bolsos quando me viu e estava todo curvado na cadeira. Fungou. Disse-lhe que sabia do interesse que tinha pelas coisas ligadas à ciência. Concordou. Fungou de novo. Ficou fungando o tempo todo, evidentemente presa recente de um forte resfriado. Não é de admirar, agasalhado daquela forma! Expus a idéia de se ter uma enfermeira, mantendo, ao mesmo tempo, os olhos bem abertos. Garrafas — preparados químicos — por todos os lados. Balança, tubos de ensaio suspensos e um cheiro de. .. prímulas noturnas. Estaria disposto a contribuir? Disse que pensaria no assunto. Perguntei a ele, diretamente, se estava fazendo pesquisas. Respondeu que sim. Uma pesquisa demorada? Ficou muito irritado. "Um diabo de pesquisa, muito longa" falou, estourando, por assim dizer. — Oh — disse eu. Ele desabafou. O homem estava prestes a perder o controle e minha pergunta fez com que explodisse. Tinham-lhe dado uma receita, uma receita muito importante — não disse para quê. Era uma receita médica? "Vá para o inferno! Que está tentando descobrir?" Pedi desculpas. Fungou com seriedade e tossiu. Falou de novo. Ele a tinha lido. Cinco ingredientes. Tinha-a largado e voltado a cabeça. Uma corrente de ar que vinha da janela tinha carregado o papel. Houve um silvo, um farfalhar. Estava trabalhando em uma sala com uma lareira aberta, continuou. Viu um lampejo, e lá estava a receita, queimando e flutuando chaminé acima. Correu para ela no momento em que desaparecia pela chaminé. Foi isso! Justamente nesse ponto, para ilustrar a história, fez um gesto com o braço.

          — Bem?

          — Não tinha mão — só a manga vazia. Deus! pensei, que aleijão! Com certeza tem um braço postiço, suponho, e tirou-o. Depois, pensei, há alguma coisa estranha aqui. Que diabo mantém a manga levantada e aberta, se não há nada nela? Não havia nada nela, estou lhe dizendo. Nada, de cima a baixo, até a articulação. Podia ver até o cotovelo, e havia um raio de luz brilhando através de um rasgão na fazenda. — Deus do Céu! — exclamei. Aí ele parou. Olhou-me fixamente, com aqueles óculos escuros e depois olhou a manga.

          — Bem?

          — É só. Não disse uma palavra; olhou-me fixamente e pôs depressa a manga no bolso. "Dizia", prosseguiu, "que lá estava a receita sendo queimada, não é"? Tossiu interrogativamente. — Que diabo — indaguei — como pode mover uma manga vazia assim? — "Manga vazia?" — Sim — insisti — uma manga vazia.

          "É uma manga vazia, é? O senhor viu que era uma manga vazia?" Levantou-se imediatamente. Levantei-me também. Veio em minha direção em três passos bem lentos e parou muito perto. Fungou furiosamente. Não vacilei, embora queira cair morto se aquela cabeça enfaixada e aqueles óculos não forem o suficiente para acovardar qualquer um, vindo silenciosamente para uma pessoa.

          "O senhor disse que era uma manga vazia?" — repetiu. — Sem dúvida — confirmei. Só em ficar olhando, sem dizer nada, um homem de cara limpa e sem óculos começa a sentir-se inquieto. Então, muito calmamente, ele tirou a manga do bolso e levantou o braço para mim, como se quisesse mostrá-lo de novo. E o fez muito, muito devagar. Olhei para aquilo. Pareceu-me um século. — Então? — disse eu, pigarreando — não há nada aí. — Tinha que dizer alguma coisa. Estava começando a ficar assustado. Podia enxergar do começo ao fim. Ele estendeu-a diretamente para mim, lentamente, lentamente — assim mesmo — até que o punho ficou a centímetros do meu rosto. É esquisito ver uma manga vazia aproximar-se da gente daquela forma! E então...

          — Bem?

          — Alguma coisa — cujo contato era exatamente como o de um dedo e um polegar — beliscou meu nariz.

          Bunting começou a rir.

          — Mas não havia nada ali! — protestou Cuss, a voz se tornando aguda, quase um grito, ao dizer "ali". — O senhor pode rir, mas estou lhe dizendo, fiquei tão apavorado que golpeei o punho dele com força, dei meia-volta e fugi da sala — deixei-o. ..

          Cuss fez uma pausa. Não havia dúvida quanto à sinceridade de seu pânico. Voltou-se, transtornado, e tomou um segundo copo do excelente xerez muito ordinário do pároco. — Quando atingi o punho dele — concluiu Cuss —, asseguro-lhe que senti exatamente como se estivesse batendo em um braço. Mas não havia braço! Não havia nem sombra de um braço!

          O sr. Bunting refletiu. Olhou, desconfiado, para Cuss. — É uma história totalmente fora do comum — comentou. Tinha uma expressão muito sábia e grave. — Na verdade — repetiu o sr. Bunting, cautelosamente enfático — uma história totalmente fora do comum.

         

       O ROUBO NO PRESBITÉRIO

          Os fatos do roubo na casa paroquial chegaram a nós principalmente através do pastor e de sua esposa. Aconteceu na madrugada da segunda-feira de Pentecostes — o dia dedicado às festividades do Clube em Iping. Parece que a sra. Bunting tinha acordado de repente, no silêncio que precede o amanhecer, com a forte impressão de que a porta do quarto do casal havia sido aberta e fechada. A princípio, não acordou o marido, mas sentou-se na cama, atenta. Depois, ouviu nitidamente o arrastar de pés descalços saindo do quarto de vestir ao lado e andando pelo corredor até a escada. Tão logo teve certeza disso, acordou o sr. Bunting, fazendo o menor barulho possível. Este não acendeu a luz, mas pondo os óculos, o roupão da mulher e seus chinelos, foi até o patamar e ficou escutando. Ouviu distintamente remexerem na mesa do escritório no andar inferior e depois um espirro violento.

          Diante disso, voltou ao quarto, armou-se com a arma mais óbvia, o atiçador, e desceu a escada tão silenciosamente quanto pôde. A sra. Bunting saiu para o patamar.

          Eram cerca de quatro horas e a escuridão fechada da noite se fora. Havia um leve reflexo de luz no vestíbulo, mas a porta do escritório estava escancarada para uma obscuridade impenetrável. Tudo continuava quieto e só se ouvia o ligeiro ranger dos degraus sob os passos do sr. Bunting e os movimentos quase imperceptíveis no escritório. Então, alguma coisa estalou, a gaveta abriu-se e houve um farfalhar de papéis. Depois disso uma imprecação, um fósforo acendeu-se e inundou o escritório com sua luz amarelada. O sr. Bunting, já no vestíbulo, viu, através de uma fresta da porta, a escrivaninha com a gaveta aberta e uma vela ardendo sobre a mesa. Mas não conseguia ver o ladrão. Ficou parado ali, sem saber o que fazer e a sra. Bunting, pálida e hesitante, desceu lentamente a escada para juntar-se a ele. Só uma coisa mantinha a coragem do sr. Bunting: a certeza de que aquele ladrão era um morador da aldeia.

          Ouviram o tilintar de dinheiro e compreenderam que o ladrão tinha encontrado a reserva doméstica de ouro — duas libras e dez, tudo em meios soberanos. A este som, o sr. Bunting animou-se a tomar uma atitude drástica. Segurando o atiçador com firmeza, precipitou-se para o cômodo, seguido de perto pela sra. Bunting. — Renda-se — gritou o sr. Bunting ferozmente e parou, surpreso: a sala estava completamente vazia.

          Entretanto, a impressão de ambos, de que tinham, naquele exato momento, ouvido alguém mover-se na sala, transformou-se em certeza. Ficaram de boca aberta, talvez por meio minuto e então a sra. Bunting atravessou o aposento e olhou atrás das cortinas, enquanto o sr. Bunting, levado por um impulso semelhante, olhava embaixo da mesa. A sra. Bunting descerrou as cortinas e o sr. Bunting olhou pela chaminé, experimentando-a com o atiçador. Aí a sra. Bunting examinou a cesta de papéis e o sr. Bunting abriu a tampa do depósito de carvão. E detiveram-se, olhando um para o outro interrogativamente.

          — Poderia jurar... — começou a sra. Bunting.

          — A vela! — exclamou o sr. Bunting. — Quem acendeu a vela?

          — A gaveta! — secundou-o a sra. Bunting. — E o dinheiro sumiu! — Apressadamente, foi até a porta.

          — Foi a coisa mais estranha...

          Ouviram um espirro alto, no corredor. Saíram correndo e, no mesmo momento, a porta da cozinha bateu com estrondo. — Traga a vela — disse o sr. Bunting, e foi na frente. Ambos escutaram o som de ferrolhos precipitadamente abertos.

          Quando ele puxou a porta da cozinha viu, além da pia, que a porta dos fundos estava se abrindo e a luz fraca do início da manhã só mostrava as moitas escuras do jardim do lado de fora. Tinha a certeza de que nada havia saído pela porta. Porém esta abriu-se, ficou aberta um instante e depois fechou-se violentamente. Nesse instante a vela do escritório que a sra. Bunting estava carregando tremeluziu e brilhou de novo. Passou-se mais de um minuto antes que entrassem na cozinha.

          Estava vazia. Fecharam novamente a porta dos fundos, examinaram a cozinha, despensa e copa minuciosamente e, por fim, desceram ao porão. Não havia uma alma na casa, por mais que procurassem.

          A luz do dia encontrou o vigário e a mulher, um parzinho vestido com roupas antiquadas, ainda assombrado em sua propriedade, à luz desnecessária de uma vela gotejante.

      

       OS MÓVEIS QUE FICARAM LOUCOS

          Aconteceu que, nas primeiras horas da segunda-feira de Pentecostes, antes que Millie fosse procurada para fazer o trabalho do dia, o sr. e sra. Hall levantaram-se e desceram silenciosamente à adega. O propósito de ambos era de natureza particular e tinha algo a ver com a densidade específica da cerveja. Mal tinham entrado, quando a sra. Hall percebeu que havia se esquecido de trazer uma garrafa de salsaparrilha do quarto de ambos. Como era perita e a principal operadora naquele assunto, o sr. Hall, justificadamente, subiu para buscá-la.

          No patamar, ficou surpreso ao ver que a porta do estranho estava escancarada. Entrou em seu quarto e achou a garrafa onde lhe fora indicado.

          Mas, ao voltar com ela, notou que os ferrolhos da porta da frente tinham sido abertos e que a porta, estava, de fato, fechada apenas com a lingüeta da fechadura. Em um lampejo de inspiração, associou aquilo ao quarto do estranho em cima e às insinuações do sr. Teddy Henfrey. Lembrava-se perfeitamente de que tinha ficado segurando a vela enquanto a sra. Hall aferrolhava a porta para a noite. Ao ver aquilo deteve-se, boquiaberto e, ainda com a garrafa na mão, voltou para cima. Bateu na porta do estranho. Não houve resposta. Bateu outra vez; depois empurrou-a e entrou.

          Era o que esperava. A cama, e também o quarto, estavam vazios. E o que era de espantar, mesmo a sua inteligência meio lerda, na cadeira e nos pés da cama havia roupas espalhadas, as únicas roupas que, até onde sabia, o hóspede tinha, e suas ataduras. Até o grande chapéu macio estava colocado jovialmente em um dos pés da cama.

          Enquanto estava parado ali, ouviu a voz da mulher, vinda das profundezas da adega, com a rápida superposição das sílabas e a escala crescente e interrogativa das palavras finais até um som agudo, uma forma através da qual o nativo de West Sussex costuma manifestar uma grande impaciência. — George! Pegou o que pedi?

          Diante disso, deu meia-volta e apressou-se a ir até ela. — Janny — disse por cima do corrimão da escada para a adega — o que Henfrey diz é verdade. Ele não está no quarto, não está. E a porta da frente está desaferrolhada.

          A princípio a sra. Hall não entendeu, mas, logo que o fez, resolveu ver por si mesma o quarto vazio. Hall, ainda segurando a garrafa, foi na frente. — Ele não está lá, mas as roupas estão. E que estará fazendo sem roupas? É um negócio muito curioso.

          Quando subiram os degraus da adega, ambos, como foi confirmado posteriormente, pensaram ter ouvido a porta da frente abrir-se e fechar-se mas, ao vê-la fechada e nada por ali, não disseram nem uma palavra um ao outro na ocasião. A sra. Hall ultrapassou o marido no corredor e foi a primeira a subir correndo a escada. Alguém espirrou. Hall, seguindo-a seis passos atrás, pensou que a ouvira espirrar. Ela, andando na frente, teve a impressão de que Hall tinha espirrado. Abriu completamente a porta e ficou olhando o quarto. — Que coisa esquisita! — disse.

          Ouviu outro espirro que parecia perto da cabeça dela e, voltando-se, ficou surpresa ao ver Hall a uns três metros, no último degrau da escada. Mas, logo depois, chegou a seu lado. Ela inclinou-se e pôs a mão no travesseiro e depois embaixo das roupas.

          — Estão frios — disse. — Levantou-se há uma hora ou mais.

          Ao fazê-lo, aconteceu uma coisa realmente extraordinária — a roupa de cama juntou-se sozinha, atirou-se para o alto de repente, em uma espécie de monte e depois pulou diretamente por cima dos pés da cama. Era como se uma mão a tivesse agarrado pelo meio e jogado para o lado. Logo depois, o chapéu do estranho saltou do pé da cama e, descrevendo uma trajetória revoluteante pelo ar, quase um círculo completo, atirou-se diretamente no rosto da sra. Hall. Depois veio a esponja do lavatório; em seguida a cadeira, deixando cair para o lado, descuidadamente, o casaco e as calças do estranho e, rindo secamente, em uma voz muito parecida com a dele, a cadeira virou para cima, com as quatro pernas para o ar; por um momento pareceu fazer pontaria na direção da sra. Hall e precipitou-se para ela. Gritando, ela virou-se e as pernas da cadeira tocaram-lhe as costas, sem brutalidade, mas com firmeza, e empurraram-na, juntamente com Hall, para fora do quarto. A porta fechou-se violentamente e foi trancada. Durante algum tempo a cadeira e a cama pareceram estar executando uma dança triunfal e depois, abruptamente, tudo cessou.

          A sra. Hall ficou no patamar, quase desmaiada nos braços de Hall. Foi com a maior dificuldade que ele e Millie, que fora acordada por seus gritos de alarma, conseguiram levá-la para baixo e dar-lhe os reconstituintes habituais nesses casos.

          — Foram os espíritos — disse a sra. Hall. — Sei que foram os espíritos. Já li nos jornais a respeito deles. Mesas e cadeiras pulando e dançando!...

          — Tome mais uma gota, Janny — insistiu Hall. — Vai acalmar você.

          — Deixem-no do lado de fora — disse a sra. Hall. — Não permitam que entre outra vez. Bem que desconfiei. . . Devia saber. Com os olhos esbugalhados e a cabeça enfaixada e nunca indo

          à igreja aos domingos. E todas aquelas garrafas — muito mais de que qualquer um tem o direito de ter. Foi ele quem pôs espíritos nos móveis. Meus móveis antigos tão bons! Era naquela cadeira que minha mãe costumava sentar-se quando eu era pequena. Pensar que pôde erguer-se contra mim!

          — Só mais uma gota, Janny — disse Hall. — Seus nervos estão em frangalhos.

          Mandaram Millie do outro lado da rua, à luz dourada das cinco da manhã, para acordar o sr. Sandy Wadgers, o ferreiro. Que transmitisse os cumprimentos do sr. Hall e dissesse que os móveis no segundo andar estavam procedendo como loucos. Poderia o sr. Wadgers ir até lá? Era um homem bem informado, o sr. Wadgers, e fértil em recursos. Este considerou o caso com muita seriedade. — Quero ir para o inferno se isso não é feitiçaria — foi a opinião do sr. Sandy Wadgers. — É preciso ter ferraduras para um espírito assim.

          Ele foi, muito preocupado. Queriam dar-lhe a precedência na subida até o quarto, mas não parecia ter nenhuma pressa. Preferiu conversar no corredor. O ajudante de Huxter, do outro lado da rua, começou a retirar os anteparos da vitrine da tabacaria. Chamaram-no para participar da discussão. Naturalmente, o sr. Huxter seguiu-o logo depois. O gênio anglo-saxão para o parlamentarismo reafirmou-se; houve muitos debates, mas nenhuma ação decisiva. — Primeiro, vamos aos fatos — insistia o sr. Sandy Wadgers. — Precisamos estar seguros de que agiremos com toda a razão, ao arrombar aquela porta. Uma porta não arrombada é sempre passível de ser arrombada, mas não se pode desarrombar uma porta que já tenha sido arrombada.

          E, de súbito, fantasticamente, a porta do quarto de cima abriu-se sozinha e, ao olharem para o alto, assombrados, viram a figura embuçada do estranho descendo as escadas, fitando-os mais sombrio e carrancudo do que nunca através daqueles seus enormes e absurdos olhos de vidro azul. Descia rigidamente e devagar, com o olhar fixo; assim caminhou pelo corredor e depois parou.

          — Vejam ali! — apontou, e os olhos de todos seguiram a direção indicada pelo dedo enluvado e viram uma garrafa de salsaparrilha junto à porta da adega. Então entrou na sala e bruscamente, rapidamente, violentamente, bateu-lhes com a porta na cara.

          Ninguém disse uma palavra até que o eco da porta batida tivesse se dissipado. Entreolharam-se. — Ora, se isso não é o máximo! — exclamou o sr. Wadgers, sem mencionar a alternativa.

          — Se fosse comigo, iria perguntar a ele sobre o que acontece — disse Wadgers ao sr. Hall. — Exigiria uma explicação.

          Levou algum tempo até que o marido da estalajadeira se animasse. Afinal bateu na porta, abriu, e só conseguiu dizer — Com licença.. .

          — Vá para o inferno! — berrou o estranho em voz estrondosa, e: — Feche a porta quando sair. — Assim terminou aquela breve entrevista.

        

       A DESCOBERTA DO ESTRANHO

          O estranho entrou na pequena sala da "Coach and Horses" por volta das cinco e meia da manhã e ali permaneceu até quase meio-dia, as persianas descidas, a porta fechada e ninguém, depois da expulsão de Hall, aventurou-se a chegar perto dele.

          Durante todo esse tempo, devia ter jejuado. Tocou a campainha três vezes, a terceira furiosa e continuadamente, mas ninguém o atendeu. — Ele e os dele que vão para o inferno! — disse a sra. Hall. Mais tarde, espalhou-se o boato, um tanto adulterado, do roubo na casa paroquial e somaram dois e dois. Hall, acompanhado por Wadgers, saiu à procura do juiz, sr. Shuckleforth, para pedir-lhe conselhos. Ninguém ousava subir. Não se sabia em que o estranho estava se ocupando. De vez em quando andava ruidosamente de um lado para outro e, por duas vezes, ouviu-se uma explosão de imprecações, um rasgar de papéis e uma violenta quebra de garrafas.

          O pequeno grupo assustado, porém curioso, continuava aumentando; a sra. Huxter apareceu; alguns jovens alegres, esplêndidos em seus paletós negros comprados prontos e gravatas de papel crepom, pois era segunda-feira de Pentecostes, reuniram-se ao grupo, fazendo perguntas confusas. O jovem Archie Harker destacou-se, indo até o pátio e tentando olhar pelas venezianas. Não podia ver nada, mas permitiu que pensassem que podia e, pouco a pouco, outros membros da juventude de Iping juntaram-se a ele.

          Aquela era a melhor de todas as segundas-feiras de Pentecostes e ao longo da rua da aldeia havia uma fileira de perto de uma dúzia de barracas e uma galeria de tiro e, no gramado ao lado da forja, viam-se três vagões amarelos e cor de chocolate e alguns desconhecidos pitorescos de ambos os sexos, organizando um balcão de tiro. Os cavalheiros vestiam blusas de malha azul e as senhoras exibiam túnicas brancas e chapéus muito modernos, com pesadas plumas. Wodger, do "Purple Fawn" e o sr. Jaggers, c sapateiro, que também vendia bicicletas ordinárias de segunda mão, estavam estendendo um cordão de bandeiras inglesas e insígnias reais (que, primitivamente tinham servido para festejar o jubileu), de um lado a outro da rua.

          E do lado de dentro, na escuridão artificial da sala, na qual só penetrava um fraco raio de sol, o estranho, faminto e amedrontado, envolto em agasalhos quentes e incômodos, lia atentamente seus papéis através dos óculos escuros, ou entrechocava suas garrafinhas sujas e, de vez em quando, xingava selvagemente os rapazes lá fora, audíveis ainda que invisíveis. No canto, junto à lareira., jaziam os fragmentos de meia dúzia de garrafas quebradas e um cheiro penetrante de cloro impregnava o ar. Soube-se disso pelo que se ouviu na ocasião e pelo que, subseqüentemente, se viu na sala.

          Por volta de meio-dia ele abriu a porta subitamente e parou, encarando com o olhar fixo as três ou quatro pessoas no bar. — Sra. Hall — chamou. Alguém saiu e, timidamente, chamou a sra. Hall.

          Após algum tempo, esta apareceu, um tanto sem fôlego mas, por isso mesmo, mais irritada. Hall ainda não tinha chegado. Ela havia refletido sobre os acontecimentos e foi até o hóspede levando uma pequena bandeja com uma conta que não havia sido paga.

          — Está querendo sua conta, senhor? — perguntou.

          — Por que não trouxe o café da manhã? Por que não preparou minhas refeições nem respondeu à campainha? Acha que vivo sem comer?

          — Por que minha conta não foi paga? — desafiou-o a sra. Hall. — Isso é o que quero saber.

          — Há três dias disse-lhe que estava aguardando uma remessa. . .

          — Há dois dias disse-lhe que não ia esperar remessas. Não pode reclamar se espera um pouco pelo café se minha conta está esperando há cinco dias, pode?

          O estranho praguejou brevemente, mas com vigor.

          — Epa, epa — disseram no bar.

          — E agradeceria muito, senhor, se guardasse seus xingamentos para o senhor mesmo.

          O estranho continuou imóvel parecendo, mais do que nunca, um escafandrista zangado. No bar, todos sentiram que a sra. Hall estava levando vantagem. As palavras dele, a seguir, o demonstraram.

          — Olhe aqui, minha boa mulher. ..

          — Não me venha com essa de boa mulher — retrucou a sra. Hall.

          — Já lhe disse que a remessa de dinheiro não chegou. . .

          — Que remessa!

          — Porém, acho que em meu bolso. ..

          — O senhor me disse, há dois dias, que não tinha mais que um soberano em níqueis.

          — Bem, achei mais alguns...

          — Opa! — ouviu-se no bar.

          — Só queria saber onde os encontrou! — disse a sra. Hall. Isso pareceu aborrecer muito o estranho. Bateu com o pé no chão. — Que quer dizer? — perguntou.

          — Que queria saber onde os encontrou — repetiu a sra. Hall.

          — E antes que eu receba qualquer conta, sirva qualquer café, ou faça qualquer outra coisa, o senhor tem que me explicar uma ou duas coisas que não compreendo, nem eu nem ninguém e todos têm muita vontade de entender. Quero saber o que andou fazendo com minhas cadeiras lá em cima e quero saber como entrou novamente se seu quarto estava vazio. As pessoas que se hospedam aqui entram pelas portas — essa é uma regra da casa e o senhor não o fez e o que quero saber é como entrou. E quero saber. ..

          De repente, o estranho ergueu as mãos enluvadas e cerradas, bateu com os pés no chão e gritou: — Pare! — com tal violência que silenciou-a instantaneamente.

          — A senhora não sabe — disse ele — quem sou e o que sou. Vou lhe mostrar. Por Deus! Vou lhe mostrar. — Colocou então a mão espalmada sobre o rosto e retirou-a. O centro de seu rosto tornou-se uma cavidade negra. — Tome — disse. Adiantou-se e entregou a sra. Hall algo que ela, de olhos fixos no rosto metamorfoseado, aceitou automaticamente. Então, quando viu o que era, deu um grito agudo, deixou-o cair e recuou, cambaleando. O nariz — era o nariz do estranho! rosado e brilhante — rolou para o chão.

          Depois tirou os óculos e todos os presentes arquejaram convulsivamente. Tirou o chapéu e, com um gesto brusco, puxou as suíças e as ataduras. Por um momento estas resistiram. O súbito arrepio de um pressentimento terrível percorreu o bar. — Oh, meu Deus! — exclamou alguém. Então, elas se soltaram.

          Foi pior ainda. A sra. Hall, em pé, de boca aberta, aterrorizada, dava berros estridentes diante do que via e precipitou-se para a porta. Todos começaram a se mover. Estavam preparados para cicatrizes, deformidades, horrores tangíveis, mas para o nada! As ataduras e cabelos postiços voavam pelo corredor até o bar, fazendo um rapazelho pular para evitá-los. Todos se atropelavam descendo os degraus. Pois o homem que estava ali, gritando uma explicação incoerente, era uma figura concreta até a gola do casaco e dali — nada mais, nenhuma coisa visível!

          Os habitantes da aldeia ouviram gritos e berros e, olhando rua acima, viram a "Coach and Horses" expelir violentamente seres humanos. Viram a sra. Hall cair e o sr. Teddy Henfrey pular, para não cair por cima dela, e então ouviram os guinchos apavorantes de Millie que, saindo de repente da cozinha por causa do barulho e do tumulto, topara com o estranho sem cabeça pelas costas.

          Imediatamente, todos os que estavam na rua, o vendedor de doces, o proprietário do tiro aos cocos e seu assistente, o homem do balanço, menininhos e garotas, grã-finas rurais, moças bonitas, os mais velhos de guarda-pó e ciganas de avental, começaram a correr em direção à estalagem; e, em um lapso de tempo miraculosamente curto uma multidão, talvez de umas quarenta pessoas e aumentando rapidamente, começou a atropelar-se, vaiar, indagar, exclamar e dar palpites, em frente ao estabelecimento da sra. Hall. Todos pareciam ansiosos por falar ao mesmo tempo e o resultado era uma babel. Um pequeno grupo amparava a sra. Hall que havia sido encontrada quase desfalecida. Havia uma conferência em curso e o incrível depoimento de uma espalhafatosa testemunha ocular. "Um fantasma!" "Então o que tem andado fazendo?" "Não machucou a moça, não é?" "Atacou-os com uma faca, creio." "Não tinha cabeça, estou lhe dizendo. Não é um modo de falar, estou dizendo que não tinha cabeça mesmo!" "Tolice! Foi algum truque de prestidigitação." "Tirou todas aquelas faixas..."

          Em sua luta para enxergar além da porta aberta, a multidão formou uma cunha irregular, o ápice mais corajoso perto da entrada da estalagem. "Ele ficou parado um momento, ouvi a moça gritar e então voltou-se. Vi as saias dela desaparecerem e ele foi atrás dela. Não levou dez segundos. Depois voltou com uma faca na mão e um pão; ficou imóvel como se estivesse contemplando alguma coisa. Agora há pouco. Passou por aquela porta e entrou e, eu lhe digo, não tinha nenhuma cabeça. Por pouco você não o via..."

          Houve uma agitação atrás e o homem que falava afastou-se para um lado, para dar passagem a uma pequena procissão que marchava resolutamente para a casa — primeiro o sr. Hall, muito vermelho e decidido, depois o sr. Bobby Jaffers, o policial da aldeia, e por fim o prudente sr. Wadgers. Vinham munidos de um mandado.

          Todos gritavam informações contraditórias sobre os mais recentes acontecimentos. — Com cabeça ou sem cabeça tenho que prendê-lo e é o que vou fazer — declarou Jaffers.

          O sr. Hall subiu os degraus, foi direto à porta da sala e abriu-a bruscamente. — Guarda — disse ele — cumpra seu dever.

          Jaffers entrou, seguido por Hall e atrás deste, Wadgers. Na penumbra, viram diante deles um corpo sem cabeça, com um pedaço de pão mordido em uma das mãos enluvadas e uma fatia de queijo na outra.

          — É ele! — apontou o sr. Hall.

          — Que diabo é isso? — A pergunta veio em tom de reclamação irritada, de um ponto acima do colarinho da figura.

          — O senhor é um sujeito muito esquisito, senhor — disse o sr. Jaffers. — Mas com cabeça ou sem cabeça, o mandado diz "corpo" e dever é dever...

          — Afaste-se! — disse o vulto, recuando.

          Subitamente, deixou cair o pão e o queijo e o sr. Hall pegou a faca em cima da mesa bem a tempo de guardá-la. A luva esquerda foi retirada e esbofeteou o rosto de Jaffers. No momento seguinte, Jaffers, interrompendo uma declaração sobre o mandado, pegou-o pelo pulso sem mão e agarrou a garganta invisível. Levou uma violenta canelada que o fez gritar, porém não a largou. Hall escorregou a faca sobre a mesa para Wadgers, que agiu, por assim dizer, como um goleiro na ofensiva, e deu um passo à frente, enquanto Jaffers e o estranho oscilavam e tropeçavam em direção a ele, embolados e trocando golpes. Uma cadeira que estava no caminho foi atirada para o lado, espatifando-se, quando caíram juntos.

          — Segurem os pés — murmurou Jaffers entre dentes.

          O sr. Hall, tentando obedecer às instruções, recebeu um violento soco nas costelas, o que o deteve por um momento e o sr. Wadgers, vendo que o estranho decapitado tinha rolado e estava por cima do sr. Jaffers, bateu em retirada para a porta e por isso colidiu com o sr. Huxter e o carroceiro de Siddermorton que tinham acorrido para ajudar a lei e a ordem. No mesmo instante, três ou quatro garrafas caíram do aparador, espalhando um cheiro penetrante pelo ar.

          — Eu me rendo — gritou o estranho, embora estivesse dominando Jaffers e logo pôs-se de pé, arfando, uma figura surpreendente, sem cabeça e sem mãos — pois tirara também a luva da mão direita. — Não adianta — falou, como se tivesse dificuldade em respirar.

          Era a coisa mais fantástica do mundo, ouvir aquela voz que parecia sair de um espaço vazio, mas os aldeões de Sussex talvez sejam as pessoas mais prosaicas sob o sol. Jaffers também se levantou e exibiu um par de algemas. E teve um sobressalto.

          — E agora? — disse, desconcertado por uma obscura percepção do absurdo daquela situação. Que diabo! Não vejo como usá-las.

          O estranho correu o braço de cima para baixo do paletó e, como por milagre, os botões para os quais apontava a manga vazia, desabotoaram-se. Depois disse alguma coisa sobre tornozelos e inclinou-se. Parecia estar mexendo nos sapatos e meias.

          — Vejam! — disse Huxter, de repente. — Isso não é um homem. São apenas roupas vazias. Olhem! Pode-se enxergar gola abaixo e até o forro das roupas dele. Poderia enfiar o braço.

          Estendeu a mão; esta pareceu encontrar um obstáculo a meio caminho e retirou-a com uma exclamação surda. — Gostaria que tirasse os dedos de meu olho — disse a voz fantasmagórica, em um tom de veemente protesto. — Na verdade, estou todo aqui; cabeça, mãos, pernas e o resto, mas acontece que sou invisível. É muito inconveniente, mas sou. Isso não é razão para que seja apalpado até ficar em pedaços por cada campônio idiota de Iping.

          As roupas, todas desabotoadas e pendendo frouxamente de suportes invisíveis, levantaram-se, as mangas nos quadris.

          Vários outros homens tinham entrado na sala que estava ficando superlotada. — Invisível, hein? — duvidou Huxter, ignorando o insulto do estranho. — Onde já se viu isso?

          — Talvez seja fora do comum, mas não é crime. Por que fui agredido dessa forma por um policial?

          — Ah! Isso é diferente — respondeu Jaffers. — Sem dúvida o senhor é um tanto difícil de ver nesta luz, mas tenho um mandado e tudo legal. Não estou atrás de invisibilidade: é de um roubo. Arrombaram uma casa e tiraram dinheiro.

          — E daí?

          — As circunstâncias realmente indicam...

          — Tolice e estupidez — replicou o Homem Invisível.

          — Espero que sim, senhor; mas tenho minhas ordens.

          — Está bem — concordou o estranho. — Eu vou. Eu vou. Mas sem algemas.

          — São de praxe.

          — Sem algemas — exigiu o estranho.

          — Perdoe-me — disse Jaffers.

          O vulto sentou-se bruscamente e antes que alguém pudesse entender o que fazia, os sapatos meias e calças tinham sido jogados para baixo da mesa. Então levantou-se de um salto e retirou o paletó.

          — Ei, pare com isso — protestou Jaffers, compreendendo de repente o que estava acontecendo. Agarrou o colete; este lutou e a camisa escorregou para fora dele e deixou-o mole e vazio em suas mãos. — Segurem-no — gritou Jaffers. — Quando ele tirar o resto. . .!

          — Segurem-no — gritaram todos e houve um avanço geral para a camisa em movimento que era tudo quanto se podia ver do estranho.

          A manga da camisa plantou um sopapo traiçoeiro na cara de Hall, que procurava impedir seu avanço de braços abertos e precipitou-o de costas sobre o velho Toothsome, o sacristão e, no momento seguinte a camisa foi erguida e ficou sacudindo as mangas, enrugada e vazia, como uma camisa que está sendo tirada pela cabeça. Jaffers agarrou-a, o que apenas ajudou a retirada; levou um golpe na boca, vindo do ar e, incontinenti, puxou o cassetete e atingiu violentamente o alto da cabeça de Teddy Henfrey.

          — Cuidado! — berravam todos, esgrimindo ao acaso e batendo no nada. — Segurem-no! Fechem a porta! Não o deixem solto! Peguei alguma coisa! Aqui está ele! Criou-se uma completa confusão de vozes. Ao que parecia, todos estavam apanhando ao mesmo tempo e Sandy Wadgers, esperto como sempre e alertado por um terrível golpe no nariz, reabriu a porta e liderou a turba. Os outros que o seguiram imediatamente ficaram, por instantes, espremidos em um canto junto à porta. A pancadaria continuava. Phipps, o unitário, teve um dente da frente quebrado e machucaram a cartilagem do ouvido de Henfrey. Jaffers levou um soco no maxilar e, voltando-se, atingiu algo que estava entre ele e Huxter no tumulto e impedia que se aproximassem. Sentiu um peito musculoso e, em seguida, a multidão de homens que se debatiam, excitados, precipitou-se no vestíbulo repleto.

          — Apanhei-o! — gritou Jaffers engasgando e rodopiando entre eles, lutando, com o rosto vermelho de veias inchadas, contra um inimigo que não via.

          Os homens tropeçavam, à direita e esquerda, enquanto aquela luta extraordinária progredia aos solavancos e rapidamente em direção à porta da casa e rolava meia dúzia de degraus da estalagem. Jaffers gritou, com voz estrangulada — e mesmo assim segurando com força e usando o joelho — rodou sobre si mesmo e caiu pesadamente de costas, a cabeça no cascalho. Só então seus dedos relaxaram.

          Houve gritos excitados de "Segurem-no!" "Invisível!" e outros mais e um jovem, desconhecido no lugar, e cujo nome não se soube, correu, segurou alguma coisa, perdeu a pega e caiu sobre o corpo do policial prostrado. Na estrada, a meio caminho, uma mulher gritou quando alguma coisa a empurrou; um cão, que parecia ter sido chutado, gemeu, e correu ganindo até o pátio de Huxter, e foi assim a saída do Homem Invisível. Por algum tempo, todos ficaram pasmos e gesticulantes e então chegou o Pânico e dispersou-os pela aldeia, como um pé de vento espalha folhas mortas.

          Mas Jaffers continuava imóvel, com o rosto voltado para cima e os joelhos dobrados.

        

       EM TRÂNSITO

          O oitavo capítulo é extremamente breve e conta que Gibbins, o naturalista amador do distrito, deitado no espaço aberto das colinas, sem uma única alma a menos de um par de milhas de distância, segundo imaginava, e quase adormecido, ouvira, bem próximo, o som de um homem tossindo, espirrando e blasfemando selvagemente entredentes; e que, olhando, não vira nada. Entretanto, a voz era real. E continuava a blasfemar com a fluência e variedade que caracterizam as blasfêmias de um homem culto. Atingira um ápice, diminuíra novamente e fora tornando-se inaudível com a distância, indo, ao que parecia, em direção a Adderdean. Erguera-se mais uma vez em um espirro espasmódico e sumira. Gibbins ignorava completamente as ocorrências da manhã, mas o fenômeno fora tão estranho e perturbador que sua tranqüilidade filosófica desaparecera; levantara-se precipitadamente e apressara-se a descer a colina íngreme, tão rápido quanto possível, em direção à vila.

         

       O SR. THOMAS MARVEL

          Pode-se descrever o sr. Thomas Marvel como uma pessoa de rosto abundante e flexível, com um nariz que era uma protuberância cilíndrica, a boca afeita à bebida, ampla e flutuante, e uma barba espetada e excêntrica. O corpo tinha propensão à gordura e os membros curtos só faziam acentuar essa propensão. Usava um chapéu sedoso e felpudo e a freqüente substituição de botões e cordões de sapato por barbante, visível em pontos críticos de sua roupa, caracterizavam-no como um homem essencialmente solteiro.

          O sr. Thomas Marvel estava sentado com os pés em uma vala à beira da estrada que corta a colina, em direção a Adderdean, mais ou menos a uma milha e meia de Iping. Exceto pelas meias que ostentavam uma trama rendada irregular, tinha os pés nus e seus dedões eram largos e espetados como as orelhas de um cão de guarda. Preguiçosamente — fazia tudo preguiçosamente — contemplava a possibilidade de experimentar um par de botas. Eram as botas mais fortes que já encontrara havia muito tempo, mas grandes demais para ele; ao passo que as que usava calçavam-no muito confortavelmente em tempo seco, mas eram de sola demasiado fina para a umidade. O sr. Thomas Marvel odiava botas folgadas, mas odiava igualmente a umidade. Nunca tinha pensado sobre qual delas odiava mais, porém o dia estava agradável e não havia nada melhor a fazer. Portanto, dispôs as quatro botas em um grupo gracioso no gramado e contemplou-as. Mas ao vê-las ali entre a grama e as flores amarelas que a salpicavam, ocorreu-lhe, de repente, que ambos os pares constituíam uma visão extremamente feia. Não se assustou nem um pouco com a voz atrás dele.

          — De qualquer maneira, são botas — disse a voz.

          — São botas dadas por caridade — disse o sr. Thomas Marvel, com a cabeça inclinada para um lado, contemplando-as com repugnância; — e quero ir para o inferno se souber qual delas faz o par mais horrendo de todo este bendito mundo!

          — Hum... — falou a voz.

          — Já usei piores — na verdade fiquei até sem usar nenhuma. Mas não usar nenhuma é tão escandalosamente feio, se me permite a expressão, que tenho andado mendigando — botas em especial — há dias. Porque estava farto delas. Claro, são bastante sólidas. Mas um cavalheiro em suas andanças vê muito as próprias botas. E, acredite o senhor ou não, por mais que tentasse, não consegui nada nesse bendito condado além DELAS. Olhe para elas! E este é, de um modo geral, um bom condado para botas. Mas a minha sorte é que varia. Há dez anos ou mais que arranjo botas neste lugar. E agora tratam-me assim.

          — É um lugar horrível — disse a voz. — E as pessoas são uns porcos.

          — É mesmo! — concordou o sr. Thomas Marvel. — Deus! Mas essas botas! São demais.

          Voltou a cabeça para a direita para olhar as botas de seu interlocutor, com a intenção de compará-las e eis que, onde deveriam estar as botas dele, não havia pernas nem botas. Voltou a cabeça por cima do ombro esquerdo e ali também não havia pernas nem botas. Foi invadido pelo clarão de um grande espanto.

          — Onde está você? — perguntou o sr. Thomas Marvel por sobre o ombro, virando-se de quatro. Viu apenas uma extensão de colinas desoladas sob o balanço do vento e moitas distantes de tojo de pontas verdes.

          — Estarei bêbado? — perguntou-se o sr. Marvel. — Terei tido visões? Estaria falando sozinho? Que...

          — Não se assuste — disse uma voz.

          — Nada de ventriloquismo comigo — disse o sr. Marvel pondo-se de pé. Onde está você? Assustado, eu!

          — Não se assuste — repetiu a voz.

          — Você é que vai ficar assustado daqui a um minuto, seu idiota — ameaçou o sr. Thomas Marvel. — Onde está? Espere até que o pegue.

          — Está enterrado? — insistiu o sr. Thomas Marvel, após um intervalo.

          Não houve resposta. O sr. Thomas Marvel de pé, sem botas e assombrado, quase tirando o casaco.

          — Piu piu — disse um pássaro, muito ao longe.

          — Ora essa, piu piu! — protestou o sr. Thomas Marvel. — Não é hora de brincadeiras. — A colina estava deserta, a leste, oeste, norte e sul; a estrada, com suas valetas rasas balizadas de branco, seguia inalterada e vazia, para o norte e para o sul e, a não ser pelo pássaro, o céu azul também estava vazio. — Deus que me ajude — disse o sr. Thomas Marvel, puxando novamente o casaco para os ombros. — É a bebida! Eu já devia saber.

          — Não é a bebida — falou a voz. — Controle seus nervos.

          — Ui! — gemeu o sr. Marvel e seu rosto ficou lívido nos espaços entre as manchas. — É a bebida — repetiram seus lábios silenciosamente. Continuou a olhar em volta, oscilando lentamente para trás. — Podia jurar que ouvi uma voz — sussurrou.

          — Claro que ouviu.

          — Lá está ela outra vez — disse o sr. Marvel fechando os olhos e pondo a mão na testa, em um gesto trágico. Subitamente foi agarrado pelo colarinho e sacudido com força, ficando mais tonto do que nunca. — Não seja estúpido — censurou a voz.

          — Eu. . . estou. . . perdendo. . . a. . . maldita. . . cabeça — lamentou-se o sr. Marvel. — Não adianta. Foi por me irritar tanto por causa daquelas botas excomungadas. Estou perdendo minha bendita cabeça. Ou são os espíritos.

          — Nem uma coisa nem outra — disse a voz. — Escute!

          — A cabeça — queixou-se o sr. Marvel.

          — Um minuto — disse a voz em tom penetrante, trêmula com o esforço de controlar-se.

          — Bem? — perguntou o sr. Thomas Marvel, com a estranha sensação de ter sido espetado com força por um dedo no peito.

          — Você acha que sou apenas imaginação? Apenas imaginação?

          — Que outra coisa pode ser? — indagou o sr. Thomas Marvel, esfregando a nuca.

          — Muito bem — disse a voz, em tom de alívio. — Pois então vou lhe jogar pedras até que pense diferente.

          — Mas onde está você?

          A voz não respondeu. Uma pedra voou, sibilando, aparentemente vinda do ar e não atingiu o sr. Marvel por um fio. Este, voltando-se, viu outra pedra levantar-se, traçar uma trajetória complicada, deter-se um momento e depois precipitar-se a seus pés, com uma rapidez quase impossível de acompanhar com os olhos. Estava admirado demais para esquivar-se. E a pedra veio, asso-viando e ricocheteou de um dedo nu para a vala. O sr. Thomas Marvel pulou meio metro e berrou alto. Depois começou a correr, tropeçou em um obstáculo oculto e desabou completamente, caindo sentado.

          — Agora — disse a voz, enquanto uma terceira pedra curvou-se para o alto e ficou suspensa no ar, sobre o vagabundo. — Sou imaginário?

          Como resposta, o sr. Marvel lutou para pôr-se de pé e foi imediatamente derrubado outra vez. Por um momento, deixou-se ficar, caído e quieto. — Se você resistir mais — falou a voz —, jogo a pedra em sua cabeça.

          — Essa é boa — replicou o sr. Thomas Marvel sentando-se, pegando o artelho ferido com a mão e fixando o olhar no terceiro míssil. — Não entendo nada. Pedras se atirando. Pedras falando. Ponha-se no chão. Apodreça. Eu desisto.

          A terceira pedra caiu.

          — É muito simples — disse a voz. — Sou um homem invisível.

          — Diga alguma coisa que eu não saiba — protestou o sr. Marvel, ofegando de dor. — Onde se escondeu, como consegue isso. .. Eu é que não sei. Estou perdido.

          — É só — disse a voz. — Sou invisível. É o que quero que entenda.

          — Qualquer um pode ver isso. Não precisa ficar tão danado, moço. Falando sério. Dê uma pista. Como está escondido?

          — Sou invisível. É o que importa. E o que quero que compreenda é isso...

          — Mas onde? — interrompeu o sr. Marvel.

          — Aqui. A cinco metros de você.

          — Ora, vamos! Não sou cego. Daqui a pouco vai me dizer que é apenas ar. Não sou um desses vagabundos ignorantes.

          — Sim, sou... transparente como o ar. Você está olhando através de mim.

          — Quê! Não tem nenhum recheio? Vox et. . . como é mesmo? Falação. É assim?

          — Sou apenas um ser humano: sólido, precisando de comida e bebida, precisando de roupa também. . . Mas sou invisível. Entende? Invisível. A idéia é simples. Invisível.

          — Quê, mas de verdade?

          — Sim, de verdade.

          — Se é real, deixe pôr a mão em você — disse Marvel. — Não será tão esquisito assim, pois. .. Deus! — exclamou —, como me apavorou! Segurando-me com toda essa força!

          Tocou com os dedos a mão que se havia fechado em torno de seu pulso, e continuou a tatear timidamente braço acima, espalmou a mão em um peito musculoso e explorou faces barbadas. O rosto de Marvel era a imagem do pasmo.

          — Estou mal! — balbuciou. — Isso é mais excitante do que qualquer briga de galos! Extraordinário! E estou vendo agora mesmo um coelho através de você, a um meio quilômetro! E nada em você é visível. .. exceto.. . Examinou atentamente o espaço aparentemente vazio. — Você não andou comendo pão com queijo? — perguntou, segurando o braço invisível.

          __ Tem toda a razão e ainda não foi totalmente assimilado.

          — Ah! — congratulou-se o sr. Marvel. — Mas não deixa de ser meio fantástico.

          — Naturalmente, isso não é tão maravilhoso quanto pensa.

          — É suficientemente maravilhoso para minhas modestas necessidades — disse o sr. Thomas Marvel. — Como consegue? Que diabo, como é feito?

          — É uma longa história. E, além disso...

          — Estou lhe dizendo que todo esse negócio quase me derrubou — insistiu o sr. Marvel.

          — O que quero dizer, no momento, é o seguinte: preciso de ajuda. Cheguei a um ponto. .. Vi você de repente. Estava andando a esmo, louco de raiva, nu e sem recursos. Poderia matar. E vi você...

          — Deus! — invocou o sr. Marvel.

          — Vim por trás de você. . . hesitei, continuei.. . A expressão do sr. Marvel era eloqüente.

          — . . .e depois parei. "Ali está", disse a mim mesmo, "um pária como eu. Esse é o homem de que preciso". Portanto, dei meia-volta e aproximei-me de você... de você. E...

          — Deus! — repetiu o sr. Marvel. — Mas estou completamente confuso. Posso perguntar. .. Como se sente? E de que pode precisar, em matéria de ajuda? Invisível!

          — Quero que me ajude a arranjar roupas e abrigo e depois, outras coisas. Há tempo demais que as deixei. E se não o fizer. . . bem! Mas fará. Tem que fazer.

          — Olhe aqui! — disse o sr. Marvel. — Estou abismado. Não me bata mais. E deixe que vá embora. Tenho que me acalmar um pouco. E você quase quebrou meu dedo do pé. É tudo tão sem lógica. Colinas desertas, céu deserto. Nada à vista por muitos quilômetros, a não ser o seio da Natureza. E então vem uma voz. Uma voz vinda do céu! E pedras! E um punho. . . Deus!

          — Controle-se — disse a voz —, porque tem que cumprir a tarefa que escolhi para você.

          O sr. Marvel esvaziou as bochechas e seus olhos ficaram redondos.

          — Eu o escolhi — reafirmou a voz. — Você é o único homem, tirando alguns daqueles idiotas lá embaixo, que sabe que existe um homem invisível. Tem que ser meu ajudante. Ajude-me e farei grandes coisas por você. Um homem invisível é um homem que tem poder. — Deteve-se um instante para espirrar violentamente.

          — Mas, se me trair — continuou —, se deixar de fazer o que mandar. ..

          Fez uma pausa e bateu com força no ombro do sr. Marvel. Ao sentir o toque, o sr. Marvel deu um guincho de terror. — Não quero trair você — afirmou, procurando afastar-se do alcance dos dedos. — Pense o que quiser, mas nem pense nisso. Só quero ajudar você, é só dizer o que tenho que fazer. (Deus!) Seja o que for, farei com a maior boa vontade.

         

       A VISITA DO SR. MARVEL A IPING

          Depois que a primeira onda de pânico esmoreceu, Iping começou a questionar. O ceticismo subitamente expôs sua cabeça — um ceticismo um tanto nervoso, sem a menor confiança em sua retaguarda mas, ainda assim, ceticismo. Era muito mais fácil não acreditar em um homem invisível; e aqueles que o haviam efetivamente visto dissolver-se no ar, ou sentido a força de seu braço, podiam ser contados pelos dedos das mãos. E, entre essas testemunhas, o sr, Wadgers estava ausente, tendo-se isolado inacessivelmente por trás dos trincos e trancas da própria casa e Jaffers continuava a jazer, atordoado, no salão da "Coach and Horses". Idéias grandiosas e estranhas que, muitas vezes, transcendem à experiência, afetam menos a homens e mulheres do que considerações menores, porém mais tangíveis. Iping tinha um aspecto alegre, cheia de bandeiras e todos vestiam roupas de gala. A primeira segunda-feira após o domingo da Páscoa tinha sido ansiosamente esperada por mais de um mês. Ao chegar a tarde, mesmo os que acreditavam no Invisível estavam começando a reassumir seus divertimentos simples, ainda meio hesitantes, na suposição de que, de fato, se fora; e, para os descrentes, ele já se tornara um gracejo. Porém as pessoas, fossem elas céticas ou crentes, mostravam-se extremamente sociáveis durante todo aquele dia.

          Uma tenda dava à alameda de Haysman uma aparência festiva e nela a sra. Bunting e outras senhoras estavam fazendo chá enquanto, do lado de fora, as crianças da escola paroquial apostavam corridas e faziam brincadeiras, sob a barulhenta tutela do pastor e das senhoritas Cuss e Sackbut. Sem dúvida, pairava ainda um leve mal-estar, mas a maioria dos presentes dava provas de bom senso suficiente para ocultar qualquer receio que experimentassem em suas imaginações. No gramado da aldeia, grandemente apreciada pelos adolescentes, havia uma corda inclinada, pela qual se podia descer agarrado a uma roldana movida por uma manivela, que podia atirar qualquer um violentamente contra o saco que ficava na outra extremidade. Havia balanços, arremesso aos cocos e passeios, e o órgão de foles, amarrado aos balanços, enchia o ar com um cheiro penetrante de óleo e música igualmente penetrante. Os membros do clube, que tinham ido à igreja de manhã, estavam esplêndidos com seus emblemas rosa e verde e alguns dos mais animados tinham enfeitado também os chapéus com tiras de cores brilhantes. O velho Fletcher, cujas idéias sobre festas eram severas, podia ser visto à sua janela através dos jasmineiros, ou pela porta aberta (onde quer que se preferisse olhar) equilibrando-se precariamente sobre uma prancha apoiada em duas cadeiras, caiando o teto da sala da frente.

          Por volta das quatro horas, um estranho chegou à aldeia, vindo das colinas. Era um sujeito baixo, gordo, usava um chapéu alto incrivelmente sujo e parecia estar quase sem fôlego. Suas bochechas eram alternadamente flácidas ou estofadas ao máximo. O rosto avermelhado parecia apreensivo e movia-se com uma espécie de vivacidade relutante. Dobrou a esquina junto à igreja e tomou o caminho da "Coach and Horses". O velho Fletcher, entre outros, lembrava-se de tê-lo visto e, na verdade, o velho senhor ficou tão perturbado com aquela agitação estranha que, sem querer, deixou que uma quantidade de cal escorresse pela broxa e penetrasse na manga do casaco enquanto olhava para ele.

          Esse estranho, no entender do proprietário do jogo de cocos, parecia estar falando sozinho e o sr. Huxter observou a mesma coisa. Parou ao pé dos degraus da "Coach and Horses" e, segundo o sr. Huxter, pareceu travar uma violenta luta interior, antes de convencer-se a entrar na casa. Subiu finalmente os degraus e o sr. Huxter viu-o tomar à esquerda e abrir a porta da sala. Vozes de dentro da sala e do bar advertiram o homem do erro que ia cometendo. — Essa sala é particular! — disse Hall e o estranho fechou desajeitadamente a porta e foi para o bar.

          Em poucos minutos reapareceu, enxugando os lábios com as costas da mão e um ar de tranqüila satisfação que, de alguma forma, deu ao sr. Huxter a impressão de ser falsa. Por uns poucos instantes ficou parado, olhando os arredores e depois o sr. Huxter viu-o andar de um modo estranhamente furtivo em direção aos portões do pátio, sobre o qual se abria a janela da sala. Após alguma hesitação, o estranho encostou-se em um dos marcos do portão, tirou do bolso um cachimbo curto de argila e preparou-se para enchê-lo. Seus dedos tremiam. Acendeu-o, canhestro, e pôs-se a fumar com uma atitude displicente, que os rápidos olhares que lançava ao pátio desmentiam inteiramente.

          O sr. Huxter viu tudo isso por cima das latas de fumo da vitrine e o comportamento singular do homem levou-o a manter sua observação.

          Um pouco mais tarde o estranho endireitou bruscamente o corpo e pôs o cachimbo no bolso. Depois desapareceu no pátio. Sem hesitar, imaginando que estava sendo testemunha de algum furto, o sr. Huxter contornou o balcão e correu para a rua, a fim de interceptar o ladrão. Ao fazê-lo, viu que o sr. Marvel reaparecia, o chapéu torto, uma trouxa grande de xadrez azul em uma das mãos e na outra três livros, amarrados com o que se soube mais tarde serem os suspensórios do vigário. Quando viu Huxter, ofegou, e voltando-se rapidamente para a esquerda, começou a correr.

          — Pega ladrão! — gritou Huxter e começou a persegui-lo. As sensações do sr. Huxter foram nítidas, porém de curta duração. Avistou o homem um pouco à frente dele, acelerando os passos na direção da esquina da igreja e da estrada da colina. Viu as bandeirolas da aldeia e um ou dois rostos voltados para ele. Berrou de novo — Pega! — Mal tinha dado umas dez passadas quando sentiu a canela presa de alguma forma misteriosa e já não estava correndo, mas voando pelos ares com uma rapidez incrível. Percebeu que, de repente, o chão se aproximava de seu rosto. O mundo pareceu fragmentar-se em um milhão de partículas rodopiantes de luz e os acontecimentos subseqüentes deixaram de interessá-lo.

         

       NA "COACH AND HORSES"

          Bem, mas para compreender com clareza o que tinha acontecido na estalagem, é necessário voltar ao momento em que o sr. Marvel foi visto da janela do sr. Huxter, pela primeira vez. Naquele exato momento, o sr. Cuss e o sr. Bunting achavam-se na sala. Com a maior seriedade, investigavam as bizarras ocorrências da manhã e estavam, com a permissão do sr. Hall, fazendo um exame minucioso dos pertences do Homem Invisível. Jaffers, parcialmente recuperado da queda que levara, tinha ido para casa em companhia de seus solícitos amigos. As roupas espalhadas do hóspede tinham sido guardadas pela sra. Hall e a sala fora arrumada. E, sobre a mesa, junto à janela, onde o estranho costumava trabalhar, Cuss descobriu, quase instantaneamente, os três livros grossos, manuscritos, intitulados "Diário".

          — Um diário! — exclamou Cuss, enfileirando os três livros sobre a mesa. — Agora, ao menos, vamos saber de alguma coisa. — O pastor estava de pé, com as mãos em cima da mesa.

          — Um diário — repetiu Cuss, sentando-se, ajeitando dois volumes para apoiar o terceiro e abrindo-o. — Hum. . . Não há nome na primeira página. Que transtorno! É um código. E há números.

          O vigário aproximou-se para olhar por cima do ombro dele. Cuss virou as páginas, o rosto subitamente desapontado. — Eu. . . Deus! Está tudo em código, Bunting.

          — Não há diagramas? — perguntou o sr. Bunting. — Nenhuma ilustração que esclareça. ..

          — Veja você mesmo — disse o sr. Cuss. — Parte é matemática, parte em russo ou alguma língua semelhante (a julgar pelos caracteres), e parte em grego. Quanto ao grego, pensei que você. . .

          — Claro — disse o sr. Bunting, tirando e limpando os óculos e sentindo-se subitamente muito pouco à vontade — pois o que restava de grego em sua cabeça nem valia a pena mencionar; — sim, o grego, naturalmente, pode dar uma pista.

          — Vou arranjar um lugar para você.

          — Preferia folhear os volumes primeiro — disse o sr. Bunting, ainda limpando os óculos. — Antes de mais nada', uma impressão geral, Cuss, e depois, compreende, podemos procurar pistas.

          Tossiu, pôs os óculos, ajustou-os cuidadosamente, tossiu de novo e desejou que acontecesse alguma coisa para impedir o que poderia ser uma desmoralização inevitável. E então, alguma coisa realmente aconteceu.

          A porta abriu-se de repente.

          Os dois cavalheiros sobressaltaram-se violentamente, olharam e tiveram o alívio de ver um rosto, de um rosado desigual, sob o chapéu de seda felpuda. — Cerveja? — perguntou o rosto e ficou imóvel, olhando-os fixamente.

          — Não — disseram os dois cavalheiros ao mesmo tempo.

          — Do outro lado, homem — acrescentou o sr. Bunting.

          — Por favor, feche a porta — recomendou o sr. Cuss, em tom irritado.

          — Certo — disse o intruso, em uma voz que parecia baixa, curiosamente diferente do espalhafato da primeira indagação. — Têm razão — continuou o estranho no tom inicial. — Atenção, afastar-se! — e desapareceu, fechando a porta.

          .— Um marinheiro, imagino — comentou o sr. Bunting. — São uns sujeitos divertidos. Ora, "Atenção, afastar-se!" Um termo náutico, referindo-se ao fato de ter-se retirado da sala, suponho.

          — Acredito que sim — concordou Cuss. — Meus nervos estão descontrolados hoje. A porta se abrindo assim. . . Realmente fez-me pular.

          O sr. Bunting sorriu, como se ele próprio não tivesse pulado também. — E agora — disse, com um suspiro — vamos aos livros.

          — Um minuto — pediu Cuss e foi fechar a porta. — Assim acho que estamos a salvo de interrupções.

          Alguém espirrou, quando ele disse isso.

          — Uma coisa é incontestável — falou Bunting, puxando uma cadeira para junto da de Cuss. — De fato, nestes últimos dias, aconteceram coisas muito estranhas. Naturalmente, não posso acreditar nessa história absurda de invisibilidade.. .

          — É inacreditável — concordou Cuss —, inacreditável. Mas permanece o fato de que vi.. . na verdade vi a manga vazia até embaixo.

          — Mas você viu... tem certeza? Suponhamos que havia um espelho, por exemplo... É tão fácil criar alucinações. Não sei se já viu um ilusionista realmente bom...

          — Não vou discutir de novo — objetou Cuss. — Já debatemos isso exaustivamente, Bunting. E, no momento, há esses livros Ah! Aqui está algo que acho que é grego! Os caracteres decerto são gregos.

          Apontou para o meio da página. O sr. Bunting corou de leve e aproximou o rosto, parecendo estar em dificuldades com os óculos. De repente, apercebeu-se de uma sensação esquisita em sua nuca. Tentou levantar a cabeça mas encontrou uma dificuldade irremovível. A impressão era de que havia uma força inexplicável, como a de uma mão pesada e firme que baixava seu queixo, irresistivelmente, para a mesa. "Não se mexam, homenzinhos", sussurrou uma voz, "ou estouro os miolos dos dois!" Olhou para o rosto de Cuss, bem junto ao dele e cada um viu no outro um horrível reflexo do próprio pasmo acovardado.

          — Lamento ter que ser brutal com os senhores — disse a Voz — mas é inevitável. Desde quando aprenderam a violar as anotações particulares de um pesquisador? — insistiu a Voz; e os dois queixos bateram na mesa ao mesmo tempo e duas dentaduras rangeram.

          — Desde quando aprenderam a invadir os aposentos particulares de um homem em apuros? — e o choque foi repetido. — E onde puseram minhas roupas?

          — Ouçam — falou a Voz. — As janelas estão trancadas e tirei a chave da porta. Sou um homem bastante forte e estou com o atiçador à mão, além de ser invisível. Não há a mínima dúvida de que posso matar os dois e sair com toda a facilidade, se quiser, compreendem? Muito bem. Se soltá-los, prometem não tentar nenhuma tolice e fazer o que lhes mandar?

          O pastor e o médico entreolharam-se e a expressão deste mudou. — Sim — concordou o sr. Bunting e o médico repetiu o mesmo. Então a pressão em seus pescoços relaxou e o médico e o pároco esticaram-se, ambos muito vermelhos e contorcendo as cabeças.

          — Por favor, mantenham-se sentados no mesmo lugar — disse o Homem Invisível. — Aqui está o atiçador, como vêem.

          — Quando entrei nesta sala — prosseguiu o Homem Invisível, depois de tocar com o atiçador a ponta do nariz de cada um de seus visitantes —, não esperava encontrá-la ocupada e queria, além de meus livros de anotações, uma muda de roupa. Onde está? Não, não se levantem. Já vi que não está aqui. Nesse exato momento, embora os dias sejam bastante quentes para que um homem invisível passa andar por aí pelado, as noites são frias. Quero roupas. . . e mais algumas coisas; e também preciso desses três livros.

 

         O HOMEM INVISÍVEL PERDE A PACIÊNCIA

          Neste ponto, torna-se impossível deixar de interromper outra vez a narrativa, por uma certa razão muito penosa que não tardará a se tornar evidente. Enquanto os fatos anteriores aconteciam na sala e enquanto o sr. Huxter estava observando o sr. Marvel que fumava o cachimbo encostado ao portão, o sr. Hall e Teddy Henfrey, a menos de uma dúzia de metros de distância, discutiam, em um estado de nebulosa confusão, o tópico corrente em Iping.

          Subitamente ouviu-se uma pancada violenta contra a porta da sala, um grito agudo e depois, silêncio.

          — Opa! — exclamou Teddy Henfrey.

          — Opa! — repetiram do bar.

          O sr. Hall compreendia as coisas lentamente, mas com segurança. — Isso não está certo — disse, e saiu detrás do bar encaminhando-se para a porta da sala.

          Ele e Teddy aproximaram-se da porta ao mesmo tempo, com uma expressão decidida e olhos atentos. — Alguma coisa está errada — disse Hall, e Henfrey acenou, concordando. Baforadas de um desagradável odor químico vieram ao encontro deles e ouviram o som abafado de uma conversa muito rápida, em voz baixa.

          — Tudo bem aí? — perguntou Hall, batendo.

          A conversa murmurada cessou bruscamente, houve um momento de silêncio e depois continuou em sussurros sibilantes seguidos de um grito agudo, protestando "Não! Não, não faça isso!" Ouviu-se um movimento súbito, o ruído de uma cadeira virada e de uma breve luta. E fez-se silêncio, novamente.

          — Que diabo? — exclamou Henfrey, sotto você.

          — Tudo bem aí? — perguntou outra vez o sr. Hall rispidamente.

          A voz do vigário respondeu, com uma entonação curiosamente entrecortada: — Muito bem. Por favor, não interrompam.

          — Esquisito! — disse o sr. Henfrey.

          — Esquisito! — ecoou o sr. Hall.

          — Diz para não interromper — falou Henfrey.

          — Eu ouvi — concordou Hall.

          — E um espirro — acrescentou Henfrey.

          Ficaram à escuta. A conversa era rápida e surda. — Não posso! — protestou o sr. Bunting, elevando a voz. — Estou lhe dizendo, senhor, não o farei.

          — Que foi isso? — indagou Henfrey.

          — Disse que não ia fazer — respondeu Hall. — Não estava falando conosco, estava?

          — É uma vergonha — disse o sr. Bunting, na sala.

          — "Uma vergonha" — repetiu o sr. Henfrey. — Ouvi claramente.

          — Quem está falando agora? — perguntou Henfrey.

          — O sr. Cuss, suponho — respondeu Hall. — Está ouvindo alguma coisa?

          Silêncio. Os sons que vinham da sala eram indistintos e enigmáticos.

          — Parece que estão sacudindo a toalha da mesa.

          A sra. Hall apareceu por trás do bar. Hall fez gestos para que ficasse quieta e chamou-a.

          Isso despertou o antagonismo feminino da sra. Hall. — Por que está aí escutando, Hall? — perguntou. — Não tem mais nada que fazer em um dia atarefado como este?

          Hall tentou explicar tudo por caretas e mímica, mas a sra. Hall obstinou-se. Ergueu a voz. Por isso, Hall e Henfrey, um tanto passados, voltaram para o bar na ponta dos pés, gesticulando para se fazerem entender.

          A princípio, ela recusou-se a ver alguma coisa de anormal no que tinham ouvido. Depois insistiu para que Hall ficasse calado, enquanto Henfrey lhe contava sua história. Sentia-se inclinada a considerar tudo aquilo uma bobagem — talvez estivessem apenas arrastando os móveis. — Eu o ouvi dizer "É uma vergonha"; isso eu ouvi — afirmou o sr. Hall.

          — Também ouvi, sra. Hall — disse Henfrey.

          — É possível. . . — começou a sra. Hall.

          — Psiu! — disse o sr. Teddy Henfrey. — Será que foi a janela?

          — Que janela? — perguntou a sra. Hall.

          — A janela da sala — respondeu Henfrey.

          Todos se calaram, escutando atentamente. Os olhos da sra. Hall fixos bem em frente viram, sem registrar, o retângulo claro emoldurado pela porta da estalagem, a estrada branca e bem delineada e a frente da loja de Huxter brilhando ao sol de junho. De repente, a porta de Huxter abriu-se e este apareceu, os olhos cheios de excitação, gesticulando com os braços. — Ali! — gritou — Pega ladrão! — e passou obliquamente pela porta, correndo para o portão do pátio e desaparecendo.

          Simultaneamente ouviu-se um tumulto na sala e o som de janelas que se fechavam.

          Hall, Henfrey e todos os ocupantes humanos do bar precipitaram-se para a rua, na maior confusão. Viram alguém dobrar a esquina que dava para a estrada nas colinas, e o sr. Huxter executando um complicado salto no ar e caindo de cara e de ombros. Pela rua, as pessoas tinham se detido, pasmas, ou corriam para ele.

          O sr. Huxter estava atordoado. Henfrey ainda parou para constatar tal fato, mas Hall e dois empregados do bar continuaram sem hesitação até a esquina, gritando palavras incoerentes e viram o sr. Marvel desaparecer ladeando o canto do muro da igreja. Ao que parecia, tinham chegado à bizarra conclusão de que aquele era o Homem Invisível tornado visível de repente e logo haviam decidido persegui-lo, correndo pelo caminho. Mas Hall, que mal correra uns doze metros, deu um berro de espanto e foi atirado para o lado, voando de cabeça, agarrado a um dos empregados e derrubando-o com ele. Fora atacado como se ataca um homem jogando futebol. O segundo empregado aproximou-se, descrevendo um círculo, olhou e, achando que Hall tinha caído sozinho, voltou-se para continuar a perseguição; isso apenas para levar um calço na canela, da mesma forma que Huxter fora calçado. Então, quando o primeiro empregado procurava pôr-se de pé, foi atingido de lado por um golpe que poderia abater um boi.

          Quando caiu, os que vinham correndo da praça da aldeia também dobraram a esquina. O primeiro a aparecer foi o proprietário da barraca de tiro aos cocos, um homem atarracado, vestindo uma camisa de malha azul, que ficou espantado ao ver os três homens absurdamente estatelados no chão. E então, alguma coisa aconteceu com o pé que ficara atrás em sua passada e caiu de cabeça, rolando para o lado bem a tempo de atingir os pés de seu irmão e sócio que o seguia de perto. Os dois homens foram chutados, pisoteados, tropeçados e xingados por um número considerável de pessoas superapressadas.

          Quando Hall, Henfrey e os empregados precipitaram-se para fora de casa, a sra. Hall, que havia aprendido com anos de experiência, permaneceu no bar, junto à caixa. E a porta da sala abriu-se repentinamente, o sr. Cuss apareceu e, sem olhar para ela, desceu depressa os degraus e correu para a esquina. — Segurem-no! — gritou. — Não deixem que jogue o embrulho no chão! Só podem vê-lo enquanto estiver carregando o embrulho. — Não sabia da existência de Marvel, pois o Homem Invisível tinha entregue os livros e o embrulho a este já no pátio. O sr. Cuss parecia zangado e resoluto, mas sua roupa era insuficiente, uma espécie de saiote bambo que só poderia ser admitido na Grécia. — Segurem-no! — berrava. — Está com minhas calças! E toda a roupa do pastor!

          — Cuido dele daqui a pouco! — gritou para Henfrey ao passar por Huxter que continuava caído, e voltando à esquina para juntar-se ao tumulto, foi prontamente derrubado em uma queda indecorosa. Alguém, em plena corrida, pisou com força em seus dedos. Ele gemeu, lutou para ficar novamente de pé, foi derrubado outra vez e atirado de quatro, quando tomou consciência de que não estava tomando parte em uma captura, mas em uma debandada. Todos estavam voltando à aldeia. Levantou-se de novo e foi atingido com força atrás da orelha. Cambaleante, dirigiu-se de volta à "Coach and Horses", pulando por cima do abandonado Huxter que tinha conseguido sentar-se.

          Quando já havia subido a metade dos degraus da estalagem, ouviu, às suas costas, um repentino urro de raiva, que se destacou nitidamente, em meio à confusão de gritos e uma sonora bofetada no rosto de alguém. Reconheceu a voz como a do Homem Invisível e o tom era o de um homem inopinadamente enfurecido por um golpe doloroso.

          No momento seguinte, o sr. Cuss estava de volta à sala. — Ele vem vindo, Bunting! — exclamou, entrando. — Proteja-se! Ele enlouqueceu!

          O sr. Bunting estava junto à janela, ocupado em uma tentativa de vestir-se com o tapete da lareira e um número da West Surrey Gazette. — Quem está vindo? — perguntou, tão assustado que sua roupagem escapou por pouco da desintegração.

          — O Homem Invisível — respondeu Cuss e correu para a janela. — É melhor sairmos daqui! Ele está louco de raiva! Louco!

          No mesmo instante já estava de fora, no pátio.

          — Deus do céu! — lamentou-se o sr. Bunting, hesitando entre duas alternativas horríveis. Ouviu uma luta terrível no corredor da estalagem e tomou uma decisão. Pulou a janela, arrumou a roupa apressadamente e fugiu aldeia acima, tão depressa quanto as pequenas pernas gordas lhe permitiam.

          A partir do momento em que o Homem Invisível gritara de raiva e o sr. Bunting executara a fuga memorável, tornou-se impossível fazer um relato coerente dos acontecimentos em Iping. Provavelmente, a intenção inicial do Homem Invisível tinha sido apenas proteger a fuga de Marvel com as roupas e os livros. Mas sua paciência, que já naquela ocasião não era muita, havia se desintegrado completamente diante de um golpe casual e, daí por diante, pôs-se a bater e derrubar, pelo mero prazer de ferir.

          Imagine-se a rua, cheia de gente que corria, de portas que batiam e de brigas por lugares seguros. Deve-se imaginar o tumulto atingindo o equilíbrio precário da tábua do velho Fletcher e de suas duas cadeiras, com resultados catastróficos. Deve-se imaginar um casal desprevenido apanhado de surpresa em um turbilhão. E então todo o tumulto passou e as ruas de Iping, com seus enfeites e bandeiras, ficaram desertas, a não ser pelo Desconhecido ainda furioso, e juncadas de cocos, telas de lona derrubadas e o estoque completo de uma barraca de gulodices espalhado pelo chão. Por toda parte, ouvia-se o som de janelas fechando-se e de trancas sendo colocadas, e o único sinal visível de um ser humano era, ocasionalmente, um olhar furtivo sob uma sobrancelha erguida, no canto do painel de uma janela.

          O Homem Invisível ainda se divertiu um pouco quebrando todas as janelas da "Coach and Horses" e depois enfiou uma lâmpada da rua pela janela da sala da sra. Gribble. Também devia ter sido ele quem tinha cortado os fios do telégrafo para Adderdean, um pouco além do chalé de Higgins, na estrada de Adderdean. E, depois de tudo isso, como suas características especiais lhe permitiam, ficou fora do alcance da percepção humana e não foi mais visto, ouvido nem pressentido em Iping. Desapareceu completamente.

          Mas passaram-se quase duas horas antes que qualquer ser humano se aventurasse a sair de novo para a desolação da Iping Street.

         

       O SR. MARVEL TENTA PEDIR DEMISSÃO

          Quando a noite começou a cair e Iping estava apenas começando a olhar timidamente para fora contemplando os destroços inúteis de seu feriado, um homem baixo e atarracado, com um velho chapéu sedoso, caminhava penosamente no crepúsculo pela estrada de Bramblehurst, por trás do renque de faias. Levava três livros amarrados por uma espécie de tira elástica estampada e uma trouxa embrulhada em uma toalha de mesa azul. Seu rosto vermelho demonstrava medo e cansaço; parecia tomado de uma pressa espasmódica. Acompanhava-o uma voz que não era a sua e a todo momento estremecia ao toque de mãos invisíveis.

          — Se você fugir outra vez — disse a Voz —, se tentar fugir outra vez. ..

          — Deus! — implorou o sr. Marvel. — Esse ombro já está todo machucado.

          — ... palavra de honra — continuou a Voz —, eu o mato.

          — Não tentei fugir — retrucou Marvel, com uma voz que não estava muito longe das lágrimas — juro que não. Não vi a maldita curva. Que diabo! Como ia saber que havia aquela maldita curva? E assim mesmo levei tantos encontrões...

          — E vai levar muitos mais se não prestar atenção — ameaçou a Voz e o sr. Marvel calou-se bruscamente. Bufou, e em seus olhos havia um eloqüente desespero.

          — Já foi um desastre expor meu segredo a esses labregos estúpidos, sem que você, ainda por cima, tentasse se mandar com meus livros. Por sorte alguns desistiram e correram naquela hora! Aqui estou eu.. . Ninguém sabia que era invisível! E agora, que vou fazer?

          — E eu, o que vou fazer? — perguntou o sr. Marvel, baixinho.

          — A história se espalhou. Vai sair nos jornais! Todos procurarão por mim; todos estarão prevenidos... — A Voz explodiu em xingamentos furiosos e depois calou-se.

          A expressão de desespero do sr. Marvel acentuou-se e arrastou os passos.

          — Ande! — ordenou a Voz.

          O rosto do sr. Marvel assumiu um tom acinzentado entre as placas mais vermelhas.

          — Não deixe esses livros caírem, idiota! — disse a Voz rudemente, aproximando-se. — O fato é que vou ter que usar você. É um instrumento inadequado, mas preciso dele.

          — Sou um péssimo instrumento — disse o sr. Marvel.

          — É mesmo — concordou a Voz.

          — Sou o pior instrumento que poderia arranjar — lamentou-se Marvel. — Não sou forte — acrescentou, após um silêncio desanimador. — Não sou muito forte — repetiu.

          — Não?

          — E meu coração é fraco. Todo aquele negócio. . . consegui, naturalmente, mas, por Deus, podia ter morrido.

          — E daí?

          — Não tenho coragem ou forças para o tipo de coisas que quer.

          — Eu o estimulo.

          — Prefiro que não. Sabe que não gostaria de estragar seus planos. Mas poderia, por puro medo e aflição.

          — Melhor que não — disse a Voz, em tom baixo e ameaçador.

          — Queria estar morto — lamuriou-se Marvel. — Não é justo — prosseguiu. — Há de concordar. Acho que tenho todo o direito .. .

          — Vá andando! — ordenou a Voz.

          O sr. Marvel apressou o passo e, durante algum tempo, seguiram em silêncio.

          — É duro como o diabo — falou novamente o sr. Marvel. Isso não teve o menor efeito. Tentou outro argumento.

          — Que ganho com isso? — começou de novo, em um tom de quem se sentia insuportavelmente prejudicado.

          — Oh! Cale-se! — exclamou a Voz com uma ênfase repentina e surpreendente. — Pode estar certo de que cuidarei de você. Faça o que mando. Faça tudo certo. É um idiota e o mais, porém vai fazer. . .

          — Estou lhe dizendo, senhor, não sou capaz. Respeitosamente, mas essa é a verdade.

          — Se não se calar, vou torcer seu pulso outra vez — disse o Homem Invisível. — Quero pensar.

          Depois de algum tempo, puderam ver entre as árvores dois retângulos de luz amarela, e a torre quadrada de uma igreja avultou no entardecer. — Ficarei com a mão em seu ombro de um lado a outro da aldeia — disse a Voz. — Atravesse-a direto e não tente nenhuma bobagem. Se tentar, será pior para você.

          — Sei disso — suspirou o sr. Marvel. — Sei de tudo isso. A criatura de aspecto infeliz, com um chapéu de seda fora

          de moda, percorreu a rua da pequena aldeia de um lado a outro e desapareceu na escuridão crescente, fora do alcance das luzes das janelas.

 

          EM PORT STOWE

          Às dez horas da manhã seguinte, encontraram o sr. Marvel sentado no banco do lado de fora de uma pequena estalagem nos arredores de Port Stowe, barbado, sujo e amarfanhado pela viagem, os livros a seu lado e as mãos enterradas nos bolsos, parecendo muito cansado, nervoso e pouco à vontade, e bufando a todo momento. Os livros junto a ele já estavam amarrados com um barbante. A trouxa fora abandonada no bosque de pinheiros depois de Bramblehurst, de acordo com uma mudança nos planos do Homem Invisível. O sr. Marvel permanecia sentado e, embora ninguém lhe prestasse a mínima atenção, sua inquietude continuava febril. As mãos entravam e saíam sem cessar dos vários bolsos em um tatear curiosamente agitado.

          Quando já estava ali havia quase uma hora, um velho marinheiro saiu da estalagem trazendo um jornal e sentou-se ao lado dele, dizendo: — Que dia agradável!

          O sr. Marvel relanceou para as cercanias e respondeu, com algo muito semelhante ao terror. — Muito.

          — Um tempo bem ameno para esta época do ano — disse o marinheiro em um tom que não admitia contestação.

          — É verdade — concordou o sr. Marvel.

          O marinheiro sacou de um palito e (ocultando o olhar), ocupou-se com ele durante alguns minutos. Enquanto isso, seus olhos ficaram à vontade para examinar o aspecto empoeirado do sr. Marvel e os livros ao lado dele. Quando se aproximara deste, tinha um som como o tilintar de moedas postas em um bolso. O contraste entre o aspecto do sr. Marvel e aquela sugestão de opulência havia lhe despertado a curiosidade. Mas depois, seus pensamentos voltaram-se novamente para um tópico que tinha se apossado de sua imaginação.

          — Livros? — perguntou de repente, terminando de manejar o palito com um ruído considerável.

          O sr. Marvel sobressaltou-se e olhou-se. — Ah, sim — respondeu. — Sim, são livros.

          — Há muitas coisas extraordinárias nos livros — comentou o marinheiro.

          — Acredito — assentiu o sr. Marvel.

          — E muitas coisas extraordinárias fora dele — disse o marinheiro.

          — Isso também é verdade — concordou o sr. Marvel. Olhou para seu interlocutor e depois relanceou em torno.

          — Há algumas coisas extraordinárias nos jornais, por exemplo — continuou o marinheiro.

          — Há.

          — Neste jornal — insistiu o marinheiro.

          — Ah! — disse o sr. Marvel.

          — Há uma história — disse o marinheiro, fixando o sr. Marvel com um olhar firme e decidido — há uma história sobre um Homem Invisível, por exemplo.

          O sr. Marvel contorceu a boca, cocou o rosto e sentiu que suas orelhas ardiam. — Que mais serão capazes de escrever depois dessa? — perguntou com voz fraca. — Na Áustria ou na América?

          — Nada disso — respondeu o marinheiro. — Aqui!

          — Deus! — exclamou o sr. Marvel, estremecendo.

          — Quando digo aqui — prosseguiu o marinheiro para enorme alívio do sr. Marvel — naturalmente não me refiro aqui, a este lugar; quero dizer nos arredores.

          — Um Homem Invisível! — falou o sr. Marvel. — E o que andou fazendo?

          — Tudo — respondeu o marinheiro, observando o sr. Marvel e depois ampliando a notícia: — Todas as diabruras.

          — Há quatro dias que não vejo um jornal — explicou Marvel.

          — Começou em Iping — disse o marinheiro.

          — Verdade? — exclamou o sr. Marvel.

          — Começou lá. E parece que ninguém sabe de onde veio. Aqui está: "História Misteriosa em Iping". E o jornal diz que as provas são extraordinariamente positivas. Extraordinariamente.

          — Deus! — repetiu mais uma vez o sr. Marvel.

          — Mas, afinal, é uma história extraordinária: as testemunhas são um homem do clero e um cavalheiro médico — viram-no decerto e muito bem — ou, isto é, não o viram. Diz aqui que estava hospedado na "Coach and Horses", e que ninguém percebeu o problema dele, é o que diz, não perceberam o problema dele até que, em uma briga na estalagem, arrancaram as faixas da cabeça dele. Então observaram que a cabeça dele era invisível. Imediatamente fizeram tentativas para agarrar o homem, porém ele, tirando a roupa, diz o jornal, conseguiu fugir, mas só depois de uma luta desesperada, durante a qual feriu seriamente, diz aqui, nosso digno e capaz policial, o sr. J.A. Jaffers. Bem clara a história, não acha? Nomes e tudo.

          — Deus! — invocou mais uma vez o sr. Marvel, olhando nervosamente em volta e tentando contar o dinheiro em seu bolso unicamente pelo tato, tomado de uma idéia estranha e nova. — Parece espantoso.

          — Não é? Extraordinário, é o que penso. Nunca ouvi falar em Homem Invisível, nunca, mas hoje em dia ouve-se uma quantidade de coisas extraordinárias... que. . .

          — Foi só isso o que ele fez? — indagou o sr. Marvel, tentando mostrar-se relaxado.

          — Foi o bastante, não acha? — disse o marinheiro.

          — E por acaso não voltou? — perguntou Marvel. — Fugiu e tudo acabou, hein?

          — Tudo. Mas por quê? Não acha o bastante?

          — Mais do que bastante.

          — Considero que foi o bastante — disse o marinheiro. — Considero que foi o bastante.

          — Ele não tinha amigos — o jornal não diz se tinha amigos, diz? — perguntou, ansioso, o sr. Marvel.

          — Uma única pessoa assim não chega para você? — perguntou o marinheiro. — Não, graças a Deus, como se diz, não tinha.

          Balançou a cabeça lentamente. — A simples idéia desse sujeito andando pelos campos, faz com que me sinta mal. No momento está solto e, de acordo com certos indícios, acredita-se que tenha seguido — que seguiu, acho que é o que querem dizer — pela estrada de Port Stowe. Está vendo que estamos bem no caminho! Desta vez, não é nenhum daqueles fenômenos americanos. E pense só nas coisas que poderia fazer! Imagine se resolvesse dar um pulo até aqui e cismasse com você? Suponhamos que queira roubar — quem pode impedi-lo? Pode invadir domicílios, pode assaltar, pode atravessar um cordão de polícia com tanta facilidade quanto eu ou você poderíamos nos livrar de um cego! Com mais facilidade! Pois esses sujeitos cegos, dizem, têm um ouvido muitíssimo apurado. E, em qualquer lugar que houvesse bebida que lhe agradasse. . .

          — Realmente ele leva uma tremenda vantagem — disse o sr. Marvel. — E, bem...

          — Está certo — concordou o marinheiro. — Leva.

          O sr. Marvel estivera o tempo todo observando atentamente os arredores, procurando escutar passos leves, tentando detectar movimentos imperceptíveis. Parecia a ponto de tomar uma decisão muito importante. Tossiu, protegendo a boca com a mão.

          Olhou novamente ao seu redor, ouviu, inclinou-se para o marinheiro e baixou a voz. — A verdade é que. . . Acontece que sei. por fontes particulares, uma ou duas coisas a respeito desse Homem Invisível.

          — Oh! — exclamou o marinheiro, interessado. — Você?

          — Sim — retrucou o sr. Marvel. — Eu.

          — É verdade? — perguntou o marinheiro. — E posso saber .. .

          — O senhor ficará pasmo — disse o sr. Marvel por trás da mão. — É tremendo.

          — Realmente?

          — O fato é — começou o sr. Marvel ansiosamente, em voz discreta e confidencial. De repente sua expressão modificou-se totalmente. — Ui! — gritou. Levantou-se do banco, muito tenso. Seu rosto demonstrava com eloqüência um grande sofrimento físico. — Uau! — gemeu.

          — Que aconteceu? — quis saber o marinheiro, preocupado.

          — Dor de dentes — respondeu o sr. Marvel, e levou a mão à orelha. Apanhando os livros, disse: — Acho que tenho que ir andando. Escorregou estranhamente pelo banco, afastando-se de seu interlocutor. — Mas estava a ponto de me falar sobre o tal Homem Invisível! — protestou o marujo. O sr. Marvel pareceu consultar seus botões. — É fraude — disse uma voz. — É fraude

          — repetiu o sr. Marvel.

          — Mas está nos jornais — disse o marinheiro.

          — Mas não deixa de ser fraude — reafirmou o sr. Marvel.

          — Conheço o sujeito que espalhou o boato. Não há nenhum Homem Invisível. . . Que diabo!

          — E este jornal? Quer dizer que. . .

          — Nem uma palavra — concluiu Marvel com firmeza.

          O marinheiro arregalou os olhos, o jornal na mão. O sr. Marvel virou-lhe as costas, em pequenos movimentos espasmódicos. -— Espere um pouco — disse o marujo levantando-se e falando lentamente. — Quer dizer. . .?

          — É isso mesmo — respondeu o sr. Marvel.

          — Então por que me deixou falar e lhe contar toda essa maldita história? Por que razão deixa um homem passar por idiota dessa maneira? Hein?

          O sr. Marvel bufou. O marinheiro, de repente, ficou muito vermelho; cerrou os punhos. — Estive falando nestes últimos dez minutos — disse — e você, seu barrigudinho cara de vaca e filho da mãe, não podia ter a educação elementar. . .

          — Não comece a me xingar de nomes — disse o sr. Marvel.

          — Xingar de nomes! O que tenho vontade é de. . .

          — Vamos — disse uma voz e o sr. Marvel deu meia-volta subitamente e começou a marchar de modo esquisito, aos arrancos. — É melhor que dê o fora — disse o marinheiro. — Quem está dando o fora? — desafiou o sr. Marvel. Estava se retirando obliquamente em um passo estranho e apressado, com saltos ocasionais e violentos para a frente. Em algum lugar da estrada começou um monólogo resmungado, cheio de protestos e recriminações.

          — Sujeito estúpido! — gritou-lhe o marinheiro, as pernas muito afastadas, as mãos nas cadeiras, olhando para a figura que se distanciava. — Eu lhe mostro, sua besta. . . Enganando a mim! Está aqui — no jornal!

          O sr. Marvel replicou incoerentemente e desapareceu ao longe em uma curva da estrada, mas o marinheiro ainda ficou de pé, imponente, no meio da estrada, até que o carro do açougueiro o fez abrir caminho. Então dirigiu-se a Port Stowe. — São umas bestas extraordinárias — disse para si mesmo em voz baixa. — Só queria me fazer um pouco de palhaço — essa era a piada idiota dele. — Está no jornal!

          E tinha havido uma outra coisa extraordinária da qual tomaria conhecimento mais tarde e que acontecera bem perto dele. Fora a visão de um punho fechado, cheio de dinheiro — nada menos — que se locomovia sem uma razão visível, ao longo do muro, na esquina da Alameda de St. Michael. Um colega marinheiro tinha visto o fato miraculoso naquela mesma manhã. Tentara agarrar o dinheiro e fora derrubado de cabeça e, quando se levantara, o dinheiro-borboleta havia desaparecido. Nosso marinheiro sempre estava disposto a acreditar em tudo, afirmara, mas aquilo era forte demais. Porém, mais tarde, começou a refletir sobre os acontecimentos.

          A história do dinheiro voador era verdadeira. E em toda a vizinhança o dinheiro fora subtraído, até da augusta Companhia de Bancos de Londres e do Campo, das caixas das lojas e esta La — já que, naquele dia de sol, todas as portas estavam completamente abertas — e tinha sido visto saindo tranqüila e habilmente aos rolos e mãos cheias, flutuando discretamente ao longo das paredes e em lugares à sombra, ocultando-se com presteza de olhos humanos que se aproximassem. E embora nenhum homem soubesse de onde vinha, acabava sempre seu misterioso vôo no bolso do agitado cavalheiro de velho chapéu lustroso, que tinha se sentado do lado de fora da pequena estalagem perto de Port Stowe.

         

       O HOMEM QUE CORRIA

          Ao cair da noite, o dr. Kemp estava em seu escritório, no mirante sobre a colina que dominava Burdock. Era um pequeno aposento agradável, com três janelas que davam para o norte, oeste e sul, estantes cheias de livros e publicações científicas, uma grande escrivaninha e, sob a janela que abria para o norte, um microscópio, lâminas de vidro, pequenos instrumentos, algumas culturas e vidros espalhados de reagentes. A lâmpada solar do dr. Kemp estava acesa, embora o céu ainda estivesse iluminado pela luz do entardecer, e as persianas suspensas, pois não havia a possibilidade de que passantes curiosos obrigassem-no a baixá-las. O dr. Kemp era um jovem alto e magro, com cabelos de um louro desbotado e bigodes quase brancos e o trabalho de que se ocupava lhe daria, segundo esperava, o título de membro da Sociedade Real, tão otimista era sua opinião a respeito dele.

          Seus olhos, desviando-se do trabalho, contemplaram o pôr-do-sol que ardia por trás da colina além daquela em que se encontrava. Ficou parado, talvez por um minuto, mordendo a ponta da caneta e admirando a bela cor dourada acima do topo, quando sua atenção foi desviada pela minúscula silhueta completamente negra de um homem que corria pela encosta em direção a ele. Era um homenzinho pequeno e usava chapéu alto e sua corrida era tão rápida que suas pernas, na verdade, piscavam intermitentemente.

          — Mais um daqueles idiotas — pensou. — Como aquele asno que me deu um encontrão ao dobrar a esquina essa manhã; com o seu "O Homem Invisível está chegando, senhor!" Não sei o que há com essa gente. Até parece que estamos no século XIII.

          Levantou-se, foi até a janela e fitou a encosta crepuscular e a pequena figura negra que corria por ela. — Parece que está com uma pressa dos diabos, mas não parece fazer muito progresso. Não poderia correr mais pesadamente se tivesse os bolsos cheios de chumbo.

          — Mais depressa, senhor — disse o dr. Kemp.

          No momento seguinte, a mais alta das casas que haviam se estendido de Burdock colina acima, ocultou a silhueta que corria Por um instante tornou-se novamente visível, mais uma vez e mais outra, três vezes entre as três casas separadas que vinham a seguir e depois o terraço o escondeu.

          — Burros! — exclamou o dr. Kemp dando meia-volta e dirigindo-se à sua mesa de trabalho.

          Mas os que tinham visto o fugitivo mais de perto e percebido o terror abjeto na face suada e que também estavam na estrada aberta, não compartilhavam do desdém do doutor. O homem continuava a martelar o chão e, enquanto corria, tilintava como uma bolsa cheia, jogada de trás para a frente. Não olhava para a direita nem para a esquerda: seus olhos dilatados fixavam diretamente morro abaixo, onde os postes de iluminação estavam sendo acesos e as pessoas se apinhavam na rua. A boca mal acabada escancarava-se, uma espuma como clara de ovo havia se formado em seus lábios e tinha a respiração rouca e barulhenta. Todos por quem passava detinham-se e começavam a olhar a estrada para cima e para baixo, interrogando uns aos outros com uma ponta de ansiedade, sobre o que lhe causaria aquele ódio.

          Então, bem mais acima na colina, um cão que brincava na estrada ganiu e correu a esconder-se sob um portão e enquanto ainda estavam tentando compreender, alguma coisa — um golpe de vento, um tap, tap, tap, um som como uma respiração arquejante — passou por eles.

          Umas pessoas gritaram. Outras pularam do chão. Aquilo propagou-se aos gritos, propagou-se por instinto, colina abaixo. Já gritavam nas ruas, antes que Marvel estivesse a meio caminho de lá. Trancavam as casas e batiam as portas por causa da notícia. Ele ouviu e fez um esforço ainda mais desesperado. O medo chegou em largas passadas, adiantou-se a ele e, em um momento, apossou-se da cidade.

          — O Homem Invisível está chegando! O Homem Invisível!

         

       NO "JOLLY CRICKETERS

          O "Jolly Cricketers" ficava bem no sopé da colina, onde começavam as linhas dos bondes. O encarregado do bar apoiava os braços gordos e vermelhos no balcão e falava de cavalos com um cocheiro anêmico, enquanto um homem de barba negra, vestido de cinza, engolia biscoitos e queijo, bebia Burton e conversava em americano com um policial de folga.

          — Que gritaria é essa? — perguntou o cocheiro anêmico, interrompendo bruscamente a conversa e tentando olhar para o alto da colina por cima da persiana amarela e suja da janela baixa da estalagem. Alguém, do lado de fora, passou correndo. — Fogo, talvez — respondeu o encarregado do bar.

          Correndo pesadamente, passos se aproximaram, a porta foi aberta com violência e Marvel, chorando, descabelado e sem chapéu, a gola do casaco rasgada e aberta, precipitou-se para dentro, deu uma volta brusca e tentou fechar a porta. Esta era mantida meio aberta por um tirante de couro.

          — Está vindo! — berrou, a voz estridente de terror. — Ele está vindo. O Homem Invisível! Está me perseguindo! Pelo amor de Deus! Socorro! Socorro! Socorro!

          — Fechem as portas — ordenou o policial. — Quem está vindo? Que barulhada é essa? — Foi até a porta, soltou o tirante e esta fechou-se. O americano fechou a outra porta.

          — Deixem-me entrar — suplicou Marvel, cambaleante e em prantos, mas ainda agarrado aos livros. — Deixem-me entrar. Tranquem-me em algum lugar — qualquer um. Estou dizendo, ele está me perseguindo. Escapei dele. Disse que me mataria e vai me matar.

          — Está a salvo — tranqüilizou-o o homem da barba negra. — A porta está fechada. Qual é o problema?

          — Deixem-me ir para dentro — implorou Marvel e gritou alto quando, subitamente, uma pancada fez tremer a porta trancada e foi seguida de batidas rápidas e gritos vindos de fora. — Ei — interpelou o policial. — Quem está aí? — O sr. Marvel começou a atirar-se desesperadamente contra os painéis que pareciam portas. — Ele vai me matar. Tem uma faca ou coisa assim. Pelo amor de Deus!

          — Está bem — disse o encarregado do bar. — Venha para cá. — E levantou a aba móvel do balcão.

          O sr. Marvel precipitou-se para trás do balcão do bar, enquanto as batidas do lado de fora se repetiam. — Não abram a porta — berrou. — Por favor, não abram a porta. Onde posso me esconder?

          — Então é mesmo o Homem Invisível? — perguntou o homem de barba negra, com uma das mãos por trás das costas. — Acho que já é tempo de o vermos.

          De repente, a janela da estalagem foi quebrada e houve gritos e correrias de um lado para outro na rua. O policial tinha subido em um banco para olhar para fora, esforçando-se para ver quem estava à porta. Desceu, com as sobrancelhas erguidas. — Acho que é — disse. O encarregado do bar postou-se diante da porta do salão do bar que tinha sido fechada trancando o sr. Marvel, examinou a janela quebrada e aproximou-se dos dois outros homens.

          Repentinamente, tudo ficou quieto. — Gostaria de ter meu cassetete — disse o policial, caminhando com hesitação para a porta. — Se abrirmos, ele entra. Não há como impedi-lo.

          — Não se apresse muito com essa porta — disse o cocheiro anêmico, cheio de ansiedade.

          — Tire as trancas — propôs o homem de barba negra — e se ele entrar. . . Exibiu o revólver que tinha na mão.

          — Isso não — objetou o policial. — Isso é assassinato.

          — Sei em que país estou — disse o barbado. — Vou atirar nas pernas. Tirem as trancas.

          — Não com essa coisa disparando por trás de mim — objetou o encarregado, tentando enxergar por cima das persianas.

          — Muito bem — disse o homem da barba negra e, abaixando-se, o revólver engatilhado, tirou-as ele mesmo. O homem do bar, o cocheiro e o policial deram meia-volta.

          — Entre — convidou o homem da barba em voz baixa, recuando e ficando de frente para as portas destrancadas, com o revólver atrás das costas. Ninguém entrou. A porta continuou fechada. Cinco minutos depois, quando um segundo cocheiro enfiou a cabeça para dentro, cuidadosamente, ainda estavam esperando e um rosto aflito surgiu por trás do bar e esclareceu. — Todas as portas da casa estão fechadas? — perguntou Marvel.

          — Está dando a volta. Cercando. É mais astuto do que o diabo.

          — Deus do céu! — exclamou o corpulento homem do bar.

          — Há os fundos! Cuidado com as portas dos fundos! Escutem! — Impotente, olhou em volta. A porta do salão bateu e ouviram a chave girar na fechadura. — Há a porta do pátio e a porta particular. A porta do pátio...

          Saiu do bar apressadamente.

          Pouco depois apareceu com um facão. — A porta do pátio estava aberta — comunicou e o gordo lábio inferior ficou pendente.

          — Pode estar na casa agora! — arriscou o primeiro cocheiro.

          — Não está na cozinha — respondeu o homem do bar. — Há duas mulheres lá e golpeei cada centímetro dela com este pequeno cortador de carne. Elas não acham que tenha entrado. Não notaram..

          — Você a fechou? — perguntou o primeiro cocheiro.

          — Não estou usando saias — replicou o encarregado do bar. O homem barbado guardou o revólver. Mas no momento em que o fez a aba do bar que estava levantada caiu, fechando-se, o trinco estalou e então, com um barulho tremendo a fechadura da porta arrebentou e a porta do salão do bar escancarou-se com estrondo. Ouviram Marvel guinchar como uma lebre apanhada e imediatamente pularam o balcão para socorrê-lo. O revólver do homem barbado estalou e o espelho, no fundo do salão, quebrou-se, brilhante, e desabou, tilintando.

          Quando o homem do bar entrou na sala, viu Marvel estranhamente encolhido e lutando contra a porta que levava à cozinha e ao pátio. Mas, enquanto ele hesitava, a porta abriu-se de súbito e Marvel foi arrastado para a cozinha. Ouviu-se um grito e depois um choque de panelas. Marvel, de cabeça baixa e tentando obstinadamente não se deixar carregar foi forçado a transpor a porta da cozinha e os trincos cerraram-se.

          O policial, que estava tentando passar à frente do encarregado do bar entrou correndo, seguido por um dos cocheiros, agarrou o pulso da mão invisível que segurava Marvel pelo pescoço, levou um soco no rosto e foi atirado para trás, rodopiando. A porta abriu-se e Marvel fez um esforço desesperado para colocar-se atrás dela. Então o cocheiro tocou alguma coisa. — Peguei-o — exclamou. As mãos vermelhas do encarregado do bar, em garra, procuravam o invisível. — Aqui está! — disse.

          O sr. Marvel, subitamente livre, caiu no chão e fez uma tentativa de engatinhar entre as pernas dos homens que lutavam. A luta continuou aos solavancos, até perto da porta. Pela primeira vez, ouviu-se a voz do Homem Invisível gritando alto quando o policial pisou em seu pé. Depois gritou mais uma vez, vigorosamente e seus punhos voaram à sua volta como se fossem malhos. O cocheiro gemeu de repente e seu corpo dobrou-se com um golpe abaixo do diafragma. A porta que dava da cozinha para o salão foi batida e cobriu a retirada do sr. Marvel. Os homens na cozinha ficaram segurando e lutando com o vazio do ar.

          — Para onde foi ele? — indagou o homem da barba. — Para fora?

          — Por aqui — disse o policial, passando para o pátio e detendo-se.

          Um pedaço de telha passou, assoviando, sobre sua cabeça e quebrou-se entre as louças na mesa da cozinha.

          — Vou mostrar a ele — berrou o homem da barba negra e, de repente, um cano de aço brilhou sobre o ombro do policial e cinco balas seguiram umas as outras até a penumbra de onde tinha vindo o projétil. Ao atirar, o homem barbado movia a mão em uma curva horizontal, de forma que os tiros irradiaram-se pelo pátio estreito como os raios de uma roda.

          Seguiu-se o silêncio. — Cinco cápsulas — disse o homem da barba negra. — É o melhor. Quatro ases e o coringa. Alguém pegue uma lanterna, venha e procure encontrar o corpo dele.

         

       O VISITANTE DO DR. KEMP

          O dr. Kemp tinha continuado a escrever em seu escritório, até que os tiros lhe chamaram a atenção. Craque, craque, craque, os estalidos seguiam-se uns aos outros.

          — Ei! — exclamou o dr. Kemp, pondo a caneta novamente na boca e ouvindo. — Quem está disparando revólveres em Burdock? Que é que os idiotas estão fazendo agora?

          Foi até a janela que dava para o sul, abriu-a e debruçando-se, olhou para baixo, para o aglomerado de janelas, globos dos lampiões de gás e lojas entremeados pelos intervalos negros de telhados e pátios, que caracterizavam a cidade à noite. — Parece que há um ajuntamento no sopé da colina, junto ao "Cricketers" — disse, e ficou observando. Dali seu olhar vagueou pela cidade até mais longe, onde brilhavam as luzes dos navios e o embarcadouro destacava-se vivamente, um pequeno pavilhão iluminado como uma pedra preciosa de reflexos amarelados. A lua, no quarto crescente, aparecia sobre a colina a oeste, e as estrelas estavam límpidas, com um fulgor quase tropical.

          Após cinco minutos, durante os quais sua mente passara a uma remota especulação a respeito das condições sociais do futuro e acabara por perder-se em cogitações sobre a dimensão do tempo, o dr. Kemp voltou a si com um suspiro, fechou outra vez a janela e voltou à escrivaninha.

          Devia ter-se passado quase uma hora, quando a campainha da porta da frente soou. Estivera escrevendo sem muito interesse, com intervalos de abstração, desde que os tiros haviam sido disparados. Ouviu a empregada atender à porta e esperou pelo ruído de passos subindo a escada, porém ela não veio. — Não imagine quem poderia ter sido — resmungou o dr. Kemp.

          Tentou retomar o trabalho, não conseguiu, levantou-se, desceu as escadas do escritório até o patamar, tocou a campainha e, da balaustrada, perguntou, ao ver a empregada aparecer no vestíbulo embaixo. — Era uma carta?

          — Tocaram e correram, senhor — respondeu ela.

          — Estou inquieto esta noite — disse a si mesmo. Voltou ao escritório e dessa vez atacou o trabalho resolutamente. Em pouco tempo estava mergulhado nele e os únicos sons no aposento eram o tiquetaquear do relógio e o discreto arranhar de sua pena atarefada, bem no centro do círculo de luz que o abajur projetava sobre a mesa.

          Só às duas horas o dr. Kemp encerrou o trabalho da noite. Levantou-se, bocejou, e desceu para deitar-se. Já tinha tirado o paletó e o colete, quando percebeu que estava com sede. Pegou uma vela e desceu até a sala de jantar em busca de um sifão e uísque.

          Os interesses científicos do dr. Kemp haviam feito dele um homem muito observador e, voltando pelo corredor, notou uma mancha escura no linóleo, junto ao tapete ao pé da escada. Subiu-a e então, de repente, ocorreu-lhe perguntar-se que mancha poderia ser aquela no linóleo. Ao que parece, impelia-o algum elemento subconsciente. De qualquer forma, voltou-se com as coisas que carregava, foi até o vestíbulo, largou o sifão e o uísque e, abaixando-se, tocou a mancha. Sem muita surpresa, descobriu que era pegajosa e da cor do sangue meio coagulado.

          Pegou novamente os objetos e foi de novo para cima, olhando a seu redor e tentando explicar a mancha de sangue. No patamar da escada viu algo que o fez parar, surpreso. A maçaneta da porta do quarto estava manchada de sangue.

          Olhou para as mãos. Continuavam absolutamente limpas e então lembrou-se de que a porta do quarto estava aberta quando descera do escritório e que, por isso, nem sequer tocara a maçaneta. Entrou imediatamente, o rosto calmo — talvez um pouco mais decidido do que o habitual. Seu olhar, passeando especulativa-mente, deteve-se na cama. A colcha estava cheia de sangue e o lençol fora rasgado. Não o tinha notado antes porque havia se encaminhado diretamente para a cômoda. Do lado oposto da cama, os lençóis mostravam uma depressão, como se alguém tivesse se sentado ali recentemente.

          Então, teve a estranha impressão de que ouvira uma voz dizer alto: — Deus do céu! Kemp! — Mas o dr. Kemp não acreditava em vozes.

          Ficou parado, olhando fixamente para os lençóis em desordem. Teria aquilo sido realmente uma voz? Examinou novamente o quarto, mas não viu nada além da cama desarrumada e manchada de sangue. Então ouviu nitidamente um movimento do outro lado do quarto, perto do suporte da bacia de mãos. Todos os homens, por mais instruídos que sejam, retêm alguns vestígios de superstição. A sensação que é chamada de "sobrenatural" apossou-se dele. Fechou a porta, foi até a cômoda e pôs as coisas que trazia em cima dela. De repente, com um sobressalto, divisou uma atadura feita de um pedaço de linho, enrolada e manchada de sangue, pendendo do ar, entre ele e a bacia.

          Olhou para aquilo, cheio de pasmo. Era uma atadura vazia, uma atadura muito bem aplicada, mas inteiramente vazia. Quis adiantar-se para pegá-la, mas um toque e uma voz que falava bem perto dele o detiveram.

          — Kemp! — disse a Voz.

          — Hein? — respondeu Kemp, de boca aberta.

          — Mantenha-se calmo — falou a Voz. — Sou um Homem Invisível.

          Por algum tempo Kemp não respondeu, de olhos fitos na atadura. — Homem Invisível — repetiu.

          A história que contribuíra para ridicularizar de manhã, perpassou-lhe pela mente. Naquele momento, ao que parecia, não ficou muito assustado ou excessivamente amedrontado. A compreensão veio depois.

          — Pensei que tudo fosse mentira — disse. A lembrança das discussões muitas vezes repetidas durante a manhã dominava-lhe os pensamentos. — Você está com uma atadura? — perguntou,

          — Sim — respondeu o Homem Invisível.

          — Oh! — exclamou Kemp e depois irritou-se. — Claro! — disse. — Mas isso é tolice. É algum truque. — Avançou subitamente e sua mão, estendida para a atadura, tocou dedos invisíveis.

          Recuou, fugindo ao contato e seu rosto mudou de cor.

          — Calma, Kemp, pelo amor de Deus! Preciso muito de ajuda. Pare!

          A mão segurou-lhe o braço. Ele repeliu-a.

          — Kemp! — gritou a Voz. — Kemp! Mantenha a calma! — e a pressão em seu braço aumentou.

          Um desejo irracional de libertar-se, tomou conta de Kemp. A mão correspondente ao braço da atadura agarrou-lhe o ombro e, repentinamente, recebeu uma rasteira e foi atirado de costas sobre a cama. Abriu a boca para gritar e a ponta do lençol foi enfiada entre seus dentes. O Homem Invisível o mantinha à força, mas os braços continuavam livres e desferiu um soco, tentando selvagemente dar pontapés ao mesmo tempo.

          — Ouça a voz da razão, está bem? — disse o Homem Invisível segurando-o, apesar de estar levando socos nas costelas. — Por Deus! Daqui a pouco você vai me irritar! Fique quieto, idiota! — berrou o Homem Invisível no ouvido de Kemp.

          Este lutou um pouco mais e depois ficou imóvel.

          — Se gritar, rebento sua cara — advertiu o Homem Invisível, liberando-lhe a boca. — Sou um Homem Invisível. Não é tolice nem feitiçaria. Sou realmente um Homem Invisível. E quero sua ajuda. Não pretendo machucar você, mas se se comportar como um labrego apavorado, terei que fazê-lo. Não se lembra de mim, Kemp? — Griffin, do Colégio Universitário?

          — Deixe-me levantar — disse Kemp. — Não sairei de onde estou. Deixe-me sentar calmamente um minuto.

          Sentou-se e apalpou o pescoço.

          — Sou Griffin, do Colégio Universitário e tornei-me invisível. Sou apenas um homem comum — um homem que você conheceu ... e que ficou invisível.

          — Griffin? — repetiu Kemp.

          — Griffin — confirmou a Voz —, um estudante mais moço, quase albino, de perto de um metro e noventa, forte, com um rosto cor-de-rosa e olhos vermelhos — aquele que ganhou uma medalha em química.

          — Estou confuso — queixou-se Kemp. — Meu cérebro parece um turbilhão. Que tem isso a ver com Griffin?

          — Eu sou Griffin.

          Kemp pensou. — É espantoso — disse. — Mas que tipo de bruxaria acontece para tornar um homem invisível?

          — Não é bruxaria. É um procedimento racional e bastante inteligível. . .

          — É espantoso — repetiu Kemp. — Mas como. . .?

          — É espantoso, concordo. Mas estou ferido, com dor e cansado. . . Meu Deus! Kemp, você é homem. Controle-se. Dê-me o que comer e beber e deixe-me sentar aqui.

          Kemp contemplou fixamente a atadura que se movia pelo quarto, depois viu uma cadeira de vime ser arrastada pelo chão até chegar perto da cama. Ouviu um rangido e o assento afundou talvez uns poucos centímetros. Esfregou os olhos e tateou o pescoço de novo. — Isso é mais do que ver fantasmas — disse, e riu estupidamente.

          — Assim é melhor. Graças a Deus, está voltando a ser sensato!

          — Ou tolo — disse Kemp, pressionando os olhos com os nós dos dedos.

          — Dê-me um pouco de uísque. Estou quase morto.

          — Não me pareceu. Onde está? Se me levantar vou esbarrar em você? Ah! Está certo. Uísque? Aqui. Onde vou lhe entregar?

          A cadeira rangeu e Kemp sentiu que lhe tiravam o copo. Soltou-o com esforço; seu instinto era contrário. Este foi parar a uns quarenta centímetros acima da parte da frente do assento da cadeira. Olhava para tudo com infinita perplexidade. — Isso é. . . isso deve ser. . . hipnotismo. Você deve ter sugerido que é invisível.

          — Bobagem — disse a Voz.

          — É uma loucura.

          — Ouça-me.

          — Esta manhã, demonstrei, conclusivamente — começou Kemp —, que a invisibilidade. ..

          — Esqueça o que demonstrou! Estou morto de fome — disse a Voz — e a noite é gelada, para um homem sem roupas.

          — Comida! — exclamou Kemp.

          A garrafa de uísque inclinou-se. — Sim — disse o Homem Invisível com ênfase. — Tem um roupão?

          Kemp soltou uma interjeição a meia voz. Foi ao guarda-roupas e retirou um roupão de um vermelho encardido. — Isso serve? — perguntou. Arrancaram-no dele. Por um momento, pendeu molemente no ar, agitou-se estranhamente e parou, cheio, abotoando-se decorosamente e sentou-se na cadeira. — Calças, meias e chinelos seriam um conforto —, disse o Estranho secamente. — E comida.

          — O que quiser. Mas esta é a situação mais insana em que já estive, em toda a minha vida!

          Remexeu as gavetas para apanhar os artigos exigidos e depois foi para baixo, a fim de saquear a despensa. Voltou com costeletas frias e pão, pegou uma mesa leve e colocou-a diante do hóspede. — Não se incomode com facas, disse o visitante, e uma costeleta ficou no ar, com um barulho de estar sendo roída.

          — Incrível! — resmungou Kemp e sentou-se em uma das cadeiras do quarto.

          — Sempre gostei de vestir alguma coisa antes de comer — disse o Homem Invisível com a boca cheia, comendo avidamente. — É uma estranha mania.

          — Suponho que esse pulso esteja bem — disse Kemp.

          — Pode confiar em mim — respondeu o Homem Invisível.

          — Entre todas as coisas fantásticas e miraculosas. . .

          — Exatamente. Mas é esquisito que tenha vindo parar em sua casa para arranjar uma bandagem. Meu primeiro golpe de sorte. De qualquer maneira, já tinha resolvido dormir aqui esta noite. Você vai ter que aturar isso! É desagradável que meu sangue apareça, não é? Um belo coágulo lá embaixo. Vai ficando visível à medida em que coagula, vejo agora. Há três horas que estou na casa.

          — Mas como pode ser feito? — começou Kemp, em um tom exasperado. — Que diabo! Todo esse negócio.... é irracional, do princípio ao fim.

          — Muito lógico — disse o Homem Invisível. — Perfeitamente lógico.

          Estendeu a mão e pegou a garrafa de uísque. Kemp contemplou o roupão esfomeado. Um raio de luz de vela, penetrando em um pedaço rasgado da roupa à altura do ombro direito, desenhou um triângulo de luz sob as costelas esquerdas. — Que tiros "eram aqueles? — perguntou. — Como começou o tiroteio?

          — Havia um asno de um homem. . . uma espécie de cúmplice — que vá para o inferno! — Que tentou roubar-me dinheiro. Que roubou.

          — É invisível também?

          — Não.

          — E então?

          — Posso comer mais alguma coisa antes de lhe contar tudo? Estou com fome — e com dor. E quer que conte histórias!

          Kemp levantou-se. — Você não deu nenhum tiro? — perguntou. — Eu não — respondeu o visitante. — Algum idiota a quem nunca tinha visto, atirou a esmo. Muitos deles ficaram com medo. Todos ficaram com medo de mim. Que vão para o inferno! Escute, quero comer mais do que isso, Kemp.

          — Vou ver lá embaixo o que ainda há para comer — disse Kemp. — Lamento, mas não é muito.

          Depois de acabar de comer, e tinha sido uma refeição farta, o Homem Invisível pediu um charuto. Mordeu vigorosamente a ponta, antes que Kemp pudesse encontrar um canivete e xingou quando a folha externa soltou-se. Era estranho vê-lo fumar: a boca, garganta, faringe e narinas tornaram-se visíveis como uma espécie de molde rodopiante de fumaça.

          — O bendito prazer de fumar! — exclamou ele e exalou com força. — Tive sorte de encontrar você, Kemp. Tem que me ajudar. Imagine, esbarrar com você neste momento! Estou em um apuro terrível. Acho que devia estar louco. Os apertos que passei! Mas ainda vamos realizar grandes coisas. Deixe que lhe diga. ..

          Serviu-se de mais uísque e soda. Kemp levantou-se, olhou a seu redor e apanhou um copo para ele no quarto de hóspedes. — É loucura, mas suponho que eu posso beber.

          — Você não mudou muito, Kemp, nesses doze anos. Os homens claros não mudam. Frios e metódicos. .. depois do primeiro fracasso. Tenho que lhe contar. Trabalharemos juntos!

          — Mas como foi feito? — perguntou Kemp. — E como ficou assim?

          — Pelo amor de Deus, deixe-me fumar em paz, só um pouquinho! Depois vou começar a contar.

          Mas a história não foi contada àquela noite. O pulso do Homem Invisível estava ficando doloroso, sentia-se febril, exausto e sua mente fixou-se na perseguição colina abaixo e na luta perto da estalagem. Falando em Marvel intermitentemente, passou a fumar mais depressa e a voz foi ficando colérica. Kemp tentava entender o que era possível.

          — Ele tinha medo de mim, podia-se ver que tinha medo de mim — disse o Homem Invisível muitas vezes. — Pretendia me dar o fora... estava sempre se afastando! Que idiota fui!

          — O canalha!

          — Devia tê-lo morto...

          — Onde arranjou o dinheiro? — perguntou Kemp bruscamente.

          Por algum tempo, o Homem Invisível guardou silêncio. — Não posso dizer esta noite.

          De súbito gemeu e inclinou-se para a frente, apoiando a cabeça invisível em mãos invisíveis. — Kemp — disse — não durmo há quase três dias, exceto por uns dois cochilos de uma hora mais ou menos. Preciso dormir o quanto antes.

          — Bem, use o meu quarto — use este quarto.

          — Mas como posso dormir? Se dormir, ele foge. Ai! Que importa?

          — Como é o ferimento? — perguntou Kemp.

          — Nada — um arranhão e sangue. Oh, Deus! Como quero dormir!

          — Por que não?

          O Homem Invisível pareceu estar observando Kemp. — Porque faço objeção a ser apanhado por meus semelhantes — disse lentamente.

          Kemp estremeceu.

          — Que louco sou! — disse ele, dando uma violenta pancada na mesa. — Pus a idéia em sua cabeça.

         

       O HOMEM INVISÍVEL DORME

          Embora exausto e ferido como estava, o Homem Invisível recusou-se a aceitar a palavra de Kemp de que sua liberdade seria respeitada. Examinou as duas janelas do quarto, subiu as persianas e abriu as cortinas para conferir a informação de Kemp de que uma fuga através delas seria possível. Lá fora a noite estava tranqüila e parada e a lua nova banhava a colina. Depois examinou as chaves do quarto de dormir e as duas portas do quarto de vestir, para convencer-se de que aquelas também poderiam servir para lhe assegurar a liberdade. Finalmente declarou-se satisfeito. Ficou de pé, junto à lareira e Kemp ouviu o som de um bocejo.

          — Desculpe — disse o Homem Invisível — se não posso lhe contar o que fiz esta noite. Mas estou esgotado. Sem dúvida, é grotesco. É espantoso! Mas acredite, Kemp, é uma coisa realmente possível. Fiz uma descoberta. Pretendia guardá-la só para mim. Mas não posso. Tenho que ter um sócio. E você... Há tanta coisa que podemos fazer. . . Amanhã. Agora, Kemp, sinto que preciso dormir ou morro.

          Kemp estava no meio do quarto, olhando a roupa sem cabeça. — Acho que devo deixá-lo — disse. — É incrível. Se acontecessem três coisas assim, derrubando todas as minhas idéias preconcebidas, ficaria louco. Mas é verdade! Há mais alguma coisa que possa lhe dar?

          — Só me dê boa-noite — respondeu Griffin.

          — Boa-noite — disse Kemp, e apertou uma mão invisível. Caminhou meio de lado para a porta. De repente, o roupão aproximou-se dele. — Compreenda! — disse — nada de tentativas de me tolher ou capturar. Ou. ..

          A expressão do rosto de Kemp mudou um pouco. — Pensei que tinha lhe dado minha palavra — protestou.

          Ao sair, Kemp fechou a porta sem barulho e imediatamente esta foi trancada a chave. Então, enquanto ele ainda permanecia com um ar de espanto inerte, pés ligeiros chegaram até a porta do quarto de vestir e esta também foi trancada. Kemp bateu com a mão na testa. — Estarei sonhando? O mundo ficou doido ou fiquei eu?

          Sorriu e passou a mão pela porta fechada. — Fui barrado de meu próprio quarto por um absurdo clamoroso!

          Andou até o alto da escada, voltou-se e olhou fixamente as portas fechadas. — É um fato — disse. Pôs os dedos no pescoço ligeiramente dolorido. — Um fato inegável! Mas... — Sacudiu a cabeça, desanimado e desceu.

          Acendeu a lâmpada da sala de jantar, pegou um charuto e começou a caminhar pela sala, falando sozinho. De vez em quando argumentava consigo mesmo.

          — Invisível?

          — Existe algum animal invisível? No mar, sim. Milhares! Milhões! Todas as larvas, todos os pequenos náuplios e tomarias, todas as coisas microscópicas, a medusa. No mar, há mais coisas invisíveis do que visíveis! Nunca pensei nisso antes. E nos charcos também. Todas as pequenas coisas que vivem nos charcos — fragmentos de gelatina translúcida. Mas no ar? Não!

          — Não pode ser.

          — Mas afinal, por que não?

          — Se um homem fosse feito de vidro, ainda assim seria visível.

          Sua meditação tornou-se profunda. O volume de três charutos tinha passado a ser invisível, ou então difuso sob a forma de cinza branca, até que falou novamente. Mas foi apenas uma exclamação. Voltou-se, saiu da sala, foi até o pequeno consultório e acendeu o gás. O aposento era pequeno porque o dr. Kemp não vivia da clínica; lá estavam os jornais do dia. O jornal da manhã tinha sido aberto descuidadamente e posto de lado. Apanhou-o, virou as páginas e leu o texto da "História Misteriosa em Iping", a mesma que o marinheiro em Port Stowe havia soletrado tão penosamente para o sr. Marvel. Kemp leu-a depressa.

          — Embrulhado! — exclamou. — Disfarçado! Escondendo-se! Ninguém parece ter percebido sua infelicidade! Que diabo de jogo é o dele?

          Largou o jornal e buscou com os olhos. — Ah! — disse, e pegou a St. James Gazette, que ainda estava dobrada como chegara. — Agora vamos descobrir a verdade. — Rasgou a cinta de papel e abriu o jornal; umas duas colunas chamaram-lhe a atenção. "Toda Uma Aldeia em Sussex Enlouquece", era a manchete.

          Meu Deus — explodiu Kemp, lendo avidamente um incrível relato dos acontecimentos em Iping na tarde anterior, os mesmos que já foram descritos. A narrativa do jornal da manhã fora transcrita.

          Releu-a. "Correu pelas ruas batendo à direita e esquerda. Jaffers, inconsciente. O sr. Huxter muito ferido, ainda incapaz de descrever o que vira. Humilhação terrível — o vigário. Uma mulher doente de medo! Janelas quebradas. Essa história extraordinária era, provavelmente, inventada. Boa de mais para não ser impressa... cum grano!"

          Largou o jornal e ficou olhando para a frente, sem entender — Provavelmente inventada!

          Pegou o jornal de novo e releu tudo. — Mas onde entra o Vagabundo? Por que diabos estaria perseguindo um Vagabundo?

          Sentou-se bruscamente na mesa de exames. — Ele não é apenas invisível, é louco — disse. — Homicida!

          Quando a madrugada chegou para misturar sua claridade à luz da lâmpada e à fumaça de charuto na sala de jantar, Kemp ainda estava andando de um lado para outro, tentando aprender o incrível.

          Sentia-se excitado demais para dormir. Os criados, ao descerem sonolentamente, descobriram-no ali e pensaram que o estudo demasiado tinha lhe feito mal. O patrão deu-lhes instruções estranhas, mas bastante explícitas, para servirem o desjejum para dois no escritório do mirante e depois limitarem-se ao porão e ao pavimento térreo. E continuou a percorrer a sala de jantar, até que o jornal da manhã chegou. Este falava muito, mas dizia pouco, além da confirmação da notícia da noite anterior e um relato bastante mal escrito de outra história notável em Port Burdock. Tudo aquilo forneceu a Kemp o essencial sobre os acontecimentos no bar "Jolly Cricketers" e o nome de Marvel. "Obrigou-me a ficar com ele vinte e quatro horas", testemunhava Marvel. Acrescentara também certos detalhes menos importantes à história de Iping, principalmente o corte do fio de telégrafo da aldeia. Mas não havia nada que esclarecesse a ligação entre o Homem Invisível e o Vagabundo; pois o sr. Marvel não dera informações sobre os três livros e o dinheiro que lhe enchia os bolsos. O tom de incredulidade desaparecera e um bando de repórteres e investigadores já estava a postos para elaborar a matéria.

          Kemp leu cada linha da história e mandou a criada comprar todos os jornais da manhã que pudesse. E também os devorou.

          — Ele é invisível! — concluiu. — E parece que sua raiva está se tornando maníaca! As coisas que pode fazer! As coisas que pode fazer! E está lá em cima, livre como o ar. Como devo agir?

          — Por exemplo, seria quebrar a palavra se. . .? Não.

          Foi até uma pequena mesa desarrumada em um canto e começou a escrever um bilhete. Rasgou-o quando já estava pela metade e escreveu outro. Leu-o e pensou bastante. Então pegou um envelope e endereçou-o ao "Coronel Adye, Port Burdock".

          Enquanto Kemp se ocupava disso, o Homem Invisível acordou. Despertou de mau humor e Kemp, atento a cada som, ouviu de repente o ruído de seus passos correndo pelo quarto acima. Depois uma cadeira foi atirada e o lavatório com a bacia quebraram-se. Kemp apressou-se a subir e bateu na porta, ansiosamente.

       

        CERTOS PRINCÍPIOS BÁSICOS

          — Que aconteceu? — perguntou Kemp, quando o Homem Invisível deixou-o entrar.

          A resposta foi: — Nada.

          — Mas, que diabo! E o estrondo?

          — Um acesso de raiva — respondeu o Homem Invisível. — Esqueci o braço e está doendo.

          — Você parece dado a esse tipo de coisa.

          — Sou.

          Kemp atravessou o quarto e apanhou os fragmentos de vidro quebrado. — Já se sabe de todos os fatos sobre você — disse-lhe, ali de pé, com os vidros na mão —; tudo o que aconteceu em Iping e na encosta da colina. O mundo tomou consciência de seu cidadão invisível. Mas ninguém sabe que está aqui.

          O Homem Invisível xingou.

          — O segredo foi descoberto. Imagino que fosse segredo. Não sei quais são os seus planos mas, naturalmente, estou pronto a ajudar.

          O Homem Invisível sentou-se na cama.

          — Há café lá em cima — disse Kemp, falando com a maior naturalidade possível e teve o prazer de ver que o estranho hóspede levantava-se de boa vontade. Kemp foi na frente, subindo a escada estreita até o mirante.

          — Antes que possamos fazer qualquer outra coisa, preciso compreender um pouco mais sobre sua invisibilidade — disse Kemp. Relanceou nervosamente pela janela e sentou-se com o ar de um homem que tem coisas a dizer. Suas dúvidas sobre a sanidade de toda aquela história aflorou-lhe à mente e desapareceu de novo, quando olhou para o lugar que Griffin ocupava à mesa do café — um. roupão sem cabeça e sem mãos, enxugando lábios invisíveis em um guardanapo miraculosamente seguro.

          — É bastante simples — e bastante verossímil — disse Griffin, pondo de lado o guardanapo e apoiando a cabeça invisível em uma mão invisível.

          — Para você sim, sem dúvida, mas... — Kemp riu.

          — Bem, de fato, a princípio pareceu-me maravilhoso. Porém agora, meu Deus! Mas juntos ainda faremos grandes coisas! Descobri o princípio em Chesilstowe.

          — Chesilstowe?

          — Fui para lá, quando deixei Londres. Sabe que abandonei a medicina para dedicar-me à física? Não? Bem, foi o que fiz. A luz me fascinava.

          — Ah!

          — A densidade ótica. Seu campo é uma rede de enigmas, com soluções brilhando fugazmente. E, tendo apenas vinte e dois anos e um grande entusiasmo, pensei: "Vou dedicar minha vida a isso. Vale a pena." Você sabe como somos ingênuos aos vinte e dois anos.

          — Ingênuos nessa época ou ingênuos agora.

          — Como se o saber trouxesse qualquer satisfação a um homem!

          — Mas comecei a trabalhar — como um escravo. E mal tinha começado a trabalhar e a pensar no assunto, apenas seis meses, quando, de repente, a luz atravessou uma das malhas, subitamente ofuscante! Descobri um princípio geral de pigmentos e refração — uma fórmula, uma expressão geométrica envolvendo quatro dimensões. Tolos e homens comuns, e até os matemáticos comuns, não sabem nada sobre o que certas expressões gerais podem significar para o estudante de física molecular. Nos livros — os livros que o Vagabundo escondeu — há maravilhas, milagres! Mas aquele não era um método, era uma idéia que poderia levar a um método, através do qual seria possível, sem modificar qualquer outra propriedade da matéria — exceto as cores, em alguns casos — baixar o índice de refração de uma substância, sólida ou líquida, para o do ar — visando todos os propósitos.

          — Ufa! — exclamou Kemp. — Isso é estranho! Mas ainda não vejo. . . Compreendo que, a partir dali, você poderia anular uma pedra preciosa, mas a invisibilidade pessoal está muito longe disso.

          — Exatamente — disse Griffin. — Mas considere: a visibilidade depende da ação dos corpos visíveis sobre a luz. Ou um corpo absorve a luz ou a reflete, ou então faz tudo isso. Se ele não reflete, refrata nem absorve a luz, não pode, por si só, ser visível. Você vê uma caixa vermelha opaca, por exemplo, porque a cor absorve alguma luz e reflete o resto — toda a parte vermelha da luz — para você. Se ela não absorvesse nenhuma parte específica da luz, mas a refletisse totalmente, então seria uma brilhante caixa branca. Prata! Uma caixa feita de brilhantes não absorveria muita luz, nem refletiria muito da superfície total, mas apenas aqui e ali, onde as superfícies fossem favoráveis, a luz seria refletida e refratada e você teria uma aparência brilhante de clarões de reflexos e transparências — uma espécie de esqueleto de luz. Uma caixa de vidro não seria tão cintilante nem tão claramente visível como uma caixa de brilhantes, pois haveria menos refração e reflexão. Entende? Sob certos ângulos, poder-se-ia ver claramente através dela. Alguns tipos de vidro seriam mais visíveis do que outros, uma caixa de cristal seria mais reluzente do que uma caixa de vidro de janela comum. Uma caixa de vidro comum muito fino seria difícil de ver em pouca luz, porque não absorveria quase nenhuma luz e refrataria e refletiria muito pouca. E se se pusesse uma placa de vidro branco na água, ou mais ainda, se se usasse algum líquido mais denso que a água, ela desapareceria quase totalmente, porque a luz que passaria da água para o vidro, seria apenas levemente refratada ou refletida, ou, na verdade, afetada de qualquer forma. Seria quase tão invisível quanto o são o gás de carbono ou o hidrogênio no ar. E precisamente pela mesma razão!

          — Sim — disse Kemp. — É indiscutível.

          — E aqui está outro fato que você sabe que é verdadeiro. Se uma folha de vidro for quebrada, Kemp, e reduzida a pó, fica muito mais visível enquanto está no ar; transforma-se, finalmente, em um pó branco e opaco. Isso é porque a pulverização multiplica as superfícies do vidro onde ocorrem refrações e reflexões. Na folha de vidro há apenas duas superfícies; no pó, a luz é refletida ou refratada por cada grão que atravessa, e muito pouca atravessa totalmente o pó. Mas se o vidro branco pulverizado é posto na água, desaparece imediatamente. O vidro pulverizado e a água têm índices de refração muito semelhante; isto é, a luz sofre muito pouca refração ou reflexão, ao passar de uma para o outro.

          — É possível tornar o vidro invisível colocando-o em um líquido com quase o mesmo índice de refração; um objeto transparente fica invisível se for colocado em qualquer meio com um índice de refração quase igual. E, se pensar apenas um segundo, verá também que o pó de vidro pode desaparecer no ar se seu índices de refração muito semelhantes; isto é, a luz sofre muito haverá refração ou reflexão, quando a luz passar do vidro para o ar.

          — Sim, sim — concordou Kemp. — Mas um homem não é feito de vidro em pó!

          — Não — disse Griffin. — É mais transparente.

          — Tolice!

          — Ouvir isso de um médico! Como as pessoas se esquecem! Já esqueceu sua física, em dez anos? Pense só em todas as coisas que são transparentes e não parecem sê-lo. O papel, por exemplo, é feito de fibras transparentes e é branco e opaco apenas pela mesma razão que o vidro em pó é branco e opaco. Ponha óleo em um papel branco, encha com óleo os interstícios entre as partículas para que não haja mais refração ou reflexão nas superfícies e ele fica transparente como o vidro. E não é só o papel, mas a fibra de algodão, de linho, de lã, de madeira e de osso, Kemp, a carne, Kemp, o cabelo, Kemp, as unhas e nervos, Kemp, na verdade toda a matéria que compõe o homem, com exceção do vermelho do sangue e do pigmento negro do cabelo, é feita de tecido transparente e incolor. E só isso é suficiente para nos tornarmos visíveis uns aos outros. Pois a maioria das fibras de um ser vivo não são mais opacas do que a água.

          — Céus — exclamou Kemp. — Naturalmente, naturalmente! À noite passada estive pensando nas larvas marinhas e na medusa!

          — Agora entendeu! Estava com tudo isso na cabeça um ano depois de ter deixado Londres — há seis anos. Mas guardei comigo. Tinha que fazer meu trabalho com muitas desvantagens. Oliver, meu professor, era um cientista pouco sério, jornalista por instinto e um ladrão de idéias — estava sempre bisbilhotando. Você conhece o sistema desonesto do mundo científico. Simplesmente, não podia publicar minha descoberta e permitir que ele partilhasse do crédito. Continuei a trabalhar. Fui chegando cada vez mais perto de transformar minha fórmula em uma experiência, uma realidade. Não falei com ninguém, porque pretendia desvendar meu trabalho para o mundo com um efeito esmagador — e tornar-me famoso imediatamente. Dediquei-me ao estudo dos pigmentos, para preencher certos lapsos. E, de repente, sem querer, por acidente, fiz uma descoberta no campo da fisiologia.

          — Sim?

          — Você conhece a matéria que colore o sangue de vermelho; pode ficar branca, incolor — e permanecer assim com todas as funções que lhe são peculiares.

          Kemp deu um grito de incredulidade e espanto.

          O Homem Invisível levantou-se e começou a andar pelo pequeno escritório. — Pode se admirar. Lembro-me daquela noite. Era tarde — durante o dia sempre se era incomodado com estudantes bobos e de boca aberta — e naquela época costumava trabalhar até a madrugada. Tudo surgiu-me na mente, de súbito, esplêndido e completo. Estava só. O laboratório permanecia quieto, com as luzes brilhando silenciosa e intensamente no alto. Em todos os meus momentos importantes, tenho estado só. "Poder-se-ia fazer com que um animal, um tecido, fique transparente! Poder-se-ia fazê-los invisíveis! Tudo, menos os pigmentos. Eu poderia ser invisível!", pensei, compreendendo de um golpe o que significaria ser um albino com tais conhecimentos. Era avassalador. Larguei a filtragem de que estava me ocupando e fui até a grande janela, de onde contemplei as estrelas. — Poderia ser invisível! — repeti.

          — Realizar um tal feito seria transcender a mágica. E contemplei, sem a sombra da dúvida, uma visão magnífica do que poderia significar a invisibilidade para um homem — o mistério, o poder, a liberdade. Não via dificuldades. Só precisava pensar. E eu, um instrutor mal vestido, pobre e enclausurado, ensinando asnos em uma universidade provinciana, poderia me tornar, da noite para o dia, isso. Pergunto-lhe, Kemp, se você... Digo-lhe que qualquer um se teria atirado a essa pesquisa. Trabalhei três anos, e cada montanha de dificuldades que conseguia vencer, mostrava, de seu topo, mais outra. Os detalhes infinitos! E a irritação — um professor, um professor de província, sempre espionando. "Quando vai publicar esse seu trabalho?" — era sua eterna pergunta. E os estudantes, a insuficiência de recursos! Tive três anos disso...

          — E após três anos de segredo e exasperação, descobri que era impossível completar o trabalho — impossível.

          — Por quê? — perguntou Kemp.

          — Dinheiro — disse o Homem Invisível e foi de novo olhar pela janela.

          Bruscamente, voltou-se. — Roubei o velho.. . roubei meu pai. O dinheiro não era dele e matou-se com um tiro.

         

       NA CASA DE GREAT PORTLAND STREET

          Por um momento Kemp ficou calado, olhando fixamente para as costas da figura sem cabeça, à janela. Estremeceu tomado por um pensamento, levantou-se, pegou o braço do Homem Invisível e fez com que se afastasse daquele ponto de observação.

          — Você está cansado — disse — e enquanto estou sentado, fica andando. Tome minha cadeira.

          Colocou-se entre Griffin e a janela mais próxima.

          Por algum tempo Griffin permaneceu sentado e em silêncio e depois prosseguiu abruptamente:

          — Quando isso aconteceu, já tinha saído da pequena casa de Chesilstowe. Foi em dezembro passado. Tinha alugado um quarto em Londres, enorme e sem móveis, em uma grande e mal-cuidada hospedaria, de um bairro pobre perto de Great Portland Street. Não tardou muito para que o quarto se enchesse de aparelhos que tinha comprado com o dinheiro dele; o trabalho progredia com regularidade e êxito, aproximando-se do fim. Sentia-

          me como um homem emergindo de um bosque cerrado que, de repente, deparasse com uma tragédia sem sentido. Fui sepultá-lo. Minha mente estava absorta na pesquisa e não ergui um dedo para inocentá-lo. Lembro-me do funeral, do caixão barato, da breve cerimônia, da colina ventosa e coberta de geada, e do velho colega de colégio que leu o serviço fúnebre em sua intenção — um velho andrajoso, escuro e curvo, com uma terrível coriza.

          — Lembro-me também de voltar à casa vazia, andando por um lugar que tinha sido uma aldeia e estava, naquela ocasião, completamente demarcado e remexido por construtores baratos, à feia semelhança de uma cidade. Por todos os lados os caminhos estendiam-se até os campos profanados e terminavam em montes de lixo e ervas daninhas, úmidas e malcheirosas. Recordo-me de seguir pelo calçamento escorregadio e brilhante, uma silhueta emaciada e sombria, e da estranha sensação de alheamento em relação à respeitabilidade esquálida, ao sórdido comercialismo daquele lugar.

          — Não tive nem um pouco de pena de meu pai. Parecia-me que fora vítima do próprio sentimentalismo tolo. As convenções correntes exigiam minha presença no enterro, mas aquilo, realmente, nada tinha a ver comigo.

          — Mas, seguindo a High Street, minha antiga vida voltou-me à memória, pois encontrei a moça que conhecera fazia dez anos. Nossos olhos se fitaram. Alguma coisa fez com que voltasse e falasse com ela. Era uma pessoa extremamente banal.

          — Aquela visita aos lugares do passado foi como um sonho. Na ocasião, não me senti sozinho, nem senti que viera do mundo para um lugar desolado. Tinha consciência de minha indiferença, mas atribuí-a à vacuidade generalizada de todas as coisas. Entrar novamente em meu quarto foi como recobrar a realidade. Guardava objetos que conhecia e amava. Ali estavam os aparelhos, as experiências organizadas e à espera. E, além do planejamento dos detalhes, restavam muito poucas dificuldades.

          — Mais cedo ou mais tarde, Kemp, vou revelar a você toda a complexidade dos processos. Não precisamos falar nisso agora. A maioria deles, a não ser por certos trechos que preferi decorar, está escrita em código naqueles livros que o vagabundo escondeu.

          Precisamos encontrá-lo. Precisamos recuperar esses livros. Mas a fase essencial era colocar o objeto transparente, cujo índice de refração deveria ser reduzido entre dois núcleos de irradiação de uma espécie de vibração etérea, da qual lhe falarei minuciosamente mais tarde. Não, nada dessas vibrações Rontgen — acho que aquelas a que me refiro ainda não são conhecidas. No entanto, são bastante óbvias. Precisava de dois pequenos dínamos, que fazia funcionar com um motor barato a gás. Minha primeira experiência foi com um pedaço de tecido branco de lã. Foi a coisa mais estranha do mundo observá-lo, branco e macio, no tremular dos raios de luz, vê-lo ficar diáfano como um anel de fumaça e depois desaparecer.

          — Mal podia acreditar que o fizera. Estendi minhas mãos para o vazio e ali estava a matéria, sólida como sempre. Tateei cuidadosamente e joguei-a no chão. Tive certa dificuldade em encontrá-la de novo.

          — Então, houve uma experiência curiosa. Ouvi um miado atrás de mim e voltando-me, vi um gato branco magro, muito sujo, em cima da cobertura da caixa de água, do lado de fora da janela. Tive uma idéia. "Está tudo pronto para você", disse, e fui até a janela, abri-a e chamei brandamente. Ele entrou, ronronando. O pobre animal estava morto de fome — e dei-lhe um pouco de leite. Toda minha comida estava em um armário no canto do quarto. Depois, ele continuou farejando — evidentemente com o objetivo de se instalar com todo o conforto. O pano invisível perturbou-o um pouco; você precisava ver como se eriçou! Mas arranjei-lhe um lugar cômodo no travesseiro de minha cama de rodízios. E dei-lhe manteiga, para induzi-lo a lavar-se.

          — E você submeteu-o ao processo?

          — Sim. Mas dar drogas a um gato não é brincadeira, Kemp! E o processo falhou.

          — Falhou!

          — Em duas coisas. Havia as unhas e aquele pigmento — qual é? — no fundo do olho de um gato. Sabe qual é?

          — O tapetum.

          — Sim, o tapetum. Não desapareceu. Depois que ministrei a droga para descorar o sangue e fiz mais algumas coisas, dei ópio ao animal e coloquei-o, junto com o travesseiro onde dormia, sobre o aparelho. Mas, mesmo quando tudo tornou-se impreciso, acabando por sumir, ainda ficaram os dois pequenos espectros dos olhos dele.

          — Estranho!

          — Não sei como explicar. Claro que estava enfaixado e preso — portanto, seguro; mas acordou ainda indistinto e miou horrivelmente; alguém veio bater à porta. Era uma mulher esquisita que vivia no andar de baixo e que desconfiava que eu fazia vivissecções — uma pobre velha, encharcada de bebida, que só tinha no mundo um gato branco para amar. Molhei uma gaze com clorofórmio, apliquei-a no gato e atendi a porta. "Será que ouvi um gato?", perguntou. "O meu gato?" "Aqui não", respondi, muito polidamente. Ela ficou um pouco hesitante e tentou olhar para o quarto atrás de mim, que, sem dúvida, lhe parecia bastante estranho, naturalmente — paredes nuas, janelas sem cortinas, cama de rodízios, o motor a gás vibrando, os reflexos dos pontos luminosos e aquele leve e desagradável odor de clorofórmio no ar. Afinal teve que desistir e foi embora.

          — Quanto tempo levou? — perguntou Kemp.

          — Três ou quatro horas para o gato. Os ossos, tendões e gorduras foram os últimos a sumir, bem como as pontas mais escuras dos pêlos. E, como disse, o fundo dos olhos que, embora iridescentes, não desapareciam.

          — A noite tinha caído quando terminou e não se podia ver nada além dos olhos empanados e as unhas. Desliguei o motor a gás, tateei e acariciei o gato que ainda estava insensível e depois, cansado, deixei-o dormindo no travesseiro invisível e fui para a cama. Tive dificuldade em conciliar o sono. Fiquei acordado, pensando em disparates vazios e sem objetivo, repetindo mentalmente a experiência, muitas e muitas vezes, ou sonhando, febril, com coisas que se tornavam vagas e desapareciam junto de mim, até que tudo, inclusive o chão que me sustentava, deixou de existir e tive um daqueles pesadelos angustiantes em que se está caindo, que às vezes ocorrem. Por volta das duas horas, o gato começou a miar pelo quarto. Tentei silenciá-lo, falando com ele e depois resolvi pô-lo para fora. Lembro-me do choque que sofri quando estava acendendo a luz — só havia os olhos redondos, de um verde brilhante — e nada em torno deles. Teria lhe dado leite, mas não havia mais nenhum. O animal não ficava quieto, sentava-se e miava para a porta. Tentei agarrá-lo, pensando em fazê-lo sair pela janela, mas não se deixava apanhar, desaparecia. Então começou a miar pelo quarto, em lugares diferentes. Finalmente abri a janela e fiz um movimento brusco. Suponho que acabou por ir embora. Nunca mais o vi.

          — Então, só Deus sabe por quê, comecei a pensar no enterro de meu pai e na colina desolada e ventosa, até o raiar do dia. Concluí que era impossível dormir e saí, fechando a porta, para vaguear pelas ruas adormecidas.

          — Você não está dizendo que existe um gato invisível por aí! — duvidou Kemp.

          — Se não foi morto — confirmou o Homem Invisível. — Por que não?

          — Por que não? — ecoou Kemp. — Não quis interromper.

          — Muito provavelmente foi morto — continuou o Homem Invisível. — Sei que estava vivo quatro dias depois, em um bueiro em Great Titchfield Street; vi uma multidão em volta dele, tentando saber de onde vinham os miados.

          Calou-se por quase um minuto. Depois prosseguiu.

          — Lembro-me nitidamente da manhã antes da transformação. Devia ter subido a Great Portland Street. Recordo o quartel em Albany Street e os soldados saindo a cavalo; e, afinal, vi-me sentado ao sol, sentindo-me muito mal e estranho, no alto de Primrose Hill. Era um dia de sol em janeiro — um desses dias ensolarados e gélidos que tivemos antes da neve, este ano. Meu cérebro cansado tentava equacionar a situação, a fim de concatenar um plano a ser seguido.

          — Fiquei surpreso ao descobrir como me parecia fútil atingir a vitória, quando já a tinha ao meu alcance. Na verdade, estava esgotado; a extrema tensão de um trabalho contínuo de quase quatro anos tinha me deixado incapaz de qualquer emoção positiva. Sentia-me apático e tentei inutilmente recobrar o entusiasmo das pesquisas iniciais, a paixão pela descoberta que me levara a ignorar a desgraça que iria se abater sobre os cabelos brancos de meu pai. Nada parecia importar. Percebi, com muita lucidez, que aquele era um estado de espírito transitório, devido ao excesso de trabalho e falta de sono e que, com remédios ou repouso poderia recobrar minhas forças.

          — A única coisa em que conseguia pensar claramente era que aquilo devia ser levado a cabo; essa idéia fixa me dominava. E tinha que ser logo, pois meu dinheiro estava quase no fim. Contemplei a colina, com crianças brincando e moças cuidando delas e procurei pensar em todas as fantásticas vantagens que um homem invisível teria no mundo. Depois de algum tempo arrastei-me para casa, comi um pouco, tomei uma dose forte de estricnina e adormeci vestido na cama que não fora desfeita. A estricnina é um tônico maravilhoso para vencer a fraqueza de um homem, Kemp.

          — É o diabo — disse Kemp. — A idade da pedra concentrada em uma garrafa.

          — Acordei completamente revigorado e bastante irritadiço. Você sabe, não é?

          — Conheço a droga.

          — E havia alguém batendo à porta. Era meu senhorio com ameaças e perguntas, um velho judeu polonês de casaco cinzento comprido e chinelos sebosos. Tinha a certeza de que eu andara torturando um gato durante a noite — a velha dera com a língua nos dentes. Insistia em apurar os fatos. As leis do país contra a vivissecção eram muito severas — ele poderia ser responsabilizado. Neguei o gato. Mas sentia-se a vibração do pequeno motor a gás por toda a casa, objetou ele. Aquilo, realmente, era verdade. Esgueirou-se, passando por mim e entrou no quarto, examinando-o por cima dos óculos alemães de armação de prata e, de repente, temi que pudesse divulgar um pouco do meu segredo. Tentei colocar-me entre ele e o aparelho sintetizador que tinha montado e isso apenas aguçou-lhe a curiosidade. Que estava fazendo? Por que me mantinha sempre isolado e misterioso? Era legal? Perigoso? Eu não pagava senão o aluguel de praxe. A casa dele sempre fora extremamente respeitável em uma vizinhança mal-afamada. Subitamente, perdi a paciência. Disse-lhe que saísse. Ele começou a protestar, a papaguear sobre seu direito de entrar. Em um instante peguei-o pela gola; alguma coisa rasgou-se e ele foi projetado, rodopiando, para o corredor. Bati a porta, tranquei-a e sentei-me, tremendo.

          O sujeito do lado de fora criou um rebuliço a que não dei atenção e após algum tempo foi embora.

          — Mas isso gerou uma crise em torno do caso. Não sabia o que ele faria, e nem mesmo o que teria o direito de fazer. Mudar para outro apartamento implicaria em atraso; restavam-me no mundo apenas vinte libras — a maior parte em um banco — e não podia dar-me a esse luxo. Desaparecer! A idéia era irresistível. Mas haveria um inquérito, a pilhagem de meu quarto. . .

          — Ao pensar na possibilidade da revelação de meu trabalho ou de sua interrupção, agora que chegara ao auge, fiquei enfurecido e ativo. Saí apressadamente com meus três livros de anotações e meu talão de cheques — o vagabundo está com eles agora — e despachei-os da agência dos Correios mais próxima para uma posta-restante para cartas e volumes em Great Portland Street. Tentei sair sem fazer barulho. Ao voltar, encontrei meu senhorio subindo as escadas silenciosamente; ouvira a porta fechar-se, creio. Você teria rido se o visse pular para o lado do patamar da escada, quando corri atrás dele. Fulminou-me com o olhar quando o ultrapassei, e fiz a casa toda tremer quando bati a porta. Ouvi-o chegar, arrastando os pés, hesitar e descer. Imediatamente pus-me a trabalhar em minhas fórmulas.

          — Fiz tudo naquela tarde e noite. Enquanto ainda estava sentado, sob o efeito enjoativo e entorpecente das drogas que descolorem o sangue, bateram insistentemente na porta. Pararam, ouvi passos que se afastavam e voltavam e as batidas recomeçaram. Houve uma tentativa de enfiar alguma coisa por baixo da porta — um papel azul. Então, em um acesso de cólera, levantei-me, escancarei a porta com violência e perguntei: — Que é agora?

          — Era meu senhorio, com uma intimação de despejo, ou coisa semelhante. Estendeu-a para mim, acho que viu algo esquisito em minhas mãos e ergueu os olhos para meu rosto.

          — Por um instante, ficou de boca aberta. Depois, deu uma espécie de grito surdo, deixou cair a vela e a intimação e fugiu aos tropeções, pelo corredor escuro até as escadas. Fechei e tranquei a porta e fui até o espelho. Ali, entendi o pânico do homem. Meu rosto estava branco como uma pedra-mármore.

          — Tudo foi horrível. Não tinha contado com tanto sofrimento. Uma noite de suplício, enjôo e desmaios. Cerrei os dentes, embora minha pele estivesse em fogo; todo o meu corpo estava em fogo; mas resisti com unhas e dentes. Compreendi então porque o gato tinha miado tanto até que lhe aplicasse o clorofórmio. Por sorte vivia só em meu quarto, sem ninguém que zelasse por mim. Houve ocasiões em que soluçava, gemia e me lamentava. Mas resisti. Tornei-me insensível e acordei debilitado, no escuro.

          — A dor passara. Achei que estava me suicidando, mas pouco me importava. Nunca esquecerei daquela madrugada, do estranho terror de ver que minhas mãos pareciam feitas de vidro opaco ao observá-las enquanto iam ficando cada vez mais límpidas e transparentes com o correr do dia, até que, finalmente, tornou-se possível ver através delas a incrível desordem de meu quarto, mesmo que fechasse minhas pálpebras, também transparentes. Braços e pernas foram ficando vítreos, os ossos e artérias tornaram-se imprecisos e desapareceram e os pequenos nervos esbranquiçados foram os últimos a sumir. Rilhei os dentes e agüentei até o fim, quando só permaneceram as pontas mortas de minhas unhas, descoradas e lívidas e a mancha castanha de algum tipo de ácido em meus dedos.

          — Lutei para levantar-me. A princípio senti-me tão incapaz quanto um bebê de cueiros — tentando pôr-me de pé com membros que não podia ver. Estava fraco e com muita fome. Fui até ao espelho em que me barbeava e olhei para o nada, a não ser por um pigmento atenuado que ainda restava por trás da retina de meus olhos, mais tênue do que uma névoa. Tive que apoiar-me na mesa e encostar a testa de encontro ao espelho.

          — Só um apelo desesperado a toda minha força de vontade arrastou-me de volta à aparelhagem, para completar o processo.

          — Dormi a manhã toda, cobrindo os olhos com o lençol para defender-me da claridade e, por volta de meio-dia, fui novamente acordado por uma batida na porta. Tinha recobrado minhas forças. Ergui-me, atento e ouvi um sussurro. Pus-me de pé, em um salto e, tão silenciosamente quanto possível, comecei a desmontar as ligações de meu aparelho e a espalhá-las pelo quarto, de forma a destruir qualquer sugestão de uma montagem correta. Um pouco depois bateram de novo e chamaram, primeiro a voz do senhorio e a seguir mais duas. Para ganhar tempo, respondi. Peguei o pano e o travesseiro invisíveis e joguei-os fora, em cima da tampa da caixa de água. Quando abri a janela, ouvi um estrondo à porta. Alguém a tinha forçado, com a intenção de quebrar a fechadura. Mas os trincos resistentes que tinha colocado alguns dias antes, detiveram-no. Aquilo me sobressaltou e enfureceu. Comecei a tremer e a fazer as coisas apressadamente.

          — Juntei no meio do quarto algumas folhas soltas de papel, palha, papel de embrulho e coisas assim e abri o gás. A porta começou a ser castigada por golpes cada vez mais violentos. Não encontrava os fósforos. A raiva fazia-me socar as paredes. Fechei novamente o gás, saí pela janela para a tampa da caixa de água, baixei cuidadosamente a janela de guilhotina e sentei-me para ver o que acontecia, invisível e seguro, mas trêmulo de ódio. Vi que tinham rebentado um painel da porta, em seguida quebrado os encaixes das lingüetas das fechaduras e estavam no umbral da porta aberta. Eram o senhorio e seus enteados, dois rapazes fortes de vinte e três ou vinte e quatro anos. Atrás deles agitava-se a velhota do andar térreo.

          — Pode imaginar seu espanto ao encontrarem o quarto vazio. Um dos jovens correu imediatamente para a janela, abriu-a e olhou para fora. Seus olhos parados e o rosto barbado de lábios grossos chegaram a centímetros de meu rosto. Tive vontade de socar aquela cara idiota, mas contive meu punho fechado. Ele olhou através de mim. O mesmo fizeram os outros que se acercaram dele. O velho foi olhar embaixo da cama e depois todos se precipitaram para o armário. Discutiram longamente sobre os fatos em iídiche e em dialeto de Londres. Concluíram que eu não lhes tinha respondido e que a imaginação os enganara. Uma sensação de euforia extraordinária substituiu minha ira enquanto os observava sentado do lado de fora, quatro pessoas — pois a velha também entrara e olhava à sua volta tão desconfiada quanto um gato, tentando compreender o enigma de meu comportamento.

          — O velho, até onde podia entender seu dialeto, concordava com a mulher que eu era um vivisseccionista. Os filhos protestavam, em um inglês vulgar, afirmando que era eletricista, baseados nos dínamos e caloríferos. Todos receavam que eu chegasse, embora mais tarde tivesse descoberto que haviam trancado a porta de entrada. A velha deu uma espiadela no armário e embaixo da: cama e um dos jovens empurrou o registro e examinou a chaminé. Um dos outros hóspedes, um verdureiro ambulante que dividia o quarto em frente com um açougueiro, apareceu no patamar, foi convidado a entrar e disse coisas incoerentes.

          — Ocorreu-me que, se os aparelhos de aquecimento caíssem nas mãos de uma pessoa arguta e instruída revelariam muito do meu trabalho e aproveitando uma oportunidade, entrei no quarto e entortei um dos pequenos dínamos em relação ao outro no qual se apoiava, quebrando ambos os aparelhos. Então, enquanto eles tentavam explicar por que tinham se quebrado, esgueirei-me para fora do quarto e desci sem fazer barulho.

          — Entrei em uma das salas e esperei até que descessem também, ainda especulando e discutindo, todos um tanto desapontados por não terem encontrado "horrores" e um pouco confusos quanto à posição assumida em relação a mim. Então subi de novo com uma caixa de fósforos, pus fogo no monte de papel e lixo, coloquei as cadeiras e roupa de cama junto dele, dirigi o gás para tudo aquilo por meio de um tubo de borracha e, dando adeus ao quarto, deixei-o pela última vez.

          — Você incendiou a casa! — exclamou Kemp.

          — Incendiei a casa. Era a única forma de encobrir minha trilha — e, sem dúvida, estava no seguro. Abri cuidadosamente os trincos da porta da frente e saí para a rua. Estava invisível e apenas começava a compreender a enorme vantagem que a invisibilidade me dava. Minha cabeça já estava fervilhando com planos de todas as coisas loucas e maravilhosas que poderia fazer impunemente.

         

       EM OXFORD STREET

          — Ao descer as escadas pela primeira vez, deparei com uma dificuldade inesperada, porque não via meus pés; na verdade, tropecei duas vezes e foi com uma falta de jeito que não me era habitual que segurei o ferrolho. No entanto, consegui andar razoavelmente bem no piso plano, tomando cuidado para não olhar para baixo.

          — Devo dizer que meu estado de espírito era o de euforia. Sentia-me como um homem que, com os pés acolchoados e roupas que não farfalhavam, enxergasse em uma cidade de cegos. Tive um impulso louco de brincar, de assombrar as pessoas, de bater nas costas dos homens, de jogar para longe seus chapéus e de divertir-me de um modo geral com minha extraordinária prerrogativa.

          — Mas mal chegara a Great Portland Street (a casa onde me hospedava era perto de uma grande loja de fazendas naquela rua), quando ouvi o estrondo de uma batida e fui atingido violentamente por trás; voltando-me, vi um homem que carregava uma cesta de sifões de soda, olhando atônito o seu fardo. Embora o golpe tivesse me machucado realmente, achei o espanto dele tão irresistível que ri alto. "O diabo está na cesta", disse eu, e puxei-a bruscamente da mão dele. Soltou-a, incontinenti e balancei toda a carga no ar.

          — Mas o idiota de um cocheiro que estava parado em frente a um botequim correu para apanhá-la e seus dedos estendidos acertaram-me abaixo da orelha com uma força insuportável. Deixei cair tudo com uma pancada no cocheiro e só depois, com o barulho de pés perto de mim, gente saindo das lojas e veículos parando, é que entendi o que tinha feito a mim mesmo; maldizendo minha estupidez, recuei até uma vitrine e preparei-me para fugir àquela confusão. Não tardaria muito para que fosse cercado pela multidão e fatalmente descoberto. Empurrei o ajudante do açougue que, para minha sorte, nem se voltou para investigar o nada que o havia empurrado para o lado e refugiei-me atrás da carruagem do cocheiro. Não sei como explicaram os fatos. Apressei-me a atravessar a rua que, felizmente, estava desimpedida; e, mal prestando atenção ao caminho que tomava, por causa do incidente que me despertara o medo de ser descoberto, mergulhei no congestionamento vespertino de Oxford Street.

          — Tentei incorporar-me à corrente de pessoas, mas estava muito compacta e não demorou para que pisassem meus calcanhares. Desci para a sarjeta, cuja aspereza era dolorosa para meus pés e logo o varal de um cabriolé vagaroso pressionou-me com força a omoplata, lembrando-me de que já estava muito machucado. Cambaleante, saí do caminho do veículo, driblei um carrinho de criança com um movimento convulsivo e fui parar atrás do cabriolé. Salvou-me uma inspiração feliz e segui em sua esteira enquanto este avançava devagar, trêmulo e assustado com o desfecho de minha aventura. E não apenas trêmulo, mas batendo os dentes. Era um dia claro de janeiro, minha nudez era total, e a camada escorregadia de lama que cobria o chão estava gelada. Por mais tolo que me pareça agora, não tinha pensado que, transparente ou não, ainda estava sujeito ao tempo e a todas as suas variações.

          — Subitamente, ocorreu-me uma idéia luminosa. Circundei o cabriolé e subi. Assim, tintando, amedrontado, espirrando com os primeiros sinais de um resfriado e começando a sentir as contusões e minhas costas, desci lentamente Oxford Street, deixando para trás Tottenham Court Road. Pode-se imaginar como meu estado de espírito era diferente daquele com que tinha saído fazia dez minutos. Aquela invisibilidade era demais! Um só pensamento me dominava — como livrar-me da enrascada em que estava metido.

          — Passamos devagar por Mudie e ali uma mulher alta, com cinco ou seis livros de etiquetas amarelas, fez sinal para o meu cabriolé e mal tive tempo de pular fora para fugir a ela, escapando por pouco de um vagão ferroviário, em minha precipitação. Tomei o caminho de Bloomsbury Square, pretendendo, passado o Museu, dirigir-me para o norte, para o distrito mais calmo. Estava dolorosamente enregelado e a estranheza de minha situação acovardava-me tanto que choramingava ao correr. No canto norte da praça um cachorrinho branco saiu da sede da Sociedade Farmacêutica e correu imediatamente para mim, farejando.

          — Nunca tinha pensado nisso antes, mas o nariz está para a mente de um cão, como os olhos para a mente de um homem que vê. Os cães sentem o cheiro de um homem em movimento, como os homens registram sua aparência. O animal começou a latir e pular, demonstrando claramente, ao que me parecia, perceber minha presença. Atravessei Great Russell Street relanceando para trás por cima do ombro e segui um pouco por Montague Street, antes de perceber para onde estava correndo.

          — Então ouvi um clamor de música e, olhando rua abaixo, vi um grupo de pessoas que vinham de Russell Square, de camisas vermelhas e empunhando a bandeira do Exército da Salvação. Não podia alimentar a esperança de varar tal multidão que cantava pelo caminho, batendo com os pés no chão e, temendo voltar, afastando-me novamente de casa, decidi impulsivamente; subi correndo os degraus brancos de uma casa em frente às grades do Museu e fiquei ali até que a multidão pudesse passar. Felizmente, o cão parou, ao ouvir o barulho da música, hesitou, deu meia-volta e correu de novo para Bloomsbury Square.

          — A banda continuou a se aproximar cantando, com uma ironia inconsciente, um hino que dizia: "Quando verei seu rosto?" e a corrente da multidão pareceu levar um tempo infinito a passar pela rua diante de mim. O tambor soava bum, bum, bum, com uma ressonância vibrante e, momentaneamente, não me apercebi de dois garotos parados em frente às grades, a meu lado. "Veja aquilo", disse um. "Aquilo o quê?", perguntou o outro. "Ora, aquelas marcas de pé, descalças. Como as que se faz na lama."

          — Olhei para baixo e vi que os garotos tinham parado e estavam olhando, de boca aberta, as pegadas sujas de lama que deixara, ao subir os degraus recentemente cobertos de neve. Os passantes acotovelavam-nos e empurravam-nos, mas a maldita inteligência deles fora despertada. "Bum, bum, bum. Quando, bum.. veremos, bum, seu rosto, bum, bum." "Um homem descalço subiu esses degraus, ou não entendo de nada", disse um deles "E não desceu. E o pé dele estava sangrando."

          — O grosso da multidão já tinha passado. "Olhe aqui, Ted", falou o mais jovem dos detetives, com a vivacidade da surpresa em sua voz, e apontou diretamente para meus pés. Olhei também e vi logo a sugestão imprecisa de seus contornos calcados nos salpicos de lama. Por um instante, fiquei paralisado.

          — "Ora, isso é esquisito", disse o mais velho. "Danado de esquisito! Parece até o fantasma de um pé, não acha?" Hesitou e avançou, com a mão estendida. Um homem, e depois uma moça, pararam bruscamente para ver o que estava apanhando. Faltava pouco para que me tocasse. Então vi o que tinha a fazer. Dei um passo, o menino pulou para trás com uma exclamação e, com um movimento rápido, passei para o pórtico da casa vizinha. Mas o menino menor tinha a vista suficientemente apurada para seguir esse movimento e, antes que tivesse descido todos os degraus para chegar à calçada, recobrou-se do espanto momentâneo e começou a gritar que os pés tinham passado por cima do muro.

          — Deram a volta apressadamente e viram minhas novas pegadas materializarem-se sobre o último degrau e a calçada. "Que está acontecendo?", perguntou alguém. "Pés! Vejam! Pés correndo!" Com exceção de meus três perseguidores, todas as pessoas na rua acompanhavam o Exército da Salvação, e isso não era um obstáculo apenas para mim, mas para eles também. Houve um tumulto, cheio de surpresas e interrogações. Consegui passar, embora tivesse que derrubar um jovem e, logo em seguida, vi-me correndo em volta de Russell Square, com seis ou sete sujeitos assombrados seguindo as marcas de meus pés. Não havia tempo para explicações, ou toda aquela gente viria atrás de mim.

          — Dobrei esquinas duas vezes, atravessei a rua três e voltei atrás e então, enquanto meus pés ficavam quentes e secos, as impressões úmidas começaram a desaparecer. Afinal podia respirar e esfreguei os pés com as mãos para limpá-los e assim consegui escapar. A última coisa que vi da perseguição foi um pequeno grupo, talvez uma dúzia de pessoas, examinando com infinita perplexidade a impressão de um pé que secava lentamente e saíra de uma poça em Tavistock Square — uma pegada tão solitária e incompreensível para eles quanto a descoberta isolada de Crusoé

          — Toda aquela correria tinha me aquecido até certo ponto e prossegui mais animado pelo labirinto dos caminhos pouco freqüentados que existem nas cercanias. Minhas costas estavam ficando mais rígidas e doloridas, minhas amígdalas tinham sido machucadas pelos dedos do cocheiro e a pele de meu pescoço fora arranhada pelas unhas dele; os pés doíam demais, e um pequeno corte em um deles fazia-me coxear. Em tempo, vi um cego que se aproximava e fugi capengando, pois temia sua intuição sutil. Uma ou duas vezes ocorreram colisões acidentais e deixava as pessoas pasmas com vários xingamentos inexplicáveis tinindo em seus ouvidos. Depois senti algo silencioso e macio de encontro a meu rosto e toda a praça foi coberta por um véu de flocos de neve que caíam devagar. Tinha apanhado um resfriado e, por mais que fizesse, não podia evitar um espirro ocasional. E cada cão que surgia, com o nariz em riste e o farejar curioso, era um terror para mim.

          — Logo apareceram homens e garotos correndo, primeiro um, depois outros, gritando enquanto corriam. Era um incêndio.

          Apressavam-se na direção de minha hospedaria e, olhando para trás por uma das ruas, vi um rolo compacto de fumaça negra que subia, ultrapassando os telhados e fios telefônicos. Eram meus aposentos que estavam em fogo; minhas roupas, aparelhos, todos os meus recursos estavam ali, exceto o talão de cheques e os três volumes de anotações que me esperavam em Great Portland Street. Ardendo! Se jamais um homem queimou seus barcos, este homem fui eu.

          O Homem Invisível calou-se e entregou-se a seus pensamentos. Kemp relanceou nervosamente para fora, através da janela. — Sim — disse ele. — Continue.

        

       NA LOJA DE DEPARTAMENTOS

          — Assim, em janeiro passado, com a ameaça de uma tempestade de neve no ar — e se a neve caísse sobre mim seria traído! — cansado, com frio, dolorido, terrivelmente infeliz e sem estar ainda totalmente convencido de meu estado de invisibilidade, comecei essa vida nova à qual estou condenado. Não tinha refúgio, instrumentos, nenhum ser humano no mundo em quem pudesse confiar. Contar meu segredo iria denunciar-me — fazer de mim um simples espetáculo e uma curiosidade. Mesmo assim, tinha vontade de abordar algum passante e colocar-me à sua mercê. Mas conhecia, sem sombra de dúvida, o terror e a crueldade brutal que minha tentativa de comunicação despertaria. Não fiz planos na rua. Meu único objetivo era abrigar-me da neve, vestir-me e aquecer-me; só então poderia ter esperança de planejar alguma coisa. Mas até para mim, um Homem Invisível, as fileiras de casas de Londres permaneciam fechadas, barradas e impenetravelmente trancadas.

          — Só podia ver uma coisa com clareza diante de mim: a exposição ao frio e o tormento da nevasca e da noite.

          — Então, tive uma idéia brilhante. Tomei uma das passagens que levam de Gower Street e Tottenham Court Road e achei-me diante do "Omniums", o grande estabelecimento onde se pode comprar tudo — você conhece o lugar — carne, gêneros alimentícios, lençóis, toalhas, móveis, roupas e até quadros a óleo — um enorme labirinto de lojas, em uma só. Pensei que encontraria as portas abertas, mas estavam fechadas; porém, enquanto ainda estava parado na ampla entrada, vi uma carruagem frear e um homem uniformizado — você já viu o tipo de personagem com "Omnium" no boné — abriu a porta. Consegui entrar e andando pela loja — era uma seção onde vendiam fitas, luvas e meias, coisas assim — e cheguei a um local mais espaçoso, especializado em cestas de piquenique e móveis de vime.

          — Não me sentia em segurança ali; havia gente andando de um lado para outro e perambulei nervosamente pelas cercanias até que cheguei a um vasto departamento, no andar superior, que expunha centenas de camas e atrás delas encontrei finalmente um lugar para repousar, no meio de uma pilha alta de colchões dobrados, cheios de flocos de lã. O lugar já estava iluminado e agradavelmente aquecido e resolvi ficar, vigiando cautelosamente dois ou três grupos de vendedores e clientes que vagavam pelo lugar até que chegasse a hora de fechar. Então poderia, pensei, roubar comida e roupas do lugar e, disfarçado, percorrê-lo para examinar-lhe os recursos e talvez dormir em alguma cama. Aquele parecia-me um plano sensato. Minha intenção era arranjar roupas para tornar-me uma figura embuçada mas aceitável, pegar dinheiro e recuperar meus livros e volumes onde esperavam por mim, hospedar-me em algum lugar e elaborar planos para desfrutar ao máximo das vantagens que a invisibilidade me conferia (como ainda pensava) sobre meus semelhantes.

          — A hora de fechar chegou rapidamente; não podia ter passado mais de uma hora depois que me acomodei nos colchões, quando vi que as persianas das janelas estavam sendo abaixadas e os clientes dirigiam-se para a porta. Então, um contingente de jovens ativos começou a arrumar as mercadorias que tinham ficado fora dos lugares, com uma vivacidade notável. Deixei meu abrigo quando a aglomeração diminuiu e andei cautelosamente pelos setores menos desertos da loja. Estava verdadeiramente surpreso ao observar com que rapidez os jovens, homens e mulheres, retiravam as mercadorias que tinham ficado em exposição para venda, durante o dia todo. Todas as caixas de artigos diversos, os cortes de fazenda, as cascatas de rendas, as caixas de bombons na seção de alimentos, as amostras de uma coisa e outra eram apanhadas, dobradas, jogadas em minúsculos receptáculos e tudo quanto não podia ser descido e guardado, era coberto por panos de um material grosseiro como aniagem. Finalmente, todas as cadeiras foram colocadas nos balcões, de pés para cima, deixando o piso desembaraçado. Logo que cada um dos jovens terminava sua tarefa, ele ou ela dirigia-se prontamente para a porta, com uma expressão animada que poucas vezes já vira em um empregado de loja. Depois chegaram muitos outros moços espalhando serragem e carregando baldes e vassouras. Tive que sair depressa do caminho deles e foi assim que um pouco de serragem agarrou-se a meu tornozelo. Durante algum tempo, vagando pelas seções escurecidas e cobertas de serragem, ouvi as vassouras trabalhando. E, enfim, após uma boa hora ou mais, depois da loja fechada, veio o barulho de portas sendo trancadas. O silêncio desceu e vi-me andando sozinho pelo enorme emaranhado de lojas, galerias e salões de exposição. Estava muito quieto; em um dos lugares, lembro-me de ter passado perto de uma das entradas de Tottenham Court Road e de ter ficado ouvindo o barulho das botas dos passantes.

          — Minha primeira visita foi ao lugar onde vira meias e luvas para vender. Estava escuro e procurei fósforos como o diabo; encontrei-os, enfim, na gaveta da mesa onde ficavam pequenas quantias. Depois tive que arranjar uma vela. Fui obrigado a retirar os panos protetores e examinar inúmeras caixas e gavetas, mas acabei por encontrar o que procurava; a etiqueta da caixa dizia: "calças e coletes de lã de carneiro". Em seguida meias, uma echarpe grossa e passei para a seção de roupas e apanhei calças, um paletó esportivo, um sobretudo e um chapéu de feltro macio — uma espécie de chapéu clerical, com a aba voltada para baixo. Comecei a sentir-me novamente um ser humano e meu próximo pensamento foi a comida.

          — No andar superior havia um setor com uma lanchonete e ali consegui frios. O bule ainda tinha café e acendi o gás para aquecê-lo mais um pouco. Não passei nada mal. Depois, andando pelo pavimento à procura de cobertores — tive que me contentar com um monte de acolchoados de penas — descobri um departamento de alimentos, com muito chocolate e frutas cristalizadas — mais do que era de fato bom para mim — e umas garrafas de borgonha branco. Próximo, havia uma seção de brinquedos e tive uma idéia brilhante. Achei alguns narizes artificiais — sabe, narizes postiços e pensei em óculos escuros. Mas no "Omniums" não havia um setor de ótica. Meu nariz tinha, realmente, sido difícil e já havia pensado em pintura. Mas a descoberta pôs minha mente a funcionar avaliando perucas, máscaras e coisas semelhantes. Acabei por adormecer em um monte de acolchoados de penas, muito quentes e confortáveis.

          — Meus últimos pensamentos, antes de adormecer, foram os mais agradáveis que já tivera antes da mudança. Estava em um estado de serenidade física e isso refletia-se em minha mente. Achava que poderia sair de manhã sem ser observado, vestido com minhas roupas e escondendo meu rosto com uma echarpe branca que apanhara, para comprar, com o dinheiro que encontrara, óculos e o mais, completando assim o meu disfarce. Caí em um sono perturbado, no qual figuravam todas as coisas fantásticas que haviam acontecido nos poucos dias mais recentes. Vi o senhorio, aquele pequeno judeu feio, vociferando em seus aposentos; vi seus dois filhos espantados e a cara enrugada e contorcida da velha que perguntava pelo gato. Experimentei novamente a sensação de ver o pano desaparecer e cheguei até a colina ventosa e o velho pastor espirrando e resmungando: "O pó reverte ao pó e a terra à terra", e o túmulo aberto de meu pai.

          — "Você também", disse uma voz e de repente comecei a ser empurrado para a sepultura. Lutei, gritei, apelei para os que assistiam ao serviço fúnebre, mas continuaram, impassíveis, a seguir o ritual; o velho pastor não parava de orar e espirrar durante todo o serviço. Compreendi que estava invisível e inaudível e forças superiores tinham se apossado de mim. Lutava em vão, fui empurrado para dentro, o caixão soou ocamente quando caí por cima dele e a terra começou a descer sobre mim jogada pelas pás. Ninguém me prestava atenção, ninguém se apercebia de mim. Reagi convulsivamente e acordei.

          — A pálida aurora de Londres despontara e o lugar estava banhado por uma luz fria e cinzenta que se filtrava através dos espaços das persianas das janelas. Sentei-me e por algum tempo não consegui lembrar-me onde poderia ser aquele apartamento amplo com seus balcões, pilhas de material enrolado, montes de acolchoados, almofadas e colunas de ferro. Então, quando comecei a me lembrar, ouvi vozes que conversavam.

          — Num ponto distante, na luz mais clara de algum setor onde as persianas já haviam sido levantadas, vi que dois homens se aproximavam. Pus-me de pé em um salto, olhando a meu redor à procura de alguma rota de fuga e, ao fazê-lo, o som de meu movimento chamou a atenção deles sobre mim. Suponho que viram apenas uma silhueta que se afastava rápida e silenciosamente. "Quem é?", gritou um, e o outro, "pare aí". Precipitei-me para contornar um canto e dei em cheio — um corpo sem rosto, veja bem! — com um rapazola magro de uns quinze anos. Ele berrou, eu o derrubei, passei correndo por ele, virei outra esquina e, por uma inspiração feliz, joguei-me atrás de um balcão onde fiquei esticado no assoalho. Não tardou para que outros pés passassem voando por mim e ouvi vozes gritando: "Todos para as portas!", perguntando o que estava acontecendo e trocando opiniões sobre a maneira de me apanhar.

          — Deitado no chão, sentia-me alucinado de medo. Mas, por mais estranho que pareça, não me ocorreu naquele momento, tirar as roupas, que era o que deveria ter feito. Acho que tinha me decidido a fugir vestido com elas e isso me obcecava. Foi então que, do corredor formado pela parte interna dos balcões, veio o grito: "Aqui está ele!"

          — Pus-me de pé, peguei uma cadeira em cima do balcão e atirei-a com força no idiota que tinha gritado, voltei-me, encontrei outro dobrando mais um canto, atirei-o longe e precipitei-me escadas acima. Este manteve a calma, soltou um "Olá!" e subiu as escadas em minha perseguição. No alto das escadas estava empilhada uma porção desses potes coloridos — como se chamam?

          — Cerâmicas artísticas — sugeriu Kemp.

          — Isso mesmo! Cerâmicas artísticas. Bem, voltei-me no último degrau, peguei uma da pilha e quebrei-a naquela cabeça tola que avançava para mim. Toda a pilha de potes caiu e ouvi gritos e pés correndo de todos os lados. Precipitei-me para a lanchonete e lá, um homem de branco, como um cozinheiro, juntou-se à perseguição. Dei mais uma última e desesperada volta e encontrei-me entre lâmpadas e ferragens. Fui para trás do balcão e esperei pelo meu cozinheiro e quando ele irrompeu, à frente da caçada, bati-lhe com uma lâmpada. Ele caiu e eu, agachando-me por trás do balcão, comecei a tirar as roupas tão depressa quanto possível. Sobretudo, paletó, calças, sapatos, saíram bem, mas uma camiseta de lã de carneiro ajusta-se a um homem como uma segunda pele. Ouvi mais homens chegando, mas meu cozinheiro jazia quieto do outro lado do balcão, desmaiado ou assustado a ponto de perder a voz e eu tinha que sair dali, como um coelho enxotado de um monte de lenha.

          — "Por aqui, guarda!", ouvi alguém dizer. Estava novamente no depósito de camas e no final de uma selva de guarda-roupas. Corri por entre eles, caí, livrei-me da camiseta após contorções infindáveis e vi-me livre outra vez, ofegante e assustado, quando o policial e um dos balconistas dobraram a esquina formada pela parede. Atiraram-se sobre a camiseta e as calças e agarraram as calças. "Ele está deixando cair o roubo", disse um dos jovens. "Deve estar em algum lugar por aqui."

          — Mas, mesmo assim, não me encontraram.

          — Fiquei algum tempo olhando a caçada e maldizendo minha má sorte de perder as roupas. Depois fui para a lanchonete, bebi um pouco de leite que encontrei ali e sentei-me junto ao fogo para examinar minha situação.

          — Dentro em pouco chegaram dois empregados e começaram a discutir o assunto muito excitados, como idiotas que eram. Ouvi um relato exagerado de minhas depredações e outras hipóteses aventadas sobre meu paradeiro. Depois recomecei a fazer planos. A dificuldade insuperável daquele lugar, especialmente agora que tinha sido alertado, era retirar de lá qualquer material roubado. Desci até o armazenamento, para verificar se havia qualquer possibilidade de embalar e endereçar um embrulho, mas não sabia como funcionava o sistema de controle. Por volta das onze horas, a neve que caíra tendo derretido e o dia sendo mais bonito e um pouco mais quente que o anterior, decidi que a loja de departamentos era impossível e saí novamente, exasperado com meu insucesso tendo em mente apenas os mais vagos planos de ação.

        

       EM DRURY LANE

          — Agora você está começando a entender o grande inconveniente de minha situação — continuou o Homem Invisível. — Não tinha abrigo, nem agasalho. Vestir-me seria abrir mão de toda minha vantagem, tornar-me algo estranho e terrível; estava em jejum, pois comer, encher-me de matéria não assimilada, seria tornar-me grotescamente visível de novo.

          — Não pensei nisso — disse Kemp.

          — Também não tinha pensado. E a neve me havia mostrado outros perigos. Não podia andar na neve — ela pousaria em mim e me exporia. A chuva também faria de mim uma silhueta aquosa, a superfície brilhante de um homem — uma bolha. E a neblina — deveria parecer uma bolha menos nítida em um nevoeiro, um corpo, o lampejo fugidio de um ser humano. Além disso, quando saí, no ar de Londres, juntava sujeira em meus tornozelos e manchas flutuantes de fuligem e poeira em minha pele. Não tinha idéia de quanto tempo demoraria até que me tornasse visível, por causa disso também. Mas via claramente que não seria muito.

          — De qualquer forma, não em Londres.

          Atravessei a zona de cortiços em direção a Great Portland Street e encontrei-me no fim da rua onde havia morado. Não fui por ali por causa da turba que se aglomerava a meio caminho, diante das ruínas ainda fumegantes da casa que tinha incendiado. Meu problema mais urgente consistia em arranjar roupas. Outra coisa que me preocupava era o que fazer com meu rosto. Vi então uma dessas pequenas lojas de miscelânea, jornais, balas, brinquedos, papéis de carta, disfarces que haviam sobrado do Natal e coisas assim — uma coleção de máscaras e narizes. Compreendi que um problema estava resolvido. Imediatamente, soube o que devia fazer. Dei meia-volta, não mais sem objetivo e acerquei-me — tortuosamente, a fim de evitar os caminhos mais freqüentados — pelas ruas ao norte do Strand; pois lembrava-me, embora não muito distintamente, onde alguns fornecedores de roupas para teatro tinham lojas nas cercanias.

          — O dia estava frio, com um vento cortante que varava as ruas que iam para o norte. Andava depressa, com medo de que alguém emparelhasse comigo. Cada esquina era um perigo, cada pedestre algo que tinha que observar atentamente. Um homem que ia ultrapassando, no fim de Bedford Street voltou-se bruscamente e colidiu comigo, jogando-me na rua, quase sob as rodas de um coche que passava. O veredicto dos cocheiros na fila de carros de aluguel foi que ele tivera algum tipo de ataque. Fiquei tão acovardado por esse encontro que fui até o mercado de Covent Garden e sentei-me por algum tempo, ofegante e trêmulo, em um canto sossegado, junto a uma banca de violetas. Constatei que tinha apanhado outro resfriado e fui obrigado a sair de lá pouco depois, para não correr o risco de chamar atenção com meus espirros.

          — Finalmente alcancei o objetivo de minha busca, uma lojinha suja e cheia de moscas em um beco perto de Drury Lane, com a vitrine cheia de roupões de borlas douradas, jóias falsas, perucas, chinelos, dominós e fotografias de teatro. A loja era antiquada, escura e de teto baixo, e a casa acima dela tinha quatro andares encardidos e melancólicos. Olhei pela vitrine e, não vendo ninguém lá dentro, entrei. O abrir da porta fez com que soasse um sino estridente. Deixei-a aberta e circundei um estrado de roupas vazio, até um canto por trás de um espelho comprido de abrir. Por mais ou menos um minuto, não veio ninguém. Então ouvi pés que atravessavam pesadamente a sala e apareceu um homem no outro extremo da loja.

          — Meus planos estavam perfeitamente definidos. Pretendia entrar na casa, esconder-me no andar de cima, esperar pela oportunidade e, quando tudo estivesse quieto, procurar uma peruca, óculos com máscara e roupas, saindo para o mundo como uma figura grotesca, mas ainda assim, revestida de credibilidade. E, aproveitando a chance, naturalmente, roubaria todo o dinheiro disponível na casa.

          — O homem que havia entrado na loja era baixo, magro, curvo, de testa saliente, com braços compridos e pernas arqueadas muito curtas. Ao que parecia, tinha interrompido sua refeição. Olhou a loja toda, com uma expressão de expectativa. Esta transformou-se em surpresa e depois em raiva, quando viu que estava vazia. — "Malditos garotos!", xingou. Foi até a porta e olhou a rua de um extremo a outro. Após um minuto entrou, fechou a porta da loja irritadamente com um pontapé e voltou, resmungando, à porta que levava à moradia.

          — Adiantei-me para segui-lo e, com o barulho de meus movimentos, parou abruptamente. Fiz o mesmo, espantado com a agudeza de sua audição. Bateu a porta da casa na minha cara.

          — Parei, hesitante. De súbito, ouvi seus passos apressados que voltavam e a porta foi reaberta. Ficou observando a loja, como alguém que ainda não está convencido. Depois, ainda resmungando, examinou a parte de dentro do balcão e olhou atrás de algumas armações. Deteve-se, cheio de dúvidas. Tinha deixado a porta da casa aberta e esgueirei-me para a sala interna.

          — Era uma salinha esquisita, pobremente mobiliada, com uma quantidade de máscaras grandes a um canto. À mesa estava sua refeição interrompida e foi uma coisa extremamente frustrante para mim, Kemp, ser obrigado a sentir apenas o cheiro do café, olhando-o, quando o homem voltou e continuou a comer. E suas maneiras à mesa eram irritantes. Três portas abriam-se para a salinha, uma levando para cima e outra para baixo, mas estavam fechadas. Não podia sair da sala enquanto ele estivesse ali, mal podia mover-me por causa de seus ouvidos e havia uma corrente de ar em minhas costas. Por duas vezes sufoquei um espirro bem a tempo.

          — A acuidade espetacular de minhas sensações era curiosa e inédita, porém, acima de tudo estava terrivelmente cansado e furioso muito antes que ele tivesse acabado de comer. Finalmente terminou, e pondo a louça miserável na bandeja negra de lata onde estava o bule de chá, catou as migalhas na toalha manchada de mostarda e levou tudo para dentro. As coisas que carregava impediram-no de fechar a porta — o que teria feito; nunca vi um homem que gostasse tanto de fechar portas — e segui-o até uma copa-cozinha muito suja no porão. Tive o prazer de vê-lo começar a lavar tudo e depois, sem nenhum interesse em ficar ali, com o chão de tijolos muito frio sob meus pés, voltei para cima e sentei-me na cadeira dele, junto ao fogo. Estava baixo e, sem pensar muito, pus mais alguns carvões. O barulho trouxe-o para cima imediatamente e ficou de pé com um olhar feroz. Examinou a sala e esteve a um passo de tocar-me. Mas não me pareceu satisfeito, mesmo depois da inspeção. Deteve-se no umbral da porta e fez uma última revista, antes de descer.

          — Esperei uma eternidade na pequena sala e, finalmente, ele subiu e abriu a porta do andar de cima. Mal consegui passar com ele.

          — De repente, parou na escada e quase tropecei nele. Ficou olhando para trás, bem no meu rosto, ouvindo. "Poderia jurar", disse. A mão cabeluda e longa puxava o lábio inferior. Correu as escadas com os olhos, de cima a baixo. Depois grunhiu e continuou a subir.

          — A mão dele estava na maçaneta da porta quando parou novamente, com a mesma expressão de irritada perplexidade. Estava começando a perceber os leves ruídos de meus movimentos perto dele. O homem devia ter uma audição diabolicamente apurada. De súbito, foi dominado pela fúria. "Se há alguém nesta casa", gritou, com um xingamento e deixou a ameaça inacabada.

          Pôs a mão no bolso, não encontrou o que queria e, passando por mim precipitadamente, desceu, barulhento e agressivo. Mas não o segui. Sentei-me no alto da escada até que voltasse.

          — Subiu de novo após algum tempo, ainda resmungando. Abriu a porta do quarto e antes que eu pudesse entrar, bateu-a em minha cara.

          — Resolvi explorar a casa e levei algum tempo ocupado nisso, tão silenciosamente quanto possível. A casa era muito velha e mal conservada, tão úmida que o papel nas paredes do sótão estava descolando e havia muitos ratos. Algumas maçanetas estavam emperradas e tive medo de girá-las. Vários cômodos que vi não tinham móveis e outros estavam atulhados de trastes velhos de teatro, comprados de segunda mão, segundo me pareceu, por seu aspecto. Em um dos quartos, perto do dele, achei uma quantidade de roupas velhas. Comecei a remexê-las e, em minha ansiedade, esqueci a agudeza evidente da audição do homem. Ouvi passos furtivos e, erguendo a cabeça bem a tempo, vi-o de olhos pregados na pilha desmoronada, tendo na mão um revólver antigo. Fiquei absolutamente imóvel enquanto ele olhava em volta, desconfiado e de boca aberta. "Deve ter sido ela", disse devagar. "Que vá para o diabo!"

          — Fechou a porta com cuidado e logo ouvi a chave girar na fechadura. Depois os passos afastaram-se. Imediatamente ocorreu-me que estava trancado. Por um minuto, fiquei sem saber o que fazer. Andei da porta para a janela, voltei e detive-me, perplexo. Fui tomado por uma onda de ódio. Mas resolvi examinar as roupas, antes de mais nada, e minha primeira tentativa derrubou um monte que estava na prateleira de cima. Isso o trouxe de volta, mais sinistro do que nunca. Dessa vez chegou a me tocar, recuou em um pulo, assombrado, e parou, cheio de pasmo, no centro do quarto.

          — Depois de algum tempo, acalmou-se um pouco. "Ratos", disse a meia voz, com os dedos repuxando os lábios. Estava, evidentemente, um tanto amedrontado. Esgueirei-me para fora em silêncio, mas uma tábua rangeu. Então o pequeno animal diabólico começou a percorrer a casa empunhando um revólver, fechando porta atrás de porta e pondo as chaves no bolso. Quando compreendi o que ele pretendia, tive um acesso de raiva — mal podia controlar-me o bastante para aguardar a oportunidade. A essa altura, sabia que estava sozinho na casa e assim, sem mais delongas, dei-lhe um golpe na cabeça.

          — Deu-lhe um golpe na cabeça! — exclamou Kemp.

          — Sim — tonteei-o — quando descia as escadas. Bati nele pelas costas, com um tamborete que havia no patamar. Rolou as escadas como um saco de botas velhas.

          — Mas... Veja bem! As convenções habituais de humanidade ...

          — Tudo isso é muito bom para gente comum. Mas o problema era, Kemp, que tinha de sair daquela casa sem que me visse. Não me ocorreu nenhuma outra forma de fazê-lo. Ainda o amordacei com um colete Luís XIV e amarrei-o em um lençol.

          — Amarrou-o em um lençol!

          — Fiz uma espécie de saco. Era uma boa idéia manter o idiota sossegado e com medo em uma coisa danada de difícil de sair — a cabeça longe do cordão. Meu caro Kemp, não adianta ficar aí me olhando como se eu fosse um assassino. Tinha que ser feito. Ele estava com o revólver. Se me visse uma vez, poderia descrever-me.. .

          — Mas, ainda assim — disse Kemp —, na Inglaterra de hoje. O homem na própria casa e você — bem, roubando.

          — Roubando! Que diabo! Daqui a pouco vai me chamar de ladrão! Ora, Kemp, você não é suficientemente tolo para obedecer a velhas regras. Será que não entende minha posição?

          — E a dele também — respondeu Kemp.

          O Homem Invisível levantou-se bruscamente. — Que quer dizer?

          As feições de Kemp endureceram. Esteve a ponto de falar, mas conteve-se. — Pensando bem — disse com uma súbita mudança de atitude —, suponho que a coisa tinha que ser feita. Você estava em uma enrascada. Mas. ..

          — Claro que estava em uma enrascada — uma enrascada infernal. E ele também me irritou — procurando por mim na casa, manuseando o revólver, fechando e abrindo portas. Era simplesmente exasperante. Você não me censura, não é? Não me censura?

          — Nunca censuro ninguém — replicou Kemp. — É uma coisa muito antiga. E o que fez depois?

          — Sentia fome. Encontrei embaixo um pedaço de pão e um queijo rançoso — mais do que o bastante para satisfazê-la. Tomei um pouco de conhaque com água e depois passei pelo meu saco improvisado — ele estava absolutamente imóvel — até o quarto onde havia roupas velhas. Este dava para a rua, com um par de cortinas de renda encardidas de sujo protegendo a janela. Fui até lá e olhei pelos buracos. Lá fora o dia estava claro, contrastando com as sombras escuras da pobre casa onde me encontrava, radiantemente claro. Havia um tráfego intenso, carrinhos com frutas, uma charrete, uma carroça de quatro rodas com uma quantidade de caixas, a carroça de um pescador. Voltei-me, com pontos coloridos dançando diante dos olhos, para as instalações escuras atrás de mim. Minha excitação estava sendo substituída de novo pelo nítido discernimento de minha situação. O quarto recendia de leve a benzina, usada, penso, na limpeza das roupas.

          — Comecei uma revista sistemática do lugar. Parecia-me que o corcunda já habitava sozinho aquela casa havia algum tempo. Era uma pessoa estranha. Reuni no depósito de roupas tudo o que poderia ser de alguma utilidade para mim e depois fiz uma cuidadosa seleção. Achei uma bolsa que julguei um pertence adequado, pó-de-arroz, ruge e massa colante.

          — Tinha pensado em pintar e empoar meu rosto e tudo quanto aparecia de mim para tornar-me visível, mas a dificuldade disso era que precisaria de aguarrás e outros recursos, além de um tempo considerável antes de poder desaparecer novamente. Afinal, escolhi uma máscara de melhor qualidade, ligeiramente grotesca, mas não mais do que muitos seres humanos, óculos escuros, suíças grisalhas e uma peruca. Não consegui encontrar nenhuma peça de roupa íntima, mas isso poderia comprar depois e, provisoriamente, enrolei-me em dominós de algodão e echarpes de lã branca. Também não encontrei meias, mas as botas do corcunda eram folgadas e bastavam. Em uma mesa da loja havia três soberanos e perto de trinta xelins em níqueis e em um armário trancado que arrombei, em um dos aposentos internos, havia oito libras de ouro. Preparado, podia enfrentar o mundo novamente.

          — Então, fui presa de uma estranha hesitação. Minha aparência seria mesmo. . . aceitável? Eu próprio o experimentei, com um pequeno espelho de quarto, examinando-me sob todos os ângulos para ver se não havia nenhuma fresta esquecida, mas tudo parecia correto. Estava grotesco a ponto de parecer exagerada-mente teatral, um arremedo de ator, mas decerto não era uma impossibilidade física. Ganhando confiança, levei o espelho para a loja, desci as persianas e observei-me sob todos os pontos de vista, com a ajuda das folhas do espelho no canto.

          — Passei alguns minutos ganhando coragem, depois abri a porta da loja e saí para a rua, deixando o homenzinho livre para desvencilhar-se de seu lençol quando quisesse. Em cinco minutos tinha posto uma dúzia de voltas entre mim e a loja de fantasias. Ninguém demonstrava muito interesse em mim. Parecia ter vencido meu último obstáculo.

          Mais uma vez, calou-se.

          — E você não se preocupou mais com o corcunda? — perguntou Kemp.

          — Não — respondeu o Homem Invisível. — Nem soube o que aconteceu com ele. Suponho que tenha se desamarrado, ou rompido tudo para sair. Os nós estavam bem apertados.

          Ficou em silêncio, foi até a janela e olhou para fora.

          — Que aconteceu quando você foi até o Strand?

          — Oh! — mais uma desilusão. Pensei que havia chegado ao fim de meus problemas. Achei que, praticamente, estava impune para fazer tudo o que quisesse, tudo — menos trair meu segredo. Foi o que pensei. O que quer que fizesse, fossem quais fossem as conseqüências, nada poderia me atingir. Só tinha que livrar-me das roupas e desaparecer. Ninguém seria capaz de me prender. Podia apanhar dinheiro onde o encontrasse. Decidi dar a mim mesmo uma festa suntuosa e depois hospedar-me em um bom hotel, onde acumularia mais alguns pertences. Sentia-me estranhamente confiante — não é muito agradável recordar que fui um asno. Entrei em um restaurante e já estava escolhendo o almoço, quando ocorreu-me que não poderia comer sem expor meu rosto invisível. Acabei de encomendar o almoço, disse ao homem que voltaria dentro de dez minutos e saí, furioso. Não sei se você já teve seu apetite frustrado.

          — Não tanto assim — disse Kemp —, mas imagino o que seja.

          — Poderia ter arrebentado aqueles idiotas. Finalmente, estonteado com o desejo de uma comida saborosa, fui a outro lugar e pedi uma sala privativa. "Estou desfigurado", disse, "horrivelmente". Olharam-me com curiosidade, mas, é claro, não era da conta deles — e afinal consegui meu almoço. Não fui especialmente bem servido, mas o bastante; e quando me satisfiz, relaxei com um charuto, tentando traçar meu plano de ação. Lá fora, estava começando uma tempestade de neve.

          — Quanto mais pensava, Kemp, mais compreendia o solitário absurdo que era um Homem Invisível — em um clima instável e frio e uma cidade cheia e civilizada. Antes de fazer aquela experiência louca, sonhara com mil privilégios. Naquela tarde, tudo era decepção. Repassei mentalmente todas as coisas que um homem julga desejáveis. Sem dúvida, a invisibilidade tornava possível obtê-las, mas impossível gozá-las quando conseguidas. A ambição — de que vale ter orgulho de um lugar, quando se está impossibilitado de aparecer lá? De que vale o amor de uma mulher quando o seu nome tem que ser Dalila? Não tenho interesse pela política, pelo brilho falso da fama, pela filantropia ou pelo esporte. Que iria fazer? E por isso tudo tinha me tornado um mistério embuçado, a caricatura de um homem, enfaixado e cheio de ataduras!

          Fez uma pausa e sua atitude sugeriu um olhar inquieto pela janela.

          — Mas como chegou a Iping? — perguntou Kemp, ansioso em manter o visitante ocupado em falar.

          — Fui para lá para trabalhar. Tinha uma esperança. Era apenas o embrião de uma idéia. Ainda a tenho. Mas agora é uma idéia completa. Um modo de voltar! De desfazer o que fiz. Quando quiser. Quando tiver feito tudo quanto pretendo fazer, sendo invisível. E é sobre isso, principalmente, que quero falar com você agora.

          — Você foi direto a Iping?

          — Fui. Simplesmente tinha que pegar meus três volumes de anotações, meu talão de cheques, minha bagagem e roupa de baixo, encomendar certos produtos químicos para desenvolver minha idéia — vou lhe mostrar os cálculos logo que recupere meus livros — e então parti. Deus! Lembro-me agora da tempestade de neve e do maldito incômodo que era ter que impedir que a neve umedecesse meu nariz de massa.

          — E no fim — disse Kemp —, anteontem, quando descobriram quem era você, a julgar pelos jornais, você. ..

          — Foi mesmo. Matei aquele policial estúpido?

          — Não — respondeu Kemp. — Espera-se que ele se recupere.

          — Sorte a dele, então. Perdi completamente a cabeça com os idiotas! Por que não podiam me deixar em paz? E o palerma do caixeiro?

          — Não há previsão de mortes — disse Kemp.

          — Não diria o mesmo do meu vagabundo — falou o Homem Invisível, com um riso desagradável. — Por Deus, Kemp, você não sabe o que é raiva! Trabalhar durante anos, planejar, estudar e depois ter um idiota obtuso atrapalhando seu objetivo. Todos os tipos possíveis e imagináveis de seres tolos jamais criados foram escolhidos para me importunarem. Com um pouco mais, enlouqueço. Vou começar a esmagá-los. Já tornaram as coisas mil vezes mais difíceis para mim.

          — É irritante, sem dúvida — disse Kemp secamente.

        

       O PLANO QUE FALHOU

          —  Mas agora — disse Kemp, relanceando o olhar para fora da janela —, que vamos fazer?

          Enquanto falava, aproximou-se do visitante, de forma a impedir-lhe a possibilidade de divisar os três homens que avançavam, subindo a estrada da colina com uma lentidão que parecia insuportável a Kemp.

          — Que estava planejando fazer, quando se dirigia a Port Burdock? Tinha algum plano?

          — Ia sair do país. Mas alterei meus planos depois que o encontrei. Pensava que seria prudente ir para o sul, agora que o tempo esquentou e a invisibilidade é viável. Especialmente porque meu segredo tornou-se conhecido e todos estariam alertas em relação a um homem mascarado e encapuçado. Há uma linha de navios daqui para a França. Minha intenção era subir a bordo de um deles e correr os riscos da travessia. Depois poderia ir de trem para a Espanha, ou então para a Argélia. Não seria difícil. Lá, um homem pode ser permanentemente invisível — e ainda assim viver. E fazer coisas. Estava usando aquele vagabundo como meu cofre de dinheiro e carregador de bagagem, até decidir como meus livros e pertences poderiam ser mandados para mim.

          — Claro.

          — Então aquele animal nojento resolveu tentar roubar-me! Escondeu meus livros, Kemp. Escondeu meus livros! Se puder pôr as mãos nele!

          — O melhor curso é tirar os livros dele primeiro.

          — Mas onde está? Você sabe?

          — Está na delegacia da cidade, preso, a seu pedido, na cela mais forte do lugar.

          — Canalha! — xingou o Homem Invisível.

          — Mas isso altera um pouco os meus planos.

          — Preciso pegar os livros; aqueles livros são vitais.

          — Certamente — concordou Kemp um pouco nervoso, imaginando se ouvia passos do lado de fora. — Decerto precisamos achar os livros. Mas não será difícil, se ele ignorar o que representam para você.

          — É verdade — disse o Homem Invisível, e ficou pensativo. Kemp tentou lembrar-se de alguma coisa que estimulasse a conversa, mas o Homem Invisível continuou, espontaneamente.

          — Ter invadido sua casa por mera casualidade, Kemp — disse — muda todos os meus planos. Pois você é um homem capaz de me compreender. A despeito de tudo o que aconteceu, a despeito dessa publicidade, da perda de meus livros, de tudo o que sofri, ainda há grandes possibilidades, enormes possibilidades... Não disse a ninguém que estou aqui? — perguntou abruptamente.

          Kemp hesitou. — Isso ficou implícito — respondeu.

          — A ninguém? — insistiu Griffin.

          — Absolutamente.

          — Ah! Bem. . . — O Homem Invisível levantou-se e pondo as mãos nos quadris, começou a andar pelo escritório.

          — Cometi um erro, Kemp, um erro monumental, ao realizar esse trabalho sozinho. Desperdicei energia, tempo, oportunidades Só! É extraordinário como um homem pode fazer pouca coisa

          quando está só! Roubar um pouquinho, ferir um pouquinho e é tudo.

          — O que quero, Kemp, é um guardião, um ajudante e um lugar onde me esconder, um arranjo que me permita dormir, comer e repousar em paz, sem despertar suspeitas. Preciso de um aliado. Com um aliado, comida e descanso — milhares de coisas são exeqüíveis.

          — Até agora segui uma linha de conduta pouco definida. Temos que considerar tudo quanto a invisibilidade significa e tudo quanto não significa. Não vale muito para ouvir sem ser visto e por aí afora — fazemos barulhos. De pouco adianta, ou talvez adiante um pouco, para arrombar casas e coisas assim. Se me pegam, podem aprisionar-me facilmente. Mas, por outro lado, ê difícil me prenderem. De fato, essa invisibilidade só é boa em dois casos: é útil para fugir e é útil para se chegar perto. Portanto, é especialmente útil para matar. Posso andar em volta de um homem, seja qual for sua arma, escolher meu alvo e golpear como quiser. Driblar como quiser. Fugir como quiser.

          Kemp levou a mão ao bigode. Haveria um movimento no andar de baixo?

          — E o que temos que fazer é matar, Kemp.

          — O que temos que fazer é matar — repetiu Kemp. — Estou ouvindo o seu plano, Griffin, mas veja bem, não estou concordando. Por que matar?

          — Não seriam mortes ao acaso, mas assassinatos lógicos. A razão é que sabem que existe um Homem Invisível — tanto quanto sabemos que há um Homem Invisível. E esse Homem Invisível, Kemp, deve implantar um Reino de Terror. Sim, sem dúvida é assustador. Mas essa é a minha intenção. Um Reino de Terror. Deve apossar-se de uma cidade como a sua, Burdock, apavorá-la e dominá-la. Deve dar ordens. Pode fazê-lo de mil formas — pedaços de papel enfiados por baixo das portas são suficientes. E matará todos os que desobedecerem a suas ordens e matará todos os que defenderem os rebeldes.

          — Hum! — exclamou Kemp, que já não ouvia Griffin, mas o som da porta principal abrindo e fechando. — Parece-me, Griffin — disse ele para ocultar sua desatenção —, que seu aliado ficaria em uma situação difícil.

          — Ninguém iria saber que ele era um aliado — disse o Homem Invisível animadamente. E, de súbito: — Psiu! Que há lá embaixo?

          — Nada — retrucou Kemp e, de repente, começou a falar rapidamente, em voz muito alta. — Não concordo com isso, Griffin — disse. — Compreenda, não concordo com isso. Por que sonhar com um jogo que é contra a humanidade? Como pode esperar ser feliz? Não seja um lobo solitário. Publique seus resultados; admita o mundo — ou, ao menos, admita a nação — em sua confiança. Pense no que poderia fazer com um milhão de colaboradores.. .

          O Homem Invisível interrompeu Kemp. — Ouço passos subindo a escada — disse em voz baixa.

          — Tolice — redargüiu Kemp.

          — Deixe-me ver — insistiu o Homem Invisível, avançando com o braço estendido até a porta.

          Kemp hesitou um segundo, depois adiantou-se para interceptá-lo. O Homem Invisível estremeceu e ficou imóvel. — Traidor! — gritou a Voz e, de repente o roupão abriu-se. Sentando-se, o Invisível começou a se despir. Kemp deu três passos rápidos até a porta e imediatamente o Homem Invisível — cujas pernas haviam desaparecido — pôs-se de pé em um salto, com um berro. Kemp abriu a porta de par em par.

          Ao abri-la, chegou até eles o som de pés apressados e vozes no andar térreo.

          Com um movimento brusco, Kemp empurrou para trás o Homem Invisível, saltou para o lado e fechou a porta. A chave estava na fechadura, do lado de fora. Em poucos instantes, Griffin estaria só, no estúdio do mirante, feito prisioneiro. Mas houve um problema. A chave fora enfiada apressadamente naquela manhã. Quando Kemp bateu a porta, caiu ruidosamente no tapete.

          O rosto de Kemp ficou lívido. Tentou segurar a maçaneta com ambas as mãos. Ficou de pé algum tempo, puxando. A porta cedeu uns poucos centímetros. Mas conseguiu fechá-la de novo.

          Da segunda vez foi puxada uns trinta centímetros e o roupão insinuou-se pela abertura. Sua garganta foi agarrada por dedos invisíveis e ele soltou a maçaneta para defender-se. Foi jogado para trás, levou uma rasteira e caiu pesadamente no canto do patamar. O roupão vazio foi atirado por cima dele.

          Na metade da escada estava o coronel Adye, o destinatário da carta de Kemp e chefe de polícia de Burdock. Contemplava, pasmo, a súbita aparição de Kemp, seguida do extraordinário espetáculo de roupas vazias agitando-se no ar. Viu Kemp ser derrubado e lutando para pôr-se de pé. Viu-o avançar correndo e cair novamente, abatido como se fosse um boi.

          Então, de repente, foi atingido com violência. Por coisa nenhuma! Ao que parecia, um enorme peso tinha pulado sobre ele e fora empurrado de cabeça escada abaixo, com um torniquete em volta da garganta e um joelho em sua virilha. Um pé invisível pisou-lhe as costas, um barulho fantasmagórico de passos desceu a escada, ouviu os dois policiais no vestíbulo gritarem e correrem e a porta da frente da casa ser batida com força.

          Rolou no chão e sentou-se, com um olhar de incompreensão. Viu Kemp descer a escada cambaleando, sujo e descabelado, um lado do rosto branco por causa de uma pancada, o lábio sangrando, segurando um roupão cor-de-rosa e alguma roupa de baixo pendendo-lhe dos braços.

          — Meu Deus — exclamou Kemp —, o jogo acabou! Ele se foi!

         

       CAÇADA AO HOMEM INVISÍVEL

          Durante algum tempo, Kemp foi tomado de tal incoerência que não podia fazer com que Adye compreendesse a rápida sucessão de fatos que haviam acabado de acontecer. Os dois homens detiveram-se no patamar, Kemp falando muito depressa, ainda com as grotescas ataduras de Griffin penduradas em um braço. Mas, aos poucos, Adye começou a entender alguma coisa da situação.

          — Ele é louco — repetia Kemp. — Desumano. E de um egoísmo absoluto. Só pensa no que lhe convém, em sua própria segurança. Esta manhã ouvi a terrível história de sua brutal ambição. Já atacou pessoas. Vai matá-las, a não ser que possamos impedi-lo. Espalhará o pânico. Nada pode detê-lo. Vai sair agora — furioso!

          — Claro que deve ser capturado — disse Adye.

          — Mas como? — gritou Kemp e, subitamente, ocorreram-lhe várias idéias. — Devem começar logo. E engajar nesse trabalho todos os homens disponíveis. Precisam evitar que deixe o distrito.

          Se fugir, pode percorrer a região matando e ferindo. Sonha com um reino de terror! Estou dizendo, um reino de terror. Vigiem trens, estradas e navios. A guarnição militar tem que colaborar. Telegrafem pedindo ajuda. A única coisa que pode prendê-lo aqui é a esperança de recuperar alguns livros de anotações a que ele atribui grande valor. Depois falo sobre isso. Há um homem na delegacia de polícia — Marvel.

          — Sei — disse Adye. — Sei. Aqueles livros — sim.

          — E vocês têm que evitar que coma ou durma: dia e noite a região precisa estar prevenida contra ele. A comida deve ser guardada e trancada, toda a comida, de forma que terá que arrombar portas para chegar a ela. Todas as casas devem ser aferrolhadas para se defenderem dele. Que o céu nos envie noites frias e chuva! Toda a vizinhança tem que começar a caçar e continuar caçando. Estou lhe dizendo, Adye, ele é um perigo, uma catástrofe; a não ser que seja localizado e preso, é aterrador pensar nas coisas que vão acontecer.

          — Que mais podemos fazer? — perguntou Adye. — Preciso ir lá para baixo imediatamente e começar a organizar tudo. Mas por que não vem? Sim, venha também. Venha e reuniremos uma espécie de conselho de guerra — pediremos a colaboração de Hopps e da administração da estrada de ferro. Por Deus! É urgente. Venha — vá falando enquanto andamos. Que mais podemos fazer? Largue essas coisas.

          Adye foi o primeiro a descer as escadas. Encontraram a porta da frente aberta e os policiais montando guarda do lado de fora e olhando fixamente para o nada. — Ele fugiu, senhor — disse um deles.

          — Vamos para a delegacia agora mesmo — ordenou Adye. — Um de vocês desça e encontre um carro para vir pegar-nos, depressa. E agora, Kemp, que mais?

          — Cães — respondeu Kemp. — Arranjem cães. Eles não o vêem mas farejam-no. Arranjem cães.

          — Bom — concordou Adye. — Pouca gente sabe, mas os guardas da prisão de Halstead conhecem um homem que tem sabujos. Cães. Que mais?

          — Tenham em mente que a comida que ele ingere, aparece. Depois de comer, a comida aparece até ser assimilada. Portanto tem que se esconder após qualquer refeição. Examinem cada moita, sem parar, cada canto afastado. E tranquem todas as armas, tudo quanto sirva como arma. Ele não pode carregar essas coisas por muito tempo. O que puder apanhar para ferir pessoas precisa ser escondido.

          — Bom outra vez — disse Adye. — Vamos acabar por capturá-lo.

          — E nas estradas — prosseguiu Kemp, hesitante.

          — Sim? — insistiu Adye.

          — Vidro moído — respondeu Kemp. — Sei que é cruel. Mas pense no que ele pode fazer!

          Adye inalou ruidosamente entre os dentes cerrados. — É antiesportivo. Não sei. Mas farei aprontarem o vidro moído. Se for longe demais...

          — Estou lhe afirmando que o homem tornou-se desumano

          — insistiu Kemp. Tenho tanta certeza de que estabelecerá um reinado de terror — logo que se acalmem as emoções dessa fuga

          — como tenho de estar falando com você. Nossa única chance é adiantarmo-nos a ele. Cortou os laços que o ligavam a seus semelhantes. Que seu sangue recaia sobre a própria cabeça.

         

       O ASSASSINATO DE WICKSTEED

          Parece que o Homem Invisível tinha se precipitado para fora da casa de Kemp cheio de uma fúria cega. Uma criancinha que brincava perto do portão de Kemp foi levantada violentamente e atirada ao chão, quebrando o tornozelo, e daí por diante, por algumas horas, o Homem Invisível ficou fora do alcance dos sentidos humanos. Ninguém sabe onde foi ou o que fez. Mas pode-se imaginá-lo subindo apressadamente a colina e continuando, na tarde quente de junho, pela planície aberta que fica por trás de Port Burdock, enraivecido e desesperado com seu intolerável destino, abrigando-se afinal, encalorado e exausto, no matagal de Hintondean, para reorganizar seus planos fracassados contra a própria espécie. O local parece ter sido o refúgio mais provável para ele, pois foi ali que, cerca de duas horas da tarde, reafirmou-se de uma forma cruelmente trágica.

          Seu estado de espírito e os planos que arquitetou durante esse tempo devem ter sido espantosos. Sem dúvida estava tomado por uma exasperação que beirava a loucura, por causa da traição de Kemp e, conquanto possamos ver claramente os motivos que levaram este último a enganá-lo, ainda assim também podemos imaginar e até compreender um pouco a fúria que a tentativa de surpreendê-lo deve ter provocado. Talvez algo do espanto aturdido de suas experiências em Oxford Street tenha sido relembrado pois, evidentemente, contara com a cooperação de Kemp em seu sonho brutal de um mundo aterrorizado. De qualquer forma, tinha desaparecido da percepção humana quase ao meio-dia e nenhuma testemunha viva pode contar o que fez até duas e meia. É provável que isso tenha sido uma bênção para o gênero humano mas, para ele, a inatividade foi fatal.

          Nesse espaço de tempo, uma multidão crescente do homens espalhados pelo campo mantinha-se ocupada. Pela manhã, ele ainda era simplesmente uma lenda, uma ameaça; à tarde, graças principalmente às declarações de Kemp, em palavras secas e precisas, fora transformado em um antagonista tangível, a ser ferido, capturado ou dominado, e toda a região começou a organizar-se com incrível rapidez. Até às duas horas talvez ele ainda pudesse sair do distrito tomando um trem, mas depois das duas isso tornou-se impossível. Cada trem de passageiros nas linhas de um grande paralelograma entre Southampton, Manchester, Brighton e Horsham viajava de portas fechadas, e o tráfego de mercadorias foi quase que inteiramente suspenso. E, em um grande círculo de vinte milhas à volta de Port Burdock, homens armados de revólveres e bastões estavam saindo com cães em grupos de três ou quatro, para vasculharem as estradas e os campos.

          A polícia montada percorria as trilhas, parando em cada chalé e avisando os moradores para trancarem as casas e ficarem do lado de dentro, a não ser que estivessem armados, todas as escolas primárias tinham encerrado as aulas às três horas e as crianças, amedrontadas e mantendo-se em grupos cerrados, apressavam-se a ir para casa. A proclamação de Kemp — na verdade assinada por Adye — às quatro ou cinco horas da tarde já tinha sido afixada por quase todo o distrito. Descrevia, sucinta e claramente, todas as condições da luta, a necessidade de não propiciar ao Homem Invisível alimento ou repouso, a necessidade de uma observação incessante e de atenção imediata para qualquer indício de movimentos dele. E as providências das autoridades /oram tão urgentes e objetivas e tão imediata a crença naquele ser estranho, que antes do cair da noite uma área de muitos quilômetros quadrados encontrava-se sob rigoroso estado de sítio. E também antes do cair da noite, um arrepio de horror percorreu toda a região alerta e nervosa. Sussurrada de boca a boca, rápida e indiscutível, de um extremo a outro do distrito, a história do assassinato do sr. Wicksteed foi divulgada.

          Se aceitarmos a suposição de que o refúgio do Homem Invisível foram as moitas de Hintondean, temos que supor também que no início da tarde ele tinha saído novamente, para executar um projeto que envolvia o uso de uma arma. Não sabemos qual era esse projeto, mas, ao menos para mim, a certeza de que tinha nas mãos uma arma de fogo antes de encontrar Wicksteed, é absoluta.

          Não temos conhecimento dos detalhes desse encontro. Aconteceu à beira de uma escavação de saibro, a menos de duzentos metros da entrada da casa do porteiro de Lord Burdock. Tudo indica ter havido luta desesperada — o chão pisoteado, os inúmeros ferimentos do sr. Wicksteed, sua bengala lascada; mas a razão do ataque — a não ser que fosse uma fúria assassina — é impossível de imaginar. Realmente, a teoria da loucura é quase inevitável. O sr. Wicksteed era um homem de quarenta e cinco ou quarenta e seis anos, mordomo de Lord Burdock, de hábitos e aparência inofensivos, a última pessoa no mundo a desafiar um inimigo tão aterrorizante. Parece que o Homem Invisível usou contra ele uma barra de ferro tirada de um trecho quebrado da cerca. Deteve aquele homem tranqüilo, que voltava tranqüilamente à casa para almoçar, atacou-o, superou sua inócua defesa, quebrou-lhe o braço, derrubou-o e reduziu-lhe a cabeça a uma massa informe.

          Devia ter arrancado a barra de ferro da cerca antes de encontrar a vítima; decerto carregava-a nas mãos, de prontidão. Além do que já foi contado, só dois detalhes parecem ter relação com o fato. O primeiro é que a saibreira não estava diretamente no caminho de casa do sr. Wicksteed, mas afastava-se dele perto de

          duzentos metros. O outro é a história de uma garotinha que afirmava que, indo para a escola de tarde, tinha visto o homem assassinado "trotando" de uma maneira esquisita em um campo, na direção da saibreira. Representando a ação, sugeria um homem perseguindo algo no chão diante dele e batendo-lhe sem parar com a bengala. Tinha sido a última pessoa a vê-lo vivo. Perdeu-o de vista quando morreu, oculto apenas por uma touceira de faias e uma ligeira depressão no terreno.

          Mas isso, pelo menos no entender de quem escreve, exclui essa morte da classificação de completamente arbitrária. Podemos imaginar que Griffin tinha realmente apanhado a barra como uma arma, mas sem nenhuma intenção deliberada de usá-la para matar. Então Wicksteed deve ter aparecido e notado aquele vergalhão, movendo-se inexplicavelmente no ar. Sem pensar no Homem Invisível — pois Port Burdock fica a quinze quilômetros de distância — pode tê-lo perseguido. É bem possível que nem tivesse ouvido falar no Homem Invisível. Assim, admite-se que este estivesse fugindo — silenciosamente, para evitar que sua presença fosse descoberta na vizinhança e que Wicksteed, excitado e curioso, perseguindo aquele inexplicável objeto que se locomovia — acabasse por tentar alcançá-lo.

          Sem dúvida, em circunstâncias comuns, o Homem Invisível poderia ter-se distanciado de seu caçador de meia-idade, mas a posição em que foi achado o corpo de Wicksteed sugere que ele tinha tido a má sorte de acuar sua presa em um canto, entre um monte de urtigas cheias de espinhos e a cova de saibro. Para os que já tomaram conhecimento da irascibilidade do Homem Invisível, o resto do encontro é fácil de reconstituir.

          Mas isso é pura hipótese. Os únicos fatos inegáveis — pois as histórias de crianças muitas vezes não merecem confiança — são a descoberta do corpo de Wicksteed, espancado até morrer e da barra de ferro manchada de sangue e jogada entre as urtigas. O abandono da barra mostra que, na excitação emocional do ato, se ele tinha um propósito, quando a pegou, este foi esquecido. Certamente era um homem de um egoísmo e frieza exagerados, mas a visão da vítima, sua primeira vítima, ensangüentada e inerte a seus pés, talvez tenha liberado alguma fonte represada de remorso para obstar, por algum tempo, qualquer esquema de ação que tivesse planejado.

          Depois de matar o sr. Wicksteed, provavelmente atravessou o campo em direção à planície. Há a história de uma voz ouvida por dois homens ao entardecer, em um campo perto de Fern Bottom. Chorava e ria, soluçava e gemia e, de vez em quando, gritava. Deve ter sido estranho ouvi-la. Atravessou um campo de trevos e desapareceu entre as colinas.

          Naquela tarde, o Homem Invisível deve ter visto alguma coisa do uso imediato que Kemp fizera de suas confidencias. Com certeza encontrou casas fechadas e trancadas; pode ter vagueado pelas estações ferroviárias, rondando as hospedadas e, sem dúvida, leu a proclamação e compreendeu a natureza da campanha organizada contra ele. E, à medida em que a noite avançava, os campos iam ficando pontilhados, aqui e acolá, por grupos de três ou quatro homens, e barulhentos com o latido dos cachorros. Aqueles caçadores de um ser humano tinham instruções especiais com referência ao modo com que deviam apoiar uns aos outros, no caso de um encontro. Evitou-os a todos. Pode-se entender um pouco de sua exasperação; e o fato de que ele mesmo havia fornecido as informações que estavam sendo usadas tão cruelmente contra ele, nada fazia para atenuá-la. Pelo menos naquele dia, perdeu o ânimo; durante quase vinte e quatro horas, exceto quando atacara Wicksteed, foi um homem acuado. No correr da noite, possivelmente, comeu e dormiu; pois de manhã voltou a ser ele mesmo, ativo, forte, colérico e implacável, preparado para sua última grande luta contra o mundo.

        

       O CERCO À CASA DE KEMP

          Kemp leu uma carta estranha, escrita a lápis em uma folha gordurosa de papel.

          "Você tem se mostrado extraordinariamente ativo e engenhoso, embora não possa imaginar o que ganha com isso. É contra mim. Perseguiu-me um dia inteiro; tentou privar-me de uma noite de sono. Mas, apesar de você alimentei-me, e apesar de você, dormi, e o jogo está apenas começando. O jogo está apenas começando. E não há nada que o justifique se não instaurar o Terror. Esta é para anunciar o primeiro dia de Terror. Diga a seu Chefe de Polícia e a todo o resto que Port Burdock não está mais sob o governo da Rainha; está sob o meu governo — o do Terror! Hoje é o dia um do ano um da nova era — a Época do Homem Invisível. Sou o Homem Invisível Primeiro. Inicialmente os regulamentos serão brandos. Haverá uma execução no primeiro dia, para servir de exemplo — a de um homem chamado Kemp. A Morte começa hoje para ele. Pode trancar-se, esconder-se, cercar-se de guardas ou vestir uma armadura, se quiser; a Morte, a Morte invisível está chegando. Deixá-lo tomar precauções; isso imporá respeito a meu povo. A Morte começará a partir do marco da caixa do correio, ao meio-dia. A carta cairá quando o correio chegar e depois será dada a partida! O jogo se inicia. A Morte começa. Não o ajude, meu povo, senão a Morte recairá sobre você? também. Hoje Kemp vai morrer."

          Kemp leu a carta duas vezes. — Não é uma brincadeira — disse. — Esta é a voz dele! E fala sério.

          Virou a folha dobrada e viu no lugar do endereço o carimbo Hintondean e o detalhe prosaico, "20 centavos a pagar".

          Levantou-se sem terminar o almoço — a carta viera pelo correio da uma hora — e foi para o escritório. Tocou a campainha; chamando a governanta, e disse-lhe para correr a casa imediatamente, examinar todas as trancas das janelas e fechar os postigos. Ele mesmo fechou os do escritório. De uma gaveta trancada, em seu quarto, tirou um pequeno revólver, inspecionou-o cuidadosamente e guardou-o no bolso do paletó esportivo. Escreveu vários bilhetes curtos, um deles para o coronel Adye, e encarregou a criada de entregá-los com instruções explícitas de como fazer para sair de casa. — Não há perigo — disse, e acrescentou mentalmente — para você. — Feito isso, permaneceu pensativo por algum tempo e depois voltou ao almoço que estava esfriando.

          Comeu, parando de vez em quando para pensar. Finalmente, deu um soco na mesa, com força. — Vamos apanhá-lo! — exclamou. — E eu sou a isca. Ele irá longe demais.

          Subiu para o mirante, fechando cuidadosamente cada porta atrás de si. — É um jogo — disse — um jogo estranho, mas as chances são todas a meu favor, sr. Griffin, a despeito de sua invisibilidade. Griffin contra mundum — levado ao extremo!

          Ficou de pé junto à janela, contemplando a encosta quente da colina. — Tem que comer todos os dias — e não o invejo. Terá mesmo dormido a noite passada? Em algum lugar, ao relento, livre de colisões. Gostaria que tivéssemos um pouco de tempo frio, em vez de calor.

          — Pode estar me observando agora.

          Chegou-se mais à janela. Algo bateu ruidosamente contra os tijolos, acima do alizar, fazendo-o estremecer violentamente.

          — Estou ficando nervoso — disse Kemp. Mas passaram-se cinco minutos antes que voltasse de novo à janela. — Deve ter sido um pardal — pensou.

          Um pouco mais tarde ouviu a campainha da porta da frente tocar, e apressou-se a descer. Destrancou a porta e girou a chave na fechadura, examinou a corrente, levantou-a e abriu cuidadosamente, sem se expor. Uma voz familiar saudou-o. Era Adye.

          — Sua empregada foi assaltada, Kemp — anunciou ainda do lado de fora.

          — Quê! — exclamou Kemp.

          — Seu bilhete foi-lhe tomado. Ele está aqui por perto. Deixe-me entrar.

          Kemp soltou a corrente e Adye entrou por uma fresta tão estreita quanto possível. Parou no vestíbulo, olhando com infinito alívio, enquanto Kemp fechava a porta. — O bilhete foi-lhe arrancado da mão. Assustou-a terrivelmente. Ficou na delegacia. Com um ataque histérico. Ele está bem perto daqui. De que se tratava?

          Kemp xingou.

          — Que idiota fui — queixou-se Kemp. — Devia ter sabido. Não leva nem uma hora a pé, daqui a Hintondean. Já chegou!

          — Que está acontecendo? — perguntou Adye.

          — Olhe aqui — respondeu Kemp, mostrando o caminho para o escritório. Entregou a Adye a carta do Homem Invisível. Adye leu-a e assoviou baixinho. — E você?. . . — insistiu.

          — Propunha uma armadilha. . . como um tolo — disse Kemp — e mandei minha proposta por uma empregada. Para ele.

          Adye ecoou as blasfêmias de Kemp.

          — Vai fugir — opinou Adye.

          — Não ele — discordou Kemp.

          Do andar de cima veio um grande estrondo de vidros quebrados. Adye viu de relance o brilho prateado de um pequeno revólver meio para fora do bolso de Kemp. — É uma janela lá em cima — disse Kemp e adiantou-se, subindo. Ouviram outro vidro partindo-se, enquanto ainda estavam na escada. Quando checaram ao estúdio, encontraram quebradas duas das três janelas, i metade do aposento cheia de cacos de vidro e uma grande lasca na escrivaninha. Os dois homens pararam na porta, contemplando a destruição. Kemp xingou de novo e, ao fazê-lo, a terceira janela cedeu, com um estalo que parecia o de uma pistola, pendeu por um instante, o vidro rachado formando uma estrela, e caiu para dentro do estúdio em triângulos pontiagudos e trêmulos.

          — Para que é isso? — indagou Adye.

          — É um começo — respondeu Kemp.

          — Não há nenhum modo de subir até aqui?

          — Nem para um gato — disse Kemp.

          — Não há venezianas?

          — Aqui, não. Em todos os cômodos de baixo.. . Epa!

          Uma pancada forte e depois o ceder de madeiras violentamente forçadas, veio de baixo. — Maldito seja! — praguejou Kemp. — Isso deve ser.. . sim, é em um dos quartos. Ele vai acabar com a casa toda. Mas é um louco. Os postigos estão fechados e o vidro cairá lá fora. Vai cortar os pés.

          Mais uma janela exibiu sua destruição. Os dois homens pararam no patamar, perplexos. — Já sei! — exclamou Adye. — Dê-me uma bengala ou coisa parecida e vou até a estação para soltar os cães de fila. Isso deverá acabar com ele! Estão perto — a menos de dez minutos. . .

          Outra janela teve destino semelhante às anteriores.

          — Você não tem um revólver? — perguntou Adye.

          Kemp levou a mão ao bolso. Hesitou. — Não tenho. . . pelo menos um de sobra.

          — Trago-o de volta — insistiu Adye —, você está seguro aqui. Kemp passou-lhe a arma.

          — Agora, até a porta — disse Adye.

          Ainda indecisos no patamar, ouviram uma das janelas do quarto do primeiro andar estalar e cair. Kemp foi até a porta e começou a correr os trincos, o mais silenciosamente possível. Seu rosto estava um pouco mais pálido do que de costume. — Você tem que sair direto — recomendou Kemp. Em um instante, Adye estava na soleira da porta e os trincos voltando a seus encaixes. Hesitou um pouco, sentindo-se mais seguro com as costas coladas à porta. Depois desceu os degraus, ereto e firme. Atravessou o gramado e aproximou-se do portão. Uma brisa ligeira parecia ondular a grama. Algo moveu-se junto a ele. — Pare — disse uma Voz e Adye imobilizou-se, apertando o revólver na mão.

          — Bem? — perguntou Adye, pálido e decidido, com os nervos tensos.

          — Faça-me o favor de voltar para a casa — disse a Voz, tão tensa e decidida quanto a de Adye.

          — Desculpe — falou Adye um tanto rouco, umedecendo os lábios com a língua. A Voz estava à frente, à esquerda, pensou. E se tentasse a sorte com um tiro?

          — Onde vai? — quis saber a Voz, e houve um movimento rápido de ambos e um reflexo de sol no bolso entreaberto de Adye.

          Adye desistiu e pensou. — Onde vou — respondeu lentamente — é problema meu. — As palavras ainda lhe pairavam nos lábios quando um braço rodeou-lhe o pescoço, suas costas sentiram uma joelhada e encontrou-se estirado no chão, de costas. Sacou do revólver, desajeitado, e atirou de qualquer maneira e logo em seguida foi golpeado na boca e o revólver arrancado de sua mão. Tentou agarrar em vão uma perna escorregadia, procurou levantar-se e caiu de novo. — Diabos! — explodiu Adye. A Voz riu. — Mataria você agora, se não fosse pelo desperdício de uma bala — disse. Adye viu o revólver no ar, cobrindo-o, a um metro e pouco.

          — E então? — disse Adye, sentando-se.

          — Levante-se — ordenou a Voz. Adye levantou-se.

          — Atenção — disse a Voz, e depois com dureza: — Não tente nenhum truque. Lembre-se de que, se você não pode ver meu rosto, posso ver o seu. Tem que voltar para a casa.

          — Ele não vai me deixar entrar — objetou Adye.

          — É pena — disse o Homem Invisível. — Não tenho contas a ajustar com você.

          Adye umedeceu novamente os lábios. Desviou os olhos do cano do revólver e viu o mar distante, azulado e escuro, sob o sol do meio-dia, a colina verde e acetinada, o penhasco branco de Head, a cidade populosa, e de repente sentiu que a vida era muito boa. Seus olhos voltaram ao pequeno objeto de metal, parado entre o céu e a terra, a um metro.

          — Que devo fazer? — perguntou, deprimido.

          — O que deve fazer? — perguntou o Homem Invisível. — Você ia procurar ajuda. Só me resta obrigá-lo a voltar.

          — Tentarei. Se ele deixar-me entrar, promete que não vai arremeter contra a porta?

          — Não tenho queixas de você — disse a Voz.

          Depois da saída de Adye, Kemp tinha se apressado a subir e então, agachado entre os cacos de vidro e espiando cautelosamente por cima do peitoril da janela do estúdio, viu Adye de pé, parlamentando com o Invisível. — Por que não atira? — murmurou para si mesmo. Então o revólver mudou um pouco de posição e um raio de sol incidindo sobre ele faiscou nos olhos de Kemp. Protegeu-os e tentou ver a origem do brilho ofuscante.

          — Claro! — exclamou. — Adye entregou o revólver.

          — Prometa não arremeter contra a porta — repetiu Adye. — Não force demais um jogo que está ganhando. Dê uma oportunidade ao homem.

          — Volte para a casa. Definitivamente, digo-lhe que não prometo nada.

          De repente, Adye pareceu tomar uma decisão. Voltou-se para a casa, caminhando devagar, com as mãos às costas. Kemp seguia-o com os olhos, intrigado. O revólver desapareceu, luziu novamente à vista, desapareceu outra vez e, em uma observação mais detalhada, revelou ser o pequeno objeto escuro que acompanhava Adye. Então, as coisas aconteceram muito rapidamente. Adye pulou para trás, deu meia-volta, agarrou aquele pequeno objeto, falhou, ergueu as mãos para o alto e caiu para a frente, deixando no ar uma diminuta nuvem azul. Kemp não ouviu o tiro. Adye estremeceu, tentou levantar-se, apoiado em um braço, caiu para diante e ficou imóvel.

          Kemp ficou algum tempo contemplando fixamente o tranqüilo desprendimento da atitude de Adye. A tarde estava muito quente e sem vento e nada parecia mexer-se além de um par de borboletas amarelas correndo uma atrás da outra através dos arbustos entre a casa e o portão da estrada. Adye jazia no gramado perto do portão. Todos os chalés que bordejavam a estrada descendente da colina tinham as venezianas cerradas, mas em uma pequena casa verde de verão havia um vulto branco que parecia um velho adormecido. Kemp esquadrinhou os arredores da casa, à procura do brilho de um revólver, mas este havia desaparecido. Seus olhos voltaram a Adye. O jogo estava se iniciando bem.

          Então começaram toques de campainha e batidas na porta da frente, em um crescendo que se transformou em tumulto, mas os serviçais, obedecendo às instruções de Kemp, trancaram-se em seus quartos. Seguiu-se o silêncio. Kemp sentou-se e ficou ouvindo, e depois começou a espreitar cuidadosamente pelas três janelas, uma após a outra. Foi até o alto da escada e escutou, inquieto. Armou-se com o atiçador da lareira de seu quarto e foi inspecionar, mais uma vez, as trancas das janelas do andar térreo. Tudo estava seguro e calmo. Voltou ao mirante. Adye jazia imóvel à beira do caminho de cascalho, exatamente como caíra. Trilhando a estrada que passava pelos chalés, vinham vindo a criada e dois policiais.

          Tudo estava mortalmente quieto. A aproximação das três pessoas dava a impressão de ser muito vagarosa. Perguntou-se que estaria fazendo seu oponente.

          Teve um sobressalto. Houve um estrondo vindo de baixo. Hesitou, mas desceu novamente. De súbito, toda a casa ressoou com pancadas brutais e o estraçalhar da madeira. Ouviu um choque e o clangor destrutivo dos fechos de ferro do' postigos. Girou a chave e abriu a porta da cozinha. Ao fazê-lo, os postigos quebrados e lascados vieram voando para dentro. Ficou aterrado. A moldura da janela ainda estava intacta, exceto por uma travessa cruzada, porém apenas pequenos fragmentos de vidro denteado ainda permaneciam nela. Os postigos tinham sido destruídos com um machado e agora o machado descia, em golpes vigorosos, sobre a moldura da janela e as barras de ferro que a protegiam. Então, repentinamente, desviou-se para um lado e desapareceu. Kemp viu o revólver no chão do caminho do lado de fora e depois a pequena arma saltou para o ar. Desviou-se, retrocedendo. O revólver disparou um pouco tarde demais e uma farpa da quina da porta que fechava passou voando sobre a cabeça dele. Bateu e trancou a porta e do outro lado ouviu Griffin, gritando e rindo. Depois recomeçaram os golpes de machado, com seu acompanhamento de rachaduras e destruição.

          Kemp deteve-se no corredor, tentando pensar. Aquela porta não resistiria muito mais a ele e então. ..

          A campainha da porta da frente tocou outra vez. Deviam ser os policiais. Correu para o vestíbulo, retirou a corrente e puxou os ferrolhos. Antes de soltar a corrente exigiu que a moça falasse e as três pessoas, amontoadas entraram na casa tropeçando; Kemp trancou a porta de novo.

          — O Homem Invisível! — exclamou Kemp. — Tem um revólver com duas balas ainda. Matou Adye. Ou, pelo menos, atirou nele. Vocês não o viram no gramado? Caiu ali.

          — Quem?

          — Adye — repetiu Kemp.

          — Entramos por trás — explicou a moça.

          — Que barulhada é essa? — perguntou um dos policiais.

          — Ele está na cozinha — ou estará breve. Encontrou um machado.

          De repente a casa encheu-se dos golpes ressoantes do Homem Invisível na porta da cozinha. A criada olhou fixamente para a cozinha, estremeceu e bateu em retirada para a sala de jantar. Kemp procurou explicar, em frases entrecortadas. Ouviram a porta ceder.

          — Por aqui — gritou Kemp subitamente ativo e empurrou os dois policiais para o limiar da porta da sala de jantar.

          — O atiçador — disse Kemp e correu para o guarda-fogo da lareira. Deu um atiçador a cada policial. Repentinamente, jogou-se para trás.

          — Opa! — gritou um policial, esquivando-se e desviando o machado com o atiçador. A pistola estalou seu penúltimo tiro, danificando um valioso Sidney Cooper. O segundo policial baixou seu atiçador sobre a pequena arma, como se abate uma vespa, e fê-la cair, chocalhando pelo chão.

          Ao primeiro golpe a moça gritou, continuou a gritar um pouco mais junto à lareira e depois correu para abrir os postigos — provavelmente com a intenção de fugir pela janela destroçada.

          O machado recuou para o corredor e ficou em posição, a cerca de meio metro do chão. Podiam ouvir a respiração do Homem Invisível. — Afastem-se, vocês dois — disse ele. — Quero esse homem, o Kemp.

          — E nós queremos você — disse o primeiro policial, dando um passo rápido para a frente e fazendo descer o atiçador sobre a Voz. O Homem Invisível devia ter recuado. Tropeçou no porta-guarda-chuvas. Então, enquanto o policial cambaleava, devido ao impulso do golpe que tinha dado, o Homem Invisível reagiu, usando o machado; o capacete dele ficou amassado como papel e a pancada atirou o homem, rolando pelo chão, até o pé das escadas da cozinha. Mas o segundo policial, mirando por trás do machado com seu atiçador, atingiu alguma coisa mole que se partiu. Houve uma exclamação aguda de dor e o machado caiu no chão. O policial bateu novamente, ao acaso e não acertou nada; pôs o pé em cima do machado e bateu de novo. Depois endireitou o corpo, o atiçador como um porrete, os ouvidos atentos ao menor movimento.

          Ouviu a janela da sala de jantar abrir-se e um ruído ligeiro de pés do lado de dentro. Seu companheiro voltou-se e sentou-se, com o sangue escorrendo entre o olho e a orelha. — Onde está ele? — perguntou, do chão.

          — Não sei. Acertei-o. Está em algum lugar no vestíbulo. A não ser que tenha se esgueirado sem você ver. Dr. Kemp — senhor.

          Silêncio.

          — Dr. Kemp! — gritou novamente o policial.

          O segundo policial levantou-se com dificuldade. Ficou de pé. De repente, ouviram a leve pisada de pés descalços nas escadas da cozinha. — Ah! — gritou o primeiro policial e incontinenti arremessou o atiçador. Só quebrou um pequeno bico de gás.

          Fez menção de perseguir o Homem Invisível até embaixo. Mas pensou melhor e entrou na sala de jantar.

          — Dr. Kemp — começou, e parou bruscamente. — O dr. Kemp está aqui — disse, enquanto o companheiro olhava sobre seu ombro.

          A janela da sala de jantar estava completamente aberta e não se podia ver nem Kemp nem a empregada.

          A opinião do segundo policial sobre Kemp foi concisa e pitoresca.

         

       O CAÇADOR CAÇADO

          O sr. Heelas, o vizinho mais próximo do dr. Kemp entre os moradores dos chalés, dormia em sua casa de verão, quando começou o cerco à casa de Kemp. O sr. Heelas fazia parte da minoria teimosa que se recusava a acreditar "em toda essa bobagem" a respeito de um Homem Invisível. Entretanto, sua mulher, como lhe seria lembrado mais tarde, acreditava. Ele insistia em andar pelo jardim, como se não houvesse nada de anormal, e dormia de tarde, conforme o hábito de muitos anos. Dormiu durante todo o quebra-quebra das janelas e acordou de repente, com a curiosa impressão de que havia algo errado. Olhou para o lado oposto, para a casa de Kemp, esfregou os olhos e olhou de novo. Depois encostou os pés no chão e ficou sentado, à escuta. Disse "que diabo!" mas, ainda assim, aquela coisa estranha continuava à vista. A casa tinha o aspecto de ter sido abandonada havia semanas, após um violento tumulto. Todas as janelas estavam quebradas e todas elas, com exceção das do estúdio no mirante, estavam com os postigos internos fechados.

          — Poderia jurar que estava perfeita — disse, olhando para o relógio — há uns vinte minutos.

          Começou a perceber uma agitação ao longe e o barulho de vidros quebrados a uma distância considerável. E então, ainda sentado e de boca aberta, aconteceu uma coisa ainda mais fenomenal. Os postigos das janelas da sala de estar foram abertos brutalmente e a empregada, de roupas e chapéu de passeio apareceu, lutando desesperadamente para levantar as janelas de guilhotina. Súbito surgiu um homem junto a ela, ajudando-a — o dr. Kemp! Logo depois a janela foi aberta e a criada esforçou-se para sair; atirou-se para diante e desapareceu entre os arbustos. O sr. Heelas levantou-se, com exclamações vagas, porém veementes, ante todos aqueles portentos. Viu Kemp ficar de pé no peitoril e pular da janela, reaparecer quase que imediatamente, correndo por um caminho entre a vegetação, abaixando-se enquanto corria, como um homem que não quer ser observado. Sumiu por trás de um laburno e apareceu outra vez pulando uma cerca que dava para a vertente da colina, a céu aberto. Em um segundo estava do outro lado e corria com tremenda velocidade, descendo em direção ao sr. Heelas.

          — Deus! — gritou o sr. Heelas, sob o impacto de uma idéia —; é aquele animal, o Homem Invisível! Afinal, é verdade!

          Para o sr. Heelas, pensar em coisas assim era agir e sua cozinheira, que o observava da janela de cima, ficou espantada ao vê-lo aproximar-se da casa a toda a brida, uns cinco quilômetros por hora, no mínimo. — Pensei que ele não tinha medo — disse ela. — Mary, venha até aqui! — Seguiu-se uma batida de portas, um tocar de campainhas e a voz do sr. Heelas mugindo como um touro. — Fechem as portas, fechem as janelas, fechem tudo! O Homem Invisível está chegando! — Instantaneamente a casa encheu-se de gritos, ordens e pés apressados. Correu em pessoa para fechar as portas-janelas que abriam para a varanda; enquanto isso, a cabeça, ombros e joelhos de Kemp apareceram no alto da cerca do jardim. Em um segundo o dr. Kemp tinha aberto caminho entre os aspargos e atravessava o campo de tênis, correndo para a casa.

          — Não pode entrar — disse o sr. Heelas trancando os ferro-lhos. — Sinto muito que ele esteja perseguindo você, mas não pode entrar!

          Kemp colou ao vidro um rosto apavorado, tamborilando e depois sacudindo desesperadamente a porta-janela. Depois, vendo que seus esforços eram inúteis, seguiu velozmente pela varanda, pulou o gradil e foi socar a porta lateral. Em seguida circundou às pressas o portão do lado até a frente da casa e dali para a estrada da colina. E o sr. Heelas, acompanhando-o com os olhos de sua janela — uma máscara de horror — mal havia visto o dr. Kemp desaparecer e já os aspargos estavam sendo pisoteados, aqui e ali, por pés que ele não enxergava. Ante tudo isso, o sr. Heelas fugiu precipitadamente para cima e o resto da caçada ficou fora de seu campo de visão. Mas ao passar pela janela das escadas, ouviu o portão lateral fechar-se.

          Emergindo na estrada da colina, Kemp, logicamente, escolheu o caminho descendente e foi por isso que viu a si mesmo repetindo exatamente a corrida que acompanhara com olhos tão críticos do estúdio do mirante, havia apenas quatro dias; para um homem destreinado, ele corria bem; e embora seu rosto estivesse pálido e suado, conservava a cabeça fria. Galopava em largas passadas e sempre que aparecia um trecho de terreno irregular, surgia uma trilha de pedras, ou luzia, cintilante, um pedaço de vidro quebrado, seguia por ali e deixava que os pés nus e invisíveis em seu encalço tomassem o rumo que desejassem.

          Pela primeira vez na vida, Kemp descobriu como aquela estrada era indescritivelmente vasta e deserta e como os subúrbios da cidade, muito abaixo, no sopé da colina, pareciam estranhamente remotos. Nunca existiu um método de locomoção mais lento ou doloroso do que a corrida. Todas as vilas desoladas, adormecidas ao sol da tarde, pareciam trancadas e aferrolhadas; sem dúvida estavam trancadas e aferrolhadas — por ordens dele. Mas, de qualquer forma, deviam manter-se vigilantes no caso de uma eventualidade como aquela! A cidade estava se aproximando, a visão do mar desaparecera por trás dele e as pessoas lá embaixo começavam a se agitar. Um bonde estava chegando ao pé do morro. Mais além ficava a delegacia de polícia. Seriam passos o que ouvia atrás dele? Mais depressa!

          Embaixo, as pessoas fitavam-no, uma ou duas corriam e sua respiração já começava a entrecortar-se na garganta. O bonde estava bem perto e o "Jolly Cricketers" barrava suas portas com grande estardalhaço. Depois do bonde havia postes e montes de cascalho — o sistema de drenagem. Teve a idéia passageira de pular no coletivo e fechar as portas, mas depois resolveu ir para a delegacia. Em um momento tinha ultrapassado a porta do "Jolly Cricketers" e estava no fim da rua de calçamento irregular, com seres humanos à sua volta. O condutor do carro e o ajudante — fascinados pela visão daquela pressa furiosa — ficaram olhando, sem atrelar os cavalos ao bonde. Mais adiante, as caras intrigadas dos operários de drenagem apareceram acima do cascalho acumulado. Afrouxou um pouco o passo, mas ouvindo o andar rápido de seu perseguidor, adiantou-se novamente em um pulo. — O Homem Invisível! — gritou para os operários, indicando-o com um gesto vago e, movido por uma idéia súbita, atravessou a vala em um salto e colocou um grupo corpulento entre ele e seu perseguidor. Depois, desistindo do propósito de ir à delegacia de polícia, tomou uma pequena rua lateral, passou como um raio pela carroça do verdureiro, hesitou por um décimo de segundo à porta de uma casa de doces e partiu para a entrada da viela que levava de volta à Hill Street, a rua principal. À sua aparição, duas ou três criancinhas que estavam brincando ali gritaram e fugiram depressa e, em conseqüência, abriram-se portas e janelas, e mães indignadas puseram a boca no mundo. Precipitou-se outra vez para Hill Street, a trezentos metros do ponto final da linha do bonde e, imediatamente, tomou consciência de uma vociferação tumultuosa e de pessoas correndo.

          Relanceou para a colina, rua acima. A pouco menos de uns dez metros corria um trabalhador enorme, blasfemando espasmodicamente e dando golpes furiosos com uma pá, e bem atrás dele vinha o condutor do bonde, de punhos cerrados. Subindo a rua havia outros que os seguiam, batendo e gritando. Na direção da cidade homens e mulheres também corriam e viu claramente um homem saindo da porta de uma loja, com uma bengala na mão.

          "Espalhem-se! Espalhem-se!", gritou alguém. Kemp não tardou a perceber a mudança de situação na caçada. Parou e olhou em volta, ofegando. — Ele está perto daqui! — exclamou. — Formem uma linha de um lado a outro...

          — Ah! — berrou uma voz.

          Foi atingido com força sob a orelha e saiu rodopiando, tentando dar meia-volta para enfrentar o inimigo invisível. Mal conseguiu ficar em pé e reagiu sem resultado, atacando o ar. Depois levou um soco no maxilar e caiu de cabeça, estirado no chão. Logo depois um joelho comprimiu-lhe o diafragma e um par de mãos ávidas apertaram-lhe a garganta, mas a pressão de uma delas era mais fraca do que a da outra; segurou os pulsos, ouviu um grito de dor de seu atacante e a pá do trabalhador veio girando pelo ar acima dele e bateu em alguma coisa com um ruído surdo. Sentiu uma gota úmida em seu rosto. O aperto em sua garganta afrouxou de repente e com um esforço convulsivo, Kemp soltou-se, pegou um ombro flácido e rolou por cima dele. Pregou os cotovelos invisíveis no chão. — Peguei-o! — gritou Kemp. — Socorro! Socorro! Segurem-no! Ele caiu! Prendam-lhe os pés!

          Um segundo depois, houve um avanço simultâneo para o local da luta e um estranho que chegasse à estrada de repente, poderia pensar que estava havendo uma partida de rúgbi excepcionalmente selvagem. E não se ouviu mais nada após os gritos de Kemp — apenas o som de socos, pontapés e uma respiração pesada.

          Então, com um enorme esforço o Homem Invisível repeliu um par de antagonistas e pôs-se de joelhos. Kemp agarrava-se a ele pela frente, como um cão de caça com um veado, e uma dúzia de mãos pegaram, apertaram e dilaceraram o Invisível. O co-cheiro do bonde agarrou-lhe o pescoço e os ombros e arrastou-o para trás.

          Mais uma vez, o grupo de homens que lutava caiu e rolou sobre ele. Houve alguns chutes selvagens. Depois, subitamente, um grito desesperado de "Piedade! Piedade!" que se transformou depressa em um som estrangulado.

          — Afastem-se, idiotas! — gritou a voz abafada de Kemp; e houve empurrões vigorosos de gente destemida. — Estou dizendo, ele está ferido. Afastem-se!

          Houve uma breve luta para abrir espaço e o círculo de olhos curiosos viu o médico ajoelhado, aparentemente a uns dez centímetros no ar, segurando os braços invisíveis no chão. Por trás dele, um policial prendia tornozelos invisíveis.

          — Não o solte — gritou o trabalhador grandalhão, empunhando uma pá ensangüentada —; está fingindo.

          — Não está fingindo — disse o médico, erguendo cuidadosamente o joelho, e eu o seguro. — O rosto machucado estava ficando vermelho; falava em voz rouca por causa de um lábio que sangrava. Soltou uma das mãos e pareceu estar examinando o rosto. — A boca está molhada — disse. E depois: — Deus do céu!

          Levantou-se bruscamente, depois ajoelhou-se no chão, ao lado da coisa invisível. Houve alguns empurrões e arrastar de pés e um som de passos pesados quando apareceu mais gente para aumentar a pressão da turba. As pessoas estavam saindo das casas. As portas do "Jolly Cricketers" abriram-se completamente e depressa. Pouco se falou.

          Kemp tateava e sua mão parecia estar passando pelo vazio. — Não está respirando — disse, e acrescentou: — Não sinto o coração. O lado. . . Ufa!

          Subitamente, uma velha que olhava por baixo do braço do operário grandão, deu um grito agudo. — Olhem lá! — e apontou um dedo enrugado.

          Olhando para onde apontara, todos viram, impreciso e transparente, o contorno de uma mão, uma mão flácida e caída, como se fosse de vidro, de forma que veias e artérias, ossos e nervos podiam ser distinguidos. E, enquanto olhavam, foi ficando nublada e opaca.

          — Epa! — exclamou o policial. — Os pés estão aparecendo!

          E assim, lentamente, começando pelas mãos e pés e subindo pelos membros para os centros vitais daquele corpo, a estranha metamorfose continuou. Era como a difusão vagarosa de um veneno. Primeiro, foram os pequenos nervos brancos, o esboço pouco nítido de um membro, depois os ossos opacos e as artérias interligadas, a seguir a carne e a pele, primeiro uma vaga névoa tornando-se rapidamente densa e opaca. Puderam ver então o peito esmagado, os ombros e o vago esboço de feições abatidas e castigadas.

          Quando a multidão finalmente abriu espaço para que Kemp ficasse de pé, jazia no chão, nu e deplorável, o corpo maltratado e quebrado de um moço de perto de trinta anos. Tinha o cabelo e a barba brancos — não grisalhos por causa da idade, mas brancos, com a brancura do albino, e seus olhos eram cor de granada. Tinha as mãos contraídas, os olhos muito abertos e sua expressão era de cólera e espanto.

          — Cubram o rosto dele! — disse um homem. — Pelo amor de Deus, cubram esse rosto! — e três criancinhas que tinham se insinuado no meio da multidão foram obrigadas a dar meia-volta e ir para casa.

          Alguém trouxe um lençol do "Jolly Cricketers"; e, tendo-o coberto, levaram-no para dentro.

         

          Assim termina a história da estranha e nefasta experiência do Homem Invisível. E se você quiser saber mais sobre ele, terá que ir a uma pequena estalagem perto de Port Stowe e conversar com o proprietário. A tabuleta da estalagem é um retângulo vazio de madeira, onde apenas se vêem um chapéu e botas e seu nome é o título desta história. O estalajadeiro é um homenzinho baixo e corpulento, com um nariz que se projeta como um cilindro, cabelo crespo e faces coloridas irregularmente por manchas rosadas. Beba fartamente e ele lhe contará, fartamente, as coisas que lhe aconteceram depois daquela época e de como os advogados tentaram subtrair-lhe o tesouro encontrado com ele.

          — Quando concluíram que não podiam provar de quem era o dinheiro, Deus que me perdoe se não procuraram fazer com que me parecesse com um maldito caçador de tesouros. Tenho cara de caçador de tesouros? E aí um cavalheiro deu-me um guinéu por noite para contar a história no Empire Music Hall — apenas para contar-lhes tudo em minhas próprias palavras — evitando apenas uma.

          E se você quiser interromper abruptamente o fluxo de reminiscências, sempre pode fazê-lo, perguntando se não havia três livros manuscritos na história. Ele confessa que havia e continua a explicar, assegurando que todos pensam que estão com ele! Mas, Deus que o abençoe, não estão! — O Homem Invisível foi quem os pegou para escondê-los, quando o deixei e fugi para Port Stowe. Foi aquele dr. Kemp quem pôs na cabeça das pessoas a idéia de que estavam comigo.

          E então ele se cala, pensativo, observa-o, furtivo, cuida nervosamente dos copos e acaba por sair do bar.

          É solteiro — seus gostos sempre foram os de um homem solteiro e não há mulheres na casa. Usa botões, exteriormente — o que se espera como proteção para suas vergonhas mais íntimas mas, quando se trata de suspensórios, por exemplo, ainda prefere o barbante.

          Administra seu negócio sem nenhum espírito empreendedor, mas com muito decoro. Seus movimentos são vagarosos, e é um grande pensador. Na aldeia, tem a reputação de sabedoria e a de uma parcimônia eminentemente respeitável, e seu conhecimento das estradas do sul da Inglaterra superaria o de Cobbett.

          Em cada manhã de domingo, durante o ano inteiro, enquanto está fechado para o mundo exterior, e todas as noites depois das dez, vai para o salão do bar com um copo de gim levemente respingado de água; e, tendo pousado o copo, tranca a porta, inspeciona os postigos e olha até embaixo da mesa. Então, convencido de sua solidão, destranca o armário, apanha uma caixa nesse armário e uma gaveta nessa caixa, e retira três volumes encadernados em couro marrom, colocando-os solenemente no centro da mesa. A capa está gasta pelo tempo e manchada de um verde de mofo — pois uma vez ficaram guardados em um buraco e algumas páginas foram inteiramente apagadas pela água suja. O estalajadeiro senta-se em sua cadeira de braços, enche lentamente um comprido cachimbo de argila, olhando o tempo todo para os livros, com um ar de triunfo. Depois puxa um deles para perto, abre-o e começa a estudá-lo — virando as páginas para a frente e para trás.

          Tem o cenho franzido e os lábios movem-se penosamente. — É um feitiço, um pequeno dois em cima, no ar, uma cruz e mais absurdos. Senhor! Aquilo é que era inteligência!

          Depois relaxa, recosta-se e pisca através da fumaça pela sala, para coisas invisíveis a outros olhos. — Cheio de segredos — diz. — Segredos maravilhosos!

          — Logo que consiga dominá-los — Senhor!

          — Não faria o que ele fez; faria apenas... bem! — Aspira o cachimbo.

          E assim entrega-se a um sonho, o sonho imortal e maravilhoso de sua vida. E embora Kemp tenha fracassado seguidamente e Adye o tenha interrogado com insistência, nenhum ser humano, exceto o estalajadeiro, sabe onde estão os livros com os segredos sutis da invisibilidade e mais uma dúzia de outros segredos estranhos registrados ali. E ninguém os conhecerá, até que ele morra.

 

                                                                                            H.G.Wells

 

 

                      

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