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O Retrato - P3 / Érico Veríssimo
O Retrato - P3 / Érico Veríssimo

 

 

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O TEMPO E O VENTO

O Retrato - Parte III

 

XX

Foi um inverno rude e cruel, aquele. A água da lagoa do cemitério amanheceu um dia coberta com uma camada de gelo da espessura dum vidro de vidraça. As geadas eram freqüentes e, para cúmulo dos males, junho fora um mês chuvoso. Agosto entrou com um rijo minuano, que soprou durante dois ou três dias sem parar, sob um céu tão límpido e rútilo, que parecia - no dizer de Maria Valéria - ter sido esfregado a coco com sabão. O Zago declarou que, desde que se estabelecera com farmácia, jamais vendera tantos xaropes e pastilhas contra tosse, tantos sinapismos, cataplasmas e linimentos. Os bolicheiros aumentaram sensivelmente a venda de cachaça. A Casa Sol esgotou seu estoque de ponchos, capas e artigos dela.

Sempre que fazia sol, depois do meio-dia viam-se nos quintais, nas praças ou nas calçadas, homens a lagartear, metidos em ponchos, capas ou sobretudos, pitando, conversando, tossindo, expectorando ruidosamente, falando do tempo ou da política, recordando outros invernos e comparando-os com o presente. Quando anoitecia, as ruas ficavam completamente desertas e às vezes as únicas vozes que se ouviam nelas era o uivo do vento ou o ladrar de algum cachorro vagabundo. Em compensação, aquele inverno trouxe uma abundância de laranjas e bergamotas duma doçura de mel.

Os serões na casa dos Quadros recendiam confortavelmente a açúcar queimado. Dona Laurentina esperava Rodrigo com uma panela cheia de pinhões quentes. Aderbal zombava do futuro genro que, muitas vezes, para ser agradável à noiva, ficava a tomar mate doce em companhia das mulheres. E agora, passado o período de cerimônia, o noivo era recebido na cozinha, onde durante os serões, conversavam ao pé do fogo.

No princípio daquele inverno, o coronel Maneco Macedo caíra de cama com pneumonia, ficando à morte. Chamado a atendê-lo, Rodrigo passou várias noites em claro à cabeceira do doente, conseguindo pô-lo completamente fora de perigo antes de agosto. E quando, ainda na cama, emagrecido, pálido, barbudo, numa trêmula alegria de convalescente o estancieiro lhe pediu a conta, Rodrigo perguntou: "Por que tanta pressa?" Como o paciente insistisse, resolveu: "Bom. Fica a. seu critério. O que o senhor decidir está bem". Achava ainda desagradável fazer preços, cobrar contas, principalmente quando o cliente era pessoa de suas relações. No dia seguinte Maneco Macedo mandou-lhe à casa dois contos de réis dentro dum envelope, o que pareceu a Rodrigo um pagamento mais que generoso. E estava ele a pensar na melhor maneira de gastar aquele dinheiro - mais conservas, discos novos? perfumes? roupas? um presente para Flora? - quando lhe apareceu Marco Lunardi, dizendo que a maquinaria encomendada para a fábrica estava a caminho, e, se o doutor inda se lembrava - não é? - do que haviam conversado o outro dia, pois é... E ficou com um ar acanhado, as mãos na cintura, sem muita coragem de olhar o amigo bem nos olhos. Claro! - exclamou Rodrigo. E passou-lhe sem pestanejar o dinheiro que recebera do coronel Macedo. E quando o colono falou em assinar uma letra, repeliu a sugestão. Haveria melhor documento que a palavra dum homem honesto?

- Mas os honestos também morrem, doutor...

- Pois se morreres perderei apenas dois contos de réis, ao passo que tu terás perdido a vida. Como vês, teu risco é maior que o meu. Portanto, não se fala mais no assunto. Vamos comemorar o acontecimento.

Beberam um copo de Chianti à prosperidade da fábrica de massas alimentícias de Marco Lunardi.

Dona Emerenciana também caíra de cama em meados de julho. Não quis saber do dr. Matias nem do dr. Píndaro, o médico militar: queria era o Rodriguinho. "Chamem esse menino, senão eu morro!"

Rodrigo sentiu uma curiosa sensação ao entrar pela primeira vez em sua vida no casarão dos Amarais. No Sobrado sempre ouvira referências à velha rivalidade entre Cambarás e Amarais. Sabia que fora naquele severo casarão de pedra que seu bisavô morrera em 1836 varado por uma bala disparada possivelmente por um Amaral. Em 95 os federalistas, comandados por Alvarino, haviam sitiado o Sobrado, atirando contra a casa e seus moradores. As relações de Rodrigo com o marido de dona Emerenciana eram as mais equívocas. Pouco se viam, e quando se avistavam na rua mudavam de calçada, dobravam esquinas, faziam o possível para não se defrontarem. Rodrigo, porém, não tinha nenhum rancor por aquele homem, e sabia que Alvarino mais duma vez se referira a ele em termos elogiosos e cheios de simpatia.

Agora cá estou eu entrando no casarão dos Amarais... Uma cena que bem podia estar nos folhetins de dona Emerenciana. Que dirá o papai quando souber disto? Bolas, no fim de contas sou médico e não posso faltar ao meu juramento. Recebi um chamado e vim...

Alvarino, que o esperava no vestíbulo, estendeu-lhe a mão. Rodrigo, apertou-a em silêncio. Dona Emerenciana recebeu-o efusivamente, com beijos na face e protestos de amizade. Rodrigo examinou-a e interrogou-a com todo o cuidado. Saiu do quarto e chamou o marido à parte.

- O coração de sua senhora não está nada bem... O que ela precisa é dum máximo de repouso e dum mínimo de emoções. Ah! É imprescindível também que emagreça uns dez quilos.

O dono da casa fez um gesto de impaciência.

- A Emerenciana é uma mulher das custosas! Gosta de doce que nem formiga. Passa o dia comendo essas porcarias.

- Vou receitar um remédio e dar instruções para uma dieta.

Durante os vários dias seguintes, Rodrigo visitou sua amiga a horas certas. Uma noite encontrou no quarto da doente tia Vanja, que, sentada ao pé do leito, com os óculos na ponta do nariz, lia à luz dum lampião o folhetim do Correio do povo, enquanto dona Emerenciana, sentada na cama, especada entre travesseiros a escutava de olhos semicerrados e uma expressão de felicidade no rosto. Rodrigo ficou entre as duas mulheres por alguns minutos estonteado no meio de tantas expressões carinhosas que partiam ora duma ora doutra, numa espécie de torneio em que cada qual se empenhava em descobrir a frase mais tenra, o adjetivo mais elogioso para atirar sobre o "Rodriguinho". Despediu-se delas, deixando-as a discutir as personagens do folhetim como se se tratasse de criaturas vivas que conhecessem na intimidade. Será que o conde vai casar com a Marie? E por que é que aquele sem-vergonha do dr. Monet não volta para o lar? Anda bebendo nas tavernas enquanto a pobre da esposa fica em casa se esfalfando a costurar, a costurar, a costurar...

Certa manhã de espessa geada, espalhou-se a notícia de que na Sibéria uma criança havia morrido enregelada. Rodrigo tomou o carro e foi vê-la. Dava-se o nome de Sibéria a um agrupamento de ranchos miseráveis situado no alto duma coxilha, a leste da cidade. A denominação vinha do fato de ser aquela a zona mais fria de Santa Fé.

A criança morta estava atirada no chão, ao ar livre, hirta e roxa, com o rosto úmido de geada, os olhos abertos e vidrados. Os parentes achavam-se reunidos em torno do pequeno cadáver, com uma expressão de estupidez nas caras macilentas.

Rodrigo providenciou para que se fizesse o enterro à sua custa deu dinheiro aos pais da criança e voltou para casa profundamente abalado. Era incrível que coisas como aquela pudessem acontecer. Sentia-se um pouco culpado daquilo, pois não havia levado avante seus projetos de assistência aos pobres. Andava demasiadamente absorto na fruição feliz de sua própria vida, de seus prazeres e de seus êxitos.

Naquela semana levou ao Barro Preto, ao Purgatório e à Sibéria carroças cheias de sacos de feijão, milho, arroz, batatas - gêneros que distribuiu entre os necessitados com entusiasmo e generosidade, mas sem o menor método. Comprou cobertores e andou pelas casas dos amigos a pedir roupas e cobertas velhas, sapatos usados, ponchos, palas, chapéus, meias... Encheu algumas carroças com todas essas coisas e tornou aos subúrbios da miséria. Convidou Chiru, Neco e don Pepe para ajudá-lo. O espanhol trabalhou com os amigos sob protesto, murmurando a cada passo: "Esta no es Ia manera de resolver los problemas sociales. Eso es humillante. La fétida caridad cristiana! La pútrida generosidad burguesa!"

- Cala a boca, Pepito - ralhava Rodrigo, alegremente. - Trabalha, vamos!

Ele próprio andava dum lado para outro, a distribuir roupas, entrando e saindo dos ranchos e fazendo perguntas: - Quantos filhos tem? Onde é que trabalha? Quem é que está doente aqui? - Enfurecia-se quando não conseguia respostas claras ou quando, no temor de serem esquecidos, aqueles miseráveis se acotovelavam num atropelo, procurando cada qual ser o primeiro a receber os presentes.

- Ou vocês se acalmam ou eu paro com a distribuição e vou-me embora!

Erguiam-se para ele mãos ossudas e encardidas, caras terrosas e descarnadas, como de cadáveres recém-desenterrados. Santo Deus! Ali estavam mulheres feias e entanguidas, muitas delas aleijadas e quase todas com grandes olhos de tísicas; e homens guedelhudos, cujas barbas escuras e insonsas faziam ressaltar a palidez doentia dos rostos. Havia ali, numa promiscuidade repugnante, criaturas anquilosadas, roídas de tuberculose ou sífilis, escalavradas pela sarna, debilitadas pela disenteria. Crianças sem infância, algumas com caras de fetos ou de bugios, outras de ventre intumescido pela opilação. Aquela gente tresandava a suor mil vezes dormido, a picumã e a urina seca. Rodrigo chegava a ver em alguns deles os pulmões carcomidos: quando falavam, parecia que iam vomitar pedaços dos bofes. Surgiam também homens e mulheres com feridas purulentas à mostra. Aonde vai parar a nossa raça? - perguntava Rodrigo a si mesmo. Se não tomarmos uma providência séria, dentro de cinqüenta anos seremos um povo liquidado!

Tornou à casa deprimido e fatigado, com um peso na consciência. O que ele fizera naqueles dias não resolveria o problema. A miséria e a doença continuariam entre aquela população desgraçada. A chaga seguiria aberta, a verter sangue e pus. Poderia ser remediada e até mesmo curada se todos os ricaços de Santa Fé decidissem entrar com uma quantia mensal com o fim de dar assistência àqueles indigentes. Mas qual! Viviam insensíveis às desgraças alheias, passavam sempre ao largo por aquela miséria.

Exaltado, Rodrigo planejava fazer mais, e mais. E ainda naquele inverno, mandou trazer a seu consultório muitos dos habitantes dos subúrbios. Examinou-os, deu-lhes remédios e dinheiro para comprar leite.

"É o pai da pobreza" - dizia tia Vanja para Maria Valéria. - "Cabecinha de ébano, coração de ouro."

E Cuca Lopes, adulão, uma tarde na farmácia, puxando insistentemente no guarda-pó branco de Gabriel, que mirava Rodrigo com uma expressão quase extática, exclamou: "Que seria de nós sem o Rodrigo, hein, que seria de nós?" O Pitombo da casa funerária fez um poema de pé quebrado a que deu o título de "Pai dos desgraçados e no qual narrava os feitos caridosos Do mancebo que habita Aquela casa bonita...

A visita do Pinheiro Machado ao Sobrado e o fato de ter sido o grande homem visto na rua de braço dado com Rodrigo Cambará tiveram um efeito mágico sobre muitos santa-fezenses a quem a campanha da Farpa contra a situação afastara dos Cambarás. Rodrigo notava isso na maneira amável e cordial com que certos republicanos agora o cumprimentavam.

Em meados de agosto, A Voz da Serra apareceu com um editorial cheio de subentendidos, em torno dessas rusgas de famílias que ocorrem periodicamente dentro dos partidos, mas que nada significam, por serem meras tempestades dentro dum copo d'água. Nesse mesmo número, publicava-se uma notícia discreta sobre a distribuição de gêneros alimentícios, roupas e cobertores à pobreza, por iniciativa dum jovem e prestigioso conterrâneo, cujo nome deixamos de mencionar para não lhe ferir a reconhecida modéstia.

Rodrigo leu o editorial e a notícia a sorrir e a murmurar por entre dentes ''Cachorros", mas na realidade já sem muito rancor, esquecido das ofensas passadas, compenetrado de seu papel de pai dos pobres, que o predispunha à tolerância e ao perdão. Mostrou o jornal a Licurgo:

- Estão procurando uma brecha pra reconciliação. Influência do senador...

- E qual vai ser a sua atitude?

- A de sempre. Inflexível. Tenho mais que fazer do que andar me preocupando com essa corja.

Com efeito, tinha muito que fazer. Durante aquele agosto, sua atividade profissional chegou ao auge. Só numa semana atendeu quase duzentos indigentes no consultório e uns vinte a domicílio.

Um dia vieram-lhe contar que o Zago dissera: "O Rodrigo está fazendo toda essa caridade por pura exibição".

Ficou possesso, botou o chapéu na cabeça, deixou no consultório um cliente semidespido ("Fique aí que eu já volto!"), entrou na Farmácia Humanidade, segurou o Zago pela gola do guarda-pó, sacudiu-o, empurrou-o violentamente contra a parede e berrou-lhe na cara:

- Se continuares a falar mal de mim, cafajeste, eu te quebro essa cara, estás ouvindo? Fica sabendo que comigo ninguém brinca.

O Zago empalideceu. Não reagiu, ficou mudo, a boca aberta de espanto, os olhos esbugalhados, os braços caídos. Rodrigo largou-o com uma careta de nojo, fez meia-volta e ganhou a rua, já irritado consigo mesmo por ter feito aquilo. Que lhe importava o que pudesse andar dizendo dele um boticário ignorante e despeitado?

Ao consultório já agora não lhe vinham apenas doentes: começavam a aparecer pessoas que pediam conselhos, soluções para problemas de natureza íntima, em geral questões de família, dificuldades financeiras ou desavenças entre marido e mulher. "O senhor, que é um moço instruído e viajado, me diga o que é que devo fazer."

Em casa, à hora das refeições, Rodrigo falava à madrinha nos casos que surgiam. Maria Valéria achava uma pouca-vergonha ter uma pessoa a coragem de contar a estranhos intimidades de alcova, mazelas morais próprias ou de membros da família.

- Imagine, titia, eu agora feito juiz de paz. Era só o que me faltava!

Dava a entender que aquilo o desgostava, mas a verdade era que se sentia lisonjeado. Homens que teriam a idade de seu pai, vinham pedir-lhe o apoio moral, uma orientação na vida. Naquela última semana havia reconciliado um casal e impedido que um filho de Pedro Teixeira tirasse uma moça de casa.

Um sapateiro remendão que tinha a banca na rua do Faxinal, e a quem Rodrigo lancetara um tumor no pescoço, apareceu-lhe um dia no consultório, contando-lhe, choroso, que um empregado da Auxiliaire lhe havia desonrado a filha de dezessete anos e recusava casar-se com ela.

Rodrigo foi procurar o sedutor, que era foguista, e encontrou-o nas oficinas da estação, junto da locomotiva, vestido de zuarte, com a cara riscada de carvão. Disse quem era e a que vinha. O rapaz quedou-se num silêncio constrangido. O médico começou o sermão.

- O senhor procedeu muito mal e agora a única solução decente é o casamento.

- Mas foi ela que se ofereceu, doutor.

- Não importa. Repare o mal que causou e evite que essa pobre menina caia na vida.

- Mas é que ganho muito pouco.

Rodrigo continuou a arengar o foguista. Usou a princípio de meios persuasórios. Por fim, perdeu a paciência e ameaçou: ou casa ou vai pra cadeia! Com quem é que você pensa que está tratando? Tenho prestígio suficiente junto da Auxiliaire pra botar você pra rua imediatamente!

O foguista ficou lívido. Seus lábios tremeram e por seus olhos miúdos e escuros passou a sombra do medo. Rodrigo não tardou em compadecer-se do pobre-diabo. Tomou-lhe o braço. Não se preocupe. Eu ajudo vocês. Meu pai tem um chalezinho perto dos trilhos. Casem e vão morar lá de graça. Eu pago também as despesas do casamento. Vai ser no dia 1° de setembro. Está bem? Vamos então providenciar prós papéis...

Assistiu ao casamento religioso como padrinho da noiva. Seu primeiro pensamento ao vê-la foi: "Não teve mau gosto, o salafrário". A menina tinha uma languidez morna e quase mórbida nos olhos castanhos, de longos cílios, e era duma sensualidade que por assim dizer estava visível a flor dos lábios carnudos.

Levou os noivos de carro para o chalé, e ao voltar para casa soltou um fundo suspiro, dizendo para Bento:

- Ufl Desta estou livre.

Acendeu um cigarro, contente por ter feito uma boa ação. Mais um crédito na minha conta corrente no céu - pensou, sorrindo.

Duas semanas mais tarde, a noiva entrou-lhe no consultório choramingando que o marido estava embriagado em casa, ameaçando espancá-la.

Rodrigo ficou agastado. Que diabo! Que é que pensam que eu sou? Delegado de polícia? Vigário? Fiz vocês casarem, arranjei-lhes onde morar, paguei as despesas, que mais querem?

A rapariga não dizia nada, limitava-se a chorar de mansinho, mordendo os lábios, apertando os olhos e deixando que as lágrimas lhe escorressem livres pelo rosto cor de oliva.

- Está bem. Vamos embora.

Mandou o boleeiro trazer o carro, entrou nele cinco minutos depois chegavam ao chalé.

- Me espere aqui, que já volto, Bento. Se precisar, eu grito.

Entraram. O chalé era pequeno, mas asseado. Encontrou o ferroviário estirado na cama, de borco, a ressonar, uma garrafa de cachaça ao lado. Olhou para a rapariga como a pedir-lhe uma explicação. Ela balbuciou:

- Ainda agorinha ele estava acordado, querendo surrar em mim. Saíram do quarto e fecharam a porta. Rodrigo voltou-se para a menina e pôs-se a dar-lhe conselhos. Tenha juízo, procure conversar direitinho com seu marido, seja boa para ele, tenha esperança, vocês são muito novos...

Continuou a falar, sem prestar muita atenção os olhos sempre fitos na interlocutora, que o mirava de um jeito que começava a deixá-lo perturbado. Calou-se, e o silêncio que se fez naquela sala sombria, de janelas fechadas, foi tão sugestivo e de súbito teve uma consciência agudíssima da presença daquêle corpo cálido e jovem ali junto do seu. Continuou a falar... Pois é. Tenha paciência, com o tempo isso se arranja. Os seios dela arfavam e em pensamento tomou-os nas mãos como se fossem limões verdes e rijos. Por que não? Por que não? Essa bruaquinha talvez nem saiba direito o que está fazendo. Mas acontece que eu sei. É melhor ir embora antes que me metam noutra enrascada... Aquêle idiota bêbado lá no quarto, sem saber direito o que tem em casa. Deus dá nozes... Sim, mas eu tenho dentes, e rijos. Vou morder esses limões. - A morena sorria. Rodrigo estendeu os braços, puxou-a para si.

Pensou nos chapéus-de-cobra que o corpo de Ondina tinha esmagado no chão do mato. Não havia cogumelos no chalé e a mulher do foguista, ao contrário da caboclinha revelou uma experiência amorosa que o deixou surpreendido. Onde, diabo, essas rapariguinhas aprendem tanta coisa em tão pouco tempo?

Instinto - refletiu ele ao sair do chalé, um quarto de hora mais tarde. Onde é que os animais aprendem? Em alguma escola? Em algum compêndio? Não. Puro instinto. Sexo é instinto.

Não gostou do olhar oblíquo e malicioso que Bento lhe dirigiu, quando ele subiu para o carro. Será que o patife suspeita de alguma coisa? Será que andou me espiando?

- Me metem em cada embrulho! - exclamou. Bento fez estalar o chicote. Os cavalos arrancaram.

No caminho, Rodrigo arrependeu-se do que havia feito. Será que nunca vou criar juízo? Traço uma linha de conduta, sigo-a durante algum tempo e de repente, sem saber como, caio no primeiro alçapão que me armam. Minha afilhada de casamento! Bom. Que seja a última vez. Mas o que eu preciso mesmo é casar o quanto antes!

Naquela noite teve uma conversa particular com o futuro sogro e sugeriu que o casamento fosse marcado para outubro próximo. Babalo chamou a mulher e consultou-a. Impossível! - declarou Dona Titina. O enxoval da Flora ainda estava atrasado. Então novembro!- contemporizou Rodrigo. A futura sogra sacudiu negativamente a cabeça. Também não dá, é muito em cima do laço... Pra que tanta pressa? Até nem fica direito. Por que não deixam a coisa pró ano que vem?

Rodrigo saltou da cadeira:

- Isso não!

Babalo picava fumo, fleumático, olhando para o futuro genro como que a divertir-se com seu açodamento.

- Não se afobe. Vá comendo os bolinhos da Titina. Tem tempo! Depois conversaremos.

Depois! Depois! Sempre depois! As eternas conveniências sociais, os eternos "não se pode", o medo dos filhos da Candinha, da boca do povo! Soltou um suspiro de impaciência, mas não teve outro remédio senão conformar-se com a situação.

Um dia foi procurado pelo irmão Jacques e mais dois maristas, que lhe vieram comunicar ter sido ele eleito presidente honorário do Sport Club Chairua.

- Mas eu não entendo nada de futebol! - escusou-se, não de todo contrariado pela notícia.

- Não é mesmo para entender, doutor - disse um dos religiosos. - Só queremos o seu nome para prestigiar o nosso clube. Já temos o nosso team, o nosso ground, e domingo que vem jogaremos uma partida contra o Sport Club Cruz Alta.

Rodrigo mandou buscar à adega uma garrafa de vinho branco e bebeu com os três maristas à saúde da nova sociedade esportiva.

No domingo seguinte, por volta das duas e meia da tarde, a banda de música militar rompeu a tocar inesperadamente diante do Sobrado. Maria Valéria e Licurgo correram à janela, intrigados. Rodrigo apressou-se a tranqüilizá-los.

- Não se assustem! Devem ser os jogadores.

De fato, no meio da rua, à frente da banda do regimento de infantaria, achava-se um dos filhos do Pedro Teixeira, empunhando uma grande bandeira tricolor. A seu lado, formados em fila singela, viam-se onze rapazes metidos em camisetas de listas coloridas, calções brancos curtos, e grossas meias de lã de cano comprido.

Quando Rodrigo apareceu à janela, um dos maristas ergueu o chapéu no ar e bradou:

- Viva o nosso presidente honorário!

Os jogadores romperam a gritar em uníssono: Hip-hip-hurrah! Hip-hip-hurrah!

Rodrigo sorria, respondendo à saudação com acenos. A seu lado, muito séria, Maria Valéria murmurou:

- Que pouca vergonha! Uns homens grandes e peludos de calça curta!

Rodrigo teve a surpresa de ver, quase irreconhecível entre os jogadores, o irmão Jacques, também uniformizado, com um barrete vermelho na cabeça. Pendia-lhe do pescoço, amarrado a um barbante, um apito de metal.

O team de Cruz Alta, chegado aquela manhã em trem especial, estava hospedado no Hotel dos Viajantes, onde agora esperava os rapazes do Charrua para com eles desfilar pelas ruas, ao som de dobrados, rumo da cancha, que ficava para as bandas do cemitério.

Rodrigo não teve outro remédio senão assistir à partida. Pediram-lhe que desse o kick-off. Antes, porém, teve de fazer um breve discurso de saudação aos visitantes. Depois deu um pontapé na bola, sob aplausos, e voltou para as bancadas, onde ficou sentado em companhia de dois maristas.

Havia pouca gente assistindo ao jogo. Um dos religiosos disse:

- O doutor compreende, é um esporte novo e o povo ainda não está familiarizado com ele. Mas dentro de alguns anos o futebol terá muitos aficionados.

Entrou a explicar as regras do jogo a Rodrigo, que não conseguiu interessar-se por elas e muito menos compreendê-las. O que ele achava interessante e pictórico era ver aqueles rapazes de uniformes coloridos (os cruz-altenses traziam camisetas azuis) a correr dum lado para outro, sob um céu luminoso sem nuvens, enquanto um nordeste picante fazia tremular as bandeiras de ambos os clubes. Quanto ao mais, parecia-lhe grotesco, absurdo que andassem aqueles vinte homens a correr desesperadamente atrás duma bola, a darem-lhe valentes pontapés, a se empurrarem e trocarem caneladas. Ao cabo de vinte minutos de jogo os cruz-altenses conseguiram fazer a bola passar por entre as traves do goal dos santa-fezenses, o que pôs toda a equipe visitante num delírio de pulos, abraços e aclamações. Os maristas estavam arrasados. "Foi culpa do goal-keeperf - bradou um deles, gesticulando. - "Deixou a bola passar pelo meio das pernas."

A esfera de couro foi posta no centro do campo e Rodrigo viu irmão Jacques passá-la para o companheiro da direita, que tornou a devolvê-la ao marista, o qual se precipitou a correr com ela na direção do goal cruz-altense, esquivando-se dos adversários que o atacavam e conseguindo, por fim, com um violento pontapé, fazê-la passar por entre as mãos do goal-keeper de Cruz Alta. Estava empatada a partida. Os dois maristas, de pé, os chapéus no ar, gritavam: "Epatanti Formidable! Colossal!" E faziam sinais frenéticos para o irmão Jacques, que acenava para eles, sorridente, e quase tão vermelho quanto o barrete que lhe cobria a cabeça.

Na segunda metade do jogo houve, em dado momento, um tremendo choque, peito contra peito, entre dois adversários, e ambos tombaram ao chão, aparentemente sem sentidos. Rodrigo foi chamado para atendê-los. Empregou num deles a respiração artificial, mandou dar um gole d'água a ambos, e dentro de dez minutos declarou-os aptos para continuarem a jogar.

Pouco antes das cinco horas, voltou para o Sobrado, extenuado, o corpo moído, como se ele tivesse andado a correr durante oitenta minutos atrás daquela pelota de couro.

- Presidente honorário do Charrua! - exclamou ao estender-se na cama com um gemido. - Me acontece cada uma!

Na primeira semana de setembro uma troupe espanhola, Los Farsantes de Sevilla, veio dar quatro espetáculos no Teatro Santa Cecília. Era um grupo pequeno, composto de don Porfírio Palácios, barítono, de sua esposa, soprano ligeiro, duma cançonetista e dançarina ainda jovem, "La Granadina", e dum catalão atarracado e de ar aborrecido, e que batia os acompanhamentos no piano com uma má vontade que se evidenciou ao público desde o primeiro espetáculo. Don Porfírio e a esposa cantavam árias e duetos de zarzuelas como Los gavilanes, La gran via, La verbena de Ia paloma e Dona Francisquita. Na primeira noite, ao interpretar o Cabbalero de grada, metido numa casaca bem cortada, don Porfírio conquistou desde logo a platéia. Era um homem bem conservado para os seus cinqüenta e cinco anos de idade: estatura meã, rosto comprido e escanhoado, mas sempre sombreado de azul pela barba cerrada, a cabeleira rala com fundas entradas, o nariz longo e afilado. A esposa - alta, cheia de corpo, loura e imponente como uma valquíria - não estava artisticamente à altura do marido. Tinha uma voz estrídula e meio gasta, desafinava com freqüência e não conseguia atingir as notas agudas das árias e cançonetas que interpretava.

O verdadeiro elemento de atração dos espetáculos, entretanto, era "La Granadina", que desde o primeiro número como que prendera fogo no elemento masculino da platéia. Era uma madrilenha que beirava a casa dos trinta, miúda mas bem-feita de corpo, de olhos negros e vivos, uma voz meio rouca e um jeito canalha de menear os quadris. Dançava jotas, seguidilhas e paso-dobles e cantava cançonetas cuja letra picante sabia enfatizar com olhares safados e oportunas piscadelas. As mulheres de Santa Fé acharam-na indecente, mas não puderam ficar indiferentes ante seu rico guarda-roupa, seus mantons fie mamla, seus leques, berloques, e peinetas. Quando ela entrava em cena, Rodrigo, que não perdeu espetáculo, tinha a impressão de que o teatro de repente ficava mais quente, como se houvessem aberto a boca duma fornalha.

Don Pepe, que desde a chegada dos Farsantes de Sevilla travara relações com os compatriotas, disse a Rodrigo:

- yo que conocerlos, hombre. Don Porfírio es un tipo muy culto. Hijo de una família ilustrísima de Madrid, sabes? Me conto toda su vida; una verdadera novela. Es abogado pero abandono Ia profesión porque su pasión es el teatro. Muy interesante. Y mira, hijo, "La Granadina", cofio, que mujercita!

Não estava Rodrigo interessado em conhecer pessoalmente Los Farsantes? indagou o pintor. Claro, homem, claro.

Combinaram que se encontrariam naquela noite na Confeitaria Schnitzler, depois do espetáculo com que a troupe se despedia "del distinguido público de esta hermosa ciudad".

Don Porfírio fez um breve discurso em cena aberta. Um admirador desconhecido mandou ao palco uni ramilhete de flores para La Granadina. A sra. Palácios cantou uma ária da Traviata, e Rodrigo fechava os olhos e retorcia-se na cadeira, agoniado, sempre que a cansada soprano se avizinhava dos agudos.

Terminado o espetáculo, deixou Flora em casa e, como havia combinado, dirigiu-se para a confeitaria. Don Pepe lá estava, sentado a uma mesa com Los Farsantes de Sevilla. Fizeram-se as apresentações. Don Porfírio com suas mesuras de fidalgo, parecia ainda estar no palco, no papel dum caballero de grada. "Encantado, senor, encantado, es un gran honor." A soprano, vista de curta distância à luz de acetilene, com sua pele muito branca e gretada, tinha algo de boneco de maçapão. O aperto de mão de La Granadina foi quente e demorado e Rodrigo sentiu no olhar dela um mundo de promessas titilantes. Que pena essa diabinha ir embora amanhã... Don Pepe traçou para os compatriotas uma breve biografia de Rodrigo: quem era, o que fazia, o que representava para Santa Fé. Os outros olhavam para o biografado - don Porfírio com um ar respeitoso e admirativo; a esposa, apenas com um vago interesse; La Granadina, com uma espécie de atenção gulosa.

- Que vamos a beber? -- perguntou a sra. Palácios. Rodrigo teve uma idéia.

- Esperem. Por que não vamos lá para casa? Temos melhores cadeiras, ótimos vinhos, umas guloseimas e um bom gramofone... Que tal?

A sugestão foi aceita com entusiasmo. Mas o bando não havia ainda chegado à calçada e já Rodrigo se arrependia do convite. Era-lhe agradável a idéia daquela tertúlia boêmia, mas ocorria-lhe agora que a visita dos espanhóis podia dar motivo a maliciosos comentários na cidade. Levar atores e atrizes a uma casa de família? Era uma coisa inaudita. Para aquela cidade provinciana, atriz era sinônimo de prostituta. Vou pagar caro por esta extravagância - refletia, caminhando ao lado de Porfírio, rua do Comércio em fora. Pensou na noiva e no que ela podia imaginar quando viesse a saber daquilo. E que diria seu pai? E sua madrinha? Felizmente eram onze horas da noite, a rua estava deserta, as casas fechadas. Ao mesmo tempo que fazia essas reflexões, Rodrigo revoltava-se não só contra os preconceitos sociais como também contra si mesmo por lhes estar pagando aquele tributo. Bolas !... Sei o que faço. Faço o que entendo.

Ao entrarem no Sobrado, don Pepe pediu que falassem baixo, pois a madrinha de "mi amigo, una preciosa senora, ya está acostada".

Rodrigo teve o cuidado de fechar a porta da sala de visitas que dava para o vestíbulo. E quando, depois duma excursão à cozinha, voltou com uma bandeja na qual se via uma garrafa de champanha, cinco taças e um prato com pequenas fatias de pão barradas de caviar, don Pepe olhou para os compatriotas como a dizer-lhes "miren el amigo que tengo".

Ficaram a conversar sobre cidades, viagens, vinhos e pessoas.

Rodrigo pôs o gramofone a funcionar. O Caruso, o Ainato, a Tetrazzini, e a Patti cantaram árias, mas don Pepe e don Porfírio estavam de tal modo empenhados numa discussão sobre política espanhola, que pareciam indiferentes às vozes que saíam da campânula do aparelho. E para se fazerem ouvidos um do outro, em meio do furor operático dos cantores, tinham quase que berrar. A sra. Palácios, que já bebera duas taças de champanha, dava risadinhas juvenis, com uma das mãos espalmada sobre os seios. Rodrigo divertia-se vendo o entusiasmo miudinho de roedor com que ela mordiscava o pão com caviar, exclamando de quando em quando: "Precioso, pre-ci-o-so".

Rodrigo sussurrava perguntas ao ouvido de La Granadina. Gosta de ler? Não? E de música? Também não? De que é que gosta então? "Yo? Me gustan los muchachos guapos." E lançou-lhe um olhar que foi um convite.

Esta já tenho no papo - pensou Rodrigo. - E tem de ser agora. Nem que o mundo venha abaixo.

Correu, azafamado, à cozinha e trouxe outra garrafa de champanha. Quando a rolha saltou com um estampido e a espuma transbordou La Granadina gritou "Olé!" e estendeu a taça. A soprano apanhou mais uma fatia de pão com caviar.

Don Porfírio fazia a defesa do rei Afonso XIII. Era um caballero perfecto, um homem de espírito e um democrata. Não tinha culpa "de Ias tonterías de su ministro, ese imbecil de Canalejas". Don Pepe confessou que em 1905 tomara parte no atentado da rua Rohan, em Paris, contra a vida do soberano espanhol. "No!"- exclamou Don Porfírio. E quedou-se, de olhos muito arregalados, a contemplar o anarquista.

A meia-noite os dois espanhóis, a quem o champanha emprestava um ardor novo, entraram numa discussão de caráter topográfico: uma divergência sobre a localização dum determinado café de Barcelona. ''Se queda en Ia Rambla de Ias Flores" - dizia um. "No - retrucava o outro. - Se queda en Ia Calle Aribau."

- "Estás equivocado." - "Pêro, hombre, he passado quince anos en Barcelona." - "Pues yo he passado veinte, cofio!"

A soprano mal podia manter os olhos abertos. La Granadina e Rodrigo escolhiam discos, de pé ao lado do gramofone, muito próximos um do outro, as cabeças a se encostarem, as mãos a se tocarem. Ele cochichou uma pergunta:

- Os Palácios são seus parentes?

- Oh! Não, no. Simplesmente amigos.

La Granadina cheirava a claveles e tinha mãos de criança. Rodrigo não gostava da maneira como ela se vestia: os brincos dourados de cigana, o vestido cor de morango, A peinera com uma imitação de brilhante... Mas, que diabo! roupa é o que menos interessa neste caso...

- Quer ver a minha biblioteca?

- Donde?

- Na outra sala.

- Bueno...

Rodrigo pôs a girar no gramofone um disco de Caruso - a grande ária da Aida - para atordoar os outros e em seguida meteu-se com a espanhola no escritório. Sei que é loucura, mas agora ninguém me ataca, nem eu mesmo. Nestes assuntos, a surpresa é tudo. E até mais gostoso.

Fechou a porta a chave.

- Senor! - exclamou ela.

Rodrigo não perdeu tempo. Atirou-se sobre a La Granadina, enlaçou-lhe a cintura e beijou-lhe a boca com tão prolongada fúria, que a espanhola chegou a perder o fôlego. Quando teve oportunidade para respirar, balbuciou:

- Pêro los otros...

- Que vão pró inferno!

- Mira, por que no vienes a mi hotel, después?

- É agora ou nunca.

Não havia acendido o gás. A luz do luar entrava pelas bandeirolas. Na outra sala, Radamés proclamava seu amor pela celeste Aída.

Diabo! Quando o disco acabar, o idiota do Pepe é capaz de vir bater à porta. Não há tempo para perder.

La Granadina relutou por alguns segundos, esquivou-se em passos de dança, fez um pouco de teatro e acabou por se refugiar no espaço que havia entre o bureau e a parede, sob o retrato do Patriarca.

É aí mesmo que eu te quero, castelhana - pensou Rodrigo.

E avançou.

Nunca ficou sabendo se os outros "se haviam dado cuenta" do que acontecera. Voltaram à sala de visitas pouco depois para encontrar a soprano com a cabeça atirada sobre o respaldo da cadeira, cochilando, e Don Pepe e Don Porfírio ainda a discutir acaloradamente, enquanto a agulha do gramofone estava a rascar, a rascar, a rascar no rótulo do disco.

Los Farsantes de Sevilla retiraram-se do Sobrado à uma da madrugada em companhia de Pepe. Rodrigo ficou a sós no escritório, a fumar e a pensar em que a melhor coisa que tinha a fazer para seu bem, para o bem de Flora e do futuro de ambos era casar o quanto antes.

No dia seguinte, à noite, teve uma nova conversa com o futuro sogro e acabou por convencê-lo de que o casamento devia ser aprazado para dezembro. Dona Titina foi chamada, quis espichar o prazo ("Por que não em princípios do ano que vem?") mas Rodrigo dessa vez se mostrou inflexível. Ficou então combinado que casariam no próximo Natal.

XXI

Em meados de setembro, Rodrigo embarcou para Porto Alegre, onde permaneceu durante quatro dias. Escolheu na melhor casa de móveis da capital uma mobília de quarto de dormir; mandou fazer várias fatiotas na alfaiataria de Germano Petersen; tirou retratos no Atelier Calegan; andou pelas lojas a comprar roupas brancas, gravatas, meias, lenços, perfumes; procurou alguns companheiros dos tempos de estudante; fez uma visita sentimental a Mélanie, com quem passou uma noite; comprou uma jóia para Flora, um pala de seda para o pai, um revólver para Toríbio e uma série de outros presentes para distribuir entre os amigos e a negrada da cozinha... Feito isso tudo, preparou-se para voltar.

Na véspera da partida, meteu-se no Cinema Ideal. Viu uma comédia de Max Linder e um filme natural em que, entre outras coisas, aparecia, de chapéu alto e croisé, Mr. Fallières, presidente da República Francesa, a caminhar ligeirinho, com movimentos de boneco de mola, a cortar fitas inaugurais e a passar tropas em revista.

Seguiu-se um filme dramático da Vitagraph, uma fábrica norte-americana. Rodrigo achou-o divertido mas ingénuo. As fitas que vinham dos Estados Unidos - refletia ele - não se podiam comparar com os capo/avori Italianos da Cines nem com as artísticas produções francesas da Gaumont, da Pathé Frères ou da Eclair. Saiu do Ideal a pensar em que seria magnífico se ele pudesse dotar sua terra dum cinematógrafo.

Chegou a Santa Fé com uma euforia de turista, decidido a pôr em prática muitos de seus velhos projetos.

- Precisamos de luz elétrica urgentemente! - disse ao pai. Licurgo, porém, sacudiu a cabeça, discordando.

- Acho que é muito cedo.

- Por que, papai? Podemos organizar uma companhia e vender ações a esses estancieiros. O dinheiro deles está criando bolor nos bancos e nas burras. A firma Bromberg & Cia. de Porto Alegre compromete-se a ficar com a metade das ações e a mandar as máquinas, engenheiros e mecânicos competentes para fazer a instalação da usina.

Naquela semana mesmo reuniu no Sobrado as pessoas mais importantes de Santa Fé e expôs-lhes o plano da organização duma sociedade anônima para explorar o fornecimento de luz elétrica à cidade. Os homens o escutaram com uma atenção céptica. Quando Rodrigo lhes perguntou quantas ações iam subscrever, os estancieiros deram a entender que fora da pecuária nada os interessava. ("São mais fiéis às vacas do que às próprias esposas"- queixou-se mais tarde Rodrigo a Chiru.) Joca Prates prometeu pensar no assunto. Pedro Teixeira respondeu que no momento não dispunha de numerário. Cacique Fagundes disse um não redondo. Maneco Macedo declarou que poderia ficar com umas cinco ações, em atenção a Licurgo. E a reunião terminou nisso.

Rodrigo ficou desapontado. Cruz Alta estava no ponto de construir uma usina e em breve teria suas casas e ruas iluminadas a eletricidade, ao passo que Santa Fé parecia condenada a passar o resto da vida a depender dos tristes lampiões do lobisomem...

Os positivistas tinham razão. Cada povo tem o governo que merece. Para uma cidade de mentalidade pecuária como aquela, só um intendente bovino como o Titi Trindade.

Em princípios de outubro Rodrigo recebeu pelo correio as cópias das fotografias que tirara em Porto Alegre: doze de corpo inteiro, de frente, e doze de busto, de três quartos. Ao mostrá-las aos amigos, dizia:

- Não foi por faceirice, vocês sabem que não sou vaidoso. Mas quis ter uma lembrança deste momento feliz da minha vida...

Pepe Garcia examinou as fotografias demoradamente, de cenho franzido e, como Rodrigo lhe pedisse a opinião, cuspia:

- Pútridas!

- Não digas isso, homem! Estão esplêndidas, todo o mundo acha.

- Todo el mundo menos yo. Y me gusta muchísimo estar contra el mundo.

- Mas que é que achas de mau nestes retratos? Não estão parecidos? A qualidade da fotografia não é boa? Ou é a pose? Vamos, explica-te.

- No tienen alma. Están muertos.

- Que quer dizer com "no tienen alma"?

- Mira, angelito, que vemos en estas fotografias? La imagen miniatural, en sepia, de un hombre. Pero quien puede decir, al ver esas figuritas, como es ese hombre, lo que piensa, lo que siente?

- Mas como é possível uma fotografia exprimir tudo isso?

- Ah! Dices bien, como es posible que una fotografia... Bueno! Eso es lo que está mal. Una câmara fotográfica es una máquina e una máquina no tiene alma...

O pintor olhou fixamente para o amigo e recuou dois passos.

- No te muevas. Un instante... Bueno. Soltou um suspiro.

- Rodrigo, me gustaria pintar tu retrato de cuerpo encero... No! De alma entera!

Rodrigo lançou-lhe um olhar enviesado.

- Como pintaste o do coronel Teixeira?

- Oh, hombre, no, tu eres diferente. Ah, hijo, se consigo hacer lo que me imagino, esa será la gran obra de mi vida. Después de eso enterraré mis pinceles e mi paleta.

Rodrigo sorria, já seduzido pela idéia. Ver-se retratado em cores, de corpo inteiro, não seria nada mau... O diabo do espanhol era habilidoso e, quando queria, era capaz de apanhar o parecido de seus modelos. Quem sabe?

- Ya estoy a ver la obra acabada... Los hombres la miran e descubren tu alma, como si fueras transparente. Porque en el retrato estará no solamente tu cuerpo, pêro también tus pensamientos, tus deseos, tus pasiones, tu pasado, tu presente y tu futuro...

- Basta, Pepito. Eu me contento com o presente. Se me pintares bem como sou hoje, ficarei satisfeito.

- Pêro yo no me contentará con menos que la perfección. Todo o nada. Lãs cosas hay que hacerlas con pasión o no hacerlas. Quédate inmovil. Ya veo todo. Tamano natural, una ropa negra. La postura? Bueno, nada de convencionalismos burgueses; el modelo sentado en una silla, con la faz apoyada en la mano derecha, la izquierda apretando un libro? Nada de eso. Te veo en la cima de una colma a mirar el horizonte, el porvenir, la gloria... El viento te agita los cabellos, tu hermoso rostro...

- Pepe! - sorriu Rodrigo. - Isso até parece uma declaração de amor...

- Y por que no, cofio, en el momento en que estaré pintando yo te amare como solo un artista sabe amar... Pêro no me interrumpas... El fondo del cuadro será formado por las coxilhas y por el cielo de tu tierra, pêro el observador tendrá la impresión de nue en el rondo está el infinito.

- Qual é a cor do infinito?

- Te burlas de mi, no? Crees que estoy borracho, no? Pêro ya tengo título para el cuadro. Puede llamarse El favorito de los ãioses...

Rodrigo sorria, imóvel, como se fosse já a sua própria imagem pintada na tela. De súbito, como numa revelação, o pintor exclamou:

- Chantecler! Si, tu eres el Gálio. Tu canto ha hecho el sol alzarse en el horizonte, y ahora el sol te acaricia el rostro. Es la maíana de tu vida...

- Estás borracho, Pepito.

- Si, borracho, pêro no de álcohol. Borracho de belleza como solo un artista verdadero puede estar.

Sentado agora, o pintor contemplava o amigo com olhos parados e mortiços. Foi numa voz diferente, cansada e lisa, que tornou a falar.

- Necesito preparar un lienzo... un metro de largo por dos de alto. Hay que comprar tintas, pinceles. Esa es la parte material de la cosa, hijo.

Estendeu para Rodrigo a mão magra e alongada, como a dos fidalgos e santos de El Greco.

- Dame dinero, vamos!

Sorrindo e sem saber bem até onde Pepe ia levar aquela farsa, Rodrigo meteu a mão no bolso - gesto que sempre fazia com espontaneidade -, tirou um maço de notas e deu-as ao amigo sem contar.

Depois desse colóquio, pepe Garcia desapareceu por completo da casa dos Cambarás durante uma semana inteira. Decerto botou fora o dinheiro que lhe dei para comprar a tela e as tintas - concluiu Rodrigo, achando isso muito natural e até divertido. E esqueceu o assunto.

Uma tarde, porém, o pintor irrompeu no Sobrado, trazendo a grande tela e um cavalete.

- Donde vamos a trabajar?

Rodrigo ficou um tanto apreensivo. Não lhe era agradável a perspectiva de ficar parado por largas horas, a posar.

- Essa história não vai levar muito tempo?

- Pêro que es el tiempo? Los hombres verdaderamente superiores no piensan en el tiempo. Yo nunca he usado reloj en toda mi perra vida. Mi medida de tiempo es la eternidad. Nosotros los espanoles somos así. Pêro la eternidad quizás no pase de una ilusión de los místicos. Y los místicos no pasarán de enfermos mentales. Seré yo un místico? O un enfermo mental? Bueno, los artistas verdaderos nunca son normales. Pêro quien es normal? Cállate, Pepe, cállate. A trabajar y a trabajar.

Ficou combinado que Rodrigo posaria duas ou três horas por semana, preferivelmente pela manhã, num dos quartos do andar de cima.

Rodrigo ficou meio confuso diante do que via na tela. Não conseguia reconhecer a própria fisionomia naquela confusão de riscos negros. O outro explicou:

- Un pintor verdadero hace casi todo con el pincel, con los colores.

No dia seguinte, Pepe começou a misturar as cores e Rodrigo, ao entrar na sala, achou agradável aquele cheiro de tinta a óleo e aguarrás. Imaginou que dali por diante tudo seria mais fácil e mais rápido. Enganava-se. A cada passo surgiam dificuldades e interrupções. Havia momentos em que Pepe estava de mau humor, nada o satisfazia, e ele acabava por fechar-se em silêncios casmurros. Duma feita, desesperado por não poder reproduzir o tom exato da tez do modelo, atirou longe a palheta, lambuzando o soalho de tinta.

Noutros dias, era Rodrigo quem - no dizer de Maria Valéria - "amanhecia com o Bento Manuel atravessado". Vendo o modelo assim de aspecto azedo e sombrio, Pepe cruzava os braços e recusava pintar.

- No eres Rodrigo Cambará. Eres una otra persona, un impostor. Vamos, la sonrisa, la faz despejada, la mirada viva e limpia, la alegria de vivir, la confianza en el porvenir!

Nas manhãs em que ambos estavam de mau humor, surgiam atritos e discussões, e mais duma vez Rodrigo abandonou a sala, intempestivo, batendo com a porta. Esses arrufos, não raro, duravam dias.

- Não sou nenhuma criança pra estar aqui fazendo papel de bobo! - exclamou ele no dia em que Pepe, de súbito, num capricho de prima-dona, largou a palheta e os pincéis e declarou que ia suspender o trabalho porque: "la luz hoy tiene algo de desfavorable, un cierto tono gris". Rodrigo, a quem a luz parecia tão clara e dourada como nas melhores manhãs, vociferou:

- Ou tu aprontas essa droga duma vez ou eu não piso mais nesta sala!

- Ingrato!

Muitas vezes, porém, Rodrigo acabava rindo das excentricidades do espanhol. Por mais que se esforçasse, não podia levar muito a sério aquele tipo, e já agora começava a duvidar de que o retrato pudesse ser terminado de maneira satisfatória.

Pepe contava que andava passando as noites em claro, a pensar naquela obra, e confessava que, se não conseguisse fazer o que queria, essa seria a mais amarga derrota de toda a sua vida.

- Me mato, chiquito, palabra de honor que me mato.

- Deixe de besteira, homem!

E assim se passou todo aquele resto de outubro e a primeira semana de novembro, que entrou com aguaceiros bruscos. Rodrigo já agora encontrava freqüentes desculpas para faltar as poses: noites maldormidas, chamados urgentes alta madrugada, excesso de trabalho no consultório...

Certa manhã apareceu radiante no atelier cantarolando o La donna é mobile, e contou a Pepe que na noite anterior uma comissão encabeçada pelo coronel Maneco Macedo viera ao Sobrado pedir-lhe licença para lançar sua candidatura à presidência do Clube Comercial.

- Ya aceptaste? - indagou Pepe, indiferente, sem tirar os olhos da tela.

- Por que não? E preciso não deixar cair a diretoria nas mãos da cambada do Trindade.

- Glorias burguesas...

- Ah! Deixa-te de bobagem. Há muito que fazer naquele clube. Vou aumentar o salão de baile, reformar o bufete, botar uns quadros nas paredes...

- Hablas como si ya estuvieras elegido...

- Se há coisa que não me passa pela cabeça é a idéia duma derrota. O coronel Macedo me garantiu que muitos republicanos vão votar em mim. Disse mais: que a situação até nem vai apresentar candidato!

- Bueno, bueno, me alegro que eso te haga feliz. Es exactamente esa expresión que deseo en tu rastro. La expresión de un triunfador.

Continuaram a conversar animadamente. Don Pepe, de quando em quando rompia a cantar trechos de Dona Francisquita, Rodrigo contou-lhe seus projetos. Estava tratando de convencer o pai de que ele e Flora deviam passar a lua-de-mel na Europa. Disse isso e calou-se, a imaginar suas andanças por Paris em companhia de sua querida mulherzinha. Iriam ao Louvre, às Tulherias, à praça de L'Étoile, ao Quartier Latin... Céus, quanta coisa! Imaginou, sorrindo, a expressão do rosto de Flora quando ele lhe mostrasse o pequeno pot lê chambre de Maria Antonieta...

Maria Valéria vinha às vezes olhar o progresso da obra. Parava diante do quadro, de braços cruzados, ficava ali por algum tempo em silêncio, e, depois de dirigir um olhar enviesado para o pintor, retirava-se.

Rodrigo observara que nos dias de ventania Pepe ficava mais agitado que de ordinário, dava voltas inúteis e incompreensíveis pelo quarto, exclamando:

- Maldita primavera! No hace más que ventar, ventar y ventar...

No dia 15 de novembro Rodrigo apareceu com ar taciturno.

- Hoje toma posse o marechal Hermes. Pobre país!

Dias depois, porém, abriu impetuosamente a porta do atelier e, de cabeça erguida e ventas dilatadas como um potro, avançou para o pintor e despejou a notícia que o coronel Jairo acabara de lhe transmitir pelo telefone:

- A esquadra revoltou-se, Pepito!

- Que escuadra, hombre?

- Ora, que esquadra! A nossa, a brasileira!

Contou, exaltado, que os marinheiros dos couraçados Minas Gerais e São Paulo e os do scout Bahia, de canhões assestados para o Rio, haviam passado um radiograma ao governo da República, exigindo a extinção do castigo da chibata a bordo, sob pena de bombardearem a Capital Federal.

- É o fim do governo do marechal! Imagina tu as bocas-de-fogo daqueles dois colossos da nossa armada assestadas para o Rio! O Hermes não tem outro remédio senão renunciar.

Pepe umedecia com a ponta da língua as bordas do cigarro que acabara de enrolar.

- Bueno, bueno, pero vamos a trabajar.

- Nunca! Hoje não vou posar. Tenho que sair pra desabafar. Naquele mesmo dia, após o almoço, encontrou no clube, como de costume, o coronel Jairo Bittencourt, que lhe narrou detalhes da revolta.

O capitão-de-mar-e-guerra João Batista das Neves, comandante do Minas Gerais, fora trucidado pelos seus subordinados. Os oficiais que não tinham conseguido escapar em tempo, haviam sido assassinados ou gravemente feridos pela marinhagem amotinada.

- Mas quem é o chefe da revolta, coronel?

- Um marinheiro preto, um tal de João Cândido, que há uns três anos comandou um motim a bordo do Tamandaré.

Sacudindo a cabeleira fulva, Jairo suspirou.

- Uma calamidade, meu amigo, uma verdadeira calamidade.

- Mas e o governo? Que faz o governo? Jairo encolheu os ombros.

- Parece que se recusa a negociar com os rebeldes.

- Mas é uma loucura. Mais tarde ou mais cedo terá que ceder para evitar que o Rio seja destruído!

Rodrigo passou os dois dias que se seguiram em estado de exaltação, desinquieto, ansioso ante a falta de notícias. As edições do Correio do Povo de 23 e 24 de novembro nada traziam sobre os acontecimentos da Capital Federal. As comunicações telegráficas com o centro do país pareciam interrompidas.

No dia 26 Rodrigo foi pessoalmente à estação comprar o Correio do Povo que vinha no trem de Santa Maria. Abriu o jornal. Lá estava uma página inteira de telegramas sobre a revolta da armada. Pôs-se a ler as notícias com a sofreguidão de quem devora uma novela de aventuras. Mas já dois dos subtítulos o deixaram gelado: "A anistia - Terminação da revolta". Sim, vinham ao pé da página notícias decepcionantes. O Senado apressara-se a conceder a anistia aos revoltosos, e o presidente da República não se opusera à vontade dos senadores. Os rebeldes se haviam rendido.

Neste momento os navios Minas Gerais, São Paulo, Bahia e Deodoro acabam de arriar o sinal de guerra, hasteando bandeira branca e salvando a terra com vinte e um tiros.

- Palhaços! - exclamou Rodrigo, amassando o jornal e atirando-o no chão.

Naquela mesma tarde entrou no atelier calado e de cabeça baixa.

- É uma miséria, Pepe. A revolta fracassou. O Senado concedeu anistia e o governo continua de pé. Isso significa que temos de agüentar o marechal quatro anos!

O artista, porém, estava mais interessado no seu trabalho que na revolta de João Cândido ou nas possibilidades de queda do governo.

Naquele dia deu os últimos retoques no rosto do retrato e quando, terminada a pose, o outro quis ver o quadro, ele não permitiu.

- No. Prefiero que lo veas después, cuando yo haya terminado el fondo.

Levou a tela para casa e passou sumido uma semana inteira. Novembro estava a findar quando o castelhano telefonou a Rodrigo, comunicando-lhe dramaticamente que "la obra estava consumada" e que ele a levaria ao Sobrado dentro de poucos minutos.

Ao chegar, encarapitado na boleia da carroça que trazia a tela toda envolta em panos, encontrou o amigo a esperá-lo à porta. Levaram o retrato para a sala de visitas, onde o colocaram no cavalete.

- Prepárate, Rodrigo.

O pintor começou a desenrolar com mãos nervosas os panos que envolviam o quadro. Ao ver a própria imagem na tela, Rodrigo sentiu como que um soco no plexo solar. Por um momento a comoção dominou-o, embaciou-lhe os olhos, comprimiu-lhe a garganta, alterou-lhe o ritmo do coração. Quedou-se por um longo instante a namorar o próprio retrato. Ali estava, nas cores mesmas da vida, o dr. Rodrigo Cambará, todo vestido de preto (Pepe explicava que o plastrão vermelho era uma licença poética), a mão esquerda metida no bolso dianteiro das calças, a direita a segurar o chapéu-coco e a bengala. O sol tocava-lhe o rosto. O vento revolvia-lhe os cabelos. E havia no semblante do moço do Sobrado um certo ar de altivez, de sereno desafio. Era como se - dono do mundo - do alto da coxilha ele estivesse a contemplar o futuro com olhos cheios duma apaixonada confiança em si mesmo e na vida.

O êxtase de Rodrigo durou alguns segundos.

- Y que tal, hombre?

Foi então que ele se lembrou de que o retrato tinha um autor.

- Magnífico, Pepito, formidável! Uma obra de arte. A parecença está surpreendente... Eu... queres saber duma coisa? Pois olha... Até...

Não encontrava palavras para exprimir seu contentamento, sua admiração.

Precipitou-se para o pintor e estreitou-o contra o peito.

- Caramba! Pepe, palavra que nunca pensei...

Tornou a contemplar o quadro. Havia naquela figura uma poderosa expressão de vitalidade. Era o retrato de alguém que amava intensamente a vida, que tinha ânsias de abraçá-la, de gozá-la totalmente e com pressa. Sim, ele se reconhecia naquela imagem: a tela mostrava não apenas sua aparência física, as suas roupas, o seu "ar", mas também seus pensamentos, seus desejos, sua alma. Como era que o diabo do espanhol tinha conseguido tamanho milagre?

- Quizás sea mi canto de cisne...

- Mas por que, homem de Deus?

- Milagros como ese no ocurren dos veces en la vida de un artista.

Os olhos do pintor estavam agora inundados de lágrimas. Rodrigo esforçava-se por dominar a própria comoção.

Maria Valéria foi chamada para ver a maravilha. Parou diante do quadro, olhou-o demoradamente em silêncio, e por fim disse:

- Só falta falar.

- Pêro, senora, ese retrato habla, dice todo!

Chiru e Neco também apareceram. O barbeiro achou que estava "supimpa". Chiru mirou o artista com admiração e afeto:

- Esse castelhano duma figa até que tem jeito pra coisa!

O tenente Lucas pôs-se de ponta-cabeça para olhar o quadro e deu a sua impressão mimicamente, como uma personagem de cinematógrafo.

- É uma tela digna de qualquer museu! - opinou o coronel Jairo. - Vou trazer a Carminha para vê-la.

Carmem Bittencourt veio ao Sobrado naquela mesma noite, olhou longamente para a pintura e depois para Rodrigo, dum jeito que o deixou desconcertado.

O marido perguntou:

- Então, meu amor, que achas? Sem altear a voz, respondeu:

- É um retrato tão revelador que chega a ser indiscreto. Jairo desatou a rir. Rodrigo ficou perturbado, sem saber como interpretar as palavras da esposa do coronel.

Durante os dias subseqüentes, grande foi a romaría ao Sobrado. Todos queriam ver "o portento".

Tia Vanja trançou as mãos diante do quadro, como se fosse rezar.

- A minha bolinha de ébano!

Dona Emerenciana queixou-se de que, como não freqüentava o Sobrado por causa "dessas bobagens de brigas políticas", ia ficar privada de ver a obra-prima. Rodrigo generosamente mandou levar-lhe à casa o retrato, em cuja contemplação a esposa de Alvarino Amaral ficou por longo tempo. O quadro veio de volta com um recado:

Diga pró Rodrigo que é a coisa mais formosa que já vi em toda a minha vida.

Flora apareceu uma noite com a mãe e o pai, especialmente para ver a tela.

- Nunca pensei que fosse ficar tão bem assim - disse. E mirou a figura por tanto tempo e com tamanha expressão de ternura, que Rodrigo chegou a ter ciúme da própria imagem.

Babalo plantou-se por alguns segundos a pitar na frente do quadro, enchendo o ambiente com a fumaça e o cheiro acre de seu cigarrão de palha. Por fim, olhando para Maria Valéria, murmurou:

- Está mais parecido com o Rodrigo do que ele mesmo. Que côsa bárbara!

Gabriel ficou de boca entreaberta diante da pintura, num silêncio meio amedrontado. O Cuca aproximou-se da tela, cheirou-a e não resistiu à tentação de encostar o dedo nela.

- Que beleza, Rodrigo, que chique! Vai fazer inveja a muita gente. Já andam até dizendo pela cidade que não está parecido. Que mentira, hein? Que injustiça!

Mariquinhas Matos, que havia muito não entrava no Sobrado, achou um pretexto qualquer para vir, em companhia da mãe, visitar Maria Valéria. Depois de contemplar por algum tempo o retrato, disse uma frase que escandalizou ambas as senhoras:

- Um rapaz bonito como o Dr. Rodrigo não devia se casar nunca. É muito homem para uma mulher só.

Sua mãe empertigou-se na cadeira, alarmada.

- Mariquinhas! Isso é coisa que uma moça direita diga?

- Ora, mamãe, não estamos mais no século XIX, e sim em 1910!

Com uma loquacidade nervosa, começou a falar no movimento das sufragistas na Inglaterra. Quando ela terminou, a mãe procurou desculpá-la:

- São os malditos livros que essa menina lê, D. Maria Valéria. Eu vivo dizendo pro Terézio que não deixe ela ler essas coisas modernas.

Rodrigo ficou encantado quando a tia, ao lhe reproduzir a ousada frase, da Gioconda, acrescentou:

- Aquela, se pudesse, te agarrava com as duas mãos.

Ele sorriu dum jeito que queria dar a entender que "a coisa não era bem assim como a Dinda dizia". Mas no fundo concordava com ela e sentia-se lisonjeado.

Quando Licurgo e Toríbio vieram do Angico para uma curta estada na cidade, Rodrigo ficou curioso por ouvir a opinião do pai e do irmão sobre o retrato.

- Não tinhas mais nada que fazer? - perguntou Bio.

O pai teve uma reação que Rodrigo não esperava. Olhou para o quadro, num silêncio enigmático, amaciando uma palha de milho com a lâmina da faca, depois sorriu, dizendo:

- Está muito bom. Quanto vai pagar pro castelhano? - Não sei ainda, papai. Qual é a sua opinião?

- Pague bem. O quadro vale. Dê quinhentos mil-réis. - Que despropósito! - exclamou Maria Valéria.

Pepe Garcia passou muitos dias ausente do Sobrado. Uma tarde um dos moleques da mulata Celanira apareceu no consultório com este recado: "A mamãe mandou pedir pro senhor ir lá em casa, que o seu Don Pepe está doente." Rodrigo foi, imediatamente. O chalé de Celanira ficava no meio dum banhado, mas era confortável, limpo, e tinha cortinas e vasos de flores nas janelas. A mulata - gorda, grisalha e ativa, recebeu o doutor à porta com uma cordialidade de velha tia.

- Pois o Pepe caiu de cama faz dias e não quis que eu incomodasse o senhor.

- Devia ter me chamado em seguida, D. Celanira.

Muito pálido, a pêra já a crescer-lhe de novo, o pintor achava-se estendido numa cama de casal, sobre lençóis imaculados que cheiravam a alfazema, e coberto por uma colcha de retalhos.

- Então que é isso, Pepito? - perguntou Rodrigo jovialmente.

- Ay que me muero, hijo, ay que me voy. Esto es el final. - Qual nada!

Rodrigo sentou-se na beira da cama, pôs a mão na testa do amigo e achou-a escaldante. Tirou-lhe a temperatura: 39 graus.

- Tem uma febrinha ... - mentiu para Celanira, que se encontrava ao pé do leito.

Auscultou o pulmão e o coração do paciente. Tomou-lhe o pulso. Examinou-lhe a garganta e a língua.

-Tudo em ordem.

Apalpou-lhe os intestinos, a vesícula, os rins. Fez-lhe perguntas. Comeu alguma coisa indigesta? Não. Sente alguma dor?

Não sentia nada, só aquela impressão de febre, uma excitação e ao mesmo tempo um abatimento, uma canseira...

- Passou a noite variando, doutor - contou a mulata.

- Ay, vida mia, que noche! Si yo pudi describir mi delírio, Rodriguito, creo que escribíría una página inmortal. Soergueu-se de repente e esclamou:

- No. Se yo pudiera pintar lo que he visto era mi delírio.

haría cara cuadro ínmortal, más temble que el Apocalipse, más dramático que el Toledo de El Greco.

Rodrigo fê-lo deitar-se de novo.

- Calma, Pepito, calma. Não te esaltes. O que tu tens é puramente de fundo nervoso. A canseira de todo é o retrato. Tirou do bolso o bloco de papel de receitas e prescreveu um calmante para os nervos e uns papéis de pimido. Depois, mudando de tom e de assunto:

- Sabes, Pepe? O retrato tem feito um sucesso danado. É o assunto da cidade.

- Filisteus!

- Oh! Não digas isso. Há em Santa Fé muita gente instruída, capaz de apreciar o belo.

Falo-lhe agora em pagamento? - perguntou-se a si mesmo.

- Ou deixo tudo pra depois?

Aproveitou o momento em que Celanira saía do quarto com a receita na mão:

- Pepito, agora precisamos acertar contas. - No te entiendo.

- Preciso te pagar. - Por que?

- Pelo retrato, homem!

Pepe sentou-se na cama com uma espressão de dignidade ferida no rosto macilento.

 - No hables más.

- No hables más.

- Mas Pepe! Levaste um tempão fazendo aquele trabalho. É a tua obra-prima. Vou te pagar um conto de réis. Vale até mais.

- Rodrigo, si eres mi amigo, no me hables en dinero!

- Que bobagem!

- Tu me insultas.

Rodrigo pôs-se de pé fazendo um gesto de desânimo. Estava intrigado ante a reação do pintor. Um homem que praticamente não ganhava um vintém, recusava receber um conto de réis! Positivamente o castelhano era um poço de surpresas e mistérios.

- Está bom. Então quero que prometas tomar todos os remédios que te receitei e que só te levantarás quando eu te der licença. Prometes?

- Te lo prometo, Chantecler.

Rodrigo apertou a mão do amigo. Estava já à porta do quarto, quando o outro gritou:

- Mira! Préstame cincuenta mil-réis.

- Homem de Deus, acabei de te oferecer um conto!

- No. Eso es diferente. Quiero cincuenta, pero prestados, comprendes?

- Está bem. Eu entrego o dinheiro a Celanira.

- Se tienes más confianza en ella que en mi...

Rodrigo sorriu. Ao sair do chalé, entregou um conto de réis à mulata, recomendando:

- Não conte a ele que lhe dei todo esse dinheiro. Diga que foi só cinqüenta mil-réis. O Pepe é uma mula de teimoso.

- Está dizendo pra mim? - sorriu a mulata, mostrando os caninos de ouro.

XXII

Na noite de onze de dezembro, Rodrigo convidou os amigos a sua casa para uma ceia e uma tertúlia. "A minha despedida da vida de solteiro" - explicava ao fazer os convites. Mandou Laurinda preparar uma mayonnaise de maquereau, pôs cinco garrafas de champanha num balde, dentro do poço, e ao entardecer começou a abrir as "suas latinhas", sob o olhar irônico de Maria Valéria. Debruçou-se a uma das janelas laterais e gritou para o pátio da Estrela-d'Alva "Ó Chico!" E quando o padeiio trepou na cerca com a cara e a cabeça manchadas de farinha, pediu: "Hoje ali pelas dez me manda uns vinte pães quentinhos, ouviste?"

Ainda bem que o papai voltou pró Angico - refletia ele, enquanto andava pela casa a fazer os últimos preparativos. -Assim não tenho de ver nenhuma cara feia.

Pôs-se a arranjar na sala de visitas e no escritório as rosas e os junquilhos que tia Vanja lhe mandara ao entardecer. Estava a contemplar, com a cabeça inclinada para um lado, o vaso que se achava sobre o consolo, quando Laurinda entrou e, lançando-lhe um olhar truculento, murmurou: "Maricão!" Rodrigo, que a enxergava pelo espelho, respondeu-lhe com um gesto obsceno, que pretendia ser uma afirmação de sua masculinidade. "Bandalho!" - exclamou a mulata, com fingida cólera.

Ao anoitecer Rodrigo acendeu os bicos de gás da sala de visitas e do escritório, escancarou as janelas e pôs a rodar no gramofone um disco de Amaro. Sentou-se e ficou a pensar em Flora. Dentro de duas semanas poderia trazê-la para o Sobrado, como sua esposa. Imaginou a cena... A casa silenciosa. Dinda discretamente recolhida ao quarto, Laurinda, a indecente, decerto a espiá-los por uma fresta de porta... Flora e ele trocariam ali na sala o primeiro beijo e beberiam ambos uma taça de champanha, num brinde ao futuro. Depois, abraçados, subiriam vagarosamente a velha escada, aquêles degraus, naqueles quase sessenta anos de existência do Sobrado tinham sido pisados por incontáveis pés: as botas dos homens que haviam defendido a casa contra os maragatos, no cerco de 95; Os Chinelos de ourelo de sua bisavó Bibiana; os coturnos do dr. Winter, médico e filósofo, de cuja figura ele, Rodrigo, tinha uma lembrança tão viva; os sapatinhos de sua mãe e, mais remotamente, de sua avó paterna, criatura nebulosa e meio lendária de quem não ficara nenhum retrato, e cuja memória andava envolta numa atmosfera equívoca...

E daqui a alguns anos - refletiu, sorrindo - os meus filhos estarão descendo essa velha escada, montados no corrimão, bem como Bio e eu fazíamos quando meninos.

De súbito despertou de seu devaneio para ouvir o chiado da agulha do gramofone, a qual, depois de ter percorrido a última ranhura do disco, estava a arranhar-lhe o rótulo. Acercou-se do aparelho, fez parar o prato e levantou o diafragma.

Toríbio entrou. Estava de bombachas, botas e esporas e de chapéu na cabeça. Sentou-se pesadamente, olhou para os jornais empilhados sobre o bureau e perguntou:

- Alguma novidade no Rio?

Interessava-se mornamente pela política, mas tinha preguiça de ler os jornais. Rodrigo contou-lhe que a situação de insegurança e inquietude, agravada pela revolta da esquadra, continuava. Circulavam pelo país os boatos mais alarmantes.

- E o pior - acrescentou - é que o marechal mandou à câmara uma mensagem pedindo o estado de sítio!

- Se essa coisa vem, que é que vai ser da gente?

- É o fim de tudo, a debacle moral e material do país, o escalabro completo. O que as pessoas decentes têm a fazer é emigrar, homem. O remédio é fazer uma revolução e derrubar esse Sargentão.

- Qual nada! Emigrar é a última coisa em que se deve pensar. Inda quero ver o senador Pinheiro passar pra São Luís, de crista caída... isso se escapar com vida e não for parar na cadeia.

Rodrigo sorriu. Aquilo era muito bonito de dizer, mas tudo indicava que o governo estava forte e que a Câmara e o Senado iam votar a favor do estado de sítio.

Rodrigo estava debruçado à janela quando viu três vultos aproximarem-se do Sobrado. Reconheceu neles Neco, Chiru e Saturnino. Os menestréis! - pensou com alegria, vendo que o barbeiro e o ecónomo haviam trazido os instrumentos. Quando os amigos entraram, ele os conduziu imediatamente ao andar superior para mostrar-lhes umas coisas que recebi de Porto Alegre. Fê-los entrar no quarto nupcial, cuja mobília de jacarandá lavrado tinha um aspecto de pesada e digna solidez. Sobre o mármore rosado do lavatório de espelho oval, via-se uma bacia com um jarro, ambos de louça branca estampada de ramilhetes de flores multicoloridas. E ao pé da cama, duma larga imponência de leito imperial, estendia-se um vasto tapete "legítimo da Pérsia", assegurou Rodrigo. Escancarou as portas do guarda-roupa para exibir aos amigos as fatiotas que mandara fazer em Porto Alegre: o novo smoking, uma fatiota de vicunha, duas de casimira e dois ternos de linho branco. Abriu as gavetas e mostrou a roupa-branca e umas duas dúzias de gravatas de cores e padrões variados.

- És um nababo! - exclamou Chiru, apalpando com visível prazer as gravatas de seda, lã, gorgorão e malha.

Neco tomou-se logo de amores por uma gravata verde com losangos negros e brancos.

- Quando essa bichinha ficar velha, não botes fora. Me dá pra mim.

Rodrigo puxou a gravata num gesto brusco e meteu-a no bolso do seresteiro.

- Toma. É tua.

- Não sejas bobo, nem usaste ainda...

- Cala a boca.

- Mas...

- Está encerrada a questão. Vamos descer.

Foi empurrando os amigos na direção da porta. Diabo! - pensou - não dei nada prós outros. Voltou ao guarda-roupa, apanhou às cegas duas gravatas e entregou uma a Chiru e outra a Saturnino. O primeiro tentou um protesto grandiloqüente. O último aceitou o presente num silêncio cheio de gratidão.

- Não se fala mais nisso - decidiu Rodrigo. - Quem vê pensa que eu dei um palacete a cada um de vocês!

O coronel Jairo e o tenente Rubim não tardaram a chegar. Liroca também apareceu, poucos minutos após os militares. Como sempre, entrou com o ar reverente de quem penetra numa catedral. Silencioso, de chapéu na mão, caminhando na ponta dos pés, procurou uma cadeira, sentou-se, sem ruído, e ficou quietinho, como que a orar. Rodrigo divertia-se com aquela comédia de que eram protagonistas sua madrinha e José Lírio. Desde o dia em que Liroca voltara ao Sobrado, depois de quinze anos de ausência, o pobre homem ainda não conseguira fazer com que Maria Valéria lhe apertasse a mão ou mesmo lhe dirigisse um olhar frontal. Quando a cumprimentava - "Boa noite, dona, como tem passado?" - ela se limitava a fazer uma relutante inclinação de cabeça e a murmurar algo que tanto podia ser "Boa noite" como "Vá pró diabo!"

Quando Lucas, o último conviva a chegar, entrou na sala, Toríbio correu a abraçá-lo. Naquele instante diante do Retrato, Rubim comentava os méritos da obra.

- Nunca imaginei que esse espanhol fosse capaz de fazer uma coisa séria assim... Sempre o considerei um farsante, uma personagem de opereta.

- O que prova - observou Rodrigo - que a gente nunca chega a conhecer direito as pessoas, por mais que conviva com elas.

Rubim examinava a tela com ar professoral.

- Como será - perguntou - que um homem dotado desse talento e dessa habilidade não tira melhor proveito dele? Não posso compreender como é que um artista como don Pepe anda perdido neste fim de mundo...

Ao ouvir estas últimas palavras, Liroca quebrou seu silêncio:

- Há gentes que pensam que só a Capital Federal é que presta...

Rubim prosseguiu:

- Não sou nenhum conhecedor de pintura, mas tenho visto bons quadros e posso afirmar que estou diante duma obra nada vulgar. Todo o artista, seja ele poeta, compositor, pintor ou escultor, tem o seu momento milagroso em que o acaso colabora com ele. É o minuto do mistério: uma pincelada feliz, um conjunto de circunstâncias que se combinam, e, zás!, lá está a obra de arte!

A voz do tenente de artilharia lembrava a Rodrigo as notas mais graves da flauta de Saturnino. Rubim envergava um uniforme caqui, e naquela noite sua fealdade se fazia notada dum modo todo especial. Por quê? Talvez fosse a desordem em que estavam seus cabelos ressequidos. Ou então era porque naquele dia não havia escanhoado o rosto. Quando não se achava em cima do cavalo, num desfile militar, seu busto raramente se mantinha em postura rígida: em geral suas costas se encurvavam acentuadamente, o que lhe dava um ar de cansaço, de envelhecimento precoce e ao mesmo tempo um certo quê erudito de professor.

Jairo contou a Rodrigo como ficara sensibilizado ao ler recentemente nos jornais a notícia da morte do conde de Tolstói.

- Não foi só a morte, coronel - disse Rodrigo - mas também as circunstâncias dramáticas que a precederam.

A tragédia do grande romancista causara-lhe profunda impressão. Desgostoso com o artificialismo e o materialismo da civilização ocidental, Leon Tolstói, o apóstolo da vida simples e do amor ao próximo, pregara nos últimos anos de sua vida o retorno ao cristianismo primitivo. Um dia, ao voltar dum passeio pelo campo, com o coração partido pelo espetáculo da sórdida miséria em que viviam os camponeses, encontrou à frente de sua casa uma esplêndida carruagem, símbolo do fausto e do conforto de lasnaia Poliana. Ficou tão abalado pelo contraste, que decidiu abandonar a família para levar a vida dum simples camponês. Deixou à esposa uma carta em que lhe dizia não poder mais continuar naquela vida de grão-senhor, tão contrária a suas crenças. Pedia que lhe perdoasse o desgosto que ele ia causar e suplicava-lhe não tentasse fazê-lo voltar atrás, pois sua decisão era irrevogável. Numa madrugada de novembro meteu numa maleta roupa-branca, livros e outros objetos de uso pessoal e, ajudado por um amigo, deixou a mansão de lasnaia Poliana. Quatro dias depois era encontrado na estação de Astapovo em estado febril, conseqüência duma inflamação pulmonar. Os médicos chamados para socorrê-lo nada puderam fazer. Uma semana mais tarde, Leon Tolstói expirava, e sua morte comovia o mundo inteiro.

- Que grande homem e que grande vida! - exclamou Rodrigo.

- Que era um génio, não resta a menor dúvida - disse Rubim. - Mas que tinha um cérebro doentio, também é coisa que ninguém em boa razão poderá negar. Um homem sadio de espírito não procede como Tolstói procedeu. Essa obsessão com os humildes não passa duma fraqueza, o desejo, talvez, de ganhar o céu.

- Não faça tamanha injustiça a um dos maiores escritores que a humanidade produziu! - protestou Rodrigo.

Rubim armou o seu melhor sorriso cínico:

- A explicação mais simples que encontro para o caso do conde Tolstói é: cristianismo complicado com sífilis!

O coronel Jairo soltou um oh! escandalizado. Rodrigo teve vontade de esbofetear o tenente. Voltou bruscamente as costas ao irreverente artilheiro e, aproximando-se do gramofone, pô-lo a tocar a Serenata de Schubert, num solo de flauta.

As conversas estavam animadas. Lucas e Bio confabulavam a um canto da sala, soltando risadinhas e trocando-se palmadas nas costas. Estava claro que falavam em mulheres - concluiu Rodrigo. E Chiru, que suava em bicas, e que já havia pedido licença aos patrícios e circunstantes para tirar o casaco, dirigiu-se ao coronel Jairo:

- Pois é como lhe digo, comandante. Este verão vou buscar o tesouro dos jesuítas. O Rodrigo é meu sócio na empresa. Vamos achar uma verdadeira salamanca.

Laurinda entrou, trazendo uma bandeja cheia de cálices com vermute, que começou a distribuir entre os convivas. Rubim discutia com Jairo as possibilidades da decretação do estado de sítio.

- Não tenho a menor dúvida - dizia. - A Câmara votará o sítio por uma maioria esmagadora e o Senado confirmará.

- Teremos então a ditadura! - exclamou Rodrigo. - E às pessoas decentes deste país não restará mais nada a fazer senão emigrar para o Paraguai.

Rubim sorriu.

- Não seja tão dramático - disse, depois de bebericar o vermute. - Acredite que a ditadura é o único meio eficiente de governar um país como o nosso.

- Não diga tamanha asneira!

Jairo, que aquela noite estava um tanto taciturno, interveio na discussão, mas sem muito calor:

- Eis um assunto delicado e cheio de perigos - murmurou com sua voz paternalmente grave. - Eu preferia que vocês, rapazes, não o levassem muito longe...

- Ora, coronel - tranqüilizou-o Rodrigo -. estamos em família, aqui somos todos amigos. E não vejo no momento assunto mais importante, mais vital que esse. E ouçam o que eu digo: o marechal talvez não chegue ao fim do quatriênio...

Rubim sacudiu a cabeça numa vigorosa negativa.

- Vou fazer outra profecia. O estado de sítio será decretado e o marechal irá até o fim do período!

- Mas por que razão afirmas que a ditadura é a única forma de governo para o Brasil? - perguntou Rodrigo.

- Porque este é um país de mestiços e analfabetos. Os eleitores em sua maioria mal sabem desenhar o nome e não têm idoneidade intelectual para escolher seus administradores e legisladores. Cabe, portanto, as elites cultas dirigir o povo e organizar os governos.

Chiru saltou de seu canto.

- E onde fica a democracia? - gritou.

- A democracia - replicou o tenente de artilharia - é uma ficção baseada na romântica ilusão de que o homem é essencialmente bom e que portanto a vontade da maioria será sempre uma expressão da verdade.

Jairo, muito vermelho, sacudia a cabeça, discordando, mas sem dizer o que pensava do assunto.

- E depois - prosseguiu Rubim -, se por um lado a democracia tem como objetivo o bem-estar do povo em geral, por outro a história tem provado sobejamente que essa felicidade só poderá ser atingida por meio dum governo aristocrático. Continuo a afirmar que não tem nenhum sentido lógico ou prático essa busca da felicidade geral. É uma absoluta perda de tempo que atrasa a produção de super-homens. Neste ponto Platão e Aristóteles estão de acordo com Nietzsche ou, melhor, Nietzsche está de acordo com esses dois filósofos clássicos.

Jairo continuava a menear a cabeça, o cenho franzido.

- Pois eu - declarou Rodrigo - sou liberal, isto é, um partidário da tolerância religiosa, da livre iniciativa, do livre pensamento, do respeito ao indivíduo. Acho que todos os homens nasceram iguais e o que os torna desiguais são as circunstâncias em meio das quais crescem.

Rubim soltou uma risada e a dentuça projetou-se para a frente, agressiva. Depois de tomar o último gole de vermute, replicou:

- O liberalismo, meu caro Rodrigo, não passa dum disfarce muito transparente do medo. O liberal é um cidadão que se recusa a admitir em voz alta que o homem é um animal de rapina e que o verdadeiro, o único direito que existe na natureza é o direito da força. Por ser liberal ele se considera muito nobre, uma espécie de farol a iluminar o mundo. No entanto, o liberalismo, como o decantado amor cristão, tem origem apenas num sentimento inferior: o medo de que o próximo nos possa fazer mal. Isso nos leva a "amá-lo" (como se tal coisa fosse possível!) a fim de que ele também nos ame ou, pelo menos, não nos queira muito mal nem nos agrida. No entanto, se o liberal se sentisse invulnerável na sua torre de marfim, o que ele faria era seguir a sua tendência natural, ficar indiferente ao próximo ou transformá-lo em seu escravo.

- Absurdo! - aparteou Jairo. - Sem a menor base científica!

Rodrigo aproximou-se do tenente de artilharia e fez-lhe uma pergunta incisiva, marcando bem as sílabas:

- E esse desejo de força, essa necessidade de afirmação que vocês os nietzschianos sentem, não será também um produto do medo?

- Não. É antes um desafio aos deuses!

Ao pronunciar estas palavras Rubim soltou com elas sua gargalhada convulsiva. Rodrigo teve a impressão que estava na frente dum grande boneco mecânico a que tivessem dado toda a corda para que ele se pusesse a imitar uma dança de São Vito.

- Mas que mérito podemos ter, tenente, nesse desafio a entidades em cuja existência não acreditamos?

- Muito bem dito - aprovou Jairo -, muito bem respondido!

Rodrigo avistou a tia que, à porta da sala de jantar, lhe comunicava mimicamente que a ceia estava servida.

Liroca soltou um profundo, sentido suspiro que lhe sacudiu o peito.

- Vamos cear, minha gente! - exclamou Rodrigo. Segurou afetuosamente o braço de Jairo. - Venha, coronel.

Fez um sinal para os outros. Entraram todos na sala de jantar e sentaram-se à mesa.

Lucas e Toríbio continuavam em seus segredinhos, e o tenente de obuseiros de quando em quando soltava risadas secas e curtas.

- A mayonnaise está divina - avisou Rodrigo.

Serviu primeiro o coronel, depois passou a travessa a Chiru.

- Agora, que cada um faça pela vida. Sirvam-se à vontade! Houve uma alegre troca de pratos, no meio das conversas e dos tinidos dos talheres. Rodrigo trouxe duas garrafas de champanha, abriu-as e andou com elas ao redor da mesa a encher as taças. Em dado momento ouviu-se, alta e clara no meio das outras, a voz de Toríbio:

- ...uma morena macanuda, com uns peitorais de respeito, recém-caída na vida...

Fez-se um súbito silêncio. Chiru e Neco romperam a rir e quiseram saber de quem se tratava.

- Respeita os mais velhos, Bio - troçou Rodrigo, fazendo com a cabeça um sinal na direção do coronel. E enchendo pela segunda vez a taça de Rubim, perguntou-lhe, provocante: - Será que participas também do desprezo do teu mestre pelas mulheres?

O artilheiro inclinou o busto para trás.

- Modus in rebus. Nietzsche não levava as mulheres muito a sério. O que ele pensa do sexo oposto parece estar consubstanciado naquela frase de Zaratustra: "O homem deve ser exercitado para a guerra e a mulher para a recreação do homem".

Toríbio ergueu o garfo:

- Esse é dos meus!

Rodrigo comia com gosto e ao fim da terceira taça começou a sentir os efeitos do champanha.

Deixaram a mesa pouco depois das dez horas. Rubim tomara e mantivera a palavra durante os últimos quinze minutos, procurando mostrar que a história da jovem República brasileira não passava duma sucessão de golpes de força em que havia prevalecido sempre a vontade duma elite ou dum super-homem, mas nunca a do povo. A propaganda fora feita por um grupo de tribunos e jornalistas em meio da indiferença popular, pois o povo ou não sabia do que se tratava ou estava ainda fascinado por aquele imperador lendário, paternal e fracalhão.

Apenas uma minoria esclarecida desejava o novo regime, que fora proclamado por Deodoro, um militar, num golpe de força. E esse militar, a quem se entregara depois a presidência da República, irritado ante a oposição do Congresso, dissolvera-o, tentando o golpe de Estado. E quando, pouco depois, impotente diante da onda insurrecional que sacudia o país, Deodoro renuncia, Floriano, o vice-presidente, assume o governo e, com mão de ferro, sufoca a revolução, salvando a República. Seu sucessor, entretanto, põe-se a falar a linguagem cristã e feminina da concórdia, quando o que devia fazer era seguir a política enérgica e masculina do antecessor. Como resultado da indecisão e da cordura de Prudente de Morais, faz-se sentir de novo em todo o país o fermento revolucionário. O drama de Canudos - afirmara Rubim - ilustrava de maneira viva a sua tese de que o Brasil era um pais de mestiços analfabetos capazes de todos os fanatismos.

- Não, senhores! Nos momentos de crise em nossa história sempre surgiu um Homem cuja vontade mudou o rumo dos acontecimentos. A figura que vejo hoje no cenário nacional, capaz de influir nos destinos da nação, é a de Pinheiro Machado. Digam dele o que quiserem, mas a verdade é que o senador é uma força contra a anarquia, um dique oposto à enxurrada popular, um mantenedor inflexível do prestigio da autoridade.

Voltara-se para o anfitrião:

- No entanto, um homem culto e inteligente como o Rodrigo chegou a desejar que o negro João Cândido depusesse o marechal Hermes e instituísse no Brasil o governo da patuléia!

Sentaram-se nas cadeiras da sala de visitas.

- O que eu temo - disse Rodrigo é que o senador Pinheiro acabe chamando sobre o Rio Grande a antipatia do resto do Brasil.

- Um homem verdadeiramente forte não necessita da simpatia de ninguém. Ele se basta a si mesmo. Talvez nunca venha a ser amado, mas é fora de dúvida que será sempre respeitado e temido.

Toríbio e Lucas chamaram Rodrigo à parte.

- Olha - disse o primeiro - nós vamos embora. Tem muito homem aqui, não é, Lucas? Vamos correr as casas das chinas.

- Bom proveito - murmurou Rodrigo, dando palmadinhas protetoras nas costas do irmão e do amigo.

Pouco depois Chiru e Saturnino também se retiraram. Iam fazer uma serenata para a filha do coletor estadual, que Chiru estava tentando conquistar. Havia já escolhido o repertório: Elvira; Perdão, Emília; Ai Maria e O talento e a formosura. Chiru puxou Rodrigo para o vestíbulo.

- Escuta, me empresta aí uns dez pilas. Estamos despilchados.

- E aqueles duzentos que te dei o outro dia? Chiru fez uma cara grave.

- Não. Aquele dinheiro é sagrado. É pra expedição. Rodrigo sorriu, meteu a mão no bolso e tirou uma cédula.

- Não tenho nenhuma de vinte. Leva cinqüenta.

- Depois te trago o troco.

- Não sejas cínico.

Os menestréis ganharam a rua e, ao voltar à sala de visitas, Rodrigo ouviu, vindos de fora, os trinados da flauta do Saturnino.

Jairo folheava um número de Illustration e estava particularmente interessado nas reportagens ilustradas sobre as famosas semanas de aviação da França. Numa das páginas da revista estampava-se o retrato da aviadora Mme Laroche que, na festa aviatória de Champagne, fora ferida num acidente.

- Imaginem! - comentou o coronel. - Até as mulheres já andam de aeroplano. Estamos sem dúvida no limiar duma nova era de prodígios.

- Que diria teu Nietzsche - perguntou Rodrigo - se fosse vivo e presenciasse essas maravilhas?

Rubim encolheu os ombros.

- Diria talvez que o avião não é produto do povo mas sim do cérebro privilegiado dum homem superior.

- E parece - prosseguiu Jairo, sem tirar os olhos das páginas da revista - que no futuro o avião será usado também como arma de guerra, não só para reconhecimentos como também para lançar bombas explosivas sobre tropas e cidades inimigas.

Rodrigo sorriu:

- De acordo com o nunca desmentido amor cristão...

- Ah! - fez o coronel. - Aqui está um clichê interessante. Um automóvel equipado com uma metralhadora: pour la poursuite dês aéroplanes. É fantástico!

Rodrigo repoltreou-se na cadeira, com uma taça de champanha na mão.

- Estamos vivendo uma grande hora!

Jairo apanhou um outro exemplar de L'Illustration e pôs-se a folheá-lo com grande interesse.

- Ouçam esta! - exclamou, ao cabo de alguns minutos. - O título é: "A mais gloriosa façanha da aviação em 1910".

Traduziu em voz alta:

- Essa coisa inaudita que, mesmo depois das múltiplas travessias da Mancha, depois das performances dos representantes do Circuito de Leste, depois das proezas quase cotidianas e cada vez mais audaciosas dos aviadores, já algum tempo, essa coisa que, apenas três meses atrás, parecia o mais insensato dos sonhos do mais louco dos campeões do ar, a travessia dos Alpes em aeroplano, é um fato consumado. Tal como o marinheiro que depois de ter percorrido todos os mares e afrontado todas as tempestades vem morrer em terra firme, num acidente banal, o infortunado Chávez, cuja coragem tocou verdadeiramente as raias do heroísmo, sucumbiu em conseqüência duma queda terrível começada a alguns metros do solo, no momento de aterrar... de aterrar (se é que se pode usar este neologismo) na planície de Domodossola.

Calou-se. Ergueu depois os olhos para os amigos.

- Pobre rapaz! Quebrou ambas as pernas, mas veio a morrer mais tarde em conseqüência do deslocamento do coração.

- Uma bela morte - disse Rubim. - Morte de herói... Aí está, a aviação é um esporte para super-homens.

- E supermulheres... - sorriu o coronel.

- E a França, meu caro tenente - exclamou Rodrigo -, a eterna França, que está à frente de todas as outras nações do mundo como pioneira da aviação!

- Mas foi um brasileiro - interveio Jairo - quem inventou o aeroplano.

- A discutir - replicou o tenente. - Os americanos afirmam que foram os irmãos Wright.

- Absurdo! - protestou Rodrigo. - Está provado que Santos Dumont voou muito antes desses yankees...

Naquele instante a campainha do telefone tilintou e Rodrigo precipitou-se para o vestíbulo, voltando pouco depois:

- Um chamado para o senhor, coronel.

- Santo Deus! Será que aconteceu alguma coisa a Carminha? Correu para o telelone. Rodrigo ouviu-lhe a voz ansiosa. Sim... Quem? Ah! Pode dizer... Sim.,. Quando? Sim... Quantos?... Ah... muito obrigado. Boa noite.

O comandante do regimento de infantaria tornou à sala.

- Senhores - disse, quase com solenidade, - acaba de chegar ao quartel um telegrama do Rio, comunicando que a Câmara votou o estado de sítio. Do total de cento e cinqüenta e oito votos apenas treze foram contrários. O Senado confirmou por trinta e seis a um.

- Então - perguntou Rubim, olhando para Rodrigo - quando é que vai embarcar para o Paraguai?

- Não, tenente, vou esperar um pouco mais. Porque estou com o pressentimento de que quem vai para o Paraguai não sou eu, mas o presidente Hermes da Fonseca...

Jairo deixou o Sobrado às onze. Rubim ficou a beber e a conversar com Rodrigo até às doze, hora em que também se retirou. Don Pepe apareceu inesperadamente depois da meia-noite, com os olhos brilhantes, a voz arrastada, o hálito alcoólico.

- Pepe, não devias andar na rua a estas horas! Com licença de quem saíste da cama?

O espanhol segurou-lhe ambos os braços com força.

- No he podido resistir, hijito. Tengo que ver el Retrato esta noche. No te enojes. Estoy bien.

Sentou-se na frente da tela e ficou a mirá-la com apaixonada fixidez. Rodrigo deu-lhe uma taça de champanha, que o pintor apanhou distraidamente e bebeu com ar de quem não sabe o que está tazendo.

- Como, hay que respectar el castellano. Puede ser un borracho, un miserable, puede no tener dinero ni caracter. Vive con una mulata y no tiene valor como para seguir su destino. Pero, mierda, don Pepe Garcia es un artista, un verdadero artista!

Voltou-se para o amigo.

- Que dices, príncipe? Rodrigo ergueu a taça:

- A saúde do artista e de sua obra-prima!

O pintor atirou com força a taça no chão, partindo-a. Ergueu-se, aproximou-se de Rodrigo e segurou-o pela gola do casaco.

- Todo pasará, hijo. Tu padre, tu hermano, tu tia, tus hijos, tu. Pero el Retrato quedará. Tu envejecerás, pero el Retrato conservará su juventud. Vamos, Rodrigo, despídete del otro. - Fez um sinal na direção da tela. - Hoy ya estás más viejo que en el dia en que termine el cuadro. Porque, hijito, el tiempo es como un verme que nos está a roer despacito y es del lado de acá de la sepultura que nosotros empezamos a podrir.

- Não sejas fúnebre, Pepe. Hoje estou feliz. Caso-me dentro de duas semanas. Vamos beber e esquecer a velhice e a morte.

O artista sacudia a cabeça com uma obstinação de bêbedo.

- Hay hombres que están ya completamente podridos.

- Eu sei, eu sei...

Pepe bateu no peito com força.

- Yo estoy mitad podrido, sabes?

- Ora, Pepe, muda de assunto.

- Si nosotros tuviéramos el olfato más desenvolvido como los perros, sabes? podríamos sentir el hedor de los cadáveres alrededor nuestro... Y nuestro propio hedor

nos seria insoportable, sabes?

Rodrigo sorria amarelo. Para manter o amigo à distância, dizia:

- Está bem, Pepito, estamos todos mortos. Mas senta, descansa.

- Ya sé, crees que estoy borracho, no? Pues... tienes razón. Que otra cosa puede hacer un hombre lúcido, sino emborracharse?

- Que tal uma xícara de café bem forte, hein?

- Café? Ridículo!

Empertigou-se, tomando um ar digno. Rodrigo pôs-lhe a mão no ombro e, com voz persuasiva, disse:

- Pepito, estás doente. Tens de ir pra casa imediatamente. Vou chamar o Bento pra te levar de carro. Quem está te falando não é o amigo, mas o doutor. E isso é uma ordem.

Don Pepe fez meia-volta e apontou para a tela.

- Aquel, si, es mi amigo. Mi único amigo. Pero tu, tu eres un impostor!

Precipitou-se para o Retrato de braços abertos e com tanta fúria que perdeu o equilíbrio e tombou ruidosamente, abraçado com o quadro.

Passava já de uma hora da madrugada, quando Rodrigo conseguiu que Bento levasse o pintor do Sobrado para os braços de Celanira.

Pôs-se então a fechar as janelas. Sentia-se num estado muito agradável de pré-embriaguez: o suficiente para deixá-lo aéreo, eufórico e satisfeito com o mundo. Era delicioso estar tonto e ao mesmo tempo conservar a lucidez.

Maria Valéria atravessou a sala de jantar com uma vela acesa na mão: como de costume examinava as portas e janelas, antes de recolher-se ao quarto de dormir. Parecia um espectro. Parou à porta e perguntou:

- Não vai dormir?

- Já vou, Dinda.

A tia entrou no vestíbulo e subiu a escada. Rodrigo seguiu-a com o olhar, sorrindo. O meu fantasma de estimação...

Despejou na taça o resto de champanha que havia na garrafa, tomou um largo trago, olhou para o Retrato e recitou baixinho:

Je recule,

Ebloui lê me voir moi-même tout vernieil

Et d'avoir, mói, Lê Coq, fait lever lê soleil.

 

A sombra do anjo

 

Passava das quatro da manhã quando Rodrigo e a esposa deixaram o salão do Clube Comercial.

- O melhor réveillon da minha vida! - exclamou Flora, com um suspiro de canseira feliz, apoiando-se no braço do marido.

Rodrigo inclinou-se sobre ela e tocou-lhe os cabelos com os lábios. Estava tonto: misturara durante a festa muitas bebidas - boivle, champanha, cerveja, conhaque... Que baile! Que noite! Pouco antes das três da madrugada, Saturnino lhe viera segredar que em toda a existência do clube jamais se consumira tanta bebida como naquele 31 de dezembro. Dois ou três rapazes das melhores famílias de Santa Fé haviam caído no meio do salão em estado de coma. Senhores respeitáveis e damas de ordinário quietas e tímidas estavam num alegrete cômico, a rir, a dizer asneiras e - francamente, Rodrigo - a dançar dum jeito que só em cabaré...

- Qual, Saturno! Não sejas puritano. Santa Fé civiliza-se! Parados na área lateral do clube, Rodrigo e Flora olhavam sorrindo para o Bento, que dormia ao guidom do automóvel, lá embaixo junto da calçada, a boca entreaberta, a cabeça caída sobre o respaldo do banco dianteiro, a aba do chapelão puxada sobre os olhos. Rodrigo sorriu. Achava uma graça irresistível naquele hibridismo. O Bento, peão analfabeto natural de Três Forquilhas, feito chofer dum automóvel de fabricação alemã... Como lhe fora custoso convencer o boleeiro de que ele podia aprender a dirigir aquele carro sem cavalos! Mandara buscar um mecânico de Porto Alegre, especialmente para ensinar-lhe o manejo do Adler. E que sucesso fizera o caboclo no primeiro dia em que descera a rua do Comércio sozinho na direção do automóvel, a fonfonar faceiro e a receber das calçadas e das janelas os acenos de parabéns e os gracejos dos amigos e conhecidos! Havia, porém, um ponto em que Bento se mantinha irredutível. Negava-se a substituir o chapéu de campeiro pelo boné de chofer: recusava obstinadamente trocar as bombachas e as botas pelo uniforme azul e pelas perneiras de couro que o patrão mandara vir da capital.

Os Cambarás desceram lentamente a escada, num equilíbrio meio instável, e entraram no carro.

Rodrigo sacudiu o caboclo.

- Vamos, Bento, acorda!

Bento endireitou bruscamente o busto, atirou para cima com um tapa a aba do chapéu e voltou a cabeça.

- Ah! - fez, com os olhos piscos, pondo à mostra a forte dentadura amarelada. - Feliz Ano-Novo!

- O mesmo para ti - respondeu Flora.

- E que o novecentos e quinze seja melhor que o novecentos e quatorze - desejou-lhes o caboclo.

Saiu do carro em movimentos lerdos, agachou-se diante do radiador e, resmungando e gemendo, ficou a dar manivela.

- Ooooi, bicho bem custoso, seu! Puxa-lo alazão caborteiro! Por mais voltas que desse à manivela, o motor não pegava.

- Filho duma grandessíssima... - Engoliu o palavrão. - Corno duma figa! - continuou a resmonear. - Tu pega ou conta por que não pega!

Deu com toda a força um novo giro à manivela. A hélice do motor pôs-se a rodar e o carro foi sacudido por uma tremedeira.

- Está corcoveando, o bicho! - exclamou Bento, alegremente, precipitando-se para o assento dianteiro, onde ficou a regular, azatamado, a faísca.

Destravou o automóvel e fê-lo arrancar dum modo tão abrupto, que Rodrigo e Flora, que estavam sentados na beira do banco, foram atirados para trás.

- Barbeiro! Quando é que vais aprender a sair sem solavanco? Estou vendo que tenho de mandar vir um chofer de Porto Alegre.

- Pois mande, eu quero voltar pra boléia...

As vezes Rodrigo também tinha saudade do carro, que lhe parecia um veículo mais romanesco que o automóvel. Numa chuvosa tarde de dezembro do ano de 1830, uma carruagem puxada por dois jocosos alazões e conduzida por um cocheiro de libré estacou diante do n° 18 da Rua T... Era assim que começava um dos romances que lhe haviam deliciado a adolescência. Seria ridículo, prosaico, inconcebível, escrever: Naquela madrugada do verão de 1914 um automóvel da afamada marca Adler parou a frente do n° 15 da Rua do Comércio.

Pensou no primeiro automóvel que aparecera em Santa Fé, lá por fins de 1911. Era um estranho veiculo elétrico de três rodas e dois lugares, mandado vir da Alemanha pelo Spielvogel. Causara pânico a primeira vez que percorrera as ruas da cidade. Ao ver a engenhoca passar, um gaúcho que se achava à frente da Casa Schultz, levara a mão ao revólver e só não alvejara o "bicho" porque Marco Lunardi, que aparecera na ocasião, impedira-o disso, imobilizando-o com seus braços possantes.

Com o tempo, entretanto, Santa Fé habituara-se à "aranha" do Spielvogel. Mas fora ele, Rodrigo, quem adquirira o primeiro automóvel de quatro rodas e cinco lugares, movido a gasolina. O Adler fizera também os seus "estrupidos" no dizer do Liroca, assustando pessoas e animais com as explosões de seu motor e os roncos de sua buzina. Muitas vezes, por imperícia do Bento, o auto subira nas calçadas, indo de encontro a muros ou a paredes. Incontáveis também foram as ocasiões em que por causa de desarranjos no motor ou da falta de alguma peça, o Adler tivera de ficar imobilizado na garagem. (Esta última palavra e outras como faísca, radiador, marcha à ré, guidom, pneumático, jonfom e chofer começavam a ser incorporadas ao vocabulário corrente.) Fosse como fosse - concluía Rodrigo - valia a pena ter automóvel.

Joca Prates animara-se a comprar no ano passado um Mercedes igual ao que Spielvogel trouxera da Alemanha em 1913. Dizia-se que o Maneco Macedo encomendara, havia pouco, um Fiat. Era uma espécie de competição entre um pequeno grupo de estancieiros e comerciantes locais: cada qual procurava exibir nas ruas, em passeios dominicais, o automóvel maior e mais caro. Rodrigo esperava agora um Ford de quatro cilindros, não porque quisesse entrar no torneio - coisa que achava supinamente tola - mas sim porque lhe haviam assegurado ser esse o carro indicado para vencer com sucesso aquelas estradas deploráveis que levavam ao Angico.

- Guarda o auto e vai dormir, Bento! - disse ele ao apear à frente do Sobrado. Tirou a chave do bolso, abriu a porta e empurrou Flora para dentro, docemente. Procurou às apalpadelas o comutador e torceu-o: o vestíbulo iluminou-se de súbito. Tinham energia elétrica em Santa Fé desde fins de 1912, mas era sempre com a sensação de fazer um milagre que Rodrigo dava volta à chave da luz. Como aquilo era infinitamente mais prático, mais fácil e mais limpo que o acetilene! No entanto, ele jamais poderia imaginar Mme Bovaiy ou Ana Karênina a outra luz que não fosse a de gás...

Como que sem forças para subir, Flora estava parada ao pé da pequena escada, de braços caídos e olhos quase fechados.

- Que é que tens, meu amor?

- Ai! Estou com uma moleza... Acho que foi o bowle. Rodrigo ergueu-a nos braços e subiu a escada. Flora enlaçou o pescoço do marido e como que se lhe aninhou de encontro ao peito.

- É a vantagem de ter uma esposa portátil - murmurou ele ao pô-la de pé no chão do vestíbulo.

Encaminharam-se abraçados para a escada grande, acendendo as luzes das peças por onde passavam.

- Se eu fosse casado com uma grandalhona como a Esmeralda...

Calou-se, arrependido de haver mencionado este nome. De olhos entrecerrados, a voz sonolenta, Flora balbuciou:

- Pensas que não vi o jeito dela olhar pra ti no baile?

- Hein?

- Eu bem que vi. Sempre que podia, vinha falar contigo. Uma vez chegou até a encostar a mão no teu braço. E que olhos ela te botava. Nossa Senhora!

- Ora que bobagem, Flora! Ela sorria, com ar de sonâmbula.

Que intuição diabólica tinham as mulheres! - refletiu Rodrigo.

Naquela noite tivera realmente um flerte com Esmeralda Pinto. Haviam dançado uma valsa e por mais duma vez ela projetara com força os seios contra seu peito, ao mesmo tempo que a pressão de seus dedos se fazia mais forte. Vá a gente entender as mulheres! Há quatro anos, quando nós dois éramos solteiros, só por causa duma brincadeira inocente a criatura fez um barulho dos demônios. Agora, que estamos ambos casados, sem a menor provocação da minha parte, ela me vem com esses olhares e esfregações.

Tornou a erguer a mulher nos braços.

- Não quero que digas mais essas bobagens, estás ouvindo? - repreendeu ele carinhosamente.

- Que bobagens?

- Essa história da Esmeralda Pinto. Tu sabes que não sou homem dessas coisas.

Flora não respondeu. Com a cabeça pousada no ombro do marido, parecia adormecida.

- E tu sabes muito bem - continuou ele, enquanto subia lentamente os degraus - que pra mim só existe uma mulher no mundo inteiro. Tu!

Como única resposta, Flora espichou os lábios e beijou-lhe o pescoço.

- Se eu não tivesse a certeza de que te amava, não me casava contigo. Se há coisa que não me passa pela cabeça é namorar as mulheres dos outros.

Flora beijou-lhe chochamente a ponta do queixo.

- Está espinhando - queixou-se, lambendo os lábios.

- É que a esta hora da madrugada a barba já está meio crescida.

- Que horas são?

- Mais de quatro, meu bem, riu.

Entraram no quarto, Rodrigo acendeu a luz e depôs a mulher sobre a cama.

- Estou com preguiça até de tirar a roupa... - murmurou ela. Pela cabeça de Rodrigo passou uma idéia picante.

- Queres que eu te dispa?

Como se lhe tivessem atirado um jorro d'água fria, Flora abriu os olhos num sobressalto.

- Rodrigo!

- Estou brincando, meu bem.

Mas na realidade falava sério. Estava excitado e sem sono. Por um instante ficou a despir a mulher em pensamento, a tirar-lhe as roupas, uma por uma, com propositada lentidão, a antegozar o sensacional momento da nudez completa. Não precisava fazer aquilo com a luz acesa... Ficaria até mais interessante se deixassem o quarto numa penumbra azulada de luar... Diabo! Por que não podiam entregar-se de quando em quando a extravagâncias como aquela? Não seriam por acaso marido e mulher? Ou estarei bêbedo?

De pé, no meio do quarto, contemplava a companheira. Estavam casados havia quatro anos e Flora jamais se despira em sua presença. Esse pudor geralmente o encantava: em certas ocasiões, porém, deixava-o irritado. Muitas vezes chegava à conclusão de que, em matéria de sexo, preferia que o casal fugisse à consabida burocracia conjugal, que acabaria por transformar-se com o passar do tempo numa rotina insípida: amor em dias e horas certos, com a luz apagada e sob as cobertas, dentro da mais rigorosa ortodoxia - tudo muito digno, muito sério, muito "família". Flora entregava-se com o ar de quem cumpre um dever grave. Jamais dera a entender por gestos ou palavras que aquilo lhe dava prazer. Rodrigo, às vezes, desejava que na alcova ela fosse mais amante que esposa. Tinha, porém, a antecipada certeza de que, se tal acontecesse, ele próprio ficaria escandalizado e tomado duma ciumenta e meio alarmada apreensão.

Flora ressonava, e seus seios miúdos (nem parece que já amamentou os dois filhos!) subiam e desciam num ritmo lento e regular. Rodrigo despiu o casaco do smoking e jogou-o sobre uma cadeira. Arrancou o colarinho e a gravata, atirando-os em cima da cama.

Descalçou os sapatos e deixou-os virados no meio do quarto. Sorriu ao lembrar-se do que a mulher costumava dizer: "És um desorganizado! Quando tiras a roupa, deixas tudo espalhado pelo chão. Pareces uma criança". Mas como era possível ter método e ordem, fazer todas as coisas da vida com um cuidado meticuloso? Havia observado que os chamados metódicos eram geralmente homens incapazes de paixão, tipos frios, eficientes e insuportavelmente cacetes.

Sentou-se na beira da cama, acendeu um cigarro e pôs-se a fumar, com os olhos postos na mulher. O casamento fizera bem a Flora. Deixara-a mais fornida de carnes, sem entretanto deformar-lhe o corpo. Notava-se nela um certo amadurecimento que não se revelava apenas nas feições, nos gestos, na maneira de andar e olhar, mas também e principalmente nas palavras, nos juízos, na atitude diante das pessoas e da vida. Tinha um bom senso desconcertante. Era agora, por assim dizer, o poder moderador de sua vida. Ele notara o ressentimento, a ciumeira de sua madrinha quando vira entrar no Sobrado, como senhora, aquela menina inexperiente. Flora, entretanto, desde o primeiro dia suportara as impertinências de Maria Valéria com um sorriso tolerante e compreensivo, evitando qualquer atrito. E, com uma sabedoria digna dum político consumado, sempre que a outra com visível má vontade vinha consultá-la sobre assuntos domésticos, respondia: "Ora, titia, a senhora é quem manda. E, depois, eu não entendo nada desses negócios de casa..."

E Maria Valéria, aparentemente satisfeita, continuara a governar discricionariamente o Sobrado.

Galos amiudavam, longe. Dentro duma hora estaria a nascer o novo dia - pensou Rodrigo -, mas o sono não lhe vinha. Estendeu-se na cama, com os pés para a cabeceira, e ali ficou com o cigarro preso entre os lábios, os braços cruzados, os olhos postos no teto. Sempre imaginara que o casamento lhe pudesse trazer um certo apaziguamento sexual. Talvez no fundo não chegasse a esperar nem isso: estava mas era procurando um pretexto para trazer Flora legalmente para aquela cama. Cínico! Ora, seria tolice tentar tapar o sol com uma peneira. Sabia que não era homem que se contentasse com uma única mulher. Apesar disso, fora absolutamente fiel à esposa durante... quantos anos mesmo? Sorriu. Não. Não haviam sido anos, mas meses. Uns seis ou sete... Quando Flora chegara às últimas semanas de sua primeira gravidez, ele se vira de tal maneira acicatado por uma tão grande insatisfação sexual que, sem saber como resolver seu problema discretamente ali em Santa Fé, inventou um pretexto para ir a Porto Alegre, onde passara dez dias inesquecíveis: noitadas no Clube dos Caçadores, ceatas com amigos e mulheres, muitas mulheres. Durante uma semana inteira "chafurdara", sem a menor inibição ou antecipado remorso. Como médico, encontrava uma explicação natural para aquilo: era uma purga. Que o organismo humano necessita periodicamente duma purga, isso era coisa que nem o dr. Matias ignorava. Pois aquela prolongada farra em Porto Alegre, em setembro de 1911, tinha sido a purga de que ele tanto precisava. Voltara para casa, aliviado, com um leve sentimento culposo que fizera redobrar seu amor, sua ternura pela mulher, a quem cumulara de atenções e presentes. Chegara, satisfeito, à conclusão de que Flora não havia sido prejudicada em coisa alguma por aquela escapada, ao passo que ele, tendo salvo as aparências, se sentia renovado, pronto para enfrentar um longo período de respeitabilidade monogâmica. E assim, depois do nascimento de Floriano, o casal tivera sua segunda lua-de-mel...

De olhos cerrados, a fumar e a ouvir os borborigmos do estômago, Rodrigo lembrava-se, divertido, das juras que então fizera a si mesmo, a olhar para o filho adormecido no berço: "Prometo nunca mais andar atrás das outras mulheres. Para mim a Flora é e continuará sendo a única até a morte". Curioso! Apesar de tudo quanto aconteceu nos anos seguintes, aquela promessa havia sido formulada com a mais absoluta sinceridade.

Tivera a princípio a impressão de que a paternidade o tornara um homem novo. Não pudera nem tentara reprimir as lágrimas no dia em que pela primeira vez vira a mulher amamentando o filho. E que sensação agradável e ao mesmo tempo embaraçosa a de ter na cama à noite uma Flora maternal, de seios túmidos de leite, uma Flora alvoroçadamente feliz e apesar disso agoniadamente inquieta, a acordar a cada passo para olhar o filho no berço ao lado da cama. ("Será que essa criança está respirando direito? E se ela pega gripe? Meu Deus! O Floriano está ficando roxo...") Rodrigo observara, perturbado, que a mulher e o filho tinham o mesmo cheiro: recendiam ambos leite, cueiros de flanela úmidos e talco. Com freqüência Flora trazia Floriano para a cama e dormia com a criança nos braços. Todas essas coisas concorriam para deixá-lo inibido, com a impressão de que possuir fisicamente a mulher naquela conjuntura seria cometer incesto.

Abriu os olhos e ficou olhando para a espiral da fumaça do cigarro. Os chineses (que grande povo, que sábia gente!) tinham razão em reconhecer que todo o varão necessita, além da esposa legítima, de uma ou mais concubinas. Porque o homem é, sem a menor dúvida, um animal polígamo. Não existe nenhuma lei natural que justifique a monogamia. Mas que é que a gente vai fazer, com dois mil anos de cristianismo na consciência?

Voltou a cabeça e pôs-se a contemplar com certa fascinação os tornozelos de Flora, que estavam a poucos centímetros de seus olhos. Sentiu um desejo travesso de erguer o vestido da esposa para ver-lhe as pernas, mas conteve-se no temor de que, despertando, ela o pilhasse a fazer aquele gesto juvenil.

Cerrou os olhos. Os borborigmos continuavam. Estou precisando duma dose de bicarbonato. Amanhã a ressaca vai ser colossal.

Retomou o fio dos pensamentos de alcova. Que é que vai fazer um homem moço, sadio e sensual quando vê que a esposa, grávida, perde as formas, deixa de despertar-lhe desejo? Ficar na abstinência como um eremita? Ora, isso não é para qualquer temperamento. A solução mesmo é a concubina, queiram ou não queiram, doa a quem doer...

Atirou o cigarro no chão, revolveu-se na cama à procura duma posição e acabou deitado de bruços.

A segunda gravidez de Flora não lhe trouxera menos problemas. Lembrava-se duma certa noite em que, já tarde, chegara à casa de volta do teatro, aonde fora sozinho. Despira-se de luz apagada, no maior silêncio, para não despertar a mulher, e depois deitara-se ao lado dela, mas bem na beira da cama, pois vivia obcecado pelo temor de, durante a noite, bater inadvertidamente no ventre dela, apertar-lhe os seios ou magoá-la fisicamente de qualquer outra forma. Era uma noite quente de fevereiro de 1913 e por muito tempo ele permanecera de olhos abertos, a recordar cenas da opereta a que assistira no Santa Cecília. Tinha a mente cheia de música, luzes e imagens. Ficara impressionado com Gina Carelli, a melhor Viúva alegre que jamais vira em toda a sua vida. Era uma jovem italiana, muito bem-feita de corpo, de cabelos oxigenados e olhos escuros, dona duma voz quente, duma doçura pegajosa. A soprano da companhia era uma ragazza de feições clássicas: sua beleza, tranqüila e pura, convidava à contemplação estética. Mas La Carelli, a soubrette, essa tinha uma boniteza jovial e meio canalha, que provocava a ação erótica. Não era, entretanto, uma fêmea que fizesse pensar em sérias, vagarosas, profundas paixões de alcova, mas sim em escapadas ocasionais, amores roubados e urgentes, tanto mais excitantes quanto mais furtivos e temperados de acidentes e incidentes grotescos.

Como lhe custara trazer aquela companhia de operetas a Santa Fé! O empresário exigia-lhe como garantia um mínimo de cento e vinte assinaturas para cinco espetáculos, de sorte que ele, Rodrigo - que só conseguira passar noventa e cinco entre os amigos - tivera de pagar do próprio bolso as vinte e cinco restantes. Mas valera a pena gastar todo esse dinheiro para ter o privilégio de ver La Carelli a dançar um cancã no palco do Santa Cecília, mostrando quase meio palmo de coxa.

Estava ainda a pensar na soubrette quando ouviu o choro malabafado de Flora. Voltando a cabeça, vira na penumbra os ombros dela sacudidos por soluços.

- Que é isso, minha filha?

Nenhuma resposta. Tomara-a nos braços, com todo o cuidado, e, fazendo-a voltar-se para ele, estreitando-a suavemente contra o peito, sentindo contra a boca do estômago aquele ventre bojudo e quente.

- Que é isso, meu bem? Conte pró seu maridinho o que é que tem. Está sentindo alguma dor? Não? Então o que é? Teve algum sonho mau?

Depois de muita relutância Flora contara por que chorava. É que estava feia, disforme, velha, medonha...

- Tu nem me olhas mais. Tens tanto horror de mim que chegas a dormir na beira da cama, bem longe...

- Mas, meu bem, é que eu tenho medo de te magoar, não compreendes?

Com a cabeça da esposa aninhada no peito, ficara como que a niná-la, sussurrando-lhe ao ouvido ternas palavras de amor. O choro fora cessando aos poucos mas, mesmo depois de verificar que Flora dormia, ele não tivera coragem de retirar o braço sobre o qual a cabeça dela repousava. Por muito tempo permanecera naquela posição, a sentir no peito o bafo úmido e morno da mulher, e a pensar no encontro que marcara para o dia seguinte com Gina Carelli. O plano era simples. Convidara-a para um passeio de automóvel, que diabo!, a coisa mais natural do mundo, pois a soubrette não era nenhuma provinciana... Iriam os dois contemplar o por-do-sol ao pé dos muros do cemitério. Voltariam para a cidade ao anoitecer e o Bento já estava instruído para, à altura da Sibéria, desviar o Adler da estrada real, levá-lo até a orla do Capão das Almas e lá, sob qualquer pretexto, desaparecer...

O resto fica por minha conta. Mas preciso não esquecer que La Carelli não pode chegar tarde para o espetáculo da noite. Para o outro espetáculo.

Estava sorrindo a pensar nessas coisas quando sentira contra o próprio ventre a palpitação do ventre da esposa. Era seu filho que esperneava... Santo Deus! A criaturinha estava a tocá-lo, como que a fazer-lhe um sinal. Essa idéia deixara-o de tal modo sensibilizado, que ele rompera a chorar e a beijar, arrependido, os cabelos de Flora.

Despertou no dia seguinte quase às duas da tarde, com a cabeça pesada, a boca amarga, o corpo lasso e lavado em suor.

soergueu-se na cama, ficou por um instante a piscar e a olhar atarantado em torno do quarto. Flora dormia a seu lado completamente vestida, tal como estava ao chegar do baile. Ele também não havia tirado a camisa de peito engomado nem as calças do smoking.

Ergueu-se, zonzo, aproximou-se duma das janelas e abriu-a. A claridade da tarde feriu-lhe os olhos. Um bafo de fornalha subiu da rua. Que calor, mãe de Deus! Sentia a camisa colada ao peito e às costas, o suor a escorrer-lhe pelo rosto, pelo corpo todo. O remédio era um chuveiro frio... Dirigiu-se para o quarto de banho. Pelo caminho foi tirando a roupa: jogou o colete no chão do corredor, deixou a camisa sobre o corrimão da escada, baixou os suspensórios e livrou-se das calças na sala de jantar... Ao chegar ao quarto de banho estava já completamente despido. Soltou um suspiro de profundo gozo quando o fresco jorro d'água lhe envolveu o corpo. Sentou-se debaixo do chuveiro e ali ficou longo tempo, de olhos cerrados, os braços a enlaçar os joelhos. E quando, pouco antes das três, tornou a descer para o andar inferior, Maria Valéria lançou-lhe um olhar crítico:

- Grossa farra, hein?

- Bom dia - disse ele com voz amarga.

- Boa tarde!

A mania de horário que tinha aquela gente antiga! Eram os supersticiosos da ordem, da disciplina, da regularidade. Don Pepe é quem tinha razão. Que es el tiempo? Nosotros los espanoles somos así. (Onde estaria o diabo do castelhano àquelas horas? No Pará? No Amazonas?)

Flora apareceu pouco depois do marido. Desceu as escadas devagarinho, segurando o corrimão, como uma convalescente que arrisca os primeiros passos depois de longa enfermidade.

- Está na mesa! - anunciou Laurinda com a jovialidade de quem havia dormido suas sete horas tranqüilas e deixado a cama às seis da manhã.

Flora franziu o nariz.

- Não me falem em comida. Eu quero é uma boa dose de bicarbonato.

Com todo o cuidado, os olhos semicerrados, a cabeça ereta, inclinou-se para beijar os filhos que brincavam na sala de visitas.

- Ano novo, vida nova - sentenciou Maria Valéria. Flora declarou que ia apenas fazer ato de presença à mesa.

Estava pálida e com olheiras. Rodrigo achou que não lhe ficava nada mal aquela máscara de ressaca.

Feijão com toicinho; carne frita com batatas assadas; talharim coberto de queijo parmesão ralado; galinha ensopada; arroz luzidio...

Rodrigo atirou-se à comida com um apetite que não só surpreendeu a mulher e a tia como também a ele próprio. Ao despertar jurara que não teria coragem de botar o que quer que fosse na boca, a não ser talvez café preto sem açúcar.

- Invejo o teu estômago - disse a mulher.

Naquele instante Alicinha desatou o choro: Floriano lhe havia arrebatado das mãos o cavalinho-de-pau.

- Faça essa criança calar a boca, Dinda! - suplicou Rodrigo. Os gritos da menina pareciam atravessar-lhe o cérebro como pontaços de fogo.

- Quem pariu Mateus que o embale! - retrucou a tia. Disse isso apenas no automatismo do hábito, pois levantou-se imediatamente e dirigiu-se para a sala, onde arbitrou à sua maneira decidida a pendência dos irmãos.

- Dê o cavalo pra sua maninha. Ué, gente! Onde se viu? Floriano obedeceu, a cabeça baixa, o beicinho trêmulo. Era uma criança quieta, duma docilidade que preocupava um pouco Rodrigo, que preferia vê-lo - homem que era - mais rebelde e turbulento.

Alicinha parou de chorar. Maria Valéria tornou a sentar-se.

- Como se foi de discurso no clube?

- Uma beleza, titia! - exclamou Flora. - Um dos melhores que Rodrigo tem feito.

- Tapei a boca de muita gente - disse ele. - Na minha primeira gestão, em novecentos e onze, me acusaram de ser um presidente perdulário, de ter ficado com as glórias de reformador do clube e deixado as dívidas pras outras diretorias pagarem. Pois bem. Minha gestão de 1914 foi um modelo de equilíbrio e economia. Entreguei ontem o clube à nova diretoria sem uma única conta a pagar e com quase um conto de réis em caixa!

- Sim - observou Maria Valéria - mas quanto gastou do seu bolso?

Sei lá! Perdi a conta, Dinda, perdi a conta. Reformei a sala de jogo carteado com o meu dinheiro. A mobília do toilette das senhoras também foi eu quem pagou. E as cortinas do salão de baile... e o novo coreto...

- E que foi que ganhou com isso? Vão continuar a falar mal de você do mesmo jeito. E esse dinheiro não volta mais pró seu bolso.

Rodrigo encolheu os ombros.

- Por que é que as moedas são redondas? Pra rolar! Dinheiro não nos falta, Dinda. Estamos na época das vacas gordas.

Sim, sua farmácia atravessava um período de grande prosperidade. As vendas aumentavam dia a dia. O movimento agora era tão grande, que tivera de admitir mais dois empregados. Esse progresso se devia em grande parte às operações do dr. Cario Carbone. Felicitava-se por ter tido a idéia de trazer aquele italiano para Santa Fé. O diabo do gringo tinha mãos de mago: era indubitavelmente o maior operador que jamais aparecera no Rio Grande do Sul. Outra grande idéia fora a de construir no quintal da farmácia aqueles pavilhões de madeira com os quartos onde ficavam os doentes após as operações. Era uma espécie de paródia de sua sonhada casa de saúde... E esse hospital improvisado vivia sempre cheio e não raro tinham de acomodar precariamente os operados nos corredores em cima de colchões estendidos no soalho. De todos os pontos de Santa Fé e dos municípios vizinhos afluíam doentes. O dr. Carbone trabalhava desde o raiar do dia e às vezes tinha de continuar operando noite adentro. Cada operação deixava para a farmácia um apreciável lucro, isso sem contar a renda do aluguel dos quartos.

Era realmente uma época de vacas gordas. Tolice preocupar-se a gente com dinheiro!

No dia seguinte pela manhã, em companhia da mulher e dos filhos, Rodrigo foi visitar os sogros, que viviam agora numa pequena chácara situada a um par de quilômetros a noroeste do cemitério municipal. Como as estradas para aquelas bandas fossem sofríveis, arriscou-se a fazer o percurso de automóvel. E enquanto Flora ia calada no seu canto, os olhos cerrados, a cabeça pendida (o balanço do Adler e o cheiro de gasolina queimada causavam-lhe tonturas e náuseas), Rodrigo pensava na singular história do sogro, que continuava a ser para ele uma fonte inesgotável de surpresas.

Numa tarde de fevereiro de 1911, exatamente no dia em que havia chegado com Flora a Santa Fé, de volta da viagem de núpcias a Buenos Aires, espalhara-se pela cidade a notícia de que Aderbal Quadros estava falido. Flora desatara logo o choro, pois em seu espírito a palavra falência estava associada a outras igualmente dramáticas como cadeia, fuga, vergonha, suicídio...

Rodrigo ficara chocado pela subitaneidade do golpe e ao mesmo tempo magoado com o sogro por não tê-lo avisado com antecedência do que estava por acontecer. Claro, havia muito, murmurava-se que Babalo andava mal de negócios, mas sempre que amigos íntimos tratavam de esclarecer o caso, o velho desconversava. Escondera tudo até a última hora. Por que, Santo Deus? Por quê?

O acontecimento produzira em Santa Fé uma espécie de pânico, pois várias dezenas de pessoas de condição humilde - que confiavam mais em Aderbal Quadros que nos estabelecimentos bancários - tinham pequenas quantias nas mãos dele, a render juros. Rodrigo correra à casa do sogro, esperando encontrá-lo arrasado. O velho, entretanto, viera sorrindo a seu encontro.

- Então, já soube do estouro da boiada? - perguntara ao abraçá-lo.

- E agora, que é que o senhor vai fazer?

- Agora? Liquidar a massa falida e começar de novo. O principal é não prejudicar ninguém. Pagarei tudo e todos até o último tostão. - E em seguida, mudando de tom e evidentemente buscando um pretexto para fugir do assunto:

- Então? Como se foram de viagem? Se divertiram muito? Naquele mesmo dia Rodrigo procurara o dr. Ruas, o advogado de Aderbal, para saber ao certo da situação do sogro. Estava pasmado. Um cidadão que não bebia, não jogava nem se metia com mulheres; um homem que levava a mais espartana das vidas, trabalhando de sol a sol - como podia ter chegado a uma situação como aquela?

Muito simples - explicara o advogado. Aderbal Quadros recebia dinheiro a juro alto - mais alto que o de qualquer banco do país - e emprestava-o a juro baixíssimo, sem garantia de espécie alguma. E o pior de tudo - esclarecera ainda o dr. Ruas, alteando a voz indignada -, o pior de tudo era que o simplório chegava ao cúmulo de não exigir nenhum documento das pessoas a quem fazia empréstimos, pois achava - o inocente! o anjinho! o idiota! - que a palavra de um homem de bem valia tanto quanto qualquer letra selada, com assinatura reconhecida em cartório. Ali! Mas as "loucuras" do Babalo não pararam aí. Descobrira também que o homem não trazia nada anotado, suas transações eram feitas sob a palavra e registradas apenas na memória. Livro? Invenção estrangeira para complicar as coisas.

E o produto da venda das terras que o velho possuía - indagava Rodrigo - não daria para cobrir com folga as dívidas? Nas estâncias de Santa Rita e Santa Clara estavam os melhores campos da região serrana... Seriam no mínimo umas boas quinze léguas bem povoadas. E o gado? E os prédios que o velho possuía na cidade?

O dr. Ruas sorria sardonicamente. Babalo não era apenas seu constituinte, era também seu amigo de muitos anos. Por essa razão a coisa toda o deixava furioso. Nunca me consultava! Nunca me ouvia! Decerto acha que advogado é sinónimo de vigarista.

- Pois saiba duma coisa, dr. Rodrigo, depois de vendidas essas duas estâncias com todo o gado, aos melhores preços do momento; depois de vendidas todas as casas, pagos os impostos, etcétera, etcétera... o total apurado mal dará pra pagar o que esse cretino deve!

- É assombroso!

- As pessoas a quem ele emprestou dinheiro estão insolventes, já morreram ou se mudaram de Santa Fé sem deixar nem rastro.

- Espantoso!

- Só no ano passado seu sogro perdeu uns cento e tantos contos numa charqueada de Rosário. Imagine, sócio duma charqueada que nunca viu! E pior que isso: faz uns cinco ou seis anos que vem perdendo dinheiro com a tal lavoura de trigo. Essa é que foi a grande sangria. Ora, se os nossos avós deixaram de plantar trigo no Rio Grande deve ter sido por alguma razão muito boa!

Ao saber da falência do amigo, Licurgo precipitara-se do Angico para a cidade, fechara-se com Babalo numa sala durante mais duma hora, tentando convencê-lo da necessidade de salvar as estâncias a qualquer preço. Ele, Licurgo, e mais um grupo de amigos estavam dispostos a levantar o dinheiro para atender aos principais credores. O resto se arranjaria com o tempo...

Babalo passara quase todo o colóquio a sacudir negativamente a cabeça. Não queria sacrificar os amigos. Mas não é sacrifício, vivente de Deus! Se eu estivesse nessa situação, sei que vassuncê faria o mesmo por mim.

Não conseguiu, porém, convencer o outro. Aderbal Quadros queria vender tudo o que possuía, pagar as dívidas até o último vintém, e começar de novo, com o cofre e a consciência igualmente limpos. Parecia até que, naquela história toda, a única coisa que realmente o interessava era recomeçar a vida na estaca zero, como se fosse ainda um piá e não um homem de mais de cinqüenta anos.

Agastado, Licurgo encerrara a entrevista com uma frase muito de seu agrado: "Amarra-se o burro à vontade do dono". E Babalo, chupando o cigarrão, glosara: "O burro nesse negócio fui eu. Portanto eu é que devo agüentar as conseqüências".

Pensando nessas coisas Rodrigo olhava para as coxilhas, sob a soalheira daquela manhã de verão. Numa das invernadas que margeavam a estrada, queimava-se campo, e o vento trazia até o automóvel uma fumaça azulada e espessa, cujo cheiro lhe evocava longínquos verões da infância, no Angico.

 Aproximavam-se da chácara a que Babalo dera - ninguém sabia ao certo por quê - o nome de Sutil. Bento pôs-se a fonfonar. Uns cinco ou seis guaipecas, dos mais variados pêlos e tamanhos, surgiram na estrada e entraram a perseguir o automóvel, ladrando furiosamente.

Rodrigo avistou a casa dos Quadros, uma meia-água de porta e duas janelas, de paredes que haviam sido brancas num passado remoto, e coberta de telhas vãs esverdinhadas de limo. Parecia uma velha triste e encolhida, com um xale sobre os ombros, sentada quietinha atrás daquele renque de coqueiros.

- Quem diria? - murmurou Rodrigo. - O dono das estâncias de Santa Rita e Santa Clara reduzido à condição de rendeiro duma chacrinha!

Flora entreabriu os lábios num desbotado sorriso:

- Deixa o coitado. Ele gosta dessa vida...

- Pois é exatamente isso que me intriga. O velho gosta!

- Quando morávamos na casa da rua do Comércio, às vezes o papai ia sestear no fundo do quintal, debaixo das árvores e em cima dos arreios. Dizia que era pra se lembrar dos tempos de tropeiro...

O Adler parou à frente da casinhola. Babalo e a mulher, que os sons da buzina haviam atraído para fora, aproximaram-se do automóvel.

As duas crianças apearam e precipitaram-se, de braços erguidos e aos gritos na direção dos avós. Babalo acocorou-se, enlaçou os netos, um em cada braço, puxou-os contra o peito e beijou-lhes as faces. Dona Titina, secarrona, limitou-se a dar-lhes a mão:

- Tomem a bênção da vovó.

Levou-os depois para dentro e, sob os protestos de Flora, encheu-lhes as mãos de roscas de polvilho e rapaduras de leite. Aderbal quis saber como ia a guerra.

- Um pouco parada - informou Rodrigo. - Na Europa agora é inverno. Cai muita neve, os caminhos estão impraticáveis, o frio é brabo. O remédio é fazer guerra de trincheira enquanto a primavera não vem. Babalo sorriu.

- Às vezes até chego a pensar que toda essa história de guerra não passa duma invenção do Correio do Povo e dos outros jornais, só pra terem assunto.

- Antes fosse...

Entraram. A "varanda", de chão de terra batida, teria quando muito três metros de frente por dois e meio de fundo. Viam-se grandes falhas no reboco das paredes manchadas de umidade e onduladas de calombos. A mobília era a mais rústica e resumida possível: uma mesa de pinho sem lustro, quatro cadeiras de assento de pau e um velho guarda-comida meio desmantelado. Moscas zumbiam no ar recendente a queijo fresco, charque e cinza fria.

Flora e a mãe conversavam animadamente sobre assuntos domésticos. Aderbal puxou o genro para fora.

- Venha olhar a minha estância - convidou com mansa ironia. - Não é tão grande como a de Santa Clara ou a de Santa Rita, mas sempre é melhor que nada...

Ficaram parados a conversar por um instante à sombra das árvores do pomar. Babalo tirou do bolso um pedaço de fumo em rama e começou a picá-lo com a faca de cabo de prata. O Sutil - refletia Rodrigo - era mesmo uma estância em miniatura. Tinha um pomar com laranjeiras, bergamoteiras e pessegueiros; uma coxilha em cuja encosta Babalo fizera sua roça de milho e feijão; um caponete por dentro do qual corria um riacho; um potreiro, uma horta, uma mangueira, um galpão...

- Está vendo o galinheiro novo? A Titina está criando umas legornes. Diz que vai vender ovos pra fora. Quero só ver. Se ela for tão boa negociante como o marido, vai acabar quebrando...

Soltou sua risada clara.

- Tenho também três vacas leiteiras. Estamos bebendo um leite mui especial. A semana passada a velha fez uma batelada de queijos. Levem uns pra vocês.

 Rodrigo avistou o rosilho de Babalo amarrado a um tronco de cinamomo e completamente aperado. Sabia que todas as manhãs o sogro montava a cavalo e saía a percorrer "suas terras". Seis pobres hectares... Um homem que já tivera de seu tanto campo que a vista nem alcançava!

Ali estava um caso que lembrava o duma personagem d'O pato selvagem. Ekdal, o velho caçador, ao fim duma vida de frustrações e derrotas, para aplacar a saudade dos tempos heróicos da mocidade, em que caçava ursos nas montanhas, metia-se no viveiro da casa do filho e lá ficava a dar tiros em pobres coelhinhos assustados. Babalo procurava matar no Sutil a saudade de suas grandes estâncias... Ah! Mas havia uma diferença: a personagem de Ibsen era uma alma submersa, um vencido, ao passo que Aderbal Quadros lutava com o aprumo dum triunfador. E com que alegria, com que entusiasmo, com que gosto!

- Vou te mostrar uma coisa - murmurou ele, tomando o braço do genro. - Botei nomes de políticos importantes em algumas dessas árvores mais bonitas.

Aproximaram-se do sopé da colina. Aderbal apontou para a árvore alta que se erguia ao lado do galpão:

- Aquele cedro é o dr. Júlio de Castilhos. Está vendo aquela cabriúva no topo da coxilha? É o conselheiro Gaspar Martins. Lá na beira do riacho tem uma corticeira que dá uma flor mui linda, é o dr. Assis Brasil. Ando meio brigado com o dr. Borges de Medeiros, mas botei o nome dele num desses cinamomos...

Enrolou o cigarro, acendeu-o e soltou um par de baforadas. Um sorriso de malícia apertou-lhe os olhos e fez saltar os zigomas, acentuando a angulosidade do rosto.

- Aquela arvorezinha enfezada ali perto da horta (está vendo?) é o marechal Hermes. Sabe por que é que não cresce? Por causa da grande, do jacarandá que, a bem dizer, está por cima dela. O jacarandá se chama senador Pinheiro Machado.

Rodrigo sorriu, olhando para o sogro com uma admiração tocada de inveja. Gostava do velho, mas a presença dele deixava-o levemente perturbado. Sempre que via aquele homem bom, simples e sólido a lidar com a terra, descalço e em mangas de camisa, era tomado dum estranho sentimento de remorso e culpa, da vaga sensação de haver traído todo um passado, rompido uma tradição de família, renegado o pai, a mãe, os avós - as origens, enfim. Sentia-se (mas todo esse mal-estar desaparecia logo que ele se afastava do sogro) frágil e vulnerável no seu extremado apego à vida urbana, com suas máquinas, seu conforto amolecedor e todas as superficialidades que Babalo tanto desprezava: roupas, perfumes, festas, vinhos, guloseimas, honrarias...

Aquele homem telúrico parecia contentar-se com as coisas essenciais da vida: o ar, o fogo, a água, o pão, o sol, a terra. Vivia numa tal comunhão com a natureza que, com sua pele dum tom terroso, parecia algo que houvesse brotado do chão e que longe dele não pudesse vicejar. Em toda a sua vida nunca tinha lido um livro ou entrado num teatro. Desprezava o dinheiro e jamais procurava o prestígio ou o poder político. Mesmo quando morava no casarão da cidade, nunca deixara de falar com saudade dos tempos em que carreteava ou fazia tropas. Talvez - refletia Rodrigo, olhando para o sogro -, talvez os maus negócios que haviam levado aquele homem à falência não tivessem sido pura obra do acaso. Não era impossível que o próprio Aderbal Quadros houvesse colaborado com o destino, procurando inconscientemente a própria ruína, a fim de poder voltar à vida simples, rústica e dura que tanto amava. Porque aquele campeiro parecia ter a volúpia de vencer dificuldades.

- Qualquer dia - disse o velho quando subiam a encosta, margeando a roça - vou fazer uma tropa. Já ando cansado desta vadiação.

Vadiação? Rodrigo sabia que o sogro trabalhava de sol a sol todos os dias, inclusive os domingos.

Os guaipecas lançaram-se a correr coxilha acima e, latindo e sacudindo os rabos, cercaram o amo, a fazer-lhe festas. Amigo dos animais, Babalo recolhia e, por assim dizer, perfilhava todos os cachorros e gatos extraviados que apareciam no Sutil.

- Veja que freguesia, Rodrigo! - murmurou ele, acocorando-se para brincar com os guaipecas. Ficou por alguns segundos a resmungar frases carinhosas e alisar o pêlo dos cachorros, que, - ganiam, e lhe lambiam as mãos e as faces. Depois ergueu-se e continuou a subir com o genro fazendo alto no cimo da coxilha, de onde se avistava o casario de Santa Fé.

- Vamos ali pra sombra do conselheiro. Aproximaram-se da cabriúva. Babalo espraiou o olhar pela paisagem.

- Campos lindos. Parecem um veludo.

As coxilhas desdobravam-se a perder de vista, rumo daqueles luminosos horizontes de janeiro.

Aderbal apontou para a encosta da colina a cujo sopé ficava o capão do riacho.

- Sabe o que é que vou fazer aqui? Uma lavourinha de trigo. O ano que vem, se Deus quiser, vou comer pão feito com trigo do Sutil.

Todos os dias, após o almoço, Rodrigo subia para o quarto com um exemplar do Correio do Povo debaixo do braço, deitava-se e ficava a ler, com lenta e preguiçosa volúpia, até adormecer. Invariavelmente caía no sono com o jornal aberto sobre o peito.

Naquele 3 de janeiro, mal Bento lhe entregou o jornal que fora comprar à estação, subiu para o quarto, já a bocejar. Fazia um calor abafado e as pedras das ruas e calçadas escaldavam como chapa de fogão. ("Dá pra fritar ovo" - garantiu o caboclo.) Rodrigo foi tirando a roupa aos poucos e, sem encontrar alívio para o calor, acabou por ficar completamente nu. Estendeu-se na cama e abriu o jornal. As duas primeiras páginas estavam cheias de telegramas da guerra, que continuava na sua estagnação de inverno. Passou ao editorial, cujo título era - "1914-1915".

Ano-Novo! Ano-Bom!

A alma popular teima, a cada novo ano que surge, em querer ver no seu despontar os raios duma nova aurora, o início dum novo período de ventura e de bondade. O Ano-Novo é sempre o Ano-Bom.

Assim nos iludíamos todos de janeiro desse malsinado 1914. Todos esperávamos que de nos viesse compensar dos desgostos de 1913, que nos viesse ressarcir dos males que este nos causara. E, no entanto, nunca houve ano de tão dolorosas provações para todo o mundo, de tantas misérias, de tantas dores, de tantos horrores.

Aqui no Brasil tivemos, logo aos primeiros meses desse ano terrível, a tragédia do Ceará e o seu longo cortejo de desgraças; vieram depois o estado de sítio, a perseguição à imprensa, os crimes do Contestado; a debacle financeira, o abalo do nosso crédito no estrangeiro, arrastando-nos ao beco sem saída do funding loan.

Não foram mais felizes os outros países do continente.

O editorialista passava a enumerar as desgraças continentais: revoluções no México e o conflito desse país com os Estados Unidos; o assassínio do presidente da República da Colômbia; crimes no Prata e luto na Argentina pela morte de Saenz Pella. A Europa não fora mais feliz: a "semana vermelha" na Itália, com os desatinos revolucionários de Ancona; agitação política na França, onde a tragédia do Figaro - o escandaloso ''affaire Calmette" - agitara a nação e o mundo; greves na Rússia; novos rumores de guerra entre a Turquia e a Grécia; a farsa das sufragistas na Inglaterra e boatos de guerra civil na Irlanda. Por fim - continuava o editorial - a maior catástrofe de todas: o assassínio do arquiduque herdeiro do trono dos Habsburgos, que desencadeara na Europa a mais terrível guerra da história da raça humana. E era à sombra dessa pavorosa hecatombe que surgia o ano de 1915.

Que das duras provações de boje surja uma humanidade melhor, mais tolerante, menos egoísta, mais inclinada a perdoar as culpas do próximo e desculpar-lhe os erros.

Rodrigo deixou o jornal cair sobre o peito, trançou as mãos por cima dele e ficou a pensar naquela fria noite de julho de 1914, em que o Cuca Lopes entrara esbaforido no Sobrado, trazendo a dramática notícia.

- Rebentou a guerra na Europa!

Havia semanas que os jornais andavam cheios de negros presságios em torno da possibilidade dum conflito armado no continente europeu. Depois da tragédia de Serajevo, esperava-se para qualquer momento a deflagração da guerra. Entretanto, no seu incurável otimismo Rodrigo achava que as dificuldades seriam contornadas e a crise vencida graças aos esforços conjugados da diplomacia francesa e inglesa.

- Quem foi que te contou, homem de Deus?

- Chegou um telegrama ind'agorinha. Por acaso eu estava no Telégrafo...

- Adeus, viagem a Paris! - exclamou Rodrigo, sentando-se, prostrado, numa cadeira.

No dia seguinte o coronel Jairo confirmou a notícia. A Áustria declarara guerra à Sérvia, à qual se unira o Montenegro. A esquadra alemã concentrava-se em pontos estratégicos. A austríaca bloqueava o porto de Antivari. A Rússia já declarara que ordenaria a mobilização geral, caso os austríacos ocupassem Belgrado. A Alemanha ameaçava mobilizar todas as suas forças de terra e mar, se a Rússia fizesse qualquer movimento de tropas, ainda que parcial.

- Não vejo a menor esperança duma solução pacífica do problema - declarou o comandante do regimento de infantaria, sacudindo penalizado a cabeleira ruiva. - A entrada da Alemanha, Rússia, Inglaterra e França no conflito é questão apenas de dias, talvez de horas. A conflagração vai ser geral. As bestas apocalípticas andam de novo às soltas. Pobre humanidade!

Generalizado o conflito, Rodrigo ficou a segui-lo avidamente através dos jornais. Desde logo ficara evidente que a maioria da população santa-fezense era simpática à causa aliada. Quanto a Rodrigo, não tivera a menor hesitação. Onde estivesse a França, lá estaria também seu espírito e seu coração. Em meados de agosto organizou uma marcha aux flambeaux em que os partidários dos aliados, puxados pela banda de música militar, desfilaram pelas ruas de Santa Fé com bandeiras da França, da Inglaterra e do Brasil, a soltar vivas a Poincaré, ao czar da Rússia, ao rei Jorge da Inglaterra e ao rei Alberto da Bélgica.

A Farmácia Popular ficou sendo conhecida como o mais importante centro de concentração aliadófila da cidade, ao passo que a Confeitaria Schnitzler era o ponto de reunião dos membros da colônia alemã e dos teuto-brasileiros, cujas simpatias naturalmente estavam voltadas para o Vaterland.

Os jornais noticiavam que nas sociedades germânicas de Porto Alegre, São Leopoldo e Santa Cruz faziam-se subscrições e festas em benefício dos soldados alemães e austríacos. Rodrigo enfurecia-se com isso, pois o Brasil em peso - afirmava - achava-se coeso ao lado da causa aliada, que era a causa mesma da democracia e da civilização! Aqueles alemães e seus descendentes deviam meter a viola no saco e ficar quietinhos no seu canto, pois se continuassem naquelas manifestações insolentes acabariam mas era levando bordoadas!

Tomou assinaturas de revistas e jornais espanhóis e platinos que começavam a trazer reportagens e comentários ilustrados sobre a guerra européia. Não podia ver retratos do Kaiser sem sentir o sangue ferver-lhe nas veias. Compare-se a fisionomia de Raymond Poincaré com a de Guilherme II. Dum lado temos esse homem culto e civilizado, com ar de professor universitário, uma expressão de bondade paternal no rosto. Do outro, todo enfarpelado no seu vistoso uniforme, o maldito Hohenzollern, de bigodes de guias torcidas para cima, o olhar duro e cruel como o aço de seu antipático capacete. Senhores, entre um e outro não podemos ter a menor hesitação.

A batalha do Marne trouxera Rodrigo angustiado durante mais duma semana. Dela dependia a sorte de sua amada Paris e talvez o desfecho da guerra. Quando chegou a Santa Fé a notícia de que a grande ofensiva alemã havia sido repelida, chamou o negro Sérgio e mandou-o soltar duas dúzias de foguetes à frente da Farmácia Popular. E quando, atraídos pelos estrondos, curiosos se aproximaram, formando pequena multidão sugestiva dum comício, Rodrigo transmitiu-lhes a notícia em altos brados e acabou fazendo um veemente discurso em que exaltou a coragem e o gênio dos gauleses e atacou "os hunos que com o tacão de suas botas de bárbaros estão ameaçando a civilização, a cultura e a democracia!"

À medida que ia lendo as notícias das atrocidades cometidas pelas tropas alemãs na Bélgica, onde - informavam os jornais - aldeias inteiras eram destruídas, velhos, mulheres, inválidos e crianças fuzilados juntamente com homens válidos, sua indignação crescia de tal forma, que ele já nem podia discutir com o capitão Rubim, germanófilo empedernido, sem que acabassem ambos vermelhos e aos berros, como se estivessem prestes a engalfinhar-se em luta física.

- Não acredite nessas notícias - dizia Rubim. - Isso é pura propaganda aliada. E, depois, guerra é guerra e não podemos esperar que os soldados se portem como anjos. Os alemães não são melhores nem piores que os ingleses e os franceses. Mas uma coisa lhe digo, meu caro. São mil vezes mais humanos que os russos. Esses eslavos, sim, é que são bárbaros.

O que mais deixava Rodrigo agastado era saber que em Nova Pomerânia se faziam comícios e festas pró-Alemanha, Kerbs em que se cantavam hinos alemães e em que o Deutschland über alies era repetido entusiasticamente como um refrão de vitória. Contava-se que muitos colonos tinham mandado seus filhos alistarem-se nas forças do Kaiser. Desaforo! - vociferava Rodrigo. - O governo deve proibir isso. Afinal de contas esses lambotes vivem na nossa terra, comem o nosso pão, bebem a nossa água, respiram o nosso ar, dependem, enfim, da nossa generosidade e da nossa tolerância.

Rubim sorria ante essas explosões. "Só lhe falta - ironizou ele um dia - organizar e comandar uma expedição punitiva contra Nova Pomerânia." Rodrigo não achou nenhuma graça na observação. "E por que não? - replicou. - Há de chegar esse dia!"

Cortou o cumprimento a Júlio Schnitzler e começou a boicotar-lhe a confeitaria. Olhava com rancor e má vontade para os Spielvogel, os Kunz, os Schultz, enfim, para todos os que ali em Santa Fé tinham nomes germânicos. "Se algum desses boches me olhar atravessado, parto-lhe a cara!"

Continuava a acompanhar a guerra através das revistas e jornais que lhe chegavam do Prata. Aqueles primeiros dias do conflito tinham abalado o Brasil. O governo decretara moratória e férias comerciais para os bancos, muitos dos quais foram fechados e guardados pela polícia. Havia no tom das notícias econômicas e financeiras algo que sugeria um princípio de pânico.

Rodrigo, que via a guerra através dum prisma apaixonadamente romanesco (a revanche de Sedan, o estudante alsaciano, o esfrit contra a Kultuf) ficava indignado quando Cacique Fagundes, Joca Prates e Pedro Teixeira, revelando um descaso assustador pela sorte dos belgas, pela segurança de Paris ou pelas vitórias da formidável esquadra britânica, mostravam-se preocupados apenas com as alterações de preços nos gêneros de primeira necessidade e com a paralisação do mercado da banha. Naquelas primeiras semanas os estancieiros andavam apreensivos, alarmados mesmo, ante a possibilidade de a guerra trazer desastrosos prejuízos à pecuária. O couro, que havia pouco estava a $640, agora não tinha cotação. Os proprietários das barracas do interior do estado ordenavam aos seus representantes que suspendessem todas as compras.

Aquela gente só pensava na barriga - concluía Rodrigo, entristecido e revoltado. Seu próprio pai não era diferente dos outros. Não tinha a menor noção do que fosse realmente a Europa e sua importância no mundo. Bélgica, Sérvia, Montenegro, França? Pura invenção dos jornais e dos compêndios de geografia...

Don Pepe, esse andava tomado duma agitação toda particular. Nos últimos dias de julho ainda afirmava, com a fé dum apóstolo, que a guerra não seria deflagrada porque a consciência socialista do mundo não apoiaria sob nenhum pretexto aquela criminosa aventura capitalista!

Vibrara de emoção e esperança ao ler no Correio do Povo que em Porto Alegre o Partido Socialista, considerando uma exploração iníqua contra o interesse do povo o aumento injustificável de certos produtos nacionais, o que viria agravar a miséria das classes trabalhadoras, convocara a população para um meeting de protesto na praça da Alfândega.

- Es para lo que sirven las guerras capitalistas! - exclamara, sacudindo o jornal no ar como uma bandeira. - Para explorar el nosso pueblo. La Standard Oil ya aumento el precio del kerosén y de la nafta.

- Mas não se trata de explorar ninguém, Pepito - retrucara Rodrigo com uma falsa paciência. - É uma guerra de vida e de morte: a civilização contra a barbárie, o despotismo contra a liberdade. É necessário esmagar a Alemanha para que o mundo possa de novo respirar em paz.

Ao ler a notícia de que um estudante assassinara em Paris o deputado Jean Jaurès, líder do Partido Socialista, don Pepe ficara tão acabrunhado, que caíra de cama, com febre alta.

- Está tudo perdido - murmurava ele.

E nos seus delírios fazia discursos incendiários.

Se por um lado as atrocidades dos alemães causavam a Rodrigo a mais profunda revolta, por outro a leitura de telegramas que relatavam atos de heroísmo e sacrifício por parte de soldados aliados enchiam-no dum cálido, comovido entusiasmo. Foi com lágrimas nos olhos e com calafrios a percorrerem-lhe o corpo que leu a narrativa da proeza do aviador Garros - esse Garros que, para destruir um dirigível alemão, não hesita em atirar contra ele o aeroplano que pilotava com maravilhosa destreza, tendo a tranquila certeza de que essa morte seria simplesmente sublime. Poucas vezes subiu tão alto o aliás tradicional heroísmo francês.

Rodrigo tomou-se de grande ternura pelo Japão ao saber que seu governo declarara guerra à Alemanha. Aquele pequeno país isolado nos confins do continente asiático honrara sua aliança com a Inglaterra, apesar de não estarem em jogo os interesses nacionais!

E a Itália? Que fazia a Itália que não entrava também no conflito ao lado da França, sua irmã latina? "Marco Lunardi!'' - gritava ele quando encontrava o amigo. - "Quando é que vocês entram nessa guerra, homem?" Interpelava-o com ar de brincadeira, mas com certa impaciência, como se a declaração de guerra dependesse do jovem proprietário da Fábrica Ítalo-Brasileira de Massas Alimentícias. Fazia a mesma pergunta ao dr. Carbone, que sorria: "Paciência, carino. Espera a primavera. Agora faz muito frio".

Um dia, quando, no Sobrado, Rodrigo comentava apaixonadamente a guerra à mesa do jantar, Licurgo observou:

- Estão morrendo patrícios nossos nessa luta no Contestado, e o senhor parece que nem se importa com isso. Ainda ontem passou por aqui um trem cheio de soldados que iam pra Marcelino Ramos. Estão falando que os fanáticos vão invadir o nosso estado pelo Passo Fundo.

- Ora, papai, não acredito que esses caboclos mal-armados possam pôr em perigo a vida da República. Mas o Kaiser, esse sim é um pesadelo para toda a civilização.

Nos primeiros dias daquele setembro de 14, Rodrigo organizou em Santa Fé uma grande festa, com leilão e tômbola, em benefício da Cruz Vermelha belga.

- Essa tua paixão pela Bélgica - disse-lhe Rubim - tem origem na velha piedade cristã pelos fracos. Segundo um conceito corrente mas erróneo, o fraco é necessariamente o bom, ao passo que o forte é o mau. Ora, vamos e venhamos, isso é um raciocínio infantil!

Rodrigo apanhou um exemplar do Correio do Povo que transcrevia um discurso que Rui Barbosa pronunciara recentemente no Senado.

- Veja o que diz da Bélgica o maior brasileiro vivo.

Leu: Agora que a Bélgica atravessa as provações de seu martírio sobre-humano, com um heroísmo cuja sublimidade obumbra às vezes as páginas mais belas da antiga história grega... (Aqui há um "muito bem" do Senador Azeredo.)

- Boa bisca - interrompeu-o Rubim. - Dêem-lhe um baralho e um parceiro e ele ficará feliz...

O outro prosseguiu:

...da luta helénica contra as hordas do Oriente, se por ali voltássemos só encontraríamos naquele solo da indústria, do progresso, das letras, vastas necrópoles, campos ermos, chão gretado pelas ossadas, cidades, consumidas, construções em ruínas. E que a guerra escolheu aquele torrão de liberdade e trabalho para a má semeadura de cinzas e luto. A guerra, uma guerra que baniu o direito, a humanidade, o cristianismo; uma guerra que eliminou as inviolabilidade mais sagradas, uma guerra que passa com a iracúndia do furacão sobre o princípio tutelar das neutralidades; uma guerra que rasga todas as leis internacionais, uma guerra que considera os tratados como trapos, que não admite os direitos dos fracos, que não conhece o dever dos fortes; uma guerra que incendeia museus, bibliotecas e templos, uma guerra que arrasa cidades abertas, queima aldeias pacíficas, tala campos sorridentes, cativa populações desarmadas; uma guerra que fuzila velhos, inválidos, corta seios das mulheres, decepa mãos das crianças; uma guerra que sistematiza a crueldade, a destruição e o terror; uma guerra que escancara as fauces hiantes para a Europa dilacerada e se sacia nas presas sanguinolentas, no meio dum ciclone, a cuja rajada o mundo todo parece estremecer, como se o próprio solo da consciência se lhe houvesse abatido debaixo dos fundamentos divinos, e sorvedouros do inferno se abrissem para tragar a civilização fecundada pelo céu...

Rubim escutou o discurso até o fim com um sorriso céptico.

- Até o nosso grande Rui - comentou ele por fim - caiu na esparrela da propaganda aliada...

"O que se passava - acrescentou - era tão claro e de natureza tão prática que dispensava a eloqüência e a retórica. A Alemanha e a Áustria tinham, havia muito, os olhos voltados para o Oriente e para a Ásia Menor; falava-se até em estender a Grande Germánia de Berlim a Bagdá. Por outro lado a Rússia queria impor o domínio eslavo a Constantinopla, numa expansão rumo do Adriático, passando pela Sérvia... Não havia no mundo inteiro área mais confusa e inflamável que os Balcãs. Jamais houvera na história das nações zona mais confusa e cheia de intrigas políticas e complicações religiosas e raciais. Aqueles países, verdadeiras comédias de erros, colchas de retalhos de nacionalidades que se repeliam, não tinham estatura para se tornarem nações independentes. Eram apenas presas em estado potencial cobiçadas por dois colossos: o alemão e o russo. Ora, a França, que vivia iludida com o poderio militar da Rússia, tinha com esta uma aliança. O povo francês esperava de certo modo tirar a revanche de 70. Quanto à Inglaterra, a velha raposa ficaria de bom grado fora do conflito, deixando que as outras potências se destruíssem, a fim de que ela, intervindo no fim, pudesse ficar com a parte do leão. O diabo era que, vencedora a Alemanha, a sorte do Reino Unido estaria selada. Não devíamos esquecer também que entre a Inglaterra e a Alemanha existia uma tremenda rivalidade comercial. Os produtos alemães, em geral melhores e mais baratos que os ingleses, estavam começando a dominar os mercados mundiais. A destruição da Alemanha, portanto, era coisa indispensável não só para a saúde económica do Império Britânico, como também para a tranqüilidade da França.

"O resto, meu amigo - rematou o capitão -, é rui-barbosismo, pura retórica dum país de mulatos pacholas e pernósticos."

Abolir a sesta... Essa era a grande resolução que Rodrigo havia tomado. Andava entusiasmado com o movimento da farmácia e do hospital e com as atividades do dr. Carbone. Queria dedicar mais horas ao consultório, acompanhar o negócio mais de perto, enfim, não perder tempo a dormir estupidamente, enquanto o operador e seu assistente lá estavam a abrir e fechar barrigas de colonos e nativos, e o pobre Gabriel se desdobrava entre o laboratório, o balcão e a sala de operações, onde o cirurgião, como era natural, queria tudo a tempo e a hora.

Mas não era fácil cortar drasticamente um hábito tão velho e gostoso. A resolução era antiga, e ele vivia a prometer a si mesmo que ia pô-la em prática "na segunda-feira que vem"... Semana nova: vida nova. Mas qual! Mal terminava de almoçar, vinha-lhe o torpor, o peso nas pálpebras, os bocejos, e ele acabava sempre encontrando um bom pretexto para subir ao quarto e deitar-se. Uma vez na cama, estava tudo perdido: dormia até às três.

Naquela segunda-feira de janeiro, decidiu: hoje não sesteio. Apanhou na biblioteca Lês maladies de la volante, de Ribot, e sentou-se. Era preciso educar a vontade, seguir o exemplo dos hindus. Illustration publicara, havia pouco, uma série de gravuras mostrando um iogue nos seus incríveis exercícios. Aqueles monstros conseguiam libertar o espírito da matéria, desviar os sentidos do mundo exterior. Ora, eu quero apenas perder o hábito da sesta...

Abriu o livro, passou os olhos por alguns parágrafos do prefácio (coisa que já fizera em outras ocasiões) mas não pôde concentrar a atenção no que lia.

O diabo era o calor. No inverno seria mais fácil dispensar a sesta. Mas no verão, depois dum almoço pesado... É, mas seja como for, hoje não durmo. Está resolvido.

Fechou o livro e os olhos. (Não vou dormir - comunicou a si mesmo. - Só descansar um pouquinho.) Estava à beira do sono quando um grito agudo o despertou. Pôs-se de pé, sobressaltado, e precipitou-se para a sala de jantar, de ontem partiam os berros duma das crianças.

- Que foi? Que foi?

Maria Valéria veio a seu encontro, com Alicinha nos braços. A menina chorava, o rosto contorcido de dor, as lágrimas a rolarem pelas faces afogueadas. Um filete de sangue escorria-lhe do canto da boca.

- Santo Deus! - exclamou Rodrigo.

Quis arrebatar a filha dos braços da tia, mas esta o repeliu com um gesto decidido.

- Deixe de fita! Não é nada. A criança caiu e cortou o beicinho por dentro. Bota-se maravilha curativa e está pronto.

Com uma expressão de angústia no rosto, Rodrigo ficou a acompanhar com os olhos a Dinda, que subia a escada grande com a menina nos braços.

A meio caminho, Maria Valéria deteve-se por um instante e olhou para o afilhado:

- Não precisa fazer essa cara de capão de pinto. Já disse que não é nada.

Rodrigo voltou para sua cadeira. Por algum tempo ficou a ouvir, penalizado, o choro da filha. Quando alguma das crianças se feria ou adoecia, ficava desnorteado, portava-se - no dizer de sua madrinha - como uma solteirona histérica, e só lhe faltava romper também o choro.

Um dia Floriano rolara pela escada e tombara com um estrondo a seus pés, ficando estatelado e imóvel no chão, como que sem sentidos. Desatinado, ele erguera o filho nos braços e por algum tempo quedara-se aturdido, incapaz duma palavra, duma resolução.

- Chamem um doutor, depressa! - gritara depois. - Esta criança está com o crânio fraturado!

Lágrimas brotaram-lhe nos olhos, soluços rebentaram-lhe do peito. Flora, muito pálida, andava dum lado para outro, cega e perdida no seu desespero. Fora nesse instante de confusão que Maria Valéria interviera, arrebatando Floriano dos braços do pai e deitando-o no sofá, onde o sacudira até fazê-lo abrir o berreiro. Apalpara-lhe depois a cabeça, as pernas, as coxas, os braços, tirara-lhe a camisa para examinar-lhe o tórax. E quando o menino cessara de berrar, ficando apenas a fazer beicinho, os ombros sacudidos por soluços secos, ela tornara a apalpar-lhe várias partes do corpo, perguntando: "Dói aqui? E aqui?" Ele respondia que não, com movimentos de cabeça. Poucos minutos depois estava de pé a brincar, como se nada lhe tivesse acontecido.

- Estão vendo? Não ficou nem galo. Eu sempre digo que vocês se assustam por qualquer coisinha.

Rodrigo agora sorria, recordando a cena. Reconhecia que era um pai sentimental e bobo. Vivia a contar as gracinhas dos filhos, coisa que nos tempos de solteiro achava tão ridículo nos outros. Quando vinham visitantes ao Sobrado, chamava Floriano à sala, punha o gramofone a tocar um disco e perguntava ao menino: "Que música é essa?" Floriano hesitava por um instante e depois, com o dedo na boca, os olhos baixos, respondia: "É o Palhaço do Caruso'' ou "É a Traviata". Estão vendo a figurinha? Com três anos e já entende de ópera! Eu queria que vocês vissem como essa criança gosta de música! É capaz de ficar horas e horas (claro que era um exagero!) sentadinha ali no sofá, escutando a Tetrazzini, o l'amagno, o Amato...

Rodrigo tornou a fechar os olhos. Juro, dou a minha palavra de honra como não vou dormir.

Da cozinha veio a voz doce e afinada da Laurinda:

Ai, Filometi. Se eu fosse como tu, Tirava a urucubaca Da careca do Dudu!

Sorriu. Ah! Os tempos do Dudu... Aqueles quatro anos de governo do marechal haviam sido um prolongado pesadelo, uma enfiada de desastres políticos e administrativos. A revolta dos marinheiros. O estado de sítio. Os fuzilamentos do Satélite. O escândalo da prata. A intervenção em Pernambuco. O bombardeio da Bahia. O caso do Amazonas. Nunca em toda a História do Brasil houvera governo mais catastrófico e acidentado. Jamais se vira tanto mandonismo, tanto nepotismo, tanta arbitrariedade, tanta política de corrilho. E o marechal todo o mundo sabia - não passava dum fantoche nas mãos hábeis e poderosas de Pinheiro Machado. Por mais que admirasse o senador, Rodrigo não podia deixar de reconhecer que ele era autoritário, prepotente e egocêntrico. Durante aqueles quatro anos tormentosos, a voz eloqüente de Rui Barbosa não cessara de clamar no medonho deserto nacional na defesa da Constituição, da liberdade de pensamento e palavra, e da autonomia dos Estados. No entanto, um homem da cultura e da fibra moral do senador baiano havia sido derrotado nas urnas por Hermes da Fonseca! Ah! Mas o povo tirara a sua desforra. Sem recursos materiais para derrubar o governo pelas armas, usara da caricatura, do humorismo para lançá-lo ao ridículo. E por todo o Brasil se espalhara a lenda da estupidez do presidente. O Dudu transformara-se em personagem de anedota. Atribuíam-se-lhe os ditos mais obtusos, as intenções mais lorpas, as ignorâncias mais crassas, as atitudes mais rastaqueras, as gafes mais clamorosas. Era um verdadeiro golpe de Estado pela sátira. E através de quadrinhas, chistes, piadas, trocadilhos, a figura do marechal fora projetada no país inteiro como uma espécie de bobo da própria corte. Sabem a última do Dudu? E lá vinha a anedota... Apareciam em jornais e revistas, eram repetidas pelo homem da rua. Por fim inventara-se que o Dudu tinha urucubaca, azar, caiporismo. E a palavra urucubaca da noite para o dia ganhara foros nacionais. Aonde quer que fosse - afirmava-se - o Dudu levava a sua aura negativa. O que quer que fizesse saía torto; o que quer que dissesse era sempre errado ou cômico.

No entanto - refletia Rodrigo - uma coisa sempre lhe parecera clara: o Zé Povo da caricatura não queria mal a Hermes da Fonseca. Atacava-o por achá-lo mais vulnerável do que a pessoa que realmente o populacho odiava. Pinheiro Machado era imune à sátira. O ridículo não atingia aquela figura olímpica.

Rodrigo abriu a boca num prolongado bocejo. Na cozinha, Laurinda continuava a cantar.

Abra os olhos. Não. Vou ficar assim só um pouquinho mais...

Imaginou que Pinheiro Machado estava ali na sala, pitando o seu crioulo bem como naquele dia de inverno, em 1910...

Olhe, senador, vou lhe dizer uma coisa com toda a franqueza que me caracteriza. O senhor cometeu um erro quando procurou candidatar-se à sucessão presidencial. Foi muito bom terem eleito o Venceslau Brás. Outro erro seu é esse de querer agora fazer do Dudu um senador da República. Deixe o homem em paz. Não provoque a sanha popular. Não chame mais ódios sobre a sua pessoa e sobre o Rio Grande!

Já agora Pinheiro Machado estava seminu como um faquir, sentado no soalho a fazer horrendas deslocações de membros, como um contorcionista de circo. Quem me ensinou estes exercícios - dizia ele - foi um iogue, um índio velho de Nonoai. Nisto está o segredo de meu poderoso magnetismo pessoal.

O escritório estava completamente às escuras e Rodrigo só via um ponto luminoso, que não sabia bem se era o olho ou o cigarro do senador.

Quando Flora entrou, poucos minutos depois, encontrou o marido a dormir profundamente.

Rodrigo passou no Angico com a família todo o mês de janeiro e boa parte de fevereiro, aproveitando da maneira mais plena uma sucessão de dias luminosos, dum calor seco e agradável: campereadas em companhia do pai e do irmão; largas sestas na rede, à sombra de cinamomos; caçadas de jacutingas e bugios nos matos; banhos na sanga ao entardecer.

Encontrou Licurgo ainda mais taciturno que de costume, e isso o deixou apreensivo. Que grande mágoa estaria a roer-lhe o coração? Sabia que o pai não aprovava o tipo de vida que ele, Rodrigo, levava na cidade: achava-o um perdulário, um boêmio; um dandy. Estaria o velho zangado com ele? Ou toda aquela tristeza vinha da situação de constrangimento criada por suas relações com a Caré, as quais já agora ninguém mais ignorava?

Por que papai não se abre? Por que não põe as cartas na mesa francamente, atacando o problema de frente e tratando de resolvê-lo? Qual! Aquela gente antiga sofria porque procurava viver de acordo com um código de honra que quase sempre estava em violento desacordo com suas necessidades e desejos mais profundos.

- Que diabo! - exclamou uma tarde em que viu o pai sair a cavalo à hora da sesta, rumo do rancho de Ismália Caré. - Por que é que não se casam duma vez e acabam com esse mistério?

Mas ele sabia que tal casamento seria impossível e que a solução do problema não era tão simples assim.

Outra coisa que lhe causava grande mal-estar eram as relações do pai com Maria Valéria. Nas poucas vezes em que se falavam era em diálogos lacônicos: duas lixas a se tocarem em contatos ásperos e rápidos. Nunca se olhavam de frente: evitavam-se o mais que podiam. Era evidente que se queriam mal. Mas por quê? Por quê?

A hora das refeições Rodrigo fazia o possível para alegrar o ambiente, quebrar a atmosfera de gelo criada pela presença do pai e da cunhada. Contava histórias, ria alto, encontrando em Flora e Toríbio uma platéia interessada e entusiasta, sempre pronta a achar graça em suas anedotas, ditos e casos. O pai, porém, parecia não escutá-lo. Mantinha a cabeça baixa, os olhos no prato.

Será que ele tem alguma coisa contra mim? - perguntava-se Rodrigo. E a idéia de não contar com a estima e a admiração do velho era-lhe tão opressiva que chegava a embaciar-lhe a limpidez daqueles dias de verão. Um dia em que caminhava ao lado de Licurgo (dirigiam-se para a mangueira, a ver um terneiro que acabava de nascer) resolveu abrir-se.

- Papai, tenho notado que o senhor anda sério comigo. Será que fiz alguma coisa que não foi de seu agrado?

Licurgo deu alguns passos em silêncio; depois, sem voltar a cabeça, respondeu:

- Não. O senhor não fez nada. Se tivesse feito eu lhe dizia como é meu costume.

- Então que é que tem?

- Nada. É o meu jeito.

Entrou na mangueira. Inclinou-se sobre o animal recém-nascido, acariciou-lhe o pêlo e sorriu. Era o primeiro sorriso que Rodrigo via naquele rosto queimado e melancólico, desde que chegara ao Angico.

- Se não fosse um insulto à memória da nossa mãe - disse ele ao irmão, duma feita em que discutiam o pai -, eu diria que não somos filhos do velho Licurgo.

Toríbio soltou uma risada. Eram seis da tarde e ambos se despiam para mergulhar na sanga. Rodrigo ficou a contemplar o corpo troncudo e musculoso do outro. Toríbio parecia-lhe mais forte que nunca, e muito mais "judiado", como já lhe observara Maria Valéria. Seus olhos estavam injetados, a pele curtida pelo sol e pelo vento, as mãos calosas e encardidas. Com sua cabeça raspada a máquina número zero e seu cachaço nédio dava a impressão - fantasiou Rodrigo - dum guerreiro tártaro.

Um dos seus divertimentos prediletos era segurar um novilho pelas aspas, torcer-lhe o pescoço e tombá-lo, mantendo-o por longo tempo subjugado. Os peões - a quem Bio tratava como iguais - adoravam-no. Rodrigo não se lembrava de jamais ter visto no rosto do irmão a mais leve sombra dum cuidado. Toríbio parecia achar que todos os problemas, mesmo os chamados morais, eram passíveis duma solução física. Nada lhe dava mais alegria que a ação. Comia desmedidamente e não podia passar por uma venda sem entrar para tomar uma talagada. Confessava, aparentemente sem a menor mossa, ser pai de uns dois ou três guris no Angico e arredores, acrescentando: "E nem sei direito que cara têm os desgraçadinhos".

E naquela tarde, depois do banho, quando, ainda despidos, estavam ambos deitados na grama, Toríbio fez um relato de suas andanças e divertimentos na estância e redondezas, durante os cinco meses em que andara ausente de Santa Fé: aventuras amorosas com chinocas e colonas, algumas sob os maiores riscos; bailes de "cola atada" que quase sempre terminavam em tiroteio; caçadas e pescarias que duravam dias: carreiras dominicais em cancha reta nas quais se apostava à grande e se brigava a fartar; rinhas de galo e jogos de osso em que não raro os jogadores "se estranhavam" e acabavam arrancando os facões...

- E o velho que diz de tudo isso?

- Não diz nada, porque não sabe da missa a metade. Vou te contar uma coisa que ainda não contei a ninguém. Um dia briguei com um cabra numa cancha de osso. Fui pra cima dele desarmado porque não queria lastimar o infeliz. Deitei ele no chão com uma tapona no ouvido. Pois não é que o canalha se levanta e vem pra cima de mim com um facão desta idade e me finca o bruto na coxa? Apliquei-lhe um soco nas ventas que o deixei dormindo. Botei creolina no talho, amarrei um pano por cima e me toquei pra casa. Passei uma noite cachorra, o ferimento doendo e latejando, acho até que tive febre alta, mas não soltei um pio pró velho não descobrir a coisa. Porque, se ele descobrisse, acho que morria de desgosto.

Acariciando o peito nu com as mãos espalmadas, Rodrigo olhava para o desbotado céu do entardecer, enquanto escutava a voz lenta e fosca do irmão.

Um dos divertimentos que mais apreciava - prosseguiu ele - era ir aos domingos a Garibaldina especialmente para jogar luta com os "forçudos" da colónia. Tiravam as camisas e as botas e atracavam-se, pelo puro prazer de lutar. No fim, suados, ofegantes e sujos, iam abraçados beber vinho nas cantinas.

- Isso é que é vida, Rodrigo. E é por essa e por outras que eu passo tanto tempo sem ir à cidade.

Nada, porém, divertia mais Rodrigo do que o espetáculo que lhe proporcionava o quarto do irmão. Era uma peça acanhada, de chão de terra batida, com uma cama-de-vento, uma cadeira de palhinha e um caixão vazio de sabão que fazia as vezes de mesa-de-cabeceira e sobre o qual se via uma garrafa com um toco de vela metido no gargalo. Espalhados pelo chão, por cima da cama e sobre o peitoril da janela jaziam muitos livros - brochuras esbeiçadas de capas encardidas e manchadas de espermacete. Rodrigo lia-lhes os títulos com delícia: Os mistérios de Paris, Rocambole, O último dos moicanos. Havia também folhetins ilustrados: aventuras de Buffalo Bill, Nick Cárter, Arsène Lupin e Rafles.

- Sabes o que é que estou estranhando? - disse um dia ao irmão. - É não teres aqui nenhum livro pornográfico.

Bio encolheu os ombros.

- É porque não sou nenhum bandalho. Essas coisas a gente não lê, faz. E quem faz não tem necessidade de ler.

No domingo de Carnaval, mascarados começaram a aparecer nas ruas desde as primeiras horas da manhã. Uns vinham a pé, outros a cavalo, e eram - segundo a classificação de Maria Valéria - os "sujos". Peões de estâncias e chácaras próximas, changadores ou vagabundos, conservavam a indumentária habitual, em geral calças de riscado ou bombachas com ou sem botas, o colete aberto sobre a camisa suja, chapéus sebosos de aba revirada para cima, as caras escondidas sob velhas máscaras de papelão ou barbas feitas grosseiramente de pedaços de pelego ou chumaços de lã. Um que outro envergava um fraque dum preto ruço e trazia um espadagão à cinta. Aparentemente o único divertimento dos sujos era andar pelas ruas, acima e abaixo, a gritar fininho - hi-hi-hi-hi! - e a dirigir gracejos em falsete para as pessoas que se encontravam nas calçadas ou às janelas. Bandos de moleques perseguiam os mascarados, provocando-os com dichotes - "Mascarado esculhambado!"... "Oia a cara dele, vovó!" - puxando-lhes os rabos dos cavalos ou dos fraques, numa gritaria estridente. Os "mascras" reagiam, erguiam os rebenques, perseguiam os garotos e, quando os alcançavam, desciam-lhes com vontade o chicote sobre os lombos.

Havia também os fantasiados "de família". Os ricos e os remediados exibiam fantasias de cetim-paris, tarlatana e lentejoulas. Eram pierrôs, pierretes, colombinas, arlequins, ciganas, damas e cavalheiros antigos, piratas, caraduras, apaches... Os pobres improvisavam disfarces baratos com o que encontravam em casa: fraques, vestidos, cartolas e chapéus avoengos.

Mas esses mesmos - observava Rodrigo - eram tão tristes quanto os "sujos", e muito menos dinâmicos. Andavam pelas ruas sozinhos ou aos bandos, sérios e solenes como se estivessem travestidos de anjos ou santos numa procissão. Traziam nas mãos bisnagas, limões e pacotes de serpentina ou confete, e parecia divertirem-se principalmente com a idéia de que estavam sendo vistos e ''apreciados" pelo povo naquelas fantasias.

Duma das janelas do Sobrado, Rodrigo observava que desde às nove da manhã um solitário pierrô cor-de-rosa dava voltas à praça, com a cara coberta de alvaiade, a cabeçorra metida num gorro de meia preta, os braços caídos, o passo lento, a expressão melancólica, a larga túnica com pompons negros a dançar-lhe no corpo magro. Depois de dar muitas voltas, sentou-se num banco que os moleques em breve cercaram em algazarra e ali ficou apático e inerte, sem reagir à provocação dos garotos. Aquele homem estava se divertindo! - observou Rodrigo, perplexo.

À tarde começou o entrudo. Nas ruas as pessoas se encontravam e jogavam umas nas outras os limões de cera com água de cheiro, ou se trocavam os esguichos de suas bisnagas de metal. Era, porém, na terça-feira gorda que o entrudo atingia o auge e, no fim do dia, esgotado o estoque local de limões e excitados os ânimos, os carnavalescos saíam para a rua com canecas ou baldes cheios d'água do poço e se davam banhos espetaculares.

Nos bailes do Comercial, o jogo de lança-perfumes assumia um caráter geralmente romântico entre os namorados, mas entre os casados transformava-se quase sempre em ferozes duelos ou batalhas, em que o objetivo supremo era esguichar o éter perfumado dentro do olho do adversário, que ficava a sapatear, a gemer, a lacrimejar e a esfregar as pálpebras com os dedos, num frenesi. Esses combates tinham um aspecto selvagem e não raro degeneravam em luta corporal - mas tudo dentro do espírito carnavalesco, em meio de risadas e exclamações de alegria. Rodrigo observava essas cenas, divertido. Por que será - perguntava a si mesmo - que o gaúcho acaba sempre por transformar seus jogos e divertimentos em simulacros de guerra? Deve ser porque o Rio Grande começou com um acampamento militar e seus habitantes passaram mais de metade da vida de armas na mão.

Ao entardecer daquele domingo, estando à janela do Sobrado em companhia de Flora, Rodrigo viu passar na rua um carro de tolda arriada, conduzindo uma dama espalhafatosamente vestida de seda azul-elétrico e trazendo na cabeça um chapelão de palha, de largas abas, coroado de plumas tricolores. Era corpulenta, tinha as mãos e os antebraços cobertos por mitenes negras e abanava-se com um amplo leque, em movimentos lentos e majestosos, batendo-o contra os volumosos seios. Voltou o rosto para a janela do Sobrado, fez um aceno de cabeça e sorriu. Rodrigo correspondeu ao cumprimento, intrigado. Quem seria? Havia naquela cara branca de pó-de-arroz, com um indecente excesso de carmim nas faces, algo de estranho e ao mesmo tempo de repulsivamente familiar.

- Quem é? - perguntou Flora.

- Alguma mulher da vida. Decerto me conhece do consultório...

De repente, porém, como que lhe veio à mente um clarão de reconhecimento.

- Cachorro! - exclamou, batendo com o punho cerrado no peitoril da janela. - Desavergonhado! Sabes quem é aquela mulher? O Salomão Padilha, o alfaiate. É o cúmulo do descaramento. Só a bala. Só ca...

Engoliu as duas últimas sílabas do verbo, em atenção à esposa.

Na terça-feira gorda Rodrigo convidou Rubim para vir assistir da janela do Sobrado à passagem do préstito carnavalesco que A Voz da Serra anunciava como "o mais belo destes últimos anos, e da autoria do habilidoso artista conterrâneo, sr. José Pitombo".

Os rapazes do "Zé Pereira" local saíram à rua pouco depois das quatro horas e fizeram uma volta pela praça. Onze deles rufavam em caixas-claras; cinco batiam em tambores-surdos; o filho do Marcelino Veiga tocava bombo; um corneteiro do batalhão de infantaria solava o Zé Pereira. Achavam-se os componentes do grupo fantasiados de "cataduras": calças brancas, fraques de cetim verde vivo, gravatas-borboletas da mesma cor; nas cabeças, cartolas altas e negras como chaminés. Suas caras pintadas a carvão estavam sérias, solenes mesmo, apesar de o cronista d'A Voz chamar-lhes habitualmente "os alegres foliões do Zé Pereira". Marchavam numa cadência dura, quase militar, e parecia que sua noção de divertimento tinha muito a ver com a produção de barulho. Que moçada sem graça! - pensou Rodrigo, que os contemplava de sua janela. Mas não gostou quando Rubim, pousando-lhe a mão no ombro, disse:

- Os gaúchos, me desculpe a franqueza, são um povo triste e sem encanto. Olhe só esses rapazes: não cantam, não dançam, não riem, não brincam. Ali vão graves e compenetrados como se estivessem a cumprir um dever cívico ou religioso. E depois, meu caro, vocês aqui no Sul não têm música própria nem arte popular nem tradição.

- Como não? - protestou Rodrigo. - Temos uma tradição muito rica e muito nossa.

Procurou exemplos para atirar na cara do capitão de artilharia, mas eles não lhe ocorreram com a desejada espontaneidade.

- Que queres? Passamos a vida brigando desde os primeiros tempos do povoamento do Continente. Tivemos onze campanhas em setenta e sete anos, veja bem, onze! Não nos sobrou muito tempo para fazer música, dançar ou cantar. Os castelhanos nunca nos deixavam em paz!

- E quando deixavam, éramos nós que íamos provocá-los...

- Isso! Praticamente trabalhávamos com a enxada numa mão e a espingarda na outra, porque o inimigo podia surgir a cada momento. Ou então vinha de repente lá de cima uma ordem de mobilização.

Mascarados macambúzios passeavam lentamente pelas calçadas da praça, solitários ou em pequenos grupos.

- Queria que você conhecesse o Norte - disse Rubim -, que visse o carnaval do Recife com os seus tradicionais blocos como os "Vassourinhas", os "Abanadores"... E as danças! e as cantigas! O clião-de-barriga, o frevo, o maracatu, as congadas! Aquilo é que é riqueza folclórica, seu Rodrigo! O bumba-meu-boi, os pastoris, as cheganças...

Rodrigo fechara-se num silêncio enciumado, e olhava para os rapazes do Zé Pereira, que agora passavam pela frente da igreja, a repetir a cadência barulhenta e enjoativa de seus tambores, enquanto o pistão traçava no ar, hesitante e fanhoso, a velha melodia carnavalesca.

- E não é só no Recife - continuou Rubim. - Em todo o Norte você encontrará uma arte popular riquíssima, na forma de cerâmica, canções, danças, superstições e lendas.

Fez avançar o rosto, com a dentuça à mostra, como se quisesse morder o interlocutor.

- E que é que vocês têm aqui que não seja importação ibérica, quando não é pura imitação dos vizinhos platinos?

- Ora, não diga isso! A lenda do Negrinho do Pastoreio é autóctone, e, sem favor algum, a mais bela do Brasil!

- Não é a mais bela lenda do Brasil, não. Reconheço que é uma das mais belas. Mas é a única. Não, meu caro, a imaginação de vocês é pobre.

Rodrigo sacudia a cabeça, numa negativa obstinada.

- Não senhor, não concordo. O que nos tem faltado não é imaginação, mas tempo, vagares, tranqüilidade. E depois, me parece fora de dúvida que as lendas e superstições nascem do mistério, do medo. Ora, na nossa paisagem não há mistério. São campinas rasas, horizontes largos, céus imensos, tudo limpo, claro, amplo, convidando à ação, ao arremesso, à carga. Quanto ao medo, creio que é coisa que aqui não conhecemos.

- Isso é que nos irrita lá em cima! - replicou Rubim. - Vocês gaúchos vivem dando a entender que têm no Brasil o monopólio da coragem. Só vocês são machos, só vocês sabem brigar, só vocês lutaram pela pátria! Ora, isso não é verdade. Abra a nossa história militar e veja o contingente com que o Centro e o Norte sempre contribuíram para todas as campanhas guerreiras.

- Sim, mas o campo de batalha era quase sempre o nosso território. Esta foi a terra devastada. Já pensaste nisso? Imagina só as incertezas duma fronteira móvel a subir e a descer ao sabor das guerras e dos tratados. O perigo constante, as nossas mulheres sempre de luto e meio abandonadas, as lavouras destruídas ou sem braços, o gado dizimado, os homens mortos ou mutilados. Já pensaste?

Rubim soltou uma risada.

- Estamos conversando como se fôssemos representantes de duas nações rivais, hein? E quem tem culpa disso são vocês, com essa mania de separatismo, de...

- Alto lá, capitão! - interrompeu-o Rodrigo. - Nunca fomos separatistas, mas sim liberais que sempre desejaram uma república federativa. Esse foi o sentido da Guerra dos Farrapos. Aliás para seres coerente com tuas idéias nietzschianas devias admirar um estado espartano como o nosso, que é uma espécie de Prússia brasileira...

- Claro que admiro, homem! Mas eu queria que você conhecesse o Nordeste, para ver que gente rija é aquela, que gente brava e que gente pitoresca. Não tivemos vizinhos castelhanos com quem brigar, mas tivemos e ainda temos um inimigo que nunca nos deu tréguas: a terra, o clima. E o pior, ou o melhor é que apesar de tudo nós amamos esse inimigo.

Calaram-se à aproximação do préstito, que foi anunciado pelos clarins da banda do regimento de artilharia, cujos soldados, fantasiados de mandarins, abriam o cortejo.

Na noite do último sábado de março, Rodrigo reuniu alguns amigos no Sobrado, para se despedirem? do capitão Rubim, que havia sido transferido para a guarnição de São Paulo.

Pouco depois das oito chegou o coronel Jairo com a esposa, que estava trajada como para um baile de gala. Flora, que vestia uma simples blusa de musselina verde-jade e uma saia cor de chocolate, pareceu ficar desconcertada ao ver entrar, toda de negro e coruscante de jóias, aquela branquíssima criatura cuja esbeltez e elegância lembravam a dos desenhos dos figurinos parisienses. Carmem Bittencourt dirigiu-se para a sala de visitas no seu andar lento e frágil de garça, de fisionomia impassível, os grandes olhos amortecidos por um desinteresse cansado. Flora seguiu-a a balbuciar amabilidades, a elogiar-lhe o vestido e o aspecto. Rodrigo observava que a esposa perdia a naturalidade na presença da carioca: ficava numa atitude humilde, era a provinciana diante da dama da Capital Federal. Suas palavras, de ordinário fluentes, transformavam-se num tartamudeio acanhado de colegial. Carmem não fazia o menor gesto nem dizia a menor palavra para deixar a outra à vontade. Portava-se com uma altivez um tanto desdenhosa (era sabido que aborrecia Santa Fé e não perdia ocasião de pôr em ridículo seus habitantes, principalmente as mulheres) e não raro dirigia a Flora ditos irônicos que deixavam Rodrigo indignado, ansioso por dar-lhe o troco na mesma moeda - coisa que não fazia apenas em consideração ao marido. Esnobe! - exclamou ele mentalmente, lançando um rápido olhar na direção da sala, onde Flora fazia a carioca sentar-se no sofá. Pomadista! Nem que te multipliques por dez chegarás aos pés da minha mulher! Imaginava despiques torpes: despir aquela insolente e amá-la da maneira mais aviltante. E ao pensar nisso verificava, um pouco contrariado, que a idéia de possuir a mulher do coronel não lhe era indiferente. Sentia por ela uma curiosidade sexual meio mórbida, com um esquisito sabor de incesto.

- Passe pra cá, coronel - disse em voz alta, puxando o outro pelo braço e fazendo-o entrar no escritório. - Sente-se naquela poltrona.

Jairo Bittencourt obedeceu. Rodrigo acendeu um charuto e sentou-se também, soltando uma baforada feliz.

- É uma pena o senhor não fumar. Não sabe o que perde. Um charuto não é apenas um prazer físico, mas uma delícia também para o espírito. Será que alguém já escreveu sobre os efeitos psicológicos dum bom charuto? Não há nada de melhor que um havana para levantar o moral!

Esperou que o coronel aproveitasse a deixa e, como era seu costume, entrasse numa dissertação que acabaria fatalmente no positivismo. O amigo, porém, continuou silencioso, a fisionomia tristonha, a mão a acariciar num gesto perdido a cabeleira fulva onde já apontavam fios prateados.

Rodrigo falou na guerra e deu voz à sua indignação ante o fato de os alemães estarem empregando o lança-chamas.

- É uma monstruosidade! - exclamou. - Uma arma de bárbaros!

Jairo encolheu os ombros.

- A guerra em si mesma já é a maior das monstruosidades. Pode parecer estranho que eu, um militar, faça tal afirmação. Mas é que antes de ser militar sou uma criatura humana.

- Veja como nesse assunto de guerra a humanidade tem retrogradado desde os tempos das nobres liças medievais, de homem contra homem, até este nosso século em que se massacraram populações civis indefesas e os boches andam a empregar essa arma horrível que chamusca a terra os inimigos, como se eles fossem ratos pesteados. Aonde é que vamos parar?

Fez-se um curto silêncio. As janelas do escritório e da sala de visitas estavam abertas para aquela serena e tépida noite de princípios de outono. Da praça, onde crianças cirandavam, vinham vozes finas e musicais em coro:

O meu belo do castelo, mata-tira tirarei.

Rodrigo sorriu. As crianças de hoje - pensou - vivem numa paz e numa segurança que as de meu tempo não conheceram... O charuto preso entre os dentes, as pernas trançadas, atirou a cabeça para trás e ficou a escutar a cantiga. Sentia-se feliz e em paz com o mundo. Havia jantado bem, sua vida estava em ordem; não tinha problemas materiais nem espirituais. Mas que diacho teria o coronel que estava tão deprimido?

- E o bandido do Rubim? - perguntou afetuosamente. - Já capitão, hein?

- Foi uma promoção merecida. Não tenha dúvida: esse moço vai fazer um carreirão.

- Talvez chegue a ministro.

- Por que não? É dessa massa que se fazem os estadistas. Rodrigo sorriu.

- Mas no dia em que o Rubim assumir a pasta da Guerra, a Argentina deve decretar sem tardança a mobilização geral.

Jairo atirou o braço no ar, num gesto de quem quer afugentar uma mosca.

- Ora! As tolices do Rubim! Não é ele o único oficial do nosso Exército que vive com essa idéia fixa duma guerra entre o Brasil e a Argentina. Isso é pura falta de visão sociológica, dum conhecimento mais profundo da história e da psicologia dos povos.

Depois de uma curta pausa, Rodrigo perguntou:

- Tem sabido do Lucas?

- Notícias recentes, nenhuma. Só sei que ainda está em Mato Grosso.

- A nossa Sibéria. Jairo suspirou.

- Quando nos querem castigar é para lá que nos mandam. Rodrigo sorria, pensando no tenente de obuseiros. Havia três anos, Lucas Araújo provocara um escândalo que fizera a cidade inteira vibrar. Como o coronel Joca Prates continuasse a opor-se ao seu namoro com a Ritinha, o rapaz vivia em constantes bebedeiras e mais duma vez ameaçara desacatar aquele "coronel de bobagem". Um dia cumpriu a ameaça. Embriagou-se, despiu-se por completo, enfiou na cabeça o quepe militar, apanhou uma espada, montou a cavalo e, saindo do quartel por entre as sentinelas embasbacadas, precipitou o animal a galope na direção da cidade. Sua tenção era entrar assim na rua do Comércio e cruzar pela frente da casa de Joca Prates. Ao avistá-lo, as mulheres que estavam nas calçadas ou debruçadas às janelas soltavam gritos, tapavam os olhos com as mãos ou fugiam. Os homens, uns rompiam em ditos chistosos e gargalhadas, outros protestavam, indignados, contra o ultraje. Maneco Vieira, que se encontrava a cavalo na frente da Casa Schultz, a conversar com um amigo, viu o tenente de obuseiros passar, compreendeu tudo num relance e não teve a menor hesitação. Meteu as esporas nos flancos do animal, tocou-se atrás de Lucas e alcançou-o quando ele já entrava a praça da Matriz. Tirou o laço dos tentos, reboleou-o no ar e laçou o oficial, colhendo-o pelos ombros e imobilizando-lhe os braços. Lucas tombou do cavalo no chão da praça, com um baque surdo. Maneco Vieira apeou, envolveu o tenente no seu poncho, levou-o a um médico - "pra ver se o moço não tinha quebrado alguma coisa" - e depois entregou-o a seu comandante.

Rodrigo e outros amigos do alagoano tentaram abafar o escândalo, mas nada conseguiram. Era tarde demais: a cidade inteira já sabia do ocorrido.

Lucas foi recolhido à prisão militar. Poucas semanas depois era transferido para Mato Grosso.

- Bom coração - sentenciou o coronel Jairo - mas mala cabeza.

E assim se vão os amigos, um por um - refletiu Rodrigo. Em setembro de 1914, depois da morte súbita de Celanira, Pepe Garcia decidira deixar Santa Fé, "huir a los recuerdos tristes", sair a burlequear pelo Brasil. Queria conhecer o Norte, subir o Amazonas num gaiola, passar uma temporada em Manaus, pintar a selva, "quizás morir de malária o devorado por una onza".

O coronel Jairo olhava fixamente para o soalho. E com uma voz sentida que Rodrigo jamais lhe ouvira, queixou-se:

- Pois é, meu amigo, e a todas essas eu vou ficando por aqui. Nem promoção nem remoção. Tenho a impressão de que se esqueceram de mim. Não é que eu não goste desta terra e desta gente, mas, que diabo! já era tempo de me mandarem para um lugar maior.

Baixou a voz, lançou um olhar furtivo para a sala de visitas.

- A Carminha não tem saúde para agüentar este clima. Num destes invernos, o vosso minuano pode levar a pobrezinha.

Rodrigo ia dizer-lhe uma palavra de conforto quando foi interrompido pelo capitão Rubim, que entrou no Sobrado soltando a sua risada convulsiva e arrastando pelo braço o padre Astolfo.

Alto, esguio, meio encurvado, o rosto duma palidez oleosa de seminarista, o novo vigário de Santa Fé tinha algo de adolescente na fisionomia, apesar de já haver completado trinta e três anos. O cabelo cortado à escovinha e os grandes óculos de aro de tartaruga davam-lhe um ar estudioso de ginasiano aplicado. Suas feições eram regulares e duma delicadeza quase feminina. "Que tal é o novo vigário?" - perguntara Maria Valéria ao afilhado, no dia em que este fora apresentado ao padre Astolfo. A resposta viera espontânea: "'Um gurizão simpático". Já agora, depois dum convívio mais íntimo e prolongado, Rodrigo acrescentava algo à definição: "Um homem culto e inteligente, duma seriedade que impressiona".

Natural de Minas Gerais, o padre Astolfo Neves, segundo se murmurava, fora já chamado à ordem por mais dum bispo, por causa de sua perigosa tolerância no domínio das idéias. Era indisfarçavelmente um liberal, embora não chegasse aos extremos do lendário padre Romano, que aceitava o evolucionismo e lia com paixão Voltaire, Diderot e Renan.

Depois de cumprimentar as senhoras na sala de visitas, Rubim apertou a mão do coronel Jairo e do dono da casa, exclamando jovialmente:

- Vou m'embora de Santa Fé sem ter convertido o vigário à minha filosofia!

Rubim envergava um uniforme de brancura imaculada, num contraste com a batina negra do padre. E não haveria - pensou Rodrigo - uma oposição identicamente radical entre as ideias daqueles dois homens?

O vigário sentou-se, cruzou as longas pernas e, num cacoete muito seu, ficou a puxar o lóbulo da orelha, apertando-o entre o polegar e o indicador.

- Eu vinha procurando convencer o padre - contou Rubim - de que o homem cristão, na sua monstruosa tentativa de abafar os instintos, acabou perdendo a vitalidade e hoje em dia só pode achar interesse na vida recorrendo a entorpecentes como a religião, o esporte, a morfina, a música, a literatura, a arte, enfim. Todas essas coisas são alcalóides. - Deu uma palmada no respaldo da cadeira e exclamou: - Aí está! Deus também é um alcalóide!

O vigário olhava para o capitão e sorria com benevolência. Rodrigo interrompeu a discussão para perguntar que música queriam ouvir.

- Verdi! - pediu Jairo. - É o meu alcalóide predileto. Rodrigo encaminhou-se para a sala de visitas, abriu uma das gavetas da estante do gramofone e escolheu um disco. Pouco depois saía da campânula do aparelho a melodia do prelúdio do último ato da Traviata. O coronel cerrou os olhos e reclinou a cabeça. Rubim encarava o vigário provocador.

- Que diz da minha classificação, reverendo? Deus, o Grande Alcalóide!

- Bem achada - respondeu o sacerdote. - Por que não? Deus é o bálsamo para todas as dores morais, o remédio para todas as doenças da alma...

Sua voz, grave e lenta, tocada duma fadiga precoce, era muito mais velha e vivida que o rosto.

Violinos e violoncelos choravam o prelúdio. Rodrigo inclinou-se sobre a esposa do coronel e perguntou-lhe se gostava da Traviata.

- É a minha ópera predileta - respondeu ela, erguendo para o anfitrião os olhos de tísica.

Mais um agosto e um par de minuanos, ma chere, e tua alminha voará para o céu. E não terás conhecido o amor, mon ange. Não me refiro a esse amor filosófico e senil de Augusto Comte por Clotilde de Vaux, mas o amor carnal dum homem jovem e ardente como o dr. Rodrigo. Pois c'est dommage!

Voltou para o escritório, onde Rubim continuava a provocar o padre.

- Não é possível aceitar a existência de Deus a não ser através da cegueira da fé, que é outro entorpecente.

- Deus não pode ser definido - disse o sacerdote, encarando placidamente o militar. - Sua natureza só nos é conhecida através do que ela não é...

Rubim tornou a cavalar o pince-nez no nariz e fez um muxoxo.

- Confuso, padre, muito confuso. Sou um soldado, tenho um espírito matemático. Não aceito a existência de nenhuma coisa que não possa ser provada.

Bom... - murmurou o outro. E por um instante seu olhar vagou, meio perdido, pela sala.

- Mas haverá coisas que Deus, o Todo-Poderoso, possa não ser e não fazer?

Jairo protestou:

- Por amor desse Deus que estais discutindo, vamos ouvir música, a divina música. Deixem a discussão para outro dia.

Rodrigo foi até a sala de visitas para virar o disco. Flora lançou-lhe um olhar no qual ele leu um pedido de socorro. (Nossa Senhora! Já não sei mais o que é que vou conversar com esta mulher.) Rodrigo sorriu:

- Manda servir alguma coisa, Flora.

Quando voltou para o escritório, o padre Astolfo estava enumerando pacientemente as coisas que Deus não podia ser:

- Não pode ser um corpo, nem mudar-se a si mesmo. Não pode falhar...

A cada uma dessas asserções, Rubim perguntava com uma insistência automática: "Mas por quê? Por quê?" O vigário, entretanto, prosseguia sem responder:

- Deus não pode cansar-se nem encolerizar-se nem esquecer nem arrepender-se... nem entristecer... nem alterar o passado... nem pecar... nem fazer outro Deus...

- Mas pode deixar de existir, não pode? O sacerdote sacudiu a cabeça.

- Não, absolutamente. Deus é uma entidade sem acidentes: não pode ser especificada por nenhuma diferença substancial...

- Ora viva! - exclamou Rubim. - Seu Deus no fim de contas é mais limitado do que eu imaginava.

- Posso dizer-lhe também muitas coisas positivas sobre Ele. Deus é o que move mas nunca é movido.

O capitão Jairo voltou a cabeça e abriu os olhos.

- Axioma velho como Aristóteles.

- Nem por isso menos verdadeiro. Mas deixem-me continuar... Deus é o movedor inamovível, a causa primeira e a origem mesma de toda a necessidade. Deus é a fonte de todas as perfeições do universo...

Rodrigo achou que devia meter sua colher torta na discussão.

- E todo o serviço malfeito é empurrado pra cima do diabo... Como se não o tivesse ouvido, Astolfo prosseguiu:

- Deus é bom e ao mesmo tempo Ele é a Sua própria bondade.

- Isso é forte demais para um simples capitão de artilharia... - murmurou Rubim. - Comparada com essa espécie de metafísica, a balística chega a ser brinquedo de criança.

Apanhou o cálice de vinho do Porto que Laurinda lhe oferecia. Jairo fez com a mão um sinal negativo: não queria beber nada.

O padre, porém, aceitou o vinho, levou o cálice aos lábios, bebeu um pequeno gole e continuou:

- Deus é inteligente. - Subitamente animado, pôs-se de pé, como se fosse fazer um discurso: - E o Seu ato de inteligência é Sua essência.

- Uma bela frase que nada esclarece - replicou Rubim.

O homem de preto e o de branco estavam de pé, frente a frente. Rodrigo contemplava-os, sorrindo. Jairo continuava de olhos cerrados a escutar o prelúdio.

- Deus é imutável - afirmou o padre - porque n'Ele não se contém nenhuma potencialidade passiva. Em suma: Deus é Verdade.

Rodrigo bebeu um largo gole de vinho e aproximou-se dos amigos com uma pergunta:

- O padre também acredita como Aristóteles que a alma está localizada na glândula pineal?

- Claro que não. A alma inteira está presente em todas as partes do corpo.

Rubim baixou a voz:

- Será que a alma é transmitida de pai para filho por meio do esperma?

O sacerdote meneou vigorosamente a cabeça:

- Absolutamente. Uma alma nova é criada por Deus para cada ser que nasce.

Rubim deu uma palmada na coxa, vociferando:

- Como se explica então a transmissão do pecado original de pai para filho, hein? Como se explica? Se é a alma que peca e não o corpo, e se a alma não é transmitida de pai para filho, como pode cada ser novo que nasce herdar o pecado de Adão?

- Saia agora dessa, padre! - sorriu Jairo.

O vigáiio olhava reflexivamente para dentro do cálice.

- Pois é - disse ele, franzindo os lábios. - Santo Agostinho, que era melhor e mais esclarecido que eu, também ficava perplexo diante desse problema...

Ergueu os olhos para Rubim, encarou-o por um instante e por fim começou a rir a sua risada grave e lenta. Jairo ergueu-se e caminhou para o vigário.

- Deus conhece as coisas particulares ou só as universais, as verdades gerais?

O padre não hesitou.

- Está claro que Deus conhece até as coisas que ainda não têm existência, assim como... - Olhou em torno e apontou para o retrato de Rodrigo. - Assim como o artista que pintou aquele quadro já o conhecia antes de pintá-lo...

- Don Pepe não é exatamente a minha idéia de Deus - troçou Rubim.

A música havia cessado e agora só se ouvia o chiado da agulha. Rodrigo correu para o gramofone e pô-lo a tocar uma valsa de Strauss.

- Mas como é que Deus pode conhecer os contingentes futuros? - tornou a perguntar o coronel.

- Porque Ele está fora do tempo.

- Em suma - observou Rubim -, numa posição muito cômoda. Uma verdadeira sinecura, um posto de comando sem superiores hierárquicos e sem patrão. Não é de admirar que Deus possa dar-se ao luxo de ser bom e justo e perfeito como os teólogos afirmam. Tem carta branca e está acima de qualquer tribunal.

Por um instante o vigário ficou a escutar o gramofone, movendo a cabeça ao ritmo da valsa.

Rodrigo olhava, meio apreensivo, para a sala de visitas, onde Carmem e Flora estavam imóveis e silenciosas. Por que diabo havia o coronel trazido a esposa, se era evidente que ela não tinha a menor simpatia por Flora? Tomara que cheguem os Carbone para salvar a situação!

Quando Laurinda entrou com os pratos de fiambre, de pão com caviar e croquetes, colocando-os sobre o bureau, Rubim e o padre discutiam as delícias deste e do outro mundo. Procuravam, sem chegar a nenhum acordo, uma definição para a palavra felicidade. Para Rubim felicidade era sinônimo de força, de poder, de vitória: vitória do homem sobre a natureza, sobre o medo e sobre os outros homens. Não compreendia os que encontravam prazer na prática dos chamados "atos virtuosos". O padre trincou um croquete e glosou o mote:

- É aí que muita gente se engana! Os atos de virtude não podem ser um fim em si mesmos. São apenas meios...

- Para que fim?

- Para chegarmos um dia à contemplação de Deus, que é a felicidade suprema. Neste mundo não podemos ver Deus na sua essência nem atingir a verdadeira felicidade. Na outra vida, se nos tivermos feito merecedores da suprema graça, gozaremos o privilégio de ver a face do Criador.

- Mas Deus tem uma face?- perguntou Rubim, com os lábios e os dentes pontilhados de caviar.

- Ora, isso é uma figura de linguagem. Rubim insinuou:

- Quem sabe se Deus não será também apenas uma figura de linguagem?

Rodrigo soltou uma risada e fez andar à roda o prato de flambre. Jairo segurou cordialmente o braço do padre, e, como para encerrar a discussão, disse-lhe com uma ironia paternal:

- O senhor sabe a sua Summa contra Jesus na ponta da língua. Aprovado com distinção!

Rubim, porém, quis ficar com a palavra final:

- Santo Tomás de Aquino foi um homem de gênio que andou em busca de razões para coonestar sua fé. Partiu de conclusões dogmáticas e saiu a cata das premissas. Encontrou algumas com admirável habilidade, não nego. Agora: aceitá-las é uma questão de fé, não de inteligência.

O vigário sorriu e, para dar a entender que não estava ressentido, bateu de leve no ombro do capitão.

Chiru chegou ao Sobrado depois das nove. Sem dar-lhe ao menos tempo de dizer boa-noite, Rodrigo investiu para ele, segurou-lhe a lapela como se fosse agredi-lo fisicamente:

- Por que não trouxeste tua mulher, miserável?

- Ora, Rodrigo, tu sabes, quem tem filhos pequenos... Boa noite, coronel, boa noite, vigário, boa noite, capitão... Pois é. A coitada da Norata anda sempre envolvida com as crias.

Dirigiu-se para a sala de visitas e aproximou-se das damas, diante das quais ficou a fazer mesuras.

O casamento de Chiru Mena, em 1912, com uma órfã herdeira de três léguas de campo bem povoadas, causara quase tanta sensação em Santa Fé quanto a notícia do naufrágio do Titanic, ocorrido poucos dias antes. O namoro começara num baile, continuara durante algumas serenatas e conversas ao pé da janela da casa da moça - que vivia com um casal de tios pobres - e encaminhara-se a passo acelerado para um noivado-relâmpago. O padre Kolb casou-os num gélido dia de julho, em que soprava o minuano, e a noiva, no seu vestidinho branco, tremia de frio e emoção. Rodrigo, um dos padrinhos do noivo, pagou a este o fraque, as calças a fantasia, os sapatos de verniz, o plastrão, e presenteou o casal com a mobília do quarto de dormir. Na hora em que o noivo assinava o nome no registro, Saturnino inclinou a cabeça para Rodrigo e cochichou: "Até que um dia o Chiru desenterrou um tesouro!" Parecia despeitado por perder o velho companheiro de perambulações noturnas. Efetivamente, nos primeiros tempos de casado Chiru foi um marido exemplar: dedicado, amoroso e caseiro. A lua-de-mel, porém, durou dois escassos meses, ao cabo dos quais Chiru voltou à velha vida, às caminhadas noturnas em companhia de Saturnino, às serenatas com o Neco e às pândegas com quem quer que o acaso lhe deparasse. Levantava-se às dez da manhã e passava o dia na vadiagem, de roda de mate em roda de mate, ou então metido no Comercial a jogar cartas ou bilhar. A todas essas não cessava de proclamar seus propósitos de trabalho: cuidar da estância, multiplicar o gado, fundar uma charqueada ou uma barraca de couros. Parecia ter esquecido por completo o tesouro dos jesuítas. Nunca deu, porém, o menor passo para realizar os grandes planos. Achou mais fácil e conveniente arrendar o campo e vender o gado. Por algum tempo andou com os bolsos cheios de dinheiro, pagando as despesas nas rodas de café e nos bordéis e convidando os amigos para cearas e cervejadas. A esposa dera-lhe dois filhos, o último dos quais nascera havia apenas quatro meses. Em 1913, assediado pelos credores, hipotecara a estância. Sabendo que a hipoteca estava prestes a vencer-se e que o amigo não tinha dinheiro para resgatá-la, Rodrigo censurara-o: "És um pródigo, um desorganizado, um vadio! Vais botar fora a segunda fortuna que a Providência, que é cega, te atirou nas mãos. Por que não fazes alguma coisa, homem? Não tens pena da tua tia, que se esfalfa pra sustentar a tua família?" Tia Vanja, porém - sabia-o ele - vivia no sétimo céu. Conservara o "velocino de ouro" em casa, ganhara uma "nora" e ''netos". E, para cúmulo da felicidade, o Correio do Povo estava agora publicando o mais formoso, o mais edificante dos romances: A toutinegra do moinho.

- Salafrário! - exclamou Rodrigo quando o amigo voltou para o escritório. - Podias ter deixado as crianças com tua tia. Não trouxeste a Norata porque não quiseste. És um mau marido, um mau cidadão, um mau exemplo. Mas come alguma coisa, animal!

Chiru apanhou um croquete, meteu-o inteiro na boca e pôs-se a mastigá-lo com gosto e ruído. Havia engordado naqueles últimos anos: ostentava uma corpulência imponente de embaixador. A papada estava nédia, a cara rubicunda, a juba loura, mais abundante que nunca. As costeletas espessas e longas ameaçavam transformar-se em suíças - o que já lhe dava uma certa parecença com os retratos de Dom João VI.

- O dr. Carbone ainda não chegou?

- Não - respondeu Rodrigo. - Tinha uma operação marcada pras oito. - Hérnia estrangulada.

- Aquele gringo é um carniceiro! - exclamou Chiru.- Mas tem um coração de pomba. Pára com esse gramofone, homem, pra gente poder conversar. Tenho um prato de primeira ordem pra vocês...

Quando a valsa terminou, Chiru olhou de soslaio na direção das mulheres, voltou-lhes as costas, inclinou um pouco o busto, e, num tom de voz a que Maria Valéria chamava "murmurim", sussurrou:

- Sabem que está pra estourar um escândalo na cidade?

Três pares de olhos focaram-se no rosto de Chiru Mena. Comentava-se com insistência - contou ele - que o irmão Jacques Meunier, o marista, e a filha mais velha do coronel Cacique Fagundes, a quem ele dava lições particulares de francês, estavam perdidamente apaixonados um pelo outro.

- Calúnia! - reagiu Rodrigo. - Santa Fé é um burgo maldizente. Não respeitam nem um sacerdote, isso pra não falar na honra duma moça de boa família. Então, só porque o rapaz está ensinando francês pra Doralice Fagundes... Ora, seu Chiru, ora!

Calou-se, o cenho franzido. Não estava tão revoltado como queria parecer para agradar o padre Astolfo. Na realidade não só achava os boatos verossímeis como também sentia certo alvoroço ante a perspectiva do escândalo.

Chiru empertigou-se, assumiu um ar grave de respeitabilidade, espalmou a mão sobre o peito:

- Perdão, não sou eu quem diz. Apenas vendo a coisa pelo preço que compro. Todo o mundo fala nessa história.

Tornou a lançar um rápido olhar cauteloso na direção da peça vizinha, onde as duas mulheres, imóveis e caladas, pareciam figuras dum museu de cera.

- Dizem que ficam horas e horas fechados numa sala - murmurou. - Que diabo! Padre é de carne e osso como qualquer um de nós, não é, vigário?

Astolfo, que estava a puxar o lóbulo da orelha, sorriu, meio constrangido, e explicou, com seu jeito paciente e atencioso, que um marista não é propriamente um padre como os outros.

- A Sociedade de Maria tem três graus. O primeiro é o dos aspirantes, que fazem todos os anos um voto singelo de obediência. O segundo é o dos professores, que depois do noviciado canónico e de haverem completado vinte e um anos, fazem três votos singelos de castidade, pobreza e obediência. Há finalmente o terceiro grau, que é o dos professores estáveis, que devem ter trinta e cinco anos completos e, após o segundo noviciado pronunciam o voto de estabilidade na Congregação. O irmão Jacques, creio, está no segundo grau...

- Pode então, não renovar o voto? - indagou Chiru.

- Claro.

- Estás ouvindo? - gritou Chiru na cara de Rodrigo. - Dizem que o homem vai tirar a batina pra casar com a moça. Não vejo nenhum mal nisso, meus patrícios!

Apanhou outro croquete e meteu-o na boca.

- Que é que o coronel Cacique diz de toda essa lambança? - indagou Rubim.

Por um instante Chiru lutou com um arroto. Encostou as pontas dos dedos nos lábios e deixou-o escapar suavemente, sem ruído, e com certa dignidade.

- Quando o Cacique descobrir a coisa - disse, - acho que bota o marista pra fora de casa com um pontapé no rabo, com o perdão aqui do reverendo...

Sentou-se, desabotoando o colarinho e afrouxando o nó da gravata.

Rodrigo mandou Laurinda trazer taças e foi à cozinha buscar uma garrafa de champanha. Fez questão de abri-la no meio da sala, para que todos ouvissem o estouro da rolha e vissem a espuma jorrar. Serviu primeiro as mulheres. Depois encheu as taças dos homens e apanhou a sua.

- Se temos hoje champanha gelado é graças à diligência de Marco Lunardi, o nosso grande industrial, que teve a luminosa idéia de comprar uma máquina de fabricar gelo!

Voltou-se para Rubim:

- Tu não mereces um brinde, soldado. Amanhã, quando estiveres longe daqui, sei que esquecerás esta cidade, esta casa e estes amigos. Em todo caso, quero beber à tua saúde. - Ergueu a taça. - Desejo-te felicidades, sucesso e o Ministério da Guerra!

Chiru e o vigário ergueram também as taças e beberam. Rubim olhava fixamente para o anfitrião. De repente operou-se-lhe no rosto uma mudança completa: os olhos se umedeceram, os lábios tremeram sobre a dentuça e ele ficou ali mudo e imóvel, numa súbita nudez psicológica. Rodrigo, surpreso, percebeu que o capitão estava comovido, o que o deixou também com os olhos turvos e um aperto na garganta.

Os Carbone fizeram sua entrada no Sobrado depois das dez, quando os Bittencourt já se haviam retirado por insistência de dona Carmem, que se queixara duma súbita enxaqueca. Livre da pesada obrigação de entreter a esposa do coronel, Flora recebeu Santuzza com grandes demonstrações de alegria. Ali estava uma criatura simples, fácil, espontânea, com quem a gente se podia abrir e ser natural sem o menor perigo de dar ratas. Alta, fornida, com um busto abundante de prima-dona lírica e uma cintura surpreendentemente fina para as largas ancas calipígias, dava a esposa do dr. Cario Carbone a impressão duma camponesa na qual não assentavam bem as roupas citadinas. Andava já pelo fim da casa dos trinta, tinha as faces coradas, a pele lisa, uns grandes olhos honestos de mãe de família, uma risada saudável e uma voz levemente roufenha, que lembrava a Rodrigo a de certas cantoras aposentadas de café-concerto.

Depois de distribuir seus formidáveis apertos de mãos entre os presentes, Santuzza, sem a menor cerimônia e com o mais sadio dos apetites, atirou-se sobre os croquetes.

- Então, Carbone, como correu a operação? - perguntou Rodrigo, dando uma palmadinha nas costas do cirurgião. Nunca lhe apertava a mão com força, pois temia desmontar o homenzinho.

- Maravilhosamente bem! - respondeu o italiano com sua rica voz musical que, por uma tola associação de idéias (empostada-empastada-empastelada) Rodrigo classificava como "voz de pastel".

O cirurgião trincou um croquete e bebeu um gole de champanha com um jeito de conhecedor.

- Uma hérnia belíssima! - exclamou, estalando os beiços num simulacro de beijo, levando à boca os dedos unidos e depois abrindo-os em leque, como para espalhar o bacio no ambiente. - Belíssima! - repetiu, mais cantando do que pronunciando a palavra.

Serviu-se de pão com caviar. Rodrigo ficou a observá-lo com apaixonado interesse. Aquele homenzinho fascinava-o. Era uma fabulosa mistura de gnomo, feiticeiro, diplomata e maitre de hotel. Figura minúscula - teria quando muito um metro e cinqüenta e oito de altura - no seu fraque preto, suas calças a fantasia, colarinho e punhos engomados, era o tipo clássico do médico francês, segundo a caricatura. O que lhe dava ao todo um ar um tanto grotesco era a desproporção entre a cabeçorra - que bem podia estar plantada nos ombros dum homem de estatura acima da mediana - e o corpo franzino de meninote. A testa era larga e alta, e a barba - crespa, castanha e abundante como a cabeleira - estava cortada em bico, o que lhe dava à face algo de agudo, acentuado pelo nariz comprido e afilado, de narinas dilatadas e duma transparência de porcelana. Acima dos olhos meio exorbitados, de pupilas dum cinzento metálico, eriçavam-se as sobrancelhas grossas, com as pontas externas retorcidas para cima à maneira de minúsculos cornos. Rodrigo costumava chamar ao cirurgião "o meu simpático satanás". Homem de idade indefinível - pois tanto se lhe podia dar trinta e cinco como quarenta e cinco ou cinqüenta anos -, tinha uma natureza apaixonada e a sensibilidade à flor da pele. Admirava D'Annunzio e Petrarca, era católico praticante, amava a ópera e, gourmet de gosto apurado, levava em grande conta os prazeres da mesa. Comer, para ele, era uma espécie de ritual. Aos sábados tinha sempre ao jantar algum prato raro, geralmente rãs à milanesa, o que era motivo de escândalo e falatório na cidade. Rodrigo não pudera conter o riso ao encontrar um dia o dr. Carbone enfarpelado na sua roupa de caçador, de veludo verde-musgo, um boné de pano enfiado na cabeça, as finas pernas envoltas em perneiras de feltro - prestes a sair em excursão pelos banhados das redondezas de Santa Fé, em busca de rãs e cogumelos comestíveis.

O casal Carbone causava sensação quando aparecia nas ruas da cidade: ela alta e imponente, ele baixinho e serelepe no seu inseparável fraque negro, a cabeça metida num chapéu-coco, a longa piteira de âmbar apertada entre os dentes. Diziam os gaiatos: "Lá vem dona Santuzza com sua bengala". Todos sabiam, entretanto, que apesar daquela desproporção física, quem cantava de galo em casa era ele. Afirmava-se até que aquele homenzinho de maneiras afáveis e duma cordialidade beijoquenta era na intimidade um tiranete - exigente, neurastênico, cheio de manias - e que a mulher, não obstante seu aspecto de amazona e sua energia transbordante, apequenava-se diante dos gritos do marido, fazendo-lhe todas as vontades e desculpando-lhe todas as impertinências.

Logo ao entrar, Santuzza perguntou pelas crianças. Flora respondeu que estavam dormindo. Casal sem filhos, os Carbone se haviam tomado de amores por Floriano e Alicinha e enchiam-nos de mimos e presentes.

A esposa do cirurgião insistiu em subir para olhar "i piccolí'. Fez uma provisão de croquetes e encaminhou-se para a escada grande, seguida de Flora, a qual - observava Rodrigo - não cessava de rir quando estava na presença da italiana.

Chiru aproximou-se de Carbone.

- Como é o negócio, doutor? Quando é que a Itália entra na guerra? A coisa está feia, precisamos de aliados.

O homenzinho colocou a taça vazia sobre o bureau, enfiou um cigarro na longa piteira, acendeu-o e soltou uma baforada de fumaça que subiu para o rosto de Chiru.

- Quando a primavera despontar, carino... - cantarolou, pondo-se nas pontas dos pés como para que suas palavras pudessem chegar aos ouvidos do outro.

Rubim pousou-lhe no ombro a mão protetora.

- Se vocês italianos entrarem no conflito do lado dos aliados, cometerão um ato de traição e ao mesmo tempo um erro: romperão uma aliança e perderão a guerra.

Cario Carbone olhou reflexivamente para o cigarro, bateu-lhe a cinza com a unha do dedo mínimo, deu três passinhos na ponta dos pés, como se estivesse dançando um schottish e depois, voltando-se para o capitão, respondeu, evasivo:

- Eh... già.

O padre Astolfo interveio, tendo entre os dedos um dos dourados quindins que Laurinda acabava de servir:

- O capitão não há de querer - disse - que o berço da latinidade entre na guerra ao lado desses bárbaros germânicos!

Rubim voltou-se para o sacerdote:

- O senhor acha que os padres alemães que servem no Exército do Kaiser são da mesma opinião?

O dr. Carbone estava agora como um quebra-mar entre o homem de branco e o homem de negro, a piteira entre os dentes a balançar o corpo, apoiando-o ora na ponta dos pés, ora nos calcanhares. Chiru passou pela cara o lenço vermelho e esmagou um quindim na boca, atento à discussão que se acendera entre o padre e o militar, que já agora estavam às voltas com o Congresso de Viena, as guerras napoleônicas e as intrigas balcânicas.

Rodrigo, escansão feliz, andava de taça em taça, com a garrafa de champanha nas mãos, sorrindo:

- Paz, senhores, paz!

O cirurgião aproximou-se do gramofone, pô-lo a funcionar e, quando voltou para o escritório, já se ouviam os primeiros acordes da Serenata de Arlequim. Segurou o braço de Rodrigo e, os olhos entrecerrados, ficou a acompanhar a ária em surdina, com sua voz de tenorino.

Rubim puxou o italiano pela manga do fraque:

- Estive procurando provar ao padre que a guerra é uma coisa necessária. Imagine o senhor, doutor, as oportunidades de progresso que a cirurgia vai ter. Positivamente, a paz é a inércia e o desfibramento dos povos.

Carbone não lhe prestou nenhuma atenção. Continuou a cantarolar e agora a reger também a orquestra, com a piteira à guisa de batuta.

Rubim prosseguiu:

- Moltke disse que a paz perpétua é uma ilusão que nem chega a ser uma bela ilusão e a guerra é um elemento de ordem no mundo, um mandamento de Deus, pois sem a guerra, a humanidade se estagnaria e perderia no materialismo.

- Que é que o padre diz a isso? - perguntou Rodrigo.

- Digo que há muita gente no mundo que fala em nome de Deus sem ter a menor autoridade para isso.

Laurinda entrou com um novo prato de croquetes recém-saídos da frigideira. Chiru atacou-o sem perda de tempo. Arlequim calou-se, Carbone correu para o aparelho.

- Pare com essa droga! - suplicou-lhe Chiru. - Queremos conversar em paz.

O cirurgião tornou ao escritório e sentou-se numa poltrona, ficando com os pés no ar, como uma criança. Rubim acercou-se dele.

- Se a Itália entrar na guerra, qual vai ser a sua atitude? Cario Carbone não teve a menor hesitação. Ergueu os olhos para o capitão e declarou que ofereceria seus serviços de médico à cara pátria.

Da escada veio um ruído pesado de passos, um cascatear de risadas femininas, e pouco depois Santuzza irrompeu no escritório, trazendo Floriano e Alicinha, um em cada braço. Nos seus macacões de pelúcia, as crianças tinham os olhos piscos e nos rostos afogueados uma expressão de sonolento espanto.

- Dona Santuzza! - repreendeu-a Rodrigo. - Então isso é coisa que se faça? Acordar as crianças a esta hora da noite... Com efeito!

Flora esboçou também um protesto. O dr. Carbone precipitou-se para a esposa, arrebatou-lhe Alicinha dos braços e começou a dar sonoras beijocas no rosto da menina, cujas mãozinhas se lhe aterraram às barbas. Floriano enlaçava o pescoço de Santuzza, a qual lhe murmurava ao ouvido palavras carinhosas.

- Cara, carina - resmungava o dr. Carbone, apertando Alicinha contra o peito. - Topolino mio.

Rubim, que se havia aproximado da janela, estava a olhar a noite. Rodrigo sabia que o sergipano não gostava de crianças e não procurava esconder essa idiossincrasia nem mesmo justificá-la. Ficava impaciente sempre que Alicinha e Floriano entravam na sala. (Um dia, quando estava a ensaiar os primeiros passos, a menina perdera o equilíbrio e, para não cair, aganara-se às pernas do oficial. Este permanecera impassível, não fizera o menor gesto nem sequer esboçara um sorriso: limitara-se a esperar que Flora acudisse, livrando-o daquela "coisa".)

Durante alguns minutos houve ali no escritório uma alegre balbúrdia em que as duas crianças passaram de braço em braço, sob o olhar indiferente do capitão. Depois que Santuzza os levou de volta para a cama, Rubim afastou-se da janela, dizendo:

- Criança e cachorro, só em gravura... Nunca fico tranqüilo quando vejo esses bichinhos a meu redor.

Carbone lançou-lhe um olhar duro.

- Celerado!

Rodrigo abriu outra garrafa de champanha e tornou a encher as taças. Lá de cima vinha agora a voz roufenha de Santuzza, a cantar uma berceuse napolitana. Como é que as crianças vão dormir com um barulho desses? - sorriu o pai.

Naquele momento chegaram Neco e Saturnino com seus instrumentos. Vinham buscar Chiru para uma serenata.

- Mas comam e bebam alguma coisa antes de irem! - convidou Rodrigo - E cante um pouco para nós - pediu o padre, dirigindo-se a Neco.

O seresteiro, que havia pedido cerveja, bebeu um largo sorvo, lambeu os bigodes, afinou o violão e depois olhou para o padre:

- Que é que vai ser?

- Aquela modinha nova que está fazendo tanto sucesso. O Luar do sertão?

Todos aprovaram a escolha. Neco pigarreou e começou:

Não há, ó gente, oh, não, luar

como esse do sertão.

Rubim pôs a mão no ombro de Rodrigo.

- Ai tem você a alma, a poesia do sertão, meu caro. É como lhe digo. Querem um guerreiro? Mandem buscar um gaúcho. Querem um poeta? Procurem um nordestino. Um homem como Catulo da Paixão Cearense não podia ter nascido nestas coxilhas...

- Ora, não diga asneiras.

- Preste atenção na beleza desses versos... Neco cantava com sentimento.

O dr. Carbone escutava com ar sonhador e seus olhos começavam a ficar enevoados. Santuzza, que havia descido ao ouvir a voz de Neco, estava agora junto da porta, os seios arfantes, o rosto sério. Recostado à janela, com a flauta apertada contra a axila, como um enorme termômetro, Saturnino contemplava o companheiro. Chiru passeava o olhar em torno, com um ar orgulhoso de empresário.

Quando o barbeiro terminou a canção, houve aplausos calorosos.

- É ou não é uma jóia, essa modinha? - perguntou Chiru.

O padre ergueu-se, deu algumas passadas sem rumo pelo escritório e por fim, entortando a cabeça e alçando os olhos com ar sonhador, disse:

- Não é mesmo estranho que enquanto estamos aqui alegres, cantando, em paz, seres humanos matam-se, destroem-se e sofrem as misérias da guerra nas terras da Europa?

O dr. Carbone, que acabara de acender outro cigarro, olhou para a ponta das botinas (feitas a mão pelo Cervi, pois nas lojas não havia calçados suficientemente pequenos para seus pés de menino) e depois, numa surdina teatral, recitou:

- Vejo um soldado morto, e seu sangue sobre a neve é como uma rosa vermelha...

- Puro D'Annunzio! - exclamou Rodrigo. E o italiano soprou-lhe um beijo. Rubim soltou uma risada sarcástica.

De novo se falou na guerra, nos mortos, nos mutilados, nas cidades destruídas, e no perigo de um dia o conflito estender-se até o continente americano.

Chiru bravateou:

- O Kaiser que não se meta com a cavalaria gaúcha! Rodrigo apontou para as taças:

- Nada de tristezas. Vamos beber!

Neco tirava acordes plangentes do violão. Saturnino olhava para as estrelas. De súbito, Santuzza aproximou-se do gramofone e pô-lo a tocar um cake-walk. A melodia saltitante, produzida por uma orquestra de negros de Nova Orleans, encheu o ar. A italiana tomou a mão do marido:

- Andiamo, Cario. La vita é breve.

Puseram-se a dançar. De braços dados, as cabeças e os bustos inclinados para trás, fizeram a volta da sala, atirando as pernas, como a darem pontapés no ar. O soalho soava como um tambor surdo às batidas cadenciadas dos pés dos dançarinos. Vasos tremiam sobre mesas, consolos e aparadores. E os Carbone, como consumados artistas de vaudeville, prosseguiam no seu cake-walk, sob aplausos e risadas.

Em princípios de abril Rodrigo sentiu, mais forte que nunca, aquela sensação de inexplicável ânsia e descontentamento que o vinha assaltando ultimamente com certa freqüência. Haveria algo de errado em sua vida? Se havia, que era? Estaria ficando neurastênico? Faltava-lhe alguma coisa? Tinha tudo quanto um homem pode desejar: a melhor das esposas, os mais belos e saudáveis dos filhos, dinheiro, posição, prestígio, bons amigos... No entanto era às vezes tomado daquela sensação de inanidade que o deixava apático, deprimido, abúlico ou - o que era mais freqüente - irritado e insofrido, a desejar que acontecesse algo capaz de agitar a superfície da sua vida, a qual - comparava ele - era agora como a dum açude em dia sem vento: azul, mas parada e sem vibração.

Talvez estivesse precisando de novos amigos, de outros horizontes e interesse: duma viagem em suma. Mas viajar para onde? Para a Europa era impossível. Os Estados Unidos, com suas chaminés a vomitar fumaça e fuligem, seus negociantes grosseiros, sua falta de bons museus, não o seduziam; de resto ele não falava nem entendia o inglês. Buenos Aires era uma cidade sem alma. Montevidéu nem chegava a ser uma cidade...

Estás precisando mas é duma aventura amorosa - segredava-lhe uma voz interior. Não. Ele não devia, não queria aceitar a explicação. Era imperativo que sentasse o juízo duma vez por todas. Que diabo! Tinha de respeitar a esposa, pensar nos filhos, na reputação profissional... Há loucuras que um homem pode cometer até os vinte e quatro anos. Depois, não se justificam nem desculpam mais.

Seja como for, é a rotina que está me embolorando a alma - concluiu certo dia em que o trabalho do consultório lhe fora particularmente penoso.

Logo que o dr. Cario Carbone chegara, ele o ajudara nas primeiras operações. Cedo, porém, cansara daquele contínuo abrir e fechar de abdómens, daquela sangueira, daquela carnificina. Havia muito que entregara a farmácia aos cuidados do Gabriel, cuja admiração apaixonada pelo patrão levava-o a imitá-lo nos gestos, nas palavras e até na maneira de vestir, o que não era difícil, pois ele lhe dava as fatiotas, sapatos e gravatas que não usava mais. Quanto à administração do pequeno hospital, confiara-a à sra. Carbone, que era duma energia e duma eficiência assustadoras. Assim, tudo marchava normalmente sem que fosse necessária sua presença num e outro lugar. De quando em quando, porém, sentia-se picado de ciúmes à idéia de que tudo aquilo pudesse funcionar tão bem e render tanto dinheiro sem sua interferência. Enchia-se, então, de zelos patronais e tentava tornar-se indispensável. Ia examinar os livros de Santuzza e dar-lhe sugestões quanto à direção da casa de saúde. Fiscalizava as prateleiras da farmácia, passava os olhos pelas faturas das drogarias, sabatinava Gabriel... Esses "acessos" de interesse, entretanto, duravam poucos dias e, depois que desapareciam, Rodrigo ficava semanas inteiras sem visitar o hospital e apenas passava pela farmácia quando entrava ou saía do consultório.

Já sei o que me falta - disse um dia a si mesmo, contemplando da janela do Sobrado a fachada da Intendência. É uma boa campanha política. O patife do Rubim está certo, tem razão. Um homem não pode viver sem lutar. A paz é a estagnação, o amolecimento, o tédio. Minha "doença" não passa da nostalgia dos tempos da Farpa, dos Dentes Secos, das polêmicas e das voluptuosas sensações de perigo.

No entanto, tudo aquilo havia terminado, agora que o Joca Prates governava Santa Fé e ele, Rodrigo Cambará, era freqüentemente chamado à Intendência para dar sua opinião e conselho sobre assuntos de administração e até de política. O Titi Trindade lá estava em sua casa, imobilizado numa cadeira, inválido, com o lado esquerdo do corpo paralisado, a língua emperrada, o cérebro semimorto. Todas essas coisas davam a Rodrigo uma sensação de derrota, como se ele, por interesse pessoal ou covardia, houvesse aderido à situação. Entretanto em verdade podia afirmar que a eleição do pai de Ritinha fora obra sua. Só sua? Claro que não. Deus, que escreve direito por linhas tortas, também colaborara.

Em fins de 1911, quando os santa-fezenses se preparavam para as eleições municipais, Titi Trindade, o eterno candidato republicano, fora subitamente acometido duma hemorragia cerebral. Houve pânico entre os correligionários, que se viram na contingência de escolher às pressas um substituto, o que não era difícil, pois não podiam contar com o conselho de Trindade, que não estava em condições de pensar e muito menos de falar. Formaram-se logo duas facções: uma tinha como candidato Laço Madruga; a outra inclinava-se para Joca Prates. Rodrigo pôs-se imediatamente em ação. Passou boa parte duma noite no telégrafo a conferenciar com Pinheiro Machado, tratando de convencê-lo de que a eleição do Madruga seria ruinosa para Santa Fé e para o partido. Conseguiu que o senador passasse um telegrama ao dr. Borges de Medeiros, recomendando Joca Prates como o candidato de sua simpatia. E a palavra de Pinheiro Machado encerrara definitivamente a questão.

- Não tem graça! - disse Rodrigo em voz alta, sempre a olhar para a fachada da Intendência. - Está tudo muito parado!

Em meados daquele mesmo mês chegou-lhe do Rio uma carta de Pinheiro Machado, a qual, como um cálido vento cheio de promessas teve a virtude de agitar as águas do açude. Informava-lhe o senador que sua candidatura para deputado à Assembléia do Estado achava-se definitivamente assegurada. Já me dirigi ao dr. Borges de Medeiros, que está de pleno acordo, de maneira que podes contar como certa a tua indicação. Quanto à eleição, penso que não haverá também nenhuma dúvida.

Abril ainda lhe reservara outra surpresa: a chegada do automóvel Ford de quatro cilindros que encomendara havia meses, e que lhe custara três contos e quinhentos mil-réis. Junto com o carro veio-lhe também um novo chofer, o Epaminondas, mulato pernóstico, de cabeleira besuntada de vaselina e nariz quebrado de boxeador.

Uma tardinha Rodrigo meteu toda a família no Ford inclusive Maria Valéria, e saiu a passear pelas ruas centrais da cidade.

Quando o carro fazia a volta da praça Ipiranga, avistou Titi Trindade à janela de seu palacete, a cara duma tristeza macilenta, a face esquerda como que caída e morta. Sentiu-se tomado duma piedade tão profunda que se debruçou sobre a porta do carro e, num assomo de cordialidade, cumprimentou o inimigo com um largo e generoso aceno.

- Coitado! - murmurou. - Não posso guardar rancor de ninguém. E, depois, se o Trindade tinha pecados, agora os está pagando. Ó Epaminondas, passa pela fábrica do Lunardi e me compra dois quilos de gelo.

Recostou-se no banco, apertou a mão de Flora e começou a assobiar, feliz, uma valsa de opereta.

Naquele sábado Flora convidou o marido.

- Vamos ao cinema hoje? Imagina só: uma fita da Asta Nielsen! Na tarde daquele dia, o negro Sérgio andara a distribuir de casa em casa o programa do Cinema Santa Cecília, que anunciava para a noite o majestoso drama Levada à morte, dividido em três longas partes e produzido pela conceituada fábrica dinamarquesa Nordisk, Com uma seriedade juvenil, que deixou Rodrigo enternecido, Flora apanhou o papelucho verde e leu:

- Suntuosa festa de arte que marcará época nos anais da cinematografia moderna. Grande arrojo da fotografia animada. Fuga em balão, fuga a cavalo, fuga dum transatlântico em pleno mar. Ação do telégrafo sem fio. Escalada de montanhas. Garden-party maravilhoso. Danças características por sessenta bailarinas. Requinte de toilettes. Encenação riquíssima. Glória do amor. Grandiosa produção de fina escola.

Olhou para o marido com uma expressão aliciante.

- E tem ainda no programa um filme natural e duas comédias, uma do Bigodinho e a outra do Deed!

Rodrigo enlaçou a cintura da mulher, estreitou-a contra o peito e deu-lhe um sonoro beijo na boca.

- Contigo vou a qualquer parte, meu bem, com ou sem o Deed, com ou sem Bigodinho, estás entendendo?

Antes das oito horas estavam ambos no Teatro Santa Cecília, onde funcionava o cinematógrafo, sentados no camarote que o gerente da empresa reservava habitualmente para os Cambarás. Flora gostava de chegar antes de a função principiar, para ver como estavam vestidas as outras mulheres e para dar uma prosa com as pessoas do camarote vizinho, que naquela noite estava ocupado pelo coronel Cacique Fagundes, a esposa, as duas filhas mais velhas e o irmão Jacques. Ao ver o marista, Flora lançou um olhar significativo para Rodrigo, que mal pôde disfarçar um sorriso de malícia. Afinal de contas - refletiu ele - o boato parecia ter fundamento. Que diabo! Como podia um homem moço, forte, sanguíneo e até bonitão como frei Jacques viver indiferente aos encantos femininos?

O coronel Cacique inclinou-se para o camarote de Rodrigo e lançou o seu protesto:

- Estou aqui nesta droga porque me trouxeram à força. Cinematógrafo é coisa pra criança, tempo perdido, dinheiro posto fora.

Tornou a recostar-se no respaldo da cadeira e ali ficou, a pança tombada sobre as coxas, sonolento, lustroso e impassível como a imagem dum buda.

Apenas três dos camarotes da ala fronteira se achavam ocupados: um deles pelos Amarais e os outros dois pelo clã dos Macedos. Toda vestida de negro, com um boa sobre os ombros, um broche de brilhante a coruscar-lhe no peito, Emerenciana olhou na direção de Rodrigo, sorriu e fez-lhe um aceno. Alvarino, sentado atrás da mulher, limitou-se a uma discreta inclinação de cabeça.

Rodrigo passeou o olhar pela platéia, cujas cadeiras estavam quase todas ocupadas. Percebeu que Amintas Camacho procurava cumprimentá-lo com insistência. Achava-se ao lado da mulher. Depois do casamento, havia engordado, estava com as bochechas como que inchadas e com umas gordurinhas indecorosas nas ancas e nas nádegas. Lesma! - pensou Rodrigo. E continuou a fingir que não via o rábula. De repente deu com o Júlio Schnitzler a pequena distância de seu camarote. Uma vermelhidão cobriu o rosto, o pescoço e até a calva do alemão, cuja boca se abriu num sorriso, ao mesmo tempo que ele cumprimentava os Cambarás com rígidos acenos de cabeça. Rodrigo procedeu como se não o tivesse visto. Flora censurou-o:

- Cumprimenta o homem, Rodrigo, não sejas rancoroso. O coitado não tem culpa dos banditismos do Kaiser.

- Quando me lembro do que os patrícios dele fizeram na Bélgica, o sangue me ferve. Depois, esse tipo sempre que tem notícia de alguma vitória alemã reúne os patrícios na confeitaria pra comemorar.

- Afinal de contas a Alemanha é a terra dele...

- Pois que volte pra lá!

Naquele instante percebeu que alguém da platéia lhe fazia sinais frenéticos. Ah! A tia Vanja, e sozinha! Ergueu-se e foi buscar a velha amiga, trazendo-a pelo braço para o camarote. Onde se viu? - murmurava, enlaçando-lhe carinhosamente a cintura - a senhora sozinha na platéia...

Tia Vanja beijou Flora em ambas as faces e sentou-se, muito tesa, ao lado dela. Contou que a Norata - ai que flor de moça! que coração! - tinha ficado em casa com as crianças, a fim de que "a vovó" pudesse vir. Ali! Era uma sorte morarem tão pertinho do Santa Cecília...

- Sou louca por cinematógrafo! - exclamou. - Eu já disse lá em casa: tirem-me tudo, o pão, a água, o oxigênio que respiro, as estrelas do firmamento, tudo, mas não me privem do folhetim do Correio do Povo nem do meu rico cinematógrafo. Não achas, Rodriguinho, que é um invento tão instrutivo? Que de maravilhosos espetáculos nos proporciona! E que privilégio podermos ver naquele rico paninho branco os melhores atores e atrizes do universo! Eu só imagino se meu pai ressuscitasse dentre os mortos e pudesse ver essas fotografias animadas. Ele já achava o daguerreótipo uma coisa mágica, imaginem! Ai! É como sempre estou dizendo, bendito seja o progresso!

Na mente de Rodrigo soou o espectro da voz de Maria Valéria. "A dona Vanja é uma velha fiteira". Fiteira! Ali estava uma expressão nova trazida pelo cinematógrafo, o qual já começava a exercer uma sensível influência sobre o povo. Agora quando uma pessoa era teatral na maneira de falar ou gesticular, quando gostava de ostentações ou se dava a exageros - dizia-se que ela era fiteira. Rodrigo sorriu. Lembrava-se de que um dia ouvira o pai gritar para um mascate que lhe batera à porta e tentava impressioná-lo com seus truques, a fim de lhe vender umas bugigangas: "Deixe de fita."

No entanto o velho jamais assistira a uma sessão de cinematógrafo!

Pouco depois das oito horas, o pianista - um escrivão da Coletoria Estadual - sentou-se ao piano e começou a tocar o que o programa anunciava como uma "linda ouverture pelo maestro Salcede". Era um tango de Nazaré, O brejeiro.

Rodrigo franziu o cenho, e fazia muxoxos ante as hesitações dos dedos do pianista sobre os teclados daquele velho piano desafinado.

Gostava de cinema, sim, mas não tinha paciência de ficar sentado numa cadeira de assento de pau durante mais duma hora, nem de esperar os longos intervalos entre uma parte e outra. Quando a exibição era interrompida porque a película se rompia ou queimava, sentia ímpetos de gritar, assobiar ou bater pés como faziam os espectadores do galinheiro.

Tinha a mais agradável das recordações da primeira sessão de cinematógrafo a que assistira em 1900, ano em que se matriculara num ginásio de Porto Alegre. Ficara sentado na ponta da cadeira, o busto teso, a respiração contida, vendo na tela o milagre daquela lanterna mágica em ponto grande, cujas imagens se moviam como gente de carne e osso. O primeiro filme que vira se intitulava Viagem A Jerusalém: vistas das ruas do Cairo, das pirâmides, duma caravana de camelos, das margens do Nilo e finalmente das ruas, monumentos e templos da Cidade Santa. Seguira-se um episódio fantástico: a história duma grande carruagem puxada por um cavalo mecânico e que conduzia a toda a velocidade quatro negros. Num dado momento os negros transformavam-se em palhaços brancos, que se punham a brigar, e de súbito voltavam a ser de novo negros para mais tarde tornarem-se outra vez brancos. Por fim as quatro figuras se uniam, formando o corpo dum único negro de proporções gigantescas, o qual se recusava a pagar a passagem do ônibus. O condutor, enfurecido com isso, prendeu fogo na carruagem e o negrão ardeu e se extinguiu como um boneco de celulóide.

Eram os tempos da primeira infância do cinematógrafo em que não se faziam ainda filmes de enredo e sim pequenos relatos ou coleções de vistas naturais: a chegada dum trem; o Vesúvio em erupção; operários saindo duma fábrica... Havia também cenas de magia: o homem da cabeça de borracha, diabos que saltavam de dentro de relógios, pessoas que andavam com uma rapidez sobrehumana sobre os telhados... Vieram depois fábulas e histórias de fadas: o Chapelzinho Vermelho, o Pequeno Polegar, Jack, o matador de gigantes. Rodrigo jamais esquecera uma das cenas de A Gata Borralheira - aquela em que a abóbora se transforma na maravilhosa carruagem que levará Cinderela ao baile do príncipe.

Doze anos depois, como uma prova de que o cinema atingia a idade adulta, ele vira ali mesmo no Santa Cecília as versões cinematográficas dos Miseráveis, de Hugo, do Germinal, de Zola, e tivera também a satisfação de apreciar Sarah Bernhardt na Tosca A Dama das Camélias. Eram filmes vindos de Paris, pois em matéria de cinematógrafo, como em tudo o mais, a França estava sempre na vanguarda. Os italianos produziam também grandes filmes e eram especialmente inimitáveis em suas reconstituições da Roma do tempo dos césares. Rodrigo assistira emocionado à exibição de In hoc signo vincis, filme em que aparecia com um realismo impressionante a grande batalha entre as legiões de Constantino, o Grande, e as de Maxêncio. Outro sucesso da mesma época fora o Quo vadis, inspirado no romance de Sienkiewicz, com suas majestosas cenas do Coliseu de Roma, onde gladiadores e retiários se empenhavam em lutas de morte, e cristãos eram lançados às feras. Da Itália também vinham dramas da vida moderna, em sua maioria histórias escabrosas de amor, com cenas duma lubricidade tórrida. O público que ia às funções de cinematógrafo já começava a guardar na memória os nomes de seus atores e atrizes favoritos. Uma das vedettes mais apreciadas era Francesca Bertini, formosa e esbelta mulher de feições finas, ancas escorridas, olhos lânguidos sob pálpebras machucadas, e especialista em papéis dramáticos. Seus beijos duravam longos minutos e suas agonias (pois os romances daqueles filmes italianos terminavam quase sempre em morte) arrastavam-se longuíssimas ao som das valsas lentas batidas precariamente no piano pelo escrivão da coletoria. Havia outras belas fêmeas como a loura Hespéria que, para o gosto de Rodrigo, era demasiado corpulenta; a Pina Menichelli, de ancas venustas, lábios grossos, narinas palpitantes, mulher duma sensualidade avassaladora. A predileta de Rodrigo, porém, era Leda Gys, de cabelos e olhos escuros, mais franzina que suas colegas, e com algo de etrusco no rosto moreno. Quanto aos atores, Gustavo Serena fizera-se famoso no seu papel de Petrônio, o arbiter elegantiarum do Quo vadis. Emílio Ghione notabilizava-se em papéis de personagens do bas-fond, o apache cujos beijos não raro eram rematados por um golpe de punhal. Havia ainda Alberto Capozzi, de cara descarnada e dramática. E, talvez o maior de todos, Amleto Novelli, o trágico que o cinematógrafo trouxera do teatro.

Uma vez que outra - raros mas seletos - vinham os filmes da Nordisk, de Copenhague, cujo principal galã, W. Psilander, começava a inspirar paixões com sua figura alta e esbelta de gentleman sempre impecavelmente trajado. (Dizia-se que Mariquinhas Matos, a Gioconda, alimentava por ele uma paixão platónica e que até lhe escrevia cartas.)

As fábricas norte-americanas produziam filmes esportivos, histórias de aventuras vertiginosas em que pioneiros e cowboys andavam em correrias pelas planícies do Far West a caçar búfalos e índios peles-vermelhas. Exploravam também os batidos temas da Guerra Civil ou ingenuidades como as da Cabana do Pai Thomas. A Rodrigo aborrecia esses filmes que sempre terminavam bem, mercê dum enredo feito de coincidências absurdas, e que pareciam encerrar uma lição de moral, como as fábulas. Cheiravam a sermão de pastor protestante e não tinham o realismo e a paixão dos dramas da Cines, da Ambrosio e da Pascuali e muito menos o refinamento e o valor artístico das produções da Pathé, da Gaumont e da Eclair. Quando discutia o assunto, Rodrigo costumava dizer: -- É natural que assim seja. Os americanos do norte são anglo-saxões: ora, nós somos latinos e os filmes que nos vêm da França e da Itália falam mais diretamente aos nossos corações.

Nenhum brasileiro sensato e de bom gosto podia preferir as palhaçadas absurdas de Charlie Chaplin - aquela figurinha ridícula, de chapéu-coco, bigodinho mosca, casaco curto, calças largas e sapatões descomunais - às finas comédias de Max Linder, o perfeito cavalheiro, que sempre trajava fraque, calça a fantasia e chapéu alto, e que era a encarnação mesma do esprit francês. Como poderia o bulldog britânico superar em matéria de arte o Galo gaulês?

Quando a ouverture terminou, da galeria vieram risotas e ditos gaiatos em falsete, acompanhados dum simulacro de aplauso cortado de assobios. As orelhas do pianista ficaram vermelhas.

Apagou-se a luz, ouviu-se um ratatá metálico e cadenciado, um feixe luminoso irradiou-se da janelinha da cabina de projeção e clareou o pano branco. Quando o primeiro quadro apareceu - letras claras sobre um fundo negro -, o operador não havia conseguido ainda ajustar as lentes do projetor, de sorte que foi com dificuldade que Rodrigo leu - Jornal Gaumont. Salcede rompeu a tocar um dobrado. A primeira cena mostrava a chegada de M. Poincaré, na gare de Moscou, por ocasião de sua visita ao czar Nicolai II da Rússia. O quadro luminoso começou a tremelicar (os inimigos do cinematógrafo afirmavam que aquele pisca-pisca fazia um mal terrível aos olhos), a tremelicar com tamanha intensidade que as imagens ficaram pálidas e embaralhadas. Do galinheiro partiram assobios, gritos e sapateados. Por fim, quando o treme-treme cessou, o público pôde ver com relativa clareza o presidente Poincaré no momento em que, de cartola em punho, descia do trem e apertava a mão a cavalheiros de croisé e de uniforme militar. Rodrigo teve ímpetos de gritar: "Viva a França!" A projeção, porém, continuava enevoada e as figuras caminhavam e gesticulavam em movimentos rápidos e duros, como grotescos bonecos de mola. Na cena seguinte, M. Poincaré era visto no convés dum encouraçado russo, passando em revista a tripulação formada em sua honra. O terceiro quadro mostrava o Exército alemão em suas manobras de outono: um regimento a desfilar em passo de ganso. E quando o imperador da Alemanha apareceu numa cena fotografada a curta distância - o porte marcial, o peito coberto de medalhas, o agressivo capacete na cabeça altivamente erguida, as mãos pousadas sobre o copo da espada - todo o teatro prorrompeu numa vaia. Rodrigo, que também assobiava e batia pés, inclinou-se para o camarote dos Fagundes e gritou para o irmão Jacques: "Olha só o canalha". O mansta exclamou: Sale cochon!

A assuada cessou quando na cena seguinte apareceu um aeroplano a voar ao redor da Torre Eiffel. E o jornal terminou com uma corrida de bicicletas - o "Circuito de Paris".

A luz tornou a acender-se. Tia Vanja, risonha e de rosto afogueado, chupava com grande entusiasmo uma de suas balas de ovos. Estava num alvoroço meio nervoso: parecia uma criança solta numa loja de brinquedos.

O próximo filme era uma comédia - O casamento de Deed - em que o herói é perseguido por uma preta, que o obriga a casar-se com ela. O resultado da união é uma série de filhos com raias pretas e brancas, como zebras.

- Uma anedota infantil - murmurou Rodrigo para a mulher.

Achava ridículas todas as comédias de correrias em que André Deed recebia pastelões de nata em plena cara ou se punha a quebrar pratos e a virar cambalhotas como um saltimbanco. Mas o povo, que adorava aquelas palhaçadas, ria tanto e tão alto que suas vozes abafavam os sons das mazurcas, polcas, tangos e habaneras que o pianista tocava distraído, com os olhos erguidos para a tela e também sacudido de riso.

A segunda comédia da noite - Bigodinho e o formigueiro - apresentava o famoso M. Prince, ator do Odéon e do Variétés de Paris, numa excursão ao campo com a namorada. No momento em que está a fazer-lhe uma declaração de amor, tem a infelicidade de sentar-se sobre um formigueiro, e quando as formigas começam a entrar-lhe pelo canhão das calças, pelas mangas do casaco e a correr-lhe pelo corpo, fica tão desesperado, que se põe a tirar a roupa. Umas solteironas pudicas que passam na ocasião, ficam escandalizadas e chamam um gendarme, que leva Bigodinho para a cadeia. Por uma feliz coincidência, a namorada do herói é uma advogada e consegue livrá-lo da polícia.

Quando a luz se acendeu, Rodrigo voltou-se para o marista e meneou lentamente a cabeça ao mesmo tempo que fazia uma careta. Queria que o outro visse que ele não apreciava aquelas infantilidades.

Olhou depois para o camarote dos Amarais e avistou Emerenciana ainda sacudida de riso, os seios arfantes, a mão sobre o coração, a cara congestionada.

- Ai, meu Deus! - exclamou tia Vanja. - Agora vem o rico draminha. Já vou me preparar para o choro...

Pôs-se a procurar na bolsa de croché o lencinho rendado, recendente a patchuli.

A luz tornou a apagar-se. Apareceram nos primeiros quadros o título do drama e os nomes dos intérpretes.

- A Asta Nielsen é uma beleza - murmurou Flora ao ouvido de Rodrigo, que lhe acariciava a mão.

- Mas eu gosto é de ti, meu bem.

O escriturário da Coletoria começou a tocar uma valsa lenta. E quando Asta Nielsen apareceu na tela, muito loura e fina, alguém gritou em falsete no galinheiro: "Mamãe quero queijo!"

Tia Vanja ficou indignada:

- Que falta de respeito. Logo na hora do drama.

De súbito ouviu-se um baque surdo seguido dum grito de mulher. Vozes altearam-se, confusas e aflitas. Algumas pessoas ergueram-se na platéia e o pânico começou com exclamações e atropelos. - Luz! - gritou Cacique, pondo-se de pé. Outras vozes repetiram: "Luz! Luz! Luz!" Quando o recinto de novo se iluminou, Rodrigo viu uma aglomeração no camarote dos Amarais e teve logo a intuição do que acontecera. Precipitou-se para lá, correndo, quando já alguém gritava: "Dr. Rodrigo! Ligeiro, pelo amor de Deus!" Abriu caminho por meio da multidão. "Por favor, me deixem passar!"

Dona Emerenciana achava-se estendida no chão, de costas, a boca entreaberta, os olhos vidrados. O marido, num desespero, sacudiu-a pelos ombros, gritando-lhe o nome com voz engasgada. As meninas estavam em pranto. Rodrigo afastou Alvarino, ajoelhou-se ao pé da amiga e não levou muito tempo para verificar que ela não tinha mais pulso e que seu coração cessara de bater. Acendeu um fósforo e aproximou-o dos olhos da matrona: as pupilas estavam dilatadas e não reagiam à luz.

Não tinha mais nada a fazer.

Quando, havia pouco menos dum ano, Emerenciana Amaral caíra gravemente enferma, tendo sido desenganada pelos médicos reunidos em conferência ao pé de seu leito - Zé Pitombo apressara-se a fazer um fino caixão nas dimensões da matrona, com galões dourados e belas alças de metal prateado. Como, porém, a doente tivesse conseguido salvar-se, "Graças a Deus no céu e ao dr. Rodrigo na terra", o armador encolhera os ombros filosoficamente, murmurando - segundo o testemunho do Cuca Lopes - "Não morreu? Paciência. Seu dia chegará. A morte é a única coisa certa que há na vida".

Guardou o esquife. E foi dentro dele que depositaram dona Emerenciana naquele sábado de abril, às dez e vinte da noite, na sala de visitas do casarão dos Amarais. O próprio Pitombo acendeu os círios com lágrimas nos olhos. Chiru Mena, que o observava, murmurou para Rodrigo, mal contendo a indignação: "Hipócrita! É capaz de cobrar também essas lágrimas de crocodilo quando mandar a conta do enterro".

As caras compungidas, o olhar velado, parentes, amigos e até desafetos dos Amarais entravam na ponta dos pés na casa mortuária, iam direito aos quartos, abraçavam os membros da família, aproximavam-se depois do esquife, contemplavam o cadáver por breves momentos e, isso feito, ficavam pelos corredores e cantos, a pontuar a quietude do velório com murmúrios, cochichos, pigarros, suspiros e tosses, afundando num silêncio contrafeito e cabisbaixo toda a vez que as filhas da defunta rompiam em acessos de choro ou exclamações de dor.

Rodrigo andava de quarto em quarto, a atender a gente da casa, a ministrar calmantes às mulheres e abraços e palavras de conforto aos homens. Aturdido pelo golpe, Alvarino Amaral estava deitado na cama do casal, os olhos secos e exorbitados fitos no teto, o peito sacudido por soluços convulsivos. Deixava-se abraçar passivamente, e quando alguém tentava consolá-lo, o mais que conseguia articular era: "Que barbaridade... que barbaridade..."

Quando se ouviram as badaladas da meia-noite, Rodrigo teve a impressão de que o velho relógio do casario batia-lhe no peito, ecoando doloridamente nas paredes do crânio. Ah, como ele detestava todo aquele cerimonial da morte: seus aspectos, cheiros, gestos, convenções... Queria achá-lo ridículo, antiquado, medieval, mas na realidade a coisa toda o comovia e ao mesmo tempo atemorizava. Havia pouco desmanchara-se em pranto ao ver a mais moça das filhas de dona Emerenciana a rolar em cima da cama, gritando num desespero: "Mãezinha, não me deixe, por amor de Deus, não vá embora!" Estava deprimido, com um aperto no coração, o corpo quebrado por uma sensação de frio que não era apenas da epiderme, mas também das entranhas, dos ossos. Desejava que um novo dia raiasse, o sol tornasse a brilhar, a morta fosse sepultada e a vida retomasse o passo normal. Aquele cheiro de cera derretida que impregnava o ambiente, mesclado com a fragância das flores, levava-o de volta a outro velório, numa noite de 1898, e ele tornava a sentir com esquisita pungência sua tristeza pela perda da mãe e ao mesmo tempo o seu horror ao imaginar que ela ia ser fechada para sempre no mausoléu da família - ela, tão frágil, tão meiga, tão triste... Os senhores de preto iam levá-la para o cemitério... Ah! Mas o culpado de tudo era o velho Pitombo, o desenterrador de defuntos, aquele homem hediondo que estava encolhido num canto da sala, esperando a hora de fechar o caixão. E o pior é que iam fazer aquilo com a cumplicidade de seu pai, que chorava mas não dizia nada, ia permitir que levassem para sempre a sua mulher... Como ele odiara o pai naquela noite!

Rodrigo entrou na câmara ardente. Envolta numa mortalha negra, Emerenciana Pereira do Amaral jazia no seu esquife, coberta de flores até o peito. As chamas dos círios lançavam-lhe móveis reflexos rosados no rosto de cera, acentuando-lhe as sombras. Por alguns instantes o único som que se ouviu ali na sala foi o da voz cavernosa de Sérgio, o lobisomem, que rezava com um rosário nas mãos, ao pé do ataúde.

Ao redor da defunta, a acotovelarem-se com o intendente de Santa Fé, com o juiz de comarca, o coletor federal, o promotor público e membros das famílias Macedo, Prates, Teixeira e Fagundes, estavam os negros e negras da cozinha do casarão, muitos dos quais eram filhos, netos e bisnetos de escravos. Entre eles viam-se mulatos e caboclos em cujos rostos se percebiam nitidamente traços da família Amaral. O peito convulsionado de soluços, chorando e fungando, uma negrinha de onze anos, que Rodrigo muitas vezes encontrara a fazer cafuné em dona Emerenciana, agarrava as bordas do caixão com as mãos pretuscas, o rosto contorcido numa expressão de dor, as faces lavadas de lágrimas, e na ponta dos pés esforçava-se por ver o rosto da defunta.

Rodrigo sentiu que lhe seguravam o braço. Voltou a cabeça e viu tia Vanja, que se aconchegou a ele, com o lenço no nariz, os olhos úmidos.

- Que calamidade, meu filho... - murmurou ela, olhando para o caixão. E com doçura, quase a sorrir, acrescentou: - Coitadinha da Emerenciana, não vai poder ler o fim da Toutinegra do moinho...

Rodrigo sorriu mas não pôde evitar que as lágrimas lhe viesse aos olhos. Bateu de leve na mão da amiga numa carícia em silêncios.

Gente continuava a chegar. Salomão, o alfaiate, todo vestido de preto, depôs um ramo de violetas sobre o cadáver. O dr. Matias aproximou-se do rosto da morta, como se fosse dizer-lhe algum segredo, enxugou disfarçadamente uma lágrima e depois tirou um chumaço de fumo da bolsa de borracha e pôs-se a enrolar um cigarro. Liroca saiu do seu canto e acercou-se de Rodrigo.

- Um federalista dos quatro costados. Gente antiga, de boa cepa. - Deixou escapar um suspiro. - Mundo velho sem porteira!

Pouco depois entrou o dr. Cario Carbone. Ajoelhou-se ao pé do ataúde, trançou as mãos, abaixou a cabeça, cerrou os olhos e ficou a rezar por alguns instantes. Ergueu-se, fazendo o sinal-da-cruz e, ao avistar Rodrigo, soltou um ah! musical e encaminhou-se para ele.

Uma laparotomia fortunatíssima! Terminei faz poucos minutos. O paciente é de Garibaldina, um bravo jovem. Sabe onde está agora a Santuzza? Lavando o chão da sala de operações. Guarda que gerenta!

Lançou um olhar para a morta.

Mas que catástrofe! Uma dama virtuosíssima. Uma vera catástrofe!

Saiu na pontinha dos pés na direção do quarto do casal.

As duas da madrugada a maioria das pessoas havia já deixado a casa dos Amarais. Ficaram apenas os que estavam dispostos a fazer a vigília da noite; Não eram nem 40 os parentes e amigos mais chegados da família como também os "aficionados" de velório, gente que tinha certo prazer em passar a noite em claro ao pé dum defunto e que para isso dispunha por assim dizer duma técnica especial.

A atmosfera do casarão como que se desanuviou. Cuca Lopes tomou o comando do velório, formou uma roda na sala de jantar e começou a contar histórias. Algum tempo depois foi à cozinha sugerir que servissem nova rodada de café bem forte, insinuando também que já era hora de obsequiar os presentes com algo de sólido.

Chiru Mena organizou no escritório de Alvarino uma roda de truco que aos poucos se foi animando de tal modo, que em breve os parceiros pareciam esquecidos do lugar e das circunstâncias em que se encontravam. Houve um instante em que o vozeirão de Chiru encheu jovialmente a casa, anunciando que "tinha flor":

Dona Manuela Contrera A su hijo Manuel escribe, Mandando decir que vive Como flor en la tapera.

Rodrigo apareceu à porta do escritório e fez chi!

Na cozinha começou o terço, puxado pelo negro Sérgio: e o coro roufenho invadiu a casa, doloroso, arrastado, funéreo. Os jogadores de truco aplacaram-se. O choro recomeçou nos quartos. Eram coisas como aquela - refletiu Rodrigo - que tornavam a morte ainda pior e mais negra do que era...

De mistura com as vozes dos negros começou a vir da cozinha um cheiro de frituras. Esfregando as mãos, Cuca Lopes saiu a comunicar aos presentes que estavam fritando os famosos sonhos de dona Emerenciana, preparados segundo uma receita antiquíssima que passara de mãe para filha, através de muitas gerações.

Rodrigo achava bárbaro comer na presença dum cadáver. O cheiro de fritura misturado com o de vela queimada e flor era-lhe ofensivo à sensibilidade. Teve um súbito desejo de ar livre. Segurou o braço do padre Astolfo, que até então andara de Amaral em Amaral tentando convencê-los de que a morte não era o Fim mas o Princípio:

- Vamos tomar um pouco de ar lá fora, padre.

Caíram, atravessaram a rua, ganharam a calçada da praça, sobre a qual ficaram a andar lentamente. O ar da madrugada estava picante. Não havia lua, mas as estrelas cintilavam no céu dum azul fosco de tinta de escrever. Cachorros latiam em ruas longínquas e um que outro galo amiudava.

Ambos acenderam os cigarros em silêncio e, sempre calados, continuaram a andar e a pitar. Ao passarem pela frente da igreja, Rodrigo falou.

- Padre, estive olhando para aquela gente amontoada em roda do caixão de dona Emerenciana e pensando umas coisas engraçadas...

O vigário continuou calado, com o cigarro preso entre os lábios, as mãos às costas, esperando que o outro continuasse.

- Negros descendentes de escravos, mulatos, índios, caboclos... Gente miserável do Barro Preto e do Purgatório, pobres-diabos descalços, molambentos e cheirando mal... E também fazendeiros ricos, com boas roupas e boas botas... E tipos como o Lunardi e o Spielvogel, cujos antepassados nasceram na Europa, em terras distantes. Pois bem. Comecei então a perguntar a mim mesmo se essa coisa que se chama vida tem um sentido, uma finalidade, ou se todos nós não passamos de simples fantoches nas mãos dum manipulador que se diverte à nossa custa.

O padre sorriu mas não disse nada. Passavam agora pela frente da Intendência, em cuja cúpula estava pousada uma ave noturna.

- Às vezes - prosseguiu Rodrigo - tenho a impressão de que Deus, o movedor inamovível, é um jogador de xadrez e nós somos as pedras. Uns poucos reis, rainhas, bispos e torres, mas uma infinidade de pobres peões. Ele joga apenas para se distrair e, a fim de tornar o espetáculo mais divertido, dá-nos a ilusão de que nós é que nos movemos por vontade própria... Agora! Nossa tendência é acreditar que Ele nos move com algum propósito certo e que o jogo todo tem um grande sentido.

O padre deu um puxão na própria orelha. Dirigiram-se ambos para a figueira, e só depois de se haverem sentado no banco, sob a grande árvore, é que o sacerdote tomou a palavra:

- A imagem não deixa de ser curiosa, mas não é exata. A coisa toda é séria demais para se lhe dar o nome de jogo. Está claro que Deus tem um propósito com relação ao mundo e às suas criaturas. E não devemos esquecer que as pedras do xadrez têm vontade própria, um intelecto que as capacita a escolher entre o bem e o mal. Enfim, se o amigo quiser insistir em usar a imagem do jogo de xadrez, poderemos dizer que as regras do Grande Jogo estão contidas nos ensinamentos da Santa Madre Igreja, e quem as seguir ganhará na certa...

Rodrigo olhou na direção da casa dos Amarais.

- Vou lhe contar uma coisa, padre, que lhe dará uma idéia de como sou preso aos prazeres deste mundo, por menores que sejam. Tia Vanja me disse lá no velório que foi uma pena dona Emerenciana morrer sem ter visto o final do folhetim do Correio do Povo. Acho que a velhinha não disse nenhuma tolice. Viver é bom por causa duma série de coisas grandes e pequenas entre as quais está também a de ler a Toutinegra do moinho. A idéia da morte me é tão desagradável que nem a certeza de ganhar o céu me faria encará-la com menos horror.

- E o senhor já pensou alguma vez na morte... quero dizer, a sério, como uma coisa que lhe pode acontecer a qualquer momento, amanhã, depois... agora?

- Não. Para falar a verdade, tenho a impressão de que morrer é coisa que não pode acontecer a mim, Rodrigo Cambará.

- Espere a casa dos quarenta... - murmurou o padre, atirando longe o cigarro.

- Por que diz isso, se ainda não chegou aos trinta e quatro?

- Falo com a experiência alheia. Ao chegar aos quarenta o homem torna-se inquieto, faz a si mesmo perguntas ansiosas, reexamina os seus valores morais. É a fase da vida em que começa a pensar na velhice que se aproxima e conseqüentemente na morte e em Deus...

Rodrigo sorriu.

- Sempre ouvi dizer que na casa dos quarenta os homens perdem a cabeça e saem a correr atrás das mulheres. É que, voltando-se pra trás, ficam assombrados por verem o tempo que perderam e, olhando para a frente, compreendem que têm poucos anos de vigor viril, e toca a aproveitar enquanto podem.

- Exatamente. Esse é o caso da estúpida maioria. Entre o tempo e a eternidade escolhem o tempo, que lhes parece mais próximo e certo, e atiram-se aos prazeres carnais. Mais tarde, velhos e doentes, quando o corpo de nada mais lhes vale, eles o hipotecam à Igreja, procurando trocar uma carcaça perecível pelo tesouro da vida eterna. Muitos deixam o arrependimento para última hora. Pensam assim: Deus deve ser um bom sujeito, um papai bonachão sempre disposto a perdoar. Mas, quando menos esperam, o Anjo da Morte se interpõe entre eles e o sol... e adeus! Aí é tarde demais. Rodrigo olhava para as janelas iluminadas do casarão dos Amarais, arrependido já de ter provocado aquele assunto. O sacerdote, entretanto, prosseguiu:

- Às vezes a sombra do Anjo se projeta no nosso caminho, e nós nos recusamos a compreender o aviso, dizemos que é apenas uma nuvem que cobriu o sol, e continuamos a andar, esquecidos de Deus.

Rodrigo pôs-se assobiar baixinho, como se não estivesse escutando o que o outro dizia.

Um bólide riscou o céu. Chegavam ainda até eles as vozes dos negros, que continuavam no terço.

- Lembra-se da doença que quase matou dona Emerenciana há coisa dum ano? - perguntou o vigário. - Depois disso ela se preparou para morrer. Confessava-se e comungava todas as semanas. Esta noite, ao erguer os olhos para a face do Anjo, sua alma estava limpa de pecados.

Houve uma curta pausa. Rodrigo procurou desconversar:

- O dr. Carbone me disse que fez hoje uma "laparotomia fortunatíssima". - Soltou uma risada falsa. - Laparotomia... Não acha que essa palavra foi feita especialmente para ser pronunciada pelo italiano com aquela bela voz de queijo derretido e massa, temperada de manjerona e nadando em óleo de oliva?

A mão do padre pousou leve no ombro de Rodrigo.

- Há muito que estou para lhe falar neste assunto, mas não tenho encontrado oportunidade. Acho que a hora é propícia. Por amor de Deus, não se ofenda nem me julgue um intrometido. Afinal de contas, além de ser um sacerdote, sou também seu amigo e admirador...

Levantou-se num movimento brusco e começou a puxar furiosamente o lóbulo da orelha: um ginasiano perplexo diante dum problema de matemática.

- Sua vida tem sido até agora um rosário de triunfos, uma estrada atapetada de rosas e batida de sol. Mas não pense que isso vai durar sempre. Ora, se um dia vai ter de fazer uma revisão completa de valores e procurar o amparo da Igreja, por que não começa agora? Olhe, é melhor, é mais fácil...

Rodrigo pensava no rosto de cera da defunta. Imaginou-se a si mesmo dentro dum esquife, coberto de flores. Vou pedir a Flora - decidiu - que quando eu morrer não deixe ninguém ver meu rosto. Botem um lenço em cima. Ou fechem logo o caixão e não o abram mais.

- Está claro - continuou o sacerdote - que no púlpito, falando para essa gente de poucas letras, tenho de simplificar os problemas da alma, da fé e da vida eterna, falar em céu e inferno, em castigo e recompensa. O povo é criança. Mas a coisa toda não é tão simples assim. Olhe, leia os pensamentos de Pascal. Vou lhe emprestar o meu exemplar...

Calou-se. Rodrigo acendeu outro cigarro. O terço havia cessado. Agora as únicas vozes da noite eram o trilar dos grilos e um que outro cantar de galo. Astolfo começou a andar dum lado para outro, dentro da zona de sombra que a figueira projetava no chão. De repente parou diante do amigo e segurou-lhe os ombros com ambas as mãos.

- Deus é uma coisa muito séria, meu querido amigo, muito séria!

Rodrigo encolheu-se todo, num súbito calafrio. Levantou-se.

- Estou ficando gelado, padre. Deve ser o ar da madrugada... Vamos até o Sobrado, tomar um traguinho de conhaque.

IV

Durante as últimas semanas de abril, Rodrigo acompanhou com apaixonado interesse, através dos jornais, o desenvolvimento da batalha de Ypres, e quando um telegrama urgente anunciou ao mundo que os alemães haviam empregado nuvens de gases asfixiantes contra tropas canadenses e argelinas, sua indignação foi tamanha, que ele teve ímpetos de sair para a rua e quebrar a cara do primeiro alemão que encontrasse. Precipitou-se para o telefone, pediu o número do quartel do regimento de infantaria, chamou o coronel Jairo e, depois de pô-lo ao corrente do monstruoso acontecimento, comentou:

- É o cúmulo da barbárie. Gases asfixiantes! Dizem os telegramas que a tortura física produzida por essas nuvens é dantesca. Os soldados caem sufocados, alguns até vomitando pedaços dos pulmões... uma coisa medonha!

Da outra extremidade do fio o positivista soltava também exclamações de horror.

- Venha logo de noite ao Sobrado, coronel. Preciso desabafar com alguém, senão rebento. Olhe, até estimo que o Rubim já tenha ido embora, porque se nos encontrássemos hoje e ele quisesse justificar mais esse banditismo dos boches, acho que eu perdia a paciência e a coisa acabava em briga!

Por aqueles dias chegavam também notícias da campanha submarina em que os alemães, sem aviso prévio, punham a pique navios mercantes e de passageiros não só das nações inimigas como também das neutras. No princípio de maio os jornais trouxeram um comunicado revoltante: um submarino alemão torpedeara em águas da Irlanda o transatlântico Lusitânia, causando a morte de 1153 passageiros! Ao ler a notícia, Rodrigo ficou tomado duma fúria indignada: deixou o Sobrado de bengala em punho, disse um mundo de desaforos ao Otto Spielvogel, que encontrou a soltar gargalhadas à frente da Casa Schultz, e ameaçou:

- Bandidos! Vocês todos deviam ser capados para acabar com essa raça maldita. Enquanto existir um alemão na face da terra a humanidade não poderá viver em paz.

Espantado, Spielvogel não reagiu: recuou na direção da parede da casa, limitando-se a murmurar: "Mas doutor... mas doutor...

A cena atraíra curiosos, o que deixou Rodrigo ainda mais exaltado. Vendo na vitrina da loja do Schultz uma tricromia do Kaiser, não se conteve: ergueu a bengala e fê-la descer com toda a força contra o vidro, partindo-o. E para o dono da casa, que apareceu à porta no momento em que ele arrebatava o retrato da vitrina e rasgava-o em muitos pedaços, vociferou:

- Não me exponha mais a cara desse bandido, ó Schultz, senão eu mando prender fogo nesta pocilga, estás ouvindo, lambote?

Dito isto, fez meia-volta, deu alguns passos, e, sem olhar para trás gritou: "Me mande a conta dos prejuízos, que eu pago". E, vermelho, o ritmo da respiração alterado, as narinas dilatadas, um formigueiro no corpo todo, caminhou uma quadra inteira com passo duro. Ao chegar à praça tinha-se-lhe arrefecido um pouco a fúria e ele começava quase a envergonhar-se do papelão que fizera diante de tanta gente. Mas, que diabo! o que me corre nas veias é sangue e não limonada. Alguém tem de jogar bruto com esses boches, senão amanhã eles querem tomar conta do Brasil. O que fiz está muito bem-feito. Então, já se viu? Torpedearem um navio de passageiros sem aviso prévio... Quase mil e duzentos mortos, diz o jornal. Mulheres, crianças, velhos... O maior crime da História! Uma vergonha para a raça humana!

Quando, dias depois, Flora o convidou para irem ao teatro assistir ao espetáculo da Philharmonische Familie, uma família de músicos austríacos que percorria a América do Sul dando concertos, Rodrigo replicou:

- Não vou. Não quero saber de nada com esses boches. Flora olhou para Maria Valéria, que encolheu os ombros como quem diz: "Que é que vou fazer?"

- Mas Rodrigo...

- Não tem funfum nem fole de ferreiro - replicou ele, fazendo um gesto cortante para encerrar a discussão. - Guerra é guerra. A Áustria-Hungria é aliada da Alemanha. Se a população de Santa Fé tivesse um pingo de vergonha na cara, ninguém ia ao espetáculo e essa alemoada morria de fome!

- Está bem - disse Flora, entre amuada e irônica. - Está bem. Não precisas brigar comigo. Sou brasileira puro-sangue.

Caindo em si, Rodrigo enlaçou a cintura da esposa e beijou-lhe os cabelos.

- Eu sei que tu e a madrinha acham que sou um exagerado, um apaixonado. Mas não é... Nessa guerra da civilização contra a barbárie, não pode haver dois pesos e duas medidas.

- Mas tu precisas compreender que essa pobre gente nem estava na Áustria quando a guerra rebentou...

- Se quiseres, podes ir, meu bem. Convida a Dinda e a tia Vanja... Porque eu não vou.

Flora deixou escapar mansamente um suspiro, sorriu e replicou que não iria, porque afinal de contas a coisa toda não tinha nenhuma importância.

Quando Rodrigo deixou a sala, Maria Valéria tranqüilizou a outra:

- Não faça caso do que ele disse. Aposto como amanhã ele bota esses burlantins pra dentro de casa.

No dia seguinte a Família Filarmônica era o assunto obrigatório em quase todas as rodas de Santa Fé. O teatro estivera completamente cheio na primeira noite e o espetáculo fora um sucesso. Os espectadores afirmavam com unanimidade que, além de músicos consumados, os austríacos eram pessoalmente simpaticíssimos. Herr Weber tocava violino, clarineta e flauta. Frau Weber, piano e órgão. O jovem Wolfgang, além de admirável tocador de cordeona, era um prodígio no xilofone. E os moços da terra estavam positivamente entusiasmados ante a beleza e a graça de Fraulein Weber, que tocava violoncelo e oboé.

Pela manhã, ao sair para o consultório, Rodrigo já começou a ouvir elogios à Philharmonische Familie. O primeiro partiu do Pitombo, que, ao avistá-lo, atravessou a rua e veio dizer-lhe com os olhos pegajosos de emoção:

- Que beleza, doutor! Que coisa sublime! Nunca vi orquestra melhor em toda a minha vida. Quando fechei os olhos na platéia, tive a impressão que estava no reino dos céus, escutando os anjos. É bem como diz o poeta, a música é o idioma dos deuses.

Cuca Lopes atacou-o à entrada da farmácia. Já sabia coisas sobre os Weber. Eram naturais de Viena, vinham percorrendo o Brasil desde Belém do Pará e estavam a caminho do Prata. Achavam-se hospedados no Hotel dos Viajantes e davam-se mal com a comida. Dizia-se que o velho sofria do estômago e só se alimentava de leite e frutas. A Frau, ah! essa gostava de cerveja e era muito alegre. O rapaz tinha um jeito suspeito, meio adamado. A moça era linda como uma estampa, e os machos da terra já andavam assanhados.

Rodrigo não lhe disse palavra. Continuava no seu boicote psicológico à família austríaca, embora sem nenhum rancor.

Na farmácia, o Gabriel contou-lhe que estivera no teatro e que chorara ao ouvir a Serenata de Schubert tocada pela mocinha.

Rodrigo entrou no consultório, sentou-se à mesa e dali ficou a olhar, através da janela aberta, um trecho da praça. Andava no ar parado esse olor seco e matinal de bruma tocada de sol. O chão sob os plátanos estava juncado de folhas amarelentas. Lês sanglots longs dos violam, lê L'nutomne... Não. Estava errado. O instrumento cuja voz mais sugeria o outono era o violoncelo. Tinha mais profundidade que o violino, um acento mais humano, uma tristeza serena e digna que tão bem se casava com a languidez da atmosfera e com sua luz de âmbar. Aqueles dias de maio pareciam encher as criaturas duma dormência gostosa que as predispunha à paciência, a uma certa ternura meio sonolenta e esquisitamente melancólica. Eram manhãs e tardes em que - mistura de ouro e violeta - pairava no ar uma névoa que parecia amortecer todos os sons e acalentar todos os desejos, de sorte que a gente ficava com a impressão de andar física e espiritualmente envolta em paina. Era como ele, Rodrigo, se sentia agora: com o espírito acolchoado em paina; nenhum atrito de idéias, nenhum conflito interior ou exterior. Abriu a boca nurn bocejo cantado. Com uma tênue sombra de aborrecimento pensou nos clientes que teria de atender dentro em breve - malcheirosos, tristes e duma fealdade encardida e vil. Ouviu uma batida à porta, que se entreabriu devagarinho. A cabeça do dr. Cario Carbone apontou na fresta.

- Se pode?

- Ah! Entre, doutor.

O cirurgião entrou, com o avental branco todo manchado de sangue. Acabava de sair da sala de operações e trazia nas mãos uma cubeta.

Rodrigo ergueu-se e caminhou para o colega.

- Que é que traz aí?

- Uma vera beleza. Guarda.

Mostrou-lhe a cubeta dentro da qual um rim humano boiava num líquido viscoso laivado de sangue.

- Opa! - exclamou Rodrigo, franzindo o nariz e a testa.

- Donde saiu isso?

- Dum colono de Nova Pomerânia. Um tumor. O paciente é morto.

E mostrava com o dedo "lê belle ramificazioni". Sorria. Dava a impressão dum ogre que trazia nas roupas o sangue ainda quente da criança que acabara de devorar.

- Mas o senhor entrou aqui só pra me mostrar esse rim?...

- sorriu Rodrigo. - O doutor sabe que não preciso de aperitivos...

- Ah! - fez o outro, dando uma palmada na testa. Depôs a cubeta sobre o bureau, pegou o telefone, deu-lhe manivela, pediu ao centro um número e, enquanto se fazia a ligação, ele olhava para o amigo com uma expressão diabólica.

- Pronto! Sei tu, Santuzza, guarda, carina, me fai a colazione rognoni alia griglia, capito? Eh! Ma no! Tutto bene. A mezzogiorno. Tanti baci. Ciao!

Carbone largou o telefone, tornou a apanhar a cubeta e acercou-se de Rodrigo, que recuou um passo.

- Por que não foi ao teatro ontem?

- Ora, acontece que...

O italiano não esperou a explicação:

- Um espetáculo divino! - cantarolou.

E derramou-se em elogios à Família Filarmónica. Fazia muito que não ouvia tão boa música nem via tão brava gente. Herr Weber parecera-lhe um gran maestro, Frau Weber, um contralto de la piü pura scuola e la ragazza - aqui o cirurgião estralou os lábios num simulacro de beijo - ah, la Fràuleiji tinha um rosto belíssimo que lembrava o das madonas de Botticelli.

Rodrigo, porém, relutava em deixar-se seduzir.

- As madonas de Botticelli não são o meu género.

- Mas a música, carino, a música!

- Prefiro a do meu gramofone.

Carbone aproximou perigosamente a cubeta do peito de Rodrigo, que deu mais um passo à retaguarda;

- O gramofone? - exclamou o operador. - Aquilo não passa de música em conserva, ao passo que a dos Weber era palpitante, viva, tinha o calor da presença física dos artistas que a produziam.

Rodrigo tornou a sentar-se, para colocar o bureau entre si e aquele repugnante rim humano.

- Pra lhe falar com toda a sinceridade, resolvi não tomar conhecimento dessa família - explicou sem muita convicção.

Estou revoltado com o torpedeamento do Lusitânia e com todos os outros crimes que os alemães estão cometendo nesta guerra. Afinal de contas os Weber são austríacos, aliados do Kaiser.

Carbone sorriu, e quando seus lábios vermelhos se abriram, pondo à mostra os dentes miúdos e as gengivas rosadas, Rodrigo teve a impressão de ver partir-se uma romã madura.

- Mas a arte não tem pátria, carino, a arte é universal e eterna!

O outro sacudia a cabeça, numa fraca negativa. Começava já a sentir uma certa curiosidade por aquela família vienense que os ventos do destino haviam soprado para Santa Fé. Depois, como era possível odiar alguém ou alguma coisa num dia de maio?

Cario Carbone continuava a falar, e sua voz melodiosa enchia o consultório. Rodrigo odiava a Alemanha? Pois quebrasse então todas as chapas que continham composições de Beethoven e Schubert, queimasse todos os livros de Goethe, Schiller, Heine...

Rodrigo quis ainda replicar, mas Carbone deteve-o com um gesto e entrou a cantar em surdina uma das canções de Schubert que Frau Weber interpretara na véspera. Rodrigo contemplava aquele homúnculo de roupas ensangüentadas a cantar em alemão - língua que nada tinha a ver com sua voz quente, redonda e doce - enquanto suas mãos apertavam a cubeta, e uma lágrima lhe brotava no canto do olho e rolava pela face. Quando ele se calou, Rodrigo disse:

- Estou desconfiado de que o senhor é empresário dos Weber e o que quer é me vender um camarote...

- Mas não! - exclamou o italiano, tirando do bolso e jogando sobre a mesa um papelucho cor-de-rosa. - Tenho este camarote para hoje e requesto ao sígnore dr. Rodrigo e sua signora o prazer e o honor da vossa companhia esta será...

A primeira parte do programa da Família Filarmónica naquele segundo espetáculo foi dedicada a canções folclóricas do Tirol e da Baviera. Rodrigo ficou vagamente irritado ao ver ali na plateia do Santa Cecília o rubicundo entusiasmo dos alemães e teuto-brasileiros, que não só apreciavam as melodias como também, por entenderem a letra das canções, soltavam grandes risadas às suas passagens humorísticas, e, ao fim de cada uma rompiam em aplausos ruidosos, quase sempre pedindo bis. A verdade era que desde o primeiro número se estabelecera uma tão forte corrente de simpatia entre os artistas e o público, que Rodrigo teve a sensação de que a própria atmosfera física do teatro se aquecera e de que os Weber não se encontravam num palco e sim numa das salas de sua residência, em Viena, no início dum tranqüilo serão musical.

Herr Weber era um homem de estatura mediana, basta cabeleira alourada, olhos muito claros e um jeito distraído e abandonado de professor. Ao erguer-se o pano, entrara no palco bisonho e desajeitado e Rodrigo tivera a impressão de que o homem não sabia que fazer com as mãos. Frau Weber, porém, pareceu mais à vontade diante do público. Baixinha, bem fornida, seguira o marido em passadas decididas, quase marciais, e, quando os aplausos começaram, seu sorriso se alargara, pondo-lhe à mostra os belos dentes brancos e parelhos, e seus olhos pareceram ganhar mais fulgor, ao mesmo tempo que uma vermelhidão lhe cobria as faces, as orelhas e o pescoço. O jovem Wolfgang, vestido dum modo demasiadamente infantil para seus presumíveis dezoito anos, fizera uma curvatura rápida e rígida de autômato e depois quedara-se, sério e imóvel, os olhos postos num ponto indefinível do espaço, à espera de que os aplausos cessassem. A atenção de Rodrigo, porém, desde logo se concentrara em Toni Weber, que estava vestida de branco e trazia laçarotes de fita azul nas pontas das tranças - o que lhe dava um ar comovedor de colegial.

O dr. Carbone estava enganado. A Frãulein não tinha a cara rechonchuda das madonas de Botticelli cujas bocas em geral pareciam estúpidos botões de rosa. Sua face era dum perfeito oval e os olhos claros duma tonalidade que Rodrigo de longe não podia discernir. Entretanto, o que mais o fascinava naquele rosto emoldurado por cabelos castanhos com reflexos de bronze, eram os zigomas levemente salientes e a boca rasgada de lábios polpudos e sugestivos.

- Guarda que maravilha! - murmurou o dr. Carbone.

- A menina é uma belezinha... - sussurrou Flora, voltando a cabeça para o marido.

- Não é feia... - respondeu este, com fingida indiferença. Na segunda parte os Weber evocaram a Viena da opereta, tocando valsas e pot-pourris, com um gosto e uma alegria contagiantes. Quando o jovem Wolfgang interpretou ao xilofone alguns trechos de Offenbach e Strauss, acompanhado pela mãe ao piano e pelo pai ao contrabaixo, o público aplaudiu freneticamente e um dos Spielvogel chegou a erguer-se na platéia para gritar bis. Rodrigo também aplaudiu. Já naquela altura do concerto não só se declarava vencido e convencido como também enternecido por aquela esplêndida família de músicos.

Durante o segundo intervalo, o dr. Carbone trouxe o padre Astolfo da platéia para o camarote. Inclinada sobre Flora, Santuzza deixava transbordar sobre ela todo o seu entusiasmo e fazia planos de convidar os artistas para uma macarronada em sua casa. E o sacerdote, que também estava encantado com o espetáculo, contou que havia sido procurado naquele dia pelos Weber.

- São católicos! - revelou com alegria. - Vão à missa e comungam!

Os olhos do dr. Carbone estavam empapados de ternura. Rodrigo queria saber mais coisas sobre a vida dos austríacos.

O padre contou que o filho mais velho do casal estava na guerra e que, numa localidade de São Paulo, durante um espetáculo da Família, um grupo de aliadófilos provocara uma tremenda vaia, chegando ao ponto de atirar nos Weber ovos podres e tomates.

- Canalhas! - exclamou Rodrigo, indignado. - Onde está a nossa tradição de hospitalidade? Que idéia essa gente vai fazer de nossa educação e de nossa cultura? Precisamos prestigiar essa família.

Flora lançou-lhe um olhar pasmado.

A terceira parte do programa era composta de música séria. Quando Herr e Frau Weber tocaram o adágio da Sonata de Kreutzer, Rodrigo sentiu que de repente a atmosfera perdia um pouco de seu calor e nas faces da maioria dos espectadores se ia estampando lentamente uma expressão de quase impaciente aborrecimento, e, à medida que a sonata se prolongava, as pessoas começavam a remexer-se nas cadeiras e algumas bocas se abriam em maldisfarçados bocejos. Num dado momento, um ratão atravessou o fundo do palco e essa inesperada nota cômica, que provocou risinhos, contribuiu um pouco para aliviar a tensão ambiente criada por Beethoven. Quando a peça terminou, os aplausos foram fortes mas breves.

Wolfgang tocou na flauta um Romance de Schumann. A seguir, Toni apanhou o oboé e postou-se ao lado do piano. Quando levou o bocal do instrumento aos lábios, ouviram-se risos abafados na platéia. Rodrigo teve gana de gritar: "Silêncio, bagualada!" Jamais se vira em Santa Fé uma mulher tocar qualquer instrumento de sopro. Para aquela gente, os únicos instrumentos decentes recomendáveis a uma moça de família eram o piano, o violino e o bandolim.

A voz pastoral e merencória do oboé começou como que a riscar um sereno desenho no ar. Era um trecho do Oratório da Páscoa, de João Sebastião- Bach. Rodrigo teve a sensação de que o erguiam da cadeira, deixando-o em levitação. Aquela melodia pura, duma tristeza profunda mas sem desespero, despertava nele ecos misteriosos, saudades inexplicáveis. Tinha a intuição de que já ouvira, sentira, amara e até tocara numa outra vida muito remota e numa outra paisagem igualmente perdida... Sim, ele também achava um nadinha ridículo uma moça soprar naquele instrumento. Sentia para com aquela menina de ar tão inocente uma certa piedade mesclada de ternura e ao mesmo tempo de um desejo lúbrico que procurava exorcizar, indignado consigo mesmo, pois tanto a música como a intérprete deviam inspirar-lhe sentimentos e pensamentos puros. No entanto, a coisa era superior às suas forças, pois seu olhar estava poderosamente preso aos lábios de Toni, que se pregueavam, carnudos e móveis, em torno do bocal do oboé. Fechou os olhos. Foi pior, porque a Toni de seus pensamentos estava completamente despida à beira da sanga do Angico, e a voz de Bio misturava-se com a melodia de Bach, esta a elevar Rodrigo para o céu, rumo das estrelas, a outra a arrastá-lo para a grama e a insinuar libidinagens.

Abriu os olhos e focou-os no camarote fronteiro, de onde o coronel Jairo, avistando-o, lhe fez um lento, solene aceno de cabeça.

Quando os sons do oboé e do piano morreram no ambiente morno do teatro, houve uma pausa duma fração de segundo. De súbito estalaram os aplausos. Quem se pôs de pé dessa vez foi Rodrigo. "Bravo! - gritou - Bravo! Bravo!" E aplaudia com tanta força, que as palmas das mãos começaram a arder. Toni agradecia com reverências graciosas, o rosto iluminado por um sorriso que lhe fazia saltar os zigomas.

O próximo número foi um quarteto de Mozart, durante o qual o coronel Cacique se retirou ostensivamente do teatro com toda a família. Irmão Jacques acompanhou-os, mas antes de deixar o camarote voltou-se para Rodrigo, encolheu os ombros e fez uma careta, como a dizer: Qu'est-ce que tu veux que je fasse?

O penúltimo número foi Rêveríe de Schumann, que Toni interpretou ao violoncelo. Rodrigo escutou a melodia, perturbado, como se a voz do instrumento tivesse o dom de penetrar-lhe nas camadas mais profundas do ser, revolvendo-as e fazendo vir à tona lembranças de tempos idos, tristezas recalcadas, desejos esquecidos. Sentiu a respiração opressa, um aperto na garganta. Se não tratasse de dominar-se, acabaria chorando como o dr. Carbone, que ali a seu lado de quando em quando limpava os olhos com as pontas dos dedos.

Quando menino, Rodrigo interessava-se tanto pelos atores e atrizes dos circos e companhias teatrais que visitavam Santa Fé, que esse interesse às vezes chegava a revestir-se da intensidade duma paixão. E quando o circo ou a troupe se ia para outras terras, ele ficava tomado duma melancolia e duma saudade que durante dias e dias lhe empanavam a vida. Sempre se sentira atraído por aquela gente de palco e picadeiro, tão diferente do comum dos mortais no vestir, no falar, no viver e até nos traços fisionômicos. Ah! Quantas vezes, depois que o circo se ia, ele se punha a andar pela cidade, falando sozinho, a curtir a saudade da mocinha do trapézio ou do malabarista! Seu único consolo, então, era fazer peregrinações ao lugar onde estivera armado o barracão. Lá estava, como uma tortura em meio do terreno baldio, o redondel do picadeiro, ainda coberto de serragem, cujo cheiro ele aspirava com dolorosa delícia. Apanhava do chão, para guardar como lembranças, pedaços de madeira ou papel, pontas de cigarros, botões...

Para o menino Rodrigo os atores eram criaturas dum mundo que pouco ou nada tinha a ver com Santa Fé - um mundo que só encontrava par nas novelas de Dumas, Ponson du Terrail, Richebourg e Júlio Verne. Sempre achara fascinante a linguagem dos palhaços, aquela mistura de português e castelhano que para ele era o vernáculo dum misterioso país de onde provinham todos os clowns e tonies que andavam pelo mundo. Por muitos anos entesourara na memória a palavra mágica que ouvira o diretor dum circo pronunciar repetidamente no picadeiro para o cavalo amestrado, sempre que o animal executava bem cada uma de suas proezas: vengude. Atribuía-lhe um misterioso poder de encantação. Mais tarde, porém, ao iniciar os estudos de inglês, tivera a desilusão de descobrir que vengude era very good e queria dizer apenas muito bom.

Agora, ouvindo a Rêverie e contemplando Toni Weber, ele tornava a sentir milagrosamente a volta do antigo fascínio.

Que tristeza na fisionomia da menina! Como seria a voz dela? Grave, como a do violoncelo ou alta como a do oboé? De que cor seriam seus olhos?

Rodrigo ficou um pouco desconcertado quando, ao voltar casualmente a cabeça para o lado de Flora, percebeu que ela estava a observá-lo disfarçadamente com o canto dos olhos.

Quando o espetáculo terminou, o padre Astolfo sugeriu que esperassem os Weber no saguão, a fim de que ele pudesse apresentá-los aos Cambarás e aos Carbone.

- Mas não é muito tarde? _ perguntou Flora, consultando o marido com os olhos.

- É cedo - respondeu Rodrigo, que não olhara para o relógio desde que saíra de casa.

Os Weber, entretanto, tardavam. O teatro achava-se já completamente vazio e começavam a apagar-se as luzes. Flora insistiu para que fossem embora. Estava ansiosa por saber das crianças Agastado, Rodrigo tomou-lhe o braço:

- Pois então vamos.

Encaminharam-se para a porta, seguidos do padre e dos Carbone. Havia na noite sem lua nem estrelas um arrepiante prenúncio de inverno. Na calçada fronteira alguns homens conversavam em voz alta, um tanto exaltados. Uma figura destacou-se do grupo e atravessou a rua. Era o Cuca Lopes. Acercou-se de Rodrigo e despejou a novidade:

- A Itália declarou guerra à Áustria!

- Não diga!

- Por Deus Nosso Senhor! - jurou o Cuca, tirando, rapidamente o chapéu. Contou que viera do telégrafo, onde havia um despacho para o intendente.

- Até que enfim! - exclamou Rodrigo, voltando-se para o dr. Carbone e envolvendo-o num abraço, enquanto Santuzza desatava o pranto. O cirurgião beijou Rodrigo em ambas as faces, deu alguns passos sem rumo nem propósito na calçada para depois cair nos braços da mulher, cobrir-lhe o rosto de beijos e misturar suas lágrimas com as dela.

- Padre - disse Rodrigo com a voz alterada pela conoção - a Itália não nos decepcionou. O sangue latino falou mais forte que qualquer aliança ou interesse material!

O sacerdote acariciava o lóbulo da orelha, olhando para a porta do teatro.

- Isso torna os Carbone inimigos dos Weber - disse ele, entre sério e trocista.

O italiano parecia ter perdido a voz. Meteu nervosamente um cigarro na piteira e levou muito tempo para conseguir acendê-lo.

- Vamos todos ao Sobrado comemorar o acontecimento convidou Rodrigo.

Olhou para o Cuca.

- Mas essa história é certa mesmo ou é boato?

Cuca que cheirava azafamado a ponta dos dedos, apressou-se a fazer novo juramento.

- Por esta luz que me alumia: eu vi o telegrama. Desejou boa-noite a todos e abalou.

- Vamos embora! - gritou Rodrigo.

Meteu a mulher e os Carbone no Ford e mandou o chofer tocar para o Sobrado.

- Nós vamos a pé.

Depois que o automóvel dobrou a primeira esquina, ele se voltou para o padre Astolfo.

- Ficará mal a gente levar os Weber agora lá pra casa? Será que os Carbone vão ficar sentidos?

- Esses italianos são criaturas boníssimas. Não creio que possam ter a menor má vontade para com a Família, principalmente depois dum espetáculo desses.

- Que diabo! Afinal de contas somos todos filhos de Deus, não é mesmo, padre?

Naquele momento os Weber saíam do teatro. Padre Astolfo puxou o amigo pelo braço, aproximou-se dos austríacos e começou as apresentações. Fez o elogio de Rodrigo em francês. Vir a Santa Fé e não conhecer o dr. Rodrigo Cambará e o Sobrado era o mesmo que ir a Roma e não ver o papa nem a Basílica de São Pedro. O dr. Rodrigo era médico, uma bela cultura, um grande caráter. Possuía a melhor biblioteca do município, era um amante da boa música e tudo indicava que em breve seria eleito deputado. Enquanto o vigário falava, Herr Weber murmurava de instante a instante já, já, ao passo que Frau Weber dava risadinhas curtas e cordiais. Toni e Wolfgang achavam-se num segundo plano, silenciosos. O rapaz trazia o contrabaixo num estojo negro, que ali na sombra parecia um estranho monstro. Toni abraçava o estojo do violoncelo, como a um irmão mais moço. Herr Weber tinha debaixo do braço a caixa do violino. Quando Rodrigo, fazendo questão de falar francês sem o menor sotaque, convidou a Família para ir ao Sobrado tomar alguma coisa, Herr Weber fez uma curvatura, formulou desculpas num francês eriçado de erres rascantes. Impossível! Era muito tarde, mamã Weber e as crianças estavam cansadas. Mera beaucoup! Merci! Merci! Cada merci era acompanhado duma inclinação de cabeça.

Rodrigo estava desapontado. Queria ver Toni de perto, descobrir-lhe a cor dos olhos, ouvir-lhe a voz. Deixou escapar um suspiro de impaciência e, olhando para o padre, disse:

- Bom, não vamos deter por mais tempo esta simpática família...

Os adeuses foram rápidos e cálidos da parte de Rodrigo: um tanto formais da parte de Herr Weber, que fez uma prolongada curvatura. Frau Weber apertou-lhe a mão com vigor, Wolfgang, timidamente. Toni deu apenas as pontas dos dedos e murmurou algo que ele não chegou a ouvir direito. Adieu? Au revoir?

Rodrigo chamou um carro e mandou levar a Família Filarmônica ao hotel:

- Não cobre deles - gritou para o cocheiro. - Quem paga sou eu!

Depois, de braços dados com o padre, voltou a pé para o Sobrado. O vigário falava apreensivo na guerra. Aonde ia parar o mundo? Havia indignação nos Estados Unidos, pois no naufrágio do Lusitânia tinham perdido a vida quase duzentos cidadãos norte-americanos. Era possível que Washington acabasse declarando guerra ao Kaiser.

Rodrigo olhava para a sombra alongada do padre na calçada. Mas não pensava na guerra. Na sua mente, Toni Weber soprava no oboé: estava num vestido curto de bailarina, no picadeiro do Circo Sabattini.

No dia seguinte pela manhã, o padre Astolfo entrou no consultório de Rodrigo e contou-lhe que a Philharmonische Familie se encontrava numa situação crítica. Seu empresário, um romeno que os contratara na Europa para aquela tournée sul-americana, abandonara-os em Bajé, seguindo para Montevidéu de onde - prometera - não só telegrafada dando informações sobre a data dos próximos concertos no Prata, como também lhes mandaria o dinheiro para as passagens. No entanto havia já quase um mês que o homem se fora e até agora não dera o menor sinal de vida.

- A Família está alarmada! - contou o vigário, sentando-se numa cadeira e fitando em Rodrigo seu olhar transparente. - O romeno era o tesoureiro da troupe e levou consigo todo o dinheiro que tinham apurado nos últimos concertos em Porto Alegre, Cachoeira e Santa Maria. O que os Weber fizeram aqui dá para pagar o hotel mas não é o bastante para as passagens...

Rodrigo esbofeteava em pensamento aquele romeno cuja mãe não conhecia mas à qual já dirigia mentalmente os maiores insultos. O canalha! O vigarista!

Levantou-se e deu dois passos na direção do padre.

- O bandido fugiu, não resta a menor dúvida. Veja bem: a Família está em Bajé, já perto de Montevidéu, onde deve dar o próximo concerto. Que faz o sacripanta? Manda essa pobre gente de volta para o noroeste do Estado, para Santa Fé. Por quê? Me diga: por quê? Porque já tinha o plano formado!

- E o pobre do velho Weber agora lá está no hotel, atirado em cima duma cama, sem saber que fazer. É um homem tímido, desprovido de qualquer senso prático, um verdadeiro artista. As duas crianças coitadinhas, estão com os olhos deste tamanho, dá pena vê-las... Por sorte Frau Weber é uma mulher decidida. Veio me procurar hoje às oito para me contar a história e me pedir conselho.

Olhou intensamente para Rodrigo e estendeu os braços num gesto de desamparo.

- Mas que é que a gente pode fazer?

Recostado contra o bureau, Rodrigo olhava para o amigo, pensativo.

- Não há de ser nada... - disse, após alguns segundos de reflexão. - Deixe, que eu dou um jeito na vida desses austríacos.

- Como?

- Vou arranjar o dinheiro pra viagem a Montevidéu.

- Mas acontece que, depois duma troca de telegramas com os teatros de Montevidéu e Buenos Aires, os Weber descobriram que os falados contratos não passavam de mais uma mentira do romeno!

Idéias brotavam vivas e efervescentes no espírito de Rodrigo, começando a deixá-lo exaltado.

- Não há de ser nada. Arranjaremos um concerto da PhiIharmonische Familie em Nova Pomerânia. Foi o diabo a Itália ter declarado guerra à Áustria, pois eu ia ajeitar também um concerto em Garibaldina. - Soltou uma risada. - Por que o rei Vittorio Emmanuele não esperou mais uma semana?

O padre parecia não ver a menor graça naquilo tudo. Apertava o lóbulo da orelha com uma expressão de incerteza no rosto juvenil.

- Sim, mas depois desse concerto, que vai ser dos Weber, que não sabem uma palavra de português e não conhecem ninguém no Rio Grande do Sul? Está claro que não poderão voltar para a Europa, por causa da guerra. É uma situação dos diabos.

- Por que então não ficam em Santa Fé?

- Esta cidade não comporta mais de dois concertos.

- Sim, mas eles podem fazer outras coisas. Olhe, por que não tocam no cinema? Aí está uma idéia. O velho e a velha podem dar lições de canto, piano e violino. Que é que estão fazendo as filhas do coronel Cacique que não aprendem algum instrumento? E as Teixeiras? E as Macedos? Já é tempo de civilizar essa gente. Não se aflija, padre, deixe a coisa por minha conta. Que diabo! Precisamos manter o prestígio da hospitalidade gaúcha. Seria o cúmulo se uma família talentosa como essa morresse de fome na nossa terra.

Teve um rompante de generosidade.

- Em último caso, eu levo essa gente pró Sobrado.

O padre sacudia a cabeça numa lenta, obstinada negativa: a coisa não era assim tão simples.

- E o pior - disse - é que a saúde do velho é péssima. Cá para nós, acho que ele tem úlceras gástricas.

- Eu também dou jeito nas úlceras do maestro.

Tirou o relógio do bolso e tornou a guardá-lo sem ver direito a hora.

- Vamos agir, padre, antes que a coisa esfrie. Diga ao velho Weber que me apareça no consultório hoje às quatro, que eu quero fazer-lhe um exame completo. Vá logo avisando que a consulta é grátis, pró homem não ficar preocupado. E hoje de noite leve toda essa simpática família ao Sobrado, lá pelas oito, pra gente fazer um serãozinho com música, boa prosa e salsichas de Viena legítimas, não se esqueça de dizer isso, ouviu?, legítimas! Pró velho mando preparar um mingau de maisena. Precisamos levantar o moral dos Weber. No final de contas não podemos responsabilizar esses pobres austríacos pelas crueldades das tropas do Kaiser. Seria o mesmo que culpar Goethe ou Beethoven pelo torpedeamento do Lusitânia, não acha, padre?

Segurou com força o braço do sacerdote.

- A gente vira, mexe e acaba sempre nos Evangelhos. Quem tinha mesmo razão era Jesus Cristo...

Procurou, para citar, uma frase sobre a fraternidade humana, mas não lhe ocorreu nenhuma. Despediu-se do vigário, botou o chapéu, saiu da farmácia e foi bater à porta da casa do Podalírio Leal, concessionário do cinematógrafo. Podalírio apareceu, recém-saído da cama, os olhos piscos, a voz pastosa.

Convidou Rodrigo a entrar e sentar-se. E quando o visitante lhe falou na possibilidade de o cinema contratar a Família Filarmônica para tocar nas suas três funções semanais, o homem exclamou:

- Só se eu estivesse louco varrido! Isso vai me custar os olhos da cara!

- Criatura de Deus! Você terá uma orquestra de primeira ordem. Muita gente que não gosta de cinema irá ao Santa Cecília só para ouvir a orquestra.

Podalírio mirava-o de boca entreaberta, os dois únicos dentes superiores que lhe restavam a apontarem amarelos nas gengivas descoradas.

- O senhor pensa que cinematógrafo é alguma mina de ouro? Pois fique sabendo que é um negocinho mui mixe. O que faço mal dá pró fumo. Por muito favor pago trinta pilas pró Salcede tocar aquelas porcarias no piano.

Rodrigo brincava, impaciente, com a corrente do relógio.

- Pois você vai contratar a Família Filarmônica, e hoje mesmo.

- Hein?

Podalírio lançou para o outro um olhar alarmado.

- Sim. E vai pagar aos Weber duzentos mil-réis por mês. Ergueu-se, aproximou-se do concessionário do cinematógrafo e segurou-o pela gola da camisa:

- Não se assuste, que esse dinheiro não sairá de seu bolso e sim do meu.

Viu que o homem não havia compreendido. Repetiu a proposta lentamente, escandindo as sílabas de cada palavra, com uma falsa paciência. Nunca simpatizara com o Podalírio e muito menos com o filho, o Calgembrino: eram dois pulhas, dois sovinas sem escrúpulos, que não mereciam a menor consideração.

- Vamos, homem, sim ou não?

- Se o senhor paga, a coisa é diferente, mas não estou entendendo direito...

- Nem precisa entender. Quero ajudar esses estrangeiros que estão em dificuldades e ao mesmo tempo fazer que o cinema da minha terra tenha a melhor orquestra do Estado. Está claro agora?

O outro encolheu os ombros.

- Mas... e o Salcede?

- Continue a pagar-lhe os trinta mil-réis mensais, e ele que fique em casa se quiser. Se não quiser, que vá pró inferno!

Podalírio acariciou a calva, de beiço caído.

- Outra coisa - acrescentou Rodrigo. - Essa história tem de ficar entre nós dois. Ninguém precisa saber que sou eu quem vai pagar o ordenado da Família Filarmônica. Está entendido?

- Está, mas é que...

- Que é que há?

- Não era melhor a gente fazer um contrato, um compromisso escrito e assinado pelo senhor, dizendo que se responsabiliza...

Rodrigo atalhou-o:

- Já viu algum Cambará faltar à palavra empenhada?

- Não, doutor, longe de mim duvidar da sua palavra. Mas é que todos estamos sujeitos a morrer duma hora para outra...

Rodrigo, que já se encontrava na rua, de chapéu na cabeça, gritou:

- Pois eu não pretendo morrer tão cedo. Tenho ainda muito que fazer neste mundo. Passe bem!

Cheios de gratidão e num comovido abandono, os Weber entregaram seu destino a Rodrigo, maravilhados com as coisas que ele lhes dava, e fazendo, numa obediência filial, tudo quanto ele lhes sugeria. Aceitavam o emprego no cinema e os alunos de canto, violino e piano que foram aparecendo naquelas últimas semanas de maio, alguns trazidos pelo próprio Rodrigo - que doutrinava calorosamente os chefes de família sobre a necessidade de dar uma educação musical aos filhos, e outros mandados espontaneamente por famílias alemãs e teuto-brasileiras. Otto Spielvogel empregara o jovem Wolfgang Weber em seu escritório, como arquivista e correspondente em língua alemã. E Herr Weber, cuja saúde melhorara visivelmente, graças aos remédios que Rodrigo lhe prescrevera, fora convidado pelo intendente para reorganizar a banda de música municipal.

Achando que a Família Filarmónica por motivos económicos não podia continuar no hotel, Rodrigo cedeu-lhe de graça uma casinha de propriedade de seu pai e que no momento estava desalugada - uma meia-água com pomar, situada à rua do Poncho Verde, nas proximidades dos trilhos. Resolveu o problema dos móveis da maneira mais rápida e simples: pôs numa carroça e mandou para os Weber uns tarecos fora de uso que estavam atirados no porão do Sobrado: uma cómoda e um guarda-comida de pés lascados; cadeiras com os assentos de palha furados ou pernas quebradas; e uma mesa em cuja prancha sem lustro se viam talhos de facas feitos por mais duma geração de cozinheiras. Os Spielvogel e os Schultz contribuíram com camas, cadeiras, louças e talheres. Contava-se que, a cada móvel ou utensílio que chegava à meia-água, Frau Weber desatava o choro, murmurando: "Que santa gente, meu Deus, que santa gente!"

Os membros da Philharmonische Familie passaram uma semana inteira a trabalhar na casa. Convidado um dia a visitá-los, Rodrigo ficou surpreendido ao ver a transformação que sofrera aquela meia-água que sempre lhe dera a impressão dum cachorro sentado a olhar melancolicamente para o céu. A fachada tinha sido caiada por Wolfgang, auxiliado por Toni, e os caixilhos das janelas - onde se balouçavam alegremente vaporosas cortinas brancas - pintados dum azul de índigo. Dentro, Rodrigo não reconheceu os velhos móveis que mandara: estavam lustrados, reluzentes, com o aspecto de novos. No chão da sala de jantar estendia-se um tapete feito por Frau Weber com retalhos multicores. Em cima duma prateleira alinhavam-se canecos para cerveja, pratos de cerâmica alemã e os cachimbos de louça de Herr Weber. Havia naquele interior tal aspecto de asseio e ordem, que Rodrigo chegou a ficar perturbado. Derramou-se em elogios à casa, e Frau Weber, num assomo de agradecida ternura, tomou-lhe do rosto com ambas as mãos, pôs-se na ponta dos pés e aplicou-lhe dois sonoros beijos nas faces.

Notre protecteur! Lê flus généreux et lê plus beau dês hommesl

Rodrigo ficou comovido. Sentado numa cadeira, Herr Weber contemplava-o com um ar de devoção quase canino. Seu olhar - notou Rodrigo - exprimia não só gratidão como também estranheza. Era como se ele não pudesse compreender por que aqueles estranhos faziam pela Família todas aquelas coisas desinteressadas.

Nas ruas de Santa Fé durante muito tempo os Weber constituíram um espetáculo que os naturais do lugar não cansavam de apreciar. Quando os austríacos passavam, mulheres assomavam às janelas e portas e ficavam a segui-los com o olhar, trocando comentários com os vizinhos. Toda a vez que Frau Weber saía às compras ou com livros debaixo do braço e dirigia-se à casa de seus alunos, as comadres de Santa Fé mal continham o riso, achando-a "esquisita" no seu vestido cor de chumbo, de golinha alta, cintura de vespa, saia rodada e comprida cuja fímbria varria as calçadas por onde ela passava com seu jeito azafamado e seu caminhar miúdo e rápido.

Frau Weber fizera já amizade com tia Vanja, que a adorava, pois a austríaca lhe evocava personagens de romances que se passavam em Berlim, Viena e Budapeste. Rodrigo enternecia-se ao ver aquelas duas mulherzinhas em seus colóquios, a trocarem sorrisos, amabilidades, receitas de doces e croché, uma sem poder falar a língua da outra, mas a entenderem-se por um milagre de boa vontade e simpatia humana.

Herr Weber também chamava a atenção quando saía à rua, de chapéu-coco pardo, gravata à Lavalière, o guarda-chuva sempre a pender-lhe do braço. Andava de ordinário apressado, tinha um caminhar arrastado, as costas encurvadas e um modo vago de olhar, como se estivesse com o corpo neste mundo e o pensamento no outro. O jovem Wolfgang fazia também sucesso com sua roupa de veludinho verde, de casaco cintado, os sapatões de alpinista e o chapéu de feltro com uma pena de pavão enfiada na fita.

As moças de Santa Fé não podiam esconder sua má vontade para com aquela "alemoazinha" que parecia andar virando a cabeça a muitos dos rapazes do lugar. Toni Weber pouco saía, pois era ela quem cozinhava e fazia a limpeza da casa. Quando, porém, aparecia na rua do Comércio, sempre em companhia do pai, da mãe ou de ambos, as mulheres a miravam com ar crítico e os homens com olho lúbrico.

- Anda de trança só pra parecer menina - comentara a Gioconda. - Mas garanto que já tem uns vinte e cinco anos, fora os que andou de tamancos...

Esmeralda Dias inventava coisas horríveis: os Weber não eram casados, mas amigados, Wolfgang era um mancas e Toni, ah! "essa cadelinha está aqui em Santa Fé pra fisgar marido rico, isso ninguém me tira da cabeça". E já se murmurava que, dos pretendentes que rondavam Toni, o mais palpável era o Erwin Spielvogel, moço rico, com o qual a jovem austríaca fora vista a passear de automóvel.

Por muito tempo foram os Weber o assunto predileto dos mexericos da cidade, onde havia até discussões em que se tratava de chegar a uma conclusão sobre qual dos dois casais estrangeiros era o mais grotesco, os Weber ou os Carbone.

Nas noites de segunda, terça e sexta-feira, quando não havia função no cinema, os Weber compareciam aos serões do Sobrado, onde ficavam a conversar, a comer, a beber e a fazer música. Desde que a Família Filarmónica começara a frequentar sua casa, Rodrigo procurava evitar qualquer referência direta ou indireta à guerra. Os Carbone, que raramente faltavam aos serões, ficavam-se agora meio bisonhos pelos cantos, enciumados - percebia Rodrigo - sestrosos, decerto a temer que aqueles austríacos lhes roubassem o lugar que ocupavam no coração dos Cambarás. Frau Weber apaixonara-se também pelas crianças da casa, e era divertido ver a austríaca e a italiana numa guerra surda, na disputa da amizade de Alicinha e Floriano, cada qual procurando trazer-lhes o brinquedo mais interessante, o doce mais gostoso ou então inventar as palavras e os gestos mais cômicos para fazê-los rir. Havia momentos em que era necessário Flora intervir, a fim de evitar um atrito entre as duas estrangeiras.

Outro que parecia ralar-se em silencioso despeito era o Saturnino, cuja flauta andava calada desde o dia em que Herr Weber entrara no Sobrado. Uma noite, depois que o "maestro" interpretara na flauta uma composição de Schumann, Saturnino aproximou-se do Neco e sussurrou-lhe:

- Toca bem, mas não tem alma. Esses gringos são frios. E o seresteiro, com ar de entendido, completou:

- Frios como focinho de cachorro.

Jairo não cansava de elogiar aqueles serões em que tinha a oportunidade rara de ouvir tão boa música e tão boa prosa.

Carmem, que agora vinha com mais freqüência ao Sobrado, aproveitava a ocasião para exibir seus conhecimentos de francês e de arte, o que parecia deixar Flora um tanto deprimida. E o vigário que se sentia responsável pela aproximação entre os Weber e os Cambarás, dava mostras de estar contente de tudo e de todos.

Numa noite em que se discutiam compositores, Herr Weber, comendo seu mingau e lançando olhares compridos para o prato de pão com caviar, fez uma dissertação sobre a decadência da música italiana, para tortura de Rodrigo, que ficou todo o tempo como que sobre brasas, a observar, apreensivo, o dr. Carbone. Quem examinasse - dizia o maestro - a música italiana do século XIX e daquele princípio do XX, com seus xaroposos compositores operáticos como Verdi, Puccini e Leoncavallo, dificilmente compreenderia que aquela mesma pátria, onde o Renascimento tivera seu apogeu, houvesse produzido no passado músicos como Vivaldi, Cimarosa, Pergolesi, Scarlatti e tantos outros.

O dr. Carbone avançou com um copo de vinho numa das mãos e a piteira na outra. Verdi xaroposo? Era o cúmulo da estupidez, da ignorância e da má vontade fazer uma afirmação como aquela! Detestável era Wagner com suas cacofonias pretensiosas! Dali a mil anos, Verdi, Puccini e Leoncavallo seriam ainda ouvidos, cantados e amados, porque sua música era bela, doce, clara e ia direito ao coração do povo. E dizendo isso, Carbone batia heroicamente no peito com a ponta da piteira.

Herr Weber não perdeu a calma.

- A ópera não passa duma paródia musical. A verdadeira música, para meu gosto, é a clássica. Dêem-me Bach e podem ficar com o resto!

Numa bem torneada frase, e com boa dose de falsa modéstia, Rodrigo confessou que sua ignorância o impedira de compreender e amar Bach. Herr Weber mirou-o com seus olhos vagos.

- Mon cher Doktor, só se pode apreciar devidamente Bach depois dos quarenta anos.

- Guarda que absurdo! - exclamou Carbone.

Liroca, que uma vez por semana comparecia aos serões, estava no seu canto, calado, a ouvir aquela língua que não entendia, o olhar fito nas portas, por cujo vão de quando em quando passava o vulto de Maria Valéria.

Herr Weber certa noite desenvolveu uma tese: a da comunhão universal através da música. Sim, o mundo só poderia viver em paz se todas as criaturas amassem verdadeiramente a arte e se reunissem à noite, nas suas comunidades, como uma grande família, para fazerem música. Ah! Mas tinha de ser um tipo de música puro, desses que elevam a alma e jamais embriagam os homens de entusiasmo marcial a ponto de levá-los à violência, à destruição e à guerra. O mal da ópera é que, sendo descritiva, verista, ela se apega excessivamente às mais baixas paixões humanas. A música pela música - esse era o grande, o supremo ideal.

Jairo concordava em que a música poderia ajudar o congraçamento da família humana, mas achava que só a música não era o bastante. Fazia-se necessária também uma religião, não a do padre Astolfo, que estava comprometida em sua pureza original por quase dois mil anos de contaminação política, mas uma religião de bases científicas de perfeito acordo com o Progresso.

A discussão foi interrompida quando os Weber começaram a tocar um quarteto de Mozart para cordas e piano. Carbone escutou-o num silêncio reverente, movendo a cabeça ao ritmo da melodia ou usando a piteira como uma batuta. De momento em momento, Maria Valéria espiava a sala, escudada por uma folha de porta. E Chiru, que não escondia sua impaciência naqueles serões em que só se falava "língua de gringo", marcava o compasso com o pé, fungava, suspirava, olhava o relógio e abafava bocejos. De olhos cerrados, a cabeça reclinada contra o respaldo da cadeira, o padre Astolfo parecia adormecido, as mãos trançadas à altura do estômago.

Por mais que se esforçasse, Rodrigo não podia desviar os olhos de Toni. Estava um tanto inquieto por causa de Flora, temendo que ela interpretasse mal seu interesse pela rapariga. De quando em quando lançava-lhe um olhar oblíquo, para ver se ela o estava observando ou não.

A verdade é que aquela família estrangeira trouxera para sua vida um interesse novo. Os serões do Sobrado tinham ganho mais animação, o gramofone jazia mudo e esquecido no seu canto, e às vezes Rodrigo julgava ver na campânula do aparelho uma certa expressão de ciúme que lhe lembrava a da fisionomia dos Carbone.

A cor dos olhos de Toni continuava a ser para ele um enigma. Era um cinzento que ainda não se havia decidido bem entre o verde e o azul, mas que às vezes lhe parecia puxar mais para o azul. E agora, enquanto ouvia o adágio do quarteto e observava a Frãulein, ele encontrava por fim uma definição satisfatória para aquele par de olhos. Eram duas águas-marinhas puríssimas: dois lagos redondos, frescos e límpidos, em cujo fundo nadavam peixes. Quando estava na frente da rapariga, Rodrigo tinha a impressão de que sua própria imagem, refletida no fundo daqueles poços, era como um grande e estranho peixe. E essa idéia deixava-o conturbado.

Uma das coisas de que mais gostava era a risada de Toni - uma risada musical, com algo de vidro e de água, a sugerir um parentesco próximo com os olhos.

No princípio daquele serão Rodrigo permitira-se tomar a mão de Toni que mal podia haver nesse gesto, se ele o fazia na frente dos pais da moça e da própria Flora?

e, numa atitude displicente que lhe era esquisitamente voluptuosa, voltara-se para Chiru:

- Apresento-te a minha nova sobrinha. Que achas dela?

O outro não o hesitara:

- Um peixão!

Pouco depois, puxando Rodrigo para um canto, murmurou: - Sobrinha, hein; maganão? Com essa parte de tio o que tu queres é apalpar a alemãzinha ...

Rodrigo lançara um olhar rancoroso para o amigo. Aquele porcalhão do Chiru só pensava em imoralidade. Não compreendia que pudesse existir entre homem e mulher um sentimento de pura, desinteressada amizade. Ora, ele gostava de Toni do mesmo modo que gostava do Hino ao Sol, ou do céu do Angico ao entardecer. No fundo, entretanto, sabia que a coisa não era bem assim, pois sempre achava difícil esquecer que Toni Weber afinal de contas era uma mulher.

Quando mirava aqueles olhos de água-marinha, ficava lírico, tinha vontade de escrever poemas. A boca da criatura, entretanto, não o convidava a pensamentos puros: tinha lábios polpudos, palpitantes, dum vermelho vivo e úmido. Diante desse contraste, quanta confusão de sentimentos? Bom - concluía ele, não sem uma pontinha de ironia - Toni é minha sobrinha do nariz para cima; do nariz para baixo; não.

Mas até quando a água fresca daqueles olhos conseguiria neutralizar o fogo daquela boca? - perguntou a si mesmo, com o olhar fito na rapariga, esquecido do quarteto, dos circunstantes, de tudo.

Naquela mesma noite, depois que Flora se retirou para o quarto e Maria Valéria terminou a costumeira inspeção de portas e janelas, Rodrigo ficou sentado sozinho na sala, a olhar para o Retrato e a lembrar-se da expressão de encantada surpresa que se estampara no rosto de Toni, a primeira vez que vira o quadro. Meias Gott! - balbuciara ela, de mãos trançadas. - Meias Gott! Tinha-se a impressão de que seu rosto se iluminava, como se a tela irradiasse luz. Comine c'est beau, mon Dieu, comine c'est beau! Disse estas palavras baixinho, como para si mesma, indiferente ás outras pessoas em derredor. Que era que Frauleín Weber achava belo? O quadro ou o homem?

Rodrigo aspirou o ar com força, na esperança de que andasse ainda no ambiente um pouco do perfume de Toni, aquela morna fragrância de carne moça recendente a sabonete de alfazema.

Cerrou os olhos e fitou a fumar e a ruminar o prazer, o doce choque daquele momento do serão em que - estando os outros a conversar animadamente - ele surpreendera Toni a contemplá-lo de seu canto com um olhar comprido e cheio dum amoroso interesse. Embora aquele encontro de olhares tivesse durado apenas uma fração de segundo, fora o suficiente para dar-lhe um arrepio e acelerar-lhe o ritmo do sangue.

Por que não? - perguntou em voz alta, erguendo-se e pondo-se a caminhar dum lado para outro na sala deserta. Aproximara-se do piano, bateu distraído numa tecla, tornou a olhar para o Retrato e quedou-se num diálogo mental com o Outro.

Qual é a tua opinião?

Tudo pode acontecer.

Mas não será bom parar enquanto é tempo?

Agora é tarde.

Eu sei ...

Desde o princípio sabias que um dia havia de ser tarde, mas quiseste criar o inevitável.

Acho que ela gosta de mim.

E de mim também.

Ah, mas tu estás preso nessa tela, és de tinta, ao passo que eu sou de carne e osso e nervos!

Era bom estar vivo, brincar com fogo, embriagar-se com aquela vertiginosa sensação de perigo próximo.

Acercou-se do gramofone. Não. Não toco. É tarde, os outros estão dormindo. Depois, não convém desmanchar a impressão do quarteto...

Ficou de cabeça alçada a seguir a fumaça que subia do cigarro, e tentando rememorar trechos da música. Era engraçado: podia lembrar-se, com uma clareza cristalina, das melodias que ouvia, no entanto jamais conseguia reproduzi-las assobiando ou cantarolando. Aquele quarteto de Mozart - aéreo, inocente, matinal - podia bem ser uma descrição musical de Toni Weber. Mas até onde iria a inocência da criaturinha?

Tornou a sentar-se e a trançar as pernas, preparando-se para um diálogo consigo mesmo.

Sabia que Toni tinha vinte anos. Eram as tranças que lhe davam a aparência de menininha, e era esse ar infantil que o fazia sentir-se um pouco pervertido, até mesmo incestuoso, toda a vez que sentia por ela desejo físico. Por que é que não faz outro penteado? Mas que é que o penteado tem a ver com o que eu sinto por ela ou com o que ela possa sentir por mim? Mas que será que Toni sente por mim? E eu por ela? Que absurdo - concluiu, sem muita convicção - estar eu, um homem de quase trinta anos, casado e pai de dois filhos, a preocupar-se com uma mocinha de vinte, solteira e provavelmente virgem!

Levou o cigarro à boca e imediatamente em pensamento viu Toni com os lábios pregueados em torno do bocal do oboé. Por alguns instantes ficou a imaginar que tinha a rapariga nos braços e lhe beijava sofregamente a boca.

Que diabo! Se um homem não goza de toda a liberdade no reino da imaginação, onde é que vai gozar? Não há de ser nesse mundo de mexericos e mesquinhezas das Esmeraldas, dos Cucas e dos Zagos - concluiu, indignado já ao pensar no que poderiam estar murmurando na cidade a respeito de suas relações com Frãulein Weber.

Por alguns instantes soou-lhe na mente a voz de Toni, que não tinha nada de extraordinário, a não ser o fato de sair daquela boca. Recordou a conversa que tivera com ela no dia em que lhe mostrara, orgulhoso, sua biblioteca, com as obras completas de Flaubert, Balzac, Victor Hugo, Renan... Diante do armário de livros, lera-lhe em surdina um trecho do Chantecler.

- J'aime bien Rostand - disse-lhe Toni. - Mas ele me parece um poeta menor, apenas hábil, brilhante, agradável. Corresponde em música a Tchaikóvski ou Lizst. O mundo poderia passar perfeitamente sem Rostand e Lizst, mas duvido que fosse o mesmo se nunca houvesse nascido um Goethe ou um Bach.

Essas palavras, ditas por uma menina de tranças com laçarotes de fitas azuis, haviam-no deixado não apenas surpreendido, mas também desconcertado, pois elas como que o derrubavam inesperadamente do pedestal de paterna superioridade em que ele se colocara perante a jovem austríaca.

Relembrando agora a cena, Rodrigo sorria. Toni era a Europa. Não tinha apenas vinte anos, mas dois mil, ao passo que ali no Rio Grande, em matéria de arte e cultura, estava-se ainda numa espécie de idade da pedra lascada.

Ergueu-se, apagou a luz, subiu para o quarto, despiu-se, enfiou o pijama e deitou-se sem fazer ruído ao lado de Flora, que lhe pareceu adormecida. Apagou a lâmpada, sobre a mesinha-de-cabeceira, e ficou de olhos abertos, a pensar. Estava sem sono, inquieto, com um peso no estômago. Decerto comera demais. Pôs-se a apalpar o peito, o ventre, os braços. Começava já a engordar. Era preciso cuidar da dieta, abolir a feijoada, o talharim, os doces, a cerveja... Entre o que ele era hoje e o Rodrigo do Retrato havia já algumas diferenças de volume visíveis a olho nu. Era o diabo...

Não sou nenhum vaidoso, mas - bolas! - ninguém quer parecer ridículo aos olhos alheios nem aos próprios. Gordura é uma coisa grotesca. Olhem só o incidente do Chiru, a imagem viva de dom João VI. E o coronel Cacique, nédio como um capão cevado...

Flora estava deitada de lado, com as costas voltadas para ele. Rodrigo enlaçou-a e fê-la voltar-se.

- Estavas dormindo, meu bem?

- Dei uma cochilada - bocejou ela. - Que horas são?

- Pouco mais de meia-noite.

- Perdeste o sono?

- Acho que sim.

Rodrigo beijou-lhe os lábios com um ardor que não deixava dúvida quanto às suas intenções.

- Vamos dormir - resmungou ela.

- Pra dormir não falta tempo.

- Mas é tão tarde, querido!

Procurou desvencilhar-se mas não conseguiu. Soltou um suspiro.

- Tu és um homem impossível. Quando queres uma coisa, queres mesmo.

E não lhe ofereceu mais nenhuma resistência. Nos momentos que se seguiram Rodrigo não pôde nem quis afastar da mente a imagem de Toni Weber.

Rodrigo e Flora iam agora com mais freqüência ao cinema e achavam, como de resto quase todos os freqüentadores do Santa Cecília, que os seus programas andavam muito mais interessantes, graças ao acompanhamento musical. A Philharmonische Familie ordinariamente iniciava o espetáculo com ouvertures de Von Suppé, Offenbach, Strauss e até Wagner. As músicas eram escolhidas de acordo com a natureza do filme: marchas e dobrados para os naturais; galopes frenéticos e polcas ou mazurcas saltitantes para as fitas cómicas; valsas lentas, fantasias ou trechos de ópera para os dramas.

Numa daquelas primeiras noites de junho, o Santa Cecília exibiu um capoiavoro de Cines, cuja protagonista era Francesca Bertini. Herr Weber, com uma honestidade profissional que impressionara a população de Santa Fé, exigira que Podalírio lhe passasse o filme à tarde, numa sessão especial, a fim de que ele pudesse escolher as músicas adequadas ao acompanhamento de suas diversas cenas. Foi por isso que à noite os espectadores puderam assistir à longa agonia final da personagem encarnada pela grande Bertini ao som da marcha fúnebre de Chopin.

De seu camarote, Rodrigo com freqüência desviava o olhar da tela para focá-lo no vulto de Toni, que lá estava ao pé da tela, metida no seu casacão de lã azul-marinho, fazendo gemer seu instrumento. A menina lhe dava às vezes uma tão comovedora impressão de fragilidade e desamparo, que ele se sentia invadido pelo desejo de tomá-la sob sua proteção e trazê-la para casa como uma filha (ou como uma amante, patife?). Imaginava o que podia estar-se passando naquela alminha exilada. Ficava enternecido ao pensar em que, tendo nascido e crescido em Viena, ela pudesse estar agora, naquela noite de fins de outono, a esfregar o arco nas cordas do violoncelo no cineminha do Podalírio. Achava aquilo tudo ao mesmo tempo belo, triste e improvável, principalmente improvável... E no instante mesmo em que pensava essas coisas, a imagem do pai se lhe desenhou na mente e lhe gritou com a habitual aspereza: "Deixe de fita!"

Que iria o velho dizer quando soubesse das coisas que ele, Rodrigo, fizera pela Família Filarmónica? Não tardou a saber, pois Licurgo chegou do Angico dois dias depois e, tendo sido informado por Flora da situação dos Weber, comentou:

- Esse rapaz nem trata de saber direito quem são as pessoas. Vai logo botando qualquer estrangeiro pra dentro de casa.

Quem era aquela gente? - perguntava. - De onde tinha vindo? Podiam ser pessoas de bem mas podiam ser também uma pandilha de vigaristas. Conhecia casos...

Quando Flora lhe transmitiu esses comentários, Rodrigo sorriu sem surpresa, pois era exatamente essa a reação que esperava do velho. Licurgo Cambará, como todo o homem do campo, tinha para com o estrangeiro uma invencível desconfiança, temperada de má vontade.

Quando, certa noite, os Weber chegaram ao Sobrado trazendo seus instrumentos, cantarolando e rindo, na expectativa dum alegre serão, Licurgo retirou-se ostensivamente para o quarto, recusando-se a ser apresentado aos "lambotes". No dia seguinte voltou para o Angico, mas não sem antes ter dito à nora:

- Seu marido nasceu para miliardário. Se continua gastando desse jeito, ainda vai acabar sem um vintém pra fazer cantar um cego.

Maria Valéria repetiu estas palavras ao afilhado.

- E a senhora acha que o papai tem razão?

- Acho.

- Pois eu não. Mais vale um gosto que três vinténs. Rodrigo ainda não conseguira saber ao certo o que a Dinda pensava dos Weber, aos quais ela se obstinava em chamar "os polacos". Raramente aparecia na sala quando os austríacos visitavam o Sobrado. Uma noite Rodrigo surpreendeu-a a fazer uma simpatia para as visitas irem embora: estava atrás duma porta virando uma vassoura.

Foi também por aqueles dias que Flora se queixou ao marido de que os serões já começavam a cansá-la. Estava muito bem que os Weber aparecessem de vez em quando, mas três ou quatro noites por semana, em horas e dias certos, era positivamente uma coisa aborrecida. A casa não parava mais limpa, as despesas de armazém aumentavam. Depois, as crianças estavam ficando mal-acostumadas, pois Frau Weber e dona Santuzza tinham o hábito de acordá-las e tirá-las da cama tarde da noite, trazendo-as para baixo e excitando-as de tal forma, que depois era um caro custo fazê-las adormecer de novo. Além do mais, comia-se, bebia-se, cantava-se e fazia-se tanto barulho naqueles serões, que o povo até podia falar...

Nesse ponto Rodrigo atalhou a mulher com certa aspereza:

- Não me interessa o que o povo possa pensar ou dizer. A casa é minha e quem manda aqui dentro sou eu!

Flora fitou nele os olhos espantados.

- Mas Rodrigo...

- Está bem. Vou dizer ao coronel Jairo, ao padre Astolfo, aos Carbone, aos Weber e aos outros amigos que não venham mais à minha casa porque a minha mulher não quer mais saber de reuniões. É isso que queres que eu faça?

Flora cobriu o rosto com as mãos, desatou a chorar e saiu da sala precipitadamente, subindo para o quarto. Por alguns instantes Rodrigo ficou onde estava, os músculos da face tensos, a respiração lenta e funda, um calorão no corpo todo. Estavam bem arranjados se fossem dar ouvidos à boca do povo. Havia de ter graça que o Zago ou a Esmeralda Dias passassem a governar o Sobrado. O que acontecia - ah! isso ele via agora com clareza - era que Flora começava a ter ciúmes de Toni... Ficou a andar dum lado para o outro, as mãos nos bolsos, os olhos no soalho. Os soluços da mulher continuavam em seus ouvidos. Coitadinha! Não estava habituada a ser tratada com rispidez. Ele simplesmente perdera a tramontana, portara-se como um cavalo.

Olhou para o Retrato, viu-se todo de negro, de colete claro, plastrão carmesim, bengala e cartola - um dandy, um gentil-homem, um perfeito cavalheiro. No entanto tratara a esposa como um brutamontes... Aos poucos foi se sentindo invadido por uma fria vergonha. Precipitou-se para a escada, galgou os degraus quase a correr e entrou no quarto de dormir. Flora estava deitada de bruços, o rosto metido no travesseiro, o corpo convulsionado de soluços. Rodrigo sentou-se na cama e pôs-se a acariciar os cabelos da esposa, murmurando:

- Me perdoa, meu amor, fui um bruto, um animal... Olha, meu bem, estou arrependido. Quem tem razão és tu. Vamos acabar com esses serões e viver a nossa vidinha. Não precisamos de estranhos para sermos felizes.

Os soluços continuavam, cada vez mais fortes.

- Que é isso, minha flor? Escute, olhe pró seu maridinho... Magoava-o ver a mulher chorando e essa mágoa era agravada pela idéia de que fora ele o causador do pranto. Orgulhava-se de ser um marido atencioso, delicado e terno. Agora se sentia diminuído ante os olhos dela e os seus próprios.

- Meu bem, escuta...

Inclinou-se, beijou os cabelos, as faces, as mãos de Flora e depois, como os soluços dela não cessassem, encostou as próprias faces no travesseiro e, já com lágrimas nos olhos e a voz alterada, ficou a ciciar-lhe ao ouvido as mais apaixonadas juras de amor.

Em muitas daquelas tardinhas de junho, com um prenúncio de inverno no ar, Rodrigo levou os Weber de automóvel à coxilha do cemitério, para que de lá eles pudessem contemplar os fabulosos crepúsculos daquele fim de outono. Frau Weber soltava exclamações de espanto ante os cambiantes do céu. Herr Weber exprimia sua admiração num movimento repetido de cabeça: ficava como um boneco de mola a fazer que sim, que sim, que sim... No rosto de Wolfgang, cuja personalidade Rodrigo achava cada vez mais inescrutável, havia uma expressão indefinível que ora parecia tristeza ora mal contida revolta. Toni quedava-se numa contemplação muda, extática e ofegante do horizonte. Nessas ocasiões Rodrigo portava-se com um alvoroço cheio de orgulho. - "Olhem só aquele verde por baixo da nuvem cor-de-rosa... Já viram coisa igual?" - como se fosse o proprietário ou autor mesmo daqueles poentes.

Voltavam para a cidade quando Vênus já brilhava num céu em que havia muito da tonalidade e da transparência dos olhos de Toni. A presença da rapariga no automóvel a seu lado, a paz do anoitecer, o aroma de folhas secas queimadas a evolar-se das fogueiras que meninos acendiam nas ruas suburbanas - tudo isso lhe dava uma sensação de profunda felicidade na qual existia um insituável elemento de inquietação. Não raro, ao entrar em casa de volta duma dessas excursões - o corpo e o espírito amolentados por uma languidez quase triste, cortada de longe em longe por calafrios - ele chegava a se perguntar se não estaria doente. Olhava-se no espelho longamente, examinava a língua, tomava a própria temperatura...

Passava agora os dias a pensar em Toni. Nas noites em que os Weber não vinham ao Sobrado, ficava infeliz e, à medida que os minutos se escoavam, essa sensação de infelicidade se ia transformando em impaciência e era pouca ou nenhuma a atenção que prestava às palavras do coronel Jairo e do padre Astolfo, os quais, como de costume, se entregavam a intermináveis discussões sobre Deus, religião, ética, moral e história. A cada ruído de passos na calçada, a cada batida na porta, o coração de Rodrigo disparava, na esperança de ver entrar Toni.

As vezes, quando passava mais de um dia sem vê-la, inventava pretextos para ir à meia-água de janelas azuis. Levava presentes à moça - livros, bombons, perfumes - procurando fazer isso tudo com um ar desinteressado de parente mais velho, temeroso de que os pais de Toni interpretassem mal suas intenções. Mas quais eram, afinal de contas, suas intenções? Nem ele próprio sabia ao certo. Por mais que se esforçasse (e para falar a verdade nunca se esforçava muito) ao analisar os próprios sentimentos e propósitos, não conseguia ver claro neles. Duma coisa estava convencido e quanto a isso não tinha a menor dúvida, pois era algo que sentia na carne, nos nervos: gostava de Toni, necessitava de sua presença e quando a tinha perto de si, o desejo de tocá-la, de abraçá-la, de beijá-la era tão intenso, que chegava quase a doer fisicamente. Disso ele tinha certeza; quanto ao resto... Mas, que era o resto? Possuí-la? Descobrir se ela o amava? Não podia esperar que Toni pudesse levar muito longe aquele interesse por ele, um homem casado, pai de dois filhos. Não podia esperar mas esperava. Mais duma vez surpreendera a rapariga a mirá-lo dum modo que não deixava dúvidas. Duma feita, estando os dois lado a lado no auto, sua mão tocara de leve a dela. Nesse momento os olhos de ambos se encontraram e ele lera nos de Toni tudo quanto desejava saber. Ela retirara a mão, sim, desviara o olhar, mas ficara toda perturbada, o rosto afogueado, os lábios trêmulos.

Que iria acontecer agora? Seus sentimentos para com Frãulein Weber eram de tal natureza que ele já achava difícil escondê-los aos olhos dos outros. Havia instantes em que chegava a lamentar que o destino houvesse trazido para Santa Fé a Philharmonische Familie. Essas ocasiões, porém, eram raras, e, quando vinham, breves. Na maioria das vezes ele se enchia dum furioso orgulho e resolvia não renunciar a Toni, enfrentar todos os perigos, arcar com todas as conseqüências...

Era um dos primeiros serões de inverno no Sobrado (o frio chegara súbito, no dia anterior, com nuvens cor de chumbo e uma garoa gelada) e Laurinda trouxera para a sala uma grande panela cheia de pinhões cozidos, que os Weber por insistência de Rodrigo começaram a provar com desconfiada cautela, mas depois acabaram comendo com gosto.

Toríbio, que chegara inesperadamente do Angico aquele entardecer para mostrar a Rodrigo a ferida inflamada que tinha no antebraço direito, passou o serão inteiro escarrapachado numa cadeira de balanço a olhar Toni com olhinhos cheios duma curiosidade lúbrica. Rodrigo percebeu tudo e ficou contrariado. Não se mostrou muito cordial para com o irmão quando, no dia seguinte pela manhã, o levou ao consultório para o primeiro curativo. Examinou a ferida, limpou-a com um algodão embebido em água oxigenada, fez-lhe algumas perguntas profissionais e depois continuou a trabalhar em silêncio. Foi Bio quem falou primeiro:

- Eu não te disse que não devias casar?

Rodrigo ergueu os olhos mas não respondeu. Pressentindo aonde o outro queria chegar, fazia-se de desentendido. Depois de pequena pausa, disse:

- Me casei e me sinto perfeitamente feliz.

- Vai ver se eu estou ali na esquina... Pensas que eu não sei que andas querendo dormir com a alemãzinha?

- Bio!

- Te conheço das casas velhas...

Rodrigo quis protestar, zangar-se, dizer um palavrão, mas achou melhor não continuar fingindo.

- Como foi que descobriste?

- Ora, mal ela entrou, eu vi tudo.

- Não admira. Não tiraste os olhos de cima da menina a noite inteira.

- Ué, eu também gosto do que é bom.

Rodrigo achava vagamente sacrílego estarem a falar de Toni naqueles termos.

- A moça não é o que tu estás pensando.

- Eu não estou pensando nada.

Rodrigo apanhou um vidro de iodo e uma pinça.

- Então a coisa dá muito na vista? - perguntou, com um falso sorriso.

- Só não vê quem é cego. Ouve o que te digo. A Flora não é cega. Mulher enxerga longe...

- E que é que achas dessa coisa toda?

- Acho que o negócio é muito perigoso. Pode não dar certo.

- Viraste moralista?

- Vai-te pró diabo! Tu sabes que sou amigo da Flora, e não quero que ela sofra com essa história.

- Que queres então que eu faça?

- Acaba com isso.

- Não posso.

- Já dormiste com a guria?

Rodrigo encarou Bio, disposto a protestar contra a grosseria da pergunta, mas a expressão do rosto do irmão desarmou-o. Tinham demasiados pecados em comum e conheciam-se demais para guardarem segredos um do outro.

- Ainda não.

- Pois então desiste enquanto é tempo.

- Agora é tarde.

Impaciente, Rodrigo mergulhou no vidro de iodo a pinça com as pontas envoltas em algodão.

- Não te encomendei sermão...

- Já pensaste em tudo que pode acontecer?

-Já.

- Estás disposto a agüentar todas as conseqüências?

- Quem tem medo de barulho não amarra porongo nos tentos.

- Está bem. Estou só te prevenindo... Rodrigo baixou os olhos.

- Cuidado, que vai arder um pouco.

- Taca fogo. Tenho o couro grosso. Rodrigo pincelou de iodo a carne viva.

- Pensa também no velho... - acrescentou Bio, enquanto o outro lhe soprava a ferida.

- Sou maior de idade e papai não é nenhum santo.

- Te lembra ao menos das crianças.

- Ora, Bio! Estás fazendo drama quando não há nenhum drama.

- Não há mas pode haver.

- Pois que haja. Chegaste tarde com o teu sermão. Agora ninguém me ataca mais. Nem o papa.

- Puxa! Então a coisa é séria mesmo?

Rodrigo deu de ombros. Admitir que estava apaixonado era de certo modo ficar numa situação inferior. Negar seria absurdo. O Bio que pensasse o que quisesse!

Cobriu a ferida com uma pomada, pôs-lhe em cima uma gaze e depois envolveu-a com uma atadura. Por alguns instantes ficaram ambos calados.

- Quando voltas para o Angico?

- Achas que posso ir embora amanhã?

- Se é pela ferida, podes. Lava todos os dias com água oxigenada e depois bota essa pomada. Numa semana isso está seco.

Bio meteu o pote no bolso. Ao sair do consultório, aplicou uma palmada nas costas do irmão.

- Não tens mais cura - disse. E se foi, rindo.

Em princípios de julho, numa tarde em que soprava o minuano, Cuca Lopes entrou afobado no consultório da Farmácia Popular, encolhido dentro dum sobretudo seboso, o pescoço envolto numa manta de lã cor de vinho, que lhe tapava completamente a boca e parte do nariz.

- Pomba, que vento! - exclamou, com olhos lacrimejantes, desenrolando a manta.

- Então Cuca - perguntou Rodrigo -, qual é a última? Por alguns segundos ficou apreensivo, temendo que a "última" fosse algum mexerico da cidade em torno de suas relações com Toni Weber. Preparou-se para o pior.

O outro aproximou-se do bureau, esfregando as mãos.

- O irmão Jacques tirou a batina e pediu a Doralice Fagundes em casamento! O coronel Cacique ficou fulo, quase botou o padre pra fora de casa a rabo de tatu. A moça disse que vai tomar lisol. O marista anda por aí feito louco. Está um angu danado.

- Isso tudo não será invenção tua, Cuca?

- Por esta luz que me alumia... Eu vi o padre ind'agorinha à paisana!

Poucos minutos depois que Cuca Lopes se foi, Jacques Meunier procurou Rodrigo, contou-lhe seu drama e suplicou-lhe fizesse as vezes de juiz de paz: convencesse o velho Cacique a concordar com o casamento, para evitar que a história tivesse um desenlace fatal.

- Por que não me quer para genro? Por que fui marista? Mas é que sou um homem como os outros, de carne e osso!

Dizendo isso apalpava o corpo, procurando dar provas anatômicas de sua masculinidade. Rodrigo mirava-o com olho curioso. Estava já tão habituado a ver o homem dentro duma sotaina negra, que não podia deixar de achá-lo grotesco naquela fatiota cinzenta mal cortada.

- Diga ao coronel que se ele continuar irredutível na sua conduta, eu tiro a Doralice de casa!

- E o velho provavelmente lhe meterá cinco balas no corpo.

O rosto do ex-marista endureceu. Como única resposta, tirou do bolso traseiro das calças um revólver de cabo de madrepérola e mostrou-o.

- Só se ele for mais ligeiro que eu!

Rodrigo ficou surpreendido. Era-lhe difícil acreditar que aquele sujeito agitado e resoluto que tinha agora na sua frente era o tímido irmão marista que, havia pouco mais de cinco anos, lhe oferecera candidamente uma banana no trem de Santa Maria...

- Guarde o seu revólver, irmão... perdão!... professor. Vou falar com o coronel Cacique. Se eu não lhe trouxer o consentimento do homem, não me chamo mais Rodrigo Cambará. Pode ir preparando o enxoval.

- Evite a tragédia, doutor.

- Não haverá tragédia, fique descansado. Apertaram-se as mãos à porta da farmácia. Gabriel olhava para o ex-marista com olhos cheios de espanto.

- Então, como vai o Sport Club Charrua? - gritou Rodrigo, para dar à palestra um fecho menos dramático.

O rosto de Jacques Meunier iluminou-se de súbito, num largo sorriso juvenil.

- Vamos dar uma sova no Avante no próximo domingo - respondeu ele. - Uns quatro a zero no mínimo.

E se foi rua em fora, segurando a aba do chapéu para o vento não arrebatá-lo.

Rodrigo voltou para o consultório coçando a cabeça e murmurando para si mesmo: Neste mundo tudo pode acontecer. Eu já não duvido de mais nada.

Quem, entretanto, lhe proporcionou a maior surpresa do dia foi o próprio Cacique Fagundes, que ele visitou aquela mesma tarde. Esperava vê-lo sombrio ou irritado, mas encontrou-o sorridente, na melhor disposição de espírito imaginável.

- Abanque-se. Mas que milagre é esse... visitando os pobres? Rodrigo sentou-se, sério, e foi direito ao assunto. Usou da melhor dialética de que era capaz e daquele ar entre carinhoso e paternalmente autoritário que assumia com tanto sucesso à cabeceira dos doentes. Dissertou sobre a ordem dos maristas, sobre a falibilidade humana e as qualidades pessoais de Jacques Meunier. Que diabo! Os dois jovens amavam-se, eram sadios e livres e queriam unir-se em matrimônio perante Deus e os homens. Haveria coisa mais natural, mais humana, mais bela? O coronel Cacique escutou-o num silêncio pachorrento, as mãos trançadas sobre o ventre, os olhinhos entrecerrados e um risinho enigmático a encrespar-lhe os lábios gretados pelo frio. Quando o outro se calou, ele soltou um suspiro que foi quase um ronco e disse:

- Mas acontece que essa história esta resolvida. Não faz nem uma hora que dei o meu consentimento pra esse casório.

- Mas como? - estranhou Rodrigo. - Não foi isso que me disse há menos de uma hora o próprio Jacques Meunier!

- Decerto ele ainda não sabia. É que o padre Astolfo veio me ver e ficou aqui um tempão, proseando comigo e acabou me convencendo. Me explicou que marista não é bem padre como os outros e teretetê e tal, e que o homem tinha tirado a batina na legalidade e teretetê e tal, enfim, foi um verdadeiro sermão. E vassuncê compreende, o vigário fala dum lado minha patroa fala do outro, a filha lá no quarto se exclamando e querendo morrer, e as outras meninas me olhando assim como se eu fosse um bandido... O que eu quero é o meu sossego, e cuidar das minhas vaquinhas teretetê e tal e enfim quem vai dormir com esse gringo não sou eu, é a Doralice. Dei minha palavra ao vigário, mas mandei dizer pró moço que a noiva não tem dote. E eu só quero ver o que vai sair dessa cruza de estrangeiro de olho azul com cabocla de pêlo duro.

Rodrigo estava desapontado. Perdera seu latim, pois o padre Astolfo se lhe antecipara. Ergueu-se.

- Já vai? É muito cedo. Vamos tomar um amargo.

- Não, coronel, fica pra outra ocasião. Tenho muito que fazer. No corredor, a caminho da porta, murmurou: - Pois eu o felicito pela sábia resolução. Pode ficar descansado, que sua filha vai casar com um excelente rapaz. E, não tenho dúvida, o patife do francês pegou o melhor partido de Santa Fé!

- Fagundes nunca negou fogo.

Já à porta, o dono da casa indagou:

- E a política? Parece que as coisas estão ficando pretas, não?

- Pretíssimas.

- Ainda que mal pergunte, o amigo vai votar no marechal Hermes?

- Não diga isso nem brincando, coronel. Já avisei a Joca Prates que não conte comigo pra propaganda. Se o marechal foi um desastre na presidência da República, por que não deixam o homem quieto no seu canto? A troco de que vamos levar essa nulidade pró Senado? E, depois, o Rio Grande livre está repudiando essa candidatura imposta pelo mandonismo do Pinheiro Machado.

- Ué! Pensei que o senador fosse seu amigo...

- É meu amigo, sim, o homem que mais admiro neste país, mas isso não quer dizer que eu seja seu lacaio.

- Pois é, mas o dr. Borges de Medeiros diz amém a tudo quanto o senador faz. Mandou os republicanos votarem no marechal, e a carneirada vai obedecer.

- Nem todos, coronel. O partido está cindido. Temos na oposição homens como o Ramiro Barcelos, o Carlos Barbosa e parece que até o Firmino de Paula. A corrida vai ser braba.

Cacique fez uma careta de pessimismo.

- É, mas o marechal vai ganhar outra vez. O Pinheiro quando teima é pior que mula. Este país está perdido. Precisamos é duma boa revolução como a de 83.

Rodrigo sorriu.

- Se sair outra revolução, coronel, acho que desta vez nós dois vamos ficar do mesmo lado.

O dono da casa coçou o queixo, onde apontava uma barbicha rala de bugre.

- Um filho do Licurgo Cambará com lenço vermelho no pescoço? Qual, seu Rodrigo! Isso nem no dia em que as galinhas criarem dentes!

Quando, naquela tarde de domingo, Rodrigo viu Toni passar no automóvel dos Spielvogel, ao lado de Erwin, pela primeira vez em toda a sua vida sentiu ciúme - mas ciúme violento, na forma duma súbita sensação de desfalecimento, dum choque fisicamente doloroso. No momento em que o Mercedes cruzava pela frente do Sobrado, Toni avistou-o à janela e fez-lhe um aceno alegre. Rodrigo, porém, cerrou o cenho e virou-lhe as costas ostensivamente. Seus olhos deram então com o Retrato, lá na parede da sala de visitas, e ele teve a sensação de que era surpreendido por um estranho num momento de absoluta nudez espiritual em que ficavam à mostra todas as suas fraquezas.

Sentia-se diminuído, logrado, insultado. Então o que se murmurava na cidade a respeito de Toni e Erwin era verdade? Não havia comadre que não comentasse, excitada, as possibilidades daquele noivado. Ele nunca dera crédito aos falatórios, mas agora começava a ter suas dúvidas. Dúvidas? Qual! Agora tinha a certeza!

Era incrível que uma moça bonita, instruída e inteligente como Toni pudesse achar algum encanto naquele colono boçal, sardento e desengonçado. Sim, Erwin Spielvogel não valia coisa alguma: só tinha estatura física.

Se Toni não gosta do rapaz, por que é que anda sozinha com ele de automóvel? Por que vai aos bailes com aquele jerivá?

Tentou chamar-se à razão. Acontece que ela é livre, solteira, pode andar com quem quiser. Nunca me prometeu nada, prometeu?

Não, mas... e a maneira como me olha? E sua perturbação quando está perto de mim? E os apertos de mão demorados?

Imaginação tua.

Qual! Nunca me engano.

Mas desta vez foste logrado!

Começou a andar dum lado para outro. O simples fato de sentir ciúme de Erwin Spielvogel dava-lhe uma abjeta sensação de rebaixamento, feria-lhe o orgulho de homem.

Ora, eu me nivelar com aquele alemão analfabeto!

Decerto já se beijaram. Ou dormiram juntos. São do mesmo sangue, entendem-se. Pois bem. Que se casem, sejam felizes, vão pró diabo!

Acendeu um cigarro, aspirou a fumaça com força, expeliu-a num sopro cheio de raiva.

Decerto os pais de Toni é que insistem no namoro, vêem no Spielvogel um bom partido. É natural... A eterna história.

Ali! Mas não acredito que ela se deixe vender. Ora, por que não? Não será a primeira mulher no mundo a casar-se por interesse.

Mas se ela não quer, por que não lhe diz não duma vez por todas? Por que anda com o Erwin em festas e passeios?

Imaginou-se a insultar os Weber, a perguntar-lhes se a filha estava em leilão. Sim, porque se é questão de preço eu pago mais!

Envergonhava-se, entretanto, desses pensamentos. E de súbito lhe veio uma grande ternura pela rapariga, um desejo protetor de estreitá-la ao peito, beijar-lhe os olhos, as faces, a boca. E através da ternura e de todos esses desejos, o sentimento de ciúme perdurava.

Passou a tarde e a noite irritado. E no dia seguinte a irritação se agravou ao chegar-lhe aos ouvidos a notícia de que Toni havia partido em companhia dos pais para Nova Pomerânia, onde tomaria parte num Kerb. Rodrigo conhecia bem aquelas farras que duravam às vezes três dias e três noites. O que se bebia de cerveja! O que se comia! O que se cantava! O que se dançava! Toni estaria no meio daqueles rudes colonos - ela, que lia Goethe e tocava Bach. Toni, a sua Toni de olhos de água-marinha. Cantaria com os outros o Deutschlanl uber alies, e beberia à vitória das forças do Kaiser...

Bem feito! Vives te iludindo com as pessoas.

Mas não. Tudo isso deve ter uma explicação. Tira a coisa a limpo. Fala com ela. Fala claro. Abre o coração.

Não desci a tanto. Um homem tem o seu amor-próprio.

Então trata Toni como ela merece: despreza-a.

É o que vou fazer. A primeira vez que ela entrar nesta casa encontrará em mim um estranho. Está tudo acabado.

Ficou perturbado quando descobriu Maria Valéria parada junto da porta, a mirá-lo com seu olhar verrumante.

- Ué - fez ela. - Agora deu até pra falar sozinho?

- Falo e não é da conta de ninguém.

- Maroto!

Não viu Toni no dia seguinte nem durante o resto daquela semana chuvosa e fria em que seu estado de espírito oscilou entre uma melancolia depressiva - que o levava a ficar sentado ou deitado numa sonolência estúpida - e uma irritação nervosa, que o tornava impaciente com tudo e com todos.

Já não pensava mais em humilhar Toni, em feri-la com mostras de indiferença. O que queria agora era simplesmente tornar a vê-la, tê-la a seu lado. Esse desejo se lhe estava tornando uma idéia fixa, uma espécie de doença que nem por ser crónica perdia o caráter agudo. Às vezes, quando os filhos se aproximavam e tentavam subir-lhe pelas pernas, gritava:

- Flora, tira estas crianças daqui! Que diabo! Um cristão não pode ficar em paz nem na sua própria casa?

Certa ocasião, exasperado por uma travessura de Floriano, pela primeira vez bateu no filho: uma palmada seca nas mãozinhas. A criança desatou num choro sentido e Rodrigo, imediatamente arrependido, ergueu-a nos braços, apertou-a contra o peito, beijou-lhe as faces, murmurando palavras de conforto. Como o menino continuasse sacudido de soluços apaixonados, ele se comoveu também até as lágrimas e prometeu a si mesmo que dali por diante trataria de dominar-se, vencer aquela irritação que o estava transformando num sujeito azedo e intratável.

Notava que Flora havia algum tempo estranhava sua atitude, embora jamais a comentasse. Andava tristonha e meio arisca.

Passava fechada no quarto horas inteiras, ao cabo das quais saía, pálida, os olhos vermelhos e inchados.

Uma tarde de chuva, percebendo que a mulher estivera a chorar, Rodrigo tomou-a nos braços, perturbado por um sentimento de culpa, beijou-lhe os cabelos, a testa, os olhos, sussurrando-lhe ao ouvido palavras carinhosas e penitenciando-se de seu comportamento. Explicou que estava sofrendo de surmenage e que ia fazer um tratamento de fosfatos. Talvez o melhor fosse irem todos passar uma semana no Angico e "tudo, meu amor, tudo dentro de pouco vai voltar à normalidade". Sorriu e pediu um sorriso à mulher. Flora, porém, mirava-o com seus olhos escuros e sérios, o rosto anuviado por uma expressão de constrangida tristeza. E seus lábios se recusavam a sorrir.

A chuva continuava a cair fina e mansa. Fazia quase uma semana que os Weber não apareciam no Sobrado. Onde estaria Toni? - pensou Rodrigo aquela mesma tarde no consultório, vendo da janela o chuvisqueiro cair tristemente sobre as árvores da praça. Por onde andará essa ingrata? - murmurou, encostando a testa no vidro que seu hálito embaciava.

Num impulso calçou as galochas, vestiu o impermeável, pôs o chapéu e saiu. Achou agradável o contato gelado da garoa no rosto escaldante. Seus passos o levavam para a rua do Poncho Verde. O que ia fazer era tolo, juvenil, ridículo, indigno dum homem de sua idade, de sua posição. Podia dobrar a esquina e tomar outro rumo, ir direito ao clube, entrar numa roda de pôquer ou ficar bebendo um conhaque com o Saturnino. No entanto aproximava-se cada vez mais da casa dos Weber. Ou via Toni ou estourava. Lá estava a meia-água caiada, triste sob o céu enfumaçado. Aproximou-se da casa com o coração aos pulos e uma ardência na garganta. Bateu à porta, uma, duas, três vezes, primeiro em pancadas curtas e fracas, depois repetidamente, com força. Fez uma pausa. A porta continuou fechada. Tornou a bater. Um vizinho apareceu à janela de seu chalé e gritou: "Não tem ninguém em casa, doutor. Os Weber foram tocar numa festa na colônia". Sem ao menos agradecer pela informação, Rodrigo fez meia-volta, com a desnorteante sensação de ter sido pilhado no momento em que tentava arrombar uma casa para roubar. Voltou sob seus passos, com um sentimento de malogro, entrou na farmácia, casmurro, sentou-se numa cadeira e ficou a olhar para o cartaz colorido em que havia um pescador de suíças com um bacalhau às costas. Santuzza Carbone aproximou-se dele com um papel na mão. Era a conta do armazém. Queria saber se o doutor não achava que deviam mudar de fornecedor, porque os preços... Atalhou-a, brusco:

- A senhora faça o que entender e o que fizer estará muito bem-feito.

O dr. Carbone passou de avental branco, a caminho da sala de operações. Fez um gesto amistoso:

- Hérnia estrangulada. Quer me ajudar?

- Não.

- Ciao, carino!

Rodrigo meteu-se no consultório, fechou a porta a chave, atirou o chapéu sobre a mesa e sentou-se. Toni outra vez em Nova Pomerânea! Teria ido com o idiota do Erwin? Era o que ele desejava ardentemente saber. Pensou em telefonar para a firma Spielvogel e chamar Erwin sob qualquer pretexto, a fim de verificar se ele estava ou não na cidade. Oh! Mas isso era dum ridículo de matar! Sentiu-se mais uma vez ferido no seu orgulho de macho. E essa fétida ardia, sangrava e, como Toni fosse a causa de tudo, odiou-a. Mas nem por isso desejou com menos urgência vê-la.

Esperou com ansiedade a festa de aniversário de Flora, para a qual os Weber haviam sido convidados.

Pouco antes das oito horas começaram a chegar os convidados. Chiru Mena, que como de costume deixara a esposa em casa ("coitada da Norata sempre envolvida com os guris") apareceu enfarpelado na roupa do casamento, trazendo pelo braço tia Vanja apertadinha num vestido de rendão preto que cheirava a baú velho.

O padre Astolfo entrou em companhia do coronel Jairo, cuja esposa, havia algumas semanas, tinha partido para o Rio de Janeiro, fugindo a mais um inverno gaúcho. Liroca infiltrou-se no Sobrado à sua maneira discreta, e só muito tempo depois de começado o serão é que Rodrigo, surpreso, deu com ele num canto do escritório a picar fumo. Ao contrário de José Lírio, os Carbone irromperam ruidosamente, distribuindo abraços e beijos e enchendo de presentes os braços de Flora.

Aderbal Quadros, que chegara do Sutil aquela tarde com a mulher, envergava uma roupa de casimira preta e tinha os pés apertados em botinas de elástico: trazia ao pescoço um lenço branco de seda, pois "só depois de morto é que me botam colarinho duro". Andava dum lado para outro nas salas a pitar seu cigarrão de palha.

Sobraçando os estojos dos instrumentos, os Weber entraram pouco depois, envoltos numa aura de alfazema e naftalina. Rodrigo recebeu-os no vestíbulo com uma cálida cordialidade. Frau Weber beijou-lhe ambas as faces. Herr Weber apertou-lhe a mão, sacudindo-a repetidamente, os olhos claros cheios dessa expressão vazia de quem não sabe com quem está falando. Rodrigo não prestou a menor atenção ao que Wolfgang lhe disse no momento de cumprimentá-lo, porque seus olhos estavam já postos em Toni, que recostava o estojo do violoncelo contra o consolo.

Mas seria mesmo Toni quem ali estava a olhar furtivamente para o espelho e a umedecer faceiramente os lábios com a ponta da língua? Rodrigo franziu a testa. Achava-a mais alta, mais adulta, mais mulher, e isso não só o surpreendia como também lhe aumentava o desejo de possuí-la. Que se passara com Frãulein Weber? Ah! Cortara as tranças, penteara o cabelo em bandos, calçava sapatos de salto alto...

Caminhou para ela de braços estendidos, tomou-lhe de ambas as mãos e beijou-as num doce estonteamento. E no momento em que a ajudava a tirar o casaco, apertou por alguns segundos os ombros dela, aspirou-lhe a fragrância dos cabelos e murmurou: "Tenho sentido muita falta de ti..."

Toni nada disse. Caminhou para Flora, que naquele instante vinha a seu encontro, e ambas as mulheres apertaram-se as mãos.

Rodrigo voltou a cabeça e viu a própria imagem refletida no espelho: a face dum homem de orelhas afogueadas e olhar apaixonado. Ajeitou a gravata num gesto automático e acompanhou o grupo que se dirigia para a sala de visitas.

Abriu duas garrafas de champanha, encheu as taças dos convivas e por fim ergueu a sua:

- Nesta data, precisamente há cento e vinte e seis anos, na cidade de Paris caia a Bastilha, e exatamente nesta data há...

Olhou para a mulher e sorriu:

- Posso dizer?... Há vinte e cinco anos nascia a Flora. O primeiro acontecimento foi de importância capital na História da Humanidade. O segundo, decisivo na história da minha vida. Eu poderia citar os nomes de Robespierre, Marat, Danton, Saint-Just e dezenas de outros como os heróis do primeiro fato...

Olhou para o casal Quadros, que estava sentado no sofá e prosseguiu:

- Mas ali estão os dois responsáveis pelo segundo acontecimento. É à saúde de Flora e à deles que eu bebo.

Todos ergueram as taças e beberam. Rodrigo beijou a testa da esposa, em cujas orelhas faiscavam os brincos de brilhante que ele lhe dera aquela manhã como presente de aniversário.

O relógio de pêndulo bateu nove badaladas. O Sobrado estava cheio duma alegre algazarra. Como de costume as mulheres se haviam reunido na sala de visitas; os homens tinham ficado no escritório.

Espremida no sofá entre Frau Weber e dona Santuzza, tia Vanja comentava o noivado de Jacques Meunier e Doralice Fagundes.

- Bem como nos romances! Dir-se-ia uma página saída duma obra de Gaboriau ou Perez Escrich... Quem havia de imaginar, não é mesmo? O amor tudo pode e a constância tudo vence. Deus, na sua infinita sabedoria, deve ter compreendido as necessidades do moço. E de resto, mais vale um bom marido que um mau padre! Frau Weber escutava a tia de Chiru com ar atencioso, e como não entendesse o que ela dizia, limitava-se a sorrir e a sacudir a cabeça. Dona Santuzza, desatenta à conversa, seguia com o olhar o marido que naquele momento atravessava a sala, entrava no escritório, batia no ombro de Rodrigo e entregava-lhe um papel.

- Que é isso, dr. Carbone?

O cirurgião fez o amigo ler uma cópia da carta que naquele dia ele dirigira ao cônsul da Itália em Porto Alegre, oferecendo seus serviços médicos ao exército de Sua Majestade o rei da Itália. Rodrigo passou os olhos distraidamente por aquelas linhas, compreendendo apenas aqui e ali o sentido duma frase - o suficiente para ver que a coisa toda era uma mistura de patriotismo de ópera, imagens dannunzianas e jargão cirúrgico.

A um canto do escritório Babalo contava a Liroca suas proezas no Sutil: a próxima colheita de trigo, planos de comprar um touro Polled Angus, nome este que ele aportuguesava, reduzindo-o a "culango".

Impassíveis e pétreas como um par de cariátides, Maria Valéria e Titina, sentadas lado a lado, os braços cruzados sob os xales, olhavam a cena com uma serenidade crítica. E Flora, com o prato de croquetes numa mão e o de pastéis na outra, andava de conviva em conviva, servindo-os.

Vindo da cozinha, Chiru entrou na sala com uma perna de galinha na mão, a mastigar com gosto. Olhando para o lenço vermelho cuja ponta sobressaía do bolso superior do paletó do "velocino de ouro", o coronel Jairo perguntou:

- Como vai a situação política, sr. Mena?

Chiru arrancou mais um naco de carne da perna da galinha, antes de responder:

- A coisa está feia, coronel. Acho que vai haver barulho. Havia menos de duas semanas, Borges de Medeiros, que estava gravemente enfermo, passara o governo do Estado ao vice-presidente, general Salvador Pinheiro Machado. Por toda a parte os ânimos andavam exaltados por causa da candidatura de Hermes da Fonseca à senatoria. O dr. Ramiro Barcellos, republicano dissidente, aceitara finalmente a sua em contraposição à do marechal. O Comitê Central Acadêmico de Porto Alegre telegrafara a Rafael Cabeda e Fernando Abbott fazendo-lhes um apelo para que apoiassem a campanha de Ramiro Barcellos contra o que ele chamava de "a ignomínia da candidatura marechálica".

- A esta hora - disse Chiru - está havendo um meetíng em Porto Alegre, na praça Senador Florêncio. E as orelhas do marechal e do senador Pinheiro devem estar ardendo...

Jairo pôs a mão no ombro do interlocutor:

- Nunca em toda a História de nossa pátria houve homem público mais injustamente atacado e difamado do que o marechal Hermes!

- Injustamente? - estranhou Rodrigo.

- E por que não? - retrucou Jairo com veemência. A caricatura, a imprensa oposicionista e a malícia popular ajudadas pela insídia dos inimigos do marechal, haviam-no apresentado ao país como um imbecil, um débil mental, quando na verdade ele era um homem culto e talentoso, um grande estrategista, o único chefe militar sul-americano que realmente impressionara o Estado-Maior do Kaiser.

- Xô mico! - exclamou Babalo. E, num eco, Liroca repetiu: "Xô mico".

- Além disso - prosseguiu o coronel -, Hermes da Fonseca era um homem honesto, decente, de vida privada limpa e coração generoso. Sim, não negava que em seu governo tivesse havido excessos, inépcias, erros... Mas pode um presidente da República ser responsável por tudo quanto acontece no imenso território nacional? A Hermes da Fonseca, o exército devia sua reorganização e muitos estados a extinção de suas odiosas oligarquias.

Rodrigo não prestava mais atenção ao que o amigo dizia, pois estava com o olhar e a atenção voltados para Toni, que conversava animadamente com o padre Astolfo junto à porta da sala de jantar. De repente a moça atirou a cabeça para trás e soltou uma risada. Rodrigo sentiu-a como uma carícia que lhe percorreu o corpo inteiro, num calafrio.

Desviou o olhar da Frãulein e fitou-o no irmão, que lá estava no escritório, sentado em silêncio ao lado do pai. Que diabo terá o rapaz? - tornou a perguntar a si mesmo. A proximidade de Wolfgang causava-lhe certo mal-estar. Achava-o demasiadamente belo, duma beleza feminina, e isso de certo modo o ofendia. Enfim...

Naquele instante Flora tomou o braço de Toni e levou-a para o fundo da casa. O padre Astolfo aproximou-se do grupo masculino.

- Já discutindo política? - perguntou, sorridente, apoiando os cotovelos no respaldo duma cadeira.

Aderbal ergueu os olhos para o vigário.

- Eu estava dizendo ao coronel que o dr. Júlio de Castilhos está fazendo uma falta danada. O partido está dividido. O Borjoca se deixa engambelar pelo Pinheiro Machado, faz tudo o que ele quer...

Babalo - refletiu Rodrigo, olhando para o sogro - não deixava apagar-se nunca sua lâmpada votiva ao pé do altar de São Júlio de Castilhos. Por sua vez Liroca vivia a acender velas de libra diante da imagem de São Gaspar Martins. Aqueles dois exemplos de fé e devoção deixavam-no comovido.

- O Borges não tem vida pra muito tempo - declarou Chiru, de maneira peremptória.

- Deus te ouça! - murmurou Liroca. E o coronel Jairo lançou-lhe um olhar de reprovação.

- Não diga uma coisa dessas, sr. Lírio. O dr. Borges de Medeiros é um dos maiores estadistas vivos do Brasil!

- Xô mico! - E o rosto de Liroca de súbito mudou de expressão quando ele avistou Maria Valéria que entrava com um prato de pastéis fumegantes, recém-saídos da frigideira.

Rodrigo procurava Toni com os olhos. Para onde diabo teria Flora levado a menina? Era angustiante tê-la sob o mesmo teto e não poder sequer aproximar-se dela.

Chiru segurou o braço de Rodrigo, arrastou-o para perto da janela e segredou-lhe:

- Já reparaste no jeito do Weberzinho olhar para ti?

- Não. Por quê?

- Aquilo é paixão, menino, e paixão cabeluda.

- Deixa de bobagem!

- Meu olho nunca me engana. Não é de hoje que eu venho observando a coisa. Disfarça e olha... é como se não existisse mais ninguém nesta casa, só tu.

Rodrigo ficou embaraçado, pois de repente compreendia certas coisas que antes lhe pareciam obscuras. Sempre notara no olhar do rapaz uma expressão estranha que lhe tornava insuportável encará-lo. E agora ele recordava o dia em que Wolfgang lhe aparecera no consultório, queixando-se de dores no peito e pedindo-lhe um exame geral. Ele lhe dissera: "Tire o casaco e a camisa", aproximara-se da pia e ali ficara a lavar demoradamente as mãos. Ao voltar-se, vendo o rapaz completamente despido, murmurara com certa irritação: "Não era necessário..." E ficara contemplando conturbado aquele adolescente que ali estava de braços caídos, nu, alvo e louro como um jovem deus da mitologia germânica. E o rapaz mirava-o com um olhar súplice, ansioso, tristonho, e pelo pulsar acelerado de sua veia jugular Rodrigo podia avaliar o ritmo daquele pobre coração. Era uma situação embaraçosa. "Sente-se" - ordenara com rispidez. O rapaz obedecera. Ele lhe auscultara os pulmões e o coração descompassado, apressando-se a dizer: "O senhor não tem nada de orgânico. Deve ser uma dor muscular". Receitara-lhe um linimento e mandara-o embora. E agora que Chiru lhe dizia aquelas coisas embaraçosas, ele via toda a cena a uma nova luz.

- Deixa de bobagem! - repetiu.

- Atiraste no que viste e acertaste no que não viste. A vida é assim mesmo, rapaz.

Aquela referência velada a Toni exasperou Rodrigo, que fechou a cara.

- Proíbo-te de me tocares outra vez nesse assunto. E se contares isso a outra pessoa, palavra que corto as relações contigo.

- Está bem, não te ofendas, está bem. Este peito é um túmulo.

Quando Rodrigo voltou para o grupo, Jairo fazia a defesa de Borges de Medeiros e da ditadura republicana positivista, a qual, a seu ver, seria a única salvação para o Brasil. E o coronel que chegara um tanto macambúzio à festa falava agora com paixão, de pé, a gesticular na frente do vigário.

- Que panorama oferece nossa época? - perguntou. - O da mais profunda e desoladora anarquia moral e mental. Ninguém acredita em mais nada, não se adora nem sequer a deusa Razão, como os revolucionários de 1789, mas a deusa Dúvida...

- Nem todos, coronel - protestou o vigário - nem todos...

- As velhas bases intelectuais e morais da humanidade ruíram por terra por culpa do regime que por tanto tempo dirigiu os destinos da humanidade: o católico feudal.

- Mas o senhor se esquece - obtemperou o padre, com seu jeito ponderado e respeitoso - do serviço que o feudalismo prestou ao mundo com as Cruzadas, por exemplo...

- Ali! Mas depois das Cruzadas o catolicismo perdeu toda a iniciativa social e ficou numa triste dependência dos poderes políticos. O que tem feito de lá para cá é simplesmente tratar de sobreviver...

- O que não é pouco - observou Rodrigo, com os olhos a andar dum lado para outro, em busca de Toni.

Babalo alisava uma palha de milho com a lâmina da faca, dando ao que o coronel dizia uma atenção meio céptica.

- Isso é o que diz Comte - reagiu o padre. - Mas o que nós católicos lemos na história é coisa muito diferente.

- Ora - prosseguiu o coronel, apanhando distraidamente um croquete -, o regime feudal se foi aos poucos decompondo à medida que o espírito positivo e a atividade industrial se iam desenvolvendo. E que aconteceu quando a velha organização tombou desfeita em pó? Não havia nada para substituí-la. Em suma: a humanidade necessitava e necessita ainda hoje duma doutrina de caráter geral, uma doutrina social e religiosa capaz de constituir um regime para esta nossa época desencantada.

- Creio que o senhor saltou por cima de alguns capítulos importantes da história universal - observou Rodrigo, no momento exato em que Woifgang lhe lançava mais um de seus olhares desconcertantes. - Onde fica a Revolução Francesa?

O positivista fitou o croquete que tinha entre os dedos, e franziu a testa:

- A revolução de 89 apenas apressou a derrubada do velho regime, mas acabou insistindo na metafísica revolucionária, que é uma arma de destruição e não de construção, pois está baseada no princípio da negação de todo o governo e de toda a organização social. Em suma: o passo que se deu com a Revolução Francesa não foi à frente. Foi, por mais paradoxal que pareça, à retaguarda.

Começou a comer o croquete.

- Heresia! - exclamou Rodrigo.

- A crise social em que nos debatemos começou no século XIV e se tornou mais aguda ainda depois da Revolução Francesa.

Naquele momento Toni voltava à sala de visitas. O dr. Carbone aproximou-se da moça, enlaçou-lhe a cintura, tomou-lhe uma das mãos e começou a dançar com ela uma valsa de opereta, que ele próprio trauteava.

Patife! - pensou Rodrigo. Ali estava a vantagem de usar barbas. Como é que posso parecer um tio inofensivo com esta cara rapada, e todo perfumado de Chantecler de Caron?

Tornou a encher a taça de champanha e bebeu um prolongado sorvo.

- Qual é então - perguntou o padre - a solução que o coronel propõe? - Precisamos duma nova fé, reverendo.

- E que é que há de errado na velha?

- A vossa fé diz respeito às coisas e às almas do outro mundo ao passo que estamos precisando duma fé que ponha em ordem as coisas e a gente deste mundo.

- Mas este mundo é apenas uma passagem para o outro, coronel. E o grande problema não é apenas de ordem política, mas antes de natureza moral.

- De pleno acordo! Temos de fazer que a reorganização mental e moral preceda a reorganização política. Necessitamos regular o quanto antes as relações entre a família e a sociedade.

- Só quem pode fazer isso é a Igreja, com a sua autoridade moral.

- E por que não o fez nestes quase dois mil anos de sua existência? Mas não mudemos o rumo desta palestra, caro reverendo. Veja bem o meu ponto de vista. A única coisa capaz de evitar as perturbações sociais oriundas da anarquia espiritual em que nos debatemos é a criação duma autoridade temporal verdadeiramente poderosa, capaz de efetuar a regeneração moral e mental da humanidade, criar, em suma, uma nova fé.

- Uma ditadura? - exclamou Rodrigo.

- Sim - confirmou o coronel. - Não a ditadura orgulhosa, cruel e desumana preconizada pelo nosso Rubim, mas a ditadura republicana positivista.

Babalo escutava o coronel, muito sério, como a fazer um esforço para compreender aquela dissertação. Rodrigo não conseguiu decifrar a expressão do rosto de Liroca: não era de perplexidade ou confusão, mas de aborrecimento temperado de leve ironia: era como se o velhote achasse que tudo aquilo não passava de conversa fiada.

Rodrigo deu um passo na direção do coronel, segurou-lhe um dos botões da túnica e, com voz já um pouco arrastada, disse:

-- Pois permita que eu faça mais uma vez a minha declaração de princípios. Creio nos direitos do homem e em todas as conquistas da Revolução Francesa. Creio na liberdade, na igualdade e na fraternidade. Numa palavra: creio na democracia.

- Mas, meu amigo...

- Não me interrompa, coronel, por favor. Quero terminar o meu pensamento. Acredito no progresso e, como Saint-Just, acho que a felicidade é possível sobre a Terra. O que vai pôr essa felicidade ao nosso alcance, no que diz respeito ao conforto material e à saúde, é a ciência, a ciência aplicada. Estamos no limiar duma grande era!

Aquele princípio de embriaguez dava-lhe um otimismo exaltado e fácil.

- Neste momento - prosseguiu - a grande tarefa que temos pela frente é a de derrotar o Kaiser e as forças da barbárie, limpando o caminho para a democracia. Não tenho a menor dúvida: vamos entrar na idade de ouro da História!

- Pois eu... - começou Jairo. Mas de novo Rodrigo o interrompeu.

- Olhe, coronel, não tenho a menor simpatia pelos Estados Unidos, mas admiro a Constituição dos yankees, que reza: "Todos os homens foram criados iguais... etcétera... etcétera... etcétera...

O coronel segurou-lhe com força ambos os braços:

- A influência norte-americana na Constituição brasileira é uma influência anárquica e retrógrada. Quisemos fazer uma imitação empírica da República americana e qual foi o resultado? Acabamos caindo na metafísica parlamentar.

- Pois eu sou pelo Parlamento - afirmou Rodrigo, já desinteressado da discussão, a vasculhar a sala com o olhar. (Toni, onde estás, meu bem?)

- O regime parlamentar é caro e inoperante - replicou o positivista.

Naquele momento Carbone aproximou-se do gramofone e pô-lo a funcionar. Amato rompeu a cantar a grande ária d'O barbeiro de Sevilha. Chiru fez uma careta e tapou os ouvidos com as mãos. Olhando para Weber, que comia o mingau que Flora acabava de lhe trazer, Rodrigo teve a impressão de que o maestro sofria: para ele ópera era cacofonia, caricatura musical. Já Cario Carbone, esse estava feliz, andava de grupo em grupo, com a taça na mão, em passinhos de ballet a cantarolar com o barítono - Fígaro, Fígaro, Fígaro! Parecia um gnomo bêbedo em meio duma floresta.

Rodrigo deixou os amigos e acercou-se de Toni. Era horrível não poder ficar a sós com a Fraulein, levá-la para algum canto escuro daquela casa, ou pô-la dentro do Ford e sair com ela a andar pelo campo sob as estrelas.

- Está gostando da festa? - perguntou.

- Epatanti - exclamou ela. - Vraiment épatant, mon ami. E de novo ele se viu como um peixe imóvel no fundo daqueles dois lagos de água-marinha. Ia dizer-lhe um galanteio, mas com o rabo dos olhos viu que Titina e Maria Valéria o vigiavam como cães de fila.

Santuzza ergueu-se, pegou no braço de Toni e convidou-a a subir para ver ''i bambini". Sem esperar a aquiescência da menina, arrastou-a consigo.

Gringa maldita! - pensou Rodrigo. Será que fez isso de propósito, porque desconfia de alguma coisa? O remédio era beber mais, mais, sempre mais. Trouxe da cozinha outra garrafa de champanha, abriu-a no meio da sala, com estardalhaço, encheu sua taça e bebeu como quem se dessetenda. O barbeiro de Sevilha cessou de cantar. Chiru postou-se na frente do gramofone e gritou para Carbone, que se aproximava:

- Se o senhor me bota outra chapa nós nos estranhamos!

- Bogante! - sorriu o cirurgião. E com a piteira riscou o colete branco do outro. - Que belo ventre para uma laparotomia!

Chiru acercou-se, mesureiro, de mamã Weber.

- Por que a senhora não toca alguma coisa, dona Frau?

A austríaca sorriu, encolheu os ombros e ergueu as mãos espalmadas: não entendia a pergunta. Rodrigo traduziu o pedido.

Frau Weber caminhou para o piano, abriu-o, fez girar o assento do banco, sentou-se e começou a tocar uma valsa de Chopin. A princípio todos escutaram em silêncio, mas em breve as conversas se reataram, primeiro em murmúrios e cochichos, depois livremente, em tom natural.

Quando Rodrigo tornou a entrar no escritório, o coronel ainda atacava o sistema parlamentarista. Seria um regime de desigualdade - dizia - em que só teriam representantes os fazendeiros de café e de gado, os usineiros de açúcar e o alto comércio. Como acontecera no tempo do Império, seriam eleitos apenas os que possuíssem dinheiro, posição social, qualidades de orador ou bons padrinhos. Em suma: o parlamentarismo era o governo da burguesia!

- Mas poderá haver regime realmente republicano - perguntou Rodrigo - sem Parlamento, isto é, sem a participação no governo dos representantes do povo?

- É uma ilusão imaginar que os parlamentares seriam verdadeiros representantes do povo. O povo nunca os elegeu e jamais os elegerá. O povo vota em quem os chefetes locais mandam. E, depois, veja quanto custa um Parlamento. E o povo terá de pagar por um luxo de que ele não tira o menor benefício. De resto, todos sabemos que o sufrágio universal é uma farsa...

O padre fez um gesto que exprimia o seu desacordo. Rodrigo encheu a taça dos amigos.

- Em suma - disse o padre Astolfo -, o que o senhor preconiza é um ditador...

- Padre, não pronuncie com tanto desprezo a palavra ditador. Digamos antes que o governo ideal será o de um estadista, veja bem o sentido desta palavra, um estadista capaz de exercer a ditadura republicana, a qual, segundo Augusto Comte, deve concentrar todo o poder político, deixando a uma câmara, com um número reduzido de membros, as funções puramente financeiras.

- É o que temos no Rio Grande! - disse Rodrigo.

- Para felicidade vossa e do resto do Brasil.

- Não estou muito certo disso...

Jairo voltou a cabeça para o dono da casa e mirou-o com uma expressão de surpresa.

- Mas o meu caro amigo não vai candidatar-se a um lugar na Assembléia, indicado pelo partido governista? Rodrigo sorriu:

- Também disso não estou muito certo... O padre olhou para dentro de sua taça.

- Mas quem é que vai fiscalizar essa sua admirável ditadura, evitando que o ditador cometa excessos, o que é de se esperar dum ser humano falível?

- A opinião pública! - exclamou o coronel. - No dia em que o ditador tentar entravar o progresso social, o povo o forçará a demitir-se.

- Como? insistiu o vigário. - Senhor de baraço e cutelo, o ditador poderá perpetuar-se no poder, abafando pela força ou pela fraude essa opinião pública!

- A própria Câmara será o porta-voz da opinião pública, negando-se a votar impostos.

Falácias, coronel - retrucou o padre Astolfo -, falácias.

Não precisamos ir muito longe para achar um exemplo de bom republicanismo positivista. O vosso Estado segue o ideal de Comte no que diz respeito à liberdade espiritual. O governo do dr. Borges de Medeiros é progressista e social e não se imiscui em crenças e doutrinas religiosas. Dá plena liberdade de discussão e reunião, de sorte que o povo, bem informado, será sempre o melhor fiscal do governo. O mal da civilização teocrática foi a fusão do poder temporal com o espiritual. O governo político tem de evitar o terreno teórico.

A valsa terminou. Houve aplausos distraídos.

- E que é que os senhores positivistas querem dizer - perguntou o vigário, puxando o lóbulo da orelha - com a "incorporação do proletariado à sociedade moderna"?

Rodrigo sentou-se pesadamente. Por que o padre provocava o coronel? Assim não havia nenhuma esperança de que o homem se calasse. Que importava a ele, Rodrigo, a ditadura positivista, o dr. Borges de Medeiros, Augusto Comte e a confusão mental do Ocidente? Seu corpo ardia de desejo pelo de Toni. Não havia partícula de seu ser que não estivesse faminta de Toni dum modo cálido, latejante, insuportável. Por onde andaria ela? Ah! Se eu pegasse essa guria sozinha num desses cantos escuros...

Lá estava o dr. Carbone a encher de novo a taça de champanha. Como podia caber tanta bebida num corpo tão pequeno? Quis erguer-se e fazer esta pergunta em voz alta ao cirurgião, mas deixou-se ficar sentado, num estonteamento que lhe dava desejos de dizer e fazer tolices.

O coronel estava inflamado. O proletariado - discursava -, produto da época industrial pacífica que se seguira à Idade Média, havia ficado à margem da sociedade. Seus membros ganhavam pouco, viviam expostos à fome e à miséria, eram uma mancha na face da Terra. Ora, os diretores das indústrias que se beneficiavam do trabalho desse proletariado, deviam assegurar-lhe melhores condições de vida. Os ricos não cumpririam jamais esses deveres se não fossem forçados a isso sob a pressão da opinião pública esclarecida. Assim era necessário um novo sacerdócio, uma nova fé para esclarecer essa opinião pública. Era indispensável uma religião definitiva baseada na liberdade de crença e culto e no livre exame.

- Mas até onde - perguntou o padre - devem ir essas liberdades?

- Até o ponto em que não ponham em perigo a ordem pública. E ouça mais isto, meu caro vigário, essa nova fé de que tanto necessitamos deve ser o fundamento duma verdadeira educação nacional que abranja todas as ciências, desde a matemática até a moral...

Rodrigo tinha vontade de gritar: "Calem a boca! Que importa a matemática e a moral? O que eu quero é a Toni, a Toni, a Toni! O mais é conversa".

- O poder temporal - prosseguiu Jairo - deve governar apenas os atos. As doutrinas e as opiniões, a fé, em suma, são coisas que pertencem ao reino da consciência e devem ser deixadas ao arbítrio de cada indivíduo.

O padre parecia estar empenhado em dilacerar a própria orelha.

- Tudo isso é muito confuso, coronel.

- E vós aqui no Rio Grande do Sul tendes no dr. Borges de Medeiros o homem capaz de exercer essa benéfica ditadura científica. É um estadista duma probidade indiscutível, um verdadeiro varão de Plutarco. Seu governo tem sido modelar. Conseguiu o milagre do equilíbrio orçamentário e criou para o resto do Brasil um padrão exemplar de honestidade.

Achegou-se ao padre e pousou-lhe ambas as mãos nos ombros:

- E a divisão de terras entre os colonos, obra de seu governo, é o primeiro passo sério que se dá neste país no sentido de arrancá-lo do regime feudal no qual de certo modo ele ainda se encontra!

Sentou-se, ficou por alguns instantes a olhar para o padre e depois, à guisa de remate:

- O progresso - disse - é o desenvolvimento da ordem. Não poderá haver progresso sem ordem. E só poderemos conseguir ordem e progresso se combinarmos inexoravelmente o estado ditatorial com o republicano. O primeiro assegurará a ordem mediante a autoridade e o segundo garantirá o progresso por meio da liberdade.

Babalo e Liroca trocaram um olhar céptico.

Chiru levou a tia Vanja para casa antes das dez, segredando ao ouvido de Rodrigo que não voltaria, pois Saturnino o esperava para uma vagabundagem noturna. Babalo e Titina estavam já recolhidos a seus aposentos quando o vigário e o coronel fizeram as despedidas e saíram juntos de braços dados. Ninguém viu quando Liroca se esgueirou da sala como um ladrão, apanhou no vestíbulo o chapéu e a bengala e ganhou a rua.

Flora, que acabava de descer, murmurou para Rodrigo:

- Sabes o que aconteceu pra dona Santuzza? Estava cantando pras crianças dormirem e acabou também pegando no sono. Agora estão os três na nossa cama...

Rodrigo sorriu.

- Quero só ver como é que vamos remover de lá aquela baleia...

Cario Carbone, completamente bêbedo, começou a dançar sozinho no meio da sala uma fantástica tarantela, sob o olhar reprovador de Maria Valéria, que o observava muito séria, sentada na sua cadeira de balanço.

Herr Weber ergueu-se, tirou o relógio do bolso do colete, olhou o mostrador e fez um sinal para o resto da família.

- Não senhor! - protestou Rodrigo. - É muito cedo. Agora é que a festa vai ficar boa. Titia, mande vir mais um mingau pró maestro!

Foi empurrando o austríaco cordialmente na direção duma cadeira e obrigando-o a sentar-se de novo. Num assomo de cordialidade abraçou Wolfgang.

- Toque um pouco de cordeona - pediu.

O rapaz tirou o instrumento do estojo, acomodou-o sobre as coxas e arrancou um acorde que encheu a casa.

Flora sentou-se com um suspiro de canseira. Maria Valéria levou a mão à boca para abafar um bocejo.

- Uma valsa! - pediu Rodrigo.

Wolfgang começou a tocar a valsa d'A viúva alegre, e Toni, Frau e Herr Weber, Rodrigo e Flora puseram-se a acompanhar a melodia com movimentos de cabeça. Carbone olhava fixamente para Herr Weber e, quando a valsa terminou, ergueu um dedo acusador na direção do maestro e disse com voz solene:

- Um submarino austríaco há torpedeado o cruzador italiano Amalfi. Maledizione!

Herr Weber mirava-o com seus olhos ausentes, mas em seu rosto havia uma vaga expressão de alarma. O cirurgião continuou.

- Eu devia te odiar, tedesco duma figa, mas tu sei mio fratello in Cristo. Io te bacio Ia faceia!

Aproximou-se de Herr Weber, tomou-lhe a cabeça com ambas as mãos e aplicou-lhe um sonoro beijo em cada face. Rodrigo bateu-lhe nas costas com tanta força que Carbone quase caiu por cima do austríaco.

- Bravo, doutor! Isso é que é espírito cristão.

Carbone recuperou o equilíbrio e disse algo que ninguém ouviu, pois o som da cordeona abafou-lhe a voz. La paloma.

Rodrigo namorava Toni com olhos famintos. Wolfgang olhava para Rodrigo, que Flora também observava disfarçadamente. Herr Weber piscava: o sono já lhe havia jogado areia nos olhos. Mas quando Wolfgang, inesperadamente, entrou a tocar a Pequena fuga, o maestro sorriu, voltou-se para Rodrigo e gritou-lhe com uma alegria de criança:

- Bach!

O outro fez com a cabeça um sinal afirmativo. Afinal de contas até Bach lhe cabia bem aquela noite. Olhou para a Dinda, que parecia balouçar-se na cadeira ao ritmo de fuga. O mistérios do mundo! Bach, a cadeira da velha Bibiana, Maria Valéria, o Sobrado, a guerra e Toni, sobretudo Toni. A vida era misteriosa, absurda e bela. E como era bom estar vivo!

Wolfgang fez uma pausa, ficou a olhar para a janela, com uma expressão noturna nos olhos de cílios longos. Rodrigo aproximou-se de Toni, tomou-lhe ambas as mãos e disse em português:

- Agora a minha sobrinha vai interpretar alguma coisa no seu violoncelo.

Traduziu a frase para o francês e Toni fez um sinal de assentimento. Naquele momento Wolfgang rompeu a tocar o Boi-barroso. Frau Weber desatou a rir. Flora empertigou-se na cadeira, como se tivesse despertado de súbito, e Cario Carbone começou a andar ao redor da peça, em passo de cake-walk.

No meio da confusão, Toni deixou apressadamente a sala. Rodrigo seguiu-a, numa insensata esperança. (É agora ou nunca!) Entrou no vestíbulo. Lá estava a Fraulein a mirar-se no espelho. Correu para ela, agarrou-a pelos ombros, fê-la dar meia-volta, puxou-a contra o peito e beijou-a com furor. Sua boca sugou como uma ventosa os lábios da rapariga, que no primeiro momento ficou como que paralisada, o corpo retesado numa instintiva atitude de defesa. Em seguida, porém, ele sentiu que os dedos dela entravam em seus cabelos, numa carícia desordenada, e que aquele corpo quente, tenro e palpitante não apenas se entregava, mas procurava também o seu. Pôs-se a beijar-lhe as faces, a testa, os olhos, numa pressa gulosa. A boca de Toni então tomou a iniciativa, colou-se avidamente à sua, o que o deixou desatinado. Suas mãos começaram a percorrer o corpo da Fraulein, numa ânsia cega e dilaceradora. Sentindo, porém, que ela desfalecia - a cabeça atirada para trás, os olhos semicerrados, um débil gemido a escapar-lhe da boca entreaberta - teve de enlaçar-lhe a cintura para que ela não caísse. Passou-lhe pela mente uma idéia alucinada; erguê-la nos braços, subir a escada e levá-la para um dos quartos, lá em cima... Mas o corpo de Toni tornou a enrijar-se e, desvencilhando-se dele, a rapariga apanhou o violoncelo e se foi quase a correr, rumo da sala de visitas.

Aturdido, Rodrigo desceu a escada, abriu a porta e saiu. Seu corpo inteiro latejava de desejo, o coração descompassado. Sentia ainda nos lábios a pressão dos lábios de Toni, e nas narinas o perfume de seus cabelos. Pôs-se a andar meio às tontas na calçada, depois atravessou a rua na direção da praça, meteu a mão no bolso, tirou um cigarro, prendeu-o entre os dentes e, esquecido de acendê-lo, sentou-se num banco e dali ficou a olhar, ofegante, para as janelas iluminadas do Sobrado. Ela me ama... ela me ama... ela me deseja... ela é minha. O resto não importa. O resto é nada.

Cuspiu longe o cigarro. Só aos poucos é que foi tendo consciência do ar frio da noite e do fato de estar com a cabeça descoberta. Levou as mãos às faces e sentiu-as escaldantes. Tirou outro cigarro do bolso e acendeu-o com dedos trêmulos. Chegavam agora até ele, vindos de sua casa, os sons aveludados do violoncelo. Rêverie. Rodrigo ficou a escutar... E a melodia caiu como um doce óleo sobre as queimaduras de seu desejo, mas não as apaziguou: deu-lhes, isso sim, uma esquisita pungência. E de novo ele teve vontade de ver Toni. Ergueu-se, passou a mão pelos cabelos, ajeitou a gravata e tornou a atravessar a rua.

O relógio bateu a última badalada da meia-noite. Flora estava já recolhida. Maria Valéria, depois da ronda habitual, subira para o quarto. Os Carbone dormiam, completamente vestidos, num dos quartos do andar superior. O casarão estava silencioso. Sozinho na sala de visitas, Rodrigo olhava para o próprio retrato e pensava em Toni. O efeito do champanha havia passado: bebera havia pouco uma xícara de café preto, sem açúcar. Sabia que não poderia dormir ali estava a fumar, inquieto, com um sentimento de irritação que lhe vinha do desejo insatisfeito - um desejo que já agora era mais do cérebro que propriamente do corpo. Aonde iria ele parar com aquela obsessão pela rapariga? Conhecia-se suficientemente bem para saber que não descansaria enquanto não a possuísse e que, mesmo depois de possuí-la, seu apetite por ela não ficaria saciado, pois havia de querer tê-la mais vezes, muitas vezes... Até quando, santo Deus, até quando? Pensou em Flora com um sentimento de culpa. Ela não merecia aquilo... Deu uma palmada no respaldo da poltrona, ergueu-se de súbito e começou a andar dum lado para outro. Pensou nas conseqüências que aquela aventura podia ter, mas sabia - com que profundeza, com que plenitude, com que certeza! - sentia que agora era tarde demais para recuar, mesmo que quisesse.

Ficou olhando para a cadeira junto do piano aberto - a cadeira onde Toni se sentara para tocar a Reverte. Era ridículo, absurdo, mas ele envolvia na sua ternura erótica até o violoncelo de Toni, como se o instrumento fosse uma parte anatómica daquele corpo querido.

Enfiou o sobretudo e o chapéu e saiu. Parou na calçada, indeciso. Não seria melhor avisar Flora de que ia sair? Deu de ombros. Fechou a porta a chave e começou a andar, as mãos nos bolsos, o cigarro pendente dos lábios. Era uma noite clara, grilos trilavam, estrelas luziam, cachorros latiam em ruas longínquas. Seus passos soavam solitários na calçada, levando-o para a rua do Poncho Verde. Rodrigo deixava-se conduzir. Que adiantava pensar? O instinto sempre tinha razão, e o instinto o levava para Toni. O resto era covardia. Talvez fosse uma caminhada perdida, uma excursão platónica de namorado que se contenta apenas com ver a casa onde sua bem-amada está dormindo. Mas Toni não podia estar dormindo. Se estivesse, que se rasgassem então todos os tratados de psicologia e que ele, Rodrigo, atirasse aos cachorros sua experiência das mulheres. O mundo estava errado - concluiu, parado à esquina, a contemplar a meia-água dos Weber. Lá dentro daquela casinhola vivia uma mulher de vinte anos que o amava, e ali fora estava ele a arder de desejo por ela. Não havia na natureza nenhuma razão por que não se juntassem e amassem. No entanto, erguia-se entre ambos um muro, e um muro transparente, feito de convenções, mentiras, hipocrisias, fraquezas. Estava tudo errado, tragicamente errado - refletiu mordendo o cigarro e aproximando-se vagarosamente da casa. No fundo, a solução do problema era uma questão de coragem. E coragem era o que não lhe faltava.

A janela do quarto de Toni dava para um terreno baldio. Rodrigo aproximou-se dela, pisando de leve, e ficou a escutar e a olhar para as vidraças. Não viu o menor sinal de luz: a casa estava silenciosa e às escuras. Chegou a levantar a mão para tamborilar nos vidros com a ponta dos dedos. Mas conteve-se. Seria uma temeridade: os outros podiam ouvir. Talvez Toni tivesse trocado de quarto... E mesmo que isso não houvesse acontecido, teria ela coragem de abrir a janela? Recostou-se na parede, e de repente o ridículo da situação caiu sobre ele, deixando-o com uma sensação de frio interior.

O melhor era voltar para casa - decidiu, contrariado. Mas naquele exato momento ouviu um ruído e seu coração disparou. Viu entreabrir-se a gelosia. Deu alguns passos e postou-se à frente da janela. Aos poucos a gelosia se foi abrindo e à luz do luar ele divisou o vulto de Toni por trás da vidraça. Por alguns segundos ambos ficaram imóveis, como que presos dum mesmo sortilégio. Depois Rodrigo acercou-se da janela e com sinais pediu à Frãulein que erguesse a vidraça. Ela, entretanto, continuava imóvel, com um ar de sonâmbula. Rodrigo encostou nos vidros as mãos espalmadas e tentou erguer a guilhotina. Toni procurou detê-lo com um gesto, mas, como ele insistisse, veio ajudá-lo. E estava ainda de braços erguidos, tratando de prender a guilhotina, e já Rodrigo lhe enlaçava a cintura, beijava-lhe as faces, os olhos, procurava-lhe a boca. Os braços da moça desceram e envolveram-lhe o pescoço, e de novo ele lhe sugou os lábios, cortando-lhe a respiração. Quando lhe deu um alento, ela murmurou: "Por amor de Deus, vá embora!" Rodrigo sentia-a toda trémula - de medo, de frio, de amor? - e seus braços ora o repeliam ora o chamavam. "Por tudo quanto é sagrado neste mundo" - suplicava ela - "vá embora!"

Como única resposta Rodrigo largou-a, firmou-se com ambas as mãos no peitoril e saltou para dentro.

No momento exato em que saía do quarto de Toni, pulando para o terreno baldio, um galo cocoricou num quintal próximo. (Galo cantando fora de hora: moça roubada.) Ficou por um instante acocorado onde tinha caído. Depois ergueu-se e começou a andar por entre as ervas respingadas de sereno, na direção da rua. Sentia-se aéreo e trémulo, com um vácuo no crânio. Tinha a sensação de que caminhava dentro dum sonho. A noite, o ar frio e o silêncio das ruas desertas contribuíam para essa impressão de irrealidade. Ao alcançar a calçada oposta, fez alto, voltou-se e ficou contemplando a casa de Toni. Sentiu um aperto no coração, uma súbita fraqueza e começou a chorar. As lágrimas escorriam-lhe pelas faces e ele não procurava enxugá-las. Tirou um cigarro do bolso, levou-o à boca e acendeu-o. Ficou a fumar, a fungar e a olhar ora para a meia-água dos Weber ora para a lua, que luzia sobre os telhados úmidos. Pensou comovido naquela menininha que nascera havia vinte anos num subúrbio de Viena, freqüentara um colégio de freiras onde aprendera a falar francês e a tocar violoncelo, naquela menininha que percorreu léguas e léguas e léguas de terra e mar para vir entregar sua virgindade a um Cambará num quartinho recendente a alfazema, lá naquela meia-água caiada. Algo de assustadoramente importante acontecera no universo: depois duma separação de milhões e milhões de anos, dois corpos celestes de órbitas diferentes se haviam encontrado. O mundo não poderia continuar a ser o mesmo depois desse encontro.

Pôs-se a andar na direção de sua casa, ouvindo mentalmente vozes familiares - a do pai, a da esposa, a da madrinha. "Fizeste mal a uma moça." Até tia Vanja lhe apareceu no pensamento, censurando-o: "Ai, cabecinha de ébano, desonraste uma donzela!" Rodrigo queria sentir remorso pelo que acabara de fazer, procurava achar-se indigno, pois talvez por meio da auto-recriminação pudesse até certo ponto redimir-se perante... Perante quem? Perante si mesmo? Mas a verdade é que não se sentia culpado de nenhum crime. Amava Toni e Toni o amava. O que fizera não fora premeditado (ou fora?). Como podia saber que ela era virgem? Ora! um incidente anatômico. Mas não era bem assim, ele sabia que não era. Toni ia sofrer. Viriam complicações. Santo Deus! Se eu faço coisas como essa é porque estou vivo, vivo, vivo!

Mesmo que vivesse mil anos jamais poderia esquecer os momentos que passara na perfumada escuridão daquele quarto. Sentia uma certa pena de Toni. Sim, pena, porque para ela aquele episódio erótico representara sofrimento. Não fora apenas um dilaceramento físico, mas também psicológico, moral. Ah! O quanto a criaturinha relutara, mesmo depois que estavam na cama. Defendera-se durante um tempo que a ele parecera uma eternidade. Eram os seus preconceitos religiosos, seus escrúpulos com relação a Flora e até às crianças... Por fim, todas aquelas inibições se sumiram, ele como que as apagara a beijos, bem como uma esponja apaga riscos de giz num quadro-negro. Recordava com uma nitidez pungente a crise de desespero de que Toni fora tomada depois que o irremediável acontecera. Lembrava-se também da própria surpresa ante o acesso de ternura que se seguira a crise de desespero, uma ternura que aos poucos se fora aquecendo até transformar-se num desejo que levara Toni a se lhe oferecer, mas dessa vez num abandono completo. Rodrigo pensava também no longo período de calma em que ambos tinham ficado, enlaçados na cama, peito contra peito, ventre contra ventre, coxa contra coxa, perna contra perna, a respirarem um dentro da boca do outro sob a calidez das cobertas - quietos, mudos, num delicioso torpor - ele a sentir as lágrimas dela a caírem-lhe no peito numa cócega úmida. E quando Toni lhe sussurrara ao ouvido que era hora de se separarem, ele se despegara dela com a dolorosa impressão que lhe arrancavam metade do próprio corpo.

Começou a assobiar distraidamente a Reverte. Que iria dizer Flora se a encontrasse acordada? Cheirou as próprias mãos, temendo que conservassem ainda o perfume de Toni. Se houvesse água quente em casa, tomaria um banho de corpo inteiro antes de deitar-se... Encolheu os ombros, fatalista. De qualquer modo Flora ia desconfiar de que algo de extraordinário se passara com ele. Era viva e tinha uma intuição agudíssima.

Avistou o Sobrado e, como acontecia sempre, a casa lhe deu uma sensação de segurança e proteção. Atravessou a rua em passos apressados e, quando ia meter a chave no buraco da fechadura, ouviu um ruído de passos e uma voz.

- Rodrigo!

Fez meia-volta. Um vulto aproximou-se. Era o Neco.

- Que sorte eu te encontrar!

- Que foi que houve?

- Aconteceu uma coisa horrorosa. Em Porto Alegre a Brigada Militar dissolveu a bala o comício dos estudantes contra a candidatura do marechal.

- Não diga!

Mataram cinco pessoas e feriram umas trinta. Uma barbaridade, um banditismo!

- Como foi que soubeste?

Acaba de chegar um telegrama pró coronel Prates.

Rodrigo olhou na direção da Intendência e viu uma janela iluminada.

- Vamos até lá.

Encontraram o coronel Joca Prates em companhia do delegado de polícia e do secretário municipal. Tinham os três o aspecto sombrio.

- Então, já soube? - perguntou o primeiro.

Rodrigo sacudiu afirmativamente a cabeça, sentou-se numa poltrona e ficou a olhar por cima da cabeça do intendente para o busto do dr. Júlio de Castilhos que ali estava contra a parede, sobre pequena coluna de granito polido. Com um certo constrangimento, o coronel Prates lhe resumiu o texto do telegrama: o piquete da Chefatura fora obrigado a carregar contra os manifestantes, que estavam perturbando a ordem.

- Mas é uma monstruosidade! - bradou Rodrigo. - Não há nada que justifique atirar contra os estudantes, contra o povo. Na certa, havia mulheres e crianças nas ruas, não?

Joca Prates encolheu os ombros. Rodrigo pôs-se de pé.

- Essa candidatura desastrada está dividindo o nosso partido e vai acabar lançando o estado numa nova guerra civil!

Num silêncio estúpido, o intendente olhava fixamente para o telegrama que jazia sobre o bureau. Rodrigo apanhou o papel e leu. O despacho esclarecia que o comício correra em perfeita ordem e que a intervenção da força policial se fizera mais tarde, quando os manifestantes percorriam em préstito a rua dos Andradas, gritando vivas e tentando perturbar a ordem.

- Canalhas! - murmurou ele. - É a história de sempre. Quem tem força abusa dela.

Depois, encarando firme o intendente, acrescentou:

- Vou passar um telegrama de protesto ao presidente do estado e outro ao presidente da República. E vou telegrafar também ao senador Pinheiro dizendo que me envergonho de pertencer a um partido cujos chefes não trepidam em espingardear o povo.

O delegado olhava espantado do intendente para Rodrigo. O secretário municipal limpava as unhas com a ponta dum canivete.

- Tenha calma, doutor - pediu Joca Prates. - Não se precipite. A gente não sabe direito como foi a coisa.

- Só sei é que há cinco mortos e trinta feridos. Para mim é o quanto basta!

- Pode ter havido provocação.

- A desculpa de sempre! O que acontece é que nossos governantes não toleram oposição. Nossa democracia é apenas de fachada. Estou farto dessa farsa!

Neco olhava para o amigo com afetuosa admiração.

- Se o dr. Borges de Medeiros estivesse no governo - murmurou o delegado - nada disso acontecia...

- O dr. Borges não é diferente dos outros - replicou Rodrigo. - O que ele quer mesmo é eternizar-se no poder.

- Aí bichão! - gritou Neco Rosa, com ar belicoso. Rodrigo enfiou o chapéu na cabeça.

- Vou passar agora mesmo pelo telégrafo...

- Está fechado - atalhou-o Joca Prates. E essa informação prática, que valeu como um jorro d'água fria sobre seu fervor cívico, irritou Rodrigo.

- Pois passarei amanhã de manhã. O intendente soltou um suspiro.

- É sempre bom a gente dormir em cima dos casos. O travesseiro é o melhor conselheiro.

Rodrigo voltou-lhe as costas e saiu da Intendência acompanhado de Neco.

Na praça encontraram Chiru e Saturnino, que já sabiam da notícia. Ficaram a conversar, sentados sob a figueira grande. Chiru achava que ia rebentar uma revolução. Saturnino, com seu ar reservado e grave, dizia que preferia aguardar os jornais para ler os detalhes e formar um juízo definitivo com conhecimento de causa. Rodrigo pensava já em barricadas.

- Eu dava o braço direito pra estar na rua da Praia na hora em que o piquete carregou contra o povo. Mas queria estar armado e com algumas caixas de balas no bolso! Corja!

- Enquanto o senador Pinheiro estiver vivo, este país não pode viver em paz - declarou Chiru.

Rodrigo pensava em Toni. Que noite! Suas idéias eram um tumulto.

Ele precisava fazer algo de violento para descarregar os nervos. Que horas seriam? Chiru tirou o relógio do bolso, Neco riscou um fósforo e aproximou-o do mostrador: duas menos cinco.

Rodrigo despediu-se dos amigos e entrou em casa. Agora uma espécie de feroz alegria apoderava-se dele. Tinha na mente uma efervescência de planos. Sim, era preciso lutar, tomar posição. Deixaria o Partido Republicano, escreveria uma carta ao dr. Fernando Abbott aderindo aos democratas. Faria ali em Santa Fé e arredores a propaganda de Ramiro Barcellos... Só de pensar na luta seu peito como que inflava de esperança e alegria.

Acendeu a luz da sala de visitas e ficou por alguns instantes parado na frente do Retrato. O outro Rodrigo lá estava no topo da coxilha, a olhar para o futuro com certa arrogância.

Tens cinco anos menos que eu, rapaz, mas não te invejo, porque estás preso nessa tela e eu estou livre, e vivo, compreendes? Livre e vivo! E, caso ainda não saibas, comunico-te que Toni é minha. E que pretendo romper com o partido e com o senador. Daqui por diante sou um homem novo. O que vai acontecer não sei, nem quero saber. Só sei que vai ser divertido.

Como estivesse com fome, entrou na sala de jantar, abriu uma lata de língua em conserva, tirou algumas fatias de pão do guarda-comida e improvisou uma ceia. Comeu com uma pressa nervosa, mastigando com muito ruído. Abriu uma garrafa de vinho Borgonha e bebeu sofregamente três cálices cheios. Depois, subiu. Não acendeu a luz do quarto para não acordar a mulher. Despiu-se em silêncio. Trazia ainda no corpo (ou era apenas nas narinas?) o perfume de Toni.

- Rodrigo?

- Sou eu, não te assustes.

- Que horas são?

- Mais de duas.

- Onde é que andavas?

- Às voltas com o coronel Prates. Aconteceu uma coisa horrível em Porto Alegre.

Contou-lhe tudo. Flora soergueu-se na cama. O luar caía-lhe agora em cheio no rosto estremunhado e Rodrigo encheu-se duma súbita ternura pela mulher.

- Nossa Senhora, que será que vai acontecer? - balbuciou ela.

- Seja o que Deus quiser.

Flora tornou a deitar-se e ficou de olhos entreabertos, pensativa. Rodrigo estendeu-se a seu lado e puxou-a contra si, achando gostosa a proximidade daquele corpo quente.

- Este país não tem compostura... - murmurou ele.

- E tu vais te meter também nessa questão?

- Já estou metido, meu bem.

- Ora...

Rodrigo sentia o latejar das têmporas. Estava excitado, sabia que não poderia dormir aquela noite. Começou a acariciar os ombros da mulher.

- Tem modos, Rodrigo. É tarde.

- Que é que o relógio tem a ver com essas coisas?

Um desejo que a princípio foi apenas do cérebro ("Tens o olho maior que o estômago" - ralhou a Dinda) começou aos poucos a tomar-lhe conta do corpo e a regular a intensidade e o ritmo de suas carícias.

- Que homem impossível! - resmungou Flora. E entregou-se.

No dia seguinte Rodrigo leu no Diário do Interior de Santa Maria pormenores dos acontecimentos da noite de 14 de julho.

O meeting na praça Senador Florêncio, organizado pelo Comitê Central Acadêmico contra a candidatura do marechal Hermes, terminara por volta das oito horas da noite, sem incidente. A massa que comparecera ao comício se dissolvia em ordem pelas ruas adjacentes quando os estudantes espontaneamente se organizaram num préstito e subiram a rua dos Andradas vivando nomes de políticos da oposição. Quando os manifestantes defrontavam os cafés Gioconda e América alguns acadêmicos resolveram dirigir o préstito rumo das redações dos jornais. A rua dos Andradas estava atestada de gente - homens, mulheres, crianças que tinham ido assistir ao comício ou se dirigiam para os cinemas.

Os soldados do piquete da chefatura de polícia, de prontidão desde o anoitecer, fizeram junção com a escolta presidencial à esquina da rua General Câmara e, sem que houvesse da parte dos civis a menor provocação, desembainharam suas espadas e arremessaram os cavalos contra os manifestantes. A multidão foi tomada de pânico. Gente corria para todos os lados, aos gritos, procurando abrigo nos cinemas, cafés e casas comerciais que ainda estavam de portas abertas. Muitos tombavam, golpeados pelas espadas dos soldados ou derrubados pelos seus cavalos. Outros rolavam sobre o calçamento, pisoteados pelas patas dos animais. O terror era indescritível. Ouviram-se vários estampidos. Alguns populares reagiam e alvejavam a tiros de revólver os soldados que, por sua vez, atiravam contra o povo com seus Nagants, em descargas cerradas. Num largo trecho de rua houve uma confusão medonha de gritos de raiva, dor e medo, de mistura com o estrépito de patas, estampidos e tinir de ferros.

Quando tudo serenou, viam-se estendidos pelas calçadas e sobre o pavimento da rua cerca de vinte e cinco pessoas, das quais cinco mortas ou agonizantes. Um dos mortos era um acadêmico que cursava o último ano de medicina. (Emocionado, Rodrigo leu: uma das figuras mais salientes da Faculdade de Medicina, moço distinto, verdadeira expressão da intelectualidade rio-grandense.) Havia sangue nas calçadas, nas pedras da rua, nas paredes...

Os telegramas davam detalhes horripilantes. No meio da rua jazia morto um desconhecido com a testa perfurada por um ferimento de bala que lhe punha à mostra a massa encefálica. Durante a luta, um soldado caíra do cavalo e fora apanhado e arrastado por um automóvel que passava no momento...

- É monstruoso! - exclamou Rodrigo, dobrando o jornal e atirando-o sobre a mesa.

O padre Astolfo e o coronel Jairo, que naquele dia haviam almoçado no Sobrado, achavam-se sentados na frente do amigo, ambos sérios e apreensivos.

- Logo no dia do aniversário da Constituição do estado! - disse Rodrigo. -- Da vossa famosa Constituição positivista, coronel, tão cheia de amor pela Humanidade.

Jairo cofiou o bigode com dedos incertos.

- O meu amigo não vai culpar a Constituição pelo que aconteceu. Nem o dr. Borges de Medeiros, que não está no governo.

- Qual! - retrucou Rodrigo. - O general Salvador Pinheiro Machado é um preposto do dr. Borges. São vinho da mesma pipa.

Floriano entrou na sala, aproximou-se do padre e puxou-lhe a manga da batina, murmurando: "Cavalo". O vigário sorriu, fez o menino montar-lhe nos joelhos, tomou-lhe ambas as mãos e pôs-se a sacudir as pernas.

- E depois - continuou Rodrigo - está se vendo que a coisa toda foi premeditada. Na noite do comício o piquete da chefatura está postado na rua Sete, de prontidão. A escolta presidencial também se acha alerta, nas proximidades do palácio. Na rua Riachuelo está o primeiro regimento de cavalaria. Santo Deus! Pra que tudo isso? Será que o comício dos estudantes ia pôr em perigo o regime?

- A coisa toda deve ter outra explicação... - arriscou Jairo. Floriano ria, atirando a cabeça para trás, e o padre agora sacudia as pernas com maior rapidez, pondo o "cavalo" a galope.

- Explicação coisa nenhuma! - vociferou Rodrigo. - Veja o que diz o jornal. Quando terminou o comício, as forças da Brigada Militar foram-se aproximando da rua dos Andradas. Está clara a premeditação. O chefe de polícia devia ser demitido e julgado como um criminoso vulgar!

Laurinda entrou trazendo uma bandeja com três xícaras de café fumegante. Os homens serviram-se. Rodrigo bebeu o seu dum sorvo só e sentiu o líquido descer-lhe escaldante pelo esôfago.

Quando, alguns minutos mais tarde, Joca Prates entrou no Sobrado, Rodrigo correu para ele e, sem dar-lhe sequer a oportunidade de cumprimentar os presentes, empurrou-o para cima duma cadeira.

- Sente-se e ouça o telegrama que passei hoje de manhã, e cujo texto será publicado em seção livre pelos principais jornais do Rio Grande, dentro de dois dias.

Tirou do bolso um papel, desdobrou-o e leu:

Senador Pinheiro Machado. Palácio Monroe. Rio de Janeiro. Revoltado e envergonhado ante os bárbaros acontecimentos da noite de 14 de julho último, em que o governo de vosso irmão não hesitou em mandar espingardear o povo indefeso, inclusive mulheres e crianças, nas ruas de Porto Alegre, comunico-vos que acabo de me desligar do Partido Republicano, pois não posso continuar pertencendo a um grémio político cujos chefes com tanta freqüência recorrem à brutalidade e ao assassínio, na estúpida e criminosa ilusão de que as patas dos cavalos de sua Brigada Militar e as armas de seus beleguins e capangas possam abafar os gritos e anseios de liberdade do nobre e bravo povo gaúcho. Aproveito a oportunidade para manifestar o meu repúdio à nefasta candidatura do marechal Hermes, que em tão má hora resolvestes eleger senador, para escárnio do Rio Grande e do Brasil.

Terminada a leitura, Rodrigo tornou a dobrar o papel, metendo-o no bolso num gesto brusco que valeu como um vigoroso ponto final.

Joca Prates coçou a coroa da cabeça, embaraçado.

- O senhor botou fora a sua candidatura. O senador não vai lhe perdoar nunca mais esse telegrama...

Rodrigo encolheu os ombros.

- Que me importa? Por esse preço não quero ser nem presidente da República.

- Pois é uma pena. Ia dar um deputado de mão-cheia. Podia prestar muitos serviços à sua terra...

- Não faltarão capachos!

Durante aquele resto de julho e as duas primeiras semanas de agosto, Rodrigo geralmente deixava o Sobrado às oito da noite, metia-se no clube, jogava várias mãos de pôquer e, quando o sonolento relógio do bufete dava a última batida das doze, ele saía, encaminhava-se para a rua do Poncho Verde, ficava a rondar a casa dos Weber, com os olhos postos na janela do quarto de Toni. Se a vidraça estava erguida (haviam convencionado sinais) e só a gelosia fechada, esgueirava-se para o terreno baldio, achegava-se à janela e assobiava ou tossia baixinho. Toni vinha abrir cautelosamente a gelosia e ele saltava para dentro.

Quando, porém, encontrava a vidraça descida - e isto era o que acontecia na maioria das noites - passava ao largo, e seu cálido desejo pela rapariga era violentamente cortado pelo gelo da decepção, e à medida que se afastava da meia-água a sensação de malogro ia aumentando de tal forma, que ao chegar ao Sobrado ele se punha a fumar cigarro sobre cigarro, no silêncio do escritório deserto, a andar dum lado para outro, impaciente, agastado, com agonia de fazer um gesto violento que lhe descarregasse o peito, livrando-o daquela angustiante impressão de abafamento. Dificilmente ficava a sós com Toni mais duma vez por semana, e mesmo quando, vencidas as dificuldades - alguma janela aberta e iluminada nas vizinhanças, um passante inesperado que o obrigava a dar voltas ridículas ao redor do quarteirão -, conseguia pular para dentro do quarto, nem sempre podiam gozar por completo daquela intimidade, pois ficavam ambos cheios de apreensões e sustos, sobressaltando-se aos menores ruídos da casa: uma viga ou móvel que estalava, uma tosse ou arrastar de pés nos quartos contíguos... Até mesmo o rumor de vozes e passos vindos da rua deixava-os perturbados. E na penumbra daquela pequena peça, deitado com a rapariga nos braços, Rodrigo sentia dum modo tátil o medo que agitava a criaturinha. E, como por um processo de osmose, esse medo passava para seu próprio corpo, deixando-o desinquieto e ao mesmo tempo humilhado. Sabia que sua vida não corria perigo, mas a possibilidade de ser descoberto naquele quarto causava-lhe um temor quase infantil. Detestava a idéia de ver-se envolvido num escândalo. Pensava com horror no ridículo de ser pilhado a saltar da janela, como um gatuno...

Nos breves instantes que passavam juntos naquele universo morno e sombrio, falavam pouco e, quando o faziam, era um sussurro, um no ouvido do outro. Rodrigo sentia que esses cochichos lhe aguçavam o desejo, pois davam a sensação de que as palavras saídas da boca de Toni eram como dedos a lhe roçarem a orelha, numa cócega úmida e morna. A verdade é que não necessitavam falar. Seus corpos diziam tudo quanto era indispensável dizer, e as mãos e os lábios possuíam uma eloqüência e uma sutileza que faltavam às palavras.

No entretanto, terminada aquela espécie de luta corporal que se avizinhava da epilepsia, quando os dois ficavam lado a lado, numa calma exausta e meio triste - mais duma vez ele sentira que devia dizer alguma coisa, fazer alguma promessa, lançar enfim uma luz sobre o futuro. Esforçava-se, mas em vão, por encontrar palavras convincentes e ao mesmo tempo tão leves que não ofendessem Toni. No entanto, o mais que conseguia era balbuciar "eu te quero, eu te quero muito" - enquanto seus dedos se metiam pelos cabelos dela ou passeavam numa carícia esfrolante pela nudez dos seios e do ventre.

Rodrigo em geral pagava esses minutos de prazer com dias e dias de separação de Toni, vendo-a apenas na rua, de longe e fortuitamente, ou então quando ela vinha ao Sobrado em companhia do resto da família. Nestas últimas ocasiões ele continuava a representar o papel do titio cordial e meio trocista, esforçando-se por não trair seus verdadeiros sentimentos. Não cessava, porém, de olhar de instante a instante para Flora, tratando de ler-lhe os sentimentos e os pensamentos através da expressão fisionómica, querendo ansiosamente saber se ela desconfiava ou não do que se passava. Quanto a Toni - coitadinha! -, ficava no seu canto, mais silenciosa e acanhada que nunca, e pelos seus gestos, olhares e palavras, Rodrigo percebia que a menina estava a debater-se numa terrível luta de consciência.

Havia momentos em que ele pensava, apreensivo, no futuro. Não queria perder Flora e era-lhe insuportável a idéia de ficar diminuído perante os olhos dela. Achava que não poderia ser feliz sem seu amor, sua admiração, seu respeito. Sabia, sem a menor sombra de dúvida, que não cessara de amar a esposa. Que diabo! Não era possível catalogar os sentimentos, metendo-os em escaninhos numerados. O coração humano era um poço de mistérios e contradições. Sim, ele amava também Flora. Tinha ainda por ela a mesma afeição dos tempos de namorado e noivo. (Olhava para o Retrato e o outro Rodrigo parecia dizer-lhe: "A mesma? Ou quase a mesma?") Certas noites desejava a mulher legítima com uma intensidade de amante e isso o alegrava, pois de certo modo esse desejo o redimia - pelo menos perante si mesmo - do pecado de amar e desejar Toni Weber.

Tratava Flora com um carinho redobrado. Prometera levá-la a Buenos Aires, onde assistiriam à temporada lírica do Teatro Cólon. Não perdia ocasião de fazer-lhe elogios, principalmente na presença de terceiros. "Como estás linda hoje, meu bem." "Esse vestido te fica uma maravilha, meu amor." "Como é possível ficares mais bonita à medida que o tempo passa?"

Nos momentos em que o remorso não o picava e seu espírito parecia aceitar sem nenhum atrito aquela situação ambígua, comprazia-se em fazer confrontos. Flora era um fruto sazonado e tenro, de sumo alcalino. Toni, uma fruta meio verde, de polpa rígida e sabor agridoce.

Às vezes, à hora das refeições, contemplando a mulher e como que redescobrindo nela as feições que tanto o haviam atraído - o rosto oval dum moreno desmaiado, os olhos amendoados de expressão serena e límpida - ficava enternecido e mentalmente se dizia os piores nomes.

Bolas! Só porque apareceu na minha vida essa austríaca não quer dizer que eu vá deixar de amar e respeitar minha mulher, adorar os meus filhos, gostar da minha casa!

Maria Valéria mirava-o com freqüência dum jeito que o deixava desconfiado. Teria ela farejado alguma coisa? Não raro, depois do meio-dia ele se deitava no sofá da sala, com a cabeça pousada no regaço da madrinha, que ficava a fazer-lhe cafuné. Numa dessas ocasiões, a propósito de nada, a Dinda lhe dissera em voz muito baixa: "Se tiver de fazer alguma patifaria, faça de jeito que sua mulher não descubra, ouviu?" Seu primeiro ímpeto fora o de explodir num protesto. Achou melhor, porém, manter-se num mutismo cauteloso.

Os amigos continuavam a comparecer ao Sobrado, onde os serões de inverno tinham um sabor especial na sala aquecida por uma estufa de querosene, cujo cheiro evocava a Rodrigo a lanterna mágica de sua infância.

Andava ele agora intrigado com a atitude de Wolfgang, que não lhe dirigia mais aqueles longos olhares apaixonados, mas sim relances rápidos em que se podia perceber um mal contido ressentimento. Desconfiaria o rapaz de alguma coisa? Quanto a Frau e Nerr Weber, não haviam mudado. Ela ainda lhe beijava as faces, afirmando que ele era o mais belo homem do mundo. O maestro continuava a contemplá-lo com aquele olhar em que havia um misto de gratidão e perplexidade. E pela maneira natural e afetuosa com que Flora continuava a tratar Toni, Rodrigo chegava à reconfortante certeza de que sua mulher não suspeitava de nada.

Em meados de agosto leu com emoção no Correio ao Povo um dos últimos discursos de Pinheiro Machado, ficando particularmente impressionado pelo seu tom dramático:

É possível que durante a convulsão que sacode a República em seus fundamentos possamos submergir. É possível. É possível mesmo que o braço assassino, impelido pela eloqüência das ruas, nos possa atingir. Afirmamos, porém, aos nossos correligionários que, se esse momento chegar, saberemos ser dignos de vossa confiança. Tombaremos na arena, fitando a grandeza da nossa pátria, serenamente, sem maldição nem desprezo, sentindo tão-somente compaixão para com aquele que assim avilta a nobreza inata do brasileiro.

Rodrigo sabia que o senador não era homem que dissesse tais coisas levianamente, com o intuito apenas de criar uma auréola de martírio em torno de sua cabeça. Como conseqüência das últimas eleições, nas quais ficara iniludivelmente assegurada a vitória do marechal Hermes - eleições em que mais uma vez a oposição se declarara esbulhada, fraudada e coagida -, a atmosfera do país estava carregada de ressentimentos e ódios, e muitos políticos, publicistas e demagogos tratavam de instigar o povo contra a pessoa de Pinheiro Machado, cujo assassínio era abertamente pregado em comícios no Rio de Janeiro. Um deputado federal chegara a dizer da tribuna da Câmara que, se apresentasse um projeto, seu artigo primeiro seria: "Elimine-se o sr. Pinheiro Machado".

Já em princípios daquele ano o senador reunira em sua residência do morro da Graça os representantes do Rio Grande, exortando-os a manterem-se unidos para o bem da República, caso ele viesse a tombar assassinado. Em palestra com o jornalista João do Rio, confiara-lhe: "Morro na luta, menino. Eles me matam. Mas pelas costas. São uns 'pernas-finas'. Pena é que não seja no Senado, como César. Há de ser na rua. Morro em defesa da República".

Contavam-se histórias que ilustravam bem a atitude serena e impávida do senador em meio dessas malquerenças e ameaças. Duma feita, ao passar de automóvel por meio duma multidão exaltada que, havia pouco, gritava insultos a seu nome, disse em voz alta ao chofer, para que todos ouvissem:

- Só tire o revólver quando eu tirar o meu. Só dispare o seu primeiro tiro depois que eu tiver disparado o meu.

E o automóvel passou pelo meio da multidão, onde se fizera de súbito um silêncio respeitoso.

Noutra ocasião, ao deixar o Senado, a cuja porta se aglomeravam populares dispostos a vaiá-lo, instruiu o chofer:

- Siga. Não tão depressa que possam pensar que tenho medo, nem tão devagar que possa parecer acinte.

Quando um amigo bajulador assegurou que o país inteiro seria convulsionado caso atentassem contra sua vida, Pinheiro Machado replicou:

- Sim, se o atentado falhar.

Rodrigo lia ou ouvia todas essas histórias e ficava a pensar, já tomado de remorsos, no telegrama que passara ao senador após os acontecimentos de 14 de julho. Não se arrependia de ter jogado fora a oportunidade duma carreira política sob a proteção de Pinheiro Machado. Lamentava, isso sim, ter perdido a amizade daquela figura que admirava, apesar de todos os seus defeitos, e pela qual sentia uma afeição quase filial. Relia os termos do telegrama e achava-os insolentes e agressivos. E agora que os inimigos do senador açulavam o povo contra ele, apontando-o como a causa de todos os males que desgraçavam o país, agora que escribas e oradores de praça pública recomendavam claramente seu assassínio, Rodrigo achava que era seu dever apoiar aquele homem, sem olhar conveniências pessoais e nem mesmo idéias políticas.

Chegou a rascunhar um telegrama em que exprimia sua solidariedade irrestrita ao representante do Rio Grande no Senado. Mas rasgou-o, insatisfeito com a redação.

Fica para outro dia - decidiu. Mas esse dia não chegou. Rodrigo esqueceu o senador, pois Toni Weber absorvia-lhe os pensamentos, fazendo-o alternadamente feliz e desgraçado. Feliz porque descobria que a rapariga o amava com uma intensidade cada vez maior, desgraçado porque era exasperante ter de esperar às vezes uma semana inteira pela oportunidade de ficar a sós com ela.

Aqueles encontros no quarto da moça faziam-se cada vez mais difíceis, arriscados e constrangedores.

Numa daquelas noites de agosto em que o minuano soprava, fazendo tremer as janelas da meia-água, Frau Weber ergueu-se da cama, subitamente indisposta, e veio bater à porta do quarto de Toni, para pedir-lhe um remédio. Rodrigo enfiou às pressas o sobretudo e, descalço, com a roupa e os sapatos nas mãos, saltou pela janela e ficou sentado no chão gelado, atrás dum arbusto, a vestir-se atabalhoadamente e a tremer de frio, de despeito e vergonha, amaldiçoando - quem? O quê? - por se achar naquela situação grotesca. Prometeu a si mesmo que jamais voltaria àquela casa. Precisava descobrir outro lugar onde encontrar-se com Toni. Passou mais duma semana sem falar com a rapariga. E ficou de novo enciumado ao vê-la, durante esse período, umas duas ou três vezes em companhia de Erwin Spielvogel, que costumava ir esperá-la à saída do cinema, nas noites de função.

Um dia em que Toni veio ao Sobrado com os pais, Rodrigo, sem que os outros vissem, conseguiu meter-lhe na mão um bilhete em que lhe pedia fosse no dia seguinte, sob qualquer pretexto, ao consultório.

Toni foi. E enquanto Rodrigo, alvoroçado, fechava a porta a chave, ela se sentava numa cadeira, constrangida como uma visita de cerimónia. E quando ele a beijou, seus lábios permaneceram inertes, como que mortos, o busto retesado, os braços caídos. Que era que ela tinha? - quis saber Rodrigo. Estava enfarada dele? Não o amava mais? Havia outro homem? Sim, ele a vira muitas vezes aquela semana com o Spielvogel... Vamos, diga alguma coisa!

Tomando-a nos braços, sacudiu-a. Toni mirava-o com os olhos cintilantes de lágrimas, mordendo os lábios, num silêncio que deixava Rodrigo cada vez mais exasperado. Por fim largou-a e foi sentar-se atrás do bureau, procurando parecer indiferente à presença dela.

Houve um silêncio de alguns segundos, ao cabo dos quais Toni se ergueu, aproximou-se dele, passou-lhe a mão de leve pelos cabelos, beijou-lhe a testa, as faces e murmurou-lhe ao ouvido: "Mais je t 'adore! Je t adore!"

Então ele não compreendia? Aquela sala excessivamente clara, a mesa de operações, os instrumentos cirúrgicos no armário de vidro, a proximidade dos empregados da farmácia, o ruído das vozes e passos dos que passavam pela calçada... Tu sais... Rodrigo ficou enternecido. Sim, era um estúpido, um animal. Compreendia tudo e pedia-lhe perdão. Fê-la sentar-se sobre seus joelhos, beijou-lhe a boca com uma ternura arrependida que procurava ser pura, mas que pouco a pouco se foi transformando em desejo, fazendo que suas mãos começassem a passear pelo corpo da rapariga. Toni pôs-se subitamente de pé, compondo o vestido e aproximando-se da porta.

- Por favor, deixe-me ir agora, sim?

Ele soltou um suspiro, passou as mãos pelos cabelos. - Então? - perguntou. - E agora?

Ela lhe suplicou que esperasse um pouco, tivesse paciência. Tudo estava tão confuso... E, com os olhos úmidos, contou-lhe que ultimamente não dormia direito, sonhava muito, tinha pesadelos aflitivos, e o remorso e o medo a atormentavam. O que estava fazendo era errado, era mau, era pecaminoso. Tudo fora uma loucura. Ela o amava, sim, de tal maneira que às vezes lhe parecia que ia perder a razão. Mas nem por isso sofria menos. Vivia assaltada de temores. Os pais estranhavam sua atitude, não compreendiam por que ela recusava ir ao confessionário. Por outro lado, pediam-lhe com insistência que tratasse melhor Erwin Spielvogel. Era uma situação insuportável!

Rodrigo olhava perdidamente para Toni. Havia no rosto dela, como na voz, algo de machucado que o penalizava.

Começou a andar dum lado para outro, as mãos nos bolsos, a pensar numa solução.

- Queres então terminar com tudo? - perguntou, estacando bruscamente diante da Fráulein.

Como única resposta ela desatou o choro. Rodrigo puxou-a contra o peito, beijou-lhe os cabelos, e ficaram assim abraçados em silêncio por longos minutos. Por fim, enxugando os olhos, Toni murmurou:

- Preciso ir.

Disseram-se adeus, ele abriu a porta e ela se foi.

A primeira pessoa a receber a notícia em Santa Fé foi o telegrafista que estava de plantão na noite de 8 de setembro. Principiou a transformar os sinais de Morse em letras, com um indiferença profissional temperada apenas pela tênue curiosidade que lhe vinha de o telegrama trazer a rubrica de urgente e ser endereçado ao coronel Joca Prates. A medida, porém, que as letras iam formando as palavras e estas as sentenças, os olhos do funcionário se agrandavam, sua caligrafia tornava-se menos firme e por fim, depois de escrever a última letra do nome do signatário do despacho - um deputado estadual - os lábios do telegrafista tremeram e ele ficou olhando para o papel com uma expressão de mudo horror, como se tivesse acabado de ler nele sua própria sentença de morte.

Levou alguns segundos para se refazer do choque. Depois passou a limpo o telegrama e chamou o estafeta.

- Leve isto depressa ao intendente. Se ele não estiver em casa, está no clube. Raspa, que a coisa é séria.

Joca Prates jogava pôquer com três correligionários quando Saturnino veio entregar-lhe o despacho. Abriu-o de cenho cerrado, leu e ficou lívido. Depois passou o papel para um dos amigos e, como se tivesse perdido a fala e o movimento, ficou a olhar com uma fixidez estúpida para as cartas sobre o pano verde.

- Que barbaridade! - exclamou um dos jogadores. Os outros dois, que haviam lido a dramática mensagem por cima do ombro do primeiro, saíram a andar pelas dependências do clube numa pressa ofegante e atônita.

Joca Prates pôs-se de pé lentamente e, como um sonâmbulo, encaminhou-se para o telefone do bufete, comunicou-se com a própria casa e, ao ouvir a voz da esposa, balbuciou:

- Dedé, aconteceu uma coisa horrorosa...

Não pôde continuar, pois o pranto lhe cortou subitamente a voz. Atrás do balcão do bufete, Saturnino cofiava sombriamente o bigode, murmurando: "Que calamidade! É o fim do mundo. Que calamidade!"

A notícia chegou aos ouvidos do gerente do Cinema Santa Cecília quando a função estava já quase a findar. O homem esperou, aflito, que terminasse a última parte do drama e, quando a luz se acendeu, subiu para o palco e deu a notícia ao público com voz sumida e ar trágico, como se estivesse anunciando o Juízo Final. Quando terminou de falar, fez-se um silêncio duma fração de segundo e depois um clamor se ergueu da platéia, dos camarotes e da galeria, onde um homem se pôs de pé e berrou: "Bem feito! Era o que esse canalha merecia!"

De vários pontos do teatro surgiram protestos indignados. Ouviu-se um grito: "Lincha!" Foi então o pânico. Os espectadores precipitaram-se atropeladamente na direção da porta, como se alguém houvesse gritado - incêndio! Algumas mulheres soltavam lamentos histéricos, muitas desatavam o choro; outras gritavam os nomes dos maridos e dos filhos. Alguns cidadãos trepavam nas cadeiras e pediam calma. Vários deles empenhavam-se em discussões que degeneravam em briga. De quando em quando no meio da balbúrdia ouviam-se frases como: "Abaixo a tirania!" "Viva a liberdade!"

No centro telefônico, não podendo dar conta de todos os chamados, a operadora rompeu a chorar, numa crise de nervos, e teve de ser substituída.

Vinte minutos depois de chegado o telegrama a Santa Fé, quase toda a população da cidade, pelo menos as pessoas que residiam na rua do Comércio e nas transversais, já estavam a par do acontecimento que começava a abalar o país inteiro: O senador Pinheiro Machado havia sido assassinado pelas costas com duas punhaladas!

Rodrigo estava em casa em companhia do vigário e do coronel Jairo quando Joca Prates entrou intempestivamente e deu-lhe a notícia. Teve a impressão de que recebia uma bordoada na cabeça. Sentou-se, aturdido. Por alguns instantes nenhum dos quatro homens falou. Refeito do choque inicial, Rodrigo pediu pormenores. Quem fora o assassino? Onde se dera o fato? Conte alguma coisa, homem de Deus!

O coronel Prates passou-lhe o telegrama. Era dum laconismo dramático. Dizia apenas que o crime fora cometido cerca das cinco horas da tarde, no Hotel dos Estrangeiros, no Rio, e que o criminoso, natural do Rio Grande do Sul, estava preso.

- A coisa não vai ficar assim - murmurou o intendente. - O Rio Grande não pode ficar acovardado depois duma barbaridade dessas. Matarem o nosso Pinheiro!

E, num assomo de ódio, exclamou:

- Vai haver uma revolução!

- Contra quem, coronel? - perguntou o padre placidamente.

- Ora... ora, contra os inimigos do Rio Grande!

- Mas não foi um gaúcho que assassinou o senador? - perguntou o vigário com um bom senso desarmante.

Joca Prates lançou-lhe um olhar em que já havia um elemento de rancor.

- Mas deve estar a soldo da camarilha política que não gosta de nós!

Astolfo encolheu os ombros filosoficamente. - Isso não se faz - murmurava o coronel Jairo, sacudindo a cabeça. - Isso não se faz...

Rodrigo aproximou-se da janela e por alguns instantes ficou a olhar a praça, através dos vidros meio embaciados. O desaparecimento do senador dava-lhe uma estranha sensação de orfandade que ele não procurava explicar nem combater. E agora lhe vinha uma súbita e enternecida saudade do pai, o desejo de vê-lo, ouvi-lo, tê-lo ali no Sobrado como companheiro naquela hora amarga.

Desenhou-se-lhe na mente, nítida, a imagem de Pinheiro Machado tal como o vira no inverno de 1910. O senador apertava-lhe a mão e dizia: "Há homens que nasceram talhados para o sacrifício. Mas uma coisa sei te dizer: eu não tenho vocação para mártir. Rodrigo fez uma brusca meia-volta:

- Pelas costas, os miseráveis!

Ao saberem da notícia, Flora e Maria Valéria vieram para a sala e ficaram junto da porta, mudas, num silêncio apreensivo.

Rodrigo leu nos olhos de ambas uma expressão que com freqüência vinha ao semblante das mulheres do Rio Grande: o medo ancestral da guerra.

- Precisamos fazer alguma coisa! - exclamou, olhando para o intendente. - Vou redigir um telegrama à nossa bancada no Rio. Algo de vibrante que leve o nosso protesto, a nossa indignação ante esse crime bárbaro, esse...

Calou-se, engasgado.

E naquela mesma noite, ao entrar no Comercial, onde esperava colher assinaturas para o telegrama, ouviu um forasteiro comentar em altos brados: "Bem feito! Foi uma limpeza! Era um caudilho, um déspota, a asa negra do Brasil!" Precipitou-se sobre ele, segurou-o pela gola do casaco, deitou-o sobre um dos bilhares e esbofeteou-lhe repetidamente a cara, vociferando:

- É para aprenderes a respeitar os homens, canalha!

Nos dias que se seguiram leu nos jornais os pormenores da tragédia do Hotel dos Estrangeiros.

Pinheiro Machado havia sido apunhalado pelas costas no momento em que, ladeado por Bueno de Andrade e Cardoso de Almeida, se encaminhavam para o salão situado entre o refeitório e o saguão do hotel.

Cardoso de Almeida contou mais tarde à polícia que tivera a impressão de que alguém desferira um soco nas costas do senador e, como ao voltar-se visse um jovem armado dum punhal, precipitara-se sobre ele para desarmá-lo, enquanto Pinheiro Machado dava alguns passos, cambaleante, e caía nos braços de Bueno da Cunha, exclamando: "Fui apunhalado!" O assassino, porém, conseguira fugir, sendo perseguido por populares, um guarda e o próprio Cardoso de Almeida. Preso por um civil na travessa de São Salvador, entregou a arma que ainda empunhava e na qual não se via o menor vestígio de sangue. Suas palavras foram: "Sou o assassino do senador Pinheiro Machado".

Interrogado pela polícia, declarou chamar-se Francisco Manso de Paiva Coimbra, ser padeiro e natural do Rio Grande do Sul. Confessou que odiava Pinheiro Machado e que ao ler nos jornais as notícias de que o país estava dividido por causa da candidatura do marechal Hermes, chegara à conclusão de que era indispensável que alguém matasse o homem que infelicitava o Brasil. Mais tarde, sabedor dos acontecimentos da noite de 14 de julho em que a Brigada Militar carregara em Porto Alegre sobre o povo reunido em meeting contra a candidatura do marechal, assassinando estudantes e, entre eles, um filho duma protetora sua, convencera-se de que ele, Manso de Paiva Coimbra, devia ser o assassino, para vingar a morte do jovem. Comprara então uma faca a um preto no largo de São Salvador (e Rodrigo estremecia de horror ante o detalhe); a faca custara ao criminoso seiscentos réis. Apesar disso, pouco depois desistira do intento resolvendo procurar um emprego. Em breve, porém, lera na Gazeta de Notícias um artigo sobre a candidatura de Hermes da Fonseca e de novo ficara tomado do desejo de eliminar Pinheiro Machado...

Com o jornal na mão Rodrigo caminhava dum lado para outro no escritório, na frente do padre Astolfo, para quem estivera a ler em voz alta o relato da tragédia.

- Essa história está mal contada! - exclamou. - Alguém pagou ao sicário pra assassinar o senador, isso ninguém me tira da cabeça. Foi dinheiro grosso, e o homem é capaz de cumprir a pena sem confessar o nome dos mandantes. Ali! Mas a história não pode ficar assim. Havemos de desmascarar essa camarilha de assassinos e levá-los à barra dos tribunais, nem que para isso tenhamos de provocar uma guerra civil!

O laudo dos médicos-legistas dava como causa mortis uma hemorragia interna provocada por ferimento no pulmão direito e na respectiva artéria, produzido por um instrumento perfuro-cortante. A autópsia - declaravam os médicos à imprensa - revelara ausência de lesões graves no organismo do ilustre morto. Notava-se-lhe apenas um começo de esclerose arterial, pelo que se concluía que o senador ainda poderia viver longos anos.

- Que estupidez! - exclamou Rodrigo. - Uma faca comprada a um negro por seiscentos réis cortou a vida do maior político do Brasil! E não me admirarei se o bandido for absolvido. Este país não cria vergonha, o que ele merece mesmo é um ditador da fibra do senador pra botar a canga no pescoço da canalha!

O padre Astolfo mirava-o em silêncio.

- Agora, vigário, vou ler-lhe um trecho do telegrama que Rui Barbosa passou à viúva de Pinheiro Machado. Veja que nobreza de sentimentos, que dignidade, que estilo!

Apanhou o jornal e leu:

Para mim que sempre considerei inviolável a vida humana, a dele era duplamente, ainda por mais dois títulos, sagrada: o da antiga amizade e do antagonismo atual. Faço votos para que todos vejamos neste crime deplorável uma lição viva contra os excessos da violência e do sangue, com os quais nunca transigi e de que sempre preguei o horror. Queira Vossa Excelência aceitar as homenagens de meu pesar e o respeito que ponho, comovido, a seus pés.

A descrição que o jornal trazia dos momentos que se seguiram ao crime comoveram Rodrigo até às lágrimas.

Ao ver o cadáver do senador Pinheiro Machado, Rivadávia Corrêa rompera em pranto, abraçando-se com Flores da Cunha, que também chorava sentidamente. E quando o delegado de polícia mandou pôr o corpo sobre uma padiola, muitas das pessoas presentes começaram a disputar o privilégio de conduzi-la. Alguém, entretanto, exclamou:

- É a bancada do Rio Grande que vai conduzi-lo. A porta do hotel, Pompílio Dias bradou:

- Esperem pela revanche. Havemos de vingar essa morte!

Da multidão que se aglomerava na rua partiram gritos: "Apoiado! Apoiado!" Voltando-se para o chefe de polícia e apontando-o com dedo acusador, Pompílio Dias disse em voz alta:

- O senhor é responsável por este crime, pois permitia meetings em que se aconselhava o assassínio do Senador Pinheiro.

Terminada a autópsia, a viúva foi levada à presença do corpo do marido. Segurando-lhe a cabeça com ambas as mãos, beijava-lhe nervosamente o rosto, soluçando:

- Deixe-me, deixem-me aqui. Tenho muita coisa a conversar com ele.

Um fazendeiro, amigo íntimo de Pinheiro Machado, beijava-lhe freneticamente as faces. Ao entrar no hotel, o almirante Alexandrino de Alencar exclamou:

- Que horror! Mataram-no pelas costas.

O cadáver foi transportado para o morro da Graça em meio duma multidão de onde partiam lamentos, protestos e vivas à República e à liberdade.

O Rio de Janeiro estava convulsionado. Viam-se por toda a cidade bandeiras hasteadas a meio pau. O governo decretara luto nacional e concedera honras militares à memória do senador. Todas as diversões aquela noite foram suspensas. À frente da redação dos jornais o povo se aglomerava em grupos onde de quando em quando rompiam discussões e brigas. Dizia-se que o corpo do senador seria embalsamado e levado para o Rio Grande do Sul, cujo governo tomara luto oficial por oito dias.

O padre Astolfo chamou a atenção de Rodrigo para o conteúdo da carta encontrada no bolso do assassino no momento em que fora preso:

Caso eu seja morto pelos capangas deste homem que me leva a praticar este ato, não culpem ninguém. Como rio-grandense vingo meus conterrâneos mortos nas ruas de Porto Alegre; como brasileiro, a afronta atirada sobre um povo roubado e esfomeado.

- Aí está a prova de que o crime teve como mandante algum graúdo, padre! Leia bem essa carta e me diga se isso é estilo de padeiro!

Havia na reportagem da tragédia detalhes que comoviam Rodrigo dum modo particular, pois lhe recordavam a presença física de Pinheiro Machado, o homem que um dia ele vira de perto e que o tratara por tu, chegando a caminhar de braço dado com ele pelas ruas de Santa Fé.

Contava o repórter que no dia em que fora assassinado, o senador trajava fraque aberto, com um cravo vermelho na botoeira, calças escuras, e colete a fantasia em cuja cava se via um punhal de cabo de ouro e marfim. Ao lado do cadáver jazia seu chapéudo-chile e a bengala de unicórnio.

Rodrigo lia e relia, sensibilizado, o inventário das coisas que o comissário de polícia arrecadara dos bolsos do morto: uma cigarreira e uma lapiseira, ambas de ouro, um relógio de platina, uma corrente com pérolas, um alfinete com um chaveiro de brilhantes, uma carta, dois telegramas, um pince-nez, um revólver Smith and Wesson, um lenço de seda e três mil e duzentos réis em dinheiro...

- Veja, padre, se isso não tem uma significação enorme! O homem de maior prestígio do Brasil morre com três mil e duzentos réis no bolso!

O vigário sacudiu lentamente a cabeça. Rodrigo ergueu-se, acendeu o cigarro e pensou em Toni, com um desejo lânguido de tê-la a seu lado, de pousar a cabeça cansada no colo dela. Precisava vê-la o quanto antes. Ficou a imaginar o encontro... Ia explicar-lhe o sentido daquela morte, o valor simbólico daquele homem e as conseqüências tremendas que o crime podia ter para o Rio Grande e para o Brasil. Anteviu a expressão do olhar de Toni, tão puro, tão longínquo, tão incapaz de compreender aqueles dramas violentos duma terra de homens morenos, apaixonados e semibárbaros. Depois eles esqueceriam o assassinado, o assassino, a política, tudo, para se entregarem ao ato do amor, que era também uma espécie de homicídio, em que havia um apunhalador e um apunhalado e uma agonia convulsiva, seguida duma deliciosa morte.

Seu encontro com Toni, entretanto, não lhe proporcionou as delícias imaginadas e desejadas. Trouxe-lhe, isso sim, um novo e terrível choque. A moça apareceu-lhe inesperadamente no cônsultório na tarde do dia seguinte e, logo depois que Rodrigo fechou a porta, tomado duma formigante alegria que lhe vinha da antecipação das coisas que iam acontecer, ela se sentou no divã coberto de oleado negro, fitou nele os olhos alarmados e disse: Je suis enceinte.

Quê? Rodrigo julgou ter ouvido mal a frase. Pediu-lhe que a repetisse. Toni repetiu. Não havia dúvida: Estou grávida. Grávida, grávida... Ficou a contemplá-la com um olhar vazio, imbecil, como se não a estivesse vendo, como se não compreendesse ainda o sentido daquelas palavras.

Toni pôs-se então a murmurar frases em alemão, numa pressa nervosa. Seu corpo tremia sob o casacão de lã.

Grávida? - repetiu ele. Não era possível. Como era que sabia? Que provas tinha? Que entendia ela daquelas coisas?

Sem coragem agora de encarar Rodrigo, os olhos postos no chão, a Frãulein contou que sentia tonturas, enjôos e que, vous savez - hesitou. - Já fazia quase quarenta dias que... vous savez.

Santo Deus - balbuciou ele. Aquilo também era demais! A cabeça começou a doer-lhe e ele teve ímpetos de gritar. Toni desatou o choro, estendeu-se no sofá e escondeu o rosto nas mãos. E agora - soluçava ela - e agora, que vai ser de mim?

Rodrigo contemplava-a, de braços caídos, com uma consciência dolorosamente aguda das batidas de seu próprio coração, do latejar do sangue nas têmporas e daquelas ferroadas que pareciam traspassar-lhe os miolos. Por longos segundos quedou-se imóvel e calado, enquanto Toni continuava a chorar.

Rodrigo procurava alguma coisa para dizer, mas as palavras francesas ou não lhe acudiam à mente ou, quando vinham, ele não sabia como dispô-las numa frase coerente. Pensava no que podia acontecer se as suspeitas de Toni se confirmassem. Era o escândalo, o ridículo, seu nome arrastado na lama. Perderia o amor e o respeito de Flora, não teria mais coragem de olhar de frente o pai, a madrinha, os amigos... Ao mesmo tempo recriminava-se por causa desses sentimentos e pensamentos egoístas que excluíam Toni, como se ela não tivesse tanta coisa a perder quanto ele, ou mais.

Acercou-se dela, sentou-se na beira do divã e pôs-se a acariciar-lhe de leve os cabelos. Tenha calma - pediu - não desespere, pode ser um rebate falso...

Toni, porém, sem tirar as mãos do rosto, sacudia a cabeça numa negativa desesperada.

Mas que experiência tinha ela daquelas coisas para julgar? Foi com o rosto em fogo e com uma vil sensação de constrangimento que ele propôs fazer-lhe um exame, je vous prie, o exame normal a que se submetem as mulheres que desejam ver confirmada a suspeita de gravidez. Toni meneava ainda a cabeça: não, não, não! Rodrigo indagou: Mas... e se o dr. Carbone fizesse aquilo? Era um homem decente, de bom coração, e, fosse como fosse, teria de manter o segredo profissional.

Toni alçou para ele a face desfigurada:

- Eu preferia morrer a fazer isso.

Rodrigo ergueu-se, começou a caminhar dum lado para outro, as mãos metidas nos bolsos das calças.

- Alguém mais sabe disso além de nós dois?

Toni sacudiu a cabeça negativamente. Pôs-se a enxugar os olhos soluçando ainda, mas agora de mansinho.

Os minutos passavam. Da farmácia vinham vozes: Gabriel gritou uma ordem para o aprendiz. O dr. Carbone passou a cantarolar pelo corredor. Rodrigo temeu e ao mesmo tempo desejou que ele entrasse. Temeu porque sabia que, se o italiano entrasse, bastar-lhe-ia um relance para descobrir-lhes o segredo. Desejou porque, uma vez descoberto o segredo, Toni seria forçada pelas circunstâncias a deixar-se examinar pelo cirurgião. O dr. Carbone, porém, passou de largo. Um auto buzinou na rua. Depois fez-se silêncio e no silêncio Rodrigo ficou sentindo o pulsar do próprio sangue nas fontes. Oh! Mas a maneira como se estava portando era egoísta, mesquinha, covarde. Num assomo de ternura sentou-se no divã ao lado de Toni e enlaçou-a. Ela recostou a cabeça em seu ombro e cerrou os olhos. Apertou com ambas as mãos a mão que Rodrigo tinha livre e ficaram assim por longo tempo num trêmulo silêncio.

Rodrigo pensava numa saída. Já agora a situação lhe parecia menos negra. Era impossível que um homem como ele fosse afogar-se em tão pouca água... Claro! No estonteamento da surpresa, a princípio lhe parecera que o mundo vinha abaixo, mas agora, refletindo melhor, via a possibilidade de encontrar uma solução para o problema. Primeiro era preciso verificar com certeza se Toni estava mesmo grávida. Se estava, teria ainda no mínimo três meses para agir, antes que começassem a aparecer sinais externos de seu estado.

Se, entretanto, tivessem de recorrer ao aborto (a idéia lhe causava um frio horror, e ele não pôde deixar de lançar um olhar para o armário dos instrumentos cirúrgicos) deveriam praticá-lo sem perda de tempo. Mas quem ia fazer aquilo? Ele? Nunca. Não teria coragem para tanto. Carbone, talvez... pedir-lhe-ia esse obséquio especial. Se o homenzinho recusasse, iria até à ameaça para obrigá-lo. Sim, Carbone era o homem indicado. Seu oferecimento ao Exército italiano havia sido aceito e dentro de um mês ele embarcaria para a Europa, levando consigo o segredo. Mas... e se sobreviesse uma infecção ou uma hemorragia e Toni morresse?

Rodrigo beijava com ternura os cabelos da Frãulein, apertava-lhe a mão com força e por mais que fizesse não podia afastar da mente um quadro perturbador: Toni, pálida, estendida sobre a mesa de operações, a esvair-se em sangue e Carbone com o avental todo manchado de vermelho a trabalhar com seus ferros nas entranhas da criaturinha... Como tudo aquilo era sórdido, estúpido!

E se Toni casasse com Erwin Spielvogel? Só de pensar nessa saída Rodrigo sentiu que as faces e orelhas ficavam em fogo. Como era capaz de pensar numa coisa tão torpe, tão baixa? A possibilidade daquele casamento lhe dava um sentimento de ciúme. No entanto - insistia dentro dele uma voz cínica -- era uma solução... Sim, mas e o filho? Mesmo que casassem em seguida, poderia Erwin acreditar em que era o pai da criança? Céus, como é que tenho coragem de estar pensando estas coisas?

Como para redimir-se de tamanha vileza, pensou num recurso corajoso: procurar Herr e Frau Weber, contar-lhes tudo honestamente, sem omitir nenhum detalhe, e depois dizer-lhes: "Agora façam o que entenderem: me processem, me denunciem, me matem..." Talvez - tornou a insinuar a voz cínica - talvez o maestro e sua Frau te peçam uma indenização para irem-se de Santa Fé com toda a família sem fazer escândalo...

E se eu me aconselhasse com o padre Astolfo? Qual! Que é que um celibatário pode entender desses assuntos de amor e filhos ilegítimos? Provavelmente ele me falará em pecado, em inferno e repetirá a história da sombra do anjo.

No entanto, por mais brutal que parecesse, a solução mais prática, mais rápida era a do aborto. Feito este, tudo voltaria a ser como antes e ele saberia no futuro tomar precauções... Porque agora, passado o susto do primeiro momento, começava a vir-lhe o temor de perder Toni para sempre.

Lembrou-se do primeiro dia em que a vira no palco do Santa Cecília, toda vestidinha de branco, com laçarotes de fitas azuis nas pontas das tranças. Era, toda ela, um símbolo matinal de juventude, graça e pureza. Agora a coitadinha ali estava desfeita em pranto com as feições descompostas e como que envelhecidas pelo sofrimento. Era como se entre a noite de seu segundo espetáculo em Santa Fé e aquele momento não se tivessem passado apenas alguns meses mas muitos anos. E ele, Rodrigo, era o culpado daquela transformação. Ele a desgraçara, por egoísmo, por vaidade, por lascívia.

Veio-lhe à mente um dia da infância em que, caminhando por uma estrada e vendo uma andorinha pousada num fio telegráfico, apanhara uma pedra e alvejara o passarinho, matando-o. Seu primeiro sentimento fora de orgulho. Que pontaria! Que tiro! Correra para o lugar onde a andorinha caíra e tomara-a nas mãos. Vendo, porém, a ferida sangrenta que a pedra abrira na cabeça do passarinho e sentindo o contato daquele corpo frágil e ainda tépido, tivera de repente uma consciência dolorosamente aguda da extensão de seu crime, de sua malvadeza. Matara o bichinho apenas para, provar a si mesmo que era um bom atirador. Fora então tomado dum tão forte sentimento de culpa e remorso, que desatara a chorar sentidamente.

E agora Rodrigo também chorava, abraçando Toni e beijando-lhe os cabelos, com a impressão de que tinha nos braços uma andorinha morta.

Durante a semana seguinte - que passou sem ver Toni, Rodrigo viveu num estado de angústia que em casa tratava de justificar dizendo que era a situação política do país que o trazia preocupado.

Por mais duma vez esteve a pique de procurar o vigário e abrir-se com ele. Às vezes quedava-se a olhar para o coronel Jairo e a perguntar a si mesmo como havia de aquele homem cordial e aparentemente compreensivo receber sua confissão ou melhor, julgar sua conduta no caso de Toni. Mas não! Se confiasse seu segredo ao padre e ao militar, ficaria perante ambos numa situação de inferioridade insuportável para seu orgulho. Preferia que tanto um como o outro continuassem a considerá-lo, como até então um dono da vida, um homem capaz de remover todas as dificuldades e resolver todos os problemas não só os próprios como os alheios.

Por que, então, não contar tudo ao Chiru, velho amigo? Não. Chiru com sua exuberância havia de propor para a questão uma solução simplista e provavelmente grosseira. Depois, não saberia guardar o segredo: iria logo passá-lo ao Saturnino, e era natural que assim fizesse, pois não há nada no mundo que predisponha mais uma pessoa à confidência do que uma caminhada pelas ruas desertas, na calada da noite.

E Cario Carbone? Rodrigo riscava-o sumariamente da lista dos possíveis confidentes, pois sabia da profunda afeição e respeito que o italiano votava a Flora.

Se ao menos Bio estivesse na cidade... Sim, teria de dar a mão à palmatória, ouvir do irmão o inevitável "eu não te disse?" Mas que diabo! preciso desabafar com alguém.

Lia com um interesse muito aguçado as notícias da guerra. E o conflito que sacudia a Europa, o mundo inteiro, parecia-lhe tão remoto no tempo quanto a Guerra das Rosas ou a dos Trinta Anos. Abria livros mas não conseguia ler. Andava de atenção vaga e seu pensamento fugia sempre para Toni. Reduzira as horas de consulta, não tinha paciência com os clientes e irritava-se quando Santuzza vinha pedir-lhe a opinião sobre algum problema administrativo do hospital.

Até a voz de Caruso soava-lhe diferente aos ouvidos, depois que Toni lhe fizera a terrível revelação. A música que saía da campânula do gramofone parecia-lhe sem brilho nem relevo. Perdera também o apetite e os vinhos lhe faziam mal. Enfim - concluía ele - era como se houvessem passado sobre as pessoas e as coisas uma pincelada gris. Levava agora uma vida opaca e sem ressonância e passava a maior parte das horas oprimido pela desconfortante sensação de que algo de muito mau estava por acontecer.

Notava que Flora andava tristonha e arisca, a mirá-lo de longe com olhos interrogadores e apreensivos. Em certas ocasiões isso lhe aumentava o sentimento de culpa; noutras, porém, apenas o irritava, levando-o a perguntas bruscas:

- Por que estás me olhando desse jeito? Nunca me viste? Quando isso acontecia, Flora desatava a chorar e subia para o quarto. Ele ficava por algum tempo a ruminar seu ressentimento mas depois, serenado e arrependido, subia para pedir perdão à mulher.

- Dinda - disse ele um dia em que se vira a sós com Maria Valéria - há momentos na vida duma pessoa...

Não terminou a frase, temeroso de romper uma confissão completa.

Olhava para o próprio retrato com certa animosidade. Aquele outro Rodrigo agora chegava a parecer-lhe insuportável na sua serenidade olímpica.

Chegou a invejá-lo. Bons tempos aqueles em que não tinha cuidados nem problemas!

Pensou em fazer uma longa viagem com Flora, irem a Buenos Aires, Montevidéu, Santiago, ficarem alguns meses ausentes de Santa Fé. Quanto ao resto, fosse o que Deus quisesse. Mas como poderia ele passar tantos meses longe de Toni quando não podia suportar nem uma separação de dias?

Muitas vezes, sob os mais absurdos pretextos, cruzava no seu Ford pela frente da casa dos Weber, na esperança de avistar Toni. Uma tarde ficou tomado dum sentimento de despeito e ciúme quando, ao defrontar a meia-água, viu Erwin a bater-lhe na porta, tendo nas mãos um pacote embrulhado em papel de seda, com toda a certeza um presente para a namorada.

Naqueles dias espalhou-se pela cidade a notícia de que Fraulein Weber havia contratado casamento com o filho de Otto Spielvogel.

- Impossível - exclamou Rodrigo numa reação automática, quando Chiru lhe contou a novidade.

- Por que, impossível? Fazem um lindo par. Diz-que o maestro e a Frau andam tão satisfeitos que não fecham mais a boca. Que diabo! O rapaz tem dinheiro, tem futuro.

Dois dias depois, o jornal de Amintas Camacho trazia a participação do noivado. Rodrigo leu-a e sua primeira reação foi de revolta. Teve gana de sair porta fora, procurar Toni e atirar-lhe em rosto um insulto. Mas sentiu ao mesmo tempo uma curiosa sensação de alívio: talvez ali estivesse mesmo a solução do problema. Se se casassem antes que se revelasse o estado da moça, a honra dela (oh! o ridículo daquelas fórmulas) ficaria salvaguardada. Se Erwin a amasse de verdade, não teria coragem de abandoná-la mesmo depois de descobrir a verdade. E, bolas, o rapaz também não havia de querer envolver-se num escândalo...

Ao cabo dessas reflexões, Rodrigo soltou um suspiro. Aos poucos, porém, começou a sentir-se esporeado pelo ciúme e a querer saber como era que Toni, a sua Toni, ia sujeitar-se àquele casamento sem amor. Era-lhe inconcebível e repugnante a idéia de que Toni ia dormir com Erwin Spielvogel. Por muito tempo ficou amargando aquela sensação de desapontamento e logro. Tudo vai ser resolvido à melhor maneira alemã - refletiu com amargor. O outro ficará com a mulher que amo e com o filho que fiz nela. E amanhã os dois virão com Herr e Frau Weber ao Sobrado, e todos beberemos champanha juntos e trocaremos amabilidades, como se nada tivesse acontecido.

Deu um murro na guarda da cadeira, ergueu-se, botou o chapéu e saiu. Havia no ar sinais de primavera. Um vento frio perfumado de glicínias agitava as folhas novas dos plátanos da praça. Grandes nuvens brancas flutuavam no céu.

Quem é que pode compreender a alma duma mulher? - perguntava Rodrigo a si mesmo, as mãos enfiadas nos bolsos, os olhos postos na calçada. Seus passos o levavam para a rua do Poncho Verde. Não lhe saíam da mente as palavras que ele lera na Voz da Serra, naquela participação idiota dentro duma cercadura que era uma ridícula imitação dum cartão de visita com uma das pontas dobrada. "Otto Spielvogel e senhora têm o prazer de participar aos parentes e pessoas de suas relações o contrato de casamento de seu filho Erwin com a srta. Antônia Weber (Toni)."

Está tudo bem - concluiu, despeitado. Encerra-se um capítulo da vida amorosa do dr. Rodrigo Cambará. Agora, meu amigo, é criar juízo, cuidar da sua mulher, que é a melhor mulher do mundo, dos seus filhos, da sua casa, da sua clínica, da sua vida.

Mas apesar desses conselhos e propósitos, continuava a aproximar-se da casa dos Weber. Ao passar pela frente da meia-água, avistou o vulto de Toni, imóvel por trás das vidraças. Sentiu-se invadido por uma tão cálida ternura por ela, que esqueceu todo o seu ressentimento e só teve um desejo: atravessar a rua correndo, erguer a guilhotina da janela, tomar a criatura amada nos braços e cobrir-lhe o rosto de beijos. Ficou, no entanto, parado na calçada oposta, esperando que Toni lhe fizesse um gesto, um sinal. O vulto, porém, continuava imóvel.

Vou ou não vou? - hesitava ele. Deu alguns passos ociosos, dum lado para outro, começou a assobiar (numa das casas vizinhas uma mulher assomara à janela) e, confuso, sentindo-se grotesco e infeliz, continuou a andar, sem voltar a cabeça para trás.

Desejava Toni com uma intensidade dolorosa. Sentia uma saudade aguda dos beijos dela, daquela excitante combinação: a frescura elástica dos lábios e a mornidão úmida do hálito.

Será possível, Deus meu, que eu não vá mais beijar aquela boca? Claro que vou. Claro que vou. Toni me ama. Solteira ou casada ela é minha, minha, minha!

Antes de dobrar a esquina, olhou furtivamente para trás. A vizinha curiosa continuava à janela, com meio corpo para fora, a cabeça voltada na direção dele. Bruaca! Um sentimento de revolta cresceu-lhe no peito. Odiou todas as pessoas e todas as coisas quê se interpunham entre ele e Toni. E sua incapacidade para vencê-las lhe dava uma fria sensação de impotência.

Custou-lhe conciliar o sono aquela noite. Ficou de olhos abertos a fumar na cama e a ouvir o relógio grande bater as horas.

Na manhã seguinte, pouco antes do meio-dia, teve a satisfação de ver Toríbio apear do cavalo no pátio do Sobrado. Abraçou-o com grande efusão e, depois do almoço, levou-o para a água-furtada. Fechou a porta a chave e contou-lhe tudo. Toríbio escutou em silêncio sem a menor mostra de surpresa. Quando o irmão terminou a história, a única coisa que disse foi: "É o diabo..." E ficou olhando reflexivamente através da janela para as copas das árvores da praça que o vento de setembro sacudia.

- Vamos, homem! - exclamou Rodrigo. - Diz alguma coisa. Que é que eu vou fazer?

- Deixa correr o barco...

- Não tenho sangue de barata. Preciso fazer alguma coisa, senão estouro.

- Fica firme. Deixa que ela case com o Spielvogel.

- E depois?

- O futuro a Deus pertence.

- Eu te peço um conselho e me vens com ditadinhos... Te esqueces de que eu gosto da menina.

- Então tira ela de casa.

- Bio!

- Que é que queres que eu diga?

- Sei lá!

Deu um pontapé num livro que estava no chão, atirando-o contra uma das pernas do catre. Bio inclinou-se, apanhou o volume e começou a folheá-lo.

- Te lembras do velho Winter?

- Não mudes de assunto.

Toríbio soltou um suspiro de impaciência.

- Te meteste nessa enrascada e agora tu mesmo é que tens de sair dela.

- Não sei, não sei, não sei!

Toríbio atirou o toco de cigarro sobre o telhado.

- Uma coisa te peço. Aconteça o que acontecer, poupa a tua mulher. Não deixa que ela venha a saber dessa história.

- O pior é que ando sem paciência, irritado, intratável. A Flora já deve estar desconfiada. As mulheres têm um sexto sentido...

Toríbio estendeu-se no catre, de costas, e trançou as mãos sob a nuca. Rodrigo sentou-se no peitoril da janela e ficou a olhar para o cata-vento da matriz, que o sueste mantinha num contínuo rodopio.

- Parece até feitiço, Bio. Essa menina não me sai da cabeça. Penso nela o dia inteiro e quando durmo sonho com ela. Não podes avaliar o que sinto porque... ora, tu sabes... As vezes acho que o melhor é terminar com tudo, deixar que ela case e viva a sua vida. Mas é que não vou poder viver em paz sabendo que a Toni está em Santa Fé, tão pertinho de mim, e que continua a me amar e que me basta ir à casa dela, bater na porta pra ela cair nos meus braços. Depois, só de pensar que ela vai dormir com aquele alemão, chego a sentir engulhos e me vem uma vontade danada de esbofetear o cachorro!

Toríbio escutava em silêncio. Com os olhos sempre fitos no galo de ferro, o outro prosseguiu:

- A primeira vez que fui pra cama com ela, vi que estava perdido. Compreendi que a Toni tinha sido feita pra mim, que não podia pertencer a ninguém mais, que aquilo tudo estava acontecendo por determinação do Destino e que portanto não adiantava fugir... E te confesso sem nenhuma vergonha que, quando deixei o quarto dela na primeira noite, cheguei a chorar de tão comovido.

Rodrigo sentia que a voz lhe saía fosca e incerta. Mas era bom aliviar o peito.

- Tu sabes que na minha vida tenho tido muitas mulheres, de todos os tipos e idades... Mas esta... esta é diferente, palavra de honra que é. O que sinto por ela não é só desejo mas também ternura. Estás dormindo?

- Não. Estou só de olho fechado. Vai falando...

- E quando penso que desgracei essa menininha que veio de tão longe, e que chegou aqui de tranças compridas... palavra que chego a...

Calou-se de súbito, com um aperto na garganta.

- Não há de ser nada - murmurou o outro. - Um dia tudo isso passa.

- Quando me contaram que ela tinha contratado casamento com... com esse colono, fiquei louco de ciúme e de despeito. Depois pensei: com que direito? Que é que eu posso oferecer pra essa moça?

- Claro. E esse casamento talvez resolva o problema.

- Isso é fácil de dizer, mas acontece que a história toda não me sai da cabeça. Não posso fazer mais nada. Se a coisa continua assim, a minha vida familiar, a minha tranqüilidade, a minha clínica, e eu mesmo... vai tudo águas abaixo.

- Poupa a Flora, é o que te digo. Ela merece outra sina. E tens de pensar nos teus filhos, na tua madrinha e que diabo! também no velho. O resto não tem importância. O resto se arranja com o tempo.

Rodrigo aspirou o ar com força.

- Este perfume de flor que anda por toda a parte, este... esta... Eu sei que é besta estar dizendo estas coisas, mas afinal de contas um homem precisa desabafar com alguém. Esta primavera está me bulindo com o sangue. Faz quase um mês que eu tive a Toni pela última vez. Não agüento mais a saudade. Sei que depois desse contrato de casamento eu devia ter mais amor-próprio e esperar que ela me procurasse, mas não posso. A falta que sinto dela às vezes chega a doer, como se me tivessem cortado um pedaço do corpo. É a voz dela, o cheiro dela, o jeito dela beijar... sinto falta de tudo.

Rodrigo olhava agora para a grande nuvem bojuda que o vento impelia na direção do poente.

- Em certas horas - continuou ele - fico assim meio lírico, me lembro daqueles olhos de boneca, e me vem uma pena danada da menina, tenho vontade de pô-la no colo, passar a mão nos cabelos dela e fazer a criatura nanar como uma criança. Estás achando graça, não é? Pois podes rir, não me importo.

- Continua, homem.

- Ali! Mas o mais difícil é quando sinto saudades da fêmea. Nessa hora é na boca de Toni que eu penso. Nunca reparaste na boca dessa menina?

- Mais ou menos. Por quê?

- Não sei, tem qualquer coisa que me deixa meio louco. Uma vez fiquei tão excitado que dei uma mordida naqueles beiços. No outro dia ela amanheceu com o lábio inferior inchado, teve de mentir em casa que era mordida de marimbondo.

Bio devia estar achando ridículas aquelas confidências. Sim, o amor tinha sempre algo de grotesco para quem o examinava de fora, a frio. Dali a um ano ou dois, ao pensar em todas aquelas coisas, talvez ele próprio viesse achá-las ridículas. Mas agora...

- Não penses que não vejo que toda essa história é uma loucura - disse Rodrigo em voz alta - e que mais tarde ou mais cedo tenho de voltar à minha vida normal. Não quero perder o amor nem o respeito da Flora. Sei que tudo que fiz está errado e que procedi como um canalha. Tu me preveniste em tempo. Eu mesmo me preveni. Mas que adianta a razão recomendar uma coisa quando o corpo está gritando violentamente por outra muito diferente? Estou cada vez mais convencido de que amor é doença, e doença infecciosa. Uma espécie de febre, Bio. E o pior é que o doente não quer nem ouvir falar em cura.

Houve um curto silêncio. Uma pandorga metade amarela, metade escarlate apareceu, muito alto, por cima da cúpula da Intendência.

- E agora essa gravidez agravou tudo. Já pensaste no que pode acontecer se os outros vierem a saber desse filho? Já pensaste no escândalo, no falatório, nas sujeiras? Pensas que acredito que essas pessoas que me cercam e adulam são meus amigos de verdade? Qual! A maioria não me perdoa por eu ter dinheiro, talento, boas roupas, prestígio, posição... Meus inimigos vão aproveitar a oportunidade pra me atirarem lama na cara. Não descansarão enquanto não me virem completamente derrotado.

Calou-se e ficou a esbofetear em pensamento todos os maldizentes da cidade. Depois esqueceu-os, pois Toni passou a ocupar-lhe a mente por completo. Como seria bom sair agora com ela para longe de todas aquelas misérias! Iriam os dois de mãos dadas para o campo, ao encontro da primavera.

- Eu podia deixar que o barco corresse, como queres. Mas é que não sei esperar. Fico exasperado. Se ao menos pudesse ver a Toni mais uma vez... Queria que ela me dissesse: "Ainda te quero, vou me casar com o Erwin porque meus pais me obrigaram, e porque este filho que está dentro de mim precisa dum pai. Mas é a ti que eu quero e hei de querer sempre". Bastava que ela dissesse isso. Eu só queria falar com ela uma vez mais...

Falar? Não, não podia enganar-se a si mesmo. O que ele desejava, com uma intensidade pungente era de novo apertar Toni nos braços, beijar aquela boca, morder aqueles lábios.

Não eram ainda quatro horas da tarde quando o telefone do Sobrado tilintou e Rodrigo, ao atender o chamado, reconheceu a voz de Frau Weber, que tentava dizer-lhe alguma coisa que ele não entendia, pois a mulher falava aos gritos, num desatino, a misturar francês com alemão. Compreendendo que algo de terrível se passava na casa dos Weber, precipitou-se para lá a correr, com um pressentimento medonho. Entrou na meia-água, foi direito ao quarto de Toni e encontrou-a tombada no chão, os olhos exorbitados e vítreos, o rosto lívido contorcido numa expressão de dor violenta, os lábios e o queixo queimados pelo veneno que tomara.

Estava morta.

Achavam-se ambos fechados no consultório havia já quase meia hora. Toríbio olhava para o irmão que, sentado no divã, tinha o rosto escondido nas mãos e o corpo sacudido por soluços secos. Rodrigo esforçava-se por chorar mas não podia: era como se uma mão de ferro lhe apertasse a garganta e oprimisse o coração, retendo o pranto. E ele precisava chorar porque do contrário alguma coisa ia rebentar-lhe dentro do peito. Sentia contra o rosto o contato gelado das próprias mãos. Ardia-lhe a garganta e a boca estava seca. Houve um instante de ânsia e náusea em que sentiu contraírem-se-lhe os músculos do estômago, como se fosse vomitar. Deitou-se de borco no divã e apertou o peito e o ventre contra o oleado... Se conseguisse vomitar - concluiu estonteadamente - talvez toda a angústia saísse pela boca e ele ficasse aliviado... Lembrou-se do dia em que Toni viera a seu consultório e ficara ali deitada no divã, bem como ele estava agora... Por mais que se esforçasse, não podia apagar a lembrança horrenda. Toni estendida no chão, os olhos arregalados e imóveis, a boca queimada, a boca queimada, a boca queimada... De novo o peso daquela desgraça caiu sobre ele com uma força esmagadora. Rodrigo apertou os olhos num novo e vão esforço para chorar, mas os soluços secos e agônicos continuaram.

- Vou pedir um calmante ao dr. Carbone - murmurou Toríbio.

- Não! Me deixem em paz. Vai-te embora!

Naquele instante bateram à porta. Toríbio aproximou-se dela.

- Quem é?

De fora veio uma voz:

- Sou eu, o padre Astolfo.

Após um breve momento de hesitação, Toríbio abriu a porta. O vigário entrou, parou no meio da sala, olhou longamente para Rodrigo, em silêncio, depois acercou-se dele, inclinou-se e tocou-lhe de leve a face com a ponta dos dedos, numa desajeitada e tímida carícia. Rodrigo ergueu os olhos e, vendo o amigo, rompeu finalmente num choro convulsivo. As lágrimas lhe rolaram em grossas bagas pelas faces. Ficou assim por longos instantes a soluçar, enquanto o padre e Toríbio conversavam em voz baixa a um canto do consultório.

Por fim, desoprimido, Rodrigo sentou-se no divã, enxugou as lágrimas com a manga do casaco, tirou um cigarro do bolso, prendeu-o entre os lábios e aproximou-o da chama do fósforo que Toríbio havia riscado. Soltou algumas baforadas com uma lânguida, trêmula e culposa sensação de bem-estar. Olhou para o vigário demoradamente e teve um desejo súbito de confessar-lhe tudo.

- Padre, a menina estava grávida e o filho era meu. Ela se matou por minha causa.

Sentiu que ao dizer estas palavras estava pedindo piedade, simpatia, apoio; no entanto o que queria era incriminar-se, bater no peito, fazer um ato de contrição. O sacerdote mirava-o com expressão melancólica.

- O senhor sabia? - perguntou Rodrigo.

- Sabia.

- Ela lhe contou?

- Não. Quem me contou foi o senhor mesmo: o seu olhar, os seus gestos, tudo...

Rodrigo baixou os olhos para o chão e murmurou:

- Procedi como um covarde.

- Não se trata de achar um qualificativo para a sua conduta. Já que o mal está feito, o que o senhor tem a fazer agora é salvar o que sobrou.

- Não sobrou nada, padre, nem a minha dignidade.

- Sobrou muito. Sua mulher, seus filhos, sua vida enfim.

- Mas que é que vai ser da minha vida daqui por diante, com essa morte na consciência?

E num acesso de autocomiseração rompeu de novo a chorar, mas dessa vez um choro silencioso, sem soluços, frio, mole, abjeto.

Tornou a voltar em pensamento àquele quarto. Toni no chão, os lábios queimados, queimados, queimados...

- Sou um egoísta, um vaidoso, um canalha...

Deixou cair o cigarro e de novo escondeu o rosto nas mãos. Toríbio, que agora picava fumo com sua faca de prata, olhou para o sacerdote.

- Mas a moça não deixou mesmo nenhuma carta... nada?

- Não.

- É esquisito.

- Deve ter feito aquilo num momento de desespero, num repente. Se pensasse um pouco, não faria. Era uma boa católica.

Contou que desde o dia anterior Herr Weber e Wolfgang estavam em Nova Pomerânia, e que Frau Weber saíra pela manhã, muito cedo, ficando para almoçar na casa duma de suas alunas de canto. Toni, dizendo-se indisposta, permanecera em casa, fechada no quarto. Tudo indicava que ingerira o veneno cerca das oito da manhã. Ao tornar à casa pouco antes das quatro da tarde, Frau Weber batera à porta do quarto da filha e, como não tivesse resposta, ficara alarmada e correra a pedir o auxílio de vizinhos, os quais arrombaram a porta, encontrando a menina já sem vida.

Rodrigo imaginava a longa agonia da pobre Toni, sozinha naquele quarto a estorcer-se no chão, a boca, a garganta, o esôfago, o estômago corroídos pelo veneno, um vómito sanguinolento com pedaços de mucosa a escorrer-lhe dos lábios queimados. E a dor dilacerante, a ânsia espasmódica, a falta de ar... Aquilo durante horas, horas, horas... Santo Deus!

Rodrigo queria afastar da imaginação aquela cena de horror mas não conseguia. Entrou a tremer e a suar frio.

O padre Astolfo caminhava dum lado para outro, em passadas largas e compassadas. Bio enrolava o crioulo.

Rodrigo olhou para o sacerdote.

- Quando vai ser o enterro?

- Amanhã às oito. Diz o dr. Matias que não convém esperar mais tempo.

- E o corpo... vai ser encomendado?

O padre sacudiu a cabeça numa desalentada negativa.

- Um sacerdote católico não pode encomendar a alma dum suicida.

Rodrigo pensou no golpe que aquilo ia ser pra os Weber. Sim, os Weber. Não tinha ainda pensado neles. Pobre gente!

- Tudo por culpa minha - balbuciou. - Se eu tivesse um pingo de vergonha na cara, o que fazia era meter uma bala nos miolos.

Disse estas palavras sem nenhuma convicção, pois por trás de seu desespero o que havia era ainda uma descomunal vontade de viver.

- O suicídio é sempre uma solução covarde - replicou o sacerdote.

Covarde? Então o padre achava que Toni era covarde? Como ousava ele dizer aquilo?

- Que entende o senhor dos assuntos do coração? - perguntou num assomo de indignação. - Como pode ser juiz das ações dos homens se nem homem inteiro o senhor é?

Por um curto instante Rodrigo como que se aliviou da carga de culpa, transferindo para o homem de batina negra a responsabilidade da tragédia. Astolfo era o confessor de Toni, um guardião da virtude, da moral, de todos os preconceitos sociais que haviam impedido que ele e Toni fossem felizes juntos.

- E se existe um Deus e esse Deus é bondoso e justo - acrescentou com os olhos iluminados dum repentino brilho - Toni vai para o céu sem precisar da interferência de sua Igreja!

O padre Astolfo escutou-o sem que um único músculo de seu rosto se movesse. Só os olhos traíam sua mágoa.

- Pode desabafar, meu amigo, se isso lhe faz bem. O que pensa de mim não tem a menor importância. O que importa é evitar que o senhor cometa outro desatino.

Rodrigo, que se havia erguido para dizer as últimas palavras, tornou a sentar-se. Tinha o corpo dolorido, as pernas bambas.

- Seu irmão tem algo de importante a propor-lhe - murmurou o padre, após um breve silêncio.

- Tu não vais ao enterro amanhã - disse Toríbio. Rodrigo teve um sobressalto.

- Por quê?

- Teu desespero pode dar na vista e todo mundo vai compreender o que aconteceu. Já basta a cena que fizeste na casa dos Weber, na frente de toda aquela gente.

Por alguns segundos Rodrigo ficou perdido, dando uma ansiada busca na memória. Não se lembrava de como tinha vindo da casa de Toni para o consultório.

- Mas é impossível - reagiu - que a esta hora a cidade continue ignorando a verdade.

O padre Astolfo relatou-lhe então, com visível constrangimento e algumas reticências, o que se comentava em Santa Fé a respeito do suicídio. Corria uma versão segundo a qual Toni se matara porque não amava Erwin Spielvogel, com quem os seus queriam obrigá-la a casar-se. Bio contou-lhe uma história mais sórdida: Toni suicidara-se de vergonha, ao descobrir que o irmão era um invertido sexual. E o Zago - acrescentou o vigário, hesitante veiculava maliciosamente o boato de que Toni estava grávida e que o pai da criança era um dos filhos de Maneco Macedo, com o qual a moça fora vista um dia passeando de automóvel.

- Que infâmia! - vociferou Rodrigo- - O filho é meu. E por um rápido instante ficou turbado pela sombra duma ciumenta suspeita.

Toríbio pôs-lhe a mão no ombro.

- Vais hoje mesmo pró Angico.

- Estás doido!

- Já preparei tudo. Disse à Flora que o Papai mandou te chamar com urgência porque não anda se sentindo bem.

- Mas é um absurdo... - replicou Rodrigo, mas já com menos veemência. - Que é que vão dizer se não me virem no enterro?

O padre interveio:

- O essencial é evitar que a situação piore, temos de impedir que outras pessoas sejam atingidas por essa desgraça. Vá para a estância e fique lá uns dias. A fase aguda do caso passará e então o senhor poderá voltar para casa e recomeçar sua luta sobre uma base nova.

Rodrigo relutava:

- Que é que vocês pensam que eu sou? Desde quando estão me dando ordens?

O vigário fez um gesto de desamparo. Bio alteou a voz:

- Não compreendes, idiota, que estamos tratando de poupar tua mulher, tua família, teu futuro?

Rodrigo tinha agora a impressão de que estava no fundo dum poço. De que lhe adiantava lutar? Fez ainda uma objeção, mas com a esperança de que os outros o convencessem do contrário.

- Mas de que vai servir toda essa comédia? A Flora deve saber de tudo... não sabe, padre?

Astolfo levou algum tempo para responder. Quando o fez foi em poucas palavras:

- Dona Flora é uma mulher inteligente e de bom senso. Toríbio estava agora impaciente.

- O Ford já está pronto - anunciou. - Precisas ir o quanto antes, pra chegares ao Angico antes do anoitecer. Deixa o resto por minha conta: fico aqui até voltares.

Saiu do consultório e tornou pouco depois, trazendo um copo graduado e uma garrafa de conhaque. Ergueu o copo contra a luz e derramou nele a bebida.

- Vamos, bebe, homem. Sessenta gramas. Vai te fazer bem. Rodrigo bebeu.

- Mais um pouco?

O outro disse que não com um meneio de cabeça.

- E o senhor, padre?

- Não, obrigado.

- Pois eu estou precisando de uma talagada, que não sou de ferro. Umas cem gramas... ou cento e vinte.

Serviu-se, levou o copo aos lábios e emborcou-o. Estralou os beiços e olhou para o irmão:

- Agora enxuga essas lágrimas, penteia esse cabelo e vai te despedir da tua família. Te lembra do velho Babalo: desgraça pouca é bobagem.

Rodrigo ergueu-se, aproximou-se da pia e ficou a mirar-se no espelho, no qual viu a imagem do padre por trás da sua. Uma voz macia mas grave soou-lhe junto ao ouvido:

- Lembra-se daquela nossa conversa na praça, na madrugada do velório de dona Emerenciana?

Rodrigo franziu a testa. E lembrou-se.

O sol já se tinha posto quando chegou ao Angico. Fez um esforço para não desatar o choro no momento em que, ao abraçá-lo, o pai perguntou:

- Que surpresa é esta? Que foi que houve?

Gaguejou uma escusa. Estava cansado, trabalhara demais nos últimos dias, precisava passar algum tempo na paz do campo, para se refazer. O senhor compreende: aquela lida do consultório, uma operação atrás da outra e, por cima de tudo, essas histórias de política...

- Fiquei muito abalado com a morte do senador. Foi como se eu tivesse perdido um parente chegado.

Sim, ele sentira sinceramente a perda de Pinheiro Machado, mas por que razão essas palavras agora soavam como uma mentira?

- Foi uma coisa bárbara... - murmurou Licurgo.

Pouco depois, sentado à mesa de jantar, falaram ainda na tragédia do Hotel dos Estrangeiros. Licurgo recordou passagens da vida política e privada de Pinheiro Machado.

Rodrigo, porém, estava abstrato, não prestava atenção no que o pai dizia.

- O senhor não come?

- Estou sem apetite.

- Tome então um copo de leite.

- Não, papai. Ando meio enfastiado.

E de súbito a primeira frase da Rèverie de Schumann soou-lhe na mente e, sentindo que ia romper o choro, ergueu-se, saiu da sala em passos apressados, meteu-se no quarto escuro e atirou-se na cama. Oh! Tudo estava muito pior do que ele imaginara! A solidão do campo, os lampiões a querosene, o cheiro de picumã e sebo frio, o desconforto, o vento, aquele vento alucinado que uivava lá fora, fazendo bater folhas de janelas, o vento implacável a raspar, a raspar, a raspar como uma lixa nos nervos da gente!

Uma tábua do soalho rangeu. Rodrigo voltou a cabeça e viu o pai no meio do quarto com uma vela acesa na mão.

- Meu filho, fale a verdade. Que foi que aconteceu?

Deitado de bruços, com ambas as mãos agarradas às barras do lastro da cama, Rodrigo continuava a chorar.

- Morreu alguém, eu sei.

Licurgo fez uma pausa em que o castiçal lhe tremeu na mão.

- Diga quem foi? Estou preparado pra tudo.

- Por favor, apague essa vela...

Licurgo hesitou por uma fração de segundo. Por fim soprou a chama e o quarto ficou de novo às escuras.

Rodrigo contou então sua história desde a noite em que conhecera Toni Weber até o momento em que a encontrara morta com a boca corroída de ácido. Sentiu um certo prazer em esmiuçar pormenores que o incriminavam, em procurar agravantes para sua culpa. Quando terminou a narrativa, fez-se um silêncio que só o pigarro seco de Licurgo cortou.

- Eu tinha de tirar esse peso do peito. O senhor é meu pai. Pode dizer que sou um miserável, um canalha, porque sou mesmo. Me castigue, tem todo o direito. Diga o que quiser, que eu curvo a cabeça. Não tenho desculpa, não tenho perdão.

No coração de Licurgo havia uma praça e no centro dessa praça um monumento: a estátua do jovem dr. Rodrigo Cambará, homem de caráter, médico humanitário, bom filho, bom irmão, bom marido, bom pai, bom amigo. Agora ele próprio, Rodrigo, derribara a estátua com aquela confissão, atirara sua própria imagem no barro. Isso o fazia sofrer mas ao mesmo tempo o redimia um pouco.

Licurgo riscou um fósforo: a chama subiu, trêmula, parou à altura do cigarro e depois apagou-se, ficando apenas um ponto luminoso na escuridão.

Por que o velho não dizia alguma coisa? A fumaça de seu crioulo espalhou-se no ambiente e, aspirando-lhe o cheiro acre, Rodrigo teve a impressão de que estava vendo e tocando o corpo do pai.

- O Bio me aconselhou que viesse... Achou que eu não devia ir ao enterro, estava com medo que eu me traísse... Meu dever era ficar e enfrentar a situação, mas fugi como um covarde.

- Fez bem em vir. Seu irmão andou acertado. O senhor tem que zelar pela sua mulher, pelos seus filhos. Isso é o principal.

Rodrigo não queria que o pai dissesse aquelas coisas. Preferia que ele o insultasse, que o esbofeteasse, que o expulsasse de casa.

- O senhor não procedeu bem - murmurou Licurgo -, fez mal pra moça. Isso não é direito, não é decente, mas é da vida, pode acontecer pra qualquer homem. O principal agora é não perder a cabeça. O mundo não vai acabar. O senhor tem que continuar vivendo como dantes, sua família também, e o Sobrado. Sinto muito o que aconteceu. Que lhe sirva de lição.

Não havia no tom de voz do pai nem indignação nem solenidade, mas apenas uma tristeza seca de serrano.

E no silêncio que de novo se fizera, Rodrigo escutava o uivo do vento e o farfalhar do bambual.

O quarto frio e úmido estava fracamente alumiado pela chama dum lampião a querosene. Deitado de costas, completamente vestido, Rodrigo olhava para o teto e pensava na longa noite que tinha pela frente. Havia mais de uma hora que a cabeça lhe doía sem cessar. Era uma dor surda e latejante, que lhe dava a impressão de ser produzida pelas pancadas do sangue nas têmporas. Ah! Se ao menos tivesse trazido algum narcótico...

Acendeu um cigarro, soltou uma baforada, cerrou os olhos e ficou escutando o pulsar do coração, pensando nas muitas noites em que sentira contra o peito nu as batidas medrosas do coração de Toni. Sobre o fundo escuro das pálpebras ele como que viu uma menininha de longas tranças, com a face ternamente encostada no braço do violoncelo, tocando a Reverte. Em sua mente soaram as primeiras oito notas da melodia, e ficaram a repetir-se dum modo obsedante, acompanhando a cadência lenta e regular do sangue.

Pobre Toni! Àquela hora seu corpo estava sendo velado na pequena sala da meia-água dos Weber. Rodrigo imaginou a cena: o caixão negro, o cadáver coberto de flores, o rosto tapado por um lenço e, debaixo do lenço, os lábios queimados, os lábios queimados, os lábios queimados... Herr Weber decerto olhava em torno, atarantado, com o ar de quem continua a não compreender. Frau Weber chora num desespero, a pobre Frau Weber para quem o dr. Rodrigo Cambará era o mais belo e generoso dos homens... E Wolfgang ali está a olhar tristemente para a irmã morta...

Ao pensar em que Cuca Lopes estaria também no velório a animar as conversas com suas piadas, e que Chiru talvez naquele instante mesmo estivesse a propor alegremente uma partida de truco - Rodrigo encolhia-se, sensibilizado, à idéia de que a pobre Toni jazia abandonada, exposta à indiferença ou, pior ainda, à maledicência geral numa terra de gente estranha que não lhe queria nenhum bem. Isso lhe deu tamanha pena da menina, que lágrimas lhe vieram aos olhos.

Pôs-se de pé, cuspiu fora o cigarro e ficou com as mãos a segurar a cabeça. Começou depois a dar voltas pelo quarto numa ânsia aturdida. Olhou o relógio: ainda não eram onze horas. Tornou a atirar-se na cama. Teve a impressão de que seu crânio era uma casa enorme como o Sobrado, onde soava um violoncelo enorme, tocando uma música enorme, e cada nota era como uma ferroada que lhe varava o cérebro. Depois sua cabeça passou a ser misteriosamente uma meia-água de janelas pintadas de azul (Santo Deus, acho que estou ficando louco) e em seguida já era apenas um pequeno quarto recendente a alfazema. De súbito, num desespero, abraçou o corpo cálido da mulher que sentia palpitar contra o peito. E com que fúria lhe beijou a boca! Mas cuidado, animal! cuidado, porco! que estás machucando os pobres lábios queimados, queimados de ácido, queimados...

Não. Toni não podia ter feito aquilo. Toni não estava morta. Era tudo um sonho. Quando rompesse a manhã ia descobrir aliviado, que tudo tinha sido apenas um pesadelo.

Revolveu-se na cama e ficou deitado de costas, a olhar para a própria sombra projetada na parede branca, ouvindo os baques surdos do coração e aquele tantã impiedoso dentro do cérebro. Decerto vou ficar louco, já estou meio louco...

Sem saber quando nem como, afundou num mundo confuso de febre, dor e ânsia, num escuro torpor que não era bem sono nem chegava a ser vigília - modorra agônica em que continuou a sentir a angústia que lhe oprimia o peito, e o latejar dolorido da cabeça. Seu espírito andou perdido por uma região crepuscular e equívoca povoada de vagos vultos e vozes, sombras e sons que ele procurava identificar numa aflição, mas que lhe fugiam (era de endoidecer!) no momento mesmo em que iam revelar seu mistério, dissolviam-se na grande cerração através da qual ele se esforçava por ver claro, orientar-se, pois sentia que só vendo claro e descobrindo onde estava podia salvar-se, evitar a loucura, abrir uma picada para o dia, para o sol, porque estava extraviado, louco não - querem ver uma coisa? - eu sei quem sou e onde estou... Sou Blau Nunes estou na furna do Jarau ninguém me engana porque eu sei querem que eu fique louco, mas sei não estou louco é só esta dor achei a Salamanca tenho que ir adiante adiante adiante até o tesouro as onças de ouro e sol não volto não volto nem por ouro nem por prata nem por sangue de lagarta nem me assusto com cobras, almas do outro mundo, aranha morcegos avantesmas abantesmas feras fetos eu sei eu sei meus inimigos querem que eu me assuste e fuja fique louco não ache o tesouro o sol não me entrego, não enlouqueço é só esta dor mas sei quem sou um tal Blau Nunes esta cabeça é a furna do Jairo esta dor batendo batendo nas paredes são morcegos monstros, mas não me entrego vou achar o tesouro e o sol mói lê coq mói lê coq mói lê coq não me entrego vou achar o tesouro, o sol quando romper o dia tudo passa é um pesadelo eu sei que sou Blau Nunes minha cabeça é o cerro do Jairo do Jarau do Jarau do Jairo só peço que não batam não batam não pisem no meu peito não batam não batam na minha cabeça não batam...

E a furna se fez ainda mais escura e seu espírito então ficou preso numa ilha tórrida de febre, dor e angústia, em parte nenhuma do tempo, em parte nenhuma do espaço.

Acordou de repente, sentindo que havia soltado um grito. Pôs-se de pé e por alguns segundos ficou desorientado, com a impressão de que estava à beira da loucura. Deu uma volta pelo quarto, às tontas, depois sentou-se na cama e ali ficou por algum tempo a olhar para a chama do lampião, que minguava. Era estranho: não ouvira o grito: vira-o. Aos poucos lembrou-se do sonho. Ia ser enterrado vivo. Era na sala de visitas do Sobrado, ele estava sentado no seu ataúde, no meio de flores de alfazema e não podia reconhecer aquelas gentes que ali estavam no seu velório, porque todos tinham as faces carcomidas de ácido. Aos poucos foi distinguindo as fisionomias... O velho Pitombo, o desenterrador de cadáveres, insistia para que ele se deitasse: estava na hora do enterro, tinham de fechar o caixão. Ele gritou: "Por amor de Deus, não me enterrem. Não estou morto! Não estou morto!" Apelava para Flora, que chorava de mansinho, sacudindo tristemente a cabeça, como a dizer que nada podia fazer. Apareceu-lhe então o pai com um enorme relógio de pêndulo na mão, dizendo: "Meu filho, não há outro remédio, tem que ser, é a lei, tem que ser, é a lei, tem que ser, é a lei". Viu então, apavorado que tinha sido traído. Seus parentes e amigos iam enterrá-lo vivo. Tudo aquilo era uma conspiração. Quis gritar, mas o horror lhe tirava a voz. De súbito teve a revelação do mistério: morrer não era uma fatalidade biológica, mas um dever social. Morria-se porque era uma lei. Tremendo de medo, deitara-se no caixão, mas no momento em que Pitombo e Sérgio erguiam a negra tampa, ele soltara o grito.

Olhou em torno do quarto e começou a sentir uma sufocação, uma estonteada angústia de emparedado. Correu para a janela e escancarou-a. Firmou as mãos no peitoril e saltou para fora.

Ficou um instante parado à frente da casa, os olhos entrecerrados, recebendo em plena cara o vento frio e úmido da madrugada. O farfalhar do bambual chegava-lhe aos ouvidos como um ruído de mar. Meteu as mãos nos bolsos, trêmulo de frio. Pensou em voltar para enfiar o sobretudo e o chapéu. Mas não. Precisava castigar o corpo. Pôs-se a andar em passadas rápidas e largas, como se tivesse destino certo. Ergueu o rosto. Grandes nuvens brancas e móveis escondiam a lua. Nas nesgas de céu limpo entre as nuvens, tremeluziam estrelas. A grama estava empapada de sereno e Rodrigo sentia as bocas das calças baterem-lhe nas pernas, molhadas e frias.

Continuou a caminhar e a cada pisada mais forte a cabeça lhe doía numa ferroada. Volte já pra casa menino, senão vai apanhar uma pulmonia! De onde vinha aquela voz? De que boca? De que mundo?

Sob o céu vertiginoso em que nuvens passavam sobre a face luminosa da lua num apaga-acende fantástico, as coxilhas tinham uma amplidão desolada e glacial de estepe. E era só o sopro frio do vento que dava a Rodrigo a certeza de estar acordado e não a vaguear ainda dentro dum pesadelo.

Dali a poucas horas sairia o enterro de Toni. Lá está a meia-água. Muita gente aglomerada à porta. Curiosos aparecem às janelas, na vizinhança. Quem é que vem carregando o caixão? Mas que importa saber quem carrega o caixão? O horrível é que o cortejo não poderá entrar na igreja, o pavoroso é que não haverá encomendação. (E pensando essas coisas Rodrigo apressava o passo cada vez mais, como se quisesse chegar a Santa Fé a tempo para acompanhar o enterro.) A alma de Toni tinha ido direito para o inferno. Não! Não! Não acreditava no inferno. Era uma sobrevivência medieval, uma invenção estúpida. O inferno estava na Terra. Ele próprio se sentia agora no pior dos infernos. (E esta idéia de certo modo o consolava, pois ele precisava expiar seu crime.) Inferno é uma cabeça que não cessa de doer nem de pensar, de doer e de pensar os pensamentos mais confusos, mais doidos. No inferno devia ter penado Toni desde o dia em que descobrira que estava grávida. Inferno fora para a coitadinha a hora em que resolvera matar-se. Inferno, medonho inferno, o instante em que tomara o veneno, em que sentira a dor da queimadura nos lábios, na boca, no esôfago, no estômago. Inferno, inferno, inferno aquela longa agonia convulsiva em que vomitava pedaços de vísceras. Agora estava morta, tinha encontrado finalmente a paz. Pobre Toni! Pobre Toni! (E nas profundezas de seu ser uma voz respondeu apagada: Pobre de mim!)

Fez alto e voltou-se. Como já estava longe a casa da estância! Quedou-se por algum tempo no meio do campo, transido de frio e com a sensação do mais absoluto desamparo. Sentiu uma repentina piedade de si mesmo, quis chorar mas não pôde. Desejou o sol, o novo dia, o Sobrado, um aconchego humano, um peito amigo onde pousar a cabeça fatigada e dolorida. Pensou na madrinha, em Flora, nos filhos... Como podia ter ficado tanto tempo sem lembrar-se da família? Seu egoísmo persistia, mesmo na dor. Só ele sofria no mundo, ninguém mais. Veio-lhe uma súbita esperança. Era impossível que tudo estivesse perdido... Voltaria para casa, o tempo cicatrizaria todas as feridas e de novo a vida tornaria a ser o que era antes... Mas não! Ele não merecia ser amado, admirado, respeitado. Era um canalha. Tinha assassinado Toni, dera-lhe a pior espécie de morte: não só lhe destruíra o corpo como também a alma.

Pobre Toni! Vou mandar fazer um túmulo para ela. Um túmulo para Toni: Santa Cecília sentada numa lápide, a cabeça inclinada, chorando. Ao lado, uma roseira de rosas vermelhas como as que ela tanto admirava no jardim do Sobrado. Rosas vermelhas para Toni, para a pobrezinha da Toni que viera de tão longe para ficar sepultada no cemitério de Santa Fé...

Veio-lhe à mente a imagem do padre Astolfo. Se ao menos pudesse orar... Balbuciou as primeiras palavras do Padre-Nosso. Faltava-lhe contrição. Devia ser o frio da madrugada, o vento, a canseira, a dor e a confusão que o impediam de concentrar-se na prece, sentir a presença de Deus. Mas... e se Deus estivesse morto? Morto Deus, o mundo estava perdido, não haveria mais sol, nem esperança, nem amanhã. Mas Deus não podia morrer. Se pudesse, não seria Deus. E se Ele não fosse Deus? E se Deus tivesse enlouquecido? Não. Quem está ficando louco sou eu. Por castigo, por castigo.

Continuou a caminhar. Precisava redimir-se, regenerar-se, mudar de vida. Juro por Deus que daqui por diante vou viver só pra minha família. Ainda amava Flora. Precisava compensar o mal que lhe fizera. Ou seria demasiado tarde? Sim, era tarde. Talvez nem a encontrasse mais em casa. Pensou com horror nos dias em que estavam por vir. A cidade inteira a apontá-lo como um criminoso. (Era impossível que já não soubessem de toda a verdade.) O casarão vazio, as horas vazias, a vida vazia. E a saudade de Toni, a saudade de Flora, a saudade dos filhos, a saudade do outro Rodrigo, o remorso, o remorso e lembrança daqueles lábios carcomidos. Santo Deus, aqueles lábios queimados...

Tornou a fazer alto, ofegante, com a garganta a arder. Caiu de joelhos, depois sentou-se e por fim estendeu-se no chão de todo o comprimento, sentindo contra a face e as mãos a fria umidade da grama. Precisava flagelar o corpo, aquele corpo vil que era o culpado de tudo. "Deixe de fita! Levante-se, deixe de fita!" Mas não, papai, o senhor não compreende, estou muito doente, ardendo em febre, uma pontada nas costas...

Estava perdido. Tinha apanhado uma pneumonia dupla. Ergueu-se de inopino e desandou a correr na direção da casa. Não queria morrer, não podia morrer. Ia acordar o pai, os peões, mandar o Bento à cidade em busca dum médico, de remédios... Não. Ele precisava sofrer, devia morrer, porque tinha matado Toni. O remédio era curvar a cabeça e aceitar o castigo. Continuou, porém, a correr...

Escalou a janela e saltou para dentro do quarto. Correu à sala de jantar, tirou do guarda-comida uma garrafa de cachaça, desarrolhou-a, levou o gargalo à boca e bebeu um largo sorvo. Voltou para o quarto com a garrafa debaixo do braço e pôs-se a procurar atabalhoadamente uns comprimidos que se lembrava de ter visto na gaveta da mesinha-de-cabeceira. Achou duas aspirinas, meteu-as na boca, tomou um novo gole de cachaça e engoliu-as. Deitou-se, enrolado num cobertor, e ficou encolhido como um feto, desejando como nos tempos de menino as mãos frescas da Dinda em sua testa escaldante.

Começou a bater dentes, o corpo sacudido de calafrios. Não queria fechar os olhos porque temia entrar na furna do Jarau, sabia que se entrasse de novo naquela medonha noite ficaria irremediavelmente louco. O que ele precisava era lutar contra a conspiração, os inimigos, pois quando viesse um novo dia e o sol, estaria salvo, a vida ia ser como antes e ele descobriria que todo aquele horror não passara dum pesadelo... Mas como podia evitar a furna se não cessavam de bater-lhe nas paredes do crânio, se ele já era a furna do Jarau, um tal de Blau Nunes em busca da Salamanca oh! não batam pelo amor de Deus não batam nas paredes da furna estou com febre chamem o dr. Matias o dr. Carbone o dr. Taboca o dr. Tabocarbone Tabocarbonato estou suando sangue, me mordeu a cobra, suando sangue vermelho rosas sangue sepultura de Toni eu sou a sepultura de Toni está dentro de mim enterrada em mim mas não batam não batam que dói muito sou um tal de Blau Nunes e só peço que não batam não batam não batam ai! não enterrem Toni esperem esperem esperem eu que chegue ela está viva não enterrem Toni viva vai morrer sufocada não enterrem bandidos não batam esperem não enterrem viva não batam não batam não enterrem só eu sei ela está viva um engano está viva enterrar é um crime esperem mas não batam não batam não batam...

 

Uma vela pró Negrinho

 

Floriano Cambará caminhava pela aléia central do cemitério, àquela hora da tarde completamente deserto. Fazia poucos dias que chegara a Santa Fé, após uma ausência de quatro anos, três dos quais passara nos Estados Unidos. E agora, a espiar distraidamente para dentro dos jazigos perpétuos - o dos Amarais, o dos Macedos, o dos Fagundes - tratava de descobrir as raízes da estranha fascinação que aquele lugar exercia sobre seu espírito. Durante sua estada no estrangeiro, as imagens que com mais freqüência lhe vinham à mente eram a daquele cemitério, a da matriz e a da casa onde nascera. Um dia, observando os movimentos dos patinadores na pista de gelo da Rockefeller Plaza, surpreendera-se a pensar naqueles mausoléus e sepulturas, mas com tal intensidade, que chegara a ver minúcias que julgava ignorar por completo: a racha em forma de forquilha no velho túmulo do padre Romano; a letra quebrada no frontão do jazigo dos Teixeiras; a mancha escura a lembrar uma tartaruga, na fachada da capela... Doutra feita, na Ópera de San Francisco da Califórnia, ouvindo Jascha Heifetz interpretar Brahnns, sentira-se inexplicavelmente levado pela melodia de volta à casa paterna; durante os quatro movimentos da sonata ficara a vaguear como uma assombração pelas salas do Sobrado, revendo seus moradores vivos e mortos, apalpando os móveis, aspirando os cheiros - e cada canto, cada pessoa, cada coisa lhe evocara cenas da infância e da adolescência. Mais tarde, quando caminhava por uma rua de Cingapura dentro dum estúdio de Hollywood, viera-lhe de súbito à lembrança a matriz de Santa Fé: a fachada, o interior, a pia encardida, a corda do sino, o olor de incenso, as faces dos santos, as velas dos altares... Era, porém, o cemitério de sua terra natal o espectro que com mais assiduidade lhe assombrava a memória. Pensara nele num dia tórrido e úmido, ao burlequear pelas ruas de Panamá City, enquanto esperava o barco que o devia levar a Valparaíso; e certa noite em que, da amurada do vapor, olhava para as luzes de Antofagasta; e ainda no momento em que o empregado dum drugstore de Los Angeles, rapaz louro de olhos verdes e vazios, lhe servia um café. Repetidas vezes, em terras e hotéis remotos, andara a caminhar em sonhos por entre aqueles túmulos. Era por tudo isso que ali estava agora, tratando de comparar a coisa real com as imagens dela recordadas e sonhadas.

Havia naquele cemitério duas sepulturas em torno das quais a imaginação popular tecera lendas. Uma delas - a do velho Sérgio ficava na parte pobre e era procurada por gente de cor, devota da macumba, e que ao fazer suas promessas, depositava ao redor da carunchada cruz de madeira fumo e fósforos para o cachimbo do negro velho, galinhas mortas para o lobisomem e velas acesas em intenção à alma do defunto. A outra ficava ao lado da capela, perto dos grandes jazigos, e consistia numa lápide cinzenta, com a inscrição já meio apagada por baixo duma cruz em alto-relevo. Seus devotos, em geral gente branca e moça, acreditavam em que a alma da criatura cujo corpo ali jazia, tinha o dom de obrar milagres como os de Santo António. Solteirona que quisesse casar, mulher casada que desejasse recuperar a afeição do marido, enfim, quem quer que tivesse um problema sentimental a resolver, vinha rezar e fazer suas promessas ao pé daquela lápide, sobre a qual acendia velas e depunha flores. Floriano leu a inscrição.

ANTÔNIA WEBER

(TONI)

1895-1915

Talvez ali estivesse o ponto de partida de seu próximo romance... O autor visita o cemitério de sua terra e fica particularmente interessado numa sepultura singela a que a superstição popular atribui poderes milagrosos. Vem-lhe então o desejo de, através da magia da ficção, trazer de volta à vida aquela morta obscura. Desce para a cidade, sai à procura de seus mais antigos moradores, e a cada um deles faz esta pergunta: "Quem foi Antônia Weber?" Alguns nada sabem. Outros contam o pouco de que se lembram. Um teuto-brasileiro sessentão (Floriano começava a visualizar as personagens, a inventar a intriga) ao ouvir o nome da defunta fica perturbado e fecha-se num mutismo ressentido. "Aqui há drama" - reflete o escritor: "Este homem talvez tenha amado Antônia Weber..." Ao cabo de várias tentativas frustradas para fazê-lo falar, consegue arrancar dele uma história fragmentada e cheia de reticências, cujas lacunas, entretanto, o novelista vai preenchendo com trechos de depoimentos de terceiros. Por fim, de posse de muitas peças do quebra-cabeça, põe-se a armá-lo e o resultado é o romance duma tal Antônia Weber, natural de Hanôver, e que emigrou com os pais para o Brasil, vindo a estabelecer-se em Santa Fé, onde...

Mal qual! - exclamou Floriano, parando à sombra dum plátano e passando o lenço pela testa úmida de suor. Ia cair de novo nos alçapões que seu temperamento e suas limitações lhe armavam. Os melhores críticos literários do país não negavam mérito a seus romances, mas eram unânimes em afirmar que em suas histórias faltava o cheiro de suor humano e de terra. Achavam que, quanto à forma, eram bem escritas e tecnicamente aceitáveis; quanto ao conteúdo, porém, tendiam mais para o artifício que para a arte, fugindo sempre ao drama essencial do homem. Pouco lhe importaria o que pensassem os críticos se ele próprio não estivesse de acordo com essas restrições. Não podia nem queria iludir-se a si mesmo. Os três romances que publicara não o satisfaziam. Quando os relia era com a impressão de beber um vinho feito sem uva, apenas com essências, anilinas e muita habilidade química. Chegara à conclusão de que, embora a perícia técnica não devesse ser menosprezada, para fazer bom vinho era necessário antes de mais nada ter uvas, e uvas de boa qualidade. No caso do romance a uva era o tema - o tema legítimo, isto é, algo que o autor pelo menos tivesse sentido se não propriamente vivido. Floriano não achava que a história da desconhecida da sepultura de pedra fosse pura uva. De resto, qualquer drama individual, por mais terrível que fosse, empalideceria quando comparado com a tragédia coletiva que o mundo acabava de presenciar. A humanidade emergia da mais sangrenta e cruel das guerras. Nomes como Coventry, Rotterdam, Lidice, Hiroshima, Buchenwald e Dachau haviam de ficar na História como negros marcos a evocar horrores nunca antes imaginados pelo mais doentio dos cérebros.

Começou a andar lentamente rumo do portão do cemitério. Havia pouco, num artigo que não chegara a publicar nem mesmo a terminar, esboçara um paralelo entre o horror antigo e o horror moderno. O antigo era o das histórias que a velha Laurinda costumava contar em torno de casas assombradas, cemitérios noturnos, bruxas e almas do outro mundo. Era também o horror gótico dos contos de Põe, Hoffmann e Villiers de l'Isle-Adam: o coração humano a pulsar de medo em face da Morte e do Desconhecido. O horror moderno era o pavor da Vida e do Conhecido, o horror social causado pela violência e crueldade do homem contra o homem.

Depois da Primeira Guerra Mundial o medo da fome, do desemprego, da miséria e o medo do próprio medo haviam preparado o caminho para o Estado Totalitário. Este por sua vez industrializara e racionalizara o medo a fim de fortalecer-se, sobreviver e ampliar suas conquistas geográficas e psicológicas. Com a colaboração da ciência, da arte e da literatura convenientemente dirigidas, criara o Horror Moderno, cujos aspectos mais dramáticos eram o mito do Estado e do Líder; os ministérios de propaganda; a polícia secreta com seus refinados métodos de tortura; a militarização da infância e da juventude; os campos de concentração; as tropas de assalto; o orgulho racial; a exaltação fanática do nacionalismo e a glorificação da guerra como o esporte dos povos másculos. O Estado Totalitário elevara a delação à categoria de virtude cívica. Seu mais monstruoso feito, porém - e essa proeza ultrapassava o sonho mais alucinante dos alquimistas da Antiguidade -, fora o de transformar a pessoa humana num mero número, o que tornara possível encarar o massacre de milhões de homens e mulheres como uma simples operação de aritmética elementar. O Deus Estado subvertera os Mandamentos: "Denuncia teu pai e tua mãe se eles murmurarem o que quer que seja contra o Estado". - "Matarás com alegria sempre que isso for necessário aos interesses do Partido." - "Darás falso testemunho contra teu próximo, se essa mentira puder ser útil à Causa."

O pior de tudo é que o Horror Moderno, sob seus múltiplos e sedutores disfarces, exercia poderoso fascínio sobre a juventude. "Deixai vir a mim os pequeninos"- dizia o Chefe - "que eu os transformarei em robots para servirem o Estado." O Horror Moderno oferecia aos jovens, máquinas e armas vertiginosas e mortíferas. Era um belo horror de formas aerodinâmicas que lhes proporcionava uniformes, bandeiras, hinos, tambores, clarins, paradas - um horror organizado, eficiente, metálico, mecânico, simétrico e rítmico. Preconizava os métodos e a moral do gangster, glorificava a violência, libertava, enfim, o animal de presa que dorme no fundo de cada menino. Oferecia aos moços um Pai na figura do Führer, do Duce, do Líder e, se por um lado exigia deles uma disciplina de aço e uma obediência cega, por outro, sempre que lhes dava a oportunidade de usar as máquinas e as armas em competições esportivas, expurgos, pogroms, torturas e expedições punitivas, propiciava-lhes como prêmio a suprema volúpia de se sentirem temidos e de se afirmarem por meio da brutalidade e da destruição. Ninguém simbolizara melhor os efeitos do Horror Moderno no espírito da juventude do que Vittorio Mussolini ao afirmar que para ele a coisa mais bela do mundo era ver abrirem-se como rosas de fogo as bombas que de seu avião deixava cair em solo africano, reduzindo os abissínios a pedaços.

Adulterando a História, a biologia, a sociologia, a antropologia e a filosofia, de acordo com os interesses da Causa, o Estado Totalitário pretendera reduzir a sabedoria dos séculos a um punhado de axiomas, fórmulas e gritos de guerra que seus jovens robots repetiam com feroz orgulho, contentes por se verem livres da dura e fastidiosa tarefa de ficarem debruçados durante anos e anos sobre os livros. Abaixo as universidades! Morte aos cientistas, filósofos e artistas cujas obras não sirvam os objetivos do Partido!

Fazia poucos meses que terminara a Segunda Guerra Mundial - o apogeu do Horror Moderno - e já se podia ver que a desejada paz não passava duma trégua. Falava-se abertamente na Terceira Guerra. No entanto fumegavam ainda os fornos de Oswiecim e Birkenau, nos quais haviam sido cremados os cadáveres de cinco milhões de seres humanos assassinados e torturados em campos de concentração e prisões, onde milhares deles tinham servido como cobaias para as mais cruéis experiências pseudocientíficas. Em vários pontos do globo continuavam ainda muitos desses sinistros campos, onde se amontoavam numa promiscuidade animal, homens, mulheres e crianças sem lar, sem pátria e sem esperança.

E agora a todos esses horrores juntara-se o Horror Atômico. No dia 6 de agosto de 1945 nascera para a humanidade um novo deus tremendo: a Bomba. Por entre os escombros de Hiroshima vagueava uma população de fantasmas. Eram os sobreviventes da Explosão: criaturas em cujos corpos a radiação fizera brotar estranhas flores purulentas, nas mais horríveis ulcerações; seres humanos imbecilizados pelo choque, trêmulos de febre, os cabelos a caírem, as gengivas a sangrarem - chamuscados, deformados, esterilizados, medonhos...

O Estado Totalitário desintegrara a personalidade humana. Os físicos desintegraram o átomo. Uma terceira guerra desintegraria o mundo. Mas talvez - refletiu Floriano - o mundo não passasse dum número nos arquivos de Deus.

Parou à porta do jazigo perpétuo de sua família e espiou para dentro. Lá estavam, sobre o mármore do altar, os retratos de alguns de seus antepassados. Aquela gente havia conhecido épocas mais tranqüilas, mas ele não a invejava; estavam todos mortos. E se tua ressurreição depender de mim, Toni Weber, continuarás defunta e esquecida. Talvez seja melhor assim... Descansa em paz, e adeus!

Pôs-se a assobiar uma frase do andantino do quarteto de Debussy. Pensou no irmão, que detestava Debussy e com ele todos os "músicos reacionários". Floriano sorria, enquanto a voz de Eduardo lhe soava na memória:

"O mal de vocês intelectuais apolíticos é não quererem enxergar os dramas da vida real e ficarem a criar personagens e problemas imaginários. Fazem tudo para fugir à realidade, porque no dia em que encarassem de frente e a sério o drama social, seriam obrigados pela própria consciência a tomar uma posição de combate, e se fizessem isso com honestidade, essa posição só poderia ser a da extrema esquerda, com o comunismo, o que fatalmente os arrancaria do comodismo, da criminosa e covarde indiferença em que vivem".

Floriano lembrava-se do apaixonado fervor, tão típico dum Cambará, com que Eduardo lhe pregara aquele sermão.

"Para meu gosto, Proust é o mais repelente de todos os escritores burgueses. Proust é típico. Tinha dinheiro e vagares para ficar enrolado num xale a reconstituir a infância perdida, os chás com as titias, os pequenos nadas da vida burguesa, enfim, o seu universozinho protegido e ridículo em cujo centro estava o seu euzinho asmático, egoísta e efeminado."

(Antes de descobrir Karl Marx, Eduardo adorava Proust, e a fúria com que agora procurava arrasá-lo como escritor e como homem talvez fosse uma prova de que ele ainda não se havia libertado por completo da fascinação que tinha recherche du temps perdu exercera sobre seu espírito.)

"Na minha opinião, Proust é o padroeiro dos escritores dégagés como tu, Floriano. E foram esses intelectuais chamados puros, que se compraziam em estéreis jogos de idéia e paradoxos, num cerebralismo doentio que os afastava do povo e da própria vida, foram esses onanistas da literatura que direta ou indiretamente abriram as portas de Paris ao invasor nazista. E está claro que o colaboracionismo era a única atitude que se podia esperar duma burguesia apodrecida como a francesa, que preferia levar pontapés no traseiro a perder seu rico dinheirinho!"

Floriano continuou a andar. Procurava não levar Eduardo muito a sério, mas a verdade é que o rapaz o perturbava, não porque ele temesse acabar convertido à sua ideologia, mas porque sempre ficava impressionado e meio perplexo ante o espetáculo da fé - fé no que quer que fosse, em Deus, no espiritismo, em Krishnamurti, no esperanto, em Stálin ou em Antônio Conselheiro.

Entrou no automóvel que o esperava do lado de fora.

- Divertiu-se? - sorriu o chofer.

- Muito.

- Pois eu não gosto de entrar em cemitério. Quem não é visto não é lembrado.

O carro pôs-se em movimento, descendo a encosta da coxilha, na direção da cidade. Floriano lançou o olhar para o casario raso e pardacento do Purgatório, que se estendia ao tépido sol daquele fim de tarde. Ainda lá estavam as sórdidas malocas com sua população de marginais, bem como nos tempos de sua infância. Nada parecia ter mudado. Santa Fé tinha agora um aeroclube, uma estação de rádio, as ruas centrais pavimentadas de paralelepípedos, mas a miséria do Barro Preto, do Purgatório e da Sibéria continuava.

- Que será que vão fazer com o Velho? - perguntou o chofer.

- Que velho?

- O dr. Getúlio.

- Ali! Não sei... Talvez deixem o homem em paz em Santos Reis.

- Eles que não mexam com o presidente, porque o povo é capaz de fazer uma revolução.

Dentro em breve o automóvel deixou as poeirentas ruas de terra batida para entrar na zona calçada de pedra. O chofer tornou a falar.

- Mas um dia ele volta. Pode demorar um ano, dois, quatro... mas o Velho volta e essa corja toda ainda vai beijar a mão-dele.

Ali estava outro caso de fé - refletiu Floriano. Inclinou-se para a frente. - Me deixe na frente do clube.

Poucos minutos depois o carro estacou. Floriano pagou a corrida e apeou. Um homem que estava parado à frente do Comercial, avançou para ele.

- Don Pepe! Então, como vai essa vida?

- Mal, homem, mui mal. Vamos a tomar algo. , Puxou Floriano para dentro do Café Minuano.

- Me pagarás uma cerveja.

- Com prazer, don Pepe, com prazer.

- Garçom! Eh!, animal! Duas cervejas e dois copos. Sentaram-se a uma mesa.

- Uma só. Para mim, água mineral. O espanhol lançou-lhe um olhar torvo.

- Degenerado!

Floriano sorriu. O castelhano mirava-o agora com tamanha intensidade que ele começou a ficar embaraçado.

- Por que é que estás me olhando desse jeito?

- É sorprendente, menino.

- Que é que é surpreendente?

- Como és parecido com o teu papá!

- Dizem.

- Dizem nada, cofio! Don Pepe Garcia, artista plástico, autor do Retrato te assegura que és a imagem viva de teu papá na tua idade, caramba!

Vieram as bebidas. O pintor encheu o copo e tomou um largo trago. Depois, lambendo os bigodes, resmungou:

- Mas o parecido é só no físico, sabes? Te falta algo. Fogo. O fogo que o Velho tem no olhar. - Bateu no próprio peito. - É fogo acá dentro, estás ouvindo? Pero não és culpado. As generaciones novas não têm fibra. Está tudo podrido. Hoje são feitos de matéria plástica e têm coca-cola nas veias. É a maldita influência yankee. Me cago em Truman!

Floriano sorriu, pensando nos fuzileiros navais americanos que haviam tomado Iwo Jima e plantado sua bandeira no alto do monte Surabachi.

- Estás rindo... Pensas que me podes comprar elogios com uma cerveja ou duas ou três? Estás enganado. Don Pepe tem opinião, é dos antigos, sabes? Tem caráter. Não vi ainda teu pai. Não quero ver. Mas se me encontrar com ele, vou dizer-lhe na cara: Traidor!

Floriano bebeu um gole d'água, sem tirar os olhos do interlocutor.

- Por quê?

- Porque sim. Fomos traídos. Eu e o outro, o Rodrigo do Retrato.

Tornou a encher o copo e a beber.

- Garçom! Outra cerveja. Pagarás, Florianito, pagarás. És um membro da aristocracia rural decadente. Teus antepassados foram gigolôs das vacas. Mas os dias de tua classe estão contados. Pagarás mais uma cerveja para este velho borracho que tem alma de artista e corpo de bestia.

Ficou a olhar para a porta do café com uma expressão vazia.

- Me lembro mui bem de quando estava pintando o Retrato. Teu papá era um príncipe, um triunfador, o favorito dos deuses. Hoje... puf! Coração escangalhado, don Getúlio deposto, o futuro incerto, una mierda! Te pregunto: que fez ele de sua mocidade? Eh? Está todo perdido, pêro não tens culpa, és um bom muchacho. Salud!

Ergueu o copo. O garçom pôs sobre a mesa outra garrafa de cerveja.

- He visto Eduardo.

- Sim?

- Aquele tem fogo nos olhos, no peito, como don Rodrigo. Aquele é um homem inteiro. Pêro é um stalinista, el imbecil! Nosotros los anarquistas não toleramos o comunismo. Te acordas do que fizeram os comunistas a los anarquistas em Barcelona durante a guerra civil? Atiraram contra nosotros, los traidores! Pêro Eduardo é um muchacho de coragem. Tiene caracu. Salud!

Tornou a erguer o copo e a beber. Ficou depois com os cotovelos fincados na mesa, as mãos segurando as faces, e uma ternura alcoólica nos olhos lacrimejantes e avermelhados.

Floriano chamou o garçom, pagou a despesa e ergueu-se.

- Vais me dar licença, don Pepe...

- Não queres ser vijto numa mesa de café com o boémio, o borracho, o anarquista, o renegado, não?

- Não é isso. Tenho de voltar para casa...

- Está bem. Vai. Mas m'empresta cincoenta. Floriano deu-lhe o dinheiro.

- Um dia te farei o Retrato, sabes? Segunda edição de Rodrigo Cambará, versão moderna. Te pintarei em aquarela porque não tienes sangre nas veias, mas água mineral. Tu e toda tua generación, menos Eduardo. Pêro esse chico é um idiota, sigue aquele perro de Stálin...

- Está bem. Até logo!

Apertou a mão do espanhol e se foi. Já na calçada ainda ouviu a voz do outro: Salud!

Sentou-se num banco da praça debaixo da figueira, e ficou olhando para o Sobrado. A idéia de voltar para casa não lhe era nada tranquilizadora. Desde que chegara, sentia lá dentro uma atmosfera equívoca, feita de temores e ressentimentos maldisfarçados, de antagonismos que a qualquer minuto podiam explodir em conflitos. Aquela inesperada reunião de família, precipitada pela queda de Getúlio Vargas, só servia para provar o de que havia muito ele, Floriano, desconfiava: o Rio em quinze anos havia desintegrado o clã dos Cambarás e tudo indicava que Santa Fé não conseguiria uni-lo outra vez.

A situação fascinava o contador de histórias que havia em Floriano, mas como homem e personagem daquela comédia de erros, ele não podia deixar de sentir uma certa inquietação e um desconcertante mal-estar.

Seu pai lá estava no quarto, estendido numa cama, convalescendo da terceira crise de infarto, proibido de fumar e fazer qualquer excesso - ele, o homem dos excessos! -, imobilizado num repouso de estátua. Floriano sabia o que isso significava para uma criatura apaixonada e turbulenta como Rodrigo Cambará. Ainda aquela manhã o velho lhe dissera com uma falsa resignação: "Sou como um homem irremediavelmente preso dentro duma casa em cujo porão alguém deixou uma bomba de relógio para explodir numa certa hora... Ele não sabe quando vai se dar a explosão, se dali a dois minutos, dois dias, dois meses ou dois anos. Só sabe que está condenado". E, com um sorriso tristonho, acrescentara: "Acho que vou ser o primeiro Cambará macho a morrer na cama".

Raramente, porém, se entregava a essa veia melancólica. Seu estado de espírito mais comum era o duma exasperada impaciência. Queria fumar, comer mais, beber vinho, deixar a cama... Havia momentos em que sua irritação era tamanha, que, para desabafar, punha-se a murmurar nomes feios numa surdina explosiva. Os horrores que dizia dos militares que haviam obrigado Vargas a deixar o governo! Sua raiva parecia concentrar-se principalmente no general Rubim Veloso. "Canalha! Traidor! Fascista!" - exclamara o velho certa manhã, enquanto o Neco Rosa lhe fazia a barba. - "Ainda na véspera do golpe jantou comigo e não me disse nada. Tu te lembras da bisca do Rubim, não, Neco? Vivia aqui no Sobrado nos seus tempos de tenente. Pois o Getúlio fez por esse sargentão mal-agradecido o que muito pai não faz pelo filho, e no entanto o crápula cuspiu na mão que o amparou! Quando os nazistas estavam ganhando a guerra, o Rubim volta e meia ia beber uísque e champanha na embaixada alemã. Recebeu uma comenda do Mussolini e vivia conspirando com o Plínio Salgado. No entanto, quando a sorte do Hitler mudou, o cachorro virou democrata e só faltou lamber as botinas do Roosevelt!

O dr. Dante Camerino entrara certa vez no quarto por ocasião duma dessas explosões. "Fique quieto pelo amor de Deus. Olhe que assim vamos para um novo ataque." O velho soergueu-se: "Que me importa? Que arrebente duma vez este coração. O que eu quero é fumar um cigarro e levantar desta maldita cama!"

As relações de Rodrigo Cambará com o filho mais moço andavam tensas. O terceiro ataque sobreviera após uma altercação que ele tivera com Eduardo ao discutirem as personalidades de Vargas e Prestes. Floriano ficara abismado ante a frieza com que o irmão encarara o fato. O pai ainda não estava fora de perigo de vida e o rapaz já andava na rua a ultimar os preparativos para o comício comunista do dia seguinte. Floriano chamara-o à parte.

- Por que não esperas mais uns dois ou três dias pra fazer esse comício? O velho não está nada bem...

- Uma coisa nada tem a ver com a outra.

- Para mim tem.

- É que raciocinas ainda sob a influência dum sentimentalismo pequeno-burguês do qual há muito me libertei.

- Faz ao menos esse comício na outra praça...

- Vai ser na frente do Sobrado, e com alto-falante. Se o velho não quiser escutar, que tape os ouvidos com algodão.

Eduardo entregava-se à luta política com a mesma paixão, o mesmo ímpeto agressivo com que o pai se metera em todas as suas campanhas eleitorais e revoluções. Tinha o zelo exagerado e o ardor incendiário dum cristão-novo. Floriano compreendia que o irmão precisava dar aos seus camaradas provas de sinceridade e firmeza partidárias, pois sua situação de filho dum burguês latifundiário como que lhe criara um complexo de inferioridade perante os outros comunistas.

Como era possível que três irmãos tivessem temperamentos tão diferentes? Jango era o homem da terra, conservador, tradicionalista, apegado a seus bens. Tinha um sagrado horror a tudo quanto cheirasse a esquerdismo. Enquanto Eduardo agitava o problema agrário, pregando a divisão das terras entre os camponeses e a liquidação do latifúndio, Jango tratava não só de conservar o que possuía como também de adquirir mais campos e mais gado. Era um homem simples e bom, mas duma secura destituída de qualquer encanto ou pitoresco. Não lhe entrava na cabeça a idéia de que os tempos haviam mudado e de que a sociedade estava em processo de transformação. Queria a continuação do statu quo dentro do qual fora educado e que era tão conveniente a seus interesses e afeições.

Floriano inclinou o busto para a frente e, com a ponta dum pau de fósforo, riscou no chão uma circunferência.

Se Eduardo, Jango e ele fossem dar como náufragos às praias duma ilha deserta, em companhia dum punhado de outras criaturas, era bem possível que Jango dentro em breve fosse eleito chefe da colônia. Homem sólido e prático, tinha o hábito do mando, sabia lidar com a terra e fazer coisas com as mãos; conhecia os ventos, as árvores, os bichos e as gentes. Dentro em pouco seria o membro mais rico da colônia, o que teria a melhor casa, a mesa mais farta, o maior número de bens móveis e imóveis. Quanto a Eduardo, não tardaria muito em organizar um partido de oposição, e era provável que acabasse encabeçando um movimento revolucionário para tomar o governo pela força e estabelecer uma ditadura em nome do proletariado.

E eu? (Sempre inclinado, Floriano agora traçava no chão o mapa da ilha.) Eu talvez permanecesse na minha famosa eqüidistância, a escrever a biografia dos dois líderes e a crônica da ilha. Isso se Eduardo ao tomar o poder não me botasse na cadeia ou mandasse matar, coisa que o próprio Jango já poderia ter feito antes por "meios legais", caso meus escritos entrassem em conflito com os "superiores interesses da comunidade", que ele naturalmente identificaria com os seus próprios.

Sim, aquele era o destino dos intelectuais que queriam conservar a independência, a lucidez e o senso de humor. Eram eternos marginais, olhados com desconfiança e desamor pelos reacionários e com desdenhosa má vontade pelos revolucionários.

Mas, no final de contas, que sou eu? Aos trinta e quatro anos ainda não encontrara uma resposta satisfatória para cada pergunta. Como o velho Babalo, seu avô materno, Jango tinha nítida tábua de valores morais: acreditava na nobreza do trabalho, na hierarquia, no código de honra gaúcho, e na dignificação do homem pelo convívio com a terra. Jamais seria capaz de fazer a menor restrição à pessoa do pai. Parecia aceitá-lo integralmente, sem discutir, como aceitava a existência e a perfeição de Deus. Talvez nunca lhe passasse pela mente a idéia de que o pai e Deus fossem entidades suscetíveis de exame crítico. Mas Eduardo, em quem Maria Valéria desde pequenino procurara incutir o amor e o temor da Santíssima Trindade, acabara desiludindo-se dos mitos cristãos e substituindo-os por uma outra trindade, para ele não menos santa: Marx, Lênin e Stálin. E em nome dessas divindades ele se atirava à luta e estava disposto a matar e a morrer.

Com a sola do sapato Floriano apagou a ilha.

Às vezes invejava a capacidade de paixão do pai. Certo ou errado, o Velho vivera com plenitude, tivera a coragem dos próprios defeitos e desejos: fora um homem afirmado, ao passo que ele, Floriano, sempre se mantivera numa espécie de morna surdina, cultivando suas pequenas ternuras, escravo daquele desejo de ver claro, de conservar a lucidez - uma lucidez que não só lhe criava o horror ao ridículo, ao excesso e ao absurdo como também o fazia compreender que ninguém pode viver com plenitude e profundidade sem incorrer no ridículo (coisa, aliás, tão relativa e discutível), sem cometer excessos ou ver-se a cada passo frente a frente com o absurdo. Fizera tábua rasa dos valores que sempre haviam norteado a vida de gente como Babalo, Licurgo e Maria Valéria. Seu horror a qualquer espécie de fanatismo não o livrara, entretanto, do fanatismo da liberdade. E o desejo de permanecer física e espiritualmente livre, a fruir com orgulhosa volúpia sua solidão, acabara por transformá-lo quase num fugitivo da vida e por fazê-lo prisioneiro da própria idéia de liberdade. Compreendia agora que o preço do equilíbrio é a monotonia. A preocupação de não se deixar envolver pelas pessoas, pelos problemas e pelas paixões havia-o levado a uma espécie de quietismo que no fundo não passava da contemplação inútil e palerma do próprio umbigo.

Claro que estava exagerando? As coisas com ele não eram sempre assim. A verdade é que não acreditava nem mesmo na própria descrença.

Tornou a olhar para o Sobrado, a uma de cujas janelas surgia agora um vulto. Bibi... Esquecera-se por completo da irmã. Era uma omissão que ocorria com freqüência quando ele fazia aqueles inventários mentais da família. Não tinha nenhuma afinidade espiritual com a irmã. No Rio raramente se viam, e quando se encontravam eram como pessoas que entretinham apenas relações de cerimônia: falavam-se sem naturalidade, com a polidez apressada de quem quer logo dizer adeus e passar adiante.

Bibi era outro caso - refletiu Floriano. Fora para o Rio com dez anos e tivera sua educação sentimental a bem dizer sobre as areias de Copacabana. Fizera-se adolescente e finalmente mulher dentro da Era Getuliana. Casara-se aos dezoito anos com um médico de Minas Gerais, sujeito quieto, decente e estudioso, do qual se aborrecera e divorciara dentro de dois anos, para se juntar num casamento uruguaio com um tal Marcos Sandoval, verdadeira flor do Estado Novo, produto daquela fabulosa época de boom, negócios e negociatas fantásticas, daquela era trepidante que mudara o curso da vida brasileira, dando-lhe um novo padrão moral e um novo ritmo. Mas como era possível não gostar do Sandoval? Embora lhe fizesse muitas restrições no terreno moral (afinal de contas o sangue dos Terras e dos Quadros tinha muita força), Floriano não podia permanecer insensível aos encantos do "cunhado". Marcos Sandoval estava no meio da casa dos trinta. Era moreno, de estatura meã e atlética (tênis, volibol, jiu-jitsu). Simpático, simpaticíssimo, tinha uma voz agradável, de entonação carinhosa. "Meu bem, você está com um aspecto admirável!" - "Que é feito de você, meu querido? Então não quer mais saber dos amigos?" E lá vinham os abraços, e os favores, e as pequenas atenções, os telefonemas oportunos ("Então, estamos completando mais um aniversário, hein, meu velho? Pois fica aqui o meu abraço, e conte sempre com este seu admirador") e as flores para madame, os convites para jantar nos cassinos... Era prestimoso, otimista, bem relacionado. Vivaracho, apanhava as coisas no ar e tinha uma espantosa capacidade de improvisação. Sabia que relações cultivar e jamais gastava dinheiro, energia ou tempo com quem não lhe pudesse ser útil no momento ou no futuro. Um dia, como alguém o censurasse por ter servido de intermediário num negócio duvidoso, respondera com um cinismo encantador: "Ora, velhote, a técnica é simples. Criam-se legalmente as dificuldades para depois se venderem clandestinamente as facilidades".

Sandoval estava agora no Sobrado, desnorteado também pela inesperada deposição de Getúlio Vargas, e decerto a preparar sua adesão ao novo governo, ansioso já por descobrir quem eram os novos deuses, a fim de apressar-se a queimar incenso em seus altares.

Como seria conveniente ao Sandoval! - pensava Floriano - a morte de Rodrigo Cambará! Perderia algum tempo ali em Santa Fé a acompanhar o andamento do inventário, exigiria a parte de Bibi em dinheiro e voltaria com ela para o Rio, para a vida que ambos tanto adoravam: cocktail-parties, noitadas nos cassinos, rodas de pif-paf, fins de semana no Quitandinha, viagens ocasionais aos Estados Unidos em strato-clippers.

Essa era a situação no Sobrado. E em meio de tantos interesses desencontrados e conflitos em estado potencial, estavam agora aquelas duas mulheres que Floriano tanto amava e respeitava: sua mãe e Maria Valéria. A primeira portava-se com uma dignidade comovedora. Não tinha ilusões quanto ao marido, conhecia-lhe todas as fraquezas e pecados, tanto os passados como os presentes, e não ignorava nem mesmo a existência daquela amante de vinte anos... Floriano, porém, jamais lhe ouvira a menor palavra de queixa ou censura. Quanto a Maria Valéria, lúcida aos oitenta e cinco anos, apesar de seu ar de alheamento das pessoas e das coisas, parecia compreender muito bem o que se estava passando no velho casarão. Havia pouco, Floriano ouvira a Dinda murmurar: "Que bicho terá mordido essa gente? Está tudo tão esquisito..."

Jango estava para chegar do Angico em companhia da esposa. E ao pensar na cunhada, Floriano ficou numa confusão de sentimentos: o temor e ao mesmo tempo o desejo de revê-la, a curiosidade sobre o que poderia resultar daquele encontro, e o horror de imaginar que... Bom, era melhor nem pensar naquilo. Fosse como fosse, a presença de Sílvia naquela casa não ia tornar a coisa mais fácil para ele.

Com um encolher de ombros, ergueu-se e pôs-se a caminhar lentamente na direção do Sobrado.

Eram quase dez horas da noite e o comício estava a findar. Sentado junto duma janela, Floriano escutava o discurso do irmão, cuja voz, que tanto se assemelhava à do pai no timbre e na entonação, era ampliada e deformada pelo alto-falante que se achava preso a um dos galhos mais altos da figueira.

Uma pequena multidão, que Floriano calculava em duzentas e poucas pessoas, agrupava-se no redondel da praça, em cujo centro estava a tribuna que tinha sido ocupada primeiro por um operário e a seguir por um bancário, um comerciário e um advogado, cujos discursos haviam seguido todos a mesma linha: exaltação de Prestes, do PC Brasileiro, de Stálin e da União Soviética; ataques a Getúlio Vargas e ao mesmo tempo aos generais que o haviam apeado do governo; acenos amistosos para a "burguesia progressista" e gestos ameaçadores, de punhos cerrados, para a Wall Street.

A voz vibrante de Eduardo Cambará enchia o largo. Começara seu discurso fazendo um rápido esboço da formação histórica do Rio Grande do Sul à luz do marxismo, procurando revelar a origem dos latifúndios e a do proletariado rural e urbano. Agora estava a bater com vigor na sua tecla favorita:

- Setenta por cento de nossa população vive no campo, num nível de vida miserável! Precisamos resolver com urgência o problema agrário. É sobre isso que deve legislar o Parlamento que vai ser escolhido nas próximas eleições. Mas para que esse Parlamento legisle com justiça e conhecimento de causa, é indispensável que ele seja composto não apenas de delegados dos estancieiros e latifundiários, como tem acontecido até agora, mas também e principalmente de representantes do peão, do operário, do comerciário, das verdadeiras expressões do povo! Precisamos destruir o cruel e vergonhoso regime semifeudal que nos desgraça e que permite a um homem, a uma família, possuir terras imensas do tamanho de reinos, terras que em pouco ou nada aproveitam à coletividade, e nas quais se emprega um escasso número de peões irrisoriamente mal pagos. Como muito bem disse Luiz Carlos Prestes...

Neste ponto o orador foi interrompido pela multidão, que começou a gritar num uníssono cadenciado: Préstes! Préstes! Préstes!

Quando o clamor cessou, Eduardo prosseguiu:

- Como bem disse o líder do povo, temos terras e mais terras abandonadas junto das vias de comunicação, perto das estradas, dos meios de escoamento duma produção que poderia sair a mãos cheias dessas mesmas terras! E no dia em que essa gleba for entregue ao povo, veremos aumentar fabulosamente nosso mercado interno, para maior progresso da nossa indústria!

De novo o orador foi interrompido por aplausos e aclamações.

Floriano olhou a praça. Pelas calçadas passeavam bandos de raparigas, como nas noites de retreta. A alguma distância do redondel, de pé ou sentados nos bancos, curiosos espiavam o comício, numa atitude de cautelosa neutralidade. E no céu de Santa Fé estavam presentes as mesmas estrelas que cintilavam naquela remota noite de 23 em que, da sacada do Sobrado, Rodrigo Cambará falara a seus correligionários, concitando-os à revolução.

- Mas não é só o panorama social do campo como também o da cidade que nos preocupa, a nós comunistas - continuou Eduardo. - Os tubarões da indústria e do comércio engordaram durante a guerra com lucros extraordinários, mas nem por isso proporcionaram vida melhor aos operários e empregados que contribuíram com seu trabalho, com o seu suor para esse enriquecimento! A miséria e a desigualdade continuam. Não precisamos ir muito longe para encontrar exemplos desse desnível social monstruoso. Comparemos a vida dos que gozam o luxo e os privilégios dos sobrados com a daqueles que vegetam na indigência das malocas da Sibéria!

Novas aclamações encheram o largo.

- Mas a burguesia reacionária, meus compatriotas e camaradas, está condenada à morte! Se eu tivesse de escolher um símbolo de todos os defeitos e vícios dessa classe decadente, eu vos apresentaria a figura dum desses pró-homens do falecido Estado Novo, dum egoísta que, em virtude de sua vida de dissipações, orgias e indulgências tivesse ficado com o coração irremediavelmente abalado e à beira da morte!

Floriano sentiu um choque desagradável. Aquilo era uma referência clara ao velho Rodrigo. Como podia Eduardo ficar tão cego de paixão política a ponto de gritar aquelas coisas em praça pública? E o pior era que com toda a certeza o pai estava a escutá-lo.

- Nós os comunistas - gritava o orador - somos o sangue novo que vai revigorar o coração do Brasil, fazendo que ele se fortaleça e pulse normalmente, levando o organismo da nação a uma perfeita saúde social. A vós liberais, democratas e progressistas, nós os comunistas estendemos fraternalmente a mão convidando-vos a colaborar conosco na grande obra da recuperação de nossos marginais e da libertação do Brasil das garras dos banqueiros internacionais e do capital estrangeiro colonizador. Vinde e marchai conosco, porque nós somos a esperança do mundo!

Por entre palmas frenéticas, de novo rompeu o coro. Préstes! Préstes! Préstes! Préstes!

Quando, pouco depois das onze, Eduardo voltou para casa, Floriano esperava-o na sala de visitas.

- Ouvi o teu discurso.

- Ah... sim!

Eduardo pareceu pouco interessado na informação. Afrouxou o nó da gravata, sentou-se e acendeu um cigarro.

- Assisti ao comício sentado ali perto da janela...

- É uma posição que bem simboliza tua atitude diante dos problemas sociais. Sentado à janela do Sobrado, com a cabeça para fora e o corpo para dentro... Com a cabeça, com a inteligência compreendes que o sistema econômico e político em que vivemos é errado, está podre e deve ser destruído. Mas com o corpo estás escravizado aos confortos e molezas da vida burguesa, cujos hábitos e vícios tens no sangue, nos ossos. Teu comodismo te impede de ir para a praça pública como um soldado da Revolução.

Floriano ergueu-se, enfiou as mãos nos bolsos e começou a andar dum lado para outro, assobiando baixinho um trecho de Mozart.

- Mas uma coisa te garanto - continuou o outro. Os burgueses te olham com desconfiança por causa de teus namoros com o socialismo. Os comunistas te desprezam por acharem absurda e covarde a tua neutralidade.

Floriano soltou uma risada. Eduardo lançou-lhe um olhar carregado de censura.

- Estás rindo, não? É a velha atitude do intelectual blasé e cínico. É Próspero rindo da vitória de Caliban. Vocês riam quando Hitler ameaçava o mundo. Riam e ficavam indiferentes. Pois os escritores que cruzaram os braços diante do nazismo são tão culpados quanto os que colaboraram abertamente com ele!

Floriano deu de ombros.

- Pelo menos eu tenho a liberdade de rir ou ficar sério - retrucou. - Conservo o direito de exercer o meu senso de humor. Um comunista não pode achar graça em coisa alguma sem antes indagar qual é a linha do Partido. Não tem licença de gostar ou não gostar dum partido, dum livro, dum quadro duma sinfonia sem primeiro consultar o comissário.

- Não digas asneiras. Vocês escritores pequeno-burgueses iludem-se, julgando que têm liberdade, mas a verdade é que são pagos para divertir a plutocracia, como palhaços, e para entorpecer o povo com o ópio duma literatura cor-de-rosa, sem raízes na realidade.

- Palhaços? Talvez. Mas que serão escritores que seguem sem discutir a linha comunista? Na minha opinião não passam de outros tantos cachorros de Pávlov. O comissário faz estalar o chicote e provoca neles certos reflexos condicionados que os põe a escrever automaticamente, produzindo a literatura que convém ao Partido.

- Dizes ter horror a qualquer propaganda e no entanto és o primeiro a acreditar nas mentiras da imprensa capitalista e nos depoimentos desses Koestlers e Kravchenkos...

E Eduardo entrou a falar mal de Arthur Koestler e dos outros "comunistas renegados". Floriano quedou-se a escutá-lo sem o menor rancor. Tinha uma ternura toda particular por aquele irmão mais moço, e se essa afeição não se exprimia em gestos e palavras era só porque o outro por assim dizer recusava deixar-se querer bem. Depois que ele se tomara de paixão pelo comunismo, Floriano fora aos poucos perdendo a esperança de poderem reatar a boa camaradagem antiga que lhes permitia conversarem despreocupadamente, dum ângulo apolítico, sobre pessoas, animais e coisas... Agora sempre que se encontravam, Eduardo parecia sentir que era seu dever provocá-lo e pregar-lhe sermões políticos. E o resultado disso eram geralmente diálogos que soavam falso como os duma peça teatral pretensiosa.

- Está bem, Eduardo, está bem. Mas achei que tua referência ao Velho no discurso foi dum mau gosto deplorável.

- Mau gosto, bom gosto... Isso é terminologia burguesa! Eduardo voltou-se para o retrato de Rodrigo Cambará que pendia da parede da sala, dentro de sua moldura cor de ouro velho.

- Ali está o símbolo das coisas que nós comunistas combatemos. O dono da vida, o moço do Sobrado, o morgado, a flor de várias gerações de senhores feudais, muitos dos quais começaram como ladrões de gado e foram aumentando seu património por meio do saque, do roubo, da conquista à mão armada e à custa do suor e do sangue do trabalhador rural. Olha só a empáfia, a vaidade... Parece que ele está dizendo: "Eu sou o centro do mundo, o sal da terra!"

- Fala baixo, sim? O Velho pode estar ouvindo...

O outro, entretanto, continuou no mesmo tom de voz.

- No tempo em que esse retrato foi pintado, a questão social era um caso de caridade, pretexto para os senhores morgados darem provas de sua magnanimidade, de seu excelente coração. Mais tarde passou a ser um caso de polícia.

Floriano agora sorria, vendo apontar à cintura de Eduardo, o cabo do punhal de prata que, segundo rezava uma tradição oral, acompanhava, havia mais de um século, a família Terra, tendo pertencido mais recentemente ao velho Florêncio e passando depois para as mãos inquietas de tio Toríbio. No fundo - refletiu Floriano -, Eduardo tinha um pouco de caudilho, como o pai.

- Eis um liberal à melhor maneira do século XIX - prosseguiu o comunista, olhando ainda para o Retrato. - Dizia acreditar na democracia, adorava os líderes da Revolução Francesa e sabia de cor discursos de Danton e Robespierre...

- Fala baixo, homem!

- Fez demagogia, meteu-se em revoluções em nome dos oprimidos contra a tirania, a ditadura e a desonestidade administrativa. Um dia saiu de Santa Fé com um punhado de outros "centauros do pampa" decidido a regenerar a República. Amarrou seu cavalo no obelisco da avenida Rio Branco e tornou-se um figurão do Estado Novo...

No fim de contas - filosofava Floriano olhando para o irmão - o povo andava sempre em busca dum pai. No Brasil imperial, Pedro II, barbudo e bondoso, preenchera suas funções paternais à maravilha. O Estado Novo produzira o Pai dos Pobres. Na Rússia czarista o povo chamava Paizinho a Nicolau II, que os bolchevistas acabaram depondo e fuzilando. No fundo, o comunismo talvez não passasse duma revolta contra o Pai. Joãozinho e Ritinha rebelavam-se contra o pai que, sem meios para prover-lhes a subsistência, os abandonara à fome e às feras em meio da floresta. Mas a busca do pai assim mesmo continuava. Stálin era agora considerado o Pai do Proletariado. E em nome daquele pai georgiano, simbólico e remoto, Eduardo renegava o pai legítimo.

- Não sejas tão esquemático - disse Floriano em voz alta.

- Vocês comunistas querem saltar impunemente por cima da biologia. Na minha opinião esse é também o erro do catolicismo.

Segundo a Igreja, o dr. Rodrigo Cambará está condenado ao inferno porque pecou contra os mandamentos. De acordo com o marxismo, o Velho está desgraçado porque pecou contra o proletariado. Mas eu me recuso a aceitar esses veredictos, tanto o de Roma como o de Moscou.

- Essa indulgência irresponsável de intelectuais como tu é que tem atrasado a Revolução.

Naquele instante Maria Valéria apareceu à porta da sala empunhando um castiçal. A Dinda entrou na Era Atômica com uma vela acesa na mão - sorriu Floriano.

- Suba, Eduardo - ordenou a velha. - Seu pai quer falar com você.

- Por favor, tem cuidado, não excites o Velho. Olha que ele pode ter outro ataque...

Sem dizer palavra Eduardo encaminhou-se para a escada. Maria Valéria fez um sinal para Floriano.

- Vamos lá no quintal.

- Fazer o quê, Dinda?

Ela não respondeu. Tomou do braço do afilhado e, lado a lado, atravessaram a sala de jantar e a cozinha. Quando desciam vagarosamente a escada dos fundos, Floriano perguntou:

- O sereno não vai lhe fazer mal?

Maria Valéria continuou silenciosa. A chama da vela alumiava-lhe o rosto severo e descarnado, de olhos cegados pela catarata. O luar prateava as copas do arvoredo. Da Estrela-d'Alva vinha um cheiro de pão quente.

Fizeram alto perto do marmeleiro-da-índia. Maria Valéria tirou o toco de vela do castiçal, inclinou-se e cravou-o no chão.

- Pra que é isso? - perguntou Floriano.

- Uma promessa pró Negrinho do Pastoreio.

A velha endireitou o corpo e fez com a cabeça um sinal na direção do Sobrado.

- É pra aquela gente achar o que perdeu.

 

                                                                                            Érico Veríssimo

 

                      

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