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FREUD - Volume I (1886-1899)
FREUD - Volume I (1886-1899)

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OBRAS COMPLETAS DO DR. SIGMUND FREUD

Volume I

 

Publicações pré-Psicanalíticas e esboços inéditos

 

PREFÁCIO GERAL DO EDITOR INGLÊS

 

(1) O OBJETIVO DA STANDARD EDITION

 

O material contido nesta edição está indicado por seu título — Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud; contudo, seria conveniente que eu começasse por indicar mais explicitamente seu conteúdo. Meu objetivo foi incluir nesta edição a totalidade dos escritos psicológicos publicados de Freud — isto é, tanto os psicanalíticos como os pré-psicanalíticos. Não se incluem aqui os numerosos trabalhos de Freud sobre as ciências físicas publicados durante os primeiros quinze anos, mais ou menos, de sua atividade produtiva. Fui bastante liberal quanto ao critério de seleção adotado, pois encontrei lugar para dois ou três trabalhos elaborados por Freud imediatamente após seu regresso de Paris, em 1886. Estes, que abordam principalmente a histeria, foram escritos sob a influência de Charcot, quase sem nenhuma referência aos processos mentais; mas constituem uma verdadeira ponte entre os trabalhos neurológicos e psicológicos de Freud.

A Standard Edition não inclui a correspondência de Freud. Esta tem enorme extensão e apenas algumas seleções relativamente pequenas foram publicadas até o momento. Com exceção das ‘Cartas Abertas’ e de algumas outras, publicadas com o consentimento de Freud durante sua vida, minha exceção principal a essa regra geral está representada pela correspondência que Freud manteve com Wilhelm Fliess no correr da parte inicial de sua carreira. Essa correspondência é de tão vital importância para a compreensão dos pontos de vista de Freud (e não só dos seus pontos de vista iniciais) que grande parte dela não poderia ser rejeitada. Por conseguinte, o primeiro volume da edição contém o Projeto de 1895 e a série de ‘’Rascunhos’’ remedidos por Freud a Fliess entre 1892 e 1897, bem como as partes das cartas que possuem interesse científico explícito.

A Standard Edition também não contém quaisquer relatos ou sumários, publicados nas revistas da época, das muitas conferências e artigos de Freud apresentados, nos primeiros tempos de sua carreira, em reuniões de diversas sociedades médicas de Viena. Aqui, as únicas exceções são os raros casos em que o relato foi feito ou revisado pelo próprio Freud.

Por outro lado, a Standard Edition encerra todo o conteúdo das Gesammelte Werke (a única edição alemã quase completa), além de uma série de trabalhos que ou vieram a lume após a conclusão das Gesammelte Werke, ou foram, por motivos vários, omitidos por seus organizadores. Também pareceu imprescindível incluir, no Volume II, a participação de Josef Breuer nos Studien über Hysterie, que foi deixada de fora em ambas as edições alemãs coligidas.

 

(2) O PLANO DA EDIÇÃO

 

Para um editor que se defrontou com um total de uns dois milhões de palavras, o primeiro problema foi decidir qual a melhor maneira de apresentá-las aos leitores. Deveria o material ser ordenado segundo um critério classificatório ou um critério cronológico? A primeira edição alemã coligida (os Gesammelte Schriften, publicados durante a vida de Freud) empreendeu uma divisão de acordo com o assunto; para as Gesammelte Werke, mais recentes, pretendeu-se uma disposição estritamente cronológica. Nenhum dos dois critérios foi satisfatório. Os escritos de Freud não se encaixam comodamente em categorias, e a cronologia estrita significaria interromper cerradas seqüências de idéias. Aqui, portanto, foi adotada uma conciliação. O arranjo é, no geral, cronológico; todavia, não segui a regra em alguns casos — aqueles em que, por exemplo, Freud escreveu um adendo muitos anos depois do trabalho original (como acontece com o Estudo Autobiográfico, no Volume XX), ou em que ele mesmo agrupou um conjunto de artigos de diferentes datas (tal como os artigos sobre técnica, no Volume XII). Em geral, porém, cada volume contém todos os trabalhos pertencentes a um determinado período de anos. O conteúdo de cada volume (exceto, naturalmente, quando se trata de um único trabalho extenso) é agrupado em três classes: coloquei em primeiro lugar o trabalho principal (ou trabalhos principais) pertencente ao período — que dá o título ao volume; seguem-se os escritos mais importantes, de menor extensão; e por fim são incluídos os trabalhos realmente breves (e, geralmente, de importância relativamente menor). Na medida do possível, a cronologia é determinada pela data da redação real da obra em questão. Muitas vezes, porém, a única data certa é a da publicação. Por conseguinte, cada item é encimado pela data de publicação entre parênteses, seguida da data de composição, entre colchetes, nos casos em que esta pode, com bastante segurança, ser considerada diferente da anterior. Assim, é quase certo que os dois últimos artigos “metapsicológicos”, no Volume XIV, embora publicados em 1917, tenham sido escritos na mesma época que seus três predecessores, em 1915. Esses dois últimos, por conseguinte, são incluídos no mesmo volume que os demais, sendo encimados pelas datas “(1917 [1915])”. Cabe ainda dizer que cada volume contém sua bibliografia e índice próprios, embora estejam planejados para o Volume XXIV uma bibliografia e um índice completos para todo o conjunto da obra.

 

(3) AS FONTES ALEMÃS

 

As traduções da edição inglesa baseiam-se, em geral, nas últimas edições alemãs publicadas ainda em vida de Freud. No entanto, uma das minhas principais dificuldades foi a natureza insatisfatória dos textos alemães. As publicações originais, editadas sob a supervisão direta de Freud, via de regra são fidedignas; entretanto, à medida que o tempo transcorria e a responsabilidade passava a outras mãos, os erros começavam a se infiltrar. Isso aconteceu até mesmo na primeira edição coligida, publicada em Viena entre as duas grandes guerras e destruída pelos nazistas em 1938. A segunda edição coligida, impressa na Inglaterra em meio às maiores dificuldades, durante a Segunda Guerra Mundial, é, em grande parte, uma fotocópia da que a precedeu, mas naturalmente mostra sinais das circunstâncias em que foi produzida. No entanto, continua sendo a única edição alemã existente dos trabalhos de Freud com alguma pretensão de ser completa.

De 1908 em diante, Freud preservou seus manuscritos; mas no caso dos trabalhos publicados durante sua vida, não os consultei, exceto em alguns casos de dúvida. Quanto aos textos publicados postumamente, a situação é diferente; em alguns casos, especialmente no do Projeto (como se pode constatar a partir da Introdução do Editor Inglês a esse trabalho), a tradução foi feita diretamente de uma cópia fotostática do manuscrito.

Um grave defeito nas edições alemãs é a ausência de qualquer tentativa de levar em conta as numerosas modificações de texto feitas por Freud nas edições sucessivas de alguns dos seus livros. Isso se aplica especialmente à Interpretação dos Sonhos e aos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, pois ambos foram, em grau muito acentuado, remodelados em suas edições posteriores. Para um estudioso sério do desenvolvimento das idéias de Freud, é do maior interesse ter bem exposta a estratificação de seus pontos de vista. Assim sendo, aqui me empenhei em assinalar, pela primeira vez, as datas em que foram realizadas as diferentes modificações, e em expor em notas de rodapé as versões anteriores.

 

(4) OS COMENTÁRIOS

 

A partir do que acabou de ser dito, depreende-se que, no conjunto, concebi esta edição tendo em mente o ‘estudioso sério’. Inevitavelmente, o resultado foi um grande número de comentários, com o qual muitos leitores ficarão irritados. Nesse ponto, sou levado a citar o Dr. Johnson:

“Para um expositor, é impossível não escrever muito pouco para alguns e demais para outros. Somente por sua própria experiência é que ele pode julgar aquilo que é necessário; e, por mais que faça deliberações, acabará por explicar muitas passagens que o erudito achará impossível que se compreendam mal e por omitir muitas outras explicações para as quais o inculto desejaria sua ajuda. Estas são censuras meramente relativas, que devem ser toleradas com tranqüilidade.”

Os comentários da Standard Edition são de diferentes tipos. Em primeiro lugar, há as notas puramente textuais, às quais me referi há pouco. Seguem-se as elucidações das numerosíssimas alusões históricas e a lugares, bem como das citações literárias de Freud. Freud constituiu um vívido exemplo de homem igualmente à vontade nas ‘duas culturas’, como têm sido denominadas. Não era apenas um hábil neuroanatomista e fisiologista; era também largamente versado nos clássicos gregos e latinos, bem como na literatura de seu idioma e nas literaturas da Inglaterra, da França, da Itália e da Espanha. A maioria de suas alusões deve ter sido imediatamente compreensível para seus contemporâneos em Viena, mas elas estão muito além do alcance de um leitor atual de língua inglesa. Contudo, muitas vezes, especialmente em A Interpretação dos Sonhos, essas alusões desempenham um papel real no desenvolvimento de sua argumentação; sua explicação não pôde ser posta de lado, conquanto tivesse exigido pesquisa considerável e às vezes infrutífera.

Um outro tipo de anotações é constituído pelas remissões. Estas devem ser de especial valor para o estudioso. Freud freqüentemente abordou o mesmo assunto várias vezes e, talvez, de diferentes maneiras, em datas separadas por longos intervalos. As remissões entre essas ocasiões, alcançando toda a extensão da edição, devem ajudar a superar a objeção ao tratamento cronológico geral do material. Por fim, e mais raramente, há notas explicativas de comentários feitos por Freud. Estas, todavia, são em geral apenas exemplos ampliados das remissões; as discussões mais elaboradas do sentido em Freud ficam habitualmente reservadas a uma outra categoria de comentário.

É que, além dessas explicações feitas correntemente em notas de rodapé, cada trabalho é, sem exceção, acompanhado de uma nota introdutória. Esta varia em extensão, de acordo com a importância do trabalho. Em todos os casos, essa nota inicia com uma bibliografia do texto alemão e de todas as suas traduções para o inglês. (Não é feita qualquer menção a traduções para outros idiomas; também não se procurou fornecer uma lista completa das reedições subseqüentes à morte de Freud em 1939.) Segue-se um relato daquilo que se conhece a respeito da data e das circunstâncias da redação e publicação do trabalho. Vem, a seguir, alguma indicação do conteúdo temático do trabalho e do lugar que ele ocupa na corrente principal do pensamento de Freud. Naturalmente, é aqui que as diferenças serão encontradas. No caso de um trabalho breve, de pequeno interesse, haverá apenas uma ou duas frases. No caso de um trabalho maior, pode haver um ensaio introdutório de muitas páginas.

Todos esses vários tipos de intervenção editorial foram norteados por um único princípio. Meu objetivo foi, espero que corretamente, deixar que Freud fosse seu próprio expositor. Onde há pontos obscuros, busquei explicações nos escritos do próprio Freud; onde parece haver contradições, contentei-me em colocar o fato diante do leitor e possibilitar que este formasse sua própria opinião. Dei de mim o melhor que pude a fim de evitar ser didático, e evitei qualquer pretensão de autoridade ex-cathedra. Mas, se refreei minhas opiniões próprias, especialmente em questão de teoria, constatar-se-á que deixei igualmente de mencionar todos os comentários, abordagens e críticas oriundos de qualquer outra fonte. Assim, quase sem exceção, esta edição não contém absolutamente referências a outros autores, por mais eminentes que sejam — exceto, naturalmente, aqueles que são citados pelo próprio Freud. (A enorme proliferação da bibliografia psicanalítica depois de sua morte, de qualquer modo, teria imposto essa decisão.) Assim, o estudioso poderá abordar os escritos de Freud sem a influência de opiniões alheias.

É no tocante aos comentários que me sinto sobremaneira consciente das deficiências desta edição, muitas delas irremediáveis. Os numerosos erros tipográficos e pequenos lapsos podem ser corrigidos, segundo espero, no Volume XXIV; mas as falhas que me preocupam não podem ser reparadas com tanta facilidade. Na maioria, elas surgem da imaturidade do material. Exemplo disso é algo que já mencionei — a ausência de qualquer edição alemã realmente fidedigna. Na realidade, porém, quando se iniciava o trabalho desta edição, há mais de quinze anos, toda a área estava inexplorada e sem demarcação. Nem sequer tinha sido iniciada a publicação da biografia de Freud de autoria de Ernest Jones; a maioria das pessoas desconhecia a correspondência com Fliess e a própria existência do Projeto. É verdade que recebi assistência de muitas pessoas de todas as partes, especialmente de Ernest Jones, que me punha a par das suas descobertas à medida que as fazia. Não obstante, a Standard Edition constitui um trabalho pioneiro, com todos os inevitáveis erros e tropeços que isso implica. Eu próprio fui-me tornando mais bem informado quanto às idéias de Freud, à medida que o tempo passava, e é provável que os volumes de publicação mais recente dêem prova disso.

Mencionem-se, em particular, duas deficiências. A primeira delas é que, naturalmente, foi impossível concretizar a situação ideal de manter toda a edição composta tipograficamente, mas aberta a correções até estar concluído o último volume. Foi necessário tomar toda uma série de decisões fundamentais antes de publicar o primeiro volume. Essas decisões incluíram tanto as questões de formato quanto a escolha de termos técnicos e, uma vez tomadas tais decisões, em geral foi necessário respeitá-las em toda a edição. Naturalmente, mais tarde lamentou-se o fato de algumas delas terem sido tomadas. Uma outra fonte de deficiências que o crítico benévolo poderá ter em mente é que a Standard Edition foi, sob muitos aspectos, um trabalho de amadores. Foi um trabalho feito por algumas pessoas que habitualmente se dedicam a outras ocupações, um trabalho feito sem apoio de qualquer organização acadêmica disposta a fornecer pessoal ou instalações.

 

(5) AS TRADUÇÕES

 

Ao se pensar numa tradução revista de Freud, o objetivo primeiro só poderia ser o de transmitir seu pensamento com a máxima fidelidade possível. No entanto, um outro problema, talvez mais difícil, não podia ser evitado: o problema do estilo. Certamente não é possível deixar de levar em conta os méritos literários de Freud. Thomas Mann, por exemplo, referiu-se às qualidades “genuinamente artísticas” de Totem e Tabu — “em sua estrutura e em sua forma literária, uma obra-prima relacionada e vinculada com todos os grandes exemplos de obras ensaísticas alemãs”. Dificilmente se poderia esperar que esses méritos sobrevivessem à tradução, mas era preciso empreender algum esforço nesse sentido. Quando a Standard Edition foi inicialmente planejada, considerou-se que seria vantajoso uma única pessoa incumbir-se de moldar todo o texto; com efeito, uma única pessoa executou a maior parte do trabalho de tradução, e mesmo quando uma versão anterior foi utilizada como base, pode-se constatar que se impôs a execução de grandes alterações. Infelizmente, isso provocou a rejeição, no interesse da desejada uniformidade, de muitas traduções feitas anteriormente e que, em si mesmas, eram excelentes. O modelo imaginário que sempre tive diante de mim foram os escritos de algum homem de ciência inglês, de grande cultura, nascido em meados do século dezenove. E em caráter explicativo, e não patriótico, eu gostaria de enfatizar a palavra “inglês”.

Se me volto agora para a questão primeira da tradução correta da intenção de Freud, devo entrar em conflito com o que acabei de dizer. Pois, em todas as passagens em que Freud se torna difícil ou obscuro, é necessário aproximar-se mais de uma tradução literal, sacrificando a elegância estilística. Também por idêntico motivo é necessário absorver por inteiro, na tradução, uma série de termos técnicos, expressões estereotipadas e neologismos que, com a maior boa vontade deste mundo, não podem ser considerados “ingleses”. Há também a dificuldade especial — que emerge, por exemplo, em A Interpretação dos Sonhos, A Psicopatologia da Vida Cotidiana e no livro sobre os chistes — do aparecimento de material que envolveaspectos verbais intraduzíveis. Aqui, não dispusemos da alternativa fácil de eliminar ou substituir por algum material equivalente em língua inglesa. Tivemos que nos socorrer de colchetes e notas de rodapé, pois nos prende o compromisso da regra fundamental: Freud, Freud, e nada mais do que Freud.

No que diz respeito ao vocabulário técnico, adotei, em geral, os termos sugeridos em A New German-English Psycho-Analytical Vocabulary, de Alix Strachey (1943), que, por sua vez, baseou-se nas sugestões de um “Glossary Committee” instituído por Ernest Jones vinte anos antes. Somente em alguns casos divergi dessas autoridades. Determinadas palavras que levantam controvérsias são discutidas em uma nota à parte, mais adiante (em [1]).

Na medida do possível, procurei ater-me à regra geral de traduzir invariavelmente um termo técnico alemão pelo mesmo termo inglês. Assim, “Unlust” é sempre traduzido por “unpleasure“ (“desprazer”) e “Schmerz” é sempre traduzido por “pain” (“dor”). Contudo, deve-se observar que essa regra é passível de conduzir a equívocos. Por exemplo, o fato de “psychisch” ser habitualmente traduzido por “psychical” (“psíquico”) e “seelisch” por “mental” (“mental”) pode levar à idéia de que essas palavras possuam significados diferentes, quando penso que são sinônimas. A regra da tradução uniforme, porém, foi levada mais adiante e estendida a expressões e, a rigor, passagens inteiras. Quando, como tantas vezes acontece, Freud apresenta a mesma argumentação ou conta o mesmo episódio em mais de uma ocasião (às vezes com grandes intervalos de tempo), procurei acompanhá-lo e usar quando ele as usa, palavras idênticas; quando ele as modifica, procurei fazer o mesmo. Alguns pontos não destituídos de interesse são assim preservados na tradução.

Tenho a obrigação de dizer explicitamente, aqui, que todos os acréscimos ao texto, por menores que sejam, e todas as notas de rodapé adicionais estão indicados por colchetes.

 

(6) AGRADECIMENTOS

 

Antes de mais nada, é necessário expressar reconhecimento ao apoio extremamente generoso prestado ao empreendimento, nos seus primórdios, pelos membros da Associação Americana de Psicanálise (à qual me orgulho de pertencer, atualmente, como membro honorário), por iniciativa, em especial, do Dr. John Murray, de Boston, com apoio do Dr. W. C. Menninger, àquela época presidente da Associação. Todas as tentativas feitas anteriormente para levantar o capital necessário tinham falhado, e todo o projeto teria sido abandonado, não fosse a magnífica atitude da América ao subscrever, adiantado, mais ou menos quinhentas coleções da edição proposta. A soma foi subscrita como um ato de pura e até imoderada confiança, numa época em que não havia provas concretas de uma coisa chamada Standard Edition e os resignados subscritores foram obrigados a esperar quatro ou cinco anos para que os primeiros volumes lhes fossem remetidos.

Dessa época em diante, o apoio americano foi constante e chegou até mim oriundo de muitas fontes. Ao longo dos anos, mantive constantes contatos com o Dr. K. R. Eissler, que colocou à minha disposição todos os recursos dos Arquivos Sigmund Freud, além de me proporcionar o mais amistoso incentivo pessoal. Ainda por intermédio dele, tive acesso ao valioso material guardado na biblioteca do Instituto de Psiquiatria do Estado de Nova Iorque. Naturalmente, estive em débito constante para com o Dr. Alexander Grinstein e seu Index of Psychoanalytic Writings. Ainda no âmbito da ajuda que obtive da América, devo mencionar dois homens de regiões separadas por uma grande distância; cada um deles, por longo tempo, deu seu apoio ao sonho de ter um Freud completo em inglês, mas nenhum dos dois viveu o bastante para ver esse sonho realizado: Otto Fenichel e Ernst Kris.

Aproximando-me mais de casa, meu principal apoio veio, naturalmente, do Instituto de Psicanálise e, em particular, do seu Comitê de Publicações, que, sob a direção de diferentes nomes, me apoiou resolutamente desde o primeiro momento, a despeito inclusive do que, muitas vezes devem ter-se afigurado exigências financeiras exorbitantes. Parece uma impropriedade mencionar nomes individualmente, mas devo recordar, mais uma vez, minha volumosa e instrutiva correspondência com Ernest Jones. Tenho especiais motivos para ser grato à Dra. Sylvia Payne, que durante longo tempo ocupou a presidência do Comitê de Publicações.

Passando à germinação real da Standard Edition, é desnecessário dizer que meus primeiros agradecimentos cabem à colaboradora e aos auxiliares cujos nomes são vistos na página de rosto de cada volume: Srta. Anna Freud, minha esposa e o Dr. Alan Tyson. A Srta. Freud, sobretudo, revelou-se incansável ao dedicar suas preciosas horas de lazer à leitura de toda a tradução e ao contribuir com inestimáveis críticas. O nome da Srta. Angela Richards (atualmente Sra. Angela Harris) também aparece na página de rosto do presente volume. Nesses últimos anos, ela foi, de fato, minha auxiliar principal, e se incumbiu de grande parte do aspecto editorial de meu trabalho. Também devo gratidão à Srta. Ralph Partridge, que preparou a maior partedos índices de cada volume, e às Sras. Ambrose Price e D. H. O’Brien, que, em trabalho conjunto, datilografaram todo o material da edição.

As dificuldades nos preparativos iniciais desta edição foram exacerbadas pelas complicações decorrentes do fato de Freud haver lidado de modo totalmente não-pragmático com os direitos autorais de suas traduções. Esses problemas, especialmente os referentes aos direitos autorais americanos, só foram solucionados mediante a decisiva intervenção do Sr. Ernst Freud por um período de vários meses. O lado inglês dessa questão foi manipulado por The Hogarth Press e, em especial, pelo Sr. Leonard Woolf. O Sr. Woolf, que vem publicando as traduções inglesas de Freud há uns quarenta anos, participou ativamente da evolução desta edição. Sinto que minha gratidão especial, e até um tanto mesclada de culpa, se deve aos editores e impressores, por sua tolerância em atenderem às minhas exigências.

Cabe-me acrescentar que, embora tenha recebido conselho de muitas pessoas que me auxiliaram, e tenha-me beneficiado muito desses conselhos em todos os pontos da tradução ou dos comentários, a decisão final, em última análise, só poderia ser minha; portanto, é apenas sobre mim que repousa toda a responsabilidade pelos erros que o tempo, certamente, há de revelar em abundância.

Por fim, eu tomaria a liberdade de expressar um reconhecimento mais pessoal: minha dívida de gratidão para com a companheira que há tantos anos tem participado do meu trabalho como tradutor. Já faz hoje quase meio século desde que, juntos, passamos dois anos em Viena, em análise com Freud, e desde que, decorridas apenas algumas semanas de análise, ele, de repente, nos instruiu a fazer uma tradução de um trabalho que escrevera havia pouco tempo — “Ein Kind wird geschlagen” —, tradução que agora faz parte, aqui, do Volume XVII. No presente empreendimento, ela me prestou ajuda constante, por sua imparcialidade tanto na aprovação como na crítica, e ela pôde ajudar-me a atravessar alguns períodos de dificuldade física, quando parecia absurdo imaginar que um dia a Standard Edition pudesse ser concluída.

JAMES STRACHEY

MARLOW, 1966

 

RELATÓRIO SOBRE MEUS ESTUDOS EM PARIS E BERLIM (1956 [1886])

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS

 

BERICHT ÜBER MEINE MIT UNIVERSITÄTS-JUBILÄUMS REISESTIPENDIUM UNTERNOMMENE STUDIENREISE NACH PARIS UND BERLIN

 

(a) EDIÇÃO ALEMÃ:

(1886 Data de redação.)

1960 Em Sigmund Freuds akademische Laufbahn im Lichte der Dokumente, de J. e R. Gicklhorn, 82, Viena.

 

(b) TRADUÇÃO INGLESA:“Report on my Studies in Paris and Berlin”

1956 Int. J. Psycho-Anal., 37 (1), 2-7, (Trad. de James Strachey.)

 

A presente tradução inglesa é uma reimpressão ligeiramente corrigida da publicada em 1956.

O relatório com que apropriadamente tem início a Standard Edition das Obras Psicológicas de Freud é um relato contemporâneo que seu protagonista faz de um evento histórico: o desvio dos interesses científicos de Freud da neurologia para a psicologia.

As circunstâncias em que, em 1885, Freud obteve da Universidade de Viena uma bolsa de estudos para viajar estão detalhadamente relatadas por Ernest Jones (1953, 82-4). A subvenção, no valor de 600 florins (que, naquele tempo, equivaliam a pouco menos de £ 50 ou US$ 250) e destinada a cobrir um período de seis meses, foi concedida pelo Colégio de Professores da Faculdade de Medicina: e esperava-se que Freud lhes fizesse um relatório formal quando de seu regresso a Viena. Ele passou cerca de dez dias escrevendo esse relatório, quase que imediatamente após seu retorno, havendo-o concluído em 22 de abril de 1886. (Jones, ibid., 252.) Por iniciativa de Siegfried Bernfeld, esse relatório foi descoberto nos Arquivos da Universidade pelo Professor Josef Gicklhorn, o que possibilitou sua publicação — primeiramente em inglês — setenta anos depois de ter sido escrito, por gentileza do Dr. K. R. Eissler, Secretário dos Arquivos Sigmund Freud em Nova Iorque. O original, que se encontra nos Arquivos da Universidade de Viena, consiste em doze folhas manuscritas, das quais a primeira contém apenas o título.

É de conhecimento geral a importância que o próprio Freud sempre atribuiu aos seus estudos com Charcot. Esse relatório mostra com a maior clareza que suas experiências no Salpêtrière constituíram um momento de decisão. Quando chegou a Paris, seu “tema de eleição” era a anatomia do sistema nervoso; ao partir, sua mente estava povoada com os problemas da histeria e do hipnotismo. Dera as costas à neurologia e se voltava para a psicopatologia. Seria até mesmo possível assinalar uma data precisa para a mudança — princípio de dezembro de 1885, quando terminou seu trabalho no laboratório de patologia do Salpêtrière; contudo, a incômoda organização daquele laboratório, que o próprio Freud apresenta como explicação, naturalmente não foi outra coisa senão uma causa precipitante da momentosa mudança de direção nos interesses de Freud. Outros fatores mais profundos estiveram em ação e, entre eles, sem dúvida a grande influência pessoal que Charcot naturalmente exercia sobre ele. Freud expressou de forma mais plena sua consciência dessa influência no obituário que escreveu por ocasião da morte de seu professor, alguns anos mais tarde (1893f). Com efeito, muito do que ele diz de Charcot neste relatório encontrou lugar em seu estudo posterior.

Um relato mais pessoal da estada de Freud em Paris encontra-se na série de vívidas cartas que escreveu à sua futura mulher, muitas das quais estão incluídas no volume de sua correspondência organizado por Ernst Freud (1906a).

 

RELATÓRIO SOBRE MEUS ESTUDOS EM PARIS E BERLIM

 

EFETUADOS COM O AUXÍLIO DE UMA BOLSA

DE ESTUDOS CONCEDIDA PELO FUNDO DOJUBILEU UNIVERSITÁRIO

(OUTUBRO DE 1885 — FIM DE MARÇO DE 1886)

por

DR. SIGMUND FREUD

Docente de Neuropatologia da Universidade de Viena

Ao Emérito Colégio de Professores da Faculdade de Medicina de Viena.

 

Quando me candidatei ao prêmio da Bolsa de Estudos do Fundo do Jubileu Universitário, referente ao ano de 1885-6, expressei minha intenção de me dirigir ao Hospice de la Salpêtrière, em Paris, e de ali continuar meus estudos de neuropatologia. Diversos fatores contribuíram para essa escolha. Em primeiro lugar, havia a certeza de encontrar reunido no Salpêtrière um grande acervo de material clínico que, em Viena, só se pode encontrar disperso por diferentes departamentos, não sendo, portanto, de fácil acesso. Além disso, havia o grande renome de J.-M. Charcot, que há dezessete anos vem trabalhando e lecionando em seu hospital. Por fim, fui levado a refletir que nada de essencialmente novo poderia esperar aprender numa universidade alemã, depois de haver usufruído do ensino direto e indireto, em Viena, dos professores T. Meynert e H. Nothnagel. A escola francesa de neuropatologia, por outro lado, parecia-me prometer algo diferente e característico de sua maneira de trabalhar, além de haver ingressado em novas áreas da neuropatologia que não tinham sido abordadas de forma parecida pelos cientistas da Alemanha e da Áustria. Em decorrência da escassez de qualquer contato pessoal estimulante entre médicos franceses e alemães, as descobertas da escola francesa — algumas (sobre hipnotismo) deveras surpreendentes e outras (sobre histeria) de importância prática — foram recebidas, em nossos países, mais com dúvidas do que com reconhecimento e crédito; e os pesquisadores franceses, sobretudo Charcot, viram-se submetidos à acusação de terem uma reduzida capacidade crítica ou, pelo menos, de se inclinarem a estudar material raro e estranho e de dramatizarem seu trabalho com esse material. Por conseguinte, quando o emérito Colégio de Professores me distinguiu com o prêmio da bolsa de estudos, com alegria agarrei a oportunidade, que assim me era oferecida, de formar um julgamento sobre esses fatos baseado na minha própria experiência, e senti-me feliz, ao mesmo tempo, por estar em situação de pôr em prática a sugestão que me dera meu respeitado mestre, Professor von Brücke.

Quando me encontrava em visita a Hamburgo, durante as férias, fui recebido com muita amabilidade pelo Dr. Eisenlohr, renomado representante da neuropatologia naquela cidade. Ele me possibilitou examinar um considerável número de pacientes nervosos no Hospital Geral e no Hospital Heine, e também me deu acesso ao Hospital Mental de Klein-Friedrichsberg. Mas os estudos de que me ocupo neste Relatório começaram com minha chegada a Paris, na primeira quinzena de outubro, no início do ano acadêmico.

O Salpêtrière, que foi o primeiro local que visitei, é um amplo conjunto de edifícios que, por seus prédios de dois andares dispostos em quadriláteros, assim como por seus pátios e jardins, lembra muito o Hospital Geral de Viena. Com o passar do tempo, o Salpêtrière serviu a finalidades muito diferentes, e seu nome (assim como a nossa “Gewehrfabrik”) provém da primeira dessas finalidades. Os edifícios foram, afinal, convertidos em lar de mulheres idosas (“Hospice pour la vieilesse (femmes)”, [1813]) e proporcionam asilo a cinco mil pessoas. A natureza das circunstâncias fez com que as doenças nervosas crônicas viessem a figurar nesse material clínico com especial freqüência; e os antigos “médicins des hôpitaux” da instituição (Briquet,por exemplo) tinham começado a fazer um estudo científico dos pacientes. Mas o trabalho não pôde prosseguir de modo sistemático por causa do costume existente entre os “médicins des hôpitaux” franceses de mudarem freqüentemente de hospital e, ao mesmo tempo, trocarem o ramo especial da medicina que estão estudando, até que sua carreira os conduza ao grande hospital clínico do Hôtel-Dieu. Mas J.-M. Charcot, quando era “interne” no Salpêtrière, em 1856, percebeu ser necessário fazer das doenças nervosas crônicas o tema de um estudo constante e exclusivo; resolveu retornar ao Salpêtrière como ‘’médicin des hôpitaux‘’ e, depois, jamais abandonar esse hospital. Charcot modestamente declara que seu único mérito consiste em ter executado esse plano. A natureza favorável do material à sua disposição levou-o a estudar as doenças nervosas crônicas e sua base anatomopatológica; durante uns doze anos, deu aulas de clínica, como professor voluntário, sem ter qualquer cargo oficial, até que finalmente, em 1881, foi instituída no Salpêtrière uma cátedra de Neuropatologia, confiada a ele.

Essa nomeação produziu modificações de grande alcance nas condições em que trabalhavam Charcot e seus discípulos (que, nesse meio tempo, tinham-se tornado numerosos). Ao material permanente presente no Salpêtrière acrescentou-se um complemento essencial, quando foi fundada uma seção clínica, na qual eram internados para tratamento pacientes tanto masculinos como femininos selecionados a partir das consultas semanais realizadas num departamento de pacientes de ambulatório (“consultation externe”). Havia ainda, à disposição do professor de neuropatologia, um laboratório destinado a estudos de anatomia e fisiologia, um museu de patologia, um estúdio de fotografia e preparação de moldes de gesso, um gabinete de oftalmologia e um instituto de eletricidade e hidropatia. Estavam localizados em diferentes partes do grande hospital e possibilitavam ao diretor assegurar-se da permanente cooperação de alguns de seus discípulos, que eram encarregados desses departamentos.

O homem que chefia toda essa organização e seus serviços auxiliares tem, atualmente, a idade de sessenta anos. Possui a vivacidade, a jovialidade e a perfeição formal no falar que costumamos atribuir ao caráter da nacionalidade francesa; ao mesmo tempo, mostra a paciência e o amor pelo trabalho que geralmente atribuímos aos de nossa nação. A atração exercida por semelhante personalidade logo me levou a limitar minhas visitas a um único hospital e a buscar os ensinamentos de um único homem. Abandonei minhas eventuais tentativas de assistir a outras conferências, depois de haver-me convencido de que tudo o que elas tinham a me oferecer eram, na sua maior parte, peças de retórica bem construídas. As únicas exceções eram as autópsias e conferências forenses do Professor Brouardel no Necrotério, que eu raramente perdia.

No Salpêtrière, meu trabalho assumiu uma forma diferente daquela que eu, de início, tinha estabelecido para mim mesmo. Eu havia chegado com a intenção de fazer de uma única pergunta, objeto de uma cuidadosa investigação; e como, em Viena, o assunto eleito por mim eram os problemas anatômicos, tinha escolhido o estudo das atrofias e degenerações secundárias que se seguem às afecções do cérebro nas crianças. Um material patológico extremamente valioso estava à minha disposição; achei, todavia, que as condições para me utilizar dele eram muitíssimo desfavoráveis. O laboratório de modo algum oferecia condições para receber um pesquisador de fora, e esse espaço e esses recursos, tal como existiam, haviam-se tornado inacessíveis devido à falta de qualquer espécie de organização. Assim sendo, vi-me obrigado a desistir do trabalho com a anatomia e a me contentar com uma descoberta referente às relações dos núcleos da coluna posterior da “medulla oblongata”. Depois, porém, tive oportunidade de retomar pesquisas semelhantes com o Dr. von Darkschewitsch (de Moscou), e nossa colaboração possibilitou uma artigo publicado nos Neurologisches Centralblatt (1886, 5, 212), que teve por título “Über die Beziehung des Strickkörpers zum Hinterstrang und Hinterstragskern nebst Bemerkungen über zwei Felder der Oblongata”.

 

Contrastando com a inadequação do laboratório, a clínica do Salpêtrière proporcionava tal abundância de material novo e interessante que eram necessários todos os meus esforços para me beneficiar do ensino que essa oportunidade favorável me oferecia. O horário da semana era dividido como se segue. Na segunda-feira, Charcot dava sua aula teórica, que encantava os ouvintes pela perfeição de sua forma, ao mesmo tempo que o tema da aula era conhecido a partir do trabalho da semana anterior. O que essas aulas ofereciam não era tanto um ensino elementar de neuropatologia sob a forma de informações, mas, antes, as mais recentes pesquisas do Professor; e elas produziam efeito principalmente em virtude de suas constantes referências aos pacientes que estavam sendo examinados. Na terça-feira, Charcot realizava a “consultation externe”, na qual seus assistentes lhe apresentavam para exame os casos típicos ou difíceis, selecionados dentre o grande número dos que compareciam ao departamento de ambulatório. Às vezes, era desanimador quando o grande homem deixava algum desses casos, para usar sua própria expressão, afundar “no caos de uma nosografia ainda desconhecida”; outros, contudo, lhe davam a oportunidade de usá-los como ponto de partida para os mais instrutivos comentários sobre uma ampla variedade de questões de neuropatologia. As quartas-feiras eram, em parte, dedicadas aos exames oftalmológicos, que o Dr. Parinaud efetuava na presença de Charcot. Nos demais dias da semana, Charcot percorria as enfermarias, ou continuava as pesquisas que estivesse empreendendo na ocasião, examinando, para esse fim, pacientes em seu consultório.

Tive, assim, oportunidade de ver um grande número de pacientes, de examiná-los e de ouvir a opinião de Charcot a respeito deles. O que me parece ter tido maior valor do que essa efetiva aquisição de experiência foi, no entanto, o estímulo que recebi, durante os cincos meses que passei em Paris, do meu constante contato científico e pessoal com o Professor Charcot.

No que diz respeito ao contato científico, certamente não me foi dada preferência em relação a qualquer outro estrangeiro. Pois a clínica era acessível a qualquer médico que se apresentasse, e o trabalho do Professor era executado abertamente, cercado de todos os jovens que atuavam como seus assistentes, assim como dos médicos estrangeiros. Parecia que ele, por assim dizer, trabalhava conosco, pensava em voz alta e esperava que os discípulos lhe apresentassem objeções. Todo aquele que assim desejasse podia entrar na discussão, e nenhum comentário passava despercebido ao grande homem. A informalidade que prevalecia no relacionamento e a maneira como cada um era tratado, com cortesia e em condições de igualdade — o que constituía surpresa para os visitantes estrangeiros —, facilitavam a situação, de modo que até os mais tímidos tinham a mais viva participação nos exames de Charcot. Podia-se verificar a maneira como ele, inicialmente, ficava indeciso em face de alguma nova manifestação difícil de interpretar; podia-se seguir os caminhos pelos quais se esforçava por chegar a uma compreensão; podia-se estudar o modo como avaliava as dificuldades e as vencia; e podia-se observar, com surpresa, que ele nunca se cansava de observar o mesmo fenômeno, até que seus esforços repetidos e sem prevenções lhe permitissem chegar a uma visão correta de seu significado. Quando, além de tudo isso, acode à lembrança a total sinceridade manifestada pelo Professor durante essas sessões, compreende-se por que o autor deste relatório, assim como aconteceria com qualquer outro estrangeiro em situação semelhante, deixou o Salpêtrière com irrestrita admiração por Charcot.

Charcot costumava dizer que, falando de modo geral, o trabalho da anatomia estava encerrado e que a teoria das doenças orgânicas do sistema nervoso podia ser dada como completa: o que precisava ser abordado a seguir eram as neuroses. Sem dúvida, essa afirmação pode ser considerada como nada além da expressão do rumo tomado por suas próprias atividades. Por muitos anos, então, seu trabalho centralizou-se quase por completo nas neuroses, principalmente na histeria, que, desde o início das atividades do departamento de ambulatório e da clínica, ele teve oportunidade de estudar tanto nos homens como nas mulheres.

Tentarei resumir em poucas palavras o que Charcot realizou no estudo clínico da histeria. Até o presente, dificilmente se pode considerar a palavra histeria como um termo com significado bem definido. O estado mórbido a que se aplica tal nome caracteriza-se cientificamente apenas por sinais negativos; tem sido estudado escassa e relutantemente; e carrega a ira de alguns preconceitos muito difundidos. Entre estes estão a suposição de que a doença histérica depende de irritação genital, o ponto de vista de que nenhuma sintomatologia definida pode ser atribuída à histeria simplesmente porque nela pode ocorrer qualquer combinação de sintomas e, finalmente, a exagerada importância dada à simulação no quadro clínico da histeria. Durante as últimas décadas, é quase certo que uma mulher histérica seria tratada como simuladora, do mesmo modo que, em séculos anteriores, certamente seria julgada e condenada como feiticeira ou possuída pelo demônio. Sob outro aspecto, é possível que até se tenha dado um passo atrás no conhecimento da histeria. A Idade Média estava familiarizada de modo preciso com os “estigmas” da histeria, seus sinais somáticos, e os interpretava e utilizava à sua própria maneira. No departamento de ambulatório, em Berlim, contudo, verifiquei que esses sinais somáticos da histeria eram praticamente desconhecidos e que, em geral, quando se fazia um diagnóstico de “histeria”, parecia estar eliminada qualquer motivação para se obter mais algum informe a respeito do paciente.

Em seu estudo da histeria, Charcot partiu dos casos mais completamente desenvolvidos, que ele considerava como tipos perfeitos da doença. Começou por reduzir a conexão entre a neurose e o sistema genital a suas proporções corretas, demonstrando a insuspeitada freqüência dos casos de histeria masculina e, especialmente, de histeria traumática. Nesses casos típicos, ele encontrou a seguir numerosos sinais somáticos (tais como a natureza do ataque, a anestesia, os distúrbios da visão, os pontos histerógenos etc.), que lhe possibilitaram estabelecer com segurança o diagnóstico da histeria, com base em indicações positivas. Estudando cientificamente o hipnotismo — área da neuropatologia que teve que ser arrancada, de um lado, do ceticismo e, de outro, do embuste —, Charcot chegou a uma espécie de teoria da sintomatologia histérica. Teve a coragem de reconhecer esses sintomas como sendo, na sua maior parte, reais, sem negligenciar as precauções exigidas pela insinceridade do paciente. A experiência, que aumentou rapidamente com o excelente material, logo lhe possibilitou levar em conta também as variantes do quadro típico. À época em que fui obrigado a deixar a clínica, ele estava passando do estudo das paralisias e artralgias histéricas para o das atrofias histéricas, de cuja existência só conseguiu convencer-se durante os últimos dias de minha visita.

 

A enorme importância prática da histeria masculina (que geralmente não é reconhecida) e, em particular, a histeria que se segue a um trauma foi ilustrada por ele como o caso de um paciente que, durante cerca de três meses, constituiu o ponto central dos estudos de Charcot. Assim, por meio de seu trabalho, a histeria foi retirada do caos das neuroses, diferençada de outros estados de aparência semelhante, e a ela se atribuiu uma sintomatologia que, embora extremamente multiforme, tornava impossível duvidar de que imperassem nela uma lei e uma ordem. Tive uma animada troca de opiniões com o Professor Charcot (tanto oralmente como por escrito) sobre os pontos de vista oriundos de suas investigações. Isso me levou a preparar um artigo que está por ser publicado nos Archives de Neurologie e que tem como título “Vergleichung der hysterischen mit der organischen Symptomatologie”.

Neste ponto, devo observar que a disposição de considerar as neuroses provenientes de trauma (“railway spine”) como histeria encontrou decidida oposição por parte de autoridades alemãs, especialmente do Dr. Thomsen e do Dr. Oppenheim, médicos assistentes do Charité, de Berlim. Conheci pessoalmente a ambos, mais tarde, em Berlim, e esperava ter a oportunidade de verificar se sua oposição era justificada. Infelizmente, porém, os pacientes em questão já não se encontravam mais no Charité. Fiquei, todavia, com a impressão de que a questão não está madura para uma decisão, mas que Charcot acertadamente começara por abordar os casos típicos e mais simples, ao passo que seus adversários alemães partiram do estudo de exemplos indeterminados e mais complexos. Em Paris, contestou-se a afirmação de que formas tão graves de histeria como aquelas em que Charcot baseou seu trabalho não ocorriam na Alemanha; chamou-se atenção para os relatos históricos de epidemias semelhantes e insistiu-se na identidade da histeria em qualquer época e lugar.

 

Também não perdi a ocasião de adquirir um conhecimento pessoal dos fenômenos do hipnotismo, que são tão surpreendentes e aos quais se dá tão pouco crédito, e, em especial, do “grand hypnotisme” [“grande hipnotismo”] descrito por Charcot. Com surpresa, verifiquei que nessa área determinadas coisas aconteciam abertamente diante dos nossos olhos e que era quase impossível duvidar delas; assim mesmo, eram tão estranhas que não se podia acreditar nelas, a menos que delas se tivesse uma experiência pessoal. Contudo, não vi nenhum sinal de que Charcot mostrasse qualquer preferência especial por material raro e estranho, ou de que tentasse explorá-lo para fins místicos. Pelo contrário, considerava o hipnotismo uma área de fenômenos que ele submetia à descrição científica, tal como fizera, muitos anos antes, com a esclerose múltipla ou com a atrofia muscular progressiva. Não me parecia em absoluto que ele fosse um desses homens que se mostram mais encantados com aquilo que é raro do que com aquilo que é comum; e a tendência geral de sua mente leva-me a supor que ele não consegue descansar enquanto não descreve e classifica corretamente algum fenômeno que o interesse, mas dorme tranqüilamente sem ter chegado à explicação fisiológica do fenômeno em questão.

Neste Relatório, dediquei espaço considerável aos comentários sobre a histeria e o hipnotismo, porque tive de abordar aquilo que era totalmente novo e que foi objeto dos estudos específicos de Charcot. Embora me tenha referido menos às doenças orgânicas do sistema nervoso, não gostaria que se supusesse que vi pouco ou nada a respeito delas. Mencionarei apenas alguns dos casos particularmente interessantes em meio à riqueza do notável material apresentado. Entre estes estavam, por exemplo, as formas de atrofia muscular hereditária, recentemente descritas pelo Dr. Marie; embora estas não mais sejam incluídas entre as doenças do sistema nervoso, ainda estão sob os cuidados dos neuropatologistas. Devo mencionar também os casos da doença de Ménière, de esclerose múltipla, de tabes, com todas as suas complicações, particularmente acompanhada pela doença das articulações descrita por Charcot, da epilepsia parcial e de outras formas de doença que compõem o acervo de material das clínicas e dos ambulatórios de doenças nervosas. Entre as doenças funcionais (exceto a histeria), a coréia e as diversas formas de “tiques” (por exemplo, a doença de Gilles de la Tourette) estavam recebendo atenção especial durante a época em que freqüentei aquele serviço.

 

Quando tomei conhecimento de que Charcot tencionava publicar uma nova coletânea de suas conferências, ofereci-me para fazer uma tradução alemã; graças a essa tarefa, entrei em contato pessoal mais próximo com o Professor Charcot e também pude prolongar minha estada em Paris além do período coberto por minha bolsa de estudos. Essa tradução está por ser publicada em Viena, em maio do corrente ano, pela editora de Toeplitz e Deuticke.

Por fim, devo mencionar que o Professor Ranvier, do Collège de France, revelou-se extremamente gentil ao mostrar-me suas excelentes preparações de células nervosas e neuróglia.

Minha estada em Berlim, que se estendeu de 1º de março até o fim do mesmo mês, deu-se durante o período de férias. Ainda assim, tive muitas oportunidades de examinar crianças que sofriam de doenças nervosas nas clínicas de pacientes externos dos professores Mendel e Eulenburg e do Dr. A. Baginsky, tendo sido muito bem recebido em todos os lugares. As repetidas visitas ao Professor Munk e ao laboratório de agricultura do Professor Zuntz (onde me encontrei com o Dr. Loeb, de Estrasburgo) possibilitaram-me formar opinião própria acerca da controvérsia entre Goltz e Munk quanto à questão da localização do sentido da visão no córtex cerebral. O Dr. B. Baginsky, do laboratório de Munk, teve a gentileza de demonstrar para mim suas preparações do trajeto do nervo acústico e de solicitar minha opinião a respeito delas.

 

Considero meu dever apresentar meus mais calorosos agradecimentos ao Colégio de Professores da Faculdade de Medicina de Viena por me haver escolhido para o prêmio da bolsa de estudos. Com isso, o Colégio (no qual estão incluídos todos os meus respeitados mestres) concedeu-me a possibilidade de adquirir conhecimentos valiosos, dos quais espero fazer uso como Docente de doenças nervosas, assim como na minha atividade médica.

VIENA, Páscoa de 1886

 

PREFÁCIO À TRADUÇÃO DAS CONFERÊNCIAS SOBRE AS DOENÇAS DO SISTEMA NERVOSO, DE CHARCOT (1886)

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS

 

PREFÁCIO À TRADUÇÃO DE LEÇONS SUR LES MALADIES DU SYSTÈME NERVEUX: TOME TROISIÈME, DE CHARCOT

 

(a) EDIÇÃO ALEMÃ:

1886 Em J.-M. Charcot, Neue Vorlesungen über die Krankheiten des Nervensystems insbesondere über Hysterie [Novas Conferências sobre as Doenças do Sistema Nervoso, Particularmente sobre a Histeria], iii-iv, Leipzig e Viena, Toeplitz e Deuticke.

 

O prefácio não foi reimpresso em alemão. A presente tradução (a primeira para o inglês) do prefácio é de autoria de James Strachey. A tradução de Freud de duas das conferências (XXIII e XXIV) foi publicada antecipadamente no Wien. med. Wochenschr., 36 (20), 711-15 e (21), 756-9 (15 e 22 de maio de 1886), tendo como título “Über einen Fall von hysterischer Coxalgie aus traumatischer Ursache bei einem Manne” (“Sobre um caso de coxalgia num homem em decorrência de um acidente”) (Freud, 1886e). A publicação do livro não pode ter sido anterior a julho de 1886 (data do prefácio de Freud); em todo caso, porém, ela se deu antes da publicação do original francês (Paris, 1887), como Freud menciona em seu prefácio.

O modo como Charcot confiou a Freud a incumbência de fazer a tradução desse livro para o alemão foi relatado por Freud, com mais detalhes em seu Estudo Autobiográfico (1925d), Edição Standard Brasileira, Vol. XX, [1], IMAGO Editora, 1976, e também numa carta que, nessa época, Freud escreveu a sua futura esposa (12 de dezembro de 1885) editada em Freud, 1960a (Carta 88).

As poucas notas de rodapé escritas por Freud simplesmente registram, como ele mesmo indica no prefácio, a evolução subseqüente de um ou dois casos clínicos relatados no texto e, numa delas, uma recente mudança de opinião de Charcot quanto a um detalhe do diagnóstico. Três dessas conferências (XI, XII e XIII) tratam da afasia. Em um breve comentário, Freud mostra que já estava especialmente interessado no assunto, sobre o qual, cinco anos depois, escreveria sua monografia. Nesta, fez uma breve descrição dos pontos de vista de Charcot (1891b, 100-2) e referiu-se ao presente trabalho.

 

Conta-nos Jones (1953, 230) que Charcot recompensou Freud pela tradução, dando-lhe de presente uma coleção completa de suas obras, encadernada em couro, com esta dedicatória: “A Monsieur le Docteur Freud, excellents souvenirs de la Salpêtrière. Charcot”.

 

PREFÁCIO À TRADUÇÃO DAS CONFERÊNCIAS SOBRE AS DOENÇAS DO SISTEMA NERVOSO, DE CHARCOT

 

Um empreendimento como este, que objetiva apresentar os ensinamentos de um mestre de clínica médica a círculos médicos mais amplos, por certo dispensa justificativas. Proponho-me, portanto, dizer apenas algumas palavras a respeito da origem desta tradução e sobre a matéria das conferências que ela contém.

No inverno de 1885, quando cheguei ao Salpêtrière para uma permanência de quase meio ano, constatei que o Professor Charcot (então pelos seus sessenta anos, trabalhando com o vigor da mocidade) se havia afastado do estudo das doenças nervosas que se baseiam em alterações orgânicas e estava-se dedicando exclusivamente à pesquisa das neuroses — e, em especial, da histeria. Essa mudança relacionava-se com as modificações (descritas na primeira conferência deste livro) que se efetuaram nas condições do trabalho e do ensino de Charcot, em 1882.

Após superar minha perplexidade inicial diante das descobertas da novas pesquisas de Charcot, e depois que aprendi a avaliar sua grande importância, pedi ao Professor Charcot permissão para fazer uma tradução para o alemão das conferências que continham essas novas teorias. E aqui devo agradecer-lhe não apenas pela presteza com que me concedeu sua permissão, como também por sua ajuda ulterior, que tornou possível que a edição alemã, na realidade, seja publicada vários meses antes da edição francesa. Seguindo instruções do autor, acrescentei algumas notas, na maioria acréscimos às histórias dos pacientes de que trata o texto.

O cerne deste livro está nas magistrais e fundamentais conferências sobre histeria, que, junto com seu autor, podemos esperar venham a descerrar uma nova era na conceituação dessa neurose pouco conhecida e, a rigor, denegrida. Por esse motivo, com o consentimento do Professor Charcot, modifiquei o título do livro, que em francês é ‘’Leçons sur les maladies du système nerveux, Tome troisième”, e coloquei em destaque a histeria dentre os temas nele abordados.

Todo aquele a quem estas conferências motivarem a um aprofundamento nas pesquisas sobre histeria feitas pela escola francesa poderá remeter-se aos Études cliniques sur la grande hystérie, de P. Richer, de que saiu uma segunda edição em 1885 e que, em mais de uma aspecto, constitui uma obra extraordinária.

VIENA, 18 de julho de 1886

 

 

OBSERVAÇÃO DE UM CASO GRAVE DE HEMIANESTESIA EM UM HOMEM HISTÉRICO (1886)

 

INTRODUÇÃO

 

BEOBACHTUNG EINER HOCHGRADIGEN HEMIANASTHESIE BEI EINEM HYSTERISCHEN MANNE

 (a) EDIÇÕES ALEMÃS:

1886 Wien. med. Wschr., 36 (49), 1633-38 (4 de dezembro).

 

Parece que este artigo foi reeditado. A presente tradução de James Strachey é a primeira que se fez para o idioma inglês. Aparentemente, havia a intenção de que este artigo viesse a ser o primeiro de uma série, de vez que o encima o título “Beitrage zur Kasuistik der Hysterie, I” (Contribuições ao Estudo Clínico da Histeria, I). Mas a série não teve continuação.

Em 15 de outubro de 1886, uns seis meses depois de seu retorno de Paris, Freud leu perante a “Gesellschaft der Aerzte” (Sociedade de Medicina) de Viena um artigo intitulado “Über mannliche Hysterie” (Sobre a Histeria Masculina). O texto desse artigo não sobreviveu, ainda que sobre ele surgissem resenhas nos periódicos médicos de Viena, como, por exemplo, no Wien, med. Wochenschr., 63 (43), 1444-6 (23 de outubro). Também é encontrado num breve resumo de Ernest Jones (1953, 252). O próprio Freud dá um relato desse evento em seu Estudo Autobiográfico (1925d), Edição Standard Brasileira, Vol. XX, em [1], IMAGO Editora, 1976. O artigo foi mal recebido, e Meynert desafiou Freud a apresentar perante a sociedade um caso de histeria masculina. Freud teve alguma dificuldade em encontrar um caso, pois os médicos mais antigos dos departamentos do Hospital Geral recusaram-se a lhe facultar o uso do material de que dispunham. Por fim, com a ajuda de um jovem laringologista, encontrou noutro lugar um paciente adequado e o apresentou perante a “Gesellschaft der Aerzte’’ em 26 de novembro de 1886. O caso foi demonstrado por Freud e por seu amigo Dr. Konigstein, cirurgião oftalmologista que tinha feito um exame dos sintomas oculares do paciente. O artigo desse especialista foi publicado no Wochenschrift uma semana depois do de Freud — na edição de 11 de dezembro (1674-6). Freud conta-nos que o presente artigo encontrou uma recepção melhor do que o artigo anterior; todavia, não chegou a suscitar interesse.

A maior parte do artigo, conforme se verá, trata dos fenômenos físicos da histeria, nos moldes característicos da atitude de Charcot em relação a essa doença. Há somente alguns indícios muito leves que revelam interesse por fatores psicológicos.

 

Senhores:

A 15 de outubro, quando tive a honra de pedir-lhes a atenção para um breve informe sobre o recente trabalho de Charcot na área da histeria masculina, fui desafiado pelo meu respeitado mestre Hofrat Professor Meynert a apresentar perante a sociedade alguns casos em que pudessem ser observadas, de forma claramente visível, as indicações somáticas da histeria — os “estigmas histéricos” pelos quais Charcot caracteriza essa neurose. Hoje, enfrento esse desafio — de maneira insuficiente, é verdade, mas na medida do que me permite o material clínico de que disponho —, apresentando perante os senhores um homem histérico que mostra o sintoma da hemianestesia, num grau que se poderia descrever com o mais elevado. Antes de começar minha demonstração, quero apenas observar que estou longe de pensar que o que lhes estou mostrando é um caso raro ou peculiar. Pelo contrário, considero-o um caso muito comum, de ocorrência freqüente, embora muito amiúde possa passar despercebido.

Por esse paciente, devo agradecer à gentileza do Dr. von Beregszászy, que o enviou a mim para confirmação do diagnóstico que ele havia feito. O paciente, August P., gravador de 29 anos, é a pessoa que está diante dos senhores: um homem inteligente, que de pronto se ofereceu para ser examinado por mim, na esperança de uma rápida recuperação.

Permitam-me que comece por um relato de sua história familiar e de sua história pessoal. O pai do paciente, aos 48 de idade, morreu da doença de Bright; trabalhava numa adega, bebia muito e tinha temperamento violento. Sua mãe morreu, aos 46 anos, de tuberculose. Soube-se que ela sofria muito de dores de cabeça, quando jovem: o paciente nada tem a dizer sobre ataques convulsivos ou algo semelhante. O casal teve seis filhos, dos quais o primeiro levou uma vida irregular e faleceu de uma afecção sifilítica cerebral. O segundo filho tem interesse especial para nós; ele desempenha um papel na etiologia da doença de seu irmão e parece que ele próprio era histérico. Contou ao nosso paciente haver sofrido de ataques convulsivos; e, por uma estranha coincidência, nesse mesmo dia, encontrei um colega de Berlim que tratara desse irmão, em Berlim, durante uma enfermidade, e havia diagnosticado que ele sofria de histeria — diagnóstico este que também foi confirmado num hospital daquela cidade. O terceiro filho desapareceu desde que desertou do exército; o quarto e o quinto morreram em tenra idade, e o último é o nosso paciente.

Nosso paciente teve um desenvolvimento normal na infância, nunca sofreu convulsões infantis e teve as doenças comuns de crianças. Aos oito anos, teve a infelicidade de ser atropelado na rua; sofreu ruptura do tímpano direito, com permanente déficit da audição do ouvido direito, e foi acometido de uma doença que durou diversos meses, durante a qual sofria freqüentes desmaios, cuja natureza atualmente já não é possível descobrir. Esses desmaios continuaram por uns dois anos. Desse acidente adveio um certo embotamento intelectual, que o paciente afirma ter sido notado em seu rendimento escolar, e uma tendência a sensações vertiginosas sempre que, por alguma razão, se sentia indisposto. Mais tarde, completou o curso primário; após a morte dos pais, passou a aprendiz de gravador; um dado que fala muito a favor de seu caráter é o fato de ter permanecido como artífice e empregado do mesmo mestre de ofício durante dez anos. Considera-se pessoa cujos pensamentos estavam total e unicamente voltados para a perfeição de seu habilidoso ofício e que, com esse fim em vista, leu muito e exercitou-se no desenho, não se permitindo relacionamentos sociais nem divertimentos. Via-se obrigado a refletir muito acerca de si mesmo e de suas ambições e, por fazê-lo com tanta freqüência, caía num estado de excitada fuga de idéias, no qual ficava alarmado a respeito de sua saúde mental; seu sono muitas vezes era agitado e sua digestão fazia-se lenta por causa de seu modo de vida sedentário. Sofreu de palpitações durante os últimos nove anos; mas, afora isto, era sadio e jamais precisou interromper seu trabalho.

Sua doença atual começou há uns três anos. Nessa época, teve um desentendimento com o irmão que levava uma vida desregrada, porque este se recusou a lhe pagar uma soma em dinheiro que o paciente lhe emprestara. O irmão ameaçou apunhalá-lo e avançou contra ele com uma faca. Isto causou ao paciente um medo indescritível; sentiu um zumbido na cabeça, como se ela fosse estourar; correu para casa, sem poder contar como foi que chegou lá, e caiu no chão, inconsciente, em frente à porta de casa. Depois, ouviu dizer que, durante duas horas, tinha tido violentos espasmos, durante os quais falara da cena com seu irmão. Quando voltou a si, sentia-se muito fraco; durante as seis semanas seguintes, sofreu de violentas dores no lado esquerdo da cabeça e pressão intracraniana. Parecia-lhe alterada a sensibilidade na metade esquerda do corpo, e seus olhos se cansavam facilmente no trabalho, que ele retomou em seguida. Com algumas oscilações, seu estado ficou sendo este durante três anos, até que, há sete semanas, uma nova agitação causou uma mudança para pior. O paciente foi acusado de roubo por uma mulher, teve palpitações violentas e, por uns quinze dias, esteve tão deprimido que pensou em suicídio; ao mesmo tempo, um tremor muito intenso tomou conta de seus membros esquerdos. A metade esquerda de seu corpo ficou como se tivesse sido afetada por um pequeno acidente cerebral; seus olhos se enfraqueceram muito e freqüentemente faziam-no ver tudo cinza; seu sono era interrompido por aparições terrificantes e sonhos nos quais pensava estar caindo de uma grande altura; começaram a surgir dores no lado esquerdo da garganta, na virilha esquerda, na região sacra e em outras áreas; seu estômago, com freqüência, estava “como se tivesse estourado”, e ele se viu obrigado a parar de trabalhar. Outra piora em todos esses sintomas data da última semana. Além disso, o paciente está sujeito a dores violentas no joelho esquerdo e na planta do pé esquerdo, quando caminha durante algum tempo; tem uma sensação peculiar na garganta, como se a língua estivesse presa, ouve freqüentes zumbidos nos ouvidos, e outras coisas dessa natureza. Sua memória está prejudicada quanto aos acontecimentos ocorridos durante sua doença; quanto aos eventos anteriores à doença, porém, não apresenta problemas. Os ataques sob forma de convulsões repetiram-se de seis a nove vezes durante os três anos; contudo, a maior parte deles foi muito benigna; somente um ataque, à noite, no último mês de agosto, acompanhou-se de “agitação” com bastante gravidade.

Agora examinemos o paciente: um homem bastante pálido, de compleição média. O exame de seus órgãos internos nada revela de patológico, exceto bulhas cardíacas abafadas. Quando comprimo o ponto de saída dos nervos supra-orbital, infra-orbital ou do mento, do lado esquerdo, o paciente volta a cabeça com uma expressão de dor intensa. Podemos, portanto, supor que há uma alteração nevrálgica no trigêmeo esquerdo. Também a abóbada craniana é muito sensível à percussão na sua metade esquerda. A pele da metade esquerda da cabeça comporta-se, no entanto, de modo muito diferente do que esperávamos: está completamente insensível a estímulos de qualquer espécie. Posso aplicar-lhe alfinetadas, beliscá-la, torcer o lobo da orelha entre meus dedos, sem que o paciente chegue sequer a perceber o contato. Aqui, pois, existe um grau muito elevado de anestesia; esta, contudo, atinge não só a pele como também as membranas mucosas, conforme lhes mostrarei no caso dos lábios e da língua do paciente. Se introduzo um rolinho de papel em seu canal auditivo externo esquerdo e depois em sua narina esquerda, não se produz nenhuma reação. Repito agora a experiência no lado direito e mostro que aqui a sensibilidade do paciente é normal. Em consonância com a anestesia, os reflexos sensoriais também estão abolidos ou diminuídos. Assim, posso introduzir meu dedo e tocar todos os tecidos faríngeos do lado esquerdo, sem que resultem ânsias de vômito; os reflexos faríngeos do lado direito, contudo, também se encontram diminuídos; apenas quando toco a epiglote no lado direito é que se dá uma reação. O toque da conjuntiva palpebral e ocular mal produz o fechamento das pálpebras; por outro lado, o reflexo corneano está presente, embora muito reduzido. Aliás, os reflexos conjuntival e corneano do lado direito também estão diminuídos, embora em grau menor; e esse comportamento dos reflexos é suficiente para me possibilitar a conclusão de que os distúrbios da visão não se limitam necessariamente a um olho (o esquerdo). E, realmente, quando pela primeira vez examinei o paciente, ele mostrava em ambos os olhos a peculiar poliopia monocular dos pacientes histéricos e distúrbios da sensibilidade às cores. Com o olho direito, reconhecia todas as cores, exceto o roxo, que dizia ser cinzento; com o olho esquerdo, reconhecia apenas o vermelho-claro e o amarelo-claro, ao passo que considerava todas as outras cores como cinzento, quando eram claras, e como preto, quando escuras. O Dr. Konigstein teve a gentileza de submeter o paciente a um minucioso exame oftalmológico e posteriormente relatará suas conclusões. [Ver em [1]] Passando aos outros órgãos dos sentidos, o olfato e o paladar estão inteiramente anulados no lado esquerdo. Somente a audição foi poupada da hemianestesia cerebral. Convém lembrar que a acuidade do ouvido direito ficou seriamente prejudicada desde que o paciente sofreu um acidente, aos oito anos de idade; seu ouvido esquerdo é o melhor; a redução da audição nele presente é (segundo uma gentil comunicação do Professor Gruber) suficientemente explicada por uma visível e substancial afecção da membrana timpânica.

Se procedermos agora a um exame do tronco e dos membros, verificaremos também uma anestesia absoluta, sobretudo no braço esquerdo. Como vêem, consigo espetar a ponta de uma agulha numa dobra da pele sem que o paciente reaja. As estruturas profundas — músculos, ligamentos e articulações — também devem estar insensíveis em grau igualmente elevado, pois posso mover a articulação do punho e estirar os ligamentos sem provocar qualquer sensação no paciente. É consoante com essa anestesia das estruturas profundas o fato de que o paciente, quando seus olhos são vendados, também não tem noção da posição do seu braço esquerdo no espaço, nem de qualquer movimento que executo com ele. Passo uma venda em seus olhos e depois lhe pergunto o que fiz com sua mão esquerda. Ele não consegue dizer. Peço-lhe que, com a mão direita, segure o polegar, o cotovelo ou o ombro esquerdos. Ele tateia às cegas, confunde sua própria mão com a minha, que lhe estendo, e então admite que não sabe a quem pertence a mão que segurou.

 

Deve ser particularmente interessante descobrir se o paciente é capaz de encontrar as partes da metade esquerda de sua face. Seria de supor que isso não lhe oferecesse quaisquer dificuldades, pois, afinal, a metade esquerda do rosto está, digamos, firmemente cimentada à metade direita, intacta. Mas a experiência mostra o contrário. O paciente erra o alvo no olho esquerdo, no lobo da orelha esquerda, e assim por diante; na verdade, parece sair-se pior ao tatear com a mão direita as partes anestesiadas do rosto do que se estivesse tocando uma parte do corpo de alguma outra pessoa. A causa disso não é uma perturbação na mão direita, que ele está usando para apalpar, pois os senhores podem ver com que certeza e rapidez ele encontra os pontos em que lhe digo para tocar a metade direita do rosto.

A mesma anestesia está presente no tronco e na perna esquerda. Observamos aí que a perda das sensações tem seu limite na linha média, ou se estende um pouco além desta.

Para mim, parece haver um interesse especial na análise dos distúrbios do movimento que o paciente mostra em seus membros anestesiados. Acredito que esses distúrbios do movimento devam ser atribuídos, inteira e unicamente, à anestesia. Certamente não existe paralisia do braço esquerdo, por exemplo. Um braço paralisado ou cai flacidamente, ou se mantém rígido, devido às contraturas em posições forçadas. Aqui a coisa se passa de modo diverso. Se eu vendar os olhos do paciente, seu braço esquerdo permanecerá na posição que tinha assumido anteriormente. Os distúrbios da mobilidade são mutáveis e dependem de diversas condições. Em primeiro lugar, aqueles dentre os senhores que tiverem notado como o paciente se despiu com ambas as mãos e como fechou sua narina esquerda com os dedos da mão esquerda, não terão tido a impressão de qualquer distúrbio grave do movimento. A um exame mais acurado, verificar-se-á que o braço esquerdo, em especial os dedos, são movimentados mais lentamente e com menos habilidade, como se estivessem entorpecidos, e com um leve tremor. Todos os movimentos, até os mais complicados, são, todavia, executados, e isso acontece sempre que a atenção do paciente é desviada dos órgãos do movimento e dirigida unicamente para o objetivo do movimento. As coisas se passam diversamente quando lhe peço que efetue movimentos isolados com o braço esquerdo, sem qualquer objetivo mais remoto — como, por exemplo, dobrar o braço na articulação do cotovelo enquanto segue o movimento com os olhos. Nesse caso, seu braço esquerdo parece muito mais inibido do que antes, o movimento é feito com muita lentidão, incompletamente, em estágios diferentes, como se houvesse uma grande resistência a ser vencida, e é acompanhado de um nítido tremor. Os movimentos dos dedos são extraordinariamente débeis nessas circunstâncias. Uma terceira espécie da perturbação do movimento, a mais grave, surge, finalmente, quando o paciente é solicitado a efetuar movimentos isolados com os olhos fechados. Por certo, algo se passa no membro que está absolutamente anestesiado, pois, como vêem, a inervação motora é independente de qualquer informação sensitiva do tipo que normalmente procede de um membro que vai ser movimentado; esse movimento, no entanto, é mínimo, de modo algum dirigido a um determinado segmento, e não determinável quanto à sua direção por parte do paciente. Não suponham, porém, que esse último tipo de perturbação do movimento seja uma conseqüência necessária da anestesia; é precisamente com relação a esse aspecto que se encontram marcantes diferenças individuais. Observamos, no Salpêtrière, pacientes com anestesias que, de olhos fechados, conservam um controle muito mais acentuado de membros que tivessem sido eliminados da consciência.

A mesma influência da atenção desviada e do olhar aplica-se à perna esquerda. Hoje, durante pelo menos uma hora, o paciente caminhou a meu lado pelas ruas, a passos rápidos, sem olhar para seus pés enquanto andava. E tudo o que pude notar foi que pisava com o pé esquerdo girando-o um pouco para fora e que, muitas vezes, arrastava-o pelo chão. Mas quando lhe ordeno que ande, ele tem que acompanhar com os olhos cada movimento da perna anestesiada, e o movimento faz-se lento e hesitante, cansando-o com muita facilidade. Por fim, com os olhos fechados, ele caminha completamente inseguro e se desloca mantendo ambos os pés em contato com o chão, como faria qualquer um de nós se caminhasse no escuro em local desconhecido. Ele também tem grande dificuldade em permanecer de pé apenas sobre a perna esquerda; quando fecha os olhos nessa posição, cai imediatamente ao chão.

Prosseguirei com a descrição do comportamento de seus reflexos. Estes são, em geral, mais vivos do que o normal e, além disso, mostram pequena coerência entre si. Os reflexos do tríceps e do extensor são efetivamente mais vivos na extremidade direita, não anestesiada. O reflexo patelar parece mais vivo na esquerda; o reflexo do tendão de Aquiles é igual em ambos os lados.Também é possível obter uma discreta reação patelar, mais nitidamente observável à direita. Os reflexos do cremaster estão ausentes; por outro lado, os reflexos abdominais são rápidos, sendo que o esquerdo está intensamente aumentado, de modo que o mais leve toque numa área da pele do abdômen provoca uma contração máxima do músculo reto-abdominal esquerdo.

Em conjugação com uma hemianestesia histérica, nosso paciente mostra, tanto espontaneamente como sob pressão, áreas dolorosas nesse lado do corpo que é, em outros aspectos, o lado insensível — o que se conhece como “zonas histerógenas”, embora nesse caso sua conexão com a provocação dos ataques não seja acentuada. Assim o nervo trigêmeo, cujos ramos terminais, como lhes mostrei anteriormente, são sensíveis à pressão, é a sede de uma zona histerógena desse tipo; também o são uma estreita área na fossa cervical média esquerda, uma faixa mais larga na parede esquerda do tórax (onde a pele também é sempre sensível), a parte lombar da coluna e a parte mediana do osso sacro (a pele é sensível também sobre a porção anterior dessas). Finalmente, o cordão espermático esquerdo está muito sensível à dor, e essa zona se prolonga no trajeto do cordão espermático, pela cavidade abdominal, até a área que, nas mulheres, freqüentemente é sede da “ovaralgia”.

Devo acrescentar dois comentários referentes aos desvios que nosso caso apresenta em relação ao quadro típico da hemianestesia histérica. O primeiro diz respeito ao fato de que o lado direito do corpo do paciente também não está livre da anestesia, ainda que não seja em grau intenso e pareça afetar apenas a pele. Há, portanto, uma zona de diminuição da sensitividade à dor (e à temperatura) sobre a saliência do ombro direito; uma outra estende-se em forma de faixa ao redor da extremidade distal do antebraço; a perna direita apresenta hipoestesia no lado externo da coxa e na panturrilha.

Um segundo comentário refere-se ao fato de que a hemianestesia de nosso paciente mostra muito nitidamente a característica da instabilidade. Assim, num teste para sensitividade elétrica, contrariando minha expectativa, tornei sensível uma área de pele no cotovelo esquerdo; e testes repetidos mostraram que a extensão das zonas dolorosas do tronco e as perturbações do sentido da visão oscilavam de intensidade. É nessa instabilidade do distúrbio da sensitividade que baseio minha esperança de ser capaz de restaurar a sensitividade normal do paciente, dentro de pouco tempo.

 

DUAS BREVES RESENHAS

 

RESENHA DE DIE AKUTE NEURASTHENIE. DE AVERBECK

 

A insuficiência da chamada formação médica adquirida em nossos hospitais, diante das necessidades dos médicos clínicos, revela-se com maior nitidez, talvez, a partir do exemplo da “neurastenia”. Esse estado patológico do sistema nervoso seguramente pode ser classificado como a mais comum de todas as doenças em nossa sociedade: complica e agrava muitíssimo outros quadros clínicos em pacientes das melhores classes, sendo ainda praticamente desconhecido dos médicos de boa formação científica, ou tido por eles como apenas um nome moderno com conteúdo arbitrariamente constituído. A neurastenia não é um quadro clínico no sentido dos manuais que se baseiam, com demasiada exclusividade, na anatomia patológica: de preferência, deve ser descrita como um modo de reação do sistema nervoso. Mereceria a máxima atenção da parte dos médicos que trabalham cientificamente — atenção não menor do que a já demonstrada pelos médicos que trabalham como terapeutas, pelos diretores de sanatórios etc. Deve-se, portanto, recomendar a círculos mais amplos esse breve trabalho, em virtude de suas descrições oportunas intencionalmente veementes, e de suas proposições e observações referentes às condições sociais. Estas, como suspeita seu autor, nem sempre encontrarão a concordância de seus colegas, embora o trabalho venha a despertar o interesse deles em todas as áreas. Sua observação sobre o serviço militar obrigatório como cura para os males da vida civilizada e sua proposição de que se deve possibilitar uma recuperação periódica para os trabalhadores da classe média em épocas de boa saúde, por intermédio da assistência do Estado — estas estão abertas a múltiplas objeções. Contudo, deve-se admitir que o livreto trata imaginativamente de importantes questões relativas à assistência médica.

DR. SIGM. FREUD

 

RESENHA DE DIE BEHADLUNG GEWISSER FORMEN VON NEURASTHENIE UND HYSTERIE, DE WEIR MITCHELL

 

O método terapêutico proposto por Weir Mitchell, originalíssimo especialista em doenças nervosas de Filadélfia, foi recomendado na Alemanha, pela primeira vez, por Burkart e teve pleno reconhecimento durante o ano passado, numa conferência proferida por Leyden. Esse método, combinando repouso no leito, isolamento, alimentação abundante, massagem e eletricidade, de forma estritamente controlada, supera os estados de exaustão nervosa graves e de longa duração. É também Leyden o responsável pela consecução da tradução desse pequeno livro. Ele contém os mais valiosos conselhos para a seleção de casos adequados ao tratamento em questão e algumas observações interessantes sobre a atuação das diferentes forças terapêuticas que compõem o tratamento de Wier Mitchell. Sem dúvida, trará a todos os médicos uma ampliação de seus conhecimentos. A ordenação especificamente inglesa das frases e pensamentos talvez tenha sido preservada com demasiada exatidão na tradução. Os termos “histeria” e “histérico” são empregados quase sempre no sentido vulgar, e não no sentido científico dessa palavra tão deturpada.

DR. SIGM. FREUD

 

 

HISTERIA (1888)

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS

 

HYSTERIE

 (a) EDIÇÕES ALEMÃS:

1888 Em Handwörterbuch der gesamten Medizin, org. de A. Villaret, Stuttgart, 1, 886-92.

1953 Psyche, 7 (9), 486-500.

 

A presente tradução, de James Strachey, parece ser a primeira para o inglês.

 

Em duas das cartas que escreveu a Fliess, publicadas nos Anfänge (1950a), datadas de 28 de maio (Carta 4) e 29 de agosto (Carta 5) de 1888 — e, implicitamente, numa terceira, de 24 de novembro de 1887 (Carta 1) —, Freud fala de suas contribuições à enciclopédia de Villaret, obra publicada em dois volumes (1888 e 1891). De vez que os verbetes na Villaret não levam assinatura, não é possível ter completa certeza da autoria deles. O próprio Freud especifica apenas um deles nessas cartas — o que trata de anatomia cerebral — e queixa-se de que sofreu muitos cortes; contudo, em seu Estudo Autobiográfico (1925d), menciona também um verbete sobre a afasia, Edição Standard Brasileira, Vol. XX, [1], IMAGO Editora, 1976. Os organizadores dos Anfänge sugerem ainda que os verbetes sobre as lesões cerebrais infantis e sobre as paralisias poderiam ser atribuídos a ele e, com maior convicção, incluem como sendo provavelmente de Freud o que se refere à histeria, que é apresentado a seguir.

A reimpressão, em 1953, desse verbete em Psyche, periódico de Stuttgart, vem precedida de um breve artigo escrito pelo Professor Paul Vogel, que faz um resumo admirável e convincente dos argumentos que fazem crer seja o verbete realmente da autoria de Freud. Ninguém pode ter dúvidas quanto à sua autoria, lendo-o em conexão com os escritos contemporâneos de Freud. À parte toda uma série de reproduções de pontos de vista expostos por Freud em outros trabalhos que levam sua assinatura, existe um determinado aspecto que parece conclusivo. Trata-se de uma passagem, quase na parte final, em que o método catártico de tratamento é descrito explicitamente e atribuído a Breuer. Nessa data (1888), o método de Breuer não tinha sido publicado nem por ele próprio nem por outra pessoa. Sua primeira publicação deu-se na “Comunicação Preliminar”, de Breuer e Freud, mais de quatro anos depois (1893a). Freud, segundo ele próprio nos relata (1925d, Edição Standard Brasileira, Vol. XX, [1], IMAGO Editora, 1976), há muito gozava da confiança de Breuer e tinha tomado conhecimento de seu método ainda antes de ir a Paris (em 1885). Assim, a autoria de Freud pode ser dada como estabelecida.

O verbete, em seu conjunto, mostra Freud ainda seguindo fielmente as doutrinas de Charcot na sua descrição da histeria, embora, sem levar em conta a referência a Breuer, haja duas ou três passagens, especialmente no final do verbete, em que existem claros sinais de uma atitude mais independente.

HISTERIA

 

HISTERIA (ƒåƒÔƒäƒÕƒâƒÑ, útero); (hystérie, em francês; hysterics [sic],em inglês; isteria, f., isterismo, m., em italiano).

 

I. HISTÓRIA. — O nome “histeria” tem origem nos primórdios da medicina e resulta do preconceito, superado somente nos dias atuais, que vincula as neuroses às doenças do aparelho sexual feminino. Na Idade Média, as neuroses desempenharam um papel significativo na história da civilização; surgiam sob a forma de epidemias, em conseqüência de contágio psíquico, e estavam na origem do que era fatual na história da possessão e da feitiçaria. Alguns documentos daquela época provam que sua sintomatologia não sofreu modificação até os dias atuais. Uma abordagem adequada e uma melhor compreensão da doença tiveram início apenas com os trabalhos de Charcot e da escola do Salpêtrière, inspirada por ele. Até essa época, a histeria tinha sido a bête noire da medicina. Os pobres histéricos, que em séculos anteriores tinham sido lançados à fogueira ou exorcizados, em épocas recentes e esclarecidas, estavam sujeitos à maldição do ridículo; seu estado era tido como indigno de observação clínica, como se fosse simulação e exagero.

A histeria é uma neurose no mais estrito sentido da palavra — quer dizer, não só não foram achadas nessa doença alterações perceptíveis do sistema nervoso, como também não se espera que qualquer aperfeiçoamento das técnicas de anatomia venha a revelar alguma dessas alterações. A histeria baseia-se total e inteiramente em modificações fisiológicas do sistema nervoso; sua essência deve ser expressa numa fórmula que leve em consideração as condições de excitabilidade nas diferentes partes do sistema nervoso. Uma fórmula fisiopatológica desse tipo, no entanto, ainda não foi descoberta; por enquanto, devemo-nos contentar em definir a neurose de um modo puramente nosográfico, pela totalidade dos sintomas que ela apresenta, da mesma forma como a doença de Graves se caracteriza por um grupo de sintomas — exoftalmia, bócio, tremor, aceleração do pulso e alteração psíquica —, sem qualquer consideração relativa a alguma conexão mais íntima entre esses fenômenos.

 

II. DEFINIÇÃO. — As autoridades alemãs, assim como as inglesas, ainda hoje têm o hábito de distribuir caprichosamente as descrições “histeria”e “histérico” e de agrupar indiscriminadamente a “histeria” com os estados nervosos em geral, a neurastenia, muitos dos estados psicóticos e muitas neuroses que ainda não foram retiradas do caos das doenças nervosas. Charcot, pelo contrário, sustenta com firmeza a opinião de que a “histeria” é um quadro clínico nitidamente circunscrito e bem definido, que pode ser reconhecido com bastante clareza nos casos extremos daquilo que se conhece como “grande hystérie” [grande histeria] (ou histeroepilepsia). A histeria cobre também as formas mais brandas e rudimentares que ocorrem numa série que abrange toda uma gradação, desde o tipo da grande hystérie até o tipo normal. A histeria é fundamentalmente diferente da neurastenia, e, na verdade, estritamente falando, é o contrário desta.

 

III. SINTOMATOLOGIA. — A sintomatologia da “grande histeria”, extremamente rica, mas nem por isso anárquica, compõe-se de uma série de sintomas que incluem os seguintes:

(1) Ataques convulsivos. Estes são precedidos de uma “aura” peculiar: pressão no epigástrio, constrição na garganta, latejamento nas têmporas, zumbido nos ouvidos, ou partes desse complexo de sensações. Essas sensações-aura, como são chamadas, também surgem, nos pacientes histéricos, como sintomas isolados, ou representam em si mesmas um ataque. É especialmente conhecido o globus hystericus, uma sensação atribuível aos espasmos da faringe, como se uma bola estivesse subindo do epigástrio para a garganta. Um ataque propriamente dito, quando completo, apresenta três fases. A primeira, “epileptóide”, assemelha-se a um ataque epiléptico unilateral. A segunda fase, a dos “grands mouvements”, apresenta movimentos de “salamaleque”, atitudes em arco (arc de cercle), contorções e outros. A força desenvolvida nesses ataques é, com freqüência, muito grande. Para diferençar esses movimentos de um ataque epiléptico, deve-se observar que os movimentos histéricos sempre são executados com certa correção e de modo coordenado, o que contrasta nitidamente com a cega brutalidade dos espasmos epilépticos. Além disso, mesmo nas convulsões histéricas mais violentas, geralmente se evitam os ferimentos comparativamente graves. A terceira fase, a fase alucinatória do ataque histérico, a das “attitudes passionelles”, distingue-se pelas atitudes e posturas que sugerem cenas de movimento passional, que o paciente alucina e freqüentemente acompanha com as palavras correspondentes. Durante todo o ataque, a consciência pode conservar-se ou se perder — mais freqüentemente ocorre a última dessas possibilidades. Os ataques do tipo descrito seguem-se freqüentemente uns aos outros, em série, de modo que o ataque inteiro pode durar diversas horas ou dias. É insignificante a elevação de temperatura durante os mesmos (em contraste com o que acontece na epilepsia). Cada fase do ataque ou cada parte separada de uma fase pode estar isolada e pode representar o ataque em casos rudimentares. Naturalmente, os ataques abreviados desse tipo são encontrados com freqüência incomparavelmente maior do que os ataques completos. Possuem especial interesse ataques histéricos que, em lugar das três fases, exibem um coma que surge de maneira apoplectiforme — os chamados “ataques de sommeil” [ataques de sono]. Esse coma pode assemelhar-se ao sono natural ou acompanhar-se de tamanha diminuição da respiração e da circulação a ponto de ser confundido com a morte. Existem casos autênticos de estados dessa espécie que duram semanas e meses; nesse sono prolongado, a nutrição corporal diminui gradualmente, mas não há risco de vida. — Em cerca de um terço dos casos de histeria, o sintoma dos ataques, o mais característico, está ausente.

(2) Zonas histerógenas. Em íntima conexão com os ataques, encontramos as chamadas “zonas histerógenas”, áreas supersensíveis do corpo, nas quais um leve estímulo desencadeia um ataque cuja aura muitas vezes começa por uma sensação proveniente dessa área. Tais áreas podem situar-se na pele, nas partes profundas, nos ossos, nas membranas mucosas, até mesmo nos órgãos dos sentidos. São encontradas com maior freqüência no tronco do que nos membros e têm preferência por determinados locais — por exemplo, nas mulheres (e mesmo nos homens), numa área da parede abdominal correspondente aos ovários, na região coronária do crânio e na região inframamária; e nos homens, nos testículos e no cordão espermático. A pressão nessas áreas desencadeia, com freqüência, não uma convulsão, mas sim sensações-aura. A partir de muitas das zonas histerógenas também é possível exercer uma influência inibidora sobre os ataques convulsivos; uma vigorosa pressão sobre a área ovariana, por exemplo, desperta muitas pacientes no meio de um ataque histérico ou de um sono histérico. No caso dessas pacientes, pode-se fazer a prevenção de um ataque ameaçador fazendo-as usar um cinto semelhante auma funda para hérnia, cuja almofada comprima a área ovariana. As zonas histerógenas às vezes são numerosas, às vezes poucas, e podem ser unilaterais ou bilaterais.

(3) Distúrbios da sensibilidade. Estes são os sinais mais freqüentes da neurose e os mais importantes do ponto de vista diagnóstico. Persistem mesmo durante os períodos de remissão e são os mais importantes, porque os distúrbios da sensibilidade desempenham um papel relativamente pequeno nas doenças cerebrais orgânicas. Consistem em anestesia ou hiperestesia e apresentam, quanto à extensão e ao grau de intensidade, uma variabilidade não observada em nenhuma outra doença. A anestesia pode afetar a pele, as membranas mucosas, os ossos, os músculos e nervos, os órgãos dos sentidos e os intestinos; contudo, o mais comum é a anestesia da pele. No caso da anestesia histérica da pele, todas as diferentes espécies de sensações da pele podem ser dissociadas e comportar-se de forma muito independente umas das outras. A anestesia pode ser total ou atingir apenas a sensação de dor (analgesia — que é a mais comum), ou apenas as sensações de temperatura, pressão ou eletricidade, ou a sensibilidade muscular. Só uma possibilidade não se concretiza na histeria: uma diminuição do sentido do tato enquanto as outras propriedades são mantidas. Por outro lado, pode ocorrer que as sensações puramente táteis dêem origem a uma sensação de dor (alfalgesia). Muitas vezes, a anestesia histérica atinge um grau tão elevado que a mais potente faradização dos troncos nervosos não produz qualquer reação sensorial. Quanto à extensão, a anestesia pode ser total; em casos raros, pode afetar toda a superfície da pele e a maioria dos órgãos dos sentidos. Com maior freqüência, no entanto, trata-se de uma hemianestesia, como a que é produzida por uma lesão da cápsula interna; distingue-se, porém, da hemianestesia devida a doença orgânica pelo fato de que geralmente ultrapassa a linha média em algum ponto — por exemplo, inclui a língua, a laringe ou os genitais como um todo — e os olhos não são afetados sob a forma de hemianopsia, e sim de ambliopia ou amaurose em um olho. Ademais, a hemianestesia histérica apresenta maior variabilidade na forma como se distribui; pode acontecer que um dos órgãos dos sentidos ou um órgão localizado no lado anestesiado escape inteiramente à anestesia, e qualquer área sensível no quadro da hemianestesia pode ser substituída pela área simétrica do outro lado (transfert espontâneo, ver [em [1]]). Por fim, a anestesia histérica pode surgir em focos disseminados unilaterais ou bilaterais, ou simplesmente em determinadas áreas, de forma monoplégica nos membros ou em áreas situadas sobre órgãos internos atingidos por alguma doença (faringe, estômago etc.).

 

Em todas essas relações, ela pode ser substituída pela hiperestesia.

No caso da anestesia histérica, os reflexos sensoriais ficam geralmente diminuídos, como, por exemplo, o reflexo conjuntival, o do espirro e o faringiano; os reflexos vitais da córnea e da glote são, porém, mantidos. Os reflexos vasomotores e a dilatação pupilar mediante estimulação da pele não são interrompidos sequer no caso do mais elevado grau de anestesia. A anestesia histérica é sempre um sintoma a ser pesquisado pelo médico, de vez que, na maior parte dos casos, mesmo quando tem ampla extensão e grande gravidade, geralmente escapa totalmente à percepção do paciente. Em contraste com a anestesia orgânica, deve-se enfatizar que os distúrbios histéricos da sensibilidade, a rigor, não prejudicam os pacientes em nenhuma atividade motora. As áreas da pele que estão histericamente anestesiadas caracterizam-se, com freqüência, por anemia local e não sangram quando picadas; isso é apenas uma complicação, não constituindo, porém, condição necessária da anestesia. É possível separar artificialmente os dois fenômenos um do outro. Freqüentemente existe uma relação recíproca entre a anestesia e as zonas histerógenas, como se toda a sensibilidade de uma parte relativamente grande do corpo estivesse comprimida numa única zona. — Os distúrbios da sensibilidade são os sintomas nos quais é possível basear um diagnóstico de histeria, mesmo nas suas formas mais rudimentares. Na Idade Média, a descoberta de áreas anestésicas e não-hemorrágicas (sigmata Diaboli) era considerada prova de feitiçaria.

(4) Distúrbios da atividade sensorial. Estes podem afetar todos os órgãos dos sentidos e podem aparecer simultaneamente com ou independentemente de modificações na sensibilidade da pele. O distúrbio histérico da visão consiste em amaurose ou ambliopia unilaterais, ou ambliopia bilateral, mas nunca em hemianopsia. Seus sintomas são: fundo de olho normal ao exame; ausência do reflexo conjuntival (reflexo corneano diminuído); estreitamento concêntrico do campo visual; redução da percepção luminosa; e acromatopsia. No caso do último sintoma citado, a sensibilidade ao roxo é a primeira a ser perdida, e a sensibilidade ao vermelho ou ao azul é a que persiste por mais tempo. Os fenômenos não se coadunam com nenhuma teoria do daltonismo; as diferentes sensibilidades às cores comportam-se independentemente umas das outras. São freqüentes os distúrbios da acomodação, assim como as falsas conclusões deles resultantes. Os objetos que se aproximam do olho e que dele se afastam são vistos em tamanhos diferentes e duplicados ou multiplicados (diplopia monocular com macropsia ou micropsia). — A surdez histérica raramente é bilateral; é, com muita freqüência, mais ou menos completa, combinada com anestesia do pavilhão da orelha, do canal auditivo e atémesmo da membrana do tímpano. Quando existe distúrbio histérico do paladar e também do olfato, via de regra é possível encontrar anestesia das regiões da pele e da membrana mucosa pertencentes aos órgãos desses sentidos. São freqüentes em pacientes histéricos a parestesia e a hiperestesia dos órgãos inferiores dos sentidos; às vezes, há uma extraordinária exacerbação da atividade sensória, especialmente do olfato e da audição.

(5) Paralisias. As paralisias histéricas são mais raras do que a anestesia e quase sempre acompanhadas de anestesia da parte do corpo paralisada, ao passo que, nas doenças orgânicas, os distúrbios da motilidade predominam e surgem independentemente da anestesia. As paralisias histéricas não levam em conta a estrutura anatômica do sistema nervoso, a qual, conforme se sabe, evidencia-se da maneira mais inequívoca na distribuição das paralisias orgânicas. Acima de tudo, não existem paralisias histéricas que se possam equiparar às paralisias periféricas do facial, do radial ou do denteado — isto é, que abranjam grupos de músculos ou de músculos e pele, agrupados segundo a inervação anatômica comum. As paralisias histéricas só são comparáveis às paralisias corticais, porém se distinguem destas por múltiplos aspectos. Assim, existe a hemiplegia histérica na qual, entretanto, são atingidos somente o braço e a perna do mesmo lado: não existe paralisia facial histérica. Quando muito, além da paralisia dos membros, pode haver uma contratura dos músculos faciais e da língua, situada, às vezes, no lado da paralisia e, às vezes, no lado oposto, e manifestada, entre outras coisas, por um excessivo desvio da língua. Uma outra característica que distingue a hemiplegia histérica é o fato de que a perna paralisada não se movimenta, na articulação da coxa, em circundução, mas é arrastada como um apêndice morto. A hemiplegia histérica sempre está ligada a uma hemianestesia que, em geral, é de intensidade comparativamente grave. Além disso, na histeria encontramos paralisia de um braço ou de uma perna, independentemente, ou de ambas as pernas (paraplegia). Nesse último caso, a paralisia do intestino e da bexiga pode acompanhar a anestesia das pernas e, por conseguinte, o quadro clínico pode vir a se assemelhar de perto a uma paraplegia medular. E mais, a paralisia, em vez de se estender a um membro em todas as suas partes, pode afetar segmentos do mesmo — mão, ombro, cotovelo etc. Com relação a isso, não há preferência para a parte distal, ao passo que é característico de uma paralisia orgânica ser esta sempre mais marcada na porção distal de um membro do que nas partes proximais. No caso de paralisia parcial de um membro, a anestesia geralmente obedece aos mesmos limites que a paralisia e é circunscrita por linhas que fazem ângulos retos com o eixo longitudinal do membro. Na paralisia histérica das pernas, o triângulo de pele situado entre os músculos glúteos, correspondente ao nervo sacro, não é afetado pela anestesia. Em todas essas paralisias estão ausentes os fenômenos da degeneração descendente, por mais que durem as paralisias; muitas vezes, há uma intensa flacidez muscular e o comportamento dos reflexos é inconstante; por outro lado, os membros paralisados podem atrofiar-se, e realmente sucumbem a uma atrofia que se desenvolve muito rapidamente, logo atinge uma parada e não se faz acompanhar por nenhuma alteração na excitabilidade elétrica. Às paralisias dos membros deve-se acrescentar a afasia histérica, ou, mais corretamente, a mudez, que consiste numa incapacidade de produzir qualquer som articulado ou [mesmo] de executar movimentos da fala sem voz. É sempre acompanhada de afonia, que também pode ocorrer isoladamente; nesses casos, a capacidade de escrever é conservada e até mesmo aumentada. As demais paralisias motoras encontradas na histeria não podem ser relacionadas a partes do corpo, mas apenas a funções, como, por exemplo, astasia e abasia (incapacidade de andar e de manter-se de pé); isto ocorre enquanto as pernas mantêm sua sensibilidade, sua força total e a capacidade de executar qualquer tipo de movimento quando em posição horizontal — uma separação das funções dos mesmos músculos não encontrada nas lesões orgânicas. Todas as paralisias histéricas distinguem-se pelo fato de que podem ser da maior gravidade, mas, ao mesmo tempo, limitam-se nitidamente a uma determinada parte do corpo, ao passo que as paralisias orgânicas, via de regra, estendem-se por uma área maior, à medida que sua gravidade aumenta.

(6) Contraturas. Nas formas mais graves de histeria, há uma tendência geral no sentido de o aparelho reagir a pequenos estímulos através de contratura (diathèse de contracture). Para isso pode ser suficiente a simples aplicação de uma faixa de Esmarch. As contraturas dessa espécie também ocorrem com freqüência em casos graves e nos músculos mais variados. Nos membros, elas se caracterizam por sua excessiva intensidade e podem ocorrer em qualquer posição, o que não se explica pela estimulação de determinados troncos nervosos. Apresentam uma persistência incomum, não relaxam com o sono, como ocorre com as contraturas orgânicas, e não se consegue modificar sua intensidade mediante excitação, temperatura etc. Somente cedem com a narcose mais profunda, e recobram sua intensidade total quando o paciente acorda. As contraturas musculares são muito freqüentes nos outros órgãos, nos órgãos dos sentidos, nos intestinos e, num grande número de casos, também constituem o mecanismo pelo qual a função fica suspensa nas paralisias. A tendência aos espasmos clônicos também aumenta muito na histeria.

(7) Características gerais. A sintomatologia da histeria tem uma série de características gerais; conhecê-las é importante tanto para o diagnóstico como para a compreensão da histeria. As manifestações histéricas têm, preferentemente, a característica de serem exageradas: uma dor histérica é descrita pelos pacientes como extremamente dolorosa; uma anestesia e uma paralisia podem com facilidade tornar-se absolutas; uma contratura histérica causa a maior retração de que um músculo é capaz. Ao mesmo tempo, qualquer sintoma particular pode ocorrer, por assim dizer, isoladamente: a anestesia e a paralisia não se acompanham dos fenômenos gerais que, no caso das lesões orgânicas, evidenciam a afecção cerebral e que, no geral, devido a sua importância, obscurecem os sintomas localizados. Muito próximo de uma área de pele absolutamente insensível, poderá haver uma outra área de sensibilidade absolutamente normal. Concomitantemente com um braço completamente paralisado, poderá haver, do mesmo lado, uma perna perfeitamente intacta. É especialmente característico da histeria que seja um distúrbio, ao mesmo tempo, desenvolvido no mais alto grau e limitado da maneira mais nítida. Ademais, os sintomas histéricos mudam de uma forma que, de saída, exclui qualquer suspeita de lesão orgânica. Essa mutabilidade dos sintomas realiza-se ou espontaneamente (por exemplo, depois de ataques convulsivos, que muitas vezes alteram a distribuição da paralisia e da anestesia, ou as interrompem), ou por influência artificial dos chamados métodos estesiogênicos, tais como a eletricidade, a aplicação de metais, o emprego de irritantes cutâneos, ímãs etc. Esse último método de influência parece extremamente notável, tendo em vista o fato de que um sistema nervoso histérico oferece, em regra geral, uma grande resistência à influência química por meio da medicação interna e reage de forma decididamente refratária aos narcóticos como a morfina e o hidrato de cloral. — Entre os meios capazes de remover os sintomas histéricos, cabe mencionar com especial ênfase a influência da excitação e da sugestão hipnótica, esta última porque atinge diretamente o mecanismo dos distúrbios histéricos e não se pode suspeitar que produza nenhum outro efeito além dos efeitos psíquicos. Quando os sintomas histéricos mudam, algumas circunstâncias marcantes entram em jogo. Pelo uso de métodos “estesiogênicos” é possível transferir uma anestesia, uma paralisia, uma contratura, um tremor etc. para a área simétrica da outra metade do corpo (“transfert”), enquanto a área originalmente afetada se normaliza. Desse modo, a histeria fornece provas da relação simétrica, havendo, ademais, indícios de que tal relação desempenha um papel também nos estados fisiológicos — tal como, em geral, as neuroses não criam nada de novo, mas simplesmente desenvolvem e exageram as relações fisiológicas. Uma outra característica muito importante dos distúrbios histéricos é que estes de modo algum representam uma cópia das condições anatômicas do sistema nervoso. Pode-se dizer que a histeria é tão ignorante da ciência da estrutura do sistema nervoso como nós o somos antes de tê-la aprendido. Os sintomas de afecções orgânicas, como se sabe, refletem a anatomia do órgão central e são as fontes mais fidedignas de nosso conhecimento a respeito dele. Por essa razão, temos de descartar a idéia de que na origem da histeria esteja situada alguma possível doença orgânica; e não devemos apelar para as influências vasomotoras (espasmos vasculares) como causa dos distúrbios histéricos. Um espasmo vascular é, em essência, uma modificação orgânica, cujo efeito é determinado pelas condições anatômicas; difere da embolia, por exemplo, somente pelo fato de que não produz nenhuma alteração permanente.

Juntamente com os sintomas físicos da histeria, pode-se observar toda uma série de distúrbios psíquicos nos quais, futuramente, serão sem dúvida encontradas as modificações características da histeria, mas cuja análise, até o momento, mal começou. Esses distúrbios psíquicos são alterações no curso e na associação de idéias, inibições na atividade da vontade, exagero e repressão dos sentimentos etc. — que podem ser resumidos como alterações na distribuição normal, no sistema nervoso, das quantidades estáveis de excitação. Uma psicose, no sentido psiquiátrico do termo, não faz parte da histeria, ainda que possa desenvolver-se sobre a base do estado histérico, nesse caso devendo ser considerada uma complicação. Aquilo que popularmente se descreve como temperamento histérico — instabilidade da vontade, alterações do humor, aumento da excitabilidade com diminuição de todos os sentimentos altruísticos — pode estar presente na histeria, mas não é absolutamente necessário para seu diagnóstico. Existem casos graves de histerianos quais está inteiramente ausente uma alteração psíquica desse tipo; muitos dos pacientes que pertencem a essa classe encontram-se entre as pessoas mais amáveis e inteligentes, de vontade muito forte, que percebem nitidamente sua doença como algo alheio à sua natureza. Os sintomas psíquicos têm sua significação dentro do quadro total da histeria, mas não são mais constantes do que os diferentes sintomas físicos, os estigmas. Por outro lado, as modificações psíquicas, que devem ser assinaladas como o fundamento do estado histérico, ocorrem inteiramente na esfera da atividade cerebral inconsciente, automática. Talvez ainda se possa acentuar que na histeria (como em todas as neuroses) aumenta a influência dos processos psíquicos sobre os processos físicos do organismo, e que os pacientes histéricos funcionam com um excesso de excitação no sistema nervoso — excesso que se manifesta ora como inibidor, ora como irritante, deslocando-se com grande mobilidade dentro do sistema nervoso. [1]

A histeria deve ser considerada como um estado, uma diátese nervosa que eclode de tempos em tempos. A etiologia do status hystericus deve ser buscada inteiramente na hereditariedade: os histéricos sempre têm uma disposição hereditária para perturbações da atividade nervosa; entre seus parentes são encontrados epilépticos, doentes mentais, tabéticos etc. A transmissão hereditária direta da histeria também é constatada; e é a origem, por exemplo, do surgimento da histeria em meninos (originária da mãe). Comparados com o fator, da hereditariedade, todos os outros fatores situam-se em lugar secundário e assumem o papel de causas incidentais, cuja importância quase sempre é superestimada na prática. As causas acidentais de histeria, no entanto, são importantes na medida em que desencadeiam o início de ataques histéricos, de histerias agudas. Como fatores capazes de propiciar o desenvolvimento de uma disposição histérica, podem ser mencionados: a criação cheia de mimos (histeria em filhos únicos), o despertar prematuro da atividade mental nas crianças, excitamentos freqüentes e violentos. Todas essas influências possuem igual tendência a produzir neuroses de outros tipos (por exemplo, neurastenia), de forma que nisto fica flagrantemente demonstrada a influência decisiva da disposição hereditária. Como fatores que fazem irromper a doença histérica aguda podem se citados: trauma, intoxicação (chumbo, álcool), luto, emoção comsumptiva — tudo, enfim, capaz de exercer um efeito de natureza prejudicial. Em outras ocasiões, os estados histéricos muitas vezes são gerados por causas banais ou obscuras. No que diz respeito ao que freqüentemente se considera como a influência preponderante das anormalidades na esfera sexual sobre o desenvolvimento da histeria, deve-se dizer que, no mais das vezes, sua importância é superestimada. Em primeiro lugar, a histeria é encontrada em meninas e meninos sexualmente imaturos, do mesmo modo como a neurose também ocorre com todas as suas características no sexo masculino, embora muito mais raramente (1:20). Ademais, a histeria tem sido constatada em mulheres que apresentam ausência total da genitália, e todo médico deve ter verificado numerosos casos de histeria em mulheres cujos genitais não mostravam absolutamente nenhuma alteração anatômica; do mesmo modo, em contrapartida, a maioria das mulheres com doenças dos órgãos sexuais não sofre de histeria. Entretanto, tem-se de admitir que as condições funcionalmente relacionadas à vida sexual desempenham importante papel na etiologia da histeria (assim como na de todas as neuroses), e isto se dá em virtude da elevada significação psíquica dessa função, especialmente no sexo feminino. — O trauma é uma causa incidental freqüente da doença histérica, em dois sentidos: primeiro, porque a disposição histérica, anteriormente não detectada, pode manifestar-se por ocasião de um trauma físico intenso, que se acompanha de medo e perda momentânea da consciência; em segundo lugar, porque a parte do corpo afetada pelo trauma se torna sede de uma histeria local. Assim, por exemplo, em pessoas histéricas, a uma leve contusão da mão pode seguir-se o desenvolvimento de uma contratura da mão, ou, em circunstâncias análogas, pode-se desenvolver uma coxalgia dolorosa, e assim por diante. Para os cirurgiões, é da maior importância ter um conhecimento mais íntimo dessas afecções rebeldes; em casos dessa espécie, uma intervenção cirúrgica não pode senão prejudicar. O diagnóstico diferencial desses estados nem sempre é fácil, especialmente quando eles envolvem articulações. Os estados mórbidos causados por trauma geral grave (acidentes ferroviários etc.), conhecidos como “railway spine” e “railway brain”, são considerados histeria por Charcot, com o que concordam os autores americanos, com inquestionável autoridade nesse assunto. Esses estados freqüentemente possuem a mais sombria e grave aparência; apresentam-se combinados com depressão e humor melancólico e mostram, seja de que maneira for, em numerosos casos, uma combinação de sintomas histéricos com sintomas neurastênicos e orgânicos. Charcot provou que também a encefalopatia conseqüente ao saturnismo está relacionada com a histeria e, ademais, que a anestesia comum nos alcoólatras não é uma doença à parte, mas sim um sintoma de histeria. Contudo, opõe-se à idéia de estabelecer diferentes subespécies de histeria (traumática, alcoólica, saturnina etc.); ele insiste em que a histeria é sempre a mesma e que simplesmente é provocada por uma série de diferentes causas incidentais. Também na sífilis de instalação recente tem-se observado o surgimento de sintomas histéricos.

 

IV. EVOLUÇÃO DA HISTERIA. — A histeria, mais do que uma doença circunscrita, representa uma anomalia constitucional. Em geral, seus primeiros sinais provavelmente aparecem na adolescência. Na verdade, as doenças histéricas, mesmo as de gravidade considerável, não são raridade em crianças entre seis e dez anos. Em meninos e meninas de intensa disposicão histérica, o período anterior e posterior à puberdade enseja um primeiro surto da neurose. Na histeria infantil são encontrados os mesmos sintomas das neuroses dos adultos. No entanto, os estigmas quase sempre são mais raros; em primeiro plano estão as alterações psíquicas, os espasmos, os ataques e as contraturas. As crianças histéricas são, com bastante freqüência, precoces e altamente dotadas; em numerosos casos, a histeria é, por certo, simplesmente sintoma de profunda degeneração do sistema nervoso, que se manifesta em perversão moral permanente. Conforme se sabe, a juventude, dos quinze anos em diante, é o período no qual a neurose histérica, na maioria das vezes, se mostra ativa em pessoas do sexo feminino. Isto pode acontecer devido a uma sucessão ininterrupta de distúrbios relativamente leves (histeria crônica), ou devido a diversos surtos graves (histeria aguda) separados por intervalos livres que duram anos. Em geral, os primeiros anos de um casamento feliz interrompem a doença; quando as relações conjugais se tornam mais frias e os nascimentos sucessivos acarretam um esvaziamento, reaparece a neurose. Nas mulheres com mais de quarenta anos, a doença geralmente não apresenta fenômenos novos; mas os antigos sintomas podem persistir, e até mesmo numa idade avançada a doença pode intensificar-se diante de provocações fortes. Os homens em idade juvenil parecem particularmente suscetíveis à histeria devida a trauma e intoxicação. A histeria masculina tem a aparência de uma doença grave; os sintomas que produz são quase sempre pertinazes; a doença, em homens, de vez que tem a importância maior de provocar uma interrupção do trabalho, tem também maior importância prática. — Também existe algo de característico a respeito do rumo que tomam os diferentes sintomas histéricos (como as contraturas, as paralisias etc.) Em alguns casos, os sintomas isolados desaparecem espontaneamente, com grande rapidez, e dão lugar a outros, igualmente transitórios; em outros casos, todos os fenômenos são dominados por grande fixidez. As contraturas e paralisias muitas vezes podem durar anos e, depois, desaparecer inesperada e subitamente. De modo geral, não há limite para a curabilidade dos distúrbios histéricos; é característico de uma função acometida de distúrbio, depois de estar interrompida durante anos, ser, de repente, restaurada em sua totalidade. Por outro lado, a evolução dos distúrbios histéricos muitas vezes exige uma espécie de incubação, ou melhor, um período de latência, durante o qual a causa desencadeante continua atuando no inconsciente. Assim, é raro que uma paralisia histérica apareça imediatamente depois de um trauma; as pessoas envolvidas num acidente de trem, por exemplo, são totalmente capazes de movimentar-se após o trauma e vão para casa aparentemente incólumes; somente alguns dias ou semanas depois é que se produzem os fenômenos que levam à conjectura de uma “concussão da medula”. Assim, também a recuperação que se opera bruscamente requer, em geral, um período de diversos dias para se desenvolver. Em todo caso, pode-se afirmar que a histeria nunca constitui grave risco de vida, mesmo nas suas manifestações mais ameaçadoras. Além disso, nos próprios casos mais prolongados de histeria, preservam-se uma completa clareza intelectual e uma capacidade até para realizações não-corriqueiras.

A histeria pode estar combinada com muitas outras doenças nervosas neuróticas e orgânicas, e tais casos oferecem grandes dificuldades à análise. A mais comum é a combinação da histeria com a neurastenia; isto ocorre ou quando se tornam neurastênicas as pessoas cuja disposição histérica estáquase esgotada, ou quando impressões agravantes desencadeiam ambas as neuroses simultaneamente. Infelizmente, a maioria dos médicos ainda não aprendeu a fazer a distinção entre essas duas neuroses. Essa combinação é encontrada, com muita freqüência, em homens histéricos. O sistema nervoso masculino tem uma disposição tão preponderante para a neurastenia como o feminino para a histeria. Além disso, também é superestimada a freqüência da histeria feminina; a maioria das mulheres que os médicos supõem sejam histéricas são, estritamente falando, apenas neurastênicas. Ademais, a “histeria local” pode acompanhar doenças locais de órgãos isolados; uma articulação que está realmente micótica pode se tornar sede de artralgia histérica; um estômago com afecção catarral pode originar vômitos histéricos, globus hystericus e anestesia ou hiperestesia da mucosa do epigástrio. Nesses casos, a doença orgânica torna-se causa eventual da neurose. As doenças febris geralmente interrompem o desenvolvimento da neurose histérica; uma hemianestesia histérica regride na presença de febre.

 

V. TRATAMENTO DA NEUROSE. — Esse assunto dificilmente pode ser abordado em poucas palavras. Nenhuma outra doença dispõe o médico a fazer tantos milagres ou mostrar-se tão impotente. Do ponto de vista do tratamento devem ser destacadas três tarefas: o tratamento da disposição histérica, dos ataques histéricos (histeria aguda) e dos sintomas histéricos isolados (histeria local). O tratamento da disposição histérica proporciona ao médico uma certa liberdade de escolha dos métodos. A disposição não pode ser eliminada, mas podem-se instituir medidas profiláticas, tomando-se cuidado para que os exercícios físicos e a higiene não sejam postos de lado em benefício exclusivo do trabalho intelectual; pode-se aconselhar a não sobrecarregar de esforços o sistema nervoso; pode-se tratar a anemia ou a clorose, que parecem emprestar um apoio especial à tendência à neurose; por fim, pode-se não levar em conta a importância dos sintomas histéricos benignos. Deve-se ter a cautela de não revelar com demasiada clareza o interesse, na qualidade de médico, por sintomas histéricos de pouca gravidade, a fim de não incentivá-los. O trabalho intelectual sério, ainda que árduo, raramente causa histeria, embora, por outro lado, esse reparo crítico possa ser endereçado à educação das melhores classes da sociedade, que se empenha pelo cultivo exagerado do sentimento e da sensibilidade. Nesse sentido, os métodos das gerações anteriores de médicos (que tratavam as manifestações histéricas nos jovens como má-criação e fraqueza da vontade e os ameaçavam com castigos) não eram métodos ruins, ainda que dificilmente estivessem baseados em concepções corretas. No tratamento da neurose em crianças, a proibição autoritária pode conseguir mais resultados do que qualquer outro método. Na verdade, esse tipo de tratamento não tem êxito algum quando aplicado à histeria de adultos ou a casos graves. No tratamento de histerias agudas, nas quais a neurose constantemente produz fenômenos novos, o trabalho do médico é penoso: é fácil cometer erros, e os êxitos são raros. A primeira condição para uma intervenção bem-sucedida consiste, quase sempre, em remover o paciente de suas condições habituais e isolá-lo do círculo em que ocorreu o ataque. Essas medidas não são por si mesmas benéficas, mas possibilitam uma estrita observação médica e permitem ao médico dedicar ao paciente uma atenção cuidadosa, sem a qual jamais terá êxito no tratamento da histeria. Via de regra, um homem histérico — ou uma mulher histérica — não constitui um único membro neurótico do círculo familiar. O alarma ou o excesso de preocupação dos pais ou dos parentes só fazem aumentar a excitação ou a tendência do paciente, quando nele existe uma modificação psíquica, a exibir sintomas mais intensos. Se, por exemplo, ocorre um ataque em determinada hora, diversas vezes e sucessivamente, esse ataque será aguardado pela mãe do paciente, com regularidade, na mesma hora; ansiosamente perguntará ao filho se ele não está se sentindo mal, com isso assegurando a repetição do evento temido. São muito raros os casos em que se consegue induzir os parentes a enfrentarem os ataques histéricos de uma criança com calma e aparente indiferença; em geral, o convívio com a família deve ser substituído por um período de internação em casa de saúde e a isto os parentes geralmente oferecem maior resistência do que os próprios pacientes. No sanatório as percepções deformadas do paciente diante da segurança amável e animadora do médico e sua convicção, que logo se transferem para o paciente, revelam que a neurose não é perigosa e pode ser curada rapidamente; a evitação de toda excitação emocional que possa contribuir para um ataque histérico; a aplicação de todo tipo de tratamentos revigorantes (massagem, faradização geral, hidroterapia) — sob todas essas influências, constata-se que as mais graves histerias agudas, que causaram ao paciente um total colapso físico e moral, dão lugar à saúde no decorrer de alguns meses. Nestes últimos anos, a chamada “cura de repouso” de Weir Mitchell (também conhecida como tratamento de Playfair) conquistou elevada e merecida reputação como método para tratamento da histeria em instituições. Ela consiste numa combinação de isolamento em absoluta tranqüilidade com aplicação sistemática de massagens e faradização geral; a assistência de uma enfermeira experiente é tão essencial como a influência constante do médico. Esse tratamento tem extraordinário valor na histeria, como a feliz combinação de “traitement moral” e de melhora no estado geral da nutrição do paciente. Não deve ser considerado, contudo, como algo sistematicamente completo em si mesmo; o isolamento, em especial, e a influência do médico permanecem sendo os agentes principais e, juntamente com a massagem e a eletricidade, os outros métodos terapêuticos não devem ser negligenciados. O melhor esquema consiste em, após quatro a oito semanas de repouso no leito, aplicar hidroterapia e ginástica, assim como encorajar ampla movimentação. No caso de outras neuroses, como, por exemplo, a neurastenia, o êxito do tratamento é muito menos seguro; baseia-se apenas no valor da alimentação abundante, na medida em que isto é possível a um aparelho digestivo neurastênico, e no valor do repouso; na histeria, o sucesso muitas vezes é extraordinário e permanente.

O tratamento dos sintomas histéricos isolados não oferece nenhuma perspectiva de êxito enquanto persiste a histeria aguda: os sintomas eliminados reaparecem ou são substituídos por outros, novos. No final, ambos, médico e paciente, se fatigam. A situação é diferente, contudo, quando os sintomas histéricos representam um resíduo da histeria aguda que findou seu curso, ou quando aparecem numa histeria crônica devido a alguma causa excitante especial, como localizações da neurose. Em princípio, nesses casos desaconselha-se a medicação interna, como também devem ser evitadas as drogas narcóticas. Prescrever uma droga narcótica em caso de histeria aguda não passa de grave erro técnico. No caso de histeria local e resistente, nem sempre é possível evitar os medicamentos internos; mas não se pode confiar em seu efeito. Este, às vezes, surge com rapidez mágica, às vezes não surge de modo algum, e parece depender da auto-sugestão do paciente ou da sua crença na sua eficácia. Ademais, podemos escolher entre iniciar o tratamento direto e o tratamento indireto da doença histérica. Este último consiste em negligenciar o problema local e visar a uma influência geral sobre o sistema nervoso, no decorrer da qual utilizamos vida ao ar livre, hidroterapia, eletricidade (de preferência mediante o tratamento com alta-tensão), e procuramos melhorar o sangue por meio de arsenicais e medicação ferrosa. Temos ainda, no uso do tratamento indireto, que considerar a remoção de fontes de estímulos, caso exista alguma de natureza física. Assim, por exemplo, os espasmos gástricos histéricos podem ter sua origem num catarro gástrico benigno, ao passo que uma área eritematosa na laringe ou uma tumefação nos cornetos podem originar uma persistente tussis hysterica. É realmente duvidoso que as alterações nos genitais realmente constituam, com tanta freqüência, fontes de estímulo para os sintomas histéricos. Tais casos devem ser examinados com maior senso crítico. O tratamento direto consiste na remoção das fontes psíquicas que estimulam os sintomas histéricos, e isto se torna compreensível se buscarmos as causas da histeria na vida ideativa inconsciente. Consiste em dar ao paciente sob hipnose uma sugestão que contém a eliminação do distúrbio em causa. Assim, por exemplo, curamos uma tussis nervosa hysterica fazendo pressão sobre a laringe do paciente hipnotizado e assegurando-lhe que foi removido o estímulo que o faz tossir, ou curamos uma paralisia histérica do braço compelindo o paciente, sob hipnose, a mover o membro paralisado, parte por parte. O efeito até se torna maior se adotarmos um método posto em prática, pela primeira vez, por Joseph Breuer, em Viena, e fizermos o paciente, sob hipnose, remontar à pré-história psíquica da doença, compelindo-o a reconhecer a ocasião psíquica em que se originou o referido distúrbio. Esse método de tratamento é novo, mas produz curas bem-sucedidas, que, por outros meios, não são alcançadas. É o método mais apropriado para a histeria, justamente porque imita o mecanismo da origem e da cessação desses distúrbios histéricos. Isso porque muitos sintomas histéricos que resistiram a todos os tratamentos desaparecem espontaneamente sob a influência de um motivo psíquico suficiente (por exemplo, uma paralisia da mão direita desaparecerá se, numa discussão, o paciente sentir ímpetos de dar um murro no ouvido do adversário), ou sob a influência de alguma excitação moral, de um susto ou de uma expectativa (por exemplo, em um local de peregrinação), ou, por fim, quando há uma drástica alteração das excitações no sistema nervoso, após um ataque convulsivo. O tratamento psíquico direto dos sintomas histéricos ainda será considerado o melhor no dia em que o entendimento da sugestão tiver penetrado mais profundamente nos círculos médicos (Bernheim — Nancy). — Atualmente, não se pode decidir com certeza até que ponto a influência psíquica desempenha um papel em alguns outros tratamentos aparentemente físicos. Assim, por exemplo, as contraturas podem ser curadas quando se consegue efetuar um transfert por meio de um ímã. Repetindo-se os transferts, a contratura torna-se mais débil e, afinal, desaparece.

 

VI. RESUMO. — Para sintetizar, podemos dizer que a histeria é uma anomalia do sistema nervoso que se fundamenta na distribuição diferente das excitações, provavelmente acompanhada de excesso de estímulos no órgão da mente. Sua sintomatologia mostra que esse excesso é distribuído por meio de idéias conscientes ou inconscientes. Tudo o que modifica a distribuição das excitações no sistema nervoso pode curar os distúrbios histéricos: esses efeitos são, em parte, de natureza física e, em parte, de natureza diretamente psíquica.

 

APÊNDICE: HISTEROEPILEPSIA

 

HISTEROEPILEPSIA (em francês, hystéroépilepsie; em inglês, hystero-epilepsy; em italiano, isteroepilessia).

Na histeroepilepsia observam-se ataques de convulsões generalizadas, como na epilepsia. Como precursores surgem: sensação de sufocação, dificuldade de deglutir, dor de cabeça e dor no estômago, vertigem e algumas sensações peculiares de estiramento nos membros. Os pacientes caem, emitindo forte grito, e são acometidos de convulsões, sua boca espuma e suas feições ficam deformadas. As convulsões, no início, são de natureza tônica, mas, depois, são clônicas. No entanto, em geral o ataque não se instala subitamente, como sucede na epilepsia. Por um curto espaço de tempo, os pacientes procuram lutar contra as convulsões, precaver-se de lesões graves por ocasião de quedas e evitar situações perigosas. Um epiléptico pode até cair dentro do fogo, mas isto não acontece com os histéricos. Enquanto aquele se mostra pálido no começo do ataque e, depois, se torna cianótico, a face de um histérico mantém aproximadamente a sua cor normal. Na histeria, são raras as lesões da língua decorrentes de mordedura. Nos ataques histeroepilépticos, ocorre muitas vezes um opistótono completo; isto geralmente não ocorre na epilepsia. Durante os ataques, a consciência não desaparece completamente, a não ser nos casos mais graves. Depois do ataque, o histérico em geral se recupera imediatamente; não subsistem a tendência ao sono e a fraqueza que são observadas nos epilépticos. Por outro lado, não são raras, depois, as visões de ratos, camundongos e cobras, bem como as alucinações auditivas. Além desses ataques, nesses pacientes são encontrados todos os sintomas da histeria.

 

ARTIGOS SOBRE HIPNOTISMO E SUGESTÃO (1888-1892)

 

INTRODUÇÃO DO EDITOR INGLÊS

 

Após retornar de Paris a Viena, em 1886, Freud dedicou, por alguns anos, grande parte de sua atenção ao estudo do hipnotismo e da sugestão. Naturalmente, embora o assunto apareça em muitos pontos (por exemplo, nos Estudos sobre a Histeria e no necrológio de Charcot), os trabalhos escritos nesse período e diretamente referentes aos dois temas pareciam ou não existir ou estar fora de alcance, exceto o prefácio à tradução de De la suggestion (1888-9), de Bernheim, e o artigo sobre “Um Caso de Cura pelo Hipnotismo” (1892-3). Como se verifica, podemos agora, entre esses dois, inserir três outros trabalhos bastante extensos. Em primeiro lugar, conseguimos devolver à luz a resenha do livro de Forel sobre hipnotismo (1889a), a qual, parece, nunca foi reeditada. Os outros dois, à sua maneira, são trabalhos recém-chegados; ambos só vieram à luz em 1963. Destes, o primeiro é realmente um velho conhecido: o artigo que tem por título “Tratamento Psíquico (ou Mental)” (1890a) que se encontra na Edição Standard Brasileira, Vol. VII, [1], IMAGO Editora, 1972. Esse artigo não foi incluído nas Gesammelte Schriften, mas foi editado no quinto volume das Gesammelte Werke, sendo atribuída a ele a data de 1905, juntamente com outros trabalhos, como os Três Ensaios e o relato do caso clínico de “Dora”. Foi ali classificado como uma contribuição a Die Gesundheit, um manual coletivo de medicina em dois volumes, de caráter semipopular. O artigo versa sobre hipnotismo e não encerra alusão sequer às descobertas de Freud, exceto uma possível e única referência imprecisa ao tratamento catártico. Sempre pareceu misterioso que Freud retrocedesse quinze anos no tempo, subitamente, em 1905. Recentemente, a explicação desse fato foi dada pelo Prof. Saul Rosenzweig, da Washington University de St. Louis. Suas investigações mostraram que a data de 1905, até há pouco tempo sistematicamente atribuída a esse trabalho, realmente era a data da terceira edição de Die Gesundheit — fato que os editores daquele manual deixaram de indicar. Sua primeira edição fora publicada em 1890 e já continha o artigo de Freud, tal como o temos agora. (A segunda edição surgiu em 1900.) “Tratamento Psíquico (ou Mental)”, portanto, simplesmente se situa junto dos demais trabalhos de Freud publicados naquele período; de direito, deveria ter sido incluído neste volume depois da resenha de Forel. A outra novidade, pelo que sabemos, é uma revelação completa. Trata-se de um artigo sobre hipnose, com o qual Freud contribuiu para um manual médico, Therapeutisches Lexikon, editado por A. Bum e publicado pela primeira vez em 1891. (Saiu uma segunda edição em 1893 e uma terceira em 1900.) Nenhum vestígio da existência desse artigo seria encontrado em parte alguma, até ele ser descoberto pelo Dr. Paul F. Cranefield, editor do Bulletin of the NewƒnƒÉork Academy of Medicine.

A experiência clínica de Freud com o hipnotismo pode ser rastreada de modo um tanto detalhado. Em seu Estudo Autobiográfico (1925d), ele relata que, quando ainda era estudante, compareceu a uma exibição pública feita por Hansen, o “magnetizador”, e se convenceu da autenticidade dos fenômenos da hipnose (Edição Standard Brasileira, Vol. XX, [1], IMAGO Editora, 1976). Além disso, mal tinha seus vinte anos, Freud ficou sabendo que seu futuro colaborador Breuer (um homem quase quinze anos mais velho) às vezes empregava o hipnotismo com fins terapêuticos. A essa época, entretanto, muitas sumidades médicas de Viena ainda manifestavam opiniões alarmistas ou céticas sobre o assunto. (Ver, por exemplo, os comentários de Meynert, antigo mestre de Freud, citados na resenha de Forel, cf. em [1]. Somente quando, aos trinta anos de idade, chegou à clínica de Charcot, em Paris, foi que Freud verificou que a sugestão hipnótica era reconhecida e vinha sendo usada correntemente. A profunda impressão que isso lhe causou está evidenciada no Relatório que escreveu quando de seu regresso de Paris, em 1886 (1956a), [1], assim como em muitas outras passagens subseqüentes. Depois de se estabelecer como neurologista em Viena, tentou valer-se de diferentes métodos, como eletroterapia, hidroterapia e curas de repouso, para o tratamento das neuroses; entretanto, por fim, retornou ao hipnotismo. “Durante essas últimas semanas”, escrevia ele a Fliess em 28 de dezembro de 1887, “utilizei-me da hipnose e tive uma série de pequenos, porém notáveis, êxitos.” Na mesma carta, relatava que já assumira o compromisso de traduzir o livro de Bernheim sobre sugestão. Mas essa extrema rapidez não era resultado de entusiasmo, pois, numa carta a Fliess, em 29 de agosto do ano seguinte, que provavelmente acompanhava uma cópia do seu prefácio (este, com a data “agosto de 1888”) ao livro de Bernheim, ele escrevia que só aceitara a tradução em meio a muita hesitação e por motivos meramente práticos (Freud, 1950a, Carta 5). A sugestão hipnótica, sem dúvida, era sua preocupação imediata; porém, mais uma vez, no Estudo Autobiográfico, ibid., Vol. XX, [1], ele menciona que, “desde o princípio, usei a hipnose de uma outra maneira, diferente da sugestão hipnótica”. Naturalmente, com isso estava-se referindo ao método de Breuer de usar o hipnotismo para determinar a origem dos sintomas. Existem algumas dúvidas quanto à data exata em que começou a aplicar esse novo método; contudo, por certo usou-o no caso de Frau Emmy von N., que começou a tratar em maio de 1889, ou possivelmente um ano antes. (Ver em [1] e [2].) Daí em diante, aderiu cada vez mais ao método catártico de Breuer.

Nesse ínterim, continuava o interesse de Freud pela sugestão hipnótica. A tradução da obra de Bernheim parece ter sido concluída no início de 1889. Nessa época, Freud já estava em contato com August Forel, conhecido psiquiatra suíço, cujo livro sobre hipnotismo ele resenhou em dois fascículos, em julho e novembro de 1889 (em [1]); e foi com a apresentação de Forel que (entre a publicação dos dois fascículos) fez uma visita de algumas semanas a Bernheim e Liébeault, em Nancy. O motivo para fazer tal visita, conforme nos conta (ibid., Vol. XX, [1]), foi a idéia de aperfeiçoar sua técnica de hipnose. Pois o fato é que Freud não se considerava um grande adepto da arte de hipnotizar, ou então era mais sincero do que muitas pessoas para reconhecer as limitações do método. Já em 1891,quando publicou a contribuição ao dicionário médico de Bum, a qual será encontrada adiante, ele estava provadamente consciente dessas dificuldades e, ademais, começava a se irritar com elas (em [1]). Sua irritação foi expressa novamente, logo depois, numa nota de rodapé à tradução que fez (1892-4) das Leçons du Mardi (em [1]), de Charcot, e, ainda com maior franqueza, numa passagem do caso clínico de Miss Lucy R. nos Estudos sobre a Histeria (1895d), Edição Standard Brasileira, Vol. II, [1]-[2], IMAGO Editora, 1974. Muitos anos mais tarde, resumiria sua posição nas Cinco Lições (1910a), ibid., Vol. XI, [1], IMAGO Editora, 1970: “Mas logo a hipnose passou a me desagradar… Quando verifiquei que, apesar de todos os meus esforços, não conseguia produzir o estado hipnótico senão numa parte dos meus pacientes, decidi abandonar a hipnose…” Mas o momento adequado ainda não tinha chegado. Continuou a utilizar a hipnose não só como parte do método catártico mas também para a sugestão direta; em fins de 1892, publicou um relato minucioso de um caso desse tipo, especialmente bem-sucedido. (Ver em [1]) Além disso, no mesmo ano, fez a tradução de um segundo livro de Bernheim (1892a), embora dessa vez sem a introdução. No entanto, levou pouco tempo para que concebesse um sistema pelo qual pudesse produzir os efeitos da sugestão, sem a necessidade de colocar o paciente em estado de hipnose. O primeiro passo foi substituir o sono hipnótico por aquilo que denominou estado de “concentração” (Estudos sobre a Histeria, ibid., Vol. II, [1]-[2], IMAGO Editora, 1974). A seguir, desenvolveu a “técnica da pressão” (ibid., [1]-[2], [3], [4] e [5]): simplesmente exercendo pressão com suas mãos sobre a fronte do paciente, conseguia obter a informação desejada. Não está esclarecido se teria empregado esse método pela primeira vez no caso de Miss Lucy R. ou no caso de Fräulein Elisabeth von R., sendo que ambos os tratamentos começaram no final do ano de 1892. Naturalmente, esse método era utilizado apenas no tratamento catártico e não no tratamento sugestivo.

Não é possível saber com precisão a época em que Freud abandonou esses diferentes métodos. Numa conferência proferida no final de 1904 (1905a), ele declarava (ibid., Vol. VII, [1], IMAGO Editora, 1972): “Ora, há uns oito anos não tenho usado a hipnose com fins terapêuticos(exceto para algumas experiências especiais)” — portanto, desde mais ou menos 1896. Talvez seja esse o período que marca o fim da “técnica da pressão”, pois, na descrição de seu método, no começo de A Interpretação dos Sonhos (1900a [1899]), ibid., Vol. IV, [1], IMAGO Editora, 1972, não faz qualquer menção a semelhante contato com o paciente, embora, nessa passagem, ainda recomendasse ao paciente manter os olhos fechados. Porém, numa contribuição ao livro de Löewenfeld sobre as obsessões, na qual descrevia sua técnica (1940a), escreveu explicitamente: “Ele [Freud] nem mesmo lhes solicita que fechem os olhos e evita tocar neles, assim como evita qualquer outro procedimento que possa lembrar a hipnose” (ibid., Vol. VII, [1], IMAGO Editora, 1972). Na verdade, no fim ainda restava um vestígio de hipnotismo — o “ritual que diz respeito à posição em que é efetuado o tratamento, a qual é remanescente do método hipnótico a partir do qual se desenvolveu a psicanálise”, e que Freud pensava merecesse ser mantida por muita razões (“Sobre o Início do Tratamento”, 1913c, ibid., Vol. XII, [1]-[2], IMAGO Editora, 1976). O período durante o qual Freud fez algum uso efetivo da hipnose situa-se portanto, no máximo, entre 1886 e 1896.

Naturalmente, o interesse de Freud pela teoria do hipnotismo e da sugestão durou mais tempo. Aqui havia a controvérsia com respeito a correntes que podem ser esquematicamente descritas como “Charcot versus Bernheim” — entre a opinião do Salpêtrière, segundo a qual a sugestão não passa de uma forma leve de hipnose, e a opinião da escola de Nancy, de que a hipnose era simplesmente produção da sugestão. É possível detectar sinais de vacilação na atitude de Freud relativa a esse debate. Na carta a Fliess de 29 de agosto de 1888, que já citamos e que ele remeteu imediatamente depois de redigir seu prefácio ao livro de Bernheim, Freud escrevia: “Não compartilho dos pontos de vista de Bernheim, que me parecem unilaterais, e em meu prefácio procurei defender a opinião de Charcot”. A orientação segundo a qual Freud assim procedeu pode ser depreendida do próprio prefácio em [1]. Naturalmente, isto se deu antes de sua visita a Nancy, que provavelmente o influenciou muito, de vez que, não muito tempo depois, em seu obituário de Charcot (1893f), manifestava críticas à “abordagem exclusivamente nosográfica da escola de Salpêtrière” diante dos fenômenos hipnóticos: “A limitação do estudo da hipnose aos pacientes histéricos, a diferenciação entre grande e pequeno hipnotismo, a hipótese dos três estágios da ‘grande hipnose’ e a caracterização desses estágios por fenômenos somáticos — tudo isso fez declinar o conceito dos contemporâneos de Charcot, quando Bernheim, discípulo de Liébeault, passou a elaborar a teoria do hipnotismo a partir de um fundamento psicológico mais abrangente e a fazer da sugestão o ponto central da hipnose”. (Ibid., Vol. III, [1], IMAGO Editora, 1977.) No entanto, em diversas passagens Freud insistiu na imprecisão do termo “sugestão” e no fato de que o próprio Bernheim não conseguia explicar o mecanismo do processo: por exemplo, já na resenha de Forel (1889a), em [1], e também no caso clínico do “Pequeno Hans” (1909b), Edição Standard Brasileira, Vol. X, [1], IMAGO Editora, 1977, e nas Conferências Introdutórias (1916-17), ibid., Vol. XVI, [1], IMAGO Editora, 1976. Retornou ao tema uma vez mais na Psicologia de Grupo (1921c), ibid., Vol. XVIII, [1], IMAGO Editora, 1976, trabalho esse em que há uma série de discussões tanto sobre sugestão como sobre hipnose. E aí, numa nota de rodapé (ibid., [1]), ele se afastava claramente da sua tendência anterior a apoiar os pontos de vista de Bernheim: “Parece-me que convém acentuar o fato de que as discussões contidas nesta seção nos induziram a abandonar a concepção de Bernheim sobre a hipnose e a voltar à concepção naïf [ingênua] anterior. Consoante Bernheim, todos os fenômenos hipnóticos podem ser atribuídos ao fator da sugestão, que por si mesmo não é passível de qualquer outra explicação. Chegamos à conclusão de que a sugestão constitui manifestação parcial do estado de hipnose, e que a hipnose se fundamenta solidamente numa predisposição que sobreviveu no inconsciente desde o início da história da família humana”. O tranqüilo equilíbrio dos pontos de vista de Freud a respeito dessa controvérsia foi expresso numa frase de uma carta sua a A. A. Roback, muitos anos depois, a 20 de fevereiro de 1930: “Na questão da hipnose, realmente tomei partido contra Charcot, ainda que não estivesse inteiramente a favor de Bernheim” (Freud, 1960a, 391).

 

A despeito de haver abandonado cedo a hipnose como método terapêutico, durante toda a sua vida Freud nunca hesitou em expressar-lhe seu sentimento de gratidão. “Nós, psicanalistas”, declarou ele nas Conferências Introdutórias (1916-17), Edição Standard Brasileira, Vol. XVI, [1], IMAGO Editora, 1976, “podemos afirmar que somos seus legítimos herdeiros e não esquecemos quanto estímulo e esclarecimento teórico devemos à hipnose.” E disso deu uma explicação mais específica num de seus artigos sobre técnica (1914g): “Ainda devemos ser gratos à velha técnica da hipnose por nos ter mostrado os processos psíquicos simples da análise, numa forma isolada ou esquemática. Só isto pôde nos dar a coragem de construir, no tratamento analítico, situações mais complexas, e de mantê-las claras diante de nós”. (Ibid., Vol. XII, [1].)

 

PREFÁCIO À TRADUÇÃO DE DE LA SUGGESTION, DE BERNHEIM (1888-9)

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS

 

PREFÁCIO À TRADUÇÃO DE DE LA SUGGESTION,DE BERNHEIM

(a) EDIÇÃO ALEMÃ:

1888 Em H. Bernheim, Die Suggestion und ihre Heilwirkung (A Sugestão e Seus Efeitos Terapêuticos), iii-xii, Leipzig e Viena: Deuticke, (1896, 2ª ed.)

(b) TRADUÇÕES INGLESAS:

1946 Int J. Psycho-Anal., 27 (1-2), 59-64. (Sob o título “Hypnotism and Suggestion”.) (Trad. de James Strachey.)

1950 C.P., 5, 11-24, (Revisão da anterior.)

 

A presente edição inglesa é uma versão consideravelmente corrigida da que foi publicada em 1950. O título francês completo do livro de Bernheim era De la suggestion et de ses applications à la thérapeutique (Paris: 1886; 2ª ed. 1887). Um trecho da tradução de Freud surgiu antecipadamente no Wiener med. Wochenschrift, 38 (26), 898-900, de 30 de junho de 1888, sob o título “Hypnose durch Suggestion” (“Hipnose pela sugestão”), e o prefácio completo de Freud, com exceção dos seus dois primeiros parágrafos, foi publicado no Wiener med. Blätter, 11 (38), 1189-93 e (39), 1226-8, a 20 e a 27 de setembro de 1888, tendo como título “Hypnotismus und Suggestion”. Embora a página de rosto do livro consigne a data “1888”, sua publicação realmente não foi completada senão em 1889, como mostra um “Pós-escrito do Tradutor” que aparece na última página: “Em decorrência de circunstâncias pessoais que atingiram o tradutor, a publicação da segunda parte [o livro tem duas partes] foi adiada alguns meses além da data prometida. Mesmo agora, provavelmente eu não teria conseguido terminá-la, não tivesse o meu prezado amigo Dr. Otto von Springer tido a grande gentileza de se encarregar da tradução de todos os casos clínicos da segunda parte, pelo que lhe expresso os meus melhores agradecimentos. Viena, janeiro de 1889”. Nada se sabe a respeito do que foram essas “circunstâncias pessoais” — se foram, por exemplo, as mesmas que as “razões acidentais e pessoais” que, nessa mesma época, impediram Freud de completar seu artigo em francês sobre as paralisias orgânicas e histéricas (1893c), cf. em. [1]. Freud acrescentou somente umas poucas e breves notas do tradutor ao texto desse volume, notasque, na sua maioria, eram referências às edições alemãs de obras mencionadas por Bernheim. A única que requer atenção é citada em [1]-[2].

Em seu Estudo Autobiográfico, Freud mostra alguma confusão quanto à data de publicação do presente trabalho. Depois de descrever sua visita a Bernheim, em Nancy, no verão de 1889, conclui assim: “Mantive com ele muita conversas estimulantes e encarreguei-me de traduzir para o alemão seus dois trabalhos sobre a sugestão e seus efeitos terapêuticos” (Edição Standard Brasileira, Vol. XX, [1], IMAGO Editora, 1976). Na verdade, conforme vimos, esse livro já estava publicado antes de se realizar a visita. O segundo livro de Bernheim a ser traduzido por Freud — Hypnotisme, suggestion, psychothérapie: études nouvelles — não foi publicado em francês senão dois anos mais tarde (Paris: 1891). A tradução de Freud veio à luz no ano seguinte, tendo como título Neue Studien über Hypnotismus, Suggestion und Psychotherapie (Leipzig e Viena: Deuticke). Esse livro não continha nem introdução nem notas do tradutor.

Em 1896, foi publicada uma segunda edição do primeiro dos dois volumes. Mas essa nova edição, como veremos, passara por uma revisão completa, sob a supervisão do Dr. Max Kahane, que foi um dos primeiros adeptos de Freud e que também se encarregou do segundo volume da tradução das Leçons du Mardi, de Charcot (ver em   [1]). Nessa segunda edição, a presente introdução não foi, como se tem afirmado, abreviada, mas sim inteiramente abolida e substituída pelo breve prefácio que reproduzimos num Apêndice em [1].

 

PREFÁCIO À TRADUÇÃO DE DE LA SUGGESTION, DE BERNHEIM

 

Este livro já recebeu calorosa recomendação do Prof. Forel, de Zurique, e espera-se que nele os seus leitores venham a descobrir todas as qualidades que levaram o tradutor a apresentá-lo em língua alemã. Verificarão que o trabalho desenvolvido pelo Dr. Benheim, de Nancy, proporciona uma admirável introdução ao estudo do hipnotismo (assunto que os médicos não podem mais negligenciar), que, sob muitos aspectos, é estimulante e, sob alguns outros aspecto é realmente esclarecedor e está destinado a destruir a crença de que o problema da hipnose, segundo afirma o Prof. Meynert, ainda esteja envolvido por um “halo de absurdo”.

A realização de Bernheim (e de seus colegas em Nancy que trabalham segundo as mesmas diretrizes) consiste precisamente em despojar as manifestações do hipnotismo do seu mistério, correlacionando-as com fenômenos conhecidos da vida psicológica normal e do sono. Parece-me que o valor principal deste livro está na prova que ele fornece das relações que vinculam os fenômenos hipnóticos aos processos correntes da vida de vigília e do sono, e no fato de trazer à luz as leis psicológicas que se aplicam a ambos os tipos de eventos. Com isso, o problema da hipnose é inteiramente transposto para a esfera da psicologia, e a “sugestão” é erigida como núcleo do hipnotismo e chave para sua compreensão. Além disso, nos últimos capítulos, assinala-se a importância da sugestão em outras áreas além da hipnose. Na segunda parte do livro, encontram-se provas convincentes de que o uso da sugestão hipnótica proporciona ao médico um poderoso método terapêutico, que realmente parece ser o mais adequado para combater determinados distúrbios nervosos e o mais apropriado ao mecanismo dos mesmos. Isto confere ao livro uma importância prática incomum. E sua insistência no fato de que tanto a hipnose como a sugestão hipnótica podem ser aplicadas não só aos pacientes histéricos e neuropáticos graves, mas também à maior parte das pessoas sadias, destina-se a ampliar para além do estreito círculo dos neuropatologistas o interesse dos médicos por esse método terapêutico.

O tema do hipnotismo tem tido uma recepção muitíssimo desfavorável entre os expoentes da ciência médica alemã (excluídas algumas poucas exceções, como Krafft-Ebing, Forel etc.). Ainda assim, a despeito disso, é válido expressar o desejo de que os médicos alemães venham a dirigir sua atenção para esse problema e para esse método terapêutico, pois continua sendo verdade que, em matéria científica, é sempre a experiência, e nunca a autoridade sem a experiência, que dá o veredicto final, seja a favor, seja contra. Na verdade, as objeções que até o momento temos ouvido, na Alemanha, contra o estudo e o uso da hipnose merecem atenção apenas por causa dos nomes dos seus autores, e o Prof. Forel teve pouca dificuldade em refutar, num breve ensaio [1889], toda uma infinidade de objeções dessa natureza.

Há cerca de dez anos, a opinião corrente na Alemanha ainda era a de pôr em dúvida a realidade dos fenômenos hipnóticos e procurar explicar os relatos referentes a eles como devidos a uma combinação de credulidade por parte dos observadores e simulação por parte das pessoas submetidas às experiências. Atualmente, essa posição já não é mais defensável, graças aos trabalhos de Heidenhain e Charcot, para mencionar apenas os maiores nomes dentre aqueles que deram seu irrestrito apoio à realidade do hipnotismo. Até os mais ferrenhos adversários do hipnotismo se tornaram conscientes disso e, por conseguinte, suas obras, embora ainda deixem transparecer uma nítida tendência a negar a realidade da hipnose, geralmente também incluem tentativas de explicá-la e com isso realmente reconhecem a existência desses fenômenos.

Uma outra corrente de argumentos hostis à hipnose rejeita-a como sendo perigosa para a saúde mental da pessoa e dá-lhe o rótulo de “psicose produzida experimentalmente”. A prova de que a hipnose leva a resultados prejudiciais em uns poucos casos nem por isso seria um argumento decisivo contra sua utilidade geral, da mesma forma que, por exemplo, a ocorrência de casos isolados de morte por narcose pelo clorofórmio não proscreve o uso do clorofórmio com o objetivo de obter anestesia cirúrgica. No entanto, constitui fato digno de nota que a analogia não consiga estender-se além desse ponto. O maior número de acidentes na narcose pelo clorofórmio ocorre com os cirurgiões que executam o maior número de cirurgias. Contudo, a maior parte dos relatos sobre os efeitos nocivos da hipnose provém de observadores que trabalham muito pouco com hipnose, ao passo que todos os pesquisadores que tiveram grande experiência com a hipnose são unânimes na crença de que o método é inócuo. Portanto, a fim de evitar qualquer efeito prejudicial no uso da hipnose, tudo o que é necessário é que o procedimento seja efetuado com cuidado, de modo suficientemente seguro e em casos corretamente selecionados. Deve-se acrescentar que pouco se ganha ao se chamarem as sugestões de “idéias obsessivas” e a hipnose de “psicose experimental”. Parece provável que as idéias obsessivas serão mais bem esclarecidas se comparadas com as sugestões, em vez de se proceder ao contrário. E todo aquele que se atemoriza com o termo injurioso “psicose” bem pode se perguntar se nosso sono natural também merece ser descrito como tal — se é que, na realidade, existe mesmo algo a lucrar com a transposição de termos técnicos para situações alheias às suas áreas específicas. Não, desse lado não há que temer nenhum perigo para a causa do hipnotismo. E tão logo um grande número de médicos esteja em condições de relatar observações do tipo das que se podem encontrar na segunda parte do livro de Bernheim, ficará estabelecido que a hipnose é um estado inofensivo e que induzi-la é um método “digno” de um médico.

Este livro também discute uma outra questão, que, na época atual, divide em dois campos opostos os adeptos do hipnotismo. Uma corrente, cujas opiniões Bernheim exprime nestas páginas, sustenta que todos os fenômenos do hipnotismo têm a mesma origem: isto é, surgem de uma sugestão, de uma idéia consciente, que foi introduzida, mediante uma influência externa, no cérebro da pessoa hipnotizada e por esta foi aceita como se tivesse surgido espontaneamente. Sob esse ponto de vista, todas as manifestações hipnóticas seriam fenômenos psíquicos, efeitos de sugestões. A outra corrente, pelo contrário, sustenta a opinião de que o mecanismo de pelo menos algumas das manifestações do hipnotismo se baseia em modificações fisiológicas — ou seja, em deslocamentos da excitabilidade no sistema nervoso, que ocorrem sem a participação das partes do mesmo que operam com a consciência; os adeptos dessa corrente falam, portanto, dos fenômenos físicos ou fisiológicos da hipnose.

O ponto principal dessa controvérsia é o “grand hypnostisme” [“grande hipnotismo”] — os fenômenos descritos por Charcot no caso de pacientes histéricos hipnotizados. Diferindo das pessoas normais hipnotizadas, esses pacientes histéricos, segundo se acredita, apresentam três estágios de hipnose, cada um deles distinguindo-se por sinais físicos especiais, de natureza muito marcada (tais como uma extraordinária hiperexcitabilidade neuromuscular, contraturas sonambúlicas etc.). Facilmente se compreenderá que, em relação a essa área de fatos, as diferenças de opinião há pouco delineadas devem ter uma repercussão muito importante. Se têm razão os adeptos da teoria da sugestão, todas as observações feitas no Salpêtrière ficam invalidadas; tornam-se erros de observação. A hipnose de pacientes histéricos não teria nenhuma característica própria; mas todo médico teria a possibilidade de produzir, nos pacientes que hipnotizasse, qualquer sintomatologia que desejasse. Com o estudo do grande hipnotismo não aprenderíamos que modificações sucessivas se efetuam na excitabilidade do sistema nervoso, decorrentes de determinadas formas de intervenção; iríamos apenas aprender quais as intenções que Charcot sugeriu (de uma forma da qual nem ele tinha consciência) às pessoas submetidas a essas experiências — coisa inteiramente irrelevante para nossa compreensão da hipnose e da histeria.

É fácil verificar as demais implicações desse ponto de vista e como seria conveniente a explicação, que ela pode prometer, da sintomatologia da histeria em geral. Se a sugestão feita pelo médico falsificou os fenômenos da hipnose histérica, é bem possível que também tenha interferido na observação do resto da sintomatologia histérica: pode ter estabelecido leis que governem os ataques histéricos, as paralisias, as contraturas etc.; esses sintomas teriam na sugestão o seu único vínculo com a neurose e, como conseqüência, perderiam sua validade tão logo um outro médico, num outro lugar, procedesse a um exame dos pacientes histéricos. Essa inferência impõe-se com muita lógica, e de fato já foi feita. Hückel (1888) exprime sua convicção de que o primeiro “transfert” (a transferência de sensibilidade de uma parte do corpo para a parte correspondente do outro lado) feito por uma histérica foi sugerido a ela em alguma circunstância específica de sua história e que, daí em diante, os médicos continuaram constantemente a produzir pela sugestão, de forma renovada, esse sintoma pretensamente fisiológico.

Estou convencido de que esse ponto de vista será o mais bem aceito por parte daqueles que se sentem inclinados — e, atualmente, ainda são a maioria, na Alemanha — a não atentar para o fato de que os fenômenos histéricos são regidos por leis. Aqui devemos assinalar um excelente exemplo de como o descaso pelo fator psíquico da sugestão desorientou um grande observador e o levou à criação artificial e falsa de um tipo clínico, em decorrência da natureza cheia de caprichos e maleabilidade de uma neurose.

Não obstante, não há dificuldade em provar, parte por parte, a objetividade da sintomatologia da histeria. As críticas de Bernheim podem ser plenamente justificadas em relação a investigações como as que foram efetuadas por Binet e Féré; de qualquer modo, essas críticas revelar-se-ão importantes porque, em toda investigação futura da histeria e do hipnotismo,a necessidade de excluir o elemento sugestão será lembrada de modo mais consciente. Os principais pontos da sintomatologia da histeria, contudo, estão livres da suspeita de se terem originado na sugestão de um médico. Os relatos provenientes de épocas passadas e de países distantes, que foram reunidos por Charcot e seus discípulos, não dão margem à dúvida de que as peculiaridades dos ataques histéricos, das zonas histerógenas, da anestesia, das paralisias e contraturas se têm manifestado em todos os tempos e lugares, tal como foram vistas no Salpêtrière quando Charcot efetuava sua memorável investigação dessa grande neurose. O “transfert” em particular, que parece prestar-se especialmente bem para provar que os sintomas histéricos se originam da sugestão, indubitavelmente é um processo autêntico. Vem sendo observado em casos de histeria não-influenciados: freqüentemente se encontram pacientes nos quais aquilo que sob outros aspectos é uma hemianestesia típica se interrompe justamente num órgão ou numa extremidade, e nos quais essa parte específica do corpo conserva sua sensibilidade no lado insensível, ao passo que a parte correspondente do outro lado se tornou anestesiada. Ademais, o “transfert” é um fenômeno fisiologicamente compreensível. Como ficou demonstrado por investigações feitas na Alemanha e na França, trata-se meramente do exagero de uma relação normalmente presente em partes simétricas do corpo; tanto é assim que pode ser produzido, numa forma rudimentar, em pessoas sadias. Muitos outros sintomas histéricos da sensibilidade também têm sua origem em relações fisiológicas normais, como foi brilhantemente demonstrado pelas investigações de Urbantschitsch. Esta não é a ocasião apropriada para efetuar uma justificação detalhada da sintomatologia da histeria; mas podemos aceitar a afirmação de que, na sua essência, essa sintomatologia é de natureza real, objetiva; não é forjada pela sugestão da parte do observador. Isto não significa negar que seja psíquico o mecanismo das manifestações histéricas mas não se trata do mecanismo de sugestão por parte do médico.

Uma vez demonstrada a existência de fenômenos fisiológicos, objetivos, na histeria, já não há mais nenhuma razão para abandonar a possibilidade de que o “grande” hipnotismo histérico chegue a apresentar fenômenos que não se derivam da sugestão da parte do pesquisador. Se tais fenômenos de fato ocorrem, isto é uma hipótese que deve ser deixada para uma investigação à parte, que tenha esse fim em vista. Assim, cabe à escola do Salpêtrière provar que os três estágios da hipnose histérica podem ser inequivocamente demonstrados mesmo numa pessoa que vem para a experiência sem qualquer influência prévia e mesmo quando o pesquisador mantém a conduta mais escrupulosa; e, sem dúvida, tal prova não há de demorar. Pois já a descrição do grande hipnotismo apresenta sintomas que vão muito nitidamente contra a possibilidade de serem considerados psíquicos. Refiro-me ao aumento da excitabilidade neuromuscular durante o estágio letárgico. Todo aquele que tenha visto como, durante a letargia, uma leve pressão sobre um músculo (mesmo que seja um músculo facial ou um dos três músculos externos do pavilhão da orelha, que jamais são contraídos durante a vida) consegue desencadear uma contração tônica em todo o feixe muscular em questão, ou como a pressão exercida sobre um nervo superficial consegue revelar sua distribuição terminal — qualquer pessoa que tenha visto coisas assim inevitavelmente há de supor que o efeito deve ser atribuído a causas fisiológicas, ou a um treino deliberado, e, sem hesitações, haverá de excluir a sugestão não-intencional como causa possível. Isso porque a sugestão não pode produzir algo que não esteja contido na consciência ou seja nela introduzido. Nossa consciência, no entanto, apenas toma conhecimento do resultado final de um movimento; nada sabe da ação e da distribuição anatômica dos músculos isoladamente e nada sabe da distribuição anatômica dos nervos em relação aos músculos. Num trabalho que será publicado em breve, mostrarei detalhadamente que as características das paralisias histéricas se prendem a esse fato e que é por essa razão que a histeria não apresenta paralisias de músculos em separado, paralisias periféricas, nem paralisias faciais de natureza central. O Dr. Bernheim não deveria ter deixado de produzir fenômenos de hiperexcitabilidade neuromuscular por meio da sugestão; tal omissão constitui uma grave lacuna em sua argumentação contra os três estágios.

Assim, os fenômenos fisiológicos efetivamente ocorrem, pelo menos no grande hipnotismo histérico. Mas, no pequeno hipnotismo normal, que, conforme insiste apropriadamente Bernheim, tem maior importância para a nossa compreensão do problema, toda manifestação — assim se afirma — surge por meio da sugestão, por meios psíquicos. Até mesmo o sono hipnótico, ao que parece, resulta da sugestão: o sono sobrevém por causa da sugestionabilidade humana normal, e por isso Bernheim sugere uma expectativa de sono. Porém, outras ocasiões há em que o mecanismo do sono hipnótico parece ser outro. Todo aquele que tenha hipnotizado com freqüência terá por vezes encontrado pessoas que só com muita dificuldade podem ser colocadas em estado de sono mediante conversa, ao passo que, pelo contrário, o mesmo resultado pode ser facilmente obtido fazendo-se com que a pessoa se fixe durante algum tempo. De fato, quem não teve a oportunidade de ver entrar em sono hipnótico um paciente que não se teve qualquer intenção de hipnotizar e que por certo não tinha nenhuma noção prévia da hipnose? Uma paciente toma seu lugar para que lhe façam um exame de olhos ou de garganta; não há nenhuma expectativa de sono, seja da parte do médico, seja da paciente; porém, mal o feixe de luz incide em seus olhos, ela já passa a dormir e, talvez pela primeira vez em sua vida, está hipnotizada. Nesse caso, certamente, poderia ser excluída qualquer ligação psíquica consciente. Nosso sono natural, que Bernheim, com tanta propriedade, compara com a hipnose, comporta-se de forma semelhante. De modo geral, provocamos o sono por sugestão, por um estado de preparação mental e pela expectativa do sono; algumas vezes, porém, ele se instala sem qualquer ingerência de nossa parte, como resultado da condição fisiológica da fadiga. De igual modo, quando as crianças são ninadas para dormir, ou quando os animais são hipnotizados ao serem mantidos numa posição fixa, dificilmente se pode dizer que a causa seja psíquica. Assim, chegamos à posição adotada por Preyer e Binswanger na Realencyclopädie de Eulenburg; no hipnotismo existem fenômenos tanto psíquicos como fisiológicos, e a hipnose pode ser realizada de uma forma ou de outra. Realmente, na descrição do próprio Bernheim para suas hipnoses, há inequivocamente um fator objetivo, independente da sugestão. É com lógica que Jendrassik (1886) insiste em que, se não fosse assim, a hipnose assumiria uma aparência diferente, de acordo com a individualidade de cada experimentador; seria impossível compreender por que o aumento da sugestionabilidade haveria de seguir uma seqüência uniforme, por que o sistema muscular invariavelmente seria influenciado somente em direção à catalepsia, e assim por diante.

Contudo, devemos concordar com Bernheim em que a divisão dos fenômenos hipnóticos em fenômenos fisiológicos e fenômenos psíquicos deixa muito a desejar: precisa-se urgentemente de um elo que vincule as duas espécies de fenômenos. A hipnose, seja ela produzida de uma forma ou de outra, é sempre a mesma e mostra os mesmos aspectos. A sintomatologia da histeria, sob muitos aspectos, sugere um mecanismo psíquico, embora este não precise ser necessariamente o mecanismo da sugestão. E, por fim, a sugestão possui uma vantagem sobre os fenômenos fisiológicos, de vez que seu modo de atuação é incontestável e relativamente claro, ao passo que não temos maior conhecimento das influências mútuas da excitabilidade nervosa, da qual derivam os fenômenos fisiológicos. Nos comentários que se seguem, espero poder dar algumas indicações do elo de ligação entre os fenômenos psíquicos e fisiológicos da hipnose, que estamos pesquisando.

Em minha opinião, o uso cambiante e ambíguo da palavra “sugestão” confere a essas antíteses uma exatidão enganadora, que de fato não existe. Vale a pena refletir sobre o que é que legitimamente podemos chamar de “sugestão”. Sem dúvida, alguma espécie de influência psíquica está implícita nesse termo; e eu gostaria de apresentar o ponto de vista de que o elemento que distingue uma sugestão de outros tipos de influência psíquica, como dar uma ordem ou fornecer uma informação ou orientação, é que, no caso da sugestão, é despertada no cérebro de outra pessoa uma idéia que não é examinada quanto à sua origem, mas que é aceita como originada espontaneamente no cérebro dessa pessoa. Exemplo clássico de uma sugestão desse tipo ocorre quando o médico diz a uma pessoa hipnotizada: “Seu braço deve permanecer na posição em que o coloquei” e com isto se instala o fenômeno da catalepsia; ou então, quando o médico levanta o braço do paciente vezes seguidas, repetidamente, depois de o braço ter caído, e com isso faz o paciente supor que o médico deseja que o braço seja mantido elevado. Mas, em outras ocasiões, falamos de sugestão quando o mecanismo do processo evidentemente é um mecanismo diferente. Por exemplo, em muitas dentre as pessoas hipnotizadas, a catelepsia se instala sem que se opere qualquer interferência: o braço que foi levantado permanece levantado espontaneamente, ou então a pessoa mantém inalterada a postura em que iniciou o sono, a menos que haja alguma interferência. Bernheim chama de sugestão também a esse resultado, dizendo que a própria postura sugere a sua manutenção. Nesse caso, contudo, o papel desempenhado pela situação fisiológica da pessoa, que rejeita qualquer impulso no sentido de modificar sua postura, é maior do que nos primeiros casos. A diferença entre uma sugestão diretamente psíquica e uma sugestão indireta (fisiológica) talvez possa ser vista com maior clareza mediante o seguinte exemplo. Se eu disser a uma pessoa: “Seu braço direito está paralisado; você não pode movê-lo”, estarei fazendo uma sugestão diretamente psíquica. Em vez disso, Charcot dá uma leve pancada no braço da pessoa, ou lhe diz: “Olhe para essa cara horrível! Dê um murro nela!”; a pessoa dá o murro, e [em ambos os casos] seu braço cai paralisado. Nesses dois [últimos] casos, um estímulo externo produziu, inicialmente, uma sensação de dolorosa exaustão no braço; e com isso, em troca, espontânea e independemente de qualquer intervenção por parte do médico, a paralisia foi sugerida — se é que aqui ainda se pode aplicar tal expressão. Em outras palavras, trata-se, nesses casos, não tanto de sugestões, como de estimulação às auto-sugestões. E estas, como qualquer pessoa pode verificar, encerram um fator objetivo, independente da vontade do médico, e revelam uma conexão entre diferentes estados de inervação ou excitação no sistema nervoso. São as auto-sugestões dessa natureza que levam à produção de paralisias histéricas espontâneas, e é uma tendência para tais auto-sugestões, mais do que a sugestionabilidade em relação ao médico, que caracteriza a histeria. E aquela não parece de modo algum ter semelhanças com esta.

Não necessito insistir no fato de que também Bernheim trabalha, em grande medida, com sugestões indiretas dessa ordem — isto é, com estimulações à auto-sugestão. Seu método de produzir o sono, conforme descrito nas primeiras páginas deste livro, é essencialmente um método misto: a sugestão abre vigorosamente as portas que de fato se estão abrindo lentamente por auto-sugestão.

As sugestões indiretas, nas quais uma série de elos intermediários, originários da própria atividade da pessoa, são inseridos entre o estímulo externo e o resultado, são, não obstante, processos psíquicos; contudo, não estão mais expostas à plena luz da consciência, que incide sobre as sugestões diretas. Pois estamos muito mais habituados a voltar nossa atenção para as percepções externas do que para os processos internos. As sugestões indiretas ou as auto-sugestões, por conseguinte, podem ser igualmente descritas como fenômenos fisiológicos ou psíquicos, e o termo “sugestão” tem o mesmo significado que o recíproco despertar de estados psíquicos segundo as leis da associação. O fechamento dos olhos leva ao sono porque está ligado ao conceito de sono na medida em que é um de seus acompanhamentos mais regulares: um componente das manifestações do sono sugere as demais manifestações, que completam o fenômeno como um todo. Essa vinculação faz parte da natureza do sistema nervoso e não advém de alguma ação arbitrária do médico; não pode ocorrer a não ser que esteja baseada em modificações na excitabilidade das regiões cerebrais relevantes, na inervação dos centros vasomotores etc. e apresente igualmente um aspecto psicológico e um aspecto fisiológico. Tal como acontece em qualquer interligação de estados do sistema nervoso, esta permite a passagem [de excitação] numa direção diferente. A idéia de sono pode produzir sensações de fadiga nos olhos e nos músculos e o correspondente estado nos centros nervosos vasomotores; ou, por outro lado, o estado do aparelho muscular ou um impacto sobre os nervos vasomotores podem despertar a pessoa que dorme, e assim por diante. Tudo o que se pode dizer é que seria tão unilateral considerar somente o aspecto psicológico do processo quanto atribuir toda a responsabilidade dos fenômenos da hipnose à inervação vascular.

De que modo isso afeta a antítese entre os fenômenos psíquicos e fisiológicos da hipnose? Havia nela um significado enquanto, por sugestão, entendia-se uma influência psíquica diretamente exercida pelo médico, que impunha à pessoa hipnotizada qualquer sintomatologia que desejasse. Mas tal significado desaparece tão logo se percebe que mesmo a sugestão só desencadeia determinados grupos de manifestações fundamentadas nas peculiaridades funcionais do sistema nervoso hipnotizado, e que, na hipnose, também se fazem presentes outras características do sistema nervoso, além da sugestionabilidade. Poder-se-ia, ademais, questionar se todos os fenômenos da hipnose têm de passar, em algum lugar, pela esfera psíquica; em outras palavras — pois a questão não pode ter outro sentido —, se as mudanças de excitabilidade que ocorrem na hipnose invariavelmente afetam apenas a região do córtex cerebral. Formulando a questão sob essa outra forma, parece que encontramos sua resposta. Não se justifica estabelecer um contraste como o que aqui se estabeleceu entre o córtex cerebral e o resto do sistema nervoso; é improvável que uma modificação funcional tão profunda no córtex do cérebro possa ocorrer sem ser acompanhada por mudanças importantes na excitabilidade das demais partes do cérebro. Não temos critério algum que nos possibilite estabelecer uma distinção exata entre um processo psíquico e um processo fisiológico, entre um ato que ocorre no córtex cerebral e um ato que ocorre na substância subcortical; isso porque a “consciência”, o que quer que isto seja, não está ligada a toda atividade do córtex cerebral, e não está sempre ligada em igual grau a qualquer de suas atividades em particular; não é algo que esteja em conexão com alguma região do sistema nervoso. Portanto, parece-me que não pode ser aceita, nessa formulação genérica, a questão de saber se a hipnose exibe fenômenospsíquicos ou fisiológicos; e parece-me que a decisão, no caso de cada fenômeno em particular, deve ser tomada com base numa investigação especial.

Nesse sentido, sinto-me justificado ao dizer que, enquanto, de um lado, o trabalho de Bernheim vai além da área da hipnose, de outro lado ele deixa de levar em conta uma parte do seu tema. Todavia, é de esperar que também os leitores alemães de Bernheim venham agora a ter a oportunidade de reconhecer quão esclarecedora e importante é a sua contribuição, pelo fato de descrever o hipnotismo a partir do ponto de vista da sugestão.  VIENA, agosto de 1888

 

APÊNDICE: PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO ALEMÃ (1896)

 

A primeira edição alemã deste livro tinha um prefácio do tradutor que hoje se tornou desnecessário reimprimir. A situação da ciência que vigorava na época em que surgiu a tradução de Suggestion, de Bernheim, sofreu modificações fundamentais na atualidade. Silenciou a dúvida a respeito da realidade dos fenômenos hipnóticos; cessou o anátema que então, inexoravelmente, recaía sobre todo neuropatologista que considerasse essa área de fenômenos importante e merecedora de uma investigação séria. Não foi pequeno o mérito deste livro, em si mesmo, ao defender, de modo extraordinariamente convincente e vigoroso, a causa do hipnotismo científico.

Quando se tornou clara a necessidade de, uma segunda vez, tornar acessível aos leitores de língua alemã essa obra fundamental do médico de Nancy, o organizador e o editor, em concordância com o autor, decidiram eliminar do livro capítulos que continham apenas casos clínicos e relatos de tratamentos. Eles não puderam deixar de reconhecer que não era precisamente nesses capítulos que estava a força da obra de Bernheim. Herr Dr. Kahane teve então a gentileza de se encarregar, em lugar deste que subscreve o presente prefácio, da tarefa de revisar a nova edição em francês.

No que se refere ao conteúdo do prefácio à primeira edição, o tradutor gostaria apenas de repetir um comentário, ao qual se mantém tão fiel hoje como naquela época. O que ele acha que falta nas proposições de Bernheim é a opinião segundo a qual a “sugestão” (ou melhor, a efetivação de uma sugestão) é um fenômeno psíquico patológico que requer condições especiais prévias para que possa realizar-se. Não é necessário pôr em xeque essa opinião confrontando-a com a freqüência e com facilidade do fenômeno da sugestão, nem com o importante papel que ela desempenha na vida quotidiana. No livro de Bernheim, a constatação dessas últimas circunstâncias enquanto fatos ocupa tanto espaço que ele descura de examinar o problema psicológico de quando e por que os métodos normais de influência psíquica entre os seres humanos podem ser substituídos pela sugestão. E, enquanto explica mediante a sugestão todos os fenômenos do hipnotismo, a própria sugestão permanece inteiramente inexplicada e é obscurecida por uma demonstração de que não necessita de explicação. Sem dúvida, essa lacuna foi observada por todos os pesquisadores que seguiram Forel na busca de uma teoria psicológica da sugestão.

DR. SIGM. FREUD

VIENA, junho de 1896

 

RESENHA DE HIPNOTISMO, DE AUGUST FOREL (1889)

 

RESENHA DE DER HIPNOTISMUS, DE AUGUST FOREL

 

(a) EDIÇÃO ALEMÃ:

1889   Wiener med. Wochensch., 39 (28), 1097-1100 e (47), 1892-6 (13 de julho e 23 de novembro).

Parece que o original alemão jamais foi reeditado; esta tradução (de James Strachey) é a primeira versão para a língua inglesa.

O título completo do livro de Forel era Der Hypnotismus, seine Bedeutung und seine Handhabung (O Hipnotismo, Sua Significação e Seu Manejo). Seu autor (1848-1931), nessa época, era professor de psiquiatria em Zurique e gozava de enorme reputação. Seus escritos posteriores sobre temas sociológicos (e sobre a história natural das formigas) foram muito lidos. Embora no final viesse a criticar acerbamente a psicanálise, foi ele quem apresentou Freud a Bernheim. Freud visitou Nancy durante o verão de 1889, entre a publicação das duas partes desta resenha. (Cf. a Introdução do Editor Inglês, em [1])

 

RESENHA DE HIPNOTISMO, DE AUGUST FOREL

 

I

Esta obra do conceituado psiquiatra de Zurique, com apenas 88 páginas, é a ampliação de um artigo sobre a importância forense do hipnotismo, publicado em 1889 na Zeidchrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft [Revista de Penalogia Geral], 9, 131. Sem dúvida, ocupará um lugar de destaque, por muitos anos, na bibliografia alemã sobre hipnotismo. Conciso, com a forma quase de um catecismo, expresso em linguagem muito clara e decidida, cobre toda a área de fenômenos e problemas compreendidos no título “teoria do hipnotismo”; de maneira feliz, estabelece uma distinção entre fatos e teorias; nunca lhe falta a abordagem séria que se exige de um médico empenhado em investigação minuciosa; e, no seu todo, evita o tom pomposo que é tão despropositado numa discussão científica. Somente num ponto a exposição de Forel torna-se entusiástica o bastante para declarar que “a descoberta da importância psicológica da sugestão, levada a efeito por Braid e Liébeault, é, segundo minha opinião, tão magnífica que pode ser comparada com as maiores descobertas, ou melhor, revelações do espírito humano”. Todo aquele que achar esse comentário uma flagrante supervalorização da hipnose deve adiar seu julgamento definitivo até que os próximos anos tenham deixado claro quantas revoluções teóricas e práticas — que a hipnose promete desencadear — podem realmente resultar dela. Ao mencionar os obscuros problemas limítrofes ao hipnotismo (transmissão de pensamento etc.) com que se ocupa atualmente o “espiritualismo”, Forel mostra uma reserva realmente científica. É impossível compreender por que um autorizado cientista desta cidade, diante de um auditório científico, qualificou o autor desta obra como “Forel, o sulista”, confrontando-o com um adversário da hipnose supostamente “mais nortista”, como modelo de uma forma mais comedida de pensar. Ainda que fosse menos deselegante procurar abordar as opiniões sobre assuntos científicos, emitidas por cientistas ainda vivos, tomando como base a nacionalidade ou o país de origem desses cientistas, e mesmo que o Prof. Forel não tivesse tido a sorte de nascer e ser educado na latitude de quarenta e seis graus Norte, não haveriajustificativa para concluir, do presente trabalho, que seu autor tem o costume de deixar que suas emoções lhe tirem a lógica.

Pelo contrário, este breve estudo é o trabalho de um médico sério, que veio a conhecer o valor e a importância da hipnose a partir de sua rica experiência própria e tem o direito de exclamar aos “zombadores e incrédulos”: “Provem antes de julgar!” E temos de concordar com ele quando diz: “A fim de formar um julgamento acerca do hipnotismo, é preciso que se tenha praticado o hipnotismo por experiência própria”.

Realmente, há numerosos adversários da hipnose que formaram seu julgamento de um modo mais apressado. Não puseram à prova o novo método terapêutico e não o empregaram imparcial e cuidadosamente, como se procederia, por exemplo, com uma droga recentemente recomendada; rejeitaram a hipnose a priori, e agora a ausência de conhecimentos dos valiosos efeitos terapêuticos desse método não os autoriza, seja qual for o seu fundamento, a manifestar tão cáusticas e injustificadas expressões de antipatia à hipnose. Exageram enormemente os perigos da hipnose, passam a destratá-la sistematicamente e, diante da abundância de relatos de cura pela hipnose, que já não podem ser relegadas ao descaso, reagem com esses pronunciamentos oraculares: “As curas nada provam, elas mesmas exigem prova”. Tendo em conta a violência de sua oposição, não é de admirar que acusem os médicos que consideram seu dever usar a hipnose para beneficiar seus pacientes de terem motivos insinceros e formas de pensar não-científicas — acusações que devem ser excluídas de uma discussão científica, sejam elas apresentadas publicamente, sejam veiculadas de modo mais ou menos disfarçado. Quando entre esses adversários encontram-se homens como Hofrat Meynert, homens que, por seus escritos, adquiriram grande autoridade, e quando essa autoridade, sem nem sequer ser posta em dúvida, se estende, pelo consenso tanto dos médicos como do público leigo, a todos os seus pronunciamentos, então sem dúvida é inevitável que daí resulte algum dano para a causa do hipnotismo. Para a maioria das pessoas, é difícil supor que um cientista que teve grande experiência em certas áreas da neuropatologia e deu provas de grande agudeza de espírito não possa qualificar-se para ser citado como autoridade em outros problemas; e o respeito à grandeza, particularmente à grandeza intelectual, certamente está entre as melhores características da natureza humana. Mas é necessário ter o devido respeito pelos fatos. Não há por que recear dizer isso francamente, quando se trata de colocar de lado a dependência que se tinha em relação a uma autoridade, em favor da opinião própria, formada a partir do estudo dos fatos.

Todo aquele que, tal como o autor desta resenha, alcançou um julgamento independente nos assuntos referentes à hipnose, haverá de se consolar com a reflexão de que qualquer ofensa à reputação da hipnose, feita dessa maneira, só pode ser uma ofensa limitada tanto no tempo como no espaço. O movimento que procura introduzir o tratamento sugestivo no estoque terapêutico da medicina já triunfou em outros países e, no final, alcançará seu objetivo também na Alemanha (e em Viena). Todo médico que se disponha a examinar os fatos com isenção será levado a tomar uma atitude menos desfavorável quando verificar que as supostas vítimas da terapia hipnótica sofrem menos, depois do tratamento, e podem executar suas funções melhor do que o faziam antes — e é este o caso dos meus próprios pacientes, como posso afirmar. Algumas experiências mostrarão a eles que toda uma série de censuras à hipnose aplica-se não à hipnose, em particular, mas sim à nossa terapia em geral, e pode, na verdade, ser mais justificadamente dirigida contra determinados métodos que todos nós usamos na prática do que contra a hipnose. Como médicos, descobrirão que é impossível não utilizar a hipnose e deixar que seus pacientes sofram, quando podem aliviá-los mediante o uso inócuo da influência psíquica. Serão obrigados a dizer a si mesmos que a hipnose não perde nada de sua inocuidade nem de seu valor curativo quando a denominam “loucura artificial” ou “histeria artificial”, do mesmo modo que a carne não perde nem um pouco seu gosto nem seu valor nutritivo só porque a ira dos vegetarianos a denuncia como “carniça”.

Esqueçamos por um momento que conhecemos, por nossa experiência, os efeitos da hipnose; perguntemo-nos que efeitos prejudiciais esperaríamos, a priori, resultassem dela. O tratamento hipnótico, em primeiro lugar, consiste em induzir um estado hipnótico e, em segundo, em veicular uma sugestão à pessoa hipnotizada. Qual desses dois atos se supõe seja prejudicial? Promover a hipnose? Mas a hipnose, quando tem seu mais pleno êxito, nada mais é do que o sono comum, coisa tão conhecida de todos nós, embora, sob muitos aspectos, sem dúvida ainda não a compreendamos; e, por outro lado, quando menos completamente desenvolvida, a hipnose corresponde às diferentes fases do processo do adormecer. É verdade, que, no sono, perdemos nosso equilíbrio psíquico, e a atividade de nosso cérebro durante o sono é uma atividade desordenada que, em muitos aspectos, lembra a loucura; esta analogia, contudo, também não impede que despertemos do sono com renovada força mental. Se fôssemos seguir as opiniões de Meynert acercados efeitos prejudiciais da redução da atividade cortical e da origem que ele atribui à euforia hipnótica, nós, médicos, realmente teríamos toda a razão para manter as pessoas insones. Até agora, porém, as pessoas ainda preferem dormir, e não temos por que recear que os perigos da terapia hipnótica se situem no ato de hipnotizar. Comunicar uma sugestão seria o fator prejudicial? Isto é impossível, pois é ato notório que os ataques da oposição de modo algum são dirigidos contra a sugestão. Como se sabe, o uso da sugestão tem sido uma coisa familiar aos médicos, desde épocas imemoriais: “Todos nós estamos dando sugestões constantemente”, dizem eles; e, realmente, um médico — mesmo que não pratique a hipnose — nunca se sente mais satisfeito do que depois de haver recalcado um sintoma da atenção de um paciente mediante o poder de sua personalidade e influência de suas palavras — e de sua autoridade. Por que não deveria então o médico procurar exercer sistematicamente a influência que sempre lhe parece tão desejável quando nela tropeça inadvertidamente? Entretanto, talvez seja a sugestão, de qualquer modo, o elemento passível de objeções: a repressão de uma personalidade livre pelo médico, que ao mesmo tempo conserva um poder de direção sobre o cérebro adormecido em sono artificial. É deveras interessante ver os mais ardorosos deterministas defendendo, de repente, o periclitante “livre-arbítrio pessoal” e constatar que os psiquiatras que estão habituados a sufocar a “atividade mental de livre aspiração” de seus pacientes com grandes doses de brometos, morfina e hidrato de cloral passem a acusar a influência da sugestão como coisa degradante tanto para o paciente como para o médico. Será então realmente possível esquecer que a repressão da independência de um paciente pela sugestão da hipnose é sempre apenas uma repressão parcial; que ela visa aos sintomas de uma doença; que (como foi mostrado uma centena de vezes) toda a educação social dos seres humanos se baseia numa repressão de idéias e motivações impróprias e na sua substituição por outras melhores; e que, diariamente, a vida produz em todas as pessoas efeitos psíquicos que, ainda que as atinjam no seu estado de vigília, nelas produzem modificações muito mais intensas do que aquelas produzidas pela sugestão do médico que tenta eliminar uma idéia penosa ou angustiante, usando a eficácia de uma contra-idéia? Não. Não há nada de perigoso na terapia pela hipnose; apenas o seu mau uso é que pode ser perigoso; e todo aquele que, na qualidade de médico, não confiar no escrúpulo ou retidão de sua intenção de evitar esse mau uso, agirá acertadamente mantendo-se à distância desse método terapêutico novo.

No que concerne à avaliação pessoal dos médicos que têm a coragem de utilizar a hipnose como medida terapêutica antes que a onda da moda a torne obrigatória, o autor desta resenha é de opinião de que é conveniente ter certa tolerância para com a freqüente intolerância dos grandes homens. Por isso, não lhe parece aconselhável, ou matéria digna de algum interesse para um círculo mais amplo, investigar aqui as razões que levaram o Hofrat Maynert a apresentá-lo [o resenhista], bem como a parte da história de sua vida, aos leitores de seu artigo sobre as neuroses traumáticas.

O autor desta resenha julga mais importante falar a favor da hipnose para aqueles que se habituaram a deixar que seu julgamento sobre matérias científicas seja determinado por uma grande autoridade, e que talvez a isto tenham sido levados por uma correta percepção da inadequação do seu próprio discernimento. Propõe-se fazê-lo, confrontando com a resistente autoridade de Meynert, outros cientistas que se mostraram mais receptivos à hipnose. Lembra que, entre nós, foi o Prof. H. Obersteiner quem primeiro deu impulso ao estudo científico da hipnose e que um psiquiatra e neurologista tão conceituado como o Prof. Krafft-Ebing (recente aquisição de nossa Universidade) pronunciou-se irrestritamente a favor da hipnose e a utiliza em sua prática médica com os melhores resultados. Ver-se-á que esses nomes satisfarão também àqueles que são desprovidos de opinião, que sua confiança exige das autoridades científicas o preenchimento de determinadas condições, tais como nacionalidade, raça e latitude geográfica, e cuja confiança acaba nos postos de fronteira de sua terra natal.

Todos os outros que são receptivos à autoridade científica, mesmo que proveniente de fora de sua terra natal, incluirão também o Prof. Forel entre os homens cuja defesa da hipnose pode tranqüilizá-los quanto à suposta ilegitimidade e desmerecimento desse método de tratamento. O autor desta resenha, em particular, quando se defrontou com os ataques de Meynert, sentiu que, apoiando a hipnose, estava em boa companhia. O Prof. Forel é uma prova de que um homem pode ser um notável anatomista do cérebro e, não obstante, enxergar na hipnose algo mais do que um absurdo. Também não pode ser-lhe negada a qualificação de “um médico de rigorosa formação em fisiologia” — que o Hofrat Meynert muito amavelmente atribuiu ao passado deste que escreve esta resenha; e assim como o autor desta resenha retornou da iniqüidade de Paris em estado corrompido, uma visita a Bernheim, em Nancy, constituiu para o Prof. Forel o ponto de partida da nova atividade a que devemos este excelente trabalho.

II

Nas partes iniciais deste livro, Forel procura, na medida do possível, estabelecer uma distinção entre “fatos, teorias, conceitos e terminologia”.

O fato principal do hipnotismo consiste na possibilidade de colocar uma pessoa num estado especial da mente (ou, mais precisamente, do cérebro), que se assemelha ao sono. Esse estado é conhecido como hipnose. Um segundo conjunto de atos consiste na maneira como esse estado é produzido (e encerrado). Isto parece ser possível de três modos: (1) pela influência psíquica que uma pessoa exerce sobre outra (sugestão), (2) pela influência (fisiológica) de determinados métodos (fixação), por ímãs, pela mão do hipnotizador etc. e (3) pela auto-influência (auto-sugestão). No entanto, apenas o primeiro desses métodos está estabelecido: a produção por idéias — sugestão. Em nenhuma das outras formas de produzir a hipnose parece possível excluir a ação da sugestão, de uma ou de outra forma.

Um terceiro grupo de fatos diz respeito à conduta da pessoa hipnotizada. Quando a pessoa está sob hipnose, é possível exercer, pela sugestão, os mais amplos efeitos sobre quase todas as funções do sistema nervoso e, entre elas, sobre aquelas atividades cuja dependência com relação aos processos que ocorrem no cérebro é geralmente estimada como bastante reduzida. O fato de a influência do cérebro sobre as funções orgânicas poder tornar-se mais intensa sob hipnose do que no estado de vigília certamente se harmoniza pouco com as teorias dos fenômenos hipnóticos que procuram considerá-los como “depressores da atividade cortical”, uma espécie de imbecilidade experimental. Existem, contudo, muitas outras coisas, além dos fenômenos hipnóticos, que não se harmonizam com essa teoria, a qual procura compreender quase todos os fenômenos da atividade cerebral por meio do contraste entre “cortical” e “subcortical” e parece chegar ao ponto de localizar o princípio do “mal” nas partes subcorticais do cérebro.

 

Outros fatos inquestionáveis são a dependência da atividade mental da pessoa hipnotizada em relação à do hipnotizador e a produção daquilo que se conhece como efeitos “pós-hipnóticos’’ na pessoa hipnotizada — isto é, a determinação de atos psíquicos que só são executados muito tempo depois de cessada a hipnose. Por outro lado, há toda uma série de afirmativas que relatam as mais interessantes atividades executadas pelo sistema nervoso (clarividência, sugestão mental etc.), mas que, atualmente, não podem ser arroladas como fatos; e embora um exame científico dessas afirmações não deva ser recusado, deve-se ter em mente que um esclarecimento satisfatório das mesmas envolve as maiores dificuldades.

Para explicar os fenômenos da hipnose foram propostas três teorias fundamentalmente diferentes. A mais antiga destas, que ainda denominamos teoria de Mesmer, supõe que, no ato de hipnotizar, um material imponderável — um fluido — passa do hipnotizador para o organismo hipnotizado. Mesmer chamava esse agente de “magnetismo”. Sua teoria tornou-se tão estranha à nossa forma de pensamento científico contemporâneo que pode ser considerada eliminada. Uma segunda teoria, somática, explica os fenômenos hipnóticos com base nos reflexos medulares; considera a hipnose um estado fisiológico modificado do sistema nervoso, causado por estímulos externos (impacto da mão, fixidez da atividade sensorial, adução de ímãs, aplicação de metais etc.). Afirma que os estímulos desse tipo só têm efeito “hipnogênico” quando há uma disposição peculiar do sistema nervoso e, portanto, só os neuropatas (especialmente os histéricos) são hipnotizáveis. Despreza a influência das idéias na hipnose e descreve uma série típica de modificações puramente somáticas que podem ser observadas durante o estudo hipnótico. Como se sabe, é a grande autoridade de Charcot que apóia essa concepção exclusivamente somática da hipnose.

Forel, no entanto, posiciona-se inteiramente segundo uma terceira teoria — a teoria da sugestão, criada por Liébeault e seus discípulos (Bernheim, Beaunis, Liégeois). Segundo essa teoria, todos os fenômenos da hipnose constituem efeitos psíquicos, efeitos de idéias que, intencionalmente ou não, são provocadas na pessoa hipnotizada. O estado de hipnose, como tal, é produzido não por estímulos externos, mas por uma sugestão; não é exclusivo dos neuropatas e pode ser conseguido, sem muita dificuldade, na grande maioria das pessoas sadias. Em resumo, “o conceito de hipnotismo, tão mal definido até agora, deve equivaler ao conceito de sugestão”. Deve ficar reservado à decisão de uma crítica mais aprofundada saber se o conceito de sugestão realmente é menos mal definido que o conceito de hipnotismo. Aqui é necessário apenas assinalar que um médico que deseja estudar a hipnose e, a respeito dela, formar uma opinião, indubitavelmente deverá adotar, em princípio, a teoria da sugestão. Pois será capaz de se convencer da correção dos postulados da escola de Nancy, a qualquer tempo, com seus próprios pacientes, ao passo que provavelmente terá poucas condições de confirmar por sua própria observação os fenômenos descritos por Charcot como “grande hipnotismo”, os quais parecem ocorrer somente em alguns portadores de grande hystérie.

A segunda parte do livro trata da sugestão; com admirável concisão e uma capacidade de descrição magistral e penetrante, cobre toda a área dos fenômenos psíquicos que foram observados em pessoas sob hipnose. A chave para a compreensão da hipnose é dada pela teoria do sono normal (ou melhor, do adormecer normal), de Liébeault, segundo a qual a hipnose se distingue somente pela inserção do relacionamento entre a pessoa hipnotizada e a pessoa que a faz adormecer. Dessa teoria infere-se que toda pessoa é hipnotizável e que, para não se promover a hipnose, é necessária a presença de obstáculos especiais. Examina-se a natureza desses obstáculos (um desejo demasiadamente intenso de ser hipnotizado, tanto quanto uma grande resistência intencional, e assim por diante), discutem-se os graus de hipnose e se estuda a relação entre o sono sugerido e os outros fenômenos da hipnose, quase sempre em completo acordo com Bernheim, cuja obra categorizada sobre a sugestão parece ter encontrado amplo círculo de leitores em sua tradução alemã. Os parágrafos sobre os efeitos da sugestão sob hipnose são igualmente apresentados sob a forma de excertos de Bernheim, mas são invariavelmente ilustrados com exemplos provenientes da experiência do próprio autor. Forel apresenta-os com esta frase: “Por meio da sugestão sob hipnose, é possível produzir, influenciar, impedir (inibir, modificar, paralisar, ou estimular) todos os fenômenos subjetivos conhecidos da mente humana e uma grande parte das funções objetivamente conhecidas do sistema nervoso” — isto é, influenciar as funções sensitivas e motoras do corpo, determinados reflexos e processos vasomotores (a ponto mesmo de causar bolhas!) e, na esfera psíquica, influenciar sentimentos, instintos, memória, atividade volitiva e assim por diante. Todo aquele que já tenha acumulado algumas experiências pessoais com o hipnotismo há de se lembrar da impressão que lhe causou o fato de, pela primeira vez, poder exercer sobre a vida psíquica de uma outra pessoa aquilo que até então tinha sido uma influência inimaginável, e de poder efetuar com uma mente humana uma experiência que, de tal forma, normalmente só é possível executar no corpo de um animal. É verdade que essa influência apenas raramente se efetua sem resistência da parte da pessoa hipnotizada. Esta não é um simples autômato; muitas vezes, empreende uma luta contra a sugestão, e por sua própria atividade cria “auto-sugestões” — termo que, aliás, apenas parece enriquecer o conceito de “sugestão”, mas que, estritamente falando, é uma ab-rogação do mesmo.

São da maior importância as discussões que se seguem, referentes aos fenômenos pós-hipnóticos — sugestões destinadas a produzir seu efeito após um tempo-limite fixado — e a sugestão em estado de vigília — grupo de fenômenos cujo estudo já trouxe as mais valiosas conclusões acerca dos processos psíquicos normais dos seres humanos, embora sua interpretação ainda esteja sujeita a alguma controvérsia. Se o trabalho de Liébeault e seus discípulos não tivesse produzido nada além do conhecimento desses fenômenos notáveis — embora, ao mesmo tempo, sejam fenômenos do dia-a-dia — e do enriquecimento da psicologia por um novo método experimental, esse trabalho, mesmo excetuando qualquer alcance prático, já teria assegurado um lugar de destaque entre as descobertas científicas deste século. O pequeno livro de Forel contém toda uma série de comentários e conselhos oportunos sobre a aplicação prática do hipnotismo, os quais impõem a mais integral admiração do autor. Só um médico que associa o mais completo domínio do seu difícil tema a uma firme convicção da importância deste pode escrever dessa maneira. A técnica do hipnotismo não é tão fácil, como se poderia supor pela conhecida crítica feita no primeiro debate de Berlim: “Hipnotizar não é uma especialidade médica, já que qualquer pastor de ovelhas adolescente a pratica”. É necessário estar imbuído de entusiasmo, paciência, grande certeza e uma boa dose de estratagemas e inspiração. Aquele que tenta hipnotizar segundo um padrão predeterminado, que teme a desconfiança ou o escárnio da pessoa a ser hipnotizada, ou que já começa com um estado de ânimo vacilante, conseguirá pouca coisa. A pessoa a ser hipnotizada não deve ser nervosamente deixada em apuros; as pessoas muito nervosas são as menos indicadas para realizar esse tipo de tratamento. Um procedimento competente e firme elimina todas as supostas más conseqüências do hipnotismo. Conforme apropriadamente se expressou o Dr. Bérillon, “On ne s’improvise pas plus médecin hypnotiseur qu’on ne s’improvise oculiste.”

 

Pois bem, o que pode conseguir a hipnose? Forel dá uma lista de doenças “que parecem ceder muito bem com a sugestão”, sem pretender que essa lista seja completa. Deve-se acrescentar que a posição que ocupam as “indicações”, no caso do tratamento hipnótico, difere um tanto do que se passa em outros casos, como, por exemplo, no uso da digitalina. Praticamente depende mais das características da pessoa do que da natureza de sua doença. Há determinadas pessoas nas quais dificilmente um sintoma deixa de ceder à sugestão, por mais firme que seja sua base orgânica — por exemplo, a vertigem, na doença de Ménière, ou a tosse, na tuberculose; em outras pessoas é impossível exercer qualquer influência, sequer sobre distúrbios de indubitável origem psíquica. E não depende menos da habilidade do hipnotizador e das condições nas quais ele é capaz de tratar seus pacientes. Eu mesmo tenho tido não poucos resultados felizes com o tratamento hipnótico; mas não me arrisco a empreender certas curas de um tipo que testemunhei junto a Liébeault e Bernheim, em Nancy. Também sei que boa parte do sucesso é devida à “atmosfera sugestiva” que circunda a clínica daqueles dois médicos, ao milieu e ao estado de ânimo dos pacientes — coisas de que nem sempre consigo encontrar sucedâneos em meus clientes experimentais.

Será possível modificar permanentemente uma função nervosa por meio da sugestão? Ou será justificada a acusação de que a sugestão só produz êxitos sintomáticos por um curto espaço de tempo? O próprio Bernheim deu a essa acusação uma resposta irrefutável, nos últimos parágrafos de seu livro. Assinala que a sugestão atua da mesma forma que qualquer outro agente terapêutico que temos à nossa disposição; isto é, uma sugestão escolhe, dentre um complexo de fenômenos patológicos, um ou outro sintoma importante cuja remoção exercerá a influência mais favorável na evolução de todo o processo. Pode-se acrescentar que a sugestão, além disso, satisfaz todos os requisitos de um tratamento causal, em numerosos casos. É o que sucede, por exemplo, nos distúrbios histéricos, que são resultado direto de uma idéia patogênica ou sedimento de uma experiência desagregadora. — Quando essa idéia é eliminada ou essa lembrança é enfraquecida — que é o que a sugestão realiza —, também o distúrbio geralmente é superado. É verdade que isso não significa que a histeria esteja curada: em condições parecidas, ela provocará sintomas parecidos. Mas será que a histeria é curada pelahidroterapia, pela superalimentação ou pela valeriana? Acaso se espera que um médico possa curar uma diátese nervosa quando persistem as circunstâncias que a sustentam? Segundo Forel, pode-se conseguir êxito permanente, por meio da sugestão, nas seguintes condições: (1) Quando a mudança efetuada tem dentro de si mesma a força para se manter entre os elementos da dinâmica do sistema nervoso. Por exemplo, suponhamos que uma criança, por meio da sugestão, interrompeu a enurese noturna. Então o hábito normal pode conseguir estabelecer-se tão firmemente como o hábito anterior, indesejável. Ou (2) quando essa força para a mudança é suprida por um medicamento. Suponhamos, por exemplo, que alguém sofra de insônia, fadiga e enxaqueca. Então a sugestão lhe assegura o sono e, assim, melhora seu estado geral, e o retorno da enxaqueca é evitado permanentemente.

Mas o que é realmente a sugestão, que é a base de todo o hipnotismo, no qual todos esses resultados são possíveis? Ao levantarmos essa questão, apontamos um dos pontos fracos da teoria de Nancy. Sem querer, lembramo-nos da questão do ponto de apoio de São Cristóvão, quando verificamos que o trabalho exaustivo de Bernheim, que culmina com a afirmação “Tout est dans la suggestion”, nem de longe procura abordar a natureza da sugestão — isto é, a definição do conceito. Quando tive o privilégio de receber ensinamentos pessoais do professor Bernheim sobre os problemas do hipnotismo, pareceu-me verificar que ele denominava sugestão a toda influência psíquica eficaz exercida por uma pessoa sobre outra, e que considerava como “sugerir” todo esforço no sentido de exercer uma influência psíquica em alguma outra pessoa. Forel procura estabelecer uma distinção mais clara. Uma seção sobre “Sugestão e Consciência”, rica em idéias, intenta compreender a atuação da sugestão com base em determinadas hipóteses fundamentais relativas aos eventos psíquicos normais. Ainda que não sejamos solicitados a dar uma declaração de que estamos completamente satisfeitos com esse debate, devemos ao autor nossos agradecimentos por apontar a direção em que se pode procurar uma solução para o problema, e por numerosas sugestões e contribuições nesse sentido. Não pode haver dúvidas de que comentários como os que fez Forel nessa seção de seu livro têm maior conexão com o problema da hipnose do que o contraste entre “cortical esubcortical” e as especulações sobre dilatação e constrição dos vasos sangüíneos do cérebro.

O livro termina com uma seção sobre a importância forense da sugestão. Conforme sabemos, até o momento, os “crimes sugeridos” são simplesmente uma possibilidade para a qual os juristas estão se preparando, e que os romancistas podem prever como “não tão improváveis que não possam acontecer algum dia”. De fato, em laboratório, não é difícil induzir um bom sonâmbulo a cometer um crime imaginário. Mas, depois das perspicazes críticas de Delboeuf aos experimentos de Liégeois, deve permanecer em aberto a questão de até que ponto a consciência de se tratar apenas de uma experiência facilita à pessoa a execução do crime.

DR. SIGM. FREUD

 

 

 

 

HIPNOSE (1891)

 

 (a) EDIÇÃO ALEMÃ:

1891 Em Therapeutisches Lexikon, de Anton Bum, 724-732. (Viena: Urban & Schwarzenberg.) (1893, 2ª ed., 896-904; 1900, 3ª ed., 1, 1110-19.)

A segunda e a terceira edições não sofreram modificações, exceto quanto a algumas correções mínimas, principalmente tipográficas. A tradução de James Strachey é a primeira para o inglês.

Essa contribuição assinada para um dicionário médico tinha passado inteiramente despercebida até ser descoberta, em 1963, pelo Dr. Paul F. Cranefield, Ph.D., editor do Bulletin of the New York Academy of Medicine. A ele cabem nossos agradecimentos por chamar-nos a atenção para esse trabalho e por nos ter fornecido cópias fotostáticas. Parece que nada se sabe acerca da feitura desse trabalho.

 

Seria um equívoco pensar que é muito fácil praticar a hipnose com fins terapêuticos. Pelo contrário, a técnica de hipnotizar é um método médico tão difícil como qualquer outro. Um médico que deseja hipnotizar deve tê-lo aprendido com um mestre nessa arte e, mesmo depois disso, deverá ter tido bastante experiência própria, a fim de obter êxitos em mais do que alguns poucos casos. Depois, como hipnotizador experiente, haverá de abordar o assunto com toda a seriedade e firmeza que nascem da consciência de estar empreendendo algo útil e, a rigor, em algumas circunstâncias, necessário. A rememoração de tantas outras curas realizadas pela hipnose conferirá à sua conduta para com seus pacientes uma certeza que não deixará de despertar, também nestes, a expectativa de mais um êxito terapêutico. Todo aquele que se põe a hipnotizar com ceticismo, que talvez se afigure cômico a si mesmo nessa situação e que revele, por sua expressão, sua voz e seus modos, não esperar nada da experiência, não terá motivos para se surpreender com seus fracassos; deveria, preferentemente, deixar esse método de tratamento para outros médicos capazes de praticá-lo sem se sentirem feridos em sua dignidade médica, de vez que se convenceram, pela experiência e pela leitura, da realidade e da importância da influência hipnótica.

Devemos ter como regra não procurar impor ao paciente o tratamento pela hipnose. Entre o público acha-se difundido o preconceito (realmente reforçado por alguns médicos conceituados, conquanto inexperientes nesse assunto) de que a hipnose é um procedimento perigoso. Se tentássemos impor a hipnose a alguém que acreditasse nessa afirmação, provavelmente viríamos a ser interrompidos, não mais do que uns poucos minutos depois, por acontecimentos desagradáveis, que surgiriam da ansiedade do paciente e de seu sentimento angustiante de estar sendo dominado, os quais, porém, com bastante certeza, seriam considerados como resultado da hipnose. Portanto, sempre que surge uma intensa resistência contra o uso da hipnose, devemos renunciar ao método e esperar até que o paciente, sob a influência de outras informações, aceite a idéia de ser hipnotizado. Por outro lado, não é absolutamente desfavorável se um paciente declara que não teme a hipnose, mas que não acredita nela ou não acredita que ela lhe possa ser útil. Num caso desses, dizemos-lhe: “Não exigimos sua crença, mas, de início, apenas sua atenção e sua cooperação”. E, em regra, nesse estado de espírito indiferente do paciente, encontramos excelente apoio. Por outro lado, deve-se dizer que há pessoas que são impedidas de serem hipnotizadas justamente por sua vontade e insistência em serem hipnotizadas. Isto está em completa discordância com a opinião popular segundo a qual a “fé” é um fator da hipnose; mas realmente são estes os fatos. Em geral, podemos partir da presunção de que qualquer pessoa é hipnotizável; porém, todo médico encontrará determinado número de pessoas que, dentro das condições de suas experiências, não conseguirá hipnotizar e, muitas vezes, será incapaz de dizer de onde se originou seu fracasso. Por vezes, um método consegue obter algo que parecia impossível com um outro método, e o mesmo se aplica aos diferentes médicos. Nunca podemos dizer antecipadamente se será possível hipnotizar um paciente ou não; empreender a tentativa é a única maneira de que dispomos para descobrir isso. Até os dias atuais, não se conseguiu relacionar a acessibilidade à hipnose com qualquer outro atributo de uma pessoa. O que se sabe de verdadeiro é que os portadores de doença mental e os degenerados, na sua maior parte, não são hipnotizáveis, e os neurastênicos somente o são com grande dificuldade. Não é verdade que os pacientes histéricos não se adaptem à hipnose. Pelo contrário, são precisamente estes os pacientes nos quais a hipnose se efetua como reação a medidas puramente fisiológicas e com toda a aparência de um estado físico especial. É importante formar um julgamento provisório da individualidade psíquica do paciente que desejamos hipnotizar; mas, nesse ponto específico, não se podem estabelecer leis gerais. Entretanto, é evidente que não há vantagem em começar um tratamento médico pela hipnose; é melhor, antes de tudo, conquistar a confiança do paciente e deixar que sua desconfiança e seu senso crítico se neutralizem. No entanto, todo aquele que goza de uma grande reputação como médico ou como hipnotizador pode agir sem essa preparação.

Contra que doenças podemos usar a hipnose? Nesse sentido, as indicações são mais difíceis do que no caso de outros métodos de tratamento, pois a reação individual à terapia hipnótica desempenha um papel quase tão grande como a própria natureza da doença a ser combatida. Em geral, evitaremos aplicar o tratamento hipnótico em sintomas que tenham origem orgânica; empregaremos esse método apenas em casos de doenças nervosas puramente funcionais, em doenças de origem psíquica, bem como em casos de dependência de tóxicos e outras dependências. Ainda assim, convencer-nos-emos de que numerosos sintomas de doenças orgânicas são acessíveis à hipnose e de que a modificação orgânica pode existir sem distúrbio funcional dela decorrente. Devido à antipatia ao tratamento hipnótico verificada no momento, raramente podemos empregar a hipnose, exceto quando todos os outros tipos de tratamento foram tentados sem êxito. Isto tem sua vantagem, pois assim ficamos conhecendo a verdadeira área de ação da hipnose. Naturalmente, também podemos hipnotizar com vistas ao diagnóstico diferencial: por exemplo, quando estamos em dúvida se determinados sintomas se relacionam com a histeria ou com uma doença nervosa orgânica. Contudo, essa prova só tem algum valor em casos nos quais o resultado é favorável.

Quando tivermos conseguido uma certa familiaridade com o paciente e tivermos estabelecido o diagnóstico, surge a questão de saber se iremos experimentar a hipnose num tête-à-tête, ou se introduziremos uma terceira pessoa de confiança. Essa medida seria desejável para proteger o paciente de um mau uso da hipnose, bem como proteger o médico de alguma acusação de abuso do método. E ambas as coisas sabidamente já ocorreram. Mas nem sempre se pode empregar essa medida. A presença de uma amiga, ou do marido da paciente, e assim por diante, muitas vezes perturba enormemente a paciente e por certo diminui a influência do médico. Ademais, o assunto central das sugestões a serem feitas na hipnose nem sempre é apropriado para se tornar do conhecimento de pessoas muito próximas da paciente. A introdução de um segundo médico não teria essa desvantagem, mas aumenta em tal grau a dificuldade de executar o tratamento que o torna impossível, na maioria dos casos. Visto que compete ao médico, acima de tudo, prestar auxílio por meio da hipnose, na maior parte dos casos ele terá de abrir mão da introdução de uma terceira pessoa e enfrentar o risco já mencionado, junto com os demais riscos inerentes ao exercício da profissão médica. A paciente, porém, deverá precaver-se, não se deixando hipnotizar por um médico que não pareça merecer a mais completa confiança.

Por outro lado, é da maior utilidade para a paciente a ser hipnotizada que ela veja outras pessoas em estado de hipnose, que saiba por imitação, como irá se conduzir e saiba, por outras pessoas, qual a natureza das sensações que ocorrem durante o estado hipnótico. Em Nancy, na clínica de Bernheim e no ambulatório de Liébeault, onde todo médico pode obter esclarecimentos a respeito dos resultados de que é capaz a influência hipnótica, nunca se efetua a hipnose num tête-à-tête. Todo paciente que, pela primeira vez, toma contato com a hipnose observa, durante algum tempo, como adormecem os pacientes há mais tempo em tratamento, como obedecem durante a hipnose e como, depois de acordarem, admitem que seus sintomas desapareceram. Isso o conduz a um estado de preparação psíquica que, tão logo chegue sua vez, o faz entrar em profunda hipnose. Contra esse procedimento existe a objeção de as doenças e males de cada indivíduo serem discutidos diante de grande número de pessoas, o que não é adequado a pacientes de classe social mais elevada. Não obstante, um médico que deseje tratar pela hipnose não deve renunciar a esse poderoso fator auxiliar, e deve, na medida do possível, dispor as coisas de tal modo que a pessoa a ser hipnotizada esteja presente, antes, a uma ou mais experiências hipnóticas. Se não podemos contar com a possibilidade de o paciente hipnotizar-se por imitação, logo que lhe damos o sinal, podemos escolher entre diferentes métodos de induzir-lhe a hipnose, tendo todos eles em comum o fato de que, por determinadas sensações físicas, lembrem o adormecer. A melhor maneira de proceder é a que se segue. Colocamos o paciente numa cadeira confortável, pedimos que se mantenha cuidadosamente atento e que não fale mais, pois falar lhe impediria o adormecer. Remove-se-lhe qualquer roupa apertada e pede-se a quaisquer outras pessoas presentes que se mantenham numa parte da sala onde não possam ser vistas pelo paciente. Escurece-se a sala, mantém-se o silêncio. Após esses preparativos, sentamo-nos em frente ao paciente e pedimos-lhe que fixe os olhos em dois dedos da mão direita do médico e, ao mesmo tempo, observe atentamente as sensações que passará a sentir. Depois de curto espaço de tempo, um minuto, talvez, começamos a persuadir o paciente a sentir as sensações do adormecer. Por exemplo: “Estou reparando que as coisas estão indo rápido no seu caso: seu rosto assumiu um aspecto fixo, sua respiração ficou mais profunda, você ficou muito tranqüilo, suas pálpebras estão pesadas, seus olhos estão piscando, você não pode mais ver com muita clareza, logo terá de engolir, depois vai fechar os olhos — e você está dormindo”. Com essas palavras e outras semelhantes, já estamos propriamente no processo de “sugerir”, que é como podemos chamar a esses comentários persuasivos durante a hipnose. Mas estamos apenas sugerindo sensações e processos da motricidade, tal como ocorrem espontaneamente na instalação do sono hipnótico. Podemos convencer-nos disto se tivermos diante de nós uma pessoa que possa ser submetida à hipnose somente por meio da fixação do olhar (método de Braid), pessoa em que, por conseguinte, a fadiga dos olhos causa o estado de sono, devido ao esforço da atenção e porque esta se desvia das outras impressões. Primeiramente, a fisionomia do paciente assume um aspecto rígido, sua respiração se aprofunda, seus olhos se umedecem e piscam freqüentemente, ocorrem um ou mais movimentos de deglutição e, por fim, os globos oculares se voltam para dentro e para cima,as pálpebras caem e a hipnose está presente. É grande o número de pessoas nas quais o fenômeno se passa dessa maneira; se observarmos que temos diante de nós uma pessoa nessas condições, será bom mantermos silêncio e só ocasionalmente dar ajuda mediante uma sugestão. Procedendo de modo diferente, só estaríamos perturbando o paciente que se está hipnotizando, e se a sucessão de sugestões não corresponder à seqüência real de suas sensações, provocaremos uma contradição. Contudo, geralmente é aconselhável não esperar pelo desenvolvimento espontâneo da hipnose; convém estimulá-la por sugestões. Estas, no entanto, devem ser dadas de modo resoluto numa seqüência rápida. Não se deve deixar, por assim dizer, que o paciente caia em si: ele não deve ter tempo para testar se é correto aquilo que lhe foi dito. Para que seus olhos se fechem, não precisamos de mais do que dois a quatro minutos aproximadamente; se não se fecharem espontaneamente, nós os fechamos exercendo uma pressão sobre eles, sem demonstrar surpresa ou aborrecimento por não ter ocorrido seu fechamento espontâneo. Se os olhos permanecerem cerrados, é provável que tenhamos conseguido um determinado grau de influência hipnótica. Este é o momento decisivo para tudo o que virá a seguir.

Pois acontece uma de duas possibilidades. A primeira alternativa é o paciente, mantendo fixo o olhar e ouvindo as sugestões, realmente ter sido posto em estado hipnótico; nesse caso, ele permanece quieto depois de cerrar os olhos. Podemos então fazer a prova da catalepsia, dar-lhe as sugestões requeridas para sua doença e, então, despertá-lo. Depois de acordar, o paciente ou estará amnésico (esteve “sonambúlico”, durante a hipnose), ou conservará completamente a sua memória e relatará as sensações que teve durante a hipnose. Não é raro aparecer no seu semblante um sorriso, depois de termos fechado seus olhos. O médico não deve perturbar-se com isso; via de regra, significa apenas que a pessoa sob hipnose ainda é capaz de ajuizar acerca de seu próprio estado e o acha estranho ou cômico. A segunda alternativa, porém, é a de não se ter estabelecido a influência, ou de ter havido apenas um grau muito leve da mesma, enquanto o médico se conduziu como se tivesse diante de si uma hipnose completa. Imaginemos o estado mental do paciente nessa situação. Ele prometeu, no início dos preparativos, manter-se calmo, não falar mais e não dar nenhuma indicação de confirmação ou negação; agora ele verifica que, com base em sua concordância com isto, está-lhe sendo dito que está hipnotizado; ele se irrita com o fato, sente-se mal por não lhe ser permitido expressar sua irritação; sem dúvida, também está receoso de que o médico de imediato comece a fazer sugestões, na crença de que ele, paciente, está hipnotizado, antes de estar. E nisso a experiência mostra que, se não está realmente hipnotizado, não mantém o acordo que fizemos com ele. O paciente abre os olhos e diz (geralmente ressentido): “Não estou dormindo coisa nenhuma!” Um principiante, diante disso, pensaria que a hipnose é um fracasso, mas alguém com experiência não haverá de perder sua compostura. Responderá sem a menor irritação, ao mesmo tempo que novamente fecha os olhos do paciente: “Mantenha-se tranqüilo. Você prometeu não falar. Naturalmente, sei que você não está dormindo; e nem isso é necessário. Qual teria sido o sentido de eu simplesmente fazer você adormecer? Você não compreenderia quando eu lhe falasse. Você não está dormindo, mas está hipnotizado, está sob minha influência; o que eu lhe digo agora causará uma impressão especial em você e lhe será útil”. Depois dessa explicação, geralmente o paciente se mantém calmo e lhe fazemos as sugestões; por ora, abstemos-nos de procurar os sinais físicos da hipnose; contudo, depois que essa dita hipnose tiver sido repetida diversas vezes, verificaremos que aparecem alguns dos fenômenos somáticos que caracterizam a hipnose.

Em muitos casos desse tipo, no final ainda continua duvidoso se o estado que provocamos merece o nome de “hipnose”. No entanto, estaríamos cometendo um erro se procurássemos restringir a veiculação de sugestões aos casos em que o paciente se torna sonambúlico ou entra em um grau profundo de hipnose. Em casos assim, que, na realidade, só têm a aparência de hipnose, podemos conseguir os mais surpreendentes resultados terapêuticos, que, por outro lado, não são obtidos com a “sugestão de vigília”. Portanto, também nesse caso, o que temos diante de nós é, ainda assim, certamente hipnose — cujo único objetivo, afinal, é o efeito que nela se produz pela sugestão. Entretanto, se, depois de tentativas repetidas (de três a seis), não houver qualquer indício de êxito, nem qualquer sinal somático de hipnose, desistiremos da experiência.

Bernheim e outros distinguiram diversos graus de hipnose, mas sua enumeração tem pouco valor na prática. O que tem importância decisiva é apenas se o paciente ficou sonambúlico ou não — isto é, se o estado de consciência produzido na hipnose difere nitidamente do estado habitual de modo significante para que a lembrança daquilo que ocorreu durante a hipnose esteja ausente depois de ele acordar. Nesses casos, o médico pode negar a realidade das dores que estão presentes, ou de qualquer outro sintoma, com a maior decisão — o que, geralmente, ele é incapaz de fazer, se sabe que alguns minutos mais tarde o paciente lhe dirá: “Quando o senhor disse que eu não tinha mais dores, eu as tinha do mesmo jeito, e as tenho ainda agora”. Os esforços do hipnotizador orientam-se no sentido de ele se poupar de contradições dessa ordem, que só fazem abalar sua autoridade. Portanto, seria da maior importância para o tratamento se possuíssemos um método que possibilitasse colocar qualquer pessoa em estado de sonambulismo. Infelizmente, não há tal método. A principal deficiência do tratamento pela hipnose é que ele não pode ser dosado. O grau alcançável de hipnose não depende do método do médico, mas da reação casual do paciente. É também muito difícil aprofundar a hipnose em que um paciente entra, embora isso habitualmente aconteça quando as sessões se repetem com freqüência.

Quando não ficamos satisfeitos com a hipnose obtida, procuramos lançar mão de outros métodos quando o tratamento prossegue. Estes, muitas vezes, atuam mais energicamente ou continuam atuando depois de se haver enfraquecido a influência do método inicialmente adotado. Aqui estão alguns desses métodos: aplicar pequenos golpes no rosto e no corpo do paciente, com ambas as mãos, continuamente, durante cinco a dez minutos (isto tem um efeito surpreendentemente relaxante e tranqüilizador); usar a sugestão acompanhada da passagem da corrente galvânica fraca, que produz uma perceptível sensação de sabor (o anódio colocado numa faixa larga sobre a testa e o catódio numa faixa ao redor do pulso) — aqui a impressão de estar atado e a sensação galvânica contribuem em muito para a hipnose. Podemos improvisar métodos parecidos a nosso critério; basta que mantenhamos o objetivo de desenvolver, por uma associação de pensamento, o estado do adormecer e de fixar a atenção por meio de uma sensação persistente.

O verdadeiro valor terapêutico da hipnose está nas sugestões feitas durante a mesma. Essas sugestões consistem numa enérgica negação dos males de que o paciente se queixou, ou num asseguramento de que ele pode fazer algo, ou numa ordem para que o execute. Um resultado muito mais marcante do que o produzido por simples asseguramento ou negação será obtido se vincularmos a esperada cura a uma ação ou intervenção [nossa] durante a hipnose. Por exemplo: “Você não tem mais dores neste lugar; eu aperto aqui e a dor desaparece”. Aplicar pequenas pancadas e pressão na parte afetada do corpo, durante a hipnose, em geral proporciona excelente apoio à sugestão falada. E não devemos deixar de esclarecer o paciente sob hipnose acerca da natureza de sua afecção, mostrar-lhe as razões do término do seu problema, e assim por diante; pois o que temos diante de nós, via deregra, não é um autômato psíquico, mas um ser dotado do poder de crítica e da capacidade de julgamento, sobre o qual simplesmente estamos em condição de exercer maior impressão agora do que quando ele se encontra em estado de vigília. Quando a hipnose é incompleta, devemos evitar permitir que o paciente fale. Uma expressão motora dessa espécie faz dissipar a sensação de entorpecimento que corrobora sua hipnose, e o faz acordar. Pode-se, sem receio, permitir às pessoas sonambúlicas que falem, andem e ajam, e obtemos uma influência psíquica de máximo alcance sobre elas perguntando-lhes, quando estão sob hipnose, a respeito dos seus sintomas e da origem deles.

Mediante a sugestão, fazemos surgir ou um efeito imediato — especialmente ao tratar paralisias, contraturas etc. —, ou um efeito pós-hipnótico — ou seja, um efeito cujo aparecimento estipulamos para um determinado tempo após o despertar. No caso de sintomas muito rebeldes, é muito vantajoso intercalar um período de espera como este (digamos, até mesmo uma noite inteira) entre a sugestão e a sua execução. A observação dos pacientes mostra que, em regra geral, as impressões psíquicas necessitam de certo tempo, de um período de incubação, a fim de efetuarem uma modificação física. (Cf. “Neurose traumática”). Cada uma das sugestões deve ser feita com a maior decisão, pois qualquer indício de dúvida é percebido pelo paciente, que o explora desfavoravelmente; não deve ser permitida uma contradição sequer e, se formos capazes, insistiremos em nosso poder de produzir catalepsia, contraturas, anestesia, e assim por diante.

A duração de uma hipnose deve ser planejada de acordo com a necessidade prática; a manutenção da hipnose por tempo relativamente longo — até algumas horas — certamente não é desfavorável para o êxito. O despertar é executado mediante algum comentário mais ou menos assim: “Isto é suficiente por ora!” Não devemos deixar de assegurar ao paciente, na primeira sessão de hipnose, que ele vai acordar sem dor de cabeça, sentindo-se satisfeito, bem-disposto. Apesar disso, pode-se observar que, após uma ligeira hipnose, muitas pessoas despertam com sensação de pressão na cabeça e fadiga, no caso de a duração da hipnose ter sido demasiado curta. É como se não tivessem terminado seu sono.

A profundidade de uma hipnose não está invariavelmente em proporção direta com seu sucesso. Podemos produzir as maiores modificações nashipnoses mais leves e, ao contrário, podemos fracassar num caso que atinja o estado de sonambulismo. Quando o resultado desejado não é conseguido após algumas hipnoses, aparece uma outra dificuldade vinculada a esse método de tratamento. Enquanto paciente algum se arrisca a mostrar-se impaciente, caso ainda não tenha sido curado depois da vigésima sessão de aplicação de eletricidade, ou depois de igual número de garrafas de água mineral, no tratamento hipnótico tanto o médico como o paciente se cansam muito mais depressa, em conseqüência do contraste entre o matiz deliberadamente otimista das sugestões e a melancólica verdade dos efeitos. Também aqui, os pacientes inteligentes podem tornar mais fácil o trabalho do médico, na medida em que percebem que, ao fazer as sugestões, o médico está, por assim dizer, desempenhando um papel, e que, quanto mais energicamente ele atacar a doença dos pacientes, mais benefícios, segundo se espera, estes obterão. Em todo tratamento hipnótico prolongado deve-se evitar cuidadosamente um procedimento monótono. O médico deve estar constantemente à procura de um novo ponto de partida para suas sugestões, de uma renovada prova de seu poder, de uma nova modificação no seu método de hipnotizar. Pois também para ele, que tem, quem sabe, dúvidas íntimas a respeito do êxito, este representa um grande e até exaustivo esforço.

Não há dúvida de que a área coberta pelo tratamento hipnótico é muito mais extensa do que a de outros métodos de tratamento de doenças nervosas. E não há nenhuma justificativa para a acusação de que a hipnose só é capaz de influenciar sintomas, e apenas por breve período de tempo. Se o tratamento hipnótico é dirigido somente contra os sintomas, e não contra os processos patológicos, está seguindo justamente o mesmo caminho que todos os demais métodos de tratamento são obrigados a trilhar.

Quando a hipnose tem êxito, a estabilidade da cura depende dos mesmos fatores que a estabilidade de todas as curas conseguidas por outro métodos. Caso a hipnose se tenha defrontado com fenômenos residuais de um processo já concluído, a cura será permanente; se as causas que produziram os sintomas ainda estiverem em atividade e com sua força não diminuída, é provável que haja uma recaída. O emprego da hipnose nunca exclui o emprego de qualquer outro tratamento, dietético, mecânico ou de algum outro tipo. Em numerosos casos — ou seja, naqueles em que os sintomas são de origem psíquica — a hipnose preenche todos os requisitos que se podem exigir de um tratamento causal; nessas circunstâncias, fazer perguntas einfundir calma ao paciente em hipnose profunda geralmente proporciona o mais brilhante êxito.

Tudo que se tem dito e escrito a respeito dos grandes perigos da hipnose pertence ao reino da fantasia. Se colocarmos de lado o mau uso da hipnose com fins ilegítimos — possibilidade esta que existe em todos os outros métodos terapêuticos eficazes —, o problema principal que teremos de considerar é a tendência de as pessoas com neurose grave, depois de se repetir a hipnose, entrarem em hipnose espontaneamente. Cabe à capacidade do médico proibir essa hipnose espontânea, que parece ocorrer somente em pessoas muito impressionáveis. As pessoas cuja impressionabilidade vai ao ponto de poderem ser hipnotizadas contra sua vontade também podem ser protegidas, de modo bastante completo, pela sugestão de que apenas seu médico será capaz de hipnotizá-las.

FREUD

 

UM CASO DE CURA PELO HIPNOTISMO (1892-93)

 

EIN FALL VON HYPNOTISCHER HEILUNG NEBST BEMERKUNGEN ÜBER DIE ENTSTEHUNG HYSTERISCHER SYMPTOME DURCH DEN “GEGENWILLEN”

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:

1892-93 Zeitschr. Hypnot., 1 (3), 102-7, (4), 123-9. (dezembro de 1892 e janeiro de 1893).

1925 G. S., 1, 258-72.

1952 G. W., 1, 3-17.

(b) TRADUÇÃO INGLESA:

“A Case of Successful Treatment by Hypnotism”

1950 C. P., 5, 33-46. (Trad. de James Strachey.)

A presente tradução inglesa constitui uma versão ligeiramente corrigida da que foi publicada em 1950.

 

Este artigo veio à luz quase exatamente na mesma época da “Comunicação Preliminar” de Breuer e Freud (1893a). Algumas das idéias nele encontradas (por exemplo, a da “contra vontade”) aparecem na obra posterior de Freud, constituindo o artigo como que uma ligação entre seus escritos sobre hipnotismo e aqueles que abordam a histeria, pela qual ele passava a se interessar. A opinião de que “um momento de disposição para a histeria” — neste caso, a fadiga física — proporciona a ocasião para a contra vontade afirmar-se sugere a influência de Breuer e do “estado hipnóide”. (Ver em [1].)

 

UM CASO DE CURA PELO HIPNOTISMO COM ALGUNS COMENTÁRIOS SOBRE A ORIGEM DOS SINTOMAS HISTÉRICOS ATRAVÉS DA CONTRAVONTADE

 

Nas páginas que se seguem, proponho-me trazer a público um caso isolado de cura pela sugestão hipnótica, pois, devido a uma série de circunstâncias concomitantes, esse caso foi mais convincente e mais claro do que a maioria dos nossos tratamentos nos quais houve êxito.

Já havia vários anos que eu conhecia a senhora a quem pude, desse modo, proporcionar atendimento numa fase importante de sua existência, e ela permaneceu sob minha observação, posteriormente, por vários anos. O distúrbio do qual foi aliviada pela sugestão hipnótica tinha surgido, pela primeira vez, algum tempo antes. E havia em vão lutado contra ele e, devido a tal problema, tinha sido forçada a uma limitação da qual depois, com minha ajuda, se viu livre. Um ano mais tarde, o mesmo distúrbio apareceu mais uma vez, e novamente foi superado da mesma forma. O êxito terapêutico foi valioso para a paciente e persistiu enquanto ela desejou levar a cabo a função afetada pelo distúrbio. Por fim, nesse caso, foi possível individualizar o mecanismo psíquico básico do distúrbio e correlacioná-lo com atos semelhantes na área da neuropatologia.

Posso agora deixar de falar por enigmas. Tratava-se de uma mãe que era incapaz de amamentar seu bebê recém-nascido, até haver a intervenção da sugestão hipnótica. Suas experiências com um filho anterior e com um outro, subseqüente, serviram de controle do êxito terapêutico, tal como raramente se consegue lograr.

A pessoa de que trata esse caso clínico é uma jovem senhora, entre vinte e trinta anos de idade, a quem eu conhecia desde os seus anos de infância. Sua capacidade, tranqüilo bom senso e espontaneidade tornavam impossível que alguém, inclusive seu médico de família, a considerasse neurótica. Tendo em conta as circunstâncias que passo a relatar, devo classificá-la, segundo a apropriada expressão de Charcot, como uma histérique d’occasion. Essa categoria, como sabemos, não exclui uma admirável combinação de qualidades e de uma saúde nervosa isenta de comprometimentos em outros aspectos. Quanto a sua família, conheço sua mãe, que de modo algum é uma pessoa neurótica, e uma irmã mais nova, igualmente sadia. Um irmão sofreu de uma neurastenia típica do início da idade adulta, o que arruinou sua carreira. Estou familiarizado com a etiologia e a evolução dessa forma de doença, que encontro repetidamente, todos os anos, no meu exercício da medicina. Tendo começado a vida com uma boa constituição, o paciente se defronta, na puberdade, com as dificuldades sexuais próprias da idade; seguem-se anos de sobrecarga de trabalho, como estudante; ele se prepara para exames e sofre um ataque de gonorréia, seguido de um súbito início de dispepsia, acompanhada de uma constipação rebelde e inexplicável. Depois de alguns meses, a constipação é substituída por sensação de pressão intracraniana, depressão e incapacidade para o trabalho. Daí em diante o paciente torna-se cada vez mais ensimesmado e seu caráter vai ficando sempre mais fechado, até ele se tornar um tormento para a família. Não tenho certeza se não é possível adquirir essa forma de neurastenia com todos os seus elementos; portanto, sobretudo porque não conheço os demais parentes da minha paciente, deixo em aberto a questão de podermos supor que, nessa família, estaria presente uma disposição hereditária para a neurose.

Ao chegar a época do nascimento do primeiro filho de seu casamento (que era um casamento feliz), a paciente pretendia amamentar o bebê. O parto não foi mais difícil do que o habitual numa primípara já não tão jovem; foi concluído por fórceps. Entretanto, embora sua constituição física parecesse favorável, ela não conseguia amamentar satisfatoriamente a criança. Havia pouca produção de leite, surgiam dores quando o bebê era posto a mamar, a mãe perdeu o apetite e se mostrava alarmantemente sem vontade de se alimentar, tendo noites agitadas e insones. Por fim, após uns quinze dias, a fim de evitar algum risco maior para a mãe e a criança diante do fracasso, abandonou-se a tentativa e a criança passou a ser alimentada por uma ama-de-leite. Com isso, todos os problemas da mãe desapareceram. Devo acrescentar que não tenho condições de fazer um relato, nem como médico nem como testemunha ocular, dessa primeira tentativa de amamentação.

Três anos mais tarde, nasceu o segundo bebê; nessa ocasião, circunstâncias externas somaram-se ao fato de ser desejável evitar a ama-de-leite. Mas os esforços da própria mãe para amamentar a criança pareciam ainda menos bem-sucedidos e pareciam provocar sintomas ainda mais desagradáveis do que da primeira vez. A paciente vomitava todo o alimento ingerido, ficava inquieta quando ele era trazido até sua cama e era completamente incapaz de dormir. Ficou tão deprimida com sua incapacidade que seus dois médicos de família — médicos amplamente conceituados em Viena, como o Dr. Breuere o Dr. Lott — não queriam nem ouvir em prosseguir com alguma outra tentativa mais prolongada nessa ocasião. Recomendaram apenas que se fizesse mais um esforço — com o auxílio da sugestão hipnótica; e, no entardecer do quarto dia, fizeram com que eu fosse apresentado profissionalmente, de vez que pessoalmente eu já era conhecido da paciente.

Encontrei-a deitada no leito, as faces ruborizadas, irritada com sua incapacidade de amamentar o bebê — incapacidade que aumentava a cada tentativa, mas contra a qual ela lutava com todas as suas forças. A fim de evitar os vômitos, não tinha ingerido nenhum alimento durante todo aquele dia. Seu epigástrio estava distendido e apresentava-se sensível à pressão; a palpação revelou motilidade anormal do estômago; de tempos em tempos, havia eructação inodora, e a paciente se queixou de ter tido mau gosto constante na boca. A área de ressonância gástrica estava consideravelmente aumentada. Longe de ser bem recebido como um salvador em hora de necessidade, vi-me sendo recebido de má vontade e não pude contar com muita confiança por parte da paciente.

Logo tratei de induzir a hipnose por meio de fixação do olhar, ao mesmo tempo que fazia constantes sugestões referentes aos sintomas do sono. Três minutos depois, a paciente estava deitada, com a fisionomia tranqüila de alguém que dorme profundamente. Não me recordo de ter feito quaisquer testes de catalepsia e outros sintomas de flexibilidade. Utilizei a sugestão para contestar todos os temores dela e os sentimentos em que esses temores se baseavam: “Não tenha receio! Você vai poder cuidar muito bem do seu bebê, ele vai crescer forte. O seu estômago está perfeitamente calmo, o seu apetite está excelente, você já está na expectativa da próxima refeição etc.” A paciente continuou dormindo, o que permiti por alguns minutos, e, depois que a despertei, ela revelou amnésia para o que ocorrera. Antes de sair de casa, vi-me na necessidade de contestar um comentário preocupado do marido da paciente; achava ele que os nervos de uma mulher poderiam ser totalmente arruinados pela hipnose.

No começo da noite seguinte, foi-me dito algo que me pareceu uma garantia de êxito, mas que, muito estranhamente, não tinha causado nenhuma impressão na paciente nem nas pessoas da família. Na noite anterior, ela havia feito uma refeição, sem qualquer conseqüência prejudicial, dormindo placidamente, e, na manhã seguinte, por sua própria iniciativa, tinha-se alimentado e amamentado a criança impecavelmente. No entanto, não suportou a refeição bastante farta do almoço. Nem bem a comida lhe foi trazida e logo sua indisposição voltou; os vômitos começaram antes mesmo de ela tocar no alimento. Foi impossível colocar o bebê ao seio e todos os sinais objetivos eram os mesmos de quando eu chegara, na noitinha anterior. Não consegui nenhum resultado com minha argumentação de que a batalha já estava quase ganha, de que agora ela estaria convencida de que o problema podia desaparecer e que de fato havia desaparecido durante meio dia. Produzi então a segunda hipnose, que a levou ao estado de sonambulismo, tão rapidamente como da primeira vez, e agi com maior energia e confiança. Disse à paciente que, cinco minutos depois de minha saída, ela iria zangar-se com sua família e dizer com aspereza: o que tinha acontecido com o jantar dela? será que pretendiam deixá-la passar fome? como poderia ela amamentar a criança, se ela mesma não tinha nada para comer? e assim por diante.

Na terceira tarde, quando retornei, a paciente recusou-se a prosseguir qualquer tratamento. Já não havia mais nenhum problema, disse ela: tinha um excelente apetite e muito leite para o bebê, não havia a menor dificuldade quando este era posto a mamar etc. Seu marido achou muito estranho que, depois de minha saída, na véspera, ela tivesse reclamado violentamente, exigindo comida, e tivesse censurado a mãe de um modo que não lhe era habitual. Todavia, acrescentou ele, tudo tinha estado muito bem desde então.

Não havia nada mais a ser feito por mim. A mãe amamentou a criança por oito meses; e com satisfação tive repetidas oportunidades de me inteirar de que ambos passavam bem. No entanto, eu achava difícil compreender, ao mesmo tempo que isto me aborrecia, o fato de jamais ter sido feita qualquer referência ao meu notável trabalho.

Um ano mais tarde, chegou a minha vez, quando o terceiro filho fez as mesmas exigências à mãe e esta foi incapaz de corresponder a elas, tal como nas ocasiões anteriores. Encontrei a paciente no mesmo estado do ano anterior, sentindo-se efetivamente exasperada consigo mesma, pois sua vontade nada conseguia fazer contra sua aversão aos alimentos e contra seus outros sintomas; e a primeira hipnose da tarde teve como único resultado fazê-la sentir-se mais desesperada. Mais uma vez, após a segunda hipnose, os sintomas foram eliminados tão completamente que não se fez necessária uma terceira hipnose. Também essa criança, que agora tem dezoito meses de idade, foi amamentada sem qualquer problema e a mãe tem gozado de boa saúde.

Em face desse êxito, a paciente e seu marido perderam o constrangimento e confessaram o motivo que havia determinado sua conduta em relação a mim. “Eu me sentia envergonhada”, disse-me a mulher, “porque uma coisa como a hipnose podia obter resultado, ao passo que eu, com toda a minha força de vontade, não conseguia nada.” Não obstante, não penso que ela ou o marido tenham superado a ojeriza à hipnose.

 

Passarei agora a considerar qual pode ter sido o mecanismo psíquico do distúrbio de minha paciente, que foi, desse modo, removido pela sugestão. Não tenho informações diretas sobre o assunto, como as tenho referentes a alguns outros casos, que discutirei noutra ocasião; por isso sou forçado a recorrer à alternativa de deduzir qual teria sido esse mecanismo.

Existem determinadas idéias que têm um afeto de expectativa que lhes está vinculado. São de dois tipos: idéias de eu fazer isto ou aquilo — o que denominamos intenções — e idéias de isto ou aquilo me acontecer — são as expectativas propriamente ditas. O afeto vinculado a tais idéias depende de dois fatores: primeiro, o grau de importância que o resultado tem para mim; segundo, o grau de incerteza inerente à expectativa desse resultado. A incerteza subjetiva, a contra-expectativa, é em si representada por um conjunto de idéias ao qual darei o nome de “idéias antitéticas aflitivas”. No caso de uma intenção, essas idéias antitéticas se passam assim: “Não vou conseguir executar minha intenção, porque isto ou aquilo é demasiado difícil para mim, e eu sou incapaz de fazê-lo; sei, também, que algumas outras pessoas igualmente fracassaram em situação semelhante”. O outro caso, o de uma expectativa, não precisa de comentário: a contra-expectativa consiste em enumerar todas as coisas que talvez possam me acontecer, diferentes da que eu desejo. Ainda seguindo essa linha de raciocínio, iríamos chegar até as fobias, que desempenham tão grande papel na sintomatologia das neuroses. Retornemos, todavia, à primeira categoria, às intenções. Como é que uma pessoa, com vida ideativa sadia, lida com as idéias antitéticas que se opõem a uma intenção? Com a poderosa autoconfiança da saúde, a pessoa as reprime e inibe, na medida do possível, e as exclui de suas associações de pensamentos. Isto muitas vezes sucede em tal medida que a existência de uma idéia antitética contra uma intenção geralmente nem sequer se manifesta, tornando-se uma probabilidade somente quando passamos a examinar as neuroses. De outro lado, quando há uma neurose presente — e não me estou referindo explicitamente apenas à histeria, mas ao status nervosus em geral —, temos de supor a presença primária de uma tendência à depressão e à diminuição da autoconfiança, tal como as encontramos muito desenvolvidas e individualizadas na melancolia. Nas neuroses, pois, uma grande atenção é dedicada [pelo paciente] às idéias antitéticas que se opõem às intenções, talvez porque o tema de tais idéias se coadune com o estado de ânimo da neurose, ou talvez porque as idéias antitéticas, que de outro modo estariam ausentes, vicejem no terreno da neurose.

Quando essa intensificação das idéias antitéticas se relaciona com expectativas, se o caso é de um simples status nervosus, o feito se manifesta num quadro mental difusamente pessimista; se o caso é de neurastenia, as idéias, associando-se às mais fortuitas sensações, ocasionam as numerosas fobias encontradas nos neurastênicos. Quando a intensificação se relaciona com intenções, ela origina as perturbações que se agrupam sob a classificação de folie de doute, que tem como ponto principal a descrença na capacidade pessoal. Justamente nesse ponto as duas principais neuroses, neurastenia e histeria, comportam-se de modo diferente, característico de cada uma delas. Na neurastenia, a idéia antitética, patologicamente intensificada, combina-se com a idéia volitiva num único ato da consciência; ela exerce uma subtração na idéia volitiva e causa a fraqueza da vontade, que é tão marcante nos neurastênicos e de que eles mesmos estão conscientes. Na histeria, o processo difere desse que acabamos de descrever, em dois aspectos ou, possivelmente, apenas em um aspecto. [Em primeiro lugar,] em consonância com a tendência à dissociação da consciência na histeria, a idéia antitética aflitiva, que parece estar inibida, é afastada da associação com a intenção e continua a existir como idéia desconectada, muitas vezes inconscientemente para o próprio paciente. [Em segundo lugar,] é extremamente característico da histeria que, quando chega o momento de se pôr em execução a intenção, a idéia antitética inibida consegue atualizar-se através da inervação do corpo, com a mesma facilidade com que o faz, em circunstâncias normais, uma idéia volitiva. A idéia antitética se estabelece, por assim dizer, como uma “contravontade”, ao passo que o paciente, surpreso, apercebe-se de que tem uma vontade que é resoluta, porém impotente. Talvez, conforme já disse, esses dois fatores, no fundo, sejam um só: pode ser que a idéia antitética apenas seja capaz de se impor porque não a inibe a sua combinação com a intenção, da forma como a intenção é inibida por ela. [1]

Se, no caso de que nos ocupamos, a mãe, que se viu impedida por dificuldades neuróticas de amamentar seu filho, fosse neurastênica, sua conduta teria sido diferente. Ela teria sentido um temor consciente da tarefa que lhe competia, teria estado muito preocupada com os vários acidentes e perigos possíveis e, depois de muito contemporizar com ansiedades e dúvidas, teria, afinal, conseguido amamentar sem qualquer dificuldade; ou então, se a idéia antitética se tivesse tornado dominante, a paciente teria abandonado seu encargo, por sentir-se receosa do mesmo. Mas a histérica se conduz de modo muito diverso. Pode não estar consciente do seu receio, estar bastante decidida a levar a cabo sua intenção e passar a executá-la sem hesitação. Aí, porém, comporta-se como se fosse sua vontade não amamentar a criança em absoluto. Ademais, essa vontade desperta nela todos os sintomas subjetivos que uma simuladora apresentaria como desculpa para não amamentar seu filho; perda do apetite, aversão à comida, dores quando a criança é posta a mamar. E, como a contravontade exerce sobre o corpo um controle maior do que a simulação consciente, também produz no aparelho digestivo uma série de sinais objetivos que a simulação seria incapaz de engendrar. Aqui, em contraste com a fraqueza da vontade mostrada na neurastenia, temos uma perversão da vontade; e, em contraste com a resignada irresolução mostrada no primeiro caso, aqui encontramos surpresa e exasperação ante uma dissensão que é incompreensível para a paciente.

Portanto, considero-me justificado ao classificar minha paciente como uma hystérique d’occasion, de vez que ela, em conseqüência de uma causa fortuita, era capaz de produzir um complexo de sintomas com um mecanismo tão agudamente característico da histeria. Pode-se presumir que, nesse caso, a causa fortuita era o estado de excitação da paciente antes do primeiro parto ou sua exaustão após o mesmo. Um primeiro parto, afinal, é o maior choque a que está sujeito o organismo feminino e, em conseqüência dele, uma mulher geralmente produz alguns sintomas neuróticos, que podem estar latentes em sua disposição.

Parece provável que o caso dessa paciente seja um caso típico, e ele esclarece toda uma série de outros casos nos quais a amamentação no seio, ou alguma função semelhante, é impedida por influências neuróticas. Contudo, visto que, no caso por mim relatado, só entendi o mecanismo psíquico por inferências, apresso-me a acrescentar a afirmação de que, muitas vezes, consegui estabelecer diretamente a ação de um mecanismo psíquico semelhante em sintomas histéricos, investigando o paciente sob hipnose.

Aqui, desejo mencionar apenas um dentre os exemplos mais expressivos. Há alguns anos, tratei uma paciente histérica que demonstrava grande força de vontade nos aspectos de sua conduta não afetados pela doença; contudo, nos que estavam assim afetados, ela mostrava bem claramente o peso da carga que lhe impunham os numerosos e opressivos impedimentos e incapacidades histéricos. Umas das características mais evidentes era um ruído peculiar que, como um tique, intrometia-se em sua conversa. Posso descrevê-lo melhor, dizendo que se tratava de um singular estalo da língua, com súbita interrupção do fechamento convulsivo dos lábios. Depois de observá-lo por algumas semanas, perguntei-lhe quando e como aquilo tinha surgido pela primeira vez. “Não sei quando foi”, respondeu, “ah! faz muito tempo.” Isso me levou a considerar que se tratava de um tique verdadeiro, até que, um dia, me ocorreu fazer-lhe a mesma pergunta estando a paciente em profunda hipnose. Essa paciente, sob hipnose, conseguia chegar (sem haver qualquer necessidade de sugerir-lhe a idéia) ao acervo completo de suas recordações — ou, como eu preferiria expressar-me, a toda a extensão de sua consciência, que se encontrava limitada durante sua vida desperta. Ela respondeu prontamente: “Foi quando minha filha mais nova esteve muito doente; ela havia passado o dia inteiro tendo convulsões, mas, por fim, no final da tarde, adormeceu. Eu estava sentada à beira da cama dela e pensei comigo mesma: ‘Agora você tem de ficar absolutamente quieta, para não acordá-la.’ Foi então que o estalo ocorreu pela primeira vez. Depois, desapareceu. Mas, um dia, passados alguns anos, quando eu estava passando de carruagem por uma floresta perto de —, sobreveio uma violenta tempestade, e um tronco de árvore junto ao caminho, bem à nossa frente, foi atingido por um raio, de forma que o cocheiro teve de sofrear os cavalos bruscamente, e eu pensei comigo: ‘Agora, haja o que houver, você não deve gritar, senão os cavalos disparam’. E naquele momento o estalo veio novamente e persistiu desde essa ocasião”. Pude verificar que o ruído que ela fazia não era um tique verdadeiro, pois, a partir do momento em que assim se desvendou sua origem, ele desapareceu e nunca mais retornou durante todos os anos em que permaneci em contacto com a paciente. Esta, porém, foi a primeira ocasião em que consegui observar a origem dos sintomas histéricos mediante a atuação de uma idéia antitética aflitiva — isto é, mediante a contravontade. A mãe, exausta com suas angústias e dúvidas acerca de suas tarefas de cuidar da criança enferma, tomou a decisão de não deixar que sequer um som saíssede seus lábios, com receio de perturbar o sono da filhinha, o qual tinha custado tanto a vir. Mas, no seu estado de exaustão, mostrou-se mais forte a concomitante idéia antitética de que ela, não obstante, pudesse fazer um ruído; e essa idéia teve acesso à inervação da língua, que sua decisão de manter-se em silêncio talvez pudesse ter-se esquecido de inibir, irrompeu no fechamento dos lábios e produziu um ruído que daí em diante permaneceu fixado por muitos anos, especialmente depois que se repetiu a mesma sucessão de fatos.

Existe uma objeção que temos de enfrentar antes de podermos compreender inteiramente esse processo. Pode-se perguntar como sucede a idéia antitética adquirir supremacia em conseqüência da exaustão geral (que é o que constitui a disposição para o processo). Eu responderia apresentando a teoria de que a exaustão é apenas parcial. O que está exausto são os elementos do sistema nervoso que formam o fundamento material das idéias associadas com a consciência primária; as idéias que estão excluídas dessa cadeia associativa — isto é, da cadeia de associações do ego normal —, as idéias inibidas e suprimidas, não estão exaustas e, por conseguinte, predominam no momento da disposição para a histeria.

Todo aquele que esteja bem familiarizado com a histeria há de observar que o mecanismo psíquico que acabei de descrever oferece uma explicação não apenas das ocorrências histéricas isoladas, mas também das partes principais da sintomatologia da histeria e, ainda, de uma de suas características mais salientes. Se atentarmos cuidadosamente para o fato de que são as idéias antitéticas aflitivas (inibida e rechaçadas pela consciência normal) que se impõem num primeiro plano, no momento da disposição para a histeria, e têm acesso à inervação somática, então teremos a solução para compreender também a peculiaridade dos delírios dos ataques histéricos. Não é mera coincidência que o delírio histérico das monjas durante as epidemias da Idade Média tenha assumido a forma de blasfêmias violentas e linguagem erótica desenfreada, ou (como observou Charcot no primeiro volume de suas Leçons du Mardi) que sejam justamente os meninos de boa educação e bem-comportados os que sofrem de ataques histéricos, nos quais dão livre vazão a todo tipo de insubordinação, a todo tipo de má-criação e má conduta. São os grupos de idéias recalcadas — laboriosamente recalcadas — que entram em ação nesses casos, pela operação de uma espécie de contravontade, quando a pessoa cai vítima de exaustão histérica. Talvez, na realidade, a conexão possa ser mais íntima, pois o estado histérico é possivelmente produzido pela repressão laboriosa; mas, no presente trabalho, não estou levando em consideração os aspectos psicológicos de tal estado. Aqui me interessa simplesmente explicar por que — supondo que haja um estado de disposição para a histeria — os sintomas assumem a forma particular sob a qual os vemos.

Essa emergência de uma contravontade é predominantemente responsável pela característica demoníaca tão freqüentemente mostrada pela histeria — isto é, a característica de os pacientes serem incapazes de fazer alguma coisa precisamente quando e onde mais ardentemente desejam fazê-la; de fazerem justamente o oposto daquilo que lhes foi solicitado; e de serem obrigados a cobrir de maus-tratos e suspeitas tudo o que mais valorizam. A perversidade de caráter que os histéricos mostram, sua ânsia de fazerem a coisa errada, de parecerem doentes quando mais necessitam estar bem — as compulsões dessa ordem (como as conhece todo aquele que já teve contacto com esses pacientes) muitas vezes podem comprometer os caracteres mais irrepreensíveis, quando, durante algum período, esses pacientes se tornam vítimas desamparadas de suas idéias antitéticas.

Parece destituído de significação querer saber o que acontece às intenções inibidas em relação à vida ideativa normal. Poderíamos ser tentados a responder que elas simplesmente não existem. O estudo da histeria mostra que, não obstante, elas realmente existem, ou seja, que é mantida a modificação física a elas correspondente e que elas são armazenadas e levam a vida insuspeitada numa espécie de reino das sombras, até emergirem como maus espíritos e assumirem o controle do corpo, que, geralmente, está sob as ordens da predominante consciência do ego.

Já disse que esse mecanismo é extremamente característico da histeria, mas devo acrescentar que não ocorre somente na histeria. Encontra-se presente, de modo bastante notável, no tic convulsif, uma neurose que, em matéria de sintomas, tem tanta semelhança com a histeria que todo o seu quadro pode ocorrer como manifestação parcial da histeria. Tanto é assim que Charcot, se não compreendi mal seus ensinamentos sobre esse assunto, após manter separados a histeria e o tic convulsif por algum tempo, conseguiu constatar apenas um aspecto diferencial entre os dois — o tique histérico desaparece, mais cedo ou mais tarde, enquanto o tique verdadeiro persiste. O quadro de tic convulsif grave, como sabemos, é constituído de movimentos involuntários, freqüentemente (ou sempre, conforme opinião de Charcot e Guinon) sob a forma de caretas ou gestos que, numa época, tiveram um significado — de coprolalia, de ecolalia e de idéias obsessivas pertencentes ao âmbito da folie de doute. Contudo, é surpreendente verificar que Guinon, que nunca teve qualquer idéia de penetrar no mecanismo psíquico desses sintomas, nos conta que alguns dos seus pacientes vieram a ter os espasmos e caretas porque uma idéia antitética tinha entrado em ação. Esses pacientes relataram que, em alguma ocasião, tinham visto um tique parecido ou tinham visto um comediante fazer intencionalmente uma careta semelhante, e tinham tido o receio de que pudessem ser obrigados a imitar esses movimentos grotescos. Daí em diante, realmente, tinham começado a imitá-los. Sem dúvida, apenas uma pequena proporção dos movimentos involuntários que ocorrem nos tiques tem essa origem. Por outro lado, seria tentador atribuir a esse mecanismo a origem da coprolalia, um termo usado para descrever a exclamação involuntária, ou melhor, a exclamação a contragosto, dos piores palavrões, que ocorre nos tiques. Assim, a coprolalia teria origem na percepção do paciente de que ele não consegue impedir-se de produzir determinado som, geralmente um “h’m’h’m”. Ele então recearia perder o controle também de outros sons, especialmente o controle de palavras que um homem de boa educação evita usar, e esse receio faria com que se efetuasse o que temia. Guinon não apresenta nenhuma anamnese que confirme essa hipótese; eu próprio nunca tive a oportunidade de interrogar um paciente que sofresse de coprolalia. Por outro lado, na obra desse mesmo autor, encontrei um relato sobre um outro caso de tique em que a palavra pronunciada involuntariamente não pertencia (e isso é muito excepcional) ao vocabulário coprolálico. Tratava-se de um homem adulto que era atormentado pela necessidade de exclamar “Maria”! Quando esse paciente estava na idade escolar, tinha tido uma ligação sentimental com uma menina chamada Maria; ficara totalmente absorto por ela, e esse acontecimento, pode-se supor, o predispôs a uma neurose. Naquela época, ele começou a exclamar o nome de seu ídolo no meio da aula, e o nome continuou com ele por boa parte de sua vida, depois de ter esquecido seu caso amoroso. Penso que a explicação deve ser esta: num momento de especial excitação, o seu esforço mais resoluto de manter em segredo o nome inverteu-se na contravontade e, depois disso, o tique persistiu, como sucedeu no cado de meu segundo paciente. Caso minha explicação desse exemplo esteja correta, seria interessante atribuir ao mesmo mecanismo a coprolalia propriamente dita, visto que as palavras obscenas constituem segredos que todos nós conhecemos, mas cujo conhecimento sempre procuramos ocultar. [1]

 

PREFÁCIO E NOTAS DE RODAPÉ À TRADUÇÃO DAS CONFERÊNCIAS DAS TERÇAS-FEIRAS, DE CHARCOT (1892-94)

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS

 

PREFÁCIO E NOTAS DE RODAPÉ À TRADUÇÃO DAS LEÇONS DU MARDI DE LA SALPÊTRIÈRE (1887-8) DE CHARCOT

 

(a) EDIÇÃO ALEMÃ:

1892-4 Em J.-M. Charcot, Poliklinische Vorträge [Conferências de Ambulatório], 1, Ano Acadêmico de 1887-1888, iii-vi, Leipzig e Viena, Deuticke.

 

Parece que esse prefácio e essas notas de rodapé nunca foram reeditados; a tradução de James Strachey é a primeira para o inglês. O livro em francês foi publicado, em Paris, em 1888.

 

A data de publicação da tradução de Freud levanta algumas dúvidas referentes à cronologia. Seu prefácio é datado de “Junho de 1892” e a página de rosto de alguns exemplares encadernados do livro também leva a data “1892”; mas outros exemplares levam na página de rosto a data “1894”. De fato, o livro foi publicado em fascículos no decorrer desses anos. A uma carta que enviou a Fliess, datada de 28 de junho de 1892, Freud juntou um fascículo (provavelmente o primeiro) com o seguinte comentário: “O fascículo de Charcot que lhe estou enviando hoje é todo ele um sucesso; mas estou aborrecido em virtude de diversos acentos errados e erros de ortografia não corrigidos nas poucas palavras em francês. Desleixo!”

O método de edição em fascículos induz Freud a algumas incoerências nas suas notas de rodapé. Por exemplo, nelas existem duas referências ao artigo de Freud sobre a diferença entre paralisias orgânicas e histéricas (1893c, incluído no presente volume, em [1]), uma antes (ver em [1]) e outra depois (em [1]) da publicação do artigo, a qual de fato se deu no final de junho de 1893. De modo semelhante, existem duas referências provavelmente antes (ver em [1]) e a outra depois (em [1]) da publicação da “Comunicação Preliminar” (1893a), que ocorreu no início de janeiro de 1893. A primeira dessas duas indicações da teoria da catarse talvez seja, na realidade, a sua primeira publicação; infelizmente, porém, não dispomos de material para estabelecer com exatidão a data do fascículo em questão.

O número de notas de rodapé que Freud acrescentou à sua tradução é muito grande, e muitas delas são evidentes críticas às opiniões de Charcot. Em A Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901b), Freud menciona a matéria um pouco em tom de desculpa: “Acrescentei notas ao texto que traduzi, sem pedir a permissão do autor, e, alguns anos depois, tive motivos para suspeitar de que o autor havia ficado insatisfeito com minha ação arbitrária” (Edição Standard Brasileira, Vol. VI, [1], IMAGO Editora, 1976). As notas de rodapé focalizam principalmente tópicos puramente neurológicos, e aqui incluímos somente aquelas que denotam algum interesse psicológico.

Observe-se por fim, que Charcot morreu (no verão de 1893) antes que a publicação estivesse concluída.

 

As conferências de Charcot, que aqui se encontram traduzidas para o alemão com a gentil permissão do autor, têm em francês o título de Leçons du Mardi de la Salpêtrière. Esse título deriva-se do dia da semana em que o professor titular, pessoalmente, diante do seu auditório, examina pacientes do departamento de ambulatório. O primeiro volume dessas Leçons surgiu em 1888, de modo muito modesto, como “Notas de MM. Blin, Charcot Júnior e Colin”. No corrente ano (1892), foi revisado pelo autor; e essa revisão é a base de nossa edição alemã.

A edição francesa foi apresentada por um prefácio escrito pelo Dr. Babinski, no qual esse discípulo preferido de Charcot insiste, com justificado orgulho, em como emanou do “Mestre” uma abundância quase inexaurível de estímulos e ensinamentos, ainda muitos anos depois, e insiste em quão imperfeitamente o estudo de seus escritos publicados substitui o efeito que tinha o seu ensino oral. Ele acredita, pois, que se justifica o plano de difundir junto ao público essas conferências improvisadas e, assim ampliar incomensuravelmente o círculo de seus discípulos e ouvintes. E penso que todo aquele que teve o privilégio de, ao menos por um curto período de tempo, ver o grande pesquisador trabalhando e assimilar seus ensinamentos, haverá de concordar inteiramente com o Dr. Babinski.

Essa conferências realmente encerram tanto material novo que ninguém, nem mesmo os especialistas no assunto, as lerá sem um considerável acréscimo em seus conhecimentos. E esse material novo se reveste de uma forma tão estimulante e esplêndida que o livro está destinado, como talvez nenhuma outra obra desde as Leçons de Trousseau, a servir como manual para os estudantes e para todos os médicos que desejem manter seu interesse pela neuropatologia.

O encanto peculiar dessas conferências reside no fato de que, na sua maior parte, elas foram inteiramente improvisadas. O professor não conhece o paciente que lhe é apresentado, ou o conhece apenas superficialmente. É obrigado a conduzir-se diante de seu auditório tal como habitualmente o faz somente em sua clínica particular, exceto quanto ao detalhe de que pensa em voz alta e permite que os ouvintes participem do rumo de suas conjecturas e investigações. Interroga o paciente, examina um sintoma e depois outro, e dessa forma estabelece o diagnóstico do caso, delimitando-o ou confirmando-o com outros exames. Observamos que ele comparou o caso que tem diante de si com um acervo de quadros clínicos derivados de sua experiência e arquivados na sua memória, e identificou os sinais visíveis do presente caso com um desses quadros. De fato, também é assim que todos nós, à beira do leito de um enfermo, chegamos a um diagnóstico, embora o ensino oficial da clínica, muitas vezes, dê ao estudante uma idéia diferente. A isto se seguem os comentários acerca do diagnóstico diferencial, e o conferencista se empenha em tornar claros os fundamentos em que se baseou sua identificação: fundamentos que, conforme sabemos, muitos médicos com habilidade para fazer diagnósticos não sabem explicitar, embora seu juízo seja determinado por eles. A discussão restante refere-se às peculiaridades clínicas do caso. O quadro clínico, a “entité morbide”, permanece a base de todo o estudo; mas o quadro clínico é formado por uma série de fenômenos, uma série que freqüentemente se ramifica em numerosas direções. A identificação clínica do caso consiste em definir a sua localização dentro da série de fenômenos. No centro da série está o “type”, a forma extrema do quadro clínico, consciente e intencionalmente esquematizada; ou, então, podem ser estabelecidos diversos desses tipos, que estão conectados por formas de transição. Certamente é verdade que o type, a descrição completa e característica do quadro clínico, pode ser encontrado; mas os casos que de fato são observados geralmente divergem do tipo: determinados detalhes do quadro estão apagados; esses casos podem ser agrupados em uma ou mais séries que se afastam do quadro e por fim terminam em formas rudimentares, praticamente indeterminadas (formes frustes), nas quais somente um especialista consegue reconhecer derivados do tipo. Enquanto a descrição dos quadros clínicos é o tema central da nosografia, a tarefa da clínica médica é averiguar até o fim a forma individual que cada caso assume e a combinação de seus sintomas.

Aqui enfatizei os conceitos de “entité morbide”, de séries, de “type” e de “formes frustes”, porque é no emprego desses conceitos que repousa a principal característica do método francês de trabalhar em clínica médica. Essa forma de abordagem é, de fato, estranha ao método alemão. Para este, o quadro clínico e o tipo não desempenham qualquer papel de relevo, e é explicada pela evolução dos clínicos alemães: uma tendência a fazer umainterpretação fisiológica do estado clínico e da inter-relação dos sintomas. A observação clínica dos franceses, indubitavelmente, ganha em auto-suficiência, no sentido de que relega a plano secundário os critérios relativos à fisiologia. A exclusão destes, no entanto, pode ser a principal explicação para a impressão enigmática que os métodos clínicos franceses causam ao não-iniciado. Aliás, nisso não há nenhum descaso pela fisiologia, mas uma deliberada exclusão, que é considerada vantajosa. Ouvi Charcot dizer: “Je fais la morphologie pathologique, je fais même un peu l’anatomie pathologique; mais je ne fais pas la physiologie pathologique, j’attend que quelqu’un autre la fasse”.

A apreciação que fazemos dessas conferências ficaria lamentavelmente incompleta se a interrompêssemos neste ponto. O interesse por uma conferência só era propriamente despertado quando o diagnóstico tinha sido feito e o caso, examinado de acordo com suas peculiaridades. Depois, Charcot se valia da vantagem que lhe oferecia a liberdade desse método de ensino para fazer daquilo que tínhamos visto o ponto de partida para comentários sobre casos semelhantes de que se lembrava, e para iniciar as mais esclarecedoras discussões sobre tópicos essencialmente clínicos de sua etiologia, hereditariedade e correlação com outras doenças. Era nessas ocasiões que, fascinados tanto pelo talento artístico do narrador como pela inteligência penetrante do observador, ouvíamos atentamente as pequenas histórias que mostravam como uma experiência clínica tinha levado a uma nova descoberta; era então que, em companhia de nosso mestre, éramos conduzidos da consideração de um quadro clínico, relativo a uma doença nervosa, para o debate de algum problema fundamental da doença em geral; era também nessas ocasiões que todos víamos, a um só tempo, o mestre e o médico dando lugar ao sábio, cuja mente aberta absorveu o grande e variado panorama das realizações do mundo e que nos proporciona um vislumbre de como as doenças nervosas não devem ser consideradas uma extravagância da patologia, mas sim um componente necessário de todo o conjunto. Essas conferências apresentam um quadro tão preciso da maneira de falar e de pensar de Charcot que, para todo aquele que um dia foi seu ouvinte, torna-seviva a lembrança da voz e dos gestos do mestre, e retornam as horas preciosas em que o encanto de uma grande personalidade atraía irresistivelmente os seus ouvintes para os temas e os problemas da neuropatologia.

Devo acrescentar algumas palavras para justificar as notas que, impressas em tipos menores, interrompeu a seqüência da exposição de Charcot, em intervalos muito irregulares. Essas notas são de minha autoria e, em parte, constituem explicações do texto e referências adicionais à bibliografia; mas, em parte, são objeções e anotações críticas, tais como as que podem ocorrer a quem está ouvindo uma conferência. Espero que estes comentários não venham a ser entendidos como seu eu estivesse tentando, de algum modo, colocar minhas opiniões acima das de meu respeitado mestre, a quem muito devo pessoalmente como seu discípulo. Simplesmente estou pretendendo exercer o direito de criticar, do qual se serve, por exemplo, todo autor de resenha de revista técnica, independentemente dos seus próprios méritos. Na neuropatologia existem tantas coisas ainda não explicadas e ainda passíveis de debate, e a compreensão das mesmas pode beneficiar-se tanto com esse debate, que me aventurei a pôr em discussão alguns desses pontos, mencionados de passagem nas conferências. É por demais evidente que o faço segundo meu próprio ponto de vista, na medida em que este diverge das teorias do Salpêtrière. No entanto, com estes comentários não se pretende dar ensejo a que os leitores de Charcot lhes dispensem mais atenção do que eles mereceriam por sua própria natureza.

Ao traduzir essas conferências, meu esforço se fez no sentido não propriamente de imitar o estilo incomparavelmente claro, e ao mesmo tempo elevado, de Charcot — o que seria inatingível para mim —, mas de obscurecer o menos possível sua linguagem caracteristicamente informal.

DR. SIGM. FREUD

VIENA, junho de 1892

 

EXTRATOS DAS NOTAS DE RODAPÉ DE FREUD À SUA TRADUÇÃO DAS CONFERÊNCIAS DAS TERÇAS-FEIRAS, DE CHARCOT

 

Pág. 107

[Charcot tinha feito uma descrição dos ataques histéricos.]

…Sirvo-me da oportunidade que me oferece o texto para apresentar ao leitor uma opinião independente sobre os ataques histéricos. O “tipo” de Charcot, com suas modificações e com a possibilidade de cada fase tornar-se independente e representar o ataque inteiro etc., sem dúvida é suficientemente extenso para abranger todas as formas de ataque observadas. Por essa mesma razão, alguns poderão argumentar que ele não representa uma verdadeira entidade.

Procurei abordar o problema dos ataques histéricos segundo um outro critério diferente do descritivo; examinando pacientes histéricos em estado hipnótico, cheguei a novos achados, alguns dos quais mencionarei aqui. O ponto central de um ataque histérico, qualquer que seja a forma em que este apareça, é uma lembrança, a revivescência alucinatória de uma cena que é significativa para o desencadeamento da doença. É esse evento que se manifesta de forma perceptível na fase das “attitudes passionelles”; mas também está presente quando o ataque parece consistir somente em fenômenos motores. O conteúdo da lembrança geralmente é ou um trauma psíquico, que, por sua intensidade, é capaz de provocar a irrupção da histeria no paciente, ou é um evento que, devido à sua ocorrência em um momento particular, tornou-se um trauma.

Nos casos conhecidos como histeria “traumática”, esse mecanismo é evidente até à observação mais superficial, mas também pode ser demonstrado na histeria em que não existe um único trauma de maior significação. Em tais casos, constatamos traumas menores, repetidos, ou, quando predomina o fator da disposição, lembranças em si mesmas indiferentes, mas que assumem a intensidade de traumas. Um trauma teria de ser definido como um acréscimo da excitação no sistema nervoso, que este é incapaz de fazer dissipar-se adequadamente pela reação motora. Um ataque histérico talvez deva ser considerado como uma tentativa de completar a reação ao trauma.

 

— Neste ponto, posso remeter a um trabalho sobre esse assunto, iniciado em colaboração com o Dr. Josef Breuer.

Pág. 137

[Charcot descrevera casos em que meninos de esmerada educação tinham ataques histéricos acompanhados por explosões de linguagem obscena.]

Seria casual que os ataques em jovens de cuja boa educação e boas maneiras Charcot fala elogiosamente assumam a forma de delírio furioso e linguagem desaforada? Penso que isso em nada difere do fato conhecido de que os delírios histéricos das monjas se manifestam sob a forma de blasfêmias e imagens eróticas. Nisso podemos suspeitar da existência de uma conexão que nos permite uma profunda compreensão interna do mecanismo dos estados histéricos. Nos delírios histéricos, emerge um material sob a forma de idéias e impulsos à ação que a pessoa, em seu estado sadio, rechaçou e inibiu — muitas vezes, inibiu mediante um grande esforço psíquico. Algo parecido aplica-se a muitos sonhos, que desfiam associações adicionais que foram rejeitadas ou interrompidas durante o dia. Foi nesse fato que baseei a teoria da “contravontade histérica”, que abrange um bom número de sintomas histéricos.

Pág. 142

[Charcot discutia um caso em que apareciam simultaneamente sintomas de tique e obsessões.]

Posso lembrar aqui um caso interessante que observei recentemente; esse caso mostrava uma variante nova da relação entre o tique e a obsessão. Um homem de 23 anos consultou-me em virtude de sofrer de obsessões de uma espécie típica. Dos 8 aos 15 anos ele tinha sofrido de um tique violento,que daí em diante desapareceu. As obsessões surgiram aos 12 anos e se tornaram muito mais graves recentemente.

Pág. 210

[Freud escreve uma longa nota de rodapé em que trata de uma minuciosa discussão exposta por Charcot, que sustentava que, em determinados casos, podia ocorrer completa hemianestesia, devido a um tipo especial de lesão orgânica central, nesses casos exatamente semelhante à hemianetesia histérica. Em especial, Charcot negava que em tais casos estivesse presente a hemianopsia.]

…Quando, certa vez, me dispus a fazer-lhe perguntas sobre esse ponto e argumentar que isso contrariava a teoria da hemianopsia, ele saiu-se com este excelente comentário: “La théorie c’est bon; mais ça n’empêche pa d’exister”. Se ao menos se soubesse o que é que existe!…

Pág. 224

[Charcot tinha afirmado que a hereditariedade era a “causa verdadeira” dos ataques histéricos de um paciente, de sua vertigem e de sua agorafobia.]

Eu me animo a apontar uma contradição nesse ponto. Com maior freqüência, a causa da agorafobia, assim como de outras fobias, está não na hereditariedade, mas nas anormalidades da vida sexual. É até possível especificar a forma de mau uso da função sexual em questão. Esses distúrbios podem ser adquiridos, em qualquer grau de intensidade; naturalmente, havendo a mesma etiologia, ocorrem com maior intensidade em pessoas com disposição hereditária.

Pág. 237

[Charcot discutia um caso de doença de Graves.]

 

Alguns leitores, assim como eu, por certo farão objeções à teoria etiológica de Charcot, que não faz distinção entre a disposição para as neuroses e a disposição para as doenças nervosas orgânicas, que não leva em conta o papel desempenhado pelas doenças nervosas adquiridas (que é impossível superestimar) e que considera uma tendência à artrite em pessoas da família como uma disposição neuropática hereditária. Sua valorização excessiva da influência do fator hereditário também explica o fato de que, ao abordar a doença de Graves, Charcot não menciona o órgão em cujas alterações, segundo indicações de peso nos aconselham, devemos procurar a verdadeira causa da afecção. Refiro-me naturalmente, à glândula tireóide e, em conexão com essa discussão sobre o fato de a disposição hereditária e o trauma psíquico desempenharem papel importante no desenvolvimento da doença, posso mencionar o excelente artigo de Moebius sobre a doença de Graves, na Deutsche Zeitschrift für Nervenheilkunde, 1 (1891).

Pág. 268

[Charcot mostrava a diferença entre afasia orgânica e histérica.]

Quando deixei o Salpêtrière, em 1886, Charcot incumbiu-se de efetuar um estudo comparativo das paralisias orgânicas e histéricas, com base nas observações feitas pelo Salpêtrière. Executei o trabalho, mas não o publiquei. Seu resultado é uma ampliação da tese aqui exposta por Charcot: as paralisias histéricas se caracterizam por dois fatores e, em particular, além disso, por uma convergência dos mesmos. Em primeiro lugar, elas são capazes de possuir a maior intensidade e, em segundo lugar, de apresentar a mais nítida delimitação, e se diferenciam especialmente das paralisias orgânicas quando combinam intensidade e delimitação. Uma monoplegia do braço, que seja de causa orgânica, pode limitar-se exclusivamente ao braço; mas nesse caso quase nunca é absoluta. Tão logo sua intensidade cresce, também a paralisia se torna mais extensa; de fato, observamos regularmente que, então, ela se acompanha também de um discreto grau de paresia na face e na perna. Quando se limita apenas ao braço e, ao mesmo tempo, é absoluta, a paralisia só pode ser histérica. [1]

 

Pág. 286

[Charcot estivera dando conselhos técnicos sobre o uso da sugestão: “Os ingleses, que certamente são pessoas práticas, têm na sua linguagem um conselho: ‘Não faça profecias, a menos que você tenha certeza’. Gostaria de me juntar a essa maneira de pensar e os aconselharia a que agissem da mesma forma. Na verdade, se, em caso de indubitável paralisia de origem psíquica, você diz ao paciente, com plena confiança: ‘Levante-se e ande!’, e se ele realmente o faz, você de fato pode atribuir a si mesmo e ao seu diagnóstico o milagre que realizou. Mas eu os aconselho a não irem demasiado longe nessas coisas e, antes de tudo, a considerarem o modo como, no possível caso de um fracasso, vocês poderão garantir-se uma saída honrosa’.”]

Com estas sábias palavras Charcot revela um dos maiores inconvenientes com que tem de contar o uso prático da sugestão em estado desperto e sob hipnose superficial. A longo prazo, nem o médico nem o paciente podem tolerar a contradição criada entre a decidida negação da doença, contida na sugestão, e a necessária constatação da doença fora da sugestão.

Pág. 314

[Charcot expusera o caso clínico de um paciente histérico cuja doença aparentemente resultara de intoxicação por mercúrio.]

Os leitores dessas conferências provavelmente estão cientes de que P. Janet, Breuer e eu, assim como outros autores, em data muito recente, procuramos delinear uma teoria psicológica dos fenômenos histéricos com base nos trabalhos escritos de Charcot (sobre a explicação das paralisias histerotraumáticas). Por mais sólida e promissora que essa teoria possa nos parecer, a prudência recomenda admitir que, até o momento, não se deu nenhum passo no sentido de mostrar que a histeria por intoxicação, ou que a analogia entre hemiplegia histérica e orgânica, ou que a origem das contraturas histéricas possam estar subordinadas à idéia básica dessa linha de abordagem. Espero que essa tarefa não se mostre insolúvel ou, pelo menos, que esses fatos não venham a se revelar inconciliáveis com a teoria psicológica.

 

Pág. 368

[Charcot assinalava o diagnóstico diferencial entre monoplegias orgânicas e histéricas.]

Num breve trabalho (“Quelques considérations pour une étude comparative des paralysies motrices organiques et hystériques”, Archives de Neurologie, Nº 77, 1893), procurei ampliar essa observação de Charcot e debati sua relação com a teoria das neuroses.

Pág. 371

[Charcot descrevia os diferentes ataques apresentados por uma jovem histérica.]

Por certo não estaremos compreendendo mal Charcot se, a partir dos seus comentários sobre “hystéro-épilepsie à crises mixtes” e ”àcrises séparées”, concluirmos que o termo “histeroepilepsia” é certamente objetável e que o seu uso deve ser totalmente abolido. Alguns dos pacientes indicados sob essa designação simplesmente padecem de histeria; outros sofrem de histeria e epilepsia, duas doenças que têm pouca relação essencial entre si e que só por acaso são encontradas num mesmo indivíduo. Uma afirmação como esta pode não ser desnecessária, visto que muitos médicos, não obstante, parecem ser da opinião de que a “histeroeplepsia” é um agravamento da histeria, ou uma transição da histeria para a epilepsia. Sem dúvida, ao se criar o termo “histeroepilepsia”, houve a intenção de veicular esses significado. Mas Charcot, há muito tempo, abandonou tal ponto de vista; e não há por que ficarmos desatualizados em relação a ele nesse ponto.

Pág. 399

[Charcot expressara sua opinião sobre o excesso de trabalho como causa de “neurastenia cerebral”.]

Todas essas discussões etiológicas referentes à neurastenia são incompletas na medida em que não são consideradas as influências nocivas sexuais,as quais, em minha experiência, constituem o fator mais importante, o único fator etiológico indispensável.

Pág. 404

[A propósito de uma discussão sobre os determinantes hereditários das neuroses.]

…A teoria da “famille névropathique” certamente necessita de uma revisão urgente.

Pág. 417

[Tópico semelhante ao anterior.]

…Dificilmente poderia resistir a uma crítica séria a concepção da famille névropathique — que, aliás, engloba quase tudo que conhecemos sob a forma de doenças nervosas, orgânicas e funcionais, sistêmicas e acidentais.

 

ESBOÇOS PARA A COMUNICAÇÃO PRELIMINAR DE 1893 (1940-41 [1892])

 

Os três apontamentos condensados que vêm a seguir estavam incluídos entre os escritos póstumos de Freud, no volume XVII das Gesammelte Werke. (Dados bibliográficos mais detalhados encontram-se anexados a cada um dos esboços, adiante.) Os editores da edição alemã nos informam que todos os três escritos tinham estado em poder de Breuer, mas foram por este devolvidos a Freud em 1909, ano seguinte ao da publicação da segunda edição dos Estudos sobre a Histeria. Freud acusou o recebimento deles numa carta que leva a data de 8 de outubro de 1909: “Agradeço-lhe muito por me dar a oportunidade de reaver os velhos esboços e rascunhos, que me parecem muito interessantes. Quanto às notas a respeito dos ataques histéricos [Esboço C, adiante], deve ser como você diz; mas não guardei o manuscrito depois de publicado”.

Conquanto o segundo desses esboços não traga data, não cabem dúvidas de que todos os três foram escritos no final de 1892, em preparação para a “Comunicação Preliminar” — “Sobre o Mecanismo Psíquico dos Fenômenos Histéricos” (1893a), Edição Standard Brasileira, Vol. II, [1], IMAGO Editora, 1974. Esse trabalho, produzido em colaboração com Josef Breuer, foi publicado nos dias 1 e 15 de janeiro de 1893.

Grande parte desses esboços encontra-se numa forma altamente condensada, mas é possível descobrir, quase que um por um, todos os elementos que depois se encontram enunciados de modo mais claro na “Comunicação Preliminar”. Há, contudo, uma exceção especial. O “princípio da constância” está enunciado com muita clareza, e possivelmente pela primeira vez na Seção 5 do Esboço C (em [1]); mas, por algum motivo ignorado, está inteiramente omitido na “Comunicação Preliminar”. Um apanhado completo da história do “princípio da constância” pode ser encontrado no Apêndice do Editor Inglês a propósito das “Hipóteses Fundamentais de Freud” na Edição Standard Brasileira, Vol. III, ver em [1], IMAGO Editora, 1977.

 

(A) CARTA A JOSEF BREUER

 

29.6.92

Prezado amigo,

A satisfação com que despreocupadamente lhe entreguei essas minhas poucas páginas deu lugar ao desassossego que tão facilmente acompanha os esforços de pensar. Atormenta-me este problema: como oferecer um quadro bidimensional de algo tão sólido como a nossa teoria da histeria. Sem dúvida, a questão principal é saber se devemos descrevê-la do ponto de vista histórico e começar com todos os casos clínicos (ou dois dentre os melhores), ou se, de outro lado, devemos começar por afirmar dogmaticamente as teorias que formulamos à guisa de explicação. Penso que é preferível a segunda sugestão; o material ficaria assim disposto:

(1) Nossas teorias:

(a)

O teorema referente à constância da soma da excitação.

(b)

A teoria da memória.

(c)

O teorema que estabelece que os conteúdos dos diferentes estados de consciência não estão relacionados entre si.

(2) A origem dos sintomas histéricos crônicos: sonhos, auto-hipnose, afetos e resultados dos traumas absolutos. Os três primeiros desses fatores relacionam-se com a disposição; o último relaciona-se com a etiologia. Parece que os sintomas crônicos correspondiam a um mecanismo normal; são deslocamentos [tema subsidiário], em parte, ao longo de uma via normal (modificação interna) de somas de excitação que não foram dissipadas. Motivo do deslocamento: tentativa de reação. Motivo da persistência: teorema (c) [acima], referente ao isolamento associativo. — Comparação com a hipnose. [1]

Tema subsidiário: A respeito da natureza do deslocamento: localização dos sintomas histéricos crônicos.

(3) O ataque histérico: Também uma tentativa de reação, por meio da recordação etc.

(4) A origem dos estigmas histéricos: Altamente obscura, escassos indícios.

(5) A fórmula patológica da histeria: Histeria disposicional e acidental. A série proposta por mim. A magnitude da soma da excitação, o conceito de trauma, o segundo estado da consciência.

 

(B) III

 

No que escrevemos acima, tivemos de salientar como fato observado que as recordações subjacentes aos fenômenos histéricos estão ausentes da memória acessível do paciente, ao passo que, sob hipnose, elas podem ser despertadas com a clareza de alucinações. Também salientamos que numerosas recordações dessa ordem relacionam-se a fatos ocorridos em estados peculiares (como cataplexia devida ao susto, estados oniróides, auto-hipnose, e assim por diante), cujo conteúdo não está em conexão associativa com a consciência normal. Assim, com relação a isso, ainda nos era impossível discutir o que é que determina a ocorrência dos fenômenos histéricos, sem primeiro considerar uma hipótese especial, que procura caracterizar a disposição histérica. Na histeria, de acordo com essa hipótese, o conteúdo da consciência com facilidade se torna temporariamente dissociado, e determinados complexos de idéias, que não estão em conexão associativa, com facilidade se desgarram. A disposição histérica, portanto, deve ser pesquisada quando estados dessa espécie aparecem espontaneamente (devido a causas internas), ou se produzem facilmente devido a influências externas; e podemos supor uma série de casos em que esses dois fatores desempenham um papel de importância variável.

Descrevemos esses estados como “hipnóides” e enfatizamos que uma característica essencial deles é o fato de seu conteúdo, em grau maior ou menor, estar desconectado do conteúdo restante da consciência, e assim se encontrar privado da possibilidade de ser liberado pelas associações — do mesmo modo que no sonhar e no estado de vigília, um modelo de dois estados que diferem entre si, não estamos inclinados a fazer associações de um estado para o outro, mas apenas associações dentro de cada um deles em particular. Em pessoas com disposição histérica, qualquer afeto pode dar origem a uma divisão desse tipo; e uma impressão recebida durante a vigência do afeto se tornaria, assim, um trauma, mesmo que não fosse suficiente, em si, para agir como um trauma. Ademais, a impressão mesma poderia produzir o afeto. Na sua forma completamente desenvolvida, esses estados hipnóides,entre os quais pode haver conexões associativas, formam a condition seconde, tão conhecida nos casos clínicos. Mas os rudimentos de tal disposição, segundo parece, são identificáveis em qualquer pessoa e podem ser desenvolvidos por traumas apropriados, mesmo em pessoas sem essa disposição. A vida sexual é especialmente apropriada para proporcionar o conteúdo [de tais traumas], devido ao contraste muito grande que representa para o restante da personalidade e por ser impossível reagir a suas idéias.

Deve-se compreender que nossa terapia consiste em remover os resultados das idéias que não sofreram ab-reação, seja revivendo o trauma num estado de sonambulismo, e então ab-reagindo e corrigindo-o, seja trazendo-o para o plano da consciência normal, sob hipnose relativamente superficial.

 

(C) SOBRE A TEORIA DOS ATAQUES HISTÉRICOS

 

Até onde sabemos, não há, por enquanto, nenhuma teoria dos ataques histéricos, mas apenas uma descrição dos mesmos, feita por Charcot, que se relaciona ao raro e prolongado “grande attaque hystérique [grande ataque histérico]”. Segundo Charcot, um ataque “típico” dessa espécie compõe-se de quatro fases: (1) fase epileptóide, (2) fase dos grandes movimentos, (3) fase das “attitudes passionnelles”, (4) fase do delírio terminal. Todas as variadas formas de ataques histéricos, que o médico tem oportunidade de observar com mais freqüência do que o típico grande ataque, surgem, conforme nos diz Charcot, na medida em que essas distintas fases se tornam independentes, ou se prolongam, ou se modificam, ou são omitidas.

 

Essa descrição não projeta absolutamente nenhuma luz sobre alguma conexão que possa haver entre as diferentes fases, sobre a importância dos ataques no quadro geral da histeria, ou sobre a maneira como os ataques são modificados em cada paciente individualmente. Talvez não estejamos equivocados ao supor que a maioria dos médicos tende a considerar o ataque histérico como “uma descarga periódica dos centros motores e psíquicos do córtex cerebral”.

Formamos nossa opinião sobre os ataques histéricos tratando pacientes histéricos por meio da sugestão hipnótica e, desse modo, investigando seus processos psíquicos durante o ataque. A exposição que fazemos a seguir é o que pensamos a respeito do ataque histérico; e devemos preliminarmente assinalar que, para a explicação dos fenômenos histéricos, é indispensável supor a presença de uma dissociação — uma divisão no conteúdo da consciência.

(1) O elemento constante e essencial de um ataque histérico (recorrente) é o retorno de um estado psíquico que o paciente já experimentou anteriormente — em outras palavras, o retorno de uma lembrança.

Afirmamos, pois, que a parte essencial de um ataque histérico está situada na fase que Charcot denominou de attitudes passionnelles. Em muitos casos, é bastante evidente que essa fase encerra uma lembrança oriunda da vida do paciente e, freqüentemente, na verdade, essa lembrança é sempre a mesma. Mas, em outros casos, essa fase parece estar ausente, e o ataque aparentemente consiste apenas em fenômenos motores — contrações epileptóides, ou um estado de imobilidade cataléptica, ou um estado semelhante ao sono; contudo, mesmo nesses casos, o exame sob hipnose evidencia nitidamente um processo mnêmico psíquico tal como, em geral, se manifesta francamente na phase passionnelle.

Os fenômenos motores de um ataque nunca são desprovidos de relação com seu conteúdo psíquico; ou exprimem no seu aspecto geral a emoção concomitante, ou correspondem exatamente às ações envolvidas no processo alucinatório.

(2) A lembrança que forma o conteúdo de um ataque histérico não é uma lembrança qualquer; é o retorno do evento que causou a irrupção da histeria — o trauma psíquico.

Essa relação também se manifesta nos casos clássicos de histeria traumática, segundo demonstrado por Charcot em pacientes do sexo masculino; nesses casos, um indivíduo previamente não-histérico passava a sofrer de uma neurose após um único episódio de medo intenso (como um acidente ferroviário, uma queda etc.). Nesses casos, o conteúdo do ataque consiste na reprodução alucinatória do evento que pôs em perigo a vida da pessoa, reprodução essa que talvez se acompanhe das seqüências de pensamentos e impressões da sensibilidade que passaram por sua mente na ocasião. Mas a conduta desses pacientes não difere da conduta de pacientes comuns do sexo feminino; é um modelo exato desta. Se examinarmos o conteúdo dos ataques de uma dessas pacientes na forma como foi indicado, depararemos com eventos que, por sua natureza, são igualmente apropriados para atuar como traumas (por exemplo, sustos, ofensas humilhantes, frustrações). Nesses casos, porém, o grande trauma isolado está substituído, geralmente, por uma série de traumas menores que se inter-relacionam por sua semelhança ou pelo fato de fazerem parte de uma história penosa. Esses pacientes, por conseguinte, muitas vezes têm ataques de tipos diferentes, cada um desses com um conteúdo mnêmico particular. Esse fato torna necessário ampliar consideravelmente o conceito de histeria traumática.

Num terceiro grupo de casos, constatamos que o conteúdo dos ataques consiste em lembranças que não consideraríamos capazes, por si mesmas, de constituir traumas. Evidentemente, devem isto ao fato de se terem associado, numa coincidência fortuita, com um momento em que a disposição histérica da pessoa se encontrava patologicamente intensificada e, com isso, foram elevadas à condição de traumas.

(3) A lembrança que forma o conteúdo de um ataque histérico é uma lembrança inconsciente, ou, mais corretamente, faz parte do segundo estado da consciência, que está presente, organizado em grau maior ou menor, em toda histeria. Por conseguinte, essa lembrança ou está inteiramente ausente da recordação do paciente, quando este se encontra em seu estado normal, ou está presente apenas em forma rudimentar, condensada. Se conseguirmos trazer essa lembrança inteiramente à consciência normal, ela deixa de ter a capacidade de produzir ataques. Durante um ataque real, o paciente se encontra parcial ou totalmente no segundo estado de consciência. Nesse último caso, o ataque inteiro é coberto pela amnésia, durante sua vida normal; no primeiro caso, o paciente apercebe-se da modificação em seu estado e da sua conduta motora, mas os eventos psíquicos que ocorrem durante o ataque lhe permanecem ocultos. No entanto, podem ser despertados a qualquer momento pela hipnose.

(4) A questão da origem do conteúdo mnêmico dos ataques histéricos coincide com a outra questão: o que decide se uma experiência (uma idéia,intenção etc.) haverá de se localizar na segunda consciência, e não na consciência normal? Descobrimos, com certeza, dois desses determinantes nas pessoas histéricas:

Se uma pessoa histérica intencionalmente procura esquecer uma experiência, ou decididamente rechaça, inibe e suprime uma intenção ou idéia, esses atos psíquicos, em conseqüência, entram no segundo estado da consciência; daí produzem seus efeitos permanentes e a lembrança deles retorna sob a forma de ataque histérico. (Cf. histeria em monjas, em mulheres castas, em adolescentes de boa educação, em pessoas com aspirações artísticas ou teatrais etc.)

As impressões recebidas durante estados psíquicos não-habituais (como os estados afetivos, estados de êxtase ou auto-hipnose) também entram no segundo estado da consciência.

Pode-se acrescentar que esses dois fatores muitas vezes se combinam por meio de vínculos internos e que provavelmente há outros determinantes além destes.

(5) O sistema nervoso procura manter constante, nas suas relações funcionais, algo que podemos descrever como a “soma da excitação”. Ele executa essa precondição da saúde eliminando associativamente todo acúmulo significativo de excitação, ou, então, descarregando-o mediante uma reação motora apropriada. Se partirmos desse enunciado, o qual, aliás, tem implicações de amplo alcance, verificaremos que as experiências psíquicas que formam o conteúdo dos ataques histéricos têm uma característica que lhes é comum. Todas são impressões que não conseguiram encontrar uma descarga adequada, seja porque o paciente se recusa a enfrentá-las, por temor de conflitos mentais angustiantes, seja porque (tal como ocorre no caso de impressões sexuais) o paciente se sente proibido de agir, por timidez ou condição social, ou, finalmente, porque recebeu essas impressões num estado em que seu sistema nervoso estava impossibilitado de executar a tarefa de eliminá-las.

Chegamos, assim, também a uma definição de trauma psíquico, que pode ser empregada na teoria da histeria: transforma-se em trauma psíquico toda impressão que o sistema nervoso tem dificuldade em abolir por meio do pensamento associativo ou da reação motora.

 

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES PARA UM ESTUDO COMPARATIVO DAS PARALISIAS MOTORAS ORGÂNICAS E HISTÉRICAS (1893 [1888-1893)]

 

NOTA DO EDITOR INGLES

 

QUELQUES CONSIDÉRATIONS POUR UNE ÉTUDE COMPARATIVE DES PARALYSIES MOTRICES ORGANIQUES ET HYSTÉRIQUES

 

(a) EDIÇÕES FRANCESAS:

1893 Arch. Neurol., 26 (77), 29-43. (Julho.)

1906 S. K. N .S., 1, 30-44ª (1911, 2ª ed.; 1920, 3ª ed.; 1922, 4ª ed.)

1925 G. S., 1, 273-89.

1952 G.W., 1, 39-55.

 

(b)TRADUÇÃO INGLESA:“Some Points in a Comparative Study of Organic and Hysterical Paralyses”

1924 C. P., 1, 42-58. (Tad. de M. Meyer.)

 

Incluído (Nº XXVIII) no sumário dos primeiros trabalhos de Freud organizado por ele próprio (1897b). O original foi escrito em francês. A presente tradução inglesa é uma nova tradução, com título modificado, feita por James Strachey.

 

Esse artigo tem toda uma longa história atrás de si, narrada em detalhes por Ernest Jones (1953, 255-7). Aparentemente, o tema da presente investigação foi sugerido por Charcot a Freud, em fevereiro de 1886, pouco antes de este partir de Paris. No seu “Relatório sobre Meus Estudos em Paris e Berlim” (1956a) escrito em abril de 1886, imediatamente após o regresso a Viena, Freud escreve que suas conversas com Charcot “levaram-me a preparar um artigo que está por ser publicado nos Archives de Neurologie e que tem como título ‘Vergleichung der hysterischen mit der organischen Symptomatologie”’ [“Comparação entre a Sintomatologia Histérica e a Orgânica”]. (Ver em [1]) Assim, parece que o artigo já estava escrito naquela época; porém, mais de dois anos após, em carta a Fliess de 28 de maio de 1888, ele escreve: “O primeiro rascunho das ‘paralisias histéricas’ está agora concluído; não sei quando concluirei o segundo”. (Freud, 1950a, Carta 4.) Três meses depois, escreve novamente, em 29 de agosto: “Agora estou justamente terminando as paralisias histéricas e orgânicas o que me deixa mesmo muito satisfeito” (ibid., Carta 5). Ademais, em seu prefácio (que também leva a data “agosto de 1888”) à tradução do livro sobre a sugestão de Bernheim (Freud, 1888-9), ele se refere ao presente assunto e fala de um trabalho “que está por ser publicado em breve” (em [1]). Seguem-se então cinco anos de completo silêncio, rompido mais uma vez por uma carta a Fliess, em 30 de maio de 1893 (ibid., Carta 12): “O livro que hoje estou lhe remetendo não é muito interessante. O outro trabalho, sobre paralisias histéricas, menor e mais interessante, vai surgir no começo de junho”. A 10 de julho (ibid., Carta 13): “As paralisias histéricas deveriam ter sido publicadas há muito tempo; provavelmente aparecerão no número de agosto. É um artigo muito curto… Talvez você possa estar lembrado de que eu já me ocupava dessa questão quando você era meu aluno, e que, naquela época, proferi uma de minhas conferências na Universidade sobre esse assunto”. Isto se teria passado no outono de 1887, quando Fliess assistiu a algumas das conferências de Freud em Viena. E, por fim, numa outra carta (não publicada) a Fliess, de 24 de julho de 1893: “Enfim, foram publicadas as paralisias histéricas”.

Não existe nada que mostre qual a natureza dos “motivos fortuitos e pessoais a que Freud se refere aqui (em [1]) para explicar o atraso de cinco anos na publicação do rascunho original, aparentemente concluído. (Cf. também em [1]) Não sabemos dizer se também este foi escrito em francês; porém, apesar do título em alemão, que lhe foi dado em seu “Relatório de Paris’’ (em [1]), atrás, parece provável que tenha sido escrito em francês, pois, conforme vimos, à época de seus entendimentos iniciais, parece que Charcot prometeu publicar o resultado da pesquisa de Freud nos Archives de Neurologie, e o fez sete anos depois — somente cerca de duas semanas antes de sua morte inesperada.

 

No entanto, talvez haja uma explicação para o atraso, que está relacionado com a posição que esse artigo ocupa no divisor de águas entre os escritos neurológicos e psicológicos de Freud. As três primeiras partes do trabalho são inteiramente sobre neurologia e, sem dúvida, foram escritas em 1888, se não em 1886. Mas a quarta parte deve datar de 1893, quando menos porque cita a “Comunicação Preliminar”, de Breuer e Freud, que surgira no início desse ano. A totalidade dessa última parte, na verdade, baseia-se inteiramente nas novas idéias com que Breuer e Freud tinham começado a operar — recalcamento, ab-reação, princípio de constância —, todas elas aí implícitas, quando não nomeadas explicitamente. O contacto direto de Freud com essas idéias tinha começado por volta de 1887 e, nos anos seguintes, ele se deixou absorver cada vez mais por elas. Parece não ser impossível que, ao concluir o primeiro esboço desse artigo, ele houvesse começado a ter alguma vaga idéia de uma explicação dos atos contidos nele, explicação esta que envolvia novas idéias, e, por esse motivo, ele pode ter suspendido a publicação até penetrar mais profundamente na questão.

Por fim, pode-se comentar um ponto menos importante, mas que tem interesse por ser um sinal das coisas que estavam por vir: no fim do artigo há um parágrafo que talvez seja a primeira incursão breve e pública de Freud na antropologia social.

 

Na época em que, em 1885 e 1886, fui aluno de M. Charcot, ele teve a grande amabilidade de me confiar a tarefa de efetuar um estudo comparativo das paralisias motoras orgânicas e histéricas, baseado nas observações do Salpêtrière, na esperança de que tal estudo pudesse revelar algumas características gerais da neurose e proporcionar melhor visão da sua natureza. Por motivos fortuitos e pessoais, durante muito tempo me vi impedido de realizar a incumbência que ele me dera; e mesmo agora estou apresentando somente alguns dos resultados de minhas pesquisas, deixando de lado os detalhes necessários a uma completa formulação de minhas opiniões.

I

Devo começar apresentando algumas observações acerca das paralisias motoras orgânicas, observações que, aliás, são de aceitação geral. A neurologia clínica reconhece dois tipos de paralisia motora — paralisia periférico-medular ou (bulbar) e paralisia cerebral. Essa distinção condiz inteiramente com os achados da anatomia do sistema nervoso, que mostra que o trajeto das fibras condutoras da motricidade se divide em apenas dois segmentos: o primeiro segmento estende-se da periferia até as células do corno anterior da medula espinhal, onde começa o segundo segmento, que vai até o córtex cerebral. A histologia moderna do sistema nervoso, fundamentada no trabalho de Golgi, Ramón y Cajal, Kölliker etc., exprime esses fatos com a afirmação de que “o trajeto das fibras da condução da motricidade é constituído por dois neurônios (unidades neurais célulo-fibrilares), que se acham em conexão e se relacionam entre si no nível das células conhecidas como células motoras do corno anterior”. A diferença essencial entre essas espécies de paralisia, em termos clínicos, é a seguinte: a paralisia periférico-medular é uma paralisia “détaillée”, a paralisia cerebral é uma paralisia “en masse”.

O tipo da primeira é a paralisia facial na paralisia de Bell, a paralisia da poliomielite infantil aguda etc. Nessas doenças, cada músculo — poder-se-ia dizer, cada fibra muscular — pode estar paralisado individualmente, isoladamente. O que acontece depende da localização e da extensão da lesão nervosa; não há regra fixa segundo a qual um elemento periférico possa escapar da paralisia, enquanto outro é afetado por ela permanentemente.

A paralisia cerebral, pelo contrário, é sempre um distúrbio que acomete uma parte extensa da periferia, um membro, um segmento de uma extremidade, ou um aparelho motor complexo. Nunca afeta um único músculo — por exemplo, o bíceps no braço ou o tribial, isoladamente; e se existem evidentes exceções a essa regra (por exemplo, a ptose cortical), podemos constatar claramente que o que está em questão são músculos que executam por si mesmos uma função da qual constituem o único instrumento.

Nas paralisias cerebrais dos membros pode-se observar que os segmentos distais sempre estão mais comprometidos do que os proximais; por exemplo, a mão está mais paralisada do que o ombro. Pelo que sei, não existe, por exemplo, uma paralisia cerebral do ombro, isoladamente, com a mão conservando sua motilidade, ao passo que o contrário constitui regra nas paralisias que não são completas.

No estudo crítico da afasia, publicado em 1891, procurei mostrar que a causa dessa importante diferença entre as paralisias periférico-medulares e cerebrais deve ser investigada na estrutura do sistema nervoso. Cada elemento da periferia corresponde a um elemento da massa cinzenta da medula, que, conforme disse Charcot, é sua terminação nervosa; a periferia, por assim dizer, é projetada sobre a massa cinzenta da medula, ponto por ponto, elemento por elemento. Propus dar à paralisia periférico-medular détaillée o nome de paralisia em projeção. Mas o mesmo não se aplica às relações entre os elementos da medula e os do córtex. O número de fibras condutoras já não seria suficiente para dar uma segunda projeção da periferia sobre o córtex. Devemos supor que as fibras que se estendem da medula até o córtex não representam mais, cada uma em separado, um elemento único da periferia, e sim um grupo de elementos periféricos, e que até mesmo, por outro lado, um elemento da periferia pode corresponder a diversas fibras condutoras medulo-corticais. O fato é que há uma modificação no ordenamento das fibras no ponto de conexão entre os dois segmentos do sistema motor. Sustento, pois, que a reprodução da periferia no córtex não é mais uma reprodução fiel, ponto por ponto; que não é mais uma projeção verdadeira. É uma relação por meio do que se pode chamar de fibras representativas, e para a paralisia cerebral proponho o nome de paralisia em representação.

 

Naturalmente, quando a paralisia em projeção é total e muito extensa, também ela é uma paralisia en masse e sua característica principal é eliminada. Por outro lado, a paralisia cortical, que se distingue dentre as paralisias cerebrais por sua maior tendência à dissociação, sempre apresenta, ainda assim, o caráter de uma paralisia em representação.

As outras diferenças entre paralisias em projeção e paralisias em representação são bem conhecidas. Posso citar, como exemplos de tais diferenças, a nutrição normal e a integridade das reações à eletricidade [nas partes afetadas] que estão associadas à última. Embora sejam muito importantes sob o aspecto clínico, esses sinais não possuem a importância teórica que se costuma atribuir à primeira característica diferencial que mencionamos — paralisia détaillée e paralisia en masse.

Com muita freqüência tem-se atribuído à histeria a capacidade de simular as mais diferentes doenças nervosas orgânicas. Surge a questão de saber se, mais precisamente, ela simula as características dos dois tipos de paralisias orgânicas, se existem paralisias histéricas em projeção e paralisias histéricas em representação, tal como as que encontramos na sintomatologia orgânica. Nesse ponto emerge um aspecto importante. A histeria nunca simula paralisias periférico-medulares ou paralisias em projeção; as paralisias histéricas somente compartilham as características das paralisias orgânicas em representação. Este é um dado muito interessante, pois a paralisia de Bell, a paralisia radial etc. estão entre os distúrbios mais comuns do sistema nervoso.

Convém assinalar aqui, com a finalidade de evitar qualquer confusão, que estou tratando somente das paralisias histéricas flácidas, e não das contraturas histéricas. Parece impossível aplicar as mesmas regras às paralisias histéricas e às contraturas histéricas. Pode-se afirmar que é típico das paralisias histéricas flácidas não afetarem músculos isolados (exceto onde o músculo em questão é o único instrumento de uma função), serem sempre paralisias en masse e, nesse aspecto, corresponderem às paralisias em representação ou paralisias cerebrais orgânicas. Além disso, no que tange à nutrição das partes paralisadas e às suas reações à eletricidade, as paralisias histéricas apresentam as mesmas características que as paralisias cerebrais orgânicas.

Se a paralisia histérica está assim correlacionada com a paralisia cerebral e, em especial, com a paralisia cortical, que apresenta maior tendência à dissociação, por outro lado delas se distingue por importantes características. Em primeiro lugar, não obedece à regra, que se aplica regularmente às paralisias cerebrais orgânicas, segundo a qual o segmento distal sempre está mais afetado do que o segmento proximal. Na histeria, o ombro ou a coxa podem estar mais paralisados do que a mão ou o pé. Podem surgir movimentos dos dedos enquanto o segmento proximal ainda está absolutamente inerte. Não existe a menor dificuldade em produzir artificialmente uma paralisia isolada da coxa, da perna etc., e, clinicamente, podem-se encontrar com muita freqüência essas paralisias isoladas, contrariando as regras da paralisia cerebral orgânica.

Quanto a esse importante aspecto, a paralisia histérica é, por assim dizer, intermediária entre a paralisia em projeção e a paralisia orgânica em representação. Se não possui todas as características de dissociação e delimitação próprias da primeira, está longe de ver-se submetida às leis estritas que regem a segunda — a paralisia cerebral. Tendo em conta tais restrições, pode-se afirmar que a paralisia histérica também é paralisia em representação, mas com um tipo especial de representação cujas características permanecem como um assunto a ser desvendado.

II

Como um passo nessa direção, proponho estudar as demais características que fazem a distinção entre a paralisia histérica e a paralisia cortical, o tipo mais acabado de paralisia cerebral orgânica. Já mencionamos a primeira dessas características — o fato de que a paralisia histérica pode estar mais dissociada, mais sistematizada do que a paralisia cerebral. Na histeria, os sintomas da paralisia orgânica aparecem como que fracionados. Dos sintomas da hemiplegia orgânica comum (paralisia dos membros superiores e inferiores e da parte inferior da face), a histeria reproduz somente a paralisia dos membros, e até mesmo dissocia, com muita freqüência e com a maior facilidade, as paralisias do braço e da perna, sob a forma de monoplegias. Da síndrome da afasia orgânica ela copia a afasia motora, isoladamente; e —algo não existente na afasia orgânica — ela pode criar a afasia total (motora e sensitiva) para um determinado idioma, sem causar a menor interferência na capacidade de compreender e de articular um outro idioma. (Observei isto em alguns casos não publicados.) Esse mesmo poder de dissociação manifesta-se nas paralisias isoladas de um segmento de um membro, ao passo que outras partes do mesmo membro permanecem totalmente indenes, ou então na total abolição de uma função (por exemplo, na abasia e na astasia), enquanto outra função executada pelo mesmos órgãos permanece intacta. Essa dissociação é, sem dúvida, surpreendente quando a função que não foi prejudicada é a função mais complexa. Na sintomatologia orgânica, se existe um debilitamento desigual de diversas funções, é sempre a função mais complexa, a que foi adquirida mais recentemente, a que fica mais afetada em conseqüência da paralisia.

Além do mais, a paralisia histérica exibe uma outra característica que, por assim dizer, é o sinal identificador da neurose e que surge como acréscimo ao primeiro. A histeria, conforme ouvi M. Charcot dizer, é realmente uma doença com excessivas manifestações; tende a produzir seus sintomas com a máxima intensidade possível. Essa característica evidencia-se não só nas suas paralisias, mas também nas suas contraturas e anestesias. Sabemos em que grau de distorção podem efetuar-se as contraturas histéricas — grau praticamente não igualado na sintomatologia orgânica. Também sabemos com que freqüência ocorrem na histeria as anestesias profundas, absolutas, das quais as lesões orgânicas só conseguem reproduzir um pálido esboço. O mesmo se dá com as paralisias. Freqüentemente, são absolutas no grau mais extremo. O afásico não articula uma só palavra, ao passo que o afásico orgânico quase sempre conserva algumas palavras, “sim” ou “não”, uma exclamação etc.; o braço paralisado fica completamente inerte — e assim por diante. Essa característica é por demais conhecida para que se insista nela. Contrastando com isso, sabemos que, na paralisia orgânica, a paresia é sempre mais comum do que a paralisia absoluta.

A paralisia histérica se caracteriza, pois, pela delimitação precisa e pela intensidade excessiva; possui essas duas qualidades ao mesmo tempo, e é nisso que manifesta o maior contraste em relação à paralisia cerebral orgânica, na qual regularmente se constata que essas duas características não se associam entre si. Existem monoplegias na sintomatologia orgânica, mas quase sempre são monoplegias a priori e sem delimitação precisa. Se o braço está paralisado em conseqüência de uma lesão cortical orgânica, há quase sempre um comprometimento concomitante, menor, na face e na perna; e se essa complicação não é visível num dado momento, certamente terá existido no início da doença. A verdade é que uma monoplegia cortical é sempre uma hemiplegia da qual um ou outro componente está mais ou menos apagado, porém, mesmo assim, ainda é reconhecível. Prosseguindo um pouco mais, suponhamos que a paralisia não tenha atingido nenhuma outra parte a não ser o braço e que se trate apenas de uma monoplegia cortical; nesse caso se verificará que a paralisia tem uma intensidade moderada. Tão logo essa monoplegia aumenta de intensidade e se torna uma paralisia absoluta, ela perde seu caráter de monoplegia simples e é acompanhada por distúrbios motores da perna ou da face. Não consegue ao mesmo tempo tornar-se absoluta e conservar sua delimitação.

Isso, pelo contrário, é o que consegue realizar com facilidade uma paralisia histérica, como nos demonstra todos os dias a experiência clínica. Por exemplo, afeta um braço, exclusivamente, sem que possamos encontrar um vestígio seu na perna ou na face. Ademais, no nível do braço, essa paralisia histérica é tão grave quanto pode ser uma paralisia, e nisso vemos uma nítida diferença em relação a uma paralisia orgânica — uma diferença que nos oferece redobrados motivos para reflexão.

Naturalmente, há casos de paralisias histéricas em que a intensidade não é excessiva e em que a dissociação não é de modo algum notável. Tais casos podem ser reconhecidos por outras características; são, contudo, casos que não apresentam a marca típica da neurose e que, visto não nos ensinarem nada acerca de sua natureza, não se revestem de nenhum interesse, do nosso atual ponto de vista.

Acrescentarei alguns comentários, que são de importância secundária e que até mesmo se situam um tanto fora dos limites de nosso tema.

Em primeiro lugar, quero assinalar que as paralisias histéricas, muito mais freqüentemente do que as paralisias orgânicas, se acompanham de distúrbios de sensibilidade. Tais distúrbios geralmente são mais profundos e mais freqüentes nas neuroses do que na sintomatologia orgânica. Nada é mais comum do que a anestesia ou a analgesia histéricas. Por outro lado, recorde-se com que tenacidade persiste a sensibilidade onde há uma lesão neural. Quando um nervo periférico é lesado, a anestesia é menor em extensão e intensidade do que seria de esperar. Se uma lesão inflamatória atinge os nervos espinhais ou os centros medulares, sempre verificamos que a motilidade é a primeira coisa a ser enfraquecida, de vez que aqui e ali sempre subsistem elementos neurais que não foram totalmente destruídos. Onde há uma lesão cerebral, já conhecemos bem a freqüência e a duração da hemiplegia motora, ao mesmo tempo que a hemianestesia concomitante é indistinta e transitória e não está presente em todos os casos. São apenas algumas localizações muito especiais da lesão que conseguem produzir uma perturbação intensa e persistente da sensibilidade (confluência de trajetos sensitivos), e, assim mesmo, esse caso é passível de dúvidas.

Esse comportamento da sensibilidade, que é diferente nas lesões orgânicas e na histeria, dificilmente pode ser explicado na atualidade. Parece que aqui temos um problema cuja solução talvez possa projetar alguma luz sobre a natureza íntima dos fenômenos.

Outro ponto que julgo deva ser mencionado é que, na histeria, como de resto nas paralisias periférico-medulares em projeção, não se encontram certas formas de paralisia cerebral. É o que se passa, de modo especial, com a paralisia da metade inferior da face, que é a manifestação mais freqüente de uma doença orgânica do cérebro, e (se me permitem passar, por um momento, às paralisias sensoriais) com a hemianopsia lateral homônima. Estou consciente de que é quase arriscar-se a um desafio afirmar que esse ou aquele sintoma não é encontrado na histeria, quando as pesquisas de M. Charcot e seus discípulos encontram nela — poder-se-ia dizer, a cada dia — sintomas novos, dos quais antes não se suspeitara. Mas devo considerar as coisas tal como são no momento. A ocorrência de paralisia facial histérica é firmemente rejeitada por M. Charcot e, mesmo que acreditemos que isso possa ocorrer, trata-se de um fenômeno muito raro. Na histeria, a hemianopsia ainda não foi observada, e penso que jamais o será.

Como é, portanto, que as paralisias histéricas, conquanto estreitamente assemelhadas às paralisias corticais, divergem destas pelas características diferenciais que tentei destacar? E qual é a característica genética do tipo especial de representação com o qual devem estar associadas? A resposta a essa questão incluiria uma parte extensa e importante da teoria da neurose.

III

Não existe a mais leve dúvida quanto às condições que regem a sintomatologia da paralisia cerebral. Tais condições são constituídas pelos fatos da anatomia — a estruturação do sistema nervoso e a distribuição de seus vasos — e a relação entre essas duas séries de fatos e as circunstâncias da lesão. Assinalamos que o número menor de fibras que vêm da medula até o córtex, em comparação com o menor número de fibras que vêm da periferia até a medula, é a base da diferença entre a paralisia em projeção e a paralisia em representação. Da mesma forma, cada detalhe clínico da paralisia em representação pode ser explicado por algum detalhe da estrutura cerebral; e, inversamente, a partir das características clínicas das paralisias podemos deduzir a estrutura do cérebro. Penso que existe um completo paralelismo entre essas duas séries.

Assim, se não há grande facilidade para a dissociação na paralisia cerebral comum, isto se dá porque as fibras motoras percorrem tão unidas um longo trecho do seu trajeto intracerebral que não podem ser lesadas individualmente. Se a paralisia cortical mostra maior tendência a ser monoplégica, isso ocorre porque o diâmetro dos feixes condutores (braquial, crural etc.) aumenta no sentido do córtex. Se a paralisia da mão é a mais completa de todas as paralisias corticais, isso se deve, segundo pensamos, ao fato de que a relação cruzada entre o hemisfério cerebral e a periferia é mais atingida por uma paralisia do que o segmento proximal; supomos que as fibras representativas do segmento distal sejam muito mais numerosas do que as do segmento proximal, de modo que a influência cortical se torna mais importante para a parte distal do que para a proximal. Quando as lesões muito extensas do córtex não conseguem produzir monoplegias puras, inferimos que os centros motores no córtex estão nitidamente separados uns dos outros por território neutro, ou inferimos que existem fatores operando à distância (Fernwirkungen), que pareceriam anular o efeito de uma separação precisa entre os centros.

De igual maneira, se, na afasia orgânica, sempre há uma mistura de distúrbios de diferentes funções, isso pode ser explicado pelo fato de que os ramos da mesma artéria irrigam todos os centros da fala, ou, se for aceita a opinião expressada no meu estudo crítico da afasia [Freud, 1891b], pelo fato de que não estamos tratando de centros separados, mas de uma área contínua de associação. Seja como for, sempre se pode encontrar uma explicação baseada na anatomia.

As notáveis associações com tanta freqüência observadas clinicamente nas paralisias corticais (afasia motora e hemiplegia à direita, alexia e hemianopsia à direita) são explicadas pela proximidade dos centros lesados.A hemianopsia como tal, sintoma muito curioso e estranho para uma mente não-científica, só é explicável pelo cruzamento das fibras do nervo óptico no quiasma; é a expressão clínica desse cruzamento, assim como todo detalhe das paralisias cerebrais é a expressão clínica de um fato da anatomia.

De vez que só pode haver uma única anatomia cerebral verdadeira, de vez que ela se expressa nas características clínicas das paralisias cerebrais, evidentemente é impossível que essa anatomia constitua explicação dos aspectos diferenciais das paralisias histéricas. Por essa razão, não devemos, com base na sintomatologia dessas paralisias histéricas, tirar conclusões sobre a anatomia cerebral.

A fim de explicar esse difícil problema, por certo devemos considerar a natureza da lesão em estudo. Nas paralisias orgânicas, a natureza da lesão desempenha um papel secundário; ao contrário, são a extensão e a localização da lesão que, em determinadas condições estruturais do sistema nervoso, produzem as características da paralisia orgânica que indicamos. Qual poderia ser a natureza da lesão, na paralisia histérica, que define a situação sem respeitar a localização ou a extensão da lesão ou da anatomia do sistema nervoso?

Em diversas ocasiões ouvimos M. Charcot dizer que se trata de uma lesão cortical, mas uma lesão puramente dinâmica ou funcional. Esta é uma tese cujo aspecto negativo podemos entender facilmente: equivale a afirmar que nenhuma modificação tecidual detectável será encontrada post mortem. Mas, no seu aspecto positivo, sua interpretação está longe de ser inequívoca. Afinal, o que é uma lesão dinâmica? Tenho bastante certeza de que muitos daqueles que leram as obras de M. Charcot acreditam que uma lesão dinâmica é realmente uma lesão, contudo uma lesão da qual, após a morte, não se encontra nenhum vestígio, tal como um edema, uma anemia ou uma hiperemia ativa. Contudo, esses sinais, embora não necessariamente possam persistir após a morte, são lesões orgânicas verdadeiras, mesmo que sejam mínimas e transitórias. As paralisias partilhariam das características das paralisias orgânicas. Nem o edema nem a anemia, não menos do que a hemorragia ou o amolecimento, poderiam produzir a dissociação e a intensidade das paralisias histéricas. A única diferença estaria em que a paralisia devida a edema, por constrição vascular etc. seria menos duradoura do que a paralisia devida à destruição do tecido nervoso. Elas têm em comum todas as outras condições, e a anatomia do sistema nervoso determinará as propriedades da paralisia, tanto no caso de uma anemia transitória, como no caso de uma anemia que é permanente e final.

Estes comentários não me parecem totalmente prescindíveis. Se alguém ler que “deve haver uma lesão histérica” nesse ou naquele centro, o mesmo centro no qual uma lesão orgânica produziria uma correspondente síndrome orgânica, e recordar que se está acostumado a localizar uma lesão dinâmica histérica da mesma forma que uma lesão orgânica, será levado a crer que por trás da expressão “lesão dinâmica” está oculta a idéia de uma lesão como edema ou anemia, que são, de fato, afecções orgânicas transitórias. Eu, pelo contrário, afirmo que a lesão nas paralisias histéricas deve ser completamente independente da anatomia do sistema nervoso, pois, nas suas paralisias e em outras manifestações, a histeria se comporta como se a anatomia não existisse, ou como se não tivesse conhecimento desta.

E, de fato, um bom número de características das paralisias histéricas justifica essa afirmação. A histeria ignora a distribuição dos nervos, e é por isso que não simula paralisias periférico-medulares ou paralisias em projeção. Ela não conhece o quiasma óptico e, por conseguinte, não produz hemianopsia. Ela toma os órgãos pelo sentido comum, popular, dos nomes que eles têm: a perna é a perna até sua inserção no quadril, o braço é o membro superior tal como aparece visível sob a roupa. Não há motivo para acrescentar à paralisia do braço a paralisia da face. Um histérico que não consegue falar não tem motivo para esquecer que compreende a fala, de vez que a afasia motora e a surdez para a palavra não estão correlacionadas entre si na concepção popular, e assim por diante. Só posso concordar inteiramente com as opiniões expressas por M. Janet em números recentes dos Archives de Neurologie; elas são confirmadas tanto pelas paralisias histéricas como pela anestesia e pelos sintomas psíquicos.

IV

Por fim, procurarei indicar como poderia ser essa lesão causadora das paralisias histéricas. Não digo que mostrarei que tipo de lesão é; pretendo simplesmente indicar uma linha de pensamento, a qual poderia levar a uma concepção que não contraria as propriedades da paralisia histérica, na medida em que esta difere da paralisia cerebral orgânica.

Tomarei a expressão “lesão funcional ou dinâmica” no seu sentido próprio, isto é, “modificação na função ou na dinâmica” — modificação de uma propriedade funcional. Exemplos de modificação dessa espécie seria numa diminuição na excitabilidade ou numa qualidade fisiológica que normalmente permanece constante ou varia dentro de limites fixos.

Mas, objeta-se, a modificação funcional não é uma coisa diferente da modificação orgânica, é simplesmente o outro lado desta. Suponhamos que o tecido nervoso esteja num estado de anemia transitória; nesse caso, essa circunstância diminui sua excitabilidade. É impossível, com esse expediente, deixar de levar em conta as lesões orgânicas.

Tentarei mostrar que pode haver modificação funcional sem lesão orgânica concomitante — ou, ao menos, sem lesão nitidamente perceptível até a mais minuciosa análise. Em outras palavras, darei um exemplo adequado de modificação de uma função primitiva; e, com essa finalidade, somente peço permissão para passar à área da psicologia — que dificilmente se pode evitar, em se tratando de histeria.

Estou de acordo com M. Janet quando diz que, na paralisia histérica, assim como na anestesia etc., o que está em questão é a concepção corrente, popular, dos órgãos e do corpo em geral. Essa concepção não se fundamenta num conhecimento profundo de neuroanatomia, mas nas nossas percepções tácteis e, principalmente, visuais. Se é isso o que determina as características da paralisia histérica, esta, naturalmente, deve mostrar-se ignorante e independente de qualquer noção da anatomia do sistema nervoso. Portanto, na paralisia histérica, a lesão será uma modificação da concepção, da idéia de braço, por exemplo. Mas que espécie de modificação será essa, capaz de produzir a paralisia?

Considerada do ponto de vista psicológico, a paralisia do braço consiste no fato de que a concepção do braço não consegue entrar em associação com as outras idéias constituintes do ego, das quais o corpo da pessoa é parte importante. A lesão, portanto, seria a abolição da acessibilidade associativa da concepção do braço. O braço comporta-se como se não existisse para as operações das associações. Não há dúvida de que, se as condições materiais correspondentes à concepção do braço estão profundamente modificadas, a concepção também será prejudicada. Mas tenho de demonstrar que esta consegue estar inacessível sem estar destruída e sem estar lesado o seu substrato material (o tecido nervoso da região correspondente do córtex).

Começarei mostrando alguns exemplos extraídos da vida social. Uma história cômica narra que um homem de grande lealdade não queria lavar a mão porque seu soberano a tinha tocado. A relação dessa mão com a imagem do rei parecia tão importante para a vida do homem que ele se recusava a deixar que a mão entrasse em qualquer outra relação. Estamos obedecendo ao mesmo impulso quando quebramos a taça em que bebemos à saúde de um par recém-casado. Na Antiguidade, as tribos selvagens que queimavam o cavalo do seu chefe morto, suas armas e até mesmo suas esposas, juntamente com seu corpo morto, estavam obedecendo à concepção segundo a qual ninguém jamais deveria tocá-los. A força de todas essas ações é evidente. A quantidade de afeto que devotamos à primeira associação de um objeto oferece resistência a que ela entre numa nova associação com outro objeto e, por conseguinte, torna a idéia do [primeiro] objeto inacessível à associação.

Não se trata de uma simples comparação; é quase a mesma coisa, quando passamos à esfera da psicologia das concepções. Se, numa associação, a concepção do braço está envolvida com uma grande quantidade de afeto, essa concepção será inacessível ao livre jogo das outras associações. O braço estará paralisado em proporção com a persistência dessa quantidade de afeto ou com a diminuição através de meios psíquicos apropriados. Esta é a solução do problema que levantamos, pois em todos os casos de paralisia histérica verificamos que o órgão paralisado ou a função abolida estão envolvidos numa associação subconsciente que é revestida de uma grande carga de afeto, e pode ser demonstrado que o braço tem seus movimentos liberados tão logo essa quantidade de afeto seja eliminada. Por conseguinte, a concepção do braço existe no substrato material, mas não está acessível às associações e impulsos conscientes, porque a totalidade de sua afinidade associativa está, por assim dizer, impregnada de uma associação subconsciente com a lembrança do evento, o trauma, que produziu a paralisia.

M. Charcot foi o primeiro a nos ensinar que, para explicar a neurose histérica, devemos concentrar-nos na psicologia. Breuer e eu seguimos seu exemplo numa comunicação preliminar (1893a) “Sobre o Mecanismo Psíquico dos Fenômenos Histéricos”. Nesse artigo, mostramos que os sintomas permanentes da histeria que são descritos como “não-traumáticos” são explicados (com exceção dos estigmas) pelo mesmo mecanismo que Charcot identificou nas paralisias traumáticas. Mas também mostramos o motivo que explica a persistência desses sintomas e mostramos por que eles podem ser curados por um método especial de psicoterapia hipnótica. Todo evento, toda impressão psíquica é revestida de uma determinada carga de afeto (Affektbetrag) da qual o ego se desfaz, seja por meio de uma reação motora, seja pela atividade psíquica associativa. Se a pessoa é incapaz de eliminar esse afeto excedente ou se mostra relutante em fazê-lo, a lembrança da impressão passa a ter a importância de um trauma e se torna causa de sintomas histéricos permanentes.

A impossibilidade de eliminação torna-se evidente quando a impressão permanece no subconsciente. Denominamos a essa teoria “Das Abreagieren der Reizzuwächse”.

Para resumir, penso que está em completo acordo com nossa opinião geral acerca da histeria, já que conseguimos moldá-la segundo o ensinamento de M. Charcot, supor que a lesão, nas paralisias histéricas, não consiste senão na incapacidade do órgão ou função em exame de ter acesso às associações do ego consciente; que essa modificação puramente funcional (mesmo não estando afetada a concepção) é causada pela fixação dessa concepção numa associação subconsciente com a lembrança do trauma; e que essa concepção não fica liberada e acessível enquanto a carga de afeto do trauma psíquico não é eliminada por uma reação motora adequada ou pela atividade psíquica consciente. Mas, mesmo que não ocorra esse mecanismo, se uma idéia auto-sugestiva direta sempre é necessária para haver uma paralisia histérica, como se depreende dos casos clínicos de traumas de M. Charcot, conseguimos demonstrar qual teria de ser a natureza da lesão, ou melhor, da modificação, na paralisia histérica, a fim de explicar as diferenças entre esta e a paralisia cerebral orgânica.

 

EXTRATOS DOS DOCUMENTOS DIRIGIDOS A FLIESS (1950 [1892-1899])

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS

 

(a) EDIÇÃO ALEMÃ:

1950 Em Aus den Anfängen der Psychoanalyse, editado por Marie Bonaparte, Anna Freud e Ernst Kris. Londres: Imago Publishing Co.

 

(b) TRADUÇÃO INGLESA:

1954 Em The Origins of Psycho-Analysis, editado como acima. Londres: Imago Publishing Co.; Nova Iorque: Basic Books. (Trad. de Eric Mosbacher e James Strachey.)

 

A presente tradução inglesa, baseada na de 1954, foi inteiramente revista.

 

A história do relacionamento de Freud com Wilhelm Fliess (1858-1928) está narrada com detalhes no Capítulo XIII do primeiro volume da biografia de Freud por Ernest Jones (1953) e na introdução que Ernst Kris escreveu para os livros da bibliografia acima. Aqui basta explicar que Fliess, dois anos mais novo do que Freud, era médico especialista em nariz e garganta e residia em Berlim; com ele Freud manteve uma correspondência volumosa e íntima, entre 1887 e 1902. Fliess era um homem de grande capacidade, com interesses muito amplos em biologia geral; mas, nessa área, adotou teorias que atualmente são consideradas excêntricas e praticamente indefensáveis. Contudo, era mais acessível às idéias de Freud do que qualquer outro contemporâneo. Por conseguinte, Freud lhe comunicava seus pensamentos com a máxima liberdade, e o fazia não apenas em suas cartas, como também numa série de documentos (“Rascunhos”, como os chamamos aqui) que representavam relatos organizados de suas idéias em evolução e que, em alguns casos, são os primeiros esboços de obras posteriormente publicadas. O mais importante deles é o extenso documento — com umas quarenta mil palavras — a que demos o título de Projeto para uma Psicologia Científica. Mas toda a série de documentos, escritos durante os anos de formação das teorias psicanalíticas de Freud, que culminam com A Interpretação dos Sonhos, merece o mais atento estudo.

Esses documentos, e mesmo o fato da sua existência, eram totalmente desconhecidos até a época da Segunda Guerra Mundial. A melodramática história de sua descoberta e seu salvamento também foi narrada por Ernest Jones no mesmo capítulo de sua biografia. Nossa dívida principal em todo esse assunto é para com a Princesa Marie Bonaparte (Princesa George, da Grécia), que não só adquiriu os documentos imediatamente, como teve a extraordinária coragem de resistir aos intentos do autor deles, e seu mestre, de destruí-los.

Até agora, foi publicada somente uma seleção desses documentos (editada nos livros citados no cabeçalho desta nota). Para a Edição Standard, fizemos uma outra seleção a partir daquela seleção. Escolhemos (a) o Projeto para uma Psicologia Científica, (b) todos os “Rascunhos”, menos um deles, e (c) as partes das cartas que parecem ter uma conexão significativa com a história da psicanálise e a evolução dos pontos de vista de Freud. O leitor deverá ter em mente que o material desses rascunhos e cartas não foi projetado por seu autor para ser considerado uma expressão acabada de suas opiniões e que, muitas vezes, o material será articulado numa forma altamente condensada. Portanto, não há por que surpreender-se com a presença ocasional de incoerências e obscuridades.

A presente tradução inglesa baseia-se na versão alemã publicada nos Anfänge. Contudo, foi comparada com o manuscrito original e, nas passagens em que foram constatadas divergências significativas, estas foram corrigidas, sempre com uma nota explicativa. Para simplificar as referências, manteve-se a designação com letras e números dos rascunhos e cartas adotada nos Anfänge e nas Origins. Seguimos o critério dos organizadores dos Anfänge (por motivos que explicamos em [1]), ao destacar o Projeto do restante da correspondência e editá-lo no fim do volume.

 

RASCUNHO A

 

PROBLEMAS

 

(1) Será a angústia das neuroses de angústia derivada da inibição da função sexual ou da angústia ligada à etiologia dessas neuroses?

(2) Até que ponto uma pessoa sadia reage aos traumas sexuais posteriores de modo diferente de alguém predisposto pela masturbação? Apenas quantitativamente? Ou qualitativamente?

(3) Será o coitus reservatus simples (condom) um fator nocivo?

(4) Existirá uma neurastenia inata, com fraqueza sexual inata, ou será ela sempre adquirida na juventude? (Por meio das babás, da masturbação praticada por outra pessoa.)

(5) Será a hereditariedade algo mais que um multiplicador?

(6) O que é que participa da etiologia da depressão periódica?

(7) Será a anestesia sexual nas mulheres outra coisa que não um resultado da impotência? Poderá ela, por si mesma, provocar neuroses?

 

TESES

(1) Não existe nenhuma neurastenia ou neurose análoga sem distúrbio da função sexual.

(2) Este tem um efeito causal imediato, ou então atua como uma disposição para outros fatores, mas sempre de tal modo que, sem ele, os demais fatores não podem causar neurastenia.

(3) A neurastenia nos homens, dada sua etiologia, é acompanhada de relativa impotência.

(4) A neurastenia nas mulheres é uma conseqüência direta da neurastenia nos homens, por meio da redução da potência deles.

(5) A depressão periódica é uma forma de neurose de angústia, que, fora desta, manifesta-se em fobias e ataques de angústia.

(6) A neurose de angústia é, em parte, uma conseqüência da inibição da função sexual.

(7) O excesso simples e a sobrecarga de trabalho não são fatores etiológicos.

(8) A histeria, nas neuroses neurastênicas, indica a repressão dos afetos concomitantes.

GRUPOS [PARA OBSERVAÇÃO]

(1) Homens e mulheres que permaneceram sadios.

(2) Mulheres estéreis em que há ausência de traumas pela prevenção da gravidez no casamento.

(3) Mulheres infectadas por gonorréia.

(4) Homens de vida promíscua que têm gonorréia e que, por esse motivo, estão protegidos em todos os sentidos, tendo conhecimento de sua hipospermia.

(5) Membros que permaneceram sadios em famílias gravemente afetadas.

(6) Observações de países em que são endêmicas certas anormalidades sexuais específicas.

 

FATORES ETIOLÓGICOS

(1) Esgotamento devido a [formas de] satisfação anormais.

(2) Inibição da função sexual.

(3) Afetos concomitantes a essas práticas.

(4) Traumas sexuais anteriores ao início da idade da compreensão.

 

RASCUNHO B A ETIOLOGIA DAS NEUROSES

 

Estou escrevendo tudo uma segunda vez para você, meu caro amigo, e em prol de nossos trabalhos em comum. Naturalmente, você manterá este rascunho longe de sua jovem esposa.

I. Pode-se tomar como fato reconhecido que a neurastenia é uma conseqüência freqüente da vida sexual anormal. Contudo, a afirmação que quero fazer e comprovar por minhas observações é que a neurastenia é sempre apenas uma neurose sexual.

Adotei uma opinião semelhante (juntamente com Breuer) com relação à histeria. A histeria traumática era bem conhecida; o que afirmamos, além disso, foi que toda histeria que não é hereditária é traumática. Do mesmo modo, afirmo agora que toda neurastenia é sexual.

Por ora, deixaremos de lado a questão de saber se a disposição hereditária e, secundariamente, as influências tóxicas conseguem produzir a neurastenia verdadeira, ou se aquilo que parece ser neurastenia hereditária também remonta a um esgotamento sexual precoce. Se existe algo que se possa chamar neurastenia hereditária, cabe indagar se o status nervosus dos casos hereditários não deveria ser diferençado da neurastenia; que relações ela tem, afinal, com os sintomas correspondentes na infância, e assim por diante.

Portanto, em primeiro lugar, minha argumentação se restringirá à neurastenia adquirida. Por conseguinte, o que afirmo pode ser formulado da seguinte maneira. Na etiologia de uma afecção nervosa, devemos distinguir (1) a precondição necessária sem a qual o estado não pode surgir em absoluto e (2) os fatores desencadeantes. A relação entre esses dois elementos pode ser assim retratada: quando a precondição necessária atua de modo suficiente, a afecção se instala como conseqüência inevitável; quando não atua de modo suficiente, o resultado de sua atuação é, em primeiro lugar, uma disposição para a afecção, que deixa de ser latente tão logo sobrevém uma quantidade suficiente de um dos fatores secundários. Assim, o que falta para o efeito integral na etiologia primária pode ser substituído pela etiologia de segunda ordem; esta, contudo, é dispensável, ao passo que a de primeira ordem é imprescindível.

Se essa fórmula etiológica for aplicada a nosso caso atual, chegaremos à seguinte conclusão: apenas o esgotamento sexual pode, por si só, provocar neurastenia. Quando não consegue esse resultado por si mesmo, tem um efeito tal sobre a disposição do sistema nervoso que a doença física, os afetos depressivos e o excesso de trabalho (influências tóxicas) não mais podem ser tolerados sem [levar à] neurastenia. Sem o esgotamento sexual, porém, todos esses fatores são incapazes de gerar neurastenia. Acarretam fadiga normal, tristeza normal e fraqueza física normal, mas continuam apenas a evidenciar quanto “dessas influências prejudiciais uma pessoa normal consegue tolerar”.

Examinarei separadamente a neurastenia nos homens e nas mulheres.

A neurastenia masculina é adquirida na puberdade e se manifesta quando o paciente atinge a casa dos vinte anos. Sua origem é a masturbação, cuja freqüência tem completa correlação com a freqüência da neurastenia masculina. Podemos observar, no círculo de nossas relações (ao menos nas populações urbanas), que os indivíduos que foram seduzidos por mulheres em idade precoce escapam à neurastenia. Quando esse fator nocivo atua por um período prolongado e com intensidade, ele transforma a pessoa em questão num neurastênico sexual cuja potência fica igualmente prejudicada; a intensidade da causa tem correlação com a persistência desse estado por toda a vida. Uma prova adicional da conexão causal está no fato de que um neurastênico sexual sempre é, ao mesmo tempo, um neurastênico geral.

Se o fator nocivo não foi suficientemente intenso, ele terá (de acordo com a fórmula dada acima) um efeito sobre a disposição do paciente; desse modo, se, posteriormente, intervierem fatores precipitantes, ele provocará neurastenia, que esses fatores isoladamente não teriam produzido. Trabalho intelectual — neurastenia cerebral; atividade sexual normal — neurastenia medular etc.

Nos casos intermediários, encontramos a neurastenia da juventude, que tipicamente começa e segue sua evolução acompanhada de dispepsia etc., e que cessa com o casamento.

O segundo fator nocivo, que afeta homens em idade mais avançada, exerce seu impacto sobre um sistema nervoso que ou está intacto ou foi predisposto à neurastenia pela masturbação. A questão é saber se esse fator pode acarretar resultados prejudiciais mesmo no primeiro caso; é provável que sim. Seu efeito é patente no segundo caso, em que ele revive a neurastenia da juventude e cria novos sintomas. Esse segundo fator nocivo é o onanismus conjugalis — o coito incompleto, com a finalidade de evitar a gravidez. Quanto aos homens, todos os métodos utilizados para conseguir isso parecem equivaler-se: atuam com intensidade variável, conforme a disposição prévia da pessoa, mas, de fato, não diferem qualitativamente. Mesmo o coito normal não é tolerado pelos que têm uma disposição intensa ou pelos neurastênicos crônicos; e, além disso, a intolerância ao condom, ao coito extravaginal e ao coitus interruptus cobra seu tributo. Um homem sadio tolerará todos esses métodos por longo tempo, mas não indefinidamente. Depois de certo tempo, comporta-se como o indivíduo portador de uma predisposição. Sua única vantagem em relação ao masturbador é o privilégio de uma latência mais prolongada, ou o fato de que, em cada ocasião, ele necessita de uma causa precipitante. Nisso o coitus interruptus prova ser o principal fator nocivo e produz seu efeito característico mesmo em indivíduos não-predispostos.

 

Neurastenia feminina. Normalmente, as meninas são sadias e não-neurastênicas; e isto é também para as jovens mulheres casadas, apesar de todos os traumas sexuais desse período da vida. Em casos relativamente raros, a neurastenia em sua forma pura surge em mulheres casadas e em mulheres não-casadas de mais idade; deve-se então pensar que surgiu espontaneamente e do mesmo modo [? que nos homens]. Com muito maior freqüência, a neurastenia numa mulher casada decorre da neurastenia existente no homem, ou é produzida simultaneamente. Nesse caso, quase sempre há uma mistura de histeria, e temos então a neurose mista comum da mulheres.

A neurose mista das mulheres decorre da neurastenia existente nos homens, em todos os casos não raros em que o homem, sendo neurastênico sexual, sofre de limitações na sua potência. A mistura com a histeria resulta diretamente do refreamento da excitação do ato. Quanto mais reduzida a potência do homem, mais predominante é a histeria da mulher; assim, um homem sexualmente neurastênico torna sua mulher não tanto neurastênica, mas histérica.

Essa neurose surge, juntamente com a neurastenia dos homens, durante o segundo impacto dos fatores nocivos sexuais, que é de significação maior para a mulher, supondo-se que seja sadia. Assim, encontramos muito mais homens neuróticos durante a primeira década da puberdade e muito mais mulheres neuróticas durante a segunda. No caso das mulheres, isso resulta dos fatores nocivos devidos à evitação da gravidez. Não é fácil classificá-los e, de modo geral, nenhum deles deve ser considerado inteiramente inócuo para as mulheres; de modo que, mesmo nos casos mais favoráveis (condom), as mulheres, sendo parceiros sexuais mais escrupulosos, dificilmente escaparão de neurastenia discreta. Evidentemente, muita coisa dependerá das duas predisposições: se (1) a mulher era neurastênica antes do casamento ou se (2) tornou-se histérico-neurastênica durante o período de relações sexuais livres [sem preservativos].

II. Neurose de angústia. Todos os casos de neurastenia caracterizam-se, indubitavelmente, por uma certa diminuição da autoconfiança, uma expectativa pessimista e uma inclinação para idéias antitéticas aflitivas. Contudo, a questão é saber se o surgimento proeminente desse fator [angústia], sem estarem os outros sintomas especialmente desenvolvidos, não deveria ser destacado como uma “neurose de angústia” independente, particularmente tendo em conta que esta pode ser encontrada não menos freqüentemente na histeria do que na neurastenia.

A neurose de angústia surge sob duas formas: como um estado crônico e como um ataque de angústia. As duas formas podem combinar-se facilmente; e um ataque de angústia nunca ocorre sem sintomas crônicos. Os ataques de angústia são mais comuns nas formas ligadas à histeria — são, portanto, mais freqüentes em mulheres. Os sintomas crônicos são mais comuns em homens neurastênicos. Os sintomas crônicos são: (1) angústia relacionada com o corpo (hipocondria); (2) angústia em relação ao funcionamento do corpo (agorafobia, claustrofobia, vertigem em lugares altos); (3) angústia relacionada com as decisões e a memória — isto é, as fantasias de alguém a respeito de seu próprio funcionamento psíquico (folie de doute, ruminações obsessivas etc.). Até este momento, não tive nenhuma razão para não tratar desses sintomas como sendo equivalentes. De resto, a questão é a seguinte: (1) em que medida esse estado emerge nos casos hereditários, sem qualquer fator nocivo sexual, (2) se ele é desencadeado, no casos hereditários, por algum fator nocivo sexual, (3) se ele se acrescenta, sob a forma de intensificação, à neurastenia comum. Não há dúvida de que é adquirido, e especialmente por homens e mulheres casados, durante o segundo período de fatores nocivos sexuais, através do coitus interruptus. Não penso que, para isso, seja necessária uma predisposição devida a uma neurastenia anterior; mas, quando falta a predisposição, a latência é maior. A fórmula causal é a mesma da neurastenia [em [1]].

Os casos mais raros de neurose de angústia fora do casamento são encontrados especialmente nos homens. No final, revelam-se como casos de congressus interruptus em que o homem se envolve psiquicamente de forma intensa com mulheres cujo bem-estar constitui, para ele, tema de preocupação. Esse procedimento, em tais condições, é um fator nocivo de maior importância para o homem do que o coitus interruptus no casamento, de vez que este é e freqüentemente corrigido, por assim dizer, pelo coito normal fora do casamento.

 

Devo examinar a depressão periódica, um ataque de angústia com duração de semanas ou meses, como uma terceira forma de neurose de angústia. Essa forma de depressão, em contraste com a melancolia propriamente dita, quase sempre tem uma conexão aparentemente racional com um trauma psíquico. Este, no entanto, é apenas a causa precipitante. Ademais, essa depressão periódica não é acompanhada por anestesia [sexual] psíquica, que é característica da melancolia [em [1]].

Tive a possibilidade de estabelecer como causa de numerosos casos dessa espécie o coitus interruptus; seu início era tardio, durante o casamento, depois do nascimento do último filho. Num caso de uma torturante neurastenia que começou na puberdade, pude comprovar a existência de uma violência sexual no oitavo ano de vida. Um outro caso, que durava desde a infância, veio a revelar-se como reação histérica a uma violência sexual sob a forma de masturbação. Assim, não posso dizer se, nesses casos, estamos diante de formas verdadeiramente hereditárias sem uma causa sexual; e, por outro lado, não sei dizer se o coitus interruptus, por si mesmo, pode ser incriminado nesses casos, nem se a disposição hereditária é sempre prescindível.

Omitirei as neuroses ocupacionais, pois, como lhe disse, nelas foram demonstradas modificações nos componentes musculares.

CONCLUSÕES

Depreende-se do que eu disse que as neuroses são inteiramente evitáveis como também inteiramente incuráveis. A tarefa do médico desloca-se totalmente para a profilaxia.

A primeira parte dessa tarefa, a prevenção do fator nocivo sexual do primeiro período, coincide com profilaxia contra a sífilis e a gonorréia, pois estes são os fatores nocivos que ameaçam todo aquele que abandona a masturbação. A única alternativa seriam as relações sexuais livres entre rapazes e moças respeitáveis; isto, contudo, só poderia ser adotado se houvesse métodos inócuos de evitar a gravidez. Não sendo assim, as alternativas são: masturbação, neurastenia masculina e histero-neurastenia na mulher, ou então sífilis no homem, sífilis na geração seguinte, gonorréia no homem, gonorréia e esterilidade na mulher.

 

O mesmo problema — um meio inócuo de controlar a concepção — é trazido pelo trauma sexual do segundo período, pois o condom não proporciona uma solução segura nem aceitável para quem já é neurastênico.

Na ausência de tal solução, a sociedade parece condenada a cair vítima de neuroses incuráveis, que reduzem a um mínimo o gozo da vida, destroem a relação conjugal e trazem a ruína hereditária a toda a geração seguinte. As camadas inferiores da sociedade nada sabem do malthusianismo, mas estão em plena procura e, do jeito que as coisas vão, atingirão o mesmo ponto e serão vitimadas pela mesma fatalidade.

Assim, o médico se defronta com um problema cuja solução merece todo o seu empenho.

 

CARTA 14

 

…As coisas se complicam cada vez mais, à medida que chega a confirmação. Ontem, por exemplo, vi quatro casos novos cuja etiologia, como evidenciado pelos dados cronológicos, só poderia ser o coitus interruptus. Talvez eu possa mantê-lo interessado, fazendo um breve relato desses casos. Eles estão longe de ser uniformes.

(1) Mulher, 41 anos; filhos, com 16, 14, 11 e 7 anos. Problemas nervosos nos últimos 12 anos; passou bem nos períodos de gravidez; recaída, posteriormente; não piorou com a última gravidez. Ataques de vertigem com sensação de fraqueza, agorafobia, expectativa ansiosa, nenhum indício de neurastenia, histeria pouca. Etiologia confirmada: [neurose de angústia] simples.

(2) Mulher, 24 anos; filhos de 4 e 2 anos. Desde a primavera de ‘93, ataques de dor (nas costas até o esterno) à noite, com insônia; quanto ao mais, nada de especial; durante o dia, bem. Marido, caixeiro-viajante; esteve em casa por algum tempo na primavera e agora. No verão, enquanto o marido estava fora, sentia-se muito bem. Coitus interruptus e muito receio de ter filhos. Histeria, portanto.

 

(3) Homem, 42 anos: filhos de 17, 16 e 13 anos. Esteve bem até há seis anos. Aí, com a morte do pai, súbito ataque de angústia com palpitações, temores hipocondríacos de câncer da língua; vários meses depois, um segundo ataque, com cianose, pulso intermitente, medo de morrer etc.; a partir de então, fraqueza, vertigem, agorafobia, alguma dispepsia. Este é um caso de neurose de angústia pura, acompanhado de sintomas cardíacos subseqüentes a uma emoção; contudo, o coitus interruptus foi aparentemente tolerado com facilidade durante dez anos. [1]

(4) Homem, 34 anos. Perda do apetite nos últimos três anos; dispepsia há um ano, com perda de 20 quilos, constipação. Quando esses sintomas cessaram, passou a sentir violenta pressão intracraniana nas ocasiões em que soprava o siroco; ataques de fraqueza com sensações correlatas e espasmos clônicos histeriformes. Nesse caso, portanto, predomina a histeria. Tem um filho de cinco anos de idade. Desde então, coitus interruptus devido a uma doença da mulher. Mais ou menos na mesma época em que se recuperou da dispepsia, foram reiniciadas as relações sexuais normais.

Em vista dessas reações aos mesmos fatores nocivos, é preciso coragem para insistir na natureza específica dos seus efeitos, tal como a concebo. E, no entanto, deve ser assim; há determinados pontos que ligam todos esses quatro casos (neurose de angústia simples — histeria simples — neurastenia com histeria).

Em (1), uma mulher muito inteligente, não havia receio de ter filhos; ela tem uma neurose de angústia simples.

Em (2), uma mulher jovem, agradável e obtusa, a angústia era muito intensa; depois de breve período, teve histeria pela primeira vez.

O caso (3), com neurose de angústia e sintomas cardíacos, era um homem muito potente e fumante inveterado.

O caso (4), pelo contrário, era (sem se ter masturbado) apenas moderadamente potente — frígido.

 

RASCUNHO D: SOBRE A ETIOLOGIA E A TEORIA DAS PRINCIPAIS NEUROSES

 

I. CLASSIFICAÇÃO

Introdução. Histórico. Diferenciação gradual das neuroses. O curso de evolução dos meus próprios pontos de vista.

A. Morfologia das Neuroses.

(1) Neurastenia e as pseudoneurastenias.

(2) Neurose de angústia.

(3) Neurose obsessiva.

(4)Histeria.

(5) Melancolia, Mania.

(6) As neuroses mistas.

(7) Ramificações das neuroses e transições para o normal.

 

B. Etiologia das Neuroses (provisoriamente restrita às neuroses adquiridas).

(1) Etiologia da neurastenia — Tipo de neurastenia congênita.

(2) Etiologia da neurose de angústia.

(3) da neurose obsessiva e da histeria.

(4) da melancolia.

(5) da neuroses mistas.

(6) A fórmula etiológica básica [em [1], atrás]. — A tese da especificidade [da etiologia]; a análise do conjunto das neuroses.

(7) Os fatores sexuais em sua significação etiológica.

(8) Exame dos pacientes.

(9) Objeções e Provas.

(10) Conduta das pessoas assexuais.

 

C. Etiologia e Hereditariedade.

Os tipos hereditários. — Relação da etiologia com a degeneração, com as psicoses e com a predisposição.

II. TEORIA

D. Pontos de Contacto com a Teoria da Constância.

Aumento interno e externo do estímulo; excitação constante e passageira. — Soma, uma característica da excitação interna. Reação específica. — Formulação e exposição da teoria da constância. — Interposição do ego, com acumulação da excitação.

E. O Processo Sexual à Luz da Teoria da Constância.

A via seguida pela excitação no processo sexual masculino e feminino. — A via seguida pela excitação na presença de fatores sexuais nocivos etiologicamente operantes. — Teoria de uma substância sexual. — O diagrama esquemático sexual.

F. Mecanismo das Neuroses.

As neuroses como perturbações do equilíbrio devidas ao aumento da dificuldade de descarga. — Tentativas de ajustamento, limitadas em sua eficácia. — Mecanismo das diferentes neuroses em relação à sua etiologia sexual. — Afetos e neuroses.

G. Paralelo entre as neuroses da sexualidade e a fome.

H. Resumo da teoria da constância e da teoria da sexualidade e das neuroses.

Lugar das neuroses na patologia; fatores a que elas estão sujeitas; leis que regem sua combinação. — Inadequação psíquica, desenvolvimento, degeneração etc.

 

CARTA 18

 

…Existe ainda uma centena de lacunas, grandes e pequenas, em minhas idéias a respeito das neuroses. Mas estou-me aproximando de um ponto de vista abrangente e de alguns critérios gerais de abordagem. Conheço três mecanismos: transformações do afeto (histeria de conversão), deslocamento do afeto (obsessões) e (3) troca de afeto (neurose de angústia e melancolia). Em todos os casos, é a excitação sexual que parece sofrer essas alterações, mas o estímulo para elas não é, em todos os casos, algo sexual. Ou seja, em todos os casos em que as neuroses são adquiridas, elas o são devido a perturbações na vida sexual; mas existem pessoas nas quais o comportamento de seus afetos sexuais é perturbado hereditariamente, e elas desenvolvem as formas correspondentes de neuroses hereditárias. Os aspectos mais gerais a partir dos quais posso classificar as neuroses são os seguintes:

(1) Degeneração.

(2) Senilidade. E o que significa isto?

(3) Conflito

(4) Conflagração.

Degeneração: significa o comportamento inatamente anormal dos afetos sexuais; desse modo, os processos da conversão, do deslocamento e da transformação em angústia ocorrem na proporção em que os afetos sexuais desempenham um papel no decurso da vida.

Senilidade: é evidente. Por assim dizer, é uma degeneração normalmente adquirida na velhice.

Conflito: coincide com minha concepção de defesa [rechaço]; compreende os casos de neurose adquirida em pessoas que não são hereditariamente anormais. O que é rechaçado é sempre a sexualidade.

Conflagração: é uma concepção nova. Significa o que se pode chamar de degeneração aguda (por exemplo, nas intoxicações graves, nas febres, no estágio inicial da paralisia geral) — ou seja, catástrofes em que há perturbações dos afetos sexuais sem causas desencadeantes sexuais. Talvez as neuroses traumáticas pudessem ser abordadas sob esse enfoque.

Naturalmente, o ponto central e principal de todo esse assunto continua sendo o fato de que, em conseqüência de determinados fatores nocivos sexuais, até mesmo as pessoas sadias podem adquirir as diferentes formas de neurose. O acesso a uma visão mais ampla é proporcionado pelo fato de que, nos casos em que uma neurose se desenvolve sem um fator nocivo, pode-se demonstrar a presença, desde o início, de uma perturbação similar dos afetos sexuais. “Afeto sexual”, naturalmente, é tomado no seu sentido mais amplo, como uma excitação de quantidade definida.

Posso apresentar-lhe o meu mais recente exemplo para apoiar essa tese:

Um homem de 42 anos, forte e elegante, de repente desenvolveu uma dispepsia neurastênica, aos 30 anos, perdendo uns 25 quilos de peso, e a partir daí viveu uma vida limitada e neurastênica. Na época em que isso aconteceu, aliás, ele tinha combinado seu casamento e estava emocionalmente abalado pela doença da noiva. Salvo esse aspecto, porém, não havia fatores sexuais nocivos. Ele se masturbou mais ou menos por um ano, dos 16 anos aos 17 anos; dos 17 em diante, passou a ter relações sexuais normais; muito raramente, coitus interruptus; nenhum excesso, nenhuma abstinência. Ele próprio atribui a causa à sobrecarga a que submeteu sua constituição até a idade de 30 anos: trabalhava, bebia e fumava muito, levava uma vida irregular. Mas esse homem vigoroso, sujeito [apenas] a fatores nocivos corriqueiros, nunca (nunca, entre os 17 e os 30 anos) foi propriamente potente: jamais conseguiu praticar mais de um coito em cada ocasião; sempre ejaculava rapidamente, nunca fez pleno uso de seu sucesso [inicial] junto às mulheres, nunca conseguiu penetrar com facilidade a vagina. Qual era a origem de sua limitação? Não sei dizer. O interessante, todavia, é que isso estava presente justamente nele. Aliás, tratei de duas de suas irmãs, portadoras de neuroses; uma delas está entre as minhas mais bem-sucedidas curas de dispepsia neurastênica.

 

RASCUNHO E: COMO SE ORIGINA A ANGÚSTIA

 

Com mão certeira você tocou na questão que penso ser o ponto fraco. Tudo o que sei a respeito é o seguinte:

Logo ficou claro para mim que a angústia de meus pacientes neuróticos tinha muito a ver com a sexualidade; e me chamou especialmente a atenção a certeza com que o coitus interruptus praticado numa mulher conduz à neurose de angústia. Comecei, então, a seguir diversas pistas falsas. Achei que a angústia de que sofrem os pacientes devia ser considerada um prolongamento da angústia experimentada durante o ato sexual — ou seja, que era, na realidade, um sintoma histérico. Na verdade, são por demais evidentes as conexões entre a neurose de angústia e a histeria. Duas coisas poderiam originar o sentimento de angústia no coitus interruptus: na mulher, o receio de ficar grávida e, no homem, a preocupação de seu artifício [preventivo] poder falhar. A partir de uma série de casos, convenci-me de que a neurose de angústia também surgia em situações em que, para as duas pessoas envolvidas, a eventualidade de virem a ter um filho basicamente não representava uma questão de maior importância. Assim, a angústia da neurose de angústia não era continuada, relembrada, histérica.

Um segundo ponto, extremamente importante, ficou definido para mim a partir da seguinte observação. A neurose de angústia afeta tanto as mulheres que são frígidas no coito como as que têm sensibilidade. Esse aspecto é interessante, e só pode significar que a origem da angústia não deve ser buscada na esfera psíquica. Por conseguinte, deve estar radicada na esfera física: é um fator físico da vida sexual que produz a angústia. Mas que fator?

 

Tendo em mira esse ponto, reuni os casos em que encontrei a angústia originando-se de uma causa sexual. Em princípio, eles me pareceram muito heterogêneos:

(1) Angústia das pessoas virgens (observações e informações sexuais, prenúncios da vida sexual); confirmada por numerosos exemplos, em ambos os sexos, predominantemente no sexo feminino. Não raro, existe um indício de uma ligação intermediária — uma sensação semelhante à ereção, que aparece nos genitais.

(2) Angústia das pessoas voluntariamente abstinentes, das beatas (um tipo de neuropata), de homens e mulheres que se caracterizam pelo rigor excessivo e por uma paixão pela limpeza, que consideram horrível tudo o que é sexual. As mesmas pessoas tendem a transformar sua ansiedade em fobias, atos obsessivos, folie de doute.

(3) Angústia da pessoas obrigatoriamente abstinentes: mulheres que são esquecidas por seus maridos ou não são satisfeitas devido à falta de potência. Essa forma de neurose de angústia certamente pode ser adquirida e, devido a circunstâncias concomitantes, combina-se muitas vezes com a neurastenia.

(4) Angústia das mulheres que vivem a prática do coitus interrruptus ou, o que é parecido, das mulheres cujos maridos sofrem de ejaculação precoce — portanto, pessoas em que a estimulação física não é satisfeita.

(5) Angústia dos homens que praticam o coitus interruptus e mesmo dos homens que se excitam de diferentes maneiras e não empregam sua ereção para o coito.

(6) Angústia dos homens que vão além do seu desejo ou da sua força, pessoas de mais idade cuja potência está diminuindo, mas que, ainda assim, se impõem a prática do coito.

(7) Angústia das pessoas que se abstêm ocasionalmente: homens jovens que se casaram com mulheres de mais idade, por quem na verdade sentem repulsa; ou neurastênicos que foram desviados da masturbação pelo trabalho intelectual, sem compensá-la através do coito; ou homens cuja potência começa a enfraquecer e que, no casamento, abstêm-se das relações sexuais por causa de sensações post coitum [cf. em [1]].

Nos demais casos, não ficou evidenciada a ligação entre a angústia e a vida sexual. (Poderia ser estabelecida teoricamente.)

 

Como juntar todos esses casos separados? O que há de comum neles, com maior freqüência, é a abstinência. Depois de constatar o fato de que mesmo as mulheres frígidas estão sujeitas à angústia após o coitus interruptus, somos levados a dizer que se trata de uma questão de acumulação física de excitação — isto é, uma acumulação de tensão sexual física. A acumulação ocorre como conseqüência de ter sido evitada a descarga. Assim a neurose de angústia é uma neurose de represamento, como a histeria; daí a sua semelhança. E visto que absolutamente nenhuma angústia está contida no que é acumulado, a situação se define dizendo-se que a angústia surge por transformação a partir da tensão sexual acumulada.

Aqui se pode intercalar algum conhecimento que nesse meio tempo se obteve acerca do mecanismo da melancolia. Com freqüência muito especial verifica-se que os melancólicos são anestéticos. Não têm necessidade de relação sexual (e não têm a sensação correlata). Mas têm um grande anseio pelo amor em sua forma psíquica — uma tensão erótica psíquica, poder-se-ia dizer. Nos casos em que esta se acumula e permanece insatisfeita, desenvolve-se a melancolia. Aqui, pois, poderíamos ter a contrapartida da neurose de angústia. Onde se acumula tensão sexual física — neurose de angústia. Onde se acumula tensão sexual psíquica — melancolia.

Mas por que ocorre essa transformação em angústia quando há uma acumulação? Nesse ponto devemos examinar o mecanismo normal para lidar com a tensão acumulada. O que nos interessa aqui é o segundo caso — o caso da excitação endógena. As coisas são mais simples no caso da excitação exógena. A fonte da excitação situa-se externamente e envia para dentro da psique um acréscimo de excitação que é manejado de acordo com sua quantidade. Para esse propósito, basta qualquer reação que reduza em igual quantidade a excitação psíquica. [Cf. em [1].]

 

Mas as coisas se passam de modo diverso no caso da tensão endógena, cuja fonte se situa dentro do corpo do indivíduo (fome, sede, pulsão sexual). Nesse caso, só têm utilidade as reações específicas — reações que evitem novo surgimento de excitação nos órgãos terminais em questão, sejam essas reações exeqüíveis com maior ou menor gasto [de energia]. Aqui podemos supor que a tensão endógena cresce contínua ou descontinuamente, mas, de qualquer modo, só é percebida quando atinge um determinado limiar. É somente acima desse limiar que a tensão passa a ter significação psíquica, que entra em contacto com determinados grupos de idéias que, com isso, passam a buscar soluções. Assim, a tensão sexual física acima de certo nível desperta a libido psíquica, que então induz ao coito etc. Quando a reação específica deixa de se realizar, a tensão físico-psíquica (o afeto sexual) aumenta desmedidamente. Torna-se uma perturbação, mas ainda não há base para sua transformação. Contudo, na neurose de angústia, essa transformação de fato ocorre, o que sugere a idéia de que, nessa neurose, as coisas se desvirtuam da seguinte maneira: a tensão física aumenta, atinge o nível do limiar em que consegue despertar afeto psíquico, mas, por algum motivo, a conexão psíquica que lhe é oferecida permanece insuficiente: um afeto sexual não pode ser formado, porque falta algo nos fatores psíquicos. Por conseguinte, a tensão física, não sendo psiquicamente ligada, é transformada em — angústia.

Se aceitarmos a teoria até esse ponto, teremos de insistir em que deve haver, na neurose de angústia, um déficit constatável de afeto sexual na libido psíquica. E isso se confirma pela observação. Quando essa correlação é posta diante de alguma paciente, ela sempre se indigna e declara que, pelo contrário, agora já não tem nenhum desejo etc. Os pacientes do sexo masculino muitas vezes confirmam, como fato observado, que, após passarem a sofrer de angústia, não sentiram nenhum desejo sexual.

 

Vejamos agora se esse mecanismo concorda com os diferentes casos enumerados acima.

(1) Angústia das pessoas virgens. Nesse caso, o conjunto de idéias que deve captar a tensão física ainda não está presente, ou está presente apenas de maneira insuficiente; e, além disso, existe uma recusa psíquica que é um resultado secundário da educação. Esse exemplo se enquadra muito bem.

(2) Angústia das pessoas excessivamente pudicas. Nesse caso, o que existe é a defesa — uma completa rejeição psíquica que impossibilita qualquer transformação da tensão sexual. É também nesses casos que encontramos numerosas obsessões. Outro exemplo muito adequado.

(3) Angústia nos casos de abstinência forçosa. É essencialmente a mesma, pois a maioria das mulheres desse tipo cria uma rejeição psíquica destinada a evitar a tentação. Nesse caso, a rejeição é uma contingência; em (2) trata-se de algo fundamental.

(4) Angústia das mulheres, decorrente de coitus interruptus. Nesse caso, o mecanismo é mais simples. Trata-se de excitação endógena que não se origina [espontaneamente], mas é induzida, embora não em quantidade suficiente para que seja capaz de despertar afeto psíquico. Efetua-se artificialmente um alheamento entre o ato físico-sexual e sua transformação psíquica. Quando, depois disso, a tensão endógena aumenta ainda mais por sua própria conta, ela não consegue ser transformada e gera angústia. Nesse caso, a libido pode estar presente, mas não ao mesmo tempo que a angústia. Desse modo, aqui, a rejeição psíquica é seguida de alheamento psíquico; a tensão de origem endógena é acompanhada por uma tensão induzida.

(5) Angústia dos homens em decorrência do coitus interruptus ou do coitus reservatus. O caso do coitus reservatus é mais claro; o coitus interruptus pode ser considerado, em parte, subordinado a ele. Também nesse caso, trata-se de um afastamento psíquico, pois a atenção é voltada para um outro objetivo e mantida afastada da transformação da tensão física. Contudo, provavelmente há que aprimorar a explicação para o coitus interruptus.

(6) Angústia que acompanha a diminuição da potência ou a libido insuficiente. De vez que, nesses casos, não ocorre a transformação da tensão física em angústia, por causa da senilidade, a explicação estaria no fato de que é insuficiente o desejo psíquico que pode ser concentrado para o ato em questão.

(7)Angústia dos homens em conseqüência de aversão, ou dos neurastênicos abstinentes. O primeiro caso não requer uma explicação nova; o outro, dos neurastênios abstinentes, talvez seja uma forma atenuada de neurose de angústia, pois em geral isso só acontece propriamente em homens potentes. Pode ser que o sistema nervoso neurastênico não consiga tolerar uma acumulação de tensão física, pois a masturbação implica o habituar-se a uma freqüente e completa ausência de tensão.

No seu todo, a concordância não é tão precária assim. Nos casos em que há um considerável desenvolvimento da tensão sexual física, mas esta não pode ser convertida em afeto pela transformação psíquica — por causa do desenvolvimento insuficiente da sexualidade psíquica, ou por causa da tentativa de suprimi-la (defesa), ou por causa do declínio da mesma, ou por causa do alheamento habitual entre sexualidade física e psíquica —, a tensão sexual se transforma em angústia. Assim, nisso desempenham um papel a acumulação de tensão física e a evitação da descarga no sentido psíquico.

Mas por que a transformação se faz precisamente em angústia? Angústia é a sensação de acumulação de um outro estímulo endógeno, o estímulo de respirar, um estímulo que é incapaz de ser psiquicamente elaborado à parte o próprio respirar; portanto, a angústia poderia ser empregada para a tensão física acumulada em geral. Além disso, se examinarmos mais detidamente os sintomas da neurose de angústia, encontraremos nela os componentes separados de um grande ataque de angústia, ou seja, dispnéia isolada, palpitações isoladas, sensação de angústia isolada, ou uma combinação desses elementos. Vistas mais de perto, estas são as vias de inervação que a tensão psicossexual comumente percorre, mesmo quando está por ser transformada psiquicamente. A dispnéia e as palpitações fazem parte do coito; e, conquanto sejam habitualmente utilizadas somente como vias auxiliares de descarga, aqui, por assim dizer, servem como as únicas saídas para a excitação. Na neurose de angústia, existe uma espécie de conversão, tal como ocorre na histeria (mais um exemplo de sua semelhança [em [1]]); contudo, na histeria, é a excitação psíquica que toma um caminho errado, exclusivamente em direção à área somática, ao passo que aqui é uma tensão física,que não consegue penetrar no âmbito psíquico e, portanto, permanece no trajeto físico. As duas se combinam com extrema freqüência.

Foi esse o ponto a que consegui chegar por ora. As lacunas precisam muito ser preenchidas. Penso que tudo isso está incompleto: falta-me algo; mas creio que os fundamentos estão corretos. Naturalmente, tudo isso ainda não está maduro para ser publicado. Sugestões, ampliações e certamente refutações e explicações serão recebidas com a máxima gratidão.

 

RASCUNHO F: COLEÇÃO III

 

18 de agosto de 1894.Nº 1.

Neurose de angústia:disp. hered.

Herr K., 27 anos.

Pai em tratamento por melancolia senil; irmã, O., bom caso de neurose de angústia complicada, cuidadosamente analisado; todos os membros da família K. são neuróticos e de constituição geniosa. Primo do Dr. K., em Bordéus. — Boa saúde até há pouco tempo; tem dormindo mal nos últimos nove meses; em fevereiro e março, acordava muitas vezes, com pesadelos e palpitações; excitabilidade geral aumentando gradualmente; remissão dos sintomas devido a manobras militares, que lhe fizeram muito bem. Há três semanas, no início da noite, súbito ataque de angústia, sem razão [aparente], com sensação de congestão desde o peito até a cabeça. Interpretou que isso significava que, necessariamente, algo de terrível estava por acontecer; sem opressão concomitante, apenas discretas palpitações. Posteriormente, ataques semelhantes também durante o dia, na hora da refeição do meio-dia.Há duas semanas, consultou um médico; melhorou com o brometo; o estado ainda continua, mas dorme bem. Também durante as duas últimas semanas, breves ataques de profunda depressão, assemelhando-se a completa apatia, durante apenas alguns minutos. Melhorou somente aqui em R[eichenau]. Além disso, acessos de pressão na parte posterior da cabeça.

Ele próprio tomou a iniciativa de dar informações sobre sua vida sexual. Há um ano, apaixonou-se por uma moça com quem flertava; grande choque ao saber que ela estava noiva de outro. Não está mais apaixonado atualmente. — Atribui pouca importância ao fato. — Prosseguiu: masturbava-se entre os 13 e os 16 ou 17 anos (seduzido no colégio), moderadamente, disse ele. Moderado nas relações sexuais; nos últimos 2 anos e meio, tem feito uso do condom, por medo de infecção; depois de tais relações, muitas vezes se sente fraco. Descreveu esse tipo de relações como forçadas. Verifica que sua libido diminuiu muito durante o último ano. Ficava excitadíssimo sexualmente em seu relacionamento com a moça (sem tocá-la etc.) Seu primeiro ataque, à noite (fevereiro), ocorreu dois dias após uma relação sexual; seu primeiro ataque de angústia se deu após relação sexual, na mesma noite; a partir de então (três semanas), abstinente — um homem tranqüilo, de maneiras afáveis e, afora isso, sadio.

18 de agosto de 1894.Discussão do Nº 1

Ao procurarmos interpretar o caso de K., uma coisa nos chama especialmente a atenção. O homem tem uma disposição hereditária: seu pai sofre de melancolia, talvez melancolia de angústia; a irmã tem uma típica neurose de angústia; conheço intimamente essa neurose, mas, não fosse por isso, eu decerto a descreveria como adquirida. Isso dá motivo para pensar em sua hereditariedade. Na família K., provavelmente existe apenas uma “disposição” (uma tendência a adoecer cada vez com maior gravidade em resposta à etiologia típica), e não uma “degeneração”. Podemos, pois, supor que, no caso de Herr K., a discreta neurose de angústia se desenvolveu a partir de uma etiologia discreta. Onde buscá-la, sem preconceito?

Em primeiro lugar, parece-me tratar-se de um estado de enfraquecimento da sexualidade. A libido desse homem vinha diminuindo há algum tempo; os preparativos para usar um condom são o bastante para que ele sinta que todo o ato é algo que lhe é forçado, e o prazer derivado do ato, algo a que foi induzido. Sem dúvida, esse é o nó de toda essa questão. Após o coito, muitas vezes se sente enfraquecido; como diz, ele percebe isso e então, dois dias depois de um coito, ou, conforme o caso, na mesma noite, tem seus primeiros ataques de angústia.

A confluência do declínio da libido e da neurose de angústia se ajusta sem dificuldade à minha teoria. Há uma debilidade no domínio psíquico da excitação sexual somática. Essa fraqueza tem estado presente há algum tempo e possibilita o aparecimento da angústia quando há um aumento casual da excitação somática.

Como foi adquirido esse enfraquecimento psíquico? Não se poderia esperar maiores conseqüências de sua masturbação na juventude; ela certamente não teria dado esses resultados, especialmente porque não parece ter ultrapassado as medidas habituais. Seu relacionamento com a moça, que muito o excitava sensualmente, parece muito mais apto a ter como efeito uma perturbação nesse sentido; de fato, o caso se assemelha às conhecidas condições das neuroses dos homens durante os noivados prolongados. Acima de tudo, porém, não se pode duvidar de que o temor de infecção e a decisão de usar um condom constituíram o motivo daquilo que descrevi como o fator do alheamento entre o somático e o psíquico [em [1]]. O efeito seria o mesmo do caso do coitus interruptus nos homens. Em resumo, Herr K. desenvolveu uma fraqueza sexual psíquica porque por si mesmo arruinou o coito, e, estando intactas sua saúde física e a produção de estímulos sexuais, a situação deu origem à produção de angústia. Podemos dizer que sua decisão de tomar precauções, em vez de procurar satisfação adequada num relacionamento seguro, mostra que sua sexualidade, já de início, não tinha muito vigor. O homem tinha uma disposição hereditária; a etiologia que pode ser encontrada nesse caso, embora seja qualitativamente importante, seria tolerada sem maiores prejuízos por um homem sadio — isto é, um homem vigoroso.

Um aspecto interessante desse caso é o aparecimento de um estado de espírito tipicamente melancólico em ataques de curta duração. Isso deve ter importância teórica para a neurose de angústia devida ao alheamento; por ora, posso apenas fazer o registro disso.

 

20 de agosto de 1894. Nº 2.Herr von F., Budapeste, 44 anos.

Homem fisicamente sadio, ele se queixa de que “está perdendo sua vivacidade e o prazer de viver, de uma forma que não é natural num homem da sua idade”. Esse estado — em que tudo lhe parece indiferente, em que considera seu trabalho uma carga pesada e se sente mal-humorado e debilitado — é acompanhado de intensa pressão no alto e também na parte posterior da cabeça. Ademais, esse estado se caracteriza por má digestão — isto é, aversão à comida, flatulência e prisão de ventre. Também parece dormir mal.

No entanto, o estado é evidentemente intermitente. Dura, a cada vez, uns 4 ou 5 dias, e se dissipa lentamente. Pela flatulência, ele percebe que a fraqueza nervosa está chegando. Há intervalos de 12 a 14 dias, e ele chega a passar bem durante várias semanas. Têm ocorrido até mesmo períodos melhores, com duração de meses. Ele insiste em que as coisas têm estado assim nos últimos 25 anos. Como acontece tantas vezes, tem-se de começar a compor o quadro clínico, pois ele fica repetindo monotonamente suas queixas e declara não ter prestado atenção a outros eventos. Assim, os contornos indeterminados dos ataques, bem como sua completa irregularidade no tempo, fazem parte do quadro. Naturalmente, ele atribui a culpa do seu estado à digestão…

Organicamente sadio; sem preocupações ou perturbações emocionais de gravidade. Quanto à sexualidade: masturbação entre os 12 e os 16 anos; depois, relações muito regulares com mulheres; não se sentia muito atraído; casado nos últimos 14 anos, teve somente 2 filhos, o último há 10 anos; nesse intervalo e desde então, somente uso de condom e nenhuma outra técnica. Nos últimos anos, nítida diminuição da potência. Coito a cada 12 ou 14 dias, mais ou menos; muitas vezes, há também longos intervalos. Admite que, após coito com o uso do condom, sente-se enfraquecido e infeliz; mas não logo depois, só dois dias mais tarde — ou, como diz, tem notado que, dois dias depois, tem problemas digestivos. Por que usa condom? Não se deve ter filhos demais! ([Ele tem] 2.)

 

Discussão.

Um caso benigno, mas muito característico, de depressão periódica, melancolia. Sintomas: apatia, inibição, pressão intracraniana, dispepsia, insônia — o quadro está completo.

Há uma inequívoca semelhança com a neurastenia, e a etiologia é a mesma. Tenho alguns casos bastante parecidos: são masturbadores (Herr A.) e têm também um traço hereditário. Os von F. são reconhecidamente psicopatas. Assim, trata-se de um caso de melancolia neurastênica; deve haver aí um ponto de contato com a teoria da neurastenia.

É bem possível que o ponto de partida de uma melancolia de menor importância, como a que vimos, possa ser sempre o ato do coito: um exagero do ditado da filosofia “omne animal post coitum triste”. Os intervalos de tempo provariam se este é ou não o caso. O homem sente melhoras a cada série de tratamentos, a cada ausência de casa — isto é, em cada período em que se vê livre do coito. Naturalmente, como afirma, ele é fiel à esposa. O uso do condom é uma prova de pouca potência; sendo algo parecido com a masturbação, é uma causa contínua de sua melancolia.

 

CARTA 21

 

…Só reuni uns poucos casos esta segunda-feira.

Nº 3.

Dr. Z., médico, 34 anos. Por muitos anos, tem sofrido de sensibilidade orgânica nos olhos: fosfenos [clarões], ofuscação, escotomas etc. Isso tem aumentado consideravelmente, a ponto de impedi-lo de trabalhar nos últimos quatro meses (desde a época de seu casamento). Antecedentes: masturbação desde os 14 anos de idade, aparentemente continuada até esses últimos anos. Casamento não consumado, potência muito reduzida; aliás, tomadas providências para o divórcio.

Caso típico evidente de hipocondria num determinado órgão em um masturbador, em períodos de excitação sexual. É interessante que a formação médica atinja uma profundidade tão rasa.

 

Nº 4.

Her D., sobrinho de Frau A., que morreu histérica. Família altamente neurótica. Idade, 28 anos. Há algumas semanas tem sofrido de lassidão, pressão intracraniana, pernas bambas, potência reduzida, ejaculação precoce e dos pródromos da perversão: as jovens muito novas o excitam em grau maior do que as de mais idade.

Alega que, desde o início, sua potência foi instável; admite a masturbação, mas não muito prolongada; atualmente, anda numa fase de abstinência. Antes disto, estados de angústia no início da noite.

Será que ele fez uma confissão completa?

 

RASCUNHO G: MELANCOLIA

 

I

Os fatos que temos diante de nós parecem ser assim:

(A) Existem notáveis correlações entre a melancolia e a anestesia [sexual]. Isso foi estabelecido (1) pela verificação de que, em muitos melancólicos, houve uma longa história prévia de anestesia, (2) pela descoberta de que tudo o que provoca anestesia favorece o desenvolvimento da melancolia, (3) pela existência de um tipo de mulheres, psiquicamente muito exigentes, nas quais o desejo intenso facilmente se transforma em melancolia, e que são frígidas.

(B)A melancolia se desenvolve como intensificação da neurastenia, através da masturbação.

(C)A melancolia surge numa combinação típica com a angústia intensa.

(D)A forma típica e extrema da melancolia parece ser a forma hereditária periódica ou cíclica.

 

II

A fim de obtermos algum proveito desse material, precisamos estabelecer alguns pontos de partida fixos. Estes parecem ser proporcionados pelas seguintes considerações:

(a)O afeto correspondente à melancolia é o luto — ou seja, o desejo de recuperar algo que foi perdido. Assim, na melancolia, deve tratar-se de uma perda — uma perda na vida pulsional.

(b)A neurose nutricional paralela à melancolia é a anorexia. A famosa anorexia nervosa das moças jovens, segundo me parece (depois de cuidadosa observação), é uma melancolia em que a sexualidade não se desenvolveu. A paciente afirma que não se alimenta simplesmente porque não tem nenhum apetite; não há qualquer outro motivo. Perda do apetite — em termos sexuais, perda da libido.

Portanto, não seria muito errado partir da idéia de que a melancolia consiste em luto por perda da libido.

Restaria saber se essa fórmula explica a ocorrência e as características dos pacientes melancólicos. Discutirei isso com base no diagrama esquemático da sexualidade.

 

III

 

Com base no diagrama esquemático da sexualidade [Fig. 1], de que me tenho utilizado freqüentemente, passarei agora a examinar as condições sob as quais o grupo sexual psíquico (ps. S) sofre uma perda na quantidade de

 

1. QUADRO ESQUEMÁTICO DA SEXUALIDADE

 

sua excitação. Aqui, são possíveis dois casos: (1) quando a produção de s. S. (excitação sexual somática) diminuiu ou cessa, e (2) quando a tensão sexual é desviada por ps. S. [grupo sexual psíquico]. O primeiro caso, em que cessa a produção de s. S. [excitação sexual somática], é provavelmente o que caracteriza a melancolia grave comum propriamente dita, que reaparece periodicamente, ou a melancolia cíclica, na qual se alternam períodos de aumento e cessação da produção. Ademais, podemos supor que a masturbação excessiva, que, segundo nossa teoria, conduz a uma excessiva descarga de E. (o órgão efetor) e, com isso, a um baixo nível de estímulo em E. — a masturbação excessiva passa a afetar a produção de s. S. [excitação sexual somática] e a causar uma redução duradoura de s. S., levando, conseqüentemente, a um enfraquecimento do p. S. [grupo sexual psíquico]. Essa é a melancolia neurastênica. O [segundo] caso, no qual a tensão sexual é desviada do p. S. [grupo sexual psíquico], embora a produção de s. S. [excitação sexual somática] não esteja diminuída, pressupõe que a s. S. [excitação sexual somática] é utilizada em outra parte — na fronteira [entre o somático e o psíquico]. Este, contudo, é o fator determinante da angústia; e, por conseguinte, isso coincide com o caso da melancolia de angústia, uma forma mista que reúne neurose de angústia e melancolia.

Assim sendo, nesta discussão estão explicadas as três formas de melancolia, que realmente devem ser diferenciadas.

 

IV

 

Como é que a anestesia desempenha esse papel na melancolia?

De acordo com o diagrama esquemático [Fig. 1], existem os tipos de anestesia que se seguem.

A anestesia, realmente, sempre consiste na omissão de V. (a sensação voluptuosa), que deve ser dirigida para o ps. S. [grupo sexual psíquico] após a ação reflexa que descarrega o órgão efetor. A sensação voluptuosa é medida pela quantidade da descarga.

(a)O E. [órgão efetor] não está completamente provido de carga; daí a descarga no coito ser pequena, e a V. [sensação voluptuosa], muito reduzida: o caso da frigidez.

(b)O trajeto desde a sensação até a ação reflexa está prejudicado, de modo que a ação não é suficientemente forte. Nesse caso, também é reduzida a descarga de V.: é o caso da anestesia masturbatória, da anestesia do coitus interruptus etc.

 

(c)Tudo o mais está em ordem; só que a V. não é admitida no ps. G. [grupo sexual psíquico] por estar vinculada numa outra direção (com a repulsa-defesa): esta é a anestesia histérica, inteiramente análoga à anorexia nervosa (repulsa).

Em que grau, pois, a anestesia favorece a melancolia?

No caso (a), de frigidez, a anestesia não é a causa da melancolia, mas um sinal de predisposição para a melancolia. Isso se coaduna com o Fato A (1), mencionado no começo deste artigo [em [1]]. Em outros casos, a anestesia é a causa da melancolia, pois o ps. G. [grupo sexual psíquico] é intensificado pela introdução de V. e enfraquecido por sua ausência. (Fundamentado em teorias gerais da vinculação da excitação na memória.) O Fato A (2) é assim levado em conta [em [1]].

Disto se conclui que é possível a pessoa sofrer de anestesia sem ser melancólica, pois a melancolia está relacionada com a falta de s. S. [excitação sexual somática], ao passo que a anestesia se relaciona com a ausência de V. No entanto, a anestesia é um sinal ou um pródromo da melancolia, pois o p. S. [grupo sexual psíquico] fica tão enfraquecido pela ausência de V. como pela ausência de s. S. [excitação sexual somática].

 

V

 

Torna-se necessário verificar por que a anestesia é tão predominantemente característica das mulheres. Isso tem origem no papel passivo desempenhado por elas. Um homem com anestesia logo deixa de empreender qualquer relação sexual; a mulher não tem escolha. As mulheres tornam-se frígidas mais facilmente porque:

(1)toda a sua educação se faz no sentido de não despertarem s. S.[excitação sexual somática], e sim de transformarem em estímulos psíquicos todas as excitações que de outro modo teriam esse efeito — isto é, de dirigirem a linha pontilhada [no diagrama esquemático, Fig. 1] do objeto sexual inteiramente para o ps. G. [grupo sexual psíquico]. Isso é necessário porque, se houvesse uma vigorosa s. S. [excitação sexual somática], o ps. G. [grupo sexual psíquico] logo adquiriria tal intensidade, intermitentemente, que, como ocorre no caso dos homens, traria o objeto sexual para uma situação favorável, por meio de uma reação específica [em [1]]. Mas das mulheres exige-se que renunciem ao arco da reação específica; em lugar

 

 

Fig. 2

 

disso, delas se exigem ações específicas que atraiam o homem para a ação específica. A tensão sexual é mantida em nível reduzido, seu acesso ao ps. G. [grupo sexual psíquico], na medida do possível, é vedado, e a força indispensável do ps. G. é suprida de uma outra maneira. Quando o ps G. entra num estado de desejo intenso, então, em vista do reduzido nível [de tensão] no E. [órgão efetor], esse estado é facilmente transformado em melancolia. O ps G., por si mesmo, comporta pouca resistência. Aqui temos o tipo juvenil e imaturo de libido, e as mulheres exigentes e frígidas, mencionadas acima [Fato A (3), em [1]], são simplesmente uma continuação desse tipo.

(2)As mulheres [tornam-se frígidas mais facilmente do que os homens] porque, muitas vezes, chegam ao ato sexual (casam) sem amor — ou seja, com menos s. S. [excitação sexual somática] e tensão em E. Nesse caso, são frígidas e continuam a sê-lo.

O reduzido nível de tensão em E. parece encerrar a principal predisposição à melancolia. Em pessoas desse tipo, toda neurose assume facilmente um cunho melancólico. Assim, enquanto os indivíduos potentes adquirem facilmente neuroses de angústia, os impotentes tendem à melancolia.

 

VI

 

E agora, como se explicam os efeitos da melancolia? A melhor descrição dos mesmos: inibição psíquica, com empobrecimento pulsional e o respectivo sofrimento.

Podemos imaginar que, quando o ps. G. [grupo sexual psíquico] se defronta com uma grande perda da quantidade de sua excitação, pode acontecer uma retração para dentro (por assim dizer) na esfera psíquica, que produz um efeito de sucção sobre as quantidades de excitação contíguas. Os neurônios associados são obrigados a desfazer-se de sua excitação, o que produz sofrimento. [Fig. 2.] Desfazer associações é sempre doloroso. Com isso, instala-se um empobrecimento da excitação (no seu depósito livre) — uma hemorragia interna, por assim dizer — que se manifesta nas outras pulsões e funções. Essa retração para dentro atua de forma inibidora, como uma ferida, num modo análogo ao da dor (cf. a teoria da dor física). (Uma contrapartida disso seria apresentada pela mania, na qual o excedente de excitação se comunica a todos os neurônios associados [Fig. 3].)

 

 

Fig. 3

 

Aqui, pois, há uma semelhança com a neurastenia. Nesta, acontece um empobrecimento muito semelhante, porque é como se, digamos, a excitação escapasse através de um buraco. Mas, nesse caso, o que escapa pelo buraco é s. S. [excitação sexual somática]; na melancolia, o buraco é na esfera psíquica. Contudo, o empobrecimento neurastênico pode estender-se à esfera psíquica. E, realmente, as manifestações são tão parecidas que alguns casos só podem ser diferençados com dificuldade.

 

RASCUNHO H: PARANÓIA

 

Na psiquiatria, as idéias delirantes situam-se ao lado das idéias obsessivas como distúrbios puramente intelectuais, e a paranóia situa-se ao lado da loucura obsessiva como um psicose intelectual. Se as obsessões já foram atribuídas a uma perturbação afetiva e se encontrou prova de que elas devem sua força a um conflito, então a mesma opinião deve ser válida para osdelírios, e também estes devem ser conseqüência de distúrbios afetivos, e sua força deve estar radicada num processo psicológico. Os psiquiatras aceitam o contrário desse fato, ao passo que os leigos tendem a atribuir a loucura delirante a eventos mentais desagregadores. “Um homem que não perde a razão diante de determinadas coisas não tem nenhuma razão para perder.”

 

Ora, sucede que a paranóia, na sua forma clássica, é um modo patológico de defesa, tal como a histeria, a neurose obsessiva e a confusão alucinatória. As pessoas tornam-se paranóicas diante de coisas que não conseguem tolerar, desde que para isso tenham a predisposição psíquica característica.

Em que consiste essa predisposição? Nenhuma tendência para aquilo que representa a caracterização psíquica da paranóia; e esta, nós a estudaremos mediante um exemplo.

Uma mulher solteira, já não muito nova (cerca de trinta anos), morava numa casa com o irmão e a irmã [mais velha]. Pertencia à classe trabalhadora superior; seu irmão trabalhou até tornar-se um pequeno industrial. Nesse meio tempo, alugaram um quarto a um colega de trabalho, um homem muito viajado, um tanto enigmático, muito talentoso e inteligente. Ele morou na companhia deles durante um ano e mantinha [com essa família] um relacionamento muito amável e comunicativo. A seguir, foi-se embora, mas voltou seis meses mais tarde. Dessa vez, ficou morando na casa por um tempo relativamente breve, e então desapareceu definitivamente. As irmãs, muitas vezes, costumavam lamentar sua ausência e não podiam senão falar bem dele. Não obstante, a irmã mais nova contou à mais velha um episódio em que ele fizera uma tentativa de deixá-la em dificuldade. Ela estava fazendo a arrumação dos quartos, enquanto ele ainda estava na cama. Ele a chamou para junto da cama e quando, inadvertidamente, ela obedeceu, ele colocou o pênis na mão dela. A cena não teve seqüência, e bem pouco tempo depois o estranho foi embora.

No decorrer dos anos seguintes, a irmã que tinha tido essa experiência adoeceu. Passou a se queixar e, por fim, desenvolveu delírios inequívocos de estar sendo observada e perseguida, no seguinte sentido: achava que suas vizinhas tinham pena dela por ter sido abandonada pelo pretenso namorado e por ainda estar esperando que o homem voltasse; estavam sempre a lhe dizer insinuações dessa natureza, diziam-lhe todo tipo de coisas a respeito do homem, e assim por diante. Tudo isso, dizia ela, era naturalmente inverídico. A partir daí, a paciente cai nesse estado somente por algumas semanas de cada vez. Sua compreensão interna (insight) retorna temporariamente e ela explica que tudo isso foi conseqüência de se haver excitado; mesmo assim, nos intervalos, padece de uma neurose que pode ser facilmente interpretada como neurose sexual. E logo cai em novo surto de paranóia.

A irmã mais velha ficava surpresa ao verificar que, tão logo a conversa se encaminhava para a cena da sedução, a paciente costumava evitá-la. Breuer ouvir falar no caso, a paciente foi-me encaminhada, e procurei curar sua tendência à paranóia tentando fazê-la reviver a lembrança da cena. Não obtive resultado. Conversei com ela duas vezes e insisti para que me contasse tudo o que se relacionava com o inquilino, em hipnose de “concentração”. Em resposta a minhas perguntas para saber se não teria mesmo acontecido algo de embaraçoso, deparei com a mais resoluta negativa — nunca mais vi a paciente. Ela ainda me enviou um recado, para dizer que aquilo a havia aborrecido demais. Defesa! Isso era óbvio. Ela queria não se lembrar do incidente e, por conseguinte, recalcava-o intencionalmente.

Não podia haver qualquer dúvida a respeito da defesa; mas essa defesa poderia igualmente ter levado a um sintoma histérico ou a uma idéia obsessiva. Qual seria a peculiaridade da defesa paranóica?

Ela estava-se poupando de algo; algo fora recalcado. Podemos entrever o que era. Provavelmente, na realidade, ela ficava excitada com o que viu e com a lembrança do fato. Logo, estava-se poupando da censura de ser uma “mulher depravada”. Daí em diante, passou a ouvir essa mesma censura, agora proveniente de fora. Assim, o tema permanecia inalterado; o que mudava era a localização da coisa. Antes, tratara-se de uma autocensura interna; agora, era uma recriminação vinda de fora. O julgamento a respeito dela fora transposto para fora: as pessoas estavam dizendo aquilo que, de outro modo, ela diria a si mesma. Havia uma vantagem nisso. Ela teria sido obrigada a aceitar o julgamento proveniente de dentro; já o que vinha do exterior, podia rejeitar. Dessa forma, o julgamento, a censura, era mantida afastada de seu ego.

 

Portanto, o propósito da paranóia é rechaçar uma idéia que é incompatível com o ego, projetando seu conteúdo no mundo externo.

Neste ponto surgem duas questões: [1] Como se efetua uma transposição dessa espécie? [2] Isso se aplica também a outros casos de paranóia?

(1) A transposição se efetua de maneira muito simples. Trata-se do abuso de um mecanismo psíquico muito comumente utilizado na vida normal: a transposição ou projeção. Sempre que ocorre uma modificação interna, temos a opção de supor a existência de uma causa interna ou de uma causa externa. Quando algo nos impede a derivação interna, naturalmente recorremos à externa. E, depois, estamos acostumados a verificar que nossos estados internos se revelam (por uma expressão da emoção) às outras pessoas. Isso responde pelos delírios normais de estar sendo observado e pela projeção normal. Pois são normais na medida em que, nesse processo, permanecemos conscientes de nossa própria mudança interna. Se a esquecermos e se nos ativermos tão-somente a uma das premissas do silogismo, àquela que conduz para o exterior, teremos aí a paranóia, com sua supervalorização daquilo que as pessoas sabem a nosso respeito e daquilo que as pessoas nos fizeram. O que é que as pessoas sabem a nosso respeito, de que nada sabemos e que não podemos admitir? Trata-se, pois, de um abuso do mecanismo da projeção para fins de defesa.

Realmente, algo muito parecido se passa com as idéias obsessivas. O mecanismo de substituição também é um mecanismo normal. Quando uma solteirona idosa se dedica a cuidar de um cão, ou um solteirão idoso coleciona caixas de rapé, aquela está encontrando um sucedâneo para sua necessidade de companhia no casamento, e este, para sua necessidade de — uma infinidade de conquistas. Todo colecionador é substituto de um Don Juan Tenorio, como igualmente o são o montanhista, o desportista, todas essas pessoas. Essas coisas são equivalentes eróticos. As mulheres também as conhecem. O tratamento ginecológico enquadra-se nessa categoria. Há duas espécies de pacientes femininas: umas são tão leais a seus médicos como a seus maridos, e outras mudam de médico com a mesma freqüência com que mudam de amante. Esse mecanismo de substituição, normalmente atuante, é usado em excesso nas idéias obsessivas — e também aí a finalidade é a defesa.

 

(2) Pois bem, será que esse ponto de vista se aplica também aos outros casos de paranóia? A todos eles, é o que penso. No entanto, passo a mostrar alguns exemplos.

O paranóico litigante não consegue tolerar a idéia de que agiu errado ou de que deve repartir sua propriedade. Portanto, pensa que o julgamento não foi legalmente válido, que ele não está errado etc. Esse caso é por demais claro, mas também não de todo evidente; talvez se possa mostrá-lo em termos mais simples.

A “grande nation” não consegue enfrentar a idéia de ter sido derrotada na guerra. Logo, não foi derrotada; a vitória não conta. Constituiu um exemplo de paranóia de massa e cria o delírio de traição.

O alcoólatra jamais admitirá perante si mesmo que se tornou impotente por causa da bebida. Por mais que consiga tolerar o álcool, não consegue suportar esse conhecimento. Assim, é sua mulher a culpada — delírios de ciúme, e assim por diante.

O hipocondríaco vai se debater, durante muito tempo, até encontrar a chave de suas sensações de estar gravemente enfermo. Não admitirá perante si mesmo que seus sintomas têm origem na sua vida sexual; mas causa-lhe a maior satisfação pensar que seu mal, como diz Moebius, não é endógeno, mas exógeno. Logo, ele está sendo envenenado.

O funcionário que foi preterido na promoção convence-se de que deve haver conspiração contra ele e de que devem estar a espioná-lo em sua sala. Não fosse isso, teria de admitir seu fracasso.

Nem sempre, necessariamente, são delírios de perseguição que se desenvolvem desse modo. Talvez a megalomania até comporte mais capacidade de manter afastada do ego a idéia penosa. Tome-se, por exemplo, uma cozinheira que perdeu seus atrativos e que precisa acostumar-se com a idéia de que está definitivamente excluída da felicidade no amor. É este o momento certo de aparecer o cavalheiro da casa em frente, que, evidentemente, deseja casar-se com ela, que lhe está dando a entender isso de um modo extraordinariamente tímido, mas, mesmo assim, inconfundível.

Em todos os casos a idéia delirante é sustentada com a mesma energia com que uma outra idéia, intoleravelmente penosa, é rechaçada do ego. Assim, essas pessoas amam seus delírios como amam a si mesmas. É esse o segredo.

Pois bem, como é que se compara essa forma de defesa com as formas de defesa que já conhecemos: (1) histeria, (2) idéia obsessiva, (3) confusão alucinatória, (4) paranóia? Temos de levar em conta: afeto, conteúdo da idéia e alucinações. [Cf. resumo na Fig. 4.]

(1) Histeria. A idéia incompatível não tem acesso à associação com o ego. O conteúdo é retido num compartimento separado, está ausente da consciência; seu afeto [é eliminado] por conversão na esfera somática — A psiconeurose é a única [conseqüência].

(2) Idéia obsessiva. Também aqui, a idéia incompatível não tem acesso à associação. O afeto é conservado; o conteúdo é representado por um substituto.

(3) Confusão alucinatória. A totalidade da idéia incompatível — afeto e conteúdo — é mantida afastada do ego; e isto só se torna possível à custa de um desligamento parcial do mundo externo. Resta o recurso às alucinações, que comprazem ao ego e apóiam a defesa.

(4) Paranóia. O conteúdo e o afeto da idéia incompatível são mantidos, em direto contraste com (3); mas são projetados no mundo externo. As alucinações, que surgem em algumas formas da doença, são hostis ao ego, mas apóiam a defesa.

Nas psicoses histéricas, pelo contrário, são justamente as idéias rechaçadas que assumem o domínio. O tipo dessas psicoses é o ataque e o état secondaire. As alucinações são hostis ao ego.

A idéia delirante é ou uma cópia da idéia rechaçada, ou o oposto desta (megalomania). A paranóia e a confusão alucinatória são as duas psicoses de desafio ou oposição. A “auto-referência” da paranóia é análoga às alucinações dos estados confusionais, pois estas procuram afirmar exatamente o contrário do fato que foi rechaçado. Assim, a referência a si mesmo sempre tenta provar a correção da projeção.

 

RESUMO

 

Fig. 4

 

CARTA 22

 

…Não tenho nada para lhe contar. Quando muito, uma pequena analogia com a psicose onírica de D, que estudamos juntos.  Rudi Kaufmann, sobrinho muito inteligente de Breuer, e também estudante de medicina, é uma pessoa que custa a levantar da cama. Manda que a empregada o chame, porém sempre reluta muito em obedecer a ela. Certa manhã, ela o despertou uma segunda vez e, como ele não respondesse, chamou-o pelo nome: “Herr Rudi!” Com isso, o dorminhoco teve uma alucinação com um quadro de avisos junto a um leito de hospital (cf. o Rudolfinerhaus), no qual havia o nome “Rudolf Kaufmann”, e disse a si mesmo: “Bom, de qualquer modo o R. K. está no hospital; portanto, não preciso ir até lá”, e continuou a dormir. [1]

 

RASCUNHO I: ENXAQUECA: ASPECTOS ESTABELECIDOS

 

(1) Uma questão de soma: Há um intervalo de horas ou dias entre a instigação dos sintomas. Tem-se uma espécie de sensação de que um obstáculo está sendo superado e de que um processo segue então adiante.

(2) Uma questão de soma. Mesmo sem uma instigação, tem-se a impressão de que deve haver um estímulo que se acumula, o qual está presente em quantidade mínima, no início do intervalo, e em quantidade máxima, no fim do mesmo.

(3) Uma questão de soma, na qual a suscetibilidade aos fatores etiológicos está na altura do nível do estímulo já presente.

(4) Uma questão com etiologia complexa. Talvez nos moldes de uma etiologia em cadeia, na qual uma causa próxima pode ser induzida por uma série de fatores, direta e indiretamente, ou nos moldes de uma etiologia em soma, na qual, juntamente com uma causa específica, as causas acumuladas podem agir como substitutos quantitativos. [1]

(5) Uma questão semelhante ao modelo da enxaqueca menstrual e pertencente ao grupo sexual. Provas:

(a) Raríssima em homens sadios.

(b) Restrita ao período sexual da vida: infância e velhice praticamente excluídas.

(c) Se é produzida por soma, também o estímulo sexual é algo que se produz por soma.

(d) A analogia da periodicidade.

(e) Freqüência em pessoas com perturbação da descarga sexual (neurastenia, coitus interruptus).

(6) Certeza de que a enxaqueca pode ser produzida por estímulos químicos: emanações tóxicas humanas, siroco, fadiga, odores. Ora, o estímulo sexual também é um estímulo químico.

(7) Cessação da enxaqueca durante a gravidez, quando a produção talvez esteja voltada para outra parte.

Isto parece mostrar que a enxaqueca é um efeito tóxico produzido pela substância estimulante sexual quando esta não consegue encontrar descarga suficiente. E talvez se deve acrescentar a isto o fato de que está presente uma determinada via (cuja localização precisa ser determinada) que se acha num estado de suscetibilidade especial. A questão implícita nisto é a questão a respeito da localização da enxaqueca.

(8) Com relação a essa via, temos indicações de que as doenças orgânicas do crânio, tumores e supurações (sem ligações tóxicas intermediárias?) produzem enxaqueca, ou algo parecido, além do que a enxaqueca é unilateral, correlaciona-se com o nariz e se liga a fenômenos isolados de paralisias.O primeiro desses sinais não é muito claro. A unilateralidade, a localização acima do olho e a complicação pelas paralisias localizadas são mais importantes.

(9) A dor da enxaqueca só pode sugerir o envolvimento das meninges, pois as afecções da massa cerebral certamente são indolores.

(10) Se, nesse sentido, a enxaqueca se assemelha à nevralgia, isso se coaduna com a soma, a sensibilidade e suas oscilações, a produção de nevralgia mediante estímulos tóxicos. A nevralgia tóxica será, assim, o seu protótipo fisiológico. O couro cabeludo é a sede de sua dor e o trigêmeo é sua via. Como, entretanto, a alteração nevrálgica só pode ser de natureza central, devemos supor que, logicamente, o centro da enxaqueca é um núcleo do trigêmeo cujas fibras inervam a dura-máter.

De vez que, na enxaqueca, a dor tem uma localização parecida com a da nevralgia supra-orbital, esse núcleo dural deve situar-se nas proximidades do núcleo da primeira ramificação. Como os diferentes ramos e núcleos do trigêmeo se influenciam uns aos outros, todas as outras afecções do trigêmeo podem contribuir para a etiologia [da enxaqueca] como fatores convergentes (não como fatores banais).

A sintomatologia e a posição biológica da enxaqueca.

A dor de uma nevralgia geralmente encontra sua descarga através de tensão tônica (ou mesmo de espasmo clônico). Portanto, não é impossível que a enxaqueca possa incluir uma inervação espástica dos músculos dos vasos sangüíneos na esfera reflexa da região dural. Podemos atribuir a essa intervenção a perturbação geral (e, a rigor, a perturbação local) da função, que não difere, sintomatologicamente, de um distúrbio parecido, causado por constrição vascular. (Cf. a semelhança entre a enxaqueca e os ataques de trombose.) Parte da inibição é devida à própria dor. Presumivelmente, é a área vascular do plexo coróide a primeira a ser atingida pelo espasmo da descarga. A relação com o olho e com o nariz é explicada pela sua inervação comum pelo primeiro ramo [do trigêmeo]. [1]

 

RASCUNHO J

FRAU P. J. (27 ANOS)

 

[I]

 

Estava casada havia três meses. Seu marido, caixeiro-viajante, precisara deixá-la por algumas semanas, depois do casamento, e já estava ausente há semanas. Ela sentia muita falta dele e ansiava por sua volta. Tinha sido cantora ou, pelo menos, se formara como cantora. Para passar o tempo, estava [um dia] sentada ao piano, cantando, quando subitamente sentiu-se mal — um mal-estar no abdome e no estômago, com a cabeça rodando, sensações de opressão e angústia e parestesia cardíaca; pensou que estava enlouquecendo. Instantes após, lembrou-se de que, naquela manhã, havia comido ovos e cogumelos e concluiu ter-se envenenado. No entanto, esse estado logo se dissipou. No dia seguinte, a empregada contou-lhe que uma mulher que morara na mesma casa tinha enlouquecido. Desse momento em diante, nunca mais ficou livre da obsessão, acompanhada de angústia, de que também ela estaria por enlouquecer.

Essa é a essência do caso. De início, supus que sua condição tivesse sido um ataque de angústia — uma liberação de sensação sexual que se transformou em angústia. Um ataque desse tipo, segundo pensei, poderia ocorrer sem qualquer processo psíquico concomitante. Ainda assim, eu não queria rejeitar a possibilidade mais favorável de que se pudesse descobrir tal processo; pelo contrário, eu o tomaria como o ponto de partida de meu trabalho. O que eu esperava encontrar era o seguinte. Ela alimentava um desejo intenso pelo marido — isto é, o desejo de ter relações sexuais com ele; com isso, veio-lhe uma idéia que excitou o afeto sexual e, depois, a defesa contra a idéia; a seguir, ela foi assaltada pelo medo e fez uma falsa conexão ou substituição.

 

Comecei perguntando-lhe acerca das circunstâncias acessórias do ocorrido; algo devia tê-la feito recordar-se do marido. Ela estivera cantando a ária de Carmen “Près des remparts de Séville”. Pedi-lhe que a repetisse para mim; ela nem conseguia lembrar-se exatamente das palavras. — Em que ponto a Srª acha que lhe veio o ataque? — Ela não sabia. — Quando apliquei pressão [em sua fronte], ela disse que tinha sido depois de haver terminado a ária. Isso parecia bem possível: tinha sido uma seqüência de pensamentos, que emergira a partir da letra da ária. — Afirmei então que, antes do ataque, tinha havido nela pensamentos dos quais não conseguia lembrar-se. De fato, não se lembrava de nada, mas a pressão [em sua fronte] fez surgir as palavras “marido” e “desejar”. Diante de minha insistência, esta última palavra foi mais especificada como sendo desejo de carícias sexuais. — “Penso que é isso mesmo. Afinal, seu ataque não passou de um estado de extravasamento amoroso. Pergunto-lhe se conhece a canção do pajem:

Voi che sapete che cosa è amor,Donne vedete s’io l’ho nel cor…

Por certo houve algo além disso: uma sensação na parte inferior do corpo, um desejo convulsivo de urinar.” — Ela então confirmou isso. A insinceridade das mulheres começa quando elas omitem os sintomas sexuais característicos ao descreverem o que sentem. De modo que tinha sido realmente um orgasmo.

—“Bem, a senhora percebe, de qualquer modo, que um estado de desejo como esse, numa mulher jovem que se viu abandonada pelo marido, não é nada de que se deva sentir vergonha.” — Pelo contrário, pensou ela, algo a ser aprovado. — “Muito bem; mas, nesse caso, não consigo ver o motivo do medo. Certamente a senhora não receou ‘marido’ nem ‘desejo’; de modo que devem estar faltando outros pensamentos que são mais próprios para suscitar medo.” — Mas ela apenas acrescentou que sempre temera as dores que lhe causava a relação sexual, mas que seu desejo tinha sido muito mais forte do que o medo das dores. — Nesse ponto, interrompemos.

II

Havia fortes razões para suspeitar de que, na Cena I (estando a paciente ao piano), juntamente com os pensamentos desejantes em relação ao marido (dos quais antes se lembrava), ela havia entrado numa outra seqüência profunda de pensamentos, da qual não tinha recordação, e foram estes os pensamentos que levaram à Cena II. Mas eu ainda não conhecia seu ponto de partida. Hoje, a paciente veio chorando e desesperada, evidentemente sem qualquer esperança de o tratamento ter êxito. De modo que suas resistências já estavam aguçadas, e o progresso se tornou bem mais difícil. O que eu desejava saber, a essa altura, era que pensamentos capazes de assustá-la ainda se encontravam presentes. Ela mencionou todo tipo de coisas que não poderiam ser pertinentes ao caso: o fato de que, por longo tempo, não tinha sido deflorada (o que lhe foi confirmado pelo Prof. Chrobak), de que atribuía seu estado nervoso a isso e, por esse motivo, desejava que o defloramento pudesse ser feito. — Naturalmente, esse pensamento provinha de uma época posterior: até a Cena I ela tivera boa saúde. — Por fim, obtive a informação de que ela já havia experimentado um ataque semelhante, mas muito mais fraco e mais transitório, com as mesmas sensações. (A partir disso, verifiquei ter sido a partir do quadro mnêmico do orgasmo que entrou em jogo a via de acesso que abriu caminho para as camadas mais profundas.) Investigamos a outra cena. Naquela época — há quatro anos passados — ela tivera um compromisso em Ratisbona. Pela manhã, havia cantado num recital e tinha-se saído bem. De tarde, em casa, teve uma “visão” — como se houvesse algo, uma “briga” entre ela e o tenor da companhia e um outro homem, e depois disso teve o ataque, com o medo de estar enlouquecendo.

Aqui estava, pois a Cena II, a que se fizera uma alusão, por associação, na Cena I. No entanto, era evidente que também aqui havia lacunas na memória. Outras idéias deveriam ter estado presentes para explicar o desencadeamento da sensação sexual e do pavor. Indaguei sobre esses elos intermediários e, em lugar destes, foram-me contados os motivos da paciente. Ela se havia desgostado de tudo o que se referia à vida de artista. — “Por quê?” — A rispidez do diretor e o relacionamento dos atores entre si. — Perguntei por detalhes a esse respeito. — Tinha havido uma velha atriz cômica, com quem os atores jovens costumavam gracejar, perguntando-lhe se podiam passar a noite com ela. — “E o que mais, a respeito do tenor?” — Também este a tinha importunado; no recital, tinha colocado a mão no seio dela. — “Na sua roupa, ou diretamente na pele?” — Primeiro, ela disse que fora na pele, mas depois voltou atrás: disse que fora tocada na roupa. — “Bem, e o que mais?” — Todas as características dos relacionamentos daquelas pessoas, todos os abraços e beijos entre os atores tinham-na deixado amedrontada. — “Sim?” — Mais uma vez, fala na rispidez do diretor, embora só tivesse ficado lá alguns dias. — “A investida do tenor aconteceu no mesmo dia do seu ataque?” — Não; ela não sabia se fora antes ou depois. — Minhas perguntas feitas com auxílio da pressão mostraram que a tentativa de sedução ocorrera no quarto dia de sua estada, e o ataque, no sexto.

Interrompido pelo sumiço da paciente.

NOTA

Durante toda a parte final do ano de 1895, Freud esteve muito ocupado com o problema teórico fundamental da relação entre neurologia e psicologia. Suas reflexões finalmente levaram ao trabalho inconcluso a que demos o título de Projeto para uma Psicologia Científica. Este foi escrito em setembro e outubro de 1895 e deveria ser publicado, cronologicamente, nesse ponto dos documentos dirigidos a Fliess. No entanto, ele sobressai tanto dentre esses outros documentos e constitui uma entidade tão extraordinária e autônoma que pareceu aconselhável editá-lo de forma destacada, no final deste volume. Uma das cartas, a de nº 39, escrita em 1º de janeiro de 1896, está tão estreitamente relacionada com o Projeto (sem o qual, aliás, seria ininteligível) que também foi tirada do seu lugar original na correspondência e editada como um apêndice ao Projeto. Que Freud, durante todo esse tempo, tivesse estado interessado também em temas clínicos, fica visivelmente demonstrado pelo fato de que, no mesmo dia em que remeteu essa carta (1º de janeiro de 1896), também remeteu a Fliess o Rascunho K, que se segue aqui e que é, sob muitos aspectos, um esboço preliminar completo de seu segundo artigo sobre as neuropsicoses de defesa (1896b), concluído logo após.

 

RASCUNHO K: AS NEUROSES DE DEFESA

 

(Um Conto de Fadas Natalino)

Há quatro tipos e muitas formas dessas neuroses. Posso apenas traçar uma comparação entre histeria, neurose obsessiva e uma forma de paranóia. Elas têm várias coisas em comum. São aberrações patológicas de estados afetivos psíquicos normais: de conflito (histeria), de autocensura (neurose obsessiva), de mortificação (paranóia), de luto (amência alucinatória aguda). Diferem desses afetos pelo fato de não conduzirem à resolução de coisa alguma, e sim a um permanente prejuízo para o ego. Ocorrem sujeitas às mesmas causas precipitantes dos seus protótipos afetivos, contanto que a causa preencha duas precondições a mais — que seja de natureza sexual e que ocorra durante o período anterior à maturidade sexual (as precondições de sexualidade e infantilismo). Quanto às precondições que se aplicam à pessoa em questão, não tenho novos conhecimentos. Genericamente, diria que a hereditariedade é uma precondição a mais, no sentido de que ela facilita e aumenta o afeto patológico — isto é, a precondição que, predominantemente, torna possíveis as gradações entre o normal e o caso extremo. Não creio que a hereditariedade determine a escolha de uma neurose defensiva especial.

Existe uma tendência normal à defesa — uma aversão contra dirigir a energia psíquica de tal maneira que daí resulte algum desprazer. Essa tendência, que está ligada às condições mais fundamentais do funcionamento psíquico (a lei da constância), não pode ser empregada contra as percepções, pois estas são capazes de se impor à atenção (como é evidenciado pela consciência dessas percepções); tal tendência atua somente contra as lembranças e os pensamentos. É inócua quando se trata de idéias às quais, em alguma época, esteve ligado algum desprazer, mas que, na época atual, não tem possibilidade de originar desprazer (a não ser o desprazer recordado); também em tais casos, essa tendência pode ser implantada pelo interesse psíquico.

A tendência à defesa, porém, torna-se prejudicial quando é dirigida contra idéias também capazes de, sob a forma de lembranças, liberar um novo desprazer — como é o caso das idéias sexuais. É nisso, realmente, que se concretiza a possibilidade de uma lembrança ter, posteriormente, uma capacidade de liberação maior do que a produzida pela experiência correspondente. Somente uma coisa é necessária para isto: que a puberdade se interponha entre a experiência e sua repetição na lembrança — evento que tanto aumenta o efeito da revivescência. O funcionamento psíquico parece despreparado para essa exceção; por esse motivo, para que a pessoa esteja livre da neurose, a precondição necessária é que antes da puberdade não tenha ocorrido nenhuma estimulação sexual de maior significação, embora seja verdade que o efeito de tal experiência deve ser incrementado pela predisposição hereditária, antes de poder atingir um nível capaz de causar doença.

(Aqui surge um problema correlato: como ocorre que, sob condições análogas, em vez da neurose emerjam a perversão ou, simplesmente, a imoralidade?)

Por certo mergulharemos profundamente em enigmas psicológicos, se investigarmos a origem do desprazer que parece ser liberado pela estimulação sexual prematura, e sem o qual, enfim, não é possível explicar um recacalmento. A resposta mais plausível apontará o fato de que a vergonha e a moralidade são as forças recalcadoras, e que a vizinhança em que estão naturalmente situados os órgãos sexuais deve, inevitavelmente, despertar repugnância junto com as experiências sexuais. Onde não existe vergonha (como numa pessoa do sexo masculino), ou onde não entra a moralidade (como nas classes inferiores da sociedade), ou onde a repugnância é embrutecida pelas condições de vida (com nas zonas rurais), também não resultam nem neurose nem recalcamento em decorrência da estimulação sexual na infância. Contudo, temo que essa explicação não resista a um teste mais aprofundado. Não penso que a produção de desprazer durante as experiências sexuais seja conseqüência da mistura ao acaso de determinados fatores desprazerosos. A experiência diária nos mostra que, quando a libido alcança um nível suficiente, a repulsa não é sentida e a moralidade é suplantada; penso que o aparecimento da vergonha se relaciona, por meio de ligações mais profundas, com a experiência sexual. Em minha opinião, a produção de desprazer na vida sexual deve ter uma fonte independente: uma vez que esteja presente essa fonte, ela pode despertar sensações de repulsa, reforçar a moralidade, e assim por adiante. Persisto no modelo da neurose de angústia em adultos, na qual uma quantidade proveniente da vida sexual causa, de modo parecido, um distúrbio na esfera psíquica, embora habitualmente pudesse ter um outro uso no processo sexual. De vez que não existe nenhuma teoria correta do processo sexual, permanece sem resposta a questão da origem do desprazer que atua no recalcamento. [Ver em [1].]

O rumo tomado pela doença nas neuroses de recalcamento é, em geral, sempre o mesmo: (1) a experiência sexual (ou a série de experiências), que é traumática e prematura e deve ser recalcada. (2) Seu recalcamento em alguma ocasião posterior, que desperta a lembrança correspondente; ao mesmo tempo, a formação de um sintoma primário. (3) Um estágio de defesa bem-sucedida, que é equivalente à saúde, exceto quanto à existência do sintoma primário. (4) O estágio em que as idéias recalcadas retornam e em que, durante a luta entre elas e o ego, formam-se novos sintomas, que são os da doença propriamente dita: isto é, uma fase de ajustamento, de ser subjugado, ou de recuperação com uma malformação.

As principais diferenças entre as diversas neuroses são demonstradas na forma como retornam as idéias recalcadas; outras diferenças são evidenciadas na maneira como os sintomas se formam e no rumo tomado pela doença. Mas o caráter específico de uma determinada neurose está no modo como se realiza o recalque.

O curso dos acontecimentos na neurose obsessiva é o mais claro para mim, pois foi o que cheguei a conhecer melhor.

 

NEUROSE OBSESSIVA

Aqui, a experiência primária foi acompanhada de prazer. Quer tenha sido uma experiência ativa (nos meninos), quer tenha sido uma experiência passiva (nas meninas), ela se realizou sem dor ou qualquer mescla de nojo; e isso, no casos das meninas, implica, em geral, uma idade relativamente maior (cerca de 8 anos). Quando essa experiência é relembrada posteriormente, ela dá origem ao surgimento de desprazer; e, em especial, emerge primeiro uma autocensura, que é consciente. Na verdade, aparentemente, é como se todo o complexo psíquico — lembrança e autocensura — fosse de início consciente. Depois, sem que nada de novo sobrevenha, ambas são recalcadas, e na consciência se forma, em lugar delas, um sintoma antitético, uma nuança de escrupulosidade.

O recalcamento pode processar-se devido ao fato de que a lembrança do prazer, como tal, produz desprazer, quando recordada anos depois; isso deveria ser explicável por uma teoria da sexualidade. Mas as coisas também podem acontecer de modo diferente. Em todos os meus casos de neurose obsessiva, em idade muito precoce, anos antes da experiência de prazer, tinha havido uma experiência puramente passiva; e isso dificilmente se daria por acaso. Assim, podemos supor que é a convergência, posteriormente, dessa experiência passiva com a experiência de prazer que adiciona o desprazer à lembrança prazerosa e possibilita o recalcamento. De modo que uma precondição clínica necessária da neurose obsessiva consistiria em que a experiência passiva deveria ocorrer tão precocemente que não fosse capaz de impedir a ocorrência espontânea da experiência de prazer. A fórmula, portanto, seria esta:

Desprazer — Prazer — Recalcamento.

O fator determinante seriam as relações cronológicas das duas experiências entre si e com a época da maturidade sexual.

No estágio do retorno do recalcado ocorre que a autocensura retorna sem modificação, mas raramente de modo a atrair a atenção para si; durante certo tempo, portanto, emerge simplesmente como um sentimento de culpa sem qualquer conteúdo. Em geral, vem a se ligar a um conteúdo que é distorcido de duas maneiras — no tempo e no conteúdo: distorcido quanto ao tempo na medida em que se refere a uma ação contemporânea ou futura, e distorcido quanto ao conteúdo na medida em que significa não o evento real, mas um sucedâneo escolhido a partir da categoria daquilo que é análogo — uma substituição. Por conseguinte, uma idéia obsessiva é produto de um compromisso, correto quanto ao afeto e à categoria, mas falso devido ao deslocamento cronológico e à substituição por analogia.

O afeto da autocensura pode ser transformado, por diferentes processos psíquicos, em outros afetos, os quais, depois, entram na consciência mais claramente do que o afeto como tal: por exemplo, pode ser transformado em angústia (medo das conseqüências da ação a que se refere a autocensura), hipocondria (medo dos efeitos corporais), delírios de perseguição (medo dos seus efeitos sociais), vergonha (medo de que outras pessoas saibam), e assim por diante.

O ego consciente considera a obsessão como algo que lhe é estranho: não acredita nela, ao que parece, valendo-se da idéia antitética da escrupulosidade, formada muito tempo antes. Mas, nesse estágio, muitas vezes pode acontecer uma subjugação do ego pela obsessão — por exemplo, quando o ego é atingido por uma melancolia transitória. Exceto quanto a isso, a fase de doença é marcada pela luta defensiva do ego contra a obsessão; e isso, por si só, pode produzir novos sintomas — os da defesa secundária. A idéia obsessiva, tal como qualquer outra idéia, é atacada pela lógica, embora sua força compulsiva seja inabalável. Os sintomas secundários são uma intensificação da escrupulosidade e uma compulsão a perscrutar minuciosamente as coisas e acumulá-las. Outros sintomas secundários surgem quando a compulsão é transferida para impulsos motores contra a obsessão — por exemplo, compulsão a ensimesmar-se, compulsão para a bebida (dipsomania), rituais protetores, folie de doute.

Com isto, chegamos à formação de três espécies de sintomas:

(a) o sintoma primário da defesa — escrupulosidade,

(b) os sintomas de compromisso da doença — idéias obsessivas ou afetos obsessivos,

(c) os sintomas secundários da defesa — ensimesmamento obsessivo, acumulação obsessiva de objetos, dipsomania, rituais obsessivos.

Os casos em que o conteúdo da memória não se tornou admissível à consciência através da substituição, mas em que o afeto da autocensura se tornou admissível mediante transformação, dão a impressão de ter ocorrido um deslocamento numa cadeia de inferências: acuso-me por causa de um acontecimento — receio que outras pessoas saibam dele — portanto, sinto vergonha diante de outras pessoas. Tão logo é recalcado o primeiro elo da seqüência, a obsessão passa para o segundo ou terceiro elo e leva a duas formas de delírios de observação que, no entanto, fazem realmente parte da neurose obsessiva. A luta defensiva termina em mania de generalizada dúvida ou no desenvolvimento de uma vida de excêntrico, com um sem-número de sintomas defensivos secundários — isto é, se é que chega mesmo a haver um término.

Ainda permanece em aberto a questão de saber se as idéias recalcadas retornam espontaneamente, sem a ajuda de qualquer força psíquica contemporânea, ou se necessitam desse tipo de ajuda a cada novo movimento de retorno. Minhas experiências indicam esta última alternativa. Parece que os estados de libido insatisfeita contemporânea são o elemento que empresta aforça do seu desprazer para reavivar a autocensura recalcada. Uma vez que tenha ocorrido esse reavivamento e que os sintomas tenham surgido mediante o impacto do recalcado sobre o ego, aí, sem dúvida, o material ideativo recalcado continua a atuar espontaneamente; contudo, dentro das oscilações de potencial quantitativo, sempre permanece dependente da quantidade de tensão libidinal presente no momento. A tensão sexual que, por ter sido satisfeita, não tem oportunidade de se transformar em desprazer, permanece inócua. Os neuróticos obsessivos são pessoas sujeitas ao perigo de que toda a tensão sexual cotidianamente gerada neles acabe por se transformar em autocensura, ou melhor, nos sintomas provenientes da autocensura, embora, nessa ocasião, não reconheçam novamente a autocensura primária.

A neurose obsessiva pode ser curada se desfizermos todas as substituições e transformações afetivas ocorridas, de tal modo que a autocensura primária e a experiência a ela pertinente possam ser desnudadas e colocadas diante do ego consciente para serem julgadas de novo. Ao fazermos isso, temos de trabalhar um número incrível de idéias intermediárias ou de compromisso, que se tornam temporariamente idéias obsessivas. Adquirimos uma convicção muito clara de que, para o ego, é impossível dirigir para o material recalcado a parte da energia psíquica a que o pensamento consciente está vinculado. As idéias recalcadas — ao que devemos crer — estão presentes nas seqüências mais racionais de idéias e nelas penetram sem inibição; e também a lembrança delas é despertada pelas mais insignificantes alusões. A suspeita de que a “moralidade” é apresentada como força recalcadora somente na qualidade de pretexto é confirmada pela experiência segundo a qual a resistência, durante o trabalho terapêutico, se vale de todos os motivos de defesa possíveis.

 

PARANÓIA

Os determinantes clínicos e as relações cronológicas do prazer e do desprazer na experiência primária ainda me são desconhecidos. O que pude distinguir foram a existência do recalcamento, o sintoma primário e o estágio de doença tal como determinado pelo retorno das idéias recalcadas.

A experiência primária parece ser de natureza semelhante à da neurose obsessiva. O recalque ocorre depois que a respectiva lembrança causou desprazer — não se sabe como. Contudo, nenhuma autocensura se forma, nem é posteriormente recalcada; e o desprazer gerado é atribuído a pessoas que, de algum modo, se relacionam com o paciente, segundo a fórmula psíquica da projeção. O sintoma primário formado é a desconfiança (suscetibilidade a outras pessoas). Nesta, o que se passa é que a pessoa se recusa a crer na autocensura.

Podemos suspeitar da existência de diferentes formas, conforme o caso: quando apenas o afeto é reprimido por projeção, ou quando, juntamente com o afeto, também o conteúdo da experiência é recalcado. Logo, mais uma vez, o que retorna pode ser simplesmente o afeto aflitivo, ou também a lembrança. No segundo caso, que é o que conheço melhor, o conteúdo da experiência retorna sob a forma de um pensamento que ocorre ao paciente como alucinação visual ou sensorial. O afeto reprimido parece retornar invariavelmente nas alucinações auditivas.

As partes das lembranças que retornam sofrem uma distorção ao serem substituídas por imagens análogas, extraídas do momento presente — isto é, são simplesmente distorcidas por uma substituição cronológica, e não pela formação de um substituto. As vozes, igualmente, lembram a autocensura, como sintoma de compromisso, e o fazem, em primeiro lugar, distorcidas em seu enunciado a ponto de se tornarem indefinidas e de se transformarem em ameaças; e, em segundo lugar, relacionadas não com a experiência primária, mas justamente com a desconfiança — isto é, com o sintoma primário.

Como a crença foi separada da autocensura primária, ela assume o comando irrestrito dos sintomas de compromisso. O ego não os considera como estranhos a si mesmo, mas é impelido por eles a fazer tentativas de explicá-los, tentativas que podem ser descritas como delírios assimilatórios.

Nesse ponto, com o retorno do recalcado sob forma distorcida, a defesa fracassa de vez; e os delírios assimilatórios não podem ser interpretados como sintomas de defesa secundária, mas como o início de uma modificação do ego, expressão do fato de ter sido ele subjugado. O processo atinge seu ponto conclusivo ou na melancolia (sentimento de aniquilação do ego), que, de um modo secundário, liga às distorções a crença que foi desvinculada da autocensura primária; ou — o que é mais freqüente e mais grave — nos delírios protetores (megalomania), até o ego ser completamente remodelado.

O elemento determinante da paranóia é o mecanismo da projeção, que envolve a recusa da crença na autocensura. Daí decorrem os aspectos característicos comuns da neurose: a importância das vozes como meio pelo qual as outras pessoas nos afetam, e também dos gestos, que nos revelam a vida mental das outras pessoas; e a importância do tom dos comentários e das alusões das vozes — pois que uma referência direta que ligue o conteúdo dos comentários à lembrança recalcada é inadmissível para a consciência.

Na paranóia, o recalque se dá após um processo de pensamento consciente e complexo (a recusa da crença). Talvez isso seja um indício de que ele se instala, pela primeira vez, em idade relativamente mais avançada do que na neurose obsessiva e na histeria. As precondições do recalcamento são, sem dúvida, as mesmas. Ainda não se sabe se o mecanismo da projeção é inteiramente uma questão de predisposição individual ou se é selecionado por fatores especiais transitórios e fortuitos.

Quatro espécies de sintomas:

(a) sintomas primários de defesa,

(b) sintomas de compromisso do retorno,

(c) sintomas secundários de defesa,

(d) sintomas da subjugação do ego.

 

HISTERIA

A histeria pressupõe necessariamente uma experiência primária de desprazer — isto é, de natureza passiva. A passividade sexual natural das mulheres explica o fato de elas serem mais propensas à histeria. Nos casos em que encontrei histeria em homens, pude comprovar, em suas anamneses, a presença de acentuada passividade sexual. Uma outra condição da histeria é que a experiência primária de desprazer não ocorra numa idade muito precoce, na qual a produção de desprazer seja ainda muito reduzida e na qual,naturalmente, os eventos causadores de prazer ainda possam ter um prosseguimento independente. De outro modo, o resultado será apenas a formação de obsessões. Por essa razão, muitas vezes encontramos nos homens uma combinação das duas neuroses, ou a substituição de uma histeria inicial por uma neurose obsessiva subseqüente. A histeria começa com a subjugação do ego, que é o ponto a que leva a paranóia. A produção de tensão, na experiência primária de desprazer, é tão grande que o ego não resiste a ela e não forma nenhum sintoma psíquico, mas é obrigado a permitir uma manifestação de descarga — geralmente, uma expressão exagerada de excitação. Esse primeiro estágio da histeria pode ser qualificado como “histeria do susto”; seu sintoma primário é a manifestação de susto, acompanhada por uma lacuna psíquica. Ainda não se sabe até que idade pode ocorrer essa primeira subjugação histérica do ego.

O recalcamento e a formação de sintomas defensivos só ocorrem posteriormente, em conexão com a lembrança; e, daí em diante, defesa e subjugação (isto é, a formação dos sintomas e a irrupção dos ataques) podem estar combinadas em qualquer grau na histeria.

O recalcamento não se dá pela construção de uma idéia antitética excessivamente forte [em [1]], mas sim pela intensificação de uma idéia limítrofe, que, depois, representa a lembrança no fluxo do pensamento. Pode ser chamada de idéia limítrofe porque, de um lado, pertence ao ego e, de outro, forma uma parte não-distorcida da lembrança traumática. Assim, também aqui se trata do resultado de um compromisso; este, contudo, não se manifesta numa substituição com base em alguma categoria de tema, mas num deslocamento da atenção ao longo de uma série de idéias ligadas pela simultaneidade temporal. Quando o evento traumático encontra uma saída para si mesmo através de uma manifestação motora, é esta que se torna a idéia limítrofe e o primeiro símbolo do material recalcado. Assim, não há necessidade de supor que alguma idéia esteja sendo suprimida em cada repetição do ataque primário; trata-se, primordialmente, de uma lacuna na psique.

 

CARTA 46

 

…Como fruto de trabalhosas reflexões, envio-lhe a seguinte solução da etiologia das psiconeuroses, que ainda aguarda confirmação de análises individuais. Podem-se distinguir quatro períodos de vida [Fig. 5]:

 

Fig. 5

 

A e B (desde cerca de 8 a 10 e 13 a 17 anos) são os períodos de transição durante os quais ocorre o recalcamento, na maior parte dos casos.

O despertar, numa época posterior, de uma lembrança sexual de época precedente produz um excesso de sexualidade na psique, o qual atua como uma inibição do pensamento e confere à lembrança e às conseqüências desta um caráter obsessivo — impossibilidade de ser inibido.

O período Ia possui a característica de ser intraduzível, de modo que o despertar de uma cena sexual Ia conduz não a conseqüências psíquicas, mas à conversão. O excesso de sexualidade impede a tradução.

O excesso de sexualidade, isoladamente, não é suficiente para causar recalcamento; faz-se necessária a cooperação da defesa; entretanto, sem um excesso de sexualidade a defesa não produz uma neurose.

As diferentes neuroses têm seus requisitos cronológicos particulares para suas cenas sexuais [Fig. 6].

 

 

Fig. 6

 

Isto é, para a histeria, as cenas ocorrem no primeiro período da infância (até os 4 anos), no qual os resíduos mnêmicos não são traduzidos em imagens verbais. É indiferente se essas cenas de Ia são despertadas durante o período posterior à segunda dentição (8 aos 10 anos) ou na fase da puberdade. O resultado é sempre a histeria, e sob a forma de conversão, pois a atuação conjunta da defesa e do excesso de sexualidade impede a tradução.

Para as neuroses obsessivas, as cenas pertencem à Época Ib. Elas dispõem de tradução em palavras e, ao serem despertadas em II ou em III, formam-se os sintomas obsessivos psíquicos.

Quanto à paranóia, as cenas respectivas situam-se no período posterior à segunda dentição, na Época II, e são despertadas em III (maturidade). Nesse caso, a defesa manifesta-se através da desconfiança. Assim, os períodos em que se dá o recalque não têm nenhuma importância para a escolha da neurose, sendo decisivos os períodos em que ocorre o evento. A natureza da cena tem importância na medida em que ela seja capaz de dar origem à defesa. [Cf. em [1].]

O que acontece quando as cenas se estendem por vários períodos? Nesse caso, a época mais precoce é decisiva, ou aparecem formas combinadas, o que deveria ser possível demonstrar. Tal combinação é, na sua maior parte, impossível entre a paranóia e a neurose obsessiva, porque o recalcamento da cena Ib, efetuado durante II, torna impossível novas cenas sexuais. [Cf. Rascunho N. [1].]

 

A histeria é a única neurose em que os sintomas talvez possam existir mesmo sem defesa, pois mesmo assim a característica da conversão permaneceria. (Histeria somática pura.)

Verifica-se que a paranóia quase não depende dos fatores infantis. É a neurose de defesa par excellence, independente até mesmo da moralidade e da repulsa à sexualidade, que é o que, em A e B, proporciona o motivo para a defesa na neurose obsessiva e na histeria e, por conseguinte, tem incidência mais provável nas classes inferiores. É uma doença da idade adulta. Quando não há cenas em Ia, Ib, ou II, a defesa não pode ter nenhuma conseqüência patológica (recalcamento normal). O excesso de sexualidade preenche as precondições para que haja ataques de angústia durante a idade adulta. Os traços de memória são insuficientes para absorver a quantidade sexual liberada, que deveria transformar-se em libido [psíquica.].

A importância dos intervalos entre as experiências sexuais é evidente. Uma continuação das cenas através de uma faixa limítrofe entre as épocas talvez consiga evitar a possibilidade de recalcamento, pois, nesse caso, não surge nenhum excesso de sexualidade entre a cena e a primeira lembrança significativa da mesma.

A respeito da consciência [isto é, do estar consciente], ou melhor, do tornar-se consciente, devemos supor três coisas:

(1) que, no que tange às lembranças, ela consiste, na maior parte, na consciência verbal relativa a essas lembranças — isto é, no acesso às representações verbais associadas;

(2) que a consciência não está exclusiva e inseparavelmente ligada nem ao chamado inconsciente, nem ao chamado reino consciente, de modo que parece necessário rejeitar esses termos;

(3) que a consciência é influenciada por um compromisso entre as diferentes forças psíquicas que entram em conflito quando ocorrem os recalcamentos.

É necessário examinar minuciosamente essas forças e tirar conclusões acerca dos seus efeitos. Estes são (1) a força quantitativa inerente de uma representação e (2) uma atenção livremente móvel, que é atraída segundo certas regras e repelida de acordo com a regra da defesa. Quase todos os sintomas são estruturas de compromisso. Deve-se fazer uma distinção entre processos psíquicos não-inibidos e inibidos pelo pensamento. É no conflito entre esses dois processos que os sintomas surgem como soluções de compromisso para as quais está aberto o acesso à consciência. Nas neuroses, cada um desses processos é, em si mesmo, racional (o não-inibido é monoideístico, unilateral); o compromisso resultante é irracional, análogo a um erro de pensamento.

Em todos os casos devem ser preenchidas as condições quantitativas, pois, de outro modo, a defesa pelo processo inibido pelo pensamento impedirá a formação do sintoma.

Quando a força dos processos não-inibidos aumenta, surge uma espécie de distúrbio psíquico; uma outra espécie surge quando decresce a força da inibição pelo pensamento. (Melancolia, exaustão — os sonhos como um protótipo.)

O aumento dos processos não-inibidos, a ponto de eles manterem a posse exclusiva do acesso à consciência verbal, produz a psicose.

Não há como separar os dois processos; são somente os critérios relativos ao desprazer que impedem as diversas transições associativas possíveis entre eles.

 

CARTA 50

 

…Preciso contar-lhe um sonho interessante que tive na noite após os funerais. Eu me encontrava num local público e li um aviso que havia lá:

 

Pede-seque você feche os olhos.

Imediatamente reconheci o local como sendo o salão de barbearia a que vou diariamente. No dia do sepultamento, tive de me demorar ali, esperando minha vez, e por isso cheguei à casa funerária um tanto atrasado. Na ocasião, meus familiares estavam aborrecidos comigo porque eu providenciara para que o funeral fosse modesto e simples, com o que depois concordaram, achando isso bastante acertado. Também interpretaram um pouco mal o meu atraso. A frase no quadro de avisos tem um duplo sentido, e em ambos os sentidos significa: “deve-se cumprir a obrigação para com os mortos”. (Uma desculpa, como se eu não a tivesse cumprido e como se minha conduta precisasse ser tolerada, e a obrigação, assumida literalmente.) Assim, o sonho é uma saída para a tendência à autocensura, que costuma estar presente entre os sobreviventes.

 

CARTA 52

 

…Como você sabe, estou trabalhando com a hipótese de que nosso mecanismo psíquico tenha-se formado por um processo de estratificação: o material presente em forma de traços da memória estaria sujeito, de tempos em tempos, a um rearranjo segundo novas circunstâncias — a uma retranscrição. Assim, o que há de essencialmente novo a respeito de minha teoria é a tese de que a memória não se faz presente de uma só vez, mas se desdobra em vários tempos; que ela é registrada em diferentes espécies de indicações. Postulei a existência de um tipo parecido de rearranjo (Afasia), há algum tempo, para as vias que vão da periferia [do corpo para o córtex]. Não sei dizer quantos desses registros há: três, pelo menos, provavelmente mais. Isto está mostrado na figura esquemática que se segue [Fig. 7], que supõe que os diferentes registros também estejam separados (não necessariamente segundo o aspecto topográfico) de acordo com os neurônios que são seus veículos. Essa suposição talvez não seja necessária, mas é a mais simples e é provisoriamente admissível.

 

 

Fig. 7

 

W [Wahrnehmungen (percepções)] são os neurônios em que se originam as percepções, às quais a consciência se liga, mas que, nelas mesmas, não conservam nenhum traço do que aconteceu. Pois a consciência e a memória são mutuamente exclusivas.

Wz [Wahrnehmungszeichen (indicação da percepção)] é o primeiro registro das percepções; é praticamente incapaz de assomar à consciência e se dispõe conforme as associações por simultaneidade.

Ub (Unbewusstsein) [inconsciência] é o segundo registro, disposto de acordo com outras relações (talvez causais). Os traços Ub talvez correspondam a lembranças conceituais; igualmente sem acesso à consciência.

Vb (Vorbewusstsein) [pré-consciência) é a terceira transcrição, ligada às representações verbais e correspondendo ao nosso ego reconhecido como tal. As catexias provenientes de Vb tornam-se conscientes de acordo com determinadas regras; essa consciência secundária do pensamento é posterior no tempo e provavelmente se liga à ativação alucinatória das representações verbais, de modo que os neurônios da consciência seriam também neurônios da percepção e, em si mesmos, destituídos de memória.

Se eu conseguisse dar uma descrição completa das características psicológicas da percepção e dos três registros, teria descrito uma nova psicologia. Disponho de algum material para isso, mas não é esta a minha intenção, por ora.

Gostaria de acentuar o fato de que os sucessivos registros representam a realização psíquica de épocas sucessivas da vida. Na fronteira entre essas épocas deve ocorrer uma tradução do material psíquico. Explico as peculiaridades das psiconeuroses com a suposição de que essa tradução não se fez no caso de uma determinada parte do material, o que provoca determinadas conseqüências. Pois sustento firmemente a crença numa tendência ao ajustamento quantitativo. Cada transcrição subseqüente inibe a anterior e lhe retira o processo de excitação. Quando falta uma transcrição subseqüente, a excitação é manejada segundo as leis psicológicas vigentes no período anterior e consoante as vias abertas nessa época. Assim, persiste um anacronismo: numa determinada região ainda vigoram os “fueros”; estamos em presença de “sobrevivências”.

Uma falha na tradução — isto é o que se conhece clinicamente como “recalcamento”. Seu motivo é sempre a produção de desprazer que seria gerada por uma tradução; é como se esse desprazer provocasse um distúrbio do pensamento que não permitisse o trabalho de tradução.

Dentro de uma mesma fase psíquica e entre os registros da mesma espécie, forma-se uma defesa normal devida à produção do desprazer. Já a defesa patológica somente ocorre contra um traço de memória de uma fase anterior, que ainda não foi traduzido.

Certamente não é por causa da magnitude da produção de desprazer que a defesa consegue efetuar o recalcamento. Muitas vezes, lutamos em vão precisamente contra lembranças que envolvem o máximo de desprazer. Foi por isso que chegamos à seguinte formulação. Se um evento A, quando era atual, despertou uma determinada quantidade de desprazer, então o seu registro mnêmico, A I ou A II, possui um meio de inibir a produção de desprazer quando a lembrança é redespertada. Quanto mais freqüentemente a lembrança retorna, mais inibida se torna, finalmente, a produção de desprazer. Contudo, existe um caso em que a inibição é insuficiente. Se A, quando era atual, produziu determinado desprazer, e se, quando redespertado, produz um novo desprazer, então este não pode ser inibido. Nesse aspecto, a lembrança se comporta como se se tratasse de um evento atual. Esse caso só pode ocorrer com os eventos sexuais, porque as magnitudes das excitações causadas por eles aumentam por si mesmas com o tempo (com o desenvolvimento sexual).

Assim, um evento sexual de uma dada fase atua sobre a fase seguinte como se fosse um evento atual e, por conseguinte, não é passível de inibição. O que determina a defesa patológica (recalcamento), portanto, é a natureza sexual do evento e a sua ocorrência numa fase anterior.

Nem todas as experiências sexuais produzem desprazer; a maioria delas produz prazer. Assim, a maioria delas está ligada a um prazer não passível de inibição. O prazer não passível de inibição dessa espécie constitui uma compulsão. Chegamos, pois, à seguinte formulação. Quando uma experiência sexual é recordada numa fase diferente, a liberação de prazer é acompanhada por uma compulsão e a liberação de desprazer é acompanhada pelo recalcamento. Em ambos os casos, a tradução para as indicações de uma nova fase parece ser inibida (?).

Ora, a experiência clínica nos evidencia três grupos de psiconeuroses sexuais — histeria, neurose obsessiva e paranóia; e nos ensina que as lembranças recalcadas referem-se àquilo que era atual, no caso da histeria, entre as idades de 1 1/2 e 4 anos; no caso da neurose obsessiva, entre os 4 e os 8 anos; e, no caso da paranóia, entre os 8 e os 14 anos. Mas, antes dos 4 anos de idade, ainda não existe recalque, de modo que os períodos psíquicos do desenvolvimento e as fases sexuais não coincidem. [Fig. 8.]

 

 

Fig. 8

 

O pequeno diagrama seguinte encaixa-se aqui: [Fig. 9 em [1].]

 

 

Fig. 9

 

Pois uma outra conseqüência das experiências sexuais prematuras é a perversão, cuja causa parece consistir em que a defesa ou não ocorreu antes de estar completo o aparelho psíquico, ou não ocorreu nunca.

Basta da superestrutura. Agora, passemos a uma tentativa de situar isso em seus fundamentos orgânicos. O que falta explicar é por que as experiências sexuais, que, na época em que eram atuais, geraram prazer, passam, quando são lembradas numa fase diferente, a gerar desprazer em algumas pessoas e, em outras, a persistir como compulsão. No primeiro caso, é evidente que elas devem estar liberando, numa época posterior, um desprazer que não foi liberado de início.

Também precisamos delinear a derivação das diferentes épocas, psicológicas e sexuais. Você me explicou estas últimas como sendo múltiplos especiais do ciclo feminino de 28 dias.

A fim de explicar por que o resultado [da experiência sexual prematura (ver acima)] às vezes é a perversão e, às vezes, a neurose, valho-me da bissexualidade de todos os seres humanos. Num ser puramente masculino, haveria um excesso de liberação masculina também nas duas barreiras sexuais — isto é, seria gerado prazer e, em conseqüência, perversão; nos seres exclusivamente femininos haveria, nessas ocasiões, um excesso de substâncias causadoras de desprazer. Nas primeiras fases, as liberações seriam paralelas, isto é, produziriam um excesso normal de prazer. Isso explicaria a preferência das pessoas verdadeiramente femininas pelas neuroses de defesa.

Desse modo, a natureza intelectual dos seres humanos masculinos estaria confirmada com base na teoria que você propôs.

Por fim, não posso eliminar uma suspeita de que a indiferença entre neurastenia e neurose de angústia, que detectei clinicamente, esteja correlacionada com a existência das duas substâncias, de 23 dias e 28 dias.

Além dessas duas, sugiro aqui, poderia haver diversas substâncias de cada tipo.

Cada vez mais me parece que o ponto essencial da histeria é que ela resulta de perversão por parte do sedutor, e mais e mais me parece que a hereditariedade é a sedução pelo pai. Assim, surge uma alternância entre as gerações:

1ª geração: Perversão.

2ª geração: Histeria e conseqüente esterilidade. Por vezes, há uma metamorfose dentro de um mesmo indivíduo: pervertido durante a idade do vigor e, depois, passado um período de angústia, histérico. Por conseguinte, histeria não é sexualidade repudiada, mas, antes, perversão repudiada.

Ademais, por trás disso está a idéia das zonas erógenas abandonadas. Isto é, parece que, durante a infância, seria possível obter a liberação sexual a partir de muitas das diferentes partes do corpo, as quais, em época posterior, só são capazes de liberar a substância dos 28 [dias], e não outras. Nessa diferenciação e limitação [estaria, pois,] o progresso na cultura e na moral, assim como no desenvolvimento individual.

O ataque histérico não é uma descarga, mas uma ação; e conserva a característica original de toda ação — ser um meio de reprodução do prazer. (Isso, pelo menos, é o que o ataque é em sua origem; além disso, apresenta todos os tipos de outras razões ao pré-consciente.) Assim, os pacientes aos quais foi feito algo de sexual no sono têm ataques de sono. Irão dormir novamente a fim de experimentar a mesma coisa e, muitas vezes, provocam dessa maneira um desmaio histérico.

Os ataques de vertigem e acessos de choro — tudo isso tem como alvo uma outra pessoa — mas, na sua maior parte, uma outra pessoa pré-histórica, inesquecível, que nunca é igualada por nenhuma outra posterior. Até o sintoma crônico de o indivíduo ser um dorminhoco preguiçoso é explicado da mesma forma. Um dos meus pacientes ainda choraminga durante o sono, como costumava fazer para ser levado para a cama por sua mãe, que morreu quando ele tinha 22 meses de idade. Parece que os ataques nunca ocorrem como uma “expressão intensificada de emoção”.

 

 

CARTA 55

 

…Estou-lhe remetendo duas idéias recentíssimas, que me ocorreram hoje e me parecem viáveis. Baseiam-se, naturalmente, em descobertas analíticas.

(1) O que determina uma psicose (ou seja, amência ou psicose confusional — uma psicose de subjugação, como a denominei anteriormente), em lugar de uma neurose, parece ser o fato de o abuso sexual ocorrer antes do fim do primeiro estágio intelectual — isto é, antes de o aparelho psíquico ter sido completado na sua primeira forma (antes dos 15 a 18 meses). É possível que tal abuso remonte a uma época tão remota que essas experiências permaneçam ocultas atrás de experiências mais recentes e que a elas se possa voltar de tempos em tempos. Penso que a epilepsia remonta ao mesmo período… Tenho de abordar de maneira diferente o tic convulsif, que eu costumava atribuir ao mesmo estágio. Eis como cheguei a essa outra visão. Um de meus pacientes histéricos… levou sua irmã mais velha a uma psicose histérica, que terminou num estado de completa confusão. Agora averigüei qual foi o sedutor dele, um homem de grande capacidade intelectual que, no entanto, tinha tido ataques da mais grave dipsomania a partir dos seus cinqüenta anos. Esses ataques começavam regularmente, com diarréia ou com catarro e rouquidão (o sistema sexual oral!) … isto é, com a reprodução de suas experiências passivas. Ora, até ele próprio sentir-se doente, esse homem tinha sido pervertido e, conseqüentemente, sadio. A dipsomania surgiu através da intensificação — ou melhor, através da substituição do impulso sexual correlato por esse impulso [para a bebida]. (Provavelmente, o mesmo se aplica à mania de jogatina do velho F.) Ocorreram entre esse sedutor e meu paciente, sendo que a irmã deste, que tinha menos de um ano de idade, presenciou algumas delas. Meu paciente, mais tarde, veio a ter relações com ela, que se tornou psicótica na puberdade. Disso se pode depreender como uma neurose se agrava e passa a uma psicose na geração seguinte (o que as pessoas chamam de “degeneração”), simplesmente porque uma pessoa de idade mais tenra é colhida nas malhas de uma situação dessas. Aliás, aqui está a hereditariedade desse caso [Fig. 10]:

 

 

Fig. 10

 

Espero poder contar-lhe muito mais coisas importantes a respeito desse caso, que projeta uma luz sobre três formas de doença.

(2) As perversões normalmente levam à zoofilia e têm uma característica animal. São explicadas não pelo funcionamento das zonas erógenas que foram posteriormente abandonadas, mas sim pela atuação de sensações erógenas, que depois perdem essa intensidade. Com relação a isto, convém recordar que o principal órgão dos sentidos nos animais (para fins sexuais, bem como para outros fins) é o sentido do olfato, que perdeu essa posição nos seres humanos. Na medida em que é dominante o olfato (ou o paladar), o cabelo, as fezes e toda a superfície do corpo — e também o sangue — têm um efeito sexualmente excitante. Sem dúvida está em conexão com isso o aumento do sentido do olfato na histeria. O fato de que os grupos de sensações têm muito a ver com a estratificação psicológica parece ser dedutível a partir da distribuição deles nos sonhos e, sem dúvida, têm uma conexão direta com o mecanismo da anestesia histérica.

 

CARTA 56

 

…Aliás, que diria você se eu lhe contasse que toda aquela minha história da histeria, história original e novinha em folha, já era conhecida e tinha sido publicada repetidamente uma centena de vezes — há alguns séculos? Você se lembra de que eu sempre disse que a teoria medieval da possessão pelo demônio, sustentada pelos tribunais eclesiásticos, era idêntica à nossa teoria de um corpo estranho e de uma divisão (splitting) da consciência? Mas por que é que o diabo, que se apossava das pobres bruxas, invariavelmente as desonrava, e de forma revoltante? Por que as confissões delas sob tortura tanto se assemelham às comunicações feitas por meus pacientes em tratamento psíquico? Dentro em breve, precisarei pesquisar a bibliografia do assunto. Aliás, as crueldades possibilitam o entendimento de alguns sintomas da histeria, que até agora têm permanecido obscuros. Os alfinetes que aparecem das formas mais surpreendentes, as agulhas que fazem com que as pobres criaturas tenham seus seios operados, e que são invisíveis aos raios X, embora possam ser encontradas na história de sua sedução…

Mais uma vez, os inquisidores espetam agulhas para descobrir os estigmas do demônio, e, numa situação parecida, as vítimas inventam a mesma cruel e velha história (ajudadas, talvez, pelos disfarces do sedutor). Assim, não só as vítimas, mas também os seus algozes, relembram nisso os primórdios de sua adolescência.

 

CARTA 57

 

…Ganha força a idéia de trazer à cena as bruxas, e penso que ela vai direto ao alvo. Começam a avolumar-se os detalhes. O seu “vôo” está explicado; o cabo de vassoura em que montam é provavelmente o grande Senhor Pênis. Suas reuniões secretas, com danças e outros divertimentos, podem ser vistas, todos os dias, nas ruas onde há crianças brincando. Outro dia, li que o ouro que o diabo dá a suas vítimas habitualmente se transforma em fezes; e, no dia seguinte, Herr E., que me descreve os delírios de dinheiro de sua antiga babá, de repente (por meio de um circunlóquio, via Cagliostro-alquimista-Dukatenscheisser) diz que o dinheiro de Louise era sempre cocô. Assim, nas histórias de feiticeiras, o dinheiro simplesmente está sendo novamente reduzido à substância da qual surgiu. Se ao menos eu soubesse por que o sêmen do diabo, nas confissões das feiticeiras, é sempre descrito como “frio”! Solicitei um exemplar do Malleus Maleficarum e, agora que fiz o arremate final no meu Kinderlähmungen, estudá-lo-ei com afinco. A história do diabo, o vocabulário dos palavrões populares, as cantigas e hábitos de tenra infância — tudo isso, atualmente, está adquirindo significação para mim. Você poderia, sem maior problema, recomendar-me alguma boa leitura, com base em sua prodigiosa memória? Com relação às danças nas confissões das bruxas, lembre-se das epidemias de dança na Idade Média. A Louise de E. era uma bruxa dançante desse tipo; muito coerentemente, foi no balé que ele se lembrou dela pela primeira vez: daí sua angústia nos teatros.

Paralelamente ao vôo e à flutuação no ar, devemos situar as proezas acrobáticas dos meninos nos ataques histéricos etc.

Em minha mente está-se formando a idéia de que, nas perversões, das quais a histeria é o negativo, podemos ter diante de nós um remanescente de um culto sexual primevo que, no Oriente semítico (Moloch, Astarte), em certa época, foi, e talvez ainda seja, uma religião…

As ações pervertidas, além disso, são sempre as mesmas — têm um significado e são executadas segundo um padrão que há de ser possível compreender.

Portanto, venho sonhando com uma religião demoníaca primeva, cujos ritos são executados secretamente, e compreendo o tratamento severo prescrito pelos juízes das bruxas. Os elos de ligação são abundantes.

Uma outra contribuição para essa corrente de idéias deriva da reflexão de que há uma classe de pessoas que, ainda nestes dias em que vivemos, contam histórias semelhantes às das bruxas e às de meus pacientes; não encontram quem lhes dê crédito, mas, mesmo assim, sua crença nelas não pode ser abalada. Como você deve ter adivinhado, refiro-me aos paranóicos, cujas queixas de que as pessoas põem fezes em sua comida, maltratam-nos à noite da maneira mais abjeta, sexualmente etc., são mero conteúdo da memória. Como você sabe, tenho feito uma diferenciação entre delírios da memória e delírios interpretativos [pág. [1]]. Estes últimos estão relacionados com a indefinição característica que cerca as pessoas que praticam as maldades, pessoas que, naturalmente, estão ocultas pela defesa.

Um detalhe a mais. Nos pacientes histéricos, reconheço o pai por trás de seus elevados padrões referentes ao amor, de sua humildade para com o amante, ou da sua incapacidade de casar, porque seus ideais não são satisfeitos. Naturalmente, o fundamento disso é a altura a partir da qual um pai olha com superioridade para o filho. Compare-se a isso a combinação, existente nos paranóicos, de megalomania com histórias fictícias de filiação ilegítima. Este é o outro lado da medalha.

 

Ao mesmo tempo, estou tendo menos certeza da idéia, que estive acalentando até há pouco tempo, de que a escolha da neurose é determinada pelo período em que esta se origina; antes, ela parece estar fixada na mais remota infância. Parece, contudo, que a decisão continua a oscilar entre o período em que ela se origina e (o que prefiro atualmente) o período em que ocorre o recalcamento. [Cf em [1].]

 

CARTA 59

 

…O aspecto que me escapou na solução da histeria está na descoberta de uma nova fonte a partir da qual surge um novo elemento da produção inconsciente. O que tenho em mente são as fantasias histéricas, que, habitualmente, segundo me parece, remontam a coisas ouvidas pelas crianças em tenra idade e compreendidas somente mais tarde. A idade em que elas captam informações dessa ordem é realmente surpreendente — dois seis ou sete meses em diante!…

 

CARTA 60

 

…A noite passada tive um sonho referente a você. Tratava-se de uma mensagem telegráfica sobre o seu paradeiro:

                        Via                             “(Veneza)      Casa SECERNO”                                       Villa                A maneira como escrevi isso mostra o que foi que pareceu obscuro e o que pareceu múltiplo. “Secerno” era o que estava mais claro. Meu sentimento em relação a isso era de aborrecimento por você não ter ido ao lugar que eu lhe recomendara: à Casa Kirsch.

Os motivos do sonho. — A causa desencadeante: acontecimentos do dia anterior. H. esteve aqui e falou a respeito de Nuremberg, dizendo que conhecia muito bem essa cidade e costumava hospedar-se no Preller. Não consegui recordá-lo imediatamente, mas, depois, perguntei: “Fora da cidade, então?” Essa conversa despertou-me a pena que tenho sentido ultimamente por não saber onde você tem estado e não ter notícias suas. Eu queria ter você como meu interlocutor e contar-lhe algo daquilo que andei experimentando e descobrindo em meu trabalho. Mas não tive coragem de enviar minhas anotações para destino ignorado, pois teria desejado pedir-lhe que as guardasse para mim como material de valor. De modo que se tratava da realização do desejo de que você telegrafasse, dando-me seu endereço. Existe todo tipo de coisas por trás do enunciado do telegrama: a lembrança do prazer etimológico que você me proporciona, minha menção a “fora da cidade”, feita a H., mas também coisas sérias que logo acudiram à minha mente. “Como se você sempre tivesse de ter algo de especial!” é o que diz meu aborrecimento. E, depois, o fato de você não gostar nem um pouco da Idade Média. E mais, ainda, minha contínua reação a seu sonho de defesa que tentou colocar um avô no lugar costumeiro do pai. Com referência a isso, minha constante irritação por não saber como lhe posso dar uma pista para descobrir quem era a pessoa que chamava I. F. de “Katzel” [gatinho] quando ela era criança, tal como agora ela trata você. Visto que eu próprio ainda estou em dúvida a respeito das coisas referentes ao pai, minha sensibilidade se torna compreensível. Assim, o sonho enfeixa todo o aborrecimento inconscientemente presente em mim em relação a você.

Além disso, o enunciado significa também:

            Via (ruas de Pompéia, que estou estudando). 

            Villa (a Villa Romana de Böcklin).

 

E depois, nossas conversas sobre viagem. Secerno me soa parecido com Salerno: napolitano-siciliano. E, por trás disso, sua promessa de um encontro em solo italiano.

A interpretação completa só me ocorreu depois que um feliz acaso, ocorrido esta manhã, trouxe uma nova confirmação da etiologia referente ao pai. Ontem, comecei o tratamento de um caso novo: uma jovem senhora, que, por falta de tempo, eu teria preferido não começar a tratar. Ela teve um irmão que morreu louco; e o sintoma principal dela (insônia) apareceu pela primeira vez depois que ela ouviu afastar-se da porta da frente da casa a carruagem que o levaria para o hospício. Desde então, ela tem sofrido de angústia ao andar de carruagem e vinha tendo a convicção de que haveria um acidente com a carruagem. Anos depois, os cavalos dispararam durante um passeio de carruagem, e ela aproveitou a oportunidade para saltar fora do veículo e quebrar a perna. Hoje, ela veio e relatou ter pensado um bocado no tratamento e ter descoberto um obstáculo. — “E o que foi?” — “Eu posso me imaginar tão má quanto for necessário; mas preciso poupar as outras pessoas. O senhor deve me permitir que eu não cite nomes.” — “Sem dúvida, os nomes não são importantes. A senhora quer se referir aos seus relacionamentos com pessoas. Estes certamente não podem ser silenciados.” — “O que eu quero dizer é que, de qualquer modo, antes eu teria sido mais fácil de tratar do que hoje. Antigamente, eu não tinha suspeitas; mas agora o sentido criminoso de certas coisas se tornou claro para mim, e eu não consigo decidir-me a falar sobre elas.” — “Pelo contrário, eu penso que uma mulher adulta se torna mais tolerante a respeito dos assuntos sexuais.” — “Sim, nisso o senhor tem razão. Quando digo a mim mesma que as pessoas que fazem tais coisas são indubitavelmente de espírito elevado, sou forçada a refletir que se trata de uma doença, uma espécie de loucura, e preciso desculpá-las.” — “Está bem, vamos falar francamente. Em minhas análises, as pessoas culpadas são parentes próximos, um pai ou um irmão.” — “Não há irmão nesse caso.” — “Seu pai, então.”

E aí descobriu-se que o pai, supostamente uma pessoa de mente elevada e respeitável, em outros aspectos, levava-a regularmente para a cama, quando ela estava entre 8 e 12 anos, e abusava dela sexualmente, sem penetração (“molhava-a”, visitas noturnas). Já naquela época, sentia-se angustiada. Uma irmã, seis anos mais velha, contou-lhe, alguns anos mais tarde, que tinha tido as mesmas experiências com o pai de ambas. Uma prima contou-lhe que, quando tinha quinze anos, tivera de rechaçar os abraços do avô. Naturalmente, quando eu lhe disse que coisas parecidas e piores deveriam ter acontecido em sua mais remota infância, ela não achou que isso fosse inacreditável. Em outras palavras, trata-se de um caso bastante comum de histeria, com os sintomas de sempre.

Q. E. D.

 

CARTA 61

 

…Como você pode deduzir pelo anexo [Rascunho L], meus progressos estão-se consolidando. Em primeiro lugar, formei uma idéia coerente a respeito da estrutura da histeria. Tudo remonta à reprodução das cenas, a algumas das quais se pode chegar diretamente, enquanto a outras, só por meio de fantasias erigidas à frente delas. As fantasias derivam de coisas que foram ouvidas, mas só compreendidas posteriormente, e todo o seu material, naturalmente, é verídico. São estruturas protetoras, sublimações dos fatos, embelezamentos deles e, ao mesmo tempo, servem como auto-absolvição. Talvez sua origem desencadeante se deva às fantasias de masturbação. Um segundo elemento de compreensão interna (insight) do assunto me diz que as estruturas psíquicas que, na histeria, são afetadas pelo recalcamento não são, na realidade, lembranças — de vez que ninguém se entrega à atividade mnêmica sem um motivo —, mas sim impulsos decorrentes das cenas primevas [ver em [1]]. [1] Percebo, agora, que todas as três neuroses (histeria, neurose obsessiva e paranóia) mostram os mesmos elementos (ao mesmo tempo que mostram a mesma etiologia) — ou seja, fragmentos mnêmicos, impulsos (derivados da lembrança) e ficções protetoras, e percebo que a irrupção na consciência, a formação de compromissos (isto é, sintomas), ocorre nessas neuroses em pontos diferentes. Na histeria, são as lembranças, na neurose obsessiva, os impulsos pervertidos, na paranóia, as ficções protetoras (fantasias) que penetram na vida normal, distorcidos pela formação de compromissos.

Vejo aqui um grande progresso na compreensão (insight). Espero que isso lhe cause o mesmo impacto.

 

RASCUNHO L [NOTAS I]

A ARQUITETURA DA HISTERIA

 

O objetivo parece ser o de chegar [retroativamente] às cenas primevas. Em alguns casos, isso é conseguido diretamente, mas, em outros, somente por um caminho indireto, através das fantasias. Pois as fantasias são fachadas psíquicas construídas com a finalidade de obstruir o caminho para essas lembranças. As fantasias servem, ao mesmo tempo, à tendência de aprimorar as lembranças, de sublimá-las. São feitas de coisas que são ouvidas e posteriormente utilizadas; assim, combinam coisas que foram experimentadas e coisas que foram ouvidas, acontecimentos passados (da história dos pais e dos ancestrais) e coisas que a própria pessoa viu. Relacionam-se com coisas ouvidas, assim como os sonhos se relacionam com coisas vistas. Nos sonhos, realmente, não ouvimos nada, nós vemos.

 

O PAPEL DESEMPENHADO PELAS EMPREGADAS

Uma imensa carga de culpa, com autocensuras (por furto, aborto etc.), torna-se possível [para uma mulher] através da identificação com essas pessoas de baixo padrão moral, que tão freqüentemente são lembradas por ela como mulheres sem valor, sexualmente ligadas com o pai ou o irmão dela. E, como resultado da sublimação dessas empregadas nas fantasias, fazem-se as mais inverossímeis acusações contra outras pessoas nessas fantasias. O temor da prostituição [isto é, de se tornar prostituta] (medo de andar sozinha na rua), o medo de que haja um homem escondido debaixo da cama etc. também apontam na direção das empregadas. Há uma trágica justiça no fato de que a ação do chefe da família, ao descer ao nível de uma empregada, é expiada pela auto degradação de sua filha.

COGUMELOS

No verão passado, houve uma moça que tinha medo de colher uma flor ou mesmo de arrancar um cogumelo, porque isso era contra o mandamento de Deus, que não queria que as sementes vivas fossem destruídas. — Isso provinha de uma lembrança dos provérbios religiosos que sua mãe citava, dirigidos contra as precauções durante o coito, porque estas significavam que se destruíam sementes vivas. As “esponjas” (esponjas de Paris) eram explicitamente mencionadas entre tais precauções. O principal conteúdo da neurose dessa moça era a identificação com a mãe.

 

DORES

Estas não são a sensação real de uma fixação, mas uma repetição intencional da mesma. A criança choca-se contra uma quina, um móvel etc., e assim realiza um contacto ad genitalia, a fim de repetir uma cena na qual aquilo que agora é o ponto doloroso, e foi então pressionado contra a quina, levou à fixação. [Cf. em [1]]

 

MULTIPLICIDADE DE PERSONALIDADES PSÍQUICAS

A existência da identificação talvez nos permita tomar literalmente essa expressão.

 

EMBRULHAR

Continuação da história do cogumelo. A moça insistia em que todos os objetos que lhe eram entregues fossem embrulhados. (Condom.)

EDIÇÕES MÚLTIPLAS DAS FANTASIAS —ESTARÃO TAMBÉM RETROSPECTIVAMENTE VINCULADAS [À EXPERIÊNCIA ORIGINAL]?

Nos casos em que um paciente deseja estar doente e se apega à sua doença, isso acontece, geralmente, porque a doença é considerada uma arma protetora contra sua própria libido — ou seja, porque ele desconfia de si mesmo. Nessa fase, o sintoma mnêmico torna-se um sintoma defensivo: combinam-se as duas correntes atuantes. Nos estágios precedentes, o sintoma era uma conseqüência da libido, um sintoma provocativo: pode ser que, entre os estágios, as fantasias sirvam de defesa.

É possível seguir o caminho, a época e o material da construção das fantasias. Vê-se então, que ela em muito se assemelha à construção dos sonhos. Mas não há regressão na forma [de representação] conferida às fantasias, somente progressão. Observe-se a relação entre sonhos, fantasias e reprodução.

 

OUTRO SONHO DE REALIZAÇÃO DE DESEJO

“O senhor vai dizer, segundo suponho, que este é um sonho de realização de desejo”, disse E. [em [1]]. “Sonhei que, assim que chegava em casa com uma mulher, eu era preso por um policial, que me mandou entrar numa carruagem. Pedi-lhe tempo, a fim de colocar meus assuntos em ordem, e assim por diante.” — “Mais alguns detalhes.” — “Isso foi de manhã, depois de eu ter passado a noite com essa mulher.” — “Você ficou com medo?” — “Não.” — “Sabe de que era acusado?” — “Sim. De ter matado uma criança.” — “Isso tem alguma conexão com a realidade?” — “Uma vez, fui responsável pelo aborto de uma criança, em decorrência de um caso amoroso. Não gosto de pensar nisso.” — “Bem, não tinha acontecido nada nessa manhã, antes do sonho?” — “Sim, acordei e tive relações sexuais.” — “Mas você tomou precauções?” — “Sim. Eu tirei fora.” — “Então, você estava com medo de ter gerado um filho, e o sonho lhe mostra a realização de seu desejo de que não acontecesse nada e de você ter arrancado o filho pela raiz. Você utilizou, como material para o seu sonho, o sentimento de angústia que surge após uma relação desse tipo.” [1]

 

RASCUNHO M

[NOTAS II]

A ARQUITETURA DA HISTERIA

 

Provavelmente, é assim: algumas das cenas são diretamente acessíveis, mas outras o são apenas por intermédio das fantasias erigidas em frente a elas. As cenas são dispostas em ordem crescente de resistência: as que foram recalcadas com menos energia vêm à luz primeiro, porém só incompletamente, devido a sua associação com as que foram duramente recalcadas. O caminho seguido pelo trabalho [analítico] desce primeiro em círculos até as cenas ou suas cercanias; depois, desce de um sintoma até uma profundidade um pouco maior, e depois, novamente a partir de um sintoma, desce ainda mais. Como a maioria das cenas converge para uns poucos sintomas, nosso caminho traça círculos repetidos através dos pensamentos que estão por trás dos mesmos sintomas. [Ver Fig. 11.]

 

 

Fig. 11

 

RECALCAMENTO

Pode-se suspeitar que o elemento essencialmente recalcado é sempre o que é feminino. Isso é confirmado pelo fato de que as mulheres, assim como os homens, admitem com maior facilidade as experiências com mulheres do que com homens. O que os homens recalcam essencialmente é o elemento da pederastia.

 

FANTASIAS

As fantasias originam-se de uma combinação inconsciente, e conforme determinadas tendências, de coisas experimentadas e ouvidas. Essas tendências têm o sentido de tornar inacessível a lembrança da qual emergiram ou poderiam emergir os sintomas. As fantasias são construídas por um processo de amálgama e distorção análogo à decomposição de um corpo químico que está combinado com outro. Pois o primeiro tipo de distorção consiste numa falsificação da memória por um processo de fragmentação, no qual especialmente as relações cronológicas são postas de lado. (As correções cronológicas parecem depender justamente da atividade do sistema da consciência.) Um fragmento da cena visual junta-se, depois, a um fragmento da experiência auditiva e é transformado numa fantasia, enquanto o fragmento restante é ligado a alguma outra coisa. Desse modo, torna-se impossível determinar a conexão original. Em conseqüência da construção de fantasias como esta (em períodos de excitação), os sintomas mnêmicos cessam. Em vez destes, acham-se presentes ficções inconscientes não sujeitas à defesa. Quando a intensidade dessa fantasia aumenta até um ponto em que forçosamente irromperia na consciência, ela é recalcada e cria-se um sintoma mediante uma força que impele para trás, indo desde a fantasia até as lembranças que a constituíram.

Todos os sintomas de angústia (fobias) derivam, assim, de fantasias. Não obstante, isso simplifica os sintomas. Talvez haja um terceiro movimento para a frente e um terceiro método de construir sintomas, derivado da construção dos impulsos.

 

TIPOS DE DESLOCAMENTO DE COMPROMISSO

Deslocamento por associações: histeria.

Deslocamento por semelhança (conceitual): neurose obsessiva (característica do lugar em que ocorre a defesa e, talvez, também do tempo).

Deslocamento causal: paranóia.

 

CURSO TÍPICO DOS ACONTECIMENTOS

Bons motivos para suspeitar de que o despertar do recalcado não se dá ao acaso, mas segue as leis do desenvolvimento. Ademais, que o recalcado atua para trás, a partir do que é recente, e afeta primeiro os últimos eventos.

 

DIFERENÇA ENTRE AS FANTASIAS NA HISTERIA E NA PARANÓIA

As últimas são sistematizadas, todas em harmonia umas com as outras; as primeiras são independentes entre si e contraditórias — isto é, insuladas e, por assim dizer, geradas automaticamente (por um processo químico). Isto e mais a eliminação da característica do tempo é, sem dúvida, essencial para a a diferenciação entre a atividade do pré-consciente e do inconsciente. [Ver em [1]]

RECALCAMENTO NO INCONSCIENTE

Não basta levar em conta o recalcamento entre o pré-consciente e o inconsciente; devemos também atentar para o recalcamento normal dentro do sistema do próprio inconsciente. Muito importante, mas ainda muito obscuro.

Existe uma esperança muito grande de conseguirmos determinar o número e a espécie de fantasias, assim como conseguimos fazer com as cenas. O romance de ilegitimidade (cf. paranóia [em [1]]) é regularmente encontrado e serve como meio para ilegitimar os parentes em questão. A agorafobia parece depender de um romance de prostituição, que, por sua vez, também remonta a esse romance familiar. Assim, uma mulher que não sai sozinha está afirmando a infidelidade de sua mãe.

 

CARTA 64

 

… Aqui estão alguns fragmentos lançados à praia na última maré. Venho tomando nota deles somente para você e espero que os guarde para mim. Nada acrescendo à guisa de desculpas ou explicações: sei que são apenas premonições, mas sempre surgiu algo de todas as coisas desse tipo e só tive que voltar atrás no que tentei elaborar em torno do sistema Pcs. [Cf. em [1].] Um outro pressentimento também me diz, como eu já sabia — embora eu de fato não saiba absolutamente nada —, que muito em breve descobrirei a origem da moralidade…

 

Não faz muito tempo, sonhei que tinha sentimentos supercarinhosos para com Mathilde, só que ela se chamava Hella, e depois vi novamente “Hella” diante de mim, escrito em letras destacadas. Solução: Hella é o nome de uma sobrinha americana cujo retrato nos foi enviado. Mathilde pôde ser chamada Hella porque, ultimamente, tem chorado muito as derrotas dos gregos. Ela tem grande entusiasmo pela mitologia da antiga Hélade e, naturalmente, considera heróis todos os helenos. O sonho, é claro, mostra a realização do meu desejo de encontrar um pai que seja o causador da neurose e, desse modo, pôr fim às dúvidas que ainda persistem em mim sobre esse assunto.

Numa outra ocasião, sonhei que subia uma escadaria, vestido com muito pouca roupa. Eu me movimentava, como o sonho enfatizou, com grande agilidade (meu coração — confiança renovada!). De repente, porém, percebi que uma mulher vinha atrás de mim, e então aconteceu aquela experiência, tão comum nos sonhos, de ficar pregado no mesmo lugar, de estar paralisado. A sensação concomitante não foi de angústia, mas de excitação erótica. Assim, você vê como a sensação de paralisia, característica do sono, foi usada para a realização de um desejo exibicionista. Pouco antes, naquela noite, eu realmente tinha subido a escadaria do nosso apartamento no andar térreo — sem colarinho, pelo menos — e tinha pensado que um de nossos vizinhos poderia estar na escada.

 

RASCUNHO N

[NOTAS III] IMPULSOS

 

Os impulsos hostis contra os pais (desejo de que eles morram) também são um elemento integrante das neuroses. Vêm à luz, conscientemente, como idéias obsessivas. Na paranóia, o que há de pior nos delírios de perseguição (desconfiança patológica dos governantes e monarcas) corresponde a esses impulsos. Estes são recalcados nas ocasiões em que é atuante a compaixão pelos pais — nas épocas de doença ou morte deles. Nessas ocasiões, constitui manifestação de luto uma pessoa acusar-se da morte deles (o que se conhece como melancolia) ou punir-se numa forma histérica (por intermédio da idéia de retribuição) com os mesmos estados [de doença] que eles tiveram. A identificação que aí ocorre, como podemos verificar, nada mais é do que um modo de pensar, e não nos exime da necessidade de procurar o motivo.

Parece que esse desejo de morte, no filho, está voltado contra o pai e, na filha, contra a mãe. Uma empregada faz uma transferência disso, desejando que a patroa morra e, desse modo, o patrão possa casar-se com ela. (Cf. o sonho de Lisl a respeito de Martha e de mim.)

 

RELAÇÃO ENTRE IMPULSOS E FANTASIAS

Parece que as lembranças se bifurcam: parte delas é posta de lado e substituída por fantasias; outra parte, mais acessível, parece conduzir diretamente aos impulsos. Será possível que, posteriormente, os impulsos também decorram das fantasias?

De modo semelhante, a neurose obsessiva e a paranóia derivariam ex aequo [nos mesmos termos] da histeria, o que explicaria a incompatibilidade entre elas.

 

TRANSPOSIÇÃO DA CRENÇA

A crença (e a dúvida) é um fenômeno que pertence inteiramente ao sistema do ego (o Cs.) e não tem contrapartida no Inc. Nas neuroses, a crença é deslocada: é recusada ao material recalcado, quando ele pressiona no sentido da reprodução, e — como punição, poder-se-ia dizer — é transposta para o material que executa a defesa. Titânia, que se recusa a amar Oberon, seu marido legítimo, é obrigada, em vez disso, a entregar seu amor a Bottom, o asno da fantasia.

 

POESIA E FINE FRENZY

O mecanismo da poesia [criação literária] é o mesmo das fantasias histéricas. Para compor seu Werther, Goethe combinou algo que havia experimentado (seu amor por Lotte Kästner) e algo que tinha ouvido (o destino do jovem Jerusalém, que se suicidou). Provavelmente, Goethe estava brincando com a idéia de se matar; encontrou nisso um ponto de contato e identificou-se com Jerusalém, de quem tomou emprestado o motivo para sua própria história de amor. Por meio dessa fantasia, protegeu-se das conseqüências de sua experiência.

De modo que Shakespeare tinha razão ao justapor a poesia e a loucura (fine frenzy).

 

MOTIVOS PARA A CONSTRUÇÃO DOS SINTOMAS

Recordar nunca é um motivo, mas apenas uma maneira, um método. O primeiro motivo para a construção de sintomas é, cronologicamente, a libido. Portanto, os sintomas, como os sonhos, são a realização de um desejo.

Em estágios subseqüentes, a defesa contra a libido conquista seu espaço também no Inc. A realização de desejos deve preencher os requisitos dessa defesa inconsciente. Isso acontece quando o sintoma é capaz de atuar como um auto-impedimento, seja por meio de punição (por um impulso mau) ou a partir da desconfiança. Os motivos da libido e da realização de desejo como punição agem, nesse caso, por soma. Aqui é inequívoca a tendência geral no sentido da ab-reação e da irrupção do recalcado, e a isso se somam os dois outros motivos. O que parece é que, em fases posteriores, por um lado, algumas estruturas psíquicas complexas (impulsos, fantasias, motivos) são deslocadas das lembranças e, por outro lado, a defesa, surgindo do Pcs. (o ego), pareceria abrir caminho para dentro do inconsciente, de modo que a defesa também se torna multilocular.

A construção de sintomas por identificação está ligada às fantasias — isto é, a seu recalcamento no Inc. — numa forma análoga à da modificação do ego na paranóia [em [1]]. Como a irrupção da angústia está ligada a essas fantasias recalcadas, devemos concluir que a transformação da libido em angústia não ocorre por intermédio da defesa atuante entre o ego e o Inc., mas sim no Inc. como tal. Conclui-se, pois, que existe também uma libido Inc.

Parece que o recalcamento dos impulsos produz não angústia, mas talvez depressão — melancolia. Desse modo, as melancolias estão relacionadas com a neurose obsessiva.

 

DEFINIÇÃO DE “SANTIDADE”

A “santidade” é algo que se baseia no fato de que os seres humanos, em benefício da comunidade maior, sacrificaram uma parte de sua liberdade sexual e de sua liberdade de se entregarem às perversões. O horror ao incesto (como coisa ímpia) baseia-se no fato de que, em conseqüência da comunidade da vida sexual (mesmo na infância), os membros de uma família se mantêm permanentemente unidos e se tornam incapazes de contatos com estranhos. Assim, o incesto é anti-social — a civilização consiste nessa renúncia progressiva. É o contrário do “super-homem”. [1]

 

CARTA 66

 

…Ainda não sei o que andou acontecendo comigo. Algo proveniente das mais recônditas profundezas de minha neurose insurgiu-se contra qualquer avanço em minha compreensão das neuroses, e você, de algum modo, esteve envolvido nisso. Isso porque minha paralisia redacional me parece destinada a impedir nossas comunicações. Não estou nada seguro disso; são apenas sentimentos de uma natureza muito obscura. Não lhe aconteceu algo parecido? Nos últimos dias, pareceu-me que se vislumbra uma saída dessa obscuridade. Constato que, nesse ínterim, realizei todo tipo de progressos em meu trabalho, e a cada momento me ocorre mais uma idéia. Para isso concorrem, sem dúvida, o tempo quente e o excesso de trabalho.

Pois bem, vejo que a defesa contra as lembranças não impede que estas dêem origem a estruturas psíquicas superiores, que persistem por algum tempo e, depois, são elas mesmas submetidas à defesa. Esta, porém, é de um tipo específico mais elevado — precisamente como nos sonhos, que contêm in nuce [numa casca de noz] a psicologia das neuroses, muito genericamente. O que temos diante de nós são falsificações da memória e fantasias — estas referentes ao passado ou ao futuro. Conheço mais ou menos as leis segundo as quais se agrupam essas estruturas e os motivos pelos quais são mais fortes do que as lembranças verdadeiras; assim, aprendi coisas novas que ajudam a caracterizar os processos do Inc. Ao lado destes, surgem impulsos pervertidos, e quando, à medida que se torna necessário posteriormente, essas fantasias e impulsos são recalcados, aparecem as determinações superiores dos sintomas, já provenientes das lembranças, e novos motivos para manter a doença. Estou estudando alguns casos típicos de agrupamento dessas fantasias e alguns fatores típicos do surgimento do recalque contra os mesmos. Esse conhecimento ainda não está completo. Minha técnica está começando a preferir um determinado método como sendo o método natural.

Parece-me que a coisa mais indubitável é a explicação dos sonhos, mas ela está cercada de uma quantidade enorme de enigmas obstinados. As questões organológicas esperam de você uma solução: nestas, não fiz nenhum progresso.

 

Existe um sonho interessante em que o indivíduo vagueia entre pessoas estranhas, total ou parcialmente despido, e com sentimentos de vergonha e angústia. Muito estranhamente, as pessoas nunca reparam nisso — o que devemos atribuir à realização de desejos. Esse material onírico, que tem sua origem no exibicionismo da infância, foi erroneamente compreendido e didaticamente transformado num conhecido conto de fadas. (As roupas imaginárias do rei — “Talismã”.) Habitualmente, o ego interpreta outros sonhos da mesma maneira equivocada.

 

CARTA 67

 

…As coisas estão fermentando dentro de mim, mas não concluí nada. Estou mais do que satisfeito com a psicologia: estou atormentado por graves dúvidas sobre minha teoria das neuroses. Minha mente anda muito preguiçosa; aqui neste lugar não consegui acalmar a agitação que há em minha cabeça e meus sentimentos; isso só pode acontecer na Itália.

Depois de ter estado muito satisfeito aqui, estou agora passando por um período de mau humor. O principal paciente que me preocupa sou eu mesmo. Minha leve histeria (muito agravada, porém, pelo trabalho) foi resolvida em mais uma parte: mas o resto ainda está na imobilidade. É principalmente disso que depende o meu humor. A análise é mais difícil do que qualquer outra coisa. É ela também que paralisa minha energia psíquica para descrever e comunicar o que consegui até agora. Mas penso que deve ser feita e que é uma etapa intermediária necessária em meu trabalho.

 

CARTA 69

 

…Confiar-lhe-ei de imediato o grande segredo que lentamente comecei a compreender nos últimos meses. Não acredito mais em minha neurotica [teoria das neuroses]. Provavelmente, isso não é compreensível sem uma explicação; afinal, você mesmo considerou crível o que lhe pude dizer. De modo que começarei, historicamente, a partir da questão da origem de meus motivos de descrença. Os contínuos desapontamentos em minhas tentativas de fazer minha análise chegar a uma conclusão real, a debandada das pessoas que, durante algum tempo, eu parecia estar compreendendo com muita segurança, a ausência dos êxitos completos com que eu havia contado, a possibilidade de explicar os êxitos parciais de outras maneiras, segundo critérios comuns — este foi o primeiro grupo [de motivos]. Depois, veio a surpresa diante do fato de que, em todos os casos, o pai, não excluindo o meu, [1] tinha de ser apontado como pervertido — a constatação da inesperada freqüência da histeria, na qual o mesmo fator determinante é invariavelmente estabelecido, embora, afinal, uma dimensão tão difundida da perversão em relação às crianças não seja muito provável. (A perversão teria de ser incomensuravelmente mais freqüente do que a histeria, de vez que a doença só aparece quando há uma acumulação de eventos e quando sobrevém um fator que enfraquece a defesa.) Depois, em terceiro lugar, a descoberta comprovada de que, no inconsciente, não há indicações da realidade, de modo que não se consegue distinguir entre a verdade e a ficção que é catexizada com o afeto. (Assim, permanecia aberta a possibilidade de que a fantasia sexual tivesse invariavelmente os pais como tema.) Em quarto lugar, a reflexão de que, na psicose mais profunda, a lembrança inconsciente não vem à tona, não sendo, pois, revelado o segredo das experiências da infância nem mesmo no delírio mais confuso. Se, dessa forma, verificamos que o inconsciente nunca supera a resistência do consciente, então também abandonamos nossa expectativa de que o inverso aconteça no tratamento, a ponto de o inconsciente ser totalmente domado pelo consciente.

Em tal medida fui influenciado por isso que estava disposto a abandonar duas coisas: a resolução completa de uma neurose e o conhecimento seguro de sua etiologia na infância. Não tenho agora nenhuma idéia do ponto a que cheguei, não obtive uma compreensão teórica do recalcamento e de sua inter-relação de forças. Parece que novamente se tornou discutível se são somente as experiências posteriores que estimulam as fantasias, que então retornam à infância; e, com isso, o fator de uma predisposição hereditária recupera uma esfera de influência da qual eu me incumbira de excluí-lo — com a intenção de elucidar amplamente a neurose.

 

Se eu tivesse deprimido, confuso ou exausto, as dúvidas desse tipo deveriam, por certo, ser interpretadas como sinais de fraqueza. De vez que estou num estado oposto, devo reconhecê-las como o resultado de um trabalho intelectual honesto e esforçado e devo ter orgulho, depois de ter ido tão a fundo, de ainda ser capaz de tal crítica. Será que essa dúvida simplesmente representa um episódio prenunciador de um novo conhecimento?

Também é digno de nota não ter havido nenhum sentimento de vergonha, para o que, afinal, poderia haver uma justificativa. Certamente, não vou contar isso em Dan nem publicá-lo em Ascalon, na terra dos filisteus. Mas, perante você e perante mim mesmo, tenho mais um sentimento de vitória do que de derrota — e, afinal, isso não está certo.

 

CARTA 70

 

…[3 de outubro] Muito pouca coisa ainda está acontecendo comigo externamente; contudo, internamente, ocorre algo interessantíssimo. Isso porque, nos últimos quatro dias, minha auto-análise, que considero indispensável para esclarecer todo o problema, tem prosseguido nos sonhos e me presenteou com as mais valiosas inferências e indicações. Em alguns pontos, tenho a sensação de haver chegado ao término, e até agora, também, sempre tenho sabido onde é que o sonho da próxima noite vai retomar as coisas. Descrever esse fato por escrito é mais difícil do que qualquer outra coisa, e também a descrição seria imprecisa demais. Só posso dizer resumidamente que der Alte [meu pai] não teve papel ativo no meu caso, a partir de mim mesmo; que o “originador primordial” [de meus problemas] foi uma mulher feia e velha, mas esperta, que me contou uma porção de coisas a respeito de Deus todo-poderoso e do inferno e que me deu uma opinião elevada acerca das minhas próprias capacidades; que, mais tarde (entre dois e dois anos e meio de idade), minha libido foi despertada para a matrem, isto é, por ocasião de uma viagem com ela de Leipzig a Viena, durante a qual devemos ter passado a noite juntos e devo ter tido oportunidade de vê-la nudam — você tirou a conclusão disto há muito tempo no tocante a seu próprio filho, num comentário que me revelou; — que saudei o nascimento de meu irmão (que era um ano mais novo do que eu e morreu depois de alguns meses) com desejos hostis e verdadeiro ciúme infantil, e que sua morte deixou em mim a semente das autocensuras. Faz também muito tempo que conheço meu companheiro de travessuras entre um e dois anos de idade. Era meu sobrinho, um ano mais velho do que eu; atualmente vive em Manchester e nos visitou em Viena quando eu tinha quatorze anos. Parece que, algumas vezes, eu e ele nos conduzimos de maneira cruel com minha sobrinha, que era um ano mais nova. Esse sobrinho e esse irmão mais novo determinaram o que há de neurótico, mas também o que há de intenso, em todas as minhas amizades. Você mesmo viu minha angústia diante das viagens em plena atividade.

Ainda não descobri nada a respeito das cenas que subjazem a toda essa história. Se elas vierem à luz e eu conseguir resolver minha própria histeria, serei grato à memória da velha senhora que me proporcionou, em idade tão precoce, os meios de viver e de prosseguir vivendo. Como você vê, minha antiga afeição por ela está reaparecendo. Não posso dar-lhe sequer uma idéia da beleza intelectual do trabalho…

4 de outubro… O sonho de hoje apresentou o que se segue, sob os mais estranhos disfarces.

Ela era minha professora em assuntos de sexo e me repreendia por eu ser desajeitado e não ser capaz de fazer nada. É sempre assim que ocorre a impotência do neurótico; é assim que o medo de ser incapaz na escola adquire seu substrato sexual.) Ao mesmo tempo, eu via o crânio de um pequeno animal e, no sonho, pensei: “Porco!” Na análise, porém, associei isso com o seu desejo, há dois anos, de que eu pudesse encontrar no Lido um crânio para me esclarecer, como fez Goethe certa vez. Mas não o encontrei. De modo que fui um boboca. Todo o sonho estava repleto das mais mortificantes alusões a minha atual impotência como terapeuta. Talvez seja disso que deriva a tendência a acreditar que a histeria é curável. Além disso, ela me banhava numa água avermelhada, na qual ela mesma se havia banhado antes. (A interpretação não é difícil; não encontro nada parecido com isso nas seqüências de minhas lembranças, de modo que considero uma verdadeira descoberta do passado distante.) E ela me fazia furtar “zehners” (moedas de dez kreuzers) e dá-los a ela. Há uma longa seqüência desde esses primeiros zehners de prata até a pilha de notas de dez florins que vi no sonho como o dinheiro de Martha para as despesas da casa. O sonho pode ser resumido como “mau tratamento”. Assim como a velha senhora recebia dinheiro de mim pelo mau tratamento que me dispensava, também eu, atualmente, ganho dinheiro pelo mau tratamento que dou a meus pacientes. Um papel especial foi desempenhado por Frau Qu., cujo comentário você me relatou: eu devia não cobrar nada dela, já que é a esposa de um colega. (Naturalmente, ele fez questão de que eu cobrasse.)

De tudo isso um crítico severo poderia dizer que foi retrospectivamente fantasiado e não determinado progressivamente. Os experimenta crucis [experimentos cruciais] teriam de contradizê-lo. A água avermelhada já seria, parece, um desses experimentos. Onde é que todos os pacientes arranjam terríveis detalhes pervertidos que, muitas vezes, são tão afastados de sua experiência quanto de seu conhecimento?

 

CARTA 71

 

…Minha auto-análise é realmente a coisa mais essencial que me ocupa atualmente e promete adquirir o maior valor para mim, se chegar a seu término. A meio caminho, ela subitamente cessou por três dias, e tive a sensação de estar amarrado por dentro, coisa de que tanto se queixam os pacientes; e fiquei realmente inconsolável…

É estranho que minha clínica ainda me permita uma grande quantidade de tempo livre.

Tudo isso é muito valioso para meus propósitos, de vez que consegui encontrar alguns pontos de referência reais para a história. Perguntei a minha mãe se ela ainda se recordava da babá. “Naturalmente”, disse ela, “uma pessoa de idade, muito esperta. Estava sempre levando você à igreja: depois, quando voltava, você costumava pregar sermões e falar-nos a respeito de Deus todo-poderoso. Durante meu resguardo, quando Anna nasceu” (ela é dois anos e meio mais nova do que eu), “descobriu-se que ela era ladra, e todas as moedas novas e reluzentes de kreuzers e zehners e todos os brinquedos que tinham sido dados a você foram encontrados entre os pertences dela. Seu irmão Philipp [ver diante] foi buscar um policial, e ela pegou dez meses de cadeia.” Ora, veja só como isso confirma as conclusões de minha interpretação dos sonhos. Encontrei uma explicação simples para o meu possível engano. Escrevi a você contando que ela me induzia a furtar zehners e dá-los a ela. O sonho realmente quis dizer que ela mesma os roubava. Pois o quadro onírico era uma lembrança de eu estar tomando o dinheiro da mãe de um médico — isto é, indevidamente. A interpretação correta é: Eu = ela, e a mãe de um médico equivale a minha mãe. Tão longe eu estava de saber que ela era uma ladra que fiz interpretação errada.

Também andei indagando a respeito do médico que tínhamos em Freiberg, porque um sonho mostrou uma grande dose de ressentimento contra ele. Na análise da figura existente no sonho, detrás da qual ele estava oculto, pensei também no professor von K., que foi meu professor de história na escola. Ele não parecia encaixar-se absolutamente no caso, de vez que minhas relações com ele eram indiferentes, ou melhor, agradáveis. Minha mãe então me contou que o médico de minha infância tinha um olho só, e, dentre todos os meus professores de escola, também o Professor K. era o único que tinha esse mesmo defeito.

O valor comprobatório dessas coincidências poderia ser invalidado pela objeção de que, em alguma ocasião posterior da minha infância, eu teria ouvido dizer que a babá era ladra e depois o teria esquecido, aparentemente, até que afinal isso emergiu no sonho. Eu mesmo penso que é assim. Mas tenho outra prova inatacável e divertida. Eu disse a mim mesmo que, se a velha senhora desapareceu tão de repente, deveria ser possível averiguar a impressão que esse fato causou em mim. Onde, pois, está essa impressão? Ocorreu-me então uma cena que, nos últimos 29 anos, emergiu algumas vezes em minha memória consciente, sem que eu a compreendesse. Não havia jeito de encontrar minha mãe: eu berrava a plenos pulmões. Meu irmão Philipp, vinte anos mais velho do que eu, mantinha aberto diante de mim um guarda-louça [Kasten], e ao verificar que mamãe não estava dentro dele, comecei a chorar ainda mais, até que, esguia e linda, ela entrou pela porta. Que pode significar isso? Por que estaria meu irmão abrindo o guarda-louça, se sabia que mamãe não estava lá dentro e que aquilo não poderia me tranqüilizar? E então, subitamente, compreendi. Eu pedira a ele que o fizesse. Ao sentir falta de mamãe, temi que ela tivesse desaparecido de mim, tal como acontecera, pouco tempo antes, com a velha babá. Ora, devo ter ouvido dizer que a velha tinha sido trancafiada e, por conseguinte, devo ter pensado que minha mãe também o fora — ou melhor, que tivesse sido “encaixotada” [“eingekastelt”], pois meu irmão Philipp, atualmente com 63 anos, ainda hoje gosta de falar por meio de trocadilhos. O fato de eu ter recorrido a ele, em particular, prova que eu sabia muito bem da sua participação no desaparecimento da babá. [1]

Depois disso, consegui aclarar muitas coisas mais; entretanto, não cheguei ainda a nenhum ponto conclusivo. Comunicar o que está inacabado é tão vago e trabalhoso que espero que você me perdoe por isso e se contente com o conhecimento dos aspectos que estão estabelecidos com certeza. Se a análise contiver aquilo que espero dela, eu o escreverei ordenadamente e o apresentarei a você depois. Até agora, não encontrei nada completamente novo, só complicações, à quais, de resto, estou acostumado. Não é nada fácil. Ser completamente honesto consigo mesmo é uma boa norma. Um único pensamento de valor genérico revelou-se a mim. Verifiquei, também no meu caso, a paixão pela mãe e o ciúme do pai, e agora considero isso como um evento universal do início da infância, mesmo que não tão precoce como nas crianças que se tornaram histéricas. (Algo parecido com o que acontece com o romance da filiação na paranóia — heróis, fundadores de religiões.) Sendo assim, podemos entender a força avassaladora de Oedipus Rex, apesar de todas as objeções levantadas pela razão contra a sua pressuposição do destino; e podemos entender por que os “dramas do destino” posteriores estavam fadados a fracassar lamentavelmente. Nossos sentimentos opõem-se a qualquer compulsão arbitrária e individual [do destino], tal como é pressuposto em Die Ahnfrau [de Grillparzer] etc. Mas a lenda grega capta uma compulsão que toda pessoa reconhece porque sente sua presença dentro de si mesma. Cada pessoa da platéia foi, um dia, em germe ou na fantasia, exatamente um Édipo como esse, e cada qual recua, horrorizada, diante da realização de sonho aqui transposta para a realidade, com toda a carga de recalcamento que separa seu estado infantil do seu estado atual.

Passou-me pela cabeça uma rápida idéia no sentido de saber se a mesma coisa não estaria também no fundo do Hamlet. Não estou pensando na intenção consciente de Shakespeare, mas acredito, antes, que algum evento real tenha instigado o poeta à sua representação, no sentido de que o inconsciente de Shakespeare compreendeu o inconsciente de seu herói. Como é que o histérico Hamlet consegue justificar suas palavras: “Assim a consciência nos torna a todos covardes”? Como é que ele consegue explicar sua hesitação em vingar o pai assassinado através do seu tio — ele, o homem que, sem nenhum escrúpulo, envia à morte seus cortesãos e efetivamente se precipita ao matar Laertes? De que outro modo poderia ele justificar-se melhor do que mediante o tormento de que padece com a obscura lembrança de que ele próprio planejou perpetrar a mesma ação contra seu pai, por causa da paixão pela mãe — “a se tratar cada homem segundo seu merecimento, quem escapará do açoite?” Sua consciência [moral] é seu sentimento inconsciente de culpa. E não será seu afastamento sexual [em [1]], na conversa com Ofélia, tipicamente histérico? e sua rejeição do instinto que visa a procriar filhos? e, por fim, que dizer de ele ter transferido a ação de seu pai para o de Ofélia? E não faz ele descer sobre si, no final, de modo tão evidente como os meus pacientes histéricos, o castigo, sofrendo o mesmo destino do pai, ao ser envenenado pelo mesmo rival? [1]

 

CARTA 72

 

…Uma idéia a respeito da resistência possibilitou-me situar corretamente todos aqueles casos meus que tinham enveredado por graves dificuldades, e reencaminhá-los satisfatoriamente. A resistência, que finalmente causa uma parada no trabalho, não é senão seu caráter passado da criança, degenerado, que (em conseqüência das experiências que se acham conscientemente presentes nos casos ditos degenerados) se desenvolveu ou poderia ter-se desenvolvido, mas que é encoberto pelo recalque. Esse caráter, eu o desencavo com meu trabalho, e ele se debate; e quem, no início do tratamento, era um sujeito excelente e franco, torna-se grosseiro, mentiroso ou obstinado e se finge de doente — até que lhe digo isso e, desse modo, torna-se possível superar esse caráter. Assim, a resistência tornou-se para mim uma coisa real e tangível; desejaria também que, em lugar do conceito de recalcamento, eu já estivesse de posse daquilo que jaz oculto por trás dele.

Essa característica infantil desenvolve-se durante o período de “anseio intenso”, depois que a criança é afastada das experiências sexuais. Ansiar ardentemente é o principal traço de caráter da histeria, assim como a anestesia atual (ainda que apenas potencial) é o seu principal sintoma. Durante esse mesmo período de anseio, as fantasias são construídas e (invariavelmente?) a masturbação é praticada, dando lugar ao recalque, posteriormente. Quando ela não cede, não há histeria; a descarga da excitação sexual retira a possibilidade de haver histeria, na maioria dos casos. Para mim ficou claro que diversos movimentos obsessivos têm o significado de um substituto dos movimentos de masturbação abandonados…

 

CARTA 73

 

…Minha análise prossegue e continua sendo o meu interesse principal. Tudo é ainda obscuro, até mesmo os problemas; mas há um sentimento reconfortante de que é necessário tão-somente dar uma busca no depósito para encontrar, mais cedo ou mais tarde, aquilo de que se precisa. O mais desagradável de tudo são os estados de humor, que, com freqüência, ocultam totalmente a realidade. Para alguém como eu, também, a excitação sexual já não tem serventia. Mas ainda estou absolutamente satisfeito com ela. Quanto aos resultados, precisamente agora existe mais uma vez uma calmaria.

Você acha que a fala das crianças durante o sono também pode ser encarada como sonho? Se é assim, posso presenteá-lo com os mais recentes sonhos de realização de desejos: Aninha, um ano e meio de idade. Um dia, em Aussee, ela teve de ficar sem comer porque passou mal de manhã, o que foi atribuído ao fato de ter comido morangos. Durante a noite seguinte, ela recitou um cardápio inteiro no sono: “Molangos, molangos silvestres, omelete, pudim!” Talvez eu já lhe tenha contado isso.

 

CARTA 75

 

…“Era o dia 12 de novembro de 1897. O sol estava no quadrante leste; Mercúrio e Vênus estavam em conjunção —” Não, os anúncios de nascimento já não se fazem mais assim. Foi a 12 de novembro, um dia dominado por uma enxaqueca no lado esquerdo, um dia em que, à tarde, Martin sentou-se para escrever um novo poema, e, ao entardecer, Oli perdeu seu segundo dente, um dia em que, após as terríveis dores de parto das últimas semanas, dei à luz um novo conhecimento. Não de todo novo, para dizer a verdade; esse conhecimento tinha-se mostrado repetidas vezes e se havia retraído novamente; [1] mas, dessa vez, permaneceu firme e fitou a luz do dia. Coisa engraçada, costumo ter um pressentimento dessas coisas um bom tempo antes. Por exemplo, certa vez lhe escrevi, no verão [Carta 64, em [1], atrás], que eu estava por encontrar a fonte do recalcamento sexual normal (moralidade, vergonha etc.) e, depois, por longo tempo, não consegui encontrá-la. Antes das férias [Carta 67, em [1]], contei-lhe que o paciente mais importante para mim era eu mesmo; e então, subitamente, depois que voltei das férias, minha auto-análise, da qual até então não havia nenhum sinal, [1] pôs-se em andamento. Há algumas semanas [Carta 72, em [1]], veio-me o desejo de que o recalque pudesse ser substituído pela coisa essencial que jazia por trás dele; e é disso que me ocupo agora.

Muitas vezes suspeitei de que alguma coisa orgânica desempenhava um papel no recalcamento; certa vez, antes disso, disse-lhe que se tratava do abandono de zonas sexuais precedentes [em [1] e [2]] e acrescentei que me agradara encontrar uma idéia parecida em Moll. Privatim [confidencialmente], a ninguém concedo prioridade na idéia; no meu caso, eu ligava essa idéia de recalque à modificação do papel desempenhado pelas sensações do olfato: a adoção da postura ereta, o nariz levantado do chão, ao mesmo tempo que uma série de sensações, que antes despertavam interesse e eram relacionadas à terra, tornaram-se repulsivas — por um processo que ainda me é desconhecido. (Ele levanta o nariz = considera-se especialmente nobre.) Ora, as zonas que não produzem mais uma liberação da sexualidade nos seres humanos normais e maduros certamente são as regiões da boca, do ânus e da garganta. Isto pode ser compreendido de duas maneiras: primeiro, a aparência e a idéia dessas zonas não mais produzem um efeito excitante e, segundo, as sensações internas originárias dessas zonas não proporcionam qualquer contribuição à libido, de modo como fazem os órgãos sexuais propriamente ditos. Nos animais, essas zonas sexuais continuam em vigor, sob ambos aspectos; quando isso persiste também nos seres humanos, o resultado é a perversão. Devemos supor que, na infância, a liberação da sexualidade ainda não é tão localizada como o é posteriormente, de modo que as zonas (e talvez também toda a superfície do corpo) que depois são abandonadas também provocam algo análogo à liberação posterior da sexualidade. A extinção dessas zonas sexuais iniciais teria uma contrapartida na atrofia de determinados órgãos internos, no decurso da evolução. Uma liberação da sexualidade — como você sabe, tenho em mente uma espécie de secreção que é propriamente sentida como o estado interno da libido — ocorre, então, não apenas (1) mediante estímulo periférico sobre os órgãos sexuais, ou (2) mediante as excitações internas que surgem desses órgãos, mas também (3) a partir de idéias — isto é, a partir de traços de memória — portanto, também por via de uma ação postergada. (Você já está familiarizado com essa linha de pensamento.) Se os genitais de uma criança foram excitados por alguém, a lembrança disso, anos depois, produzirá, por efeito retardado, uma liberação de sexualidade muito mais intensa do que na época da excitação, porque o aparelho efetor e a quantidade de secreção terão aumentado nesse meio tempo. Assim, uma ação não-neurótica postergada pode ocorrer normalmente, e esta gera a compulsão. (Nossas outras lembranças atuam habitualmente apenas porque atuaram como experiências.) A ação retardada dessa espécie ocorre também em conexão com as lembranças de excitações das zonas sexuais abandonadas. O resultado, porém, é uma liberação não de libido, mas de desprazer, uma situação interna análoga à repugnância no caso de um objeto.

Dito em termos grosseiros, a lembrança atual cheira mal, assim como um objeto real cheira mal; e assim como afastamos nosso órgão sensorial (cabeça e nariz) com repugnância, também nossa pré-consciência e nosso sentido consciente se afastam da lembrança. Isto é o recalcamento.

O que, então, nos proporciona o recalcamento normal? Algo que, livre, pode levar à angústia, e, psiquicamente ligado, pode produzir rejeição — ou seja, a base afetiva para um sem-número de processos intelectuais de desenvolvimento, tais como a moralidade, a vergonha etc. Assim, tudo isso surge à custa da sexualidade (potencial) extinta. Disso podemos inferir que, com as ondas sucessivas do desenvolvimento de uma criança, esta é sobrecarregada de respeito, vergonha, essas coisas, e vemos como a não-ocorrência dessa extinção das zonas sexuais pode produzir a insanidade moral como uma inibição do desenvolvimento. Essas ondas sucessivas do desenvolvimento provavelmente possuem um ordenamento cronológico diferente nos sexos masculino e feminino. (A repugnância surge mais cedo nas meninas do que nos meninos.) Contudo, a principal diferença entre os sexos emerge na época da puberdade, quando as meninas são acometidas por uma repugnância sexual não-neurótica, e os meninos, pela libido. Pois, nesse período, extingue-se nas adolescentes (total ou parcialmente) mais uma zona sexual, que persiste nos adolescentes masculinos. Estou-me referindo à zona genital masculina, a região do clitóris, na qual, durante a infância, tanto nas meninas como nos meninos, mostra-se concentrada a sensibilidade sexual. Daí a torrente de vergonha que avassala a adolescente nesse período, até ser despertada a nova zona, a zona vaginal, seja espontaneamente, seja por ação reflexa. Daí também resultam, talvez, a anestesia nas mulheres, o papel desempenhado pela masturbação nas crianças predispostas à histeria e a interrupção, no caso de resultar a histeria.

E agora vejamos as neuroses. As experiências ocorridas na infância, quando afetam apenas os genitais, nunca produzem neurose nos homens (ou nas mulheres másculas), mas somente masturbação compulsiva e libido. Entretanto, de vez que, de modo geral, as experiências da infância também afetam as duas outras zonas sexuais, fica aberta, também para os homens, a possibilidade de que o despertar da libido através de uma ação retardada enseje o surgimento do recalque e da neurose. Quando a lembrança reaviva uma experiência correlacionada com os genitais, o que ela produz por ação retardada é a libido. Quando [reaviva uma experiência correlacionada com] o ânus, a boca etc., produz repugnância interna retardada, e o resultado final, por conseguinte, é que uma carga de libido não consegue, como em geral acontece, passar à ação ou à tradução em termos psíquicos [em [1]], mas é obrigada a deslocar-se numa direção regressiva (como acontece nos sonhos). Ao que parece, a libido e a repugnância estariam associativamente vinculadas. À libido devemos o fato de que a lembrança não consegue produzir um desprazer generalizado etc., mas encontra um uso psíquico; e à repugnância devemos o fato de que esse uso só produz sintomas, não produz idéias orientadas para um objetivo. Assim sendo, não deve ser difícil apreender o lado psicológico dessa questão; o fator orgânico existe nela, quer o abandono das zonas sexuais se efetue segundo o tipo masculino ou feminino de desenvolvimento, quer esse abandono absolutamente não ocorra.

É provável, portanto, que a escolha da neurose (a decisão quanto à emergência da histeria, da neurose obsessiva, ou da paranóia) dependa da natureza da onda de desenvolvimento (ou seja, de sua localização cronológica) que possibilita a ocorrência do recalcamento — isto é, que transforma uma fonte de prazer interno em uma fonte de repugnância interna.

 

Foi esse o ponto a que cheguei — com todas as obscuridades aí envolvidas. Decidi, pois, daqui por diante, considerar como fatores separados o que causa a libido e o que causa a angústia. E também abandonei a idéia de explicar a libido como o fator masculino e o recalcamento como o fator feminino. [Cf. em [1]] De qualquer modo, estas são decisões importantes. A obscuridade está principalmente na natureza da modificação pela qual a sensação interna de necessidade se transforma em sensação de repugnância. Não há por que eu chamar sua atenção para outros pontos obscuros. O valor principal da síntese está no fato de ela unir em um só o processo neurótico e o processo normal. Existe agora, portanto, uma necessidade premente de elucidar prontamente a angústia neurastênica comum.

Minha auto-análise ainda está interrompida, e compreendi qual a razão. Só consigo analisar-me com o auxílio do conhecimento adquirido objetivamente (como um observador externo). A verdadeira auto-análise é impossível; não fosse assim, não haveria nenhuma doença [neurótica]. Visto que ainda encontro alguns enigmas em meus pacientes, eles estão fadados a retardar também a mim em minha auto-análise.

 

CARTA 79

 

…Comecei a compreender que a masturbação é o grande hábito, o “vício primário”, e que é somente como sucedâneo e substituto dela que outros vícios — álcool, morfina, tabaco etc. — adquirem existência. O papel desempenhado por esse vício na histeria é imenso, e talvez aí se encontre, no todo ou em parte, o meu grande obstáculo, que ainda resiste. Naturalmente, nisto surge a dúvida de saber se um vício dessa espécie é curável, ou se a análise e a terapia, nesse ponto, sofreriam uma parada e deveriam contentar-se em transformar um caso de histeria em um caso de neurastenia.

No que concerne à neurose obsessiva, está confirmado o fato de que a localização em que o recalcado irrompe é a representação da palavra, e não o conceito vinculado à mesma. (Mais precisamente, a memória verbal.) Por isso é que as coisas mais díspares são prontamente unidas numa idéia obsessiva, sob uma única palavra possuidora de mais de um significado. A tendência à irrupção utiliza-se de uma palavra que tenha essa espécie de ambigüidade com seus di[versos significados] como se se estivessem matando diversas moscas com um só golpe. Veja, por exemplo, o caso que passo a expor. Uma moça, que estava freqüentando uma escola de corte e costura e estava perto da conclusão do seu curso, era atormentada por essa idéia obsessiva: “Não, você não deve ir embora, você ainda não terminou, você deve fazer [machen] mais, precisa aprender muito mais.” Por trás disso estava uma lembrança de cenas de infância em que ela era colocada no urinol, mas queria ir embora e era submetida à mesma compulsão: “Você não pode ir embora, ainda não terminou, precisa fazer [machen] mais. A palavra “machen” [que significa “fazer” possibilitou juntara situação posterior e a situação infantil. As idéias obsessivas, muitas vezes, revestem-se de uma extraordinária imprecisão verbal, a fim de permitir esse emprego múltiplo. Se examinarmos de modo mais atento (consciente) esse exemplo, encontraremos paralelamente a frase “você precisa aprender mais”, que, depois, tornou-se a idéia obsessiva fixa e surgiu através de uma interpretação equivocada desse tipo por parte do consciente.

Isso não é inteiramente arbitrário. A própria palavra “machen” passou por uma transformação análoga em seu significado. Uma antiga fantasia minha, que eu gostaria de recomendar à sua sagacidade lingüística, ocupa-se da derivação de nossos verbos de termos originalmente copro-eróticos como este.

Mal posso enumerar para você todas as coisas que eu (um Midas moderno) transformo em — excremento. Isso se ajusta perfeitamente à teoria do mau cheiro interno [em [1]]. Dinheiro, acima de tudo. Penso que a associação se faz através da palavra “sujo” como sinônimo de “avarento”. Do mesmo modo, tudo o que se relaciona com nascimento, aborto e menstruação remonta a privada, através da palavra “Abort” [“privada, latrina”] (“Abortus”) [“aborto”]. Isso está muito desconjuntado, mas é inteiramente análogo ao processo pelo qual as palavras assumem um significado transferido, tão logo aparecem novos conceitos que exigem designação…

Você viu alguma vez um jornal estrangeiro que tenha passado pela censura russa na fronteira? Palavras, orações e frases inteiras são obliteradas, de modo que o que resta se torna ininteligível. Uma censura russa desse tipo se efetua nas psicoses e produz os delírios aparentemente sem sentido.

 

CARTA 84

 

…Não foi uma façanha nada insignificante de sua parte ver o livro dos sonhos concluído diante de você. Ele sofreu uma interrupção novamente, e nesse meio tempo o problema foi aprofundado e ampliado. Parece-me que a teoria da realização de desejos trouxe apenas a solução psicológica, e não a biológica, ou melhor, a metafísica. (Aliás, vou perguntar-lhe com seriedade se posso usar o nome de metapsicologia para minha psicologia que vai além da consciência.) Biologicamente, parece-me que a vida onírica deriva inteiramente dos resíduos do período pré-histórico da vida (entre um e três anos de idade) — o mesmo período que é a fonte do inconsciente e que, sozinho, contém a etiologia de todas as psiconeuroses, o período caracterizado por uma amnésia análoga à amnésia histérica. Parece-me coerente a seguinte fórmula: O que é visto no período pré-histórico produz sonhos; o que é ouvido nesse mesmo período produz fantasias; o que é experimentado sexualmente, ainda no mesmo período, produz as psiconeuroses. A repetição daquilo que foi experimentado nesse período é, em si mesma, a realização de um desejo; um desejo recente só conduz a um sonho quando consegue estar em conexão com material proveniente desse período pré-histórico, quando o desejo recente é um derivado pré-histórico. Ainda resta examinar até que ponto serei capaz de ater-me a essa teoria extremada e até que ponto poderei expô-la no livro dos sonhos.

 

 

CARTA 97

 

…Comecei um caso novo, de modo que o estou abordando sem qualquer conclusão antecipada. De início, como é natural, tudo se ajusta maravilhosamente. Trata-se de um homem jovem, de vinte e cinco anos, que mal consegue caminhar por causa da rigidez das pernas, espasmos, tremores etc. Uma salvaguarda contra qualquer diagnóstico incorreto é proporcionada pela angústia concomitante, que o faz manter-se agarrado às saias da mãe como o bebê que se esconde atrás desse homem. A morte de seu irmão e a morte do pai, portador de uma psicose, precipitaram o início de seu estado, que esteve presente desde a idade de quatorze anos. Sente-se envergonhado diante de qualquer pessoa que o veja caminhando dessa maneira e considera isso natural. Seu modelo é um tio tabético, como qual já se identificava quando tinha treze anos, por causa da etiologia aceita (levar uma vida dissoluta). Aliás, ele tem compleição de um verdadeiro urso.

Por favor, observe que a vergonha está simplesmente apensa aos sintomas e deve relacionar-se com outros fatores desencadeantes. Espontaneamente, ele disse que o tio não se sentia nem um pouco envergonhado de seu modo de andar. A relação entre a vergonha e seu modo de caminhar foi uma relação racional há muitos anos, quando ele teve gonorréia, o que naturalmente era perceptível em seu andar, e também até mesmo alguns anos antes, quando as ereções constantes (sem objetivo) interferiam no seu andar. Além disso, a causa de sua vergonha era mais profunda. Contou-me ele que, no ano passado, quando estavam morando junto ao [rio] Wien (no campo), que de repente começou a subir, ele foi tomado de terrível medo de que a água pudesse chegar até dentro do seu quarto — ou seja, de que seu quarto fosse inundado durante a noite. Observe, por favor, a ambigüidade da expressão: eu sabia que ele sofrera de enurese quando criança. Cinco minutos depois, contou-me espontaneamente que, na época em que freqüentava o curso primário, ele ainda urinava na cama regularmente, que sua mãe o ameaçava de contar isso aos professores e aos outros meninos. Ele sentira uma angústia enorme. De modo que é aí que se situa sua vergonha. Toda a história de sua adolescência, por um lado, tem seu clímax nos sintomas da perna e, por outro, libera o afeto pertencente a essa fase; ambos, afeto esintomas, vinculam-se somente pela sua percepção interna. No espaço entre os dois insere-se toda a história perdida de sua infância.

Ora, uma criança que urinou regularmente na cama até os sete anos de idade (sem ser epiléptica ou algo parecido) deve ter tido experiências sexuais no início da infância. Espontâneas, ou por sedução? Esta é a situação que deve encerrar também os fatores causais mais precisos — relativos a suas pernas.

 

CARTA 101

 

…Em primeiro lugar: uma pequena parte de minha auto-análise progrediu e confirmou que as fantasias são produtos de períodos posteriores e são projetadas para o passado, desde o que era então o presente até épocas mais remotas da infância; o modo como isso ocorre também emergiu — mais uma vez, um vínculo verbal.

À pergunta: “O que aconteceu nos primórdios da infância?”, a resposta é “nada”. Mas o embrião de um impulso sexual estava lá. Seria fácil e maravilhoso contar-lhe como é a coisa; mas seria necessária uma meia dúzia de páginas para eu escrever tudo isso por extenso, e por isso vou guardá-lo para nosso encontro na Páscoa, com algumas outras informações a respeito de meus primeiros anos [de vida].

Além disso, encontrei um outro elemento psíquico que considero ter significado geral e ser uma fase preliminar dos sintomas, anterior, mesmo, à fantasia.

(4 de janeiro.) Ontem, fiquei cansado, e hoje, não consigo continuar escrevendo de acordo com o que pretendia, porque a coisa está crescendo. Há qualquer coisa aí. Está começando a despontar. Nos próximos dias, por certo haverá algum acréscimo. Então, quando a coisa ficar aclarada, eu lhe escreverei. Apenas lhe revelarei que o padrão onírico é passível da mais genérica aplicação, e que também compreendo por que, a despeito de todos os meus esforços, ainda não concluí o livro dos sonhos. Se eu esperar um pouco mais, conseguirei descrever o processo mental que ocorre nos sonhos, de tal maneira que ele também inclua o processo que ocorre na formação dos sintomas histéricos. Portanto, esperemos.

 

CARTA 102

 

…Algumas outras coisas de menor importância vieram à luz — por exemplo, que as dores de cabeça histéricas baseiam-se numa analogia, na fantasia, que iguala a parte superior com a extremidade inferior do corpo (cabelo em ambos os lugares — bochechas [Backen] e nádegas [Hinterbacken (literalmente, “bochechas de trás”)] — lábios [Lippen] e labia [Schamlippen (literalmente, “lábios da vergonha”)] — boca = vagina, de forma que um ataque de enxaqueca pode ser utilizado para representar um defloramento forçado, embora, ao mesmo tempo, toda a indisposição também represente uma situação de realização de desejo. A ação determinante da sexualidade torna-se sempre mais clara. Em uma paciente (em que determinei exatamente a fantasia) havia constantes estados de desespero, com uma convicção melancólica de que ela não valia nada, era incapaz de fazer qualquer coisa etc. Sempre pensei que, no início de sua infância, ela houvesse testemunhado um estado análogo, uma melancolia verdadeira, em sua mãe. Isso concordava com a teoria anterior, mas dois anos não trouxeram nenhuma confirmação. E agora se verificou que, quando ela era uma adolescente de quatorze anos, descobriu que tinha atresia hymenalis [hímen imperfurado] e ficou desesperada, imaginando que não serviria para esposa: melancolia — isto é, temor da impotência. Outros estados, em que não consegue decidir-se quanto à escolha de um chapéu ou um vestido, originam-se de sua luta na época em que teve de escolher um marido.

Com uma outra paciente, convenci-me de que realmente existe algo a que se pode chamar melancolia histérica e quais são suas manifestações. Também verifiquei como a mesma lembrança aparece nas mais diferentes versões; e ainda obtive um primeiro vislumbre da melancolia que ocorre por soma. Essa paciente, além disso, é totalmente anestésica, como deveriamesmo ser, de conformidade com uma idéia que data do período inicial do meu trabalho referente às neuroses [em [1]]

Sobre uma terceira mulher obtive essa informação interessantíssima. Um homem importante e rico (um diretor de banco), com cerca de sessenta anos de idade, veio ver-me e me entreteve descrevendo as características de uma jovem com quem tem uma liaison. Arrisquei um palpite de que ela seria provavelmente muito frígida. Pelo contrário, ela tem quatro a seis orgasmos durante um só coito. Mas…logo na primeira abordagem, ela é tomada de tremores e, imediatamente depois, cai num estado de sono patológico; enquanto se encontra nesse estado, fala como se estivesse em hipnose, executa sugestões pós-hipnóticas e tem completa amnésia quanto a todo esse estado. Ele está para se casar com ela, e ela certamente será frígida com o marido. Esse cavalheiro idoso, pela possibilidade de ser identificado como o pai imensamente poderoso da infância dela, surte evidentemente o efeito de poder liberar a libido dela, ligada às fantasias. Instrutivo.

 

CARTA 105

 

…Minha última generalização mostrou-se válida e parece que tende a crescer até uma dimensão imprevisível. Não só os sonhos são realizações de desejos: os ataques histéricos também o são. Isso se aplica aos sintomas histéricos, mas, provavelmente, também a todos os eventos neuróticos, pois constatei-o há muito tempo na insanidade delirante aguda. Realidade — realização de desejos. É desse par de opostos que brota nossa vida mental. Penso que agora sei o que é que determina a diferença entre os sonhos e os sintomas, que emergem na vida desperta. Para um sonho, é suficiente que ele seja a realização de desejo de um pensamento recalcado, pois os sonhos são mantidos longe da realidade. Mas um sintoma, que está inserido no meio da vida, precisa constituir algo mais, além disso: precisa ser também a realização de desejo do pensamento recalcador. O sintoma surge ali onde o pensamento recalcado e o pensamento recalcador conseguem juntar-se na realização do desejo. Um sintoma é a realização de desejo do pensamento recalcadorquando, por exemplo, o sintoma constitui uma punição, uma autopunição, a substituição final da autogratificação, da masturbação.

Essa chave abre muitas portas. Você sabe, por exemplo, porque X.Y. padece de vômitos histéricos? Porque, na fantasia, ela está grávida, porque ela é tão insaciável que não consegue tolerar o fato de não ter um bebê também de seu último amante em sua fantasia. Mas ela também tem de vomitar porque, nesse caso, passará a fome e ficará magra, perderá sua beleza e não mais será atraente para ninguém. Assim, o sentido do sintoma é um par contraditório de realizações de desejos. [1]

Você sabe por que nosso amigo E., que você conhece, enrubesce e começa a suar assim que vê alguém de uma determinada categoria de conhecidos, especialmente no teatro? Ele sente vergonha. Sem dúvida. Mas de quê? De uma fantasia na qual ele figura como o deflorador de toda pessoa que encontra. Ele transpira porque deflora: trabalho muito pesado o dele. Um eco desse significado encontra expressão nele, tal como o ressentimento de alguém que é derrotado, a cada vez que ele se sente envergonhado diante de uma mulher: “Ora, essa estúpida pensa que tenho vergonha dela. Se eu a tivesse numa cama, ela iria ver como não me sinto nada constrangido com ela!” E a ocasião em que canalizou seus desejos para essa fantasia deixou sua marca no complexo psíquico que produz o sintoma. Foi a aula de latim. O auditório do teatro lembra-lhe a sala de aula; ele sempre procura ocupar o mesmo assento de costume, na fila da frente. O entr’acte é o “recreio” dos tempos de escola e o “suar” significa o “operam dare” [trabalhar] daqueles tempos. Ele teve uma discussão com o professor a respeito dessa expressão. Ademais, não consegue esquecer o fato de que depois, na universidade, foi reprovado em botânica; e prossegue nisso, agora, como “deflorador”. É verdade que ele deve à sua infância a capacidade de lavar-se em suor — à época em que (tendo ele três anos) seu irmão despejou-lhe em cima água do banho e jogou espuma de sabão em seu rosto, quando ele estava no banho — um trauma, embora não trauma sexual. E por que é que em Interlaken, quando tinha quatorze anos, ele se masturbou numa atitude tão especial no W.C.? Foi só para conseguir dar uma espiada no Jungfrau [literalmente, “a virgem”]; e, a partir de então, nunca mais viu uma outra — pelo menos ad genitalia.Evitou isso intencionalmente, é claro; de outro modo, por que só teria casos amorosos com atrizes?

 

CARTA 125

 

…Há não muito tempo, tive o que pode ter sido um primeiro vislumbre de alguma coisa nova. Tenho diante de mim o problema da “escolha da neurose”. Quando é que uma pessoa se torna histérica em vez de paranóica? Uma primeira tentativa rudimentar, feita na época em que eu tentava, à força, tomar de assalto a cidadela, deu-me a impressão de que essa escolha dependia da idade em que ocorreram os traumas sexuais — da idade que a pessoa tinha na época da experiência. [Cf. em [1]] Abandonei há muito tempo esse ponto de vista, e fiquei sem meio de solucionar a questão até há poucos dias, quando comecei a compreender um elo da teoria da sexualidade.

A camada sexual mais inferior é o auto-erotismo, que age sem qualquer objetivo psicossexual e exige somente sensações locais de satisfação. Depois dele vem o aloerotismo (homo e heteroerotismo); mas ele certamente também continua a existir como uma corrente separada. A histeria (e sua variante, a neurose obsessiva) é aloerótica: sua via principal é a identificação; restabelece todas as figuras amadas da infância que foram abandonadas (cf. minha exposição sobre os sonhos de exibicionismo) e dissolve o próprio ego em figuras externas. Assim, cheguei a considerar a paranóia como uma irrupção da corrente auto-erótica, como um retorno à posição então prevalente. A perversão correspondente a ela seria o que se conhece como “loucura idiopática”. As relações especiais do auto-erotismo com o “ego” original projetariam viva luz sobre a natureza dessa neurose. Nesse ponto, o fio se interrompe.

 

PROJETO PARA UMA PSICOLOGIA CIENTÍFICA (1950 [1895])

 

INTRODUÇÃO DO EDITOR INGLÊS

[ENTWURF EINER PSYCHOLOGIE]

 

(a) EDIÇÃO ALEMÃ:

1950 Em Aus den Anfängen der Psychoanalyse [Dos Primórdios da Psicanálise], organizada por Marie Bonaparte, Anna Freud e Ernst Kris, 371-466. Londres: Imago Publishing Co.

 

(a) TRADUÇÃO INGLESA:[Project for a Scientific Psychology]

1954 Em The Origins of Psycho-Analysis, pelos mesmos organizadores, 347-445. Londres: Imago Publishing Co.; Nova Iorque: Basic Books. (Tradução de James Strachey.)

 

A presente tradução inglesa, também de James Strachey, foi completamente revisada e editada segundo o manuscrito original. O título alemão (“Esboço de uma Psicologia”) foi escolhido pelos compiladores dos Anfänge; o título inglês é escolha do tradutor. O original não tem título.

 

 (1) Resumo Histórico

Em carta escrita a Wilhelm Fliess, com data de 27 de abril de 1895 (Freud, 1950a, Carta 23), Freud se queixa de estar demasiadamente absorvido pela sua “Psicologia para Neurologistas”: “Sinto-me literalmente devorado por ela, a ponto de ficar exausto e me ver obrigado a interromper. Nunca passei por uma preocupação tão grande assim. E dará algum resultado? Espero que sim, mas é um trabalho difícil e lento.” Um mês depois, em outra carta, datada de 25 de maio de 1895 (Carta 24), essa “psicologia” fica mais explicada: “Ela tem-me acenado à distância desde tempos imemoriais, mas agora que deparei com as neuroses, tornou-se muito mais próxima. Vivo atormentado por duas intenções: descobrir que forma tomará a teoria do funcionamento psíquico se nela for introduzido um método de abordagem quantitativo, uma espécie de economia de força nervosa, e, em segundo lugar, extrair da psicopatologia tudo o que puder ser útil à psicologia normal. É de fato impossível conceber uma noção geral satisfatória dos distúrbios neuropsicóticos, a menos que se possa relacioná-los a hipóteses claras sobre os processos psíquicos normais. Venho dedicando todos os meus minutos livres dessas últimas semanas a esse trabalho; passo as noites, das onze até as duas horas da madrugada, a imaginar, comparar e fazer conjecturas desse gênero; e só desisto quando chego a uma conclusão absurda ou fico tão irremediavelmente exausto que perco todo o interesse pela minha atividade médica cotidiana. Mas você ainda terá que esperar muito tempo por qualquer resultado.” Ele não demorou muito, porém, a se mostrar mais otimista: em 12 de junho (Carta 25) já comunicava que “a construção psicológica parece em vias de obter êxito, o que me daria enorme prazer. É claro que, por enquanto, nada posso afirmar com certeza. Fazer uma comunicação disso agora equivaleria a levar a um baile um feto feminino de seis meses.” E, em 6 de agosto (Carta 26), ele anuncia que, “após longas reflexões, creio ter chegado à compreensão da defesa patológica e, ao mesmo tempo, de muitos processos psicológicos importantes”. Mas logo surgem novos obstáculos. Em 16 de agosto (Carta 27), escreve: “Tive uma estranha experiência com a minha fyw. Pouco depois de comunicar a você a sensacional novidade, conclamando suas felicitações pela escalada de um pico secundário, eis que esbarrei em novas dificuldades e constatei que não me restava fôlego suficiente para a nova tarefa. Por isso, decidi-me prontamente, pus de lado todo o alfabeto e me convenci de que não tenho mais o menor interesse pelo assunto.” E depois, na mesma carta: “A ‘Psicologia’ representa, positivamente, uma cruz para mim. Seja como for, jogar boliche e colher cogumelos são atividades muito mais saudáveis. Afinal, eu queria apenas explicar a defesa, mas, quando dei por mim, estava tentando explicar algo que pertence ao próprio núcleo da natureza. Tive de elaborar os problemas da qualidade, do sono, da memória — em suma, a psicologia inteira. Agora não quero mais ouvir falar nisso.”

Pouco depois, em 4 de setembro, segundo conta Ernest Jones (1953,418), Freud foi visitar Fliess em Berlim. As conversas com o amigo evidentemente ajudaram-no a aclarar as idéias, pois a redação do Projeto foi iniciada logo em seguida. Literalmente em seguida, pois, segundo escreve Freud em 23 de setembro (Carta 28), “enquanto ainda estava no trem, comecei um breve resumo da minha fyw para submeter à sua apreciação”. Resumo que, efetivamente, constitui as primeiras folhas escritas a lápis do Projeto, tal como o possuímos hoje. Passa, então, a descrever a marcha do trabalho iniciado durante a viagem. “Já tenho um volume considerável, de meros rabiscos, é lógico, nos quais deposito grande esperança. Meu cérebro descansado agora encara como brincadeira as dificuldades acumuladas.” É na data de 8 de outubro que Freud envia a Fliess, em dois cadernos, o que já tinha completado (Carta 29). “Elas foram inteiramente rascunhadas depois de minha volta e lhe dirão pouca coisa a título de novidade. Conservei comigo um terceiro caderno, que trata da psicopatologia do recalcamento, porque ele só leva o assunto até certo ponto. A partir daí, vi-me forçado a reiniciar todo o trabalho em esboços e tenho estado ora orgulhoso e contente com ele, ora envergonhado e deprimido; até agora, depois de um excesso de tormentos mentais, digo a mim mesmo, apaticamente, que o material ainda não se coaduna e talvez nunca venha a se coadunar. O que não consigo enquadrar não é o mecanismo — para isso não me faltaria paciência —, mas sim a explicação do recalcamento, embora, diga-se de passagem, tenha efetuado grandes progressos no que tange a seu conhecimento clínico. Uma semana depois, no dia 15 de outubro (Carta 30), o assunto é mais uma vez posto de lado por falta de solução, mas em 20 de outubro (Carta 32) Freud já se manifesta muito mais otimista: “Durante uma noite em que estive muito ocupado… de repente as barreiras caíram por terra, os véus se desfizeram e me foi possível enxergar desde os detalhes das neuroses até os determinantes da consciência. Tudo pareceu encaixar-se e as engrenagens se ajustavam, dando a impressão de que o conjunto era realmente uma máquina que logo começaria a andar sozinha. Os três sistemas de neurônios, as condições livre e ligada da quantidade, os processos primário e secundário, as tendências principal e de compromisso do sistema nervoso, as duas regras biológicas da atenção e da defesa, as indicações de qualidade, realidade e pensamento, o estado dos grupos psicossexuais, a determinação sexual do recalcamento e, por fim, os determinantes da consciência como função perceptiva — tudo isso se coadunava e ainda se coaduna! É claro que mal posso conter minha alegria.” Mas o acesso de entusiasmo teve curta duração. No dia 8 de novembro (Carta 35) ele comunicou ter jogado todos os manuscritos da psicologia dentro de uma gaveta “onde ficarão dormindo até 1896”. Sentira-se esgotado pelo trabalho, irritado, confuso e incapaz de dominar o assunto, e por isso preferia deixá-lo de lado e se ocupar de outras questões. E em 29 de novembro (Carta 36), escreveu: “Já não posso compreender o estado de ânimo em que concebi a ‘Psicologia’; nem consigo entender como fui capaz de importunar você com isso.” Mesmo assim, decorrido apenas um mês,remeteu a Fliess a longa carta de 1º de janeiro de 1896 (Carta 39), que consiste, em linhas gerais, na elaborada revisão de algumas das posições fundamentais adotadas no Projeto. Esse texto será reproduzido, em apêndice, no próprio Projeto. E desde então o Projeto desaparece de vista, até ressurgir, cerca de cinqüenta anos mais tarde, no meio das cartas esquecidas que Freud escreveu a Fliess. Só que as idéias nele contidas persistiram e, por fim, floresceram nas teorias da psicanálise.

(2) O Texto e Sua Tradução

Tal como indica a bibliografia atrás (em. [1]), a primeira versão publicada do texto alemão da obra, incluída em Aus den Anfängen der Psychoanalyse, foi lançada em Londres em 1950 e a tradução inglesa apareceu quatro anos mais tarde. Houve certas dúvidas quanto à precisão da versão alemã publicada, tornando-se evidente que, antes de se proceder a uma tradução revisada, seria imprescindível fixar um texto alemão definitivo. Isso só foi possível graças à gentileza de Ernst Freud, que se encarregou de tirar fotocópias do manuscrito, colocando-as à inteira disposição do editor.

O exame do manuscrito logo confirmou a existência de inúmeras divergências em relação à versão publicada. O tradutor se viu, assim, na situação diversa da que tinha enfrentado para verter a maior parte das obras de Freud, onde o leitor que alimenta dúvidas ou desconfianças a respeito da fidelidade da tradução pode quase sempre recorrer a um texto alemão confiável. Aqui, infelizmente, não existe tal texto publicado, só sendo possível obtê-lo mediante um fac-símile do manuscrito original. De modo que o tradutor arca inevitavelmente com uma responsabilidade especial e absoluta, pois o leitor fica inteiramente à mercê dele, e o tratamento do texto tem que se adaptar a essa situação. Seu critério deve obedecer a duas considerações: conseguir apresentar algo que seja inteligível, fluente e com um estilo inglês aceitável, além de reproduzir a intenção do autor da maneira mais exata possível. Esses dois objetivos muitas vezes entram em conflito, mas, no caso de uma obra tão difícil e importante como esta (e nas circunstâncias que acabamos de mencionar), a tradução precisa optar, mais do que nunca, pela fidelidade.

 

A letra de Freud, nesse caso específico, não é muito difícil de ser decifrada por quem já esteja familiarizado com os caracteres góticos, e não existem realmente muitos pontos discutíveis no texto propriamente dito. Pode-se, aliás, afirmar que Freud (tal como Ben Jonson disse de Shakespeare) “nunca riscou uma linha”, e as páginas de seus manuscritos se sucedem completamente livres de alterações: no Projeto, em cerca de quarenta mil palavras do mais conciso raciocínio, existem ao todo apenas vinte e poucas correções. De modo que não é em relação às questões textuais que surgem os problemas e as dúvidas — embora, como se verá, haja uma série de omissões e equívocos acidentais no texto publicado —, e sim em relação à interpretação de expressões usadas por Freud e à melhor forma de apresentá-las ao leitor.

Comecemos pelos aspectos mais simples. Freud não foi um escritor meticuloso; ocorre, assim, um determinado número de deslizes óbvios, corrigidos sem comentário em nossa versão, exceto quando o erro é discutível ou de especial importância. A pontuação não é sistemática (às vezes faltam vírgulas ou não se fecham alguns parênteses) e, seja como for, em geral não coincide com as normas inglesas. Isso também se aplica à mudança de parágrafos, que, além do mais, nem sempre é fácil de determinar. Em nossa versão, portanto, não julgamos necessário respeitar rigorosamente o original em nenhum desses aspectos. Em compensação, mantivemo-nos invariavelmente fiéis ao método extremamente pessoal e muito pouco inglês com que Freud sublinha toda palavra, oração ou frase a que atribui suma importância. Para outro de seus expedientes para imprimir ênfase — o de escrever uma palavra ou oração em caracteres latinos, em vez de caracteres góticos — julgamos desnecessário acrescentar uma nota de rodapé. Na maioria desses casos, por sinal, nosso modo de proceder coincide com o observado nos Anfänge.

Mas o maior problema causado pelo manuscrito de Freud é o uso de abreviaturas. São dos mais variados gêneros. Atingem o máximo nas primeiras quatro páginas e meia — o trecho escrito a lápis no trem. Não que esteja redigido com menos nitidez do que o resto; pelo contrário. Mas não só as palavras isoladas se acham abreviadas, como acontece com freqüência em todo o manuscrito, como também as próprias frases estão escritas em estilo telegráfico: faltam artigos definidos e indefinidos e há orações que omitem o verbo principal. Eis, por exemplo, a tradução literal da primeira frase da obra: “Intenção de fornecer psic. natural-científica, i.e., representar processos psic. como quant. determinar estados de partículas matérias especificáveis, para assim tornar compreensível e livre de contradições.” Onde o sentido não admite dúvidas, a solução óbvia é preencher as lacunas, indicando entre colchetes unicamente as conclusões menos certas quanto ao sentido. Depois dessas primeiras quatro páginas e meia, opera-se uma mudança radical: a partir daí as abreviaturas ficam quase que inteiramente restritas a palavras isoladas.

Aqui, porém, cumpre observar novas distinções. (a) Em primeiro lugar, há, naturalmente, abreviaturas de uso universal: por exemplo, “usw” para “und so weiter” (“etc.”) e “u” para “und” (“e”). (b) Existem também outras, usadas sistematicamente por Freud em seu manuscrito, tais como ao abreviar sufixos em “ung” e em “ungen” para “g” e “gen”: “Besetzg” para “Besetzung” (“catexia”). (c) Depois vêm as abreviaturas de termos especiais usados com muita freqüência na obra ou em determinados trechos dela. Uma bem típica é “Cschr”, que substitui “Contactschranke” (“barreira de contacto”). Essa palavra, quando aparece pela primeira vez, está escrita por extenso, mas depois só surge em forma abreviada. O mesmo acontece com termos freqüentes como “Qualz”, que substitui “Qualitätszeichen” (“indicação de qualidade”). Em todos esses tipos de abreviatura não há, evidentemente, vantagem em aborrecer o leitor, reproduzindo-as na tradução: jamais ocorre a menor dúvida quanto ao que Freud quer dizer com elas. (d) Agora chegamos àquilo que se assemelha mais a símbolos do que a abreviaturas — os sinais alfabéticos de que Freud tanto gostava: por exemplo, “N” para “Neuron” (“neurônio”), “W” para “Wahrnehmung” (“percepção”), “V” para “Vorstellung” (“idéia”). A estes pode-se ainda acrescentar “Er”, a abreviatura que ele tanto usou para “Erinnerung” (“memória”). Todas estas são usadas por Freud com grande freqüência, embora de vez em quando (e incoerentemente) escreva as palavras por extenso. Já que aqui, mais uma vez, não existem dúvidas quanto ao sentido, adotamos uniformemente a forma não abreviada. (e) Ainda resta, porém uma quinta categoria à qual isso não se aplica. As letras gregas f, y e w (phi, psi e ômega) são usadas por Freud neste trabalho como sinais estenográficos para noções bastante complexas, devidamente explicadas quando introduzidas; por conseguinte, ficaram inalteradas em nossa tradução.

Eis uma teoria plausível a respeito de w e de sua relação com W. Freud começara com dois “sistemas” de neurônios que, por motivos relativamente óbvios, chamou de f e y. Depois descobriu que precisava de um símbolo para um terceiro sistema de neurônios, relacionado com as percepções. Ora, por um lado, o mais apropriado seria outra letra grega — como as duas anteriores, tirada talvez do fim do alfabeto. Por outro lado, seria aconselhável que fizesse certa alusão à percepção. Como vimos, a maiúscula “W” substitui “percepção” (“Wahrnehmung”) e a letra grega ômega se parece muito com o “w” minúsculo. Por isso ele escolheu o “w” para o sistema perceptual. O chiste, ou pelo menos metade dele, desaparece em inglês, mas mesmo assim julgamos mais aconselhável manter o “w” do que adotar o “pcpt”, que é o nome dado ao sistema em todos os volumes subseqüentes da Standard Edition. A distinção entre “W” e “” é praticamente inconfundível no manuscrito de Freud; contudo, o defeito mais grave dos Anfänge talvez seja o de não observá-la com a devida freqüência, às vezes com resultados desastrosos para o sentido.

O último de todos esses sinais alfabéticos é o Q e seu misterioso companheiro Qh. Ambos, indubitavelmente, simbolizam “quantidade”. Mas qual a razão dessa diferença? E, acima de tudo, por que o eta grego com o espírito brando? Não resta dúvida de que a diferença existe, embora Freud não a indique nem a explique em parte alguma. A certa altura (em [1]), começou a escrever “Qh” e depois riscou “h”, e em outro trecho (em [1]) fala de “uma quantidade composta de Q e Qh”.

Mas, na verdade, apenas uma página antes (em [1]), ele parece finalmente explicar a diferença. Q, ao que tudo indica, é a “quantidade externa” e Qh, a “quantidade psíquica” — embora a redação não deixe de ter sua dose de ambigüidade. Cumpre acrescentar que o próprio Freud às vezes se mostra incoerente no uso desses sinais e freqüentemente escreve a palavra “Quantität” por extenso ou ligeiramente abreviada. É óbvio que o leitor terá que encontrar sua própria solução para o enigma — nós nos limitamos a respeitar escrupulosamente o manuscrito, escrevendo “Q”, “Qh” ou “quantidade”.

De modo geral, realmente, como já ressaltamos, manteve-se a máxima fidelidade possível ao original: onde divergimos em aspectos importantes e sempre que surgiram dúvidas sérias, o fato ficou registrado entre colchetes ou em nota de rodapé. É nesse sentido que divergimos fundamentalmente dos organizadores dos Anfänge, que fazem todas as suas modificações sem o menor tipo de advertência. Em vista disso, julgamos necessário, sempre que nossa versão diverge substancialmente do texto dos Anfänge, apresentar o original alemão em nota de rodapé. As imprecisões de menor gravidade, como, por exemplo, os freqüentes equívocos entre “Q” e “Qh”, ficaram sem comentário; mas, ainda assim, a necessidade de corrigir os inúmeros erros cometidos na versão publicada em alemão nos acarretou um excesso de notas de rodapé. Sem dúvida, muitos leitores ficarão irritados com isso, mas desse modo os que possuem edição alemã poderão compará-la de perto com o manuscrito original. Assim, as circunstâncias excepcionais talvez justifiquem nosso aparente pedantismo.

(3) A Importância do Trabalho

Terá valido a pena tomar medidas tão complicadas com o texto do Projeto? O próprio Freud, com toda a probabilidade, diria “não”. Depois de redigi-lo em duas ou três semanas, deixou-o inacabado, não lhe poupando críticas na época em que o escrevia. Mais tarde, parece tê-lo esquecido ou, pelo menos, nunca mais fez referência a ele. E quando, na velhice, veio a reencontrá-lo, procurou destruí-lo de todos os modos. Como pode, então, ter algum valor?

Há motivos para pensar que o autor passou a ter uma visão deturpada do trabalho, e seu valor pode ser definido de duas maneiras bem diversas.

Quem examinar os índices biográficos dos volumes posteriores da Standard Edition terá a surpresa de encontrar em cada um deles referências, não raro profusas, às cartas a Fliess e ao Projeto. E, como corolário, verificará, nas notas de rodapé das páginas que se seguem, muitas referências aos volumes posteriores da Standard Edition. Essa circunstância é expressão da admirável verdade de que o Projeto, apesar de ser manifestamente um documento neurológico, contém em si o núcleo de grande parte das teorias psicológicas que Freud desenvolveria mais tarde. Nesse sentido, sua descoberta não tem apenas interesse histórico; na verdade, esclarece, pela primeira vez, algumas hipóteses fundamentais mais obscuras de Freud. O auxílio que o Projeto dá à compreensão do sétimo capítulo teórico de A Interpretação dos Sonhos está comentado com certa minúcia na Introdução do Editor Inglês àquela obra (Edição Standard Brasileira, Vol. IV, [1], IMAGO Editora, 1972). Mas, na realidade, o Projeto, ou melhor, seu espírito invisível, paira sobre toda a série de obras técnicas de Freud até o fim.

O fato de haver muitos elos de ligação evidentes entre o Projeto e os conceitos posteriores de Freud não deve, porém, levar-nos a esquecer as diferenças básicas entre eles.

Em primeiro lugar, logo se evidenciará que, de fato, há pouquíssimas coisas nestas páginas que antecipam os procedimentos técnicos da psicanálise. A livre associação de idéias, a interpretação do material inconsciente e a transferência são apenas insinuadas. Só nos trechos sobre os sonhos é que há alguma antecipação dos desenvolvimentos clínicos posteriores. O material clínico está, de fato, em grande parte restrito à parte II, que trata da psicopatologia. As partes I e III se compõem, em geral, de princípios teóricos e a priori. Nesse sentido, manifesta-se um novo contraste. Enquanto a sexualidade tem grande proeminência na parte clínica, praticamente independente (parte II), nas partes teóricas (partes I e III) ela já desempenha um papel secundário. Na verdade, na época em que Freud redigia o Projeto, suas pesquisas clínicas das neuroses se concentravam principalmente na sexualidade. Convém lembrar que, no mesmo dia (1º de janeiro de 1896) em que ele enviou a Fliess a extensa carta revisando certos princípios teóricos do Projeto (em [1], adiante), também lhe remeteu o “Conto de Fadas Natalino” (em [1]), que constitui um estudo preliminar para seu artigo sobre as neuropsicoses de defesa (1896b) e que enfocam os efeitos das experiências sexuais. Essa incômoda separação entre a importância clínica e teórica da sexualidade só viria a ser solucionada um ou dois anos depois pela auto-análise de Freud, que o levou ao reconhecimento da sexualidade infantil e à importância fundamental dos ímpetos pulsionais inconscientes.

Isso trás à baila outra grande diferença entre as teorias de Freud no Projeto e suas teorias posteriores. Aqui a ênfase está colocada exclusivamente no impacto do meio sobre o organismo e na reação do organismo ao meio. É verdade que, além dos estímulos externos, existem excitações endógenas, mas a natureza dessas excitações não é objeto de muitas considerações. As “pulsões” são apenas entidades indefinidas, que mal recebem um nome. O interesse pelas excitações endógenas se restringe, em geral, às operações “defensivas” e seus mecanismos. O mais curioso é que o que posteriormente constituiria o quase onipotente “princípio do prazer” seja aqui encarado unicamente como mecanismo de inibição. Efetivamente, mesmo em A Interpretação dos Sonhos, publicada quatro anos depois, ele ainda é sempre chamado de “princípio do desprazer”. As forças internas dificilmente representam mais do que reações secundárias às externas. O id, de fato, ainda estava por ser descoberto.

Levando isso em conta, podemos talvez chegar a um ponto de vista mais geral sobre a evolução das teorias de Freud. O que temos no Projeto é uma descrição pré-id — “defensiva” — da mente. Com o reconhecimento da sexualidade infantil e a análise das pulsões sexuais, o interesse de Freud se desviou da defesa e, durante cerca de vinte anos, concentrou-se extensamente no estudo do id. Só quando esse estudo lhe pareceu mais ou menos esgotado foi que ele voltou, na última fase de sua obra, a considerar a defesa. Já se assinalou muitas vezes que é no Projeto que se encontra uma antecipação do ego estrutural que surge em O Ego e o Id. Mas é natural que seja assim. Era fatal que houvesse semelhanças entre um quadro pré-id e um quadro pós-id dos processos psicológicos.

A reflexão sobre essas características do Projeto tende a sugerir outra possível fonte de interesse na obra — uma fonte distante da psicanálise e que não pode ser adequadamente abordada aqui. O método tentado por Freud há setenta anos para descrever os fenômenos mentais em termos fisiológicos pode muito bem parecer assemelhar-se com certos métodos modernos de tratar o mesmo problema. Hoje em dia, sugere-se que o sistema nervoso humano pode ser considerado, em seu modo de funcionamento, como parecido ou até mesmo idêntico a um computador eletrônico — ambos trabalham para receber, armazenar, processar e fornecer informações. Já se assinalou, com bastante plausibilidade, que, nas complexidades dos eventos “neuronais” aqui descritos por Freud e nos princípios que os governam,podemos perceber mais do que uma ou duas alusões às hipóteses da teoria da informação e da cibernética em sua aplicação ao sistema nervoso. Para citar alguns exemplos dessa semelhança de abordagem, pode-se, em primeiro lugar, notar a insistência de Freud na necessidade primordial de prover a máquina de uma “memória”; por outro lado, há o seu sistema de “barreiras de contacto”, que permite à máquina fazer uma “escolha” adequada, com base na lembrança de acontecimentos anteriores, entre as linhas alternativas de reação ao estímulo externo; e, mais uma vez, há, na descrição feita por Freud do mecanismo de percepção, a introdução da noção fundamental de realimentação (feed-back) como modo de corrigir erros no próprio relacionamento da máquina com o meio.

Essas e outras semelhanças, caso confirmadas, constituíram sem dúvida novas provas da originalidade e fertilidade das idéias de Freud e, talvez, uma sedutora possibilidade de ver nele um precursor do behaviorismo de nossos dias. Ao mesmo tempo, existe o risco de que o entusiasmo possa causar uma distorção do uso dos termos por Freud e atribuir às suas observações, às vezes obscuras, interpretações modernas que elas não confirmam. E, afinal, não se deve esquecer de que o próprio Freud terminou por abandonar toda a estrutura neurológica. Não é difícil adivinhar o motivo. Pois ele descobriu que sua maquinaria neurônica não dispunha de meios para explicar o que, em O Ego e o Id (1923b), Edição Standard Brasileira, Vol. XIX, [1]), ele descreveu como sendo, “em última análise, nosso único facho de luz nas trevas da psicologia profunda” — isto é, “a faculdade de estar consciente ou não”. Em sua última obra, o póstumo Esboço de Psicanálise (1940a [1938], Edição Standard Brasileira, Vol. XXIII, [1], IMAGO Editora, 1975), ele declara que o ponto de partida para investigar a estrutura do aparelho psíquico “é proporcionado por um fato sem paralelo, que desafia toda explicação ou descrição — o fato da consciência”, e acrescenta numa nota de rodapé: “Uma linha radical de pensamento, exemplificada pela doutrina americana do behaviorismo, acredita ser possível construir uma psicologia que considera esse fato fundamental!” Seria certamente despropositado tentar atribuir uma consideração semelhante ao próprio Freud. O Projeto deve continuar sendo o que é: uma obra inacabada, renegada por seu criador.

O editor teve o privilégio de comentar certas partes da tradução com o professor Merton M. Gill, da State University of New York, e de adotar uma série de suas preciosas sugestões. Não se deve, porém, supor que ele seja de nenhum modo responsável pelo texto ou comentários finais.

 

CHAVE DAS ABREVIATURAS USADAS NO PROJETO

 

Q = Quantidade (em geral, ou da ordem de magnitude no mundo externo) — Ver em [1]

Qh= Quantidade (da ordem de magnitude intercelular) — Ver em [1]

f = sistema de neurônios permeáveis

y = sistema de neurônios impermeáveis

w = sistema de neurônios perceptuais

W = percepção (Wahrnehmung)

V = idéia (Vorstellung)

M = imagem motora

 

 

 

 

[PARTE I]

 

 

ESQUEMA GERAL

 

Introdução

A intenção é prover uma psicologia que seja ciência natural: isto é, representar os processos psíquicos como estados quantitativamente determinados de partículas materiais especificáveis, tornando assim esses processos claros e livres de contradição. Duas são as idéias principais envolvidas: [1] A que distingue a atividade do repouso deve ser considerada como Q, sujeita às leis gerais do movimento. (2) Os neurônios devem se encarados como as partículas materiais.

N e Q — Hoje em dia as experiências desse tipo são freqüentes.

 

[1] (A) PRIMEIRO TEOREMA PRINCIPAL: A CONCEPÇÃO QUANTITATIVA

 

Deriva diretamente das observações clínicas patológicas, especialmente no que diz respeito a idéias excessivamente intensas — na histeria e nas obsessões, nas quais, como veremos, a característica quantitativa emerge com mais clareza do que seria normal. Processos, como estímulos, substituição, conversão e descarga que tiveram de ser ali descritos [em conexão com esses distúrbios], sugeriram diretamente a concepção da excitação neuronal como uma quantidade em estado de fluxo. Parecia lícito tentar generalizar o que ali se comprovou. Partindo dessa consideração, pôde-se estabelecer um princípio básico da atividade neuronal em relação a Q, que prometia ser extremamente elucidativo, visto que parecia abranger toda a função. Esse é o princípio de inércia neuronal: os neurônios tendem a se livrar de Q. A estrutura e o desenvolvimento, bem como as funções [dos neurônios], devem ser compreendidos com base nisso.

Em primeiro lugar, o princípio da inércia explica a dicotomia estrutural [dos neurônios] em motores e sensoriais, como um dispositivo destinado a neutralizar a recepção de Q, através de sua descarga. O movimento reflexo torna-se compreensível agora como uma forma estabelecida de efetuar essa descarga: a origem da ação fornece o motivo para o movimento reflexo. Se retrocedermos ainda mais, poderemos, em primeira instância, vincular o sistema nervoso, como herdeiro da irritabilidade geral do protoplasma, com a superfície externa irritável [de um organismo], que é interrompida por extensões consideráveis de superfície não-irritável. Um sistema nervoso primário se vale dessa Q, assim adquirida, para descarregá-la nos mecanismos musculares através das vias correspondentes, e desse modo se mantém livre do estímulo. Essa descarga representa a função primária do sistema nervoso. Aqui existe espaço para o desenvolvimento de uma função secundária. Pois, entre as vias de descarga, são preferidas e conservadas aquelas que envolvem a cessação do estímulo: fuga do estímulo. Em geral, aqui se verifica uma proporção entre a Q de excitação e o esforço requerido para a fuga do estímulo, de modo que o princípio da inércia não seja abalado por isso.

Desde o início, porém, o princípio da inércia é rompido por outra circunstância. À proporção que [aumenta] a complexidade interior [do organismo], o sistema nervoso recebe estímulos do próprio elemento somático — os estímulos endógenos — que também têm que ser descarregados. Esses estímulos se originam nas células do corpo e criam as grandes necessidades: como, respiração, sexualidade. Deles, ao contrário do que faz com os estímulos externos, o organismo não pode esquivar-se; não pode empregar a Q deles para a fuga do estímulo. Eles cessam apenas mediante certas condições, que devem ser realizadas no mundo externo. (Cf., por exemplo, a necessidade de nutrição.) Para efetuar essa ação (que merece ser qualificada de “específica”), requer-se um esforço que seja independente da Q endógena e, em geral, maior, já que o indivíduo se acha sujeito a condições que podem ser descritas como as exigências da vida. Em conseqüência, o sistema nervoso é obrigado a abandonar sua tendência original à inércia (isto é, a reduzir o nível [da Q a zero). Precisa tolerar [a manutenção de] um acúmulo de Q suficiente para satisfazer as exigências de uma ação específica. Mesmo assim, a maneira como realiza isso demonstra que a mesma tendência persiste, modificada pelo empenho de ao menos manter a Q no mais baixo nível possível e de se resguardar contra qualquer aumento da mesma — ou seja, mantê-la constante. Todas as funções do sistema nervoso podem ser compreendidas sob o aspecto das funções primária ou secundária impostas pelas exigências da vida.

 

[2] (B) SEGUNDO TEOREMA PRINCIPAL: A TEORIA DO NEURÔNIO

 

A idéia de combinar esse teoria da Q com o conhecimento dos neurônios, estabelecido pela histologia contemporânea, constitui o segundo pilar desta tese. A essência dessas novas descobertas é que o sistema nervoso se compõe de neurônios distintos e construídos de forma similar, que estão em contacto recíproco por meio de uma substância estranha, que terminam uns sobre os outros como fazem sobre porções de tecido estranho, [e] nos quais se acham estabelecidas determinadas vias de condução, no sentido de que eles [os neurônios] recebem [excitações] através dos processos celulares [dendritos] e [deles se descarregam] através de um cilindro axial [axônio]. Além disso, possuem inúmeras ramificações de vários calibres.

Se combinarmos essa descrição dos neurônios com a concepção da teoria da Q, chegaremos à noção de um neurônio catexizado, cheio de determinada Q, ao passo que, em outras circunstâncias, ele pode estar vazio. O princípio da inércia [em [1]] encontra expressão na hipótese de uma corrente que parte das vias de condução ou processos celulares [dendritos] em direção ao cilindro axial. Cada neurônio isolado é, assim, um modelo de todo o sistema nervoso, com sua dicotomia de estrutura, sendo o cilindro axial o órgão de descarga. A função secundária [do sistema nervoso], porém, que requer a acumulação da Q [em [1]], torna-se possível ao se admitir que existam resistências opostas à descarga; e a estrutura dos neurônios torna provável a localização de todas as resistências nos contactos [entre os neurônios], que desse modo funcionariam como barreiras. A hipótese de barreiras de contacto é frutífera em vários sentidos. [1]

 

[3] AS BARREIRAS DO CONTACTO

 

A primeira justificativa para essa hipótese resulta da consideração de que a via de condução passa, a essa altura, através do protoplasma indiferenciado, e não (como se dá afora isso, dentro do neurônio) através do protoplasma diferenciado, que provavelmente se adapta melhor à condução. Isso faz sugerir que a capacidade de condução esteja ligada à diferenciação, de modo que se pode esperar que o próprio processo de condução criará uma diferenciação no protoplasma e, com isso, uma melhor capacidade condutora para a condução subseqüente.

 

Além disso, a teoria das barreiras de contacto pode resultar nas seguintes vantagens. Uma das principais características do tecido nervoso é a memória; isto é, em termos muito gerais, a capacidade de ser permanentemente alterado por simples ocorrências — característica que contrasta tão flagrantemente com o modo de ação de uma matéria que permita a passagem de um movimento ondulatório, para logo voltar a seu estado primitivo. Uma teoria psicológica digna de consideração precisa fornecer uma explicação para a “memória”. Ora, qualquer explicação dessa espécie se depara com a dificuldade de admitir, por um lado, que, depois de cessar a excitação, os neurônios fiquem permanentemente modificados em relação a seu estado anterior, ao passo que, por outro lado, não se pode negar que as novas excitações, em geral, encontrem as mesmas condições de recepção que encontraram as excitações precedentes. Desse modo, parece que os neurônios teriam que ser ao mesmo tempo, indiferenciadamente, influenciados e inalterados. Não se pode imaginar, de improviso, um aparelho capaz de funcionamento tão complicado; a solução, portanto, consiste em atribuir a uma classe de neurônios a característica de ser permanentemente influenciada pela excitação, ao passo que a imutabilidade — a característica de estar livre para excitações inéditas — corresponderia a outra classe. Daí surgir a atual distinção entre “células perceptuais” e “células mnêmicas” — distinção, porém, que não se aplica a nenhum outro contexto, e nada pode recorrer a seu favor.

A teoria das barreiras de contacto, se adota essa solução, pode ser expressa nos termos que se seguem. Há duas classes de neurônios: [1] os que deixam passar a Q como se não tivessem barreiras de contacto e que, da mesma forma, depois de cada passagem de excitação permanecem no mesmo estado anterior, e (2) aqueles cujas barreiras de contacto se fazem sentir, de modo que só permitem a passagem da Q com dificuldade ou parcialmente. Os dessa última classe podem, depois de cada excitação, ficar num estado diferente do anterior, fornecendo assim uma possibilidade de representar a memória.

Assim, existem neurônios permeáveis (que não oferecem resistência e nada retêm), destinados à percepção, e impermeáveis (dotados de resistência e retentivos de Q), que são portadores da memória e, com isso, provavelmente também dos processos psíquicos em geral. Daqui por diante chamarei ao primeiro sistema de neurônios de  e, ao segundo, de .

Seria conveniente agora esclarecer quais as suposições acerca dos neurônios  que são imprescindíveis para abranger as características mais gerais da memória. O argumento é o seguinte. Esses neurônios ficam permanentemente alterados pela passagem de uma excitação. Se introduzirmos a teoria das barreiras de contacto: as barreiras de contacto deles ficam em estado permanentemente alterado. E como o conhecimento psico[lógico] demonstra a existência de algo assim como um re-aprender baseado na memória, essa alteração deve consistir em tornar as barreiras de contacto mais capazes de condução, menos impermeáveis e, assim, mais semelhantes às do sistema . Descreveremos esse estado das barreiras de contacto como grau de facilitação [Bahnung]. Pode-se então dizer: a memória está representada pelas facilitações existentes entre os neurônios .

Suponhamos que todas as barreiras de contacto  estejam igualmente facilitadas ou (o que vem a dar no mesmo) ofereçam resistência idêntica; nesse caso, evidentemente, as características da memória não emergiriam. Pois, em relação à passagem da excitação, a memória é evidentemente uma das forças determinantes e orientadoras de sua direção, e, se a facilitação fosse idêntica em todos os sentidos, não seria possível explicar por que motivo uma via teria preferência sobre outra. Por isso, pode-se dizer de maneira ainda mais correta que a memória está representada pelas diferenças nas facilitações entre os neurônios .

De que depende, então a facilitação nos neurônios ? Segundo o conhecimento psico[lógico], a memória de uma experiência (isto é, sua força eficaz contínua) depende de um fator que se pode chamar de magnitude da impressão e da freqüência com que a mesma impressão se repete. Traduzido em teoria: a facilitação depende da Q que passa pelo neurônio no processo excitativo) e do número de vezes em que esse processo se repete. Daí se vê, portanto, que Q é o fator operativo e que a quantidade mais a facilitação que resultam de Q são ao mesmo tempo algo capaz de substituir Q.

Somos, aqui, quase involuntariamente obrigados a recordar que a tendência do sistema nervoso, mantida durante cada modificação, é a de evitar que ele fique carregado de Q ou a de reduzir a carga ao mínimo possível. Sob a pressão das exigências da vida, o sistema nervoso se viu forçado a guardar uma reserva de Q [em [1]]. Para esse fim, teve de aumentar o número de seus neurônios, que precisaram ser impermeáveis. Agora evita, pelo menos em parte, ficar cheio de Q (catexia), recorrendo a facilitações. Verifica-se, pois, que as facilitações servem à função primária. [do sistema nervoso].

A necessidade de encontrar um lugar para a memória requer algo um pouco à parte da teoria das barreiras de contacto. É preciso que a cada neurônio  correspondam, em geral, diversas vias de conexão com outros neurônios — isto é, de várias barreiras de contacto. Disso depende, com efeito, a possibilidade da escolha determinada pela facilitação [em [1]]. Isto posto, torna-se bastante evidente que o estado de facilitação de cada barreira de contacto deve ser independente do de todas as demais barreiras do mesmo neurônio , do contrário não haveria de novo nenhuma preferência, ou seja, nenhuma motivação. Daí pode-se tirar uma conclusão negativa a respeito da natureza do estado “facilitado”. Se imaginarmos um neurônio cheio de Q — isto é, catexizado — só poderemos supor que essa Q [sic] esteja distribuída uniformemente por todas as regiões do neurônio e, portanto, também por todas as suas barreiras de contacto. Por outro lado, não há dificuldade em imaginar que, no caso de Q em estado fluente, seja tomada apenas uma via particular através do neurônio; de modo que somente uma de suas barreiras de contacto fique sujeita à ação da Q fluente e depois conserve a facilitação que esta lhe proporciona. Por conseguinte, a facilitação não pode basear-se numa catexia que permaneça retida, pois isso não produziria as diferenças de facilitação nas barreiras de contacto de um mesmo neurônio.

Resta observar em que consiste, além disso, a facilitação. Uma primeira idéia poderia ser: na absorção da Q pelas barreiras de contacto. Será, talvez, esclarecido mais tarde. [Cf. em. [1]] A Q que deixou para trás a facilitação é, sem dúvida, descarregada — precisamente em conseqüência da facilitação, que, com efeito, aumenta a permeabilidade. Além disso, não é imprescindível o caso em que a facilitação que persiste depois de uma passagem de Q seja maior, como deveria ser durante a passagem. [Ver  em [1].] É possível que apenas subsista uma fração dela como facilitação permanente. Da mesma forma, por enquanto ainda é impossível determinar se uma única passagem de Q:3 é equivalente a três passagens de uma Q. Tudo isso terá que ser levado em consideração à luz das aplicações posteriores da teoria aos fatos psíquicos.

 

[4] O PONTO DE VISTA BIOLÓGICO

 

A hipótese de haver dois sistemas de neurônios,  e , o primeiro formado por elementos permeáveis e o segundo por impermeáveis, parece fornecer a explicação para uma das peculiaridades do sistema nervoso— a de reter e, ainda assim, permanecer capaz de receber [em [1]]. Toda aquisição psíquica, neste caso, consistiria na organização do sistema  por suspensões parcial e localmente determinadas da resistência nas barreiras de contacto, que diferencia  de . Com o progresso dessa organização, a capacidade do sistema nervoso para novas recepções chegaria, literalmente, a uma barreira.

Contudo, quem se dedica à construção de hipóteses científicas só pode começar a levar suas teorias a sério se elas se adaptam em mais de uma direção ao nosso conhecimento, e se a arbitrariedade de uma constrictio ad hoc pode ser mitigada em relação a elas. Contra nossa hipótese das barreiras de contacto, poder-se-ia objetar que ela pressupõe duas classes de neurônios, uma diferença fundamental em suas condições de funcionamento, embora, por ora, não exista outra base de diferenciação. Seja como for, do ponto de vista morfológico (isto é, histopatológico), nada se conhece que corrobore a distinção.

 

Onde situar, então, essa divisão em duas classes? Se possível, no desenvolvimento biológico do sistema nervoso, que, como tudo mais, no entender dos cientistas naturais, é algo que se formou gradativamente. Gostaríamos de saber se as duas classes de neurônios podem ter tido significação biológica diferente e, nesse caso, graças a que mecanismo teriam desenvolvido características tão diversas como a permeabilidade e a impermeabilidade. O mais satisfatório, naturalmente, seria que o próprio mecanismo que estamos procurando surgisse da função biológica primitiva desempenhada [pelas duas classes]; nesse caso, teríamos uma só resposta para as duas perguntas.

Lembremos, portanto, que desde o início o sistema nervoso teve duas funções: a recepção do estímulo vindo de fora e a descarga de excitações de origem endógena [em [1]]. A rigor, foi desta última obrigação que, devido às exigências da vida, fez surgir a necessidade de um desenvolvimento biológico posterior [em [1]]. Poder-se-ia supor, então, que nossos sistemas de  e  tenham realmente sido os que assumiriam, cada qual, uma dessas obrigações primárias. O sistema  seria o grupo de neurônios atingido pelos estímulos externos, enquanto o sistema  conteria os neurônios que recebem as excitações endógenas. Em tal caso não teríamos inventado as duas [classes],  e , e sim descoberto o que já existia. Ainda falta identificá-las com algo que já conhecemos. De fato, a anatomia nos ensina que existe um sistema de neurônios (a massa cinzenta da medula espinhal) que é o único a estar em contacto com o mundo externo, e um sistema superposto (a massa cinzenta do cérebro) que não tem ligações periféricas, mas ao qual estão relacionados o desenvolvimento do sistema nervoso e as funções psíquicas. O cérebro primitivo se enquadra bastante bem na nossa caracterização do sistema , caso possamos admitir que o cérebro tem vias de conexão diretas e independentes de  com o interior do corpo. Ora, os anatomistas desconhecem a origem e o significado biológico original do cérebro primitivo; segundo a nossa teoria, tratar-se-ia, em termos simples, de um gânglio simpático. Eis aqui a primeira possibilidade de verificar nossa teoria com o material fatual.

Provisoriamente, consideraremos o sistema  como identificado com a massa cinzenta do cérebro. Agora se compreende facilmente, partindo de nossos comentários biológicos iniciais [em [1]], que é justamente  que deve estar sujeito a um desenvolvimento posterior pela multiplicação de seus neurônios e pela acumulação de Q. E agora se compreende como é conveniente que  se constitua de neurônios impermeáveis, pois, do contrário, ele não poderia atender os requisitos da ação específica [em [1]]. Mas como foi que  adquiriu a característica de impermeabilidade? Afinal de contas,  também tem barreiras de contacto; se elas não desempenham função alguma, por que as de  haveriam de desempenhá-las? Atribuir que exista uma diferença fundamental entre a valência das barreiras de contacto de  e as de  teria, mais uma vez, um lamentável toque de arbitrariedade [cf. pág. [1]], embora fosse possível seguir uma linha de pensamento darwiniano e apelar para o fato de que os neurônios impermeáveis são imprescindíveis e, por conseguinte, têm que subsistir.

Há outra solução que parece mais frutífera e mais modesta. Convém recordar que as barreiras de contacto dos neurônios , no fim, também ficam sujeitas à facilitação e que é Q que as facilita [em [1]]. Quanto maior for Q na passagem das excitações, tanto maior será a facilitação: isso implica, porém, que tanto maior será a aproximação das características nos neurônios  [em [1]]. Atribuamos, pois, as diferenças não aos neurônios, mas às quantidades com que eles têm de lidar. Deve-se então supor que pelos neurônios  passam quantidades contra as quais a resistência das barreiras de contacto é praticamente nula, ao passo que aos neurônios  só chegam quantidades da mesma ordem de magnitude que essa resistência. Nesse caso, um neurônio  se tornaria impermeável e um neurônio , permeável — se pudéssemos trocar sua localização e suas conexões; eles, porém, conservam as suas características, pois o neurônio  está ligado apenas à periferia, e o , apenas à parte inferior do corpo. A diferença na essência de ambos é substituída por uma diferença na ambiência a que estão destinados.

Agora, entretanto, teremos que examinar o nosso pressuposto de que as quantidades de estímulo que chegam aos neurônios, procedendo da periferia externa, são de ordem superior às que chegam da periferia interna do corpo. Existem, de fato, muitos argumentos a favor desse pressuposto.

Em primeiro lugar, não resta dúvida de que o mundo externo constitui a fonte de todas as grandes quantidades de energia, pois, segundo as descobertas da física, ele consiste em poderosas massas que estão em movimento violento e que esse movimento é transmitido pelas ditas massas. O sistema  , orientado para esse mundo externo, terá a missão de descarregar com a maior rapidez possível as Qs que penetram nos neurônios, mas, de qualquer maneira, ficará exposto aos efeitos das Qs maiores.

Para melhor conhecimento nosso, o sistema  está fora de contacto com o mundo externo; recebe apenas Q, por um lado, dos próprios neurônios  e, por outro, dos elementos celulares no interior do corpo, tratando-se agora de determinar a probabilidade de que essas quantidades de estímulo sejam de ordem de magnitude comparativamente baixa.À primeira vista, talvez pareça perturbador que devamos atribuir aos neurônios  duas fontes de estímulo tão diversas como  e as células do interior do corpo; mas é justamente aqui que recebemos o apoio decisivo da recente histologia do sistema nervoso. Isso mostra que a terminação de um neurônio e a conexão entre os neurônios são constituídas da mesma forma e que os neurônios terminam uns nos outros do mesmo modo que os elementos somáticos [cf. em [1]]; provavelmente, o caráter funcional de ambos os processos também é do mesmo tipo. É provável que as extremidades nervosas e no caso da condução intercelular sejam manejadas quantidades semelhantes. Também se pode esperar que os estímulos endógenos pertençam a essa mesma ordem de magnitude intercelular. A propósito, eis aqui a segunda oportunidade para verificar nossa teoria [pág. [1]].

 

[5] O PROBLEMA DA QUANTIDADE

 

Nada sei a respeito da magnitude absoluta dos estímulos intercelulares; mas me aventurarei a admitir que eles sejam de uma ordem de magnitude relativamente pequena e idêntica à das resistências das barreiras de contacto. Se for assim, isso é facilmente compreensível. Esse pressuposto resguardaria a identidade essencial entre os neurônios  e , e explicaria biológica e mecanicamente sua diferença no que tange à permeabilidade.

Aqui há falta de prova; mais interessante são certas perspectivas e concepções que surgem desse pressuposto. Em primeiro lugar, se tivermos formado uma impressão correta da magnitude das Qs no mundo externo, perguntar-nos-emos se, afinal de contas, a tendência original do sistema nervoso de manter a Q [no nível] zero [em [1] e [2]] se satisfaz com a descarga rápida — se ela já não atua durante a recepção dos estímulos. Verificamos, com efeito, que os neurônios  não terminam livremente na periferia [isto é, sem proteções], mas em estruturas celulares que recebem o estímulo exógeno em seu lugar. Esses “aparelhos nervosos terminais”, [usando o termo] no sentido mais amplo, bem poderiam ter a finalidade de não permitir que as Qs exógenas incidissem com o máximo de intensidade sobre , mas sim a de atenuá-las. Exerceriam, então, a função de telas de Q, que só deixariam passar frações de Qs exógenas.

Isso confirmaria o fato de que o outro tipo de terminações nervosas, as livres, sem órgãos terminais, seja muito mais comum na periferia interna do corpo. Ali, as telas de Q não parecem ser necessárias, provavelmente porque as Qs que têm de ser recebidas ali não precisam ser reduzidas antes ao nível intercelular, por já se encontrarem nele desde o início.

Uma vez que é possível calcular as Qs recebidas pelas terminações dos neurônios , isso talvez nos forneça um meio de formar alguma idéia das magnitudes que passam entre os neurônios , que, como sabemos, são do mesmo tipo de resistência que as barreiras de contacto [em [1]].

Aqui, além disso, vislumbra-se uma tendência que bem poderia reger a construção do sistema nervoso a partir de diversos sistemas: uma tendência cada vez maior a manter a Q afastada dos neurônios. Desse modo, a estrutura do sistema nervoso serviria à finalidade de afastar a Q dos neurônios e sua função seria a de descarregá-la.

 

[6] A DOR

 

Todos os dispositivos de natureza biológica têm limite de eficiência e falham quando um limite é ultrapassado. Essa falha se manifesta em fenômenos quase patológicos — que poderiam ser descritos como protótipos normais do patológico. Já vimos que o sistema nervoso está constituído de tal maneira que as grandes Qs externas ficam afastadas de  e mais ainda de : [pelas] telas de terminação nervosa, [e pela] conexão meramente indireta entre  e o mundo externo. Existe algum fenômeno que possa ser interpretado como o equivalente da falha desses dispositivos? A meu ver, existe: a dor.

Tudo o que sabemos a respeito da dor se enquadra nisso. O sistema nervoso tem a mais decidida propensão a fugir da dor. Vemos nisso uma manifestação da tendência primária contra o aumento da tensão Q e inferimos que a dor consiste na irrupção de grandes Qs em . As duas tendências ficam, nesse caso, reduzidas a uma só. A dor aciona tanto o sistema  como o , não há nenhum obstáculo à sua condução, e ela é o mais imperativo de todos os processos. Os neurônios  parecem, pois, permeáveis a ela; portanto, a dor consiste na ação de Qs de ordem comparativamente elevada.

As causas precipitadoras da dor são, por um lado, o aumento de quantidade: toda excitação sensorial, mesmo a dos órgãos superiores dos sentidos, tende a se transformar em dor à medida que o estímulo aumenta. Isso deve ser interpretado, sem hesitação, como uma falha [do dispositivo]. Por outro lado, a dor se manifesta quando a quantidade externa é pequena, e, nesses casos, aparece sempre vinculada a uma interrupção da continuidade: isto é, uma Q externa que atua diretamente sobre as terminações dos neurônios , e não através dos aparelhos de terminações nervosas, produz a dor. A dor fica assim caracterizada como uma irrupção de Qs excessivamente [de magnitude] ainda maior que a dos estímulos .

É fácil compreender o fato de que a dor passa por todas as vias de descarga. Com base em nossa teoria de que Q produz facilitação [em [1]], a dor sem dúvida deixa facilitações permanentes atrás de si em  — como se tivesse sido atingida por um raio —, facilitações estas que possivelmente derrubam por completo a resistência das barreiras de contacto e ali estabelecem uma via de comunicação como as que existem em .

 

[7] O PROBLEMA DA QUALIDADE

 

Até aqui nada se disse sobre o fato de que toda teoria psicológica, independentemente do que se realiza do ponto de vista da ciência natural, precisa satisfazer mais um requisito fundamental. Ela tem de nos explicar tudo o que já conhecemos, da maneira mais enigmática, através de nossa “consciência”; e, uma vez que essa consciência nada sabe do que até agora vimos pressupondo — quantidades e neurônios —, também terá de nos explicar essa falta de conhecimento.

Imediatamente passamos a compreender um postulado que nos tem orientado até aqui. Estivemos tratando os processos psíquicos como algo que pode prescindir dessa percepção da consciência, como algo que existe independentemente dela. Estamos preparados para constatar que alguns de nossos pressupostos não são confirmados pela consciência. Se não nos deixarmos confundir por causa disso, verificaremos, a partir do postulado de que a consciência não nos fornece conhecimentos completos nem fidedignos sobre os processos neuronais, que estes devem ser considerados em sua totalidade, antes de mais nada, como inconscientes, e que devem ser inferidos como os demais fenômenos naturais.

Nesse caso, porém, é preciso encontrar um lugar para conteúdo da consciência em nossos processosƒnƒé quantitativos. A consciência nos dá o que se convencionou chamar de qualidades — sensações que são diferentes numa ampla gama de variedades e cuja diferença se discerne conforme suas relações com o mundo externo. Nessa diferença existem séries, semelhanças etc., mas, na realidade, ela não contém nada de quantitativo. Pode-se perguntar como se originam as qualidades e onde. Trata-se de perguntas que exigem um exame extremamente atento e que aqui só pode ser abordado superficialmente.

Onde se originam as qualidades? Não no mundo externo. Pois lá, segundo o parecer da nossa ciência natural, à qual também devemos submeter a psicologia aqui [no Projeto], só existem massas em movimento e nada mais. Quem sabe não se originam no sistema ? Isso estaria de acordo com o fato de as qualidades estarem vinculadas à percepção, mas entra em contradição com tudo o que, com justa razão, fala em favor da localização da consciência nos níveis mais altos do sistema nervoso. Quem sabe, então, no sistemaƒnƒé? Contra essa hipótese, porém, há uma forte objeção. Os sistemasƒnƒÖƒneƒnƒé atuam conjuntamente na percepção; mas existe um processo psíquico que é sem dúvida efetuado exclusivamente emƒnƒé — a reprodução ou recordação —, e este é, falando em termos gerais, desprovido de qualidade. De norma [normalmente], a recordação não produz nada que possua o caráter peculiar da qualidade perceptual. Assim reunimos ânimo suficiente para presumir que haja um terceiro sistema de neurônios — , talvez [pudéssemos chamá-lo] — que é excitado junto com a percepção, mas não com a reprodução, e cujos estados de excitação produzem as diversas qualidades — ou seja, são sensações conscientes.

Se nos ativermos com firmeza ao fato de que nossa consciência fornece apenas qualidades, ao passo que a ciência reconhece apenas quantidades, emerge, como que por regra de três, uma caracterização dos neurônios . Porque, enquanto a ciência se impôs a tarefa de reduzir todas as quantidades de nossas sensações a quantidades externas, é esperado, para a estrutura do sistema nervoso, que ela se constitua de instrumentos destinados a converter a quantidade externa em qualidade; e aqui triunfaria mais uma vez a tendência original a afastar a quantidade [em [1]]. Os dispositivos das terminações nervosas constituiriam uma tela destinada a permitir que apenas algumas frações de quantidade externa agissem sobre ƒÖƒz ao passo que ƒÖƒz ao mesmo tempo, efetuaria a descarga bruta da quantidade. O sistemaƒnƒé já estava protegido contra as qualidades de ordem maior e só diria respeito às magnitudes intercelulares. Indo ainda mais longe, pode-se presumir que o sistemaƒnƒçƒnseja movido por quantidades ainda mais reduzidas. Ao que parece, a característica da qualidade (ou seja, sensação consciente) só se manifesta quando as quantidades são tão excluídas quanto possível. Não se pode eliminá-las por completo, pois os neurôniosƒnƒçƒntambém devem ser concebidos como catexizados com Q e se esforçando para conseguir a descarga. [1]

A esta altura, porém, deparamo-nos com uma dificuldade aparentemente intrasponível. Já vimos [em [1]-[2]] que a permeabilidade depende do efeito da Q e que os neurônios  já são impermeáveis. Com uma Q ainda mais reduzida, os neurônios  teriam que ser ainda mais impermeáveis. Mas essa é uma característica que não podemos atribuir aos veículos da consciência. A mutabilidade de seu conteúdo, a transitoriedade da consciência, a fácil combinação de qualidades simultaneamente percebidas — tudo isso só é compatível com uma completa permeabilidade dos neurônios , junto com uma total restitutio in integrum [restauração do estado anterior deles]. Os neurônios  se comportam como órgãos de percepção e neles não encontramos nenhum lugar para a memória [em [1]]. A permeabilidade arremata a facilitação, que não provém da quantidade. De onde mais [pode ela provir]?

Só vejo uma saída para essa dificuldade: uma revisão de nossa hipótese fundamental sobre a passagem de Q. Até o momento, só a considerei como uma transferência de Q de um neurônio para outro. Mas ela deve ter mais outra caraterística, de natureza temporal; pois a mecânica dos físicos também atribuiu essa característica temporal aos outros movimentos de massas no mundo externo. Para abreviar, designarei essa característica como o período. Assim, presumirei que toda a resistência das barreiras de contacto se aplica somente à transferência de Q, mas que o período do movimento neuronal é transmitido a todas as direções sem inibição, como se fosse um processo de indução.

Aqui, muito resta a ser feito no sentido do esclarecimento físico, pois as leis gerais do movimento também devem ser aplicadas aqui sem contradições. A hipótese, porém, vai mais longe [e presume] que os neurôniosƒnƒçƒnsejam incapazes de receber Q, mas que, em compensação, se apropriem do período de excitação, e que nesse estado de serem afetados por um período enquanto são enchidas de um mínimo de Q constitui a base fundamental da consciência. É claro que os neurôniosƒnƒé também possuem o seu período; mas ele é desprovido de qualidade ou, mais corretamente, monótono. Os desvios desse período psíquico que lhes é específico chegam à consciência como qualidades.

De onde emanam essas diferenças de período? Tudo indica os órgãos dos sentidos, cujas qualidades parecem estar representadas precisamente por períodos diferentes do movimento neuronal. Os órgãos dos sentidos não só funcionam como telas de Q, a exemplo de todos os dispositivos de terminações nervosas, mas também como peneiras; pois só deixam passar estímulos provenientes de certos processos de um período particular. É provável que eles então transfiram essa diferença a , por comunicar ao movimento neuronal períodos que diferem de algum modo análogo (energia específica); e são essas modificações que passam através de , via , até , e aí, onde estão quase desprovidos de quantidades, geram sensações conscientes de qualidades. Essa transmissão da qualidade não é duradoura; não deixa rastro e não pode ser reproduzida. [1]

 

[8] A CONSCIÊNCIA

 

Só mediante essas hipóteses tão complicadas e pouco óbvias é que pude até agora introduzir os fenômenos da consciência na estrutura da psicologia quantitativa. Naturalmente, não se pode tentar explicar como é que os processos excitatórios dos neurônios  levam à consciência. É apenas uma questão de estabelecer uma coincidência entre as características da consciência que conhecemos e os processos nos neurôniosƒnƒçƒnque variam paralelamente a elas. E isso é bem possível, um tanto detalhadamente.

Uma observação quanto à relação dessa teoria da consciência com as demais. Segundo uma avançada teoria mecanicista, a consciência é um mero apêndice aos processos fisiológico-psíquicos e sua omissão não acarretaria alteração na passagem psíquica [dos acontecimentos]. De acordo com outra teoria, a consciência é o lado subjetivo de todos os eventos psíquicos, e é assim inseparável do processo mental fisiológico. A teoria aqui elaborada situa-se entre essas duas. A consciência é aqui o lado subjetivo de uma parte dos processos físicos do sistema nervoso, isto é, dos processos ; e a omissão da consciência não deixa os eventos psíquicos inalterados, mas acarreta a falta da contribuição de .

Se representarmos a consciência por neurônios ƒçƒz várias conseqüências surgirão. Esses neurônios precisam ter uma descarga, por mínima que seja, e deve uma maneira de encher os neurôniosƒnƒçƒncom Q na pequena cota requerida.  A descarga, como todas as outras, se efetua na direção da motilidade; e aqui convém notar que a transformação em movimento acarreta a perda de qualquer característica qualitativa, de qualquer peculiaridade do período. O preenchimento dos neurôniosƒnƒçƒncom Q pode, sem dúvida, provir somente de , uma vez que não queremos admitir nenhum vínculo direto entre esse terceiro sistema e . Não é possível sugerir qual terá sido o valor biológico dos neurônios .

Até agora, porém, limitamo-nos a descrever o conteúdo da consciência de maneira incompleta. Além da série de qualidades sensoriais, ela exibe outra muito diferente daquela — a série de sensações de prazer e desprazer, que agora clama por uma interpretação. Já que temos um certo conhecimento de uma tendência da vida psíquica a evitar o desprazer, ficamos tentados a identificá-la com a tendência primária à inércia. Nesse caso, o desprazer teria que ser encarado como coincidente com um aumento do nível de Q ou com um aumento da pressão quantitativa: equivaleria à sensação  quando há um aumento da Q em . O prazer corresponderia à sensação de descarga. Uma vez que se supõe que  [acima] deve ser preenchido a partir de , decorre daí a hipótese de que, quando o nível em  aumenta, a catexia em  se eleva, e quando, por outro lado, esse nível diminui, a catexia cai. O prazer e o desprazer seriam as sensações correspondentes à própria catexia de , ao seu próprio nível; e aqui  e  funcionariam, por assim dizer, como vasos comunicantes. Desse modo também chegariam à consciência os processos quantitativos em , mais uma vez como qualidades.

A capacidade de perceber as qualidades sensoriais que se acham localizadas, por assim dizer, na zona de indiferença entre o prazer o desprazer, desaparece ante a [presença da] sensação de prazer e desprazer. Isso se traduziria: os neurônios  mostram uma aptidão ótima para receber o período do movimento neuronal para uma determinada [força de] catexia; quando a catexia é mais intensa, eles produzem desprazer; quando mais fraca, prazer — até que, devido à falta de catexia, sua capacidade receptiva se extingue. A forma de movimento correspondente teria que ser construída com base em dados como esses.

 

[9] O FUNCIONAMENTO DO APARELHO

 

Agora já é possível elaborar o seguinte quadro de funcionamento do aparelho constituído por .

As cargas de excitação do exterior penetram até as extremidades do sistema . Primeiro esbarram nos dispositivos de terminações nervosas, que as fragmentam em frações cuja ordem de magnitude é provavelmente superior à dos estímulos intercelulares (quem sabe não pertenceriam, afinal de contas, à mesma ordem?). Aqui nos deparamos com um primeiro limiar: abaixo de determinada quantidade não se pode constituir nenhuma fração eficaz, de modo que a capacidade efetiva dos estímulos fica, até certo ponto, limitada às quantidades médias. Além disso, a natureza dos invólucros das extremidades nervosas atua como uma peneira, de maneira que nem todo tipo de estímulo pode operar nos diversos pontos terminais. Os estímulos que realmente chegam aos neurônios  possuem uma quantidade e uma característica qualitativa; no mundo externo, formam uma série da mesma qualidade e de uma quantidade que vai desde o limiar até o limite da dor.

Enquanto, no mundo externo, os processos exibem uma sucessão contínua em duas direções, segundo a quantidade e o período (qualidade), os estímulos correspondentes [aos processos] ficam, no que diz respeito à quantidade, em primeiro lugar reduzidos e, em segundo, limitados em virtude de uma excisão, e, no que diz respeito à qualidade, ficam descontínuos, de modo que certos períodos nem sequer atuam como estímulos. [Fig. 12.]

 

 

Fig. 12

 

A característica qualitativa dos estímulos se propaga então sem empecilhos por , por meio de  para , onde produz sensação; é representada porum período particular do movimento neuronal, que certamente não é o mesmo do estímulo, mas tem uma determinada relação com ele, segundo uma fórmula de redução que desconhecemos. Esse período não persiste por muito tempo e desaparece em direção ao lado motor; e, como pode passar sem dificuldade, tampouco deixa qualquer lembrança em seu rastro.

A quantidade do estímulo  excita a tendência do sistema nervoso à descarga, transformando-se numa excitação motora proporcional. O aparelho da motilidade está diretamente ligado a . As quantidades assim traduzidas produzem um efeito que lhes é quantitativamente muito superior, penetrando nos músculos, glândulas etc. — atuando ali, ou seja, por uma liberação [da quantidade], ao passo que entre os neurônios só ocorre uma transferência.

Além disso, nos neurônios  terminam os neurônios . Para estes últimos é transferida uma parte da Q, mas apenas uma parte — uma fração, talvez, correspondente à magnitude de um estímulo intercelular. A essa altura pode-se perguntar se a Q transferida para  não aumenta em proporção à Q que passa para , de modo tal que um estímulo maior produza um efeito psíquico mais forte. Aqui parece manifestar-se um dispositivo especial, que mais uma vez mantém a Q afastada de . Pois a via sensorial de condução em  possui uma estrutura peculiar. Ela se ramifica continuamente e apresenta vias de espessura variável que vão desembocar em numerosos pontos terminais — provavelmente, com o significado seguinte: um estímulo mais forte segue uma via diferente de um mais fraco. [Cf. Fig. 13.]

 

 

Fig. 13

 

Por exemplo, [1] Q percorre unicamente a via I e, no ponto terminal , transmitirá uma fração a . 2 (Q) não transmitirá uma fração dupla em a, mas poderá passar também pela via II, que é mais estreita, e abrirá outro ponto terminal para  [em b]. 3 (Q) abrirá a via mais estreita [III] e a transmitirá também por . É assim que a via única de  fica aliviada de sua carga; a maior quantidade em  será expressa pelo fato de ele catexizar vários neurônios em  em vez de um só. As diferentes catexias dos neurônios  podem, nesse caso, ser mais ou menos iguais. Se a Q em  produzir uma catexia em , 3 (Q) se expressará por uma catexia em 1 + 2 + 3. Logo, uma quantidade em  se expressa por um enredo em . Por meio disso, a Q fica afastada de , ao menos dentro de certos limites. Isso lembra muito as condições impostas pela lei de Fechner, que poderiam ser localizadas.

Desse modo, y é catexizado a partir de f em Qs que são normalmente pequenas. A quantidade da excitação de f se expressa em y por enredamento; sua qualidade se expressa topograficamente, uma vez que, segundo suas relações anatômicas, os  diferentes órgãos sensoriais só se comunicam através de f com determinados neurônios y. Mas y também recebe catexia do interior do corpo; e é provável que os neurônios y devam ser divididos em dois grupos: os neurônios de pallium, que são catexizados a partir de f, e os neurônios nucleares, catexizados a partir das vias endógenas de condução.

 

[10] As Vias de Condução de y

 

O núcleo de  está em conexão com as vias pelas quais ascendem as quantidades endógenas de excitação. Sem excluir a possibilidade de que essas vias estejam em conexão com , devemos continuar sustentando nosso pressuposto inicial de que há uma via direta que parte do interior do corpo até chegar aos neurônios  [em [1]-[2]]. Se é assim, porém,  está exposto, sem proteção, às Qs provenientes dessa direção, e nesse fato se assenta a mola mestra do mecanismo psíquico.

O que sabemos a respeito dos estímulos endógenos se pode expressar no pressuposto de que eles são de natureza intercelular, que se produzem de forma contínua e que só periodicamente se transformam em estímulos psíquicos. A idéia de sua acumulação é inevitável; e o caráter intermitente de seu efeito psíquico exige a idéia de que, em sua via de condução até y, eles enfrentam resistências só superadas quando há um aumento da quantidade. As vias de condução, portanto, são compostas de segmentos múltiplos, tendo uma série de barreiras de contacto intercaladas até chegar ao núcleo de y. Acima de determinada Q, porém, elas [as excitações endógenas] atuam continuamente como um estímulo, e cada aumento de Q é percebido como um aumento do estímulo y. Isso implica, então, a existência de um estado em que a via de condução torna a recuperar sua resistência.

Um processo desse tipo se denomina soma. As vias de condução y se enchem por soma até ficarem permeáveis. É evidente que o que permite a soma é a pequenez de cada estímulo. Comprovou-se também que a soma ocorre nas vias de condução f — por exemplo, no caso de condução da dor; ali só se aplica para pequenas quantidades. O papel menor desempenhado pela soma no lado  fala a favor da impressão de que ali estamos lidando, de fato, com Qs relativamente grandes. As muito pequenas parecem ser afastadas pelo funcionamento dos aparelhos de terminações nervosas como um limiar [em [1]], ao passo que esses [aparelhos] estão ausentes no lado y e ali só atuam Qs pequenas.

 É muito digno de nota o fato de que a condução dos neurônios y consiga manter uma posição entre as características da permeabilidade e da impermeabilidade, de vez que recuperam sua resistência quase por completo,apesar da passagem de Q. Isso contradiz totalmente a propriedade que atribuímos aos neurônios y, de ficarem permanentemente facilitados pela passagem de uma corrente de Q [em [1]-[2]]. Como explicar essa contradição?

Admitindo que a restauração da resistência, depois da passagem de uma corrente, é uma característica geral das barreiras de contacto. Se assim for, não haverá muita dificuldade em conciliar isso com o fato de que os neurônios y são influenciados [pela passagem da quantidade] no sentido da facilitação. Precisamos apenas supor que a facilitação restante após a passagem da Q consiste, não na supressão de toda e qualquer resistência, mas em sua redução a um mínimo remanescente necessário. Durante a passagem da Q, a resistência fica suspensa; depois ela se restabelece, mas em vários níveis, em proporção à Q que passou por ela, de maneira que, na vez seguinte, uma Q menor já conseguirá passar, e assim por diante. Quando se estabelece a facilitação mais completa, ainda resta uma certa resistência, que é igual para todas as barreiras de contacto e que também requer o aumento das Qs até um determinado limiar antes de permitir sua passagem. Essa resistência seria uma constante. Por conseguinte, o fato de que as Qs endógenas atuam por soma apenas significa que essas Qs são constituídas de parcelas de excitação mínimas, menores que a constante. A via endógena de condução está, portanto, e apesar disso, completamente facilitada.

Disso se conclui, porém, que as barreiras de contacto y são, em geral, mais altas do que as vias [endógenas] de condução, de modo que nos neurônios nucleares possa produzir-se uma nova acumulação de Q. [Cf. em [1]-[2]] No momento em que a via de condução é re-ajustada, nenhum limite adicional é fixado para essa soma. Aqui, y está à mercê de Q, e é assim que surge no interior do sistema o impulso que sustenta toda a atividade psíquica. [Cf. em [1]-[2]] Conhecemos essa força como vontade — o derivado das pulsões. [Cf. em [1], adiante.]

 

[11] A EXPERIÊNCIA DE SATISFAÇÃO

 

O enchimento dos neurônios nucleares em y terá como resultado uma propensão à descarga, uma urgência que é liberada pela via motora. A experiência demonstra que, aqui, a primeira via a ser seguida é a que conduz a alteração interna (expressão das emoções, gritos inervação vascular). Mas, como já explicamos no início [em. [1]], nenhuma descarga pode produzir resultado aliviante, visto que o estímulo endógeno continua a ser recebido e se restabelece a tensão em y. Nesse caso, o estímulo só é passível de ser abolido por meio de uma intervenção que suspenda provisoriamente a descarga de Q no interior do corpo; e uma intervenção dessa ordem requer a alteração no mundo externo (fornecimento de víveres, aproximação do objeto sexual), que, como ação específica, só pode ser promovida de determinadas maneiras. O organismo humano é, a princípio, incapaz de promover essa ação específica. Ela se efetua por ajuda alheia, quando a atenção de uma pessoa experiente é voltada para um estado infantil por descarga através da via de alteração interna. Essa via de descarga adquire, assim, a importantíssima função secundária da comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais. [Ver em. [1].]

Quando a pessoa que ajuda executa o trabalho da ação específica no mundo externo para o desamparado, este último fica em posição, por meio de dispositivos reflexos, de executar imediatamente no interior de seu corpo a atividade necessária para remover o estímulo endógeno. A totalidade do evento constitui então a experiência de satisfação, que tem as conseqüências mais radicais no desenvolvimento das funções do indivíduo. Isso porque três coisas ocorrem no sistema : (1) efetua-se uma descarga permanente e, assim, elimina-se a urgência que causou desprazer em ; (2) produz-se no pallium a catexização de um (ou de vários) neurônio que corresponde à percepção do objeto; e (3) em outros pontos do pallium chegam as informações sobre a descarga do movimento reflexo liberado que se segue à ação específica. Estabelece-se então uma facilitação entre as catexias e os neurônios nucleares.

 

A informação sobre a descarga reflexa surge porque cada movimento, através de seus resultados subsidiários, torna-se uma oportunidade de novas excitações sensoriais (provenientes da pele e dos músculos) que produzem em y uma imagem motora [cinestésica]. A facilitação, no entanto, se forma de uma maneira que nos permite uma compreensão mais ampla do desenvolvimento de y. Até agora, aprendemos a saber que os neurônios y são influenciados por  e pelas vias de condução endógena; mas os diversos neurônios y ficaram isolados uns dos outros por barreiras de contacto com fortes resistências. Ora, existe uma lei básica de associação por simultaneidade, que atua no caso da atividade y pura, de lembrança reprodutiva, e que constitui o fundamento de todos os vínculos entre os neurônios y. Nós verificamos que a consciência — isto é, a catexia quantitativa de um neurônio ,  — passa para outra, , caso  e  tenham estado, em algum momento, catexizadas simultaneamente a partir da f (ou de alguma outra parte). Desse modo, uma barreira de contacto ficou facilitada pela catexia simultânea -. Daí se conclui, nos termos da nossa teoria, que uma Q passa mais facilmente de um neurônio para um neurônio catexizado do que para um não catexizado. Assim, a catexia do segundo neurônio atua da mesma maneira que um aumento de catexia no primeiro. Nesse caso, mais uma vez, a catexia se revela, no que diz respeito à passagem de Q, como equivalente da facilitação. [Cf. em [1]-[2].]

Aqui, portanto, travamos conhecimento com um segundo fator importante para a determinação do curso que segue uma Q. Uma Q no neurônio a não só tomará a direção da barreira mais facilitada, como também, a direção que esteja catexizada a partir do lado oposto. Os dois fatores podem reforçar-se mutuamente ou, em certos casos, antagonizar-se.

Assim, como resultado da experiência da satisfação, há uma facilitação entre duas imagens mnêmicas e os neurônios nucleares que ficam catexizados em estado de urgência. Junto com a descarga de satisfação, não resta dúvida de que a Q se esvai também das imagens mnêmicas. Ora, com o reaparecimento do estado de urgência ou de desejo, a catexia também passa para as duas lembranças, reativando-as. É provável que a imagem mnêmica do objeto será a primeira a ser afetada pela ativação do desejo.

Não tenho dúvida de que na primeira instância essa ativação do desejo produz algo idêntico a uma percepção — a saber, uma alucinação. Quando uma ação reflexa é introduzida em seguida a esta, a conseqüência inevitável é o desapontamento. [Ver em [1].]

 

[12] A EXPERIÊNCIA DA DOR

 

Normalmente, y está exposto a Q a partir das vias endógenas de condução, e, anormalmente, embora ainda não patologicamente, nos casos em que Qs excessivamente grandes rompem os dispositivos de tela em f — isto é, nos casos de dor. [Ver em [1].] A dor produz em  (1) grande aumento de nível, que é sentido como desprazer por  [Ver em [1]], (2) uma propensão à descarga, que pode ser modificada em determinados sentidos, e (3) uma facilitação entre esta última [a propensão à descarga] e uma imagem mnêmica do objeto que provoca a dor. Além disso, não há dúvida de que a dor possui uma qualidade especial, que se faz sentir junto com o desprazer.

Quando a imagem mnêmica do objeto (hostil) é renovadamente catexizada por qualquer razão — por nova percepção, digamos —, surge um estado que não é o da dor, mas que, apesar disso, tem certa semelhança com ela. Esse estado inclui o desprazer e a tendência à descarga que corresponde à experiência da dor. Como o desprazer significa aumento de nível, deve-se perguntar qual a origem dessa Q. Na experiência da dor propriamente dita, era a Q externa irruptora que elevava o nível de y. Na reprodução da experiência — no afeto — a única Q adicional é a que catexiza a lembrança, sendo evidente que esta é da mesma natureza de qualquer outra percepção e não pode ter como resultado o aumento geral de Q.

Só nos resta, pois, pressupor que, devido à catexia das lembranças, o desprazer é liberado do interior do corpo e de novo transmitido. O mecanismo dessa liberação só pode ser retratado da seguinte maneira. Assim como existem neurônios motores que, quando cheios até certo ponto, conduzem Q aos músculos, descarregando-a, devem também existir neurônios “secretores” que, quando excitados, provocam no interior do corpo o surgimento de algo que atua como estímulo sobre as vias endógenas de condução de y — neurônios que, dessa forma, influenciam a produção de Q endógena e, conseqüentemente, não descarregam Q, mas fornecem-nas por vias indiretas. A esses neurônios [secretores] chamaremos de “neurônios-chave”. É evidente que eles só são excitados a partir de certo nível em y. Como resultado da experiência da dor, a imagem mnêmica do objeto hostil adquiriu uma facilitação excelente para esses neurônios-chave, em virtude da qual [a facilitação] se libera então desprazer no afeto.

Essa hipótese intrigante, mas indispensável, é confirmada pelo que ocorre no caso da liberação sexual. Ao mesmo tempo, somos forçados a suspeitar de que os estímulos endógenos, em ambos os casos, consistem em produtos químicos, cujo número pode ser considerável. Como a liberação do desprazer pode ser extremamente grande quando existe uma catexia bastante insignificante da lembrança hostil, pode-se concluir que a dor deixa atrás de si facilitações especialmente abundantes. Nessa conexão, é de se presumir que a facilitação dependa inteiramente da Q alcançada; de modo que o efeito facilitador de 3 Q pode ser muito maior que o de 3 x Q.

 

[13] AFETOS E ESTADOS DE DESEJO

 

Os resíduos dos dois tipos de experiências [de dor e de satisfação] que acabamos de examinar são os afetos e os estados de desejo. Estes têm em comum o fato de que ambos envolvem um aumento da tensão Q em y — produzido, no caso de um afeto, pela liberação súbita e, no de um desejo, por soma. Ambos os estados são da maior importância para a passagem [da quantidade] em y, pois deixam atrás dele motivações para isso, que se constituem no tipo compulsivo. O estado do desejo resulta numa atração positiva para o objeto desejado, ou mais precisamente, por sua imagem mnêmica; a experiência da dor leva à repulsa, à aversão por manter catexizada a imagem mnêmica da dor leva à repulsa, à aversão por manter catexizada a imagem mnêmica hostil. Eis aqui a atração de desejo primária e a defesa [repúdio] primária.

A atração de desejo pode ser facilmente explicada pelo pressuposto de que a catexia da imagem mnêmica agradável num estado de desejo supera amplamente em Q a catexia que ocorre quando há uma simples percepção, de modo que a facilitação particularmente boa passa do núcleo y para o neurônio correspondente do pallium.

É mais difícil explicar a defesa primária ou recalcamento — o fato de a imagem mnêmica hostil ser regularmente abandonada o mais depressa possível por sua catexia. Apesar disso, a explicação deve estar no fato de que as experiências primárias da dor foram eliminadas pela defesa reflexa. A aparição de outro objeto, em lugar do hostil, foi o sinal para o fato de que a experiência da dor estava terminando, e o sistema y, pensando biologicamente, procura reproduzir o estado de y que assinalou a cessação da dor. Com a expressão pensando biologicamente acabamos de introduzir uma nova base de explicação, que deve ter validade independente, ainda que não exclua, mas, pelo contrário, exija o recurso a princípios mecânicos (fatores quantitativos). No caso diante de nós, poderia perfeitamente ser o aumento de Q, invariavelmente produzido com a catexia de uma lembrança hostil, que força o acréscimo da atividade de descarga e, com isso, também a drenagem da lembrança.

 

[14] INTRODUÇÃO DO EGO

 

Com efeito, porém, com a hipótese da “atração de desejo” e da propensão ao recalcamento, já abordamos um estado de y que ainda não foi discutido. Pois esses dois processos indicam que em y se formou uma organização cuja presença interfere nas passagens [de quantidade] que, na primeira vez, ocorreram de determinada maneira [isto é, acompanhadas de satisfação ou dor]. Essa organização se chama “ego”. Pode ser facilmente descrito se considerarmos que a recepção sistematicamente repetida de Q endógena em certos neurônios (do núcleo) e o conseqüente efeito facilitador produzem um grupo de neurônios que é constantemente catexizado [em [1] e [2]-[3]] e que, desse modo, corresponde ao veículo da reserva requerido pela função secundária [em [1]]. O ego deve, portanto, ser definido como a totalidade das catexias y existentes em determinado momento, nas quais cumpre diferenciar um componente permanente e outro mutável [em [1], adiante]. É fácil ver que as facilitações entre os neurônios y fazem parte dos domínios do ego, já que representam possibilidades, se o ego for alterado, de determinar a sua extensão nos momentos seguintes.

Embora esse ego deva esforçar-se por se livrar de suas catexias pelo método da satisfação, isso não pode acontecer de nenhuma outra maneira senão por ele influenciar a repetição das experiências de dor e dos afetos, e pelo método seguinte, que é geralmente descrito como inibição.

Uma Q que irrompe em um neurônio a partir de um ponto qualquer continuará em direção à barreira de contacto que estiver mais facilitada, estabelecendo uma corrente nessa direção. Explicando com mais precisão: a corrente de Q se dividirá na direção das diversas barreiras de contacto na proporção inversa de suas resistências; e, em tal caso, quando uma fração se choca contra uma barreira de contacto cuja resistência é inferior a ela [barreira de contacto], não passará praticamente nada por esse ponto. Essa relação pode facilmente conduzir-se para cada Q no neurônio, pois poderão surgir frações que sejam superiores também ao limiar de outras barreiras de contacto. Assim, o curso adotado dependerá das Q e da relação das facilitações. Já conhecemos, porém, o terceiro fator poderoso [Ver em [1]-[2]]. Quando um neurônio adjacente é simultaneamente catexizado, isso atua como uma facilitação temporária da barreira de contacto existente entre os dois, modificando o curso [da corrente], que, de outro modo, teria tomado a direção de uma barreira de contacto facilitada. Assim, pois, uma catexia colateral atua como uma inibição do curso da Q. Imaginemos o ego como uma rede de neurônios catexizados e bem facilitados entre si, da seguinte maneira: [ver Fig. 14].

 

 

Fig. 14

 

Suponhamos que uma Q penetrasse no neurônio a vindo do exterior (), então, se não fosse influenciada, ela passaria para o neurônio b; mas ela é tão influenciada pela catexia colateral - que libera apenas uma fração para b, e talvez nem sequer chegue de todo a b. Logo, se o ego existe, ele deve inibir os processos psíquicos primários.

Uma inibição desse tipo representa, porém, uma vantagem decisiva para y. Suponhamos que a seja uma imagem mnêmica hostil e b, um neurônio-chave para o desprazer [Ver em [1]]. Então, se  é despertado, o desprazer primariamente será liberado, o que talvez fosse inútil e que o é, de qualquer modo, [quando ele é liberado] em sua totalidade. Com a ação inibitória de , a liberação de desprazer ficará muito reduzida e o sistema nervoso será poupado, sem qualquer outro dano, do desenvolvimento e da descarga de Q. Agora se torna fácil imaginar como o ego, com o auxílio de um mecanismo que atrai sua atenção para a nova catexia iminente da imagem mnêmica hostil, pode conseguir inibir a passagem [da quantidade] de uma imagem mnêmica para a liberação do desprazer por meio de uma copiosa catexia colateral que pode ser reforçada de acordo com as necessidades. E, realmente, se admitirmos que a liberação inicial de desprazer é captada da Q pelo próprio ego, teremos nessa mesma [liberação] a fonte do dispêndio que a catexia colateral inibidora exige do ego. Nesse caso, quanto mais intenso for o desprazer, mais forte será a defesa primária.

 

[15] OS PROCESSOS PRIMÁRIO E SECUNDÁRIO EM Y.

 

A conclusão do que até aqui se desenvolveu é que o ego em y, que consideramos no que tange às suas tendências, como a totalidade do sistema nervoso, pode, quando os processos não são influenciados em y, cair num estado de inermidade e sofrer dano em duas situações.

Quer dizer, isto pode ocorrer em primeiro lugar quando ele, encontrando-se em estado de desejo, catexiza de novo a lembrança de um objeto e então põe em ação o processo de descarga; nesse caso, deixa de ocorrer a satisfação, porque o objeto não é real, mas está presente apenas como idéia imaginária. Para começar,  é incapaz de estabelecer essa distinção, já que só pode funcionar como base da seqüência de estados análogos entre neurônios. Assim, necessita de um critério proveniente de outra parte para distinguir entre percepção e idéia.

Por outro lado, y precisa de uma indicação que atraia sua atenção para a recatexização de uma imagem mnêmica hostil e que lhe permita evitar, por meio de catexias colaterais, a conseqüente liberação de desprazer. Se y conseguir efetuar essa inibição a tempo, a liberação de desprazer e ao mesmo tempo as defesas serão mínimas; caso contrário, ocorrerá um desprazer imenso e uma defesa primária excessiva.

Ambas, a catexia de desejo e a liberação de desprazer, quando a lembrança em questão é de novo catexizada, podem ser biologicamente nocivas. É o que acontece na catexia de desejo sempre que ela ultrapassa determinada quantidade e, desse modo, age como um estímulo à descarga; e é o que acontece também na liberação de desprazer, pelo menos quando a catexia da imagem mnêmica hostil emana (por associação) do próprio y, e não do mundo externo. Aqui, mais uma vez, trata-se, portanto, de encontrar uma indicação para distinguir entre percepção e lembrança (idéia).

 

Provavelmente, são neurônios w que fornecem essa indicação: a indicação da realidade. No caso de cada percepção externa, produz-se em w [Ver em [1]] uma excitação qualitativa que, na primeira situação, porém, não tem nenhuma importância para y. Deve-se acrescentar que a excitação de w conduz a uma descarga de w e que desta, como de qualquer descarga [em [1]], chega a informação a y. Desse modo, a informação da descarga proveniente de w constitui a indicação da qualidade ou da realidade para y.

Quando o objeto desejado é abundantemente catexizado, a ponto de ser ativado de maneira alucinatória, também se produz a mesma indicação de descarga ou de realidade que no caso da percepção externa. Nessa situação o critério falha. Mas quando a catexia do desejo ocorre sujeita a uma inibição, como pode acontecer quando existe um ego catexizado, pode ser imaginada uma instância quantitativa em que a catexia de desejo, não sendo suficientemente intensa, não produza nenhuma indicação de qualidade, ao passo que a percepção externa seria capaz de produzi-la. Nessa instância, portanto, o critério manteria seu valor. Porque a diferença consiste em que a indicação de qualidade, quando proveniente do exterior, aparece sempre, seja qual for a intensidade da catexia, ao passo que, quando proveniente de y, ela só se manifesta em presença de intensidades elevadas. É, por conseguinte, a inibição pelo ego que possibilita um critério de diferenciação entre a percepção e a lembrança. A experiência biológica ensinará, então, a não iniciar a descarga antes da chegada da indicação da realidade e, tendo essa finalidade em vista, a não levar a catexia das lembranças desejadas além de certa quantidade.

Por outro lado, a excitação dos neurônios w também pode servir para proteger o sistema y no segundo dos casos mencionados: isto é, atraindo a atenção de y para o fato da presença ou ausência de uma percepção. Com essa finalidade, deve-se presumir que os neurônios w estão originalmente vinculados de forma anatômica com as vias de condução procedentes dos diversos órgãos sensoriais e que [os neurônios w] reorientam sua descarga para os aparelhos motores pertencentes a esses mesmos órgãos sensoriais. Em tal caso, a informação desta última descarga (a informação da atenção reflexa) atuará para y como um sinal biológico de que ele deve enviar uma quantidade de catexias nessas mesmas direções.

 

Resumindo, pois: quando há inibição por um ego catexizado, as indicações de descarga w tornam-se, em termos muito gerais, indicações da realidade, que y aprende biologicamente a aproveitar. Quando o ego, no momento em que surge essa indicação da realidade, se encontra em estado de tensão e desejo, ela permite que se siga uma descarga no sentido da ação específica [Ver em [1]]. Quando a indicação da realidade coincide com um aumento do desprazer, y produzirá então, por meio de uma catexia colateral de considerável grandeza, uma defesa de magnitude normal situada no lugar indicado. Se não ocorrer nenhuma dessas duas circunstâncias, a catexia poderá prosseguir sem nenhum impedimento, de acordo com as condições em que se encontrem as facilitações. A catexia de desejo, levada ao ponto de alucinação, [e] a completa produção do desprazer, que envolve o dispêndio total da defesa, são por nós designadas como processos psíquicos primários; em contrapartida, os processos que só se tornam possíveis mediante uma boa catexia do ego, e que representam versões atenuadas dos referidos processos primários, são descritos como processos psíquicos secundários. Ver-se-á que a precondição necessária destes últimos é a utilização correta das indicações da realidade, que só se torna possível quando existe inibição por parte do ego.

 

[16] COGNIÇÃO E PENSAMENTO REPRODUTIVO

 

Formulamos a hipótese de que, durante o processo de desejar, a inibição por parte do ego produz uma catexia moderada do objeto desejado, que permite reconhecê-lo como não-real; e agora podemos prosseguir com a análise desse processo. Várias possibilidades podem ocorrer. No primeiro caso: simultaneamente à catexia de desejo da imagem mnêmica, acha-se presente a percepção dela. Se assim é, as duas catexias coincidem — o que não pode ser biologicamente aproveitado —, mas, além disso, a indicação da realidade provém de ƒçƒz após o que, como mostra a experiência, a descarga é eficaz [Ver em [1]]. Esse é um caso fácil de abordar. No segundo caso: a catexia de desejo está presente e, ao lado dela, uma percepção que não corresponde a ela inteiramente, mas apenas em parte. É chegado o momento de lembrar que as catexias perceptivas nunca são catexias de neurônios isolados, mas sempre de complexos. Até agora desconsideramos essa característica; chegou o momento de levá-la em conta. Suponhamos que, em termos bastante gerais, a catexia de desejo se relaciona com o neurônio a + o neurônio b, e a catexia perceptiva, com os neurônios a + c. Visto que este será o caso mais comum, mais comum que o da identidade, ele merece uma consideração mais precisa. Também aqui a experiência biológica ensina [Ver em [1]] que não é seguro iniciar a descarga se as indicações da realidade não confirmarem a totalidade do complexo, mas só uma parte dele. Agora, porém, encontra-se um modo de aperfeiçoar a semelhança, convertendo-a em identidade. Comparando o complexo perceptual com outros complexos congêneres, pode-se decompô-lo em dois componentes: o peimri, que geralmente se mantém constante, é o neurônio a, e o segundo, habitualmente variável, é o neurônio b. A linguagem aplicará mais tarde o termo juízo a essa análise e descobrirá a semelhança que de fato existe [por um lado] entre o núcleo do ego e o componente perceptual constante e [por outro] entre as catexias cambiantes no pallium [em [1] e [2]] e a componente inconstante: esta [a linguagem] chamará o neurônio a de a coisa, e o neurônio b, de sua atividade ou atributo — em suma, de seu predicado. [Cf. em [1]-[2], [3] e [4]].

Assim, julgar é um processo  que só se torna possível graças à inibição pelo ego e que é evocado pela dessemelhança entre a catexia de desejo de uma lembrança e a catexia perceptual que lhe seja semelhante. Daí se deduz que a coincidência entre essas duas catexias se converte num sinal biológico para pôr fim à atividade do pensamento e permitir que se inicie a descarga. Quando as duas catexias não coincidem, surge o ímpeto para a atividade do pensamento, que voltará a ser interrompida pela coincidência entre ambas.

 

O processo pode ser mais bem analisado. Se o neurônio a coincide [nas duas catexias], mas o neurônio c é percebido em lugar do neurônio b, a atividade do ego segue as conexões desse neurônio c e, mediante uma corrente de Q ao longo dessas conexões, faz surgir novas catexias até que se encontre acesso para o neurônio b desaparecido. Via de regra, aparece a imagem de um movimento [uma imagem motora], que é intercalada entre os neurônios c e b; e quando essa imagem é ativada de novo pela realização efetiva de um movimento, ficam estabelecidas a percepção do neurônio b e, ao mesmo tempo, a identidade visada. Suponhamos, por exemplo, que uma imagem mnêmica desejada [pela criança] seja a do seio materno com o mamilo, vistos de frente, e que a primeira percepção obtida seja uma visão lateral do mesmo objeto, sem o mamilo. Na memória da criança há uma experiência, casualmente adquirida no ato de mamar, segundo a qual a imagem frontal se converte em lateral mediante determinado movimento da cabeça. A imagem lateral agora percebida conduz [à imagem do] movimento da cabeça; um teste experimental mostra que o equivalente desse movimento deve ser executado para se obter a percepção da imagem frontal.

Por enquanto, ainda não há muito julgamento nisso; mas trata-se de um exemplo da possibilidade de chegar, pela reprodução das catexias, a uma ação que já é uma das ramificações acidentais da ação específica.

Não resta dúvida de que o elemento subjacente a essa migração ao longo dos neurônios facilitados é a Q proveniente do ego catexizado, e de que essa migração não é regida pela facilitação, e sim por um objetivo. Que objetivo é esse e como pode ser alcançado?

O objetivo é voltar ao neurônio b desaparecido e liberar a sensação de identidade — isto é, o momento em que só é catexizado o neurônio b e em que a catexia migratória desemboca no neurônio b. [Cf. em [1] e [2].] Ele é alcançado mediante um deslocamento experimental de Q ao longo de cada via possível, e é claro que, para tal propósito, é necessário um dispêndio ora maior, ora menor, de catexia colateral, conforme se possa aproveitar as facilitações presentes ou se uma precisa trabalhar contra elas. A luta entre as facilitações estabelecidas e as catexias mutáveis caracteriza o processo secundário do pensamento reprodutivo, em contraste com a seqüência primária de associações.

O que dirige o curso dessa migração? O fato de que a idéia desejante da memória [isto é, do neurônio b] se mantém catexizada durante o tempo em que a cadeia associativa é percorrida a partir do neurônio c. Como já sabemos [em [1]], graças a essa catexização do neurônio b, todas as suas conexões possíveis ficam, por sua vez, mais facilitadas e acessíveis.

No curso dessa migração pode acontecer que a Q esbarre numa lembrança relacionada com uma experiência de dor, provocando assim uma liberação de desprazer. Visto ser esse um sinal seguro de que o neurônio b não pode ser atingido por essa via, a corrente se desvia imediatamente da catexia em questão. Apesar disso, as vias do desprazer conservam o seu grande valor como orientadoras da corrente de reprodução.

 

[17] MEMÓRIA E JUÍZO

 

O pensamento reprodutivo tem, pois, um objetivo prático e um fim biologicamente estabelecido — a saber, conduzir de volta para a catexia do neurônio desaparecido uma Q que está migrando da percepção supérflua [indesejada]. Com isso, obtém-se a identidade e o direito à descarga, se, em adição, a indicação da realidade provier do neurônio b. Mas o processo também pode tornar-se independente deste último objetivo e lutar unicamente pela identidade. Se é assim, temos diante de nós um ato puro de pensamento, embora este possa em qualquer caso, mais tarde, ser colocado em prática. Aqui, ademais, o ego catexizado se comporta de maneira exatamente igual.

Chegamos agora a uma terceira possibilidade que pode surgir no estado de desejo: é quando há uma catexia de desejo e emerge uma percepção que não coincide, de modo algum, com a imagem mnêmica desejada (mnem. +). Surge então um interesse de conhecer essa imagem perceptiva, de maneira que talvez se consiga encontrar, afinal, uma via entre ela e a mnem. + . É de se supor que, com essa finalidade em vista, a imagem perceptiva seja novamente hipercatexizada a partir do ego, como aconteceu no caso anterior com apenas uma parte componente dela, o neurônio c. Se a imagem perceptiva não for absolutamente nova, ela agora recordará e reviverá uma imagem perceptiva mnêmica com a qual coincida pelo menos em parte. O processo de pensamento prévio é agora repetido, em conexão com essa imagem mnêmica, embora, até certo ponto, sem o objetivo que foi anteriormente proporcionando pela idéia de desejo catexizada [Cf. em [1]].

Na medida em que coincidem, as catexias não dão oportunidade à atividade de pensamento. Por outro lado, as partes discrepantes “despertam interesse” e podem dar lugar à atividade do pensamento de duas maneiras. Ou a corrente se dirigirá para as lembranças despertadas e porá em ação uma atividade mnêmica sem objetivo, que assim será dirigida pelas diferenças, e não pelas semelhanças, ou [a corrente] permanecerá nos componentes [da percepção] recém-surgidos e em tal caso exibe uma atividade judicativa igualmente sem objetivo. [1]

Suponhamos que o objeto que compõe a percepção se pareça com o sujeito — um outro ser humano. Nesse caso, o interesse teórico [que lhe é dedicado] também se explica pelo fato de que um objeto semelhante foi, ao mesmo tempo, o primeiro objeto hostil, além de sua única força auxiliar. Por esse motivo, é em relação a seus semelhantes que o ser humano aprende a conhecer. Os complexos perceptivos emanados desse ser semelhante serão então, em parte novos e incomparáveis — como, por exemplo, seus traços, na esfera visual; mas outras percepções visuais — as do movimento das mãos, por exemplo — coincidirão no sujeito com a lembrança de impressões visuais muito semelhantes, emanadas de seu próprio corpo, [lembranças] que estão associadas a lembranças de movimentos experimentados por ele mesmo. Outras percepções do objeto — se, por exemplo, ele der um grito — também despertarão a lembrança do próprio grito [do sujeito] e, ao mesmo tempo, de suas próprias experiências de dor. Desse modo, o complexo do ser humano semelhante se divide em dois componentes, dos quais um produz uma impressão por sua estrutura constante e permanece unido como uma coisa, enquanto o outro pode ser compreendido por meio da atividade de memória — isto é, pode ser rastreado até as informações sobre o próprio corpo [do sujeito]. Essa dissecação de um complexo perceptivo é descrita como o conhecimento dele; envolve um juízo e chega a seu término uma vez atingido este último objetivo. Como se verá, o juízo não é uma função primária, mas pressupõe a catexia das porções [da percepção] díspares [não comparáveis] a partir do ego; no primeiro caso, [o juízo] não tem nenhuma finalidade prática e, ao que parece, durante o processo judicativo, a catexia das porções díspares é descarregada, pois isso explicaria por que as atividades, os “predicados” [em [1]] são separados do complexo do sujeito por uma via relativamente frouxa. [1]

A partir daqui seria possível penetrar a fundo na análise do ato judicativo; mas isso nos desviaria de nosso tema. Contentemo-nos, pois, em deixar bem estabelecido que é o interesse primitivo em estabelecer a situação de satisfação que leva, num caso, à consideração reprodutiva e, no outro, ao juízo, como um método para ir da situação perceptiva dada na realidade à situação que é desejada. Para tanto, o requisito indispensável continua sendo o de que os processosƒnƒé não sigam seu curso sem serem inibidos, e sim em conjunto com um ego ativo. Com isso ficaria demonstrado o sentido eminentemente prático de toda atividade de pensamento.

 

[18] PENSAMENTO E REALIDADE

 

Assim, o objetivo e o fim de todos os processos de pensamento é o estabelecimento de um estado de identidade, a transmissão de uma catexia Q [sic], emanada do exterior, a um neurônio catexizado a partir do ego. O pensamento cognitivo ou judicativo procura uma identidade com uma catexia corporal, ao passo que o pensamento reprodutivo procura uma identidade com uma catexia psíquica do próprio sujeito (com uma experiência do próprio sujeito). O pensamento judicativo opera antes do reprodutivo, fornecendo-lhe facilitações já prontas para a migração associativa posterior. Quando uma vez concluído o ato de pensamento, a indicação da realidade chega à percepção, obtém-se então um juízo de realidade, uma crença, atingindo-se com isso o objetivo de toda essa atividade.

No que se refere ao juízo, cumpre ainda observar que sua base é, evidentemente, a presença de experiências corporais, sensações e imagens motoras de si próprio. Enquanto faltarem esses elementos, a porção variável [Cf. em [1]] do complexo perceptivo permanece não compreendida — isto é, poderá ser reproduzida, mas não apontará direção para novas vias de pensamento. Assim, por exemplo, e isso se tornará importante mais adiante [na Parte II], nenhuma experiência sexual produz qualquer efeito enquanto o sujeito ignora toda e qualquer sensação sexual — quer dizer, em geral, antes do início da puberdade.

O juízo primário parece pressupor um grau de influência menor por parte do ego catexizado do que os atos reprodutivos de pensamento. Neste [no juízo primário], trata-se de persistir numa associação que se deve a uma coincidência parcial [entre as catexias de desejo e perceptiva] — uma associação à qual não se aplica modificação alguma. E, efetivamente, também existem caso sem que o processo associativo do juízo é levado a cabo com [um montante] integral [de] quantidade. A percepção corresponderia a um objeto-núcleo + uma imagem motora. Enquanto alguém está percebendo a percepção, ele copia o próprio movimento — isto é, inerva-se tão intensamente a própria imagem motora despertada para coincidir [com a percepção] que o movimento vem a ser efetuado. Daí se pode falar em percepções que têm valor imitativo. Ou então a percepção desperta a imagem mnêmica de uma sensação de dor do próprio sujeito, de modo que sente o desprazer correspondente e se repete o movimento defensivo adequado. Eis aí o valor de simpatia de uma percepção.

Não resta dúvida de que esses dois casos nos apresentam o processo primário atuando no juízo, e podemos presumir que todo juízo secundário tenha surgido pela atenuação desses processos puramente associativos. Assim, o juízo, que mais tarde se converterá num meio de cognição de um objeto que talvez tenha importância prática, é originalmente um processo de associação entre catexias que chegam ao exterior e catexias oriundas do próprio corpo — uma identificação de informações ou catexias procedentes de f e de dentro. Talvez não esteja errado supor que ele [o juízo] representa, ao mesmo tempo, um método pelo qual as Qs procedentes de f podem ser transmitidas e descarregadas. O que chamamos coisas são resíduos que fogem de serem julgados.

O exemplo do julgamento nos fornece, pela primeira vez, indício da diferença em suas características quantitativas que é preciso descobrir entre o pensamento e o processo primário. É lícito supor que, durante o pensar, saia de y uma tênue corrente de inervação motora — mas, naturalmente, só se durante esse processo tiver sido inervado um neurônio motor ou um neurônio-chave [Ver em [1]]. Apesar disso, seria errôneo considerar essa descarga como o próprio processo de pensamento, do qual ela não passa de um efeito acessório e inintencional. O processo de pensamento consiste na catexia dos neurônios y, acompanhada por uma mudança, promovida pela catexia colateral do ego, naquilo que é imposto pelas facilitações. Do ponto de vista mecânico, é compreensível que, nesse caso, apenas uma parte da Q possa acompanhar as facilitações e que a magnitude dessa parte seja constantemente regulada pelas catexias. Mas é também evidente que, ao mesmo tempo, economiza-se com isso Q suficiente para fazer com que a reprodução como um todo seja proveitosa. Do contrário, toda a Q necessária para a descarga final seria gasta durante a sua passagem pelos pontos de saída motora. Assim, o processo secundário é uma repetição da passagem original [da quantidade] em , num nível mais baixo e com quantidades menores.

Aqui se poderia objetar: “Com Qs ainda menores do que as que normalmente correm pelos neurônios? Como é possível franquear a Qs tão pequenas as vias que, afinal, só são transitáveis por [Qs] maiores do que as que W recebe habitualmente?’’ A única resposta cabível é que isso deve ser uma conseqüência mecânica das catexias colaterais. Devemos concluir que as condições são tais que, quando há uma catexia colateral, pequenas Qs fluem por facilitações que comumente só seriam percorríveis por [Qs] grandes. A catexia colateral liga, por assim dizer, uma cota de Q que corre pelo neurônio.

Existe uma outra condição que o pensamento necessita satisfazer. Não deve realizar modificação essencial nas facilitações criadas pelos processos primários; caso contrário, efetivamente falsearia os traços da realidade. Quanto a essa condição, basta observar que a facilitação provavelmente é o resultado de uma única [passagem de] grande quantidade e que a catexia, por mais poderosa no momento, não deixa no entanto atrás de si qualquer efeito permanente comparável. As pequenas Qs que passam durante o pensamento não podem em geral prevalecer contra as facilitações.

Não resta dúvida, porém, de que o processo de pensamento deixa efetivamente atrás de si traços duradouros, uma vez que um segundo pensamento, um re-pensar, exige tão menor dispêndio [de energia] que o primeiro. Portanto, a fim de que a realidade não seja falseada, faz-se necessária a existência de traços especiais, signos dos processos de pensamento, que constituam uma memória — [de] — pensamento, que ainda não é possível delinear. Mais adiante, veremos de que maneira os traços dos processos — [de] — pensamento se diferenciam dos da realidade.

 

[19] PROCESSOS PRIMÁRIOS - O SONO E OS SONHOS

 

Surge agora o problema quanto a quais são os meios quantitativos que mantêm o processo primário y. No caso de uma experiência de dor, trata-se evidentemente da Q que irrompe do exterior; no caso de um afeto, é a Q endógena liberada por facilitação. No caso do processo secundário do pensamento reprodutivo, é óbvio que uma Q maior ou menor pode ser transferida do ego para o neurônio c [em [1]] e esta [Q] pode ser descrita como interesse do pensamento, sendo proporcional ao interesse afetivo, onde este houver surgido. A questão é apenas saber se existem processos y de índole primária para os quais seja suficiente a Q fornecida por f, ou se a catexia f de uma percepção é automaticamente suplementada por uma contribuição y (atenção), sendo somente esta que possibilita um processo y. [Ver em [1], adiante.] Essa questão terá que permanecer em aberto, embora talvez se possa determinar se ela é especialmente aplicável a [alguns] fatos psicológicos.

Um fato importante é que os processos de y, tais como os que foram biologicamente suprimidos no curso do desenvolvimento de y, se apresentam diariamente a nós durante o sono. Um segundo fato de igual importância é que os mecanismos patológicos revelados nas psiconeuroses pela análise mais cuidadosa guardam uma grande semelhança com os processos oníricos. Dessa comparação, que desenvolveremos mais adiante [em [1]], tiram-se as mais importantes conclusões. [1]

Antes, porém, é preciso introduzir o fato do sono em nossa teoria. A precondição essencial do sono é facilmente reconhecida na criança. As crianças dormem enquanto não são atormentadas por nenhuma necessidade [física] ou estímulo externo (pela fome ou pela sensação de frio causada pela urina). Elas adormecem depois de serem satisfeitas (no seio). Os adultos também adormecem com facilidade post coenam et coitum [depois da refeição e da cópula]. Por conseguinte, a precondição do sono é uma queda da carga endógena no núcleo de y, que torna supérflua a função secundária. No sono, o indivíduo se encontra no estado ideal de inércia, livre de sua reserva de Q [Ver em [1]].

 

Nos adultos, essa reserva se encontra acumulada no “ego” [em [1]]; podemos supor que é a descarga do ego que determina e caracteriza o sono. E aqui, como se percebe de imediato, temos a precondição dos processos psíquicos primários.

Não é certo que, nos adultos, o ego fique completamente livre de sua carga durante o sono. De qualquer forma, ele retira um enorme número de catexias, que, no entanto, ao despertar, são restabelecidas imediatamente e sem esforço. Isso não contradiz nenhuma de nossas pressuposições; mas chama atenção para o fato de que devemos presumir que, entre os neurônios adequadamente ligados, existem correntes que afetam o nível total [da catexia], tal como ocorre nos vasos comunicantes, embora o nível atingido em cada neurônio em particular precise apenas ser proporcional, e não necessariamente uniforme. [Cf. em [1].]

As peculiaridades do sono revelam uma série de coisas de que talvez não fosse possível suspeitar.

O sono se caracteriza por uma paralisia motora (paralisia da vontade). A vontade é a descarga da Q total de y [em [1]]. No sono, o tônus espinhal fica parcialmente relaxado; é provável que a descarga motora de f se manifeste no tônus; outras inervações persistem [durante o sono], junto com as fontes de sua excitação.

É sumamente interessante que o estado do sono comece e seja provocado pela oclusão dos órgãos sensoriais que podem ser obstruídos. Durante o sono não se produzem percepções, e nada perturba mais o sono do que a aparição de impressões sensoriais, do que a catexização de y a partir de f. Isso parece indicar que, durante a vigília, uma catexia constante, embora deslocável (atenção), dirige-se aos neurônios do pallium, que recebem percepções de f [em [1]], sendo, pois, bem possível que os processos primários de y sejam levados a cabo com o auxílio dessa contribuição de y [Cf. em [1]]. Resta saber se os próprios neurônios do pallium ou os neurônios nucleares adjacentes já se encontram pré-catexizados. Quando  retira essas catexias do pallium, as percepções incidem sobre os neurônios não-catexizados, sendo pequenas e talvez até incapazes de dar uma indicação de qualidade a partir de W [em. [1]]. Como já presumimos, ao se esvaziarem os neurônios , cessa também a inervação de uma descarga que aumenta a atenção. A explicação do enigma do hipnotismo também teria que ser abordada a partir desse ponto. A aparente inexcitabilidade dos órgãos sensoriais [durante a hipnose] deve basear-se nessa retirada da catexia da atenção.

Assim, por meio de um mecanismo automático que é correlato do mecanismo de atenção,  exclui as impressões de  enquanto está catexizado.

O mais estranho, porém, é que durante o sono ocorrem processos  — os sonhos, que têm muitas características que não são compreendidas.

 

[20] A ANÁLISE DOS SONHOS

 

Os sonhos apresentam todos os graus de transição até a vigília e a uma mistura com os processos  normais; no entanto, é fácil discernir o que constitui a natureza onírica propriamente dita.

(1) Os sonhos são desprovidos de descarga motora e, em geral, de elementos motores. Nos sonhos, ficamos paralisados [Ver em [1]].

A explicação mais fácil dessa característica é a falta de pré-catexia espinhal graças à cessação da descarga de . Quando os neurônios não estão catexizados [em [1]], a excitação motora não pode transpor as barreiras .  Em outros estados oníricos, o movimento não é excluído. Esta não é a característica mais essencial dos sonhos.

(2) Nos sonhos, as conexões são parcialmente absurdas, parcialmente imbecis, ou até mesmo sem sentido ou estranhamente loucas.

 

Esta última característica se explica pelo fato de que, nos sonhos, predomina a compulsão a associar, que sem dúvida também domina primordialmente a vida psíquica em geral. Ao que parece, duas catexias coexistentes precisam pôr-se em mútua conexão. Colhi alguns exemplos cômicos do predomínio dessa compulsão na vida de vigília. (Por exemplo, alguns homens das províncias que se encontravam no Parlamento francês durante um atentado [a bomba] chegaram à conclusão de que, cada vez que um deputado proferia um bom discurso, era aplaudido … a tiros.)

As outras duas características, que na realidade são idênticas, demonstram que uma parte das experiências psíquicas [do sonhador] fica esquecida. Com efeito, todas as experiências biológicas que comumente inibem o processo primário são esquecidas, o que se deve à falta de catexia do ego. A insensatez e a ilogicidade dos sonhos devem, provavelmente, ser atribuídas a essa mesma característica. Ao que parece, as catexias  que não foram retiradas estabilizam-se, em parte, em direção às facilitações mais próximas e, em parte, em direção às catexias vizinhas. Se a descarga do ego fosse completa, o sono teria que ser forçosamente livre dos sonhos.

(3) As idéias oníricas são de caráter alucinatório; despertam a consciência e recebem crédito.

Essa é a característica mais importante do sono. Manifesta-se de pronto quando há momentos alternantes de sono [e vigília]. A pessoa fecha os olhos e alucina; torna a abri-los e pensa com palavras. Existem várias explicações para o caráter alucinatório das catexias oníricas. Em primeiro lugar, pode-se supor que a corrente de f para a mobilidade [durante a vida desperta] impediria uma catexia retroativa dos neurônios  a partir de ,1 e que, quando essa corrente cessa, f é retroativamente catexizado, satisfazendo-se assim a precondição necessária para [a produção de] qualidade. O único argumento contrário é o de que os neurônios f, pelo fato de não estarem catexizados, deveriam estar protegidos contra a catexia proveniente de y, tal como ocorre com a motilidade. É típico do sono que inverta toda a situação nesse caso, que suspenda a descarga motora vinda de y e que torne possível a descarga retroativa até f. Seria tentador atribuir aqui o papel determinante à grande corrente de descarga que, na vida desperta, vai de  até a motilidade. Em segundo lugar, poderíamos invocar a natureza do processo primário e ressaltar que a lembrança primária de uma percepção é sempre uma alucinação e que somente a inibição por parte do ego nos ensinou a jamais catexizar uma imagem perceptiva de maneira tal que possa transferir [Q] retroativamente até f. [Ver em [1] e [1].] Para tornar essa hipótese mais aceitável, poder-se-ia acrescentar nesta conexão que, em todo caso, a condução de f- é mais fácil que a de y-; de modo que uma catexia y de um neurônio, mesmo quando ultrapassa em muito a catexia perceptiva do mesmo neurônio, ainda assim não precisa ser retroativamente conduzida. Essa explicação é também apoiada pela circunstância de que, nos sonhos, a vivacidade de alucinação é diretamente proporcional à importância — isto é, à catexia quantitativa — da idéia em questão. Isso indica que é Q que determina a alucinação. Quando uma percepção chega de  na vida desperta, a catexia de  (interesse) a torna sem dúvida mais nítida, mas não vívida; não altera sua característica quantitativa.

(4) O objetivo e o sentido dos sonhos (dos normais, pelo menos) podem ser estabelecidos com certeza. Eles [os sonhos] são realizações de desejos — isto é, processos primários que acompanham as experiências de satisfação [em [1]];e só não são reconhecidos como tal porque a liberação de prazer (a reprodução de traços das descargas de prazer [em [1]] neles é escassa, pois, em geral, eles seguem seu curso sem afeto (sem liberação motora). É muito fácil, porém, demonstrar que esta é sua verdadeira natureza. É justamente por essa razão que me sinto inclinado a deduzir que a catexia de desejo primária também foi de caráter alucinatório [em [1]].

(5) É digno de nota como a lembrança dos sonhos é fraca e o pouco dano que eles causam, comparados com outros processos primários. Mas isso se explica facilmente pelo fato de que os sonhos, na maior parte, seguem as velhas facilitações e por isso não provocam nenhuma mudança [nelas]; de que as experiências de  se mantêm afastadas deles e de que [os sonhos], devido à paralisia da motilidade, não deixam atrás de si nenhum vestígio de descarga.

(6) Além disso, é interessante que, nos sonhos, a consciência fornece a qualidade com a mesma facilidade que na vida desperta. Isso demonstra que a consciência não está presa ao ego, podendo agregar-se a qualquer processo y. Isso nos adverte, também, contra uma possível identificação dos processos primários com os processos inconscientes. Eis aqui dois conselhos para futuro!

Se, quando a lembrança de um sonho é preservada, indagarmos sobre o seu conteúdo, verificaremos que o significado dos sonhos como realizações de desejo se acha encoberto por uma série de processos : todos os quais são reencontrados nas neuroses, de cuja natureza patológica são característicos [Cf. em [1]].

 

[21] A CONSCIÊNCIA DO SONHO

 

A consciência das idéias oníricas é, acima de tudo, descontínua. O que se torna consciente não é uma sucessão integral de associações, mas apenas alguns de seus pontos de parada isolados. Entre os quais existem vínculos intermediários inconscientes que podemos facilmente descobrir quando estamos acordados. Se investigarmos a causa dessas lacunas, eis o que descobriremos. Suponhamos que A [Fig. 15] seja uma idéia onírica que se tornou consciente e que conduz a B. Em vez de B, porém, aparece C na consciência simplesmente porque [ele] se encontra no caminho entre B e uma catexia D, simultaneamente presente. Desse modo, um desvio é produzido por uma catexia simultânea de outra espécie, que, a propósito, também não é consciente. Por esse motivo, então, C tomou o lugar de B, muito embora B se enquadre na conexão de pensamento, na realização do desejo.

 

 

Fig. 15

 

Por exemplo, [num de meus próprios sonhos,] R. dá uma injeção de propileno em A. Depois, com toda a nitidez, vejo diante de mim trimetilamina, alucinada como uma fórmula. Explicação: o pensamento simultaneamente presente [D] é a natureza sexual da doença de A. Entre esse pensamento e o propileno [A] existe uma associação com uma conversa a respeito da química sexual [B] que tive com Wƒ| Fl[iess], durante a qual ele me chamou especialmente a atenção para a trimetilamina. Isso agora se torna consciente [C] devido à pressão de ambos os lados.

É muito estranho que não se tornem conscientes também o vínculo intermediário (química sexual) [B] e a idéia diversiva (a natureza sexual da doença), coisa que precisa ser explicada. Poder-se-ia supor que as catexias de B ou de D não são, por si sós, suficientemente intensas para fazer o percurso até uma alucinação regressiva, ao passo que C, catexizada de ambos os lados, poderia obter esse resultado. No exemplo escolhido, porém, D (a natureza sexual [da doença]) era certamente tão intenso quanto A (a injeção de propileno), e o derivado dessas duas, a fórmula química [C], era extremamente vívido. O enigma dos vínculos intermediários inconscientes se aplica também ao pensamento desperto, no qual eventos semelhantes são uma ocorrência cotidiana. Mas o que persiste como característica dos sonhos é a facilidade com que a Q de desloca [neles] e, com isso, a substituição de B por um C que lhe é quantitativamente superior.

Algo parecido ocorre, geralmente, com a realização dos desejos no sonho. O que acontece, por exemplo, não é que o desejo se torne consciente e sua realização seja, então, alucinada, mas apenas está ultima: o vínculo intermediário fica por inferir. Não resta a menor dúvida de que ele foi percorrido, sem que tivesse oportunidade de se desenvolver qualitativamente. É evidente, porém, que a catexia da idéia de desejo nunca poderá ser mais forte que o motivo que impele para ela. Desse modo, a passagem psíquica [da excitação] no sonho se efetua de acordo com Q; mas não é Q que decide o que se tornará consciente.

 

Dos processos oníricos talvez possamos inferir também que a consciência se manifesta durante a passagem de uma Q — quer dizer, que não é despertada por uma catexia constante. Deve-se ainda suspeitar de que uma corrente intensa de Q não é favorável à geração da consciência, uma vez que ela [a consciência] se vincula ao resultado do movimento — a uma persistência relativamente tranqüila, por assim dizer, da catexia. Por causa dessas precondições mutuamente contraditórias, torna-se difícil discernir o que realmente determina a consciência. Além disso, devemos levar em consideração as circunstâncias em que a consciência se manifesta no processo secundário.

A peculiaridade da consciência onírica, que acabamos de indicar, talvez se explique pelo fato de que o fluxo retroativo de uma corrente de Q até  é incompatível com uma corrente enérgica até as vias de associação . Os processos da consciência de  parecem estar subordinados a outras condições.

25 set 95

 

APÊNDICE A: O USO DO CONCEITO DE REGRESSÃO, DE FREUD

 

O conceito de regressão, prenunciado nas duas últimas seções da Parte I do Projeto, iria desempenhar um papel cada vez mais importante nas teorias de Freud.

Numa nota de rodapé acrescentada em 1914 ao Capítulo VII (B) de A Interpretação dos Sonhos (Edição Standard Brasileira, Vol. V, [1], IMAGO Editora, 1972), o próprio Freud atribuiu a descoberta do conceito de regressão a Albertus Magnus, filósofo escolástico do século XIII, e ao Leviathan de Hobbes (1651). Mas parece tê-lo deduzido ainda mais diretamente da contribuição teórica de Breuer aos Estudos sobre a Histeria (ibid., Vol. III, [1], IMAGO Editora, 1974), publicado apenas alguns meses antes de ele mesmo ter escrito a presente obra. Breuer ali descreveu o movimento retrogressivo da excitação proveniente de uma idéia ou imagem mnêmica desde a percepção (ou alucinação) quase exatamente da mesma maneira aqui descrita por Freud. Ambos usaram a mesma palavra, “rückläufig”, aqui traduzida como “retrogressiva”.

A palavra alemã “Regression” apareceu pela primeira vez, ao que nos conste (num contexto semelhante), cerca de dezoito meses mais tarde, num rascunho enviado a Fliess no dia 2 de maio de 1897 (Rascunho L, [1]). Mas sua primeira publicação foi em A Interpretação dos Sonhos (1900a), no trecho subseqüentemente vinculado à nota de rodapé citada no início deste Apêndice.

Com o correr do tempo, o termo passou a ser usado nos sentidos mais variados, a certa altura classificado por Freud como “topográfico”, “temporal” e “formal”.

A regressão “topográfica” é a que Breuer introduziu; foi empregada no Projeto e forma o tema principal do Capítulo VII (B) de A Interpretação dos Sonhos (1900a). Deve seu nome ao quadro diagramático da mente que aparece naquele Capítulo (Edição Standard Brasileira, Vol. V, [1], IMAGO Editora, 1972), que registra a trajetória dos processos psíquicos entre a extremidade perceptiva e a extremidade motora do aparelho psíquico. Na regressão topográfica, a excitação é concebida como um retrocesso que se move no sentido da extremidade perceptiva. Desse modo, o termo constitui, essencialmente, a descrição de um fenômeno psicológico.

A regressão “temporal” tem relações mais estreitas com o material clínico. Surge pela primeira vez, mas sem qualquer referência explícita à “regressão”, no caso clínico de “Dora”, escrito em 1901, embora só publicado quatro anos depois (1905e). Ali ela aparece relacionada com um exame das perversões (Edição Standard Brasileira, Vol. VII, [1]-[2], IMAGO Editora, 1972). O que se sugere é que, quando algum incidente fortuito na vida posterior inibe o desenvolvimento normal da sexualidade, a conseqüência pode ser o ressurgimento da sexualidade infantil “indiferenciada”. Freud apresentou então, pela primeira vez, uma de suas analogias favoritas: “Uma corrente de água que encontra obstáculos no leito do rio fica represada e reverte para velhos canais que antes pareciam fadados a secar”. A mesma hipótese, ilustrada pela mesma analogia, aparece mais de uma vez nos Três Ensaios (ibid., Vol. VII, [1]), mas novamente sem mencionar, na primeira edição dessa obra, o termo “regressão”, embora ele ocorra em vários trechos acrescentados às edições posteriores (por exemplo, ibid., [1], acrescentado em 1915). Essa espécie de regressão já fora identificada nos Três Ensaios como desempenhando um papel não só nas perversões como também nas neuroses (ibid., [1]), até na escolha normal de objeto na puberdade (ibid., [1]).

A princípio, não se percebeu nitidamente que existiam de fato dois tipos de mecanismos diferentes nessa regressão “temporal”. Tanto se poderia tratar simplesmente de um retorno a um objeto libidinal anterior, como de um retorno da própria libido a modos de funcionamento anteriores. Esses dois tipos já se encontram, de fato, implícitos no exame das perversões nos Três Ensaios, onde fica patente que pode haver um retorno tanto a um objetivo sexual anterior como a um objeto sexual anterior. (Essa distinção fica bem clara na Conferência XXII das Conferências Introdutórias (1916-17), Edição Standard Brasileira, Vol. XVI, [1].) Assim como o primeiro desses tipos de regressão temporal é particularmente característico da histeria, o segundo está especialmente associado à neurose obsessiva. Já se haviam fornecido exemplos dessa relação no caso clínico do “Homem dos Ratos” (1909d), ibic., X, [1]-[1]. Mas só se chegou à plena compreensão de sua importância com o advento da hipótese dos pontos de fixação e das organizações pré-genitais no desenvolvimento da libido. Aí foi possível compreender o efeito da frustração como causa da regressão da libido para algum ponto de fixação anterior. Isso se tornou especialmente claro em dois artigos: “Tipos de Desencadeamento da Neurose” (1912c), ibid., Vol. XII, ver em [1], e “A Predisposição à Neurose Obsessiva” (1913i), ibid., Vol. XII, ver em [1]-[2]. Mas já se suspeitava de que um processo semelhante também deveria estar em ação nos distúrbios mais graves, na esquizofrenia e na paranóia, hipótese cuja prova seria encontrada no estudo da autobiografia de Schreber (1911c), ibid., ver em [1].

Se aceitarmos a última definição de Freud para a “defesa” (em Inibição, Sintoma e Angústia, 1926d, ibid., XX, [1]-[2]), como uma “designação geral para todas as técnicas a que o ego recorre nos conflitos que podem levar a uma neurose”, talvez possamos considerar todos esses exemplos de regressão “temporal” como mecanismos de defesa. Isso, porém, dificilmente pode ser dito, salvo em sentido muito indireto, sobre outra manifestação clínica da regressão — a transferência — que foi examinada por Freud em seu artigo técnico “A Dinâmica da Transferência” (1912b), ibid., XII, ver em [1]-[2]. Essa forma especial de regressão temporal foi alvo de alguns outros comentários interessantes em A História do Movimento Psicanalítico (1914d), Edição Standard Brasileira, Vol. XIV, [1]-[2], IMAGO Editora, 1974.

A terceira espécie de regressão de Freud — a regressão “formal” — descrita por ele como ocorrendo “onde os métodos primitivos de expressão e representação tomam o lugar dos métodos habituais” (A Interpretação dos Sonhos, Edição Standard Brasileira, Vol. V, [1], IMAGO Editora, 1972) — foi por ele examinada sobretudo nas Conferências X, XI e XII das Conferências Introdutórias em relação com os sonhos, o simbolismo e a lingüística.

As próprias classificações de Freud dessas várias espécies de regressão não foram uniformes. Na primeira delas, nas Cinco Lições (1910a), Edição Standard Brasileira, Vol. XI, [1], IMAGO Editora, 1970, ele descreveu a regressão “temporal” e a “formal”. No parágrafo incluído em 1914 em A Interpretação dos Sonhos, ibid., Vol. V, [1], ele acrescentou a regressão “topográfica”. Em seu artigo metapsicológico sobre os sonhos (1917d), escrito em 1915, falou (ibid., Vol. XIV, [1]-[2]) de dois tipos de regressão “temporal”, “um afetando o desenvolvimento do ego e outro, o da libido”; e em (ibid., em [1]), referiu-se a uma regressão“topográfica”, diferenciando-a da “já mencionada regressão temporal ou evolutiva”. Por fim, na Conferência XIII das Conferências Introdutórias (1916-1917), Edição Standard Brasileira, Vol. XV, em [1], diferenciou uma regressão “formal” de uma “material”.

Ao considerar essas pequenas variações de terminologia, convém lembrar o comentário final de Freud no parágrafo acrescentado em 1914 à Interpretação dos Sonhos (Edição Standard Brasileira, Vol. V, em [1], IMAGO Editora, 1972), que já citamos mais de uma vez: “Todas essas três espécies de regressão; porém, são no fundo uma só e ocorrem, em geral, simultaneamente; pois a que é mais antiga no tempo é a mais primitiva na forma, e na topografia psíquica situa-se mais próxima da extremidade perceptual”.

 

PARTE II

 

PSICOPATOLOGIA

 

A primeira parte desse projeto continha, mais ou menos a priori, tudo o que se poderia deduzir das hipóteses básicas, modelado e corrigido segundo várias experiências concretas. Esta segunda parte procura inferir na análise dos processos patológicos alguns determinantes adicionais do sistema fundamentado nas hipóteses básicas; uma terceira parte tentará estruturar, a partir das duas anteriores, as características do transcurso normal dos eventos psíquicos.

A. Psicopatologia da Histeria

 

[1] A COMPULSÃO HISTÉRICA

 

Começarei pelo estudo dos fenômenos que ocorrem na histeria, sem que lhe sejam forçosamente peculiares. — O que antes de mais nada chama a atenção de qualquer observador da histeria é o fato de que os pacientes histéricos estão sujeitos a uma compulsão exercida por idéias excessivamente intensas. Assim, por exemplo, uma idéia pode surgir na consciência com freqüência particular, sem que a passagem [dos eventos] a justifique; ou a ativação dessa idéia será acompanhada de conseqüências psíquicas que são inteligíveis. A emergência da idéia excessivamente intensa acarreta conseqüências que, por um lado, não podem ser suprimidas e, por outro, não podem ser compreendidas — descarga de afeto, inervações motoras, impedimentos. A pessoa não fica, de modo algum, alheia ao caráter surpreendente da situação.

As idéias excessivamente intensas também ocorrem normalmente. Elas conferem individualidade ao ego. Não nos surpreendem quando conhecemos seu desenvolvimento genético (educação, experiências) e seus motivos. Estamos acostumados a considerar essas idéias excessivamente intensas como produto de motivos imperiosos e justificáveis. As idéias histéricas excessivamente intensas, ao contrário, surpreendem por sua extravagância; são idéias que não teriam conseqüências em outras pessoas e cuja importância não conseguimos entender. Parecem-nos intrusas, usurpadoras e, conseqüentemente, ridículas.

A compulsão histérica é, portanto, (1) ininteligível, (2) incapaz de resolver-se pela atividade do pensamento, (3) incongruente em sua estrutura.

Existe uma compulsão neurótica simples que pode ser contrastada com a de tipo histérica. Assim, por exemplo, um homem pode ter corrido o risco de cair de uma carruagem e, desde então, ser-lhe impossível viajar dessa maneira. Essa compulsão é (1) inteligível, pois se conhece sua origem e (3) congruente, pois a associação com o perigo justifica a relação entre o viajar de carruagem e o medo. No entanto, não é também passível de ser solucionada pela atividade do pensamento. Esta última característica não pode ser considerada como inteiramente patológica: também as nossas idéias normais excessivamente intensas são, muitas vezes, impossíveis de solucionar. Negar-se-ia à compulsão histérica qualquer caráter patológico, se a experiência nãos nos demonstrasse que, nas pessoas saudáveis, tal compulsão só persiste por um breve espaço de tempo depois de sua ocorrência, desintegrando-se gradativamente. A persistência da compulsão é, pois, patológica e indica uma neurose simples.

Nossa análise mostra agora que a compulsão histérica se resolve imediatamente, é explicada (tornada inteligível). Essas características são, assim,em essência uma. Aprendemos na análise, também, como opera o processo do aparecimento da absurdidade e da incongruidade. O resultado da análise, expressa em termos gerais, apresenta-se como se segue:

Antes da análise, A é uma idéia excessivamente intensa que irrompe na consciência com demasiada freqüência, provocando a cada vez o pranto. A pessoa não sabe por que chora diante de A; acha absurdo, mas não consegue evitar.

Depois da análise, descobriu-se que existe uma idéia B que, com toda a razão, é motivo de pranto, e que com toda a razão se repete freqüentemente enquanto a pessoa não pratica contra ela uma determinada ação psíquica bastante complicada. O efeito de B não é absurdo; é inteligível para a pessoa e pode até ser combatido por ela.

B mantém uma relação particular com A.

Pois houve uma ocorrência que consistiu de B + A. A foi uma circunstância incidental; B foi apropriado para produzir um efeito duradouro. A reprodução desse evento na memória tomou agora uma forma de tipo tal que é como se A tomasse o lugar de B. B tornou-se um substituto, um símbolo de B. Daí a incongruidade: A é acompanhado de conseqüências que não parecem adequadas, que não se enquadram nele.

A formação de símbolos também ocorre normalmente. Um soldado é capaz de se sacrificar por um farrapo multicor preso a um mastro, por que isso se transformou para ele no símbolo de sua pátria, e ninguém considera isso neurótico.

Mas o símbolo histérico porta-se de outra maneira. O cavaleiro que se bate pela luva de sua dama sabe, em primeiro lugar, que a luva deve toda a sua importância à dama; e, em segundo lugar, sua veneração pela luva não o impede, de modo algum, de pensar na dama e de servi-la de outras formas. O histérico, que chora por causa de A, não percebe que isso se deve à associação A—B, sendo que B não desempenha o menor papel em sua vida psíquica. Neste caso, a coisa foi completamente substituída pelo símbolo.

Essa confirmação está certa no sentido mais estrito. Nós [podemos] convencer[-nos] de que, sempre que é evocada, do exterior ou por associação, alguma coisa que de fato deveria catexizar B, em seu lugar aparece A na consciência. A rigor, pode-se deduzir a natureza de B a partir das causas provocadoras que — de maneira marcante — suscitam o aparecimento de A.

Em suma: A é compulsiva e B está recalcada (ao menos da consciência).

A análise levou a esta surpreendente conclusão: para cada compulsão existe um recalque correspondente e, para cada intrusão excessiva na consciência, existe uma amnésia correspondente.

A expressão “excessivamente intensa” aponta para características quantitativas. É plausível supor que o recalcamento tenha o sentido quantitativo de ser despojado de Q, e que a soma dos dois [da compulsão e do recalcamento] seja igual ao normal. Sendo assim, só a distribuição se modificou. Algo foi acrescentado a A, que foi subtraído de B. O processo patológico é um processo de deslocamento, tal como vimos a conhecer nos sonhos — ou seja, um processo primário.

 

[2] A GÊNESE DA COMPULSÃO HISTÉRICA

 

Surgem agora várias perguntas importantes. Em que condições ocorrem semelhante formação simbólica patológica [e] (por outro lado) semelhante recalcamento? Qual a força ativa que intervém? Em que estado se encontram os neurônios da idéia excessivamente intensa e os da idéia recalcada?

Nada se poderia depreender disso e nada mais se poderia construir, se a experiência clínica não nos ensinasse dois fatos. Primeiro, que o recalcamento é invariavelmente aplicado a idéias que despertam no ego um afeto penoso (de desprazer) e segundo, a idéia[s] provenientes da vida sexual.

Já se pode suspeitar que é esse afeto desprazeroso que aciona o recalcamento. De fato, já presumimos a existência de uma defesa primária que consiste na inversão da corrente de pensamento assim que ele se depara com um neurônio cuja catexização libera desprazer. [Cf. em [1] e [2]-[3].] A justificação dessa [hipótese] surgiu de duas experiências: (1) que a catexia desse neurônio certamente não era a que estava sendo procurada quando o processo de pensamento visava, originalmente, estabelecer uma situação de satisfação de y; (2) que, quando uma experiência de dor é terminada por um reflexo, a percepção hostil é substituída por outra [em [1]].

Podemos, porém, convencer-nos de modo mais direto quanto ao papel desempenhado pelo afeto defensivo. Se investigarmos o estado da [idéia] recalcada B, comprovaremos que é fácil encontrá-la e levá-la à consciência. Isso constitui uma surpresa, pois seria perfeitamente possível supor que B estivesse realmente esquecida, que não houvesse restado em y nenhum traço mnêmico de B. Mas não, B é uma imagem mnêmica como outra qualquer; não se extingue. Mas se, como de costume, B for um complexo de catexias, surgirá então uma resistência, extraordinariamente forte e difícil de vencer, contra a atividade de pensamento com B. Podemos imediatamente reconhecer nessa resistência a B a medida de compulsão exercida por A e concluir que a força que recalcou B no passado pode ser aqui vista em ação mais uma vez. Ao mesmo tempo, aprendemos algo mais. Até agora sabia-se apenas que B não podia se tornar consciente; ignorava-se tudo a respeito da relação de B com a catexia de pensamento. Agora aprendemos que a resistência é dirigida contra qualquer pensamento que tenha qualquer relação com B, mesmo que esta [B] já se tenha tornado parcialmente consciente. Assim, em vez de excluída da consciência, pode-se dizer excluída do processo de pensamento.

Existe, portanto, um processo defensivo oriundo do ego catexizado que resulta no recalcamento histérico e, concomitantemente, na compulsão histérica. Nesse sentido, o processo parece diferenciar-se dos processos y primários.

 

[3] A DEFESA PATOLÓGICA

 

Não obstante, ainda estamos longe de uma solução. Como se sabe, o resultado do recalcamento histérico se distingue profundamente do da defesa normal, que se conhece com exatidão. É um dado de observação geral que evitamos pensar em coisas que despertam unicamente desprazer, e o fazemos desviando o pensamento para outras coisas. Se conseguirmos, porém, consoantemente, fazer com que a [idéia] B incompatível surja raramente em nossa consciência, por tê-la mantido tão isolada quanto possível, ainda assim jamais conseguiremos esquecer B a ponto de nenhuma percepção nova reavivar sua lembrança. Ora, tampouco na histeria é possível evitar semelhante reativação; a única diferença consiste no fato de que então, em vez de B, A sempre se torna consciente — isto é, catexizada. É, portanto, a formação simbólica desse tipo estável que constitui a função que ultrapassa a defesa normal.

A explicação mais óbvia para essa função aumentada seria a de atribuí-la à maior intensidade do afeto defensivo. A experiência demonstra, porém, que as lembranças mais penosas, que deveriam necessariamente despertar o maior desprazer (a lembrança do remorso pelas más ações), não podem ser recalcadas e substituídas por símbolos. A existência de uma segunda precondição da defesa patológica [Cf. em [1]] — a sexualidade — também sugere que a explicação deve ser buscada em outra parte. É impossível supor que os afetos sexuais penosos superem tanto em intensidade a todos os demais afetos desprazerosos. Deve haver alguma outra característica das idéias sexuais capaz de explicar como é que só elas ficam sujeitas ao recalcamento.

Cumpre acrescentar aqui ainda outra observação. É evidente que o recalcamento histérico ocorre mediante o auxílio da formação de símbolos, do deslocamento para outros neurônios. Poder-se-ia supor, então, que o enigma reside apenas no mecanismo desse deslocamento e que não há nada a explicar sobre o próprio recalcamento. No entanto, quando chegarmos à análise da neurose obsessiva, por exemplo, veremos que nela existe um recalcamento sem formação de símbolos e, de fato, que o recalque e a substituição estão separados cronologicamente. Por conseguinte, o processo de recalcamento continua sendo o cerne do enigma.

 

[4] A PROTON PSEUDOS [PRIMEIRA MENTIRA] HISTÉRICA

 

Vimos que a compulsão histérica se origina de um tipo peculiar de movimento da Q (formação simbólica), que é provavelmente um processo primário, uma vez que pode ser facilmente demonstrado nos sonhos; [e vimos] que a força ativadora desse processo é a defesa por parte do ego, a qual, no entanto, desempenha aqui mais do que a sua função normal [em [1]]. Precisamos de uma explicação para o fato de que um processo-do-ego possa acarretar conseqüências que estamos acostumados a encontrar somente nos processos primários. Devemos esperar aqui a intervenção de determinantes psíquicos muito especiais. Sabemos da observação clínica que tudo isso ocorre apenas na esfera sexual; de modo que talvez tenhamos que explicar o determinante psíquico especial a partir das características naturais da sexualidade.

Ora, acontece que existe na esfera sexual uma constelação psíquica toda especial que bem poderia ser útil paras nossos fins. Vou ilustrá-la (já o conhecemos empiricamente) com um exemplo.

Emma acha-se dominada, atualmente, pela compulsão de não poder entrar nas lojas sozinha. Como motivo para isso, [apresentou] uma lembrança da época em que tinha doze anos (pouco depois da puberdade). Ela entrou numa loja para comprar algo, viu dois vendedores (de um dos quais ainda se lembra) rindo juntos, e saiu correndo, tomada de uma espécie de afeto de susto. Em relação a isso, terminou recordando que os dois estavam rindo das roupas dela e que um deles a havia agradado sexualmente.

Tanto a relação desses fragmentos [entre si] como o efeito da experiência são ininteligíveis. Se ela se sentiu mal porque suas roupas eram alvo de riso, isso terá sido remediado há muito tempo, desde que passou a se vestir como uma moça [crescida]. Além disso, entrar sozinha ou acompanhada numa loja nada tem a ver com as roupas que ela usa. Que ela não precisa simplesmente de proteção é algo que fica comprovado pelo fato de que, como acontece nos casos de agorafobia, até a companhia de uma criança pequena é suficiente para dar-lhe segurança. Existe ainda o fato, totalmente incongruente, de um dos vendedores tê-la agradado; para isso também não faria diferença estar acompanhada ou não. Por conseguinte, as lembranças despertadas não explicam nem a compulsão nem a determinação do sintoma.

As novas investigações revelaram uma segunda lembrança, que ela nega ter tido em mente na ocasião da Cena I. Também não há nada que a comprove. Aos oito anos de idade, ela esteve numa confeitaria em duas ocasiões para comprar doces, e na primeira o proprietário agarrou-lhe as partes genitais por cima da roupa. Apesar da primeira experiência, ela voltou lá uma segunda vez; depois, parou de ir. Agora, recrimina-se por ter ido a segunda vez, como se com isso tivesse querido provocar a investida. De fato, seu estado de “consciência pesada e opressiva” remonta a essa experiência.

Agora compreendemos a Cena I (vendedores), combinando-a com a Cena II (proprietário da confeitaria). Basta estabelecer um vínculo associativo entre ambas. Ela própria indicou que ele é fornecido pelo riso: o riso dos vendedores a fez lembrar-se do sorriso com que o proprietário da confeitaria acompanhou sua investida.A marcha dos acontecimentos pode ser reconstituída. Na loja, os dois vendedores estavam rindo; esse riso evocou (inconscientemente) a lembrança do proprietário. De fato, a segunda situação tinha ainda outra semelhança [com a primeira]: ela mais uma vez estava sozinha na loja. Juntamente com o dono da confeitaria, lembrou-se de que ele a agarrara por cima da roupa; de que desde então ela alcançara a puberdade. A lembrança despertou o que ela certamente não era capaz na ocasião, uma liberação sexual, que se transformou em angústia. Devido a essa angústia, ela temeu que os vendedores da loja pudessem repetir o atentado e saiu correndo.

Não resta dúvida de que estão aqui misturadas duas espécies de processosƒnƒé e de que a lembrança da Cena II (proprietário da confeitaria) ocorreu num estado muito diferente do da primeira. O que se passou pode ser representado da seguinte maneira [Fig. 16].

 

 

Fig. 16

 

 No desenho as idéias em escuro correspondem às percepções que foram lembradas. O fato de que liberação sexual também penetrou na consciência ficacomprovado pela idéia, de outro modo incompreensível, da atração que ela sentiu pelo vendedor que ria. O resultado — não permanecer sozinha na loja, devido ao risco de atentado — é construído de maneira perfeitamente racional, levando em conta todos os elementos do processo associativo. No entanto, nada do processo (representado embaixo) penetrou na consciência, a não ser o elemento “roupas”; e o pensamento conscientemente operante estabeleceu duas conexões falsas no material à sua disposição (vendedores, riso, roupas, sensação sexual): primeiro, que riam dela por causa da roupa e, segundo, que ela havia ficado sexualmente excitada por um dos vendedores.

Todo o complexo ([círculos] não escurecidos) estava representado na consciência de “roupas”, evidentemente a mais inocente. Aqui houve um recalcamento acompanhado pela formação de símbolos. O fato de o efeito — o sintoma — ser então construído de modo perfeitamente racional [ver acima], sem que o símbolo desempenhasse qualquer papel nele, é, na realidade, uma peculiaridade desse caso.

Poder-se-ia dizer que é muito comum uma associação passar por uma série de vínculos intermediários inconscientes antes de chegar a um que seja consciente, como acontece aqui. Nesse caso, o elemento que penetra na consciência é, provavelmente, o que desperta interesse especial. No nosso exemplo, porém, o que chama atenção é justamente que o elemento que penetra na consciência não é o que desperta interesse (o atentado), mas outro, na qualidade de símbolo (as roupas). Se nos perguntarmos qual seria a causa desse processo patológico interpolado, só poderemos indicar uma — a liberação sexual, da qual também há provas na consciência. Isso está vinculado à lembrança do atentado; mas é altamente digno de nota o fato de ela [a liberação sexual] não se vinculou ao atentado quando esse foi cometido. Temos aqui um caso em que uma lembrança desperta um afeto que não pôde suscitar quando ocorreu como experiência, porque, nesse entretempo, as mudanças [trazidas] pela puberdade tornaram possível uma compreensão diferente do que era lembrado.

Ora, esse caso é típico do recalcamento na histeria. Constatamos invariavelmente que se recalcam lembranças que só se tornaram traumáticas por ação retardada. A causa desse estado de coisas é o retardamento da puberdade em comparação com o resto do desenvolvimento do indivíduo.

 

[5] DETERMINANTES DA PRWTON YEVDOV UST [ERCIN]

 

Embora, em geral, não se dê na vida psíquica a situação de uma lembrança despertar um afeto que não existiu por ocasião da experiência, tal é, no entanto, uma ocorrência muito comum no caso das idéias sexuais, precisamente porque o retardamento da puberdade constitui uma característica geral da organização. Cada indivíduo adolescente porta traços de memória que só podem ser compreendidos com a manifestação de suas próprias sensações sexuais; todo adolescente, portanto, traz dentro de si o germe da histeria. É evidente que terá de haver também outros fatores concomitantes, já que essa tendência universal fica limitada ao pequeno número de pessoas que realmente se tornam histéricas. Ora, a análise indica que o que há de perturbador num trauma sexual é, sem dúvida, a liberação do afeto; e a experiência nos ensina que os histéricos são pessoas das quais se sabe que, em parte, tornaram-se prematuramente excitáveis em sua sexualidade devido à estimulação mecânica e emocional (masturbação), e das quais, em parte, podemos supor que uma liberação sexual prematura está presente na sua disposição inata. Mas o início prematuro da liberação sexual ou a insatisfação prematura da liberação sexual evidentemente se equivalem, de modo que essa condição fica reduzida a um fator quantitativo.

Em que consiste, porém, o significado dessa prematuridade da liberação sexual? Aqui, todo o peso recai sobre a prematuridade, pois não se pode afirmar que a liberação sexual em geral origine o recalcamento; isso converteria o recalque, mais uma vez, num processo de freqüência normal.

 

[6] PERTURBAÇÃO DO PENSAMENTO PELO AFETO

 

Não podemos refutar [o fato] de que a perturbação do processo psíquico normal teria dois determinantes: (1) que a liberação sexual estaria ligada a uma lembrança, e não a uma experiência, (2) que a liberação sexual ocorreria prematuramente. Essas duas ocorrências produziriam uma perturbação que ultrapassa o normal, mas que também está potencialmente presente no normal.

A experiência cotidiana ensina que a geração de afeto inibe de várias maneiras o curso normal do pensamento. Em primeiro lugar, isso se dá no sentido de serem esquecidas muitas vias de pensamento que seriam normalmente levadas em conta — isto é, à semelhança do que ocorre nos sonhos [Ver em [1]]. Assim, por exemplo, ocorreu-me, durante a agitação causada por uma grande angústia, esquecer de fazer uso do telefone que acabara de ser instalado em minha casa. A via recém-estabelecida sucumbia ao estado afetivo: a facilitação — ou seja, o que estava estabelecido desde longa data — levou a melhor. Esse esquecimento envolve o desaparecimento da [capacidade de] seleção, da eficiência e da lógica no decurso [do pensamento], tal como acontece nos sonhos. Em segundo lugar, [o afeto inibe o pensamento] no sentido de que, sem que haja nenhum esquecimento, adotam-se vias que são geralmente evitadas: sobretudo, vias que conduzem à descarga, [tais como] ações [efetuadas] sob a influência do afeto. Em suma, pois, o processo afetivo se aproxima do processo primário não inibido.

Disso se devem extrair várias inferências. Primeiro, que na liberação afetiva se intensifica a própria idéia liberadora; segundo, que a função principal do ego catexizado consiste em evitar novos processos afetivos e em reduzir as antigas facilitações afetivas. Essa posição só pode ser descrita da seguinte maneira. Originalmente, uma catexia perceptual, em sua qualidade de herdeira de uma experiência dolorosa, gerou desprazer; ela [a catexia] foi intensificada pela Q liberada, prosseguindo então até a descarga por vias de passagem que já se encontravam parcialmente pré-facilitadas. Uma vez formado o ego catexizado, a “atenção” para as novas catexias perceptuais desenvolveu-se da forma que conhecemos [em. [1] e [2]] e ela [a atenção] seguiu, com as catexias colaterais, o curso [da quantidade] proveniente da percepção. Desse modo, a liberação de desprazer ficou quantitativamente restrita e seu início serviu, precisamente, de sinal para o ego pôr em ação a defesa normal [em [1]]; assim se evitou o desenvolvimento muito fácil de novas experiências de dor, com todas as suas facilitações. Todavia, quanto mais intensa é a liberação de desprazer, tanto mais penosa é a tarefa para o ego, que, com suas catexias colaterais, afinal só consegue contrabalançar as Qs até determinado limite, estando portanto fadado a permitir a ocorrência de uma passagem primária [de quantidade].

Além disso, quanto maior é a quantidade que se esforça por passar, tanto mais difícil é para o ego a atividade de pensamento, que, segundo tudo indica, consiste no deslocamento experimental de pequenas Qs, [em [1] e [2]]. A “reflexão” é uma atividade do ego que exige tempo e que se torna impossível quando existem grandes Qs no nível do afeto. Eis por que há uma precipitação quando existe afeto, assim como uma seleção de vias semelhantes à que se adota no processo primário.

 

Por conseguinte, cabe ao ego não permitir nenhuma liberação de afeto, pois este, ao mesmo tempo, permite um processo primário. Seu melhor instrumento para esse fim é o mecanismo da atenção. Se uma catexia liberadora de desprazer conseguisse escapar à atenção, o ego chegaria tarde demais para neutralizá-la. Ora, isso é justamente o que acontece no caso da proton pseudos [primeira mentira] histérica. A atenção está [normalmente] concentrada nas percepções, onde geralmente se originam as liberações de desprazer. Aqui, [porém, o que aparece] não é uma percepção, mas uma lembrança, que inesperadamente libera desprazer, e o ego só descobre isso tarde demais. Ele permitiu que houvesse um processo primário porque não esperava que tal acontecesse.

Existem, também, outras ocasiões em que as lembranças liberam desprazer, o que é, sem dúvida, perfeitamente normal no caso das lembranças mais recentes. Quando o trauma (a experiência da dor) ocorre — os primeiros [traumas] escapam totalmente o ego — num momento em que já existe um ego, produz-se de início uma liberação de desprazer, mas o ego também atua simultaneamente, criando catexias colaterais. Quando a catexia se repete, e o desprazer também se repete, mas as facilitações-do-ego igualmente já se acham presentes: a experiência demonstra que a liberação [de desprazer] diminui de intensidade na segunda vez, até que, depois de várias repetições, ela se reduz à intensidade de um sinal aceitável para ao ego. [Cf. em [1], atrás.] Assim, pois, o essencial é que, por ocasião da primeira liberação de desprazer, não ocorra como experiência afetiva primária póstuma; essa [condição] é precisamente o que ocorre quando a lembrança é a primeira a motivar a liberação de desprazer, como no caso da proton pseudos histérica.

Com isso, parece confirmada a importância de um dos determinantes que apresentamos [em [1]] e que foi fornecido pela experiência clínica: o retardamento da puberdade possibilita os processos primários póstumos.

 

 

PARTE III

TENTATIVA DE REPRESENTAR OS PROCESSOS  NORMAIS

 

 

5 out. 95.

 

[1]

Deve ser possível explicar em termos mecânicos [em [1]] o que denominei processos secundários, através do efeito produzido por uma massa de neurônios (o ego) constantemente catexizados sobre outros com catexias variáveis. Começarei por uma tentativa de representação psicológica dos processos dessa espécie.

Se de um lado tenho o ego e, de outro, as percepções — isto é, catexias em  provenientes de  (do mundo externo) —, então terei de encontrar um mecanismo que induza o ego a seguir as percepções e a influir sobre elas. Encontro-o [esse mecanismo] no fato de que, segundo meus pressupostos, toda percepção invariavelmente excita , dando assim origem a indicações de qualidade. Ou, para ser mais exato, excita a consciência (a consciência de uma qualidade) em , e a descarga da excitação de  fornecerá, [como] toda descarga, informações a , o que constitui de fato a indicação de qualidade. Por conseguinte, proponho a sugestão de que seriam essas indicações de qualidade as que interessam a  na percepção. [Cf. em [1].]

Tal seria o mecanismo da atenção psíquica. Acho difícil dar uma explicação mecânica (automática) para a sua origem. Por esse motivo, creioque ela é biologicamente determinada — isto é, que se conservou no curso da evolução psíquica, pois qualquer outro comportamento de y ficou excluído por ser gerador de desprazer. O efeito da atenção psíquica é a catexia dos mesmos neurônios que são os portadores da catexia perceptual. Esse estado tem um protótipo na experiência de satisfação [em [1]], que é tão importante para todo o curso de desenvolvimento, e em suas repetições: estados de anseio que evoluem para estados de desejo e estados de expectativa. Já demonstrei [Parte I, Seções 16-8] que esses estados contêm a justificativa biológica de todo o pensamento. A situação psíquica neles é a seguinte. O anseio implica um estado de tensão no ego e, em conseqüência disso, a representação do objeto amado (a idéia de desejo) é catexizada. A experiência biológica nos ensina que essa idéia não deve ser tão intensamente catexizada a ponto de se confundir com uma percepção, e que sua descarga deve ser adiada até que da idéia partam indicações de qualidade que comprovem que a idéia agora é real, que é uma catexia perceptiva. Quando surge uma percepção idêntica ou semelhante à idéia, ela encontra seus neurônios pré-catexizados pelo desejo — quer dizer, todos ou parte deles já catexizados — na medida em que ambas coincidam. A diferença entre a idéia e a percepção recém-chegada dá origem, então, ao processo de pensamento, que chegará a seu fim quando se tiver encontrado uma via pela qual as catexias perceptuais supérfluas [isto é, indesejadas] se houverem convertido em catexias ideativas. Com isso se terá obtido a identidade. [Cf. em [1]]

A atenção consiste, pois, em estabelecer o estado psíquico de expectativa, inclusive para aquelas percepções que não coincidem, em parte, com as catexias de desejo. Acontece, simplesmente, que se tornou importante mandar catexias ao encontro de todas as percepções, uma vez entre elas podem estar as desejadas. A atenção é biologicamente justificada; basta apenas orientar o ego quanto a qual catexia expectante ele deve estabelecer, e é para esse fim que servem as indicações de qualidade.

 

Talvez seja possível examinar com maior exatidão o processo de adoção de uma atitude psíquica. Suponhamos que, de início, o ego não esteja previamente preparado; e surja uma catexia perceptual, seguida por sua indicação de qualidade. A íntima facilitação entre os dois elementos de informação intensificará a catexia perceptual e produzirá então a catexia dos neurônios perceptuais com atenção. A próxima percepção do mesmo objeto conduzirá (de acordo com a segunda lei de associação) a uma catexia mais plena da mesma percepção, e apenas esta será a percepção que é psiquicamente utilizável.

(Já esta primeira parte da descrição fornece uma tese de suma importância. A catexia perceptual, quando ocorre pela primeira vez, tem pouca intensidade, com escassa Q; na segunda vez, quando existe uma pré-catexia y, ela é quantitativamente maior. Ora, em princípio, o juízo sobre as características quantitativas do objeto não é modificado pela atenção. Conseqüentemente, a Q externa dos objetos não pode ser expressa em y pela Q psíquica. A Q psíquica significa algo bem diferente, que não está representando na realidade, e, efetivamente, a Q externa está expressa em por algo diferente — pela complexidade das catexias [em [1]]. Mas é por esse meio que a Q externa se mantém afastada de y.)

A próxima descrição é ainda mais satisfatória. Como resultado da experiência biológica, a atenção y está constantemente voltada para as indicações de qualidade. Essas ocorrem, pois, em neurônios pré-catexizados e com quantidade suficientemente grande. As informações da qualidade, assim intensificadas, intensificam por sua vez, graças à sua facilitação, as catexias perceptivas; e o ego aprende a fazer com que suas catexias de atenção sigam o curso desse movimento associativo ao passarem da indicação de qualidade para a percepção. Com isso ele [o ego] é levado a catexizar precisamente as percepções corretas ou a seu meio. Com efeito, se admitirmos que é a mesma Q procedente do ego que percorre a facilitação entre a indicação de qualidade e a percepção, teremos realmente encontrado uma explicação mecânica (automática) para a catexia da atenção [em [1]]. Desse modo, a atenção abandona as indicações de qualidade para dirigir-se aos neurônios perceptivos, agora hipercatexizados [em [1]].

Suponhamos que, por um motivo qualquer, o mecanismo da atenção falhe; nesse caso, não se produzirá a catexia y dos neurônios perceptivos, ea Q que os atingiu se transmitirá (de maneira puramente associativa) na direção das melhores facilitações, na medida em que o permitam as relações entre as resistências e a quantidade da catexia perceptiva. [Cf. em [1].] Provavelmente, essa passagem [de quantidade] não tardaria a chegar a seu fim, já que Q se divide e logo se reduz, em algum neurônio mais próximo, a um nível demasiadamente baixo para seguir adiante. A passagem da quantidade perceptiva, em certas circunstâncias, subseqüentemente pode excitar a atenção, ou de novo, não pode. Nesse caso ele termina não absorvido na catexia de algum neurônio vizinho, de cujo destino nada sabemos. Tal é a passagem da percepção sem atenção, como deve acontecer inúmeras vezes por dia. Como demonstrará a análise do processo da atenção, a passagem não pode ir muito longe, de onde se deduz que a quantidade perceptiva é pequena.

Em compensação, se um [neurônio] perceptivo recebeu sua catexia da atenção, pode acontecer uma série de coisas, entre as quais se devem ressaltar duas situações — a do pensamento comum e a do pensamento meramente observador. Este último caso parece o mais simples; corresponde mais ou menos ao estado do investigador que fez uma percepção e pergunta a si mesmo: o que significa isso? aonde leva? Então procede da seguinte forma. (Para maior simplicidade, porém, agora terei que substituir a catexia da percepção complexa pela de um único neurônio.) O neurônio perceptivo está hipercatexizado; a quantidade composta de Q e Q flui na direção das melhores facilitações e, de acordo com a resistência e a quantidade, transporá algumas barreiras e catexizará novos neurônios associados; outras barreiras serão superadas, porque a fração [de quantidade] que incide sobre eles é inferior ao limiar. Seguramente, agora serão catexizados neurônios mais numerosos e mais remotos do que no caso de um mero processo associativo destituído de atenção. Também aqui, a corrente acabará desembocando em determinadas catexiastermi nais ou numa só. O resultado da atenção será que, em vez de percepção, aparecerão uma ou várias catexias mnêmicas (ligadas por associação ao neurônio inicial).

Para maior simplicidade, suponhamos que se trate de uma única imagem mnêmica. Se esta pudesse ser novamente catexizada (com atenção) a partir de y, o jogo se repetiria: a Q tornaria a fluir mais uma vez e catexizaria (despertaria) uma nova imagem mnêmica, recorrendo para isso à via de melhor facilitação. Ora, o propósito do pensamento observador é, evidentemente, o de se familiarizar ao máximo com as vias que partem da percepção; pois, desse modo, ele poderá realmente esgotar o conhecimento do objeto perceptivo. Note-se que a forma de pensamento aqui descrita leva à cognição. Por esse motivo, precisa-se, mais uma vez, não só de uma catexia y para as imagens mnêmicas já alcançadas, como também de um mecanismo que leve essa catexia aos lugares certos. De que outra maneira os neurônios y do ego poderiam saber para onde a catexia deve ser dirigida? Um mecanismo de atenção como o que acabamos de descrever mais acima, porém, torna a pressupor indicações de qualidade. Será que elas surgem durante a passagem associativa [de quantidade]? Segundo os nossos pressupostos, normalmente, não como regra. Mas podem ser obtidas por meio de um novo dispositivo que passaremos a descrever. Em geral, as indicações de qualidade emanam apenas da percepção; portanto, trata-se de obter uma percepção da passagem de Q. Se à passagem de Q estivesse vinculada uma descarga (além da [mera] circulação), ela [a descarga] forneceria, como qualquer movimento, uma informação sobre o movimento [em [1]]. Afinal de contas, as próprias indicações de qualidades são apenas informações da descarga [em [1]] (talvez mais adiante [possamos saber] de que tipo). Agora, pode acontecer que, durante a passagem de Q também fique catexizado um neurônio motor, que então descarregará Q, fornecendo uma indicação de qualidade. O problema, porém, é receber descargas desse gênero de todas as catexias. Nem todas são motoras, de modo que deverão, para esse fim, ser colocadas numa facilitação segura com os neurônios motores.

Essa finalidade é preenchida pelas associações da fala, que consistem na vinculação de neurônios y com neurônios utilizados nasrepresentações sonoras, que, por sua vez, se encontram intimamente associadas com as imagens verbais motoras. Essas associações têm sobre as demais a vantagem de possuir outras duas características: são limitadas (escassas em número) e exclusivas. Em todo caso, a excitação passa da imagem-sonora para a imagem-verbal e desta para a descarga. Por conseguinte, quando as imagens mnêmicas são de tal natureza que uma corrente parcial pode partir delas para imagens-sonoras e para as imagens-verbais, a catexia das imagens mnêmicas é acompanhada por informações de descarga, o que constitui uma indicação de qualidade e também, conseqüentemente, indicação de que a lembrança é consciente. Ora, quando o ego pré-catexiza essas imagens-verbais, como antes pré-catexizou as imagens da descarga de  [Ver em [1]], com isso terá criado para si mesmo o mecanismo que lhe permite dirigir a catexia de y para as lembranças que emergem durante a passagem da Q. Eis aqui o pensamento consciente, observador. [1]

Além de possibilitar o conhecimento, as associações da fala efetuam ainda outra coisa de suma importância. As facilitações entre os neurônios y constituem, como sabemos, a memória, ou seja, a representação de todas as influências que y vivenciou a partir do mundo externo. Agora observamos que o próprio ego também catexiza os neurônios y e aciona passagems [de quantidade] que certamente devem deixar traços na forma de facilitações. Mas y não dispõe de nenhum meio para discernir entre esses resultados dos processos de pensamento e os resultados dos processos perceptivos. Talvez seja possível conhecer e reproduzir os processos perceptivos pela sua associação com as descargas de ; mas das facilitações estabelecidas pelo pensamento resta apenas o seu efeito, e não uma lembrança. Uma mesma facilitação de pensamento pode ter sido gerada por um único processo intenso ou por dez processos de menor força. As indicações de descarga verbal são, porém, as que vêm agora compensar essa lacuna; pois equiparam os processos de pensamento com os processos perceptivos, conferindo-lhe realidade e possibilitando a sua lembrança. [Cf. em [1], mas também em [1], adiante.]

Também merece ser considerado o desenvolvimento biológico dessa [espécie de] associação extremamente importante. A inervação da fala é, a princípio, uma via de descarga para y, que atua como válvula de segurança, servindo para regular as oscilações de Q; é uma parte da via que conduz à mudança interna, que representa a única descarga enquanto não se redescobre a ação específica. [Para tudo isso, cf. em [1]-[2].] Essa via adquire uma função secundária ao atrair a atenção da pessoa que auxilia (geralmente o próprio objeto de desejo) para o estado de anseio e aflição da criança; e, desde então, passa a servir ao propósito da comunicação, ficando assim incluída na ação específica. No início da função judicativa, quando as percepções despertam interesse devido a sua possível conexão com o objeto desejado, e seus complexos (como já foi demonstrado [em [1] e [2]] são decompostos num componente não assimilável (a coisa) e num componente conhecido do ego através de sua própria experiência (atributos, atividade) — o que chamamos de compreensão —, dois vínculos emergem [nesse ponto] em relação com o enunciado da fala. Em primeiro lugar, existem objetos — percepções — que nos fazem gritar, porque provocam dor; é imensamente importante que essa associação de um som (que também desperta imagens motoras da própria pessoa) com uma [imagem] perceptiva, que em si já é complexa, ressalta o caráter hostil daquele objeto e serve para dirigir a atenção para a [imagem] perceptiva. Numa situação em que a dor impede o recebimento de boas indicações da qualidade do objeto, a informação sobre o grito do próprio sujeito serve para caracterizar as lembranças que provocam desprazer e para convertê-las em objetos da atenção: está criadaa primeira categoria de lembranças conscientes. Pouco falta agora para inventar a fala. Existem outros objetos que emitem constantemente certos sons — isto é, em cujo complexo perceptivo o som desempenha um papel. Em virtude da tendência à imitação, que surge durante o processo judicativo [ver [1]], é possível encontrar informações de movimento que correspondam a essa imagem sonora. Também essa espécie de lembranças pode agora tornar-se consciente. Só falta associar os sons intencionais com as percepções; feito isso, as lembranças de quando se observam indicações de descarga sonora tornam-se conscientes se como as percepções e podem ser catexizadas a partir de y.

Assim, verificamos ser característico do processo de pensamento cognitivo que, durante sua ocorrência, a atenção seja desde o início dirigida para as indicações de descarga de pensamento, para as indicações da fala. Efetivamente, como se sabe, o chamado pensamento consciente se efetua com o acompanhamento de um leve dispêndio motor.

O processo de seguir a passagem de Q através de uma associação pode, pois, ser continuado indefinidamente, em geral até chegar a elementos associativos terminais “completamente conhecidos”. A determinação dessa via e de seus pontos terminais abarca, então, a “cognição” do que talvez seja uma nova percepção.

Gostaríamos, porém, de ter alguma informação quantitativa sobre esse processo de pensamento cognitivo. Aqui, efetivamente, a percepção está hipercatexizada, em comparação com o processo associativo simples. O próprio processo consiste num deslocamento de Q regulado pela associação com as indicações de qualidade; em cada ponto de parada, a catexia y se renova e, finalmente, há uma descarga a partir dos neurônios motores da via da fala. Agora caber perguntar se esse processo significa uma perda considerável de Q para o ego ou se o dispêndio de pensamento é relativamente pequeno. A resposta a essa pergunta nos é sugerida pelo fato de que a corrente de inervações da fala durante o pensamento é evidentemente mínima. Nós não falamos realmente, nem tampouco nos movemos realmente, quando imaginamos uma imagem motora em movimento. Mas a diferença entre a idéia e o movimento é apenas quantitativa, como nos ensinaram as experiências de leitura do pensamento. Quando pensamos com intensidade, não há dúvida de que chegamos a falar em voz alta. Mas, como é possível promover descargas tão pequenas, se, afinal de contas, as Qs pequenas não conseguem fluir e as grandes se estabilizam en masse através dos neurônios motores? [1]

 

É provável que as quantidades afetadas pelo deslocamento no processo de pensamento também não sejam grandes. Em primeiro lugar, o gasto de grandes Qs significa uma perda para o ego, que deve ser limitada na medida do possível, pois as Qs estão destinadas à exigente ação específica [Cf. [1] e [2]]. Em segundo lugar, uma Q grande percorreria simultaneamente várias vias associativas e não deixaria tempo para a catexização do pensamento, além de causar grande dispêndio. Não resta dúvida, pois, de que a corrente de Q durante o processo de pensamento deve ser pequena. Apesar disso, segundo nossa hipótese, a percepção e a memória durante o processo de pensamento devem estar mais intensamente hipercatexizadas do que durante a percepção simples. Ademais, existem, naturalmente, diferentes graus de intensidade da atenção que só podemos interpretar como diferentes aumentos das Qs catexizantes. Nesse caso, o processo da vigilância observadora [das associações] seria precisamente tanto mais difícil quanto mais intensa fosse a atenção — o que seria tão impraticável que nem sequer podemos admiti-lo.

Temos aqui dois requisitos aparentemente contraditórios: catexia forte e deslocamento fraco. Se quisermos conciliá-los, chegaremos à hipótese do que é, por assim dizer, um estado ligado do neurônio, que, embora na presença de uma catexia elevada, permite apenas uma corrente pequena. Essa hipótese se torna mais plausível ao considerarmos que a corrente de um neurônio é obviamente influenciada pelas catexias que o rodeiam. Ora, o próprio ego é uma massa de neurônios dessa espécie, que se agarram a suas catexias — isto é, que estão em estado ligado, e isso, com toda a certeza, só pode suceder como resultado de seus efeitos mútuos. Podemos, portanto, imaginar que um [neurônio] perceptivo, catexizado com atenção, seja, por assim dizer, [absorvido] temporariamente pelo ego e fique então sujeito à mesma ligação de sua Q, tal como todos os neurônios do ego. Se for mais intensamente catexizado, a quantidade de corrente pode em conseqüência ser diminuída, e não necessariamente aumentada. Talvez possamos supor que, graças a essa ligação, precisamente a Q externa permaneça livre para fluir, enquanto a catexia da atenção permanece ligada; relação essa que não precisa, naturalmente, ser invariável.

Assim, os processos de pensamento seriam mecanicamente caracterizados por esse estado de ligação, que combina uma catexia elevada com uma corrente pequena. É possível conceber outros processos em que a corrente seja proporcional à catexia — os processos com descarga desinibida.

Espero que a hipótese de um estado ligado dessa espécie demonstre ser mecanicamente sustentável. Gostaria de ilustrar um pouco as conseqüências psicológicas dessa hipótese. A princípio, a hipótese parece exposta a uma contradição interna. Se o estado [de ligação] consiste em que, na presença de uma catexia dessa espécie, só restem pequenas Qs para efetuar os deslocamentos, como pode ele [esse estado de ligação] atrair novos neurônios — isto é, fazer com que grandes Qs cheguem até eles? E, reduzindo as mesmas dificuldades a termos mais simples, como pode um ego assim constituído ser capaz de se desenvolver de todo?

Assim, vemo-nos inesperadamente diante do mais obscuro problema: a origem do “ego” — ou seja, de um complexo de neurônios que se mantêm presos a suas catexias, um complexo, por conseguinte, que permanece por breves períodos em nível constante [Ver em [1]]. O exame genético será muito elucidativo. O ego consiste, originariamente, de neurônios nucleares, que recebem Q endógena pelas vias de condução [em [1]] e a descarregam ao longo do curso da alteração interna [em [1]]. A experiência da satisfação produz uma associação entre esse núcleo e uma imagem perceptiva (a imagem de desejo) e a informação de um movimento ([informação da] porção reflexa da ação específica) [em [1]]. A educação e o desenvolvimento desse ego primitivo se efetuam num estado repetitivo de desejo, ou seja, em estados de expectativa [em [1]]. Ele [o ego] primeiro aprende que não deve catexizar as imagens motoras, de modo que resulte a descarga, enquanto não se cumprirem determinadas condições advindas da percepção. Aprende, ademais, que não deve catexizar a idéia desejante acima de certa medida, caso contrário estaria enganando a si mesmo de maneira alucinatória [em [1]]. Se, porém, respeita essas duas restrições e orienta sua atenção para as novas percepções, apresenta uma perspectiva de obter a satisfação que procura. É evidente, portanto, que as barreiras que impedem o ego decatexizar a imagem desejante e a imagem motora acima de certa medida são a causa de uma acumulação de Q no ego e o impelem, talvez, a transferir a sua Q, dentro de certos limites, para os neurônios que se encontram a seu alcance.

Os neurônios nucleares hipercatexizados incidem, em última instância, sobre as vias de condução provenientes do interior [do corpo] que se tornaram permeáveis em virtude de sua contínua relação com Q [em [1]]; e, sendo uma continuação dessas [vias de condução], [os neurônios nucleares] também devem ficar repletos de Q. A Q que neles exista escoará por uma distância proporcional às resistências que se oponham a seu curso, até que as resistências seguintes sejam maiores do que a fração de Q disponível para a corrente. A partir daí, a totalidade da massa catexizada está em equilíbrio, mantida, de um lado, pelas duas barreiras contra a motilidade e o desejo, de outro, pelas resistências dos neurônios mais distantes e, na direção interna, pela pressão constante das vias de condução. No interior dessa estrutura do ego, a catexia não será, de modo algum, igual em todos os pontos; precisa apenas ser proporcionalmente igual — isto é, em relação às facilitações. [Cf. em [1].]

Quando o nível de catexia aumenta no núcleo do ego, a amplitude deste último pode expandir seu âmbito; quando [o nível] diminui, o ego se constrange concentricamente. Em um nível determinado e em determinada amplitude do ego, não há nada a impedir a possibilidade de deslocamento [da catexia] dentro da área catexizada.

Resta apenas averiguar a origem das duas barreiras que garantem o nível constante do ego e, sobretudo, a da barreira contra as imagens motoras, que impede a descarga. Aqui nos deparamos com um ponto decisivo para a nossa concepção de toda a organização. A única coisa que se pode dizer é que quando ainda não existia essa barreira e quando, junto com desejo, ocorria também a descarga motora, o prazer esperado nunca aparecia e a liberação contínua de estímulos endógenos terminava por causar desprazer. Só essa ameaça de desprazer, que ficou vinculada à descarga prematura, pode representar a barreira em questão. No curso posterior do desenvolvimento, a facilitação assumiu uma parte dessa tarefa. Mas ainda persiste o fato de que a Q no ego não catexiza as imagens motoras imediatamente, porque a conseqüência seria uma liberação de desprazer.

Tudo o que chamo de aquisição biológica do sistema nervoso é, na minha opinião, representado por uma ameaça de desprazer dessa espécie, cujo efeito consiste no fato de não serem catexizados os neurônios que levam à liberação do desprazer. Isso constitui a defesa primária [em [1]], conseqüência compreensível da tendência básica do sistema nervoso [em [1]]. O desprazer permanece como o único meio de educação. Confesso, porém, que não sei explicar como a defesa primária, a não-catexização devido a uma ameaça de desprazer, pode ser representada mecanicamente.

Daqui por diante me arriscarei a deixar sem resposta a questão de descobrir uma mecânica para tais regras biológicas; ficarei contente se conseguir permanecer fiel a uma descrição claramente comprovável do curso do desenvolvimento. Uma segunda regra biológica, abstraída do processo de expectativa [Ver em [1]], deve indubitavelmente ser a de que a atenção precisa ser dirigida para indicações de qualidade, porque estas pertencem a percepções que podem levar à satisfação, e de que a pessoa então se deixe guiar pela indicação de qualidade até a percepção recém-surgida. Em suma, o mecanismo da atenção deve sua origem, com certeza, a uma regra biológica dessa natureza; ele [esse mecanismo] regulará o deslocamento das catexias do ego.

Agora se poderia objetar que tal mecanismo, atuando com o auxílio das indicações de qualidade, é rudimentar. O ego poderia ter aprendido biologicamente a catexizar por si só a esfera perceptiva nos estados de expectativa, em vez de apenas esperar que as indicações de qualidade o induzam a essa catexização. Há, porém, dois pontos a ressaltar em justificativa do mecanismo da atenção. (1) O setor das indicações de descarga proveniente de  é evidentemente menor e compreende menos neurônios do que o setor das percepções — quer dizer, de todo o pallium de  que se relacione com os órgãos sensoriais [Cf. em [1]]; o ego, portanto, poupa um gasto extraordinariamente grande ao manter catexizadas as indicações de descarga em lugar das percepções. E (2) as indicações de descarga ou as indicações da realidade, destinadas a servir precisamente à distinção entre as catexias de percepções reais e as catexias de desejo. Vemos, pois, que sempre consiste na catexização que o ego faz dos neurônios em que já apareceu uma catexia.

Para o ego, portanto, a regra biológica da atenção é a seguinte: Quando aparece uma indicação da realidade, aí então a catexia perceptiva que existe simultaneamente deve ser hipercatexizada.

Essa é a segunda regra biológica. A primeira foi a da defesa primária.

 

[2]

Do ponto a que chegamos até aqui, podemos também deduzir algumas sugestões gerais para a explicação mecânica [dos processos psíquicos] — como, por exemplo, a primeira que mencionamos, no sentido de que a quantidade externa não pode ser representada por Q, isto é, pela quantidade psíquica [em [1]]. Pela descrição do ego e de suas oscilações [em [1]], conclui-se que tampouco o nível [de sua catexia] tem relação com o mundo externo, ou seja, que sua redução ou elevação gerais não modificam (normalmente) a imagem do mundo. Uma vez que essa imagem do mundo externo se baseia em facilitações, isso significa que as oscilações gerais do nível não alteram essas facilitações. Já mencionamos também um segundo princípio: a saber, o de que as quantidades pequenas podem ser deslocadas com mais facilidade quando o nível [de catexia] está alto do que quando está baixo [Ver em [1]]. Eis aí alguns pontos que devem ser levados em consideração ao se buscarem as características do movimento neuronal, que ainda nos é amplamente desconhecido. [1]

Voltemos agora à descrição do processo de pensamento observador ou cognitivo [em [1]], que é distinto do processo de expectativa pelo fato de que [a princípio] as percepções não incidem sobre as catexias de desejo. Nesse caso, são as primeiras indicações da realidade que dirigem a atenção do ego para a região perceptiva que terá de ser catexizada. A passagem da associação de Q que [as percepções] trazem consigo ocorre por neurônios pré-catexizados, e a Q, que está em deslocamento, pode tornar de novo a fluir a cada vez. Durante essa passagem [da associação] geram-se as indicações de qualidade [da fala], em conseqüência das quais a passagem da associação se torna consciente e passível de ser reproduzida.

Aqui se poderia questionar, mais uma vez, a utilidade das indicações de qualidade, [argumentando que] a única coisa que elas fazem é induzir o ego a enviar uma catexia para o ponto em que ela surge na passagem [da associação]. Elas [as indicações de qualidade] não fornecem, porém, essa Q catexizante — no máximo, apenas contribuem para tanto. Mas, sendoassim, o próprio ego pode, sem essa ajuda, fazer com que a sua catexia percorra a passagem da Q.

Não resta dúvida de que assim é, mas nem por isso a consideração das indicações de qualidade se torna redundante. Pois cabe frisar que a regra biológica da atenção enunciada acima é abstraída da percepção [Ver em [1]] e que, a princípio, só se aplica às indicações de qualidade. Também as indicações de descarga por meio da fala são, de certo modo, indicações da realidade — mas da realidade do pensamento, e não da realidade externa, e de modo algum se pôde impor para essas indicações da realidade do pensamento uma regra biológica como a que estamos considerando, já que sua violação não acarretaria nenhuma ameaça constante de desprazer. O desprazer produzido ao se negligenciar a cognição não é tão flagrante como o que advém de ignorar o mundo externo, embora, no fundo, eles sejam o mesmo. Assim, existe realmente também um processo de pensamento observador em que as indicações de qualidade nunca são evocadas, ou o são apenas esporadicamente, e que se torna possível pelo fato de que o ego segue a passagem [da associação] automaticamente com suas catexias. Esse processo de pensamento é, aliás, sem dúvida o mais freqüente, sem ser anormal; é o nosso pensamento do tipo comum, inconsciente, com intrusões ocasionais na consciência — o que é conhecido pelo nome de pensamento consciente com vínculos intermediários inconscientes, que podem, porém, ser conscientizados. [Cf. em [1].]

 

Apesar disso, o valor das indicações de qualidade para o pensamento é indiscutível. Em primeiro lugar, efetivamente, as indicações de qualidade despertadas intensificam as catexias na passagem [da associação] e asseguram a atenção automática que — embora não saibamos como — está evidentemente vinculada à emergência das catexias. Ademais (o que parece ser mais importante), a atenção dirigida para as indicações de qualidade assegura a imparcialidade da passagem [da associação]. Pois é muito difícil para o ego colocar-se na situação de mera “investigação”. O ego quase sempre tem catexias intencionais ou de desejo, cuja presença durante a investigação, como veremos [em [1]], influencia a passagem da associação, produzindo assim um falso conhecimento das percepções. Ora, não existe melhor proteção contra essa falsificação do pensamento do que a de uma Q normalmente deslocável que seja dirigida para o [? pelo] ego até uma região incapaz de manifestar um desvio semelhante na passagem [da associação]. Só existe um expediente dessa espécie — se, a saber, a atenção se dirige para as indicações de qualidade, que não se equivalem a idéias intencionais, cuja catexia, pelo contrário, acentua ainda mais a passagem da associação, ao fazer novas contribuições para a quantidade da catexia.

Portanto, o pensamento que é acompanhado pela catexia das indicações de realidade do pensamento ou das indicações da fala representa a forma mais elevada e segura do processo de pensamento cognitivo.

Em vista da indubitável utilidade do aparecimento de indicações de pensamento, podemos presumir a existência de dispositivos destinados a assegurá-la. Com efeito, as indicações de pensamento não são geradas espontaneamente, sem a participação de , como indicações da realidade. Aqui a observação demonstra que esses dispositivos não se aplicam a todos os processos de pensamento da mesma forma que ao pensamento investigativo. A condição necessária para despertar de todo as indicações de pensamento é, naturalmente, que elas sejam catexizadas pela atenção; essas indicações surgem, nesse caso, em virtude da lei segundo a qual a condução é favorecida entre dois neurônios ligados e simultaneamente catexizados [em [1]]. No entanto, a atração produzida pela pré-catexia das indicaçõesde pensamento só tem até certo ponto força suficiente para lutar contra outras influências. Assim, por exemplo, cada outra catexia perto da passagem [da associação] (catexias intencionais, catexias afetivas) competirão com ela, tornando inconsciente a passagem [da associação]. Um efeito semelhante (como confirma a experiência) será produzido quando as Qs em trânsito são de magnitude considerável, pois elas aumentam a corrente, acelerando com isso toda a passagem [de associação]. A afirmação comum de que “a coisa se passou tão depressa que nem deu tempo de perceber” é indubitavelmente certa. E é universalmente sabido que os afetos podem interferir no surgimento das indicações de pensamento.

Com isso chegamos a uma nova tese sobre a representação mecânica dos processos psíquicos: a saber, de que a passagem [da associação], que não é alterada pelo nível [da catexia] pode ser influenciada pela própria magnitude da Q fluente. De modo geral, uma Q grande segue, na rede de facilitações, vias diferentes das tomadas por uma [Q] pequena. Acho que não será difícil ilustrar essa circunstância:

Para cada barreira há um valor-limiar abaixo do qual nenhuma Q será levada em conta — muito menos, portanto, uma fração dela. Uma Q tão mínima assim ainda se dividirá [em [1]] por outras duas vias para cuja facilitação Q seja suficiente. Se a Q aumentar nesse momento, a primeira via será levada em conta, facilitando a passagem das frações correspondentes; e, então, talvez as catexias do lado oposto ao que é agora uma barreira transponível também consigam se fazer sentir. Ainda existe outro fator capaz de adquirir importância. Talvez possamos presumir que nem todas as vias de um neurônio são igualmente receptivas a Q, e podemos descrever essa diferença como a largura da via. A largura da via é em si mesma independente da resistência, que pode, efetivamente, ser alterada pelas Qs em curso, enquanto a largura da via permanece constante. Se supusermos que, ao aumentar a Q, abre-se uma via capaz de fazer valer sua largura, perceberemos a possibilidade de que a passagem de Q seja fundamentalmente alterada por um aumento da Q em fluxo. A experiência cotidiana parece corroborar expressamente essa conclusão.

Assim, o aparecimento das indicações de pensamento parece estar subordinado à passagem de pequenas Qs. Com isso não pretendo afirmar que qualquer outro tipo de passagem [de Q] deva ficar inconsciente, pois oaparecimento das indicações da fala não é o único método para despertar a consciência.

Como podemos, então, dar uma idéia clara do tipo de pensamento que se torna intermitentemente consciente, com súbitas intrusões na consciência [em [1]]. Afinal de contas, nosso pensamento erradio [não-intencional] comum, embora acompanhado de pré-catexia e de atenção automática, não dá maior importância às indicações de pensamento. Não ficou biologicamente demonstrado que elas sejam imprescindíveis para o processo. Apesar disso, costumam manifestar-se (1) quando a passagem regular [de quantidade] chega a um término ou depara com um obstáculo, e (2) quando [a passagem] suscita uma idéia que, em virtude de outros motivos, evoca indicações de qualidade — isto é, a consciência. A essa altura já se pode interromper a nossa exposição.

 

[3]

Existem, evidentemente, outras formas do processo de pensamento que não visam ao fim desinteressado da cognição, mas a outro, de utilidade prática. O estado de expectativa, que foi o ponto de partida de todo o pensamento [Ver em [1]], é um exemplo desse segundo tipo de pensamento. Nele se retém firmemente uma catexia de desejo, enquanto uma segunda catexia, perceptual, se manifesta e é acompanhada pela atenção. Nesse caso, porém, a intenção não consiste em descobrir aonde conduzirá em geral [essa catexia perceptual], e sim em averiguar por que vias ela conduzirá à ativação da catexia de desejo que ficou, nesse meio tempo, firmemente retida. Esse tipo de pensamento — biologicamente, o primeiro — pode ser facilmente representado segundo nossas premissas.

Digamos que V + seja a representação de desejo que se mantém especialmente catexizada, e W, a percepção que terá de ser seguida. O resultado, então, da catexia W com atenção consistirá, antes de mais nada, em que a Q [quantidade pertencente ao sistema de neurônios  (em [1])] flua na direção do neurônio a, o mais facilitado; a partir dali ela prosseguirá, mais uma vez, em direção à melhor facilitação, e assim por diante. Essa tendência, porém, será interrompida pela presença de catexias colaterais. Supondo que, se de a partirem três vias para b, c e d (na ordem respectiva de [qualidade de] facilitação) e se d estiver situado na proximidade da catexia de desejo + V, o resultado bem pode ser que a Q, apesar das facilitações, não flua para c e b, mas sim para d e, dele, para + V; revelando-se assim que a via procurada é W—a —d—+V. Vemos aqui em ação o princípio, que já reconhecemos há muito tempo [em [1]], de que a catexia pode desviar a facilitação e assim agir contra ela e que, conseqüentemente, uma catexia colateral modifica a passagem da Q. Já que as catexias são modificáveis, fica a critério do ego alterar a passagem [da associação] a partir de W na direção de qualquer catexia intencional.

Por “catexia intencional” deve-se entender aqui não uma catexia uniforme, como a que afeta todo um setor no caso da atenção, mas uma catexia que se destaque, que sobressaia ao nível do ego. Provavelmente devamos supor que, nesse tipo de pensamento com catexias intencionais, a Q também flui simultaneamente a partir de + V, de modo que a passagem [da associação] a partir de W pode ser influenciada não só por + V, como também por seus outros pontos de parada. Nessa situação, porém, a via que parte de + V… é conhecida e fixa, mas a via que parte de W… a… precisa ser descoberta. Já que, na realidade, nosso ego sempre alimenta catexias intencionais — amiúde muitas delas ao mesmo tempo — podemos agora compreender a dificuldade do pensamento puramente cognitivo e também a possibilidade, no caso do pensamento prático, de serem alcançadas as mais variadas vias, em momentos diversos, mediante circunstâncias diferentes, por várias pessoas.

No caso do pensamento prático também chegamos a uma apreciação das dificuldades do pensamento, que, sem dúvida, já conhecemos por experiência própria. Voltemos ao nosso exemplo anterior, no qual a corrente de Q fluiria, segundo as facilitações, até b e c, enquanto d estaria marcado por uma ligação estreita com a catexia intencional ou com uma idéia derivada dela. É possível, então, que a influência da facilitação a favor de b…c seja tão grande que supere amplamente a atração por d…+V. Apesar disso, a fim de que a passagem [da associação] se dirigisse até +V, seria necessário que a catexia de + V e de suas idéias derivadas fosse também ainda mais intensificada, talvez, para que a atenção voltada para W [a percepção] se modificasse no sentido de alcançar um maior ou menor grau de ligação e um nível de corrente mais favorável à via d…+ V. Um dispêndio dessa natureza, requerido para superar as facilitações boas, com o objetivo de atrair a Q para vias menos facilitadas, porém mais próximas da catexia intencional, corresponde à dificuldade do pensamento.

O papel desempenhado pelas indicações de qualidade do pensamento prático pouco difere do desempenhado por elas no pensamento cognitivo. As indicações de qualidade asseguram e fixam a passagem [da associação], mas não são absolutamente indispensáveis para ela. Se substituirmos os neurônios e as idéias, respectivamente, por complexos de neurônios e de idéias, estaremos diante de uma complicação do pensamento prático que não será possível descrever e perceberemos que, a essa altura, seria desejável [poder] esclarecer as coisas prontamente. [Cf. em [1], adiante.] Durante essa [passagem de associação], porém, as indicações de qualidade, na maioria, não são completamente despertadas, e é precisamente a geração delas que serve para retardar e complicar a passagem [da associação]. Depois que a passagem de determinada percepção para certas catexias intencionais específicas é repetidamente seguida e se encontra estereotipada por facilitações mnêmicas, em geral não há mais motivo para que sejam despertadas as indicações de qualidade.

O objetivo do pensamento prático é a identidade [Cf.em [1]], o desembocar da catexia Q, deslocada na catexia de desejo, que, nesse meio tempo, ficou firmemente retida. Devemos encarar de um ângulo puramente biológico o fato de que, com isso, cessa toda a necessidade de pensar e se possibilita, em vez dela, a inversão total das imagens motoras que foram tocadas durante a passagem [da quantidade], imagens que, em tais circunstâncias, representam um elemento auxiliar justificável da ação específica [em [1]]. Uma vez que, durante a passagem [da associação], a catexia dessas imagens motoras só se deu por ligação, e uma vez que o processo de pensamento partiu de uma imagem perceptual unicamente seguida na qualidade de imagem mnêmica, todo o processo de pensamento pode tornar-se independente tanto do processo de expectativa como da realidade, progredindo até a identidade sem sofrer a menor modificação. Assim, ele [o processo de pensamento] parte de uma simples idéia e, mesmo depois de completado, não leva à ação; mas terá produzido um conhecimento prático, que poderá ser utilizado numa oportunidade real posterior. Com efeito, é conveniente preparar o processo de pensamento prático antecipadamente para enfrentar as condições da realidade, e não ter que improvisá-lo quando ele se faz necessário.

Agora é chegado o momento de fazer uma ressalva a uma hipótese anteriormente formulada [em [1]], a de que a lembrança dos processos de pensamento só é possível graças às indicações de qualidade, já que de outro modo não se poderiam diferenciar seus vestígios dos que são deixados pelas facilitações perceptivas. Ainda continua válida a afirmação de que uma lembrança real não é propriamente modificável por nenhuma quantidade de pensamento a ela dedicada. Por outro lado, é inegável que pensar sobre um tema deixa traços extraordinariamente importantes para qualquer repensar posterior a respeito dele [cf. em [1] a [1]]; e é muito duvidoso que esse resultado provenha exclusivamente de um pensamento acompanhado por indicações de qualidade e consciência. Devem existir, portanto, facilitações de pensamento, mas sem que se obliterem as vias de associação originais. Mas, como só pode haver facilitações de uma espécie, poder-se-ia pensar que essas duas conclusões são incompatíveis. No entanto, deve ser possível encontrar um modo de conciliá-las e explicá-las no fato de que todas as facilitações de pensamento apenas se originaram depois de alcançado um alto nível [de catexia] e que, provavelmente, também só entram em ação na presença de um nível alto, ao passo que as facilitações associativas, originadas durante as passagens [de quantidade] totais ou primárias, tornam a aparecer quando se estabelecerem condições para uma passagem livre [dequantidade]. Por conseguinte, não se pode negar algum possível efeito das facilitações de pensamento sobre as facilitações associativas.

Assim, chegamos à seguinte caracterização suplementar do movimento neuronal desconhecido:

A memória consiste em facilitações [Ver em [1]]. As facilitações não são modificadas por um aumento do nível [da catexia]; mas existem facilitações que só vigoram em determinado nível. A direção tomada pela passagem [de quantidade] não é alterada, a princípio, pela mudança de nível, embora sem dúvida o seja pela quantidade da corrente [em [1]] e pelas catexias colaterais [em [1]]. Quando o nível é alto, as Qs pequenas são as que se deslocam com mais facilidade [em [1]].

Ao lado do pensamento cognitivo e do pensamento prático, devemos distinguir o pensamento reprodutivo, pensamento rememorativo, que em parte coincide com o prático, sem abrangê-lo por completo.

Esse rememorar é a condição prévia de qualquer exame efetuado pelo pensamento crítico: ele acompanha um dado processo de pensamento em sentido reversivo, retrocedendo, possivelmente, até uma percepção — mais uma vez, em contraste com o pensamento prático, sem objetivo determinado — e, ao assim proceder, recorre em grande escala às indicações de qualidade. Nesse curso recessivo, o processo depara com vínculos intermediários até então inconscientes, que não deixaram atrás de si nenhuma indicação de qualidade, mas cujas indicações de qualidade aparecem posteriormente. Isso implica que a própria passagem do pensamento, sem nenhuma indicação de qualidade, deixa vestígios. De fato, alguns casos dão a impressão de que certos trechos da via só podem ser conjeturados, porque seus pontos inicial e terminal são dados por indicações de qualidade.

De qualquer forma, a reprodutibilidade dos processos de pensamento ultrapassa amplamente as indicações de qualidade; eles podem tornar-se conscientes a posteriori, embora o resultado de uma passagem de pensamento talvez deixe rastros com maior freqüência do que as suas etapas intermediárias. [1]

Durante uma passagem de pensamento, seja ele cognitivo, crítico ou prático, podem ocorrer acontecimentos de toda sorte, que merecem umadescrição. O pensamento pode levar ao desprazer ou à contradição. Examinemos o caso em que o pensamento prático, acompanhado de catexias intencionais, leva à liberação de desprazer. [Cf. atrás, ver em [1]]

A experiência mais corriqueira mostra que esse acontecimento resulta num obstáculo ao processo de pensamento. Como é possível, então, que sequer ocorra? Quando uma lembrança, ao ser catexizada, causa desprazer, isso em geral se deve ao fato de que, no momento em que ocorreu a percepção correspondente, esta causou desprazer — isto é, fez parte de uma experiência de dor [em [1]]. A experiência demonstra também que as percepções dessa espécie atraem um alto grau de atenção, mas que não suscitam tanto suas próprias indicações de qualidade quanto as da reação que [as percepções] desencadeiam: estão associadas com suas próprias manifestações de afeto e de defesa [em [1]]. Se seguirmos as vicissitudes dessas percepções depois [de elas se terem transformado] em imagens mnêmicas, constataremos que suas primeiras repetições continuam a despertar afeto e também desprazer, até que, com o correr do tempo, percam essa capacidade. Simultaneamente, elas passam por outra mudança. A princípio, conservam o caráter das qualidades sensoriais; quando não são mais capazes de afeto, perdem também essas [qualidades sensoriais] e se assemelham progressivamente a outras imagens mnêmicas. Quando uma passagem de pensamento esbarra nesse tipo de imagem mnêmica ainda indomada, geram-se as indicações de qualidade correspondentes — muitas vezes de caráter sensorial — com uma sensação de desprazer e uma tendência à descarga cuja combinação caracteriza determinado afeto, interrompendo-se assim a passagem do pensamento.

Que acontece, então, com as lembranças capazes de afeto até serem dominadas? Não se pode supor que o “tempo”, a repetição enfraqueçam sua capacidade de afeto, já que, normalmente, esse fator [a repetição] até contribui para intensificar a associação. É evidente que algo deve acontecer no [curso do] “tempo”, durante as repetições, que provoque essa subjugação [das lembranças]; e esse algo só pode consistir em que alguma relação como ego ou com as catexias do ego adquire poder sobre as lembranças. Se isso é mais demorado nesses casos do que de hábito, pode-se encontrar uma região especial — na origem dessas lembranças capazes de gerar afeto. Sendo traços de experiências de dor, elas foram catexizadas (de acordo com nossa hipótese sobre a dor [em [1]]) com uma Q excessivamente intensa para a liberação de desprazer e afeto. Por conseguinte, deverão receber do ego uma ligação especialmente considerável e reiterada para contrabalançar essa facilitação para o desprazer.

O fato de que a lembrança exibe característica alucinatória durante tanto tempo também requer explicação, que é importante para nosso conceito da alucinação. Aqui é plausível supor que essa capacidade para a alucinação, além da capacidade para o afeto, sejam indicações de que a catexia do ego ainda não exerceu nenhuma influência sobre a lembrança e de que nesta predominam as linhas primárias de descarga e o processo total ou primário.

Somos obrigados a ver no [estado de] alucinação um refluxo de Q para  e também para  [em [1]]; assim, um neurônio ligado não admite semelhante refluxo. Pode-se ainda perguntar se não será a quantidade excessivamente grande da catexia da lembrança que possibilita esse refluxo. Aqui, porém, convém lembrar que essa Q considerável só está presente na primeira vez, na própria experiência da dor. Ao se produzirem as repetições, estamos lidando apenas com uma catexia de força comum, que apesar disso provoca alucinação e desprazer — só podemos supor que graças a uma facilitação extraordinariamente intensa. Daí se conclui que uma quantidade  de magnitude comum é sem dúvida suficiente para produzir o refluxo e excitar a descarga, com o que adquire maior importância o efeito inibidor da ligação promovida pelo ego.

Ao final, portanto, torna-se possível catexizar a lembrança da dor de tal maneira que ela não possa exibir nenhum refluxo e só possa liberar um desprazer mínimo. Estará, então, domada — e por uma facilitação de pensamento suficientemente forte para exercer um efeito permanente e voltar a produzir uma ação inibidora a cada repetição posterior dessa lembrança. A via que conduz à liberação de desprazer aumentará gradativamente suaresistência, graças à falta de uso, pois as facilitações estão sujeitas a uma decadência gradativa (esquecimento). Somente depois disso é que [a] lembrança será tão domada como outra qualquer.

Parece, no entanto, que esse processo de sujeição da lembrança deixa um efeito permanente na passagem do pensamento. Já que antes ela [a passagem de pensamento] era perturbada a cada vez que se ativava a memória e se suscitava o desprazer, há uma tendência ainda hoje a inibir o curso do pensamento assim que a lembrança subjugada gere seu rastro de desprazer. Essa tendência é muito conveniente para o pensamento prático, pois um vínculo intermediário que leve ao desprazer não pode, de modo algum, achar-se na via procurada até a identidade com a catexia de desejo [em [1]]. Assim, surge uma defesa de pensamento primária, que, no pensamento prático, interpreta a liberação de desprazer como um sinal [em [1]] para abandonar uma determinada via — isto é, para dirigir a catexia da atenção para outro lugar. Aqui, mais uma vez, é o desprazer que dirige a corrente de WW, tal como ocorre na primeira regra biológica [em [1]]. Deve-se perguntar por que essa defesa de pensamento não se dirigiu contra a lembrança quando ainda era capaz de gerar afeto. Cabe presumir, porém, que àquela altura uma objeção foi levantada pela segunda regra biológica, que postula a necessidade de atenção sempre que há uma indicação da realidade [Cf. em [1]], e a memória domada ainda era capaz de impor indicações de qualidade reais. Como vemos, as duas regras se harmonizam para atender a uma finalidade prática.

É interessante notar como o pensamento prático se deixa guiar pela regra biológica da defesa. No [pensamento] teórico (cognitivo e verificador), essa regra já não é observada. Isso é compreensível, pois, no pensamentointencional, trata-se de encontrar alguma via ou outra, e, por conseguinte, as que estão ligadas ao desprazer podem ser excluídas, ao passo que, no [pensamento] teórico, cada via deve ser reconhecida.

 

[4]

Surge aqui nova pergunta de como pode ocorrer um erro no curso do pensamento. Qual é o erro?

Teremos agora que examinar ainda mais minuciosamente o processo de pensamento. O pensamento prático, origem de todos os processos de pensamento, continua sendo, também, o objetivo final deles. Todas as demais formas derivaram dele. É evidentemente vantajoso que a distribuição do pensamento, que se efetua no pensamento prático, possa ocorrer de antemão, sem que seja preciso esperar pelo estado de expectativa [em [1]]: porque (1) isso poupa tempo, que poderá ser aproveitado para a elaboração da ação específica [em [1]] e (2) o estado de expectativa está longe de ser particularmente favorável à passagem do pensamento. O valor da presteza no curto intervalo que separa a percepção da ação se evidencia ao considerarmos a rapidez da mudança das percepções. Se o processo de pensamento persistir por tempo demasiadamente longo, seu produto se tornará inútil nesse ínterim. É por essa razão que “pensamos com antecipação”.

O início dos processos de pensamento derivados [do pensamento prático] é a formação de juízos. O ego que chegou devido a algo que descobre em sua própria organização — graças à mencionada [em [1] e [2]] coincidência parcial entre as catexias perceptuais e as informações provenientes do próprio corpo. Em conseqüência, os complexos perceptuais se dividem em uma parte constante e incompreendida — a coisa — e outra variável, compreensível — os atributos ou movimentos da coisa. Como o complexo-coisa continua reaparecendo em combinação com uma série de complexos-atributo, e estes, por sua vez, em combinação com uma série de complexos-coisa, surge a possibilidade de se elaborarem vias de pensamento que liguem esses dois tipos de complexos ao estado de desejo da coisa, [e de fazê-lo] de uma maneira que seja, por assim dizer, genericamente válida e independente da percepção que é real num dado momento. A atividade de pensamento realizada com juízos, e não com complexos perceptuaisdesordenados, significa, portanto, uma economia considerável. Devemos deixar de lado a questão de saber se a unidade psicológica assim obtida também é representada na passagem do pensamento por uma unidade neuronal e por uma unidade que não seja a de representação da palavra.

O erro já pode ser introduzido durante a criação de um juízo, pois o complexo-coisa e o complexo-movimento nunca são totalmente idênticos, e entre seus elementos divergentes pode haver alguns cuja desconsideração prejudique o resultado na realidade. Esse defeito do pensamento tem origem no empenho — que efetivamente estamos imitando aqui — em substituir o complexo por um único neurônio, empenho este que é exigido justamente pela imensa complexidade [do material]. [Cf. em [1].] Esses são os erros de juízo ou falhas nas premissas.

Outra fonte de erro pode consistir no fato de as percepções da realidade não serem completamente percebidas por se encontrarem fora do campo dos sentidos. Esses são os erros por ignorância, que nenhum ser humano é capaz de evitar. Quando esse determinante não se aplica, a pré-catexia psíquica pode estar defeituosa (pelo fato de o ego ter-se desviado das percepções), daí resultando percepções imprecisas e passagens de pensamento incompletas. Esses são os erros devidos à insuficiência de atenção.

Se agora tomarmos, como material dos processos de pensamento, complexos já julgados e ordenados, em vez de complexos não sofisticados, surgirá a oportunidade de abreviar o próprio processo de pensamento prático. Com efeito, se se demonstrou que o caminho que liga a percepção à identidade com a catexia de desejo passa por uma imagem motora M, será biologicamente garantido que, uma vez alcançada a identidade, essa M ficará completamente inervada. A simultaneidade da percepção com M cria uma intensa facilitação entre ambas, e uma imagem perceptual imediatamente subseqüente evocará M, sem necessidade de nenhuma passagem associativa. Ao fazer essa afirmação, estamos pressupondo, naturalmente, que seja possível estabelecer a qualquer momento um vínculo entre duas catexias. O que foi originariamente uma conexão de pensamento arduamente estabelecida se transforma, depois, graças a uma catexia simultânea total, em poderosa facilitação. A única pergunta que se pode formular a esse respeito é se sempre é efetuada pela via descoberta originariamente, ou se pode seguiruma outra, de conexão mais direta. Esta última alternativa parece mais provável e mais conveniente, pois evita a necessidade de fixar vias de pensamento que, na verdade, devem ficar livres para outras conexões dos mais diversos tipos. Quando a via de pensamento [originária] não é percorrida, tampouco se deve esperar alguma facilitação nela, e o resultado será mais bem fixado por meio de uma conexão mais direta. A propósito, permanece em aberto a questão de qual seria o ponto de origem dessa nova via. O problema ficaria simplificado se as duas catexias, a da percepção e a de M, tivessem associação comum com uma terceira.

O trecho da passagem do pensamento que vai da percepção até a identidade através de uma M também pode ser ressaltado, e levará a um resultado semelhante se, mais tarde, a atenção fixar a M e a colocar em associação com a percepção, que também terá sido fixada mais uma vez. Essa facilitação do pensamento também se restabelecerá quando houver uma ocorrência real.

Nessa [espécie de] atividade de pensamento a possibilidade de erros não é óbvia à primeira vista. Mas não resta dúvida de que se pode enveredar por uma via de pensamento inadequada e enfatizar um movimento antieconômico, uma vez que, afinal de contas, no pensamento prático a escolha depende exclusivamente de experiências reproduzíveis.

Com o crescente número de lembranças surgem constantemente novas vias de deslocamento. Por esse motivo considera-se vantajoso seguir as diferente percepções até o fim, para descobrir, entre todas as vias, as mais favoráveis, e isso é tarefa do pensamento cognitivo, que, indubitavelmente, aparece como uma preparação para [o pensamento] prático, embora na realidade só se tenha desenvolvido tardiamente deste último. Os resultados dessa [tarefa] são, portanto, úteis para mais de uma espécie de catexia de desejo.

Os erros do pensamento cognitivo são auto-evidentes. Constituem-se da parcialidade, quando não se evitam as catexias intencionais, e da incompletude, quando não se percorrem todas as vias possíveis. Está claro queconstitui uma enorme vantagem aqui que as indicações de qualidade sejam evocadas simultaneamente. Quando esses processos de pensamento [as indicações de qualidade] são selecionados e introduzidos no estado de expectativa, a passagem da associação, do primeiro ao último vínculo, pode dar-se pelas indicações de qualidade, em vez de atravessar toda a série de pensamentos, e nem sequer se torna necessário que a série de qualidades coincida completamente com a série de pensamentos.

O desprazer não desempenha nenhum papel no pensamento teórico, e é também possível com respeito às lembranças subjugadas.

Ainda temos de considerar outro tipo de pensamento: o crítico ou examinador. Essa forma de pensamento é motivada quando, apesar de ter obedecido a todas as regras, o processo de expectativa, seguido pela ação específica, não causa satisfação, e sim desprazer. O pensamento crítico, procedendo vagarosamente, sem nenhum objetivo prático, e recorrendo a todas as indicações de qualidade, procura repetir toda a passagem de Q a fim de detectar alguma falha no pensamento ou algum defeito psicológico. [O pensamento crítico] é um pensamento cognitivo que atua sobre um objeto particular — a saber, uma série de pensamentos. Já vimos em que podem consistir estes últimos [? defeitos psicológicos]; mas em que consistem as falhas lógicas?

Em poucas palavras, na não-observância das regras biológicas que regem a passagem de pensamento. Essas regras determinam para onde deve dirigir-se a cada vez a catexia da atenção e quando o processo de pensamento deve parar. Elas são protegidas pelas ameaças de desprazer, derivam da experiência e podem ser diretamente transpostas para as regras da lógica — o que terá de ser minuciosamente comprovado. Por conseguinte, o desprazer intelectual da contradição, diante do qual se detém a passagem do pensamento verificador, não é outra coisa senão o [desprazer] acumulado para proteger as regras biológicas, agora ativado por um processo de pensamento incorreto.

A existência dessas regras biológicas pode ser comprovada precisamente pela sensação de desprazer diante dos erros lógicos.

Só podemos retratar a ação, de novo, como a catexia plena das imagens motoras que foram destacadas durante o processo de pensamento [em [1]], em adição, talvez, das que fizeram parte do componente volitivo da ação específica (caso tenha havido um estado de expectativa). Aqui se renuncia ao estado de ligação e as catexias de atenção são retiradas. O que sem dúvida acontece em relação ao primeiro [a renúncia ao estado de ligação] é que o nível do ego cai irresistivelmente ante a primeira passagem [da Q] proveniente dos neurônios motores. Não se pode, naturalmente, esperar que o ego seja completamente descarregado em conseqüência de atos isolados, pois isso só poderá acontecer nos atos de satisfação do tipo mais amplo. É instrutivo observar que a ação não ocorre por uma inversão da via percorrida pelas imagens motoras, e sim ao longo de vias motoras especiais; e, por esse motivo, o efeito do movimento não é necessariamente o desejado, caso houvesse uma inversão da mesma via. Por isso é que, no decurso da ação, uma nova comparação deve ser feita entre a informação que chega sobre os movimentos e os [movimentos] pré-catexizados, e é preciso que haja uma excitação das inervações corretivas até se alcançar a identidade. Aqui nos encontramos diante da mesma situação que já ocorreu no caso das percepções, embora com menor multiplicidade, maior rapidez e uma descarga contínua e plena, que não existia [no caso das percepções]. Mas a analogia entre o pensamento prático e a ação eficiente é digna de nota. Isso nos demostra que as imagens motoras são sensoriais. No entanto, o fato peculiar de serem adotadas novas vias no caso da ação, em lugar de haver uma inversão muito mais simples, parece mostrar que a direção tomada pela condução dos elementos neuronais está firmemente fixada, e talvez, a rigor, que o movimento neuronal pode ter características diferentes nos dois casos.

As imagens motoras são percepções e, como tal, decerto possuem qualidade e despertam a consciência. Não se pode também discutir que, por vezes, elas atraem considerável atenção para si mesmas. Suas qualidades, porém, não são muito marcantes nem provavelmente tão multiformes quanto as do mundo externo; não estão associadas com representações de palavra; pelo contrário, elas próprias servem, em parte, às finalidades dessa associação. No entanto, não procedem de órgãos sensoriais altamente organizados; sua qualidade é sem dúvida monótona [em [1]-[2]].

 

APÊNDICE B: TRECHO DA CARTA 39, ESCRITA POR FREUD A FLIESS EM 1º DE JANEIRO DE 1896

 

…Seus comentários sobre a enxaqueca me deram uma idéia cuja conseqüência seria a revisão completa de todas as minhas teorias sobre fyw, o que de momento não posso arriscar-me a fazer. Mas vou ver se consigo esboçá-la.

Meu ponto de partida são os dois tipos de terminações nervosas. As livres [em [1]] só recebem quantidade, que conduzem por soma [em [1]] até y; mas não têm poder de evocar sensações — isto é, de afetar w. Nesse sentido, o movimento neuronal conserva suas características qualitativas [em [1]] genuínas e monótonas. Essas são as vias de toda a quantidade que preenche y, e também, é claro, as vias da energia sexual. As vias de condução nervosa que começam nos órgãos terminais não conduzem quantidade, mas sim a característica qualitativa que lhes é peculiar; nada acrescentam à soma [de quantidade] nos neurônios y, colocando-os apenas em estado e de excitação. Os neurônios w são os neurônios y que só têm capacidade muito reduzida de catexia quantitativa. A condição necessária para que se produza a consciência é a coincidência dessas quantidades mínimas com a qualidade que lhes é fielmente transferida do órgão terminal. Agora [em meu novo esquema], intercalo esses neurônios w entre os neurônios f e os neurônios y, de modo que f transfira sua qualidade para w, e então w não transfere qualidade nem quantidade a y, mas meramente o excita — isto é, indica as vias a serem tomadas pela energia  livre. (Não sei se você vai poder entender essa confusão. Existem, por assim dizer, três formas pelas quais os neurônios se afetam mutuamente: (1) transferindo quantidade entre si, (2) transferindo qualidade entre si e (3) exercendo, segundo determinadas regras, um efeito excitante recíproco.)

Segundo essa visão, os processos perceptuais abrangeriam eo ipso [por sua própria natureza] a consciência e só produziriam seus efeitos psíquicos depois de se tornarem conscientes. Os processos y, em compensação, seriam inconscientes em si e só subseqüentemente adquiririam uma consciência secundária, artificial, ao se vincularem aos processos de descarga e de percepção (associação da fala) [em [1]]. Uma descarga de w, que tive de postular na exposição anterior desse tema [em [1]] já não é mais necessária; a alucinação, cuja explicação sempre criou dificuldades, já não é mais um movimento retroativo da excitação até  [em [1]], mas só até w. Agora fica muito mais fácil compreender a regra da defesa, que não se aplica às percepções, mas apenas aos processos y. O fato de a consciência secundária ficar para trás [ver atrás] possibilita uma descrição simples dos processos neuróticos. Também me livrei do incômodo problema de determinar quanto da intensidade f (dos estímulos sensoriais) é transferida para os neurônios y. A resposta é: em forma direta, absolutamente nada. A Q em y depende exclusivamente da medida em que a atenção livre de y é dirigida pelos neurônios w.

Essa nova hipótese também se ajusta melhor ao fato de que os estímulos sensoriais objetivos são tão ínfimos que, de acordo com o princípio da constância, é difícil derivar dessa fonte a força de vontade. Em compensação, [na nova teoria] a sensação não traz nenhum Q para y; a fonte da energia de y são as vias de condução orgânicas [endógenas].

O conflito entre a condução orgânica puramente quantitativa e os processos excitados em y pela sensação consciente me permite explicar também a liberação de desprazer, da qual necessito para o recalcamento nas neuroses sexuais.

No que se refere ao seu lado da questão, essa nova colocação abre a possibilidade de que ocorram estados de estimulação em órgãos que não produzem sensações espontâneas (embora devam ser, indubitavelmente, sensíveis à pressão), mas que por ação reflexa (isto é, pela influência do equilíbrio) podem instigar distúrbios a partir de outros centros nervosos. Com efeito, a idéia de que existe uma ligação mútua entre os neurônios ou entre os centros nervosos sugere também que os sintomas motores da descarga são de vários tipos. É provável, também, que os atos voluntários sejam determinados por uma transferência de Q, uma vez que descarregam a tensão psíquica. Além disso, existem descargas de prazer, espasmos etc. que não explico pela transferência de Q para o centro motor, mais sim pela liberação dela nesse centro, em decorrência de uma possível diminuição da Q de ligação no centro sensorial pareado com ele. Isso nos ofereceria a tão almejada distinção entre os movimentos “voluntários e espásticos”, e ao mesmo tempo permitiria explicar todo um grupo de efeitos somáticos secundários — na histeria, por exemplo.

Quanto aos processos puramente quantitativos de transferência para y, existe uma possibilidade de eles atraírem a consciência para si mesmos — mas só se essas conduções de Q atenderem às condições necessárias para produzir dor. Dessas condições, a essencial talvez seja a suspensão da soma e um afluxo contínuo [de Q] até y durante algum tempo. Certos neurônios w tornam-se hipercatexizados, produzem um sentimento de desprazer e levam também a atenção a se fixar nesse ponto particular. Assim se teria de conceber a “modificação nevrálgica” como um afluxo de Q emanada de determinado órgão e aumentada acima de certo limite, até deixar anulada a soma, levando à hipercatexização dos neurônios w e à fixação da energia y livre. Como vê, chegamos à enxaqueca; a precondição necessária seria a existência de regiões nasais no estado de estimulação que você comprovou a olho nu. O excesso de Q se distribuiria por diversas vias subcorticais antes de chegar a y. Uma vez feito isso, o fluxo de Q, agora contínuo, força seu acesso a y e, de acordo com a regra da atenção [em [1]], a energia y livre aflui para a sede da erupção.

Agora cabe perguntar qual é a fonte dos estados de estimulação nos órgãos nasais. A idéia que logo se oferece é a de que o órgão qualitativo dos estímulos olfativos seria a membrana de Schneider, enquanto o órgão quantitativo (diferente daquele) seriam os corpora cavernosa. As substâncias olfativas, como você mesmo crê e as flores nos ensinam, são produtos de degradação do metabolismo sexual; funcionariam como estímulos sobre os dois órgãos citados. Durante a menstuação e em outros processos sexuais, o organismo produz uma Q aumentada dessas substâncias — desses estímulos, portanto. Teríamos que estabelecer se elas atuam sobre os órgãos nasais através do ar expiratório ou por intermédio dos vasos sangüíneos; provavelmente por via sangüínea, já que antes dos ataques de enxaqueca não se tem nenhuma sensação olfativa subjetiva. Por conseguinte, o nariz receberia, por assim dizer, informações sobre os estímulos olfativos internos por intermédio dos corpora cavernosa, tal como recebe os estímulos externos através da membrana de Schneider: seríamos vítimas do próprio corpo. Essas duas formas de se produzir a enxaqueca — espontaneamente ou por odores e emanações tóxicas humanas [em [1]], seriam portanto equivalentes, e seus respectivos efeitos poderiam ser provocados a qualquer momento por soma.

Desse modo, a tumefação dos órgãos nasais de quantidade seria uma espécie de adaptação do órgão sensorial, resultante do incremento do estímulo interno, à semelhança do que ocorre, na adaptação dos órgãos sensoriais verdadeiros (qualitativos), no arregalar dos olhos e concentrá-los em algum foco de atenção, no aguçar dos ouvidos, e assim por diante.

Talvez não seja muito difícil transpor para essa concepção as outras fontes de enxaqueca e estados semelhantes, embora eu ainda não saiba como se poderia fazer isso. Em todo caso, é mais importante verificar a idéia em relação ao nosso tema principal.

Dessa maneira, numerosas idéias médicas antigas e obscuras adquirem vida e valor.

 

APÊNDICE C: A NATUREZA DA Q

 

Não há mistério em torno da primeira das duas “idéias principais” com que Freud inicia o Projeto (cf. em [1]) — o neurônio e a Q. A segunda, porém, exige certo exame, principalmente quando tudo leva a crer que foi a precursora de um conceito que iria desempenhar um papel fundamental na psicanálise. Aqui não nos interessa decifrar o enigma especial, mencionado atrás, na Introdução do Editor, da diferença entre Q e Q. Vamos nos ocupar agora é da Q (como o próprio Freud declara explicitamente no fim do primeiro parágrafo do Projeto) — uma Q que possui alguma conexão especial com o sistema nervoso.

Como foi, portanto, que Freud imaginou essa Q no outono de 1895?

À parte a circunstância óbvia de que ele tencionava apresentá-la como uma coisa concreta — “sujeita às leis gerais do movimento” (em [1]) —, logo se percebe que ela surge em duas formas distintas. A primeira consistiria na Q em fluxo, passando através de um neurônio ou indo de um neurônio a outro. Isso vem descrito de vários modos: por exemplo, “a excitação neuronal em estado fluente” (em [1]), “uma Q fluente” (em [1]), “corrente” (em [1]), ou “passagem de excitação” (em [1]). A segunda, que é mais estática, é demonstrada por “um neurônio catexizado, cheio de” Q (em [1]).

A importância dessa distinção entre os dois estados da Q só se faz sentir gradativamente no Projeto, ficando-se quase tentado a supor que o próprio Freud só se deu conta dela quando escrevia a obra. O primeiro indício dessa importância está relacionado com a análise do mecanismo para apontar a diferença entre alucinações e percepções, e o papel desempenhado nesse mecanismo pela ação inibidora procedente do ego (Seções 14 e 15 da Parte I). Os pormenores dessa ação inibidora (a interferência de uma “catexia colateral”, dirigida por uma catexia da atenção vinda do ego) são fornecidos em [1]-[2], e seu efeito consiste em modificar o estado da Q em fluxo para um estado de Q estática num neurônio. Essa distinção é depois (em [1]-[2]) relacionada com a distinção entre o processo primário (não-inibido) e o secundário (inibido). Outra forma ainda de descrevê-la surge pouco mais adiante (em [1]), com a noção de que a catexia colateral interveniente exerce um efeito “de ligação” sobre a Q. Mas é só na Parte III do Projeto(em [1]) que ficam expostas todas as implicações da diferença entre um estado ligado e um estado móvel da Q. A necessidade da hipótese de haver dois estados de Q aparece, àquela altura, relacionada à análise do mecanismo do pensamento de Freud, que requer um estado no neurônio “que, embora na presença de uma catexia elevada, permite apenas uma corrente pequena” (em [1]).

Assim, a Q pareceria mensurável de dois modos: pela altura do nível da catexia dentro de um neurônio e pelo índice de fluxo entre as catexias. Isso foi ocasionalmente interpretado como prova de que Freud realmente acreditava que a Q fosse simplesmente eletricidade e que as duas maneiras de medi-la corresponderiam à amperagem e à voltagem. É bem verdade que, cerca de um ano e meio antes da redação do Projeto, em seu primeiro artigo sobre as neuropsicoses de defesa (1894a), ele já tinha feito uma vaga comparação entre algo que seria precursor da Q e “uma carga elétrica espalhada pela superfície de um corpo” (ver em [1]). É também verdade que Breuer, em sua contribuição teórica para os Estudos sobre a Histeria (1895d) (publicados apenas alguns meses antes de ser escrito o Projeto), dedicou um pouco de espaço a uma analogia elétrica com as “excitações” nas “vias condutoras do cérebro” (ver em [1]-[2]). Apesar disso, não há nenhuma palavra no Projeto que sugira que houvesse qualquer idéia desse tipo na mente de Freud. Ao contrário, ele não cansa de salientar que desconhecemos a natureza do “movimento neuronal”. (Ver, por exemplo, em [1], [2] e [3].)

É forçoso reconhecer que existem certas partes obscuras na descrição fornecida no Projeto para a natureza do estado “ligado” e seu mecanismo. Uma das mais intrigantes diz respeito ao processo de “juízo” e ao papel nele desempenhado por uma catexia procedente do ego. Essa influência está descrita das maneiras mais variadas — como “catexia colateral”, ou “pré-catexia”, ou “hipercatexia” — e se encontra intrinsecamente implicada naidéia de uma catexia da atenção. A princípio (ver em [1], por exemplo), parece que a atenção é apenas um meio de dirigir as catexias colaterais para o lugar onde são necessárias. Mas em outros trechos (ver em [1], por exemplo), tem-se a impressão de que a hipercatexia da atenção constitui, em si mesma, a força que produz o estado “ligado”.

Efetivamente, todo o problema da relação da atenção com a Q requer um exame meticuloso. (A “energia livre de ”, como Freud parece denominá-la na carta enviada a Fliess em 1º de janeiro de 1896, Apêndice B) A atenção é mencionada discretamente na Seção 14 da Parte I (em [1]), mas logo começa a mostrar sua importância (na Seção 19 da Parte I e na Seção 6 da Parte II), até se tornar, na Parte III, um elemento quase predominante. Apesar disso, nos escritos posteriores de Freud, a “atenção”, depois de ser citada esporadicamente, é quase relegada ao esquecimento. Alguns vestígios anônimos, porém, persistem até o fim, em dois sentidos bastante diferentes que, em última análise, remontam ao Projeto. O primeiro e mais óbvio se relaciona com o “teste de realidade”, cuja história foi integralmente documentada na Nota do Editor Inglês à discussão metapsicológica dos sonhos (1917d), Edição Standard Brasileira, Vol. XIV, em [1]-[2], IMAGO Editora, 1974. O outro, menos evidente, mas talvez mais importante, diz respeito justamente ao papel desempenhado pela atenção ou por alguma instância semelhante na determinação da diferença entre a Q em seu estado ligado e seu estado livre, e, além disso, entre os processos primário e secundário. Essa função da atenção é discutida numa nota de rodapé do Editor Inglês a “O Inconsciente” (1915e), Edição Standard Brasileira, Vol. XIV, em [1], IMAGO Editora, 1974. E há uma alusão indireta nas derradeiras obras de Freud, Moisés e o Monoteísmo (1939a), Edição Standard Brasileira, Vol. XXIII, em [1], IMAGO Editora, 1975, e o Esboço de Psicanálise (1940a) [1938], ibid., em [1].

Sejam quais forem os pormenores exatos do mecanismo responsável pela transformação da Q livre em Q ligada, é evidente que Freud atribuía a maior importância à distinção propriamente dita. “Em minha opinião”, escreveu ele em “O Inconsciente”, “essa distinção representa a compreensão mais profunda a que chegamos até agora quanto à natureza da energia nervosa” (ibid., Vol. XIV, em [1]).

Essa citação talvez também nos anime a esperar que os escritos posteriores de Freud esclareçam nosso problema imediato da natureza da Q. A Q propriamente dita, com esse nome, jamais reaparece, embora não haja dificuldade em reconhecê-la sob várias cognominações, a maioria das quais já usadas no Projeto. Uma delas, sobretudo, a “energia psíquica”, exige atenção, pois enfatiza o que parece constituir uma mudança vital sofrida pelo conceito. Q não é mais “uma coisa concreta”, tornou-se uma coisa psíquica. Não há nenhuma referência a “energia psíquica” no Projeto (“Energia y”, mencionada na Carta 39, cf. em [1] etc., significa apenas “energia procedente do sistema neuronal y”.) Mas já passa ao uso comum em A Interpretação dos Sonhos. Apesar disso, a mudança não implica um abandono completo de uma base física. Muito embora Freud declare (Edição Standard Brasileira, Vol. V, [1], IMAGO Editora, 1972), que “permanecerá no campo psicológico”, um exame minucioso revela traços da antiga formação neurológica. Mesmo no famoso trecho do livro sobre o chiste (1905c, Edição Standard Brasileira, Vol. VIII, [1]), onde ele parece dar as costas aos neurônios e fibras nervosas, na realidade deixa a porta totalmente aberta para uma explicação fisiológica. Com efeito, na frase do artigo sobre “O Inconsciente” (1915e) citada acima, Freud fala em “energia nervosa”, e não em “energia psíquica”. Por outro lado, na edição alemã de suas obras completas publicada em 1925, ele modificou duas palavras na última frase dos Estudos sobre a Histeria (1895d), de “sistema nervoso” para “vida mental” (Edição Standard Brasileira, Vol. II, [1], IMAGO Editora, 1974). Mas, por maior ou menor que tenha sido essa revolução, não resta dúvida de que muitas características fundamentais da Q sobreviveram em forma transfigurada, até o fim, nos escritos de Freud: prova disso são as inúmeras referências nas notas de rodapé destas páginas.

Um problema particularmente interessante surge na relação da Q com as pulsões. Estas quase nunca são citadas pelo nome no Projeto. É evidente, porém, que são as sucessoras da “Q endógena” ou das “excitações endógenas”. Um pouco da história da evolução dos pontos de vista de Freud em relação às pulsões é dado na Nota do Editor Inglês a “As Pulsões (“OsInstintos”) e Suas Vicissitudes”, Edição Standard Brasileira, Vol. XIV, [1] e seguintes, IMAGO Editora, 1974, e, sobretudo, da história das várias classificações que fez delas, primeiro em pulsões libidinais e do ego e, depois, em pulsões libidinais e destrutivas. Um aspecto que não foi mencionado aqui e que apresenta um interesse todo especial no presente contexto é a sugestão, duas vezes lançada por Freud, da possibilidade de uma “energia psíquica indiferente”, que poderia assumir qualquer das duas formas de pulsão: cf. o artigo sobre o narcisismo (1914c), Edição Standard Brasileira, Vol. XIV, [1], IMAGO Editora, 1974, e Edição Standard Brasileira, Vol. XIX, [1]. Essa “energia psíquica indiferente” se parece muito com um retorno à Q.

Essas incertezas subseqüentes a respeito das pulsões (entidades que, tal como a Q, se encontram “na fronteira entre o mental e o físico”) e de sua classificação nos lembram que Freud sempre se mostrou muito coerente ao salientar nossa ignorância quanto à natureza básica da Q ou de seja lá qual for o nome que se lhe dê. Isso, como já vimos (em [1]) é repetido com insistência no próprio Projeto. Mas a questão volta uma infinidade de vezes nas obras posteriores: para citar apenas algumas, em A Interpretação dos Sonhos (1900a), Edição Standard Brasileira, Vol. V, [1], IMAGO Editora, 1972, no artigo sobre “O Inconsciente” (1915e), ibid., Vol. XIV, [1], e em Moisés e o Monoteísmo (1939a), ibid., Vol. XXIII, [1]. Essa conclusão está expressa com a maior clareza possível em Além do Princípio do Prazer (1920g), Edição Standard Brasileira, Vol. XVIII, [1]: “A indefinição de todas as nossas discussões sobre o que descrevemos como metapsicologia se deve, naturalmente, ao fato de nada sabermos da natureza do processo excitatório que ocorre nos elementos dos sistemas psíquicos, e a não nos sentirmos autorizados a formular qualquer hipótese sobre o assunto. Estamos, conseqüentemente, trabalhando o tempo todo com um grande fator desconhecido, que somos obrigados a transportar para cada fórmula nova”. Tudo indica, portanto, que a nossa investigação tem que terminar aqui e que não há outro remédio senão seguir Freud, deixando insóluvel o problema da Q.

Mas, embora a natureza fundamental da Q fosse ignorada por Freud, alguns de seus traços essenciais sempre foram pressupostos e reiterados por ele até o fim de sua vida. Se nos voltarmos para uma das primeiras referências a ela, citada em [1], no primeiro artigo sobre as neuropsicoses de defesa (1894a), Edição Standard Brasileira, Vol. III, [1], encontraremos essa entidade desconhecida descrita como algo “que possui todas as características de uma quantidade (embora não tenhamos meios de medi-la) capaz de aumento, diminuição, deslocamento e descarga”. Não resta a menor dúvida de que a misteriosa Q recebeu seu nome pela própria razão de possuir essas características.

Desde o início, as considerações quantitativas sempre tiveram que ser levadas em conta em vários pontos das teorias de Freud. Por exemplo, em “A Etiologia da Histeria” (1896c) lê-se que “na etiologia das neuroses, as precondições quantitativas são tão importantes quanto as qualitativas: há valores liminares que têm de ser transpostos antes que a enfermidade possa tornar-se manifesta” (Edição Standard Brasileira, Vol. III, [1]). Mais importante, porém, é o fato de que a quantidade está implícita em toda a teoria do conflito como causa não só das neuroses, mas também de toda uma série de estados mentais. Há uma porção de trechos em que esse fato se torna explícito: por exemplo, em “Tipos de Desencadeamento da Neurose” (1912c), Edição Standard Brasileira, Vol. XII, [1]; na Conferência XXIII das Conferências Introdutórias (1916-17), idem, Vol. XVI, [1]-[2]; em “Alguns Mecanismos Neuróticos” (1922b), idem, Vol. XVIII,  [1], e em “Análise Terminável e Interminável” (1937c), Edição Standard Brasileira, Vol. XXIII, [1], IMAGO Editora, 1975. Neste último caso, a importância dos fatores quantitativos está relacionada com a situação terapêutica; mas isso também já ocorrera quarenta anos antes, na contribuição de Freud aos Estudos sobre a Histeria (1895d), Edição Standard Brasileira, Vol. II, pág. [1], IMAGO Editora, 1974. Em seu grande artigo sobre “O Inconsciente” (1915e), Freud usou o termo “econômico” como equivalente de “quantitativo”, ibid., Vol. XIV, pág. [1], IMAGO Editora, 1974, e a partir daí passou a usar as duas palavras como sinônimos. Estaremos certos, portanto, em considerar a nossa enigmática Q, seja qual for a sua natureza última, como a precursora de um dos três fatores fundamentais de metapsicologia. 

                                                                                         

 

                      

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