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A Terceira Potência / Clark Darlton
A Terceira Potência / Clark Darlton

 

 

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A Terceira Potência

 

Perry Rhodan e mais três oficiais da Força Espacial dos Estados Unidos haviam pousado na Lua a bordo da nave Stardust.

Lá encontraram a gigantesca nave espacial dos arcônidas, que tinha realizado um pouso de emergência. Era tripulada pelos representantes de uma grande potência galáctica que, apesar de sua superioridade técnica e científica, estavam em decadência. O cientista-chefe da expedição, um dos poucos que não fora atingido pela total apatia que dominava os tripulantes, padecia de uma enfermidade do sangue que só a medicina terrena podia curar.

Perry Rhodan decide ajudar os arcônidas: retorna à Terra em companhia de Crest, o cientista-chefe e, ao invés de aterrissar em território dos Estados Unidos, prefere a solidão do deserto de Gobi a fim de evitar que os avançados conhecimentos arcônidas caiam nas mãos de qualquer potência terrena.

Rhodan tem motivos de sobra para proceder dessa forma. Seus superiores hierárquicos, contudo, vêem nele um traidor...

 

                             

 

O silêncio era enganador.

A superfície do lago salgado de Goshun, situado ao norte da China, apresentava-se lisa como um espelho. Calmo e sem vida, estendia-se no deserto imenso. Não soprava a mais leve brisa. O ar quente e seco oprimia os homens. Parecia tremular sobre as pedras escaldantes e subia, perdendo-se na imensidão azul do céu sem nuvens. Bem ao longe, uma cadeia de montanhas destacava-se contra o horizonte. Era de lá que vinha o rio, cujas águas alimentavam o lago salgado. Constava dos mapas da região com o nome de Morin-Gol.

Era a única coisa viva que aparecia na paisagem dessa parte do deserto de Gobi. Arrastava-se preguiçosamente; não era muito largo nem profundo e nunca secava. Sua presença era o único sinal visível de vida naquela região inóspita.

Nenhuma planta crescia naquele solo pedregoso e nenhum animal encontraria alimento em meio àquelas rochas. Excluindo o deslizar manso do rio, não parecia haver o mais tênue sinal de vida pelos arredores, mas o silêncio parecia esconder alguma coisa.

Aquele objeto esguio e prateado que se via perto da margem do rio destoava da paisagem agreste e solitária. Era uma nave de mais de trinta metros de comprimento. Seu corpo aerodinâmico e suas asas em forma de delta ofereciam um contraste flagrante face à natureza hostil do lugar.

A nave, batizada com o nome de Stardust, tinha sido a primeira a pousar na Lua. Ao retornar ao nosso planeta, o comandante decidiu aterrissar no deserto de Gobi. Este fato, agora já conhecido por todos, causou perplexidade e revolta nos governos das grandes potências. No entanto, só uns poucos desconfiavam que não se tratava de um pouso de emergência, mas de uma manobra deliberada.

Uma escotilha retangular abriu-se em um dos lados do corpo da nave. Um homem apareceu na abertura e olhou para a solidão do deserto. Seu olhar passou para além do rio e perscrutou as montanhas; depois, procurou o lago e deteve-se no mesmo. O capitão Reginald Bell, piloto da Força Espacial dos Estados Unidos e engenheiro da Stardust, aspirou avidamente o ar, embora este pudesse ser tudo, menos refrescante. Trajava o uniforme azul da Força Espacial e trazia a boina debaixo do braço direito.

Um tênue sinal de esperança iluminou seus olhos quase descorados quando se virou e gritou para o interior da nave:

— Pode-se tomar banho nessa poça d'água?

Alguém emergiu da penumbra do corredor e colocou-se ao lado de Bell. Usava o mesmo tipo de uniforme, mas não tinha as platinas e os passadores no peito. Aparentava uns trinta e cinco anos. Era magro e seu rosto, com os olhos duros, cinzentos azulados, era encimado por uma curta cabeleira castanho-escura. Tratava-se do major Perry Rhodan, comandante da Stardust e chefe da primeira expedição lunar.

— É claro que pode — disse em resposta à pergunta de Bell. — Mas a água é morna; não refresca. Além disso contém sal demais para o meu gosto.

— Sempre gostei de comida bem temperada — observou Bell. — Em caso de necessidade, eu bebia toda a água desse lago.

— Você teria uma surpresa. Comparada com esse líquido, a água do Atlântico até parece refresco.

Bell olhou o Sol, que estava quase atingindo o zênite.

— Seria bom que houvesse tempo para isso! Acho que não nos deixarão em paz por muito tempo. Será que Crest tem algum meio de nos proteger?

Crest era o cientista-chefe de uma expedição extraterrena que havia pousado na Lua. Há milênios sua raça dominava boa parte da Via Láctea, mas, a essa altura, já entrara em decadência. O próprio Crest sofria de leucemia. Se os homens não o ajudassem, estaria irremediavelmente perdido. Foi esta a razão que o levou a embarcar na Stardust para vir à Terra.

Este era o segredo que a Stardust trazia em seu bojo e que, até então, não havia sido revelado a ninguém.

— O anteparo protetor deve ser suficiente. Pelo que Crest diz, não há nada que possa atravessá-lo, nem mesmo uma bomba atômica. Basta ligar uma chave para que sejamos cobertos por uma cúpula transparente contra a qual todo o mundo a que pertencemos atacaria em vão.

— Isso me tranqüiliza bastante — Bell acenou a cabeça num gesto de aprovação. — Os amarelos não tardam a chegar. Provavelmente pensam que foi erro nosso e que, a esta hora, estamos esperando que eles venham nos buscar. Devem estar morrendo de ansiedade pelos segredos da Stardust.

— Eles ficariam apalermados de tanta curiosidade se soubessem que passageiro temos a bordo — disse Rhodan. — É verdade que só recebi ligeiras indicações do poderio dos arcônidas. Uma coisa, porém, é certa. Crest tem condições de dominar o mundo sem qualquer auxílio. Dentro de algum tempo, certas pessoas vão ficar desesperadamente furiosas conosco.

Uma sombra fugaz atravessou o rosto largo de Bell.

— Infelizmente, é provável que nossa própria gente também fique. Será que não poderíamos, ao menos, explicar-lhes o motivo que nos impediu de descer em Nevada Fields?

Perry sacudiu a cabeça.

— Você conhece o general Pounder. Acha que ele ia abrir mão das enormes vantagens que poderia tirar do nosso hóspede extraterreno? Isso, sem falar no pessoal do Serviço Secreto e do Conselho Internacional de Defesa. Quando me lembro de um certo Mercant...

Allan D. Mercant era o chefe do Conselho Internacional de Defesa, subordinado apenas ao comando supremo da OTAN. Era dirigente do setor especial designado oficialmente como Agência de Informação e Segurança. Não existia um único país onde Mercant não tivesse os seus agentes.

Bell suspirou e voltou a falar.

— Mas compreendo a atitude de Fletcher. É muito natural que queira voltar à sua terra. É possível que, no fundo do coração, reconheça o acerto de impedir que qualquer nação se apodere de Crest. Mas vive pensando na esposa e na criança que está para nascer. Duvido que a gente consiga segurá-lo para sempre.

— Ele pode ir embora quando quiser — disse Perry para surpresa de Bell.

Este engoliu em seco.

— Ir embora? Para onde? — apontou em direção ao deserto. — Por aí? Quer que ele se perca?

— Não vamos ficar sós por muito tempo. — Perry olhou para o relógio. — Estou admirado de que ainda não tenha surgido nenhum avião de reconhecimento.

Acenou com a cabeça para Bell e voltou para o interior da nave. No compartimento um tanto apertado, o Dr. Manoli estava sentado junto ao leito em que Crest repousava. O capitão Fletcher estava perto da escotilha de vidro. Olhava para o deserto com os lábios cerrados.

— Então? — perguntou Perry que percebera o olhar de Manoli. — Como vai o nosso doente?

Antes que o médico pudesse responder, Crest falou:

— Obrigado, major. Sinto-me fraco; só isso. O ar do seu planeta me faz muito bem. Acredita, realmente, que poderá ajudar-me a ficar bom?

O mal que atacara Crest, a leucemia, consistia na multiplicação exagerada dos glóbulos brancos do sangue. O que, pouco a pouco, acabava com os glóbulos vermelhos. De certa forma, o paciente morre por asfixia, embora continue a respirar normalmente pelos pulmões. O problema é que o oxigênio que chega aos pulmões de nada serve se não estiverem presentes os glóbulos vermelhos que o transportam aos diversos órgãos. O primeiro sintoma é o cansaço, o paciente enfraquece a olhos vistos. A decadência orgânica é seguida pelo definhamento mental. A morte é inevitável.

Todavia, cerca de dois anos antes, tinha sido descoberto, por um pesquisador australiano, o remédio contra a leucemia: o soro anti-leucêmico.

— É claro que poderemos ajudá-lo, Crest. Mas, para isso, é necessário que confiemos um no outro. Estou interessado nas invenções de seu povo, no seu desenvolvimento técnico e científico e, falando com franqueza, nos seus armamentos. Em troca disso, ofereço-lhe a cura e a completa regeneração. É um negócio simples, como qualquer outro.

— Sua sinceridade é muito reconfortante. Há muitos milhares de anos nosso povo também era assim. Hoje, muitos de nós estamos demasiado cansados para sermos sinceros. Parece-me que poderíamos aprender alguma coisa com seu povo.

Rhodan pensava nos arcônidas estendidos nos seus leitos a bordo da nave pousada na Lua e que, para afugentar o tédio, contemplavam os quadros abstratos e irreais que apareciam nas telas.

O grau de apatia a que chegaram impedia-os, sequer, de tentar o reparo da própria nave. O exercício do poder, por milhares de anos, e os robôs, verdadeiros servos incansáveis, haviam transformado os arcônidas em um povo sem qualquer outra motivação que não fosse ficar deitado e sonhar de olhos abertos.

— Também entre nós a renovação do sangue é considerada o melhor remédio contra a degenerescência e a decadência genética — disse Rhodan.

Crest ergueu-se na cama. Recostou-se contra a parede. Era cerca de um palmo mais alto que Rhodan. Seu aspecto exterior pouco o distinguia dos homens. O que lhe conferia uma aparência estranha eram os cabelos quase totalmente brancos, os olhos despigmentados e a testa de altura descomunal. Detrás dela, porém, havia uma peculiaridade invisível ao olho humano. Além do cérebro normal, dispunha de um cérebro suplementar, como não existe em qualquer ser vivo na Terra. Esse cérebro era um potente centro de armazenamento de dados e uma espécie de memória fotográfica. Outra coisa ignorada pelos homens era a placa protetora do coração e dos pulmões que, no seu peito, substituía as costelas.

Crest era o último dos descendentes da dinastia reinante em Árcon, o planeta que servira de berço à sua civilização e, sendo cientista, interpretou literalmente a observação de Perry Rhodan.

— É provável que uma renovação do sangue apresentaria resultados positivos. Acontece que qualquer cruzamento com um membro de uma raça primitiva, ou melhor, uma raça que ainda não atingiu determinado grau de evolução, constituiria uma violação da lei dos arcônidas.

— Sossegue — disse Rhodan com um sorriso irônico. — Não pretendo me casar com Thora.

Bell, que acabava de entrar, soltou uma gargalhada enquanto Manoli, preocupado, tomava o pulso do seu paciente. Fletcher não demonstrou o menor sinal de que tivesse ouvido alguma coisa.

Por um instante, Rhodan imaginou-se de volta à gigantesca nave espacial dos arcônidas. Viu, diante de si, Thora, a comandante da expedição que saíra à procura do planeta da vida eterna. Era uma mulher alta, muito bela. Tinha os cabelos claros, quase brancos, e seus grandes olhos brilhavam com um tom vermelho dourado..

Seria uma mulher? Talvez fosse no seu aspecto exterior. Mas era só isso. Na realidade, não passava de uma calculista fria, dotada de um raciocínio cristalino e de um intelecto altamente desenvolvido. Sua conduta era marcada por um preconceito extremo contra os seres inferiores. Foi somente o raciocínio lógico que a levou a entrar em acordo. Sabia, perfeitamente, que não lhe restava outra alternativa, a não ser que quisesse passar o resto dos seus dias na Lua.

Crest abanou lentamente a cabeça.

— Admiro a sua fantasia. Mas creio que não convém perder tempo com palavras inúteis. Devemos pensar no que vamos fazer. Você me prometeu auxílio...

— E terá auxílio — asseverou Rhodan. Depois, dirigindo-se a Bell, prosseguiu: — Você terá que deixar o banho para mais tarde. Por enquanto, procure captar as notícias que andam por aí. Faça o possível para registrar as transmissões mais importantes. Precisamos saber o que está acontecendo no mundo.

— Se alguém pretender lançar um ataque contra nós, não nos avisará com antecedência. Prefiro falar com Pounder.

— Por enquanto, não. Vamos permanecer calados. Eles que dêem tratos à bola para descobrir por que não respondemos às suas mensagens. Terão de ficar maduros para aquilo que pretendo fazer.

— Maduros! — Bell abriu a porta que dava para a sala de rádio e radar. — Acho que, daqui a pouso, somos nós que estaremos maduros!

Perry não se preocupava com Bell. Conhecia-o e sabia que poderia confiar nele.

— Eric, preocupe-se exclusivamente com Crest. Fletcher, peço-lhe que cuide logo da comida. É possível que, mais tarde, não haja tempo suficiente para isso. Enquanto isso eu cuido da nossa situação estratégica. Quais foram as armas que Thora entregou, Crest?

O arcônida continuava sentado na cama, com as mãos entrelaçadas.

— Acho que, por enquanto, o mais importante é o anteparo energético. Trata-se de um dispositivo puramente defensivo, mas que apesar disso, não deixará de impressionar um eventual agressor. Além disso, dispomos de três armas manuais, os psico-irradiadores. Sua intensidade é regulável. Com a regulagem máxima, consegue-se a paralisação psíquica de um homem a dois quilômetros de distância, mas nunca se pode causar sua morte. Com uma intensidade menor, a consciência da pessoa atingida é debilitada de tal forma que será fácil assumir o comando sobre seu corpo. Como se não bastasse, podem ser transmitidas ordens pós-hipnóticas que serão executadas em quaisquer circunstâncias, mesmo quando a pessoa atingida já se encontra fora do alcance das psico-irradiações. Tudo isso vem acompanhado de uma amnésia artificial. A pessoa não se recorda de coisa alguma.

— Isso já nos serve — disse Rhodan. — Há mais alguma coisa?

— Só o transmissor que nos permite entrar em contato com Thora a qualquer momento. Conforme é do seu conhecimento, as ondas emitidas pelo mesmo atravessam a Lua. Sem isso, não conseguiríamos nos comunicar com ela, já que a nave está pousada na face oculta do satélite.

Rhodan ficou por uns momentos com o ar pensativo. Crest compreendeu que algo o preocupava.

— Não se preocupe. O anteparo energético e o irradiador manual bastam. Se surgirem problemas mais graves, Thora intervirá.

— Que tal o neutralizador de gravidade que o senhor colocou a bordo para facilitar a decolagem quando viemos da Lua?

— Ah, sim! Já ia me esquecendo dele, se bem que ele não possa ser considerado uma arma. Seu alcance é enorme: mais de dez quilômetros. E funciona tanto na base da radiação direcional como na da radiação circular. Pode-se diminuir sensivelmente ou até eliminar a gravidade da Terra num retângulo de dez quilômetros de comprimento e a largura que se desejar, ou então num círculo de vinte quilômetros de diâmetro, que terá por centro o irradiador, ou seja, no nosso caso, a Stardust.

— Excelente! — exclamou Rhodan. — Acho que isso basta.

Dirigiu-se à porta.

Fletcher passou os olhos pelo deserto. Depois, lançou um olhar provocador para Rhodan, mas, quando se defrontou com os olhos do comandante, que pareciam de aço, limitou-se a um ligeiro aceno de cabeça.

— Está bem, Perry. Oportunamente falaremos sobre o resto.

Bell abordou Perry junto à escotilha de saída.

— Está havendo interferência nas transmissões. Não consigo pegar os Estados Unidos. Todas as freqüências estão ocupadas. Mas há um emissor muito forte que deve estar bem próximo de nós. O sujeito fala inglês com sotaque. Diz que não devemos tomar nenhuma providência porque a operação de resgate já está em andamento.

— Operação de resgate! — disse Rhodan. — É uma expressão muito bonita para designar aquilo que os chineses pretendem fazer. Responda que não queremos qualquer auxílio.

Bell não respondeu. Olhou para longe. Uma nuvem de pó levantou-se do outro lado do rio, perto das colinas. Parecia um lençol sujo estendido por cima do deserto. Pontinhos minúsculos moviam-se em direção ao lago salgado. Perry seguiu o olhar do amigo.

— Ah, está na hora! Estão chegando. Veja! Um helicóptero!

Os rotores que giravam com o zumbido característico mal se distinguiam no ar que tremulava no calor. A fuselagem delgada faiscava ao sol ofuscante. Quando desceu, a menos de cem metros da nave, a areia foi atirada para o alto.

— Bell, fique aqui. Segure um dos irradiadores e aguarde um sinal meu. Regule para a intensidade máxima. Vou falar com eles.

— Mas...

— Não hã nenhum mas. Esta gente nos quer vivos. Não há perigo.

Bell desapareceu no interior da nave. Dentro de cinco segundos estava de volta. Segurava um bastão prateado com uma lente na ponta. Havia um botãozinho vermelho deslocável, que podia ser firmado em qualquer posição.

Perry acenou com a cabeça e desceu a escada. Foi andando em direção ao helicóptero, do qual haviam saído dois homens que envergavam o uniforme da Federação Asiática. Enquanto aguardavam, olhavam-no com curiosidade.

O piloto permaneceu na cabina do helicóptero. Soltou o manete de direção e pegou uma pistola automática.

No rosto de Rhodan surgiu um sorriso de compaixão. Essa gente teria uma surpresa enorme.

Os dois oficiais vieram ao seu encontro. Falavam inglês quase sem sotaque.

— Ficamos satisfeitos em ver que conseguiu realizar um pouso tranqüilo — disse o oficial mais graduado. — Sou o marechal Roon, comandante das forças terrestres do nosso império. Este aqui é o major Butaan.

— Perry Rhodan — apresentou-se Rhodan, inclinando-se ligeiramente. — O que desejam?

Os dois homens ficaram mudos de espanto. Olharam-se ligeiramente e depois lançaram um olhar indagador ao cosmonauta. Estavam convencidos de que o mesmo precisava de auxílio.

Perry esboçou um sorriso gentil.

— Foi muita gentileza tomar todo este trabalho, mas as providências destinadas a nos ajudar são inúteis. Para tranqüilizá-los quero acrescentar que, se estivesse falando com um oficial do exército americano ou russo, a resposta seria idêntica.

— Não compreendo — disse Roon, enquanto sua mão alisava a calça do uniforme, que ficara amassada com a longa permanência no helicóptero. — O senhor realizou um pouso de emergência, não é mesmo? Está precisando de auxílio. Ou será que está em condições de decolar com seus próprios meios?

— E se estivesse?

— Não poderíamos permitir a decolagem, já que o senhor aterrissou em território chinês.

Perry sorriu.

— Ah, agora está começando a falar com sinceridade. O que lhe interessa não é ajudar-nos, mas agarrar-nos. Muito bem bolado. Acontece que não pousamos aqui para sermos presos pelo senhor.

Roon ia dar uma resposta violenta, mas foi contido por um olhar de advertência do major que o acompanhava. Controlou-se imediatamente. Tudo indicava que o major exercia uma influência bastante acentuada sobre o comandante do exército.

— Ninguém está falando em restringir sua liberdade de locomoção. É evidente que teremos de revistar a nave para verificar se não tiraram fotografias sobre o território da Federação Asiática.

— Fizemos mais que isso. Fotografamos toda a Terra; da Lua. Será que isso é proibido? A nave dos senhores não tira fotografias?

Os dois oficiais olharam-se rapidamente.

— Nossa nave foi destruída logo após a decolagem. Foi sabotagem. Não sabia disso?

Perry ficou abalado. Para ele, a conquista do espaço interessava a toda a humanidade. Sabia que as fronteiras que separam os povos só seriam demolidas depois de reconhecida sua insignificância face às fronteiras mais amplas do espaço. Não reconhecia nenhuma diferença entre as raças e as nações. Para ele, todos eram homens, terrenos. Alegrar-se-ia com o êxito de qualquer expedição à Lua, ainda que a mesma fosse realizada por um inimigo seu — se tivesse um. Foi, portanto, em virtude de um impulso espontâneo que se dirigiu ao marechal, estendendo-lhe a mão.

— Lamento muito. Não sabia. Foi sabotagem?

Roon fez de conta que não estava vendo a mão que Perry lhe estendia.

— Só pode ter sido. Os nossos cientistas mais competentes examinaram a nave na decolagem. Não encontraram o menor defeito. Ao atingir cem quilômetros de altitude a nave partiu-se em duas e caiu ao solo.

— Existem milhares de circunstâncias que podem determinar uma falha. Não existe nenhuma prova de que tenha sido sabotagem.

— Um elemento a soldo do Ocidente entrou furtivamente na nave e danificou o reator.

— Besteira! — disse Perry em tom áspero. — Não se deve procurar encobrir os próprios fracassos.

Sentiu-se contrariado pela suspeita insultuosa dos asiáticos. Roon não era chinês; provavelmente seria natural da Índia ou de alguma ilha.

— Nenhum de nós teria interesse em impedir sua viagem à Lua — prosseguiu Perry. — Mas não falemos mais nisso. O que deseja de nós?

Pela primeira vez o major dirigiu-lhe a palavra.

— Pousou neste local por sua livre vontade? — indagou.

Era uma pergunta muito direta. Perry decidiu dar uma resposta igualmente direta.

— Perfeitamente. Se quiséssemos poderíamos ter pousado no deserto do Saara ou na América.

— Por que pousou justamente aqui?

— Temos nossos motivos. Vejo-me forçado a pedir que daqui por diante considere o trecho de terra que circunda esta nave como território submetido à soberania de uma potência neutra, embora o mesmo se encontre dentro das fronteiras do seu país. Seu povo não faz nenhum uso deste deserto; portanto, a nossa decisão não lhe acarretará qualquer prejuízo econômico. Garantimos-lhes a não-interferência nos assuntos internos do seu país e respeito às fronteiras do mesmo. Realizaremos negociações diretas com seu governo. Quanto ao senhor, marechal Roon, recomendo-lhe que ordene às tropas que se dirigem para cá, a fim de transformar a nave americana numa presa valiosa, que façam meia-volta. Estamos entendidos?

O major Butaan recuou um passo. A sua mão direita repousava sobre a coronha de uma pesada pistola. Apertou os lábios. Seus olhos chamejaram.

O marechal Roon conseguiu controlar-se. Com um sorriso cativante, falou:

— O senhor só pode estar brincando, major Rhodan. Cabe-nos o direito de revistar qualquer objeto voador que pouse no território submetido à nossa soberania. Se não houver motivos para suspeita, será liberado. Acho que sua observação relativa a uma potência neutra só pode ser considerada uma piada de mau gosto.

— Interprete minhas palavras como quiser, mas não diga que não foi prevenido. E agora, passe bem. Provavelmente, ainda nos encontraremos outras vezes.

— Um momento!

O major Butaan puxou a arma e apontou-a para Rhodan. Era uma pistola de grosso calibre que lançava balas explosivas. Um pouco antiquada, mas muito eficiente, principalmente a pouca distância.

Perry cruzou os braços sobre o peito. Sentia atrás dele, a menos de oitenta metros, a presença de Bell pronto a experimentar o neutralizador. Certamente já o teria feito se Rhodan não estivesse no campo de ação do aparelho.

— Pois não.

— Major Rhodan, o senhor é um espião. Esta nave não passa de uma base americana que os senhores fizeram pousar propositalmente neste local. Certamente esperavam ser tratados com condescendência porque iríamos acreditar que se encontrassem em dificuldades. Acontece que descobrimos o seu jogo e...

— Não prometa aquilo que não pode cumprir — advertiu-o Rhodan. — Nosso pouso neste local deixou os americanos tão surpresos quanto os senhores. Também não têm a menor idéia das nossas intenções. E também seriam repelidos se procurassem aproximar-se de nós. Compreenderam? Muito bem! Nesse caso permitam que volte à minha nave. Repito, marechal: retire suas tropas, pois do contrário não me responsabilizo pelo que vier a acontecer.

Cumprimentou os dois oficiais com um aceno de cabeça, lançou um olhar de advertência ao piloto que segurava a pistola automática, voltou-se e foi andando devagar em direção à Stardust. Bell estava no topo da escada de acesso, indeciso, com o bastão prateado na mão. Percebia-se o seu alívio quando viu, finalmente, o comandante se afastar da área de alcance da arma.

— Devíamos fazer uma brincadeira com eles — gritou para Rhodan. — Esse sujeito de calças cinzas deve ser general. Poderíamos incutir-lhe a idéia de que é porteiro de circo e mandá-lo-íamos de volta ao emprego. Seria engraçado.

Rhodan atingiu o primeiro degrau e voltou-se. O marechal Roon e o major Butaan — e ele apostaria qualquer coisa como este último pertencia ao serviço de contra-espionagem — continuavam parados no mesmo lugar, indecisos, na expectativa. Butaan ainda tinha a arma na mão.

— Não vejo nada de mal numa brincadeira — respondeu Rhodan, depois de ter chegado ao lugar em que Bell se encontrava. — Traga o neutralizador, depressa!

— O... ?

Bell não disse mais nada. De um salto desapareceu no interior da nave. Voltou alguns momentos mais tarde com uma pequena caixa metálica na mão. Apesar do seu aspecto simples, ele concentrava uma quantidade enorme de energia, concentrada num espaço extremamente reduzido. Crest chamara o aparelho de neutralizador da gravidade. Quanta coisa não encerrava este nome... O sonho de muitas gerações de cientistas.

Perry regulou o aparelho. Depois, foi empurrando devagar a chave do lado direito que ativava o raio direcional, e diminuía gradativamente a gravidade.

O major Butaan voltou a guardar a arma.

— Não compreendo como o senhor permite que um bando de espiões nos dê ordens. A meu ver é uma atitude irresponsável. Terei de informar às autoridades competentes.

— Fique à vontade — disse Roon com toda calma. Olhou para a Stardust com os olhos apertados. — Estou convencido de ter agido corretamente.

Nessa nave há muita coisa de que nem o senhor nem eu desconfiamos. Para o senhor, tudo não passa de uma ação disfarçada do pessoal do Ocidente. Mais precisamente, acha que colocaram uma base neste lugar. A idéia não é má... pode, até, ser verdadeira. Acontece que não sabemos. Talvez o tal Rhodan nem seja maluco. Às vezes chego a pensar que devem ter descoberto algo extraordinário na Lua; alguma coisa que lhes confere um poder formidável.

Parou de falar. Havia algo errado. Subitamente, sentiu-se leve, como se estivesse flutuando; até parecia que tinha bebido. O pior era que tinha a impressão de ter perdido, também, o equilíbrio. Sentia-se mais alto, como se estivesse crescendo por cima de sua própria cabeça.

“Que diabo!”, pensou. “Tomara que o major não perceba nada.”

Butaan estava tão preocupado consigo mesmo que não tinha tempo para pensar no marechal. Um movimento irrefletido fez com que o chão lhe fugisse de sob os pés. Devagar, como um balão, foi subindo em direção ao céu azul. Girava como um campeão de saltos ornamentais em câmara lenta.

Roon não se movera; por isso ainda continuava de pé sobre as pedras aquecidas do deserto de Gobi. De boca aberta, não tirava os olhos de Butaan que praguejava e invocava a ajuda dos antepassados. Mas as maldições não adiantaram nada, nem os antepassados vieram em seu auxílio. Continuou subindo.

— Piloto! — berrou o marechal e virou-se abruptamente.

Não devia ter feito uma coisa dessas. O movimento giratório não foi amortecido; subindo em espiral, Roon seguiu o chefe do Serviço de Defesa.

O piloto não se conteve mais. Num movimento instintivo, segurou-se ao encosto do seu assento até que alcançasse a saída estreita. Por um instante, contemplou de boca aberta e olhos arregalados seus superiores que subiam para o céu. Depois, empunhou a pistola automática.

O primeiro tiro varreu-o para fora da cabine do helicóptero, que foi deslizando lateralmente poucos centímetros acima da superfície do solo. Sem perceber, abaixou o cano da arma e, como fizera fogo contínuo, o pobre piloto subiu como um foguete para o céu do deserto. A velocidade foi aumentando a cada tiro, até que o carregador da arma estivesse vazio. Mas o impulso foi suficiente para que ele continuasse a subir.

Era um quadro incrível o que se desenrolava em plena luz do dia. Três homens flutuavam no ar e um helicóptero, em posição oblíqua, balouçava entre as rochas como se fosse um navio encalhado batido pelas águas do oceano.

Perry levantou-se e olhou para o rosto radiante de Bell.

— Então, o que acha disso?

— É formidável! Um verdadeiro espetáculo circense. Três bonecos pendurados no ar. Calculo que estejam com medo. O que faremos agora? Pretende deixá-los morrer de fome ali no alto?

— Não, claro que não! Diga-me uma coisa: você sabe pilotar helicópteros, não é?

— Sei, por quê?

— Depois falaremos a esse respeito. Por enquanto, faça-os aterrissar suavemente. Isso, recue a alavanca aos poucos. Acho que metade da gravitação terrestre basta. Não, receio que caiam com muita velocidade. Regule para um quarto. É bom que levem algumas manchas roxas de recordação, para que não pensem que tudo não passou de um sonho. Isso! Muito bem!

O marechal Roon atingiu o solo. Pasmado, olhou para todos os lados como se estivesse à procura do ser invisível que o erguera. Butaan aterrissou com mais violência, a uns dez metros de distância do marechal. Bateu numa pedra e o rosto contorcido de dor e de espanto falava por si só. Já o piloto, que foi o que mais subiu, foi, por conseguinte, o que caiu mais rápido. Por sorte, o deslocamento horizontal que ele sofreu, levou-o a mergulhar no rio de cabeça para baixo. Com apenas vinte e cinco por cento do seu peso normal, flutuou como uma rolha, o que contribuiu para aumentar ainda mais a sua perturbação. Já tinha largado a pistola.

— Marechal Roon! Está me ouvindo?

Perry gritou essas palavras o mais alto que pôde. O marechal ergueu o punho e sacudiu-o num gesto ameaçador.

— Isso vai lhe custar muito caro. O que foi mesmo? O senhor eliminou a gravidade?

— O marechal até que é sabido! — exclamou Bell alegremente, batendo com a mão na coxa. Estava se divertindo a valer.

— Se não retirar imediatamente as tropas, terá outras surpresas. — Perry apontou para a Stardust. — Temos em nosso arsenal, armas com as quais o senhor não chega nem a sonhar.

Ele sabia que talvez fosse imprudente dizer aquilo, mas estava interessado, principalmente, em fazer com que os outros agissem com cautela. Todavia, o efeito foi exatamente o contrário.

— Quer dizer que trazem armas? — resmungou Roon, brindando o chefe do Serviço de Defesa, bem mais jovem que ele, com um olhar que parecia dizer: “veja quanto vale o seu trabalho e o seu Serviço de Informações! São uma porcaria! Não fiquei sabendo da existência de uma arma americana capaz de eliminar totalmente a gravidade”.

— Então, o que houve? — berrou Bell agitando os braços. — Será que o passeio aéreo lhes prendeu a língua?

Roon disse alguma coisa ao piloto, que já atingira, são e salvo, a margem do rio e se juntara a eles. Perry tinha colocado a alavanca do neutralizador na posição zero. As condições de ponderabilidade eram normais.

— Um momento! — advertiu Perry, ao ver que o piloto ia se dirigindo para o helicóptero. — Esse helicóptero vai ficar aqui. Pousou sem permissão em território da potência recém-criada. Está confiscado.

O rosto do marechal ficou rubro de raiva.

— Calma, marechal, o senhor passou da idade de se aborrecer!

— O que estão pensando? — berrou Roon, fora de si. — Vou...

Não chegou a dizer o que pretendia fazer. O major Butaan cochichou-lhe alguma coisa no ouvido.

— Ainda terão notícias minhas — terminou abruptamente. Depois voltou-se, fez sinal ao major e ao piloto, e foi andando em direção às colinas distantes.

Nesse meio tempo, a nuvem de pó havia se aproximado assustadoramente. Perry suspirou aliviado.

— Então este foi o nosso primeiro encontro com a Federação Asiática. O segundo deixa-me menos curioso. Acho que teremos que pôr em funcionamento o anteparo energético. Seu alcance chega a dois quilômetros. Portanto, o rio, parte da margem do lago e o helicóptero estão situados no interior do círculo de proteção. É este o território do novo império: o menor da Terra, porém o mais poderoso.

— O que você pretende fazer com o helicóptero?

— Que pergunta! Você sabe muito bem que um belo dia teremos de sair daqui para arranjar peças sobressalentes e medicamentos. Será que você pretende atravessar a pé o deserto de Gobi?

O rosto de Bell corou ligeiramente.

— Eu? Por que justamente eu? Quer que... — Perry acenou tranqüilamente com a cabeça.

— Um de nós tem que ir, não é? Por que não será você? Afinal, ninguém merece mais confiança que você.

Bell fez um gesto largo com os braços.

— Bem... naturalmente! É claro que tem razão. Quando partirei?

— Assim que o mundo se tiver acalmado.

Com o neutralizador debaixo do braço, Perry entrou na nave. Bell seguia-o devagar. Com o olhar de um perito examinou ligeiramente o helicóptero, pousado em posição oblíqua. Depois enfiou o neutralizador no bolso e fechou a escotilha.

Encontraram Fletcher no centro de controle.

— A comida está pronta. O que aconteceu?

Perry explicou em poucas palavras.

— Será que você acredita que isso dará resultado? Já lhe disse que não entro nessa. Quero ir para casa. Quero rever minha esposa. Dentro de três meses ela terá um bebê.

— Até lá, tudo estará liquidado, Fletcher. Seja razoável! Você me conhece há muito tempo. Nunca faço nada sem ter um motivo. Vou explicar mais uma vez por que tivemos de pousar aqui e não em Nevada Fields.

— Você nunca me convencerá!

— A paz que está reinando na Terra é ilusória. O menor ensejo bastará para que os foguetes atômicos sejam disparados em todas as direções, espalhando a devastação pelo globo terrestre. Você acha que esse estado de coisas deve durar para sempre? Agora estamos em condições de intervir. O bloco ocidental e a Federação Asiática estão se defrontando. Desde que a China se tornou a maior potência atômica, o bloco oriental, dirigido por Moscou, só desempenha um papel secundário. Somos o fiel da balança, o único poder que se interpõe entre as duas superpotências. Contamos com os recursos incríveis dos arcônidas. O poder dos arcônidas concentrado nas mãos de uma só nação significaria o fim de toda liberdade, mesmo que essa nação fosse os Estados Unidos. Já está na hora de compreender isso!

— Você sabe que é um traidor?

Uma expressão de sofrimento desenhou-se nos lábios de Perry.

— Muita gente dirá a mesma coisa, porque não me compreende. Mas não sou um traidor. Acontece apenas que deixei de ser um americano, para transformar-me num terreno. Será que você compreende ao menos isso?

— Talvez. Que mais? — Fletcher engolia em seco. — Apesar de tudo você podia ter pousado em Nevada Fields.

— Não podia. De qualquer maneira temos de nos defender, cá ou lá. E antes lutar contra os asiáticos que enfrentar nosso próprio povo. Podia ser que me amolecessem, que conseguissem me convencer. É uma coisa que aqui nunca acontecerá. Sei muito bem o que me espera caso ceda àquela gente. Crest encarna um poder ilimitado, Fletcher. Está ao seu alcance e, portanto, ao nosso, impedir a irrupção da guerra. Quando as grandes potências perceberem que se encontram sob o controle de uma potência mais forte esquecerão o conflito que lavra entre elas. Talvez até cheguem a um entendimento.

— Isso não passa de uma utopia.

— Esperemos. A fábula segundo a qual os discos voadores pousarão na Terra e nos trarão a paz, deve encerrar um grão de verdade. Crest só se prontificou a ajudar-nos sob a condição de nos comprometermos a restituir-lhe a saúde e respeitar sua liberdade pessoal. E não estaríamos respeitando essa liberdade se o entregássemos a qualquer potência da Terra, fosse qual fosse. Qualquer outra potência teria motivo para sentir-se ameaçada. Desencadearia a guerra final. Da forma como as coisas estão, não se atreverão a fazê-lo.

Fletcher fez um movimento cansado com a mão.

— Você me deixará partir assim que eu desejar?

— Bell o levará quando sair para buscar os medicamentos e as peças sobressalentes. O helicóptero está esperando lá fora.

Fletcher afastou-se, pensativo.

Girando uma chave, Perry ativou o campo energético. A Stardust ficou coberta por uma cúpula invisível de dois quilômetros de altura e igual extensão para todos os lados. Quem olhasse do alto pensaria que ali no deserto, junto ao lago, apenas havia uma minúscula nave inutilizada.

Na verdade, porém, naquele lugar estava o germe de um novo império, cujas fronteiras, nessa altura, não chegavam a treze quilômetros de extensão. Mais tarde, porém, atingiriam milhares de anos-luz.

 

O aspecto exterior do general Lesley Pounder era tão marcante que dava a qualquer um a idéia de sua resistência e força. De constituição sólida, seu corpo revelava uma força de vontade e uma energia inacreditáveis. Todo mundo sabia que não recuava diante de nada, nem mesmo de Washington ou do Pentágono. Era chefe da Força Espacial dos Estados Unidos e seus homens adoravam-no e temiam-no ao mesmo tempo. Podiam procurá-lo a qualquer hora se tivessem algum problema. Raramente dava mostras do seu humor mordaz. Isso fez com que os maledicentes afirmassem que um dia o general acabaria devorado pela própria raiva.

Estava no gabinete do quartel-general, sentado atrás da enorme escrivaninha, cuja superfície estava quase totalmente tomada pelos mais variados equipamentos de comunicação. O restante do espaço era ocupado por pilhas de papéis e pastas. Tinha diante de si um homem de aparência modesta. Este era o extremo oposto do general. Um círculo ralo de cabelo castanho circundava sua calva lustrosa. A impressão pacata era reforçada por algumas mechas de cabelos brancos nas têmporas. Apesar da coroa de cabelo e das têmporas grisalhas, esse homem tinha um aspecto jovem e inofensivo. Seus olhos pareciam transmitir uma impressão suave de tolerância.

Todavia, Allan D. Mercant era tudo, menos suave e tolerante quando se tratava do cumprimento do dever. No desempenho das suas funções de chefe do Conselho Internacional de Defesa de todo o bloco ocidental, era o caçador mais obstinado que se poderia imaginar.

— O senhor confia muito no major Rhodan e nos seus homens — disse em tom brando, apontando para o mapa do mundo pendurado na parede. — A Stardust pousou no deserto de Gobi. Ainda é de opinião que foi por simples acaso?

— A nave expediu o sinal internacional de perigo antes que seu equipamento silenciasse. O mecanismo propulsor, certamente, falhou.

— Por que Rhodan não permitiu que o pouso fosse dirigido pelo controle remoto? Dessa forma a nave teria atingido a base de Nevada sã e salva. Por que ele mesmo assumiu o comando? O senhor pode dar alguma explicação?

O general Pounder sacudiu a cabeça, sem saber o que dizer.

— Não tenho nenhuma explicação para isso. Mas não é por esta razão que eu deva estar preso, com meu estado-maior, aqui na base. Certamente foi sua a idéia de cercar toda a base de Nevada Fields.

— É apenas uma medida de precaução — disse Mercant com um sorriso amável, para tranqüilizá-lo.

— Quem conta com o pior nunca sai decepcionado.

— Mas quem sempre conta com o pior também cria problemas desnecessários — advertiu Pounder.

— Ainda que Rhodan tenha pousado no deserto de Gobi por sua livre e espontânea vontade, ele deve tê-lo feito com uma idéia bem definida.

— Tenho certeza que é assim! — observou Mercant em tom irônico.

— A finalidade que tem em vista não deve ser, de forma alguma, dirigida contra nós. Se o senhor acha que ele pretende entregar a Stardust à Federação Asiática, está muito enganado.

— Que outra finalidade poderia ter ele em vista?

— Não sei — admitiu Pounder. — Mas conheço o major Rhodan muito bem. É digno de toda a confiança. Trata-se de um elemento que está acima de qualquer suspeita.

— O homem sempre constitui um fator de incerteza em qualquer equação, general. Ninguém consegue ver a alma do próximo. A riqueza e o poder, ou melhor, a esperança de obter essas coisas, pode perturbar até mesmo o espírito mais íntegro.

O general Pounder pareceu crescer atrás de sua escrivaninha.

— Será que o senhor quer insinuar que Rhodan ficou louco?

— De forma alguma, general. Uma pessoa que ambiciona o dinheiro e o poder não pode ser considerada louca. Conforme o caso poderá ser um traidor...

Pounder saltou da cadeira. Inclinou o enorme corpo sobre a escrivaninha e colocou o punho cerrado por baixo do nariz do outro.

— Agora, chega! Embora seja Allan D. Mercant, não admito que insulte os meus homens. Rhodan não é um traidor. A Stardust realizou um pouso de emergência. Prove o contrário! Enquanto não conseguir fazê-lo, fique bem quieto. De resto, Washington já estabeleceu contato com o governo da Federação Asiática.

— Interessante! — observou Mercant, e afastou o punho do general com uma elegância tão displicente que este ficou desarmado. — Posso perguntar qual foi o resultado?

— Até agora, nada — respondeu Pounder. — Aguardo informações diretas do meu pessoal em Washington.

— Pois eu lhe digo qual será o teor dessas informações: o governo da Federação Asiática lamenta o incidente e afirma ter tomado todas as providências que estavam a seu alcance para salvar os cosmonautas. Os destroços da Stardust serão liberados, desde que não tenham sido completamente destruídos. Pouco depois, receberemos outra nota na qual se dirá que a nave foi totalmente destruída e que só foram encontrados os cadáveres irreconhecíveis dos tripulantes. Depois disso, o assunto será envolvido pelo mais absoluto silêncio; ninguém falará mais nada a respeito. A realidade, porém, será completamente outra.

— Se eu fosse dotado de sua fantasia, escreveria romances — disse Pounder fingindo admiração pelo interlocutor. — Todavia, ouçamos qual será a realidade... na sua opinião.

— Os asiáticos desmontarão a Stardust e utilizarão o resultado da viagem em seu beneficio. Rhodan e os demais tripulantes, que evidentemente estão sãos e salvos, receberão a recompensa prometida, depois de terem revelado tudo o que sabem. Talvez a recompensa seja um palacete situado no Tibet, talvez seja um tiro na cabeça.

Pounder voltou a sentar-se.

— O senhor não é um homem normal; é uma vítima da sua profissão — diagnosticou Pounder. — Rhodan sabia muito bem que entre nós teria uma existência tranqüila e ganharia até dois palacetes, se quisesse. Por outro lado, também não ocorre nenhum motivo ideológico. Logo, só resta o pouso de emergência. É a minha opinião. Rhodan entrará, logo que possa, em contato conosco. Aguarde.

Mercant passou a mão pela calva.

— Prefiro confiar nas informações dos meus agentes. O major Perkins não nos deixará na mão.

Perkins — até mesmo Pounder conhecia-o de fama — era um dos melhores agentes de Mercant.

— Não foi ele quem descobriu o atentado planejado contra o campo de provas da NATOM, situado na Austrália, e liquidou os cabeças?

— Foi ele mesmo! Mandei-o a Pequim há poucas horas a fim de cuidar do assunto.

— E o senhor acredita...

— É claro que viaja com nome falso. Os documentos são legais e o fato de mantermos boas relações comerciais com a Federação Asiática facilitará bastante seu trabalho.

Nesse momento, o ruído do videofone chamou a atenção de Pounder. Ele girou um botão e a tela iluminou-se. Um rosto surgiu.

— Ligação de Washington — disse uma voz suave. — É para os senhores Pounder e Mercant.

— Estão ambos presentes — disse Pounder com a voz ofegante. — Tem certeza de que é com os dois que a pessoa pretende falar?

— Washington faz questão disso. Pediram que só completasse a ligação quando as pessoas solicitadas estivessem no aparelho.

— Pode ligar. O senhor Mercant está aqui no meu gabinete.

— Um instante, cavalheiro. Continue com o aparelho ligado.

Pounder olhou para Mercant.

— Quais são suas relações com Washington? — perguntou espantado.

— São muitas — disse Mercant com um sorriso ingênuo. — Basta citar um exemplo: é lá que se encontra o meu superior imediato, o Presidente.

Pounder engoliu em seco, conservando os olhos fixos na tela de imagem como se de lá pudesse vir algo em seu auxílio.

O rosto da operadora tinha desaparecido. No seu lugar, surgiu outro: era o chefe do Setor de Informações da Casa Branca.

— É o general Lesley Pounder?

— Ele mesmo — disse o general. Mercant inclinou-se ligeiramente para a frente para que a câmera receptora pudesse captar a sua imagem. — Mercant também está presente.

— Obrigado. Acaba de chegar a resposta do governo de Pequim. Seu conteúdo é tão estranho que resolvemos não tomar qualquer medida antes de ouvir sua opinião. Seu gravador está ligado?

Pounder comprimiu um botão oculto sob a tampa da escrivaninha.

— Acabo de ligar.

— Muito bem. Ouça. O teor da nossa mensagem a Pequim foi o seguinte:

De Washington para Pequim. Solicitamos autorização imediata para enviar uma comissão que deverá examinar os destroços da nave espacial Stardust que realizou um pouso forçado. Acreditamos que não haja qualquer impedimento diplomático já que a nave destinava-se a investigação científica. Aguardamos sua concordância.

“A resposta, que acabamos de receber, diz o seguinte:

Autorização recusada. O governo da Federação Asiática entende que a instalação de uma base ocidental no seu território constitui uma violação grave dos acordos celebrados. Não se trata do pouso forçado de um pretenso foguete espacial. A tripulação rechaçou um comando de resgate e, para isso, usou uma nova arma que subtrai aos homens a ação da gravidade. A base, que já foi cercada pelas nossas tropas, será destruída, a não ser que seu governo ordene imediatamente que a mesma nos seja entregue em boas condições. Concedemos-lhes um prazo de duas horas.

“É este o teor das duas mensagens. Que me diz a respeito, general Pounder?”

O chefe da Força Espacial estava exultante.

— Quer dizer que a Stardust conseguiu pousar em boas condições. Ainda bem! Rhodan e os outros tripulantes estão vivos. Fomos os primeiros a alcançar a Lua e conseguimos pousar nela. Formidável!

— Realmente é muito interessante — admitiu o chefe do Setor de Informações de Washington. — Mas, no momento, o importante é a sua opinião a respeito da mensagem dos asiáticos. O que significa isso? Uma arma que subtrai aos homens a ação da gravidade? A Stardust levava alguma coisa parecida com isso a bordo?

— Em absoluto! Eliminar a força da gravidade? Já foram realizadas pesquisas nesse sentido, mas não produziram qualquer resultado. Os asiáticos estão blefando. Querem é fazer desaparecer a Stardust, mais nada.

Mercant interveio.

— Existe alguma prova de que a nave espacial pousou em boas condições?

— Não dispomos de qualquer prova — respondeu o chefe do Setor de Informações. — Se dispuséssemos, a respectiva observação teria chegado a nós por seu intermédio, senhor Mercant. Comunicamos a Pequim que infelizmente não conseguimos estabelecer contato com a Stardust e, por isso mesmo, não podíamos tomar qualquer providência. Rejeitamos com a maior energia a afirmação insensata de que a nave seria uma base americana. Ainda não recebemos a resposta. Aguarde! Pequim está chamando. Continue com o aparelho ligado. Vou colocá-los na linha para que possam ouvir, também, a mensagem. O rosto do chefe do Setor de Informações desapareceu. A tela ficou vazia. Mas Pounder e Mercant ouviram cada palavra que era pronunciada naquela sala situada a mais de três mil quilômetros de distância. Sem querer, testemunharam o início de uma série de acontecimentos que conduziriam à extinção da espécie humana, caso não acontecesse um milagre antes.

— Aqui é Washington. Pode falar, Pequim.

— Pequim falando. Os senhores não atenderam às nossas exigências. A base que montaram no deserto de Gobi também se recusou a permitir uma investigação. Em vista disso, a divisão comandada pelo marechal Roon recebeu ordens de destruir a base. Embora devam estar bem informados, queremos dar-lhes um ligeiro relato do que aconteceu.

“Nossos tanques avançaram. A dois quilômetros do lugar onde se encontra pousada a Stardust esbarraram num obstáculo invisível. As buscas que mandamos realizar revelaram que esse obstáculo cerca a nave por todos os lados, delimitando um território de pouco mais de doze quilômetros quadrados que, segundo um certo Rhodan, é o território de uma potência neutra recém-criada. Nossos tanques recuaram e abriram fogo contra a base. As granadas detonaram muito antes do alvo, como se o anteparo invisível também continuasse acima da nave, cobrindo-a como uma cúpula protetora. Nossos consultores científicos são de opinião que a base está coberta por uma cúpula energética. Dessa forma, seria inexpugnável. Queremos avisá-los de que consideramos a Stardust uma ameaça à paz mundial e extrairemos as conseqüências cabíveis dos fatos. Pedimos que a base seja retirada ou entregue às nossas autoridades dentro do prazo de vinte e quatro horas. De outra forma, consideraremos rompidas as relações diplomáticas entre Pequim e Washington. Aguardaremos o seu pronunciamento. Não transmitiremos outras mensagens sobre o assunto. Fim”.

Pounder olhou para Mercant. Sua pele já não tinha a cor sadia de dez minutos antes. O sorriso suave do chefe do Conselho Internacional de Defesa também tinha sido substituído por algumas rugas que demonstravam sua preocupação.

— Um anteparo energético? — disse, esticando as palavras. — Nem mesmo nós tivemos conhecimento disso. Meus respeitos, Pounder. Os seus cientistas souberam guardar segredo.

— Não diga tolices, Mercant. Também nunca tive conhecimento da existência de um anteparo energético. Esses asiáticos estão blefando e é só. Há tempos estão procurando um pretexto para despachar seus foguetes atômicos. Agora, encontraram um.

Mercant inclinou o corpo.

— O senhor quer fazer crer que não sabe nada a respeito do anteparo energético que está cobrindo a Stardust? E quer afirmar, também, que não tem conhecimento do aparelho que subtrai às pessoas a ação da gravidade?

— Eu considero isso tolice! Uma coisa dessas não existe! Para mim os asiáticos estão blefando, já disse!

— Alô! — A discussão foi interrompida pela voz do chefe do Setor de Informações de Washington. — Os senhores ouviram, não é?

— É claro que ouvimos! — confirmou o general Pounder. — Isso é a mais formidável estupidez que já vi alguém pronunciar até hoje. Julgo conveniente...

— Essa estupidez pode se transformar numa estupidez pior: a guerra. Temos que impedir que isso aconteça.. Procure entrar em contato com a Stardust. Mercant lhe prestará auxilio. E procure descobrir o que vem a ser este antepara energético. Lehmann deve estar em condições de dar alguma informação. Aguardo sua resposta antes do término do ultimato formulado pela Federação Asiática.

— Combinado — resmungou Pounder, que ainda não tinha a menor idéia do que devia fazer. — Entrarei em contato com o senhor antes que o prazo se encerre.

A tela apagou-se. Mercant soltou um suspiro.

— Se não recebermos logo notícias do major Perkins estaremos em maus lençóis. Sugiro que chamemos Lehmann. É possível?

Pounder berrou algumas ordens pelo intercomunicador. Poucos minutos depois, um homem alto, de meia-idade, entrou no gabinete. Era o professor Lehmann, diretor-científico do Programa Lunar. Há muito ocupava o cargo de diretor da Academia de Tecnologia Espacial da Califórnia. Era o maior especialista no setor. Quando sentia uma disposição toda especial para ser sincero, o general Pounder era levado a confessar que Lehmann era o pai espiritual da Stardust.

O professor parecia bastante admirado. Cumprimentou os dois homens com um aceno de cabeça.

— Querem falar comigo?

Pounder confirmou com um aceno de cabeça.

— O senhor já conhece Mercant, portanto não há necessidade de apresentações. Quero evitar todo e qualquer rodeio. Ouça!

Suas mãos moveram-se sob a tampa da escrivaninha. Ouviu-se o leve chiado de uma fita em movimento.

— Preste atenção a esta conversa, Lehmann. Bastante atenção!

À medida que o professor Lehmann era posto a par dos acontecimentos, Mercant, com ar distante, realizava mentalmente os movimentos de suas peças de xadrez. Se Perkins conseguisse entrar em contato com Rhodan — desde que este ainda se encontrasse no deserto de Gobi e não tivesse sido transformado em instrumento dos asiáticos, como Mercant supunha — a trapaça seria descoberta. Havia várias possibilidades.

Caso a Stardust tivesse pousado intencionalmente no território da Federação Asiática, Rhodan seria um traidor. Também era possível que a nave tivesse realizado um pouso de emergência. Nesse caso, estaria sendo desmontada pelos asiáticos, cuja afirmativa de terem sido rechaçados representaria, apenas, um simples estratagema. Mercant estava convencido de que essa afirmativa representava, tão-somente, o preparativo de um comunicado posterior, segundo o qual as defesas da Stardust teriam sido rompidas e a nave destruída.

Ainda havia uma terceira possibilidade. Mas essa era tão fantástica que quase não podia ser considerada seriamente. Apesar do seu extraordinário amor aos animais — alguém já o vira tirar uma minhoca do anzol de um pescador estarrecido, pousando-a cuidadosamente no solo — Mercant raciocinava com uma frieza tremenda. Sua vida consistia em fatos, dados, relatórios e normas.

Todavia...

Não chegou a concluir seus pensamentos. A fita gravada chegara ao fim. O general esticou o queixo e olhou para Lehmann

— Então, professor? O que me diz? Acha que o major Rhodan é um traidor?

— Um traidor? Quem teve essa idéia maluca?

Pounder lançou um olhar significativo em direção a Mercant.

— Foi só uma pergunta, professor. O que irá importar é sua opinião a respeito do anteparo energético e do resto.

— A eliminação da gravidade? Ambas as coisas representam uma utopia inatingível com os meios de que dispomos. Os asiáticos inventaram uma fábula bonita que lhes sirva de pretexto para ficarem com a Stardust. Aposto que amanhã informarão que a nave não poderá ser entregue por ter sido destruída.

Mercant aprovou com um aceno de cabeça.

— Muito bem pensado — disse. — Quando me aposentar, sugerirei o senhor como meu sucessor.

— Agradeço — retrucou seriamente o professor Lehmann. — Prefiro acompanhar a viagem a Marte. Não há dúvida de que a Stardust conseguiu pousar em boas condições. Se não fosse assim, a manobra de despistamento seria inútil. Se soubéssemos as causas, tudo estaria esclarecido; Para um bom serviço secreto isso não devia ser nenhum problema.

O golpe, desferido como se fosse por acaso, atingiu o alvo. O rosto de Mercant ficou vermelho. A expressão branda desapareceu subitamente. Seus olhos adquiriram uma expressão dura. Levantou-se sem fazer caso dos gracejos do general.

— O senhor ainda se surpreenderá com a eficiência do nosso serviço secreto — disse a Lehmann, enquanto se dirigia para a porta. — General, faça o favor de me avisar assim que haja noticias de Washington. Até logo, cavalheiros.

Fechou ruidosamente a porta. O professor Lehmann lançou um olhar de espanto para Pounder.

— O que será que houve com ele? Por que anda tão sensível?

— O senhor o atingiu no seu orgulho profissional. — Pounder sorriu; parecia muito satisfeito. — Bem feito! Quem manda tratar qualquer pessoa que não seja um dos seus espiões como um homem de categoria inferior? Bem, agora que ninguém nos incomoda mais, diga-me, com toda sinceridade, professor, qual é sua opinião a respeito de tudo isso?

Lehmann inclinou-se para a frente. Pounder continuou:

— Acho que estamos de acordo em que o major Rhodan está acima de qualquer suspeita. O que aconteceu no deserto de Gobi?

O professor Lehmann sorriu. Seu olhar perdia-se através da janela, contemplando o horizonte. Sem olhar para o general, comentou:

— Talvez seja conveniente, meu caro Pounder, reformular a parte geográfica da pergunta. O correto é: o que aconteceu na Lua?

Pounder arregalou os olhos.

 

Depois de ter desembarcado do Stratoliner em Pequim, o major Perkins dirigiu-se a um hotel de primeira categoria. Poucos minutos depois, um dos agentes do seu país forneceu-lhe o endereço de uma firma que trabalhava para o governo. Telefonou ao procurador e combinou um encontro.

Nos documentos do agente, constava o nome Alfons Hochheimer, e a profissão de engenheiro de minas. Segundo os dados do passaporte, encontrava-se na Federação Asiática há mais de dez anos e já trabalhara várias vezes para empresas estatais de mineração.

Na sala de recepção da empresa, decorada em estilo ultramoderno, um chinês trajado à européia recebeu-o com um sorriso imperscrutável.

— É o senhor Hochheimer, não? Meu nome é Yen-Fu. Posso lhe ser útil em alguma coisa?

— Tive conhecimento de que sua firma participa da exploração de regiões economicamente pouco interessantes — disse Perkins, enquanto apertava a mão que o outro lhe estendia. — Já tive oportunidade de pesquisar trechos extensos do deserto de Gobi, a serviço de outras empresas. Conheço um lugar em que há possibilidade de se encontrar urânio, desde que as pesquisas alcancem uma profundidade suficiente.

O sorriso de Yen-Fu tornou-se ainda mais intenso.

— Urânio no deserto de Gobi? O senhor deve estar enganado! Já enviamos várias expedições para lá, mas nenhuma delas teve êxito.

A essa altura, também no rosto de Perkins via-se um sorriso misterioso.

— Acontece que os participantes das suas expedições não possuíam os instrumentos de busca de que disponho, senhor Yen-Fu. Já ouviu falar na sonda de Spielmann?

O chinês sacudiu a cabeça.

— Não. Para ser sincero, nunca ouvi falar. Perkins não se admirou com a resposta. Acabara de inventar o nome.

— É lamentável, senhor Yen-Fu, muito lamentável. Spielmann é um dos cientistas mais conceituados do mundo ocidental. As grandes descobertas de urânio no continente americano foram devidas ao seu invento. Disponho de um dos seus modelos mais recentes.

Apesar do terno sorriso, o rosto do chinês passou a revelar uma certa dose de desconfiança.

— Não é americano?

— Não, sou alemão. Mas encontro-me na Federação Asiática há mais de dez anos. Aqui estão os meus documentos. Espero que os mesmos o convençam da sinceridade da minha proposta.

O procurador examinou cuidadosamente aqueles documentos. Falsificados com perfeição extrema. Não encontrou nada de anormal, e devolveu-os a Perkins.

— Sabe onde se poderia encontrar urânio no deserto?

Perkins confirmou com um aceno de cabeça.

— Existe quantidade suficiente para abastecer vinte usinas por cem anos. É claro que o material também pode servir para outra coisa — disse com um sorriso significativo.

— Queira esperar.

Perkins esperou. Mas não o deixaram esperar por muito tempo. Falou com o diretor da firma. Depois com um funcionário categorizado do governo. Finalmente falou com o piloto do avião que devia levá-lo juntamente com os membros da comissão à região em que se encontravam as pretensas jazidas de urânio.

— O senhor traz consigo essa sonda? — perguntou Yen-Fu curioso. — Ela permite a leitura imediata dos resultados?

Perkins lembrou-se da caixinha metálica bem concebida. No seu interior havia uma bateria e alguns fios, e do lado de fora várias escalas e botões. Confirmou com um aceno de cabeça.

— É claro que sim. Não viria a sua presença sem o equipamento necessário. Quando partimos?

— Daqui a uma hora, se estiver de acordo. Ainda estamos aguardando a confirmação definitiva da repartição competente.

“Tomara que isso acabe bem!”, pensou Perkins. Mas dificilmente conseguiriam descobrir sua verdadeira identidade, pois seus documentos eram melhores que os de qualquer chinês. Todavia...

Perkins tomou um refrigerante no café situado do outro lado da rua. Deu algumas moedas a um mendigo, que lhe queixou suas mágoas com voz rouca e estridente, afirmando que tinha filhos menores para sustentar. O homem fez várias mesuras e, subitamente, entremeou seus agradecimentos com algumas palavras bem mais sugestivas.

— Não conhece mais os amigos, meu velho? Por que será que Mercant resolveu enviar justamente você? O representante do governo que viajará no avião é um dos nossos. Trate-o bem. Oh, pai dos justos, exemplo celestial de misericórdia humana, receba mil agradecimentos pelo seu gesto bondoso. Meus filhos pedirão pelo senhor junto aos antepassados. Que os deuses da fecundação abençoem o senhor, que dispensou a um indigno como eu a graça de poder beijar seus pés...

Perkins piscou para o mendigo. Depois virou-se com um gesto de desprezo. Atirou uma moeda sobre a mesa e saiu do café.

O avião era um pequeno jato particular. Além do piloto viajavam um representante do governo, um engenheiro e Perkins. O luxo da pequena cabine indicava que o aparelho se destinava a finalidades especiais. Era dotado de deslizadores que permitiam o pouso em terreno irregular e mesmo na água, pois os flutuadores esguios impediriam seu afundamento.

As turbinas uivaram, mas o ruído foi se tornando praticamente imperceptível à medida que o avião ganhava altitude.

Abaixo deles, Pequim foi desaparecendo. O aparelho tomou o rumo oeste. As planícies férteis foram ficando para trás. Surgiram as primeiras montanhas e, depois, o deserto cinzento e tórrido.

O representante do governo inclinou-se para frente e bateu no ombro do engenheiro que estava sentado perto de Perkins.

— Onde fica a região, Lan-Yu?

— A leste de Sutschou, nas proximidades do lago salgado de Goshun. Mais ou menos no lugar em que teria descido a nave espacial americana.

— São boatos — disse o engenheiro. Virou-se e sorriu. — O senhor não acha?

— É claro que são boatos.

Com cerca de hora e meia de vôo, já tinham percorrido cerca de 1.300 quilômetros. Foi quando o piloto abriu a portinha minúscula que dava para a cabine e disse:

— A Diretoria de Controle de Vôo de Pequim acaba de dar ordem para regressar imediatamente. É proibido sobrevoar a área que fica situada entre Ordos, Schan-Si, a serra de Nan-Schan e Ning-Hsia. O lago de Goshun fica exatamente no centro dessa área. Não informaram o motivo da proibição.

Lan-Yu lançou um olhar em direção ao representante do governo.

— O que significa isso? Pois o senhor obteve autorização do governo para acompanhar-nos neste vôo. E devia saber que...

— Prossiga e desligue o equipamento de rádio — ordenou o representante do governo. — Não siga as instruções.

— Tenho de deixar o receptor ligado por causa das comunicações sobre o tempo. Além disso sou obrigado a transmitir nossa posição de cinco em cinco minutos.

O representante do governo olhou para Perkins. Este deu um aceno de cabeça quase imperceptível e colocou a mão no bolso do casaco.

— Desligue o equipamento — voltou a ordenar o comissário. — Peço-lhe encarecidamente que daqui por diante se atenha estritamente às minhas instruções. Se não o fizer, as conseqüências correrão por sua conta. Não se esqueça que represento o governo. Desça junto ao lago de Goshun. Quanto tempo ainda levará para chegar lá?

O piloto hesitou por um instante. Depois lançou um olhar para o painel de instrumentos: — Dez minutos — respondeu.

— Daqui a oito minutos deveremos iniciar a manobra para aterrissagem. Até lá nada de mudanças de rumo. Entendido?

— A responsabilidade será sua — disse o piloto, enquanto confirmava com um movimento de cabeça, e desapareceu.

O engenheiro Lan-Yu acompanhara o diálogo sem dizer uma palavra. O sorriso desaparecera do seu rosto. Seus olhos oblíquos estreitaram-se ainda mais. Percebeu que Perkins, ou melhor, Alfons Hochheimer ainda estava com a mão no bolso.

— Por que não segue as instruções do governo? — perguntou, falando devagar. — Não vamos criar problemas? A proibição deve estar relacionada com a nave espacial pousada na área.

— Não tenho a menor dúvida — disse o representante do governo. — Mas não se preocupe. Sei perfeitamente o que estou fazendo.

— Para mim nada importa desde que encontremos o urânio — disse Lan-Yu. Passou os olhos pela impressionante caixinha metálica que se encontrava no assento vago junto a Perkins. O aspecto da mesma era tão impressionante que convencera o chefe da firma. — Só faço votos de que realmente o encontremos.

Dali a cinco minutos o piloto voltou a aparecer.

— Temos um avião da Força Aérea à nossa frente. Está dando ordem para regressarmos.

— Como é que o senhor vai saber disso, se não mantém qualquer comunicação com eles?

— Tiros de advertência! — disse o piloto em tom seco. Aparentemente ele não conhecia o medo.

— Ligue o aparelho de rádio. Irei até aí.

O representante do governo lançou um olhar significativo para Perkins. Depois, foi à carlinga apertada, fechando a porta atrás de si.

Perkins tirou a pistola automática do bolso e apontou-a para Lan-Yu.

— Por acaso tem uma arma?

O engenheiro quase chegou a engasgar de susto. Arregalou tanto os olhos que eles quase ficaram redondos. Sacudiu a cabeça, enquanto fitava o orifício negro do cano da arma.

— O que deseja que eu faça? — balbuciou.

— Quero que fique bem quietinho, com a boca fechada. Se fizer de conta que nem existe, poderá sair são e salvo desta aventura. Senão...

O silêncio significativo deixou a alternativa em aberto.

— Mas, o senhor sozinho não vai conseguir...

— Não estou só. E agora não diga mais uma única palavra. Devemos aterrissar daqui a pouco.

Na verdade, o avião começou a descer. O avião militar se afastara, depois de trocadas algumas mensagens radiofônicas. Atravessaram a barreira aérea da Federação Asiática e passaram bem baixo por cima de algumas formações de tanques que recuavam. Subitamente, avistaram a Stardust bem à frente, junto à desembocadura do Morin-Gol.

A nave espacial parecia solitária e abandonada.

Não se via qualquer sinal de vida perto dela. Apenas, bem alto, um pontinho minúsculo destacava-se contra o céu azul. Descrevia círculos como se fosse uma ave de rapina que, a qualquer momento, precipitar-se-ia sobre sua vítima.

Nem Perkins nem o outro agente que se encontrava em sua companhia sabiam que esse ponto minúsculo era um bombardeiro da Federação Asiática levando uma bomba atômica que seria lançada contra a nave.

— Onde vamos aterrissar? — perguntou o piloto. O representante do governo, que era um dos membros mais competentes do serviço de espionagem ocidental, apontou para o lado.

—Ali no deserto, perto da nave espacial. Faça o avião parar a menos de cem metros da Stardust. Entendido?

O piloto confirmou com um movimento de cabeça. Descreveu uma curva bem ampla e preparou-se para aterrissar. O aparelho foi descendo sobre o deserto. A altitude não ultrapassava algumas centenas de metros. A distância que os separava do ponto em que se encontrava a nave foi diminuindo vertiginosamente. Faltavam poucos quilômetros...

Nesse meio tempo, a bomba lançada pelo outro avião foi caindo. O pontinho minúsculo parou de descrever círculos e foi se afastando em linha reta. Portanto, havia dois objetos que se aproximavam da Stardust.

Perkins foi à carlinga, depois de ter amarrado Lan-Yu na sua poltrona. O avião deslizou pelo solo pedregoso em velocidade vertiginosa. Quando se encontrava a pouco mais de dois quilômetros da Stardust, um segundo sol surgiu repentinamente dois mil metros acima da nave. O cogumelo atômico chamejante, que se ergueu a pouquíssima distância e cujos gases incandescentes deslizaram pela cúpula invisível, cegou seis pares de olhos.

Ainda chegaram a sentir o choque produzido pelo embate contra o anteparo energético.

Depois, não houve mais nada...

 

— Ei, Perry! Pounder está no aparelho. O homem está muito nervoso.

Rhodan acenou a cabeça para Crest, com quem estivera conversando.

— Com licença, Crest. Pretendo esgotar todas as possibilidades.

No caso, a expressão “está no aparelho” era a menos adequada. A comunicação visual através do satélite era perfeita. O rosto de Pounder na tela era tão nítido como se estivesse olhando por uma janela. Os asiáticos não interferiam mais nas transmissões, o que era sinal de que não mais sabiam o que fazer.

Bell inclinou-se ligeiramente e fez um gesto em direção à tela.

— Permita que o apresente: é o general.

Perry empurrou-o para o lado.

— General Pounder, comunico nosso retorno da expedição lunar. A tripulação está bem. A Stardust não está em condições de decolar em virtude de defeitos mecânicos. Missão cumprida. Os resultados das pesquisas científicas serão encaminhados ao professor Lehmann.

O general respirava com dificuldade.

— Rhodan, o senhor enlouqueceu? Quer fazer o favor de explicar o motivo que o levou a pousar no deserto de Gobi? O mecanismo de controle remoto falhou? Podia ao menos ter tentado descer no oceano.

— O pouso neste local foi proposital.

— O quê? — o rosto de Pounder adquiriu uma tonalidade vermelha bem viva. — O que está dizendo? Foi proposital? Major Rhodan, o senhor não vai me dizer que...

— Não vou dizer coisa alguma. Pelo menos, não o que o senhor está pensando. Procurarei explicar...

— Não há nada a explicar — berrou Pounder a plenos pulmões. — O senhor vai destruir imediatamente a Stardust por meio da carga explosiva e entregar-se às Forças da Federação Asiática. Entendeu?

Um brilho gélido surgiu nos olhos de Rhodan.

— Entendi, general. Mas não cumprirei suas ordens.

— Não vai cumprir a ordem? — Pounder oferecia um quadro assustador. O vermelho do seu rosto tornou-se mais intenso. Bell, instintivamente, abaixou-se como se temesse que a cabeça que aparecia na tela fosse explodir. — Major Rhodan, ordeno-lhe que...

— General, permita-me dizê-lo que já não sou mais major, e, por isso, nego-me a receber ordens do senhor. Como vê, removi os distintivos do meu uniforme. Se permitir, começarei a explicar.

O rosto do professor Lehmann tinha surgido perto de Pounder. Nos seus olhos havia um brilho de curiosidade.

— Rhodan, será que nas crateras da Lua existem vestígios de atmosfera e até mesmo restos de...

— Silêncio! — berrou Pounder e empurrou o cientista para o lado. — Fale, Rhodan! E procure ser convincente, pois suas palavras decidirão se dentro de dez horas teremos guerra ou não. A Federação Asiática está convencida de que a Stardust não passa de uma base americana colocada intencionalmente em seu território. Se não for abandonada até amanhã, as relações diplomáticas estarão rompidas. Acho desnecessário salientar quais as conseqüências que advirão deste fato, caso ele seja concretizado.

— Então as coisas já chegaram a este ponto? — murmurou Perry assustado. — Nesse caso, não temos um segundo a perder. Preste atenção, general. Pousamos na Lua, conforme previsto, e descobrimos os restos de uma civilização extraterrena. Não posso dar-lhe detalhes de tudo o que encontramos, mas algumas indicações serão suficientes. Para tranqüilizar o professor Lehmann, diga-lhe que a Lua nunca foi habitada, mas, há muito tempo, posou lá uma nave exploradora tripulada por membros de uma civilização interestelar. Esta nave ainda está intacta e em seu bojo existe um arsenal que daria para destruir não apenas a Terra, mas todo o sistema solar. Raios mortíferos e anteparos energéticos, neutralizadores da gravidade e campos anti-neutrônicos capazes de impedir toda e qualquer explosão atômica são apenas alguns exemplos. Além disso, existem armas manuais, cujos efeitos o senhor nem seria capaz de imaginar. General, o senhor há de compreender que eu não estava disposto a colocar esse poder tremendo nas mãos de qualquer das nações da Terra.

De um golpe, Pounder recuperou o sangue-frio.

— Acontece que pousou no território da Federação Asiática. Há outras pessoas que estão escutando nossa palestra. Logo, todo mundo saberá o que o senhor descobriu na Lua. Expedições serão enviadas para lá e haverá uma corrida frenética que decidirá quem há de dispor do poder final. O senhor devia ter ficado calado.

— Quero que todo o mundo saiba — disse Rhodan, sacudindo a cabeça. — Além do mais, ninguém pousará na Lua, a não ser que eu queira. Não se preocupe, general, pois os asiáticos não conseguirão estas armas. Os russos e os americanos também não. Só eu disponho delas. E cuidarei para que ninguém inicie uma guerra que os destruiria a todos.

— O senhor?

Estas palavras foram proferidas com tamanho desprezo que Rhodan ficou rubro de raiva. Recuou um passo e fitou o general com olhos frios.

— Eu, sim! O senhor já devia ter compreendido que a política falhou. Há séculos os governos tentam evitar a guerra quente. Uma ameaça segue-se a outra, uma conferência a outra. A culpa não é apenas do bloco oriental e da Federação Asiática, mas também do bloco ocidental. Ninguém quer ceder; todos continuam a se armar. Os foguetes com cargas atômicas estão estacionados em todos os pontos do globo. Basta comprimir um botão para dispará-los, o dispositivo automático de que são dotados os conduzirá ao alvo. Todavia, antes que possam atingi-lo, as armas de retaliação serão acionadas do lado oposto. Os povos de ambos os lados do mundo praticamente deixarão de existir no mesmo instante. Há decênios defrontamo-nos com essa visão macabra. Ninguém conseguiu conjurar o perigo. Até hoje apenas o equilíbrio de forças tem impedido a guerra. Mas, ai de nós se um dos lados se tornar mais forte. Ver-se-ia obrigado a destruir o outro lado para viver em paz. Nós faríamos isso, da mesma maneira que os asiáticos. Compreende por que nenhum dos blocos deve pôr as mãos na Stardust, que tem a bordo algumas das armas extraterrenas?

Ouviu-se a respiração pesada do general.

— O senhor poderia ter prestado um serviço inestimável ao seu país se...

— Se tivesse levado as armas para Nevada Fields? Está enganado, general. A Federação Asiática e o bloco oriental sentir-se-iam tão ameaçados que se lançariam a uma guerra de extermínio contra o bloco ocidental. Não poderiam agir de outra forma. Seria o fim da nossa civilização. De qualquer maneira, agirei de acordo com um plano que tracei, quer o senhor aprove, quer não.

— Que plano é esse?

— Formarei uma terceira potência, que será neutra, ficando eqüidistante dos blocos que se defrontam sobre a Terra. Estamos em condições de transformar qualquer foguete atômico que seja disparado em um projétil inofensivo. Qualquer bomba atômica estalará no ar sem produzir o menor efeito, como se fosse fogos de artifícios. Repelirei qualquer ataque dirigido contra a Stardust parta de onde partir. Vou...

Perry Rhodan parou de falar. Atrás dele, ouviu-se um ruído. Virou-se. Bell segurava o braço de Fletcher que entrara na sala de rádio.

— Não caia na conversa dele, general! — gritou Fletcher. — Ficou doido. Os arcônidas com suas idéias decadentes fizeram com que enlouquecesse. Opus-me à aterrissagem neste local. Mas ele me ameaçou com a pistola. É um amotinado.

Perry fez um sinal a Bell e deixou que Fletcher terminasse. Finalmente, aproximou-se dele e colocou-lhe a mão sobre o ombro.

— Escute, Fletcher. O general pode ouvir o que tenho a dizer. Talvez agisse da mesma forma se fosse você. Acontece que não sou. Você é livre para deixar a Stardust assim que o deseje. Não prendo ninguém. Mas quero que, antes de ir embora, confirme perante o general Pounder que na Lua encontramos armas que nos permitem controlar o mundo. Não lhe diga mais nada, só isso.

Fletcher hesitou. Fitou os olhos ameaçadores de Bell. O técnico tinha na mão o bastão prateado do irradiador psíquico. Perry lançou-lhe um olhar quase gentil. Na tela, o rosto de Pounder espreitava a cena.

Confirmou com um aceno de cabeça.

— É verdade, general. Se Rhodan quiser, pode destruir o mundo.

Abaixou a cabeça, virou-se e saiu da sala. Rhodan, suspirando aliviado, dirigiu-se ao general.

— General, além do senhor, os homens que tomam as decisões no bloco oriental e na Federação Asiática ouvirão as minhas palavras. Quero acrescentar apenas o seguinte: a extensão territorial da terceira potência é muito limitada. Não deixe que este fato o engane. Cumpram os meus desejos. E não se atrevam a levar ao extremo as suspeitas que nutrem um contra o outro. Acho que, a esta altura, já devem ter compreendido que a Stardust não é uma base americana. Por outro lado, não pousou aqui para cair nas mãos da Federação Asiática. E o bloco oriental terá de abandonar as esperanças de colher os despojos do conflito entre os dois outros blocos. Os senhores poderão se comunicar comigo a qualquer momento nessa faixa, e também usarei a mesma quando tiver que entrar em contato com os senhores. Lamento o ocorrido, general, mas acho que um dia o senhor me compreenderá. Por ora só posso pedir que me desculpe.

Pounder fitou os olhos de Perry Rhodan, depois acenou com a cabeça.

— Parei o possível, Rhodan. E espero em Deus que Mercant concorde. O senhor o conhece!

Um sorriso estranho passou pelos lábios de Rhodan. Ele compreendeu a advertência, mas esta já não o assustava mais. Mercant passara a ser apenas um homem.

E Perry Rhodan não mais temia os homens.

 

De Washington para Pequim:

Conseguimos estabelecer contato com a Stardust. Comandante Rhodan afirma estar de posse de armas incríveis que teriam sido levadas à Lua por uma potência extraterrena. Já não temos a menor influência sobre os acontecimentos. Solicitamos seu pronunciamento.

De Pequim para Washington:

Acompanhamos palestra visualizada entre General Pounder e Rhodan. Explicações inverossímeis — muito fantásticas. Ultimato fica de pé. Prazo se esgotará daqui a sete horas.

De Moscou para Washington:

Participamos da opinião do governo da Federação Asiática. Também consideramos a presença de uma base americana no deserto de Gobi como uma ameaça à paz mundial. Mas, no caso de um conflito armado, Moscou se conservará neutra.

De Moscou para Pequim:

Concordamos com a opinião do governo da Federação Asiática. Também consideramos a presença de uma base americana no deserto de Gobi uma ameaça à paz mundial.

De Washington para Pequim e Moscou:

Voltamos a afirmar que o governo de Washington não tem conhecimento de uma base americana no deserto de Gobi. Ordenamos à tripulação da nave Stardust que se rendesse. Sugerimos um encontro dos dirigentes das nações interessadas.

A última nota americana não obteve resposta. Às sete horas tão preciosas começaram a correr. Na Ásia, as torres das rampas de disparo começaram a girar em direção ao Oriente e ao Ocidente. Os monstros de aço emitiram reflexos ameaçadores sob a luz dos refletores. Homens corriam de um lado para outro. Depois, fez-se o silêncio.

O quadro repetiu-se nas áreas de defesa do bloco ocidental.

No bloco oriental, as torres das rampas de disparo foram giradas de tal forma que abrangiam todos os quadrantes do globo.

Nas três partes do mundo, um homem sentado bem abaixo do nível do solo, contemplava um conjunto de painéis de controle e instrumentos eletrônicos. Comunicava-se com os postos de comando através de telas de imagem. Sua mão descansava sobre a mesa junto a um botão vermelho. Um botão que parecia falar-lhe de uma destruição total e terrível para todo o gênero humano; uma hecatombe que varreria todos os traços de uma civilização.

Em dois outros lugares, sobre duas outras mesas, dois outros homens esperavam, suas mãos perto dos botões que dariam início ao caos.

 

Crest estava sentado na cama, recostado na parede forrada de almofadas. Manoli aplicara uma injeção em Fletcher que estava, agora, mergulhado em um sono profundo. Bell encontrava-se na central em companhia do médico, acompanhando as transmissões radiofônicas. De meia em meia hora informava Rhodan do que acontecia no mundo.

Aos poucos, Crest compreendeu as conseqüências que sua presença na Terra desencadeara entre os homens, embora estes nem tivessem conhecimento dele. Com um ar pensativo e preocupado, disse:

— Rhodan, não compreendo como seu povo consegue resistir a esta tensão psicológica. Pelo que você diz há decênios que seu mundo vive sob esta atmosfera de suspense. Basta que alguém aperte um botão para que a destruição seja lançada sobre a Terra. Por que não houve, ainda, quem se erguesse contra este estado de coisas? Por que não se formou um governo comum que reunisse todos os arsenais para usá-los na defesa contra o possível ataque de um agressor extraterreno?

Rhodan suspirou.

— Não há nenhuma resposta válida à sua pergunta, Crest. Se houvesse, não viveríamos constantemente entre a vida e a morte. Talvez nenhuma resposta seja possível enquanto a humanidade estiver convencida de constituir a única força deste sistema solar. Só tememos algo que seja mais poderoso que nós. Os dois blocos mais poderosos da Terra se equivalem em força e poder. O terceiro bloco desempenha um papel secundário. Todo mundo sabe que no caso da irrupção de uma guerra, os segundos serão decisivos. Mas todo mundo sabe, também, que aquele que for surpreendido pelo ataque, terá tempo ainda para disparar os foguetes de retaliação antes que o país mergulhe nos escombros e nas cinzas. A conseqüência inevitável será a morte de ambos os adversários. Só o conhecimento deste fato tem evitado a catástrofe.

— Começo a compreender o problema. Quando minha civilização ainda era jovem, defrontou-se com as mesmas dificuldades. Viveram mais de duzentos anos sob o medo constante do aniquilamento total. Foi quando uma população de insetos guerreiros vinda dos confins da Via Láctea nos descobriu e desfechou um ataque contra nós. Em menos de meia hora, os governos se uniram e derrotaram o inimigo comum. Como o perigo continuasse, a aliança foi mantida. Foi assim que nos tornamos um povo unido e iniciamos a ascensão.

Perry Rhodan concordou com um aceno de cabeça. Seus olhos reluziam.

— É a primeira vez que ouço essa história, mas, apesar disso, ela não constitui novidade para mim. É a única solução lógica dos problemas que surgem quando um grupo de seres inteligentes descobre as armas definitivas. A esta altura já deve compreender por que tenho que agir da forma como estou agindo. Não é nada agradável ser apontado como traidor pelos amigos e superiores hierárquicos. Mas se me deixar levar pelos sentimentos, o mundo estará perdido. Um dos blocos poderia se apossar das armas e destruiria o outro. Todavia, antes que conseguisse fazê-lo, o outro poderia desencadear a ação suicida. Não, Crest, vejo perfeitamente o caminho que devo percorrer. Seu problema é a resposta às minhas indagações. Você quer recuperar a saúde. Vou ajudá-lo. Precisa de sobressalentes eletrônicos. Vou consegui-los. Sua nave poderá decolar em busca do planeta da vida eterna. É possível que acabe se esquecendo de nós. Mas aproveitarei a sua curta presença aqui para trazer a paz à Terra, a paz pela força. De outra forma não é possível. Só o medo de uma potência ainda maior fará com que as potências do nosso planeta recuperem a razão. Acredito que poderei contar com a sua ajuda.

— Farei o que estiver ao meu alcance. Mas, por enquanto, não parece que sua atuação esteja sendo coroada de êxito. Falta pouco para expirar o prazo do ultimato. E depois?

— Thora terá de intervir. O antepara energético e o neutralizador da gravidade não foram suficientes para convencer os asiáticos de que se defrontam com formidáveis inventos extraterrenos. E o meu pessoal do ocidente acredita que tudo não passa de um blefe. Portanto, é necessário que aconteça alguma coisa que deixe patente para todos os interessados o poderio imenso da terceira potência. Sua nave está estacionada na Lua. O que pode ser feito de lá para que toda a humanidade fique ciente do perigo que paira sobre ela? Não seria possível erguer o rochedo de Gibraltar e fazer com que o mesmo caia no mar a mil quilômetros de distância? Ou transferir a Estátua da Liberdade de Nova Iorque para Pequim? Quem sabe se poderia paralisar todas as comunicações radiofônicas do mundo?

— Poderíamos fazer tudo isso e, provavelmente, seria conveniente dar uma demonstração bem visível aos homens. Pense no assunto e avise-me da sua decisão. Thora fará aquilo que eu lhe pedir. De minha parte sugiro a utilização de um raio energético. Escolha uma região não muito afastada, mas despovoada. Previna os homens. Avise-os de que dentro de duas horas, isto é, três horas antes do término do ultimato, queimará as areias do deserto, produzindo um funil de cinqüenta quilômetros de diâmetro. Previna-os que se não agirem de acordo com os seus desejos, o raio será dirigido contra zonas habitadas. Acho que isso bastará para convencê-los.

Um sorriso se esboçou no rosto de Rhodan. A insensibilidade aparente, porém, ocultava uma preocupação sincera com o futuro da espécie humana. Sabia que não havia nenhum argumento que pudesse incutir bom senso na mente dos guardiões das ideologias. Só um choque seria capaz de tanto. Estava disposto a aplicar a terapia de choque no mundo.

— Acredito que sim — respondeu. — Acha que Thora está disposta a nos ajudar?

— É obrigada a ajudar, quer queira, quer não. O seu orgulho diante de uma raça inferior é tamanho que a faz esquecer de que também já atravessamos este estágio: os estágios de evolução de D a A. Talvez tenha sido a época em que nossa civilização foi mais produtiva. Éramos jovens e ativos. Amávamos o progresso e a novidade. Hoje tudo mudou. Somos degenerados e presunçosos. Vou usar de franqueza, Rhodan. Às vezes, quando penso na nossa semelhança exterior, chego a ter idéias bem estranhas. Se combinássemos o espírito de sua raça com o da nossa, se uníssemos a sua vitalidade ao nosso saber, poderíamos dominar o Universo...

Os olhos de Perry Rhodan perderam o brilho duro. Vagaram numa distância ignota, que se media por eternidades. Sem que percebesse, seus punhos se cerraram, os dedos voltaram a se distender. A imagem do futuro desenrolou-se diante do seu espírito como uma visão instantânea.

Os homens e os arcônidas — uma só raça. A iniciativa e o espírito de aventura aliados a um saber vetusto e a uma tecnologia inimaginável. Naves espaciais que se deslocavam a velocidade superior à da luz, tripuladas por homens e mulheres ávidos de ação, penetravam nos recantos mais profundos da Via Láctea, descobriam novos mundos, fundavam colônias e impérios. O comércio interestelar proporcionava um bem-estar indescritível. Surgia um novo império galáctico. Surgia uma nova raça...

Talvez Crest imaginasse o que se passava na mente de Rhodan. Um sorriso de sabedoria aflorou-lhe aos lábios.

— Ainda nos encontramos no começo, Perry Rhodan. Você representa o gênero humano; eu, os arcônidas. Você precisa do nosso auxílio; nós, do seu. É um pacto, podemos chamá-lo assim, nascido da necessidade comum. Mas acredito que, futuramente, cheguemos a uma união em prol do interesse mútuo, fundada na razão. Até é possível que a Terra seja o planeta da vida que estamos procurando, pois o rejuvenescimento traz consigo uma vida mais longa.

— Antes de mais nada, devemos preparar o início, Crest. Depois poderemos falar sobre o resto. O mundo que pode trazer-lhe a saúde está prestes a soçobrar. O ódio mesquinho e a desconfiança egoísta, a falta de respeito pelas opiniões alheias, a obstinação com que são mantidos certos princípios pré­estabelecidos, foi isso que nos conduziu à situação atual. Antigamente o temor a Deus obrigava os homens a serem honestos e tolerantes. Hoje, esses resultados só podem ser alcançados através do medo incutido por ameaças palpáveis. Portanto, peça a Thora que dirija o raio energético para a África do Norte, a cerca de cinco graus de longitude leste, na altura do Trópico de Câncer. O raio deverá atingir a vertente norte da serra de Ahaggar. Expedirei um aviso para que a região seja evacuada imediatamente, embora, pelo que sei, esteja praticamente desabitada.

— A demonstração não deixará de produzir efeito — prometeu Crest. — Convém salientar, no seu aviso, que se trata de uma das operações mais inofensivas do nosso arsenal.

 

A estação receptora da patrulha chefiada pelo tenente Durbas estava captando notícias alarmantes, vindas de todas as partes do mundo. Subitamente as transmissões em todas as faixas foram superadas por uma emissora desconhecida. O radio-telegrafista procurou, em vão, controlar o seu aparelho, mas, mesmo com o mínimo de volume, a voz de Perry Rhodan era ouvida num raio de duzentos metros.

“Aqui fala Perry Rhodan, representante do terceiro poder da Terra. Uma vez que o mundo se prepara para a guerra que trará o fim da espécie humana, não quero deixar de formular uma última advertência. Por meio dela provarei que a nação ou Estado que disparar o primeiro foguete atômico será destruído imediatamente. Dentro de cento e quinze minutos surgirá uma cratera de cinqüenta quilômetros de diâmetro no deserto do Saara, ao norte da cordilheira de Ahaggar. O fenômeno terá origem num raio energético expedido da Lua. Pede-se a todas as pessoas que se encontrem na região indicada que se afastem o mais possível do centro do alvo. Uma vez realizada a demonstração, as potências mundiais disporão de três horas para reconsiderar as suas posições. É tudo.”

O radiotelegrafista cravou os olhos no receptor; estava atônito. O tenente Durbas, que se levantara e chegara mais perto, fez a mesma coisa.

— O que foi isso? — perguntou depois de algum tempo.

— Perry Rhodan, aquele cosmonauta que pousou na Ásia. Dizem que está colaborando com a Federação Asiática. Também se fala a respeito de novas armas que ele teria trazido da Lua.

Os homens da patrulha do deserto reuniram-se. Estavam indecisos. O veículo estava parado à sombra de um oásis. O motorista olhava para leste.

— A cordilheira fica logo ali. Será que nos encontramos a uma distância segura?

O tenente Durbas mostrou-se contrariado.

— Até parece que você está acreditando nessa bobagem, Hassan! Um raio energético vindo da Lua! Será que não podiam inventar outra coisa?

O radiotelegrafista sacudiu a cabeça, estava pensativo.

— Deve haver algo de verdade nisso, tenente. Captei algumas noticias. Dizem que esse Rhodan cobriu sua nave com uma cúpula feita exclusivamente de energia. Nem mesmo uma bomba atômica poderia atingi-la.

— São contos de fada. Não se pode acreditar em tudo o que diz o nosso pessoal, o que dizer quando se trata dos amarelos? Fundir uma cratera no deserto! Que tolice! O que diz o Forte Hussein?

— Estabelecerei contato imediatamente.

O Forte Hussein recomendou que a patrulha seguisse a advertência.

— Está bem — gemeu. Durbas, lançando um olhar saudoso para o bosque sombrio. — Vamos recuar para o oeste. Esse calhambeque faz quarenta quilômetros por hora. Acho que isso é suficiente.

Quinze minutos antes da hora marcada para a demonstração, estavam abrigados atrás de uma elevação do solo, lançando olhares impacientes em direção a leste. Admiraram-se dos numerosos aviões que, subitamente, começaram a circular bem acima deles. Próximo ao local em que se encontravam, pousou um helicóptero da Central de Informações Leste com seus aparelhos de registro. Bem perto dali, uma pacata câmera de televisão da Federação Asiática focalizava a região demarcada por Rhodan. Dos americanos, nada se via. Talvez estivessem mais ao norte.

Faltavam dez minutos.

Um círculo bem amplo formara-se em torno da área ameaçada. Os presentes não acreditavam muito naquilo que talvez fosse acontecer dali a pouco, mas ninguém queria perder a chance de assistir a um espetáculo como o que se prometia. Tratava-se, na verdade, de um espetáculo desencadeado por um poder estranho.

Passaram-se cinco minutos.

Durbas tocou no braço do cabo Abbas.

— Dentro de uma hora ficará escuro. Tomara que esse Rhodan não demore muito. Aliás, recebemos ordem para regressar imediatamente ao Forte. Deve estar acontecendo alguma coisa.

— Será que é a guerra?

— Como vou saber? Pensando bem, desde 1945 encontramo-nos numa espécie de guerra.

O tenente olhou para o relógio.

— Está na hora — murmurou e olhou para o leste. No mesmo instante, porém, fechou os olhos. As demais pessoas que se encontravam por ali fizeram a mesma coisa.

Foram ofuscados por uma extensa cortina de luz que se precipitou do céu azul e atingiu a areia do deserto a cerca de trinta quilômetros dos observadores. Continuava visível mesmo através das pálpebras fechadas. A origem do raio perdia-se no céu, onde ia se estreitando progressivamente. Mais exatamente, localizava-se no ponto em que se situava a Lua, invisível a essa hora.

Uma onda de calor passou por cima dos homens assustados. As câmeras de televisão, porém, continuaram a zumbir, transmitindo o fenômeno diretamente para todos os quadrantes do mundo. Um raio incandescente brilhou nas telas de imagens dos centros de informações. Um dos aviões, que se aproximou demais da zona de perigo, foi colhido por um imenso turbilhão que o arrastou para o interior do raio energético. No mesmo instante, foi transformado numa gigantesca gota de metal fundido que se evaporou depois de alguns instantes de queda.

O raio pousou sobre o deserto por apenas um minuto. Depois, apagou-se.

Parecia que, era noite. O Sol, que ainda há pouco emitia um brilho tão intenso, agora parecia uma estrela agonizante, embora estivesse bem acima do horizonte. Sua luz era pálida e avermelhada. Podia-se contemplá-lo com os olhos bem abertos.

No lugar em que o raio tinha tocado o solo, já não havia deserto. Uma cratera abria-se entre a areia e as rochas. Não se via o fundo. As bordas estavam incandescentes. Bem embaixo, percebia-se um brilho avermelhado. Vapores erguiam-se das profundezas do inferno recém-criado.

Só de avião a cratera podia ser abrangida com o olhar. Era gigantesca. Formava um círculo perfeito, como se tivesse sido traçada a compasso.

Durante três horas o mundo conteve a respiração. O momento em que expirava o prazo do ultimato chegou — e passou.

Três botões vermelhos deixaram de ser tocados...

 

O tenente Klein chegou a Pequim por um caminho mais longo que o habitual. De acordo com as ordens que recebera, entrou em contato com o número dois, que lhe forneceu novas instruções. A missão a ser cumprida parecia impossível, mas tinha que ser tentada. Perry Rhodan representava um perigo para todo o mundo. Quem conseguisse remover esse perigo conquistaria fama imorredoura, pouco importava a nação a que pertencesse. A missão exigia a mobilização de todas as energias da pessoa encarregada de cumpri-la, além de uma coragem extraordinária.

No entanto, havia uma circunstância que a fazia parecer mais fácil. O próprio Mercant fornecera a Klein uma indicação de suma importância.

— Preste atenção, Klein! Rhodan não poderá ser eliminado com os meios usuais. Só existe uma possibilidade: a traição. Não se preocupe com os aspectos morais, pois Rhodan também nos traiu. Você terá que romper o anteparo energético. Como fazê-lo é problema seu. Há outro detalhe: você não está só. Há agentes do bloco oriental, e também da Federação Asiática que estão lidando com o mesmo problema. Não é impossível que a tarefa comum acabe por conduzi-los a certo tipo de entendimento. Enquanto a Stardust não tiver sido destruída, os agentes da Federação Asiática e de Moscou serão seus colegas. Boa sorte!

Klein precisaria de sorte e, até aquele momento, ela não o deixara em falta. Em Kalgan, a 120 quilômetros a noroeste de Pequim, onde procurou conseguir um automóvel através de dinheiro e promessas, teve a sua atenção despertada por um chinês, que já tinha visto três vezes no mesmo dia. O rapaz observava-o; não tirava os olhos dele.

Comprou um carro capaz de trafegar em terreno difícil e providenciou mantimentos e outras provisões, uma barraca com os respectivos equipamentos e tudo o mais de que precisava para uma pequena expedição. As estradas encontravam-se em boas condições, mas estavam sendo vigiadas.

Mandou pintar no veículo, em letras enormes, umas palavras que o colocariam a salvo de qualquer suspeita: Viagem Experimental Realizada sob o Patrocínio do Exército. Seus documentos diziam que era engenheiro. Devia verificar se o veiculo se prestava ao transporte de tropas pelo deserto e pelas montanhas.

Ao sair da cidade, procurou em vão pelo chinês suspeito. Provavelmente desistira do seu intento. Por que e quais as suas intenções, Klein não sabia.

“Essa gente tem um interesse todo especial por estrangeiros”, murmurou enquanto se desviava de um veiculo que vinha em sentido contrário. “Mas não pareço tão rico assim. O que é que se poderia roubar de um engenheiro no campo?”

Pelo fim da tarde, passou pela cidade de Kwai-Hwa, indo pela estrada que seguia junto à Grande Muralha. Não podia saber que naquele mesmo instante o chefe do Serviço de Defesa da Federação Asiática, Mao Tsen, encontrava-se na longínqua Pequim, sentado diante de um receptor que lhe fornecia a localização exata do pretenso veículo experimental. O chefe do Serviço Secreto, major Butaan, estava sentado ao seu lado, sorrindo.

— O tenente Li Shai-tung é um dos meus melhores agentes — disse Butaan cheio de orgulho, como se aquilo representasse uma realização exclusivamente sua. — Logo descobriu esse americano e não o perdeu de vista. Estou curioso para ver se é correta a sua teoria, segundo a qual os outros cooperariam conosco se realmente a Stardust não fosse uma base americana, o que, a esta altura, parece bastante provável. Se o bloco ocidental dispusesse de uma arma como o raio vindo da Lua, já teríamos deixado de existir. Li foi informado de que a Stardust deve chegar às nossas mãos intacta?

— Foi devidamente instruído — confirmou Mao Tsen com um gesto comedido. Estava prestando atenção à voz fina vinda do alto-falante: — Ah, o americano resolveu prosseguir viagem. Daqui a pouco deverá chegar ao Hwang-Ho. É possível, até, que atinja a localidade de Pau-tou, a não ser que prefira passar a noite num acampamento ao ar livre.

Klein não sabia que, no quartel-general do Serviço Secreto da Federação Asiática, sua rota estava sendo traçada, com toda a precisão, em um mapa. Era como se ele transmitisse periodicamente sua posição.

Só quando parasse, ele ficaria sabendo que tinha sido acompanhado.

A lua minguante já se aproximava do horizonte sob o qual o sol se escondera. À sua esquerda, brilhavam as águas de um rio que deslizava lentamente. A estrada era ladeada por moitas de arbustos que se estendiam até a margem do rio.

Klein encontrou um espaço livre e dirigiu o carro para lá. Prosseguiu mais alguns metros até chegar a um lugar que lhe pareceu apropriado. O carro ficou abrigado entre a vegetação e as rochas, junto ao rio.

O tenente espreguiçou-se e saiu do carro. Fazia calor mas, assim mesmo, uma fogueira não seria má. Não armaria a barraca e um café quentinho lhe faria bem. Depois, estenderia algumas cobertas na parte do veículo destinada à carga e dormiria lá.

— Vamos descansar? — perguntou uma voz atrás dele num inglês horrível. — Calma! Não faça nenhum movimento precipitado, meu amigo. Estou segurando uma arma. Vire-se devagar, bem devagar.

Klein acabara de colocar alguns pedaços de lenha bem seca sobre as chamas que pareciam ávidas por se alimentarem. A luz produzida pela fogueira permitia-lhe reconhecer o rosto do seu interlocutor. Naturalmente era aquele rapaz obstinado, que já lhe despertara a atenção em Kalgan. Encontrara uma oportunidade para se esconder no interior do veículo.

Tudo isso não seria tão mau assim se o sujeito não lhe apontasse uma pesada pistola automática apoiada em um dos braços. Klein olhou para o orifício ameaçador do cano daquela arma perigosa, cujos projéteis tinham carga explosiva suficiente para danificar um carro blindado de tamanho médio.

— O que deseja? — perguntou Klein. — Para um vagabundo, seu equipamento é muito moderno. Tome cuidado, meu velho, pois este veículo é do governo.

— De que governo? — disse Li Shai-tung com um sorriso misterioso. — Do americano? Vamos, mostre logo suas cartas. Qual é a sua missão? Talvez possamos chegar a um acordo.

Klein apontou para o fogo.

— Vamos sentar?

— Está armado?

— Está interessado em um acordo ou prefere falar comigo de pistola na mão?

Li hesitou.

— Estou em situação de vantagem. Não teria dúvidas em renunciar à mesma se soubesse que você está sendo sincero. Quero que responda a uma pergunta minha. Só depois disso poderei aceitar o seu convite e confiar em você. Qual é a sua missão? Quem é o seu chefe? Conheço as respostas através das pessoas que me enviaram para cá. Se coincidirem com as suas...

Foi descendo do carro, mas continuou com a arma apontada para Klein. Este refletiu por um instante. Lembrou-se do que Mercant lhe havia dito e, subitamente percebeu que ele estava com razão: era necessário que colaborassem um com o outro.

A evolução dos acontecimentos já começava a delinear a trilha sonhada por Perry Rhodan. Era ainda muito tênue, muito insignificante, começava bem por baixo. Um dia, porém, abrangeria a Terra se os agentes não conseguissem destruir a Stardust.

— Meu chefe é Allan D. Mercant, chefe do Conselho Internacional de Defesa do Ocidente. Minha missão consiste em destruir a nave espacial Stardust. Isso basta?

Li concordou com um movimento de cabeça depois, abaixou a arma. Por uns momentos, continuou a segurá-la, indeciso; acabou atirando-a na parte traseira do veículo. Foi até a fogueira e apertou a mão de Klein, sentando-se em seguida.

O tenente engoliu em seco. O gesto representou uma reação destinada a disfarçar a admiração que nutria pelo outro. Sentou, também. Ao pé dos dois, o fogo espalhou um calor agradável. A água começou a ferver na chaleira.

— A sua missão só difere da minha em um ponto — admitiu o chinês depois de uma pausa prolongada. — Você recebeu ordens para destruir a Stardust, ao passo que eu devo evitar isso de qualquer maneira. Acredito, porém, que, oportunamente, ainda chegaremos a um acordo. No momento, nossos objetivos são idênticos: impedir que Perry Rhodan possa impor sua vontade ao mundo. Será que interpretei corretamente as suas intenções?

Klein confirmou com um gesto de cabeça.

— Nesse caso — continuou Li — poderemos colaborar um com o outro, até que Rhodan tenha sido posto fora de combate... Aquilo que virá depois ainda está muito longe. Vamos fazer um acordo. Queira formular sua proposta.

O tenente Klein nem chegou a compreender o grotesco da situação. Dois agentes que trabalhavam para potências inimigas uniam-se para eliminar o elemento mais poderoso. Ainda há poucos dias, sua rapidez no manejo da arma decidiria qual dos dois conseguiria sobreviver. Já agora tudo estava mudado. O temor infundido pela misteriosa terceira referência transformara os inimigos em amigos que se mantinham numa atitude de expectativa.

— Você me garante que não me entregará às autoridades do seu país, nem mesmo depois que tivermos atingido nosso objetivo. Em compensação, oportunamente, quando chegarmos ao local em que se encontra a Stardust, revelo-lhe como pretendo fazer para atravessar a cúpula energética. Está de acordo?

Li apertou a mão do americano.

Cinco dias depois, deixaram a rodovia na altura de Hang-Shou, e avançaram pelo deserto de Gobi, em direção ao norte. Deixaram para trás as montanhas e o rio. Dali em diante, só encontraram alguns lagos-salgados e pequenos regatos. A vegetação foi se tornando cada vez mais escassa. A paisagem refletia as características do deserto.

A cinqüenta quilômetros do destino, foram detidos por uma unidade blindada do exército asiático. Foi Li quem salvou a situação. Uma mensagem radiofônica expedida para Pequim produziu um verdadeiro milagre. Os dois agentes foram liberados com muitos pedidos de desculpas. O comandante da unidade, em meio a inúmeras mesuras, desejou êxito completo ao senhor Klein e seu amigo chinês.

A situação foi se tornando cada vez mais estranha. Até parecia nunca ter havido qualquer conflito entre o Oriente e o Ocidente. O temor do inimigo comum revelou-se capaz de cimentar uma unidade sólida até mesmo entre ideologias que se opunham ferozmente.

Ainda por duas vezes tiveram que atravessar o cordão de isolamento estabelecido pelo exército. Klein começou a indagar de si para si por que estava dirigindo aquele caminhão. Podia ter pedido que o levassem num helicóptero do exército; e era indiferente que o aparelho pertencesse à Federação Asiática, ou aos países do bloco ocidental. Mas lembrou-se de que tinha que enganar Rhodan. Se é que este fosse se deixar enganar com facilidade...

 

O capitão Reginald Bell desligou o motor. Os dois reatores zumbiram mais algum tempo. Depois pararam.

— Então? — perguntou Perry. — Tudo em ordem?

— Está! E o tanque está quase cheio. Não será difícil cobrir os dois mil quilômetros até Hong Kong, desde que eu possa reabastecer no caminho. A próxima parada será em Bornéo. Depois, terei que alcançar a Austrália.

Fletcher saltou nervosamente de um pé para o outro. Nos seus olhos havia um brilho fraco. Já esquecera a Stardust, que se encontrava a apenas cem metros de distância. Só via o helicóptero que ia le­vá-lo de volta à civilização. Chegado lá, encontraria uma possibilidade de retornar aos Estados Unidos, onde a esposa o esperava.

Não sabia como tinha chegado ali. Só se lembrava do seu nome e do da cidade em que sua esposa morava. O hipnobloco, que Crest aplicara em torno do seu centro de memória com o auxílio do psico-irradiador, apagara quase todos os fatos anteriores. Ninguém conseguiria arrancar nada de Fletcher: era um homem que não tinha mais passado.

Rhodan o prevenira, mas Fletcher limitara-se a abanar a cabeça.

— Serei o único responsável pelo que acontecer; você não terá nada com isso. Quero voltar para junto de minha esposa. É só. E, agora, leve-me para junto de Crest.

Meia hora depois estava tudo terminado. Bell saltou para o helicóptero e acenou para Rhodan.

— Confie em mim, meu velho. Deixarei Fletcher em Hong Kong ou em Darwin. Depois, arranjarei as peças sobressalentes e o soro anti-leucêmico. Dentro de uma semana estarei de volta. Lembranças para Eric e Crest.

— Cuidado para que não o derrubem!

— Este helicóptero é do Exército. Além disso, levo comigo o neutralizador de gravidade, cujo alcance chega a dez quilômetros. Isso sem falar no irradiador manual. As outras invenções também serão úteis. Em troca delas, conseguiria continentes inteiros. Pense apenas nos pequenos geradores de energia. São do tamanho de uma caixa de charutos, mas fornecem, por um século, ininterruptamente, duzentos watts. Entre, Fletcher.

Enquanto o astrônomo se espremia por entre as caixas, na parte traseira do helicóptero, Bell se despedia do amigo.

— Desligue o anteparo energético no momento exato em que eu atingir altitude suficiente. Alguns segundos devem bastar. Depois volte a fechar a nossa quitanda. Daqui a uma semana estarei de volta. Não se preocupe. Até a volta!

Perry retornou à sala de comando da Stardust. Quando o helicóptero ganhou altitude e chegou perto do teto da cúpula energética invisível, ele empurrou uma chave durante cinco segundos. Bell já estava do lado de fora.

O helicóptero tomou rumo sul. Deslocava-se a baixa velocidade. Passou por algumas formações de carros blindados e, pouco depois, chegou à vertente oriental das montanhas de Richthofen. Tomando o rumo do sudoeste, prosseguiu a uma altitude de mil e quinhentos metros.

No fim da tarde, foi atacado sem qualquer aviso por um avião de caça.

Não sabia como explicar o incidente. Talvez alguém o tivesse visto decolar. Mas, se fosse assim, não o teriam deixado em paz por tanto tempo.

O pequeno aparelho surgiu de repente. Vinha em sentido contrário e ligeiramente para o lado. Estava girando, utilizando todo o seu poder de fogo. Os projéteis chamejantes passavam muito à esquerda, antes que o piloto pudesse corrigir a pontaria, já havia passado pelo helicóptero. Descreveu uma curva ampla e atacou pelo flanco.

Bell já conseguira dominar a surpresa. Deixou que o helicóptero seguisse o mesmo rumo, regulou o irradiador manual para meia intensidade e, depois, dirigiu-o sobre o avião que se aproximava a uma ve­locidade vertiginosa.

“Está na hora de mostrar o que você sabe fazer”, disse para si mesmo. Com os nervos tensos, acrescentou: “Suba. Ganhe altitude e suspenda o fogo!”.

No mesmo instante, as línguas de fogo que saíam do bojo e do bordo de ataque das asas do avião desapareceram. O caça empreendeu uma subida quase vertical.

Bell abaixou o irradiador. Lembrou-se, muito tarde, de que era necessário transmitir outra ordem ao piloto. A distância era de três, e, logo, quatro quilômetros. Não havia como vencê-la.

O caça continuou sua subida louca. E continuava a subir quando já fora do alcance visual de Bell. O combustível se esgotava. O piloto, semi-asfixiado, continuava a cumprir a ordem recebida. Subiu até que todo o combustível fosse consumido.

Por um segundo, o aparelho pareceu imóvel, depois, começou a cair. Foi descendo em parafuso até espatifar-se contra os rochedos de Tsingling Chan.

Bell sentiu-se abalado. Começava a compreender o poderio imenso que representava esse irradiador de aspecto tão inofensivo se utilizado de forma conveniente. Devia ter dado uma ordem diferente ao piloto. Mas como tomar uma decisão em uma fração de segundo?

Aterrissou num pequeno aeroporto militar perto de Chun-king. Ainda faltavam mil quilômetros para Hong Kong.

No início, ninguém lhe deu atenção. Mas, como ficasse parado e não descesse do aparelho, um jipe aproximou-se. Dele, saiu um oficial de alta patente e acercou-se do helicóptero.

— Por que não comunicou a sua chegada à torre do controle? — indagou. Quando, porém, viu o rosto de Bell, que jamais poderia ser confundido com o de um chinês, acrescentou: — Quem é o senhor?

O mínimo que Bell podia fazer era rir. Tinham lhe dito que, aqui, se sorria constantemente.

— Não entendo uma única palavra do que o senhor está dizendo — respondeu em inglês. Depois, dirigindo o irradiador sobre o oficial, prosseguiu: — Sou o marechal Roon. Preciso de combustível. Providencie. E rápido, por favor!

O motorista do jipe também fora incluído no tratamento. O oficial prestou-lhe continência e entrou no jipe que se afastou em alta velocidade.

Bell sorriu e esperou. Virou-se pára Fletcher que acompanhava tudo sem o menor interesse. Mantinha os olhos fechados.

— Coitado! — murmurou Bell.

Dali a poucos minutos, chegou um caminhão-tanque e parou perto do helicóptero. Já ia escurecendo. Ninguém se preocupou com os dois homens sentados na cabine. Uma vez cheio o tanque e colocados alguns galões extras em tanques de reserva situados no compartimento de carga, o chefe do grupo comunicou o término da operação.

Bell deu partida no motor e cumprimentou com um gesto condescendente. Ao subir para o céu vermelho, ainda chegou a ver os olhos arregalados dos chineses. Mais tarde, o verdadeiro marechal Roon jamais conseguiria explicar como o capitão Finlai, que o conhecia pessoalmente, jurou perante a Corte Marcial tê-lo visto em pessoa na Base Aérea de Chun-king. Ao que se sabia, ninguém podia estar em dois lugares ao mesmo tempo.

Ou será que podia?...

Era estranho.

 

Foi justamente num lugar situado a dez quilômetros da Stardust que uma firma da Mongólia, autorizada pelo governo de Pequim, iniciou a montagem das instalações destinadas à extração de sal das águas do lago de Goshun.

Os tratores abriam sulcos enormes nas margens arenosas do lago e as dragas removiam a terra. Formaram-se bacias imensas que se encheram com a água do lago até que essas atingissem um metro de altura, não mais. Alcançado esse ponto, fechavam-se as comportas. O sol evaporaria a água e só restaria o sal. Fileiras imensas de caminhões estavam prontas para transportar o produto até a Mongólia, que pertencia à zona de influência de Moscou.

Klein e Li viram-se obrigados a guardar um período de descanso para não chamarem a atenção. Por mais estranhos que lhes parecessem os grupos de trabalhadores que desenvolviam uma atividade intensa, não havia motivo para que não estivessem ali. Oficialmente, a luta contra a Stardust havia sido suspensa. As bombas atômicas detonadas no lugar eram livres de radiação e, por isso, não deixavam qualquer efeito nocivo no terreno. As tropas haviam sido retiradas das áreas adjacentes à nave espacial.

O engenheiro-chefe da firma, Ilia Rawenkow, cumprimentou os visitantes inesperados com extraordinária cordialidade. Falava chinês fluentemente.

— O que os traz a esta região solitária? — indagou, depois de tê-los convidado para uma xícara de chá. — Já pensávamos que levaríamos meses sem ver qualquer outro ser vivo. Permitam que faça a apresentação: este é Peter Kosnow, procurador da empresa.

Os dois russos causaram boa impressão. Mas havia alguma coisa nos seus olhos — ou melhor, atrás de seus olhos — que recomendava cautela.

— Estamos testando um veículo de transporte para o exército — respondeu Li em tom bastante convincente. — Acho que esta região se preta bem para isso. O engenheiro Klein está me acompanhando. Vive na Federação Asiática há quinze anos.

Rawenkow e Kosnow olharam-se rapidamente.

— Que interessante! — um sorriso cortês aflorou aos lábios de Rawenkow. — Não acha estranho que tantas vezes europeus e até americanos venham aos nossos países e cooperem conosco? O fato é que não há fronteiras quando se trata de interesses econômicos.

Li estreitou os olhos.

— É verdade que se trata apenas de vantagens econômicas? — disse, espaçando bem as palavras.

O russo — percebia-se a dez quilômetros que tanto ele quanto Kosnow não eram mongóis — olhou involuntariamente na direção em que se encontrava a nave espacial, oculta por uma elevação.

— O que quer dizer com isso? — disse, para ganhar tempo.

A expressão no rosto de Li não se alterou. Seguiu o olhar do russo e disse em tom casual:

— Se não me engano, ali não existe nenhuma região salineira. Por que será que só agora tiveram a idéia de iniciar a utilização econômica do lago de Goshun?

— Afinal, onde está querendo chegar? — disse Rawenkow em tom impaciente. Mal conseguia disfarçar o nervosismo.

— À união dos antigos adversários — disse Li com um sorriso e sorveu calmamente o chá de sua xícara. — Será que você quer me convencer que está aqui por puro acaso? Logo ali, a menos de dez quilômetros de distância, encontra-se a Stardust. Ela vale mais que todos os lagos salgados do mundo. E desde quando existem russos que trabalham para a firma da Mongólia? Você não vai me dizer que é russo, não é Rawenkow?

Kosnow fez um movimento imprudente. Seu rosto não parecia muito inteligente quando viu a pistola de Klein apontada diretamente para o seu rosto.

— Que é isso? Para que tanta precipitação? — censurou Li com a voz suave. — Somos bons amigos, Kosnow, faça o favor de esquecer a pistola que traz no bolso. Klein guarde a sua. Seria ridículo se não pudéssemos nos unir em face de um inimigo comum. Não estou com a razão, Rawenkow?

O russo acenou levemente a cabeça.

— Como conseguiu descobrir nossa missão tão depressa? Até hoje todo mundo viu em nós apenas os representantes da firma da Mongólia.

— Talvez porque sejamos colegas — disse Li amistosamente. — O nome do seu chefe não é Ivan Martinovitch Kosselow?

Os dois russos ficaram de boca aberta. Confirmaram com um aceno de cabeça.

— Pois então? — prosseguiu Li. — Quer dizer que estamos de acordo! Posso fazer a apresentação definitiva? Este é o tenente Klein, do Conselho Internacional de Defesa do Ocidente. Eu sou o tenente Li Shai-tung. Finalmente os representantes das três grandes potências estão sentados em torno da mesma mesa, embora se trate de uma mesa tosca e cambaleante no deserto de Gobi. Falem com franqueza. Existe qualquer motivo que justifique uma inimizade entre nós?

Rawenkow abanou a cabeça:

— Você tem razão, Li. Acho que devíamos concluir um armistício. Os nossos objetivos são os mesmos.

Klein mordeu o lábio inferior, pensativo. Depois, disse:

— O que acontecerá quando tivermos alcançado o nosso objetivo?

Ninguém soube dar uma resposta.

 

Port Darwin fica na costa ocidental da Terra de Arnhem. É o porto mais importante da grande baía de Cambridge, situada no norte da Austrália.

Tanto ideológica quanto economicamente a Austrália pertencia ao bloco ocidental. Mantinha una representante permanente em Washington. Mas grandes setores da população empenhavam-se pela neutralidade do continente e pela sua autonomia militar.

Apesar disso, Bell sabia que não estava pousando em solo amigo, quando seu helicóptero desceu sobre o platô arenoso situado perto da costa. Já ia escurecendo. A pouca distância, brilhavam as luzes da cidade.

— Fletcher, você vai à cidade comigo? Pode pernoitar num hotel. Amanhã dou-lhe o dinheiro. Depois disso, você poderá pegar um avião e voltar para casa.

— Ótimo Bell! Você sabe que tenho de voltar para junto de minha esposa. Deverá ter um bebe dentro de três meses. Talvez antes.

— Sei, sim — disse Bell com um aceno de cabeça. Essa história do nenê já o estava irritando. Estava começando a compreender por que corriam tantas piadas sobre o tema. Se todos os futuros pais fazem um drama desses...

— Esqueça as preocupações. Temos que fazer uma caminhada de meia hora. Tomara que ninguém nos tenha visto pousar aqui.

Sem qualquer incidente, conseguiu entregar seu protegido no hotel e, depois de ter dado a volta à cidade para sondar o terreno, voltou ao helicóptero. Um policial, tratado com o psico-irradiador, dera-lhe, com a maior solicitude, todas as informações que desejava.

O Dr. Frank M. Haggard residia na parte leste da cidade, num edifício anexo aos hospitais por ele construídos. Era lá que ficava o laboratório no qual, dois anos antes, realizara uma descoberta sensacional: o soro anti-leucêmico.

Seguindo as indicações do policial, Bell foi acompanhando, a baixa altitude, a rodovia até atingir o entroncamento com uma estrada lateral. Seguiu esta última e não tardou a avistar os contornos dos imponentes prédios que se destacavam contra o mar.

Pousou na clareira de um bosque a pequena distância dali. Colocou o irradiador no bolso, pegou um dos geradores permanentes de energia e pôs-se a caminho.

Frank Haggard ainda estava acordado. Lançou um olhar de espanto para o visitante retardatário, ergueu as sobrancelhas num gesto de recriminação e convidou-o a entrar. Ficou curioso ao ver a caixinha que Bell colocou sobre a mesa com muito cuidado.

— Posso lhe ser útil em alguma coisa? — perguntou o médico.

Bell examinou-o mais detidamente. Haggard era um tipo atlético, de cabelos castanho-escuros e olhos azuis. Devia ter cerca de quarenta e cinco anos. Havia em seu rosto um traço de bondade, capaz de inspirar confiança especialmente para quem precisasse de auxílio.

— Na verdade, pode ser-me bastante útil — começou Bell, sem saber como explicar-se. — Meu nome é Reginald Bell, não sei se já o ouviu antes.

— Reside em Darwin? — indagou o médico, inclinando-se para frente.

Bell disfarçou o seu desapontamento.

— Não. Venho da Mongólia.

Haggard voltou a recostar-se na cadeira.

— Ah! — fez.

Não disse mais nada. Afinal, a Mongólia distava cerca de cinco mil quilômetros dali. E esse tipo estranho entrou-lhe pela casa sem mais aquela às dez horas da noite dizendo ter vindo da Mongólia. Devia ser algum louco à solta. Convinha ter cuidado.

— Isso mesmo. Mais exatamente, venho do deserto de Gobi.

— Era só o que faltava — foram as palavras que Haggard deixou escapar. Todavia, conteve-se logo e perguntou, com tom amistoso: — Veio a pé?

— Só os últimos quinhentos metros — admitiu Bell. Que diabo! Como devia fazer para que o cientista compreendesse o que desejava dele?

— Preciso do seu soro anti-leucêmico para curar um doente. Apenas... bem, o pagamento é que causa alguma preocupação. É verdade que uma coisa que talvez lhe interesse...

— Pode falar com franqueza — recomendou Haggard e lançou um olhar de esguelha para o telefone. — Mas por que não esperou até amanhã de manhã?

— Infelizmente não foi possível, doutor. Cada minuto me é precioso. Está interessado numa fonte de energia bem barata?

— Como?

Bell segurou a caixinha no colo. Desembrulhou-a e voltou a pô-la sobre a mesa. Ali estava: seu aspecto era modesto e inocente. Só algumas tomadas revelavam que dali se podia extrair energia elétrica.

— Este aparelho fornece até duzentos quilowatts. Não precisa ser recarregado. Dá para cem anos utilizando ininterruptamente a capacidade máxima. Compreendeu? Deixe de olhar o telefone! Não sou nenhum maluco! Não lhe farei nada.

Haggard já não entendia o que se passava. Seu instinto lhe dizia que estava lidando com um homem normal. Estavam lhe oferecendo uma maravilha técnica que contrariava todas as leis da física.

— Quem é o senhor? — perguntou.

Bell suspirou.

— Está bem! Direi a verdade. Embora esta pareça mais estranha que a mais louca das fábulas. Certamente já ouviu falar na Stardust, a nave espacial americana que pousou no deserto de Gobi. Pois bem; eu sou um dos tripulantes. Rhodan, o comandante, ficou na nave enquanto eu...

— Perry Rhodan? — Haggard lembrou-se de algumas notícias de jornal. — Perfeitamente, estou lembrado. Não houve complicações diplomáticas?

— Complicações diplomáticas é pouco. Temos motivos para não revelar ao mundo os resultados da nossa expedição. Na face oculta da Lua encontramos uma nave extraterrena com a respectiva tripulação. Está com algumas avarias e, para decolar, precisa de certas peças sobressalentes. Os arcônidas, que são os tripulantes da nave, são um povo tão decadente que já não conseguem fazer os reparos de que a nave precisa. São muito inteligentes e tecnologicamente muito desenvolvidos, mas estão física e psiquicamente arruinados. O diretor-científico da expedição, chamado Crest, sofre de leucemia. Se tudo permanecer como está, ainda terá pouco tempo de vida. É muito importante que seja curado, pois o futuro do seu povo, e também o da humanidade, depende disso. Crest representa a chave que abrirá o acesso ao espaço cósmico, aos planetas de outros sistemas solares e a um desenvolvimento técnico inconcebível. Compreendeu o que acabo de dizer?

Haggard confirmou com um aceno de cabeça.

— É claro que compreendi. Ouvi falar de uma cratera aberta no deserto do Saara. Isso foi obra de Crest?

— Foi. — Bell absteve-se de maiores explicações. — E pode fazer coisas bem mais impressionantes. Mas deixemos isso para mais tarde. Antes de mais nada, uma pergunta: está disposto a nos ajudar? Concorda em entregar o soro? Em troca dar-lhe-ei este gerador. Recebi-o dos arcônidas.

Haggard pegou um cigarro. Havia um tremor quase imperceptível nas suas mãos.

— Só o soro não adiantaria muito. Crest teria que se submeter a um tratamento em meu sanatório.

— É impossível doutor. Aqui não estaria em segurança nem por um segundo. Os agentes de todos os países estarão atrás dele.

Haggard confirmou com um leve aceno de cabeça. Depois, olhou para Bell.

— Nesse caso, irei com o senhor.

— O senhor pretende?... Mas... o hospital? As pesquisas?

— Isso pode esperar. Estou muito mais interessado nesse tal Crest. É bom que saiba que sempre tive uma inclinação para coisas incomuns. O senhor acha que eu deixaria escapar esta oportunidade de examinar o organismo de uma inteligência extraterrena? Quando partiremos?

Bell achou que Haggard estava indo muito depressa.

— O mais rápido possível. Mas tenho de resolver alguns assuntos. Preciso de dinheiro para adquirir as peças sobressalentes destinadas à nave dos arcônidas. São componentes eletrônicos. Quem sabe se o senhor poderia dar-me uma indicação a respeito disso?

— Conheço várias firmas. Por um desses geradores dar-lhe-ão um armazém cheio de peças.

— Ótimo! Amanhã faremos uma visita às grandes casas do ramo. Só disponho de um helicóptero que não pode transportar volumes muito grandes. Talvez conheça alguém que possua um meio de transporte com maior capacidade de carga.

Haggard franziu a testa.

— Um dos meus assistentes é proprietário de um confortável iate. As condições de navegabilidade do barco são muito boas. Não terá dúvidas em cedê-lo a mim. Daqui a Hong Kong são três mil quilômetros. Venceremos esta distância em uma semana.

— Muito bem! Em Hong Kong veremos o que fazer. Meu psico-irradiador saberá cuidar da situação.

— Quem?

Bell tirou o bastão prateado do bolso.

— É um aparelho formidável, doutor. Ele lhe permite impor sua vontade a qualquer pessoa até uma distância de dois quilômetros. Como vê, de qualquer maneira eu o levaria ao deserto de Gobi, mesmo que não quisesse.

— É inacreditável! — disse Haggard espantado. — Se isso funcionar não haverá mais qualquer dificuldade.

— Funciona! — tranquilizou-o Bell.

O dia seguinte foi cheio de surpresas e de preocupações para os diretores de várias fábricas. Se não fosse a presença de um médico conceituado, o Dr. Haggard, pensariam que a demonstração realizada por Bell não era mais que uma engenhosa fraude.

Convencidos da verdade, o cepticismo transformou-se em vivo entusiasmo. Bell ficou sem os aparelhos e as fábricas sem algumas caixas de peças eletrônicas.

Como se não bastasse, Bell ainda recebeu uma boa importância em dinheiro, da qual entregou cinco mil dólares a Fletcher que já estava com passagem reservada para Nova Iorque.

Haggard pediu que o iate do seu assistente entrasse na baía que ficava perto ao hospital.

Tudo correra bem até ali. Três dias mais tarde, o iate estava com toda a carga arrumada a bordo e preparado para partir. O helicóptero fora firmemente amarrado ao convés.

Os dois homens foram à terra pela última vez. Haggard, para dar algumas instruções ao seu substituto e Bell, para desentorpecer as pernas.

Subitamente, ouviu-se o uivo de uma sirena. Holofotes romperam a escuridão, mergulhando a baía numa forte claridade. Os motores de pesados helicópteros agitavam o ar plácido do lugar. Tanques surgiam por entre as moitas que ladeavam a praia e dirigiam seus canhões para o iate. Soldados apareceram entre o passadiço e o lugar em que Bell se encontrava. Estavam de armas na mão e prontos para abrir fogo. Um oficial aproximou-se, vindo de um dos lados. Parou diante de Bell.

— Seu nome é Reginald Bell?

— Será que isso é crime?

— Limite-se a responder às minhas perguntas. Bell permaneceu calado.

— Pertence à tripulação da Stardust?

— Já que sabe, por que pergunta?

Num gesto insolente, Bell colocou a mão no bolso.

— Deixe disso! — advertiu o oficial. — Qualquer resistência será inútil. A área está cercada. O Doutor Frank Haggard já foi preso. O Capitão Fletcher também está sob custódia da polícia.

— Coitado! Terá um filho — murmurou Bell, penalizado.

— O quê?

— Tanto faz. O senhor não compreenderia.

Bell já conseguira regular a intensidade. Comprimiu o botão do ativador. Olhou atentamente para o oficial.

“Execute dez flexões de joelho!” pensou, concentrando bem a mente.

Os soldados, que já tinham se acercado mais, abaixaram as armas e arregalaram os olhos. Subitamente, o oficial estendeu os braços e começou a flexionar os joelhos. Bell contou. Foram exatamente dez flexões.

“E agora, diga a esta gente que dê o fora daqui e volte para o quartel.”

O oficial virou-se e berrou para os soldados:

— Por que estão parados ai, seus idiotas? Voltem ao quartel. Vamos logo! Ou eu terei que ensiná-los a andar depressa.

— O que está acontecendo por aqui?

A voz fria e calma era de um civil que saíra inesperadamente das moitas. Seus trajes eram tão discretos que teriam dado na vista até de um elemento pouco experimentado no assunto como Bell.

— Os homens têm que voltar ao quartel — disse o oficial com uma inflexão impessoal na voz. — Têm que voltar!

O civil dirigiu-se para Bell.

— O senhor é o Capitão Reginald Bell?

— Hoje em dia todo mundo quer saber o meu nome. É interessante! Antigamente, ninguém queria saber como me chamava. Mas, desde que voltei da Lua a coisa mudou...

— Ah! Quer dizer que confessa ser Reginald Bell?

— Por que não? O senhor é da polícia?

— Sou do Serviço de Segurança. Venha comigo! — Bell virou-se ligeiramente.

— É melhor que o senhor me siga — recomendou com voz suave, enquanto caminhava em direção aos prédios do hospital. — Quem está comandando a ação contra mim?

— É o inspetor Miller, apoiado por toda a guarnição.

Disse o civil em outro tom de voz.

— E quem prendeu Haggard?

— Fui eu. Ficará na cadeia até que sua participação nos acontecimentos tenha sido esclarecida. Deseja falar com ele?

— Providencie imediatamente para que Haggard seja liberado — ordenou Bell. — Depois, o senhor mesmo o levará a bordo do iate e fará com que o inspetor Miller suspenda toda e qualquer ação. Entendido?

— Levar Haggard à bordo e cessar a ação. Entendido!

Era possível que as novas instruções não chegassem logo a todos os pontos. Provavelmente, uma ou outra unidade ainda executaria as ordens anteriores. Nesse caso, seria melhor estar a bordo do iate. De qualquer maneira, o civil levaria seu prisioneiro a bordo, a não ser que impedido pelo uso da força.

Bell colocou o neutralizador de gravidade sobre uma mesa na cabine situada no convés superior, que possibilitava, visão ampla para o lado da terra. Já que o alcance do aparelho atingia dez quilômetros, a cidade também seria atingida.

Esperou até que o civil entregasse Haggard, que estava pasmado. Depois, ligou o neutralizador. O ponto central, isto é, o iate, conservou seu peso natural. Também a superfície do mar, sobre a qual não soprava a mais leve brisa ficou como se fosse uma placa de vidro. Apenas os peixes que saltavam para o ar ofereciam um espetáculo estranho. O peixe e o repuxo d'água iam subindo lentamente, até que se perdessem na escuridão.

Bell voltou-se para Haggard.

— É uma pena que não possamos ver o que está acontecendo na cidade. Todos os. objetos que se encontrem num raio de dez quilômetros perderam o peso normal. Imagine as forças policiais suspensas no ar.

— Mas, os meus doentes... — disse Haggard preocupado.

— O setor em que fica o seu hospital foi excluído — tranquilizou-o Bell. — Mas já é hora de darmos o fora daqui. Deixarei o neutralizador ligado. Sua ação também se estende para cima. Ninguém conseguirá chegar a menos de dez quilômetros de nós.

Envolto numa bolha protetora de completa imponderabilidade, o iate, batizado com o nome de Zéfiro, deixou o porto natural e foi navegando mar afora.

Se Bell pudesse ver o que resultou com o uso do neutralizador, talvez não ficasse tão alegre. O caos tomou conta da cidade de Darwin. O chão fugiu de debaixo dos homens e dos veículos que foram subindo lentamente, frente à baixa ação da gravidade. Se tivessem sorte, alcançariam logo o teto da zona antigravitacional que foi baixando gradativamente. Nesse caso, o impulso contrário, fazia-os tornar suavemente à terra. Mas houve alguns que não tiveram tanta sorte. E as quedas se sucederam, com maior ou menor número de ferimentos ou fraturas.

Naquela mesma noite, a notícia de tão incrível ocorrência deu a volta ao mundo. E o alarme geral voltou. Unidades das esquadras das três grandes potências mudaram de rumo. Tomaram a direção da Célebes, onde se supunha se encontrava o iate que levava a bordo um dos tripulantes da nave espacial.

No dia seguinte, dois porta-aviões e sete destróieres da Federação Asiática deixaram seu elemento natural. Privados do seu peso normal subiram a quase três mil metros antes de voltarem lentamente ao mar. Diante disso, resolveram desistir da perseguição. E os mísseis, disparados de uma distância segura, também não tiveram êxito. Nenhum deles atingiu o alvo. Detonaram a grande altitude ou sob a superfície do oceano sem causar qualquer dano. Bell conseguiu dirigir o curso dos mísseis modificando as condições gravitacionais. Porém, ele sabia que as grandes dificuldades estavam, ainda, por vir. Uma vez que estavam sendo perseguidos por todo mundo, dificilmente conseguiriam entrar no porto de Hong Kong sem serem notados. Só com muita sorte voltaria a ver a Stardust.

 

Fletcher olhava fixamente para a luz ofuscante da lâmpada. Não compreendia o que estava acontecendo; tinha os olhos arregalados.

— Basta falar — disse uma voz áspera vinda de­trás da lâmpada. Não viu o rosto da pessoa que lhe falava. Estava imerso na escuridão. — Por que pretende voltar aos Estados Unidos?

— É por causa de minha esposa; ela está esperando um filho.

— Foi o que o senhor já disse. Mas deve ter outros motivos. Ninguém arrisca a vida por causa de um bebê.

— Como pode afirmar isso? É casado?

O homem invisível pigarreou.

— Por que não ficou com Perry Rhodan?

— Não sei de quem está falando. Não conheço nenhum Rhodan. E não sei nada a respeito de uma nave espacial. Pare de me torturar com suas perguntas incompreensíveis!

— O que Rhodan pretende fazer com a Stardust?

— Não sei.

— O que encontraram na Lua?

Fletcher procurou mover os braços. Não conseguiu; estavam presos ao encosto da cadeira por fitas de aço. O suor gotejava-lhe da testa. Sentia sede. Fechou os olhos, mas a luz ofuscante atravessou-lhe as pálpebras.

— Não sei.

— Ouça, capitão Fletcher. Não desistiremos. Se não disser logo a verdade, teremos que usar métodos mais desagradáveis.

— Não posso dizer o que não sei.

Ouviram-se vozes baixas vindas de um canto da sala. Depois disso a lâmpada foi apagada. A iluminação normal, vinda do teto, parecia triste e escura. Mãos brutais arrancaram Fletcher da cadeira, depois de soltarem as fitas de aço. Apático, deixou que o levassem. Não via as portas por onde passava, nem as paredes do corredor ou os rostos dos seus algozes. Só pensava no avião que, no dia anterior, devia tê-lo levado para os Estados Unidos. Nem mesmo a sala de operações com sua iluminação profusa conseguiu remover a rigidez que tomara conta do seu ser.

Deitaram-no sobre uma mesa. Homens de avental branco amarraram-no. Suportou tudo com a maior indiferença. Suas articulações foram envolvidas por placas de cobre. Cabos condutores de energia, com seus frios contatos, cingiram-lhe as têmporas. Depois disso, uma máquina enorme e estranha começou a funcionar.

Os primeiros reflexos coloridos surgiram numa tela. Alguns homens à paisana estavam sentados diante da mesma. Seus rostos exprimiam a tensão de que se achavam possuídos.

— Acha que isso nos ajudará a descobrir alguma coisa?

— O projetor mental é infalível, inspetor. Infelizmente, sua utilização pode acarretar um certo perigo para o acusado. Mas se falar, ou melhor, pensar, nada de prejudicial poderá acontecer.

— Seus pensamentos são projetados na tela?

— Isso mesmo. Trata-se de um aperfeiçoamento do detetor de mentiras que costumava ser empregado até aqui, mas tem pouca semelhança com o mesmo. Se o homem que se encontra sob a ação deste aparelho não quiser responder a uma pergunta que lhe fizermos, ao menos pensará na mesma. Na tela de imagem aparecerá um quadro que corresponde ao que ele concebe na sua imaginação.

— Acho que já estou compreendendo. Vamos começar.

Fletcher estava com os olhos fechados. Ficou quieto, como se quisesse dormir. Seu peito subia e descia ao ritmo normal da respiração.

Um dos homens inclinou-se sobre ele.

— Está me ouvindo, Fletcher. Pode deixar de responder, se preferir. De qualquer maneira, formularei algumas perguntas. Só fale se desejar. O que pretende fazer nos Estados Unidos?

Os homens olharam para a tela de imagem. Pela primeira vez, um quadro nítido começou a se delinear. Surgiu o rosto de uma mulher jovem e bela, que sorria e acenava. Fletcher parecia gemer. O quadro modificou-se. Camas, enfermeiras, médicos. Depois, a mulher voltou a aparecer. Estava deitada numa cama. Perto dela via-se uma criança.

— É verdade! — murmurou o inspetor. — Só pensa no bebê. É uma idéia fixa. Continue a perguntar, chefe.

O homem designado como chefe acenou com a cabeça.

— Fletcher, o que aconteceu na Lua? Precisa­mos saber o que aconteceu na Lua!

O quadro com a criança desfez-se imediatamente. Figuras em cores vivas percorriam a tela, formavam quadros abstratos e desfaziam-se em manchas irreconhecíveis. Depois formou-se uma espiral que começou a girar rápido, cada vez mais rápido, até transformar-se num disco rodopiante.

— O que sabe a respeito da Stardust?

O disco girou mais depressa. Raios passavam sobre a tela. Fletcher gemeu. Sua respiração era cada vez mais apressada. O suor corria-lhe da testa.

Um dos homens de avental branco adiantou-se e colocou a mão sobre o braço do chefe.

— Devemos fazer uma pausa — recomendou. — O prisioneiro está exausto. O coração não agüenta mais.

— Mal começamos — interveio o inspetor. — Só mais algumas perguntas.

— O senhor está vendo que o homem não sabe nada. As imagens da tela indicam um estado de amnésia total. Está bem! Dar-lhes-ei mais duas tentativas, mas sob sua responsabilidade.

O círculo rodopiante na tela de imagem tinha desaparecido. A mulher jovem voltou a aparecer. Atravessava um jardim florido, levando uma menina pela mão.

— Fletcher, quais são as intenções de Perry Rhodan?

A mulher com a menina desapareceu imediatamente. O circulo voltou a rodopiar. Reflexos coloridos surgiam e desapareciam.

— É inútil! — disse o médico. — O homem não sabe nada.

— Tem de saber! — berrou o inspetor fora de si. — Pois não perdeu a razão.

— Talvez tenha perdido a memória.

— Precisamos descobrir o que aconteceu. Não existe nenhum meio de restituir-lhe a memória?

— Com o tempo talvez conseguiríamos. Teria de ficar em sossego absoluto durante vários meses; se possível devia ser posto em liberdade.

— É impossível! Ele representaria um perigo para o mundo. Lembre-se do tal de Bell, que ontem diminuiu expressivamente a ação da gravidade na cidade. Nada disso! Fletcher não pode ficar fora da nossa vigilância um instante sequer.

O médico suspirou.

— Muito bem. Formule a última pergunta.

O chefe acenou com a cabeça. Sua atitude diferia sensivelmente da conduta imoderada do inspetor. Encostou a boca ao ouvido de Fletcher e perguntou:

— Quem é Crest?

Haggard revelara esse nome durante sua prisão, que só durara alguns minutos. O inspetor ouvira-o, mas não sabia o que significava.

— Está ouvindo Fletcher? Quem é Crest? Fletcher esforçou-se para romper as faixas que o prendiam. De olhos arregalados fitou o homem que o interrogava. No seu rosto via-se o medo, mas, também alguma coisa parecida com uma recordação que despontava do subconsciente. Seus punhos cerraram-se. Os lábios murmuraram palavras inaudíveis.

Na tela de imagem fez-se o caos.

A roda colorida girava cada vez mais depressa, até que suas cores se fundissem num cinza monótono. Depois estourou. As lascas coloridas deslocaram-se para os lados e deslizaram para fora da tela. Depois esta se tornou negra. E assim continuou.

Um dos médicos inclinou-se e examinou os olhos enrijecidos de Fletcher. Segurou-lhe o pulso. Depois ergueu-se e falou com a voz muito séria.

— Está morto!

O inspetor empalideceu.

— Morto? Mas como? Seu coração estava perfeito.

O médico encolheu os ombros.

— Pode ser que o coração estivesse perfeito. Acontece que morreu de um derrame cerebral.

Nenhum dos presentes disse mais nada.

Fletcher estava estendido na mesa, imóvel. Não mais teria a alegria de assistir ao nascimento do seu filho. E não saberia que seria uma menina.

 

O tenente Klein parou diante da barreira invisível.

Suas mãos sentiram o obstáculo, mas seus olhos não o viram. Dois mil metros além dele estava a Stardust, símbolo do orgulho e da esperança frustrada do mundo ocidental. Já agora transformara-se no pavor de toda a humanidade.

Uma figura solitária veio ao seu encontro. Era o major Rhodan, que já conhecia de numerosos filmes. Parou a menos de dois metros. Tinha lápis e papel na mão.

— O que deseja? Quem é o senhor? — estava escrito no papel.

Klein nem se lembrara disso. Se o anteparo energético detinha uma explosão atômica, evidentemente não deixaria passar as ondas sonoras. Revirou os bolsos; acabou encontrando lápis e papel. Pelo menos havia possibilidade de comunicar-se.

— Sou o tenente Klein. Vim por ordem de Mercant e Pounder, para negociar com o senhor.

Perry Rhodan sorriu e escreveu:

— Tire a roupa. Depois disso suspenderei o anteparo por alguns segundos.

— Tirar a roupa?

— Sim. Para que não possa trazer nenhuma arma.

Klein olhou instintivamente para os lados, mas não viu ninguém. É verdade que Li e Kosnow, escondidos atrás das moitas, de outro lado do rio, arregalariam os olhos. Mas isso pouco lhe importava. O importante era atravessar o anteparo, façanha que até então ninguém conseguira realizar. Tirou a roupa e empilhou-a cuidadosamente.

Perry acenou com a cabeça. Levantou o braço direito e fez um sinal em direção à nave. Subitamente, Klein ouviu sua voz.

— Venha depressa. Chegue perto de mim. Sentiu que o ar quente e o frio se misturaram quando a cúpula energética foi levantada. Logo chegou perto de Perry.

No mesmo instante o vento cessou por completo. A cúpula invisível voltara a cobrir a nave. Estava isolada do resto do mundo.

— Quer dizer que Pounder o mandou? — disse Perry, enquanto lhe apertava a mão. — Já imaginava que um dia o velho me mandaria um mensageiro. Como conseguiu atravessar o território inimigo?

— Não foi difícil — confessou Klein. — A vigilância diminuiu muito.

— Será? — disse Perry em tom de dúvida. — Venha, empresto-lhe uma calça.

Foram andando devagar em direção à Stardust.

Klein sentia uma simpatia inexplicável pelo homem que se encontrava ao seu lado. Recebera ordem de matá-lo de qualquer maneira, se não quisesse submeter-se às ordens de Mercant. No momento, nem se podia pensar nisso. Dificilmente conseguiria mata-lo com as mãos desarmadas. E como faria para destruir a Stardust? Sabia da carga explosiva existente a bordo da mesma. Mas ainda havia três homens além de Rhodan. Não seria fácil, mesmo que quisesse.

Será que queria?

Sentaram numa pedra lisa que ficava perto da nave.

— Agora fale com franqueza, tenente Klein. Qual foi a ordem que recebeu? O que mandam dizer? Foi realmente Pounder que o mandou?

O agente sacudiu a cabeça.

— Não foi o próprio Pounder. Pertenço ao Conselho Internacional de Defesa, dirigido por Mercant. Recebi ordem para convencê-lo a abandonar a Stardust e acompanhar-me para Nevada Fields. Caso se recuse, devo matá-lo e destruir a nave.

Perry gritou algumas palavras para Manoli, que apontou na escotilha. O médico trouxe uma calça de uniforme. Klein vestiu-a.

— Este é o Dr. Manoli. O tenente Klein, do Conselho Internacional de Defesa. Fique com Crest, Eric. Diga-lhe que temos visita.

Esperou até que o médico desaparecesse. Depois respondeu às palavras de Klein.

— Então suas ordens são estas? Por que me contou?

— Porque confio em você, Rhodan. E porque nestes últimos dias passei por alguma coisa que me abalou.

— O que foi?

— Daqui a pouco contarei, Rhodan. Antes disso responda a uma pergunta minha.

— As perguntas e as respostas surgem espontaneamente no curso da nossa palestra. Você responde, eu respondo, e o quadro vai se traçando por si. O general Pounder ficou muito decepcionado comigo?

— Ficou. Não compreende os motivos que o fizeram agir assim. Mas procura compreender, enquanto a opinião de Mercant é inabalável. Para ele, você é um traidor.

— Para Pounder, não? E para você? Qual é a sua opinião?

— Você é um traidor aos olhos de Mercant, e talvez aos olhos da maior parte dos homens do Ocidente. Na opinião dessas pessoas, devia ter entregue ao seu país as invenções que descobriu na Lua. Isso seria de justiça até mesmo do ponto de vista econômico, pois você nunca teria chegado à Lua sem os recursos financeiros proporcionados pelos Estados Unidos. No entanto, pode haver motivos que invalidem todas as leis morais. Mas esses motivos teriam de ser muito sérios.

— Os meus motivos são sérios — disse Perry decidido. — Minha consciência e meu senso lógico não me permitem entregar a uma potência terrena os imensos recursos tecnológicos que descobri na Lua. Qual seria a conseqüência disso, tenente Klein? Pense bem antes de responder.

— Não há muito que pensar. Antes que os Estados Unidos, acho que é o país de que teríamos de cogitar em primeiro lugar, tivessem tempo de experimentar as novas armas, o medo e o pânico fariam com que os outros países disparassem seus foguetes atômicos. A guerra e o extermínio total dela decorrente seriam inevitáveis. Já compreendi onde pretende chegar, major Rhodan. Será que os outros também compreenderão?

— Terão de compreender! — retrucou Perry em tom áspero. Seus olhos exprimiam uma decisão inabalável. — O que está em jogo é muito mais que a manutenção da paz. Como sabe, encontramos uma tecnologia estranha na Lua. O que o senhor não sabe é que os criadores dessa tecnologia, os arcônidas, ainda vivem. Um dos seus cientistas encontra-se a bordo da Stardust.

Klein precisou de um minuto inteiro para recuperar-se do espanto.

— Não estão extintos? Ainda vivem? E podem fabricar maior quantidade dessas armas, se desejarem?

— Não apenas armas, mas também coisas úteis: fontes de energia inesgotáveis em forma de geradores portáteis, veículos movidos com as mesmas, navios, aeronaves de transporte, espaçonaves. Poderia prosseguir indefinidamente na enumeração. Provavelmente agora já compreende por que me vi obrigado a pousar aqui, e por que tenho de repelir toda e qualquer pessoa que queira chegar aqui. Você é a primeira exceção.

— Por quê?

— Porque vem da parte de Mercant e de Pounder. Prezo bastante esses homens, e gostaria que compreendessem os meus motivos. Tenente Klein, você só estará em condições de explicar os meus motivos aos outros se chegar a compreendê-los por si. Não os explicarei.

Klein sorriu.

— Compreendo. Até compreendo muito bem. E acredito que sei onde o senhor pretende chegar. Ali junto ao rio, do outro lado do anteparo energético, dois colegas estão esperando por mim. Não são americanos ou europeus ocidentais. Um é agente da Federação Asiática e outro do bloco oriental. Unimo-nos para solucionar um problema comum. Há poucos dias a irrupção da guerra parecia iminente. Hoje os inimigos mortais de ontem estão colaborando entre si, para combater um poder mais forte.

Perry acenou com a cabeça e retribuiu o sorriso.

— Muito bem. Continue. Parece que já nos entendemos.

— Não tenho mais nada a dizer. Absolutamente nada. Apenas gostaria que você confirmasse que este acontecimento relativamente insignificante constitui o início da grande transformação que tem em mente.

— É isso mesmo. Posso representar uma ameaça séria para o mundo, mas não para a paz duvidosa que reina no mesmo. O medo de mim e do poder dos arcônidas unirá os povos do mundo. Uma vez realizada essa união, nada impedirá a entrega da tecnologia galáctica a um governo mundial estável. Tenente Klein, peço-lhe que relate isto a Mercant e ao general Pounder. Agora gostaria de apresentar-lhe meu hóspede, o arcônida Crest. Peço-lhe que me acompanhe ao interior da nave.

Duas horas depois, quando o tenente Klein voltou a encontrar-se com os dois colegas que o esperavam à margem do rio, nada poderia modificar a decisão que tomara. Era o primeiro homem disposto a lutar pela idéia de Perry Rhodan, idéia essa que constituiria a base moral do futuro Império Estelar.

— Então? — perguntou Kosnow e levantou-se.

— O que aconteceu? — indagou Li.

Klein ficou andando entre os dois. À sua esquerda o russo avançava a passos vigorosos, levantando pequenas nuvens de pó com as botas. À sua direita, Li, o chinês, andava a passos saltitantes. Nos seus olhos lia-se a desconfiança.

— Conte logo, tenente. Conseguiu alguma coisa? — Klein confirmou com um aceno de cabeça.

— Consegui praticamente tudo. Minha missão está finda. E acredito que a de vocês também esteja. Explicarei por quê. Li, acho que somos bons companheiros, não somos? Compreendemo-nos muito bem. Kosnow, você acha que seríamos capazes de matar-nos uns aos outros só por termos idéias diferentes sobre determinados assuntos? Estão sacudindo a cabeça. Tanto melhor! Vocês sabem dizer o que aconteceria se essa nave espacial deixasse de existir juntamente com as invenções fabulosas trazidas da Lua? Ou se caísse nas mãos de qualquer das grandes potências?

Nenhum dos dois respondeu.

— Pois eu lhes digo. No mesmo instante apontaríamos as armas uns para os outros. Voltaríamos a ser inimigos ferrenhos. E isso apenas porque a ameaça maior deixou de existir. Isso que aconteceria conosco também aconteceria aos governos das grandes potências. O fim da Stardust seria o fim da paz. Compreenderam? Enquanto a terceira potência, a potência dos arcônidas, estiver por aqui, o nosso mundo continuará a existir. A nós três foi dada a chance de conservar a paz mundial. Para isso teremos de retornar aos nossos países e comunicar que é impossível alcançar a Stardust. Dessa forma continuaremos amigos, e as potências que representamos também continuarão.

Li esboçou um sorriso imperscrutável.

— Há seis dias já me ocorreu uma idéia semelhante, mas não tive coragem de exprimi-la. Hoje digo que concordo com o que você acaba de dizer.

Klein e o chinês lançaram um olhar de expectativa para o russo. Kosnow ficou parado. Retribuiu o olhar dos companheiros.

— Acredito que no mar Negro a extração do sal será mais rendosa que aqui. Mudaremos de acampamento.

Os três riram. Depois apertaram-se as mãos.

A cidade de Hong Kong parecia um acampamento militar quando o iate Zéfiro entrou no porto.

Bell desligara o neutralizador, mas ficou com ele ao alcance da mão; queria estar prevenido no caso de um ataque. Haggard instruíra a.tripulação no sentido “de atracar”. Os dois homens estavam de pé na proa!

— A situação parece um pouco crítica — murmurou o médico num tom de ceticismo. — Como poderemos desembarcar sem que nos peguem? O mundo inteiro já sabe que estamos aqui.

— E daí? — Bell mostrou-se espantado. Estava brincando com o psico-irradiador. — Com este aparelho posso fazer a cidade inteira mergulhar num sono bem profundo. Poderei transmitir uma ordem a qualquer habitante da cidade, inclusive aos soldados, e a ordem será cumprida à risca. Não vejo nenhum motivo para preocupações. Ainda mais que aqui não é possível utilizar armas atômicas táticas, que são as únicas que poderiam representar um perigo para nós.

— Como vai fazer para descarregar o meu laboratório? Como pretende transportar as peças sobressalentes até o deserto de Gobi?

— Com o tempo encontramos um meio — tranquilizou-o Bell. — Faremos com que o administrador do porto venha até aqui assim que atracarmos. Por que resolveu trazer seu laboratório gigante? Ainda não tive tempo de lhe fazer esta pergunta.

— Laboratório gigante? Trata-se de um pequeno laboratório transportável, dotado do equipamento mais moderno, como instrumentos óticos, aparelhos de análise de metabolismo e amostras de medicamentos de toda espécie. Não se esqueça de que teremos de lidar com um ser biologicamente diferente, que provavelmente reagirá de forma diferente de nós. Também existe um aparelho de raios X, e...

— E eu que pensava que tudo ficaria resolvido com uma seringa e algumas ampolas de soro — disse Bell com um suspiro.

— É engano, meu caro Bell. Mas olhe os tanques parados ali no cais. Estão esperando a oportunidade de afundar o nosso iate.

— Que nada! Se quisessem, já teriam tentado. Sabem muito bem que, se o fizerem, eu os mando para os ares, no sentido literal da palavra. Muito bem. Estamos atracados. E agora vou usar minha varinha mágica.

Dirigiu o irradiador com meia intensidade sobre o edifício baixo que ficava junto ao cais e pensou intensamente:

“O administrador do porto deve comparecer imediatamente ao pier número sete. Administrador do porto no pier número sete. Urgente. Suba a bordo do iate Zéfiro.”

Provavelmente Bell estouraria de rir, se visse o que fez com sua ordem mental. No entanto, não pôde presenciar o espetáculo. No edifício da administração do porto trabalhavam cerca de duzentas pessoas. De repente todas elas se sentiram na obrigação de avisar o administrador de que devia comparecer imediatamente ao píer número sete, onde o iate Zéfiro esperava por ele. O administrador que, seguindo a ordem interior, já se pusera a caminho, teve de conter todo o funcionalismo, que se interpunha no caminho, para dar o aviso.

— Já sei, já sei — disse em voz alta, para que todos ouvissem. Correu para o cais, onde teve de abrir caminho entre uma multidão de trabalhadores do porto, que o assediavam para avisá-lo de que devia comparecer imediatamente ao píer número sete, onde um iate...

Chegou esbaforido ao local em que se encontrava o iate. No caminho o comandante das forças blindadas reunira-se a ele em silêncio. Subiram juntos no estreito passadiço.

Bell deixara ligado o psico-irradiador, colocando-o num lugar de onde alcançava o píer e o convés. Não podia ser visto, mas produzia seus efeitos.

Haggard não conseguiu disfarçar o nervosismo. Bell, todavia, recebeu os visitantes sem o menor constrangimento.

— Fico muito satisfeito com a sua visita — disse em tom convicto. — E agradeço pela parada formidável que fizeram realizar em minha ordem. Não havia necessidade disso. Senhor administrador, dentro de duas horas preciso de vinte trabalhadores para descarregar o iate. Quer tomar as providências necessárias? Obrigado. Pode retirar-se.

O administrador fez uma ligeira mesura e retirou-se. O oficial das forças blindadas ficou parado. Parecia estar esperando alguma coisa.

— Quem está comandando as tropas mobilizadas em Hong Kong? — perguntou Bell.

— O marechal Roon.

— Roon? Não é aquele oficial que subiu ao ar com tanta pompa quando Perry ligou o neutralizador? É claro que é ele! Este helicóptero é dele. Podia aproveitar a oportunidade para vir buscá-lo.

— Perfeitamente. Avisarei imediatamente o marechal Roon.

Dez minutos depois um grupo de oficiais de patente elevada passou pelo píer estreito, vindo do cais. Viam-se luzir as faixas douradas. Devia ser o marechal Roon.

O psico-irradiador estava escondido por baixo de uma amarra enrolada. Sua ação atingia todo o grupo, mas ninguém perceberia seus efeitos enquanto alguém não dirigisse a palavra a Bell.

Depois de confabular ligeiramente, Roon subiu a bordo acompanhado de dois oficiais. Já se esquecera do que o tinha trazido até aqui. Só se guiava pela ordem de que sua mente tinha tomado consciência.

Bell projetou o peito para a frente, o que conferiu linhas mais arredondadas ao corpo. Os cabelos cortados rente estavam de pé. Colocou a mão na boina.

— É o marechal Roon? Fico satisfeito em ver que compareceu tão depressa. Senhores oficiais, dou-lhes as boas-vindas a bordo do Zéfiro. Marechal, permite que lhe pergunte se apreciou aquela viagem aérea? Deve estar lembrado. A Stardust, o deserto de Gobi. Um certo major Butaan também se encontrava presente.

— É claro que me lembro. Foi um fenômeno estranho. Uma invenção dos demônios brancos. Além disso, roubaram meu helicóptero. Se não me engano o senhor é o capitão Reginald Bell. Devo intimá-lo para que se renda.

— Mas, marechal, logo nós que somos tão amigos; só pode estar brincando. Eu lhe devolvo o helicóptero e damos o incidente por encerrado. Está de acordo?

— De acordo! — respondeu Roon sem a menor hesitação.

— Além disso, o senhor vai retirar suas tropas de Hong Kong, e expedirá uma ordem ao exército. A Stardust não mais será atacada. O senhor ainda assegurará livre transito e dispensa toda proteção ao comboio de transporte dirigido por Reginald Bell. Entendido?

— Entendido.

— Muito bem. Providencie para que dentro de uma hora estejam aqui três caminhões. Um deles será ocupado pelo senhor juntamente com dez oficiais de alta patente. Levem cobertores ou sacos de dormir. Os outros deverão estar vazios pois transportarão a carga. Certo?

O marechal Roon prestou continência para Bell.

— As ordens serão executadas. Mais alguma coisa?

— Sim, marechal. Desautorize qualquer ordem que tenham em vista um ataque contra a Stardust ou seus tripulantes. Expeça as respectivas instruções aos seus escalões inferiores.

Roon ficou em posição de sentido. Deu meia-volta e saiu do iate. Chegando ao píer, os outros oficiais começaram a falar-lhe com insistência. Roon, porém, berrou com eles de tal forma que encolheram a cabeça e ficaram quietos. Afinal, o marechal era ele; devia saber o que estava fazendo.

E Roon sabia.

Finalmente, Haggard conseguiu fechar a boca.

— É formidável! — principiou, mas Bell interrompeu-o.

— O senhor ficará muito mais admirado quando falar com Crest. Eu lhe disse que conseguiríamos.

Ficaram aguardando com toda a calma. Viram os tanques se reunirem perto do cais e começarem a se afastar em direção a leste da cidade. As tropas de infantaria começaram a se retirar, também. Apenas o pessoal da polícia hesitou e, por isso, Bell não teve contemplação. Pegou o psico-irradiador e ordenou:

— Atenção todos os membros da polícia, inclusive serviço secreto, deitem-se todos!

Ficou espantado ao ver quantas pessoas se deitaram. Até mesmo respeitáveis senhores de idade que pareciam passear para espantar o tédio atiraram-se desassombradamente na lama da rua. Trabalhadores aparentemente inofensivos e vários pescadores fizeram a mesma coisa. Evidentemente também foram acompanhados por policiais uniformizados.

— Arrastar-se! — ordenou Bell numa alegria incontida. Jurou que nunca mais largaria o psico-irradiador. — Arrastar-se até o alojamento.

Bandos ruidosos de crianças acompanhavam os temíveis policiais que se arrastavam colados ao chão. Ninguém sabia explicar o fato, mas todos achavam que era perfeitamente natural. É que todos tinham compreendido a ordem, embora não soubessem de onde tinha vindo. Mas quem não pertencesse à polícia não era atingido por ela.

A zona portuária ficou literalmente deserta.

Depois de algum tempo, chegaram cerca de vinte trabalhadores e os três caminhões. Dois oficiais estavam sentados na carroçaria do último deles, numa atitude de expectativa.

— Fiquem quietos aguardando novas ordens. Os senhores formarão a escolta do comboio. Rechaçarão qualquer ataque com suas pistolas. É só.

O transbordo da carga não levou muito tempo. Dali a uma hora estava tudo pronto. O iate suspendeu âncoras e foi deslizando mar afora. Bell desejou-lhe um feliz regresso.

Ele mesmo tomou o lugar na cabine do primeiro caminhão. Haggard foi no segundo, que transportava seu precioso laboratório. O comboio pôs-se em movimento e saiu sacolejando pela rua esburacada. Só na periferia da cidade as condições da pista de rolamento começaram a melhorar; aumentaram a velocidade. Não se via nenhum soldado, nenhum policial.

Em Cantão, atingiram a larga e bem asfaltada rodovia que, numa extensão de dois mil quilômetros, ligava aquela cidade a Lan-Shou. Dali em diante, teriam que rumar para o norte, passando pelo vale do Hwang-Ho e pela cordilheira de Alaschan. Chegando à altura do meridiano 38, penetrariam no deserto, seguindo em direção ao oeste. Se tudo corresse bem, a viagem demoraria cerca de três dias.

 

De Pequim para Washington:

Diversas ocorrências parecem provar que, contrariamente à opinião mais recente, segundo a qual as informações do major Rhodan poderiam ser verdadeiras, a Stardust na verdade é uma base ocidental. Segundo os nossos cientistas, é perfeitamente possível que a eliminação gradativa da gravidade seja uma invenção terrena. Por isso voltamos a exigir que a base situada no deserto de Gobi seja evacuada imediatamente.

De Washington para Pequim:

Qual é a explicação que seus cientistas fornecem para o novo vulcão no Saara, que ainda continua ativo? Asseveramos que nada temos a ver com a Stardust. Estamos tão interessados na eliminação dessa ameaça quanto os senhores.

De Pequim para Washington:

A cratera pode ser o resultado de uma ação bem planejada que nada tem a ver com o raio energético. Nossa opinião de que a Stardust é uma base americana foi reforçada pelo fato de que nossos agentes se viram impedidos pelos seus de se aproximarem da nave espacial. Por outro lado, seus agentes têm livre acesso à Stardust. Reiteramos nossa advertência.

De Washington para Pequim:

Não temos conhecimento de que qualquer dos nossos agentes tenha entrado em contato com o major Rhodan. Deve haver algum engano. O incidente será esclarecido.

De Moscou para Washington:

Exigimos retirada imediata de sua base no deserto de Gobi.

De Moscou para Pequim:

Exigimos remoção imediata base americana do território de seu país.

O ataque verificou-se três dias após a partida de Hong Kong. O comboio tinha passado pela cordilheira de Alaschan e estava se deslocando em direção ao oeste. A antiga estrada de caravanas estava em péssimo estado; não permitia sequer uma velocidade de dez quilômetros horários. Era necessário . contornar buracos enormes. Sulcos profundos abertos pelas rodas dos veículos ou pelas águas das chuvas obrigavam a manobras extremamente difíceis.

Felizmente, naquele momento, estavam atravessando uma depressão do terreno. Se não fosse assim, a primeira rajada teria atingido o alvo. Nessas condições, porém, as pesadas granadas passaram zunindo por cima de suas cabeças e foram detonar na vertente norte da cadeia de Richthofen.

Bell mandou que o comboio parasse imediata­mente. Fez com que os veículos encostassem do lado direito da estrada, onde o precipício íngreme os protegia contra o impacto direto das granadas disparadas do norte. Pegou o neutralizador de gravidade e foi subindo. Chegado ao topo da colina, descansou a caixinha e olhou em direção ao deserto.

“Diabo! Esses camaradas já deviam ter aprendi­do”, pensou Bell. As tropas encontravam-se mais de dez quilômetros de distância. Haviam montado uma verdadeira posição de combate. Bell pediu a um dos oficiais que lhe desse um binóculo.

Havia, pelo menos, oito canhões de grosso calibre. Mais à direita, uma bateria de peças leves. Em meio a isso, tinham sido montados ninhos de metralhadoras.

O neutralizador de gravidade não alcançaria o adversário.

Outra rajada passou por cima de sua cabeça, numa altura menor. Os impactos estavam mais próximos.

— Haggard! No caminhão da frente há um transmissor. Pegue um dos oficiais e procure entrar em conta to com a Stardust. Faixa de 37,3 metros. Avise-me assim que responderem. Mas ande depressa, senão essa gente acaba acertando a pontaria. Não posso fazer nada para impedi-lo.

Entre os oficiais, Haggard encontrou um telegrafista. Assim mesmo, dez intermináveis minutos passaram-se até que chegasse a resposta da Stardust. Bell escorregou encosta abaixo e pediu a Haggard que subisse. Tinham que estar prevenidos contra um ataque de surpresa da infantaria.

— Perry, é você?

— Bell, meu velho! Você ainda está vivo? Onde está metido? Deu tudo certo?

— Até agora sim. Encontro-me a menos de cem quilômetros da Stardust. Estou com três caminhões cheios de peças para Crest. O doutor Haggard, descobridor do soro anti-leucêmico, está comigo. Acontece que os chineses estão desfechando um ataque de artilharia contra nós.

—- E daí? Até agora você conseguiu se defender.

— É, mas não se esqueça de que os outros também aprendem. Já sabem que não devem aproximar-se a menos de dez quilômetros. Também deixaram de empregar mísseis; sabem que posso desviá-los. Todavia, nem mesmo eu estou livre do impacto casual de uma granada, por mais que procure desviá-la. Você tem que me ajudar e depressa.

Fez uma rápida pausa.

— Um instante. Ei, motorista! O mapa.

Dentro de poucos minutos, Perry soube a localização exata do comboio e das posições da artilharia inimiga. Prometeu pedir auxílio imediato a Crest. Bell ficou com o receptor ligado.

Os impactos das granadas foram se aproximando de forma assustadora. Alguns projéteis menores passaram sibilando bem por cima dos caminhões. Um deles chegou a detonar na colina que limitava a depressão ao sul. Embora tivesse sido por puro acaso, era conveniente sair dali antes que o pior acontecesse.

Perry voltou a falar.

— Crest pensou em pedir a Thora que lançasse o raio energético, mas a Lua ainda se encontra abaixo do horizonte. É impossível. Daqui também não podemos fazer nada. Mas existe uma possibilidade. Vendeu todos os geradores?

— Não, ainda fiquei com dois.

— Então agradeça aos céus, meu velho. Você prefere utilizar o psico-irradiador ou o neutralizador?

— Mas a distância é muito...

— Não fique nervoso, pois isso faz mal à saúde.

Então, qual dos dois prefere? Aliás, tendo dois geradores também pode usar ambos. Para encurtar a conversa: a reserva de energia do psico-irradiador e do neutralizador é muito reduzida para atingir uma distância superior à prevista. Se forem ligados ao gerador, seu alcance decuplicará. É verdade que só por uns poucos minutos. É necessário intercalar uma pausa, para evitar a sobrecarga do aparelho. Entendido?

— E como faço a ligação?

— Basta um cabo que ligue o neutralizador ao gerador. Na parte posterior há uma tampa. Retire-a. Por baixo dela encontrará uma tomada. Basta enfiar os pinos do gerador e...

— Está bem, mestre e senhor. Muito obrigado. Que pena que você não poderá assistir ao que vai acontecer daqui a pouco.

— Não se preocupe. Assistirei. Para isso, até me arrisco a desligar o anteparo energético. Acho que você chegará aqui antes do anoitecer.

Bell já não estava escutando. Agora que sabia o que fazer, não quis perder um único minuto. Os oficiais e motoristas receberam ordem para ficar em silêncio. Haggard segurou o neutralizador com o gerador ligado ao mesmo. Bell ficou com o psico-irradiador cuja potência também fora aumentada.

Rhodan, que estava sentado diante da tela em companhia de Manoli e Crest, certamente se divertiu muito com o espetáculo que se seguiu. Contemplaram a cena de cima. A microssonda estava flutuando três mil metros acima das posições inimigas.

No início, nada aconteceu.

Mas quando os canhões pesados dispararam, os espectadores viram-se diante de um quadro grotesco. Diminuída a ação da gravidade, as granadas saíram em linha reta, até que se perdessem junto às montanhas distantes. Os canhões, submetidos a uma força de recuo equivalente, foram deslizando devagar em sentido oposto, subindo aos poucos. A queda gradual que se seguiu revelou que Bell devia ter mantido um décimo da gravitação comum, para que retornassem ao solo são e salvos, sem correrem o risco de morrer em virtude de uma queda mais violenta. Crest registrou o fato com um gesto de aprovação.

Os canhões menores não tiveram melhor sorte.

Mas o melhor ainda estava por vir. Como se estivessem obedecendo a um comando único, todos os soldados — os artilheiros, os oficiais, os motoristas e as guarnições das metralhadoras — viraram-se subitamente e começaram a correr. Em direção ao norte. Realizavam saltos enormes, como se fossem pulgas gigantescas. Só atingiam o solo centenas de metros mais adiante, e logo voltavam a saltar. Os saltos foram se tornando mais curtos. Certamente Bell estava desligando o neutralizador aos poucos. Finalmente os coitados estavam apenas correndo. Corriam e corriam, como se fugissem do demônio. Provavelmente teriam continuado a correr, mesmo que Bell não lhes tivesse dado ordem para se refrescarem com um banho no lago salgado mais próximo do deserto de Ning-Hsia.

Perry girou um botão do receptor.

A sonda desceu. A imagem de Bell apareceu na tela, grandemente ampliada. Perto dele via-se um tipo atlético de cabelos castanho-escuros. Ambos riam tanto que as lágrimas lhes desciam pela face. Desceram a encosta e entraram nos seus veículos.

No momento em que deram a partida Bell ainda estava rindo.

Perry desligou. Olhou para Crest. Nos olhos do arcônida via-se um sorriso delicado. Acenou lentamente com a cabeça.

— Admiro você e a sua raça — disse. — Mas talvez esteja enganado; pode ser que você seja uma exceção. Seu amigo poderia ter matado os inimigos. Por que não o fez?

— Porque está em situação de superioridade de armas.

Crest respondeu com novo aceno de cabeça.

— Era o que eu imaginava. E sei que não há ninguém melhor que vocês para receber o nosso legado. Você conseguirá, Perry. Alcançará o seu objetivo.

— Obrigado — respondeu Perry em tom caloroso.

Quatro horas depois dois caminhões entraram por baixo do anteparo energético que tinha sido levantado. O terceiro voltou para o leste com três motoristas e dez oficiais.

Receberam ordens estritas para apresentar-se ao Comando Geral em Pequim, e informar o mesmo de que a terceira potência desejava estabelecer relações diplomáticas com a Federação Asiática.

De Pequim para Washington:

O novo incidente prova que seu governo não pretende atender às nossas exigências. Por isso decidimos romper as relações diplomáticas amanhã ao meio-dia, hora local, a não ser que até então a situação tenha sido esclarecida. A Federação Asiática dispõe de meios para repelir qualquer ataque.

De Pequim para Moscou:

Aguardamos um pronunciamento claro sobre sua posição quanto à presença de uma base americana no deserto de Gobi. A resposta deverá estar aqui amanhã ás dez horas da manhã.

De Pequim para a Stardust:

Consideramos ridícula sua proposta de estabelecer relações diplomáticas com uma nave espacial. Intimamo-los pela última vez a se renderem através de mensagem telegráfica. Saiam da nave sem armas e desliguem o anteparo energético. Caso sua resposta seja negativa, as relações diplomáticas com os países do bloco ocidental serão rompidas amanhã ao meio-dia.

De Washington para Pequim:

Voltamos a assegurar que não temos qualquer explicação para a situação atual. Propomos a realização de uma conferência dos dirigentes dos países interessados...

Da Stardust para Pequim:

Reiteramos nossa oferta. Comunicamos ainda que utilizaremos os meios de que dispomos para evitar qualquer conflito armado entre as potências.

De Moscou para Pequim:

Acusamos o recebimento da sua nota.

A lua minguante seguia o sol, que já descera atrás da linha do horizonte. A posição favorável permitia uma comunicação visual direta com Thora.

Apesar do seu vigoroso autodomínio, Perry não conseguiu reprimir a sensação estranha que se apossou dele ao ver aquela mulher, que era de uma beleza extraordinária. Seu cabelo claro, quase branco, contrastava de forma agradável com os olhos vermelho-dourados, que o olharam com uma expressão fria e realista.

Num tom arrogante que fez com que Perry ficasse rubro de raiva disse:

— Por que chamou?

— Crest quer falar-lhe — respondeu Perry em tom gélido.

— Pois então vá buscá-lo.

Perry não respondeu. Lançou-lhe mais um olhar e retirou-se. Crest ocupou o lugar diante da tela de imagem com o rosto indiferente. Começou a falar numa língua desconhecida, altamente melódica. Sua voz era insistente. Às vezes parecia ordenar, outras vezes pedir. Vez por outra Thora dava uma resposta ou formulava alguma pergunta. Finalmente disse alguma coisa e acenou com a cabeça. Depois disso a imagem desapareceu. A tela de imagem apagou-se.

Crest ficou sentado mais cinco segundos diante do receptor, imóvel. Depois levantou-se. Suspirou.

— Por enquanto fará o que mandei. Mas estou prevendo que mais tarde teremos dificuldades com ela. Fica aferrada às leis antigas; não compreende a necessidade de uma modificação. Fará tudo para impedir uma aproximação entre sua raça e a minha.

— Quem sabe se devo conversar com ela por alguns minutos, de psico-irradiador na mão — sugeriu Bell em tom decidido. — Depois disso ficará tão comportada como os oficiais do exército asiático.

Crest destruiu as esperanças de Bell.

— Os seres da nossa raça dispõem de uma proteção contra os efeitos do irradiador. Mas um dia terá de reconhecer onde está o futuro da sua raça. De qualquer maneira está orientada a respeito da nossa situação. Recomendou-me que embarcasse numa pequena nave espacial que seria enviada por ela. Depois disso, dirigiria o raio energético para todos os cantos da Terra. Consegui convencê-la de que não alcançaria nada com isso. Deixei claro que minha cura é o que interessa em primeiro lugar. E não se trata apenas de minha cura, pois suponho que toda a nossa raça sofra de leucemia em virtude da degenerescência. Este motivo já basta para obrigar-me a continuar aqui. Amanhã, Thora vigiará a situação a bordo de uma nave auxiliar. Circulará em torno da Terra a uma órbita constante, a mil quilômetros de altura. Um campo de nêutrons constantemente renovado impedirá toda e qualquer explosão atômica. Serão criados campos magnéticos que desviarão os foguetes do seu curso, fazendo-os caírem no mar. Um raio energético de intensidade reduzida obrigará as aeronaves que se lançarem a um ataque a pousarem no solo. O abastecimento de energia será suspenso e as comunicações radiofônicas serão interrompidas por linhas de sangria, que subtrairão energia. Não se preocupem, cavalheiros: não haverá guerra, mesmo que os três blocos a desejem. Amanhã entraremos em negociações com os governos, e eles se verão obrigados a nos reconhecer.

— E até lá? — perguntou Perry.

— Até lá só nos resta esperar.

Eric Manoli colocou a mão sobre o ombro de Crest.

— Crest, faça o favor de voltar para a cama. O senhor deve evitar qualquer esforço. Amanhã, quando tudo estiver normalizado, o doutor Haggard o examinará. Estou convencido de que conseguirá curá-lo.

Crest esboçou um sorriso de gratidão.

— Se ele não conseguir, ninguém mais conseguirá.

Seguiram-no com os olhos. Bell acompanhou-o e ajudou-o a arrumar as cobertas sobre a cama.

Haggard lançou um olhar indagador para Manoli.

— Já pôde apurar alguma coisa? Teve oportunidade de examiná-lo e firmar um diagnóstico?

— Vamos a minha cabine. Lá poderei relatar com mais calma as observações até aqui. Acho que se unirmos nossos esforços, conseguiremos o seu restabelecimento. Ele não corre perigo imediato.

Perry ficou só na sala de comando.

Olhou para o céu noturno que se erguia acima da cúpula transparente da nave. As estrelas cintilavam com uma claridade raramente observada. A lua minguante descia para o horizonte. Dentro de uma ou duas horas desapareceria.

Amanhã, seria o dia da decisão final. Se nada conseguia convencer o mundo do poder dos arcônidas, os acontecimentos desse dia o fariam. Não há nada mais difícil que evitar uma guerra decidida por uma humanidade desesperada.

Ficou sentado, até que a lua desapareceu detrás do horizonte.

Subitamente, sentiu frio. Teve impressão de que juntamente com a lua desaparecera um lindo rosto de mulher, com os cabelos claros e olhos vermelho-dourados...

 

O mecanismo gigantesco entrou em funcionamento.

Durante anos ficara à espera deste momento. Milhares de exercícios haviam demonstrado seu impecável funcionamento, Bastava comprimir um botão, para desencadear a reação em cadeia que não poderia ser mais detida.

Pequim: meio-dia...

O presidente da Federação Asiática fez um sinal de cabeça para o marechal Lao Lin-to, que se encontrava no comando supremo das Forças Armadas, em substituição ao marechal Roon, recolhido à prisão.

Lin pegou o telefone pelo qual se comunicava diretamente com o comando das posições de combate.

— É a constelação das Plêiades? As esquadrilhas decolam imediatamente. Grau de mobilização número um. Bases de foguetes ocidentais: ordem de fogo; alcance sete. Esquadra: zarpar direção leste. Daqui a dez minutos, tudo deverá estar terminado. Recolher todas as tropas terrestres aos abrigos antiatômicos. Aguardar contra-ataque. Fim da transmissão.

Em algum lugar uma mão aproximou-se de um botão vermelho. Hesitou por uma fração de segundo. Depois, o polegar comprimiu profundamente o botão.

Um continente estremeceu.

Os torpedos prateados ocultos nas profundezas subiram para o céu azul, pareciam ir em busca do sol, depois dirigiram-se para o leste ou para o oeste. Eram centenas, milhares, dezenas de milhares...

Nos aeroportos militares reinava uma atividade febril. Uma esquadrilha após a outra erguia-se pesadamente com sua carga mortífera, entrava em formação e subia para a estratosfera, seguindo o curso preestabelecido.

A força naval seguiu com menos rapidez. Desferiria o golpe de misericórdia num mundo destruído. Talvez também pretendesse escapar ao extermínio que se abateria implacavelmente sobre os portos.

Tudo ocorreu em conformidade com o plano.

Só houve um ato que foi praticado independentemente de qualquer ordem, isso numa barraca montada em algum dos aeroportos militares.

Um agente do ocidente dedilhou febrilmente a tecla do telégrafo. Em menos de um vigésimo de segundo os sinais deram a volta ao mundo.

Exatamente um minuto e dezoito segundos depois que o polegar amarelo comprimiu o botão vermelho, a mesma operação repetiu-se em Washington; uma máquina idêntica entrou em funcionamento. Não havia nada que a distinguisse daquela montada no Extremo Oriente. A única diferença foi que, aqui, os foguetes foram disparados para o céu noturno, deixando caudas luminosas atrás de si e de­saparecendo por entre as estrelas.

Talvez fossem um pouco mais rápidos que os da Federação Asiática. Nesse caso a morte não chegaria com uma diferença de setenta e oito segundos. Golpearia simultaneamente de ambos os lados.

Apenas os projéteis disparados pelos submarinos atômicos estacionados em todos os mares do mundo seriam mais rápidos, pois teriam menor distância a percorrer.

Quanto tempo ainda restaria? Dez minutos, talvez quinze. Depois chegaria o fim do mundo.

Moscou esperou exatamente dois minutos.

Depois, também aqui alguém comprimiu o botão vermelho. Os mísseis precipitaram-se para o céu matutino e entraram no seu rumo. Contavam-se por milhares. E em certo momento a diferença das ações empreendidas nas outras partes do mundo tornou-se patente.

Os mísseis do bloco oriental foram todos disparados numa só direção — ou melhor, para um único alvo.

Se alguém prolongasse as linhas das respectivas trajetórias, chegaria à conclusão de que todas elas convergiam num ponto. E esse ponto correspondia ao lugar em que a Stardust se abrigava sob o anteparo energético, isolada do mundo e da destruição que se aproximava.

O sol brilhava em Moscou.

Pelas indicações dos aparelhos de radar, instalados nas fronteiras do gigantesco país, os mísseis da Federação Asiática estavam passando pelas camadas da atmosfera, ainda longe do destino. Nenhum deles desceria no território do bloco oriental.

Os primeiros mísseis do bloco ocidental demonstravam tendência semelhante.

O marechal Petronsky acenou com a cabeça em direção ao primeiro-ministro, numa expressão de triunfo indissimulado.

— Conseguimos. Daqui a meia hora a Federação Asiática não existirá mais; o bloco ocidental e a América também terão deixado de existir. E essa maldita base no deserto de Gobi terá sido varrida da face da Terra. Só restará uma única potência: a nossa.

— É a arte da sobrevivência, caro marechal, apenas a arte da sobrevivência. Ela só está ao alcance de quem se mantém neutro.

O silêncio da expectativa desceu sobre os dois homens. Não só sobre eles. Sobre toda a Terra. Parecia que os últimos minutos que separavam a humanidade do fim não queriam passar. Arrastaram-se interminavelmente, transformaram-se numa eternidade. A humanidade conteve a respiração.

Os primeiros foguetes Polaris penetraram nas camadas mais profundas da atmosfera. Aproximaram-se da área em que se situava o alvo. Sua trajetória assumiu a forma de uma curva balística, tornou-se cada vez mais íngreme — e então desceram verticalmente, penetraram profundamente na terra e tudo que deixaram foram crateras pequenas, verdadeiramente ridículas.

Nenhuma detonação. Nenhuma explosão atômica. Nenhum cogumelo de gases.

A vaga dos gigantescos mísseis intercontinentais acabou de cruzar o Pacífico. O poder explosivo de cada um deles era tão grande que seria capaz de destruir toda vida num raio de cem quilômetros. Por isso, suas trajetórias foram se dispersando durante o vôo. Chegaram ao continente americano como se fossem uma linha bastante tênue de soldados de infantaria. Não detonaram nos pontos previstos, e seu próprio impulso tangeu-os terra adentro até que caíssem nas montanhas, nas matas ou nas estepes. Um único projétil da segunda série caiu em pleno centro de Los Angeles, porque o mecanismo propulsor deixou de funcionar antes do tempo. Perfurou um edifício de oito pavimentos e ficou enterrado nos alicerces.

Com os mísseis americanos ocorreu a mesma coisa. Não houve um único entre eles que detonasse ou caísse em território densamente povoado. Conforme se constatou mais tarde, só causaram pequenos danos materiais.

Nos oceanos, desenrolou-se um quadro grotesco.

Uma esquadrilha de aviões de bombardeio dos Estados Unidos avistaram a esquadra da Federação Asiática a mais de duzentos quilômetros de distância, junto ao litoral da Ásia. Os porta-aviões e os cruzadores pesados, os destróieres e os contratorpedeiros, até mesmo os submarinos estavam imóveis na superfície calma do mar.

O coronel-aviador Bryan Neldiss deu ordem de ataque. Não sabia explicar o procedimento do inimigo, que surgira tão inesperadamente, mas não quis deixar que uma presa tão gorda lhe escapasse.

Os aparelhos de rádio permaneceram mudos. O coronel não obteve confirmação da ordem que ele expedira e sem que ele movesse um dedo, o avião começou a descer. A esquadrilha seguiu-o e os aparelhos pousaram n’água, bem perto dos navios inimigos.

Todo mundo apressou-se em deixar os aviões que afundavam rapidamente. As tripulações foram recolhidas por barcos infláveis.

O Almirante Sen Toa não expediu a ordem de fogo que estava prevista, em lugar disso ordenou a operação de salvamento. Os barcos foram colocados na água e mãos prestativas tiraram os americanos do oceano que ondulava suavemente. Dentro de meia hora tudo estava terminado. A esquadrilha de aviões de bombardeio dos Estados Unidos foi tragada pelas águas. A esquadra asiática jazia imóvel, balançando ligeiramente nas ondas. Parecia que uma mão invisível a segurava.

A 150 quilômetros da costa ocidental dos Estados Unidos aconteceu a mesma coisa, apenas os papéis foram invertidos. A única diferença foi que um dos pilotos morreu afogado por não ter conseguido sair do avião antes que este afundasse.

Um punho invisível interrompeu a trajetória dos mísseis russos. Estes descreveram uma curva de 180 graus e retornaram às bases de onde tinham sido disparados e penetraram verticalmente no solo, quase no mesmo lugar de onde tinham partido. Nenhum deles detonou, muito menos atingiu a Stardust.

A guerra atômica terminara antes de ter começado.

Houve até o caso de fazendeiros do oeste dos Estados Unidos e muitos camponeses na China que nem sabiam o que estava acontecendo. Quando souberam dos foguetes caídos no solo — depois de restabelecidas as comunicações pelo rádio — deram vazão à sua raiva sobre a tentativa fútil de se mandar foguetes à Lua. Mas, ao saberem de toda a verdade, silenciaram imediatamente os protestos.

Alguém havia impedido a guerra. Um homem revelara-se mais forte que as grandes potências. Desafiou-as e impôs-lhes a paz pela força. Esse homem era Perry Rhodan.

Mas não foi por muito tempo que Perry Rhodan ficou sendo o herói dos homens do povo. Para os que exerciam o domínio do mundo, a humilhação foi insuportável. Sentiram-se tomados de pavor quando se viram derrubados do trono do poder.

Nenhum deles conseguiria romper, sozinho, a supremacia temível de Perry Rhodan. Mas se reunissem seus esforços? Quem sabe...

A percepção desse estado de coisas desencadeou uma atividade diplomática febril.

De Pequim para Washington:

Lamentamos o mal-entendido que quase causou uma guerra mundial. Sugerimos que nossos dirigentes realizem um encontro com a maior brevidade. Deixamos a seu cargo a indicação do local.

De Pequim para Moscou:

Convida-se o primeiro-ministro do bloco oriental a participar do encontro entre os presidentes da Federação Asiática e do bloco ocidental, que se realizará daqui a dois dias.

De Pequim para Washington:

Concordamos em que a conferência se realize no Cairo.

De Washington para Pequim e Moscou:

O governo do bloco ocidental declarou a tripulação da Stardust inimigo público número um. Propomos à Federação Asiática que, uma vez esclarecida a situação política mundial, prepare uma expedição lunar conjunta.

De Pequim para Washington:

Concordamos.

De Pequim para o Comando Espacial da Federação Asiática (mensagem estritamente confidencial):

Acelerar imediatamente os preparativos para a decolagem de outra nave espacial. Os trabalhos deverão ser mantidos em segredo.

Do Cairo para Washington, Pequim e Moscou:

Preparativos concluídos. Aguardamos os presidentes das grandes potências e sentimo-nos honrados...

Dois dias depois.

— Fomos expulsos da comunhão dos povos — lamentou-se Bell.

Quem não o conhecesse, pensaria que dali a pouco irromperia em lágrimas.

— Somos inimigos públicos e criminosos. Por quê? Só porque impedimos a guerra.

— Você se admira com isso? — Rhodan ergueu as sobrancelhas. — Ao impedirmos a guerra, provamos que somos mais fortes que eles. No Cairo, chegaram a um acordo. As grandes potências da Terra uniram-se para nos destruir. Não poderia imaginar coisa melhor.

— Não poderia imaginar coisa melhor? O que quer dizer com isso, meu caro?

— Nenhuma nação deve conquistar o espaço. É o homem como habitante do nosso planeta que deve fazê-lo. A união formada contra nós representa o primeiro passo de uma comunhão de idéias entre todos os povos. O medo cimenta a unidade dos homens. Com o auxílio dos arcônidas conseguimos atingir um grande objetivo. Unimos o mundo.

— E, por isso, nos expulsam?

— É o preço que temos de pagar.

Bell coçou a cabeça.

— Será que Fletcher chegou em casa?

— Não sei. De qualquer maneira, seu nome não foi mencionado por ninguém. Só você, Manoli e eu somos inimigos públicos. Ainda não sabem da existência de Crest. Há, ainda, uma surpresa guardada para os homens.

Bell apontou para o céu azul.

— Thora desempenhou muito bem o seu papel no jogo. Não posso deixar de reconhecer isso. Se não fosse ela, a esta hora estaríamos em maus lençóis.

Rhodan abanou lentamente a cabeça.

— Não estaríamos em situação pior. Apenas acontece que seríamos os últimos homens do planeta.

Subitamente Crest surgiu na porta da sala do comando.

— No destino de sua raça vejo o renascimento da minha — disse pensativo. — Vejo a evolução com toda a nitidez. É verdade que poderão surgir incidentes; é um detalhe que não deverão esquecer. Ainda não eliminamos totalmente o perigo, mas demos o primeiro passo nesse sentido. Às vezes o medo é a melhor terapia.

— Mas não deve continuar a sê-lo para sempre — objetou Perry com voz séria. — Há de chegar o dia em que a união entre os homens não resulte do medo, mas de um imperativo da consciência, do raciocínio lógico e, até, da voz do coração. É claro que esse estado não poderá ser alcançado de hoje para amanhã, mas sei que um dia será assim. Farei tudo o que estiver ao meu alcance para que...

Crest colocou-lhe a mão sobre o ombro e disse em tom suave:

— Você já fez, Perry. Talvez você seja um ser que eu, que venho de fora do seu mundo, designaria como terrano. É isso mesmo! Você, Perry Rhodan, é o primeiro terrano.

— E eu? O que sou? — perguntou Bell sentido.

O Dr. Manoli, sempre calado, respondeu com uma observação bastante apropriada:

— Antes de sermos terranos, temos que ser homens.

Bell fez pouco caso e deslocou seu corpanzil em direção à saída.

— Vou nadar no lago — declarou.

Manoli limitou-se a cochichar-lhe:

— Faz bem. Vá curtir-se ao sal...

Crest sorriu em silêncio.

Perry Rhodan parecia nada ter ouvido. Parado junto à cúpula transparente, olhava para o céu azul. Em algum ponto, lá no alto, a Lua descrevia sua órbita solitária em torno da Terra.

 

                                                                                            Clark Darlton  

 

                      

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