Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A Aboboda Energética / K. H. Scheer
A Aboboda Energética / K. H. Scheer

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Aboboda Energética

 

Rhodan, comandante da primeira nave terrena tripulada a pousar na Lua, retornou ao nosso planeta. Pousou no deserto de Gobi onde, valendo-se da super-técnica da nave exploradora dos arcônidas, uma raça vinda da região central da Via Láctea, instalou uma base que vem desafiando os ataques das grandes potências da Terra.

Perry Rhodan conseguiu impedir a terceira guerra mundial, mas ainda não está satisfeito. Quer promover a união da humanidade.

Mas a humanidade ainda não está madura para os planos de Perry Rhodan. Por isso a luta prossegue em torno da Abóbada Energética.

 

                                     

 

“... ocorre uma alteração na potencialidade prática de determinada situação quando um fato aparentemente improvável se torna provável. Não faz mais de uma semana que me encontrava ao pé de uma muralha fictícia, cujos alicerces repousavam nos cálculos elaborados em minha mente.

“Com base no meu raciocínio lógico, cheguei à conclusão de que seria totalmente impossível enfrentar, sozinho, as três superpotências da Terra”.

“Minha equação encerrava muitas incógnitas. A interpretação matemática de uma série de dados quase sempre é correta e infalível, a não ser que surja, de súbito, uma solução que transforme um ou mais dos fatores desconhecidos num dado exato a ser computado nos nossos cálculos. Foi exatamente o que aconteceu — ou melhor, parece ter acontecido. Hoje, já não penso em abandonar a minha posição para resignar-me a uma tentativa de colocar meu saber à disposição das potências da OTAN.”

O homem esbelto, de rosto fino, colocou o dedo sobre a tecla de parada instantânea do gravador. Imediatamente, os dois carretéis deixaram de girar.

O major Perry Rhodan, ex-piloto de provas da Força Espacial dos Estados Unidos e comandante da primeira expedição lunar tripulada, olhou, pensativo, em torno. A cabina de comando da Stardust era muito apertada, e não poderia ser diferente, numa nave espacial daquele tamanho.

As portinholas de aço das duas vigias da nave, que permaneceram fechadas durante a viagem pelo espaço, estavam abertas. Para além das grossas lâminas de quartzo estendia-se a desolação marrom-amarelada do deserto de Gobi. Só à direita da nave, pousada à maneira de um avião, via-se um pouco de verde. Era a tênue faixa de vegetação que ladeava um riacho registrado nos mapas com o nome de Morin-Gol e que desembocava no grande lago salgado de Goshun, poucos quilômetros ao norte. Em certo trecho, sua margem servia de fronteira entre a China e a Mongólia.

Ao sul da nave, ficava o temido Gobi Central. Até poucas semanas atrás, não havia praticamente nenhum sinal de vida humana por ali, fora algumas pequenas povoações situadas à margem das pouquíssimas fontes; e as instalações militares da Federação Asiática.

Numa série de pensamentos soturnos, Perry Rhodan deu-se conta de que, de uma hora para outra, a situação se havia modificado por completo.

Lançou os olhos semicerrados através da vigia de quartzo que dava para o leste. Muita coisa havia mudado para além do leito do rio, no lugar em que ficava o pequeno povoado de Dashoba. Da noite para o dia, o aeródromo militar, que antes não passava de um miserável campo de treinamento, parecia transformado numa grande base internacional.

O contingente de tropas ali estacionado era enorme. Tinha-se a impressão de que as formações maciças das melhores unidades de elite da Ásia se preparavam para uma invasão.

Rhodan lançou um olhar para a grande barraca armada perto da Stardust. Ao contemplá-la, á idéia tranqüilizadora da própria segurança tornou-se, simplesmente, ilusória. Pertencera ao equipamento de uma unidade de transporte das Forças Asiáticas, chegada há uma semana. Os lábios de Rhodan crisparam-se num ligeiro sorriso. Tirou o dedo da tecla de parada.

Passou a falar com a voz mais descontraída.

— Faço esta gravação para o caso de qualquer imprevisto. Repito: aqui fala o major Perry Rhodan, comandante da nave espacial americana Stardust e piloto do Comando de Exploração Lunar do espaço-porto de Nevada. Faço questão de registrar minhas experiências com a maior fidelidade.

“Há oito dias o capitão Reginald Bell regressou de uma perigosa missão especial. Mal acreditei no que meus olhos viram, mas o fato é que conseguiu o que parecia impossível: trouxe o especialista em doenças do sangue cuja vinda o médico de bordo, Dr. Eric Manoli, julgava tão importante. Trata-se do Dr. Frank M. Haggard, famoso cientista australiano ao qual o mundo deve o soro antileucêmico. Se existe um homem capaz de salvar o ser estranho vindo das profundezas da Via Láctea, esse homem é o Dr. Haggard. Face às instalações médicas existentes na Stardust e à atuação desse médico surgiram probabilidades de salvar a vida de Crest. Afinal, dispomos de dois dos vultos mais destacados na medicina. Já não vejo as coisas tão pretas como ontem e anteontem. Não há dúvida de que a irrupção de uma guerra nuclear aniquiladora, que parecia iminente, foi impedida pelos recursos inconcebíveis de que dispõem esses personagens estranhos. Para além da cúpula protetora que nos envolve espalham-se os destroços dos enormes mísseis nucleares. Não chegaram a explodir. Thora, a comandante da gigantesca nave espacial dos arcônidas, interveio a partir da Lua. Uma vez que as armas nucleares de todas as potências da Terra funcionam com base em reações de fusão ou fissão nuclear, bastou prender os nêutrons livres aos núcleos atômicos. Com isso, os processos de fissão nuclear baseados nos nêutrons tornaram-se impossíveis. Nossa posição não é má; pelo menos não é pior que a que enfrentamos logo após o pouso no deserto de Gobi. Acredito ter procedido corretamente diante de minha consciência e do juízo dos homens, quando me recusei a colocar o poderio técnico-científico de uma raça dotada de inteligência muito superior à nossa nas mãos de um dos grupos de potências terrenas. Não há nada que possa abalar minha fé em toda a humanidade. Nada perturbará minha convicção de que o futuro do gênero humano só pode repousar na união de todos os homens. Ao que parece, encontramo-nos no limiar de uma era de provações para toda a Terra. Ainda existe muita incompreensão, desconfiança, ódio e malquerença. As grandes figuras de todos os governos realizarão esforços exaustivos para empregar os conhecimentos fabulosos dos arcônidas na execução de seus propósitos. Acontece que tais desejos não correspondem à causa do progresso da humanidade.

“Sem a cura de Crest, meu plano grandioso não terá possibilidades de êxito. Quero conquistá-lo como amigo meu e de toda humanidade. Por isso só posso fazer votos de que mais uma vez o Dr. Haggard dê provas do seu extraordinário saber”

Rhodan desligou o aparelho. Ele o fez de forma um tanto abrupta e teve motivos para isso. Não pertencia à classe de homens que, diante de um cerrado bombardeio, sentem-se inclinados a gravar em uma fita suas idéias e opiniões mais ou menos bem sucedidas.

Seu rosto, até então tranqüilo, ficou tenso. Num gesto automático segurou a arma. E, ainda instintivamente, deu um salto para abrigar-se, muito embora o raciocínio logo lhe dissesse que tal ato era totalmente ilógico.

Ergueu-se muito contrariado, amaldiçoando sua insensatez. Não tinha sentido procurar abrigo em uma situação como aquela. Se a cúpula energética dos arcônidas não resistisse, a força concentrada de um exército gigantesco desferiria um golpe arrasador.

Rhodan pôs a arma automática a tiracolo. Saiu da nave pela grande escotilha do compartimento de carga, inteiramente vazio, que ficava logo atrás da cabina destinada à tripulação, e desceu pela rampa de metal. No mesmo instante, ouviu-se o radiofone. Uma voz forte e áspera disse em tom seco:

— Alguém houve por bem interromper o meu sono tão merecido. OK! Você ainda está de pé, ou já o agarraram?

— Para seu governo, as comunicações pelo rádio estão proibidas. Irei até aí! — respondeu Rhodan.

Desligou o rádio de pulso. Franzindo a testa, refletiu sobre o grau de aperfeiçoamento que teria sido alcançado pelas instalações de escuta da Federação Asiática.

O trovejar longínquo cresceu num rugido ensurdecedor. Rhodan ergueu os olhos para contemplar a luminosidade cintilante, quase imperceptível, que se desenhava no céu. No ponto mais elevado, a cúpula energética atingia dois mil metros de altura. Ao que parecia, desta vez haviam decidido lançar mão de outros meios de ataque.

Os lábios de Rhodan se estreitaram. A barba de vários dias contrastava com a pele morena. Com passos rápidos atingiu a entrada da grande tenda.

Há tempos o capitão Reginald Bell despira o uniforme da Força Espacial. Essa vestimenta teria representado um obstáculo quase intransponível na sua arrojada excursão fora dos limites da cúpula.

— Fim do mundo — disse com voz gutural. — Ainda não se decidiram? Ou será que inventaram alguma coisa capaz de romper a nossa cúpula protetora?

O olhar que Rhodan lançou para as po­sições do inimigo, montadas bem ao longe, tinha algo de ameaçador. Mas logo se descontraiu. Ofereceu um cigarro ao companheiro.

— As intenções deles são boas — disse, sorridente. — São as melhores possíveis.

As últimas palavras morreram em meio ao estrondo provocado pela detonação de poderosos projéteis. A muralha invisível, feita de linhas de força de uma potência extraordinária, iluminou-se no brilho intensíssimo das explosões. Rhodan fez uma constatação:

— Desta vez não estão usando a artilharia convencional. Se não me engano, o comando do Exército Asiático dispõe de alguns cérebros brilhantes. Já compreende­ram que, num campo antigravitacional, as armas convencionais são totalmente inúteis. O que faria qualquer homem inteligente ao perceber que, face à eliminação da gravidade, já não pode lançar mão dos potentes canhões, sujeitos ao recuo provocado pelos disparos? Passa a utilizar projéteis-foguetes, não é?

Reginald Bell fez que sim. Uma forte corrente de ar iluminou seu cigarro num clarão vivo. A Stardust, estacionada no centro do campo cinzento protegido pela cúpula energética, transformara-se no alvo de pelo menos mil baterias de foguetes. A julgar pelos impactos, deviam ter colocado em ação pelo menos quatro mil lança-foguetes automáticos dos mais variados calibres.

O rugido das explosões tornou-se insu­portável. Bell teve de berrar a plenos pulmões para tornar sua voz audível.

— Esses foguetes não conduzem carga nuclear — gritou junto ao ouvido de Rhodan. — Thora prometeu que interviria imediatamente. A cúpula anti-neutrônica cobre toda a Terra.

Rhodan sabia que Bell estava berrando com toda a força. Depois de mais alguns segundos, o homem robusto, de ombros largos, compreendeu que seus esforços eram inúteis. Cerrou os lábios. Uma contorção nervosa desenhou-se em seu rosto largo.

As enormes ondas de compressão geradas pelas explosões que se sucediam em rápida seqüência não conseguiam atravessar a cúpula energética. Em compensação, esta parecia transformada num enorme sino.

Alguma coisa oscilou.

— Fogo cerrado! — constatou Rhodan, lançando um olhar para o círculo que se fechava em torno da cúpula energética. Ali se achavam estacionadas as unidades de elite da Federação Asiática, bem protegidas nos excelentes abrigos. Ali estavam montados os lança-foguetes, instalados em abrigos de concreto e abastecidos pelos depósitos de munições situados em abrigos ainda mais sólidos.

Não havia por perto nenhum objeto que não estivesse fixado cuidadosamente no solo. Perry Rhodan sabia que os soldados usavam cintos especiais, dotados de fixadores. A Federação Asiática lançara mão de pessoas que tinham algum conhecimento de viagens espaciais tripuladas. Outros receberam treinamento intensivo, que os habilitou a enfrentar os efeitos da ausência da gravidade.

Com isso, foi eliminado o fator surpresa. A arma formidável dos arcônidas, o neutralizador da gravidade, funcionava com a mesma perfeição de antes, mas perdera toda a utilidade prática.

Perry Rhodan deu-se conta de que, embora dispusesse de armas e equipamentos infinitamente superiores, não devia subestimar o poderio concentrado de um exército altamente treinado.

O fogo cerrado das baterias de foguetes pesados e ultrapesados não poderia deixar de produzir seus efeitos, mesmo que, apesar de todos os esforços, o inimigo não conseguisse romper a cúpula energética.

Acontece que, naquelas circunstâncias, a tensão nervosa resultante das inúmeras detonações, aliada ao medo causado pela sensação de perigo, bastaria para romper a resistência psíquica dos poucos homens que ali se encontravam.

De repente, o Dr. Eric Manoli precipitou-se para fora da tenda sem dar a menor explicação. Antes que Rhodan compreendesse o que estava acontecendo, o médico havia desaparecido através da escotilha da nave.

Só depois de alguns instantes Rhodan percebeu o motivo da agitação daquele homem franzino. Ele e Bell começaram, também, a correr. Rhodan lembrou-se de que seus movimentos poderiam ser detectados através de um dispositivo de localização ótica. O campo de defesa energética formado pelos arcônidas tornava impossível a captação eletrônica da imagem, mas a muralha invisível podia ser atravessada pelo olhar. Se percebessem que, logo após o início do bombardeio, os homens se precipitavam para a nave, isso só poderia concorrer para piorar a situação.

Rhodan estava apavorado.

“Não devemos deixar qualquer brecha por onde possamos ser atacados”, pensou. “Pelo amor de Deus! Não podemos mostrar nenhum ponto fraco.”

Encontraram-se com o Dr. Manoli na grande escotilha de carga da nave. Trazia sobre a cabeça os enormes abafadores de som usados como proteção contra o ruído por ocasião da partida da nave.

Manoli sorriu. Moveu os lábios. Apontou para o pino do cabo de ligação.

Assim que Rhodan colocou o pesado dispositivo, o fragor infernal transformou-se num murmúrio distante. Colocou no pescoço o grampo com o microfone de laringe e ligou os contatos do equipamento de telefonia que trazia no peito.

— Já estava na hora — soou a voz calma vinda dos minúsculos alto-falantes embutidos nos abafadores. — Estou admirado de não lhes ter ocorrido antes a idéia de nos submeter a um fogo cerrado. O pessoal da Faculdade de Psicologia deve estar metido nisso.

Um ligeiro sorriso esboçou-se no rosto do Dr. Manoli. No entanto, os lábios trêmulos desmentiam a tranqüilidade que procurou aparentar.

— Obrigado. Foi uma ótima idéia — respondeu Rhodan. — Devia ter-me lem­brado disso antes.

— É bom que ele também faça alguma coisa — ouviu-se a voz de Bell. — Será que também deu para ter boas idéias?

— Só sei que estou com um medo terrível — respondeu Rhodan com voz apática. — Estou com medo desta cúpula energética, cujo funcionamento não conheço e cujo limite de resistência constitui uma incógnita para mim. Mas, deixemos isso de lado. Eles testarão nossa resistência com um fogo cerrado de várias horas. As armas nucleares não funcionarão mais, por isso, recorrerão aos explosivos químicos. Se estes não produzirem efeito, atacarão com gases. Caso os mesmos falhem, convocarão os especialistas em guerra bacteriológica. O fato é que ainda existem possibilidades com que nosso amigo Crest nem chega a sonhar. O homem é dotado de uma tremenda capacidade inventiva e, com o surgimento da nossa terceira potência, criamos uma situação tal que a esta altura já mobilizou toda a ciência humana.

— Obrigamo-los a este tipo de união — observou Manoli. — As superarmas terrenas tornaram-se ineficazes. As reações nucleares já não são possíveis, uma vez que não podem ser desencadeadas sem nêutrons livres, e atualmente os homens não conseguem desligar estas partículas do núcleo atômico.

De repente, Rhodan lançou um olhar fulminante sobre Bell. Este empalideceu. Passou a ponta da língua pelos lábios.

— O que houve? — perguntou com voz gutural.

Desde que voltou a ficar submetido às ordens de Rhodan, Bell perdera a petulância juvenil. A alegria enorme que lhe provocavam as estupendas armas defensivas dos arcônidas desvaneceu-se com a mesma rapidez com que surgira durante sua expedição à Austrália.

Rhodan não respondeu. Correu para a tenda, onde entregou um par de abafadores ao Dr. Haggard, que parecia muito assustado. Bell compreendeu imediatamente. Sem dizer uma palavra, desapareceu no interior da armação de plástico inflado.

Os outros seguiram-no devagar. O excelente isolamento acústico fez com que os ruídos chegassem ainda mais abafados. Com isso, fora eliminado, também, o risco de esgotamento nervoso.

Passaram perto do reator em forma de tambor de óleo, que emitia um zumbido agudo. Desde o pouso da nave esse aparelho fornecia a energia para a cúpula protetora. Rhodan parou, pensativo. Mais uma vez procurou atravessar o dispositivo cilíndrico com a imaginação, de forma a compreender como ele funcionava. Ele era astronauta e físico nuclear. Podia gabar-se de ter compreendido todos os detalhes — mesmo os mais afastados de seu campo de conhecimentos — do mecanismo propulsor químico-nuclear da Stardust. Mas, diante dessa tecnologia infinitamente superior, seus conhecimentos não passavam do zero. Sabia, apenas, que no setor quente do reator dos arcônidas era liberada uma energia equivalente à de um pequeno sol. Por certo, ali se desenvolvia um processo de fusão extremamente complicado que devia basear-se no ciclo do carbono. Seria um processo estupendo de ignição catalítica a frio, que se distanciava do das fissões nucleares da Terra tanto quanto o machado de pedra das pistolas automáticas.

Pelo que dissera Crest, seria facílimo fornecer energia para toda a indústria terrena com aquele aparelho cuja altura não ultrapassava a de um homem. Rhodan sentia vertigens quando fazia cálculos baseados nesses dados. Também desta vez desistiu do intento de compreender esse aparelho criado por uma raça superior. Por enquanto, tinha de contentar-se em aceitar a maneira pela qual funcionava.

Vários cabos da grossura de um braço subiam até a antena esférica que possibilitava a criação da cúpula energética de quatro quilômetros de diâmetro e dois de altura.

Cerca de seis semanas haviam-se passado desde o encontro da gigantesca nave espacial esférica na superfície da Lua. Cerca de seis semanas seriam suficientes para que os cientistas da Terra compreendessem al­gumas verdades perigosas. Talvez, a esta altura, a fábula de Rhodan, segundo a qual haviam sido descobertos na Lua alguns vestígios abandonados de uma estranha cultura repousasse sobre pés de barro. Não estavam lidando com idiotas; não havia a menor dúvida. Os homens que ocupavam os postos de comando militares e científicos das três superpotências sabiam raciocinar. Se, além de tudo, ainda conseguissem se unir, a situação acabaria por se tornar insustentável.

Perry Rhodan sentiu os olhares perscrutadores dos três homens. Por trás da cortina que separava a parte dos fundos via-se a sombra do Dr. Haggard. Ao que parecia, havia colocado abafadores no ser que estava sob seus cuidados.

O rosto de Perry tornou-se mais sério. Há alguns anos andava ligeiramente curvado, o que fazia com que seu corpo, alto e magro, parecesse um pouco menor. Bell observou-o, cada vez mais preocupado. Se o comandante perdesse a tranqüilidade, tudo estaria perdido. Ele mesmo, Reginald Bell, não seria capaz de levar avante de maneira coerente o plano cuja execução fora iniciada. Era muito impulsivo.

O Dr. Eric Manoli nem de longe estaria em condições de prosseguir naquela empresa arriscada. Era, antes de tudo, médico; e como tal não saberia emitir ordens que tivessem de ser cumpridas incondicionalmente.

O capitão Clark G. Fletcher estava desaparecido havia uma semana. Rhodan tinha certeza de que ele devia enfrentar grandes dificuldades — se é que ainda estivesse vivo. Tinha cometido um grande erro ao permitir que retornasse ao lar. Não poderia dar certo.

Os lábios de Rhodan estreitaram-se. Como não tivesse ligado o dispositivo de telefonia, Bell absteve-se de fazer qualquer pergunta. Em vez disso, pôs inconscientemente a mão no bastão prateado que, segundo sabia, encerrava forças inacreditáveis.

Era o chamado irradiador psíquico dos arcônidas, através do qual se podia eliminar a vontade consciente de qualquer pessoa, obrigando-a através de um processo de obstrução sugestiva a praticar atos que contrariavam seus próprios desejos.

Era um instrumento relativamente inofensivo. Não causava o menor dano psíquico e a mente da pessoa submetida aos seus efeitos não era afetada. Todavia, também o irradiador psíquico perdera o fator surpresa. Do outro lado, já haviam descoberto que o alcance do aparelho não ultrapassava dois quilômetros.

Com isso, a terceira potência via-se obrigada a assumir a defensiva.

Rhodan passou junto ao laboratório móvel do Dr. Haggard, trazido na semana anterior. Ao perceber o olhar irônico de Rhodan, Bell deu de ombros. Ele sabia que a essa altura, não conseguiria repetir a façanha de poucos dias atrás. De qualquer maneira, o Dr. Haggard estava no acampamento e, o que era mais importante, trouxera aquilo de que Crest tanto precisava.

Perry Rhodan, que ainda envergava o uniforme da Força Espacial, pôs a mão no ombro esquerdo, numa atitude pensativa. Suas divisas não estavam mais ali; ele mesmo as retirara. O major Perry Rhodan havia deixado de existir, pois fora avisado por uma mensagem radiofônica de que havia sido privado de sua patente. Transformara-se no inimigo público número um.

Com todo cuidado, puxou a cortina. O Dr. Manoli aproximou-se. Num movimento rápido, estabeleceu a ligação através do cabo.

— Não fique nervoso! — soou a voz tranqüilizadora do médico nos alto-falantes dos abafadores. — Nosso paciente está com febre, mas já contávamos com isso. Sabíamos perfeitamente que um ser de constituição biológica diferente da nossa não poderia reagir aos nossos medicamentos da mesma forma como reage um ser humano normal. Mas o espectro sanguíneo é bastante animador. A proliferação doentia dos glóbulos brancos regrediu com a primeira injeção do soro anti-leucêmico do Dr. Haggard. Pelo menos, conseguimos deter o avanço da moléstia. As inchações das glândulas e a hemorragia cutânea estão regredindo. Apenas não sabemos qual a causa dos efeitos colaterais. Num ser humano não surgiriam sintomas desse tipo. A esta altura, porém, já sabemos muito sobre o organismo de Crest.

“Seu metabolismo é idêntico ao nosso. Tal qual os seres humanos, respira oxigênio e seus pulmões transportam esse gás vital ao organismo através do sangue. Haggard é da mesma opinião. Realizamos exames minuciosos antes de injetar o soro. Dentro de uma hora aplicaremos a segunda dose.

— Apesar dos graves efeitos colaterais?

— Apesar desses efeitos — confirmou Manoli com um ligeiro movimento de cabeça. Seu rosto assumiu uma expressão séria. — Não podemos fugir aos riscos. Haggard é um especialista muito competente, mas não é um mágico. Os sintomas estão sob controle. Não é de se esperar que o paciente entre em colapso. A circulação mantém-se numa estabilidade notável. Seu corpo é dotado de um órgão que o homem não possui. Poder-se-ia dizer que se trata de um regulador de pressão muito aperfeiçoado, situado acima do coração. As medidas registradas pelo nosso instrumental médico automático revelam que os princípios de colapso e os espasmos vasculares são imediatamente compensados. É um organismo admirável, que ninguém suportaria numa raça degenerada como esta. De qualquer forma, vemo-nos diante de superinteligências que não conseguem reunir a força de vontade que seria necessária para converter suas potencialidades espirituais infinitamente superiores em qualquer tipo de atuação prática. É aí que está o problema, comandante.

— Já não sou comandante.

— Para mim, nunca deixará de ser. Para resumir, temos motivos para crer que não só conseguiremos pôr Crest de pé, mas também alcançaremos a cura completa e o total restabelecimento.

Rhodan lançou mais um olhar sobre aquele rosto incrivelmente juvenil, coberto de gotículas reluzentes de suor. Embora não tivesse nascido em nosso planeta, Crest suava. Pelo que dizia Manoli, era um bom sinal.

Rhodan voltou-se. O fogo cerrado de artilharia continuava. O solo trepidava sob a força dos impactos. Parecia que cargas explosivas muito potentes estavam sendo detonadas junto à face externa da cúpula energética.

— Não estou gostando disso — cochichou Bell. Ouvia-se perfeitamente que engolia em seco. — As intenções deles não são boas. Até parece que todo esse fogo de artifício não passa de uma manobra para prender nossa atenção.

— Quem dera que pudéssemos perguntar a Crest se a cúpula continuará a resistir ao bombardeio — disse Rhodan. — Eric, será que você poderia despertar Crest por um instante?

— Nem pense nisso! — recusou-se o médico. — É impossível! Seria o maior erro que poderíamos cometer.

— Infelizmente você tem razão — confirmou Rhodan. Um sorriso esboçou-se no seu rosto.

Bell estremeceu. Conhecia a meiguice tristemente célebre de Rhodan, que acabaria numa irrupção fulminante.

— Se não conseguirmos restabelecer Crest, o inferno desabará sobre nossas cabeças — observou o comandante com uma tranqüilidade surpreendente. — Sim, senhores: o inferno! Contrariei as ordens que recebemos, pousando a Stardust aqui no deserto de Gobi. Recusei-me a entregar Crest. Declarei centenas de vezes que seus conhecimentos científicos e tecnológicos não seriam entregues a nenhuma potência da Terra. Sufocamos uma guerra nuclear no nascedouro e, com nossas armas defensivas muito superiores, zombamos de toda a humanidade. E ela nunca esquecerá isso. Os três grandes blocos das potências da Terra uniram-se contra nós. Lá na Lua, a exótica comandante de uma gigantesca nave espacial de combate espera o restabelecimento de Crest, o cientista que se afastou do seu mundo para procurar em nossas regiões galácticas algum planeta em que já tivesse sido desvendado o mistério da conservação biológica das células. Para Crest, isso significaria a vida eterna. Seu cérebro genial há de ser conservado para sempre.

“Thora, a comandante, também se conservou espiritualmente ativa, como tantas mulheres da sua raça. Despreza a humanidade por causa de suas condições primitivas de desenvolvimento. Se não conseguirmos curar seu irmão de raça, ficaremos expostos da noite para o dia, sozinhos e indefesos, às divisões de combate de uma humanidade enfurecida. A terceira potência terá chegado ao fim. Falei claro?

Bell respondeu:

— Muito claro, amigo! Se Thora der para trás, passaremos pelos interrogatórios dos Serviços Secretos; depois disso enfrentaremos uma corte internacional. Nossas intenções foram boas demais, não foram?

— Na minha opinião, não cometemos nenhum crime; nem sequer praticamos qualquer erro — afirmou o médico com a voz tranqüila. — Quem age no interesse de toda a humanidade nunca pode estar errado. E não estamos fazendo outra coisa. Pelo contrário: com a nossa demonstração de força, conseguimos aproximar, de um momento para outro, até mesmo os governos separados por divergências ideológicas profundas. Será que isso não vale nada?

— Só conseguimos isso graças ao poder de Thora — ressalvou Rhodan. — Se Crest morrer, ela se separará de nós. É verdade que não poderá decolar sem o nosso auxílio, mas isso não a deixará preocupada. O fatalismo tomou conta de sua raça. Ela se fechará num enorme campo energético e recusar-se-á terminantemente a manter contato com os homens. Temos de fazer alguma coisa.

— O quê?

A pergunta foi formulada em tom penetrante. O nervosismo de Bell havia atingido o ponto crítico.

— Devemos convencê-la de que o homem é um ser dotado de uma enorme criatividade. Dentro de pouco tempo as potências terrenas disporão de armas nucleares que poderão ser utilizadas apesar dos campos anti-neutrônicos.

O Dr. Manoli empalideceu. Acabara de compreender. Rhodan concluiu com toda a tranqüilidade:

— Estávamos realizando pesquisas secretas para uma fusão nuclear a frio. Se essas pesquisas forem bem sucedidas, não haverá mais necessidade do detonador térmico para desencadear a fusão nuclear. Com isso, o campo anti-neutrônico não passará de uma brincadeira. Quando esse dia chegar, não quero estar embaixo desta cúpula energética.

Olhou para o alto. Muito além da cobertura da tenda, a cúpula resistia aos projéteis, como se estes não passassem de bombas juninas. A situação poderia mudar, talvez, muito depressa.

— Ligue-me com Thora — disse Rhodan em tom pensativo. — Quero falar-lhe com urgência, na qualidade de representante de uma humanidade que quer formular umas exigências em seu próprio benefício.

— Exigências? — disse Bell, com um sorriso de escárnio. — Será que ouvi bem? Ela saltará no meu rosto de dentro do tubo de imagens. Para ela, não passamos de macacos com um pouquinho de inteligência. Seu código continua a proibir qualquer tipo de contato conosco. Este negócio de Crest não passou de um acordo em que ela mal e mal se dignou entrar.

Rhodan, com o pé, puxou a banqueta para junto de si. A mesma já pertencera ao equipamento de uma unidade asiática de transporte.

— Se ela possuir aquilo que entre nós se costuma chamar de instinto de conservação acabará cedendo. Vamos logo! Estabeleça a ligação. Afinal, você é ou não é nosso técnico de comunicações?

Bell deu de ombros. Murmurando uma praga, tirou o pino da tomada de seu abafador e desapareceu atrás da cortina. O estranho videofone dos arcônidas havia sido instalado junto ao leito de Crest. A grande tenda oferecia mais espaço que a pequena cabina da Stardust.

Pretende coagi-la? — perguntou o Dr. Manoli, preocupado.

— Isso mesmo! — respondeu Rhodan. — Acho que ela se encontra numa dependência tão forte de Crest como jamais sonhamos. Notei perfeitamente que ele lhe dava ordens. Para mim, a brincadeira já passa da conta. O que será de nós se a cada pequeno incidente tivermos de solicitar seu auxílio? Para meu gosto, a Lua fica muito longe. Quando chegar o momento crítico, perderemos minutos ou segundos que poderão tornar-se decisivos. Precisamos de um equipamento muito mais potente, inclusive de algumas armas ofensivas. Por favor, não formule mais perguntas. Se acontecer aquilo de que desconfio no recanto mais profundo do meu cérebro, Thora despertará de qualquer maneira. Subestima os homens. Acha que não somos capazes de coisa alguma. No meu entender, está cometendo um engano fatal.

— Não compreendo — gaguejou Eric Manoli.

— Procure raciocinar — disse Rhodan com um sorriso irônico. — O que faria você, como médico, se um paciente se queixasse de fortes dores? Procuraria resolver tudo com injeções de morfina, ou tentaria descobrir a causa das dores para aplicar o tratamento adequado?

— É claro que procuraria arrancar o mal pela raiz.

— Pois é isso — disse Rhodan com um sorriso forçado. — É isso mesmo. Os serviços secretos das potências terrestres também procurarão as raízes que, no nosso caso, ficam na Lua. Não venha me dizer que acredita que ainda estão engolindo a nossa história!

Bell fez um sinal com a mão. Do seu rosto zombeteiro só se podia concluir que a comunicação havia sido estabelecida.

Rhodan levantou-se sem a menor pressa. Dirigiu-se à peça que ficava na parte dos fundos da tenda e colocou-se diante da tela oval do instrumento dos arcônidas.

A nave estranha estava estacionada do outro lado da Lua. Ninguém conseguiria alcançá-la com as ondas ultracurtas comuns. Indagado a este respeito, Crest limitara-se a declarar que esse problema havia sido resolvido há muito pelos arcônidas, através da radiotelegrafia de velocidade superior à da luz.

Para um engenheiro terreno, era mais que difícil aceitar uma explicação desse tipo sem que surgisse uma série imensa de perguntas. A montanha de problemas que tal fato fazia surgir prenderia o técnico por toda a sua vida.

O rosto de Thora reluziu na tela. Era uma imagem tridimensional colorida de rara expressividade. Thora era bela, de uma beleza cativante, mas parecia terrivelmente despersonalizada na sua tranqüila frieza. Rhodan lançou um olhar fascinado para os cabelos muito claros, que formavam um contraste marcante com os olhos vermelho-dourados, uma das características dos arcônidas.

Há pouco, Rhodan estivera disposto a usar palavras moderadas, procurando explicar o seu procedimento através da educação que recebera. Mas, subitamente, resolveu mudar de atitude.

Não proferiu nenhum cumprimento. Em vez disso, falou com voz áspera:

— Não me venha explicar que ainda não está na hora do contato diário. Ouça bem e procure lembrar-se de que já não sou uma simples figura no seu tabuleiro. Se não é capaz de reparar as pequenas avarias do mecanismo propulsor de sua supernave espacial para colocá-la em condições de decolar, também não se julgue capaz de impressionar um cientista da Terra e um soldado de elite com suas palhaçadas. Os homens de minha raça têm mais coragem e determinação na ponta dos dedos do que os idiotas da sua tripulação carregam nas cabeças ocas. Se interromper a comunicação desligo a cúpula energética. Queria dizer alguma coisa?

Ela o encarou com os olhos arregalados. Ninguém, nunca, usara uma linguagem dessa para com a comandante.

Não desligou. Quando Rhodan prosse­guiu, os cantos de sua boca desceram.

— E agora, madame, preste muita atenção ao que vou dizer! Eu...

Bell estava convencido de que seu ex-comandante enlouquecera. Assumiu uma pose de quem se julga o chefe do enorme império espacial, que Crest designara como o Grande Império. Ao que parecia, estava esquecido de que, em meio à Via Láctea, o planeta Terra não representava mais que um grãozinho de areia no deserto de Gobi; talvez até menos.

Bell tinha certeza de que alguma coisa não daria certo.

 

Umasociedade ou uma aliança defensiva nada mais é que uma autêntica relação de mútua confiança entre os participantes.

Sempre que, no âmbito de uma união mundial, seja estabelecido um sistema secreto de defesa específica, tudo indica que o quartel-general será instalado num lugar de acesso fácil e seguro pelos participantes.

No caso do CID — Conselho Internacional de Defesa — fora escolhida a ilha da Groenlândia, por ser o local que oferecia posição geográfica mais favorável. A gigantesca central defensiva da OTAN fora montada muito abaixo do solo.

Allan D. Mercant, o chefe onipotente do CID, só prestava contas de seus atos perante o plenário da Comunidade de Defesa. Aquele homem delicado, de aspecto despretensioso, de rosto moreno e testa alta, era uma criatura muito pacífica quando se tratava de animais. Poderia, mesmo, ser confundido com o diretor de alguma sociedade protetora dos animais; e a pessoa a quem declarasse que ocupava essa posição acreditaria piamente na sua palavra se o visse nas densas florestas do Canadá, com a câmera fotográfica equipada com teleobjetiva diante dos olhos que reluziam num brilho entusiástico.

Mercant não apreciava a caça com arma de fogo, que não se harmonizava com os princípios que adotara.

Justamente por isso, a atividade profissional a que se dedicava devia causar surpresa. As más-línguas diziam que, para o chefe do CID, a saúde de um pobre animal era mais importante que a vida de um dos seus numerosos agentes. É claro que não havia em tal afirmativa um pingo de verdade. Por isso, a única resposta de Mercant diante de observações mordazes como esta consistia num brilho irônico dos olhos.

Naquele instante, ele estava parado diante de uma tela gigantesca. O símbolo luminoso que aparecia no ângulo superior direito indicava que a câmera de TV se encontrava num ponto distante da Ásia.

Isso era mais que estranho; há cerca de um mês tal fato teria causado a maior sensação. A essa hora, porém, nem mesmo a presença de oficiais e agentes secretos do bloco oriental parecia impressionar os presentes.

Trinta dias antes teria sido totalmente inconcebível permitir a entrada de um representante da Federação Asiática, quanto mais do Bloco Oriental, no quartel-general do Conselho Internacional de Defesa.

Para levar a surpresa ao máximo, Allan D. Mercant chegara a expedir convites pessoais.

Foi assim que às primeiras horas da manhã daquele dia, dois bombardeiros Delta, da Federação Asiática e do Bloco Oriental, pousaram no enorme aeroporto do quartel-general.

Os visitantes foram recebidos e cumprimentados por Mercant em pessoa. No entanto, ele tivera o cuidado de levar os recém-chegados em um trem fechado por uma das insondáveis galerias de gelo do quartel-general. De tal forma que eles já não saberiam indicar com precisão o lugar em que se encontravam. Viram-se num enorme salão, bem iluminado, onde reinava uma temperatura agradável. Ninguém diria que, por cima deles, havia uma camada de gelo e rocha de quase três quilômetros de espessura.

Era a central de Mercant, o lugar para onde convergiam os laços que cimentavam a imponente união defensiva do Ocidente.

Verdadeiras tempestades de som pareciam irromper dos grandes amplificadores embutidos. O trabalho de transmissão do pessoal da televisão chinesa era excelente, talvez, até, um pouco demais.

Teleobjetivas de grande potência captavam toda a área em que se situava o alvo. Os olhos dos espectadores eram atormentados ininterruptamente por raios ofuscantes. O rugido infernal da detonação dos projéteis misturava-se ao som grave dos pesados mísseis teleguiados terra-terra, que eram disparados numa seqüência incrivelmente rápida das carretas rebocadas por veículos especiais.

O espetáculo já durava quinze minutos e o fim ainda não estava à vista. Qualquer diálogo entre os presentes seria impossível. A transmissão do bombardeio prendia todas as atenções, até que Mercant desligou abruptamente o receptor.

Os tubos de imagem relampejaram. A imagem cintilou ligeiramente antes de apagar-se por completo. O silêncio passou a reinar no salão.

Mercant passou a palma da mão pela calva reluzente. Parecia exibir tamanha ingenuidade que o marechal Petronskij não pôde reprimir uma sensação desagradável. O chefe da Força Aeroespacial do Oriente lançou um olhar suplicante para o homem esbelto, de rosto impassível que se encontrava a seu lado.

Ivan Kosselov, chefe do Serviço Secreto do Bloco Oriental, não movera um músculo da face durante a apresentação do espetáculo. Por certo, achara conveniente conservar a máscara habitual. Kosselov e Mercant já haviam travado muitas lutas silenciosas das quais o grande público nem chegava a suspeitar.

Havia mais dois homens que chamavam a atenção. Eram Lao Lin-to, comandante supremo da Força Aeroespacial da Federação Asiática, e Mao Tsen, um chinês do Sul, enorme e de ossos salientes que, segundo se sabia, desempenhava as funções de chefe do Serviço Secreto da Federação Asiática.

Dessa forma, as personalidades mais importantes e influentes dos três grandes blocos de potências estavam reunidas no abrigo central do QG do CID. Era um fato estranho; na verdade, mais que estranho.

Os homens olharam-se. Os agentes e assessores, que se conservavam à distância, nos fundos do salão, mantiveram-se num silêncio sepulcral. Ali, só os grandes estavam com a palavra.

Mercant convidou os cavalheiros a entrarem na sala de conferências. Os guardas retiraram-se. O recinto foi isolado hermeticamente do mundo exterior.

O pigarro de Mercant parecia encerrar uma revelação, talvez uma advertência. As cabeças voltaram-se, os dedos começaram a brincar com os lápis e as canetas, os cérebros vigilantes tornaram-se mais alertas. O que desejaria Mercant?

Falou no tom de quem sabe dissimular muito bem quaisquer preocupações que porventura pudessem surgir entre suas palavras.

— Admiro a capacidade de resistência do exército vermelho — principiou em tom amável. — Cavalheiros. Apesar de todos os esforços da Federação Asiática, um ligeiro exame da tela nós dá a impressão de que realmente estamos lidando com um poder infinitamente superior. Os dados assustadores, colhidos no curso dos acontecimentos das últimas semanas, bastam para provar que nem os países da OTAN, nem os do Oriente têm qualquer participação no que está ocorrendo. Faço questão de salientar este fato. Peço-lhes encarecidamente que confirmem que daqui por diante, de uma vez por todas, a nave espacial Stardust deixará de ser considerada uma base do Ocidente plantada para fins de provocação em território submetido à soberania da Federação Asiática. Por pouco, o equívoco não nos arrasta a uma catástrofe nuclear. Volto a assegurar-lhes que os cientistas do Ocidente não conhecem qualquer meio ou instrumento capaz de produzir fenômenos estranhos como os que se estão verificando. A Stardust pousou no deserto de Gobi contra a nossa vontade. Qual é a sua opinião, Sr. Mao Tsen?

O enorme chinês voltou o rosto sombrio. Seus olhos escuros brilhavam numa expressão irônica.

— Ora, Mercant! — soou a voz grave. — Vim para terminar de vez este jogo de esconde-esconde. É claro que os senhores não seriam capazes de desenvolver armas desse tipo. Lamento que a desconfiança mútua nos tenha feito perder um tempo precioso. A única coisa que me interessa é saber como o major Rhodan encontrou essas coisas. Pelo que me disseram, os fatos estão diretamente ligados ao primeiro pouso lunar.

— Ao segundo! — soou uma voz fria.

O sorriso de Mercant enrijeceu. O tom da voz do chefe da defesa do Oriente era inconfundível. Um sorriso sombrio aflorou aos lábios do marechal Petronskij.

— Com o segundo pouso lunar tripulado — insistiu Kosselov em tom inexpressivo. — Fui autorizado a informá-lo a esse respeito. Nossa nave tripulada partiu três meses antes da Stardust. Como não costumamos divulgar nossos fracassos, a queda da nave, que para nós continua sendo um mistério inexplicável, nunca foi dada ao conhecimento público.

— Poderia fazer o favor de nos fornecer informações mais detalhadas? — interveio o general Pounder, chefe da Força Espacial dos Estados Unidos. Em seguida, voltou o rosto pálido e perturbado em direção a Mercant: — Por que o Serviço Secreto do Ocidente nunca chegou a saber disso?

— Pois não — disse Kosselov. — Acho que já não podemos dispensar um intercâmbio sincero. Nossa nave caiu sobre a superfície lunar. Sofremos uma perda total; não obtivemos qualquer comunicado, e não temos a mais leve indicação do que aconteceu. Sabemos, general Pounder, que a Stardust enfrentou problemas semelhantes, mas há uma diferença: depois do pouso forçado, a tripulação voltou a entrar em contato com os senhores. Daí se conclui, com toda a segurança, que, pouco antes do pouso, a nave foi arrancada da órbita em virtude de uma falha do equipamento de teledireção. Foi exatamente o que aconteceu com a nossa nave. Face à semelhança dos casos, resolvemos solicitar o seu auxílio. Temos motivo para acreditar que algo de misterioso deve existir no nosso satélite. A interpretação dos dados disponíveis leva, ainda, à conclusão de que o major Rhodan demonstrou mais habilidade que nossos homens. O fato é que foi mais feliz, pois conseguiu sobreviver ao pouso forçado. Não temos a menor explicação para o que aconteceu depois. Há um fato básico que assume a maior importância: tanto a nave do Oriente como a do Ocidente enfrentaram situações de grave emergência em virtude de defeitos no sistema direcional, surgidos sem causa aparente. É impossível responsabilizar os blocos de potências rivais pelo que aconteceu. Os fatos são estes.

Mercant confirmou com a cabeça.

— Cavalheiros, já lhes transmiti com todos os detalhes as notícias e explicações recebidas do major Perry Rhodan. Nosso ex-piloto espacial comunicou simplesmente que encontrou na Lua vestígios de uma estranha civilização dotada de inteligência superior e um avanço tecnológico fantástico. É de lá que provêm as armas e equipamentos infinitamente mais potentes que os nossos. Contrariando ordens que lhe demos, Rhodan pousou no deserto de Gobi. Daí em diante, vem recusando qualquer contato conosco, limitando-se a dizer que representa a chamada terceira potência. No momento, não estamos interessados na definição desse termo. O que importa são os fatos, que, em última análise, encontram seu remate numa cúpula energética impenetrável que representa o maior mistério de todos os tempos. Acabamos de ver, com os nossos olhos, que de nada adianta um bombardeio com armas convencionais.

— Pois dêem-nos armas mais eficientes! — disse o chinês em tom amargurado. — Façam alguma coisa para endireitar as conseqüências catastróficas da traição cometida pelo piloto dos senhores. A esta altura já devíamos estar de acordo em um ponto: Perry Rhodan investe contra todo o mundo. Transformou-se no inimigo público número um. Se não conseguirmos eliminar aquele misterioso campo de força e reduzir a tripulação da Stardust à impotência...

— ...nesse caso, poderíamos ser forçados a unir-nos — interrompeu Mercant, num tom ligeiramente irônico.

Kosselov pigarreou. Lançou um olhar pensativo sobre os homens que se encon­travam reunidos.

— Somos da opinião que, ao usar os meiosde que dispunha para impedir uma guerra nuclear, Rhodan não praticou nenhum ato de alta traição. Pelo contrário — disse o marechal Petronskij. — Os senhores mesmos, dominados pelo pânico, comprimiram os tais botões. Acontece que os mísseis nucleares não explodiram. Portanto, se hoje podemos realizar esta conferência, devemos isso a Perry Rhodan. É este o lado positivo dos acontecimentos, e que não deve ser ignorado.

— Ninguém está ignorando este aspecto — observou Mercant com a voz tranqüila. — Todavia, cabe lembrar que dificilmente teria havido o tão falado aperto de botões se Rhodan não tivesse pousado no território da Federação Asiática. Emitimos numerosas notas nas quais asseguramos que esse pouso não correspondia aos nossos desejos. Apesar disso, Pequim preferiu acreditar que se tratava de uma base ocidental para fins de provocação. Mas, deixemos isso de lado! A esta altura só nos interessa saber de que forma poderemos chegar a um acordo.

— Alguma coisa deve ser feita — disse Mao Tsen, enfatizando as palavras. — Estamos decididos a não tolerar a terceira potência em território da Federação Asiática. O ato de Rhodan constitui um crime contra a ordem mundial. Ele se opõe a uma potência soberana do nosso planeta.

— O senhor devia considerar o ponto de vista de Rhodan — disse o general Pounder em tom ressentido. — Acho que nesta conferência devemos usar de toda a franqueza. E, para falar francamente, permita que lhe diga que, a meu ver, corresponde plenamente aos objetivos da paz mundial, que uma força neutra exerça certo controle sobre nossos atos. Não é necessário ressaltar que, antes, reinava uma tensão horrível no plano internacional. O pouso de

Rhodan no Gobi não foi o fator decisivo que fez com que os botões que acionam as armas nucleares fossem comprimidos no Oriente e no Ocidente. Talvez fosse a fagulha que provocou a explosão, depois de termos acumulado quantidades enormes de explosivos numa guerra fria que já durava alguns decênios.

O chefe do Serviço Secreto do Bloco Oriental parecia nervoso.

— General Pounder — disse com a voz apagada. — Até parece que o senhor continua a ver em Perry Rhodan a criança mimada do seu programa espacial. Permita que lhe diga que também nós não podemos concordar com essa potência que surje de uma hora para outra. Sem falar na situação jurídica, completamente insustentável, não há como nos rebaixarmos a tal ponto que nossos governos fiquem sujeitos às ordens de quem quer que seja! Quem nos garante que Rhodan não se transformará em um imperador mundial? Por enquanto, seu reino é pequeno; está reduzido à imobilidade, já que se acha preso no interior daquela misteriosa capa protetora. Acho que já é tempo de engajarmos o potencial industrial, e científico de todas as potências na luta contra Rhodan. E, antes de mais nada, devemos descobrir quem está por trás dele. Não acreditamos nas informações do CID.

Um sorriso forçado esboçou-se no rosto de Mercant. Ele se levantou. Estava pensativo.

— Eu os convidei a comparecerem ao quartel-general do CID para informá-los sobre os dados mais recentes colhidos por nossa organização. Todos os fatos conhecidos foram processados pelo maior e mais potente dos computadores eletrônicos da Terra. Para não dificultar a obtenção de um resultado final válido, preferimos não formular questões sobre os aspectos favoráveis ou desfavoráveis de uma tecnologia avançada nas mãos de um homem nascido em nosso planeta. Dessa forma, continua em aberto a indagação sobre se Rhodan tenciona desempenhar o papel de guardião pacífico da humanidade, visando ao desenvolvimento e ao progresso, ou se pretende usar os instrumentos infinitamente superiores de que dispõe para entregar-se a uma nova forma de imperialismo.

— É isso o que ele vai fazer! — disse Kosselov, em tom exaltado. — Que motivo poderia ter para não proceder dessa forma?

— Um momento — disse Mercant, com uma cortesia gélida. — Aprecio a oportunidade desse encontro, e todo homem inteligente e amante da paz devia fazer a mesma coisa. Nem por isso, porém, deixo de condenar a conduta ilegal de um homem que partiu como major da Força Espacial e retornou ao nosso planeta como ditador. Pouco importa que Rhodan tenha, ou não, feito um favor à humanidade torturada por tantos pesadelos. O certo é que impediu uma guerra nuclear. Nesse ponto, não posso deixar de concordar com o general Pounder. Todas as reações nucleares conhecidas tornaram-se impraticáveis. Estabelecemos uma união forçada que, a meu ver, forma os laços suaves que conduzirão a uma coligação entre as grandes potências. Estamos todos unidos contra um homem. São estes os únicos fatos relevantes a serem considerados nesta oportunidade. Gastamos semanas em indagações sobre os acontecimentos misteriosos que, certamente, se desenrolaram na Lua. Os dados fornecidos por Rhodan já são do seu conhecimento. Seus serviços de escuta captaram as mensagens radiofônicas trocadas entre o Comando Espacial dos Estados Unidos e o major Rhodan. Por elas se percebe que o major Rhodan insiste na afirmativa de ter encontrado na Lua as criações de uma raça infinitamente superior, e que delas se apo­derou em benefício da humanidade. Recusa-se a entregar os produtos de sua descoberta a qualquer governo da Terra. É claro que, sob o ângulo estritamente jurí­dico, cometeu os crimes de deserção, alta traição e indisciplina, entre outros. Mas não devemos confundir causas com efeitos.

Aqui, não podemos aplicar os padrões jurídicos habituais, ainda mais que Perry Rhodan renunciou à sua patente e à cidadania americana. Tornou-se, pois, um apátrida. Diz ser um cidadão do mundo e não se submete à autoridade dos juizes terrenos.

— É uma posição juridicamente insustentável! — interrompeu Kosselov, em tom exaltado.

— Sem dúvida — confirmou Mercant. — É mais do que isso. A situação é totalmente confusa. Mas será preferível deixarmos o nosso juízo a este respeito para quando tivermos condições de adotar medidas práticas contra Rhodan. No momento, tudo não passa de palavras, e estas são totalmente infrutíferas na situação em que nos encontramos. Devemos nos ocupar exclusivamente com fatos.

Mercant sentou. Fez um ligeiro gesto com a mão. Uma enorme tela iluminou-se. A partida da nave tripulada Stardust foi apresentada.

As imagens da nave foram surgindo. Finalmente, viram os preparativos para o pouso na Lua, fotografados pelos instrumentos de bordo. As fotografias da estação tripulada Freedom-I foram apagadas. Eram excelentes filmes e registros em fita obtidos através de ondas infravermelhas. Ouviu-se a última mensagem radiofônica de Rhodan. Logo após soou o apito estridente do alarma eletrônico e o chiado agudo do pedido de socorro codificado QQRXQ. O equipamento direcional automático da Stardust deu sinal da cessação do funcionamento da teledireção de Terra. As últimas fotografias mostraram a nave se precipitando, em ângulo reto, sobre a superfície da Lua, numa queda aparentemente descontrolada. Por fim, desapareceu atrás da curvatura do pólo lunar.

Mercant mandou desligar o aparelho.

— Acabamos de assistir aos preparativos da decolagem e a queda — disse. — Até aqui, tudo foi claro. Acreditamos que tenha havido alguma falha ou acidente. Houve quem falasse em sabotagem. O que sabemos é que, subitamente, a nave deixou de reagir aos impulsos da teledireção, embora seus receptores estivessem em perfeitas condições. O retorno à Terra prova isso. São estes os resultados finais e incontestáveis a que chegou o computador eletrônico. Agora, os senhores verão o relatório de técnicos que analisaram os resultados fornecidos após a análise dos últimos dados. Dele se conclui, sem sombra de dúvida, que Perry Rhodan não está sozinho. Atrás dele existe alguma coisa desconhecida, apavorante. Os senhores hão de compreender que, por enquanto, é inútil realizar qualquer jogo de estratagemas jurídicos. O que importa saber é quem detém o poder. Se for Rhodan, não teremos outra alternativa senão lembrar, com um sorriso amarelo, o velho ditado, segundo o qual o mais forte sempre tem razão. Concordam comigo?

Kosselov já havia chegado à mesma conclusão. Os representantes da Federação Asiática protestaram em termos veementes. Mercant só pôde dar de ombros.

— Sr. Mao Tsen, partilhamos irrestritamente da sua indignação. Acontece que não estamos em condições de tomar qualquer medida efetiva contra a invasão do seu território, praticada por Rhodan. Os senhores lançaram mão de suas divisões de elite e as armas mais avançadas de que dispõem. Qual foi o resultado? Dispararam projéteis que valem milhões contra a indestrutível muralha energética. Rhodan não mexe um dedo. Segundo os princípios da lógica conclui-se que o homem se sente invulnerável. Recomendo-lhes que desistam e se contentem com um bloqueio total da área. Provarei que o verdadeiro mal está localizado na Lua. Ao que parece, Rhodan não passa de uma figura subalterna de um grande jogo.

Com estas palavras, Mercant exprimiu de forma indireta aquilo que um homem que se encontrava longe dali havia dito numa clarividência notável. Prosseguiu em tom firme:

— Para exterminar o mal pela raiz, teremos de pousar na Lua. Pousar ou atacar, tanto faz. Ouçamos o relatório sucinto de nosso computador.

Voltando-se para os técnicos, Mercant ordenou:

— Podem ligar.

Ouviu-se um ligeiro estalido nos amplificadores, depois...

— Pressupõe-se que os dados fundamentais sobre a decolagem e o pouso da nave sejam conhecidos. O retorno à Terra foi levado a efeito sob controle eletrônico remoto. A penetração na atmosfera terrestre transcorreu normalmente. O acontecimento mais importante que levou à constatação precisa desses fatos consiste no ato de rebeldia cometido pelo major Rhodan ao pousar no Gobi Central, em território asiático. O plano de construção e a planta de equipamentos da Stardust provam que, antes da decolagem, seus tripulantes não tinham a menor condição de utilizar armas e instrumentos mais aperfeiçoados. A interpretação dos dados disponíveis permite concluir com absoluta segurança que o comandante da Stardust encontrou, na Lua, produtos de uma indústria extraterrena.

— Que sabedoria! — resmungou Mao Tsen, com ironia. — Até aí já sabíamos. É só?

A voz monótona do aparelho voltou a soar. A tela mostrou o foguete na área de pouso.

— Com base nas declarações confusas do piloto Clark G. Fletcher, capitão da Força Espacial, verifica-se que o major Rhodan forçou os membros da tripulação a tolerarem o pouso proibido. O capitão Fletcher foi preso pelos serviços australianos de segurança. O tratamento leviano a que foi submetido durante o interrogatório produziu um derrame cerebral. Pelo que se depreende das gravações em fita e dos relatórios médicos, o sistema de memória de Fletcher foi inutilizado por um bloqueio hipnótico parapsicológico. Assim mesmo, conseguiu-se apurar sem sombra de dúvidas que Fletcher foi obrigado a obedecer às ordens de seu comandante. Os funcionários que causaram a morte de Fletcher estão sendo processados.

— Que habilidade! — ironizou o chinês.

O relatório prosseguiu com uma apresentação detalhada dos resultados das investigações. Fez uma reconstituição da conduta dos outros tripulantes, o Dr. Manoli e o capitão Reginald Bell, baseado nas escassas informações fornecidas pelos agentes dos serviços secretos do Ocidente e do Extremo Oriente.

A exposição terminou com estas palavras:

— O desaparecimento misterioso do Dr. Frank Haggard, especialista em doenças do sangue, deve ser encarado como um aspecto importante. E a interpretação dos atos de Rhodan, com base em cerca de onze milhões de possibilidades, dá a explicação desse fato. Admite-se, com 99% de probabilidades de acerto, que o major Rhodan trouxe à Terra um ser vivo não-humano, que sofre de uma doença do sangue. O exame dos preparativos tomados pelo Dr. Haggard permite a conclusão segura de que se trata de leucemia. Apurou-se quais foram os aparelhos e medicamentos que levou consigo. A probabilidade de acerto é de 100%.

Desta vez, Mercant esperou, em vão, por qualquer objeção do chefe do Serviço Secreto da Federação Asiática. Mao Tsen parecia estarrecido na sua poltrona.

— Incrível! — murmurou Kosselov.

Mercant continuou a observar os presentes. O general Pounder estava mergulhado em profunda meditação. O relatório foi concluído com uma observação lacônica:

— A declaração de Rhodan, de ter encontrado na Lua a herança abandonada de uma raça não-humana, e de ter conseguido utilizá-la pela forma já conhecida, é rejeitada com absoluta segurança, por não corresponder à verdade. O exame cuidadoso dos dados técnicos e científicos leva à conclusão de que nenhum homem seria capaz de compreender, em poucos dias, o funcionamento de armas e aparelhos totalmente desconhecidos. A utilização da chamada cúpula energética exige conhecimentos tão estranhos à espécie humana, que deles, nenhum engenheiro terreno dispõe. Considerados todos os fatos, calculou-se com uma probabilidade de 100% que só o conhecimento aproximado da mecânica da cúpula energética exigiria três ou quatro anos de trabalho de uma equipe de pesquisas altamente qualificada. Para o domínio completo do instrumental seriam necessários outros três ou quatro anos. Conhecemos o quociente intelectual dos quatro pilotos. Nunca seriam capazes de, num trabalho conjunto, compreender a aparelhagem e, muito menos, pô-la a funcionar. Eliminados os dados irrelevantes e calculadas cuidadosamente sessenta e quatro milhões de possibilidades, chega-se com segurança absoluta ao fato de que, contrariamente às declarações de Rhodan, este encontrou na Lua seres estranhos de inteligência extraordinária. À falta de dados básicos não é possível apurar os objetivos específicos de Rhodan. Parece recomendável atacar com meios adequados a base dos seres desconhecidos, situada na Lua, ou tentar estabelecer relações diplomáticas.

Com estas palavras, terminou o relato dos fatos interpretados pelo maior computador da Terra.

Mercant levou duas horas para dar respostas às inúmeras perguntas dos presentes. Cálculos detalhados foram solicitados e fornecidos prontamente pela máquina. O computador desenvolveu uma lógica perfeita e cristalina. Finalmente, Kosselov tocou no ponto crítico.

— Não temos dúvidas de que os dados fornecidos são corretos. O computador recomenda um ataque com meios adequados. Os senhores dispõem desses meios? Não é necessário ressaltar que nossas armas nucleares não terão qualquer efeito. Não conseguimos nem romper a cúpula protetora da Stardust! O que me diz, Sr. Mercant?

Este lançou um olhar pensativo aos presentes. Não trazia nos lábios o sorriso habitual.

— Em que condições estão suas naves espaciais, Kosselov?

— Nossa nave está pronta para decolar há uma semana. Com uma tripulação de seis homens e carga útil de 92 toneladas.

O general Pounder fungou. O que acabara de ouvir era um golpe. Seis homens, mais noventa e duas toneladas! O Bloco Oriental continuava um passo à frente.

— O que nos diz, marechal Lao Lin-to?

— Podemos decolar a qualquer momento — respondeu o comandante supremo da Força Aeroespacial da Federação Asiática. — Tripulação, quatro homens; carga útil, 58 toneladas. Os defeitos que causaram a explosão de nossa primeira nave lunar foram removidos.

Mercant pigarreou antes de falar.

— Amanhã, a nave do Ocidente estará em condições de decolar. É a Stardust-II. A tripulação continua a ser de quatro homens e a carga útil é de 64 toneladas. Peço-lhes que providenciem quanto antes um encontro dos técnicos em naves espaciais. Todas as naves devem partir da Terra ao mesmo tempo. Se houver diferenças sensíveis no tempo previsto para o percurso, estas devem ser compensadas de tal forma que as três naves entrem simultaneamente na mesma órbita lunar. Será que conseguirão isso?

— Para quê? — perguntou Kosselov, asperamente. — Que tolice é essa? Quer atacar com quê? Se lá em cima existe uma base ocupada por inteligências superiores, nossos pilotos terão uma surpresa bastante desagradável. Afinal, quais são suas intenções?

Mercant respondeu em tom delicado.

— Antes de mais nada, será necessário tomar providências para que o comando das naves seja manual. Temos instruções para que lhes sejam fornecidos dados exatos sobre os instrumentos de localização que se tornam necessários. A base desconhecida só pode estar localizada numa área bem delimitada junto ao pólo sul lunar.

Mais tarde, forneceremos as coordenadas exatas. Sabemos perfeitamente em que ponto nossa nave realizou o pouso forçado. Os seres estranhos só podem estar em local próximo a este ponto, circunstância que é confirmada pela interpretação dos dados realizada pelo computador. Obtivemos dados muito mais abundantes do que se poderia imaginar. Estão dispostos a trabalhar de mãos dadas com o Ocidente?

Depois de mais duas horas este ponto foi esclarecido e fixado por escrito num protocolo especial de coalizão. Só depois disso, Mercant apresentou seu grande trunfo.

— O senhor perguntou como atacaremos. Por favor, preste atenção!

Desta vez foi um oficial do Ministério da Defesa quem ligou a tela.

Uma ilha minúscula surgiu. Ao que parecia estava deserta. O caos teve início com uma esfera de gases incandescentes. O rugido que saía pelos amplificadores não parecia desse mundo. As energias primitivas desencadeadas formavam uma coluna que subiu vertiginosamente ao céu azul. Vagas enormes, um calor terrível, uma atmosfera dilacerante.

— Trata-se de nossa experiência mais recente — declarou Mercant. — É uma bomba de fusão de cem megatons. Há três meses conseguimos aplicar o princípio da fusão nuclear a frio, já estabelecido no campo teórico. Isso significa que a nova bomba não depende de um dispositivo térmico para desencadear a fissão nuclear. A bomba catalítica funciona com base em átomos de mésio. Basta utilizar um dispositivo químico de ignição que funciona a uma temperatura de apenas 3.865 graus centígrados para que a reação nuclear tenha início. Não temos necessidade de nêutrons livres. Dentro de quinze dias, a nova bomba catalítica estará em condições de ser transportada e, portanto, utilizada. Um grupo de transporte americano fará a entrega, de acordo com o protocolo que acaba de ser firmado. Por enquanto, preferimos não utilizar a nova bomba contra Perry Rhodan. Se destruirmos sua base na Lua, ele se renderá. Mais alguma pergunta?

Muitas perguntas foram feitas. Todas elas conduziram a um fato incontestável: nunca antes as grandes potências tinham mostrado suas cartas mais secretas pela forma como o estavam fazendo naqueles dias.

Um homem alto e louro, de gestos delicados, cujo rosto revelava bastante autocontrole, observava atentamente as reações do chefe do Serviço Secreto, um personagem quase onipotente. E uma vez terminada a sessão, breve mas importante, pediu dispensa das funções de observador especial e oficial de ligação do Conselho Internacional de Defesa e solicitou permissão para atuar na China.

Mercant atendeu ao pedido. Ao retirar-se, o homem alto teve a impressão de sentir o olhar do chefe pousado na sua nuca. Costumava-se dizer que o cérebro de Mercant era dotado de qualidades excepcionais. De qualquer maneira, atendera ao desejo razoavelmente fundamentado de seu melhor agente. Mas não deveria ter sorrido de forma tão estranha.

Lá fora, ouviam-se os rugidos dos pesados bombardeiros Delta dos visitantes que deslizavam sobre a pista. O QG do CID voltou à rotina. Allan D. Mercant estava satisfeito, tanto quanto isso era possível em meio aos acontecimentos.

No entanto, dizia-se que seu cérebro possuía uma elevada capacidade parapsicológica. E quase todos os visitantes que naquele dia compareceram ao QG haviam menosprezado esse fato. Só um homem estava meditando a respeito. Para ele, a idéia constituía um foco de permanente inquietação.

— Deixemos que os dados rolem — murmurou Mercant.

 

Duas horas da madrugada. Num gesto brusco, o homem magro que ostentava as divisas de tenente-general baixou a mão.

No mesmo instante, irromperam as fúrias do inferno. As bocas de cerca de seis mil canhões e lança-foguetes começaram a cuspir fogo.

Em toda a história militar da humanidade jamais houvera um fogo cerrado como este. Nunca antes, mil e quinhentas baterias, quase todas compostas dos calibres mais pesados, concentraram seu fogo sobre um alvo que não era maior que um jardim.

O cerco continuava, com a única diferença que novas divisões haviam sido mobilizadas nos últimos trinta dias. Desde alguns dias antes, o território delimitado pela cúpula energética passara a ser bloqueado por um cordão quíntuplo de tropas.

Pouco depois da abertura do fogo, seis mil projéteis de calibres variados golpearam a cúpula protetora. A pontaria foi concentrada numa área de cinqüenta metros quadrados, situada a vinte metros acima do solo.

Foi ali, e somente ali que detonaram cargas explosivas. Era a última tentativa de romper a muralha energética, após uma série de ataques infrutíferos.

O QG ficava numa elevação, a treze quilômetros da linha divisória do território ocupado por Rhodan.

As posições de artilharia ficavam mais ao norte. As baterias pesadas foram instaladas a trinta quilômetros do alvo. Os canhões convencionais voltaram a ser utilizados, pois ao que tudo indicava o pequeno grupo que ocupava o território bloqueado fora reduzido à imobilidade.

Já não se notava o menor indício de um estado de ausência de gravidade. Por isso, o general Tai-tiang ordenara o novo ataque.

Os oficiais de seu estado-maior olhavam fixamente para o alvo. Entre eles havia cientistas, inclusive peritos em armamentos. A força de impacto dos projéteis que atingiam o alvo ao mesmo tempo chegava a vários milhões de toneladas. As ondas de pressão que se sucediam sem cessar teriam sido suficientes para aplainar uma cadeia de montanhas. Ficaram observando o espetáculo durante quinze minutos, sem trocar uma única palavra. A essa distância, a área atingida parecia uma mancha incandescente de dez centímetros, que constante-mente expelia raios fulgentes.

A cúpula energética, normalmente invisível, emitia um brilho esverdeado. Junto ao local dos impactos assumia uma tonalidade violeta. Nada mais aconteceu. A cúpula reluzente parecia um símbolo brilhante em meio à noite impregnada de uma luminosidade vermelha.

— Este bombardeio arrasaria as fortalezas mais resistentes do mundo — disse Tai-tiang, em tom ressentido. — De que tipo de máquinas disporá essa gente? Como será possível resistir a um fogo cerrado destes com a mesma facilidade de quem se abriga de bolinhas de gude atiradas contra uma parede de aço? O que está acontecendo?

O chinês voltou a cabeça num gesto repentino. Seus olhos pareciam chispar fogo. Tai-tiang sabia perfeitamente que estava prestes a atirar outro bilhão do patrimônio do povo contra uma parede misteriosa.

— Os ilustres cientistas envolvem-se num silêncio desnorteante — resmungou. — Muito bem! Será que seus colegas do Ocidente têm alguma coisa a dizer?

As equipes de observação de americanos e europeus haviam chegado quinze dias atrás. A delegação do Bloco Oriental presenciara o fracasso catastrófico do Exército Asiático desde o início. Os conselhos e as recomendações tornavam-se cada vez mais raros. E agora, os colegas do Ocidente viram-se brindados com olhares irônicos.

Um dos maiores físicos nucleares dos Estados Unidos procurou fazer-se ouvir por cima do trovejar dos canhões distantes. Só com grande esforço, aos gritos, conseguiu ser entendido.

— Cavalheiros, deixamos perfeitamente claro aos senhores e aos seus governos que nem mesmo nós dispomos do elixir da sabedoria. Aqui nossos conhecimentos científicos e a experiência dos nossos técnicos esbarram numa muralha intransponível. Recomendo encarecidamente que voltem a consultar as equipes médicas e psicológicas. Se algo puder ser feito, isso só é possível através da prostração nervosa dos inimigos que se encontram cercados.

— Tentaremos no devido tempo — disse o comandante em tom nervoso. - Acha que foi por nada que tivemos o trabalho infernal de instalar estas baterias? Lançamos mão de quase toda a frota de aviões de transporte da Federação Asiática para garantir o abastecimento de munições. Não compreendo que os senhores não estejam em condições de fornecer qualquer cálculo aceitável. Deve haver uma maneira de destruir esse complexo. Se para isso precisarmos de mais mil e quinhentas baterias, é só avisar.

A discussão tornou-se mais acalorada. A apenas treze quilômetros dali, um verdadeiro inferno foi desencadeado num espaço bastante restrito.

— Eu ficaria louco se estivesse ali — disse um civil de estatura baixa e lábios ressequidos. Seus olhos procuraram a figura alta em meio à penumbra do abrigo de observação.

O homem aproximou-se. Apesar da elasticidade dos seus passos, parecia arrastar os pés. Quando surgiu na luz débil das lâmpadas semi-apagadas, seu rosto exprimia uma tranqüilidade surpreendente.

Sem dizer uma palavra, dirigiu o potente binóculo para oeste. Logo após, lançou um olhar sobre o relógio.

Perto dele, a luminosidade verde de um isqueiro rompeu a escuridão. O tenente Peter Kosnow, agente especial dos Serviços Secretos do Oriente, fumava em baforadas rápidas e nervosas.

Este, sentia-se tomado de sentimentos caóticos. Não era fácil ficar parado em meio àquele ajuntamento de oficiais de alta patente. Em condições normais, Kosnow não teria dado a menor importância aos militares. Até então, os poderes extraordinários de que se achava investido haviam bastado para manter um relacionamento satisfatório também com esse tipo de gente. Na maioria das vezes, tinham de submeter-se às ordens dele, que não passava de um simples tenente do Serviço Secreto. A situação não sofrera qualquer modificação, pelo menos nas aparências. Enquanto não se conseguisse enxergar atrás da testa daquele homem robusto, ele continuaria a ser considerado o representante de uma organização superpoderosa.

Ele mesmo, porém, acreditava que todos notariam a inquietação de que se achava possuído. Tornou-se inseguro e insatisfeito consigo mesmo. Lutou para manter o autocontrole e esforçou-se para não despertar a menor desconfiança.

Pensou no cigarro que mal começara a fumar. O brilho apagou-se. Só o rosto estreito do homem que se encontrava diante dele destacou-se na luminosidade dos televisores.

No íntimo, Kosnow começava a duvidar de seu novo amigo. Nem por um segundo chegou a pensar na possibilidade de que o capitão Albrecht Klein, agente especial do Conselho Internacional de Defesa pudesse cometer uma tolice. O que não o impedia de achar que a audácia do colega constituía uma rematada loucura.

Kosnow reprimiu um pigarro. A discussão travada em altas vozes entre os oficiais e cientistas veio bem a propósito pois fornecia uma verdadeira cortina sonora que encobria a conversa dos dois homens.

Albrecht Klein, promovido havia apenas três semanas pelo próprio Allan D. Mercant, ao posto de capitão do CID, descansou o binóculo num gesto vagaroso. Lançou um olhar perscrutador para os homens que gesticulavam nervosamente. Permitiu-se um repuxo irônico dos cantos da boca.

— São exatamente dez horas e dezoito minutos — disse em voz baixa. — O que houve, meu camarada? Seu rosto parece ter sido tirado de um museu de cera!

Kosnow soltou um palavrão. Sua voz tinha um tom gutural. Klein continuou:

— Há seis horas que o grupo de transportes pousou na Sibéria. A esta hora, a nave lunar de vocês já deve ter a bordo a nossa nova bomba. E eu não gosto de nada disso.

Depois, em silêncio, examinou o seu colega do Oriente com um olhar atento. Os olhos de Kosnow estavam fixados na cúpula energética que se desenhava nitidamente em meio à noite.

— São formidáveis — cochichou ao ouvido de Klein. — Se tivessem praticado o menor ato que pudesse ser considerado um atentado aos direitos humanos eu seria o maior inimigo deles — e também de você. Mas como as coisas estão, não posso; e isso me deixa doente. Você compreende, amigo?

Klein deu uma risada.

— A quem vai dizer isso! Só sei que impediram a guerra nuclear que estava para ser iniciada. Também sei que Rhodan não pretende favorecer qualquer das partes. Tenho um medo terrível de que amanhã ou depois as coisas mudem. A desconfiança e o medo que reinavam entre os homens cederam porque um novo inimigo surgiu. Como se sentem diante de uma ameaça comum, adotam um procedimento comum. E isso vale muito. Ninguém teria alcançado a tão desejada paz mundial de forma mais bela, rápida e eficiente. Enquanto Rhodan desempenhar as funções de terceira potência, nós formaremos uma unidade coesa. Quanto mais durar, tanto mais intensamente a idéia do seu poderio inacreditável penetrará na mente dos homens e mais fortemente solidificaremos nossa união. Se a situação perdurar por mais alguns anos ou décadas, teremos uma Terra unida. Nestas condições, não vejo por que lançar mão de todos os recursos para eliminar Rhodan. Quando ele estiver liquidado, a guerra fria irromperá de novo. Sejamos honestos quanto a isso!

— É uma conclusão clara e absolutamente lógica — Kosnow esboçou um sorriso triste. — Mas há um senão. Ninguém sabe que rumo tomará a personalidade de Rhodan. Ele não passa de um homem, mesmo que estejamos entusiasmados por ele.

— Sou o único homem que manteve contato pessoal com ele depois que pousou na Terra. Também sou o único que viu o tal Crest. A esta altura, nossos ilustres chefes já chegaram à conclusão de que um ser extraterreno se encontra em companhia de Rhodan. Isso revela um poder de observação genial. Acontece que não viram Crest. Estou convencido de que Rhodan é predestinado a cuidar de toda a Terra. Decida logo, Peter! Veja o nosso exemplo. Quando nos encontramos há cerca de dois meses, pegamos instintivamente nas armas.

— Rotina. E reflexo condicionado — retificou Kosnow.

— Pode ser. Tanto pior, se tivermos de nos exprimir por essa forma. A esta altura, acho que não é mais que nosso dever fazer alguma coisa pelo mundo que vivemos. Para mim a guerra nuclear frustrada graças à intervenção de Rhodan representou o golpe final. Que diabo! Até onde chegamos! Vivíamos todas as horas do dia num medo constante do amanhã. Não quero que isso se repita. Uma tentativa malograda basta! Bem, não tenho mais nada a dizer. Já o informei sobre o resultado da conferência da Groenlândia. A bomba ainda é um assunto rigorosamente confidencial. Nenhum dos homens que aqui se encontram sabe coisa alguma a respeito. Até mesmo o general Tai-tiang é um homem tão sem importância que não merece ser informado sobre a nova arma nuclear. Segundo a vontade dos grandes chefes, o bombardeio da cúpula não passa de uma manobra planejada e executada de forma a mantê-lo ocupado e para desviar a atenção que poderia ser atraída pelo lançamento de naves tripuladas. Depois que a base na Lua tiver sido destruída, os chineses evacuarão a área e um bombardeiro ocidental soltará uma única bomba sobre a região.

O capitão Klein voltou a olhar para o relógio. Seus trajes escuros mal se destacavam da escuridão que reinava no fundo do abrigo. Kosnow permaneceu calado. Seus dentes vigorosos morderam o lábio inferior. Ainda hesitava.

— Minha missão começará dentro de oito minutos. Você participará dela. Decida logo! Aqui ainda podemos falar à vontade.

A figura de Klein submergiu na escuridão. Alguns segundos depois, fez continência a alguns oficiais uniformizados dos Serviços Secretos das três potências que participavam da operação.

O representante do Serviço de Defesa da Federação Asiática era o major Butaan; o do Serviço Secreto do Bloco Oriental, o coronel Kalingin; e o do CID, o coronel Cretcher.

Haviam elaborado um projeto conjunto cujo valor prático seria testado por um comando composto de agentes especiais do Ocidente e do Oriente.

Peter Kosnow também surgiu na luz abafada. Gestos rápidos, palavras ditas em voz alta.

O general Tai-tiang juntou-se aos homens que aguardavam. Seu aperto de mão foi cordial, mas seus olhos negros emitiam um brilho frio.

— Agirei conforme o combinado. Procurem executar os planos dos serviços de defesa. Se conseguirem poderão contar com a nossa gratidão. Quando pretendem penetrar na área bloqueada?

— Às três em ponto, senhor — respondeu o capitão Klein. — Pedimos-lhe encarecidamente que volte a transmitir instruções precisas aos comandantes das respectivas unidades. Não gostaríamos que nossa gente nos matasse por engano.

O general chinês franziu a testa. Depois sorriu. Ao que parecia, a expressão “nossa gente” soara um pouco estranha aos seus ouvidos.

— Não se preocupem. Não haverá nenhum engano da nossa parte. O helicóptero está esperando.

— Está na hora — insistiu o coronel Cretcher.

— É necessário que nossos homens estabeleçam contato antes do nascer do sol — interveio o coronel Kalingin. — Se Rhodan reagir conforme desejamos, poderão suspender o fogo às oito da manhã.

— Tomara que isso aconteça — murmurou Tai-tiang. — Soltem o demônio em tempo e tenham cuidado para não contaminar os nossos soldados. De que se trata?

O coronel Cretcher não satisfez a curiosidade do chinês.

— Trata-se de uma descoberta dos cientistas ocidentais — limitou-se a dizer. — O senhor há de permitir que nos retiremos.

Klein e Kosnow desceram em companhia dos oficiais. Numa das salas do abrigo fora instalada a central de comando dos Serviços Secretos. Um médico aplicou as últimas injeções. Isso foi feito com uma seringa hipodérmica especialmente esterilizada e guardada, que injetou o medicamento diretamente na corrente sanguínea.

— Alguma reação? — perguntou o médico. — Tonturas, perturbações do equilíbrio, sensação de calor?

— Nada, doutor — informou Klein. — Tomara que isso faça efeito. Não estou disposto a aparecer aos homens na forma de um monstro inchado.

— O senhor nem teria tempo para isso — observou um dos radiobacteriologistas. — Sob as condições químicas aqui reinantes, os germes cultivados estão em condições de viver e multiplicar-se. A única coisa que têm a fazer é abrir às escondidas as válvulas das pequenas garrafas de pressão. Um ligeiro chiado será inevitável. Tenham cuidado. Não se esqueçam de que, apesar das vacinas de alta eficácia, não será conveniente que o jato de plasma entre em contato com o rosto. O líquido está cheio de microorganismos dos tipos mais perigosos. Não posso revelar mais nada.

— Toda a área situada no interior da cúpula energética será contaminada? — perguntou Kosnow.

— O que mais você quer? — respondeu o coronel Kalingin, asperamente. — Se conseguirmos introduzir esta substância radiobiológica na área cercada pelo anteparo de radiação energética, dentro de poucas horas toda e qualquer forma de vida estará extinta no interior da cúpula. Dessa forma, poderíamos levantar acampamento. Nem mesmo o Dr. Haggard conhece qualquer remédio contra esses germes.

Ao receber a garrafa de aço, que não tinha mais de quinze centímetros, o capitão Klein sentiu a garganta ressequida. Parecia um bujão de oxigênio de um aparelho para respiração. A única diferença é que, ao contrário daquele, sua carga era a mistura mais infernal jamais produzida nos laboratórios secretos dedicados à guerra bacteriológica.

Ao que parecia, o coronel Cretcher estava percebendo a repugnância de seu agente.

— Klein, quem lhe confiou esta missão foram os representantes oficiais de toda a humanidade — disse em tom apaziguador. — Você parece ter captado uma certa admiração de Perry Rhodan. Há poucas semanas, este lhe permitiu que penetrasse na cúpula energética, onde mantiveram ligeira palestra. Tente entrar de novo. Diga que conseguiu passar às escondidas e contra a nossa vontade pelos cordões de tropas que isolam a área, a fim de conferenciar com Rhodan a pedido de um grupo revolucionário. Você leva uma vantagem enorme: já o conhece. Uma vez lá dentro, abra a válvula da garrafa de pressão sem que ele desconfie. Uma carga é suficiente. Invente qualquer coisa para fazer com que Rhodan acredite na sua missão revolucionária. É só.

Klein engoliu em seco. Parecia ter os olhos em fogo no rosto pálido.

— Sim, senhor — disse com a voz pesada. — Estou acostumado a fazer serviços desagradáveis, mas este negócio me parece muito sujo.

— O trabalho dos serviços secretos nunca foi muito nobre — resmungou Kalingin. — Francamente, capitão Klein, não compreendo os seus escrúpulos. Nosso pessoal não costuma ser assim.

O coronel Cretcher lançou-lhe um olhar de advertência. O rosto de Peter Kosnow continuava impassível.

— Pois é isso! — observou o major Butaan. Não disse mais nada, mas Klein teve a impressão de que o asiático seria um inimigo perigoso. O radiobiólogo americano, cujo rosto estava um pouco pálido, explicou:

— Capitão, apesar das ordens que tenho quanto ao sigilo, compreendo seus escrúpulos. Asseguro-lhe que essa arma não é a mais diabólica que temos em nosso arsenal. Os germes que se encontram nessas garrafas produzem uma infecção imediata, seguida de uma inchação dos tecidos do corpo. Mas se o antídoto for ministrado dentro de oito horas após a contaminação, o restabelecimento é absolutamente seguro. É claro que dispomos desse antídoto. Portanto, tudo dependerá de Perry Rhodan, exclusivamente dele, que poderá seguir as instruções que transmitiremos pelo rádio e pelos alto-falantes, abandonando o território bloqueado dentro de oito horas. Acho que é uma solução humana.

Klein preferiu não responder. Não apenas seria inútil, como também perigoso. O major da Federação Asiática observava-o com uma expressão de desconfiança nos olhos entreabertos. Antes que os dois agentes se retirassem, Butaan disse, em tom enfático:

— O tenente Li Shai-tung, representante dos Serviços Secretos da Federação Asiática, está esperando no helicóptero. Fazemos questão de que ele tenha uma participação bastante ativa na missão especial. Entendido, capitão Klein?

O homem louro baixou os olhos para o malaio franzino.

— Perfeitamente, senhor! — soou a resposta, proferida em tom frio. — Não vejo nenhum motivo para que Li Shai-tung não participe.

Klein lembrou-se das ordens que recebera. Já se encontrava na Ásia o tempo suficiente para saber que ali não se costumava respeitar os melindres alheios. Isso aplicava-se especialmente ao Serviço Secreto da Federação Asiática.

— Se necessário, deverá sacrificar-se no interesse da causa comum — foram as instruções. Klein sentiu um gosto amargo na boca.

Pouco depois, os agentes se retiraram.

Ao saírem do abrigo de grande profundidade, foram recebidos pelo rugido infernal das peças de artilharia. Ao norte, as bocas dos canhões expeliam sem cessar os seus lampejos para o céu. Parecia uma fita rubra feita de chamas.

Diante do abrigo, o helicóptero estava à espera. O tenente Li encontrava-se no comando. Já tinha recebido as últimas injeções. De acordo com o plano, aproximar-se-iam da cúpula num ponto situado além da área alvejada pela artilharia e ali procurariam entrar em contato com Rhodan através do equipamento portátil de radiofonia.

A máquina potente dos serviços de defesa entrara em funcionamento. Nenhum detalhe fora esquecido. Ninguém cometera o menor engano.

Havia, porém, uma circunstância da qual ninguém suspeitava. Nenhum dos oficiais tinha a mais leve idéia a respeito de como os três se entendiam e não se tinha a mais leve desconfiança de que eles também estavam empenhados em preservar a paz para a humanidade.

E assim, um americano de descendência alemã, um russo e um chinês subiram para o céu entrecortado de projéteis. Depois de terem contornado a área alvejada e quando se aproximavam da cúpula energética, Li Shai-tung perguntou, após um ligeiro pigarro:

— Tudo em ordem por aí? Já estão cientes de que arriscamos nossas cabeças, não estão?

Kosnow sorriu, mas não respondeu. Em vez disso, dirigiu-se a Klein num tom estranho:

— Agora, sejamos sinceros, camarada! Que tal seu chefe todo-poderoso? Por que você ficou preocupado com o sorriso que ele deu quando você solicitou autorização para esta missão especial? A idéia da introdução dos germes na área da cúpula foi sua, não foi?

Klein fez que sim. Empalidecera. Seus olhos claros exprimiam uma grande inquietação. Falando com a voz abafada, disse:

— Mercant é um sujeito formidável, mas nunca se sabe o que ele traz na cabeça. Com ele, até os melhores psicólogos falham. Não há como interpretar seus atos. Dizem que é dotado de faculdades espirituais extraordinárias.

— O que não é estranho num mundo como o nosso.

— Sem dúvida. Mas pela idade de Mercant, os genes de seus progenitores não podem ter sofrido qualquer dano. Quando ele nasceu, ninguém ao menos desconfiava de reatores atômicos ou bombas nucleares. Se o homem é extraordinário, as causas devem ser outras. Dizem que em todas as épocas houve casos de mutação espontânea.

— Por que isso o preocupa? Ele não o autorizou a realizar a missão?

— Autorizou — disse Klein. — Atendeu ao meu pedido de transferência e até providenciou a arma biológica. Apenas, ao despedir-me dele, tive a impressão de ter sido penetrado até as profundezas mais recônditas dos meus pensamentos. Comportou-se como um adulto que percebe a travessura do filho, mas faz de conta que não sabe de nada. É uma sensação desagradável.

Os dois homens ficaram calados. Kosnow apagou o cigarro. Depois, começou a falar, expondo com precisão suas idéias.

— Existem duas possibilidades. Se adivinhou suas intenções, não tem objeção a que você dê uma dica a Rhodan. Daí se concluiria que está de acordo com as medidas tomadas por ele. Talvez compreenda que sua atuação constitui a melhor garantia para a paz mundial. Seria mesmo de admirar se um homem com suas qualidades ainda não tivesse chegado a essa conclusão. Se não adivinhou, você está vendo fantasmas. Mude de rumo, Li. Dê o sinal luminoso às tropas estacionadas em terra, senão poderemos receber uma rajada bem no meio do peito.

Foi esse o começo da missão daqueles três homens que sabiam, no íntimo, o quanto seus chefes estavam totalmente enganados.

O capitão Klein segurou a garrafinha de pressão. Antes que o helicóptero iniciasse as manobras de aterrissagem, disse em tom grave:

— Vejam só! Fabricamos esta coisa maldita para, eventualmente, atirá-la na cabeça de vocês. Muito interessante, não é?

— Não se preocupe — ironizou Kosnow. — Temos coisas parecidas. Também acredito que já está na hora de destruirmos brinquedos deste tipo. Mas, oportunamente, teremos que trocar algumas palavras sobre nossas concepções ideológicas.

— Ainda bem que isso não interfere no seu desejo de paz — disse Klein em tom irônico. — Não estava nas intenções do Criador que uns palhaços coloridos de ideologia andem se despedaçando apenas por não lhes convir a opinião dos outros homens, que também são criaturas de Deus.

— Você fala que nem minha mãe — murmurou Kosnow. — Está certo. Não falemos mais nisso. Estou ardendo de curiosidade para ver Perry Rhodan.

 

Os homens resolveram resguardar-se com os grossos abafadores, como se o simples fato de estarem protegidos das violentas ondas de som fosse a mais eficiente panacéia contra o poderio dos atacantes.

Com um gemido abafado e medo nos olhos, haviam colocado os capacetes poucos segundos após um novo ataque de artilharia. Só mais tarde ligaram os contatos dos aparelhos de comunicação.

Perry Rhodan já chegara à conclusão de que as coisas não poderiam continuar como estavam. Os acontecimentos pareciam evoluir inexoravelmente em direção a uma catástrofe.

Num acesso de fúria, Reginald Bell tentara influenciar as tropas que os cercavam através do psicoirradiador. A tentativa revelara-se inútil, pois até mesmo os postos avançados haviam cavado seus abrigos muito além do alcance do instrumento.

O neutralizador gravitacional também falhara. Por ali não havia nada que pudesse ser atingido e neutralizado com o pequeno instrumento. Nem mesmo as granadas que os canhões expeliam sem cessar puderam ser desviadas. As baterias estavam com a pontaria bem ajustada e dispunham de tabelas de tiro calculadas com exatidão. Toda vez que o aparelho antigravitacional começava a funcionar, os artilheiros ajustavam suas peças. Os foguetes teleguiados tinham uma precisão extraordinária: atingiam sempre o mesmo ponto.

Uma hora depois de iniciado o bombardeio, o tremor do solo tornou-se insuportável. O reator dos arcônidas começou a emitir uma luminosidade azulada. A cúpula protetora também mudou de cor.

Rhodan teve a impressão de que os so­lavancos do solo prejudicavam o funciona­mento do instrumento.

Com os olhos cerrados, observou o incrível fogo que se desenvolvia a leste. Já desistira de usar o raciocínio para calcular causas e efeitos. Numa oportunidade destas, o cérebro humano revelava-se insuficiente. Não saberia conjeturar sobre o tempo que a cúpula energética poderia resistir ao formidável bombardeio. Talvez, os fenômenos luminosos que tanto o preocupavam fossem totalmente inofensivos; poderiam representar um efeito normal do aumento de desempenho do reator.

Mas também era possível que o brilho azulado anunciasse o fim próximo. Uma vez que o impacto dos projéteis concentrava-se num ponto da cúpula, verificava-se um enorme deslocamento de forças. Com uma preocupação crescente, Rhodan perguntou-se se na construção do aparelho fora prevista uma sobrecarga dessas. Não havia dúvida de que a reação dos chineses fora muito inteligente.

Depois de uma hora, a situação na cúpula tornara-se insuportável. Se os excelentes abafadores não estivessem a bordo, pelo menos o Dr. Manoli, um homem bastante instável, já teria enlouquecido. Não fora feito para resistir a uma provação desse tipo.

Bell e Rhodan aceitavam os acontecimentos com um sorriso feroz. Sabiam que, se não recebessem auxílio de fora, não só continuariam isolados, como correriam grave perigo.

Pelas duas e cinqüenta, Rhodan começou a temer o colapso da cúpula energética. Parado diante do reator cilíndrico, observava os fenômenos luminosos que arruinariam os nervos de qualquer pessoa. Não pôde ouvir os ruídos de funcionamento, que por certo haviam aumentado. O barulho infernal das explosões abafava tudo.

As débeis lâmpadas fluorescentes da tenda haviam se quebrado. O duro solo do deserto absorvia as vibrações, para transmiti-las sob a forma de um verdadeiro terremoto. A cúpula energética não oferecia muita proteção contra esse inconveniente.

Para disporem de alguma luz, os tripulantes da Stardust penduraram lâmpadas a pilha nos suportes da tenda. Na sala que servia de enfermaria fora instalada uma iluminação impecável. Ao que parecia, a moléstia de Crest aproximava-se da fase crítica.

No início do bombardeio, o Dr. Haggard despertara, num sobressalto, do sono profundo em que estivera mergulhado. Até então, o Dr. Manoli acompanhava o paciente.

Ao que parecia, o incrível sistema circulatório de Crest resistira à segunda injeção. Não havia a menor dúvida de que os sintomas da leucemia haviam desaparecido por completo. O espectro sanguíneo não apresentava a menor anomalia. Assim mesmo, porém, Crest continuava mergulhado em profunda inconsciência.

Com passos leves, Rhodan saiu de perto do reator. Parecia recear que a qualquer momento, o aparelho extraterreno, cuja capacidade de desempenho eram mais que misteriosas, entrasse em colapso. As conseqüências seriam catastróficas. Reginald Bell colocara-se, novamente, diante das telas do radar que haviam sido retiradas da nave.

Tratava-se dos instrumentos mais aperfeiçoados jamais produzidos na Terra. Eram feitos à prova de vibrações e de impactos de considerável força. Resistiram perfeitamente ao pouso forçado na Lua e, ao que tudo indicava, o bombardeio não lhes estava causando o menor dano.

A tela do localizador de radar permitia a visão das posições mais afastadas do inimigo, desde que o aparelho fosse ajustado para o aumento máximo.

O instrumento de localização infravermelha fornecia quadros excelentes das posições de artilharia situados na outra margem do rio. O funcionamento do dispositivo automático de advertência era perfeito, mas o computador acoplado a ele não teve a menor chance de calcular as posições do inimigo.

Não havia ninguém numa área de dez quilômetros em torno da cúpula energética. Nada se movia e não havia nada que pudesse ser localizado com os instrumentos de que dispunham, ou atacado com as armas dos arcônidas.

Rhodan aproximou-se lentamente. Mais uma vez, fixou os olhos nas telas iluminadas. O rosto largo de Bell estava quase totalmente encoberto pelos abafadores. Só os olhos azuis brilhavam por baixo da grossa proteção. Mais uma vez, os microfones presos ao pescoço eram o único meio de comunicação.

Com as mãos tremulas, Rhodan estabeleceu o contato. A primeira coisa que percebeu foi a respiração ofegante de Bell.

— Se isso durar mais algumas horas, o reator entrará em pane — disse em tom indiferente. — Acho que, a esta altura, você já compreendeu.

Bell virou a cabeça.

— E daí?

Os lábios de Rhodan estreitaram-se. Lançou um olhar significativo para o relógio.

— Um homem sensato, que sabe usar a cabeça, não devia esperar milagres, nem mesmo dos produtos de uma técnica muito mais avançada que a nossa. Qualquer peça mecânica pode falhar e... — no seu rosto havia um ar de riso e resignação — ...é exatamente isso que nos espera. E há mais um detalhe...

Bell vasculhou o setor ocidental das formações que os cercavam. O localizador infravermelho, ultra-sensível, chegou a registrar os cigarros acesos dos soldados asiáticos. A radiação térmica produzia na tela um amplo anel de pontos incandescentes que se iluminavam a espaços variáveis. Era um espetáculo estranho.

Bell interpretou corretamente a risada de Rhodan. Seu rosto, que não era corado, tornou-se ainda mais pálido. Os olhos lançavam uma indagação.

— Há mais um detalhe — repetiu Rhodan, pensativo. — O bombardeio continuará por horas a fio. Acham que conseguirão romper a cúpula energética; e têm certeza de uma coisa: nossos nervos não resistirão por muito tempo. Crest é a única pessoa que conhece o reator e poderia regulá-lo. Mas está mergulhado numa inconsciência que, segundo os médicos, não representa maior perigo para ele; para nós, porém, poderá representar o fracasso total. Se o reator entregar os pontos, seja aos poucos, seja numa terrível explosão, estaremos liquidados. Encontramo-nos na iminência de uma capitulação. Já se deu conta disso?

Os olhos de Bell estavam presos à tela. Um novo abalo fez oscilar as lâmpadas. As sombras projetadas sobre as paredes da tenda transformaram-se em quadros grotescos. Na sala de enfermagem os dois médicos se sobressaltaram.

Bell lançou um olhar para lá. A sombra de Crest desenhava-se nitidamente na parede divisória de plástico. Continuava imobilizado no leito. Alguns robôs-médicos dos arcônidas estavam inutilizados. Não foram feitos para resistir a abalos dessa ordem. Por isso, os exames periódicos de circulação e atividade cardíaca tiveram que ser realizados pelos dois médicos. Era um trabalho duro, de grande responsabilidade, e que se tornava ainda mais difícil face ao estranho organismo de Crest.

— Já me dei conta, sim — respondeu Bell. — Crest deve ser despertado. Não vejo outra alternativa. A não ser — um sorriso esboçou-se no seu rosto — ...a não ser que você queira entrar em contato com Thora. Muito embora o último apelo que você fez a sua inteligência não tenha produzido o menor resultado. Mas, a esta altura, talvez compreenda que as coisas estão sérias.

— Essa idéia já me ocorreu — respondeu Rhodan. Segurou a tomada que estabeleceria a ligação. Seus lábios encresparam-se num sorriso.

— Mas há um porém, meu caro. Há poucos minutos o aparelho de radiofonia dos arcônidas deixou de funcionar. Estamos isolados. Será que você teria coragem de mexer nisso?

Bell ficou estarrecido. Seu rosto pálido falava por si. A missão, que tivera um início tão promissor, estava na iminência de um lamentável naufrágio.

Mas logo reagiu. Sem revelar qualquer sinal de medo, disse:

— Isso era de esperar. Estão atirando dez mil toneladas de explosivos sobre a cúpula. É provável que, além disso, estejam realizando explosões subterrâneas junto às bordas da mesma a fim de provocar terremotos artificiais que nos enlouqueçam. Muito bem! O aparelho não funciona mais! Quando é que Thora saberá disso?

— Por ocasião do próximo contato diário, previsto para as oito horas. Se não houver resposta, intervirá.

Bell engoliu em seco. O rosto magro do ex-major transformara-se numa máscara rígida.

— O que significa isso? — perguntou Bell em tom apressado.

— O quê? — Rhodan girou o regulador do volume. A voz potente de Bell soara com uma intensidade excessiva.

— Bom... Embora Crest nos tenha promovido à classe D da escala de inteligência dos seres galácticos, ela ainda se recusa a reconhecer-nos como seres que devem ser tratados de igual para igual. Se não respondermos ao contato de rotina, e se as excelentes sondas automáticas constatarem que a nossa cúpula está sendo bombardeada, possivelmente concluirá que alguma coisa aconteceu a nós e a Crest. Nesse caso, deixará de lado todos os escrúpulos. Será apenas a comandante de uma nave espacial de combate. E ela já esteve muito perto de dar uma lição amarga à humanidade. Bem, veremos! Mas, como é? Você teria coragem de mexer no equipamento de radiofonia dos arcônidas, ou não?

A mão de Rhodan tocou nos pinos de contato. Seus olhos cinzentos emitiam um brilho frio. Bell teve a impressão de que Rhodan estava prestes a tomar uma decisão importante.

— Prefiro sentar numa chapa de fogão sem qualquer vestimenta protetora — disse. — Não entendo coisa alguma dessa geringonça. Não seria capaz de consertar um contato frouxo. Não consigo sequer abrir as chapas de revestimento do aparelho. Não há tesoura que as corte. Já tentei. Não existem parafusos, grampos ou outros dispositivos de fixação. Parece que foi tudo fundido em uma única peça. É claro que pode ser aberto, mas eu não sei como.

— Então, nada feito? — perguntou Rhodan, como se quisesse ter toda certeza.

Bell sacudiu a cabeça. Rhodan continuou:

— Você há de compreender que jamais serei capaz de expor a humanidade à fúria da nossa amiga comandante.

Bell não respondeu. Sabia disso.

— Ótimo! Quer dizer que estamos de acordo.

— Você devia procurar um meio de avisá-la — exclamou Bell em tom insistente. — Se tivermos que desistir, devemos providenciar ao menos para que ela tire Crest daqui.

— É exatamente o que penso — disse Rhodan com voz pausada. — Se Crest não despertar até as oito horas, pedirei que a grande estação de telegrafia de Nevada Fields expeça uma mensagem não codificada. Com os aparelhos da Stardust não conseguiríamos atingi-la. Se Mercant tiver alguma inteligência, atenderá imediatamente a minha solicitação. Compreenderá que nem ele nem qualquer outro homem tem o menor direito sobre Crest. Thora está em condições de libertá-lo a qualquer momento. Acho que sabemos perfeitamente o que nos espera depois disso.

— Tente! — cochichou Bell com a voz perturbada. — Santo Deus, tente! Thora é uma criatura imprevisível.

Rhodan desligou o contato. A voz de Bell cessou abruptamente. Eram pouco mais de três horas quando Perry Rhodan afastou cuidadosamente a cortina.

O rosto estreito de Crest, encimado por uma testa alta, estava banhado em suor. Jazia imóvel no leito.

O Dr. Haggard voltou a cabeça. Rhodan estabeleceu o contato com um ligeiro movimento da mão.

— Como está a situação, doutor? — soou a voz nos fones embutidos no capacete acústico de Haggard. — Peço-lhe que fale com toda a franqueza. Estamos no fim. O reator começou a mudar de cor e as comunicações foram interrompidas. Como estão as coisas?

Haggard era daqueles homens que sabem esquecer que têm nervos. Não demonstrava a menor emoção.

— Os efeitos colaterais eram imprevisíveis — disse laconicamente. — Crest suportou as injeções muito bem. O soro fez efeito; está curado da leucemia. A circulação é absolutamente estável, o coração não apresenta a menor anomalia. O espectro sanguíneo não oferece motivo para preocupação. Não sei por que não acorda.

— Tem de acordar! Procure compreender — insistiu Rhodan. — Até às oito horas tem de atingir um nível de consciência que lhe permita, ao menos, nos ministrar algumas instruções. Se não respondermos ao chamado de Thora, as fúrias do inferno desabarão sobre nós.

— Por que ela não aparece logo numa das suas legendárias naves auxiliares? — irrompeu o médico num acesso de fúria. — Para ela devia ser fácil livrar-nos da situação em que nos encontramos. Acho seu procedimento muito estranho. Entrega aos nossos cuidados um homem muito doente para que tentemos salvá-lo com os recursos que dispomos aqui na Terra, mas recusa-se a contribuir para sua cura. Para mim, tudo isso não passa de uma rematada loucura. Se estivesse tão interessada na saúde de Crest, seria de esperar que fizesse tudo, tudo mesmo, que está ao seu alcance.

— Doutor, o senhor não compreende a mentalidade desses seres — objetou Rhodan. Seu rosto assumiu uma expressão séria. — Thora adota um estranho código de honra e pureza racial. A educação que recebeu não pode ser modificada radicalmente de uma hora para outra. Para ela, somos seres inferiores, com os quais não pode nem deve manter contato. Se esse contato se tornar necessário, assumirá a forma de uma lição extremamente dolorosa, que poderá se transformar num castigo terrível se os homens se atreverem a lesar a autoconfiança exagerada que desenvolveu como membro de uma raça superior. Por favor, procure encarar as coisas numa base puramente psicológica.

— Na minha opinião, a educação e a presunção deveriam ser complementadas com um pouco de bom senso e de lógica — disse Haggard em tom obstinado. — Quando estou em situação difícil, agarro-me a uma palha.

— Foi o que ela fez ao nos confiar Crest. Impediu uma guerra nuclear e fez surgir um vulcão em pleno Saara. Em suma, fez tudo para que Crest dispusesse de um lugar tranqüilo na Terra.

— Quer dizer que ela nada fez pela humanidade?

— Não fez nada especificamente pela humanidade. Não devemos esperar milagres nem atos de generosidade desinteressada. Afinal, aquilo que os arcônidas nos entregam sob a forma de saber e de material há de ser pago. Thora já agiu contra sua convicção. Confiou em nós e praticou um ato proibido. É claro que se encontra em situação difícil. Sua nave espacial não está em condições de decolar. Os seres degenerados que a tripulam não podem reparar o defeito que apresenta. As peças sobressalentes foram esquecidas, o que representa um desleixo imperdoável. Essa raça chegou ao fim dos seus dias. Crest, que é a última grande inteligência entre eles, está gravemente enfermo. Se morrer, ou se qualquer homem lhe fizer algum mal, Thora verá, nos homens que habitam este planeta, simples inteligências subdesenvolvidas. Tomada de uma cólera fria, resultante principalmente do amor-próprio ferido, começará a refletir. E refletirá nos mesmos termos que o senhor usa quando pensa numa cobaia bonita, cuja vida pouco lhe importa. Quer dizer, refletirá em termos frios e lógicos, com uma certa prevenção contra nós, isto é, em termos injustos sob o nosso ponto de vista. Não quero assumir o risco de que isso aconteça, doutor. Lancei-me a esta missão no intuito de unir a humanidade, para que ela se engrandeça e fortaleça. Não arriscarei a existência dessa humanidade, provocando as iras de uma potência infinitamente superior. Está claro, Dr. Haggard?

Os olhos de Rhodan pareciam feitos de cacos de gelo. Subitamente, Haggard deu-se conta da força de persuasão que esse homem sabia irradiar.

Respondeu com um ligeiro aceno de cabeça. Suas mãos pesadas seguraram o equipamento de comunicação.

— O que pretende fazer, major?

— Não me chame assim. Fui privado da minha patente e expulso do corpo de pilotos espaciais. Quero salvar o que ainda pode ser salvo. Se Crest não despertar até às oito horas para restabelecer as comunicações com Thora, capitularei. Ao menos, sei qual é a chave que desliga o reator dos arcônidas. Já é alguma coisa, não é?

Deu uma risada amarga. Haggard lançou-lhe um olhar pensativo. Rhodan prosseguiu, enfatizando as palavras.

— Doutor, Thora dispõe de um excelente equipamento de televisão. Se não conseguirmos estabelecer contato telefônico, procurará ver o que está acontecendo. Se o bombardeio não tiver cessado, logicamente há de concluir que estamos em perigo, talvez mortos. Se isso acontecer, o destino da Terra será horrível. Por isso, farei tudo para que o bombardeio cesse antes das oito horas. É a única possibilidade de evitar que essa mulher impulsiva aja com precipitação. Só num caso extremo fará com que as naves de salvamento entrem na atmosfera. Farei o possível para que as coisas corram conforme desejamos, mas ainda existe o risco de que Thora cometa algum engano, mesmo que o bombardeio tenha cessado. Vê-se que é uma solução ditada pelas circunstâncias. Seria bem melhor se Crest pudesse ser despertado até às oito horas. Talvez o equipamento de comunicação só tenha sofrido avarias ligeiras. É provável que consiga restabelecer as comunicações com Thora. Por isso peço-lhe que faça tudo que estiver ao seu alcance. A outra alternativa representará um ato de desespero. Naturalmente, os chineses cessarão o bombardeio assim que receberem a minha mensagem. Mas não sabemos como agirá Thora.

Rhodan deu de ombros. Haggard baixou os olhos; sentia-se perturbado. Não mais suportava o brilho estranho dos olhos de Rhodan.

— O que quer que eu faça? — perguntou o médico.

— Não quero muita coisa. Já que a circulação de Crest apresenta tão elevado índice de estabilidade, dê-lhe uma injeção estimulante. Tem um bom estoque delas. Desperte-o!

Haggard refletiu.

— Sabe que com isso arriscarei tudo?

— Não arriscará nada além do que já arriscamos. Uma vez que o paciente suportou o soro anti-leucêmico, seu organismo também deve reagir bem aos estimulantes. Faça reviver seu corpo. Não deve ser tão difícil despertá-lo desse estranho torpor. Vamos logo!

— Só injetarei uma dose que não causaria o menor dano a um homem normal — disse Haggard em tom decidido. — Nem uma gota a mais. Entendido? Nem uma gota a mais!

— É quanto basta — confirmou Rhodan.

Subitamente seu rosto contorceu-se. Num gesto instantâneo tirou a pistola do coldre e girou o corpo.

Mantendo a arma em posição de tiro, fitou a lata de conserva que o atingira nas costas com bastante violência. Mais adiante Bell, quase irreconhecível na luz débil das lâmpadas, gesticulava e berrava numa agitação tremenda. Ao menos era o que se concluía pela maneira de agitar os braços.

Rhodan saltou por cima do leito de Crest. Com mais alguns passos colocou-se ao lado de Bell. Ajustou os pinos de contato do aparelho de comunicação. Imediatamente, o berreiro furioso do engenheiro se fez ouvir.

— Até parece que você tem protetores nas costas — esbravejou Bell. — Foi a terceira lata. Olhe esta operação de localização. Foi feita pelo infravermelho e pelo radar. Não resta a menor dúvida. São três objetos pequenos que se deslocam pouco acima do solo, a uma velocidade de trinta quilômetros. Devem ser três homens. Olhe, a imagem está perfeita. São três homens, sim! Estão com equipamento de vôo individual.

A exaltação de Bell transformou-se em espanto. Boquiaberto, fitou a tela do localizador ultra-sensível de radar, cujas imagens eram refletidas com rara nitidez no vídeo.

Não havia a menor dúvida: eram três homens que traziam nas costas pequenos aparelhos para vôo a curta distância. Distinguia-se perfeitamente o brilho das lâminas dos rotores que giravam velozmente. Seguindo uma rota bem definida e voando pouco acima do solo, iam-se aproximando da cúpula protetora.

Bell voltou a manifestar-se:

— Será que esses camaradas querem furar a cúpula com a cabeça?

Rápido, Rhodan colocou-se junto ao reator. Uma ligeira manipulação de uma das chaves, que Crest lhe explicara poucas semanas atrás, modificou a estrutura da cúpula energética, de forma a permitir a passagem de ondas de rádio ultracurtas. Mesmo antes dessa modificação, a cúpula não representava qualquer obstáculo à transmissão das mensagens expedidas por Rhodan. Esse fato constituía outro mistério inexplicável para a mente de um engenheiro humano. Não havia como fazer os outros seres humanos acreditarem nisso. Só mesmo vendo e passando por aquilo.

Rhodan voltou para junto dos aparelhos de rádio. O grande receptor da Stardust estava funcionando. O localizador automático de freqüência procurou descobrir os comprimentos de onda que tornassem possível a comunicação.

Uma lâmpada vermelha acendeu-se. Era impossível ouvir o sinal acústico. O rugir das detonações prosseguia impetuoso.

Os aparelhos portáteis de radiotelefonia foram ligados ao potente transmissor. Um cochicho fez-se ouvir nos fones de ouvido:

— Capitão Albrecht Klein chamando o major Perry Rhodan. Não atirem! Estou com dois colegas. O senhor já me conhece. Sou Klein, do Conselho Internacional de Defesa. Estou fazendo esta transmissão com o mínimo de potência. Peço-lhe que venha até o limite da cúpula. Preciso falar com o senhor. Não atire, por favor! Não há perigo. Estamos esperando.

Rhodan retirou o pino da tomada do equipamento de telefonia. Bell manteve-o ligado. Antes que Rhodan começasse a falar, disse:

— É o Klein? Deve ter arranjado uma promoção. Não é o tal sujeito com quem você já facilitou uma vez, deixando-o penetrar na cúpula? Viu Crest, não foi? Não gostei dele.

— Pois eu gostei. Vou pegar um dos carros. Quando eu der a senha, levantando o braço, você vai abrir a cúpula por exatamente três segundos numa extensão de dois metros por três. Prepararei a alteração estrutural.

— Você está louco! Se eles mandarem um foguete teleguiado apontado exatamente para a abertura, estaremos perdidos. É bem possível que esse Klein leve um dispositivo direcional por baixo do rotor. Conheço esses truques, meu caro. Afinal, já fui oficial de comunicações. Não vou abrir coisa alguma!

Seu olhar era firme e duro. Mas, depois de fitar por alguns instantes o rosto de Rhodan, que parecia enrijecido numa máscara, baixou a cabeça.

— Está certo. Quer dizer que aguardo o seu sinal...

Rhodan retirou-se. Levava a tiracolo a grande pistola automática com os perigosíssimos projéteis minifoguetes. O bastão prateado que trazia na mão era ainda mais perigoso. A pequena distância, o irradiador psíquico tinha uma potência formidável.

Rhodan não pretendia correr o menor risco.

Quando, lá fora, a turbina a gás do caminhão chinês começou a uivar, Bell continuava a olhar fixamente para o lugar em que ainda há poucos instantes se encontrava Rhodan. Parecia sentir o brilho intenso dos olhos do comandante.

De início, Bell sentira-se seguro de que conseguiria impedir que Rhodan realizasse seus intentos. Mas acabara concordando sem discutir. Pálido e trêmulo, aproximou-se dos instrumentos de controle. Comprimiu fortemente as pestanas, e subitamente voltou a abri-las.

A imagem continuava. O olhar ardente de Rhodan parecia gravado em seu cérebro. Reginald Bell era um homem duro e arrojado, dado aos atos irrefletidos. Manifestava uma tendência irreprimível para as ações temerárias. Como piloto espacial parecia não conhecer o medo. Mas, desta vez, sentia medo.

Antes de iniciar a vigilância dos aparelhos, soltou uma praga. O veículo de Rhodan corria pela paisagem pedregosa do deserto, que só de espaço a espaço era embelezado por uma vegetação escassa. O rio ficava demasiado longe.

Rhodan seguia um curso que conduzia diretamente ao ponto em que os três homens haviam descido. Bell, em poucas palavras, transmitia as correções que se faziam necessárias. Falava num tom apático; sentia a revolta no seu íntimo. Por que Rhodan conseguira fazê-lo mudar de opinião de uma hora para outra? Será que...?

Ainda sentia a pergunta martelar-lhe a mente quando Rhodan parou o veículo. Eram exatamente três e vinte e dois da manhã. Estava bem junto à barreira ener­gética.

A mão esguia de Rhodan ergueu o radiador psíquico. Atrás dele, bem ao longe, a luz feérica das explosões iluminava o cenário. Havia uma claridade intensa, talvez excessiva. Apesar disso, mal se reconheciam os vultos dos três homens envoltos em jaquetas. Estavam bem juntos. Num movimento súbito, Rhodan ergueu a mão. O sinal significava abrir.

 

Era um risco enorme, muito maior que o da primeira decolagem de uma nave espacial tripulada.

Naquele dia sabia-se ao menos que os aparelhos propulsores de reação químico-nuclear do segundo e terceiro estágios funcionariam. Um sinal de rádio fora suficiente para acionar os reatores de plutônio de alta velocidade.

Agora, porém, tudo estava mudado. Medições precisas e rigorosamente secretas realizadas nas camadas superiores da atmosfera terrestre revelaram que a cúpula anti-neutrônica dos arcônidas atingia uma altura de cerca de 120 quilômetros.

Isso significava que o processo usual de fissão nuclear só poderia ser desencadeado além da zona abrangida pela cúpula. Por isso os peritos do Comando Espacial dos Estados Unidos tiveram de enfrentar dificuldades formidáveis, que foram superadas através da utilização de todos os recursos disponíveis.

Algumas modificações foram introduzidas no segundo estágio da nave Stardust-II. O estranho campo anti-neutrônico criado pelos arcônidas não afetaria as reações químicas.

A indagação que surgia era se o desempenho do segundo estágio seria suficiente para conduzir o terceiro estágio, ou seja, a nave espacial, propriamente dita, a uma altura superior a 120 quilômetros.

O segundo estágio, formado por uma versão aperfeiçoada da série Plutão-D, passara por todos os testes. Os processos químico-nucleares teriam de ser dispensados. Além disso, a velocidade no fim do processo de combustão deveria ser suficiente para arremessar a nave além da zona crítica.

A velocidade com que fosse atingida a zona livre constituía um fator secundário, que não precisaria ser considerado. Não havia a menor dúvida de que o potente mecanismo propulsor da Stardust-II levaria a nave para além da atmosfera terrestre.

O depósito de combustível químico tinha quantidade suficiente para a aceleração, a frenagem, o pouso e a decolagem lunar.

Mas o que se tinha em vista era, tão-somente, uma órbita em torno da Lua, o que, evidentemente, exigiria muito menos energia que as manobras adicionais de pouso e decolagem em nosso satélite natural.

Exatamente dezesseis horas antes do início do fogo cerrado de artilharia, visando uma pequena área da cúpula energética, o general Pounder acionou o contato de ligação dos reatores.

Com um estrondo violento, a Stardust-II disparou para o céu límpido de Nevada.

O comando da expedição lunar armada era exercido pelo primeiro-tenente Michael Freyt. Em vez do médico, subira a bordo um perito em armamentos nucleares, que tinha a seu encargo o controle da nova arma.

O posto de artilheiro era exercido pelo capitão Rod Nyssen, que assistira às provas iniciais da nova bomba nuclear catalítica. Como, além disso, possuísse experiência em vôos espaciais, foi indicado para compor a tripulação da missão armada.

Alguns minutos após a decolagem bem sucedida, os homens da central de controle tinham os olhos fitos nas telas de localização e de televisão. O primeiro estágio da Stardust-II já havia sido separado. O segundo estágio, que substituía a parte central da primeira nave lunar, inutilizada nas atuais circunstâncias, entrou em funcionamento com a perfeição que era de se esperar. Ainda mais se considerada a massa bem mais leve que era impulsionada.

O general Pounder permanecia imóvel diante do aparelho de teledireção automática. Parecia estar assistindo à decolagem da velha Stardust, que agora jazia no deserto de Gobi.

O ponto flamejante continuava bem visível. Depois de algum tempo, soou a voz metálica do computador de controle e teledireção.

— Ignição dentro de oito segundos. Tudo preparado para a separação.

Todos ouviram o estalido seco da carga explosiva. O impulso do computador número três seguiu a nave espacial com a velocidade da luz. Ouviu-se a voz do tenente Freyt; parecia esgotado. Face à modificação dos estágios, o obstáculo representado pela atmosfera terrestre teve de ser vencido com um valor gravitacional martirizante. Mesmo no segundo estágio a pressão chegara a 11,6 g.

— Freyt ao controle de terra: tudo bem a bordo — soou a voz áspera do alto-falante. — Impulso de ignição recebido. Computador de direção automática dando sinal de confirmação.

— A ignição... a ignição já foi realizada? — indagou Pounder com a voz apressada. Tinha os olhos presos às telas dos aparelhos de controle infravermelho, onde a coluna de gases incandescentes do mecanismo de propulsão nuclear teria de ser revelada em primeiro lugar.

— Nada — gemeu o engenheiro-chefe. Virou a cabeça num movimento brusco. — Ainda não saíram da zona anti-neutrônica. Por enquanto, nada.

— Ausência de gravidade continua. Motor parado — soou a voz de Freyt em meio ao silêncio deprimente. — Solicito cálculos definitivos da altura a ser atingida no final do processo de ignição e em relação ao ângulo de subida e à influência da gravidade.

O computador já estava funcionando. Dentro de alguns instantes os dados estavam prontos e eram transmitidos sob a forma de impulsos de ondas ultracurtas ao aparelho de direção automática da nave.

Poucos segundos depois, a rota foi modificada em 47,3 graus. O movimento giratório foi realizado pelos foguetes de combustível sólido acoplados na nave. Com isso, a Stardust-II abandonou a trajetória vertical e ganhou uma aceleração de 821 metros por segundo.

As informações eram recebidas sob a forma de diagramas que deslizavam sobre as telas. Pounder, que já assistira a muitas decolagens, sabia que a nave entrara numa ampla órbita elíptica.

Não havia dúvida de que, com isso, sairia do estranho campo anti-neutrônico.

Esperavam com o espírito inquieto. Tudo, tudo mesmo, dependia da possibilidade de se desencadear o processo de ignição do mecanismo de propulsão nuclear da nave. Isso não seria possível sem a presença de nêutrons livres, que eram imprescindíveis no processo de fissão nuclear.

Quando o primeiro-tenente Freyt iniciou a quinta transmissão de rotina, sua voz foi subitamente abafada por um trovejar ensurdecedor. O processo de ignição do mecanismo propulsor teve início numa altitude de 211 quilômetros.

No mesmo instante, a Stardust-II apareceu na tela do localizador infravermelho. O calor irradiado pelos reatores era tão intenso que mesmo os aparelhos menos sensíveis registraram o furacão nuclear incandescente.

Dentro de poucos instantes, a estação de teledireção situada na Terra assumiu o controle da nave, colocando-a em posição vertical. Com a enorme aceleração resultante do empuxo dos reatores, seria atingida a velocidade-limite, que os libertaria da gravidade terrestre. Foi então que os aparelhos de teledireção das estações espaciais tripuladas entraram em ação.

Já não havia a menor dúvida: a experiência tão arriscada, que encerrava um fator desconhecido, fora coroada de êxito. A primeira nave da esquadrilha espacial terrestre mergulhara no espaço.

Mensagens radiofônicas codificadas correram em redor da Terra. Dez segundos depois de ter recebido o sinal convencionado, o marechal Petronskij comprimiu o botão do dispositivo de ignição.

Imediatamente, o gigantesco foguete do Bloco Oriental disparou em direção ao céu siberiano. Também conduzia quatro tripulantes. Um deles, um perito do Ocidente e que chegara poucas horas antes numa unidade de transporte dos Estados Unidos, era o responsável pela nova bomba, que estava na rampa de lançamento, instalada com todo o cuidado no agora vazio compartimento de carga.

Quase no mesmo instante, o marechal Lao Lin-to deu ordem para a decolagem da nave da Federação Asiática. Houve problemas com os estabilizadores. Por pouco a nave não se desgoverna, a cerca de trezentos metros de altura. As câmaras de combustão giratórias do primeiro estágio e o estabilizador de emergência, montado no segundo estágio, porém, conseguiram estabilizá-la e corrigir sua trajetória.

Assim, as três naves partiram com sucesso rumo ao espaço.

A bordo da nave da Federação Asiática havia também um perito em armamentos treinado no Ocidente. Sua única tarefa consistia em fazer com que a bomba descrevesse a trajetória determinada pelos cálculos, depois que seu curso tivesse sido regulado com alguma aproximação pelo dispositivo direcional adaptado à mesma. Tratava-se de uma arma mortífera, mobilizada rapidamente por uma humanidade que alcançara a união por um modo inesperado.

A operação em nada afetava a segurança da Terra. Nenhuma das bombas explodiria se a decolagem falhasse.

Mas não houve qualquer falha. As três naves corriam pelo espaço, depois que a Stardust-II, que partira em primeiro lugar, havia provado que seria perfeitamente possível sair da zona antineutrônica.

A diferença de tempo, que nestas circunstâncias se tornara inevitável, não constituía problema para os computadores que, com uma rapidez fantástica e uma precisão inconcebível, calcularam a trajetória que cada uma das naves teria de percorrer para que as três ingressassem simultaneamente na órbita prevista, que cobria cada um dos pólos lunares. Tratava-se de um problema puramente matemático, que não dava margem a qualquer erro.

A estação espacial tripulada Freedom-I, do Ocidente, também se encarregou da teledireção do foguete da Federação Asiática. A nave do Bloco Oriental foi dirigida pelos satélites do Oriente, muito bem tripulados e equipados.

Pela primeira vez na história da navegação espacial, houve um intercâmbio de observações imediatamente após a decolagem. Uma vez que as duas estações espaciais percorriam órbitas terrestres bem diferenciadas, tornou-se possível manter um controle permanente sobre as três naves. Não foi necessária qualquer interferência das grandes estações terrestres. De qualquer maneira, a teledireção a partir de um ponto situado no espaço era mais fácil e segura.

Assim, os três veículos espaciais cruzavam o espaço. Doze astronautas dos três blocos de potências da Terra haviam recebido instruções bem claras.

Só depois de algumas horas, o general Pounder afastou-se da tela. A transmissão, controlada pelos tripulantes da estação espacial, não apresentava a menor falha. Não havia dúvidas de que as três naves se encontravam na rota determinada.

A Stardust-II, com o mecanismo de propulsão desligado, seguia em queda livre, a fim de que as outras naves que haviam decolado depois dela pudessem alcançá-la.

— Acorde-me dentro de cinco horas — disse Pounder, com a voz apática, lançando um olhar triste para o relógio. — Daqui a cinco horas, Maurice. Veja lá! Cinco horas não são nem seis nem sete.

O major Maurice, chefe do Estado-Maior, limitou-se a confirmar com um movimento de cabeça. Seguiu a figura imponente do superior com uma expressão preocupada no rosto. De alguns dias para cá, Pounder andava com o corpo inclinado para a frente, como se carregasse um peso às costas.

Por certo, nunca conseguiria livrar-se da tristeza causada pelo procedimento inexplicável de seu melhor piloto. Para o general Pounder, o major Perry Rhodan era quase como um filho.

Mal tinha desaparecido atrás das pesadas portas do abrigo, Allan D. Mercant entrou. Durante a fase de decolagem, o chefe do Conselho Internacional de Defesa preferira não se encontrar com o general Pounder, que estava exausto.

Mesmo agora, aquele homem pequeno e aparentemente insignificante trazia um sorriso estranho nos lábios.

— É um oficial competente, dotado de muito senso de responsabilidade — constatou com ar pensativo. — Major Maurice, o senhor sabe que foi com a maior relutância que o general Pounder deu a ordem final de ataque?

Maurice baixou os olhos. O olhar do chefe do CID provocava-lhe uma sensação desagradável. Achou prudente dar uma resposta esquiva.

— Talvez devamos supor que seja assim, senhor. Afinal, foi o general Pounder que conseguiu pôr a velha Stardust a caminho depois de enormes esforços. E agora, vê-se obrigado a fazer decolar uma réplica só que, desta vez, para fins destrutivos. Tudo isso me dá uma sensação bastante esquisita.

As pupilas de Mercant se estreitaram.

— Por quê? Receia alguma falha técnica? Acredita que nossas bombas não explodirão? Fale com franqueza, por favor.

Maurice ficou indeciso. Mercant estava muito estranho.

— Nada disso, senhor. As naves atingirão a Lua e as bombas explodirão, desde que a chamada terceira potência seja aquilo que as demonstrações ora realizadas nos revelaram. Mas o fato de não terem procurado impedir a decolagem de nossas naves me dá uma sensação bastante desagradável. Acho que pretendem atacá-las posteriormente, ou então...

— ...ou então? — interrompeu Mercant.

— ...ou então eles nos consideram uns macacos inofensivos, que não são capazes de realizar um ataque desse tipo. Queira desculpar a expressão, senhor.

— Pense o que quiser, meu caro — respondeu Mercant em tom enfático. — O senhor se admiraria se eu lhe dissesse que também já fui dessa opinião?

Não, o major Maurice não se admirou nem um pouco. Allan D. Mercant era capaz de conceber idéias muito antes de qualquer outra pessoa.

O chefe das forças de segurança do Ocidente desapareceu tão silenciosamente como havia chegado. Ninguém percebeu a expressão de profunda preocupação que se desenhava em seu rosto liso. O fato é que também Allan D. Mercant experimentava uma sensação esquisita; não havia a menor dúvida.

Enquanto isso, as três naves corriam pelo espaço, mantendo uma aceleração constante. Pelos cálculos realizados, o ponto de inflexão deveria ser atingido dentro de quinze horas aproximadamente. As manobras em órbita poderiam ser completadas em três horas. Dali em diante, as coisas ficariam sérias.

Allan D. Mercant resolvera passar o momento decisivo numa estação espacial. Ali não haveria nada que perturbasse a visão pois estaria bem longe da camada atmosférica que envolvia a Terra. Dez minutos depois, Mercant decolou num foguete de transporte comum, do tipo Plutão-D. dotado de mecanismo de propulsão química.

 

Fazia poucos minutos que a senha fora recebida. Reginald Bell realizara a manobra estrutural segundo as instruções que lhe haviam sido ministradas e três vultos humanos saíram em disparada.

O capitão Albrecht Klein nunca correra tanto. O salto com que transpôs a pequena abertura da cúpula energética, parecia de um louco.

A figura de Rhodan, alta e ereta, parecia tão misteriosa e ameaçadora em meio à luminosidade ofuscante do horrível temporal de fogo que Peter Kosnow, num gesto instintivo, pôs a mão na arma.

Mas, no mesmo instante, Kosnow viu-se reduzido à impotência pelo cintilante bastão de prata. A ordem, que não poderia ser contrariada por qualquer ato de sua vontade, ainda lhe ressoava no ouvido.

— Fique parado, não se mova, não realize qualquer tipo de ação.

Só isso. Perry Rhodan já não era o homem que pousara na Terra poucas semanas antes. Seu rosto esguio trazia as marcas da preocupação e do sofrimento. Os lábios trêmulos constituíam um sinal evidente de que caminhava em direção a um colapso nervoso.

Klein lançou os olhos em torno; parecia atordoado. Nunca imaginaria o efeito do fogo cerrado de artilharia. A cúpula energética transformara-se numa câmara de som. Ele sentia como se sua cabeça fosse explodir devido ao tremendo barulho.

Li Shai-tung também fora privado de sua vontade. O irradiador psíquico dos arcônidas conservara toda sua eficácia.

O único que continuava perfeitamente lúcido era Albrecht Klein. Em compensação, viu-se diante do cano de uma arma automática que só conhecera nos últimos estágios do seu treinamento.

Tratava-se de uma pistola-foguete, cuja eficiência já se tornara conhecida dos membros do exército e da força espacial.

Por cautela, Klein resolvera erguer as mãos; o gesto tinha algo de irreal em meio àquele inferno. Dentro de poucos segundos, percebeu que seria impossível conduzir o diálogo com a rapidez e a exatidão que seriam necessárias. Não conseguia entender as próprias palavras.

Ao voltarem para a tenda, Klein dirigiu o caminhão. E só quando chegaram lá ele recebeu o capacete que lhe permitiu transmitir algumas informações através dos intercomunicadores.

Lá fora soava a música ensurdecedora da artilharia, que continuava a disparar com uma rapidez extraordinária. Os ocupantes do abrigo do comandante Tai-tiang mordiam os lábios e forçavam os olhos numa tentativa vã de perceber os acontecimentos que se desenrolavam no interior da cúpula.

Três altos oficiais do Serviço Secreto procuraram calcular as probabilidades de êxito dos agentes. Bastaria espalhar o conteúdo de um dos recipientes para que a queda da terceira potência se tornasse um fato consumado.

O capitão Klein olhou atentamente em torno. Não lhe escapou o reator, que emitia uma luminosidade assustadora, nem sombras dos médicos que deslizavam atrás da cortina.

Sentiu o olhar de Rhodan, que retribuiu com um certo nervosismo e constrangimento. Depois de engolir em seco, disse, com voz gutural:

— Muito obrigado, senhor. E, antes de fazer qualquer pergunta, queira pôr as mãos nos bolsos internos de nossas jaquetas. Em cada um deles encontrará um recipiente metálico de pressão com uns vinte centímetros de comprimento por quatro de diâmetro. As ordens que recebemos são no sentido de soltar o conteúdo dos mesmos no interior da cúpula.

Bell virou-se bruscamente. Seu rosto largo contorceu-se e o dedo brincou no gatilho da pistola-foguete. Rhodan continuou na posição rígida de antes. Apenas a expressão de seus olhos estavam modificadas. Pareciam dissecar minuciosamente o agente secreto.

— Está nos bolsos internos — repetiu Klein. — Vamos logo! Não temos tempo a perder. Se nossos superiores desconfiarem de que estamos batendo papo tranqüilamente com vocês, será preferível ficarmos aqui.

Rhodan não formulou qualquer pergunta. Kosnow e Li não esboçaram a menor reação quando as cargas perigosas passaram às mãos de Rhodan. Klein contemplou os cilindros sem dizer uma palavra. Quando a voz sonora de Rhodan se fez ouvir, estremeceu.

— Certo, Klein! O que há nesses recipientes?

— Um agente radiobacteriológico que os inutilizaria dentro de poucas horas. A idéia foi minha.

Klein admirou a tranqüilidade de Rhodan. Até o cano da arma foi abaixado.

— A idéia foi sua? — perguntou Bell com voz fria. — E agora quer bancar o herói, não é? Qual é o truque? Para seu governo, Klein, se dependesse de mim, você não entraria nessa cúpula.

— Isso é uma questão de ponto de vista — interrompeu Rhodan asperamente. — Capitão, o senhor concebeu este plano para entrar em contato conosco sem despertar suspeitas? Se eu estivesse no seu lugar, bem que seria capaz de uma idéia dessas!

A admiração de Klein subiu ao infinito. O tom irreal da situação foi realçado pelas estranhas instalações da tenda. Klein estava contente por saber que a impulsividade de Kosnow havia sido neutralizada por meio de recursos psicológicos.

— Foi isso mesmo, senhor. Recebemos instruções para iludi-los através de dados fictícios sobre um pretenso grupo de resistência. Mas, deixemos isso para mais tarde. E, para que tenha certeza da lealdade dos nossos propósitos, fique sabendo que poderíamos ter aberto o recipiente no percurso até aqui. O chiado teria sido imperceptível em meio ao fogo de artilharia.

O rosto enrijecido de Rhodan descontraiu-se. Por baixo do grosso capacete acústico viam-se as rugas da testa. Respondeu em tom calmo.

— Klein, ao menor movimento você estaria morto. Tenho Um detector radioscópico portátil que revelou a presença da garrafinha com todos os detalhes. Asseguro-lhe que não chegaria a tocar na válvula com o dedo mínimo.

O rosto de Klein contorceu-se num sorriso.

— Então, o senhor sabia? Acontece que nem eu desconfiava. Creia, nem pensamos em soltar essa mistura infernal aqui. Viemos apenas para falar-lhe.

— Já passa das quatro. Quando voltarem, perguntar-lhes-ão o porquê da demora. Não é evidente?

— É, mas posso inventar uma desculpa qualquer. Direi que lhes contei uma história comprida sobre um movimento que estaria disposto a ajudá-lo e que aproveitei para observar os recursos de que vocês dispõem.

— Afinal, o que deseja? — perguntou Rhodan. Seus olhos pareciam brasas vivas.

Klein ficou tranqüilo. Sentiu a grandeza desse personagem que desafiava, praticamente só, o poderio compacto de toda a Terra.

— Considero os seus objetivos muito honrosos — disse laconicamente. — Já falamos a esse respeito. Não vejo, pois, nenhuma razão para que a terceira potência seja eliminada. A guerra nuclear que não chegou a eclodir foi, para mim, a gota que faltava nas minhas convicções. A união de todos os povos resultou da sua atuação. Com isso, o senhor realizou alguma coisa que até então não passava de um sonho. Da minha parte, já tinha chegado à conclusão de que só mesmo uma ameaça formidável, vinda de fora, isto é, do espaço, seria capaz de provocar a fusão dos povos. Hoje em dia, as frases de cunho ideológico já não valem mais nada. O senhor, ou melhor, o perigo que o senhor representa, passou a ser o ponto central. Os homens já raciocinam, mas deixarão de fazê-lo se o senhor fracassar. Há de compreender que, na qualidade de oficial do CID, muitas vezes passei por situações com que um homem comum jamais se defrontaria. A atuação dos serviços secretos sempre foi um negócio muito sujo. Nós, isto é Kosnow, Li e eu, chegamos à conclusão de que o senhor deve continuar a existir como terceira potência. É esta a nossa posição.

Rhodan não refletiu muito. Ao que parecia, não havia a menor dúvida quanto aos propósitos de Klein. Apenas, ele deixava de lado um dado de suma importância: ao que tudo indicava, a terceira potência que tanto admirava e desejava, estava prestes a chegar ao fim.

Rhodan lançou os olhos em direção à parte da tenda em que se encontrava o enfermo. Dentro de poucas horas chegaria o momento do relatório diário a ser fornecido a Thora... E Crest continuava naquela rigidez inexplicável.

— O senhor tem de fazer alguma coisa — irrompeu Klein sem que qualquer coisa lhe fosse dita. — Estou informado de que há poucas horas decolaram três naves espaciais. Não sei informar o momento exato da chegada, mas conheço o destino. A missão dos tripulantes consiste em atacar sua base na Lua com uma nova arma nuclear. Faça alguma coisa!

Reginald Bell comprimiu o encosto fino de sua banqueta. Os lampejos das explosões cintilavam na tela do radar. Rhodan arregalou os olhos numa expressão de incredulidade.

— Três naves decolaram? — repetiu em tom perplexo. — Sabe o que está dizendo? Nenhum reator nuclear entraria em funcionamento na Terra, eu lhe garanto.

— Mas funcionará além de 120 quilômetros de altura — disse Klein, sentando-se numa banqueta, com um sorriso embaraçado. Sentia suas pernas tremerem.

— Acho que não sabia, não é? Cada um de nós, isto é, o Ocidente, o Bloco Oriental e a Federação Asiática, fez decolar uma nave espacial gigante. O primeiro e o segundo estágios funcionarão exclusivamente à base de reações químicas. Depois que tiverem transposto a zona crítica, os propulsores químico-nucleares entrarão em funcionamento. Major Rhodan, o senhor cometeu um erro imperdoável. Foi por isso que vim. Deixe de fazer perguntas sobre os motivos dos meus atos. A única coisa que importa é a conservação da base lunar.

Bell umedeceu os lábios. Estava muito pálido. Rhodan também sentou-se.

— Conte-me tudo — disse em tom raivoso. — O que aconteceu? Conte tudo.

Klein não omitiu nenhum detalhe. Mencionou a conferência da Groenlândia. Rhodan não teve dificuldades em compreender o funcionamento da bomba catalítica H. Acontecera exatamente aquilo que temia.

Klein concluiu o seu relato com as informações da tarefa realizada pelo maior computador da Terra. Quando se calou, voltou a ouvir o rumor surdo das salvas de artilharia. O reator brilhava num tom azulado. Seu aspecto era inquietador. Desesperado, Rhodan perguntou de si para si que tipo de reação se desenrolaria no seu interior. Só Crest saberia dar este tipo de informação; se é que esta informação ainda resolveria alguma coisa. Ele achou mais provável que o reator não demorasse muito para entrar em pane.

Antes de falar, dirigiu o irradiador psíquico sobre os outros visitantes. Li e Kosnow despertaram imediatamente. Algumas palavras foram suficientes para pô-los a par da situação.

— Queiram abster-se de perguntas e lamentações — soou a voz nos fones dos capacetes. — O capitão Klein orientou-me sobre todos os detalhes. Não vamos perder tempo.

Apontou para o reator.

— Estão vendo? O brilho que este aparelho está emitindo não é normal. Receio que sua potência esteja no fim.

Klein sobressaltou-se. Lançou um olhar de incredulidade sobre o major Rhodan, cujos lábios indicavam um sorriso amargo.

— O equipamento de telefonia dos arcônidas já está fora de ação. Deve ser a trepidação. Crest, que com toda a razão é tido como doente pelo computador eletrônico, continua mergulhado num torpor misterioso. Com isso, as comunicações com a Lua estão interrompidas. Se Crest não despertar até às oito horas da manhã, capitularei, ou, ao menos, solicitarei um armistício. Vocês nem imaginam as desgraças que poderão desabar sobre a espécie humana se alguma coisa acontecer a esta criatura. Não façam perguntas. As coisas são por demais complicadas para que possamos discuti-las agora.

— E as três naves? — gemeu Kosnow. — Será possível inutilizá-las? O que acontecerá com as tripulações, se os que estiverem na base lunar partirem para o ataque?

— Façamos votos para que as coisas se resolvam de forma bastante humana — disse Rhodan. — A decisão final caberá à comandante da nave dos arcônidas. Afinal, ela se verá colocada diante de um grupo de agressores.

— E se as bombas forem lançadas? — exclamou Li, nervoso. — O que acontecerá? Será que os arcônidas dispõem de alguma defesa?

Rhodan esforçou-se para não trair o nervosismo que o dominava. Só desejava uma coisa: ficar a sós o quanto antes. Aqueles três homens não deveriam saber demais, quando não fosse por outra coisa, para que não perdessem a fé que os animava.

— Uma reação nuclear a frio não pode ser impedida por meio de um campo anti-neutrônico. Até aí, está certo. No entanto, os seres que estão na Lua encontrarão algum meio de defender-se das três naves. Não se preocupem com isso. Klein, antes de retirar-se, eu gostaria de lhe fazer um pedido.

O capitão Klein levantou-se. Tinha o rosto pálido e cansado. Desconfiava de que alguma coisa não estava certa. Bell não conseguiu disfarçar o nervosismo. Rhodan olhou para o relógio.

— Aguarde meu chamado pelo rádio às oito em ponto. Farei o possível para reparar o nosso emissor antes disso. Se não conseguir, só me resta uma alternativa: desistir. De outra forma, a catástrofe seria inevitável. Faça tudo o que estiver ao seu alcance para que concordem com um armistício. Envie delegados; procure ganhar tempo. De qualquer maneira, faça com que este fogo de artilharia seja suspenso imediatamente. Acha que conseguirá?

Os olhos de Rhodan pareciam despedir faíscas. Li retrucou, pausadamente:

— O senhor não conhece minha gente. O general Tai-tiang não suspenderá a barreira de fogo enquanto o senhor não desativar a cúpula. Se solicitar um armistício, não concordará. Desconfiará de que o senhor quer ganhar tempo para reparar o seu equipamento. No abrigo que lhes serve de quartel-general, temos psicólogos de primeira ordem. Não os subestime. Isso só se poderá resolver passo a passo.

Klein confirmou com um gesto. Rhodan baixou a cabeça.

— Certo. Aguarde a minha chamada. Se não chegar até as oito da manhã, é sinal de que conseguimos salvar a situação. Mas, se receber o meu chamado, aja imediatamente.

— Este reator ainda pode agüentar alguns meses — ironizou Klein, embora sem poder ocultar o nervosismo da voz. — Por que desistir? O fogo de artilharia não pode durar para sempre. A esta altura, as dificuldades de reabastecimento já são enormes. Afinal, não é fácil suprir seis mil peças de artilharia. Agüente mais um pouco... digamos, vinte e quatro horas!

— Você não avalia a situação corretamente — disse Rhodan. — Se dependesse de nós, aguardaríamos o colapso do aparelho, que é bastante provável. Mas existe outro perigo que não quero provocar. Se a comandante da nave dos arcônidas chamar em vão, e se verificar que aqui está sendo levado a efeito um bombardeio, perderá o controle. E, se isso acontecer, só poderemos rezar para que Deus tenha piedade dos homens. Compreende por que não podemos assumir um risco desses?

Compreenderam. As razões que poderiam animar a comandante dos arcônidas eram imprevisíveis.

Rhodan levou os três homens até o limite da cúpula. Antes de despedir-se e pedir que lhe devolvessem os capacetes acústicos, disse em tom cordial:

— Muito obrigado, Klein. Suas intenções foram as melhores possíveis. Mas, a menos que aconteça um milagre, terei de decepcioná-lo. Assim que esse fogo seja suspenso, aja depressa: ligue imediatamente para Nevada Fields. Peça a Pounder que emita uma mensagem não codificada. Não assuma o menor risco. Avise Mercant de que em hipótese alguma deverá tocar em Crest, pois, com isso, provocaria uma catástrofe. Não se justifica que ele seja preso sem mais nem menos. Compreendeu? A manobra estrutural foi repetida. Em apenas três segundos os homens saíram da cúpula. Mal se encontraram do lado de fora, Rhodan disparou em direção à tenda.

— Esses rapazes terão problemas — disse Bell. — Esqueceram seus cilindros bacteriológicos.

— Isso já estava mais ou menos previsto. Dirão que espalharam o plasma. Se não ficarmos doentes, a culpa não será deles. Não há nada que a terceira potência não possa fazer, não é verdade?

O sorriso mordaz e irônico fez com que Bell rompesse numa série de imprecações. Seu rosto pálido encarou o comandante.

— Venha comigo — soou a voz indiferente nos fones.

Ao chegarem no interior da enfermaria improvisada, encontraram os médicos conversando. Os homens pareciam esgotados. A resistência de seus nervos parecia perto do fim.

— São exatamente oito minutos para as cinco horas — constatou Rhodan. Lançou os olhos em torno. Crest jazia imóvel na estreita cama de campanha.

— Klein não soube dizer a hora em que as três naves decolaram. Mas, como conheço a eficiência dessa gente, acho que o ataque na Lua será hoje.

— Afinal, qual é a idéia? — exaltou-se Bell. Suas mãos comprimiram o braço de Rhodan. — Fale logo!

— A presunção doentia de Thora fará com que subestime o perigo. Acreditará que uma simples cúpula protetora e um campo anti-neutrônico serão suficientes para impedir toda e qualquer reação nuclear. Acho que, mesmo que conseguisse comunicar-me diretamente com ela, não conseguiria nada. Daí se conclui que a destruição da nave dos arcônidas é só uma questão de tempo.

— Você está imaginando coisas — balbuciou Bell. — Não é possível! Aquela coisa é indestrutível!

— Só se lhe for dispensado o tratamento adequado. Se em vez daqueles seres apáticos, a nave tivesse a bordo uma tripulação ativa, eu não me preocuparia. Mas, do jeito que estão as coisas, até mesmo as providências mais simples serão omitidas. Vejo a situação muito ruim. Cada bomba catalítica H libera energia equivalente a cem megatons de TNT. Não gostaria de estar na esfera incandescente de gases de uma explosão desse tipo. Se não tomarmos providências imediatas, um sol terrível surgirá por cima da nave, Dr. Haggard!

O médico estremeceu. Ergueu a cabeça. Fitou aqueles olhos penetrantes.

— Dr. Haggard, o senhor tentará despertar Crest desse sono estranho. Eric, você dará assistência ao seu colega. Seria absurdo esperarmos mais. Arrisquem tudo.

Haggard esteve a ponto de explodir. Mas, quanto mais fitava aqueles olhos chamejantes, mais seu ânimo, se enfraquecia.

— Como queira, major — disse com voz monótona.

Rhodan retirou-se. Eram cinco em ponto. Lá fora o fogo de artilharia mantinha-se na mesma intensidade.

 

Muito além da cúpula protetora, os três homens foram recebidos pelos oficiais das forças armadas. Klein apresentou o relato.

— Cremos que Rhodan acreditou nas nossas explicações. Os três recipientes de pressão ficaram no interior da cúpula. Eu e Kosnow conseguimos abrir as válvulas. Li viu-se obrigado a desistir no último instante. Mas duas cargas devem ser suficientes.

Os homens foram colocados num helicóptero que os levou ao posto de desinfecção. Dali em diante, Klein começou a padecer todos os tormentos do inferno. Se os médicos achassem necessário que eles ficassem em quarentena, então...

Quase no mesmo instante o primeiro-tenente Freyt transmitiu sua última mensagem para o controle de terra:

— Entramos em órbita conforme previsto. Iniciamos a desaceleração. O mecanismo propulsor funciona satisfatoriamente. A tripulação está bem. Rezem por nós. Fim.

Três peritos em armamentos calcularam o momento exato em que as bombas deveriam estar prontas para serem lançadas.

— Cerca de três horas — disse o capitão Nyssen em voz alta. Nesse instante sofreu o primeiro impacto formidável da força de desaceleração.

 

Quietos e apáticos, estavam sentados nas banquetas da enorme tenda. Procuravam dar a impressão de que o fogo cerrado que rugia lá fora não significava nada.

O sol nascera algumas horas antes. Seu brilho ardente ao menos apagara a cintilação extenuante das inúmeras explosões. Mas o trovejar continuava. A cúpula energética oscilava num ritmo estranho, que a qualquer momento poderia terminar num verdadeiro colapso.

Desde as cinco da manhã os médicos esforçavam-se para despertar Crest do profundo sono em que estava mergulhado. Depois de alguns êxitos aparentes, que se manifestaram através de uma aceleração do ritmo respiratório e de um tremor das pálpebras, os sintomas da esperança desvaneceram-se.

Finalmente, pelas sete horas, o Dr. Haggard recorreu ao mais perigoso dos psicoestimulantes da época. O medicamento agia diretamente sobre as funções conscientes do indivíduo. Além disso, produzia um aumento bastante acentuado da função circulatória e dos reflexos nervosos. O psicoestimulante era o último remédio de que os médicos podiam lançar mão.

Crest reagiu ao estímulo tal qual um homem reagiria a uma xícara de café. Por isso, Haggard resolveu aplicar outra injeção.

Eram sete e quarenta e cinco. Antes de pôr lentamente as mãos no equipamento portátil de telefonia, Rhodan lançou mais um olhar sobre o enfermo. No mesmo instante o arcônida levantou-se do leito num movimento repentino, como se algum impulso estranho o tivesse chicoteado.

Rhodan deteve-se em meio ao movimento. Um gemido abafado soou nos fones de ouvido. Era o Dr. Haggard que, perplexo, acompanhava a inexplicável reação do paciente. Nunca antes, o fato de Crest ser uma criatura completamente estranha se impusera à sua consciência com tamanha nitidez.

Aconteceu exatamente aquilo que Manoli previra. O sono de Crest podia aprofundar-se até a morte, ou então ele despertaria para um estado de plena consciência num reflexo tão rápido que o cérebro humano dificilmente conseguiria entender de imediato.

Crest havia acordado, não restava a menor dúvida. Seu primeiro gesto consistiu numa contorção dolorosa do rosto. Pôs a mão ossuda na cabeça.

Rhodan compreendeu a situação antes dos outros. Com um ligeiro movimento, colocou na cabeça do arcônida o capacete acústico com o equipamento de telefonia que fora deixado bem à mão. A ligação já havia sido estabelecida.

— Crest, o senhor me ouve? Compreende o que estou dizendo? — soou a voz nervosa.

Bell mal reconheceu a voz de Rhodan. Muito mais aguda que de costume, revelava a enorme tensão a que ele estava submetido.

Rhodan sabia que não havia muito tempo para explicações demoradas. Desde que Crest tivesse alcançado alguma lucidez, teriam de agir imediatamente.

— Ouço... ouço, sim — veio a resposta. — Estes ruídos! O que...

— Deixemos isso para depois — interrompeu Rhodan. — Daqui a pouco dar-lhe-ei todas as explicações. Acabamos de despertá-lo de um sono prolongado. O senhor está curado. Conseguimos dominar a leucemia. Mas, agora, temos de agir sem demora. Há algumas horas estamos sendo alvo de um bombardeio ininterrupto. O reator está emitindo uma luz azulada. Receio um colapso. Além disso, o equipamento de telefonia entrou em pane por causa da trepidação. Estamos...

Ninguém poderia imaginar que este relato, vindo logo após o despertar e que teria sido prejudicial ao equilíbrio de qualquer ser humano em situação semelhante, fosse representar a terapia mais eficaz para o arcônida.

Crest compreendeu em poucos segundos todos os detalhes de uma situação que, na opinião de Haggard, lhe deveria ser revelada aos poucos e com muita cautela.

Os médicos estavam estupefatos. Manoli ficou pronto para a prestação de socorro imediato, até que percebeu que seus receios eram infundados.

Exausto, sacudiu a cabeça e largou a seringa. Seu saber havia chegado ao fim. Haggard preferiu manter-se em atitude de observador. Como cientista que era, não havia nada que lhe causasse espanto.

— Desligue imediatamente! — soou a voz clara de Crest. — Há o risco do superaquecimento. Desligue!

Rhodan recuperou a calma. Não era por nada que era chamado de comutador psicológico instantâneo. Compreendeu o medo que se desenhava nos olhos do arcônida.

— Se assim for, estamos liquidados, Crest — disse laconicamente. — São sete horas e cinqüenta e cinco minutos. Dentro de cinco minutos Thora procurará entrar em contato conosco. O reator terá de agüentar até lá. Se Thora intervier imediatamente, tudo estará salvo. Só depende de pormos a funcionar o equipamento de rádio. E só o senhor é capaz de fazer isso.

— Dentro de cinco minutos? — balbuciou Crest. Seus olhos procuraram o aparelho que se encontrava junto à cama. — O que houve? É impossível que ocorram defeitos de funcionamento. Ligou a chave de reparos?

Rhodan mudou de cor. Bell soltou um palavrão. Crest respirou com dificuldade. A atividade cardíaca aumentara bastante. Ao que parecia, estava sofrendo de falta de ar.

— Que chave é esta? — perguntou Rhodan, torcendo os dedos. — Não faço a menor idéia.

— O microautômato — respondeu Crest. — Elimina instantaneamente qualquer defeito, que só pode surgir em circunstâncias excepcionais nos contatos. As baterias e as células energéticas são indestrutíveis, desde que no interior do aparelho seja mantido o vácuo absoluto.

Sem dizer uma palavra, Rhodan saltou para a caixa em forma de cubo. Não havia nenhuma conexão visível que estabelecesse ligação com alguma fonte de energia. Só mesmo pela antena de extremidade esférica percebia-se que se tratava de um emissor.

A tela oval e côncava continuava apagada. Enquanto Bell, impotente e torturado pela autocensura, olhava para o arcônida, Rhodan colocou o aparelho ao alcance das suas mãos. Não perdeu um único segundo.

— Faça a ligação! Rápido! — insistiu sem a menor tonalidade de calma na voz. — Não desconfiávamos de que este aparelho tivesse um serviço automático e autônomo de reparos. Ainda dispomos de três minutos.

Mais uma vez, Crest compreendeu de imediato a situação. A manobra da chave era extremamente simples. Rhodan fechou os olhos para não revelar o nervosismo. Um sinal verde surgiu na tela.

— Os reparos estão em andamento — disse Crest, com a voz ofegante. — Temos de esperar. Deixe-me ver o reator. Devíamos desligá-lo.

Com um movimento rápido, Bell afastou a cortina. Crest arregalou os olhos avermelhados.

— Ele não agüentará mais de uma hora, segundo sua escala de tempo — disse, tranqüilamente. — Há horas que está trabalhando em regime de sobrecarga, do que resulta um aumento das reações nucleares. Os conversores térmicos estão trabalhando com a potência máxima. Por que está acontecendo uma coisa dessas?

Rhodan começou a dar-lhe uma rápida explicação. As indicações de Crest eram bastante complicadas. Esclareceu que sob o fogo concentrado ininterrupto, a estrutura energética do campo protetor ficou sujeita a uma oscilação excessiva, uma vez que o modelo simplificado não dispunha de um conversor que aumentasse a intensidade dos trechos submetidos a uma carga mais forte.

Rhodan compreendeu o essencial, mas isso não resolvia nada. Poucas vezes sentira-se tão desesperado.

O sinal verde apagou-se um minuto antes das oito. Rhodan fez a ligação com as mãos trêmulas. A tela começou a cintilar. Ouviram-se ruídos crepitantes. Repentinamente, som e imagem surgiram com tamanha nitidez que o Dr. Haggard recordou o súbito despertar do cientista arcônida. O mecanismo automático de reparos funcionara perfeitamente. Era provável que o defeito consistisse apenas de um contato que se soltara com a trepidação ininterrupta.

Crest e Rhodan contemplaram a imagem tremeluzente. O aparelho representava uma maravilha no campo das comunicações.

O comandante poderia contar com tudo, menos com os fatos que se seguiram. O relato resumido que concebera tornara-se inútil, pois a voz estridente daquela mulher nervosa não admitia a menor interrupção.

Thora parecia próxima à prostração total. Seu belo rosto ardia de cólera.

— Quero saber o que houve!

As palavras, saídas dos alto-falantes invisíveis, pareciam chicotadas. Num instante, Rhodan compreendeu que já devia estar falando há algum tempo. Certamente procurara estabelecer contato antes que a chave de reparos fosse ligada.

— Ouça, Thora, ouça! — gritou. — O reator está emitindo uma luz azulada. Se não agir imediatamente, o campo energético entrará em colapso.

— Onde está Crest? — interrompeu aos gritos. — Minha generosidade chegou ao fim. Dispenso suas explicações, major Rhodan. Se alguma coisa aconteceu a Crest, abandoná-lo-ei sem a menor contemplação e atacarei com todos os meios de que disponho.

Rhodan afastou-se para o lado. Seu rosto pálido traduzia suas emoções. O sorriso gélido apareceu no rosto de Bell. Sem trocarem uma palavra prestaram atenção à conversa entre Crest e Thora, travada numa linguagem, para eles, totalmente incompreensível.

A comandante parecia mais calma. Porém, antes que Rhodan pudesse voltar a falar, a comunicação foi interrompida por ela. Em vão, ele comprimiu o botão vermelho. Depois, virou-se rubro de cólera.

— As reações de sua gente são muito estranhas! — disse, em tom mordaz. — Quais são as intenções da jovem filha da dinastia todo-poderosa dos arcônidas?

Crest esboçou um sorriso quase imperceptível. Descansava no leito e surpreendeu Rhodan com esta resposta:

— Acaba de decolar com a maior das naves auxiliares. Chamou alguns minutos antes da hora combinada porque os instrumentos haviam detectado o bombardeio. Está preocupada, major. Pense na situação de Thora e na nossa. Se não intervier imediatamente com os aparelhos que se encontram a bordo da nave auxiliar estaremos perdidos. Acho que o senhor não tem o menor interesse em provocar uma expedição punitiva contra a humanidade que representa. Portanto, não assuma o risco de me fazer cair nas mãos de qualquer potência da Terra. Dentro de dez minutos, Thora surgirá por cima da cúpula.

— Dez minutos? — repetiu Rhodan, surpreso. — Conseguem fazer em dez minutos a viagem da Lua até aqui, inclusive o pouso?

A respiração de Crest estava mais tranqüila, porém, os médicos permaneciam alertas.

— É inacreditável! — murmurou o Dr. Haggard. — Ele resistiu. Se eu soubesse disso, teria injetado o psicoestimulante logo. Como se sente, Crest?

— É uma pergunta importante, mas a pergunta que vou formular é muito mais urgente — interveio Perry Rhodan em tom frio.

Um ligeiro estremecimento passou pelo corpo de Crest. Olhou atentamente para Rhodan.

— Explicou a Thora que três naves terrestres com um novo tipo de bomba nuclear estão a caminho da Lua? É claro que não! E nem me deu tempo para informá-la a respeito. Essa louca furiosa preferiu interromper a comunicação antes que pudesse preveni-la. Talvez vocês nem ao menos possam conceber a idéia de que os homens consigam, através de um ato inteligente, eliminar os feitos de um campo anti-neutrônico. Se Thora não agir imediatamente, daqui a pouco sua nave estará no centro de uma bola incandescente gerada por três bombas H de alta potência. Não venha me dizer que as reações nucleares são impossíveis. Não são. Os homens desenvolveram a ignição nuclear a frio, com base na catálise provocada pelos átomos do mésio. As três bombas não darão a menor importância ao campo anti-neutrônico de Thora. Crest, nunca falei tão sério como agora! Ligue imediatamente para Thora e faça com que ela adote as medidas defensivas que se fazem necessárias.

Crest mudara de cor.

— Fusão a frio? — disse com voz débil. — As três naves serão localizadas a tempo de se evitar o ataque. O robô do nosso cruzador espacial agirá independentemente da interferência de Thora e defenderá a nave.

Rhodan deu uma risada amarga.

— Muito bem, Crest. Só resta saber se o computador está bem programado. O cérebro positrônico ainda baseia seus cálculos em seres vivos primitivos, não é? Na sua lógica puramente mecânica, abster-se-á de qualquer medida defensiva, embora estas se tornassem naturais se a memória positrônica recebesse uma regulagem adequada. O computador subestimará o perigo porque não é capaz de um raciocínio pessoal. Nenhum dos cálculos considerará a existência de superbombas catalíticas cuja potência total chega a trezentos milhões de toneladas de TNT. O robô só pode agir erradamente. Foi regulado para os dados da primeira nave terrena que pousou na Lua. De acordo com esses dados, o dispositivo positrônico interromperá a teledireção, montará um campo anti-neutrônico comum e, quando muito, levantará uma cúpula protetora do tipo que já conhecemos. O computador não poderá fazer mais que isso, porque a lógica mecânica de que é dotado não lhe permite fazer mais do que o estritamente necessário. Ninguém vai matar pardais a tiro de canhão, não é? Para isso, usa-se espingarda de chumbo fino. Crest, ligue imediatamente para Thora! Deve voltar. As bombas podem ser arremessadas a qualquer instante. Tenho um pressentimento. E tenho bons conhecimentos de cibernética. Ligue agora mesmo!

O arcônida jazia imóvel na cama. Seus olhos pareciam expressar uma indagação muda. Neles se lia a descrença e a dúvida. Por mais tolerante que pudesse ser, dificilmente o representante de uma raça infinitamente mais desenvolvida compreenderia que as armas construídas por um povo classificado no grupo de inteligência D pudessem ser tão eficazes.

— Espere, por favor — cochichou. — Ainda me sinto um pouco fraco. Além disso, no momento, não tenho meios para entrar em contato com Thora. O emissor está regulado exclusivamente para contatos com minha nave exploradora.

— Pois procure entrar em contato com algum membro da tripulação! — exclamou Rhodan em desespero. — Procure compreender, Crest! Os homens atacarão com todos os meios de que dispõem. Faça alguma coisa!

— É inútil — objetou o arcônida. Sua boca assumiu uma expressão amarga. — Devem estar deitados diante das telas dos simuladores, admirando uma nova obra-prima. Ninguém perceberá o sinal.

Rhodan respirou com dificuldade. Teve de esforçar-se para reprimir uma censura mais violenta. A raça dos arcônidas estava no fim; não havia a menor dúvida. O comandante preferiu não dizer nada. A passos lentos, dirigiu-se para a saída. Seu olhar percorria o céu matutino. Se as informações de Crest fossem corretas, dentro de poucos instantes uma coisa monstruosa surgiria por cima da cúpula. Rhodan imaginava perfeitamente o que os arcônidas deviam entender por nave auxiliar. Sem dúvida, ela seria capaz de abrigar mais de vinte das grandes naves da Terra.

E o rugido infernal começou. Com um gemido, Rhodan fechou os olhos. Um poder supraterreno começou a se revelar.

 

Era inútil procurar abrigo. As aberturas estreitas dos abrigos de concreto tinham sido transformadas em apitos infernais.

Um furacão teria sido rebaixado a um fenômeno insignificante. No último instante, Thora desistira da destruição das diversasdivisões que cercavam a cúpula. Mas, face aos princípios que adotara, não poderia deixar de dar uma lição dura nos seres inferiores.

Para Crest, o procedimento de Thora era natural. Rhodan mal conseguiu compreender por que teve de desencadear uma tempestade tão terrível. Como representante de uma grande potência galáctica, sentia-se humilhada pelo quase sucesso do bombardeio ininterrupto à cúpula energética que erigira. Seus sentimentos eram idênticos aos da figura antiquada de um oficial das forças coloniais do planeta Terra que veria, numa revolta promovida pelos povos subdesenvolvidos da colônia, uma forma de blasfêmia contra as classes dominantes.

A enorme nave esférica flutuava pouco acima da cúpula energética. Rhodan não saberia dizer de que forma foi desencadeado o furacão. Aliás, quando se tratava de qualquer medida dos arcônidas, nem seria capaz de esperar que fosse diferente.

As formidáveis ondas de pressão varriam tudo diante de si. O fogo das inúmeras baterias cessou tão repentinamente que até parecia nunca ter representado um perigo mortal para os homens que se achavam cercados. Os soldados das divisões de elite das forças asiáticas conseguiram agarrar-se nos excelentes abrigos até que os efeitos da falta de gravidade se somaram ao furacão.

Surpreendidos pela ausência de gravidade, não havia mais como segurar homens e material. Mais de cento e cinqüenta mil soldados foram varridos das trincheiras que nem folhas secas, e tangidos para a imensidão do deserto.

As grandes peças de artilharia e as pilhas de munição ofereceram uma área de impacto muito mais ampla. Foram arrancadas dos embasamentos pelas vagas uivantes dos ventos em fúria.

Nada mais aconteceu. Thora empregara uma arma que talvez considerasse primitiva. Além disso, seu procedimento foi relativamente humano. Até Rhodan teve de reconhecer isso, mesmo contra a vontade.

De qualquer forma, o fogo de artilharia cessou de um instante para outro. Nada mais havia com que se pudesse atirar.

Só os grandes abrigos de concreto resistiram à ventania infernal. Todos os objetos que não estavam bem cimentados ao solo foram largados suavemente no chão, além dos limites do campo antigravitacional. Ali, o furor do furacão também perdeu sua força. E assim, homens e materiais viram-se reunidos em boa harmonia em meio ao deserto. Ainda se via a cúpula energética, mas não mais se viam as posições de artilharia.

Assim que o capitão Klein sentiu o chão firme sob os pés, e quando o mal-estar que sentia desapareceu, viu a cúpula energética encolher-se. Um objeto arredondado desceu lentamente no território cercado e, agora, desimpedido. De espaço a espaço, a guarnição de um abrigo abria fogo com armas leves de infantaria. Mas os projéteis nem chegavam a alcançar a área visada.

Daí em diante. Klein absteve-se de olhar o relógio. O momento decisivo havia passado. Rhodan já não teria necessidade de solicitar o armistício.

Klein ajudou o comandante das forças chinesas a afastar uma mesa despedaçada. Só depois disso, o general Tai-tiang conseguiu pôr-se de pé.

O apito das aberturas cessara. Lá fora, o sol voltara a brilhar. Só no interior dos abrigos continuava a reinar o caos. Homens erguiam-se do solo, praguejando. Outros estavam muito quietos. Alguns dos cientistas pareciam curiosos; outros, apavorados. Foi a primeira vez que o capitão Klein conseguiu ler a gama inteira dos sentimentos humanos nos rostos pálidos e embrutecidos.

O coronel Donald Cretcher, oficial de ligação das forças do Ocidente, subiu a passos cambaleantes das profundezas do abrigo de comando. Estava pálido. A testa sangrava abundantemente.

Um ligeiro relancear de olhos colocou-o a par do estado dos presentes. Aquilo que Klein jamais esperaria, tornou-se realidade com algumas palavras de Cretcher. Ajudando o general chinês a pôr alguma ordem no abrigo, o coronel do CID declarou, laconicamente:

— General, nas circunstâncias em que nos encontramos, acho preferível suspender o fogo, que, de qualquer maneira, se revelou ineficaz.

— Quê? — balbuciou Tai-tiang. — As baterias...?

— Foram arrancadas dos embasamentos. O pânico tomou conta de todas as posições. Pouco antes do pouso dessa nave espacial desconhecida recebi uma mensagem importante do quartel-general na Groenlândia. Meus colegas e eu chegamos à conclusão de que é preferível aguardar os acontecimentos.

O major Butaan, do Serviço de Defesa da Federação Asiática, foi ainda mais lacônico:

— Suspenda o fogo! Assumo a responsabilidade.

Tai-tiang compreendeu que perdera em definitivo. Não havia como rebelar-se contra a ordem do major Butaan.

Cambaleante, o general dirigiu-se à fresta de observação mais próxima. A cúpula energética voltara a ser erguida, maior e mais potente que antes.

As mensagens radiofônicas dos comandantes das diversas unidades começaram a ser recebidas. O círculo de tropas que cercava a cúpula fora desmantelado. As unidades estavam em plena dissolução.

Klein enxugou as palmas das mãos nas calças. Kosnow retribuiu seu olhar. O leve sorriso do oficial das forças orientais falava por si. Rhodan vencera... Ao menos, por enquanto.

 

Thora chegara ostentando o poderio do Grande Império e a arrogância de uma deusa ofendida.

Perto dela, Rhodan tornara-se insignificante. Suas palavras perderam toda a força. Seus argumentos não mereceram a menor atenção. A única resposta que obteve foi um ligeiro franzir de testa.

O comandante desistiu. Seguiu-a com os olhos até que desaparecesse no interior da tenda; trazia um sorriso estranho no rosto.

Bell não compreendia mais nada. Tomado de um acesso de fúria, contorcia-se nos braços de ferro de um robô armado que deixara a nave logo após o pouso juntamente com outras máquinas do mesmo tipo.

A chamada nave auxiliar, que o raciocínio lógico de qualquer ser humano conceberia como uma coisinha qualquer a ser utilizada em caso de emergência, revelou-se um gigante de sessenta metros de diâmetro, dotado de máquinas e geradores de força de grande potência.

Era uma miniatura da nave exploradora, mas ultrapassava em tamanho qualquer nave terrestre.

Vistos de longe, os robôs dos arcônidas pareciam formigas. Saíram em formação compacta pela escotilha do compartimento existente na parte inferior da nave.

Ao que parecia, tratava-se de construções de diversos tipos. Só os robôs armados eram dotados de quatro braços com muitas juntas. Tudo indicava que um par dos mesmo era destinado à manipulação de armas. Rhodan sabia perfeitamente que uma única dessas máquinas poderia enfrentar uma companhia inteira de soldados da Terra. Era difícil aceitar essa idéia. Para que se pudesse conscientizar alguém dessa realidade, seria necessário uma demonstração. O cérebro humano não foi feito para aceitar como válidas as indicações não comprovadas de uma super-técnica extraterrena.

Uma ordem proferida em tom áspero fez com que Bell se calasse. Assim que deixou de resistir à mão de ferro que o comprimia, o robô relaxou a pressão.

— Ordeno-lhe que se mantenha em atitude tranqüila e humilde. Não saia do lugar — soou a voz metálica do robô.

Bell cambaleou em direção a Rhodan. Uma luminosidade surgiu na cúpula superior da nave esférica. A cúpula energética que começou a se formar reluzia numa tonalidade violeta. O instinto disse a Rhodan que não haveria mais problemas.

Além do território bloqueado, reinava um silêncio de morte. Com um receio crescente, Rhodan se perguntava o que teria acontecido aos homens das divisões asiáticas. Ao ouvir as imprecações de Bell, mudou de atitude. Seu rosto descontraiu-se.

— Não perca o controle — disse com uma tranqüilidade estudada. Apertou os olhos e contemplou a tenda, onde Thora estava examinando o estado de saúde de Crest.

Bell calou-se. O tremor de seus ombros desapareceu aos poucos.

— Nossa prezada amiga está prestes a cometer o maior erro de sua vida. Muito bem. Que cometa! Se não me engano, daqui a dez horas, no máximo, ela não será mais que um feixe de nervos. Não mais que uma mulher ferida. Não diga nenhuma palavra. Deixe tudo por minha conta. Esperaremos aqui mesmo até que ela venha. Certo?

— Palavra de honra, não entendo nada! — disse Bell, com a voz áspera.

— Transformar-se-á numa mulher derrotada — insistiu Rhodan. — E não lhe restará outra alternativa senão confiar-nos parte de seu saber infinitamente superior, se quiser rever o seu planeta natal. Quando a nave exploradora tiver sido destruída, ver-se-á obrigada a fazer isso. Não enxerga muito longe. Costuma subestimar o inimigo e receberá, por isso, uma lição amarga. E essa lição será mais contundente, mais hu­milhante, porque lhe será ministrada por essa mesma humanidade que ela na sua in­finita arrogância, considera uma raça de seres primitivos e inferiores.

Bell fechou os lábios entreabertos. Começava a entender o porquê da tranqüilidade de Rhodan.

— Já começo a compreender. Você está convencido de que as três naves conseguirão cumprir o objetivo?

— Acho que sim — murmurou Rhodan. — Fique quieto. Daqui a pouco ela aparecerá. Crest tem uma visão muito mais exata da situação e deverá, por certo, colocá-la a par do problema.

Quando a mulher esbelta saiu correndo da tenda, de cabelos soltos ao vento, os dois homens estavam sentados no chão. Respirando pesadamente, tremendo de frio sob o calor escasso do sol terreno, demasiado fraco para seu organismo, ela estacou.

Rhodan levantou os olhos, indiferente. Seu olhar parecia misterioso. A respiração da mulher era ofegante. Pela primeira vez a inquietação desenhava-se naquele rosto belo e estranho.

— Olá, como vai? — indagou Rhodan em tom arrastado. — Muito obrigado pela ajuda. Pode levar Crest. Está restabelecido. Com boa alimentação e bastante sossego, a fraqueza passará logo. Pode partir.

Thora ficou estarrecida. Contemplou aquele homem, sentado diante dela, com um misto de pavor, desespero e indignação instintiva. Sua voz era estridente. As palavras pareciam atropelar-se.

— Por que não me informou logo sobre o ataque planejado? Por quê? Eu...

— Minha cara, seu comportamento foi o de uma colegial histérica — interrompeu Rhodan. — Suspendeu o contato comigo assim que conseguimos reparar o defeito no equipamento. Só lhe aconselho que se dirija quanto antes a sua nave, se é que ainda tem tempo para isso. Chegou a localizar três corpos estranhos? Fale logo! Recebeu aviso de localização?

Thora confirmou. A palidez do seu rosto tornou-se mais intensa. O tremor das suas mãos fez com que Rhodan se levantasse.

— Tomou alguma providência?

A pergunta continuou no ar. Em vez de responder, Thora balbuciou uma súplica.

— Venha! Venha comigo, por favor! Quando decolaram os foguetes? Que tipo de arma levam a bordo? Crest falou numa...

— ...bomba mesocatalítica — completou Rhodan. — Trata-se de uma arma de fusão nuclear que não será afetada pela cobertura anti-neutrônica. Realizou os ajustes necessários do equipamento? Poderia tê-lo feito por prevenção. Qualquer comandante de nave terrena teria feito.

Thora não perdeu mais tempo. Não deu outras explicações. Para Rhodan tornou-se evidente que ela não havia tomado as precauções mais elementares.

Corria e os homens seguiam-na. Rhodan lembrou-se da história de Davi e Golias. As circunstâncias eram parecidas. A presunção, aliada ao desleixo, poderiam perfeitamente ocasionar a destruição da poderosa nave exploradora. Ainda mais que, segundo revelara a experiência, a tripulação apática não estaria em condições de reagir com a necessária rapidez em face ao perigo.

O elevador gravitacional da nave auxiliar levou-os diretamente à sala de comando. Thora viera só. Em tom nervoso, explicou que se tratava de um veículo espacial totalmente automatizado, que poderia ser dirigido por qualquer ser vivo dotado de raciocínio.

Rhodan sentiu vertigens ao lançar os olhos em torno. Comparadas aos instrumentos que tinha diante de si, as complexas instalações da velha Stardust até pareciam uma canoa ao lado de um porta-aviões nuclear.

Não houve os demorados preparativos para a decolagem. O salto para o espaço foi tão abrupto, direto e espontâneo como o ato de um motorista que dá partida em um carro. Nunca antes o enorme abismo entre o saber dos arcônidas e o dos homens se tornara tão evidente aos olhos de Rhodan.

As manobras através das quais Thora dominou a enorme nave espacial foram rápidas e muito simples. Em compensação, numerosos robôs entraram em funcionamento. Rhodan sobressaltou-se com o rugido dos mecanismos propulsores. As telas iluminaram-se. Numa reação instintiva, ele se preparou para os efeitos temíveis da enorme aceleração. Nada aconteceu. A esfera disparou na vertical, numa velocidade de enlouquecer.

A Terra foi-se encolhendo. Antes que Rhodan relaxasse os músculos contraídos em ansiosa espera, grande parte do globo terrestre tornou-se visível. O Oceano Pacífico surgiu aos seus olhos e, logo depois, despontou a costa oeste dos Estados Unidos.

Rhodan voltou-se. Bell, perplexo, estava encolhido numa das poltronas de encosto elevado que, segundo parecia, nem sequer eram reclináveis. Daí se concluía que os arcônidas não conheciam os problemas causados pelo impacto da aceleração. Pelos cálculos de Rhodan, uma aceleração superior a l.000 g estava sendo imprimida à nave. Apesar disso, não se percebia nada.

— Como será que fazem isso, meu Deus? — perguntou Bell, surpreso. — Como será que conseguem uma coisa dessas? Vamos dar com os costados na Lua. Thora...

A última palavra saiu em forma de grito. Rhodan virou-se precipitadamente. O satélite da Terra surgiu, enorme e bem visível, na tela dianteira. Alguns segundos depois, só se viam alguns setores da superfície lunar.

O trovejar dos inconcebíveis mecanismos propulsores cresceu num uivo martirizante. Verdadeiras torrentes de fogo irromperam, em sentido oposto ao deslocamento da nave, das aberturas existentes no anel abaulado do setor equatorial da esfera.

Não havia necessidade de inverter o mecanismo propulsor para reduzir a velocidade. Rhodan estava perplexo. Lutava contra o raciocínio revoltado que, contrapondo-se a um sentimento nascido no consciente, tentou provar que uma coisa dessas era impossível e inconcebível.

As idéias desordenadas sucediam-se. Não havia meio de ordená-las num raciocínio coerente. Rhodan estava reduzido à condição de um indivíduo sacudido por sentimentos desconexos.

Foi despertado pelo grito estridente de Thora. Levantou a mão num movimento reflexo. Numa tela lateral viam-se três pontos cintilantes.

— São as naves! — disse Bell. — Encontram-se por cima do pólo sul lunar. Acho...

 

Estavam em queda livre. Depois que o centro de teledireção montado nas estações espaciais tripuladas preparara a entrada das naves na órbita lunar, os impulsos do computador direcional deixaram de ser transmitidos.

Este fato representara uma surpresa quase total para o major Rhodan. Mas o primeiro-tenente Freyt, comandante da Stardust-II, nem se abalou com a repentina cessação do funcionamento da teledireção. As três naves continuaram a percorrer a órbita prevista e não ocorreu qualquer outro fato que pudesse ser considerado como medida defensiva.

Depois de completadas duas órbitas de pólo a pólo, o capitão Rod Nyssen assumiu o comando. O dispositivo de pontaria funcionava com a maior exatidão. O instrumental de comando da Stardust-II transmitia impulsos constantes aos computadores eletrônicos de direção automática acoplados nas três bombas.

Nyssen aguardou até que o sinal luminoso se tornasse vermelho. Na tela localizadora, surgiu o alvo: um objeto esférico. A localização ótica, dirigida pelo tenente Recert, deu sinal de perfeita identificação do objetivo. Através de cálculos ultra-rápidos, os computadores apuraram as dimensões do alvo, considerada a distância verdadeira. O primeiro-tenente Freyt transmitiu a última mensagem antes do comando de fogo:

— Do comandante da Stardust-II para as naves companheiras: objetivo identificado. Localização perfeita. Atenção, oficiais-artilheiros: aguardem instruções para disparo. Capitão Nyssen: preparar para disparo.

Nyssen era a tranqüilidade em pessoa. Começou a contar em voz alta os últimos segundos. Nos compartimentos de carga das três naves, ouviu-se um estalo vindo dos dispositivos de direção das bombas. As últimas correções foram feitas. O objetivo, identificado pelos instrumentos de orientação de tiro, foi introduzido na memória eletrônica de direção das bombas.

— ...três... dois... um... fogo! — transmitiu Nyssen.

Com o simples movimento de uma chave, ele provocou a ignição das três bombas. O trabalho dos outros dois oficiais consistiu apenas em observar o funcionamento dos mecanismos.

Os lançadores dispararam os três arte-fatos reluzentes e, no mesmo instante os computadores de direção das três naves entraram em funcionamento. Os mecanismos propulsores uivaram, arrancando-as da órbita em uma aceleração bastante elevada.

A única preocupação do primeiro-tenente Freyt foi escapar a tempo. As explosões seriam terríveis. As naves dispararam na vertical. Lá embaixo, a mais de oitocentos quilômetros de distância, os foguetes direcionais entraram em ação. O alvo havia sido captado pelo mecanismo de direção automática. Nenhum desvio seria possível.

 

Uma explosão nuclear ocorrida no vácuo absoluto nunca se desenrolará da mesma forma que numa densa camada atmosférica.

Na superfície lunar, desprovida de ar, não ocorreria um dos principais efeitos destruidores, resultante do terrível deslocamento de massas de ar fortemente comprimidas e superaquecidas.

Como não se dispusesse de qualquer experiência sobre os efeitos de uma explosão nuclear no espaço cósmico, decidiu-se recorrer a três bombas H. O objetivo ficaria situado exatamente no centro da região onde os processos de fissão nuclear seriam desencadeados simultaneamente.

Com isso, tudo que estivesse na área-alvo, seria abrangido e pulverizado pela esfera gasosa das explosões conjugadas e se volatilizaria com as temperaturas geradas pelo processo.

As emissões radioativas foram consideradas um fator secundário, ao menos na hipótese específica de que se tratava. Sem dúvida, os efeitos da compressão cessariam muito mais depressa que numa atmosfera densa. Praticamente, ficaria restrita à capacidade de expansão dos gases liberados pelas explosões.

Assim, ninguém contava com o nascimento de um sol artificial. De início, a esfera incandescente, branco-azulada, surgiu em forma de um ponto, para expandir-se com incrível rapidez, até assumir a forma de uma gigantesca esfera luminosa.

O tristemente famoso cogumelo atômico deixou de aparecer. Em compensação, o pólo sul lunar foi transformado numa cratera fumegante. As detonações, ocorridas junto ao solo, atiraram massas gigantescas de pedras incandescentes para o negrume do céu.

Os tripulantes da estação espacial avistaram a esfera gerada pela liberação das tremendas forças do átomo. A massa destruidora atingiu um tamanho tal que ultrapassou o horizonte lunar.

A nave auxiliar dos arcônidas, que desenvolvia uma velocidade incrível, penetrou na extremidade da área de influência da terrível explosão. Mais tarde, Rhodan não se lembraria do que pensara ou sentira nos segundos que a nave levou para atravessar aquele inferno. Só sabia que a reação extremamente rápida do dispositivo positrônico da nave fez com que os reatores de alto desempenho fossem acionados para retirar a nave da área atingida.

A nave foi arrancada de sua trajetória e arremessada ao espaço cósmico. Só quando se encontrava fora do alcance da explosão, os autômatos conseguiram controlar seu curso e estabilizar sua posição.

Dez minutos depois do ataque, a esfera flutuava no espaço vazio. Thora demonstrava uma calma estranha. Seus olhos tristes e apagados fitavam as telas que lhe revelavam todos os detalhes da catástrofe. A nave devia estar, ou melhor, estivera, em meio àquele caldeirão borbulhante.

Rhodan esperou alguns instantes antes de perguntar:

— Por que torturar-se com sentimentos de culpa? Deixe disso! É preferível seguir o exemplo dos seres de minha raça! Não acredito que sua nave tenha resistido ao ataque. De qualquer maneira, terá de aguardar até que tenham cessado os efeitos da reação, se pensa em pousar para verificar.

Para Rhodan, homem de raciocínio lúcido, que não se entregava a ilusões, a destruição da nave exploradora dos arcônidas era um fato consumado e ele era muito realista para refletir sobre acontecimentos passados. Por isso, disse, em tom de advertência.

— Não pense em vingar-se, Thora. Sugiro que pouse imediatamente no deserto de Gobi. Resta-lhe a escolha entre a indignidade e primitivismo de uma vingança e as normas do raciocínio e das decisões tomadas dentro da lógica. Decida. Uma expedição punitiva não serviria nem a Crest nem a você. Além disso, garanto-lhe que teria de enfrentar alguns problemas criados por mim.

Thora contemplou a arma que Rhodan trazia na mão. Um traço de amargura desenhou-se em seus lábios.

— Eu os subestimei; e é só — respondeu com voz apática. — Não pense que uma comandante do Grande Império vai sucumbir por causa da destruição de uma nave espacial. Essas coisas acontecem todos os dias. Qual é a sua proposta?

Rhodan sabia que alcançara uma vitória definitiva. Agindo contra sua vontade, a humanidade, tomada de pânico, fizera alguma coisa que ele, Rhodan, considerava como uma das condições básicas para a conquista do poderio cósmico.

Os dois arcônidas, Thora e Crest, estavam isolados. Não poderiam recuar. Por isso, Rhodan, consciente da posição em que eles se encontravam, disse-lhes:

— Antes de mais nada, vamos pousar. Farei o possível para que os povos da Terra reconheçam a terceira potência como estado soberano.

Thora estava desesperada. Rhodan percebeu-o.

Algum tempo depois, a nave esférica voltou a pousar no solo pedregoso do deserto de Gobi.

Lá no espaço, bem longe da Terra, doze homens respiraram aliviados. As três naves retornavam às respectivas bases.

— Gostaria que não tivéssemos chegado a esse ponto! — murmurou o comandante Freyt, lançando um último olhar sobre as telas. — Viu aquela sombra que passou em disparada? Quando dispusermos de naves com aquela velocidade, a Galáxia será nossa.

 

                                                                                            K. H. Scheer  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades