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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS DESTRUIDORES DO MUNDO / Marion Z. Bradely
OS DESTRUIDORES DO MUNDO / Marion Z. Bradely

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS DESTRUIDORES DO MUNDO

 

Há um certo ímpeto em cada operação de crescimento. O Império Terráqueo, como todo processo de esforço humano, foi geométrico, em vez de linear, na sua progressão. Começou com uns poucos sistemas estelares e planetas isolados; desenvolveram-se por seu turno, criaram colônias, que começaram a desabrochar, florescer, a se multiplicar numa proliferação incontrolada. Em mil anos, um cientista isento poderia comparar esse crescimento - de um ponto de vista do milênio - à disseminação do aguapé na Terra, nos dias anteriores aos vôos espaciais; primeiro um fenômeno isolado, depois um estudo de crescimento incontrolável, e finalmente uma ameaça com a perspectiva de engolfar e prevalecer sobre tudo.

Alguma coisa desse mesmo ímpeto pode ser observada no progresso isolado do Império Terráqueo num único planeta. Primeiro, um pequeno posto avançado científico, depois uma colônia, uma Cidade Comercial...

Darkover, um planeta isolado na beira da galáxia, com um sol tão fraco que seu nome constava apenas dos catálogos estelares, parara nos primeiros estágios desse isolamento por uma centena de anos.

Mas agora... cuidado, Darkover! Pois os destruidores de mundos estão chegando!

 

DESTRUIDORES DE MUNDOS, LTDA.

Eles não se chamavam assim, é claro. O que não impedia que o fossem, e os dois homens sabiam disso, enquanto subiam por uma longa sucessão de escadas rolantes, que os levaria ao escritório isolado no alto do prédio.

Um era grande, o outro pequeno, e ambos com rostos que logo se esquecia, uma boa coisa para policiais ou agentes secretos. Os milagres da cirurgia cosmética eram em geral reservados às pessoas que queriam se tornar deslumbrantes; mas um observador mais sagaz poderia perceber que essa cirurgia cosmética fora usada para remover cada vestígio de individualidade dos dois rostos. Um trabalho sutil, como não podia deixar de ser, mas refinado. Eles haviam se tornado parte da multidão, de qualquer multidão; e isso, por si só, era um triunfo, pois não eram claros nem escuros, e não seriam notados numa multidão de tipos exclusivamente afros ou nórdicos, como pertencentes de forma ostensiva a um ou a outro. Se masais ou pigmeus houvessem sobrevivido na Terra, teriam sobressaído como homens que não eram desse tipo; mas nesta era de mistura de raças, com os extremos do fenótipo humano desaparecidos para sempre, nunca seriam notados.

Um dos homens, que usava no momento o nome de Stannard, depois de muitos, a tal ponto que agora não se lembrava de seu nome original mais que uma ou duas vezes por ano, refletiu a respeito, ao entrarem na última escada rolante.

Destruidores de mundos. Já estivera quase que em toda parte, já fizera quase tudo, em qualquer planeta que o abrigasse, mas nunca lidara com eles antes.

Todos no Império sabiam de sua existência. Na maior parte, era algo que se ouvia em conversas sussurradas, e se especulava a respeito, de forma um tanto vaga, se suas atividades não os conduziam ao tremendo fluxo e refluxo do comércio planetário. Mas, afinal, o que significava destruição de um mundo, você poderia indagar, e por que alguém se daria ao trabalho de destruir um mundo? Parecia uma coisa saída de um cinedrama tridimensional, e era apenas engraçado.

Mas para as pessoas que entravam nisso - como ele, refletiu Stannard - não era nada engraçado.

Nem era trágico.

Era apenas um negócio.

Mas por que permitiam que seu negócio fosse conhecido dessa maneira?

Ele tratou de interromper o fluxo de curiosidade - não era pago para ser curioso - quando a última escada rolante parou. Havia cortinas douradas ao redor, e uma recepção, onde uma jovem, quase tão discreta quanto Stannard e seu companheiro, examinou seus cartões de identidade, e deixou-os passar por uma porta metálica, para uma sala pequena e simples. O que quer que Stannard esperasse daquela rede secreta e atividade semi-legal, não era que parecesse um escritório comercial, com os computadores comuns para registro de movimentação de mercadorias, arquivos e informações gerais. Também não esperava que o comando daquela vasta rede fosse exercido por uma mulher.

E, ainda por cima, uma mulher bela e jovem. Ou - Stannard apressou-se em corrigir seu pensamento - aparentemente jovem. Não pôde detectar cicatrizes de cirurgia cosmética ou modeladora, e era treinado para percebê-las, mas alguma tensão em torno dos olhos insinuava que a juventude inocente nada tinha a ver com a pele alva, o rosto sem vincos e garganta lisa. A voz era profunda e suave.

- Sr. Stannard, sr. Bruce. Sentem-se, por favor. Seus superiores, como provavelmente já sabem, fizeram contato comigo, e efetuaram os depósitos adiantados que exigimos antes da conclusão das negociações. Meu nome é Andrea Closson, e estou autorizada a acertar tudo com vocês.

Os dois sentaram, e ela continuou, com a mesma voz suave e neutra:

- Estou pronta a oferecer garantias, a esta altura. O quanto foram informados sobre a questão de Darkover?

Foi Stannard quem respondeu:

- Fomos informados de tudo o que precisaríamos saber para esta reunião.

- Muito bem. Sabem, é claro, que se trata de uma operação ilegal. Pelos vários tratados celebrados pelo Império Terráqueo, qualquer planeta tem direito a um acordo comercial da Classe D, o que significa, no caso de Darkover...

A mulher fez uma pausa para consultar a placa de vidro em cima de sua mesa, onde se podia ver os registros de computador, uma sucessão rápida de luzes claras, para a leitura instantânea de uma pessoa treinada.

-  ...a construção de um grande espaçoporto para tráfego do Tipo Beta, serviços de atendimento ao pessoal do espaçoporto, uma divisão de exploração e mapeamento, serviços de intercâmbio médico, e zonas de livre comércio bem definidas, sem qualquer infiltração terráquea nas áreas nativas, e vice-versa. O Espaçoporto de Thendara, em Darkover, se encontra em plena operação há...

Outra consulta rápida ao visor.

- ...setenta e oito dos anos deles, cada um consistindo de 389 dias. Há um comércio consolidado de pequenos medicamentos, instrumentos de aço e artefatos similares da Classe D. Nos termos de um acordo da Classe D, não há indústria mecanizada, nem mineração ou trânsito de superfície, nem um fluxo contínuo de produtos e serviços exportáveis ou importáveis. Fracassaram até agora todos os esforços de abrir negociações com as autoridades nativas darkovanas para a abertura do planeta à colonização e industrialização. Estou certa?

- Não chegaram a fracassar - ressaltou Stannard. - Apenas foram ignorados.

Andrea Closson deu de ombros.

- Seja como for, não tiveram êxito, e por isso estão dispostos a contratar nossos serviços.

- Destruidores de mundos - murmurou Bruce, falando pela primeira vez.

- Preferimos nos chamar de uma corporação de investimentos planetários - disse Andrea, a voz sempre suave. - É verdade que se nossas divisões secretas tiverem de ser usadas, não podemos operar abertamente como tal. Em suma, se um planeta se recusa a ser explorado... perdoem-me, eu deveria dizer investimento lucrativo...

A ironia em sua expressão era evidente, enquanto ela continuava:

- ...nossos agentes podem proporcionar à sua economia o tipo de... sacudidela, digamos assim... que a longo prazo levará o referido planeta a solicitar a intervenção de investidores externos.

- Ou seja, - comentou Stannard, - vocês arruínam a economia de tal forma que o planeta em questão não tem alternativa que não recorrer ao Império Terráqueo para se recuperar.

- É uma maneira um tanto brusca de expressar o problema, mas suponho que é isso mesmo, na essência. E o planeta em questão, pelo que informam os investidores, em geral acaba lucrando, a longo prazo. E não quero saber quem tem mais proveito. Isso não é da minha conta.

- Mas é da nossa - declarou Stannard. - Pode ser feito com Darkover? Em que prazo? E por quanto?

Andrea não respondeu de imediato. Apertava botões no painel de seu terminal. Deu a impressão de deparar subitamente com alguma coisa que atraiu sua atenção, pois o movimento rápido dos olhos - eram olhos estranhos, pensou Stannard, de um cinza muito claro, translúcido, uma cor que não se lembrava de ter visto antes - diminuiu de repente, parou por completo. Ela parecia, na opinião de Stannard, ao mesmo tempo surpresa e chocada:

- Algum de vocês já esteve em Darkover? - perguntou ela, abruptamente.

Stannard balançou a cabeça.

- Nunca saí de minha órbita.

- Eu já estive - anunciou Bruce, numa revelação inesperada. - Fui até lá para... Ora, não importa.

Ele estremeceu de forma visível, antes de continuar:

- Um lugar horrível. Não posso imaginar por que alguém quer abri-lo; teriam de oferecer pagamento extra a voluntários. Frio como o espaço, e duas vezes mais desolado. Completamente intato, pelo que dizem os livros de turismo. Mas bem que podia aproveitar algumas mudanças.

- É para isso que estamos aqui - declarou Andrea, a voz firme, desligando o terminal em cima da mesa com um gesto decidido. - Senhores, estou para oferecer condições e garantias. Pela quantia acertada de...

Ela mencionou uma quantia em unidades de milicréditos, que mudava com tanta freqüência que podia representar a sorte grande ou o infortúnio de uma semana para outra.

- ...podemos garantir que em três anos do tipo do Registro Central do Império o planeta agora conhecido como Darkover estará aberto à exploração do Tipo B... prepará-lo para a exploração do Tipo A exigiria vinte anos, e jamais poderia ser uma operação lucrativa... com plena permissão para o início de operações de mineração e exportação, por um grupo limitado de investidores. A metade da quantia deverá ser paga agora, em moeda legal com base de titânio, depositada numa conta numerada em Helvetia II. O restante será saldado um mês padrão depois do dia em que Darkover for declarado um mundo aberto da Classe B.

Stannard indagou:

- Qual é a sua garantia de que nossos investidores efetuarão o pagamento final? Não que eles tenham qualquer intenção de deixar de fazê-lo, mas é preciso uma resolução do Senado do Império para declarar um mundo aberto. Depois que tudo for legalizado, por que meus superiores não poderiam ir para lá sem pagar mais nada, como investidores comuns?

Andrea sorriu, e o sorriso era uma armadilha de aço tão implacável que Stannard revisou sua opinião sobre a idade da mulher, acrescentando mais trinta anos.

- O contrato, que devem assinar com a indicação das verdadeiras identidades de seus superiores, estipula que em caso de inadimplência todo o interesse de vocês no planeta em questão reverte para Investimentos Planetários Ilimitados... que é mais conhecido, como ressaltaram, por Destruidores de Mundos, Inc. Além disso, a inadimplência neste acordo revoga por completo a cláusula de sigilo.

Eles haviam pensado em tudo, refletiu Stannard. Como os acordos de destruição de um mundo eram ilegais por toda parte, qualquer conglomerado de investimentos planetários que contratasse tais serviços era excluído do planeta visado, em caráter permanente.

- Nossa organização é legítima, na superfície - acrescentou Andrea, num tom sombrio. - Contrataram legalmente nossos serviços para relações públicas e propaganda. A maioria dos nossos agentes, o que todos vêem, nunca chegará a menos de um ano-luz de Darkover. Estarão no Centro do Império, tentando persuadir os legisladores, por meios legais, que Darkover deve ser um mundo aberto da Classe B. Alguns outros farão a mesma coisa com as autoridades darkovanas.

- E o resto?   .

- O resto... não é da sua conta - respondeu Andrea. Stannard concordou. Não queria saber. Passara uma vida inteira a executar missões daquele tipo para incontáveis superiores, e alcançara uma vida boa, quase luxuosa, por não querer saber.

Assinaram os documentos, apresentaram os números das identidades de seus superiores, e foram embora, saindo da vida de Andrea Closson, saindo da história da Darkover para sempre. Eram tão esquecíveis que até mesmo ela os esqueceu, cinco segundos depois que saíram de sua sala.

Mas no instante em que eles se retiraram, Andrea tornou a ligar o visor, apertou o botão de STOP. As palavras estavam meio apagadas. Mas ela baixou as pálpebras para ver melhor, dentro dos olhos, na memória.

Montanhas enormes, um horizonte familiar, escuro, contra o sol escarlate do sol poente; um sol que parecia um disco vermelho, sangrento. Só os prédios altos da Cidade Comercial, sob as montanhas e o sol tão conhecidos, eram novos e surpreendentes.

Então é chamado agora de Darkover.

Um murmúrio de música soou em sua mente, a recordação total que achara insuportável durante os cem primeiros anos, e fizera tudo o que podia para apagar; agora, não podia lembrar o nome da melodia, e passou alguns segundos vasculhando num passado que deliberadamente arquivara, antes de encontrar o nome da melodia, fluindo do som estranho das flautas de bambu.

"Cansadas estão as colinas."

Isso mesmo, era esse o nome. Outra daquelas imagens nítidas e insuportáveis aflorou em sua mente, uma menina numa túnica amarela curta, tocando flauta; e depois a boca se contraiu, os olhos se abriram.

- Uma menina - disse ela, em voz alta. - Eu não era sequer uma menina naquela ocasião. Era... mas decidi não pensar no que eu era. Estou aqui, como uma mulher, há... Por Evanda e Avarra! Há quanto tempo? Não dá para pensar nisso, há quanto tempo estou aqui!

Mas a memória persistiu, seguindo por um curso inexorável, que não podia conter, até que, sabendo que era pura indulgência, mas também a única maneira de acabar com aquilo, Andrea apertou um botão, puxou a unidade de mensagem, e começou a falar, em voz baixa:

- Quero uma fita para procurar e destruir tudo o que já foi escrito sobre Cottman IV, chamado Darkover, um mundo fechado da Classe D. Cuidarei deste caso pessoalmente.

A voz no outro lado da linha fora treinada a não demonstrar surpresa, mas Andrea, com sua percepção supersensível, percebeu-a mesmo assim.

- Vai até lá em pessoa? Sob que cobertura?

Ela pensou por um instante, antes de responder:

- Irei como uma treinadora de animais, a fim de avaliar a conveniência do transporte legal de pequenos animais de pêlo para mundos próximos, com finalidades de reprodução e desenvolvimento de um negócio de peles.

Ela já fora muitas coisas, em muitos mundos. Compreendia e gostava de animais, nunca precisava se pôr em guarda contra seus pensamentos intrusos.

Mas depois que a fita de procurar e destruir foi absorvida e descartada, quando se encontrava pronta para embarcar na primeira etapa da jornada transgalática incrivelmente longa, até o pequeno planeta à beira do nada, que agora ostentava o nome de Darkover, um certo medo tornou a dominá-la. Um medo sepultado pelos séculos, despertando nas profundas e estranhas convoluções de um cérebro que, vivendo como humana, ela só usara de uma maneira fracionada.

Vamos supor que, depois de todo esse tempo e de todas as pessoas diferentes que eu fui, quando me encontrar outra vez sob as quatro luas, quando a luz do sol sangrento me envolver de novo, vamos supor... vamos supor que minha antiga personalidade, a verdadeira, antes de virar Andrea, antes de ser uma mulher errante, rainha, espaçonauta, cortesã, executiva, vamos supor que essa eu retorne? O que acontecerá então?

Isso mesmo, o que acontecerá? Ora, pelo menos morrerei onde nasci, pensou ela, com uma resignação cansada, comprimindo as mãos compridas sobre os olhos. E naquele momento, se alguém pudesse observá-la, ela não pareceria humana, nem mulher.

Narzainye kui, pensou ela, numa linguagem há muito morta; filha exilada da Floresta Amarela, por onde você não andou? Retorne mais uma vez, descubra o que a passagem das estações fez com o mundo que seu povo não foi capaz de manter, e depois morra ali; morra sozinha, se for preciso, sabendo que não resta sequer a lembrança dos passos de seu povo na vastidão das Montanhas da Luz...

Ele SENTIU que havia passos por trás outra vez.

Era desconcertante. Não eram os passos familiares e a presença de seu guarda, Danilo. Estes ouvia por toda parte, onde quer que fosse, e como amava Danilo, tomara-o como seu pajem e escudeiro, não se ressentia, nem alterava seus próprios passos por uma fração sequer. Dani não se intrometeria em seus pensamentos ou em sua percepção, a menos que ele quisesse companhia.

Regis Hastur pensou: Sou sensitivo demais. E tentou se desligar dos passos. Era mais do que provável que nada tivessem a ver com ele; se sentia o impacto em sua percepção, talvez fosse apenas porque o dono dos pés e dos passos se mostrava surpreso ao deparar com um jovem Hastur, do Conselho do Comyn, andando a pé pelas ruas tão cedo. Ele continuou a avançar, em passos firmes, um homem esguio, de vinte e poucos anos, com a grande beleza pessoal que caracteriza todos os Hasturs e Elhalyns do Comyn; um rosto admirável, que se destacava ainda mais porque os cabelos que o emolduravam não eram de um vermelho flamejante, como o de todos no Comyn, mas branco como a neve.

Se dependesse de Dani, eu nunca sairia sem uma escolta armada. Que tipo de vida é essa?

Mas ele sabia, de uma forma vaga, com algum pesar, que não podia ser de outra forma. Os velhos tempos de Darkover, quando o Comyn passava ileso pela guerra, insurreição armada e distúrbios nas ruas, haviam acabado para sempre. Regis ia agora prestar sua última homenagem a outro de sua casta, morto aos trinta e sete anos pelas mãos de um assassino: Edric Ridenow, de Serrais. Jamais gostei de Edric. Mas devemos todos morrer? Já há muitos de nós mortos ou no exílio. As casas dos Sete Domínios estão definhando. Todos os Altons desapareceram: Valdir morreu há cem anos, Kennard num mundo distante, Marius em batalha psíquica com as forças de Sharra, Lew e sua última filha, Marja, no exílio num mundo distante. Os Hasturs, os Ridenows, os Ardais... dizimados, em via de extinção. Eu deveria partir também. Mas meu povo precisa de mim aqui, um Hastur dos Hasturs, a fim de não se sentir abandonado de todo ao Império Terráqueo.

Um jato de fogo é silencioso. Regis não ouviu, mas sentiu o calor, virou-se, ouviu um grito, e depois o silêncio, do tipo chocante; mas logo alguém chamou seu nome, e ele divisou Danilo a se aproximar, correndo, com a arma na mão. O homem mais jovem parou a alguma distância, baixou a arma, e disse, com uma irritação que mal podia ocultar:

- Agora talvez me escute, Lorde Regis. Se sair de novo sem uma escolta apropriada, juro por todos os infernos de Zandru que não serei mais responsável; pedirei meu juramento de volta, e retornarei a Syrtis. Se o Conselho não me esfolar vivo primeiro por deixar que seja morto diante de meus olhos!

Regis sentiu-se fraco, meio tonto; o homem morto, estendido na rua, não tinha uma arma comum, mas sim uma pistola de nervos, que o tornaria... não, não um cadáver, mas um vegetal, com todos os circuitos neurais paralisados; poderia continuar a viver, com alguém a lhe dar comida na boca, incapaz de se comunicar, por mais quarenta anos. Ele murmurou, através dos lábios subitamente trêmulos:

- Estão se tornando cada vez piores. Este é o sétimo assassino em onze luas. Devo me tornar um prisioneiro na Cidade Oculta, Dani?

- Pelo menos não mandam mais homens de adaga contra você.

- Preferia que mandassem. Posso enfrentar qualquer homem de adaga neste mundo; e você também. - Regis olhou atento para Dani. - Não está ferido?

- Um arranhão. Tenho a sensação de que os braços mergulharam em chumbo derretido, mas os nervos vão se recuperar.

Ele descartou as indagações preocupadas de Regis, as ofertas de ajuda, e acrescentou:

- A única ajuda de que preciso, Lorde Regis, é a sua promessa de que não tornará a andar sozinho pela cidade.

- Prometo. - Mas a expressão nos olhos de Regis era dura. - Onde conseguiu a arma, Dani? E logo uma arma proibida pela Aliança? Quero que me entregue.

O homem mais jovem estendeu a pistola de raios.

- Não é ilegal, vai dom. Fui à Cidade Comercial dos terráqueos, e solicitei uma permissão para carregá-la aqui. Quando souberam a quem devo proteger, entregaram de bom grado... nem poderia ser de outra forma.

Regis parecia perturbado.

- Chame um guarda para cuidar disso. - Ele apontou para o cadáver carbonizado do assassino. - Nem adianta examinar o corpo. Será como os outros, um homem anônimo, sem qualquer possibilidade de descobrir sua origem. Mas também não precisamos deixá-lo na rua.

Ele ficou parado, consternado e alheio, enquanto Danilo chamava um homem da Guarda da Cidade, em seu uniforme verde e preto, e dava as ordens. Só depois é que se virou para Danilo, com olhos implacáveis.

- Você conhece a Aliança.

Há gerações que não havia guerra e combates em larga escala em Darkover. Isso se devia em grande parte à Aliança, a lei proibindo o uso de qualquer arma com um alcance superior ao da mão de quem a usava; uma lei que permitia os duelos e os ataques de surpresa, mas proibia as batalhas de grande monta, ou qualquer carnificina. A indagação endereçada a Danilo era puramente retórica - qualquer criança de seis anos tinha conhecimento da Aliança - e por isso o jovem não respondeu. Mas mesmo diante do olhar irado de Regis - e a ira de um Hastur podia matar - Danilo Syrtis não baixou os olhos.

- Você está vivo e ileso - declarou ele. - E isso é tudo com que me importo, Lorde.

- Mas para que, em nome de qualquer deus que lhe agrade, Dani, estamos vivendo?

- Eu, para mantê-lo vivo.

- Mas por que motivo continuamos a viver? Entre outras coisas, para que a Aliança seja mantida em Darkover, e os anos do caos e matanças covardes nunca voltem ao nosso povo!

Regis parecia quase desvairado de raiva e desespero, mas Danilo não se intimidou diante de sua fúria.

- Seria ainda mais difícil manter a Aliança com sua morte, Lorde Regis. Sou o seu mais leal... - A voz do jovem tremeu de repente. - Sabe que minha vida lhe pertence, para manter ou liquidar, vai dom cario; mas sabe de fato o que aconteceria a este mundo e a seu povo se por acaso morresse?

Portanto, era uma guerra, uma complexa conspiração contra a casta dos telepatas.

Mas quem era o inimigo? E por quê?

Incidentes isolados como aquele nunca haviam sido raros em Darkover, embora fosse mais comum para um assassino anunciar o que era conhecido como intenção de matar. Isso o incluía no antigo código de duelo de Darkover, e o assassino passava a ter imunidade; matar num duelo justo não era considerado assassinato.

Os lábios de Regis contraíram-se ainda mais. Evitara com cuidado o envolvimento em qualquer das alianças ou facções em conflito de Darkover, desde que soubera que Derik Elhalyn, o herdeiro do comando do Conselho do Comyn, era louco, e nunca poderia assumir o cargo.

Assim, nenhum homem vivo em Darkover poderia alegar com razão que Regis Hastur, de Hastur, o ofendera. Além do mais, como Danilo ressaltara, havia poucos que podiam se igualar a ele no uso de qualquer das armas legais de duelo.

Quem, então? Alguém de seu próprio povo, que queria remover o Comyn, com sua complexa hierarquia de telepatas e poderes psíquicos?

Ou os terráqueos?

Ora, isso ele podia conferir de imediato.

Pouco depois de assumir a posição de principal elemento de ligação entre os terráqueos e seu próprio povo, ele passara a viver numa casa perto da Zona Terráquea. Era uma concessão, e Regis detestava; não era uma residência terráquea, que podia ser pequena e apertada, mas pelo menos oferecia algum conforto, nem darkovana, espaçosa e arejada, sem paredes divisórias, embora essencialmente desconfortável. Era muito diferente do Castelo de Hastur, onde passara a maior parte de sua infância.

Ele detestava, com uma aversão cultural tão enraizada que era quase mata, praticamente todos os artefatos da tecnologia do Império Terráqueo, e usá-los no dia-a-dia era uma das desvantagens mais opressivas de suas funções. Fazer uma ligação pelo visofone era um processo que se prolongava pela necessidade de superar sua repulsa, e ele procurou ser o mais breve possível.

- Quartel-general da Cidade Comercial, Seção Oito, Pesquisa Médica.

 - Bredú... - Regis usou a palavra que significava não apenas amigo, mas também irmão de juramento, e estendeu as mãos para pegar as de Danilo, um gesto raro na casta dos telepatas. - Se isso é verdade, meu irmão mais querido, por que sete assassinos haveriam de me querer morto?

Ele não esperava uma resposta, e não a obteve. Danilo limitou-se a dizer, com o rosto contraído:

- Não creio que eles viessem de nosso povo.

- Aquele... - Regis apontou para o lugar em que estivera o cadáver. - ...era um terráqueo? Não, pelo que sei deles.

- Concordo. Mas devemos encarar os fatos, Lorde Regis. Sete assassinos enviados só para liquidá-lo. Lorde Edric por uma adaga desconhecida. Lorde Jerome dos Elhalyns morto em seu próprio estúdio, sem pegadas de homem na neve. Três das mulheres de Aillard mortas em partos malfeitos, as parteiras morrendo por venenos antes de serem interrogadas. E também... que os deuses me perdoem por falar isso... seus dois filhos.

O rosto de Regis, já duro antes, tornou-se agora desolado; pois embora tivesse gerado os filhos sem amor por suas mães, mas apenas como um dever jurado à sua casta, gostava muito dos meninos, mortos em seus berços - de uma doença súbita, pelo que diziam - há menos de três meses. O terrível controle de sua voz era pior do que as lágrimas quando ele disse:

- O que posso fazer, Dani? Devo ver a mão de um assassino, ou uma conspiração, em cada golpe do destino?

- Será pior para você se não o fizer, Lorde Regis. - A profunda compaixão na voz de Danilo contradizia a rispidez das palavras. Ele acrescentou, em tom ainda áspero: - Teve um choque e tanto. É melhor voltar para casa. Seu lamento no funeral de Lorde Edric, na medida em que se pode lamentar alguém como ele, não será nem a metade tão valioso para a memória dele quanto resguardar sua própria vida para cuidar das pessoas que ficaram.

A boca de Regis se contraiu.

- Duvido que tenham assassinos de reserva para o mesmo dia -foi tudo o que ele disse, mas acompanhou Danilo, sem novos protestos.

Assim que a tela limpou, ele pediu:

- Departamento de Antropologia Alienígena.

Ao ser concluída a ligação, ele pediu para falar com o doutor Jason Allison, e finalmente o rosto de um jovem, sóbrio, mas simpático, assumiu forma à sua frente.

- Um prazer inesperado, Lorde Regis. Em que posso servi-lo?

- Esqueça as formalidades, para começar - disse Regis. - Já me conhece há bastante tempo para isso. Pode vir até aqui para conversar comigo?

Ele poderia ter feito essa pergunta com a maior facilidade pela tela, e obter uma resposta. Mas Regis era um telepata, e aprendera desde cedo a confiar não nas palavras de uma resposta, ou no rosto do interlocutor, mas na "sensação" da resposta. Não achava que Jason Allison lhe mentiria. Na medida em que podia gostar ou confiar em alguém que não era de sua casta, gostava e confiava em Jason, que nascera em Darkover. Mas sem mentir, Jason podia se esquivar à verdade, para evitar magoá-lo, ou para não ter de dizer o que não sabia.

Assim, quando Jason se encontrou com ele, depois das palavras e perguntas iniciais de cortesia formal, Regis fitou o jovem terráqueo nos olhos, e disse:

- Conhece-me há muito tempo, e sabe que não sou um tolo. Seja franco comigo, Jason. Há algum sentimento no Império Terráqueo de que os telepatas constituem um problema maior do que vale a pena, e que... embora o Império não tenha oferecido um prêmio por nossas cabeças... nenhuma lágrima será oficialmente derramada se formos exterminados, um a um?

- Mas claro que não!

Regis nem sequer ouviu as palavras. Captou apenas o choque sincero, a negativa e indignação na mente do jovem cientista terráqueo.

Portanto, não eram os terráqueos.

Mesmo assim, ele sondou ainda mais fundo, apenas para satisfazer sua própria consciência.

- Não poderia ser alguma coisa de que não tomou conhecimento? Um movimento fora de sua seção? Sei que a Antropologia Alienígena vem tentando trabalhar com alguns de nós.

- Também não há nada nas outras seções - garantiu Jason, com firmeza. - As autoridades do espaçoporto não se importam, é claro. A divisão científica... ora, ainda analisa as suas várias ciências, e sabe que Darkover é singular, um reservatório de talentos psíquicos sem comparação com qualquer outro lugar na galáxia, pelo que sabemos. Seria mais provável que o pessoal tentasse reunir vocês todos, e metê-los... não em jaulas, mas em custódia protetora, até estudar o que existe em seus corações.

Ele soltou uma risada, e Regis comentou, sem humor:

- Talvez não seja uma má idéia. Se continuar assim, não restará vivo, em todo o planeta de Darkover, um único telepata com poder de laran.

O sorriso de Jason se desvaneceu.

- Ouvi um rumor, há meses, de que alguém tentou assassiná-lo, e fracassou. Com tantos duelos acontecendo, não levei a sério. Quer dizer que era verdade? E houve alguma outra tentativa?

- Então não sabe de nada.

Regis relatou tudo. Pouco a pouco, a cor se esvaiu do rosto do jovem terráqueo.

- É terrível. Só posso dizer que nenhuma autoridade terráquea está envolvida. E quem mais poderia ter um motivo?

É justamente essa a questão, pensou Regis.

- A mente mais poderosa do universo, os maiores talentos psíquicos de Darkover, ainda assim são vulneráveis a uma faca, bala ou pistola de raios. Eu poderia nomear uma dúzia, começando pela Guardiã Cleindori, e passando por meu primo Marius Alton, há dois ou três anos.

- E sem os telepatas, - comentou Jason, - não teremos a chave para as ciências de matriz de Darkover, nem qualquer esperança de encontrar alguma.

- E também sem os telepatas, - acrescentou Regis, - nosso mundo e nossa economia desmoronam. Quem lucra com isso?

- Não sei. Há muitos interesses que gostariam de ver seu planeta aberto à importação e exportação comercial. Mas essa batalha se trava há três ou quatro gerações, e o Império Terráqueo sempre sustentou que um planeta tem o direito de decidir por si mesmo, a longo prazo. E nem mesmo continuam a pressionar por isso em Darkover. Afinal, há muitos outros planetas.

Mas Regis também captou a parte não enunciada da frase: Há muitos outros planetas, mas não com um grande espaçoporto, uma Zona Terráquea e uma colônia de dimensões consideráveis. Darkover situava-se numa encruzilhada entre o Braço Galático superior e inferior, e tinha um espaçoporto duas vezes maior que o da maioria dos planetas de seu tamanho, cinco vezes maior que as instalações normais de um planeta da Classe B, para receber o intenso tráfego. Um planeta de importância fundamental... e se interpunha no caminho de pessoas que detestavam ver essa maravilha inaproveitada. Mesmo assim, Jason declarou:

- Sinceramente, Regis, não acredito que seja alguém do Império ou da Zona Terráquea. Eles tratariam do problema de maneira diferente. Se você dispõe de um trator, não precisa de uma pá de neve. E uma operação assim é secreta, mais do que insidiosa.

- Estou propenso a concordar. Terei de verificar se há mais palhas ao vento. Liquidar os telepatas não mudaria nossa posição no Império. Não queremos integrá-lo, não queremos nos tornar mais um elo na corrente, e não queremos que a tecnologia de vocês nos sufoque. E a maioria das pessoas comuns concorda com isso. Se alguém vem tentando fazer o povo mudar de idéia, creio que serei capaz de descobrir. Enquanto isso...

- Enquanto isso, é parte da minha responsabilidade providenciar para que mais nenhum de vocês seja assassinado. A custódia protetora pode não dar certo, não com vocês... - Jason sorriu, e acrescentou, - Afinal, são isolacionistas obstinados, e por acaso também sou. Mas ajudaria se tivéssemos alguma coisa para oferecer em troca dos serviços extras que podem ser necessários para impedir que vocês desapareçam.

- Posso oferecer uma coisa, embora não seja algo que queiramos dar. Mas é para o bem de todos evitar que as ciências de matriz se extingam apenas por falta de telepatas para operá-las. É o que tenho para dar, Jason. Há telepatas por aí...

Regis gesticulou, abrangendo o céu noturno e as infinitas estrelas.

- Não tantos quanto em Darkover, talvez, ou com tantos talentos. Não se esqueça de uma coisa: antes da Era do Caos, cuidávamos da reprodução em benefício dos dons de laran. Fomos longe demais, e nos tornamos endógamos. Encontre mais alguns como nós, Jason. Descubra como os telepatas de Darkover divergem... se é que divergem... dos que existem na Terra, em Vainwal, ou no décimo quarto planeta de Bibble-dygook. Se pudermos sobreviver como uma casta, ou se pudermos transmitir a outros o que temos... talvez então essa coisa possa ser contida. Porque se somos tudo o que mantém Darkover fora do fluxo de entropia... e quer você goste ou não, o Império é um processo de entropia, e não tornarei a discutir a ética com você outra vez... então temos de continuar a permanecer nessa porta. Afinal, já passamos por nossa Era do Caos.

Uma pausa, e ele arrematou:

- Posso lhe mostrar as crateras radiativas na Cidade Proibida. O que restou de nós não é primitivo, Jason, nem bárbaro; é o que ficou depois que alcançamos os limites do que se costuma chamar de Progresso; e os poucos sobreviventes aprenderam o que não se deve fazer. Descubra mais telepatas, Jason, e tem a palavra de um Hastur de que saberá o que somos, e por que somos assim!

 

DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA ALIENÍGENA: COTTMAN IV (Darkover)

A TODOS os Serviços Médicos do Império, em Planetas Abertos e Fechados: Devem procurar quaisquer humanos que possuam talentos telepáticos ou psíquicos, de preferência latentes e não desenvolvidos. Essa oferta não se estende aos que usam dons de clarividência para o lucro, nem aos que podem ser simulados por uma tecnologia avançada. Estão autorizados a lhes propor contratos médicos de Classe A....

Quando se lança uma vasta rede até os confins do universo conhecido, algumas coisas curiosas são apanhadas nas malhas...

Rondo era um homenzinho encarquilhado, de idade indefinida, e estava muito assustado. Podia sentir o medo como um gosto frio na boca, e fez um esforço para excluí-lo, sabendo que interferia com o controle tão necessário ao que tentava fazer.

Era apenas um entre cinqüenta e tantos pares de olhos que acompanhavam o curso helicoidal de uma bola, girando por uma órbita cada vez mais excêntrica, dentro da enorme máquina de jogo de cristal. Ao bater ao acaso em partículas girando de matéria, a órbita se alterava, mudava, enquanto continuava a descer, mais e mais, através do vácuo, para cair... para cair em uma... em uma das taças...

Aqui, aqui. A coisa em sua mente - não tinha outra palavra para descrever o dom com que sempre convivera - projetou-se, fez um contato delicado com a bola. Como outra partícula de matéria, foi alterando a órbita imprevisível, de forma ligeira, na direção da fileira de taças que girava sem parar na base da máquina. Mais devagar, mais depressa... espere, espere, a minha ainda não chegou... agora, AGORA!

A bola girou mais depressa, como se estivesse magnetizada, e foi cair numa taça, com um pequeno estalido. Houve um suspiro de liberação de tensão de cinqüenta e tantas bocas e gargantas. Depois, murmúrios inarticulados, de desapontamento, de frustração... O crupiê entoou:

- Número oito-quatro-dois ganha, seis por um.

Rondo tremia tanto que mal conseguiu estender as mãos para recolher seus ganhos. Os olhos do crupiê contradiziam sua voz neutra, e anunciavam: "Espere um pouco, seu desgraçado. Eles já vão chegar. Levou sua sorte longe demais desta vez...". Enquanto pensava assim, ele acrescentou:

- Façam suas apostas para a próxima rodada. Todo o dinheiro na mesa.

Rondo remexeu nos seus ganhos, e em seguida, como se fosse uma compulsão, começou a empurrar tudo para a taça que se escancarava à sua frente - um diâmetro de apenas cinco centímetros para todos os outros olhos, um vasto abismo à espera para ele. Deveria ter parado antes, e sabia disso; mas a compulsão era como uma doença, e via uma taça reluzindo, transbordando com o ouro que podia se tornar seu...

Ele empurrou tudo para a taça, que se abriu como uma enorme boca em sua imaginação, dominada pela visão do fluxo de ouro...

Era uma doença. E ele refletiu que tinha certeza disso, enquanto observava a bola girar; uma doença talvez nascida daquela sua fantástica habilidade. Mais uma vez, impotente, agora que as apostas estavam fechadas, ele procurou a bola girando com os olhos, e censurou a si mesmo, em autopunição, com tanta veemência que tinha a impressão de que os homens ao redor, na sala de jogo, não podiam deixar de ouvi-lo...

Seu idiota... não tem o menor juízo... pegue os ganhos, e caia fora... eles estão atrás de você, vão apanhá-lo, recolha os ganhos, e fuja, FUJA, FUJA, eles estão chegando, AGORA, AGORA...

Mas Rondo permaneceu imóvel, paralisado, até que sentiu a mão pousar em seu ombro, e uma voz suave interrompeu o giro da pequena bola dourada:

- Todas as apostas estão canceladas, senhoras e senhores. A próxima rodada começará dentro de três megassegundos. Temos motivos para acreditar...

Rondo gritou, não querendo ouvir o que viria em seguida:

- Vocês mesmos disseram que suas máquinas são à prova de trapaças, seus caloteiros sujos! Alguém me viu encostar um dedo na máquina?

A voz era suave, mas ressoava como um sino dentro do salão de jogo:

- Nenhuma máquina é à prova de um esper. Você vem ganhando com uma freqüência excessiva.

A mão apertou seu ombro, e Rondo saiu sem dizer mais nada. Sabia que qualquer protesto era inútil, e o medo o assediava em contraponto, minha própria culpa... sem controle... não há prova, não há PROVA...

Fora do salão, a mão relaxou um pouco, mas logo tornou a apertar. O homem que segurava o pequeno jogador declarou:

- Não temos nenhuma prova legal, e não há lei contra o uso da PES numa máquina para ganhar. Se você fosse um pouco mais esperto... Nada podemos fazer legalmente, mas se voltar aqui, não viverá por tempo suficiente para aproveitar seus ganhos.

Uma mão rude puxou seu bolso para fora.

- Já ganhou o suficiente. Esqueça os lucros de hoje. E agora saia daqui!

Um chute bem aplicado, e Rondo saiu cambaleando do prédio para a rua, sob a enorme e brilhante lua artificial do planeta do prazer, Keef.

Parou ali, tremendo como um cachorro surrado, apalpando atordoado os bolsos vazios. Estragara tudo de novo. Àquela altura, já fora banido de todas as casas de jogo de Keef, como também acontecera antes em quatro ou cinco mundos similares. Mais cedo ou mais tarde, sempre o descobriam. Era a doença do jogador compulsivo que o levava a insistir, impedia-o de se contentar com um pequeno ganho, um lucro normal, para só tornar a jogar dentro de um dia ou uma semana.

Sob a imensa lua artificial, de uma tonalidade rosada, Rondo ficou parado, odiando a tudo e a todos. Mas, acima de tudo, odiava a si mesmo. Era o maior culpado; sabia disso, nos momentos de sanidade. O motivo se achava sepultado numa vida em que havia uma estranha coisa que o tornava capaz de prever e controlar a queda de uma bola... e fizera com que fosse odiado por toda parte, até mesmo quando a usara (por muitos e muitos anos) para alertar, ajudar, curar. E agora a doença que nunca podia controlar o mantinha voltando sempre, para acabar com tudo, na febre da saída de uma carta, a queda de uma bola.

O que podia fazer agora? O dinheiro que escondera em seu aloja-mento era menos do que necessário para deixar o planeta. Estava retido

em Keef, e a Força Espacial naquela extremidade do Império não tratava os indigentes com muita gentileza. Num planeta projetado para os prósperos, os pobres e doentes eram removidos da vista do público. Talvez pudesse encontrar um emprego como ajudante numa das enormes casas de prazer, conhecidas eufemisticamente como banhos; não era bastante jovem nem bastante bonito para qualquer outra atividade, mesmo que a coisa em sua mente lhe permitisse chegar tão perto das pessoas que procuravam o prazer num mundo como aquele. Só podia evitar a repulsa pelo uso de todas as suas forças no jogo...

Agora, porém, estava excluído até disso.

Rondo rangeu os dentes, contraiu o rosto numa careta horrível. Haviam-no excluído porque ganhava com uma freqüência excessiva. Pois muito bem, agora eles descobririam o que acontecia com quem incorria em sua ira! A raiva incontrolável dos psíquicos destreinados começou a fluir de sua mente. Não importava o que lhe causara. Isso acontecera há muitas eras. Agora, Rondo sabia apenas que fora excluído da única coisa em todo o planeta do prazer que lhe proporcionava prazer, o giro e a queda de uma bolinha dourada. Sentia-se magoado, e queria vingança.

E ele ficou parado ali, a mente concentrada na única coisa que fazia sentido: a bola caindo, caindo...

Ao seu redor, o mundo hesitou, parou por completo. A coisa na mente do telepata semipsicótico o paralisava, e também paralisava a única coisa que fazia sentido...

Lá dentro, no salão, setenta jogadores, um crupiê e um gerente, perplexos, olhavam numa incompreensão consternada, enquanto a bola dourada no interior da máquina mantinha-se suspensa em pleno ar, sem se mexer.

Depois de meia hora assim, enquanto os irritados jogadores tornavam a sair para a noite, em busca de outros prazeres, Rondo despertou, e lembrou-se de fugir. A esta altura, no entanto, já era tarde demais.

Deixaram-no finalmente, ensangüentado, mais do que nove décimos morto, caído na sarjeta de uma viela escura, para ser encontrado ali, gemendo, uma hora mais tarde, por dois homens da Força Espacial, que não sabendo quem era, concederam o benefício da dúvida, e levaram-no para um hospital. E ali Rondo ficou por muito e muito tempo...

Quando o mundo recomeçou a girar, ele recebeu dois visitantes.

- Darkover? - murmurou Rondo, sem acreditar. - Por que eu haveria de querer ir para lá? Só sei sobre Darkover que é um mundo de um frio infernal, na beira do universo, e nem sequer integra direito o Império. Outros telepatas? Ora, já é bastante terrível eu ser uma aberração. Acha que me agradaria conhecer outras aberrações?

- Mesmo assim, deve pensar a respeito - insistiu o homem ao lado de sua cama no hospital. - Não quero pressioná-lo, sr. Rondo, mas para que outro lugar poderia ir? É certo que não poderá continuar aqui. E peço que me perdoe por falar com franqueza, mas não me parece que tem alguma chance de arrumar outro emprego.

Ele deu de ombros.

- Encontrarei alguma coisa.

E acreditava nisso. Sempre havia otários desembarcando das grandes naves que chegavam em Keef. Não era um homem marcado em todo o planeta. Ganharia o suficiente em algum jogo, e iria embora. Havia planetas que ainda não visitara.

Rondo só mudou de idéia depois que o segundo visitante apareceu. O plano parecia bastante tentador. Todas as máquinas de jogo eram equipadas, de acordo com as rígidas leis do Império, que não podiam ser violadas, com campos de força à prova de interferências... mas, explicou o visitante, insinuante, tais campos não podiam evitar a ação da PES, a percepção extra-sensorial. Eles providenciariam disfarces, e lhe dariam uma participação substancial nos lucros...

Em meio a toda persuasão, Rondo captou a impressão inconfundível de um gangster. Um grupo assim já o espancara, deixando-o à beira da morte. Deveria agora se envolver com outro?

Rondo era um solitário, assim fora por toda a sua vida, não tencionava mudar agora. Já era bastante terrível ficar à mercê de uma quadrilha. A perspectiva de ser apanhado entre duas fez com que até mesmo seu instinto de jogador autodestrutivo vacilasse.

Além do mais, embora Darkover não parecesse nem de longe o tipo de lugar que poderia apreciar, eles não podiam obrigá-lo a ficar lá. Devia haver um espaçoporto grande no planeta, e onde havia um espaçoporto sempre havia jogo, e onde havia jogo, ele podia ganhar algum dinheiro... e depois haveria outra vez toda uma vasta galáxia à sua espera. Rondo ligou para o número que o primeiro visitante deixara.

Conner estava pronto para morrer.

Descobriu-se a flutuar de novo, como flutuara tantas vezes desde o acidente, um ano antes: sem peso, nauseado, desorientado. Morrendo... só que a morte não se consumava. Não outra vez. Com a overdose, eu estava pronto para morrer. Pensei que acabaria com tudo isso. E agora recomeça. Será este o meu inferno?

O tempo desapareceu, como sempre acontecia, uns poucos minutos, uma hora, cinqüenta anos, flutuando pelo cosmo, e uma voz disse em seu cérebro, em alto e bom tom, sem palavras: Talvez possamos ajudar, mas você deve vir ao nosso encontro. Tanta angústia, tanto terror, não há motivo...

Onde? Onde? Todo o seu mundo, todo o seu ser, um brado silencioso: Onde posso desligar isso?

Darkover. Seja paciente. Eles o encontrarão.

Onde está você que me fala? Onde é esse lugar? Conner tentou focalizar qualquer coisa na espiral interminável.

A voz começou a se desvanecer na distância. Em parte alguma. Não no corpo. Não no tempo e no espaço aqui.

O cordão invisível de contato foi se adelgaçando, deixando-o sozinho naquele inferno de ausência de peso, e Conner gritou, dentro de sua mente: Não vá, não vá, estava comigo Lá Fora, não me deixe agora, não vá...

- Ele está voltando a si - anunciou uma voz sólida e concreta. Conner sentiu o desespero, solidão e angústia desaparecerem sob uma súbita e intensa pontada de vertigem física. Abriu os olhos para deparar com o rosto firme e acusador do doutor Rimini. O médico emitiu alguns murmúrios tranqüilizadores, que Conner ignorou por completo, pois já os ouvira vezes demais antes. Escutou sem falar, prometeu indiferente que nunca mais faria aquilo, e mergulhou na apatia inerte de que só saíra duas vezes, ambas para inúteis tentativas de suicídio.

- Não consigo compreendê-lo - comentou Rimini.

Ele parecia cordial e interessado, mas Conner já sabia agora como as palavras eram vazias. A verdade é que Rimini não se importava, embora o considerassem um obstinado, um caso ainda interessante. Não uma pessoa, é claro, com um sofrimento singular e horrível. Apenas um caso. Ele abriu uma fresta em sua mente para ouvir o médico dizer:

- Demonstrou muita vontade de viver depois do acidente, sr. Conner, e tendo sobrevivido ao pior, parece errado que queira desistir agora...

Mas o que Conner ouviu, com um grito que abafou as palavras de Rimini, foi o medo da morte do próprio médico, que agora lhe pareceu uma coisa doentia, mesquinha, e também o medo de que Conner se tornasse... ele é capaz de ler minha mente, sabe que eu... e o fluxo definhou para um delírio de pequenas obscenidades, que eram pelo menos parte do motivo para sua vontade de se suicidar, não apenas o médico. Havia pessoas demais como ele, até mesmo no hospital, como Conner descobrira, com seus tremores animais, no corpo e na mente, em profunda agonia, embora mais suportáveis do que o mundo exterior, povoado por pessoas preocupadas apenas com suas próprias ânsias, desejos e ganâncias. Rastejara para um buraco no hospital, fechara-se lá dentro, e só saíra para tentar morrer, como uma mudança, mas sem alcançar o êxito.

Quando Rimini tornara a falar, Conner ficara olhando para o teto. Sentia vontade de rir. Só que não em diversão.

Falaram da vontade de viver que ele demonstrara depois do acidente. Fora terrível, uma das grandes naves explodindo no espaço, e o pessoal mal tendo tempo de se espremer nos salva-vidas; quatro deles, em vez disso, haviam escapado nas bolhas de plástico de emergência, ainda experimentais, e assim se lançaram no espaço.

Os outros nunca foram encontrados. Conner especulava às vezes o que lhes acontecera; o sistema de manutenção da vida misericordiosa-mente falhara, permitindo que morressem depressa e sãos? Ou teriam enlouquecido, e vagueado em delírio até a morte? Ainda pairavam na noite infinita? Ele se intimidou ao pensamento. Seu próprio inferno já era bastante terrível.

As bolhas haviam sido projetadas para a proteção por minutos, até o recolhimento por salva-vidas, não por dias ou semanas. O sistema de manutenção de vida era infalível, e não falhara. Funcionara até bem demais. Conner, respirando oxigênio reciclado, alimentado por gotas intravenosas de nutrientes, sobrevivera. E sobrevivera por dias, semanas, meses, num giro interminável, em queda livre, dentro de uma bolha invisível, sem mais nada entre ele e trilhões e trilhões de estrelas.

Não tinha noção do tempo. Não tinha meios de distinguir o que era acima, o que era abaixo, não tinha meios de orientação. Não tinha nada para olhar, a não ser os distantes pontos flamejantes de estrelas, que giravam ao seu redor, em seus dias mínimos, de rotação sobre o seu, próprio centro.

Cinco horas num tanque de privação sensorial, de volta à pré-história da psicologia, levaram homens à insanidade.

Conner passara os primeiros dez dias, ou por aí - pelo que calculara mais tarde - numa esperança desesperada, apegando-se à sanidade, à expectativa de resgate.

E depois, no universo em que era prisioneiro, mergulhara na insanidade. Contemplando seu próprio centro, girava como um deus, e emergia com o conhecimento de que não havia proteção ou morte, nem mesmo na loucura. Não havia sequer a fome para orientá-lo.

Havia apenas sua própria mente... e o universo. E assim continuara a girar, vagueando pelo universo, o corpo para trás, a mente em total liberdade. Visitara mil e um mundos, entrara em contato com mil e uma mentes, sem jamais distinguir sonho da realidade.

Recolheram-no - por puro acaso - cerca de quatro meses depois do acidente. E Conner estava insano, mas de uma estranha maneira. Seu cérebro, deixado sozinho consigo mesmo por tempo demais, aprendera a se projetar, e agora se tornara uma coisa que ele não podia definir, nem os outros eram capazes de imaginar. Fixado num corpo acorrentado à fome, sede, gravidade e estresse, não podia se deixar para trás outra vez; e também não podia suportar a vida que se resignara a perder.

- Sr. Conner, - disse uma voz, interrompendo seus pensamentos, - um visitante deseja lhe falar.

Ele ouviu o homem, sem qualquer curiosidade, desejando que fosse embora, até que aflorou o nome Darkover, e nesse momento não pôde acreditar.

Aceitou apenas para escapar a qualquer contato adicional com o hospital, cujo abrigo se tornara um beco sem saída, uma ratoeira para sua alma. E porque, num mundo de telepatas, podia haver alguém que o ajudasse a controlar aquela coisa, a desligar o pesadelo em que se transformara sem desejar, e sem saber por quê...

E, talvez, pelo menos um pouco, para encontrar a voz em seu sonho...

David Hamilton enxugou o suor do rosto, enquanto passava às cegas pela porta, e se encostava por um instante na parede.

Conseguira desta vez, mas por Deus! O terror cego quando o anestésico começara a apagar a luz...

Não, seria demais. Precisava ir embora. Ao seu redor, o hospital, apinhado de humanos e não-humanos, irradiava sofrimento e angústia através de cada fresta nas paredes; e embora David, por anos de prática, fosse capaz de excluir a maior parte, suas defesas se achavam enfraquecidas pela tensão da operação a que acabara de se submeter, as projeções começavam a assediá-lo por todos os lados.

O mundo inteiro está gemendo de dor? Os nervos aguçados lhe ofereceram um comentário visual absurdo e assustador, um planeta rachado, como um crânio fraturado, um mundo com uma atadura em torno do equador; ele começou a rir, e fez um esforço para parar, uma fração antes de se transformar em histeria.

Não é mais possível. Terei de ir embora.

Não estou insano. Os médicos verificaram tudo isso quando eu tinha dezenove anos, e iniciava o treinamento médico.

Passei pela faculdade de medicina à base de nervos e coragem; e independente de tudo o mais que isso me fez, ou deixou de fazer, proporcionou-me uma capacidade incrível para o diagnóstico. Mas aqui, no hospital, é demais. Sintomas demais, pessoas demais em medo e terror. Dor demais, e tenho de sentir tudo. Não posso ajudá-los por partilhar.

O dr. Lakshman, escuro e sisudo, os olhos cheios de compaixão por baixo da touca cirúrgica de plástico branco, pôs a mão no ombro de David por um breve instante, ao passar pelo corredor. David, recém-saído do horror, encolheu-se ao contato, como aprendera a fazer, depois relaxou; Lakshman, como sempre, era todo simpatia e bondade, um ponto repousante num mundo dominado pelo horror.

- É terrível agora, Hamilton? Está piorando?

David conseguiu exibir um sorriso, arrancado com o maior esforço, e murmurou:

- Com todos os conhecimentos da ciência médica hoje em dia, era de se esperar que conseguissem uma cura para o meu tipo particular de insanidade.

- Não é insanidade, mas infelizmente não há cura - respondeu Lakshman. - Não aqui. Acontece apenas que você é uma aberração de um tipo muito raro, David, e a tenho observado matá-lo pouco a pouco, há mais de um ano. Mas talvez haja uma solução.

- Você não...

David tornou a se encolher; Lakshman, entre todas as pessoas, violara sua confidencia? Em quem podia confiar? O homem mais velho pareceu acompanhar seu pensamento.

- Não, David, não falei a respeito com ninguém, mas pensei em você no instante em que recebi a mensagem. Sabe onde fica a Estrela de Cottman, David?

- Não tenho a menor idéia, nem estou interessado.

- Há um planeta... Darkover é o seu nome. Há telepatas ali, e estão procurando... não, preste atenção - acrescentou ele, com firmeza, ao sentir a tensão de David. - Talvez possam ajudá-lo a descobrir sobre essa coisa. A controlá-la. Se tentar continuar aqui, no hospital... não podem deixá-lo permanecer, David. Mais cedo ou mais tarde, isso vai desviar sua atenção num momento crucial. Seu trabalho é excelente, até agora. Mas é melhor você cuidar disso, ou então esquecer a medicina, e encontrar um emprego no serviço florestal de algum mundo desabitado. E muito desabitado.

David suspirou. Sabia que aquele momento era inevitável, e se tinha de desperdiçar nove anos de estudos e trabalho, não importava muito para onde iria.

- Onde fica Darkover? - indagou ele. - Será que existe ali um bom serviço médico?

 

Eles viram os guardas marchando em torno do homem, que se aproximava através da multidão no espaçoporto. Era quase noite, fria, até gelada, apenas umas poucas nuvens rosadas pairando no lugar em que o sol vermelho estivera, um vento forte erodindo os penhascos escarpados por trás de Thendara. Em circunstâncias normais, haveria bem poucas pessoas nas ruas àquela hora; a noite darkovana chega cedo, e é tão fria quanto seu legendário nono inferno. A maioria das pessoas procura o conforto de aposentos aquecidos e iluminados, deixando as ruas para a neve e para desafortunados terráqueos ocasionais, da Cidade Comercial.

Mas aquilo era uma novidade, e os darkovanos haviam esquecido seus próprios problemas para assistir, seguir e murmurar, com aquele murmúrio singular e terrível que talvez seja a primeira coisa que um terráqueo num mundo hostil aprende a identificar.

Um dos quatro guardas terráqueos, ouvindo o movimento, ficou tenso, e aproximou a mão de sua arma. Não era um gesto ameaçador, apenas uma reação automática, a mão se estendendo apenas para confirmar que a arma continuava ali, se houvesse necessidade. Mas o prisioneiro disse:

- Não.

O guarda deu de ombros, baixou a mão, e respondeu:

- O pescoço é seu, senhor.

Caminhando no meios dos guardas, Regis ouviu o murmúrio, e compreendeu que era dirigido contra ele tanto quanto para os terráqueos que o acompanhavam. E pensou, amargurado: Essa gente acha que eu gosto disso? Tornei-me virtualmente um prisioneiro em minha própria casa, só para evitar esse tipo de demonstração, a vergonha de nosso mundo; um Hastur de Hastur não ousa mais andar em liberdade por suas próprias ruas. É à minha vida que estou renunciando, à minha liberdade, não a deles. São meus filhos, não os deles, que crescem com guardas terráqueos armados vigiando seus quartos. Sou eu que tenho de lembrar a todo instante que uma bala, uma faca, um cordão de seda ou uma fruta envenenada no jantar podem significar o fim da linhagem de Hastur para sempre.

E o que dirão quando souberem que Melora, esperando uma criança minha, será enviada ao centro médico terráqueo para o parto? Já posso ouvir agora. Tentei manter em segredo, mas tive muitos problemas para persuadir sua família, e essas coisas sempre se espalham. Mesmo que houvesse um grande afeto entre nós, isso acabaria com tudo. Melora nem quis me falar quando a visitei pela última vez, e o problema é que não posso culpá-la. Olhou com frieza por cima de minha cabeça, e disse que ela e sua família eram obedientes, como sempre, à vontade de Hastur. E compreendi que o pouco amor e gentileza que houvera entre nós, por uns poucos meses, desapareceram para sempre.

Seria muito fácil amaldiçoar todas as mulheres, mas devo lembrar que aqueles que me amam se encontram sob uma tensão infernal... e isso tem acontecido com todas as mulheres que tiveram o infortúnio de amar um Hastur, desde os tempos da Abençoada Cassilda, minha antepassada, ou pelo menos é o que diz a lenda.

E uma parte da tensão é criada por essa maldita auto-compaixão!

Regis suspirou, fez um esforço para sorrir, e comentou para Danilo, que caminhava ao seu lado:

- Pelo menos sabemos agora como devem se sentir as aberrações apresentadas na Feira do Festival.

- Só que não ganhamos mingau e carne por ter de escutar -sussurrou Danilo.

A multidão se entreabria para lhes dar passagem. Enquanto se encaminhavam para o avião de trânsito especial, Regis sentiu que alguém erguia a mão no meio da multidão. Uma pedra a ser arremessada? Contra ele? Ou contra o guarda terráqueo? Podia captar os pensamentos irados:

"Nosso lorde, um Hastur, prisioneiro dos terráqueos?"

"Foi ele mesmo quem lhes pediu que o escoltassem através de seu povo dessa maneira?"

"Escravo!"

"Prisioneiro!"

"Hastur!"

Era um tumulto em sua mente. A pedra voou. Ele soltou um grunhido, cobriu o rosto com as mãos. A pedra irrompeu em chamas em pleno ar, desapareceu numa chuva de centelhas. A multidão soltou um "Ahhh!" um tanto desesperado, em horror e espanto. Antes que se desvanecesse, Regis deixou que o guarda o ajudasse a subir os degraus para o transporte, arriou num assento, e murmurou, sem se endereçar a ninguém em particular:

- Minha vontade é gritar.

Mas ele sabia que tudo aquilo se repetiria, guardas, murmúrios, ressentimentos, talvez mesmo pedras lançadas, ao pousar em Arilinn. E não havia nada que ele pudesse fazer.

Muito ao leste das Cidades Comerciais e dos terráqueos, as colinas Kilghard erguiam-se altas, e mais além estendiam-se as Hyades e as Hellers, sucessivas cordilheiras, onde humanos e não-humanos vivem nas encostas cobertas por florestas. Um homem a pé podia viajar por meses, ou viver por uma vida inteira, sem nunca alcançar o fim das florestas ou das cordilheiras.

Um dia cinzento e chuvoso rompia sobre uma manhã de desastre, enquanto um grupo de homens, cobertos por peles em farrapos e chamuscadas, descia por uma encosta, na direção de uma aldeia em ruínas. As paredes de uma casa de pedra continuavam de pé, brancas, encharcadas pela chuva, com os restos enegrecidos de uma dúzia de casas de madeira ao redor. Os homens seguiram para o abrigo ainda de pé.

Por trás deles, estendiam-se cinco quilômetros de floresta, um horror calcinado, com filetes de fumaça ainda se elevando, em meio à chuva e granizo. Ao entrarem sob o teto, suspirando e cambaleando de exaustão, um dos homens baixou no chão a carcaça meio queimada de um veado. Gesticulou com a cabeça, e uma mulher de aparência cansada, numa pele chamuscada, adiantou-se para pegar a carcaça. O homem murmurou:

- É melhor cozinhar logo o que resta, antes que estrague. Pouca carne vamos saborear agora neste inverno.

A mulher balançou a cabeça. Parecia extenuada demais para falar. No chão, na outra extremidade do cômodo de paredes de pedra, uma dúzia de crianças dormiam, sobre peles, um estranho sortimento de almofadas e roupas velhas. Algumas levantaram a cabeça, curiosas, quando os homens entraram, mas nenhuma chorou. Todas haviam visto coisas demais nas duas últimas semanas. A mulher perguntou:

- Alguma coisa se salvou?

- Meia dúzia de casas à beira da cidade de Greyleaf. Quatro famílias viverão em cada casa, mas pelo menos não vamos congelar. Não restou nenhuma casa de pé na Floresta de Naderling.

A mulher fechou os olhos, virou o rosto. Um dos homens anunciou:

- Nosso avô morreu, Marilla. Não, não foi apanhado pelo fogo. Fez questão de empunhar uma pá, junto com os outros, nas linhas de fogo, embora eu lhe suplicasse que não o fizesse. Estava disposto a fazer a minha parte e a dele. Mas seu coração não resistiu, e ele tombou morto enquanto jantava.

A mulher, pouco mais que uma menina, pôs-se a chorar, baixinho. Foi pegar uma das crianças menores, automaticamente levou-a ao seio, suas lágrimas silenciosas caindo sobre a cabeça penugenta.

Uma mulher mais velha, os longos cabelos grisalhos desgrenhados em torno do rosto, dando a impressão de que fora arrancada do sono três dias antes, e desde então não tivera um momento de folga para se lavar ou escovar os cabelos, o que de fato acontecera, adiantou-se, e pegou uma concha de cabo comprido na prateleira por cima da lareira. Começou a servir um mingau de nozes em tigelas de madeira, entregando-as aos homens, que sentaram no chão para comer. Não havia qualquer outro som além dos soluços da mulher mais jovem e dos suspiros dos homens exaustos. Uma criança choramingou, no sono, e balbuciou pela mãe. Lá fora, o granizo arremetia incessante contra as persianas de madeira, com um ruído sibilante.

Foi como uma explosão no cômodo quando alguém se pôs a esmurrar a porta, com golpes que pareciam estampidos, ao mesmo tempo em que gritava. Duas das crianças menores despertaram, chorando de terror.

Um dos homens, mais velho que os demais, com um inconfundível ar de comando, foi até a porta, abriu uma fresta, e perguntou:

- Em nome de todos os deuses, por que essa barulheira toda? Depois de oito dias de combate ao fogo, não merecemos uma refeição em sossego?

- Ficará contente em deixar sua refeição quando souber o que temos aqui - respondeu o homem, sacudindo a porta.

Seu rosto se achava sujo de fuligem e fumaça, as sobrancelhas chamuscadas, uma das mãos enfaixada. Ele sacudiu a cabeça por cima do ombro.

- Tragam o bresuin.

Dois homens empurraram para a frente um cativo a se debater, em roupas indefinidas, bastante queimado, cortado, arranhado, sangrando de uma dúzia de ferimentos, que pareciam ter sido causados por espinhos. O homem na porta lançou um olhar rápido para trás, na direção das mulheres e crianças, depois saiu. Alguns dos homens que comiam o mingau largaram suas tigelas, e também saíram. A porta foi fechada. Ficaram em silêncio, esperando para saber qual era o problema. Um dos homens que seguravam o estranho disse:

- Pai, nós o surpreendemos ateando fogo a uma pilha de galhos resinosos, na beira da Floresta de Greyleaf, a menos de sete quilômetros daqui. Armou a pilha de maneira a arder depressa, e se espalhar pelas árvores. Tivemos um trabalho de uma hora para apagar, mas conseguimos... e trouxemos este aqui para você!

- Mas em nome de Sharra e de todos os deuses ao mesmo tempo, - disse o homem mais velho, olhando incrédulo e horrorizado para o prisioneiro, - esse homem é louco? Perdeu o juízo? Você... qual é o seu nome?

O prisioneiro não respondeu, apenas se debateu com um vigor ainda maior. Um dos captores lhe disse, ríspido:

- Fique quieto, ou vou chutar suas costelas até saírem pelo outro lado.

Mas ele pareceu não entender, e continuou a se agitar, até que os dois se puseram a chutá-lo, deixando-o inconsciente.

Os darkovanos ficaram olhando para o homem no chão, quase sem acreditar no que haviam visto e ouvido. Nas montanhas de Darkover, a única ameaça capaz de unir todas as pequenas tribos e famílias anárquicas e independentes, em eterno conflito nas rivalidades de sangue, é a ameaça universal de incêndio na floresta. O homem que viola a trégua do fogo é proscrito até mesmo da mesa de sua mãe. A história de Narsin, que há cem anos, nas Colinas de Kilghard, encontrou o inimigo de sangue de seu pai numa linha de fogo, e matou-o, e em seguida foi retalhado por seus próprios irmãos, por romper a trégua do fogo, existe em meia dúzia de baladas diferentes. A idéia de um homem atear fogo deliberadamente a uma árvore viva era tão inconcebível quanto o pensamento de servir carne de criança em banquetes de festival. Alguns homens fizeram sinais sub-reptícios contra loucura ou infortúnio. O mais velho, um ancião da aldeia incendiada, disse em voz baixa:

- As mulheres não devem ver isso. Já sofreram demais. Alguém traga uma corda.

Um dos homens indagou:

- Não devemos tentar lhe fazer algumas perguntas? Descobrir por que ele fez isso?

- Fazer perguntas a um louco... para quê? Perguntar ao rio por que transborda, ou à neve por que esconde o sol?

Outro homem acrescentou:

- Um homem bastante louco para atear um incêndio na floresta também seria louco para nos explicar o motivo.

O ancião da aldeia perguntou:

- Alguma possibilidade de que seja um terráqueo? Ouvi dizer que eles fazem coisas absurdas.

Um dos jovens, o que informara a jovem Marilla sobre a morte de seu avô, comentou:

- Estive na Cidade Comercial, Pai, e vi os terráqueos quando foram às terras de Alton, anos atrás. Podem ser loucos, mas não a esse ponto. Deram-nos lente para ver longe, e notícias sobre coisas novas, o que chamam de substâncias químicas, para abafar incêndios. Não ateariam fogo a uma floresta.

- É verdade - murmurou alguém. E outro acrescentou:

- Concordo. Lembro quando as montanhas de Carrial pegaram fogo, e vieram homens da Cidade Comercial para nos ajudar a extingui-lo. Voaram até aqui numa nave aérea para nos ajudar.

- Portanto, não tem nada a ver com os terráqueos. - O homem mais velho reiterou: - Tragam uma corda... e não digam uma só palavra às mulheres.

Quando o sol surgiu por trás da crista mais baixa, vermelho, envolto pelo nevoeiro, como o olho chorando de um ciclope, o homem já deixara de se debater, e pendia inerte, como uma bandeira negra, por cima da floresta morta.

Os aldeões, respirando mais relaxados, e pensando que agora talvez cessasse a sucessão de terríveis incêndios, não tinham como saber que nas montanhas dispersas e pouco povoadas, por milhares de quilômetros de florestas, aquela cena, ou algo parecido, repetira-se pelo menos uma dúzia de vezes, ao longo do último ano.

Ninguém sabia disso, exceto a mulher que se dizia chamar Andrea Closson.

- Darkover... É um lugar muito esquisito. Ocupamos algumas partes, por tratados, pela força do comércio, como fazemos com planetas por toda a galáxia. Conhecem a rotina. Não nos intrometemos com os governos. Em geral, depois que o povo dos vários mundos toma conhecimento de nossa tecnologia, logo se cansa de viver sob hierarquias ou monarquias, e exige o ingresso no Império, por sua livre e espontânea vontade. É quase uma fórmula matemática. Pode-se prever o desenlace. Mas não é o que acontece em Darkover. Não sabemos por que, mas eles simplesmente dizem que não temos nada que os interesse...

O Legado do Império Terráqueo, irritado, repetia uma queixa comum aos políticos em Darkover.

- Vocês devem alojá-los, alimentá-los com o melhor, e tratá-los muito bem - repetiu Danilo Syrtis para a pequena multidão de trigueiros montanheses darkovanos.

Ele indicou os quatro terráqueos, vestindo o uniforme da Força Espacial. Ignorou os protestos que pressentiu, e acrescentou:

- É a vontade de Hastur, e... - Ele fez um gesto ritual, pondo a mão no punho da pequena adaga. - Estou autorizado a declarar o seguinte: qualquer insulto a um desses homens será vingado como uma ofensa ao próprio Regis Hastur.

- Vai dom, Syrtis, precisamos ver a Aliança violada em nossas casas? - indagou um dos homens.

Danilo ficou vermelho.

- Não.

Ele virou-se para os terráqueos, e disse:

- Não vão precisar de suas armas aqui. É melhor deixá-las comigo.

Um depois do outro, com evidente relutância, os terráqueos entregaram suas pistolas de choque. Danilo deu-as para um oficial com o uniforme verde e preto da Guarda da Cidade, a quem determinou:

- Mantenha tudo sob a sua guarda até voltarmos.

Ele se afastou, de cabeça baixa, na direção da Torre de Arilinn, que se erguia à beira da pequena pista de pouso. Regis o esperava ali, com seu primo, Lerrys Ridenow, alto, cabelos vermelhos, sombrio, de quarenta e poucos anos, rosto comprido, expressão cínica. Lerrys ofereceu a Danilo uma saudação informal de primo, beijou Regis na face, e disse:

- Então você veio para cá. Pensei que ficaria aconchegado em seu ninho na Zona Terráquea, como um bicho num casulo de seda.

- Mais como um coelho acuado por uma doninha em sua própria toca - murmurou Regis.

Ele seguiu Lerrys para a Torre. Refletiu que nunca sentira tanto alívio em toda a sua vida. Lá dentro, pelo menos, nada poderia atingi-lo, e não precisaria temer o que aconteceria a seu mundo ou sua família se a bala ou faca de um assassino encontrasse o caminho de seu coração. Lerrys perguntou:

- Quer dizer que é verdade que eles o mantinham como um prisioneiro na Zona Terráquea? Ouvimos esse rumor, mas afirmei que nem os terráqueos seriam capazes de mantê-lo, mesmo à força, contra a sua vontade. Por acaso eles dispõem de alguma arma nova contra você?

- Não - respondeu Regis. - Eu é que pedi a guarda. Ele aceitou um odre oferecido por Danilo.

- Obrigado. Eu estava mesmo com sede. Mas... não vai provar antes, para verificar se contém veneno?

Danilo ficou abalado, e pegou a mão de Regis, com uma expressão de horror. Regis desvencilhou-se, rindo.

- Era brincadeira, cérebro de pudim. Tenho de rir de tudo isso, Dani, ou entrarei em depressão.

- Não me parece que há motivo para rir, - interveio um homem, do canto da sala, - quando trata seus captores como hóspedes honrados, só para preservar sua vida miserável por mais algum tempo, Regis.

- Deixe-o em paz, - protestou Lerrys, - e promova uma trégua, Rannirl. Ele já tem problemas suficientes, e se encontra na linha de fogo. Já o seu pescoço é tão inútil que ninguém se dá ao trabalho de fixar um preço. Desculpe, Regis. Fui eu que comecei tudo isso, e só pretendia lhe fazer uma pergunta: a situação em Thendara neste momento é tão ruim assim?

Foi Danilo quem respondeu:

- É pior do que pode imaginar, mas não por culpa dos terráqueos.

- Mas por que trazer homens da Força Espacial para cá? E ainda por cima de uniforme, com pistolas de choque?

- Não são más pessoas - murmurou Regis, cansado. - Não acha que seria mais fácil para eles cruzar os braços, e deixar que alguém nos mate, um a um? E é preciso um tipo especial de heroísmo. Todos os quatro se apresentaram como voluntários para me acompanharem até aqui, mesmo sabendo que seriam escarnecidos e insultados por protegerem alguém cuja vida nada significa para eles, pessoalmente. Às vezes posso até admirá-los.

- Todos sabemos disso - comentou Lerrys. - Eu também posso. Há alguns anos, quis inclusive fazer uma aliança com a Terra. Mas, se bem me lembro, os Hasturs foram contra.

- Éramos contra, e ainda somos - declarou Regis, paciente. - E sabe disso tão bem quanto eu. Todos vocês.

Ele correu os olhos pela sala, muito antiga, com tapeçarias ao estilo de Darkover, com painéis de luz translúcidos. Fixou em breve saudação cada pessoa, meia dúzia de homens, uma quantidade maior de mulheres, quase todos de cabelos vermelhos, aristocratas darkovanos da casta dos telepatas, todos da pequena nobreza.

- Vim a pedido de vocês. Mas por que me chamaram?

- A iniciativa foi minha.

Danvan Hastur levantou-se, encaminhou-se para Regis, que se abaixou, apoiado num joelho, num antigo gesto formal. O velho pôs as mãos nos ombros do neto, assim as manteve por um longo momento, numa profunda afeição.

- Não permiti que tomassem qualquer decisão antes de chamá-lo, Regis.

Regis fitou o avô nos olhos, e sentiu um choque de temor. O velho parecia muito cansado agora, ainda mais frágil. Ele pensou: Desde a infância que me apoiei em sua força, como todo mundo; agora, ele definha dia a dia, e eu me tornei o rochedo em que meu povo pode se apoiar ...e me descubro com os pés em areia movediça!

- Alguma novidade, Avô?

Regis levantou-se, enquanto Danvan respondia:

- Nenhuma, apenas a mesma coisa de sempre. Eu mesmo enfrentei esse problema, com a ajuda de Kennard e do Conselho do Comyn, há vinte anos. A mesma coisa de sempre... um clamor pela participação mais ativa dos terráqueos aqui, na mineração, indústria, investimento, e todo o resto. As mesmas pessoas de sempre, que só conseguem perceber os lucros, e esquecem os efeitos secundários de um mundo industrializado. Mas agora temos um fato novo, e juro por Cassilda que não sei o que lhes dizer. Podemos lidar com a ganância, mas o que ocorre agora... Talvez não tenhamos opção que não pedir a ajuda do Império, Regis.

Uma declaração dessas do avô, sempre o maior defensor na longa luta para manter Darkover à margem do Império, foi como uma ponta de gelo no coração de Regis. Mas ele fez um esforço para falar com calma:

- Vamos descer, e ouvir o que eles têm a nos dizer.

Enquanto o grupo seguia para a porta, uma jovem aproximou-se de Regis, e disse, tranqüila:

- Talvez não se lembre de mim, Lorde Regis.

- Não, não lembro.

Ela era bastante jovem, um rosto adorável, no formato de coração, os cabelos vermelhos escuros de sua casta, com um ar de serenidade e controle que contrastava com sua juventude.

- Será remediado na próxima vez em que nos encontrarmos, damisela. Empresta-me sua graça; em que posso servi-la?

- Sou Linnea de Arilinn, nascida em High Windward, e há dezessete anos trabalho nas redes de transmissão aqui, Lorde.

Regis corou um pouco.

- Então já devo ter feito contato com sua mente, muitas vezes, sem saber. Perdoe-me, mas vivo há tanto tempo entres pessoas de outros mundos que mantenho minhas barreiras erguidas em todos os instantes, sem percebê-lo.

- De qualquer forma, sei o que está acontecendo em Thendara, e sei também que procura telepatas para trabalharem nesse projeto com os terráqueos.

Os olhos de Regis fixaram-se com algum alívio no rosto meigo e jovem, e ele pensou: Gostaria que ela estivesse conosco lá. Tenho certeza que compreenderia. Mas tratou de resistir à tentação.

- Criança, temos bem poucos Guardiães para operarem as poucas redes e círculos de transmissão telepática de que ainda dispomos. Você é mais útil em seu posto em Arilinn, trabalhando nas telas de matriz.

- Sei disso, Regis. Não me referia a mim, e além do mais não sou uma telepata tão boa. Falava... de minha avó, que foi treinada como Guardiã de matriz quando era jovem. Renunciou a seu posto e casou, no início da adolescência, mas não pode ter esquecido o antigo treina-mento nas montanhas.

- Perdoe-me, mas não conheço sua família. Quem é sua avó?

- Desideria Leynier. Casou com Storn de Storn, e minha mãe foi sua terceira filha, Rafaela Storn-Lanart.

Regis sacudiu a cabeça.

- Ela deve ter sido Guardiã muitos anos antes de meu nascimento. Tenho a impressão de que já ouvi o nome, mas ela deve ser mais velha do que... Pensei que não havia mais ninguém vivo daquele grupo treinado pelos Aldarans. Ela era... - O rosto de Regis tornou-se de repente tão branco quanto os cabelos. - ...foi uma das pessoas que despertaram Sharra nas colinas, há setenta anos? Muito antes das rebeliões, é claro...

- Nossa família sempre honrou a deusa da forja, mas nada tivemos a ver com os abusos desse poder que se cometeram mais tarde -garantiu Linnea, calmamente.

- Sei disso, ou teriam todos morrido quando a matriz de Sharra foi destruída. - A cor normal começou a voltar ao rosto de Regis. - Neste caso, se sua avó não é idosa demais para fazer a viagem desde as colinas...

- Ela é bastante idosa, Lorde Regis, mas fará a jornada mesmo assim - respondeu Linnea, com um brilho malicioso nos olhos cinzas. - E tenho certeza de que vai descobrir que minha avó é uma pessoa surpreendente.

Num súbito impulso, Regis puxou a mão da jovem para seu braço, ao entrarem na câmara inferior do Conselho. Sentia-se menos sozinho de repente.

Como o Velho Hastur dissera, muito do que acontecia no Conselho era a mesma coisa de sempre. Regis vinha ouvindo tudo há sete dos seus vinte e quatro anos, e mesmo antes já lhe era familiar. Há quase cem anos que havia sempre um ou outro grupo em Darkover fascinado pela tecnologia terráquea, e os hipotéticos benefícios do ingresso na civilização interplanetária. Eram uma minoria, e quase nunca mereciam maior atenção. A intervalos de poucos anos, o Conselho lhes concedia uma audiência formal, agradecia suas opiniões, votava solenemente por ignorar as recomendações, e tudo continuava em suspenso por mais algum tempo. Aquela reunião não deveria ser exceção. Regis sentou no lugar que lhe era designado, com a insígnia de Hastur, o pinheiro prateado sobre fundo azul, com o lema da família, Permanedó (Aqui permanecemos). Olhou ao redor, os assentos antigos ocupados agora pelos poucos remanescentes da casta dotada de laran, a pequena nobreza, os filhos mais jovens, qualquer um que pudesse ou quisesse assumir a responsabilidade por um dos Domínios.

Ignorou a primeira delegação, um grupo de presunçosos empresários, que se intitulavam de Liga Pan-Darkovana. Mostraram-se insinuantes. Apesar de suas queixas, não estavam sendo prejudicados, embora houvesse a perspectiva, Regis não podia deixar de admitir, de polpudos lucros na expansão da civilização, e se afligissem por perdê-los.

Mas quando a delegação dos contrafortes das Hellers foi introduzida, Regis empertigou-se em sua cadeira, e passou a prestar toda a atenção. Conhecia alguns dos homens das montanhas. Realizara escaladas com eles, nos dias em que ainda podia escapar para tais aventuras. Vivera à beira das montanhas durante toda a sua existência. Sob muitos aspectos, apreciava-os mais do que aos complacentes habitantes das Terras Baixas dos Domínios.

Aqueles eram homens das montanhas ao estilo antigo, de botas, envoltos por mantos de pele, morenos, cabelos compridos. Alguns ainda eram jovens, mas já tinham o rosto vincado pelo tempo inclemente, os olhos enrugados por esquadrinharem por longas distâncias. Fitaram Regis com o antigo respeito devido à casta do Comyn, uma percepção direta e simples; mas exibiam olhos dominados pela fadiga e angústia, suportadas por muito mais tempo do que os homens deveriam ser capazes de agüentar. Embora tentassem falar com uma calma estóica, não era possível evitar que isso transparecesse.

O líder era um velho barbudo e grisalho, com um perfil que parecia um dos penhascos escarpados por trás da cidade. Dirigiu-se ao Velho Hastur, apesar de Regis estar sentado à cabeceira do Conselho:

- Sou Daniskar, de Daniel Forst. Jurei há trinta anos que passaria fome até a morte, junto com toda a minha família, antes de descermos às Terras Baixas para pedir ajuda ao Comyn, muito menos aos amaldiçoados terráqueos.

Ele parecia prestes a cuspir, obviamente se lembrou a tempo do lugar em que se encontrava, e não o fez.

- Mas agora estamos morrendo, Lorde. Nossas crianças definham de fome, à beira da morte.

As minhas também, pensou Regis, não de fome, mas morrendo. Ele inclinou-se para a frente, e falou na língua das montanhas:

- Com'ii, assumo a culpa por não termos ouvido falar do fracasso das colheitas e da fome em suas colinas.

Daniskar sacudiu a cabeça.

- Não temos colheitas ali, Lorde. Não há terra arada para colheitas. Vivemos das florestas, e é esse o problema, pois estão sendo queimadas. Vai dom, sabe quantos incêndios florestais já tivemos só nesta estação? Não acreditaria se eu lhe dissesse. E nada do que fazemos consegue evitá-los. Incêndios nas florestas não são uma novidade; já lutava contra o fogo antes mesmo de minha barba nascer. Sei tanto quanto qualquer outro homem, do Kadarin à Muralha ao Redor do Mundo, sobre o fogo na floresta. Mas estes incêndios... todos os nossos esforços para contê-los são em vão. A impressão é que derramam combustível de resina sobre o fogo. Nossos vigias não conseguem detectá-los a tempo. Eu diria até que são ateados por mãos humanas, mas não posso acreditar que existam homens tão diabólicos. Homens podem matar homens, se os odeiam, mas destruir uma floresta para que homens que nunca lhe fizeram mal também sofram, tanto amigos quanto inimigos?

Regis escutou em choque e horror, vendo o seu horror refletido nos outros rostos do Conselho. Sua mente, treinada para pensar em muitos níveis ao mesmo tempo, seguiu uma linha em contraponto às palavras de Daniskar. Darkover é um mundo florestal, e morreremos sem as nossas florestas. Sem cobertura para os animais, não há carne para aqueles que os comem, não há nozes para o pão onde os cereais não crescem, não há peles para aquecer, não há combustível onde a ausência de fogo acarreta o congelamento e a morte. A morte da floresta significa que não há resina ou fosforescentes para a iluminação, significa que não haverá mais solo, pois só as florestas mantêm o solo nas montanhas, e em sua ausência a chuva e a neve farão tudo deslizar para as Terras Baixas. Sem florestas, mais da metade de Darkover logo se tornaria um deserto de poeira congelada, com todos definhando e morrendo.

- Vocês dizem belas palavras sobre nos manter livres do Império Terráqueo - disse um dos homens de negócios, olhando beligerante para os membros do Conselho, em particular para os dois Hasturs. - E têm o direito de impor sua política, embora eu tenha notado que não hesitam em aproveitar as coisas terráqueas, quando são bastante ricos para desfrutá-las. Como vir para cá de avião, em companhia de guardas, em vez de atravessarem as montanhas a cavalo, em trenós, como eu fiz. Não vou dizer que estão completamente errados, pois alguém que recebe uma ajuda, sempre deve retribuir. Mas até que ponto pretendem nos levar em defesa dessa coisa a que chamam de liberdade, vai dom'ym? Todos os nossos habitantes das montanhas devem morrer antes de pedirem aos terráqueos para nos tirarem do atoleiro? Nós lhes demos um espaçoporto, uma escala importante em seu Império. E poderíamos ocupar um lugar de destaque nesse Império. Por que não exigimos que eles nos dêem mais?

- Não estamos preocupados com isso - declarou Daniskar. - Também não queremos os terráqueos aqui, Lordes. Precisamos de mais ajuda do que vocês podem nos oferecer. Eles dispõem de máquinas voadoras, substâncias químicas, comunicações rápidas, poderiam usar tudo isso para nos ajudar.

- Quer estradas, fábricas e máquinas em seu mundo, Daniskar? -, perguntou o Velho Hastur. - Quer outra Cidade Comercial nas Hellers?

- Não, Lorde. Já estive uma vez na beira de uma Cidade Comercial, e elas são repulsivas. Mas seria melhor do que ver todo nosso povo morrer. Precisamos da ajuda de alguém, e depressa... ou não restará o suficiente de nós para se importar com o que possa acontecer no futuro!

E os terráqueos, Regis sabia, teriam o maior prazer em ajudar. Mundo após mundo haviam sucumbido ao Império dessa maneira. Uma estação desfavorável, uma epidemia, um excesso de mortes pela inanição, e o mais orgulhoso dos mundos, sabendo que não havia agora alternativas para as duras leis da sobrevivência do mais forte, não mais se sentia disposto a se submeter a essas leis.

É como se os deuses estivessem contra nós.

Primeiro, os telepatas desaparecem. Um a um, em rivalidades de sangue fratricidas, ou estéreis da endogamia, ou pelo assassinato e infortúnio. Nossa antiga ciência definha por falta de mentes telepáticas para operarem as matrizes.

E, agora, nossas florestas.

Muito em breve, não teremos opção.

Mas por quê? E quem?

Foi como um súbito lampejo; não era um golpe dos deuses. Era deliberado demais. Darkover estava sendo assassinado; não morrendo de causas naturais, mas sendo assassinado.

Mas quem haveria de querer destruir um mundo? Quem lucraria com isso?

Depois que a delegação das montanhas concluiu sua exposição, todos ficaram esperando pela palavra de Regis. Até mesmo o avô fitou-o, para ver o que ele diria.

E o que ele podia dizer?

- Devem receber ajuda para esse problema do fogo, - disse Regis, depois de um longo momento de silêncio, - toda ajuda que puderem obter, quer venha do Império Terráqueo, ou de qualquer outra parte. Mas ainda não me sinto disposto a lhes pedir que reclassifiquem nosso mundo para uma posição de Aberto, só por causa disso. Até agora, pudemos pagar pela ajuda que pedimos. E se for necessário, posso empenhar meus recursos particulares para obter a ajuda necessária.

Ele não precisava olhar para o avô em busca de aprovação para esse compromisso um tanto temerário; era a única coisa a fazer, nas circunstâncias.

- Também podemos fazer exigências aos chefes nas Terras Baixas, extrair deles uma parte do pagamento.

Um dos homens da Liga Pan-Darkovana interveio:

- Espera que aceitemos a falência por causa disso? Se tivéssemos a posição de Mundo Aberto do Império, poderíamos exigir esse tipo de ajuda como um direito, e haveria investidores externos para nos ajudar a explorar nossos recursos inaproveitados, mais do que suficientes para qualquer pagamento.

Regis respondeu, secamente:

- Meus agradecimentos pela aula de economia elementar. Não obstante, embora tenha certeza de que realizou um estudo meticuloso do problema, não posso concordar com você sobre o que seria explorado.

Seus olhos, de um cinza duro e penetrante, fixaram-se furiosos nos olhos do delegado das Terras Baixas, e foi o outro homem que desviou o rosto.

Era uma manobra protelatória, Regis sabia, não uma vitória. Podiam enfrentar os incêndios nas florestas, se fosse apenas uma estação de infortúnio especial, ou uma sucessão de catástrofes naturais. Mas em combinação com o ataque aos telepatas - minhas crianças, pensou ele de novo, com a angústia familiar, e tentou excluir de sua mente a lembrança-imagem muito vivida, quase visível, dos dois rostinhos em seus caixões - ou se alguma força desconhecida estivesse de fato se empenhando para subverter o delicado equilíbrio em Darkover, então a situação era desesperadora. Os darkovanos podiam insistir em seus padrões, e morrer... ou mudar de uma forma tão radical que seria uma forma de morte para a maioria dos que a conhecessem.

Existe alguma esperança? Ou estamos todos condenados?

Regis adiara uma decisão, mas ao encerrarem a sessão, deixando a câmara do Conselho, ele sabia que teria de assumir o fardo, pessoalmente, mais pesado do que nunca. Parou para dizer algumas palavras corteses a Daniskar, de Daniel Forst. Os outros nobres se apressariam em cumprimentar os pan-darkovanos, mas os homens sensíveis e orgulhosos das montanhas não deviam ser negligenciados. Ao se despedir do chefe, ele percebeu que a jovem Linnea ainda se mantinha ao seu lado, não mais o tocando (o contato físico era raro na casta dos telepatas, exceto em encontros sexuais ou emocionais diretos), mas ao alcance de sua percepção. Regis virou-se, sorriu para ela, cansado, e disse:

- Esta não é a primeira sessão do Conselho assim, mas eu diria que foi a pior.

Ela acenou com a cabeça, com uma expressão sombria.

- Aqueles pobres homens... São o meu povo, Lorde Regis, homens de nossas aldeias, e eu não sabia, pois me encontro há muito tempo nas Terras Baixas. É terrível para eles. E para você... Regis, Regis, eu não sabia de seus filhos...

Ela ergueu o rosto para fitá-lo. Quando seus olhos se encontraram, houve um contato súbito e profundo, e Linnea sussurrou:

- Deixe-me lhe dar outros.

Regis levantou as mãos, devagar, segurou as faces da moça. Como ela, sentia-se comovido demais para falar. Por um instante, o tempo parou, e os dois se uniram com mais intensidade do que em qualquer ato de amor.

Era uma coisa nova para Regis, embora já tivesse atraído muitas mulheres, ao longo de toda a sua vida. Mas, de um modo geral, pelas razões erradas. E um telepata nunca podia ignorar as razões. Muitas haviam se sentido atraídas por sua posição e poder, uma quantidade ainda maior por sua extraordinária beleza, por causa de sua vitalidade, até mesmo - e ele sabia disso - por sua intensa sensualidade. Tornara-se cético em relação às mulheres, mesmo enquanto aceitava o que lhe ofereciam. Em particular durante os últimos anos, a promiscuidade era esperada, até mesmo recomendada, entre os jovens telepatas de sua casta.

A oferta em si não era novidade. Regis sabia, sem nenhuma vaidade, que podia ter virtualmente qualquer mulher que desejasse, e por isso não eram muitas as que queria.

Mas esta era a primeira vez que uma moça de sua casta - e começava a perceber que Linnea era uma telepata extraordinária - oferecia-se com tanta simplicidade. Não era por compaixão, mas sim porque ela partilhava, de forma súbita e profunda, a emoção de Regis. Não havia insinuação da posição que Linnea, de uma casa menor, poderia alcançar ao gerar um herdeiro com laran para Hastur. Também não havia qualquer senso, exceto talvez no nível mais profundo, de desejo sexual; como a maioria dos homens muito bonitos, Regis cansara-se disso, e repugnava-o, em vez de agradá-lo.

Nada disso. Linnea apenas sentira como sua vida se tornara difícil, e através daquele momento de partilha queria atenuar sua angústia, oferecendo o que tinha para dar.

Mantiveram esse contato só por alguns segundos, mas ambos sabiam que o mundo mudara para eles. Depois, as engrenagens do universo recomeçaram a se movimentar ao redor, e os dois retornaram aos jogos elaborados da vida comum. Regis suspirou, baixou as mãos, inclinou-se para a frente, e beijou-a de leve nos lábios. Foi com um pesar infinito que murmurou:

- Não agora, minha querida. Se mais tarde formos abençoados... mas neste momento precisamos de você onde está. Há bem poucas moças agora capazes de operar nas redes de matriz. Como eu poderia apagar mais luzes em nosso mundo?

Ela balançou a cabeça, numa terna e profunda compreensão.

- Sei disso. Se muitas de nós nos afastarmos ao mesmo tempo, seremos o que os terráqueos nos chamam, um mundo de bárbaros.

As mãos cruzadas se separaram. Não precisavam de compromissos ou promessas para o que era uma parte tão profunda de ambos. Regis, no entanto, tornou a se inclinar para a frente, puxou-a para a curva de seu braço, dominado por um repentino espasmo de medo.

Uma criança de Linnea seria preciosa demais para arriscar ao destino...

Devo temer por ela também? Linnea seria o próximo alvo?

O chieri saiu da floresta, atordoado, os olhos desvairados. Mesmo em Darkover, onde humanos e meio-humanos viviam lado a lado desde a pré-história de seu mundo, era uma cena para atrair uma multidão; e foi o que aconteceu. Murmúrios de espanto e admiração ressoaram pelas ruas, enquanto a criatura alta e estranha avançou, em passos lentos e determinados, sobre o calçamento de pedras, pelo qual nenhum de sua espécie jamais passara antes.

Os chieri eram lendários; a maioria das pessoas nunca acreditara muito em sua existência, e quando se espalhou o rumor de que um chieri, vivo, caminhava pelas ruas da cidade, todos deixaram suas casas para ver, recuando com sussurros espantados, enquanto o não-humano se encaminhava - devagar, deliberado, mas com alguma relutância - para a Torre de Arilinn.

Parecia se mover cada vez mais devagar, até que parou por completo. Virou-se para a multidão, e disse alguma coisa, num apelo. A voz era clara, suave e bela, como diziam as lendas, mas as palavras incompreensíveis, e as pessoas se limitavam a fitá-lo, sem entender, até que um velho, numa túnica de sábio, disse:

- Deixem-me passar. Creio que ele está falando numa modalidade muito antiga do casta. Já a vi escrita em livros de um passado remoto, mas nunca pensei em falá-la. Tentarei agora.

A multidão deu passagem ao velho, que fez uma reverência profunda ao não-humano, e murmurou:

- Honra-nos com sua presença, meu Nobre. Como podemos servi-lo?

O chieri disse, devagar, como se as palavras estivessem enferrujadas pela falta de uso:

- Eu sou... muito estranho aqui este lugar. Tenho sido... - Uma palavra que ninguém conseguiu entender. - Há um Hastur aqui. Pode me mostrar onde ele está?

O velho sábio respondeu:

- Basta me seguir, Nobre.

Ele se encaminhou para a Torre. Mais tarde, disse aos amigos:

-  Percebi que ele estava com medo, e de uma maneira como nenhum de nós jamais se sentiu. Ainda tremo todo só de pensar a respeito, em todo aquele pavor. O que terá acontecido?

Regis Hastur comia em seus aposentos na Torre de Arilinn, preparando-se para voltar no avião que o trouxera, quando um dos jovens trabalhadores de matriz, um rapaz de dezessete ou dezoito anos, apareceu na porta.

- Vai dom...

Regis virou-se, e disse, cortês:

- Em que posso servi-lo, Marton?

- Há um chieri no portão lá embaixo, Lorde, pedindo para falar com o Hastur.

- Um chieri? - Regis soltou uma risada. - Há ocasiões em que a linguagem que vocês usam em Arilinn ainda me confunde. Entendi errado. Um kyrri, diríamos em Thendara, um de seus servidores não-humanos aqui. Pode descobrir o que ele quer comigo?

- Não, Lorde, não é um kyrri. - Marton parecia escandalizado. -Como se algum deles pudesse ter tamanha presunção! É mesmo um chieri, Lorde Regis, um emissário do Belo Povo da Floresta.

Surpreso, Regis murmurou:

- Se isso é uma brincadeira, não poderia ser mais inoportuna. Mas outro olhar para Marton convenceu-o de que o rapaz estava tão surpreso e incrédulo quanto ele. Regis tratou de se levantar, e desceu para a entrada da Torre.

Um chieri! Já no tempo de seu avô corria o rumor de que restavam bem poucos, talvez mesmo nenhum, da raça mais antiga em Darkover, sobrevivendo nas profundezas das florestas. Nunca, na memória viva, nenhum saíra da floresta; no máximo, havia relatos estranhos de pessoas perdidas ou feridas na floresta, socorridas por mãos estranhas e vozes gentis, conduzidas para o caminho certo, não mais do que isso.

Ele emergiu dos corredores escuros para a pálida claridade do sol nascente, e ali, parado no meio de um círculo respeitoso de servidores, os peludos kyrri, os soldados uniformizados da Guarda da Cidade e alguns espectadores, pela primeira vez avistou um chieri.

Parecia completamente apartado dos outros, como um rapaz muito alto, talvez uma moça, só que as feições eram muito delicadas e pálidas para serem humanas. Era mais alto do que Regis, quase que por uma cabeça inteira. Tinha cabelos claros, que brilhavam como prata. Virou-se devagar para Regis, movimentando-se com uma graça e beleza alienígenas, desconhecidas da humanidade; e depois os olhos de Regis encontraram-se com os do chieri.

O chieri tinha olhos cinzas claros, com traços prateados nas profundezas; e fitando aqueles olhos não-humanos, Regis parou de pensar em termos de reverência e espanto, em termos das antigas lendas. Compreendeu subitamente que aquele chieri era apenas uma jovem criatura, muito confuso com as estranhas cenas da cidade, bastante assustado. Estendeu as mãos, numa simpatia repentina e espontânea, e disse em casta, a língua arcaica e pouco usada dos Domínios do Comyn:

- Por que veio para cá, pobre criatura? Sou Regis Hastur, neto de Hastur, e estou a seu serviço. Não quer sair do frio... e ficar longe de todos esses olhos?

- Eu agradeço, jovem Hastur.

Regis recuou, em cortesia, para deixar o chieri entrar. Com um aceno de mão, dispensou os guardas e os outros. Danilo foi atrás, enquanto Regis levava o chieri para uma das pequenas salas de recepção no andar inferior, uma sala de pedras brancas translúcidas, com tapeçarias luminosas. Regis gesticulou para que o chieri sentasse, mas o não-humano permaneceu de pé. Deu a impressão de entender mal o gesto, e disse, em sua fala hesitante, lenta e arcaica:

- Chegou a nós na Floresta Amarela, Hastur, que procura por aqueles com os antigos poderes... para estudar esses poderes, saber mais sobre eles, de onde vieram, e que tipo de criaturas os possuem.

- É verdade. - Regis compreendeu que o chieri já imitava seu jeito de falar, e podia agora entender direito tudo o que ele dizia. - Mas como souberam disso na Floresta Amarela, Nobre?

- Nós, chieri... como somos hoje... sabemos coisas, Lorde de Hastur. Achamos que um dos nossos deveria vir, e acompanhá-lo em sua busca, se concordar. E como eu era o mais jovem, e acharam que eu podia... me ajustar... com mais facilidade a deixar a Floresta, passando a viver entre a humanidade, fui instruído a vir procurá-lo, e fazer como me determinar.

- E teve de percorrer um longo caminho? - indagou Regis, espantado.

- Muitos e muitos dias de jornada, Regis Hastur. Fui primeiro a Armida, pois meu povo conheceu alguns jovens de lá, uma geração atrás; mas haviam desaparecido todos os Altons, e por isso vim para cá.

Danilo adiantou-se, gesticulou para Regis. Não falou em voz alta, mas através de contato mental: "Tem certeza de que pode confiar neste não-humano? Tem certeza de que não é uma armadilha?".

- Não é - declarou o chieri, em voz alta, virando-se para Danilo, com um sorriso. - Não tenho contato com os inimigos de seu amigo; antes deste dia, nunca havia falado com um homem de seu povo, Danilo.

- Sabe meu nome?

- Perdoe-me... não conheço seus costumes... é uma grosseria dizer o nome?

- Não - respondeu Danilo, aturdido. - Apenas não sei como o descobriu, mas deve possuir um fantástico poder telepático... mais do que estou acostumado a encontrar em não-humanos.

Os olhos cinzas do chieri fixaram-se nos de Danilo por um minuto; depois, o chieri sorriu, e disse a Regis:

- É afortunado por seu amigo; ele o ama muito, e o protegeria com sua própria vida. Não obstante, peço que o tranqüilize, pois não pretendo causar mal a você, ou à sua espécie. Não poderia, mesmo que quisesse.

- Sei disso.

Regis sentiu-se de repente satisfeito e à vontade. Conhecia as antigas histórias sobre os chieri, de sua beleza e bondade, e embora aquele parecesse jovem e assustado pela estranheza de tudo ali, Regis compreendeu que não haveria ameaça de sua parte.

Danilo fez menção de falar, mas depois olhou do chieri para Regis, e se espantou com algo estranho. O não-humano era mais alto, em cerca de uma cabeça, e mais esguio, o rosto estreito, as mãos pálidas de seis dedos muito longas e graciosas; contudo, a semelhança, como uma sombra, era inequívoca, acentuada pelos cabelos prematuramente brancos de Regis, nas feições características do antigo tipo do Comyn em Darkover.

Algumas das antigas famílias costumavam dizer que tinham algum parentesco com os chieri. Danilo pensou: Agora posso acreditar nisso.

- Está disposto a voltar conosco para Thendara? - perguntou Regis.

- Vim até aqui para isso. - O chieri olhou ao redor, num apelo quase em pânico. - Não estou acostumado a ficar... entre paredes.

Como o pobre-coitado reagirá no avião?

- Cuidarei de você - prometeu Regis. - Não precisa ter medo.

- Tenho medo porque é muito estranho, e nunca antes estive longe da sombra de minha floresta.

A confissão de medo tinha uma profunda dignidade, o que aumentou o respeito e simpatia de Regis. O chieri acrescentou:

- Mas, afora isso, não tenho medo, e estou à sua disposição.

- Qual é o seu nome? - indagou Regis. - Como podemos chamá-lo?

- Meu nome é muito longo, e seria difícil pronunciá-lo em sua língua. Mas quando eu era bem pequeno, chamava a mim mesmo de s'Keral. Pode me chamar de Keral, se quiser.

Regis chamou um criado, e pediu-lhe que transmitisse a ordem para aprontar o avião para a partida. Seu cérebro era um turbilhão.

Poucos meses haviam transcorrido desde que fora instituído o projeto de estudar os poderes telepáticos, junto com o centro médico do Império Terráqueo. Não mais que meia dúzia de darkovanos haviam se prontificado a participar do projeto. E, agora, um chieri, a mais antiga e menos conhecida das raças não-humanas de Darkover, tradicionalmente a mais apartada da humanidade (apesar das histórias antigas, nunca mais do que lendas, sobre chieri e mortais), apresentava-se como voluntário... depois de se esconderem por séculos, até mesmo do Comyn, exceto pelas lendas, tão impalpáveis quantas folhas sopradas pelo vento.

Como isso acontecera, e quais seriam as conseqüências?

Regis refletiu de repente que não podia sequer determinar se aquele estranho ser que emergira da floresta era homem ou mulher. Em sua determinação e força, na maneira imediata com que tranqüilizara Danilo, parecia um homem; mas a voz e as mãos delicadas, os cabelos longos e os trajes leves, a timidez, e o modo pelo qual, ao passarem por portas, agarrava a mão de Regis, numa renovação do pânico, eram femininos. Será que eles possuem algum sexo? Havia uma piada antiga sobre os não-humanos cralmacs que se tornara um provérbio em Darkover: O sexo de um cralmac não é de interesse para ninguém, a não ser de outro cralmac. Ele refletiu que a mesma coisa se podia dizer sobre a aparente assexualidade do chieri.

Terei de me lembrar que Keral não é humano. Mas desde o momento em que ele entrou em contato comigo, tive a impressão de que era bem humano, um dos meus, mais do que a maioria das pessoas que conheço...

Não é de admirar que as lendas falem de humanos que morreram de amor depois de verem um chieri nas florestas... e definharam à espera de uma voz, uma beleza mais do que mortal... Regis ficou chocado, aturdido com o rumo de seus pensamentos. E disse a Keral, sem fitá-lo:

- Partiremos em breve.

Depois, ele saiu para se despedir do avô.

 

Um HOSPITAL era um hospital, mesmo na outra extremidade da galáxia. David acordou cedo, sem saber direito onde se encontrava, até abrir os olhos, mas antes mesmo sentiu o ambiente familiar ao seu redor, o contexto de vida de tantos anos, que se tornara como uma segunda natureza: a preocupação de médicos atarefados, a sensação subliminar de dor mantida sob controle, o ritmo acelerado de cura.

Quando abriu os olhos, lembrou-se de que estava em Darkover, a incontáveis anos-luz de distância de seu lar, e que fora alojado num hospital não por ser médico, mas por causa da natureza médica do projeto.

Aberrações e telepatas... e serei um deles! Para que tipo de planeta me enviaram?

Tudo o que recordava do desembarque na noite anterior - todos os espaçoportos eram iguais - era o vislumbre de uma lua enorme, luminosa, de um púrpura pálido, e outra, menor, em quarto crescente, flutuando baixa num céu noturno de estranhas cores.

A luz no quarto era amarela, a normal da Terra, mas quando ele foi até a janela divisou montanhas altas, escuras e escarpadas, e um imenso sol vermelho, já bem elevado no céu. Acordara tarde; haviam-no deixado dormir, mas provavelmente alguém viria chamá-lo, mais cedo ou mais tarde. Por mais que se esforçasse - e bem que tentara, a bordo da espaçonave que o trouxera - não conseguia sentir muito entusiasmo pelo projeto. Afinal, não queria mais do talento aberrante que acabara com a carreira que escolhera; ao contrário, queria se livrar dele!

Mas é possível que isso me ajude, refletiu David, enquanto virava as costas ao estranho sol e às montanhas, e se encaminhava para o banheiro, ou então que possa ajudar outros. Devo encarar como uma pesquisa... uma oportunidade de estudar uma doença rara e aberrante. Como Madame Curie estudando suas próprias queimaduras de radiação, ou Lanach em Vega Nove pesquisando a deterioração espacial, quando já estava em adiantado estado de deterioração.

De qualquer forma, não havia sentido em exibir uma expressão desapontada. Se seus companheiros no projeto eram telepatas, uma cara jovial não os enganaria, mas poderia contribuir para levantar a sua própria moral. Ao terminar de tomar banho e se vestir, ele cantarolava baixinho. Era jovem e, mais uma vez, contra a sua vontade, sentia-se curioso.

A cantina do hospital, que haviam lhe indicado na noite anterior como o lugar em que deveria fazer as refeições, estava apinhada. David detestava multidões, sempre detestara - exigia muito esforço bloquear a sensação de pessoas o pressionando, mesmo quando isso não ocorria - mas pelo menos ali deparava com uma multidão familiar, apesar de haver alguns tipos raciais e étnicos que nunca vira antes. Eram médicos e enfermeiras, a maioria com uniforme adornado com o caduceu dos serviços médicos do Império Terráqueo, e todos tinham as características inconfundíveis da profissão. Muitos dos mais jovens eram de um tipo desconhecido, e ele calculou serem darkovanos, de pele morena, cabelos crespos escuros, testa saliente, mãos curtas e largas, com seis dedos, e olhos cinzas.

Ele terminava de comer o desjejum quando um jovem, não em uniforme médico, mas usando uma túnica verde e botas de couro de cano alto, os cabelos vermelhos cortados rentes, aproximou-se da mesa, e disse:

- Doutor Hamilton? Reconheci-o imediatamente. Não gostaria de se juntar a nós? Meu nome é Danilo. Espero que a comida esteja a seu gosto; é uma coisa que nunca podemos prever. Sei que aqui, no QG terráqueo, podem ajustar as luzes e até a gravidade ao planeta de sua origem, mas as preferências culturais sobre o que é bom e o que não é para comer...

O jovem deu de ombros, e acrescentou:

- Tudo o que podem fazer aqui, eu acho, é oferecer um alimento inofensivo, o mais baixo denominador comum, e espero que não seja repulsivo para ninguém.

David riu.

- É a comida padrão nos hospitais. Para ser franco, acostumei-me a comer qualquer coisa que ponham na minha frente, e torcer para acabar antes que alguém berre por mim. Se me perguntasse o que acabei de comer, provavelmente não seria capaz de responder, mesmo sob juramento. - Ele fitou Danilo, curioso. - É do estafe do hospital?

O jovem não parecia ter idade suficiente para ser um médico, mas nunca se podia saber com alguns tipos planetários. Danilo, porém, não ofereceu qualquer explicação sobre a sua posição, além de um gesto negativo.

- Vai conhecer agora as pessoas que participam do projeto.

- Já estão todos aqui?

- A maioria. Os darkovanos estão alojados na cidade, mas todos acharam que as instalações aqui seriam melhores para os outros, pelo menos no inicio. Jason...

Danilo alteou a voz, e um jovem médico, atravessando a cantina apressado, aproximou-se no mesmo instante. Era corpulento, de cabelos escuros. David gostou de sua aparência à primeira vista.

- Dr. Hamilton? - disse ele. - Como foi a viagem? Nunca estive fora de Darkover... nasci aqui. Sou Jason Allison.

Ele estendeu a mão, e David apertou-a, compreendendo de repente que fora isso o que faltara no cumprimento de Danilo. Um costume darkovano?

- Vejo que Danilo já se apresentou. Sou o homem de ligação entre a equipe médica darkovana e o pessoal do Império. Antes que eu me esqueça, também sou médico, embora quase não tenha tempo de praticar.

Deixaram a cantina, e Jason seguiu na frente pelo corredor, Danilo os acompanhando. Agora que o encontro com os outros no projeto era iminente, a apreensão de David tornou-se palpável de novo. Um bando de aberrações... e sou um deles.

- Dr. Allison... Jason Allison sorriu.

- Pode me chamar de Jason. E eu o chamarei de David, se não se importa. Os darkovanos não usam tratamentos honoríficos, a não ser para os que se situam no topo da hierarquia da casta; não existe nenhum título abaixo de Lorde. Nada de senhor, madame, doutor, isso ou aquilo. Simplifica as coisas.

Até isso me tiraram.

- David está bom - murmurou ele, apático. - Eu... nunca conheci outro telepata...

Danilo riu.

- Pois agora já conhece. Não mordemos. Nem saímos por aí a ler as mentes dos outros. E, de qualquer forma, você não é um telepata, até onde posso determinar. É um empático, e provavelmente possui alguns outros talentos psíquicos.

David olhou aturdido para o rapaz, balançou de leve a cabeça, já revisando muitas noções preconcebidas. Danilo acrescentou:

- Desculpe. Fui criado entre darkovanos com laran, e os localizo numa reação automática. Aceitei-o de imediato porque me sinto à vontade na sua presença, isso é tudo. Parece um dos nossos.

O espanto de David aumentou ainda mais, e Jason interveio:

- Deve ir mais devagar, Dani. Sei como se sente, David, acredite ou não. Lembre-me de lhe contar algum dia sobre a minha primeira confrontação.. . e foi de fato uma confrontação... com os Hasturs. Chegamos.

Era uma sala comprida, bem clara, com tapeçarias translúcidas, iluminadas, com todas as cores do arco-íris. David absorveu tudo com um só olhar, o talento que nunca reconhecera, porque o tomava como algo corriqueiro, a ponto de acreditar que todos os possuíam, e que nem valia a pena mencionar:

... impacto de medo/brilho/medo de uma moça alta, no outro lado, moça alta/não, rapaz/não, moça, com uma massa de cabelos claros, compridos e soltos, uma figura esguia, assexuada... humana?

... jovem esbelto, autoritário, de cabelos brancos, olhos cinzas... um homenzinho encarquilhado, na casa dos quarenta anos, um tipo da Terra, pele curtida, olhos irrequietos e astutos: não-entidade de pele morena, tremendo, uniforme de espaçonauta

... velha alta, imponente, quase decrépita, mas com o mesmo ar de autoridade e domínio que teria se ainda fosse jovem

... moça esguia, de aparência sensual, soturna, arriada numa cadeira, os olhos em movimento, lançando rápidos olhares, como um camundongo, ao redor da sala, para os homens...

... e de novo, medobrilhomedo do rapazmoça alto, com os cabelos claros, túnica longa...

Isso é tudo?

- É o dr. Hamilton - disse o jovem esbelto, cujos cabelos eram prematuramente brancos, como David compreendeu de alguma forma.

- Sou Regis Hastur. É um prazer tê-lo conosco, dr. Hamilton. Nada assim jamais foi feito antes, e os profissionais da medicina podem se sentir desorientados. As pessoas que sabem sobre os telepatas não costumam desenvolver as ciências médicas; por tudo o que sei, não precisam delas. Nós não precisamos. E os médicos terráqueos nem sequer têm certeza se existimos. Foram obrigados a admitir, mas não gostam da idéia... com exceção da companhia presente.

Ele lançou um olhar cordial para Jason Allison.

- Fui trazido para cá como médico?

- Isso mesmo. Depois que controlar seu talento, vai se tornar um médico excepcional, e creio que sabe disso. Não vai demorar muito a aprender a excluir os contatos que não quer. Todos os adolescentes do Comyn conseguem aprender em poucas semanas. Você também vai aprender, convivendo com telepatas. É esse o seu problema: nunca teve ninguém para ajudá-lo a adquirir o controle. Por sorte o encontramos ainda bastante jovem. Muitos telepatas isolados em culturas não-telepáticas acabam se tornando psicóticos, e não são mais úteis a ninguém. Descobrimos isso quando o QG os procurava para este projeto. Por isso, contar com um que é também um médico qualificado... ora, já nos sentimos ansiosos em abraçá-lo!

Foi como o súbito dissipar de uma nuvem negra. David nunca especulou como Regis teve conhecimento de seu medo profundo e generalizado. Nem mesmo tentou disfarçar o sorriso de espanto e satisfação que substituiu a tensão e o medo. Pode ter sido isso que o fez - pela primeira vez na vida - relaxar, e aceitar o fluxo de sensações que recebia através de sua percepção, mais aguçada do que nunca, enquanto Jason dizia:

- Não lhe contaram isso, David? Quero lhe apresentar os outros. Você é o último do mundo exterior a chegar a este grupo. Pode haver outros mais tarde, mas temos aqui todos os telepatas não-psicóticos que o Império pôde encontrar. Rondo...

O homenzinho curtido enfrentou os olhos de David com um intenso brilho azul, depois deu de ombros, de uma forma quase visível. Ele é honesto; não me interessa. David, sem a experiência no tipo de submundo de Rondo, ficou aturdido com a indiferença hostil.

O homem em uniforme de espaçonauta parecia prostrado em apatia, mas levantou-se com bastante polidez, e estendeu a mão para David.

- Um prazer, dr. Hamilton. Meu nome é David Conner.

- Então somos xarás - comentou David, com um sorriso.

Seu pensamento, logo velado: Não-psicótico? Qual é o problema com ele? O tipo de Conner pelo menos era familiar, alto, magro, começando a ficar calvo, a pele entre marrom e preto, olhos escuros e brilhantes, agora esmaecidos pela apatia, e com uma mínima demonstração de cortesia. Não era hostil, mas David sentiu, com um arrepio, que se todos caíssem mortos de repente, Conner nem sequer piscaria. Apenas daria de ombros, e os invejaria. Jason levou-o adiante.

- Keral.

O rapaz/moça alto, com quase dez centímetros a mais do que David, virou-se com uma agilidade graciosa. David recebeu o impacto dos olhos claros, fluidos e profundos, e uma voz suave, adorável, uma voz de moça, que murmurou, sem qualquer sotaque:

- É uma grande gentileza de sua parte vir até aqui, David Hamilton. Quem e o quê...!

Jason murmurou em seu ouvido:

- Um chieri, de uma tribo darkovana. A maioria de nós não acreditava que ainda existisse algum quando ele apareceu, e pediu para se juntar a nós.

- Ele...?

Jason percebeu sua confusão. Naquele momento e mais tarde, David especulou, sem jamais ter certeza, sem poder provar, mas apenas desconfiar, se Jason Allison, talvez sem o saber, não seria quase um telepata, a ponto de captar pensamentos.

- Ele ou ela, é o que deseja saber? Também não sei, mas não se pode perguntar a um S.I. ... desculpe, é o jargão dos serviços médicos do Império para Ser Inteligente, um não-humano sapiente... que sexo ele ou ela tem. Não quando se ignora de que forma poderá reagir. Regis talvez saiba.

Os olhos de David voltaram a se fixar no chieri. Keral também fitou-o, e sorriu pela primeira vez, um sorriso deslumbrante, que transfigurou o rosto belo e assustado. Era um brilho intenso, que fazia com que o chieri parecesse uma luz na sala, e David se perguntou como os outros podiam desviar os olhos dela... ou dele? Droga!

Conner observava a cena, e se aproximou. Riu baixinho, e murmurou no ouvido de David:

- Depois que se visita uma dúzia de planetas, e conhece uma dúzia de culturas, acaba se acostumando com essas coisas. Não pode dizer que viveu até se empenhar em conquistar o que julgava ser uma linda garota, só para descobrir que a irresistível criatura era um homem, um espadachim local. As culturas são muito peculiares.

David partilhou o riso, sentiu-se um pouco aliviado. Portanto, a apatia psicótica de Conner não era constante, pois naquele momento o espaçonauta parecia normal e jovial. Conner acrescentou, no mesmo tom afável e íntimo:

- Mas nunca se engane com esta. Missy...?

A moça de expressão soturna levantou os olhos para David, com um charme experiente e deliberado. Tinha cabelos claros, presos num penteado elaborado, e David refletiu que seus trajes, para quem fora alertado sobre o clima darkovano, gelado e tempestuoso, eram um convite à morte pelo frio; mas como Conner dissera, as culturas em diferentes planetas fixavam padrões determinados para o comportamento feminino, e era evidente que havia algum motivo para que aquela moça ostentasse sua feminilidade daquela maneira. Ela sorriu, com uma certa radiância, e murmurou:

- Olá, David.

- Qual David? - indagou Conner.

David Hamilton pensou no mesmo instante Ele está com ciúme, enquanto a moça chamada de Missy acrescentava:

- Os dois, é claro.

Ela segurou a mão de David por um momento extra, mas sua mão era fria, muito macia, e contradizia a expressão sensual com que a moça fitou os dois.

- Sinto-me um pouco confusa aqui.

Uma mentira, disse alguma coisa em David, fria e objetiva.

- Pensei que seria emocionante conhecer todos vocês. Uma aventura.

Outra mentira. O que ela quer?

Jason instou-o para seguir em frente, e Conner arriou no assento ao lado de Missy. Era evidente que ele queria apenas isso.

- Deixou-me para o fim, como sempre - disse uma voz jovial. Era a velha, ainda mais idosa do que David calculara a princípio: o rosto murcho e enrugado, mas o corpo empertigado e esguio, envolto por uma túnica graciosa, de lã, azul escura, tendo por cima um xale de pele. As mãos, encarquilhadas e deformadas pela idade, ainda eram graciosas em movimento, e a voz clara e descontraída. Seus olhos fitaram Missy, não com a condenação da idade à juventude, mas sim com um eco da curiosidade do próprio David. Depois, ela tornou a olhar para David.

- Deve estar cansado de passar por essa provação. Sou Desideria de Storn, e peço que me perdoe se for grosseira; jamais conheci tantos terráqueos. Mas ninguém, como dizem nas montanhas, é tão jovem que não possa ensinar, ou tão velho que não possa aprender. Assim, vamos descobrir o que temos a aprender uns com os outros. É provável que seja mais do que qualquer um de nós espera. E já estou muito velha para desperdiçar tempo com preliminares. Jason?

- Regis, você é o experto - disse o dr. Allison. - Assuma o comando.

- Mas é exatamente o que não sou - protestou Regis Hastur. David não pôde deixar de admirar a maneira como ele, sem se mexer, sem elevar a voz, atraiu a atenção de todos. Pela primeira vez, David pensou, no fundo de sua mente, que ser um telepata desenvolvido, capaz de usar todos os poderes latentes da mente, talvez não fosse tão ruim assim. Regis continuou:

- Como a maioria sabe, os telepatas eram outrora abundantes neste planeta. Agora, tornam-se cada vez mais escassos, e seus antigos poderes perderam-se em grande parte, extintos ou reduzidos por falta de conhecimento da maneira de usá-los. Até certo ponto, sei o que posso fazer com meus poderes, como os conheço. Mas não sei com precisão quais são, e de que forma posso aproveitá-los ainda mais. Suponho que quase todos aqui se encontram na mesma situação. Por isso o projeto em que agora nos empenhamos, por enquanto apenas um pequeno projeto-piloto, para descobrir que poderes cada um de nós possui; como os adquirimos, e por que; para que servem; se o treinamento exerce algum papel em seu desenvolvimento; e assim por diante. Em suma, queremos descobrir o que constitui os telepatas. Mas por onde começamos... não tenho a menor idéia. Cada um de nós tem alguma experiência. Cada um de vocês pode e deve contribuir com idéias e perguntas, e investigaremos todas que parecerem pertinentes. Enquanto isso... Ele fez um gesto cortês, e acrescentou:

- Por favor, considerem-se meus hóspedes, e se qualquer um de vocês precisar de alguma coisa, basta pedir.

- Neste caso, como o único não-telepata no grupo, - disse Jason Allison, - vou sugerir que comecemos de uma maneira tipicamente terráquea. Diz-se muitos absurdos supersticiosos sobre os poderes psíquicos. A primeira coisa que os terráqueos costumam fazer, ao depararem com uma coisa que não compreendem, é avaliá-la. Assim, se todos quiserem cooperar, começarei... contando com a ajuda de David Hamilton. .. por um exame físico de cada um, a fim de determinar se possuem características comuns. Isso implicará, entre outras coisas, num registro completo da eletricidade e radiação detectáveis do cérebro. Depois, tentarei medir suas capacidades psíquicas, embora esteja preparado para descobrir que não contamos com os parâmetros apropriados. Não se pode medir qualquer coisa até se desenvolver as escalas certas. Mas talvez alguns de vocês possam me ajudar a encontrar uma escala para essa medição. David, acho que devo começar por você, e depois me ajudará com os outros. Os laboratórios que nos cederam para a pesquisa ficam aqui perto. Lamento deixar o resto de vocês à espera, mas não vai demorar muito.

Enquanto se encaminhavam para uma pequena sala de exame - com a indicação de PROJETO ESPECIAL, A, Allison - David perguntou a Jason:

- Qual é a idéia? Você tem todos os meus registros médicos no computador, abrangendo tudo, desde a vacina contra sarampo aos seis meses de idade, até o momento em que fraturei o dedo mínimo do pé, no quarto ano da faculdade de medicina, jogando tênis; sei que esses registros me acompanharam até Darkover. Precisa me examinar tanto quanto precisa de duas cabeças.

- Culpado de todas as acusações - disse Jason.

Ele foi até o visor, bateu no teclado o nome de David, e o número de seu contrato com o Império Terráqueo.

- Antes que eu me esqueça, eles o avisaram que continua a receber um salário pelos serviços médicos? A verdade é que eu queria começar por uma conversa a sós com você. E quero tirar o seu EEG. Os serviços médicos só verificam sinais de epilepsia ou lesões cerebrais abertas, e eu já saberia se você tivesse alguma coisa assim. Quero leituras de todos...

Jason se movimentava de um lado para outro, prendendo eletrodos no crânio de David, enquanto falava.

- ...e mais tarde tornarei a verificar os registros enquanto experimentam seus talentos psíquicos, a fim de determinar se ocorre uma descarga de energia mensurável. Mas podemos omitir, no momento, seu coração, pulmões e aparelho digestivo. Pode deitar. - Ele ligou a máquina. - Limite-se a respirar por alguns minutos.

Mais tarde, enquanto retirava o registro de EEG do aparelho, Jason comentou:

- O que estou morrendo de curiosidade para examinar é o chieri.

- Eles são humanos?

- Ninguém sabe, nem mesmo em Darkover. Duvido que alguém terráqueo já tenha antes conversado com algum deles. E se conversou, não contou a ninguém. Por sorte, tenho permissão para manter o projeto em sigilo, caso contrário o serviço médico terráqueo cercaria a pobre criatura, por pura curiosidade. Como um novo espécime.

- Posso entender isso, e admito que também estou curioso. David não disse que seu interesse não era médico.

- Convivi com não-humanos... o Povo das Árvores... por alguns anos, quando era garoto. Além disso, trabalhei com a equipe médica terráquea que os ajudou quando sofreram uma grave epidemia, há alguns anos. - Jason parecia um pouco amargurado. - O pessoal do QG foi maravilhoso com o povo das árvores, sem dúvida. Todos fizeram tudo o que era possível para que se sentissem à vontade aqui, mas ainda assim... eram como espécimes num zoológico. Talvez você tenha de ser darkovano, e viver com não-humanos por bastante tempo para encará-los como uma coisa normal, antes de começar a pensar neles como pessoas.

- Há muitas raças não-humanas em Darkover?

- Pelo menos quatro, ao que eu saiba, e provavelmente muitas outras, de que nunca ouvi falar.

David pensou a respeito por um momento.

- Seria por isso que há tantos telepatas naturais aqui? A telepatia pode ser a única maneira de se comunicar com raças não-humanas.

Jason comentou, um tanto surpreso:

- É um ponto de vista que nunca havia me ocorrido. É por isso que quero usar todos vocês no projeto. Ninguém que não seja um telepata poderia saber... como foi mesmo que Regis disse?... o que constitui um telepata. E agora vamos iniciar os exames físicos dos outros?

Grande parte da manhã foi ocupada em trabalho de rotina, uma maneira tranqüilizadora de iniciar um projeto que David temera que poderia se tornar aviltante. Descobriram pouco que já não soubessem, e naquela tarde, durante um breve intervalo para as refeições, examinaram os resultados. Os exames físicos rotineiros de Conner haviam revelado padrões anormais de EEG, um pouco parecidos, mas diferentes, dos que eram associados com enxaqueca hereditária e epilepsia psicomotora; David também apresentava esses padrões, só que num grau subelínico. O que também acontecia, em grau mínimo, com Rondo e Danilo. Mas Regis Hastur não os tinha, o que era desconcertante; e ainda não haviam concluído os exames de Desideria, nem iniciado com Missy e Keral.

- Será que esse vai se tornar o único fator comum? - indagou Jason.

- Duvido muito, e não podemos esquecer que Regis não os apresenta - disse David. - Mas talvez ele seja extraordinário mesmo entre os telepatas.

E extraordinário sob todos os outros aspectos, refletiu ele.

- Não resta a menor dúvida de que ele possui um charme extraordinário - concordou Jason.

David soltou uma risada. Já eram, ao que parecia, grandes amigos.

- Quero que me faça um favor, Jason. Deixe-me tirar um registro seu.

O homem mais velho fitou-o em surpresa momentânea, depois riu também, deu de ombros.

- À vontade. Mais tarde, passarei todos os registros pelo computa-dor médico, para descobrir se existe algum fator comum... por menor que seja.

- Posso lhe adiantar dois fatores comuns desde já - garantiu David. - Todos possuem olhos cinzas ou azuis... todos os darkovanos, e também os que vieram de fora, à exceção de Conner. E o talento dele, obviamente, não é hereditário, mas... pós-traumático.

Jason refletiu por um instante.

- Há alguns anos, um grupo de terráqueos trabalhou por algum tempo com um grupo do Comyn, investigando a telepatia e a mecânica de matriz... sabe o que é isso?

- Já li sobre as matrizes darkovanas... não são pedras que transformam as ondas do cérebro diretamente em energia, sem os subprodutos da fissão ou fusão?

- Isso mesmo. As mais simples podem ser usadas por qualquer um, até mesmo os que não possuem talentos telepáticos. As mais complexas exigem um grau maior de talento telepático para seu uso, e é por isso que a mecânica de matriz está definhando. Não há telepatas em quantidade suficiente para manipular as pedras. Por razões óbvias, a telepatia é perigosa para o político comum. Por isso, há sutis pressões contra qualquer publicidade a respeito dos telepatas darkovanos. Mas, como comecei a dizer, durante os últimos cem anos houve esforços esporádicos para se trabalhar com telepatas darkovanos. De um modo geral, os darkovanos não quiseram cooperar, até agora, quando pode ser tarde demais. Descobrimos uma coisa: pelo menos em Darkover, a telepatia está ligada aos cabelos vermelhos. Se encontrar um darkovano ruivo, pode ter certeza de que se trata de um telepata.

- Isso significaria que a telepatia pode estar vinculada à função das glândulas supra-renais - comentou David. - E posso lhe dizer outra coisa que todos têm em comum. São todos ectomorfos.

- Ecto... o que é isso?

- Tipo de corpo... os ectomorfos são altos e magros, os mesomorfos costumam ser musculosos, e os endomorfos são propensos a engordarem.

- Até agora, isso é verdade - disse Jason, empurrando seu prato para o lado. - Vamos voltar para verificar se acontece também com os outros.

Era verdade com Desideria, pelo menos. A velha se mostrou bastante cooperativa, embora exibisse o seu irresistível sorriso irônico quando os dois médicos, escrupulosos, chamaram uma enfermeira para estar presente quando ela se despiu.

- Na minha idade, meus jovens, esse é o maior elogio que poderiam me fazer!

Até mesmo a enfermeira teve dificuldade em manter uma expressão profissional impassível ao ouvir isso, e David foi obrigado a virar o rosto para ocultar um sorriso. Por Deus, como ela deve ter sido encantadora há quarenta anos!

- Qual é a sua idade... para constar dos registros? - perguntou ele.

Ela deu a informação, e jason, há muito conhecedor do sistema numérico darkovano, converteu nos anos padrões do Império, para David entender. Dava noventa e dois anos. Seguindo a pista levantada, David indagou:

- É verdade que todos os telepatas darkovanos possuem cabelos vermelhos?

- É, sim- confirmou Desideria. - Quando eu era menina, os meus eram vermelhos como fogo. A tradição é de que quanto mais vermelhos os cabelos, mais talento há para o trabalho de matriz, mais forte é o dom de laran. De um modo geral, constatamos que isso era verdade. Integrei um pequeno grupo de moças treinadas no Castelo Aldaran para o trabalho de matriz, junto com alguns terráqueos. Deixem-me ver se ainda me lembro dos nomes técnicos. Já tive recordação total, mas não se esqueçam de que agora estou bastante velha.

Ela se manteve em silêncio por um momento.

- Eu tenho... ou tinha... clarividência, um alto grau de clariaudiência, um pequeno grau de precognição, que não ultrapassava três meses, e psicocinese limitada, com a capacidade de manipular pequenos objetos, com menos de um quilo, sem a ajuda de uma matriz. Talvez ainda existam os registros no Castelo Aldaran, se não foram destruídos durante uma das guerras nas montanhas. Posso tentar descobrir, se quiserem.

- Gostaríamos muito - garantiu Jason, ansioso. - Algum de vocês era gordo? Ou todos eram altos e magros?

- Havia altos e magros, e também baixos e magros. Costumava-se dizer: quanto mais alta a mulher, mais forte o dom do laran. Há uma história antiga que alguns dos telepatas do Comyn nas montanhas tinham sangue chieri, e olhando para Keral agora posso acreditar nisso.

Jason e David perceberam as implicações dessa informação muito antes que Desideria compreendesse que dissera alguma coisa excepcional. Os dois médicos trocaram um olhar, numa suposição desenfreada.

- Se humanos e chieri puderam cruzar...

- Isso significa que os chieri não são não-humanos, mas sim uma subespécie humana - arrematou David.

- É apenas uma lenda, quase da pré-história - advertiu Desideria.

- Pode descobrir tudo o que dizem essas lendas? - pediu Jason. Ele virou-se para o aparelho de EEG, tentando ocultar sua ansiedade.

Pôs-se a oferecer uma explicação minuciosa do funcionamento, antes de ligar os eletrodos na cabeça de Desideria, que acenou com a mão.

- Já chega, já chega. Vocês, terráqueos, têm a sua tecnologia, e já estou velha demais para sentir qualquer curiosidade a respeito. A única coisa que me importa agora é que não me dê um choque.

Ela deitou na mesa, sorrindo.

David ajustava o controles, antes de ligar a agulha de registro, quando o sentiu, completamente fora do contexto, como se fosse uma onda de choque, e sem qualquer aviso prévio.

... Nas profundezas de seu corpo, um ímpeto intenso, quase doloroso, de desejo físico; despertar sexual; uma agradável sensação...

Chocado e envergonhado, ele empertigou-se, respirando fundo. Jason, de rosto franzido, parara o que fazia, mas parecia alheio. O ímpeto físico continuou; e David percebeu que tinha, sem qualquer estímulo direto, uma forte ereção. O quê? Como...

... os dedos suaves de uma mulher acariciando-o. Palavras gentis, murmuradas quase baixo demais para se ouvir, numa língua que ele não podia entender. A maciez de um corpo quente de mulher, por baixo dele, ao seu redor...

De onde vinha isso? Em toda a sua experiência de telepatia involuntária, no hospital na Terra, David jamais captara algo assim, e era

chocante, até vergonhoso; sentia-se como um voyeur. Fitou Desideria, especulativo. Seus olhos estavam fechados, mas David logo sentiu que ela se encontrava também desconcertada. Estaria sentindo a mesma coisa? Por um instante, o corpo da velha frágil e grisalha pareceu se dissolver, e uma mulher jovem e adorável surgiu em seu lugar, cercada por uma nuvem luminosa, vermelha-dourada, sorrindo para ele, também de olhos fechados, numa doce percepção feminina. David sentiu suas entranhas se contorcerem na agonia do desejo.

Espalhou-se como uma rede cintilante, uma teia de aranha de percepção física. Não estava na sala. A solidão angustiada de Conner, projetando-se, ansiando por contato... e David compreendeu de repente: era Missy que ele tinha nos braços, imobilizada sob seu corpo nu, arremetendo, cada vez mais fundo, até a violenta explosão...

Na esteira do fato, enquanto sua respiração voltava ao normal - teria mesmo explodido em orgasmo? Não, pelo menos não físico - David sentiu um contato à beira da teia, a perplexidade de Regis, a risada sarcástica de Rondo, um clarão radiante, que já associava a Keral, tudo o envolvendo, numa repentina intimidade...

David? Era quase uma voz, e David experimentou um ímpeto de satisfação, de tranqüilidade. Estou aqui, Keral. Também não compreendo, mas suponho que não é nada com que devamos nos assustar.

David continuava aturdido. Desideria continuava deitada, imóvel, e parecia à sua mente confusa - os olhos de David se achavam abertos? Mesmo sob juramento, ele não poderia responder com certeza - como uma dupla exposição, uma jovem deslumbrante/uma velha, encolhida, suave e doce no amor. Como se numa compulsão, David inclinou-se, pegou a mão de Desideria, levou-a a seus lábios, num gesto afetuoso. Ela abriu os olhos, voltou a ser a velha, os olhos cinzas marejados de lágrimas. Encostou a mão no rosto de David, que percebeu que também tinha os olhos úmidos. Abruptamente, a sala retornou ao normal, as ondas de sexualidade arrefeceram, desapareceram. Estavam de novo ali, com a indiferente enfermeira terráquea ainda se movimentando de um lado para outro, recolhendo pedaços de gaze, guardando a parafernália dos exames de rotina.

- Não - sussurrou Desideria. - Não.

David pensou que ela ia chorar alto, mas tal não aconteceu. Desideria respirou fundo, recuperou o controle.

- Não, David. Sou uma velha, muito velha. Não seria... Ah, a desgraçada! A sem-vergonha consumada! Não, isso não é justo. Ela é jovem, talvez nem saiba, e não se acha obrigada por qualquer voto.

Os dois ouviram Regis, como um relâmpago mental: Eu poderia detê-la, mas detesto começar a exercer autoridade tão cedo. Eles nem são darkovanos, e não sou seu Lorde.

- Aquela garota é uma tola por começar uma coisa assim tão cedo - murmurou Desideria. - O sexo desregrado num grupo de diferentes telepatas reunidos é como pôr uma cadela no cio na trilha de um bando de lobos; provoca todos os tipos de explosões... David, devo contar a ela alguns fatos da vida?

Regis interveio, de fora: Faça isso, Desideria. Não podemos permitir uma coisa assim. Mas deve se lembrar que talvez ela nunca tenha encontrado outro telepata funcional em toda a sua vida. É bem provável que tenha feito isso em inocência. Por que ela e Conner não poderia ter uma pequena diversão de travesseiro, se era o que desejavam? Mas os dois precisam aprender a não irradiar por toda parte. Eu gostaria que não tivesse acontecido. Fale com ela, Desideria, e você, David, se não se incomoda, pode falar com Conner...

Obrigado... eu acho... pensou David, para si mesmo, irônico, e ficou atônito ao ouvir, claramente, como se fosse a voz de Regis:

Eu poderia conversar com ele, mas você pelo menos é um terráqueo. Ele não me daria atenção.

Abruptamente, David voltou à percepção normal. Jason tinha os ouvidos um pouco avermelhados, mas sacudiu a cabeça, e murmurou:

- Posso perceber que alguma coisa está acontecendo, mas não sei o que é.

David disse, lançando um olhar embaraçado para Desideria:

- Acho melhor explicar mais tarde. Você não acreditaria agora.

- Vivendo em Darkover, aprende-se a acreditar em pelo menos seis coisas impossíveis antes do desjejum, todos os dias - comentou Jason. - Captei alguma coisa, e foi tudo. Mas por que ela escolher Conner?

- Quem mais poderia ser? - disse Desideria. - Podemos excluir Regis como muito alto na escala de autoridade para ela, Danilo, que não está interessado, você e David, muito ocupados, Rondo muito velho e psicótico, Keral muito esquisito... e muito ambíguo em relação ao sexo. E é normal que ela estabeleça imediatamente um contato sexual com alguém; é o seu meio de sobrevivência. Conner é jovem e viril. Mas ela merece uma censura por começar isso tão cedo.

David experimentou a sensação de que uma tempestade amainara. Sabia, de uma forma insólita e inconsciente, que partilhara algo muito estranho, em particular com Desideria e Keral, mas a própria estranheza impossibilitava qualquer definição. Sentiu-se aliviado, e envergonhado de si mesmo por esse alívio, quando Desideria disse:

- Se não precisam fazer mais exames neste momento, posso alegar o privilégio de meus cabelos brancos, e pedir para descansar? Podem obter os outros dados mais tarde.

- Claro - respondeu Jason. - Enfermeira, acompanhe Dama Storn até seus aposentos. Depois volte, e nos traga Keral.

Nenhum dos dois voltou a falar até que o chieri entrou na sala. David levantou os olhos, atônito e um pouco contrafeito por sua ansiedade em ver de novo o brilho luminoso e a radiância do sorriso de Keral.

O chieri sentou no lugar que lhe foi indicado, obediente. Jason não sabia como começar, mas Keral resolveu o impasse, ao declarar:

- Sou muito jovem, ignorante dos costumes aqui, e não muito rápido no aprendizado de sua língua. Assim, tenho poucas palavras para descrever as coisas que posso fazer. Talvez me ajudem a aprender. Regis me disse que querem examinar minha estrutura física; estou completa-mente às suas ordens. Também me sinto curioso sobre o tipo de seres que vocês são, e gostaria de aprender. Assim, vamos partilhar conhecimentos.

Jason virou-se para a enfermeira, e disse, a voz ríspida:

- Tanya, se uma só palavra sobre o projeto vazar, antes que eu dê minha aprovação por escrito, você pode arrumar suas malas para o espaço, e passará a fazer exames físicos de rotina nas minas de Wolf 814.

- Conheço as regras, doutor.

- Pois então trate de cumpri-las.

O chieri despiu-se sem qualquer hesitação, e parou diante deles, muito calmo, como se a nudez não fosse mais excepcional do que estar vestido. Portanto, não há tabus de nudez na cultura dele. Isso mesmo, dele, pois Keral era macho. É uma dúvida esclarecida. Estranhamente, David sentiu alguma tristeza. Os dados de rotina eram simples, mas ele fez questão de explicar para Keral, minucioso, tudo o que fazia. Pressão sanguínea: um pouco abaixo do nível humano. Coração: um pouco mais acelerado, e mais para o lado direito do que para o esquerdo. Havia ainda pequenas anormalidades, pelos padrões humanos, no formato da aorta, ouvido interno, e retina dos olhos. Mas a grande surpresa ainda estava para acontecer.

- Imagino que já tenha percebido - murmurou Jason, enquanto prendiam os eletrodos.

- Claro. Mas Keral é diferente... - David não foi capaz de dizer aberração. - ... ou isso é normal para um chieri?

- Não é normal para um humano, e também não é normal para o Povo das Árvores, - respondeu Jason, - embora eu já tenha ouvido dizer que não é incomum. Keral, pelo menos teoricamente, é um hermafrodita funcional... duplo sexo, talvez com uma ligeira tendência para o masculino.

David disse, olhando para Keral, e deparando outra vez com aquele estranho olhar de intimidade, enquanto pensava: O que exatamente partilhamos?

- Sugiro que perguntemos a ele. Duvido que seja um tabu. Culturas sem tabus de nudez também não têm tabus sexuais.

Mas embora Keral parecesse disposto a responder às perguntas, mostrou-se bastante obtuso nessa questão, e David não foi capaz de fazê-lo compreender. Seu povo? Não, claro que nem todos eram como ele, cada ser vivo diferente do outro. Não, ele nunca fora pai de uma criança. Não, nunca gerara uma criança. (As indagações pareciam afligi-lo; David pensou por um momento que Keral ia chorar, e sentiu de novo a necessidade quase angustiada de confortá-lo.) Acabaram suspendendo o interrogatório. À medida que conhecesse mais a língua, Keral entenderia o que eles queriam saber. Talvez, quando ele entrasse em contato mental, David pudesse formular a pergunta diretamente, sem a barreira da língua. David compreendeu que percorrera um longo caminho num único dia, pois já se mostrava disposto a cogitar dessa possibilidade como uma solução razoável para dirimir as dúvidas.

Keral foi dispensado. Antes de passar pela porta, lançou para David um olhar gentil. David suspirou. Sentia-se cansado.

- Só restou Missy - disse ele. - Tanya, vá chamá-la.

Ele pensou, divertido, que ambos achavam que seria mais seguro contar com a presença da enfermeira.

Ela fitou-o com um sorriso provocante, mas não fez qualquer comentário, enquanto ele anotava sua história. Nome? Melissa Gentry, mas em geral conhecida como Missy. Planeta de origem? Vainwal VI. Mentira, pensou David. Idade? Vinte e quatro anos. Outra mentira. Por que ela mente de uma forma tão persistente? Como ela pensa que pode escapar impune a isso, num grupo de telepatas? Será que ela não sabe?

David percebeu de repente que ela lhe lançava um olhar direto, radiante, sedutor; um sorriso provocante, um pequeno requebro, sensual e deliberado, um lampejo de percepção. Ela é uma exibicionista? Ou uma ninfomaníaca? Ou muito estúpida? Ele se manteve frio e profissional, enquanto lhe pedia para se despir.

- Tanya, providencie um lençol para ela.

David virou-se, enquanto Missy se ajeitava. Altura: 1,78m. Mais alta do que aparenta. Peso: 45 quilos. Pressão sanguínea: 70 por 48. Perigosamente baixa, mas não sei qual é a gravidade a que ela está acostumada. Batimento cardíaco: 131. Apêndice: não consigo encontrá-lo pelo fluoroscópio. Radiografia... hum... o que é isso? Sexo feminino... não resta a menor dúvida, depois do desempenho anterior, mas há certas anormalidades estruturais...

Desconcertante. Ele prendeu os eletrodos para o EEG, tranqüilizou-a, pediu que deitasse, ficasse imóvel, observou as linhas na tela subirem e descerem, estranhas, inconfundíveis, exatamente como...

David olhou para Jason, aturdido.

Uma vez antes, há poucos minutos, haviam visto um padrão idêntico, e nunca em qualquer outra ocasião anterior.

Nunca em qualquer ser humano.

Missy, a mentirosa, a ninfomaníaca, era uma chieri.

E vinda do outro lado da galáxia.

David removeu os eletrodos, e disse, tentando manter a voz normal, entediada:

- É o suficiente, por enquanto.

Depois que ela se vestiu e saiu, os dois médicos se fitaram, em silêncio, por um longo momento, rompido por David:

- Fizemos um bom começo para descobrir de que os telepatas são constituídos, mas confesso que me sinto mais confuso do que esta manha.

A resposta de Jason foi imediata e sincera:

- Eu também.

 

Uma pequena caravana de animais de carga avançava lentamente pelas colinas, sob uma chuva fina. À frente cavalgavam as duas guias darkovanas, contratadas na cidade perto do espaçoporto. Pertenciam à Guilda das Amazonas Livres, e usavam o traje habitual: botas de cano baixo, feitas de couro macio, calça de montaria forrada com pele, uma bata de pele, bastante curta para não atrapalhar a montaria, blusão de couro bordado, com capuz. Ambas exibiam a aparência um tanto dura, um pouco masculina, que as mulheres apresentam quando optam, contra todas as sanções de uma sociedade patriarcal, por realizar um trabalho de homem, por assumir a liberdade de um homem. Além disso, a que tinha os cabelos trançados possuía o corpo liso de uma mulher neutralizada artificialmente. Isso ainda era ilegal em Darkover, mas podia-se providenciar, como a maioria das coisas ilegais, por um certo preço.

- A primavera mais fria das últimas quarenta estações. - queixou-se a de cabelos trançados para a companheira, ajustando os agasalhos. - O que leva essa forasteira desgraçada a viajar pelas colinas com este tempo?

- Ela diz que está fazendo um levantamento dos animais de pêlo, para uma possível exportação - respondeu a mais jovem, dando de ombros, com um ar cético. - Deve vir de um mundo frio, pois parece não se incomodar com o clima. Ofereci-lhe mantos de pele e cobertores, mas ela dispensou. Ainda por cima, viaja na chuva sem um impermeável. Se deseja acabar seus dias como uma entrevada pela umidade, o problema é dela. As pessoas dos mundos exteriores são todas loucas, se quer saber minha opinião, até mais loucas do que os próprios terráqueos. Mas o que há de errado com o clima, Darilyn? Fui criada nestas colinas. Há muito pouca chuva para esta época... e chuviscos, quando deveria haver aguaceiros... e faz frio demais.

Darilyn olhou para as colinas distantes, com uma expressão sombria. Onde o horizonte familiar deveria ser verde e azul, da vegetação permanente, os picos se mostravam vazios e escuros.

- Fogo na floresta - murmurou ela. - O que mais? Lembra daquelas crianças à beira do caminho, nas últimas três ou quatro aldeias? Mendigos... nas montanhas!

A voz estava impregnada de fúria e repulsa, e ela acrescentou:

- Houve um tempo em que o nosso povo teria preferido passar fome a sofrer essa vergonha, Menella.

- Talvez muitos tenham agido assim. - Alcançaram uma pequena crista, e Menella olhou para baixo, a boca contraída em amargura, ao contemplar as ravinas cinzentas, ocupadas pela lama que deslizava das encostas. - Mesmo com pouca chuva, veja só o que acontece. Se um Vento Fantasma soprar neste verão, não restará coisa alguma nestas colinas, a não ser a rocha exposta.

Algumas dezenas de metros atrás, Andrea Closson observava as guias darkovanas sem qualquer interesse. Sua mente se concentrava em seus próprios planos, e ela registrava de uma forma meticulosa cada sinal de erosão e mudança.

Este mundo pode muito bem se tornar apenas uma cidade-espaçoporto. Não há muito que valha a pena manter aqui, pensou ela, sem sentimento. As florestas eu já conhecia... e deveriam ter desaparecido há muito tempo, com aqueles que as habitavam.

Uma iniciativa ridícula e inútil, vir até aqui. O que eu esperava encontrar? O que imaginava que veria?

Ela parou o cavalo, e esperou que os dois assistentes a alcançassem. Ambos tremiam, embora envoltos por peles e trajes aquecidos. Andrea fitou-os com um desdém indiferente, especulando como estariam se saindo os outros agentes que espalhara pelo planeta. Ela própria achava o clima úmido, mas tolerável, em seu traje normal de montaria.

- Não iremos muito mais adiante. Já capturaram espécimes suficientes para dar credibilidade à nossa história?

Um dos homens acenou com a cabeça, e disse, apontando os animais de carga que transportavam várias gaiolas:

- Meia dúzia de casais, de no mínimo uma dúzia de pequenos animais de pêlo. Soube que são do tipo mais usado pelos nativos para roupas e ornamentos. E alguns são até bem bonitos.

- Faremos uma análise completa de sua capacidade de reprodução, probabilidade de prosperar em outros climas, e assim por diante, ao voltarmos à Cidade Comercial - disse Andrea. - As mulheres fizeram um bom trabalho como caçadoras, além de guias. Outra coisa: talvez seja uma boa coisa recolher amostras de solo e alimentos dos habitats naturais. Quando acamparmos para a noite perto daqui, providenciem isso. Voltaremos pela manhã.

Pouco depois, chegaram a uma clareira em que resolveram acampar, armando uma barraca para as duas Amazonas, uma para Andrea, uma para seus assistentes. Um dos assistentes escreveu anotações num livro de registro. A Amazona chamada Menella saiu com suas armadilhas, em busca de carne para o jantar. Andrea ficou parada sob as árvores, em silêncio, os olhos fixos na linha do céu distante, os tocos de árvores enegrecidos se elevando sob a chuva, solitários. Não é uma cena das mais agradáveis para quem ama as árvores, pensou ela, imparcial, mas já vi mundos mais adoráveis do que este morrerem por uma boa causa. À minha maneira, também estou morrendo por uma boa causa, ajudando o homem a se espalhar ainda mais, a ter mais progresso. Não tenho nenhuma criança, nunca terei, mas alguns desses imensos espaçoportos, os passos gigantescos que a humanidade dá entre as estrelas, talvez sejam meus filhos. E se um mundo se interpõe no caminho da tecnologia, quem vai julgar o mais apto a sobreviver? Uma raça morre, outra nasce. Querri pode saber disso melhor do que eu? Uma raça sem a força para sobreviver acaba morrendo, como as melhores raças que já surgiram e passaram antes.

Disseram-me no espaçoporto que as Amazonas Livres eram melhores guias e caçadoras do que a maioria dos homens, e até agora elas demonstraram isso. Mas é uma coisa estranha para mim: mulheres que podem gerar filhos optando por não fazê-lo, de livre e espontânea vontade. Talvez um sinal de uma doença entre homens e mulheres, em qualquer mundo. Não compreendo os homens. E como poderia? Mas também não compreendo as mulheres.

E alguém é capaz de me compreender? Talvez seja melhor eu me ater a meu trabalho. Compreendo planetas e ecologias, e venho realizando um bom trabalho neste mundo.

Ela voltou à sua barraca, e abriu uma caixa de metal, que tinha uma tranca de segredo. Não girou a tranca, apenas encostou um dedo de leve na têmpora, e um dedo da outra mão na fechadura. Depois de um momento, houve um zumbido, e a tranca se abriu. Andrea tirou da caixa um pequeno pacote lacrado, guardou-o no bolso, e em seguida embrenhou-se pela floresta.

Parou a alguma distância da clareira, ajoelhou-se, escavou com as próprias mãos fortes, sem a ajuda de qualquer ferramenta, um pequeno buraco. Recolheu um punhado do solo. Era úmido, macio, encharcado pela chuva, com um cheiro agradável, fervilhando com pequenas criaturas invisíveis.

Andrea tirou o pequeno pacote da capa protetora de plástico impermeável. Parecia uma poeira cinzenta, com minúsculas manchas pretas. Também tem vida, pensou ela. A vida é assim. Novos tempos... e novos predadores.

Qual sobreviverá? Posso viciar os dados com a força necessária? Isto... ela sacudiu o solo vivo de Darkover em sua mão... ou isto.

Andrea espalhou sobre o solo escavado a poeira cinza de pontos pretos, com um cheiro fétido. Cobriu o buraco, limpou os dedos compridos, meticulosa, e voltou ao acampamento.

Uma imagem aflorou em sua mente: o vírus negro em ação sob a superfície, contra todas as coisas vivas, vermes, nematódeos, todas as criaturas que davam vida a um solo, expandindo-se, crescendo, tornando um solo agonizante ainda mais árido.

O que eu deveria ter feito com aqueles que envenenaram minhas florestas?

E por que deveria ter feito alguma coisa? Não precisávamos mais de nossas florestas. Mas, por outro lado, não preciso derramar lágrimas pelos que vieram depois de nós. Se chegou a vez deles de serem arrebatados... ora, vão partir, como nós partimos.

Ela verificou uma lista mental.

Telepatas.

Florestas.

Solo.

Oceano? Não. A população que restar aqui deve ser alimentada de alguma forma. É melhor deixar o oceano intacto. De qualquer forma, não é muito usado agora, e à medida que os suprimentos de alimentos declinarem, o movimento de homens das florestas para o oceano já vai causar bastante subversão social. Assim, a existência de uma fonte oceânica inexplorada será em meu proveito; é necessária para levar as pessoas a exigirem a tecnologia que abrirá o oceano à exploração e mineração.

Ela se encaminhou lentamente para o acampamento. Uma lufada de fumaça, com um cheiro agradável familiar, veio da fogueira. Era o odor de comida em preparo. Viu Menella se movimentando em torno da fogueira, junto com sua companheira, observadas por seus dois assistentes... estranhamente, sem desejo, constatou ela. As Amazonas Livres a deixavam um pouco perplexa. Pareciam ter descoberto o segredo da coexistência com os homens sem despertarem desejo ou ressentimento, como se pudessem tornar-se homens à sua vontade...

Um terreno perigoso! Não pense nesses termos!

O esforço de desligar uma seqüência de pensamentos recorrente e perigosa apagou seu rosto quase ao automatismo. Ergueu a mão, sem pensar, pegou um punhado de folhas e vagens, que haviam crescido com as chuvas da primavera. As mãos se movendo devagar, pelo hábito antigo, ela removeu as fibras macias das vagens, e os dedos compridos se puseram a girar, gentis, incessantes, formando fios.

Ainda torcia as fibras nas mãos quando entrou no acampamento; subitamente, percebeu o que fazia, jogou para longe, aproximou-se da fogueira, e perguntou, deliberadamente jovial:

- O que quer que estejam cozinhando, tem um cheiro ótimo. Quando vamos comer?

 

Deram um uniforme do hospital - a bata branca de tecido sintético com o caduceu vermelho e azul do serviço médico terráqueo e duas pequenas estrelas na manga, indicando o serviço em dois planetas - para David Hamilton, e ele se surpreendeu ao descobrir o quanto o fez se sentir melhor. Entre outras coisas, significava que se fundia em quase completo anonimato em qualquer lugar do espaçoporto, no QG, ou nos prédios do hospital: seria apenas mais um médico da equipe. Também lhe proporcionava um acesso incontestado a qualquer equipamento de exames que pudesse querer, sem a necessidade de encaminhar sua requisição através de Jason Allison.

Ainda não saíra do hospital, embora Regis Hastur se oferecesse, com toda cordialidade, para lhes mostrar a cidade, e sabia que Missy, Conner e Rondo haviam aproveitado o convite.

Por causa disso, não vira nenhum de seus companheiros no projeto naquele dia, e passara o tempo reexaminando os dados dos exames físicos, com a surpreendente revelação final de que Missy era uma chieri. Seria também uma hermafrodita funcional? Ele compreendeu que desde o começo, sem ter consciência disso, pensara em Missy como "ela", apesar da confusão inicial sobre o sexo de Keral ter sido resolvida apenas parcialmente. Agora, a uma mesa apartada na cantina, ele ainda avaliava os gráficos comparativos. Missy apresentava todas as características de chieri, as anomalias da estrutura interna e o inconfundível desenvolvimento das ondas cerebrais. Em termos genitais, as estruturas principais de ambos os sexos pareciam estar presentes, de forma rudimentar (como também ocorre em embriões humanos), só que as estruturas masculinas se encontravam num estado de quase atrofia. Portanto, devia haver pelo menos diferenças mínimas de sexo entre os chieri. Missy mentiu a todas as perguntas que lhe fizemos; por quê? Se não está acostumada a viver entre telepatas, será que ela sabe que sabíamos que estava mentindo? Talvez, quando confiar mais em nós, ela passe a ser sincera. Parece mais jovem do que vinte e quatro anos; eu a situaria em torno dos quatorze. Dentes... ela tem vinte e dois, o que pode ou não significar alguma coisa,

e quatro ainda não irromperam, em comparação com os vinte e quatro de Keral. Isso indica que ela é mais jovem?

A tabela de Keral. Características estruturais similares. Eu gostaria de conhecer sua língua. Aposto que nem mesmo Regis conversa com ele livre-mente, por causa da barreira da língua. Seria um uso dos mais significativos para a telepatia.

David tratou de repelir o sentimento afetuoso que experimentava ao pensar em Keral, desde o primeiro contato mental, e retornou à objetividade científica. Externamente, Keral parecia mais masculino do que feminino; a fluoroscopia mostrava órgãos femininos subdesenvolvidos, embora presentes e com um potencial funcional. Na inspeção superficial do corpo nu, no entanto, tanto David quanto Jason haviam-no considerado do sexo masculino, até que a fluoroscopia revelara a verdade. Por que nossas perguntas sobre sexualidade o perturbaram? Com sua inteligência e ausência de tabus de nudez, não faz sentido.

Ele guardou as duas tabelas na pasta ao ver Conner se aproximar pela cantina, trazendo uma bandeja cheia. O rosto escuro parecia triste, desligado e solitário, mas animou-se um pouco quando ele parou junto da mesa de David.

- Posso sentar com você?

- Será um prazer. - David chegou para o lado, a fim de lhe dar lugar. - De volta da cidade? Como é o lugar?

- Fascinante, embora eu já tenha conhecido cidades mais estranhas na galáxia.

- Todos voltaram? Rondo, Missy...

- Não. Eles preferiram continuar. É evidente que possuem mais tolerância a multidões do que eu. Regis me disse que posso aprender a me defender... a erguer uma barricada em meus sensores psíquicos... para circular à vontade entre multidões. Admitiu, porém, que é provável que eu nunca me sinta feliz na presença de muitas pessoas. Imagino que é uma das desvantagens de ser... o que somos.

- Como descobriu o que você era? - David percebeu o sobressalto de Conner, e se apressou em acrescentar: - Não precisa responder. Esqueça que eu perguntei.

- Algum dia. Quando eu estiver mais... isento. É agradável não ser o único telepata por aqui, mas levarei algum tempo para me acostumar.

Comeram num silêncio cordial, mas David sentia-se vagamente inquieto, recordando que tinha um dever desagradável e intrometido pela frente. Como se podia dizer a um quase estranho que você bancou o voyeur, mesmo que de forma involuntária, numa experiência emocional que teve com certeza a maior importância para o outro? Regis não devia ter me imposto essa obrigação! Seria mais simples se eu pudesse gostar ou confiar em Missy, mas considerando que ela só disse mentiras a Jason e a mim, sinto-me apreensivo.

E quanto mais me aproximo de Conner, mais apreensivo fico. Missy não pode gostar dele. Conner é muito... muito franco. Muito simpático. Ou deve ter sido, antes do incidente, qualquer que tenha sido, que o lançou em parafuso, Conner levantou os olhos do prato, cheio de uma mistura de gosto estranho - frutas e favas? - e fitou David. Seu sorriso era impregnado de ironia.

- Pelo que Regis disse hoje, calculei que há toda uma etiqueta elaborada das privacidades e decências numa sociedade de telepatas, para aparar as arestas. É óbvio que nenhum de nós teve a oportunidade de desenvolvê-la, mas deve haver alguma coisa indicando que é uma grosseria pensar sobre um homem em sua presença, dr. Hamilton.

David desejou que seu rosto fosse tão escuro quanto o de Conner, pois sabia que estava corando.

- Desculpe, Conner. Também não aprendi o código, se é que existe algum. E não quer me chamar de David?

Conner, ainda comendo, disse:

- Não captei tudo, mas vamos ser francos um com o outro. Por que estou em sua mente? Achei que era bom ter um médico no projeto que me considerasse mais do que um mero caso; o que pensava a meu respeito?

- Primeiro, que você também era David, e especulava como deveria chamá-lo- contemporizou o homem mais jovem. - Quanto ao resto... não vamos falar aqui. Por que não continuamos a conversa em meus aposentos?

- Com prazer. Já experimentou isto?

A caminho da saída, Conner parou numa máquina que dispensava pequenas barras de uma espécie de chocolate com frutas e nozes.

- A sensação é de que estou sempre com fome - acrescentou Conner, como se pedisse desculpas. - Acho que é o ar aqui.

David pegou também um punhado de barras. Já as provara antes; eram sem dúvida, como a maioria dos alimentos no QG, um produto local.

- Uma coisa que todos no projeto parecem ter em comum é um metabolismo anormalmente alto, o que sugere que a telepatia exige uma grande produção de energia. É verdade que a mesma coisa ocorre também no estado de transe.

Havia um pacote sob o braço de Conner, David notou-o agora, e acrescentou:

- Já esteve comprando souvenirs?

- Não. Danilo me deu, e sugeriu que eu pusesse em meu quarto, talvez achasse uma máquina interessante. Não é preciso dizer que vou examiná-la com extremo cuidado. Sinto-me propenso a confiar em Danilo... mas também não excluo a possibilidade de eles nos usarem para algumas experiências, só para descobrir como reagimos.

Subiram em silêncio pelas longas escadas rolantes até o pequeno quarto de David no QG. Lá dentro, David foi guardar as tabelas na escrivaninha embutida na parede, enquanto Conner desembrulhava a pequena máquina. Ele acionou uma pequena alavanca, e logo o quarto foi dominado por uma estranha vibração. David sentiu que ressoava em seu cérebro, cortando a visão e audição...

Não. Ele podia ver e ouvir tão bem quanto antes. O que fora cortado, na verdade, era a sensação de uma visão e audição extras. Como os impulsos de uma enxaqueca, interferindo com a visão, sem chegar a suspendê-la...

- Essa não! - exclamou Conner.

Ele tornou a mexer nos controles da máquina, até interromper a vibração. David sentiu que voltava ao normal, enquanto Conner acrescentava:

- E ainda dizem, nesta extremidade da galáxia, que os darkovanos não têm tecnologia...

Sem saber exatamente como sabia, mas tão certo quanto se estivesse lendo de uma página impressa, David disse:

- Só que é uma tecnologia que o Império Terráqueo não pode compreender. Também quero estudar essa máquina, Conner. Quando descobrirmos como um aparelho pode interromper a telepatia, teremos dado um longo passo para saber o que é a telepatia. Mas aposto um bom dinheiro como eles próprios não sabem direito por que essas coisas funcionam, apenas sabem construí-las. O que é típico de sociedades com um baixo nível de tecnologia. Lembre-se de todo o tempo em que os terráqueos usaram a eletricidade sem entender sua estrutura, nos primeiros dias das viagens espaciais.

- É possível. - Conner examinava a máquina com dedos esguios e ágeis. - Pois eu aposto que esta engenhoca é o que eles chamam de amortecedor telepático. Ouvi a expressão quando estava na cidade. Por que será que me deram?

David ergueu os olhos, com um súbito sorriso. Tinha a abertura perfeita, e tratou de aproveitá-la.

- Por um lado, eu diria... para proporcionar a você e a Missy um pouco da privacidade de que falamos.

No instante seguinte, David descobriu que batia com a cabeça na parede. Atordoado, tratou de se levantar, furioso, protestando... não falara por mal, e Conner poderia ter avisado antes, se queria brigar, em vez de apanhá-lo desprevenido com sua agressão... e depois, devagar, ainda mais aturdido, ouviu o grito de espanto e contrição de Conner, e viu que o homem mais velho o ajudava a levantar, consternado.

- David, juro que não me mexi! Apenas pensei em dar um soco na sua cara. Compreendi de imediato que você não quis me ofender, mas a esta altura já o via voando pelo ar! Oh, Deus, o que eu... - Conner tremia, prestes a chorar. - Eu deveria estar morto...

David sentiu uma necessidade premente de tranqüilizar o companheiro. Ele próprio já sofrera muito, só que de uma maneira diferente.

- Conner... Dave! - exclamou ele, em tom urgente. - Não se desespere. Não fiquei machucado. Isso é apenas parte do que temos.

Conner acenou com a cabeça, lentamente. Seu rosto exibia a palidez cinza de um preto que fica lívido e nauseado.

- Li alguma coisa sobre poltergeists no hospital, em Capella IX. Parece que estão ligados... com a sexualidade, a sexualidade perturbada, em algumas pessoas. Creio que acabamos de ter uma demonstração.

- Tem razão. Vamos tentar descobrir amanhã como você pode controlar. Mas lembre-se que devemos ser francos um com o outro. Não sabia que você e Missy estavam... irradiando tudo para nós?

- Sabia enquanto acontecia. Pude sentir vocês todos. Mas parecia não ter importância. Foi a primeira vez desde o acidente que eu... que não me senti sozinho. - Conner baixou os olhos. - Agora, sinto-me embaraçado. Não fiquei na ocasião.

David disse, com mais gentileza do que jamais imaginara que seria capaz:

- Talvez tenhamos todos de aprender a não nos sentirmos embaraçados, Conner. Pelo menos até aprendermos mais sobre os costumes de convivência entre telepatas. Mas de uma coisa tenho certeza: todos teremos de renunciar a muitas de nossas noções preconcebidas, e não me refiro apenas a sexo. Estar aqui já mudou a nós dois.

A tensão diminuiu. Até certo ponto, ambos haviam erguido uma barricada um contra o outro. Pouco depois, Conner desejou boa noite, e foi para o seu quarto. David sentou, sem o menor desejo de examinar de novo os resultados dos exames médicos, mastigando um dos doces darkovanos, sem ter consciência do que fazia.

O que vai acontecer quando ele descobrir que Missy não é humana?

Ele sentiu uma apreensão desesperada por Conner, sem saber direito por quê. E refletiu que também estava mudando, enquanto aprendia o que era.

O que vai acontecer comigo?

Ele adormeceu sem apagar a luz, e despertou de repente, com todos os sentidos vibrando, num pânico violento. Luzes! Pessoas! Rostos estranhos, olhos críticos, estão vindo à minha procura. David, David, ajude-me...

O grito se desvaneceu, e ele especulou se Keral sequer sabia que bradara aquele apelo, mas projetou-se da cadeira num pulo, disparou pelo corredor, irritou-se com o movimento lento da escada rolante, e foi descendo os degraus, de três em três. De forma um tanto vaga, no fundo de sua mente, como se fosse algo sem maior importância, percebeu que não tinha a menor dúvida sobre o caminho a seguir, o grito de pânico o conduzindo como um farol, embora nunca antes tivesse deixado o prédio...

Já escurecia lá fora, sem nenhum sinal do sol, o céu noturno sem estrelas além das luzes do espaçoporto. Confusão... sem luas... nada para encontrar o caminho... o ar era gelado, as rajadas de vento passando fáceis pelas roupas de David, mas ele continuou a correr, indiferente. O pânico de Keral era sem palavras agora, um turbilhão assustador. David contornou um prédio, em direção ao clarão de luzes numa pequena praça. Havia uma multidão ali, murmurando, num tom de espanto, extrema surpresa, com uma curiosidade hostil, que David associava a espectadores de aberrações e desastres. Oh, Deus, se ele estiver ferido...

David abriu caminho pela multidão, dizendo com a autoridade firme que aprendera a usar na primeira semana de hospital:

- Muito bem, deixem-me passar... deixem-me passar... sou médico... deixem-me passar...

Ele agradeceu à sua boa estrela pelo uniforme médico que usava. No hospital, tornava-o anônimo, apenas um entre muitos, com direito à presença ali; fora do hospital, no entanto, proporcionava-lhe autoridade. As pessoas se afastaram a seu avanço, e David continuou em frente, usando os cotovelos e ombros largos, implacável.

Avistou Keral, e seu coração parou por um momento. O chieri estava agachado, encolhido, os braços em torno da cabeça, tão pálido e branco que por um instante de horror David chegou a pensar que ele fora literalmente assustado até a morte. Uma criatura delicada e tensa, desacostumada à sociedade das pessoas; o que o levara ao meio daquela multidão? Depois, as pálpebras de Keral adejaram, e David se adiantou, pôs a mão em seu ombro, e murmurou:

- Está tudo bem. Tirarei essas pessoas daqui em poucos segundos. Ele virou-se para a multidão.

- Muito bem, tratem de se dispersar, não há nada para ver aqui. Ou devo chamar a Força Espacial pelo rádio?

Quase todos na multidão eram terráqueos, e David compreendeu que não tencionavam qualquer mal, apenas olhavam curiosos para uma coisa estranha. Ele se sentiu de repente embaraçado e envergonhado por ser humano. Devagar, as pessoas começaram a se afastar. David pôs a mão sob o cotovelo de Keral, ajudou-o a se levantar.

- Eles já foram, mas é melhor você entrar comigo, por algum tempo. A respiração de Keral era acelerada, o rosto estava branco.

- Saí para procurá-lo, tinha certeza de que poderia encontrar o caminho. Só que me perdi dentro do espaçoporto, e eles começaram a me seguir. E foi pior quando desatei a correr, acho que algumas pessoas não sabiam o que acontecia, e pensaram que estavam caçando um... um fugitivo.

- Mas agora eles já foram embora.

David levou-o de volta pelo caminho por que viera. Seu senso de direção o abandonara, agora que não mais seguia os sinais do pânico de Keral, e teve de pedir uma orientação duas vezes. Fazia muito frio, a intensidade do vento aumentava a cada minuto, e David percebeu que se sentia enregelado. O chieri estendeu a mão, num gesto rápido, ajeitou um canto de seu manto comprido sobre os ombros de David.

O calor do prédio do QG envolveu-o, e David agradeceu, relaxado. Sentiu um tênue ímpeto de pânico renovado de Keral, e virou-se para ele, numa solicitude ansiosa. Mas o chieri apenas murmurou:

- Não estou acostumado a ficar entre paredes. Mas não importa, é melhor do que as multidões.

Uma imagem súbita, estranha e bela, surgiu e desapareceu da mente de David, multidimensional, afetando todos os sentidos...

... um vento ameno, soprando folhas, mil fragrâncias, cada uma conhecida, aceita, amada, um telhado por cima que recendia a folhas e sussurrava ao vento, mas proporcionava proteção contra a chuva, água correndo sob os pés...

- Seu lar?

Ele não precisava de uma resposta, e sentiu-se estranhamente contrito ao levar Keral para a primeira das escadas rolantes, que considerava algo corriqueiro num prédio grande. Censurou a si mesmo: Ora, David, pare de bancar o romântico. Viver numa floresta pode parecer sensacional, mas você está aqui, e tem um trabalho a realizar.

Mesmo assim, o contraste o afligiu, enquanto conduzia o chieri para seus aposentos desolados e impessoais. Teria mesmo vivido por anos em ambientes tão sombrios quanto uma cela de prisão, absorvido em seu trabalho? Ele procurou um lugar para seu estranho visitante sentar, e sentiu que a trêmula tensão de Keral relaxava pouco a pouco.

- Disse que vinha me procurar, Keral, quando entrou em pânico no meio da multidão. Não que não seja bem-vindo, mesmo a esta hora, mas o que queria?

- Achei que enquanto vocês aprendiam coisas a meu respeito, eu também poderia conhecê-los mais, e que faria isso melhor aqui, do que em isolamento. Ainda não sou bastante fluente em sua língua, e será mais fácil se fizer contato...

Ele pegou a mão de David, apertou-a de leve, e o fluxo de imagens alcançou o terráqueo.

...uma civilização nova e estranha, mas não muito diferente da que meu povo conheceu há milênios. Talvez tenhamos sido egoístas, ao nos retirarmos para nossas florestas, e (sabendo que morríamos, infelizmente, cantando nosso lamento sozinhos) esperando ali, em silêncio, vivendo da beleza e da memória; talvez os que vierem depois de nós possam aproveitar o que somos, o que sabemos. Vamos voltar a conviver com eles, aprender com eles, descobrir que pessoas viverão em nosso mundo depois que partirmos...

A tristeza estranha e desesperançada do fluxo de pensamentos incutiu em David um sentimento quase angustiado de solidão. Sentiu que poderia desatar a chorar, e tratou de se desvencilhar de Keral, engolindo em seco. Keral fitou-o, curioso, sem se mostrar ofendido.

- Não é de boas maneiras, em sua cultura, fazer um contato? Perdoe-me. Não poderia fazer isso com todos, mas você... posso fazer contato com você, e isso... não me assusta.

Era evidente que o chieri tinha dificuldade para encontrar as palavras certas. David tornou a se adiantar, pegou as mãos finas e frias de Keral, e murmurou:

- Por que seu povo está morrendo, Keral? Regis me disse que era apenas uma lenda agora.

...Infinita tristeza, como uma canção de despedida partindo de praias distantes... folhas caindo, botões murchando ao nascerem, nosso povo envelhece e morre, sem filhos para renovar suas canções... e eu, o mais solitário de todos, porque morro aqui, no exílio... as mãos de um estranho segurando as minhas, um estranho afetuoso, mas ainda assim um estranho...

David: O exílio voluntário não é menos exílio.

...que vai me conciliar com os caminhos que devo percorrer sozinho...

David: Montanhas nos dividem, e um mundo de mares... e em sonhos nos contemplamos...

A onda subiu, quebrou, desmanchou-se suave numa praia silenciosa de angústia. David engoliu em seco, as mãos se separaram. Por um instante, haviam se tornado mais íntimos do que até mesmo a crescente familiaridade entre os dois podia tolerar, e trataram de romper o contato. Keral explicou:

- Vim aqui por isso, para que vocês possam aprender sobre meu povo. Muitos dos outros são velhos demais; morreriam longe de suas florestas. Estou disposto a dar o que posso; mas também me sinto curioso em saber. Deixe-me participar de suas pesquisas, David. Deixe-me saber tudo o que descobrirem; partilhem comigo o que aprenderem. Posso captar sua língua depressa; meu povo tem um dom para línguas.

- Quanto a isso, não tenho a menor dúvida.

David sentiu-se subitamente impressionado. No dia anterior, ao serem apresentados, Keral tinha dificuldade para falar até mesmo umas poucas palavras da língua casta um tanto erudita de Regis, e agora falava em frases fáceis e fluentes o cahuenga, a língua franca, usada por todos em Darkover, tanto terráqueos quanto darkovanos. David aprendera pelas fitas educacionais que usara na espaçonave, durante a viagem.

- Não tenho objeções, Keral - acrescentou ele. - E estou certo de que Jason e as autoridades lhe concederão esse privilégio, se assim desejar. E se quiser ficar aqui, farei o que puder para ajudá-lo a se sentir menos... confinado. Não estou autorizado a tomar uma decisão dessas, é claro, e você deve conversar com Regis. Se quer saber o que já descobrimos, terei o maior prazer em partilhar tudo. Mas também está disposto a responder a algumas perguntas? Parecia muito confuso ontem, e foi difícil demais fazê-lo compreender. Por exemplo, qual é a sua idade?

...Ele parece ter dezessete anos, embora deva ser mais velho...

- Sou um adolescente entre meu povo, um dos últimos a nascerem. Mas precisaria saber quantos ciclos do sol já vivi, e não posso lhe dizer. Creio que seu povo conta o tempo de uma maneira diferente do nosso. Para nós, muitos ciclos do sol passam despercebidos, é como um sono, o começo e o fim de uma canção. Devo tentar pensar de uma maneira diferente ao falar com vocês. É esse o motivo pelo qual os anciãos do nosso povo não suportariam a convivência com vocês. Os dias e a queda das folhas parecem... regular seus pensamentos, suas palavras e processos internos. Eu nasci... como posso explicar de um jeito que você compreenda?... no tempo antes da grande estrela sobre o gelo polar se deslocar para sua posição posterior. Isso faz algum sentido para você?

- Não - respondeu David. - Não sou astrônomo, mas imagino que alguém possa determinar esse momento.

Ele sentia-se aturdido. Está tentando me dizer que tem centenas de anos de idade? Mitos de raças imortais!

- E, no entanto, por mais longevo que seja seu povo, diz que agora estão morrendo? Não quero fazê-lo sofrer, Keral, mas precisamos saber.

- Começamos a morrer muitos séculos antes dos terráqueos chegarem a Darkover pela primeira vez. - A voz do chieri era tranqüila e positiva. - Nunca fomos uma raça abundante ou prolífica... essa é a palavra certa?... e embora durante os anos do auge tenhamos crescido e multiplicado, como uma árvore florescendo, todas as coisas definham e perecem. Não compreendemos o que estava acontecendo, à medida que o tempo significava menos e menos para nós. Talvez alguma mudança, como o esfriamento do sol, tenha provocado uma alteração em nossas células. O prazo em que podíamos gerar crianças foi se espaçando... por muitos e muitos ciclos do sol. E creio que o prazo aumentou ainda mais à medida que o sol esfriou. Muitas vezes, quando alguém de nosso povo se encontrava pronto para o acasalamento, não encontrava ninguém para se unir. E embora não morrêssemos de causas naturais, podíamos morrer por acidente, animais selvagens, o tempo, algum infortúnio. E logo haviam mais morrendo do que nascendo. Foi um processo lento, tão lento que nem percebemos, até que os anciãos constataram que não nasciam mais crianças, até que muitos dos mais jovens haviam passado da época do acasalamento. Assim, é inevitável que algum dia, não muito próximo, mas também não num futuro imprevisível, haveremos todos de morrer, desaparecer por completo.

A voz era serena, objetiva, desprovida de qualquer emoção.

- Procuramos muitos remédios para a situação. À medida que você compreender nossas palavras, eu lhe direi o que ouvi dos anciãos... das manobras pelas quais procuramos preservar o nosso povo. Só que nada adiantou, e vamos desaparecer, como se nunca tivéssemos existido, como as folhas da última primavera.

A serenidade de Keral impressionou a David como uma aceitação resignada, e desesperançada. Não era possível suportar tamanha resignação; não era possível suportar que o brilho luminoso que experimentara no primeiro contato com Keral se extinguisse naquele sofrimento; mas o que podia fazer?

- Meu povo tem um provérbio, Keral: Nunca diga morrer. Regis acredita que todos os telepatas darkovanos estão acabando, mas ele tenta fazer alguma coisa, em vez de entoar tristes canções de pesar. Talvez não seja tão tarde quanto vocês imaginam, Keral; e mesmo que seja verdade, faremos tudo para aprendermos ao máximo possível, e seremos gratos pela oportunidade de recolher todas as suas informações.

Keral tornou a exibir seu sorriso luminoso.

- É bom ouvir isso. Como eu disse antes, meu povo passou tempo demais sentado em nossas florestas, a entoar canções de pesar, a esperar que as folhas nos cubram. Por isso... aqui estou.

David pegou as pastas que estudara ao jantar.

- Está convencido de que não há nenhuma outra raça como a sua? Silêncio afirmativo de Keral.

David lançou sua bomba, gentilmente, quase sem ênfase:

- Sabia que Missy é uma chieri?

Ele não estava preparado para a violenta erupção de repulsa, aversão e choque de Keral.

- Impossível! Aquela... fêmea animal? Não, David. Pode ter certeza de que nosso povo não é assim. Fiz contato com ela, meu amigo, assim como aconteceu com você, há poucos momentos. Acha sinceramente que eu poderia ter me enganado?

- Não por seus padrões - disse David, perplexo, mas disposto a defender as descobertas de sua ciência, até que Keral oferecesse argumentos melhores do que a repulsa física. - Neste caso, há uma raça bastante parecida com a sua para ser gêmea. Deixe-me mostrar o que descobrimos.

Ele expôs os dados fisiológicos. Keral revelou mais conhecimento de anatomia do que David poderia imaginar; superada a barreira da língua, era evidente que ele tinha uma boa noção daquelas coisas. David teve de explicar os diagramas e registros dos instrumentos; e depois que Keral absorveu tudo, passou a examiná-los com o rosto franzido, numa crescente inquietação.

- Não consigo entender, David, mas o instinto me diz que você está errado, enquanto a inteligência insiste que deve estar certo. Como podemos resolver o problema?

- Missy mentiu a todas as perguntas que lhe fizemos, sem exceção, de uma maneira compulsiva. Se ela é uma telepata aberta, e é mesmo... sabemos disso pelo que aconteceu com Conner... por que fez isso? Como pensou que podia escapar impune?

Quase tarde demais, David recordou que a abordagem da questão da sexualidade levara Keral a recuar, numa ocasião anterior. Apesar disso, Keral acabara de falar de forma objetiva, embora pesarosa, sobre seu povo e a capacidade reprodutora. Um enigma...

- Só conheço uma maneira de ter certeza, e pode ser perigosa, mas devemos usá-la - disse Keral. - Podemos trazer Missy até aqui sem alarmá-la, David? Talvez eu saiba de um jeito de interrogá-la para descobrir suas verdades. Por que alguém mente? Apenas por medo, ou por um desejo de proveito pessoal... e que proveito ela pode ter de mentir? Talvez possamos descobrir o medo por trás de suas mentiras, e dissipá-lo.

- Vou tentar.

David saiu para o corredor, deixando Keral à espera (enroscado na cama, mastigando curioso a barra de doce). Lembrou que todos eles, à exceção dos darkovanos, tinham alojamentos naquela ala; e sentiu um repentino embaraço. E se interrompesse Conner e Missy na cama? Na Terra, se eu encontrasse dois conhecidos na cama, trataria de me desculpar, e pediria que me procurassem assim que acabassem. É o lamentável tabu do voyeur, e no final das contas os telepatas já devem estar acostumados a isso. Pelo que me pareceu, não incomodou Regis, que apenas receou que isso nos perturbasse, captar tudo aquilo.

Mas se Missy não é humana, e ainda assim pode manter relações sexuais com humanos, pode-se dizer que os chieri são não-humanos? E se eles podem cruzar com humanos, por que se encontram num processo de extinção? Ora, já estou procurando pelas respostas antes mesmo de ter as perguntas certas. É melhor definir os fatos primeiro.

Missy abriu a porta de seu quarto, e David constatou que ela estava sozinha.

David? O que ele quer? Senti que vinha me procurar.

É uma idiotice passar por todas essas formalidades, quando podemos captar os pensamentos e emoções um do outro. Acho que apenas nenhum de nós já se acostumou a isso.

Em voz alta, para atenuar a estranha apreensão, tanto em si mesmo quanto nela, David disse:

- Missy, se não está ocupada, poderia dar um pulo ao meu quarto? Gostaríamos de lhe fazer algumas perguntas.

A curiosidade aflorou nos olhos cinzas claros.

- Por que não?

Ela acompanhou-o. David notou de novo o corpo esguio e gracioso, não tão exótico quanto a estranha beleza de Keral, mas ainda assim suficiente para realçá-la em qualquer mundo. Ela reagiu com uma ligeira surpresa à presença de Keral, mas não fez qualquer comentário. David percebeu uma certa cautela nela, ao se acomodar na cama, ao lado de Keral, e aceitar uma das barras que ele trouxera lá de baixo.

Hábitos de movimento e fala são uma conseqüência de cultura. Missy anda e age como uma mulher adorável, sabendo que é desejável, confiante nisso...

Ou a confiança é mais profunda? Há algum desamparo nela; parece meio perdida, é isso, não é como as outras pessoas... David tentou fazer com que fosse uma reunião social corriqueira.

- Desculpe não ter nada a lhe oferecer; depois que estivermos aqui há mais tempo, poderei me tornar mais organizado. Deve haver por aqui algum lugar em que se consegue uma bebida. E se não houver, será o primeiro planeta do Império, ao meu conhecimento, em que isso não existe. Ah, Missy, eu já ia me esquecendo; em que mundo a encontraram?

...cautela, cautela. Um ímpeto de medo, como um pequeno animal correndo para sua toca. ...houve tantos...

- É um daqueles com um nome impronunciável - respondeu Missy.

Keral fitou-a com seus olhos claros. Uma tênue faísca.

- Sou bom em línguas - murmurou ele. - Experimente.

Pânico. Recuo. Terror. Ela retorceu as mãos, aflita. Ela não o fez. Manteve-se imóvel.

- Nasci em Lanach, e assim imagino que podem me chamar de uma lanchy.

David não percebeu o tremor de advertência das mentiras anteriores, e sentiu que ela dizia a verdade, ou pelo menos assim pensava.

- Já vi Lanach nos mapas estelares, mas pensava que havia sido colonizada na maior parte por raças e grupos étnicos mais escuros.

- E foi mesmo. Sempre me senti uma aberração ali. - Missy deixou escapar uma respiração trêmula. - Foi por isso que fui embora, e nunca mais voltei.

- Era uma enjeitada?

...cautela, cautela... cuidado... o que eles querem...

- Creio que sim, mas nunca tive certeza. Não me lembro de meus pais.

Missy tornou a fitar os olhos de Keral; outra vez o brilho curioso e perplexo entre os dois, até que Keral desviou o rosto. David pôde captar sua apreensão, sua repulsa, quase como uma coisa tangível, e ressurgiu a sensação de pressão secreta. Como uma moça que parecia ter quinze anos podia deixá-lo tão desorientado? Seria apenas a percepção de seus feitos sexuais anteriores que transtornava Keral? Era com certeza uma área em que todos deveriam ter bastante cuidado com o chieri... um estranho código sexual? Fertilidade racial em declínio acarretando inibições e tabus sexuais...

Keral recuperou o controle, e disse, a voz calma e incisiva:

- Por que mentiu para nós, Missy? Qual é a sua idade?

Pânico. Violência... saia/corra/desapareça/fuja/uma coisa acuada a se contorcer em desespero...

Essa imagem se tornou turva. Outras ondas de percepção magnética a amorteceram. Missy mexeu-se na cama, em movimentos sedutores, estendeu as mãos para trás da cabeça. David se perguntou por que pensara que ela era imatura. O sorriso era lento e radiante quando ela murmurou:

- É privilégio de uma mulher guardar sua idade para si mesma. Mas já passei da idade do consentimento.

Ela não fez outro movimento, mas por um instante confuso David teve a impressão de que estendia os braços em sua direção, que havia um impulso em sua própria virilha, que deveria se adiantar para tomá-la...

Keral deixou escapar um som estrangulado de asco e repulsa.

Um de nós? E assim? Loucura, mas sinto... é verdade, mas como... uma enjeitada? E desvairada, uma fêmea voraz... todos os tipos de homens, em todos os mundos...

David, recuperando a sanidade com o ímpeto de aversão de Keral, afastou-se de Missy, e disse friamente:

- Aplicou esse truque com Conner, mas não funcionará conosco, Missy, pelo menos não neste momento. Sua beleza é irresistível, mas não foi para isso que viemos até aqui. Tudo o que queremos de você, Missy, é a verdade. Por que mentir para nós? Que mal a verdade poderia lhe causar? De onde você veio? Qual é a sua idade?

Pânico. Medo. Inquietação, uma angustiante e profunda perda da segurança; se eles não me querem naquilo em que sou boa, como vou me esconder... esconder, esconder...

Sem aviso, o quarto explodiu. As escovas de David, em cima de uma prateleira embutida na parede, voaram pelo quarto, chocaram-se contra o espelho. Missy, como uma gata girando loucamente, estava dentro de um vórtice, que atraía cadeira, cestas, canetas na escrivaninha, e arremessava tudo em todas as direções. Keral encolheu-se, cobriu o rosto, mas as cobertas subiram por seu corpo, serpeando com cobras, envolveram-na, com uma força estranguladora. Uma chama subiu pela parede...

David ouviu gritos de raiva e terror, mas em outro nível do quarto havia um silêncio total, um silêncio de morte, intemporal.

Abruptamente, Missy ficou imóvel, como se tivesse virado pedra. Debateu-se e esperneou, sob uma força invisível, sem chegar a se mover de fato, como se mãos fortes a imobilizassem.

Comporte-se! Era como uma voz real, fria, autoritária, irada, revelando a presença de Desideria. Sei que não tem modos nem treinamento, mas é tempo de aprender a se controlar. Um dom natural como o seu à solta é perigoso, minha cara, e quanto mais cedo aprender isso, melhor.

Missy arriou no chão, como se a força invisível a subjugasse fisicamente. Ao seu redor, os móveis e objetos foram pouco a pouco assentando em seus lugares. O senso da presença de Desideria se desvaneceu, como um irônico pedido de desculpas. Keral e David, atordoados, trocaram um olhar.

Missy, a respiração ofegante, soluçando, levantou-se, e fugiu do quarto. David deixou escapar a respiração num longo suspiro.

- Mas o que provocou isso?

- Nós a assustamos - respondeu Keral, sem ironia. - Fiz a pergunta errada, que idade ela tinha.

David viu abruptamente, sem palavras, a imagem na mente de Keral, em contraste com a aparência de Keral, que parecia não ter idade...

... fugindo de mundo para mundo, quando viam que ela nunca mudava, nunca envelhecia; sempre procurando um novo protetor; abandonando-o quando ele envelhecia e morria; um novo mundo sempre surgindo para ser conquistado, em que podia se esconder; no nível mais baixo, seu dom servindo apenas para procurar e conquistar, submeter um homem de imediato a seu encantamento, escravo de seu corpo...

Keral disse, a voz trêmula:

- Sinto muito. Eu me senti nauseado, isso é tudo. Que alguém de nossa raça... e ela o é, deve ser, embora eu ainda não saiba como. Nós, nosso povo não pode, isso é tudo. A... a mudança deve ser um processo de profundo envolvimento; não, sei que você não compreende.

Ele parecia assustado, angustiado, como ocorrera no primeiro encontro, querendo bater em retirada, desesperado.

- Keral, Keral... não...

David pegou as mãos do chieri outra vez, esperando acalmá-lo, como fizera antes, mas Keral recuou, numa rejeição espasmódica.

Não me toque!

Mas enquanto David se afastava, consternado e magoado, Keral fez um esforço para se acalmar.

- Há muita coisa para contar, David, e não posso lhe contar tudo. Meus anciãos devem saber sobre isso. Mas fracassamos com Missy, e uma coisa posso lhe dizer. Falei antes que nossa raça começara a morrer antes mesmo que seu povo chegasse a este mundo que chamam de Darkover. Nem sempre fomos um povo da floresta. Tínhamos cidades, mundo, naves que podiam viajar entre as estrelas. Ao compreender que estávamos morrendo, deixamos este mundo, e por muitos e muitos anos

vagueamos entre outros mundos, habitados por todos os tipos de homens, à procura de uma solução, tentando encontrar uma maneira de continuar a viver, em vez de morrer... só que não havia solução. Ao final, voltamos para cá, deixamos nossas naves enferrujarem no fundo do tempo, nossas cidades se desfazerem no pó da eternidade, e nos retira-mos para as florestas intermináveis, esperando morrer, não ser mais que...

Ele fez uma pausa.

- Mas uns poucos dos nossos devem ter permanecido em alguns mundos. Desconhecidos. Ignorados. Deformados pelo conhecimento de tudo por que haviam passado com outras raças, que não os conheciam, não podiam compreendê-los. Acho que Missy é um desses, mas não sei...

Keral calou-se, baixou o rosto para as mãos. Só depois de um longo momento é que murmurou:

- Estou cansado. Deixe-me dormir.

Os alojamentos no hospital dispunham de camas extras embutidas na parede. David compreendeu que Keral estava no limite de sua resistência, e por isso não disse mais nada, estendeu uma dessas camas, e observou o chiai arriar ali, mergulhar num sono atordoado e inconsciente, que era como um transe. Mas ele próprio continuou acordado por horas, examinando suas anotações, a mente em turbilhão por tudo o que descobrira.

Descobriram na manhã seguinte que Missy desaparecera.

 

LINNEA, guardiã e leronis da Torre de Arilinn, dispunha de poucas horas de lazer, e quando ocorriam, tentava mantê-las invioláveis. O trabalho de uma Guardiã, uma trabalhadora nas redes de matriz, que proporcionavam a pequena tecnologia acessível em Darkover, era árduo e desgastante para o cérebro. Treinada desde a infância no trabalho telepático mais difícil, ela procurava se resguardar de todos os contatos casuais com pessoas que não eram telepatas, como todas as Guardiãs, conservando suas energias por todos os meios ao seu alcance.

Assim, quando um dos poucos criados na Torre lhe trouxe o aviso de que duas Amazonas Livres das montanhas desejavam lhe falar, ela se mostrou ao mesmo tempo incrédula e ofendida.

- Não recebo visitantes. Não sou uma aberração a ser vista por uma moeda. Mande-as embora.

Poucos anos antes, pensou Linnea, ninguém se atreveria a sugerir tamanha insolência. O criado parecia quase que igualmente embaraçado.

- Acha que eu não lhes disse isso, vai leronis? Mas quando falei, e num tom um tanto áspero, uma delas afirmou que era de sua aldeia, e que agora que sua avó deixou as montanhas, não havia mais ninguém num raio de mil quilômetros que pudesse ajudá-la. E alegou que esperaria a noite inteira e todo o dia por uma hora de sua conveniência.

Surpresa, Linnea respondeu:

- Neste caso, creio que devo recebê-las.

Mas o que uma mulher de minhas colinas faz em Arilinn, tão longe das Kilghard, tão longe das montanhas de Storn...

Ela desceu lentamente pela longa escada, em vez de exigir que o corpo e o cérebro cansados controlassem o elevador. Ao passar pelo campo de força azulado que protegia as Guardiãs em ação de pensamentos externos, Linnea preparou-se para a entrevista com as forasteiras, não-telepatas. Era muito difícil, depois de semanas e meses a ver apenas os que podiam se fundir com seus ânimos e sentimentos interiores, fazer contato com pessoas de fora, mentes e corpos frios, barricados, estranhos...

Ela encontrou uma sensibilidade rudimentar na Amazona Livre alta, de cabelos vermelhos trançados (uma telepata? neutralizada? Linnea, celibatária por necessidade, como todas as Guardiãs, sentiu um ligeiro choque de repulsa pela criatura assexuada), e isso tornou a sua voz fria:

- Que urgente necessidade a trouxe até aqui, no fim do mundo, minha conterrânea?

Foi a mais jovem quem levantou os olhos para responder, uma mulher bonita, rechonchuda, usando as peles do povo das colinas:

- Dama Linnea, eu a conheci quando criança em High Windward. Sou Menella, da Naderling Forst. Esta é minha companheira livre, Darilyn, e estamos aqui porque...

A timidez a dominou, e ela se virou num apelo ostensivo para a Amazona mais alta, de cabelos vermelhos. Darilyn continuou, a voz fria, incisiva:

- Não deveríamos incomodá-la, leronis, mas não há qualquer outra pessoa que possa compreender, ou acreditar em nós. Mas você sabe o que sou.

Ela ergueu os olhos cinzas por um instante, quase em desafio, e houve um contato de reconhecimento com Linnea.

Como você, feiticeira, tenho vivido resguardada. Pelo que sou, resguardada do contato de qualquer homem; e vulnerável, como toda a nossa espécie, num rápido processo de extinção.

Linnea baixou os olhos, dos quais a condenação desaparecera por completo. Nascera numa família nobre, e se não fosse escolhida para o trabalho nas Torres como uma telepata, poderia ter sido dada em casamento a um homem de sua casta, alguém com a mesma sensibilidade, também telepata. Darilyn, nascida numa aldeia, sempre cercada (uma aberração, um atavismo) por pessoas que não podiam compreender nem respeitar o que ela era, optara por destruir sua feminilidade, através da operação de neutralização, em vez de se submeter a um homem que seria para ela apenas uma besta estúpida. A voz de Linnea soou gentil quando ela disse:

- Sejam bem-vindas, conterrâneas. Minha descortesia derivou do cansaço, não mais do que isso. Já lhes ofereceram refrescos? Está tudo bem nas colinas de nossa terra, Menella?

- A situação é pior do que se pode imaginar, vai leronis - respondeu Menella. - Mas não viemos lhe contar uma história que já conhece. Já sabe que o fogo e a fome têm nos devastado. Darilyn, conte o que viu.

Darilyn, serena por fora, exibia um nervosismo angustiado por dentro.

- Minha companheira livre e eu viajamos há pouco tempo com uma mulher do mundo exterior, não uma Amazona Livre, embora se comportasse como uma de nós. Contratara os nossos serviços como guias e caçadoras, numa jornada pelas montanhas. Era uma mulher estranha, como uma Guardiã que tivesse perdido seus poderes, mas as pessoas do mundo exterior são todas loucas, e por isso não ficamos surpresas. Pude ler alguma coisa de seus pensamentos; ela não se dava ao trabalho de ocultá-los, e por isso pensei que nada tinha a esconder.

Subitamente, Darilyn começou a tremer, e continuou, com absoluta convicção:

- Ela era maligna. Passou pelas florestas destruídas, e contemplou-as como se tivesse ateado o fogo com as próprias mãos. Fitou-me, e percebi que, por sua vontade, toda a nossa espécie morreria. E uma ocasião eu a vi a distância, sepultando um amuleto na floresta, e compreendi que por sua vontade o solo seria devastado, e morreria. Sei que parece uma loucura, Linnea. Aprendi antes mesmo de meus seios crescerem que não existem bruxas, e que o desejo do mal não prejudica ninguém, tanto quanto as boas intenções não ajudem. Mas não posso deixar de especular... pois tenho certeza de que a vontade maligna daquela mulher era a de destruir nosso mundo. É um enigma que não posso deslindar, vai leronis, e só uma Guardiã pode encontrar a resposta.

- Tudo isso é absurdo e superstição - protestou Linnea. E, no entanto, sua voz definhou e sumiu.

Uma conspiração contra o nosso mundo?

O que Regis dissera?

O trabalho de uma bruxa? Impossível. Mas aquelas mulheres não diziam a verdade, à luz de sua limitada compreensão? A verdade, ou pelo menos aquilo em que acreditavam implicitamente, estampava-se em cada linha dos rostos obstinados. De qualquer forma, nenhum darkovano jamais mentiria para uma Guardiã. Essa certeza tornou gentil a voz de Linnea ao dizer:

- Não sei como é possível o que disseram, mas devem ter visto alguma coisa para acreditarem nisso. Já deixaram o serviço da mulher?

- Ainda não, Dama. Ao passarmos por Arilinn, anunciamos que deveríamos vir lhe apresentar nossos respeitos, e ela não se importou.

Linnea declarou, decidida:

- Cuidarei disso. Mas sabem que devo ter alguma coisa que pertenceu a ela.

- Cortei um pedaço de suas roupas sem ser vista - informou Menella.

Linnea quase riu do estranho contraste entre o medo supersticioso e o pragmatismo. Todos sabiam que sem alguma coisa que pertencera à pessoa - ou sem um contato físico - era difícil captar as vibrações dos pensamentos. E mesmo assim elas havia chegado à conclusão de que a forasteira era uma bruxa?

Linnea não falou mais sobre a estranha, ofereceu-lhes refrescos, conversou mais meia hora sobre a infância partilhada, antes de despachá-las. E durante todo esse tempo, enquanto escutava as notícias desconcertantes de sua terra, uma frieza crescera em seu coração.

Regis Hastur percebera a mesma coisa.

Uma conspiração. Mas por quê? E de quem? Aquelas mulheres teriam visto a essência?

Ela precisava descobrir, de alguma forma.

Mas havia em seu coração uma ânsia obstinada. Regis sabia muito sobre essas coisas. Estaria apenas inventando um pretexto para revê-lo? Pois ela sabia que deveria levar o problema a seu conhecimento.

Regis...

Linnea! Minha querida, onde você está (tão longe de mim, tão perto)...

Em Arilinn, mas devo ir para aí, mesmo que isso implique fechar todas as redes de transmissão; é importante a esse ponto.

Amada, o que aconteceu? (Está assustada. Posso partilhar seus temores?)

Não desta maneira, em que qualquer pessoa aberta para nós poderia captar. (Não apenas assustada, mas em terror por nosso mundo, por todo o nosso povo.)

Linnea, posso mandar um avião terráqueo para buscá-la, se não tem medo de viajar nele, e se for capaz de enfrentar a ira dos outros. (Anseio por sua presença aqui; gostaria de vê-la esta noite ainda, mas nunca pediria isso.)

Não tenho medo (para vê-lo de novo, eu enfrentaria mais do que a ira, mas não pelo meu próprio bem), e tenho de lhe contar o que descobri.

Regis rompeu o contato, deixou escapar um suspiro profundo, sentindo seus muitos medos e problemas subjugarem-no de novo, depois de uma breve trégua. Sentia-se ansioso em rever Linnea, mas o medo que captara em seus pensamentos quase que o levava ao pânico. E agora estava extenuado, com a fome e a fraqueza decorrentes de manter contato mental por uma distância tão grande. Era uma coisa que deviam estudar no projeto com os terráqueos, refletiu ele, o esgotamento físico que resultava de um contato prolongado, ou de um contato por longas distâncias. Havia também outro pensamento no fundo de sua mente. O contato direto desde Arilinn, a mais de mil e quinhentos quilômetros de distância, dificilmente seria possível para a maioria dos telepatas em Darkover; o que significava que Linnea deveria ter poderes mais extraordinários do que ele imaginara. A maioria das Guardiãs hoje em dia, quando os poderes se encontravam exauridos, sem o treinamento apropriado, teria feito contato através das duas estações de transmissão intermediárias entre Thendara e Arilinn, sem sequer tentar procurá-lo diretamente. Era uma indicação do pânico de Linnea ter tentado o contato por uma distância tão grande, sem recorrer às estações intermediárias, e uma expressão de seu poder ter conseguido, mesmo que apenas por uns poucos segundos.

Ele sabia que não seriam feitas perguntas se solicitasse às autoridades terráqueas para enviarem um avião a Arilinn; e não houve nenhuma, o que não o impediu de se preocupar, enquanto tomava as providências necessárias. Isso acarretaria novas críticas, contra si mesmo e contra Linnea; não dos terráqueos (ansiosos em deixarem os Hasturs a lhes dever favores), mas de seu próprio povo. Condenado por alguns por manter um relacionamento com os terráqueos, condenado por outros por não aprofundar esse relacionamento. Qualquer que fosse a sua posição, seria condenado.

Naquele momento, Regis tinha outro problema terrível, confrontava a perspectiva de uma desagradável entrevista. Não queria ir ao hospital do QG terráqueo, embora soubesse que teria a melhor acolhida ali. Havia o problema de Missy. Para onde ela fora? O espaçoporto de Darkover era grande, a Cidade Comercial enorme; e algum lugar a tragara, como se ela nunca tivesse existido. Regis sabia, em termos racionais, que ela procuraria o anonimato, não criaria dificuldades, mas ainda assim o medo o assediava.

E havia ainda o problema mais pessoal. Ele foi andando pelos corredores do hospital, sob os olhares curiosos dos médicos e enfermeiras de passagem, especulando (só alguns, pois os outros sabiam muito bem) o que um homem com trajes da nobreza darkovana fazia ali.

Finalmente bateu na porta do escritório do Projeto A, esperando poder protelar a outra visita por mais algum tempo. Jason e David se encontravam ali, além de Keral, que passava a maior parte do tempo no hospital, absorvendo tudo o que faziam. Regis espantara-se com a rapidez com que o chieri apreendera os conhecimentos técnicos que aparentemente desejava.

O sorriso efusivo de Jason, por mais cordial que fosse, fez Regis estremecer um pouco, enquanto o terráqueo dizia:

- Regis! É um prazer vê-lo, embora eu pensasse que não teria tempo para nós esta manhã. A dra. Shield me avisou que posso lhe dar os parabéns. Um belo menino, pelo que fui informado, pesando três quilos, e perfeitamente saudável.

- Eu ia visitar Melora e a criança agora... se ela quiser me receber - murmurou Regis. - Ela deve estar muito zangada, pois não me mandou nenhum recado.

- Você não poderia ter feito coisa alguma aqui - lembrou David.

- Por que deveria perder seu sono? E ela foi muito bem cuidada. Conheço Marian Shield, e ela me parece ser uma das melhores obstetras neste mundo.

- Sei disso, e me sinto grato a todos vocês - respondeu Regis. - Mas o próprio fato de ela não ter me avisado...

Seus olhos se encontraram com os de David, e ele percebeu um rápido lampejo de compreensão.

...Uma mulher que ama o homem que é o pai de sua criança vai querê-lo ao seu lado num momento assim.

- Tenho de visitar Melora - acrescentou Regis. - Já houve alguma notícia de Missy?

- Absolutamente nada, Regis - respondeu Jason. - Vão detê-la se tentar deixar o planeta, mas de outra forma... é um mundo vasto, e parece evidente que ela está acostumada a fugir e se esconder.

Alguém de meu povo... uma fugitiva!

Os pensamentos de Keral eram quase palpáveis, e Regis sentiu um vago desejo de lhe oferecer algum conforto, sem saber como. Viu David se inclinar, sem dizer nada, e pegar a mão do chieri, e o gesto lhe acarretou um estranho pesar; como se ele, de alguma forma, tivesse perdido algo precioso, sem sequer compreender que o possuía, até ficar para sempre além de seu alcance.

Regis sacudiu a cabeça, descartando o pensamento. Que absurdo! E depois um lampejo de conforto aflorou; Linnea estaria aqui em breve, e embora isso pudesse agravar ainda mais o problema com Melora (que concluiria, sem a menor dúvida, que Linnea fora chamada por Regis), ele simplesmente não se importava. Keral disse, inesperado:

- Nunca vi uma criança humana recém-nascida. Posso acompanhá-lo para ver seu filho, Regis?

- Claro. Sempre me sinto contente em mostrar minhas crianças. David decidiu ir também, e partiram pelos corredores do hospital, o chieri alto e esguio atraindo olhares curiosos; mas ali, no hospital do QG, a curiosidade era cordial; muitos já haviam visto e falado com Keral agora, e ele era apenas outro alienígena, não uma curiosidade sem precedentes.

Melora fora internada num quarto particular, com uma janela dando para as montanhas, que costumava ficar à disposição de hóspedes pacientes darkovanos importantes. Uma parteira e uma enfermeira darkovanas haviam acompanhado Melora. Ela estava sentada numa cadeira, usando uma túnica azul felpuda, as faces um pouco coradas. Era uma jovem bonita, de cabelos castanhos avermelhados, olhos cinzas, alta e distinta; e naquele momento, com os cabelos compridos trançados, caindo sobre os ombros, parecia pouco mais que uma criança. Os olhos de Regis deslocaram-se depressa, com o medo antigo, para o pequeno berço envolto por uma tela em que o bebê deitava (não mais que um rostinho vermelho, adormecido, no meio de uma manta branca do hospital), mas logo ele concentrou sua atenção em Melora, gesticulou para que ela não levantasse, inclinou-se, beijou-a no rosto.

- Ele é lindo, Melora. Obrigado. Se eu soubesse, teria vindo para o seu lado.

- Não havia nada que pudesse fazer, e fui bem cuidada - respondeu a moça, friamente.

A tensão no quarto era palpável; os três a fitarem-na, todos telepatas, de maior ou menor poder, sentiam sua raiva. Regis compreendeu de repente que fora um covarde ao permitir que os outros o acompanhassem, na esperança de que Melora não fizesse uma cena na presença de estranhos. Ela ficara consternada pela necessidade de ter a criança naquele lugar estranho; não entendia por que Regis assim o exigira, e tinha o direito (Regis concluiu) de fazer uma cena, se assim desejasse, sem se incomodar com a presença de estranhos.

Keral criou uma pequena distração ao se aproximar do bebê. Melora soltou um grito quando o estranho inclinou-se para a criança, mas relaxou quando Keral a fitou com seus lindos olhos. Sorriu para o chieri, e murmurou:

- Pode pegá-lo, Nobre. Sua presença é uma honra.

Keral pegou o bebê. As mãos compridas envolveram a manta em que o bebê estava enrolado com extrema competência, como se estivesse acostumado a isso. Mas David, observando-o, compreendeu, sem saber como, que Keral nunca vira nem tocara num bebê antes. O sorriso de Keral era curiosamente distante, fascinado.

- Os pensamentos dele são estranhos e indefinidos. E, no entanto, como é diferente do contato com um pequeno animal!

Em particular, David pensou que o bebê parecia com qualquer outra coisa recém-nascida, pequena e indefinível, mas sabia que isso era uma decorrência do cinismo cultivado do estudante de medicina. Ele tentou por um instante ver a criança através dos olhos de Keral, uma pequena maravilha, um milagre de novidade. Foi intenso demais; ele rompeu o contato, e perguntou a Regis:

- Como vai chamá-lo?

- A decisão cabe a Melora, - respondeu Regis, sorrindo para a jovem mãe, - a menos que ela me peça para escolher um nome.

O rosto de Melora abrandou, ela pegou a mão de Regis.

- Pode escolher, se quiser.

David pôs a mão no ombro de Keral. O chieri largou o bebê no berço, e os dois saíram do quarto, deixando os jovens pais a sós com o filho.

Mais tarde, David pensou que fora aquele momento de contato com a criança e com Regis que o sensibilizara; mas na ocasião tirou a questão de sua percepção, e passou o resto do dia com os outros participantes no projeto. Rondo se mostrou irritado, não querendo cooperar nas tentativas de medir seu controle sobre pequenos objetos, relutante em discutir sua carreira de jogador, ou como conseguia, relutante em tentar a manipulação dos objetos de teste apresentados por Jason e David. Desideria também estava irritada, parecia apreensiva. Conner tornara a mergulhar na apatia, e nem sequer falava, muito menos cooperava. David pôde sentir o seu desânimo, quase como uma coisa concreta, o senso de deserção, agora que Missy desaparecera.

Regis nem esteve com eles. Danilo apareceu por um instante, apresentou desculpas por Regis, alegando problemas particulares urgentes, e se retirou em seguida.

Ao final, depois que Rondo, mal-humorado, alegou fadiga e dor de cabeça (e David sentiu que Conner teria feito a mesma coisa, se por acaso se importasse com o que lhe acontecesse), David pediu a Desideria que explicasse o treinamento de uma Guardiã, e escutou, tomando algumas anotações, sem muito ânimo... puro desperdício de movimentos, ele sabia, já que tudo estava sendo gravado.

- O treinamento inicial era com jogos, como manipular estas coisas... quando éramos pequenas - disse Desideria, inclinando a cabeça para os dados, plumas e outros pequenos objetos, com que David tentara estimular a cooperação de Rondo. - Havia também jogos em que balas e outras coisas eram escondidas, e tínhamos de encontrá-las. Depois, os jogos se tornaram mais elaborados, com um grupo escondendo pistas dos outros. E mais tarde ainda, houve treinamentos físicos vigorosos das correntes nervosas, respiração, concentração, aprender a sair e voltar ao corpo físico. E tudo isso antes de sequer vermos uma matriz. Quando podíamos controlar todos os nossos talentos naturais, passamos a trabalhar com as pedras de matriz, as menores, a principio...

David refletiu que muito daquilo parecia com o antigo e tradicional treinamento de ioga, ainda usado por alguns grupos de terráqueos, por

razões religiosas ou de saúde. Ele pôs de lado a curiosidade, até que tudo aquilo pudesse ser avaliado com calma.

Durante a noite, o mesmo senso de inércia, de que tudo se encontrava em suspenso, impregnou os sentidos de David. Keral parecia nervoso, pouco comunicativo. Fora designado para um quarto no hospital do QG perto de David. Como de hábito, foram jantar juntos na cantina, mas o chieri não disse uma dúzia de palavras, nem propôs ir depois ao quarto de David para conversarem. Conner parecia também não querer falar com ninguém. Embora o silêncio de Keral não preocupasse David, o de Conner deixou-o aflito. Se aquela apatia persistisse, desencadearia outra fase suicida no espaçonauta? Ele voltara à vida por Missy. A ausência dela tiraria seu interesse por viver? A desgraçada da Missy! Mas David tratou de endurecer o coração. Não podia e não queria assumir a responsabilidade pelo bem-estar mental e físico de todos os membros do projeto. Era cria de Jason, ele que a embalasse.

Não obstante, muito tempo transcorreu antes que David conseguisse dormir. A todo instante tinha a estranha ilusão de vozes à beira de sua percepção, da mesma maneira como gritos e soluços distantes, ainda depois de cessarem, pareciam continuar logo abaixo do nível de audição, mantendo os sentidos da pessoa aguçados, os nervos à flor da pele, com o receio de tomar a escutá-los.

Finalmente ele conseguiu adormecer, o tipo de sono leve em que a pessoa sabe que dorme, ao mesmo tempo em que tem consciência que oscila de um lado para outro, entre o sono autêntico e a mera sonolência. Por duas ou três vezes despertou sobressaltado, sentou na cama, dominado pelo choque breve e intenso de cair, o horror da ausência de peso, e compreendeu que seus sonhos haviam se misturado com os de Conner; o rosto de Missy, de pesadelo, contorcido pelas lágrimas, entrava e saía de seus sonhos; e Keral, as mãos alienígenas segurando o pequeno corpo rosado do bebê, e um estranho acalanto ressoando por sua mente.

E de repente, com um senso de percepção aguda prevalecendo sobre o sono, ele se levantou, e saiu correndo...

Corredores vazios. Os pés de Keral voando, como os seus. O surpreso rosto branco, pupilas dilatadas, a voz apática: Vocês não podem entrar aí!

A porta arrombada. O vulto escuro de um intruso, ameaçador; a respiração de Melora débil, quase parando, as pupilas dilatadas, descoloridas...

Keral se inclinando, ofegante, o vulto escuro levantado, um grito terrível, o intruso voando contra a parede, o baque seco, os estalos de ossos se partindo... e alguma coisa morreu. O rosto branco de Melora, levantar uma pálpebra com dedos experientes, gritar por socorro.

O quarto se encheu de médicos, enfermeiras; e uma enfermeira chorando, atordoada, drogada. Inclinando-se, boca a boca com a moça, respirando, respirando, respirando...

- Deixe-me cuidar de tudo agora, dr. Hamilton.

Um passo para o lado, a respiração retornando ao normal. Keral, muito branco. O bebê em suas mãos; a voz de Keral, entrecortada e irreal:

- Ele vai precisar de ajuda para respirar. O peito não foi esmagado, mas acho que há costelas fraturadas...

A sensação de costelas frágeis sob sua mão, o acesso de choro de um bebê meio sufocado voltando à vida lentamente...

Vultos se agrupando em torno do morto no canto. As mãos trêmulas de Keral, o rosto branco, com uma insinuação de terror; perguntas, vozes, uniformes. Uma voz de autoridade, sobrepondo-se às outras:

- Em seu bolso... ampolas da mesma droga que ele deu à moça. Deve ter drogado também a enfermeira Conniston. Dr. Hamilton, o que o trouxe aqui? Parece que chegou bem a tempo de impedir dois assassinatos.

David ouviu a própria voz, mas lhe pareceu irreal:

- Não sei direito. Talvez tenha ouvido Keral... você me chamou, Keral? Tudo o que sei é que acordei com um terrível senso de urgência. E nem posso imaginar como soube que Melora e... o bebê corriam perigo.

- Quem é?

Várias pessoas agrupavam-se em torno do morto.

- A mesma história de sempre, ele pode ser qualquer coisa. Algum vagabundo dos espaçoportos... até com as impressões digitais alteradas cirurgicamente.

- Ainda bem que chegaram a tempo. Pense no que poderia acontecer. Regis Hastur nos confia a guarda de seu filho, e a criança e a mãe são assassinadas aqui, no QG terráqueo. Já imaginou o proveito político que eles poderiam tirar de tal situação?

Vagamente, ainda atordoado, David perguntou-se quem seriam eles, e que proveito político poderia haver na morte de uma criança, que monstros seriam capazes de conceber tal manobra. Teve de contar sua história outras duas vezes, sentindo-se mais e mais desorientado, sempre incrédulo. O bebê não corria perigo agora, mas as autoridades do QG triplicaram a segurança. David ficou de lado, pois não era necessário na equipe que trabalhou em Melora (mais de uma hora passou antes que sua respiração voltasse ao normal, sem qualquer ajuda; fora drogada quase fatalmente). Jason Allison apareceu, e chamou para uma conversa os homens da Força Espacial que interrogavam David. (Keral... onde estava Keral? David não podia mais sentir sua presença, tornou-se angustiado, desolado.) Depois de ouvirem Jason, os agentes olharam para David como se fosse um alienígena.

Regis entrou no quarto depois de algum tempo, o rosto lívido. Tentou dizer alguma coisa a David, não conseguiu, os músculos faciais se contraindo em espasmos; ao final, ele abraçou David, comprimindo seu rosto contra o do terráqueo.

Com o contato, o mundo de David readquiriu cores brilhantes, voltou à realidade, como um nevoeiro que se dissipa de repente. Ele compreendeu que estava desperto, e que tudo aquilo acontecera de fato, não fora um mero pesadelo. Retornou à realidade com as mãos de Regis apertando as suas, e murmurou:

- Está tudo bem, Regis. Os dois vão viver, e nada mais lhes acontecerá, agora que todos foram alertados. Mas... por Deus! Onde está Keral? O que aconteceu com ele?

David teve um súbito e intenso déjà vu do rosto de Keral, dominado pelo horror, parado junto ao homem que matara.

Nenhum chieri jamais matou qualquer coisa viva. E ele nem mesmo come carne.

David voltou a seu quarto, sabendo por instinto que encontraria Keral ali. Foi o que aconteceu. O chieri se achava todo enrascado, o rosto oculto, uma massa de desespero e rejeição, a respiração tão fraca que por um instante angustiante David chegou a pensar que o choque o matara. O rosto alienígena não expressou qualquer reconhecimento, nem mesmo quando David lhe falou. David virou-o, gentilmente. E mais uma vez se impressionou com a beleza quase feminina do chieri; seu próprio sonho reaflorou, com as estranhas insinuações, e David experimentou um momento de choque e vergonha. Depois, em súbita raiva consigo mesmo, tratou de expulsar o pensamento de sua mente.

Keral precisa de você, e não pode julgá-lo em termos humanos, ou em termos de suas obsessões sexuais particulares!

Keral estava gelado, quase tão rígido quanto a morte. David ajoelhou-se ao seu lado, na cama, abraçou-o, num instinto cego, dizendo seu nome, num murmúrio insistente.

- Keral, Keral, sou eu, David. Volte. Estou aqui. E tudo está bem agora. Vai dar tudo certo. Keral, Keral, não morra.

As palavras eram apenas um acalanto sem sentido, mas constituíam um meio de focalizar sua mente, toda a sua personalidade, num chamado mais intenso, uma sondagem mais profunda.

Keral. Para onde você foi? Volte, volte, e fique comigo. Chamo-o de volta, com todo o meu eu, procurando pelo nada por que você se embrenhou, procurando pelo silêncio do medo...

E ele sentiu de repente, o horror sinistro e indefinido em que Keral mergulhara, quase se afogara.

Morte. Causei a morte de uma coisa viva. Ele tinha o bebê nas mãos, e tentava matá-lo. Como alguém pode matar uma criança? Como alguém pode causar a morte? Minhas próprias mãos provocaram morte... e agora morro em sua morte, me afogo nas trevas...

- Que Deus me ajude! - balbuciou David. - Como posso alcançá-lo?

Ele povoou sua mente com a imagem da vida retornando lenta-mente ao rosto sufocado e azulado do bebê, o ímpeto de gratidão e amor que fluíra do contato de Regis. Pouco a pouco, como as batidas vacilantes de um coração sob o ritmo ressuscitador de um marcapasso, ele sentiu que a percepção de Keral começava a voltar, emergindo das trevas. Continuou a abraçar Keral, a murmurar (como se fosse uma criança; como se fosse uma mulher!), até que os olhos cinzas e luminosos do chieri se abriram, e fixaram-se no rosto de David, com uma tremenda angústia.

- Eu não queria matá-lo, nem mesmo alguém tão mau. Mas não compreendi como ele era fraco, e quão fortes eram meus braços em fúria. - A voz de Keral tremia. - Sinto frio. Muito frio.

- É o choque- explicou David, gentilmente. - Vai se sentir melhor daqui a pouco. Não havia outra coisa que pudesse fazer, Keral.

- O bebê...

- Está ótimo.

Mais uma vez, David espantou-se. Pela declaração do próprio Keral, sua raça estava morrendo. Keral nunca vira uma criança de seu próprio povo. Como podia se envolver tão profundamente com uma criança de outra raça? Tamanho senso de identidade...

Ele percebeu que Keral esquentava pouco, a rigidez do choque se dissipava, e constatou, um tanto tarde, com algum embaraço, que ainda o abraçava, como um amante. Tratou de largá-lo, um tanto apressado, o senso prático prevalecendo. Levantou-se, dizendo:

- Ainda sente frio? Vou buscar uma coisa quente para você beber. E envolvê-lo com mantas.

David experimentava a sensação aflitiva de que perdera alguma coisa, que a pista para Keral se esquivara de alguma forma, a pista para todo o mistério; mas não tinha como elucidar o problema. Keral sentou.

- Quero descobrir...

- Fique onde está - determinou David. - Ordens médicas. Irei perguntar como estão Melora e o bebê quando for buscar alguma coisa para você.

Ele não confiava em sedativos na fisiologia alienígena do chieri, mas com certeza uma bebida quente não lhe faria mal: talvez café, sempre disponível em algum lugar do QG, ou a beberagem com gosto de chocolate amargo muito apreciada em Darkover.

Fora uma noite exaustiva. David não se surpreendeu ao descobrir, quando olhou pela janela, que o dia começava a raiar.

Também não se surpreendeu quando descobriu, mais tarde, ainda naquela manhã, que Conner sabia de tudo o que acontecera. Ele começava a se acostumar a ser um telepata, refletiu David, e isso proporcionava certas vantagens.

Também formulava, embora um tanto devagar, as perguntas que sabia que deveria apresentar a Keral. As indagações científicas sobre os chieri pareciam não estar levando-os a parte alguma. Confiaria em suas intuições, e seguiria o caminho que indicassem.

Regis Hastur emergiu para o sol vermelho, ainda envolto pelo nevoeiro da manhã, olhou para o céu quase sem compreensão. Melora se encontrava fora de perigo, e o bebê, graças à ação rápida de Keral, não sofrera danos maiores. Ambos dormiam agora, e Regis deixara-os em boas mãos. Mas ele sentia um cansaço mortal, outra vez apavorado com a perspectiva da longa luta.

Talvez mais que qualquer outra pessoa viva, ele podia ver todas as ramificações da luta. Teria sido cometido por algum darkovano do fanático grupo antiterráqueo, para desacreditar os terráqueos... um bebê Hastur assassinado quando se encontrava sob a proteção deles? Seria parte da trama para destruir todos os telepatas, como ele pressentira antes? Como encararia os pais de Melora, depois de todo o empenho para que permitissem aquela coisa sem precedentes, uma nobre darkovana ter seu filho sob os auspícios do Império?

Se foi alguém do nosso povo que tramou isso, não merecemos ser salvos!, pensou ele, com um profundo desespero. Tratou de se fechar, para não ter de sentir os guardas terráqueos que acompanhavam seus passos, tentando não interferir com o estranho que protegiam.

Logo descobriu, com a percepção do telepata treinado, que havia pessoas estranhas em sua casa, e parou na entrada, procurando descobrir se representavam alguma ameaça. Projetou a mente lá para cima, onde as duas crianças mais velhas dormiam com as babás, em aposentos vigiados. Estavam serenas, sem qualquer perturbação. Enviara a criança sobrevivente mais nova para o Castelo Hastur, sob guarda, em companhia da mãe. A sensação de uma presença estranha persistiu...

Linnea! Esqueci por completo, nesta noite tétrica... você veio tão depressa?

Regis não levantou os olhos ao senti-la descer a escada, correndo; só o fez para envolvê-la em seus braços. Apertou-a, sôfrego, com uma necessidade quase angustiada, sentiu o corpo franzino de Linnea fundir-se com o seu, como se as barreiras entre carne pudessem se desvanecer fisicamente, e fosse capaz de absorvê-la de alguma forma. (Nesse momento, bem longe, no QG terráqueo, David soltou Keral, com uma súbita percepção envergonhada. Na Cidade Comercial, Missy remexeu-se, inquieta, em seu sono entorpecido, e choramingou.) Depois, Regis soltou-a, recuou, deixar escapar um suspiro, sorriu.

- É egoísmo de minha parte, preciosa, e devo mandá-la de volta. Mas me sinto contente por você ter vindo.

- Minha bisavó também ficou contente por me ver, embora fingisse estar chocada por eu ter deixado meu posto em Arilinn, e indagou em voz alta que tipo de moças andam treinando hoje em dia. - Linnea riu. - Fico contente em saber que Melora e a criança estão sãs e salvas. Visitarei Melora, se os terráqueos permitirem, sem pensarem que sou uma assassina esperta.

- O pior de tudo é ter de escutar tudo o que me disseram - murmurou Regis. - Embora me sinta envergonhado de pensar nisso, quando Melora e o bebê correram perigo de vida.

- Você está cansado demais para pensar de maneira objetiva. Chamarei alguém para lhe trazer comida. E depois... Regis, detesto trazer mais medo e responsabilidade para seus ombros, mas devo lhe contar o que descobri.

Anotações particulares de Andrea Closson, em código:

O nível de incêndio na floresta serviu a seus propósitos, e não há necessidade de esforço adicional nesse sentido, já que a colheita foi reduzida abaixo do ponto critico, em três extensas áreas, no mínimo. Os raios que ateiam os incêndios normais durante esta estação devem ser suficientes, considerando-se a desmoralização dos que combatem o fogo nas montanhas.

Com o início das chuvas da primavera, nos setores IV e VII, a erosão deve começar nas Hellers, e estender-se aos contrafortes. A redução do lençol freático, em decorrência do excessivo escoamento nas áreas queimadas, deve em breve se tornar crítica. Com o início previsto da estação seca, perto de Carthon, deve haver tempestades de areia, reduzindo as colheitas a um ponto crítico.

Pode-se esperar alguns suprimentos de alimentos em socorro das cidades com bastante água nas Terras Baixas, mas não serão suficientes. As demandas ao Império Terráqueo podem acarretar algumas decisões políticas favoráveis ao acordo desejado. (N.B. O Império apresentou um pedido de ampliação das instalações do espaçoporto, rejeitado pelo

Conselho no ano passado. A questão será levantada de novo daqui a cinco meses. Esta será uma decisão fundamental).

Os desastres agrícolas esperados começarão neste verão, embora não sejam cruciais, e não ocorrerá a fome de verdade, exceto entre culturas não-humanas isoladas, habitando nas florestas, durante os próximos três anos. Não obstante, pode-se esperar um certo grau de pânico.

Agentes devem ser despachados para começarem a atuar entre os não-humanos, promovendo o pânico e a rebelião. Se puder ser estimulado um ataque a cidades humanas, seria um grande passo para a solução final, já que a guerra entre humanos e não-humanos, a esta altura, embora não decisiva, pode exaurir recursos que de outra forma seriam concentrados no trabalho de resgate nas áreas agrícolas.

Devem ser redobrados os esforços para eliminar a interferência de qualquer dos Hasturs. As torres de transmissão telepática são provavelmente inexpugnáveis, mas o nível um tanto baixo de sofisticação na política interplanetária deve evitar que alguém perceba o que está acontecendo e assuma uma função de coordenação, até ser tarde demais. Por sorte, a ordem social com ênfase na individualidade deste mundo obstrui o trabalho coordenado.

Se meus cálculos estão corretos, o ponto sem volta pode ser alcançado dentro de poucos meses. Depois desse momento, não haverá mais necessidade de manter os esforços em segredo, já que o processo se tornará irreversível, e Darkover, para sua sobrevivência, será forçado a negociar com peritos tecnológicos em reparações planetárias. É possível que esse ponto já tenha sido alcançado, pois o aparente nível de tecnologia de Darkover não permitiria recuperar o mundo para o antigo estilo de vida sem a ajuda de peritos. Por essa ajuda, eles seriam obrigados a fazer concessões políticas, o que também nos levaria a alcançar o objetivo desejado de abertura planetária. É possível que eu tenha subestimado os Hasturs, mas neste momento eles parecem preocupados com os meios mínimos de governo. Na verdade, não existe nenhum governo central. Este mundo está completamente vulnerável.

 

- Este planeta está completamente vulnerável - repetiu Regis, devagar, os olhos fixos em Linnea. - Eu deveria ter adivinhado antes. Já li o suficiente da história do Império... nunca lhe contei que queria, quando era menino, ir para o mundo exterior, viajar pelo espaço?... para saber o que significa a destruição de um mundo. Não sei por que pensei que Darkover seria imune.

Danilo Syrtis interveio:

- Jamais confiei naqueles bastardos do Império. - Seu rosto jovem e tenso exibia uma expressão implacável. - Alguns dos homens das montanhas tiveram a idéia certa. Vamos expulsar todos os terráqueos do nosso mundo, demolir o espaçoporto, e cobrir o solo ali de sal.

- Você é um tolo, bredú - disse Regis, gentilmente. - Não é o Império. Eles têm sido honestos conosco, e cumpriram todos os compromissos que assumiram. Se quisessem abrir este mundo pela força, poderiam tê-lo feito há trezentos anos.

- Mas se não são os terráqueos, Regis, então quem são os culpados? - indagou Linnea.

- Tudo o que posso dizer é que se trata de uma vasta galáxia, e há tantos mundos habitados que já esqueci o número. É como procurar uma noz determinada numa floresta. Mesmo em um único mundo, procurar por uma pessoa específica... a verdade, Linnea, é que não possuíamos o tipo de governo centralizado... - Regis falava na língua franca, já que a antiga língua darkovana não possuía tais conceitos ou palavras. - ...para lidar com esse tipo de coisa. É uma guerra, e há muito que renunciamos às guerras. Tivemos pequenos conflitos localizados. Rivalidades de sangue. Ataques de surpresa. Participei de meu primeiro combate antes da barba crescer, quando Kennard Alton nos levou contra Kadarin e seu bando. Mas nossas lutas e nosso ódio são de um contra um, dois contra dois, no máximo dez contra dez. Não é racional odiar populações inteiras que nunca nos fizeram mal pessoalmente, só porque existem. Nunca lutamos de verdade contra a idéia do Império, embora eu ache que a maioria das pessoas não queria um espaçoporto em

Darkover. É um vasto mundo, e sempre haverá espaço para todos os tipos de idéias... era o que pensávamos. Aprendemos bastante com os terráqueos, eles nos deram muitas coisas. Em troca, também deixamos a nossa marca no Império. Mas embora esse tipo de pensamento seja o único sensato a longo prazo, temos de pensar agora a curto prazo. E estamos condicionados a não pensar em termos de guerra. Somos um povo pacífico, de um modo geral, e nos tornamos vulneráveis a esse tipo de sabotagem.

- Está querendo dizer que não temos meios de impedir? - perguntou Linnea.

Danilo, cerrando os punhos, acrescentou:

- Podemos lutar, se for necessário.

- Não foi isso que eu quis dizer, mas apenas que não estamos preparados para enfrentar o problema neste momento. Temos uma esperança, mas está definhando.

- E qual é?

- A antiga tecnologia de telepatia de Darkover - respondeu Regis. - Mas caímos na endogamia, nossa fertilidade declina, e estamos sendo mortos num ritmo assustador, como testemunha o ataque desta noite. Não resta uma quantidade suficiente de nós em Darkover para o tipo de esforço coordenado que precisamos para deter isso. Tivemos muitos avisos, é verdade. Durante os últimos cem anos os terráqueos vêm tentando trabalhar conosco, desenvolver nossas antigas ciências, aprender a operar com as matrizes, estimular o treinamento de mais telepatas e técnicos de matriz. Se contássemos com várias centenas de telepatas em plena operação, com Torres e círculos de transmissão em funcionamento, poderíamos esquadrinhar o planeta inteiro, descobrir o que estão fazendo, e reverter a situação. Nas circunstâncias atuais, dependemos de tecnologias alienígenas, a que todo o nosso modo de vida se opõe.

Ele fechou os olhos, pensou por algum tempo. As primeiras semanas do Projeto A só haviam mobilizado uns poucos telepatas isolados e destreinados; e o estudo até agora não fora proveitoso. É verdade que David salvara a vida de Melora; tinham alguns novos e fascinantes conhecimentos sobre os lendários chieri... mas isso era apenas uma gota no balde. Uma dúzia ou mais de telepatas descobertos em outros mundos estavam a caminho de Darkover, mas quantos se revelaram psicóticos, como Rondo, ou incapazes de suportar uma inquirição, como Missy?

- Quantos telepatas vivos há em Darkover? - perguntou Danilo. Regis respondeu, cansado:

- Por Aldones! Acha que sou um deus para saber dessas coisas? E, de repente, ele se sentiu eletrizado.

Mas eu posso saber!

Que tolo eu sou; tenho estudado os poderes dos outros, mas não os nossos! Com uma calma controlada, que contradizia seu repentino excita-mento, Regis disse:

- Vamos pensar a respeito. Há quantas Torres em funcionamento, Linnea?

- Nove, bastante dispersas. Somos oito em Arilinn; nas outras Torres, o número varia de sete a quatorze.

- Na Cidade Comercial, temos quarenta mecânicos de matriz licenciados - continuou Regis. - Sei também que há outros telepatas, nascidos em várias famílias antigas... atávicos, alguns nem sequer treinados, mas possuindo alguns dos antigos poderes de laran. Ninguém jamais se deu ao trabalho de contá-los, ou pedir que usem seus poderes. Mas se todos trabalharmos juntos...

- É fantástico, - interrompeu-o Linnea, - e provavelmente impossível. Sabe o que um círculo de Torre tem de suportar antes de poder trabalhar em conjunto, como um grupo, para realizar alguma coisa. Cada vez que um novo membro ingressa na Torre, é preciso semanas para que possamos tolerar sua presença com facilidade suficiente para o trabalho das mentes em contato. Sete ou oito parece ser o máximo tolerável.

Regis murmurou, meio para si mesmo:

- Três de nós, ligados em profundidade, destruíram a matriz de Sharra. O que quinhentos não poderiam fazer?

Linnea sentiu um arrepio.

- Todas as antigas telas de matriz acima do nono nível foram destruídas há muitos anos. Foram consideradas armas ilegais, perigosas demais para serem manipuladas por seres humanos, Regis. - Os olhos de Linnea desviaram-se para os cabelos embranquecidos de Regis. -Uma hora com uma delas fez... isso... com você.

Ele acenou com a cabeça, lentamente.

- Tem razão, é muito perigoso, em termos humanos. Mas se a alternativa for a destruição de um planeta?

- De qualquer forma, a questão é acadêmica, - insistiu Linnea, -já que essas matrizes não mais existem, e ninguém vivo sabe como construí-las. E é melhor assim.

- Mas é a nossa única esperança, a única coisa de Darkover que o Império não pode reproduzir - declarou Regis. - Para isso, o Império pode nos ajudar, sem exigir concessões políticas que destruiriam Darkover como o conhecemos. Será uma corrida... uma corrida contra o tempo. Mas eu vou empreendê-la.

Ele fez uma pausa. Sua expressão era sombria e determinada.

- Não pedi para assumir a liderança do Conselho. Jamais desejei nada desse tipo. Mas tenho esse poder agora, e pretendo usá-lo, para o melhor, ou para o pior.

- Não estou entendendo - murmurou Linnea. - Por que o Império haveria de querer telepatas? Pelo que eu ouvi dizer, eles mal acreditam que existimos!

- Use a cabeça, Linnea! - exclamou Regis, veemente. - Uma matriz, usada por um telepata bem treinado, pode gerar energia... certo? A pouca mineração que temos em Darkover é realizada através de um círculo de matriz que localiza os depósitos e teleporta os minérios para a superfície... certo? Usamos pouco os metais porque não queremos fábricas, uma indústria em larga escala. Mas para a pequena quantidade que aproveitamos, possuímos a tecnologia suficiente para atender a nossas necessidades... ou possuíamos, até alguns anos atrás.

- Tem razão, mas o dispêndio humano...

- Pode ser compensado. Uma matriz, operada por um telepata treinado, pode substituir a aviação convencional. Assim, só usamos os aviões em emergências; não há desperdício. E há também a questão das comunicações. Não precisamos em Darkover de equipamentos de comunicação mecânicos de longo alcance.

- É verdade...

A principal função das redes de telepatas em Darkover, ainda mais agora, era a transmissão de mensagens a longas distâncias.

- O Império há muito que percebeu para que os telepatas serviriam, no espaço, nas comunicações - continuou Regis. - Para o controle de

equipamentos mecânicos, quando as engrenagens normais falham, através da levitação. Qualquer criança com uma matriz pode ver a estrutura da matéria o suficiente para reverter a oxidação, por exemplo, ou a fadiga de metal. A dificuldade é o pequeno suprimento de telepatas... e a relutância dos darkovanos em geral em colaborarem com o Império. Nenhum de nós jamais se ofereceu para estudos. Nós próprios não sabemos como usamos essas antigas ciências. Os poucos esforços realizados para estudar essas coisas se perderam em falhas humanas. Mas deve haver um meio, e agora é o momento de tentar.

- O que vamos fazer?

Linnea absteve-se de tentar ler diretamente os pensamentos de Regis.

- Vou exigir que as redes transmitam uma convocação a todos os telepatas em Darkover - respondeu Regis. - Usando a autoridade de Hastur, com tudo o que isso significa.

Linnea fitou-o nos olhos por um breve instante, e continuou a se abster do contato. Naquele momento, Regis parecia quase super-humano, e ela pensou nas antigas lendas do Filho de Hastur, que era mais do que humano... e Regis outrora empunhara a Espada de Aldones, forjada para a mão de um deus. O que era outra maneira de dizer que ele conseguira de alguma forma controlar e usar forças da mente humana que eram incompreensíveis para a pessoa comum.

Ela levantou um pequeno aspecto do problema:

- Podemos fechar as Torres de transmissão, e trazer todos para cá? Podemos dispensá-las, com a pouca tecnologia de que dispomos? Viraríamos bárbaros, Regis.

- Concordo - interveio Danilo, inesperadamente. - Darkover não dá a importância devida ao trabalho dos telepatas, das redes de trans-missão. Fechemos as Torres por alguns meses, ou anos, e deixemos que nosso mundo veja como seriam as coisas sem os poderes telepáticos. Dentro de um mês, eles se levantariam para impedir que nos matassem, um a um. Houve um tempo em que um homem que punha a mão sem permissão numa Guardiã era torturado até a morte. Agora, podem matar mulheres e crianças sem que ninguém se importe.

- Acha mesmo que podemos deter o que estão fazendo com o nosso mundo apenas com os poderes telepáticos? - indagou Linnea.

- Não, não acho - respondeu Regis. - Desconfio que os danos físicos ao planeta são excessivos. Mas podemos descobrir as pessoas que estão fazendo isso, e detê-las. E talvez possamos também negociar em condições de igualdade com o Império pela ajuda de que precisamos agora. De qualquer forma, é tempo de parar de brincar, e levar a sério o projeto telepata. Se não for assim, seguiremos o mesmo caminho dos chieri... e há muita gente no Império que não lamentaria por nós. Isso deixaria Darkover aberto para o tipo de exploração que eles desejam. Estamos parados na porta, e temos de permanecer ali.

Era um quarto comum, escuro e malcheiroso, e Missy passava longos períodos toda encolhida e quieta, mal sabendo o que acontecia dentro ou fora dela. O tempo deixara de ter qualquer significado, embora há muito ela tivesse reduzido suas percepções para ver o mundo pelo menos em parte como as outras pessoas... as pessoas com as quais devia conviver.

Tantas mudanças, tantas coisas estranhas... E o estranho contato agora. Pela primeira vez, alguém que respondia às suas projeções, a coisa que nunca compreendera em si mesma. Antes, os homens sempre haviam sido apenas um meio de sobrevivência. Sabia que era diferente, uma aberração, incapaz de encontrar alguém que fosse capaz de encontrá-la, de se unir a ela. Entregara seu corpo sem hesitação, a quem o desejasse. Depois das primeiras vezes (mesmo agora, ainda se arrepiava ao recordar o antigo horror, a descoberta de que o ato que tanto significava para ela não passava de um nada bestial para os homens), não tivera mais qualquer importância. Mas agora...

Conner... Emoções há muito embotadas, projetando-se para alcançá-la (ela podia sentir o que acontecera no íntimo de Conner, os estranhos medos e a solidão que o haviam moldado), de uma forma que não podia compreender. Missy conhecia pouco de suas próprias emoções. Nunca ousara ser introspectiva, mas sentia que se olhasse para dentro de si mesma haveria de encontrar um horror turbilhonante, como o que criara a loucura de Conner. E agora, longe dele, Missy ainda sentia a solidão desamparada de sua necessidade (como ela podia não correr, deixar de fugir...).

Missy, preciso de você. Missy, volte. Sem você enlouqueço, e me perco de novo...

E a projeção de seu nome, o nome que nada representava para ela (adotara-o há poucos anos), acompanhada pela angústia distante de Conner. Ele tocara em seu íntimo, e ela não podia esquecer, sabia que nunca esqueceria. Mas podia ficar fora do alcance...

Sabia que poderia ficar com Conner, indefinidamente, aproveitando a felicidade possível para a coisa estranha que ela era. (Ah, mas suportaria vê-lo envelhecer e morrer?)

Mas o contato do outro...

Keral a penetrara até o fundo, como se enfiasse a mão fisicamente dentro de seu corpo, e torcesse alguma coisa. Ele a odiava. E a temia. Mesmo assim, houve alguma coisa entre os dois, embora ele não fosse sequer um homem. O que Keral era... e o que fizera com ela? E o outro, David, mostrara-se indiferente a ela, a Missy (o encantamento falhara pela primeira vez), quando sabia que nenhum homem vivo, em circunstâncias normais, era capaz de resistir.

A partir daquele contato irresistível, Missy sentira um estranho fluxo, retorcendo-a, transformando-a; no fundo de seu corpo, nas profundezas de sua mente, para sempre desconhecida e insondável. Ela matara duas vezes, uma para proteger sua vida, outra para proteger seu segredo, mas detestara o que isso lhe causara, e não tornaria a matar, a não ser num caso extremo.

Era melhor fugir de novo.

- Deixem-me ir - insistiu Conner. - Sou um espaçonauta, sei me movimentar por lugares assim. Darkover é um espaçoporto como outro qualquer; quem conhece um, conhece todos. Posso ouvir o que as pessoas comentam, descobrir tudo o que está acontecendo.

Conner parecia tão perdido e angustiado que David foi dominado pela compaixão, apesar de sua tendência a achar que ele poderia sobreviver à ausência de Missy. Foi Rondo quem respondeu:

- Enfrente os fatos, Conner. Boa viagem para aquela porcaria. Não passa de uma puta, e ainda por cima psicótica.

- É verdade, Conner - acrescentou David. - E há mais uma coisa: se não fosse por Desideria, ela poderia ter matado Keral. É perigosa.

Jason Allison deu sua contribuição:

- Seremos avisados se ela tentar deixar o planeta. Há uma ordem para detê-la no espaçoporto. Mas receio que sem a cooperação de Missy, não temos autoridade...

- Impedirei que ela faça mal a alguma pessoa, - insistiu Conner, desesperado, - mas preciso encontrá-la. De qualquer maneira!

Foi Desideria, numa iniciativa inesperada, quem se apresentou em ajuda a Conner:

- Acho que Conner está certo. Uma prostituta psicótica, dotada com laran, psicocinese e o fator poltcrgeist, à solta em Darkover, e odiando toda a raça humana, não é uma coisa em que eu possa pensar sem estremecer pelo menos uma dúzia de vezes. Vá procurá-la, Dave... e se eu puder ajudar, basta me chamar.

A claridade difusa no quarto desvanecera para a semi-escuridão, e o sol era um carvão em brasa quase caindo do céu quando Missy levantou-se, ajeitou os cabelos compridos, fez-se bonita com gestos tão automáticos que mal precisava olhar para o espelho rachado. Vestiu a túnica clara, e saiu para a rua lamacenta, pisando com cuidado.

O setor "Vermelho" da cidade do espaçoporto era igual ao de todos os planetas, bares e centros de diversão ordinários, restaurantes e casas do prazer, vários cassinos, de todos os tipos, para todos os níveis. Missy conhecera-os sob duas dúzias de sóis. O de Darkover era um pouco mais frio que a maioria, um pouco mais iluminado. Ela circulou de bar em bar, sem pressa, calculando, avaliando cada lugar no momento em que entrava. De um modo geral, podia definir a clientela, o salário médio e o clima do lugar em quatro ou cinco minutos, e na maioria mantinha o capuz do manto sobre os cabelos, comportava-se com um recato discreto, a tal ponto que poucos a notavam; e os que o faziam viam apenas uma garota pequena, franzina, talvez a filha de um espaçonauta ou um funcionário do espaçoporto, à espera de alguém, sem imaginar que o ambiente não era nada, nada respeitável. Repelia gentilmente todos os avanços, até avistar a presa desejada.

Ele parecia próspero. O uniforme revelou a Missy, no mesmo instante, que era o segundo oficial de uma nave de passageiros do Império... em suma, tinha autoridade e posição, além de riqueza.

O oficial levantou os olhos de seu drinque para deparar com uma jovem, de beleza delicada, com os cabelos castanhos avermelhados soltos, caindo como uma nuvem em torno do rosto fino, a fitá-lo com olhos cinzas, profundos e luminosos. O impacto dos olhos foi tão intenso que depois ele se sentiu confuso, nunca foi capaz de explicar por que avançou em sua direção, como um homem sob um encantamento. Não era inexperiente com mulheres - nenhum oficial de espaçonave podia ser, muito menos com uma prostituta, ainda mais porque as sete listras em seu uniforme indicavam serviço em sete planetas - mas quase lhe faltaram palavras; só pôde balbuciar, como um adolescente atordoado:

- Não sente frio, com um vestido leve, num planeta como este? O sorriso de Missy foi gentil e enigmático.

- Nunca sinto frio, mas tenho certeza de que poderíamos encontrar um lugar mais quente.

Ele se perguntou depois por que uma abordagem tão óbvia parecera, no encantamento que a moça irradiava, uma coisa nova, estranhamente fascinante. Permanecera sob esse encantamento durante toda a hora seguinte, da qual recordava bem pouco; e ainda continuava quando a seguiu pelas ruas escuras, até o quarto pequeno e sórdido. Ela nada lhe pedira. A longa experiência lhe ensinara que depois os homens se mostravam ainda mais ansiosos, mais generosos. Não sabia por que; atribuía ao curioso glamour que podia assumir nessas ocasiões. Não tinha a menor dúvida de que, ao final, poderia persuadir o oficial a levá-la como clandestina para sua nave. Não menos de dez vezes antes um oficial ou comandante de espaçonave arriscara sua carreira para fazer isso, e depois ainda lhe agradecera pelo privilégio. Era um alívio sentir, dentro de si mesma, a pressão da necessidade incontrolável do oficial... depois de seu fracasso com David (seria por influência de Keral?), precisava desesperadamente dessa garantia, a fim de dissipar a terrível sensação de mudança, de não se conhecer.

As mãos do oficial, a boca na sua, tornaram-se mais do que ansiosas, mais do que insistentes. Missy deitou-se, permitiu que ele a despisse. Seus olhos eram enormes, luminosos, e o oficial se movimentava como um homem num sonho, os dedos excitados arrancando pela força os trajes sedosos...

E de repente suas mãos rudes a golpearam, arremessaram-na para o outro lado do quarto, a voz soou áspera, furiosa, carregada de desilusão e repulsa:

- Mas que pervertido nojento! Seu ombrédin desgraçado... ouvi dizer que havia muitos miseráveis como você em Darkover, mas nunca tinha visto nenhum...

Garras geladas de terror envolveram o coração de Missy. Mal vira o próprio rosto no espelho rachado, mas agora pôde divisar, com uma nitidez implacável, seu corpo nu, com inacreditáveis e insanas alterações. Desviou os olhos para o homem nu e irado, avançando em sua direção, os punhos erguidos, e recuou, ainda incrédula.

Isso não pode estar acontecendo! É impossível! E num acesso de loucura ilógica: Keral, de alguma forma, fez isso comigo... Seus olhos dilatados voltaram a contemplar o próprio corpo. A sensação era a de que se encontrava na casa dos espelhos de um parque de diversões, diante de um espelho que não refletia seu corpo familiar, mas exibia a imagem pálida, pouco desenvolvida, mas inconfundível das conformações de um homem; os seios ainda persistiam, só que murchos, e mais abaixo, pequeno, mas saliente, rosado, um órgão genital masculino...

Missy gritou, menos da dor do golpe desferido pelo homem, mais pelo pânico, o horror. Gritou de novo, enquanto os punhos do oficial acertavam em seu rosto. Atordoada, ergueu as mãos para se proteger. Nem sequer entendia os insultos desvairados que o homem lhe dirigia. Estava além da audição, e só fazia alguns débeis movimentos para se esquivar dos golpes selvagens e brutais. Sentiu o sangue escorrer do lábio, e depois uma costela se partir a um pontapé do homem.

E foi então que Missy enlouqueceu.

Sempre soubera, de um modo geral, que era mais forte do que qualquer mulher. Era parte de sua aberração física; nunca sentira o menor medo de uma agressão física, e sempre se defendera com habilidade e força de avanços indesejáveis, em diversas ocasiões de sua vida longa e árdua. Agora, fora apanhada de surpresa; mas o cheiro de seu sangue e o pânico incontrolável deixaram-na desvairada. Levantou-se do chão como um tigre enfurecido. Um golpe de braços incrivelmente fortes jogaram o homem para o outro lado do quarto. Ela se projetou para ele, com aquela força interior que agitara os móveis no quarto de David, uivando e apertando sua virilha. Um banco subiu pelo ar, voou através do quarto, acertou-o na cabeça, com um golpe que teria liquidado um homem comum. Mas o oficial não

era um homem comum, e a visão de objetos voando aumentou ainda mais a sua fúria desvairada. Lá fora, na rua, nuvens de poeira turbilhonante se elevavam, soprando em todas as direções. Pedras eram arremessadas contra portas. Missy repeliu os socos e chutes. O oficial pegou o banco voando em pleno ar, e acertou-a na cabeça. Ela caiu, ficou imóvel.

Logo em seguida, soaram batidas na porta, gritos firmes. Quatro homens no uniforme preto de couro da Força Espacial arrombaram a porta, avaliaram a cena a um olhar - o homem nu, a coisa no chão, inconsciente e sangrando, que à primeira vista parecia uma moça nua - e levaram os dois, com eficiência e presteza, para a prisão e o hospital do espaçoporto.

E ali fizeram descobertas que lhes despertaram o mesmo pânico aturdido que dominara o oficial da espaçonave.

O rosto no visor apresentava uma expressão confusa, depois de passar por diversas autoridades.

- É o doutor Jason Allison, o encarregado de um projeto especial do serviço médico, com alguns representantes do mundo exterior?

- Isso mesmo.

- Pois temos uma coisa aqui embaixo. Um dos membros de seu projeto desapareceu? Não sabemos o que é, e não conseguimos controlá-lo; pode fazer o favor de descer o mais depressa possível, e levar ele... ou ela... embora antes que destrua todo o espaçoporto, ou provoque o maior incêndio?

Jason desejou nesse momento ter um botão de pânico que pudesse apertar.

Sabia, sem precisar perguntar, que haviam encontrado Missy.

Meu povo...

Keral. Está tudo bem com você entre os alienígenas, amado?

Não, não está bem, embora um deles me seja muito caro, como um parente de sangue. E aprendi muito sobre o nosso próprio povo, sobre este mundo. Mas estou sozinho e desolado, não posso suportar por muito mais tempo a vida entre paredes. E o que farei se a Mudança ocorrer em mim, ou a loucura para a qual me alertaram? Há tanta coisa

estranha que sinto um medo permanente. Já feri uma vez, e matei em outra ocasião, ambas sem intenção. E há um ser estranho aqui que me incutiu um certo pavor. Não quero morrer. Não quero morrer...

 

Jason levara um sedativo capaz de acalmar dois elefantes enfurecidos, mas Missy, atordoada, em choque, o rosto uma mancha branca por cima das mantas que a confinavam, não fez o menor protesto. Não lhe falou, nem sequer abriu os olhos, enquanto ele a transferia para uma maca, e a levava para uma ambulância à espera. Durante a curta viagem até o QG, Jason permaneceu sentado ao seu lado, em silêncio, sem tocá-la, com uma expressão sombria, enquanto avaliava o que a polícia do espaçoporto lhe contara. Vira com seus próprios olhos os estragos na cela, inclusive a parte chamuscada, onde as cobertas haviam pegado fogo.

E ele pensou: "Já vi muitas coisas estranhas de poderes psíquicos em Darkover, mas um poltergeist incontrolável é novidade para mim, e não tenho a menor idéia de como se pode controlá-lo. Regis terá de me ajudar neste caso. Afinal, é sua área de competência. Sou um médico, não um mago".

A mudança em Missy, constatada num exame superficial, deixara-o espantado. Embora a beleza estranha e irresistível ainda persistisse, a pele alva parecia ter se tornado mais áspera, com uma aparência enodoada. Os olhos haviam perdido o lustro - o choque, é claro, podia explicar isso - mas a mudança mais insólita era intangível. Jason não fora indiferente à sexualidade ostensiva e exótica que Missy parecia projetar por todos os poros... e agora isso desaparecera, sem deixar qualquer vestígio.

Ora, o choque e uma surra brutal também podiam explicar isso. Era evidente que ela fora maltratada de uma forma impiedosa; e era evidente que os médicos na prisão do espaçoporto haviam ficado com medo de tocá-la. Não que eu os culpe por isso.

Ainda bem que Missy não demonstrara qualquer hostilidade a ele. Quando a examinara antes, ela cooperara, e se mostrara mesmo - embora num grau limitado - cordial. Fora contra David e Keral que ela reagira com hostilidade.

Jason esperava levá-la para a enfermaria do serviço médico sem ser notado, mas - talvez fosse uma coisa a que teria de se acostumar, trabalhando com telepatas - encontrou todos ali, à espera. Gesticulou para que os homens com a maca esperassem, gesticulou para que David se aproximasse - pelo menos David era um colega médico - e avisou, em voz baixa:

- Os outros terão de esperar. Ela ficou bastante machucada, pode ter sofrido uma concussão, ou lesões internas. David, venha comigo. Os outros devem ficar aqui.

Os olhos de Jason deslocaram-se rapidamente pelos outros. Regis estava tenso e assustado... por quê? Conner, pálido de angústia e desespero, despertou-lhe uma breve compaixão. Jason pôs a mão em seu ombro, e murmurou:

- Sei como se sente. Deixarei que a veja assim que for possível. Missy vai precisar de alguém que se importe com ela, depois do tratamento brutal que sofreu.

Conner não se adiantou, mas David, com a sensibilidade aguçada, pôde sentir a sua ira impotente, o protesto furioso:

Não há mais ninguém para se importar com ela... Missy precisa de mim... para eles, é apenas um caso... como eu fui no hospital, depois do acidente no espaço...

Os pensamentos definharam para uma raiva incoerente, desespero e desejo, tão emaranhados que o próprio Conner não sabia o que era o quê. David especulou: Como ele pode gostar tanto dela? E tratou de fechar a porta, satisfeito por poder excluir de sua vista o rosto escuro e expressivo demais.

O rosto de Missy, sobre o travesseiro, estava branco, coberto de equimoses, um olho roxo e fechado de tão inchado, os cabelos emaranhados. David experimentou uma angústia sufocante ao contemplá-la, e se perguntou, vagamente, se estava sentindo as emoções de Missy; ou as de Conner; ou era uma empatia pela estranha, esquiva e aflitiva semelhança com Keral. Haveria cicatrizes naquele lindo rosto, no ponto em que um punho ou algum objeto arrancara a pele...

Ele se adiantou, fez menção de puxar as cobertas. Os olhos de Missy se abriram de repente, frios e brilhantes como aço.

- Não - sussurrou ela, mexendo os lábios ensangüentados com uma dor evidente. - Não me toquem! Não me toquem!

Pobre criança, pensou Jason, não a culpo por essa reação, depois de tudo por que passou.

- Está tudo bem agora, Missy - murmurou ele. - Ninguém vai mais machucá-la. Mas preciso examinar esses cortes no seu rosto, e verificar que outros ferimentos pode ter sofrido. Creio que podemos curar tudo sem muitas cicatrizes. Sente alguma dor? Deixe-me ver...

Jason pegou as cobertas com firmeza, e tentou desprendê-las dos dedos que as seguravam.

No instante seguinte, em meio a uma chuva de faíscas, Jason voou pelo ar, gritando, foi bater na parede oposta, resvalou para o chão. Missy repetiu a advertência:

- Não me toquem!

- Ei, vamos com calma... - protestou Jason, levantando-se, numa consternação atordoada. - Não vou machucá-la.

Mas os olhos de Missy eram vazios, não viam coisa alguma, apenas irradiavam um brilho frio e metálico. David, de pé ao lado da cama, captou um turbilhão de tempestade de neve de pensamentos, um tornado de terror e vergonha, assustador demais para decifrar...

- Espere um pouco, Jason - murmurou ele. Inclinando-se para Missy, David acrescentou:

- Criança, está tudo acabado. Ninguém mais vai machucá-la. É apenas o médico, ele quer verificar se aquele homem a feriu com alguma gravidade. Por favor, faça um esforço para responder. Ele a estuprou? Não temos palavras para expressar o quanto lamentamos...

David estava tentando, desesperadamente, pela primeira vez em sua carreira médica, projetar-se através da barricada de terror, e entrar em contato com a moça apavorada por trás. Não tinha consciência agora da estranheza de Missy, falava como teria feito com qualquer criança assustada. O conteúdo sexual específico do terror, sem palavras, mas identificável, levou David a uma conclusão errada:

- Missy, se tem medo de nós, gostaria que uma mulher aqui, talvez a doutora Shield, viesse examiná-la?

Uma explosão ainda mais violenta de raiva, tensão e terror, como uma tempestade palpável na sala. Os olhos de Missy ficaram vidrados em pânico. Quando David tentou tocar nas cobertas que ela prendia em torno do corpo, teve de retirar a mão num gesto abrupto, comichando, como na paralisia de um choque elétrico. Jason disse, ainda tentando ser racional:

- Isso é absurdo, Missy. Como podemos ajudá-la, como podemos fazer curativos em seus ferimentos... seu rosto ainda está sangrando... se não nos deixa examiná-la?

- Não adianta tentar argumentar com ela - murmurou David. -Tenho a impressão de que ela nem mesmo ouve o que dizemos, Jason.

A porta foi aberta nesse instante, e Keral disse, em sua voz baixa e hesitante:

- Dr. Allison, acho que sei o que aconteceu com Missy. Lembre-se que ela é do meu povo, da minha raça. É uma coisa que vocês não podem compreender. Deixem-me tentar entrar em contato com sua mente...

Ele parecia tenso e assustado, e David pôde sentir, como estática na sala, que seu medo não era muito diferente do medo de Missy: É a loucura da Mudança... e se ela foi criada em outro mundo, sem saber que isso pode acontecer, se lhe aconteceu de repente na ignorância...

- Quero que me escute, Missy - sussurrou ele. - Não sou seu inimigo. Sou igual a você, alguém de seu povo...

Ela relaxou, os olhos ainda vidrados, a respiração saindo em arrancos ofegantes e roucos. David sabia que ela ouvia Keral, mas os olhos vidrados não pestanejavam. A voz de Keral tremia, e David sentiu o seu rigoroso autocontrole, mas havia uma ternura no tom que fazia os dois espectadores terem uma percepção angustiada da estranha solidão dos chieri.

- Missy, abra sua mente e seu coração para mim. Posso ajudá-la; não precisa ter medo de mim, cria desgarrada de nosso mundo, pequena irmã, pequeno irmão, avezinha perdida...

Os olhos de Missy faiscaram de repente, ela respirou fundo, como um soluço...

E depois a sala explodiu. Keral gritou em angústia, bateu desesperado nas chamas que irromperam sob suas mãos; uma ventania de tornado girou no meio da sala, derrubando o carrinho médico com ataduras, medicamentos e instrumentos; caiu com um estrépito de metal, vidros estilhaçando. David esquivou aos fragmentos de vidro voando, Jason gritou em raiva e consternação...

Keral recuou, o rosto branco, as mãos feridas unidas, numa agonia muda. E sussurrou, em tom áspero:

- Não consigo alcançá-la, ela está insana... chamem Desideria, ela pode controlar Missy...

No corredor lá fora, batendo a porta ao caos da sala, eles se fitaram, em terror e crescente desalento. Os outros os cercaram, com perguntas preocupadas. Jason fez sinal para Desideria, e lhe disse:

-  Como se controla um poltergeist ensandecido? Regis, você é o especialista. O que se pode fazer quando uma pessoa enlouquece?

- Nunca tive de controlar alguém assim antes - respondeu Regis. - David, cuide de Keral, ele está ferido... Desideria, pode aquietá-la?

Linnea, parada à margem do grupo, interveio:

- Se não puder sozinha, Avó, deixe-me tentar... se duas Guardiãs não podem conter uma louca, para que estamos aqui?

Jason deu um passo para o lado, e deixou-as entrarem na sala. David entrou com Keral atrás delas - afinal, era a sala de emergência, o único lugar em que podia encontrar medicamentos e ataduras para as queimaduras nas mãos de Keral - e observou com uma curiosidade isenta as duas mulheres se aproximarem de Missy. Elas pararam a uns poucos passos de distância, as mãos cruzadas. Os cabelos brancos como a neve de Desideria e os vermelhos flamejantes de Linnea ficaram juntos, e a semelhança forte e esquiva entre as duas irradiava um senso de poder. Dois pares de olhos cinzas, como os de Missy, focalizaram como um feixe de luz visível...

David abaixou-se, suspendeu o carrinho médico, empurrou Keral para uma cadeira, abriu um armário à procura de remédios para queimaduras... graças a Deus pelos Rótulos Médicos Universais, pois neste momento eu não seria capaz de decifrar a escrita darkovana, pensou ele, enquanto seus olhos fixavam-se no emblema familiar de chamas de um spray anestésico. Gentilmente, ele puxou os dedos de Keral, prendeu a respiração em horror ao constatar a gravidade das queimaduras nas palmas. Podia sentir por trás a tensão na sala, enquanto Missy se debatia, em silêncio, tremendo, sob a pressão concentrada das duas mulheres...

Desideria disse, a voz fria:

- Faça o que tem de fazer, Jason. Ela ficará quieta. Linnea respirou fundo, quase soluçando, e balbuciou:

- Oh, Avó, não... oh, Evanda, tenha misericórdia! Pobre coitada... David prendeu as bandagens em torno das mãos de Keral, e murmurou, umedecendo os lábios:

- Vai ficar bom em um ou dois dias, Keral. Não haverá danos permanentes. Você está bem? Sente-se fraco?

O chieri dava a impressão de que ia desmaiar, a boca tremia. David sentiu uma raiva terrível contra Missy, que controlou com um esforço intenso.

- David, se você já acabou, dê-me uma ajuda aqui - pediu Jason. Ele se aproximou do corpo inerte de Missy, tentando encobrir o medo e raiva com a calma profissional, como se fosse um manto.

Jason puxou as cobertas, controlando visivelmente sua apreensão ao tocá-las, mas desta vez Missy permaneceu quieta, parecendo em choque, meio inconsciente. Jason deixou à mostra a parte superior do braço, esguia e arredondada, enfiou uma agulha. Depois de um momento tenso, Missy fechou os olhos, passou a respirar num ritmo longo e sonolento. Jason disse às mulheres:

- Podem relaxar. A injeção vai controlá-la. Obrigado. Ela poderia ter matado nós três.

Ele estava desconcertado, o conflito entre a ética médica - não se examina um paciente na presença de outras pessoas, se puder evitar -e uma aversão óbvia a ficar a sós com uma paciente perigosa era evidente em seu rosto. David interveio:

- Deixe-as ficar, Jason. Elas sabem mais sobre telepatas... e alienígenas... do que nós.

Ele observou, com uma estranha ausência de surpresa, enquanto Jason terminava de despir Missy. Sentiu uma profunda compaixão; não era de admirar que a mudança a levasse à loucura, pois seu corpo se tornara diferente e assustador... mas reprimiu a empatia subjetiva (Keral! O que isso causou em Keral?), e tentou examinar as mudanças com uma total isenção científica.

Os seios haviam se alterado em tamanho e contornos. Não que fossem grandes antes, pois não eram muito maiores que os seios de uma garota de doze anos. Mas, ainda assim, a mudança era perceptível. A textura da pele, embora ele não pudesse ter certeza, parecia também ter se alterado, perdera sua qualidade luminosa. Ele apalpou-a com alguma curiosidade, enquanto ajudava Jason a limpar os talhos e esfolados. As mudanças genitais eram ainda mais acentuadas. Registrara antes algumas pequenas anomalias estruturais, o suficiente para classificar Missy como uma fêmea um pouco anormal; agora, à primeira vista, qualquer pessoa a consideraria um homem. Um pouco subdesenvolvido, é verdade, mas do sexo masculino sem qualquer dúvida. Pobre criança! Que coisa assustadora deve ter sido para ela! Ela? Por hábito, ainda pensava em Missy como uma mulher; e ao pensar em Conner, seu rosto ardeu, num choque por procuração. Aqui estou a lamentar por Missy, mas como poderei explicar a Conner que sua namorada nem sequer é uma mulher?

- Não resta a menor dúvida de que abrimos uma lata cheia de vermes - murmurou Jason, horas mais tarde.

Missy ainda dormia, drogada. David virava as páginas do relatório médico em suas mãos. Mudanças hormonais maciças, ainda continuando, provavelmente instáveis, deslocando-se entre hormônios andróginos e femininos... não era de admirar a instabilidade emocional resultante!

- Será que todos os chieri são assim? Você é amigo de Keral; talvez possa persuadi-lo a contar toda a história. Ele não disse que há milhares de anos os chieri foram para o espaço, à procura de algum meio de salvar sua raça, e depois voltaram para morrer? É evidente que Missy é um deles que se perdeu, de algum forma, em algum lugar. Talvez nunca soubesse o que ela era... afinal, se era uma enjeitada, como disse, alguém concluiu à primeira vista que era uma menina, e como se podia questionar a evidência dos olhos? Mas teremos de lidar com algo parecido acontecendo a Keral? Qual foi mesmo a expressão que ele usou... a loucura da mudança?

Uma breve pausa, e Jason exclamou:

- Mas que droga! Não posso lidar com isso! E, no final das contas, qual o sentido de todo o projeto?

David, percebendo que o súbito desespero nada tinha a ver com a paciente, apressou-se em perguntar:

- Jay, qual é o problema? Jason balançou a cabeça.

- Problemas pessoais. Acabo de receber a notícia de que meu próprio povo está morrendo como moscas... fui criado por não-humanos, o Povo das Árvores. Você não deve saber... não faz muito tempo que chegou a Darkover... mas têm ocorrido sucessivos incêndios, e os habitantes das florestas estão morrendo... De que adianta salvar um projeto, ou umas poucas pessoas, se este mundo poderá acabar em breve?

David sentiu-se impotente para confortá-lo, e se limitou a dizer, contrafeito:

- Acho que temos apenas de fazer o que pudermos, Jason. Conversarei com Keral, e verei o que posso fazer.

Ele protelou a conversa ao máximo possível, sem saber por que era difícil encarar o chieri. A noite caíra, e as torres do vasto espaçoporto eram pontos de luz destacados na escuridão chuvosa quando David voltou a seus aposentos, e encontrou Keral ali, em silêncio, retraído, mais pálido do que nunca. Mal cumprimentou David, e pareceu ao jovem médico que toda a gestalt de amizades e contatos desde que chegara a Darkover, os primeiros contatos humanos reais em sua vida, fragmentava-se ao seu redor. Conner em desespero por Missy (David ainda não lhe revelara qual era o problema), Regis retraído, dominado por muitos medos, Jason angustiado em apreensão por seus amigos, um mundo inteiro gemendo em agonia enquanto desmoronava... e sua profunda empatia por Keral agora reprimida e receosa. Ele recordou o rosto branco e apavorado de Missy, e teve a impressão de que um eco daquele terror e loucura insinuava-se nos olhos claros de Keral. Com um sobressalto, lembrou daquela manhã que agora parecia tão distante. Teria sido mesmo há poucas semanas? Vira Keral pela primeira vez no escritório lá embaixo, e sua incerteza original aflorou com extrema nitidez. Keral lhe parecera a princípio um rapaz, depois uma moça delicada, e a dúvida persistira até que o examinara.

- Como estão suas mãos, Keral?

- Muito bem. Missy?

- Ainda dopada. Espero que ela saia com a sanidade intacta. Talvez pudéssemos ajudá-la com hormônios, mas não tenho certeza.

- Sinto-me responsável - murmurou Keral. - Foi o contato comigo que desencadeou isso.

- Você apenas tentava ajudá-la, Keral, e ela teria compreendido, se estivesse sã.

- Não. Acho que foi... o contato comigo... que a fez entrar na Mudança.

- Não compreendo...

- Nem eu, e tenho medo, - sussurrou Keral, angustiado, - porque poderia ter sido eu.

David ficou espantado, mas não ousou interromper, sentindo que a tensa reticência de Keral se rompera. Depois de um momento, o chieri continuou, ainda em sua voz tensa e controlada:

- Quero que compreenda. Durante todas as longas estações de minha vida, sempre soube que era o único e último jovem de meu povo. Todos os outros de nossa raça são velhos, já passaram... não da idade do acasalamento, mas da idade da reprodução. Da idade de procriar. E fui criado entre eles, jovem, jovem... Agora, pela primeira vez, descubro-me entre jovens, pessoas que são, descontando as diferenças na maneira como experimentamos o tempo, quase da minha idade. Pela primeira vez na vida, estou entre...

Ele parou de falar, sufocado, e David só pôde ter uma noção vaga da tremenda carga emocional do conceito.

- ...entre parceiros em potencial. E, por isso, sei que, a qualquer momento, posso me tornar instável e mudar, como aconteceu com Missy.

David já tinha visto o medo em Keral antes, mas o que havia agora era terror. Ele disse, a voz serena, tentando se manter neutro:

- Pensa assim porque acha que pode reagir a Missy? Em termos biológicos, é claro. Pelo mero fato de se encontrar na presença, pela primeira vez, de um membro núbil de sua raça?

Seria uma solução simples e perfeita, ocorreu a David, com uma sensação estranha e desolada. Que aqueles dois, os últimos de uma raça alienígena, se encontrassem para uma renovação de sua linhagem...

- Não - respondeu Keral, com uma certa repulsa doentia na voz. - Eu não poderia. Sei que esse é um dos motivos pelos quais nosso povo definhou, mas... Nossa espécie foi moldada de uma maneira errada, no início do mundo, sei disso. Ouvi a história muitas vezes. Nossos impulsos sexuais muito baixos, e... a sensibilidade muito alta. Não tenho o direito

de julgar Missy, sabendo como sua vida tem sido. Sinto pena dela. É uma compaixão que me deixa quase doente, saber como deve ter sido terrível para Missy, compelida a isso para sobreviver, a usar seus dons apenas para fascinar, a escravizar homens alienígenas com seu corpo. Mas ela é... é o que tem sido no contato, e não posso... não posso chegar muito perto.

David recordou um comentário de Regis, lembrou a sua própria adolescência, e comentou, amargo:

- Imagino que isso é bastante comum entre telepatas. É raro eles terem um grande contato... sexual... com alguém que não pode retribuir essa... percepção, na intimidade. Tive momentos terríveis, por causa...

Ele soltou uma pequena risada.

- Minhas experiências com mulheres foram... mínimas, digamos assim. Uns poucos contatos, e... desisti. Aposto que foi ainda pior com Conner... até que encontrou Missy. Ele não podia sequer suportar a convivência com outras pessoas, e ela foi a primeira capaz de suportar o contato.

- Deve ter sido difícil para você -  disse Keral, com aquela percepção imediata de emoção que era uma coisa tão nova e tão agradável para David.

- Tenho de admitir que venho pensando nisso durante os últimos dias. Se há telepatas em Darkover, pode haver mulheres que serão capazes... - David corou. - Não que eu tenha muito tempo para pensar a respeito, mas vendo Regis com aquela moça que teve seu filho há pouco tempo... e agora com Linnea, é tão óbvio que os dois estão apaixonados...

David soltou uma risada, antes de acrescentar:

- Viver entre telepatas deve exigir algumas mudanças peculiares de atitude. Ou seja, o sexo se torna uma coisa franca, aberta. Incomoda-o falar a respeito, Keral? Que Deus me ajude, mas nem mesmo tenho certeza se você é homem ou mulher!

Keral fitou-o nos olhos com serenidade.

- Como todos do meu povo. Qualquer das duas coisas, ou ambas. Nós... mudamos, na medida em que a ocasião justifica. E, como eu disse, quando... gozamos juntos... as emoções devem estar profundamente envolvidas, ou então... ainda não conheço muito bem a sua língua, mas aprendi alguma coisa de sua tecnologia.... caso contrário a fertilização não ocorre. Claro que tentamos todas as coisas óbvias, David. Inseminação artificial. Nossas mulheres, ou melhor, aqueles de nós na fase feminina, sob drogas sedativas que embotavam suas mentes, acasalando com membros de outras raças, numa esperança desesperada...

- E não conseguiram cruzar com outras raças?

- Não... pelo menos deliberadamente, embora haja lendas aqui em Darkover. Dizem que os telepatas do Comyn têm sangue chieri. Há uma lenda... uma mulher de nosso povo... você viu Missy...

- É verdade. Ela mudou, mas disse que foi pelo contato com você. Ela estava... na fase feminina, é isso? E, no entanto, você...

- Creio que o contato com Conner provocou a mudança, David. Depois de tanto tempo com pessoas que lhe eram estranhas, que não passavam de bestas, animais, o primeiro contato de alguém que podia alcançar sua mente, suas emoções, tirou-a da fase que chamamos de emmasca, neutra. Na fase neutra, ela podia ter contato sexual com qualquer um... passivamente... mas Conner alcançou suas emoções, e... endócrinas? Assim, o acasalamento com Conner foi uma coisa real, que a atingiu bem fundo, talvez mais que qualquer outra experiência de sua vida.

- Creio que compreendo, Keral. Mas, segundo a análise de computador, os hormônios masculinos e femininos de Missy são quase idênticos aos humanos. Portanto, se é uma questão de química, a masculinidade de Conner a levaria ainda mais para a fase feminina.

- Não sei explicar, David. Só tenho teorias sem sentido. Uma delas é a de que a primeira ocorrência da mudança é... uma coisa flutuante, até que os hormônios estabilizam. Fui avisado por meus anciãos de que às vezes surge a loucura quando a mudança ocorre.

- Sou um médico, Keral. Posso ser isento, se é que isso é possível a alguém.

- Pode mesmo, David? - Keral sorriu. - Já lhe disse que temos cruzado com outras raças, de vez em quando... por acaso. Às vezes, alguém de nosso povo, quando chega a época da mudança, se não há ninguém de nossa raça pronto para acasalar, fica inebriado pelo luar e a loucura que a mudança provoca em seu corpo e mente, corre para a floresta, e se deita, sem pensar, com qualquer homem que venha para

os seus braços. E é... uma coisa de que não falamos. Algumas se mataram depois. Mas umas poucas geraram crianças. Dizem que algumas dessas crianças, expulsas do nosso meio e criadas entre os humanos, trouxeram os dons do laran, os poderes telepáticos, para a linhagem do Comyn. Isso constitui um terror entre nosso povo, uma vergonha tão profunda que só se fala a respeito em sussurros. E de nenhum outro jeito... absolutamente nenhum...

Keral, trêmulo e branco, parou de falar, começou a soluçar. David compreendeu que o conhecimento - a isenção científica - era pior do que inútil aqui. Às cegas, dominado por uma intenção emoção, ele se projetou para o chieri, abraçou-o; Keral, numa convulsão de terror, desvencilhou-se de seus braços.

David não tentou detê-lo. Ficaram se fitando, Keral ainda em soluços, David numa conjetura desvairada e assustada. Keral acabou murmurando, com um sorriso angustiado:

- Percebe agora? É você que tenho medo de tocar.

David tentou em vão se controlar. Lembrou a si mesmo que Keral, vindo de uma raça hermafrodita e totalmente isolado da cultura humana normal, não podia saber dos tabus ou perversões humanas, nem sequer tinha o conceito. O fato de que ambos eram do sexo masculino nada significaria para Keral. Ambos machos coisa nenhuma! Ele próprio não tivera certeza, a princípio, se Keral não era mulher. Mas ainda era preciso algum tempo para se acostumar. Finalmente, depois de dominar o choque inicial e a indignação, David murmurou:

- Não entendi, Keral. Está querendo dizer que você e eu poderíamos ser... companheiros?

- Não sei. - Keral parecia desolado. - Eu o magoei... ou ofendi, David?

David descobriu-se a resistir a um impulso de abraçar Keral outra vez. Não era desejo, com certeza não desejo sexual - embora, ele compreendeu tardiamente, isso também existisse, abafado, sepultado lá no fundo, mas ainda assim presente em sua percepção - mas um ímpeto intenso de intimidade, uma súbita ânsia por contato, uma espécie de fusão desesperada. Ele fez um esforço para controlar, manter a isenção, mas a emoção era tão profunda que mal conseguia permanecer calmo. Estendeu as mãos para Keral. Precisava tocá-lo, por qualquer forma.

- Não compreendo o que está acontecendo, Keral. Também me sinto assustado. Mas... Keral... - David ergueu o rosto, fitou os olhos cinzas do chieri, e experimentou uma enorme e cega felicidade. - Não me importo com o que seja. Eu o amo, e você sabe disso. Faria qualquer coisa por você, e sabe disso também, mas não precisa ter medo de mim. Não vou tocá-lo, a menos que queira. E se quiser...

David fez uma pausa, e arrematou com toda simplicidade:

- Somos amigos, e amigos podem ser amantes também.

Keral não se mexeu. Os dedos esguios enfaixados comprimiram de leve os de David, mas o resto do corpo continuou imóvel.

- Tenho medo, David. É como ser um estranho para mim mesmo. E não posso deixar de especular se meu povo me mandou até aqui para isso. Não preciso lhe dizer o que pode significar para a nossa raça, a vida em vez da morte... e, no entanto... Eu me pergunto, simplesmente, se enlouqueci.

David não se atreveu a rir. Ainda segurando as mãos de Keral, ele declarou:

- Devemos esperar para ter certeza. Devemos descobrir...

- Não conte a ninguém.

- Não contarei, mas não creio que seja possível guardar segredo. Lembra de Conner e Missy? Mas antes de qualquer outra coisa, Keral, antes de assumirmos os riscos, precisamos descobrir...

A voz faltou a David, que de repente não pôde mais se conter, e desatou numa risada incongruente.

- Não estou rindo de você, Keral, mas... é engraçado... oh, Deus, e se você tivesse um filho meu...

Os lindos olhos de Keral fixaram-se nos de David com uma sinceridade absoluta.

- Como qualquer de meu povo, eu arriscaria tudo por isso. Até a loucura. Até minha morte, várias vezes. Mas confio em você, David, e o amo. E acho que é possível.

E nesse instante, pela solenidade do momento, uma hilaridade incontrolável aflorou.

- Ah, que tolos nós somos, David, juntos, tão tristes e sombrios! Posso às vezes ler seus pensamentos com toda clareza... uma experiência a sangue-frio! Quanto de tudo isso você entendeu? Pensei ter sido claro... que se minhas emoções não estivessem envolvidas... de que tem medo? Os dois continuaram a rir, como crianças, até que Keral empurrou David, gentilmente, e disse, quase num sussurro:

- Você está certo. Temos todo o tempo de que precisamos. E devemos descobrir tudo a respeito um do outro. Antes de mais nada, temos de descobrir sobre Missy. Eu...

Ele soltou outra risada, pesarosa, uma risada para si mesmo, antes de acrescentar:

- Quero descobrir o que pode me estar reservado. Mas é uma promessa, David.

Eles tornaram a unir as mãos; e, de repente, David compreendeu que isso era uma promessa e um compromisso, mais forte do que qualquer jura de amor falada.

Fora para isso que viera a Darkover.

Podia ter sido para isso que nascera.

 

O inverno inclemente de Darkover assentara sobre as colinas de Thendara. O espaçoporto estava coberto por dois metros de neve, e mal se conseguia manter sob controle as áreas de pouso, com equipes se revezando em tempo integral, e usando todos os recursos tecnológicos do Império Terráqueo. Os dias eram curtos e penosos, o sol vermelho quase sempre encoberto por nuvens de tempestade ou neve.

A mulher que se dizia chamar Andrea, sabendo que seu trabalho fora concluído, tencionava embarcar numa espaçonave, e deixar Darkover, o mais depressa possível. Com as montanhas debaixo da neve, nada mais era possível; o degelo e as chuvas torrenciais da primavera sobre o solo árido completariam o processo além de qualquer possibilidade de reparação, a menos que fossem adotadas providências drásticas e de alta tecnologia, exigindo enormes recursos financeiros e de engenharia.

Não que tais recursos fossem indisponíveis em Darkover, mesmo agora, pensou Andrea. Apenas não restava mais ninguém no planeta que fosse capaz de perceber a entropia em andamento, e aplicasse os recursos nos lugares certos, com o tipo certo de esforço concentrado.

Ela sabia que deveria reservar passagem numa das grandes espaçonaves, e ir embora.

Para onde?, pensou Andrea, com um cansaço profundo.

Qualquer lugar. Qualquer ponto da galáxia. Você tem tudo o que poderia desejar, ou os meios para adquirir.

Contudo, ela ficou, protelando, pouco a pouco compreendendo que não havia nada em mil mundos que pudesse tentá-la a seguir adiante. Estou muito velha, velha demais para me importar. E por isso ela permaneceu, deixando cada espaçonave partir sem levá-la, nem mesmo consciente de que relutava em abandonar o sol vermelho, a linha do céu alta e irregular, tão familiar, que podia contemplar, quando a tempestade amainava, da janela de seu quarto. Se eu não partir em breve, morrerei aqui, disse a si mesma; pois já vira outros de sua espécie morrerem por não haver mais nada que os fizesse se apegarem à vida.

Desterrada, abandonada, esquecida por todos. Como abandonei minha pobre criança...

A lembrança, lacrada há centenas de anos, aflorou de repente, um pesadelo espiando através de uma cortina escura, e no mesmo instante foi encoberta sob camadas de outras recordações. Vergonha, terror, angústia, a memória compulsiva da loucura, sepultada pela determinação; raiva contra as raças prolíficas, que viviam e haveriam de morrer. Até mesmo culpa, esquecida por centenas de anos.

Não mereço morrer sob meu próprio sol...

Dispensara seus assistentes, pagando - e pagando bem - para que sumissem em partes distantes da galáxia. Uma das perfeições técnicas do comércio de destruição de mundos, que ela elevara a uma arte refinada, era o fato de que no momento em que os danos podiam ser avaliados e identificados, todos os responsáveis já se encontravam dispersos por uma centena de planetas, a incontáveis anos-luz de distância, e nunca poderiam ser descobertos, intimados a depor. Todos já haviam partido agora, e só ela tinha condições de definir os danos; e não havia ninguém para ligá-la a tudo aquilo. O único elo, as Amazonas Livres, que a haviam visto enterrando o vírus da esterilização, ela descartou com desdém. Mulheres simples, que nada sabiam!

Por isso, Andrea continuou ali, de um dia para outro, de uma semana para outra, dizendo a si mesma que iria embora quando chegasse o degelo da primavera. O amor antigo por seu próprio sol, por seu próprio céu, num mundo em ruínas, não podia tentá-la a ficar, e ver o planeta morrer.

Não seja sentimental. Não vai morrer; apenas entrará num novo período de vida, como um florescente mercado do Império. Apenas mais um planeta como os outros, sem nada de excepcional.

Tornara-se um hábito arraigado seu descobrir espiões, e lhes pagar bem, onde quer que fosse. Cerca de três semanas depois de começar a neve do inverno, um desses espiões foi procurá-la, com notícias vaga-mente inquietantes:

- Quase não se viaja nesta época, mas há movimentos de caravanas nas montanhas. E cada uma tem duas, três ou até cinco pessoas da casta dos telepatas. Parecem convergir para Thendara, ao velho Castelo do Comyn, abandonado desde que o Conselho do Comyn se dissolveu, há cinco ou dez anos. Não sei o que isso significa, mas pediu-me para ser informada de tudo sobre a casta dos telepatas.

Andrea considerou as possíveis implicações. Já ouvira rumores de que o QG terráqueo irradiara um chamado a telepatas atuantes, por toda a galáxia. Até aventara o pensamento cínico de se apresentar para ser estudada. Teriam algumas surpresas que jamais imaginariam, pensara ela. Mas o hábito arraigado, tão profundo que se tornara instinto, de manter a própria existência de sua raça em segredo de outros seres, fizera com que a idéia fosse breve, superficial, um mero jogo mental. De qualquer forma, todos os outros de sua espécie há muito que estavam mortos, desaparecidos; por que provocá-los?

Contudo, se alguém podia descobrir o que estava acontecendo com Darkover, eram aqueles telepatas. Andrea pensou em Regis Hastur com uma raiva curiosa, quase pessoal. Como o jovem conseguira se esquivar a quatorze assassinos consecutivos? Teria subestimado os telepatas do Comyn?

Mas uma coisa era certa. Se todos se concentrassem no mesmo lugar, por qualquer motivo, iriam se tornar um alvo conveniente.

Ela podia realizar um bom trabalho; esperar que todos chegassem, e num golpe final livrar Darkover da última barreira para se tornar outro planeta na cadeia do Império.

Mesmo com todos os recursos da Destruidores de Mundo Incorporated à sua disposição, um assassinato em massa nessa escala exigiria tempo e planejamento. Pois ela dispunha de todo o longo e amargo inverno darkovano para planejar.

Hora após hora, sentou junto de sua janela, observando as tempestades de neve e as montanhas distantes. E além daquelas montanhas, mais montanhas, mais florestas, e nessas florestas...

Nada. Ninguém. Morte e ruína. Não restara nenhum vivo. Exceto eu, e não continuarei viva por muito mais tempo.

O aviso de isolamento continuava no quarto de Missy, e o pessoal do hospital se cansara de repetir para Conner:

- Sinto muito, mas estão proibidas as visitas para essa paciente.

Conner já não sabia mais o que fazer. No sétimo dia, ele procurou Jason e David, e indagou:

- Por que a mantêm drogada e isolada? Prometeram que eu poderia vê-la. Disseram-me que ela estava se recuperando, e por mais graves que tenham sido os ferimentos, já deve estar quase curada a esta altura. E quer a minha presença. Tenho de vê-la.

- Você não compreende, Conner - respondeu Jason, gentilmente.

- Ela não quer ver ninguém. Não reage às pessoas... não mantém qualquer contato. Ela está insana.  - E eu também, segundo as diretivas oficiais do Império

Terráqueo - declarou Conner. - Ou não leram a minha ficha?

Talvez seja preciso um lunático para ajudar outra pessoa nas mesmas condições.

Jason estendeu a mão.

- Sente-se, homem... não fique parado na minha frente desse jeito. Sou seu aliado. Mas será que não entende? Essa... essa criatura quase matou Keral. As mãos dele ainda não sararam por completo. Ela destruiu uma cela da Força Espacial e nossa sala de emergência.

- E quase matou você, Jason - acrescentou David. - Se batesse com a cabeça no batente da porta, em vez da parede, teria partido como uma casca de ovo. Desideria e Linnea, juntas, mal conseguiram controlá-la pelo tempo suficiente para que você a drogasse. Para ser franco, não ousamos permitir que ela recupere a consciência.

Conner insistiu, obstinado:

- Ela não vai me fazer mal. Precisa de mim. E eu a amo.

David sentiu o choque e subversão de sua própria ambivalência, como um golpe arrasador. Conner se abriu para ele agora, com toda a angústia de um homem desesperadamente solitário que por fim encontrou alguma coisa, só para lhe ser arrebatada. Entre compaixão e consternação, David não pôde mais se conter:

- Conner, temos ocultado de você só porque a ama, mas acho que agora deve saber o que aconteceu com Missy. Ela mudou.... nem sequer é uma mulher agora.

- Não estou entendendo...

- Vou lhe poupar os detalhes técnicos. Sei como você reagiu a Missy. Todos soubemos, lembra? Mas que tal ver agora algumas fotos dela nua, sensual?

A compaixão e a raiva tornaram David implacável, mesmo sabendo o quanto iria magoar o homem mais velho. Ele tirou de uma pasta as fotos de Missy, na cama, no sono drogado, e estendeu-as.

- Aqui está sua... namorada. Amor? Olhe, Conner, ela nem mesmo pode reagir a você como uma mulher...

Conner pegou as fotos. A cor se esvaiu lentamente de seu rosto, adquirindo a tonalidade cinza esverdeada da pele preta ao empalidecer. Ele umedeceu os lábios, engoliu em seco, e largou as fotos. Depois disse, a voz tensa e áspera:

- Não sei como isso aconteceu. Talvez você possa ajudá-la. Mas... com isso acontecendo... ela precisará de mim mais do que nunca. Precisará que eu cuide dela.

- Não está entendendo - quase gritou David. - Ainda fala dela como se fosse uma mulher, e não é... ou será que também tem um anseio secreto por homens?

O rosto de Conner contraiu-se em raiva, e por um momento, enquanto se confrontavam, David sentiu uma coisa tangível vibrando, prestes a atacar e matar. Continuou a fitar Conner, sem vacilar, até que o outro respirou fundo, controlando sua fúria.

- Escute, seu desgraçado, é Missy que eu amo, com quem me importo, que preciso. Não do fato de que ela possui um corpo que gostei de levar para a cama. Não descarto isso, mas posso encontrar um corpo em qualquer lugar, se precisar tanto assim. Acontece que amo Missy... isso mesmo, amo ela. Ou ele. O que significa que me importo com o que lhe acontece, quer possa ou não levá-la para a cama. Parece evidente que se trata de uma coisa que você nunca sentiu por ninguém, o que o torna digno de pena. E se insistir em me manter afastado dela por mais tempo, a confusão que Missy criou vai parecer a de uma menina chorando por sua boneca em comparação com a encrenca que vou armar!

As palavras ressoaram pela sala, intensas, como se escritas em letras de fogo no ar. Com o senso de que era uma enorme capitulação, de certa forma pessoal, David murmurou:

- Não tinha entendido, Dave. Eu... sinto muito. Perdoe-me. Jason... - Ele virou-se para o outro médico. - Acho que devemos deixá-lo ver Missy. Se ele puder alcançá-la, se puder fazê-la compreender isso, talvez não tenhamos mais problemas com ela.

- É um risco que temos de assumir. Mas suponha que ela o mate antes que consiga fazer contato?

- É um risco que eu assumirei - declarou Conner. - Vocês não compreendem. Missy tirou-me vivo do inferno. Acham mesmo que hesitarei na tentativa de tirá-la de seu inferno particular, qualquer que possa ser?

O quarto estava branco, com a claridade refletida da neve caindo além das janelas. Missy se encontrava deitada sob as cobertas, pálida e imóvel, os cabelos sem cor definida espalhados sobre o travesseiro. O rosto parecia estreito, pálido, inumano, as feições salientes.

Não, pensou Conner, com uma pontada de angústia, ela não era mais bonita. Alguma vez foi bonita, ou era apenas o estranho glamour que irradiava?

Jason lhe dissera que haviam suspendido as drogas, o efeito começava a passar, e ela despertaria em breve, naturalmente. Conner foi para o seu lado, sentou para esperar. Missy ainda dormia, a respiração regular, gemendo de vez em quando, e mesmo em seus sonhos agitados Conner podia sentir o desespero, o choque, uma vergonha assustada. Pegou a mão branca e inerte. A pele era áspera. Conner tinha o treinamento médico superficial ministrado a todos os oficiais de espaçonaves que podem se tornar responsáveis por passageiros e tripulantes na ausência de médicos, e por isso fora capaz de entender, até certo ponto, as explicações oferecidas por Jason. Extremo desequilíbrio hormonal; re-cessão de hormônios femininos e excesso de andróginos, desequilíbrio da pituitária e tiróide, fora de controle; isso acarretava problemas de pele. Recessão de tecidos dos seios, atrofia parcial das estruturas genitais femininas, tudo acelerado...

- A instabilidade é induzida pelos hormônios - dissera Jason. - O choque emocional também é enorme. Creio que ela não sabia que isso podia acontecer.

Conner pôde fazer contato com a mente assustada de Missy, sentir seu medo e choque, pelo fracasso da única coisa estável em seu mundo, seu fascínio por qualquer um que ela procurava fascinar. (Seu fracasso em atrair David desencadeara a primeira incerteza?) Conner tratou de se projetar, à maneira antiga que aprendera...

... girando pelo espaço, um ponto de nada, deixou seu corpo para trás, lançando seu eu interior, que nada tinha a ver com o corpo...

Missy, Missy. Estou aqui. Estou com você. Os corpos pouco representam para nós. Podemos usá-los ou deixá-los, desfrutá-los ou esquecê-los; mas somos mais juntos do que seríamos de outra forma, unidos no amor, quando podemos nos encontrar desta maneira...

Ele voltou lentamente à consciência. Missy abrira os enormes olhos cinzas, e o fitava.

- Dave? - disse ela, num sussurro de aceitação.

E Missy sorriu. A mão escura de Conner pegou a sua, apertou com firmeza. Não havia necessidade de palavras, mas ele sussurrou-as assim mesmo, seu rosto se inclinando sobre o de Missy:

- Não me importo com o que você é, Missy. Amo você, preciso de você. Talvez eles possam ajudá-la, mas mesmo que não possam, pertencemos um ao outro, e sairemos disso juntos, de um jeito ou de outro. Agora que descobrimos alguém a quem pertencer, nada mais importa.

Ela estava fraca demais para se mexer, mas virou o rosto, comprimiu os lábios contra a palma de Conner. E depois adormeceu, a mão ainda segurando a de Conner.

 

Dia APÓS Dia, eles chegaram à cidade, em caravanas ou sozinhos, os telepatas darkovanos de cabelos vermelhos. Eram do Comyn e plebeus, habitantes das cidades e dos campos, nobres e camponeses, com apenas uma coisa em comum: os flamejantes cabelos vermelhos, ligados em Darkover, desde tempos imemoriais, de forma indissolúvel, aos genes telepáticos aos poderes de laran do mundo antigo.

Não; havia mais de uma coisa em comum. Cada um, ao chegar, depois de atravessar os desfiladeiros cobertos de neve, as planícies secas e sufocadas pela poeira, tinha outra história a contar de um mundo em ruínas, à beira da morte.

- O plantio do outono se tornou impossível, pois o solo é agora preto e poeirento - comentou um homem amargurado das Terras Baixas. - Ficou árido como uma mulher de noventa anos.

- Morremos do sol ardente - anunciou um lorde das montanhas, alto, de rosto austero, com o manto de couro bordado que já não se usava mais nas cidades há cem anos. - Não há mais nevoeiro nas colinas, não há chuva. Os vapores das árvores de resina envenenam nossos animais ao sol.

- As árvores perderam as folhas, estão amareladas, não vão mais espalhar suas sementes neste outono - comentou um aristocrata com o rosto de um Hastur e os olhos cinza dos habitantes das florestas. - O Povo das Árvores morre em suas aldeias. Aparecem à beira de suas florestas com os olhos vermelhos quase brancos, param ali, não demonstram mais qualquer medo da humanidade. Nós lhes damos os poucos alimentos que podemos, mas também enfrentamos fome e privações.

- O Vento Espírito não sopra mais, e os homens-gatos descem de suas colinas - disse uma moça de cabelos trançados, a túnica ornamentada com borboletas prateadas, uma pedra-da-estrela azul de Guardiã pendurada no pescoço. - Nenhum ser humano vivo jamais os tinha visto antes, e agora vemos apenas seus cadáveres, espalhados à beira das florestas. Sempre os tememos, pois o Vento Espírito os fazia saírem de suas colinas numa fúria de canibais, para saquear e destruir, mas é terrível saber que todos estão morrendo, e não mais existirão.

- A própria terra está desmoronando nos lugares em que houve incêndios...

- As árvores não produzem mais frutos, nozes ou óleo...

- Até as vozes dos homens-gatos silenciam...

- Estamos morrendo...

- Estamos morrendo...

- Morrendo...

Os terráqueos haviam instituído programas de ajuda alimentar, mas com a falta de transporte em Darkover era quase impossível alcançar os distritos mais remotos. Regis empenhara toda a sua fortuna pessoal para enfrentar o desastre, mas era necessário primeiro provar o que estava acontecendo, e como. À medida que mais e mais de seus parentes chegavam à cidade - parentes e outros, todos unidos pela qualidade genética que partilhavam - ele foi se tornando silencioso e desesperado. Como encontrar um meio de juntar todos, a fim de salvar seu mundo? Todos os recursos e riqueza de Darkover seriam suficientes para evitar a catástrofe?

Ele deixara o Projeto Telepata aos cuidados de David e Jason. Não tinha tempo para isso agora. Se pudesse ser de alguma ajuda, Jason saberia, e o avisaria. Sua própria vida pessoal estava em suspenso, concentrada na preocupação angustiante de proteger seus filhos sobre-viventes.

Linnea não voltara a Arilinn; permanecera a seu lado, e sua presença era ao mesmo tempo um conforto e uma tortura... a tortura do anseio e necessidade. Por outro lado, não podia expô-la ao perigo que ameaçara Melora e seu filho, dentro do QG terráqueo. Se um assassino conseguira atacar ali, então a Torre de Ashara ou os santuários em Hali não seriam capazes de proporcionar segurança à mulher que estivesse com a semente de Hastur. E ele não podia expor Linnea a isso.

Com o afastamento de Regis, muito do ônus do projeto cabia a David, mas parecia inútil, e ele abandonara os testes de rotina. De que adiantaria descobrir que Desideria podia manipular pequenos objetos, até dezoito gramas de peso bruto? Ocupava-se, experimentando algum sentimento de culpa, com os registros das curiosas mudanças em Missy.

Ao final de uma tarde, ele e Keral se encontravam em seus aposentos, repassando-os com o maior interesse.

- É difícil acreditar no que você me disse, sobre os fatores emocionais acarretando as mudanças - comentou David. - Mas parece que o contato com Conner está tendo algum efeito em Missy. O retorno à fase feminina é relativamente completo, embora seja verdade que tenhamos usado hormônios. Foi uma questão de desespero. Ela estava doente demais, havia uma paralisia parcial das supra-renais e tiróide. Não podíamos deixar de tentar.

Ele estudou Keral, e não precisou enunciar o pensamento seguinte em sua mente: que a crescente suavidade na cor da pele de Keral, assim como alguma coisa em sua crescente passividade levavam-no a desconfiar de uma lenta mudança no chieri. E era uma coisa assustadora de se observar. Keral, acompanhando seus pensamentos com aquela acurácia desconcertante, comentou:

- David, você poderia provocar essa mudança em mim? Disse que os hormônios eram similares.

- Com Missy, era uma questão de vida ou morte. Eu não assumiria o risco por menos, Keral, pois mesmo com humanos o tratamento com hormônios é perigoso e inexato, apesar de ser estudado há três mil anos. As quantidades necessárias para a mudança são mínimas, e um erro pode levar à loucura e morte. Temos de esperar para ver... Quanto tempo, em geral, leva o processo de mudança?

- Sob os estímulos apropriados, não muito. Como já expliquei, os chieri não estão ligados a relógios e ciclos do sol, como vocês; mas talvez, para uma mudança plena de fase, uma noite e um dia... um palpite aproximado.

- O que costuma desencadear a mudança, Keral? As estações? As fases da lua?

Havia quatro luas em Darkover, lembrou David, e manter um registro de todos os seus eclipses e fases seria uma tarefa para levar um astrônomo à loucura.

- Não sei o que provoca a mudança para um estado fértil -respondeu Keral. - Como poderia ter certeza? Fui informado por meus anciãos que estou em idade de gerar... não, não me importo de falar sobre isso agora; antes, não o conhecia bastante bem, nem à sua língua,

para me fazer compreender. Em circunstâncias normais, muitas coisas que achamos difíceis para... analisar à sua maneira... podem provocar mudanças para o acasalamento. O mais comum é... ora, as preliminares do amor, o próprio estímulo do contato. Mas eu mesmo não sei como funciona.

David comentou, com alguma ironia:

- Nunca pensei que participaria de uma investigação sobre a vida sexual de seu povo. Poderia ser mais fácil se eu não tivesse um envolvimento pessoal.

- Gostaria de não estar?

- Claro que não. Já me comprometi.

David soltou uma risada súbita, estimulada pela imagem que surgiu em sua mente de Keral como uma mulher. Era difícil de imaginar, ainda mais difícil de acreditar. A projeção do chieri como uma mulher era afetada pela lembrança de Missy, como primeiro a conhecera, com sua carga de sedução um tanto grosseira.

- Também tenho medo disso - murmurou Keral. - E talvez seja o próprio medo... que esteja inibindo as mudanças.

A batida na porta que interrompeu a conversa foi bem-vinda, pelo menos para David; mas Keral se encolheu ao deparar com Missy parada na porta.

O único vestígio restante do episódio psicótico era uma certa descoloração da pele, além de pequenas cicatrizes; e ela deixara por completo de irradiar a clamorosa sexualidade feminina, embora ainda mantivesse uma ligeira atração feminina, o que deixou David contente, por Conner. Missy ainda se encontrava, obviamente, no estado de neutro, e David não tinha idéia se ela e Conner haviam retomado algum relacionamento sexual, embora calculasse que deveria saber, se isso tivesse ocorrido. Ele tinha conhecimento da tensão da abstinência entre Regis e Linnea, e era uma coisa aflitiva. O que Regis dissera, que o sexo desregrado num grupo de telepatas estranhos era perturbador? Na verdade, o problema era ainda mais grave. Havia ocasiões em que, olhando para Desideria, ainda via a imagem vaga e desconcertante da jovem sensual que ela fora outrora, e não podia controlar um impulso de desejo, bastante incongruente com a aparência atual, de idade avançada e dignidade assexuada. Ora, ela tinha uma personalidade excepcional, e seria uma mulher até morrer! David não precisava tocá-la - por Deus, ela podia ser sua bisavó! - mas a atração existia, ambos sabiam disso, e tinham um comportamento gentil e afetuoso um com o outro, quase como amantes...

Ele voltou a se concentrar em Missy, refugiando-se nos lugares comuns da cortesia.

- Queria alguma coisa?

Keral empalidecera de medo, e Missy olhou além de David, ao dizer:

- Não vou machucá-lo... a nenhum dos dois. - Seus olhos fixaram-se em Keral, com um estranho e velado desdém. - Tem levado uma vida resguardada, não é?

- Não tenho o direito de julgá-la, Missy - murmurou Keral. O rosto dela abrandou-se um pouco.

- Sei o que tentava fazer, Keral. Lamento muito não ter... reagido. Não estava sã. Mas agradeço, e vim lhe pedir para fazer mais uma coisa por mim.

Keral baixou a cabeça.

- Farei o que puder para ajudá-la, e sabe disso.

- Disse que eu pertenço à sua raça, à sua espécie. Pois nada sei sobre o meu povo. Fui uma enjeitada, abandonada ao nascer ainda sangrando, descartada como um aborto.

A expressão era amargurada, com uma angústia antiga, e Keral sacudiu a cabeça, espantado.

- Também não consigo entender. Para nosso povo, as crianças são preciosas além das palavras, amadas, bem-vindas, causa para um intenso regozijo e alegria. O fato de uma mulher dos chieri ter abandonado sua própria criança para morrer... a menos que ela própria estivesse morta ou louca...

- Você já tem a prova de que todos nós podemos enlouquecer - comentou Missy, com um sorriso amargo. - Mas acredito no que diz, pois o vi com a criança em seus braços, a criança da mulher de Regis Hastur, e é evidente que isso provocou algo estranho em você. Mas quero saber mais sobre o seu povo.

- Saberá de tudo o que eu sei - prometeu Keral. David acrescentou:

- Há também lendas dos chieri entre humanos. Desideria as conhece, e prometeu contar o que sabe... para Keral e para mim. Por que não vai conosco, Missy? Tenho certeza de que ela ficaria satisfeita em recebê-la também...

Missy hesitou por um instante, depois soltou uma pequena risada. Como Keral, possuía um riso mágico, alegre como o repicar de sinos.

- Ainda tenho medo de Desideria, - confessou, - embora ela também não tencionasse me fazer mal. E devo aprender a não ter medo.

- Tem razão - declarou David, solene.

Ele sabia que, de alguma forma, um vínculo forte surgia, e todos os ressentimentos deviam desaparecer... e não sabia direito por que, mas era parte do que algum dia deveria se tornar.

Parecia incrível agora recordar que ele nem queria vir para Darkover.

Antes de vir, só estava meio vivo. O que considerava uma deformidade aberrante era agora uma parte importante de sua vida; e ao se projetar para Keral, em busca do contato familiar, ele sabia que, agora, viver sem isso seria pior do que a cegueira.

 

- HÁ UMA lenda que se contava no auge do Comyn, anos antes dos terráqueos chegarem aqui, com suas naves e seu Império. Ouvi-a quando ainda era jovem, Desideria Leynier, sendo treinada no Castelo Aldaran, como técnica e Guardiã de matriz. Mas vem de uma época muito anterior à chegada dos terráqueos em nosso mundo.

"No passado remoto, os lordes do vale reinavam em Thendara, e circulavam de Arilinn a Carthon. Ali residia um lorde do Povo Antigo, rei de todos os que habitavam a região. Não havia os Sete Domínios na ocasião, não existia o Comyn.

"Havia uma donzela do Povo Belo da Floresta, chamada Kierestelli, que significava Cristal na língua do vale. As lendas falam de sua beleza excepcional, mas a beleza existe nos olhos do amor, não em qualquer feição específica. Uma rainha perversa dominava a floresta, e expulsou Kierestelli de seu povo, para vaguear sozinha pelas matas. Ela fugiu para as terras do Povo do Vale, e ali conheceu o Lorde de Carthon, junto ao poço de Reuel. Ele levou-a para seu castelo, na cidade antiga que agora se encontra submersa na Baía dos Sonhos, além da ilha de Mormallor. Ali, Kierestelli viveu em felicidade. Mas espalhou-se o rumor de que ela era prisioneira, e os lordes dos chieri enviaram um enorme tesouro em ouro e jóias... pois sabiam que o Povo do Vale apreciava essas coisas, que nada representam para os chieri... para seu resgate. Mas Kierestelli preferiu continuar com o Lorde de Carthon, porque o amava. O Lorde de Carthon devolveu todo o tesouro, à exceção de um único anel de ouro, que por muito tempo foi guardado na casa de Hastur.

"Mas a caravana foi atacada nas montanhas Venza, e o tesouro nunca chegou à Floresta Amarela. O pai de Kierestelli disse: Essa gente ficou com o ouro, e não devolveu a mulher. Ele reuniu seu povo, e partiu para a batalha em que resgataria Kierestelli. Mas antes que a primeira flecha fosse disparada, ela saiu do castelo sitiado, de túnica e descalça, os cabelos soltos em torno do rosto, passou entre os defensores e sitiantes, foi se ajoelhar diante do pai, pegou a mão do Lorde de Carthon, e suplicou para que os dois se reconciliassem.

"Não terei uma criança em meio ao terror e guerra, disse ela. O lorde dos chieri, ao ver que o corpo da filha estava pesado do filho de Carthon, largou sua lança, chorou, e retornou à floresta com seus guerreiros. Eles juraram amizade eterna, e foi realizado um grande banquete... ainda dizem nas montanhas, quando alguém recebe uma grande homenagem, que foi festejado como os Lordes de Carthon.

"A amizade acabou sendo rompida, os chieri tornaram a se retirar para o outro lado do rio Kadarin, para as montanhas além de Carthon. Mas dos filhos de Carthon nasceu Cassilda, que foi a esposa de Hastur, e deles descenderam os filhos dos Sete Domínios."

Desideria concluiu a história, e todos permaneceram em silêncio por um momento. Depois, David abordou um ponto que considerava importante:

- A lenda fala de uma mulher entre os chieri...

- É assim que parecia ao seu povo - explicou Keral. - Para mim, o que parece importante nessa história... e é bem possível que seja verdadeira... é que nasceu uma criança de humano e chieri, sem loucura ou medo. Há muito que sei que o Comyn tem o sangue do meu povo em suas veias. Os chieri pensam em vocês como netos distantes. E, assim, embora estejamos morrendo, alguma coisa do nosso povo sobrevive, mesmo dessa maneira indireta.

- Mas de onde vêm os cabelos vermelhos? - indagou David.

- Não tenho certeza - disse Jason. - Mas estudei a história darkovana. Há uma teoria de que Darkover foi originalmente colonizada por uma das "naves perdidas"... espaçonaves dos séculos XXI e XXII, antes do Império Terráqueo, antes dos hiperpropulsores, quando inúmeras naves desapareceram, e nunca mais se teve notícias. Os cabelos vermelhos... uma função das supra-renais... são comuns em uma ou duas das antigas raças da Terra, em particular os celtas nas Terras Altas, que diziam serem psíquicos... dotados com a segunda visão. É possível que essa característica tenha se fixado na linhagem telepática.

Desideria interveio:

- Creio que já mencionei a convicção que existe entre as pessoas que trabalham com matriz... quanto mais vermelhos os cabelos, mais forte o dom. Mas havia também uma teoria de que o trabalho psíquico muito intenso embranqueceria prematuramente os cabelos de uma

Guardiã. Meus cabelos ficaram brancos quase da noite para o dia depois dos contatos com Sharra.

- Os meus também - murmurou Regis.

- Exaustão parcial das supra-renais? - sugeriu Jason.

- Nas montanhas, onde eu vivia, ouvi muitas histórias sobre os chieri, como eram lindos. Há uma canção antiga sobre isso. Não a lembro direito... - Desideria franziu o rosto, concentrando a atenção para dentro, numa tentativa de recordação. - Mas fala de uma mulher chieri, procurando por seu amante mortal, sem saber... de tanto tempo que eles vivem... que nos anos transcorridos seu amante envelhecera e morrera...

Missy interveio, sem levantar os olhos, a voz quase um sussurro:

- Antes de eu saber o que era... apenas uma vez pensei que amava. Permaneci jovem, uma criança na aparência e nos anos, enquanto ele foi envelhecendo...

Sua voz definhou. Keral inclinou-se, pela frente de Conner, tocou em sua mão. Ela sorriu, mais uma insinuação de sorriso, breve e triste, e ficou calada. Regis pegou a mão de Linnea, puxou os dedos para baixo de seu braço.

- Sempre... uma mulher dos chieri -  murmurou David, mal percebendo que falara em voz alta.

Linnea ergueu os olhos, fitou Keral.

- Minha curiosidade não é ociosa, pode ter certeza. Mas tenho ouvido coisas estranhas, em lendas. Claro que as lendas, podem ser ficção... mentir como uma velha canção, é um dos nossos provérbios antigos. Mas gostaria de saber de uma coisa: depois que alguém de seu povo toma uma companheira, ou companheiro, nunca procura outra, mesmo que a morte ou o infortúnio os separem?

- Não é bem assim, - respondeu Keral, - embora seja verdade que depois que nossos corações e emoções fixam-se numa pessoa determinada, raramente procuramos em outra parte. Deve compreender, Dama, que falo pela longa memória de meu povo, não por experiência pessoal. Raro é o chieri que não chega intacto à sua amante... ou ela para ele. Não porque assim exigimos, mas porque todas as coisas acontecem no momento oportuno. Costumamos dizer que não se procura frutas na primavera, nem flores num galho no inverno...

Keral suspirou.

- Não é apenas por não desejarmos outra pessoa; mais do que isso, não conseguimos suportar. E é por isso que nosso povo está morrendo... Talvez seja o jeito de Evanda de cancelar a dádiva da vida longa que nos concedeu, quando o mundo foi criado. Nossas mulheres são capazes de procriar por apenas... não conheço suas palavras... cuere... um ciclo de estações? Um ano? Por aí, um ano em cada cem; e às vezes, por muitos cueru consecutivos, aqueles na fase masculinas só podem produzir um sêmen estéril. Assim, como podem compreender, raramente acontece que ambos alcancem ao mesmo tempo a raiva... o momento certo para a reprodução. Em conseqüência, menos e menos crianças nasciam entre nós. Havia exceções. Em algumas ocasiões, alguém de nosso povo na fase feminina, ansiosa em gerar, procurava outro companheiro para acasalar. Mas sempre era uma coisa difícil e amarga, e quase nunca alguém de nosso povo chegava a esse ponto. Alguma coisa em nosso povo não permite, como já expliquei.

- Ou seja, é verdade, o que se costuma dizer... que as pessoas de seu povo só vão juntas para a cama... - Linnea usou a palavra casta cortês e evasiva, accandir, mas falava com calma, sem qualquer constrangimento. - ...apenas quando desejam crianças?

Keral soltou uma risada.

- Essa história pelo menos é falsa... caso contrário seríamos de fato um povo muito estranho! Não, Linnea, não é bem assim. Vamos juntos para a cama como qualquer outro povo neste mundo, ou em qualquer mundo, em busca de conforto na solidão, por prazer, para alegrar nossos corações. Mas... exceto na loucura da Mudança... não é um impulso incontrolável, uma compulsão. Nem uma necessidade, mas apenas uma coisa agradável, como a música, ou a dança.

David murmurou:

- Um povo sem sexos divididos, e sem um impulso sexual irresistível...

- Teria um fator de sobrevivência muito baixo - arrematou Jason. Regis acrescentou:

- Algo parecido ocorre entre os nossos que têm sangue chieri. Já sei há muitos anos que o impulso sexual entre os telepatas é menor que o dos homens comuns.

Conner, que ainda não falara, disse, da sombra em que sentara:

- Faz sentido. As pessoas com a "mente fechada" não têm como fazer contato, exceto através dos corpos, no sexo...

- E o sexo pode constituir um contato mais profundo, - comentou Linnea, - ou pode se tornar... se você realiza um intenso trabalho telepático... uma espécie de estática, tão prejudicial que por muito tempo se acreditou que uma Guardiã devia permanecer virgem. A maioria não é, hoje em dia... eu não sou... mas ainda assim é preciso ter alguns cuidados. Os homens que realizam um trabalho intenso nas redes de matriz ficam impotentes por um bom período.

Desideria acenou com a cabeça.

- Quando eu era pequena, ainda se acreditava que uma Guardiã devia ser virgem. Fui expulsa do meu círculo ao deitar com meu primeiro amor. Logo descobri que não perdera meus poderes, mas anos se passaram antes que eu tivesse coragem de usá-los de novo.

- Outra coisa, - acrescentou Linnea, olhando para David, - entre os telepatas do Comyn, homens e mulheres não são considerados tão diferentes. É bastante comum que as meninas se apaixonem por companheiros de brincadeiras, primeiro por outras, depois por garotos.

- Costuma acontecer também entre os terráqueos, - comentou Jason, - embora o tabu seja muito forte.

Regis pegou a mão de Linnea, e disse:

- Para mim, isso foi um conflito terrível. Desde pequeno, fui criado para saber que era o último Hastur do sexo masculino; meu pai morreu muito jovem, meu avô era muito velho. Desde que me recordo, tenho a impressão de que me consideravam apenas como uma fonte de sêmen. Passei a odiar as mulheres, por algum tempo. Só me sentia à vontade em companhia de homens, meus parentes e primos...

Ele lançou um olhar rápido e risonho para Danilo. David soltou uma risada.

- Teriam resolvido esse problema no Império fazendo-o contribuir para um banco de esperma.

Ele riu de novo, da expressão perplexa de Regis, e explicou do que se tratava. Teve a experiência surpreendente de ver Regis Hastur corar. Era evidente que não havia uma ausência de tabus sobre o sexo entre os telepatas, como fora levado a acreditar. Em silêncio, David refletiu que apesar do forte tabu sobre o homossexualismo aberto nas culturas terráqueas, muitas vezes se sentira em contato maior com os homens do que com as mulheres no hospital.

Você estabelece um contato muito depressa, de Regis.

Não sou homossexual!

Faria alguma diferença se fosse? Regis captou a todos num relance, na rede de contato. Conner e Missy, os dedos entrelaçados, introduziram um anseio amargo-doce no contato; um toque de afeição de Desideria, amo vocês todos, embora nenhum jamais tenha me tocado, nem tocará; uma projeção estranha e tensa de Keral, ainda hesitante, com algum medo...

...as preliminares do jogo do amor... como romper esse impasse...

Houve um silêncio prolongado. Lá fora, a neve caía contra as janelas, um vento silencioso turbilhonava, branco contra a escuridão. Na mente de Keral havia a imagem de uma floresta, coberta pela neve, vultos se movendo numa dança dos flocos de neve, em meio a árvores desfolhadas... e por um instante todos sentiram a brisa soprando pela clareira dos chieri, ao crepúsculo de inverno.

Foi nesse instante que Regis comentou, em voz alta:

- Entre meu povo, dizem que quando homens se encontram com homens, ou mulheres com mulheres, como amantes... chamamos de donas amizu, a dádiva de amigos... é reconhecimento de uma verdade mais profunda. A de que dentro de cada mulher se esconde um homem, e dentro de cada homem se esconde uma mulher. E é a esse eu interior, o oposto polar do exterior, que você dá seu amor.

- Animus e anima - murmurou Jason.

- Entre os chieri, - interveio Missy, - o lado interior não está oculto, e se situa bem próximo da superfície. Isso é uma coisa nova para mim também... ... mas não é um motivo de vergonha...

E, mais uma vez, todos foram envolvidos pela intensa percepção, Regis, Linnea, Desideria mantendo a todos no mesmo vínculo. David soube subitamente que encontrara a sua verdade. Homem ou mulher? Ele tocou Conner por um instante, e sentiu que chegara em seu lar; sentiu Linnea aninhando-se como uma flor em sua consciência, projetou-se para ela por um momento, pegou suas mãos, beijou-a nos lábios; sentiu-se abraçado por Jason; entrou e saiu depressa da união; Missy

flamejando como um cometa por seus sentidos; a suave radiância de amor que era Desideria; o retorno a Keral, com a sensação de encontro.

Agora, David sabia que podiam tornar a experimentar algum medo, mas o impasse de vergonha e pavor fora rompido, e os dois descobririam o caminho um para o outro.

O contato dissolveu-se lentamente, eles se separaram. Mas David tinha certeza de que nunca mais estaria sozinho.

Mesmo ao se separarem, uma insinuação de riso aflorou em suas mentes, com o protesto jovial de Linnea:

- Amo seu parente, Regis, mas ele tem de ir para onde vamos? Danilo sempre dormirá a nossos pés? Nunca poderemos ficar a sós?

E a resposta rápida e austera:

- Prefere o destino de Melora? Sozinha?

E enquanto o contato desfazia-se por completo, um pensamento de que havia algumas coisas que nem mesmo um guarda-costas podia fazer.

 

Ao SE separarem, sem despedidas (para quê? Sabiam que estariam sempre juntos), David e Keral atravessaram a cidade, guiados pelas luzes do QG terráqueo, como uma vasta torre branca no céu escuro. Seguiam de mãos dadas, mas mantiveram-se calados, até passarem pelos portões do espaçoporto, quando Keral disse, como se respondesse a palavras de David:

- Não me importo agora se eles souberem.

- Nem eu.

- O contato com Conner trouxe Missy de volta da pior loucura da Mudança.

Não voltaram a falar, enquanto subiam para os aposentos de David. Tinham agora a familiaridade de um lar.

Aproveitando seus privilégios, David determinou que trouxessem o jantar a seus aposentos. Comeram juntos, num crescente sentimento de intimidade e isolamento, aumentado pela percepção da neve caindo ao redor. Keral se encontrava no mais alegre dos ânimos, e era contagiante; tudo que qualquer dos dois dizia parecia espirituoso, e a todo instante caíam na gargalhada, numa vaga consciência de que a própria presença deles ali era engraçada, de uma maneira um tanto solene. De que tinham medo? David percebeu de repente que se aproximava perigosamente da embriaguez, e tratou de recuar, e empurrou para o lado um terceiro copo do vinho doce das montanhas darkovanas. Keral seguiu seu exemplo, e garantiu, com uma expressão muito séria:

- Eu não estava tentando embriagá-lo, mas teria alguma importância se isso acontecesse?

- Só que não sei direito quais os efeitos do álcool em seu metabolismo. .. e tenho certeza demais dos efeitos no meu! - David soltou uma risada, e acrescentou: - Além do mais, não quero estragar coisa alguma por estar embriagado.

- Significa tanto assim para você, ter tudo claro e definido? Talvez as coisas não estejam destinadas a serem tão claras. Poderia ser ótimo se os contornos ficassem um pouco indefinidos.

Keral adiantou-se, inclinou-se, pegou a cabeça de David entre as mãos; um gesto estranho, e David sentiu no mesmo instante que era excepcional e íntimo. Quase num sussurro, Keral disse:

- Afinal, só é seguro contemplar o sol através de óculos enfumaçados.

- É sério demais para isso.

- E pensa que não é sério para mim?

Keral ergueu o rosto de David, seus olhos se encontraram; e alguma coisa dentro de David se transformou. Há semanas que convivia com aquilo, mas subitamente tudo se tornava claro, sem a indefinição misericordiosa: desejo e ternura, emaranhados demais para se ter certeza do que era o quê. Keral acrescentou:

- Se eu não levasse mais a sério do que você pode imaginar... nem estaria aqui.

Keral arriou para o chão, acomodou a cabeça nos joelhos de David. Os cabelos compridos caíram, suaves e sedosos. David sentiu um tremor percorrer Keral, e teve vontade de abraçá-lo, mas sabia, em termos racionais, que devia esperar. Para Keral, seria um processo lento, até a culminação, e qualquer choque poderia detê-lo ou prejudicá-lo.

Keral ergueu os olhos, e David, conhecendo agora suas expressões mais sutis, percebeu que ele se encontrava à beira das lágrimas.

- Tenho medo, David. Missy se achava nos braços de um homem quando a mudança ocorreu, e tudo saiu errado. Como podemos ter certeza?

David quase entrou em pânico ao ouvir isso. Keral se mostrava convencido de que tudo acabaria bem. Se perdera a confiança, o que haveria pela frente?

Mas talvez aquilo fosse inevitável. À medida que a polaridade fluía de um lado para outro, masculino para feminino, passivo para ativo, deviam ocorrer - David descobriu que o acalmava pensar a respeito em termos clínicos - algumas mudanças hormonais bastante drásticas, que tornariam as emoções de Keral instáveis e incertas. O próprio conhecimento da inevitabilidade do processo podia estar causando o pânico de Keral, como se desencadeasse alguma coisa que não podia alterar ou controlar... tão inevitável e drástica quanto o nascimento...

David pensou: Usar um pronome masculino é provavelmente parte do que ainda me incomoda. Só que não adiantava; por mais que tentasse, não podia pensar em Keral como uma mulher; assim como também não podia sentir Missy, em termos psicológicos, como um homem, embora a tivesse visto como tal.

Mas havia uma mulher em Keral...

A mulher oculta...

Ele devia aceitar isso, ajudá-la a aflorar.

David inclinou-se, repetiu o gesto de Keral, segurou o rosto pálido e delicado entre suas mãos.

- Não tenha medo. Não tentarei... ir mais depressa do que você pode me acompanhar...

Keral sorriu, mas não disse nada. David, constatando outra vez que os pensamentos clínicos o tranqüilizavam, repassou deliberado seus conhecimentos da fisiologia alienígena. A atual fase neutra de Keral, com uma ligeira tendência para o masculino, haveria de se inclinar pouco a pouco, se os estímulos fossem adequados - e era um se fundamental - se os fatores psicológicos e fisiológicos se mantivessem em equilíbrio, para o feminino, nos hormônios, genitália e psicologia.

De um ponto de vista estritamente físico, o intercurso de fato deveria ser possível; mesmo agora, já deveria ser possível. Era tudo o que sabiam; em termos teóricos, com os conhecimentos de anatomia que ambos possuíam, não havia motivo para não ser possível.

Mas havia um profundo abismo entre a teoria e a prática. David pensou: Nunca fiz sexo hipotético antes. Ele compreendeu que ainda se encontrava à beira da embriaguez. Especulou quanto tempo levava a mudança para a fase feminina.

- Não sei - disse Keral, e David nunca soube se fizera a pergunta em voz alta. - Não somos tão vinculados a relógios quanto vocês. Nunca medi o tempo. Com um dos meus, eu diria que duas ou três horas, talvez menos. Mas com você... não estou querendo ser vago, apenas não sei.

- Não tem importância - disse David sem hesitar, percebendo uma quase histeria.

Os hormônios são idênticos. Teoricamente, ele deve reagir a mim como a alguém de seu povo. Mas o fator psíquico também influi, e muito.

David sentiu uma profunda ternura. Por mais difícil e assustador que fosse para ele, devia ser ainda pior para Keral. David apenas quebrava um tabu superficial contra o sexo com alguém que tinha órgãos similares aos seus. Um tabu absurdo, de qualquer forma. David pelo menos permaneceria em seu próprio sexo e papel. Keral, depois de anos incalculáveis como um macho - Quantos anos ele tinha? Trezentos ou quatrocentos, talvez mais? - devia mudar. E... isso afligia David ainda mais... fora Keral como um macho que ele aprendera a amar. Keral como fêmea pareceria tão estranho que o amor desapareceria? Seria menos amado?

Keral ainda tremia, com extrema violência. David abraçou-o, e especulou, com uma curiosidade vaga, se estímulos sexuais mais diretos ajudariam ou dificultariam as mudanças psíquicas, ou mesmo as físicas. Podiam atenuar a tensão, ou aumentá-la. Ele não sabia. Só podia adivinhar. Hesitante, beijou Keral, que aceitou o beijo com uma atitude passiva, sem recusar, nem reagir. David fez menção de se afastar, mas as mãos de Keral, firmes, o mantiveram na mesma posição.

Parece uma coisa a sangue-frio, provocá-lo dessa maneira. Como se fosse uma experiência.

David acabou por recuperar o uso da voz:

- Também tenho medo, Keral. Não sei como você vai reagir, nem o que esperar em qualquer momento determinado, ou mesmo como se sente. Se queremos que dê certo, há uma coisa que não devemos ousar, e que é presumir que o outro sabe. Descobri que esse negócio de ler mentes tende a empacar nos momentos mais decisivos. Se queremos que se torne fisicamente possível, ainda mais do jeito que desejamos, devemos ter uma franqueza absoluta um com o outro. Total. Se eu for depressa demais, ou fizer alguma coisa para a qual ainda não está preparado, você deve me deter; e não fique transtornado se eu fizer a mesma coisa com você. Porque não podemos correr o risco de estragar tudo entrando num beco sem saída.

Keral murmurou, com um sorriso jovial:

- Teremos de manter a mente aberta... atentos aos becos sem saída, e nos dar uma chance de recuperar, se entrarmos por algum. Não posso imaginar qualquer coisa que possa fazer que me faça ficar contra você. Seria apenas um erro, não uma catástrofe.

- Foi um erro beijá-lo? Alguns grupos terráqueos não...

- Não, não foi um erro. Talvez um pouco antes de eu estar preparado.

David sentiu o esforço que custava a Keral traduzir tudo isso em palavras, nem ao menos em sua língua, durante aquela tremenda convulsão emocional e física. Refletiu que era uma crueldade impor a Keral o estranho jogo da franqueza total, mas não havia outro meio de passar por aquilo sem causar mágoas profundas um ao outro, sem infligir ferimentos emocionais, que poderiam abrir um abismo entre os dois.

Que diversão poderia haver, enquanto Keral avançava em seu próprio ritmo, na direção de um objetivo inimaginável? Ocorreu a David que só haviam se visto sem roupas nas circunstâncias mais corriqueiras; talvez fosse sensato se acostumarem ao corpo um do outro, evitando o risco de serem surpreendidos por alguma estranheza mais tarde. Keral se mostrou indiferente quando David fez a sugestão, e comentou que seu povo só usava roupas no tempo mais frio, ou entre estranhos. Despiu-se sem qualquer insinuação de timidez ou erotismo. David sentiu-se um pouco menos indiferente; para ele, a nudez era um grau a mais de intimidade, e tinha conotações sexuais. Aguçou sua percepção de Keral, e de si mesmo. Ficou contente por terem visto o corpo um do outro em condições mais impessoais, mas experimentou a sensação de que contemplava Keral pela primeira vez. Keral era alto, alguns centímetros a mais do que ele, e seu corpo esguio e frágil era pálido, quase sem pêlos, exceto por uma penugem prateada na virilha. Apesar do tamanho reduzido dos seios, não era difícil pensar neles como femininos, mesmo agora. Em comparação com Keral, David sentia-se tosco, rude, quase um macho de macaco.

Ficaram se contemplando por algum tempo, tentando ajustar seus eus ao novo tempo e lugar; depois, com um pequeno estremecimento, Keral estendeu os braços. Ficaram abraçados, tomando cuidado para evitar um contato maior. David descobriu-se a rir, e tratou de parar, consciente dos perigos da histeria. Em vez disso, tentou beijar Keral de novo, e houve agora uma resposta, hesitante, ainda muito tímida. Ao se separarem, Keral murmurou:

- Nem mesmo sei... que formas de amor existem entre seu povo... costumeiras ou permitidas.

David sentiu uma onda de desejo repentina, quase vertiginosa, e resistiu ao impulso de comprimir Keral contra seu corpo, forçando alguma reação... o ritmo lento era uma tortura, os avanços e recuos tantalizantes... pois sabia que seria o pior dos becos sem saída. Desconfiava que o estupro seria fisicamente impossível... e mesmo que fosse possível, o que conseguiria com isso, a não ser alienação e angústia? Ele murmurou, com extrema gentileza:

- Tem alguma importância o que é costumeiro? Esta não é uma situação costumeira. Não disse nada que pudesse me fazer virar contra você, e sinto a mesma coisa. Mas devemos dar tempo ao tempo, e ver o que acontece.

E David compreendeu que havia nisso uma abertura crucial. À medida que a delicada polaridade se inclinasse, de macho para fêmea, Keral se tornaria mais tímido, mais passivo. Cabia a David assumir o comando.

Uma mulher experiente pode tomar a dianteira com um homem jovem e tímido. Mas ele nem sequer sabia que experiência Keral tinha, entre seu próprio povo, e de qualquer forma isso seria irrelevante agora. David devia tomar a iniciativa, atento a qualquer reação ou recusa.

Ele puxou Keral para deitar ao seu lado, e continuaram abraçados, trocando beijos gentis, e depois com um crescente fervor. David acabou balbuciando, a voz rouca, um pouco ofegante:

- Não está sendo rápido demais para mim, Keral... mas talvez seja para você.

Ele pegou a mão de Keral, guiou-a devagar. Mas Keral retirou a mão, num gesto brusco.

Por um instante, David sentiu um espasmo de raiva. Nada em Keral o preparara para o que parecia ser um certo recato. Depois, recuperando a sanidade (precisava pensar. Com ou sem ereção violenta, com ou sem desejo, não podia permitir que seu corpo pensasse por ele), compreendeu que Keral tinha medo. Um medo físico, e se esse medo subisse em espiral, fora de controle, estariam perdidos. Todo o corpo de Keral tremia no esforço de ocultar o medo, mas era como uma fragrância. David sentou na cama, afastando-se.

- Está vendo? Ainda mantenho o controle, Keral. Prometi... nada para o qual você não estivesse preparado. Mas gostaria que me dissesse antes da situação se deteriorar; não posso ler sua mente neste momento, pois suas emoções deixam tudo turvo. Portanto, terá de me dizer.

- Não é isso. Eu queria tocá-lo, mas... David teve uma súbita intuição.

- Sou tão diferente de seu povo na fase masculina? Bastante diferente para assustá-lo?

- Nem tanto, embora... acho que é mais forte do que eu imaginava. Sempre tenho... é difícil dizer isso... sempre tenho um pouco de medo nos estágios iniciais. Mas não é apenas isso. Entre nós, há mais mudança contínua, e se você já está assim, receio que mais tarde, quando eu estiver pronto...

Ele tremia muito agora, quase em lágrimas, e David compreendeu tudo subitamente. Quase riu, de tanto que parecia uma piada obscena, mas aninhou Keral em seus braços, apertou-o com firmeza, e murmurou:

- Não se preocupe, Keral. Alcançamos o pleno estágio da excitação muito depressa. Como estou agora... é assim que continuarei quando você estiver pronto. Não mais do que isso.

Claro. Se Keral estava acostumado a uma mudança sexual lenta e gradativa, um crescimento que se prolongava por um período de horas, como podia saber que David, logo no estágio inicial, já alcançara o volume máximo, toda a intensidade possível? Afinal, refletiu David, eram mais estranhos um para o outro do que um ser humano civilizado e um selvagem; e mesmo entre homens de uma única raça e um único planeta, havia incontáveis incompreensões e tabus. Keral acalmou-se, e disse:

- Tem razão. Foi uma tolice ter medo. Eu gostaria de já estar pronto para você.

- Posso esperar.

- Você se esforçava ao máximo para me encontrar. Sinto-me envergonhado.

- Não precisa ficar, Keral.

Ele se mostrava dócil, quase frágil, nos braços de David, que se sentia rude, sem saber que tipo de mudança física ocorreria em Keral.

- Ainda me encontro em território desconhecido, sem um mapa, Keral. Quero ter certeza...

Keral interrompeu-o:

- Compreendo pelo menos isso. Devemos conhecer por completo o que o outro é... mesmo que fôssemos da mesma raça, seria mais sensato, e em nosso caso não há alternativa.

David sentiu-se contente por ser isento e quase clínico outra vez, enquanto Keral, sem pressa, explorava seu corpo com as mãos. O contato era excitante, mas não a um grau perigoso, e a curiosidade mútua relaxou a tensão. Que se danem as teorias e generalidades anatômicas, só me interessa este espécime individual!, pensou David, enquanto tocava Keral, também curioso, embaraço e insegurança se misturando... a estranheza seria suficiente para repugná-lo? Alguma coisa em Keral poderia lhe causar repulsa? Os desenhos que ele fizera depois dos primeiros exames médicos, tanto de Keral quanto de Missy, estavam no fundo de sua mente. Quando os fizera, adivinhara aquilo? Ele tocou na fenda genital dobrada, pensando vagamente que era uma disposição mais sensata do que a exposta de sua espécie humana.

- Prometa que vai me deter, se eu machucá-lo. Keral riu.

- Não creio que possa me machucar. Não sou tão frágil assim. Não o machuquei ao tocá-lo, não é?

David compreendeu que haviam percorrido um longo caminho; Keral podia tocá-lo agora, com facilidade, sem hesitação ou medo. A mudança devia se encontrar num estágio adiantado, o que o encorajou.

Não havia grande estranheza, nada que fosse repulsivo. À frente da fenda, retraído agora como um pequeno botão fechado, ficava o órgão masculino, menor que o de um bebê humano. David disse a si mesmo que devia, de alguma forma, aprender a aceitar o macho em Keral, e tocou no órgão, gentilmente, o que arrancou um murmúrio de prazer de Keral. Por trás, de uma cor mais intensa, intumescido, ficava o órgão feminino. David, perdendo a isenção, tremeu um pouco ao senti-lo vibrar, sob seu contato. Fechou os olhos, retirou a mão, com receio outra vez de se precipitar. Um tremor violento sacudiu o corpo de Keral, que o puxou.

- Não tenho certeza... não é a mesma coisa... mas não consigo suportar... - murmurou ele, com alguma veemência. - Alguma coisa tem de mudar... está me matando...

Deveríamos ter previsto isso, pensou David, desolado. Um impasse. Haviam chegado àquele ponto, e agora não podiam seguir adiante, os tabus culturais tão fortes que nenhum dos dois era capaz de rompê-los. Era preciso efetuar a tentativa antes que perdesse a coragem, mas sentia-se paralisado pelo medo do que uma iniciativa prematura poderia acarretar. Ele postou-se com todo cuidado por cima de Keral, que fechou os olhos, segurou seus ombros, ainda tremendo, e murmurou:

- Não sei... tenho medo...

O próprio David sentia-se tão assustado que quase murchava. Oh, Deus, por que tentamos... tínhamos tanta coisa... Ele se descobriu a soluçar, inerte, desesperado, estendido sobre o peito de Keral. Jamais experimentara tanto terror. Keral também chorava. Estavam abraçados, apertando-se num pânico cego. Finalmente, David conseguiu balbuciar:

- O que vamos fazer? O que vamos fazer?

Pouco a pouco, Keral acalmou-se. Apertou David ainda mais, os lábios comprimindo seus cabelos. Pela primeira vez naquela noite, David teve consciência da maciez daquela pele, tão feminina ao contato, enquanto Keral sussurrava em sua própria língua, palavras que David não podia compreender, embora soubesse que eram de ternura. Ao final, ele disse:

- David, meu querido, deveríamos ter esperado por isso. Estávamos ambos... muito tensos, muito conscientes. Talvez o amor precise de um pouco de loucura. Lembra o que disse sobre becos sem saída?

- Quer dizer que é irremediável?

- Não, claro que não. Um erro, não uma catástrofe. Estávamos assustados, e... inibidos.

Ele se ergueu, beijou David, afastou os cabelos de seus olhos.

- Deite aqui, David, junto de mim. Estávamos ambos com pressa. Como se precisássemos ter certeza um do outro imediatamente.

- Sinto-me envergonhado...

- Eu me sentia antes, mas é mais fácil para mim por saber que você também está assustado. Parecia tão seguro de si, e me perguntei se tinha alguma noção do quanto era difícil para mim...

- Eu apenas fingia - murmurou David. - E queria também lhe incutir alguma confiança.

Lentamente, os dois se acalmaram, deitados assim, captando o ritmo do coração um do outro. Já haviam ficado assim antes, recordou David, mas não com a mesma franqueza mútua. O afeto e a segurança funcionaram. David teve outra ereção, vibrando com a consciência do corpo de Keral ao seu lado, quente e confiante. Keral sorriu, puxou-o para mais perto.

- Não tenha medo. Podemos tentar.

A princípio, David não foi capaz de encontrar a entrada, e Keral teve de ajudá-lo. Ele. Ela. Essa não! O medo de novo, o constrangimento momentâneo; Keral prendendo a respiração de repente; a tensão que quase murchou David outra vez. E, depois, ele percebeu que já consumara a penetração. Experimentou uma estranha vertigem, resistiu ao instinto de se mexer, e sussurrou, controlando-se:

- Keral...

- Está tudo bem...

Mas era apenas um fio de voz.

- Não... tem medo?

- Um pouco, mas... continue, quero que você...

Foi difícil, meio sem jeito, e por algum tempo eles se agitaram, um contra o outro, numa renovação espasmódica de medo e raiva; e Keral soluçou de novo, numa derradeira erupção de pânico, tentando se desvencilhar. E foi nesse instante que descobriram que podiam se ajustar um ao outro. David experimentou um alívio tão profundo que poderia desatar em lágrimas. Descansou por um minuto, inclinou-se para beijar o rosto molhado por baixo do seu, e logo a ânsia e o desejo prevaleceram, aumentando com a diminuição da tensão e medo, que antes pareciam intermináveis.

Apertaram-se com força, em movimentos quase desvairados, descobrindo os ritmos um do outro. Keral ainda chorava, só que agora não era de medo. E no instante seguinte acabou para David, numa explosão de luz, que terminou em blecaute.

Ao recuperar o fôlego, ele se inclinou, beijou Keral; e depois, em pesar pelas lágrimas, enlaçou-o, e sussurrou:

- Não... não há nada por que chorar... não é? Machuquei você tanto assim? Tentei...

- Não, você não me machucou. Tinha medo de que alguma coisa saísse errada de novo, e agora... agora, quero chorar para rir, para voar.

Os dois ficaram em silêncio, ouvindo o sussurro da neve nas janelas. David ainda não compreendera o quanto a estranheza se desvanecera, mas... aquele ainda era Keral. Ainda não conseguia pensar em Keral como uma mulher; e, no entanto... Ora, por que se preocupar com rótulos? Keral era Keral; e ele o amava; e não se importava; e adormeceu nos braços de Keral sem se importar.

 

Um DIa, ao final do inverno, Jason entrou no laboratório, e anunciou:

- David, Regis Hastur acaba de me enviar uma mensagem: quer a presença de todos nós no castelo. Não explicou por quê. Quer ir comigo?

David pegou seu casaco mais grosso - darkovano, pois os que usara em outros planetas seriam trajes de verão ali - e os dois saíram. Jason perguntou:

- Como vão as coisas?

- Muito trabalho, como sempre. Eu estava certo, por falar nisso; todos os outros telepatas no novo grupo têm olhos cinzas, e todos os do Comyn e darkovanos possuem as ondas cerebrais típicas, não tão pronunciadas quanto nos chiai, mas o mesmo padrão, numa escala menor.

Jason riu.

- Alguma vez viu tanto ruivos juntos?

- Não. Li uma ocasião uma história antiga... da pré-história... chamada A Liga dos Ruivos, uma história tola sobre alguma coisa que era um crime naquele tempo. Só me lembro direito de um parágrafo... e pensei a respeito esta manhã: "Espero nunca mais ter de ver algo assim de novo. Do norte, sul, leste e oeste, todos os homens que tinham alguma tonalidade vermelha nos cabelos vieram. Eu nunca poderia imaginar que houvesse tantos no país. Todas as tonalidades de vermelho estavam representadas, claros, escuros, matizados com outras cores, até o autêntico vermelho flamejante".

- Pois parece que você pertence ao grupo - comentou Jason. David riu.

- Coincidência. Quando eu era garoto, na Terra, os cabelos ruivos não eram associados a qualquer coisa, exceto um temperamento explosivo. Eu também o tinha... antes de compreender que as pessoas ao meu redor não podiam adivinhar meus pensamentos, como eu podia saber os delas. Mas como você entrou nessa, Jason? Não tem cabelos vermelhos.

- Eu tinha, quando era pequeno. Minha mãe era darkovana, mas morreu antes de eu ter idade suficiente para me lembrar dela. Quanto a ser telepata, nunca desconfiei que era, até que, cercado por vocês, comecei a captar coisas. Onde está Keral?

Haviam chegado aos portões do espaçoporto, passaram, e começaram a subir pelas ruas Íngremes que levavam ao velho castelo, no penhasco por cima.

- Ele saiu para dar uma volta pelos campos - respondeu David. - As ruas e prédios deixam-no sufocado.

- Foi sozinho?

- Não. Conner o acompanhou, com alguns guardas... eu tinha um trabalho que queria concluir.

- Keral não parece tão... tão feminino quanto Missy. Noto que você ainda se refere como ele.

David deu de ombros.

- Ainda penso em Keral assim. Talvez Missy tenha mudado tanto porque imitava os humanos. Muito do comportamento que pensamos ser vinculado ao sexo é na verdade apenas cultural.

- Houve uma ocasião em que amei uma Amazona Livre - comentou Jason. - Sob muitos aspectos, era como amar um homem, mais perto do final do que no início.

- Já ouvi Linnea falar das Amazonas Livres, mas pensei que elas só amavam outras mulheres.

- Claro que não. Mas as Amazonas fazem o que querem, e nenhum homem mantém uma delas por muito tempo. Kyla ficou comigo por três anos, o que foi bastante tempo para uma mulher sem criança. Depois, ela se cansou da cidade, mas meu trabalho era aqui, e decidi permanecer. Não sei se agi certo ou errado, mas sou médico, e para o melhor ou para o pior...

Jason calou-se, e David disse:

- Eu compreendo.

- O trabalho que realizamos agora, um estudo confiável dos telepatas e seus poderes, vai fazer toda a diferença para Darkover -continuou Jason. - Já foi tentado antes, mas sem resultados concretos, pois os darkovanos não queriam cooperar. Agora o fazem por sua livre e espontânea vontade.

- Não tanto por livre e espontânea vontade, mais pela necessidade - ressaltou David. - Creio que ver Keral e ouvir sobre seu povo os assustaram; podem ver a si mesmos. A taxa de natalidade deles também está caindo. De uma forma preocupante. Nenhuma das mulheres aqui tem mais que um filho. Quanto aos homens... David deu de ombros, antes de acrescentar:

- Uns poucos, como Regis, concluíram que tinham o dever de deixar herdeiros; os outros nunca pensaram nisso.

- Um caso de reprodução natural reprimida pelas normas? - indagou Jason.

- Não creio. É mais um caso de... sensibilidade. Depois que você se habitua a esse tipo de contato, nada menos parece real. E também não há muitos cônjuges em potencial. Ainda por cima, os casamentos também são promovidos por razões políticas, e as mulheres são criadas em isolamento, vendo apenas os parentes próximos. Ninguém jamais pensou em tentar a reprodução para os genes telepáticos deliberadamente, e a conseqüência é que metade das famílias de telepatas ficaram diluídas, a tal ponto que o dom mal aparece. As outras se tornaram tão endogâmicas que alguns genes recessivos aberrantes começam a aflorar.

- É verdade- concordou Jason. - Mas talvez alguma coisa resulte desta reunião.

Enquanto ele falava, os dois passaram pelos portões altos do velho castelo. Os guardas de serviço olharam com alguma estranheza para os dois médicos terráqueos, em seus uniformes brancos, mas deixaram-nos passar. Um servidor informou-os que Lorde Hastur dera ordens para levá-los à Câmara do Conselho, e conduziu-os através dos corredores, que eram, como na maioria dos prédios darkovanos, de pedra clara translúcida, com luzes coloridas por trás.

David já sabia que o chamado transmitido por Regis, para que todos os telepatas conhecidos em Darkover se apresentassem em Thendara, resultara na presença de duzentos e trinta homens e mulheres adultos. Cerca de outros cem não puderam vir, porque o tempo tornara os caminhos intransponíveis, por extrema velhice ou doença, e umas poucas mulheres por se encontrarem em estado adiantado de gravidez. Não era muito para uma população que se elevava a uns poucos milhões... uma estimativa, pois nunca fora realizado um censo em Darkover. David estava a par de outras estimativas, de que nos velhos tempos um em cada cem habitantes possuía dons telepáticos mensuráveis.

Regis não os deixou em dúvida por muito tempo sobre o motivo para reuni-los em Thendara. Depois de expor alguns problemas já conhecidos, e pedir-lhes que cooperassem no programa promovido pelos terráqueos para medir seus dons, e treinar os latentes, ele inter-rompeu o discurso formal, e desceu da plataforma alta.

David mantivera contatos suficientes com ele para saber de sua total dedicação, mas nunca antes pensara em Regis como um líder. Sempre lhe parecera antes um jovem quieto, um tanto tímido, guindado com evidente relutância a uma posição de poder, que não lhe agradava. Regis não era muito alto, nem mesmo para um darkovano... uma raça que nunca fora alta. Tinha cerca de 1,75m. As feições eram delicadas, e os cabelos brancos como a neve lhe proporcionavam uma extrema distinção, mas não era o tipo de homem que costumava atrair todas as atenções. Agora, porém, enquanto ele falava, David sentiu que irradiava alguma força, acima e além de sua personalidade.

- Nosso mundo está nas mãos de destruidores, e nem mesmo posso lhes recomendar que procurem ajuda dos terráqueos - disse ele. - Pode ser melhor morrer à nossa maneira do que viver de acordo com os costumes deles. Somos únicos entre os cem mil mundos habitados, e devemos continuar assim.

"Nossos costumes e governos tradicionais foram suspensos, e nada surgiu para ocupar seu lugar. O Império Terráqueo mostra-se mais do que ansioso para preencher esse vazio.

"O Comyn e o Conselho do Comyn, nossa hierarquia antiga, foram dissolvidos. Peço a todos que se juntem a mim para formar um novo conselho, e será um conselho que não apenas vai governar Darkover, mas também liderar os esforços para a restauração de nosso planeta.

"Por centenas de anos, aqueles entre vocês que, como eu, nasceram na casta e famílias de telepatas mantiveram a tradição de usar seus dons para o bem de nosso mundo, como um todo. Sacrificaram-se e viveram em isolamento, trabalhando com as redes e matrizes para nos proporcionarem a pouca tecnologia de que dispomos. Também me dirijo aos que nasceram em outras castas e famílias, e foram considerados párias, aberrações, seres fantásticos, ao mesmo tempo reverenciados e temidos.

"Peço a todos vocês que se unam, o Comyn e o plebeu, o camponês e o lorde, a Amazona Livre e o forasteiro, o homem do vale e o homem da montanha. Peço que se empenhem ainda mais por nosso povo. E, por enquanto, peço que emprestem seus dons aos terráqueos, em troca da ajuda de que precisamos para reconstruir nosso mundo. Mas, em compensação, garanto que nunca nos tornaremos apenas mais um dos mundos sob a égide do Império. Talvez possamos ser o fermento em sua massa de pão. Talvez, ao descobrirem que não podem nos reformar à sua imagem, eles decidam que devem se reformar para serem mais parecidos conosco.

"Todos vocês vão me conceder sua ajuda?"

Regis calou-se, e por um momento não houve resposta.

Nem era necessário. Foi como uma tempestade visível na sala, com todos os homens e mulheres se levantando fisicamente... e David descobriu-se a acompanhá-los, na súbita e incrível união.

Havia diferenças superficiais; haveria até mesmo hostilidades. Mas, naquele instante, todos estavam unidos; e David sabia que nunca, em toda a história do universo conhecido, alguém liderara um grupo tão unido, com tanta determinação.

Não imaginava como enfrentariam os problemas com que seu mundo se defrontava. Mas era capaz de apostar que os resolveriam... e teve certeza, naquele momento ofuscante de revelação, que seria parte da solução.

O inverno passava, dia a dia, devagar, enquanto Andrea Closson estudava seus planos, escutava seus espiões, e preparava o ato final para deixar aquele planeta indefeso. Uma ou outra vez ela refletiu que não poderia ter planejado melhor, todos os telepatas restantes reunidos no Castelo Comyn; era como se, em alguma corrida de lemingües, todos se precipitassem para ficar em suas mãos.

Os poucos que sobravam, velhos, insignificantes, doentes, ou acuados em distritos isolados, não contavam; nem mesmo as poucas mulheres jovens e grávidas restantes. Mesmo assim, sem compreender, ela se sentia aliviada, pois tinha um preconceito irracional contra matar uma mulher com criança, e isso eliminava a necessidade. Regis Hastur, que fora o alvo principal quando seus assassinos ainda se encontravam no planeta, tinha outra amante, segundo os rumores que circulavam na cidade. Andrea nunca vira Regis Hastur, mas sentia uma vaga admiração por ele; afinal, era um homem que frustrara inúmeros ataques. Pois que ele desfrutasse em paz o tempo que ainda lhe restava e a seu povo. Os remanescentes depois de seu último ato seriam bem poucos, e fracos demais para reconstituírem sua espécie; em outra geração, não seriam mais que uma lembrança, e uns poucos espécimes isolados.

Operando através de alguns agentes (como na maioria das Cidades Comerciais, podia-se comprar qualquer coisa no principal espaçoporto de Darkover, desde que se tivesse o dinheiro para pagar), ela conseguiu obter os materiais de que precisava.

Uma noite, quase à entrada da primavera, um dos seus espiões lhe transmitiu a notícia por que esperava:

- É um dos seus Festivais especiais, e todos eles, inclusive os telepatas que trouxeram do mundo exterior para o tal projeto do serviço médico terráqueo... uns dez ou quinze, a esta altura... estarão reunidos no castelo nessa noite. Parece que é uma espécie de baile... para celebrar o degelo da primavera, ou as primeiras folhas verdes, ou algo similar. Não entendo como podem realizar um baile nesta época do ano, com todos os problemas que enfrentam, mas acho que nunca serei capaz de compreender os darkovanos.

- Até que ponto essa informação é confiável? - indagou Andrea.

- É tão concreta quanto um registro em computador - assegurou o espião. - Um dos homens no projeto dos telepatas é um grande jogador. Posso soltar sua língua, se ele ganha... e cuido para que ganhe sempre.

- Não seja tolo - disse Andrea, friamente. - Se ele é um telepata, provavelmente já sabe que você o tem espionado.

- Quer ele saiba ou não, o fato é que não se importa. Não sei o que você está tramando, ou conspirando, se alguma coisa, e assim ele não pode descobrir nada em minha mente. Portanto, não tem problema se ele sabe que não tenho boas intenções. Não sou telepata, nem preciso ser para saber que o tal de Rondo também não gosta muito deles. É bem provável que ele sinta a maior satisfação por saber que relato tudo a alguém que não os ama.

O mal já estava feito; mas Andrea duvidava que alguém, àquela altura, fosse se dar ao trabalho de descobrir quem se encontrava por trás de um único espião. Além do mais, duvidava que alguém nascido humano fosse capaz de ler seus pensamentos. Muito menos depois de tantos anos. (Na floresta, quando uma Amazona Livre de cabelos castanhos avermelhados a observara enterrando o vírus negro, ela sentira uma insinuação de contato, mas descartara com desdém. E, no final das contas, nada fora feito, embora uma breve verificação revelasse que a Amazona Livre correra à procura de alguma vidente local, para pedir um contra-amuleto. O que se podia esperar dos telepatas darkovanos?)

E se lessem sua mente tarde demais... ora, seria tarde demais. Andrea nunca deixara aflorar à superfície de sua mente que não se dera ao trabalho de planejar, depois daquele ato final, sua própria fuga. (Para quê?)

Sua desculpa era simples. Não havia mais ninguém a quem pudesse confiar seus planos, ou os telepatas captariam tudo da mente da outra pessoa.

Portanto, seria um ato pessoal, e outra raça morreria. Como a sua.

Sem saber, David reiterou as palavras do espião de Andrea:

- Não sei por que, com todos os seus problemas, eles perdem tempo com um baile esta noite.

Jason soltou uma risada.

- Vai compreender depois de passar mais alguns anos em Darkover.

Ambos presumiam agora, pensou David, que ele estava comprometido com aquele mundo pelo resto de sua vida.

- Dançar é uma coisa muito importante aqui - acrescentou Jason. - Junte três darkovanos em qualquer lugar, e eles promovem um baile.

- É uma coisa antiga - comentou Regis. - Creio que remonta à pré-história, talvez decorrendo dos festivais populares nos eclipses, não sei com certeza. E é uma atividade exclusivamente humana. Há um paralelo para todas as outras coisas humanas em algum animal inferior, até mesmo a música... os passarinhos cantam, e até alguns insetos fazem padrões artísticos. Mas um poema antigo enuncia que apenas os homens riem, apenas os homens choram, e apenas os homens dançam.

Ele se mostrava esplendoroso num traje azul e prateado, cheio de pedras preciosas; Linnea, ao seu lado, se achava coberta por flores rosas, algumas genuínas, outras artificiais. Sorriu gentilmente para David, e perguntou a Keral:

- Os chieri dançam?

- Dançam, sim, nas florestas... ao sol ou luar... em êxtase. David, sensível como sempre aos ânimos do chieri, pensou que o próprio Keral se encontrava à beira do êxtase. Embora normalmente evitasse multidões, Keral vestira naquela noite seu próprio traje - uma túnica comprida, de material tremeluzente, que ele dizia ser feito de teia de aranha - e decidira acompanhá-los. A Mudança em Keral se tornara completa agora, e para David ele parecia mais adorável do que Missy jamais fora; e naquela noite parecia irradiar uma claridade positiva, uma luz visível, que vibrava ao seu redor.

O salão de baile era iluminado por mil tochas, ocupado por uma multidão de homens e mulheres em trajes coloridos, os cabelos em todas as tonalidades de vermelho. Havia uma música suave, num ritmo bem marcado. Mas Regis virou as costas a tudo isso, deu alguns passos pelo jardim escuro. Contemplou o céu, com as quatro luas flutuando. Tornou a olhar ao redor, fixou por um instante os cabelos de luar de Keral. O rosto uma mera mancha no escuro, Conner murmurou nesse instante:

- Acabo de ter uma daqueles visões de tempo desfocado. Tome cuidado, Regis, pois alguma coisa sairá errada esta noite. Aflorou de repente, e pude sentir, mas não consegui controlar para determinar o que é.

- Não sinto nada, mas também a precognição não é um talento Hastur - respondeu Regis. - Como foi, Conner?

A testa de Conner se franziu no esforço para recordar.

- Não dá para definir direito. Não tenho certeza, mas... pareciam fogos de artifício.

- Talvez seja o passado que você sente, não o futuro. Este castelo tem uma história longa, às vezes sangrenta, meu caro amigo.

- É possível.

Mas Conner continuou preocupado, e pegou a mão de Missy, no escuro. Regis observou os dois se afastarem. A beleza fantástica de Missy não voltara, mas haveria tempo para isso, pelo que Keral dissera sobre os chieri em geral. Muito mais tempo do que Conner dispunha. Várias vidas. Só que Conner sentia-se contente pelo que ela era agora.

David, entrando no salão de baile iluminado, parou num lado - a dança era uma coisa que pouco conhecia - e observou os complexos passos, casais, grupos, longas filas, de vez em quando um solo de alguém. Era como observar o vôo de pássaros multicoloridos. Regis e Linnea emergiram por um instante do grupo, enlaçados, dançando, e o amor entre os dois era palpável. Não que a dança contivesse alguma conotação de erotismo, mas havia uma óbvia essência de sexualidade entre os dois, e ele sentiu que era algo que gostavam de ostentar. David refletiu, um tanto divertido, que desde que chegara a Darkover passara muito tempo pensando sobre as vidas sexuais de outras pessoas. Mas, no final das contas, o sexo era básico, e a maioria das pessoas pensava a respeito durante uma boa parte de seu tempo. Em Darkover - ou pelo menos entre os telepatas - não era possível evitar o assunto nas conversas e encontros casuais. Fazia pouco sentido um homem tratar uma mulher como se não estivesse interessado, quando ela tinha pleno conhecimento de seus sentimentos. Ele se perguntou se fora por isso que os telepatas haviam criado o que parecia ser um código bastante elaborado de polidez quase ritual. Por exemplo, nunca se devia olhar deliberadamente para uma moça; o que talvez fosse uma maneira de enfatizar: "Sou uma criatura sexual, e reajo a você, mas aguardo sua resposta e consentimento". Tal atitude, pelo que ele sabia dos costumes darkovanos em geral, filtrara-se para os grupos que não eram telepáticos, e seria curioso descobrir as racionalizações desenvolvidas para explicar isso. David sabia que os duelos eram comuns em Darkover... para compensar a incapacidade de ocultar hostilidade? Uma reação à empatia angustiante? Ou uma maneira de afirmar a masculinidade?

Keral pegou a mão de David, que retribuiu com um aperto, na percepção incessante de reação e empatia. Keral parecia ainda mais alegre do que o habitual naquela noite, os olhos cinzas faiscando em divertimento, a cor mais intensa do que David jamais vira, com uma radiância ostensiva. Seus cabelos sedosos, caindo até os ombros, pareciam esvoaçar sob as brisas mais leves.

- Você parece feliz, Keral - comentou David, compreendendo no mesmo instante que as palavras eram inadequadas.

- E é assim que me sinto. Lembra o que eu disse, na primeira vez em que nos amamos... quero rir, cantar, voar?

- Claro que lembro; como poderia esquecer?

- Pois me sinto ainda mais feliz agora. Não me pergunte por que, não agora, não aqui. Eu lhe direi muito em breve. Mas agora... aqui...

Ele ergueu a cabeça, ficou imóvel, na atitude de quem escutava com total atenção. A impressão era de que ouvia algum som, alguma voz saindo de lugar nenhum, e se sentia extasiado. Depois, Keral ergueu os braços, oscilou por um instante, como uma haste de flor sob a brisa invisível da música, e começou a dançar.

David, observando, sentiu que a música definhava para o silêncio, ou talvez não mais a ouvisse. Só tinha consciência de Keral, primeiro flutuando como uma folha levada pelas correntes de ar, e depois girando numa vertiginosa dança de êxtase. Foi a frágil e sensível Linnea quem absorveu o contágio primeiro, saindo a girar na esteira de Keral; e logo as outras pessoas, em grupos de duas e três, às dezenas, entraram na dança, como uma revoada de aves, girando, subindo, descendo. Conner, toda a sua percepção arrebatada pela dança, divisou, à beira da consciência, Conner se lançar aos movimentos graciosos, Desideria também, em passos delicados, como se estivesse flutuando; e chegou a sua vez, o ritmo o dominou por completo, e arrastou-o para o fluxo de movimentos de seu povo.

Subir e descer, pairar, girar, um turbilhão, sob as ondas invisíveis do mundo, a força da primavera no coração e alma. As correntes do luar, um ímã invisível que os atraía, e levou todos a passarem pelas enormes portas, saírem para o jardim frio, envolto pelas brumas. David, os pés se movimentando no mesmo ritmo dos outros, sentiu o ar frio em seu rosto, e numa fração de segundo, de semiconsciência breve e espantada, perguntou-se o que estamos jazendo; e logo o pensamento dissolveu-se na atração do luar, percepções partilhadas, o movimento vertiginoso de pura alegria. Era vagamente como nadar debaixo d'água, sob uma pressão indefinida, arrastado pela correnteza. David entregou-se, admirando fragmentos de beleza em lampejos de consciência: os cabelos de Keral prateados pelo luar, o rosto extasiado inclinado para o alto, quase que totalmente inumano; Missy, oscilando como uma folha ao vento; Regis, em movimentos lentos, de olhos fechados, parecendo um pouco com uma flecha em vôo. E depois David foi arrebatado para longe de seus amigos, até o centro do turbilhão de êxtase, cada vez mais rápido,

para um vórtice inexorável. Era como um sonho, mas seu corpo mantinha-se consciente da alegre liberdade de movimentos, a atração das correntes das luas e do mar, cada lua separada provocando uma reação diferente em seus nervos. Cada estrela no céu luminoso parecia uma coisa viva e separada, exercendo sua própria atração sobre o cérebro de David; e cada um dos dançarinos na multidão era uma força separada, uma sensação independente. Com os sentidos infinitamente expandidos, como se fossem teias de um brilho radiante, quase palpáveis no ar rarefeito e fragrante, David fez contato com cada indivíduo, sentindo sua singularidade, sua alegria especial.

E mais. E mais. As folhas da primavera irrompendo bravas e sem serem vistas por toda a terra devastada. Os musgos se estendendo sob a neve. A vida secreta das aves, aqui no jardim, e nas montanhas e florestas distantes; as rondas ferozes dos homens-gatos, inumanos, através das colinas, tangidos pela fome e o medo; a pressão do fluido vital no sangue dos animais, impelidos por correntes raciais ao acasala-mento; por toda parte, em toda parte, as coisas redespertando, aflorando para a primavera, no renascimento, ao encontro de um mundo novo. Muito longe, nas florestas, David, sem saber como, viu-os de repente, com extrema nitidez, o Povo Antigo, altos e velhos, sábios além da imaginação, com seus olhos cinzas serenos e belos, como os de Keral, os cabelos compridos e soltos, a segurança intemporal em seus corações, resignados à longa queda de seu último outono, mas sentindo a nova primavera e o renascimento, e também girando e dançando, na percepção irresistível do retorno da vida ao mundo.

(E em algum lugar, oculta num ponto de observação, por cima do jardim, Andrea contemplou a loucura da dança no mar de cabeças vermelhas, e também experimentou, através dos sentidos embotados pelos séculos, a vertigem antiga da vida aflorando, da renovação, e ficou paralisada, angustiada, as vibrações antigas percorrendo seu corpo e sua mente, arremetendo contra portas fechadas. Dominada por uma angústia insuportável, numa terrível agonia de recordação e pesar, ela se manteve imóvel, os olhos ardendo numa fúria silenciosa e incontrolável...)

O ritmo envolvente da música invisível, a própria vida do planeta, as correntes magnéticas da primavera, tudo isso os fazia vibrarem, despertando-os para o êxtase total do mundo. Até mesmo os agonizantes sentiram o chamado, a vida empenhada em se restabelecer, através da prevalência de morte e ruína, num planeta que se debatia, desamparado, pela sobrevivência. Foi em Regis que o ímpeto de vida renovada alcançou primeiro a força explosiva da necessidade; numa reação súbita, sem pensar, ele se projetou, ainda ofuscado pela vida palpitante da dança vertiginosa, e puxou a moça ao lado para seus braços. Juntos, arriaram na relva macia.

E logo os demais, desviados da turbilhonante dança da vida, começaram a se unir, também amando para a relva, duas ou três pessoas juntas. David, sentindo as ondas alcançarem um auge, vibrando em sua cabeça, atordoado pela loucura da vida, experimentou a sensação de mãos em seu corpo, sussurros, o lindo rosto de uma moça, cercado por cabelos flamejantes. E sentiu que saía da dança, arriava nos braços da jovem. Quase que não teve consciência dos movimentos, de como aconteceu, mas no que pareceram segundos estavam deitados juntos, nus, sobre a relva enluarada. Era como a loucura, com a fragrância de flores ao redor, os sons de amor ressoando pela noite, beijos, murmúrios, a atração final dos últimos dançarinos para os grupos silenciosos, a intensidade ardorosa, gritos de súplica, ânsia, satisfação. Ele foi dominado, sem saber, impelido por uma necessidade cega e surda, com a força delicada da jovem em seus braços.

E, no entanto... Cego? Surdo? Ou mais consciente do que com todos os seus sentidos comuns, porque não mais os usava? Não eu sozinho, David sabia, pois num instante de tempo suspenso, breve, mas eterno, ele se fundiu na ternura familiar e intensa de Keral, transfigurado pelo amor (Outra vez, de novo, estou aqui com você, amado); e depois, como se o último traje fosse arrancado, deixando-o completamente nu pela primeira vez em sua vida, ele se fundiu sem hesitação, com absoluta intensidade, na vida pulsante ao seu redor.

Sentiu, como nunca antes experimentara qualquer contato, os lábios macios de Linnea tocarem em seu rosto (embora soubesse, além da vista, que ela se encontrava no outro lado do jardim, nos braços de Danilo); sentiu outra vez a ternura de Keral, tão conhecida e eternamente desconhecida; entrou num contato momentâneo com Jason, enquanto as mãos do amigo apertavam com força os seios de uma jovem desconhecida; e fez um contato arrebatado com Regis (imagens, que se turvavam no instante mesmo em que afloravam, de espadas se chocando, a luta violenta e sensual de oponentes empenhados num abraço mais fervoroso que o de amantes). Por um momento sufocante e libertador, David sentiu o que seria deixar desaparecer seu último resquício de masculinidade - Keral tivera de enfrentar essa mistura de dor, alegria e humilhação? - enquanto sua mente e seu corpo fundiam-se no de uma jovem desconhecida, e fitava os olhos de Regis no próprio instante da rendição e consumação. Depois, David retornou a seu corpo, a moça por baixo macia, dócil, suplicante. E não havia mais nada... e havia tudo... por um instante de cegueira... eterno... calor... explosão... ondas se desvanecendo lentamente... estrelas que giravam dentro e fora, um mundo escurecendo para o silêncio.

Três segundos, ou três horas depois - nenhum deles jamais soube - David aflorou devagar, como se subisse de um mergulho muito profundo. O corpo macio da moça ainda se aninhava em seus braços, os cabelos sedosos cobrindo os olhos de David. Ele afagou-os, beijou-os, antes de afastá-los de seu rosto, ergueu-se, apoiado num cotovelo, e contemplou o rosto surpreso e risonho de Desideria. Houve um instante de choque e espanto, uma instantânea redisposição da percepção, e depois ressurgiu a lembrança do que os unira, David riu. Que importância tinha? Idade e mesmo sexo, naquele momento, eram irrelevantes. Ele viu o retorno da dúvida e pesar no rosto da velha; riu de novo, beijou-a, viu o medo se dissipar. E Desideria sussurrou:

- As histórias antigas diziam que tudo o que se faz sob a união das quatro luas é a vontade dos deuses, além do que os homens poderiam desejar. Mas nunca entendi até agora o que isso significava.

David sorriu, pegou as mãos de Desideria. Ao redor, soavam murmúrios suaves de percepções voltando, separadas, comuns. David estendeu a mão para suas roupas, pois fazia frio, mesmo na primavera, e sentia-se como um cachorro que ergue as orelhas a algum som que nenhum homem pode escutar. Havia paz e sossego no jardim, mas uma pressão de medo percorreu seus nervos. Ele olhou ao redor, com súbita apreensão, projetou-se para Conner.

David? Não sei, não gosto disso... fogos de artifício... pela primeira vez em minha vida curado e feliz... nunca mais vaguearei sozinho, mas mesmo aqui, aqui...

Keral soltou um grito súbito, uma mistura de terror e alegria, enquanto um clarão avançava pelo jardim, e oito ou dez vultos altos surgiram do nada, cabelos prateados esvoaçando, olhos enormes e solenes, que pareciam irradiar sua própria luz. Correu para eles, em passos firmes, através dos casais ainda estendidos na relva, foi envolvido por sucessivos abraços, enquanto David, aturdido, os reconhecia, sabia quem eram, os chieri sobreviventes, surgindo - como as lendas diziam que aconteceria - do nada, vindo ver o seu mais jovem e amado no momento de felicidade, retornando à vida e esperança. Por todo o jardim, os movimentos do mundo noturno comum começavam a voltar, murmúrios de espanto, alegria e divertimento, risos, um propósito partilhado, muito profundo e real para as palavras. David compreendeu, num nível muito profundo para explicar (teria sido Regis quem projetara o pensamento na rede invisível?), que nada jamais tornaria a separar por completo os telepatas de Darkover. Podiam ter objetivos separados na superfície, mas uma perda ou extravio potencial de anos acabara de ser recuperada; e como acontecera com os chieri, eram agora um povo só.

Keral ainda ria e murmurava na alegria do reencontro. E, no entanto, por trás de tudo, começava a aflorar uma corrente de medo, como um cheiro inequívoco de perigo. David sentiu os pêlos do corpo se arrepiarem. Danilo, empurrando Linnea para o lado, gentilmente, saltou como um gato para empunhar sua espada; nenhum perigo visível, apenas instinto. Conner levantou-se de um pulo.

E depois, inconfundível, foi Rondo quem gritou - ou não houve palavras? - um brado de indignação e angústia:

Não! Contei os planos porque queria me livrar deste mundo, mas eles nunca me fizeram mal, e não quero ser cúmplice de assassinato...

E surgiu um vulto correndo, parou de repente, começou a subir, cada vez mais, elevando-se pelo ar, como um demônio voador, cercado por um clarão crescente. O vulto pegou alguma coisa, com um estranho gesto, em pleno ar, uma coisa reluzente, e a subida continuou...

Centenas de metros acima do castelo, a coisa explodiu, como uma enorme chuva de fogos de artifício; houve um grito silencioso de incrível dor, a angústia da morte, e um enorme vazio se fez no mundo, no lugar em que antes existiam os pensamentos, a voz e a mente de Rondo. E depois veio o som da explosão, abafado pela distância, bem longe no espaço, inofensiva, mas ainda assim sacudiu o castelo, reverberou... e se extinguiu.

No instante seguinte, no meio dos chieri, cercada por sua claridade, apareceu uma mulher, usando um traje do Império, debatendo-se contra a força invisível que a arrancara de seu esconderijo, trouxera-a para a luz; a expressão de raiva saciada e triunfante em seu rosto deu lugar ao medo, espanto e incredulidade.

Pensei que todos vocês haviam morrido. Não sabia que algum sobrevivera para voltar a este mundo, morrer aqui.

- Não. - A voz da pessoa mais velha entre os chieri, uma mulher alta e bela, intemporal, além de tudo o que o homem podia imaginar, era como uma reverberação no mundo. - Continuamos a viver, embora não por muito tempo. Mas não podemos dispensar a morte pela morte; devemos dispensar a vida pela morte...

- O nome dela é Andrea, - anunciou a Amazona Livre alta e ruiva, emergindo da escuridão do jardim, - e eu sabia que ela destruiria a todos nós, se pudesse. Mas não pensei...

- Não - repetiu a velha chieri, com infinito pesar e gentileza, dirigindo-se a Andrea. - Nós a reconhecemos, mesmo depois de tantos e tantos anos, Narzainye kui, filha da Floresta Amarela, que nos abandonou em desespero, durante o tempo de nossa busca. E a lamentamos como morta há muito tempo, amada...

O rosto da mulher se contraiu em agonia e pesar.

- E gerei uma criança em um dos mundos exteriores, de um estranho cujo nome nunca soube... uma criança concebida na loucura, cujo rosto jamais vi, abandonada para morrer, em desvario... pensando que todos vocês já haviam desaparecido...

- Os longos anos de loucura - sussurrou Keral.

Ele se adiantou, pegou o rosto de Andrea entre as mãos, numa infinita ternura. Ela abriu os olhos, fitou-o, contemplou a radiância da beleza excepcional, o poder incrível que havia em Keral, todo o potencial de vida.

- Nem tudo acabou - acrescentou Keral. - Vivo... e pode ver o que aconteceu comigo. Talvez até a criança que você gerou também viva em algum lugar. Somos difíceis de matar...

Os olhos de Keral procuraram Missy na multidão por um instante, numa especulação óbvia em suas feições.

- Mas nossa raça vive, Andrea, nessas pessoas; eu já sabia, mesmo quando criança, que nosso sangue sobrevivia nelas. E como pode ver...

A beleza etérea de Keral pareceu tremeluzir, e pela primeira (e única) vez, David percebeu-o como a garota delicada que o julgara a princípio, e teve um reconhecimento instantâneo da verdade... que os chieri só exibiam o auge da Mudança, e só assumiam a plena forma feminina (Missy apenas a imitava) na gravidez. E agora ele compreendeu a exuberância da alegria de Keral, que arrebatara a todos... e os salvara; e provavelmente também salvara um mundo.

E depois, com o treinamento médico prevalecendo, esquecido que ainda se encontrava seminu, David adiantou-se para amparar Andrea em seus braços, no momento em que a idosa chieri resvalava para o chão, sem sentidos.

 

A MULHER que por séculos usara o nome de Andrea Closson sentava numa sacada no alto do Castelo Comyn, em Thendara, olhando para as distantes colinas verdes. O ponto sem volta fora quase alcançado; e, no entanto, como dissera a si mesma antes, o mundo podia ser salvo, mas exigiria recursos que não eram disponíveis em Darkover.

Exceto por ela.

Não se poupara. Tudo o que aprendera nos últimos duzentos anos para destruir mundos fora empenhado para salvar aquele; e cada centavo da imensa fortuna que acumulara, durante todo esse tempo, fora posta à disposição dos que se esforçavam, em todas as frentes, para restaurar Darkover ao que era antes. Aquele mundo era o seu, e lhe fora milagrosamente devolvido quando soubera que uns poucos de seu povo sobreviviam, e que seu sangue sobrevivia nos próprios telepatas darkovanos que tanto desprezara. E agora, enquanto aguardavam o nascimento da criança de Keral, ela sabia que sua raça persistiria, mesmo que não fosse numa linhagem pura.

Os chieri não podiam sobreviver por si mesmos. Aquele nascimento não era suficiente para restabelecer a força de seu povo. Que alcançara, sem qualquer dúvida, o ponto sem volta. Era certo que Missy nunca geraria uma criança; ficara avariada demais nas centenas de anos de luta pela sobrevivência, abandonada. Andrea se confrontava com a sua própria culpa, mas era como se tivesse acontecido com outra pessoa; o que é feito na loucura não pode ser lembrado em sanidade sem uma loucura ainda pior. Ainda assim, Keral vivia, e a criança de Keral viveria, traria um novo vigor e novos poderes à raça dos telepatas.

- E isso não é tudo - declarou David, saindo para a sacada.

Ele possuía uma estranha capacidade de acompanhar os pensamentos de Andrea, que aprendera a amá-lo, à sua maneira estranha e oculta. Jason, Regis e Linnea vieram com ele, e David acrescentou:

- Os telepatas aqui, pelo menos, não vão desaparecer. Pode entender isso? Quantas são, Jason?

- Há cento e uma mulheres grávidas no Conselho dos Telepatas. E pelo menos dezenove com gêmeos, e três com trigêmeos. O que garante uma nova geração mais vigorosa.

Ele olhou para Linnea, que riu, e pegou a mão de Regis. Ela se encontrava em adiantado estado de gestação, quase no momento do parto, e continuava tão bela quanto antes.

- Vamos trabalhar com o Império - anunciou Regis. - Foi decidido na reunião do Conselho. Os darkovanos não podem se isolar por completo de uma civilização galática. Treinaremos telepatas para as comunicações das espaçonaves. Sabemos agora que o contato com telepatas despertará a telepatia latente naqueles que parecem não possuí-la. Espero que se espalhe de Darkover para toda a galáxia conhecida. E aqueles que nascem com isso não ficarão insanos. Assim, em mais algumas gerações, haverá uma quantidade considerável de telepatas em todos os planetas. Vamos trazê-los para cá, e treiná-los para usar seus poderes em sanidade e felicidade. Em troca por isso, temos uma garantia de que Darkover permanecerá sempre o mundo que conhecemos e amamos, o mundo de que precisamos para nossa sanidade. Nunca será apenas outro mundo numa série de mundos idênticos.

David ficou imóvel por um instante, como se ouvisse uma voz distante, e depois se afastou. Linnea, que pareceu ouvir também, sorriu, apertou a mão de Regis, e murmurou:

- Não vai demorar para mim também.

Regis foi sentar ao lado de Andrea. Ela envelhecera bastante nos longos meses de luta nas florestas e montanhas, empenhada em salvar o mundo arruinado, dando instruções explícitas sobre como restaurar o solo à vida, que árvores plantar para se obter uma cobertura vegetal mais rápida contra a erosão, o que fazer em cada aspecto da complexa ecologia. Mas seu rosto vincado era sereno e gentil, e ela voltara a parecer uma chieri, inspirando reverência e amor.

- O que vai fazer agora...

Regis hesitou por um instante, e depois chamou-a pelo seu nome chieri. Ela sorriu.

- Aguardo apenas o nascimento da criança de Keral; depois, voltarei para minha floresta, para meu povo, pelos últimos cuere que me forem concedidos. Mas passarei meus últimos anos contente, sabendo que se minhas folhas caírem, haverá novos botões na primavera que nunca verei.

Regis pegou sua mão. Continuaram sentados assim, olhando para as colinas cobertas de brumas. Linnea disse:

- Você renunciou a tanto... Andrea tornou a sorrir.

- Não preciso de uma fortuna agora.

- Eu gostaria que tivesse voltado antes - murmurou Regis, com um pesar sincero.

- Talvez fosse antes do tempo. - A voz calma de Andrea era especulativa. - De qualquer forma, eu não sabia mais onde ficava meu mundo...

- Aqueles que a contrataram... o que farão agora? Quando descobrirem que Darkover não cairá em suas garras...

- O que eles podem fazer? Para me pressionarem, ou mesmo para recuperarem o dinheiro que me deram, teriam de admitir que me contrataram, e a destruição de mundos é ilegal. Creio que apenas admitirão sua derrota. Mas agora o Império Terráqueo sabe exatamente como eles operam, e será muito mais difícil destruir outros mundos.

Houve um movimento por trás, e Keral, pálido e adorável, com David em sua esteira, saiu para a sacada. Aproximaram-se de Andrea. Keral pegou uma coisa pequena que se debatia nos braços de David, e estendeu-a para Andrea, murmurando:

- Não por amor, mas porque significa mais para você do que para qualquer outra pessoa. Veja um mundo renascer.

Andrea inclinou-se, tocou nos cabelos de Keral.

- Isso mesmo, - sussurrou ela, - por amor.

David levou Keral para um lado, ficaram enlaçados, contemplando o mundo verde. Ambos ainda se sentiam aturdidos, não precisavam olhar para ver o bebê pequeno, estranho e belo, com uma penugem vermelha na cabeça, o primeiro de uma segunda linhagem de telepatas com sangue chieri. Era a contribuição dos dois para um mundo renascido. Tudo começara com uma criança nos braços de Keral, a complexa sucessão de emoções e experiências. David refletiu que sempre teriam uma dívida com Melora e seu filho. Por cima do ombro de Keral, seus olhos se encontraram com os de Regis, e ele sorriu.

Andrea recostou-se na cadeira, fechou os olhos, e continuou a ver, sem a visão, um mundo verde e crescendo, a vida aflorando do solo, as folhas caindo das árvores, só para retornar em ciclos incessantes, rios, vales, montanhas, fervilhando de vida, e mais além a vida interminável das florestas silenciosas de Darkover, sob as luas. Muito longe, como uma canção distante, ela ouviu a música de seu povo, nas florestas das folhas caindo, onde esperavam sua chegada. O tempo passaria por eles, e não voltariam, mas cairiam como folhas. Enquanto Darkover vivesse, porém, nunca haveriam de morrer por completo, e mais tarde até o próprio Império conservaria a lembrança dos chieri, com sua beleza e a dádiva eterna de transpor o abismo entre homem e humanidade... e essa dádiva era o amor.

Ela sorriu, com os olhos fechados, sentindo a vida forte e a sensibilidade já desabrochando da criança em seus braços, ouvindo a música distante, que subia e descia como o vento nas folhas, e logo se desvaneceu para o silêncio, como uma brisa se extinguindo na floresta.

Só quando a criança de Keral começou a se debater em seus braços frios é que os outros descobriram que Andrea Closson, chieri, filha da Floresta Amarela, destruidora e redentora de mundos, voltara para casa apenas para morrer.

 

                                                                                            Marion Z. Bradely  

 

                      

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