Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
Céu sem Estrelas
Seres invisíveis atacam o planeta sem sol...
Com o descobrimento na Lua de uma espaçonave arcônida acidentada, foram lançados os alicerces para a unificação de toda a Humanidade terrana e, desta unificação, surgiu o Império Solar. Ninguém podia supor, nem mesmo Perry Rhodan, quantos esforços e firmeza de ânimo seriam necessários, no correr dos anos, para manter este Império frente aos ataques internos e externos.
A mais séria ameaça à Humanidade, que teve seu clímax na invasão dos druufs e na batalha em defesa do Império Solar, pôde ser debelada graças ao eficaz auxílio de Árcon. E a crise na política interna, provocada pelo desertor e traidor Thomas Cardif, foi removida por Gucky.
Porém, um desenvolvimento constante da Humanidade só será possível quando houver uma paz definitiva na Galáxia — e até lá, parece haver ainda um longo caminho...
O próprio Atlan, o imortal, que há pouco tempo substituiu a gigantesca máquina eletrônica que costumava sufocar no nascedouro, com suas frotas robotizadas, qualquer tentativa de revolução contra o poder central de Árcon, é o primeiro a desejar a paz.
Atlan, agora com o nome de Imperador Gonozal VIII e Perry Rhodan, o administrador do Império Solar, já por simples instinto de conservação, se apóiam mutuamente em suas aspirações.
Não faz muito tempo, foi assinado um pacto de assistência mútua entre Árcon e a Terra. Assim, as velozes espaçonaves do Império Solar estão preparadas para entrarem em ação em qualquer lugar da Galáxia, onde a paz e a ordem forem perturbadas.
Desta vez, Perry Rhodan e seus mutantes recebem um chamado telepático de extraordinária intensidade, vindo das amplidões do espaço. E com esse chamado tem início à viagem ao Céu sem Estrelas.
Cinco gigantescas e esféricas espaçonaves transportadoras pousaram em Árcon. Formaram um amplo pentágono no campo de pouso do terceiro mundo principal.
A espera, conforme sabia qualquer pessoa que possuísse um treinamento psicológico, era o melhor meio de amolecer e subjugar uma pessoa. E esse meio tornava-se mais eficaz, quando à espera se associava a incerteza.
Perry Rhodan e Atlan, o imperador do reino estelar dos arcônidas, encontraram-se na cantina de luxo da Drusus, que acabara de chegar a Árcon III. Se Rhodan não saiu de sua nave e pediu a Atlan que viesse ter com ele, o motivo disso não residia numa eventual desconfiança. Antes, o terrano estava interessado em voltar o quanto antes ao funil de descarga dos druufs que já se ia apagando, a fim de assistir às últimas fases da luta.
Atlan, que agora passara a ser o Imperador Gonozal VIII, foi ao encontro de Rhodan com as mãos estendidas. Em sua voz vibrava um tom extraordinariamente cordial, quando disse:
— Muito obrigado, amigo. Talvez tenha de creditá-lo pelo fato de o Império não ser destruído. Os cem mil arcônidas não degenerados me ajudarão a estabilizar a força de Árcon. Como foi isso?
Rhodan retribuiu o aperto de mão.
— Como foi...? Bem, houve dificuldades, conforme você já sabe. Depois de um período de nervosismo, encontramos a nave dos emigrantes arcônidas. Ela havia decolado há cerca de dez mil anos. Por obra do acaso, os antepassados que estavam hibernando foram despertados. Felizmente isso só aconteceu há duas semanas e alguns dias. Quando as gerações adormecidas acordaram, o caos estabeleceu-se a bordo da nave, cujos propulsores estavam falhando. De qualquer maneira, os arcônidas mais velhos, que tinham dormido dez mil anos e conservavam o vigor de antigamente, conseguiram assumir o comando. Nossa intervenção evitou o pior. Deixamos os antepassados adormecidos inconscientes por meio de um gás e os carregamos nas naves transportadoras enviadas por você. Apenas os dirigentes foram recolhidos à Drusus. Bem, acho que foi só isto. Atlan fitou Rhodan.
— Foi só isto. E você me conta essa façanha com simplicidade. Até parece que não existe nada mais importante. Acontece que Árcon está prestes a sofrer uma grande mudança. Cem mil arcônidas da velha estirpe, descendentes dos fundadores do Império, não estão degenerados e estão de plena posse de suas energias espirituais. Eles constituirão a base da evolução futura.
Rhodan limitou-se a dizer:
— Então você acha que eu lhe fiz um favor por ter encontrado os antepassados e os ter trazido até aqui?
Atlan sacudiu a cabeça, um tanto espantado.
— Por que faz essa pergunta? Você sabe tão bem quanto eu que sua ação talvez represente a salvação de Árcon. Estou convencido...
— Talvez minha pergunta não tenha sido bem formulada — interrompeu Rhodan. — O que quero dizer é mais que isso. Você acredita que cem mil arcônidas serão suficientes?
— São sempre cem mil arcônidas, Perry! Naturalmente é uma pena que nem todos tenham acordados, mas uma experiência deste tipo fatalmente há de acarretar certas perdas. Devemos dar-nos por satisfeitos por ter havido ao menos estes sobreviventes.
— Antes de mais nada é você quem deverá dar-se por satisfeito, se bem que o repentino aparecimento destas pessoas, que há muito se acreditava estarem mortas, possa trazer certos problemas. Basta citar um exemplo. Você acredita que os orgulhosos arcônidas o reconhecerão como imperador?
— Reconhecerão; não há dúvida! — disse Atlan em tom confiante. — À saída das naves transportadoras, serão recebidos por um exército de robôs. Uma esquadrilha de cruzadores e couraçados está voltando da zona de descarga e deverá pousar no espaçoporto. Não se preocupe, Perry. Providenciarei para que os antepassados se convençam do poderio que Árcon tem hoje. E ainda mantenho escondido um trunfo que nunca poderão superar.
— Você se refere...
— ...ao computador. O gigante positrônico foi construído depois da saída deles, mas não deixará de convencê-los. Afinal, foi o computador-regente que me empossou no cargo. Ele poderá atestar a qualquer momento que descendo diretamente dos primeiros imperadores. É bem verdade que também poderá atestar que tenho, talvez, mais idade do que o mais velho dos antepassados. São, por assim dizer, quase meus contemporâneos. Mas não posso revelar-lhes este fato, caso queira manter em segredo a minha imortalidade.
— Não precisam saber disso — observou Rhodan com um sorriso. — Pelo menos por enquanto.
Atlan soltou um suspiro de alívio.
— Acho que é suficiente que o computador mencione minha descendência direta. Depois disso os antepassados prestarão seu juramento de fidelidade, Perry! Então estarei preparado para investi-los em suas funções de responsabilidade. Bem, vou apresentar-me aos antepassados.
Rhodan levantou-se e comprimiu um botão situado embaixo da tela do intercomunicador. O rosto marcante de Baldur Sikermann apareceu na tela.
— Pois não!
— Acompanhado por Atlan, irei ver os antepassados. Está tudo preparado?
— Está, sim senhor. Acho que o Marechal Bell tomou todas as providências. Permita-me fazer uma observação, sir?
— Pois não, coronel.
— Na minha opinião o Marechal Bell está exagerando um pouco. Mandou postar
guardas de honra e dez robôs pesados terão de apresentar as armas, quando Atlan entrar no pavilhão. Além disso, ordenou que as sereias da Drusus funcionem por dez segundos, em todos os corredores e compartimentos da nave. Não me admirarei se ele mandar disparar uma salva energética.
— Não se preocupe, coronel. Posso garantir-lhe que isso não será feito. Quanto ao mais, parece que o senhor se esqueceu de que Atlan se tornou imperador de Árcon. Bem, o senhor sabe. Mas os antepassados ainda não. É por isso que estamos apresentando o espetáculo. De acordo?
— Sim senhor. Naturalmente estou de acordo. Apenas pensei...
— Está bem, Sikermann. Quer dizer que está tudo preparado? Pois mande uivar as sereias.
O rosto de Sikermann exprimiu certa perplexidade, antes de desaparecer da tela. O coronel era um oficial muito competente, mas não entendia muito da “diplomacia das baionetas” — ou não queria entender.
Rhodan e Atlan passaram entre duas fileiras de guardas de honra e entraram no pavilhão em que os dirigentes dos antepassados já os aguardavam. Os robôs fizeram continência. As sereias silenciaram no interior da nave.
Bell, que se encontrava em companhia dos antepassados, adiantou-se e ficou em posição de sentido.
Anunciou que as pessoas despertadas estavam prontas para cumprimentar o imperador.
Depois disso, Atlan passou ladeado por Rhodan à frente dos arcônidas, que há dez mil anos haviam iniciado uma viagem muito longa.
Era tudo muito solene e impressionante.
Em algum recanto do cérebro de Rhodan, ouviu-se uma risadinha telepática muito baixinha. Alguém parecia divertir-se a valer com o espetáculo diplomático. E era alguém que sabia ler os pensamentos de Rhodan, pois a risadinha “silenciou” imediatamente.
Rhodan resolveu que mais tarde falaria com Gucky e lhe pregaria um sermão.
Afinal, se os dirigentes arcônidas se convencessem do poder de Atlan, os demais que se encontravam nas cinco naves de transporte também teriam de convencer-se.
Os telepatas John Marshall, Betty Toufry, Ishy Matsu e o rato-castor Gucky estavam sentados na cantina da Drusus com mais alguns mutantes, a fim de passar o tempo até que chegasse o momento da decolagem, que seria realizada dentro em breve.
Como de costume, houve um duelo renhido de xadrez tridimensional entre John Marshall e Betty Toufry. Os outros ficaram fascinados com o jogo, que representava um espetáculo sem par. Sustentadas por campos antigravitacionais, as duzentas e cinqüenta e seis figuras levitavam no interior do cubo, que tinha o dobro desse número de campos cúbicos. As figuras podiam passar a planos diferentes e até sabiam saltar.
— É sua vez, Betty — piou Gucky e escorregou nervosamente de um lado para o outro da poltrona. — Agora está facílimo. Você poderá pôr fora de jogo ao menos um dos reis.
Afinal, o jogo tinha oito reis. Betty contemplou o cubo reluzente e acariciou o pêlo cor de ferrugem de Gucky.
— Ah, é? Então você acha que seria uma atitude inteligente conseguir uma vitória num dos planos e perder ao menos duas figuras? Sempre pensei que você fosse um enxadrista melhor, Gucky.
Na verdade, podia-se perder oito vezes em cada jogo. E havia necessidade de refletir oito vezes mais que no xadrez comum. Por isso não era de admirar que o xadrez tridimensional fosse quase exclusivamente um jogo dos mutantes.
Betty deu o lance. Comprimiu uma chave que se encontrava de seu lado. Uma das figuras desceu um plano e escorregou para outro campo.
John Marshall mergulhou em reflexões.
De repente Gucky levantou a cabeça. Olhou para a porta. Dali a alguns segundos, Rhodan entrou.
O administrador do Império Solar cumprimentou os mutantes com um gesto e tomou lugar numa das poltronas desocupadas que estavam colocadas ao acaso em torno do aparelho de xadrez. Ao que parecia, era por puro acaso que seu lugar ficava ao lado do de Gucky.
O rato-castor voltou a afundar na poltrona e passou a interessar-se exclusivamente pelo jogo.
— Você deveria ter assistido ao grande desfile — disse Rhodan em voz baixa. — Posso garantir-lhe que foi uma coisa impressionante. Faço qualquer aposta de que todos os cento e dez mil arcônidas prestarão o juramento de fidelidade a Atlan.
Gucky olhou para o teto.
— Ele deve isso a mim — disse. — Tomara que Atlan nunca se esqueça de que somos amigos.
— Ele nunca se esquecerá, pequenino. Atlan tem mais de terrano que de arcônida. Não pode haver nada que possa transformá-lo em nosso inimigo.
Rhodan nem desconfiava que estava enganado, mas o acontecimento que lhe faria compreender isso ainda se situava num futuro longínquo.
Ao que parecia, Gucky resolveu renunciar ao seu ceticismo e mudou de assunto. Com um olhar de esguelha, convenceu-se de que John Marshall estava prestes a perder a partida de xadrez que disputava com Betty Toufry. Depois dirigiu-se a Rhodan e disse:
— Quando decolaremos?
— Sikermann já transmitiu suas instruções. Daremos uma pequena volta antes de regressarmos à Terra. Quero fazer uma visita a certos planetas.
Gucky não parecia muito feliz.
— Sempre pensei que...
Não conseguiu prosseguir. Aconteceu uma coisa totalmente inesperada e inexplicável.
Rhodan, que ouvia perfeitamente as palavras de Gucky, de repente foi tomado por uma forte dor de cabeça. Uma mão invisível parecia comprimir seu cérebro para esmagá-lo. Num gesto instintivo pôs a mão na cabeça — ou melhor, quis pô-la. Mas seus membros estavam paralisados. Mal conseguia mexer-se.
Com Gucky e os outros telepatas aconteceu a mesma coisa.
— Perry Rhodan!
O pensamento desenhou-se de forma nítida e insistente no cérebro de todos. Vinha do nada e era tão intenso que chegava a doer. Nenhum dos mutantes seria capaz de pensar de forma tão avassaladora e sugestiva, a ponto de causar dores por via mental.
— Perry Rhodan!
Desta vez o pensamento foi ainda mais insistente e constritor. Parecia que seu autor ainda tateava no escuro, sem saber onde poderia encontrar Rhodan. Talvez, realmente fosse assim...
John Marshall soltou um gemido. Seu corpo amoleceu. Não suportara a dor e desmaiara. Ao que parecia, as duas moças eram mais resistentes. Pálidas e imóveis, continuavam sentadas nas poltronas. Em seus olhos muito arregalados via-se a expressão de espanto e de pavor infinitos.
— Perry Rhodan, responda!
Rhodan começou a desconfiar de alguma coisa. Em todo Universo só havia um ser que possuía faculdades telepáticas de tamanha intensidade. Mas esse ser encontrava-se a muitos milhares de anos-luz de Árcon.
Quando a dor no cérebro amainou por alguns segundos, arriscou um olhar para o lado. John Marshall estava deitado na poltrona. Parecia ter perdido os sentidos. Betty Toufry fitava o teto com os olhos muito arregalados, como se esperasse alguma coisa. Ishy Matsu parecia desamparada ao encontrar o olhar de Rhodan. Já Gucky mantinha os olhos fechados e “escutava” seu interior.
Antes que chegasse outra mensagem, Rhodan resolveu responder ao chamado. Mais uma mensagem telepática tão intensa quanto a primeira poderia produzir graves danos psíquicos, ao menos em John Marshall. Além de outras coisas, Rhodan compreendeu o poder de que dispunha o desconhecido. Era capaz de matar um homem que se encontrasse a milhares de anos-luz, desde que o quisesse.
— Percebi seu chamado, meu amigo — disse Rhodan em voz alta, pensando num planeta artificial, que àquela hora vagava pela amplidão do espaço, por entre as estrelas. — Por que teve de assustar-nos tanto?
Gucky, que continuava na poltrona ao lado de Rhodan, abriu instantaneamente os olhos. Neles surgiu um brilho de compreensão — e algo como uma mensagem tranqüilizadora. Fez um gesto de satisfação e voltou a mergulhar numa reflexão carregada de expectativa.
John Marshall começou a mexer-se. Gemeu baixinho e endireitou o corpo. Quando abriu os olhos, defrontou-se com um olhar de advertência de Rhodan.
— Proteja-se para amortecer os impulsos. Seu cérebro é muito sensível — recomendou Gucky em voz baixa.
Antes que Rhodan pudesse dizer qualquer coisa, chegou a resposta vinda do nada.
— Eu o espero, Perry Rhodan! Imediatamente!
Desta vez, o impulso não fora menos intenso. Porém não era dotado da insistência dolorosa de antes. Rhodan até teve a impressão de que o impulso mental encerrava algo de tranqüilizador. Naturalmente só podia ser sua imaginação.
— Onde você me espera? — perguntou Rhodan em meio à incerteza.
— Em Peregrino! É muito importante! Venha imediatamente!
Rhodan já sabia do que se tratava.
O ser invisível do planeta Peregrino chamava a ele, Perry Rhodan. E não o chamava por brincadeira. Na voz mental notava-se certa preocupação, até mesmo algum desespero. Será que mais uma vez se via em dificuldade, como já acontecera uma vez, por ocasião do ataque dos druufs?
— Indique a posição atual de Peregrino.
Rhodan achou que era boa idéia fazer essa pergunta. O planeta artificial não estava firmemente ancorado no espaço, mas seguia uma rota que o fazia cruzar o Universo em várias direções. Para apurar sua posição, Rhodan teria de consultar o grande centro de computação de Vênus. E isso representaria uma perda de tempo.
Esperou, mas o ser imortal e inacessível não respondeu mais. A voz vinda do nada silenciara.
Marshall recuperou-se a olhos vistos.
— A posição de Peregrino! — repetiu Rhodan, em tom mais insistente. — O que aconteceu?
Mais uma vez não houve resposta. O imortal deixara de reagir às mensagens.
Betty Toufry disse:
— Ele se retirou. Por que devemos ir a Peregrino? O que estará querendo de nós?
Ele — era assim que chamavam o ser incompreensível, que lhes conferira a imortalidade relativa, por meio da ducha celular do planeta Peregrino. Ele corporificava toda uma raça desaparecida, representava a condensação energética de sua inteligência e de sua substância espiritual imperecível. Haviam-no visto poucas vezes, e quando isso acontecia, só aparecia sob a forma de uma pequena esfera cintilante de energia.
E agora Ele — que por vezes costumava ser cognominado também de Aquilo — os chamara.
E isso, a uma distância superior a trinta mil anos-luz.
John Marshall compreendera a pergunta de Betty.
— É possível que ele queira comunicar-nos ou mostrar-nos uma coisa importante. De qualquer maneira, sinto-me satisfeito porque a dor passou. Foi horrível.
Tive a impressão de que uma massa incandescente penetrava em meu cérebro. Talvez minha sensibilidade por impulsos telepáticos seja grande demais, mas esta foi a primeira vez que isso representou uma desvantagem para mim.
— Estará precisando de auxílio? — Rhodan fitou Marshall, expressando dúvida e balançando ligeiramente a cabeça. — Não sei se foi um pedido de socorro. Parecia antes uma ordem. Apesar de tudo não sei o que pensar do pedido de comparecer no planeta Peregrino.
Gucky ergueu-se. Seus olhos inteligentes cintilavam.
— Não temos outra alternativa senão atender ao desejo do imortal. Vamos decolar?
Rhodan observou:
— Quanto a isso não existe a menor dúvida. O que podemos fazer é antecipar a partida. Infelizmente teremos de ir a Vênus, a fim de apurar a posição de Peregrino. Não existe outra possibilidade, a não ser que aquilo resolva ajudar-nos. E parece que não quer.
Levantou-se e foi ao intercomunicador. Acionou uma chave e entrou em contato com a sala de comando. Sikermann respondeu. Naquele momento mandava calcular a rota e as transições que se tornavam necessárias.
— Decole imediatamente, coronel. Os cálculos restantes poderão ser feitos em viagem. Irei logo até aí.
Sikermann confirmou. A tela apagou-se. Gucky soltou um suspiro.
— Mais uma vez nossas férias foram estragadas — disse em tom de decepção. — Sempre acontece um imprevisto. Bell ficará muito feliz quando souber.
Rhodan olhou para além de Gucky.
— Gostaria de saber o que aconteceu em Peregrino.
Todos gostariam de saber.
Bell recolhera-se ao seu camarote e fora dormir. O amigo e representante de Rhodan sabia que ainda faltavam algumas horas para a decolagem. Por isso teve uma surpresa ao sentir a vibração dos aparelhos que foram postos a funcionar. Olhou para o relógio e constatou que dormira menos de dez minutos.
— Caramba! — exclamou.
Saiu da cama de um salto e foi ao intercomunicador.
O Coronel Sikermann respondeu ao chamado.
— Por que estamos decolando, coronel? O que aconteceu?
— A decolagem foi antecipada, sir. Por ordem do chefe. É só o que eu sei.
— Bem. Vou verificar o que aconteceu. Obrigado, coronel.
Bell desligou e sentiu que as vibrações se tornavam mais intensas. Dentro de alguns segundos os propulsores começariam a funcionar. A Drusus aceleraria, sem qualquer pressão perceptível, e avançaria para o espaço.
Bell quase se esqueceu de vestir o uniforme, de tão pensativo que estava. Só no último instante deu-se conta de que ainda estava de pijama. Bem, isso representaria um achado para Gucky...!
Dali a cinco minutos, quando entrou na sala de comando, Árcon III estava reduzido a uma esfera reluzente. O sol entrava na tela de imagem pela direita.
Sikermann apenas se virou para o gorducho e, imediatamente, voltou a dedicar-se aos numerosos controles. Rhodan estava sentado numa poltrona e observava as telas.
— O que houve, Perry? Qual é o motivo da decolagem precipitada? — perguntou Bell.
Rhodan informou-o e concluiu:
— Infelizmente o imortal não nos forneceu a posição, motivo por que teremos de consultar o centro de computação de Vênus. Com isso perderemos quase um dia. Será que um ser onisciente pode esquecer alguma coisa?
Bell não soube responder, pois podia entender de tudo, menos onisciência.
De qualquer maneira, sentiu-se tranqüilizado. Mas ao mesmo tempo uma hesitação insinuou-se em sua mente. Não teve a menor hesitação em pronunciá-la:
— O incidente prova que o imortal sabe que pode alcançar-nos a qualquer momento, mas nunca sabe onde estamos. Isso não parece um paradoxo?
— Em absoluto, Bell. Uma coisa é certa: seu alcance telepático é ilimitado. Por outro lado, só consegue captar nossos pensamentos, se os concentramos sobre ele. Quando isso acontece, talvez possa determinar a distância e a direção. Agora, que pensamos intensamente nele, provavelmente já sabe que decolamos.
O Coronel Sikermann falou com a voz firme:
— A transição será realizada dentro de dez minutos.
Ninguém lhe deu atenção. A transição, ou seja, o salto pelo hiperespaço, era uma coisa tão normal como o movimento de quem comprime o acelerador de um automóvel. Os compensadores de pressão anulariam qualquer tipo de pressão. A dor da distorção, que surgia por ocasião da rematerialização, constituía-se no único sinal de que a pessoa percorrera alguns milhares de anos-luz num segundo.
— Acontece que não percebi nada da mensagem do imortal — ponderou Bell.
Sua voz até parecia um tanto ofendida. Rhodan fez um gesto de assentimento.
— Também já pensei nisso — confessou. — Os impulsos só foram captados pelos telepatas, nos quais causaram efeitos colaterais bastante desagradáveis. Provavelmente o cérebro dos telepatas é mais sensível. De qualquer maneira, o imortal deve ter feito sua transmissão de tal maneira que só os telepatas conseguiram captar a mensagem. Por certo teve um bom motivo para isso. Não queria que qualquer pessoa o ouvisse. Sabe que sou um telepata muito fraco, e que além de mim, existem bem poucos terranos que sabem ler os pensamentos. Portanto, sentiu haver uma possibilidade, por menor que esta fosse, de que o chamado atingisse o endereço certo. Além disso, suponho que, depois de ter recebido minha resposta, enfeixou seus impulsos. Ninguém os captou, com exceção dos telepatas que se encontram no interior da Drusus.
— A uma distância de trinta mil anos-luz, isso representa um ótimo desempenho — disse Bell com um elogio na voz. — E agora?
— Ainda saberemos em tempo o que ele quer de nós. Parece que precisa de nosso auxílio. É uma sensação bastante reconfortante sabermos que um ser imortal necessita de ajuda humana.
— Quem sabe o que aconteceu em Peregrino? — respondeu Bell.
A voz de Sikermann interrompeu a palestra:
— Faltam oito minutos para a transição.
Bell não deixou que seu raciocínio fosse interrompido.
— Quem sabe o que aconteceu em Peregrino? — repetiu e fitou a tela sem muito interesse.
Árcon já ficara bem menor. Naquele momento, a Drusus passava pelo anel de fortificações do Império, desenvolvendo três quartos da velocidade da luz. Os sinais de identificação foram irradiados automaticamente.
— Uma coisa é certa: o imortal precisa do nosso auxílio. Do contrário não se teria dirigido a nós. Afinal, nunca o fez dessa maneira. Logo, ele precisa do nosso auxílio. Resta saber por quê, e quanto a isso tenho uma idéia bem definida...
Infelizmente ninguém ficou sabendo qual era a idéia que Bell trazia em mente. Enquanto o gorducho falava, Rhodan estremeceu, como se um golpe doloroso, vindo do nada, o tivesse atingido na cabeça. Bell a princípio nada notou, pois contemplava a tela e ordenava os pensamentos. Mas quando proferiu a última frase, voltou a dirigir-se a Rhodan.
Estacou ao perceber a expressão do rosto do chefe.
Este fitou-o.
— O que houve? — perguntou Bell, em tom assustado. — Alguma coisa que vem de Peregrino?
Rhodan fez um gesto afirmativo, mas não respondeu.
— Faltam cinco minutos para a transição! — anunciou Sikermann, que não notara o incidente, já que dedicava sua atenção exclusivamente aos controles da nave.
Bell manteve-se em silêncio. Observava Rhodan, que continuava sentado em sua poltrona. Apenas se encolhera ligeiramente. Quase no mesmo instante, a porta abriu-se e John Marshall entrou apressadamente na sala de comando. Em meio ao costumeiro torvelinho no ar, o teleportador Gucky materializou-se e saltou para o sofá, que se encontrava ao lado da poltrona de Rhodan.
— Desta vez quase não me afetou — gaguejou Marshall, visivelmente espantado por não ter desmaiado. — O senhor também ouviu, sir?
— Sim, ouvi a nova mensagem. Espero que o senhor também se lembre dela, para que possamos estabelecer a comparação. A posição do planeta Peregrino foi repetida três vezes. Faça o favor de anotar, Coronel Sikermann: PB-ZH-97H. Certo?
— É exatamente isso — piou Gucky e encostou-se à parede.
Marshall também confirmou a indicação.
Sikermann parecia nervoso.
— A transição será realizada dentro de três minutos, sir? Ou há outras instruções?
— Há. Suspenda a transição. O senhor obterá novos dados — depois de dizer estas palavras, Rhodan dirigiu-se a Bell: — Foi uma ordem que acabou de chegar de Peregrino. Uma verdadeira ordem; não existe a menor dúvida.
— Uma ordem? Que ordem foi essa?
— Não devemos ir a Vênus, mas diretamente a Peregrino. E a posição do planeta artificial já nos foi fornecida.
— Tudo isso aconteceu enquanto eu estava falando?
— Marshall e Gucky também captaram a mensagem. Suponho que Betty e Ishy também estejam informadas. É estranho...
Rhodan hesitou. Bell fez uma pergunta:
— O que é estranho, Perry? A ordem?
— Não é tanto isso. É que a forma da comunicação, que só pode ser captada por telepatas, é extraordinária. Antigamente qualquer pessoa que se encontrasse a bordo da nave era capaz de captar as mensagens do imortal.
O Coronel Sikermann já suspendera a transição e introduzira os novos dados no computador de navegação. Instantes depois, as fitas com os novos cálculos de transição escorregaram para cima da mesa. O coronel pegou-as e as levou adiante. Depois de uns dois minutos anunciou:
— Nova transição pode ser realizada dentro de cinco minutos. Serão necessários quatro saltos para levar-nos ao destino. Distância...
— Está bem, coronel, não precisamos dos detalhes. Quanto tempo deveremos levar, incluídas as pausas intermediárias?
— Vinte horas, sir. Rhodan olhou para o relógio.
— Acorde-me daqui a noventa minutos. Estarei no meu camarote.
Bell seguiu-o com os olhos até que a porta se fechasse. Seu rosto exprimia certa perplexidade.
— Está muito lacônico hoje — constatou, cutucando Marshall. — Conte com todas as minúcias o que o imortal quer de nós. Qual foi mesmo a ordem que transmitiu? Não forneceu qualquer indicação sobre o que aconteceu?
Gucky, que continuava sobre o sofá, soltou uma risada borbulhante.
— Nosso amigo Bell não é nem um pouco curioso. Deveria ter-se tornado um telepata, em vez de espalhar insegurança pelos bares de Terrânia. Não lhe contaremos nada, não é, Marshall?
John Marshall hesitou.
— O que poderíamos contar, Gucky? Também não sabemos quase nada. A única coisa que sabemos é que devemos ir imediatamente a Peregrino, aquele misterioso mundo artificial que gira em torno de um centro desconhecido e leva milhões de anos para completar sua órbita. O que nos espera por lá? Será que Rhodan sabe?
— Ninguém sabe; infelizmente — disse Gucky e enrodilhou-se.
Sem dizer uma palavra, Bell saiu da sala de comando. Parecia contrariado.
Antes da quarta e última transição, Rhodan entrou na sala de comando. Os últimos preparativos estavam em andamento. Faltavam poucos segundos. Um único pensamento dominava os homens: “Será que desta vez dará certo? Não erraremos Peregrino, como aconteceu daquela vez?”
No momento em que o Universo desapareceu do lado de fora e voltava a formar-se de novo, o rosto de Rhodan parecia uma máscara. Naquele segundo a Drusus percorreu mais de cinco mil anos-luz.
As estrelas reapareceram, frias e indiferentes. Mas cada uma delas era a mãe de toda vida existente em seus planetas. Rhodan não conhecia as constelações, mas logo viu Peregrino.
O planeta artificial, formado por uma lâmina achatada com uma abóbada energética em forma de semi-esfera por cima, existia em outro espaço e outro tempo. Só se podia determinar sua posição com o novo aparelho de localização no tempo. Tal qual no radar, os raios refletidos se desenhavam numa tela especial.
— As coordenadas estavam certas — constatou Sikermann. — Parece que tudo está em ordem.
— Ao menos Peregrino ainda existe — Rhodan parecia sentir-se muito aliviado. — Vamos seguir em sua direção, coronel. Qual é a distância?
Sikermann olhou para os instrumentos.
— Doze minutos-luz, sir. A Drusus já está desacelerando.
Quando Rhodan ia dar-lhe as costas, Sikermann disse:
— Os propulsores, sir! Eles se desligaram. Não fiz...
Rhodan parou.
— Isso não tem nada de extraordinário, se considerarmos que estamos sendo esperados. O imortal quer poupar-nos o trabalho do pouso. Pode desligar os propulsores. Acho que não precisaremos mais deles. E não se preocupe. Daqui em diante alguém pensará por nós.
Bell entrou na sala de comando. Ao que parecia, dormira durante a última transição. Lançou um olhar sobre as telas para orientar-se.
— Ah! — disse com uma voz que não admitia qualquer dúvida. — Estamos chegando.
— Achamo-nos muito mais próximos do que pensa — confirmou Rhodan e explicou que a Drusus já estava sendo teleguiada. Depois acrescentou: — Apenas me admiro de que ele não tenha podido buscar-nos em Árcon. Será que também já está sujeito a limites?
Aguçaram instintivamente os ouvidos, mas o imortal não esboçou a menor reação.
— Pois bem — disse Bell em tom bonachão. — Afinal, uns trinta mil anos-luz já são uma boa distância. Provavelmente ele não pôde realizar tal feito...
— Que feito ele não pôde realizar? — perguntou alguém com um pio atrás de Bell.
Bell virou-se abruptamente e fitou Gucky com os olhos estupefatos. O rato-castor aparecera de repente. Ninguém o vira chegar. Para um teleportador, isso não representava nenhum milagre. Gucky simplesmente materializara-se no interior da sala de comando.
— Será que você nunca poderá deixar de assustar pessoas inocentes? — gritou Bell em tom furioso. — Qualquer teleportador que tivesse um pouquinho de decência deveria anunciar-se com uma nuvem de enxofre.
— Perguntei o que ele não pôde realizar. Então?
O fato de Gucky não reagir ao protesto de Bell era tão extraordinário que até Rhodan ficou desconfiado. Virou-se e examinou atentamente o rato-castor, mas não notou-lhe nada de estranho.
— Seu atrevido! — exclamou Bell em tom indignado.
— Seu monte de gordura! — soou a resposta.
E ao mesmo tempo aconteceu uma coisa completamente impossível.
Gucky materializou-se a um metro de Gucky!
Houve um pequeno torvelinho, quase invisível, no ar, e o rato-castor surgiu do nada. A visão dos dois ratos-castores, que se pareciam nos mínimos detalhes, era tão espantosa que Bell recuou apavorado até esbarrar numa poltrona.
— O quê... o quê...? — gaguejou com o rosto pálido como cera.
Olhava ora para um, ora para o outro Gucky. Acabou ficando sem fala.
Rhodan raciocinou com rapidez e lógica. Por ocasião do surgimento do segundo Gucky, vira o torvelinho no ar. Mas quando apareceu o primeiro, não. Além disso, notou um espanto enorme no rosto do rato-castor que aparecera por último. O verdadeiro Gucky estava tão assustado com seu sósia, que não conseguia dizer uma palavra. Fitou seu irmão gêmeo com os olhos arregalados e o queixo caído.
— Bem-vindo a bordo da Drusus, velho amigo — disse Rhodan, fazendo uma ligeira mesura em direção ao primeiro Gucky, que evidentemente não passava de uma materialização mental do ser imortal. — Bem que você poderia ter escolhido outra figura.
— Acredito que seu amigo Bell teria preferido a Rallas, mas infelizmente a grande artista terrana morreu há muito tempo. Aliás, isso não seria nenhum obstáculo. Mas vou responder à sua pergunta. Não sou onipotente, Perry Rhodan. Não foi fácil encontrá-lo. O fato é que você chegou, e sinto-me muito feliz com isso. Você terá de ajudar-me.
— Ajudá-lo? — Rhodan não disfarçou o espanto. — Como poderia eu ajudar a você, que é um ser imortal?
Rhodan achou estranho ter de falar dessa forma com a imagem perfeita de Gucky, que continuava paralisado, profundamente abalado. Ia compreendendo aos poucos que o imortal se permitira uma brincadeira com ele e com Bell.
— Você ainda saberá, amigo.
O sósia de Gucky sorriu, exibindo uma imitação perfeita do tristemente famoso dente roedor.
— Você irá à minha presença, acompanhado por este sujeitinho e por Wuriu Sengu, assim que a nave pousar em Peregrino. Há uma tarefa à sua frente, Rhodan. Não será fácil cumpri-la; mas você conseguirá.
Gucky começou a recuperar-se.
A primeira coisa que fez foi fechar a boca. O dente roedor desapareceu. Depois respirou profundamente. Concentrou as energias mentais e disse:
— Não falta nem a parte sem pêlo da cauda! — sua voz exprimia admiração. — Certa vez aproximei-me demais de um fogão elétrico. É incompreensível...
O sósia acenou a cabeça da forma que era característica em Gucky.
— Eu o copiei exatamente, amiguinho. É claro que também poderia ter escolhido Bell, mas isso teria sido mais cansativo, pois exigiria maior quantidade de matéria. E preciso poupar minhas forças.
— Poupar suas forças? — perguntou Rhodan em tom curioso. — Está havendo outros problemas?
— Não, mas o semi-espaço...
Rhodan compreendeu. Para o imortal, apenas se haviam passado alguns segundos ou minutos desde o início da aventura em que estava pensando. E já fazia mais de dois anos que haviam passado pela mesma.
— O que posso fazer por você?
— Deixemos isso para mais tarde — respondeu o imortal que assumira a figura de Gucky. — Você ainda saberá em tempo. Dentro de dez minutos de sua contagem de tempo, a Drusus atingirá a abóbada energética. A nave será ancorada. Depois virei buscar seus dois companheiros e você.
— Por que quer justamente Sengu, o espia?
— Nada acontece neste Universo sem um motivo — respondeu o falso rato-castor, e desapareceu.
Gucky olhou para o lugar em que estivera seu sósia. Sua voz fina tremia ligeiramente, quando disse:
— Fui eu mesmo; não existe a menor dúvida! Cada pêlo era legítimo. É incrível! Será que ele sabe copiar qualquer ser vivo? Isso é materialização de pensamento.
Balançou a cabeça e dirigiu-se a Bell.
— Você não pode deixar de reconhecer que eu sou bonito. Poderia passar algumas horas olhando para mim.
Bell pigarreou.
— Seria horrível o imortal ter deixado sua imagem por aqui. Neste caso teríamos dois seres do seu tipo a bordo da Drusus. E eu nunca resistiria a uma coisa dessas.
O Coronel Sikermann, que enfrentara o incidente com uma calma admirável, livrou Gucky da obrigação de responder.
— Aproximamo-nos de Peregrino. Nossa velocidade diminuiu bastante. Ainda não se vê nada, mas se os instrumentos não nos enganam, devemos tocar a qualquer instante na abóbada energética.
Mal acabou de pronunciar estas palavras, um ligeiro solavanco sacudiu a nave. No mesmo instante, todos os indicadores das escalas desceram para a posição zero. A tela do localizador especial tornou-se negra. Enquanto isso as telas normais mostravam as estrelas do Universo em todas as direções.
— Vá buscar Sengu — pediu Rhodan, dirigindo-se a Gucky.
Depois que o rato-castor saiu da sala de comando, prosseguiu:
— Não sei o que acontecerá agora, mas devemos confiar nele. Coronel Sikermann, o senhor pode ter certeza de que a Drusus permanecerá no espaço em posição estacionaria em relação a Peregrino. Basta esperar até que eu volte. Ignoro quando isso acontecerá. Bell, você infelizmente terá de ficar aqui. O imortal quer que seja assim.
— Ele não gosta de mim — disse Bell, em tom de decepção.
Porém tal decepção não parecia muito sincera, pois o amigo de Rhodan não conseguiu disfarçar a alegria. Sentia-se aliviado por poder ficar na Drusus.
Perry sorriu como quem compreende.
— Não acredito que ele se deixe levar pelos sentimentos, embora os tenha. Gucky possui um dom parapsicológico triplo, motivo por que reúne condições especiais para dominar as situações difíceis, e proteger-me em caso de perigo. Sengu é um espia. Pode enxergar através da matéria compacta. Esta circunstância leva-me a supor que ele me reserva uma tarefa que não deverá ser cumprida em Peregrino, pois neste planeta não haveria necessidade de um espia. Portanto, tudo não passa do mais puro pragmatismo. Está satisfeito, gorducho?
Bell limitou-se a confirmar com um gesto. Não se sentia muito à vontade. Não teve tempo para refletir sobre o problema, pois, nesse instante, Gucky entrou na sala de comando, ao lado de Wuriu Sengu, o japonês. A ducha celular mantivera-o jovem. Seu corpo maciço era a expressão da força, e os cabelos curtos se pareciam com as cerdas vermelhas de Bell. E esta era a única semelhança entre os dois. Os olhos de Sengu não revelavam muito sobre suas capacidades, mas neles brilhava algo da qualidade atemporal que constitui uma característica de todas as pessoas relativamente imortais. E tratava-se de olhos para os quais não existia qualquer obstáculo material. Enxergavam através de qualquer coisa.
— Acho que devemos dirigir-nos à comporta principal — disse Rhodan. — Ele nos irá buscar lá, ou mandará buscar-nos. Vamos vestir o traje espacial leve, para qualquer eventualidade... Você também, Gucky.
Parou na porta.
— Se possível, permaneceremos em contato. Não sei se o telecomunicador funcionará. Não se preocupem caso não tenham notícias nossas. Estaremos em boas mãos.
Calados, Sikermann e Bell seguiram-nos com os olhos.
Os trajes espaciais eram guardados no interior da comporta. Escolheram os tipos mais leves, que não eram tão resistentes como os outros. Entretanto um complicado aparelho, produto da micro mecânica, regulava a temperatura e renovava o ar, dando ao traje confortabilidade.
Gucky possuía um traje especialmente talhado. Enfiou-se no mesmo e não deu a menor atenção ao sorriso do japonês, enquanto se esforçava para encontrar o buraco situado na parte traseira. Tal abertura servia para acolher seu rabo de castor, que muitas vezes o embaraçava. O traje, feito segundo o princípio de um traje de mergulhador, compunha-se de uma única peça. O rabo de castor de Gucky encontrava-se numa espécie de bolsa, onde estava protegido contra todas as influências nocivas.
Oferecia um quadro engraçado e sabia disso.
— Perry Rhodan!
Os três “ouviram” a voz. O significado das palavras formou-se diretamente em seus cérebros. Até parecia que aquilo se encontrava próximo a eles.
— Estamos esperando na comporta. O que devemos fazer?
— Saiam!
Rhodan comprimiu um botão que punha em funcionamento o sistema de intercomunicação. O rosto preocupado de Sikermann apareceu na pequena tela embutida na parede.
— Pois não.
— Abra a comporta principal e volte a fechá-la, assim que tivermos saído da nave.
— Está bem, sir.
A voz não era tão segura como costumava ser. Evidentemente o coronel estava preocupado. Mas não fez perguntas supérfluas.
Os dois homens e o rato-castor viram mãos invisíveis selar a escotilha interna. Depois o ar começou a ser aspirado. Assim que a pressão baixou suficientemente, os aparelhos correspondentes dos trajes espaciais entraram em ação. O transmissor ligou-se automaticamente, para possibilitar a comunicação.
Quando todo o ar no interior da comporta foi aspirado a escotilha externa abriu-se.
Rhodan avançou até o limiar e parou. Esperou até que Sengu e Gucky se encontrassem a seu lado. Enquanto aguardavam as instruções do imortal, mantiveram-se em silêncio.
Tinham diante de si o Universo. Por cima de um abismo infinito, miríades de estrelas brilhavam num esplendor total. Quase todas possuíam planetas, mais poucos deles eram habitados. Apenas sua quantidade era suficiente para fazer com que qualquer idéia que concebesse a solidão dos cosmos parecesse absurda.
Peregrino deveria ficar em algum lugar. Rhodan procurou em vão por um sinal da presença do planeta artificial. Bem embaixo de seus pés, viu uma nebulosa em espiral entre as estrelas. Esta podia ficar a dois ou a cinco milhões de anos-luz. Era uma via láctea igual àquela à qual pertenciam, e da qual só conheciam uma parte diminuta. Qual era realmente o tamanho do Universo?
— Saiam da comporta!
A ordem veio de repente e sem o menor aviso. Sengu e Gucky lançaram um olhar de dúvida para Rhodan. Depois olharam para a eternidade borbulhante.
Rhodan fez um sinal e empurrou-se. A reduzida força gravitacional da Drusus libertou-o imediatamente, e Rhodan flutuou em meio à profusão de estrelas. Gucky seguiu-o, arrastando Sengu, a fim de facilitar-lhe a decisão. Numa reação instantânea o rato-castor calculara seu impulso de forma a alcançar lentamente o chefe. A uns trezentos metros da nave, os três se encontraram e seguraram-se uns nos outros. Já estava na hora de o imortal acolhê-los.
Até parecia que este ouvira seu desejo, já que “disse”:
— Irei buscá-los agora. Dentro de alguns segundos vocês romperão a abóbada energética. Depois disso poderão ver meu planeta.
Desta vez a mensagem era tão clara que não se distinguia da palavra falada.
De repente, a Drusus parecia acelerar. Seu tamanho diminuía rapidamente. Mas isso não passava de mera ilusão. Na verdade os corpos de Rhodan, Sengu e Gucky acompanharam um campo gravitacional que se formou imediatamente. Voltara a haver o lado de cima e um lado de baixo...
De repente romperam a cobertura energética neutralizada.
De um instante para outro todo o Universo modificou-se.
O sol começou a brilhar. Não era um sol natural, mas uma estrela artificial, feita especialmente para Peregrino. Ficava bem no centro do céu energético e iluminava a paisagem ondulada de um mundo que parecia o sonho materializado de um idealista. Rios azuis serpeavam entre florestas e colinas, correndo em direção a um mar distante.
Os três caíram lentamente para a superfície de Peregrino. De repente o ângulo da queda foi reduzido, e, depois de algum tempo, passaram a voar paralelamente à planície infinita com o horizonte amplo.
Depois de algum tempo avistaram a cidade.
Rhodan sabia que esta não era habitada por verdadeiros seres vivos, mas apenas pelas fantasias materializadas pelo imortal. Porém era possível que desta vez estivesse vazia. Alguns edifícios estavam modificados. Aliás, Rhodan teve a impressão de que em Peregrino nada era como antes. Aquele mundo do sonho estava sujeito incessantemente às mudanças nas concepções e nos desejos de seu criador.
Ainda planavam a pequena altura sobre as colinas e aproximaram-se da cidade. Depois voltaram a descer. Aterrissaram num campo amplo, junto à cidade. No mesmo instante, a mão invisível do imortal os soltou, e os três recuperaram seu peso natural. Rhodan calculou que a gravitação devia corresponder aproximadamente à da Terra.
— Perry Rhodan!
Estremeceram de susto e olharam para trás. De início não viram ninguém. Mas depois de algum tempo, Rhodan reconheceu uma pequena esfera, quase transparente, de uns dez centímetros de diâmetro, que se destacava contra o céu límpido. Lembrava Harno, o ser televisor. Porém Harno encontrava-se na Terra, em companhia do Marechal Freyt, que se mantinha constantemente informado sobre o paradeiro de Rhodan.
— Assumi esta figura porque é fácil de ser mantida e formada. Minhas energias são limitadas. Siga-me, Perry Rhodan. Mande seus amigos esperarem aqui.
Rhodan fez um sinal para Sengu e Gucky, e acompanhou a esfera, que flutuava a pequena altura, bem à sua frente, dirigindo-se ao edifício encimado por uma cúpula. Esta lembrava longinquamente o pavilhão do fisiotron.
— Devo confessar que já começo a ficar curioso — disse com certa ironia na voz, mas sem a menor tonalidade ofensiva. — Por que tanto segredo?
— Só aquilo que a gente não sabe parece misterioso, meu amigo — foi a resposta, da qual Rhodan não poderia dizer se foi falada ou apenas pensada.
De qualquer maneira “ouvira” a voz do ser incompreensível com tamanha nitidez que até parecia que o mesmo se encontrava a seu lado, em carne e osso.
— Direi tudo que sei. Mas se soubesse tudo, não precisaria incomodá-lo. No Universo acontecem coisas para as quais não existem nenhuma explicação lógica. Você tem de ajudar-me a encontrá-las.
— No Universo? — perguntou Rhodan, enquanto um amplo portão se abria à sua frente.
A esfera flutuou para dentro do recinto situado atrás do tal portão. Rhodan seguiu-a e penetrou no pavilhão.
— Será que você não se refere apenas à Galáxia?
Acima deles, a cúpula brilhava numa luz prateada. O pavilhão estava vazio. Depois de algum tempo, Rhodan percebeu que no centro deste havia uma única poltrona, bem embaixo da fonte de luz difusa. A esfera energética, que era a corporificação do imortal, flutuou em direção à poltrona e parou no ar, bem em frente da mesma.
— Estou aludindo ao Universo — disse ele com sua voz silenciosa, mas insistente. — Sente, Perry Rhodan! Preciso falar com você.
Rhodan obedeceu. A poltrona era larga e imediatamente assumiu a posição que era mais confortável para ele. Até parecia que estava viva e reagia ao menor movimento do corpo.
— Você providencia para que a palestra não seja muito cansativa para mim. Mas o que houve com você? A forma esférica tem alguma vantagem?
— Ela tem todas as vantagens existentes, amigo. Foi por isso que eu a escolhi.
Rhodan lembrou-se de que em certa oportunidade Harno lhe dissera algo semelhante.
— Preciso poupar minhas forças — prosseguiu. — Estou muito debilitado. Foi por puro acaso que soube da existência do perigo tremendo que nos cerca. Não me pergunte pela natureza desse perigo, pois não saberia o que responder. Só sei de uma coisa: os barcônidas já parecem ter sucumbido ao mesmo.
— Os barcônidas?
Rhodan teve a impressão de sofrer um choque elétrico. Os barcônidas!
Daquela vez em que o imortal o levara numa excursão ao infinito, tudo parecera um sonho. Tomaram uma nave que desenvolvia bilhões de vezes a velocidade da luz e avançaram por entre as galáxias. Encontraram os barcônidas e salvaram-nos da destruição fatal. E agora...
— Os barcônidas sucumbiram a um perigo desconhecido? — disse Rhodan, repetindo a suposição do imortal. — Como é que você pode saber disso, se nem sequer tem um conhecimento exato desse perigo?
— Não me pergunte pelos meus meios de observação, pois você nunca seria capaz de compreender sua natureza. De qualquer maneira, os impulsos mentais dos barcônidas cessaram. Dali se conclui que não podem possuir mais qualquer forma de consciência. E um ser vivo que não possui consciência está morto.
Rhodan contemplou a esfera cintilante. Quando imaginava que a mesma corporificava o ser mais poderoso e incompreensível de todos os tempos, achou que tudo isso era ainda mais fantástico.
— E seu planeta peregrino? Bárcon? O que houve com ele?
— Não tenho notícias dele, Rhodan. Sou capaz de encontrar um ser vivo e pensante, onde quer que ele se encontre. Mas um planeta...
— Quer dizer que você também perdeu Bárcon. Como é que nós poderíamos reencontrar Bárcon, se você o perdeu? Trata-se de um planeta solitário, sem sol, perdido nas amplidões infinitas do espaço intergaláctico.
— Vocês encontrarão Bárcon, pois eu lhes darei uma nave, Rhodan. Uma nave como nunca existiu igual. É tão veloz quanto você desejar. E na proa existe um instrumento de localização que automaticamente passa a funcionar no espaço situado entre as galáxias. É ele que vai encontrar o planeta solitário que vagueia entre as mesmas. Embora eu não saiba onde se encontra Bárcon, a nave o achará.
— E se nós nos perdermos no infinito? — ponderou Rhodan.
Mas o imortal respondeu imediatamente.
— Eu não acabei de lhe dizer que sempre sou capaz de localizar um ser pensante? Seria capaz de descobrir a nave a qualquer momento, enquanto vocês viverem e pensarem. Por isso sua preocupação de perder-se no infinito é totalmente supérflua. Seus impulsos mentais só cessarão quando vocês estiverem mortos, e então nada mais importará.
— É verdade — confirmou Rhodan em tom tranqüilo. — Quer dizer que a nave será teleguiada?
— Só até certo ponto, meu caro. Eu a colocarei na rota aproximada e depois a libertarei. O instrumento de busca se ligará e corrigirá a rota de tal forma que vocês se dirigirão a Bárcon e pousarão nesse planeta. Dali em diante vocês dependerão exclusivamente da própria habilidade. Assim que tiverem descido da nave, ela partirá e esperará no espaço até que você a chame de volta. Mas não desperdice essa ordem, pois só a poderá dar uma vez. Depois que pousar, a nave terá de decolar dentro de dez minutos. Se não estiverem a bordo, deixará Bárcon sem vocês. Nunca se esqueça disso, Perry Rhodan.
Rhodan lançou um olhar pensativo para a esfera cintilante.
— É só o que você me pode dizer? Eu mesmo terei de verificar o que há de errado em Bárcon?
— Isso mesmo. E se possível você também deverá prestar auxílio. Espero que não seja tarde para isso. Não há mais nenhum impulso mental; estou preocupado. Não é possível que todos estejam mortos.
— Se for assim, qualquer auxílio chegará tarde. Mas permita uma pergunta. Naquela oportunidade, quando fomos a Bárcon e salvamos a experiência, a fim de evitar a destruição dos barcônidas, você já demonstrava uma simpatia toda especial por esse povo. Por que acontece isso? Você não costuma preocupar-se com o destino das inteligências que habitam a Via Láctea. Por que se interessa tanto pelos barcônidas? Existe algum motivo especial para isso?
O imortal respondeu:
— Os barcônidas são uma raça extraordinária sob todos os pontos de vista. Sua tentativa de conduzir um planeta através do mar do espaço infinito sem estrelas faz com que mereçam nossa simpatia.
Rhodan comentou:
— Sua resposta foi muito diplomática. Sei tanto quanto antes.
— Geralmente compete aos diplomatas conseguir isso.
No cérebro de Rhodan surgiu a impressão de uma alegre ironia, que logo foi substituída pela preocupação.
— Não vamos perder mais tempo, pois na situação em que nos encontramos não tenho o controle do caso. Do contrário seria fácil visitar os barcônidas no passado e afastar o futuro possivelmente fatal. Seus amigos o esperam, meu caro... e a nave.
A esfera parecia mudar de cor. Subiu lentamente em direção ao teto abaulado, cresceu e tornou-se mais transparente — e de repente desapareceu por completo.
Rhodan levantou-se da poltrona e caminhou em direção à entrada, que se abriu à sua frente. Antes de sair do pavilhão, virou-se mais uma vez.
A poltrona tinha desaparecido. O lugar em que se encontrara estava vazio.
O imortal não desperdiçava energia. Cada porção de matéria que criava com seu espírito imortal era energia. E, para não desperdiçá-la, voltava a transformar a matéria.
O portão fechou-se atrás dele.
Prosseguiu. À luz do sol artificial de Peregrino, reconheceu do lado de fora, onde Gucky e Sengu o esperavam, um cilindro brilhante. Tinha uns dez metros de comprimento e seu diâmetro era de três metros. A proa era ligeiramente arredondada e consistia em material transparente. A popa, pontuda. Uma pequena escotilha, que mal dava passagem a um homem, estava aberta. Atrás dela ficava uma pequena comporta.
Junto à nave, Rhodan reconheceu as figuras de Sengu e Gucky. Os dois mutantes pareciam indecisos, sem saber o que deveriam fazer.
Quando Rhodan chegou ao lugar em que se encontravam, Gucky disse:
— Primeiro ele coloca um sósia bem à frente do meu nariz e diverte-se porque levo um tremendo susto, e depois faz uma magia e cria uma navezinha, vinda do nada. De início pensei que fosse um teleportador que pretendia materializar-se, mas por fim acabou surgindo esta nave. O que vem a ser isto? Um presente?
— Conforme se queira encará-lo — respondeu Rhodan e passou a mão pelo metal frio e liso. — De qualquer maneira vamos entrar e fazer uma excursão. Depois explicarei tudo.
Gucky lançou-lhe um olhar desconfiado. Parecia ignorar os pensamentos de Rhodan.
— Vamos entrar? Aonde iremos?
— Para onde estão os barcônidas, baixinho. Estão em dificuldades, e ele quer que nós os ajudemos. Então; o que houve? Está com medo da nave-fantasma?
Gucky, que tirara o pequeno capacete de plástico, tal qual Rhodan e Sengu, sacudiu-se.
— Medo? — piou em tom de recriminação. — Não; não estou com medo. Talvez sinto um pouco de...
Sengu não fez nenhuma pergunta. Sabia que poderia entrar tranqüilamente na nave, se Rhodan o fizesse. E não demorou vinte segundos até que os três se encontrassem no seu interior. Enquanto a escotilha externa se fechava lentamente, a interna abriu-se. Passaram por um corredor estreito e chegaram à sala de comando, que era o único recinto para o qual havia um acesso. Ocupava mais de metade do espaço existente no interior da nave. Se o resto era ocupado pelo sistema de propulsão, este deveria ser de um tipo que Rhodan não conseguia imaginar.
A parte dianteira da sala de comando era transparente. Podia-se enxergar para todos os lados, exceto na direção da popa. Gucky soltou um assobio alegre, quando viu um sofá largo junto à porta que dava para a sala de comando. Tinha exatamente o aspecto do tipo de móvel de sua preferência. De um salto subiu para as almofadas macias e estendeu o corpo.
— É assim que eu gosto — disse, elogiando o trabalho do imortal. — Mais uma vez alguém adivinhou os meus desejos.
Rhodan e Sengu encontraram duas poltronas confortáveis à frente da lâmina semi-abaulada que fechava a proa. Quando sentaram nas mesmas, tiveram a impressão de se encontrarem ao ar livre. Não puderam constatar de que era feito o material invisível. Ao tato dava a impressão do vidro, mas parecia ser muito fino e de uma resistência inacreditável.
Sem que sentissem qualquer coisa, o campo e a cidade subitamente foram caindo para trás. Parecia que era o planeta Peregrino que se deslocava, e não eles. O horizonte baixo e redondo, como um círculo, foi-se ampliando. Antes que pudessem ver toda a lâmina do planeta, atravessaram a abóbada energética.
O terreno coberto de colinas, pequenos rios e vales amplos, desapareceu, cedendo lugar ao espaço cósmico. Naquele momento tornou-se evidente que Peregrino estava cercado por um campo de reflexão que tornava o planeta invisível para qualquer pessoa vinda de fora. Em vez do planeta, os três visitantes viram apenas as figuras frias e estranhas formadas pelas estrelas de um setor desconhecido da Via Láctea.
À sua direita, uma estrela luminosa passou rapidamente e desapareceu no sem-fim das profundezas que haviam surgido no lugar onde antes se encontrara o planeta artificial. Viram-na apenas pelo canto dos olhos, mas Rhodan a reconhecera.
— É a Drusus! Está reduzida a uma pequena mancha luminosa. Fica pelo menos a vinte quilômetros. Estamos acelerando.
Foi Wuriu Sengu, o japonês muito ponderado, que formulou a primeira objeção.
— Sir, estamos voando sem nenhum mapa estelar e não sabemos qual é o sistema de propulsão desta nave. Nem sequer sabemos qual é nosso destino. Dependemos inteiramente dos caprichos do imortal. E sabemos por experiência própria que ele gosta de brincadeiras rudes.
— Desta vez ele não está brincando, meu caro Sengu, pois não deve. Confiou-nos uma missão que lhe parece ser muito importante. Tenho certeza de que nesta pequena nave estamos tão seguros como no interior da Drusus. Talvez até mais seguros.
— Acontece que não se lembrou de que precisamos ser alimentados! — disse Gucky em tom de triunfo, mas com uma ligeira tristeza na voz. — Será que você acredita que ele também sabe criar estas coisas através do pensamento materializado?
— Acredito. Se você der uma olhada por aí, encontrará tudo de que precisamos para viver. Faço qualquer aposta.
Gucky escorregou imediatamente para baixo do sofá e pôs-se a revistar todos os cantos da nave. Rhodan deixou-o à vontade e voltou a dedicar-se à observação do espaço.
No caso, isso não era tão simples. Estava acostumado a determinar a rota e a velocidade das naves em que viajava e levá-las a um destino bem definido. Mas agora encontrava-se sentado na proa de uma minúscula nave, separado apenas por uma lâmina delgada do vácuo mortal, e tinha de confiar exclusivamente na capacidade do imortal. Além disso, não tinha a menor idéia das medidas de segurança que ele tomara para proteger sua vida e a de seus companheiros. Se tivesse esquecido qualquer detalhe...
Não havia aparelhos de rádio a bordo, nenhum controle. Pareciam prisioneiros no interior da cabina, quase inteiramente transparente, e eram levados e dirigidos por forças que, até mesmo para Rhodan, representavam um estonteante segredo.
— Olhe! — exclamou Sengu de repente, apontando para a frente. — O que é isso, sir? As estrelas...
Rhodan já vira o movimento pelo canto dos olhos.
O movimento das estrelas.
— Acabamos de ultrapassar a velocidade da luz — disse, procurando dominar o nervosismo. — É a primeira vez que passo por isto. Daquela vez em que visitei os barcônidas, também voei à velocidade superior à da luz. Porém o imortal estava comigo. Parecia antes um sonho. Mas desta vez...
— Se as estrelas se deslocam, devemos desenvolver várias vezes a velocidade da luz — disse Sengu em tom pensativo. — Será que assistiremos a efeitos colaterais? Um deslocamento do tempo? A massa infinita...?
— Não acredito que devamos preocupar-nos com isso. Esta nave... bem, acho que a expressão não é bem esta. Acredito antes que estejamos sentados no interior de um pensamento do imortal, transformado em matéria, que por sua vez está sendo impelido por um outro pensamento. É um fenômeno inconcebível, desde que se queira analisá-lo sob o ponto de vista científico. Não deveríamos quebrar a cabeça com isto, mas desfrutar o espetáculo. É uma pena que não tenhamos velocímetro. Seria interessante sabermos a velocidade do nosso vôo.
Durante a breve palestra, as estrelas tornaram-se cada vez mais velozes. As constelações sofriam deslocamentos. Modificaram-se e transformaram-se em estranhas figuras, nunca antes vistas. Os dois homens ainda notaram que as estrelas se tornavam cada vez mais raras no espaço que se estendia à sua frente.
Na direção da popa, os sóis pareciam comprimir-se e, instantes depois, formaram uma nuvem branca e reluzente, que só em alguns pontos era interrompida por manchas escuras.
— É realmente inconcebível! — piou Gucky ao voltar à sala de comando.
Não se referia ao espetáculo maravilhoso que os dois homens contemplavam, mudos e fascinados. As palavras proferidas a seguir davam prova evidente disso.
— Ele até se lembrou das cenouras.
Rhodan virou-se.
Gucky estava de pé à sua frente e segurava um molho de cenouras, que pareciam ter sido colhidas naquele instante. Na outra mão, algumas latas de conserva. Seu dente roedor brilhava de alegria.
— Aqui há carne para vocês... e uma lata de cerveja.
Rhodan olhou para Sengu.
— O senhor pensou em cerveja? — perguntou em tom alegre. — Quando?
— Agora mesmo, sir. Quando estávamos falando em comida.
— Era o que eu imaginava. Vejo que não estamos tão sós como acreditávamos. Ele está conosco, embora não nos dirija a palavra.
Ao fazer essa constatação, Rhodan ficou tranqüilo. Não podia deixar de confessar que a idéia de depender exclusivamente do acaso não lhe agradava muito.
— Aqui está sua cerveja, homem profano — disse Gucky e entregou a lata ao japonês. — Bem que deveria ter imaginado que foi você quem pensou numa coisa destas.
— Você receberá cenouras, e eu cerveja! — retrucou Sengu e pegou a lata.
Com um olhar de esguelha, Rhodan constatou que as conservas que Gucky colocara sobre o sofá eram de origem terrana... ou ao menos pareciam ser.
— Santo Deus! — disse Gucky de repente, quase sem fôlego, e saltou sobre os pés.
Chegou mesmo a deixar cair as cenouras.
— O que aconteceu com as estrelas? Será que estamos num carrossel?
Realmente era espantoso!
Nos últimos minutos, sua velocidade devia ter aumentado tanto que os anos-luz se tornavam uma insignificância. Era possível que estivessem percorrendo um ano-luz por segundo. Isso não seria possível com os meios técnicos normais, mas essa nave não era apenas um artefato técnico!
À sua direita e à sua esquerda, as estrelas transformavam-se em traços fugazes. E a cada minuto que passava seu número se tornava menor. Bem na linha de sua trajetória, havia uma mancha escura, quase circular. Suas bordas eram irregulares e formadas por estrelas que se mantinham imóveis no Universo. Isso acontecia porque a nave voava em sua direção. Quanto mais lateral fosse a posição de uma estrela, mais veloz era seu movimento. Bem à esquerda e à direita, ficavam reduzidas a traços luminosos.
No centro da abertura vazia e escura, havia uma manchinha clara. Rhodan a conhecia.
Era a nebulosa de Andrômeda!
Estavam chegando à periferia de sua Galáxia e aproximavam-se a uma velocidade inconcebível do gigantesco abismo que separava as duas galáxias vizinhas.
— Não estamos andando de carrossel, Gucky — disse Rhodan. — Pelo contrário. Estamos voando em linha reta, que nem um raio de luz, apenas muito mais depressa que este. Muitíssimo mais depressa! Um raio de luz se arrastaria lentamente atrás de nós. E as ondas de rádio também.
“O propulsor linear deve funcionar mais ou menos nesta base.
“O espaço com suas estrelas permanece visível aos nossos olhos; não mergulhamos no hiperespaço. Mas não sei se o sistema de propulsão linear nos permitirá alcançar a velocidade que agora estamos desenvolvendo. Quando a nave-protótipo estiver pronta, saberemos. Mas isso ainda pode demorar alguns decênios.”
Gucky abandonara o sofá e as cenouras. Muito pequeno, abalado pela visão direta da Eternidade, mantinha-se de pé junto à poltrona de Rhodan, contemplando o singular espetáculo das estrelas que desfilavam por ele.
— Quando fiz a primeira visita a Bárcon, foi quase a mesma coisa — disse Rhodan. — Apenas, daquela vez tínhamos uma verdadeira navezinha. Mas isto aqui até parece ser uma cápsula energética.
— Agora quase não se vê mais nenhuma estrela — disse Gucky, em tom queixoso. — São cada vez menos. O que acontecerá quando tivermos deixado para trás as últimas?
— Quando isso acontecer, estaremos no espaço intergaláctico, meu baixinho. Seremos uma partícula de pó no infinito entre as vias lácteas, um pinguinho num oceano. Não existe qualquer termo de comparação.
— Um universo sem estrelas... que espetáculo! — Wuriu Sengu não disfarçou o medo que o torturava. — Veremos um céu sem estrelas. Será um céu totalmente negro, sem a menor luz.
Rhodan olhou para a frente. Um ligeiro sorriso surgiu em seu rosto.
— Não, Sengu. Veremos luzes. A luz de bilhões de estrelas, concentradas numa partícula minúscula, que terá o aspecto de uma mancha confusa. Será uma galáxia desconhecida. E não veremos apenas uma galáxia, mas centenas delas. Sua luz leva milhões de anos para atingir-nos, às vezes até bilhões de anos. As distâncias, que delas nos separam, são inconcebíveis. Trata-se de aglomerações de estrelas idênticas à nossa Via Láctea. Por lá também devem existir seres inteligentes, que talvez estejam dirigindo seus instrumentos sobre nossa Galáxia. Mas apenas enxergam uma pequena mancha luminosa, formada por bilhões de sóis, que iluminam milhares de planetas habitados.
— O Universo é muito grande — disse Sengu, em tom compenetrado.
— É pena que só tenhamos esta palavra — observou Rhodan. — Ela nem de longe exprime o que queremos dizer. Um planeta é grande, um sol também. E também dizemos que o Universo é grande...
Mantiveram-se em silêncio e continuaram a observar. As últimas estrelas passaram a deslizar mais velozmente ao seu lado. Mergulharam no mar leitoso formado pela nuvem de luz branca que se estendia atrás da nave.
Apenas a distante nebulosa de Andrômeda continuava visível. Mantinha-se imóvel e imutável no centro da abertura negra, que ocupava mais que três quartos do campo de visão. Examinando melhor, via-se uma figura elíptica, que se tornava mais espessa no centro. Apesar da velocidade imensa da nave, essa linha não crescia.
— Nossa Via Láctea! — cochichou Sengu de repente, olhando para trás. — Meu Deus, esta é nossa Via Láctea...
Rhodan também virou a cabeça.
A gigantesca nuvem branca, formada por estrelas, encolheu rapidamente. A concentração de milhões de estrelas parecia cair num abismo sem fundo. Seu tamanho diminuía a olhos vistos.
— Estamos percorrendo mais de um ano-luz por segundo — disse Rhodan em tom comovido. Sua voz tremia ligeiramente.
Pousou a mão sobre o ombro do rato-castor, que raramente ficava quieto. Porém agora estava tão abalado com a visão que se lhe oferecia, que não conseguia pronunciar uma única palavra. Rhodan nunca vira seu amigo dessa forma.
— Acho que estamos sonhando — disse Sengu, falando tão baixo quanto antes. — Isso não pode ser verdade!
— Esta experiência se desenrola no limite entre o sonho e a realidade — respondeu Rhodan. — Mais tarde não saberemos dizer o que foi sonho e o que foi realidade. Uma coisa é certa: estamos aqui fisicamente e voamos através do Universo. Nossos olhos vêem aquilo que realmente acontece. Quer dizer que nossa experiência não é um verdadeiro sonho. Mas por outro lado...
Terminou num suspiro. Depois permaneceu calado.
Não se lembrou de nada que ainda pudesse ser dito.
Seus relógios avançaram três horas.
A Via Láctea a que pertenciam mergulhara no infinito. Transformara-se numa grande mancha leitosa, de bordas desfiadas. Viam-se nitidamente os braços das espirais, que penetravam no negrume do espaço vazio Em algum lugar, o sol do planeta Terra brilhava.
A nebulosa de Andrômeda estava praticamente inalterada. Apenas se aproximara um pouco.
De resto, o Universo estava vazio, com exceção de algumas nebulosas minúsculas, quase imperceptíveis. Era escuro e negro, solitário e sem vida.
A impressão atingia os dois homens e o rato-castor com a força de um pesadelo.
— Três horas! — disse Rhodan em certa oportunidade. — Calculo que neste tempo percorremos uma distância na qual a luz gastaria cem mil anos.
Esperou em vão que alguém respondesse. Três horas foram suficientes para transformar a Galáxia numa nebulosa, mas eram pouco para amainar o abalo que sacudia o coração de Sengu e Gucky.
Os minutos corriam lenta e pesadamente. Pingavam muito devagar no oceano do tempo, que parecia ter perdido seu significado.
De repente, Rhodan teve a impressão de que um tremor sacudia a pequena nave. A mancha formada pela nebulosa de Andrômeda deslocou-se para a direita e voltou a ficar imóvel. Houve um segundo abalo. Mais nada.
— A nave modificou a rota — disse Sengu.
Rhodan confirmou. Concluiu que só agora os instrumentos especiais mencionados pelo imortal haviam entrado em funcionamento. Há poucos segundos tinham descoberto o planeta peregrino chamado Bárcon, um mundo que há centenas de milênios se afastara da Via Láctea, junto com seu sol. Seus habitantes, os misteriosos barcônidas, iniciaram uma experiência arriscada, pois abandonaram seu sol, a fim de levar seu planeta de volta à Galáxia.
Isso acontecera há mais de sessenta anos do calendário terrano. Nesse tempo, o planeta peregrino não poderia ter ido muito longe. Talvez tivesse percorrido uns dez ou vinte anos-luz. Quem sabe...
A que distância estaria nesse momento?
Rhodan não teve meios de descobrir, ainda mais que não sabia exatamente a que velocidade corriam pelo nada sem estrelas.
O mais estranho era que não sentiam o menor cansaço, embora fizesse muito tempo que não dormiam. Sengu já esvaziara sua lata de cerveja e consumira uma refeição, ajudado por Rhodan. As cenouras de Gucky haviam diminuído; o feixe estava muito menor.
Mais trinta minutos se passaram. A visão do cosmos permaneceu inalterada; nem sequer chegaram a notar qualquer modificação de sua posição. Parecia que se mantinham imóveis em meio ao grande nada.
De repente Sengu disse:
— Ali na frente há alguma coisa...!
Rhodan esforçou-se para enxergar melhor.
O planeta aproximou-se da trajetória da nave. Era quase imperceptível, pois não recebia a luz de qualquer sol. Era negro como o espaço que o cercava — mas não totalmente negro. Um brilho cinzento muito apagado fixava seus contornos, e Rhodan percebeu com uma dor quase física que o planeta estava coberto de neve. Só graças ao elevado índice de reflexão, Bárcon se tornava visível ao olho humano.
O planeta aproximava-se rapidamente, mas a nave apenas percorria alguns quilômetros por segundo e continuava a desacelerar. Seguia diretamente para Bárcon.
Aos poucos, seus olhos se acostumaram à penumbra, que na verdade era formada apenas pelos reflexos de galáxias distantes — principalmente daquela a que pertenciam — que ficavam na linha da popa.
— Vamos pousar! — exclamou Gucky em tom exaltado, quando a nave descreveu uma curva e desceu em direção à superfície de Bárcon. — É tudo cinzento. O que será isso?
— É neve, Gucky! O sistema de aquecimento artificial que substitui o sol perdido parece ser menos forte do que se supunha. Os barcônidas abrigaram-se embaixo da superfície. Isso estava previsto. Mas a neve?
Calou-se. Sabia que a neve não fora prevista.
A nave pousou nas proximidades do equador, que não tinha nada a ver com qualquer sol ou calor. A neve era tão espessa quanto nos pólos. Talvez até fosse mais compacta, por causa do movimento de rotação. A nave pousou suavemente. Não aconteceu mais nada.
Rhodan contemplou a paisagem branquicenta, que parecia solitária e não apresentava o menor vestígio de vida. O deserto branco estendia-se até o horizonte distante, e sobre ele, o céu negro sem estrelas. As nebulosas leitosas das galáxias apareciam de forma um tanto confusa, provavelmente em virtude da atmosfera.
Da atmosfera...?
Na nave não havia qualquer instrumento por meio do qual se pudesse verificar a existência de atmosfera. Sabia-se que Bárcon já possuíra uma atmosfera respirável. Rhodan voltou a olhar para o céu. Em sua opinião, a nebulosa de Andrômeda não deveria aparecer com tamanha nitidez.
Será...?
Não; isso era pouco provável. Por que poderia ter acontecido uma coisa dessas? Os barcônidas haviam desenvolvido uma invejável tecnologia, que lhes permitia desprender seu planeta do campo de gravitação do respectivo sol e fazê-lo viajar em direção à Via Láctea. Sem dúvida também conseguiram evitar que sua atmosfera se desfizesse. O frio que reinava lá fora devia produzir a ilusão. A visão era mais nítida do que estavam acostumados na Terra.
— Receio que tenhamos de sair para o frio — disse Rhodan.
Sengu sobressaltou-se. Gucky colocou o capacete de plástico e disse em tom preocupado:
— Vou ligar o aquecimento. Ainda bem que colocamos os trajes espaciais.
Sengu seguiu o exemplo de Gucky. Rhodan também se sentia satisfeito por poder escapar ao frio, mas hesitou um pouco.
— Vamos levar as conservas que nos restam. Aqui temos uma sacola. Como será que ela veio parar na nave?
Ninguém sabia. Colocaram na sacola as poucas latas que lhes restavam e Sengu pegou-a. Rhodan pôs a mão no bolso do traje espacial, tirou o pequeno radiador e verificou sua carga. O japonês e Gucky também traziam uma arma energética.
— Vamos andando — disse Rhodan e fechou seu capacete.
O sistema gerador de ar logo entrou em funcionamento automaticamente. O dispositivo permitia a regulagem manual da temperatura.
Assim que entraram na comporta, a escotilha interna fechou-se. A externa abriu-se, quase no mesmo instante.
A sucção quase arrastou Gucky, que se encontrava à frente dos outros.
Bárcon não possuía mais atmosfera!
Naquele momento, Rhodan compreendeu que algo de terrível devia ter acontecido.
Sengu foi o último a saltar sobre a superfície de Bárcon. Afundou na neve até os tornozelos. Logo sentiu um frio agradável. Tiveram de modificar a regulagem da temperatura.
Rhodan olhou atentamente para os lados. Até onde a vista alcançava, estendia-se o imenso deserto de neve. Avançava até o horizonte distante, monótono e sem contornos definidos. Mal se reconhecia a linha em que a superfície do planeta e o céu se encontravam.
A Via Láctea, o lugar da partida, ficava pouco acima da linha do horizonte. Se ocupasse a posição do sol para marcar as horas do dia, estariam no fim da tarde. Os braços das espirais pareciam girar lentamente, mas claro que isso era apenas um jogo da imaginação. As outras ilhas do cosmos estavam reduzidas a frias manchas luminosas, que não assumiam a menor importância. Bárcon era um planeta sem luz e, ao que parecia, também se transformara num mundo sem esperança.
Rhodan olhou para o chão.
Em algum lugar, lá embaixo, deviam estar os barcônidas. Quando eles se retiraram para as profundezas do planeta, acreditavam que esta era a única possibilidade de resistir a uma longa viagem pelo nada.
— A nave!
A voz assustada de Gucky foi o primeiro som que se fez ouvir no interior dos capacetes, depois que haviam chegado a Bárcon. Rhodan virou-se abruptamente. O que viu — ou melhor, aquilo que não viu — deixou-o rígido de pavor.
A nave tinha desaparecido.
Felizmente lembrou-se das palavras do imortal. A qualquer momento poderia chamar a nave de volta, mas só poderia fazê-lo uma única vez. Quando chegasse, teriam de entrar na mesma e abandonar Bárcon.
“Em hipótese alguma”, pensou, “isso acontecerá antes que tenhamos certeza sobre o destino dos barcônidas.”
— Não se preocupe, Gucky. Podemos chamar a nave de volta assim que precisarmos dela. Há mais alguma coisa? Notou algo?
— Nada, Perry! Não estou captando nenhum impulso mental. Se quiser saber minha opinião, neste deserto de gelo não existe vivalma.
— Nem mesmo sob a superfície? Gucky fitou a neve que se amontoava a seus pés.
— Lá embaixo? De lá também não vem nenhum impulso.
Todo o ser de Rhodan se rebelava contra a idéia de admitir a morte de toda a população de um planeta. Só aceitaria tal catástrofe, se tivesse uma prova cabal disso. Será que a crosta do planeta era tão densa que não deixava os impulsos mentais chegarem ao cérebro sensível de Gucky?
— E o senhor, Sengu? O que está vendo?
O japonês também olhou para a neve. Rhodan sabia que seus olhos iam mais longe que os de qualquer outra pessoa. O olhar de Sengu avançou pela neve e pela rocha, penetrando no interior do planeta, metro por metro. A que distância chegou? Rhodan teve de confessar que não sabia qual era o alcance da capacidade de Sengu.
Alguns minutos de tensão se passaram.
Finalmente Sengu levantou a cabeça e fitou Rhodan.
— Nada, sir. Até uma profundidade de mil metros não existe absolutamente nada.
Rhodan sabia que o sistema propulsor do planeta ficava a cinco mil metros de profundidade. Mas antes de pedir a Sengu que prosseguisse em sua busca, queria examinar a superfície de Bárcon. Da nave, isso não fora possível. Além disso, seus olhos só agora se haviam acostumado à penumbra.
— Vamos saltar, Gucky. Em cada salto percorreremos cinqüenta quilômetros. Seguiremos para o leste.
Gucky soltou um suspiro e segurou os dois homens pelas mãos. Face ao contato físico teleportaria também Rhodan e Sengu. Teria de utilizar um volume muito maior de sua paraenergia, mas poderia agüentar isso por algum tempo.
Quando voltaram a materializar-se, a paisagem estava praticamente inalterada. Apenas a Via Láctea havia descido mais um pedacinho em direção à linha do horizonte.
— Aqui as coisas não parecem melhores — comentou Gucky e voltou a saltar.
Cem quilômetros.
Mil quilômetros.
Nada mudou. Vales, montanhas, planícies — tudo estava coberto por uma grossa camada de neve, formada pela precipitação da atmosfera de Bárcon. Sengu constatou que, em certos lugares, a espessura dessa camada chegava a cinqüenta metros, enquanto em outros lugares não ultrapassava dois ou três metros. Concluiu que ainda houvera tempestades, que cessaram com a rarefação progressiva da atmosfera.
A neve congelara-se, ficando dura que nem pedra. Só na superfície havia uma camada fina de neve mais fofa, que certamente se formara com as precipitações mais recentes.
Haviam dado a volta aproximadamente em torno da metade do planeta. Gucky esteve a ponto de iniciar outro salto, quando Sengu exclamou apressadamente:
— Impulsos de ondulações! São de natureza mecânica. Eu os sinto.
Rhodan nem sabia que Sengu também era capaz de constatar a presença de impulsos de ondulações. Quando foi perguntado a este respeito, o mutante explicou que, em virtude do processo de mutação por que havia passado, seus nervos óticos supersensíveis reagiam a esse tipo de impulso.
— O que quer dizer com ondas de natureza mecânica?
— São ondas causadas por máquinas. Mas estas não funcionam mais. Devem ser as últimas irradiações de conjuntos nucleares paralisados.
Se fosse assim, não poderia fazer muito tempo que as instalações de Bárcon deixaram de funcionar. Quem sabe se não havia alguns barcônidas vivos nos subterrâneos que esfriavam lentamente?
Rhodan pôs-se a refletir.
Ali estavam eles, sós e abandonados, num mundo sem vida, cujas aldeias e cidades foram soterradas pela neve. Ali em cima não encontrariam nada. Se ainda houvesse vida, esta já se teria retirado para as profundezas do planeta.
Ou para a capital...?
Rhodan procurou recordar.
— Gucky, vamos mudar de direção e aumentar a distância dos saltos. Siga quase exatamente na direção norte e salte três mil quilômetros de cada vez.
Mais uma vez não viram nada. Sengu não pôde constatar a presença de qualquer impulso produzido por ondulações. A seguir, três saltos. E depois... a grande cidade!
Rhodan reconheceu-a imediatamente pelos contornos que se destacavam nitidamente sob a neve. Alguns dos edifícios mais altos chegavam mesmo a sobressair por cima da mortalha branca, dando a quem os via a certeza de que ali ficava a antiga capital dos barcônidas.
Via de regra, a neve não era muito abundante. Sua profundidade média devia ser de cinco metros; num e noutro lugar talvez chegasse a dez metros. Quem caminhasse por uma das suas ruas teria a impressão de se encontrar numa povoação de mineradores de ouro dos Estados Unidos de dois séculos atrás. As grandes acumulações de neve e as construções solitárias, que pareciam muito baixas, lembravam o quadro que todos conheciam dos filmes estereotipados.
— Gucky?
— Nada, absolutamente nada. Aqui não vive mais ninguém.
Se o rato-castor não captava nenhum impulso mental, não havia por ali ninguém que pensasse. E qualquer ser vivo dotado de uma inteligência mediana pensava.
O negrume do nada estendia-se sobre a cidade morta. De repente não parecia só este planeta, mas todo o Universo que estava sem vida. Rhodan teve a impressão de que os únicos seres vivos eram ele, Sengu e Gucky.
— Sengu?
— Não sinto qualquer impulso, sir.
Rhodan foi tomado por um princípio de desespero. Por enquanto ainda resistia à perspectiva de executar com Gucky um salto às cegas para o subsolo do planeta. Tal procedimento encerrava um tremendo perigo. Evidentemente, depois de um salto de teleportação, só poderiam materializar-se num lugar em que não existisse outra matéria. Mas se caíssem num lugar onde já houvesse matéria, como a água ou a lava liquefeita.,.?
— A uns quinhentos quilômetros a oeste daqui fica a entrada principal do mundo subterrâneo. Já estive lá. Desse lugar sai um túnel que nos pode levar à central de comando dos propulsores e das outras instalações. Acho que é lá que se gera o ar e se produzem os alimentos.
Gucky segurou os dois homens pela mão.
— Vamos tentar. Aqui não perdemos nada.
Perdemos... era a palavra exata. Rhodan teve a impressão de que Gucky, sem querer, acertara em cheio. Bárcon parecia perdido... e com Bárcon os barcônidas.
O salto seguinte levou-os para outro deserto de neve, sem elevações ou outros marcos característicos. Só por ocasião do quarto salto, Rhodan hesitou um pouco. Lançou um olhar atento para o pico coberto de neve de uma montanha próxima, ocultando metade da Via Láctea, que voltara a surgir junto à linha do horizonte.
— Acho que foi aqui. Vamos nos aproximar da montanha, Gucky.
Materializaram-se ao pé da montanha solitária.
— O túnel desce obliquamente nesta montanha, até atingir a profundidade de cinco mil metros. Não está captando nenhum impulso mental, Gucky?
— Não; está tudo morto.
— Nem tudo!
Fora Sengu, que fitava o chão, com os olhos bem abertos. Parecia enxergar alguma coisa.
— Está captando impulsos?
— São quase imperceptíveis, sir, mas estão presentes. São idênticos aos que senti há pouco. Provêm de radiações evanescentes. Se ali embaixo existem máquinas, as mesmas foram desligadas. Mas sempre demora bastante até que os últimos resíduos nucleares tenham irradiado sua energia. Sabemos que a produção de combustível prossegue até o último instante. Depois de desligados os conjuntos, o remanescente deve ser irradiado, ou irradia-se por si. São estes os impulsos que consigo ver.
— O que mais está vendo?
— Ainda não me aprofundei bastante — disse o mutante, lembrando o fato de que só podia avançar para o fundo por camadas. — Cheguei a dois mil metros. Vejo corredores e túneis não iluminados. Não há nenhuma luz acesa, mas as instalações estão lá. Não vejo muita coisa, pois apesar da minha faculdade, dependo da luz refletida.
Rhodan logo reconheceu a dificuldade. Nem mesmo o espia conseguia ver sem luz.
— Será que poderia dar a Gucky os dados para o salto?
Sengu fez um gesto afirmativo, sem permitir que estas palavras o distraíssem.
— Isso deve ser possível. Mas... Não concluiu a frase.
— Cuidado! — gritou Gucky que, por ser um telepata, possuía uma sensibilidade mais intensa. — Alguém se aproxima!
Rhodan virou-se abruptamente e olhou na direção em que apontava o braço de Gucky. Não viu nada. Apenas o deserto de neve e o horizonte distante. Olhou em torno. Mas em nenhuma direção viu qualquer coisa que se movesse.
— Onde?
Gucky, que se sentia um pouco inseguro, baixou o braço.
— Será que posso enganar-me a tal ponto? Ali havia alguém! Não sei o que pensava, mas posso afirmar que pensou alguma coisa.
— Você, que é um telepata, pode analisar qualquer pensamento e identificar seu sentido — disse Rhodan em tom de espanto. — Será que desta vez não consegue?
— Foram apenas impulsos, sem sentido definido. Mas não eram amistosos. Senti isso sem identificá-los. Ali... voltaram! São mais fortes e mais próximos. Vêm em nossa direção...
Ao notar que os pêlos da nuca de Gucky se arrepiaram, Rhodan ficou surpreso. Sentiu-se preocupado. Era muito raro Gucky ter medo, mas quando isso acontecia, o perigo era tremendo.
Sengu desistira de romper o solo com o olhar. Encontrava-se ao lado de Rhodan, pronto para segurar a mão de Gucky no momento em que o chefe desse um sinal. Mas por enquanto não estava acontecendo nada.
Rhodan continuava a olhar fixamente na direção indicada por Gucky. Não viu nada.
— Deve estar bem perto — cochichou Gucky com a voz embaraçada. — E está pensando...
Rhodan também sentiu.
Alguma coisa penetrou cautelosamente em sua mente e passou a exercer uma pressão bem perceptível. A pressão foi-se transformando em dor que, embora fosse suportável, era desagradável porque não se podia fazer nada contra ela.
Alguém procurou apoderar-se de sua consciência.
Quem seria?
A superfície coberta de neve jazia intocada à sua frente. E o desconhecido devia estar bem ali, a poucos metros de distância. Era um ser invisível.
Mas não havia rastros na neve. Qualquer pessoa invisível teria deixado rastros na neve macia. Os olhos de Rhodan começaram a lacrimejar de tanto que se esforçou para descobrir alguma indicação. E a dor na cabeça aumentava.
— Faça uma tentativa telecinética! — disse, dirigindo-se a Gucky.
O rato-castor confirmou com um gesto. Concentrou-se sobre a matéria invisível que devia estar bem à sua frente — e desferiu seu golpe.
O golpe atingiu o vazio. A dor continuou.
Rhodan tateou em direção à arma energética, mas logo percebeu que seu propósito era absurdo. Não poderia atirar contra alguma coisa que não via. Ao menos por enquanto.
— Não consigo — disse Gucky em tom de desespero. — Mas acho que posso atingir o ser, ou a coisa, por via telepática. Meus pensamentos encontram uma resistência. A distância deve ser de uns dez metros; não é mais que isso.
Já era alguma coisa. Gucky conseguia determinar a direção e a distância. Infelizmente não conseguiu mais do que isso. Ao menos por enquanto.
— Você é capaz de determinar seu tamanho?
— Apenas sinto certa resistência em seus pensamentos; mais nada. Até parece que os pensamentos do desconhecido são a única coisa material que existe nele. Quanto ao corpo... não tem corpo no sentido que nós atribuímos ao termo.
Uma súbita suspeita surgiu na mente de Rhodan, mas ele logo abandonou-a. Não, em hipótese alguma podia tratar-se de um druuf. Estes só permaneciam invisíveis por pertencerem a outro plano temporal. Evidentemente isso não acontecia aqui.
Também recorreu à sua modesta capacidade telepática, e sentiu a resistência. Mas não foi capaz de sondar os impulsos mentais captados, muito menos de decifrá-los.
De repente, a dor no cérebro cessou.
Gucky manteve-se imóvel.
— Desistiu de seu ataque mental. Suas energias são mais fracas que as nossas. A tentativa de submeter-nos à sua vontade falhou.
— É apenas um?
Gucky não respondeu. Ao que parecia, ainda não pensara na possibilidade de ter diante de si mais de um inimigo. O pêlo da nuca voltara a alisar-se, mas a testa continuava enrugada.
— Não; são vários. Aproximam-se de todos os lados.
Ainda não se via nada, nenhum contorno, por mais apagado que fosse e nenhuma pista.
Rhodan fez um sinal para Sengu e segurou a mão de Gucky. O japonês segurou a outra mão.
— Assim que houver outro ataque, saltaremos.
Esperaram.
Mas não por muito tempo.
Subitamente um raio energético branco-azulado surgiu do nada e atingiu a neve bem à frente dos seus pés. Esta logo começou a derreter e volatilizou-se.
— Vamos! — exclamou Rhodan. Gucky calculara o salto de tal maneira que se materializaram a menos de um quilômetro. Encontravam-se em local um pouco mais elevado, no flanco da montanha. Viam perfeitamente o lugar em que estiveram pouco antes.
Um verdadeiro fogo de artifício rugia por lá. Os raios mortíferos vinham de todas as direções. Transformaram a neve num pequeno lago, que começou a ferver. O vapor de água logo desapareceu para todos os lados; parte dele logo se precipitou para o solo.
— Acreditam que também nos tornamos invisíveis — conjeturou Rhodan. Não tinha muita certeza do que estava dizendo. — E agora procuram destruir-nos.
No mesmo instante, os ataques cessaram. Os raios energéticos apagaram-se e não voltaram mais, O lago endureceu rapidamente. À distância em que se encontravam, parecia um olho de vidro que alguém tivesse perdido no deserto de neve.
Gucky concentrou-se.
— Agora vêm nesta direção — cochichou. — Não tenho certeza, mas acredito que sejam apenas uns cinco ou seis. Voltaram a pensar. Receio que também tenham localizado nossos impulsos mentais. Foi por isso que suspenderam o ataque.
— Se for assim, também devem estar quebrando a cabeça para descobrir como pudemos chegar aqui tão depressa — observou Rhodan com um tom de triunfo na voz. — São muito rápidos?
— Não — respondeu Gucky. — Um corredor comum desloca-se mais depressa que eles.
Olharam fixamente na direção do lago gelado. Era de lá que deviam vir e chegariam dentro de dois ou três minutos. Acontece que nada se movia na planície em declive. Não surgiu o menor torvelinho de neve, que desse notícia da investida dos perseguidores invisíveis.
Rhodan voltou a sentir os impulsos mentais dolorosos.
— Que criaturas serão estas? — perguntou num sopro. — São invisíveis e, ao que parece, imateriais. São telepatas, mas não conseguem interpretar nossos pensamentos, pois do contrário teriam sabido antecipadamente de nosso salto de teleportação. Pensam, mas não podemos fazer muita coisa com seus pensamentos. Não estabelecem contato, pois preferem lançar desde logo um ataque implacável. Procuram matar-nos!
— Sejam eles quem forem — murmurou Gucky em tom indignado — não sinto a menor simpatia por eles. Se conseguir pegar um deles... mas como é que se pode pegar alguém que não existe?
— Eles existem! — disse Rhodan em tom enfático. — Apenas existem de uma forma que nós não podemos conceber. A que distância estão?
Em vez de uma resposta houve o ataque.
O primeiro raio energético errou o alvo, e antes que viesse o segundo, Gucky teleportou-se. Desta vez afastou-se dez quilômetros, até o cume da montanha.
Encontravam-se sobre um pequeno platô gelado, que ficava a quatro mil metros acima da planície. O vácuo provocava um efeito agradável: a ausência de qualquer vento. Para Rhodan e seus companheiros era totalmente indiferente que se encontrassem na planície ou a quatro mil metros de altura.
O platô formava um quadrado, cujos lados mediam cerca de vinte metros. Era plano. Se os atacantes invisíveis quisessem persegui-los a pé, teriam uma tarefa dura pela frente. Ou será que possuíam aviões ou armas de grande alcance?
— Você ainda consegue captar seus pensamentos, Gucky?
A resposta não foi imediata. O rato-castor esforçou-se para localizar os estranhos impulsos. Depois de algum tempo balançou a cabeça.
— O alcance deles é muito reduzido. Como é possível uma coisa dessas?
Rhodan teve de confessar que não havia explicação para isso.
Na borda do platô estavam espalhadas algumas pedras grandes, cobertas com uma grossa camada de gelo. Estas formavam o cume propriamente dito da montanha. Uma das pedras tinha o formato de um banco muito largo.
Gucky não resistiu à tentação. Soltou as mãos dos companheiros e sentou-se cautelosamente sobre o banco.
— Aqui estamos nós, contemplando o mundo de gelo — disse com um suspiro de satisfação.
Rhodan não diminuiu a vigilância. Aqueles invisíveis haviam arruinado seus cálculos. De início contara, no seu íntimo, com a ocorrência de uma catástrofe técnica que tivesse vitimado os barcônidas. As máquinas poderiam ter falhado. Mas agora as coisas pareciam totalmente diferentes. Alguém — ou alguma coisa — viera do cosmos e apoderara-se deste mundo. Do cosmos? De onde...? Será que havia criaturas que conseguiram vencer a enorme distância de mais de cem mil anos-luz? Teoricamente isso era possível. Já se conheciam hipersaltos de até trinta mil anos-luz, mas por enquanto ninguém se atrevera a avançar no espaço intercósmico situado entre as galáxias.
Por enquanto!
Mas agora acontecera!
— Sengu, continue a procurar — pediu Rhodan.
O japonês olhou para a planície.
Enxergava-se perfeitamente para todos os lados. Com exceção daquele em que os blocos de pedra se amontoavam, formando o cume da montanha, não havia nada que impedisse a visão. O horizonte distante formava uma linha que brilhava confusa, uma vez que a neve debilmente iluminada desaparecia no negrume do espaço. E até lá não havia nada, nada se movia. Apesar disso, um perigo terrível e invisível espreitava-os em algum lugar.
Sengu disse em voz baixa:
— Os corredores largos descem obliquamente. Estão vazios e abandonados. Não se vê nenhuma criatura viva. Alguns veículos estão espalhados por lá, como se tivessem sido esquecidos. Agora estou vendo o pavilhão de teto abaulado. Os corredores continuam a descer em todas as direções. Qual deles devo seguir?
— Aquele em que correm os trilhos — respondeu Rhodan, recorrendo às suas lembranças. — Num deles existem trilhos, não existem?
— É verdade! — o tom de voz do japonês exprimia admiração.
Mais uma vez surgiu o silêncio no grupo. E o silêncio durou até que Rhodan voltasse a sentir a dor na cabeça. Essa dor representava a primeira advertência. Os invisíveis estavam avançando de novo.
Gucky levantou-se de um salto. Apontou para o leste, mas não para baixo, em direção à planície, mas para cima, para o céu negro.
— Estão-se aproximando; muito depressa.
Sengu suspendeu sua atividade de espia e segurou a mão do rato-castor. Rhodan seguiu seu exemplo.
— De onde?
— Vêm de cima — respondeu Gucky em tom exaltado. — Será que sabem voar?
Não ficaram sabendo se os seres invisíveis eram capazes de voar por sua natureza, ou se utilizavam aviões ou foguetes. Uma coisa era certa: os invisíveis viram-nos e atacaram.
Acima de suas cabeças surgiu um clarão vindo do nada. Um raio branco-azulado desceu e cortou o gelo do platô. Rhodan teve presença de espírito para acompanhar o rastro do raio energético. Sua direção não se modificou, e o ângulo de incidência na superfície permaneceu inalterado. Porém o raio caminhou com uma rapidez espantosa pelo platô, desceu pela encosta e apagou-se.
Gucky cochichou:
— Estão-se afastando; agora estão voltando.
Face a isso, tiveram certeza de que os invisíveis se encontravam numa máquina que também era invisível. Descreviam uma curva e lançavam o segundo ataque. Talvez desta vez sua pontaria fosse melhor.
— Vamos embora! — gritou Rhodan.
Gucky já estava preparado. Saltou.
Desta vez materializaram a uma distância de quase mil quilômetros, em meio a uma cadeia de montanhas. Foi pura coincidência, mas Rhodan percebeu ao primeiro relance de olhos que se tratava de um lugar ideal para seus objetivos. Se os desconhecidos possuíssem aviões, dificilmente poderiam operar com estes naquele vale entrecortado. Talvez estivessem em segurança por algum tempo.
— Sengu, vamos trabalhar!
Rhodan esperou que o japonês confirmasse com um gesto e dirigiu-se ao rato-castor:
— Preste atenção aos invisíveis. Ao menor sinal de sua aproximação, dê o alarma.
Os dois mutantes conheciam sua tarefa. Rhodan sentiu-se um pouco deprimido, pois no momento tinha de manter-se inativo, já que não possuía as faculdades dos mutantes. A única coisa que podia fazer era esperar o resultado de seus esforços.
Sentiu-se tomado por algo como o desespero. O que adiantava tudo isso, se tinha de fugir constantemente dos desconhecidos, que tinham ao menos uma superioridade numérica sobre eles? Como poderiam ajudar aos barcônidas, se estavam ocupados durante todo o tempo para continuar vivos?
“Até então nossa permanência em Bárcon não passa de uma fuga ininterrupta”, rememorou Rhodan, enquanto se afastava alguns passos.
Lançou um olhar distraído para as formações de rocha que apresentavam uma estranha regularidade. De início não notou, mas de repente sobressaltou-se.
A parede lisa e vertical não estava coberta de neve. Só havia nela uma camada fina e transparente de gelo. Rhodan passou a mão pela mesma. A parede era lisa e compacta.
Lisa demais para ser uma rocha natural.
Rhodan olhou em torno. Pelo que pôde ver, o vale não era inacessível. Era perfeitamente possível que aqui houvesse outro acesso ao mundo subterrâneo de Bárcon.
Viu confirmada sua suposição, quando Sengu disse:
— Mais uma vez estou captando débeis impulsos de radiações, sir. Além disso, existe um túnel... Mil metros, dois mil...
— Cuidado!
A voz de Gucky era estridente. Uma coisa muito perigosa devia aproximar-se deles.
Num movimento instintivo, Rhodan tirou a arma energética do bolso e destravou-a. Não pretendia manter-se constantemente em fuga. Estava na hora de mostrarem aos atacantes que sabiam defender-se. Afinal, teriam que tentar.
Sengu compreendeu imediatamente. Também destravou sua arma.
— Acho que é apenas um — disse Gucky em tom hesitante.
— Pegue sua arma! — ordenou Rhodan.
Gucky parecia cético. Apesar disso cumpriu a ordem de Rhodan e sacou a arma. Apontou na direção da saída do vale.
— Sim, é somente um. Já deve ter estado aqui. Seus pensamentos exprimem principalmente curiosidade. É só o que posso constatar.
— Deve ser uma espécie de guarda — conjeturou Rhodan e olhou na mesma direção que Gucky.
Sentiu a indagação insistente em seu cérebro. Com o tempo se tornou dolorosa. Não via nada, nem mesmo qualquer rastro na neve. Entretanto uma criatura aproximava-se deles. Era uma criatura inteligente, pertencente a uma raça que construíra armas energéticas.
— Qual é a distância?
— Uns vinte ou trinta metros, não posso dizer...
Gucky não chegou a concluir a frase.
A uns vinte e cinco metros de distância surgiu um lampejo.
O raio azul passou pelo menos a dois metros de Sengu. Enquanto o japonês procurava abrigar-se, Rhodan abriu fogo. Fez pontaria para o local de origem do raio azul, que se apagou de repente. Mas Rhodan não suspendeu o fogo. Notou que o raio ofuscante expelido por sua arma se escoava diante de um obstáculo invisível, cujos contornos quase chegavam a ser humanos.
— Vamos! — gritou Rhodan para Gucky.
O rato-castor leu os pensamentos de Rhodan e compreendeu.
Também disparou contra o alvo invisível. Sengu, que continuava deitado no chão, também abriu fogo.
Os contornos chamejantes do atacante invisível tornaram-se mais nítidos. Seu corpo tinha resistência suficiente para refletir os raios energéticos. Não seria possível destruí-lo? Subitamente Rhodan viu uma coisa que lhe deu novas esperanças.
O estranho ser começou a cambalear e já não respondia ao fogo concêntrico.
Apenas se viam os contornos, não o corpo propriamente dito. Isso se tornava possível em virtude dos raios energéticos disparados, que delineavam sua figura. Devia ser mais ou menos como um balde de água derramado sobre um homem invisível. A água permitiria ao observador reconhecer os contornos do homem.
Subitamente, apenas por alguns segundos, aconteceu o inconcebível.
Talvez fosse por causa da confluência dos três raios energéticos, ou quem sabe, devido a uma outra circunstância.
O invisível assumia contornos nítidos! Tornou-se visível! Transformou-se em matéria sólida.
— Suspender o fogo! — gritou Rhodan e saiu correndo.
Uma idéia desesperada e um lampejo de esperança impeliam-no para a frente. O desconhecido já teria disparado de novo, se o contra-ataque não o tivesse afetado. E se estava adquirindo contornos definidos e seu corpo encobria a neve, também deveria ser possível segurá-lo... com as mãos.
Era exatamente o que Rhodan pretendia fazer.
De olhos arregalados, Gucky e Sengu fitavam Rhodan. O rato-castor estava tão perplexo que nem utilizou suas faculdades telecinéticas para segurar o desconhecido. Ficou parado, olhando. O braço com a pistola pendia molemente junto ao corpo.
Enquanto Rhodan vencia num salto gigantesco os últimos metros que o separavam do desconhecido, os contornos deste voltaram a apagar-se. Já se via a neve do outro lado.
Rhodan atingiu-o.
Suas mãos, que estavam livres, já que deixara cair a arma, procuraram segurar o desconhecido e sentiram certa resistência. Seus dedos cingiram-se em torno de uma coisa mole. Um fluxo de pensamentos carregados de ódio atingiu seu cérebro e fê-lo estremecer. As dores no cérebro tornaram-se insuportáveis.
Subitamente o desconhecido desmaterializou-se e escapou das mãos de Rhodan. Não houve outro ataque. Os impulsos mentais tornaram-se mais débeis e cessaram de vez.
Rhodan abaixou-se e pegou a arma.
Gucky disse:
— O que foi isso? Não se tratava de teleportação nem de campo de deflexão. Você conseguiu agarrá-lo, mas ele desapareceu. Não compreendo mais nada.
— Tranqüilize-se; também não tenho nenhuma explicação — respondeu Rhodan, em tom amargurado. — De qualquer maneira, já sabemos que não são tão invulneráveis como receávamos. Sob o fogo concêntrico de nossas armas, tornam-se visíveis e materiais. Talvez cheguem a sentir dores. Até é possível que morram e se desmaterializem. Gostaria de saber quem são, de onde vêm e o que vieram fazer aqui.
A paisagem silenciosa, que se estendia sob o céu eterno e sem estrelas, não deu nenhuma resposta.
— Olhem esse paredão — prosseguiu Rhodan. — É artificial, ou pelo menos foi trabalhado. Tente verificar o que há atrás dele, Sengu.
Para o japonês, isso não representou nenhum problema.
— Tem apenas um metro de espessura. Atrás dele há um grande pavilhão. Parece uma estação ferroviária. Vejo muitos trilhos e veículos, e numerosos desvios. Segue-se um túnel que desce obliquamente. Duas linhas. Não existe nenhuma luz.
Rhodan apontou para a sacola que se encontrava nas mãos de Sengu.
— Trouxemos uma lanterna. Leve-nos para lá, Gucky. Examinaremos Bárcon de dentro. Receio que na superfície não possamos encontrar mais nada, a não ser a morte. Aquilo ali — apontou para o lugar em que sentira o desconhecido — foi puro acaso.
Gucky aproximou-se e segurou as mãos dos companheiros.
— Sentir-me-ei mais à vontade se conseguir ver um teto, em vez desse céu medonho sem estrelas — prosseguiu Rhodan. — Como a gente está acostumado às estrelas...
— A gente só nota isso, quando não as vê mais — confirmou o rato-castor.
Concentrou-se e realizou a teleportação.
O salto não os fez percorrer mais que dez metros. Mas levou-os através da grossa muralha de pedra, que no estado de estabilidade normal da matéria representaria intransponível obstáculo.
Estava escuro. Rhodan tentou penetrar a escuridão com os olhos. Depois de algum tempo ligou a lanterna. A luz foi refletida pelas paredes lisas; fazia seu jogo sobre os trilhos cintilantes e era devolvida pelos pequenos carros metálicos, que estavam espalhados por toda parte. Era exatamente como Sengu dissera.
Gucky soltou um forte suspiro.
— Para dizer a verdade, lá fora ainda consegui captar alguns impulsos débeis, mas por aqui não existe nada. Será que a rocha não deixa passar seus pensamentos? Se for assim, não poderão localizar os nossos pensamentos, e estaremos em segurança.
— A não ser que tenham descoberto uma entrada mais fácil de ser vencida — disse Rhodan, abafando o otimismo do rato-castor. A luz da lanterna correu pelo pavilhão. — Descobriremos assim que descermos mais.
— Vamos a pé? — perguntou Gucky, contemplando suas perninhas.
Rhodan apontou para os carros.
— Vamos pegar um táxi, meu baixinho. Assim você não se cansará. Também poderíamos saltar, mas quero ver por onde vamos passar. O túnel é seguro, Sengu?
— Até onde posso enxergar é.
— Então vamos! Tomara que os motores ainda estejam funcionando. Tenho uma vaga lembrança de como a gente faz para andar nessa carreta. Os controles são muito simples.
Os carros de transporte eram de vários tamanhos e destinavam-se a diversas finalidades. Alguns deles pareciam servir ao transporte de passageiros; possuíam uns vinte ou trinta assentos. Outros eram menores, só oferecendo lugar para duas ou quatro pessoas.
Escolheram um veículo no qual havia dois bancos, situados um atrás do outro. Sengu sentou-se ao lado de Rhodan, enquanto Gucky se refestelava no banco de trás.
— Ali estão duas chaves que se pode puxar — disse Rhodan. — Uma delas serve para regular a velocidade, enquanto a outra aciona o freio. Acho que não precisaremos de mais nada nesta viagem de trem. Se não me engano, a descida é íngreme.
— Realmente — confirmou Sengu, que não se sentia tão bem quanto Gucky.
A chave do freio foi destravada. Rhodan rodou-a um tanto e o carro começou a andar para dentro da abertura negra do túnel. A lanterna portátil era tão fraca que quase não iluminava o caminho.
— Segure a lanterna — pediu Rhodan e começou a examinar o painel de instrumentos. Dali a alguns segundos acenderam-se dois potentes faróis. — Era o que eu pensava.
Agora era mais fácil. Enxergava-se pelo menos a cinqüenta metros, e podia-se ver se a linha estava livre. Nesse meio tempo a velocidade do carro aumentara, e seria muito desagradável se esbarrassem em algum obstáculo. Apesar de suas faculdades Sengu não via muita coisa, pois estava muito escuro. Seus olhos, que conseguiam penetrar na matéria sólida, falhavam na ausência de luz.
— Sinto nitidamente impulsos de ondas — disse em tom hesitante. — Estão muito distantes. Não sei dizer com precisão qual é a distância.
Viajaram quase durante uma hora. De repente Sengu disse:
— Freie, sir! Acho que o túnel está terminando. Mais ou menos a quinhentos metros daqui.
Rhodan puxou a chave do freio. O carro reduziu a velocidade, motivo por que Gucky desistiu de manter-se constantemente preparado para saltar. O banco traseiro, muito bem estofado, era muito confortável, mas ele não confiava muito nessa viagem realizada às cegas.
Dali a cinco minutos, a luz dos faróis foi refletida por uma parede que fechava o túnel. O carro parou. Rhodan examinou-a. Parecia artificial e tão compacta que até mesmo os trilhos desapareceram em seu interior, como se não mais existissem.
Em virtude dessa circunstância Rhodan descobriu do que se tratava.
— É uma comporta pressurizada! Tomara que consigamos atravessá-la, pois do contrário teremos de pegar outro carro lá adiante. Sengu, o que é que o senhor está vendo?
— Vejo uma câmara, e atrás dela outra parede igual a esta. Talvez tenha razão, sir. É possível que se trate de uma comporta de ar.
Rhodan desceu do carro. Deixou os faróis ligados.
— A comporta deveria funcionar automaticamente, mas com os conjuntos paralisados, isso não seria de esperar. Deve haver algum outro controle. Se não existir, Gucky terá que tentar a sorte.
O rato-castor soltou um suspiro e continuou sentado.
— Se tiver que trabalhar, prefiro começar daqui mesmo.
Rhodan aproximou-se da parede e examinou-a demoradamente. No canto inferior direito, encontrou uma roda de regulagem e girou-a. Felizmente o mecanismo da comporta era alimentado por um gerador de emergência. A parede dividiu-se ao meio e deslizou para o lado.
Rhodan entrou na comporta. Na outra parede também encontrou uma roda. Fez um sinal para os companheiros.
— Tudo em ordem. Sengu, faça o carro entrar devagar na comporta. Tenha cuidado para não bater na parede.
O japonês agiu imediatamente. O carro começou a rolar e parou a poucos centímetros da segunda parede. Gucky exibiu um sorriso de aprovação, mas não fez qualquer comentário.
Antes de abrir o segundo portão, Rhodan voltou a colocar a primeira roda na posição anterior. A primeira parede começou a fechar-se. Perry saltou rapidamente para dentro da comporta e esperou que o portão se fechasse. Em condições normais não se teria arriscado a fechar um dos portões, antes de certificar-se de que o outro funcionava. No entanto, estava em companhia de Gucky.
Quando a segunda parede se abriu, Rhodan sentiu uma lufada de ar, que vinha do interior do túnel.
Ali embaixo havia uma atmosfera!
O carro rolou mais um pedaço. Rhodan fechou a comporta.
Ficou parado uns dez segundos. De repente levantou a mão e começou a soltar calmamente o fecho do capacete espacial. Gucky gritou com a voz estridente:
— Não faça isso, Perry! O ar pode ser venenoso...!
— Os barcônidas respiram oxigênio — disse Rhodan para tranqüilizá-lo e tirou o capacete.
Estava quente e um pouco abafado, mas de resto o ar era perfeitamente respirável. Inalou profundamente por algumas vezes e não sentiu qualquer efeito adverso.
— Podem tirar os capacetes. Assim economizaremos energia. Quem sabe por quanto tempo ainda teremos de usar os trajes espaciais?
Entrou no carro e soltou o freio. Dali a duas horas, Sengu olhou para o teto e disse:
— Vejo a superfície. Encontramo-nos mais ou menos a quatro mil metros de profundidade.
— Sinto-me como uma toupeira — disse Gucky e enrodilhou-se para dormir um pouco.
Haviam desligado a calefação de seus trajes, pois por ali reinava um calor agradável. Sengu abriu uma lata de frutas. Mataram a fome. Era bem verdade que o caldo doce não contribuiu para mitigar a sede.
— Deveria ter desejado mais de uma lata de cerveja — disse Sengu em tom abatido. — Acho que não poderemos contar com uma renovação das provisões. Ao menos aqui...
— Ainda agüentaremos um dia, se fizermos economia. Se a sede aumentar, Gucky terá de ir à superfície e trazer neve.
— Neve...? — o rato-castor sacudiu-se e mexeu no bolso. Depois de algum tempo tirou uma cenoura. — Prefiro morrer de sede.
Rhodan sorriu, mas não deu nenhuma resposta. Teve a impressão de que o calor aumentava. Deviam estar-se aproximando do setor residencial propriamente dito, ou ao menos do lugar em que se planejara sua instalação.
Assustou-se com a coerência de seu raciocínio, mas este infundiu-lhe uma idéia.
— E os impulsos mentais, Gucky? Você não consegue captar nenhum?
O rato-castor concentrou-se por algum tempo.
— Nada, absolutamente nada. Até parece que estamos sós neste mundo, com exceção dos invisíveis, que não são pensadores normais. Se os barcônidas forem o que você diz, isto é, criaturas humanóides, eu os encontrarei.
— Nenhum impulso?
— Sinto muito, mas não há nada. Rhodan resistiu à suposição de que os atacantes poderiam ter exterminado todo um povo. Os barcônidas já existiam há milhões de anos e haviam colonizado grande parte da Galáxia. Até era possível que fossem os antepassados dos arcônidas e dos terranos. E agora teriam deixado de existir no curso de meio século.
Havia algo de errado. O que seria?
O túnel já não descia obliquamente, mas corria em sentido horizontal. Rhodan já desligara o freio e acionara o acelerador. Os trilhos seguiam em linha reta e o carro corria numa velocidade louca. Uma hora. Duas horas. Ia na direção exata da entrada principal, onde haviam sofrido o primeiro ataque dos invisíveis.
— Vejo luz — disse Sengu, de repente, em meio ao silêncio, interrompido apenas pelo zumbido leve do motor. — A dez quilômetros daqui existe luz, um tanto escassa e difusa. Parece antes um tipo de iluminação de emergência.
— Reconhece mais alguma coisa?
— Máquinas e grandes pavilhões, corredores, muitas portas. Atrás dessas portas há outros pavilhões cheios de máquinas. Conjuntos, geradores, um salão cujas paredes acham-se cobertas de telas. Estas não estão funcionando. As máquinas também estão paradas. Mas é delas que saem as radiações que consegui captar. Será que nos aproximamos da central de comando, sir?
— Não existe a menor dúvida. Estamos indo para a mesma central na qual entrei há sessenta anos, a fim de corrigir um pequeno engano e salvar os barcônidas da destruição certa. Ao que parece, meus esforços foram em vão.
A velocidade do carro diminuiu bastante. De repente entrou num grande pavilhão. Os trilhos desdobraram-se em várias direções, multiplicando as opções para o prosseguimento da viagem. Mas Rhodan não tinha a intenção de continuar. Parou o carro.
— Chegamos. Foi exatamente neste lugar em que desci há sessenta anos. Não sei dizer de que lado vim. Bem, depois descobriremos.
Saiu do carro e, por alguns segundos, permaneceu indeciso. Finalmente dirigiu-se a Sengu.
— As salas de máquinas ficam nesta direção?
Apontou para uma porta. Sengu fez um gesto afirmativo e Rhodan prosseguiu:
— Sim, agora consigo orientar-me de novo. Vamos andando.
Sengu levantou-se rapidamente e logo se colocou ao lado de Rhodan. Gucky não demonstrou tanta pressa. Com uma lentidão irritante saiu do banco traseiro e caminhou desajeitadamente pela plataforma.
— O que pretende fazer na sala de máquinas? — perguntou, embora sua capacidade telepática já lhe tivesse revelado as intenções de Rhodan. — Quer recauchutar o planeta adormecido?
Rhodan esteve a ponto de dar uma resposta áspera, mas de repente lançou um olhar pensativo para Gucky. Uma ruga vertical surgiu em sua testa.
— As crianças, os idiotas, e às vezes também os ratos-castores, costumam dizer a verdade... Poderíamos ao menos tentar ativar os conjuntos paralisados. Talvez dessa forma consigamos saber o que aconteceu com os barcônidas.
Gucky fitou-o com uma expressão de perplexidade, quando se dirigiu a uma porta isolada. Depois de hesitar um pouco, abriu-a com uma simples pressão da mão. Um sorriso de embaraço surgiu no rosto de Gucky, que saltou atrás de Rhodan. Sengu seguiu-o. Não compreendera quase nada do que se passara, pois não sabia ler pensamentos.
As máquinas permaneciam em silêncio. As mesmas brilhavam de tão limpas que estavam. Até parecia que tinham sido instaladas há um dia. No teto viam-se fios e grossos cabos que desapareciam nas paredes e ligavam os conjuntos de máquinas com os controles da sala de comando. Atrás daquele recinto existiam amplos pavilhões, conforme era do conhecimento de Rhodan e foi confirmado por Sengu.
Seus passos provocavam um som surdo, que era refletido pelas paredes nuas.
Pararam na sala de comando principal. A lanterna de Rhodan bastou para iluminar o recinto.
Tratava-se de uma instalação de controle, cuja complexidade correspondia plenamente às tarefas gigantescas que tinha de desempenhar. Talvez, a partir dali, o planeta havia sido arrancado para fora da órbita de seu sol e obrigado a realizar uma viagem longa e solitária através do espaço cósmico. Era possível que aquele bloco semicircular, em cuja superfície polida se viam centenas de botões e escalas, fosse o dispositivo de direção. Ou seria o gigantesco painel que se encontrava junto às mesas? Talvez ele permitisse regular a produção de alimentos ou o sistema de renovação de ar.
Rhodan contemplou as complexas instalações, enquanto sua coragem se desvanecia. Como poderia familiarizar-se com essas instalações, que durante duzentos mil anos tornaram aquele planeta independente da luz do sol?
Adiantou-se e examinou as escalas do bloco semicircular. Todos os ponteiros encontravam-se na posição zero. Aguçou o ouvido e não percebeu o menor ruído. Estava tudo em silêncio, sem vida.
As máquinas também haviam sido paralisadas. Sengu lhe confirmara isso.
Sengu...?
Rhodan apontou para uma porta situada na extremidade oposta da central de comando.
— Ali fica um pavilhão que abriga as instalações geradoras de energia. As radiações remanescentes devem vir de lá. Será que o senhor poderia verificar este ponto?
Sengu foi até a porta e entrou no pavilhão contíguo. Rhodan e Gucky seguiram-no. No centro do pavilhão via-se perfeitamente uma tampa redonda de cinco metros de diâmetro. Rhodan apontou para a mesma.
— Ali embaixo fica o reator. É maior e mais potente que qualquer coisa que possamos imaginar. Então, Sengu? Esse reator está funcionando?
Sengu olhou para a tampa... e olhou através da mesma.
— A instalação está parada, sir. O reator foi paralisado. Nas câmaras de chumbo ainda existem alguns restos de matéria radiativa. Não se vê ninguém.
— Procure seguir a fiação de comando até a central que fica ao lado. Talvez consigamos descobrir os controles que correspondem ao reator.
O japonês pôs-se a trabalhar. Tratava-se de um trabalho inconcebível para uma pessoa não familiarizada. Seus olhos venceram todos os obstáculos, encontraram o cabo mestre e acompanharam-no através dos muros e paredes, até o ponto de partida. Enquanto isso o japonês percorria lentamente o pavilhão, olhando sempre para o chão, até chegar à central de comando. Seus olhos procuravam alguma coisa, sua visão continuava a caminhar. Até que seu olhar estacionou no objeto semicircular.
— Isto aqui é o equipamento de controle do reator, sir.
Os botões, chaves e escalas não traziam nenhum letreiro, mas apresentavam-se em diversas cores, a fim de permitir a distinção. Sua finalidade só poderia ser adivinhada por meio de uma série de conjeturas óticas.
— É aqui que termina o cabo mestre — disse Sengu, apontando para um conjunto de apenas três botões. Um deles era verde, o outro amarelo e o último vermelho. — Seria um tremendo acaso se justamente o verde fosse o de partida.
— E o botão vermelho seria o de parada, não é? — acrescentou Gucky com sorriso.
Rhodan continuou sério.
— Um acaso? — disse, esticando as palavras. — Quem sabe se realmente é um acaso.
Sua mão aproximou-se lentamente do botão verde, parou sobre o mesmo e, como se quisesse evitar a possibilidade de mudar de idéia, comprimiu-o fortemente para dentro da base.
Nos primeiros dez segundos não aconteceu nada. Depois o teto do recinto foi tornando-se incandescente, ficou cada vez mais luminoso e acabou por mergulhar a central de comando numa luz ofuscante. O reator voltara a gerar energia.
Rhodan desligou sua lanterna e enfiou-a no bolso. Depois estendeu a mão.
— Não estão percebendo nada? — perguntou.
Uma lufada de ar morno passou por sua mão. Além de morna, a lufada trazia ar puro. Só agora notaram que o ar que até então haviam respirado nos pavilhões e corredores estava muito gasto.
— Parece que todas as instalações voltaram a funcionar — disse Sengu. — Gostaria de saber quem desligou o reator.
— Terão sido os invisíveis? — Gucky não parecia ter muita certeza. — Por enquanto, aqui embaixo, ainda não nos encontramos com nenhum deles.
— Daí não se pode concluir que nunca estiveram aqui — respondeu Rhodan e sentiu um crescente mal-estar. — Se notarem alguma coisa, atirem imediatamente. Já sabemos que não gostam disso.
Olhou em torno, como se procurasse alguma coisa, e disse:
— Devíamos tentar descobrir alguma pista dos barcônidas desaparecidos. Devem estar em algum lugar. Agora, que o suprimento de energia foi restabelecido, ao menos temos luz.
— Vamos prosseguir nossa viagem com o carro — sugeriu Gucky. — Por aqui só existem máquinas; mais nada.
— O setor residencial fica na mesma altura. Podemos tentar chegar lá com o carro. Ou será que o senhor consegue enxergar alguma coisa, Sengu?
— Para dizer a verdade, sir, por enquanto só me interessei pelas instalações, não pelos barcônidas. Talvez consiga...
Ouviu-se um clique.
Ouviram-no perfeitamente; não podia haver a menor dúvida. Ao mesmo tempo, a vibração, que sentiam nitidamente a seus pés, cessou. O teto foi escurecendo e tornou-se completamente negro. E a lufada de ar puro parou.
Alguém voltara a desligar o reator.
Rhodan tirou a lanterna do bolso e fez o facho de luz correr pelo recinto. Encontravam-se a uns vinte metros do bloco semicircular e teriam visto qualquer pessoa que estivesse nas proximidades do mesmo.
O recinto estava vazio.
Uma das mãos de Rhodan segurava a lanterna, e a outra uma pistola energética. Com um movimento resoluto saiu caminhando em direção ao bloco. Não acreditou no que seus olhos viam. O botão verde saltara para fora da base. Alguém devia ter comprimido o botão vermelho.
Teve a impressão de que o invisível devia estar bem a seu lado, mas não conseguiu captar qualquer impulso mental.
— Gucky, há alguém por aqui?
— Ninguém. Somos os únicos seres pensantes que se encontram aqui embaixo.
A mão de Rhodan desceu sobre o botão verde e comprimiu-o. A luz voltou a acender-se imediatamente. Vários ponteiros se moveram e começaram a tremer. Sob seus pés ouviu-se um zumbido. A gigantesca maquinaria voltara a funcionar.
Clique!
Rhodan ficou perplexo!
Contemplou o botão verde que saltara para fora da base. A luz apagou-se. As máquinas silenciaram.
Desta vez vira perfeitamente. De início o botão vermelho descera, como se tivesse sido comprimido por uma mão invisível. Só depois disso o botão verde, impelido pelos relês, saíra da base.
Voltou a ligar o reator e colocou a mão em atitude protetora por cima do botão vermelho, numa posição tal que ninguém poderia comprimi-lo.
Clique!
Era incompreensível. Rhodan não encontrou nenhuma explicação para o fenômeno. Talvez fosse alguma ação teleguiada, desencadeada na superfície do planeta. Ninguém sabia quem eram os invisíveis e qual era a técnica de que dispunham. A palavra impossível já deixara de figurar no vocabulário dos astronautas terranos, pois a experiência há muito lhes ensinara que havia uma explicação para todos os enigmas do Universo.
Sem dúvida também existia uma para o enigma com que se defrontavam, embora talvez não a encontrassem logo.
Rhodan voltou a comprimir o botão verde e manteve o dedo sobre o mesmo. Por várias vezes sentiu que o botão queria saltar para fora. Finalmente desistiu das experiências.
O conjunto continuou ligado e começou a funcionar.
Rhodan tirou a mão e respirou profundamente.
— Não podemos ficar aqui para sempre, ligando constantemente este mecanismo. Além disso não sei o que está havendo com as outras máquinas. Se os desconhecidos perceberem que por aqui não conseguem mais nada, eles interrompem os dutos de energia. Gostaria de saber qual é a finalidade que têm em vista.
— Eu... eu — disse Gucky — gostaria de saber quem são e de onde vieram.
Rhodan ignorou o desejo de Gucky e disse:
— Ficaremos unidos e prosseguiremos viagem no carro. Gucky, guarde bem o lugar. Se o reator voltar a ser desligado, você terá de saltar para cá e voltar a ligá-lo. Entendido?
— Não sou nenhum bobo! — respondeu Gucky em tom um tanto atrevido e caminhou em direção à saída. — Apenas receio que tenha de saltar muitas vezes para cá e para lá. Tomara que não os perca durante um dos saltos.
— Basta entrar em contato telepático conosco para localizar-nos — lembrou Rhodan. — Mas é possível que desta vez o reator continue ligado. Vamos andando!
No pavilhão de entrada do túnel, as luzes do teto também estavam acesas. As lâmpadas, instaladas a intervalos regulares, reuniam-se ao longe num só ponto.
Entraram no carro e puseram-no em movimento. Mal haviam andado uns quinhentos metros, as luzes voltaram a apagar-se.
— Acho que agora é minha vez — disse Gucky, que começara a instalar-se confortavelmente em seu banco.
— Você adivinhou — disse Rhodan em tom lacônico, sem reduzir a velocidade do veículo.
Gucky desapareceu. Dali a dois segundos as luzes voltaram a acender-se e Gucky retornou.
— Se eu pego o sujeito que fica apertando esse botãozinho, eu lhe dou uma sova — disse Gucky em tom ameaçador. — Afinal, não sou nenhum saltador.
Rhodan riu com a comparação. Os saltadores, descendentes dos arcônidas, eram robustos e usavam enormes barbas. Com a melhor boa vontade não se encontraria nenhuma semelhança entre eles e Gucky.
Meia hora depois, quando o carro entrou num alargamento do túnel, que se transformou num grande pavilhão, Gucky já tivera de saltar uma dezena de vezes. Era bem verdade que nos últimos cinco segundos não havia acontecido mais nada. As luzes continuavam acesas. O ar era renovado, e a vibração continuava.
O carro parou.
Rhodan apontou para um portão fechado.
— É ali que fica a entrada da cidade residencial mais próxima. Foi ao menos o que Regoon me disse. Regoon foi o chefe da equipe de físicos de Bárcon. Elaborou todo o plano e transformou-o em realidade. Gostaria de saber se ainda está vivo.
Não obteve resposta. Seus companheiros sabiam muito pouco a respeito das experiências por que passou em Bárcon, há mais de meio século. Não conheciam Regoon, e nem o especialista atômico Laar, o astrônomo Gorat ou Nex, o fundador do nexialismo. Rhodan estivera em contato com os quatro. Eram os principais dirigentes dos barcônidas.
O portão resistiu a todas as tentativas; não abriu.
Rhodan disse:
— O imortal sabia perfeitamente por que mandou que você, Sengu, e você, Gucky, me acompanhassem. Agora vocês têm uma oportunidade de provar quanto vale o trabalho de equipe. Sengu, conte-nos como é a fechadura.
O japonês olhou através do metal e reconheceu o mecanismo da fechadura eletrônica, que só podia ser aberta com determinada chave. Fez um relato tão claro e visual dos detalhes técnicos que tanto Rhodan como Gucky conseguiram imaginar o funcionamento do mecanismo.
Rhodan dirigiu-se ao rato-castor.
— Agora é sua vez, baixinho. Abra-a.
Gucky lançou mão de seus dotes telecinéticos. Não tocou na porta. Seus fluxos espirituais atingiram o mecanismo da fechadura, situado atrás da placa de metal, e moveram as peças na seqüência correta. Fez exatamente a mesma coisa que teria sido feita pelos fluxos energéticos.
E o portão abriu-se.
Atrás dele havia luz, uma luz clara e brilhante. Mas o ar que veio ao seu encontro poderia ser tudo, menos puro. Era bem verdade que o fluxo vindo dos poços de ventilação era bem perceptível, mas Rhodan sabia perfeitamente que este só fora iniciado há trinta minutos. As reservas de ar dos gigantescos recintos durariam algumas semanas, mesmo sem renovação. Contudo, num belo momento chegariam ao fim. E, ao que parecia, esse momento já havia chegado.
Um largo corredor parecia levar a uma distância infinita. À direita e à esquerda havia a intervalos regulares portas de aspecto idêntico. Em cada uma delas estava escrito um número.
Rhodan olhou para Gucky.
— Ainda não conseguiu captar nenhum impulso mental?
O rato-castor balançou a cabeça. Não captava nenhum pensamento. Se havia alguém ali embaixo, este alguém estava morto, ou então era incapaz de pensar.
Rhodan lançou um olhar pensativo para a primeira porta. Aproximou-se e viu a reentrância destinada à mão. Tratava-se de uma fechadura acionável pelo calor do corpo humano.
Colocou a mão na reentrância e esperou.
Dali a alguns segundos, a porta deslizou para dentro da parede.
Sengu e Gucky encontravam-se ao lado de Rhodan. Não quiseram acreditar no que seus olhos viam, pois o quadro que se lhes oferecia era tão fantástico e pavoroso que não poderia ser real.
Diante deles estendia-se um pavilhão alongado de uns trinta metros de largura e de uns trezentos de comprimento. E esse pavilhão estava abarrotado até o teto com leitos metálicos, nos quais os barcônidas procurados estavam deitados em longas fileiras.
Mortos...?
Rhodan sentiu um susto violento, misturado com a dor provocada pela morte súbita de um povo que amava tanto quanto o imortal. Mas logo surgiram as perguntas: Por que teriam morrido? E por que teriam morrido de forma tão tranqüila e ordeira?
Era evidente que se haviam recolhido aos leitos, como se quisessem dormir. Mas não poderiam estar apenas dormindo, pois nesse caso Gucky não deixaria de captar seus impulsos mentais, que nunca cessariam. Deviam estar mortos ou...
Haveria outra alternativa?
Em hipótese, poderia tratar-se de uma forma de conservação análoga a uma hibernação no gelo, que os velhos arcônidas haviam realizado. Os barcônidas estavam vestidos. Não havia nenhuma instalação que levasse à conclusão de que estavam sendo alimentados artificialmente, ou de que um dispositivo eletrônico automático cuidasse deles.
Estariam mortos...?
No momento em que Rhodan resolveu certificar-se a este respeito, a luz apagou-se. Gucky soltou uma praga impublicável, que aprendera com Bell; e desmaterializou-se. Rhodan percebeu que o fluxo de ar estancara e que a vibração a seus pés cessara. Segundos depois, Gucky voltou e a luz acendeu-se de novo.
— Estes apertadores de botões! — exclamou em tom zangado.
Rhodan dirigiu-se ao leito mais próximo e inclinou-se sobre o barcônida imóvel. Tratava-se de um homem que usava roupas de técnico. Sua pele estava pálida. Parecia estar dormindo. Rhodan encostou o ouvido ao peito do homem. Não percebeu nenhuma batida de coração, nem qualquer atividade respiratória.
Mas o corpo do barcônida estava quente.
Se estivesse morto, só poderia ter morrido há poucos minutos.
Rhodan ergueu-se e lançou um olhar indagador para Sengu. O japonês parecia confuso.
A luz apagou-se. Enquanto Gucky foi fazer o reparo, os dois homens examinaram os outros barcônidas. Estavam todos mortos, mas seus corpos ainda não haviam perdido o calor natural. Não respiravam, seu coração não batia, mas o sangue não esfriara.
E seus cérebros não pensavam...
Gucky voltou. Gesticulava furiosamente com os braços.
— Lá na central; são impulsos mentais. Consegui captá-los perfeitamente.
— São os invisíveis? — perguntou Rhodan em tom de alarma, mas Gucky balançou a cabeça.
— Não; é impossível. Trata-se de pensamentos bem diferentes. São pensamentos desesperados e compreensíveis. Provêm de alguém que se admira por ter acordado.
Rhodan refletiu febrilmente. Lançou mais um olhar sobre as longas fileiras de barcônidas imóveis, fez um sinal para Sengu e segurou a mão de Gucky.
— Leve-nos à sala de comando. Vamos dar uma olhada na pessoa que acaba de acordar. Talvez consigamos descobrir o que aconteceu por aqui.
Materializaram-se junto ao conhecido bloco semicircular. Gucky abaixou a cabeça e concentrou-se. Mantinha os olhos fechados.
— É... foi nesta direção. Não estamos muito longe. Acordou de vez, mas não consigo compreender seus pensamentos. Sim, pensa de verdade, de forma completamente diferente dos invisíveis. Mas só pensa em coisas confusas.
— Vamos para lá!
Rhodan caminhou à frente dos outros. Gucky indicou-lhe a direção. Passaram por três ou quatro portas e chegaram a um corredor largo, que parecia levar ao infinito. O rato-castor dirigiu-se a uma das primeiras portas e parou.
— Está atrás desta porta. Agora há mais um. Há pouco não pensavam, mas agora pensam... É esquisito.
“Sim, realmente esquisito”, mentalizou Rhodan, enquanto se sentia tomado duma alegria incontrolável. “Os outros ‘mortos’ não pensam. Os que se encontram aqui voltaram a viver...”
Colocou a mão direita na reentrância e esperou.
A porta abriu-se lentamente.
Surgiu uma sala não muito grande, confortavelmente instalada, que não tinha nada em comum com os pavilhões de máquinas ou com os gigantescos dormitórios dos barcônidas.
O recinto que tinham diante de si era um quarto confortável, no qual estava acesa uma luz mortiça. Nela havia móveis confortáveis. Um calor agradável reinava em seu interior.
Um homem de macacão justo aproximou-se a passos inseguros. Era alto e muito esbelto. Seu rosto revelava uma grande inteligência. Nos fundos do quarto, três homens continuavam deitados nas camas. Um deles começou a levantar-se, lançou um olhar curioso para as pessoas que entravam.
— Perry Rhodan! Tivemos de esperar muito tempo pelo senhor... — disse o do macacão justo.
Rhodan apertou a mão que lhe fora oferecida.
— É o senhor, Nex? O que aconteceu?
O nexialista sorriu. Era um sorriso tímido. Cumprimentou Sengu com muita cortesia. Depois lançou um olhar desconfiado para Gucky, mas acabou por inclinar-se sobre o rato-castor e bateu-lhe carinhosamente no ombro. Devia ter reconhecido pelo uniforme que se tratava de um ser inteligente.
— O que aconteceu? Ainda saberemos, Rhodan. Contarei tudo. Mas antes de mais nada diga como veio parar aqui e como estão as coisas lá fora, na superfície.
— O que houve com os aparelhos de controle? Perderam o contato com a superfície?
— Há várias semanas.
Neste meio tempo, o segundo homem também se levantara. Era de estatura imponente e usava barba. Espreguiçou-se e gritou com a voz retumbante:
— Quero que os demônios do fogo me levem, se este não é o sujeito daquela maravilhosa navezinha. Será que estou enxergando bem, Perry Rhodan?
— O senhor está enxergando bem, físico-chefe Regoon. Quanto tempo passou dormindo?
— Mais de três semanas — respondeu Regoon e cumprimentou os homens. Lançou um olhar de espanto para Gucky. — Caramba! Quem é este?
— É meu amigo Gucky, um rato-castor natural do planeta Vagabundo, da Via Láctea.
— Isso mesmo. Fica à direita do Saco de Carvão — explicou Gucky em tom sério e apertou a mão de Regoon. — Oportunamente você poderia visitar-me.
A testa do barcônida franziu-se.
— Ele sabe falar, e ainda por cima em intercosmo! — disse em tom de espanto. — Por certo não descende de nós...
— Nem gostaria de descender! — protestou Gucky e caminhou em direção às duas camas.
As pessoas deitadas nas mesmas começavam a mexer-se. Regoon fitou-o com uma expressão de perplexidade e sacudiu a cabeça.
— Se as tradições não são falsas, há um milhão de anos não nos encontramos com esta raça.
Nex já se esquecera de Gucky.
— Por favor, conte-nos o que viu na superfície — disse, dirigindo-se a Rhodan.
Este contou em ligeiras palavras o que haviam visto na superfície de Bárcon, sem mencionar a incumbência que recebera do imortal. Mas não ocultou os ataques dos invisíveis e o repetido desligamento do reator principal, levado a efeito por algum desconhecido. Por fim disse em tom resoluto:
— Agora gostaria de saber o que aconteceu por aqui. Seu plano não deu certo?
Desta vez foi Regoon quem respondeu:
— Funcionou muito bem! Todas as máquinas trabalhavam da forma que esperávamos. Desprendemo-nos do campo de gravitação de nosso sol e iniciamos nossa viagem, na direção exata da Galáxia. A vida aqui nas profundezas continuava tal qual havíamos previsto. Meio século passou-se. Depois disso ocorreram os primeiros ataques das inteligências invisíveis. Nex, continue a contar.
O cientista fez um gesto de assentimento.
— Observamos coisas estranhas com a câmara de televisão. A superfície do planeta começou a modificar-se. A atmosfera precipitou-se sob a forma de neve e toda a vida lá fora tornou-se impossível. Nosso sol desapareceu no nada. A Via Láctea aproximava-se lentamente. Tudo isso era normal e estava previsto. Mas de repente as máquinas começaram a falhar. Foram desligadas...
Rhodan ouviu atentamente, mas não fez nenhum comentário. Sengu juntou-se a Gucky e ajudou-o a acordar mais dois barcônidas que ainda dormiam.
— Conseguimos ligar as máquinas de novo, mas os incidentes se repetiram. Depois de algum tempo, as câmaras que nos mostravam a superfície falharam e não conseguimos fazê-las funcionar de novo. Não encontramos nenhum defeito. Ao que parecia, houve um ataque deliberado contra as mesmas. O ataque não foi desferido com armas visíveis, mas de forma sorrateira, quase imperceptível. Antes que as telas se apagassem vimos, uma única vez, um forte raio energético. A neve derreteu-se e a água evaporou-se. Mas não vimos ninguém, embora as rochas fossem deslocadas. Eles nos procuravam. E acabaram encontrando-nos. A comunicação visual foi interrompida e as máquinas deixaram de funcionar. Voltamos a ligar o reator. Depois de alguns minutos, voltou a desligar-se automaticamente.
— Já conhecemos isso — disse Rhodan.
Nex prosseguiu tranqüilamente:
— Refletimos sobre o que deveríamos fazer. Por precaução distribuímos comprimidos para dormir. Tais cápsulas foram descobertas por nossos médicos mais competentes. Seu efeito é espantoso. O organismo de quem as toma é parcialmente paralisado. Morre-se para o mundo exterior. O coração deixa de bater, embora o sangue continue a circular, mas muito mais lentamente. Não há necessidade de qualquer forma de alimentação. O consumo de oxigênio é tão reduzido que um homem pode viver por vários anos com um metro cúbico. O sono a quente, que é chamado assim porque o corpo não esfria, representa o melhor meio de superar uma situação desfavorável.
“Nossa produção de alimentos foi interrompida, o suprimento de ar ficou em perigo. Por isso ordenamos ao nosso povo que se dirigisse aos dormitórios e tomasse os comprimidos. Quanto a nós, permanecemos nas proximidades da central e também os tomamos. Mas também tomamos o antídoto, que faria com que despertássemos, assim que voltasse a funcionar o suprimento de ar. E isso só aconteceria quando os invisíveis desaparecessem.”
— Ou se alguém ligasse o reator, não é? — perguntou Rhodan.
Nex sorriu.
— Não. Um dispositivo automático ligava-o de vinte e quatro em vinte e quatro horas. Mas isso não adiantava muito. Os desconhecidos voltavam a desativá-lo. Ao que parece, agora desistiram de suas tentativas.
Rhodan bateu três vezes na mesa. Dali a dois segundos teve de reconhecer que essa superstição não adiantava nada. A luz apagou-se. Gucky praguejou. Dali a pouco, a luz voltou a acender-se. Gucky retornou. Sem dar a menor atenção aos rostos estupefatos dos dois barcônidas, disse:
— Eles sempre repetem... Não se poderia prender o botão de tal maneira que fique no lugar?
— Nesse caso eles recorreriam a outro meio para paralisar o reator, meu baixotinho. E poderiam fazê-lo de uma forma que não conseguíssemos mais usá-lo.
— Se aparecerem, verão o que é bom — profetizou Gucky, em tom furioso. — Aquilo que fazem com o botão é executado por meio de um controle remoto, pois não sinto seus impulsos mentais. Vamos prender o botão. Nesse caso terão de comparecer pessoalmente, e nós lhes prepararemos uma recepção bem quente.
Isso parecia muito convincente. Talvez os invisíveis estivessem na superfície, de onde conduziam a operação. Mas como se poderia prender o botão?
— É simples. Soldaremos o botão. A solução é esta! — exclamou Regoon. — Não temos radiadores energéticos de sobra por aqui?
Uma vez tomada a decisão, Gucky ficou mais tranqüilo. Depois, muito envaidecido, anunciou:
— Os dois dorminhocos acordaram, Perry. Quer que eu os atire para fora da cama?
Rhodan, Sengu, Gucky e os quatro barcônidas aproximaram-se cautelosamente da central. Rhodan trocara seu radiador leve por uma pesada pistola energética dos barcônidas. Quando a luz se apagou, Gucky reprimiu a raiva e voltou a ligar o reator. Regoon correu atrás dele e logo se viu junto ao rato-castor, próximo do bloco semicircular.
Dirigiu a arma contra o botão verde que acabara de ser comprimido. O raio fino, feito de energia pura, atingiu-lhe as bordas e derreteu-as. A massa viscosa, que endureceu rapidamente, formava um obstáculo intransponível. Não poderia saltar mais para fora, por mais vezes que o outro botão, o vermelho, fosse comprimido. Rhodan fez uma tentativa. Comprimiu com toda força. O mesmo afundou na base, mas o botão verde permaneceu na posição em que se encontrava. E o reator continuava a funcionar. A luz não se apagou. Nex parecia satisfeito.
— Agora estou curioso para ver a reação deles.
Rhodan apontou para o rato-castor, que recuara.
— Ele nos dirá quando estiverem chegando. Ele sente.
Nex não perguntou de que forma Gucky sentia os invisíveis. Preferiu destravar a arma. Retiraram-se do controle do reator e distribuíram-se. Sabiam o que estava em jogo. Rhodan explicara minuciosamente o plano. Aquilo que três feixes de raios energéticos fizeram na superfície devia ser conseguido com uma facilidade muito maior por sete feixes de raios muito mais fortes.
Esperaram em silêncio.
Ninguém sabia se os invisíveis podiam vê-los. Talvez não tivessem órgãos de visão propriamente ditos, e apenas tateassem seu caminho. Ninguém poderia saber.
Gucky levantou a mão e fez um sinal.
Alguma coisa se aproximava. Rhodan reforçou sua vigília mental e também sentiu as impressões confusas e ameaçadoras que investiam contra ele. Sua intensidade dependia da distância; e aproximavam-se rapidamente. Muito rapidamente. Rhodan ficou refletindo sobre como os invisíveis poderiam ter conseguido um acesso para o mundo subterrâneo e de que forma se locomoviam no mesmo. Será que eram capazes de atravessar a matéria compacta?
— Estão chegando! — cochichou Gucky e lançou um olhar obstinado para o bloco em semicírculo.
Forçosamente, tal bloco teria de ser o destino dos invisíveis. A não ser que resolvessem penetrar diretamente no reator. Mas não era de supor que isso acontecesse, pois já haviam revelado que não eram imunes aos raios energéticos.
Gucky olhou lentamente em torno. Dirigia os olhos para alguma coisa que os outros não viam. Mas embora não fossem telepatas como o rato-castor, também sentiam a pressão no cérebro. E Gucky olhava exatamente na direção da qual vinha essa pressão.
Agora Gucky estava olhando para o semicírculo. Mas ainda não havia disparado.
O botão vermelho desceu.
A mão invisível comprimiu-o! Mas o botão verde continuou onde estava. A luz continuou acesa. O reator não parou de funcionar.
Gucky levantou a cabeça e fitou Rhodan.
Este acenou com a cabeça.
Era o comando dirigido a todos.
Os raios energéticos foram expelidos por sete armas pesadas. Cruzaram-se no lugar exato onde estaria um homem que quisesse comprimir os botões. A concentração de energia mortífera apareceu sob a forma de cascatas que desciam por um corpo invisível. Este corpo assumiu formas humanas e foi-se materializando aos poucos, em meio à luz.
O invisível tornou-se visível.
Possuía formas humanóides, conforme já haviam observado. E contorcia-se como se sentisse dores e quisesse escapar da direção dos disparos. Mas os feixes energéticos mantinham-no preso ao lugar onde se encontrava. Seus contornos tornaram-se cada vez mais nítidos sob a luz ofuscante. Até o rosto apareceu de forma difusa, mas era totalmente inexpressivo. Rhodan reconheceu dois olhos e uma boca estreita e contorcida. Apenas isso.
Deu o sinal.
Os sete lampejos energéticos apagaram-se ao mesmo tempo.
O desconhecido continuou onde estava.
Caíra ao chão e contorcia-se em convulsões.
Rhodan sentiu que os impulsos mentais e a dor ligada aos mesmos haviam diminuído. Saltou para a frente e correu em direção ao estranho ser. Os outros hesitaram em segui-lo. Gucky ficou parado e montou guarda. Perceberia imediatamente a eventual aproximação de outro invisível e avisaria os outros.
A mão de Rhodan segurou o invisível tornado visível. Sentiu uma espécie de tecido e, embaixo do mesmo, a carne daquele ser. Levantou o inimigo à força e colocou-o de pé. Mas o desconhecido fora tão afetado pelo fogo energético concêntrico que pelo menos perdera os sentidos. Voltou a cair molemente.
Rhodan abaixou-se. Não soltou o desconhecido. Procurou estudar-lhe as feições.
O rosto do desconhecido parecia envolto num véu.
— Está ficando invisível! — gritou a voz estridente de Gucky. — Seus pensamentos... está morrendo.
Rhodan segurou o corpo com mais força, mas sua mão não encontrou resistência. Atravessou o tecido do estranho traje e penetrou no corpo do ser medonho. Por enquanto ainda se via o moribundo, mas logo se tornou transparente. Rhodan já via o piso metálico através do corpo.
Angústia, susto e dor — foram estas as características principais dos impulsos mentais que penetraram pela última vez no cérebro de Rhodan e logo diminuíram. Finalmente apagaram-se de vez.
No mesmo instante, o desconhecido desapareceu. Além de tornar-se invisível, desmaterializou-se.
Morrera — se dissolvera no nada.
Estavam sentados no quarto dos barcônidas, junto à central.
Há duas horas o reator funcionava ininterruptamente. Ninguém mais tentara desligá-lo. Gucky, que permanecera na central para montar guarda, não captara mais nenhum impulso. Tudo indicava que os invisíveis haviam desistido do ataque.
Mas era possível que a calma fosse enganadora.
— De onde vêm esses seres? — perguntou Rhodan.
No íntimo entretinha a esperança de que ao menos Nex pudesse dar-lhe uma explicação. Mas o cientista também não a possuía.
— Vêm do grande vazio intergaláctico. Talvez não tenham nenhum planeta natal e vaguem ao acaso. Um belo dia encontraram-nos. Nosso mundo vaga pelo espaço, aparentemente desabitado. Acreditaram que tinham encontrado um mundo sem vida. Mas depois de algum tempo descobriram a verdade, e atacaram. Acontece que são invisíveis e não têm corpo. No entanto, o corpo do que esteve aqui tornou-se visível. Morreu.
— Isso mesmo. E ao morrer voltou a desmaterializar-se. Até parece que seu estado natural é este. Vivem na mesma dimensão que nós. Não conhecem a teleportação, mas conseguem um efeito análogo. Não são apenas invisíveis no sentido usual do termo, mas nem sequer chegam a existir. No entanto, seu cérebro está presente. Não existe qualquer explicação para isso.
— Encontraremos uma explicação! — asseverou o nexialista, que defendia a doutrina das ciências unificadas e rejeitava a tendência à especialização. — Um dia saberemos de onde vieram e quem são.
Rhodan sabia que isso era um fraco consolo. Enquanto os desconhecidos se limitassem a atacar Bárcon e não estendessem seu campo de atividade à Via Láctea, eles lhe seriam indiferentes. Mas quem poderia afirmar que sempre seria assim? Não havia nenhuma arma eficaz contra os invisíveis, a não ser o impacto ocasional de uma arma energética.
Regoon entrou. Sua barba ruiva esvoaçava. Em sua cama, estava Gorat. Os dois divertiam-se com o compenetrado cientista atômico Laar. Sentado sobre a cama, Laar tinha uma cartola sobre a cabeça.
— Para que essa cartola? — perguntou Regoon em tom de escárnio. — Acho que não estamos na iminência de nenhum ato oficial. Ou será que estamos?
Laar não respondeu. Regoon não repetiu a pergunta. Dirigiu-se a Rhodan.
— Todos os setores estão trabalhando a plena potência. O gerador de campo energético está funcionando e cria uma abóbada protetora. Pretendíamos fazer isso apenas quando nos aproximássemos da Galáxia. Mas resolvemos aceitar seu conselho. O senhor é de opinião que os desconhecidos não gostam de raios energéticos e campos de força?
— Estou convencido de que é assim — confirmou Rhodan. — Assim que o campo energético tiver uma potência suficiente para proteger todo o planeta, veremos se estou ou não com a razão. A atmosfera será regenerada?
— Está se recuperando — asseverou Regoon em tom exaltado. — Dentro de algumas semanas teremos um novo envoltório atmosférico em torno de Bárcon. Ainda fará frio, mas será possível viver na superfície.
— Ao menos será possível criar bases fixas por lá, que se dediquem à observação do espaço. Aquilo que aconteceu nunca deverá repetir-se. Vim para cá por acaso. É possível que da próxima vez não chegue em tempo. Pretende despertar a população?
— Ainda não — respondeu Nex. — Só o faremos quando tivermos certeza de que os invisíveis não voltarão a atacar.
— E quando acredita que tenhamos essa certeza?
Nex levantou as mãos, na atitude tipicamente humana de manifestar a ignorância.
— Não sei mesmo!
Sengu disse:
— Deveríamos ir à superfície, acompanhados por Gucky e dar uma olhada. Se os invisíveis nos atacarem, saberemos que ainda não desistiram dos seus planos.
— Deixemos isso para mais tarde — respondeu Rhodan, em tom hesitante.
Não conseguia livrar-se da impressão de que os invisíveis representavam um tremendo perigo para toda a porção habitada da Via Láctea. Deviam descobrir armas melhores contra eles que o simples acaso. Talvez uma cortina energética...
Regoon fez uma sugestão.
— Talvez fosse conveniente despertarmos alguns técnicos. Não poderemos executar a tarefa sós. Os conjuntos energéticos precisam de uma vigilância e manutenção ininterruptas.
— Só acordem os elementos mais importantes — disse Nex, dando a necessária permissão. — Como vai a produção de alimentos?
— Também está funcionando — informou Regoon.
Rhodan levantou-se.
— Ficar-lhes-ei muito grato se puderem colocar uma sala à nossa disposição. Um de nós ficará constantemente junto ao reator. Mas também precisamos de sono. Temos um caminho longo atrás de nós.
— Aqui ao lado — Nex também se levantou. — Venha comigo. Eu o levarei para lá.
Deitaram sobre as camas limpas, mas o sono pelo qual tanto ansiavam não vinha. De repente Rhodan não sentiu mais nenhum cansaço. Teve a impressão de que acabara de despertar de um sono prolongado e repousante. Será que o cansaço fora apenas imaginário?
Rhodan começou a desconfiar de que o imortal se mantinha presente a uma distância enorme e lhes dava auxílio. Dava-lhes novas forças. Fazia-o apenas para abreviar a missão salvadora junto aos barcônidas. Rhodan fechou os olhos e disse:
— Está vendo Gucky, Sengu?
— Está parado diante do semicírculo em atitude sonolenta. Ah, agora está levantando a cabeça. Olha em nossa direção. Será possível...?
— Naturalmente captou seus pensamentos, Sengu. Gucky, você me entende?
— Está fazendo que sim — disse Sengu, que se sentia feliz com aquela forma singular de comunicação. — Ele compreendeu.
— Excelente, Gucky! Há algum sinal dos invisíveis?
Gucky sacudiu a cabeça.
— Muito bem. Venha até aqui.
O rato-castor materializou-se no interior do quarto.
— Eles já estão cansados de meter o nariz onde não foram chamados... se é que têm nariz — conjeturou. — Não há nenhum impulso, nenhum apertador de botões, absolutamente nada. Vamos partir?
— Não tenha tanta pressa, meu pequenino. Os quatro barcônidas acreditam que estamos dormindo. Não notarão sua falta. Sengu ficará aqui, enquanto você e eu fizermos uma excursão.
— Lá em cima? — piou Gucky em tom exaltado.
Rhodan fez um gesto afirmativo.
— Sengu, vá vez por outra até a central para dar uma olhada. Se os barcônidas perguntarem por nós, informe os cientistas. Entendido?
O japonês fez que sim.
Gucky segurou a mão de Rhodan.
Os dois desapareceram diante dos olhos de Sengu num torvelinho quase imperceptível, formado por espirais energéticas.
Dali a três dias o panorama na superfície havia sofrido consideráveis modificações.
Ao contrário do que acontecera na primeira visita, desta vez Rhodan e Gucky não estavam sós. Eram acompanhados por um grupo de especialistas dos barcônidas. Estes levavam instrumentos ultra-sensíveis, destinados a medir as manifestações energéticas. Sem adotar precauções especiais, o veículo que levava o pessoal passou, depois de ter percorrido uma boa distância, pelo portão que dava para a superfície.
Rhodan escolhera de propósito o lugar em que se verificara o primeiro ataque dos invisíveis. O lago de gelo reluzente constituía uma lembrança do mesmo.
Todos estavam bem agasalhados. Os capacetes espaciais achavam-se abertos. Um ar frio, mas não muito rarefeito, penetrou em seus pulmões. Rhodan levantou os olhos para o céu negro e sem estrelas. Sim, o céu continuava a apresentar a cor negra que se constituía na característica dos mundos sem atmosfera. Mas Bárcon já possuía uma atmosfera. A mesma media apenas algumas centenas de metros de espessura e era mantida presa por um campo energético que envolvia todo o planeta. Esse campo irradiava calor. Nos cumes das montanhas a atmosfera congelada já começava a derreter, fornecendo novas quantidades de ar respirável. A neve também continha oxigênio congelado, que, em virtude de uma mistura toda especial, só era liberado a uma temperatura relativamente elevada.
O campo energético tremeluzia ligeiramente. Só se notava sua presença depois de contemplar o céu por algum tempo.
Nex, que chefiava o grupo de especialistas, disse:
— Está dando certo. Dentro de uma semana a maior parte da atmosfera voltará a gaseificar-se. Depois disso poderemos instalar as bases.
Gucky, que se mantinha um pouco afastado, aproximou-se.
— Sinto um impulso. Ainda estão distantes, mas aproximam-se lentamente.
Rhodan fez um sinal para os homens. Metade deles colocou os aparelhos e instrumentos na nave e tirou as armas. Distribuiu-os segundo um plano bem traçado. Os mecanismos de travamento fizeram um clique.
— Então? — perguntou Rhodan, que só sentia impulsos muito débeis, que não se tornavam mais intensos. — O que está acontecendo?
Gucky hesitou.
— Pararam. Devem estar com medo de nós.
A outra metade dos especialistas manipulava seus instrumentos. Nex transmitia seus comandos com a voz calma. Confiava plenamente em Rhodan e seus dois auxiliares. Tinha uma simpatia toda especial pelo pequeno rato-castor. Nesses três dias, esses seres tão diferentes haviam travado palestras intermináveis. Rhodan percebeu que o rato-castor se tornara muito pensativo. Resolveu que na primeira oportunidade lhe perguntaria sobre o conteúdo das palestras.
— Pronto! — disse Nex depois de algum tempo.
Rhodan sentiu os impulsos diminuírem ainda mais. Não estavam causando dores.
Parecia um cauteloso tatear. Dali a pouco desapareceram de vez.
Gucky lançou-lhe um olhar de espanto.
— Terminou! Parece que desistiram de vez de pensar. É estranho!
Duas telas pequenas iluminaram-se. Uma linha entrecortada verde corria por elas como se fosse um oscilógrafo. Dois barcônidas as manipulavam, fazendo girar uma espécie de câmara. As faixas modificaram seu formato, e Nex exaltou-se ligeiramente.
Rhodan continuou tranqüilo.
— O que está sendo constatado, Nex?
— À nossa frente, a menos de dois quilômetros de distância, existe um obstáculo de natureza energética. Reflete os raios emitidos por este aparelho. Há mais três obstáculos a sete quilômetros. São da mesma espécie.
— Qual é seu formato?
— Um momento!
Depois de confabular ligeiramente com os técnicos, Nex voltou a dirigir-se a Rhodan:
— O formato é alongado. Parecem torpedos. Têm uns vinte metros de espessura e cem de comprimento. Será que são...?
Rhodan fez que sim.
— Isso mesmo; são naves espaciais. As espaçonaves dos invisíveis também são invisíveis. Só os instrumentos podem constatar sua presença.
— O que devemos fazer?
— Esperar — recomendou Rhodan.
Tinha seus pressentimentos, mas preferiu aguardar a confirmação dos mesmos. Desviou os olhos para Gucky, que olhava na direção onde devia estar a nave cuja presença fora constatada pelos instrumentos. Depois de algum tempo, o rato-castor captou a pergunta muda. Respondeu:
— Não há mais nenhum impulso. As paredes das naves devem ser um obstáculo para eles.
As linhas verdes passaram a correr loucamente sobre as telas. Nex inclinou-se sobre um dos técnicos e comentou algo com ele em voz baixa. Depois disse em voz alta:
— A nave mais próxima acaba de decolar. Atravessou o campo energético, causando-nos uma perda de energia, e avança pelo espaço.
Esperou alguns segundos, durante os quais não tirava os olhos da tela.
— Já desapareceu. Está fora do nosso alcance. Pelos seus padrões isso representa cerca de dez horas-luz.
Dez horas-luz em dez segundos! Rhodan soltou um assobio entre os dentes. Era um ótimo desempenho, uma vez que se tratava simplesmente da decolagem. Que velocidade as naves desses seres desconhecidos não deveriam desenvolver no espaço?
— As três naves restantes também decolaram! — anunciou Nex. — O campo energético foi rompido, mas volta a fechar-se. Só uma pequena parte da atmosfera conseguiu escapar.
Aproximou-se de Rhodan.
— O que significa tudo isso? Será que fugiram?
— Parece que sim — respondeu Rhodan, embora tivesse suas dúvidas. — Reconheceram que seu plano fracassou e tiraram suas conclusões, conforme é de esperar-se de seres inteligentes como eles. Acho que pode prosseguir em sua viagem e acordar a população.
— Acredita que só havia essas quatro naves?
— Acredito. Provavelmente apenas uma expedição de reconhecimento. Pousaram aqui, onde as irradiações eram mais fortes. O reator fica exatamente embaixo de nós. No futuro eles não representarão mais nenhum perigo para os senhores, desde que suas bases externas se mantenham numa vigilância ininterrupta e registrem a presença de qualquer objeto que se aproxime de seu planeta, quer seja visível, quer não.
— Qualquer objeto? — repetiu Nex em tom de dúvida. — As quatro naves que acabaram de partir não são objetos, mas apenas impulsos energéticos.
— O senhor sabe o que quero dizer — falou Rhodan com um sorriso e saiu andando.
Tudo levava a crer que já havia cumprido a tarefa que lhe fora confiada pelo imortal do planeta Peregrino.
Esperaram até que os barcônidas acordassem, o que aconteceu dali a dois dias. O preparado que os despertava foi acrescentado ao ar que respiravam e conduzido aos dormitórios. Os barcônidas levantaram; a vida interrompida prosseguiu como se nada tivesse acontecido. Novas ordens foram emitidas e Rhodan teve certeza de que os invisíveis não seriam bem-sucedidos, se resolvessem lançar outro ataque de surpresa.
Subitamente alguma coisa tateou em seu cérebro. Seguiu-se uma pergunta perfeitamente audível e claramente formulada:
— Perry Rhodan...? Os barcônidas estão vivos, não estão?
Era o imortal! Conseguia captar os impulsos mentais da raça que acabara de despertar, embora estes ainda fossem tão fracos que não conseguia identificar seu significado. Nunca o fato de que, para os telepatas, a distância não representa nenhum problema se impôs com tamanha clareza à mente de Rhodan. Para verdadeiros telepatas! Nem mesmo Gucky conseguia superar uma distância de cem mil anos-luz. Ninguém podia... a não ser o imortal do planeta Peregrino.
— Acordaram — disse Rhodan em voz alta.
Estava só, numa pequena elevação. Resolvera dar um passeio na superfície, a fim de certificar-se de que as estações de vigilância estavam sendo construídas. O grande portão que ficava no fundo do vale estava bem perto. Num ponto não muito distante dali, alguns técnicos estavam trabalhando. Instalaram seus instrumentos de observação sob uma pequena cúpula de plástico.
— Bárcon foi atacado por desconhecidos, que quase conquistaram o planeta. Os barcônidas colocaram-se num estado de sono profundo, a fim de evitar a morte pela fome. Seus cérebros também descansaram.
— Então foi por isso que não captei mais impulsos — disse a resposta silenciosa. — Quem foram os atacantes?
Sim, quem foram? Rhodan daria tudo para poder dar uma resposta à pergunta do imortal.
— Vieram do grande vazio e são invisíveis. Só pode ter sido uma expedição, pois com os instrumentos especiais conseguimos localizar quatro naves que abandonaram Bárcon. Apesar disso, por pouco não conseguiram conquistar o planeta. Sua técnica...
— Invisíveis...? — interrompeu-o o imortal.
Seguiu-se uma ligeira pausa. Depois surgiu a pergunta:
— Não têm corpo? Não possuem matéria? Só se tornam visíveis e se materializam quando são expostos a um campo energético excessivamente forte?
Rhodan não disfarçou o espanto. Então o imortal conhecia aquelas criaturas estranhas...?
— Os fenômenos que observamos foram exatamente estes. Só se materializam no centro de vários raios energéticos concentrados. Mas logo se desfazem, quando cessa o bombardeio energético... ou quando morrem.
A resposta demorou alguns minutos.
Rhodan continuava parado sob o céu negro de Bárcon e contemplava a mancha difusa da Via Láctea. Metade estava encoberta pela linha do horizonte. A neve já desaparecera dos cumes das montanhas. Também nas planícies passava a derreter. Rios caudalosos abriram caminho para os pontos mais baixos. Lagos começavam a formar-se. A superfície de Bárcon sofria uma modificação.
Depois de algum tempo ouviu a voz silenciosa do imortal. Parecia que falava consigo mesmo, não com Rhodan:
— Bárcon será uma pista que levará à nossa Galáxia. E eles seguirão esta pista...
— Eles? — perguntou Rhodan, procurando manter-se calmo e esforçando-se para dominar o nervosismo. — Quem são eles?
Teve uma decepção. O imortal não lhe forneceu qualquer esclarecimento.
— Sua missão está concluída, Perry Rhodan. Daqui em diante, eu cuidarei dos barcônidas. Dentro em breve terei forças para tomar pessoalmente as providências necessárias, caso volte a surgir uma situação que exija isso. Regresse! Estou à sua espera.
Rhodan sabia que qualquer objeção seria inútil. O imortal era mais poderoso que ele; tinha de submeter-se às suas ordens e desejos. Incondicionalmente.
— Voltarei — prometeu. — Ainda hoje.
— A nave, que deverá levá-lo, pousará dentro de duas horas no mesmo lugar em que você se encontra neste momento. Não se esqueça disso, a não ser que queira permanecer para sempre em Bárcon. Você não tem muito tempo.
— Sei disso — respondeu Rhodan.
Sabia que cada segundo do seu tempo fora dividido em conformidade com um plano perfeitamente delineado. Já agora, o misterioso mecanismo de direção da nave energética recebera suas instruções e as cumpriria rigorosamente. Nem o tempo da decolagem, nem a velocidade ou a rota poderiam ser modificados. Ninguém, a não ser o imortal, tinha qualquer influência sobre o veículo espacial.
— Pode esperar por mim.
Não houve mais nenhuma resposta. Nem sequer uma confirmação ou agradecimento.
Rhodan olhou para a planície. A base estava quase concluída. Constataria prontamente a aproximação do que quer que fosse, até mesmo de naves invisíveis e imateriais, e comunicaria sua presença. O campo energético, que envolvia Bárcon, fora fortalecido a tal ponto que até estas naves se tornariam visíveis. Os canhões energéticos automáticos apontariam para o alvo e disparariam.
Rhodan olhou para o relógio. Dispunha apenas de uma hora e cinqüenta minutos. Era pouco. Sem o auxílio de Gucky, dificilmente conseguiria chegar até a nave.
Chamou-o, pensando nele.
O rato-castor materializou-se a seu lado.
— Você falou com o imortal; acompanhei a palestra.
Sem o menor constrangimento Gucky confessou sua espionagem telepática.
— Não quer dizer quem são os invisíveis, muito embora se lembre perfeitamente deles. Não é uma atitude muito decente.
— Ele deve ter seus motivos para agir desta forma — disse Rhodan em defesa do imortal. — Leve-me para baixo. Soou a hora da despedida.
Encontraram Sengu na central de comando. Estava em companhia de Nex e Regoon. Os homens se haviam tornado bons amigos e discutiam, durante horas, sobre as vantagens do nexialismo.
— É evidente — estava dizendo Nex — que a especialização pura leva à massificação e reprime o individualismo autêntico. Só a colaboração entre os especialistas pode trazer resultados satisfatórios. Basta que um deles falhe, para que o trabalho dos outros seja inútil. É como se fosse um instrumento hipersensível. Se uma única peça entrar em pane, pode-se jogar fora todo o aparelho, a não ser que se disponha de uma peça sobressalente.
— É verdade — concordou Sengu. — Acontece que um nexialista nunca pode substituir plenamente uma equipe de especialistas, pois nunca poderá ter tantos conhecimentos quanto os especialistas em conjunto.
— Mas o risco sempre será menor — objetou Nex em tom convicto — pois um nexialista saberá arranjar-se em todas as situações, o que não acontece com um especialista, a não ser que o problema se situe justamente na sua área de especialização. E isso é muito raro.
— Não seria impossível estudar e dominar todas as especialidades, a fim de adquirir uma idéia geral de todos os ramos de conhecimento?
— Será mais fácil adquirir uma ampla cultura geral do que conhecer todas as áreas de uma única especialidade nos menores detalhes. Acho que isso seria muito enfadonho.
Rhodan e Gucky deram sinal de sua presença. Dirigiram-se aos dois homens.
— Não há dúvida de que o nexialismo é uma teoria muito interessante — confessou Rhodan. — Qualquer nave espacial que singre o espaço, dependendo unicamente dos seus recursos, deveria levar a bordo um nexialista capaz de coordenar o trabalho dos especialistas na solução dos problemas mais difíceis — sorriu. — É possível que mais tarde voltemos a conversar sobre isso, Nex. Agora infelizmente não temos tempo. Devemos despedir-nos.
— Pretendem deixar-nos? — Nex parecia assustado.
Regoon, que até então acompanhara a palestra em silêncio, adiantou-se. Seu rosto revelou um grande sobressalto.
— Já? Não sabemos se os invisíveis...
— Eles não voltarão. E se voltarem, vocês estarão preparados. Conhecem a arma com a qual poderão derrotá-los. Mantenham o reator sob bloqueio. Observem a superfície. Prossigam em sua viagem. Lembrem-se de que nunca estarão sós.
Regoon deu-se por satisfeito. Compreendeu que não conseguiria modificar as intenções de Rhodan. Talvez também desconfiasse de que Rhodan não era dono de suas decisões, tendo que obedecer a alguém que ocupava uma posição mais elevada.
— Neste caso está na hora de manifestarmos nossos agradecimentos a você e seus amigos. O que teria acontecido conosco se vocês não tivessem vindo?
— Ninguém sabe, Regoon. Nem mesmo nós.
— Isso acontece porque ninguém conhece as intenções dos atacantes — observou Nex. — E ainda porque ninguém sabe para onde foram. Nunca nos havíamos encontrado com eles. E olhe que nossa história já tem um milhão de anos.
Regoon retirou-se e voltou em companhia de Gorat e Laar. Rhodan sabia que os quatro homens a seu lado representavam o povo dos barcônidas. Sempre que se lembrasse desse povo, enxergaria em sua mente a imagem desses quatro homens.
Laar, o maior cientista atômico de seu povo, também ocupava a posição de chefe do governo. Isso provava que é perfeitamente possível harmonizar a ciência e a política, e que nem sempre um grupo de cientistas politizados representa o fim do mundo.
Voltara a usar a cartola que, segundo parecia, costumava ser exibida sempre que havia uma oportunidade especial. Rhodan voltou a espantar-se com isso. Mas mais uma vez preferiu não fazer perguntas. As relações existentes entre os barcônidas, os arcônidas e os terranos seriam esclarecidas no devido tempo.
— Ficamo-lhes eternamente gratos — disse Laar, apertando a mão de Rhodan, de Sengu e finalmente de Gucky. — Talvez possamos retribuir um dia, quando seu povo precisar de auxílio... e quando nos tivermos aproximado bastante. Contem conosco.
— Se alguém tem de agradecer, somos nós — respondeu Rhodan. — O que seria de nós se não fossem vocês?
Disse isso para fortalecer a autoconfiança dos barcônidas. Consideravam-se os ancestrais de todas as inteligências da Via Láctea, que fora colonizada por eles há um milhão de anos. E precisariam de uma boa dose de autoconfiança para superar o longo período de tempo que tinham pela frente.
Regoon e Gorat também se despediram. Não fizeram perguntas. Sabiam que, na superfície, uma nave pequena estaria à espera dos terranos, tal qual acontecera há muitos anos.
— Eu os acompanharei — disse Nex.
Rhodan olhou para o relógio.
— Só dispomos de pouco mais de uma hora. Será que de carro chegaremos em tempo? Olhe que o caminho é longo...
— Tomaremos o elevador — respondeu Nex. — Dessa forma estaremos na superfície dentro de dez minutos.
As escotilhas fecharam-se no momento exato. A colina com a figura solitária do barcônida foi se afastando. Nex acenava com ambos os braços. Rhodan retribuiu até que a figura solitária se transformasse num ponto minúsculo em meio à solidão manchada de branco, e desaparecesse.
A nave rompeu a abóbada energética e atingiu o espaço livre. Aumentou a velocidade. Bárcon caiu num abismo sem fim e transformou-se numa esfera. Era difícil distingui-la, já que a luz muito escassa produzia reflexos pouco intensos.
Depois de algum tempo, Bárcon desapareceu.
A proa da nave apontou para a Via Láctea distante, que se destacava como nuvem luminosa contra o fundo negro.
O vôo de regresso fora iniciado.
A Drusus estava pousada no planeta Peregrino.
No pavilhão do fisiotron estavam Rhodan e todos os mutantes que há menos de sessenta anos haviam recebido a ducha revitalizante. Aproveitou a oportunidade para pedir ao imortal que lhe concedesse a ducha celular, e seu pedido fora atendido. Queria que também os mais competentes dentre os homens que os cercavam obtivessem o prolongamento da vida, quer fossem mutantes, quer não.
Uma vez iniciada a ação, Rhodan dirigiu-se a uma sala onde o imortal já o aguardava.
Mais uma vez flutuava pouco abaixo do teto, sob a forma de uma esfera.
Rhodan sentou-se na poltrona e esperou. A esfera desceu até encontrar-se na altura dos olhos de Rhodan.
— Seus pensamentos já me revelaram tudo, Perry Rhodan. Não precisa contar-me nada. Apenas quero dizer-lhe alguma coisa.
— E minhas perguntas?
— Não posso e não devo dar resposta às mesmas. Um saber excessivo influencia o futuro. Para você o futuro deve continuar envolto na escuridão, pois a luz ofuscante do saber o cegaria. Os barcônidas estão salvos. Estão a caminho, e um dia nos alcançarão. Talvez isso aconteça mais cedo do que você acredita. E mais cedo do que você julga possível.
— Você conhece o futuro?
— O futuro está predeterminado, mas existem muitos caminhos que conduzem ao mesmo. E este é o único segredo: os caminhos do futuro.
— Quer dizer que os caminhos podem ser vários, mas o ponto final está previamente determinado e não pode ser modificado.
— Quando falo no futuro, refiro-me ao fim de todos os tempos. Tudo teve um começo, situado a bilhões de anos. Conclui-se que o tempo também terá um fim. E é nesse fim que confluem todos os caminhos que conduzem ao futuro. Por mais diferentes que sejam os planos existenciais e as trilhas das possibilidades, tudo conduz a um destino único: o fim de todos os tempos.
— O fim do tempo — disse Rhodan e sentiu um calafrio que lhe desceu pela espinha. — Qual é o sentido do passado e do presente, se o futuro apenas pode representar o fim?
— Ninguém sabe da existência desse fim, a não ser você e eu — respondeu o imortal. — Você seria capaz de desvendar o mistério?
Rhodan sacudiu a cabeça. Sabia perfeitamente que não falaria a ninguém sobre isso. Só lhe restava uma pergunta, já que avançara tanto.
Formulou a pergunta.
— Como será o fim do tempo, amigo? Será o nada? Será a paz eterna ou o caos? O que virá depois do fim? Deve haver alguma coisa. Ou será que o nada realmente existe?
A bola cintilante, que corporificava uma raça desaparecida e englobava sua sabedoria, parecia crescer um pouco. Subiu. Rhodan teve a impressão de que a modificação poderia representar uma alteração do estado de ânimo.
— As perguntas que você acaba de formular ultrapassam sua capacidade de compreensão. Será que você nunca pode dar-se por satisfeito? Você sabe mais que qualquer outra inteligência do Universo. Sabe que há muitos caminhos que conduzem ao futuro, e que cada ser pensante escolhe seu caminho. É claro que não sabe como será esse caminho. Mas sabe que leva inexoravelmente ao futuro. Também você trilhará um destes caminhos, mas haverá alguém que o guiará. Seu caminho não é o mais fácil, mas em suas margens existem as maiores riquezas. Sua tarefa consistirá em abaixar-se em tempo, antes que tenha passado pelo lugar em que se encontram as riquezas. O fim do tempo...?
“Não, meu caro. Nem mesmo você saberá como é o fim do tempo. Talvez seja o início de uma nova era, talvez seja apenas o nada. Sou o único ser vivo que poderia responder às suas perguntas, mas não o farei. Não há dúvida de que no futuro serão realizadas tentativas de romper a muralha do tempo. Algumas dessas tentativas serão bem-sucedidas. Mas de que adiantará isso? Qualquer máquina do tempo só poderá investigar um único caminho, e quando atingir o fim do tempo, deixará de existir. Como poderíamos conceber uma máquina do tempo sem tempo? Ela nunca voltará. E não é possível nadar transversalmente ao fluxo do tempo. Ao menos no plano material.”
Rhodan reconheceu as limitações. Nunca se esqueceria delas. Seus músculos se descontraíram. Subitamente sentiu-se inundado por uma tranqüilidade que nunca antes conhecera. Por uma fração de segundo enxergou o caminho que iria percorrer. Estava profusamente iluminado e destacava-se nitidamente em meio à escuridão do infinito, até perder-se em algum lugar no oceano do tempo. Dirigia-se a um destino desconhecido.
A visão apagou-se.
Continuava sentado em sua poltrona. A esfera flutuava à sua frente. Era incompreensível em sua sabedoria e onipotência; imortal, conhecia o princípio e o fim do tempo. Se existia, o futuro ainda devia ter um sentido. Do contrário não teria posto fim à própria existência? E, se não fosse assim, continuaria a guiar a ele, Rhodan?
— Fico-lhe muito grato — disse Perry, que se sentiu humilde na consciência da própria fraqueza e pequenez.
Não era apenas um homem, embora fosse relativamente imortal? Não havia muitos homens iguais a ele? Não fora apenas por meio do auxílio de outrem que se transformara naquilo que era? O que seria dele se não fossem os amigos e ele...?
— Também lhe fico grato — respondeu o imortal. — Você me ajudou numa situação em que até eu estava impossibilitado de prestar auxílio. E se não tivéssemos corrido para ajudar os barcônidas...
O resto da frase deixou de ser pronunciado. Estava na hora de formular a última pergunta.
— O que aconteceu com os barcônidas? Quem são realmente? E por que você se interessa tanto pelo seu destino?
— Você acha que sinto uma simpatia especial por eles? Não é verdade.
— Por que tive de salvá-los?
— Porque são importantes! Sem eles o fim do tempo talvez fosse diferente... Não sei.
— Pensei que esse fim fosse predeterminado e imutável.
— Também acredito que seja assim. Mas como poderia saber?
Rhodan viu que não conseguiria descobrir mais nada.
— E os invisíveis? Quem são eles? Você já teve algum encontro com esses seres?
Seguiu-se uma ligeira pausa. Rhodan sabia que seus companheiros encontravam-se recebendo a ducha celular. Não estava perdendo tempo.
Finalmente veio a resposta:
— É graças a eles que sou aquilo que sou. É só o que posso dizer.
— Foi graças a eles? Não compreendo. Quer dizer que não são inimigos? Por que atacaram os barcônidas?
Seguiu-se outra pausa.
— Se você é morto por um inimigo, Perry Rhodan, você tem de lhe ser grato por sua morte. Será que me fiz entendido?
Então era apenas um jogo de palavras?
A esfera reluzente subiu ao teto. Rhodan levantou-se. A poltrona desapareceu como se nunca tivesse estado naquele lugar. Mas isso o deixou tão indiferente quanto o fato de que permanecera quase uma semana em Bárcon, enquanto na Drusus só se haviam passado quatro horas.
— Passe bem, amigo — disse o imortal em sua forma silenciosa e sugestiva. — Você terá notícias minhas. Poderei alcançá-lo em qualquer lugar e tempo.
— Em qualquer tempo? — perguntou Rhodan com um sorriso e inclinou-se em direção à esfera, que se foi tornando invisível e desapareceu.
Não obteve resposta.
O planeta artificial Peregrino voltara a mergulhar em sua invisibilidade anônima. O Coronel Sikermann acabara de anunciar a primeira transição.
Estavam reunidos no camarote de Rhodan: Bell, John Marshall, Sengu, Gucky e mais alguns mutantes. O Dr. Manoli estava parado junto à porta.
— Da outra vez foi ainda mais louco — disse Bell em tom indiferente, numa alusão patente à primeira excursão que Rhodan fizera a Bárcon. — Você permaneceu em Bárcon por vinte dias, mas em nossa dimensão temporal não perdeu mais que um segundo. Desta vez você esteve fora por uma semana e perdeu quatro horas. Ao que parece, o imortal é capaz de fazer variar as relações temporais.
— Isso seria ótimo para certos homens — disse Gucky. — A gente despede-se da esposa, dizendo que vai ao escritório. Na verdade, passa umas férias no Sul, com... bem, com outra pessoa, que não é a esposa. Dali a um mês a gente volta e chega bem na hora do almoço.
Um sorriso irônico surgiu nos lábios de Manoli.
— Não sou casado — observou.
Betty Toufry estava acariciando o pêlo de Gucky.
— Você não tem uma opinião muito favorável de nossos homens — disse, censurando a fantasia descontrolada do pequeno amigo. — Como é que as faculdades extraordinárias do imortal puderam estimular idéias tão sujas em sua mente?
John Marshall não permitiu que a conversa o distraísse. Ouvira o relato de Rhodan e só conhecia um problema. Formulou, então, uma série de perguntas referentes ao tal problema.
— Quem serão os invisíveis? Será que vieram de nossa Galáxia? Por que nunca nos encontramos com eles?
Rhodan sorriu e lançou-lhe um olhar pensativo.
— O senhor acaba de formular três perguntas de uma só vez, e não sei responder a nenhuma delas. Uma coisa é certa: o imortal do planeta Peregrino conhece os invisíveis. Já deve ter tido um contato com eles. Não sei mais que isso, e não estou disposto a manifestar minhas conjeturas e especulações. Receio que um dia nos encontremos com os invisíveis. E acho que esse encontro não poderá ser comparado com o que tivemos com os druufs. A diferença é tremenda.
— Será que um dia nos encontrarão?
Rhodan não respondeu.
Gucky levantou-se.
— Vou deitar um pouco. Quer vir comigo, Bell? Quero contar-lhe uma nova piada. Imagine só: uma das moças que trabalham na sala de rádio contou-a a uma amiga. Naturalmente ouvi-a por acaso. Bem, na verdade, acompanhei-a em pensamento. Não tive a intenção de fazê-lo. Mas trata-se de uma excelente piada. Então?
Bell mal levantou os olhos.
— Obrigado. Não estou com vontade. Aliás, já conheço a piada.
Por um segundo Gucky ficou muda de espanto.
— Você já a conhece? Como, se nunca lhe contei?
— É verdade! — Bell bocejou de enfado. — Acontece que Liane Pepsy contou. Como sabe, é a moça da sala de rádio.
Gucky levantou a sobrancelha e saiu balançando em direção à porta. Abriu-a, parou e virou-se.
— Que indecência! — piou em tom indignado. — E sempre pensei que Liane fosse uma boa moça. Que coisa!
Assim que acabou de pronunciar estas palavras, desapareceu.
Bell fechou os olhos. Parecia satisfeito. Mas se acreditava que dali em diante ficaria em paz, estava enganado.
O Dr. Manoli aproximou-se e deu uma pancadinha em seu ombro.
— Vamos, Bell. Conte logo! Quer que tenhamos água na boca?
Bell abriu os olhos. Lançou um olhar de esguelha para as mutantes e disse:
— Infelizmente não é possível, doutor. Como vê, há senhoras por aqui.
Betty levantou-se e fez um sinal para Ishy Matsu.
Já na porta, disse:
— Sentimos muito, Bell, mas acontece que somos telepatas. A piada é muito velha. Divirtam-se.
Só restavam o Dr. Manoli e Rhodan. John Marshall também já conhecia a piada. Soubera-a de Gucky.
— Um dia um homem do campo chegou à cidade... — principiou Bell.
Rhodan levantou-se e caminhou em direção à porta. Bell quase ficou sem fôlego.
— Você também já a conhece? — perguntou em tom decepcionado.
Rhodan sacudiu a cabeça.
— Não conheço a piada, meu caro. Mas o conheço!
Manoli sorriu.
— Sua fama não anda nada boa, seu caçador de estrelas. Mas agora ninguém mais nos perturbará. Conte.
Bell superou a decepção.
— Pois bem. Um homem do campo chega à cidade e...
— Transição dentro de dez segundos — disse uma voz saída do alto-falante.
Era o Coronel Sikermann. Seu tom era indiferente e objetivo.
Manoli sentiu-se decepcionado.
Nunca ouviria a piada. Ao menos não da boca de Bell, que amoleceu que nem um balão furado. Três interrupções? Não havia ninguém que fosse capaz de agüentar uma coisa dessas.
Mas Manoli procurou consolar-se. Pediria a Liane Pepsy que lhe contasse a piada. Esta ao menos não gostava de fazer figura de estrela. Não era uma moça para isso!
— Transição! Silêncio.
Depois a voz de Bell voltou a fazer-se ouvir:
— Pois bem... um homem do campo chega à cidade e pergunta a um guarda onde fica a esquina mais próxima...
— Pare! — gritou Manoli em tom indignado, cobrindo o rosto com as mãos. — Isso é a piada da mistura das raças de cachorros! Já conheço! Aliás, já a conheço há um século. E nem é indecente. Ora, que piada...
Todos os objetos que se encontravam no camarote de Rhodan eram de uma cor discreta. A harmonia só era rompida por uma mancha vermelha e redonda.
Quem olhasse mais atentamente, descobriria que essa mancha era o rosto de Bell...
Clark Darlton
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