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ONDE ESTÃO AS CRIANÇAS / Mary Higgins Clark
ONDE ESTÃO AS CRIANÇAS / Mary Higgins Clark

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ONDE ESTÃO AS CRIANÇAS

 

SENTINDO o frio que penetrava através dos caixilhos apodrecidos das janelas, mal ajustados às vidraças, ele ergueu-se pesadamente, dirigindo-se com dificuldade até à janela, que calafetou com uma grossa toalha.

 A corrente de ar batia contra a toalha com um som simultaneamente suave e sibilante que lhe causava um vago prazer.

 Olhou para fora, para o céu nublado, e estudou as cristas das ondas que se encrespavam no mar.

 Deste lado da casa era muitas vezes possível ver Provincetown, situada na costa do lado oposto da baía de Cape Cod. Detestava o Cape.

 Detestava a sua desolação num dia de Novembro como aquele.

 Detestara-o no único Verão que ali passara ondas de turistas deitados sobre as praias; trepando o aterro em declive até àquela casa; olhando estupidamente às janelas do rés-do-chão.

 Detestava os enormes letreiros VENDE-SE que Ray Eldredge colocara à frente e nas traseiras e o facto de, agora, Ray e aquela mulher que trabalhava para ele terem começado a trazer eventuais compradores que pretendiam ver a casa.

 No mês passado, fora apenas por uma questão de sorte que ele vinha a passar quando eles entravam e que chegara ao andar superior à sua frente, a tempo de remover o telescópio.

 O tempo escoava-se. Em breve a casa seria comprada, o que lhe impossibilitaria voltar a alugá-la. Essa a razão por que enviara o artigo para o jornal.

 Queria encontrar-se presente para a ver ser desmascarada... agora, quando ela devia ter começado a sentir-se a salvo.

 Havia ainda outra tarefa a realizar, mas ela mantinha as crianças estreitamente vigiadas.

 Amanhã... Moveu-se impacientemente pelo quarto. Era amplo, o quarto de dormir do andar de cima. Toda a casa era grande.

 Era uma evolução abastardada de uma velha casa de um comandante naval, que começara a ser construída no século XVII, sobre uma crista rochosa que dominava toda a baía. Há seis anos que alugava aquele andar nos fins do Verão e durante o Outono.

 Revelara-se ideal para os seus propósitos - até esse ano, quando Ray Eldredge o informara que estavam a procurar vender a casa para ali construir um restaurante, e que apenas poderia ser alugada com a condição de poder ser mostrada em qualquer altura a eventuais compradores. Raynor Eldredge.

 Pensar neste homem fê-lo sorrir. Teria Nancy alguma vez revelado a Ray a sua identidade? Talvez não. As mulheres sabiam ser dissimuladas. Se Ray o ignorasse, o impacto seria ainda mais forte.

 Como se sentiria feliz se visse a expressão de Ray quando este abrisse o jornal amanhã! Impacientemente, afastou-se da janela.

 As suas pernas, grossas como troncos, ficavam apertadas naquelas coçadas calças negras.

 Far-lhe-ia bem perder algum peso, embora para o conseguir tivesse de passar novamente por essa terrível provação da fome. E gostaria de poder voltar a deixar o cabelo crescer normalmente.

 Era bastante espesso dos lados, e provavelmente agora estaria quase todo branco.

 Percorreu impacientemente o apartamento, detendo-se finalmente junto do telescópio na sala de estar.

 O telescópio era extraordinariamente potente - o género de equipamento que não se encontrava geralmente à venda. Curvou-se sobre ele e espreitou.

 Devido à escuridão do dia, Nancy tinha a luz da cozinha acesa, o que lhe permitia vê-la claramente, em frente da janela, sobre o lava-louça.

 Talvez estivesse a preparar o jantar. Estava imóvel de pé, olhando em direcção à água.

 Em que estaria a pensar. Nas crianças - Peter... Lisa...? Gostaria de saber.

 Sentia a boca seca. Humedeceu nervosamente os lábios.

 Hoje ela parecia muito nova, com o cabelo agora castanho-escuro, puxado para trás, a descobrir-lhe a cara.

 Certamente alguém a reconheceria se ela o tivesse deixado no seu tom natural ruivo-dourado. Embora completasse no dia seguinte trinta e dois anos, não parecia ter essa idade.

 Engoliu em seco, aspirou o ar, voltou a engolir em seco. O som terminou num riso curto que lhe sacudiu o corpo, fazendo oscilar o telescópio. A imagem de Nancy ficou desfocada, mas ele já não estava interessado em observá-la.

 Amanhã! Podia imaginar a expressão dela no dia seguinte a esta hora.

 Exposta ao mundo tal como era; paralisada de medo; tentando responder à pergunta - à mesma pergunta que a Polícia lhe fizera, vezes sem conta, sete anos atrás.

 Vamos, Nancy, diria novamente a Polícia. Conte-nos a verdade. Diga-nos, Nancy: onde estão as crianças?

 

 RAY desceu as escadas a apertar o nó da gravata. Nancy estava sentada à mesa com Missy ao colo, Michael tomava o pequeno-almoço, com o seu ar sisudo, reflectido.

 Ray passou a mão pela cabeça de Mike, despenteando-o, e inclinou-se para beijar Missy. Nancy sorriu-lhe.

 Era tão bela! Não obstante algumas finas rugas em torno dos olhos azuis, ninguém lhe daria trinta e dois anos.

 Notou as raízes ruivas do cabelo castanho-escuro.

 No último ano insistira com ela vezes sem conta para que deixasse de o pintar.

 - Muitos parabéns, querida - disse-lhe em voz calma.

 Olhou-a e viu que a cor lhe fugia do rosto.

 Michael pareceu surpreendido:

- A mãe faz anos? Não me tinha dito.

 Missy endireitou-se:

- A mãe faz anos? - mostrava-se satisfeita.

 - Faz - confirmou Ray.

 - E esta noite vou trazer para casa um grande bolo de velas e uma prenda, e convidamos a tia Dorothy para jantar. Estás de acordo, mãe?

 - Ray... não. - A voz de Nancy era baixa e suplicante.

 - Sim.

 - Lembra-te de que no ano passado prometeste que este ano nós... - Não conseguiu pronunciar a palavra festejar, que não se adaptava à situação.

 Havia, porém, muito tempo que sabia que um dia teriam de alterar o padrão deste aniversário.

 A princípio, ela afastava-se completamente dele e percorria a praia como um fantasma silencioso num mundo apenas seu.

 No ano anterior, todavia, começara finalmente a falar dos seus dois outros filhos. Dissera: Deviam estar agora tão crescidos... dez e onze anos. Tento imaginar como seriam, mas não consigo.

 Tudo o que diz respeito a esse tempo é tão enevoado. Como um pesadelo que só eu tivesse sonhado.

 Esquece tudo isso, querida, aconselhara-lhe Ray.

 Nem voltes sequer a interrogar-te sobre o que sucedeu.

 A recordação veio robustecer a sua decisão.

 Enquanto se curvava e acariciava com suavidade o cabelo de Nancy, o apelo no rosto dela transformou-se em incerteza.

 - Não me parece que... - Michael interrompeu-a: - Quantos anos tem, mãe?

 Nancy sorriu.

 - Não tens nada com isso - retrucou.

 Ray sorveu rapidamente um gole de café.

 - Vou-te dizer o que vamos fazer, Mike. Vou buscar-te à saída da escola e depois vamos comprar uma prenda para a mãe. Agora tenho que sair. Há um tipo que vem ver a Casa Hunt. Tenho de preparar os papéis.

 - Não está alugada?

 - Está. Esse tal Parrish alugou-a outra vez, mas temos o direito de a mostrar quando quisermos. Se a vender, ganho uma bela comissão.

 Nancy pôs Missy no chão e acompanhou-o até à porta.

 Ele beijou-a rapidamente, entrou no automóvel e seguiu pelo estreito caminho de terra batida que atravessava cerca de quatro quilómetros quadrados de mata até entroncar na estrada para Adams Port, onde tinha o seu escritório.

 Ray tinha razão, pensou Nancy enquanto regressava à mesa. Era altura de pôr de lado as recordações e de olhar apenas para o futuro. Parte dela, porém, continuava ainda entorpecida. Era como se toda a sua existência com Carl fosse uma névoa.

 Era-lhe difícil recordar a faculdade e as instalações universitárias. Peter e Lisa.

 Como eram eles? Cabelo negro ambos, como o de Carl, e demasiado reprimidos, afectados pela incerteza dela; e depois perdidos - os dois.

 - Porque é que está tão triste, mãe? - Michael olhava-a com a expressão cândida de Ray e falava com a mesma objectividade.

 Olhou à sua volta, a cozinha de aspecto alegre, com a lareira de velhos tijolos e as cortinas vermelhas; depois o seu olhar caiu sobre Michael e Missy.

 - Não estou triste, querido - respondeu.

 Pegou em Missy ao colo, sentindo o calor e o doce aveludado da sua pele.

 - Tenho estado a pensar no seu presente - disse Missy.

 O seu cabelo encaracolado, meio louro, meio cor de morango, emoldurava-lhe a testa e as orelhas.

 Amigos e conhecidos perguntavam quem fora a ruiva da família de quem herdara aquele belo cabelo.

 - Formidável - disse Nancy. - Mas vai pensar lá para fora. Agora é melhor ires apanhar ar fresco. Daqui a pouco deve chover.

 Depois de as crianças se terem vestido, ajudou-as a enfiar os casacos.

 - Agora, Mike, vou-me arranjar - disse. - Não deixes a tua irmã sozinha.

 - Está bem - respondeu Mike alegremente. - Vamos, Missy. Sou o primeiro a empurrar-te no baloiço. - Ray instalara um baloiço num maciço carvalho à beira do bosque.

 Nancy enfiou nas mãos de Missy um par de luvas de um vermelho-vivo, de angora felpudo, cujas costas apresentavam uma cara sorridente.

 - Não as tires - ordenou-lhe. - Está mesmo a ficar frio. Nem sequer sei se vocês deviam sair.

 - Oh, deixe-nos ir! - Os lábios de Missy começaram a tremer.

 - Está bem, está bem, não é preciso fazeres uma cena - atalhou Nancy rapidamente. - Mas só meia hora.

 Abriu a porta e deixou-os sair, estremecendo ao sentir a brisa , gélida. Fechou rapidamente a porta e começou a subir a escada. Era uma casa no genuíno estilo de Cape Cod, de escada íngreme, quase vertical. Nancy adorava aquela casa.

 Ainda recordava a sensação de paz que ela lhe transmitira quando pela primeira vez a vira, havia mais de seis anos.

 Chegara a Cape Cod depois de a condenação ter sido arquivada.

 O procurador distrital não insistira noutro julgamento, porque Rob Legler, a testemunha principal da acusação, desaparecera. Ela refugiara-se ali, atravessando o continente, afastando-se o mais possível da Califórnia, longe da faculdade e de toda a comunidade académica, longe dos amigos que se haviam transformado em estranhos hostis, que falavam do pobre Carl e a acusavam também do seu suicídio.

 Viera para Cape Cod porque sempre ouvira dizer que os habitantes de Nova Inglaterra eram reservados e não estabeleciam facilmente relações com estranhos, O que lhe agradava.

 Cortara o cabelo e pintara-o de castanho-escuro, para a fazer parecer completamente diferente das fotografias que tinham aparecido na primeira página dos jornais de todo o país durante o julgamento.

 Considerava que fora o destino que a fizera escolher a agência de venda e aluguer de habitações de Ray quando procurara uma casa.

 Tenho para alugar uma casa em autêntico estilo Cape em excelentes condições, dissera-lhe Ray. Está totalmente mobilada, e pode ser eventualmente comprada. De quantas divisões precisa, Miss... Mrs...? Miss Kiernan. Nancy Kiernan. Instintivamente, usara o seu nome de solteira.

Não preciso de muitas. Não espero receber visitas. Apreciara o facto de ele não ter feito perguntas.

 O Cape é um bom lugar para viver quando se quer estar só, observara ele. Quando Ray a conduzira até ali, percebera imediatamente que ficaria com a casa.

 Adorara a grande sala comum, com a mesa frente à janela sobranceira ao porto. Pôde instalar-se imediatamente, e nessa noite, pela primeira vez em meses, dormira profundamente - um sono em que não ouvira Peter e Lisa a chamá-la.

 Na primeira manhã que ali passara, fizera café e sentara-se junto da janela. O dia era claro e luminoso, o céu, de um azul-violáceo, o único movimento na baía, o voo das gaivotas pairando perto dos barcos de pesca.

 A tranquilidade da cena intensificou a sensação de calma, para o que contribuíra o longo sono sem sonhos. Paz. Dêem-me paz. Essa fora a sua prece durante o julgamento e na prisão. Deixem-me aprender a aceitar.

 Sete anos atrás...

 Nancy apercebeu-se de que continuava ainda junto à escada. Era tão fácil perder-se em recordações. Lentamente, começou a subir.

 Como poderia alguma vez sentir paz sabendo que se Rob Legler aparecesse, a acusaria novamente de assassínio, a afastaria de Ray, de Missy e de Michael? Não penses nisso, disse para consigo. Não serve de nada.

 No cimo da escada sacudiu a cabeça com determinação e dirigiu-se rapidamente às janelas, que abriu. Começavam a formar-se nuvens e a temperatura descia rapidamente.

 Nancy estava agora bastante familiarizada com o Cape para saber que um vento frio como aquele trazia habitualmente consigo uma tempestade.

 O tempo estaria ainda suficientemente desanuviado para deixar as crianças lá fora? Gostava que elas apanhassem ar fresco durante a manhã.

 Depois de almoço, Missy dormia um sono e Michael ia para o jardim infantil.

 Após considerar o assunto por uns instantes Nancy começou a retirar os lençóis da cama de casal. Esta ansiedade frenética e constante tinha de ser vencida.

 Além disso, bastar-lhe-iam dez ou quinze minutos para fazer as camas de lavado e pôr a roupa a lavar na máquina.

 Nancy dominou o sentimento de inquietação que a impelia a ir ter com as crianças nesse preciso momento.

 

  JONATHAN Knowles entrou no drugstore para comprar o jornal da manhã. O seu trajecto habitual levava-o sempre a passar pela velha Casa Nickerson, aquela que Ray Eldredge comprara quando casara.

 Quando fazia bom tempo, Nancy Eldredge saía cedo para o jardim e saudava-o sempre com ar simpático. Jonathan suspirou.

 Era um homem de elevada estatura, cabelo branco abundante e um rosto largo, em que as rugas começavam a surgir. Advogado reformado, sentia que a inactividade o deprimia.

 Não obstante a abundância de lagos e lagoas e a existência da baía e do oceano no Cape, não era possível pescar muito durante o Inverno.

 E frequentar as lojas de antiguidades não era um passatempo que o divertisse como no tempo de Emily.

 Tinham passado sempre as férias no Cape, e esperavam pelo dia em que ali pudessem viver durante todo o ano. Esse dia, porém, não chegara para Emily. Neste segundo ano da sua residência no Cape, Jonathan estava a escrever um livro. Era um estudo sobre julgamentos famosos de assassínios, que começara como passatempo.

 Um amigo seu editor, porém, lera alguns capítulos da obra e imediatamente lhe enviara um contrato. Actualmente Jonathan trabalhava intensamente no livro.

 O vento açoitava-o. Ajustou o seu cachecol, grato pelo sol chuvoso que sentia no rosto, e olhou em direcção à baía. Com o matagal despido de folhas, distinguia-se claramente a água. Apenas a velha Mansão Hunt, no seu íngreme alcantil, interrompia a vista da casa a que chamavam A Vigia.

 Jonathan piscou os olhos e voltou a cabeça. Aquele tipo que alugara a casa devia ter na janela qualquer objecto metálico que provocava um reflexo incómodo.

 Pensou em pedir a Ray que mencionasse o facto ao inquilino, decisão de que imediatamente desistiu, percebendo que o ocupante da casa poderia limitar-se a sugerir que Jonathan contemplasse a baía de outro ponto, ao longo do seu trajecto habitual.

 Encontrava-se agora exactamente em frente da casa dos Eldredges, podendo ver Nancy sentada à mesa do pequeno-almoço a conversar com Michael.

 Jonathan desviou a vista, sentindo-se um intruso. Iria buscar o jornal e regressaria à sua secretária, a fim de começar a trabalhar no caso Harmon - o crime que segundo pensava, lhe iria fornecer o mais interessante dos capítulos.

 RAY abriu a porta do escritório, incapaz de se libertar de uma incomodativa sensação de preocupação, decorrente não apenas da intenção de fazer Nancy reconhecer o seu aniversário e arriscar-se às recordações que este lhe despertaria, como de um estranho sentimento de presságio.

 - Oh, não! Que quer isso dizer? - Dorothy Prentiss erguera os olhos de uma das secretárias.

 O seu cabelo, mais branco do que castanho, emoldurava-lhe o rosto longo e simpático.

 Vestia uma camisola e uma saia de tweed, de corte prático. Dorothy trabalhava com Ray desde que este abrira o escritório.

 - Sabe que está a abanar a cabeça e a franzir o sobrolho? - acrescentou ela.

 Ray sorriu timidamente.

 - É apenas nervoso matutino. Como está isto a correr?

 - Tudo bem. Já tenho pronto o dossier sobre A Vigia. A que horas espera o cliente que a vem ver?

- Cerca das duas - respondeu Ray.

 - Essa casa dava um maravilhoso restaurante se alguém a quisesse restaurar. Tem uma localização extraordinária à beira da água.

 - Acho que Mr. Kragopoulos e a mulher já construíram e venderam bastantes restaurantes e não se importarão de gastar os dólares que forem precisos para fazer tudo como deve ser... - Dirigiu-se para o seu gabinete, onde se sentou pensativamente à secretária durante alguns minutos, após o que ligou o telefone para a extensão de Dorothy. - Se o café está feito - disse -, não se importa de trazer o seu para aqui e uma chávena para mim?

- Está bem.

 Ray abriu-lhe a porta quando ela entrou com as chávenas fumegantes, fechou-a e indicou-lhe a cadeira ao lado da sua secretária.

 - Gostava que viesse esta noite jantar connosco - disse-lhe. - São os anos de Nancy.

 Ouviu-a inspirar com força.

 Dorothy era a única pessoa amiga no Cape que conhecia a história de Nancy, que a própria lhe contara quando com ela se aconselhara sobre se deveria ou não casar com Ray.

 A voz de Dorothy era especulativa:

 - Qual é o verdadeiro objectivo de um jantar de festa?

 - O objectivo é que não se pode pretender que Nancy não faz anos! Nancy tem de romper com o passado, de deixar de se esconder.

 - E poderá ela romper com o passado? Acha que ela pode deixar de se esconder, tendo suspensa sobre a cabeça a hipótese de um novo julgamento?!

 - Mas é exactamente isso. A hipótese. Dorothy, não vê que esse tipo que depôs contra ela desapareceu há mais de seis anos? Podemos supor, segundo o que sabemos, que ele está tão ansioso como a Nancy em não recomeçar tudo isso. Não se esqueça de que ele é um desertor do Exército, que pode vir a apanhar uma pena muito dura.

 - Isso é verdade - concordou Dorothy.

 - Agora dê mais um passo. Raciocine como eu. Que pensam de Nancy as pessoas desta cidade?

Dorothy hesitou.

 - Pensam que ela é muito atraente, sempre simpática... e muito metida consigo.

 - O que se chama uma maneira agradável de pôr as coisas. Eu já ouvi piadas por a minha mulher pensar que é boa demais para as pessoas daqui. No mês passado consegui finalmente convencê-la a ir ao jantar dos corretores de imóveis, e quando tiraram a fotografia ao grupo ela estava na casa de banho.

 - Tem medo de ser reconhecida.

 - Eu compreendo. Mas se houver outro julgamento, eu quero que as pessoas daqui pensem que ela é também uma delas e que estão ligadas a ela. Porque, depois de ser absolvida, Nancy tem de voltar para aqui e continuar aqui a sua vida. Todos nós temos.

 - E se houver um julgamento e ela não for absolvida?

 - Não quero sequer considerar essa possibilidade - respondeu Ray terminantemente. - Então, que tal? Sempre contamos consigo , esta noite?

 - Gosto muito de ir - afirmou Dorothy. - E concordo com a maior parte do que disse. Mas penso que tem de perguntar a si , próprio que parte deste súbito desejo de uma vida mais normal é por Nancy e que parte se deve a outros motivos.

 - Por exemplo?...

 - Ray, eu estava aqui quando o secretário de estado de Massachusetts insistiu consigo em que entrasse na política, porque o Cape precisa de homens novos e do seu calibre que o representem. Ou vi-o dizer-lhe que lhe daria todo o apoio possível. Mas, tal como tudo está agora, você sabe que não pode.

 Dorothy saiu do gabinete sem lhe dar oportunidade de responder.

 Ray sentou-se à sua secretária, deprimido e envergonhado.

 Pensou nas várias ocasiões, durante os últimos meses, em que se irritara sem razão com Nancy. Como naquele dia em que ela lhe mostrara a aguarela que fizera da casa. Ela devia estudar arte. Mesmo agora, os seus trabalhos eram suficientemente bons para poderem ser expostos localmente; ela, porém, receava chamar demasiado a atenção sobre si. Está muito boa, observou ele. Agora em que armário é que a vais esconder? Nancy ficara tão ferida que ele tivera vontade de morder a língua. E desculpara-se: Querida, não leves a mal. É só que me sinto tão orgulhoso de ti. Queria que soubessem do que és capaz.

 Quantas destas explosões não haviam sido causadas pelo cansaço que sentia provocado pela constante constrição das suas actividades? Suspirou e começou a ler o correio.

 às dez e um quarto, Dorothy abriu violentamente a porta. A sua compleição, habitualmente saudável, estava de um cinzento doentio. Ele saltou da cadeira para ir ao seu encontro. Sacudindo a cabeça, porém, ela fechou a porta e estendeu-lhe o jornal.

 Era o semanário Community News, de Cape Cod, aberto na segunda secção, que publicava sempre uma história de interesse humano. Ela deixou-lhe cair o jornal sobre a secretária.

 Olharam ambos, estupefactos, a fotografia em grande plano, que ele desconhecia, indiscutivelmente de Nancy, com o cabelo já escurecido e vestindo um fato saia e casaco de tweed.

 Na legenda sob a fotografia lia-se: Poderá este ser um feliz aniversário para Nancy Harmon? Outra fotografia representava Nancy a sair do tribunal durante o julgamento. Uma terceira era um instantâneo de Nancy rodeando com os braços duas crianças.

 A história começava: Algures, Nancy Harmon celebra hoje o seu trigésimo segundo aniversário, e o sétimo da morte das crianças que ela foi considerada culpada de ter assassinado.

 

 ERA uma questão de cronometrar o tempo.

 Todo o universo existia devido a uma cronometragem de fracção de segundo. E, agora, a sua cronometragem seria perfeita. Retirou a station da garagem.

 Embora, dado o dia enevoado, lhe tivesse sido difícil descortinar o que quer que fosse através do telescópio, podia garantir que ela estivera a vestir os casacos às crianças.

 Levou a mão à algibeira e tocou nas seringas - cheias, prontas a serem utilizadas, a produzir uma inconsciência instantânea.

 Olhou por sobre o ombro.

 A capa de oleado, suficientemente grande para cobrir duas crianças era do género que muitos homens do Cape traziam no automóvel durante a época da pesca, o mesmo se passava com as canas que se viam através da janela traseira.

 Casquinou uma risada excitada e seguiu com o automóvel em direcção à Estrada 6A. A mercearia de Wiggins ficava na intercepção desta via com a Estrada 6A. Sempre que se encontrava no Cape, era lá que se abastecia.

 Obviamente, trazia consigo a maior parte dos géneros de que necessitava, pois tornava-se demasiado arriscado sair muito. Havia sempre a possibilidade de encontrar Nancy e de esta o reconhecer, apesar da alteração que introduzira na sua aparência.

 Este facto quase se verificara quatro anos antes, num supermercado de Hyannis Pórt.

 Estava a pegar num frasco de café e a mão dela ergueu-se ao lado da sua a fim de retirar um frasco da mesma prateleira, enquanto lhe ouvia a voz: Espera, Mike.

 Quero tirar aqui uma coisa. Enquanto se mantinha imóvel, paralisado, ela roçara por ele e dissera: Oh, desculpe.

 Não se atrevera a responder - limitara-se a permanecer imóvel - e ela afastara-se.

 A partir de então, nunca mais se arriscara a um encontro.

 Era-lhe necessário, no entanto, estabelecer uma rotina habitual em Adams Port, pois um dia poderia ser importante que as suas idas e vindas fossem consideradas simples rotina.

 Era esta a razão por que comprava sempre pão, leite e carne na mercearia de Wig gins, cerca das dez horas da manhã.

 Nancy nunca saía de casa antes das onze.

 E os Wiggins tinham começado a saudá-lo como um cliente de longa data.

 Bem, estaria na mercearia dentro de poucos minutos, exactamente à tabela.

 Quase no cruzamento com a Estrada 6A, afrouxou e preparou-se para parar.

 Por uma sorte incrível, nenhum automóvel passava em qualquer dos sentidos.

 Acelerou rapidamente, e a station percorreu velozmente a auto-estrada até chegar à estrada que passava pelas traseiras da casa dos Eldredges.

 Faltavam nove minutos para as dez. Entrou na estrada de terra batida da propriedade do casal. O jornal, que publicava o artigo denunciando Nancy, seria entregue dentro de alguns minutos.

 Estacionou o automóvel a meio do bosque, saiu rapidamente e dirigiu-se até à zona onde as crianças brincavam.

 Embora na sua maior parte as árvores estivessem desprovidas de folhas, as ramagens verdejantes eram em número suficiente para o ocultarem.

 Ouviu as crianças no baloiço antes de as ver. A pequena gritava: Mais alto, Mike, empurra com mais força. Surgiu furtivamente por detrás do rapaz.

 Naquele último segundo teve a visão rápida de uns olhos azuis estupefactos e de uma boca aberta de terror antes dele a cobrir com uma das mãos enquanto com a outra enfiava a agulha da seringa através da luva de lã.

 O pequeno tentou libertar-se, após o que caiu no chão. O baloiço, onde a pequenita ria, voltava para trás. Empurra, Mike, não pares de empurrar.

 Ele agarrou o baloiço pela corrente e rodeou com o braço o corpinho que se agitava, sem compreender. Abafando cautelosamente o grito débil, mergulhou a outra agulha através da luva vermelha.

 Um instante depois a pequenita caía bruscamente contra ele. Enquanto pegava em ambas as crianças e corria para o automóvel, não notou que uma das luvas ficara presa no baloiço.

 às dez menos cinco os dois irmãos estavam ocultos sob a capa de oleado no banco da retaguarda da station.

 Fez marcha atrás até à estrada pavimentada e soltou uma praga quando viu um pequeno Dodge vermelho que vinha na sua direcção. Afrouxou ligeiramente para o deixar avançar e voltou a cara para o lado. Maldita sorte.

 Quando passou pelo outro automóvel, teve a visão rápida, familiar, do perfil de um nariz pontudo e de um queixo magro, sob um chapéu mole.

 Ficou a observar o Dodge através do espelho retrovisor até que este torneou a curva e desapareceu.

 Com um grunhido de satisfação, ajustou o espelho de forma que este reflectisse a capa de oleado, aparentemente lançada ao acaso sobre os apetrechos de pesca. Satisfeito, voltou a ajustar o espelho, sem olhar novamente para ele. Se o fizesse, teria visto que o automóvel que estivera a observar estava a voltar para trás.

 às dez horas e quatro minutos entrava na mercearia de Wiggins: e saudava-o enquanto pegava num quarto de litro de leite.

 

 NANCY desceu as escadas equilibrando com dificuldade uma braçada de toalhas, lençóis e roupa interior. Num impulso, decidira lavar a roupa e pô-la a secar ao ar livre.

 Adorava o cheiro fresco dos lençóis secos no exterior, onde se combinavam a essência suave da uva-dos-montes e o aroma salgado da maresia.

 Na lavandaria, contígua à cozinha, lançou na máquina os lençóis e as toalhas, juntou o detergente e premiu o botão do respectivo programa. Chegara a altura de chamar as crianças. à porta da frente, porém, deteve-se. O Community News, semanário de Cape Cod, acabava de chegar. Pegou nele e, sentindo o vento que a arrepiava, dirigiu-se rapidamente à cozinha. Ligou o bico de gás sob a cafeteira de café ainda quente. Depois folheou o jornal até à segunda secção.

 Terminada a estação, era provável que houvesse algumas antiguidades de valor a preços já não para turista. Os seus olhos detiveram-se no título sensacionalista, nas fotografias: dela, de Carl e de Rob Legler, dela com Peter e Lisa.

 Enquanto sentia um zumbido nos ouvidos, recordou vivamente o momento em Que tinham sido fotografados por Carl. Não prestem atenção a mim, dissera ele, façam de conta que não estou aqui.

 Mas eles sabiam que ele estava ali e tinham-se apertado de encontro a ela quando ele tirara a fotografia. Não... Não!, Nancy estendeu a mão, batendo na cafeteira, que caiu.

 Voltou a colocá-la na posição devida, mal sentindo nos dedos o líquido escaldante.

 Tinha de queimar o jornal.

 Era preciso que Michael e Missy o não vissem. Correu para a lareira na sala de jantar e procurou tremulamente os fósforos sobre a prateleira.

 Uma chama, uma coluna de fumo - e o jornal, que enfiou entre os toros, começou a arder. Todos no Cape estariam a ler o jornal. Uma das fotografias seria certamente reconhecida.

 Ela não se recordava de alguém a ter visto depois de ter cortado e pintado o cabelo.

 Amanhã, na aula de Michael, as crianças segredariam e apontá-lo-iam a dedo. As crianças.

 Ela precisava de salvar as crianças. Não, de ir buscar as crianças. Elas podiam constipar-se. Precipitou-se para a porta das traseiras e abriu-a.

 - Michael, Missy. Venham cá. Venham já para casa! - O seu chamamento subiu de tom, terminando num grito.

 Onde estavam elas? O baloiço vazio ainda se movia, agitado pelo vento. Uma luva - uma luva de Missy - estava presa na corrente metálica. Depois lembrou-se do lago. Embora não o devessem fazer, talvez tivessem ido para lá. Seriam encontradas.

 Como as outras.

 Na água.

 Com os rostos molhados, inchados, imóveis. Agarrou na luva de Missy e abriu caminho, através do bosque nas traseiras da casa, até à praia arenosa. No lago, a alguma distância, uma coisa brilhava debaixo de água. Seria vermelho... outra luva... a mão de Missy? Entrou na água gelada até esta lhe chegar aos ombros e procurou.

 Mas não havia nada - apenas o frio entorpecente. Vacilando, recuou e caiu sobre a areia coberta de uma camada de gelo. Através da neblina que se lhe erguia diante dos olhos, observou o bosque e viu a cara dele - a cara de quem? Depois a névoa cerrou-se.

 Ray e Dorothy encontraram-na caída sobre a areia, as roupas coladas ao corpo, o olhar vítreo, apertando junto à cara uma pequena luva vermelha.

 

 Quando tivera a ideia de escrever o seu livro, Jonathan Knowles convidara para um fim-de-semana Kevin Parks, investigador por conta própria e seu amigo de longa data. Jonathan seleccionara dez julgamentos controversos de crimes e propusera a Kevin que reunisse num dossier transcrições das sessões do tribunal, recortes de jornais, todo o material que pudesse encontrar.

 Jonathan planeara estudar profundamente cada dossier e depois escrever as suas histórias quer concordando com as sentenças, quer discordando destas.

 Já concluíra dois capítulos, o primeiro sobre o julgamento de Sam Sheppard, que, em sua opinião, baseada nas numerosas omissões do processo, estava inocente, e o outro sobre o julgamento de Edgard Smith, cuja culpabilidade Jonathan sustentava.

 Sentado à sua secretária, acabava de abrir o volumoso dossier intitulado O JULGAMENTO HARMON. Presa à capa com um clip, uma nota de Kevin: Jon, tenho o palpite de que vais gostar de trabalhar neste. O advogado de defesa foi um anjinho nas mãos do acusador; até o marido dela cedeu ao ser interrogado e praticamente a acusou.

 Se alguma vez localizarem a testemunha desaparecida e a julgarem outra vez, é melhor que ela arranje uma história mais consistente.

 Jonathan recordava-se de que a simples leitura dos depoimentos por altura deste julgamento, seis ou sete anos atrás, deixara no seu espírito numerosas perguntas sem resposta.

 Começou a distribuir pela secretária os vários elementos de consulta, meticulosamente etiquetados. Havia fotografias de Nancy Harmon durante o julgamento.

 Embora, segundo os jornais, ela tivesse vinte e cinco anos na altura dos crimes, parecia pouco mais velha do que uma adolescente. Os seus vestidos eram quase infantis, talvez por sugestão do seu advogado. Desde que começara a planear o livro, curiosamente sentia que já vira algures aquela mulher.

 E, subitamente, percebeu que ela parecia a mulher de Ray Eldredge quando mais nova e interrogou-se sobre se não haveria qualquer parentesco entre ambas.

 Os seus olhos caíram sobre uma página dactilografada onde era descrita uma curta biografia de Nancy Harmon.

 Nascida na Califórnia, educada em Ohio... o que provavelmente excluía a ideia de qualquer parentesco. A família de Nancy Eldredge fora vizinha de Dorothy Prentiss na Virgínia. Dorothy Prentiss.

 Experimentou um sentimento de prazer ao pensar nessa interessante mulher que trabalhava com Ray, com quem ele travara amizade depois de aquele lhe ter sugerido uns investimentos seguros em propriedades e o ter interessado em algumas actividades da terra, e por cujo escritório passava frequentemente.

 Jonathan compreendia que frequentava o escritório de Ray mais assiduamente do que o necessário. Dorothy tinha um humor penetrante, que ele apreciava.

 Depois de o marido ter falecido, mudara-se para o Cape, onde tencionava abrir uma loja de decorações, mas começara a trabalhar com Ray.

 Jonathan pensara muitas vezes em convidar Dorothy para jantar.

 Não obstante, todos esses anos de coexistência com a feminilidade total de Emily não o haviam preparado para reagir, a nível pessoal, a uma mulher terrivelmente independente.

 De súbito, constatando que estava a distrair-se com demasiada facilidade nessa manhã, agarrou-se resolutamente ao dossier Harmon.

 Decorreu uma hora e quinze minutos.

 Nada quebrava o silêncio para além do tiquetaque do relógio e do resmungar ocasional de Jonathan, traduzindo descrença. Finalmente, o advogado foi até à cozinha, a fim de preparar um café.

 Havia qualquer factor oculto naquele julgamento que impedia uma ligação coerente dos factos.

 Enquanto esperava pelo café, foi até à porta da frente e pegou no Community News de Cape Cod. De regresso à cozinha, deitou o café na chávena e começou a bebê-lo, enquanto folheava o jornal.

 Quando chegou à segunda secção, o seu olhar imobilizou-se na fotografia da mulher de Ray Eldredge.

 Tristemente, viu-se obrigado a aceitar dois factos: Dorothy mentira-lhe ao dizer que conhecera Nancy em criança na Virgínia; e, reformado ou não, ele devia ter sido suficientemente advogado para confiar nos seus próprios instintos.

 Subconscientemente, sempre suspeitara de que Nancy Harmon e Nancy Eldredge eram a mesma pessoa.

 

Estava tanto frio. Havia na sua boca um travo a areia. Areia.

 Sentia que Ray a apertava de encontro a ele.

 - Nancy, que se passa? Onde estão as crianças?

 Tentou erguer a mão, mas sentiu que esta lhe caía. Tentou falar, mas nenhuma palavra se lhe formava nos lábios. Ouviu Dorothy dizer:

- Pegue nela, Ray. Leve-a para casa. Temos de arranjar quem ajude a procurar as crianças.

 As crianças. Tinham de as encontrar. Nancy tentou falar a Ray, mas as palavras não saíram. Ouviu-o perguntar:

- Mas que aconteceu, Dorothy? Que se passa com ela?

- Ray, temos de chamar a Polícia.

 - A Polícia?! - Nancy sentiu resistência na voz dele.

 - Claro, Ray. Depressa! Todos os momentos são preciosos. Não vê que, agora, não pode proteger Nancy? Toda a gente a vai conhecer através daquela fotografia.

 A fotografia... Nancy sentiu que estava a ser transportada. Compreendeu, remotamente, que tremia. Mas não era sobre isso que tinha de pensar.

 Era na fotografia que a representava com o fato saia e casaco de tweed que comprara depois de a condenação ser arquivada.

 O Estado não a voltara a julgar. Carl morrera, e o estudante que testemunhara contra ela desaparecera, em consequência do que fora posta em liberdade.

 Mas o acusador oficial declarara: Não pense que isto acabou.

 Nem que tenha de gastar o resto da minha vida, hei-de descobrir forma de obter uma condenação.

 Mais tarde, quando recebera autorização para deixar o estado, cortara o cabelo, pintara-o e fora às compras.

 Comprara então aquele fato, diferente do género de roupas que Carl gostava que ela usasse e que ela detestava. Depois partira na última camioneta da noite para Boston.

 Aquela fotografia... fora tirada no terminal das camionetas, sem que ela o notasse. Pensara simplesmente em afastar-se e tentar recomeçar.

 Quero morrer, pensou. Quero morrer.

 Ray caminhou rapidamente, tentando protegê-la com o seu casaco. O vento fustigava-a através da roupa molhada. Ele não a podia proteger; nem mesmo ele a podia proteger. Era tarde demais. Talvez tivesse sido sempre tarde demais.

 Era como da outra vez, e descobririam Michael e Missy da mesma forma que haviam encontrado Peter e Lisa - os corpos inchados e as algas e os sacos de plástico a cobrirem-lhes os rostos.

 Eles têm de estar em casa. Dorothy abria a porta e dizia:

- Vou telefonar à Polícia, Ray.

 Nancy sentiu-se recuar no tempo e perder a consciência.

 

 Não... Não. Oh, que actividade. Todos corriam como formigas, pela casa e pelo pátio.

 Humedeceu os lábios ansiosamente. Estavam tão secos, quando todo o seu corpo estava húmido. A transpiração escorria-lhe pelo pescoço e pelas costas.

 Trouxera as crianças para o quarto onde montara o telescópio. Aí podia observá-las até acordarem.

 Talvez desse um banho à pequenita, a esfregasse com pó de talco e a beijasse. Tinha todo o dia para passar com as crianças. A maré não estaria cheia antes das sete horas.

 Nessa altura, a noite teria caído, e ninguém veria nem ouviria.

 Levaria dias até serem lançadas para a praia. Seria tal qual como da outra vez. Observou mais carros da Polícia subindo a estrada de terra batida até às traseiras da casa de Nancy e sentiu-se maravilhosamente recompensado.

 Perguntou a si mesmo se ela estaria a chorar.

 Ela não chorara uma única vez durante o julgamento, até ao último momento, depois de o juiz a ter sentenciado à câmara de gás.

 Os funcionários do tribunal tinham-na algemado, e o seu cabelo comprido tombara cobrindo-lhe o rosto manchado de lágrimas.

 Lembrava-se da primeira vez que a vira atravessando as instalações da universidade.

 Sentira-se imediatamente atraído por ela - pela forma como o vento lhe fazia ondular sobre os ombros o cabelo de um louro-avermelhado, pelos encantadores olhos azuis.

 Ouviu um soluço. Nancy? Evidentemente que não. Fora a pequenita. A filha de Nancy. Deixou o telescópio. A criança parecia-se extraordinariamente com a mãe.

 Bem, já era altura de o efeito do narcótico começar a passar; estavam inconscientes há perto de uma hora.

 A contragosto, afastou-se do telescópio e foi colocar as crianças nos extremos opostos do sofá de veludo que cheirava a mofo. A pequenita estava agora a chorar. Ele sentou-a e abriu-lhe o fecho de correr do casaco. Ela recuou, fugindo dele.

 - Então, então - murmurou em tom tranquilizador. - Está tudo bem.

 Agora era o rapaz que se mexia, sentando-se vagarosamente.

 - Quem é o senhor? - perguntou ele. Esfregou os olhos. - Onde é que estamos?

 Uma criança que articulava as palavras, que falava correctamente. óptimo. Era mais fácil tratar com crianças bem-educadas. Não faziam cenas. Como os outros. Tinham ajoelhado na mala do automóvel sem a menor dúvida quando ele lhes dissera que iam pregar uma partida à mãe. Agora falava com o rapazinho:

 - É um jogo. Eu sou um velho amigo da tua mãe e ela quer brincar aos aniversários. Sabias que ela faz hoje anos?

O rapaz, Michael, objectou:

- Não gosto deste jogo. - Ergueu-se com insegurança e aproximou-se de Missy, que se agarrou a ele. - Agora vamos para casa.

 - Larga a tua irmã - ordenou ao pequeno.

 Afastou-a com uma sacudidela, após o que arrastou Michael até à janela.

 - Sabes o que é um telescópio?

 - Sei. É como o binóculo que o meu pai tem. Faz as coisas maiores.

 - É isso mesmo. És muito esperto. Agora espreita por aqui. - O pequeno ajustou o olho ao telescópio. - Diz-me o que é que estás a ver.

 - Estou a ver a minha casa.

 - E o que é que lá vês?

 - Muitos carros, carros da Polícia. Que aconteceu?

 Ele olhou com satisfação para o rosto preocupado.

 Um ruído fraco veio da janela.

 Estava a começar a cair granizo.

 - Sabes como é estar morto? - perguntou.

 - Quer dizer ir para o céu - respondeu Michael.

 - É isso mesmo. E esta manhã a tua mãe foi para o céu. É por isso que estão lá os carros da Polícia. O teu pai pediu-me para ficar com vocês algum tempo e disse que tu devias cuidar da tua irmã.

 Os lábios de Michael tremeram.

 - Se a mãe foi para o céu, eu também quero ir.

 Passando os dedos pelo cabelo de Michael, ele embalou Missy, que continuava a chorar.

 - Hás-de ir - prometeu. - Ainda esta noite.

 

 As primeiras notícias foram telegrafadas ao meio-dia. Os jornalistas da rádio preparavam-se para explorar a história e mandaram procurar nos arquivos recortes do julgamento de Nancy Harmon. Editores de jornais fretaram aviões para enviar para Cape Cod os seus melhores repórteres criminais.

 Um proeminente psiquiatra de Boston, o Dr. Lendon Miles, estava a gozar o início da sua hora de almoço. Mrs. Markley acabara de sair.

 Após um ano de intenso tratamento, ela começava finalmente a conhecer-se melhor.

 Satisfeito, Lendon ligou o rádio que tinha junto à secretária para ouvir o noticiário, que começava a ser transmitido.

 A sombra de uma antiga dor perpassou-lhe pelo rosto. Nancy Harmon, a filha de Priscilla. Após catorze anos, revia ainda com nitidez Priscilla Kiernan: o corpo elegante, o sorriso luminoso.

 Começara a trabalhar para ele um ano depois da morte do marido. Tinha então trinta e oito anos, dois anos mais nova do que ele.

 Quase imediatamente, começara a levá-la a jantar fora sempre que trabalhava até tarde, e em breve compreendera que, pela primeira vez na sua vida, a ideia de casamento lhe parecera lógica e até mesmo essencial. Pouco a pouco, ela contara-lhe a sua vida. Casada, após o seu primeiro ano na universidade, com um piloto civil, tinha uma filha. O casamento fora obviamente feliz.

 Depois, num voo para a Índia, o marido contraíra uma pneumonia e morrera ao fim de poucos dias. Lendon nunca vira a filha de Priscilla, que fora estudar para S. Francisco pouco depois de ela ir trabalhar para ele.

 Em Novembro, Priscilla tirara uns dias de férias para visitar Nancy, e Lendon conduzira-a ao aeroporto.

 - Sabe que vou sentir imenso a sua falta - dissera-lhe enquanto esperavam a chamada para o voo.

 - Espero que sim - respondera ela de olhos nublados. - Sinto-me preocupada. Nancy mostra-se ultimamente tão abatida nas suas cartas.

 - Talvez eu devesse ir consigo.

 - Oh, não. Talvez eu esteja a exagerar ao preocupar-me tanto.

Insensivelmente, os dedos de ambos tinham-se apertado.

- Não se preocupe. Os filhos resolvem os seus próprios assuntos, e se houver algum problema, eu posso lá ir no fim-de-semana, se você quiser...

 - Não queria maçá-lo...

Uma voz soou no altifalante: Voo 569 para S. Francisco... Embarque pela porta...

 - Priscilla... não compreende que a amo?

 - É bom ouvir isso. Penso que... sei... também o amo.

 Fora o seu último momento juntos. Um começo - uma promessa de amor.

 Ela telefonara-lhe na noite seguinte, dizendo-lhe que precisava de falar com ele. Encontrava-se nesse momento a jantar num restaurante com Nancy, mas voltaria a ligar assim que regressasse ao hotel. Estaria ele em casa? Esperou toda a noite, mas a chamada não veio.

 No dia seguinte soube do acidente. A direcção do automóvel que ela alugara falhara, o veículo despistara-se, voltara-se e caíra numa ravina. Provavelmente deveria ter ido ter com Nancy. Porém, quando finalmente conseguiu saber do seu paradeiro, falou com Carl Harmon, o professor, que lhe disse que ele e Nancy tencionavam casar-se. Pareceu-lhe perfeitamente competente e dominando a situação. Haviam contado à mãe de Nancy os seus planos durante o jantar.

 Mrs. Kiernan, numa reacção natural, mostrara-se preocupada com a juventude de Nancy. Seria enterrada em S. Francisco, junto à sepultura do marido; as suas famílias, de resto, havia gerações que residiam na Califórnia. Nancy estava a reagir bem.

 Harmon era de opinião que deviam casar-se imediatamente, na intimidade. Lendon nada podia fazer.

 Este Prof. Harmon parecia-lhe sério e correcto, e sem dúvida Priscilla ficara apenas preocupada com a ideia de Nancy dar um passo tão decisivo como o casamento, tendo apenas dezoito anos.

 Aceitara então uma oferta para leccionar na Universidade de Londres, razão por que estivera, durante vários anos, ausente do país e que explicava o facto de só ter sabido do julgamento Harmon depois de este ter terminado.

 Na Universidade de Londres, conhecera Allison, que também ensinava na faculdade e o sentimento de comparticipação que Priscilla lhe começara a desvendar tornara-lhe impossível prosseguir a sua vida de solteiro. De vez em quando, interrogava-se sobre o desaparecimento de Nancy Harmon. Vivia na área de Boston havia dois anos, e afinal esta encontrava-se apenas a hora e meia de distância.

 Ouvindo o ruído do intercomunicador, ergueu o auscultador.

 - Mrs. Milles ao telefone, doutor - anunciou a sua secretária.

 A voz de Allison reflectia a preocupação que a dominava.

 - Querido, por acaso ouviste a notícia acerca daquela Nancy Harmon?

 - Sim, ouvi. - Ele contara a Allison tudo sobre Priscilla.

 - Que é que vais fazer? - A pergunta dela robusteceu a decisão que ele Subconscientemente já tomara.

 - Aquilo que devia ter feito há anos, tentar ajudá-la. Eu telefono-te assim que puder.

 - Deus te abençoe, querido.

 Lendon carregou no botão do intercomunicador e falou à sua secretária.

 - Peça ao Dr. Marcus para atender os meus doentes desta tarde, se faz favor. Diga-lhe que é um assunto urgente. Sigo imediatamente para Cape Cod.

 

 - Estamos a pesquisar o fundo do lago, Ray. Estamos a lançar apelos pela rádio e pela televisão, e constantemente nos chegam reforços de toda a parte para auxiliar a busca. - O chefe Jed Coffin, da Polícia de Adams Port, tentava adoptar o tom entusiástico e optimista que normalmente usaria se duas crianças tivessem desaparecido.

 Mas era difícil parecer tranquilizador e solícito.

 Ray enganara-o - apresentara-o a sua mulher, que declarara ser originária da Virgínia, e fornecera-lhe vários dados e informações, nenhum dos quais verdadeiro. E o chefe nada adivinhara nem de nada suspeitara. Para o chefe Coffin, o que acontecera era óbvio.

 Aquela mulher lera o artigo no jornal, compreendera que a sua identidade se tornaria conhecida e ficara doida de tão furiosa. Fizera àquelas crianças o mesmo que às outras.

 Estudando astuciosamente Ray, percebia que as deduções deste não se afastavam muito das dele.

 - O Dr. Smathers ainda está lá em cima com ela?

 - Está... Oh, meu Deus! - Ray sentou-se à mesa da sala de jantar e enterrou o rosto entre as mãos.

 Teria ele despontado algo em Nancy ao pedir-lhe que festejasse o seu aniversário? E depois, aquele artigo... Teria...?, Não!, Ergueu a cabeça e olhou à sua volta, afastando a vista do polícia que permanecia de pé junto à porta das traseiras.

 - Que é? - perguntou o chefe Coffin.

 - Nancy é incapaz de fazer mal às crianças.

 Seja o que for que tenha acontecido, não foi isso.

 - A sua mulher, estando em si, não lhes faria mal, mas já vi mulheres que perdem o controle, e então não há nada a fazer...

Ray ergueu-se. O seu olhar passou pelo chefe, ignorando-o.

 - Preciso de ajuda - disse. - De verdadeira ajuda.

 A sala estava num caos.

 A Polícia fizera uma busca rápida pela casa, e um fotógrafo da Polícia tirava fotografias da cozinha, onde a cafeteira caíra, derramando o café pelo chão. O telefone tocava incessantemente. O polícia que atendia o telefone aproximou-se da mesa.

 - As agências noticiosas já sabem do caso. Daqui a uma hora temos aí uma multidão de repórteres.

 As agências noticiosas.

 Ray recordou aquele olhar perseguido que tanto tempo levara a abandonar o rosto de Nancy.

 Lembrou-se da fotografia no jornal dessa manhã, com a mão erguida, como se tentasse defender-se de um golpe. Afastou o chefe Coffin e subiu apressadamente a escada até ao seu quarto. O médico estava sentado ao lado de Nancy, segurando-lhe as mãos.

 Ela tinha os olhos fechados. Dorothy ajudara Ray a despir-lhe a roupa molhada e vestira-lhe um roupão amarelo, macio.

 Ray curvou-se sobre ela.

 - Querida, por favor, tens de ajudar os pequenos. Precisamos de os descobrir. Tenta, Nancy, por favor!

- Ray, se fosse a si, não faria isso. - O rosto sensível do Dr. Smathers era vincadamente enrugado. - Ela teve um choque terrível. O seu espírito está a lutar para poder enfrentar a situação. Dei -lhe uma injecção para a libertar da ansiedade.

 - Mas nós precisamos de saber o que aconteceu - objectou Ray veementemente.

 - Talvez ela tenha visto alguém a levar os pequenos. Nancy, vou-te ajudar a sentar, querida. Tu podes. Vamos, faz um esforço.

 Ela sentia-se tão pesada e tão vaga: fora assim que se sentira durante muito tempo - a partir da noite em que a mãe falecera... ou talvez até antes.

 Lembrava-se das muitas noites em que as suas pestanas pareciam coladas, de tão exausta. Carl fora tão paciente com ela. Mas não queria agora pensar nisso - não queria pensar em Carl, nem em Rob Legler, o atraente estudante que parecia gostar dela. As crianças ficavam tão contentes, tão felizes, quando ele lá estava. Ela considerava-o um verdadeiro amigo.

 Ray estava a erguê-la.

 - Assim mesmo. Assim é que é, Nancy. Doutor, acha que uma chávena de café?...

O médico fez um sinal de assentimento.

 - Vou pedir a Dorothy que o faça. Café. Ela estava a fazer café quando vira aquela fotografia no jornal.

 Nancy abriu os olhos.

 - Ray - balbuciou. - Eles vão saber. Toda a gente vai saber. - Mas havia ainda outra coisa. - As crianças. - Ela apertou-lhe o braço. - Ray, encontra-as!

 - Calma, querida. É para isso que precisamos da tua ajuda, para que nos contes. O mais insignificante pormenor. Precisamos que concentres as tuas ideias por alguns minutos.

 Dorothy surgiu, trazendo uma chávena de café fumegante.

 - Fiz café instantâneo. Como está ela?

 - Está a voltar a si.

 - O chefe Coffin está ansioso por começar a interrogá-la.

 - Ray! - Presa de pânico, Nancy apertou fortemente o braço de Ray.

 - Querida, nós temos de encontrar os pequenos. Não faz mal...

Ela engoliu o café.

 Ainda se conseguisse pensar... se afastasse aquela terrível sonolência.

 Os lábios pareciam-lhe de borracha, mas tinha de falar. Queria ir para baixo, fazer com que eles encontrassem os pequenos. Ergueu-se com dificuldade. Com um esforço supremo, avançou até à porta. O braço de Ray em torno da sua cintura amparava-a. Nem sentia os pés.

 Começaram a descer as escadas. O chefe Coffin encontrava-se na sala de jantar. Sentia a sua hostilidade. Era como da outra vez.

 - Como se sente, Mrs. Eldredge?

 Era uma pergunta formal, desinteressada.

 - Estou bem.

 - Nós estamos a procurar os seus filhos. Tenho toda a esperança de que os encontremos rapidamente. Mas a senhora tem de nos ajudar. Quando foi que os viu pela última vez?

- Uns minutos antes das dez. Pu-los lá fora para brincarem e subi as escadas para ir fazer as camas.

 - Quanto tempo esteve lá em cima?

 - Dez minutos, não mais de quinze.

 - Depois, o que é que fez?

 - Vim para baixo e liguei a máquina de lavar roupa. Depois vi o rapaz a deixar o jornal e fui buscá-lo.

 - E viu o artigo a seu respeito.

 Nancy olhou fixamente em frente e assentiu com a cabeça.

 - Como reagiu ao ver esse artigo?

 - Penso que comecei a gritar... não sei.

 - Que aconteceu à cafeteira?

 - Fi-la cair. Foi sem querer. Sentia um vulcão dentro de mim. Soube que toda a gente iria dizer que eu tinha morto os pequenos. E o Michael não deve nunca ouvir falar nisso. Deitei o jornal na lareira. Ele começou a arder. Depois saí para chamar os pequenos.

 - Viu-os?

 - Não. Comecei a chamá-los. Corri para o lago.

 - Mrs. Eldredge, isto é muito importante: porque é que foi para o lago? O seu marido diz-me que as crianças nunca tinham desobedecido às ordens de não irem para lá.

 - Porque Peter e Lisa foram afogados. Porque eu tinha de encontrar o Michael e a Missy. A luva de Missy estava presa ao baloiço. Ela está sempre a perder luvas. Corri para o lago. Tinha de encontrar os pequenos. Vai ser como da outra vez... - A sua voz desfaleceu.

 O chefe Coffin endireitou-se. O seu tom tornara-se formal.

 - Mrs. Eldredge - disse -, é meu dever informá-la de que tem direito a consultar um advogado antes de responder a quaisquer perguntas subsequentes, e que o que quer que diga poderá ser usado contra si.

 Sem esperar pela resposta dela, levantou-se e saiu pela porta das traseiras, sentindo minúsculas partículas de granizo a fustigarem-lhe o rosto.

 Entrou no automóvel e ordenou ao motorista:

- Para o lago.

 Maushop era um dos mais extensos e mais profundos lagos do Cape.

 Na margem apinhavam-se observadores, que olhavam silenciosamente a área demarcada por um cordão, reservada aos mergulhadores e respectivos aparelhos e à Polícia.

 O chefe Coffin foi direito a Pete Regan, o tenente que dirigia a operação. O eloquente encolher de ombros de Pete respondeu à pergunta que não chegou a ser formulada. Curvando os ombros no interior do sobretudo, o chefe bateu com os pés, enquanto o granizo se lhe derretia nos sapatos. Homens que arriscavam a vida por causa de Nancy Eldredge. Só Deus sabia onde essas pobres crianças seriam encontradas. Esta situação apenas demonstrava as contingências da jurisprudência... um pormenor técnico e uma assassina condenada sai em liberdade, só porque um advogado esperto convence um par de juizes complacentes a declarar sem efeito o julgamento.

 - Pete, quanto tempo vão aqueles tipos continuar a mergulhar?

 - Já lá estiveram duas vezes. Vão tentar mais uma vez e depois descansam. - Apontou para o equipamento de televisão. - Parece que vamos estar hoje nos títulos dos jornais. É melhor preparar uma declaração.

 Com dedos entorpecidos, o chefe procurou na algibeira.

 - Já escrevinhei uma. - E leu rapidamente: - Estamos a fazer um esforço em massa para encontrar os pequenos Eldredge. Todos os quarteirões da vizinhança, bem como as zonas arborizadas próximas, estão a ser batidos por voluntários. Alguns helicópteros fazem um reconhecimento aéreo. A pesquisa no lago Maushop, de vido à proximidade da casa dos Eldredges, deve ser considerada um prolongamento normal da investigação.

 Alguns minutos mais tarde, depois de ter feito aquela declaração aos repórteres em número crescente, um deles perguntou:

- É verdade que Nancy Eldredge foi encontrada histérica e ensopada, na zona do lago Maushop, depois de os seus filhos desaparecerem?

 - É verdade.

 A seguir, as perguntas vieram, abundantes e rápidas.

 - Mrs. Eldredge já tinha conhecimento do artigo que saiu hoje no Community News a seu respeito?

 - Penso que sim.

 - Qual foi a reacção dela a esse artigo?

 - Não sei dizer.

 - O senhor já tinha conhecimento da identidade dela?

 - Não, não tinha. - O chefe falou por entre dentes. - Nada mais.

 Antes que pudesse afastar-se, um repórter do Heradd de Boston bloqueou-lhe o caminho e perguntou em voz alta:

- Não é verdade que nos últimos seis anos se têm verificado vários casos, que não foram solucionados, de mortes de crianças, tanto no Cape como na região vizinha?

 - É verdade.

 - Chefe Coffin, há quanto tempo vive Nancy Harmon no Cape?

 - Há seis anos, creio eu.

 - Obrigado, chefe.

 

 APÓS o choque decorrente do conhecimento abrupto de que a mulher de Ray Eldredge era a notória Nancy Harmon, Jonathan Knowles instalara-se à sua secretária e começara a estudar o caso Harmon, tal como planeara.

 Começou pelo artigo publicado no jornal do Cape.

 Com pormenores implacáveis, reconstituía o passado de Nancy Harmon como jovem mulher de um professor universitário... duas crianças... uma casa nas instalações da faculdade.

 Uma situação ideal até ao dia em que o professor mandara ir a sua casa um estudante bem parecido, a fim de reparar o queimador de óleo.

 O artigo continha passagens dos depoimentos no julgamento.

 O estudante Rob Legler contara como conhecera Nancy.

 - Quando o Prof. Harmon recebeu o telefonema da mulher sobre o queimador de óleo, eu estava no seu gabinete. Como não há nenhuma reparação mecânica que eu não faça, ofereci-me para lá ir. Embora ele não quisesse que eu fosse lá a casa, acabou por ceder, porque não conseguiu falar com o serviço de reparações.

 - Ele deu-lhe algumas instruções específicas a respeito da sua família? - perguntara o procurador distrital.

 - Deu. Disse-me que a mulher não se encontrava bem e que eu não a devia maçar; se precisasse de alguma coisa, devia telefonar-lhe.

 - Seguiu as instruções do professor?

 - Teria seguido, mas não pude evitar o facto de a mulher dele ter andado sempre atrás de mim, como se fosse um cão.

 - Protesto! - Mas o advogado de defesa viera demasiado tarde.

 O facto fora apontado.

 Depois, o estudante foi interrogado sobre se tivera algum contacto físico com Mrs. Harmon.

 - Tive. - A resposta fora directa.

 - Como aconteceu isso?

 - Bem, alguns dias depois voltei lá, a levar uma peça nova. E quando lhe estava a mostrar o interruptor de emergência...

 .- O Prof. Harmon não lhe tinha dito para não incomodar Mrs. Harmon?

 - Ela insistiu em saber como funcionava. Disse que precisava de saber como tratar das coisas na sua casa. Estava inclinada sobre mim para experimentar o interruptor e eu pensei: Porque não? Por isso tentei uma aproximação.

 - Que foi que Mrs. Harmon fez?!

 - Gostou. Tenho a certeza.

 - Pode fazer o favor de explicar exactamente o que aconteceu?

 - Eu voltei-a e beijei-a e depois de um momento ela afastou-se, mas com relutância. Eu disse qualquer coisa sobre ter sido muito bom.

 - Que foi que Mrs. Harmon disse?

 - Limitou-se a olhar para mim e disse, quase como se não estivesse a falar comigo: Tenho de me ir embora. Eu pensei então que não devia arranjar problemas. Quer dizer, não queria fazer nada que me levasse a correr o risco de ser expulso da faculdade e a acabar por ser recrutado. Por isso disse: Oiça, Nancy, podemos arranjar as coisas de maneira a encontrarmo-nos sem que ninguém saiba. Você não pode sair daqui, tem as crianças.

 - Como foi que Mrs. Harmon respondeu a essa pergunta?

 - Bem, é curioso. Exactamente nesse momento, O pequeno Peter, desceu as escadas. Era mesmo um miúdo sossegado, nem abria o bico. Ela pareceu fora de si e disse: Mas as crianças vão ficar sufocadas.

 - Mr. Legler, isto é crucial. Tem a certeza de estar a repetir a frase exacta proferida por Mrs. Harmon?

 - Tenho, sim. Mas é claro que não se acredita que alguém que diz uma coisa destas está a falar a sério.

 - Em que data fez Nancy Harmon esta afirmação?

 - Foi no dia 1 de Novembro. Lembro-me porque, quando voltei à faculdade, O prof. Harmon insistiu em dar-me um cheque por ter consertado o queimador.

 - Dia 1 de Novembro... e quatro dias depois os pequenos Harmon desapareceram do automóvel da sua mãe e acabaram por dar à costa numa praia da baía de S. Francisco, com sacos de plástico enfiados na cabeça... na realidade, sufocados.

 O advogado de defesa tentara reduzir o impacto da história.

 - Continuou a beijar Mrs. Harmon?

 - Não, ela subiu a escada com os pequenos.

 - Então, só temos o seu testemunho de que ela gostou do beijo que lhe deu à força.

 - Oh, pode ter a certeza de que eu sei quando uma miúda é receptiva.

 Seguidamente, Jonathan leu o depoimento de Nancy.

 - Sim, ele beijou-me. Sim, penso que sabia o que ele ia fazer e que o deixei.

 - Lembra-se também de ter declarado que os seus filhos iam ficar sufocados?

 - Sim, lembro-me.

 - Que queria dizer com isso? - Segundo o artigo, Nancy olhara para além do seu advogado, contemplara sem ver os rostos das pessoas presentes no tribunal e dissera numa voz sonhadora: Não sei.

 Jonathan sacudiu a cabeça.

 Nunca devia ter sido permitido que aquela mulher depusesse. Ela apenas prejudicara o seu próprio caso. Que se teria passado com ela?, perguntou-se. Era como se não quisesse ser absolvida.

 Depois de ter acabado de ler o artigo, Jonathan dirigiu a sua atenção para o volumoso processo que Kevin lhe enviara. Leu-o rapidamente, reunindo e assimilando as informações, sublinhando os factos irrefutáveis a que desejava regressar mais tarde.

 A campainha da porta soou; Jonathan ergueu-se da cadeira, surpreendido de ter as articulações rígidas por ter estado sentado. Para seu espanto, o visitante era um polícia.

 O jovem agente aceitou o convite para entrar, após o que disse:

- Desculpe vir maçá-lo, mas estamos a investigar o desaparecimento dos pequenos Eldredge. - A seguir, enquanto Jonathan o fitava, puxou de um livro de apontamentos, percorreu com o olhar a casa bem ordenada e começou a fazer perguntas: - Vive aqui só, não é verdade? - Sem responder, Jonathan dirigiu-se para a maciça porta de entrada, que abriu.

 Observou então os automóveis desconhecidos que desciam a rua e os homens de rosto sombrio e de gabardina que enxameavam pela vizinhança.

 

 - Beba isto, Nancy. Vai fazer-lhe bem. Precisa de toda a sua força. - A voz de Dorothy era persuasiva. Nancy sacudiu a cabeça.

 Dorothy pousou a chávena sobre a mesa, esperando que o aroma da sopa de legumes frescos bem temperada a tentasse.

 - Fi-la ontem - assedou Nancy numa voz sem entoação - para o almoço dos pequenos. Eles devem estar com fome.

 Ray estava sentado a seu lado, com o braço protectoramente pousado sobre as costas da cadeira dela.

 - Não te tortures, querida - disse em voz calma.

 

 Depois de prestar a sua declaração aos órgãos de informação, o chefe Coffin regressara à casa dos Eldredges, tendo entrado exactamente a tempo de ouvir as palavras de Nancy.

 O seu olhar experimentado captou a fixidez do olhar dela, a rigidez de mau presságio das suas mãos e do seu corpo.

 Teriam muita sorte se ela fosse capaz de dizer sequer como se chamava dentro de pouco tempo.

 - Ray, posso falar-lhe em particular? - perguntou bruscamente.

 Por um instante, Ray colou o rosto ao de Nancy.

 - Fica sossegada, querida. Eu volto já.

 Embora relutantemente, Jed Coffin não pôde deixar de sentir admiração pelo jovem alto que o seguiu até à sala de jantar.

 Havia uma autoconfiança corajosa em Ray, mesmo naquelas circunstâncias.

 Procurando retomar a sua posição de autoridade, Jed olhou vagarosamente à sua volta. As tábuas do soalho de carvalho brilhavam ligeiramente sob os tapetes arredondados. As paredes estavam cobertas com quadros de cenas familiares.

 O quadro grande, sobre a lareira, representava o jardim, decorado com pedras, de Nancy Eldredge.

 Uma pintura junto do sofá captara o sabor de retorno a casa em Sesuit Harbor ao pôr do Sol, com os barcos à vela de regresso.

 A aguarela da uva-dos-montes tinha por fundo o perfil da velha Mansão Hunt - A Vigia.

 Jed notara ocasionalmente que Nancy Eldredge pintava alguns pontos da cidade, mas nunca imaginara sequer que ela tivesse talento.

 - Que deseja, chefe? - A voz de Ray era fria.

 - Quem é o advogado da sua mulher? - perguntou bruscamente Jed.

 A resposta traiu uma incerteza hesitante.

 Tal como Jed calculara, Ray tentava ainda pretender que sua mulher era como qualquer outra mãe preocupada com o desaparecimento dos filhos.

 - Não contactámos nenhum advogado - respondeu ele em tom vencido. - Eu esperava que talvez, com tanta gente a procurar...

- A maior parte das buscas vai ser em breve suspensa - declarou Jed. - Com este tempo, não se vê nada. Mas eu tenho de levar comigo a sua mulher para a interrogar. E se você não arranjou ainda um advogado, eu faço com que o tribunal nomeie um.

 - Não pode fazer isso! - replicou Ray, que em seguida fez um esforço declarado para se dominar. - Quero dizer, isso vai dar cabo dela. Durante anos ela teve pesadelos: encontrava-se numa esquadra da Polícia a ser interrogada, e depois levavam-na à morgue para identificar os filhos. Meu Deus, mesmo agora ela está em estado de choque, homem! Está a tentar conseguir que ela não seja capaz de nos dizer nada?

 - Ray, a minha missão é encontrar os seus filhos.

 - Sim, mas não viu o que aquele maldito artigo já lhe fez? E que sabe desse artigo? Qualquer pessoa suficientemente vil para inventar aquela história pode ter sido capaz de raptar os pequenos.

 - Estamos a investigar isso. Aquela secção é sempre assinada com o pseudónimo de um redactor, mas os artigos são na realidade colaborações que, quando aceites, implicam um pagamento de vinte e cinco dólares.

 - Bem, então quem é o autor?

 - Bem, foi isso que tentámos averiguar - respondeu Jed, irado. - Segundo a carta que acompanhava a história, esta era oferecida apenas na condição de não sofrer qualquer alteração e de ser publicada a 17 de Novembro, hoje. O editor disse-me que concordara com as condições e que enviara uma carta de aceitação e um cheque de vinte e cinco dólares, no dia 8 de Outubro, para J. R. Penrose, ao cuidado da Posta-Restante, Hyannis Port. Dois dias depois a carta foi levantada.

 - Por um homem ou uma mulher? - perguntou Ray.

 - Não sabemos. Nenhum empregado se lembra da carta, e até agora o cheque não foi descontado no banco.

 Ray contemplou a lareira. O seu olhar caiu sobre as reproduções de Michael e Missy quando bebés, pintados por Nancy, colocadas na prateleira do fogão de sala.

 Sentiu apertar-se-lhe a garganta.

 - Ray - advertiu Jed calmamente. - Nancy tem de se ir vestir para vir connosco até à nossa sede.

 - Não... não... por favor.

 O chefe e Ray voltaram-se e viram Nancy à entrada da sala, apoiada à arcada de carvalho entalhado.

 O seu olhar tinha uma expressão de quase alheamento.

 - Ela quis vir... - disse Dorothy, que se encontrava atrás de lá.

 Ray estreitou Nancy de encontro a si.

 - Não faz mal, Dorothy - atalhou rapidamente. Depois, a sua voz tornou-se terna. -  Querida, descontrai-te. Ninguém te vai fazer mal.

 Dorothy sentiu, no tom dele, que o seu papel de momento terminara.

 Sentiu-se inútil.

 - Ray - proferiu, tensa.

 - É ridículo incomodá-lo com isto, mas acabam de telefonar do escritório a lembrar-me que Mr. Kragopoulos vem ver a Mansão Hunt às duas horas. Quer que arranje outra pessoa para o acompanhar lá?

 - É-me completamente indiferente - respondeu Ray. Porém, acrescentou imediatamente: - Desculpe, Dorothy. Agradecia-lhe que fosse mostrar a casa; conhece A Vigia e pode vendê-la se a oferta tiver mesmo interesse.

 - Não avisei Mr. Parrish de que podíamos levar lá gente hoje.

 - O contrato de aluguer dele especifica claramente que podemos mostrar a casa a qualquer momento. Faça um telefonema a avisá-lo de que vai lá.

 Relutantemente, ela voltou-se para sair. Preferia ficar a partilhar da ansiedade deles.

 Desde esse primeiro dia em que entrara no escritório de Ray, este fora para ela um cabo de salvação. Depois de vinte e cinco anos a planear toda a sua actividade com Kenneth, ficara desenraizada e assustada.

 Porém, trabalhar com Ray, ajudá-lo a montar o seu negócio, preenchera muito desse vazio. Não poderia tê-lo em melhor conta se fosse o seu próprio filho. E, quando Nancy aparecera, sentira-se extremamente orgulhosa por ter merecido a sua confiança. Agora, porém, sentia-se como uma espectadora desnecessária. Em silêncio, pegou no casaco e no cachecol e saiu. Enquanto se dirigia rapidamente para o automóvel, viu o baloiço no extremo da propriedade.

 Quantas vezes empurrara as crianças naquele baloiço? Ainda ontem se oferecera para tomar conta de Missy e ir buscar Michael ao jardim-escola. Enquanto Nancy ia procurar tecido para uns cortinados.

 - Seja como for, tenho de ir ao tribunal ver uns títulos de propriedade - dissera - e à volta levo-os a tomar um gelado.

 Isto fora vinte e quatro horas antes.

 Olhou para o baloiço, indiferente ao granizo que lhe picava a cara...

- Dorothy!

Admirada, ergueu os olhos.

 Jonathan devia ter vindo de sua casa através do bosque.

 - Soube há pouco das crianças - disse ele. - Tenho de falar com o Ray. Talvez o possa ajudar.

 - Ele vai apreciar a sua intenção - observou Dorothy com insegurança. A preocupação que a voz dele reflectia era estranhamente reconfortante. - Eles estão lá dentro.

 - Li o artigo no jornal.

 Tardiamente, Dorothy reconheceu uma frieza na voz de Jonathan que a fez recordar-se de que lhe mentira quando lhe dissera que conhecera Nancy na Virgínia.

 Com ar fatigado, entrou no carro.

 - Tenho um encontro - explicou.

 E, sem lhe dar tempo a responder, ligou o motor. Só quando ficou com a visão enevoada compreendeu que tinha lágrimas nos olhos.

 

 O ruído dos helicópteros era agradável. Recordava-lhe a última vez, quando toda a gente, num raio de quilómetros em torno da faculdade, se dispersara à procura dos pequenos.

 Olhou pela janela da frente, sobranceira à baía. A água cinzenta estava coberta de gelo perto do cais. Na rádio tinham falado da hipótese de vendavais e de granizo. E desta vez o meteorologista acertara. Observou um bando de gaivotas que tentava em vão avançar contra o vento. Os helicópteros não poderiam prolongar o reconhecimento. A praia-mar seria às sete horas. Levaria então as crianças, através do sótão, até ao passeio da viúva no telhado.

 Com maré alta, a água cobria a praia lá em baixo, batia furiosamente contra a muralha e recuava até ao mar, no violento movimento de refluxo. Seria esse o momento de atirar as crianças... sobre o mar... para o fundo. Entretanto, dispunha de cinco horas para estar com elas.

 Mesmo o rapaz, agora que o observava, era uma linda criança. Mas era a pequenita que o atraía. Parecia-se tanto com Nancy. Voltou-se abruptamente da janela. As duas crianças continuavam deitadas sobre o sofá.

 O sedativo que lhes pusera no leite adormecera-as. O rapaz, cujo braço rodeava protectoramente a irmã, nem sequer se moveu quando ele pegou na pequenita. Cuidadosamente, levou-a para o quarto e deitou-a.

 A seguir foi à casa de banho e abriu as torneiras da banheira, que encheu, experimentando a temperatura da água com o cotovelo. Um pouco quente, mas estaria boa dentro de minutos.

 Abriu o armário dos remédios, de onde retirou a lata de pó de talco que nessa manhã roubara na loja dos Wiggins e enfiara na algibeira do casaco. Quando se preparava para fechar a porta, notou o pequeno e usado patinho de borracha, por detrás do creme de barbear. Rindo suavemente, pensando no motivo por que fora usado da última vez, lançou o pato para a banheira.

 Agarrando a lata de pó, voltou apressadamente ao quarto. Com facilidade tirou a Missy a camisola de lã, justa ao pescoço, bem no parapeito de observação em torno da chaminé, no telhado das casas do litoral da região, usado pelas mulheres dos marinheiros ausentes em viagem como a camisola interior. Três anos. Uma idade linda. Pegou nela, agarrando contra si o corpinho flexível.

 O telefone tocou. Enraivecido, apertou a criança mais de encontro a si. Que tocasse o telefone! Nunca, mas nunca, recebia chamadas. Porquê agora? Os olhos apertaram-se-lhe.

 E se fosse alguém a pedir-lhe para participar na busca? Poderia parecer suspeito não atender.

 Lançou Missy para cima da cama e fechou a porta do quarto antes de pegar no telefone na sala de estar.

 - Mr. Parrish? Fala Dorothy Prentiss, da Eldredge Realty. Desculpe avisá-lo tão em cima da hora, mas daqui a vinte minutos vou levar aí um possível comprador da casa. O senhor está aí ou uso a minha chave para entrar?

 

 DURANTE todo o percurso, desde Boston, Lendon Miles conservara o rádio sintonizado para uma estação noticiosa; a maior parte das notícias referia-se às crianças desaparecidas.

 Quando, finalmente, virou para Paddock Path, não teve dificuldade em encontrar a casa dos Eldredges.

 A meio caminho da estrada, um carro da televisão e vários carros da imprensa encontravam-se estacionados junto a uma casa onde se viam também dois carros da Polícia.

 O acesso ao caminho semicircular que conduzia à casa era bloqueado por um destes veículos.

 Lendon parou e um polícia aproximou-se.

 - Diga o que pretende, faz favor - disse em tom brusco.

 Antecipando-se à pergunta, Lendon estendeu-lhe o seu cartão, em que escrevera uma nota.

 - Agradeço-lhe que o leve a Mrs. Eldredge.

 - Faz favor de esperar um momento, doutor... - O agente voltou pouco depois. - Vou retirar o carro da frente. Pode estacionar no caminho e entrar em casa.

 Lendon passou por entre um grupo de repórteres e entrou.

 Nancy Eldredge encontrava-se de pé, junto da lareira da sala de estar, com um jovem alto, indubitavelmente o marido.

 Lendon reconhecê-la-ia em qualquer parte: o nariz finamente cinzelado, o perfil tão parecido com o de Priscilla.

 Ignorando o aspecto hostil de um polícia e o exame minucioso do homem de rosto enrugado que se encontrava junto à janela, foi direito a ela.

 - Eu devia ter vindo antes - disse.

 Os olhos da jovem tinham uma grande fixidez.

 - Pensei que viesse da última vez - disse-lhe ela -, quando a mãe morreu. Tinha a certeza de que vinha. E não veio.

 O olhar experiente de Lendon mediu os sintomas de choque: as pupilas dilatadas, o tom monótono da voz.

 - Pensei que estivesse ressentida comigo - disse. - Eu devia ter tentado ajudá-la.

 - Ajude-me agora!

 - Vou tentar, Nancy, prometo. - E pegou nas mãos frias dela.

 Ela vacilou, e o marido ajudou-a a sentar-se no sofá.

 Lendon observou-a enquanto um arrepio lhe fazia tremer todo o corpo.

 Ray embrulhou-a num cobertor.

 - Estás tão fria, querida - disse.

 Durante um instante segurou-lhe o rosto entre as mãos.

 Lágrimas corriam-lhe sob as pálpebras fechadas.

 O homem de rosto enrugado falou para Ray Eldredge:

- Tenho a sua autorização para representar Nancy como seu advogado? Garanto-lhe que tenho as qualificações necessárias.

 - Advogado - murmurou Nancy.

 Ainda podia ver a cara do advogado, da outra vez, que lhe repetia constantemente: Tem de me contar a verdade. Tem de confiar em mim. Nem ele acreditava nela. Mas Jonathan Knowles era diferente. Gostava da sua estatura e da forma cortês como sempre lhe falava.

 - Por favor - pediu a Ray.

 Ray assentiu com a cabeça.

 - Ficamos-lhe muito gratos, Jonathan.

 Jonathan voltou-se para Lendon.

 - Doutor, posso conhecer a sua opinião, como médico, sobre se é ou não aconselhável que Mrs. Eldredge seja conduzida à Polícia para ser interrogada?

 - É altamente desaconselhável - respondeu Lendon prontamente. - Recomendo insistentemente que qualquer interrogatório seja feito aqui.

 - Mas eu não me lembro de nada - objectou Nancy em voz cansada. Depois ergueu os olhos para Lendon: - Pode ajudar-me a recordar? Há alguma forma?

 - Que quer dizer? - perguntou Lendon.

 - Quero dizer se não há qualquer coisa que me possa dar, de forma que... se eu sei, ou se vi... Mesmo se existe uma parte horrível de mim mesma que possa fazer mal às crianças... Temos de saber isso também.

 - Nancy, eu não consinto que... - mas Ray calou-se quando viu a angústia no rosto dela.

 - É possível ajudar Nancy a lembrar-se do que aconteceu esta manhã, doutor? - perguntou Jonathan.

 - Talvez. Ela está provavelmente a sofrer de uma amnésia histérica como resultado daquilo que foi, para ela, uma experiência catastrófica. Com uma injecção de Amytal, ficará descontraída e provavelmente capaz de nos dizer a verdade tal como a conhece.

 - Respostas dadas sob a acção de um sedativo não seriam admissíveis em tribunal - cortou bruscamente Jed. - Não posso deixá-los interrogar Mrs. Eldredge nesse estado.

 O tinir do telefone teve o efeito de um tiro de pistola.

 Todos esperaram em silêncio até que o polícia de serviço ao telefone entrou na sala.

 - Uma chamada de fora para o chefe - disse.

 - É a tal chamada que eu tenho estado a tentar - disse-lhes Jed. - Mr. Knowles, importa-se de vir comigo? Você também Ray.

 Lendon Miles observou o alívio desaparecer do rosto de Nancy.

 - De cada vez que o telefone toca, penso que é alguém a dizer que encontrou os pequenos.

 - Calma - recomendou Lendon.

 - Nancy, diga-me quando foi que começou a ter dificuldade em recordar.

 - Quando Peter e Lisa morreram, mesmo antes disso. É difícil lembrar-me dos anos em que estive casada com Carl.

 - Isso pode ser por associar esses anos com as crianças e ser demasiado penoso recordá-las.

 - Mas durante esse tempo eu andava tão cansada. Tudo quanto fazia representava um esforço enorme. E, depois de as crianças desaparecerem, eu não me conseguia lembrar... Como agora. - A voz dela começara a subir de tom.

 Ray regressou à sala.

 A sua voz reflectia um enorme cansaço.

 - Doutor, importa-se de falar com Jonathan por momentos?

 - Com certeza. - Lendon dirigiu-se rapidamente à sala de jantar.

 O chefe Coffin continuava ao telefone, gritando ordens para um tenente que se encontrava na sede.

 - Sigam imediatamente para essa estação de correios e interroguem todos os empregados que estiveram de serviço no dia 30 de Outubro, e não parem de fazer perguntas até que alguém se lembre de quem levantou a carta do Community News dirigida a J. R. Penrose. Quero uma descrição completa, e quero-a já. - Atirou com força o auscultador.

 Também em Jonathan havia agora uma nova tensão.

 - Doutor - disse ele -, não podemos perder mais tempo a tentar descortinar qualquer coisa através da amnésia de Nancy. Para o pôr ao corrente, quero dizer-lhe que possuo o dossier completo do caso Harmon devido a um livro que estou a escrever. Passei as últimas três horas a estudar esse dossier e a ler o artigo que apareceu no jornal de hoje. Houve uma coisa que me impressionou, e eu pedi ao chefe Coffin que telefonasse ao procurador distrital em S. Francisco para ver se a minha teoria estava certa. O seu assistente respondeu agora. - Jonathan retirou o cachimbo da algibeira e apertou-o entre os dentes. - Como provavelmente sabe, nos casos de crime, a Polícia retém por vezes algumas informações a fim de ter algum auxílio ao analisar as pistas sem significado que lhe surgem. Ora, eu notei que em todas as notícias dos jornais de há sete anos as crianças foram descritas como usando camisolas vermelhas com um desenho branco quando desapareceram. Em nenhum dos jornais veio qualquer descrição pormenorizada desse desenho. Suspeitei, correctamente, que a natureza desse desenho tinha sido deliberadamente escondida. - Jonathan olhou directamente para Lendon, querendo fazê-lo compreender imediatamente a importância do que ia dizer-lhe. - O artigo que apareceu no Communih News de Cape Cod afirma claramente que, quando os pequenos Harmon desapareceram, vestiam camisolas vermelhas com o desenho de um barco à vela branco. É claro que Nancy sabia desse desenho. Mas só uma outra pessoa, para além dos principais investigadores de S. Francisco, o conhecia também. - A voz de Jonathan subiu de tom: - Se partirmos do princípio da inocência de Nancy, essa pessoa foi quem raptou os pequenos Harmon há sete anos atrás e quem escreveu a história que apareceu no jornal de hoje!

 - Então o senhor quer dizer... - começou Lendon...

 - Doutor, quero dizer que, se conseguirmos romper a amnésia de Nancy, teremos de o fazer rapidamente! Já convenci Ray a renunciar a qualquer imunidade. A necessidade mais premente é agora descobrir seja o que for que Nancy possa saber, antes de ser tarde demais para salvar as crianças.

 - Posso telefonar a uma farmácia para que enviem um medicamento?

 - Pode, doutor - concordou Jed. - Eu mando um carro nosso buscar seja o que for que precise. Espere, eu ligo para a farmácia.

 Calmamente, Lendon transmitiu por telefone as suas instruções.

 Quando terminou, o chefe Coffin estava a dizer:

- Lembre-se, Jonathan, de que vou ter um gravador naquela sala quando essa mulher for interrogada. Se ela confessar alguma coisa sob o efeito do sedativo, talvez não possamos utilizar directamente essa confissão, mas eu fico a saber que perguntas lhe hei-de fazer mais tarde.

 - Ela não vai confessar nada - replicou Jonathan, impacientemente. Acendeu o cachimbo e puxou vigorosamente uma fumaça antes de continuar. - Mas eu acredito que Nancy saiba mais sobre o desaparecimento dos filhos do que confessou há sete anos.

 Lendon ergueu o sobrolho e Jed franziu vincadamente o dele.

 Jonathan bateu com a palma da mão na mesa.

 - Não estou a dizer que ela fosse culpada. Estou a dizer que ela sabia mais do que disse; provavelmente sabia mais do que tinha a consciência de saber. Olhem para o retracto dela durante o julgamento. O seu rosto não tem qualquer expressão.

 Jed perdia claramente a paciência.

 - Você tão depressa me diz que Nancy Eldredge está demasiado doente para ser interrogada como me diz que ela sabe mais do que revelou. Oiça, Jonathan, escrever um livro sobre veredictos discutíveis pode ser um passatempo para si. Mas a vida dessas crianças não é nenhum passatempo para mim.

 - Espere. - Lendon reteve o chefe pelo braço. - Ir. Knowles... Jonathan... você acredita que seja o que for que Nancy saiba da morte dos seus primeiros filhos nos pode ajudar a encontrar os actuais?

 - Exactamente, Dr. Miles. Será possível fazer com que Nancy revele não só o que sabe dos acontecimentos da manhã de hoje, e que eu suspeito não ser nada, mas também informações sobre o passado que nem ela própria sabe que conhece.

 - É possível.

 - Então, peço-lhe que o tente.

 

 QUANDO Dorothy regressou a casa dos Eldredges, uma hora depois, na sala de jantar encontrava-se apenas Bernie Mills, o agente encarregado de atender o telefone.

 - Estão ali - disse ele, apontando com a cabeça em direcção à sala de estar.

 Dorothy atravessou rapidamente o hall e entrou na sala de estar. Nancy estava deitada no sofá de olhos fechados. Um estranho encontrava-se sentado a seu lado, falando-lhe em voz baixa. Ray, de rosto angustiado, e Jonathan, de expressão sombria, estavam sentados lado a lado.

 Por sua vez, Jed Coffin encontrava-se sentado a uma mesa por detrás do sofá, segurando um microfone apontado em direcção a Nancy.

 Quando compreendeu o que se passava, Dorothy deixou-se cair numa cadeira. Em silêncio, mergulhou as mãos geladas nas algibeiras fundas do seu casaco, agarrando inconscientemente o pedaço de lã felpuda e húmida no bolso do lado direito.

 - Como se sente, Nancy? Sente-se confortável? - A voz de Lendon era tranquila.

 - Tenho medo.

 - Porquê?

 - As crianças... as crianças.

 - Nancy, vamos falar desta manhã. Dormiu bem a noite passada? Quando acordou sentiu-se repousada?

 A voz de Nancy era pensativa.

 - Sonhei...

 - E sonhou com quê?

 - Sonhei com Peter e Lisa. Estariam agora tão crescidos... - Começou a soluçar. Depois, enquanto Jonathan retinha Ray com mão de ferro, gritou: - Como poderia eu tê-los morto? Eram os meus filhos!

 

 NORMALMENTE, Dorothy conduzia os potenciais clientes a uma breve volta pelas redondezas antes de lhes mostrar uma propriedade.

 Nesse dia, porém, com o granizo a bater fortemente no tejadilho do automóvel, dirigira-se directamente para A Vigia.

 Enquanto conduzia ao longo da traiçoeira e escorregadia estrada, olhou ocasionalmente o homem de compleição morena que ia a seu lado.

 Havia no comportamento de John Kragopoulos, homem de cerca de quarenta e cinco anos, uma cortesia inata que complementava a sua maneira de falar, ligeiramente característica.

 Kragopoulos contou a Dorothy que ele e a mulher estavam ansiosos por se instalarem numa zona frequentada por pessoas reformadas e abastadas que lhes assegurassem a rentabilidade do negócio, tanto durante o Inverno como na estação de veraneio.

 Revendo mentalmente estes pontos, Dorothy disse:

- A Vigia tem possibilidades ilimitadas para restaurante e estalagem. Nos anos 30 foi largamente remodelada e transformada num clube campestre. Mas a ideia não resultou, porque nesse tempo não havia pessoas suficientemente ricas para se tornarem sócias de clubes dispendiosos. Finalmente, Mr. Hunt adquiriu a casa e os terrenos, num total de trinta e seis mil metros quadrados, com trezentos metros de terra à beira da água e uma das mais belas vistas sobre o Cape.

 - A Vigta era originalmente a casa de um comandante naval, não era?

 - Era - respondeu Dorothy. - Foi construída cerca de 1690 por um comandante de baleeiro, que a ofereceu à noiva. Ainda tem o original passeio da viúva junto da chaminé e uma bandeira semicircular, bastante curiosa, sobre a porta de entrada.

 - A propriedade possui algum ancoradouro? - perguntou Kragopoulos. - Se me instalar aqui, penso comprar um barco.

 - Tem um muito bom - assegurou-lhe Dorothy.

 - Oh, meu Deus!

O automóvel derrapara perigosamente na estrada, estreita e sinuosa, que conduzia até A Vigia.

 Conseguiu endireitar a direcção e olhou ansiosamente para John Kragopoulos.

 Este, porém, limitou-se a observar que ela era bastante corajosa para conduzir em estradas vidradas pelo gelo.

 - Eu não me importo de guiar - respondeu ela com veemência. - Só tenho pena de que Mr. Eldredáe não tenha vindo connosco. Mas tenho a certeza de que o senhor compreende.

 - Compreendo muito bem - assentiu John Kragopoulos. - Que experiência terrível para os pais cujos filhos desaparecem! Só tenho pena de estar a tomar o seu tempo hoje. Como amiga e colaboradora dele, deve estar preocupada.

 Com determinação, Dorothy não se deixou arrastar pela simpatia que notava na voz dele. Em vez disso, exclamou:

- Cá estamos.

 Tornearam a última curva, e A Vigia apareceu em grande plano, recortada sobre o talude envolvente, revelando implacavelmente as suas telhas de madeira gastas pelo tempo, a tinta desmaiada das janelas, os degraus pouco firmes.

 Surpreendida, Dorothy constatou que Mr. Parrish deixara abertas as portas da grande garagem, o que se revelou vantajoso para eles pois lhes permitiu entrar e estacionar atrás da velha station.

 - Tenho a chave da porta das traseiras - explicou a John Kragopoulos enquanto saíam do automóvel. - Vamos correr até lá.

 Para seu desapontamento, Dorothy descobriu que a porta tinha ambas as fechaduras corridas.

 Procurou na sua mala a segunda chave e tocou à campainha, para lhe dar a conhecer que já tinham chegado.

 O eventual comprador parecia imperturbável enquanto sacudia o granizo do sobretudo.

 Ela teve de se dominar para não parecer nervosa nem se mostrar excessivamente faladora.

 Todas as fibras do seu ser a impeliam a mostrar a casa àquele homem o mais rapidamente possível.

 Veja isto... e isto. E agora deixe-me voltar para junto de Ray e de Nancy.

 Deliberadamente, procurou o lenço para limpar a cara, consciente, de súbito, de que trazia vestido o seu novo casaco cinzento de camurça, que se harmonizava com o tom do seu cabelo salpicado de branco e que escolhera para receber o visitante, e ainda porque pensava que talvez nesse dia Jonathan Knowles passasse pelo escritório.

 Talvez nesse dia ele se decidisse a convidá-la para jantar.

 Imaginara a situação havia apenas umas horas.

 - Mrs. Prentiss?

 - Sim. Desculpe. Acho que estou hoje um tanto distraída. - Aos seus ouvidos a voz soava-lhe falsamente animada.

 - A cozinha precisa de ser modernizada, mas é muito bem concebida e bastante espaçosa.

 O vento uivava lamentosamente em torno da casa.

 De qualquer ponto no cimo das escadas ouviu, por um instante, um som de lamento. Aquele lugar hoje perturbava-a. Rapidamente, indicou o caminho para as salas da frente, para mostrar a Mr. Kragopoulos a vista sobre o mar.

 O mau estado do tempo apenas permitia que o impressionante panorama fosse apreciado através das vidraças das janelas.

 A crista enraivecida das ondas esmagava-se contra os rochedos lá em baixo, após o que a água retrocedia.

 - Quando a maré está cheia, aqueles rochedos ficam totalmente cobertos - observou Dorothy. - E mesmo à esquerda, passado o ancoradouro, há uma bela praia arenosa que faz parte da propriedade.

 Conduziu-o através das salas, chamando-lhe a atenção para os magníficos soalhos, as lareiras maciças.

 No primeiro andar, ele observou os quartos espaçosos que podiam ser alugados a quem pretendesse ali pernoitar.

 Compreendeu o interesse que o edifício despertava em Kragopoulos pela forma como o via abrir portas de armários e torneiras.

 - O segundo andar apenas tem mais alguns quartos, e o apartamento alugado a Mr. Parrish é no terceiro - disse ela.

 Ele media a passos uma sala e não respondeu.

 Dorothy aproximou-se da janela.

 Depressa, depressa, pensava. A necessidade de regressar para junto de Ray e de Nancy era imperiosa. E se as crianças andassem lá fora, expostas àquele tempo? Quando deixara Missy no escritório, no dia anterior, Nancy pedira-lhe: Por favor, calce-lhe as luvas quando sair. As mãos dela ficam tão frias. Nancy sorrira ao entregar as luvas a Dorothy, dizendo: Como vê, elas não ligam - esta criança está sempre a perder luvas. E entregara-lhe uma luva vermelha com uma cara sorridente e outra de tecido axadrezado, azul e verde.

 Dorothy recordava-se do sorriso bem disposto com que Missy lhe estendera as mãos para que ela lhe enfiasse as luvas antes de saírem.

 Mais tarde, depois de terem ido buscar Mike e quando se preparavam para comer um gelado ela perguntara: Posso tirar as luvas para comer o meu sorvete?, E sentiu-se tocada pela evocação da criança.

 Voltou-se para John Kragopoulos, que acabara de tomar algumas notas.

 - Vamos ao apartamento - sugeriu abruptamente. - Acho que vai gostar da vista de lá. - Conduziu-o até à escada da frente e subiram rapidamente os dois andares. - Cá estamos. - Dorothy bateu à porta do apartamento. Não houve resposta. - É estranho. Não imagino onde é que ele iria sem se poder servir do carro. Mas eu tenho a chave.

 A porta foi bruscamente aberta do lado de dentro, e ante eles surgiu o rosto transpirado do inquilino, Courtney Parrish.

 - Que dia horroroso para vir aqui. - O tom de Parrish era cortês.

 Escancarou a porta e segurou-a para os deixar entrar.

 Os olhos dele fitavam, alternadamente, um e outro. Teriam ouvido a garota - aquele grito? Era uma loucura ficar tão impaciente.

 Depois da chamada telefónica, tivera de apanhar precipitadamente a roupa das crianças, deixara cair a lata de pó de talco, cujo conteúdo se espalhara e fora obrigado a limpar, dera a beber às crianças mais leite com sedativo, após o que lhes amarrara as mãos e os pés e lhes tapara as bocas com adesivo, ocultando-as em seguida num dos roupeiros mais fundos do quarto, no qual colocara uma fechadura nova, o que eliminava a hipótese de aquela louca da agência de bens imobiliários possuir um duplicado da chave.

 Eles tinham-se demorado lá em baixo o tempo suficiente para lhe permitir fazer uma última inspecção ao apartamento e se certificar de que de nada se esquecera.

 Decidira deixar a banheira cheia, de forma que Dorothy supusesse que ele se preparava para tomar banho...

- John Kragopoulos.

 Desajeitadamente, tentou limpar a mão transpirada na perna das calças antes de apertar a que lhe era estendida e que não podia ignorar.

 - Courtney Parrish - disse sombriamente. Notando a passageira expressão de desagrado que assomou ao rosto do outro homem quando as mãos se tocaram, tornou-se mais cortês. - Tenho muito prazer em conhecê-lo, Mr. Kragopoulos, e lastimo que faça um tempo tão mau a primeira vez que observa esta casa maravilhosa.

 A tensão no pequeno átrio diminuiu de forma tangível.

 Ele compreendeu que a maior parte dessa tensão emanava de Dorothy.

 Porque não? Ele observara-a vezes sem conta nos últimos anos, a entrar e a sair da casa dos Eldredges: uma daquelas lúgubres viúvas de meia-idade a tentar ser importante; uma parasita.

 O marido morto. Sem filhos. Era um milagre que não tivesse uma velha mãe doente, como a maior parte delas, o que as ajudava a passar por mártires.

 E, quando tinham filhos, concentravam-se neles.

 Tal como a mãe de Nancy fizera.

 - Como vê - declarava Dorothy a John Kragopoulos -, este apartamento é encantador, muito indicado para duas pessoas.

 - O senhor é talvez astrónomo? - perguntou John Kragopoulos a Courtney Parrish.

 Tardiamente, Parrish compreendeu que o telescópio estava apontado para a casa dos Eldredges.

 Vendo que o visitante se preparava para olhar através dele, inclinou-o abruptamente para cima.

 - Gosto de estudar as estrelas - concordou apressadamente.

 John Kragopoulos fechou um olho enquanto olhava através das lentes.

 - Magnífico equipamento - observou.

 Cuidadosamente, manejou o telescópio, colocando-o na sua posição inicial.

 Depois endireitou-se e começou a estudar a sala.

 - É um apartamento muito bem concebido - comentou.

 - Tenho estado aqui muito confortavelmente instalado - adiantou Parrish.

 Por dentro sentia-se enraivecido.

 Mais uma vez reagira mal, de forma suspeita.

 Dorothy propôs então:

- Agora gostava de mostrar o quarto e a casa de banho.

 - Com certeza. - Ele endireitara a colcha da cama e enfiara a lata de pó de talco na gaveta da mesa-de-cabeceira.

 - A casa de banho é tão espaçosa como um quarto de hóspedes actual - disse Dorothy. Depois, quando viu a banheira cheia: - Oh, desculpe. Vejo que aparecemos numa altura inconveniente.

 - Não tenho nenhum horário rígido. - Apesar das palavras, deixou a impressão de que a altura fora de facto inconveniente.

 John Kragopoulos recuou rapidamente da casa de banho, entrando no quarto. Aquele patinho a flutuar na banheira. Um brinquedo de criança. Estremeceu, desagradado. A sua mão roçou a almofada de madeira da porta do roupeiro. De facto, aquela casa estava belamente construída.

 Queriam por ela 500. Ele iria oferecer 295 e subiria até 320. Tinha a certeza de que a obteria por esse preço.

 Tendo acabado de tomar esta decisão, começou a adquirir pelo apartamento um interesse de proprietário.

 - Posso abrir este roupeiro? - perguntou, dando uma volta ao puxador.

 - Desculpe, mas mudei essa fechadura e não sei onde pára a chave. Se quiser ver este... são praticamente iguais... - Parrish teve de fazer um esforço para manter os lábios cerrados e não pôr na rua aquele intruso.

 As crianças estavam exactamente por detrás daquela porta. Estariam as mordaças suficientemente apertadas? Reconheceriam a voz daquela mulher e tentariam emitir algum som? Tinha de se livrar daqueles dois.

 Mas também Dorothy queria sair.

 Tinha a consciência de uma indefinível fragrância que lhe lembrava intensamente Missy. Voltou-se para John Kragopoulos, que inspeccionava o outro roupeiro.

 - Talvez agora possamos ir, se já viu tudo.

 Ele fez um gesto de assentimento.

 - Já vi tudo, muito obrigado.

 Prepararam-se para sair, e Mr. Kragopoulos desta vez evitou obviamente apertar as mãos.

 Na garagem, Dorothy passou por entre a station e o seu automóvel, cuja porta abriu.

 Quando começou a entrar no carro, chamou-lhe a atenção um pedaço de tecido vermelho-vivo no chão da garagem.

 Pegou nele, após o que se deixou cair no seu assento, segurando o objecto junto ao rosto.

 John Kragopoulos perguntou em tom inquieto:

- Mrs. Prentiss, que se passa?

 - É a luva de Missy! - exclamou Dorothy. - Ela deve tê-la deixado no carro ontem. Devo-a ter feito cair no chão quando chegámos. Ela estava sempre a perder as luvas. E esta manhã encontraram o par no baloiço. - Começou a chorar.

 John Kragopoulos falou calmamente.

 - Pouco posso dizer a não ser que um Deus misericordioso conhece a sua dor e não deixará de corresponder aos seus anseios. De qualquer forma, tenho confiança nisso. Agora, não prefere que seja eu a guiar?

 - Se faz favor - respondeu Dorothy.

 Meteu a luva bem no fundo da algibeira enquanto passava para o lugar ao lado. Não quereria que Nancy nem Ray a vissem; seria demasiado doloroso. Oh, Missy! Ela tirara a luva quando começara a comer aquele gelado ontem. Imaginava-a a deixar a luva cair no assento. Os pobres pequenitos!

 Lá em cima, Parrish espreitou pela janela até o automóvel desaparecer. Depois, com dedos trémulos, abriu o roupeiro e estendeu o braço sobre o rapazinho para retirar a pequenita.

 Ergueu o corpo mole e deitou-a na cama, depois estremeceu de choque ao ver os seus olhos fechados e o rosto tenso e violáceo.

 

 AS mãos de Nancy apertavam e soltavam nervosamente o cobertor. Com suavidade, Lendon cobriu-lhe os dedos com os seus.

 - Nancy, não se preocupe - aconselhou.

 - Todos nós aqui sabemos que você não poderia fazer mal aos seus filhos. Era o que queria dizer, não era?

 - Era. Como poderia eu matá-los? Eles são parte de mim. Eu morri com eles.

 - Todos nós morremos um pouco quando perdemos aqueles que amamos, Nancy. Recorde comigo o que aconteceu antes de toda essa desgraça começar. Fale-me da sua vida no Ohio.

 - Quando eu era pequena? - A rigidez do corpo de Nancy começou a afrouxar.

 - Sim, fale-me do seu pai.

 - Eu não o conheci.

 Jed Coffin moveu-se, impaciente.

 Lendon dirigiu-lhe um olhar de aviso.

 - Tenho motivos para fazer isto - frisou.

 - Agradeço-lhe que tenha paciência comigo.

 - O pai? - Uma nota de alegria surgiu na voz de Nancy. - Era divertido. A mãe e eu costumávamos ir esperá-lo ao aeroporto. Ele nunca chegava de uma viagem sem trazer qualquer coisa para a mãe e para mim.

 Ray não conseguia desviar os olhos de Nancy.

 Nunca a ouvira falar naquele tom de voz - animado, divertido, com um murmúrio de riso perpassando por entre as palavras.

 Jonathan Knowles ouvia atentamente, aprovando a técnica que Lendon Miles estava a utilizar para conquistar a confiança de Nancy, antes de lhe fazer perguntas sobre o dia em que os pequenos Harmon haviam desaparecido.

 Era atormentador ouvir o suave tiquetaque do antigo relógio de pesos, a recordar que o tempo ia passando.

 Descobrira que era impossível não olhar para Dorothy, curvada na sua cadeira.

 Sabia que fora duro com ela, e agora sentia que lhe devia uma desculpa.

 As luzes da sala tremularam, após o que desapareceram.

 Ouviu-se a voz de Jed: Era de esperar, e Ray acendeu os candeeiros antigos sobre ambas as extremidades da prateleira do fogão de sala, que banharam numa claridade quente o sofá em que Nancy estava deitada e lançaram sombras profundas nos cantos da sala.

 Isto é irreal, pensou Ray, é impossível. Os filhos desaparecidos. Nancy sob a acção do sedativo. Que dizia ela? A voz mantinha a nota de alegria.

 - O pai costumava chamar à mãe e a mim as suas pequenas... - A voz dela vacilou.

 - O que é, Nancy? - perguntou o Dr. Miles. - O seu pai chamava-lhe a sua pequenina? Isso perturbava-a?

 - Não... não... Ele chamava-nos as suas pequenas. Era diferente... era diferente. - A voz ergueu-se em tom agudo, num protesto.

 A voz de Lendon era tranquilizadora.

 - Está bem, Nancy. Não se preocupe com isso. Vamos falar da universidade. Tinha muitos amigos?

 - A princípio. Gostava das minhas amigas e saía muito com os rapazes.

 - E que tal os seus estudos? Gostava das suas cadeiras?

 - Oh, gostava. Tinha facilidade em todas... excepto Biologia. - A voz alterou-se-lhe. - Nunca gostei de ciências, mas era necessário.

 - E conheceu Carl Harmon.

 - Sim. Ele... ajudou-me na Biologia. Disse que eu tinha de deixar de sair tanto com rapazes, senão ficaria doente. Ele preocupava-se tanto comigo, até me dava vitaminas. Ele devia ter razão; eu estava tão cansada... e comecei a sentir-me deprimida... sentia a falta da mãe.

 - Mas sabia que ia passar o Natal a casa...

 - Sim. Mas subitamente fiquei muito mal... Não contei nada nas minhas cartas à mãe, mas acho que ela soube. Veio passar um fim-de-semana comigo, porque estava preocupada a meu respeito. E depois morreu... porque saiu para me ver. A culpa foi minha... foi minha... - A voz dela transformou-se num soluço.

 Dorothy voltou a cabeça, tentando evitar as lágrimas.

 Que estava ali a fazer? Não seria melhor sair da sala e fazer café? Levantou-se.

 - Carl ajudou-a quando a sua mãe morreu? - perguntou Lendon Miles.

 - Oh, ajudou. Foi muito bom - respondeu Nancy em voz calma.

 - E você casou com ele.

 - Casei. Ele disse que ia tomar conta de mim. E eu estava tão cansada.

 - Nancy, não deve sentir-se culpada pelo acidente em que a sua mãe morreu.

 - Acidente? - A voz de Nancy era especulativa. - Acidente? Mas não foi um acidente. Não foi um acidente.

 - É claro que foi. - Embora mantivesse a voz calma, Lendon sentia um aperto na garganta.

 - Não sei... não sei.

 - Fale-nos de Carl.

 - Ele era bom para mim.

 - Você está sempre a dizer isso, Nancy. Que foi que ele fez por si?

 - Não quero falar disso.

 - Porquê, Nancy?

 - Não quero. Não quero.

 - Muito bem. Fale-nos dos seus filhos. Peter e Lisa.

 - Eram tão bons... demasiado bons.

- Nancy, você continua a dizer "bom . Carl era muito bom para si. E os pequenos eram bons. Você deve ter sido muito feliz.

 - Feliz? Eu andava tão cansada...

 - Porque é que estava tão cansada?

 - Estava doente. Carl queria que eu melhorasse. Ele disse que eu tinha de ser boa. Ajudou-me.

 - Como é que ele a ajudou?

 - Não quero falar disso.

 - Mas precisa de falar, Nancy. O que é que Carl fazia?

 - Estou cansada. Estou cansada agora.

 - Está bem. Descanse uns momentos. Depois voltamos a falar.

 Lendon ergueu-se.

 O chefe Coffin voltou a cabeça em direcção à porta e, quando já se encontravam na sala de jantar, falou bruscamente:

- Isto não nos leva a lado nenhum e pode demorar horas. Se pensa que pode descobrir alguma coisa sobre os crimes Harmon, vá direito ao assunto. Caso contrário, eu interrogo-a na sede.

 - Não se pode forçá-la. Ela está a começar a falar. Há muita coisa que mesmo o seu subconsciente se recusa a enfrentar.

 - Também eu não posso enfrentar a ideia de esses pequenos ainda estarem vivos enquanto eu estou aqui a perder um tempo precioso - replicou o chefe.

 - Muito bem. Eu vou interrogá-la acerca desta manhã. Mas primeiro deixe-me perguntar-lhe o que aconteceu no dia em que os pequenos Harmon desapareceram. Se houver algum elo entre os dois casos, talvez ela o revele.

 O chefe Coffin olhou o relógio.

 - São quase quatro horas. Seja qual for a visibilidade que tenhamos, desaparece dentro de meia hora. Onde é que há um rádio? Quero ouvir o noticiário.

 - Há um transístor na cozinha, chefe. - O guarda Bernie Mills dirigiu-se à cozinha, onde Dorothy fazia café. Ligou o rádio, e imediatamente se ouviu a voz do locutor.

 - O caso das crianças Eldredge desaparecidas acaba de tomar novo rumo. Um mecânico, Otto Linden, da estação de serviço Gulf, na Estrada 28, em Hyannis, acaba de nos telefonar para nos afirmar que às nove horas da manhã encheu o depósito de gasolina a Rob Legler, a testemunha desaparecida do julgamento Harmon, sete anos atrás. Segundo Mr. Linden, Legler, que parecia nervoso, declarou-lhe que se dirigia a Adams Port a fim de visitar alguém que provavelmente não ficaria contente por o ver. Conduzia um Dodge-Dart vermelho do último modelo.

 Jed Coffin praguejou.

 - E eu estou aqui a perder tempo a ouvir esta conversa oca! - Pegou no telefone no momento exacto em que este tocava.

 - Sim, ouvi - disse para o interlocutor. - Quero um bloqueio em todas as pontes para o continente. E enviem uma descrição do Dodge vermelho. - Bateu com o auscultador no descanso e voltou-se para Lendon. - Agora, tenho uma pergunta que quero que o doutor faça a Mrs. Eldredge. Se o Rob Legler veio ou não veio cá esta manhã e que foi que lhe disse.

 Lendon olhou-o, estupefacto.

 - Onde é que quer chegar?

 - Quero dizer que Rob Legler é a pessoa que poderia lançar Nancy Eldredge de novo no meio de um julgamento. Suponha que ele tem estado escondido no Canadá, juntamente com outros desertores do Exército. Suponha que ele descobriu, de qualquer forma, onde Nancy estava. Ele está cansado do Canadá, quer regressar e precisa de apoio financeiro. Que tal regressar, ir ter com Nancy Eldredge e prometer-lhe alterar o seu depoimento caso haja outro julgamento? É o mesmo que obrigá-la a dar-lhe um cheque em branco para o resto da sua vida. Ele vê-a. Ela não concorda com a proposta ou ele muda de ideias. E ela desvaira.

 - E mata os seus filhos, os filhos de Eldredge? - A voz de Lendon era desdenhosa.

 - Já pensou no facto de este estudante, que quase levou Nancy à câmara de gás, se encontrar nas proximidades de ambas as vezes em que as crianças desapareceram? Dê-me mais uma oportunidade - pediu.

 - Deixe-me só interrogá-la sobre o dia em que os pequenos Harmon desapareceram.

 - Tem trinta minutos, e não mais.

 Rapidamente, Dorothy começou a encher de café as chávenas que colocara numa bandeja, que levou para a sala de estar.

 Ray, sentado junto ao sofá, segurava as mãos de Nancy. Jonathan, de pé, junto à lareira, contemplava o fogo.

 Dorothy pousou a bandeja sobre a mesa de pinho redonda, perto da lareira.

 - Quer uma chávena de café? - perguntou a Jonathan.

 Ele olhou-a pensativamente.

 - Quero, se faz favor.

 Preparou-lhe o café com natas e um cubo de açúcar, sem nada perguntar, e estendeu-lhe a chávena.

 - Não acha que devia tirar o casaco? - perguntou-lhe ele.

 - Daqui a pouco. Ainda estou cheia de frio.

 O Dr. Miles e o chefe Coffin tinham-na seguido.

 Dorothy levou uma chávena de café ao sofá.

 - Ray, tome uma, por favor.

 Ele ergueu os olhos.

 - Obrigado. - Enquanto pegava na chávena, disse a Nancy: - Tudo vai acabar bem, minha pequenina.

 Nancy estremeceu violentamente.

 De olhos dilatados, gritou no tom desesperado de um animal apanhado numa ratoeira:

- Não sou a tua pequenina! Não me chames a tua pequenina!

 

 COURTNEY Parrish afastou-se, respirando pesadamente, da pequena figura imóvel deitada sobre a cama.

 Retirara o adesivo da boca de Missy e as cordas dos seus pulsos e tornozelos.

 O cabelo fino e sedoso da criança, que ele planeara escovar quando lhe desse banho, estava emaranhado.

 Agora, porém, precisava que ela voltasse a si. O pequeno Michael permanecia ainda no fundo do roupeiro.

 Courtney pegou nele e deitou-o sobre a cama.

 Desapertou os nós das cordas que lhe prendiam os pulsos e tornozelos e, com um puxão rápido, arrancou-lhe da boca o adesivo.

 O rapaz gritou de dor, após o que mordeu o lábio.

 - Que é que fez à minha irmã? - O tom beligerante levou Courtney a compreender que o pequeno não tomara o leite todo.

 - Ela está a dormir.

 - Deixe-nos ir para casa. Queremos ir para casa. Não gosto de si. E a tia Dorothy esteve cá e o senhor escondeu-nos.

 Courtney ergueu a mão e esbofeteou Michael. Este libertou-se das mãos do homem.

 Rapidamente, correu em direcção à porta, abriu-a e atravessou, a correr, a sala de estar. Courtney precipitou-se atrás dele.

 Michael abriu a porta do apartamento, que Courtney não fechara à chave, e precipitou-se pelas escadas abaixo, para a escuridão protectora.

 Courtney, que corria desvairadamente atrás dele, perdeu o equilíbrio e caiu, rolando sobre meia dúzia de degraus antes de conseguir erguer-se.

 O rapaz estava provavelmente escondido num dos quartos do terceiro andar; antes de mais, porém, tinha de se assegurar de que a porta da cozinha estava fechada.

 De qualquer forma, a segunda fechadura na porta da frente era demasiado alta para o garoto.

 - Eu já volto, Michael - disse em voz alta. - Hei-de encontrar-te. És muito mau. Tens de ser castigado. Estás a ouvir-me?

 Desceu rapidamente os dois restantes lances de escada e correu para a cozinha, cuja porta tinha não só duas fechaduras, como também um fecho alto, que correu com dedos trémulos.

 O rapaz não seria capaz de o abrir. Não havia outra saída. Courtney acendeu a luz da escada, que um instante depois se apagou. Compreendeu que, em consequência da trovoada, provavelmente algum cabo caíra.

 Seria mais difícil encontrar o rapaz. Mordeu furiosamente os lábios e riscou um fósforo para acender o candeeiro de petróleo que se encontrava sobre a mesa.

 A chaminé era vermelha, e a luz lançava uma incandescência misteriosa no tecto de vigas grossas.

 - Michael - chamou. - Não tem importância. Já não estou zangado. Aparece, Michael. Eu levo-te a casa para a tua mãe.

 A possibilidade de fazer chantagem junto de Nancy Harmon fora a esperança que Rob Legler acalentara desde o dia em que tomara um avião para o Canadá, depois de cuidadosamente rasgar a sua ordem de embarque para o Vietname.

 Durante seis anos trabalhara como empregado de lavoura perto de Halifax - o único lugar que conseguira e que detestara. Precisava de escapar para um país como a Argentina. Não era um desertor vulgar que pudesse regressar aos Estados Unidos com uma falsa identidade. Graças a esse maldito caso Harmon, era um homem procurado pela polícia. Rob não podia permitir que aquela cena se repetisse.

 Da última vez, o procurador distrital dissera ao júri que para a prossecução daquele crime algo mais provavelmente contribuíra do que a vontade de Nancy Harmon de se querer libertar de uma situação doméstica.

 Ela provavelmente estava apaixonada, dissera ele. Estamos perante uma mulher jovem e atraente que, desde os dezoito anos, está casada com um homem mais velho.

 A sua vida com este homem devotado poderia ser invejada por muitas mulheres. Mas estará Nancy Harmon satisfeita? Não.

 Quando entra em cena um estudante enviado por seu marido para fazer uma reparação, que lhe evitará algumas horas de desconforto, que faz ela? Segue-o pela casa, responde apaixonadamente às suas propostas, diz-lhe que tem de sair dali... e depois, quando ele fosse o obstáculo que as crianças poderão constituir, ela promete-lhe calmamente que as mesmas serão sufocadas.

 Ora, senhoras e senhores jurados, eu não acredito nem por um minuto que a paixão profana de Rob Le ler por esta mulher se tenha resumido a alguns beijos. Mas acredito na testemunha quando ela cita as frases malditas que saíram dos lábios de Nancy.

 Rob sentia invadi-lo um profundo mal-estar sempre que recordava aquele discurso. O procurador distrital envidaria todos os esforços para o poder inculpar como cúmplice do crime.

 Tudo porque ele se encontrava no gabinete do velho Harmon no dia em que a mulher deste telefonara por causa do aquecimento. Rob, que não costumava oferecer os seus préstimos, apenas o fizera porque ouvira uns colegas referir a beleza da mulher daquele velho.

 E Rob comprovara a veracidade da afirmação. Chegara a casa de Harmon perto do meio-dia. Ela estava a dar de comer aos dois pequenos e não lhe prestara muita atenção. Compreendendo que a única maneira de tentar estabelecer contacto seria através das crianças, Rob procurara insinuar-se e em poucos minutos pusera todos a rir.

 A avaria do queimador de óleo resumia-se simplesmente a um filtro entupido. Pôs o aquecimento a funcionar, mas declarou que faltava uma peça e que voltaria para completar o trabalho.

 Nesse primeiro dia não se demorou, a fim de não preocupar o velho Harmon. Regressou ao gabinete do professor, a quem disse: Não me custa nada descobrir a peça que é precisa. É uma daquelas peças pequenas que, se recorrer a uma casa de reparações, lhe vai custar imenso dinheiro. Harmon caiu no laço, evidentemente.

 E Rob voltou no dia seguinte e no outro. Nancy, a quem induziu subtilmente a abrir-se com ele, contou-lhe que tivera um colapso nervoso subsequentemente à morte da mãe. Mas tenho a certeza de que agora estou melhor. Até deixei de tomar a maior parte dos remédios. O meu marido não sabe. Provavelmente ficava aborrecido. Mas eu sinto-me melhor sem eles.

 Numa tentativa mais directa de se aproximar dos seus objectivos, Rob tecera elogios à sua beleza. Era óbvio que ela estava cansada da vida com o velho Harmon e começara a ficar inquieta.

 Ele sugeriu que talvez ela devesse sair mais. Ela respondeu: O meu marido acha que ao fim do dia não precisa de ver mais gente depois de todos os estudantes com quem teve de lidar.

 Fora nessa altura que ele resolvera beijá-la. Rob tinha um álibi seguro para a manhã em que os pequenos Harmon haviam desaparecido: estivera numa aula de apenas seis alunos.

 Não obstante, o procurador distrital declarara-lhe que, se conseguisse descobrir a menor prova de culpabilidade, o acusaria também como cúmplice.

 Dominado pelo medo, Rob recorrera a um advogado, que lhe dissera que a sua atitude deveria ser a de um aluno respeitoso de um professor distinto: tentara manter-se afastado da mulher deste, mas ela não deixara de o seguir insistentemente.

 E que nunca a acreditara quando ela falara em sufocar as crianças. Na realidade, apenas pensara que ela sofria de uma doença nervosa.

 Após Nancy Harmon ter sido condenada a morrer na câmara de gás, o Prof. Harmon suicidara-se. Abandonara o automóvel na mesma praia onde uma das crianças fora encontrada e deixara nele uma nota na qual se inculpava do sucedido: Amava tanto a minha mulher que pensei que a curaria. mas enganei-me; era uma tarefa demasiado grande para mim. Perdoa-me, Nancy.

 Depois o julgamento fora anulado, porque duas mulheres participantes do júri tinham sido ouvidas a discutir o caso num bar durante o decorrer do processo, afirmando a culpabilidade da ré.

 Quando foi marcada nova audiência, Rob formara-se, fora mobilizado, recebera ordens para partir para o Vietname e desertara. Algo, porém, preocupava Rob. Ele não considerava Nancy uma assassina.

 Fora um alvo passivo e fácil no tribunal, que Harmon em nada ajudara ao pôr-se a chorar quando prestava declarações.

 No Canadá, Rob era uma espécie de celebridade entre os desertores com quem se dava. Falara-lhes de Nancy e da sua beleza, mostrara-lhes os recortes da imprensa e as fotografias dela e declarara-lhes que ela era rica - fora revelado no julgamento que os pais lhe haviam deixado uma fortuna e que, se a encontrasse, lhe arrancaria algum dinheiro para se passar para a Argentina. Foi então que a oportunidade lhe surgiu.

 Um dos seus companheiros, Jim Ellis, arriscou-se a ir a casa visitar a mãe. Como esta, que vivia em Boston, tinha a casa vigiada pelo FBI, encontrou-se com Jim em Cape Cod, num chalé que alugara no lago Maushop.

 Quando regressou ao Canadá, Jim perguntou a Rob quanto daria ele para saber onde podia encontrar Nancy Harmon. Rob mostrou-se céptico, até ver a fotografia que Jim conseguira tirar a Nancy na praia. Não havia hipótese de engano.

 Jim procedera também a algumas investigações, e todos os pormenores condiziam. Fizeram então um acordo.

 Rob iria procurar Nancy e induzi-la-ia a dar-lhe cinquenta mil dólares, garantindo-lhe em troca que nunca deporia contra ela.

 Jim, que exigia vinte por cento desta quantia, obteria passaportes canadianos falsos e reservaria passagens para a Argentina, enquanto Rob procurava Nancy.

 Rob rapou a barba e cortou o cabelo, a conselho de Jim, que o avisara de que, se parecesse um hippie, chamaria a atenção de todos os polícias de Nova Inglaterra.

 Seguidamente, Jim traçou-lhe um mapa, onde assinalou a rua em que Nancy vivia, incluindo o caminho por entre o bosque, no qual poderia ocultar o automóvel.

 Quando chegou ao Cape, parou em Hyannis para encher o depósito. Depois de verificar os níveis do óleo e da água e de lhe limpar os vidros, o empregado da estação de serviço perguntou-lhe se ia à pesca. Rob declarara-lhe que ia a Adams Port ver uma velha amiga que poderia não ficar muito satisfeita ao vê-lo. Depois liquidara a conta e partira.

 Chegara a Adams Port às dez menos um quarto. Mesmo com o mapa traçado por Jim, teria ultrapassado, sem notar, a estrada de terra batida que conduzia ao bosque, por detrás da casa dela, se não visse uma velha station Ford sair dessa estrada.

 Consequentemente, retrocedera até à estrada de terra, estacionara o automóvel e começara a dirigir-se para a casa quando vira Nancy a correr desvairadamente.

 Seguira-a até ao lago e chegara a pensar entrar nele também quando a viu sair da água e cair na praia. Notou que ela olhava na sua direcção, mas, ignorando o que se passava, não quisera imiscuir-se no assunto.

 De regresso ao automóvel, decidira instalar-se num motel e procurar vê-la no dia seguinte. No motel, Rob deitou-se imediatamente e logo adormeceu. Acordou a meio da tarde e ligou o televisor para ouvir o noticiário. A imagem apareceu a tempo de ele poder ver uma fotografia sua.

 Uma voz descrevia-o como a testemunha desaparecida no caso dos crimes Harmon, que fora vista no Cape nessa manhã.

 Estarrecido, Rob viu o apresentador voltar a noticiar o desaparecimento dos pequenos Eldredge. Pela primeira vez na sua vida sentiu-se apanhado.

 Agora, que rapara a barba e cortara o cabelo, estava exactamente como aparecia na fotografia.

 Se Nancy Eldredge tinha de facto morto os seus novos filhos, quem acreditaria que ele nada tinha a ver com o assunto? Devia ter acontecido exactamente antes da sua chegada.

 Rob pensou na velha station Ford que saíra, em marcha atrás, da estrada de terra, justamente quando ele nela entrara, com um tipo pesado ao volante.

 O instinto de conservação de Rob Legler aconselhava-o a deixar Cape Cod, mas não no Dodge vermelho que todos os polícias estariam a procurar.

 Fez a mala e abandonou o motel. Ao lado do Dodge encontrava-se um Volkssvagen, cuja capota Rob abriu, a fim de fazer uma ligação directa, afastando-se então.

 Seis minutos mais tarde passou um sinal vermelho. Trinta segundos depois viu uma luz vermelha intermitente reflectida no seu espelho retrovisor. Estava a ser perseguido por um carro da polícia.

 Por momentos pensou em render-se; depois, a necessidade irresistível de escapar aos problemas dominou-o.

 Ao dobrar uma esquina, abriu a porta do veículo, carregou com a mala no acelerador e saltou para fora, desaparecendo numa zona arborizada, enquanto o carro da Polícia, cuja sirene tocava, continuava a perseguir o Volkswagen.

 

 MICHAEL sabia que, se quisesse fugir, precisava de não fazer nenhum ruído. Lembrava-se de que, quando a mãe mandara retirar a alcatifa da escada, lhes dissera: Agora, até porem outra alcatifa vocês têm de jogar um novo jogo: chama-se andar civilizadamente.

 E Michael e Missy tinham brincado a descer a escada na ponta dos pés. Acabaram por o fazer tão engenhosamente que costumavam descer em silêncio e pregar sustos um ao outro.

 Agora, andando da mesma maneira, Michael chegou sem ruído ao piso térreo. Tinha de sair daquela casa e trazer o pai para que este viesse buscar Missy.

 No fundo das escadas, Michael olhou à sua volta, confuso, dirigindo-se depois rapidamente para a cozinha, onde viu uma porta de saída.

 Correu para ela e estava quase a abri-la quando ouviu passos que se aproximavam. Os joelhos tremeram-lhe. Se a porta fosse difícil de abrir, o homem apanhá-lo-ia.

 Rapidamente, saiu da cozinha e correu para uma pequena sala de visitas. A luz da cozinha acendeu-se e Michael encolheu-se por detrás de um sofá. A poeira penetrou-lhe no nariz, dando-lhe vontade de espirrar. Depois a luz da cozinha extinguiu-se de súbito e a casa mergulhou na escuridão.

 Um momento depois surgiu um clarão vermelho na cozinha e o homem chamou: Michael, não tem importância. Já não estou zangado. Aparece, Michael. Eu levo-te a casa para a tua mãe.

 

 UMA vaga sensação de depressão, juntamente com uma dor de cabeça, fez com que John Kragopoulos, que tencionava seguir directamente para Nova Iorque depois de deixar Dorothy, abandonasse a ideia de conduzir durante cinco horas consecutivas.

 Não só o tempo estava opressivo como a profunda angústia de Dorothy se lhe transmitira. A ideia de aquelas crianças, cuja fotografia Dorothy levava na mala e lhe mostrara, terem sido vítimas de um crime deixava-lhe uma sensação de náusea na boca do estômago. Seguiu pela Estrada 6A rumo ao continente.

 à sua frente, do lado direito, surgiu um restaurante afastado da estrada. Impulsiva mente, John virou o volante rumo ao parque de estacionamento. Era de bom senso tomar uma refeição decente antes de iniciar a viagem de regresso.

 E era de bom senso também, do ponto de vista do negócio, tentar conversar com o pessoal de um restaurante numa zona vizinha da casa que ele próprio estava a considerar explorar com fins similares.

 Dirigiu-se directamente ao bar. Já não havia clientes. Mandou vir um whisky Chivas Regal com gelo; depois, quando o empregado do bar lho serviu, perguntou-lhe se seria possível arranjar alguma coisa de comer.

 - Não há problema. - John apreciou não só a resposta prestável do empregado como também a forma como ele conservava o bar imaculadamente limpo.

 O barman apresentou-lhe uma ementa.

 - A cozinha está fechada entre as duas e meia e as cinco, mas se não se importa de comer aqui...

 - Acho óptimo. - Rapidamente, John encomendou um bife e uma salada.

 O Chivas aqueceu-o e a sua depressão começou a desaparecer.

 - Você prepara bem as bebidas.

 O empregado do bar sorriu:

- É preciso ser um bom profissional para preparar um whiskion the rocks.

 - Eu sou da profissão. Sabe o que quero dizer. - John decidiu ser franco. - Estou a pensar em comprar aquela casa a que chamam A Vigia para abrir um restaurante. Que pensa da ideia?

 - Pode resultar. Com boa atmosfera, boas bebidas, uma boa ementa... Pode levar bom dinheiro e ter a casa cheia...

 - É o que eu penso.

 - É claro que tem de se livrar desse velho do andar de cima.

 - Tenho estado a pensar nele. Parece ser um tipo estranho.

 - Bem, ele diz que vem cá todos os anos para a pesca. Eu sei, porque Ray Eldredge por acaso falou no assunto. Um tipo fixe, o Ray Eldredge. É aquele a quem desapareceram hoje os filhos.

 - Ouvi falar disso.

 - É uma vergonha. Uns miúdos tão giros. Mas, como ia a dizer, um dia, há algumas semanas, esse tipo, o inquilino da Vigia, apareceu aqui e encomendou uma bebida. Eu conheço-o, já o tenho visto por aí. Bem, só para meter conversa, perguntei-lhe se estaria aqui em Setembro, quando os azuis correm por aí. Sabe o que foi que aquele estúpido disse?

 John esperou.

 - Nada. Nem sabia do que eu estava a falar. Acredita que alguém possa vir todos os anos pescar para o Cape e não saiba o que eu queria dizer?

O bife chegou. Saboreando a excelente carne combinada com o agradável calor da bebida, John descontraiu-se e começou a pensar na Vigia. Gostara de ter visto a casa.

 A sensação de desconforto só começara no apartamento de Mr. Parrish. John terminou o bife e pagou a conta. Voltando para cima a gola do casaco, dirigiu-se para o automóvel. Devia seguir em direcção ao continente, mas sentiu um impulso louco de retornar à Vigia.

 Courtney Parrish mostrara-se nervoso - desesperadamente ansioso por que eles saíssem. E aquele telescópio. Parrish alterara a direcção em que ele apontava, mas quando John o colocara na posição primitiva, vira carros da Polícia junto do que devia ser a casa dos Eldredges.

 Que telescópio incrivelmente potente para um mero amador de astronomia! Poderia Courtney Parrish ter estado a observar pelo telescópio a casa dos Eldredges no momento em que as crianças haviam desaparecido? Teria ele visto alguma coisa? Nesse caso, porém, certamente teria chamado a Polícia.

 John pegou num charuto e acendeu-o com um pequeno isqueiro de ouro. Era uma loucura alimentar aquelas suspeitas. Que poderia ele fazer? Telefonar à Polícia e dizer que o homem lhe parecera nervoso e que devia ir investigar A Vigia ? E, se a Polícia procedesse a qualquer investigação, Courtney provavelmente diria: Preparava-me para ir tomar banho e detesto ser interrompido.

 Perfeita mente razoável. As pessoas que vivem sozinhas têm tendência para adquirirem hábitos rigorosos. Sozinho. Era essa a palavra. Era isso que importunava John. Qualquer coisa lhe assegurava que Courtney Parrish não estava só. Era o brinquedo na banheira. Aquele incrível pato de borracha. E o aroma a talco para bebé. Sabia o que tinha a fazer.

 Retirou o isqueiro da algibeira e escondeu-o no compartimento das luvas. Regressaria à Vigia sem se anunciar e pediria autorização para procurar o isqueiro, que deveria ter deixado em qualquer sítio.

 Esse pretexto dar-lhe-ia a oportunidade de observar melhor o local e, ou afastar uma suspeita ridícula, ou ter algo mais do que uma suspeita para discutir com a Polícia.

 

 ELA não queria recordar... o retorno ao passado era-lhe por de mais doloroso. Mas as perguntas, persistentes, sobre Carl... sobre a mãe. Tinha de responder, mais que não fosse para pôr cobro às perguntas. Ouviu a sua voz, muito distante. Era como assistir a uma peça.

 A mãe no restaurante... a última vez que a vira. A expressão perturbada da mãe, que ora a fitava a ela, ora a Carl.

 - Onde arranjaste esse vestido, Nancy? - Percebera que a mãe não gostara do facto. A lã branca.

 - Foi o Carl que o escolheu. Gosta dele?

 - Não é um pouco infantil?

A mãe deixara-os para ir fazer um telefonema. Seria para o Dr. Miles? Nancy esperava que sim. Queria que a mãe fosse feliz... Talvez devesse ir para casa, com a mãe... Talvez deixasse de se sentir tão cansada. Comunicou o que pensava a Carl? Carl a sair...

 - Desculpa-me, querida. - A mãe regressara antes dele. - Nancy, tu e eu precisamos de conversar amanhã, quando estivermos sós. Eu vou buscar-te para tomarmos o pequeno-almoço juntas. A mãe a entrar no automóvel alugado, a seguir pela estrada. Depois o telefonema. Houve um acidente... o mecanismo da direcção. Carl... - Eu tomo conta de ti, minha pequenina. O funeral... depois o casamento. Usaria o vestido de lã branca, que seria o suficiente, apenas para ir ao registo civil... Mas havia uma mancha de óleo no ombro.

 - Carl, como é que este vestido está sujo de óleo? Só o vesti para ir jantar com a mãe.

 - Eu mando-to limpar. - A sua mão, familiar, batendo-lhe levemente no ombro. - Não... não... A voz.

 - Que quer dizer, Nancy?

 - Não sei... não tenho a certeza... tenho medo.

 - Medo do Carl?

 - Não... ele é bom. Toma o teu remédio... Os pequenos... estão bem por enquanto... Carl era bom.

 - Carl era bom para os pequenos?

 - Fazia-os obedecer. Peter receava-o... e Lisa... Então a minha pequenina tem uma pequenina...

 - Era o que Carl dizia?

 - Sim. Há qualquer coisa que não está bem. Eu não devo tomar o remédio depois do jantar... fico demasiado cansada... Tenho de me ir embora.

 - Deixar Carl? - Eu não estou doente... Carl está doente.

 - Que doença tem ele, Nancy?

 - Não sei.

 - Nancy. fale-nos do dia em que Peter e Lisa desapareceram.

 - Carl está zangado.

 - Porquê?

 - O remédio... ele viu-me deitar o remédio fora... fez-me beber mais. Tão sonolenta... Lisa está a chorar... Carl... com ela. Tenho de me levantar... A chorar tanto... Carl espancou-a... diz que ela molhou a cama... Tenho de a levar daqui... pela manhã... O meu dia de anos.

 - Não amava Carl, Nancy...

 - Eu devia. Mas Lisa tão calada. Prometi que íamos fazer um bolo de anos para mim. Ela e Peter e eu... Vamos sair e comprar velas. Está a começar a chover... Lisa pode estar a adoecer.

 - Carl foi às aulas nesse dia?

 - Foi. Ele telefonou. Eu disse-lhe que íamos ao centro comercial... depois ia passar pelo médico para que ele visse Lisa. Eu estava preocupada. Disse que ia ao centro às onze horas... depois do programa infantil da televisão.

 - Que disse Carl quando você lhe contou que estava preocupada com Lisa?

 - Disse que o dia estava mau... não queria que Lisa saísse. Eu disse-lhe que deixava os dois no carro enquanto fazia as compras... Eles queriam ajudar-me a fazer o bolo... Nunca se divertiam... Eu não devia ter deixado Carl ser tão rigoroso... a culpa era minha. Rob fez as crianças rir.

 - Estava apaixonada por Rob, Nancy?

 - Não. Eu estava numa gaiola... queria falar com alguém. Depois Rob disse o que eu lhe disse. Mas não era assim... não era assim. - A voz dela começou a subir de tom.

 A voz de Lendon tornou-se mais tranquilizante.

 - Então levou as crianças ao centro comercial às onze horas...

 - Levei. Disse-lhes para ficarem no carro... Elas concordaram... Umas crianças tão amorosas... Nunca mais vi os meus filhos... nunca mais...

 - Nancy, quanto tempo esteve no centro comercial?

 - Não muito... dez minutos... Vim logo para o carro... As crianças tinham desaparecido. - A sua voz reflectia a incredulidade que a dominava.

 - Que foi que fez, Nancy?

 - Não sei que fazer... Talvez fossem comprar uma prenda para mim... . Peter tem dinheiro... Procuro na confeitaria... na loja ao lado... procuro as crianças...

 - Perguntou a alguém se as viu?

 - Não. É preciso que o Carl não saiba. Ele vai ficar zangado... Não quero que ele castigue os pequenos... E Lisa não molhou a cama.

 - Que quer dizer?

 - A cama seca... Porque lhe bateu Carl? Agora não tem importância... As crianças desapareceram... Michael. Missy também... Procurar os dois.

 - Diga-nos como procurou Michael e Missy esta manhã.

 - Tenho de procurar no lago. Depressa, depressa... Há alguma , coisa no lago... Há alguma coisa debaixo de água.

 - O que é que estava debaixo de água?

 - Uma coisa vermelha... Talvez seja a luva de Missy... Tenho de a apanhar... A água está tão fria... Não consigo chegar lá... não é uma luva.

 - Que foi que fez?

 - Sair... sair da água... caio na praia... Ele estava lá... no bosque... a observar-me.

 Jed Coffin ergueu-se.

 Lendon levantou a mão em sinal de aviso.

 - Quem estava lá, Nancy? - perguntou. - Diga-me quem estava lá?

 - Um homem... Eu conheço-o... Rob Legler... a olhar para mim. - Os olhos dela pestanejaram.

 Ray empalidecera.

 Dorothy respirava com força.

 Lendon ergueu-se.

 - O efeito do Amytal está a desaparecer.

 - Doutor, posso falar consigo e com Jonathan lá fora? - A voz de Jed era reservada.

 - Fique com ela, Ray - recomendou Lendon. - Ela pode acordar.

 Na sala de jantar, Jed olhou de frente Lendon e Jonathan.

 - Doutor, por quanto tempo vai isto prolongar-se? - A expressão de Jed era impenetrável.

 - Penso que não devemos interrogar Nancy mais.

 - E que foi que obtiveram de tudo isto, para além do facto de ela ter medo do primeiro marido e de Rob Legler ter podido estar no lago esta manhã?

 Lendon olhou-o, estupefacto.

 - Meu Deus, não ouviu o que aquela mulher disse? Não sabe o que esteve a ouvir?

 - Só sei que não ouvi uma única coisa que me possa ajudar a encontrar os pequenos Eldredge. Ouvi Nancy Eldredge considerar-se culpada da morte da mãe, o que é natural, dadas as circunstâncias. As suas reacções ao primeiro marido parecem bastante histéricas.

 - Chefe, sabe o que é pedofilia? - Jonathan assentiu com a cabeça.

 - Era nisso que eu estava a pensar.

 Lendon não deu a Jed tempo para responder.

 - Em termos legais, é uma aberração, que envolve actividade sexual com uma criança.

 - Que é que isso tem a ver com o caso?

 - Não tem a ver... completamente. Nancy tinha dezoito anos quando se casou. Mas parecia bastante infantil. Chefe, há alguma possibilidade de se conhecer o passado de Carl Harmon?

 Jed Coffin mostrou-se incrédulo. Apontou para o granizo que continuava a tamborilar na vidraça.

 - Doutor - lembrou ele -, lá fora há duas crianças que ou estão por aí geladas até aos ossos, ou estão nas mãos sabe Deus de que louco, provavelmente mortas. Mas é minha missão encontrá-las. E quer que perca o meu tempo a procurar o cadastro de um morto?

 O telefone tocou. Bernie Mills, que se encontrava discretamente na sala, apressou-se a atendê-lo. Era o sargento Poler, da sede.

 - Dá-me o chefe.

 Lendon e Jonathan trocaram um olhar, enquanto o chefe Coffin ouvia, perguntando depois rapidamente:

- Há quanto tempo? Onde?

 Lendon compreendeu que estava a rezar uma oração inarticulada e fervorosa, para que a mensagem não trouxesse más notícias sobre as crianças.

 Jed bateu com o auscultador no descanso e voltou-se para eles.

 - Rob Legler registou-se no motel de Adams Port cerca das dez e meia desta manhã. Um carro que pensamos que ele roubou espatifou-se na Estrada 6A, mas ele raspou-se. Está a proceder-se a uma busca geral e eu vou dirigi-la. Deixo aqui o agente Mills.

 Depois de a porta se ter fechado atrás do chefe, Lendon ficou durante um longo minuto a tentar compreender o sentido profundo do que Nancy dissera.

 Estou muito ligado a isto", pensou. Vejo Priscilla a esse telefone... a ligar para mim. Carl Harmon deixou a mesa a seguir. Onde terá ido? Teria ouvido o que Priscilla me disse? Nancy disse que o seu vestido estava manchado de óleo.

 Não estaria ela, na realidade, a dizer que pensava que, quando Carl pousara a mão manchada de óleo no seu ombro, lhe sujara o vestido? Teria Carl Harmon feito qualquer coisa ao carro de Priscilla? Mas aonde o levaria esse conhecimento, estando Carl Harmon na sepultura? O noticiário televisivo das cinco horas da tarde foi em grande parte dedicado ao desaparecimento dos pequenos Eldredge e à rodagem de excertos de filmes do arquivo sobre o caso Harmon.

 Foi prestada particular atenção a uma fotografia de Rob Legler a sair do tribunal de S. Francisco com o Prof. Carl Harmon, e a voz do apresentador tornou-se premente: Rob Legler foi positivamente identificado como tendo estado esta manhã nas proximidades da casa dos Eldredges. Se pensa ter visto este homem, ou se possui qualquer informação que possa conduzir à pessoa ou pessoas responsáveis pelo desaparecimento dos pequenos Eldredge, pedimos-lhe insistentemente que ligue para este número: KL 5-380O. Eu repito: KL 5-380O.

 

 Os Wiggins, que haviam fechado a sua loja quando a electricidade faltara, haviam chegado a casa a tempo de ouvir o noticiário no seu televisor, que funcionava a pilhas.

 - Aquele tipo parece-me conhecido - observou Mrs. Wiggins. - Tem um aspecto bastante desagradável.

 Jack Wiggins olhou, estupefacto, a mulher.

 - Pois eu estava exactamente a pensar que ele era do género capaz de seduzir qualquer mulher.

 - Aquele? Ah, tu referes-te ao novo. Eu estou a falar do outro, do professor.

 Jack fez notar em tom condescendente:

- Ninguém está a falar de Harmon. Ele suicidou-se. Estão a falar desse tipo Legler.

 Mrs. Wiggins mordeu o lábio.

 - Compreendo. É que... ora, deixa lá... Quando é que está pronto o jantar?

 - Não falta muito. Mas custa estar uma pessoa a preocupar-se com a comida quando se pensa nessas crianças, sabe Deus onde. Faz com que os nossos pequenos aborrecimentos deixem de ter importância, sabes...

- Que pequenos aborrecimentos? - perguntou, suspeitoso.

 - Bem... - Mrs. Wiggins hesitou.

 No Verão passado haviam sido tantos os aborrecimentos com os ladrões que roubavam objectos da loja... Jack ficava perturbado só de discutir o caso.

 Era essa a razão por que, ao longo do dia, lhe parecera que não valia a pena dizer-lhe que estava absolutamente certa de que Mr. Parrish roubara nessa manhã, de uma prateleira, uma lata de pó de talco para bebé.

 O noticiário das cinco horas estava também a ser ouvido numa modesta casa de Hyannis Port que não fora afectada pela falta de corrente.

 A família de Patrick Keeney preparava-se para começar a jantar quando a fotografia de Michael e Missy Eldredge surgiu no écran.

 Involuntariamente, Ellen Keeney olhou para os seus filhos - Neil e Jimmy, Deirdre e Kit. Quando os levava à praia, contava-lhes incessantemente as cabeças. "Meu Deus, que nunca isto nos aconteça, por favor.

 - Ele engordou imenso - comentou Neil.

 Ellen olhou para o filho mais velho.

 - Quem é que engordou, querido?

 - Aquele homem, aquele da frente. Foi ele que me deu o dólar para eu ir aos correios, no mês passado, levantar a correspondência. Lembra-se, eu mostrei-lhe a nota que ele escreveu, quando a mãe não acreditou.

 Na imagem via-se Rob Legler, que seguia o Prof. Carl Harmon à saída do tribunal.

 - Neil, estás enganado - objectou Ellen. - Aquele homem morreu há bastante tempo.

 Neil mostrou-se ofendido.

 - Vê? Nunca acredita no que eu digo. Está muito mais gordo e caiu-lhe o cabelo, mas tinha a cabeça assim como que puxada para baixo sobre o pescoço, exactamente como aquele homem.

 O comentador dizia:... Qualquer informação, por mais irrelevante que a considerem...

- Desliga a televisão, Neil - ordenou Pat ao filho. - Vamos dar graças.

 Durante a oração que se seguiu, o espírito de Ellen estava longe. Tinham pedido qualquer informação, por mais irrelevante que parecesse.

 Quando a oração terminou, ela perguntou:

- Neil, ainda tens o papel que o homem te deu? Não o puseste no teu mealheiro com o dólar?

 - Sim, eu guardei-o.

 - Então vai buscá-lo. Quero ver qual é o nome que lá está.

 Pat estava a observá-la.

 Quando Neil saiu, ergueu os olhos por sobre a cabeça dos outros filhos e observou:

- Não me digas que esse papel dá dividendos.

 Subitamente, ela sentiu-se ridícula.

 - Acho que só me dá nervoso...

 

 TUDO corria mal! Primeiro a visita daquela mulher louca e depois a pequenita; teria de esperar até ela acordar, se é que ela acordaria.

 Finalmente, o rapaz a fugir-lhe, a esconder-se. A sensação de prazer e de ansiedade experimentada por Courtney transformara-se em ressentimento.

 O rapaz representava uma ameaça. Se se escapasse, seria o fim. Era preferível acabar imediatamente com ambas as crianças. A sensação de perigo apurava sempre a sua percepção. Como da outra vez.

 De facto, ele não sabia o que iria fazer quando atravessara furtivamente os terrenos da faculdade, dirigindo-se ao centro comercial.

 Apenas sabia que não podia deixar que Nancy levasse Lisa ao médico. Estacionara o automóvel no caminho de acesso destinado aos fornecedores, entre o centro comercial e a universidade. Vira-a chegar e entrar no centro. Não havia vivalma perto.

 Num instante soubera o que tinha a fazer. As crianças tinham sido tão obedientes... Haviam ficado estupefactas quando ele abrira a porta do automóvel, mas, ao ouvi-lo dizer: Vá, depressa, vamos fazer uma partida à mãe pelo seu dia de anos , imediatamente haviam entrado na mala do carro, e num instante tudo estava acabado.

 Os sacos de plástico enfiados nas suas cabeças, as mãos dele a segurá-las até pararem de se agitar; a mala do carro fechada, e ele de regresso às aulas.

 A aplicação dos alunos nas suas experiências laboratoriais - ninguém dera pela sua falta. E uma sala cheia de testemunhas prontas a afirmarem a sua presença, caso necessário. Nessa noite dirigira-se de automóvel até à praia e lançara os corpos ao mar. Aproveitara a oportunidade e evitara o perigo.

 E agora o perigo tinha de ser outra vez evitado. Depois ficaria em segurança, sem nada que o ameaçasse, a gozar com o tormento de Nancy.

 E no dia seguinte, quando a noite caísse, seguiria no carro para o continente. E provavelmente encontraria alguma pequenita sozinha, a quem diria que era o novo professor. Resultava sempre. Estava ainda na cozinha.

 Chamou de novo.

 - Michael, não queres ir para casa, para a tua mãe? Ela não foi para o céu, está melhor.

 Começou a dirigir-se para o átrio, mas deteve-se, lembrando-se da sala das traseiras.

 Entrou nesta divisão, segurando o candeeiro bem alto, acima da cabeça, perscrutando os objectos que surgiam das trevas. Ao dar uma volta sobre si, fez oscilar o candeeiro. Soltou então uma exclamação aguda. Recortada no chão mal iluminado, tal como um coelho gigantesco, via-se a sombra de uma pequena figura curvada atrás do sofá.

 - Apanhei-te, Michael - gritou ele, casquinando uma gargalhada. - E desta vez não te deixo fugir.

 

 QUANDO John Kragopoulos deixou a Estrada 6A e iniciou a subida íngreme que conduzia até à Vigia, a visibilidade era bastante reduzida. Conduziu cautelosamente, sentindo que o automóvel facilmente derraparia no piso escorregadio.

 Alguns minutos depois entrou no caminho que conduzia até às traseiras da Vigia. Quando estacionou o automóvel, viu-se envolvido pela escuridão agoirenta da grande casa. Mesmo o andar de cima estava completamente às escuras.

 Provavelmente verificara-se um corte de corrente, mas o homem tinha com certeza candeeiros. Cortes de corrente em ocasiões de tempestade não deviam ser raros no Cape.

 E supondo que Parrish adormecera e não se apercebera de que a electricidade faltara? E supondo - apenas supondo - que o fora visitar uma mulher que não queria ser vista? Era a primeira vez que essa possibilidade ocorria a John.

 Porque não pensara que Parrish podia ter uma visitante que ficaria embaraçada se fosse vista? Sentindo-se subitamente ridículo, John decidiu afastar-se, a fim de não ser importuno.

 Preparava-se para se retirar quando viu, através da última janela do lado esquerdo da cozinha, um vislumbre de luz movendo-se rapidamente, que alguns segundos depois pareceu dirigir-se para o átrio. Alguém caminhava pela casa com um candeeiro.

 John retirou a lanterna do automóvel e, abrindo silenciosamente a porta, seguiu pela beira do caminho. Mentalmente, reviu a disposição da casa. Por detrás do átrio chegava-se à escada das traseiras, bem como à pequena sala de visitas do outro lado.

 Abrigando-se da chuva, deslocou-se rapidamente pelas traseiras da casa, até à janela que devia corresponder à sala de visitas, encolhendo-se quando o candeeiro se tornou visível. Podia agora ver Parrish, que chamava alguém.

 John apurou o ouvido.

 - Michael - chamava Parrish -, Michael! , Um arrepio de medo percorreu a coluna vertebral de John. Aquelas crianças estavam na casa. O candeeiro descrevia círculos, iluminando o vulto de Parrish.

 John tinha consciência de que não podia competir fisicamente com aquele homem. Deveria ir pedir auxílio? Porém, se Parrish encontrasse Michael, alguns minutos poderiam fazer diferença.

 Então, perante os seus olhos horrorizados, Parrish estendeu o braço por detrás do sofá, de onde retirou uma pequena figura que tentava desesperadamente escapar-se, pousou o candeeiro e cerrou ambas as mãos em torno do pescoço da criança.

 Actuando tão instintivamente como quando em combate na Guerra da Coreia, John ergueu o braço e quebrou a vidraça da janela com a lanterna.

 Quando Parrish se voltou, já ele estendera a mão e abrira o fecho da janela, que ergueu para cima com força sobre-humana, saltando para dentro da sala.

 Largou a lanterna no momento em que tocava com os pés no chão. Parrish agarrou-a e elevou-a sobre a cabeça, como uma arma.

 - Foge, Michael! Pede socorro! - conseguiu John gritar, um instante antes de a lanterna se abater sobre o seu crânio.

 

 RIGIDAMENTE sentada no sofá, Nancy olhava fixamente à sua frente.

 Na lareira, que Ray acendera, as chamas começavam a lamber os ramos e troncos.

 Ontem. Fora ontem, não fora? Ela e Michael tinham estado a limpar o relvado com um ancinho, e ele apanhara os ramos partidos. São bons para a lareira, comentara ele. Era tão bom, tão parecido com Ray.

 Nancy compreendia que, de uma forma indefinível, sentia um certo conforto por saber que Michael se encontrava junto de Missy. Se lhe fosse possível, ele cuidaria dela.

 - Oh, meu Deus! - Só percebeu que falava em voz alta quando Ray a olhou, alarmado.

 Estava sentado no seu cadeirão, o rosto tenso de ansiedade. Parecia saber que agora ela não queria que ele lhe tocasse, que precisava de pensar. Tinha de acreditar que os pequenos estavam vivos. Eles podiam não estar mortos. Porque sentia ela aquela pequena réstia de esperança?

 - Rob Legler - observou. - Eu disse-te que o vi esta manhã.

 - Disseste - assentiu Ray.

 - Será possível que eu estivesse a sonhar? O médico acredita em mim?

 - O médico acha que fizeste um relato correcto do que aconteceu - respondeu Ray. - E, Nancy, devo dizer-te que Rob Legler foi visto na vizinhança, sem qualquer dúvida. Abandonou um carro roubado a cerca de três quilómetros da Estrada 6A. Mas não te preocupes. Ele não irá longe a pé com este tempo.

 - Rob não faria mal aos pequenos - observou Nancy de modo terminante.

 Lendon entrou na sala, seguido por Jonathan.

 - Como se sente, Nancy? - Estudando-lhe atentamente o rosto, Lendon achou-a menos transtornada do que esperava.

 - Sinto-me bem. Falei muito sobre o Carl, não falei?

 - Falou.

- Havia qualquer coisa de que eu estava a tentar lembrar-me; qualquer coisa importante que lhe queria dizer.

 - E agora, sabe o que é? - perguntou Lendon.

 - Não. - Nancy ergueu-se e dirigiu-se impacientemente para a janela. Queria clarear as ideias. Olhou para si, apercebendo-se, pela primeira vez, que vestia o roupão. - Vou-me arranjar - disse.

Lá em cima no seu quarto, sentindo-se entontecida, apoiou a testa na parede fria.

 A porta abriu-se, e ouviu Ray gritar:

 - Nancy... - Ele correu para ela e voltou-a para si.

 - Estou bem - tranquilizou-o. - A sério.

 Ele fê-la erguer a cabeça. A sua boca fechou-se sobre a dela, enquanto Nancy colava o corpo ao dele. Sempre fora assim. Ela quisera-o tanto, logo desde o início. Não como Carl. Pobre Carl, ela apenas o tolerara. Depois de Lisa ter nascido, ele nunca mais... não como marido. Teria ele sentido a sua repulsa? Ela sempre se sentira culpada.

 - Amo-te. - Ela não soube que o dissera; palavras ditas tão frequentemente, palavras que murmurava a Ray mesmo durante o sono.

 - Eu também te amo. Oh, Nancy, deve ter-te custado tanto. Eu julgava que entendia, mas não.

 - Ray, achas que recuperamos os nossos filhos? - A voz dela tremia.

 Ele apertou-a de encontro a si.

 - Não sei, querida. Mas, aconteça o que acontecer, temo-nos um ao outro. Não há nada que altere isso... Nancy, encontraram Rob Legler no bosque próximo da baía. O Dr. Miles foi até à sede da Polícia, e Jonathan e eu vamos também.

 - Eu quero ir. Talvez ele me diga...

 - Não, Jonathan tem uma ideia, e eu acho que pode resultar. Mas se Rob te vê, talvez se recuse a dizer qualquer coisa.

 - Ray... - Nancy ouviu o desespero da sua própria voz.

 - Querida, tem esperança. Já não deve faltar muito. Dorothy fica contigo. Eu volto assim que puder. - Durante um instante, afundou os lábios no cabelo dela; depois, saiu.

 Mecanicamente, Nancy entrou na casa de banho e abriu o chuveiro. Despiu o roupão e, apertando o cabelo num nó, entrou na banheira. O jacto de água fustigou violentamente os seus músculos rigidamente tensos. Ergueu o rosto para a água quente e agradável, experimentando prazer com aquela sensação de limpeza.

 Nunca, nunca mais tomara um banho de imersão, depois dos anos que vivera com Carl.

 Uma recordação muito viva surgiu enquanto a água lhe batia no rosto. A banheira... a insistência de Carl em lhe dar banho. Uma vez, quando ela tentara afastá-lo, ele escorregara e ficara com o rosto submerso. O incidente surgira tão inesperadamente que, por instantes, Carl não conseguira erguer-se. Quando o fizera, começara a falar precipitadamente e a tremer. Mais do que irado, mostrava-se assustado. Aterrorizara-o sentir a cara coberta de água. Fora isso. Fora isso que ela tentara recordar: esse pavor secreto da água. Oh, meu Deus!, Nancy saiu cambaleante do chuveiro e começou a vomitar irresistivelmente.

 

 O sargento que se encontrava na recepção ergueu os olhos quando Ray e Jonathan entraram.

 - Não esperava vê-lo aqui esta noite. Sinto muito acerca dos pequenos, Mr. Eldredge.

 Ray inclinou a cabeça, num assentimento.

 - Onde estão a interrogar Rob Legler? - O sargento mostrou-se alarmado.

 - Não pode intervir, Mr. Eldredge.

 Ray observou calmamente:

- Diga ao chefe que eu tenho de lhe falar agora.

 O protesto do sargento morreu-lhe nos lábios. Voltando-se para um polícia que surgia, vindo do corredor, ordenou-lhe:

- Diga ao chefe que Ray Eldredge lhe quer falar.

 Do outro lado da sala, Ray viu, sentado num banco, um casal de aparência agradável, aproximadamente da mesma idade dele e de Nancy.

 Interrogou-se sobre os motivos que os teriam conduzido à esquadra. O homem parecia embaraçado, a mulher determinada. Seria possível que se tivessem batido e que ela viesse apresentar queixa? O chefe Coffin entrou precipitadamente na sala.

 - Que se passa, Ray?

 - Tem cá o Rob Legler?

 - Tenho. O Dr. Miles está comigo. O Legler não responde a nenhuma pergunta e quer um advogado.

 - Foi isso que pensei. É por isso que estou aqui. - E, em voz baixa, expôs o seu plano.

 O chefe sacudiu a cabeça.

 - Não vai resultar. Este tipo é muito frio.

 - Vamos tentar. Não vê como o tempo é importante? Se ele tem um cúmplice que está agora com as crianças, essa pessoa pode entrar em pânico.

 - Bem... falem com ele. Mas não alimentem muitas esperanças.

 Quando Ray e Jonathan começaram a seguir o chefe ao longo do corredor, a mulher ergueu-se do banco.

 - Chefe Coffin. - A voz dela era hesitante. - Posso falar-lhe só por um minuto?

O chefe olhou-a apreciadoramente.

- É importante?

 - Bem, talvez não seja. É uma coisa que o meu filho...

 - Então sente-se, por favor, minha senhora. Eu atendo-a assim que puder.

 Ellen Keeney deixou-se cair no banco enquanto os três homens se afastavam.

 O sargento recepcionista compreendeu o seu desapontamento.

 - Talvez eu possa ajudá-la, minha senhora.

 Mas Ellen não confiou no sargento. à chegada, ela e Pat haviam tentado dizer-lhe que, segundo pensavam, o seu filho poderia saber qualquer coisa sobre o caso Eldredge. O sargento mostrara-se indiferente.

- Sabe quantas chamadas já tivemos? É melhor sentar-se. O chefe recebe-a assim que puder.

 Agora, Ellen negava-se a relatar-lhe os factos.

 Estava resolvida a permanecer ali sentada até ter oportunidade de contar a sua história. A porta da esquadra abriu-se, dando entrada a outro casal.

 - Olá, Mr. Wiggins, Mrs. Wiggins - saudou-os o sargento.

 - Não vai acreditar - bradava Wiggins. - Numa noite como esta a minha mulher quer participar que alguém surripiou uma lata de pó de talco para bebé, esta manhã, lá da loja.

 Mrs. Wiggins parecia preocupada.

 - Não me importo que pareça uma coisa estúpida. Quero falar com o chefe Coffin.

 - Ele deve estar quase a aparecer. Sentem-se, está bem? - E apontou para o banco onde os Keeneys já estavam sentados.

 Enquanto se instalavam, Mr. Wiggins murmurou, irritado:

- Continuo a não saber por que motivo estamos aqui.

 A simpatia pronta de Ellen Keeney fê-la voltar-se para eles.

 - Nós também não sabemos verdadeiramente porque estamos aqui - disse ela. - Mas não é uma coisa horrível essas crianças desaparecidas?

 No gabinete, ao fundo do corredor, Rob Legler contemplava Jonathan Knowles com um olhar hostil. O medo apertava-lhe o estômago. Os pequenos Eldredge não haviam sido encontrados. Se algo lhes acontecesse, poderiam tentar acusá-lo. Mas ninguém o vira perto da casa dos Eldredges. Ninguém, excepto aquele homem gordo que conduzia a station.

 - Você encontra-se numa situação muito grave - dizia Jonathan. - É um desertor que acaba de ser preso. Por mais culpado ou inocente que seja no desaparecimento dos pequenos Eldredge, vai passar anos na cadeia.

 - Veremos. - Mas Rob sabia que Jonathan podia ter razão.

 Ray ergueu-se e inclinou-se sobre a mesa até os seus olhos ficarem ao nível dos de Rob.

 - Oiça, seu vagabundo, e oiça bem. A minha mulher viu-o junto da nossa casa esta manhã. O que significa que tem de saber alguma coisa sobre o que se passou. Se for franco connosco e nós recuperarmos as crianças, não será acusado de rapto. E Mr. Knowles, que é um dos melhores advogados do país, fá-lo apanhar a pena mais leve possível por deserção. Que lhe parece? Aceita este acordo? - Ray moveu-se para a frente até os seus olhos ficarem a centímetros dos de Rob. - Porque, se não aceita e eu venho a saber que nos poderia ter ajudado a recuperar os nossos filhos e não o fez, não importa em que cadeia o meterem, vou lá e mato-o.

 - Ray. - Jonathan puxou-o energicamente para trás.

 Rob sabia reconhecer o momento em que não lhe restavam trunfos para jogar.

 Encolheu os ombros e olhou para Jonathan.

 - O senhor defende-me?

 - Defendo.

 Rob recostou-se na cadeira, evitando olhar para Ray.

 - Muito bem - disse. - Isto começou assim. Um camarada meu no Canadá...

Ouviram-no atentamente.

 Rob escolheu as palavras cuidadosamente quando declarou que vinha pedir dinheiro a Nancy.

 - Compreendem, eu nunca acreditei que ela tivesse tocado num único cabelo desses pequenos Harmon. Não era o género dela. Mas ouvi dizer que se preparavam para me acusar de cumplicidade, que era melhor eu limitar-me a responder às perguntas e abster-me de emitir opiniões.

 - Fale desta manhã - ordenou o chefe Coffin. - A que horas chegou a casa dos Eldredges?

 - Faltavam alguns minutos para as dez horas - respondeu Rob. - Eu vinha a conduzir bastante devagar, à procura dessa estrada de terra que o meu amigo desenhara no seu esboço, e tive de afrouxar por causa do outro carro. Depois compreendi que esse carro saía dessa estrada, dei a volta e retrocedi.

 - O outro carro? - repetiu Ray. - Que outro carro?

 A porta do gabinete abriu-se bruscamente e o sargento precipitou-se na sala:

- Chefe, acho que é muito importante que fale com os Wiggins e com o outro casal. Penso que têm informações de interesse.

 

 FINALMENTE, Nancy conseguiu erguer-se, lavar a cara e bochechar... As crianças. Oh, não, que não acontecesse o mesmo outra vez. Por favor! Vestiu-se rapidamente, enfiou os pés numas alpargatas e apressou-se a descer as escadas.

 Dorothy estava à sua espera na sala de jantar, com sanduíches e um bule de chá.

 - Nancy, sente-se. E tente comer alguma coisa...

 Nancy interrompeu-a:

- Tenho de falar ao chefe Coffin. Tenho uma coisa para lhe dizer. - Cerrou os dentes ao sentir a histeria na própria voz. Voltou-se para Bernie Mills, que estava de pé, junto à porta da cozinha - Não se importa de ligar para a esquadra. - pediu-lhe.

 - Não, eu ligo. - Correu para o telefone, e estava a estender a mão para o auscultador quando o aparelho tocou.

 Bernie Mills precipitou-se para o atender, mas Nancy antecipou-se e ergueu o auscultador.

 - Está lá? - A voz dela era rápida e impaciente.

 Depois ouviu. Tão baixo, que teve de se esforçar para perceber as palavras.

 - Mãe. Mãe, por favor venha buscar-nos. A Missy está doente.

 - Michael! - gritou ela. - Michael, onde é que estás?

 - Estamos em... - A voz da criança desapareceu e a ligação foi cortada.

 Nancy bateu repetidas vezes ao telefone.

 - Telefonista - gritou -, não corte a ligação! Telefonista... - Mas era demasiado tarde. O sinal de linha chegava-lhe aos ouvidos.

 - Nancy, que foi? - Dorothy estava a seu lado.

 - Era o Michael. Disse que a Missy está doente. - Nancy viu a dúvida na expressão de Dorothy. - Não compreende? Era o Michael! - Freneticamente, ligou para a central. - Pode dar-me uma informação sobre a chamada que acabo de receber? De onde é que falavam?

 - Sinto muito, minha senhora. Não temos forma de saber isso. Estamos mesmo a ter bastantes problemas por causa da tempestade.

 - Tenho de saber de onde veio essa chamada! Não há qualquer forma de descobrirmos de onde uma chamada é feita depois de a ligação ser cortada, minha senhora.

 Como que paralisada, Nancy largou o auscultador.

 - Alguém deve ter desligado o telefone - disse ela. - Alguém que tem os pequenos.

 - Tem a certeza de que era o seu filho, Mrs. Eldredge? A senhora está muito perturbada. - Bernie Mills tentou falar numa voz tranquilizante.

 Agarrando-se à beira da mesa para se recompor, Nancy disse em voz calma:

- Podem pensar que estou histérica, mas era a voz do meu filho. Qual é o número da esquadra da polícia?

 - Ligue para KL 5-3800 - respondeu Bernie relutantemente. O chefe não lhe perdoaria por não ter sido ele a atender o telefone. O número atendeu. Uma voz áspera disse:

- Quartel-General da Polícia de Adams Port. Sargento...

 Nancy começou a dizer Chefe Coffin, quando compreendeu que não falava para ninguém.

 - A ligação foi cortada - disse.

 Bernie Mills pegou no telefone.

 - Tem razão.

 - Leve-me à Polícia. Não, vá o senhor. Se o telefone voltar a funcionar e Michael telefonar outra vez... Por favor, vá à Polícia. Nós ficamos aqui. Diga-lhes que Michael telefonou.

 - Eu não a posso deixar.

 - Por favor! Quanto tempo é, de carro, daqui até lá? Cinco minutos. Não demora mais de dez a ir e voltar. Por favor!

Bernie Mills ponderou cuidadosamente o assunto.

 O chefe ordenara-lhe que ficasse ali. Mas se tivesse sido o garoto ao telefone e ele não o informasse... Chegou a pensar em pedir a Dorothy que fosse à esquadra, mas as estradas estavam cobertas de gelo e ela parecia muito preocupada.

 - Eu vou - disse ele. - Fiquem aqui. - Sem perder tempo a procurar o capote, atravessou a correr a porta das traseiras, dirigindo-se para o carro-patrulha.

 Nancy disse então:

- Dorothy, o Michael sabia onde estava. Ele disse: Estamos em... Que é que isso quererá dizer? Quando estamos numa rua ou numa estrada, dizemos Estamos na Estrada 6A, ou Estamos na praia. Mas se estamos numa casa, dizemos Estamos em casa da Dorothy... Percebe o que eu quero dizer? Oh, Dorothy, deve haver alguma forma de saber... tem de haver... E ele disse que a Missy está doente. Eu quase a não deixei sair esta manhã. Mas pensei que não lhe faria mal sair apenas por meia hora. Enfiei-lhe as luvas vermelhas, aquelas com as caras a rirem, e disse-lhe para não as tirar porque estava muito frio. Lembro-me de ter pensado que, uma vez para variar, ela calçava duas luvas iguais. Mas ela perdeu uma junto do baloiço! Oh, Dorothy, ainda se eu não os tivesse deixado sair!

O rosto de Dorothy alterou-se convulsivamente.

 - Que é que disse? Eu pensava que Missy só tinha uma luva com uma cara a rir.

 - E tinha. Mas ontem à noite eu encontrei-lhe o par.

 Com um soluço, Dorothy cobriu o rosto.

 - Eu sei onde eles estão. Oh, meu Deus, como fui estúpida! - Introduziu a mão na algibeira, de onde retirou a luva. - Estava lá, esta tarde no chão da garagem. Eu julguei que ela me tinha caído do carro. É aquele homem horrível... - Nancy agarrou a luva.

 - Dorothy, onde foi que a encontrou?

 Dorothy reconheceu sem energia:

- Na Vigia, quando hoje a estava a mostrar.

 - A Vigia... onde vive esse Mr. Parrish. Eu nunca o vi, senão ao longe. Oh, não! - Num instante de total entendimento, Nancy descortinou a verdade e compreendeu que podia ser já demasiado tarde.

 - Dorothy, eu vou à Vigia. Agora. Pode ser que ainda vá a tempo. Você vá ter com Ray e a Polícia. Diga-lhes para virem. Eu posso entrar na casa?

A voz de Dorothy tornou-se calma. Mais tarde poderia ceder à auto-recriminação.

 - A porta da cozinha tem um fecho. Se ele o correu, não pode entrar. Mas a porta da frente... nunca lhe dei a chave. - Enfiou a mão na algibeira, de onde retirou um jogo de chaves. - Esta abre as duas fechaduras. - E as duas mulheres saíram a correr pela porta das traseiras.

 A visibilidade era praticamente nula. Deslizando sobre o pavimento coberto de granizo, Nancy conduziu rapidamente o automóvel ao longo da estrada e atravessou a 6A em direcção ao atalho para A Vigia. Quando iniciou a subida íngreme e sinuosa, o carro começou a derrapar sobre o gelo. Uma árvore surgiu à sua frente. Nancy conseguiu fazer o volante dar meia volta.

 A parte dianteira do automóvel desviou-se para a direita e embateu ruidosamente na árvore. Nancy abriu a porta do automóvel e iniciou a penosa subida. Próximo do caminho que dava directamente acesso à casa escorregou e caiu. Ignorando a dor aguda no joelho, alcançou a casa, que contornou rapidamente até chegar à entrada principal. Os dedos, entorpecidos, tiveram dificuldade em manusear a chave.

 Oh, meu Deus, faz com que ela abra! As fechaduras, ferrugentas, só dificilmente cederam. Nancy abriu a porta. A casa estava mergulhada na escuridão - num terrível silêncio. Resistiu ao impulso de gritar o nome de Michael.

 Dorothy mencionara a existência de duas escadas no átrio, depois da grande sala da frente. Insegura, Nancy começou a andar, tacteando à sua frente, na escuridão. As escadas... três lanços. Retirou as alpargatas. Estavam tão empapadas de água que o ruído que provocavam a denunciaria.

 No começo da escadaria, parou para controlar a respiração ofegante. A porta no cimo das escadas encontrava-se aberta.

 Foi então que ouviu uma voz - a voz de Michael: Não faça isso!

 Subiu a correr as escadas silenciosamente, furiosamente. Michael! Missy! No cimo das escadas hesitou. Do hall chegava-lhe uma réstia de luz.

 Ainda em silêncio, correu através da sala de estar mergulhada em sombras até à luz do candeeiro no quarto de dormir, em direcção à volumosa figura de costas para ela que segurava com uma mão, sobre a cama, um pequeno ser que se debatia, enquanto com a outra enfiava um saco de plástico numa cabecita loura.

 Nancy teve a visão rápida dos olhos azuis aterrorizados de Michael e do plástico que se lhe colava às pálpebras e narinas, ao mesmo tempo que gritava:

- Larga-o, Carl! - Só soube que dissera Carl quando ouviu o nome saído dos seus lábios.

 O homem deu uma volta sobre si. A figura desgrenhada e seminua de Missy jazia sobre a cama, a camisola vermelho-vivo enrodilhada a seu lado.

 Viu o ar de estupefacção do homem transformar-se em astúcia.

 - Tu! - Dirigiu-se a ela ameaçadoramente.

 Sentiu que ele lhe apertava o pulso com força, mas afastou-se e lançou-se sobre a cama, rasgando com as unhas o apertado saco de plástico que já estava a tornar azuladas as faces de Michael.

 Ouviu a sua respiração pesada quando se voltou para enfrentar o ataque de Carl. Os braços dele apertaram-na com força de encontro a si. Sentiu o calor doentio do corpo dele. Enquanto tentava libertar-se, sentiu o pé de Missy que se movia. Missy estava viva.

 Começou a gritar - um grito constante, exigente, pedindo socorro; depois a mão de Carl cobriu-lhe a boca e as narinas, impedindo-a de respirar e fazendo com que grandes cortinas negras descessem diante dos seus olhos.

 Bruscamente, as mãos afrouxaram. Tossiu, sufocada - num som gorgolejante.

 Algures, alguém gritava o seu nome. Ray! Era Ray! Tentou responder, mas nenhum som lhe saiu da garganta.

 - Mãe, mãe, ele está a levar Missy! - A voz de Michael era premente, a mão dele sacudia-a.

 Conseguiu sentar-se, enquanto Carl passava por ela, levando a pequenita, que agora começara a agitar-se e a chorar.

 -Deixa-a, Carl! Não lhe toques! - Mas ele olhou-a selvaticamente e, apertando Missy de encontro a si, correu para a escuridão do quarto ao lado.

 Ela cambaleou atrás dele, tentando afastar a tontura. Ouviam-se passos que subiam precipitadamente a escada. Desesperadamente, procurou Carl e viu a sua sombra recortada na janela. Ele subia as escadas para o sótão.

 - Cá em cima, Ray! Cá em cima! - Finalmente, conseguiu falar. Tropeçando às cegas, subiu a escada do sótão atrás de Carl.

 Este, porém, agora subia os degraus pequenos e frágeis que conduziam ao passeio da viúva. Ela pensou na varanda estreita e perigosa que rodeava a chaminé por entre os torreões da casa.

 - Carl, não vás para aí. É muito perigoso! Volta! - Mas ele estava no cimo dos degraus, empurrando a porta que dava para o telhado.

 Missy chorava agora - um lamento alto e aterrador:

- Mããe...

Carl atirou-se para a varanda.

 Freneticamente, Nancy arrastou-se atrás dele, tentando puxá-lo para baixo.

 Se ele caísse, ou deixasse cair Missy...

- Carl, pára. Pára! - O granizo fustigava-o.

 Ele voltou-se e tentou dar-lhe um pontapé, mas oscilou para trás, apertando fortemente Missy. Baloiçou sobre o parapeito, mas conseguiu recuperar o equilíbrio. Ela ouvia-lhe a respiração áspera, um som agudo entre o soluço e o riso. Ele segurava Missy sobre o parapeito.

 - Não te aproximes mais - avisou-a. - Senão, deixo-a cair. Diz-lhes que têm de me deixar ir. Diz-lhes que não podem sequer tocar-me.

 - Carl, eu ajudo-te. Dá-ma - suplicou. - Eu digo-lhes que tu estás doente.

 - Tu não me ajudas. Só queres que eles me façam mal. - Passou um pé por sobre o parapeito.

 - Carl, não. Não faças isso, Carl, tu detestas a água. Não queres que a água te cubra a cara. Quando o teu corpo não foi encontrado, eu devia ter percebido que tu não te suicidaras. Tu não te podias ter afogado.

 Então ouviu o som de algo que estalava.

 O parapeito estava a quebrar-se! Carl, cuja cabeça tombou para trás, estendeu os braços.

 Quando ele soltou o corpo de Missy, Nancy precipitou-se para a frente.

 As suas mãos apanharam o cabelo comprido de Missy - apanharam-no, torceram-no e seguraram-no. Oscilava na berma do passeio da viúva, que se desfazia.

 Sentiu a mão de Carl que, enquanto caía, lhe agarrava uma perna, gritando. Então uns braços firmes rodearam-na por trás.

 Uma mão forte empurrou a cabeça de Missy para junto do seu pescoço e puxou ambas para trás.

 Nancy desmaiou nos braços de Ray, enquanto, com um último grito desesperado, Carl deslizava pelo telhado inclinado e escorregadio, precipitando-se nas águas furiosas em baixo.

 

 AS chamas lambiam, esfomeadas, os troncos grossos. O aroma quente da lareira e o cheiro do café acabado de fazer impregnavam a sala.

 Os Wiggins tinham aberto a loja, de onde haviam trazido carnes frias para sanduíches, e, juntamente com Dorothy, tinham posto a mesa, enquanto Nancy e Ray se encontravam no hospital com as crianças.

 Quando eles regressaram a casa, as equipas de televisão filmaram Nancy e Ray transportando os filhos do automóvel e receberam a promessa de uma entrevista no dia seguinte.

 - Entretanto - dissera Ray aos microfones - queremos agradecer a todos aqueles cujas orações ao longo deste dia mantiveram os nossos filhos salvos do perigo.

 Agora Nancy encontrava-se sentada no sofá, apertando estreitamente Missy, que dormia tranquilamente ao colo da mãe, enrolada num cobertor. Michael, ao colo do pai, falava com Lendon, contando-lhe tudo.

 A sua voz era um tanto jactanciosa:

- E eu não quis ir-me embora daquela casa sem Missy quando o homem bom começou a lutar com o homem mau e me gritou para eu ir pedir ajuda. Por isso voltei a subir as escadas para junto de Missy e telefonei à mãe. Mas o telefone deixou de funcionar. Depois o homem mau veio...

 - Muito bem. Foste formidável, Mike. - Ray não podia afastar os olhos de Nancy e de Missy.

 O rosto de Nancy estava tão serenamente belo que ele teve dificuldade em se libertar de um nó que se lhe formara na garganta.

 O chefe Coffin pousou a chávena de café e releu a declaração que iria fazer à imprensa: O Prof. Carl Harmon, aliás Courtney Parnsh, foi retirado da água ainda com vida. Antes de morrer, fez uma declaração confessando ser o único culpado do assassínio dos seus filhos, Peter e Lisa, há sete anos. Admitiu também ser o responsável pela morte da mãe de Nancy Eldredge. Compreendendo que esta teria impedido o seu casamento com Nancy, avariou a direcção do seu automóvel enquanto ela se encontrava num restaurante com a filha.

 Mr. John Kragopoulos, a quem o Prof. Harmon atacou hoje, está internado no Hospital de Cape Cod, com uma concussão cerebral, mas espera-se que se restabeleça.

 Os pequenos Eldredge foram examinados, não tendo sido sexualmente molestados, embora o rapaz, Michael, apresente uma equimose no rosto, resultante de uma violenta bofetada.

 O chefe sentia-se cansado até à medula dos ossos. Amanhã, reflectiu, teria de julgar a sua própria culpabilidade. Alimentara um preconceito contra Nancy, irritado pelo facto de não a ter reconhecido, devido ao qual fechara o entendimento a tudo quanto Jonathan, Ray, o médico e a própria Nancy lhe haviam dito.

 - Café? - Jonathan repetiu a pergunta de Dorothy.

 - Sim, obrigado. Normalmente não tomo café tão tarde, mas não me parece que vá ter dificuldade em dormir esta noite. - Olhou de perto o rosto de Dorothy. - E você? Deve estar bastante cansada. - Notando uma tristeza indefinível ensombrar-lhe o rosto, compreendeu o motivo. - Acho que devo dizer-lhe - murmurou com firmeza - que qualquer sensação de culpa que porventura tenha é injustificada. Todos nós ignorámos hoje os factos. Ainda esta manhã eu considerei a hipótese de pedir a Ray que falasse ao inquilino da Vigia sobre o que quer que fosse que ele tinha na janela e que reflectia luz. Uma investigação ter-nos-ia levado muito rapidamente até à Vigia. E um facto indiscutível é que, se você não tivesse resolvido manter o compromisso com Mr. Kragopoulos e não o levasse àquela casa, Carl Harmon não teria sido desviado das suas intenções malignas.

 Dorothy ouviu, meditou por momentos e começou a sentir o peso da culpa a diluir-se.

 - Obrigado, Jonathan. Precisava mesmo de ouvir isso.

 Inconscientemente, apertou-lhe o braço.

 Ele cobriu-lhe a mão com a sua.

 - Os caminhos ainda estão traiçoeiros - disse ele. - Quando quiser ir para casa, preferia que me deixasse levá-la.

 Acabou , pensava Nancy. Acabou .

 " Os seus braços estreitaram-se em torno de Missy adormecida, enquanto olhava para Michael, encostado ao peito do pai.

 Do mais íntimo do seu ser nascia uma oração que lhe enchia o espírito e o coração. Obrigada, meu Deus, obrigada. Obrigada. Tu livraste-nos do mal.

 - Mãe - balbuciou Michael numa voz sonolenta. - Não lhe comprei o presente de anos.

 - Não te preocupes, Mike - tranquilizou-o Ray. - Vamos festejar amanhã o aniversário da mãe, e sei exactamente que presentes havemos de lhe dar. - Miraculosamente, a tensão que ainda lhe crispava o rosto desapareceu, e Nancy viu uma cintilação aparecer nos seus olhos.

 Ray olhou directamente para ela.

 - Até te vou dizer quais são as nossas prendas - adiantou. - Lições de arte de um bom professor são a prenda dos pequenos. E uma ida ao instituto de beleza é a minha. Tenho cá um palpite de que darás uma ruiva sensacional, querida.

 

                                                                                            Mary Higgins Clark

 

                      

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