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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A Nave dos Antepassados / Clark Darlton
A Nave dos Antepassados / Clark Darlton

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Nave dos Antepassados

 

Os homens servem à máquina... na astronave do passado!

Há milênios uma nave vaga pelo espaço, longe das rotas normais de navegação. É um gigantesco couraçado. Mas, em comparação com a amplidão do espaço, não passa de uma partícula de pó.

E ninguém a localizou...

Que nave será essa? Terá tripulação? Será o testemunho de uma catástrofe espacial ocorrida numa época em que a Humanidade ainda não sabia da existência do Universo?

Porém Gucky, o mais competente mutante de Rhodan, afirma que alguém pensou em voz alta e “localiza” A Nave dos Antepassados...

 

                                 

 

A gigantesca esfera metálica vagava pela imensidão infinita do Universo. Se traçássemos sua rota passada, chegaríamos ao halo galáctico, onde se situam os gigantescos grupos estelares esféricos. Mas se acompanhássemos sua rota futura, iríamos parar no vazio desolado da extremidade oposta da Via Láctea. Se mantivesse a velocidade atual, a esfera só chegaria ao destino dentro de algumas dezenas de milênios.

Além de gigantesca, a esfera era artificial.

Quem a visse pela primeira vez poderia ter a impressão de estar observando um pequeno planeta. Porém, um exame mais cuidadoso logo revelaria que essa impressão seria simplesmente falsa. A esfera era um objeto artificial, construído e posto em movimento por seres pensantes.

Ao que parecia, seus tripulantes também eram criaturas inteligentes.

Vez por outra, o observador veria uma sombra que se movia atrás das vigias iluminadas. Essas sombras possuíam formas humanóides, fato que levava à conclusão de que, no interior da esfera, não habitavam monstros, e sim homens.

A esfera era uma nave espacial.

É bem verdade que a nave tinha um diâmetro de mil e quinhentos metros e seria capaz de abrigar alguns milhares de homens.

Seguia firmemente a sua rota, sem preocupar-se com os acontecimentos que se desenrolavam nos milhares de planetas habitados, situados nas vizinhanças. As placas energéticas de radiações, que permaneciam ligadas, ininterruptamente, evitavam sua localização eletrônica à distância, e nenhuma nave de patrulhamento espacial, fosse de que raça fosse, descobriu o peregrino incansável que voava para um destino desconhecido.

Não havia ninguém que jamais tivesse posto os olhos no interior da misteriosa nave-fantasma, com exceção, é claro, das pessoas que viviam e trabalhavam no interior da mesma. Mas estas pessoas só conheciam o interior da nave; não sabiam o que se passava no mundo situado além de suas paredes metálicas. É bem verdade que viam as estrelas que desfilavam lentamente ao longo da trajetória da nave; mas estas pertenciam às suas vidas e não representavam qualquer mistério. O negrume eterno do cosmos era seu dia, e os sóis reluzentes eram seus companheiros constantes.

Por maior que fosse a nave, em comparação com a imensidão do Universo, ela não passava de uma partícula de pó, que seguia com vagar uma trajetória previamente traçada, e nela prosseguiria até que um dia fosse devorada pela eternidade.

Ninguém daria por sua falta...

 

O Maquinista Sete havia terminado seu turno de trabalho e saía em direção ao alojamento. Foi substituído pelo Maquinista Quatro, um moço robusto, mas de poucas palavras; difícil de diálogo. O Maquinista Sete gostava de bater um papo entre um turno e outro, mas o Maquinista Quatro não era um bom companheiro para esse tipo de entretenimento.

Um tanto contrariado, M-7 caminhou pelo estreito corredor, até atingir o elevador antigravitacional. Penetrou imediatamente no negrume do poço e logo se sentiu atingido pelo suave fluxo ascendente, que o levou para cima. Dali a alguns segundos, outro homem colocou-se a seu lado; com um ligeiro aceno de cabeça, deu a entender que não gostava de prolongadas discussões.

M-7 conhecia o homem. Era um dos médicos que velavam pela saúde do pessoal de bordo. Se não se enganava era o Doutor Três, um homem geralmente amável e comunicativo, especialmente com quem estivesse doente e confiado aos seus cuidados.

Naquele instante, o Maquinista Sete lamentou-se de não estar doente.

— O senhor não acha que hoje o ar está mais abafado que de costume? — indagou cautelosamente, para dar início à conversa. — Tenho a impressão de que está fazendo mais calor que nos outros dias.

— É apenas impressão! — respondeu o médico laconicamente.

Ao que parecia, o doutor não tinha a menor vontade de conversar com o maquinista. Mas M-7 não desistia tão depressa.

— Como é que a gente pode se enganar tanto, D-3? — retrucou, usando a abreviatura simbólica, formada pela indicação da função e pelo número. — Quem sabe se não estou doente?

D-3 lançou um olhar perscrutador para M-7 e sacudiu a cabeça.

— Por que acha que está doente? Se estiver sentindo alguma coisa, avise sua seção e apresente-se a mim. Depois veremos o que...

— Avisar que estou doente? — M-7 parecia assustado. — Tanta coisa só para...

Estacou. Por pouco não fala demais. Não poderia dizer ao médico que apenas estava com vontade de abrir-se com alguém. Seu mundo era feito apenas de indagações que nunca obtinham resposta. É bem verdade que nem mesmo o médico seria capaz de lhe dar as respostas que estava procurando, mas sempre seria interessante saber se alguém já havia formulado as mesmas perguntas.

— Só para o quê?

M-7 parecia embaraçado.

— Nada — disse laconicamente e saiu do elevador. Pouco importava que não fosse o corredor ao qual pretendia ir. Apenas desejava escapar do olhar penetrante e desconfiado do médico. Viu as pernas de D-3 subirem à sua frente e esperou dois minutos.

Depois voltou a entrar no elevador e, dali a dez minutos, penetrava no camarote que partilhava com M-4. Via de regra, os turnos de trabalho dos dois eram diferentes. Quando os turnos coincidiam, M-4 costumava ficar deitado na cama sem fazer nada e sem mostrar-se disposto a entreter qualquer palestra.

M-7 suspirou, lavou-se e foi para a cama.

Para que estava vivendo?

 

O comandante estava a sós em seu camarote.

O corpo robusto, ligeiramente inclinado para a frente, revelava sua idade. Essa impressão era reforçada pelos cabelos brancos que emolduravam um rosto, estreito e oval, com um par de olhos avermelhados e um nariz quase feminino, que encimava a boca estreita. O queixo revelava energia e força de vontade, mas os traços suaves que circundavam a boca pareciam indicar o contrário.

As mãos do comandante estavam pousadas sobre uma pequena pilha de finíssimos documentos de plástico. Parecia querer segurá-los, com medo de que alguém os tirasse. As pernas estendidas quase chegavam ao lado oposto da mesa metálica, firmemente presa ao chão. A única peça móvel era a leve poltrona.

A parede, feita de material transparente, mostrava o espaço cósmico. Duas das outras paredes estavam cobertas de instrumentos de controle, em fileiras de pequenas telas, quadros de comando, chaves e indicadores. Além disso havia botões, mecanismos de regulagem e equipamento de comunicação. Na última parede, existiam apenas duas portas. Uma delas levava a uma sala na qual ninguém podia penetrar, a não ser o comandante.

Levantou os olhos ao ouvir um leve zumbido. A tela superior do lado esquerdo iluminou-se. Fez um gesto de cansaço e girou o botão que existia embaixo da tela. No mesmo instante, surgiu o rosto de um homem que, apesar dos cabelos brancos, parecia jovem e sadio. O rosto enérgico provava que aquele homem gostava de decidir depressa, e, nos olhos avermelhados, havia um brilho penetrante que deveria servir de advertência a qualquer inimigo.

— Por que me perturba, Oficial Um?

O rosto não demonstrou a menor comoção.

— Preciso falar com o senhor, C-l — disse. — É importante.

O comandante soltou um suspiro.

— Já sei o que deseja — disse em tom de resignação. — Por que será que a juventude nunca sabe esperar sua vez? Sei que meu tempo está quase no fim, mas para que tanta pressa, O-l? O senhor será meu sucessor...

— Pois não percebo nada disso — retrucou o oficial em tom zangado. — Como é que a juventude pode progredir se a velhice não lhe dá oportunidade para isso?

O comandante sorriu.

— Progredir, O-l? Você quer progredir? Se soubesse...

— Pois eu quero saber. O senhor tem tempo para falar comigo?

O comandante recusou em tom resoluto.

— No momento não, O-l! Quando estiver na hora, avisarei. Você nem imagina o peso da responsabilidade que terá de assumir. Quando estiver no meu lugar, se arrependerá de sua afoiteza, mas então não haverá como voltar atrás. Qualquer um que ocupe meu lugar será a pessoa mais solitária do Universo.

— Não há ninguém mais solitário que aquele que se isola voluntariamente. E é o que o senhor está fazendo, comandante.

— Você fará a mesma coisa, porque não terá outra alternativa. Um dia compreenderá. Até lá só lhe posso pedir que tenha paciência. Permita que eu o previna, O-l: qualquer insistência de sua parte poderá ter conseqüências funestas. Ainda não chegou a hora...

O jovem acenou com a cabeça... parecia zangado.

— É o senhor quem decide o momento da substituição?

O comandante sorriu.

— Faça de conta que sou eu quem decido. Desta forma, não terá um peso na consciência. Você só saberá de toda a verdade quando ocupar meu lugar — olhou para o relógio que se encontrava em cima do painel de instrumentos. — Com licença; tenho o que fazer.

A tela apagou-se subitamente, antes que o oficial tivesse tempo para responder.

O comandante voltou a acomodar-se em sua poltrona. Apoiou a cabeça nas mãos, como se esta pesasse demais. Compreendia perfeitamente o jovem oficial que um dia ocuparia seu lugar.

O regulamento não permitia qualquer exceção, sob pena de morte no conversor. O sucessor teria de esperar até que fosse dado o sinal. Só depois disso, poderia assumir o cargo, a fim de que só uma pessoa de cada vez conhecesse o segredo.

“De qualquer maneira terei de morrer”, pensou o comandante com uma amargura cada vez maior. “É o preço que tenho de pagar. Os que vieram antes de mim morreram, e os que vierem depois também morrerão.”

Não havia nada que pudesse interromper a seqüência.

Mais uma vez sobressaltou-se com o zumbido do videofone. Tinha a obrigação de dar atenção a todo e qualquer chamado. Levantou-se para verificar se não era o Oficial Um.

Desta vez, era o Oficial Dois, porta-voz da tripulação.

— Comandante, Ps-5, D-3 e R-75 querem falar com o senhor. Pode recebê-los?

O comandante refletiu rapidamente.

Não havia nada de extraordinário em que o doutor e o psicólogo desejassem uma entrevista. Isso acontecia quase todas as semanas. Mas o fato de o Reparador Setenta e Cinco querer falar com ele não era corriqueiro. Por isso falou num misto de curiosidade e estranheza:

— Conceda a permissão. Aguardo estas pessoas na hora de costume.

Teve um pressentimento e acrescentou:

— Só quero falar com as pessoas que acabam de ser nomeadas, O-2. Tome as necessárias precauções para que O-l não venha, sob qualquer pretexto.

— Entendido, senhor — disse o interlocutor e desligou.

O comandante voltou a sentar-se e refletiu intensamente.

Desconfiava de que uma desgraça estava para desabar sobre ele.

Porém não sabia de que espécie era essa desgraça...

 

Alguns dias antes...

O psicólogo levantou os olhos, perplexo, quando a porta se abriu e o Doutor Três entrou em seu gabinete sem fazer-se anunciar.

Os dois homens tinham aproximadamente a mesma idade, e, se não fosse seus trajes profissionais, seria difícil distingui-los.

— Ora, D-3. É uma visita rara...

— Preciso falar com você, Ps-5. Só você pode responder às inúmeras perguntas que formulo a mim mesmo e que outros me formulam.

— Perguntas? Desde quando a gente costuma formular perguntas a si mesmo?

— É a vida que coloca estas perguntas diante de nós, e compreendo qualquer pessoa que queira transmiti-las aos círculos dirigentes. E os círculos dirigentes somos nós, que não devemos responder.

O psicólogo sorriu.

— Não devemos, meu caro? Mesmo que quiséssemos, que resposta poderíamos dar? O que sabemos da vida? Nascemos aqui, aqui vivemos e trabalhamos, e é aqui que morreremos quando chegar nossa hora.

— Mas por quê? Por que vivemos e morremos aqui? Que sentido tem nossa existência? São estas as perguntas que ouvi repetidamente nos últimos dias, Ps-5. Que resposta poderia dar? Sei que perguntas deste tipo são proibidas, e sempre que alguém as ouve deve avisar o comandante. Mas também sei que o comando da morte sai à procura das pessoas que formulam tais questões e... Se nos ativéssemos às ordens que nos são dadas, dentro de pouco tempo não haveria uma criatura viva em nosso mundo.

O médico fez uma pausa, inclinou-se para a frente e fitou os olhos de seu interlocutor.

— O que vem a ser este mundo? Você sabe?

— Ninguém sabe — respondeu o psicólogo, sacudindo a cabeça e voltando a sorrir. — Por que quer saber? Nascemos e somos criados neste mundo, nele recebemos nossas tarefas e as cumprimos. Nosso mundo nos sustenta, nos dá comida, bebida e oxigênio; nos veste e, uma vez por ano, permite que entremos em contato com as mulheres. Por fim ainda nos concede uma morte rápida e indolor. Devemos agradecer a este mundo por cuidar tão bem de nós. Você não acha?

— Acho. Concordo plenamente com você. Mas gostaria de saber por que as coisas são assim e quem rege nossos destinos.

— Quem rege nossos destinos? — o psicólogo refletiu por algum tempo e parou de sorrir. — Ora, é o comandante; quem poderia ser? É ele que dá as ordens e, felizmente, tem de morrer da mesma forma que nós. Muita gente se sente reconfortada com esta idéia e, quando chega sua vez, morre alegre.

— Não é o comandante quem rege nossos destinos — disse o médico em tom tranqüilo.

O psicólogo estremeceu. Seus olhos estreitaram-se; com uma expressão de pavor fitou as fendas do equipamento de renovação de ar, situado no teto, como se acreditasse que ali havia alguém que os escutasse. Seu rosto assumiu uma expressão de dúvida misturada com medo.

— Psiu! Que bobagem é essa? Você ainda acabará por nos levar ao conversor.

A morte no reator atômico seria a estação final de sua vida. Ninguém poderia escapar a esse destino, mas quem não soubesse conduzir-se com a necessária cautela apressaria o destino inevitável. O comandante não hesitava muito em proferir uma sentença de morte, e sua vontade era lei.

O médico afastou a objeção com um gesto da mão.

— Tolice, Ps-5! Não somos crianças às quais se possa meter medo com o conversor. Somos homens para nos defendermos se quiserem levar-nos. Tomei minhas precauções. Você acredita que andei pensando sobre isso e não arranjei armas?

— Armas? — perguntou Ps-5 em tom de espanto, ao qual se misturava uma fagulha de medo. — Você sabe que a posse de armas é proibida. Aliás, como é que você poderia tê-las arranjado? Neste mundo ninguém tem armas, a não ser...

— Isso mesmo! Ninguém possui armas, a não ser os guardas. Eles as trazem ocultas em seus corpos mecânicos. Para nos apossarmos das armas de um guarda, temos de destruí-lo.

O psicólogo fitou o médico com uma expressão de espanto.

— Não venha me dizer que...

— Pois é isso mesmo. Atraí um robô para uma emboscada e o coloquei fora de ação. Depois desmontei-o e fiquei com suas armas energéticas. Um maquinista me ajudou. Ele é de confiança.

— Um maquinista?! Será que ele não o trairá?

Desta vez, o médico sorriu.

— Ele não pode, meu caro. Fiz dele um viciado. Sei que isso é proibido. Se descobrirem, serei punido. Mas M-4 ficaria sem drogas e definharia miseravelmente. Como vê, tomei minhas precauções. E estou decidido a descobrir a verdade. Quer me ajudar a descobri-la, Ps-5? Reflita sobre isso. Caso não pense como eu, esqueça-se de nossa conversa. Confio em sua palavra.

— Quem, além de você e M-4, está agindo?

— Mais ninguém.

O psicólogo recostou-se na poltrona e lançou um olhar pensativo para o teto de seu gabinete.

Era aqui que trabalhava e dava suas ordens à Divisão de Psicologia. Gozava de certo renome. Deveria arriscar tudo isso apenas para satisfazer a curiosidade? Não se encontrava junto à fonte das informações? Não era ele que, juntamente com o comandante, era informado sobre todas as novidades em virtude de sua profissão? Por que teria de bancar o curioso?

Lançou um olhar pensativo para o amigo, que o fitou com uma expressão de expectativa, cheia de fé e esperança, mas também com temor.

De repente, teve uma idéia.

— Você tem aí a arma? — perguntou.

D-3 fez que sim. Pôs a mão no bolso e tirou um bastão pequeno e jeitoso, em cuja extremidade havia uma lente de vidro.

— Você nunca viu esta arma em funcionamento, Ps-5. Mas eu lhe garanto que seus efeitos são terríveis. Se quiser, poderei perfurar a parede externa de nosso mundo e dar entrada à morte gelada. Seria facílimo matar um homem com ela.

O psicólogo sentiu um calafrio. Desconfiava de que nunca estivera tão próximo da morte como naquele instante. Mas o médico era seu amigo...

Seria mesmo...?

Fitou detidamente a lente e procurou imaginar como seria a morte que se ocultava naquele bastão prateado. Seria uma morte rápida e indolor?

Seria mesmo...?

Mais uma vez, surgiram perguntas. Porém todas ficaram sem respostas.

— Ontem fui procurado por um homem — principiou Ps-5, rompendo o silêncio reinante após as indagações. — Sua divisão encaminhou-o a mim porque não se conduziu com a necessária cautela durante o trabalho. Não consegui tirar nada dele, pois mantinha um silêncio obstinado sobre os motivos de sua distração. Não tive outra alternativa: apliquei-lhe o radiador psíquico. Com isso, sua língua se soltou. Descobri por que já não pode cumprir suas obrigações com toda dedicação. Está interessado em ouvir a história que ele me contou?

O médico limitou-se a acenar com a cabeça. Continuava a segurar o bastão prateado. Até parecia que se esquecera dele.

— Pois bem. Preste atenção, D-3. O homem pertence ao comando de reparos do setor dez. É um simples trabalhador. Há cerca de meio ano, um dos aparelhos de exaustão falhou e teve de ser reparado. R-75 foi incumbido de fazer os reparos. Com o auxílio de um colega procurou descobrir a causa das avarias e repará-las. Era a primeira vez que a instalação entrava em pane. Por isso, não foi fácil descobrir o defeito. Depois de algum tempo, viram que seria necessário romper uma parede para atingir as instalações propriamente ditas.

D-3 inclinou-se para a frente; parecia muito interessado.

— Espero que não tenha sido a parede externa.

— Não; nem poderia ter sido, pois nesse caso R-75 e seu colega teriam morrido imediatamente. Usaram o aparelho de solda para cortar a parede e fizeram uma abertura capaz de dar passagem a um homem. É claro que estavam contrariando as ordens vigentes, segundo as quais não deve ser realizada qualquer modificação. Porém uma abertura na parede é uma modificação... Passaram pela abertura e foram parar num recinto em que reinava uma penumbra. Segundo o relato de R-75, havia no teto pequenas luzes, que espalhavam uma débil luminosidade. De qualquer maneira, a parte dos fundos do exaustor estava exposta à sua frente. Logo descobriram a causa do defeito e conseguiram removê-la.

“Mas os dois não voltaram imediatamente para fechar a abertura, como deviam ter feito. Começaram a examinar a misteriosa sala; ou ao menos, tiveram essa intenção. Porém foram impedidos. Isso mesmo, D-3, foram impedidos. Os guardas andam até mesmo nos setores inexplorados de nosso mundo. R-75 conseguiu colocar-se em segurança, mas seu colega foi atingido por um raio energético e teve morte instantânea.

“Os guardas não saíram em perseguição de R-75, como este receava. Talvez tivessem recebido contra-ordem, pois retiraram-se imediatamente. R-75 soldou a abertura e apresentou-se a seu superior. Relatou os acontecimentos e descreveu a morte de seu colega, mas não contou o que havia visto no tal recinto. Porém não pôde deixar de contar a mim, já que estava submetido ao tratamento psíquico. Dessa forma, consegui saber o que o atormentava. Era um terrível segredo, que inevitavelmente acarreta a morte de quem o descobre. E é por isso que R-75 ainda está vivo.”

— Não compreendo — confessou o médico.

O psicólogo sorriu.

— Você logo compreenderá. O reparador revelou-me um segredo que ninguém deve conhecer. Se transmitisse o segredo a alguém, R-75 não escaparia à morte. Mas eu teria de entrar no conversor a seu lado, pois também conheço o segredo. E comigo entrariam outras pessoas, caso eu as comunicasse de... Já compreendeu por que R-75 ainda está vivo?

— Compreendo. Mas prossiga; que segredo é este?

O psicólogo voltou a fitar o perigoso bastão prateado.

— Será que você poderia guardar isso, D-3? Se eu tiver de olhar constantemente para a lente de um aparelho que expele raios mortíferos, fico nervoso. Obrigado, amigo. Bem, vamos ao segredo. É claro que R-75 não conseguiu distinguir todos os detalhes, porque a iluminação não era boa. De qualquer forma, conseguiu distinguir na penumbra duas fileiras de blocos transparentes, entre os quais havia espaço suficiente para que os guardas se locomovessem à vontade. Cada bloco estava ligado por meio de fios e tubos de plástico a uma máquina embutida na parede. Nos blocos havia um líquido turvo, que devia ser mais viscoso que a água, pois permanecia imóvel. E, nesse líquido, boiava... gente!

— O quê?! — exclamou o médico, empalidecendo. — Havia gente?!

O psicólogo fez um gesto afirmativo.

— Em cada bloco havia uma pessoa nua — um homem ou uma mulher. Você sabe quem são essas pessoas? Não, você não sabe. Pois eu lhe direi, D-3. Essas pessoas são nossos antepassados que, segundo reza a história, teriam morrido há dez mil anos. É isso mesmo. Depois de terem colocado nosso mundo na rota certa, eles não morreram, mas ficaram mergulhados naquele líquido e ali dormem até hoje. São vigiados por guardas metálicos que, além de nos dominar, impõem também sua vontade ao comandante. E a vontade que nos impõem é a vontade de pessoas que, segundo se diz, teriam morrido há muito tempo. Pense bem, D-3! Nós fomos logrados!

O médico estava estupefato.

— Não é possível, Ps-5. Sei que você acredita nisso, mas não consigo imaginar que realmente seja assim. Então nós somos escravos de pessoas que morreram há muito tempo?

— Acontece que não morreram!

O psicólogo quase chegou a gritar estas palavras. Mas logo calou-se, assustado. Se alguém o ouvisse, estaria perdido.

— Você quer dizer que ainda estão vivos?

A voz com que o médico proferiu estas palavras quase chegava a ser incrédula. Subitamente deu-se conta de que, face aos seus conhecimentos médicos, estaria em melhores condições de pronunciar-se sobre o assunto que seu interlocutor, e prosseguiu.

— Naturalmente. De que serviriam seus corpos, perfeitamente conservados, mas mortos? Quer dizer que estão vivos! Mas por quê?

O psicólogo inclinou-se para a frente.

— Nós sabemos, D-3. Nós sabemos! Nós e R-75. Mas este nem desconfia de que consegui apoderar-me de seu conhecimento. Ainda bem. Suspendi seu tratamento sem informar seus superiores sobre os motivos de seu estado de perturbação. Talvez saiba ficar com a boca calada; neste caso ainda viverá algum tempo.

— Quer dizer que nós sabemos. Como vamos utilizar esta descoberta?

— Bem, o que sabemos realmente? Em algum ponto inexplorado deste mundo, jazem nossos antepassados, mergulhados num sono profundo e conservados através dos séculos; ao menos, à primeira vista, parece-me assim. É possível que na verdade estejam mortos. Talvez tenham morrido em virtude de algum erro imprevisto e apenas seus corpos se tenham conservado. Seja como for, a esta hora já podemos fazer uma idéia sobre suas intenções. Um belo dia, quando nosso mundo chegasse ao destino, desejavam ser despertados. Ao que suponho, as gerações intermediárias só preencheriam uma finalidade: manter o maquinismo em funcionamento. Sempre acreditamos que vivíamos e trabalhávamos para nós, mas na realidade nós o fazemos pelas pessoas que dormem no centro de nosso mundo metálico. Gostaria de saber se o comandante conhece a verdade, ou se também está sendo enganado.

D-3 lançou um olhar pensativo para o psicólogo.

— Com a arma na mão eu me sinto seguro. Mas quem mais tem uma arma? Só os guardas. E estes não podem ser conversados, pois não são homens, mas simples máquinas. Porém não tenho apenas um radiador, mas três. Posso dar-lhe um. Dessa forma poderemos arriscar-nos a fazer perguntas ao comandante, face a face, e pedir que ele nos explique tudo.

— Você tem coragem — disse o psicólogo em tom de inveja. Refletiu por alguns segundos e prosseguiu: — Nos tempos de escola, meu maior problema era a indagação sobre a finalidade de nossa existência. Sabia que nascíamos nos asilos e nunca veríamos nossos pais. Ao sermos levados para a instituição educadora, não mais veríamos nossa mãe. Vinha a escola, o aprendizado e o estudo. Por fim, o trabalho, que prossegue até o momento em que alcançamos a idade adequada para morrermos no conversor. Até mesmo depois de mortos, servimos ao nosso povo, pois nossos corpos fornecem energia. O circuito de nossa vida é claro e prefixado, mas não preenche qualquer finalidade. Para que serve tudo isso? Por que as coisas se passam dessa forma? Qual é nosso destino? Ou será que nosso mundo vaga ao acaso pelo Universo dos sóis?

— O que sabemos sobre os sóis é muito pouco — disse D-3, lembrando os ensinamentos recebidos na escola. — Apenas conhecemos as tradições, e quem sabe se estas não são falsas? Talvez tenham sido inventadas por aqueles que dormem no centro deste mundo e aguardam a chegada de sua hora.

Hesitou por um momento e prosseguiu lentamente:

— Acho que perguntar ao comandante não seria a melhor solução. Vamos tomar nossas providências.

Ps-5 inclinou-se para a frente. Parecia muito interessado nas palavras de seu interlocutor.

— Que providências serão estas?

— Iremos mais uma vez, com R-75, à sala onde dormem nossos antepassados. Talvez consigamos descobrir seus planos.

O psicólogo deu sinais evidentes de susto, mas logo conseguiu vencer o medo.

— Talvez você esteja com a razão, D-3 Antes morrer com uma certeza no coração que viver na incerteza. Quando iremos?

— Ainda hoje — respondeu o médico e levantou-se. — Mande chamar R-75. Ficarei escondido na sala ao lado e aparecerei assim que seja necessário.

Ao sair, tirou do bolso a arma de radiações e destravou-a. Não estava disposto a assumir qualquer risco. Ps-5 concordou plenamente.

A seguir, o psicólogo comprimiu a tecla do intercomunicador e deu suas instruções.

 

O Reparador Setenta e Cinco não conseguia tirar da cabeça a lembrança daquele acontecimento de alguns meses atrás. Seu sono era repleto de pesadelos. Via constantemente o colega ser atingido e morto pelos ofuscantes raios energéticos. Ouvia sempre os passos metálicos dos vigias saídos da escuridão, que pretendiam agarrá-lo com suas mãos frias. Porém acordava em tempo para não ter de viver o terrível momento.

Talvez um dia, seus sonhos se tornariam realidade: viriam realmente para levá-lo ao conversor. Ainda bem que ninguém conhecia seu segredo. Enquanto se mantivesse em silêncio, estaria em segurança.

E as longas fileiras de blocos com os corpos imóveis. O que vinha a ser isso? Seria gente morta há muito tempo, que estava sendo guardada para um fim todo especial? Que fim poderia ser este? O que significavam esses cadáveres, guardados há milênios naquela câmara mortuária?

Ou não estariam mortos?

R-75 formulara esta pergunta inúmeras vezes, mas nunca conseguira descobrir a resposta. Seus conhecimentos estavam restritos à área tecnológica. Pouco entendia das ciências médicas.

Quando o intercomunicador chamou, estremeceu. A voz de seu superior, saída do alto-falante, disse:

— Apresente-se à Divisão de Psicologia, R-75. Imediatamente! Faça o favor de confirmar.

— Entendido — respondeu R-75, um tanto apreensivo.

Suas mãos nervosas ajeitaram a roupa. Caminhou até a porta.

O que queriam? Não passara bem pelo teste? Ou teriam desconfiado de alguma coisa e desejavam submetê-lo a outro exame?

O elevador deixou-o no respectivo andar. Enquanto caminhava pelo corredor, esforçou-se em vão para lembrar qualquer fato que pudesse ter provocado suspeitas na Divisão de Psicologia. Sabia que ninguém tremia por nada na frente de um psicólogo. E era isso que o preocupava.

Quando fechou a porta atrás de si, compreendeu que sua situação não era tão séria como receara. O psicólogo sorriu; sorriu para ele, que era um simples trabalhador.

— Faça o favor de sentar-se, R-75 — disse Ps-5 em tom amável e apontou para uma cadeira. — Quero formular algumas perguntas. Peço-lhe que responda conforme a verdade. Não tenha receio, mas é bom que saiba que, na situação em que se encontra, o silêncio só poderá prejudicá-lo. Será que me exprimi com suficiente clareza?

R-75 sentiu sua tranqüilidade desvanecer-se de uma hora para outra. Era bem verdade que o psicólogo continuava a sorrir, porém esse sorriso parecia agora uma armadilha.

— Não sei... — principiou R-75, mas logo foi interrompido.

— O senhor logo saberá, meu caro. Antes de iniciarmos nossa conversa, propriamente dita, quero dizer-lhe uma coisa. Depois de terminada a presente palestra, só haverá duas alternativas. O senhor e eu poderemos viver, ou então ambos teremos de entrar no conversor. Tudo depende do senhor.

— No conversor?

O psicólogo repetiu:

— Isso mesmo; no conversor. Vamos resumir as coisas. Há alguns dias, esteve aqui porque alguém o mandou. Eu o submeti a um tratamento psicológico e fiquei sabendo da verdade sobre a morte de seu colega. Com isso, também fiquei conhecendo seu segredo. Não se assuste; o segredo está em boas mãos. Se eu o denunciar, terei de morrer também. Espero que isto o deixe mais tranqüilo.

R-75 realmente parecia mais calmo. Teve bastante inteligência para avaliar o significado das palavras do psicólogo.

— Pois bem; vejo que estamos de acordo — prosseguiu Ps-5. — Vejo que o senhor compreendeu em que situação se encontra. Por isso, não há nenhum motivo para não conversarmos abertamente — virou a cabeça e, falando em direção à porta que levava à sala ao lado, disse: — Venha, doutor. Acho que poderemos expor nosso plano a R-75.

D-3 guardou a arma energética. Entrou na sala e cumprimentou R-75 com um gesto.

Naquele momento, R-75 compreendeu que o número das pessoas que eventualmente seriam condenadas à morte já subira para três.

 

Não se encontraram com nenhuma pessoa ou vigia.

R-75 os guiava; não se sentia muito à vontade. Sabia que, à sua retaguarda, havia dois homens armados que não hesitariam em matar qualquer inimigo, sem medir as conseqüências. Acontece que R-75 ainda não confiava plenamente nas armas que não conhecia. Nunca as vira serem usadas por um ser humano.

Entraram no elevador e deslizaram em direção ao centro do gigantesco mundo esférico. Foram-se aproximando das regiões desconhecidas em que ficavam as salas de máquinas. Nem o médico e nem o psicólogo jamais haviam chegado até lá. Seu mundo resumia-se aos corredores limpos e reluzentes dos setores científicos. Quanto a R-75, este, por assim dizer, conhecia todos os lugares. O exercício de sua profissão exigia sua presença em todos setores.

Parou.

— Não falta muito. Aliás, nenhum homem deveria chegar até aqui. Admiro-me de não termos encontrado nenhum vigia.

— Os vigias são máquinas às quais falta o pensamento impulsivo. Apenas sabem pensar logicamente. Não suspeitam de que alguém ande por aqui, pois ninguém tem nada a fazer por estes lados. Não nos esqueçamos de que, provavelmente, vêm desempenhando suas funções há dez mil anos. E, pelo que sabemos da história de nossa raça, nunca houve um acontecimento como o que se verifica agora. Somos os primeiros que procuram desvendar o mistério.

— É bem possível que outros o tenham feito antes de nós — ponderou o médico. — Nesse caso teriam morrido com seu segredo, motivo por que ninguém chegou a ter conhecimento do mesmo.

— Isso é pouco provável, meu caro. Aposto que nem mesmo os vigias conhecem o segredo. Quando muito, apenas os que vivem atrás da parede e cuidam das pessoas que dormem ali estão informados a respeito.

— Talvez — disse D-3 e calou-se.

— Vamos andando — disse Ps-5 em tom impaciente, pesando a arma na mão.

O médico lhe ensinara como usá-la, mas a verdadeira potência do artefato só seria revelada por meio de uma experiência.

A iluminação tornou-se cada vez mais escassa. Mal se enxergava um palmo diante do nariz. Dificilmente alguém penetrava nestas regiões da nave, motivo por que havia boas razões para economizar energia. As reservas não deviam ser inesgotáveis.

R-75 prosseguiu na caminhada e parou à frente de uma porta. Era grossa e estava firmemente encaixada no batente, mas à primeira tentativa deixou claro que não havia sido trancada.

— Atrás desta porta fica a sala onde terminam os dutos do sistema de renovação de ar. Será que devemos entrar?

— Foi para isso que viemos! — disse Ps-5 em tom impaciente e entrou à frente dos outros.

O psicólogo mantinha a arma engatilhada, mas a precaução revelou-se desnecessária. Na sala só havia os gigantescos blocos de geradores e os enormes quadros de comando.

A penumbra bastou para mostrar a solda retangular da parede oposta. Via-se perfeitamente que, naquele lugar, alguém fizera uma abertura e voltara a fechá-la.

— Foi ali — disse R-75 e estremeceu ao rememorar os acontecimentos. Subitamente seus pesadelos pareciam transformar-se em realidade. — Como pretende abrir passagem?

Ps-5 não respondeu. O médico levantou a arma energética.

— Com isto! — disse em tom resoluto. — A energia existente nesta arma é suficiente para derreter a parede. Mas não precisaremos chegar a tanto. Basta remover a chapa soldada.

R-75 hesitou. De repente, as dúvidas pareciam surgir em sua mente, mas quando olhou para o rosto de seus companheiros, compreendeu que não havia como voltar atrás. A decisão fora tomada e era irrevogável.

D-3 fez um gesto para Ps-5 e R-75.

— Recuem um pouco; será preferível que fiquem neste canto. É possível que os raios energéticos sejam refletidos. Devemos agir com cautela. Ainda não estou familiarizado com o manejo da arma.

Esperou até que os companheiros se colocassem em segurança, agachou-se atrás de um bloco de metal e dirigiu a lente para o setor assinalado pela marca de solda.

O raio pálido desmanchou-se na parede. Pingos grossos de metal liquefeito caíam ao chão.

De início D-3 não viu nada, porque a luminosidade o ofuscava, mas seus olhos logo se acostumaram à claridade. Sabia que, assim que desligasse a arma, não enxergaria mais nada. Ao menos por dez minutos, ficaria cego.

A abertura custou a esfriar nas bordas. Com isso, os homens tiveram tempo para acostumar-se à penumbra. R-75 fitou a abertura com um ar obstinado. Depois de algum tempo, disse:

— Se soubesse o que iria encontrar lá atrás, nunca teria passado por esta parede. É estranho, mas naquela oportunidade não tive medo. Hoje as coisas são diferentes.

— Não há perigo. Não precisa ter medo — disse Ps-5, procurando aparentar maior frieza e apalpando a borda entrecortada da abertura pela qual pretendiam passar. — Já está fria. Acho que não devemos esperar mais. Se houver algum dispositivo de alarma, os guardas não demorarão a aparecer. Quanto tempo demoraram daquela vez, R-75?

— Não sei dizer com exatidão. Fiz os reparos e depois fui dar uma olhada por aí. Deve ter sido mais ou menos uma hora.

D-3 olhou para o relógio.

— Meia hora já se foi. Quer dizer que não temos muito tempo. Quem irá na frente?

O psicólogo sabia que um dos membros do grupo deveria exercer as funções de chefe, pois só assim teriam alguma chance de serem bem sucedidos. Quando se deu conta disso, as dúvidas que ainda sentia desapareceram. O que se apossou de sua mente não foi propriamente a coragem, mas antes a consciência de que, naquela altura, já não havia como escapar ao destino. Pouco lhe importava o que acontecesse com ele, desde que descobrisse o segredo escondido no centro da gigantesca nave.

— Irei na frente — disse e abaixou-se para passar pela abertura estreita. — Sigam-me se quiserem.

Não esperou resposta. Espremeu-se pela abertura e voltou a erguer o corpo do outro lado da parede, depois de ter dado um passo para o lado, a fim de que seus companheiros tivessem lugar para segui-lo.

Além da penumbra, reinava um silêncio total. Os ruídos da nave não chegavam até lá. O ar era puro, mas gelado. A intervalos regulares viam-se pequenas lâmpadas embutidas no teto, que espalhavam uma débil luminosidade. Os quadros de comando, embutidos na parede, indicavam que havia instalações ocultas, cuja finalidade era desconhecida.

O psicólogo olhou para as duas longas fileiras de blocos de vidro. O líquido existente no interior destes devia ser de densidade muito elevada pois os corpos imóveis quase não tinham penetrado no mesmo; jaziam na superfície. Eram como pedaços de madeira, boiando num vaso com mercúrio.

— É fantástico! — exclamou D-3, que se encontrava ao lado do psicólogo. — Se não visse com meus olhos, não acreditaria.

Ps-5 parecia despertar de um sonho.

— Não temos tempo a perder. Vamos andando.

Manteve a arma engatilhada, enquanto caminhava em direção ao primeiro bloco. O médico seguiu-o, enquanto R-75 ficou parado junto à abertura, para cobrir a retaguarda. Também recebera uma arma energética e sabia como lidar com a mesma.

Pararam junto ao primeiro bloco.

Os dois homens olharam para o corpo esbelto do jovem de cabelos brancos, que dormia na superfície do líquido. Os olhos estavam fechados, mas parecia ser capaz de abri-los a qualquer momento e, com uma expressão de espanto, fitar os intrusos. A boca estreita, combinando perfeitamente com o queixo pequeno e enérgico, também estava fechada. Nas narinas não se notava o menor movimento que pudesse dar a entender que naquele corpo imóvel ainda havia um vestígio de vida.

O homem estava nu. A cor pálida da pele quase não se distinguia da do líquido. Os braços jaziam ao lado do corpo, como se não pertencessem a este. As pernas estavam encolhidas; parecia que antes de adormecer o desconhecido fizera mais um movimento.

Os condutores e tubos terminavam na parte superior do bloco de vidro. Só agora, Ps-5 e D-3 perceberam que um fluxo quase invisível de gás penetrava constantemente no recipiente, e era aspirado por outro tubo. A iluminação não permitia verificar se o homem adormecido aspirava esse gás.

Ps-5 encostou cautelosamente a mão ao bloco. Retirou-a abruptamente.

— Isso é muito frio! — cochichou. — O líquido deve ser mais frio que gelo.

— É mais frio que gelo, mas continua em estado líquido — disse o médico em tom pensativo. — O processo vital foi detido subitamente por meio do congelamento. Pode ser reiniciado a qualquer momento. Não se sabe quando isso acontecerá. Mas deverá acontecer. Pode ser hoje ou num futuro distante.

O psicólogo manteve-se calado. Lançou mais um olhar sobre a pessoa adormecida e saiu andando. No bloco seguinte havia uma mulher.

Ps-5 e D-3 fitaram-na com um ar de estupefação e notaram que era de uma beleza extraordinária. Só uma única vez na vida, durante o tempo de aprendizado, os homens de seu mundo podiam ver uma mulher...

Concluído o estudo ou o treinamento, tinham um ano de férias. Durante esse ano, conheciam uma espécie de vida familiar; só tinham uma obrigação: providenciar para que chegasse um filho. Depois os casamentos temporários eram dissolvidos e os cônjuges nunca mais se viam. O homem era encaminhado ao setor de trabalho, correspondente a seu aprendizado, e ali permanecer até que o comandante o mandasse eliminar. A mulher permanecia no setor infantil até que, depois de alguns anos, lhe fossem concedidas férias pela segunda vez.

Depois de parir o segundo filho, seu ciclo de vida estaria cumprido. Caso não se tivesse destacado em algum setor e pleiteado um lugar nos serviços de criação e educação de crianças, seria levada ao conversor para morrer.

Além de bela, a moça que se encontrava no recipiente de vidro corporificava os desejos e anseios mais recônditos dos dois homens que apenas conheciam uma vida inútil e já agora perdida.

O psicólogo falou com a voz trêmula:

— É uma maravilha! Até parece milagre! É muito jovem...

— Tem alguns milhares de anos — disse o médico em tom frio. — Parece jovem porque as células de seu corpo não ficaram expostas ao processo de degenerescência.

O psicólogo fitou a figura nua. Seus dedos crisparam-se em torno da arma energética. Um brilho perigoso surgiu em seus olhos e disse em voz baixa:

— Que monstros! Não sei quem são, mas vejam a que tipo de vida eles nos condenaram — fitou o companheiro. — Agora já sabemos por que sempre nos ocultaram a verdade. Sabiam que não agüentaríamos esse tipo de... A vida que levamos é uma farsa. Só podemos saber aquilo que vemos e sempre nos dizem que isso é a coisa mais bela que existe no Universo. Acontece que agora já sabemos...

— O que é que sabemos? — interrompeu o médico, procurando aparentar calma. — Aqui vemos as pessoas mergulhadas num sono eterno. E daí? Será que são culpados da existência que levamos? Ou será que os culpados são os...?

— Quem poderia ser?

— O comandante, por exemplo. Não tenho certeza, mas acho que ele deve saber mais que eu.

Ps-5 sacudiu a cabeça e voltou a fitar a moça.

— O comandante é tão mortal como nós. Quando chegar a hora, o conversor também estará à sua espera.

Refletiu um pouco e acrescentou:

— De qualquer maneira, perguntaremos ao comandante se sabe alguma coisa. Finalmente criamos coragem para isso.

— É claro que perguntaremos — concordou D-3. — Mas pelo que sabemos, isso será o fim da nossa vida. Não venha me dizer que você acredita que, uma hora depois de nossa palestra com o comandante, ainda estejamos vivos!

— Aceito o risco, meu caro. Afinal, possuímos armas. Se nos colocarmos em posição favorável, poderemos defender-nos contra um exército de guardas.

— Está pensando num motim? — disse D-3 num cochicho. — Você quer rebelar-se contra a ordem estabelecida?

— Nunca tive esta intenção. Porém cada vez melhor, compreendo que, se não nos defendermos, jamais sobreviveremos às perguntas que pretendemos formular ao comandante. Não o conheço profundamente. Nossos únicos contatos foram mantidos durante várias palestras, e nestas nem uma única vez se tocou em qualquer assunto particular. É possível que ele mesmo esteja sendo martirizado pelas dúvidas. Mas também pode ser que não passe de um autômato insensível, que se limita ao cumprimento mecânico do dever, ou daquilo que acredita ser seu dever.

O psicólogo lançou mais um olhar, que quase chegava a ser triste, para a moça nua e virou-se. Olhou para a pequena abertura pela qual tinham vindo. R-75 continuava a manter guarda junto à mesma. Por enquanto ainda reinava o silêncio.

— São mais de duzentos blocos de vidro — disse D-3. — Será que há outras salas desta espécie?

— Você deve ter notado que a sala descreve uma ligeira curva — respondeu Ps-5, em tom de superioridade. — Meus conhecimentos matemáticos não são muitos extensos, mas pelos meus cálculos deve haver ao menos nove ou dez salas como esta no setor em que nos encontramos. Não sei como são os outros setores da nave, mas não há nada indicando que as instalações frigoríficas existam apenas neste setor.

D-3 teve um calafrio.

— A palavra que você acaba de usar me fez lembrar o frio. Não agüentarei por muito tempo. Vamos dar uma olhada nas outras criaturas adormecidas?

— Em algumas — respondeu o psicólogo que, de repente, parecia um tanto taciturno. — Dificilmente descobriremos qualquer coisa além do que já sabemos, e os guardas poderão aparecer a qualquer momento. Eu me admiro de que isso ainda não tenha acontecido.

Mais uma vez prestaram atenção a eventuais ruídos, vindos da semi-escuridão, mas não ouviram nada. R-75 lançou-lhes olhares indagadores e apavorados. Fez um sinal com a mão.

Quase uma hora já se passara!

— Será preferível que nos apressemos — disse Ps-5, dirigindo-se ao médico. — Quero evitar qualquer encontro com os guardas, ao menos por hoje. Algum dia, teremos de defrontarmo-nos com eles.

— Um confronto com esses monstros metálicos? — D-3 sacudiu-se. — A idéia não me deixa muito à vontade.

O psicólogo fingiu-se de perplexo.

— Mas como? Você não liquidou um deles?

— Liquidei. Mas acho que há uma diferença entre os guardas que ficam deste lado da parede, e os que ficam do outro. É verdade que ainda não vi nenhum dos primeiros, mas o relato de nosso amigo R-75 basta...

De repente, calou-se.

Não ouvira um ruído?

Lançou um olhar rápido para o lugar em que R-75 montava guarda. O reparador mantinha-se imóvel, procurando ouvir o que se passava na penumbra, para além dos recipientes de vidro. Em algum lugar, ouvia-se um esfregar de metal contra metal. Parecia que alguma coisa se esfregava no chão. Subitamente a luminosidade aumentou.

E então viram!

Do outro lado da sala, abriu-se uma fresta que aumentou rapidamente, transformando-se numa porta. O recinto, atrás dessa porta, estava profusamente iluminado. Cinco ou seis sombras gigantescas destacavam-se contra a luz e puseram-se em movimento.

— São os guardas! — berrou R-75 em tom de pavor.

Passou pela estreita abertura o mais rápido que pôde, soltando ininterruptamente gritos de pavor.

— Vamos embora! — gritou D-3 e pegou o braço do psicólogo. — O que está esperando? Se eles nos pegarem...

— Já sabem que estamos aqui — respondeu Ps-5 com uma tranqüilidade apavorante.

Talvez a perspectiva do perigo lhe infundisse medo, mas agora que via o perigo diante de si, logo recuperou a calma. Empurrou para trás a trava de sua arma.

— É bom que saibam que seu tempo de espera também terminou. Liquidaremos ao menos um deles.

D-3 hesitou. Não queria fugir só e abandonar o amigo à sua sorte. Porém amava a sua vida, mesmo que fosse uma vida sem sentido. Num gesto resoluto, também se preparou para enfrentar o inimigo.

— Procuremos ao menos garantir nossa retirada — sugeriu apressadamente. — Vamos até a abertura!

— Muito bem; mas ande depressa!

O psicólogo lançou mais um olhar para a moça adormecida e correu atrás do médico.

Chegaram ao lugar em que poderiam sair para os recintos habitados. Ficaram à espera do que estava para vir. Não tiveram de esperar muito.

Seis robôs aproximaram-se entre as fileiras de esquifes de vidro. Seus braços estavam curvados num ângulo de noventa graus. Não possuíam mãos; no lugar das mesmas, estavam as lentes traiçoeiras das armas energéticas. Eram verdadeiros gigantes; mediam quase dois metros e meio. Os guardas das partes habitadas da nave não mediam mais de dois metros. A diferença era notável. E havia outra diferença: os guardas que viram diante de si sabiam falar.

De repente, uma voz dura e metálica gritou:

— Fiquem onde estão. Não tentem fugir!

Ps-5 teve a impressão de que estava despertando de um sonho. Quando levantou a arma e a apontou para o robô, sua mão tremia levemente. O médico, que já tinha uma perna enfiada na abertura por onde pretendiam fugir, seguiu seu exemplo.

— Se vocês ficarem onde estão, poderemos conversar! — respondeu Ps-5 o mais alto que pôde.

Suas palavras ressoaram pelo recinto e foram refletidas pelas paredes. Atingiram os ouvidos mecânicos dos robôs, pois os seis vultos estacaram de repente. Um deles deu mais dois passos, mas também acabou parando.

— Você não pode impor condições — ressoou seu barítono metálico. — A partir do instante em que penetraram neste recinto, vocês estão condenados à morte. Ninguém poderá salvá-los. Por que vieram?

— Será que você não consegue adivinhar? — perguntou Ps-5 e conseguiu dar um tom irônico à sua voz, embora estivesse todo arrepiado. Nunca vira a morte tão de perto como naquele instante. — Quem é essa gente que está dormindo nos recipientes de vidro? O que aconteceu com eles? Qual é a tarefa que vocês devem executar?

Por um instante, reinou o silêncio; mas a resposta não tardou.

— Talvez você e seu amigo ainda ouçam a resposta de nossa boca, mas somente quando estiverem a um segundo da morte. Venham cá; não procurem fugir. Sabemos que um homem conseguiu escapar, mas este será alcançado pela lei do comandante.

— Não se movam! — ordenou Ps-5, quando os robôs fizeram menção de pôr-se em movimento. — Por que não perseguem nosso amigo que fugiu?

— Não podemos sair do setor proibido — confessou o robô. Não sabia mentir; seus criadores haviam cuidado disso. Era uma precaução que a esta hora se voltava contra eles mesmos. — Virão até aqui, ou será que teremos de buscá-los?

— Vocês ainda não responderam às nossas perguntas.

— Eu já lhe disse que a resposta será dada mais tarde.

D-3 cochichou para Ps-5:

— Não adianta discutir com eles. Os robôs se orientam exclusivamente pelas ordens que receberam; só modificam seu comportamento quando são reprogramados. Entendo disso, pois um conhecido meu, um físico...

— Nesse caso, devemos ao menos dar-lhes uma lição — interrompeu o psicólogo em tom decidido. — Vamos fazer o possível para pôr fora de ação ao menos duas dessas máquinas. Depois vamos dar o fora. Eles não poderão ir atrás de nós.

Não esperou resposta; comprimiu o gatilho de sua arma.

Os seis robôs, que estavam de costas para a luz, eram nitidamente perceptíveis. O feixe energético disparado pela arma do psicólogo atingiu o peito do robô que usara a palavra e com um chiado penetrou no metal frio.

Antes que o médico pudesse abrir fogo, ouviu-se uma leve detonação, que literalmente esfacelou o chefe do grupo de robôs. O gigante caiu ao chão. O barulho foi tamanho que os dois homens receavam que este pudesse ser ouvido em todos os cantos da nave.

O psicólogo fez pontaria contra o segundo robô.

Antes que as criaturas mecânicas pudessem responder ao fogo, três delas haviam sido destruídas.

De repente, D-3 sentiu um ardor no quadril direito. Ao notar que sua roupa começava a pegar fogo, ficou apavorado. Dominado pelo pânico, fugiu pela abertura que dava para a sala dos geradores. Pouco lhe importava o que Ps-5 fizesse...

O psicólogo teve bastante inteligência para perceber que não estava em condições de enfrentar sozinho os três inimigos que ainda restavam. Seguiu o médico e ajudou-o a recolocar a peça de metal na abertura.

Só agora notaram a presença de R-75, que saiu todo trêmulo detrás de um gerador. Ao que parecia, estava envergonhado por ter sido tão covarde. Mas os companheiros o compreenderam e não levaram a mal a sua fuga. Afinal, também ficaram em pânico.

— Ajude-nos, R-75! Solde a emenda. Dali a dez minutos, estavam voltando aos seus camarotes. Mais de uma vez sentiram os olhares curiosos dos trabalhadores e cientistas com que se encontravam, mas ninguém formulou perguntas.

Antes de despedir-se, Ps-5 disse a R-75:

— Daqui a dois dias, você comparecerá à minha presença para ser submetido a novo exame. Venha assim que terminar seu turno de trabalho. Mais uma coisa: não fale com ninguém sobre o que acaba de acontecer. Se não ficar com a boca calada...

— Guardarei silêncio e comparecerei depois de amanhã — prometeu o reparador e despediu-se. Afastou-se tranqüilamente.

D-3 seguiu-o com os olhos.

— É um homem simples, mas podemos confiar nele.

O psicólogo confirmou com um gesto.

— Temos de confiar. Sabe por que não procuramos o comandante ainda hoje?

— Acho que sim — respondeu D-3. — Você quer descobrir se os robôs realmente mantêm contato com ele e se o avisarão.

— Isso mesmo! — confirmou Ps-5. — Não tenho tanta certeza de que eles o farão.

Despediram-se com um aperto de mão.

 

A porta da esquerda abriu-se e os três homens entraram no santuário da nave: a sala de comando.

O comandante estava sentado atrás de sua escrivaninha e fitou-os. Assim que viu as marcas de identificação que os homens traziam no peito, percebeu que realmente eram as pessoas anunciadas. Fez um sinal para os dois guardas, que haviam acompanhado os visitantes até a porta.

Os dois colossos viraram-se e desapareceram em silêncio.

A porta fechou-se.

Seguiram-se alguns tensos segundos, mas logo o ambiente se descontraiu. O comandante fez um gesto amável em direção às poltronas.

— Façam o favor de sentar, senhores. São as únicas pessoas que solicitaram uma entrevista para hoje. Pela data da entrevista concluo que não se pode tratar de um assunto rotineiro. Por isso, estou muito curioso para saber o que os trouxe à minha presença. E o que me deixa ainda mais curioso é o comparecimento do Reparador Setenta e Cinco.

Realmente era muito raro que um simples trabalhador desejasse falar com o comandante.

Os três haviam combinado que Ps-5 seria seu porta-voz. Conhecia a alma das pessoas e saberia reagir adequadamente até mesmo aos impulsos mais estranhos de um coração.

— Antes de o informarmos sobre o motivo real de nossa presença, queremos formular algumas perguntas — principiou o psicólogo, subvertendo propositadamente a ordem estabelecida. Não era costume formular perguntas ao comandante. — Se responder segundo a verdade, talvez possamos ter uma conversa franca.

O comandante manteve-se impassível. É verdade que, em seus olhos avermelhados de albino, surgiu uma expressão de espanto. Porém o rosto não traiu o espanto causado por tão estranha proposta. Lançou um olhar curioso para os três homens e disse em tom tranqüilo:

— Formule sua pergunta, Ps-5.

Foi a vez do psicólogo espantar-se. Esperara encontrar maior resistência. A extraordinária disposição de contornar as leis, demonstrada pelo comandante, parecia indicar que estava informado sobre o incidente ocorrido no centro da nave. No entanto, era possível que tal atitude fosse ditada apenas pela curiosidade.

— Minhas perguntas se referem a um assunto muito banal, comandante. São formuladas não apenas por mim, mas ocupam a mente de milhares de seres humanos que nascem, vivem e são eliminados nesta nave. Estas perguntas podem ser resumidas numa só: Para que vivemos?

O homem de cabelos brancos, que era senhor absoluto dos destinos, fitou o psicólogo. Suas mãos estavam pousadas sobre a mesa. Ps-5 notou que os dedos tremiam nervosamente. Era um sinal animador.

— Para que vivemos? Ora, esta é uma pergunta muito estranha, Ps-5, se é que me permite falar assim. Mas sua tarefa especializada desculpa a curiosidade que o fez formular essa pergunta. O que me admira é que R-75 também me venha com uma pergunta desse tipo. Atrevendo-se a vir à minha presença para ver respondida essa pergunta! O senhor, que afinal é um psicólogo, pode andar refletindo sobre isso, mas...

— Estou esperando sua resposta — interrompeu-o o psicólogo abruptamente. Seu braço pendia junto ao corpo e a mão sentiu a presença tranqüilizadora da perigosa arma energética. — Não se esquive à minha pergunta, comandante.

Desta vez, o comandante mostrou sem rebuços seu espanto. De acordo com as leis vigentes, era senhor absoluto da vida e da morte dos seres que habitavam o mundo metálico. Uma palavra sua bastava para que a pena mais severa fosse imediatamente executada. E a desobediência sempre era punida com a morte. O que estava presenciando agora era mais que a desobediência.

Era um motim!

— Muito bem, Ps-5, o senhor terá sua resposta. Cada um de nós vive para um dia prestar um serviço à comunidade por meio da morte. A decomposição de um organismo no conversor fornece novas energias às máquinas da nave. Os vivos têm de respirar, comer e beber; os geradores precisam ser alimentados e a rota deve ser mantida.

— Por quê? Para quem serve isso, se todos vamos morrer?

Desta vez, o comandante não deu atenção às palavras de seu interlocutor.

— Qualquer pessoa que só pensa em seu insignificante destino comete um crime contra nossa comunidade. O indivíduo não conta. Quem não quiser submeter-se terá de entregar sua energia física, antes que esteja terminado o tempo que lhe foi concedido. Ninguém vive sem preencher uma finalidade.

— Que objetivo é esse?

— O objetivo de cada um consiste em terminar seus dias no conversor. E o destino de nosso povo é desconhecido.

— Quero conhecer esse destino; foi por isso que vim até aqui.

O comandante lançou um longo olhar pensativo para Ps-5. Finalmente sacudiu a cabeça.

— Mesmo que quisesse, não poderia atender a seu desejo. Também não conheço o objetivo supremo. Apenas estou cumprindo a tarefa que me foi confiada pelo destino. É só o que posso fazer. Não demorará muito, e meu lugar será ocupado por outra pessoa. Não sei se essa pessoa teria paciência para ouvi-los por um segundo que fosse.

O psicólogo sentiu que a palestra estava entrando num estágio crítico. Estava na hora de pôr as cartas na mesa para forçar a decisão.

— No momento em que outra pessoa ocupar seu lugar, o senhor terá de morrer. Será que o senhor espera esse momento com uma alegria e satisfação toda especial, comandante?

A resposta demorou mais de um minuto.

— O inevitável me deixa frio e indiferente. Quando, uma geração atrás, aceitei o lugar, já conhecia essa norma. Fui eu quem levou ao conversor a pessoa que me precedeu. Portanto, não poderei escapar ao mesmo destino. Escolho um rapaz inteligente da nova geração e faço dele o O-l e, portanto, meu sucessor. Para demonstrar sua gratidão, assim que eu lhe der o sinal, ele me matará.

— Será que o senhor nunca pensou em retardar esse desfecho, a fim de viver mais um pouco? — perguntou Ps-5. — Quer nos fazer crer que encara este tipo de morte, sem a menor comoção? Não acredito!

— Com os senhores acontece a mesma coisa — retrucou o comandante. — No momento em que resolveram dirigir-me estas perguntas, os senhores se conformaram com o fato de que seriam mortos imediatamente. Ou será que acreditam que ainda verão o fim deste dia?

— Sim, comandante, acreditamos nisso. E digo mais. Não viveremos só até hoje de noite, até amanhã ou até o dia em que o senhor resolva mandar-nos ao conversor. Viveremos até que a natureza decida nossa morte. Viveremos nossa vida até que chegue o fim natural.

O comandante sacudiu a cabeça; estava muito sério.

— Não viverão, não! O que estão pedindo é uma rematada loucura. Os senhores envelheceriam e representariam uma carga para a comunidade. Na fase final de sua vida, seriam inúteis para nosso povo e destruiriam todas as vantagens que conseguimos criar em muitos anos de atividade. Ninguém de nós deve ter uma morte natural, pois isso representaria o fim de nossa raça. É o que nos diz o raciocínio. Haveria crianças demais, gente demais, e o lugar seria escasso.

— Quem terá de decidir isso é a natureza. Se suas palavras fossem verdadeiras, ela, a natureza, nos faria morrer na flor dos anos. Acontece que não faz nada disso. Por quanto tempo pode viver o ser humano, comandante? O senhor saberia dizer? Se não sabe, como pode fixar nosso tempo de vida? Será que não pronuncia as sentenças de morte antes da hora?

— O tempo de vida não se determina pelo tempo de vida biológico, mas pelas circunstâncias espaço-físicas de nosso mundo. Nunca podemos permitir que o número de nascimentos seja excessivo, nem que o de mortes seja insuficiente. Nosso destino resulta da necessidade de mantermos o equilíbrio...

— É um destino cruel e injusto, comandante. Viemos para promover uma radical modificação. Não queremos assistir mais ao desprezo e ao desperdício das vidas. O que está em jogo não é apenas nossa vida, mas a de nosso povo. A natureza concedeu a cada um de nós o direito de viver até que chegue a hora da morte, se é que me posso exprimir assim. Não sei quem criou as leis que regem nossa existência, mas acho que o Criador do Universo há de maldizer o senhor e essa pessoa.

O comandante empalideceu.

— Eu lhe proíbo que fale assim! — gritou em tom indignado.

Mas Ps-5 resolveu jogar todas as cartas.

— O senhor não me pode proibir nada, comandante. Sabemos perfeitamente que nossa vida estará perdida, se nos submetermos à sua vontade. Portanto, se resolvermos eliminar as leis antigas e substituí-las por outras melhores, não temos nada a perder. E o senhor nos ajudará a fazer isso. A título de recompensa nós o presentearemos com o resto de sua vida natural. É esta a proposta que lhe fazemos. O senhor poderá recusá-la se tiver coragem e for suficientemente louco.

A mão do comandante ergueu-se da mesa e aproximou-se de um botão. O psicólogo sorriu.

— Não o impedirei de dar o alarma para os guardas. Quanto mais cedo eles aparecerem, tanto mais cedo todos os homens desta nave saberão o que aconteceu. Posso garantir-lhe que eles não se manterão inativos quando virem que estamos sendo trucidados. Se não der o alarma, ainda teremos oportunidade de discutir o assunto e chegar a uma solução harmoniosa. Aliás — tirou do bolso a arma energética e destravou-a — como vê, não estamos indefesos.

O comandante ficou perplexo ao ver a arma. Hesitou um pouco e recuou a mão. O psicólogo sorriu.

— Muito bem — disse em tom amável. — Vejo que é um homem razoável. Podemos continuar a falar francamente.

— Não se entregue a qualquer ilusão, Ps-5 — advertiu o comandante. — Ainda não dei o alarma porque quero evitar um derramamento de sangue. Este exerceria uma influência nefasta sobre a ordem estabelecida. A redução excessiva do número de habitantes de nosso mundo seria tão perigosa como seu aumento desmedido. O senhor já deve ter compreendido que o segredo de uma vida bem regrada é o justo equilíbrio...

— Justo? — indagou Ps-5, numa ironia mordaz. — É menos injusto evitar o nascimento de uma criança que matar, antes da hora, um ser já formado.

— O senhor quer negar os direitos da vida adormecida? — disse o comandante em tom resignado. Ao que parecia, estava convencido de ter razão sob o seu ponto de vista. — Os senhores só sairão desta sala em companhia dos guardas do conversor...

— Esperemos! Aliás, isso me faz lembrar outra coisa. O senhor acaba de falar em “vida adormecida”. Isso traz à tona outro problema. O senhor poderia dizer quem elaborou as leis que nos regem? Foi um dos homens que o precederam no cargo?

— O senhor não tem direito de formular essa pergunta!

— Esse aspecto é secundário. Tenho o poder! — o psicólogo ergueu a arma. — Posso matá-lo!

Um sorriso de desprezo surgiu no rosto do comandante.

— Meu tempo terminará dentro de poucos dias, e então morrerei de qualquer forma. Não receio a morte, para a qual me preparei durante toda a vida. Com isso, o senhor não me obrigará a revelar o segredo que tem garantido a existência de nosso povo.

— Diga-me uma coisa, comandante. Será que só a pessoa que está no comando tem direito de conhecer os segredos?

— Perfeitamente — confirmou C-l, irrefletidamente.

— Excelente! — respondeu Ps-5. — Quer dizer que, antes de morrer, o senhor terá de informar seu sucessor. Se não o fizer, a ordem estabelecida entrará em colapso. Se eu o matasse, o segredo morreria com o senhor. Não é isso?

O comandante reconheceu o terrível engano que acabara de cometer. Ficou ainda mais pálido.

— O senhor não se atreveria...

— Atrevo-me, sim. Mataremos o senhor e seu sucessor nunca terá oportunidade de conhecer a verdade pela sua boca, mesmo que isso nos leve à morte. Assim seu sucessor se veria totalmente desamparado. Acho que não será difícil imaginar as conseqüências.

Para que o comandante tivesse oportunidade de refletir sobre as conseqüências de seu comportamento obstinado, Ps-5 calou-se. Viu que o médico recuperara a confiança. R-75 manteve-se imóvel, com a arma apontada. Em seu rosto havia uma expressão resoluta.

Depois de algum tempo, o comandante disse:

— Está bem; os senhores ganharam. Não vejo nenhuma saída. Se eu violar as leis, revelando aos senhores o segredo de que só meu sucessor deveria ter conhecimento, estarei servindo melhor ao meu povo e ao espírito dos antepassados — levantou-se e manteve-se em atitude orgulhosa diante dos conspiradores que exigiam a morte natural. — Mas garanto-lhes que os senhores não viverão muito tempo com esses conhecimentos.

— Deixe isso por nossa conta — respondeu Ps-5 em tom tranqüilo. — Fale!

— Falarei muito pouco, mas eu lhes mostrarei uma coisa — apontou para uma segunda porta, firmemente embutida no metal. — Venham comigo.

O psicólogo demonstrou certa hesitação, porque desconfiava de que se tratasse de uma armadilha, mas logo percebeu que não lhe restava outra alternativa senão confiar no comandante. Viu-o caminhar em direção à porta e girar a roda.

— Não se preocupem; atrás desta porta fica apenas a cabine-dormitório; e, lá nos fundos, fica aquilo que os senhores querem saber.

A pesada porta abriu-se, pondo à mostra um aposento. Seguiram o comandante.

O camarote era praticamente igual ao que já conheciam e àqueles ocupados por eles mesmos. Mas havia uma diferença. Possuía mais uma saída. Havia uma porta situada bem em frente à entrada. Era um verdadeiro monstro metálico dotado de fechaduras eletrônicas e outros mecanismos de segurança. Só mesmo a pessoa que a conhecesse estaria em condições de abri-la.

O comandante apontou para a porta.

— É ali que fica o segredo de nossa vida. Só o comandante pode entrar neste recinto. Qualquer outra pessoa que o fizer terá de morrer. Não posso modificar a lei; mesmo que quisesse poupá-los, não escapariam ao castigo. A sentença será executada pelos vigias.

— Como é que os vigias iriam saber que estivemos aqui? — perguntou o psicólogo. — Não são seres feitos de carne e osso; não passam de máquinas construídas por nossos antepassados. Por que temos de submeter-nos à sua vontade? As máquinas não foram feitas para servir ao homem? Por que aqui tem de ser o contrário?

O comandante não respondeu. Continuou a caminhar e parou em frente à porta. Sem dizer uma palavra, pôs-se a mexer nos controles.

Pela primeira vez, D-3 fez uso da palavra.

— Meu amigo Ps-5 não se lembrou de mencionar que, caso o senhor esteja tramando algo, nós o mataremos imediatamente. As armas que temos nas mãos são mortais. Tirei-as de um vigia.

O comandante estacou em meio ao movimento.

— Um vigia? E ele não reagiu?

— Como poderia ter reagido? Coloquei-o fora de ação. Por dentro está transformado num monte de sucata.

— Um vigia...

— Os vigias são fáceis de enganar, comandante — disse o médico em tom irônico. — Dentro de pouco tempo não haverá mais nenhum vigia nesta nave, e então o homem voltará a reinar.

O comandante não hesitou mais. Girou repentinamente a roda, desligou as barreiras eletrônicas e abriu a porta.

Entraram na sala.

Estava completamente vazia. As paredes estavam nuas... com exceção de uma.

Nessa parede havia uma grande tela.

Nela viram a imagem aumentada de um velho de cabelos brancos.

Parecia observá-los, e logo depois, começou a falar...

 

Fazia quatro dias que o Maquinista Quatro não via o médico. A droga maravilhosa, que despertara sonhos tão belos, já terminara. Se não conseguisse logo uma nova provisão, acabaria enlouquecendo. M-4 sabia perfeitamente que sua vida não seria suportável sem sonhos.

Avisou que estava doente, mas quem o atendeu não foi D-3, mas um médico desconhecido.

De qualquer maneira conseguiu um dia de folga. Mas isso não lhe deu muito prazer, pois os olhares de M-7, que também não estava de serviço, podiam ser tudo menos agradáveis.

— Você realmente não parece nada bom, M-4. O que há com você?

— Muita coisa — respondeu o viciado, em tom lacônico. — Antes de mais nada, preciso de sossego.

Mas M-7 não se deu por vencido.

— A mim você não engana, meu velho. Até um cego enxerga que alguma coisa o preocupa. Poderá usar de franqueza comigo, embora quase não nos conheçamos. Afinal já vivemos juntos neste camarote há alguns anos e provavelmente o faremos até o fim de nossas vidas.

— Vivemos!? — exclamou M-4 em tom de surpresa.

Estacou, assustado. Já dissera demais. Mas M-7 apenas sorriu.

— Sou da mesma opinião que você. Acho que a vida que levamos é inútil e sem esperanças. Posso falar sem receio, já que você pensa como eu. Afinal, o que estamos esperando? O comando da morte, que nos levará ao conversor? Você não acha que estou com a razão?

— Se está! — disse M-4.

Desconfiava de que uma decisão estava iminente. Se M-7 não fosse um espião, seria um amigo. Se ele, M-4, ainda estivesse vivo no dia seguinte, poderia ter certeza de que contava de fato com um amigo.

— Muito bem! Então diga o que o deixa tão deprimido. É a vida que levamos? Ou existe algum motivo especial?

— Por que vou incomodá-lo com meus problemas? Acho que todo mundo tem de carregar os seus.

— Um peso carregado por duas pessoas torna-se mais leve.

M-4 estava de acordo. Refletiu por alguns segundos e disse:

— Juntamente com o Doutor Três atraí um vigia para uma cilada e o coloquei fora de ação. Desmontamos suas armas e nos apoderamos das mesmas. Depois disso, D-3 me deu um calmante, e eu me acostumei ao mesmo. Não posso viver mais sem sonhar. Acontece que D-3 está desaparecido há dois dias.

M-7 começou a desconfiar do que havia atrás deste relato lacônico.

Será que, além dele, havia outras pessoas que não concordavam com a ordem vigente e haviam resolvido acabar com o domínio dos robôs e do comandante? Foi por puro acaso que estabeleceu contato com uma dessas pessoas. Mas, ao que parecia, o papel de M-4 era secundário. Entretanto assumia certa importância como elemento de ligação.

— É fácil destruir um vigia?

— Não é difícil. Os robôs foram construídos de maneira tal que ninguém lhes pode fazer nada, mas seus criadores não se esqueceram de incluir neles um fator de segurança. E, com a inclusão desse fator, seus construtores cometeram uma pequena falha. Na nuca dos robôs existe um parafuso quase imperceptível. Girando-o, o vigia fica desativado. Se necessário, uma forte pancada pode produzir o mesmo resultado. Com isso, ele se transforma num montão de lata indefeso, apesar das perigosas armas energéticas embutidas.

— Quer dizer que, se desejássemos, poderíamos colocar fora de ação todos os robôs?

A simples idéia deixou M-4 assustado. Chegou até a empalidecer.

— Seria uma loucura...!

— Seria mesmo, M-4? O que aconteceria se um grupo de homens decididos resolvesse eliminar todos os vigias? Esses homens poderiam apoderar-se das armas e enfrentar o comandante. Com isso, o regime de terror chegaria ao fim.

— Pois já estamos acostumados. Nossos antepassados viveram como nós vivemos hoje. Quando será que isso começou?

— Já andei quebrando a cabeça sobre isso. Mas não adianta mais. Chegou a hora de agir. Por coincidência D-3 escolheu-o para seu homem de confiança. A fim de levar avante seu intento, precisava de um maquinista, e escolheu você. Agora também pertenço ao grupo. Precisamos falar imediatamente com D-3...

— Ele está desaparecido há dois dias, M-7. Não sei o que aconteceu. Quem sabe se o crime foi descoberto?

— Se fosse assim, você também já estaria morto — M-7 sacudiu a cabeça. — Será que você acredita que o médico ficaria calado?

— Talvez ficasse quieto — disse M-4 um tanto inseguro. — Onde estará, se ainda estiver vivo?

— Não será difícil descobrir. Afinal, é o médico de nossa seção. Se eu disser que estou doente...

— Há alguém que o representa.

M-7 calou-se obstinadamente. Esquecera esse detalhe. Depois de algum tempo, disse:

— Pois vamos agir! Durante nosso próximo turno de serviço, começaremos a eliminar os vigias. Enquanto ninguém descobrir, tudo bem. E, quando os incidentes se tornarem conhecidos, outras pessoas se juntarão a nós. Na verdade, ninguém está satisfeito com a existência que levamos, já que não nos dizem qual é o destino de nossa viagem.

Antes que pudessem transformar seu plano em realidade, o aparelho de intercomunicação soou no camarote.

Uma voz evidentemente disfarçada disse:

— Alô, M-4. Responda!

M-7 fez um sinal ao companheiro.

— Aqui fala M-4 — disse o maquinista, depois de ter ligado o videofone.

— O senhor está só no camarote?

M-7 acenou vigorosamente com a cabeça. M-4 disse:

— Sim, estou só. Quem fala?

O tom de voz do outro interlocutor mudou e, de repente, os dois maquinistas tiveram a impressão de que o mesmo já lhes era conhecido.

— Preste atenção, M-4! Pegue suas ferramentas e compareça imediatamente ao setor central. Dirija-se à sala de comando. Estamos esperando o senhor.

— É o Doutor Três?

— Sim, sou eu. Ande depressa!

— Não desligue! — gritou M-4 em tom desesperado. — Quero dizer mais uma coisa.

— O que houve?

— Posso levar um amigo?

Houve uma ligeira pausa.

— Como é que ele soube? — perguntou D-3.

— Neste momento não posso explicar nada, mas ele está conosco. Estou precisando do meu tranqüilizante...

— Traga seu amigo — disse D-3. — Mas não perca tempo. É uma questão de vida e morte, não só para mim ou para o senhor, mas para todos que vivem nesta nave. Entendido?

— Iremos imediatamente!

— Outro detalhe, M-4! Passe pelo Instituto Médico e pegue um embrulho já preparado, que se destina a mim. Basta citar seu nome.

— E se alguém formular perguntas?

— Diga que está obedecendo ordens do comandante. Diga isso a qualquer pessoa que procurar detê-lo. Entendido?

— O comandante? — perguntou M-4 em tom de perplexidade.

Mas o médico já havia desligado. Olhou para M-7.

— O que será isso? Você compreendeu?

M-7 acenou lentamente com a cabeça.

— Sim, acho que compreendo. Finalmente apareceu um homem que tem coragem de dar um sentido à existência inútil que levamos. Apressemo-nos, M-4, pois do contrário seu trabalho terá sido em vão. Precisamos ajudá-lo.

Saíram correndo para o corredor.

 

O rosto fitou-os de cima.

Era um rosto de velho. Estava profundamente enrugado, e seus traços mostravam certa resignação. Os olhos avermelhados irradiavam bondade e inflexibilidade. Seus lábios pareciam estar sempre cerrados, revelando um gênio cruel... ou seria apenas enérgico?

O comandante inclinou-se para a tela. Ele, que era o senhor absoluto da vida e da morte de seu povo, inclinou-se diante de uma simples imagem.

Ou será que não era uma imagem?

Não, não era; o rosto moveu-se. A boca começou a falar. Um alto-falante oculto transmitiu uma voz agradável e simpática.

— Comandante, você abriu a porta e trouxe três homens. O que significa isso? Esperava que viesse com seu sucessor. Qual é o motivo da presença desses homens?

O comandante voltou a inclinar o corpo. Estava pálido e parecia deprimido. Devia sentir um medo enorme do desconhecido que aparecia na tela.

— Eles me obrigaram, senhor. Se não os tivesse trazido, eles me teriam matado antes que eu pudesse transmitir o conhecimento do segredo a meu sucessor. Nosso povo ficaria acéfalo.

O rosto lançou-lhe um olhar colérico.

— Você falhou, comandante! A morte seria uma pena muito suave para você, mas, de qualquer maneira, ela o aguarda.

Seguiu-se uma ligeira pausa. O rosto permanecia impassível. Finalmente a voz prosseguiu:

— O que desejam de mim e quem são vocês?

Ps-5 procurou libertar-se do encanto irradiado pelo rosto, cuja rigidez o deixou bastante impressionado. Parecia morto, mas a imagem não poderia mentir. O homem que aparecia na tela vivia num setor desconhecido da gigantesca nave...

...e era o verdadeiro soberano de seu povo.

O comandante não passava de uma marionete.

O psicólogo principiou em tom hesitante:

— Viemos para saber a verdade. Até hoje acreditávamos que o comandante fosse o guardião de um corpo de leis velhas e superadas. Mas agora descobrimos que há alguém que está acima dele: o senhor. Sou eu que pergunto: quem é o senhor? E por onde anda escondido?

O rosto demonstrou espanto, que logo se transformou em cólera. Mas a voz não revelou essas emoções. Começou em tom calmo e objetivo:

— Suas perguntas são monstruosas e contrárias às leis vigentes. Neste momento condeno-os a morrerem no conversor. Comandante, providencie a execução desta ordem; convoque o comando da morte. A sentença será executada imediatamente.

Ps-5 sorriu e dirigiu a arma contra o comandante.

— Muito bem, Mestre — disse em tom frio. — Se é assim, vou matar o comandante diante de suas vistas. Vejamos o que acontecerá depois disso.

O médico e R-75 continuavam parados na porta que dava para o aposento particular do comandante. Mantinham as armas engatilhadas e fitavam o grande rosto. Esperavam ouvir a qualquer momento o ruído forte dos passos metálicos, mas tudo permaneceu em silêncio.

— Não se preocupem, amigos — disse Ps-5 por cima do ombro. — Não virá ninguém. Quem poderia alarmar os robôs? Só o comandante. O grande Mestre que aparece na tela não o fará, pois ninguém sabe de sua existência. É possível que nem mesmo os vigias saibam — voltou a dirigir-se à tela. — Então, o que me diz? Realmente terei de matar o comandante? Ou está disposto a negociar?

— O que deseja? — soou o alto-falante, enquanto os lábios do desconhecido se moviam para formular as palavras.

Ao que parecia, tinha uma habilidade extraordinária para adaptar-se às situações mais variadas.

— Qual é o segredo que só pode ser conhecido pelo C-l? Deve ter uma importância tremenda, pois se há duas pessoas que o conhecem, uma delas terá de morrer. Mas a situação ficará melindrosa se o comandante morrer sem revelar o segredo a alguém... Por isso quero fazer uma pergunta a você...

Sem que se desse conta disso, Ps-5 estava usando o tratamento íntimo que o desconhecido usara para com ele. Porém tal tratamento não exprimia intimidade, e sim desprezo.

— Quero fazer uma pergunta a você: qual é o segredo?

Por um instante não aconteceu nada, mas finalmente veio a resposta:

— Você mesmo acaba de dizer que o segredo só pode ser conhecido por uma criatura mortal de cada vez. Se houver mais de uma criatura que o conheça, todas terão de morrer. Você está com vontade de morrer?

— Deixe isso por minha conta, Mestre — respondeu Ps-5 em tom irônico. — Responda à minha pergunta!

— Seja o que você quiser. Eu sou a corporificação da vontade de seus antepassados e transmito esta vontade ao comandante. Ele é apenas um intermediário entre os vivos e os mortos. Cabe-lhe manter a ordem vigente e escolher seu sucessor. Feito isso, morrerá. É só.

Ps-5 acenou com a cabeça. Se é que estas palavras o decepcionaram, não deu mostras disso.

— Então é só? E os vigias? São seres mecânicos feitos para controlar os homens. Por ordem de quem estão agindo?

— Por ordem minha.

— Quer dizer que é por ordem dos antepassados, não é? Pois eu lhe digo uma coisa: se os antepassados recorrem a máquinas para nos impor sua vontade, eles não merecem que nos lembremos deles. Nós os esqueceremos e criaremos nossas próprias leis. A morte violenta será banida; não permitiremos que a vida natural cesse prematuramente. Seremos nossos senhores e faremos com que a máquina volte a ser aquilo que sempre deveria ter sido: o servo do homem.

Uma mudança assustadora ocorreu com o rosto. A expressão do desconhecido cambiou entre a raiva, a decepção e um tremendo ódio.

Quando a voz voltou a falar, era fria. Porém também era agradável e melódica. O contraste era tão flagrante que não havia como tirar qualquer conclusão em relação às verdadeiras idéias de quem falava.

— Vocês subestimam o valor da máquina e de seus recursos positrônicos. A máquina e o sistema de computação positrônica substituem o homem e até chegam a ser superiores ao mesmo. Quando criaram os vigias, nossos antepassados sabiam disso. Se ignorarmos a vontade deles, estaremos condenando nossa civilização ao desaparecimento.

— Pois que desapareça! — exclamou Ps-5 em tom furioso e decidido. — Se não souber defender-se deve desaparecer imediatamente.

— Antes de você, já houve pessoas que tentaram isso. Todas elas terminaram no conversor.

— Sim, o conversor! Também é uma máquina. No dia em que atirarmos no conversor todos os robôs que se encontram a bordo, teremos uma grande festa. Os robôs fornecerão energia para várias gerações.

Mais uma vez, o rosto foi desfigurado pelo ódio. Os olhos vermelhos brilharam como um par de brasas.

— Você está condenado à morte, rebelde! Comandante! Chame os guardas!

O comandante empalideceu.

— Ele me matará, senhor. Quem instruirá meu sucessor?

— Seu covarde! Caso seja necessário, saiba ao menos morrer como um homem. Mas antes disso cumpra seu dever e dê o alarme para os vigias.

Ps-5 mantinha a arma apontada. Sua mão não tremia.

— Comandante, o senhor estará morto antes que tenha tempo de dar um único passo. Como poderia chamar o comando da morte?

Apesar da situação desesperada em que se encontrava, o comandante sorriu.

— O senhor não poderá evitar isso, psicólogo. Está vendo a caixinha que tenho na mão? — levantou dois dedos e pôs à mostra um pequeno objeto que até então ficara oculto em sua mão. — Peguei isto há muito tempo. Mesmo que eu morra, logo os vigias estarão aqui. Se eu largar esta caixa, a trave se soltará e o circuito elétrico se fechará. O sinal de rádio convocará o comando da morte. Pode disparar, psicólogo.

O comandante já se sentia mais seguro. Sabia que os conspiradores não cometeriam um ato irrefletido, nem o matariam na situação em que se encontravam. Não se atreveriam a tanto. Se é que a vida do comandante pudesse representar qualquer vantagem para eles, não o matariam.

Seu raciocínio foi correto.

— Se eu não atirar, o senhor também dará o alarma? — perguntou Ps-5 em tom de expectativa. Continuava a apontar a arma para o comandante. — Se obedecer ao sujeito que aparece na tela, está liquidado. Ele mesmo acaba de dizer que providenciará sua morte. Para que morrer, se isso em nada ajudará seu povo? Ainda não percebeu que estamos sendo enganados? Não está na hora de cuidarmos do nosso destino, em vez de continuarmos a obedecer às leis de uma geração passada, que hoje já não têm a menor validade, porque estão superadas pelos acontecimentos?

O comandante parecia indeciso. A voz do alto-falante disse sem a menor ênfase:

— Obedeça às minhas ordens, comandante. Chame os vigias!

Mas a semente lançada pelo psicólogo já havia germinado. Durante toda a vida, o comandante se conformara com a perspectiva de um fim violento, por considerar o mesmo como um pressuposto da própria existência. E de repente se lhe oferecia a oportunidade de continuar a viver! De continuar a viver até o dia em que a própria idade lhe trouxesse a morte natural.

Sem olhar para o rosto que aparecia na tela, disse:

— Se não chamar os vigias, vocês garantem minha vida?

O psicólogo suspirou aliviado. A luta estava decidida.

— Damos nossa palavra — disse e abaixou o cano da arma. Apontou para a porta. — Vamos à sala de comando. Não convém que as medidas a serem adotadas sejam discutidas na frente deste fantasma — voltou a dirigir-se à imagem. — Nós o avisaremos do resultado da nossa conferência. Até lá, só podemos pedir-lhe que tenha paciência.

— Pela última vez, comandante: dê o alarma!

Ps-5 segurou o comandante pelo braço e levou-o para fora. Sem dizer uma palavra, D-3 e R-75 seguiram-no e fecharam a porta atrás de si. As ordens do desconhecido soaram pelo recinto, sem produzir o menor resultado:

— Dê a ordem, comandante! Dê o alarma!

Depois a voz calou-se.

Ps-5 respirou aliviado.

— Ainda bem que o senhor agiu razoavelmente, comandante. Não tenho a menor dúvida de que é um homem honesto e cumpridor do dever. O que foi que o levou a mudar de opinião? Terá sido apenas a perspectiva de viver mais algum tempo? Fale com franqueza. Será preferível que, antes de responder, largue o aparelho de alarma.

O comandante fez que sim. Comprimiu o dedo contra um botão quase invisível do instrumento que trazia na mão e colocou-o cautelosamente sobre a mesa. Depois suspirou aliviado e sentou.

— Serei sincero. Peço-lhes que me permitam que comece do início. Quando fui chamado à presença do comandante, que me informou sobre a tarefa a ser cumprida, eu ainda era muito jovem. Levei-o ao conversor, conforme era minha obrigação, e assumi minhas funções. Desde então, sou um homem solitário. Eu lhe garanto que minha vida é mais monótona que a sua. Afinal, todos vocês conhecem o trabalho e a companhia de outras pessoas. Nem sequer tenho direito às férias e também não tenho descendentes. A única variação que ocorre na minha vida são as conferências diárias, a elaboração da lista das pessoas que devem morrer e a emissão das ordens recebidas pelo Mestre. É assim que ele quer ser chamado.

— Quem é esse Mestre, C-l? — perguntou o psicólogo. — O senhor tem alguma idéia de onde ele vive, ou de qual é a parte da nave em que se esconde?

— Infelizmente não. Ele só apareceu na minha frente sob a forma que os senhores já conhecem. A tela é a única forma de contato.

— Como foi que ele pôde exercer uma influência tão forte sobre o senhor?

— Isso é fácil de explicar, Ps-5. Desde jovem, não conheço outra coisa senão esse rosto que aparece na tela. Todos os dias recebia suas instruções, e, caso não o obedecesse, aquele rosto me ameaçava com os castigos mais cruéis. Mas o que mais me impressionava era a alusão constante à herança dos antepassados. O Mestre sempre fazia questão de ressaltar que devíamos colocar nossas vidas a serviço do povo, até que a nave chegue ao destino. Nunca fiquei sabendo qual é esse destino. Nunca me encontrei pessoalmente com o Mestre. Porém sua imagem ampliada exerce um poder tão forte que sempre me tem sido impossível subtrair-me à sua influência. Além disso, ninguém tem coragem de romper com uma tradição antiga.

— Pois nós temos! — respondeu Ps-5 com um gesto zangado. — Compreendo o senhor. Entretanto, por mais estranho que possa parecer, o Mestre não exerceu sobre mim uma impressão tão marcante. Notei nele alguma coisa que me incomodava. Não sei o que foi, mas a imagem não parecia viva e autêntica. Além disso, há certa dissonância entre som e imagem; tive a impressão de que a transmissão não funciona bem. Não sei se consegui fazer-me entendido...

— Sei o que você quer dizer — interveio o médico. — Tive uma impressão semelhante, mas não sei o que me incomodou. De qualquer maneira estou convencido de que há algo de errado naquilo. O que é que você acha, R-75?

— Concordo plenamente com vocês. Infelizmente não sou especialista em aparelhos eletrônicos, mas os homens da Seção Mecânica deveriam ser capazes de ajudar-nos.

— Os homens da Seção Mecânica são os maquinistas — disse D-3, refletindo em voz alta. — Sim; talvez a solução seja esta.

— Está pensando em seu elemento de confiança M-4? — perguntou o psicólogo, adivinhando os pensamentos do amigo. — É verdade; devíamos consultá-lo.

Sem compreender nada, o comandante assistira à discussão. Sua mente teria de realizar uma tremenda adaptação para ver na imagem do Mestre, que até então fora seu soberano absoluto, apenas uma transmissão defeituosa de televisão, cuja sincronização não funcionava como devia.

— Não sei se devemos atribuir tanta importância a esse fato... — principiou em tom hesitante.

— Devemos, sim! — retrucou Ps-5 em tom resoluto. — Acho que este ponto se reveste da maior importância. Devemos descobrir se o defeito realmente existe. É bem possível que o equipamento de transmissão esteja em perfeito estado.

Os homens fitaram-no sem compreender nada. Não sabiam onde pretendia chegar. Mas o psicólogo não teve tempo de abordar o assunto com maiores detalhes, pois nesse instante o interfone deu um sinal.

Alguém desejava falar com o comandante.

— Quer que responda?

Ps-5 fez que sim.

— Naturalmente. Enquanto não tivermos chegado a uma conclusão sobre as medidas que devemos adotar, não devemos provocar suspeitas. Talvez seja apenas um chamado de rotina.

O comandante levantou e comprimiu um botão embutido na armação. A tela da esquerda iluminou-se.

Era o oficial de ligação.

— O que houve, O-2?

O jovem de cabelos brancos fez um gesto vago, como se quisesse pedir desculpas pelo incômodo.

— O-l quer falar com urgência com o senhor. Eu lhe disse que o senhor se encontra na conferência diária, mas ele insiste. O que devo fazer?

— Diga-lhe que terá de esperar — respondeu o comandante, lançando um olhar indagador para o psicólogo. — Quando puder falar com ele, eu lhe avisarei.

— Está bem, C-l — disse O-2 com certo alívio na voz.

A tela apagou-se.

— Quem é esse O-2? — perguntou o médico. — Tive uma boa impressão dele. Você não concorda comigo, Ps-5?

— Você acha que poderia ser nosso aliado?

— Acredito que sim. Até chego a acreditar que quase todos os homens serão nossos aliados quando souberem da verdade, isto é, quando souberem quais são nossos objetivos.

— Tenho certeza disso — concordou Ps-5 e dirigiu-se ao comandante. — Que tal O-l? Será que estará disposto a colaborar?

— Não tenho certeza. Está aguardando o momento de ocupar meu lugar. Como já viu, quer falar comigo. Tenho certeza de que está louco de vontade para matar-me. Nem pode esperar a hora.

Ps-5 refletiu intensamente. Depois levantou a cabeça.

— Quando é que O-2 deverá ser eliminado no conversor?

O comandante parecia espantado, mas não formulou nenhuma pergunta. Levantou-se e foi à parede, onde havia um bloco com uma placa inclinada, na qual se via uma série de controles eletrônicos. Os dedos ágeis do comandante manejaram esses controles, até que o aparelho expelisse uma ficha de plástico. Pegou-a e leu os dados consignados na mesma. Depois disse:

— O tempo de vida que resta a O-2 corresponde ao quinto de uma geração.

— Quer dizer que ele se sentirá grato se estendermos o tempo que lhe resta. Com O-l as coisas são diferentes. Ele quer ser comandante, mesmo que, um belo dia, tenha de ser morto por seu sucessor. Aceita esta perspectiva porque deseja o exercício temporário do poder. Quer dizer que será nosso inimigo.

— É isso mesmo — confirmou o comandante.

— O que devemos fazer?

— Por que não lhe comunicamos oficialmente a decisão que tomamos? — perguntou D-3, em tom apaixonado. — Acho que seria mais simples se...

— Não será simples — disse Ps-5, sacudindo a cabeça. — Você se esquece dos vigias. Eles possuem armas. E, diante delas, nosso povo fica indefeso. Além disso, não sabemos quais as medidas tomadas por nosso amigo do aposento ao lado. Nós, que estamos na sala de comando, podemos defender-nos, pois esta foi feita para isso. Mas nenhum de nós pode sair deste recinto, sem expor-se ao risco de ser morto assim que chegue lá fora. Os vigias atêm-se estritamente às velhas leis, pois não conhecem outra coisa. Obedecem ao Mestre, pouco se importando quem seja ele. Não; devemos encontrar outros caminhos para acabar com o domínio do desconhecido. E não deveremos usar a violência, mas a astúcia. Devemos eliminar discretamente os vigias, um após o outro. Seu amigo M-4 ajudará a fazer isso.

O rosto do médico iluminou-se.

— Você tem razão, Ps-5; como sempre. Mandarei chamar M-4. Será que, sem sair daqui, podemos fazer isso, comandante? Talvez possamos enviar-lhe o recado por intermédio de O-2...

— Acho preferível não recorrer a ele — disse Ps-5. — Devemos chamá-lo diretamente. Faça a ligação, comandante.

— Falarei com ele — sugeriu o médico. — Pedir-lhe-ei que traga ferramentas e alimentos concentrados. Instruirei minha seção — sorriu. — São ordens do comandante.

E foi assim que, dali a quinze minutos, os quatro conspiradores receberam reforços.

Só depois disso, chamaram O-2 e o informaram sobre o plano. O Oficial Dois colocou-se ao lado dos amigos e prometeu fazer tudo que estivesse a seu alcance para garantir o êxito do plano. Resolveram mandá-lo para fora, a fim de que pudesse aliciar novos aliados. Os dois maquinistas receberam ordens de pôr fora de ação os vigias, que estivessem em posições isoladas, e levar à sala de comando as armas, depois de desembuti-las da carcaça dessas máquinas. O ataque contra os soberanos da nave só seria lançado quando o grupo dispusesse de um número suficiente de armas.

Até então não havia acontecido nada que pudesse justificar a suspeita de que o Mestre estava tomando qualquer providência para impedir a atuação do grupo. Ao que tudo indicava, resolvera aguardar. Será que seu único meio de comunicação com o povo era a tela de imagem que ficava atrás da sala de comando?

Essa questão tornava-se importante, e teria de ser esclarecida o quanto antes.

De qualquer maneira, a ação morte natural para todos acabara de ser desencadeada.

E não haveria mais nada que pudesse detê-la.

 

Por enquanto a máquina implacável, posta em funcionamento pelos antepassados, continuava em ação.

Emitidas pelo comandante, as ordens de matar foram executadas pontualmente pelos comandos da morte. Nunca se assistira à revogação de uma ordem desse tipo, e seria inconcebível que esta fosse verificar-se agora.

Os seis robôs marchavam em passo cadenciado pelos corredores do mundo metálico e aproximavam-se do setor técnico. Um indivíduo chamado T-39 já vivera bastante. Hoje teria de morrer, a fim de que, com a energia de seu corpo, retribuísse à comunidade aquilo que era devido à mesma. A comunidade o vestira e alimentara, e agora chegara a hora de pagar por isso. Nesse mundo impiedoso não se dava nada de graça; nem mesmo a vida.

T-39 não sabia que sua hora já havia chegado. Ninguém sabia. Qualquer um poderia imaginar a época em que seria eliminado, pois a expectativa de vida aproximada era conhecida, mas a data da execução era mantida em segredo até o último instante.

T-39 não estava só em seu camarote.

Espantou-se ao reconhecer o visitante que desejava falar com ele. Não era todos os dias que O-2 entrava em contato com o pessoal técnico, nem mesmo com os chefes da respectiva divisão.

T-39 apontou para uma cadeira.

— Sente-se, O-2. Espero que sua visita não signifique nada de mau.

— Não se preocupe — respondeu o jovem oficial, que já havia informado os chefes das outras divisões sobre os acontecimentos mais recentes. — Vim para trazer uma notícia alegre e para pedir sua ajuda. É uma história comprida, que pode ser encurtada.

T-39 ouviu-o em silêncio, sem interrompê-lo uma única vez. Lembrou-se do comando da morte, que poderia aparecer qualquer dia para levá-lo. A morte era encarada com tanta naturalidade que não tinha nada de apavorante.

Mas, de repente, surgiu a possibilidade de continuar a viver em vez de morrer no conversor. De um instante para outro, o quadro do futuro modificava-se por completo. Não teria de morrer: poderia viver.

A morte já não era aceita como uma coisa natural.

Levantou-se abruptamente.

— Conte comigo, O-2! O que posso fazer para ajudar o senhor e seus amigos? Os vigias...

— Os vigias devem ser mantidos na ignorância até o último momento. Tudo deve continuar como antes. Não provoque suspeitas, T-39! Informe as pessoas nas quais possa confiar. E não hesite em eliminar imediatamente um possível traidor. Só quando tivermos armas em quantidade suficiente, poderemos declarar guerra aos vigias.

T-39 lembrou-se da situação em que se encontrava. Não queria que O-2 percebesse que a pergunta a ser formulada desse a entender que ele se referia à sua própria pessoa.

— O que vamos fazer quando o comando da morte aparecer para levar alguém? Procuraremos salvar a vítima?

— De forma alguma! Isso seria a coisa mais errada que poderíamos fazer. Os seis vigias pertencentes ao comando reagiriam imediatamente e entrariam em contato com o comando. E esse comando, meu caro, não tem nada que ver com nosso comandante. Precisamos sacrificar as pessoas que estejam prestes a ser levadas ao conversor, para que os outros possam viver. Infelizmente não podemos alterar isto.

— Compreendo — disse T-39 em tom desanimado.

Subitamente sentiu uma coisa comprimir-lhe a garganta, mas esforçou-se para evitar que o segundo-oficial percebesse alguma coisa.

— Não devemos fazer nada que possa despertar a atenção dos vigias. A rotina costumeira não deve ser interrompida...

— Por enquanto! — disse O-2 com uma estranha ênfase e levantou-se. — Permita que me despeça. Cumpra seu dever; e o senhor há de reconhecer que é um dever mais nobre que o que vínhamos cumprindo. Teremos uma vida livre e segura pela frente.

T-39 viu a porta fechar-se. De repente, teve a impressão de estar só no mundo ou na nave. Nunca se sentira tão abandonado e desamparado.

Onde deveria começar? Evidentemente com os homens de sua divisão. Ele os esclareceria e os prepararia para o momento inicial da resistência contra os vigias!

Ouviu passos...

T-39 aguçou o ouvido e empalideceu de repente.

Lá fora, no corredor, soaram passos. Eram passos regulares e metálicos. Só podiam ser os vigias.

Eram ao menos seis vigias!

Ao perceber o significado daquilo que se aproximava, T-39 sentiu-se dominado pelo pânico. Era bem verdade que ainda havia uma esperança: talvez viessem para levar outra pessoa de sua seção. Mas quem mais residia nesse corredor? Somente T-18, que entrara no exercício de suas funções há poucos dias, para um belo dia...

Subitamente T-39 deu-se conta de que T-18 seria seu sucessor. Enquanto instruía aquele jovem e o transformara em seu assistente, a idéia nunca lhe ocorrera.

Seu sucessor...

Os passos cessaram abruptamente.

Dedos metálicos bateram fortemente à porta.

Estava na hora!

Subitamente T-39, que nutria a esperança de mais alguns anos de vida pacata e feliz, teve uma amarga decepção: o comando da morte ainda não desconfiava da revolução e continuava a agir da mesma forma que vinha agindo há milênios.

T-39 foi incapaz de emitir um som. Seus lábios estavam enrijecidos. Encontrava-se no centro do recinto em que vivera durante toda a vida. Era uma moradia pobre e apertada, mas nunca conhecera outra coisa. Apesar de tudo, achara que a vida valia a pena de ser vivida, embora não visse um sentido especial na mesma.

O que tinha um sentido grandioso era morrer uma morte natural. Nesse caso, a morte não seria um fim cruel da vida, mas uma redenção. Quando tivesse completado sua existência, o homem se deitaria para dormir. Para sempre. Era apenas isto.

Mas agora...

A porta abriu-se. Um dos vigias entrou. Os outros permaneceram no corredor, bloqueando todos os caminhos de fuga. Não o faziam por uma simples questão de rotina, pois havia pessoas que resistiam ao inevitável e tinham de ser levadas à força.

— Não! — gritou T-39 e recuou até bater com as costas contra a cama. — Não! Agora não!

As lentes brilhantes do vigia fitaram-no com uma expressão indiferente. O robô não conhecia sentimentos. Fora construído para essa tarefa, e a cumpria fria e precisamente.

— O comandante mandou que o senhor fosse eliminado — disse com a voz automática. — Venha conosco.

T-39 refletiu intensamente para descobrir uma saída. Será que, se soubesse o que estava acontecendo, O-2 poderia salvá-lo? Ou o comandante?

— Por que não me avisaram antes? — respondeu com a maior calma de que foi capaz.

Um súbito lampejo de esperança restituiu-lhe um pouco de sua tranqüilidade, embora em seu interior rugisse a tormenta do desespero.

— Não posso abandonar os projetos em andamento sem expor a comunidade a um grave risco. Tenho de transmitir algumas instruções da maior importância. Será que posso falar com o comandante?

— O comandante ordenou sua morte — respondeu o robô com a voz fria. — Ele deve ter providenciado para que não haja nenhuma lacuna. Venha conosco!

— Talvez ele se esqueceu...

— O comandante é infalível.

“Sim”, pensou T-39 com o coração amargurado, “o comandante é infalível, mas ele se esqueceu de que me condenou à morte. E agora só me resta morrer sem poder recorrer ao seu auxílio.”

Por que não?

Não perdeu tempo. Saltou para o lado e comprimiu fortemente o botão do interfone, estabelecendo uma ligação direta com o oficial de serviço.

— Aqui fala o comandante! — respondeu uma voz. — Quem está chamando O-2?

— T-39. O comando da morte chegou e quer levar-me. Há cinco minutos falei com O-2. O senhor sabe...

— Sei, sim — interrompeu-o o comandante. Seguiu-se uma pequena pausa. — Não posso fazer nada pelo senhor, T-39. O senhor sabe por quê. Acompanhe os vigias.

O mundo parecia desmoronar à frente de T-39. Viu que os robôs se puseram em movimento e se aproximaram dele. Desesperado, procurou segurar-se na cama.

— Não quero, não quero! Faça alguma coisa, comandante. O senhor pode. Agora, que o futuro...

Não conseguiu prosseguir. Subitamente alguma coisa pareceu fechar-lhe a boca. Lembrou-se dos milhares de seres que se encontravam nos corredores e nos camarotes da nave. Todos eles teriam diante de si o mesmo destino que ele, mas agora contariam com a possibilidade de um futuro melhor.

Desde que ele, T-39, não os traísse.

Deixou cair os braços. O interfone continuava ligado. T-39 sabia que o comandante ouvia e esperava que ele se conformasse com o destino...

O desespero do técnico transformou-se num heroísmo inconcebível.

— Está bem, vigias — disse com a maior tranqüilidade. — Não resistirei mais; irei com vocês. Passe bem, comandante. E... tudo de bom para o senhor.

— Tenha coragem, T-39! — disse a voz saída do alto-falante, revelando uma tristeza evidente. — O que o senhor está fazendo não será em vão; reverterá em benefício de toda a comunidade. Boa sorte!

— Obrigado — respondeu T-39 em voz baixa e voltou a dirigir-se aos vigias. — Vamos embora.

O vigia não demonstrou o menor espanto diante da repentina modificação na atitude de sua vítima. Afastou-se para dar passagem ao técnico. Sem olhar para trás, T-39 saiu e, uma vez no corredor, seguiu para a direita. Sabia que os robôs do comando da morte tinham vindo dessa direção.

Com a vítima no centro, estes seguiram por inúmeros corredores. O débil zumbido dos potentes mecanismos situados no interior da nave tornou-se cada vez mais forte. Cruzaram com mecânicos e outros homens da equipe técnica. Estes pararam para dar passagem ao grupo macabro. Quase todos os dias encontravam-se com o comando da morte.

T-39 olhou para a frente; não lançou os olhos para a direita nem para a esquerda. Preferia não ver ninguém, pois tinha receio de trair o plano.

Entraram num corredor estreito que terminava numa única porta. Esta abriu-se automaticamente, deixando livre a passagem para uma sala.

T-39 prosseguiu em sua caminhada e parou no centro da sala. Olhou em torno, perplexo. Os vigias entraram em forma, depois que a porta de entrada fechou-se atrás deles.

T-39 sabia que ninguém podia presenciar as execuções. Nunca ninguém soubera dizer como era a sala da morte. Aquela tampa oval na parede devia ser a entrada do conversor.

O chefe dos vigias foi até lá e acionou o controle eletrônico. A tampa metálica abriu-se lentamente, pondo à mostra uma abertura negra, pela qual poderia passar um homem. Atrás dela, viu-se um plano inclinado que levava para baixo. Era fácil adivinhar o que havia lá embaixo.

T-39 estremeceu. De súbito, a ânsia de viver voltou a dominá-lo, fazendo com que se esforçasse febrilmente para descobrir uma saída.

Mas, de repente, teve a impressão de que ouviu a voz de O-2, falando-lhe do futuro de seu povo. Também ouviu a ordem do comandante, e os votos de felicidade que lhe dedicara.

“Não! Não há nenhuma saída! Tenho de conformar-me com o destino!”, pensou desesperado.

— Coloque a cabeça na abertura! — disse a voz insensível do vigia.

T-39 teve a impressão de que oferecia a cabeça ao cutelo do carrasco, muito embora nunca tivesse ouvido falar numa decapitação. Ouviu os passos dos robôs que se aproximaram, vindos de trás, e sentiu que alguém o segurava pelas pernas.

Levou um forte empurrão... e escorregou pelo plano inclinado, para as profundezas negras e incertas do reator.

A morte aguardava-o...

Lá em cima, a tampa voltou a fechar-se, e tudo foi escuridão.

Mas subitamente viu uma luz!

Seria a fogueira atômica?

O calor dessa fogueira atômica deveria devorá-lo?

Não sentiu nada. Talvez fossem os nervos que já não reagiam como antes. Quem sabe se não perdera os sentidos?

De repente, parou de escorregar...

 

A nave-patrulha do Império Solar materializou-se, saindo do hiperespaço e retornando ao Universo normal. Vencera mais de dois mil anos-luz num único salto, e agora os tripulantes levariam pelo menos trinta minutos para calcular os dados do próximo salto e introduzi-los no computador positrônico do aparelho de navegação.

Quando viu o imediato levantar-se e “sacudir” as últimas dores da transição, o comandante Wilmar Lund respirou aliviado.

— É sempre a mesma coisa — disse para consolá-lo. — Comigo também acontece isso. Entre em contato com a enfermaria e pergunte se houve algum acidente.

Isso era raro, mas acontecia vez por outra. A passagem da quinta dimensão para a quarta e a materialização ligada à mesma traziam certas modificações estruturais. Via de regra, estas eram insignificantes e não exigiam uma atenção especial.

Enquanto o imediato ligava o interfone, Lund deleitou-se com a visão ampla do Universo estrelado. A gigantesca tela panorâmica dava ao observador a impressão de estar fitando diretamente a profusão de sóis. Na verdade, apresentava apenas a imagem produzida pelos impulsos eletrônicos. Em outras palavras, via-se apenas um quadro, não o espaço propriamente dito.

Encontravam-se a vinte mil anos-luz da Terra. A nave Arctic, um cruzador ligeiro do Império Solar, era capaz de realizar hipersaltos até a distância de dois mil anos-luz. Dali a seis ou sete horas, estariam pousando na Terra.

Depois de um vôo de patrulhamento, trazendo de volta alguns agentes do Serviço de Segurança Solar, que vinham à Terra para apresentar seu relatório, a Arctic retornava ao sistema solar. Entre tais agentes, havia um tenente do Exército de Mutantes, um rato-castor chamado Gucky.

Conforme já foi dito, Gucky não era um ser humano.

Em algum lugar do planeta do sol Moribundo viviam os últimos indivíduos de sua raça, condenada à extinção, aguardando o destino que os esperava. Um belo dia aquele sol frio se extinguiria de vez, ou então se transformaria num sol novo, que consumiria tudo. Isso poderia durar alguns milênios ou alguns anos.

Gucky era uma mistura feliz entre um rato gigantesco e um castor. Tinha pele cor de ferrugem e alcançara um domínio espantoso da linguagem humana. Via de regra, ficava agachado sobre as pernas traseiras e se apoiava sobre a cauda achatada de castor, para não perder o equilíbrio. Sempre que sorria exibia o único dente roedor, que também preenchia a função de triturar cenouras cruas, isto é, seu alimento predileto.

Tudo isso não representaria nada de notável, se não houvesse outras circunstâncias que faziam de Gucky uma criatura milagrosa. Não era por nada que esse ser despretensioso tornara-se membro do temido Exército de Mutantes, uma tropa especial do administrador-geral do Império Solar, Perry Rhodan.

Gucky era telepata. Sabia absorver e compreender os pensamentos de seres que se encontravam a grande distância. Além disso, era telecineta. Movia um objeto sem tocar nele, e isso por uma distância considerável. Por fim, gozava da fama de ser um dos melhores teleportadores do Universo. Suas forças espirituais lhe permitiam transferir seu corpo de um lugar para outro. Para isso, ele se desmaterializava e voltava a materializar-se no local escolhido.

Graças a essas três qualidades, Gucky gozava entre os terranos maior fama que qualquer outro membro do Exército de Mutantes. Seu aspecto esquisito e sua estatura que não ultrapassava um metro em nada abalavam sua fama. Todos o tratavam com o devido respeito. Era bem verdade que, muitas vezes, esse tratamento era inspirado no medo. É que não se pode deixar de ressaltar que Gucky tinha o hábito de brincar com seus dons. Geralmente ele o fazia para divertir-se; mas dali não se poderia concluir que a pessoa que se tornasse objeto das suas brincadeiras também se alegrasse com as mesmas.

Quando a Arctic materializou-se, Gucky estava a caminho do depósito de mantimentos. Sentia fome e pretendia saciá-la o quanto antes. Desde o momento em que viera dar em Blisher III, um planeta situado nos confins do Saco de Carvão, que em sua opinião não se revestia da menor importância, seu dente roedor não se exercitara em mais nada que valesse a pena. Estava na hora de que houvesse uma modificação no que dissesse respeito às suas provisões de mantimentos.

O cadete Brugg gostava muito de animais, mas não foi por isso que lhe confiaram o cargo de oficial aprovisionador.

No entanto, quando de repente a porta de seu “reino” se abriu, dando passagem a um pequeno monstro de pêlo cor de ferrugem, que sorria com seu dente roedor, por pouco o cadete não sofre um ataque.

Nunca vira Gucky, embora soubesse que a bordo da Arctic havia membros do Exército de Mutantes. Por outro lado, um animal ou mesmo uma inteligência com aspecto de animal não era nada de extraordinário. Todavia, Brugg nunca teria a idéia de acreditar que Gucky fosse uma criatura inteligente.

— De onde você fugiu? — perguntou em tom desconfiado, assim que se recuperou do susto. — Seu dono se esqueceu de trancá-lo?

Abaixou-se para acariciar o estranho visitante.

— Venha logo e conte ao titio onde é seu lugar...

No primeiro instante, Gucky perdeu a fala, mas logo percebeu, por via telepática, que o cadete Brugg era bondoso e inofensivo. Deixou-se cair sobre os pés e ficou sentado que nem um coelho. Deixou as patas dianteiras na horizontal, com as “mãozinhas” caídas, mais ou menos como um cão bassê que fica sentado sobre as pernas traseiras.

Lançou um olhar devoto para o cadete e sorriu numa atitude de expectativa.

— Ora veja! Que engraçadinho! — disse Brugg, meneando a cabeça. — O que é que o bichinho quer por isso?

Gucky teve vontade de dizer-lhe que algumas cenouras bem fresquinhas não lhe fariam mal, mas resolveu continuar com a brincadeira. Não era todos os dias que se encontrava com alguém que ainda não o conhecia. Ergueu as orelhas pontudas e bateu com a cauda no chão. Parecia uma foca à qual se oferece um peixe.

— Que tal um pedacinho de açúcar? — perguntou o cadete Brugg, sem esperar resposta.

Afinal, quem fala com cachorros e gatos não costuma esperar resposta. Quando o estranho visitante sacudiu violentamente a cabeça, o espanto de Brugg foi tamanho.

— Ah; não quer um pedacinho de açúcar? — Brugg admirou-se e ficou refletindo sobre quem teria ensinado isso a esse bichinho engraçado. — Quer um pedaço de lingüiça?

Gucky sacudiu a cabeça com mais força. Não fazia segredo da repugnância que sentia pela alimentação não-vegetariana.

O cadete Brugg começou a acreditar que seu visitante só sabia sacudir a cabeça. Teria de adivinhar o que deveria oferecer-lhe. Subitamente abriu o pequeno armário de mantimentos e descobriu os restos de seu almoço, guardados num prato. Era uma confusão de verduras, e um pedaço de carne.

— Veja só que gostosinho! — disse Brugg e colocou a bacia diante do nariz de Gucky.

O rato-castor não acreditou no que seus olhos viam!

Nunca ninguém lhe havia oferecido uma coisa dessas. Era pior que o mingau que lhe fora oferecido por Tchim-La-Djen e que depois soubera ser... Não! Era preferível não pensar nisso.

Gucky engoliu a recordação. Seu dente roedor desapareceu de repente. Deixou-se cair de quatro, segurou a bacia e a atirou para dentro da lixeira aberta. Depois voltou a pôr-se sobre as pernas traseiras. Sorriu para Brugg.

O cadete sentiu-se perplexo.

— Que bicho mimado! — disse antes de compreender o que o rato-castor acabara de fazer.

Ia em direção ao interfone, mas estacou em meio ao caminho e fitou Gucky. Viu um par de olhos castanhos, bondosos e um tanto travessos. Continuou a andar com uma estranha sensação de insegurança e ligou para a sala de comando.

— Aqui fala o comandante Lund. O que houve?

— Aqui fala o cadete Brugg, do setor de aprovisionamento. Estou chamando para comunicar o aparecimento de um animal. Alguém avisou o desaparecimento de algum bicho?

— Um bicho? — ao que parecia, o comandante Lund não sabia o que pensar. — A bordo do cruzador não se permite a presença de cães e gatos.

— Não se trata de cão nem de gato — disse Brugg fitando Gucky de lado. O rato-castor continuava agachado junto à porta, mantendo as patas dianteiras estendidas e exibindo um sorriso desavergonhado. — Não sei como descrever o animal que está aqui. Tem as orelhas de um filhote de elefante, focinho pontudo e cauda achatada. Seu aspecto é bastante estranho...

Subitamente teve a impressão de que alguém lhe puxava as pernas. Caiu violentamente sobre o traseiro. O comandante Lund ouviu o ruído.

— Ei, Brugg. Deixe-se de tolices! Está ouvindo?

— Ai, minhas costas! — gemeu a voz saída do alto-falante na sala de comando. — Acho que por aqui há algum fantasma...

— Bobagem! Crie juízo, homem! Sabe quem é a criatura que está com o senhor? É Gucky, o rato-castor! Nunca ouviu falar nele? O que é que ele deseja?

Durante dez segundos, não se escutou nada. Finalmente Brugg respondeu com a voz perturbada:

— Gucky? O mutante? Isso é o célebre Gucky?

— É claro que sim! — respondeu Lund em tom contrariado. — Dê-lhe tudo que pedir. O próximo salto será realizado dentro de vinte minutos. Entendido?

— Entendido!

Ouviu-se um clique, e o cadete Brugg viu-se novamente a sós com seu visitante. Levantou-se lentamente, apalpando as costas, e fitou Gucky com uma expressão de embaraço.

— Des... desculpe, Tenente Gucky — ouvira dizer que o rato-castor gostava de ser chamado assim. — Não podia saber... por que não se apresentou?

— Você também não se apresentou, meu filho. Logo se vê que é um homem. Não poderia ter percebido que sou Gucky?

Não havia argumento contra essa lógica arrasadora. O cadete Brugg suspirou desesperado e sacudiu a cabeça.

— O que posso oferecer-lhe? Para falar com franqueza, pensei...

— Já sei: pensou que eu fosse um bicho qualquer. Você tem cenouras frescas?

— Se tenho... o quê?

— Cenouras! — repetiu Gucky. — Prefiro que sejam congeladas. Sei fazer o descongelamento. Podem ser uns dois ou três quilos...

Estacou de repente.

O cadete Brugg percebeu que, subitamente, os olhos castanhos do rato-castor congelaram-se. Parecia que olhavam para longe e viam algo de horrível, incompreensível. O sorriso desapareceu de sua boca. Parecia escutar para dentro de si mesmo.

— O que houve?

— Silêncio! — gritou Gucky indignado e voltou a mergulhar no seu transe. Parecia ter esquecido tudo que o cercava.

Brugg sacudiu a cabeça e dirigiu-se à despensa para buscar as cenouras.

“Esses mutantes têm hábitos bem esquisitos”, pensou. “Bem, vou dar as cenouras a esse sujeito, e depois será melhor que ele dê o fora. Talvez fosse preferível não pensar tanto. Os telepatas não são companheiros muito agradáveis.”

Quando voltou com um saco de plástico cheio de cenouras, viu Gucky dissolver-se no ar. O rato-castor desapareceu diante de seus olhos; desmaterializou-se. O que ficou para trás foi um cheiro delicado de sabonete. Um certo Reginald Bell costumava dizer que o fedor do rato-castor era tamanho que até mesmo as pulgas fugiam dele diretamente para a eternidade.

— Ainda bem! — balbuciou o cadete Brugg, perplexo e aliviado ao mesmo tempo. — Não é telepata, mas teleportador — fitou o saco de plástico que tinha na mão. — Por que será que não pôde esperar?

Sacudiu a cabeça e voltou a colocar as cenouras no frigorífico.

 

O comandante Wilmar Lund levou um susto quando Gucky materializou-se na sala de comando, a dois metros do lugar em que se encontrava. Levantou o dedo num gesto de ameaça.

— Não gosto que os tripulantes de minha nave sejam molestados — disse numa suave repreensão. — Você deu um susto daqueles no cadete Brugg. Ele lhe deu as cenouras?

Para seu espanto, o rato-castor não reagiu a estas palavras.

— Recebi um pedido de socorro, comandante. A vida de um ser humano corre perigo!

Por um instante Lund fitou Gucky. Depois soltou uma gargalhada.

— Não é possível! Quem poderia estar em perigo a bordo da Arctic? O imediato acaba de receber o aviso de que tudo está em ordem. Não sei quem...

— Não é na Arctic, comandante — interrompeu Gucky. — O pedido de socorro vem de outra nave.

Lund sacudiu a cabeça e fitou a tela panorâmica.

— Num raio de 0,2 anos-luz não existe nenhuma nave ou planeta. Quer dizer que você....

— Quer dizer que eu me enganei? — completou Gucky. — É impossível! O pedido de socorro foi intenso, concentrado e foi pensado num estado de extrema angústia. O homem estava próximo à morte violenta. Preciso salvá-lo, ou ao menos saber quem são os assassinos. Além disso, quero saber em que nave ocorreu o pedido. Deve ter sido uma nave, pois o homem pensou em robôs e no conversor atômico.

— Ainda acontece que neste setor não existe nenhum planeta habitado — reforçou o comandante. — Quer dizer que é uma nave. Hum! Você está com a razão, Gucky. Seria interessante sabermos de que se trata. Talvez sejam arcônidas.

Gucky girou lentamente a cabeça, até olhar diretamente no sentido do deslocamento da nave.

— Posso indicar a direção, mas não a distância. Não tenho experiências precisas a este respeito. Não sei qual é a distância máxima à qual consigo captar os impulsos telepáticos. Quem sabe se a Arctic poderia executar alguns saltos pequenos em linha reta? Se tivermos sorte, daremos com a nave desconhecida.

— Para que servem nossos instrumentos de localização acoplados com o hiper-transmissor, que funcionam instantaneamente a uma distância de vários anos-luz? — perguntou Lund com um sorriso. — Providenciarei para que o setor da proa seja examinado detidamente. Está satisfeito, Gucky?

O rato-castor sacudiu a cabeça.

— Só estarei satisfeito quando tivermos encontrado a outra nave.

Lund transmitiu suas instruções à sala de rádio. Voltou a dirigir-se a Gucky.

— Se não houver nenhum engano de sua parte, isso não demorará muito. Você tem certeza absoluta de que não se trata de uma brincadeira de alguém que se encontre a bordo da Arctic?

— Consegui determinar a direção, comandante — disse Gucky, apontando para o centro da tela panorâmica. — A sala de comando da nave fica no setor externo. Você sabe de alguém que poderia estar à nossa frente?

Lund compreendeu que a constatação de Gucky não admitia a menor dúvida. Mas não teve tempo para responder. O intercomunicador emitiu um zumbido.

— Há um objeto desconhecido a 1,57 anos-luz à nossa frente. Desloca-se em diagonal, em direção ao setor BC-JS-78. Dimensões e formato: cerca de um mil e quinhentos metros, esférico. Material: ligas metálicas e substâncias plásticas. Supomos que se trate...

— Sim, já sei! — piou Gucky. — Trata-se de um couraçado dos arcônidas. Era o que eu imaginava — refletiu por um instante. — Alguém está precisando de auxílio. Cuidarei disso.

O que mais interessava o comandante Lund era o fato de que nesse setor havia um couraçado do Império Arcônida.

O que estaria fazendo aqui? Será que se encontrava em missão oficial?

— Saltaremos o mais perto que pudermos — disse, dirigindo-se a Gucky. Passou a falar ao imediato, que se encontrava à frente do computador de astronavegação. — Calcule os dados para o salto em conformidade com os dados da sala de rádio.

Dali a dez minutos, a Arctic realizou a transição a curta distância. Dentro de alguns segundos, materializou-se a um ano-luz e meio de sua posição anterior.

Agora a outra nave já aparecia nitidamente na tela. Voava muito devagar, motivo por que foi fácil segui-la.

Realmente tratava-se de uma das gigantescas naves esféricas, cujo armamento era moderno apesar dos milênios que contava, e que era capaz de destruir todo um sistema solar.

O Império Arcônida, governado por um gigantesco computador, constantemente enviava essas naves para o espaço, a fim de descobrir o planeta Terra. Mas, até então, nada conseguira.

Será que esse gigante também se deslocava pelo espaço a fim de descobrir a Terra?

O comandante Lund mandou ativar o campo defensivo da Arctic e manteve a nave preparada para o hipersalto, com a intenção de afastar-se, caso a nave desconhecida resolvesse atacar. Por enquanto não havia o menor indício disso.

Pelo contrário.

A nave esférica prosseguia em sua rota, como se nem tivesse notado a presença da Arctic. Mas isso era praticamente impossível. A nave terrana seguia o colosso a uma distância pouco inferior a duzentos quilômetros. A tripulação da nave terrana aguardava a primeira reação dos arcônidas.

Mas essa reação não veio.

O comandante Lund estreitou os olhos e disse:

— Qual será o truque que eles estão experimentando? Você tem alguma idéia, Gucky?

O rato-castor já estava controlando os pensamentos dos tripulantes da outra nave. Mas houve certas dificuldades!

Seu cérebro pequeno, mas altamente eficiente, teve de absorver e classificar milhares de impulsos dos mais diversos tipos. Como é que Gucky poderia saber o que era e o que não era importante?

— A bordo da nave há uma disposição de alarma — disse. — Mas isso não nos diz respeito. Gostaria de saber...

Mais uma vez, concentrou-se intensamente.

Subitamente ergueu o corpo.

— Saltarei para lá — disse numa súbita decisão. — Mantenha a rota, comandante, para que eu possa voltar a qualquer momento. Se alguma coisa me acontecer — um sorriso travesso surgiu em seu rosto — transforme esta bola gigante num montão de sucata.

— Nesse caso precisaríamos de reforços — respondeu Lund um tanto deprimido. — Esperaremos por você, Gucky. Não demore demais.

Gucky fez um gesto afirmativo e concentrou-se.

Depois desapareceu; parecia ter-se dissolvido no ar.

 

Antes de desmaterializar-se, Gucky concentrou-se no lugar do qual vieram os pedidos de socorro telepáticos. Isso bastou para orientar sua teleportação. Seu corpo desmaterializou-se e percorreu na quinta dimensão os duzentos quilômetros que o separavam da outra nave.

Tudo não durou mais que uma fração de segundo.

O comandante Lund desapareceu diante de seus olhos. Quando as neblinas confusas desapareceram, o rato-castor viu-se no centro de uma sala desconhecida.

Logo notou que os seis vultos à sua frente eram robôs. De um lado, isso o deixou satisfeito; se tivesse de usar violência, preferia fazê-lo contra máquinas, não contra homens. De outro lado, porém, não seria capaz de captar os pensamentos dos robôs por via telepática. As idéias e os planos das máquinas permaneceriam em segredo. Acontece que um robô nunca mente. Quando responde a uma pergunta, sempre o faz segundo a verdade.

Gucky não estava armado; confiava nas suas faculdades.

Um dos robôs esteve a ponto de fechar uma tampa oval embutida na parede. Não constatou qualquer impulso mental que tivesse alguma relação com essa tampa ou com os robôs. O homem que pedira socorro já devia estar morto ou inconsciente.

— O que aconteceu com o homem? — perguntou na linguagem universal dos arcônidas, que é entendida por todos os povos coloniais.

Não havia a menor dúvida de que os robôs que tinha à sua frente eram de construção arcônida.

Os homens mecânicos olharam-no sem dizer uma única palavra. A seguir, três deles bloquearam a única porta existente na sala, dois postaram-se junto às paredes e o último, que acabara de fechar a tampa, dirigiu-se a Gucky. Falando com a voz metálica, disse:

— O comando especial acaba de eliminar T-39. Quem é você?

— Sou o Imperador da Nebulosa de Andrômeda — respondeu Gucky, observando atentamente o robô. Seus olhos não perderam o menor movimento. — Qual foi o crime desse homem?

— Atingiu a idade necessária. O comandante mandou que fosse eliminado.

Gucky percebeu que teria de aplicar padrões inteiramente novos para avaliar as condições reinantes nessa nave. A estrutura sociológica desta parecia reservar-lhe algumas surpresas. Esteve a ponto de prosseguir em suas perguntas, mas o robô disse:

— É proibido entrar nesta sala — foi até a parede, abriu a tampa e prosseguiu: — Enfie a cabeça na abertura.

Gucky poderia sentir-se ofendido, pois os robôs nem se admiravam com o aspecto de sua pessoa. Simplesmente constataram que alguém havia penetrado na sala proibida e o condenavam à morte. Pouco importava quem era o intruso.

Mas Gucky sabia que um robô não é capaz de sentir curiosidade; limita-se a agir e pensar em acordo com a programação nele introduzida. Isso não excluía a possibilidade de pensar com independência, desde que os pensamentos se movessem no âmbito das tarefas que lhe foram atribuídas.

— Foi o comandante que me mandou — disse com a maior energia de que sua voz fina era capaz. — A sentença de morte do tal do T-39 foi revogada.

Ao dizer isso, nem desconfiava o que estava arranjando. Até então nunca acontecera que uma ordem de eliminação fosse revogada, pelo simples motivo de que isso era impossível. Significaria uma revolução.

E uma revolução...

O robô-chefe disse:

— T-39 já foi eliminado. O comandante está infringindo as leis. O caso será examinado. Enfie logo a cabeça nesta abertura.

Gucky perdeu a paciência.

— Seu idiota! Se existe alguém que deve olhar para dentro desse buraco esquisito, será você. Vamos embora; dê uma olhada para ver como são as coisas lá embaixo.

Lançou mão de sua faculdade telecinética. Um fluxo mental invisível atingiu o robô, o levantou, e o fez entrar na abertura negra. Dali a um segundo, Gucky o soltou. Subitamente ouviu-se um arrastar, que logo se tornou mais fraco e cessou.

— Também querem brincar de escorregar? — perguntou o rato-castor em tom amável, dirigindo-se aos cinco robôs restantes. — Isso não lhes custará nada.

Os braços com as armas levantaram-se abruptamente.

Gucky percebeu que estava na hora de mudar de posição. Teleportou-se às cegas antes que os pálidos feixes energéticos alcançassem o local exato em que estivera uma fração de segundo antes.

Materializou-se num recinto bem iluminado, situado não sabia onde. Vários homens estavam reunidos em grupos e discutiam apaixonadamente. Os quadros de comando e as telas presas à parede revelavam que se tratava de um centro técnico. Um robô arcônida semidesmontado jazia no centro da sala.

Por enquanto ninguém havia percebido a presença de Gucky. O rato-castor permaneceu imóvel e procurou extrair dos pensamentos das pessoas ali presentes as informações de que precisava. O que descobriu era bastante estranho, mas ainda não bastava para obter uma visão global.

Ao que parecia, o Maquinista Quatro queria convencer os presentes de que havia necessidade de encetar um motim ou revolta. O estranho era que vivia dizendo que o comandante da nave estava de seu lado.

O que significava isso? Um motim só podia ser realizado pelos tripulantes da nave e dirigido contra o comandante. Acontece que desta vez o comandante se amotinava juntamente com os tripulantes!

Contra quem?

Gucky sabia combinar os fatos. Lembrou-se do encontro que tivera com os seis robôs e das palavras proferidas pelos mesmos. E aqui estava um robô desativado; ao que tudo indicava, fora desmontado pelos homens que estavam reunidos. Só agora Gucky notou que as armas embutidas haviam sido retiradas.

O quadro se completava. Se havia um motim, este se dirigia contra os robôs.

Ouviu M-4 dizer:

— Antes de mais nada, torna-se necessário que os vigias não descubram o que está acontecendo. Nunca devem saber que o comandante está do nosso lado. Só poderemos combatê-los frente a frente, quando tivermos uma quantidade suficiente de armas.

Gucky compreendeu que cometera um erro que poderia prejudicar os revoltosos. Então, tentando reparar a gafe, adiantou-se e disse:

— Bom dia, amigos. Vim para ajudar vocês.

Ao vê-lo e ouvi-lo, os homens se assustaram. A conversa cessou de repente. Todos os olhos dirigiram-se para o rato-castor. Os homens pareciam paralisados.

Gucky percebeu que estavam com medo dele porque acreditavam que fosse um enviado do Mestre. Sacudiu a cabeça e esboçou um sorriso.

— Não, venho de outra nave. Pretendo ajudá-los. Os robôs já conhecem seus planos. Eles agirão. Agora fechem a boca, ou melhor, deixem-na aberta e contem o que houve. Acho que esta é uma nave do Império, não é?

Os impulsos provocados por estas palavras logo lhe revelaram que aqueles homens nunca haviam ouvido a palavra império.

— Não são arcônidas?

Nem sabiam que no Universo existiam arcônidas.

As coisas estavam ficando cada vez mais esquisitas. Bastava um relance de olhos para notar que esses homens eram arcônidas. Os cabelos brancos, os olhos albinos avermelhados, os membros delicados, tudo isso indicava que os indivíduos à frente de Gucky eram seres dessa raça humanóide.

Gucky percebeu que, para compreender a situação, teria de agir metodicamente. Dirigiu-se ao homem que já lhe despertara a atenção.

— Vamos logo, M-4! Procure controlar-se e conte o que houve. Não tenha medo de mim.

O maquinista fez das tripas coração.

Adiantou-se um passo, com um gesto tímido enfiou no bolso um pequeno bastão prateado com uma lente na extremidade, e disse em arcônida:

— Seu aspecto me causa estranheza, mas não temor. Acho que podemos confiar em você, embora não saibamos de onde veio. Deixe-me contar o que aconteceu...

Gucky ouviu-o com um espanto crescente. Embora não descobrisse tudo, começou a desconfiar de que por um simples acaso ele se defrontava com um dos grandes segredos do Universo!

 

A fim de fazerem um relato, O-2 e M-7 apresentaram-se ao comandante e a seus novos amigos. Dois dias se haviam passado, e, nesses dois dias, foram várias vezes à sala ao lado. A imagem do Mestre não modificara seu aspecto e nem a maneira de exprimir-se. Continuava a ameaçá-los com os castigos mais cruéis, mas não fazia nada.

Ao menos não perceberam que estivesse fazendo alguma coisa.

O-2 contou como fizera para informar os chefes das diversas seções a respeito da nova situação e de que forma distribuíra as tarefas entre eles. Até então não se haviam deparado com ninguém que não se mostrasse entusiasmado e disposto a romper com a cruel tradição. Se todos os chefes de seção tivessem transmitido a mensagem, a essa hora o povo já estaria informado.

O relato de M-7 também foi positivo. Graças ao trabalho preparatório, realizado pelo segundo-oficial, já encontrara um bom número de pessoas dispostas a ajudá-lo. E juntamente com ele, passaram a espreitar os vigias que ocupassem postos isolados e colocá-los fora de ação. Nem sempre isso fora fácil; por mais de uma vez tiveram de recorrer às armas de que já se haviam apoderado a fim de destruir um robô. Tudo tinha de ser tão rápido que a máquina não tivesse tempo de expedir um aviso. Sabia-se que os robôs mantinham contato permanente entre si, por meio de aparelhos embutidos de rádio. De qualquer maneira, a operação não poderia continuar em segredo por muito tempo, já que os robôs desativados deixariam de transmitir os dados relativos à sua posição.

Mal os dois homens acabaram de apresentar o relato, ouviu-se o zumbido do interfone. Nos últimos dois dias, isso acontecia constantemente. Era O-l que desejava falar com o comandante.

Ps-5 fez um gesto afirmativo.

— Acho que deve saber a verdade; não podemos ocultar-lhe a ação por mais tempo. Se for um homem razoável, poderá ser nosso aliado. Caso contrário, terá de morrer.

— Se isso acontecer, incumbirei o comando da morte de sua execução — disse O-1.

Mas ainda não chegara a hora de pensar nisso.

— Antes de mais nada, vamos ver como reage à nossa proposta, comandante — sugeriu Ps-5. — Peça-lhe que venha até aqui.

Dali a dez minutos, O-l entrou na sala de comando. Parou diante da porta que se fechava, e fitou os presentes com um olhar de espanto. Finalmente disse em tom indignado:

— O que é isso? Quero falar a sós com o comandante.

Ps-5 incumbiu-se de informar o oficial sobre o ocorrido.

— Sente e preste atenção. O senhor poderá levar uma vida pacata, segura e feliz, ou poderá ser levado pelo comando da morte; tudo depende do senhor. Não me interrompa. Só depois que eu tiver concluído, tome sua decisão. O senhor não demorará a compreender que...

Com a voz calma e indiferente, narrou os acontecimentos e não se esqueceu de entremear a narrativa com suposições impressionantes, que pudessem influenciar o jovem.

— É claro que, quando tudo tiver passado, o atual comandante continuará no exercício de seu cargo — sentenciou Ps-5, depois de algum tempo. — O senhor continuará a ser seu sucessor, caso queira compartilhar de suas idéias. Antes de entrar no exercício do cargo, terá de esperar bastante. Mas em compensação vai ter a chance de viver mais. Nenhum de nós sabe quanto tempo viverá. Talvez seja por três ou quatro gerações, talvez mais. Nossa existência só terminará com a decadência física das células do organismo. D-3 terá muito prazer em expor-lhe as respectivas teorias. Aguardamos sua decisão.

O-l ouvira-o com um nervosismo cada vez maior. Por várias vezes fez sinais de concordância, mas a seguir notava-se que as dúvidas o martirizavam. Assim que Ps-5 concluiu, disse:

— Isso é uma revolução que significará o fim de todas as tradições. Será difícil a gente se adaptar com a necessária rapidez. Devo confessar que, em muitos pontos, minhas opiniões coincidem com as suas, mas receio que nossos desconhecidos governantes oferecerão resistência. Será que dispomos de força para enfrentá-los?

— Esperamos que sim — respondeu Ps-5 em tom sério. — Esperamos e acreditamos.

O comandante estava a ponto de acrescentar alguma coisa quando se ouviu um zumbido. No primeiro instante, acreditaram que fosse o interfone, mas o comandante olhou para a porta...

— Os vigias nunca anunciam previamente sua chegada. Só aparecem quando acham que devem fazê-lo. Levam dez segundos para entrar. É o tempo que demora a fechadura eletrônica para abrir a porta. Todos têm de ir ao aposento contíguo, com exceção de O-1.

A ordem foi cumprida imediatamente.

Quando a porta se abriu para dar entrada ao robô, só o comandante e seu sucessor se encontravam na sala.

Mas o robô não veio só. Mais quatro vigias estavam em sua companhia. Se fossem seis, o comandante talvez teria desconfiado que era o comando da morte que o visitava. Mas, da forma como estavam as coisas, pensou que fossem vigias como quaisquer outros.

Nem desconfiou que era o próprio comando da morte que Gucky havia desfalcado de um membro...

— Desde quando o comandante tem poderes de revogar uma eliminação já determinada? — perguntou o vigia que entrou em primeiro lugar. — As infrações à lei sempre recebem o castigo adequado. Iremos...

— Nunca dei uma ordem desse tipo — interrompeu o comandante. — Quem foi a pessoa que deveria ter sido liquidada?

— T-39, que já foi levado para ser eliminado.

— Isso é impossível. T-39 solicitou um adiamento que não pude conceder. Nunca dei ordem para suspender sua morte.

— Não acreditamos no que está dizendo — respondeu o robô em tom frio. — Você virá conosco e sofrerá o justo castigo. Seu sucessor entrará no exercício do cargo.

— Ele ainda não foi informado — disse o comandante.

Os vigias pareciam confusos. Enquanto não houvesse um sucessor devidamente informado, o comandante não podia ser morto. Ps-5, que viera da sala contígua sem ninguém o perceber, disse em meio à pausa de indecisão:

— O comandante está dizendo a verdade, vigias. Posso testemunhar isso.

M-7 também entrou sem que ninguém o notasse e comprimiu-se junto à parede, atrás dos robôs que já haviam entrado na sala. Segurava a chave com a qual poderia soltar o parafuso que desativava os robôs. Se conseguisse fazê-lo em tempo...

E desativou dois robôs!

O terceiro devia ter notado o primeiro contato da chave, pois virou-se lentamente, dirigindo o braço com a arma para M-7.

Ps-5 agiu imediatamente.

O raio energético de sua arma portátil atingiu a cabeça do terceiro vigia e com um forte chiado derreteu o cérebro positrônico. Dali a alguns segundos, o quarto robô também foi colocado fora de ação.

O robô que se portara como chefe foi o único a ter uma pequena chance, mas não conseguiu aproveitá-la. Nesse meio tempo, D-3 saíra de seu esconderijo e passou a intervir nos acontecimentos. Só desligou a arma energética depois que o último robô se transformou num montão de metais derretidos. Um calor quase insuportável tornava difícil a respiração.

— O senhor teve sorte — disse Ps-5 em tom tranqüilo, enquanto guardava a arma. — Por pouco o senhor não se transforma na vítima de suas próprias instruções, ou das instruções emitidas pelo grande Mestre. O senhor já tomou uma decisão, O-l?

O oficial fez um gesto afirmativo. Estava muito pálido.

— Estou com os senhores. Mas tenho um desejo. Gostaria de ver a pessoa que vocês chamam de Mestre. Isso é possível?

— Até é seu direito — disse o comandante.

Fora tudo tão rápido que nem tiveram tempo de ficar chocados. Antes que compreendessem o que estava acontecendo, o perigo fora eliminado. Os cinco guardas inutilizados eram a única lembrança de que estiveram tão próximo à morte.

— Venha comigo, O-l, eu lhe apresentarei o Mestre.

Os dois homens dirigiram-se à sala contígua.

Ps-5 seguiu-os com os olhos.

— Acho que não demorará muito — disse. — Os robôs já devem ter descoberto nossos planos e passarão à ação. É possível que o Mestre esteja em contato com eles. Quem dera que eu soubesse. Por enquanto não existe o menor indício, quanto mais uma prova.

D-3 foi até a parede e abriu a porta de correr de um armário embutido.

— As armas que temos bastam para rechaçar qualquer ataque dos robôs. Além disso, todos os chefes de seção estão armados. Seria inútil continuarmos a manter nossos planos em segredo. Vamos apresentar uma declaração de guerra formal ao Mestre.

Antes que os outros pudessem manifestar sua concordância, ouviu-se o zumbido do interfone. Ps-5 comprimiu o botão. A tela iluminou-se e M-4 disse:

— Estou falando da seção de laboratório. Acabamos de ganhar um aliado com o qual não contávamos. Surgiu de repente entre nós. Vem de outra nave. Não é como nós...

— De outra nave? — interrompeu o psicólogo em tom de perplexidade. — O que quer dizer isso? Existe mais alguma nave além da nossa?

— O Universo está cheio de naves — disse M-4. — Existem mundos habitados e verdadeiros impérios estelares. Mas isso é tão complicado que não posso explicar em poucas palavras. Quando os problemas terminarem, o desconhecido explicará.

— Ainda não compreendi. Não notamos a presença de outra nave. Onde ela está? E como foi que o desconhecido chegou aqui?

— Ele mesmo lhes contará. Não se espantem quando o virem. Eu já lhe disse que não é como nós. É menor e tem o corpo coberto de pêlo, mas fala nossa língua.

Ps-5 teve uma suspeita. Prosseguindo em tom cauteloso, disse:

— Talvez nem venha de outra nave. Em nosso mundo existe muita coisa que ainda não conhecemos. Nas regiões inexploradas...

O rosto de M-4, que aparecia na tela, foi substituído por outro. Ao vê-lo, o psicólogo calou-se abruptamente. Pasmo de espanto fitou os olhos castanhos de uma criatura como nunca vira igual. Não descobriu o menor sinal de maldade nesses olhos, apenas uma alegre curiosidade. O que mais chamou a atenção de Ps-5 foi o dente roedor.

— Você pode acreditar no que M-4 acaba de dizer — disse o forasteiro com uma voz fina que em outras circunstancias teria provocado uma risada de Ps-5. — Não, não tenho nada que ver com seu Mestre. Quem é mesmo esse Mestre?

Ps-5 estreitou os olhos.

— Você sabe ler pensamentos? — perguntou em tom assustado.

— Sei — disse Gucky. — E sei fazer outras coisas. Irei até aí e levarei M-4. Não demoraremos; no máximo levaremos cinco segundos.

— Cinco segundos... — disse Ps-5 em tom de perplexidade. O setor de laboratório ficava a mais de oitocentos metros da sala de comando.

Mas o rosto de Gucky já havia desaparecido. No mesmo instante surgiu um fenômeno no centro da sala de comando!

O ar começou a tremeluzir e dois vultos saíram dos círculos turbilhonantes: M-4 e Gucky.

— Cá estamos! — piou o rato-castor às costas do psicólogo, que continuava a fitar a tela de imagem. Virou-se como se tivesse sido picado por uma tarântula e fitou os dois intrusos como se fossem fantasmas.

— Pelo espírito dos antepassados...! — exclamou em tom de espanto.

D-3 tivera oportunidade de assistir à materialização. Não conhecia explicação do “milagre”, mas tinha bastante imaginação para formar uma idéia sobre as faculdades de outros seres. A criatura à sua frente não infundia medo; parecia pacata e inofensiva.

— Deixe seus antepassados em paz — disse Gucky, dirigindo-se ao psicólogo e aguçou os ouvidos em direção ao camarote do comandante. — Ali há dois homens. Quem são eles?

— Como é que você sabe? — perguntou Ps-5 em tom de espanto, esforçando-se para recuperar o autocontrole.

— Eu já lhe disse que sei ler pensamentos — disse Gucky. — Ah, já sei. É o comandante e um jovem oficial. Estão conversando, mas a conversa não faz muito sentido. Até parece que se dirigem a uma terceira pessoa que não os ouve e não responde.

Ps-5 já se recuperara da surpresa. Seu cérebro voltou a funcionar normalmente. Compreendeu que o pequeno forasteiro à sua frente sabia ler pensamentos. Talvez seria essa a chance de desmascarar o Mestre. Ficou tão alegre por ter encontrado um caminho que não ouviu as últimas palavras de Gucky.

— Os dois homens estão conversando com o Mestre... — começando a explicar em poucas palavras o que estava acontecendo na sala contígua.

Logo depois concluía com as seguintes palavras:

— Eles dominam nosso povo há tempos imemoriais; além disso, o governo é exercido por intermédio do comandante. Eles nos deram as leis que regem nossa vida e nossa morte. Vivem em alguma região desconhecida desta nave e só aparecem sob a forma da pessoa que chamamos de Mestre.

— Surgem numa tela de imagem — disse Gucky. — Preciso dar uma olhada nisso!

Dali a alguns segundos, entrou juntamente com Ps-5 e com D-3 na sala em que ficava a grande tela de onde o rosto do Mestre os fitava.

Por alguns minutos, Gucky acompanhou a palestra que se desenvolvia em círculo, sem que se chegasse a qualquer resultado positivo. O Mestre recusava-se obstinadamente a dar qualquer explicação. Limitava-se a exigir obediência e o restabelecimento do estado anterior.

Com os olhos semicerrados, o rato-castor escutava. Seu dente roedor desapareceu. Mantinha-se imóvel embaixo da tela e fitava a imagem. Mas por mais que se esforçasse para identificar, entre os impulsos mentais que investiam sobre ele, os do Mestre, seus esforços não produziram o menor resultado.

Não era nada fácil identificar os pensamentos de um homem que aparecia na tela. O corpo deste se encontrava em outro ponto, que tinha de ser determinado. Mas, até então, Gucky nunca levara mais de dois minutos para localizar um interlocutor que se achasse nessas condições.

Nunca levara; mas agora estava levando.

Concentrou-se durante dez minutos. Depois sacudiu a cabeça e caminhou tranqüilamente para perto da imagem. Ps-5 esclareceu o comandante e O-l com poucas palavras, e os mesmos se mantiveram em atitude de expectativa.

O Mestre interrompeu o discurso que estava desfiando como se o tivesse decorado. Depois de uma ligeira pausa perguntou:

— Quem é você?

— Era o que eu queria perguntar a você — piou o rato-castor. — Onde está? Na nave?

Enquanto o Mestre respondia, Gucky mais uma vez se esforçou em vão para identificar a fonte dos pensamentos. A explicação só podia ser uma...

— Sou o Mestre, o representante dos antepassados que construíram esta nave e a fizeram decolar. Assim que a nave chegar ao destino, certos segredos serão esclarecidos. Até lá exijo obediência. Mas você não é um dos nossos. Quem é você?

Gucky já tinha certeza, mas assim mesmo queria uma prova definitiva.

— Talvez seus objetivos sejam bons, mas será que você julga conveniente que o homem seja dominado pela máquina? Por que é que todos ignoram as origens do povo? Por que é que ninguém sabe que os indivíduos desta nave são arcônidas?

O rosto do Mestre demonstrou espanto, mas sua voz continuou tranqüila e indiferente:

— A máquina merece mais confiança que o homem, pois está menos sujeita a erros. Mas agora eu lhe faço uma pergunta: o que é que você sabe a respeito dos arcônidas?

Gucky acenou com a cabeça. Esperara exatamente isso.

Sem dar a menor atenção à imagem do Mestre, que o fitava rigidamente, virou-se para os homens, ou melhor, para os chefes da revolução, que aguardavam tensamente suas palavras.

— Acho que no futuro não precisaremos entrar mais nesta sala. Não precisaremos tomar conhecimento da existência do Mestre que alega ser o representante dos antepassados. Acredito que, na oportunidade em que esta nave decolou, alguma coisa não deu certo. O que está acontecendo não estava previsto. Bem, não demoraremos em descobrir.

Ps-5 adiantou-se e parou à frente de Gucky.

— Simples palavras não poderão eliminar o Mestre. Ele está ali, na tela; vê e ouve tudo que se passa.

— Até que você tem razão — disse Gucky em tom irônico. — Por isso mesmo não entraremos mais nesta sala. Depois disso, o Mestre estará cego e surdo. E também estará mudo.

Por enquanto não entendiam o que Gucky queria dizer, mas aceitaram a sugestão do mutante.

Fecharam a porta da sala e voltaram à sala de comando. Uma vez lá, o comandante perguntou.

— E agora?

O psicólogo apontou para D-3.

— Talvez esteja na hora de pensarmos na terrível descoberta que fizemos no centro da nave. Deve haver alguma ligação entre aquilo e o Mestre. Nossos antepassados estão dormindo por lá...

Gucky esperou que o psicólogo contasse sua história e viu que o quadro se completava. Restava saber qual era a finalidade daquilo. Se é que havia alguma finalidade!

— Acho que vou dar uma olhada nisso — disse o rato-castor assim que Ps-5 concluiu seu relato. — Aproveitaremos a oportunidade para deixar o Mestre sem energia.

— Deixar o Mestre sem energia?! — repetiu M-7 em tom de espanto.

— Isso mesmo. Será que vocês podem imaginar um robô que funcione sem energia? Pouco importa que o rosto desse robô seja de metal ou de plástico.

Enquanto se deleitava com o espanto provocado pela revelação, Gucky exibiu o dente roedor.

Com uma única frase, desvendara o grande mistério.

 

O técnico Trinta e Nove só caiu durante um segundo, mas este segundo transformou-se numa eternidade.

Teve oportunidade para ter uma percepção nítida do fim que o aguardava.

E esse fim parecia ser muito diferente do que ele supusera!

O escorrega não terminava na fogueira atômica do reator. Enquanto T-39 descia em direção ao centro de gravitação da nave, a temperatura não subia, mas baixava ininterruptamente. Numa questão de segundos, começou a fazer um frio insuportável.

O técnico ainda não sabia que seu corpo já estava sendo atingido pelo sopro do gelo eterno que avançava rapidamente pelas suas carnes.

Enquanto caía velozmente, percebeu abaixo de si um gigantesco pavilhão no qual havia vigias imóveis à sua espera. Estes se encontravam postados em torno de uma tina retangular feita de um metal branco que lembrava o mármore. Ao que parecia, a tina estava cheia de água sobre a qual havia uma névoa.

T-39 mergulhou na névoa e, depois disso, na água.

Não chegou a sentir o tremendo frio que congelou seu corpo e esfacelou a roupa sintética...

Era o momento pelo qual os vigias haviam esperado.

Moveram-se lentamente em direção à tina. Pegaram instrumentos parecidos com varas e puxaram o corpo para junto de si. Depois retiraram-no cautelosamente do líquido.

T-39 foi colocado numa maca especialmente trazida ao pavilhão. Os robôs agiam com a maior cautela, pois sabiam que qualquer descuido poderia quebrar o corpo congelado.

Dois guardas levaram a maca para fora.

Os outros continuaram postados junto à tina, onde esperavam a próxima vítima.

Nem desconfiavam de que a vítima que acabavam de retirar do líquido era a última.

 

Ps-5, D-3 e R-75 acompanharam Gucky, enquanto os outros permaneceram na sala central, com o comandante, para que pudessem alarmar a tripulação, caso houvesse uma revolta dos robôs.

R-75 apontou para a parede.

— Foi aqui que abrimos o buraco. Os esquifes ficam atrás desta parede. Mas os guardas armados também estão à espera por lá.

Gucky acenou com a cabeça; parecia satisfeito.

— Acho que terão uma surpresa. Vocês estão fortemente armados e lhes armarão um fogo de artifício que será um deleite para seus olhos de lente. Quanto a mim, bem, acho que vou ter uma boa brincadeira.

— Quer brincar? — o psicólogo lançou um olhar de dúvida para Gucky.

Até então, Ps-5 não recebera qualquer resposta satisfatória às seguintes perguntas: quem era e de onde vinha o rato-castor. Ps-5 limitara-se a aceitar o fato de ter encontrado mais um aliado.

— Você acha que conseguirá espantar os guardas com suas brincadeiras?

— Minha brincadeira tem o nome de telecinese — explicou Gucky enquanto via R-75 abrir a chapa da parede a maçarico. — Basta concentrar os pensamentos para descolar a matéria sem pôr as mãos nela. Com isso já pus fora de ação verdadeiros exércitos de robôs.

Aquilo era um exagero. Mas verdade seja dita: por meio de sua capacidade telecinética Gucky já dominara muitos inimigos que poderiam tê-lo massacrado com os punhos.

O pedaço de metal retirado da parede caiu ruidosamente ao chão.

— Via de regra, os guardas levam cerca de uma hora para aparecer — disse Ps-5 em tom apressado. — É possível que desta vez sejam mais rápidos.

— Bem, veremos — piou Gucky e espremeu-se pela abertura na parede assim que as bordas esfriaram um pouco. — Vamos logo, amigos.

Desta vez, não precisavam vigiar a retaguarda. Dirigiram sua atenção para a frente, onde as longas fileiras de blocos de vidro, com as pessoas adormecidas, continuavam a aparecer na penumbra.

Gucky deu alguns passos e parou à frente do primeiro bloco. Saltou para a borda do recipiente e fitou o corpo nu do arcônida. Para ele, não havia nenhum mistério naquilo que permanecia oculto aos seus companheiros. Antes de entrar no pavilhão, já sabia o que estava sendo feito ali; apenas não conhecia a finalidade daquilo.

Ps-5 também se aproximou e fitou a pessoa adormecida.

Estreitou os olhos e lançou um olhar de perplexidade para D-3.

— Dê uma olhada nisso — disse com a voz embaraçada. — Depois diga se estou louco.

O médico acenou lentamente com a cabeça.

— Você não está louco — disse com um tremor na voz. — Sei perfeitamente o que você quer dizer. Mas antes de cometermos um engano vamos procurar a prova. Em qual dos blocos estava guardada a moça?

— No bloco que se segue a este — respondeu Ps-5 e caminhou até o bloco vizinho. Olhou para dentro do mesmo e recuou apavorado. — Sim, é isso mesmo. Foram trocados. Por quê?

Gucky, que além de acompanhar a conversa lia os pensamentos dos dois homens, levou apenas alguns segundos para descobrir toda a história. Procurou certificar-se:

— Vocês têm certeza de que não há nenhum engano? É a mesma sala?

— Temos certeza absoluta — respondeu Ps-5. — Há poucos dias havia outras pessoas nestes recipientes.

Gucky teve de confessar que já não compreendia mais nada. Há um instante tivera a impressão de que, no setor central, um grupo de arcônidas hibernava no frio. O líquido turvo parecia indicar esse fato. Devia suportar temperaturas bem abaixo de zero sem modificar seu estado, que continuava líquido. Até ali estava tudo em ordem.

Mas por que de repente eram outras as pessoas que se encontravam nesses estranhos recipientes?

Subitamente o raciocínio de Gucky foi interrompido pela exclamação do médico:

— Conheço este homem. É T-39; eu o tratei várias vezes. Ocupa o lugar da moça. Mas...

O psicólogo estremeceu e recuou apavorado. Em seu rosto havia uma expressão de horror e uma indagação.

— Há uma hora o comando da morte levou o técnico e o empurrou para dentro do conversor — disse em tom seco. — Ele está morto.

Aos poucos, Gucky começou a orientar-se em meio aos fatos.

— Há uma hora? Estava condenado à morte? E aqui está deitado à nossa frente? Então, Ps-5 e D-3, será que vocês já começam a compreender?

Os dois homens lançaram um olhar de perplexidade para o rato-castor.

— Pois é simples — piou Gucky em tom exaltado. — Eles sempre lhes contaram que vocês têm de morrer quando chega a hora. Na realidade, ninguém morre. Já sei que as pessoas condenadas à morte não vão parar no reator, mas sim na câmara de congelação. Foi o que aconteceu com este técnico. Acho que até aí o mistério está esclarecido. Mas vemo-nos diante de outra indagação. O que aconteceu com as pessoas que se encontravam neste recipiente antes que o mesmo fosse ocupado por T-39? Devemos descobrir isso, pois só assim poderemos acompanhar a pista.

Ps-5 acenou lentamente com a cabeça. Embora fizesse bastante frio, começou a transpirar. De um instante para outro, os vigias deixavam de ser impiedosos homens-máquina para transformarem-se em benfeitores.

Mas qual seria a finalidade daquilo?

Gucky percebeu o conflito que lavrava na mente do psicólogo e disse:

— É perfeitamente possível que tenhamos cometido uma injustiça contra os robôs, mas afinal estes permitiram que vocês ficassem na incerteza. Acho que não importa o que irá acontecer daqui em diante. Vim apenas por ter recebido um pedido de socorro transmitido por via telepática. Este pedido foi expedido por um homem que corria perigo de vida. Provavelmente foi este homem que vocês chamam de T-39. Ao que parece, ainda está vivo e continuará vivo por muito tempo. Suponho que viva até que esta nave chegue ao destino. Quer dizer que posso voltar à minha nave e deixar que vocês continuem como antes.

— Em hipótese alguma desejamos que o estado anterior volte a reinar — protestou o médico. — No futuro cuidaremos do nosso destino; não nos deixaremos governar pelas leis do Mestre. Quem é mesmo esse Mestre?

— Antes de despedir-me de vocês, pretendo descobrir isso — disse Gucky com a voz tranqüila. — Esperem aqui mesmo.

Antes que alguém pudesse responder, o rato-castor desapareceu.

Ficaram a sós na penumbra do pavilhão.

 

Enquanto isso, na sala de comando, a situação começava a tornar-se crítica.

Mal Gucky e os três homens partiram para a expedição, tiveram de dar o alarma. Anunciou-se que os vigias se reuniam e marchavam em direção à central. Atiravam contra tudo que se interpunha em seu caminho.

Era a declaração de guerra!

O comandante deu ordens de resistir. Os chefes das diversas seções distribuíram as armas e organizaram os grupos de combate. Acabara de chegar o temível momento do confronto aberto.

Enquanto o comandante transmitia suas instruções, a ligação pelo interfone foi interrompida de repente. O suprimento de energia fora suspenso.

O verdadeiro chefe acabara de desferir seu golpe.

Mas desferira o golpe alguns minutos depois da hora adequada.

Os homens revoltosos já sabiam o que fazer.

Um dos grupos de choque, dirigido por M-4 e M-7, correu à frente dos vigias e chegou antes deles ao corredor que dava para a sala de comando. Uma vez lá, montaram uma armadilha e passaram a aguardar os robôs num estado de tensão febril.

Não esperaram por muito tempo.

Os vigias vieram andando com os braços em ângulo reto e as armas prontas para disparar.

Os dois mecânicos sabiam que não haveria mais lugar para as artimanhas. Agora só importava saber quem era mais rápido e mais forte.

Os vinte vigias, marchando na devida ordem, ofereciam um quadro apavorante. A vontade de matar parecia ter-se gravado em suas cabeças metálicas, embora os rostos permanecessem impassíveis.

M-7 esperou que a primeira fila passasse pelos atiradores ocultos e se encontrasse a menos de dois metros do lugar em que estava, para dar o sinal combinado.

O raio energético por ele disparado derrubou o primeiro colosso e atirou-o contra a parede. A detonação seguinte destruiu mais alguns robôs.

Os raios energéticos chiavam de todos os lados, colocando fora de combate os desajeitados robôs. Foi tudo muito mais fácil e rápido do que esperavam. Antes que os vigias tão temidos pudessem organizar a defesa, estavam todos destruídos.

Era bem verdade que a luta também custara a vida de três homens.

A porta da sala de comando abriu-se. Acompanhado de O-l e O-2, o comandante saiu e ficou apavorado com o cenário à sua frente. Parecia dominado pelo pânico enquanto dizia:

— Foi o primeiro ataque dos vigias. Quanto tempo demorará até que voltem?

M-7 disse com um sorriso forçado, que ao mesmo tempo exprimia certo alívio.

— Estes aqui não atacarão mais ninguém — disse, apontando para os corpos metálicos imobilizados. — Acho que conseguiremos. Quantos vigias existem ao todo?

— Pelo que sei, devem ser mais ou menos cem — respondeu o comandante em tom hesitante. Teve de confessar que não sabia exatamente. — E por enquanto ainda não ganhamos a batalha.

— Sabemos disso — respondeu M-7 e fez um sinal aos seus homens. — Acontece que não estamos sós. Em todos os cantos da nave nossos grupos de choque esperam os vigias. Daqui a pouco seremos os donos desta nave e poderemos viver nossa vida, até atingirmos nosso objetivo.

O comandante fez um gesto e voltou à sala de comando. Os dois oficiais seguiram-no.

— E agora? — perguntou O-l com a voz insegura. — A energia para o intercomunicador falhou. Estamos cegos e mudos...

— Vou dar uma olhada para ver o que diz o Mestre — respondeu o comandante e abriu a porta que dava para a sala ao lado. — Talvez ele nos ofereça a capitulação. Nunca podemos saber...

Mas quando entrou na sala e contemplou a grande tela quase caiu de susto.

Quem o fitava, com o rosto sorridente e as orelhas em pé, era a estranha criatura que tão inesperadamente acorrera em seu auxílio.

Gucky ocupara o lugar do Mestre!

 

O rato-castor conhecia perfeitamente esse tipo de nave esférica, da qual o Império Solar possuía várias unidades. Sabia orientar-se em todos os cantos da mesma.

Ps-5 lhe dissera que devia haver mais nove ou dez salas ligeiramente curvas, e que, em algumas dessas, talvez também estivessem guardados os recipientes com pessoas adormecidas. Mas Gucky sabia fazer cálculos. Aquela nave errava pelo espaço há vários milênios. As gerações se sucediam, e os indivíduos iam “desaparecendo” no interior do conversor.

Era ao menos o que sempre se acreditara. Mas agora as coisas mudavam de figura...

As pessoas condenadas à morte não estavam mortas. Viviam, sendo conservadas para o futuro. Os arcônidas do interior dos recipientes de vidro não eram apenas os antepassados, mas também os que haviam morrido neste meio tempo.

Gucky conhecia a nave esférica e soube calcular perfeitamente que os recintos, onde eram guardados os blocos de vidro, não formavam o centro da nave, mas circundavam-no. Ainda havia um espaço livre, em forma esférica, com um diâmetro de cerca de duzentos metros.

Se esse espaço fosse bem dividido, nele caberiam mais de cem mil pessoas.

A idéia fez Gucky estremecer. Nunca ninguém se lembrara dessa possibilidade. A pessoa que concebera esse plano tresloucado devia ser louca, ou então era um gênio em estado de desespero.

E ele, Gucky, acabara de romper a corrente!

Saltou às cegas, mas sempre com um máximo de concentração. Ao materializar-se, percebeu imediatamente que seu raciocínio fora correto.

Sentiu um frio insuportável que atravessou seu pêlo e investiu contra a pele. Sabia que não poderia permanecer ali por mais de um segundo, pois do contrário seria vitimado pelo frio. E um ligeiro olhar bastou para que percebesse a verdade.

Milhares de arcônidas, aparentemente mortos, estavam empilhados na gigantesca sala. Eram mulheres e homens nus. Mesmo que Gucky não soubesse que essas pessoas apenas estavam dormindo, aquela visão não o teria deixado mais assustado. Era aqui que estavam as gerações que há milênios desapareciam nas profundezas da nave.

Por quê?

Ninguém sabia dar uma resposta satisfatória.

Logo teleportou-se e foi parar num recinto recheado de máquinas que zumbiam. Esse recinto ficava fora do círculo em que se encontravam os recipientes de vidro. Os robôs caminhavam silenciosamente de um lado para outro, sem tomar conhecimento de sua presença. Verificavam os geradores e os quadros de comando. Devia ser a gigantesca sala de máquinas do centro da nave.

Nos fundos havia uma porta larga; verificou que esta não estava fechada.

Gucky atravessou a sala e entrou rapidamente no recinto que ficava atrás da mesma. Suas suspeitas se confirmaram.

Viu diante de si a solução do enigma...

 

Tanto Ps-5 como D-3 não se lembraram de que os robôs são capazes de aprender. Nem mesmo R-75 teria desconfiado disso. Por isso, o próximo ataque veio colhê-los de surpresa.

De início ouviram o arrastar de pés vindo dos fundos da sala. A porta abriu-se lentamente e alguns vigias entraram. Caminharam devagar na direção em que se encontravam.

O psicólogo deu mostras de pânico.

— Estão chegando! Onde será que ficou nosso amiguinho? Se não aparecer, teremos de fugir sem ele.

— Poderemos resistir por alguns minutos — garantiu o médico e pegou a arma. — Procuraremos abrigar-nos atrás dos recipientes de vidro. Não se atreverão a destruí-los.

R-75 juntou-se a eles, mas depois de algum tempo resolveu fugir, enquanto era tempo. Correu em direção à saída, e foi recebido por um raio fulgurante, que apagou sua consciência e sua vida.

Dois robôs colocados junto à saída cortavam a retirada.

Ps-5 viu R-75 morrer. Quando viu que estavam encurralados, seu coração quase parou de bater.

Os outros vigias aproximaram-se e pararam.

Mais uma vez fizeram ouvir sua voz fria e metálica.

— Não resistam! Vocês penetraram nas regiões proibidas da nave e não escaparão à morte. É o que diz a lei.

Ps-5 recobrou o ânimo.

— Essa lei não existe mais! — exclamou em voz alta, na esperança de que o rato-castor pudesse ter a atenção despertada para o perigo. Não sabia onde estava o aliado. Talvez pudesse ouvi-lo. — Nem pensamos em capitular. Lutaremos até o fim.

— É inútil resistir.

Abriram fogo sem mais aviso, mas os disparos passaram acima do alvo, pois não desejavam atingir os recipientes. Mas logo reconheceram a situação. Os guardas começaram a andar, tentando contornar o obstáculo, isto é, os recipientes. Os robôs que se encontravam junto à saída também se aproximavam com as armas levantadas.

Os dois homens olharam-se por algum tempo e acenaram com a cabeça.

Se tivessem de morrer, não queriam que isso acontecesse em vão. Haviam desencadeado a revolta e posto as pedras para rolar. Sua vida preenchera uma finalidade, e a mesma coisa deveria acontecer com sua morte.

Concentraram seu fogo sobre os vigias.

Mas estes não responderam ao fogo.

Mantiveram-se imóveis em sua nova posição, com as armas levantadas.

Mas foi só isso.

Dois ou três robôs caíram sob o fogo dos raios energéticos. Depois disso os dois homens suspenderam o fogo. Por que destruir um inimigo que não se defendia mais?

— Por que não lutam? — gritou Ps-5 com a voz nervosa. — O que aconteceu?

A estas palavras seguiu-se um silêncio completo. Ninguém respondeu.

De repente, o ar começou a tremeluzir entre o lugar em que se encontravam e os robôs. O rato-castor voltou a aparecer. Sem dar a menor atenção aos inimigos, arrastou os pés para junto do psicólogo e piou em tom orgulhoso:

— Estes estão liquidados. Desliguei a força na sala de máquinas. Estes robôs são teleguiados. Vocês estão livres.

— Teleguiados? — indagou Ps-5 em tom de perplexidade. — O que significa isso? O que foi que você descobriu? Por onde andou?

Um sorriso alegre surgiu no rosto de Gucky.

— Nós nos encontraremos na sala de comando. Esperem-me lá. Ainda tenho de liquidar outro assunto.

E desapareceu de novo.

 

— Dei uma olhada no Mestre — disse Gucky dali a meia hora aos homens reunidos na sala de comando. Todos os oficiais e chefes de seção haviam comparecido para serem informados sobre a nova situação. — Consiste num filme de plástico sincronizado com um robô falante. Com isso, aqui na tela, surge a impressão de que uma pessoa viva está falando diante da câmara. Na verdade quem fala é um robô. É um processo bastante complicado, e durante vários milênios o espetáculo produziu os efeitos desejados. Era esse robô-imagem que dava as ordens e comandava a nave. Por isso tinha-se a impressão de que pelo menos um dos antepassados continuava vivo e dirigia o vôo da nave. Na verdade, todos os antepassados estão vivos, embora não tenham uma vida consciente. Foram postos a hibernar no frio e só serão despertados quando a respectiva maquinaria for ligada.

“A morte no conversor foi apenas um pretexto. Todas as pessoas levadas pelo comando sinistro foram congeladas, ficaram em observação durante algumas semanas no interior dos recipientes de vidro e depois foram literalmente empilhadas no depósito. Dessa forma, as pessoas adormecidas ocupam menor lugar. No centro da nave repousam cerca de cem mil criaturas. Isso corresponde ao núcleo de uma população planetária, e era o que se planejava. Mas houve uma coisa que não correu segundo os planos...”

Gucky fez uma ligeira pausa para deleitar-se com o espanto dos ouvintes. Eram arcônidas, conforme suspeitara, mas por que afirmar-lhes isso agora? Por que teriam de saber que sua raça dominava a Via Láctea, ou ao menos a dominara até que foram atingidos pelo destino que...?

Um belo dia, eles mesmos descobririam o segredo.

— Durante os primeiros séculos do vôo, que seria apenas uma experiência, os robôs colocados a bordo obedeciam ao comandante. Um dia enganaram a pessoa que se encontrava no comando e investiram o sucessor em suas funções. Recorreram ao transmissor de imagens para transmitir-lhe as instruções que vigoram até hoje.

Os homens ouviram-no em silêncio. Não estavam compreendendo nada. Gucky prosseguiu:

— Não sei por que a nave voa com uma relativa lentidão. É possível que as instalações de hipersalto tenham entrado em pane, motivo por que a viagem teve de prosseguir apenas em vôo normal. Acontece que a nave também não conhece qualquer tipo de astronavegação ou pilotagem. Se a presente rota for mantida, dentro de dois séculos a nave penetrará no campo de gravitação de um grande sol circundado por vinte planetas. Mandei verificar isso pelo computador de minha nave. Quer dizer que dentro de duzentos anos, aproximadamente, vocês chegarão ao destino. E depois disso, acontecerá aquilo que seus antepassados desejavam. Vocês entrarão em órbita em torno do sol. O processo que fará despertar as pessoas congeladas será iniciado automaticamente. Essas pessoas despertarão uma após a outra. Depois de algum tempo, a nave pousará. Os homens povoarão o planeta. Uma nova civilização terá início, se é que o planeta pode sustentar a vida.

O comandante lançou um olhar de perplexidade para Ps-5. Muito confuso, perguntou:

— E se esse planeta não puder sustentar a vida?

Gucky interrompeu-o com um gesto.

— Não se preocupem. É possível que seus antepassados tenham escolhido a rota por simples acaso, mas a mesma justifica certas esperanças. O sol de que acabo de falar possui pelo menos três planetas adequados à vida.

— Quem foi o Mestre? — perguntou o médico em tom curioso.

Mais uma vez, o rato-castor sorriu.

— Um enorme computador que fica no centro da nave, e que assumiu o poder há milhares de anos. Tinha a intenção de pousar no planeta, despertar as pessoas adormecidas e transformá-las em escravos. Pretendia formar uma verdadeira civilização de robôs. O planeta, colonizado por vocês, se transformaria no centro de um gigantesco império que seria governado pelo computador. Seria uma bela surpresa; ainda bem que a mesma não se concretizou. No fundo devemos isso a um único homem.

“Refiro-me a T-39, que ainda dorme no seu esquife de vidro. Se o mesmo não tivesse pensado em sua morte, e se eu não me encontrasse por perto, tudo poderia ter saído muito diferente. Os robôs haviam notado a revolta que se esboçava, e estavam preparando sua reação. No último instante consegui desligar a central energética. Se não dispusesse da capacidade telecinética, isso teria sido totalmente impossível. Basta realizar uma pequena reprogramação, e a energia pertencerá a vocês, ou seja, aos humanos. Com isso, a missão que tenho de cumprir aqui estará concluída; trata-se de uma missão que me foi trazida pelo acaso. Talvez ainda nos encontremos. Talvez consigamos conferir à nave de vocês a velocidade que lhes permita atingir o planeta dentro de alguns anos. Talvez... conforme acabo de dizer.”

O comandante adiantou-se. Estendeu as mãos para Gucky.

— Seus pensamentos são muito humanos, embora você não pertença a nenhuma raça humana — disse muito comovido. — Nós lhe agradecemos. Transmita nossos cumprimentos ao seu povo.

Gucky fez um gesto condescendente. A idéia de ser considerado o representante da Terra divertia-o.

— Faremos o possível para ajudá-los e sempre estaremos empenhados em que entre nós reine a paz eterna. Mas tenham cuidado para que os robôs continuem sempre a ser seus servos; nunca mais deverão assumir o poder. Antes de retirar-me, ainda falarei com os técnicos e os cientistas. Se vocês não puderem contar com os robôs reprogramados, estarão perdidos. Quanto ao Mestre — um sorriso de triunfo surgiu em seu rosto — bem, ele está liquidado. O acesso às instalações frigoríficas está livre, e um de vocês terá de ocupar o lugar do Mestre.

“Deixem que as pessoas adormecidas descansem até que vocês cheguem ao destino. Se algum falso alarma os despertasse, haveria uma catástrofe de proporções inimagináveis. Nestas naves cabem mais de cem mil pessoas adormecidas, mas poucos milhares de pessoas vivas. Como vêem, o raciocínio dos robôs também se desenvolve segundo as trilhas humanas. Eles tomaram todas as providências para que apenas alguns milhares de pessoas estivessem vivas de cada vez. E deixaram que vivessem por muito tempo: aquilo que vocês designam como uma geração corresponde a cem anos em nosso planeta. Os padrões de tempo estão bastante deslocados.”

Gucky respondeu a mais algumas perguntas, orientou os técnicos sobre as tarefas que teriam de cumprir e despediu-se.

— Passem bem, amigos, e procurem ser dignos da liberdade reconquistada. Obedeçam ao comandante, mas nunca se submetam às ordens de uma máquina. O homem sempre deve ser o senhor da máquina; no momento em que esta “começa a pensar”, inicia-se um terrível perigo. Mas, embora a máquina saiba ser mais lógica, a longo prazo ela nunca consegue ser mais inteligente que o homem. Passem bem...

Diante dos olhos perplexos da assistência, Gucky desmanchou-se como um espírito bondoso que, uma vez cumprida sua missão, retornasse ao reino do invisível. O que ficou para trás foi um novo presente, que garantia um futuro razoável.

A porta abriu-se e um vigia entrou.

O comandante dirigiu-se ao mesmo e disse:

— O setor RC está sujo. Providencie para que o comando de limpeza imediatamente inicie o trabalho.

A voz do robô soou com a monotonia de sempre:

— A ordem será executada imediatamente. Há outras instruções, senhor?

O comandante sorriu.

— Sim, há muitas instruções. Você as receberá dos setores competentes. Retire-se.

O robô saiu sem dizer uma palavra.

 

O cadete Brugg quase morreu de susto, quando uma voz soou às suas costas:

— Será que você já se esqueceu de mim, cadete?

Gucky exibiu o dente roedor e foi arrastando os pés em direção ao cadete perplexo. Plantou-se à sua frente, apoiando-se sobre o rabo.

— Então?

— Pensei... — principiou o cadete muito confuso, procurando em vão uma explicação sobre o lugar em que o rato-castor estivera nestas últimas horas. — Pensei...

— Ora esta! Quem não sabe pensar deve deixar isso para outras pessoas — recomendou Gucky em tom paternal. Subitamente sua voz assumiu um tom penetrante: — Onde estão as cenouras, meu filho?

O cadete Brugg tinha quase o dobro do tamanho de Gucky, mas preferiu não responder. Girou sobre os calcanhares. Sem dizer uma palavra entregou dali a dez segundos o saco de plástico a Gucky, e este desapareceu tão depressa como viera. Brugg viu-se novamente a sós em seu “reino”, mas não se sentia como um rei. Para evitar novos problemas preparou nada menos de cinqüenta quilos das malditas cenouras, pois se fosse necessário pretendia...

Enquanto isso, Gucky materializava-se na sala de comando.

Ao contrário de Brugg, desta vez Wilmar Lund não se assustou.

— Então? — perguntou. — O que houve com essa nave? Afinal, você demorou muito. Quase três horas...

— O que são três horas para quem tem de corrigir uma história de dez milênios? — perguntou Gucky por sua vez.

Gucky não pretendia informar Lund sobre tudo que vira e soubera. Só Perry Rhodan poderia tomar uma decisão sobre isso. Uma nova civilização poderia representar um apoio importante para o Império Solar, mas também poderia acarretar um perigo.

— Essa nave está à deriva. Um belo dia teremos de cuidar dela.

— Se é que conseguiremos encontrá-la.

— Os dados já foram armazenados no computador — disse Gucky, sacudindo o saco de plástico com as cenouras.

O comandante Lund esteve a ponto de irritar-se, mas resolveu calar-se.

Logo depois, fez o registro no diário de bordo:

 

Data: ...Posição CM-13-HB. Houve um atraso no vôo porque um couraçado arcônida que está à deriva cruzou nossa rota. O exame não trouxe qualquer resultado. Dados relativos à rota do barco arcônida foram armazenados. O próximo salto será realizado dentro de...

 

                                                                                            Clark Darlton

 

                      

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