Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O MONGE NEGRO
Andrey Vasilievich Kovrin, Magister, esgotara-se a trabalhar e tinha os nervos desarranjados. Não fizera qualquer esforço para se tratar com regularidade; só uma vez, por acaso, enquanto bebia uma garrafa de vinho, conversara com um amigo médico que o aconselhara a ir para o campo durante a Primavera e o Verão. Entretanto, recebeu uma carta de Tania Pesotzky, convidando-o a passar uma temporada em casa do pai dela, em Borisovka. E resolveu partir.
Mas, primeiro (estava-se em Abril), dirigiu-se às suas propriedades, em Kovrinka, onde nascera, e ali ficou três semanas sozinho; só quando veio o bom tempo é que encetou a viagem para casa do seu antigo tutor e segundo primo, Pesotzky, célebre horticultor russo. De Kovrinka a Borisovka, a distância era de umas setenta verstas e, na confortável caleche, por aquele tempo primaveril, a jornada prometia ser agradável.
A casa de Borisovka era grande, tendo na frontaria uma fila de colunas adornadas com estátuas de leões, cujo gesso estava a cair aos pedaços. À porta encontrava-se um criado de libré. O parque antigo, tristonho e severo, desenhado à inglesa, com uma versta de comprido, estendia-se da casa até ao rio, e terminava ali numa margem argilosa e alcantilada, coberta de pinheiros, cujas raízes descarnadas lembravam garras aduncas. Lá em baixo cintilava o rio deserto; no céu, as narcejas voavam em círculos, soltando pios melancólicos. Numa palavra, tudo convidava o visitante a sentar-se e a escrever uma balada. Porém os jardins e os pomares que, juntamente com a horta, ocupavam uma extensão de oitenta hectares, inspiravam sentimentos totalmente diversos. Mesmo sob o mau tempo eram risonhos e inspiravam alegria. Kovrin nunca vira tão belas rosas, tantos lírios e camélias, túlipas tão raras, uma infinidade de flores de toda a espécie e dos mais variados tons, desde o branco puro ao negro da fuligem. Uma riqueza floral que constituía uma novidade para Kovrin. Estava-se apenas no início da Primavera e as maiores raridades encontravam-se ainda abrigadas por vidros. No entanto muitas floriam já nas alamedas e nos canteiros, a ponto de constituírem um reino de delicados coloridos. E tudo isto era ainda mais belo às primeiras horas da manhã, quando as gotas de orvalho cintilavam sobre as folhas e corolas.
Na infância, a parte decorativa do jardim, classificada com desprezo por Pesotzky como «inútil», produzira em Kovrin uma impressão fabulosa. Que milagres da arte, que monstruosidades estudadas, que escárnios da natureza! Espaldares feitos com árvores de fruto, uma pereira em pirâmide, do feitio dum choupo, carvalhos e tílias arredondados, casas formadas por macieiras, arcos, monogramas, candelabros, até mesmo a data de 1862 feita em ameixieiras, para comemorar o ano em que Pesotzky começara a dedicar-se à jardinagem. Havia ali árvores imponentes e simétricas, de troncos erectos como os das palmeiras, mas que eram, afinal, groselhas. Porém o que mais animava o jardim, emprestando-lhe um tom festivo, era o movimento constante dos jardineiros de Pesotzky. Desde a madrugada até altas horas, junto das árvores, dos arbustos, nas alamedas, sobre os canteiros, afadigavam-se os homens, quais abelhas diligentes, com os carrinhos de mão, as enxadas e os regadores.
Kovrin chegou a Borisovka às nove da noite, indo encontrar Tania e o pai num grande susto. A noite clara e cheia de estrelas fazia prever geada, e o chefe dos jardineiros, Yvan Karlich, fora à cidade, não havendo portanto ninguém em quem se pudesse confiar. À ceia só se falou na ameaça da geada e ficou decidido que Tania não iria deitar-se a fim de inspeccionar os jardins à uma hora, para ver se estava tudo em ordem, ao passo que Yegor Semionovich se levantaria às três horas, ou antes ainda.
Kovrin ficou junto de Tania todo o serão e depois da meia-noite acompanhou-a ao jardim. Pairava já no ar um forte cheiro a queimado. No pomar grande, chamado o «pomar comercial», que todos os anos rendia a Yegor Semionovich milhares de rublos, adejava, junto ao chão uma espessa nuvem de fumo acre que iria envolver as folhas novas e salvar as plantas. As árvores estavam dispostas em linha recta como filas de soldados; e esta regularidade estudada, bem como a altura uniforme das casas, tornava o jardim monótono e até enfadonho. Kovrin e Tania caminhavam ao longo das alamedas, observando as fogueiras de esterco, palha e lixo; mas era raro avistarem os trabalhadores, que andavam pelo meio do fumo como sombras. Só as ameixieiras e algumas raras macieiras estavam já em flor, mas todo o jardim se encontrava envolvido pelo fumo e só quando chegaram aos alfobres é que Kovrin conseguiu respirar.
- Lembro-me de que, em pequeno, o fumo fazia-me espirrar - declarou ele, encolhendo os ombros. - Mas até hoje ainda não consegui descobrir como é que ele salva as plantas da geada.
- O fumo é um bom substituto quando não há nuvens - respondeu Tania.
- Mas para que querem vocês as nuvens?
- Com o tempo enevoado não há geada pela manhã.
- Ah, sim? - exclamou Kovrin.
Riu-se e pegou na mão de Tania. A cara da rapariga, muito séria e apreensiva; as suas sobrancelhas negras e espessas; a gola direita do casaco que a impedia de mover livremente o pescoço; a saia arregaçada por causa do gelo; toda a sua figura esbelta e aprumada lhe agradava.
«Santo Deus! Como ela cresceu!» - disse consigo.
E declarou em voz alta:
- A última vez que aqui estive eras ainda uma criança. Magra, de pernas compridas, descuidada, de saias curtas, e eu costumava arreliar-te. Que mudança nestes cinco anos!
- Sim, cinco anos! - suspirou Tania. - Muitas coisas mudaram desde então. Diz-me sinceramente, Andrey - pediu ela, fitando-o, prazenteira -, achas que perdeste o à-vontade connosco? Mas para que pergunto eu isto? És um homem, tens uma vida cheia de interesses, possuis... É natural que te sintas estranho. Mas, seja ou não assim, Andriusha, quero que nos consideres como tua família. Temos esse direito.
- Mas é assim que vos considero, Tania!
- Palavra de honra?
- Palavra de honra!
- Admiras-te de termos cá tantos retratos teus. Mas bem sabes como o meu pai te adora, como te quer. És um sábio e não um homem vulgar; tens feito uma carreira brilhante e está firmemente convencido de que isso se deve ao facto de haveres sido educado por ele. Cá por mim não lhe tiro as ilusões. Deixemo-lo acreditar!
Era já madrugada. O céu clareava. A folhagem e as nuvens de fumo começavam a ver-se mais distintamente. O rouxinol cantava e, nos campos, ouvia-se o grito dos esquilos.
- São horas de irmos para a cama; e está a ficar frio! - exclamou Tania. Pegou na mão de Kovrin: - Obrigada por teres vindo, Andriusha. Nós temos uma praga de amigos enfadonhos e, mesmo esses, não são muitos. Aqui reina a jardinagem, jardinagem e nada mais. Troncos, madeiras - ria ao dizer isto -, pêros, maçãs reinetas, florescimento, poda, limpeza. enxertos... Toda a nossa vida gira em volta dos pomares, não sonhamos com outra coisa que não sejam maçãs e pêras. Claro que tudo isto é muito bom e muito útil, mas às vezes não posso impedir-me de suspirar por uma mudança. Lembro-me de quando vinhas visitar-nos ou passar aqui as férias; toda a casa se me afigurava mais alegre e animada, como se alguém houvesse retirado as coberturas à mobília. Era então uma rapariguita, mas já compreendia...
Tania falou durante algum tempo animadamente. Nesta altura veio à ideia de Kovrin que, durante o Verão, podia suceder-lhe ficar preso a esta criaturinha frágil, miúda e faladora, que podia deixar-se atrair, apaixonar-se... naquelas condições que havia de mais natural? Esse pensamento agradou-lhe, divertiu-o e, enquanto se curvava para o rostozinho amável e perturbado, cantarolou o verso de Pushkine:
Onegin, não posso esconder
Que amo Tania a valer...
Quando chegaram a casa, já Yegor Semionovich estava levantado. Kovrin não sentia vontade de dormir; pôs-se a conversar com o velhote e voltou com ele para o jardim. Yegor Semionovich era alto, largo de ombros e forte. Sofria de falta de ar, mas caminhava tão apressadamente, que se tornava difícil acompanhá-lo. A sua expressão era sempre preocupada, irrequieta, e parecia imaginar que tudo se perderia se chegasse um segundo atrasado.
- Olha, irmão, resolve lá tu este mistério! - começou ele, parando para tomar fôlego. - À superfície da terra, como vês, há geada, mas, se erguermos o termómetro uns metros na ponta de um pau, o ar está morno... Porque será isto?
- Confesso que não sei - retorquiu Kovrin, rindo.
- Não!... Não podes saber tudo... O maior cérebro é incapaz de abranger todas as coisas. Continuas interessado pela tua filosofia?
- Sim... Estou a estudar psicologia e filosofia duma maneira geral.
- E não te aborreces?
- Pelo contrário, não poderia viver sem isso.
- Bem, queira Deus... - começou Yegor Semionovich alisando as enormes suíças com ar pensativo. - Bem, queira Deus... Folgo muito com isso, irmão. Folgo muito...
De súbito, pôs-se de ouvido à escuta, fazendo uma carranca medonha, e desatou a correr pela rua fora, desaparecendo entre as árvores no meio duma nuvem de fumo.
- Quem prendeu aqui este cavalo? - clamou uma voz desesperada. - Qual de vocês, seus ladrões, assassinos, se atreveu a prender este cavalo a uma macieira? Meu Deus! Meu Deus! Tudo estragado, arruinado, destruído! O jardim está arruinado! O jardim está destruído! Meu Deus!
Quando voltou para junto de Kovrin trazia estampada no rosto uma expressão de impotência e indignação.
- Que diabo podemos nós fazer com esta maldita gente? - inquiria em voz lamentosa a torcer as mãos. - Stepka trouxe para aqui um carro de estrume na noite passada e prendeu o cavalo a uma macieira... atou as rédeas tão curtas, o idiota, que a casca ficou arrancada em três sítios. Que podemos nós fazer com homens como este? Quando falo com ele, pisca os olhos com um ar estúpido. Merecia ser enforcado!
Finalmente calmo, abraçou Kovrin e beijou-o na face.
- Bem! Queira Deus... Queira Deus... gaguejava. - Estou muito contente, muito contente, por teres vindo. Nem sei dizer quanto me sinto feliz! Obrigado!
Em seguida, com o mesmo ar ansioso e o mesmo passo rápido, deu a volta ao jardim todo, mostrando ao seu antigo pupilo o laranjal, as estufas, os abrigos e duas colmeias que lhe descrevia como sendo uma das maravilhas daquele século.
Enquanto passeavam, o sol rompeu, iluminando o jardim. O ar ficou mais quente. Ao pensar no dia longo e soalheiro que tinha na sua frente, Kovrin lembrou-se de que se estava apenas no princípio de Maio e que o esperava um Verão inteiro de dias compridos, alegres e felizes. Num repente, assaltou-o aquele mesmo sentimento de juvenil satisfação que experimentara em criança, quando brincava naquele mesmo jardim. Então abraçou e beijou ternamente o velhote. Comovidos pelas respectivas recordações, penetraram ambos em casa e tomaram chá pelas velhas chávenas chinesas, acompanhado com leite e biscoitos saborosos. Estes pormenores cada vez faziam lembrar mais a Kovrin a sua infância. O presente risonho e as recordações do passado, tudo se misturava, enchendo o coração de Kovrin duma intensa felicidade.
Esperou que Tania acordasse e, depois de tomar com ela o café da manhã e de dar uma volta pelo jardim, foi para o quarto e começou a trabalhar. Lia com atenção e tomava apontamentos, só erguendo os olhos dos livros quando lhe apetecia olhar lá para fora através da janela aberta ou contemplar as rosas frescas que tinha numa jarra em cima da secretária, ainda molhadas de orvalho. E parecia-lhe que todas as veias do seu corpo estremeciam e pulsavam de alegria.
Kovrin, no entanto, continuava a viver a mesma vida nervosa e inquieta que levava na cidade. Lia, escrevia muito e estudava italiano. E, quando saía a passear, estava sempre com a ideia de voltar ao trabalho. Dormia tão pouco, que todos em casa se admiravam. Se acaso passava pelo sono meia-hora durante o dia, nessa noite não conseguia pregar olho. Mas, apesar dessas noites de insónia, sentia-se satisfeito e activo.
Conversava muito, bebia vinho e fumava charutos caros. Quase todos os dias, raparigas da vizinhança vinham a Borisovka tocar piano e cantar na companhia de Tania. Por vezes aparecia também um rapaz amigo que tocava bem violino. Kovrin escutava, embevecido, a música e o canto, mas ficava depois exausto, a ponto de cerrar os olhos sem querer e deixar descair a cabeça sobre o ombro.
Numa dessas tardes, encontrava-se ele sentado na varanda a ler, enquanto, na sala, Tania, que era soprano, uma das amigas, com uma voz de contralto, e o jovem violinista executavam uma conhecida serenata de Braga. Kovrin prestava atenção aos versos, mas, embora fossem russos, não conseguia perceber-lhes o sentido. Por fim, poisando o livro, escutou atentamente e compreendeu. Uma rapariga, de imaginação exaltada, ouvia à noite, no jardim, uns sons tão harmoniosos e estranhos, tão mágicos e encantadores, que para os simples mortais se tornavam incompreensíveis. Então, arrebatada por eles, voou para o céu. As pálpebras de Kovrin descaíram. Ergueu-se, dominado pela música, e começou a passear na sala, dum lado para o outro, e depois pelo corredor. Quando a melodia terminou, pegou na mão de Tania e saiu com ela para a varanda.
- Hoje, desde manhã cedo - começou ele -, não me sai da ideia uma lenda estranha. Não sei onde a li, ou se a ouvi contar a alguém, mas é uma lenda notável e não muito coerente. Devo mesmo dizer que a não acho assaz clara. Aqui há mil anos, um monge, de hábito negro, andava a vaguear pelo deserto, algures na Síria ou na Arábia... A algumas milhas de distância os pescadores avistaram um monge idêntico a avançar devagarinho sobre a superfície do lago. O segundo monge era uma miragem. Pensa agora em todas as leis da óptica que a lenda, claro, não menciona, e escuta: a primeira miragem deu lugar a outra, esta a uma terceira, e assim, sucessivamente, a imagem do monge negro é sempre reflectida duma camada da atmosfera para a outra. Duma vez foi vista na África, doutra na Espanha, depois na Índia, mais tarde no Pólo Norte. Finalmente ultrapassou os limites da atmosfera terrena, sem nunca encontrar condições que a fizessem desaparecer. Talvez hoje esteja visível no planeta Marte, ou na constelação do Cruzeiro do Sul. Mas o ponto principal, o que constituí a verdadeira essência da lenda, consiste na profecia de que, precisamente mil anos depois de o monge ter ido para o deserto, a miragem será de novo projectada na atmosfera da Terra e apresentar-se-á no mundo dos homens. Parece que o prazo dos mil anos está agora a expirar... Segundo a lenda, é provável que o monge apareça hoje ou amanhã...
- Que história estranha! - murmurou Tania, a quem a lenda não agradara.
- Mas o mais espantoso - prosseguiu Kovrin, rindo - é que não consigo recordar-me de que maneira isto agora me veio à ideia. Tê-la-ia lido? Ou ouvido contar? Ou fui eu que sonhei com o monge negro? Não me lembro. Mas a história interessa-me. Durante todo o dia não tenho pensado noutra coisa.
Soltando a mão de Tania, que voltou para junto dos convidados, saiu de casa e pôs-se a passear, absorto nos seus pensamentos, em volta dos canteiros. O sol estava a pôr-se. As flores, acabadas de regar, exalavam um cheiro húmido e irritante. Dentro de casa, a música recomeçara e, à distância, o violino assemelhava-se a uma voz humana. Sempre a puxar pela memória, numa tentativa de se recordar onde ouvira a lenda, Kovrin atravessou lentamente o parque e, sem saber para onde ia, dirigiu-se à margem do rio.
Começou a descer pelo atalho que serpenteava no meio das raízes descarnadas, assustando as narcejas e perturbando os patos. Os últimos raios do sol brilhavam sobre os pinheiros negros, porém a superfície das águas estava já totalmente coberta de escuridão. Kovrin atravessou o rio. Na sua frente estendia-se um prado em que ondulava centeio novo. Naquela enorme extensão não se avistava vivalma ou qualquer habitação humana. Parecia que aquele atalho conduzia directamente à região misteriosa e inexplorada onde o sol acabava de se pôr: onde brilhava ainda, imóvel e majestosa, a refracção dos seus raios.
«Que vastidão! Que paz! Que liberdade! - pensava Kovrin avançando pelo atalho. - Parece que o mundo inteiro me observa de qualquer lugar oculto, à espera que eu lhe compreenda o sentido.»
Um sopro de ar agitou o centeio e a brisa leve da noite afagou-lhe a cabeça descoberta. Dali a um minuto, o vento soprou de novo, desta vez com mais força. O centeio ondulou e lá atrás, ouviu-se o sussurrar monótono dos pinheiros. Kovrin deteve-se, surpreendido. No horizonte, lembrando um ciclone ou uma tromba de água, ergueu-se uma coluna negra que subia da terra para o céu. Os seus contornos permaneciam indefinidos; no entanto, via-se logo que não estava imóvel, antes avançava com incrível rapidez na direcção de Kovrin; e, à medida que se aproximava, ia-se tornando cada vez mais pequena. Sem se aperceber disso, Kovrin deu um passo para o lado, a fim de lhe abrir caminho. Um monge de hábito negro, com os cabelos e as sobrancelhas brancas, de mãos cruzadas no peito, passou na sua frente, a uns vinte metros de distância. Os seus pés descalços não poisavam no chão. Olhou, olhou para trás, fez um aceno de cabeça a Kovrin e sorriu-lhe amavelmente, mas ao mesmo tempo com uma certa astúcia. O rosto do velho era magro e pálido. Depois de haver passado, começou de novo a crescer, transpôs o rio, foi bater sem ruído na margem de argila e nos pinheiros, e sumiu-se no meio deles, desaparecendo como o fumo.
- Ora vêem? - gaguejou Kovrin. - Afinal de contas a lenda era verídica!
Sem tentar sequer explicar este estranho fenómeno, satisfeito com o facto de haver contemplado tão de perto e com tanta clareza, não só a veste negra, mas ainda o rosto e os olhos do monge, Kovrin regressou a casa, agradavelmente agitado.
Os visitantes passeavam agora calmamente no jardim. Dentro da sala, a música prosseguia. Sendo assim, só ele é que divisara o Monge Negro. Experimentava um forte desejo de contar o que acabava de ver a Tania e a Yegor Semionovich. Receava, porém, que estes considerassem aquilo uma alucinação da sua parte, e decidiu calar-se. Pôs-se a rir, cantou, dançou a mazurca, sentindo-se muito bem disposto. Os convidados de Tania notaram-lhe no rosto uma curiosa máscara de êxtase, de inspiração, e acharam-no deveras interessante.
No fim do jantar, depois de os visitantes se terem ido embora, Kovrin retirou-se para o quarto e deitou-se no sofá. Queria pensar no monge. Mas dali a momentos entrou Tania.
- Olha, Andriusha, se quiseres podes ler os artigos do pai. São esplêndidos - declarou ela. - Ele escreve muito bem.
- Não haja dúvida! - exclamou Yegor Semionovich com um sorriso contrafeito. - Não lhe dês ouvidos, pelo amor de Deus!... Ou então lê-os, se queres dormir depressa. São um óptimo soporífero.
- Cá por mim acho-os magníficos - exclamou Tania, muito convencida. - Lê-os, Andriusha, e convence o pai a escrever mais vezes. Julgo-o capaz de produzir um tratado completo de jardinagem.
Yegor Semionovich riu-se, corou e murmurou as frases convencionais usadas pelos autores envergonhados. Por fim concedeu:
- Se estás realmente disposto a lê-los, começa por estes do Gauché e pelos artigos russos - gaguejou, segurando nos jornais com as mãos trémulas. - De contrário, não perceberás nada. Antes de leres as minhas respostas, tens de saber a quem as dirijo. Mas isto não te deve interessar... Que estupidez! São horas de ir para a cama.
Tania saiu. Yegor Semionovich sentou-se na ponta do sofá e soltou um fundo suspiro.
- Ah, meu irmão!... - começou depois de um prolongado silêncio. - Como vês, meu caro Magister, escrevo artigos, tomo parte em exposições, às vezes ganho medalhas... O Pesotzky, diz-se por aí, produz maçãs do tamanho de cabeças... O Pesotzky faz uma fortuna com os pomares... Numa palavra: «o Kochubey é rico e glorioso». Mas qual será o fim de tudo isto, pergunto eu! Os meu jardins, disso não pode haver dúvida, são maravilhosos, modelares... Não são propriamente jardins, mas antes uma instituição de grande importância política, um passo em frente na nova era da agricultura e da indústria na Rússia... Mas qual o seu fim? Qual o seu objectivo?
- A resposta é fácil.
- Não falo nesse sentido. O que eu queria saber é o que acontecerá a tudo isto depois da minha morte? Tal como as coisas estão, nada disto pode manter-se sem mim, nem sequer durante um mês. O segredo não reside no facto de o jardim ser grande, no número de trabalhadores, mas antes no amor que eu lhe dedico, compreendes? Amo isto, talvez mais do que a mim próprio. Vê bem! Trabalho de manhã até à noite. Faço tudo com as minhas próprias mãos. Os enxertos, as podas, as plantações, eu é que faço tudo. Quando alguém me ajuda, sinto ciúmes e acabo por me irritar a ponto de ser grosseiro. O segredo de tudo está no amor, nos olhos atentos do dono, nas mãos do dono, na sensação que experimento, quando vou dar um passeio ou visito alguém durante meia-hora, de que deixei o coração para trás e não estou em mim... Receio constantemente que alguma coisa tenha acontecido aos pomares. Imagina agora que eu morro amanhã: quem tomará conta de tudo isto? Quem fará o trabalho? O chefe dos jardineiros? Os trabalhadores? Ora a minha maior preocupação, actualmente, não é a lebre, nem o escaravelho, nem a geada. São as mãos estranhas.
- E a Tania? - inquiriu, rindo, Kovrin. - Será ela mais perigosa do que uma lebre? A Tania ama e compreende o seu trabalho.
- Sim. A Tania ama-o e compreende. Se, depois da minha morte, ela ficasse com isto, nada mais eu poderia desejar. Mas suponha-mos... Deus nos defenda!... que ela se casa? - Yegor Semionovich falava em voz baixa e fitava Kovrin com olhares assustados. - Aí é que está o busílis! Pode casar-se, ter filhos e então não lhe restará tempo para cuidar do jardim. Isto só por si já seria mau. Mas o meu maior receio é que venha a casar-se com um perdulário, esganado por dinheiro, que arrende o jardim a mercenários, e lá se vai tudo por água abaixo logo no primeiro ano! Num negócio desta espécie, uma mulher é uma praga!
Yegor Semionovich suspirou e ficou calado uns momentos.
- Podes chamar a isto egoísmo. Mas eu não desejaria que a Tania se casasse. Tenho receio! Tu já viste esse peralvilho que aí vem com o violino fazer uma barulheira medonha. Bem sei que a Tania nunca consentiria em casar com ele. Mas não posso enxergar o sujeito... Enfim, meu amigo. Sou um velho casmurro... sei isso muito bem!
Yegor Semionovich ergueu-se e pôs-se a passear muito excitado dum lado para o outro. Via-se claramente que tinha algo de muito importante para dizer, mas não conseguia resolver-se.
- Estimo-te de mais para não te falar com toda a franqueza - declarou por fim, enterrando as mãos nos bolsos. - Em todas as questões delicadas só digo o que penso e odeio as mistificações. Confesso, portanto, com toda a sinceridade, que és tu o único homem que não me importaria de ver casado com a Tania. És esperto, tens bom coração e não serias capaz de arruinar o meu trabalho. Mais ainda, amo-te como a um filho... tenho orgulho em ti. Por isso, se tu e a Tania acabarem por... arranjar uma espécie de romance... eu sentir-me-ei muito satisfeito, muito feliz. Digo-te isto cara a cara, sem vergonha, como é próprio de todo o ser honesto.
Kovrin sorriu. Yegor Semionovich abriu a porta e ia a sair, mas parou ainda na soleira, para acrescentar:
- Se tu e a Tania tivessem um filho, eu poderia fazer dele um horticultor. Mas isto é uma pura fantasia. Boas noites!
Uma vez só, Kovrin instalou-se confortavelmente e pegou nos artigos do velhote. O primeiro intitulava-se: «Cultura intermediária», o segundo, «Algumas palavras em resposta às observações do senhor Z. acerca do tratamento do solo num jardim recente», o terceiro «Ainda acerca dos enxertos». Os restantes eram do mesmo teor. Mas tudo aquilo respirava inquietação e irritabilidade doentia. Até mesmo um escrito com o pacífico título de «Macieiras russas» exalava mau génio. Yegor Semionovich começava com estas palavras: «Audi alteram partem» e terminava: «Sapienti sat»; no meio destas eruditas citações, irrompia uma torrente de palavras azedas dirigidas contra «a sábia ignorância dos nossos horticultores encartados que observam a natureza do alto das suas cátedras académicas» e contra M. Gauché «cuja fama se baseia na admiração dos profanos e dos dilettanti». Deparou-se-lhe finalmente uma tirada despropositada e pouco sincera em que o autor lamentava o facto de já não ser legal usar-se o chicote para com os camponeses que são apanhados a roubar fruta e a maltratar as árvores.
«O trabalho dele é útil, salutar e empolgante - pensou Kovrin -, no entanto, nestes panfletos nada encontramos senão mau génio e guerra aberta. Calculo que o mesmo se passa em toda a parte; os especialistas, seja qual for o seu campo, mostram-se nervosos e são vítimas desta mesma sensibilidade exacerbada. Provavelmente não pode ser doutra maneira.»
Pensou em Tania, tão encantada com os artigos do pai e depois em Yegor Semionovich. Tania, pequenina, pálida e frágil, com as clavículas salientes, os olhos negros e espertos, sempre muito abertos, que pareciam estar à procura de qualquer coisa. E em Yegor Semionovich com os seus passinhos apressados. Voltou a recordar-se de Tania, do prazer que mostrava em conversar e discutir, acompanhando as frases mais insignificantes com mímica e gestos. Nervosa. Também ela devia ser nervosa no mais alto grau.
Kovrin tentou ler de novo, mas não percebia nada do que vinha nos livros e desistiu. A agradável emoção com que dançara a mazurca e escutara a música continuava a empolgá-lo, fazia surgir-lhe uma montanha de pensamentos. Passou-lhe pela cabeça que, se aquele estranho e misterioso monge só tinha sido visto por ele, é porque devia estar doente, a ponto de sofrer de alucinações. Esta ideia assustou-o, mas em breve a pôs de parte.
Sentou-se no sofá, com a cabeça entre as mãos, tentando dominar a alegria que se apoderara de todo o seu ser; passeou depois para cá e para lá durante um minuto e voltou ao trabalho. Porém os pensamentos que lia nos livros já o não conseguiam satisfazer. Aspirava a qualquer coisa de mais vasto, de infinito, de avassalador. Pela madrugada despiu-se e meteu-se na cama, contrafeito. Reconhecia que era melhor descansar. Quando, finalmente, ouviu Yegor Semionovich que se dirigia para o trabalho no jardim, tocou a campainha e mandou ao criado que lhe trouxesse vinho. Bebeu uns poucos de copos, até começar a sentir a consciência entorpecida e adormeceu.
Yegor Semionovich e Tania questionavam amiudadas vezes e diziam um ao outro coisas muito desagradáveis. Nessa manhã estavam ambos irritados e Tania desatara a chorar e fora para o quarto, não voltando a aparecer nem para o jantar, nem para o chá. A princípio, Yegor Semionovich começou a andar dum lado para o outro, solene e empertigado, como se quisesse dar a entender que, para ele, a ordem e a justiça constituíam o supremo interesse da vida. Mas não conseguiu manter por muito tempo esta atitude. Faltou-lhe a coragem e desatou a passear pelo parque, suspirando:
- Ah, meu Deus!
Ao jantar não comeu nada e por fim, torturado pela consciência, foi bater de mansinho à porta da rapariga, murmurando timidamente:
- Tania! Tania!
Do outro lado respondeu-lhe uma voz fraca, chorosa, mas decidida:
- Deixe-me em paz! Suplico-lhe!
A tristeza do pai e da filha reflectiam-se em toda a casa e até nos trabalhadores do jardim. Kovrin, como de costume, achava-se mergulhado no seu interessante trabalho, mas até ele acabou por se sentir cansado e mal disposto. Resolveu interferir e dissipar aquela nuvem, antes da noite. Foi bater à porta de Tania, e esta mandou-o entrar.
- Vamos! Vamos! Que vergonha! - começou ele num tom brincalhão. Depois, olhando, surpreendido, aquele rosto lacrimejante e aflito, coberto de rosetas vermelhas, disse: - Então isso é a sério? Ora, ora!
- Se soubesses a que ponto ele me torturou! - exclamou ela, enquanto uma onda de lágrimas lhe rebentava dos olhos. - Atormentou-me! - prosseguiu a torcer as mãos. - E eu não tinha dito nada... Só alvitrei que não era necessário mantermos uma chusma de trabalhadores efectivos... uma vez que nos podíamos arranjar com jornaleiros... Bem sabes que os homens não têm feito nada durante toda esta semana... Eu... eu só disse isto e ele pôs-se a berrar comigo e disse-me uma data de coisas... muito ofensivas... insultuosas. E tudo sem razão nenhuma.
- Não faças caso! - declarou Kovrin, afagando-lhe os cabelos. - Tu já barafustaste e tiveste o teu desabafo; agora pronto! Não deves prolongar isto indefinidamente... não está certo... tanto mais que ele gosta de ti a valer, sabes isso muito bem.
- O pai estragou-me a vida - soluçava Tania. - Nunca ouvi outra coisa senão insultos e afrontas. Considera-me a mais na sua própria casa! Deixá-lo. Faço-lhe a vontade! Vou estudar e arranjar emprego como telegrafista!... Ele verá.
- Ora, ora! Acaba lá com isso, Tania. Só te faz mal!... Sois ambos muito exaltados, impulsivos, e nenhum tem razão. Vamos, eu é que vou fazer as pazes!
Kovrin falava num tom suave e persuasivo, mas Tania continuava a chorar e sacudia os ombros, a torcer as mãos como se na verdade estivesse esmagada por uma verdadeira desgraça. Kovrin sentia-se ainda mais apoquentado por verificar a insignificância do motivo deste desgosto. Um simples nada bastava para tornar infeliz durante um dia inteiro aquela criaturinha, ou, segundo ela afirmava, durante toda a vida! E, enquanto tentava consolar Tania, ocorreu-lhe que, a não ser ela e o pai, mais ninguém no mundo o estimava assim como se fizesse parte da família. Se não fossem eles, ter-se-ia sentido órfão em pequeno, passaria a vida inteira sem gozar uma carícia sincera e sem experimentar aquele amor simples e irreflectido que apenas dedicamos aos entes do nosso sangue. E sentia que os seus nervos, esgotados e tensos como cordas de viola, correspondiam aos desta rapariguinha chorosa e trémula. Considerava também que nunca seria capaz de amar uma mulher saudável, de faces rubicundas; sentia-se, porém, atraído pela pequena Tania, pálida, fraca e infeliz.
Dava-lhe prazer contemplar os seus ombros e os seus cabelos. Apertou-lhe a mão e limpou-lhe as lágrimas... Ela por fim deixou de chorar. Mas continuava ainda a queixar-se do pai, da vida insuportável que levava em casa, suplicando a Kovrin que compreendesse bem a sua situação. Depois, pouco a pouco, começou a sorrir e a suspirar, afirmando que Deus a castigara com um génio impossível; por fim, ria alto, chamando tola a si própria, e acabou por sair a correr do quarto.
Passados uns momentos Kovrin dirigiu-se ao jardim. Como se nada se tivesse passado, Yegor Semionovich e Tania passeavam na alameda, ao lado um do outro, comendo pão de centeio com sal. Ambos estavam cheios de fome.
Satisfeito com o seu papel de medianeiro, Kovrin foi para o parque. Quando estava sentado num banco, ouviu o ruído duma carruagem e um riso de mulher. Mais visitas, sem dúvida! As sombras começaram a envolver o jardim. O som de um violino, a voz da mulher, tudo ali chegava tão atenuado pela distância, que mal se ouvia. Recordou-se então do Monge Negro. Em que regiões, em que planetas, pairaria agora aquela absurda ilusão de óptica?
Mal lhe viera à mente a ideia da lenda, evocando a escura aparição no campo de centeio, logo viu surgir detrás das árvores, caminhando sem ruído, um homem de estatura mediana. Trazia a cabeça grisalha a descoberto, vestia de negro e vinha descalço como um mendigo. No seu rosto pálido como o de um cadáver avultavam vários pontos negros. Depois de um cumprimento de cabeça, o desconhecido, talvez um mendigo, dirigiu-se silenciosamente para o banco e sentou-se. Kovrin reconheceu então o Monge Negro. Durante uns momentos olharam um para o outro, Kovrin com ar de espanto, porém o monge com amabilidade e, tal como da primeira vez, mostrando no rosto uma certa ironia.
- Mas tu és uma miragem! - disse Kovrin. - Porque estás aqui e porque vieste sentar-te neste lugar? Isso não está de acordo com a lenda.
- É tudo a mesma coisa - replicou suavemente o monge, voltando-se para Kovrin. - A lenda, a miragem, eu mesmo, tudo são produtos da tua imaginação exaltada. Eu sou um fantasma.
- Isso quer dizer que não existes? - inquiriu Kovrin.
- Pensa o que quiseres - replicou o monge, com um leve sorriso. - Eu existo na tua imaginação, e como a tua imaginação faz parte da Natureza, devo também existir na Natureza.
- A tua fisionomia é distinta e inteligente. Tenho a impressão de que, na realidade, existes há mais de mil anos - observou Kovrin. - Nunca me julguei capaz de imaginar um fenómeno assim. Porque me olhas tão encantado? Simpatizas comigo?
- Sim, és um daqueles entes raros que podem, com justiça, ser chamados eleitos de Deus. Tu serves a eterna verdade. Os teus pensamentos, as tuas intenções, a tua ciência espantosa, toda a tua vida traz o selo da divindade, a marca do céu. Dedicas tudo ao racional e ao belo, ou seja, ao Eterno.
- A eterna verdade, disseste tu. Poderá então a eterna verdade ser acessível e necessária ao homem se não houver vida eterna?
- Há uma vida eterna - afirmou o monge
- Tu acreditas na imortalidade do homem?
- Pois claro. A vós, homens, espera-vos um futuro belo e grandioso. E, quanto mais homens como tu houver no mundo, mais perto se está de alcançar esse futuro. Sem vós, ministros dos altos princípios, que viveis conscientes e livres, a humanidade nada seria. Deixando-a desenvolver pela ordem natural das coisas, ela teria de esperar o fim da história da terra. Mas vós conseguistes adiantá-la no caminho do reino da eterna verdade alguns milhares de anos. E é este o grande serviço que lhe prestais. Vós personificais a bênção que Deus derrama sobre o povo.
- E qual é o objectivo da vida eterna? - inquiriu Kovrin.
- O mesmo de todas as vidas. O prazer. O verdadeiro prazer reside no conhecimento e a vida eterna oferece inúmeras e inexauríveis fontes de conhecimento; foi neste sentido que se disse: «Na casa de meu pai existem várias mansões...»
- Não calculas o prazer que sinto em ouvir-te - declarou Kovrin esfregando as mãos, deliciado.
- Ainda bem.
- Sei, no entanto, que, mal te fores embora, ficarei atormentado por dúvidas acerca da tua realidade. Tu és um fantasma, uma alucinação. Mas significará isso que estou fisicamente doente, que não me encontro no meu estado normal?
- E se assim for? Não te deves preocupar com isso. Estás doente em virtude de haveres trabalhado para além das tuas forças, porque sacrificaste a saúde a uma ideia, e não vem longe o dia em que sacrificarás não só a saúde mas também a vida. Que mais poderás desejar? É a isso que aspiram todas as naturezas nobres e bem dotadas.
- Mas se me encontro de verdade enfermo, como posso acreditar em mim próprio?
- E quem te diz que todos aqueles homens de génio que o mundo admira não tiveram visões? Hoje afirma-se que o génio está muito perto da loucura. As pessoas saudáveis e normais não passam de simples homens, constituem o rebanho. Receios, esgotamentos, estados de degenerescência, tudo isso só pode preocupar aqueles cujos objectivos na vida se resumem ao presente. Esses é que formam o rebanho.
- Os romanos consideravam como seu ideal: mens sana in corpore sano.
- Nem tudo o que afirmavam os gregos e os romanos é verdade. A exaltação, as aspirações, os estados de excitamento, o êxtase, todas estas coisas que são o apanágio dos poetas, dos profetas, dos mártires de ideias fora do comum, são incompatíveis com a vida animal, quero dizer, com a saúde física. Repito: se desejas ser saudável e normal, segue o rebanho.
- Como é estranho que estejas a repetir aquilo mesmo que tenho pensado muitas vezes! - exclamou Kovrin. - Dá a impressão de teres lido os meus mais secretos pensamentos. Mas não falemos de mim. O que entendes tu por estas palavras: verdade eterna?
O monge não respondeu. Kovrin olhou para ele mas não conseguiu distinguir-lhe a cara. As feições haviam-se-lhe desvanecido, a cabeça e os braços tinham desaparecido. O corpo dissolvera-se no banco e no crepúsculo, sumindo-se por completo.
- Lá se foi a alucinação! - exclamou Kovrin, rindo. - Que pena!
Voltou para casa alegre e feliz. O que ouvira ao Monge Negro lisonjeara-lhe, não só o amor-próprio, mas também a alma e todo o seu ser. Considerar-se um eleito, um ministro da eterna verdade, fazer parte do grupo daqueles que apressam em milhares de anos o momento em que a humanidade se tornará digna do reino de Cristo, poupar a essa mesma humanidade milhares de anos de luta, de pecado, de sofrimento, pôr tudo ao serviço duma ideia - juventude, força, saúde -, ser capaz de morrer pelo bem-estar colectivo, que glorioso ideal! E quando a memória lhe fez reviver o passado, uma vida pura e casta, cheia de trabalho, quando pensou no que aprendera e no que ensinara aos outros, concluiu que não havia exagero nas palavras do Monge.
Lá vinha Tania ao seu encontro, no parque. Trazia um vestido diferente do que lhe vira da última vez.
- Estás aí? - gritou ela. - Andávamos à tua procura há que tempos... Mas que aconteceu? - inquiriu a rapariga, surpreendida, vendo a expressão radiosa e exaltada de Kovrin, e reparando-lhe nos olhos cheios de lágrimas. - Que esquisito tu estás, Andriusha!
- Estou contente. Tania - explicou ele, poisando-lhe a mão no ombro. - Estou mais do que contente, estou feliz! Tania, querida Tania! Não sabes quanto te quero! Sinto-me muito satisfeito.
Beijou-lhe com fervor as mãos e prosseguiu:
- Acabo de viver os momentos mais maravilhosos, mais belos, mais estranhos da minha vida... Mas não posso contar-te tudo, de contrário chamar-me-ias louco ou recusar-te-ias a acreditar em mim... Falemos antes de ti! Tania, amo-te desde há muito! Ver-te constantemente, encontrar-te a toda a hora, é-me absolutamente necessário. Não sei como hei-de passar sem ti quando me for embora!
- Ora! - retorquiu Tania rindo. - Vais esquecer-nos dentro de dois dias! Nós somos pessoas insignificantes e tu és um grande homem!
- Vamos falar a sério - disse Kovrin. - Quero levar-te comigo, Tania. Sim? Vens comigo? Queres ser minha?
Tania exclamou:
- O quê! - e tentou rir outra vez. Mas não conseguiu e apareceram-lhe no rosto duas rosetas vermelhas. Respirava com força e pôs-se a andar muito depressa. - Não sabia... Nunca pensei nisto... nunca pensei - declarava apertando as mãos uma na outra, como se estivesse desesperada.
Kovrin, porém, correu atrás dela e, com a mesma expressão deslumbrada e entusiasta, continuou a falar:
- Aspiro a um amor que possa tomar conta de todo o meu ser, e este amor, Tania, só tu mo podes dar. Sou feliz! Tão feliz!
A rapariga sentia-se desorientada, confundida, exausta, e parecia ter envelhecido dez anos de repente. Mas Kovrin achava-a encantadora e exprimiu em voz alta o seu êxtase:
- Como é linda!
Quando ouviu da boca de Kovrin que, além de um romance, iria haver um casamento, Yegor Semionovich pôs-se a andar pelos cantos a fim de esconder a sua agitação. Tremiam-lhe as mãos, tinha o pescoço inchado e vermelho. Deu ordem para atrelarem os cavalos à sua charrete de corrida e saiu. Tania, ao ver a maneira como chicoteava os cavalos e enterrava o boné até às orelhas, percebeu o que ele estava sentindo e fechou-se no quarto a chorar todo o dia.
No pomar, os pêssegos e as ameixas estavam já maduros. O empacotamento e o despacho, para Moscovo, de tão delicada mercadoria exigia muitos cuidados, atenção e actividade. Por causa do calor, todas as árvores tinham de ser regadas; o processo ficava dispendioso em tempo e trabalho. Começaram a aparecer muitas lagartas que Yegor Semionovich e Tania, bem como os trabalhadores, esmagavam com o dedo, com grande escândalo de Kovrin. Tornava-se necessário satisfazer as encomendas do Outono relativas a frutos e a árvores, e por isso mantinha-se uma correspondência muito activa. No auge do trabalho, quando parecia que ninguém poderia dispor dum momento, começou a faina dos campos, deixando o jardim desfalcado em mais de metade dos trabalhadores. Yegor Semionovich, bastante queimado pelo sol, muito irritado e cheio de preocupações, corria dum lado para o outro, ora no jardim, ora nos campos. E gritava a toda a hora que isto dava cabo dele e que iria meter uma baia nos miolos.
Além de tudo, havia a preocupação com o enxoval de Tania, a que os Pesotzky ligavam grande importância. A casa inteira vibrava com o ruído das tesouras, o matraquear das máquinas de costura, o cheiro dos ferros de engomar, as exigências da modista muito nervosa e susceptível. E, para cúmulo, todos os dias chegavam visitas que era preciso divertir, alimentar, alojar durante a noite. No entanto, os trabalhos e as preocupações desvaneciam-se numa névoa de alegria. Tania tinha a impressão de que o amor e a felicidade se haviam apoderado dela, como se desde os catorze anos alimentasse a certeza de que Kovrin não casaria com nenhuma outra mulher. Mantinha-se num permanente estado de espanto, de dúvida, de incerteza para consigo própria. Em determinados momentos, a sua alegria era tamanha, que se julgava capaz de subir aos céus para orar a Deus; noutros, então, recordava-se de que, em Agosto, teria de deixar a casa da sua infância e abandonar o pai. E assustava-a a ideia que lhe vinha, não sabia donde, de ser uma rapariguinha vulgar e insignificante, indigna dum grande homem como Kovrin. Quando a assaltavam tais pensamentos, corria a fechar-se no quarto e ali chorava com amargura durante horas. Quando, porém, estavam presentes as visitas, reparava de súbito que Kovrin era um belo homem e que todas as mulheres o amavam e a invejavam a ela. E em tais momentos o seu coração inflamava-se de orgulho, como se tivesse conquistado o mundo inteiro. Quando ele ousava sorrir para qualquer outra mulher, tremia de ciúmes e fugia para o quarto, novamente em lágrimas. Estes sentimentos haviam-se apossado por completo de Tania. Ajudava maquinalmente o pai, não dava atenção aos jornais, nem às lagartas, nem aos trabalhadores, nem à rapidez com que passava o tempo.
Yegor Semionovich encontrava-se num estado de espírito mais ou menos semelhante. Continuava a trabalhar de manhã à noite, corria pelo jardim e irritava-se a todo o momento, mas sempre mergulhado nas suas mágicas divagações. Dentro daquele corpo robusto digladiavam-se dois homens: um, o verdadeiro Yegor Semionovich, que, ao ouvir o jardineiro, Yvan Karlovich, relatar-lhe qualquer engano ou percalço, perdia a cabeça e arrepelava os cabelos; o outro, o novo Yegor Semionovich, um velho obcecado, que interrompia uma conversa importante para agarrar no ombro do jardineiro, gaguejando:
- Podes dizer o que quiseres, mas quem sai aos seus não degenera. A mãe dele era uma senhora das mais finas e inteligentes. Dava prazer fitar aquela cara, boa, pura, franca como a de um anjo. E também pintava muito bem, escrevia versos, falava cinco línguas e cantava... Coitadinha! Deus a tenha em descanso. Morreu tísica!
O novo Yegor Semionovich suspirava e, após um momento de silêncio, prosseguia:
- Quando ele era um rapazinho que se fazia homem em minha casa, tinha também uma cara assim, boa, franca e pura. A sua aparência, os seus gestos e palavras eram tão suaves e graciosos como os da mãe. E que inteligência! Não é sem razão que alcançou o grau de Magister. Mas vais ver, Ivan Karlovich, vais ver o que ele será dentro de dez anos! Vamos perdê-lo de vista!
Nesta altura, porém, o verdadeiro Yegor Semionovich caía em si, voltava à terra e trovejava:
- Malandros! Tudo queimado, arruinado, destruído! O jardim está arruinado! O jardim está destruído!
Kovrin trabalhava com o antigo entusiasmo e raramente dava pelo rebuliço à sua volta. O amor não fazia mais do que deitar azeite na lume. Depois de cada encontro com Tania, regressava ao quarto, encantado e feliz, e atirava-se aos livros e manuscritos com a mesma paixão com que a beijara e lhe jurara o seu amor. Aquilo que lhe dissera o Monge Negro acerca de ele ser um dos eleitos de Deus, ministro da eterna verdade e do glorioso futuro da humanidade, conferia ao trabalho de Kovrin um significado especial e desusado. Uma ou duas vezes por semana, quer no parque, quer dentro de casa, encontrava-se com o frade, e ambos conversavam durante horas; isto porém não assustava Kovrin, antes o encantava, pois adquirira já a certeza de que tais aparições só visitam os eleitos e os raros que se dedicam ao ministério das ideias.
O dia da Assunção passou despercebido. Seguiu-se a boda realizada com grande pompa segundo o desejo expresso por Yegor Semionovich, quer dizer, com aqueles festejos sem significado algum, mas que duram dois dias. Gastaram-se três mil rublos em comidas e bebidas; porém, no meio da música de baixa categoria, dos brindes ruidosos, dos criados atarefados, dos clamores e da atmosfera pesada das salas, ninguém apreciou os vinhos caros nem os extraordinários hors-d'oeuvre encomendados expressamente em Moscovo.
Numa das longas noites de Inverno, Kovrin encontrava-se na cama a ler um romance francês. A pobre Tania, que todas as noites sofria de dores de cabeça por não estar habituada à vida na cidade, adormecera havia muito e, em sonhos, ia murmurando palavras incoerentes.
O relógio bateu três horas. Kovrin apagou a vela e deitou-se para baixo, ficando contudo muito tempo sem poder dormir em virtude do calor do aposento e do murmurar contínuo de Tania. Às quatro e meia acendeu de novo a vela. O Monge Negro estava sentado numa cadeira, ao lado da cama.
- Boa-noite! - disse o monge. E, depois de um momento de silêncio, inquiriu: - Em que estás agora a pensar?
- Na glória - respondeu Kovrin. - No romance francês que acabo de ler, o herói é um jovem que comete toda a casta de loucuras e morre de paixão pela glória. Quanto a mim, esta paixão afigura-se-me inconcebível.
- És demasiado inteligente. Olhas com indiferença para a fama como para um brinquedo que te não pode interessar.
- Isso é verdade.
- A celebridade não te atrai. Que prazer, que alegria ou conhecimento pode um homem tirar do facto de saber que o seu nome será gravado num monumento, do qual o tempo cedo ou tarde virá a apagar as letras? Sim, felizmente vocês são tantos, que a fraca memória humana vos não pode recordar a todos o nome.
- Claro - retorquiu Kovrin. - Mas para quê recordá-los... Falemos antes de outra coisa. Da felicidade, por exemplo. O que é a felicidade?
Quando o relógio bateu cinco horas estava Kovrin sentado na cama, com os pés poisados no tapete e a cabeça voltada para o monge; dizia:
- Nos tempos antigos houve um homem que teve tanto medo da sua felicidade que, a fim de aplacar os deuses, lhes ofereceu um anel que muito estimava. Já ouviste contar isto? Também eu agora, tal como Polícrates, me sinto um pouco assustado com a minha própria felicidade. De manhã à noite só sinto alegria, que me absorve e abafa todos os outros sentimentos. Não sei o que é a dor, o cansaço ou a aflição. Falo a sério. Começo a desconfiar.
- Porquê? - inquiriu o monge num tom admirado. - Consideras então a alegria um sentimento sobrenatural. Achas que não é o estado normal das coisas? Não! Quanto maior é o grau moral e mental que o homem atinge, mais livre se sente, maior é a satisfação que ele tira da vida. Sócrates, Diógenes, Marco Aurélio conheciam a alegria e não a tristeza. E o apóstolo disse: «Alegra-te extraordinariamente». Alegra-te e sê feliz!
- E se de repente os deuses se encolerizam? - inquiriu Kovrin. - Cá por mim, não me agradava nada que me tirassem a felicidade e me obrigassem a tremer e a morrer de fome.
Tania acordou e olhou para o marido com espanto e terror. Este falava, voltado para a cadeira, a gesticular e a rir. Brilhavam-lhe os olhos e o seu riso tinha um som estranho.
- Andriusha, com quem estás tu a falar? - inquiriu ela agarrando na mão que ele estendia para o monge. - Andriusha, quem está aí?
- Quem? - respondeu Kovrin. - Mas é o monge!... Está ali sentado. - E apontava para o Monge Negro.
- Ali não está ninguém... ninguém, Andriusha! Estás doente!
Tania abraçava o marido, apertava-o contra si, como a querer defendê-lo da aparição, e tapava-lhe os olhos com as mãos.
- Tu estás doente - soluçava ela, toda a tremer. - Desculpa, querido, mas desconfio há muito de que andas um pouco nervoso... Não estás bem... fisicamente, Andriusha!
A tremura dela comunicou-se a Kovrin. Olhou mais uma vez para a cadeira, agora vazia, e sentiu as pernas e os braços subitamente tomados de fraqueza. Começou a vestir-se.
- Não é nada. Tania. Não é nada... - gaguejava ele ainda a tremer. - Não estou lá muito bem... Já é tempo de o confessar.
- Há muito que andava desconfiada... e o meu pai também - confessou ela, tentando dominar os soluços. - Andas constantemente a falar sozinho, a sorrir dum modo tão estranho... e não dormes. Oh, meu Deus, meu Deus, tem pena de nós! - exclamava com terror. - Mas não te assustes, Andriusha, não te assustes... pelo amor de Deus, não te assustes...!
Tania vestiu-se também... Só então, ao olhar para a mulher, Kovrin compreendeu o perigo da sua situação e atingiu o que quisera dizer o Monge Negro nas suas conversas. Convenceu-se absolutamente de que estava doido.
Sem saberem porquê, um e outro vestiram-se e saíram para o vestíbulo, onde encontraram Yegor Semionovich de roupão. Vinha ter com eles, pois acordara com os soluços de Tania.
- Não tenhas medo, Andriusha - dizia Tania, tremendo como se estivesse com febre. - Não se assuste, pai... Isto passa... isto passa.
Kovrin ficara tão agitado, que mal podia falar. Mas tentava levar as coisas a rir. Voltou-se para o sogro e começou:
- Dêem-me os parabéns... parece que estou a ficar maluco. - Mas apenas conseguiu mover os lábios e sorrir amargamente.
Às nove horas vestiram-lhe um casaco, um sobretudo de peles, embrulharam-no num xale e levaram-no ao médico. Começou então a tratar-se.
Chegara de novo o Verão. Por ordem do médico, Kovrin fora para o campo. Recuperara a saúde e não voltara a ver o Monge Negro. Só dependia dele próprio adquirir as forças físicas. Habitava em casa do sogro, bebia muito leite, trabalhava apenas duas horas por dia, não provava vinho e deixara de fumar.
Na tarde do dia 29 de Junho, véspera de Santo Elias, realizou-se lá em casa uma cerimónia religiosa. Quando o padre tomou o turíbulo do incenso das mãos do sacristão e todo o vestíbulo ficou a cheirar a igreja, Kovrin começou a sentir-se fatigado. Saiu para o jardim. Sem reparar nas flores que o rodeavam, começou a andar dum lado para o outro, sentou-se durante um bocado num banco, e depois dirigiu-se ao parque. Desceu a rampa até à margem do rio e quedou-se a olhar interrogativamente a água. Os enormes pinheiros com as suas raízes descarnadas que um ano atrás o tinham visto tão jovem, tão alegre, tão activo, já não murmuravam desta vez. Mantinham-se calados e imóveis, como se o não reconhecessem... Na verdade, com os cabelos cortados curtos, o andar vacilante, o rosto mudado, pálido e de expressão carregada, tão diferente do que era um ano antes, ninguém o reconheceria.
Atravessou o rio. No campo da outra margem, outrora coberto de centeio, viam-se agora regos de aveia seca. O sol escondera-se já e, no horizonte, flamejava uma larga facha vermelha, a anunciar trovoada. Tudo estava calmo. Ao dirigir os olhos para o ponto onde um ano antes vira o Monge Negro, Kovrin quedou-se vinte minutos a observar o clarão do céu. Quando regressou a casa, cansado e insatisfeito, Yegor Semionovich e Tania estavam sentados nos degraus do terraço, a tomar chá. Conversavam um com o outro e, ao verem aproximar-se Kovrin, calaram-se. Mas este percebeu-lhes no rosto que haviam estado a falar a seu respeito.
- São horas de tomares o teu leite - disse Tania para o marido.
- Não, por ora não - retorquiu este, sentando-se no último degrau. - Bebe tu. A mim não me apetece.
Tania trocou um olhar tímido com o pai e tornou, a medo:
- Sabes perfeitamente que o leite te faz bem.
- Oh, muitíssimo bem! - troçou Kovrin. - Dou-te os meu parabéns! Já engordei uma libra desde sexta-feira passada. - Apertou a cabeça nas mãos e lamentou-se, numa voz dolorosa: - Oh, porque é que me curaram? Brometos... descanso, banhos tépidos, uma vigilância aturada sobre tudo o que eu metia à boca, sobre todos os passos que dava... tudo isto ainda acaba por dar comigo em doido! Andava maluco... tinha a mania da grandeza... Mas fora isso sentia-me lúcido, activo e sempre satisfeito... Era um homem interessante e original. Agora tornei-me racional e sólido, como toda a gente. Sou um medíocre e a vida não passa de uma coisa enfadonha. Oh, que cruéis... que cruéis vocês foram para mim! Tinha alucinações... que mal fazia isso aos outros? Que mal, pergunto eu?...
- Só Deus sabe o que ele quer dizer na sua! - suspirou Yegor Semionovich. - Até chega a ser estupidez estar para aqui a ouvir-te!
- Então não oiçam!
A presença de estranhos, sobretudo de Yegor Semionovich, passara a irritar Kovrin; respondia ao sogro num tom seco, frio, mesmo mal-educado e, quando o olhava, não conseguia disfarçar o ódio e o desprezo. Yegor Semionovich sentia-se atrapalhado, e tossia, culposo, não compreendendo que mal poderia ter feito ao genro. Incapaz de perceber o motivo de tamanha reviravolta nas relações de ambos, outrora tão cordiais, Tania abraçava-se ao pai e fitava-o nos olhos, assustada. Via claramente que as relações entre os dois homens pioravam dia a dia, que o pai envelhecera extraordinariamente e que o marido se tornara irritável, caprichoso, excitado e enfadonho. A rapariga deixara de rir, de cantar, não comia nada, passava as noites sem dormir, vivendo sob a ameaça dum terror permanente. Torturava-se a tal ponto, que chegava a ficar inconsciente desde o jantar até à noite. Durante a cerimónia religiosa teve a impressão de que o pai estava a chorar. Agora, ali sentada no terraço, fazia um esforço para não pensar nisso.
- Que felizes foram Buda, Maomet e Shakespeare por não terem tido parentes e médicos solícitos que os curassem do seu êxtase e inspiração! - exclamou Kovrin. - Se Maomet houvesse ingerido brometo de potássio para os nervos, trabalhado apenas duas horas por dia e bebido leite, esse homem extraordinário nada mais teria deixado atrás de si do que o seu cão. Os parentes solícitos e os médicos não fazem outra coisa senão tornar a humanidade estúpida. Tempos virão em que a mediocridade será considerada génio e em que a humanidade acabará por perecer. Se vocês soubessem - prosseguiu Kovrin com petulância -, se vocês soubessem como vos estou grato!...
Sentia uma forte irritação e, para não falar de mais, ergueu-se e entrou em casa. Não fazia vento e lá dentro pairava o cheiro à planta do tabaco e a jalapa. Através da janela do enorme átrio, os raios de luar vinham poisar no chão e sobre o piano. Kovrin recordou-se dos encantos do Verão passado, em que o ar também cheirava a jalapa e a luz da lua entrava pela janela... A fim de reviver a atmosfera de então, entrou no quarto, acendeu um charuto forte e mandou que o criado lhe trouxesse vinho. A verdade, porém, é que o charuto amargava, sabia mal, e o vinho perdera todo o paladar do ano anterior. O que faz a falta de hábito! Depois de um único charuto e de dois goles de vinho sentiu a cabeça andar à roda e teve de tomar brometo de potássio.
Antes de se meterem na cama, Tania disse-lhe:
- Ouve lá! O meu pai adora-te, mas tu estás aborrecido com ele por qualquer motivo e isso mata-o. Repara como envelhece de dia para dia, de hora para hora! Suplico-te, Andriusha, pelo amor de Deus, por alma do teu pai, para meu descanso, vê se te mostras mais amável com ele!
- Não posso, nem quero!
- Mas porquê? - Tania tremia toda. - Explica-me porquê?
- Porque não gosto dele, pronto! - respondeu Kovrin com indiferença, encolhendo os ombros. - Mas o melhor é não falarmos nisso, é teu pai.
- Não posso, não posso perceber - tornou Tania. Apertava a testa com as mãos e fitava um ponto vago. - Nesta casa passa-se qualquer coisa de terrível, de incompreensível. Tu mudaste, Andriusha. Já não és o mesmo... Tu, um homem inteligente e excepcional..., a irritares-te com ninharias. Aborreces-te com pequenas coisas em que noutros tempos nem reparavas. Não... não te zangues - prosseguia ela, beijando-lhe as mãos, assustada com as suas próprias palavras. - És inteligente, bom, honesto. Hás-de ser justo para com o pai. Ele é tão bondoso!
- Ele não é bondoso, mas apenas bem-humorado. Estes tios de opereta, no género do teu pai, bem alimentados, de rosto bonacheirão, são figuras típicas à sua maneira e outrora conseguiam divertir-me, tanto nos romances, nas comédias, como na vida real. Hoje, porém, odeio-os. São egoístas até à medula... O que mais me enoja é a sua auto-suficiência, o seu optimismo estomacal, puramente bovino... ou antes, suíno.
Tania sentou-se na cama e poisou a cabeça no travesseiro.
- Isto é uma tortura! - murmurou. E pelo tom da sua voz notava-se claramente que se sentia extremamente cansada e lhe custava falar. - Desde o Inverno, nem um momento só de sossego... É horrível, meu Deus! Sofro tanto...
- Pois claro! Eu sou um Herodes e tu e o teu paizinho os inocentes massacrados. Claro!
A cara dele afigurava-se a Tania uma máscara feia e desagradável. Aquela expressão de ódio e desprezo não lhe ficava bem. A rapariga observou até que faltava qualquer coisa na cara do marido: desde que cortara o cabelo parecia mudado. Sentiu um estranho desejo de lhe dizer qualquer coisa insultante, mas dominou-se a tempo e, aterrada, retirou-se para o seu quarto.
Kovrin foi nomeado para uma cátedra independente. O seu discurso inaugural estava marcado para o dia 2 de Dezembro e nesse sentido foi colocado um aviso nos corredores da Universidade. Mas, quando chegou a data marcada recebeu-se ali um telegrama a comunicar às autoridades universitárias que o professor não poderia comparecer por motivo de doença.
Subira-lhe sangue à garganta. Vomitou-o e, duas vezes naquele mês, teve fortes hemoptises. Sentia-se terrivelmente fraco e caiu numa modorra contínua. A doença, porém, não o assustava, pois sabia que sua mãe, atacada da mesma moléstia, vivera ainda dez anos. Os médicos declararam também que o doente não se encontrava em perigo e aconselharam-no a não se preocupar, a fazer uma vida regular e a falar menos.
Em Janeiro, a conferência foi adiada pelo mesmo motivo e em Fevereiro era já demasiado tarde para começar o curso. Ficou, portanto, resolvido dar-lhe início no próximo ano.
Kovrin, nesta altura, não vivia já com Tania, mas sim com outra mulher mais velha do que ele, que o tratava como uma criança. Tornara-se calmo e obediente; submeteu-se de bom grado quando Varvara Nikolayevna, assim se chamava ela, tomou a iniciativa de o levar para a Crimeia, embora soubesse que a mudança de ares nenhum bem lhe faria.
Chegaram a Sebastopol ao fim de tarde e pararam para descansar, tencionando seguir para Yalta no dia seguinte. Ambos se sentiam fatigados da viagem. Varvara Nikolayevna tomou chá e foi deitar-se. Kovrin, porém, ficou a pé. Antes de sair de casa para a estação, recebera uma carta de Tania que ainda não abrira. A lembrança desta carta causava-lhe uma estranha agitação. No mais íntimo do ser sentia que o seu casamento com Tania fora um erro. Achava-se satisfeito por se ter finalmente separado dela; porém a recordação daquela mulher que nos últimos tempos parecia haver-se tornado apenas um manequim ambulante no qual tudo morrera, excepto os olhos enormes e inteligentes, só despertava nele um sentimento de piedade e de remorso. A letra, no envelope, vinha lembrar-lhe que, dois anos atrás, havia sido culpado de crueldade e de injustiça e que exercera vingança sobre pessoas que nenhuma culpa tinham da vacuidade do seu espírito, da sua solidão, do desencanto que experimentava perante a vida... Recordou-se de ter feito em pedaços a sua dissertação e todos os artigos que escrevera desde que estivera doente, atirando-os pela janela fora e de como os fragmentos de papel haviam sido levados pelo vento, indo poisar nas árvores e nas flores; em cada uma daquelas páginas via apenas uma pretensão estranha e infundada, uma irritação frívola, a mania da grandeza. E tudo isto produzira em si uma tal impressão, que acabara por escrever um relatório das suas próprias culpas. E contudo, no momento em que 95 últimos pedaços do derradeiro caderno eram arrastados pelo vento, sentiu tamanha amargura e desilusão, que se dirigira à mulher, falando-lhe cruelmente. Céus, como lhe arruinara então a vida! Recordava-se de uma vez em que, querendo martirizá-la, declarara que o pai dela desempenhara no seu casamento um papel fora do vulgar, chegando mesmo a pedir-lhe para casar com a filha; e Yegor Semionovich, que por acaso ouvira estas palavras, rompera pelo quarto dentro, tão consternado que emudecera e não fora capaz de pronunciar qualquer frase, limitando-se a bater com os pés no chão e a soltar uns grunhidos estranhos, como se lhe tivessem cortado a língua. Ao ver o pai naquele estado, Tania pusera-se a gritar que cortava o coração e caíra por terra sem sentidos. Fora horrível.
A lembrança de todas estas coisas voltava-lhe agora à memória, ao ver aquela letra tão sua conhecida. Dirigiu-se à varanda. O ar estava tépido, calmo, vinha do mar um cheiro salgado, e tanto o luar como as luzes em volta reflectiam-se na superfície da baía maravilhosa, duma tonalidade impossível de classificar. Era uma suave combinação de azul e verde. Em certos pontos, a água assemelhava-se a sulfato, noutras em vez de água era luar líquido que enchia o mar. E toda esta harmoniosa combinação de tons exalava tranquilidade e exaltação.
No andar inferior da hospedaria, por baixo da varanda, as janelas estavam sem dúvida abertas, pois ouviam-se claramente vozes e risos de mulher. Devia tratar-se duma festa.
Kovrin fez um esforço sobre si mesmo, abriu a carta, entrou no quarto e começou a ler:
«O meu pai acaba de morrer. Isto te devo, pois foste tu que o mataste. O nosso pomar está arruinado, tem sido entregue a mãos estranhas. Acontece aquilo que o meu pobre pai tanto receava. Também isto se deve a ti. Odeio-te com toda a minha alma e desejaria que morresses em breve! Ah, como sofro! O meu coração estala com uma dor intolerável!... Maldito sejas! Julguei-te um ente excepcional, um homem de génio; amava-te e afinal revelaste ser um louco...»
Kovrin não conseguiu ler mais; rasgou a carta e atirou fora os pedaços... Sentia-se tomado de inquietação, quase duma espécie de terror... Do outro lado do biombo dormia Varvara Nikolayevna. Ouvia-lhe a respiração. No andar de baixo chegavam-lhe as vozes e os risos de outras mulheres. Afigurava-se-lhe, porém, que em todo o hotel o único ser humano era ele. O facto de essa pobre e abandonada Tania o haver amaldiçoado na carta causava-lhe desgosto; e olhava, receoso, para a porta, temendo ver surgir de novo essa força desconhecida que no espaço de dois anos trouxera tamanha ruína para a sua vida e para a daqueles que lhe eram mais queridos.
Sabia por experiência que, quando os nervos fraquejam, o melhor remédio é o trabalho. Costumava então sentar-se à mesa e concentrar-se num pensamento definido. Retirou da pasta vermelha um caderno que continha o resumo dum pequeno trabalho que tencionava realizar durante aquela estadia na Crimeia, se acaso se fartasse da inactividade... Sentou-se à mesa e pôs-se a trabalhar nesse resumo. Afigurou-se-lhe estar a assumir de novo a sua antiga personalidade calma, resignada, objectiva. Aquele sumário levou-o a especular sobre a vaidade do mundo. Pensou no alto preço que ela exige em troca dos benefícios mais mesquinhos e vulgares concedidos ao homem. Para reger uma cadeira de filosofia antes dos quarenta anos; para ser um vulgar professor; para expor pensamentos comuns, pensamentos estes que lá não eram seus, numa linguagem fraca, pesada e cansativa; numa palavra, para atingir a posição de um medíocre letrado, estudara durante quinze anos, trabalhara noite e dia, sofrera uma doença grave, fizera um casamento desastrado, tornara-se culpado de muitas loucuras e injustiças cuja recordação se tornava para ele uma tortura. Kovrin convencia-se agora completamente de que não passava de um medíocre e não conseguia conformar-se com esse facto, sabendo perfeitamente que todo o homem se deve dar por satisfeito com aquilo que é.
O sumário que tinha na frente acalmara-o; porém, os restos da carta espalhados pelo sobrado desviavam-lhe a atenção. Ergueu-se, apanhou-os e atirou com eles pela janela fora. Mas uma leve brisa que soprava do mar, fê-los voar para o peitoril. Kovrin sentiu-se outra vez inquieto, quase aterrorizado, e afigurou-se-lhe de novo que, em todo o hotel, o único ser vivo era ele... Voltou para a varanda. A baía parecia uma coisa viva e fitava-o com uma infinidade de olhos brilhantes, azuis escuros, cor de turquesa e de fogo, a chamá-lo. Estava um calor sufocante; seria delicioso ir tomar banho, pensou!
De súbito, lá em baixo, ouviu-se um violino a tocar e duas vozes de mulher a cantarem. Era uma melodia muito sua conhecida. Falava duma jovem de imaginação doente que ouvira de noite, no jardim, uns sons misteriosos, achando neles uma harmonia e um encanto incompreensíveis para o resto dos mortais... Kovrin susteve a respiração, o coração deixou de bater e aquele mágico e estático enlevo, há muito esquecido, vibrou-lhe de novo no peito.
Uma coluna negra e alta, semelhante a um ciclone ou a uma tromba de água, surgiu na costa, em frente. Corria com incrível rapidez na direcção do hotel; ia-se tornando cada vez mais pequena e Kovrin afastou-se para a deixar passar... O monge, de cabeça grisalha a descoberto, as sobrancelhas negras, pés descalços e mãos cruzadas no peito, passou na sua frente e deteve-se no meio do quarto.
- Porque não acreditaste em mim? - inquiriu num tom de censura, olhando com meiguice para Kovrin. - Se me tivesses dado crédito quando te disse que eras um génio, estes dois últimos anos não teriam sido para ti tão dolorosos e tão inúteis.
Kovrin começava a convencer-se de novo que era um eleito de Deus e um génio; recordou-se nitidamente da sua conversa anterior com o monge e quis replicar. Porém, o sangue jorrava-lhe da boca para o peito, e ele, sem saber o que fazia, esfregou nele as mãos até ficar com os punhos vermelhos. Quis gritar por Varvara Nikolayevna que dormia atrás do biombo e, ao fazer um esforço, só conseguiu chamar: «Tania!»
Caiu no chão, agitando as mãos, e de novo gritou:
- Tania!
Chamava por Tania, chamava pelo enorme jardim com as suas flores maravilhosas, chamava pelo parque, pelos pinheiros com as suas raízes nodosas, pelos campos de centeio, chamava pela sua ciência espantosa, pela sua mocidade, pela sua coragem, pela sua alegria, gritava pela vida que fora tão bela. Via no chão, à sua frente, uma grande poça de sangue e sentia-se tão fraco, que não conseguia pronunciar uma só palavra. No entanto, todo o seu ser se sentia tomado duma alegria infinita. Por baixo da varanda a serenata prosseguia e o Monge Negro murmurava-lhe ao ouvido que ele era um génio e, se estava a morrer, era porque o seu corpo frágil e mortal perdera o equilíbrio e já não servia para abrigar um génio.
Quando Varvara Nikolayevna acordou e saiu de detrás do biombo, Kovrin estava morto. Mas no seu rosto estampava-se um sorriso indelével de felicidade.
Anton Tchekhov
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