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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ESTIRPE DO DRAGÃO / Pearl S. Buck
A ESTIRPE DO DRAGÃO / Pearl S. Buck

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A ESTIRPE DO DRAGÃO

 

Para os chineses o Dragão não é uma criatura má, mas um Deus amigo daqueles que o adoram.

"Sob o seu poder há paz e prosperidade".

Senhor das águas e dos ventos ele determina as chuvas, e é, por isso, o símbolo da fecundidade. Na dinastia de Hsia dois dragões travaram um terrível duelo até que ambos desapareceram, deixando no campo da luta apenas uma espuma fértil de que nasceram os descendentes de Hsia.

Dessa forma, os Dragões passaram a ser olhados como os ancestrais de uma raça de heróis.

 

                                     

 

Ling tan levantou a cabeça. Através do arrozal, no qual ele tinha os pés mergulhados, ouviu a voz gritante de sua esposa. Por que o chamava agora no meio da tarde se não estava na hora de comer nem de dormir? No outro lado do campo seus dois filhos, curvados sobre a água, moviam os braços com precisão, plantando as mudas de arroz.

— Oh! exclamou.

Como um só homem eles se ergueram ao som da voz do pai.

— Foi sua mãe? perguntou este.

Eles escutaram, os dois jovens robustos. O pai sentiu o tórax vibrar de orgulho ao contemplá-los. Já estavam ambos casados e o mais velho, Lao Ta, tinha dois filhos, um de apenas um mês de idade. Lao Er, o segundo filho, também casara, havia quatro meses, e sua esposa estava começando a impacientar-se. Além destes dois, Ling Tan tinha um filho mais novo, Lao San, que nesse momento estava montado num búfalo pastando em algum lugar no enorme vale gramado. Tinha também duas filhas a uma das quais, a mais velha, permitira casar. Fora dada ao filho de um negociante na cidade cujos muros podia avistar perfeitamente de sua casa.

Nesse momento, desfazendo qualquer equívoco, ouviu claramente a voz de sua esposa. Ela berrava por ele com todas as forças.

— Seu velhote, onde é que você está? Seu surdo-mudo!

— É a nossa mãe, exclamou Lao Ta. Entreolharam-se e Ling Tan enfiou na água o molho de mudas que tinha na mão esquerda.

— É botar dinheiro fora estar parando assim, no meio da tarde, disse ele. Vocês dois não parem.

— Vá em paz quanto a isso, replicou o filho mais velho.

Os dois homens voltaram à posição primitiva e, a cada movimento que faziam, enfiavam na lama tépida uma muda verde. Seus pés afundavam na lama rica e sobre as costas bronzeadas, nuas, o sol queimava. Debaixo dos chapéus largos, feitos de fibra de bambu, eles conversavam.

Esses dois filhos de Ling Tan eram bons amigos e o haviam sido sempre, desde quando podiam recordar. Havia uma diferença de um ano entre eles, de modo que nada ocultavam um do outro. Embora casados com mulheres diferentes, eles não se separaram. Sobre essas mulheres estavam discutindo quando o pai os chamou e a elas voltaram quando ele se afastou. Eram tão jovens, esses dois homens, que os seus próprios corpos, o que comiam, o que bebiam, o que se passava pela manhã, ou à noite, era motivo para espanto e comentário. Desde tempos imemoriais que o mundo era cercado pelas montanhas verdes em torno do vale em que ficava a terra do pai, essa terra que seria deles, e o centro do mundo era a vila Ling, onde todos que viviam eram seus parentes e o haviam sido durante centenas de anos. Mesmo o mercado era ali que ficava. Quando havia uma sobra de alguns grãos de cereal, legume ou fruta, eles iam lá, vendiam-na e isso era tudo que sabiam ou cuidavam saber sobre a cidade. Uma vez que a irmã, nascida um ano depois deles, estava agora casada com um pequeno negociante da cidade, censuravam-se por vezes dizendo que deviam ir visitar o cunhado, mas raramente o faziam. Havia muito trabalho.

Sem interromper por um instante a plantação das mudas conversavam, agora, protegidos pelos chapéus. Atrás deles estendia-se o campo vazio, aquoso, e na frente estiravam-se as mudas verdejantes, eretas.

— Um homem, quando faz uma plantação numa mulher, pode dizer se pegou? — perguntou Lao Er ao irmão.

— É plantar às cegas — respondeu Lao Ta, rindo — e, assim deve-se repetir muitas vezes. Não é como a plantação que fazemos à luz do Sol. Ela briga com você?

— No princípio. Agora, não — disse Lao Er.

— Deixe-a sozinha durante três dias e então volte como se fora a sua primeira plantação — Lao Ta aconselhou ao irmão. E continuou, à maneira do mais velho quando se dirige ao mais moço: — Quando um homem planta a sua semente o solo deve estar preparado. Quer dizer, a semente não deve ser atirada de qualquer maneira, a esmo. Tudo deve estar preparado. E então a semente pode ser lançada. Mas não deve ser atirada como o vento atira o joio. Deve ser enfiada profundamente no seio da terra, assim, e assim, e assim...

E cada vez que repetia a última palavra ele enfiava o braço nu, escuro, na terra úmida, enterrando as mudas vigorosas. Lao Er ouvia com o coração.

— Sou um homem impaciente — disse, meio envergonhado.

— Então você é o culpado de não ter filhos, replicou seu irmão mais velho. Lançou um olhar de través ao irmão, a quem amava, e a sua boca abriu-se num sorriso. — Quando você tiver um ano de casado achará o filho mais importante que a mãe.

— Mas ela é muito nervosa, observou Lao Er. Todo mês, quando chega o fluxo, ela o amaldiçoa.

Riram outra vez, vendo, ambos, a jovem geniosa que era a mulher de Lao Er. A esposa do mais velho era calma, e se tinha gênio, não o demonstrava. Mas a mulher de Lao Er era um furacão. Onde quer que estivesse agitava tudo em torno de si. Lao Er amara-a assim que a vira.

Lao Ta também amava a esposa mas, bem o reconhecia, não de todo o coração. Isto é, ele podia retardar sua ida para a cama até que os outros homens, mais velhos, que ficavam pela casa de chá ou pela praça em frente ao templo, bocejassem, espreguiçando-se. Se, quando chegava a casa, seu pai ainda estava acordado, ficavam conversando um pouco na eira, na frente da casa. Não havia pressa no modo como ele amava a mulher. Ela estaria lá na cama, onde se jogava cedo, e a única coisa que tinha a fazer era procurá-la.

Mas a mulher de Lao Er era inquieta, desordenada, e Lao Er nunca sabia onde ela estava a não ser quando a tinha ao seu lado. Toda noite ele ficava tolhido ante os olhares dos outros homens, prontos a rirem-se dele, que era, quase sempre, o primeiro a afastar-se no seu desejo de saber onde ela estava. Chamava-a Jade, mas seu nome inteiro era maior. "Jade!" chamava no momento em que entrava no quarto. Algumas vezes Jade estava lá mas a maior parte não. Era raro encontrá-la duas vezes no mesmo lugar dentro ou fora de casa e nunca se achava na cama, esperando-o. Gostaria de saber se ela o amava, mas não ousava perguntar-lhe, temendo que ela risse, ela, cujo riso ou raiva eram sempre tão prontos, tão bruscos. Permaneceu silencioso imaginando onde ela estaria. Pela manhã tinha saído para os campos e o ajudara a plantar arroz, mas, depois da refeição do meio-dia, não voltara.

— Vou dormir, — tinha dito, e atirara-se na cama, ficando ali, estirada na sua frente.

Desejou deitar-se ao seu lado mas não ousou porque seu pai o censuraria por deitar com a mulher durante o dia, quando as mudas de arroz esperavam para ser plantadas. Assim, ele tinha ido embora. Deixara-a dormindo, sua face cheia, bela como a de uma criança. Mas quanto tempo dormira e o que fora fazer depois? Lançou um olhar ao Sol. Estava ainda muito alto. Suspirou e continuou a plantação.

 

Sob as esteiras que sempre estendia no pátio durante o verão, Ling Tan ouvia um estranho. Era um bufarinheiro, revendedor de roupas e sedas de Chantung, um desses homens que ganham a vida viajando com suas mercadorias, para o Sul, na primavera, e vendendo-as aos sulistas; voltando, para o Norte, ao verão, carregando as sedas do Sul. Este vinha do Norte trazendo apenas alguns pedaços de pano tão grosseiro que estava certo de que só uma mulher de plantador seria capaz de comprá-los. Assim, saíra da cidade dirigindo-se às vilas, e batera a esta casa porque era maior do que as outras casas de sítio e porque vira na porta uma bela jovem mandriando. Ela parecia distraída mas não estava, pois no momento em que ele se aproximou e lhe falou, a mãe, Ling Sao, saiu de dentro da casa e disse rispidamente:

— Se quer falar a uma mulher, fale comigo e não à esposa do meu segundo filho.

— Ia perguntar-lhe apenas se a mãe de seu marido estava — disse o bufarinheiro apressadamente. Percebeu, de relance, que essa velha era dominadora, a cabeça da casa.

— Estou indo para minha terra, no Norte; — disse ele, — tenho aqui alguns metros de boa fazenda para o verão e disseram-me, na vila, que a senhora é a mulher mais perspicaz que há por aqui.

— Mostre a fazenda e guarde a língua, retrucou ela.

Ele apressou-se em obedecer, rindo polidamente à sua ordem e em pouco estavam discutindo veementemente sobre o preço do pano.

— Por esse preço é de graça, dizia ele, principalmente porque, no verão, o Norte deverá estar em guerra.

A fazenda caiu das mãos dela.

— Qual é a guerra, agora? perguntou a velha.

— Não é uma guerra nossa, replicou o homem. São os anões do Oriente que gostam de andar sempre brigando.

— Eles virão até aqui?

— Quem sabe? respondeu ele.

Foi então que ela chegou à porta e chamou o marido. Agora Ling Tan escutava o bufarinheiro, sendo sob o telhado de palha do pátio. Sob seus pés as pedras estavam frias. Era um pátio adorável, aquecido pelo sol, no inverno, e fresco durante o verão. Um dos seus ancestrais havia feito uma pequena lagoa no centro do pátio e ali plantara um lótus, que agora florescia com seis flores muito vermelhas. No verão a mesa era posta nesse pátio e ali eles comiam, mesmo quando chovia, pois a cobertura não deixava a água passar. Estava sentado à mesa com o bufarinheiro enquanto a mulher lhes servia chá, depois do que se sentou também num banquinho afastado. Fazia sapatos. A sola era grossa, mas ela tinha uma agulha de ferro comprida. Quando a agulha se prendia ao pano ela pegava-a com os dentes brancos e fortes e puxava-a através do tecido, arrastando consigo a fibra de cânhamo. Todas as vezes que ela fazia isso Ling Tan revirava os olhos, pois parecia que era ele quem estava puxando a agulha com os dentes, embora, sem saber por que, nunca lhe houvesse dito nada sobre isso.

— Você diz que os anões do mar oriental mataram alguns dos nossos? — perguntava ele ao bufarinheiro.

— No Norte eles mataram mulheres, homens e crianças, — respondeu este.

Ergueu a sua xícara, bebeu o chá e levantou-se.

— Devo chegar a Pengpu amanhã, de modo que tenho que deixá-los — disse.

Era um homem de aspecto comum, como todos os bufarinheiros, falando macio por ter andado em muitos lugares.

Ling Tan não se mexeu. "Quais são as probabilidades?" murmurou para si mesmo.

Mas como não se dirigia a ninguém, ninguém lhe respondeu. O mascate enrolou seu pacote, pô-lo ao ombro e partiu, deixando Ling Tan no pátio, sozinho com a mulher. Ela continuava cosendo e ele permaneceu sentado, olhando a casa em torno. Os muros eram de tijolo velho e os tetos baixos cobertos com telhas. No interior da casa as divisões eram de tijolos apoiados sobre vigas de madeira, rebocados com terra e caiados de branco. Aqui seus ancestrais haviam vivido e morrido e ele tinha nascido, filho único dos seus pais, e aqui viviam seus três filhos e dois netos.

A tarde estava quente e silenciosa. Os corações dos lótus brilhavam, parecendo palpitar. No silêncio ele ouviu o choro de um neto. Ling Sao levantou-se e entrou na casa, deixando-o só. Tinha uma boa vida, pensou. Era sorte ter a sua terra situada perto de uma grande cidade, junto de um enorme rio, em um vale cavado entre montanhas das quais as águas desciam mesmo na estação seca. Nada havia que desejasse que não tivesse. Não era rico. Não era pobre. Na sua casa o único filho que morrera fora uma menina. Ele mesmo nunca estivera doente. Aos cinqüenta e seis anos seu corpo era seco e forte como tinha sido na juventude. Poderia fazer filhos como outrora se não fora o fato de sua mulher ter passado da idade. Uma velha, na vila, importunava-o sempre, dizendo-lhe para comprar uma concubina por intermédio dela, mas ele não queria.

— Eu tenho meus filhos — dissera ontem mesmo à mulher.

— Hoje em dia os homens não podem ter muitos filhos — respondera ela. Com as guerras e os canhões, e todas essas coisas estranhas, quem pode ter muitos filhos?

Mas ele se limitara a sorrir. Excetuando o fato de não poder mais conceber, sua mulher era tão boa como todas e melhor ainda porque a conhecia até o mais íntimo do seu ser. Ele estava satisfeito e não tinha o desejo de recomeçar ao lado de uma jovem. Além disso, quando se põe uma segunda mulher dentro de casa a paz desaparece.

Bateu com a palma da mão na mesa, bebeu o chá que deixara na xícara e levantou-se, apertando a fita de pano azul que lhe amarrava a cintura.

— Voltarei ao meu trabalho, — exclamou.

Ninguém lhe respondeu, nem ele esperava resposta, pois só as mulheres o ouviam, e saiu.

Ao chegar no campo, sentiu-se satisfeito por ver que os filhos atingiam o fim do trabalho. Mais uma hora de esforço e, ao por do sol, a tarefa estaria terminada. Este era o último campo e, com ele, todo o arroz estaria plantado e sua família alimentada por mais um ano. Curvou novamente as costas vendo o rosto refletido na água parda, um rosto magro, quadrado, cortado reto nas bochechas e nas mandíbulas. Havia, na vila, homens que tinham que segurar o cordão do chapéu entre os dentes por terem um rosto muito roliço. Mas ele não estava entre esses. Podia fechar a sua boca decentemente sobre os dentes, não necessitando ficar de boca aberta como o seu primo em terceiro grau, que, apesar disso, não deixava de ser um bom homem, possuindo um pouco de discernimento e bastante cultura para ler as proclamações dos magistrados nos editais da cidade.

Ling Tan não era capaz de ler uma palavra. E nunca precisava disso. Mais cedo ou mais tarde, dizia sempre, um homem sabe tudo. Se as notícias são boas ele as ouve rapidamente e se são más, quanto mais tarde ouvi-las, melhor. Não mandara os filhos às aulas, e nunca se arrependera disso, nem mesmo quando das escolas da cidade, moços e moças vinham às vilas pregar que, hoje, todo homem e toda mulher deve saber ler e escrever. Olhando para esses jovens pálidos não via razão para acreditar no que diziam. Tinha suas próprias idéias e as mantinha.

Agora, no campo, não falava com os filhos nem estes se dirigiam a ele, até que o trabalho terminou e eles se encontraram quando a última muda ia ser enterrada. Aprumaram-se então todos três, tirando os chapéus, endireitando as costas.

— Que queria nossa mãe? — perguntou Lao Ta.

— Era um bufarinheiro do Norte trazendo notícias de uma guerra — respondeu o pai. Uma hora passara desde que pensara sobre o caso e já não lhe parecia importante. O Norte era muito longe. Mediu com os olhos aguçados a linha de mudas destacando-se, verdes, contra o castanho da água. A sombra que lançavam traçava uma linha escura no campo. A mão direita dos seus filhos continuava firme como a sua. Enxugou o rosto com a ponta da fita que lhe prendia a cintura e ordenou ao segundo filho:

— Vá comprar carne de porco na casa do seu primo em oitavo grau. Vamos comê-la com couve, esta noite.

— Deixa que eu vou — pediu o filho mais velho apressadamente.

Ling Tan fitou os dois com firmeza vendo que Lao Er estava vermelho.

— Que há com você? — perguntou.

Lao Ta riu, sem falar, e o mais moço arreganhou os dentes como bobo. O pai sorriu. Eram umas crianças ainda, esses dois!

— Guardem os seus segredos — disse ele, rindo. Vou lá me importar com o que fazem?

Dirigiu-se para casa muito contente e um momento depois via o segundo filho no pátio, diante dele, esgueirando-se. Qualquer coisa fizera o filho abandonar o trabalho apressadamente e essa coisa devia estar ali, pensou Ling Tan. Não lhe ocorreu, contudo, que era a própria mulher do filho que o fizera se apressar tanto.

Lao Er entrou no quarto que era seu e de Jade. Ela não estava lá.

"Jade!" chamou ele. Não houve resposta. "Jade!" chamou outra vez. Abaixou um pouco a voz. Talvez ela estivesse escondida. Vezes havia em que ela se escondia, só se mostrando quando o encontrava distraído, para rir dele. Chamou outra vez e ainda não houve resposta. O quarto estava vazio.

Veio-lhe o medo que sempre sentia quando não a encontrava logo. Teria fugido dele? Foi ao pátio procurando a mãe. Ela não estava lá e Lao Er dirigiu-se à cozinha. A tampa do caldeirão remexia-se com as borbulhas do arroz para o jantar e ele, olhando por trás do fogão de barro, avistou a velha agachada, alimentando o fogo com mato seco. Tinha vergonha de perguntar à mãe onde estava a esposa e por isso pretendeu tornar a voz zangada.

— Mamãe, por que está cuidando do fogo? Minha mulher, que não vale nada, é que deveria fazê-lo!

— Não vale nada mesmo — replicou sua mãe. Não a vejo desde que o Sol estava no meio do céu! Essas meninas! O casamenteiro nos enganou. Mas isso é porque elas andam de pés soltos. Quando eu era jovem costumava-se amarrar os pés das moças de modo que tínhamos que ficar em casa. Elas agora parecem mais umas cabritas, da maneira que correm.

— Hei de encontrá-la, trazê-la para casa e dar-lhe uma surra — disse Lao Er com tanta raiva que se Jade estivesse nesse momento diante dele, bater-lhe-ia mesmo.

— Faça-o — aprovou a velha. Mas logo seus olhos pequenos apertaram-se com o riso. — Assegure-se primeiro, meu filho, se pode. Não é tão fácil bater numa mulher, hoje em dia!

Ela riu silenciosamente enquanto espalhava um pouco de mato seco sobre as chamas. Ling Tan não era um plantador pobre, e seu próprio pai tivera terras ricas para cultivar, mas ela aprendera que rico ou pobre não se deve desperdiçar comida, roupa e lenha. Quando tecia um pano qualquer para fazer dele uma roupa as sobras eram tão pequenas que cabiam na palma da mão. Isso o casamenteiro tinha garantido e era verdade. Mas era duro ver as jovens de hoje como eram. Orquídea, a mulher do seu filho mais velho, tivera os pés atados durante a infância mas a revolução viera antes que o trabalho acabasse e seu pai ordenara que seus pés fossem desatados e Ling Tan também não permitira que as duas filhas tivessem os pés presos.

Continuava empurrando o mato no fogão, folha por folha, haste por haste, um talo de erva, outro, uma vara seca, outra, enquanto pensava nas mulheres dos seus filhos. Boas ou más, era das mulheres dos filhos que dependiam a miséria ou felicidade do lar e a segurança do velho. Não podia confiar nos filhos porque as mulheres eram mais fortes do que eles. Dessa forma, pensou, quem poderia acreditar que seu segundo filho iria surrar Jade quando a encontrasse?

"Ele não baterá nela", murmurou às chamas. Seu marido lhe tinha batido duas vezes na mocidade, uma por raiva, outra por ciúme. Mas era mais forte do que os filhos. Apesar disso ela não tinha suportado calmamente as pancadas.

Tinha-o golpeado com os punhos, arranhando-lhe o rosto e mordendo-lhe o lóbulo da orelha direita com tanta força que as marcas continuavam lá.

— Quem mordeu você aí? — perguntavam-lhe ainda hoje.

— Um tigre dos montes, — repetia ele invariavelmente, rindo quando o dizia. Ela viera de uma vila nos montes.

Mas Jade — alguém poderia bater em Jade? Suspirou deixando que o fogo fosse se extinguindo para reanimá-lo logo. Seus joelhos doíam mas não dava importância a isso. Levantou a tampa do caldeirão para ver o arroz. Estava cheiroso. Quase pronto. Recolocou a tampa com firmeza. Não havia mais necessidade de fogo. O vapor terminaria o trabalho. Levantou-se para apanhar as travessas do arroz que estavam colocadas numas prateleiras à altura da chaminé de barro.

Parte do peixe que sobrara da refeição do meio-dia seria aproveitada e misturaria a couve ao arroz. O peixe não custava nada, pois eles tinham seu próprio tanque, bastando mergulhar a rede lá e apanhá-lo na água.

Colocou, pois, as travessas na mesa do pátio, trouxe os pauzinhos e entrou no quarto onde dormia com o marido. Ele estava lá, lavando-se numa vasilha cheia de água fria. Não se falaram mas havia paz no olhar de ambos. Sentou-se e tirando o palito de prata do cabelo começou a palitar os dentes, contemplando o marido enquanto ele se lavava. Pensou calmamente que seu corpo estava tão bem como quando o vira pela primeira vez, áspero, magro e escuro. Ele fazia movimentos rápidos, com força, enquanto se lavava; esfregando a toalha de algodão que ela tecera como tecera todas as peças que usavam, enxugando-se bem. Era um homem limpo. Nunca sentira mau cheiro quando estava com ele. Quando abria a boca para rir seus dentes eram saudáveis e o hálito suave. Seu primo em terceiro grau tinha o hálito de um camelo.

— Como você dorme ao lado dele? — perguntara, ainda outro dia, à mulher do primo.

— Não fedem todos os homens? — a mulher replicara.

— O meu, não — respondera orgulhosamente.

— Agora vou comer — disse Ling Tan subitamente. Pôs as calças de algodão azul, apertando-as na cintura com um laço limpo. Então recordou-se da carne de porco.

— Mandei o mais velho comprar carne de porco — disse. Ela abriu os olhos.

— Temos a metade de um peixe que sobrou do almoço.

— Comerei carne de porco — disse ele em voz alta.

— Coma-a, então, respondeu ela, levantando-se e saindo para prepará-la. Quando entrou na cozinha viu a carne já na mesa, sobre uma folha de lótus. Pegou-a e examinou-a, sempre receosa de ser enganada, embora nunca o tivesse sido, pelo primo em oitavo grau, que era o açougueiro. O homem temia-a e respeitava Ling Tan, e ainda que tivesse lá suas carnes ruins, como todo açougueiro tem, sabia onde vendê-las. Essa libra de leitão era tão boa como a melhor, bem entremeada, com uma pele branca, grossa, e ela não pôde achar nada de ruim. Partiu-a em pedaços rapidamente, misturou-a com alho e sal e fez pequenas bolas que atirou na água fervendo. Era hábil para cozinhar. Ling Tan ainda não tinha fumado dois cachimbos e tudo já estava pronto.

Da porta da cozinha gritou para o filho mais velho:

— Seu pai já está pronto para comer?

Lao Ta saiu do quarto da sua família, lavado, limpo, tendo um filho nos braços.

— Aqui estamos nós — disse.

Ling Tan, saindo do seu quarto, gritou pelo segundo filho.

— Ele não pode ouvir — falou a mulher da cozinha, enquanto misturava a couve com o arroz. — Está procurando a mulher.

Veio riso do pátio, o riso dos dois cujas mulheres nunca haviam fugido de casa. A mãe pôs o arroz nas travessas trazendo-o para fora e riu com eles enquanto a mulher do filho mais velho aparecia na porta abotoando o casaco.

— Deixe isso comigo, mãe — pediu, por mera cortesia, sem se mover. Então riu, pois estavam todos rindo, embora não soubesse porquê. Mas nessa casa estava-se sempre rindo de alguma coisa, e sendo de boa natureza, Orquídea também riu, sem parar para saber a causa do riso.

Quando sentaram, o terceiro filho chegou na porta guiando o búfalo, com uma corda que lhe atravessava as ventas. Era um rapaz alto, quieto, não tendo ainda dezesseis anos, e quando entrou, ninguém lhe dirigiu a palavra nem ele esperava isso. Contudo não lhe passou despercebido o olhar cuidadoso que o pai e a mãe lhe dirigiam. Ambos olhavam-no para saber se tudo ia bem. Era o filho que mais amavam. Ele procurava tirar partido da sua idade sobre os dois irmãos, mas estes também não lhe davam muita importância, limitando-se a dar-lhe um tabefe na cabeça raspada, se ele os incomodava. Mas diante dos pais era voluntarioso e pronto para tornar-se irritado se o mandavam fazer qualquer coisa e Ling Tan, propositadamente, deixava-o levar o búfalo aos montes a fim de ter o rebelde rapaz longe dele. Assim livrava-se dos seus caprichos.

Tudo isso era porque Lao San tinha um rosto muito bonito. Esse terceiro filho era tão bonito, na verdade, que os pais, desde seu nascimento, tinham se preparado para sua morte, pois os deuses deveriam ficar ciumentos de tal beleza. Tinha olhos grandes, de pupilas negras como o ônix sob a água e o globo branco como a neve. Tinha a face quadrada e a boca cheia, lábios cortados em ângulos e carnudos como são os lábios de um deus. Seu grande defeito era a sua sonhadora indolência, mas eles perdoavam-lhe isso como perdoavam tudo, e era verdade que nos últimos dois anos ele tinha crescido mais que nos quatro anteriores. Agora ele derramava a água de um jarro em um balde e ficando de pé fora do pátio, entre os bambus, lavou-se e tomou lugar à mesa.

Era um prazer de fazer forte o coração de um homem, pensou o pai consigo, olhando os filhos. O lugar de Lao Er ainda estava vago mas ele chegaria mais cedo ou mais tarde e então a mesa estaria completa. Lao Ta segurava seu filho sobre o joelho e punha-lhe, de vez em quando, na boquinha rosada como um botão de lótus, um bocado de arroz que mastigara previamente, tornando-o macio e saboroso. O ar estava se tornando frio e as flores de lótus começavam a se fechar para passar a noite. Havia silêncio em toda parte, excetuando-se o som do tear no quarto de tecelagem onde a filha mais jovem de Ling Tan estava trabalhando e continuaria a trabalhar até que a chamassem para comer.

A mãe atirou uma braçada de palha para o búfalo comer. O cachorro amarelo aproximou-se, farejando humildemente, na esperança de comida. Era um cachorro feroz diante de estranhos de quem não pretendia nada, mas agora, na frente do amo, era maneiroso como um gatinho e arrastava-se sob a mesa à espera de migalhas. Ling Tan colocou-lhe os pés em cima, fazendo-o de banco, e sentiu os pêlos ásperos do animal contra a pele nua e seu corpo quente sob as solas dos pés. Dobrou-se, atirando, num lampejo súbito de bondade, um bom pedaço de peixe para esse que, afinal, também fazia parte da família.

Nos campos próximos da casa Lao Er continuava procurando Jade. O Sol ainda não tinha desaparecido inteiramente e seus raios amarelos espraiavam-se sobre a verdura. Se ela estivesse por ali, facilmente avistaria seu casaco azul. O trigo já estava cortado e o arroz ainda não crescera — não havia lugar em que pudesse se esconder. Mas não estava lá. Devia estar em alguma parte da vila. Procurou lembrar-se dos lugares onde poderia ter ido; na casa de chá, não, porque lá só havia homens, e na casa do seu primo em terceiro grau também não, porque o filho dele era da mesma idade sua e quisera ter Jade por esposa há tempos, quando a velha que lhe servia de casamenteira estava procurando o melhor marido para ela. Esse primo em quarto grau tinha visto Jade, num dia em que ela estava de pé na porta da sua casa, em outra vila, e amara-a logo. Mas da mesma forma Lao Er vira-a e amara-a também, e entre os dois jovens nasceu uma inimizade que se transformou em ódio feroz, fazendo com que os dois brigassem por qualquer motivo. A inimizade deles tornou-se tão conhecida que todos na vila os observavam quando eles passavam, para desapartá-los se se agarrassem.

Jade não disse nem diria qual dos dois queria. Sacudia os ombros magros e respondia, quando sua mãe tocava no assunto:

— Se ambos têm duas pernas e dois braços, se não lhes falta nenhum dedo, se não são vesgos nem tortos, qual é a diferença entre um e outro?

Assim, seu pai decidiu que a preferência seria dada ao jovem cujo pai oferecesse melhor preço por Jade e ambos pediram, imploraram e ameaçaram seus respectivos pais de que se matariam se não a desposassem, ficando, com isso, destruída inteiramente a paz das duas casas. Assim foi que Ling Tan chegou, um dia, à casa de chá do seu primo em terceiro grau e levando-o para um canto disse-lhe:

— Uma vez que sou mais rico que você, deixe que lhe dê trinta dólares de prata e diga ao seu rapaz que meu filho vai ficar com a pequena. De outra forma não encontraremos paz.

O primo estava querendo porque trinta dólares de prata eram uma quantia que ele, como sábio, levava meio ano para ganhar, de modo que a coisa foi liquidada ali mesmo e Lao Er ficou noivo de Jade, casando-se com ela tão rapidamente quanto foi possível. Mas o estranho é que não lhe podia perdoar o fato de não o ter escolhido voluntariamente, e, embora não ousasse lhe falar, mantinha aquilo no fundo do coração. Algumas vezes à noite, ao deitar ao lado dela, planejava que, quando a conhecesse melhor, quando ela lhe tivesse aberto o coração, perguntaria:

— Por que não me escolheu quando pediram que decidisse? Mas ainda não lhe perguntara. Ainda que conhecesse o corpo

dela tão bem, não a conhecia como desejava e, pois, não havia paz no seu amor por ela. Todo o amor que tinha era fugaz e aflitivo.

Continuou a andar em direção à vila, procurando aquela pequena de casaco azul e cabelo cortado acima do pescoço. Ele havia ficado furioso quando, uns vinte dias atrás, Jade lhe aparecera com o cabelo assim.

— Estava fazendo calor — havia ela dito, vendo-lhe os olhos raivosos.

— Esse cabelo me pertencia — gritara ele. — Você não tinha o direito de fazer isso!

Ela não respondera coisa alguma; e vendo que não falava, tornou a gritar:

— Que fez você com o cabelo que cortou?

Sem uma palavra ela entrou no quarto, trazendo de lá a longa madeixa de cabelo. Tinha atado a ponta com uma fita vermelha. Ele arrancou o cabelo das mãos dela e colocou-o sobre os joelhos.

Ali estava ele, preto, sedoso, macio — uma parte violentamente arrancada de sua vida. Sentiu lágrimas nos olhos como se aquilo fora algo vivo que possuíra alguma coisa agora morta.

— Que faremos com ele agora? — tinha perguntado, atarantado. Não podemos jogá-lo fora.

— Venda-o. Poderei comprar um par de brincos.

— Você quer brincos? — dissera, surpreso. Suas orelhas não são furadas.

— Eu posso furá-las — respondera-lhe ela.

— Vou comprar os brincos mas não com o seu cabelo. Pegara então o cabelo e o colocara na sua mala de pele de porco onde guardava suas melhores roupas, a corrente de prata que usara ao pescoço quando criança, e mais uma ou duas coisas. Quando ela fosse velha, de cabelo branco, quando fosse velho também, e tivesse apagado da memória como fora na mocidade, ele, tomando da mala aquele cabelo comprido, relembrar-lhe-ia. Mas ainda não tivera tempo de comprar os brincos. Até àquela data a plantação de arroz mantivera-o ocupado do alvorecer ao por do sol. Então, enquanto vagueava pela vila, pensou que se ela não estivesse fazendo nada de mal, iria à cidade amanhã para comprar esses brincos. Naquele dia mesmo iria perguntar-lhe como os queria. Ainda não a vira. Começou a ficar assustado porque não a encontrara em lugar algum e veio-lhe ao pensamento a imagem desse rapaz que não se casara com outra mulher por sofrer ainda a perda da que amava. Dirigiu-se à casa do primo, encontrando sua mulher na porta. Era uma mulherona, com feitio de porca, e estava de pé, com a travessa de comida diante do rosto, comendo como se a travessa fosse uma tina. Não mencionaria o nome de Jade diante dela.

— Está comendo, minha prima irmã? — perguntou polidamente.

— Entre e coma um pouco também — convidou ela tirando o prato da frente do rosto.

— Não posso, muito obrigado, — recusou. — Está sozinha em casa?

— Seu primo, meu senhor, está comendo, mas o seu primo, meu filho, ainda não chegou a casa.

— Ah! — fez Lao Er — onde está ele?

— Quando o Sol estava ainda em cima dos chorões ele disse que ia para a cidade. Não sei se ainda está lá.

Pôs a travessa novamente na frente da cara e ele afastou-se. Mas seu coração, agora, batia doidamente. Se Jade, estivesse com esse seu primo, mataria a ambos e enterrá-los-ia ali mesmo na rua, para todo o mundo ver. O sangue correu-lhe impetuosamente pelas veias da garganta ruborizando-lhe as faces e os olhos e seu punho direito crispou-se violentamente.

Nesse momento aproximava-se do espaço aberto diante da casa de chá. Havia uma multidão aglomerada ali, como acontecia muitas vezes, para apreciar atores, prestidigitadores ou mercadores com artigos estrangeiros. Hoje não era senão um grupo de quatro ou cinco rapazes e moças, que o pessoal da cidade não podia ver direito. Estavam mostrando umas imagens num grande lençol branco pendurado entre dois bambus. Não chegou a ver as imagens porque nesse momento seus olhos caíram sobre o primo que estava sentado num banco de madeira. Estava tão certo de que Jade andava com ele que procurou avidamente para ver se a via ao seu lado. Não estava. Por um momento o sangue refluiu-lhe, gelando-se-lhe nas veias, e ele sentiu-se desfalecer de fome e cansaço. Quando a encontrasse, pensou, dar-lhe-ia uma surra, mesmo que não estivesse fazendo nada errado, porque ela não estava onde uma mulher devia estar, que é em casa esperando o marido.

Chegava-lhe agora aos ouvidos e à mente a voz de um jovem que falava já há muito tempo.

"Devemos queimar nossas casas e nossos campos. Não devemos deixar um punhado de comida que seja a fim de que o inimigo não se apodere dela para matar a fome. Sois capazes de fazer isso?"

Ninguém, no aglomerado de gente, disse uma palavra. Ninguém fez um gesto. Eles não podiam compreender o sentido daquelas palavras. Permaneciam olhando as figuras no pano branco e Lao Er acompanhou o olhar da multidão. Viu a imagem de muitas casas de dentro das quais, subitamente, saía fogo e fumaça. O povo olhava sem dizer nada. De repente, ante os olhos de Lao Er, alguém se moveu, num salto; era Jade. Ela sacudiu o cabelo da face.

— Nós somos capazes! gritou.

Ela gritava diante dessa gente toda! Lao Er sentiu-se amedrontado. Que significavam aquelas palavras? E que direito tinha ela de falar se ele não estava lá?

— Venha para casa — gritou. Estou com fome.

Ela voltou-se, olhando-o, parecendo não vê-lo. Mas o grito dele despertara aquela gente e todos voltaram para a vila, para a rotina. Espreguiçavam-se, bocejavam e os homens murmuravam que também estavam com fome mas nem se haviam lembrado disso. Levantavam-se, um por um, dirigindo-se para as suas casas, e Lao Er acenou para o primo, ainda que estivesse com raiva e apesar de não tê-lo pegado em falta. Não podia ter indulgência para com Jade, pensou, observando-a pelo canto do olho, pois tinha vergonha de olhar a mulher diante dos outros.

— "Não se esqueçam de que lhes mostrei a realidade!" — advertia o rapaz sem que ninguém lhe prestasse atenção. Lao Er ficou de pé até que Jade se aproximasse e só então pôs-se a andar percebendo que ela o acompanhava. Não lhe falou senão quando estavam bem afastados da vila e assim mesmo fazendo a voz irritada.

— Você não tem vergonha de se mostrar a todo o mundo? Ela não respondeu. Podia ouvir seu passo firme no chão

poeirento atrás dele. Continuou, dando à voz o tom mais alto que podia:

— Vou para casa com os intestinos rosnando como um leão esfaimado — exclamou.

— Por que não comeu, então? — Sua voz soou clara e macia atrás dele.

— Como posso comer se você não está no seu lugar? — vociferou sem voltar a cabeça. Devia perguntar onde você está, não? Fico envergonhado até diante dos meus pais por não saber onde anda minha mulher.

Ela não retrucou a isto e ele, não podendo suspeitar o que ela estava pensando, voltou a cabeça a contragosto e depararam-se-lhe aqueles olhos cheios, prontos, que esperavam justamente que ele se voltasse. Ela estava rindo. No momento em que seus olhos se encontraram o riso irrompeu dela e toda a raiva de Lao Er fugiu como o vento de um fole. Ela avançou dois passos e tomou a mão dele que não pôde retirá-la embora não tivesse a intenção de perdoá-la.

— Você me trata muito mal — disse ele com voz tão débil quanto a de um ancião.

— Oh, mas você está tão pálido, tão magro e tão maltratado, retrucou ela com voz jocosa. — Oh, eu devia ter peninha de você!

Não queria aquele riso que o incomodava mas não sabia bem o que queria. A Lua, uma chapa branca no espaço, começava a dourar-se e os pântanos estavam cheios do coaxar das rãs. Na sua mão a mão dela era um pequenino coração pulsando e levou-a ao pescoço, apertando-a. Queria alguma coisa muito grande que não encontrava palavras para exprimir. As suas palavras eram sempre muito poucas para as suas necessidades, bastantes para a expressão na vida comum, mas insignificantes para exprimir coisas como esta.

— Gostaria de ser um homem de saber — disse, a custo. Gostaria de conhecer palavras.

— Para que quer palavras? — perguntou ela.

— Facilitariam — respondeu. Diria a você o que sinto.

— Que é que você sente? — tornou ela.

De pé, no estreito caminho entre os campos de arroz, ocultos agora a qualquer olhar estranho, os dois encararam-se. Sobre eles um chorão lançava os seus longos galhos. Lao Er pôs as mãos sobre os ombros da esposa puxando-a vagarosamente de encontro a ele. Manteve-a assim um momento sem que ela se movesse. Diante do anoitecer calmo os dois ficaram por um instante, mais próximos um do outro do que jamais haviam estado.

— Mas eu não tenho saber, também — disse ela num sussurro.

— É por isso que você quase nunca fala comigo? — perguntou Lao Er.

— Mas como podia eu falar se você é tão silencioso? — perguntou por sua vez a mulher. Para que haja compreensão é necessário que conversemos.

Ele ponderou por um momento, afrouxando os braços em torno dela. Então os dois haviam estado cada qual esperando que o outro falasse primeiro, sem saber o que dizer?

— Você me dirá tudo que houver com você se eu lhe disser tudo que houver comigo? — indagou.

— Sim — prometeu ela.

Seus braços caíram. Sem tocá-la sentia-se mais perto dela do que nunca.

— Então falaremos esta noite — disse.

— Sim — concordou ela.

A voz de Jade era macia, diferente, mas ele a ouviu. Ela pôs sua mão na dele e caminharam juntos até em casa. Só quando já estavam na porta ela retomou seu lugar atrás dele.

No pátio os homens tinham acabado de comer e à mesa só estavam sua mãe, a mulher do irmão mais velho e a irmã mais moça.

— Você demorou muito, — exclamou a mãe. — Não pudemos esperar.

— Não precisava, — respondeu Lao Er. E voltando-se para a esposa disse rudemente, para que ninguém pudesse suspeitar que estavam se amando vergonhosamente: — Traz minha comida num prato que eu vou comê-la onde meu pai e meu irmão estão.

Como uma esposa qualquer, Jade encheu o prato para ele e foi sentar-se entre as mulheres. Ela, também, tinha esquecido o que o rapaz dissera no templo, embora achasse que nunca mais seria capaz de esquecê-lo, no momento em que ele falava. Pegou o seu prato sonhadoramente, com o coração muito alvoroçado para ter fome. Nesta noite ela iria conhecer o homem com quem se casara?

Quando Jade levantou-se Ling Sao dirigiu-se a ela.

— Já que você não cozinhou deve lavar a louça.

— Pois não, mamãe, — respondeu à sogra.

Tão rara era essa atitude nela, estava com a voz tão macia que Ling Sao olhou-a com espanto à luz do crepúsculo e sem dizer uma palavra dirigiu-se para a porta do pátio.

"Meu filho deve ter-lhe dado a surra finalmente", pensou enquanto saía.

Lá fora Ling Tan estava sentado num banco, tendo os filhos ao lado, acocorados na eira. O mais novo dormia enrolado sobre um feixe de palha de trigo. Ela fixou o segundo filho. Comia com prazer a refeição. Não havia nele sinal de outra coisa senão prazer.

"Ele deu-lhe uma surra", pensou ela, contente de que fosse verdade. O melhor casamento é aquele em que o homem é capaz de bater na mulher. Sentia-se orgulhosa do filho que tinha.

Quem poderia acreditar, perguntava-se Lao Er, que um homem aproximava-se de uma mulher mais pela conversa do que pela carne? Assim se dava com ele nessa noite. Sentiu-se a princípio tão estranho quando se deitou ao lado dela, nessa noite, que corou. "É Jade somente", disse de si para si, mas a coisa parecia-lhe mais estranha que na noite de núpcias. A carne, ele podia vê-la e compreendê-la, mas o que havia de oculto atrás daquele corpo macio? Nunca soubera. Nesse momento não queria tocá-la. Somente ouvi-la, escutá-la. Esperou, mas ela permanecia silenciosa.

— Você está esperando também? — perguntou por fim.

— Sim, — respondeu ela.

— Quem falará primeiro, então?

— Você, — disse ela. — Pergunte-me o que quiser.

Que perguntaria ele? Num canto do seu cérebro uma idéia repentina saltou e correu-lhe para a língua. -

— Você ainda pensa no meu primo que gostava de você? — perguntou abruptamente.

— É isso que você quer saber? — Ergueu-se na cama, sentada sobre as pernas cruzadas. — Oh, você é bobo! É isso que o tem preocupado? Se é, não-não-não, e todas as vezes em que me perguntar eu lhe responderei que não!

A cabeça dela girava como que sacudida por um redemoinho.

— Então em que é que você pensa o dia inteiro quando fica tão silenciosa, e quando não fala durante a noite inteira em que é que pensa? — perguntou ele.

— Eu penso em vinte ou trinta coisas de cada vez, — disse ela. — Meus pensamentos são como uma cadeia. Cada um mais longe do que o outro. Assim, se começo pensando num passarinho recordo logo em seguida como ele voa, que pode elevar-se da terra e eu não posso e então penso naqueles barcos voadores estrangeiros, como eles são feitos, se há alguma magia neles ou se é somente alguma coisa que esses estrangeiros sabem e nós não sabemos. E, por exemplo, agora que estou pensando nisso, recordo-me do que o rapaz disse diante da casa de chá: que esses barcos voam sobre as cidades do Norte destruindo tudo enquanto o povo corre e se esconde.

Ele interrompeu aquela cadeia de pensamentos. As cidades do Norte ficavam muito longe.

— Por que foi lá hoje?

— Eu me sentei para coser o casaco azul e vi que faltava linha. Sua mãe só tinha linha branca. Saí para comprar linha azul e quando cheguei na vila o povo já estava todo naquele ajuntamento.

Ele interrompeu de novo.

— Não quero que você vá à rua sozinha.

— Por quê?

— Os outros homens olharão para você.

— Mas eu não olharei para eles.

— Eu não quero que eles olhem para você. Você é bonita. E é minha esposa.

— Mas eu não posso ficar sempre aqui dentro. Não estamos mais nesses tempos.

— Antes estivéssemos. Gostaria de fechá-la a chave.

— Se você me fechasse eu não comeria coisa alguma e acabaria morrendo.

— Eu não a deixaria morrer. Ela riu.

— De qualquer forma não estamos mais nesses tempos e eu hei de ir e vir.

— Algum homem se dirige a você na rua?

— Como fazem com todo o mundo que conhecem. Houve outro silêncio até que ele recomeçou.

— Diga-me o que você pensou de mim a primeira vez que me viu.

Ela arranhava o lençol de flores azuis e brancas que cobria a cama.

— Não posso recordar a primeira vez que o vi.

— Não, eu quero dizer, logo depois que nos casamos.

Ela voltou a cabeça. À luz da Lua ele podia ver sua testa, o seu nariz pequeno, reto, seus lábios, o superior um pouco mais curto do que o inferior, e a sua face cheia.

— Fiquei muito contente porque você era mais alto do que eu. Para uma mulher sou muito alta, — disse ela.

— Não é, não.

Ela o deixou falar, sem responder.

— E depois, o que foi que pensou? — perguntou ele. A cabeça dela pendeu.

— Então eu comecei a imaginar o que você pensaria de mim.

— Mas você sabia que eu a amava, — replicou ele. Ela levantou a cabeça repentinamente.

— Imaginei então se chegaríamos um dia a nos falar. Seríamos um para o outro somente o que marido e mulher sempre são? Sim, e você procuraria saber o que eu era ou trataria apenas de dar-me seus filhos e a sua comida para fazer? E eu seria sua ou pertenceria somente à casa? Você aprenderia a ler? Há coisas nos livros que precisamos saber. Você vai me comprar um livro?... Está aí, esse é o meu segredo. Em vez de brincos compre-me um livro! Foi por isso que eu cortei o cabelo. Ia vendê-lo para comprar um livro. Mas fiquei com medo de contar a você e disse que queria brincos. É um livro o que eu quero.

Inclinou-se, ansiosa para que ele a ouvisse.

— Um livro! — Lao Er ecoou. — Mas o que tem gente como nós a ver com livros?

— Eu só quero um livro, — disse ela.

— Mas, você não sabe ler!

— Eu sei ler! — afirmou ela.

Se ela lhe dissesse que era capaz de voar como um pássaro ele não ficaria mais espantado.

— Como? Você sabe ler? — gritou. — As mulheres como você nunca lêem!

— Eu aprendi, — explicou ela, — uma palavra de cada vez. Meu pai mandou um dos meus irmãos para a escola e eu aprendia um pouco com ele todos os dias. Mas não tenho livro nenhum.

Ele pensou um momento.

— Se é isso que você quer, — disse vagarosamente, — vou lhe comprar um. Mas jamais pensei ver uma mulher lendo nesta casa.

Assim eles continuaram falando pela noite adentro, até que ficaram cansados e sonolentos.

— Vamos dormir, — disse ele por fim. — O trabalho de amanhã vai ser grande. E tenho que ir à cidade para comprar o livro.

Parou, suspendendo a respiração. Ela tinha-se agachado ao seu lado enquanto ele falava e aconchegara-se a ele como nunca fizera antes. Era tão doce esse movimento espontâneo, que ele não pôde dizer mais nada. Foi o instante mais maravilhoso da sua vida, muito melhor do que o momento em que a tomara nos braços na noite de núpcias, porque desta vez, ela se entregava espontaneamente. Por que havia sido tão tolo a ponto de não ter percebido antes como era feito o coração de uma mulher? Mas ninguém lhe ensinara coisa alguma. Tinha-se atordoado ante o conhecimento de que mesmo o casamento não a fizera dele. Agora ele a possuía porque era ela quem se entregava.

Quando dormiu, nessa noite, sabia, tão certo como se nele houvesse um deus, que ela conceberia uma criança. Esta noite lhe traria um filho.

 

Lao er, por ser de todos os filhos o que se sentia mais à vontade na cidade, era o que comprava a maior parte das coisas para o pai. Este só uma vez estivera na cidade e não mais voltara lá, dizendo que não podia respirar. Sua mãe também não ia, porque achava que todas as pessoas da cidade tinham mau cheiro. Ling Tan não concordava inteiramente, dizendo que todo corpo tem seu cheiro, mas ela respondia que, se era assim, ficaria com o cheiro do seu próprio corpo que vivera nos campos e comia carnes e vegetais frescos, não estragados pela longa permanência nos mercados. O filho mais velho era de muito boa-fé, acreditando em tudo o que o povo da cidade lhe dizia. O mais novo era muito moço e Ling Tan não lhe permitia chegar até às portas da cidade senão raras vezes, com medo que ele aprendesse coisas más. De modo que Lao Er era o único filho que fazia os negócios na cidade, levando ovos a uma loja na esquina da Porta Sul, pesando a carne dos porcos que matavam e carregando para as casas revendedoras o arroz que lhes sobrasse depois de cada colheita.

Havia feito isso durante tantos anos que agora, quando passava pela .grande porta, não se sentia assustado ou perturbado, nem trocava os pés como sucedia com a maioria dos camponeses. Uma calça e uma camisa azul cobrindo decentemente o corpo, ele caminhava, de cabeça erguida e rosto limpo. Não usava meias porque era verão, mas pusera um par de sandálias que ele e seus irmãos teciam com palha de arroz nas longas noites de inverno. Ajeitou o cabelo castanho quando entrou na primeira rua movimentada. Sabia como tratar dos seus negócios e quando falava aos homens da cidade fazia-o com aguda frieza, mas sem desprezar a boa cortesia do campo. Se quem comprava os seus ovos frescos dava-lhe um níquel falso, ele recebia-o sem dizer nada e, na próxima vez em que vinha à cidade, cuidava de que todos os ovos fossem bem frescos, pondo três podres entre eles. Como três ovos eram comprados em toda parte por um níquel, quando o homem descobria os ovos podres adivinhava imediatamente a razão de eles estarem lá e percebia então que Lao Er era capaz de discernir uma moeda falsa tão bem quanto um ovo podre. Assim os dois podiam se compreender muito bem sem que houvesse necessidade de trocas de palavras e sem que se criasse uma inimizade entre eles. Dessa forma Lao Er tornou-se respeitado de todos os que o conheciam na cidade.

Mas hoje, vindo comprar um livro, ignorava tanto quanto uma criança. Dirigiu-se a uma rua onde os livreiros expunham a sua mercadoria sobre umas tábuas colocadas em cima de bancos e ficou olhando para eles admirado. Todos os livros eram iguais para ele, com a única diferença de que uns eram pequenos e outros grandes. Vendo que permanecia ali uma porção de tempo, um livreiro após outro perguntava-lhe que livro queria, mas ele respondia sempre que não sabia. Estava envergonhado de dizer que queria um livro para a sua mulher, pois isso fá-la-ia estranha e diferente das outras. Assim, pretendeu que o livro era para si mesmo.

Esses livreiros, sem exceção, eram homens pequenos, mirrados, que em tempos idos tinham sido letrados e professores de pequenas escolas, homens que não tinham triunfado e haviam caído até venderem livros. Mas todos eles, como julgava Lao Er, deviam pelo menos saber ler. Um por um, eles exibiam sua mercadoria com exclamações: "Aqui está um livro cheio de humorismo sobre os demônios estrangeiros", "Aqui está uma aventura curiosa de uma freira que tinha seu amor", ou então, "Aqui está o Três Reinados, se é que ainda não o leu, mas quem não leu esta obra?" Espalhavam os livros na sua frente mas eles continuavam a lhe parecer iguais. Pegou ao acaso um que tinha uma capa cor-de-rosa brilhante e perguntou:

— E este, o que é?

— Ué, é isso que vê, — disse o livreiro descuidadamente, mostrando as letras nas costas do volume.

Lao Er riu envergonhado.

— A verdade é que não sei ler.

O homem não podia acreditar no que ouvia.

— Então, para que quer o livro? — perguntou. — Por que não compra doces, brinquedos, um pedaço de pano para fazer um casaco novo, qualquer coisa que não seja um livro?

A sua voz estava tão cheia de escárnio que Lao Er ficou aborrecido.

— Eu vou comprar um livro mas não há de ser dos seus, — disse com raiva e saiu.

Iria à casa de sua irmã mais velha e se o marido dela estivesse lá perguntaria o que era um bom livro e voltaria para comprá-lo na mesa pegada à daquele velho, debaixo do seu nariz.

Desceu a rua cheia de gente e andou mais três outras ruas para chegar à loja onde o marido de sua irmã era o patrão. Era uma loja de mercadorias estrangeiras, cheia de tudo quanto era espécie de objetos: lanternas estrangeiras, sapatos de borracha, garrafas de toda espécie, bolos e comidas em latas de folha, peças de roupa de crochê em todas as cores, penas, lápis, pratos e molduras de mulheres gordas, brancas, de olhos redondos e azuis.

Usualmente Lao Er passava todo o tempo olhando as coisas, esmiuçando, mas hoje ele se dirigiu diretamente para o pátio atrás do qual vivia sua irmã e os dois caixeiros, conhecendo-o, deixaram-no passar.

Encontrou aí o marido de sua irmã com o filho mais novo nos braços, curvado para trás numa cadeira, abanando-se. O homem era gordo para a idade que tinha e estava nu da cintura para cima, o corpo liso e pálido como o de uma mulher. Em torno dos seus pulsos havia anéis de gordura e seus dedos eram grossos e pontiagudos. Todos os seus amigos diziam que estava ficando rico, uma vez que comia e bebia tão bem. Ele sorria deixando-os pensar assim.

— Ah! o irmão da minha mulher, — exclamou à aproximação de Lao Er. — Sente-se, sente-se!

Levantou-se um pouco, não mais do que era necessário em se tratando do irmão da sua esposa e berrou a esta que viesse ali.

— Aqui está o seu segundo irmão, mãe do meu filho! — gritou. Ela veio correndo, o casaco aberto no pescoço e o rosto redondo alegre como sempre.

— Aí está você, irmão, — gritou ela para Lao Er, ainda que estivesse a poucos passos de distância. — Como vão os velhos e todos os outros? E por que a minha cunhada nunca me vem ver? Ela já está com filho? Não? Mas que homem fraco você é!

Lançava estas palavras todas uma atrás de outra, como borbulhas saindo da sua boca carnuda e vermelha, rindo entre elas e misturando o riso com as palavras. Correu, então, por onde viera, voltou trazendo um bolo estrangeiro e serviu chá fresco para eles.

Então Lao Er contou todas as novidades, brincou com a criança e ouviu o marido dizer como os negócios poderiam andar se os estudantes não vivessem dia e noite pregando contra a compra e venda de mercadorias estrangeiras, uma vez que o povo, por si mesmo, nunca perguntava donde vinham as mercadorias. Que tinham os negócios a ver com os estudantes e com o amor à pátria? Quando tudo havia sido dito, Lao Er pôde expor ao cunhado o caso do livro.

Ora, o seu cunhado, de nome Wu Lien, sabia ler porque era um homem da cidade e seu pai e seu avô também o haviam sido. Mas um de cada geração havia tomado para esposa uma mulher de fora porque as mulheres da cidade, depois de uma geração ou duas, tornavam-se palermas e sonolentas, dormindo até tarde durante o dia, jogando com peças de bambu até altas horas da noite, não amamentavam os filhos e desejavam muito facilmente que os maridos arranjassem uma concubina. Assim Wu Lien tinha lido uma porção de livros na sua mocidade e mesmo agora os lia muitas vezes quando fazia calor, no verão, ou quando, no inverno, fazia frio na loja e o melhor lugar para estar era diante de um braseiro no seu próprio quarto. Desceu a criança dos joelhos e falou gravemente, como um homem deve falar quando se refere a letras.

— Há livros para todas as necessidades, — disse. — É preciso primeiro que se saiba para que é o livro e quem vai lê-lo. Se um homem deseja lê-lo secretamente, para seu próprio prazer, há livros para isso. Se ele está amarrado em casa e não pode viajar, mas deseja ardentemente uma viagem, há livros para isso. Se gosta de pensar em venenos e assassinatos e não ousa cometer tais crimes, há livros para isso. Para que é o livro que você deseja?

Lao Er mostrou os dentes, meio envergonhado, e disse a verdade.

— Bom, lá vai, irmão, — disse. — Casei-me com a minha mulher pensando que ela gostasse de outro e agora descobri que ela sabe ler e deseja um livro. Cortou o cabelo comprido para vender e comprar um, sem me dizer por que, quando o cortou. Assim, em vez de um par de brincos que eu lhe prometi, vou comprar um livro para ela. Eis porque estou aqui hoje. Mas como posso diferençar um livro de outro?

— Você podia ter-lhe perguntado qual é que ela queria, — disse Wu Lien.

E Lao Er concordou.

— Mas eu nunca pensei que houvesse tal diferença entre os livros, — disse.

Wu Lien ponderou a coisa um momento e voltou-se então para a sua própria esposa que estava sentada, ouvindo tudo isso de boca aberta.

— Você é uma mulher, mãe do meu filho, — disse ele, — e se soubesse ler que livro gostaria de ler?

A idéia de ler fê-la rir atrás da mão, que sempre punha diante do rosto quando ria, porque seus dentes eram pretos.

— Eu nunca pensei nisso, — afirmou ela.

Mas quando viu o marido olhar com impaciência na sua face gorda, tirou a mão do rosto e, fazendo-se grave, pôs-se a considerar sobre o que lhe tinha perguntado.

— Quando eu era uma criança na vila, — disse, — costumava ouvir o velho de um olho só que contava histórias de uns ladrões que viviam perto de um lago. Quando ele contava as histórias, todo o mundo, homem, mulher ou criança, todos se inclinavam para diante, esperando a continuação, e ele sempre parava num ponto em que um homem estava preso numa armadilha ou uma batalha ia ser travada, e estendia sua cesta para os níqueis. E estes choviam como granizo num campo de arroz maduro.

Wu Lien olhava-a orgulhoso.

— Você acertou exatamente no livro, — disse. — É esse, meu irmão. Há de tudo nele: todas as mulheres que enganam os maridos são punidas e a justiça prevalece. O nome do livro é Shui Hu Chuan e está cheio de ladrões virtuosos. Algumas vezes é um livro ruim, mas os maus são sempre castigados. Sim, eu li esse livro quando era rapazinho e seria capaz de lê-lo outra vez.

Começou a puxar o gordo lábio inferior, sorrindo ao fazê-lo, relembrando o prazer que tivera na ocasião em que lera o livro. Lao Er levantou-se, repetiu o nome do livro, agradeceu-lhes e, despedindo-se deles, passou pela loja agora cheia de fregueses, quando foi detido pelo som de vozes em disputa. As vozes gritavam tão alto e tão subitamente que todo o mundo parou de comprar e voltou a cabeça para a porta larga da loja. Lao Er foi detido aí por uma porção de jovens que tinham paus e pedras nas mãos.

Na frente deles vinha o chefe, um rapaz alto, sem chapéu, com o cabelo longo caído sobre os olhos. Ajeitou o cabelo e ordenou a um caixeiro abrir um armário. Como o caixeiro se demorasse ele pegou uma pedra e arrebentou com ela a cobertura de vidro do armário.

— Mercadorias inimigas! — exclamou em voz alta.

Meteu as duas mãos dentro do armário e as tirou cheias de relógios, penas, bugigangas, jogando-as na rua. No momento em que fez isso todos os rapazes avançaram e começaram a quebrar os armários e botando fora as mercadorias. Um grande lamento elevou-se dos fregueses ante o desperdício de tão boas coisas, ainda que houvesse alguns que observassem o que agarrar para levar, e tão depressa as bugigangas eram atiradas à rua, caíam sobre elas. Quando os rapazes perceberam isso ficaram ainda mais furiosos e lançaram-se para fora surrando o povo com os paus e quebrando cabeças com as pedras que tinham, até que todos se dispersaram. Então alguns dos jovens ficaram vigiando as coisas que os outros atiravam à rua, pondo fogo em tudo. Camisas, casacos, cobertores, roupas de lã, chapéus e sapatos, foi tudo para o fogo. Em torno do braseiro a multidão se reuniu com olhos ávidos, horrorizada ante tal desperdício, mas ninguém ousou dizer uma palavra. Lao Er lá estava, a boca aberta a tudo aquilo, mas ele também não ousou dizer nada. Seu cunhado não aparecera e não havia sinal de caixeiro na loja. Por que havia ele, um homem só, de falar, se eles não o faziam? Observou até que o coração entristeceu e foi embora.

A meio caminho das portas da cidade lembrou-se de que tinha esquecido de comprar o livro, voltou à rua dos livreiros, foi até à mesa próxima à do homem mirrado e pediu o livro. O livreiro atirou-lhe o volume, grosso e sujo pelas inúmeras mãos que o haviam lido.

— Um livro sujo como esse deve ser barato, — disse Lao Er, olhando as manchas de gordura e tinta na capa.

— Há alguns dias atrás seria barato, — concordou o livreiro, — mas nos últimos dias uma porção de estudantes que nunca leram esse livro vieram comprá-lo. Pergunte porque e eu não saberei responder. Nunca sei o motivo de eles fazerem coisas como essas, esses rapazes. Parecem bêbedos.

Esfregou a pedra em que estava com o sapato.

— Qual é o preço? — perguntou Lao Er.

— Três peças pequenas, de prata, — respondeu o livreiro. Lao Er fitou-o horrorizado.

— Por um livro? — exclamou.

— Por que não por um livro? — redargüiu o velho. — Você gasta mais do que uma peça de carne de porco, come-a e foi-se. O que resta é para ser posto fora. Mas um livro entra no seu cérebro, permanece lá, você pode lê-lo de novo quando o esquecer, pensar muito sobre ele, e dele quem sabe quantos e que pensamentos lhe advirão? Você pode até pensar num meio de ficar rico.

Assim Lao Er tirou dinheiro do cinto e pagou o livro, tornando-se logo aborrecido porque o velho do lado, que estivera olhando todo esse tempo e sorrindo com azedume, disse:

— Se você sabia o nome do livro, por que não disse logo? Eu o tenho aqui.

E ergueu no ar um volume limpo, intato.

A despeito de sua raiva Lao Er nada mais tinha a fazer do que ir embora, mas dizia, enquanto andava, e embora desejasse ter aquele livro novinho: "Eu prefiro ter o livro sujo dele a ter o seu limpo, seu ovo de tartaruga!", e dirigiu-se para casa.

Ainda não tinha deixado essa rua quando lhe acudiu o pensamento de que devia voltar para ver de novo a loja do marido da sua irmã, como eles estavam e se os desordeiros já tinham partido. Assim, perfez o caminho mais uma vez. Quando lá chegou a casa estava vazia e somente um monte de cinzas jazia na rua. Mendigos e crianças procuravam no meio das cinzas botões e pedaços de metal, mas o povo passava e repassava, indo para o trabalho, como se já estivesse completamente familiarizado com aquilo.

Ficou de pé, conjeturando se devia ou não entrar e se lá dentro estavam bem ou não; mas antes que se resolvesse acudiu-lhe que devia pensar primeiro nos seus próprios pais e seus apuros se acaso ele fosse metido nessa complicação. Umas letras enormes, de aspecto feroz, rabiscadas a giz branco sobre as tábuas da parede da loja, faziam-no hesitar ainda mais. Fixou os caracteres uma porção de tempo, mas não significavam nada para ele e voltou-se, por fim, para um homem velho, com um ar letrado, que, vestido de negro, ia passando nesse momento.

— Senhor, pode me explicar o que dizem essas letras? — perguntou.

O homem parou, pôs os óculos de chifre que tirou do bolso do casaco e comprimiu os lábios, lendo as palavras várias vezes para si mesmo. Disse então:

— Essas letras dizem que o que aconteceu a esta casa acontecerá a todas as casas que venderem mercadorias estrangeiras, e, se isso não for bastante, a própria vida será retirada àqueles que venderem ou comprarem essas mercadorias.

— Muito obrigado, senhor, — disse Lao Er alarmado.

As palavras eram tão ferozes como pareciam, e ele sabia que, em obediência aos seus pais, devia deixar aquele lugar o mais depressa possível e procurar a segurança do seu lar, não deixando, de maneira alguma, que suspeitassem haver o menor parentesco entre ele e os dessa casa. Assim fez. Levava sob o braço o livro de Jade, amarrado com uma fita azul que ele usara em outros tempos, em torno do pescoço, para limpar o suor do rosto quando fazia calor. Dias estranhos esses, pensou, de si para si, quando uma pessoa via aquelas coisas que ele vira essa manhã. Apressou-se em deixar a cidade onde essas coisas acontecem e dirigiu-se rapidamente para casa, alegre pela paz serena dos campos e pela calma clara do céu.

Quando chegou a casa deu o livro a Jade, mas isso passou despercebido pela importância do que ele tinha para lhes contar. Lá no pátio todos ficaram a ouvi-lo e Pansiao, sua irmã mais nova, parou o tear e saiu para escutá-lo também. Depois de ouvir tudo, Ling Tan chupou o seu cachimbo um momento. Falou então:

— Você perguntou qual era o nome desse inimigo? A face de Lao Er amoleceu diante da pergunta.

— Eu sou um bobo, — disse. — Nem pensei em perguntar quem era o inimigo!

E ficou, durante alguns momentos, admirando-se da própria estupidez.

Mas tudo que acontecera na cidade estava muito distante dos que viviam nesta casa. A noite desceu como sempre, eles comeram e prepararam-se para dormir como em qualquer outra noite, cada um deles sentindo, ao seu próprio modo, que aqui no campo nada seria mudado, fossem quais fossem as loucuras que o pessoal da cidade cometesse uns contra os outros. Ling Tan e sua mulher conversaram um pouco antes de dormir, ansiosos pela filha mais velha, e Ling Tan disse que, depois de tudo, lamentava não tê-la entregado a um fazendeiro pela metade das promessas que Wu Lien tinha feito. Mas a sua esposa não concordava com isso.

— Ela não pertence mais à nossa casa, — disse a Ling Tan — e o que acontece agora com ela é negócio lá do seu marido, uma vez que ela já lhe deu dois filhos. Amanhã, se eles estiverem em alguma embrulhada, arranjarão um meio de se comunicar conosco e, então, veremos se há motivo de preocupação.

Ele ouviu isto, pondo prazerosamente o temor de lado, e logo desciam sobre os dois a quietude da casa em que tinham vivido tantos anos e a mansidão dos campos que vinham cultivando havia tanto tempo e no qual eles confiavam, para a comida e para tudo que necessitassem. Acontecesse o que acontecesse, a terra que possuíam era deles e alimentá-los-ia.

E Lao Ta, no seu quarto, deitado na cama ao lado da esposa que amamentava o filho, fazendo-o dormir, dizia-lhe o que pensava do que havia acontecido ao marido da sua irmã.

— Essas coisas saem dos conhecimentos estrangeiros, — falava-lhe. — Esses estudantes de hoje em dia não conhecem a velha retidão e não têm medidas para medirem a si próprios. Isto lhes parece o direito para hoje. Amanhã é aquilo que lhes parece direito. E eles não sabem que o cérebro de um homem não pode dizer o que é direito para outro homem. Não, em seu orgulho pelas ninharias que sabem, arrojam-se e fazem males como esse.

— Nunca deixaremos um filho nosso ir a uma dessas escolas, — murmurou sua mulher e adormeceu, deixando o bebê ainda a sugar-lhe o peito.

— Nunca deixaremos, — concordou ele e deitou-se raciocinando um pouco mais.

Pensava vagarosamente, com dificuldade, e suava, ao fazê-lo, como se estivesse atrás do búfalo, arando um campo duro. Por fim, concebendo um pensamento, falou-o em voz alta para que a mulher ouvisse:

— Um homem deve ficar em sua própria casa! — exclamou. Se ele fica em sua própria casa e faz o trabalho que sabe como fazer e cuida de si próprio, quem pode arruiná-lo? Se todo homem se portai' assim, qual é o inimigo que pode dominar a nação?

Esperou que a mulher concordasse com ele, mas houve primeiro um longo silêncio e depois chegou-lhe o ruído do seu ressonar tranqüilo. Ficou um pouco zangado por ter desperdiçado assim a sua sabedoria, mas era de tão bom coração que não a acordou como muitos homens fazem quando as suas esposas, dormem antes deles. Continuou a remoer os seus pensamentos até que a quietude da casa caiu também sobre ele. E dormiu.

E Pansiao, que passava os dias no tear, que nunca fora à cidade, não podia imaginar corretamente o que tinha ouvido, de modo que pensava sobre aquilo como um sonho. Na casa tinham-na como uma criança. Fora a última a nascer e nascera realmente tão tarde que a sua mãe sentiu-se até envergonhada. Conceber, dar à luz uma criança quando Ling Sao tinha mais de quarenta anos, fizera com que todos que sabiam da coisa rissem, e, na vila, quando ela passava pesada, as mulheres exclamavam:

— Que força, velha! — e riam, dizendo: — Uma boa árvore não é velha enquanto dá frutos.

Essa vergonha havia colocado uma nuvem sobre a criança, e como na cidade não se ocultava coisa alguma de quem quer que fosse, Pansiao sabia que o seu nascimento fora motivo de escárnio para sua mãe. Seu próprio nome tinha uma expressão de zombaria ainda que não fosse escolhido com essa intenção. O velho primo em terceiro grau de Ling Tan tinha-lhe escolhido o nome Pansiao, ou Meio Sorriso, um belo nome, até mesmo muito livresco para a filha de um fazendeiro. Mas o primo não quis abrir mão do prazer de escolher esse nome e Ling Tan deixou-o passar, pensando que o assunto não tinha importância desde que se tratava de uma menina. Mas quando os da vila souberam do nome, deram-lhe um significado diferente. "Meio-Sorriso-Meio-Sorriso", diziam rindo, e o nome não mais podia ser mudado.

Agora, que Pansiao crescia, tornava-se como o nome, e era gentil, meio risonha, meio triste, nunca se sentindo inteiramente bem-vinda em qualquer parte, e desejosa de fazer tudo que podia para se tornar agradável. Mas comumente cansava com facilidade, pois não era forte como os outros filhos de sua mãe e, assim, esta noite, ainda que tivesse ouvido com espanto o que o seu segundo irmão contara, deitando para dormir, dormiu.

E Lao Er e Jade, também, já se tinham esquecido daquilo. Porque ela havia aberto o livro e à luz do pequeno lampião de óleo de feijão colocado na mesa começou a ler os caracteres vagarosamente, alto, e Lao Er ouvia, observando os seus belos lábios. Era mágico, pensou, que os olhos dela pudessem compreender essas letras que para ele eram apenas rabiscos sobre o papel e que esses olhos lhes dessem voz e que essa voz os falasse aos seus ouvidos, fazendo-o compreendê-los perfeitamente.

Compreendia-os e, apesar disso, o que sua mente sentia era o prazer de observar Jade, suas pestanas movendo-se abaixo e acima na página e o dedinho apontando uma letra após a outra. Lia docemente, cantando as palavras, como faz um contador de histórias, e ele, sufocado de orgulho e de amor, teve que dizer-lhe, com medo de que aquilo o arrebentasse.

— Espero que o mal não caia sobre mim, — disse ele, — porque é muito ruim que eu a ame mais do que a meus pais, mas se houvesse comida que só desse para eles ou para você, eu a dava a você. Quero que os deuses me perdoem se puderem, porque esta é a verdade.

Ela levantou a vista do livro e então o seu rosto tornou-se vermelho, depois branco, a voz lhe faltou e ela largou o livro.

— Não posso ler quando você fica me olhando, — disse, e o sorriso tremeu-lhe nos lábios.

— Mas desde que eu não posso olhar para o livro e ver o que ele diz tenho que olhar para você, — tornou ele.

E ela, para desviá-lo daquilo que a estava fazendo envergonhada e tímida diante do seu amor, aproveitou o momento e falou: "Oh! Eu esqueci de dizer que vou ensinar você a ler também", e dizendo isso colocou o livro sobre a mesa e fê-lo curvar-se ao seu lado e repetir os caracteres que ela apontava. Ele era obediente e fazia como ela mandava, mas durante o tempo todo seu espírito estava fora do corpo, rondando em torno ao dela e não aprendeu coisa alguma. Quando, por fim, se deitaram, ele tinha esquecido os sucessos do dia como se eles nunca se tivessem desenrolado. Esta casa na qual nascera era todo o seu mundo.

De todas as pessoas da casa somente Lao San, o terceiro filho, estava pensando sobre o que seu irmão tinha visto. Sua cama era um estrado de bambu no aposento separado mas seu pai prometera-lhe fazer um quarto para ele e a mulher quando casasse. Sobre o estrado o rapaz revirava-se, incapaz de conciliar o sono, imaginando os estudantes que haviam destruído aquela loja magnífica. Quem eram eles e quem era o inimigo contra quem blasfemavam? Vinha-lhe o sentimento de que havia muitas coisas no mundo que não conhecia e imaginava como poderia aprendê-las se permanecia, dia após dia, na casa de seu pai.

Ficou cansado de revirar-se, levantou-se, como fazia algumas vezes em que não conseguia dormir, e foi ao alpendre onde o búfalo estava amarrado. A besta mansa deitara-se no chão e o rapaz, tirando a palha que lhe estava no focinho, enrolou-se junto ao corpo quente e cabeludo. Essa presença familiar acalmou-o e ele também adormeceu.

Quando o demorado anoitecer de verão se transformou em escuridão completa, a casa no meio dos campos jazia tão silenciosa como a tumba de um ancestral remoto. Mas não era uma tumba. Lá estava, de pé, cheia de vida, silenciosa, dormindo, mas eterna. A Lua, velha e curva, brilhava sobre a água dos campos e sobre a casa silenciosa, como brilhava havia centenas e centenas de anos, fosse nova ou cheia.

 

Este ling tan era um homem que vivia uma vida ao mesmo tempo larga e profunda, embora raras vezes saísse da sua própria terra. Não tinha necessidade de mudar, pois no lugar em que estava havia o suficiente. Aqui, debaixo desta terra que ele cultivava, como os seus pais tinham feito antes dele, estava o corpo da terra. Ele não possuía, como alguns, apenas a superfície da gleba. Não; à sua família e a ele pertencia também a terra que ficava debaixo do seu campo e Ling Tan, muitas vezes, ponderava sobre essa posse. "O que", costumava perguntar a si mesmo, enquanto arava sozinho nos dias compridos e agradáveis ou lutava contra as ervas más que assoberbavam as plantinhas novas, "o que haveria debaixo dessa capa de terra escura em que eram enfiadas as raízes das suas mudas?"

Há tempos, na mocidade, tinha cavado um poço para o pai e pela primeira vez vira o que existia sob os campos. Primeiro havia a crosta grossa da terra, frouxa e fértil pelo cultivo dos seus antepassados e conservando os restos do que eles durante anos e anos haviam semeado. Essa terra era tão rica que era capaz de cultivar-se por si mesma. Preparada para o plantio, ela ficava faminta de semente como uma mulher ansiosa por cumprir o seu destino.

Ele conhecia essa terra. Mas sob ela havia uma massa de argila amarela comprimida. Como teria aquela massa amarela vindo parar ali? Ele não sabia, como seus pais nunca o souberam também, mas ela lá permanecia, aparando as chuvas e guardando-as para benefício das raízes. E sob essa massa de argila existia uma camada de rocha, que não era sólida mas gretada, partida em pequenos pedaços. Entre esses pedaços havia uma areia cinzenta. E sob essa camada jazia uma outra, a mais estranha de todas, onde se viam pedaços de telha e restos de cerâmica azul. E quando Ling Tan cavou o poço chegou a encontrar uma velha moeda de prata como nunca tinha visto outra igual, uma travessa branca, quebrada, e, por último, um jarro castanho, vidrado, e cheio de um pó cinzento. Levara essas coisas ao seu pai, e pai e filho ficaram admirando-as.

— Isso era usado por aqueles de quem nascemos, — dissera o pai. — Vamos pô-las nas sepulturas com os seus avós.

Assim tinham feito. Ling Tan continuou cavando e, uma manhã, a água jorrou das profundezas como uma fonte, e nunca mais, até hoje, deixara de jorrar.

Mesmo por baixo daquele rio, cismava às vezes, a sua terra continuava. Outros tinham possuído o terreno e vivido nele, tornando-se eles próprios parte integrante da terra. Era dito comum dos velhos da vila que se um homem cavasse profundamente a sua terra ou qualquer outra, encontraria as ruínas do que haviam sido outrora palácios, templos e grandes cidades. O próprio pai de Ling Tan, no seu tempo, tinha cavado fundo para fazer uma campa para o seu pai e achara um pequeno dragão, feito de ouro, que devia ter caído do telhado do palácio de um imperador e tinha-o vendido pelo suficiente para comprar a concubina por que suspirava. Mas foi má sorte — a história passou de geração em geração — pois a mulher era má e roubou a paz e os haveres da casa, enquanto ele ficava impotente porque a amava. E por causa disso eles quase que perderam até a terra que possuíam, e tê-la-iam perdido se a esposa dele, percebendo a desgraça que pairava sobre todos, não envenenasse a concubina em tempo. Mesmo assim, o mal não foi pequeno porque o homem matou-se quando a concubina morreu, mas, depois de tudo, a terra pertencia aos seus filhos. Diziam que a concubina era uma fada e que o dragão não era verdadeiro: era o espírito de uma raposa que tinha penetrado no corpo da jovem que o homem amava tanto.

Fosse ou não verdade tudo isso, lá estava a terra e descia, estendendo-se por baixo do rio e dos rochedos, e enquanto Ling Tan vivesse ela pertencer-lhe-ia e aos filhos depois da sua morte.

A Terra toda, ouvira, era redonda. Pelo menos fora o que dissera um rapaz que aparecera pregando uma porção de coisas curiosas na vila, num dia de verão. Ele viera, tinha dito, para auxiliar aquela gente e fazer-lhe um bem que ele denominava ensino, e como o povo na aldeia de Ling Tan era cortês e bondoso, desejou ouvi-lo, principalmente porque estava na época das festas e ninguém trabalhava. Assim escutaram as histórias sobre a redondeza da Terra e a maldade das moscas e o jovem mostrou-lhes quadros de moscas tão grandes como um tigre. Quando viram aquilo as mulheres gritaram mas Ling Tan disse-lhes que se acalmassem porque só no estrangeiro havia daquelas moscas. Aqui elas eram umas coisas de nada que não faziam mal, e um homem podia esmagá-las entre o polegar e o indicador se desejasse, mas quem ia se preocupar em matá-las se eram tão inofensivas?

Achou difícil acreditar que a Terra fosse redonda e pensava muitas vezes nesse jovem, indubitavelmente um romeiro de alguma religião que cumpria a sua pena andando de uma aldeia a outra, pregando os seus conhecimentos. Assim, quando Ling Tan achava entre os seus melões um redondo, pensava: "Assim á a Terra". Mas o que não compreendia era como os homens do Outro lado podiam andar se a Terra era redonda. Quando ele falou sobre isso na casa de chá, uma noite, o seu primo em terceiro grau afirmou-lhe que a história devia ser verdadeira porque ele ouvira dizer que as pessoas que viviam no outro lado da Terra faziam exatamente o contrário do que devia ser feito. Assim, explicou, as crianças nasciam de cabelo branco e à medida que cresciam o cabelo ia ficando preto, e em vez de empurrarem um serrote eles puxavam-no, colocavam as roupas de cama no chão, e tudo que faziam era sem lógica, louco. Dessa maneira, era bem possível que eles andassem de cabeça para baixo e gostassem de andar assim.

Sobre tais coisas refletia Ling Tan enquanto cultivava a terra e riu ao pensar que, em alguma parte, bem embaixo do lugar em que ele estava, a sua terra se prolongava até chegar a um ponto em que os estrangeiros andavam, plantavam nela e apanhavam as colheitas como se lhes pertencesse. "Tenho que cobrar aluguel", pensou, e sorriu. Um dos filhos, vendo o sorriso sob o chapéu de bambu, gritou, querendo saber o motivo da alegria, e Ling Tan explicou:

— Eu estava pensando agora que no fundo desta minha terra um estrangeiro planta as suas sementes sem me pedir licença e que eu podia ameaçá-lo com a lei se pudesse me dirigir a ele...

Seus pequenos olhos negros brilharam e os filhos riram com ele. Nunca tinham visto um estrangeiro de perto, embora na cidade houvesse algumas vintenas deles vivendo pacificamente e fazendo seus negócios. Ling Tan tinha perguntado uma vez a um homem que servia numa casa estrangeira e que viera ao campo comprar ovos frescos, se o seu patrão andava de cabeça para baixo ou para cima e o homem respondera: "para cima". Ling Tan passou então a respeitar ainda mais os estrangeiros. Mas esse estrangeiro do outro lado das suas terras tornou-se uma pilhéria comum na vida doméstica de Ling Tan e, se a terra secava, ele fingia acreditar que era o estrangeiro do outro lado que a secava, se os nabos nasciam pequenos ele afirmava que era o estrangeiro que lhes estava puxando as raízes. Por isso todas as pessoas da casa passaram a ter um ar amigável para com todos os estrangeiros, conquanto verdadeiramente não conhecessem nenhum. E devido a isso, se qualquer estranho vinha à sua casa dizendo que era um estrangeiro, Ling Tan pedia-lhe para entrar, sentar, beber chá e tomar uma refeição com eles.

Mas Ling Tan não possuía apenas a terra que se afundava debaixo dos seus pés. Era dono do ar que ficava sobre ela até a altura que chegasse. As estrelas que brilhavam lá em cima também eram suas. Mas não conhecia nada sobre elas porque ninguém poderia dizer-lhe qualquer coisa sobre os céus. Para ele as estrelas eram um punhado de luzes, lanternas, jóias talvez, brinquedos, decorações, coisas mais belas que úteis, como os brincos de uma mulher. Não faziam mal, e se faziam bem ele não sabia mas estava contente que elas estivessem lá em cima, pois, do contrário, o céu ficaria muito preto sobre a sua cabeça, quando fosse noite.

Mas, algumas vezes ele pensava que elas seguiam a Lua ou escondiam-se do Sol. Que havia inimizade entre o Sol e a Lua, todo o mundo sabia. Duas ou três vezes na sua vida essa inimizade tinha provocado uma batalha na qual o Sol tentava engolir a Lua ou a Lua experimentava devorar o Sol. E toda gente da aldeia ficava assustada e punha-se a bater nos gongos, tambores e caldeirões vazios de arroz ou em qualquer outra coisa à mão, que fizesse barulho. Quando o barulho se tornava muito grande, o Sol e a Lua prestavam atenção a ele e afastavam-se vagarosamente outra vez, retomando o caminho de cada um. Mas se eles tão tivessem ouvido aquele rumor da terra teriam lutado até que um engolisse o outro e isso faria desaparecer metade da luz do céu, sendo pior se o Sol fosse tragado pela Lua. Mas fossem o que fossem as estrelas, elas estavam sobre a sua terra e ele costumava sonhar se em outra vida teria força para subir e puxar uma para baixo. Segurando-a na palma da mão, ela não iria queimá-lo?

Tais eram os pensamentos de Ling Tan, que vinham misturados com outros sobre o custo das sementes e a medida das colheitas e se devia ou não dividir a terra entre os seus três filhos quando chegasse o dia em que tivesse que baixar à sepultura. Ou devia deixá-la ao filho mais velho com o segundo para ajudá-lo? Mas se fizesse isso, haveria comida bastante para o terceiro, quando ele se casasse e tivesse seus próprios filhos, ou eles brigariam por não ficarem de barriga cheia? Porque Ling Tan sabia, por experiência própria, que, quando os homens têm a terra suficiente para lhes fornecer comida, não brigam a não ser por coisas insignificantes, que o sono da noite esquece. Mas, quando é a terra a causa da briga, os homens lutarão até à morte.

Um dia expôs a questão ao filho mais velho. Não porque se julgasse acabado ou incapaz para o trabalho, mas os anos vividos não voltam e, se há um tempo para tudo, agora era tempo de planejar enquanto tinha um espírito forte num corpo forte.

— Esta terra poderá alimentar três homens, suas mulheres e filhos, depois que eu desaparecer? — tinha perguntado ao filho mais velho.

Lao Ta estava tirando água do poço, puxando a corda do balde, e antes de responder bebeu bastante, derramando o que sobrou sobre os ombros e braços nus.

— Pode, se é que me está perguntando se quero tê-la nessas condições, — respondeu ele. — Porque eu comerei menos carne se meus irmãos quiserem, mas viverei em paz com eles.

Ling Tan não perguntou mais nada, satisfeito com a resposta e com a honestidade do filho. Podia deixar-lhe a terra porque o filho mais velho dividiria igualmente a produção, qualquer que fosse, e se os outros não gostassem, que fossem para onde quisessem porque o pó de Ling Tan não seria perturbado no seu sono, pois fizera todo o bem possível enquanto vivera.

A essas coisas de Sol, Lua e estrelas, Ling Sao não dava importância. Que tinham elas a ver consigo? — teria dito. A casa estava cheia de coisas sobre que devia pensar, dirigir e consertar, pois que só dela dependiam. Desse modo, o seu netinho não distinguia qual era a sua verdadeira mãe — se aquela que lhe dava o peito macio para sugar ou aquela mulher grande que o segurava tantas vezes e transportava-o escarranchado nos quadris, indo e vindo, enquanto lhe dava arroz-doce da sua boca. Mãe e avó eram uma só para ele. E seus filhos ela os queria casados cedo para que não acontecessem tolices na casa, ainda que soubesse não haver mulher capaz de ser o que ela era para eles, e adorasse ouvir as suas vozes, vozes de homens agora, chamando-a como chamavam desde a infância — "Mamãe!"

"Que é, meu bolinho de carne?" respondia sempre, e ninguém achava estranho que ela respondesse assim até ao filho mais velho que já era pai, quando ele vinha a ela para pregar um botão ou a correia de uma sandália. Porque Orquídea era dessas mulheres que, quando dão à luz, ficam maravilhadas diante do que fizeram e não podem pensar em outra coisa que não seja no seu último filho. Sentava-se, olhando-o e ouvindo-o respirar enquanto dormia e achava-se muito e muito ocupada para arrumar o quarto, por um remendo no paletó do marido ou fazer a sola de um sapato. Por isso a mãe amaldiçoava-a secretamente e queixava-se dela ao marido, Ling Tan.

— Essa Orquídea, — disse-lhe uma noite na cama, — depois que teve seu último filho não tem mais tempo para coisa alguma. E se não fosse por mim mesma o nosso próprio filho passaria fome e andaria em trapos como um mendigo. Ela não faz outra coisa senão sentar-se e olhar o filho, ainda que este seja tão pequeno que fica em qualquer lugar que ela o ponha. E quando engatinhar, começar a andar e chegar aos três ou quatro anos, o que vai ser? Eu, quando tive meu filho, nem me incomodei. Você deve lembrar-se de como eu cuidava do campo, cortava trigo e o colhia. E depois, quando veio o segundo filho, que eu pus os dois dentro de uma tina e não lhes veio mal nenhum disso? Mas ela — ah, se não ficar olhando a respiração da criança ir e vir, ela morrerá ou poderá engolir um grão de poeira de um raio de Sol!

— Não há muitas mulheres como você, — concordou Ling Tan, meio dormindo.

— E Jade, — prosseguiu Ling Sao. — Que vale ela para mim? Seu espírito está nesse livro que nosso segundo filho trouxe. Sim, quando tiver seu filho...

Ling Tan despertou.

— Jade vai ter um filho também? No escuro ela apertou os lábios.

— Já passaram dez dias do tempo normal do fluxo e ele ainda não veio, — disse ela solenemente, porque, sendo uma boa mãe para seus filhos, Ling Sao sabia que era seu dever indagar das mulheres sobre essas coisas. — O que fará ela quando o filho vier, se ainda não tiver terminado de ler esse livro, é que eu não sei, — prosseguiu. — Ela ficará com o livro na mão, juro, e deixará a criança nascer de qualquer maneira. Foi um mau dia esse em que tal livro entrou nesta casa, porque não há nada mais prejudicial a uma mulher do que a leitura. Eu preferia que ela se viciasse com ópio.

— Não, ópio não, — acudiu ele. — Eu vi essa maldição na minha própria mãe e nunca permitirei que uma onça de ópio entre nesta casa.

— Bem, ópio não, — concordou a mulher.

Porque ela também sabia a desgraça que tinha atingido a família, quando a mãe de Ling Tan, aos quarenta e seis anos de idade, começara a fumar ópio para abrandar uma dor que tinha no útero. Mesmo que não tivesse nenhuma comida ou roupa não se importava, mas devia ter o ópio com o qual passava noite e dia, os olhos semi-fechados, dormindo e sonhando, só acordando se alguém tentava arrancá-la ao vício. E eles não haviam tentado muito, pois a dor aumentara e só o ópio lhe permitia respirar. Sete anos tinha durado aquilo e gastaram mais em comprar ópio do que em roupa e comida. Mas o pior de tudo era que, nesses anos, o ópio fora proibido pelos magistrados, e quem o comprasse, vendesse ou usasse estava arriscando a vida. O pai de Ling Tan sabia disso e proibiu o filho de comprá-lo, indo ele mesmo obtê-lo em lugares secretos, não dizendo coisa alguma a ninguém. A coisa tornou-se tão perigosa que, todo mês, quando o pai de Ling Tan ia comprar a droga, ajustava todos os seus negócios com o filho e avisava-o de que, se não voltasse, não devia procurá-lo porque estaria na prisão, fora de qualquer esperança de salvação e Ling Tan devia portar-se como se ele fora morto e lembrar-se de que o seu dever era continuar a viver.

Durante muito tempo os dois se olhavam, sabendo que podia ser pela última vez, e enquanto vivesse Ling Tan não poderia esquecer a face enrugada e brava olhando na sua, quando o pai se arriscava uma vez mais pela sua velha esposa. Ficou contente quando a cólera-morbo os levou em três dias, a mãe primeiro, de modo que o velho pôde morrer em paz, sabendo que seu filho não teria que fazer aquelas viagens perigosas em seu lugar. Assim, o ópio era para Ling Tan o destruidor de toda paz e rejubilou-se quando se tornou mais difícil e perigoso comprá-lo. Cada vez mais proibido, era agora uma coisa de que raramente se ouvia falar e ninguém, que não fosse muito rico, poderia fumar um cachimbo de ópio.

Mas quando Ling Sao começava a fazer considerações sobre os filhos, não era fácil abandoná-las. Agora o seu espírito atravessava o silêncio e a escuridão.

— E essa nossa filha? — disse. — Como teceremos quando Pansiao casar? Ela já tem quinze anos e é tempo de pensar em alguém para ela. Jade deve aprender a trabalhar no tear para substituí-la. É seu dever dizer isso ao seu segundo filho, e, também, dizer a seu filho mais velho que a sua esposa tem que me ajudar mais na casa, porque, quando eu desaparecer, ela terá que tomar o meu lugar. Jade tem que aprender a tecer e quando encontrarmos uma jovem para o filho mais novo, devemos achar uma que seja bem forte para trabalhar com ele no campo. Desse modo, todas as partes da nossa vida terão alguém que cuide delas quando não estivermos mais aqui.

Ling Tan não respondeu porque já tinha pegado no sono havia muito tempo. Nada o adormecia melhor do que o som da voz da mulher falando da casa e dos filhos. E ela prosseguiu, tentada pelo silêncio e pela falta de resposta.

— Eu afirmo que não devemos temer pela nossa filha mais velha, uma vez que ela não pertence mais a nossa casa. Apesar disso eu tenho medo porque, afinal de contas, fui eu quem a pus no mundo e a amamentou. Gostaria de saber como ela está, se o marido tem a loja em ordem, e como vai tudo com eles. Maldita seja eu que não me posso livrar de pensar a respeito dela!

Ling Tan roncou e isso fê-la compreender que não devia esperar resposta. Ficou silenciosa refletindo que, quando chegava ao fundo de alguma coisa, tinha que fazê-lo por si mesma e não podia compreender porque os homens não resistiam muito à sua conversa. Quando uma coisa tinha que ser feita na casa era necessário uma mulher. Assim, determinou-se a ir no dia seguinte à cidade, ainda que deixasse todos sem comer, para ver, ela mesma, como ia sua filha e especialmente seus dois netos.

"E se eu vir alguns desses estudantes à moderna escangalhando a loja do meu genro, não vou ficar com medo", pensou. "Eu mesma irei atrás deles para bater-lhes e amassar-lhes o nariz. O que poderão fazer contra mim que sou uma pobre velha?"

Assim planejando, ela reconfortou-se e adormeceu em paz.

No momento em que acordou, Ling Sao lembrou-se do que tinha decidido fazer. Levantou-se antes de qualquer outra pessoa, e começou a preparar a casa para a sua ausência de um dia. Não havia ainda o mínimo sinal de alvorecer e as estrelas brilhavam grandes e suaves no céu negro, como se fosse meia-noite. Mas ela sabia que horas eram pelas suas medidas. Enquanto se vestisse, varresse a casa e lavasse o arroz, estaria próximo o canto do galo.

Assim foi que, quando acabava justamente de lavar o arroz pela terceira vez e pô-lo no caldeirão, depois de coberto d'água, ouviu os galos que, de vila em vila, chamavam-se uns aos outros. Ling Tan estaria se mexendo na cama. Embora ele não acordasse com o canto dos galos, nunca dormia profundamente depois disso e ela sabia que, em pouco, estaria de pé para iniciar o dia.

Era muito cedo ainda para acender o fogo. Ling Sao foi até o quarto, trouxe a caixa onde guardava seus pentes, colocou-a aberta junto à vela, na mesa do pátio e, pegando o pequeno espelho, pôs-se a pentear e a passar óleo no cabelo, para poder entrar decentemente na casa da filha. Ela quase não precisava de um espelho porque penteava o cabelo do mesmo modo, para trás, repartindo-o e usando uma franja sobre a testa, quando era jovem, e fazendo um coque depois que a mãe lhe arrancara a franja, um dia antes do casamento. O cabelo caía-lhe agora para trás, naturalmente, e pouco necessitava de óleo, pois já estava liso pelo hábito. Atou-o com um laço vermelho, depois de alisá-lo com o óleo que ela mesma fazia, pondo n'água as aparas de madeira de uma espécie de olmo. Feito isso, arrumou o coque e pôs o comprido alfinete de prata esmaltado de azul, que fazia parte das coisas de casamento, com dois anéis, um par de brincos, e um furador de orelha que era um palito na outra extremidade e que ela sempre usava atravessado no cabelo, para quando necessitasse.

Quando acabou de pentear o cabelo, lavar o rosto e enxaguar a boca, não precisava mais da vela e já era tempo de cozinhar o arroz para a refeição da manhã, preparar o peixe e as cenouras salgadas. Levantavam-se todos, um por um, Jade e seu segundo filho por último. Ela ainda permitia isso, porque não fazia um ano que eles estavam casados, mas, depois que esse ano passasse, iria dizer-lhes que tinham que levantar-se para o trabalho com os outros. Nenhum deles, no momento em que a olhou, percebeu que estava preparada para um acontecimento fora do comum. Ela pusera o melhor casaco de algodão branco, os sapatos mais novos, com os tacões curvados para baixo porque apertavam, e colocara os brincos de ouro.

Ling Tan fitou-a.

— Que há, mãe dos meus filhos? — perguntou.

— Pensei muito a noite passada, — disse ela, e resolvi ir ver a nossa filha mais velha, descobrir como. está ela, como vão passando os seus filhos e o pai dos seus filhos.

— Como pode ir à cidade sozinha? — perguntou ele. Ling Sao balançou a cabeça diante da pergunta.

— Eu tenho medo de homem? — indagou.

Comeu a sua refeição, e chamou a filha e as mulheres dos filhos, para dizer-lhes o que deveriam fazer enquanto estivesse fora.

— Orquídea, você deve amarrar o seu filhinho nas costas e ficar com as mãos livres para preparar a comida. Jade, você manterá o fogo para ela, de modo que a fumaça não incomode os olhos do meu netinho e Pansiao deve ficar como sempre faz com a diferença de que, se seu pai quiser qualquer coisa, deve atendê-lo porque as outras duas têm seus próprios maridos. Quanto a você, meu terceiro filho, se quiser qualquer coisa, fale também à sua irmã. Mantenham sempre o chá quente e não reservem nenhuma comida para mim, porque eu comerei na casa de minha filha o bastante para durar até amanhã. Ela sempre compra alguma comida extra para mim ou manda buscar bombons e pudins de maçã. Comerei por dois dias.

Todos a ouviam e Ling Tan entrou no quarto, trazendo algum dinheiro para que ela gastasse. Fingiu recusar.

— Por que iria eu desperdiçar a nossa boa prata? Fique certo de que não a quero! Guarde-a e compre sementes para o outono. Além disso, não me falta nada. Se você fosse me dar um presente eu não saberia o que pedir!

Mas Ling Tan insistiu e ela apanhou o dinheiro como tencionara apanhar e como ele sabia que ela apanharia. Se ele não tivesse oferecido, Ling Sao pediria, mas, uma vez que foi tão cortês, ela julgou-se também na obrigação de replicar cortês-mente.

Por fim, estava pronta para sair. Todos foram levá-la à porta, desejando-lhe um bom dia e ela partiu com alguns presentes para a filha amarrados num lenço branco: seis ovos de galinha, um punhado de pêssegos maduros e algumas nêsperas secas.

Quando ela saiu o Sol estava justamente sobre a montanha, ainda não muito alto para estar quente. Mas iria esquentar porque não se via uma nuvem e nenhuma aragem agitava a água dos campos de arroz. Porém ela dava pouca importância ao dia, quente ou não; achava-se, agora, muito preocupada para diferençar um dia de outro. Só queria estar na casa da sua filha para saber as novas e sentir os dois criados respeitosos diante dela, por sabê-la a mãe de sua ama. Isso que lhe faziam não era, naturalmente, o mesmo que faziam para a mãe do seu genro, mas era o bastante para que ela sentisse não ser uma visitante comum.

Era tão cedo ainda que, de momento a momento, encontrava um vizinho carregando a sua palha ou verdura para os mercados da cidade e, de vez em quando, um gritava perguntando-lhe como passava, como estava o marido e onde ia ela. A todos respondia, indagando pequenas coisas que sabia da vida doméstica de cada um e, assim, a caminhada pareceu-lhe bem curta. O sol já estava muito quente quando ela chegou' às grandes sombras projetadas pela porta da cidade e, contente com o frescor, sentou-se no banquinho de um vendedor de melões e comeu um melão temporão, mas ficou logo arrependida porque a fruta deixou-a meio entalada. Parou, logo adiante, outra vez, numa lojinha, e bebeu um pouco de chá quente para fazer a fruta descer. Sentindo-se bem outra vez, pôde chegar, finalmente, à casa da filha.

A porta estava aberta e os dois caixeiros lá, mas nem todos os armários estavam cheios, nem todos os vidros inteiros. Foi entrando, procurando aquelas coisas que estava acostumada a ver ali e percebeu que a maior parte tinha desaparecido. O que havia sido deixado eram panos e outras coisas que podiam ser compradas em qualquer lojinha do vilarejo. Todas aquelas mercadorias estrangeiras, as maravilhosas mercadorias estrangeiras, lâmpadas, lanternas e brinquedos, chapéus de palha, sapatos de borracha, as xícaras, pratos e travessas com flores de cores estrangeiras, tudo tinha desaparecido. Percebeu, então, que o prejuízo havia sido grande e que o marido da sua filha não ousava por aquilo em ordem, temendo outras atrapalhações.

Assim, com os lábios apertados, ela dirigiu-se para os fundos da loja e encontrou tudo pior do que tinha temido. O marido de sua filha estava sentado molemente numa cadeira e a sua carne toda tinha sumido, de modo que, de gordo que era, parecia agora que a sua pele era demasiado pesada para ele. Ela nunca vira uma cara tão gorda desaparecer deixando somente aquela papada, nem vira jamais uma barriga, outrora cheia, ficar assim tão encolhida como um saco de que se tira o vento. Ele estava dormindo quando ela entrou e a mulher abanava-o, sentada ao lado dele. Quando ela viu a mãe fez um sinal, impondo silêncio, e não parou de abaná-lo.

Ling Sao dobrou-se e soprou ao ouvido da filha.

— Ele está muito doente? Parece tão mole.

— Está doente com a má sorte, — sussurrou a filha como resposta. — Não pode comer.

Ling Sao sabia muito bem que, quando uma criatura, seja homem, mulher ou animal, não pode comer, está a caminho da cova e ficou assustada com a idéia de ter a filha viúva tão moça. Avançou pela casa e, sem parar para olhar as crianças ou cumprimentar a mãe do seu genro, arregaçou as mangas e entrou na cozinha, afastando a empregada que estava no fogão.

— Cuide do fogo para mim, — ordenou à mulher, com tal firmeza que ela obedeceu sem titubear. — Primeiro deixe o fogo fraco, — comandou Ling Sao. — Quando eu mandar, faça-o ficar bem forte pelo espaço de umas cem respirações. Depois deixe-o ficar fraco novamente.

Com os ovos que tinha trazido, alguns pedaços de carne e cebolas que encontrou numa travessa, em cima da mesa, ela preparou uma iguaria tão cheirosa que Wu Lien, acordando para espantar uma mosca, aspirou e abriu os olhos.

— Que cheiro gostoso é esse? — perguntou.

— Minha mãe trouxe ovos frescos do campo e os está cozinhando, — replicou a esposa.

— Eu posso comê-los, — disse ele.

Ao ouvir isto a mulher entrou na cozinha correndo, no momento em que Ling Sao estava colocando os ovos numa travessa.

— Ele quer os ovos, — gritou ela.

Apanhou algumas costeletas de porco, saiu correndo, e entregou a travessa a Wu Lien.

Wu Lien não comera nada ou quase nada desde o dia em que a sua loja fora destruída e, porque era um homem que se enchia três vezes por dia habitualmente, a fome vinha crescendo nele, gradualmente, ainda que não pensasse nisso e se achasse tão mal como no primeiro dia. Aqui estava essa comida boa, debaixo das suas narinas, ovos como um homem da cidade não come jamais desde que nasce até que morre, e ele mergulhou nas costeletas de porco e só largando a travessa quando estava inteiramente limpa. Ling Sao e a filha ficaram observando, entreolhando-se cheias de prazer. Quando ele largou a travessa vazia elas riram, ele deu um grande arroto, e elas riram outra vez.

Então Ling Sao disse:

— Agora eu sei porque senti que devia vir aqui hoje e porque a minha galinha preta, que só põe uma ou duas vezes por mês, pôs um ovo durante quatro dias seguidos e a amarela pôs dois dias seguidos. É assim que os deuses impõem a sua vontade. Agora você está bem. — Voltou-se para a filha: — Traz-lhe o chá mais quente que ele possa beber e ficará tão bom como no primeiro dia de nascido.

Enquanto a filha fazia isso ela gritou para que lhe trouxessem o neto mais novo, pois Ling Sao era uma mulher que nunca se sentia completa se não tivesse uma criança nos joelhos ou nos quadris, e, assim, enquanto segurava o filho mais novo da sua filha, nu, exceto pela fralda que ela segurava na mão, atrás dele, observava Wu Lien beber o chá. Quando ele teve o último arroto, ela falou, para o bem dele.

— Seja qual for a doença, você não deve parar de comer nem deixar que a sua gordura desapareça. Deve se lembrar de que tem pais e filhos e que nenhum homem pertence a si mesmo, mas aos que vieram antes e depois dele. Se se deixa destruir ou se ele próprio se destrói os descendentes desaparecerão e a nação cairá.

Wu Lien abriu os olhos para ela.

— Quem não sabe que a nação tem que cair, mãe? — perguntou tristemente.

Ling Sao olhou para a filha como quem não compreende.

— Isso é tudo que ele pensa, — explicou a jovem. — Repete sempre que a nação vai cair.

Ling Sao abanou-se precipitadamente.

— A nação não é outra coisa senão o povo e nós somos o povo, — disse ela. — Você, Wu Lien, deve considerar que um dia de má sorte não pode vencê-lo. Deve comprar mais mercadorias, colocar aquelas coisas estrangeiras outra vez aí, e pedir proteção à cidade. Assim terá coragem.

Mas Wu Lien só gemeu.

— Eu tenho más notícias para contar, — disse ele. — Guardei-as comigo mesmo, durante três dias, quatro dias vai fazer amanhã.

Ling Sao interrompeu-o:

— Pois você andou errado, — disse ela. — Guardar más notícias na barriga estraga o fígado e seca o fel. Raiva, aborrecimentos e más notícias devem ser postas fora, para a saúde do corpo.

— Não é minha má sorte privada — disse Wu Lien. — São más notícias para a nação. Os inimigos do Mar Oriental mandaram navios para perto das nossas costas e os seus soldados desembarcaram na nossa terra. Foram enfrentados pelos nossos soldados, mas estes não são tão fortes quanto eles.

Wu Lien sabia, ao dizer isto, que a mentalidade das duas mulheres não podia compreendê-lo. Elas nunca haviam se afastado desta cidade e dos vilarejos ao redor e, para elas, as duas centenas de milhas que separavam este lugar da cidade eram como se fossem duas mil. Nunca se tinham sentado num trem, nem num carro a gasolina, nem haviam estado a sete milhas do porto fluvial, para ver um navio estrangeiro. Tudo que elas sabiam era que, uma vez, anos atrás, esses navios tinham disparado contra um exército nesta cidade, e todo o pessoal da casa de Ling Tan tinha ouvido os canhões como trovões. E falaram, muitas vezes, sobre isso, até que esqueceram.

— Lembram-se dos canhões que ouviram uma vez? — perguntou Wu Lien. — Tais canhões estão na costa, agora, devastando aquela cidade.

— Eu me lembro, — disse ela calmamente. — Eu estava areando o caldeirão e ele fez uma barulhada na minha mão, repetindo o eco. Eu gritei para o meu velho que era um terremoto. Mas, no final de contas, não houve dano algum.

— Dano virá, agora, disto — disse Wu Lien, lamentando-se. Porque ele era um comerciante, ia duas vezes por ano à cidade para comprar suas mercadorias e não sabia bem o que o esperava agora. Os estudantes que haviam estragado a sua loja eram apenas os precursores de um mal maior. Não ousava mais comprar mercadorias estrangeiras mas, se não comprasse, o que iria vender na sua loja que não pudesse ser encontrado em toda parte?

— Console-se, — aconselhou Ling Sao. — O mar está muito longe e mesmo o rio fica longe. Que nos podem fazer eles?

— Têm aviões, — disse ele. Estava aborrecido porque as duas mulheres não iriam ficar com medo e ele queria fazê-las compartilhar do seu temor. Assim, prosseguiu, procurando parecer tão temível quanto possível: — Esses barcos voadores podem chegar até aqui em duas horas, vindos do mar, e deixar cair os seus ovos que transformarão nossas casas em pó. E que podemos nós contra eles?

— Vocês todos irão lá para casa, — disse Ling Sao imperiosamente. — Eu sempre afirmei que uma cidade é lugar cheio de perigo. Eu verei este bolinho de carne todo dia, se vocês forem morar em nossa casa... Ó céus, vou morrer!

Ela gritou isto subitamente, porque, nesse momento, o menino tinha soltado a sua água. Ouvindo Wu Lien, ela tinha esquecido de segurar a fralda embaixo do menino, e a água veio toda em cima do seu casaco novo. Ouve uma comoção, a filha saltou para tomar a criança das suas mãos, Ling Sao não a largou e as duas ficaram lutando pela sua posse.

— Não me castigue, — disse Ling Sao rindo. — Que me importa esse pouquinho d'água? Não é a primeira vez que uma criança me usa para isso. Secará num instantinho.

Em meio dessa excitação, a velha mãe de Wu Lien saiu do quarto onde estivera dormindo, e Ling Sao teve que ficar de pé e fazer uma saudação, porque o lugar de Wu Sao nesta casa era superior ao dela.

— Aqui estou perturbando a sua casa outra vez, — disse ela bem alto. — Mas eu soube do acontecido e vim ver por mim mesma. Eu dizia ao seu filho que não deve deixar-se esmorecer. Um homem deve comer pelo amor aos pais e ele, que não tem pai, deve lembrar-se de si, Irmã mais Velha, e tomar conta dele mesmo, porque a carne dele é sua e não dele próprio.

Ora, essa mãe de Wu Lien era uma mulher tão gorda que não podia andar de um lugar para outro mais do que três ou quatro passos, e era também muito lenta para falar, porque a sua voz tinha-se tornado um sussurro: assim ela acenou, sorriu e sentou-se. Logo que se sentou começou a tossir, não como uma pessoa deve tossir, mas com um rumor e uma tremedeira que faziam seus olhos saltarem como escamas de peixe e a sua face ficar purpúrea. Quando isso começou, a filha de Ling Sao correu para buscar açúcar vermelho, Wu Lien saltou para por chá para sua mãe, a criada saiu correndo da cozinha para esfregar as costas e o pescoço dela; mas logo tudo ficou bem de novo, a mulher calma, o que Wu Lien tinha dito fora esquecido, e ele não o repetiria na presença da mãe.

Em vez disso, ele pediu desculpas, dizendo que devia ir à loja, porque, subitamente, lhe pareceu que não podia suportar a presença de mulheres. Este Wu Lien não era um homem estúpido. Uma ou duas vezes por mês lia um jornal e ia para a maior casa de chá da cidade ouvir tudo que era dito sobre o que acontecia em toda parte. Ele sabia, pois, qual podia ser o significado a serem verdades as coisas que ouvira. Sentia-o mais temível para si mesmo porque não odiava o povo do Mar Oriental e não via bem na guerra em tempo algum, pois o seu negócio ficaria arruinado e muitos outros com ele. Só na paz os homens podem prosperar, pois, na guerra, tudo é perda. Este seu país não era como outros, de que ouvira falar, onde só há trabalho bastante nos tempos de guerra. Ele sentava-se, muitas vezes, na loja de chá, ouvindo os que falavam das coisas que tinham visto no estrangeiro e podia deduzir que havia uma diferença principal: nos países estrangeiros a guerra era um negócio, mas aqui nunca fora.

Agora, cansado subitamente de toda aquela excitação de mulheres na sua casa, determinou que iria à loja de chá por um momento embora não tivesse aparecido lá, envergonhado, depois que a loja fora destruída. Assim, vestiu-se no seu quarto, vendo, com pesar, como as calças lhe ficavam frouxas e como estava grande o laço que lhe atava a cintura. Quando saiu, tomou outro caminho, para não passar por onde as mulheres conversavam e seguiu por uma rua transversal, em vez de tomar a principal. Ao chegar à casa de chá, sentou-se numa mesinha do canto, ao invés de ocupar a mesa grande, junto aos seus amigos, como fazia sempre. Todos, ele sabia, tinham ouvido falar do que acontecera à sua loja e nenhum tinha se aproximado dele, de modo que não sabia qual era a sua situação com eles, se ainda o consideravam um bom negociante ou se o julgavam um traidor. Assim, esperou, para descobrir o que ele próprio era.

Não esperou muito tempo para ouvir. Durante alguns instantes pareceu-lhe bom estar de volta a esse lugar em que todos eram homens, onde não havia mulheres e crianças para atrapalhar a conversação. Mas, hoje, não era como sempre. O lugar, ainda que cheio, estava silencioso. Em silêncio os homens sentavam-se e bebiam seu chá, e, se falavam, era somente uma troca ligeira de palavras, voltando ao silêncio. Comia-se pouco e não havia aquelas mesas cheias de homens barulhentos e suados, fartando-se de boas comidas e esvaziando os copázios de vinho, um em cima de outro. Estavam todos vestidos corretamente, limpos e nenhum tirara o paletó por causa do calor, para deixar escorrer o suor. Ao contrário, pareciam estar com o frio do medo.

E ali sentou-se, esperando que algum o saudasse. Pediu chá verde e, quando o descuidado caixeirinho o trouxe e limpou a xícara com um pano preto sujo, ele não teve coragem de repreendê-lo. Soprou na xícara, lavou-a com o chá quente e sorveu-o vagarosamente, esperando que um olhar caísse sobre ele. Se o saudassem, tudo estava bem. Se não fosse saudado, podia estar certo de que o seu nome fora riscado, como o de um traidor. Porque esses estudantes não se vingavam somente com a destruição, mas imprimiam nos jornais e afixavam sobre os muros e as portas da cidade os nomes de todos aqueles de quem destruíam as mercadorias, chamando-os de traidores.

No momento em que enchia a xícara pela segunda vez, observou o olhar de um homem que conhecia, um dos da sua própria associação, com quem ele muitas vezes houvera festejado e bebido chá neste mesmo lugar. Se tudo estivesse bem o homem tê-lo-ia cumprimentado e Wu Lien teria mandado que se sentasse à sua mesa. Mas o olhar do homem escorregou por ele, como se ali houvesse apenas uma pedra.

"Eu sou um traidor", pensou Wu Lien com pesar. Tão rapidamente o mundo em torno dele havia mudado que, o que era considerado negócio honesto havia poucas semanas, era tido, hoje, como traição.

O chá, na sua boca, adquiriu um gosto salobro. Colocou suas moedas de cobre sobre a mesa, levantou-se e saiu. Um pouco abaixo, na rua, nas mesmas bancas em que Lao Er comprara seu livro, ele parou, comprou um jornal e ficou de pé, lendo-o. Aquela cidade na costa, leu, fora incendiada e, agora, no meio das chamas, é que os soldados lutavam. Ele lia e lamentava em altas vozes, ao ler um e outro nome de lojas que tinham desaparecido, e a ruína em toda parte. Porque era necessário que fosse assim, não tinha a mínima idéia. Não havia ainda um mês que houvera uma pequena encrenca lá no Norte. Durante muitos anos os estudantes faziam discursos impensados contra a gente do Mar Oriental, mas qual homem de negócio os escutara? Ele e a sua prole, uma vez por ano, mais ou menos, encontravam um ou dois negociantes do Mar Oriental, cheios de cortesia e bondade, ainda que tivessem uma língua muito presa quando falavam outra fala que não era a deles. E, por cortesia, ele aprendera o bastante da língua deles para fazer negócios. Nunca brigara com eles, e, pois, porque brigariam com ele?

Sentia-se tão mal ali de pé, que o velho livreiro perguntou-lhe se estava com dor de barriga ou se lhe doía qualquer outra coisa. Ele sacudiu a cabeça e, dobrando o jornal, dirigiu-se para casa, fazendo uma porção de rodeios e entrou outra vez pelo caminho por onde saíra.

Através da janela aberta, ouviu a voz confusa das mulheres ainda na sua conversa e gritou pela esposa. Quando ela veio correndo, ordenou-lhe que trouxesse a sua comida ali mesmo, pois queria comer em paz. Quando acabasse de comer, iria à loja fazer o inventário do que havia lá.

"Não comprarei mais mercadorias novas", pensou tristemente. "Estou arruinado, eu e minha família, e viva quanto viver, não saberei a razão disso, nem porque o que fiz durante toda minha vida como negócio honrado é, agora, considerado traição."

Disto Ling Sao nada sabia. Comeu de bom grado as comidas da sua filha, examinou as crianças dos pés à cabeça, e, quando a velha foi dormir outra vez e ficou sozinha com a filha, fez-lhe perguntas sobre todas as coisas do lar, de modo a poder avaliar a felicidade de sua filha e do seu sucesso nesta casa.

— O seu marido ainda gosta de você como sempre? — perguntou.

— Talvez até mais, — respondeu a filha rindo. — Ele me chama para tudo que precisa e sou eu mesma quem o serve. Ele me deu uma nova peça de seda para fazer um casaco, antes que a loja fosse atacada, e, agora, lamento não ter tirado muito mais da loja para me dar. Diz que eu sou a mulher que teria pedido para esposa, se tivesse oportunidade de pedir.

— Mas ele sai à noite? — perguntou Ling Sao outra vez, apertando os lábios.

Ela não dissera à filha assim, mas sabia que, quando um homem fala bonito demais com a mulher, esta deve tomar cuidado, pois ele poderá estar falando de má intenção, elogiando-a apenas para ganhar a redenção.

— Nunca, — replicou a filha com orgulho, e deixou com isso o coração da mãe em paz.

Ling Sao não ignorava que havia na cidade mulheres de uma espécie muito diferente da de sua filha. Esta era uma mulher de bom coração, honesta, que nunca pusera pintura no rosto sem disfarçar bem, de modo que ninguém visse, e já estava ficando gorda e tinha o peito cheio para o último filho. E também sabia que as mulheres da cidade deixam o corpo ficar magro como o de uma serpente, não têm seios e espalham com tanto jeito a pintura e o pó de arroz que parece até que elas nasceram assim mesmo. Mas todo o mundo sabe que não há mulheres assim.

Chegou, afinal, o término daquele dia tão agradável para Ling Sao. Ela preparou-se para voltar para casa, amarrou no lenço uns pedaços de bolo que a filha lhe dera, tomou um último gole de chá, cheirou as bochechas das duas crianças, apertou os seus corpinhos uma vez mais, despediu-se de Wu Sao que tinha falado somente duas vezes durante todo o dia, uma pedindo chá, outra pedindo comida, cumprimentou a filha e atravessou a loja onde Wu Lien estava.

Mas, como havia outros homens lá, ela curvou-se apenas, para mostrar que conhecia as boas maneiras, e desceu à rua.

Nunca, achava, a cidade tinha parecido tão próspera como nesse dia. As lojas estavam cheias e ocupadas e as ruas barulhentas com vendedores e gente que ia e vinha, falando e rindo. O vento morrera, a noite estava mais quente do que o dia, e muitas pessoas já tinham posto as suas camas na rua para dormir e aí saborear as suas ceias, e de onde pudessem observar todos que passavam. Havia riso em toda parte e chamados em voz alta, sem que ninguém se detivesse para perguntar o nome do outro que falava. E parecia a Ling Sao que todos estavam alegres, como se pertencessem ao mesmo sangue.

"Somos mesmo de um só sangue", pensou ela confortada. "Somos o povo de Han e, se essa gente da cidade tem seu cheiro especial, nós, que vivemos fora da cidade, também temos o nosso: mas somos de uma carne só."

E assim, dirigindo-se para casa, sorrindo para si mesma, pensava numa coisa que tinha ouvido: que o cabelo e os olhos dos estrangeiros saem de qualquer cor.

"Tenho pena deles", pensou, "porque, se fosse eu, e não pudesse estar certa de que aquele a quem eu desse à luz fosse nascer com cabelos e olhos pretos, igual a todo ser humano, como poderia fazê-lo nascer? Eu creio que iria abandoná-lo muito cedo."

Assim ela continuou para casa e viu como a terra estava farta. Os campos estavam secos e o arroz tenro começava a erguer-se, numa promessa de boa messe. Tudo ia bem com a terra e, se tudo ia bem com a terra, então tudo estava bem.

Em casa encontrou todos esperando por ela. Cada um tinha feito o que ordenara. O dia fora tinha-a tornado contente por estar de volta ao lar e olhava de um rosto a outro, achando-os melhor do que nunca. Mesmo Jade parecia melhor e ela olhava nessa bela carinha e pensava: "Como posso censurar o meu segundo filho por amá-la tanto?" E de Orquídea ela pensou: "Uma boa alma e eu não devo ser tão dura com ela". Tomou as mãos da sua filhinha Pansiao, olhando os calos que as fibras tinham feito e murmurou:

— Amanhã você não fiará. Deixe o tear ficar parado um dia, e passe algum óleo nessas mãos.

Quando Ling Sao estava calma e bondosa, a casa toda parecia estar cheia de saúde e eles sentaram-se, gozando aquilo como o calor de um fogo brando, como a luz do Sol que não está muito quente ou como um vento não muito frio. Assim, enquanto sentados e comendo juntos, a paz os enchia e ouviam tudo que ela tinha para dizer-lhes. Ela falava, falava e apesar de toda a sua fala esqueceu o que Wu Lien tinha dito.

Um por um eles foram para as camas até que só ficaram Ling Tan e ela. E quando aprontaram a casa para passar a noite — o cachorro fora da porta, a cama do terceiro filho arrumada, ele deitada nela, e o búfalo amarrado, — também eles foram para a cama. Nem um som se ouvia na terra a não ser o quieto coaxar das rãs nos pântanos. Deitaram-se lado a lado e porque ela estivera separada dele um dia inteiro, Ling Tan sentiu-se reconfortado e esticou os braços para ela.

— Minha boa velha, — sussurrou. — Você é a melhor velha do mundo.

E até mesmo a Ling Tan ela esqueceu de falar sobre a guerra.

 

Como podia Ling Tan estar preparado para o dia seguinte? Era um dia como qualquer outro. Saltou da cama, pela manhã, verificando que dormira mais do que de costume. Sua mulher já estava de pé e ouviu o filho mais velho no pátio, lavando o rosto e enxaguando a boca, enquanto a mãe dizia aos outros que se levantassem pois era dia outra vez. Parecia um dia igual aos outros, e, assim, sentaram-se à mesa para a refeição matinal e ele instruiu os filhos sobre a tarefa de cada um para aquele dia. Se havia alguma diferença era meramente que, hoje, ele precisava do búfalo para arar e não para comer grama nas colinas. Desse modo, ordenou ao filho mais moço:

— Quando você acabar de comer, pegue o animal e amarre-o ao arado. É tempo de fazer a segunda plantação de couves.

Não havia outra diferença. O dia estava claro, o céu sem nuvens. A três dias atrás chovera e era muito cedo para esperar chuva novamente. Ling Tan podia arar hoje e plantar amanhã, pois só no terceiro dia era capaz de chover.

Assim ele saiu para o trabalho e os filhos com ele, enquanto, em casa, as mulheres punham-se a executar suas tarefas. Quando saía ouviu Ling Sao dizer a Jade:

— Sente-se, um instante, no tear, que eu mesma vou lhe mostrar como a fibra anda e o que faz a lançadeira. Pansio, tome conta do meu neto mais velho para mim.

Só essas ordens eram as diferenças. Saiu. Enquanto o Sol subia ele empurrava o arado por trás, os filhos, à frente, puxavam o animal caturra e o trabalho prosseguia. No- campo seguinte os rapazes passaram através do arroz, mondando o joio e sachando a terra seca. Quando os seus olhos erravam de alto a baixo pelo vale, ele via, em todos os campos, homens como ele e seus filhos. Eram vizinhos e amigos fazendo trabalho igual ao seu. O ano era bom. A chuva e o sol alternavam-se e a colheita mostrava-se prometedora. Não havia coisa alguma que ele desejasse que não obtivesse, e tudo que desejava era o suficiente para qualquer homem.

Então, como podia ele estar preparado para aquilo que viu? Foi aí pela metade da manhã que ouviu o barulho de aviões. Conhecia o ruído por tê-lo ouvido muitas vezes, mas nunca o percebera tão perto como agora. Olhou para cima e viu o Sol brilhando sobre aquelas criaturas de prata, não solitárias como sempre, mas muitas juntas, movendo-se com uma graça que ele só vira antes em patos selvagens, voando para o sul, através do céu de outono. Por um momento, pensou que fossem patos selvagens fora do tempo. Porém eles não vinham do norte para o sul, mas do ocidente para o oriente e aproximavam-se com muita rapidez para serem patos.

Em um momento estavam todos quase em cima de sua cabeça. Ele tinha parado, logo que os avistara, e assim haviam feito todos os outros que trabalhavam na terra, e ficavam, de pé, os rostos para cima, não com medo, apenas maravilhados diante de tanta velocidade e beleza. Que aquelas eram coisas estrangeiras todos sabiam, porque ninguém, sem ser estrangeiro, poderia fazer máquinas como aquelas. Sem inveja, somente com admiração sincera, Ling Tan e seus vizinhos observaram os pássaros de prata pequenos e altos no céu.

E eles viram um fragmento prateado sair de um dos pássaros e cair em direção à terra, enquanto os aviões prosseguiam. O fragmento desceu, inclinando-se um pouco para o oriente, e caiu num campo de arroz. E todos, ainda sem medo, sem conhecimento, viram um monte de terra escura elevar-se do solo. Simplesmente curiosos, correram em direção ao campo, Ling Tan e seus filhos no meio de todos, para ver a coisa que tinha caído. Não puderam encontrá-la. Acharam uns dois pedaços de metal e lá estava o buraco. Contemplando-o, o dono do campo pôs-se a rir.

— Durante dez anos eu quis um poço no campo mas nunca tive tempo para cavá-lo; agora, aí está ele, — disse, cheio de contentamento.

E eles decidiram que esse devia ser o fim daquelas máquinas; cavar tanques, poços e caminhos d'água onde fossem necessários. O tanque tinha trinta passos dum lado e era um pouco maior do outro e todos os homens puseram-se a caminhar em torno para se certificarem, invejando o homem em cujo campo a coisa tinha caído.

Tão ocupados estavam nisso que não foi senão depois de passado o espanto, que eles pensaram ver e ouvir o que estava acontecendo. Primeiro um homem ouviu, sobre a cidade, os mesmos sons que tinham feito esse buraco, e, olhando, avistou, lá pelos muros distantes, a umas boas três milhas, uma fumaceira que parecia de um grande incêndio. Rolos de fumaça erguiam-se no ar parado, e, vagarosamente, porque não havia vento, envolveram-se lá em cima, como nuvens de trovoada.

— Que é isso, agora? — indagou Ling Tan, mas ninguém respondeu porque ninguém sabia.

Eles estavam tão juntos, tão parecidos nos seus casacos azuis, que um homem era igual a outro. E conversavam. Contaram oito incêndios sobre a cidade, fora um menor ao lado. Quanto aos aviões, pensaram que tivessem desaparecido na fumaça até que, subitamente, reapareceram, rugindo, mas desta vez muito alto, de modo que eram somente como grandes estrelas lá no alto do céu, luzindo de encontro ao Sol. E dirigindo-se para o sul, perderam-se.

Nada podiam distinguir na fumaceira que crescia cada vez mais e todos voltaram ao trabalho com o espanto no coração. Mas esse não era um dia de mercado e, uma vez que a temperatura continuava firme e era ocasião de plantar couves, antes da chegada das nuvens, ninguém teve tempo para ir ver o que significava aquela fumaça e, ao por do Sol, ela tinha quase desaparecido. Assim, foram para casa comer e descansar para o trabalho do dia seguinte.

— Se a coisa for muito grande, antes de morrer ouviremos falar nela, portanto não adianta ir à cidade por causa disso, — disse Ling Tan a seus filhos enquanto se dirigiam para casa, e todos riram.

E à mesa, na hora da ceia, todos juntos invejaram novamente o homem que tivera um tanque tão facilmente cavado.

À noite, nessa parte da noite em que a Lua se esconde, quando tudo é escuridão até o despontar da aurora, Ling Tan ouviu o cão rosnando. Ainda que estivesse dormindo pesadamente ele sempre acordava ao rosnar do cão, pois o animal havia sido ensinado a avisar à casa se alguém tentasse roubá-la. Ele ouviu um latido alto, uma ou duas vezes e, depois, o silêncio voltou. Percebeu que batiam à porta. Por um momento ficou ponderando o que significaria aquilo. Se fosse um estranho o cão estaria latindo ainda. Sim, porque ou o cão devia ter sido morto instantaneamente ou não era um estranho que estava lá.

Ora, não há um homem, em juízo perfeito, que se levante, na escuridão da noite, e abra sua porta, sem saber quem bate. Assim, Ling Tan acordou a mulher, ordenando-lhe que não saísse enquanto ele não resolvesse o que fazer, pois ela era uma mulher impetuosa e, como sempre dizia, não tinha medo de homem nenhum. Se batiam à porta, seu único pensamento era abrir e ver quem estava lá.

— Por tal pressa muito homem cheio de saúde tem sido derrubado antes de poder abrir os olhos, — disse Ling Tan, segurando os braços dela com as duas mãos.

Assim, depois de falarem um momento, enquanto o barulho na porta se tornava mais forte, levantaram-se. Por esse tempo a casa toda já estava de pé e os três filhos também haviam saído da cama. Todos, juntos, dirigiram-se para a porta, Ling Tan segurando a lanterna de óleo de feijão. Se deviam ou não falar era outro problema. Ling Tan decidiu não falar, escutar somente. E o que ouviu foi o cachorro farejando e ganindo de alegria, não de raiva.

— Pode ser que lhe tenham dado alguma coisa gostosa, — sussurrou Lao Ta.

Então eles ouviram uma voz falando e, para espanto de todos, era uma voz de mulher.

— Estarão papai e mamãe mortos, também, que não ouvem nada?

Essas foram as palavras que chegaram, altas e claras, através da parede de barro. Logo que elas foram pronunciadas todos souberam que voz era aquela e Ling Tan lançou-se para diante, puxando a porta.

— É a sua filha mais velha, — gritou. — Mas por que está fora da sua cama tão boa?

Abriu a porta. E o que viu, e o que todos viram, estava além de tudo que poderiam ter imaginado. Ali estavam a filha mais velha e Wu Lien, cada qual com uma criança no colo. Lá estava a velha Wu Sao, sobre os seus próprios pés, espantada como se não soubesse onde se achava e o que lhe tinha acontecido. E, ao lado deles, havia trouxas de roupa, uma chaleira, peças de cama, uma cesta de pratos, um par de castiçais e o deus protetor da cozinha.

Quando a filha mais velha viu a mãe e o pai, prorrompeu num choro alto.

— Nós todos estamos quase mortos, — suspirou, — e estaríamos mortos se estivéssemos dez passos mais próximos da rua. Os dois criados e os caixeiros estão enterrados entre as ruínas. A loja está meio destruída. Nada mais temos em nossas mãos, senão nossas próprias vidas!

Eles passavam pela porta, enquanto falavam, e Ling Tan fechou-a atrás deles, rapidamente. Bandidos, pensou, bandidos tinham caído sobre a cidade. Não acontecia havia cem anos, mas nos velhos tempos acontecera — ladrões, vindos das montanhas, tinham caído sobre a cidade.

— Por que não fecharam as portas das muralhas? — perguntou ele.

— Como poderíamos fechar as portas contra o céu? — tornou Wu Lien.

Desceu a criança do colo e olhou para si mesmo. Na longa caminhada o filho tinha-o molhado de tal forma que ele parecia ter andado debaixo de um aguaceiro. Olhou-se penalizado, pois era um homem que tomava precauções mesmo com uma criança sobre os joelhos, até que aprendesse as suas maneiras.

— Que quer dizer? — perguntou Ling Tan, erguendo a lâmpada e olhando para ele.

— A cidade foi bombardeada, não ouviu nada?

— Bombardeada? — repetiu Ling Tan. Nunca tinha ouvido essa palavra.

A sua filha explodiu:

— Os aviões passaram sobre a cidade esta manhã. Bem, não lhes prestamos atenção porque estávamos todos ocupados, mas lembro-me que um dos caixeiros gritou, da porta, que valia a pena ver porque havia uma porção deles. O céu salvou-me, pois eu estava amamentando a criança nesse momento e não corri como o teria feito. Meu marido ainda dormia, sua mãe também, e o outro menino estava brincando junto a mim, mas as duas crianças correram para fora e então ouvi o tal barulho pu-tung! Saltei de tal modo que arranquei o seio da boca da criança. A terra sacudiu-se sob meus pés e houve uma enorme gritaria em toda parte. Eu gritei também, o reboco das paredes caiu e uma viga despedaçou-se em cima da mesa. Mas isso foi a metade do barulho. A loja, — pai e mãe —, a loja tremeu e a parede do norte caiu num monte. Metade das nossas mercadorias estão enterradas lá, junto com os dois caixeiros, um deles casado não há muito tempo e o outro tão honesto! Onde encontraremos outro como ele?

— Para que serve um homem, mesmo honesto, se não há loja para pô-lo dentro? — gemeu Wu Lien.

Durante todo esse tempo Ling Sao estava lutando para entender o que chegava aos seus ouvidos, mas aquilo não era para ser compreendido. Assim, ela deixou de pensar naquilo, tratando de pensar somente no que podia compreender: que aqui, na escuridão da noite, estava sua filha, seus netinhos, o pai deles e a velha cansada, esfomeada, assustada. Ela exclamou:

— Nós arranjaremos camas para vocês todos. Jade, você deve acender o fogo para o chá. Orquídea, ponha alguma coisa no fogo e os deixe comer e dormir. Amanhã veremos que é que está errado.

A si mesma, dizia que aquilo devia ser mais uma desses estudantes que haviam arruinado a loja de Wu Lien, pois pensava que a loja dele fora a única da cidade atingida pelo céu.

Mas Jade sabia melhor. Não disse uma palavra, dirigindo-se para a cozinha. Lao Er seguiu-a, agachando-se junto dela, atrás do fogão. E Jade, erguendo as sobrancelhas, perguntou:

— Não são Eles? E ele disse:

— Quem, senão Eles?

Muito tempo depois que a refeição havia terminado, as crianças arrumadas e sob esse teto todos estavam abrigados e dormindo, Jade e seu marido conversavam ainda.

— Isso significa a perda da nossa terra e as cidades tomadas, — disse Jade.

— Isso significa que morreremos todos, — exclamou ele. Não podia suportar o pensamento do corpo de Jade sem vida

e curvou-se sobre ela, abraçando-o.

Ficaram deitados, sem paixão, porque estavam com o coração inteiro cheio não de amor, mas de ódio pelo que podiam prever e de raiva porque nada podiam fazer para evitar o que previam.

— Por que não temos o que todos no mundo têm? — gritou Jade, dentro da noite. — Por que não temos canhões, aviões e fuzis?

— Para nós essas coisas todas nada mais têm sido do que brinquedos, — respondeu Lao Er. — Elas não têm valor para um povo que ama somente a vida.

E Jade não respondeu, pensando tristemente como era doce a vida para ela, agora que tinha a certeza de que estava com um filho. Viver, embalar crianças, gozar cada dia que viesse, vendo uma vida nova crescer e trazer novas vidas, isso era belo, e que loucura destruir tudo isso que se leva uma existência construindo!

— Mas, se todo o mundo está aprendendo a brincar com esses brinquedos, nós também devemos aprender a brincar com eles, — disse por fim.

— Isso é tolice, — retrucou ele rispidamente.

Durante muito tempo, dentro daquela noite, eles ficaram pensando no que deviam fazer. E dormiram sem o saber.

Pela manhã, não havia pensamento de trabalho. Até que todos se alimentassem, já metade da manhã se fora, e o resto das horas ficaram ouvindo o que Wu Lien e a filha mais velha tinham para contar. Até mesmo a velha Wu Sao pôs-se a murmurar, enquanto enxugava os olhos.

— Foi muito barulho, houve tanto barulho.

Agora, finalmente, Ling Sao compreendia o que tinha acontecido na cidade. Não fora simplesmente uma loja arruinada. Em toda parte, onde os ovos prateados caíam, explodiam, transformando tudo em pó.

— E as pessoas? — perguntou Ling Tan.

— Em pedaços, — respondeu Wu Lien, — como se elas também fossem feitas de argamassa. Aqui um braço, ali uma cabeça, lá um pedaço de pé, uma perna, intestinos, um coração, sangue e pedaços de ossos.

Houve silêncio. Cada um olhava o outro, mas ninguém podia acreditar completamente no que não vira.

— Mas, por quê? — interrogou Jade.

— Quem sabe? — disse Wu Lien. O céu está acima de todos nós.

Sua mulher chorava, acompanhada por Orquídea e Pansiao, e pelas faces enrugadas de Wu Sao, as lágrimas corriam também. E ninguém podia consolá-las, porque ninguém sabia de onde partia essa morte. A morte, eles a conheciam, pois todos conhecem seu fim, mas uma morte suave, gentil, descendo como um sonho sobre os velhos, como uma cura sobre os doentes, deixando um corpo intato para ser cuidado no leito e honrado no sepulcro. Mas essa nova morte era monstruosa, uma destruição além da compreensão humana.

Em silêncio levantaram-se todos, por fim, e foram para o trabalho — as mulheres preparando a comida e cuidando das crianças e Ling Tan com seus filhos, tratando do campo. Somente Wu Lien ficou sozinho, isolado, pois não conhecia coisa alguma de campos, arados e animais. Ele era um comerciante e, quando não tinha negócios, ficava ocioso. Mas esta ociosidade era pior do que todas que tivera, porque sabia que iria durar muito.

Agora Lao Er e Jade tinham seu ponto de encontro determinado sob o grande chorão que ficava no extremo do tanque. Eles o tinham descoberto, por acaso, naquele dia em que Lao Er vira Jade diante da casa de chá, e ali voltavam sempre que podiam. De manhã à noite não tinham um minuto para se encontrarem, esses dois que tanto se amavam. Na casa sempre havia gente em todos os aposentos, exceto no seu próprio quarto de dormir, mas eles tinham medo de entrar lá durante o dia, porque os outros achariam aquilo vergonhoso, seria sabido na vila e todo o mundo ria, dizendo que aqueles dois não tinham paciência de esperar a noite. Assim, naquele dia, tendo visto a grande sombra debaixo do chão, Lao Er observou que os ramos da árvore pendiam como uma cortina e ordenou a Jade que viesse ali e o esperasse algumas vezes; e assim o dia não era tão comprido.

Nesse dia, quando Lao Er foi para o trabalho com o pai, fez um gesto para Jade e ela sabia que, quando fosse meio-dia, devia esperá-lo embaixo do chorão. Assim fez. Chegando lá antes dele, sentou-se no chão cheio de musgo e ficou esperando. Tudo estava calmo e o único som era o de uma rã saltando no pântano porque Jade estava ali. Além disso, só o zumbido forte de uma cigarra, elevando-se e abaixando-se até tornar um sussurro. Depois silêncio. Era difícil pensar que esse vale não fosse sempre como tinha sido, mas ela sabia que não era mesmo. Pelo acaso estranho de ter recebido o livro do marido, Jade era capaz de compreender como a paz entre os homens desaparecera e o que os homens faziam uns aos outros. Luxúria, luta e morte era o que os movia na guerra. E torturas, e comer carne humana. Tudo era selvagem e animalesco quando os homens perdiam a paz.

"Como poderemos escapar disto?" pensava ela. "Como poderemos salvar nosso filho?"

E então lembrou-se do rapaz da casa de chá, naquele dia, perguntando ao povo se era capaz de queimar suas casas e searas de modo que o inimigo não se utilizasse delas. Ela havia se levantado e dito: "Nós somos capazes!"

"Mas então eu não tinha um filho no ventre", pensou.

E, sentada, refletia sobre isso e se espantava que a vida agora parecesse preciosa a ela só porque era uma mulher e trazia dentro de si a seiva de nova vida. Aquilo que devia fazer estava acima de tudo. Devia ser feito.

Nesse momento Lao Er apartou os longos galhos verdes do salgueiro e sentou-se ao lado dela limpando o suor do rosto e do corpo bronzeado.

— Tenho andado refletindo na minha mudança, — disse ela,

— agora não penso em outra coisa que não seja a vida do nosso filho.

— Mas, se não fosse assim, — disse ele, — haveria um fim para todos nós. Eu pensava, enquanto trabalhava e, agora, sei o que devo fazer: nós não ficaremos aqui. Iremos onde o inimigo não nos possa encontrar.

— Abandonar a casa do seu pai? — exclamou ela. — Mas, que dirá ele?

— Eu não comunicarei nada até que tenha arranjado uma resposta para o que ele possa dizer, — replicou Lao Er.

Tomou a mão dela e a ficou segurando uns momentos, pensando como era doce tê-la assim tão meiga como desde que soubera que ia ter um filho. E ela, sentada, pegando a mão dele, pensava como era doce ter suas próprias coisas para fazer e ele para protegê-la. A velha preguiça tinha saído dela de uma vez por todas.

— Seja o que for que você pense que eu deva fazer, farei,

— disse ela.

— E eu com você, — ajuntou Lao Er.

No momento acharam que era o bastante. Ele levantou-se, dirigindo-se para o trabalho, e ela voltou ao aprendizado no tear. Era inútil aprender aquilo, se ela fosse embora, mas, enfim, talvez algum dia viesse a precisar do que estava aprendendo.

— Onde você estava? — perguntou Ling Sao quando ela entrou.

— Eu saí. Fui me encontrar com o meu marido, — respondeu Jade calmamente e, deixando a velha espantada com a falta de vergonha com que dizia aquilo, dirigiu-se ao trabalho.

Ora, aconteceu que, no dia seguinte, quando os aviões voltaram, Ling Tan achava-se na cidade. Na sua ignorância, ele, seus filhos, e até mesmo Wu Lien pensavam que os aviões haviam sido destruídos naquele vaivém e não voltariam mais. Pensando assim também, foi que grande parte das pessoas da cidade começou a construir e arrumar as coisas, da maneira que podia. Nenhum deles pensava que aquilo voltasse mais depressa do que um terremoto, uma tempestade de raios ou qualquer outro mal enviado pelo céu. Assim, naquela manhã, Ling Tan ordenou aos filhos que trabalhassem sozinhos porque ele ia à cidade ver o que havia para ser visto. Ia só e os dois não precisavam deixar o trabalho. Mas quando saiu de casa, ouviu, atrás dele, pés correndo na poeira e, voltando-se, deparou com o filho mais novo.

— Que é? — exclamou Ling Tan.

— Pai, deixa-me ir com o senhor? — implorou o rapaz.

— Por que iria você? — perguntou Ling Tan. — Não me parece que isto seja um dia de festa.

O filho esfregou o dedo grande do pé pela poeira da estrada, num círculo, e baixou a cabeça olhando para a linha traçada.

— Eu quero ir, — disse surdamente.

Ling Tan olhou-o e ponderou se devia ter uma briga com esse rapazelho, seu filho. O dia estava tão brilhante que ele decidiu que não brigaria, porque detestava brigar mesmo nos dias feios; dava tudo para se livrar duma disputa.

— Então venha, maldito, — disse rindo, e o filho sacudiu a cabeça e lá se foram, pai e filho, caminhando com prazer, percorrendo com os pés metidos nas sandálias a estrada de pedras redondas.

O dia anterior fora escuro e, ainda que não chovesse, as nuvens pesadas estavam quase à altura dos telhados dos templos e pagodes. Mas hoje o dia estava magnífico, e entre um céu tão azul e tão belas searas, os seus corações encheram-se de contentamento.

Quando eles entraram pela Porta Sul da cidade não viram, a princípio, coisa alguma que lhes demonstrasse o que tinha acontecido, exceto o olhar grave das pessoas que iam e vinham. Esta cidade era um lugar famoso pela alegria do povo. Era uma cidade velha, que durante séculos fora cidade de governadores, reis e imperadores, e todos esses que podem permanecer ociosos, comer bem e gastar largamente o dinheiro do povo, dando de volta o que lhe tomaram. Música e riso eram ouvidos noite e dia em toda parte, e havia jovens belas para serem possuídas pelos ricos e outras jovens bastante boas para os pobres. E, no lago, havia botes de recreio feitos em madeira esculpida, e havia ainda grandes templos e pagodes magníficos. Coisas velhas.

Depois da revolução não houvera mais reis nem imperadores, mas ainda havia governadores que construíam palácios extraordinários e casas completamente diferentes das outras, com água saindo das paredes e um fogo esperando para acender quando se tocava numa lanterna. Tomavam o dinheiro do povo também e também o davam de volta nas festas, nos folguedos, e, assim, ainda havia alegria, boa vida, grandes lojas abriam-se em toda parte, e havia coisas novas que podiam ser compradas nesta cidade: coisas de que antes nem sequer se tinha ouvido falar. Indivíduos comuns que puxavam rikshas ou transportavam fardos nos ombros podiam, agora, comprar luzes que se acendiam sozinhas e segurá-las à noite em vez das lanternas de papel: e nenhum vento seria capaz de apagar essas lâmpadas. Tais coisas deixavam o povo contente, pois quem sabia o que o dia de amanhã traria de novo diante dos seus olhos? E todos sabiam que essas coisas vinham do estrangeiro, através do mar. Assim o povo admirava os estrangeiros que faziam tais coisas e os achava bons homens, dignos de admiração. Mas isso antes dos aviões voarem sobre a cidade.

Hoje Ling Tan ouvia, na cidade inteira, e numa loja onde entrou para tomar chá com o filho, homens que, taciturnos, perguntavam o que fariam sem aquelas boas mercadorias estrangeiras e que, se as coisas continuassem assim, a cidade estaria arruinada.

— Mas onde está a ruína? — perguntou Ling Tan ao caixeiro, e então ficou espantado porque o homem pôs-se a chorar alto.

— Eu tinha uma casa de terra e palha encostada à casa de um ricaço na Rua da Porta Norte, — disse ele, mas agora as duas casas foram-se e eu não sei quem morreu na casa dele, mas na minha morreram todos e eu também teria morrido se não estivesse aqui, embora preferisse estar lá! Eu tinha dois filhinhos que nasceram nesses últimos dois anos.

Ling Tan deu-lhe uma moeda a mais como consolo e depois ele e o filho saíram à rua, para ver com os próprios olhos. Quando chegou no lugar, nada do que tinha ouvido o deixara preparado para aquilo que via. Uma vintena de homens trabalhando durante cem dias não teria feito o que havia sido feito aqui no espaço de uma respiração. Parou, espantado, porque a rua estava cheia de tijolos, argamassa, vigas de madeira e pó, e nesses montões de coisas o povo ansioso cavava, uns com as mãos, outros com pedaços de ferro, e uns poucos com enxadas. Quando olhava para isso ouviu um grito desesperado de dor, partido de uma mulher que viu o pé do marido aparecer sob as ruínas que os outros descobriam.

— Eu não queria conhecer seu pé! — gemeu ela.

Mas era a única coisa que reconheceria, a pobre criatura, porque, por mais que eles cavassem, nada mais apareceu do homem, além disso e dum pedaço de perna.

Fixando aquilo, com o coração batendo no peito, o corpo tremendo, Ling Tan ouviu subitamente um violento arroto e voltando-se deparou com o filho, vomitando.

— Eu não posso censurá-lo, — disse, — porque isso é demais para ser suportado. Ponha-o fora, meu filho, porque se engolir de novo vai ficar envenenado.

Esperou que o rapaz pusesse fora tudo quanto tinha engolido e o levou então à casa de chá novamente, para lavar a boca e forrar o estômago vazio com um pouco de chá quente. Percebeu que o rapaz estava envergonhado da sua fraqueza e disse gentilmente:

— Não é vergonha sentir-se mal diante de coisas como essa. Um homem honrado deve sentir-se mal e ficar com raiva. Só as bestas de carga não sentiriam vergonha diante do que foi feito a essas criaturas inocentes.

Sentaram-se, pesada e silenciosamente, Ling Tan em pior estado que o filho, porque não podia deixar de se perguntar porque essa destruição tinha sido feita e qual o seu significado. Estava sentado, horrorizado e interrogando-se, quando entrou na loja um jovem, um desses estudantes que andavam em toda parte nesses dias, o qual, ao deparar com os vinte e tantos homens na loja, subiu num banco e começou a falar.

— Vocês que amam o nosso país, — disse, — ouçam-me. Ontem o inimigo sobrevoou a nossa cidade e lançou bombas que destruíram residências e lojas, matando homens, mulheres e crianças. A guerra começou. Devemos estar preparados para enfrentá-la. Devemos lutar contra o inimigo. Devemos resistir até à morte. Depois de nós, nossos filhos continuarão a resistir. Ouçam, bravos homens! O inimigo está vencendo a princípio, mas não vencerá no fim. Eles tomaram cem milhas da nossa terra. Não devemos deixá-los penetrar outras cem milhas. E se, a despeito de tudo que fizermos, eles as tomarem, deveremos defender as cem milhas seguintes. Lutai! Lutai!

Quando o filho de Ling Tan ouviu essas palavras, exclamou: "Muito bem!" e outros o acompanharam. Mas Ling Tan olhou para as suas mãos vazias.

— Como poderei lutar? — interrogou.

O jovem já tinha descido do banco e se afastado, e não houve resposta para Ling Tan porque todos os outros homens estavam igualmente de mãos vazias.

E foi para zombar dessas mãos vazias que chegou, subitamente, vindo dos lados do oriente, aquele som que o povo agora conhecia tão bem como o bater dos próprios corações.

— Os barcos-voadores! — gritavam os homens.

E antes que Ling Tan pudesse se mover, a casa estava vazia. Só haviam permanecido ele, o filho, e o caixeiro.

— É melhor que o senhor se esconda, — aconselhou o caixeiro.

— Onde posso eu me esconder de uma desgraça como essa? — perguntou Ling Tan. — E porque você não se esconde?

— Não preciso me esconder, — replicou o caixeiro, — pois perdi tudo que tinha.

E, enquanto o pavoroso rugido se aproximava, ele ia e vinha pela loja vazia, limpando as mesas, derramando na pia o chá das xícaras que os homens haviam deixado quase cheias, e endireitando os bancos. Quando o barulho já estava bem próximo, Ling Tan tentou falar ao filho mas não ouviu a própria voz. Tinha experimentado falar porque o rosto do filho estava duro, aterrorizado, e ele queria dizer-lhe que não devia ter medo, pois nenhum homem morre antes de chegar a sua hora. Mas, não encontrando a voz, pôs a mão no braço do rapaz e ficaram ali, na mesma postura, até que o caixeiro se aproximou e, por meio de gestos, fê-los compreender que deviam ao menos meter-se embaixo da mesa, pois, na melhor das hipóteses, a queda de uma telha poderia machucá-los. Então eles ficaram lá, de gatinhas, enquanto o caixeiro ia e vinha pela sala, deixando-a limpa, pronto para a volta daqueles que tinham saído, admirando-se Ling Tan como ele era capaz de fazer aquilo quando, a qualquer momento, o teto podia desabar, cobri-lo e a todas as mesas. E percebeu então que, a despeito de tudo, ele próprio estava com medo e desejava ardentemente estar em casa outra vez.

Ouviam, agora, o ruído de grandes trovões e, pelo que tinha visto no campo do seu vizinho, Ling Tan podia perceber o que estava acontecendo. Escondeu o rosto, não somente porque sentia que o seu fim estava próximo mas também por saber que, a cada explosão, algumas pessoas morriam. Os seus tímpanos inchavam e tremiam quando o som os atingia, seus olhos arregalavam-se e o ar não lhe penetrava no peito oprimido. Ele olhou o filho e o viu agachado, com a cabeça entre as pernas, os joelhos apertados contra as orelhas e os braços apertados à volta do corpo.

Assim permaneceram, esperando, instante após instante, até que afinal o mal passou, foi embora, e depois daquele espaço de tempo que parecera mais da metade de um dia, tudo voltou ao silêncio. Logo ouviram novo ruído: desta vez era o fogo.

— Venha, — gritou Ling Tan para seu filho, — vamos para casa, vamos sair deste lugar.

Engatinhou saindo debaixo da mesa e, pegando a mão do filho, saiu da loja. Contudo, agora que Ling Tan pensava em ir embora, como podia deixar um fogo crepitando, e lembrar o grito daquela gente presa sob as ruínas e as lamentações dos outros que tinham seus lares queimados e mortos entes queridos?

— Não, nós devemos ver o que podemos fazer, — disse ao filho.

Assim, indo de encontro a toda a velha sabedoria que lhe ordenava não descuidar de si mesmo, e não se importar com as desgraças de que não fosse responsável, Ling Tan dirigiu-se para o fogo. Mas que podia qualquer mortal fazer contra tal desgraça? Vários homens, poucos, tentavam alguma coisa com baldes d'água, mas as chamas se riam, saltavam diante deles e, por fim, em desespero, todos abandonaram as tentativas e ficaram apenas olhando, espantados, e o fogo continuou até que chegou à estrada nova, e ali, gemendo e assobiando, transformou-se em fumaça e em cinzas. Essas estradas novas tinham causado muita tristeza ao povo quando haviam sido construídas, porque os novos governadores, depois da revolução, as tinham planejado largas e retas, e, se havia residências no caminho, as residências deviam ser arrasadas, e se havia lojas, as lojas deviam ser destruídas. E os templos também. Aquilo fora outra ruína, e o povo, sem armas na mão, como agora, nada pudera fazer. Mas hoje estavam contentes, porque a estrada larga detivera o fogo e eles compreendiam que esta ruína era pior que a anterior porque era feita pelo inimigo.

Ling Tan foi-se embora silenciosamente, levando o filho consigo. Nunca haviam estado mais contentes com os campos e a terra do que agora. Ling Tan não disse uma palavra e seu filho não falou também. Assim, o mais novo seguindo o mais velho, perfizeram a longa caminhada para casa. Já era noite quando atingiram a vila e, ao descerem a sua rua simples, Ling Tan foi chamado por homens que queriam saber o que havia visto. Parou, narrou-lhes, e eles, para ouvi-lo, juntaram-se na ruazinha calçada de pedras redondas. Nem uma palavra foi dita enquanto ele falou, nem momentos depois de ter terminado. Então um velho falou, e era o mais velho da vila, pois completaria noventa anos quando chegasse o ano novo:

— Os velhos tempos eram melhores, os velhos tempos, quando nós ficávamos no nosso próprio país e os estrangeiros ficavam no seu. Há muitos que dizem que os estrangeiros são bons, mas eu afirmo que esse mal que agora nos vem deles é maior do que todos os bens que nos têm feito. Desejaria que nunca tivéssemos visto uma dessas coisas estrangeiras, que elas ficassem lá onde os deuses as puseram, no outro lado do mar, longe de nós. Os mares não são sem significação e os estrangeiros os atravessaram contra a vontade dos deuses.

Eles o ouviam, pois que era muito velho e, contristados, cada qual se dirigiu para o seu lar. Nessa noite, na casa de Ling Tan parecia que morrera alguém de tanta lamentação e tanto suspiro. Finalmente Ling Tan percebeu que devia tomar um ar autoritário sobre as mulheres e crianças, e sobre os homens que eram mais moços do que ele, ordenando a todos que fizessem silêncio e ouvissem o que tinha a dizer.

Sentaram-se todos juntos e, pela primeira vez, os homens e as mulheres não estavam separados porque todos suspiravam por estar reunidos. Achavam-se no pátio onde a mesa estava posta. Havia comida bastante, mas quem poderia comer?

Em torno deles se estendiam a terra e o céu calmos desse verão. A noite estava quente e parada. Mas ninguém pensava noutra coisa senão no mal que havia desabado sobre eles sem que houvessem cometido falta alguma.

Ling Tan olhou em torno, para esses que lhe pertenciam, e o seu coração estava mole no peito ao ver todos aqueles olhos voltados para si. "Que posso fazer para salvá-los?" pensou. De outras desgraças ele pudera salvá-los: da fome, das inundações, das doenças mesmo e da miséria, das garras dos usurários e dos magistrados cruéis, de todos esses males tão comuns ao homem. Mas que poderia fazer agora?

— Eu não posso salvá-los, — exclamou em voz alta, — porque eu não posso salvar nem a mim mesmo dessa nova desgraça que caiu sobre nós. Hoje eu vi, com meus próprios olhos, o que você, Wu Lien, tinha contado. Agora eu sei que, o que aconteceu ontem e hoje, voltará amanhã, e contra essas armas estrangeiras não temos outra coisa que não sejam os nossos braços nus. Os deuses fizeram-nos, os seres humanos, de carne macia que pode ser ferida facilmente, porque eles nos destinaram para o bem e não para o mal. Se eles fossem capazes de ver o que os homens fariam uns contra os outros, ter-nos-iam dado cascos, como os das tartarugas, nos quais pudéssemos esconder as nossas cabeças e todas as outras partes macias do corpo. Mas não fomos feitos assim, foram os deuses que nos fizeram, e não podemos modificar a nós mesmos. Temos, apenas, que suportar o que vier, vivermos se pudermos e morrermos se devermos.

Assim falou Ling Tan olhando em cada rosto que o olhava. E recomeçou:

— Vocês, meus dois filhos mais velhos, são homens, e você, Wu Lien, é mais velho do que eles. Se tiverem alguma coisa a dizer que digam.

Seus dois filhos, com o olhar, fizeram com que Wu Lien falasse primeiro e assim este tossiu e disse:

— Certamente que eu não tenho meios de me salvar e nada mais posso fazer do que lhe pedir perdão de ter sido obrigado a vir para a sua casa trazendo a minha família. Sou um homem que só sabe fazer negócios mas, nestas horas, com quem poderei negociar? Em tempos de guerra os homens como eu devem viver como podem e onde podem, ansiando pela paz.

Então Lao Ta falou:

— Só há duas coisas para serem feitas quando cai fogo do céu: uma é fugir dele correndo e a outra é esperar que ele caia e suportá-lo. Assim, meu pai, eu afirmo que farei o que o senhor fizer.

— Mas eu, — disse o segundo filho, — eu fugirei dele. Ling Tan ouviu e terminou o que tinha a dizer:

— Se eu fosse um homem sem terras, fugiria também. Se fosse jovem talvez fosse embora mesmo. Nada direi a quem quiser ir embora. Quanto a mim, ficarei aqui onde nasci e onde tenho vivido. Venha o que vier, se a cidade inteira for destruída ou não, seja a nação tomada como diziam hoje nas ruas, eu ficarei aqui. Quem quiser ficar comigo, fique, quem quiser ir embora, vá.

O segundo filho sentiu-se recriminado e gritou:

— Está me censurando, meu pai!

— Eu não o censuro, — replicou Ling Tan com voz bondosa. — Não, e mais ainda, penso que é bom você ir embora. Se todos que ficarem aqui sucumbirem, você continuará com o nosso nome em outra parte qualquer; só lhe ordeno voltar depois de terminada a guerra para ver se estamos vivos ou mortos e, se estivermos mortos, queimar incenso em nossa memória e reclamar a terra.

— Eu prometo, — disse o segundo filho.

E durante tudo isto nenhuma mulher falou, porque não era ocasião para se ouvir uma mulher, mas cada qual via o seu lugar e se preparava para ocupá-lo. Quando se separavam outra vez, cada mulher disse ao marido o que pensava. A mulher de Wu Lien elogiou-o por não dizer nada de uma maneira tão bonita pois que tudo estava tão bem, e ela estava contente em estar ali, na casa em que tinha nascido, e sentia-se segura por não se encontrar na cidade, e Jade gabou o marido por ter falado com tanta firmeza. Somente Orquídea suspirou e disse que desejaria pudessem ir, ela e os filhos, para algum lugar onde os aviões não conseguissem chegar.

Mas o marido lhe disse:

— Se toda a gente do Oriente for para o Ocidente, não será entregar esta terra ao inimigo? Não, meu pai tem razão, nós devemos permanecer aqui nesta terra.

— Bem, Jade, pelo menos, irá embora, — disse Orquídea. Ela não gostava de Jade porque esta não tagarelava e só lá uma vez ou outra, quando tinha tempo, vinha ao seu quarto, sentava-se e lia o livro. E agora Orquídea estava com ciúmes porque Jade concebia. Até agora ela fora a única mulher dos filhos da casa que tivera crianças e a sua esperança secreta era de que Jade fosse estéril. "As mulheres que gostam de ler são sempre estéreis", dissera algumas vezes e pensara sempre, mas agora Jade provava que ela estava errada.

E quanto a Ling Sao, elogiava o marido de todo o coração por permanecer no lugar em que devia, na sua própria terra, no seu próprio lar.

— Quem não viria aqui se fôssemos embora? — disse ela, — e talvez os inimigos fossem da nossa própria vila. Sim, por exemplo, essa mulher e seu marido fedorento, o primo em terceiro grau, que está sempre procurando letras como o galo procura grãos de milho: garanto que eles ficariam contentes em vir para esta casa grande, sob o pretexto de cuidá-la para nós. Eu preferiria que viessem ladrões a quem eu pudesse amaldiçoar e mandar prender, e não esses meus parentes de quem eu devo sempre falar bem e não dizer como eu os acho detestáveis.

Quanto ao terceiro filho, ninguém lhe perguntou o que pensava e ele ficou calado. Quando pensava no que tinha visto na cidade a comida vinha-lhe à boca novamente, mas não era de medo. Era de raiva. Ficava imaginando, à maneira selvagem dos jovens, como se vingaria do inimigo, e à noite ficou acordado, chorando, mordendo as unhas e sentindo-se desesperado por ser muito jovem. Mas ninguém sabia disso. E a filha mais nova não pensou coisa alguma sobre tudo aquilo que tinha ouvido, pois quase nada compreendia do que fora dito e ninguém se lembrava dela mais do que do cão a quem tratavam com bondade também, mas sem atenção.

No dia seguinte os aviões voltaram, no outro dia depois desse, e no outro, e no outro, e voltavam todos os dias, deixando a cidade presa da morte e do fogo. Mas nem Ling Tan nem ninguém da sua casa foi à vila outra vez. Ficariam lá onde estavam, tratando das plantações e reservando comida para o inverno, como faziam todos os anos. A única mudança que eles permitiam ao inimigo era que, agora, quando os aviões passavam sobre as suas cabeças, deixavam os campos e escondiam-se entre os bambus. Porque, um dia, um dos aviões tinha mergulhado como um pardal e arrancara a cabeça de um sitiante que estava fitando o céu com admiração. E depois fora embora, como se o que fizera fosse uma brincadeira.

 

Agora, que todos podiam ver que a morte vinha todos os dias, a não ser quando chovia, as pessoas que viviam dentro da cidade faziam duas coisas. Enchiam os templos e imploravam aos deuses para que mandassem chuva, até que ficavam com medo de rezar porque poderia haver uma inundação. Depois saíam da cidade e iam dormir em pequenas tavernas do campo, num canto duma casa de fazenda ou num buraco aberto debaixo de uma árvore. Ling Tan nunca tinha visto coisas que dessem tanta pena como essas que via agora: mulheres, crianças e velhos com tudo que possuíam amarrado em trouxas que carregavam. E a maior parte a pé, porque só alguns ricaços podiam andar a cavalo nestes tempos. Ling Tan tinha visto muita gente descer do Norte em tempos de carestia, porém, então, era aquela gente pobre das plantações para quem a terra não fora boa durante algum tempo. Mas não podia continuar assim todos os anos e voltava a ela.

E estes, porém, eram ricos e pobres, e não sabiam se, algum dia, poderiam voltar. Algumas vezes ele sentia mais pena dos ricos que dos pobres, pois eram tão desamparados, delicados, e sabiam muito pouco de como ganhar o pão. Durante toda a sua vida os ricos tinham o seu pão servido por outros, não precisavam perguntar como era feito, e nestes dias os pobres estavam melhor do que os ricos, pois se acostumaram sempre a ter muito pouco. E os melhores de todos esses arrojados miseráveis, eram aqueles que ficavam na cidade, arriscando a vida, entrando nas casas dos ricos para tirar de lá o que apreciavam.

Como uma torrente essa gente se despenhava da cidade para o campo. E essa torrente vinda da cidade era acrescida por uma torrente maior que vinha do Oriente, porque o inimigo, passo a passo, tomara a terra ao Oriente e o povo recuara, diante dele, juntando-se aos outros iguais. E o grande rio humano começou a correr em direção ao Ocidente, não sabendo onde ir e certo apenas da morte para quem ficasse.

A princípio Ling Tan deixou a sua casa aberta a essa gente, e as mulheres matavam-se, cozinhando para todos, alimentando-os e gritando de dor diante dos seus sofrimentos. Havia os feridos, as criancinhas que não podiam prosseguir e deviam ficar para trás, com quem quisesse cuidar delas. E muitas morriam. Mas o que salvou Lin Tan foi que todos, quando avançavam lentamente pelo campo, pensavam que a sua casa não estava muito longe do inimigo. Não se achavam seguros antes de terem ultrapassado o rio, o lago e a montanha, a se encontrarem no interior, atrás da grande cordilheira onde o inimigo não ousaria ir.

Ora, aqui estava a oportunidade para Lao Er partir, e ele e Jade esperaram até que chegassem aqueles a quem queriam juntar-se para a viagem, esses que não fossem velhos, nem doentes e não estivessem carregados com muitas criancinhas. Dia após dia esperaram pelo que queriam, até que chegou uma leva de quarenta e poucos rapazes e moças. As mulheres tinham os pés tão livres como os homens, parecendo jamais terem sido amarradas, e Jade apreciou-as assim que as avistou. O cabelo delas era curto como o seu e todas tinham livros nas trouxas que carregavam.

"Somos estudantes," disseram-lhe, "e vamos em direção às montanhas que ficam a mil milhas daqui; nossos professores já estão lá e nós continuaremos as aulas nas cavernas. Quando a guerra terminar voltaremos prontos para consolidar a paz."

Nenhum desses homens e mulheres falou de se acabar na guerra e Ling Tan apreciou muitíssimo isso. Quando pararam na sua casa não era noite, era meio-dia, e pediram chá para beber com o pão que traziam. Então Ling Tan ouviu-os falar e os louvou:

— Esses que não aprenderam coisa alguma têm apenas os seus corpos e são os que devem lutar se houver necessidade de luta. Mas vocês, que têm sabedoria guardada no crânio, são possuidores de um tesouro que não deve ser derramado como o sangue, mas guardado para o dia em que a sabedoria deverá nos ensinar como viver. Em tempos como este de nada vale a sabedoria, porque nada nos pode salvar a não ser a sorte que nos salvou. Mas quando a loucura da guerra termina, então a sabedoria deve existir.

E na sombra dos chorões, fora da sua casa, porque o pátio era muito pequeno para tanta gente, Ling Tan fez inúmeras perguntas a esses rapazes e mesmo às mulheres porque, para sua surpresa, uns respondiam tão bem quanto os outros e, em breve, ele não distinguia mais se era homem ou mulher quem lhe respondia. E deles percebeu, pela primeira vez, o que tinha acontecido na costa, porque o inimigo os atacara, e conversaram durante muito tempo.

Ling Tan era um homem que, ainda que vivesse neste vale como o haviam feito os seus ancestrais, era bastante perspicaz. A vida, dissera ele tantas vezes aos filhos, não muda. Os homens, à medida que o tempo passa, vão comendo com talheres diferentes mas a comida é sempre a comida. Dormem sobre camas diferentes mas o sono é o mesmo. Assim ele podia perceber, agora, que eram os tempos que tinham mudado e não os homens. Quando interrogou esses jovens e essas jovens, queria saber que armas os inimigos usavam e não quem eram os inimigos. E quando soube que o inimigo cobiçava a terra da sua pátria compreendeu, imediatamente, a causa de toda a guerra.

— Terra, — disse ele, olhando para aquela porção de faces moças e enchendo o cachimbo enquanto falava, — terra é o motivo fundamental de tudo que os homens querem. Se um tem muita terra e outro tem pouca, haverá guerra, porque é da terra que sai a comida e o abrigo. Se a terra é pouca a comida é escassa, o abrigo pequeno e, quando acontece assim, o espírito e o coração do homem se conservam pequenos também.

Todos o ouviam com respeito mas sem confiança porque, para eles, Ling Tan era apenas um velho fazendeiro que não sabia ler nem escrever, e como podia, pois, saber de tudo que eles tinham aprendido nos livros? Mas, como ainda não tinham esquecido inteiramente a cortesia que os pais lhes haviam ensinado, prestaram atenção e fingiram concordar com ele.

— É verdade, pai, — disseram, ainda que não acreditassem. Mas Ling Tan estava contente com eles, acreditassem-no ou não, e quando o segundo filho veio, na metade da tarde, dizer-lhe que ele e Jade queriam ir embora com esses jovens fortes e cheios de coragem, ponderou, por alguns instantes e, como era seu costume, antes de decidir qualquer coisa, foi falar com a mulher.

Ora, ela nunca apreciara a idéia do segundo filho e Jade abandonarem a casa, e expressou o seu descontentamento por isso, enquanto lavava as roupas na beira do tanque. Tinha na mão um par de calças de Ling Tan, dobradas em uma pequena bola cheia d'água, e batia a peça com um pedaço de pau para que a água saísse junto com o sujo; e continuou batendo enquanto falava:

— Eu não gosto que Jade vá embora assim, disse. — Quem vai olhar por ela quando chegar o tempo e porque haverá o nosso neto de nascer em qualquer lugar, no meio do mato, como se fosse um coelho selvagem? Se o nosso filho quer ir, que vá, mas eu digo que ela deve ficar aqui para ter o nosso neto de uma maneira decente.

Então Ling Tan falou-lhe com palavras graves:

— Será melhor se não tivermos moças em casa. Quanto menos melhor, e Jade é muito jovem para o que pode vir por aí.

Ling Tan estava perturbado por uma coisa que ouvira de um dos rapazes que o levara para um canto e lhe contara em particular o que acontecera a algumas mulheres que tinham caído nas mãos do inimigo. Por isso estava agora desejoso de ter as mulheres longe de casa, todas, exceto a sua mulher que já era velha e tão enrugada que nenhum homem seria capaz de ver o que ele via no seu rosto: a jovem que ela fora.

Ela deixou o pau por um momento e olhou para o marido.

— Que é que você está dizendo agora? — perguntou. — Há algum lugar mais seguro para uma mulher jovem do que a casa do seu marido, e haverá olho mais agudo sobre ela do que o meu? Quando ele vai para o trabalho eu não a deixo passar da porta. E afirmo que é ele quem a encoraja para desobedecer-me, de modo que não digo a metade do que diria se ele não estivesse aqui. Deixe-o ir e eu saberei dizer a ela, imediatamente, que os seus pés não devem passar da soleira da porta até que eu volte.

— Podem vir tempos em que pés estranhos atravessem a nossa porta, — disse Ling Tan.

Ela recomeçou as batidas.

— Eu não tenho medo de homem, — disse em voz alta. — Deixe um estranho pisar na soleira da nossa porta e veremos quem estará em cima dele primeiro: eu ou o cachorro!

— De qualquer maneira, a mulher deve acompanhar o marido, — argumentou Ling Tan. — E quem cuidará do nosso filho se a mulher não o acompanha?

— Eu seria a primeira a reconhecer que você estava com razão, — replicou ela, — se Jade não estivesse carregando nela o seu neto.

— Eu penso que isso não importa, — disse ele suavemente e se foi antes que ela entrasse com outros argumentos.

Ling Sao, sabendo porque ele ia embora, só podia bater nas calças, e fazia isso sem saber o que estava fazendo até que, levantando-as, viu que estavam cheias de buracos. Então gritou a todos os seus deuses para ver o que havia feito e que aquilo não era falta dela, porque esses tempos deixam a gente transtornada.

Quanto a Ling Tan, dirigiu-se para casa e disse ao filho que era melhor ir embora e levar Jade com ele porque os rapazes tinham contado que as segundas cem milhas de terra foram perdidas para o inimigo. E dentro das terceiras cem milhas estava a sua casa.

— Mas mande dizer, de qualquer maneira, quando a criança nascer, — pediu. — Se for homem, mande-me um fio vermelho, num envelope, e se for mulher, mande-me um azul.

Agora desejaria que seu filho tivesse aprendido a ler e a escrever uma carta que ele levaria ao primo em terceiro grau para lê-la. Mas quem iria adivinhar que seria bom, para um filho, deixar a casa do pai?

— Eu farei melhor do que isso, replicou Lao Er orgulhosamente. — Jade sabe escrever o bastante para lhe contar.

Ling Tan ficou espantadíssimo diante disso e exclamou:

— Então ela sabe? Mas o casamenteiro não disse nada!

— Sem dúvida ele não pensou que isso tivesse valor, — disse Lao Er mostrando os dentes.

— Eu mesmo nunca poderia pensar se seria necessário para uma mulher aprender a ler e escrever, — disse Ling Tan. Mas isso só serve para provar o quanto são estranhos estes tempos que atravessamos.

Ling Tan sentou-se no pátio, fumando e pensando, enquanto o filho corria para dizer a Jade que se iam embora.

Ora, Jade fora a primeira a achar que esses rapazes e moças eram os que deviam ter como companhia e, assim, já tinha amarrado, em duas trouxas, as poucas coisas de que iriam precisar. Sentou-se na beira da cama esperando Lao Er e só levantou a cabeça quando ele entrou.

— Vamos? — perguntou.

— Sim, vamos, — respondeu ele.

Sentou-se ao lado dela e pôs a mão sobre o seu ombro.

— Agora que partiremos, imagino se não vai ser muito duro para você, — suspirou ele com ternura. — Gostaria de poder carregar a criança.

— Um destes dias você poderá, — replicou ela. Levantou-se enquanto falava e ele viu que ela se preparara para a longa caminhada, pois tinha posto um par de sandálias de palha, dessas usadas no campo, vestira uma roupa azul, a mais forte e a mais simples que tinha, dessas usadas pelas camponesas, de casaco e calças, e tirara o vestido comprido que era o melhor que tinha e que fora feito segundo as modas da cidade.

— Estou pronta, — disse ela, levantando-se e apanhando a trouxa.

Mas ele retardava-se.

— Eu nunca poderia pensar que um filho meu haveria de nascer em qualquer outro lugar que não fosse o lugar onde nasci, — murmurou tristemente.

— Ele achará um bom lugar para nascer, — disse ela.

— Sim, mas nós devemos marcar o lugar, — lembrou ele. — O lugar onde o homem nasce tem muita significação para ele, e nós devemos observar se é entre montanhas, num vale ou numa cidade, se é noite ou dia, se há água nas proximidades, se o céu está limpo ou nublado e se for numa província devemos tomar nota da língua que o povo fala, para que possamos dizer-lhe tudo.

— Oh! — fez ela impacientemente, — vamos logo, se temos que ir!

Mas ele se demorava mais.

— Parece-me que eu posso lembrar o momento exato em que nasci nesta mesma casa, — dizia. — Parece que eu me lembro de uma escuridão tão negra como nunca mais vi outra e depois uma luz tão forte que me doeu na vista e me fez gritar. Foi quando senti braços em redor do meu corpo.

— Você vai comigo ou não vai? — exclamou Jade. — Eu detesto dizer que vou e não vou.

Ele sentiu o medo na sua voz de mulher que procurava segurança para o filho e levantou-se. Saíram, cumprimentaram o pai, o irmão mais velho e despediram-se de todos os outros. Mas não puderam encontrar a mãe em parte alguma, e como os rapazes e as moças estivessem ansiosos por partir, a fim de atingirem um outro lugar onde passar a noite, tiveram que deixar a casa sem vê-la.

— Diga a mamãe que a procuramos em toda parte, — pediu Lao Er. — Diga-lhe que é muito má sorte não podermos encontrá-la antes de partir.

— Direi, — prometeu o pai.

Ele não iria dizer ao filho o que sentia ao vê-lo abandonar a casa para ir para lugar desconhecido, sem saber quando regressaria, talvez nunca, pois quem poderia dizer quando se encontrariam outra vez, se é que se encontrariam? Seguiu o filho e Jade até à porta e parou sobre a eira para vê-los partir. Todos da casa estavam com ele, exceto a mãe dos seus filhos. Nesses meados de verão aquela era uma tarde como tantas outras, quente e calma, com um céu azul sobre as montanhas verdes onde se acumulavam nuvens prateadas, de trovoada. Ainda ninguém poderia dizer se aquelas nuvens iriam ou não resultar em alguma coisa. Algumas vezes transformavam-se numa tempestade, outras vezes não.

Ling Tan, sentindo tudo em torno dele tão igual, como se não houvesse sombra de guerra, ficou imaginando se não era loucura deixar o filho tão bom, tão jovem, abandonar a segurança da sua casa, levando a esposa, tão jovem também, e que agora era preciosa para eles pelo que carregava dentro de si. E imaginava se aqueles jovens tinham ou não falado a verdade. Não lhe parecia realidade que, a menos de cem milhas, os exércitos do inimigo marchassem contra este lugar. Um pássaro cantou junto à porta, num pessegueiro cujos frutos começavam a amadurecer, e estavam imóveis sob a luz do Sol. O seu verdor clareava e não passariam muitos dias antes que ficassem completamente maduros.

Quando cortasse o arroz ele sentiria grandemente a falta deste filho forte. E, já agora, parecia-lhe que este seu segundo filho tinha em si qualidades que os outros não tinham. Era mais rápido do que o mais velho, mais agudo em seus pensamentos, ria mais sabiamente, guardando o riso para o que era interessante e não o desperdiçava em cortesias como o filho mais velho fazia tantas vezes. E o filho mais moço não servia para outra coisa que não fosse apascentar o búfalo. E, a despeito de tudo que Ling Sao dizia, Ling Tan sabia que Jade era a melhor das moças da casa. Contemplou-a e, pela segunda vez desde que ela chegara, falou-lhe diretamente, porque Ling Tan era um homem de dignidade, que obedecia aos costumes que prevalecem entre as várias gerações. A primeira vez que lhe falara fora para saudá-la quando noiva, e agora era para dar-lhes adeus.

— Cumpra seu dever, menina, — disse. — Lembre-se de que este é meu filho, e seu filho é meu neto, e tudo depende de você. O mal não chega onde a mulher é fiel. A mulher é a raiz e o homem a árvore. A árvore só cresce quando a raiz é forte.

Ela não respondeu mas deixou a boca, geralmente fechada, abrir-se num sorriso. Se acreditava ou não no que ele dizia, o sorriso não o demonstrava.

E assim Ling Tan os deixou ir e ficou de pé, olhando-os durante muito tempo, enquanto pôde vê-los, até que as suas figuras se confundiram com a multidão.

Quando entrou em casa, viu fumaça saindo da cozinha e, olhando atrás do fogão, lá estava Ling Sao.

— Onde andava você? — gritou. — Procuramos por toda parte.

— Eu não queria vê-los partir, — disse ela. — Eles tinham que ir e eu não queria ver.

— Mas você andou chorando, — exclamou, fixando-a. Ling Sao tinha os olhos vermelhos e as lágrimas haviam deixado um fio na sua face escura.

— Eu não chorei nada, — disse ela. — A fumaça deixa os meus olhos vermelhos.

Ele não a contrariou e ficou na sua frente, de pé, sem o que fazer, enquanto as lágrimas brotavam dos olhos dela novamente. Sempre que ela chorava, — e chorava muito pouco —, ele ficava assim, incapaz de se mover, petrificado.

Parecia estranho que duas pessoas pudessem ser tão lamentadas como Jade e Lao Er o eram agora por Ling Tan e sua esposa. Havia os outros todos que tinham ficado, o mesmo número de crianças corria pelo quintal perseguindo as galinhas e os patos, ou puxando o rabo do cachorro até que ele rosnasse com raiva. O dormir era mais fácil para todos porque Wu Lien, a filha mais velha e todas as suas crianças dormiam no quarto vazio e a velha mãe de Wu Lien dormia na cama do terceiro filho, ficando este no leito de bambu, no pátio. Mas mesmo assim eles tinham saudade dos dois. Uma espécie de força havia abandonado a casa com a partida deles e o filho mais velho, sem o irmão, ficara muito dócil, obedecia rapidamente a tudo que o pai e a mãe diziam, e Ling Tan sentia que, quando as dificuldades chegassem, este jovem dócil faria tudo o que mandassem com facilidade, mas não saberia o que fazer se não houvesse quem o dirigisse. E Ling Tan sentia que a si mesmo cabia todo o cuidado.

Agora ele via que o segundo filho era um homem do seu próprio temperamento, como Jade, embora teimosa, era uma mulher que sabia o que devia fazer sem perguntar a ninguém.

Mesmo Ling Sao sentia a falta de Jade mais do que gostaria de dizer e, porque fosse apenas uma mulher, riu um dia, envergonhada, e assim falou ao marido:

— Eu gostaria de dizer que a paz só chegou a esta casa depois que Jade foi embora, e não diria que a quero de volta se não fosse por causa do nosso filho. Mas eu fico cansada com Orquídea, que não faz coisa alguma sem me perguntar, e com a nossa filha mais velha que berra o dia inteiro, de manhã à noite, como um carneiro: "Mamãe, que farei agora?" Eu digo a ela então para ver se o assoalho está limpo, se o quintal precisa ser molhado por causa da poeira, se há bastante lenha para fazer a comida, se há roupa para lavar, se o peixe secando precisa ser virado, e, não havendo outra coisa qualquer, se há fatias de cenoura para salgar para o inverno; e então ela pergunta: "O que eu faço primeiro, mamãe?"

Os olhinhos de Ling Tan piscaram enquanto a mulher se sentava, penteando o cabelo para dormir.

— Ela é sua própria filha, — disse, — e se pergunta o que deve fazer é porque você sempre lhe disse. Jade não foi criada ao seu lado e, por isso, acostumou-se a ver com os próprios olhos e não com os seus.

— Então o erro é meu? — perguntou, levantando o pente, pronta para se zangar.

Esses dois estavam tão ligados depois de tantos anos de vida, que ela não podia suportar uma palavra dele que julgasse ofensiva. Qualquer outra pessoa podia xingá-la, descompor sua mãe e chamar seu pai de tartaruga, que não se importava nem um pouco. Ria apenas ou se zangava e respondia ao insulto com um insulto maior. Mas o marido dizia que devia ter feito outra coisa e não o que fizera, ela não podia dominar a raiva, embora tentasse, e as palavras dele, ainda que duas ou três somente, varavam o seu coração com uma adaga e, durante vários dias, ficava sentindo a dor. Assim, Ling Tan tinha aprendido a não dizer que ela estava errada senão quando fosse indispensável, e sempre deixava passar coisinhas sabendo como era temperamental e impetuosa essa sua mulher, e como desejava, secretamente, fazer tudo o que ele queria, ainda que pretendesse não ser assim, e gostasse de dizer que não tinha medo de homem; nem mesmo dele.

— Você é a melhor mãe da província, — disse, — e haverá alguma como você, mesmo do outro lado dos mares? Eu não gostaria de você se fosse uma alma fria e vazia. Eu gosto de você quente e violenta, e gosto de sua língua precipitada, mesmo quando ela se volta contra mim.

Ele ria enquanto falava e ela, ruborizando-se de prazer, recomeçou a alisar o cabelo e, para esconder a alegria que sentia, tentou ser grosseira enquanto sorria.

— Você, seu cebola velha, — disse, procurando alguma coisa para fazer com ele, — venha cá, e deixe-me ver esse negócio no seu rosto. Parece que, depois desses anos, vai lhe nascer um furúnculo.

Ele se aproximou e curvou-se sobre ela para alegrá-la, porque sabia perfeitamente que queria tocá-lo e fazer alguma coisa por ele.

— Isso foi somente a mordida de uma pulga, — disse ele.

— Não precisa dizer o que é, — reprimiu ela. — Eu sei ver. Pegou-lhe o rosto, viu que não era nada e deu-lhe um soco no ombro porque o amava muito.

— Será que você não sabe mais pegar uma pulga e deixa-se morder como uma criança? — reprovou.

Riram ambos, e Ling Tan pensou que se esta mulher morresse antes dele, não casaria com outra, porque depois dela não poderia encontrar nenhuma que se parecesse com uma cenoura seca e sem sal.

— Você já sabe porque não gosta de Jade? — perguntou ele para arreliá-la.

— Eu sei tudo que quero saber, — disse ela, e começou a pentear o cabelo novamente, pondo nos olhos uma expressão de zanga.

— Não, isto não sabe, — afirmou ele. — É porque ela é muito parecida com você.

— Essa Jade! — exclamou ela, fingindo-se aborrecida.

Mas, secretamente, no fundo do coração, estava satisfeita porque Jade era bonita e ela sabia, contra os seus desejos, que a pequena não era uma ordinária.

— Vocês são ambas cabeçudas e teimosas e essa é a única espécie de mulher que eu aprecio, — disse ele.

Colocou a mão no pescoço dela e Ling Sao sentiu como quando ambos eram jovens. Mas porque já passara havia muito dos quarenta, sabia que outra pessoa, se visse aquilo, acharia vergonhoso que duas pessoas de meia-idade brincassem como dois jovens, e sacudiu a cabeça afastando-se. Ling Tan, sabendo o que ela estava pensando, pôs-se a rir e quando ela viu a sua face bronzeada sobre a dela e aqueles dentes brancos, esqueceu que ele era o pai dos seus filhos, o homem que tinha vivido com ela esses anos todos e passou-lhe o braço em torno da cintura, apertando-o de encontro a ela, sentindo o coração dele bater-lhe forte no rosto, como se todo o sangue estivesse se movendo ao compasso dessa batida.

— Como não compreenderíamos nosso filho e Jade? — perguntou ele. — São exatamente como nós.

— Eu sempre disse que nosso segundo filho era mais parecido com você do que qualquer um dos outros, — respondeu ela.

Soltou-se então e continuou a compor o cabelo. O colóquio estava terminado e ambos sentiram-se melhor depois dele.

Mas, à medida que o tempo passava, eles iam se acostumando com a falta dos dois, os rasgões das roupas iam sendo remendados e o trabalho prosseguia. Ling Tan pusera o filho mais novo a trabalhar com ele no campo em vez de apascentar o búfalo e, no seu lugar, alugou um rapazinho por um níquel diário, para sentar-se nas costas do búfalo nos dias em que este não era necessário ao trabalho.

Quanto a Orquídea, sentia-se mais feliz, agora que Jade tinha partido, pois ninguém mais reprová-la-ia por fazer pouco trabalho e não haveria ninguém com cabelo sedoso quando o dela era áspero, porque não tinha tempo de penteá-lo ou pensava que não o tinha. O seu lugar era o mais alto entre as jovens da casa, agora que Jade tinha partido, e não havia ninguém para fazer as coisas melhor do que ela.

Mas Pansiao ficara triste com a partida de Jade porque, nos últimos dias, ela lhe ensinara a ler algumas letras. Aos outros aquilo parecera uma brincadeira, mas Jade sabia o que significava para a silenciosa jovem que se movia pela casa tão poucas vezes, que todos a esqueciam. Somente Jade via que muito poucas vezes a pequena falava, porque também fora uma criança silenciosa. O seu pai tinha sido mais rico do que a maior parte dos homens e possuíra terras que alugava e cultivava; tinha uma concubina e, dessa maneira, Jade crescera entre os filhos das duas mulheres que eram, ao todo, dezessete. Entre tantos ela ficava solitária e permanecia quase sempre silenciosa, nunca loquaz. Nesta casa onde Ling Tan e Ling Sao falavam livremente, Lao Er dizia tudo que sentia, Orquídea falava tanto quanto respirava e o terceiro filho estava longe o dia inteiro, Jade viu a pequena, quieta, silenciosa e imaginou se ela não se achava solitária. E assim, para seu próprio espanto, não sabendo mais o que dizer à menina, perguntara um dia:

— Você gostaria de aprender algumas letras? Então, em vez de ficar aí sentada, poderia ler o meu livro.

— Oh, eu não sou capaz, — respondera Pansiao apressadamente. — Como poderia lembrar o nome das letras quando esqueço tão facilmente tudo que minha mãe diz?

— É fácil lembrar as letras porque elas exprimem alguma coisa que você tem vontade de conhecer, — disse Jade.

Conseguiu persuadir Pansiao e, na verdade, a pequena lembrava-se de tudo e Jade nunca teve necessidade de repetir uma letra duas vezes porque cada letra parecia falar por si mesma.

Agora tudo havia voltado ao normal, Jade tinha ido embora, e Pansiao só podia ler e reler as letras que já conhecia, até que um dia, na ânsia de saber o que significavam as outras, ela se aproximou de uma das estudantes que passavam por ali de vez em quando e perguntou-lhe uma letra ou duas e repetindo isso muitas vezes, acabou lendo um pouco. Um dia uma estudante bondosa deu-lhe um livro dos que carregava.

— Cuidado com ele, — disse, — porque os livros hoje estão mais caros do que comida.

Pansiao agradeceu-lhe, apanhando-o e, ainda que não soubesse ler o que dizia, o livro ficou para ela como um objetivo que devia atingir algum dia. Pegando um pedaço de carvão marcou todas as letras que já conhecia. Mas não estavam ainda suficientemente próximas para significar alguma coisa.

Quanto a Ling Tan só se admirava como rapidamente todos se acostumavam à nova vida. Diariamente os aviões voltavam e se habituaram a eles, afirmando que permaneceriam onde estavam, ainda que o inimigo tomasse a própria cidade. Primeiro metade da cidade foi embora e, depois, mais um terço dos que ficaram, até que só permaneceram mesmo aqueles que não tinham para onde ir, os que não tinham dinheiro algum ou ainda os que não estavam se importando com quem governasse a cidade desde que houvesse paz, e ficavam esperando o fim da guerra, que faria desaparecer esses aviões. Um fim estava próximo, todos sabiam, porque, milha após milha, os exércitos do inimigo se aproximavam e cidades e cidades caíam nas suas garras. Não havia notícias do que acontecia nessas cidades porque os que fugiam antes não sabiam de coisa alguma, e depois que uma cidade tombava e o inimigo tomava a terra, tudo caía no silêncio. Ninguém sabia se o inimigo era mau ou bom e todos esperavam.

Ling Tan esperava também, mas, enquanto esperava, o trabalho tinha que ser feito e ele não podia estar sempre correndo a se esconder nos bambuzais só porque havia aviões sobre a sua cabeça. Mas também não queria arriscar a pele ficando sozinho no campo, tentando o inimigo a vê-lo de cima. Assim, uma tarde, ele se dirigiu à casa de chá da vila, nessa hora em que a maior parte dos homens gosta de deixar a mulher um instante e sentar-se em paz sem o barulho das mulheres ralhando e das crianças choronas que vão dormir. Então Ling Tan levantou-se e falou:

— Meus irmãos mais velhos, vocês e eu somos do trabalho. Com guerra ou sem guerra temos que arrancar comida da terra, e como poderemos fazê-lo se ficamos a maior parte do dia escondidos num bambuzal, a melhor parte do dia, quando ninguém ainda está cansado?

— Você não amaldiçoa mais a ociosidade do que todos nós, — gritou uma voz, e um murmúrio correu a sala.

— Muito bem, mas que devemos fazer então? — outra voz perguntou. — Eu vi um homem ser morto por um avião e ficou morto e não há ociosidade maior do que a morte.

Todos os homens riram e Ling Tan riu também, mas continuou:

— O que eu digo é que nenhum de nós deve se esconder nos bambus. Devemos ficar no campo e fingir que não vemos os barcos voadores. Se houver muita gente eles decidirão que não vale a pena perder tempo cortando cabeça por cabeça e irão embora.

Houve um clamor concordando, e daí por diante Ling Tan e seus companheiros trabalharam no campo sem olhar para cima, enquanto os aviões iam e vinham. Eles só faziam uma coisa: paravam na metade da manhã e amarravam uma porção de galhos nos chapéus, de modo que quem olhasse de um lugar muito alto, veria tudo verde, porque os chapéus grandes que usavam ocultavam as calças azuis e as costas nuas.

A vila e os sítios pareciam agora uma ilha no meio daquela corrente de gente que continuava a fugir. Esses que tinham podido sair da cidade já tinham saído mas, todos os dias, novas levas de pessoas passavam, e como Ling Tan sabia que o inimigo cada vez se aproximava mais, perguntou a essa gente, a todos que passavam, donde vinham, e dia a dia lhe respondiam lugares mais próximos, por fim cidades que ele próprio conhecia, e assim se fazia sabedor de que o inimigo estava vitorioso.

— Os nossos exércitos não lutam contra eles? — perguntava sempre.

Mas a resposta, a maior parte das vezes, era desoladora:

— Os nossos homens retiram-se para se guardarem para uma grande batalha que vai ser travada, — diziam, mas ninguém sabia o lugar em que isso ia acontecer.

Essa grande batalha deveria ocorrer por ali, Ling Tan percebia em breve, porque nenhuma das pessoas desejava parar, tinham os olhos fixos em terras mais distantes e ele começou a aprontar a casa para o tempo em que o inimigo governasse, pois de qualquer forma eles teriam que viver sob esse governo.

O inimigo seria bom ou mau? Ele não podia descobrir, porque contavam mais histórias do que era capaz de ouvir. Em sua própria casa Wu Lien afirmava que os tais comerciantes do mar oriental, com os quais ele uma vez negociara, quando fora comprar mercadorias na costa, eram sempre corteses e bondosos. E, contudo, havia aquela história de uma multidão que fugia dessa mesma costa, e não vinha a pé, vinha de trem, que ainda que hasteasse bandeiras brancas em sinal de paz e inocência, teve sobre ela os barcos voadores que deixavam cair a morte, de modo que muitas centenas ficaram feridos e morreram. Como poderia o inimigo não ser mau assim?

Estas coisas Ling Tan ponderava enquanto as horas passavam, trabalhando debaixo dos ramos verdes amarrados ao chapéu, e lá em cima os aviões iam e vinham.

"Eu farei meu trabalho como sempre fiz", — pensou ele.

Parecia a ele que o máximo que um homem podia fazer nesses tempos era viver e conservar vivos os seus... Assim o verão transformou-se no outono e as colheitas deste ano eram realmente o que haviam prometido ser. O arroz era tanto como Ling Tan não via havia dez anos e a colheita, de tão grande que era em toda parte desse vale tão rico, deixava a gente toda terrivelmente fatigada. Eles não podiam pensar noutra coisa que não fosse a colheita e, quando os soldados que deveriam defender a cidade, se necessário, vinham a eles e lhes pediam palha para fazerem camas ou auxílio na construção de trincheiras em torno à cidade, os plantadores tornavam-se rudes e diziam:

— Estamos todos cansados de tudo quanto é soldado, que não ganham coisa alguma, e que vivem à nossa custa. Façam o seu próprio trabalho que temos o nosso a fazer.

Quando Ling Tan ouvia os soldados receberem tal resposta, ficava contente porque também desprezava os que tomavam parte nas guerras. E, contudo, foi obrigado a refletir, ao menos durante alguns momentos, para o que um desses soldados disse, quando, ao ser repelido, começou subitamente a chorar, olhando em torno, para a seara meio segada e para a gente saudável:

— Se não formos capazes de defender esta terra, não ouso pensar no que acontecerá a vocês, pois vimos com os nossos próprios olhos o sofrimento dos nossos conterrâneos nas terras do litoral que os inimigos tomaram.

Mas, ainda assim, os outros não haviam dado atenção ao homem, a colheita esperava, e os soldados foram embora.

Agora que os cereais precisavam ser debulhados, Ling Tan incitava todos da casa para o trabalho, exceto Wu Lien que, parecia, nunca seria capaz de aprender como segurar uma foice. Mas a filha mais velha, lembrando-se da infância que passara ali, deu uma risada (eles todos estavam felizes com a colheita) e disse:

— Deixe meu marido permanecer em casa e ajudar a cuidar das crianças que eu vou para os campos, como já fui tantas vezes.

Assim fez, e era com prazer que sentia as hastes macias e firmes ao cortá-las, pois ainda segava tão bem como qualquer homem e sentia-se orgulhosa de si mesma.

Mas isso foi motivo de discórdia na casa durante um dia ou dois porque, quando ela chegou em casa, à noite, encontrou Wu Lien muito zangado, e quando perguntou a razão do seu mau humor, ele a mandou entrar no quarto e seguiu-a.

— Você é minha mulher ou é filha do velho? — perguntou. — Eu estou aqui para fazer o seu trabalho? A próxima coisa que vão me pedir para fazer será dar de mamar às crianças.

A isto ela deu uma grande risada, porque Wu Lien estava tão gordo que até tinha vergonha de ficar nu da cintura para cima, quando era verão, pois os outros homens riam e diziam que ele tinha a conformação de uma mulher — e havia sempre alguém que lhe contava a história estranha de um homem que amamentava. Ora, logo depois de ter dito aquilo à esposa, Wu Lien desejou não tê-lo dito e na sua raiva, quando ela riu, esbofeteou-a na boca, que começou a sangrar mas, pior do que isso, os dentes dela cortaram-lhe as costas da mão.

— Você me mordeu! — exclamou ele.

E era tão injusto que ela, quase sempre humilde, tornou-se irritada como ele nunca a havia visto. Mas tornou-se assim porque estava na casa do pai e gritou para ele tão alto como podia.

— Quem dá de comer a você, não é meu pai? E por que não haveria eu de ajudá-lo um pouco na colheita?

Com isso avançou para ele com todas as dez unhas e Wu Lien recuou diante dela, pois nunca a vira assim e, com o sangue ainda gotejando da boca, ela o agadanhou. Ouvindo o barulho das vozes, Ling Sao abriu a porta e saltou entre os dois, puxando a filha.

— Você me envergonha — disse. — Quando foi que eu lhe ensinei a se portar assim com o homem que é seu marido? Wu Lien, ela não é mais minha filha e se você não a quer mais não posso censurá-lo. Eu o enganei com uma esposa que não vale você.

Assim Ling Sao lisonjeou o homem atônito, censurou a filha e trazendo-o para fora do quarto, deu-lhe um leque, encheu-lhe uma xícara de chá e ordenou a Pansiao que afastasse dele as crianças. Então voltou para o quarto onde a filha estava lavando a boca e endireitando o cabelo e fê-la contar o que tinha acontecido. Mas quando a filha lhe disse tudo ela não pôde deixar de rir, agora que Wu Lien não estava ali.

— Eu estou do seu lado, — disse, — porque nunca vi um homem mais imprestável do que o seu, ainda que não seja genioso, o que já é alguma coisa de bom. Mas, apesar de tudo, é um homem da cidade, fora dela ele é como um gato num tanque, e você não pode censurá-lo. Alimentava-a bem, era bom para você quando tinha a casa e voltará o dia em que ele terá casa outra vez, e uma mulher deve sujeitar-se ao homem que arranja. Quem pode saber antecipadamente o que ele vai ser? Você deve se lembrar que é bem duro para ele estar nesta casa. Isso o envergonha. Você deve tratá-lo o melhor que puder, e não menosprezá-lo. Há homens piores do que o seu.

Assim ensinou ela à filha e ordenou que esta saísse e fosse pedir perdão ao marido. E ele concedeu o perdão tão gravemente como se não lhe coubesse a menor culpa no ocorrido.

Mas Ling Sao contou a história toda ao marido, apimentando-a à medida que narrava, e os dois, naquela noite, riram juntos do homem da cidade que era seu genro e ficaram orgulhosos da filha por ter metido as unhas naquelas bochechas gordas e brancas, deixando lá cinco arranhões vermelhos de cada lado. De maneira alguma odiavam Wu Lien, mas dele partia alguma coisa que podia derivar em riso e era um prazer encontrar algo de que se pudesse rir, nesses dias.

Ling Tan, porém, não esquecia que nada deve interpor-se entre um marido e uma mulher e, assim, proibiu a filha mais velha de ir para o campo. Wu Lien ficou lisonjeado e Ling Sao deu-lhe um pouco de carne gorda de carneiro para por sobre as arranhadelas, e depois de uns sete dias estava completamente curado. Mas antes de ficar curado ele não saiu do quintal.

O arroz fora colhido e durante o dia inteiro, pelo vale afora, ouvia-se o bater do mangual sobre os cereais postos na eira. Os grãos caíam sobre a terra batida, e o boi e o búfalo os pisavam com as pedras que puxavam. Se um lavrador não tinha animais era ele mesmo quem empurrava as pedras, enquanto as mulheres joeiravam os grãos à ligeira brisa do outono que se aproximava.

E todos os dias, exceto quando chovia, os aviões vinham do lado das montanhas do Oriente e voavam sobre a cidade. Mas havia poucos dias de chuva.

— Nós rezamos tanto aos deuses para que nos mandassem céu limpo para as colheitas que eles, agora, mandam bom tempo de qualquer maneira, porque estamos no nono mês, — queixava-se o velho de noventa anos, continuando: — e quem pode censurar os deuses de não saberem o que fazer? O que terá um homem para rezar, nestes dias em que o sol traz o inimigo e a chuva devasta as colheitas?

Isto Ling Tan ouviu-o dizer num dia em que viera ver a colheita, ainda que, há muito tempo, não pudesse mais trabalhar numa. E Ling Tan respondera obstinadamente:

— Eu rezarei pelo que eu tenho rezado sempre quando a colheita amadurece: pelo brilho do Sol, para que eu possa trilhar meus cereais e pô-los nos celeiros para nosso alimento no inverno.

— É verdade. É bom rezar por aquilo que julgamos bom, — concordou o velho.

Mas nenhum sitiante com tanta terra como Ling Tan poderia armazenar todo o seu cereal, de modo que algum tinha que ser vendido. Além disso, o pessoal da cidade precisava de comida também, e ainda havia aqueles que cavavam um buraco na terra para um lugar, livre do fogo e da destruição, onde guardar a comida para o inverno. Assim, contra a sua vontade, Ling Tan teve que ir à cidade vender uma parte da sua colheita, e agora sentia ainda mais a falta do segundo filho porque, não podendo mandar outra pessoa à cidade, ele mesmo era obrigado a ir.

Esperou, pois, por um dia bem chuvoso e, vestindo o casaco de folhas de cana, colocadas de tal maneira umas sobre as outras que a água escorria por elas como escorre pelas penas do pato, dirigiu-se para as casas compradoras de arroz da cidade. Demorou duas vezes mais do que comumente porque o caminho estava cheio de lama, mas, enfim, a sua vida era preciosa e pouco importava o tempo. Foi um dia triste. Desde que as vira pela última vez, as ruínas da cidade haviam aumentado consideravelmente e todas as pessoas ricas e as que tornam um lugar agradável, tinham partido, só tendo permanecido aqueles para quem era até doloroso olhar.

E, apesar de tudo, ainda havia qualquer coisa de heróico sobre a cidade, pois os que tinham permanecido não se queixavam nem falavam de fuga. Quando Ling Tan se dirigiu aos mercados de arroz, ainda que a metade estivesse revirada, os negociantes regateavam com ele, e não diziam outra coisa senão que permaneceriam ali acontecesse o que acontecesse, pois o povo tinha que comer e o que poderia comer senão arroz? E, mesmo assim, quando Ling Tan pediu um preço mais elevado do que do costume, pagaram-lhe, e isso já era um bem que resultava destes tempos maus. Foi para casa, contente, com o bolso cheio de prata que eles haviam depositado sob a sua promessa de trazer o arroz.

Contudo, todas as notícias que ouvia não eram boas e a pior de todas foi a de que os estrangeiros brancos estavam deixando a cidade. Ora, Ling Tan não conhecia nenhum desses estrangeiros, mas tinha vivido durante muitos outros tempos ruins, ainda que muito melhores que este, e sabia que estrangeiros deixando uma cidade é o mesmo que ratos deixando um navio. Assim, quando ele começou a ouvir, aqui e ali, que os estrangeiros estavam partindo, pressentiu que o pior se aproximava.

— Nem todos irão embora, — afirmou Wu Lien nessa noite, quando Ling Tan lhe contou. — Há sempre dois, três, ou dez, que ficam, porque não têm casa em parte alguma, mas os outros partem e isso é ruim de qualquer forma, porque eles têm meios de saber o que acontece pelo mundo. Sabem as notícias todas, mesmo quando não sabemos nada.

— Qual é a mágica? — perguntou Orquídea.

— Eles pegam as notícias no ar, fazendo as palavras correrem por fios, — explicou Wu Lien, deixando Orquídea de boca aberta.

— Eu espero nunca ver um estrangeiro, — gritou ela, — porque, se eu visse um, havia de ficar com tanto medo que morreria na frente dele.

Mas Wu Lien desdenhou essa ignorância.

— Eles foram à minha loja duas ou três vezes, — disse, — foram comprar coisas estrangeiras, pagaram seu dinheiro. A única coisa diferente era o cheiro e a cor.

— Eles falavam? — perguntou Orquídea.

— Falavam, mas muito mal. Como as crianças, — disse Wu Lien, tolerante com a ignorância da mulher.

— Mesmo assim eu não gostaria de vê-los, — afirmou Orquídea.

— Bem, você não precisa, — tornou Wu Lien, então se voltando para Ling Tan. — Seja o que for que esteja para vir, é melhor que venha logo. Eu julgo que assim que a cidade cair, se deve cair, ao menos não haverá mais esses barcos voadores e eu poderei voltar e começar com a minha loja outra vez.

Ling Tan não disse o que tinha em mente, isto é, que muitos negociantes tinham suas lojas abertas mesmo agora, e por que então não voltava ele? Sabia que há homens que nascem com pouca coragem e outros com muita, mas se Wu Lien nascera com pouca coragem, isso não era coisa que pudesse ser percebida num homem antes de ser atacado pelo perigo.

— Não demorará muito agora, — disse ele cortesmente. — Assim, fique aqui até que a coisa venha.

Nesses dias, a todos que passavam por perto, Ling Tan dizia:

— Eu tenho um filho com sua mulher nesses lugares para onde vocês vão, um jovem alto, e vocês poderão conhecê-lo porque seus olhos são muito pretos, brilhantes e sua esposa é quase tão alta quanto ele e está para ter uma criança. Quando vocês os virem digam-lhes que nós ainda estamos vivos e que tudo continua tão bem como sempre.

Muitas eram as pessoas que prometiam a Ling Tan cuidar de seu filho e da mulher dele, e Ling Tan esperava que alguém pudesse voltar e trazer-lhe uma palavra daqueles dois; mas ninguém voltava.

O décimo mês desse ano chegou. Se o décimo ou o nono mês eram melhores para se viver, quem poderia dizer? Os patos brancos atravessaram os campos, como sempre faziam quando o outono chegava, procurando os grãos que sobraram da colheita. O céu no alto estava azul e, na encosta das montanhas, a grama comprida começou a avermelhar ficando seca, pronta para a sega. Ling Tan e todos da casa que podiam saíram para cortá-la para o inverno. Todos exceto Wu Lien mais uma vez, que não era capaz de segurar uma foice. Ling Tan ordenou à filha mais velha que ficasse em casa tomando o lugar da sua mãe, porque Ling Sao era tão boa numa foice quanto ele próprio. Dias seguidos trabalharam no capinzal cortando-o e depois amarrando-o todo em grandes molhos. À tarde desciam, escondidos completamente pelos molhos que carregavam e os empilhavam de encontro à casa. Comida eles já tinham, agora combustível, e Ling Tan pensou: "Venha o que vier, eu posso alimentar minha família."

No décimo dia do décimo mês eles descansaram porque era um dia de festa, uns poucos estudantes vieram ao campo, mas só uns poucos, e Ling Tan ficou espantado porque nesse dia, anos seguidos, os estudantes costumavam vir em nuvens, como gafanhotos, e nas ruas e casas de chá da cidade costumavam pregar ao povo o que devia fazer e que todos deviam aprender a ler, ensinando-o a lavar-se todos os dias e a matar moscas e mosquitos e quando um tivesse varíola os outros não deviam se aproximar. "Então deixaremos os doentes morrerem?" Ling Sao perguntara uma vez, ao ouvir isto. A gente do campo ouvia e ria de todos os estudantes e acreditavam ou não neles porque tais estudantes eram muito jovens e o que sabiam não era coisa experimentada por pais e filhos. Mas, no décimo dia do décimo mês deste ano, poucos eram os estudantes que vieram e na verdade apenas dois estudantes vieram à vila de Ling Tan, e o que eles pregaram não era o que pregavam nos anos anteriores.

Eram rapazes magros, amarelos de tanto lerem livros, tinham cabelos compridos, usavam óculos estrangeiros, casacos e calças azuis, de estudantes, e pareciam com pressa de partir.

— Homens da cidade, — disseram eles, — nossos irmãos mais velhos, ouvi o que temos a falar-vos. O inimigo aproxima-se e todos vós deveis saber o que acontecerá quando ele chegar aqui. Não espereis uma paz que não haverá. Eles governarão sobre vós, farão de vós seus escravos, enfraquecer-vos-ão com ópio e tomarão tudo que tiverdes. Onde eles têm passado, têm assaltado as casas, roubado os celeiros e violado muitas mulheres.

Ora, Ling Tan vinha errando pelas ruas, pois estava ocioso e, como fazia um belo dia e o ar estava muito fresco, tinha ido até à loja para ver se havia saltimbancos, como sempre havia nos dias de festa dos outros anos. Mas não encontrou nenhum deles, só os dois jovens pálidos; assim, sentou-se para ouvi-los. Havia muitas outras pessoas lá e, entre elas, seu primo em terceiro grau com a mulher e o filho único que tinha gostado de Jade.

— Os soldados sempre fazem isso, — gritou Ling Tan quando o jovem acabou de falar, — e, quanto ao ópio, no tempo do meu avô, os magistrados da nossa própria cidade compeliam os homens a plantá-lo, pela taxa que eles tinham sobre isso.

O que Ling Tan disse irritou os jovens, que responderam:

— Mas é pior quando é o inimigo quem faz essas coisas conosco.

Então o primo em terceiro grau gritou na aglomeração:

— Eu vi um inimigo há muito tempo: tinha cabelos e olhos iguais aos nossos, uma pele também da cor da nossa, e, a não ser porque ele era pequeno e tinha pernas tortas, era muito parecido conosco e, se pudesse falar como falamos, passaria muito bem por um de nós, muito mais mesmo do que os estrangeiros brancos que têm semelhança com o demônio.

Por uma razão que ninguém pôde compreender, isso irritou ainda mais os dois jovens, que se entreolharam.

— De que vale estarmos gastando o fôlego com uns estúpidos desses? — perguntou um ao outro. — Eles não sabem o que é amar o seu país. Se podem comer e dormir é o bastante, e estão pouco se importando com quem os governa.

Agora era a ocasião de os homens da vila se tornarem irritados e Ling Tan foi o primeiro.

— Nós nunca fomos bem servidos por nossos próprios governadores, — gritou. — Eles nos têm taxado e comido as nossas carnes, também; que diferença faz para um homem ser comido por tigres ou por leões, se tem que ser comido?

Assim falando agachou-se e, apanhando um torrão de terra, atirou-o sobre os jovens estudantes. Quando os outros viram isto fizeram a mesma coisa e, assim apedrejados, os jovens correram tão depressa quanto podiam e foi a última coisa que Ling Tan soube de estudantes durante muitos dias e meses; e assim passou-se aquele dia de festa.

À tarde, Ling Sao matou uma galinha para marcar o dia, aproveitou o sangue para fazer um pudim, as crianças o comeram quanto quiseram, durante a noite duas delas ficaram doentes e, na manhã seguinte, Ling Tan estava contente de que fosse um dia comum em que podia trabalhar em vez de ficar sem fazer nada.

Mas ele pensou muito naquilo de que os estudantes os tinham acusado: de não amar o seu país. Estes eram os dias em que ele arava o campo para plantar o trigo do inverno e, à medida que arava, olhava os sulcos da terra escura. "Eu não amo esta terra?" pensava ele. "E esta terra não é meu país? Os jovens abandonaram a terra e foram embora para salvar-se, como meu filho e Jade, mas eu amo muito o meu campo para deixá-lo. Ainda que eu morra ficarei com ele: poderá um homem amar melhor o seu país?" Mas a ninguém ele diria o que pensava, pois mesmo a sua mulher não era capaz de compreender tais pensamentos. Havia coisas que Ling Sao compreendia e sobre as quais podia falar com ela, mas não eram esses pensamentos profundos que ele tinha de vez em quando. Pensava-os, avaliava-os, guardava-os para si mesmo e nunca mais os esquecia.

De acordo com a sua promessa, em todos os dias chuvosos Ling Tan levava para a cidade uma carga do seu arroz e um dia, para levar mais, os dois filhos foram com ele e ouviram na cidade, a cada respiração, as más notícias de que o inimigo vinha trazendo tudo de vencida e agora avançava diretamente sobre esta região, e eles ouviram isso primeiro dos negociantes da casa de arroz na qual tinham ido vender.

Esses ricos negociantes, seis irmãos cujos pais e tios haviam possuído a loja antes deles, eram homens graves e bons, cuja palavra devia ser respeitada.

— Eu não sei quem comerá este arroz, — disse o mais velho enquanto media o cereal de Ling Tan, — porque pode acontecer que o inimigo chegue aqui antes que possamos vendê-lo. Fomos vencidos na costa e agora devemos todos saber o nosso destino. Nossos governadores se foram e a capital, que era aqui, mudou-se para o interior.

Nesse dia tudo era confusão na loja porque os seis irmãos haviam decidido, em respeito aos seus ancestrais, que não deviam permanecer juntos, pois se todos seis morressem não ficaria nenhum para preservar o nome. Assim decidiram ir dois para o oeste, dois para o sul e somente dois, o mais velho e o mais moço, permaneceriam ali. A loja estava cheia de trouxas, pacotes, mulheres ansiosas e crianças chorando, e os seis irmãos estavam emocionados, pois quem sabia se iriam ou não tornar a se encontrar? Ninguém sabia seu destino em tempos como este, e Ling Tan e seus filhos ficaram esperando para terem o arroz medido e o dinheiro nas mãos. E todo o tempo que permaneceram lá ficaram observando, havendo nos seus corações mais medo do que nunca. O que seria este inimigo na verdade e o que iria acontecer a quem ficasse para trás? Seria melhor permanecer ou fugir?

Nenhuma palavra eles murmuraram nesse dia até que todo o arroz estivesse medido, e com o dinheiro nas mãos Ling Tan perguntou:

— Para quando devemos esperar o inimigo?

— Em menos de um mês, se eles não forem impedidos de qualquer maneira, — respondeu o comerciante mais velho.

— E os nossos governantes não vão impedir sua chegada? — voltou Ling Tan a perguntar.

— O inimigo tem armas que nós não temos, — respondeu o comerciante. — Enquanto nós ficamos construindo todas essas escolas e estradas novas em toda parte, o inimigo estava fazendo grandes canhões e barcos para o mar e para o ar. E com que podemos nós lutar contra eles senão com os nossos corpos?

Ling Tan não respondeu, guiou os filhos para casa através do ar frio do ano que findava e durante todo o caminho ficou refletindo no que lhe dissera o comerciante. Sim, seus maiores ensinavam que nenhum homem de bem seria um soldado, que o homem belicoso era o menor dos homens, que não devia ser respeitado, e todos tinham acreditado nisso.

"E eu ainda acredito", pensou Ling Tan consigo mesmo. "É melhor viver do que morrer, a paz é melhor do que a guerra, e ainda que muita gente abjure isso, como os ladrões, por exemplo, a verdade permanece o que ela é."

Mas nesse dia, ele começou a experimentar a força da sua porta, a resistência das taramelas, tapou os buracos das paredes, fechou uma janelinha da cozinha que dava para fora e determinou que, quando o inimigo viesse, poria toda a família para dentro de casa e seria o único a se mostrar, se alguém fosse obrigado a chegar à porta. Ele tinha, agora, uma nova e profunda espécie de medo do desconhecido e nunca os dias foram tão preciosos como esses poucos que precederam a aproximação do inimigo. Ele contava todas as horas como um homem conta as últimas horas da sua vida e via, mais claramente do que nunca, a beleza dos montes e a preciosidade da sua terra. Mesmo os rostos das pessoas da casa eram mais preciosos para ele do que sempre haviam sido, e comprou um casaco novo de seda azul para Pansiao e para Ling Sao comprou algum algodão branco, fino, que o tear da casa não podia tecer. Aos filhos deu dez dólares de prata a cada um, e a cada um dos netos uma moeda de prata, e para a filha mais velha um pedaço de linho. Ninguém sabia o que fazer desses presentes fora de tempo, mas ele queria fazê-los sentir sua boa vontade, nestes últimos dias de paz.

— Agora eu posso fazer isto por vocês, — disse ele, ante a surpresa de todos. — Mas não posso dizer se continuarei a ser capaz de tais lembranças a vocês.

Eles receberam os presentes com alegria mas não se sentiam bem, apesar de tudo, como se lhes parecesse que, de algum modo, Ling Tan se sentisse próximo da morte.

— Você está bem? — perguntou-lhe a mulher, nessa noite, ansiosamente. — Parece-me que ultimamente não come com tanta vontade como comia; acho que há alguma coisa diferente em você.

— Eu não estou mudado, — disse ele com gravidade. — Eu nunca mudarei. Continuarei a ser o homem que sou até morrer, e não morrerei cedo.

Mas disse isso tão estranhamente que Ling Sao olhou-o, admirada, pronta para dizer alguma coisa, mas fechou a boca. Sabia que ele era um homem que sabia o que e porque fazia, e diante de um homem assim uma mulher deve guardar silêncio, pois que tudo estará bem para ela.

 

Logo no começo do décimo primeiro mês o inimigo foi visto perto da cidade. Quando o dia estava calmo e Ling Tan levantava a cabeça enquanto trabalhava, podia ouvir, como um gemido distante, o som da batalha. Algumas vezes um estrondo partia do oriente e ninguém sabia o que era, até que alguns dos que voltavam da cidade disseram que eram os enormes canhões estrangeiros que o inimigo trazia.

Cessara a torrente dos que fugiam. Todos que podiam partir haviam partido, ficando somente aqueles que deviam permanecer, acontecesse o que acontecesse. Ling Tan se ocupava o dia inteiro com o trabalho do inverno e, à noite, sentava-se durante muito tempo, para fazer sandálias das longas palhas de arroz. Caía uma neve rala, e sob ela crescia o trigo de outono, verdejando, mas, dentro em pouco, a neve deixava de cair, e os dias se sucediam aos dias, cada um trazendo consigo piores notícias.

No sétimo dia desse mês, o último dos governadores partiu. Um exército fora deixado na cidade para combater o inimigo quando este chegasse, mas que exército poderia ser bravo quando seus dirigentes fugiam? Ao ouvir a notícia o povo gemeu e, num raio de vinte milhas da cidade, os aldeões se armaram com facões e espadas velhas que os seus pais lhes haviam deixado e até mesmo ancinhos e velhas armas de fogo que eles tinham comprado, havia tempos, no mercado dos ladrões, para usar na época em que os bandidos eram muitos. Todos se aprontaram, primeiro para a defesa contra os seus próprios exércitos que se retiravam, pois bem sabiam que os soldados, seja qual for a sua bandeira, pilham tudo que vêem na hora da retirada, e também sabiam que não passariam pelo mesmo caminho outra vez e tudo que fizessem seria lançado sobre outros. Ling Tan armou-se com uma espada velha, larga, que pertencera ao seu bisavô. Durante duas gerações ela ficara no fundo de uma mala de pele de porco, mas agora Ling Tan tirou-a de lá, e sua mulher poliu-a. Ele vibrou-a algumas vezes, descobrindo que podia usá-la como uma foice e pendurou-a num prego perto da porta, pronta para ser usada. Assim passou-se meio mês e todos sabiam que cada dia podia ser o último de liberdade, e aprenderam a medir o tempo da chegada do inimigo pela crescente clareza dos sons da batalha. Os estampidos dos grandes canhões estavam tão próximos agora que, algumas vezes, os pratos tremiam na mesa e as crianças se punham a chorar. Nos poucos dias restantes chegaram, pelos aldeões que moravam mais próximo da cidade, as notícias que Ling Tan já ouvira. Por uma coisa Ling Tan e os seus estavam contentes: a sua vila distava mais de três milhas da cidade. Dentro de duas ou três milhas os soldados defensores haviam queimado o casario dos lugarejos para evitar o saque do inimigo. E agora bandos de lavradores e suas famílias passavam, com suas coisas às costas, como se aquele fosse um ano de fome, e caminhavam todos com pressa, para o interior. Quando Ling Tan lhes perguntou o porquê daquilo eles responderam:

— Nossas casas e lavouras foram queimadas. Nossos campos são, agora, apenas terra queimada e por que haveremos de ficar para sermos mortos pelo inimigo?

E retomaram, às pressas, a caminhada.

Nesse dia, com o fragor da batalha trovej ando nos seus ouvidos, Ling Tan saiu e olhou o campo. Teria que queimar sua terra também? Mas para onde iria, com uma família de tantas mulheres e crianças pequenas? E como as havia de alimentar se queimasse a sua plantação de arroz e capim? E, acima de tudo, não tinha desejo de deixar esta terra.

— Se eu pudesse enrolar os campos e levá-los comigo, — disse ele à esposa nessa noite, — eu iria. Mas os meus campos vão muito abaixo da superfície, entram pelas entranhas do solo e eu não vou abandoná-los. Ficarei aqui, venha o que vier, e manterei a minha terra.

— Então eu ficarei com você — disse Ling Sao.

Os dias se passavam e, como os governadores tinham partido, todos se tornavam mais resolutos, sabendo que eles e só eles haviam ficado para se opor ao inimigo, e era de cada um deles que dependia agora o que iria acontecer. Assim havia acontecido muitas vezes, em outros tempos, porque os governadores de toda parte são sempre os primeiros a fugir, e é o povo quem deve permanecer resoluto atrás deles. E, hora a hora, o rumor da batalha se tornava mais forte.

No décimo dia desse mês, com o vento soprando na campanha, foi sabido que, em três dias, o inimigo chegaria. Contudo, Ling Tan ainda tinha sorte, pois a sua terra ficava no outro extremo da cidade e, dessa maneira, o inimigo não chegaria lá primeiro para depois entrar na cidade, poderia era marchar sobre ela vindo do outro lado, e por isso ele se sentia ainda infeliz e porque também o exército da defesa dispersou-se e fugiu sem lei nem ordem, os soldados apanhando tudo que podiam enquanto corriam, atravessando as vilas selvagemente assustados, ansiosos apenas por estarem longe daqueles lugares. E como os chefes já os tinham deixado, eles não se importavam que aquilo fosse vergonhoso diante do inimigo, contanto que se salvassem.

Contra eles Ling Tan teve que fechar à chave a sua porta e, ainda que houvesse muitos que batessem, ele a tornara tão forte que, na sua pressa, não pensavam em arrombá-la. Quando descobriam que a porta não se abria com facilidade, prosseguiam e caíam sobre outro lugar e, dessa maneira, sua casa estava segura. Mas as ruínas que deixaram nessa vila e em todas as vilas dessa direção eram uma vergonha de se ver, e muitas pessoas gritavam que o inimigo não podia ser pior do que isto, e outros diziam francamente — que desejavam que o inimigo viesse e governasse, pois pelo menos poderia haver ordem. Porque agora ladrões e bandidos brotavam em toda parte como erva má. Quando um homem vendia um pouco da sua colheita e recebia algum dinheiro, esses vagabundos sem lar conseguiam saber como se cheirassem no ar, descendo durante a noite e tomando o que queriam. A todos os outros males se juntava este velho mal.

Wu Lien era um dos que desejavam paz a qualquer preço. Depois que o último exército retirante passou, ele saiu de casa, andou pela rua, para cima e para baixo, e gemeu vendo todas as lojas esvaziadas do que possuíam, a padaria sem pão, e tudo indo e nem um níquel sequer na mão de quem quer que fosse.

— Ninguém diga que pode haver pior do que o que os nossos próprios soldados nos fizeram, — disse ele, e acrescentou quando voltava para casa: — assim que o inimigo ocupar a cidade eu voltarei e abrirei minha loja novamente, porque acredito que estaremos melhor, não pior, com a sua chegada.

— Se você tiver razão, quando eles chegarem, eu direi se você a tem, e tomarei o seu governo para mim também, — respondeu Ling Tan.

Porque quando os soldados em fuga haviam passado pela sua casa Ling Tan tinha subido num canto do telhado onde podia se esconder, olhara para baixo e ficara com tanta raiva diante do que vira, dos olhares desapiedados, selvagens, que eles lançavam, que tudo que pôde fazer foi se segurar para não cair sobre eles, ainda que soubesse que, quando um homem se torna um soldado, volta à besta que foi em alguma outra existência.

Mas houve, afinal, um fim, mesmo para os homens que se retiravam. Nesse tempo silencioso entre a retirada do exército de defesa e a chegada do inimigo, Ling Tan pediu a todos os aldeões para se juntarem, na casa de chá, e lá fizeram uma reunião para decidir como o inimigo devia ser recebido. Sabiam que o tempo era curto.

— Seguramente eles verão que nós somos uma vila indefesa, — disse Ling Tan, — e mesmo um inimigo não cai sobre aqueles que o recebem de boa vontade. Pensemos, pois, em como receber cortesmente os nossos conquistadores. Não para recebê-los falsamente, mas para dizer-lhes que somos homens de razão que podem aceitar o que lhes chega na vida.

Todos concordaram com isto e alguns perguntaram: "Quando de que lugar virá esse inimigo e em que estrada poderemos encontrá-lo?" E outros indagaram: "Como poderemos encontrá-los?" Porque nenhum desses homens havia, antes, visto um conquistador estrangeiro diante de si e ainda que todos esperassem que fossem bons e cada um contasse aos outros as coisas boas que tinha ouvido sobre os estrangeiros, não sabiam o que deveria ser dito, nem qual devia ser o comportamento desses conquistadores para com eles.

Então o velho de noventa anos extraiu da sua velha sabedoria:

— Que maneiras conhecemos senão as nossas próprias? Façamos como faríamos a qualquer gente nova que chegasse à nossa cidade.

Por causa da sua avançada idade todos o escutavam quando e falava ele concordaram em que o que ele dizia era o melhor. Assim ficou planejado que, quando ouvissem o inimigo aproximar-se, sairiam da vila em um bloco, o velho na frente, depois dele os outros, e seria preparado chá, bolinhos, frutas, e desse modo, com honra e decência, a conquista teria lugar. E enquanto planejavam havia alguns que diziam em voz alta que esperavam paz e ordem pelo menos, e que não seria difícil para os conquistadores serem um pouquinho melhores do que alguns dos seus próprios magistrados.

Tudo decidido, o estalajadeiro foi chamado à frente da casa de chá e lhe disseram para ter chá e bolinhos preparados para os próximos dias. Ele afirmou que faria os seus bolinhos de gergelim e, assim, todos partiram para esperar.

E nos próximos dias, enquanto esperavam, houve alguns que foram à cidade comprar bandeirinhas inimigas, para segurar nas mãos quando saíssem para dar as boas-vindas ao inimigo e, para se confortarem, os aldeões diziam uns aos outros que tinham ouvido na cidade, também, que os estrangeiros eram sempre melhores do que o seu próprio povo, e que nos países estrangeiros havia mais lei e ordem do que aqui. E, com terror e esperança, esperavam o dia da chegada do inimigo. Assim surgiu o décimo primeiro dia do décimo primeiro mês. Nessa manhã, ao levantar-se, Ling Tan sabia o que era aquele ia. Todos os sons de batalha tinham cessado. O ar estava parado como nos anos em que o inimigo ainda não havia chegado à costa. Era uma manhã hibernal, e sobre a terra as primeiras geadas brancas se despejavam. Tinha-se levantado cedo porque dormia mal todas as noites e, sozinho, dirigiu-se para a porta, contemplando a longa alvura dos campos. O trigo do outono verdejava sob a neve e ele pensou: "Será que eu cortarei esse trigo ou haverá outro no meu lugar para cortá-lo?" Sobre os telhados das casas da vila, cobertos de palha, a neve começava a derreter-se com o fumo que subia, ondulando vagarosamente, quando as mulheres acendiam o fogo, e, sem responder à sua própria pergunta, entrou em casa onde Ling Sao também acabara de acender o fogo.

Foi à cozinha onde tantas vezes na vida a encontrara e lá estava ela, atrás do fogão.

— Este é o dia que temíamos, — disse ele.

— Sei, — respondeu ela.

Levantou os olhos para ele e Ling Tan viu que estava pronta.

— Não tenho medo de homem, — afirmou ela.

As velhas palavras lhe brotavam dos lábios outra vez, mas Ling Tan sentia, agora, que havia um novo significado nelas.

— Nem eu, — disse surdamente.

Em silêncio se lavou, enxaguou a boca, e foi em silêncio ainda que todos, um por um, saíram e tomaram lugar à mesa. Mesmo as crianças que choravam, riam e brigavam nos outros dias, estavam silenciosas hoje.

Quando todos tinham comido, Ling Tan, como chefe da casa, dirigiu-lhes a palavra:

— Pela calma que vai pelos campos eu sei que a batalha terminou. Nosso exército se retirou e talvez, a esta hora, o inimigo já tenha tomado a cidade. Mas devemos permanecer todos dentro das paredes da nossa própria casa. Nenhum de vocês deve sair sem me dizer, e as mulheres e crianças não sairão por motivo algum. Eu mesmo só trabalharei num lugar onde possa ver todas as estradas e, se avistar um estrangeiro chegando, só eu falarei e nenhum de vocês deverá se mostrar a não ser meu filho mais velho. E assim mesmo no caso de me ver maltratado. E as mulheres, principalmente, não devem mostrar o rosto seja para quem for.

Todos curvaram a cabeça quando ele acabou de falar, e assim, dentro dessas paredes, começou o longo e silencioso dia. As mulheres foram para o trabalho, Wu Lien retirou-se para o quarto, e cada filho tomou sua tarefa de inverno: fazer sandálias e trançar cordas. Só Ling Tan se sentou para fumar seu cachimbo. Seu cérebro não se movia, e depois de alguns momentos percebeu que a razão disso é que ele estava escutando, escutando, apesar de não ouvir nada. Esperou muito tempo e afinal lhe pareceu que era necessário saber o que estava acontecendo, e qual a significação desse grande silêncio. Assim, no meio da manhã, ele abriu a porta. A neve desaparecera dos campos e o sol estava quente. O cão, que ele pusera fora da porta para que desse aviso, se algum estranho se aproximasse, saltou-lhe aos pés, farejando-o e ganindo por comida. Não se via outra qualquer criatura viva. Cada homem tinha-se encurralado atrás das próprias portas, como fizera Ling Tan, e ninguém ia à cidade nem vinha de lá.

Ele se afastou da porta, então, e permaneceu parado, um instante, o cachimbo na mão. Olhou na direção da cidade mas não viu sinal de nenhum grande incêndio. O muro da cidade, alto, circundava aqueles que viviam dentro dela e não se podia ver um sinal do que estariam sofrendo. Mas nem sinal de sofrimento havia. E enquanto ele ficou assim, de pé, outros, que tinham também aberto um pouco as portas das suas casas, viram-se e, vagarosamente, um ou dois, logo seguidos pelos outros, saíram para fora e dentro em pouco havia na rua uns doze ou treze homens que se entreolhavam. Dirigiram-se a Ling Tan:

— Algum de vocês ouviu algo? — perguntou ele.

— Nada, — disseram uns, enquanto outros sacudiram a cabeça.

— Não deveríamos tentar descobrir alguma coisa? — perguntou o filho do primo em terceiro grau.

— Como poderíamos? — perguntou Ling Tan. — Tem coragem suficiente para ir à cidade e ver o que há por lá? Você é o único aqui sem mulher e filhos em que pensar.

— Eu irei, — disse o jovem. — Não tenho medo, — e sacudiu para trás uma madeixa do comprido cabelo negro, que lhe caía sobre os olhos.

— Peça ao seu pai primeiro, — disse Ling Tan. — Não quero ter a culpa da sua ida se algum mal lhe acontecer.

— Meu pai deixa que eu dirija a mim mesmo, — respondeu o jovem teimosamente.

E para provar o que dizia, saiu naquele mesmo momento, como estava, enquanto os outros, de pé, o viam sozinho caminhar pela longa estrada deserta, em direção à cidade.

— Estou contente de que não seja o meu próprio filho, — disse um, e todos os outros concordaram com ele.

Então, porque não houvesse nada mais a dizer, eles se separaram, cada um voltando à sua própria casa e fechando a porta outra vez. Assim fez Ling Tan também, e logo as horas correram, chegou o meio-dia, e a tarde. Em todas essas horas havia silêncio pesado, exceto algumas vezes em que o canhão rugia ao longe.

Lá pelo meio da tarde, Ling Sao estava cansada e as crianças, que tinham ficado quietas durante o dia todo, não mais se contiveram e, aborrecidas, choravam, querendo ir brincar no quintal, e Wu Lien, a quem Ling Tan tinha relatado a ida do primo à cidade, começou a querer sair de casa. Mas Ling Tan tinha medo de permitir porque ele parecia um homem rico, e um inimigo que o visse pensaria que devia haver comida e bens numa casa da qual saía um homem assim.

— Se houver muitos dias como este não agüentaremos, — disse Ling Sao.

E então Ling Tan resolveu abrir um pouco a porta. E viu que havia muitas casas como a sua agora. Alguns meninos brincavam na rua, havia algumas portas entreabertas e uma ou duas lojas abertas. Quando viu que tudo estava assim calmo, Ling Tan gritou para dentro de casa:

— Quem quiser sair para o quintal pode sair. Mas não se afastem muito, de modo que eu os possa mandar entrar depressa se houver necessidade de fechar a porta.

Saíram contentes, olhando em torno, todos muito espantados porque tudo continuava no mesmo.

— Eu jurava que encontraria até a cor da terra diferente, — disse Orquídea rindo.

O próprio Ling Tan olhava cuidadosamente para toda parte, mas não viu nenhum estranho, nada de novo. E, uma vez que a tarde estava tão serena, pensou em ir à casa do primo para saber se ele ouvira alguma coisa sobre o filho. Desceu a rua e nas poucas portas abertas homens o chamavam, e um ou dois riam e diziam:

— Se é assim que o inimigo nos ataca, nós agüentaremos. E outro disse:

— Eles nos deixam entregues a nós mesmos, esses inimigos! Ling Tan concordou e continuou em direção à casa do primo.

Lá encontrou a mulher do primo toda desesperada porque seu filho ainda não voltara para casa, pois tinha sopa quente e detestava desperdiçar combustível, mas se ele não vinha não havia jeito senão esperar. Ela não parecia se importar com qualquer outra coisa que não fosse o desperdício de combustível, e assim Ling Tan lhe disse que se acalmasse porque talvez o seu filho preferisse voltar para casa durante a noite. O primo já tinha comido e se sentara palitando os dentes enquanto lia um jornal velho que guardara para si.

— Aqui diz que o inimigo lançou uma porção de escritos dos seus barcos voadores dizendo a nós todos para permanecermos sem medo, porque só trazem ordem e paz, — disse ele.

— Se isso é verdade, então eles são bons de fato, — replicou Ling Tan. — Certamente que hoje foi um dia bastante calmo.

De alguma forma as suas próprias palavras lhe trouxeram conforto, e quando o coração repousou sentiu subitamente que estava cansado. Bocejou, lembrando-se de como tinha dormido mal. Ora, o dia que ele tanto temera tinha passado e todos estavam vivos. Não tinha visto nem sombra de um inimigo e sentia que, no fundo do peito, o seu coração se aliviava.

— Acho que vou dormir, — disse ao primo. — Vou para casa, mas se o seu filho chegar, faça-me saber.

— Pois não, — o primo prometeu e se levantou um momento, por cortesia, enquanto Ling Tan se retirava, mas seus olhos continuavam fixos no que lia, porque ele era um homem que prezava mais o que via impresso num jornal do que tudo que uma boca humana pudesse dizer.

Na outra vez em que Ling Tan deu uma olhadela fora da porta, já era noitinha. Ele tinha comido, todos da casa tinham comido, as crianças estavam nas suas camas e ele próprio ia dormir, mas prometera a Ling Sao que olharia para fora uma vez mais antes de se deitar. Quando abriu a porta julgou ouvir um gemido. Escutou e percebeu que era realmente um gemido. Seu coração se encheu de pavor. Estava a ponto de fechar a porta e lhe passar a chave rapidamente, não sabendo se o que ouvira era um ser humano ou alma do outro mundo, quando uma voz chamou, fracamente:

— Primo!

Deixou a porta aberta e gritou para que Ling Sao trouxesse o lampião, e quando ela apareceu os dois saíram e, caído no chão, encontraram o filho do primo em terceiro grau, que resolvera teimosamente ir à cidade essa manhã.

Ling Tan não o teria reconhecido se ele não tivesse o que ninguém mais na vila possuía: um casaco curto, de cetim vermelho, sem mangas, que usava todos os dias porque gostava muito dele. Tinha-o comprado numa loja de roupas velhas no último ano-bom. Ling Tan reconhecia agora aquele cetim vermelho mas o seu brilho desaparecera.

— Oh! minha mãe! Como ele está sangrando, — gritou Ling Sao.

E dando o lampião a Ling Tan ia virar o homem quando o marido a deteve.

— Não o toque, — disse ele, — senão seus pais dirão que nós pioramos o estado dele. Segure o lampião que eu corro a chamá-los.

Entregou-lhe o lampião de volta e correu pela rua escura em direção à casa do primo em terceiro grau. Bateu fortemente, com ambas as mãos, na porta fechada; o cachorro, de dentro, auxiliava-o latindo, e logo ouviu a voz da mulher do primo perguntando quem estava ali.

— Sou eu, Ling Tan, — respondeu, — e o seu filho voltou ferido, mas como, não sabemos. Caiu na nossa porta porque foi a primeira que encontrou e está lá. Nós não o tocamos.

A mulher deu um grito enorme chamando o marido, e o homem despertou cambaleando; jogando o casaco em cima do corpo, abriu a porta que a mulher, na sua precipitação, esquecera de abrir, e todos desceram a rua juntos, o cachorro atrás deles, para o lugar em que Ling Sao ficara segurando o lampião. Agora o barulho já acordara os filhos de Ling Tan, outras pessoas saíam também das suas casas e, em pouco, havia uma aglomeração em torno do rapaz mas ninguém o tocou antes que seus pais chegassem. O pai ficou aterrorizado quando o viu, mas a mãe curvou-se, virou-o, e, julgando-o morto, soltou um grito.

Sob a luz vacilante jazia a face do rapaz, pálida e quieta.

— Quem o feriu, meu filho? — perguntou-lhe a mãe ao ouvido, sem que ouvisse. — Oh! o seu casaco de cetim vermelho foi roubado e ele vai sentir muito isso! — gemeu ela.

E então enxotou com a mão o cachorro que os seguira e cheirava o sangue que escorria, querendo prová-lo. E o pai ficou tão zangado que lhe deu um ponta-pé violento.

— Eu alimento você, — berrou para o animal, — e você quer beber o sangue do meu próprio filho!

E amaldiçoou o cão. Mas gemidos e maldições não reanimavam o rapaz, e Ling Tan disse:

— Devemos levá-lo para a cama e chamar um médico para que veja se a ferida é muito profunda.

Disse isso gentilmente e com toda a bondade do seu coração, mas a mãe voltou-se para ele e o amaldiçoou acremente:

— Sim, mas foi você quem o mandou à cidade esta manhã, tal como ouvi falar. Ele não teria ido lá sozinho e saiu de casa sem pensar nisso, mas você falou e...

Ling Tan tratou de se defender, então, e olhou em torno para os seus vizinhos e filhos lhes pedindo que servissem como suas testemunhas.

— Eu não disse ao filho do meu primo que o aconselhava a não ir, e não lhe perguntei se ia por sua própria vontade?

— Isso mesmo, — exclamaram todos em defesa dele. Assim a mulher calou-se.

Mas Ling Tan perdoou-a porque sabia que era o medo que a fazia raivosa; curvou-se, levantou a cabeça do rapaz, 'ordenou ao primo que o pegasse pelos pés, a mãe amparou-o pela cintura e, assim, eles o carregaram até à casa, puseram-no na cama e o cobriram. Onde podiam eles arranjar um médico? Só na cidade havia médicos, se é que eles não tinham fugido, e quem ousaria ir lá vendo como voltara este jovem? Ninguém ousou e todos se dirigiram para casa, exceto Ling Tan que, com o primo e a mulher do primo, permaneceu junto ao leito do rapaz.

Ora, Ling Tan acreditava que o jovem não estava morto, mas simplesmente ferido, desacordado devido à perda de sangue: ainda que tivesse os pés e as mãos frias, o corpo estava quente junto ao coração. Assim pediu ao primo um pouco de vinho quente e o entornou na boca do rapaz, e ainda que não ouvisse o gorgolejo percebeu que o vinho desaparecera logo; entornou mais e esse mais desapareceu. Durante todo o tempo em que ele fazia isso a mulher do primo reprovava a si mesma e a todos eles. E dela transparecia uma amargura que Ling Tan não suspeitara pudesse se esconder naquele corpo.

— Ele nunca mais tornou a ser o mesmo desde que você nos pagou para que deixássemos o seu filho ter Jade, — lamentou ela. Sempre, desde então, não mais se importou se vivia ou morria. Nós não devíamos tê-lo ouvido e você não devia nos ter pedido nada, tentando-nos com a sua prata. Somos mais pobres do que você e nos era difícil recusar a prata.

Isso fê-lo ficar zangado, porque em outros tempos havia feito muito por esse seu primo que lia livros ao invés de tratar de ganhar sua própria comida, e em muitos invernos Ling Tan tinha mandado um dos seus filhos ali com uma trouxa de palha para o fogo, uma medida cheia de arroz e uma couve ou duas. Assim depôs a taça de vinho na mesa e disse:

— Maldito seja eu se jamais der alguma coisa a alguém outra vez. Porque parece que o meio mais seguro de tornar-se odiado é alimentar a quem tem fome, ou emprestar a quem é mais pobre do que nós. Como é que você pode ser tão grosseira comigo simplesmente porque eu a auxiliei em alguma coisa, não perguntarei nem me importa.

Essa briga fez com que o primo ficasse atônito, porque ele nunca perguntara donde vinha sua comida ou combustível, desde que o deixavam com seu livro. Dessa maneira ele se dirigiu à esposa:

— Por que você aborrece um homem como este?

Com isso a raiva dela se voltou contra ele e gritou-lhe que era menos do que um homem, e que desejaria ser uma viúva pois sentaria e abanaria a campa dele noite e dia até que secasse, que ela então poderia se casar com um homem melhor.

Toda essa barulheira acordou o rapaz do seu desmaio e, no meio da fúria, abriu os olhos e falou.

— Papai! — disse ele.

Todos pararam quando escutaram a voz fraca que vinha da cama e, no momento em que o viram com vida, toda a raiva desapareceu.

— Oh! meu filho, diga à sua mãe como você foi ferido! — gritou a mulher correndo para o seu lado.

O jovem tentou contar-lhes, mas para escutar eles tiveram que dobrar-se e juntar os pedaços das suas palavras quebradas. E o que eles ouviram foi que ele, apanhado com outros, tinha sido jogado de encontro a um muro onde atiraram em cima deles. Foram deixados como mortos. Mas ele não estava morto e à noite, engatinhando, tinha ido parar numa rua onde um rico budista, que escapava da cidade nesse momento, penalizou-se dele e pô-lo na sua carroça, deixando-o perto da vila. Mas, quando o rapaz engatinhou a distância que o separava da casa de Ling Tan, perdeu os sentidos outra vez e não se lembrou de mais nada até aquele momento.

— Por que haveriam de matá-lo? — perguntou Ling Tan espantado.

— Nós corremos, — gemeu o jovem. — Tão horrorosos são os seus soldados que eu corri com os outros, e todos que correm são mortos.

Os mais velhos entreolharam-se sem perceber nada daquilo. Por que se havia de atirar em pessoas inocentes somente por estarem amedrontadas?

Nesse momento as primeiras luzes da madrugada penetraram no pequeno quarto e o rapaz gemeu que o seu peito doía no lugar em que estava a ferida. E quando eles o tocaram gritou de dor e perdeu os sentidos outra vez. E nada mais tinham a fazer do que cobri-lo e deixá-lo deitado.

Assim continuava ele quando a madrugada surgiu. Ling Tan achou que devia voltar para a sua própria casa e os deixou.

Era uma estranha aurora, cinzenta, e pareceu ainda mais estranha a Ling Tan pelo que viu quando se dirigia para casa. Porque, à distância, olhando em direção da cidade, parecia-lhe como se a própria terra estivesse se movendo. Ficou parado, espantado, e então percebeu que era muita gente a pé, saindo pelas portas da cidade, em direção à sua vila. Olhou só um instante e logo entrou em casa, fechou a porta e passou-lhe a chave.

— Onde está você? — gritou para Ling Sao.

E ao som da sua voz ela acorreu. Estivera penteando o cabelo e, prendendo na boca uma grande mecha enquanto apertava o laço vermelho que o segurava no pescoço, não podia falar.

No seu terror Ling Tan arrancou-lhe o cabelo da boca.

— O inimigo vem vindo, — arfou. — Mande que todos se levantem, vistam-se e estejam prontos para o que der e vier.

Correu para fora de casa e, em dúvida, não tendo outra coisa para fazer senão o que haviam planejado, acordou os homens da vila e ordenou ao velho de noventa anos que se vestisse com as melhores roupas que tinha, e ao seu primo que pusesse as roupas de letrado. Despertou o dono da casa de chá e ordenou-lhe que pusesse os seus caldeirões a ferver para o chá, os seus bolos sobre a mesa, e dentro de alguns minutos estavam todos de pé, na rua, tremendo na névoa fria dessa manhã invernosa. Por alguma razão que Ling Tan não era capaz de descobrir, as lágrimas encheram os seus olhos à vista desses punhados de homens postos nas suas melhores roupas, o velho encurvado à frente, todos com bandeirinhas na mão, saindo para encontrar o conquistador que nunca tinham visto. O seu coração se entristecia, mas que poderia fazer senão acompanhá-los?

Lá embaixo, na estrada, no meio da neblina, eles podiam ver agora as formas estranhas, gigantescas.

— Vamos, — disse.

E caminhou vagarosamente ao lado do velho. E eles foram pela rua calçada da aldeia até à última casa, onde começavam os campos, parando ali, agitando as bandeirolas.

Mas as formas estranhas e gigantescas caminharam na sua direção, como se eles fossem formigas e, para se salvarem, tiveram que se afastar e deixá-las passar. Agora Ling Tan e seus companheiros viam que essas formas eram máquinas e como podiam apenas ficar de lado, de boca aberta, esperando, enquanto as máquinas passavam através da vila e continuavam.

Enquanto uns aos outros perguntaram: "Isto é o inimigo?". Ninguém havia visto antes máquinas como essas, girando sobre as suas rodas enquanto caminhavam. Mas quem poderia saber?

Esperaram mais algum tempo com aquela nuvem fria em torno deles, discutindo se deviam voltar para as suas casas, quando ouviram o som de pés caminhando e viram formas confusas de homens se movendo. Perceberam logo que eram os inimigos reais. Aglomeraram-se na estrada, esperando, e quando os chefes do inimigo se aproximaram, eles os saudaram; o velho tirou seu chapéu e o vento gelado soprou no seu crânio nu. E erguendo a sua voz velha e sibilante começou a dizer as poucas palavras de boas-vindas que decorara:

— Amigos e conquistadores... — começou.

Mas o coração entristeceu-o e ele não pôde prosseguir. Os rostos desses chefes não eram bons. Eram rostos ferozes, selvagens e sobre eles se desenhavam, agora, sorrisos que não eram naturais.

Quando Ling Tan viu o velho fracassar, tomou o seu lugar rapidamente, dando um passo para diante.

— Senhores, — disse, — somos simples plantadores, um ou dois pequenos comerciantes, e o meu primo que é letrado. Somos homens de paz e razão e de bom grado damos as boas-vindas à paz e à ordem. Senhores, não temos armas mas lhes preparamos bolos e chá.

Nesse ponto um dos inimigos exclamou:

— Onde é a taberna de vocês?

Ling Tan quase não compreendeu o que esse inimigo dizia, tão quebradas e guturais eram as palavras.

— No meio da rua da nossa vila, — disse. — É uma vila pobre porque nós somos homens pobres.

— Leve-nos lá, — disse o inimigo.

O coração de Ling Tan apertou-se outra vez. Não gostava dos olhares dos inimigos quando saíram da neblina e se aproximaram dele, mas que poderia ele e os outros aldeões fazer senão seguir em frente? Ao seu lado o velho coxeava, tão depressa quanto podia, mas não era muito rápido e o inimigo fustigou-o com uma faca. Ele gritou, pondo-se a soluçar de dor e surpresa porque jamais houvera alguém na vila duro para com esse velho. Voltou-se para Ling Tan.

— Estou ferido! — gritou de uma maneira que dava pena. Ling Tan voltou-se para protestar contra o inimigo que tinha ferido o ancião, mas o que viu na face daqueles homens atrás dele deixou-lhe a boca seca e prosseguiu, passando apenas o braço em torno do velho que chorava. Chegaram à sua porta e ele pôs o homem dentro de casa, recomendando ao filho para entrar também e cuidar dele. Assim, sem os dois, chegaram à casa de chá, onde o estalajadeiro tinha aprontado o chá e os bolos. Seus dois filhos haviam ficado ali para ajudar e traziam no rosto um sorriso.

Mas os inimigos entraram na casa de chá como uma horda de selvagens e se sentaram às mesas. Agora Ling Tan e todos os aldeões sabiam que nada era bom com esses homens, seus conquistadores, e, assim, ele e os companheiros ficaram junto à porta dos fundos e esperaram enquanto o dono da casa e seus dois filhos serviam o chá. Logo que o chá foi servido, um murmúrio correu pelo inimigo. Ling Tan e seus camaradas não compreenderam coisa alguma até que um deles, que parecia saber falar, disse:

— Vinho, nós queremos vinho, não chá!

Ling Tan e seus companheiros entreolharam-se. Onde encontrariam vinho para um bando tão grande de homens sedentos? Vinho os aldeões só bebiam algumas vezes, nas festas do ano novo, ou uma vez ou duas mais, quando iam à cidade, depois de vender uma boa colheita. Mas não havia vinho ali.

— Ai de nós, que não temos vinho na vila, — gaguejou Ling Tan, aproximando-se mais da porta dos fundos.

O inimigo disse isto aos outros e seus olhares se tornaram mais carregados. Murmuraram juntos e então o primeiro se dirigiu novamente a Ling Tan:

— Que mulheres vocês têm na vila?

Ora, Ling Tan não podia acreditar no que tinha ouvido e pareceu meio pateta durante um momento, julgando que o sujeito devia ter usado uma palavra por outra.

— Mulheres? — repetiu.

O homem não falou mas fez um gesto característico sobre si mesmo, e Ling Tan percebeu então que ele dizia mulheres, e olhou para os companheiros, concebendo uma mentira que salvasse a todos.

— Nós iremos procurar mulheres, — disse.

E logo ele e todos os companheiros saíram pela porta dos fundos, só parando o suficiente pára gritar às mulheres, na cozinha da hospedaria:

— Corram, corram, escondam-se, eles querem mulheres!

E então cada um correu para o seu próprio lar procurando salvar a família. Dentro da sua casa Ling Tan colocou a tranca na porta, gritou a Ling Sao para reunir todo o mundo e desceu a velha espada enquanto falava. Pela primeira vez Ling Sao ficou calada. Correu, chamando filhos e filhas enquanto Ling Tan, de pé, esperava junto à porta.

Logo ouviu o som de muitos pés que caminhavam em direção à sua porta e ficou escutando, até que lhe pareceu insuportável e abriu a porta um pouquinho, para ver o que acontecia lá fora. Teria sido muito bom para ele que suportasse a ansiedade e deixasse a porta fechada porque, no momento em que a abriu, lá estavam aquelas faces raivosas e cheias de fúria, bem debaixo dos seus olhos, e sob os seus capacetes ele viu olhos negros, ferozes de lascívia. Eram como bêbados de tão vermelhas que tinham as faces, e quando viram Ling Tan se arrojaram a ele com um grande brado. Recuou rapidamente, fechando a porta no mesmo instante e as pontas das armas cravaram-se na madeira. Ouviu o cão fiel, que estivera latindo e rosnando junto ao inimigo, uivar, gemer e logo silenciar.

— O nosso velho cão se foi, — gemeu ele.

Mas não podia se importar com um animal agora.

Bem sabia que mesmo a pesada madeira daquela porta nada adiantaria e que devia se preparar para o momento em que eles irrompessem. Mas tinha um instante ainda. Agora agradecia à Fortuna que o fizera ver outras guerras antes desta e o tornara conhecedor de como os homens são numa batalha. Ele sabia que os homens de batalha não são mais eles mesmos, mas criaturas sem espírito, em que vive somente a parte inferior do corpo. E assim, seu primeiro pensamento foi para as mulheres.

Correu, pois, para dentro de casa, enquanto a porta resistia e lá encontrou todos reunidos, as mulheres com as crianças no colo e os homens de cara verde.

— Estamos perdidos, — gritou o filho mais velho.

Mas Ling Tan levantou a mão, ordenando silêncio. Há muito tempo que ele tinha seu plano para quando chegasse esta hora.

— Saiam todos por esta portinha que tem estado fechada esses anos todos, e sobre a qual pendem as parreiras de modo que não pode ser vista muito facilmente. Saiam por essa porta e se escondam pelos bambuzais e atrás de qualquer colina que encontrarem. Cada homem deve saber onde a sua esposa e os filhos estão, mas não deve prestar atenção a mais ninguém. Meu terceiro filho deve olhar por sua irmã mais nova e sua mãe.

— Eu ficarei com você, — disse Ling Sao.

— Não pode. Eu devo trepar pelas vigas e me esconder no forro.

— Eu farei o mesmo, — afirmou ela.

Não havia tempo para demovê-la. Ele correu na frente deles, para o muro dos fundos e, encontrando a porta, afastou as vinhas e abriu o trinco enferrujado. Era uma porta tão estreita que ele e Wu Lien perceberam logo que a mãe deste nunca poderia passar por ali e, assim, ordenou a ela que esperasse de modo que os outros pudessem ser salvos. Então eles tentaram empurrá-la, mas a verdade é que ela não passava mesmo. Ling Tan puxou-a novamente e disse a Wu Lien que faria tudo que pudesse por aquela velha alma, se ele auxiliasse os outros. Assim Ling Tan os viu partir e deixou cair os ramos das vinhas sobre a velha que soluçava. Esperava que estivesse segura mas não podia permanecer mais tempo ali, pois que ela não era a sua própria mãe. A porta, apesar de resistente, estava cedendo agora e podia se perceber isso pelos gritos de triunfo das vozes.

De volta ao quarto principal ele trepou numa mesa e alçou-se a uma trave do teto. Como uma gata velha Ling Sao vinha atrás e ele parou, ofereceu a mão para ajudá-la, e assim os dois atingiram o telhado. Nessa cobertura grossa, de olmo, que os seus antepassados haviam colocado ali sobre a casa e em que, de dez em dez anos ou mais, ele fazia alguns reparos juntando outras folhas, abrira uma cavidade sobre uma trave lateral para a qual ele e Ling Sao subiam agora, sufocados pelo pó e pela palha, mas vivos ainda.

Mal se tinham posto naquele lugar seguro quando a porta gemeu, cedendo, e ele ouviu o barulho de homens raivosos que penetravam no pátio e depois no aposento sobre o qual se escondera. Mas não podia ver nada, nem ousava mover-se. Ling Sao colava-se a ele e ele a ela, só respirando o suficiente para não morrerem, e Ling Tan orava aos seus ancestrais para não deixá-los tossir nem espirrar naquela poeirada. Eram felizes porque a palha, depois desses anos todos, formava, com as teias de aranha e a umidade, uma esteira que caía em torno deles. E ainda havia a trave por baixo. Mas apesar de tudo, eles não deviam se mover pois o pó ou a palha poderiam cair, indicando o lugar em que se achavam.

Mas os homens só permaneceram um momento no aposento de baixo, porque quando viram que estava vazio, deram um uivo e puseram-se a correr de um quarto para outro, pelos oito quartos e pela cozinha, e Ling Tan e sua esposa ouviram a sua louça tão boa ser atirada ao chão, quebrada, a sua mobília partida, e tremeram com a idéia de que pusessem fogo à casa e eles morressem queimados.

Esperando que isso acontecesse em seguida, Ling Tan planejou como saltaria e puxaria a esposa depois dele. Mas, em vez do crepitar das chamas ouviram outra coisa. Um grito que a princípio eles pensaram tivesse partido de um dos leitões, porque soava como um leitão espetado para o açougue. Então ouviram uma palavra ou duas, um gorgolejo e souberam o que era. O inimigo tinha encontrado a velha mãe de Wu Lien embaixo das parreiras. Ao perceber o que aquilo era, Ling Tan moveu-se para descer, mas a mulher lhe tinha passado os braços em torno da cintura, como se fossem uma cinta de ferro.

— Não, — disse ela num sussurro quase imperceptível. — Não! Ela está morta. Você deve se lembrar de nós todos. Ela era velha. Temos que pensar nos moços.

Ela o segurava, e sabendo que tinha razão ele não se moveu.

Por fim o inimigo foi embora mas, muito tempo depois de tudo estar silencioso, Ling Tan e a mulher não ousavam ainda se mexer ou falar. Esperaram até que os seus membros ficassem doendo mais do que podiam suportar, e que os pulmões estivessem entupidos e tivessem que tossir e cuspir a poeira. Seus corpos gotejavam suor embora fosse um dia de inverno. E, por fim, ele murmurou ao ouvido dela:

— Vou descer porque alguns dos filhos podem voltar e pensar que estamos mortos.

Por si mesma não o teria deixado mover-se, mas quando ele falou nos filhos ela o deixou, seguindo-o e desceram para o que fora uma casa bela e arrumada.

Não havia mais arrumação. Ficaram de pé no aposento principal e olharam em torno. Nada fora deixado inteiro, a não ser uma cadeira. A própria mesa não podia sustentar seu peso, e nem escapara o estrado de bambu em que dormia o terceiro filho. E eles foram de quarto em quarto, as mãos apertadas uma na outra e, sem trocarem uma palavra, contemplaram a ruína da casa. Quando viram tudo Ling Tan disse:

— Não levaram coisa alguma a não ser o arroz. Você vê que eles não queriam nada do que tínhamos e, por diversão, quebraram tudo do que não precisavam.

Assim tinham feito os inimigos. E tinham rasgado as roupas e cortado as colchas das camas. Porque não puseram fogo em tudo, Ling Tan não podia compreender, a não ser que, ao seu desenfreamento, desejassem que ele visse os estragos todos e não somente as cinzas.

— Oh! a minha bela caixa de pele de porco que eu trouxe quando era noiva! — gemeu Ling Sao quando entrou no seu quarto de dormir e a viu furada e arrombada.

E entre todas as desordens das roupas cortadas e caixas arrombadas eles viram, de repente, uma madeixa de cabelos e Ling Tan parou.

— Que é isto? — perguntou. Ling Sao pegou para ver.

— É o cabelo que Jade cortou naquele dia, — disse.

— É sorte que isso não esteja na sua cabeça agora, — gemeu Ling Tan.

Mas eles sabiam que coisa pior do que isto os estava esperando na pequena porta dos fundos e assim, vagarosamente, dirigiram-se para lá, temendo o que os seus olhos deviam ver.

— Mas devemos ser os primeiros a ver, — sussurrou Ling Tan. — Não devemos deixar nenhuma das crianças entrar antes.

Eles se arrastaram pela cozinha em ruínas até o pequeno quintal dos fundos. Ali, a seus pés, jazia morta a velha. Devia fazer muito tempo que estava morta. Mas se achava pior de que morta. Estava nua e tão ferida que eles viram logo que, na sua fúria, aqueles selvagens a tinham usado como usariam uma mulher jovem e bela.

E Ling Tan gemia porque se isto acontecera a uma mulher velha, pesada de anos e meio apagada de inteligência, o que não aconteceria às mulheres jovens desta casa e mesmo à sua própria esposa? Voltou-se para Ling Sao e o sangue todo havia desaparecido de sua face.

— A primeira coisa em que devo pensar é onde guardar vocês todas que são mulheres, — disse. — Eu posso me esconder e os outros homens podem se espalhar por aí, mas, se o inimigo é assim, que vai ser das mulheres?

Pela primeira vez ela não respondeu coisa alguma, porque sabia também que, o que acontecera ali, podia mais facilmente ter-lhe acontecido, e não pôde dizer uma palavra para ajudá-lo. Afastou os olhos, envergonhada mesmo diante do marido; curvou-se e, apanhando as roupas que a pobre velha tinha usado, cobriu aquela nudez. Não podiam levantá-la porque a velha era muito pesada e representaria um trabalho para três ou quatro homens. Tudo que tinham a fazer era deixá-la onde estava. Ling Tan deu alguns passos, abriu a portinha e olhou para fora. Não se via ninguém, o Sol brilhava sobre a terra, nesse dia tão belo como sempre, e ele amaldiçoou o Céu por ser tão desapiedado. Então ordenou a Ling Sao que viesse com ele e se afastasse da velha.

Durante todo o resto daquele dia eles se sentaram na casa arruinada e não pensaram nem em comida nem em fogo. Sentaram-se, à escuta, esperando pela noite, quando, com toda certeza, um dos seus filhos voltaria, para contar-lhes como estavam todos. Os outros da vila haviam sido tratados tão mal quanto eles, estavam certos, mas não tinham coragem de ir ver. Essa era uma ocasião em que cada um devia cuidar de si mesmo.

Assim chegou a noite, trazendo o fim do mais longo dia que já haviam vivido. E o filho mais velho e o mais moço vieram para casa, esgueirando-se. Sentado na escuridão, Ling Tan ouviu o som desmaiado dos seus pés e logo as suas vozes num sussurro:

— Eles foram embora!

— Não, não fomos, — disse ele da escuridão em que se achava. Esticou a mão, tocando o filho, pois ainda estavam no escuro porque não ousavam acender seus lampiões.

— Onde estão as crianças? — perguntou Ling Sao imediatamente, porque durante o dia todo estivera pensando nos netinhos que talvez estivessem sendo torturados, como brinquedos daqueles homens cruéis.

— Estão todos na cidade, — disse o filho mais velho. E Ling Tan gemeu:

— Na cidade!

Parecia-lhe o pior dos males estarem lá. Mas o filho apressou-se em dizer-lhe como acontecera.

— Nós demos uma volta muito comprida em torno da cidade, — disse ele, — chegamos àquela pequena Porta da Água e lá o povo nos disse que, ainda que a cidade estivesse cheia de morte e desolação, havia um lugar seguro para as mulheres e crianças. E então, meu pai, ouvimos o bastante para saber que esse inimigo é o pior de todos para com as mulheres, e não ousamos trazê-las de volta à nossa casa, pois o que podemos nós, com as mãos vazias, fazer para salvá-las? O único lugar seguro é atrás da porta que o senhor conhece: a terra está vazia e calma, e nos disseram que o inimigo não fora a esse lugar porque não havia nada para ser tomado. Assim, esperamos até que escurecesse, escondidos em covas, fugindo se algum inimigo se aproximava e então, na escuridão, eles abriram a porta, engatinhamos para dentro e deixamos as mulheres e crianças nesse lugar seguro. É uma escola estrangeira, pai, e há uma mulher estrangeira lá. Eu a vi bem de perto e tem uma boa cara embora possua uma religião estrangeira e não a nossa. Mas há um muro bem alto ao redor da escola e uma porta grande. Quando batemos, a porta entreabriu-se, a mulher branca olhou para fora e, assim que viu nossas mulheres e crianças, abriu a porta inteiramente e pôs todas para dentro.

— Por que não ficaram lá também? — perguntou Ling Tan.

— Eles só têm lugar para mulheres e crianças, — respondeu o filho.

— Elas estão verdadeiramente seguras?

— Tão seguras quanto poderiam estar em qualquer outra parte quando os demônios estão soltos, — disse o filho, tristemente.

Agora Ling Tan já resolvera o que devia fazer.

— Tenho uma incumbência para vocês, — disse aos filhos. — Se as mulheres estão seguras lá, vocês devem levar sua mãe também, enquanto a noite está escura.

Os dois rapazes olharam para a mãe, admirando-se, e ela curvou a cabeça, envergonhada porque eles eram homens e ela mulher e, pela primeira vez em tantos anos, não podia dizer: "Não tenho medo de homem." E assim permaneceu em silêncio.

— Mas... mas ela... — tartamudeou o mais velho.

O pai lhes contou o que havia acontecido à velha e eles, ouvindo-o, não murmuraram uma palavra até que terminou. Então o mais velho disse:

— Venha, mamãe. Eu vou levá-la, e o meu terceiro irmão pode ficar aqui com papai. Quando deixá-la em segurança voltarei para casa e haveremos de viver juntos, de qualquer maneira, desde que a saibamos em segurança. ,

E os dois jovens viraram a cabeça enquanto seus pais se despediam. Nunca, em suas vidas, desde que Ling Sao viera para esta casa, quando tinha dezoito anos, ela e o marido haviam dormido separados, uma simples noite que fosse, e como fazê-lo agora? Quando os filhos viraram as costas eles se apertaram como nunca suspeitaram fazê-lo na presença de quem quer que fosse, e ela gemeu:

— Será que devo deixá-lo?

— Sim, — respondeu ele, — e por uma razão que eu não seria capaz de pensar pudesse existir na sua idade, mãe dos meus filhos.

Guerras ele as tinha visto e também homens luxuriosos entre a sua própria gente mas nunca vira alguém que fosse capaz de tocar numa mulher da idade e dignidade de Ling Sao. Que os inimigos fossem capazes disso provava-lhe, mais do que tudo, que eles eram uns monstros, homens selvagens, bestas, animais. Apertou a mulher durante mais um instante e então recuou, chamando seu filho mais velho.

— Tome-a e não permita que mal algum a atinja.

— Não permitirei, — assegurou o filho.

E assim Ling Tan pôs para fora de casa sua mulher, e quando ela partiu, ficou sentado, a noite inteira, sem dormir, esperando que o filho voltasse novamente. Uma vintena de vezes, nessa noite, desejou ter ido com o filho; mas de que teria valido isso? Dois eram melhor do que três e, como ele não poderia deixar o outro filho sozinho, quatro andariam duas vezes mais devagar do que dois.

— Procure um lugar para dormir, — disse ele ao terceiro filho.

E o rapaz era ainda tão jovem que pôde limpar um lugar no chão e dormir de cansaço, apesar de todo o infortúnio.

Mas Ling Tan não podia. Sentou-se sobre as ruínas da casa e esperou, até que, depois de muito tempo, o filho mais velho voltou em segurança, não tendo encontrado o inimigo.

— Eu mesmo pus mamãe dentro da porta, — disse. — A mulher branca tomou-a e falou que estariam em segurança, se é que há alguma coisa em segurança.

Ling Tan suspirou e não respondeu. Agora que a mulher estava a salvo, pareceu-lhe que estava muito cansado para falar, mover-se ou dormir. Mas o filho mais velho atirou-se ali mesmo, no chão onde estava, e dormiu um pouco. E Ling Tan, sentado ao lado dos filhos que dormiam, não soube que horas da noite eram, até que ouviu o cantar de um galo.

"Ainda cantam os galos?" pensou, pasmado de que assim fosse. E continuou sentado, até que a aurora surgiu e ele viu a luz cair sobre os filhos, dormindo sobre as ruínas da sua casa.

 

NA ofuscação daquela noite, Ling Sao olhou a mulher branca. A porta se fechara atrás dela. Seu filho tinha ido embora. Estava, agora, fechada neste lugar estranho com esta estrangeira. A mulher tinha o cabelo amarelo como o pêlo de um gato e não escorria direito na sua cabeça, como todo cabelo, mas ficava em pé como o pêlo de um carneiro. Os olhos, no seu rosto branco, eram de um amarelo claro, também, ou pareciam dessa cor à luz da lanterna que a mulher segurava.

— Venha comigo e eu mostrarei onde estão suas filhas, — disse a mulher.

Ling Sao ficou assustada de poder compreender uma estrangeira.

— Pôs alguma mágica em mim para que eu a compreendesse? — perguntou.

A mulher branca riu um riso curto.

— Eu passei vinte anos nesta cidade, — disse, — e estudo todo dia para que possa falar a sua língua e contar-lhe acerca da única religião verdadeira. É estranho que me compreenda?

Guiou Ling Sao ao longo de um caminho de tijolos. Em ambos os lados desse caminho crescia a grama e, a curta distância uma da outra, elevavam-se árvores cujos ramos pendiam para o chão. Ling Sao nunca havia visto um lugar como esse. Chegaram então a uma casa grande, a mulher guiou Ling Sao para dentro e ela se achou num vestíbulo que, embora comprido e largo, estava cheio de gente. Uma luz fraca brilhava no teto e ela pôde ver muitas pessoas deitadas sobre enxergas colocadas no chão.

— Mulheres e crianças, — disse a mulher branca. — As suas filhas estão ali, naquele canto.

Ela abriu caminho entre os que dormiam e, num canto, junto a uma mesa alta, encontrou Orquídea, as suas duas filhas e todas as crianças. As crianças não acordaram e mesmo Orquídea não despertou ao primeiro momento, mas Pansiao estava acordada, soluçando e, quando viu a mãe, levantou-se, estendeu as duas mãos e a sua face se modificou como a de toda criança quando avista sua mãe.

— Mamãe, você veio? — sussurrou.

— Sim, eu estou aqui meu bolinho de carne, — disse Ling Sao, sentando-se no chão ao lado da pequena.

Desde criança que Pansiao não a ouvia chamarem assim. Era a palavra mais confortante que Ling Sao poderia ter pronunciado.

— E onde está papai? — perguntou ela, segurando na sua a mão de sua mãe.

— Ele está em casa com seus dois irmãos, — respondeu Ling Sao. — Vocês estão sendo bem tratadas aqui?

— Mais do que isso, — replicou a pequena, — mas eu estava tão assustada que não pude comer e agora estou fraca.

— Deite-se então, — disse Ling Sao. — Pela manhã arranjarei comida para você.

— Oh, eles nos dão comida aqui, — explicou Pansiao e deitou-se.

A filha mais velha levantou a cabeça.

— Onde está a mãe do meu marido, mamãe? — indagou. — Não veio com você?

Ora, é direito de uma esposa perguntar primeiro pela mãe do marido, porque ela própria pertence à casa do homem com quem casou, e depois do matrimônio a mãe dele deve representar mais para ela do que ela mesma. E Ling Sao sabia que essa pergunta tinha razão de ser, mas desejaria que, pelo menos por essa vez, sua filha não tivesse cumprido seu dever, pois como poderia contar o que tinha acontecido à pobre alma daquela velha tonta? Assim, resolveu dizer uma boa mentira:

— Ela é tão velha que está segura em casa. — E então perguntou: — Onde está o pai dos seus filhos, menina?

— Ele nos trouxe até aqui e depois disse que voltaria à loja. Afirmou que, agora que a cidade caiu, não havia razão para ter medo porque a paz devia voltar logo. Deixou-nos aqui até que visse uma amostra do que a cidade vai ser e como está. Depois nos levará para casa.

Os murmúrios começaram a acordar aquelas que dormiam perto e, uma após outras, as mulheres se levantaram para ver quem era a recém-chegada e se trazia notícias. Ora, a mulher que dormia próximo à filha mais velha era uma jovem tão extraordinariamente bela, que Ling Sao gostou da sua fisionomia assim que pôs os olhos nela. Nenhuma mulher, pensou, poderia parecer com esta e ser uma esposa fiel ou uma boa mãe. Assim, para experimentá-la, perguntou:

— Nós acordamos as suas crianças, boa alma?

— Eu não tenho crianças, — respondeu a bela criatura com calma.

— Está aqui sozinha? — perguntou Ling Sao para experimentá-la outra vez.

— Estou aqui com outras seis iguais a mim, — respondeu ela. Diante da resposta Ling Sao compreendeu que a jovem era uma cortesã e, como mulher digna, não lhe dirigiu nem mais uma palavra. Esticou-se entre a mulher e as filhas de modo que, se houvesse alguma doença nessas mulheres, ela seria atingida antes de suas filhas e netos.

Mas ao seu lado a beldade ainda não se deitara.

— Boa mãe, — disse.

Ling Sao espantou-se de que ela tivesse uma voz tão doce.

— Como chegou aqui depois de nós, é capaz de nos dizer como a cidade está agora?

— Não vim pela cidade, — respondeu Ling Sao secamente.

— Não veio? — interrogou a outra. — Você é do campo, boa mãe?

— Sim, — tornou Ling Sao mais secamente ainda.

— Oh, — suspirou a voz doce. — Então você não sabe o que aconteceu na cidade hoje, — e ela curvou a cabeça sobre os joelhos. — Oh, este dia! — suspirou.

Mas antes que Ling Sao pudesse perguntar-lhe o que queria dizer, Orquídea acordou e, quando viu Ling Sao, levantou-se, ainda cheia de sono.

— Você está aqui, mamãe? — gritou. — Como chegou até aqui, quem toma conta da casa, e o que aconteceu lá depois que nós saímos?

Ela perguntava isso tão alto que as outras lhe gritaram para fazer silêncio, e as crianças acordaram pondo-se a chorar. E Ling Sao, para mostrar que ficava do lado de todas contra a tolice da própria nora, exclamou, ainda mais alto:

— Que os céus tenham pena de mim que arranjei uma mulher tão malcriada para o meu filho mais velho, que grita no meio da noite apenas porque me vê e deixa vocês todos nessa confusão. Não abra a boca outra vez, pequena idiota!

Assim, Orquídea deitou-se novamente. Fez-se silêncio e todos procuraram dormir um pouco, depois das fadigas daquele dia triste.

Mas Ling Sao, que só dormira em duas camas na sua vida, no leito estreito da casa de seu pai, quando solteira, e depois numa cama larga com seu marido, não era capaz de dormir com uma pessoa estranha de um lado e de outro a sua filha respirando em cima dela. Aquele aposento enorme já estava cheio com os ruídos dos que dormiam roncando ou gemendo, e ela permaneceu acordada, pensando no dia que terminara. E quantos dias mais, iguais a estes, não se passariam antes que ela pudesse voltar para casa outra vez? E que estaria o seu velho fazendo lá sem ela? Muitas vezes, nessa noite, ela pensou que, quando a aurora despontasse, rasgaria suas roupas e sujaria o rosto, fazendo-se velha e feia, e iria para casa outra vez. Mas quando a madrugada surgiu compreendeu que não poderia fazer aquilo porque, por mais que fizesse, não conseguiria ser mais velha e feia do que Wu Sao havia sido.

Assim, levantou-se cedo, ajudou as filhas a tratar das crianças e, dentro em pouco, todo o aposento estava cheio de mulheres em movimento, e crianças chorando. Logo Ling Sao começou a se ocupar, ajudando todo mundo. Mas a jovem a seu lado não se moveu. Ela estava deitada, enrolada numa colcha de seda vermelha, dormia ou fingia dormir, e assim faziam as outras que estavam a seu lado.

"Estão acostumadas a dormir até tarde", pensou Ling Sao com escárnio. "São dessa espécie que dorme de dia porque trabalha de noite," e quando a filha mais velha e Orquídea acordaram ela segredou-lhes o que eram aquelas mulheres, avisando-as de que não deveriam falar com elas nem deixar que as crianças o fizessem. E a Pansiao ela disse:

— Se uma dessas mulheres estender a mão para você, não deixe que ela a toque e não responda se elas lhe falarem. Com pessoas honestas se conversa, não com estas. Mas o melhor de tudo é ficar comigo e não se dirigir a ninguém.

Assim conservou a filha junto a si e, pelo rabo do olho, observava as que dormiam.

Quando o Sol estava bem alto, apareceram algumas mulheres trazendo arroz, peixe salgado, legumes, pauzinhos e tigelas. Ling Sao exclamou:

— Como podemos comer se não temos dinheiro para pagar?

Agora ela se lembrava de que, na sua desesperação, tinha esquecido de pedir dinheiro ao marido, e comer e não pagar era vergonhoso.

Mas as mulheres que carregavam os baldes riram-se e disseram a ela que comesse como as outras porque havia quem desse o arroz para recebê-lo no céu.

— Coma, boa mãe, — diziam, — porque, comendo isto, está praticando uma boa ação; auxilia a senhora estrangeira a entrar no céu.

— É por isso que ela vem aqui nos ajudar? — perguntou Ling Sao, espantada.

E então pôs-se a comer com as outras, sentindo-se melhor depois de estar com a barriga cheia.

Só quando quase todas já tinham acabado, aquelas sete dorminhocas se levantaram, penteando para trás o cabelo perfumado, lavando-se em bacias que estavam sobre uma mesa junto a jarros cheios d'água. E, da maneira como elas se lavavam, qualquer um poderia perceber o que eram, pois se faziam mais limpas do que qualquer mulher honesta precisa ser. Então foram juntas buscar o arroz e ficaram comendo longe das demais. Essas jovens não olhavam para as outras mulheres, mas entre todas aquelas mães e esposas boas e honestas não havia uma que não olhasse às escondidas, para ver como eram tais mulheres, afastando os filhos, se por acaso uma delas se aproximava.

Assim começou esse dia estranho e não foi um mau dia, porque fora daquela casa grande cheia de mulheres, tão cheia que devia haver umas cem ou mais, não contando as crianças, havia pátios de grama curta e sedosa, macia para os pés quando se caminhava sobre ela. A grama não estava verde agora, mas assim mesmo era macia, e quando o sol esquentou todas foram para fora com as suas crianças, e as mulheres falavam umas às outras. Muitas falavam a Ling Sao porque tinha uma face redonda, bondosa, olhos brilhantes e o seu cabelo negro começava a encanecer. Ela era a espécie de mulher com quem todas falavam com facilidade chamando-a de "boa mãe".

De uma a outra ela ia ouvindo coisas que nunca haviam penetrado em seus ouvidos antes e, quanto mais ouvia, tanto mais atemorizada se tornava. Parecia-lhe que, ainda que muita gente na cidade tivesse desejado a chegada rápida do inimigo, pois que ele traria a paz consigo, agora, que o inimigo havia chegado com tal loucura e crueldade, tanta ferocidade e selvageria, todos haviam mudado de opinião. E isto foi o que ela ouviu, — que dentro desta cidade rica, que era o centro da nação, os inimigos tinham penetrado como animais selvagens, pior mesmo do que estes, pois que teriam comido homens e mulheres enquanto aqueles matavam somente os homens e tomavam as mulheres. Se era mulher velha ou moça não importava. As moças iam primeiro, logo seguidas pelas velhas.

— O bebê da minha irmã chorou, — contou uma pequena cujos olhos inchados de tanto chorar quase se fechavam. — Tinha somente cinco meses de idade, mas era tão forte e saudável, e chorou tão alto quando eles o arrancaram do peito dela, que o inimigo, que a tinha agarrado, ficou com tanta raiva que estrangulou aquela coisinha com as próprias roupas da mãe. Minha irmã ficou cega, incapaz até de gritar, e quando esse inimigo e mais uns trinta acabaram, ela também estava morta.

— Você viu isso? — indagou Ling Sao.

— Não, mas meu pai contou, — explicou ela. — Eu ainda não sou casada e ele me trouxe logo para aqui, mas ela era, e quem poderia suspeitar que haveria de morrer assim?

Sim, ainda que eles soubessem o que fazem os soldados quando uma cidade é tomada em triunfo, e todos conhecessem que as jovens deviam ser escondidas durante alguns dias até que eles estivessem calmos outra vez, e isso principalmente se as jovens fossem bonitas, nunca tinham ouvido falar de um mal tão grande como este. Em outros tempos, outros soldados haviam tomado a cidade mas não eram estrangeiros, de modo que o povo fora logrado desta vez, pois, pensando que os estrangeiros deviam ser melhores do que os seus próprios soldados, não tomaram a precaução que teriam tomado em qualquer outra guerra. Muitos dos que morreram eram homens inocentes e ignorantes, pelo que essas mulheres contavam a Ling Sao, e que haviam visto com seus próprios olhos. Se um homem se voltava e corria, o inimigo atirava sobre ele ali mesmo, e assim centenas haviam morrido em um dia. Se um homem parecia de alguma forma ser um soldado ou se houvesse sido um soldado era morto, e assim mais de milhares foram mortos em um dia. Se um homem se mexia vagarosamente quando lhe davam um trabalho, ou se era muito jovem para sustentar uma carga muito pesada, ou se era um velho ou um letrado que nunca fizera trabalho duro, então os matavam também, e milhares mais foram mortos em um dia.

Durante toda a manhã Ling Sao ouviu essas coisas, de modo que, quando a comida foi servida novamente, ao meio-dia, apesar do arroz estar seco e muito bem preparado, ela não pôde comê-lo com facilidade e, à noite, quando trouxeram a ceia, embora fosse composta de arroz e couve, e a couve fosse preparada com óleo de feijão e quase tão saborosa quanto a dela própria, não pôde comer nada devido ao que tinha ouvido. O que tinha acontecido a ela e Ling Tan não era mais do que um mal insignificante diante de um mal tão grande. Muitas das mulheres que lhe falavam tinham visto os seus entes queridos, os do seu próprio sangue, mortos diante dos seus olhos, violados ou surrados, e havia outras que nem falavam porque o que haviam sofrido era algo que não se podia contar.

Assim, quando a noite chegou, Ling Sao estava atacada pela doença e pelo cansaço e, mais do que isso, por um medo que nunca sentira antes. O que os esperava se a terra fosse tomada por um inimigo como este, e que poderiam fazer contra esses governadores que não eram homens? Governadores todos os povos conheciam e tinham que sofrer sob eles em algum tempo, mas estes ultrapassavam a maldade. Não havia neles coração humano.

E outra noite desceu, a segunda noite que Ling Sao passava fora de casa, e ela se sentiu triste porque pouco pensara no marido durante todo o dia, tão ocupados estiveram os seus ouvidos com o que tinham escutado. E quando viu os seus netos na cama e as mães, uma por uma, se deitarem, ela se deitou também e ao lado dela lá estavam as cortesãs. Pela manhã, quando se levantara, planejara trocar o lugar de dormir, mas se esquecera disso durante o dia e, agora, nada podia fazer. Deitou-se pois em silêncio, porém depois se voltou para a cortesã mais moça, que estava mais próxima dela:

— Por que vocês estão aqui? — perguntou ela à jovem, com um tom de raiva. — Mulheres como vocês não devem permanecer aqui.

A jovem sorriu com tristeza.

— Nós também somos mulheres, — respondeu calmamente, com uma bela voz, — e temos medo dessas bestas também.

E virou as costas para Ling Sao como se, sabendo o que era, quisesse conservar-se à parte. Não falou mais com Ling Sao. Ficou conversando com as companheiras que dormiam do outro lado, e o que elas diziam Ling Sao não era capaz de compreender, porque não eram da sua cidade e usavam uma linguagem própria quando falavam entre si. Falavam muitas línguas porque deviam agradar muitos homens e conheciam até alguns idiomas estrangeiros de modo a serem agradáveis também aos homens que chegavam nos navios estrangeiros. Tudo isso Ling Sao sabia, pois todo o mundo sabe essas coisas.

"Suponho que elas são de Soochow!" pensou, e somente para certificar-se dirigiu-se novamente à jovem cortesã e perguntou-lhe mais isto:

— Vocês são de Soochow?

— Sim, somos, — respondeu a cortesã.

— Então por que estão nesta cidade? — perguntou Ling Sao. No fundo do peito ela pensava que, se tinham vindo aqui para ganhar dinheiro com os soldados, por que não saíam de dentro desses muros para executarem seu trabalho, tornando a cidade mais segura para as boas mulheres que eram esposas e mães?

— Nós estávamos em Soochow quando a cidade caiu, — explicou a jovem cortesã, — e em nossa casa havia vinte e três cortesãs. Só nós escapamos e somos apenas sete. Fugimos, mas não inteiras, e porque não podemos esquecer o que nos aconteceu é que estamos aqui, e se não fomos para mais longe é porque não temos mais dinheiro. Quando ouvimos que os brancos ofereciam segurança às mulheres dentro destes muros, viemos também, porque odiamos esse inimigo. Oh! eles não são homens; homens nós conhecemos, mas não estes!

Voltou a cabeça, então, e não falaram mais, e um momento depois Ling Sao a ouviu chorando quase silenciosamente. Somente um ouvido tão próximo como o de Ling Sao podia percebê-lo, tão calmo era o pranto. Logo o coração ardoroso de Ling Sao moveu-a a perguntar-se se não devia, de algum modo, confortar essa criatura que era ainda jovem e bela, mas a forte antipatia que tinha por tais mulheres conservou-a onde estava. Ling Tan durante toda a sua vida nunca vira uma cortesã, sabia, mas ela temia e odiava tais mulheres de quem, até agora, só ouvira falar, como se ele as tivesse visto. Assim deixou que o choro prosseguisse até que parou e ela adormeceu cansada.

No meio dessa noite ela acordou e todas juntas despertaram, com um barulho de trovoada na porta e o estrondar de armas de fogo disparadas sobre o muro. Acordaram e ficaram tremendo na escuridão, temendo o que estava para vir. Logo ouviram vozes, as vozes de homens que falavam uma língua que não podiam compreender, e souberam que era o inimigo que havia chegado até esta porta.

As mulheres se levantaram, no escuro mesmo vestiram as roupas que haviam tirado para dormir, e cada qual esperou no lugar em que estava, sem falar uma palavra, e quando uma criança chorava seu choro era sufocado. Um momento depois surgiu uma luz e a mulher branca entrou no aposento, erguendo alto um lampião, de modo que a luz caía sobre o rosto de todos.

— Temos más notícias, — disse ela. — O inimigo está na porta. Há uma centena de homens armados aí, dizendo que hão de entrar e eu não tenho força para detê-los. Não tenho braços e só possuo para impedi-los a força do meu Deus e a força do meu país. Eles não temem o meu Deus, mas respeitam um pouco o meu país que é uma grande nação. Por causa disso é que ainda não entraram e eu pude comprá-los, propondo-lhes um preço.

Ela olhou para o rosto de todas e estas viram a boca pequena apertar-se na sua face pálida.

— É tal o preço, — disse ela, — que eu estou envergonhada de dizer-lhes, mas devo fazê-lo porque se trata de salvar a vocês mesmas. Eles dizem que não entrarão se algumas mulheres quiserem ir com eles. Talvez umas cinco ou seis.

Disse isso e ficou em silêncio. E todas ficaram em silêncio. Onde haveria mulheres que fossem com esses homens mesmo para salvar as outras? Nenhuma podia falar.

A mulher branca esperava, e o barulho dos tiros e das batidas sobre a porta fez-se ouvir outra vez. Assim a mulher branca saiu e elas se sentaram. Nenhuma falava mas dentro do peito, cada uma dizia: "Não posso ser eu, como poderia ser eu?"

E depois de um espaço de tempo que daria, aproximadamente, para uma pessoa contar duzentos níqueis, a mulher branca voltou outra vez, e levantando a lanterna, falou apressadamente:

— Não posso mais detê-los, — arfou. — Eles dizem que se eu não lhes der as mulheres imediatamente entrarão aqui. Oh! minhas irmãs! — ela se deteve um momento e olhou para baixo da porta alta onde se achava. — Quem sou eu para dizer a qualquer mulher que saia da minha casa por uma causa dessas? Contudo açode à minha mente que Deus colocou neste aposento essas que... que poderiam salvar as mulheres boas. Não peço isso, só digo que, se há aqui algumas, se elas se sentem capazes, ou talvez seja melhor...

Ela não pôde falar mais e, à forte luz amarela da lanterna, viram-na apertar os lábios. E a lanterna tremeu em suas mãos.

Então Ling Sao viu aquilo que ela jamais esqueceria enquanto vivesse, algo que até à morte manteria o seu coração terno para com as chamadas mulheres más.

Porque a seu lado a formosa jovem se levantou, ajeitou o cabelo e compôs a roupa.

— Venham, irmãs, — disse ela com voz cansada e triste, — venham, levantem-se, ajeitem o cabelo e sorriam outra vez. Devemos voltar ao trabalho novamente.

Ninguém falou enquanto as outras se levantavam atendendo àquela voz. E ninguém falou enquanto as sete mulheres atravessavam o quarto por entre os leitos no chão e se dirigiam para a porta.

Então aquela que se dirigira às outras parou diante da mulher branca.

— Estamos prontas, — disse com sua bela voz.

— Deus vos dê a sua bênção, — disse a mulher branca. — Que Deus vos receba no Céu por isto!

Mas a formosa cortesã sacudiu a cabeça.

— O seu Deus não nos conhece, — disse, e silenciosamente, endireitando o corpo, tomou o caminho da porta seguida pelas outras.

E a mulher branca ergueu a lanterna para que elas pudessem ver o caminho.

No quarto que elas deixaram ficou a escuridão e nenhuma mulher falou. As mães se deitaram ao lado das filhas. Ling Sao se deitou ao lado das suas, mas, agora o outro lado estava vazio. E ela ficou deitada, com o coração partido de pena e amargura. Lágrimas vieram aos seus olhos e logo que ela as limpava lhe vinham outras.

Não houve mais barulho à porta, a mulher branca não mais voltou e a madrugada surgiu como todas. Ling Sao levantou, o dia correu e não houve uma mulher que não pensasse no que havia acontecido aquela noite. Contudo, nem Ling Sao nem nenhuma outra mulher podia falar uma palavra sobre aquilo. Cada mãe alimentou suas crianças, fez seus pequenos trabalhos. Aquele foi um dia de silêncio em que nem uma vez a mulher branca se aproximou delas. E a noite caiu outra vez.

 

Wu lien trabalhava sozinho na sua loja. Nos três primeiros dias de sua volta não foi à rua, só abrindo as portas da frente, e pondo em ordem, como podia, a confusão que encontrou. Mas uma coisa ele fez primeiro que tudo. Antes mesmo de encontrar comida, depois que deixara a mulher e os filhos dentro das portas da mulher branca, apanhou fuligem da chaminé, misturou-a com água e, como procurasse uma escova e não pudesse achá-la naquela desordem, amarrou um trapo na ponta de uma bengala, mergulhou-o na tinta que preparara e escreveu em grandes letras negras sobre a parede exterior da sua loja as seguintes palavras:

"Vendem-se aqui mercadorias do mar oriental."

Pela primeira vez, desde que os estudantes tinham destruído sua loja, sentiu-se reconfortado. Onde estariam aqueles estudantes agora? Não havia um sequer para ser visto. Os que não tinham fugido tinham sido mortos, sem dúvida. Mas ele estava vivo, abrira sua loja novamente e, dentro de poucos dias, se tudo corresse bem, traria de volta a esposa e os filhos e todos prosperariam novamente.

"Amar um país," pensou, "amar um país será destruir as mercadorias honestas de uma loja? Isso é modo de homens de razão se portarem diante de outros?"

E lhe parecia que entre ele e aqueles estudantes era o mais patriota porque estava vivo, não havia destruído coisa alguma e, na verdade, dentro em pouco, estaria novamente fornecendo comida e trabalho a outros.

Assim, ainda que nunca houvesse feito isso na sua vida, agora tinha prazer em limpar a loja tanto quanto podia com aquela parede caída, mas pensava que devia arrumar a casa de qualquer maneira antes que a mulher chegasse. Não tinha resolvido ainda se era bom trazê-la para cá, porque não podia fechar os olhos a todos esses mortos que jaziam pelas ruas, nem deixar de ouvir gritos à noite e mesmo durante o dia, algumas vezes, que o faziam saber que nas proximidades alguma mulher estava sofrendo. Mas ele nunca saía das suas portas, continuando a trabalhar, e pensava: "Essas coisas não me dizem respeito," e dizia para si mesmo que não era culpa sua que os soldados fossem assim e que, viesse o que viesse, ele era um homem pacífico.

Apesar de tudo pensou que, antes de trazer sua esposa para casa, deveria obter, dos conquistadores da cidade, um papel protetor que provasse ser ele um bom cidadão e um indivíduo capaz de perceber que nem todos os tempos são iguais, que o Céu muda os governadores de uma nação segundo sua própria vontade, e que fosse o que fosse que o Céu mandasse ele deveria continuar com o seu negócio. Mas onde e a quem pedir o tal papel é que ele não sabia.

Contudo, não se havia passado muito tempo desde que colocara o letreiro, quando quatro soldados inimigos se aproximaram. Um deles era um oficialzinho qualquer e os outros, seus comandados, entraram perguntando se tinha alguma comida para vender.

Isso ele compreendeu pela fala deficiente do oficial, pois os outros não diziam nada que pudesse perceber. Era peixe o que eles queriam, peixe salgado, mas tudo que Wu Lien tinha eram alguns peixinhos enlatados e que não eram salgados mas embebidos em azeite. Trouxe-os para fora e os mostrou ao homem, que acenou com a cabeça que serviam.

— Quanto? — perguntou, erguendo os dedos.

Wu Lien ficou satisfeito e surpreso que essa pergunta fosse feita, porque estava acostumado com os soldados que entravam e tomavam o que queriam sem perguntar coisa alguma. Assim sacudiu os ombros gordos, sorriu, e disse:

— Nada, é um presente.

Agora era a vez do oficial surpreender-se e sorriu também, com uns dentes muito brancos e limpos.

— Ah! — disse, — não nos odeia? Wu Lien sorriu ainda mais.

— Não odeio ninguém, — afirmou.

O oficial curvou-se, falou aos soldados e eles também se curvaram imediatamente.

— Deve receber alguma coisa pelas mercadorias, — disse.

— Não posso, — replicou Wu Lien. — Comprei-as do seu país, e as estou devolvendo.

E curvou-se também.

A isto o oficial sentou-se num banquinho junto ao balcão e acenou com a mão em direção à rua.

— Por tudo isso estamos muito pesarosos. Nossos soldados, muito bravos, esfomeados.

Wu Lien inclinou a cabeça.

— Também temos nossos soldados e eu sei como os soldados são, — disse. — Mas esperemos pela paz. Só em paz poderemos tratar de negócios.

E então, em palavras simples para que o oficial pudesse compreender, contou como os estudantes haviam destruído suas mercadorias e concluiu:

— Nos últimos anos, as coisas têm andado mal nesta cidade. Talvez melhorem agora.

— Oh! nós prometemos, — disse o oficial, — se há muitos como você.

— Há muitos, — disse modestamente Wu Lien.

Começava a ficar encorajado e voltou-se, escolhendo, nas prateleiras que acabara de arrumar, umas latas de doce, dando uma a cada homem. Eles ficaram agradecidos.

— Perdoem-me se não tenho chá, — falou Wu Lien, — mas minha esposa não está aqui e eu estou só.

— Mas por quê? — indagou o oficial. Wu Lien tossiu atrás da sua mão.

— Está visitando sua mãe, — disse, — mas voltará logo.

O oficial compreendia perfeitamente porque a mulher de Wu Lien não estava ali, mas gostou que ele não dissesse o motivo e, assim, ordenou-lhe que fosse arranjar papel e pena. Wu Lien apressou-se em introduzi-los no seu próprio quarto, e o oficial escreveu umas grandes letras negras que Wu Lien não podia ler e, depois, em letras que ele podia ler, traçou o seu nome e o lugar em que vivia nesta cidade. Então entregou o papel a Wu Lien.

— Se alguém vier incomodá-lo, mostre este papel, — disse.

— Como posso agradecer-lhes? — perguntou Wu Lien. — Que posso dizer senão que farei tudo que desejarem?

O oficial continuou:

— Mandarei do nosso quartel-general um sinal para por na sua porta, e se isso não for bastante, enviarei um guarda.

Wu Lien ficou contente, ouvindo-o falar do sinal, mas tremeu ao pensar num guarda à sua porta. Quem já viu um guarda que não coma e beba mais do que dez homens comuns, e que não peça a melhor cadeira e tudo o mais que lhe vier à mente? Assim apressou-se em dizer:

— Pelo sinal todos os meus agradecimentos, milhões e milhões mesmo, mas eu sou um comerciante muito insignificante para ter um guarda. Tudo que eu tenho não vale a metade do preço de um. Deixe que eu possa chegar até o senhor e pedir-lhe que, se tiver necessidade de um homem honesto, aqui estou eu, Wu Lien, o comerciante. Esta loja pertenceu a meu pai, antes de mim, e com a sua bondade espero que ela venha a pertencer a meu filho.

— Certamente, — disse orgulhoso o oficial. — Não faremos mal àqueles que não nos opõem resistência.

— Por que deveria eu resistir à bondade? — replicou Wu Lien.

E assim, nessa mútua boa vontade, eles se separaram. Mas, depois que eles se foram, Wu Lien limpou o suor da testa apesar do dia estar frio. Para sua surpresa o corpo suava debaixo das roupas e, agora, percebia que no seu íntimo ele temera o inimigo apesar de tudo, mas nunca mais teria medo dele outra vez. E com esse alívio o suor deixou de correr. "Só tenho que não resistir," pensou, "e isso é uma coisa fácil para um homem como eu."

Havia muitos meses não se sentia tão alegre e, quando na tarde do mesmo dia, um soldado lhe trouxe uma caixa dentro da qual se via uma bandeira dobrada, em que estava pregado um pedaço de pano com algumas letras escritas, ele sentiu como se tivesse vencido sua própria batalha. Apressou-se em dar ao homem algum dinheiro e, quando ele se retirou, pregou o sinal sobre o caixilho da porta. Contudo, enquanto fazia isso, ouviu um grito de mulher na viela próxima à sua casa; parou um momento, à escuta, e pelo murmúrio de terror da moça percebeu o que lhe estava acontecendo.

"Esse soldado," pensou, "esse soldado que acabou de me trazer este sinal. Será ele?"

Escutou até que o silêncio voltou e não se aproximou para ver o que o silêncio significava, pois como poderia acusar quem um momento antes tivera aquela bondade para com ele?

"Assim é a guerra," pensou tristemente. Durante alguns momentos ficou amargurado e resolveu preparar um chá. E enquanto esteve sentado, bebendo o chá, raciocinava raivosamente contra o pai da moça. "Por que deixou uma moça aqui, nestes dias, quando a paz ainda não foi restabelecida?" perguntava a si mesmo, louvando-se pela sabedoria que tivera em organizar tão bem os seus negócios.

Mas, apesar disso, nem tudo estava tão bem quanto ele pensava. Ao por do sol, quando chegou a hora de fechar as portas, olhou para cima a fim de retirar o sinal. Tinha desaparecido. Não podia acreditar no que via, porque ele próprio o pregara. Mas tinha desaparecido mesmo, e só ficaram ali alguns trapos da bandeira agarrados aos pregos. Espantou-se amedrontado com o que via. Haveria um estudante vivo e perto dele?

"Foi um inimigo quem me fez isto. Tenho um inimigo perto de mim," pensou. Colocou as trancas nas portas e se meteu na cama sem conseguir dormir. "Um guarda," pensou, gemendo, "talvez eu deva ter um guarda para livrar-me dos inimigos."

Na sua própria casa Ling Tan e seus filhos prepararam, eles mesmos, o ataúde para a mãe de Wu Lien. Nestes tempos todos os carpinteiros e fabricantes de caixões deviam trabalhar dia e noite, e não havia um para contratar. Alguns dos fabricantes, mais espertos, sabendo como as guerras são boas para o seu ramo de negócio, tinham, nos meses anteriores, preparado uma porção de caixões e, armazenando-os nas suas próprias casas, nos templos ou em qualquer lugar em que pudessem, preparavam-se para o que desse e viesse. Mas mesmo assim os ataúdes não eram bastantes para a quantidade de mortos que havia agora dentro e em torno da cidade. Muitos eram enterrados sem caixão. O inimigo cavava buracos e empurrava os corpos para dentro deles, mas cobria-os tão superficialmente que os cães esfomeados os descobriam outra vez. Para felicidade de todos era inverno e não verão, senão o fedor dessa cidade teria se erguido até às ventas dos próprios deuses.

Por isso, Ling Tan sabia que era inútil procurar um carpinteiro, e ele e seus filhos tiraram as tábuas da cama em que não mais dormiam, e as das duas portas interiores, e construíram o caixão. Com cordas e paus levantaram o enorme corpo e o lançaram no esquife, pregando a tampa. Com o búfalo puxando por meio de cordas e eles todos empurrando, levaram o caixão até o campo e enterraram Wu Sao, fazendo um monte de pedras bem alto sobre o corpo, de modo que, se em algum tempo Wu Lien voltasse, eles pudessem apontar e dizer-lhe:

"Lá está ela e fizemos tudo que podíamos."

Então voltaram para casa e começaram a revolver as ruínas, consertando o que podiam, de maneira que lhes fosse possível viver. Assim era com todas as casas da vila, porque não havia uma que tivesse escapado à destruição, exceto a casa do primo de Ling Tan em terceiro grau, que era tão pobre que o inimigo nem se detivera para destruir sua miserável mobília. Esse primo em terceiro grau e sua mulher haviam escapado livres porque, quando o inimigo chegara, tinham corrido e mergulhado em um grande tonei de excrementos que tinha a altura de um homem e largura suficiente para esconder cinco homens. Esse tonel ficava no extremo de um campo e o excremento era destinado a enriquecer a terra. O primo e a mulher se meteram dentro, só deixando o nariz de fora para respirar e ficaram seguros, ainda que fedendo depois de muitos banhos, de maneira que isso era motivo de riso para os aldeões em meio às suas dores. O filho deles também foi salvo porque estava desmaiado quando o inimigo apareceu e sua mãe o cobriu com montes de palha que tirou de trás do fogão da cozinha, de modo que ele não foi encontrado.

De todas as casas da vila esta era a única que estava como sempre tinha sido e, como a mulher do primo em terceiro grau era virtuosa, afirmava que era por isso que os deuses os haviam salvo. Se o jovem iria morrer ou viver ninguém sabia, porque ele não falava nem comia, e quando saía de um desmaio caía logo em outro e sangrava novamente se o moviam. Mas ao menos não morrera e um aldeão, depois de outro, olhava e dizia o que faria se ele fosse seu filho. Sua mãe não perdia nada, fazia tudo que lhe era aconselhado, de modo que era de esperar que a vida dele fosse salva por alguma daquelas coisas.

Mas, a não ser esta, todas as outras casas tinham sido espoliadas como a de Ling Tan. E outros tinham sofrido mais do que ele, por não terem a inteligente rapidez de esconderem as mulheres. Dessa vila, que tinha menos de cem almas, sete moças e quatro mulheres estavam mortas e ninguém sabia quantas tinham sido maltratadas, pois nenhum homem iria dizer se a sua própria mulher ou filha tinha sofrido. Entre os mortos estava também o homem mais velho da vila. Deitara-se na cama no mesmo dia em que o inimigo o tinha espetado e, porque a sua ferida era muito pequena, e sendo aquele um dia cheio de terror, ninguém lhe tinha dado grande importância. À tarde, quando foram a ele, encontraram-no morto. E Ling Tan sentiu pelo velho como se ele tivesse sido mais do que um parente distante na vila, e pensou tristemente: "Aquela espetadela penetrou muito fundo. O velho sabia que os nossos dias de felicidade e liberdade tinham terminado e não desejara mais viver".

Quando Ling Tan viu sua vila e o que ela tinha sofrido, ele e os outros mais velhos se juntaram para decidir como colocar as mulheres em segurança. Contou como guardara as suas mulheres dentro das portas da mulher branca e todos disseram que iriam fazer o mesmo. Desde então, em qualquer ocasião que o porteiro da mulher branca ouvia o macio roçar de um ramo de chorão na porta, abria-a e encontrava mais mulheres e moças que a mulher branca fazia entrar.

E assim só ficaram na vila os homens, uma ou duas avós e a mulher do primo em terceiro grau, que não podia ir por causa do filho, e dizia:

— Há sempre o tonel da imundície, e o que foi feito uma vez poderá ser repetido.

A única briga que provocara esse tonel de imundície era que seu marido tinha uma barba, como todo sábio gosta de ter, e, não sendo um homem cabeludo, como sempre sucede aos homens de saber, levara muitos anos para deixá-la crescer. Dessa bar-bicha que tinha, ele não conseguiu extirpar o fedor por mais que a lavasse, e a mulher, que durante esses anos todos reclamava contra o gás nauseabundo que saía dos seus intestinos, pediu-lhe que ao menos cortasse a barba. Mas não, como ele não sentia seu próprio cheiro, não iria cortá-la. De modo que isso tornou-se motivo de briga entre eles e de risos para os aldeões, que ficaram contentes, e isso já era alguma coisa. É muito triste, para homens, viverem sozinhos numa vila, e todos sentiam saudades de suas mulheres e importunavam aquele que ficara com a sua, dizendo:

— Você estima mais sua mulher ou sua barba, cabeça velha? E pela manhã eles se riam às gargalhadas e um exclamava:

— Ah! o velho ainda está com a barba e ela não vai querê-lo novamente! Eu preferiria ter minha mulher encerrada atrás dos muros do que em minha cama, recusando-me!

Porque esta mulher do primo em terceiro grau tinha lançado a vergonha sobre o marido dizendo, por toda parte onde pudesse ser ouvida, que não mais concederia seus favores a ele, até que resolvesse cortar a barba. Assim, a barba divertia a todos, exceto àquele que a trazia no rosto.

Sem ir ele próprio à cidade, Ling Tan ideou mandar, por alguém que fosse levar a filha, mulher ou irmã, alguma coisa para Ling Sao. A despeito dos maus tempos, a galinha preta pusera um punhado de ovos que ele meteu num lenço, com um peixe fresco que pescara na lagoa, salgara e colocara numa folha seca de lótus. Desejou que pudesse escrever a Ling Sao e que ela pudesse ler, mas tudo que tinha a fazer era confiar nos ouvidos e na boca dos outros.

— Diga-lhe que limpamos a casa e que vamos manobrando, ainda que muito mal, sem ela aqui, — disse a um, e ajuntava: — Diga-lhe que enterramos a velha e que nós mesmos fizemos o caixão. — Continuava: — Diga-lhe para não ficar impaciente de voltar para casa porque ouvimos dizer que agora, que a cidade já foi espoliada, o inimigo visita todo dia uma das vilas, mas que nós não temos medo porque nenhuma das nossas mulheres está aqui.

Ele nunca pensara que podia sentir a falta de alguém como estava sentindo a falta de Ling Sao, e não era que sentisse a falta dela como mulher, mas apenas como se fosse parte dele mesmo. Pensava, algumas vezes, que fosse desejá-la como mulher, mas não, o seu corpo permanecia tão calmo como o de um eunuco e não podia compreender a razão, pois em todos os seus anos de virilidade ele se acostumara a ter o que desejava. Um dia, quando o filho mais moço não estava perto, ele expôs isso ao filho mais velho, saindo do respeito que deve haver entre duas gerações:

— Você se sente mal sem fazer nada, depois que a mãe dos seus filhos foi embora?

E o jovem respondeu, surpreso de si mesmo, na verdade:

— Não, não me sinto, e é estranho também, mas eu acho que é porque ouvimos tantas histórias de luxúria contra as mulheres, que o gosto por qualquer mulher desapareceu de nós durante algum tempo, e penso que assim sucede com todos os homens que são bons homens e maridos decentes.

Sobre isto Ling Tan não tinha pensado e, contudo, quanto mais pensava, tanto mais acreditava que bem podia ser verdade e, olhando, via que os homens que conhecia eram de duas espécies — alguns como ele e seu filho e outros como os que ficavam alvoroçados por todo o mal que ouviam contar. Assim ele conheceu que os homens são bons ou maus de coração, pensem os outros o que pensar sobre eles, e só tempos como estes demonstram o que são.

E, contudo, havia outro mal para descer sobre Ling Tan, um novo mal, e se tivessem contado ele não teria acreditado. Até que viu com seus próprios olhos. Esse mal aconteceu ao filho mais moço.

É bem verdade que a cidade se tornava mais calma à proporção que os dias passavam, mas isso se dava porque os horrores que vinham acontecendo ergueram para o céu um barulho que se espalhou por toda parte, de modo que os homens e mulheres dos outros países ouviram-no e gritaram que nunca se vira bestialidade semelhante desde que o primeiro homem fora feito, e quando o inimigo percebeu que todos sabiam o que os seus homens faziam, uma espécie de vergonha caiu sobre os seus governadores, e por um meio e outro eles baixaram ordens para que o mal fosse pelo menos escondido e que não fizessem tais coisas em plenas ruas da cidade, pois assim tudo viria a público e eles ficariam envergonhados perante o mundo. Então o inimigo começou a vir da cidade para as vilas, e uma manhã Ling Tan ergueu os olhos e deparou com quatro soldados inimigos na sua porta. Estava lavando o arroz para a refeição e seus filhos se achavam no tear, o mais moço distribuindo os fios. O tear fora a única coisa não destruída desta casa, porque estava num quarto escuro onde era necessário haver um lampião queimando, e além disso não parecia nada de utilidade a quem não compreendesse suas lançadeiras e suas cordas.

Ling Tan pousou sua cesta e se dirigiu à porta. Sabia muito bem que era inútil fingir que não estava, pois faria somente com que a porta que consertara fosse arrebentada novamente. Por isso a abriu e, à luz do Sol, contemplou as faces afogueadas de quatro rapazes. Gritaram-lhe e ele, pensando que desejavam comida, pois não podia compreendê-los, deu uns passos para trás e, apontando para o arroz, indagou se era aquilo que queriam. Com isso ainda gritaram mais, sacudindo a cabeça, furiosos, apontando para si mesmos, afrouxando as roupas e Ling Tan percebeu que eles desejavam as suas mulheres. No fundo do coração agradeceu aos seus ancestrais que todas as mulheres da casa tivessem partido, e falou em sua própria língua, uma vez que não conhecia outra:

— Não há mulheres na minha casa.

Mas eles, por seu turno, não compreendiam coisa alguma e pularam, afastando-o para o lado, procurando em todos os quartos, em qualquer lugar; não achando sinal algum de mulheres, exceto algumas roupas que haviam sido deixadas, tornaram-se ferozes e berraram a Ling Tan, que, apesar de tudo, continuava a não compreender o que diziam. Mas a raiva deles Ling Tan compreendia.

— Se não há mulheres aqui serei por acaso um deus para fazer uma? — perguntou ele.

Nesse momento ouviu-se o som do tear outra vez e, com um grito de maldade, os homens correram para o quarto de tecelagem, seguidos por Ling Tan, que temia o que pudesse acontecer quando não encontrassem mulheres lá. Parou atrás do soldado vendo que os olhos dele procuravam em todos os cantos. O filho mais velho estava sentado no alto do tear e, parando, olhou com espanto para baixo. O terceiro filho deixou cair os fios que segurava e olhou também.

Quando os soldados furiosos viram que na verdade não havia mulheres, sua luxúria não teve mais limites. Explodiu deles como chamas malignas e Ling Tan viu o que nunca havia sonhado ver. Viu-os cair sobre o filho mais moço, que tinha sido sempre formoso. Mas a beleza dele, que fora sempre motivo de alegria, tornou-se motivo de tristeza porque os soldados pegaram o rapaz e o usaram como uma mulher. E Ling Tan, com o vômito na garganta, não pôde suportar aquilo, e com o filho, que também não podia suportar, caiu sobre os soldados. Mas o que poderiam fazer homens desarmados contra quatro armados? Eles pararam e amarraram pai e filho com cordas que arrancaram do tear, de modo que eles fossem obrigados a contemplar o que faziam. Se fechavam os olhos eram picados. Assim a coisa foi feita e o formoso rapaz ficou no chão, como morto. Então, rindo, os soldados foram embora.

E Ling Tan e seu filho não disseram uma palavra. Vagarosamente, com grande esforço, libertaram-se. O filho desatou a corda com os dentes fortes, mais fortes e mais inteiros do que os do pai, e, quando se acharam livres, Ling Tan tomou a água que tinha preparado para cozinhar o arroz, lavou o filho mais moço, ajeitando-lhe as roupas, acariciando-o, erguendo-o com o auxílio do filho mais velho. O rapaz não estava morto, nem mesmo ferido de morte, mas sentia-se como morto, como se tivessem apunhalado o seu coração. E Ling Tan temeu que houvesse perdido a razão.

— Meu filhinho, — disse, — você vive!

— Desejava ter morrido, — gemeu o rapaz.

— Você não deve desejar a morte, — disse Ling Tan, — pois isso não é ser filho digno. Não, meu filho, se você está vivo é porque o Céu ainda não quer que você morra.

Mas o rapaz não parecia ouvi-lo. Sua pele estava pálida, esverdeada e os olhos pareciam os de um morto.

— Não posso continuar aqui.

— Você não permanecerá aqui, — prometeu Ling Tan. — Tenho algum dinheiro escondido no muro, num lugar onde não pode ser encontrado, e você pode tomá-lo e ir para o lugar que desejar. Ah! se soubéssemos o lugar onde está o seu segundo irmão e Jade.

Estava com medo dos olhos sombrios do filho, pois seu coração temia que pudesse se juntar a outros homens desesperados, a bandidos, e pediu-lhe:

— Se você for para as montanhas não se junte aos homens maus, que assaltam a nossa própria gente. Escolha os bons montanheses que só fazem guerra ao inimigo.

Mas o rapaz não respondeu. Deixou que o pai lhe vestisse o casaco, experimentou comer algum pão e, como não pudesse, guardou-o na mão, amarrado num quadrado de pano. Apanhou o dinheiro e o colocou no cinto junto ao ventre. Ficou de pé então, balançando o corpo ao levantar-se. Ling Tan amparou-o.

— Como irá andar? — perguntou temeroso.

— Eu posso andar, — disse o rapaz, que olhou para o pai com seus olhos escuros e tristes.

— Mande-me dizer onde você está, — pediu-lhe Ling Tan. Agora que o rapaz estava pronto para partir parecia tão jovem, tão doente.

— Mandarei, — disse o rapaz.

Balançou-se outra vez apoiando-se no ombro do pai.

— Papai, — gemeu, — papai!

Sua boca apertou-se e Ling Tan viu que ele estava tentando não chorar. Pôs os braços em torno do filho.

— Não vá até amanhã, — pediu. — Descanse uma noite primeiro, — pediu-lhe ainda, — que eu vou preparar um arroz quente para você comer.

— Não posso descansar, — disse o rapaz, — devo ir.

Endireitou-se, caminhando em direção à porta; já estava escuro, exceto pela luz fraca da Lua e pela ainda mais fraca das estrelas. A noite estava fria e parada e ele mergulhou nela, sem olhar para trás, dirigindo-se para as montanhas. Ling Tan com seu filho mais velho ficaram observando-o, tão longe quanto a vista podia alcançar.

— Acontecerá a nós alguma coisa pior? — suspirou Ling Tan. Seu filho não respondeu, e sobre eles o céu da noite estava tão belo como sempre fora em tempo de paz.

— Esse céu... — disse Ling Tan subitamente, — nada conseguirá mudá-lo?

Olhou para cima, deixando Lao Ta assustado, pensando que o pai tinha perdido a razão com aquele golpe.

— Vamos entrar, pai, — disse gentilmente. — A noite está muito fria.

Puxou o pai para dentro e Ling Tan deixou-se arrastar. Então Lao Ta trancou as portas.

— Poderá comer se eu cozinhar arroz? — perguntou ao pai.

— Sinto-me esta noite como se jamais pudesse comer novamente, — respondeu Ling Tan.

— Também me sinto assim, — disse Lao Ta.

Entraram cada qual no seu quarto mas, um momento depois, Ling Tan levantou-se e foi para o quarto do filho.

— Não posso fechar os olhos sem tornar a ver o que vi, — disse ao filho. — Não posso ficar sozinho.

— Venha para cá e deite-se ao meu lado, — falou Lao Ta.

O pai veio e deitou-se junto ao filho. Nenhum dos dois tinha tirado a roupa, pois ninguém ousaria despir-se numa noite em que pessoa alguma sabia o que iria acontecer nas longas horas negras.

Ali se deitaram dois homens apenas que restavam nessa casa outrora cheia, e não falaram porque um sabia tudo que o outro sabia. Mas não dormiram. Juntos os dois espíritos seguiram a esbelta figura do rapaz, coxeando através da noite, sozinho, na direção das montanhas.

 

Ora, Wu Lien via que, se queria ficar seguro contra os seus próprios inimigos, devia buscar a proteção dos inimigos que tinham a cidade nas mãos e, assim, depois de um ou dois dias de terror, em que nem ousou chegar à porta, decidiu, uma noite, que iria procurar o oficial que tinha sido gentil com ele, para contar suas dificuldades — que não era um traidor de coração mas, apenas, um homem de negócios que tinha em sua casa mais do que sua própria boca para alimentar.

Assim esperou que a noite crescesse e, então, vestindo suas roupas mais velhas e sem levar lampião, foi à rua e ao número que o oficial tinha posto no papel e bateu numa porta fechada; entrementes ficara surpreendido, pois ele conhecia essa porta. Depois de algum tempo a porta foi aberta por um soldado. Os joelhos de Wu Lien tremeram porque o rosto do soldado era muito grosseiro. Mas logo se acalmou, lembrando-se que muitos dos inimigos pareciam grosseiros, e mostrou o papel. Depois de olhá-lo um instante o soldado puxou o papel para dentro, fez um sinal a Wu Lien para que esperasse e se dirigiu para o interior da casa.

Esta casa, Wu Lien conheceu-a assim que a viu, porque tinha pertencido a um homem rico, agora fugido por causa da guerra e, uma vez, duas primaveras atrás, as damas tinham pedido a Wu Lien que trouxesse alguns dos seus brinquedos e mercadorias estrangeiras para ver se alguns agradavam. Era então um lugar alegre, barulhento e no jardim em que ele agora permanecia havia teatrinho de fantoches e todos, mesmo as criadas e escravos, estavam ali fora, ao sol, para ver e- rir. E o deixaram esperando até que a representação terminasse, e assim ele tinha esperado e rido também, porque os bonecos eram melhores do que os que conhecia e o homem que falava por eles mais inteligente do que o comum.

Mas agora o jardim estava cinzento pelo inverno, escuro pela noite e a casa era silenciosa. Então o soldado voltou, acenou para que Wu Lien o seguisse e Wu Lien foi atrás dele, entrando na casa. No aposento principal estavam três ou quatro oficiais inimigos bebendo juntos e o olharam tão asperamente que, por um momento, desejou não ter vindo. Mesmo o oficial gentil olhou-o com tanta frieza que ele pensou, amedrontado, que, se aqueles oficiais eram dessa espécie de homens que se tornam mais frios quanto mais bebem, tinha chegado num mau momento. Fosse como fosse, ele estava ali e, quando trabalhava em seu próprio benefício, tinha uma coragem de cão. Assim, falou àquele que conhecia:

— Senhor, eu vim aqui para tratar de negócios e se puder falar com franqueza pouparei o seu tempo.

— Fale então, — disse o oficial, sem convidá-lo a sentar-se. Quando Wu Lien percebeu que o estavam tratando como um criado não gostou, mas era um homem sensato, sabia que essa não era ocasião para orgulho, e engolindo-o tão depressa quanto ele subiu, discorreu:

— Eu sou um cidadão desta cidade e, há muito, comercio em mercadorias estrangeiras, cuja maior parte vem do vosso honrado país do Mar Oriental. Nada mais desejo senão paz, para que eu possa continuar com o meu negócio. Quem deve governar que governe, contanto que meus negócios possam ser feitos. Mas há esses na cidade que me chamam traidor, porque meu coração é assim, e têm a intenção de me matar e, por isso, eu vim aqui, aos senhores que agora nos governam, para perguntar se há algum meio de me por em segurança.

Os oficiais ouviam isto e aquele que compreendia narrou aos outros o que Wu Lien dissera. Falaram durante alguns momentos, sem que Wu Lien compreendesse patavina daquela língua estrangeira e, por fim, o oficial que conhecia acenou afirmativamente.

— Você pode ser útil se quiser, — disse.

— E por que não serei? — respondeu Wu Lien.

— Vamos estabelecer um governo do povo aqui, — disse o oficial, — e será um governo desses que governarão por nós. Quais são as suas aptidões?

— Ai de mim! Sou um homem de poucas aptidões! — começou Wu Lien, mas foi logo interrompido pelo oficial.

— Sabe ler? Sabe escrever?

— Eu? Naturalmente, — replicou com orgulho. — E sou muito hábil no ábaco e sei como dirigir todos os negócios de um comerciante. Sou também um estudioso dos clássicos de Confúcio, como meu pai foi, antes de mim.

— Isso não tem utilidade para nós, — disse o oficial. — Sabe inglês?

— Ai de mim que não sei, — disse Wu Lien, — nunca pensei que fosse necessária outra língua a não ser a minha própria, pois nosso povo é tão numeroso que, se um homem falasse a um estranho em cada hora de sua vida, morreria antes de poder falar a todos os habitantes da nossa nação.

— Mas você sabe jogar bem com a própria língua?

— Sem jactância, posso dizer que sim, — afirmou Wu Lien modestamente.

Os oficiais trocaram palavras novamente e, depois de um instante, aquele que Wu Lien conhecia dirigiu-se a ele uma vez mais:

— Você mudará para esta casa, imediatamente. Seus vencimentos serão fixados de acordo com sua capacidade. Terá um título também, de acordo com aquilo de que for capaz. Venha amanhã.

Ora, ao ouvir isto, a cabeça de Wu Lien começou a redemoinhar como se houvesse pássaros rodando por dentro.

— Mas eu tenho mulher, minha mãe, e dois filhos, — disse.

— Eles todos podem vir para cá, — tornou o oficial. — Aqui estarão seguros e você também. Daremos quartos.

Tão boa sorte como essa, viver seguramente numa cidade onde ninguém tinha segurança, ter um salário onde ninguém sabia de onde viria a sua comida, ter sua família com ele e sentir, acima de tudo, que ele próprio não seria apunhalado quando voltasse as costas, toda essa fortuna despejava-se sobre Wu Lien e ele sentiu o prazer que sente um homem, ao encontrar, num dia quente e seco de verão, uma primavera fresca, sob o alcantil de uma montanha.

— Não poderei trazer as minhas poucas coisas para aqui imediatamente? — perguntou. — A maior parte das minhas mercadorias foi destruída e o que me resta ocupará pouco espaço.

Falaram entre si novamente e o oficial concordou com um aceno curto.

— Pode vir imediatamente, — disse.

— E amanhã poderei trazer meus filhos e a mãe deles? O oficial teve um ligeiro sorriso.

— Sim, pode, — disse.

Então levantou a mão, ordenando a Wu Lien que escutasse o que ia dizer.

— Veja bem como somos clementes para quem não resiste! — Falava com a voz alta que os padres usam nos templos, quando se dirigem aos fiéis nos dias de festa. — Não procuramos outra coisa que a paz e o bem de todos. Aqueles que nos ajudarem serão amplamente recompensados.

— Sim, magnânimo, — murmurou Wu Lien.

Curvou-se três vezes sem pensar, como se o homem fosse um magistrado e, transtornado pela sorte, saiu rapidamente do aposento, só parando na porta, para dar uma moeda ao soldado.

Passou essa noite arrumando suas coisas, e era quase de madrugada quando encontrou uma ricksha, fez uma pilha dentro dela, e sentou-se em cima de tudo. Assim entrou ele pelas portas do inimigo.

Grande foi o seu contentamento, no dia seguinte, quando vestiu suas melhores roupas e, com uma guarda de dois soldados inimigos, dirigiu-se para o lugar em que sua esposa se achava, na porta da mulher branca. Desejaria ter podido alugar um carro a motor estrangeiro e não a velha carruagem puxada a cavalo, que encontrara algumas ruas distante. Mas, mesmo assim, ele estava muito bem parecido quando o cocheiro deteve o cavalo velho diante da porta.

— Desça, — ordenou ao cocheiro, do assento em que estava. — Bata na porta e diga-lhes que Wu Lien veio buscar a família.

E recostou-se no assento, como fazem os oficiais depois de falarem aos servidores.

Mas o cocheiro gritou-lhe, como resposta:

— Não ouso largar este meu cavalo. Ele tem o defeito de se sentar sobre a cauda, para descansar como um cachorro, logo que percebe que não estou segurando as rédeas. E depois, não posso erguê-lo senão com o auxílio de quatro homens.

Wu Lien ainda tinha medo dos seus guardas e não ousaria pedir-lhes para levantar o cavalo nem iria ele próprio levantá-lo. Assim, teve que descer, bater na porta e, quando a portinhola se abriu e apareceu a velha cara do porteiro, ele disse, como se aquele fosse um seu criado:

— Sou Wu Lien e vim buscar minha família.

O porteiro olhou com dureza para os dois soldados inimigos e abriu a porta apenas o bastante para deixar Wu Lien entrar, fechando-a aos soldados que gritaram, batendo. Então o porteiro voltou-se para Wu Lien:

— Como é que você tem esses dois consigo? — perguntou com gravidade.

— Sou um comerciante, — disse Wu Lien, — e esses dois foram mandados para me proteger.

— Protegê-lo! — repetiu o porteiro rindo.

— Eu me responsabilizo por eles — disse Wu Lien com dignidade.

. — Ainda assim não entram porque são inimigos, — retorquiu o porteiro. — Perguntarei primeiro à mulher branca.

Assim Wu Lien teve que ficar ali, esperando, até que o homem trouxesse a mulher branca e depois teve que explicar à mulher, da melhor forma que podia, por que os dois guardas deviam ser introduzidos. Os guardas ainda não tinham parado as batidas e os rugidos na porta e Wu Lien, suando, desejava de todo o coração ter vindo sem guarda.

Mas a mulher branca não parecia ouvir ruído algum ao se aproximar. Parecia tão fria e calma como as imagens de um templo estrangeiro, e perguntou a Wu Lien na sua voz estrangeira que fazia parecerem estrangeiras todas as palavras que pronunciava:

— Você não é um traidor?

Mas a esse tempo ele suava tanto que se tornou irritado e disse, com voz zangada:

— Senhora, como posso saber o que chama traidor? Aos meus próprios olhos sou apenas um homem que quer fazer seu negócio o melhor que pode. Isso porque tenho minha família para sustentar e sou a única pessoa para fazê-lo. Mas ela retorquiu com a mesma voz fria:

— Você não viu o que aconteceu nesta cidade? E ele retrucou, aborrecido ainda:

— O que aconteceu está acontecido, mas todos esperam que os senhores estrangeiros não sejam piores do que os nossos próprios. Eu acho que, quanto mais cedo esquecermos essas coisas tanto mais depressa a paz virá para todos nós.

Então a mulher tornou:

— Vejo que você é mesmo um traidor, e quanto mais cedo tirar sua família de dentro destes muros melhor.

Então, voltando-se para o porteiro, ordenou-lhe que deixasse os guardas entrar. Assim, o homem abriu a porta, muito de má vontade, e os guardas irromperam, enraivecidos com a demora, mas se detiveram ao contemplar aquela mulher alta e fria, de rosto pálido e cabelo dourado.

— Fiquem quietos, — ordenou-lhes ela tão severamente como se eles fossem crianças. — Conduzam-se com decência e permaneçam onde estão.

E Wu Lien tremeu ao ouvi-la, agradecendo a Deus e ao Céu que os guardas não falassem a sua língua e não pudessem compreendê-la. Mas a frieza da mulher e o tom da sua voz eles podiam compreender e ficaram parados como carneiros, mas raivosos. Ela voltou-se para Wu Lien.

— Com tal companhia não posso deixá-lo passar desta casa de guarda, de modo que trarei os seus até aqui.

Deixou-o. Ele ficou observando o seu andar sobre a grama, com aquelas compridas saias pretas estrangeiras escovando o chão atrás dela. E ficou ali com os dois guardas insolentes, amedrontado de ter sido deixado com eles, pois poderiam pensar que a demora era por sua culpa e se voltarem contra ele. Sentia-se como um homem que recebe, contra a sua vontade, dois lobos como mascotes, não pode recusá-los, mas teme ser devorado por eles. E o porteiro lá estava, arreganhando e palitando os dentes, enquanto observava os três.

Mas, poucos momentos depois, Wu Lien viu sua esposa aproximar-se, atrás dela seus filhos e, por último, Ling Sao. Orquídea também teria vindo mas a mulher branca tinha-o proibido porque era muito jovem e bela e não seria bom que os soldados a vissem.

— Desejo-lhe todo bem possível, mãe, — exclamou Wu Lien a Ling Sao.

— E a você também, — replicou ela.

Ficou surpreendida ao ver os dois soldados, e tudo que trazia na ponta da língua para dizer a Wu Lien foi detido pelo espanto.

— Sabe alguma coisa sobre o meu velho? — perguntou somente.

— Não, nada, — replicou Wu Lien. — Não ouvi coisa alguma desde o dia em que a mãe dos meus filhos veio para cá, e nem mesmo sei como a senhora veio parar aqui.

— Vim naquela mesma noite, — explicou Ling Sao. Enquanto falava, raciocinava que este homem não sabia da morte de sua mãe e resolveu não lhe dizer o pior de tudo, mas apenas o que ele devia saber.

— Como você não tem visto o pai de meus filhos, sou eu quem deve dizer-lhe. Prepare-se para más notícias, meu genro. Sua mãe não existe mais. Ficou esmagada sob uma viga quando o inimigo entrou em nossa casa, e o meu velho a enterrou no campo, num caixão que ele próprio fez, botando um monte de pedras sobre ela. Pelo menos é o que me dizem as que vieram para cá depois de mim.

A mulher de Wu Lien pôs a manga sobre os olhos imediatamente, pois, ainda que já soubesse de tudo, era muito decente fazer uma demonstração de choro diante do marido, que também enxugava seus olhos rapidamente.

Mas, a esse tempo, os soldados já estavam cansados e agui-lhoavam Wu Lien nas nádegas com a ponta das armas, para demonstrar-lhe que desejavam voltar. Assim o choro teve que ser deixado para depois e Wu Lien não pôde sequer agradecer a Ling Sao por ter cuidado de sua mãe. E Ling Sao, ainda que não estivesse com medo, gritou-lhe pela porta:

— É seguro para minha filha ir consigo?

Wu Lien, que colocava a família na carruagem, reservando os dois melhores assentos para os guardas, gritou apenas como resposta:

— Sim, eu estou protegido e da mesma forma estarão todos os meus!

Logo partiu apressadamente e Ling Sao ficou ali com a mulher branca de quem tinha um pavor respeitoso, agora maior, pois ela a olhava com seus olhos amarelos, dizendo:

— Sinto por si, pobre mulher.

E saiu, deixando Ling Sao sozinha com o porteiro a quem perguntou:

— Por que ela diz que tem pena de mim quando há outras que sofreram muito mais?

— Porque, — explicou o porteiro, — o marido de sua filha vai passar a ser um cão de fila do inimigo.

— Então é por isso que ele estava vestido com a sua túnica vermelha e a jaqueta de veludo preto! — exclamou ela.

E o porteiro disse:

— Por isso mesmo.

E arreganhando os dentes, pôs-se a palitá-los novamente.

Com esse pensamento na cabeça Ling Sao voltou para o corredor em que estavam Orquídea, sua filha e seus netos, porque era um dia muito frio para andar ao ar livre. A chuva, que começara a cair, transformara-se em neve e Ling Sao ficou contente ao sentir a quentura do salão quando entrou nele. Quase não sentia o cansaço porque sua filha mais velha tinha partido em liberdade. Sentou-se e contou tudo à filha menor e a Orquídea, e quanto mais falavam tanto mais essas mulheres desejavam estar livres também.

"Eu poderia tragar melhor minha comida se visse meu velho", pensava Ling Sao. E refletia que seu marido e filhos não deviam estar passando bem porque, como toda boa mulher, acostumara-os a se sentirem desamparados sem ela. Ficou triste durante um momento, pensando como ficara imunda a casa, no trabalho que não poderia ser feito, e nos homens comendo a comida crua, fria, de qualquer maneira, pois nem sabia se alguns deles houvera jamais se detido para vê-la cozinhar o arroz, escaldar a couve, ou assar o peixe e a carne.

"Talvez ainda não haja carne para comprar", murmurou ela de si para si, "mas peixe eles podem apanhar na lagoa, quebrando o gelo, se houver. Mas saberão pelo menos que têm que tirar as tripas dos peixes? E, se souberem isso, saberão o que devem fazer em seguida?"

E na verdade houve, no aposento, um movimento desusado guando as mulheres souberam que uma delas tinha ido para casa. Entreolhavam-se e pensavam: "Os tempos devem ter melhorado," e cada uma murmurava para si mesma: "A próxima vez será minha, se meu marido tiver inteligência bastante para isso". E, assim, todas estavam ansiosas por partir e as mães perdiam a calma, dando surras nas crianças por faltas sem importância, que não teriam ligado em outros dias, de modo que, quando a noite chegou, metade das crianças estava berrando. Ling Sao praguejou e desejou ter coragem para voltar para casa sozinha nessa noite, mas não voltou.

Nem melhoraram as coisas pela chegada de uma carta da filha mais velha de Ling Sao, orgulhando-se dos belos quartos que tinha e que haviam pertencido a um homem rico, das honras extraordinárias que eram dadas a seu marido e contando que viriam melhor do que nunca, e que tudo era paz com eles. Por isso Ling Sao disse:

— Por mim acho que esse inimigo é melhor do que pensávamos. Certamente tem feito bons negócios com minha filha e seu marido, e além disso a cidade está agora muito segura e calma. Pelo menos o que podemos ver.

Ling Sao sabia muito bem que a filha escrevia tanto quanto ela lia. Tinha procurado uma professora nesta escola para ler-lhe a carta, uma mulher que não se casara e a única velha verdadeiramente virgem que Ling Sao já vira, pois quem poderá dizer o que as freiras dos conventos são? Ela supunha que Wu Lien tinha escrito a carta e nem sonhava de duvidar do que ela dizia, porque Ling Sao era uma dessas pessoas a quem basta ouvir dizer que uma coisa está escrita para acreditá-la. Mas a velha virgem disse:

— Eu não confiaria tanto nisso. Nós ainda ouvimos bastantes casos de pessoas mortas nas ruas e de mulheres violadas.

Isso foi dito por ela de nariz para cima e Ling Sao sorriu. Que saberia ela de mulheres violadas, pensou, mas não falou senão para perguntar curiosamente:

— A senhora é freira?

— Certamente que não, — respondeu a outra como se estivesse zangada. — Poderia ter casado muitas vezes, porque os casamenteiros me procuravam mais vezes do que posso me lembrar. Mas eu preferi o saber e os livros a tudo mais.

— A mulher de um filho meu é como a senhora, — disse Ling Sao, — mas está para ter um filho.

— Ah! fez a mulher, como se aquilo não lhe significasse coisa alguma.

E não significava mesmo, de maneira que Ling Sao afastou-se depois de agradecer-lhe pela leitura.

Então Ling Sao contou as boas novas da carta às suas duas filhas. Orquídea espalhou entre as outras mulheres e o burburinho cresceu. Ora, ninguém estava mais cansada dos muros desse lugar do que Orquídea, porque era um lugar muito calmo para ela, com aquele edifício cinzento, os relvados macios ainda amarelecidos pelo inverno, e silêncio em toda parte, o dia inteiro, exceto duas vezes por dia, quando era interrompido pelo som de um hino cantado num pequeno templo, onde elas poderiam ir se desejassem ouvir a religião estrangeira. Orquídea fora lá uma vez mas não mais voltara porque não podia compreender coisa alguma do que era dito e o canto parecia-lhe mais uma lamentação. Além disso, a comida que elas comiam era a mesma todo dia, depois de um certo tempo não tinha mais sabor e ela queria algo mais agradável para sua boca. Na vila, Orquídea acorria sempre ao ouvir a pequena campainha que os vendedores de doces tocam para avisar a sua presença, e ela comprava os pauzinhos de cevada enrolados em sementes de gergelim ou pedaços de gergelim com açúcar preto. Porém, mais que tudo, apreciava uma espécie de doce chamado cowhide, porque podia ser mastigado durante muito tempo, e ela o ficava mastigando pelo menos durante meio dia. As crianças não tinham sossego também, porque estavam sem brinquedos e choramingavam pelos cachorros e bonecos de massa que os vendedores levam de uma vila a outra com os moinhos de vento e homens e mulheres de açúcar. E também se lembravam de que haviam possuído papagaios e lanternas em forma de coelhos, peixes e mariposas, e aqui não tinham coisa alguma.

Assim, quando Orquídea ouviu como a cunhada estava bem, pensou lá consigo: "A cidade está em paz novamente. E não há motivo para que eu não saia uma manhã dessas, para ver o que há nas lojas. Posso mesmo visitar minha cunhada e então, se tudo parecer bem, mandarei um recado por alguém para o pai de meus filhos e voltaremos para casa novamente".

Mas não disse coisa alguma a quem quer que fosse, porque era dessas mulheres cabeçudas que nunca falam aos outros sobre o que fazem. Assim, uma manhã, alguns dias depois, quando o menor dos seus filhos estava dormindo e o outro brincando, ela bocejou diante de Ling Sao e mentiu assim:

— Eu dormi mal esta noite, de maneira que vou para a minha cama deitar-me um pouco, se a senhora não se importa de tomar conta das crianças.

— Durma se quiser pois não há nada para fazer, — replicou Ling Sao um tanto asperamente.

Tinha encontrado um pouco de algodão e um carretel edistraía-se fiando a fibra branca. Ela era uma mulher que trabalhava em qualquer coisa, em qualquer parte e se não havia trabalho inventava-o, de modo que, agora, trabalhava com ostentação, porque sabia que Orquídea não era como ela.

Orquídea sorriu, entrou no edifício, saiu pela outra porta e, seguindo o muro, dirigiu-se ao portão de saída, sabendo, de antemão, que, a estas horas, o porteiro fechava a porta e ia para a sua casinha fazer sua refeição. Não havia pessoa alguma que a pudesse ver e ela puxou a tranca da porta bem devagar, para que o porteiro não a ouvisse, fechando-a depois que pisou na rua, de modo que, se ele olhasse pela porta da casa, pensaria que ainda estava trancada. Era tão bom estar ali fora, que ela se sentia como um pássaro posto em liberdade. Tinha ainda algum dinheiro no peito que, por acaso, estava com ela quando Ling Tan tinha ordenado a todas para sair de casa. Assim desceu a rua, sentindo-se feliz nessa manhã, e havia muito pouca gente porque ainda não era meio-dia. Fazia um dia brilhante, claro e frio, o ar forte penetrava-lhe pelos pulmões quando ela respirava, e tudo em torno parecia em paz.

"Como ficará surpreendida a mãe do meu marido", pensou ela, "quando eu voltar e falar-lhe da paz que vai pela cidade e que agora não há mais razão para não voltarmos para casa! De qualquer modo eu não passarei da primeira loja que encontrar e voltarei".

Assim ela continuou, sem saber que estava sendo observada pelo inimigo, desde que saíra pelo portão. Ora, tinham sido baixadas ordens superiores para que nenhum mal fosse feito abertamente, nas ruas, mas o que fosse executado atrás de muros ninguém iria saber, e quando Orquídea passou perto de um mictório, desses que são encontrados em todas as ruas principais, cinco soldados inimigos caíram sobre ela. Estavam mesmo esperando que uma mulher solitária passasse por ali para puxá-la para dentro. As mulheres eram muito raras agora, pois quem se arriscaria a sair sozinha nestes dias? Quando viram Orquídea julgaram-na uma cortesã porque parecia muito alegre. E na verdade tinha um rosto redondo e macio, corpo roliço, boca vermelha e cheia. Seguraram-na rapidamente, regozijando-se por um momento e começaram a discutir, para ver quem a teria primeiro.

Orquídea era dessas mulheres que vivem muito quando são amadas e cuidadas mas que não resistem ao infortúnio. Olhando para aquelas caras, negras de luxúria, sentiu-se fraca. Um após outro aqueles homens satisfizeram sua vontade sobre ela, sem que nenhum passante ousasse chegar até lá para salvá-la, pois viam que lá dentro havia cinco soldados com suas armas encostadas ao muro, e ela ficou desamparada como um coelho sobre o qual caíram os cães ferozes. Ela gritou e bateram-lhe. Um deles pôs-lhe a mão sobre o nariz e a boca; ela lutou um momento mais, porém logo sua vida extinguiu-se como a de um coelho e o último homem teve que usá-la já morta. Quando eles acabaram, deixaram-na ali mesmo e se foram.

Só então os poucos passantes, penalizados, ousaram entrar e cobriram o pobre corpo, imaginando donde viera ela. Contemplavam-na pensando quem era.

— É uma camponesa, — disseram. — Tem um ar de aldeã e, vejam, usa o cabelo atado com um alfinete de prata, como as nossas mães costumavam usar e está vestida com uma saia de seda preta, fora de moda. É do campo e não sabia como estão os tempos na cidade.

Todos esses transeuntes eram homens, pois nesses dias não se via uma mulher pelas ruas, de modo que não sabiam o que haviam de fazer com aquele corpo. Ninguém ousava levá-lo para casa porque poderia ser acusado de morte e, por fim, uma cabeça mais sábia do que as outras disse:

— Vamos levá-la para a mulher branca, pois ninguém irá acusá-la, e ela poderá enterrar o corpo se ninguém reclamá-lo.

Assim chamaram uma ricksha e, ainda que o homem não tivesse muito boa vontade de transportar tal carga, tomou o caminho mais curto ao ouvir falar no nome da mulher, pois esperava uma boa gorjeta, e chegou logo à porta que, pouco antes, Orquídea tinha aberto com tanto prazer. Estava fechada agora. O porteiro tinha acabado sua refeição e, como sempre fazia, quando não tinha o que fazer, palitava seus dentes, sentado num banco, quando ouviu uma batida no portão. Levantou-se, abriu e quando viu Orquídea exclamou em voz alta:

— Mas, esta mulher era uma das que estavam abrigadas aqui!

— Por que a deixou sair? — lamentaram os homens.

— Eu não deixei, — jurou o porteiro. — Não deixei mulher alguma sair.

Então começou a passar pela sua mente o que tinha acontecido, e a razão por que ele encontrara o portão aberto quando voltara. Imaginara que estava ficando esquecido e o deixara assim, e tinha-o trancado apressadamente. Pensara que estava ficando muito velho e ficara contente, pois não havia pessoa alguma que pudesse ver o que ele tinha esquecido.

— Ela deve ter passado enquanto eu estava comendo, — disse. E correu para a mulher branca, porém fechando a porta rapidamente antes disso.

Foi encontrar a mulher branca fazendo as suas preces. Quando ela viu o que tinha acontecido, seu rosto pálido tornou-se mais severo.

— Fizeram muito bem em trazê-la — disse a todos, — pois ela esteve aqui durante muito tempo com a mãe e a irmã do seu marido. Os seus filhos também estão aqui. Vou mandar chamar seu marido.

Assim todos foram embora, contentes porque o perigo ficara com ela. Mas o mais contente era o homem da ricksha pela gorjeta que recebera.

Quando todos tinham ido, a mulher branca ordenou ao porteiro que chamasse outros para ajudá-lo a levantar a pobre criatura que estava no chão do templo, para colocá-la sobre uma mesa comprida e baixa. Ela permaneceu ali até que ele veio com outros e levantaram Orquídea. Então, vagarosamente e pensativamente, ela foi procurar Ling Sao e, com poucas palavras, gentilmente, contou-lhe o que havia acontecido.

A princípio Ling Sao julgou que a mulher branca tivesse confundido Orquídea com algumas das muitas mulheres que procuravam refúgio nesta casa.

— Está enganada, mulher, — disse ela. — A esposa do meu filho está dormindo na sua cama e eu estava pensando em ir chamá-la, porque seu filho acordou e ela já dormiu metade do dia.

Sem qualquer transformação no rosto a mulher branca disse:

— Venha comigo.

E puxando Ling Sao pela manga, levou-a ao templo. Lá, sobre a mesa baixa, Ling Sao viu que na verdade era Orquídea quem estava morta e prorrompeu em lamentações sem, contudo, poder compreender como aquilo havia acontecido.

— Mas eu a vi não há duas horas. Ainda estava gorda e viva! — choramingou ela.

Então a mulher branca contou, com as suas poucas palavras, o que supunha haver acontecido e Ling Sao ficou ouvindo.

— Deve ter sido isso mesmo, — chorou, — deve ter sido essa coisa tola que essa pobre boba fez. Sempre foi cabeçuda e cheia de segredos atrás desses sorrisos e dessa brandura. Por isso encontrou a morte. Oh, por favor, chame meu marido e meu filho, pois não sei o que fazer sozinha!

— Eu pensei que deveria querer tê-los aqui, — disse a mulher branca. — Esta noite mandarei um mensageiro pela porta dos fundos, quando estiver bem escuro. Desde que está morta é inútil arriscar uma vida por ela, mandando alguém durante o dia.

E ainda sem uma lágrima, sem qualquer mudança na sua face, chamou um dos servos do templo pedindo-lhe que trouxesse um pano, cobrisse Orquídea e ficasse de guarda a ela durante o dia até que se decidisse o que fazer. Ao choro sentido de Ling Sao ela não deu mais atenção do que se se tratasse da manha de uma criança, e por fim Ling Sao suspirou:

— Isso é tão penalizante. As duas crianças ficaram sem ninguém a não ser eu. Como acharei uma nova esposa para meu filho em tempos como estes? E apesar disso, mulher branca, os seus olhos continuam secos!

— Tenho visto muita dor, — retrucou a mulher branca com sua voz pálida e clara. — Acho que nada mais será capaz de me fazer chorar, ou rir. — Ergueu os olhos, parecendo ver qualquer coisa que Ling Sao não podia ver. — Creio que meu coração não se agitará mais até que eu chegue à presença do meu Senhor, — disse ela.

E agora Ling Sao parou de chorar porque estava espantada.

— Mas me disseram que nunca foi casada! — exclamou ela.

— Não, nunca fui, nesse modo terreno que você pensa, '— tornou a mulher branca, — mas eu me entreguei a Deus, o único Deus verdadeiro e algum dia Ele me chamará a Si.

Ling Sao ficou tão espantada com o que ouviu que as lágrimas secaram nos seus olhos e ela pôde apenas murmurar "O-mi-to-fu", para se proteger da magia estrangeira.

— E você, — continuou a mulher branca pondo os olhos pálidos sobre Ling Sao e atravessando-a com a sua luz, — Deus quer você, também, minha cara. Pode ser que Ele tenha lançado penas sobre você para amaciar seu coração a fim de levá-la a Ele.

E a isto Ling Sao ainda se tornou mais espantada e começou a recuar afastando-se da mulher branca.

— Deve dizer-lhe que eu não posso ir, — disse apressadamente. — Eu tenho o meu marido e agora mais essas duas crianças; sou uma mulher cheia de afazeres e nunca deixei minha casa antes disso.

— Na sua casa mesmo você pode servir a Deus, — disse a mulher branca.

E enquanto falava aproximava-se de Ling Sao. Esta estava, agora, inteiramente aterrorizada e parecia-lhe que a outra se tornava cada vez mais alta, por alguma mágica, elevando-se sobre ela como se fosse uma torre branca. Ling Sao deu um grande grito, correu para fora do templo, passou pelo gramado, entrou no aposento em que estavam as mulheres e crianças, e ali, arfando e chorando, contou-lhes tudo sobre Orquídea e como o deus da mulher branca tinha-lhe causado a morte.

O curto tempo que ela levou contando bastou para que as mulheres ficassem assustadas, julgando que o deus estrangeiro iria matar a todas. Houve tal pânico que as criadas ouviram o barulho e acorreram, inclusive a tal professora que nunca havia casado, e disseram tudo que podiam dizer para restabelecer a calma, e explicar às mulheres o que a mulher branca queria dizer. Mesmo assim elas não acreditaram inteiramente e, se não fora o que acontecera a Orquídea, por sair de casa, as mulheres todas teriam corrido para fora. Mas desejavam que, pelo menos, a mulher branca não se aproximasse mais delas, até que pudessem ir para casa em segurança.

Pelo tempo que tudo isso levou para acontecer já se aproximava o crepúsculo. Ling Sao pôs as crianças para dormir e elas dormiram, pois eram ainda muito novas para saberem o que era ter sua mãe morta. Ling Sao sentou-se ao lado delas, fraca por causa de tudo que havia acontecido e por não ter comido, e esperou que Ling Tan e seu filho viessem. A meio caminho entre o por do sol e a meia-noite, ela ouviu passos, ergueu a vista e lá estava o porteiro, junto à porta aberta, fazendo-lhe sinais. Levantou-se imediatamente e abriu caminho entre os que dormiam. Lá fora, na escuridão fria, estavam os dois homens por quem ela esperava. Nunca sentira tanto bem-estar na sua vida. Começou a chorar outra vez e se voltava de um para outro, soluçando e gemendo.

— Oh! meu marido, o que foi que caiu sobre nós? Oh! meu filho, que poderei fazer por você?

A mulher branca já havia encontrado os dois homens e contara-lhes o sucedido. Neste momento apareceu outra vez e, à vista dela, as lágrimas de Ling Sao secaram, mas não tinha medo, agora que sentia o marido ao seu lado.

— Venham comigo, — disse a mulher branca.

E eles seguiram até o quarto em que ela fazia as preces e lia seu livro sagrado. Sentaram-se quando ela lhes pediu. Disse-lhes que, se desejassem, poderia arranjar um caixão para Orquídea e enterrá-la ali mesmo.

— Quando os tempos melhorarem vocês poderão levá-la e pô-la na sua própria terra, — disse ela, — se é que isso os torna mais felizes.

Eles se entreolharam e Ling Tan falou pelos outros.

— Não encontraríamos nenhum caminho para sair da cidade com um caixão e um corpo. Temos que concordar e agradecer-lhe. A sua bondade está muito além da nossa compreensão e não poderá ser encontrada nem mesmo em torno dos quatro mares.

— Não há mérito algum em mim, — respondeu a mulher branca. — Faço isso em nome do verdadeiro Deus a quem sirvo.

A isto nenhum dos dois replicou, pois ninguém, a não ser Ling Sao, sabia o que queria dizer e Ling Sao ficou amedrontada novamente e decidiu que voltaria nessa mesma noite com Ling Tan. Quando ele se levantou para ir ela também se levantou.

— Vou para casa com você, — disse-lhe.

— Já não, — respondeu ele. — Os tempos ainda não estão calmos e não sei o que será da nossa vida com esses senhores que nos governam.

— Eu vou com você, — tornou ela teimosamente.

Ora, ele conhecia sua mulher, e pela aparência daquela face escura e redonda sabia que nada poderia fazer para conservá-la ali depois de ter dito que iria.

— Maldita seja, filha teimosa de uma mãe teimosa, — disse ele, — poderei ser culpado se a desgraça cair sobre você?

— Caia sobre mim o que cair não culparei ninguém a não ser eu mesma, — disse ela.

Mas ele ainda não estava decidido a concordar.

— Que fazer da nossa filhinha? — perguntou. — Vai deixá-la aqui sozinha?

Ling Sao ficou confundida mas a mulher branca tomou a palavra por ela.

— Se vai embora, — disse, — deixe sua filha comigo. Nos bons tempos tínhamos uma escola aqui mas, agora, a escola foi mudada e todos os alunos estão uma milha rio acima, na terra livre. Acontece que amanhã outros alunos irão para lá num navio estrangeiro. Serão guardados por dois dos meus camponeses e suas esposas. Ela estará segura e quando a quiserem de volta é só vir buscá-la.

Os três se entreolharam, pensaram o que fazer e Ling Tan mais uma vez falou por todos.

— Se os tempos fossem normais nós nem pensaríamos em fazer isso, pois poderíamos cuidar da nossa filha e casá-la com um homem às direitas. Mas quem terá coragem de casar agora ou tomar em sua casa uma moça, mesmo que seja para dá-la ao seu filho? Que seja como diz, mas mande nos dizer de vez em quando se ela ainda vive.

— Ela aprenderá a escrever e mandará dizer por si mesma, — retrucou a mulher branca bondosamente.

E a isto os outros nada disseram. Nos velhos tempos Ling Tan teria rido ao pensar numa filha sua aprendendo a ler e a escrever, mas agora, nestes tempos em que as famílias estavam todas separadas, é que ele podia ver a utilidade dessas coisas.

Durante tudo isto o filho mais velho não proferira uma palavra e o tinham esquecido quando, de repente, ele falou pela primeira vez.

— Quero ver mais uma vez aquela que foi a mãe dos meus filhos, — disse num sussurro.

Ora, ninguém tinha dito nem ele perguntara como Orquídea morrera, e, de súbito, Ling Sao pensou que seria melhor que ele não soubesse tudo.

— Deixe-me ir primeiro, meu filho, — disse, e esqueceu-se do medo porque agora ela era mãe e ele era filho.

— Pode vê-la, — concordou a mulher branca como que adivinhando o que ia pelo coração de Ling Sao; e disse: — Lavei-a, pus-lhe roupas frescas e agora ela descansa em paz.

Assim falando, guiou-os, tirando o lampião da mesa, ao sair, e Ling Sao seguiu-a, envergonhada de ter tido medo dessa mulher tão bondosa. Enquanto estivera contando seus temores às outras, a mulher estivera fazendo tanta coisa por Orquídea. Seguiu-a humildemente e, em silêncio, entraram no templo onde Orquídea ainda se encontrara. A mulher branca ergueu a coberta do rosto da morta e o marido a viu. Não havia ferimento nessa face serena, os lábios macios e carnudos estavam fechados, semi-sorrindo, e tinha a aparência que tivera tantas vezes à noite, na cama do seu marido. Quando este olhou, as lágrimas lhe subiram pela garganta, encheram seus olhos e desceram-lhe pela face. E havia lágrimas nos olhos de todos exceto nos da mulher branca.

— Cubra-a, — disse.

A mulher branca cobriu-a.

Saíram então e enquanto Ling Sao voltava ao aposento principal para acordar as crianças, Ling Tan e seu filho ficaram dentro da noite, esperando, e o pai sentia a dor do filho, ouvindo o seu pranto. Afastou-o um pouco dali, pois a mulher branca estava esperando também, e lhe disse:

— Chore todo o pranto que haja no seu coração, mas não se esqueça de que todo pranto cessa. Você é jovem e, algum dia, encontrará outra mãe para os seus filhos.

— Não fale nisso agora, — replicou o filho.

— Não falarei, — disse Ling Tan. — Mas não se esqueça disso. O rapaz não respondeu, mas o pai sabia que havia sugerido alguma coisa: não diminuir seu próprio pesar pela esposa, porém mostrar que sua vida devia continuar pelo amor à família. Dentro do aposento Ling Sao estava vestindo as crianças com todas as suas roupas e, enquanto fazia isso, falava a Pansiao, dizendo que ela permaneceria ali.

— Não precisa ficar com medo, — disse, — e se eu estava com medo esta tarde, era tolice, porque foi a própria mulher branca quem lavou e vestiu Orquídea, e diz agora que você vai deixar esta cidade para ir a um lugar seguro, a uma escola, para aprender a ler e escrever.

Mas, a despeito de tudo, ela não conseguia perceber porque Pansiao não estava com medo e nunca sonhou a verdade: que esta pequena que trabalhava em casa, tão silenciosamente, desejava, embora não soubesse como consegui-lo, ir para uma escola.

— Não vou ficar com medo, mamãe, — disse Pansiao.

— Escreva, assim que aprender, — disse-lhe Ling Sao, — que pediremos ao primo em terceiro grau para ler para nós o que você escrever.

— Escreverei, mamãe, — concordou Pansiao.

E seguiu a mãe até à porta, carregando a criança menor, enquanto Ling Sao carregava a maior, pisando macio por causa das que dormiam.

Quando Ling Tan viu sua filha ordenou-lhe, também, que fosse obediente e bem comportada. E, voltando-se para a mulher branca, entregou-lhe a filha com estas palavras:

— À sua bondade entrego esta minha filha que não vale nada. É um presente pequeno mas é minha carne e meu sangue, de qualquer maneira. Em minha casa damos mais valor às filhas do que nas outras casas, e esta foi a última que tivemos. Se ela não for obediente, mande-a de volta e nos perdoe.

Pela primeira vez Ling Sao viu a mulher branca sorrir, avançando e tomando a mão da pequena.

— Eu penso que ela será obediente, — disse.

E então, com curvaturas e agradecimentos, eles partiram, Ling Tan com seu neto mais novo e Lao Ta com seu filho mais velho nos braços, e dirigiram-se para o portão. Mas o coração de Ling Sao bateu mais uma vez por sua filha, ela olhou para trás para vê-la uma vez mais e, à luz do lampião que a mulher branca sustentava, viu o rosto da menina voltado para o da mulher. E ouviu que esta perguntava à filha:

— Você será feliz conosco?

E viu que a face da pequena se enchia do prazer mais puro enquanto respondia:

— Serei muito feliz.

Caminhavam juntos através da noite. Era duro como a estrada andar no escuro, pois eles temiam acender uma luz que permitisse ao inimigo vê-los e perguntar-lhes onde iam e porque. Mas Ling Sao sentia uma satisfação enorme no seu íntimo, pois estava voltando para o lar. Sabia que uma parte da casa fora destruída porque vira com seus próprios olhos, mas pensava que talvez seu marido a tivesse tornado melhor do que era. Assim, seu coração esperava ver a casa como quando fora feita ou, pelo menos, como era depois de usada e antes que o inimigo chegasse. E Ling Tan nem pensara em dizer-lhe como a casa estava, abatido pela morte de Orquídea e por aquilo que ainda não dissera à sua esposa — que o terceiro filho tinha ido para as montanhas.

Durante todo esse longo caminho para casa ele ficou remoendo seus pensamentos, para saber quanto deveria dizer a ela sobre a ida do rapaz e quanto não deveria dizer. Em sua hesitação entre o que deveria e o que não deveria dizer a ela, — pois sabia que Ling Sao possuía uma certa argúcia que a deixaria perceber, primeiro, que estava escondendo alguma coisa e, segundo, o que estava escondendo — ele ficou alheio até que chegou diante da sua casa. Parecia-lhe que jamais fizera essa viagem da cidade tão depressa, embora tivesse a criança nos braços e fosse noite.

Ling Sao correu, através da eira, para a porta, da porta para o pátio, do pátio para dentro de casa e acendeu o lampião de óleo de feijão que ela sabia estar no lugar certo, em cima da mesa. Havia uma espécie de mesa lá mas não era mais que uma tábua que Ling Tan cruzara sobre dois paus que enfiara na terra e, quando ela percebeu isto e viu tudo que a luz lhe mostrava, prorrompeu num choro alto.

— Onde está tudo que eu tinha? — gritou, olhando em torno. — Onde estão nossas cadeiras, e a mesa comprida? Oh, eu pensei que você tivesse consertado tudo e endireitado as coisas!

E enquanto chorava seus olhos ávidos procuravam tudo que possuíra e marcava a perda de todos os objetos.

— Onde está o meu par de aparadores que eu trouxe da casa de papai? Foram embora também? Nem encontraremos sequer um par de bancos para por juntos?

Os dois homens já se tinham acostumado aos aposentos como eles estavam e quase haviam esquecido as outras coisas, pois que eram homens e seu trabalho diário não era o de limpar, arrumar e usar as coisas pelas quais ela lamentava agora e que se orgulhava de possuí-las. Eles ficaram de pé, como idiotas, segurando as crianças, enquanto ela corria de quarto em quarto, gemendo e vendo que isto e aquilo havia sumido. Até que se sentou e se pôs a chorar por tudo. E os homens tiveram que deitar as crianças que dormiam e consolá-la. Tentaram tudo que podiam para consolá-la, cada qual deixando de lado sua própria dor.

— Oh, que poderei fazer nesta casa! — gemia Ling Sao, — e que possuo eu para andar de cabeça erguida entre as outras mulheres? Fui acostumada a ter a melhor casa, o melhor de tudo e agora não tenho coisa alguma!

Mas sem saber ela estava chorando por mais do que isso. Ela chorava porque estava cansada, porque seus filhos estavam mortos e espalhados e porque, de algum modo, ela sabia que esse mundo, em que devia continuar sua vida, nunca seria igual ao velho mundo em que ela tinha vivido e amado. Parecia que, depois que começara a chorar, nada mais poderia consolá-la; os dois homens a abandonaram por fim e o filho entrou no seu quarto. Ling Tan amaldiçoou primeiro que as mulheres dessem tanta importância a coisas de madeira e enfeites de louça. E depois amaldiçoou a guerra porque, afinal, isto também era a guerra.

— Malditos todos esses homens que vêm ao mundo para transtorná-lo com guerras! — exclamou. — E sejam malditos por destruírem nossos lares, macularem nossas mulheres e encherem nossa vida de medo e a tornarem vazia. Malditos esses homens infantis, que [não acabaram as suas brigas quando eram crianças e querem continuar a ser garotos quando já estão crescidos, arruinando com as suas brigas a vida de gente decente como nós! Malditas todas as mulheres que trazem à luz os homens que]fazem guerra e sejam malditos também as suas avós e todos os seus parentes!

E assim, com a face enegrecida, rouco, ele amaldiçoou a si mesmo. De repente pôs-se a chorar também, sabendo que, mais cedo ou mais tarde, a esposa iria perguntar-lhe onde estava o terceiro filho. Quando ela o viu chorando lembrou-se de que era uma esposa, e, limpando os olhos no casaco, aproximou-se dele, pôs-lhe a mão no ombro e disse:

— Calma, meu velho. Eu sei que tenho sido uma velha áspera com você, mas nunca mais serei assim. Estou em casa novamente e, aconteça o que acontecer, não irei mais embora. Você e eu ficaremos juntos em nossa casa; atormente-nos o inimigo, mas ficaremos!

Assim, ele parou de chorar, enxugou os olhos e ela ficou junto a ele como se o estivesse escutando. Então levantou a cabeça, ainda escutando, e perguntou aquilo que Ling Tan sabia que ela perguntaria.

— O nosso filho dorme tão pesadamente que não ouviu sua mãe chegar?

Então ele percebeu que não poderia ocultar coisa alguma e que era melhor dizer-lhe tudo. Se, na verdade, ela fosse permanecer aqui e se deviam juntos suportar o que viesse — e fosse o que fosse não seria boa coisa — então a carga deveria ser a mesma para ambos. E ele contou-lhe pesadamente, com muitas paradas e suspiros, daquela noite em que o terceiro filho tinha partido. Ela ouviu sem uma palavra, sem um som, até que ele terminou. E nada mais perguntou.

— Ao menos ele vive, — disse.

— Ao menos vive, — repetiu Ling Tan.

Dirigiram-se para o quarto e se deitaram para dormir, vestidos como estavam. E Ling Tan ponderou duramente que, depois de tudo, nessas noites solitárias, não lhe viera desejo por esta mulher a quem sabia amar.

"Isso é mais do que cansaço, ainda que eu esteja muito cansado," pensou ele. "Sinto agora que essas coisas entre homem e mulher devem ser feitas limpidamente para que um homem decente possa pensar nelas."

E dirigindo-se a ela:

— Estas tábuas são mais duras que a nossa cama grande, mas os inimigos cortaram fundo o tecido da cama e eu não encontrei o rotim das canas para emendá-lo.

Mas ela disse apenas:

— Que me importa essa cama, as mesas, as cadeiras, os bancos ou qualquer dessas coisas?

Então ele percebeu que, finalmente, ela fora ferida profundamente e que nada poderia feri-la mais.

Contudo, os céus continuavam imutáveis sobre todas essas desgraças, o Sol brilhava da mesma forma, a Lua subia e sumia, as estrelas continuavam brilhando, havia nuvens e chuvas, e a estação passou, como sempre, do inverno à primavera, e a vida continuou. E suas próprias vidas continuavam.

Houve um dia bem comprido depois que Orquídea morreu, a filha mais moça partiu e Ling Sao voltou para a casa em ruínas. Foi quando passou na vila uma pessoa que não poderia ficar nela e deixou uma carta nas mãos de Ling Tan. Esta carta Ling Tan abriu. E, ainda que não pudesse compreender todo o significado antes de levá-la ao primo em terceiro grau, ele entendeu sua mensagem principal. Pois assim que desdobrou o papel, de dentro do envelope um laço de seda vermelha trançada caiu na sua mão fazendo-o dar um grito e correr, casa a dentro, para encontrar Ling Sao. Ela estava atrás do fogão quebrado, que consertara com barro, e ele ergueu a fita vermelha para que ela visse. Ao seu grito o filho mais velho saiu do quarto onde, pacientemente, dava de comer ao filho mais novo a papa que Ling Sao fizera, com água e arroz que ela própria amassara, no moinho, a braço. E mesmo ele, cuja face ainda estava escurecida pelo pesar, soltou uma exclamação de alegria.

Lá, na casa arruinada, com a vila meio destruída, e sem esperança no futuro, pois o inimigo os governava com a mesma crueldade de sempre, os três tinham os corações vibrantes porque, em algum lugar que não podiam precisar, nascera um filho homem para Lao Er e Jade.

 

Fora uma alegria no meio de todos os seus dissabores. E no dia seguinte, mal se haviam lavado e comido, eles foram à casa do primo em terceiro grau. Ling Tan puxou a carta que guardara no peito e pediu-lhe que a lesse.

Ora, uma carta não era uma coisa insignificante na vila, mesmo nos bons tempos, e não houvera carta desde a vinda do inimigo, de modo que não era direito lê-la descuidadamente. Primeiro, antes de sentar-se, o primo lavou a cara e as mãos, enxaguou a boca e a mulher dele abandonou a cabeceira da cama do filho para escutar a leitura, contando logo o fato a um vizinho. E esse vizinho contou a outro. De modo que, pelo tempo em que o primo tinha lido a carta para si mesmo e ruminando-a um pouco para assegurar-se de que a compreendera, aprontando-se para lê-la em voz alta, havia dez ou doze homens reunidos para ouvi-lo.

Por fim tudo estava pronto e Ling Tan e sua esposa esperavam pacientemente, o que não era uma coisa fácil, pois o rapaz que havia sido ferido já começava a apodrecer e o mau cheiro na casa era difícil de suportar. Mas eles o suportavam, ansiosos como estavam de saber notícias do filho e do neto, e de Jade mesmo. O primo limpou a garganta, sorveu um gole de chá, levantou a carta, e, olhando em torno com superioridade, pois era o único que sabia ler e todos dependiam dele nesse momento, elevou a voz clara, começando:

"Honrados pais! Esperamos que estejam bem, que tudo aí vá em segurança como sempre e para o nosso irmão mais velho e sua família os nossos respeitos, e para todos os outros nossos melhores votos. Esperamos que tudo esteja tão bem como sempre".

Aqui Ling Sao limpou os olhos e exclamou:

— Valem muito pouco os seus melhores votos agora!

Mas Ling Tan fez-lhe um sinal para ficar quieta e o primo prosseguiu:

"Desde que abandonamos nossa boa casa e vimos os seus rostos pela última vez, viajamos bem umas mil milhas. Estamos agora onde paramos para o nascimento da criança, mas não ousamos permanecer aqui pois todos dizem que o inimigo continua avançando. Contudo, se o senhor, honrado pai, puder nos dizer como e quando o inimigo chega, se ele não é muito mau, nós permaneceremos aqui porque há trabalho para ser feito e eu, seu pior filho, posso puxar uma ricksha o dia inteiro e ganhar duas vezes o que um letrado ganharia porque, agora, os trabalhadores é que recebem salários mais elevados." A isto a mulher do primo gritou para o marido:

— Eu sempre disse que o saber não vale nada! Veja agora, velho, se você fosse bastante forte para puxar uma ricksha, o que poderíamos fazer. Mas não, sua barriga está cheia de tinta e eu sempre digo que é por isso que você fede tanto!

O primo não pôde suportar esse insulto ao seu orgulho e disse:

— Mas quem leria esta carta agora para contar as novidades, se não fosse eu?

Olhou em torno para os companheiros que acenaram, concordando com ele, e continuou:

"O seu neto nasceu no último dia do décimo terceiro mês, um pouco antes do tempo porque a mãe dele andou muito. Mas a criança está bem forte e podem ficar descansados quanto a ela. Quando os tempos estiverem bons voltaremos com ele para mostrá-lo aos senhores".

— Quando será isso? — perguntou Ling Sao.

 Mas o primo prosseguiu:

"Se os tempos piorarem subiremos o rio e de lá escreveremos novamente. Se nos mandarem carta, deixem-na aos cuidados de Liu, o oitavo irmão, na loja que fica na esquina do mercado do Peixe com a Rua da Agulha."

Aqui o primo terminou.

— É tudo? — perguntou Ling Tan.

— Só há mais o nome e a despedida, — respondeu o primo. Agora que a carta terminara e os seus espíritos estavam livres

novamente, todos sentiam o mau cheiro e Ling Sao perguntou à mulher do seu primo como ia o filho; a mulher suspirou, dizendo que ele já estava cheio de bichos e que o aspecto não era bom. Pediu a todos que entrassem para vê-lo, dizer o que pensavam e dar conselhos se tivessem para dar. Assim todos se levantaram, e entraram no quarto onde se achava o rapaz. Aí o mau cheiro era impossível de suportar e todos levaram a mão ao nariz.

Ninguém pôde aproximar-se do jovem, que estava negro e amarelo como se tivesse fumado ópio a vida inteira. E todos suspiraram quando ele voltou os olhos moribundos para eles e se apressaram a sair do aposento. Ora, a mãe percebeu que nenhum tinha esperanças e começou a soluçar. Depois que todos saíram ela escondeu o rosto na parede e chorou. Nem mesmo se consolou quando Ling Tan e sua mulher se demoraram, dizendo-lhe para que não chorasse, pelo menos até que o rapaz estivesse verdadeiramente morto. Só fazia soluçar:

— Se eu devo chorar, chorarei porque está como morto, pois sua barriga está cheia de vermes e logo eles vão comer seu coração. Que posso fazer?

Recusou consolo e eles a deixaram.

Quanto ao rapaz, o resto de vontade que ele tinha de continuar vivendo dissipou-se ao ouvi-la falar assim e, não mais do que uma hora depois, ele voltou o rosto para a parede e abandonou essa vontade. E quando a mãe entrou, tudo que vivia no corpo do filho eram as varejeiras.

Quando Ling Tan ouviu o que havia sucedido suspirou e disse à mulher:

— Eu penso que nenhum bem viria desse rapaz e, sem dúvida, teria virado um bandido como os outros que nos roubam hoje em dia, mas, por que haveria ele de morrer se há outros homens maus que continuam vivos? Ele tinha sua vida para viver também e o inimigo a tirou. Agora, dia a dia, cresce em mim um tal ódio por esse inimigo e por todos os homens que trazem guerra à gente boa e inocente, que juro que não poderei mais suportar esse ódio se não expandi-lo de qualquer maneira.

Ling Sao ficou com medo ao ouvir isto e pediu:

— Não se encha de ódio, pois, se assim for, ficará com o sangue envenenado, cairá doente e o que restará para mim?

E ele sabendo que ela tinha razão, prometeu que afastaria tais coisas do pensamento e que se ocuparia arando o solo para a primavera. E assim fez, agradecido porque a terra continuava ali, e por poder sentir o ciclo de trabalho mitigante que a terra reclama em cada estação.

Mas o que Ling Tan não sabia era que, no momento da morte do rapaz, a mulher do primo em terceiro grau odiaria a ele e não ao inimigo, pois ainda pensava que o filho estaria vivo se tivesse casado com Jade, e murmurava à noite para o marido:

— Se Jade fosse sua mulher não teria deixado que ele fosse à cidade naquele dia. Não, e ele mesmo não quereria sair de casa por causa dela. Ou pelo menos eu teria um neto agora e esse filho que Jade teve seria nosso e não de Ling Tan. Diante dos deuses ele é nosso, não de Ling Tan, e ele nos roubou a pior coisa que um homem pode roubar de outro que é a carne e o sangue. Agora não temos ninguém para adorar os nossos ossos depois que desaparecermos e estamos amaldiçoados para sempre.

O marido encolheu-se na cama ao ouvir essas palavras pois sabia que, no fundo, não havia a mínima razão nelas, mas, como era um homem de paz, não quis chamar a raiva dela sobre si. Suspirou apenas que estava com dor de cabeça e queria que ela o deixasse dormir. Como resposta ela deu-lhe uma pancada nas costas e ele, incitado na sua coragem, deu-lhe também um tapa, mas fraco, e perguntou:

— Eu não era o pai e não sinto também? Eu sinto mais porque esse foi o único filho que você me deu, mas eu podia ter tido uma centena de filhos durante esses anos em que desperdicei toda a minha força.

Diante disto a mulher ficou tão furiosa que começou a dar-lhe pontapés, pois o que ele dissera era verdade. Tornara-se estéril devido a uma febre que tivera logo ao nascer o primeiro filho, e, com o seu mau gênio, ela não permitira que o marido tivesse uma concubina, mesmo que ele conseguisse arranjar dinheiro para mantê-la, coisa que nunca acontecera. E, ainda que ele também a espancasse uma vez ou outra, ela batia-lhe mais, e ele resolveu levantar-se finalmente. Deitou-se num banco no outro quarto, e ficou pensando porque as mulheres eram como eram, invejou os monges, eremitas e todos esses homens que não têm necessidade de mulher e ficou sonhando um velho sonho: algum dia iria embora e seria um monge.

Mas mesmo esse seu sonho insignificante era destruído agora, pois a maior parte dos templos era esvaziada dos seus sacerdotes nestes dias e soldados os enchiam. E ele temia soldados como temia sua esposa, de modo que ficou deitado no banco estreito, sentindo como era desgraçada sua vida. Era um pobre homem que queria apenas um pouco de paz. Mas, agora, não havia paz em parte alguma. E para ele também, na sua existência humilde, não havia paz.

Em sua casa Ling Sao sentia que o vazio era muito grande. Estava acostumada a todos os aposentos cheios de filhos e netos, à noite, gente dormindo em cada quarto e uma mesa repleta durante as refeições, com ela própria muito ocupada: agora só havia os homens e as duas crianças. E mesmo essas crianças estavam silenciosas, cheias de medo por alguma coisa que não conheciam. Não podiam sair de casa e ficavam sentadas, de mãos dadas, o mais velho parecendo um pequeno ancião. Estavam magros, amarelos, e se encolhiam ao ouvir qualquer barulho.

Quanto ao pai, que costumava ser tão fácil e alegre, agora falava muito raramente, porque, na verdade, esse filho de Ling Tan era um homem inadaptável a estes tempos.

Teria prosperado naquela boa vida a que estava acostumado, ter-se-ia tornado um velho calmo e gentil, respeitado na vila pela sabedoria, e pai de muitos filhos que o amariam pela sua bondade. Mas, nestes tempos, em que nada ia bem, não sabia o que fazer e conservava-se imóvel tanto tempo que parecia, algumas vezes, quase sem vida. Ainda não havia esperança de encontrar alguém que tomasse o lugar de Orquídea e, se às vezes ficava contente por não tê-la encontrado, pois temia mais filhos e mais desgraças. Assim andava ele pelos caminhos, tão triste quanto o búfalo, fazendo o que era mandado e fatigando-se sobre a terra, para trás, para diante.

Muitas vezes Ling Tan olhava-o pensando: "Mais do que qualquer outra a vida dele foi destruída pela guerra," e então Ling Tan caía em um dos tremendos acessos de raiva que ele tinha, agora, contra todos os homens que provocavam guerras. Enquanto arava para trás e para diante sobre os campos, com o ódio dentro de si, olhava para as casas da vila meio arruinadas e para a sua própria casa que não ousava consertar para não atrair o inimigo. Em torno dele, pelo vale, todas as vilas estavam desoladas. E no outro lado da cidade, ele não tinha visto mas haviam contado, a própria terra estava estragada, queimada e estéril. Essa boa terra que durante séculos de paz fora tão rica para as plantações! Nunca as guerrilhas internas tinham espoliado a terra, a não ser pelos impostos que subiam muito, e precisando ela dar mais frutos. Mas mesmo isso se conseguia, pondo-se mais estrume, enriquecendo o solo que retribuía esse bem.

Para trás e para diante, durante toda essa primavera, enquanto Ling Sao enfeitava a casa, Ling Tan enchia o coração de raiva contra os homens que faziam as guerras, onde quer que estivessem. E sabia, por ouvir dizer, que esses homens estavam em outros países, também, e ele, pensando nos estrangeiros do outro lado da sua terra, imaginava se eles sofreriam o que estava sofrendo e refletia: "Nós, homens de paz è bom senso, estando no alto da terra ou pendurados debaixo dela no outro lado, devemos reunir-nos e proibir de viver todos os homens que fazem a guerra. Sim, quando virmos uma criança que gosta disso, devemos trancá-la até que esteja domesticada."

E quanto mais refletia mais se assegurava de que apenas uma espécie de homens fazia guerra, e que, se esses homens fossem postos de lado de qualquer maneira, haveria paz. Tais eram os seus pensamentos, nesse dia, mas, que poderia fazer ele, um homem apenas sobre a Terra? Contudo, disse para si mesmo: "Não haverá outros como eu?"

Foi uma primavera sem alegria e as datas festivas se passavam sem que Ling Sao fizesse festas. E em nenhuma outra parte se faziam festas também, pois' como pode um povo regozijar-se quando um inimigo o governa? A casa estava tão silenciosa que Ling Sao tomava-se irritada, a sua pele ficava cheia de comichão e ela sentava-se e ficava se cocando devido ao seu mau humor. Por fim o próprio Ling Tan notou isso e perguntou-lhe, uma noite, no terceiro mês desse ano infeliz:

— Por que você fica sentada se cocando, esfregando o nariz e sacudindo os braços desse modo?

E ela explodiu em palavras como se fosse uma garrafa a que se tirasse a tampa:

— Nossa casa está como um cemitério e agora eu sei que nunca deveríamos ter deixado que o nosso segundo filho e Jade fossem embora. Nosso filho mais velho está desalentado, e o que farão essas duas pobres crianças se acontecer alguma coisa a nós que já somos velhos?

Ele ouviu isto e maravilhou-se de que, vivendo tantos anos juntos, nunca adivinhava o que iria sair desta mulher.

— Você pediria ao nosso segundo filho para trazer Jade de volta para cá? — perguntou ele gravemente. — E poderíamos dizer-lhes para trazer nosso neto de uma terra livre para esta que pertence ao inimigo?

— Enquanto vivermos não será do inimigo, — respondeu ela. — É aí que você está errado, meu velho. Só deixará de ser nossa se formos embora, abandonando-a. Isso, porém, nós não faremos, nem nossos filhos fariam. Mas, se morrermos, como será mantida a terra?

Havia senso no que ela dizia e Ling Tan era muito justo para não desprezar senso, mesmo quando partia de uma mulher, de maneira que disse:

— Continue falando, velha, que eu escuto./

Acendeu o cachimbo para manter a calma, ainda que o tabaco fosse precioso nestes dias e continuasse a sê-lo até que ele fizesse sua pequena colheita.

— O que eu digo é que nosso filho deve voltar para cá e continuar vivendo como costumava viver, — disse ela, — pois não nos devemos render ao inimigo. Nós já cedemos deixando que os nossos filhos partissem e o inimigo pensará que temos medo se todos os homens moços forem embora e só ficarem os velhos.

Outra vez ele sentiu a verdade no que ela dizia, fumou um pouco e depois falou:

— Mas as probabilidades são tão más! É verdade que as mulheres agora andam mais seguras do que no ano passado, pois as cortesãs são muitas, dizem, e os piores soldados inimigos já foram embora. Mas há outros males ainda.

— Que males? — perguntou ela.

Ela não afirmara, uma vez, que não tinha medo de homem nem teria enquanto vivesse? E havia males piores do que os homens?

— Há rumores de que nós, plantadores, vamos ficar sujeitos a leis mais severas, — disse ele, — e como poderemos recusar obedecer ao inimigo se não temos armas?

— Se há esses males diante de nós, nossos filhos deveriam estar aqui para nos ajudar a suportá-los, — tornou ela. — Quando escrever a carta ao nosso segundo filho fale isso.

— Qual! — disse ele.

E nada mais disse; porém, nessa noite ficou pensando muito tempo sobre o que a mulher havia dito. Aquilo era uma semente que ela tinha lançado naquele modo semi-infantil de todas as mulheres. Uma verdade que ela dissera, não pela própria verdade, mas pelo desejo simples de ver o neto. Ele porém era um homem e podia tomar a semente, fertilizá-la com seu pensamento, tornando-a um fruto. E assim fez.

"Se é verdade que esse inimigo vai se espalhar sobre a terra como uma praga," pensou, "será direito que fujamos diante dele, deixando-lhe a terra? Alguns fogem porque não têm coragem de ficar, mas há outros que são fortes e permanecem. E não serei um desses? Ela não está com a razão quando diz que todos os filhos deviam estar aqui, mas está certa quando afirma que o filho mais velho não pode viver aqui sozinho. Porque não pode mesmo. Mas o meu filho mais moço não pode estar aqui, pois tem coisas melhores para fazer noutra parte, e o meu filho mais velho não será igual a mim? Se é, tem que ficar aqui e conservar a terra junto comigo. Ele e eu, e outros como nós, devemos permanecer no lugar a que pertencemos, manter o que é nosso da melhor maneira que pudermos e atormentar o inimigo como as pulgas atormentam um cão, picando-lhe o rabo, mas de tal forma que o animal nem consiga parar para morder o traseiro.

Riu silenciosamente à sua própria piada e Ling Sao exclamou:

— Por que você está aí sentado e rindo sozinho como um velho idiota, em dias como estes?

— Ainda não posso lhe contar, — falou ele.

E não lhe contou. Porém a semente já tinha germinado no seu cérebro e estava deitando folhas.

Mas foi tão má essa primavera que a sua coragem quase morreu e ele esteve prestes a chamar o segundo filho. E chamaria se o verão não tivesse lançado sua calamidade sobre a casa. E esse desastre era pior do que as novas taxas que o inimigo havia lançado sobre as terras, pior do que as leis que eles haviam feito sobre o preço do arroz ou sobre o que devia ser plantado, e pior do que toda essa tirania que Ling Tan jamais pensou pudesse existir sobre a Terra. E o desastre foi este: tantas pessoas haviam morrido nesse ano que tinha sido impossível enterrar todas e, para livrar as ruas dos corpos, aqueles que não podiam ser enterrados eram atirados nos canais ou no rio. Quando o rio se encheu, na primavera, e penetrou pelos canais, os corpos foram puxados e, com mais alguns trazidos das outras cidades, foram deixados sobre os charcos. E a doença de toda essa carne podre caiu sobre o povo, atingindo a gente pobre que comia caranguejos alimentados com aquela carne. E quando o calor do verão chegou, as febres se espalharam por toda parte.

E onde iria a doença se espalhar senão pela casa de Ling Tan? Ela caiu lá mais pesadamente sobre o mais novo e mais fraco. Todos estiveram doentes durante dez ou mais dias, mas as duas crianças caíram primeiro e, ainda que os três adultos as tratassem com todo cuidado — e o vômito saía deles como se fosse água — mesmo assim as crianças morreram. Ling Sao teve que se voltar para um lado, vomitando, enquanto segurava o mais novo, tornando-lhe a morte mais fácil. Eles morreram, os dois, e com eles se extinguiram as esperanças que Ling Tan nunca adivinhara alimentar, e Ling Sao chorou como jamais chorara. Esses avós haviam estado tão confundidos e agitados que pouco se importavam com as crianças, deixando-as fazer o que bem entendiam dentro ou fora de casa, porque agora todos tinham que sofrer. Mas, quando elas deixaram de viver, os velhos sentiram que suas próprias vidas os tinham abandonado.

— Que nos resta agora? — gemeu Ling Sao. — O que é uma casa onde não há crianças?

Quanto ao filho mais velho, o pai das crianças, nem chorou nem gemeu. Mas se arrastou em torno da casa como a sombra de si mesmo, e quando os dois foram enterrados, seus pais melhoraram e seu próprio fluxo parou. Um dia, pediu aos pais que o perdoassem porque ia embora durante algum tempo.

— Mas para onde vai você? — gritou sua mãe.

— Nada sei, a não ser que devo ir, — disse ele com sua voz triste.

Então, Ling Tan pôs-se a considerar, pensando em algum lugar a que seu filho mais velho pudesse ir, um lugar em que eles, pelo menos, tivessem esperança de tornar a vê-lo. Assim, pôs o cérebro a trabalhar rapidamente e disse:

— Se você deve ir eu quero que dê a volta pelas montanhas e veja se encontra seu irmão mais moço para nos dizer como vai ele. Eu sempre fico com medo de que ele tenha ido aos ladrões e não aos homens bons da montanha. Encontre-o e, se ele estiver com esses maus indivíduos, conduza-o de novo ao bem.

Isto, pensou, seria uma tarefa para o rapaz e era melhor que ele tivesse uma tarefa do que partir sem objetivo e em desespero. E ao mesmo tempo poria um fim à sua dúvida sobre o terceiro filho.

— O senhor ordena que eu faça isso? — perguntou o filho mais velho.

— Sim, — respondeu Ling Tan.

— Então devo obedecer, — tornou o filho.

Assim, dentro de poucos dias, depois que Ling Sao lavou sua roupa e coseu, dentro do bolso do casaco, algum dinheiro que restava a Ling Tan, eles o viram partir, uma colcha enrolada nas costas, sandálias novas nos pés, e comida para um ou dois dias.

— Como irá você se arranjar com todo o trabalho na terra, agora? — perguntou Ling Sao ao marido.

— Eu não sei, — disse ele, — mas não tive coração para impedi-lo de ir.

— Só há uma coisa a fazer, — disse ela. — O Céu mostrou a sua vontade. Você deve escrever ao nosso segundo filho e chamá-lo de volta.

Ling Tan voltou-se para ela, um ligeiro sorriso na face.

— Está certa de que é apenas a vontade do Céu, velha? Não me parece tê-la ouvido tentando reter o nosso filho mais velho.

Mas ela respondeu:

— Foi vontade minha deixar as crianças morrer? E não havia sorriso no seu rosto.

O sorriso desapareceu da face de Ling Tan e ele disse tristemente:

— Bem, eu sei que isso não foi por sua vontade.

Observaram o filho descer a estrada e dirigir-se para as montanhas até que desapareceu. Agora estavam verdadeiramente sozinhos. Entraram na casa silenciosa, onde nunca haviam estado sozinhos, porque os filhos de Ling Tan haviam nascido antes da morte dos seus velhos pais. Assim o que acontecia agora jamais acontecera antes. Em tal silêncio Ling Sao nunca poderia viver e ficou pedindo:

— Por que não escreve a carta agora? Porque não escreve a carta hoje? Eles podem levar um mês ou mais para vir.

— Espere, — respondia ele, um dia após outro, — espere.

E ela teve que esperar até que o pensamento ficasse inteiramente maduro no seu espírito, de modo que estivesse seguro da sua sabedoria. E esse dia chegou. Quanto mais refletia sobre as desgraças da guerra tanto mais se assegurava de que a guerra deveria ser sobrevivida por homens como ele, determinados a viver sua vida a despeito de tudo. Seu segundo filho era mais semelhante a ele do que qualquer dos outros, e devia existir alguém como ele para continuar vivendo. Porque sabia que essa guerra não seria uma luta breve. Este inimigo não iria abandonar facilmente suas conquistas e a guerra podia continuar até aos filhos dos filhos ou mais, e eles deveriam ter força para viver, viesse o que viesse.

Quando haviam passado sete dias que Ling Tan estava sozinho na terra, esses pensamentos tomaram uma forma definida em seu cérebro e o disse à esposa quando ela se levantou, no oitavo dia.

— Hoje vou mandar a carta para o nosso segundo filho. Então ela foi tomada de grande contentamento, esmerou-se na comida e disse a ele:

— Você deve tomar um ovo fresco para ficar forte, — e, tirando da cesta o ovo mais novo que tinha, quebrou-o numa xícara e fê-lo beber, antes da refeição matinal. Logo depois de comer ele se dirigiu à casa do primo.

Ao sentar-se na casa do primo, dizendo-lhe o que escrever para o seu segundo filho, Ling Tan bem sabia a carga que tomava sobre si. Ling Sao viu somente que iria ter o filho de volta e um netinho que ainda não vira e que era mais precioso, agora que os outros dois tinham morrido. Se havia algum medo secreto nela, escondia-o de si mesma pensando que, ao menos, o pior da desordem tinha passado, os soldados mais vis tinham sido refreados ou mandados conquistar outras cidades e, ainda que os tempos fossem maus e o povo se mantivesse de cabeça baixa diante do inimigo, era possível viver, pelo menos.

Mas Ling Tan via mais longe e mais claramente. Conhecia seu próprio temperamento e o temperamento do segundo filho e sabia que eles não eram homens para obedecerem como escravos a todas as ordens do inimigo. A perspectiva não era boa para homens livres, ele sabia, e, por isso, fez longas pausas na carta, cocando a cabeça raspada, pensando sobre o que deveria dizer ao filho, enquanto o primo esperava, com o pincel úmido entre os dedos. Algumas vezes o pincel secava antes que Ling Tan pensasse, e o primo tinha que molhá-lo na boca novamente, até que ficou com a boca cheia de tinta.

— Diga ao meu filho, — falou Ling Tan por fim, — que ele deve compreender que não voltará para a paz, pois não pode haver paz. O que tem acontecido pode ter sido bem mau, mas o que irá acontecer talvez seja pior. Que poderemos dizer? Ele e eu devemos endurecer nossos corações para suportar o que dificilmente pode ser suportado.

O primo escreveu isso e esperou, chupando o pincel. Logo Ling Tan prosseguiu:

— Diga-lhe que eu e sua mãe estamos sozinhos, que os meus outros filhos foram para as montanhas, que a mulher e as crianças do meu filho mais velho morreram e que a nossa filha mais moça foi embora com a mulher branca. Mas ele não deve voltar e arriscar-se pelo fato de estarmos sozinhos. Diga-lhe que a mãe quer que ele volte, porque a casa está vazia, mas eu só quero que ele venha se sentir o que eu sinto — que, maldito seja o inimigo, eu e ele devemos conservar nossa terra enquanto eu viver e, quando eu morrer, ele deverá guardá-la com o seu filho. Até que venha o dia de o inimigo abandonar nosso campo.

O primo parou então para perguntar:

— Se esta carta cair nas mãos do inimigo, eles virão aqui, a esta vila, para destruir a nós todos?

— Não vou mandar esta carta pelo caminho comum, mas por um mensageiro, até à fronteira, — disse Ling Tan para dar-lhe coragem de prosseguir.

Havia homens que iam e vinham, através da fronteira, das terras livres para esta tomada pelo inimigo, fazendo um comércio desse vaivém. Vestiam-se como mendigos, lavradores, ou velhos cegos que andavam tocando suas campainhas, parando para contar histórias e cantar cançonetas. Fora por meio de um desses homens que a carta do filho tinha chegado a Ling Tan.

Assim o primo continuou a escrever, desconfiado e, quando a carta terminou, leu-a para Ling Tan, para assegurar-se de que dissera tudo que pretendia. E Ling Tan, lutando para discernir o significado das coisas entre os floreios que o primo pusera por sua conta, ouviu o bastante para ficar certo de que seu filho compreenderia o que queria dizer. Sabia, também, que o filho conheceria logo que a carta havia sido escrita pelo primo, que não era capaz de meter um pincel num papel sem deixar as coisas sábias mas inúteis escaparem dele — velhos ditos dos clássicos, trechos de poesias e todas essas coisas tolas que a língua dos homens sensatos têm por bem nunca pronunciar.

"Ele verá o que é meu e o que é do primo," pensou Ling Tan, "e não posso censurar este homem, apenas porque ele gosta de fazer sua exibiçãozinha." Assim a carta ficou pronta e Ling Tan esperou para vê-la lacrada. Então tomou a carta consigo porque, se a deixasse, o primo poderia pensar noutras coisas para dizer e confundir o sentido mais do que já estava, pois, além das palavras cultas, tinha escrito todas as suas próprias notícias — como tinha morrido seu filho, que a vila estava meio destruída — e Ling Tan só podia confiar na perspicácia do filho, que deveria descobrir o significado verdadeiro da carta.

Com a missiva enrolada num lenço e guardada seguramente, Ling Tan e sua esposa esperaram alguns dias, até que achassem algum dos que iam e vinham. Para isso Ling Tan se dirigia sempre à casa de chá, principalmente à noite, pois os tais homens viajavam à noite e dormiam de dia. No quarto dia viu um jovem que, pelo seu aspecto parecia o que procurava e, dirigindo-se a ele, disse em voz baixa:

— Se vai para a fronteira quer levar uma carta para meu filho?

O homem assentiu, Ling Tan disse-lhe onde vivia e, depois do crepúsculo, ele veio até à casa. Ling Tan introduziu-o e os dois comeram juntos uma refeição que Ling Sao preparara. Enquanto comiam o jovem contou muitas coisas que não sabiam — que do outro lado da fronteira, na terra livre, um grande exército estava se reunindo para enfrentar o inimigo, como aquela muralha que os imperadores haviam, um dia, construído no Norte. Mas esta era uma muralha de carne humana, de duas milhas de comprimento e muitas de largura, algumas vezes dez, mas no mínimo uma ou duas. E contou que nessa terra livre havia escolas, minas, moinhos e fábricas e que as milhares de pessoas que haviam fugido para lá, vindas das terras tomadas pelo inimigo, estavam, agora, determinadas a não mais fugir.

Tudo isso encorajou Ling Tan e, embora nem ele nem Ling Sao sentissem desejo de partir, pois sua terra era aqui e não lá, disse:

— Sinto que o meu coração fica mais leve ao ouvi-lo contar essas coisas. Quando vier o dia em que o exército marchar para a frente, eu estarei aqui, meu filho estará comigo, se ele vier, e este pedaço de terra continuará sendo nosso, porque nunca o abandonaremos.

Então entregou a carta ao jovem e tentou dizer-lhe como conheceria Lao Er, mas Ling Sao o deteve.

— Você não o conhece como eu, — disse ela, — que carreguei-o nas minhas entranhas. Ele tem uma mancha debaixo do olho direito, mas é muito pequena, de modo que você deve procurá-la. Tem os olhos maiores e mais pretos do que qualquer outro. Tem o rosto quadrado, como o do pai, mas a boca é maior do que a minha. A sua altura não é mais do que a normal, mas tem os ombros quadrados e a barriga das pernas redonda. Tem um grande corte no dedo grande do pé direito porque, quando tinha apenas doze anos, ficou com o pé preso na relha do arado que até pensei que tivesse ficado sem o pé, mas amarrei-o com um pedaço de avental que rasguei, e era um avental novo, mas eu o rasguei, pois ele não era meu filho? E uma vez ele foi queimado no couro cabeludo e ficou com um lugar careca mas ele o cobre com o cabelo e você tem que procurá-lo. Ling Tan riu diante disso e disse:

— Você pensa que é assim que ele vai procurar nosso filho, minha velha? Não lhe dê atenção, rapaz, ela é como todas as mulheres. Os seus filhos são diferentes de todos os homens na Terra. Eu digo que ele é um homem agradável de se olhar mas não demais. Não é como o nosso terceiro filho que é tão bonito como uma moça e estou satisfeito que não seja.

Ling Sao inclinou o rosto e, no silêncio, o rapaz disse que precisava continuar o seu caminho.

— Quanto tempo vai passar antes que a carta vá ter às mãos do meu filho? — perguntou Ling Tan.

— Não posso dizer, — replicou o jovem. — Se eu for feliz, em menos de um mês. Mas nem sempre sou feliz.

Assim, despediram-se. Ling Tan deu-lhe dinheiro e Ling Sao um embrulho de pão com carne e lhe disseram para* vir dormir ali nas suas idas e vindas. Ele agradeceu e partiu sem sequer lhes dizer o nome. Nem eles perguntaram, porque, nesses tempos, era melhor não conhecer um homem pelo nome, pois, quando fossem perguntados pelo inimigo, poderiam dizer: "Eu nem sei o nome dele".

Com a carta enviada, Ling Tan e sua mulher nada mais tinham a fazer senão esperar e, nesse ano, ela, sozinha, auxiliou Ling Tan no seu trabalho na terra. O arroz tinha sido plantado no princípio do verão e estava indo bem, mas não podiam deixá-lo tão livre das ervas daninhas como Ling Tan o conservava nos outros anos. E o búfalo tinha que passar muitos dias sem grama, pois não havia ninguém que pudesse levá-lo a pastar. Contudo, os dois, marido e mulher, faziam o melhor que podiam para preservar a terra. Ela .mesma abandonara a casa e só preparava uma refeição quando chegavam em casa, à noite.

Mas eles falavam muito de como seria quando Jade e o filhinho estivessem lá e, um dia, Ling Sao disse que deveriam ter um esconderijo, pois não queria jamais tornar a se esconder na cidade, em casa da mulher branca. Deviam ter um lugar que fosse deles mesmos para usar quando necessário.

— Mas onde? — perguntou Ling Tan. — Seu pensamento é tão bom como um ovo, mas arranje a galinha choca.

— Eu ficarei sentada em cima dele, por enquanto, — disse rindo Ling Sao.

Ela pensou durante alguns dias e disse:

— Poderíamos cavar por baixo do chão da cozinha, atrás do fogão e, depois sob a parede da casa e sob o pátio. Nós, agora, não temos tempo de tecer e, se tivéssemos, não acharíamos onde vender o pano e poderíamos tirar os caixões das portas e vigas do quarto de tear, para construir outro quarto debaixo do pátio. Depois poderíamos cobrir o buraco com uma tábua e botar palha em cima.

Ele a louvou tanto pela idéia que ela se tornou envergonhada.

— Não é uma grande idéia, — disse modestamente.

— É! É sim, — afirmou ele. — Muitas mulheres deixariam o cérebro ficar ocioso, enquanto trabalhassem nos campos, mas eu sempre percebi essa diferença entre você e as outras. O seu espírito nunca fica parado. E eu digo que nunca sei o que vai sair quando você fala. Por isso nunca me canso de você, minha velha.

Ela cobriu a boca com a mão enquanto sorria, pois, ainda que comumente esquecesse a falta de dois dentes da frente, que não tinha havia muitos anos, sempre se lembrava dessas brechas quando o marido a elogiava, e cobria a boca até que ele a esquecesse novamente e não a visse, embora olhasse para ela.

Os dois começaram a cavar o buraco nessa mesma noite. Era uma noite de verão, muito quente, e o solo atrás do fogão estava batido e adquirira a dureza de uma rocha por causa das muitas mulheres que, geração após geração, haviam ficado agachadas ali para proverem a alimentação dos seus. Com todo o suor, trabalhando até não poder mais, Ling Tan e a mulher não conseguiram cavar mais do que um palmo.

— Os jovens terão que nos ajudar a terminá-lo, — disse ele, tremendo de cansado.

— Mas nós podemos torná-lo fundo bastante que dê para me esconder antes de eles chegarem, — sugeriu ela.

Assim, todos os dias, eles não davam por terminado o trabalho diário se não adicionavam algumas polegadas de profundidade ao buraco, que se tornou o grande consolo das suas vidas, enquanto esperavam pela chegada do filho e do neto, e lhes dava a esperança de esconderem, não só eles próprios, em caso de necessidade, mas também o arroz que crescia nos campos.

Um dia, para terror de Ling Tan, ele viu, enquanto trabalhava nos campos, um bando de inimigos que se aproximava como uma sombra do mal. Ficou firme enquanto eles se avizinhavam, certo de que sua vida chegara ao fim, pois havia alguns soldados armados. Mas quando um deles começou a falar percebeu que não tinham vindo matá-lo. Esse inimigo tinha um livreto e uma pena e fez muitas perguntas a Ling Tan — qual era seu nome, há quanto tempo vivia ali, quanta terra possuía, e quanto arroz iria colher. Em seu temor Ling Tan disse mais do que queria, diminuiu a colheita para muito menos de que, sabia, ela daria, pois estava acostumado aos taxadores. E como o inimigo que lhe fazia as perguntas não conhecia o assunto, escreveu o que Ling Tan lhe afirmou. E disse em voz alta:

— Lavrador! Esse país nos pertence agora e você deve produzir, na sua terra, de acordo com o que ordenarmos. A colheita deve vir a nós e o preço que lhe dissermos deverá ser o preço. Não mais haverá compras e vendas de acordo com a vossa vontade, pois vamos estabelecer a lei e a ordem e tudo deverá ser feito de acordo com as leis.

Ora, Ling Tan era um bom sitiante e um homem fino. Assim, sabia que os preços têm que variar em cada ano, de acordo com o tempo, a safra, o número de pessoas comprando e vendendo, a quantidade de mercadoria que é levada e trazida de outras partes. E nunca se sabe, a princípio, o preço que o arroz ou a carne irá ter. Então ele disse, tornando a voz calma e gentil:

— Senhores, como pode ser decidido tão cedo o preço pelo qual vai ser vendido um cereal? Em nosso país o Céu costuma decidir essas coisas.

Então o homenzinho que era esse inimigo inchou, fechou a cara, apertou a boca e gritou para Ling Tan:

— Agora nós decidimos tudo, lavrador, e quem nos desobedecer não precisará da sua terra.

Ling Tan nada mais disse e, curvando a cabeça, fixou os olhos sobre a terra preciosa aos seus pés e respondeu a todas as perguntas. Disse-lhes que tinha um búfalo, dois porcos, oito galinhas, um tanque com peixes e patos, e que na sua casa só moravam ele e sua mulher.

O inimigo escreveu isso também, comprimiu a boca e disse mais uma coisa:

— No dia primeiro do mês começará o controle de todo peixe e só nós poderemos comê-lo. Você, lavrador, se pescar algum peixe em suas águas não deve comê-lo mas trazê-lo a nós.

— Mas o tanque é meu, — disse Ling Tan sem pensar, pois durante todos os anos de sua existência, desde criança, tinha pescado no seu tanque e isso constituía o principal alimento deles.

— Nada é seu! — soprou o homem. — Vocês, aldeões, nunca aprenderão que estão conquistados?

Ling Tan ergueu a cabeça novamente. Apertou os lábios sobre . os dentes para salvar a vida, mas olhou o homenzinho nos olhos. "Não," diziam seus olhos, "nunca aprenderemos que estamos conquistados." "Não," sua cabeça erguida exclamava. "Não," afirmava o aspecto total daquele ser, diante daqueles homens. Mas a sua voz nada dizia, porque ele sabia que, vivendo, poderia conservar a terra e morrendo só teria como seu o espaço em que fosse enterrado.

O pequeno inimigo olhou para longe e disse em voz alta:

— Agora você está registrado, lavrador. E sua esposa, porcos, galinhas, peixes, búfalo, terra, tudo que é seu. Faça o que dissermos e viverá em paz.

Ling Tan nada disse ainda. E ficou ali, de cabeça erguida, o corpo firme, enquanto os homens se afastavam e os viu parar em todas as casas, em todos os campos em que havia homens trabalhando. Poucos trabalhavam este ano comparados aos que trabalhavam no ano passado, pois muitos jovens tinham ido embora e outros haviam morrido. Aqueles que trabalhavam eram como ele — acreditavam que deviam conservar a terra a qualquer preço.

E enquanto esses inimigos permaneceram à vista ele não entrou em casa. Retomou a enxada e prosseguiu no trabalho como se tudo aquilo nada representasse para ele, mas o coração com que trabalhava estava triste. Quando os inimigos partiram do vale, dirigindo-se para outro lugar, ele olhou em torno e viu que, de toda parte, os homens se dirigiam para a vila; colocou a enxada no ombro e rumou para lá também. Na casa de chá semi-arruinada eles se reuniram, entre trinta e quarenta homens, e cada qual falava do que o homenzinho lhe dissera. O arroz deveria ser vendido ao inimigo por um preço baixo e ninguém poderia comer peixe, mesmo que um deles saltasse do seu próprio tanque e caísse em suas mãos.

"Nunca vimos uma tal tirania", disseram, e houve pouca conversa nesse dia, pois ninguém sabia o que estava por vir e não adiantava falarem e ficarem com raiva antes de o saberem.

— Se pudermos suportá-lo, devemos suportá-lo, — disse Ling Tan por fim, exprimindo o pensamento de todos, — e se não pudermos suportá-lo devemos achar um meio de não suportá-lo. Mas devemos considerar a terra em primeiro lugar.

Eles concordaram com isso e se separaram. Todos tinham um só pensamento e não havia traidores entre eles.

Indo para casa, para comer a refeição do meio-dia, Ling Tan pensava para si mesmo que estava contente que seu filho viesse, pois, como poderia suportar viver sozinho através destes tempos? Os homens na vila o olhavam como um guia mas como poderia ele guiá-los se não sabia o que estava por vir? Eles precisavam de um guia jovem, forte e capaz de pensar o que fazer em tempos como estes, tão diferentes de todos que conhecera.

Na mesa do pátio vazio, ele e a mulher comeram juntos e ele contou a desgraça nova que os havia assaltado. Ao ouvir isso ela arregaçou as mangas e pediu-lhe que fosse a uma vila maior do que aquela para comprar todo sal que pudesse.

— Mas, para quê, velha? — perguntou ele espantado.

— Esses porcos devem morrer, — disse ela, — e metade das galinhas também. E já que não podemos comer peixe fresco comeremos peixe salgado.

— Eles nos matarão se descobrirem, — exclamou Ling Tan. Mas ela fez uma careta:

— Que podemos fazer se uma doença levar os nossos animais? — perguntou. — Eu irei pela vila e direi às mulheres que todos os animais têm que ficar doentes e você fará o mesmo quando for comprar o sal. A notícia voará de boca em boca entre os que ainda não pensaram nisso, mas você pode estar certo de que todas as pessoas que tenham um pouco de inteligência já pensaram nisso.

Ele arreganhou os dentes sem dizer mais nada e foi comprar o sal, mas, como havia muito pouco, teve que comprá-lo em vários lugares. Então, furtivamente, durante a noite, mataram, secaram e salgaram as galinhas e porcos. Deixaram a porca até que ,ela tivesse barriga e Ling Tan pô-la no quarto em que havia o tear, pois ali os bacorinhos não poderiam ser vistos.

"Eles, pelo menos, não estão registrados", pensou.

Trabalharam durante dias seguidos e, sempre que Ling Sao via qualquer um, com ares de inimigo, aproximando-se dela, escondia as carnes atrás do fogão, no buraco, que, dia a dia, tornava-se mais fundo. E nunca Ling Tan comeu tanta carne como nesse verão, pois havia umas partes pequenas que não podiam ser facilmente salgadas e o sangue com que Ling Sao preparava bolinhos. E coisa idêntica era feita em toda aquela região, de maneira que os cães da vila se tornaram mais gordos comendo as vísceras e os sobejos. A única dificuldade era a falta do sal. Então, subitamente, o sal surgiu de fontes desconhecidas. Foi trazido de alguma maneira por mãos estranhas, colocado nas lojas da vila e o povo o comprava contente, sem perguntar donde vinha. Sabiam que devia vir das montanhas.

O verão desse ano foi longo, pois Ling Tan e sua mulher esperavam o filho e o neto. Mas havia o buraco para cavar. Todos os dias eles olhavam a estrada e, à noite, levantavam-se e punham-se à escuta, e assim os dias se sucediam. Mais do que todos Ling Tan era hostilizado por aquele homenzinho inimigo que vinha à vila, algumas vezes acompanhado por soldados, outras vezes sozinho, e que lhe ditava o que devia e o que não devia fazer. Vinha e ficava cheirando a plantação ou olhando apenas. Agora ele já podia respirar na presença dos inimigos e podia ver que, ainda que tudo fosse mal, nem tudo era igual nesse mal. Aprendera também a ouvi-los e manter-se em silêncio.

"Esperarei até que meu filho chegue," pensava sempre. "Não farei nada a não ser ficar em silêncio até que meu filho chegue."

Algumas vezes os inimigos iam até mesmo à casa, mas Ling Sao já estava precavida, e tinha lugares para esconder a carne e o arroz e, se o buraco não era suficientemente grande, ela enfiava o que sobrava na palha dos lugares escuros, onde havia poeira. Sentava-se, parecendo uma mulher triste, velha e silenciosa, que ficava espantada diante dos estrangeiros e não parava de tocar a fibra de algodão branco. Se eles falavam, ela olhava para os seus lábios e pretendia ser surda, apontando para as orelhas, sacudindo a cabeça. Assim eles a deixavam. Nesses dias ela não cuidava de tornar o cabelo macio ou lavar o rosto e o sol tornou-lhe a pele parda, quase negra, mas ela a deixou assim.

"Quanto mais feia eu for, tanto mais seguro," pensava, contente porque agora o buraco já estava bem grande e nele caberiam pelo menos Jade e o filho.

Assim passou-se o verão e o calor desapareceu. Pensavam que qualquer desses dias o filho viria. E Ling Tan tinha esperanças que ele ainda chegasse a tempo para a colheita.

— Devemos escondê-lo do inimigo também, — dizia, — porque o inimigo obriga os jovens a trabalhar para eles e não podemos perder nosso filho.

Por isso projetaram meios de constante vigilância. O filho deveria aprender a trabalhar durante a noite e dormir de dia, enquanto eles vigiavam.

E, uma noite, chegou, finalmente, a hora por que eles ansiavam. Aproximadamente à meia-noite, foram distraídos do seu sono e correram ao pátio. Ouviu-se uma batida fraca na porta e Ling Tan deu um salto para diante, pronto para escancarar a porta, na certeza de quem estava lá, quando a mulher, que segurava o lampião, preveniu:

— Espere. Deixe-me primeiro apagar a luz porque, se não forem eles, poderemos fugir, e se forem eles ninguém poderá vê-los.

Ele foi derrotado outra vez pela rápida reflexão da mulher e esperou que ela apagasse o pequeno lampião. Então abriu a porta. À luz desmaiada das estrelas eles viram duas figuras.

— Papai!

Era a voz do segundo filho. Ling Tan e a mulher ouviram-na. E como eles puxaram esses dois para dentro! No escuro os levaram para a cozinha onde não havia janelas, fecharam a porta, Ling Sao reacendeu o lampião e puderam entrever-se. Ali estavam eles, Lao Er e Jade, mas pareciam dois homens, porque Jade estava com o cabelo cortado bem curto, usava roupas de homem, seus pés nus estavam enfiados em sandálias masculinas e seu rosto estava tão magro e bronzeado que mesmo aqueles que a tinham conhecido poderiam passar por ela na estrada e julgá-la um colono. Mas Ling Sao estava morrendo por ver a criança.

— Onde está meu neto? — exclamou. — Onde está o meu pudinzinho de maçã?

Então, sorrindo, Jade tirou a carga das costas e lá, cuidadosamente escondido sob uma cesta, estava o menino por quem Ling Sao esperara. Ela não pensou em ninguém, em nada. Tomou-o nos braços, a face tremendo, as lágrimas descendo por elas, desataviando a criança, examinando-a toda.

— É exatamente como eu pensei que seria, — murmurou, erguendo-o, apertando-o contra o ombro, balançando-o para frente e para trás. — Oh! como isso me alivia, — suspirou. — Oh! como fico consolada segurando-o assim!

E os outros ficaram à sua roda, sem dizer nada, pois toda alegria é feita parcialmente de dores e ninguém jamais conheceu uma alegria profunda que não viesse precedida pela dor. Quanto a Jade, sentira-se, pela primeira vez, satisfeita por todo o perigo que atravessara com a criança. Ela não quisera voltar, mas prosseguir ainda mais em direção ao oeste e havia discutido acre-mente com Lao Er se deviam ou não obedecer à carta que lhe chegara às mãos por meio de muitas outras: Porque o rapaz que primeiro recebera a carta das mãos de Ling Tan fora alvejado pelo inimigo e morrera. Mas, antes do último suspiro, entregara tudo que tinha a um outro. Não somente a carta de Ling Tan mas muitas outras cartas, e, principalmente, as mensagens secretas que eram sua verdadeira obrigação. Eram mensagens entre os que governavam as terras livres e os que estavam nas montanhas. Assim, por um caminho e outro, a carta de Ling Tan chegou ao seu destino.

Quando a leram Jade sacudiu a cabeça.

— Nós, que somos jovens, devemos seguir para diante e não voltar, — disse. — Abandonamos o lugar por causa da criança e devemos levá-la para lá agora?

Mas Lao Er retrucou:

— Quando partimos, o meu irmão mais velho estava em casa, meu pai tinha dois filhos a seu lado e podíamos pensar em nós mesmos. Mas agora, esses filhos morreram, os velhos estão sozinhos, e irá o nosso filho cuidar de nós algum dia se nós abandonamos nossos pais? Não podemos esperar o bem, se fazemos o mal!

Então ela concordara, finalmente, e começaram a jornada. Contudo, cada passo seu era dado de má vontade e só agora, pela primeira vez, ela se sentia ligada a esta família e ao marido, porque compreendia que um filho não nasce apenas para aquela que o carrega dentro de si, mas para todos que o precedem numa família. E, assim, não procurou retirar o filho, ciumenta, como algumas mulheres fariam. Deixou que Ling Sao se satisfizesse com ele, e ficou ali, gozando a adoração da criança que amava.

Quanto ao menino, vira tantas caras estranhas desde que nascera que não tinha medo de nenhuma. E nenhuma, seguramente, o olhara tão bondosamente como essa velha, com cara de bronze, enrugada. Como ele tinha dormido a maior parte do dia nas costas de sua mãe e estava bem alimentado com o leite dela, pois Jade tivera o cuidado de amamentá-lo antes de chegar a casa, de modo que ele não chorasse logo, sorria de contente. Quando Ling Sao pô-lo sobre os joelhos e disse a Ling Tan que segurasse o lampião para que ela pudesse contemplá-lo, a criança riu e puxou-lhe o botão do casaco. Ling Sao ria e chorava e entre risos e lágrimas, não podia falar, e Ling Tan pensou que ia ficar sufocada. Ficou assustado e, dando ao filho o lampião para segurar, gritou-lhe:

— Guarde o seu coração, minha velha! Ele parece que arrebentou a âncora aí dentro de você. Perderá o juízo dentro em pouco. Muita alegria é tão ruim quanto muita dor.

Enquanto falava tirou-lhe a criança, e ordenou a Jade que pusesse um pouco de chá para a mãe do seu marido e Jade assim fez. Ling Sao bebeu-o, enxugou os olhos, e, dessa maneira, seu coração voltou ao lugar. Só então Ling Tan deu-lhe a criança de volta e a verdade é que ele também gostava de ter esse seu neto nos braços, porque o corpo dessa criança era firme e duro, tinha as coxas gordas e fortes, o peitinho largo e os ombros quadrados.

— Não é um garoto comum, — disse ao filho. — Olhe para o seu rosto como é quadrado. E como tem a boca quadrada também!

Então ele viu que o filho olhava orgulhosamente para Jade e ela o olhava também orgulhosamente, e compartilhou daquele orgulho mútuo.

— Que poderá o inimigo fazer quando a nossa família for assim? — exclamou Ling Tan.

E, na verdade, esse menino rijo da geração futura pôs ânimo em todos e a casa voltou à vida com ele.

Assim, finalmente, eles foram capazes de se locomover. Ling Sao levantou-se, com a criança atravessada nos quadris — e como era bom senti-la assim — e Jade auxiliou-a a esquentar a comida, enquanto Ling Tan sentava-se e pedia ao filho para sentar-se também e contar-lhes tudo que tinha acontecido desde que haviam se separado. E entre a comida e o chá, as duas mulheres sentadas com os homens, Ling Sao ainda segurando a criança e rindo silenciosamente a tudo que ela fazia, a conversa prosseguiu e eles ficaram sabendo pelo menos alguma coisa do que havia acontecido a todos, desde que se tinham separado.

Só por um momento uma nuvem desceu sobre essa alegria porque, quando Ling Sao mastigou um pouco de arroz e ia pô-lo na boca do menino, Jade opôs-se.

— Peço que não se zangue comigo, mamãe, — disse, — mas não dê comida da sua boca ao menino.

Ela disse isso calma e gentilmente, mas disse-o, e Ling Sao ficou espantada, primeiro porque ela falasse com uma pessoa mais velha, e segundo, que pudesse haver algum mal em alimentar uma criança com arroz tão bem mastigado.

— Mas eu criei meus filhos assim, — disse raivosamente, — e não lhes fez mal algum, garanto.

— Mas agora se sabe que isso não é bom, — disse Jade, corajosamente. — Eu comprei um livro, numa cidade do rio, que diz como cuidar das crianças. E uma das coisas que ele recomenda, é que não se passe comida de uma boca para outra.

— Então eu sou idiota? — disse Ling Sao com mais raiva ainda.

— Não, não é isso, — disse Jade conciliatòriamente. — Mas, mãe, eu mesma não faço isso e peço-lhe que criemos esse menino da melhor forma que soubermos.

A isto Ling Sao não respondeu e os homens também não diziam palavra porque a briga não era deles.

— É melhor você pegar seu filho, — disse Ling Sao a Jade.

— Sem dúvida eu o contamino, segurando-o.

— Oh, mãe! — disse Jade. — Afinal de contas, foi por causa da senhora que eu o trouxe para cá.

— Esfrie essa raiva, — impôs subitamente Ling Tan à esposa.

— Vamos brigar nesta noite e logo sobre o menino que é o centro de todos os nossos corações?

Assim Ling Sao esfriou sua raiva, mas nunca esqueceu o que Jade dissera e nunca tornou a fazer aquilo. E, enquanto os outros falavam, ela sentou-se, refletindo consigo mesma sobre o livro que Jade comprara, e pensou com escárnio: "As crianças agora terão que ser educadas e alimentadas pelos livros? Nunca tive um livro para alimentar meus filhos e nunca perdi um."

Mas guardou essas reflexões para si mesma, pois o inocente ainda era precioso para ela. E depois de um momento já tinha esquecido tudo e ouvia a narrativa de todas as coisas que Jade e seu filho haviam feito e o que eles contavam da terra livre.

Quando cada qual soube de tudo o que o outro passara era quase madrugada. Ling Tan tomou seu filho e Jade, mostrando-lhe o buraco atrás do fogão.

— Devem se esconder aí, quando o inimigo se aproximar, — disse. — Vocês não estão registrados e eles nem sabem que existem.

E contou como tinha mentido dizendo que ele e a mulher nunca haviam tido filhos.

— Estou contente com isso, — disse Lao Er, — porque viemos pelas montanhas e fizemos nossos planos com os que vivem lá, e é melhor que meu nome não apareça em parte alguma.

Ling Tan não compreendeu o que ele dizia. Mas, por enquanto, estava muito cansado, com o espírito muito cheio de tudo que tinha ouvido para ouvir mais, e pensou: "Deixarei isso para perguntar amanhã". Assim eles foram dormir finalmente, ainda que Ling Sao, de bom grado, preferisse ficar a noite inteira sentada, segurando o menino, até que ele dormisse em seus braços, se Ling Tan tivesse permitido, mas ele disse:

— Você deve dormir também, velha, pois eu não descansaria se você não estivesse dormindo.

E naquela profunda escuridão, antes da madrugada, eles se separaram, e quando Ling Tan se deitou em sua cama estava cansado, mas era um cansaço gostoso. Tudo que o filho dissera era forte, cheio de esperança e ele ficara esperançoso também. Pela primeira vez, desde que o inimigo chegara, voltava-se para a esposa com os seus próprios sentimentos. E, porque havia esperanças no futuro, ele renovou-se com ela e depois dormiu.

No seu velho quarto Lao Er e Jade deitaram-se lado a lado, muito cansados para dormir. O caminho de volta fora duas vezes mais árduo do que o da ida, pois então eles caminhavam para a liberdade e agora eles se dirigiam para o que, sabiam, não podia ser a liberdade. E talvez nunca mais ficassem livres nesta existência.

— Devemos aprender a viver livres dentro de nós mesmos, — disse Lao Er.

Mas nessa noite ele não queria falar muito, mesmo com Jade. Tinha visto a morte e a confusão em toda a distância que ele e Jade percorreram, noite após noite, pois eles caminhavam ou cavalgavam durante a noite e escondiam-se durante o dia. E toda a gente das montanhas os auxiliava, de modo que Lao Er conhecia todos aqueles homens e mulheres e eles também o conheciam e, na verdade, haviam ficado tristes com a sua partida.

Mas dissera-lhes que devia voltar para casa porque seu pai estava sozinho e prometera fazer planos com eles para ver como poderia auxiliá-los. E agora, que. estava aqui, sabia o que o inimigo tinha feito nesta cidade, e as leis que havia imposto eram piores do que em qualquer parte.

— Eu devo trabalhar ainda mais, — pensou. — Devo ser mais hábil, conservar minha inteligência mais aguçada, e estar pronto para morrer, mas certo de que não posso morrer.

E louvou os pais pelo senso que haviam tido cavando o buraco e, antes de dormir, voltou-se para Jade:

— Devemos trabalhar nesse buraco, tornando-o bem fundo, reforçando-o com postes e vigas para fazê-lo uma espécie de fortaleza secreta. Ele deverá abrigar mais do que nós e esconder mais do que as nossas coisas.

— Farei disso o meu trabalho, — afirmou Jade.

— E será meu principal trabalho, — disse Lao Er. — Logo que o tenhamos terminado, farei o pessoal das montanhas sabê-lo e veremos então o que podemos arranjar.

Jade dormiu finalmente, com a criança já adormecida no seu peito. Mas Lao Er ainda não podia dormir. Continuava ouvindo o que o pai lhe dissera sobre a tomada da cidade — tudo que tinha sido pilhado, queimado e saqueado, e o que tinha acontecido às mulheres. O sangue ferveu em suas veias e ele tornou-se tão raivoso deitado ali, naquela noite, que jurou para si mesmo que devotaria todo o resto da sua vida para a guerra contra o inimigo e ensinaria seus filhos a prosseguirem nessa luta. Só então pôde dormir.

Não é em uma noite que tudo pode ser dito e no dia seguinte Ling Tan contou ao filho o que havia esquecido. O que tornou o filho mais raivoso do que tudo o mais reunido, foi saber que Wu Lien tinha se passado para o inimigo.

— Tais homens são traidores. Mas pode estar certo que, quando empurrarmos o inimigo para o mar, Wu Lien irá com eles ou será morto se não for.

— Não acho que o homem seja um traidor, — disse Ling Tan, considerando. — É próprio da sua espécie de homem pensar mais em si próprio e nos lucros e ele, capaz de farejar lucros como um cão uma lebre, segue-os sem refletir.

Mas seu filho não aceitou isso como desculpa.

— Qualquer homem que, agora, pensar primeiro em si mesmo, é um traidor, — disse.

E Ling Tan não respondeu. Pensou lá consigo, mais humildemente do que o comum, pois ele não era um homem humilde, que os jovens deviam ter razão nestes dias, uma vez que ele não sabia o que fazer, a não ser que devia permanecer nesta terra de qualquer jeito.

E nessa humildade ele ouvia o filho mais do que falava. E Lao Er disse:

— Pai, o primeiro trabalho a ser feito é acabar o buraco, e como eu não posso ir para os campos, de qualquer maneira, antes de saber como vão as coisas, ficarei trabalhando nele. Farei um quarto grande debaixo do pátio, onde possamos viver se precisarmos, e onde possamos esconder os outros.

— Que outros? — perguntou Ling Tan surpreendido.

— Devemos nos aliar aos da montanha, — explicou Lao Er,

— e algum dia poderemos precisar escondê-los.

Ling Tan não disse uma palavra, e como poderia dizer se dois filhos seus estavam nas montanhas?

Assim, depois de comer, ele saiu sozinho para o campo, até que Ling Sao pudesse deixar a criança. O filho ficou trabalhando no buraco e Jade trabalhava também, enquanto Ling Sao segurava o menino. Jade trabalhava tanto quanto podia mas não demais, para não estragar o leite do filho.

— As minhas pernas estão bastante fortes, — disse ela rindo,

— pois que aprendi a andar dormindo. Agora chegou a vez dos braços.

Jade se tinha tornado quase tão forte quanto um homem nesses meses difíceis, seu corpo delgado tinha-se tornado rijo e a maciez do rosto havia desaparecido. Em qualquer lugar poderia passar por um rapaz se não se reparasse nos seus seiozinhos que, apesar de pequenos, alimentavam bem o filho. O que ela comia parecia ir tudo para a criança e não para ela, e Ling Sao se rejubilava dizendo:

— Gostaria que a pobre Orquídea visse isso, pois era tão gorda, mas, quando tinha uma criança para alimentar, tudo que comia era para ela mesma e aqueles peitos grandes e redondos que qualquer um diria estarem cheios de leite, estavam vazios e só tinham gordura.

— Ela iria me odiar ainda mais, — disse Jade tristemente. — Oh! se ela me visse com uma criança e um livro ao mesmo tempo, como me odiaria!

Mas Ling Sao ficou séria ao ouvi-la falar sobre o livro.

— Está certa de que faz bem lendo um livro, quando tem que cuidar da criança? — perguntou. — Parece-me uma coisa perigosa fazer duas coisas tão opostas, sendo mulher.

Mas Jade só fez sorrir.

— Olhe para mim quando a criança for comer de novo, — disse ela.

Ling Sao olhou quando Jade lia e amamentava a criança ao mesmo tempo, e o leite brotou dela tão rico, que a criança tinha que engolir depressa, e do outro peito o leite se derramava também, de tanto que era. Ling Sao não falou mais nada e perdoaria qualquer coisa a Jade porque ela tinha muito leite para o filho.

Pela manhã, como estava bonita a criança e como sua carne cheirava bem para ela! Não podia fazer outra coisa senão ficar sentada, agarrá-la, olhá-la, cheirá-la e rir com ela. Seus olhos estavam brilhantes de prazer e ela não ouvia ninguém, nem cuidava se os pratos eram lavados ou o chão esfregado, ou se havia alguma coisa para a próxima refeição.

— Deixe sua mãe sozinha, — disse Ling Tan ao filho, — e diga a Jade para ser condescendente e deixá-la segurar a criança até não querer mais. Isso fará com que se cure de tudo.

Fizeram como Ling Tan disse e, continuamente, ficavam olhando-a sem que ela os visse. Ling Sao murmurava para o menino, rindo porque ele a molhava tantas vezes, levando-o ao pátio para apanhar sol, esfregando-lhe óleo nos braços e nas pernas. Uma vez ela deu um grito e todos acorreram para ouvi-la dizer:

— Olhem para as costas dele! Juro que nunca vi uma criança com menos de seis luas ser tão forte que possa sentar-se! Olhem para as suas costas!

E tinha os olhos cheios de lágrimas.

E eles riam, voltando a cavar, de maneira que, em um dia só, Lao Er e Jade tornaram o buraco mais fundo do que Ling Tan e Ling Sao em sete.

Lá, nos campos, Ling Tan pensava se poderia ou não esconder o filho, pois os outros na vila iriam saber que ele estava aqui e, depois de pouco tempo, pareceu-lhe que o melhor era não esconder coisa alguma na vila, pois, afinal, eram todos do seu próprio sangue. Quando foi almoçar, ao meio-dia, disse isso ao filho, que concordou, e nessa noite, depois de terminado o trabalho diário, Ling Tan levou Lao Er à casa de chá, abertamente. Quando todas as saudações haviam sido dadas e tomadas ele ergueu-se e disse:

— O meu filho viu muitas coisas que poderá contar se vocês desejarem, não porque tenha qualquer mérito o vê-las, mas, simplesmente porque isso alegrará os seus corações.

Eles bateram com as mãos nas mesas, Lao Er empertigou-se e com sua voz clara e calma, sem qualquer sombra de orgulho, contou aos seus parentes como tinha viajado para o oeste, chegando a uma cidade que ficava a mil milhas de distância, até que seu pai enviou-lhe a carta para que ele voltasse, e como, em toda parte, o povo estava disposto a resistir abertamente nas terras livres e secretamente nas terras conquistadas, mas resistir sempre.

— Só há duas espécies de homens que não são dessa opinião, — disse ele. — Os que pensam primeiro em seu próprio benefício e os que são fracos e maus e podem ser comprados com ópio e outras drogas. Esses valem menos do que nada e agora são muito perigosos porque podem espiar os outros. São traidores.

— Muito bem! exclamaram eles como resposta, entreolhando-se, fazendo gestos de que ele tinha razão.

Lao Er olhou para essas faces castanho-escuras que conhecera toda a vida e o coração vibrou dentro dele.

— Tios e primos, — disse, — devemos nos juntar àqueles que fazem guerra contra o inimigo nas terras livres. Mas como poderemos nos juntar? Somente trabalhando em segredo com os nove mil homens das montanhas.

Ora, ele sabia que estava convidando à morte esses homens do seu próprio sangue, pois se os inimigos soubessem que os montanheses tinham alguma coisa a ver com os desta vila, sua raiva não conheceria limites e queimariam a vila.

Mas todos os homens, um após outro, ergueram o polegar e o indicador para significarem que concordavam com o que Lao Er dizia. Deles todos, o único que hesitou foi o primo em terceiro grau, mas, enfim, envergonhado, ergueu os dois dedos também. Contudo, ninguém o censurou, pois não desconheciam que o saber torna um homem fraco e que um sábio nunca pode ser tão corajoso quanto um iletrado. Lao Er esperou até que todas as mãos estivessem erguidas, dizendo então:

— Que significa isto? Significa que devemos esconder as nossas colheitas de arroz e trigo e dar ao inimigo o menos que pudermos, o bastante para salvar nossas vidas. Isto significa que a terra, onde antigamente tínhamos nossos campos de algodão, recusar-se-á a fazer crescer o algodão agora. Significa que tantas vezes quantas pudermos, um ou mais inimigos deverão morrer por meio de armas invisíveis.

Eles ouviam isso tudo no maior silêncio.

— Mas, não temos armas, — dizia uma voz.

— Eu sei onde arranjar armas, — disse Lao Er, — e todos os homens terão suas armas.

Um grande suspiro percorreu aquelas criaturas como um sopro de alegria. Murmuraram entre si e disseram em voz alta:

— Se tivéssemos armas o que não poderíamos fazer! Foram as nossas mãos nuas que nos conservaram parados e o não ter mais que ancinhos e espadas velhas, quando o inimigo possuía armas como jamais vimos.

Quanto a Ling Tan, sentou-se pronto a estourar de orgulho por seu filho e pensou: "A coisa mais sábia que já fiz na minha vida foi chamar este filho de volta para casa."

Quando estavam em casa novamente, ele disse isso a Lao Er, ajuntando:

— Meu desejo era que você nunca tivesse partido. Mas o filho retrucou:

— Não, estou contente por ter ido e visto a terra livre e o povo que a habita, de modo que sei agora o que eles são. E sei também, que, juntos, poderemos levar o inimigo até o mar, desde que estejamos prontos. Apesar de eu conhecer o modo que eles usam para lutar, na terra livre, o nosso aqui tem que ser diferente. Eles podem lutar abertamente mas nós deveremos lutar secretamente. A nossa luta será mais dura que a deles, pois vivemos no meio dos inimigos.

O povo da vila esperou que Lao Er lhe trouxesse as armas e este aguardou até que tivesse terminado o quarto sob o pátio. Mas não trabalhou muito tempo sozinho. Vendo o quanto os aldeões eram leais uns para os outros e que pertenciam à mesma família, escolheu alguns, pedindo-lhes que o ajudassem no quarto. Assim, rapidamente, a obra ficou acabada! Quatro homens fortes trabalhando juntos cavaram a terra, armaram postes, vigas e portas e fizeram uma outra entrada secreta. Lao Er cavou tudo mais fundo do que planejara, pois vira os abrigos contra os aviões, na terra livre. Cavou profundamente, só rezando para não encontrar um lençol d'água. Teve sorte, pois só encontrou uma correntezinha que ele canalizou para o poço, por meio de um tubo feito de bambus amarrados.

Mas, de vez em quando, esses escavadores encontravam as coisas mais estranhas — uma ou duas travessas velhas, alguns jarros cheios de uma matéria parecida com pó, um esqueleto quebrado de uma criança morta há muito tempo, ossos da perna de um homem e, no mais fundo de tudo, uma caixa de bronze toda verde, e quando eles a abriram, forcejando, viram que continha alguns alfinetes com jóias engastadas e um par de brincos de ouro como jamais tinham visto.

— Isso pertenceu aos nossos antepassados, — disse Ling Tan reverentemente, — e não temos valor suficiente para tocá-los.

Tomou-os, enterrando-os novamente na parede do quarto, deixando-os como estavam.

Tornaram o quarto bem fundo e forte, maior do que Ling Tan poderia ter sonhado. Puseram vigas no topo do aposento para que não houvesse desmoronamentos. Essas vigas eram sustentadas por pilastras de tijolos arrancados do quarto do tear, pois a casa de Ling Tan não era feita de terra, mas de tijolos. E como não havia tijolos suficientes, os outros homens da vila, que tinham casas como a de Ling Tan, punham abaixo as paredes interiores das suas casas e, durante a noite, traziam os tijolos para aqui. Assim, não se haviam passado dois meses que Lao Er voltara para casa, e o quarto secreto já estava terminado.

Então Lao Er disse:

— Temos, agora, um lugar para guardar nossas armas.

Na manhã do dia que sucedeu àquele em que o quarto foi terminado, ele saiu de casa antes da madrugada, com comida na mão e dois pares de sandálias amarrados no cinto. E dirigiu-se para as montanhas.

 

Nesse ano, quando o arroz amadureceu, quando o grão amarelecia os campos, o inimigo mandou homens a toda parte, para que examinassem a colheita, avaliassem qual ia ser o rendimento e ordenassem aos plantadores que vendessem o arroz por um preço fixado. Esse preço era tão baixo que mal compensava a venda do cereal. E, ainda que Ling Tan e os homens seus conhecidos aceitassem a ordem silenciosamente, como tinham resolvido fazer sempre, a sua raiva pelos pernas-tortas, que eram os inimigos, cresceu tanto que a pele ficou tesa no corpo de todos. Porque um lavrador é um homem que pode suportar tudo, menos que toquem na sua terra e na colheita que tira dela. As colheitas são sua vida, e se as tiram deles, o que restará para demonstrar o que fizeram em sua existência?

Cabeças curvadas, Ling Tan e seus companheiros permaneceram, sombriamente, diante do inimigo, e, quando ele partiu, reuniram-se e planejaram como haviam de esconder o cereal. Cortaram o grão, todos na mesma ocasião e tão rapidamente que não era possível ao inimigo estar em toda parte ao mesmo tempo e, em segredo, trilharam-no, à noite, por trás das portas Cerradas e, para que o inimigo não visse a pequena luz com a qual eles trabalhavam, cobriram as janelas com panos. Assim o cereal foi oculto. Houve alguns que cavaram, em suas casas, buracos idênticos ao que Ling Tan havia feito, e outros, que tinham parentes nas vilas das montanhas, transportavam para lá cargas do cereal. Mas tão maus eram estes tempos que, muitas dessas cargas eram tomadas pelos ladrões que se ocultavam em toda parte onde não havia inimigos e assaltavam sua própria gente. Havia desses homens, mesmo nestes tempos.

Durante o dia, Ling Tan e seus camaradas trilhavam na eira abertamente os grãos que haviam ficado, para espanto do inimigo que não compreendia como tantos grãos pudessem dar tão pouco arroz. Nesse ano o rendimento foi somente a metade do que havia sido no ano anterior, e os lavradores explicavam que em alguns anos era assim mesmo — a palha crescia muito grande e forte, mas havia muito pouco grão nas cabeças. E que podiam fazer se, agora, o Céu havia enviado um ano desses?

Então que podia fazer o inimigo? Se achassem que os plantadores mentiam e matassem todos, quem iria lavrar a terra no próximo ano? Só podiam levar o arroz que fora deixado. Mas, o que fez o fel de Ling Tan subir e amargar sua garganta foi que o inimigo não só tomou o arroz pelo preço estipulado, mas revendeu-o na cidade pelo seu próprio preço, que era três ou quatro vezes mais do que havia dado aos sitiantes. E, também desta forma, o inimigo roubava a terra e o povo.

A lei contra o peixe fora reforçada, de modo que, ninguém mais, a não ser o inimigo, tinha o direito de comê-lo. Ling Tan não mais pescou no seu tanque durante o dia, mas usava uma rede durante a noite, se lhe apetecia um peixe. Escamas, espinhas, qualquer sobejo dos peixes, tinha que ser escondido e eles só o comiam durante a noite, atrás das portas fechadas, e assim toda a vila. Mas deviam fazer algumas demonstrações também, e, de vez em quando, um homem ia à cidade com um peixinho na mão e o entregava ao inimigo. Estes, algumas vezes, vinham e ordenavam que pescassem. Só então Ling Tan e os outros eram obrigados a pescar alguns peixes bons, para salvar suas vidas.

Patos, galinhas, porcos e vacas eram levados pelo inimigo pelo seu próprio preço, e a carne tornou-se tão rara que ninguém pensava mais em comê-la. Ling Tan estava contente por ter matado sua criação e mantido o búfalo tão magro, que o inimigo, olhando para aquele arcabouço, não pedia a sua morte.

Foi depois que o filho partiu para as montanhas que eles vieram e lhe ordenaram entregar os porcos e galinhas que estavam registrados. Ling Tan os viu aproximando-se uma manhã, mas já estava acostumado a erguer a vista do seu trabalho e ver os homenzinhos de pernas tortas vindo na sua direção. Não prestou atenção até que viu os seus pés diante dele — sempre podia reconhecer um pé inimigo, porque o dedo grande é separado dos outros.

Quando viu aqueles pés, tornou a face estúpida, os olhos tristes e deixou o lábio pender. Ergueu vagarosamente a cabeça e os fitou. E um, que falou a ele, exclamou em voz altar

— Nós temos registrados, como seus, dois porcos, alguns patos e galinhas e é preciso que nos sejam vendidos.

— Porcos! — disse Ling Tan estupidamente, — não tenho porcos.

— Tem! — berrou o homenzinho. — Está escrito aqui que você tem dois porcos.

— Meus porcos morreram, — disse Ling Tan.

— Se você os matou será morto também, — tornou o homem • severamente.

— Morreram de doença, — afirmou Ling Tan, — e eu não ousei trazer-lhes as carcaças com medo de que dissessem que eu os matei.

— Onde estão os ossos?

— Os cachorros roeram-nos e nós pusemo-los na comida, e depois enterramos, — disse Ling Tan.

Ora, Ling Tan tinha conservado onze bacorinhos no quarto do tear, até que este foi desfeito. Matara-os então e Ling Sao os salgara, com exceção de dois, que conservara vivos para criarem mais. Esses dois ele os havia levado para bem longe da vila e os deixara amarrados numa estaca, de modo que, se fossem encontrados, não tinha importância.

Os inimigos estavam com raiva mas que podiam fazer? Se levassem Ling Tan, quem trataria da terra? Assim, tudo que eles fizeram foi ameaçá-lo e dizer que, se descobrissem que estava mentindo, seria muito mau para ele. Ling Tan ouviu-os como se não compreendesse patavina e eles foram embora, afirmando que a gente dessa terra era tão estúpida que até tornava um fardo a vida de quem os conquistava.

Quando eles se foram Ling Tan agachou-se outra vez e, escondido sob o chapéu de bambu, sorriu, gozando um pouco aquele momento, pois, de qualquer forma, havia prejudicado os inimigos. E assim fizeram todos os outros homens desta terra, cada qual tão cuidadosamente quanto podia, mas nenhum tão cuidadosamente quanto Ling Tan.

Mas o primo em oitavo grau de Ling Tan, que tinha sido o açougueiro da vila, como seu pai fora antes dele e o pai do seu pai havia sido muito antes, não podia mais viver. A perda de todo seu negócio encheu suas entranhas, e a sua dor era, para ele, uma carga que nem subia nem descia, de modo que não podia comer. Um dia os vizinhos viram que as portas da sua loja ainda não estavam abertas ao meio-dia e, como sua mulher tinha ido para o refúgio, e seus dois filhos haviam escapado para as montanhas, sabiam todos que ele estava sozinho. Chamaram então Ling Tan e ele abriu as portas. Lá dentro, no açougue vazio, Ling Tan encontrou o primo em oitavo grau enforcado com seu próprio cinto, num dos ganchos de carne. O homem tinha limpado a loja antes de morrer e se limpara também, vestira o casaco azul e calças recém-lavadas e agora estava ali, enforcado, um homem bom e decente.

— Este também foi morto pelos demônios, — disse Ling Tan contristado, e descendo o corpo, enterrou-o durante a noite.

Mesmo para o seu enterro a mulher não ousou vir, mas os filhos vieram, somente porque era noite.

Toda a vida doméstica de Ling Tan era agora conformada de acordo com a vista desses pernas-tortas que desciam pela estrada. "Os demônios," os homens assim os chamavam. Ling Sao vivia constantemente vigiando pelas portas e janelas, sentava-se, fiando ou trabalhando perto da casa, e quando eles se aproximavam ela avisava Jade, que pegava o menino instantaneamente, ia para trás do fogão e descia a escada. Ling Sao fechava o buraco, espalhava terra e palha sobre a tampa de madeira, e ninguém poderia sonhar o que havia ali, na cozinha escura. Quando os homens iam embora Jade saía outra vez, retomando seu trabalho, mas nunca passava da porta, nem Ling Sao levava a criança para fora, a não ser durante a noite.

Mas a fama do menino tornou-se conhecida e, uma a uma, todas as mulheres da vila vieram vê-lo e elogiá-lo. A mulher do primo em terceiro grau veio vê-lo, também, e elogiou-o só um pouco, por causa da sua inveja. Quando viu esse menino, que estava além de qualquer criança que ela tinha visto, seus intestinos deram um nó no meio e não pôde comer nem beber durante um ou dois dias. Por má sorte, a primeira vez que ela viu a criança, Jade amamentava-a e, à vista daquela jovem mãe, daquele peito cheio e do menino guloso, seu sangue transformou-se em fel. Mal pôde pronunciar as palavras que devia pronunciar por cortesia e logo acrescentou a essas palavras outras lamentosas.

— Não é bom sinal ter um filho bonito assim, — disse com tristeza. — Essas crianças é que sempre morrem cedo. Meu filho era assim quando tinha essa idade.

Ling Sao não pôde suportar isso e explodiu:

— Prima, como pode dizer isso? Eu estava com você quando seu filho nasceu, e era tão pequeno e verde que, juro, pensei que ele nem ia chegar a respirar e não tive coragem de lavá-lo. Enrolei-o, como estava, numa calça velha do seu marido e o deixei assim até que você pudesse lavá-lo. E você não se lembra do fluxo que ele tinha e como parecia um gato esfomeado até os três anos? Só quando ele tinha dez ou onze anos é que eu podia respirar direito ao vê-lo.

Mas a prima respondeu, raivosa:

— Penso que posso me lembrar do meu filho melhor do que você, prima, que sempre gostou de ajudar a fazer nascer crianças e deve ter confundido uma outra qualquer com a minha.

Então ela não pôde deixar de dizer a Jade:

— Sim, tal era o meu filho, e ele podia ter sido o pai dos seus filhos, e seria, se tivessem dado atenção à vontade dos deuses. Mas a vontade dos deuses não foi atendida e fomos punidos, pois, se ele tivesse se casado com você, como devia, ainda estaria vivo e este seria seu filho.

Agora era Jade quem se enraivecia, e, cobrindo o seio, disse orgulhosamente:

— Estou contente com a minha vida, ainda que lamente a perda do seu filho único.

Quando, finalmente, a prima foi embora, Ling Sao e Jade estavam ambas raivosas pela criança que amavam, e essa antipatia pela mulher do primo criou um laço entre as duas. Concordaram em não permitir que ela segurasse a criança antes que esta pudesse andar, pois, senão, quando ela respirasse, sua peçonha envenenaria o menino.

Quanto à mulher do primo, foi para casa, amaldiçoou o marido porque seu filho não tinha se casado com Jade, porque o menino não era seu neto, porque seu filho tinha morrido e eles não tinham mais ninguém, e porque, quando morressem, estariam mortos mesmo, sem ninguém depois deles. Estava em tal fúria que o pobre e velho letrado tornou-se louco, saiu, e foi bater com a cabeça na parede da casa. Ora, aconteceu Ling Tan vê-lo e salvá-lo. Quando descobriu o que tinha acontecido ele riu, o riso de um homem que não tem complicações com mulheres em sua própria família, e levou o primo à casa de chá, deixou-o contar suas desgraças e o aliviou com chá e bolinhos de arroz fritos. E Ling Tan aconselhou-o a dizer que arranjaria uma concubina, na próxima vez em que a mulher fizesse aquilo.

— Como poderei? — gemeu o pobre letrado. — Há meses que não me ponho à prova.

Ouvindo isto, Ling Tan ficou verdadeiramente zangado com a prima, e disse:

— Ela é assim? Nega tudo a você?

— Eu só quero paz, — respondeu o homem, cofiando a barba rala.

— Mas a paz não se obtém pedindo, — tornou Ling Tan. — Deve-se procurá-la, lutar por ela e, às vezes, trazê-la à força para um lar ou para uma nação.

O velho letrado suspirou diante disso e olhou humildemente para o primo.

— Sou um homem de saber, — disse, — e como poderia ser tão forte quanto uma mulher?)A coisa mais forte sobre a Terra é a mulher e Confúcio tinha razão, quando dizia que não se devia permitir, por lei, que as mulheres satisfizessem suas próprias vontades.» Asseguro-lhe, primo, que deveríamos nos regozijar que os nossos inimigos sejam homens e não mulheres, pois quando as mulheres fizerem uma conquista, os homens estarão realmente perdidos.

Ling Tan quase não pôde conter o riso diante disso e falou:

— Sem dúvida que você tem razão, primo, mas juro que se fosse eu, daria tamanha surra nessa mulher que ela se encostaria à parede para não cair.

— Daria? — murmurou tristemente o pobre primo. — Oh! se você pudesse, primo!

— Não, não, — disse Ling Tan rindo ainda mais, — para você, não, primo! Há duas coisas que um homem só pode fazer por si mesmo: dormir com sua própria mulher e surrá-la quando for preciso.

Levantou-se, enquanto falava, e o primo ergueu-se também, tristemente, e Ling Tan, vendo-o afastar-se vagaroso, sacudiu a cabeça, desesperançado de que qualquer coisa do que tinha dito desse mais força ao primo.

Assim passaram aqueles dias do outono. Os campos de Ling Tan despiram-se dos grãos, mas ele já tinha bastante armazenado com que alimentar a família. Começava a imaginar que algum mal atingira o segundo filho, quando, uma vez, à meia-noite, ouviu uma batida na porta, uma batida conhecida, que ele e o filho combinaram quando este partira. Levantou-se porque a mulher continuava dormindo, foi até à porta, abrindo-a apenas um pouquinho, pronto para fechá-la se houvesse qualquer engano. Mas ouviu o murmurar do segundo filho:

— Sou eu, pai.

E o deixou entrar, com os outros dois que o acompanhavam. Falaram na escuridão, um de cada vez, e Ling Tan reconheceu a voz dos outros dois filhos.

— Oh! o Céu e a terra são bons, — sussurrou ele, levando-os para a cozinha sem janelas, onde acendeu o lampião.

E viu, diante dele, os três filhos, todos vivos e bem dispostos, e logo que olhou para o terceiro filho percebeu que não se tornara ladrão.

— Que mais poderia pedir eu, que sou um homem, senão a visão de vocês três? — disse ele.

E, na verdade, era uma visão de orgulhar um homem, pois os meses passados nas montanhas tinham transformado aqueles dois, o filho mais velho e o mais novo. Nunca Ling Tan os vira tão fortes, e queimados pelo sol, nem nunca percebera tanto destemor nos seus olhos. Essa era a maior mudança — os dois tinham deixado esta casa tristes e enfraquecidos pela dor e voltavam, agora, sem medo, esquecidos do que havia sido essa dor.

— Você se dirigiu aos bons montanheses, — disse ele ao terceiro filho.

— Estou somente com aqueles que guerreiam os maus, — respondeu o terceiro filho, prosseguindo: — Diga a mamãe que tenho fome e gostaria de comer um pouco da sua comida gostosa, antes de partirmos.

— Mas vocês vão embora de novo? — perguntou Ling Tan.

— Antes que a escuridão desapareça devemos estar ao pé dos montes novamente, — disse o mais velho.

— Ainda que nós os escondêssemos? — perguntou Ling Tan.

— Desta vez sim, — respondeu o mais velho e não parecia querer falar mais.

Assim o pai os levou ao quarto secreto, onde cada filho livrou-se da carga que transportava. Quando eles a desenrolaram Ling Tan viu que cada pacote continha uma dúzia de armas como ele nunca vira, curtas e fortes, estrangeiras. Apanhou uma, examinando-a.

— Onde vocês arranjaram essas armas? — perguntou. O filho mais moço riu.

— Com o inimigo, — disse.

Então Ling Tan, depois de admirar as armas por um momento, lembrou-se de que o filho tinha fome, e foi acordar Ling Sao. Ela se levantou e logo acendeu o fogo. Lao Er acordou Jade, que trouxe a criança e então, no quarto secreto, reuniram-se todos e comeram o que Ling Sao lhes tinha preparado. Havia uma mesa e bancos ali, e podiam deixar a luz acesa. Durante todo o tempo que os dois filhos demoraram não pararam de falar, contando tudo uns para os outros, enquanto Ling Sao não se fartava de contemplá-los. Ling Tan tinha-a avisado para não mencionar nada doloroso, nem trazer à mente dos rapazes qualquer coisa sobre o que havia acontecido de mal. Mas, primeiro que tudo, ela era mãe e não pôde deixar de murmurar ao filho mais velho, quando eles estavam prontos para partir novamente:

— Filho, já encontrou alguém que possa ser a mãe de outros dos seus filhos?

Ele sorriu mas não sacudiu a cabeça.

— É tempo para pensar nisso? — perguntou.

— É sempre tempo para mais filhos, — disse ela com rispidez. — Quem trabalhará depois de você, se não tiver filhos?

— Bem, mãe, talvez tenha razão. Eu devo procurar para ver o que pode ser encontrado, — concordou ele.

O pai riu e disse:

— O que nos aconteceria se as mulheres não se ocupassem com a educação dos filhos?

E Ling Sao, encorajada pelo riso, disse em voz alta:

— O que aconteceria a vocês, se não houvesse mulheres, seria que nenhum de vocês teria nascido.

— Ninguém nega isso, minha velha — acedeu ele. E ela continuou:

— E não estarei satisfeita até que você também, meu caçula, esteja casado. Quero ter netos de vocês todos, antes de morrer.

— Você é uma mulher que nunca se satisfaz, — exclamou Ling Tan.

E com o riso de todos, os dois partiram novamente para as montanhas. Ling Tan fechou e trancou a porta, contente, mais uma vez, dentro de sua casa.

Porém, durante semanas e meses inteiros ele não ouviu nada da filha mais velha nem de Wu Lien. Mas um dia, lá para o meio-dia, quando haviam acabado de comer, e Ling Sao lavava as travessas e os talheres, ouviram um barulho na porta. Agora, sempre que se ouvia algum barulho na porta, Lao Er, quando estava em casa, e Jade, escondiam-se no quarto secreto, antes que a tranca fosse retirada. Iam fazer assim, pois, quando Ling Sao, ouvindo a voz da filha mais velha, exclamou com alegria:

— Esperem, é somente a minha filha, sua irmã!

E estava quase retirando a tranca da porta quando Lao Er pegou-a por um braço.

— Mãe, — soprou, — não vá dizer que estamos aqui. Não diga coisa alguma, mãe!

E, com isso, apressou-se em descer para o quarto secreto, tomando a criança dos braços de Jade e ordenando-lhe que se apressasse também, como se aqueles que chegavam fossem inimigos. Ling Sao ficou espantada como se ele tivesse perdido a razão.

— Bem, estes são dias estranhos, em que os irmãos se escondem uns dos outros, — disse ela a Ling Tan, que observava tudo isso.

— Agora, todos os dias são estranhos, — ajuntou ele calmamente.

Levantou-se, dirigindo-se para a porta enquanto falava, pois podiam ouvir a filha mais velha gritando por cima do muro:

— Estarão os meus velhos dormindo? Aqui estou eu, com meus filhos e seu pai!

Abrindo a porta, viu diante dos seus olhos Wu Lien e a família. Ele não percebeu o quanto seus olhos haviam se habituado aos miseráveis, à gente fugitiva, faminta, ferida, amedrontada, senão quando viu isso. Ali estavam, à sua porta, Wu Lien, mais gordo do que nunca, com sua carne que adquirira a maciez e a cor da carne de carneiro, sua filha, gorda e próxima de ter outra criança, e os dois netos, gordos e vestidos de seda vermelha. E todos eles haviam vindo em rickshas. Mas, o que o deixou pensativo, foi a vista de dois soldados inimigos atrás deles, e decidiu que esses dois não entrariam no seu quintal. Assim, ele fechou a porta, só deixando espaço para meter a cara, e disse com voz fria:

— Vocês todos são bem-vindos, minha filha, mas eu não posso permitir aos outros entrar na minha casa.

Wu Lien deixou que o riso o revolvesse e disse:

— Não precisa temer, pai de minha esposa. Esses dois só vieram para me guardar.

— Que guarda precisa você em minha casa? — perguntou Ling Tan. Ainda que não quisesse dizer que estava com medo, bastava a vista desses homens de cenho carrancudo, com suas armas sacadas, para que suas entranhas começassem a agitar-se. Desejaria não ter comido a refeição do meio-dia.

— É falta de cortesia deixá-los de fora, — disse Wu Lien.

— Quem ouviu falar de cortesia com guardas? — perguntou Ling Tan.

E ficou firme, sem abrir a porta. Quando Wu Lien viu quanto ele estava decidido, rendeu-se e, voltando-se para os guardas, tentou rir, dizendo que o homem era velho e que deviam perdoá-lo pois estava com medo deles.

— Não tenho medo deles, — disse Ling Tan em voz alta. — Mas não deixarei que entrem na minha casa.

O remate do caso é que as mulheres entraram em casa. Ling Tan trouxe três bancos, deu um aos guardas, sentou-se noutro, passou o terceiro a Wu Lien e ficaram ali, ao ar livre. E, como o dia estava quente, nesse fim de outono, aquilo não era desagradável para ninguém e o orgulho de todos foi salvo.

Ora, Ling Tan não gostava do que via do marido de sua filha e, quanto mais o olhava, tanto mais aquilo cheirava mal. Encheu o cachimbo, fumando devagarinho, nunca retirando os olhos daquela face gorda à sua frente.

— Como está tão gordo? — perguntou.

— Meus negócios vão bem, — respondeu Wu Lien com uma vozinha modesta.

— Como podem os seus negócios andar bem se ninguém mais faz bons negócios? — tornou a perguntar Ling Tan.

Wu Lien começou a suar ligeiramente e, puxando um lenço de seda, enxugou-se todo, até mesmo nas palmas das mãos gordas e macias, e, sempre sorrindo, com um olho nos guardas, curvou-se para diante, dizendo em voz baixa:

— Deve saber que o que faço é feito somente pelo melhor. Mas Ling Tan respondeu em voz alta:

— Eu não sei o que você faz.

Então Wu Lien enxugou-se novamente, riu, tossiu, e disse:

— Os tempos são os tempos e um homem sábio aceita sua época como a encontra, dobrando-se como faz a vela ao soprar do vento. Vai ser instalado, na cidade, um governo de homens como eu que, vendo que este é um tempo em que devemos ceder, achamos melhor ceder aos nossos do que aos estrangeiros. Você percebe o que quero dizer, pai de minha esposa?

— Sou um homem simples, — disse Ling Tan, tirando o cachimbo da boca. — Sou tão estúpido que só compreendo uma coisa quando ela me é dita e eu a ouço.

Fixou Wu Lien, de olhos abertos, e este sorriu em silêncio, percebendo que Ling Tan determinara-se não compreendê-lo.

— Onde vive agora? — perguntou Ling Tan, passado um momento.

— Na décima casa da Rua da Porta do Norte.

— É uma rua de casas bonitas, — disse Ling Tan. — Como pode viver lá?

— Disseram-me que morasse lá, — replicou Wu Lien.

— E a loja?

— Está aberta e tenho dois caixeiros para tomar conta dela.

— Quais são as suas mercadorias?

— Panos e mercadorias estrangeiras de toda espécie.

— E você, que faz você?

— Trabalho para o novo governo, — disse Wu Lien calmamente.

— Eles lhe pagam?

— Muito bem pago, — respondeu Wu Lien.

— Então você está contente, — disse Ling Tan amargamente. Wu Lien nada respondeu a isto mas se curvou para diante e, tornando a voz macia, pôs-se a falar a Ling Tan.

— Pai de minha esposa, eu vim aqui para ajudá-lo. Na verdade não tenho outra intenção. Aviso-o de que as perspectivas não são boas. Os que têm amigos estão melhor do que os que não os têm. Se fizer o que eu disser, sua vida será mais fácil. Estava na ponta da língua de Ling Tan o desejo de fazer o homem parar e suas mãos se. crisparam, desejosas de agarrar aquele rosto pálido e macio, mas Ling Tan não era criança. Podia refrear a língua e as mãos, se isso valia a pena. Assim, ficou sentado, olhando com toda a estupidez de que era capaz, fumando seu cachimbo, ouvindo.

— Faça tudo que lhe digam, — explicou Wu Lien, — que eu manejarei por si da maneira que puder.

Mas Ling Tan não prestava atenção à oferta.

— E o que faz você, meu genro? — perguntou.

— Sou um controlador de todas as mercadorias que entram,

— disse Wu Lien. — Faz parte do meu trabalho ver se o arroz, o trigo, o ópio, o peixe e o sal são colocados no seu lugar e preparados para a exportação ou para serem vendidos.

— Ópio! — exclamou Ling Tan com voz terrível.

A cor de Wu Lien desapareceu. Aquela palavra escapara naturalmente, pois estava acostumado a manusear ópio como parte das mercadorias de todo o dia. O ópio vinha do Norte e, de todas as mercadorias, era a única não enviada ao povo do Mar Oriental. Não, o ópio era guardado aqui, espalhado em toda parte, pelas cidades e vilas, e por todos os ardis e truques o inimigo procurava ensinar o povo a usá-lo. O ópio, que fora um velho mal aqui, extirpado com grandes dores uma vez, agora era trazido de volta, e muitas eram as pessoas que se rendiam a ele.

Wu Lien tossiu atrás da mão branca e gorda.

— Não sou senhor de mim mesmo, — disse suavemente. Mas Ling Tan não podia suportar mais. Deu duas pancadas

no chão e amaldiçoou:

— "P'ei!", — exclamou para Wu Lien.

Wu Lien tossiu novamente atrás da mão, mas agora seu rosto tornou-se muito vermelho, enquanto tossia. Desejaria que Ling Tan tirasse, por um momento, os olhos de cima dele, pois sentia-se mal diante daquele olhar imutável. Mas Ling Tan não movia os olhos.

Lá dentro Ling Sao perguntava à filha, ferozmente:

— Mas onde vocês arranjam tanta carne e tanto arroz para comer?

— Há comida em quantidade, — disse a filha inocentemente.

— O arroz nós temos em grandes despensas e a carne nos é trazida — carne de vaca, de porco, e peixes, ovos e galinhas.

— O que eu ouço é que ninguém tem carne, — disse Ling Sao, — o inimigo vem procurando pelas vilas sem nos deixar nada. Patos e galinhas, porcos e vacas, tudo é tomado e, se ainda temos o nosso velho búfalo é porque está tão magro e velho. Mesmo assim o inimigo o olha e seu pai disse que, um dia destes, ele irá também.

— Se eu soubesse teria trazido alguma carne, — disse a filha. — Da próxima vez trarei.

Mas Ling Sao não lhe agradeceu. Ao contrário, retrucou amargamente:

— Não gosto de ver ninguém do meu próprio sangue assim gorda quando os outros andam chupados. Não é bom parecer gorda num tempo de miséria quando todos têm fome.

— Mas eu só como o que me dão, — disse a filha.

— E quem dá a você? — perguntou Ling Sao.

— Meu marido.

Então, Ling Sao examinou a filha para saber se ela era inocente ou não.

— Como pode ele fazer isso? — perguntou. A filha começou a chorar.

— Eu sei que a senhora não pode compreender o quanto ele é bom, — lamentou-se. — Porque ele se rende à época, censura-o. Eu o avisei de que havia de ser assim. Mas ele também odeia o inimigo e diz que cada qual deve resistir a seu próprio modo, e que de cem modos ele é capaz de tirar partido do inimigo a nosso favor e pergunta: de que vale opor-se a uma coisa que já está aqui? O inimigo governa e, de qualquer forma, devemos viver sob o seu governo.

— Mas não engordar sob ele, — disse Ling Sao.

— É melhor que engordemos nós, do que o inimigo, — disse a filha, subitamente irritada. — O inimigo é prejudicado quando recusamos comer?

— Se podem comer, — tornou amargamente Ling Sao. Olhou para os dois netos gordos e, para sua própria surpresa, não tinha prazer em vê-los. Ela, que nunca pudera ver uma criança sem desejar abraçá-la e cheirar-lhe a carne, olhava para estas duas sem querer tocá-las. A carne delas não era a sua, pensou. Tinham comido a comida dos estrangeiros. Mas a filha observou que a mãe apenas olhava para as crianças e perguntou, orgulhosamente:

— Não estão crescidos?

— Sim, — concordou Ling Sao. — Estão crescidos. Então, olhou nos olhos da filha.

— Que pensarão eles, algum dia, quando esta terra for novamente livre e souberem que o nome de seu pai está entre o dos traidores?

Ouvindo isso a filha começou a chorar novamente, desejando não ter vindo.

— Viemos aqui com grandes embaraços, — suspirou ela, — e, se viemos, foi apenas para auxiliá-la e ver se estava em segurança. Seja o que pensar de nós, sempre pensaremos na senhora como pensamos, e verá algum dia que talvez possamos salvar sua vida. Ling Sao levantou-se.

— Se eu tivesse nesta casa alguma coisa para dar a você e às crianças, como delicadeza, iria prepará-la, — disse, — mas na verdade não temos coisa alguma. Não temos carne nem arroz suficiente. O que temos é apenas o bastante para não morrermos de fome. Eu não posso tratá-los com delicadeza, pois.

Isso era dizer que não falaria mais, e a filha o sabia.

— Como pode ser tão dura quando, nesta casa, só estão os dois, velhos, e somos tudo que têm? — disse ela.

— Podemos viver, — disse Ling Sao orgulhosamente.

Assim, Ling Tan, que estava no pátio, viu a filha e as crianças saírem, enquanto Ling Sao fazia uma ligeira demonstração de cortesia. Ela e Ling Tan ficaram ali até que Wu Lien e a família se fossem, sem que uma palavra fosse dita sobre a sua volta.

Quando eles se foram os dois trancaram a porta novamente, Ling Sao gritou pelo buraco e os outros subiram. Falaram um pouco sobre a visita e, quanto mais falavam, mais zangado se tornava Lao Er. Decidiu arrastar-se pela cidade de qualquer jeito para ver por si mesmo o que havia, e se na verdade todos se tinham rendido ao inimigo.

Pelos livros que lia, Jade inventou um traje de mendigo para ele e, com barro vermelho, fizeram-lhe no rosto uma ferida que lhe torcia a boca de um lado e parecia lhe cegar um olho. Poucos dias depois, Lao Er penetrava na cidade, pretendendo ser um mendigo. Evitando as ruas principais ele ia e vinha, falando pouco e vendo muito. O que ele viu entristeceu-o, pois em toda parte o ópio estava sendo vendido. Viu as casas arruinadas e a gente esfomeada que a guerra deixa em toda parte. Mas isso era pior nesta cidade, pois, até bem pouco tempo, fora bela, rica, e cheia de alegria. Agora, as ruas estavam silenciosas. Milhares e milhares daqueles que em outra época andaram por ali, cheios de vida, agora estavam mortos. Casas, que haviam sido lares, jaziam, agora, vazias e queimadas. As lojas estavam fechadas, a não ser aquelas, como a de Wu Lien, que floresciam numa época dessas. E como um novo mal crescente, lá estavam outras lojas e choças, muito enfeitadas com papéis e tintas, algumas declaradamente bordéis, outras não, mas todas vendendo ópio. Numa choça dessas Lao Er parou como se fosse entrar e ficou esperando, procurando ganhar coragem, quando um aleijado, sem a perna direita, aproximou-se, arrastando-se, apoiado a uma muleta. Estava amarelo e seco e Lao Er podia ver que ele viera a esse lugar muitas vezes antes desta. Segurou-o e falou como falaria um estranho.

— Esse lugar vende isso? — perguntou, apontando para um sinal.

O homem afirmou com um aceno e Lao Er perguntou novamente:

— Mas, devemos entrar, sendo o inimigo que vende? O homem olhou-o.

— Que importa o que aconteça para homens como eu? — indagou. — Nada me pode dar de volta o que eu tive. O melhor dos tempos, ainda que todos os inimigos se vão, não me dará de volta minha perna, nem o meu bom hotel, minha esposa, meus filhos — tudo que uma vez me pertenceu. Nem me importa que haja vitória. Que poderá uma vitória fazer por mim?

Lao Er gemeu pensando que, como este, eram todos os vendidos. Naquela noite coxeou, arrastando-se para casa e, chegando lá, contou o que tinha visto: que os mercados não tinham comida para vender e os negociantes lhe diziam que os preços subiam ao céu porque a comida estava sendo remetida para o exterior — o povo da cidade passava fome mas o inimigo não se importava, dando-lhe ópio bem barato como comida e, com ele, o esquecimento.

Ora, tão dolorosas notícias caíram sobre a casa de Ling Tan como nenhuma outra, pois ele sabia, por sua própria mãe, o que o ópio era capaz de fazer e como uma alma podia ser transformada por meio dele, fazendo tudo por ele.

"Qual será o nosso refúgio para isso?" lamentou ele. "Podemos nos esconder dos aviões, podemos reconstruir as casas queimadas, mas que poderá ser feito se o nosso povo esquecer o que caiu sobre ele?" E, para Ling Tan, esse parecia o maior mal que o inimigo até então lhes trouxera.

 

Ora, guerra secreta não é guerra aberta, e, das duas, a primeira é a mais difícil de sustentar. Enquanto o inverno passava Ling Tan era obrigado a conservar a face inexpressiva e os olhos tristes, mas sua mente tinha que trabalhar rapidamente, para saltar a qualquer oportunidade, pequena ou grande. Enquanto os filhos, e aqueles que estavam com eles, iam e vinham, durante a noite, usando o quarto secreto como uma fortaleza para as suas armas, ele tinha que parecer um velho lavrador que não sabia nem via coisa alguma, quando o inimigo vinha investigar. E eles vieram, certamente, pois, na primavera, foram tantos os soldados encontrados mortos que uma grande raiva elevou-se entre os governadores inimigos. Os guardas eram encontrados mortos, à bala, sobre os muros da cidade, apesar de as portas serem fechadas à noite e o muro ter oitenta pés de alto. Como podia, pois, alguém escalá-lo?

Contudo, o filho mais moço de Ling Tan e os outros como ele escalaram esse muro, durante muitas noites. Enfiava os pés nus e fortes nas fendas dos velhos e enormes tijolos, apoiando-se nas trepadeiras e nas raízes de pequenas árvores. Assim, na escuridão, com grande esforço, ele escalava o muro, arrastando-se pelas sombras do parapeito fortificado com ameias, até que encontrasse um guarda e se atirasse sobre ele. Logo a seguir escondia-se entre as trepadeiras, novamente, e, se havia barulho e gritaria, ficava suspenso por elas até que tudo se acabasse. Então descia, ia para casa, e, antes do despontar do dia, estava de volta às montanhas.

E o inimigo que chegava à vila, procurando comida e outras mercadorias, via-se cercado por aldeões pacatos e inocentes, velhos e velhas juntos, amedrontados, tímidos; e, subitamente, essas mesmas pessoas, mostrando facas e armas de fogo, caíam sobre eles, não deixando um para contar em que vila fora. E todos os inimigos da cidade sabiam que muitas vezes, aqueles que saíam não mais voltavam. Mas os aldeões eram bastante espertos para não caírem sobre aqueles que vinham mais fortes do que eles. Não, onde quer que estivessem, esperavam pelo sinal de um que haviam escolhido como guia e, se o sinal fosse feito, eles se moviam em silêncio mas com rapidez.

No quarto secreto, debaixo do pátio de Ling Tan, havia, agora, estranhas armas, algumas de fogo, novas, com letras estrangeiras escritas sobre elas. E havia, também, algumas armas tão velhas que era maravilhoso pensar onde haviam sido feitas e quando tinham sido usadas pela primeira vez. Estas vinham principalmente dos homens das montanhas, muitos dos quais tinham sido bandidos em outros tempos e haviam guardado as armas, passadas pelas mãos de gerações e gerações de bandidos, sob os muitos chefes que os tinham guiado. De todas essas armas Ling Tan escolheu, para si mesmo, uma velha arma de fogo que, dum lado, tinha um cabo de madeira e uma clava e, do outro, era um ferro dividido em quatro tubos, como os quatro dedos da mão de um homem. Na base de cada tubo havia uma cavidade para a pólvora e o fogo. Tão simples era essa arma que Ling Tan podia usar, como bala, qualquer pedaço de ferro que encontrasse, cabeças de prego, pedaços de dobradiças, qualquer coisa, e com quatro pequenas cargas de pólvora e um pedacinho de algodão atirar quatro projéteis num só disparo. A ferida assim provocada era muito dolorosa.

Ora, nesta vila, Ling Tan fora o escolhido para dar o sinal de morte ao inimigo, — e isso ele fez todas as vezes que o inimigo veio e não se enganou quanto à força dos aldeões. Duas vezes no inverno e uma na primavera ele deu o sinal, e mataram todos os inimigos sem que nenhum escapasse para contar o que vira na vila. Assim eles continuavam seguros. A raiva dos governadores aumentava cada vez mais, pois suas perdas se tornavam maiores, principalmente nas vilas das montanhas, que ficavam muito distantes da cidade. Como poderiam governar a campanha se não ousavam ir a ela? Mas poderiam enviar um exército a toda parte, só para recolher os víveres e as mercadorias que exigiam? E, finalmente, no meio do verão, o inimigo, numa raiva incontida, mandou queimar todas as vilas onde fossem encontrados montanheses. A vila de Ling Tan não foi queimada porque, ainda que sempre o inimigo a examinasse e houvesse montanheses escondidos no quarto secreto, eles não o suspeitavam. Portanto somente ameaçaram, mas não destruíram a vila.

Mas houve vilas, muito isoladas, nas montanhas, cujos inocentes habitantes tiveram suas casas queimadas durante a noite, sem motivo algum, a não ser que, como as vilas estavam nas montanhas, o inimigo raciocinou que havia montanheses nelas. E, apesar de tudo, quando o verão ia em meio — contavam os filhos de Ling Tan — surgiam de todas as partes e até mesmo das vilas queimadas, criaturas dignas de pena, uns poucos homens e mulheres, para cultivarem a terra que ainda lhes pertencia.

Sob tal crueldade o temperamento daquela gente não podia deixar de mudar. No tempo em que eram livres, a própria face de homens e mulheres eram abertas, livres, o riso era pronto, rápido, e, em cada casa, ouviam-se vozes altas, contentes, conversando, amaldiçoando, e ninguém precisava ocultar nada dos outros. Mas agora as vilas silenciavam e, em todo o campo, as faces eram carrancudas, duras, por causa da dureza da vida sob esse inimigo e da amargura que não podiam desabafar senão matando às ocultas. Esse ódio secreto e essa constante procura de meios de matar não podiam senão transformar os próprios corações dos homens, e Ling Tan sentia essa mudança até em si.

Os inimigos, tendo sempre queimado madeira, e madeira somente, para cozinhar a comida, não conheciam outro combustível e punham árvores abaixo, arrancavam vigas das casas das pessoas, erguiam portas das dobradiças. E, em qualquer ocasião em que houvesse necessidade de madeira, eles saíam e arrancavam-na onde quer que a vissem.

Entre todas as árvores derribadas nessa primavera, estava o grande e velho chorão, próximo à casa de Ling Tan, sob o qual Lao Er e Jade costumavam se encontrar no primeiro ano de casados. Quando Lao Er chegou e viu o enorme tronco decapitado, ficou triste, voltou-se e disse a Jade:

— Eles derribaram a nossa árvore, meu coração. Ela disse tristemente:

— Onde vão aqueles dias calmos em que podíamos nos encontrar debaixo de uma árvore?

Ora, aconteceu que um dia chegou à vila de Ling Tan, no primeiro mês de verão, um bando de inimigos, procurando madeira. Era um bando de oito ou nove homens, mas a vista aguçada de Ling Tan, velada pela pretensa estupidez, viu que somente cinco estavam armados. Os aldeões vieram para a porta, como sempre faziam e, velhos e velhas, ficaram prontos para lançar mão das armas, se Ling Tan desse o sinal. Nesse dia, depois de considerar o inimigo, Ling Tan deu o sinal, e, como um só corpo, os aldeões surgiram e caíram sobre os inimigos, matando-os todos, com exceção de um, ferido pelas quatro bocas da arma de Ling Tan. Pôde arrastar-se até os bambus que ficavam ao sul da casa do próprio Ling Tan. Este seguiu-o até ali e o inimigo, apoiado nas mãos e joelhos, como um cachorro, voltou a face suplicante para Ling Tan e, numa língua que este não podia compreender, implorou pela vida. Era um homem da mesma idade de Ling Tan aproximadamente e disse, arfando:

— Deixe-me viver, eu lhe peço, deixe-me viver! Tenho mulher e filhos. Veja, cá estão eles!

Tentou encontrar alguma coisa no peito e não pôde.

Mas Ling Tan examinou o cinto do inimigo e, tirando uma faca curta que este levava, não esperou um momento, e, sem pensar na verdade, mais do que o teria feito por uma cobra ou uma raposa, mergulhou-lhe a faca no ventre. O homem voltou para ele o seu olhar triste, amargo, e morreu.

Então Ling Tan, que já matara três inimigos antes deste, ficou olhando para baixo, para o rosto do homem e pensou: "Esse demônio não tem um rosto mau". Pensou no que o homem lhe havia dito e, antes que a mancha de sangue atingisse o coração do morto, abaixou-se, pôs a mão no bolso do homem e tirou uma caixinha de seda. Abriu-a e lá estavam os retratos de uma bela mulher e quatro crianças, entre oito e quatorze anos de idade. Ling Tan contemplou por um momento e pensou que nunca mais veriam o homem a quem pertenciam.

Nesse momento Ling Tan soube quanto ele próprio estava mudado, pois podia pensar nisso e olhar para esses rostos, sem sentir pena. Não havia tristeza nem alegria nele. O que fizera, fizera, não desejava desfazê-lo, e repeti-lo-ia amanhã, se houvesse oportunidade.

Em outros tempos tivera um coração tão mole que nem queria ver a morte de galinhas e Ling Sao tinha que torcer-lhes o pescoço atrás da casa, num lugar em que ele não pudesse ver. "Eu não gosto de matar", pensava ele agora, "e ainda hoje, eu não mataria por prazer. Mas, de qualquer forma, como é que sou capaz de matar?"

Voltou para casa, só parando para avisar os aldeões, que estavam enterrando os corpos, a respeito do morto nos bambus, pois era necessário enterrar os mortos rapidamente, antes que fossem descobertos. Com a caixinha de seda nas mãos penetrou em casa e a pôs no seu quarto. Sim, ele estava mudado. Comeria esta noite como sempre, sem que representasse nada para ele que, por sua causa, um homem por quem mulher e filhos esperavam em alguma parte, estava guardado sob a terra. Mas havia outros, e a gente da vila — ele entre eles — muitas vezes diziam piadas sobre os mortos: se enriqueciam ou envenenavam a terra e ficavam perguntando a si mesmos se, no ano vindouro, as colheitas seriam as mesmas. Estavam todos mudados. Antes que o inimigo viesse nunca se ouvira falar de uma morte na vila, a não ser, talvez, alguma menina recém-nascida, que nem sentira o hálito da vida. Agora, eles matavam os inimigos como piolhos nas roupas de inverno, e não pensavam mais neles.

"Quando os demônios partirem poderemos voltar aos nossos velhos seres?" perguntava Ling Tan a si mesmo e não podia responder. E pôs-se a pensar em todos da sua casa, e pensou em Ling Sao que, junto com todos os outros homens e mulheres, corria para fora com uma enxada e uma pá, cavava o chão para enterrar o inimigo, voltava como se tivesse enterrado sobejos e, depois, ia para a cozinha ou segurava a criança. Pensou em Jade, que segurara uma arma, e atirara tão bem quanto o marido e, logo depois, fora amamentar o filho. Que bebera a criança com aquele leite? Mas, de todos, ninguém estava tão mudado como ele e seus três filhos. Pois Ling Tan sabia que as mulheres são mais hábeis para matar e fazer coisas duras do que os homens. Elas fluem sangue todos os meses, derramam-no também quando dão à luz, e, por isso, não temem o sangue. Mas, quando o sangue de um homem corre, ele sabe que a sua vida está fugindo com ele e por isso os homens são mais delicados do que as mulheres e, aprender a verter sangue facilmente, move todo o seu ser e os transforma.

Assim era com o filho mais velho de Ling Tan. Fora um homem simples, de coração terno e, a primeira vez, quando teve que matar, agiu contra sua natureza, mas, quando matou, sua natureza transformou-se. Agora, vendo seu filho mais velho ir e vir, de casa para as montanhas, Ling Tan via um homem que ria e era infantil mesmo depois de ter filhos, transformado num homem que não mais ria e cumpria a sua tarefa diária de morte tão facilmente como outros cultivavam a terra.

O filho mais velho construía armadilhas tão bem, que ninguém diria haver um buraco sob o pó. Ele cavava essas armadilhas em muitos caminhos durante a noite e, de manhã, ia examiná-las. Se havia nelas um homem inocente, ele o puxava e o deixava ir livremente, mas, se havia um inimigo, enfiava-lhe a faca, tão facilmente como se tivesse pegado uma raposa. Não gastaria uma bala sobre um inimigo desarmado. Enfiava-lhe a faca no coração, atirava o homem numa moita e refazia a armadilha. Um dia, Ling Tan viu seu filho mais velho, que estava comendo, levantar-se rapidamente e sair. Havia, na porta, um inimigo solitário escrevendo alguma coisa num livro; o filho mais velho matou-o e voltou à refeição.

— Você nem lava as mãos? — perguntou Ling Tan espantado.

— Por quê? — respondeu o filho com simplicidade. — Nem o toquei, apenas empurrei-o com os pés para uma moita de bambus.

E, com a mesma terrível simplicidade, comeu prazerosamente a sua comida, e só quando acabou foi enterrar o inimigo que escondera no bambuzal. Mas Ling Tan não pôde comer sua refeição com tanta vontade, não porque alguém fora morto, mas devido à mudança do filho.

"Será que ele mudará de novo?" — perguntava-se. "Quando a paz voltar ele será tão gentil como era?"

Mas nada era tão horroroso para Ling Tan como a alegria que o filho mais novo tinha, sempre que matava um inimigo. Esse filho, apenas um rapazinho, saíra do seu sonho silencioso, e tornava-se de uma beleza mais terrível a cada dia que passava. Era muito mais alto do que a maior parte dos homens e seu rosto atraía a atenção de homens e mulheres, de modo que andava disfarçado, a não ser quando estava entre os seus, pois sua face não era para ser esquecida. Tinha a testa quadrada, sobrancelhas pretas e seus olhos brilhavam de desejo. Seu nariz era reto, tinha os lábios ainda frescos como os de uma criança, mas era, em tudo, superior aos outros homens. Não conhecera mulheres mas elas se voltavam para ele, desejando-o, ainda que ele virasse a cabeça para o outro lado. O que o inimigo fizera a este filho fora arrancar seu ser do natural, e toda a paixão que ele pudera aplicar amando uma mulher, punha agora numa vontade profunda, a vontade de matar. Matar tornou-se seu prazer.

Ora, Ling Tan via, diante dos seus próprios olhos, que seu filho mais moço tinha-se tornado a espécie de homem que ele mais odiava e temia, o homem que ama a guerra e encontra nela o seu prazer e a sua vida. Não havia modo de esconder que o filho mais moço se deleitava com a guerra e gostava de tudo que lhe dizia respeito. Os homens das montanhas perceberam-no e, finalmente, foi elevado a chefe de uma divisão deles e, embora mais moço do que todos, ele fazia esquemas e planos como se estivesse se divertindo com um brinquedo. Tornou-se um mestre de emboscadas e ataques secretos, era o mais audaz de todos os montanheses dessa região e os inimigos passaram a distinguir entre um ataque seu e um dos outros, embora não soubessem quem era, pois os planos eram- de mestre e a fuga difícil.

Este filho mais moço não vinha para casa muitas vezes mas, quando o fazia, era sempre para narrar algum sucesso que tivera, e contando-o, rindo, orgulhoso, envaidecia-se com o seu sucesso e sua sorte, passando a acreditar que a sorte era sua, por algum favor do Céu. Jactanciava-se: "O Céu escolheu-me para esse trabalho", ou dizia: "O Céu guiou-me a esse lugar", ou então: "O Céu colocou o poder em minhas mãos", até que um dia Ling Tan exclamou:

— Não fale no Céu para isto e aquilo. Afirmo-lhe que o que está acontecendo na Terra, agora, não é por vontade do Céu. Não é vontade do Céu que os homens matem uns aos outros, pois foi o Céu quem os criou. Se devemos matar, não digamos que é o Céu que o ordena.

Disse isso como um pai fala a um filho e não gostou ao ver o formoso rapaz, erguendo o lábio, dizer-lhe com escárnio:

— Essa é uma doutrina velha e, por ela, chegamos a este estado. Ficamos dormindo junto aos nossos antepassados em vez de viver no mundo e, enquanto dormíamos, os outros preparavam armas e nos vieram atacar. Nós, que somos moços, sabemos melhor!

Ora, isso era uma impudência que Ling Tan não podia suportar. Sua mão direita voou, atingindo o filho bem na boca.

— Fale assim comigo! — berrou. Pelas doutrinas dos nossos antepassados temos vivido durante milhares de anos, mais tempo do que qualquer povo desta terra! Na paz os homens vivem, mas morrem na guerra. E quando os homens vivem, a nação vive, mas quando os homens morrem, a nação morre!

Mas Ling Tan não conhecia mais este seu filho. Pois ele avançou, ergueu a mão contra o pai e disse, com voz amarga:

— Estes tempos são outros! Você não pode bater-me! Sou capaz de matá-lo como a qualquer um!

Ling Tan ouviu isso com seus próprios ouvidos e suas mãos caíram molemente, junto ao corpo. Fixou aquela face bela, irritada, que ele próprio gerara e, por fim, voltou-se, sentando e escondendo o rosto entre as mãos.

— Acho que você pode me matar, — suspirou. — Acho que agora você pode matar qualquer um.

O rapaz não respondeu, mas sua aparência orgulhosa e taciturna não se transformou. Saiu de casa, foi embora, e Ling Tan não o viu durante muitos dias.

Esses não eram bons dias para Ling Tan, pois passava as noites insone, pensando para si mesmo: "Não será isso o fim do nosso povo, o tornar-se guerreiro como todos os outros povos do mundo?" E ficava desejando que o seu filho morresse no transcurso dessa guerra.

"Um homem que mata apenas porque gosta de matar, deve morrer para o bem do povo, ainda que seja meu próprio filho", pensava Ling Tan com dificuldade. "Tais homens são sempre tiranos e nós, que somos o povo, estamos eternamente à sua mercê."

— Sinto que o nosso filho mais moço morreu, — disse ele uma noite a Ling Sao. — Está tão mudado que eu sinto como se aquele rapaz delicado que tivemos não mais existisse; ele, que vomitava horrorizado quando via um morto!

Tinha pensado que ela não compreenderia o que queria dizer e ficou surpreendido, ouvindo-a suspirar na escuridão.

— Não estamos todos mudados? — perguntou ela.

— Você está mudada? — disse ele na sua surpresa.

— Não estou? — respondeu ela. — Poderei jamais voltar aos velhos hábitos? Mesmo quando tenho o menino sobre os joelhos, não me esqueço do que temos feito e devemos fazer.

— Poderíamos fazê-lo de outra forma? — perguntou ele.

— Não, — foi a resposta.

Ele refletiu um instante e disse, então:

— E, ainda nestes dias, devemos nos lembrar de que a paz é boa. Os jovens não a podem recordar; somos nós quem nos devemos recordar e lhes ensinar novamente que a paz é o maior alimento do homem.

— Se eles pudessem aprender alguma coisa que não fosse o que aprendem agora, — disse ela tristemente. — Eu gostaria que não fosse fácil matar! Nossos filhos se acostumaram a esse meio rápido e fácil de terminar tudo. Algumas vezes eu penso, meu velho, que, se nos opusermos a eles, hão de nos matar com a mesma facilidade se não tiverem outros inimigos. Ou cairão uns sobre os outros.

Ele não pôde responder a isso e ficou longo tempo deitado, sem dormir, e ela também, pois Ling Tan não ouvia o ressonar curto que sempre lhe dizia quando ela dormia. E decidiu então que, ainda que não parasse de oprimir o inimigo quanto pudesse, não deixaria que aquilo transformasse a sua vida. Todos os dias, fizesse o que fizesse, tiraria um pouco de tempo para recordar-se do que era a paz, e como fora a vida nesta casa em dias passados.

E quanto mais recordava tanto mais percebia que, para ele, matar um homem era mau.

"Que os outros matem", pensou. "Não matarei mais".

Depois raciocinou que, a seu próprio modo, ele servia, mantendo vivo dentro de si o conhecimento de que a paz era o direito. Sem escusar-se Ling Tan não deu mais o sinal de morte na sua vila, e, se alguém fazia divagações sobre aquilo, ele não se importava. Como reparação envenenou o seu tanque, matando todos os peixes, não deixando que o inimigo tirasse qualquer proveito deles, e, quando o arroz estava pronto para a colheita, trilhou-o durante a noite, dentro do pátio, e escondeu mais da metade, de modo que, depois de segada essa safra, o inimigo ficou com uma quantidade que quase não valia o transporte, e à sua raiva, Ling Tan respondeu apenas com o silêncio. E fez do silêncio sua arma.

Mas o segundo filho de Ling Tan não era como os outros dois. Ele matava quando devia, não como o filho mais velho, porque era a coisa mais fácil, nem por prazer, como o terceiro filho. Ele fazia seus esquemas largos e de grande alcance e se, ao executá-los, era obrigado a matar, matava, mas pensava no fim e não no momento. E, nos seus planejamentos, nenhuma mulher poderia tê-lo auxiliado mais do que Jade.

— Devemos usar Wu Lien como uma porta para penetrar na fortaleza do inimigo, — disse ela a Lao Er um dia. — Não adianta enraivecer-se e odiar tais pessoas. Elas não são para serem amadas ou odiadas, mas simplesmente para serem usadas. Mas, como poderemos usá-las?

— Você fala com sabedoria, — disse Lao Er.

Nesse momento eles estavam no quarto secreto, engraxando e polindo as armas ali escondidas, pois os homens das montanhas tinham mandado um aviso de que, dentro dos próximos três dias, uma sortida contra uma guarnição inimiga daquela região seria levada a efeito, e as armas deviam estar prontas.

"Como poderemos parecer amigos deles outra vez?" cismou Jade. Enquanto falava, inspecionava o cano brilhante da arma que sustinha. Era uma arma nova, tomada do inimigo não há muito tempo e colocada ali, entre as outras. Pôs uma varinha dentro do cano e a ficou movendo vagarosamente, para baixo e para cima. Sobre o chão batido, o filhinho brincava com alguns cartuchos vazios. Eles faziam bons brinquedos, seguros, e limpos para morder. Um dos cartuchos vazios ele apreciava mais, porque era fino, se ajustava às suas gengivas, e sobre o latão já deixava impressas as marcas dos seus primeiros dentes. Jade observava onde ele deixava o cartucho, pois, quando o menino se cansasse dele, pretendia guardá-lo numa caixa das primeiras coisas que usara, e onde estavam os primeiros sapatos que ela tinha feito, com caras de tigres em cima, e um chapeuzinho com Budas bordados, e todas essas coisas que as mães adoram guardar.

Ora, ainda que os dois nem o sonhassem, Wu Lien sabia que estavam escondidos na fazenda, pois ele tinha olhos e ouvidos na vila. E a quem podiam estes pertencer senão a alguém com ciúmes de Jade e seu filhinho? A mulher do primo em terceiro grau sabia, como todos na vila, que Wu Lien e sua mulher tinham vindo à casa de Ling Tan, ricos e bem nutridos. Assim, um dia, ela apanhou alguns peixes frescos e, a pretexto de que devia levá-los ao inimigo, uma vez que todos eram proibidos de comer peixe, dirigiu-se para a casa em que "Wu Lien vivia. Lá chegando deu seu nome ao soldado da porta, este a deixou entrar e, com o peixe ainda enrolado em folhas de lótus, ela chegou facilmente à presença de Wu Lien, como parenta de sua esposa.

Ele saudou-a com cortesia, como saudava toda gente e ordenou que se sentasse. Mandou chamar a esposa e os dois filhos. Pretendendo apenas uma velha amizade, a mulher do primo falou de Ling Tan e seus filhos.

— Seus irmãos estão bem, — disse ela à mulher de Wu Lien. — Eu vi o segundo não há muitos dias.

— Meu segundo irmão! — exclamou aquela. — Ele está aqui?

— Sim, Jade também, e têm um belo filho. Apesar disso, não gostaria que essa criança fosse minha, pois está marcada para morrer cedo. A morte faz-lhe guarda, digo eu toda vez que a vejo.

Suspirou, erguendo os olhos, observando o olhar que Wu Lien e a esposa trocavam.

— E os outros dois irmãos estão muito bem, primo, — disse ela, — eu os vejo algumas vezes, quando eles descem das montanhas.

— Eles vivem nas montanhas? — exclamou a filha mais velha de Ling Tan.

— Sim, eles vivem lá, agora, — respondeu a mulher do primo.

Ela refletiu se devia ou não contar sobre o quarto secreto debaixo da casa de Ling Tan e como, dessa fortaleza, os homens saíam para seus ataques secretos. Mas, depois de pensar um minuto, decidiu que não. "Não devo dizer tudo de uma vez," ponderou. "É melhor guardar alguma coisa para o futuro, pois posso precisar."

Assim ela sorriu, suspirou e disse:

— Já sabem, sem dúvida, que meu filho morreu. Sim, o inimigo o atingiu e perdi-o. Não tenho ninguém agora. Mas ele não fazia nada de mal. Tinha vindo à cidade apenas para olhar e ver o que acontecia, e não trazia armas. Eu sempre digo que se seu pai não tivesse posto a idéia nas suas entranhas, ele nunca teria vindo. Sim, quando eu vejo Jade, sei que todo o nosso mal começou no dia em que seu pai comprou Jade do meu filho. Porque somos pobres, perdemos tudo. Mas aí está o que é ser pobre.

Enxugou os olhos e Wu Lien tossiu, tentando consolá-la.

— O pai do seu filho está bom? — perguntou.

— Como pode estar bom, se não temos o suficiente para comer? — perguntou de volta a mulher do primo.

Então uma idéia brotou daquele cérebro sem inteligência. Voltou-se para Wu Lien com os olhos subitamente secos.

— Wu Lien, sois um homem bom e compassivo, — disse ela. — Jamais olhei para a sua face macia sem ver a bondade refletida nela. Um homem não fica gordo assim sem ter um coração livre e um fígado sem fel. Não poderia encontrar, para o meu velho, algum trabalhinho dentro destes muros?

Ela olhava em torno, à medida que falava, pensando o quanto seria bom viver neste lugar seguro. Havia poltronas para sentar e as camas eram igualmente confortáveis, sem dúvida, e comida bastante, sem que ninguém precisasse se importar com a quantia que os governadores pagavam por ela.

— Mas, meu pai deixará que ele venha? — perguntou a mulher de Wu Lien. — Ele tem raiva de nós e não ficará mais enraivecido ainda se p primo vier para cá?

Ora, nada deixava a prima mais vexada do que isso. Por direito seu marido devia ter, na vila, mais força do que Ling Tan, pois era mais velho, mas ninguém se recordava disso, e Ling Tan tomara facilmente o lugar de cabeça sobre o primo, que era um homenzinho fraco, com uma voz sibilante e uma barbicha de bode que tremia quando falava.

— Não é seu pai quem deve dizer o que podemos fazer, •— respondeu a mulher do primo. — Meu marido pensa sempre como eu, e eu penso que devemos, primeiro, tratar de arranjar comida, pois quem irá nos alimentar senão nós mesmos?

Estava correndo-lhe para a ponta da língua o dizer a esses dois que Ling Tan tinha metade dos seus cereais em armazéns secretos, e que ordenara a todos que matassem os porcos e galinhas e os salgassem, mas hesitava, pois tinha feito o mesmo também, e o que diria quando descobrissem isso?

Enquanto ela falava, Wu Lien pensava e disse:

— Será melhor se nós ajudarmos vocês na vila. Quer dizer, venha aqui de vez em quando e lhe daremos comida, dinheiro, tudo que precisar e você nos contará as novas. Gostamos de saber como vão passando os irmãos, o pai e a mãe de minha mulher.

Ele disse isso inocentemente, mas era fácil ver o que estava por trás e a mulher do primo, percebendo-o, sorriu. Levantou-se logo, dizendo que devia voltar. Wu Lien levou a mão ao peito, tirou algum dinheiro, e deu-lho dizendo:

— Tome isto pelo seu incômodo em trazer o peixe e, da próxima vez, coma-o você mesma. Se alguém condená-la, falarei àqueles que estão acima de mim.

Ela curvou-se em dois, como agradecimento, e Wu Lien fez um gesto cortês de despedida.

— Tenho pouca influência, — disse modestamente, — e como poderia usá-la melhor, senão auxiliando velhos amigos?

E sua mulher olhou-o, orgulhosamente, pensando na nobre figura que ele fazia naquelas roupas de cetim vermelho-vinho que usava, e disse à mulher do primo, fervorosamente:

— Prima, faça-nos mais uma bondade. Quando puder, fale sobre o pai de meus filhos com meu pai. Não lhe dão o valor que ele tem. Parecem não perceber a sabedoria dele, fingindo concordar com os daqui e...

Mas Wu Lien ergueu a mão em sinal de silêncio.

— Eu concordo, — disse alto. — Acredito que aquilo que o Céu determina que passemos é o melhor, desde que possamos vê-lo assim.

— Que sabedoria! — exclamou a mulher do primo. — Estejam certos de que falarei todo bem pelos dois, sempre que possa! É o que sempre digo a mim mesma. É loucura negar o que já está aqui. Falo isso todo dia ao meu velho.

Assim, ela se curvou, despedindo-se, e saiu. Nas ruas da cidade comprou algumas coisas que precisava — uma agulha, um pedaço de tecido para sapatos e um pouco de carne. Mas teve que andar muito para comprar a carne porque os preços eram tão altos, que ela sempre guardava o dinheiro quando os ouvia. Mas, afinal, gastou-o, pois andou até bem longe, passou muitas lojas vazias e um homem com ar penalizado lhe disse:

— Compre ou não compre, como quiser, mulher. Não encontrará melhor em parte alguma. Estamos todos arruinados aqui.

Mas ela estava cheirando a carne.

— Isto é carne de quê? — perguntou. — De cachorro? Se é, eu não vou comê-la. Posso matar o meu próprio cachorro.

— Não é carne de cachorro. É de burro, — disse o homem. — Eles guardam todas as outras carnes para eles.

Ela considerou um instante, com a carne na mão, e então resolveu-se. Era carne, fosse qual fosse, e não queria matar seu próprio cão.

Mas enquanto dirigia-se para casa através das ruas desertas e silenciosas, vendo ruínas por toda parte, o povo meio esfomeado arrastando-se de porta em porta, e reparando que havia poucas rickshas, pois muitos homens tinham fugido e os que tinham ficado eram muito fracos para empurrar uma carga, tornou-se assustada e pensou: "Naturalmente nós devemos usar Wu Lien de qualquer jeito, estando ele em tão boa situação. Devemos mergulhar os dedos na gordura também, o meu velho e eu. Qual é a vantagem de passarmos fome?"

E ela se dirigiu para casa, certa de fazer tudo que Wu Lien ordenasse e disposta a manter os ouvidos grudados à porta de Ling Tan, pois a casa deste era o centro da vila.

"Direi ao meu homem o que devemos fazer", pensou, planejando alimentá-lo bem nessa noite e talvez mesmo lisonjeá-lo com os seus favores, quando fossem para a cama. Então, quando ele estivesse bem contente, trataria de dizer-lhe como devia fazer fortuna.

Assim fez ela e o pobre homem era inocente demais para suspeitar porque, nessa noite, ela teve tantas bondades para ele, uma após a outra. Só depois de partilhar de tudo, foi que percebeu por que ela estava tão fora do seu modo de ser. Então, depois de ouvi-la, lamentou-se dizendo:

— Eu devia ter suspeitado que você estava planejando alguma coisa.

E sentiu que estava comprimido entre duas mós — uma era sua mulher e a outra o medo profundo que tinha de Ling Tan, e alguma coisa mais que medo também, pois ele respeitava o homem que era seu primo mais moço. De coração, achava que Ling Tan era mais poderoso do que Wu Lien sentado no meio dos inimigos, e disse à mulher:

— Você não acha que, se Ling Tan ou seus filhos descobrirem que os estamos traindo, as nossas vidas terminariam no momento justo em que descobrissem? Porque esses homens matam tão facilmente como respiram, hoje em dia, e se nos descobrissem como inimigo, iríamos para o fundo da terra como todos os outros!

Diante disso a mulher injuriou-o dizendo:

— De todos os homens da Terra você é o menos homem, e porque estou amarrada a você? Fará o que eu digo ou não?

— Mas, que diz você? — apressou-se ele, tremendo ao lado dela.

— Nós somos inimigos de Ling Tan, — disse ela, — e eu sempre o odiei.

— Mas eu não, — murmurou ele — tem sido bom para nós, alimentou-nos muitas vezes, e, quando tinha o tear, dava-nos todos os pedaços de tecidos, ou quase todos que não precisava em sua casa. E uma vez ele deu-me o suficiente para fazer uma roupa inteira ou um casaco. É-me difícil esquecer isso tudo.

— A mim não é difícil esquecê-lo, — disse a mulher. — Você pensa que isso significa alguma coisa para ele? Ele gosta de nos dar seus paninhos e suas comidinhas. Ele cresce aos seus próprios olhos. Alguém dá alguma coisa, a não ser que isso lhe faça bem? Devemos agradecer-lhe por seu próprio orgulho?

Então, ela torceu o pobre infeliz que estava a seu lado. Ele ouviu, gemeu, fechou os olhos, experimentando dormir, mas ela o puxou, até vê-lo bem acordado outra vez, e, finalmente, cansado, ele gritou:

— Oh! faça o que entender, pois de qualquer forma você o faria amanhã, e eu não sou mais forte do que qualquer homem para desafiar uma mulher!

Assim, o primo de Ling Tan e sua mulher tornaram-se, na vila, os olhos e ouvidos de Wu Lien, embora o primo sempre o fosse a contragosto e guardasse para si mesmo o máximo que podia. Mas, como poderia guardar tudo? Essa mulher tinha seus meios de tortura, e para conservar a paz da casa e livrar a si próprio da desgraça, o primo soltava, pedaço a pedaço, todas as notícias que ouvia quando Ling Tan reunia os homens para dizer-lhes o que deveriam fazer. E, fielmente, a mulher ia a Wu Lien, contava-lhe tudo e recebia seu prêmio. Mas Wu Lien jamais contou as coisas que ela lhe dizia. Guardava-as apenas para seu próprio conhecimento.

E Jade, sem saber de nada, planejou como, através de Wu Lien, se poderia abrir uma porta até o inimigo. Decidiu que, um dia, ela própria iria transportar mantimentos para a cidade e vendê-los na porta de Wu Lien. Não dizia a ninguém o que fazia, pois essa jovem podia ser tão fria e audaciosa como qualquer ladrão. Escolheu um dia em que seu marido foi às montanhas e, depois de esperar até que a criança dormisse, colocou um chinó de cabelo grisalho que o marido comprara de uma companhia de saltimbancos, quando se dirigiam para o Oeste, a fim de esconder sua juventude e formosura debaixo dele. Colocou-o, untou a face com tinta, ergueu o lábio superior com massa e tingiu-o, escureceu os dentes, pôs uma falsa corcunda nas costas, e calçou uns sapatos velhos, para esconder os pés jovens. Enquanto Ling Sao dormia, ela escorregou pela portinhola dos fundos, foi até um campo secreto, entre os bambus, onde Ling Tan plantava couves de inverno, fora do alcance dos olhos inimigos e colheu uma cesta cheia delas. Ling Tan trabalhava na terra em frente e não podia vê-la. Então, fazendo um rodeio, dirigiu-se para a cidade.

Ela sabia onde Wu Lien estava e para lá se dirigiu. Não poderia ter uma chave melhor do que uma cesta de couves frescas. Porque os mercados não tinham verdura nenhuma, e até o próprio soldado que estava na porta ficou com a boca cheia d'água e Jade nem precisou usar o nome de Wu Lien.

— Vá à cozinha, velha, disse ele em palavras falhas. — O cozinheiro pagar-lhe-á.

— Onde é a cozinha? — balbuciou ela sibilando as palavras, como se tivesse os dentes maus.

Porque essa era uma das qualidades de Jade — podia parecer com quem bem entendesse. Assim, quando se vestia como uma velha, fazia, quase sem perceber, tudo que uma velha costuma fazer. Ela era capaz de enganar até ao próprio Lao Er, não a tivesse ele visto com esse disfarce e com muitos outros também, que o deixavam espantado diante das maneiras diferentes que ela adotava para cada traje.

— Venha comigo, — disse o soldado.

Guiou-a, através de muitos pátios, e ela, atrás dele, coxeava, respirando fortemente pelo nariz, sem ver nada, a não ser os dois pés que pisavam o chão diante dela. Assim, chegaram à cozinha.

Aí o soldado exclamou para o cozinheiro:

— Eis uma velha com uma cesta de alguma coisa que vale mais do que ouro. Tudo que eu peço é dar uma provadela quando a iguaria estiver pronta!

Ele riu, retirando-se, e lá ficou Jade na porta da cozinha. Um cozinheiro gordo e mau humorado saiu. Não era inimigo, mas um homem vindo de alguma das casas de pasto, agora arruinadas. Ele ergueu a toalha de cima das couves e soltou uma maldição, mas Jade não pôde ouvir.

— Duas peças de prata, — disse ele em voz alta. Ela sacudiu a cabeça.

— Sabe como as couves andam agora, — respondeu.

— Três, então, — disse ele indiferentemente. — Não é o diabo do meu dinheiro que paga e não tenho tempo para discutir. Vai haver uma grande festa aqui. Uma festa outra vez, me dizem; estão sempre festejando, mas onde posso arranjar comida para uma festa? Você tem carne, mulher? Pode arranjar um pedaço de porco? Peixe eu tenho — peixe, peixe — o que é uma festa sem um leitão ou mesmo um pato?

Ela fixou-o firmemente. Esse homem seria um traidor?

— Se eu lhe trouxer dois patos, você me pagará dez peças de prata por eles? — perguntou.

— Traga-os e verá, — retrucou ele.

Tirou a prata do cinto para pagar-lhe as couves e ela perguntou:

— Quando é essa festa?

— Daqui a dois dias, — disse ele e a amargura assaltou-o. Daqui a dois dias, há um ano atrás, eles tiveram a primeira grande vitória sobre nós. Assim, ordenaram-me que fizesse uma festa de arromba, pois todos os chefes vão se reunir no banquete.

Ela deu um salto para o homem.

— Você é um dos nossos! — sussurrou.

O gordo cozinheiro teve um olhar rápido em torno do pátio. Atrás dele a cozinha estava vazia. Mas, ainda assim, não respondeu.

— Que lugar ótimo é o seu, — murmurou ela. — Por acidente, pode por na comida alguma coisa de que você se alegrará! Quantos cozinheiros há aqui?

— Três, — disse ele.

— Três! — repetiu ela. — Três são bastantes para uma grande festa? Você não deve pedir auxílio numa ocasião dessas? Devia haver dez cozinheiros.

— Não confiam em ninguém de fora, — tornou ele. — Sabem guardar-se.

— Ah! — disse ela. Ele pegou as couves.

— Trará os patos amanhã? — perguntou.

— Trarei, — foi a resposta. — A esta mesma hora.

— O dinheiro estará pronto quando você chegar.

Ele mostrou-lhe uma porta nos fundos, onde ela passou, encontrando-se nas ruas desertas outra vez.

Ora, Jade tinha lançado a idéia do veneno na mente do cozinheiro como se tivesse despreocupadamente lançado uma semente à terra, pois sobre aquilo ela própria não tinha um pensamento firmado. Mas, enquanto caminhava através das ruas arruinadas, parava, aqui e ali, como para descansar, e falava, em lugares isolados, a homens e mulheres, que lhe segredavam o mal pavoroso em que agora viviam. Num dos lugares em que parou, um bufarinheiro de roupas velhas tinha acabado de reabrir sua loja, e Jade entrou, pretendendo procurar um casaco. Mas, quando perguntou ao homem como iam os negócios, as lágrimas brotaram-lhe dos olhos.

— Alguma coisa poderá ir bem comigo, outra vez? Perdi meu filho único, e minhas três filhas estão piores do que perdidas.

— Como perdeu o seu filho? — perguntou.

— Poderá me acreditar se eu contar? — disse ele. — Contudo essa é a verdade. Tinha somente quatorze anos, pois era o mais moço dos nossos filhos. Os deuses não nos deram outra coisa senão filhas, até este último, que era o melhor. Um dia, quando o inimigo passava por esta porta, ele gostou do brilho de tantas armas e uniformes e deu um viva — uma travessura de criança que quer se mostrar inteligente. Mas, no momento em que ele saudou, um dos inimigos saiu das fileiras e deu-lhe um tiro aqui mesmo, na minha porta, e eu aparei-o quando ele caiu morto.

— Pode ser isso? — perguntou Jade com amargura.

— Pode, porque foi, — suspirou o homem.

Jade continuou e deteve-se, na próxima vez, diante de uma casa meio queimada. Havia muitas dessas na cidade, e o povo vivia o melhor que podia no que fora deixado dos seus lares. Ela sentou-se na soleira da porta para descansar e a velha dessa casa saiu, perguntando se queria um gole de água do poço, pois não tinha chá. Jade respondeu que desejava apenas descansar. Mas a velha, vendo-a a olhar as ruínas, baixou a voz e disse:

— Procure não notar muito, pois quem sabe quem nos está observando? Somos mais felizes do que muitos que tiveram tudo transformado em cinzas em torno deles ou desses que morreram nas ruínas de suas próprias casas.

— Mas como foi que isso aconteceu aqui? — perguntou Jade.

— Caíram bombas?

A velha sacudiu a cabeça.

— Não, nós passamos por isso em segurança, — disse. — Mas depois o inimigo mandou seus soldados viverem em nossas casas e eles não se importavam com o fogo. Quando o incêndio começava numa casa eles se mudavam para outra. Minha casa foi uma dessas. Um soldado foi dormir, fumando, num quarto lá de dentro. Quando a cama pegou fogo ele se levantou e saiu, deixando-a queimar e foi para outra parte sem dizer nada. Nós, que dormíamos amontoados no outro lado da casa, o mais longe possível do inimigo, não notamos nada até que era muito tarde. Assim muitas casas foram queimadas. — A velha parou e tremeu. — Oh! como eles riem quando as nossas casas queimam! — disse.

Jade nem falou, nem respondeu, com medo de falar muito e alguém ouvi-la. Ficou sentada mais alguns minutos, depois levantou-se e se foi.

Contudo a medida do seu ódio ainda não estava cheia até que ela ergueu os olhos e viu, pregado sobre os muros de uma das ruas principais, em que entrara ocasionalmente, uma grande folha de papel com imagens falsas do inimigo, sorrindo, ofertando bolos e frutas a um grupo de vencidos ajoelhados, velhos e jovens, mulheres e crianças, que os olhavam reconhecidamente. Nessa folha, em grandes letras, estavam escritas estas palavras: "O Povo Saúda Seu Bom Vizinho Que Lhe Dá Alimentação, Paz e Segurança".

Quando Jade leu essas palavras, sua raiva transbordou. Dirigiu-se a uma certa loja por onde tinha passado e pediu uma droga antiga, muito conhecida. O homem, por trás do balcão, era velho e seco como uma raiz. Sorria um sorriso melancólico, enquanto media o pó branco.

— Há muitos que compram este remédio, hoje em dia, — disse.

— A maior parte, mulheres.

— Compram para si mesmas, também? — perguntou Jade para despistá-lo.

— Pode estar certa de que as mulheres compram para si mesmas, — retrucou o homem com calma e olhou-a fixamente, sem lhe perguntar nada, todavia.

Pesou a mercadoria e vendeu-a barato. Jade pô-la no seio e foi para casa.

Somente nessa noite ela disse a todos o que planejava, falando dos dois patos que precisava. Ling Tan, a despeito de tudo, tinha alguns patos, que guardava secretamente, para cria. Levantou-se sem uma palavra, foi até onde os patos estavam empoleirados, desceu dois e matou-os. Ling Sao e Jade depenaram-nos, limparam-nos, esfregaram o veneno por dentro e por fora da carne e os deixaram pendurados durante a noite. A grande força desse veneno era que ele era tão sem gosto como farinha, ou quase assim.

Na manhã seguinte Jade levou os patos para a cidade e os entregou ao cozinheiro gordo. Não falou nada até que foi paga, e, então, disse em voz baixa:

— Faça o molho bem gostoso e gaste bastante azeite e vinho. Os nossos patos comem plantas selvagens, nestes dias, e, algumas vezes, a carne fica manchada.

Os olhinhos dele abriram-se, ao ouvir isto, fixando-a. Jade fixou-o também com um olhar firme e, subitamente, vendo que ela não era velha, ele abriu a boca, mas fechou-a logo e acenou. Fechou a portinha dos fundos sobre ela e Jade dirigiu-se para casa pelo caminho mais curto.

Como poderia saber se o que fizera dera frutos ou não? As notícias do que acontecia na cidade não chegavam facilmente às vilas. Ela esperava, pensando. "Se eu for bem sucedida nisto, repetirei sempre. Será minha maneira de fazer guerra a esses demônios." Por fim, as notícias apareceram, depois de muito tempo, através da mulher do primo em terceiro grau. Ela disse, um dia, inocentemente, que seu marido tinha visto Wu Lien na rua e ele estava tão magro como uma cabra velha, pois quase tinha morrido, e muitos inimigos haviam morrido depois de um banquete.

Dificilmente Ling Sao pôde manter o olhar direito ao ouvir isto e ficou contente porque não havia mais ninguém para ouvir o que era dito. Porque, como fazia a maior parte das vezes, Jade tinha levado a criança para o quarto secreto à chegada da mulher. Mas Ling Sao devia saber mais e, pretendendo surpresa, perguntou:

— Quantos morreram e quem eram eles?

A prima, querendo fazer-se tão sabida quanto podia, disse solenemente:

— Eram todos grandes chefes. Cinco deles morreram e todos os outros estão doentes. Wu Lien disse ao meu marido que mais de vinte estão doentes. De todos, ele foi quem escapou da morte, pois comeu muito pouco. — Ela apertou os lábios, sacudiu a cabeça e continuou, num cicio. — Eles culparam os cozinheiros, mas como poderiam saber o que a carne era? Além dos cozinheiros ordinários tinham arranjado vários de fora, para auxiliar, e quando foram procurar por esses, tinham todos fugido.

— Mas, não sobrou carne para os cozinheiros comerem e eles não ficaram doentes? — perguntou Ling Sao.

— Esses chefes inimigos estavam com tanta vontade de carne que mastigaram até os ossos, — respondeu a prima.

— Ah! fez Ling Sao, — quem não sabe quanto o inimigo gosta de carne!

E na verdade os inimigos gostavam de carne, porque depois de mulheres e vinho, o que mais pediam era carne. Ling Sao ouvira, dos filhos nas montanhas, que tinham visto os inimigos cair sobre um dos raros búfalos gordos que pastavam, cortarem a carne do animal vivo e a comerem crua. Jamais alguém tinha visto ou ouvido coisa semelhante e, em toda parte onde isso era contado, os que ouviam exclamavam: "Eles serão homens?" Assim, era muito fácil de acreditar que tivessem comido até os ossos dos patos.

Nessa noite, quando Ling Sao contou a todos que Wu Lien também comera do veneno eles ouviram em silêncio. E o segundo filho disse:

— Desejava que ele tivesse comido mais e acabado de uma vez.

Ling Sao sabia que ele estava errado dizendo isso, e ainda que estivesse orgulhosa porque ela e Jade haviam usado veneno contra o inimigo, pois veneno é a arma das mulheres, disse:

— Apesar de tudo ele é o marido de sua irmã.

Como ela era sua mãe, o segundo filho voltou-lhe as costas, mas Jade, com sua voz macia, falou por ele:

— Nestes dias, mãe, há uma obrigação mais forte do que a obrigação de irmão para irmã. Não deve falar contra ele.

Nem Ling Tan nem Ling Sao responderam a isso. Não respondiam muitas das coisas que eram ditas nesta casa, agora, porque sabiam que não estavam em sua época e que o futuro não lhes pertencia, mas àqueles que continuassem a luta depois deles.

E nessa noite, na cama, Ling Sao chorou um pouco, dizendo para Ling Tan:

— Duvido que qualquer coisa volte a ser a mesma, ainda que seja feita a paz.

E Ling Tan respondeu prontamente:

— Nada poderá continuar a ser o mesmo e nós, os velhos, devemos sabê-lo. Um sinal da grande mudança é esse: os jovens separam-se dos velhos. Eles devem mesmo separar-se de nós, para que possam ser livres para o dever, que é afugentar o inimigo. Muitos, nestes dias, não praguejam contra seus próprios pais?

— Sim, e isso é mau, — disse Ling Sao apaixonadamente.

— Pois o que será da terra sob nossos pés se os próprios filhos, que trouxemos à vida, negam o que nos devem?

— Não podemos dizer que isso é um mal, — disse Ling Tan.

— Nós, os velhos, devemos ver que eles fazem isso buscando firmar sua liberdade para o que há de vir de novo.

Mas isso Ling Sao não podia perceber. Tudo que podia ver era que nada restava se os velhos não podiam exigir obediência dos jovens. Sendo assim, onde estava a ordem da vida?

Mas Ling Tan via mais longe do que ela. Apesar daquilo que percebia ser tão embaçado como uma neblina, pois ele não era homem de saber, compreendia agora que, se os filhos não mais lhe obedeciam, não era porque o odiassem. Era porque eles deviam estar livres de tudo que era passado, para poderem estar prontos para o que havia e o que estava por vir. Os filhos o tinham ultrapassado.

— Você me odeia? — cochichou Jade ao marido.

Agora, que fora bem sucedida no que planejara, tinha medo.

— Como posso odiá-la? — respondeu Lao Er.

Ela olhou para baixo, sobre si mesma e torceu a boca no que parecia um sorriso. Estava nua, pois acabara de tomar banho.

— Não vejo beleza em mim, — disse, cruzando os braços sobre os seios. — Sou tão magra e minha carne é tão áspera. Hoje, quando eu estava lavando roupa, olhei na água. Meu rosto estava tão escuro — nem parecia um rosto de mulher.

Apanhava a roupa, enquanto falava, e vestia. Lao Er sentou-se à mesa no quarto e bebeu um pouco de chá antes de dormir.

— Que nem se parece com o que era quando eu me casei com você, é verdade, — disse.

Ela atirou-lhe um olhar sobre o ombro, vestindo suas calças de algodão.

— Você casaria comigo se eu fosse como sou agora?

— Claro que não, — disse ele, começando a rir. — Mas eu não era, então, o mesmo homem que sou agora, e o que me agradava então não me agradaria hoje.

Ela viu o sorriso dele. Seu coração alegrou-se e olhou-o maliciosamente.

— Agora, olhando em você, — disse ela, — vejo que não é tão simpático quanto era. Como o sol queimou-o. Está preto!

— Estou muito preto, — concordou ele.

— E está com o cabelo da cor de ferro enferrujado, — prosseguiu ela.

— É, — disse ele.

Ela apanhou um espelho pequeno que havia em cima da mesa.

— Enfim, que importa a aparência de um homem? — perguntou.

— Isso não importa a você, estou certo de que não importa, — disse ele rindo.

Ela se contemplou no espelho, fazendo boca bonita.

— Poderei, algum dia, usar pintura e pó outra vez, e por brincos nas orelhas? — perguntou.

— Quem sabe? — disse ele.

— Você nunca me deu aqueles brincos, — tornou ela.

— Você escolheu o livro.

Mas ela continuava se contemplando.

— Talvez eu estivesse errada, — disse.

— Então, algum dia, hei de comprar-lhe os brincos, — prometeu ele.

E agora já ria de todo o coração. Erguia-se, entre eles, uma quente doçura que nada pode arrefecer. Tão achegados estavam eles, esses dois, que nas canseiras e perigos, em todos os males do mundo presente, podiam ainda abandonar-se ao amor que os ligava, e voltar a ele, que estava sempre presente.

Contudo, nessa noite, um pouco mais tarde, ele julgou que ela lhe voltava as costas.

— Que é isso? — perguntou, procurando descobrir porque ela lhe voltava as costas.

Ela escondeu a cabeça sob o braço dele, como fazia sempre que ficava envergonhada na sua frente. Lao Er teve que segurá-la, mas ela tremia, olhando para todos os lados, menos no seu rosto.

— Você está certo de que não me julga menos mulher devido ao que eu fiz?

— Que fez? — perguntou ele. — Você está sempre fazendo alguma coisa!

— O veneno, — sussurrou ela. — Algumas vezes, quando acordo e penso no que fiz, eu me odeio.

— Mas eles eram maus, — afirmou ele.

— Eu sei, — disse ela. — Mas, quero dizer... virá um dia em que você ficará me olhando — talvez muito tempo depois de feita a paz — e o seu coração dirá: "Ela pôde por veneno na comida," e então você me julgará menos mulher do que como você gosta.

Nesse momento pareceu a Lao Er que, afinal, ele conhecia Jade perfeitamente. Ela podia ser tão cheia de coragem, tão forte, aparentemente, e contudo ele sabia, agora, que tinha um coração frágil e amava-a mais por isso do que por todas as suas bravuras. Sabia o que mais poderia agradá-la e disse-o:

— O que você fez foi valente. Duvido que outra mulher possa ser tão valente quanto você.

Então, tomou seu posto de comando sobre ela.

— Agora você já se pôs à prova, — disse, — e é o bastante. Há muitos que podem matar os demônios, e você tem um dever mais importante.

Que poderia dizer para provar-lhe que a amava e que continuaria a amá-la enquanto vivesse? Que poderia dizer para fazê-la saber que, o que ele amava nela não era uma mulher, qualquer mulher, mas a criatura que somente ela podia ser?

Ele considerava, e, enquanto isso, o seu amor crescia, elevava-se, e, outra vez, tornava-se grande demais para palavras. Segurava-a firme, suas mãos nos braços dela, e procurava todas as linhas do seu rosto, o cabelo, olhos, boca, as narinas. Se havia um defeito nas suas faces era esse nariz pequeno, mas, para ele, isso não parecia um defeito, porque combinava com aquela boca cheia, com a extensão líquida dos seus olhos, cortados pouco profundamente na sua face — como duas folhas escuras.

— É tempo de termos outro filho, — disse ele. — Quero ter filhos de você, muitos filhos, e, se quiser agradar-me, faça-os todos você mesma — sempre e sempre você, e só você!

 

Wu Lien escrevia enquanto o inimigo dizia-lhe o que escrever. Segurava o pincel de crina de camelo entre o polegar e dois dedos, enquanto o quarto e quinto se apoiavam na mesa, como as pernas de um grilo. Quando ele acabasse de escrever o inimigo apanharia o papel, mandaria tirar muitas cópias em letras grandes, e colá-las nas paredes das casas e dos templos. O aposento em que ele se encontrava, agora, com o inimigo, estava cheio de belas mobílias estrangeiras, roubadas das casas de muitas pessoas, principalmente da gente branca da cidade. Havia três pianos, entre outras coisas e, no chão, tapetes em azul e ouro. Estes esperavam para serem colocados em caixotes e enviados para as residências do inimigo, no outro lado do oceano. Mas, agora, no meio de tal luxo, Wu Lien sentava-se, completamente silencioso, enquanto o inimigo lia, cuidadosa e vagarosamente, o que ele devia escrever. A cada letra ou duas o inimigo perguntava:

— Escreveu como eu lhe disse?

— Escrevi, — respondia Wu Lien friamente.

— Então continue, — voltava o inimigo.

Assim Wu Lien continuava. No topo da página, em letras pretas, atrevidas, estavam estas palavras: "O Símbolo da Salvação! A Nova Ordem Na Ásia Oriental!" Embaixo destas palavras ele escrevera em letras menores: "Camaradas Cidadãos! Temos sofrido a opressão dos povos brancos por mais de cem anos. Nesse período de mais de um século, ainda que tenhamos resistido ardorosamente e tenhamos procurado todas as oportunidades para nos livrar dessa carga, escapando da servidão à raça branca, não obtivemos resultado algum!"

Aqui o inimigo parou.

— Não é verdade, seu chinês? — perguntou.

Era um homenzinho de rosto zangado e, porque era mais baixo do que o comum, conservava-se feroz. Quando estava sozinho escovava as sobrancelhas para cima com uma escova de dentes que escondia no bolso, e nunca o viam sem o seu uniforme, que era de capitão, ainda que a sua única tarefa fosse a de compor os papéis para serem colocados nos muros. Esses papéis ele os assinava com quatro palavras: Associação do Grande Povo. Supunha-se que eles vinham, não dos inimigos, mas do governo que haviam organizado para dirigir o povo conquistado.

Wu Lien olhou para cima como que surpreendido, e levantou o pincel:

— Não é verdade o quê, senhor? — indagou na sua voz macia, eternamente conciliatória.

— O que você escreveu, idiota! — gritou o inimigo. Wu Lien desculpou-se.

— Eu não estava prestando atenção, — disse ele, — deve me desculpar porque minha cabeça ainda está atordoada com o envenenamento e não posso pensar.

Na verdade, ele ainda estava muito pálido. Apesar de tudo, não gostaria de ter escapado ao envenenamento, pois não poderia provar sua fidelidade aos senhores. Se apenas ele tivesse voltado da festa bom, enquanto todos os outros estavam doentes, como poderia ter fugido à suspeita? Nunca havia visto homens tão desconfiados como estes inimigos. Sabiam que, em toda parte, em torno deles, havia gente que desejava vê-los mortos, e Wu Lien andava sobre arames.

O homenzinho fitou-o. Então, disse em voz alta:

— Continue!

Assim Wu Lien continuou.

"Por que isso? Porque o país era muito fraco, sem potência, falho de forças".

O pequeno inimigo engrolava essas palavras como um trovão, mas a face pálida e fria de Wu Lien era imutável. Escrevia, murmurando as palavras, para guiar o pincel, como costumava murmurar os nomes das mercadorias que vendia na loja.

"Mas agora, — trovejou o homenzinho, — para nossa sorte, temos a oportunidade oferecida pela presente seqüência de acontecimentos — podemos usar a força de uma nação amiga, e, assim, cumprir o nosso desejo, há tanto tempo alimentado, de uma vingança sobre a raça branca! Depois disto, poderemos ser uma raça completamente livre! Mas os nossos amigos nipônicos, apesar da enormidade do esforço que fizeram em nosso favor, e do seu grande sacrifício, nada nos pedem de volta senão que estabeleçamos a Nova Ordem na Ásia Oriental!"

O pequeno inimigo encheu o peito, torceu o bigode curto e ralo, e tossiu. Wu Lien olhava-o, esperando. No seu cérebro havia um pensamento: "Como é que esses homens selvagens têm cabelos tão ralos? Sempre pensei que os bárbaros fossem cabeludos."

— Continue! — disse o homenzinho.

— Estou pronto, — respondeu Wu Lien gentilmente.

"Esta Nova Ordem", — exclamou o inimigo, elevando-se nas pontas dos pés, pois estava muito contente com o que tinha composto. — "Esta Nova Ordem, cujo objetivo não é apenas nossa salvação temporária mas, na verdade, nossa redenção eterna! Assim, de agora em diante, nós, certamente, teremos atingido nossa liberdade duradoura! Camaradas cidadãos, a Nova Ordem da Ásia Oriental é, verdadeiramente, a Estrela de Salvação dos nossos quatrocentos milhões de irmãos!"

Nesse ponto o inimigo sobrepôs-se a si mesmo: "Banzai! Banzai!" exclamava.

Wu Lien levantou a vista novamente.

— Escrevo isso também?

Mas o homenzinho não ficou contente com aquela frieza.

— Diga Banzai a estas nobres palavras! — gritou.

— Banzai, — disse Wu Lien com sua voz macia, escrevendo.

— É o fim?

O inimigo fitou-o furiosamente. Havia alguma coisa errada com esse homem, mas Wu Lien não sabia o que.

— Você não tem que escrever Banzai, — explodiu o inimigo.

— Você não tem cabeça? Isto é um documento para o povo! Wu Lien riscou "Banzai".

— Com que nome assino isto, senhor? — perguntou. Enquanto falava levantava o papel, soprando-o.

— Associação do Grande Povo, — respondeu o inimigo. Wu Lien escreveu o nome daquela associação inexistente.

— Isto é para ser posto nos lugares de sempre? — perguntou ele, erguendo-se com o papel na mão.

— Isto é para ser colocado em toda parte! — exclamou o inimigo.

Wu Lien inclinou-se e saiu, pisando silenciosamente, com seus sapatos de pano, no chão atapetado. Uma vez fora, deu suas ordens, com correção e dignidade, àqueles que lhe eram inferiores, e então, sentindo-se fraco, dirigiu-se para os seus próprios aposentos. Lá sua mulher o esperava. Depois do envenenamento vivia sempre alarmada, ainda que, como Wu Lien, ficasse contente com o ter ele sido envenenado um pouco, pois poderia sofrer mais se não o tivesse sido. Ela havia preparado um pouco de caldo de galinha com uma espécie de musgo, de conhecido efeito curativo para os intestinos, misturado dentro do caldo. Quando o viu chegar, deu-lhe uma xícara cheia, segurando-a com as duas mãos e, sendo uma boa esposa, não falou até que ele tivesse bebido todo o caldo. Então disse:

— Fazemos bem em continuar num lugar em que a nossa vida corre tanto perigo?

— Há algum lugar em que a minha vida não corra perigo?

— respondeu ele. — Nestes tempos a gente tem que escolher para morar no antro do leão ou no do tigre. Não há outros lugares.

Fechou os olhos enquanto falava, recostou-se na cadeira e ela o deixou.

Dentro de poucas horas, nas ruas, havia homens trabalhando com grandes brochas cheias de cola de farinha. Colavam, nos muros, as grandes folhas de papel com as palavras que Wu Lien havia escrito. Em toda parte onde iam, um pequeno grupo os acompanhava, parecendo ler as palavras. Mas poucos liam, na cidade. A maior parte do grupo era composta de pessoas esfomeadas,  que esperavam uma oportunidade de mergulhar uma

:a na mistura de água com farinha, e bebê-la, escondidas atrás de algum muro. Nesses dias a farinha estava cara e rareava, porque, depois que os inimigos tomaram o que bem entenderam, muito pouca ficara para o povo. Quanto aos homens que colavam não pareciam ver o quão rapidamente a cola desapace, quando voltavam para buscar mais, sempre se desculpa com o fato de terem colado o letreiro em muitos lugares.

Sobravam muitas folhas, para que aquilo parecesse vermelho, eles as punham fora e o povo as queimava como combustível.

E ainda ficavam bastantes coladas para enganar o inimigo.

Aconteceu que nesse dia, o primo em terceiro grau de Tan foi um dos que viu que, em certo lugar, alguma coisa sendo colada. Quando via letras ele devia saber o que significavam, parte porque era feito assim, e parte porque gostava da pequena exibição que fazia quando, em meio de uma multidão ignorante, que não distinguia uma letra de outra, lia alto o os caracteres diziam. Assim ele se moveu para a frente da multidão e, pondo os óculos de aros de latão, começou a ler alto, a maior voz que tinha e com todo o vagar, as palavras Wu Lien escrevera. À vista de tal saber o grupo caiu no silencio da curiosidade e do respeito, ouvindo-o até o fim. Entãotirou os óculos.

Toda aquela gente ficou ainda mais silenciosa quando soube xe diziam as palavras. E o primo também ficou silencioso, guém podia dizer o que lhe ia pelo coração. Ninguém ousava Essa gente que uma vez fora livre, e que, nestas mesmas ;, quando elas lhe pertenciam, tinha rido, amaldiçoado, ex-tiindo suas zangas e seus ódios tão facilmente como seus elo-, sobre todos, deuses e homens, já havia aprendido a guardar icio, e a dirigir-se em amargo silêncio de um lugar para o. Assim fizeram todos o primo em terceiro grau também foi embora, desejando não

lido aquelas palavras, que traziam mais motivos para uma gança, quando ele desejava, apenas, esquecer tudo.este homem, o primo em terceiro grau de Ling Tan, encorra, nos últimos dias, o seu conforto — votara-se ao ópio. Dizia-se agora ao pobre antro onde podia comprá-lo barato. Era outra rua, do lado sul, e ele cruzou três ruas e entrou num casa baixa, que ficava aberta dia e noite. Uma pequena amai, magra, vesga, dirigiu-se a ele, indicando-lhe uma cama, feita de tábuas cobertas de palha. Ele deitou-se, pôs a cabeça sobre o travesseiro de madeira e esperou, enquanto ela enxia as borras de ópio, pondo-as na concavidade do cachimbo e acendia, enfiando-lhe a haste do cachimbo entre os lábios. Ele aspirou profundamente a fumaça adocicada e fechou os olhos. Oh! a calma disto, pensou ele, esta calma solitária! Não lhe importava quem governasse lá fora, pois ninguém o governava aqui. Seu corpo jazia como morto e sua alma podia afastar-se dele juntamente com todos os seus males. Estava livre.

Como acontecera isto? Este homem era, apesar das amarguras de sua vida, um pouco melhor do que precisava ser, e, conseqüentemente," tornara-se um miserável. Temendo sua esposa ele andara para trás e para diante, levando suas mensagens a Wu Lien. Eram pequenas mensagens, a maior parte das vezes inúteis, como uma em que dizia ter visto certo dia alguns homens que, estava segura, eram montanheses, dirigindo-se para o oeste. Mas algumas vezes, ela mandava recados a Wu Lien, dizendo que os filhos de Ling Tan haviam chegado e estavam escondidos na casa do pai. Pequenas ou grandes, o marido tinha que levar-lhe as mensagens, por causa do dinheiro que Wu Lien lhes dava. Mas, muitas vezes, o primo meditou se não podia modificar o sentido dos recados, trocando norte por sul, ou esquecendo de mencionar os filhos de Ling Tan. Porém era muito fraco. Ele não sabia a que grandes planos essas mensagens poderiam estar ligadas e temia ser apanhado e torturado — como o inimigo agora torturava — goivando os olhos dos homens, puxando-lhes para fora a extremidade dos intestinos, cortando orelhas, narizes e mãos direitas — todas essas torturas que o povo tomava, agora, como coisas que podiam acontecer a qualquer um, a qualquer hora.

— A Nova Ordem! — murmurou, começando a pegar no "sono".

A rapariga magra curvou-se sobre ele:

— Que foi que você disse? — perguntou.

Mas ele já tinha ido, não podia mais responder. Dentro de três horas acordá-lo-ia como sempre, ele pagaria uma pequena moeda e iria embora. Ainda sonolento, iria até Wu Lien contar o que se recordasse, Wu Lien dar-lhe-ia duas moedas, uma das quais ele esconderia para outra cachimbada. A princípio andava assustado, pois sabia que, um dia, seria descoberto. Mas, agora, não tinha mais medo de espécie alguma. Tudo que desejava era bastante dinheiro para poder voltar, e sua maior esperança era um pouco mais de dinheiro para poder ir a um lugar melhor do que este, onde pudesse ter o verdadeiro ópio e não as borras e cinzas dos cachimbos de outras casas melhores do que esta. Ele nunca estava sozinho, aqui ou em qualquer outra parte. O povo apinhava-se nessas casas de ópio, por não ver esperanças de liberdade no período de uma existência. Todos tinham saudade dos velhos tempos passados, dos quais não havia mais esperanças.

Na vila ninguém notou o que acontecia ao primo em terceiro grau, pois ninguém dava atenção a quem julgavam apenas um velho ridículo. Ling Tan via que ele se tornava mais magro, mais amarelo, mas isso acontecia com todos, pois a comida se tornara, agora, cara e difícil, e grandes enxurradas haviam devastado as colheitas. Contudo, Ling Tan não amaldiçoou o Céu pela enxurrada como faria em outros tempos. Ainda que, muitas vezes, estivesse esfomeado e sabendo que arriscava a vida escondendo comida para a sua família, ficou contente quando as chuvas caíram, pois este ano o inimigo pagaria a perda.

— Por fim o céu auxilia a Terra, — disse ele.

Tudo que acontecia na casa de Ling Tan, a mulher do primo em terceiro grau sabia, ou adivinhava, e mandava-o dizer a Wu Lien, que continuava guardando tudo para si mesmo. Sentado no palácio do inimigo, fazia seu trabalho e tinha poucas palavras. Ao inimigo ele parecia um homem calmo que faria tudo que mandassem. E lhe pagavam bem. Wu Lien guardava o dinheiro e as coisas que sabia, sem ter o que fazer com ambos. O dinheiro ele não o dava a ninguém nem fazia bem com ele e não o gastava consigo mesmo e com a família mais do que era necessário. Seus filhos cresciam dentro destes muros, brincando com as crianças inimigas, aprendendo sua língua, e ele deixava que isso continuasse assim, também, sem mandá-los para a escola. Amava a esposa moderadamente, a seu próprio modo, e confortava-a quando ela se lamentava, dizendo que nunca via seus pais, afirmando-lhe que, quando os tempos melhorassem, todos haviam de se compreender melhor.

Mas, dentro de si mesmo, Wu Lien conservava tudo que sabia e tomava cuidado para que nada, na sua voz, maneiras ou olhares, traísse os seus conhecimentos especiais. E estes ele os tinha, pois dez ou doze homens e mulheres contavam-lhe notícias de toda sorte e faziam o papel de olhos e ouvidos seus, em toda parte. Assim, ele compreendeu o quanto os inimigos eram maus, e que eles continuavam a queimar vilas e a pilhar o campo como tinham feito com a cidade. Sabia o que faziam os montanheses e, antes mesmo de Ling Tan, Wu Lien sabia o que haviam feito os filhos dele. Estava cheio de conhecimentos que, parecia, não usaria nunca.

Este Wu Lien era um homem que tinha sua própria fidelidade. Se, em qualquer tempo, esta cidade fosse tomada aos conquistadores, ele voltaria para os seus. Mas, enquanto os conquistadores estavam aqui, ele trabalhava duramente pelo que julgava ser direito para a sua gente, e consolava-se, pensando que, algum dia, poderia fazer qualquer coisa grande para mostrar quanto estava certo. Enquanto isso, fazia pequenas coisas que estavam certas. Como o dinheiro que pagava aos seus olhos e ouvidos era dinheiro inimigo e devesse mostrar algo por ele, escrevia longos relatos de pequenos fatos e dava-os ao inimigo. Mas, sobre a vila de Ling Tan ele não escrevia coisa alguma, nada mais que o nome, e nem dizia o que faziam os montanheses, a não ser em algum lugar muito distante, onde sabia que os filhos de Ling Tan não podiam estar. Poupava sempre o sangue de sua esposa, não somente por amor a ela, mas também porque Ling Tan enterrara sua velha mãe, abrigando-a sob a terra numa ocasião em que muitos não tiveram esse abrigo.

Durante todo esse tempo a cidade tinha sido como uma ilha no meio do oceano. Não havia mensagens do mundo exterior. Ninguém aqui sabia o que o povo fazia nas terras livres e as pessoas se perguntavam: "Há esperanças de que o nosso exército volte?" Pois de todos aqueles que se queixavam dos seus próprios soldados, não havia um agora que não pensasse neles saudosamente, como bons homens, tão mau era este inimigo, tão cruéis eram estes soldados do Mar Oriental, que tomavam tudo que queriam das lojas miseráveis, dando em troca seu dinheiro desvalorizado. Algumas vezes eles davam dinheiro estrangeiro, mas a maior parte das vezes não davam nada. E tomavam as mulheres que bem queriam, ainda que a cidade estivesse cheia de cortesãs que, vindas de todas as partes, haviam se aglomerado aqui, onde estavam os grandes do inimigo e a maior parte dos seus soldados.

Mas, mesmo entre os inimigos, Wu Lien tinha um amigo, um bom homem. Não era um guerreiro, mas um homem que fazia quadros. Saía todos os dias vendo com que fazer seus quadros, procurando o bem e só encontrando o mal. Com seus próprios olhos ele via seus companheiros se apoderarem de moças e macularem até as velhas, e via os soldados, cheios de vinho do seu próprio povo, satisfazerem suas necessidades imundas à luz do dia, ante os olhos de pessoas decentes, que seriam mortas se erguessem a voz para gritar. E, na verdade, viu-as morrer. Tornou-se tão fatigado com essa crueldade que, um dia, estando sozinho com Wu Lien, disse:

— Não tenho oportunidade de falar em parte alguma, mas a você, ao menos, eu posso dizer que odeio o que fazemos a seu povo. Estou envergonhado e gostaria que o nosso Imperador soubesse, mas ele nunca saberá, pois ninguém ousará dizer-lhe. Contudo, por que dizer ao Imperador? Mesmo a nossa gente, em casa, não acreditaria, se lhes contassem as barbaridades que seus filhos, maridos, pais e irmãos fazem aqui.

Wu Lien ouviu e respondeu bem. Depois disto uma espécie de amizade cresceu, Wu Lien dizendo pouco, o outro dizendo muito, e dele Wu Lien ouviu, pela primeira vez, que não somente na sua nação havia guerra, mas em outras nações também, e talvez no mundo todo.

— Como pôde descobrir tanta coisa? — perguntou Wu Lien. E então o homem o levou até o seu quarto, mostrando-lhe uma pequena caixa preta, uma coisa de que Wu Lien tinha ouvido falar, mas nunca tinha visto. O homem virou uma cavilha, depois outra e, da caixa, saiu uma voz, muito baixa.

— Ouça! — disse o homem.

Assim Wu Lien escutou, e, de dentro daquela caixa, a voz falava dos grandes acontecimentos. E, pela primeira vez, Wu Lien ouviu, por si mesmo, que uma nação havia declarado guerra a outra nação e nas grandes cidades do Ocidente as bombas caíam, exatamente como haviam caído sobre esta cidade. De que valiam os pequenos nadas que Wu Lien sabia dos seus espiõezinhos quando aconteciam coisas como estas?

— Onde posso comprar uma destas caixas? — perguntou ele ao homem.

— Arranjo-lhe uma, — respondeu o outro.

E então eles conversavam e Wu Lien ouviu, pela primeira vez, quanto era grande esta guerra. O homem lhe disse que eles eram parte de um todo, e que, algum dia, não haveria um único país fora da guerra. Dizendo isto, suspirava.

— Meus camaradas regozijam-se com isso, — disse a Wu Lien. — Vêem nisto uma oportunidade de se tornarem ricos e poderosos, cada qual por si mesmo. Mas eu não desejo tais coisas. Gostaria de ir para casa, na minha cidade, que é um lugar calmo, junto do mar, e viver lá com minha mulher, meus filhos e meus velhos. Não peço mais.

— É o bastante, — concordou Wu Lien.

— E demasiado, parece, para se conseguir hoje em dia, — disse o homem com tristeza.

Assim foi que Wu Lien veio a ter uma daquelas caixas para si mesmo, pois não tardou que o amigo inimigo lhe trouxesse uma. Wu Lien guardou-a no seu quarto e, daí em diante, em todos os momentos vagos, tarde da noite, ele fazia a voz viver e a ouvia. A maior parte das vezes não era nada — coisas tolas, músicas estranhas ou palavras vazias, mas, de vez em quando, saía uma verdade da caixa. Então ele a tomava vorazmente. E escutou como os povos do estrangeiro sofriam e como o que os assaltava lá era o mesmo que aqui. E ouvia o ódio das nações e a fúria dos governadores. Quando aquilo terminava, ele ia para a cama, espantado com o que tinha ouvido, tremendo com a enormidade desta época.

— Mal, mal, — murmurava, ele — está tudo mal.

— O que anda mal com você agora? — perguntou-lhe a mulher uma noite. — Foi essa sopa que você tomou. Eu vi que ela estava com mau cheiro.

Ele lamentou somente, pois como poderia contar a uma mulher que o mundo estava sendo destruído? Concentrava-se, cada vez mais, em si mesmo, pois sabia agora que a paz estava tão longe que, quando ela viesse, os homens já a teriam esquecido como esquecem um sonho há muito sonhado, e os jovens nem sonhar com ela poderiam, pois não a haviam visto ao nascer.

Aconteceu que um dia, quando ouvia sua caixa — e isso era uma coisa que fazia mais e mais a miúdo — o velho primo em terceiro grau de Ling Tan chegou e, vendo Wu Lien à escuta, perguntou-lhe o que era aquilo. Wu Lien disse-lhe, e então, cheio do que acabava de ouvir, não pôde deixar de dizer ao primo que o mundo inteiro estava em guerra. Quando perguntou-lhe como sabia isso, mostrou como essa caixa trabalhava, qual a cavilha que devia ser virada, qual devia ser ajustada para suavizar a voz e como a voz aparecia. Nesse momento nada saía a não ser música, mas lá estava um barulho muito agradável, e um pensamento mau ocorreu à mente do primo.

Este primo não era o estúpido que parecia, mas tinha sido, em sua vida, tão fatigado e oprimido, primeiro pela mãe, depois pela mulher, e o seu amor ao saber entre homens incultos tinha-o deixado tão afastado de todos, que nunca tivera sua própria vontade, nem expressara sua inteligência em qualquer trabalho. Mas, agora, o ópio fizera por ele o que não fora capaz de fazer por si mesmo. Desde que começara a fumar às escondidas, sentiu-se desesperado e em tal perigo de qualquer maneira, que mais perigo ou menos não fazia diferença, desde que pudesse obter o seu ópio. Este homem, que nunca fora capaz de tirar a cabeça de baixo dos cobertores para ver, à noite, o que um rato fazia no seu quarto, agora, sem mudar a sua humilde aparência exterior, tornava-se, dia a dia, mais descarado interiormente. Roubava o que podia dos balcões das lojas e vendia, empenhou as melhores roupas da mulher e, quando ela gritou que tinha sido roubada, ele manteve a mesma face de sempre e ninguém afetaria maior surpresa. Tudo que tinha era para o ópio. Muitas vezes mentia à esposa, dizendo-lhe que Wu Lien não lhe dera nada, depois de gastar tudo que recebera. Fumava antes de ir a Wu Lien, para ter coragem de inventar mentiras como notícias, e, quando voltava, fumava novamente porque tinha duas moedas no bolso. E sua ousadia aumentava com sua sofreguidão.

Nesse dia, quando ouvia a caixa, veio-lhe a idéia do que poderia fazer se tivesse aquela caixa: poderia guardá-la num lugar escondido, ouvi-la e lá, na casa de chá, tomar dinheiro de todos que quisessem ouvir o que sabia, e fazer o que bem entendesse com esse dinheiro. Esse pensamento, que nunca teria entrado no seu cérebro se os seus miolos lhe pertencessem, parecia-lhe agora uma coisa possível e fácil devido à sua falsa coragem. E assim, ficou sentado durante muito tempo, pretendendo ouvir a caixa, e aprendeu tudo sobre ela, com duas vezes mais rapidez do que aprendia qualquer coisa e continuava sentado. Por fim Wu Lien foi chamado.

— Eu não gosto de deixar você aqui, — disse ao primo. — É contra o regulamento inimigo, qualquer pessoa ouvir essa caixa. Eu só estou seguro porque vivo dentro destes muros. Mas, se alguém souber que você a ficou ouvindo aqui, sozinho, isso pode representar atrapalhações para nós dois.

— É só acabar de ouvir isso que estou ouvindo e vou embora, — pediu o primo.

Wu Lien concordou e saiu. Logo que ele saiu o primo pegou a caixa, e, arrancando os arames que subiam por uma pilastra que sustentava o teto do aposento, pôs a caixa debaixo das largas roupas de sábio, amarrou os arames ao cinto e saiu do aposento tão facilmente como havia entrado. Bem sabia que nunca mais ousaria voltar e encarar Wu Lien, mas pouco se importava. Já tinha o meio de fazer dinheiro bastante para o que precisava.

Contudo, agora que a coisa estava feita, ele devia ter um cúmplice aqui na cidade. Mas quem podia ser esse cúmplice? Não podia levar a caixa para casa, pois devia enganar a mulher, deixando-a pensar que ia e vinha à cidade para falar com Wu Lien, e ela também não devia saber quanto dinheiro ele tinha. Ele não conhecia ninguém, e, pois, que poderia fazer? Mas seu cérebro sobrenatural podia resolver isso também, e ele pensou na rapariga amarela que preparava seu ópio. Ela sempre queria dinheiro e ele dar-lhe-ia algum do que ganhasse. Não a ensinaria como mexer as cavilhas. Dar-lhe-ia apenas alguma coisa para conservar a caixa em segurança.

A esse lugar conhecido ele se dirigiu e, quando ela se curvou para acender o cachimbo, ele disse em voz baixa:

— Gostaria de ganhar mais dinheiro do que ganha agora?

— Como poderia? — perguntou ela cautelosamente. — Quer ficar comigo?

— Não, não, eu tenho uma mulher e já é demais, — disse ele rapidamente.

— E então? — perguntou ela.

— Deixe-me fumar um pouquinho, — pediu ele. — Só um pouquinho para acabar com a minha fome mas não o bastante para deixar-me dormir. Depois leve-me a um lugar onde ninguém possa ouvir-nos e eu direi a você o que é.

Assim ela fez, e, quando ele acordou completamente, estava num quarto que nunca vira antes, um quarto pobre, tendo apenas ima cama de tábuas, uma mesa quebrada e dois bancos. Mas era limpo e lá estava uma gaiola de bambu na janelinha e dentro dela um passarinho amarelo bem gordo. O canto do pássaro foi a primeira coisa que ouviu, quando voltou a si. Por um momento pensou que fosse a caixa, mas, pondo a mão na barriga, sentiu-a ali, sob as roupas, dura e quadrada, com as pontas espetando-lhe o ventre.

   Então voltou a si completamente, e lá estava a rapariga magra sacudindo-o.

— Acorde, acorde, — gritava ela aos seus ouvidos. — Já passa muito da meia-noite.

Ele acordou então, perguntando onde estava, e ela disse que esse era seu quarto e ficava no quintal, atrás da bodega de ópio em que ela trabalhava. Depois de ter a mente completamente aclarada ele puxou a caixa da barriga e contou-lhe o seu plano. Ela ouvia, com aquela sua cara estreita como a palma da mão. À medida que compreendia, vendo o que aquilo podia significar, sua face tornava-se ainda mais estreita.

— Você teve uma idéia que vale por todas, seu traça de livros, — disse ela, — e trouxe sorte para mim. Pode guardar a caixa aqui, no meu quarto, que é seguro. Ninguém vem aqui sem ser trazido por mim.

Já o homem se achava com a cabeça clara, muito mais clara mesmo que usualmente; colocou a caixa embaixo da cama, onde ela ficava bem escondida, pôs o fio sobre o muro, onde estava a luz, procurando uma viga de metal. Mas não havia. Por um momento ele ficou perturbado, mas encontrou um buraco na parede e, como essa não era uma casa velha, e sim uma das construídas recentemente, dentro da parede havia hastes de ferro e foi a uma destas que ele amarrou o arame. Então, voltando cuidadosamente as cavilhas, esperou. A força encheu a caixa e a voz saiu.

"As notícias vêm, hoje, do território livre", — disse a voz e prosseguiu, narrando os bombardeios inimigos e como o povo se escondia nas cavernas das montanhas. E então, disse: "Mas não estamos sós. Hoje, nos países ocidentais também, o povo esconde-se em buracos na terra, e o mesmo inimigo oprime todos. Nós não nos rendemos..."

O primo ouviu um ruído estranho. Voltou os olhos para cima e viu a rapariga magra que, com as mãos na garganta, parecia querer se sufocar.

O primo desligou a caixa e gritou:

— O que se passa com você?

— Eles ainda resistem? — sussurrou ela. — Pensei que ninguém mais resistisse em parte alguma!

— Tudo que esta caixa fala é verdade, — disse o primo orgulhosamente.

— Então a sorte está em nossas mãos, — disse a pequena, — pois o que esta voz diz é o que os homens anseiam ouvir.

Durante uns poucos dias o primo disse uma centena de mentiras à esposa. Contou que Wu Lien dissera que ele devia ir lá à noite e, como mostrasse o dobro do dinheiro que recebia antes e afirmasse que Wu Lien lho dera pelo fato de ter que ir lá à noite, ela acreditava, por enquanto. Mas, desde o dia em que suas mãos se encheram de dinheiro, o primo estava perdido. Não mais fumou as borras e as cinzas: dirigiu-se a um lugar magnífico onde a droga pura, negra, pegajosa, era posta no cachimbo. E agora, caía em sonhos como jamais tivera. Lá veio o dia em que não voltou para casa, outro dia passou-se, outro ainda, e, por ter medo, veio-lhe um pensamento: "Por que haverei de voltar para casa? Por que deverei ser censurado e ficar junto de uma mulher, quando posso estar livre?"

E ele imaginou porque não havia pensado nisso antes, e, desse dia em diante, permaneceu na cidade, dormindo o dia inteiro e levantando-se durante a noite, para contar as notícias que ouvia da caixa. Ninguém sabia quem ele era, nem mesmo a pequena, pois não dissera seu nome a pessoa alguma. Para ela, era apenas o velho fumador de ópio, dono da caixa. Quanto ao primo, nunca via uma face conhecida e, por fim, ficou verdadeiramente livre.

Assim o Céu usou este homem, também, sem valor como ele era. Na cidade inteira, onde poucas vozes chegavam de fora para contar a esta gente, bloqueada pelo inimigo, o que acontecia num mundo ainda livre, as notícias da caixa pulavam secretamente, de boca a ouvido, e todos sabiam que, na terra livre, seu povo ainda lutava contra o inimigo, detendo-o. E começou a haver uma palavra de senha entre o povo desta cidade, e essa palavra era: "Resistir". "Resistimos?" um homem perguntava a outro, secretamente. "Resistimos!" era a resposta secreta. E, agora, a coragem, já morta, começava a reviver.

Desde que nada era conhecido na cidade e na campanha, desde que todo saber era proibido ao povo e nada lhe era contado de cima, tudo passou a ser murmurado, adivinhado, esperado. Quando um homem encontrava outro, a primeira pergunta, feita secretamente, era o que ele tinha ouvido. "Nosso exército continua sustentando a terra livre?" indagava um do outro, e perguntavam-se: "Há motivos para mais esperança?"

Assim, não podia passar muito tempo sem que, de boca a ouvido, ficasse sabido que havia notícias para serem escutadas na cidade, ainda que ninguém soubesse que essas notícias partiam do velho que era primo de Ling Tan.

Na vila, o primeiro a ouvir foi o segundo filho de Ling Tan, pois ele tomara como tarefa ir e vir, comunicando os montanheses com aqueles que resistiam ao inimigo na cidade e proximidades. Primeiramente ele ouviu, à maneira silenciosa com que os homens tinham aprendido a falar agora, os olhos longínquos, os lábios quase imóveis, que metade do mundo estava em guerra, e que o que eles sofriam era apenas uma parte disso.

Porque essas notícias eram tão consoladoras para eles? Sempre consolava todavia, a qualquer um que ouvisse as notícias, o saber que eles eram parte de um todo, que suas misérias eram parte de uma miséria maior e que não sofriam sós, abandonados. Avidamente, os homens nomeavam os países que estavam com eles, contra o inimigo, e amaldiçoavam os a favor do inimigo, contando-os como contra eles mesmos. Homens que nunca tinham ouvido falar em nomes como alemães, italianos e franceses, que mal sabiam que existia um Canadá e um Brasil, que jamais haviam visto um americano ou um inglês, agora dividiam todos em amigos e inimigos, avaliando-os por serem contra ou a favor do seu próprio inimigo. E era mais fácil comer a sua própria comida miserável, sabendo que outros, no mundo, não a tinham melhor.

Tais notícias Lao Er levou a seu pai no mesmo dia em que as ouviu. Ele tinha ido à cidade, para vender alguns legumes e ouvir o que pudesse ser ouvido. Logo vendeu tudo que tinha, pois nesses dias qualquer comida era arrebatada e as cestas de um lavrador esvaziavam-se logo que passava a guarda inimiga, na porta da cidade, onde os soldados inspecionavam tudo que entrava e saía. Mas Lao Er tinha-se desviado e entrado numa casa de chá para ouvir o que era dito. Sentou-se numa mesinha, a um canto escuro, para esconder o disfarce. Não era tão hábil quanto Jade e, assim, podia esquecer mais facilmente, mostrando as pernas jovens e robustas ou suspendendo a manga dos braços fortes traindo, dessa maneira, a barba cinzenta que usava, amarrada ao nariz por meio de arames. Mas ele não ousava ir à cidade sem esse disfarce, pois do contrário o inimigo poderia pegá-lo para trabalho duro.

Porque, em toda parte, o inimigo oprimia os jovens com trabalho e até mesmo os velhos, às vezes. Não havia muitos dias, ele ouvira falar de um velho plantador, seu conhecido, que viera à cidade vender seus rábanos e, voltando para casa, tinha sido apanhado pelos inimigos, que arrastavam um grande canhão estrangeiro pelas ruas. Tinham-no forçado a puxar a parte mais pesada do canhão, e, porque ele se movesse com lentidão, devido à idade e ao medo, quebraram-lhe o braço direito, de modo que o osso apareceu à flor da carne. E eles, rindo, forçaram-no a continuar.

Lembrando-se disso Lao Er tomava o máximo cuidado: escolheu um assento bem retirado e ficou ouvindo, com os ouvidos aguçados, que já tinham aprendido a escolher as palavras que ele queria. Ouviu dois velhos contando as notícias. Depois de um momento ele readquiriu sua coragem, dirigiu-se aos dois homens e disse:

— Senhores, sou apenas um lavrador, mas os tempos andam maus e, se têm quaisquer boas notícias deixem que eu ouça para levá-las à minha vila. Desse modo, poderemos suportar mais um pouco o que temos de suportar.

Esses homens não tinham boa vontade para falar muito, mas disseram finalmente que podia ser que algum dia outros viessem a lutar com eles e contra um inimigo maior. Eles repartiriam a paz comum, livrando-se do presente jugo. Lao Er ouviu isso e isso ele levou para casa.

Quando se juntaram para comer a refeição da noite ele disse.

— Na cidade, de boca a ouvido, corre que esta guerra espalha-se por metade do mundo. Há outros, como nós, que estão oprimidos, e, embora alguns fracos se tenham rendido, os fortes ainda resistem como nós o fazemos.

Ling Tan parou seus pauzinhos a meio da boca e as duas mulheres ergueram os olhos da criança.

— Eles são os mesmos demônios que temos aqui? — perguntou Ling Tan.

— Não os demônios do Mar Oriental, mas os mesmos no coração, — disse Lao Er.

— E lá, também, o povo resiste! — exclamou seu pai.

— Assim ouvi, — Lao Er respondeu, — mas não ouvi mais nada.

— Já é bastante, — disse Ling Tan.

Ora, Ling Tan adquirira ânimo com o que o filho ouvira, e ficou ponderando, parecendo-lhe que podia prosseguir sempre, contra qualquer coisa. Saiu para a noite de outono, olhou o céu, sentiu a terra sob os seus pés e pensou, pela primeira vez- em sua vida: "Este vale não é o mundo, mas apenas uma parte do mundo, e há outros homens como eu, cujas faces jamais vi".

Foi o maior consolo para ele. Não estava mais sozinho. Em outros lugares havia homens como ele, amantes da paz, saudosos do bem.

"Se eu pudesse conhecê-los," pensou ele. "Se eu pudesse vê-los!"

Então lembrou-se que a língua deles não seria como a sua. Como haveriam de se entender?

"Mas, não haveria necessidade de falar", pensou; "se o nosso desejo fosse o mesmo, haveria compreensão entre nós."

E pôs-se a pensar naqueles que viviam no lado inferior das suas terras e imaginou: "Eles, também — talvez um homem e sua casa, não iguais a mim e à minha, mas iguais a nós, se o que eles sofrem é o que sofremos." E Ling Tan pensou num homem, ali, embaixo de seus pés, no outro lado do mundo, lutando contra um inimigo como ele próprio tinha, e pareceu sentir uma força circular, devastadora, soprar em torno do mundo, juntando ele e aquele homem na sua voragem.

Lembrou-se que Jade uma vez dissera que só havia um Sol e uma Lua para todos. Ficara surpreso, incrédulo, quando ouvira isso pela primeira vez, mas agora parecia-lhe que podia ser verdade o que ela dizia — que, à noite, o povo do outro lado da Terra ficava com o Sol e com a Lua durante o dia. Assim o céu era repartido entre todos.

"E nós devemos repartir a Terra", pensou ele.

Esses pensamentos, ele não os disse a ninguém, pois mal eram pensamentos, quase apenas movimentos do seu espírito. Contudo, achava consolo neles, pois durante muito tempo não tivera tais pensamentos. Toda a sua mente tinha sido assoberbada pela miséria que o inimigo lançara sobre eles. E tivera que pensar em como viver, salvar-se, em como esconder sua comida, e como não ser apanhado e morto. Nele, não sobrara espaço para coisas maiores, e, ainda que tudo permanecesse o mesmo para si, o mal não tivesse diminuído nada, e não houvesse esperança no porvir, assim mesmo ele era arrancado deste pequeno vale, lançado ao mundo, sentindo-o.

 

Enquanto isso, a vila inteira não podia imaginar onde se encontrava o primo de Ling Tan e porque ele não voltava para casa. Sua esposa censurava Ling Tan por isso: ia à casa dele todos os dias e chorava, implorando-lhe que descobrisse se seu marido estava morto ou vivo. Ling Tan acreditava, no fundo do seu coração, que o velho primo tinha decidido, por sua própria vontade, não mais voltar para casa, mas como poderia dizer isso a uma mulher? Ele só podia ouvi-la e cocar a cabeça, pensando como encontraria o velho sábio numa cidade onde homens desapareciam todos os dias e não havia lugar para fazer indagações. A mulher temia que o marido tivesse sido abatido por uma mão inimiga, nas suas idas e vindas para Wu Lien. Apesar de tudo, não ousava ir ao próprio Wu Lien nem tinha coragem de contar a Ling Tan que ela e o marido serviam de ouvidos para aquele. Assim, pediu a Ling Tan para ir ou pedir a um dos seus filhos que fosse a Wu Lien, para ver o que este poderia falar aos seus superiores em favor do marido.

— Meu marido era seu primo mais velho, — disse ela, — e todas as leis de família ordenam que você se mexa por ele.

Isto era verdade e Ling Tan aconselhou-se com seu segundo filho que disse:

— Eu irei, pois há muito tempo quero ver e falar a Wu Lien para saber se podemos tirar algum proveito dele.

— Tenho medo de que você vá, — disse-lhe o pai, e a mãe quis proibi-lo, mas isso não mais podia ser conseguido.

Lao Er e Jade faziam agora o que bem entendiam, ainda que usando sempre de delicadeza.

Sucedeu, assim, que, num dia do nono mês desse outono, Lao Er dirigiu-se audacioso, como era, sem disfarce, à casa de Wu Lien. Apresentou-se como cunhado de Wu Lien, foi introduzido pelas portas do inimigo e levado à casa do marido de sua irmã. Ali, num quarto, disseram-lhe que esperasse, e, enquanto esperava, olhava, admirado com o que via.

"Como isto é rico!" pensava ele, espantando-se com o tapete no chão, as cadeiras cobertas de cetim e tantas coisas que jamais havia visto. Contudo, isso não era nada diante do próprio Wu Lien, que apareceu vestido num traje de cetim com brocados, óleo perfumado no cabelo, e um anel de ouro no gordo indicador.

Lao Er sorriu friamente.

— Bem, cunhado, — disse, — como está bonito!

— Eu estou muito bem, — replicou Wu Lien com aquele seu modo suave, ignorando, como havia muito tempo aprendera a fazer, o sentido oculto do que o outro dissera. Fez perguntas corteses sobre a família da esposa e, depois, ficou esperando, para saber o que desejavam dele.

Assim Lao Er contou-lhe como o primo tinha desaparecido, a aflição em que estava a esposa e perguntou-lhe se alguma coisa podia ser feita. Wu Lien sorriu a isso, e, erguendo-se, abriu uma porta, subitamente, para ver se havia alguém ouvindo e, como não houvesse ninguém, voltou. Num sussurro contou a Lao Er toda a verdade. Como o primo em terceiro grau e sua mulher lhe tinham servido de ouvidos na vila, e como, um dia, o primo tinha vindo, visto a caixa estrangeira e a roubado.

— Eu tenho os meus ouvidos na cidade, também, — disse Wu Lien, sorridente, — e depois de ouvirem um pouco, eles encontraram o velho.

E contou a Lao Er onde o primo estava e o que fazia.

Lao Er só podia admirar a habilidade desse homem que se tinha elevado tão alto entre os inimigos a ponto de estes confiarem inteiramente nele, e, no entanto, não lhes pertencia, conservando os seus próprios ouvidos em toda parte.

— Pensei que você estivesse contra nós, — disse a Wu Lien, — e houve um tempo em que desejei vê-lo morto.

— Não sou contra ninguém, — disse Wu Lien, sorrindo seu sorriso pacífico.

— Você está conosco? — perguntou Lao Er.

— Tanto quanto é sensato, nestes tempos, — disse Wu Lien. Então ele contou a Lao Er onde poderia encontrar o primo

e falou:

— A estas horas ele estará com a morte do ópio. Vá mais tarde a um quarto da Casa de Chá Salgueiro, que ele estará lá.

Pediu a Lao Er que esperasse para chamar a família, e Lao Er viu sua irmã que, agora, já se havia livrado de outro filho, uma menina robusta. E todos pareciam tão gordos e alimentados que Lao Er mal podia acreditar no que via.

— Vocês estão tão bem quanto parecem? — perguntou ele à irmã.

Ela riu, respondendo que sim. Depois ficou séria e disse que seu único desejo era ver os pais, de vez em quando, para ficar mais contente.

— Mas você, — disse Lao Er dirigindo-se a Wu Lien, — você está contente?

Wu Lien disse apenas:

— Quem pode estar inteiramente contente neste mundo? — e sorriu seu sorriso sóbrio.

E havia as crianças, pairando, metade na língua inimiga e metade na sua própria. Depois que Lao Er viu todos, foi embora, sentindo muito estranho que esses também pudessem ser do seu sangue.

Não se dirigiu diretamente à Casa de Chá Salgueiro, pois pensava que devia, primeiro, trazer o pai. Assim, foi para casa, pelas calmas ruas afastadas que ele conhecia. Contou ao pai, em segredo, o que Wu Lien tinha dito e Ling Tan pensou jamais ter ouvido uma narrativa tão estranha. Mas quando ouviu que o primo em terceiro grau e a mulher do primo tinham servido de ouvidos para Wu Lien, tornou-se grave e silencioso, e sentou-se durante muito tempo, puxando o lábio, imaginando o que isso significava e pensando no quanto Wu Lien sabia e se, para ele, era seguro saber. Fez muitas perguntas ao filho, que só pôde responder:

— Se o homem é falso ou verdadeiro eu não posso dizer. Pode ser que seja sincero só para si mesmo. Se é assim, estaremos mais seguros, pois ele não contará muita coisa ao inimigo, para que um dia, quando eles forem expulsos, possa dizer que fez o papel de traidor honestamente só para se salvar.

— Mas ele sabe sobre o nosso quarto secreto? — perguntou Ling Tan.

— Quem poderá dizer? — respondeu o filho, — e ousaríamos perguntar-lhe?

— Se ele sabe, tem nossas vidas nas mãos, — disse Ling Tan.

E então amaldiçoou a mulher do primo. Por um instante pensou que iria encontrá-la, agarrá-la pela garganta, e sufocá-la até que a verdade saltasse de dentro dela. Mas uma sabedoria melhor ocorreu-lhe, pois, como poderia a mulher saber o que o marido havia contado?

"É melhor não dizer nada," pensou ele. "Então, pelo medo do que eu sei ou não sei, ficarei com força sobre ela. Se meu primo estiver morto e eu for obrigado a cuidar da mulher, devo ter força sobre ela."

Assim Ling Tan deixou a mulher de lado, por enquanto, ainda que, se a odiava antes, como não a odiava agora! Apesar de tudo, ela não era mais do que uma mulher e afastou-a dos seus pensamentos, dizendo ao filho:

— Amanhã eu mesmo irei com você para ouvir o primo.

No dia seguinte, tarde da noite, dizendo a Ling Sao que tinha um negócio, Ling Tan e o segundo filho atravessaram as portas da cidade, em direção à Casa de Chá Salgueiro. Em cada rua eles viam a mudança da cidade. Em toda parte o inimigo anunciava suas mercadorias, remédios e cortesãs e, algumas vezes, os dois chegavam a pensar que a única coisa que tinham para vender eram drogas e meretrizes. "Pílulas Benignas," e "Colírio Universidade" — tais remédios, dizia o inimigo, curavam quaisquer doenças. E havia inúmeras casas de ópio e bordéis. Nas ruas abriam-se lojinhas com pequenos lojistas inimigos, viam-se mulheres e crianças inimigas, e Ling Tan pensou, pela primeira vez, como era estranho que esses homenzinhos ferozes e selvagens também tivessem mulheres e filhos. Isso o confundiu porque achava que mulheres e crianças eram mais perigosas do que soldados, pois estes facilmente mantêm o ódio vivo, mas poderia o ódio subsistir quando as famílias inimigas chegavam e construíam seus lares?

Nestes dias havia um grande mal nas casas de chá da cidade. Os caixeiros decentes tinham ido embora e seus lugares eram ocupados por jovens audaciosas. Quando Ling Tan escolheu seu assento, uma dessas jovens veio perguntar-lhe o que desejava. Primeiro ele não quis falar com ela porque seu aspecto era ruim demais para um homem decente. Então o filho segredou-lhe que em toda parte era assim, e ele disse em voz alta:

— Diga a ela, então, para trazer chá.

A mulher sorriu sarcàsticamente, afastou-se e voltou trazendo duas xícaras e um bule de chá, por um preço que fez com que Ling Tan mal pudesse bebê-lo.

— Se eu tivesse um meio de pagar menos, usava-o, — disse ao filho.

Ouvindo isso a mulher ergueu os ombros magros, baixou a boca pintada e disse:

— Se isso o assusta, velho, o que não dirá disto?

Tirou do seio uma caixinha de prata em que havia um pó branco.

— Custa trinta dólares de prata, a grama, — disse ela orgulhosamente, — mas, com um dólar por dia, você poderá comprar o prazer e o fim de todas as preocupações.

Ela colocou-a diante deles, meio secretamente, mas Ling Tan pretendeu não vê-la nem compreender o que ela dizia, e, depois de um momento, a jovem guardou-a no seio novamente.

— É uma droga do demônio, — murmurou Lao Er quando ela se afastou. — Pior do que o ópio, dizem!

— Eu não sei, — disse Ling Tan. — Para mim não é.

E ficou sentado, olhando em torno, como se fosse tão estúpido que não compreendesse o que via, mas compreendendo muito bem o que era aquele pó do diabo. Quem não o conhecia? Mesmo crianças nas ruas da cidade eram tentadas por ele, que vinha oculto em doces feitos pelo inimigo. E, uma vez que alguém a provasse, a fome daquilo era como fogo incendiando as veias. Mas Ling Tan punha de lado tudo o que sabia agora. Esse era apenas um a mais dos monstruosos males destes tempos e ele bebeu seu chá o melhor que pôde. Mas, o que fazia a bebida mais amarga para ele, era que, quem a trouxera, não fora um dos demônios estrangeiros, mas uma mulher do seu próprio povo, corrompido, para sempre, pelo inimigo.

O aposento em que eles agora se sentavam fora belo em outros tempos, mas não era mais, pois o inimigo havia estragado as pinturas dos muros, arrebentado as madeiras das paredes e o fogo escurecera as vigas do teto. Haviam deixado os assoalhos, paredes e bastantes bancos e mesas comuns. Ling Tan e o filho estavam sentados num canto dos fundos, olhando em torno deles. Nos velhos tempos não teriam vindo a uma casa de chá tão bonita assim, pois não haveria outros lavradores em um lugar destes, mas a guerra lançara todos os homens numa mesma miséria e eles dois não pareciam piores do que os outros em torno. Assim eles beberam o chá, tendo o cuidado de não beber mais do que o preço que haviam pago e, por fim, observando aqueles que os rodeavam viram que um homem após outro se erguia silenciosamente. Levantaram-se também, com eles uns dez mais, entraram num quartinho interior, e ficaram esperando. Nesse quarto não havia janela, e devia ter sido uma cozinha, pois lá estavam as ruínas de um fogão de tijolos e nada mais a não ser alguns bancos e uma cadeira um pouco afastada.

Ling Tan e Lao Er se esconderam entre os outros homens porque Ling Tan dissera ao filho:

— Não sei se devo ou não deixar-me reconhecer pelo primo. Decidirei quando vê-lo.

Logo uma porta interna, muito estreita, abriu-se, e, à luz de uma vela colocada na borda de um muro, Ling Tan, mal acreditando, viu seu primo entrar. Mas como o homem tinha mudado em tão curto tempo! Ele tinha comprado, sem dúvida em alguma casa de penhor, uma roupa suja, de cetim ameixa e um par de grandes óculos de chifre para colocar sobre o nariz. A roupa era muito larga para ele, pois estava seco e amarelo, e, no momento em que Ling Tan o viu percebeu que ele se tinha entregado ao ópio, pois assim mesmo ficava sua mãe havia tempos. Inclinou-se para o filho, murmurando:

— Eu sei onde ele encontrou coragem! — Fez um sinal de fumar ópio e o filho concordou.

Não disseram mais nada e o primo não os viu. Caminhou para dentro, agitando as vestes como todos os sábios gostam de fazer, e sentou-se na sua cadeira como se fosse o professor e os outros todos seus alunos. Fez uma saudação, puxou sua barbicha e, com voz baixa e solene, começou a falar.

— Vocês que me ouvem, — disse, — hoje tenho boas e más notícias do exterior. O mal vem das notícias da nossa capital no interior, onde o inimigo, com seus aviões, trabalha para fazer o pior possível até o fim do ano. Nosso povo está exausto e seus lares em chamas. Mas o nosso grande guia é destemido e, ainda • que reparta a dor do seu povo, diz que devemos resistir até o fim.

Aqui um rumor percorreu a multidão e uma voz bradou:

— Mas ele diz como devemos resistir? O nosso exército está se tornando mais forte?

— Indubitavelmente isso me será dito outro dia, — respondeu o primo e prosseguiu, rolando os olhos, e fazendo da voz um murmúrio: — Quanto às notícias através do mar, também são boas e más. Ainda não recebemos auxílio definido e nossos amigos ainda não são nossos amigos. Eles nos mandam dinheiro para comida e remédios para as nossas feridas, mas, ao inimigo, enviam óleo e combustível para os aviões que nos destroem. No Ocidente os inimigos destroem também as grandes cidades do país de Ying. Noite após noite o povo de Ying é obrigado a esconder-se na terra, seus palácios são destruídos sobre as suas cabeças e os mortos fazem um monte que chega até o céu.

Todos ouviam, imaginando onde esse velho aprendia tais coisas, mas aceitavam tudo como verdade, esperando o que deveria vir em seguida. Então o velho tossiu e disse: — As piores notícias eu guardei para o fim. Vai ser instalado aqui mesmo, nesta cidade, um fantoche que governará pelo inimigo, mas em nome do nosso povo. Devemos obedecê-lo e pretender que é nossa escolha. Quem é ele? Ele é apenas Três Gotas do Rei das Águas. Tem espírito para nos defender? Ele chora facilmente, mas dia virá em que todos os seixos das montanhas do Ocidente não poderão encher o mar do seu arrependimento.

A isso um grande rumor elevou-se entre os que ouviram. O velho primo acenou e disse: — Um grande mal, e amanhã, à esta mesma hora, eu terei mais para contar-lhes.

Quando acabara de contar tudo que sabia, o velho primo tirou um pequeno pires do peito, levantou-se, pô-lo na cadeira e ficou de costas, para evitar constrangimento. Os que o tinham ouvido sabiam que era tempo de cederem a outros seus lugares e cada homem saía, pondo o que podia no pires. Assim fizeram Ling Tan e seu filho.

Saíram e dirigiram-se para casa. Ling Tan não parava de se espantar com o que tinha visto e ouvido, e ria, pensando no primo, amaldiçoando-o como um velho patife.

— Como ele parou, igual a um contador de histórias, no ponto de fazer com que os homens queiram mais e voltem amanhã! — disse. — Contudo ele parece feliz como nunca o vi e devemos deixá-lo ser. Não diremos a ninguém o que sabemos. O Céu utiliza o inútil.

Assim, pondo de lado o assunto do primo, Ling Tan pôs-se a pensar no que tinha sido dito — que nesta terra ia ser colocado um fantoche, um homem bem conhecido entre sua própria gente. Engoliu em seco, pensando naquele homem fraco e belo que tinha traído sua nação. E por longo tempo não falou. Isso seria uma traição ou o homem tinha algum plano em mente?

"Quem conhecerá o coração de um homem, agora?" pensou Ling Tan.

Tudo em torno deles, enquanto andavam, era o campo, a terra ainda boa, apesar das muitas vilas arruinadas e enegrecidas pelo fogo. O povo dispersara-se. Assim, esta estrada, que estivera uma vez cheia de lavradores que iam vender na cidade, de burricos que transportavam sacos de arroz cruzados nas costas, bufarinheiros vindos da cidade para vender nas vilas e pessoas andando em carrinhos, estava, agora, quase vazia. Uma coisa rara de ver, hoje, era um plantador transportando cestas cheias de mantimentos. Mas a terra aqui estava, e o que fizera uma vez tornaria a fazer, se ela própria não fosse traída. Contemplou a areia castanha da estrada em que as suas sandálias pisavam, e disse ao filho:

— Nós, que estamos na terra, não devemos traí-la. Que os que estão acima de nós a traiam, se forem maus, mas nós não devemos.

O filho não sabia devido a que pensamentos o pai falava assim, mas podia ver que eram graves pensamentos e disse, de todo coração:

— Esteja certo de que não a trairemos.

Na manhã seguinte, quando a mulher do primo veio interrogar Ling Tan, este disse uma mentira, e enquanto a dizia, sua face estava calma e austera.

— Mulher, — disse, — o que você temeu é verdade. Seu marido é morto. Você nunca mais o verá e deve contar-se .como uma viúva.

Diante disso ela se pôs a chorar alto.

— Como foi que ele morreu? — gritou. — Onde estão os seus restos?

— Não me pergunte, — disse Ling Tan, — pois nunca direi. Quanto a seu corpo, não houve meio de encontrá-lo.

Ela ficou silenciosa e, pela primeira vez na vida, ele a viu transtornada pela verdadeira miséria e pelo medo. Logo depois ela foi para casa, para lamentar-se ou considerar sua situação, pois o que pode ser pior para uma mulher do que estar sozinha e não ter um homem em casa? Tinha medo de que Ling Tan soubesse que havia servido de ouvidos e olhos para Wu Lien, e tinha mais medo ainda porque ele não lhe dissera se sabia. Agora a sua vida estava nas mãos dele. Ao cabo de dois dias estava humilhada até o âmago do coração. Foi a ele e, abaixando-se, disse:

— Agora não tenho mais ninguém no mundo senão você, e é só para você que posso olhar.

Então Ling Tan replicou-lhe:

— Fique certa de que providenciarei sempre para que seja alimentada. Enquanto eu tiver comida.

Ling Tan e seu filho guardaram aquele segredo. Ling Tan não o contou nem mesmo à esposa. Tomou aquela carga de uma mulher a mais, contando-a como mais uma coisa que fazia contra o inimigo, porque isso deixava o primo livre.

Mas Lao Er contou tudo a Jade, e o segredo também, sem medo, pois ele e Jade eram uma só pessoa. Ele confiava nela como confiava em si mesmo. Era muito de Jade rir ao saber do velho primo, mas ficar séria ao saber do fantoche. Ficou silenciosa muito tempo, depois de ouvir as más notícias, e disse:

— Os homens como esse fantoche são nossos piores, nossos verdadeiros inimigos, porque traem a si mesmos e a nós. O inimigo do exterior é a doença, mas esses fantoches são a nossa própria fraqueza. E como poderemos combater a doença se somos fracos?

— Aqueles dos nossos, que forem fortes, devem se fazer mais fortes, — disse Lao Er.

Ela ergueu a cabeça.

— Você disse uma verdade, — respondeu.

E desse dia em diante, esses dois se fizeram ainda mais firmes contra o inimigo.

 

Quem poderia dizer se os montanheses e os velhos e moços de toda parte, poderiam se manter firmes contra o inimigo, ano após ano? Mas, certamente, agora eles estavam determinados a se firmarem e nunca se renderem, porque sabiam que a sua era uma' guerra combatida em toda parte do mundo. Não podiam travar grandes batalhas e o que faziam era muito pouco se se comparassem os inimigos mortos com os inimigos deixados vivos. Contudo, o que faziam não era pouco, pois, dia após dia, eles aprendiam a viver resistindo ao inimigo, e isso é melhor do que morrer resistindo.

Mas a alma de Ling Tan abatia-se, muitas vezes, com a dificuldade dos dias que passavam, e com a força maligna e determinada do inimigo, que em nada diminuía sua opressão e voracidade. Era a opressão dos homenzinhos que trabalhavam por si mesmos, e, tendo uma pequena autoridade, usavam-na para se fazerem tão ricos quanto podiam. E esse ano, outra vez, quando a colheita chegou, Ling Tan teve que vendê-la ao preço fixado pelo inimigo, e outra vez o inimigo a vendeu em toda parte com grande lucro. Novamente Ling Tan teve que comer carne secretamente e seu porco foi descoberto duas vezes, uma delas com pouca sorte, quando a porca acabara de ter cria. Todos foram apanhados e Ling Tan nem ousou erguer a voz, para dizer ao homenzinho que os animais eram seus. Teve que procurar outro porco para tentar ter sua carne. E havia muitos impostos — sobre a terra, o ópio, sobre as sementes e as colheitas, sobre tudo que era vendido e, olhando para trás, para os antigos impostos, Ling Tan espantava-se de como se queixavam deles naqueles tempos. E, junto a toda essa opressão, havia o ódio, mordente e constante, de saber que eram estrangeiros os que oprimiam a terra. Eram homens que não tinham direito de estar ali. Parecia-lhe que mesmo os bandidos eram menos odiosos do que os demônios, por não serem estrangeiros.

Pois, além de tudo mais, havia esses homens de coragem selvagem, que cuidavam apenas de si mesmos e continuavam roubando e pilhando onde pudessem, ficando longe do inimigo, mas descendo à noite sobre qualquer homem que se soubesse ter mais do que os outros, embora pouco. De modo que os homens honestos tinham de esconder o que possuíam não somente do inimigo, mas dos da sua própria espécie.

No meio disso tudo Jade continuava gestando o seu filho e Lao Er continuava com o seu trabalho entre a cidade e a montanha. Ele levava a vida nas mãos, muitas vezes, mas esse perigo tinha que existir. E, dia após dia, nesse outono, Jade dava-lhe adeus à noite, e cada qual sabia que esta podia ser a vez em que se separavam para nunca mais, mas nenhum dos dois o exprimia.

— Cuide de você mesmo, primeiro, — dizia ela sempre.

— Cuidarei, — prometia ele sempre, embora ambos soubessem que ele não poderia. Se cuidasse de si mesmo primeiro, não ceria feito o trabalho que fez.

Ora, o que Lao Er fazia era ir e vir dentro e em torno da cidade, entre os guerrilheiros que eram plantadores durante o dia e os homens da montanha, de modo que pudessem se encontrar e atacar segundo um plano. Ele não era um correio comum, pois trazia notícias para cada um e todos dependiam dele.

Era hábil em passar pelo inimigo, algumas vezes um vendedor, outras um mendigo, um velho, mas nunca ele mesmo. E todos esses disfarces era Jade quem arranjava em casa. Quando estava nas montanhas, muitas vezes, encontrava-se com os dois irmãos, e entre eles e os de casa Lao Er servia de mensageiro também, e, mais do que isso, os conservava tolerantes uns com os outros, pois houvera um rompimento entre Ling Tan e esses dois filhos desde que ele se determinara a não matar mais, enquanto vivesse, embora fosse um inimigo.

— O que aconteceria se todos nós fizéssemos disso uma regra? — perguntou raivosamente o filho mais moço quando Lao Er lhe disse isso. — Permitiremos que o inimigo nos mate sem que nós os matemos? Meu pai está ficando velho de vez.

Este filho mais moço usava agora um uniforme como os soldados e sua mente só se ocupava na guerra e na morte. Ainda não era capaz de ler uma carta e, para ele, os livros eram mal, o saber era mal, e tudo era mal, exceto a força do seu braço quando erguia uma espada ou disparava uma arma de fogo. Nesses dias ele vivia nas montanhas, num templo que tinha transformado numa fortaleza, com duzentos e cinqüenta jovens sob suas ordens. Saía, sempre e sempre, para atacar guarnições do inimigo, e pequenas companhias mandadas em sortidas ou em busca de alimentos. Ele tinha, através dessa região, uma rede de espionagem tão bem tecida que, dentro de uma hora, sabia quando um inimigo estava ao seu alcance. E nada podia detê-lo quando ele o sabia.

Toda a aparência daquele rapaz delgado que o inimigo uma vez arruinara, tinha desaparecido dele. Tornara-se mais alto ainda do que já era então, e seu corpo tinha aumentado de carne, ossos e músculos. Sua pele era dourada, seus olhos como os de um tigre, sempre incansáveis e sempre ferozes. E, se não tinha vinte mulheres, a culpa não era sua. Havia as mulheres que ele e seus homens salvavam, aquelas que desejavam que ele ficasse em suas casas para comer e descansar. Qualquer mulher com seus desejos ainda vivos não deixá-lo-ia passar sem fazer qualquer sinal. As mulheres virtuosas não sabiam que faziam isso, mas faziam-no, e as mulheres que não tinham virtudes eram desavergonhadas e sabiam que faziam.

O que esse jovem tinha sofrido demorara sua natural masculi-nidade, mas ainda era um homem, e, aos dezenove anos, sentia, voltando-lhe ao sangue, os seus desejos naturais.

Mas até então, tantas mulheres o tinham convidado que ele desprezava todas, e, embora aprendesse a dormir aqui e ali com uma mulher, nunca vira uma que considerasse digna de si. Em seu próprio cérebro havia uma desmaiada pintura de como deveria ser essa mulher. Alguém que fosse mais do que uma simples companheira de cama.

Contudo, onde poderia tal mulher ser encontrada?

Havia dias em que a sua necessidade de mulher se tornava ardente, e então, ele deixava o seu gênio mau aparecer nisto e naquilo, e seus homens o temiam grandemente. Nada detinha a sua raiva, a não ser se nesse dia, por um acaso, acontecesse um ataque ao inimigo. Só assim voltava a ficar alegre. Só se tivesse sorte e pudesse, ele próprio, matar alguns inimigos, voltava ao seu bom humor num instante. Mas isso não podia acontecer sempre, e havia dias inteiros e muitos dias em que tal oportunidade não aparecia. Então o seu gênio tornava-se muito difícil de suportar.

Um dia, próximo ao fim do décimo primeiro mês desse ano, quando Lao Er veio fazer sua habitual jornada pelas montanhas, para contar as novidades que tinha ouvido do exterior, o ajudante do seu irmão mais moço pediu-lhe que entrasse num aposento do templo. Era um aposento onde vinham poucas pessoas agora, porque pertencia a Kwan-yin, Deusa da Misericórdia, adorada apenas pelas mulheres, e, agora não vinham mulheres ao templo. Lao Er seguiu o homem e ali, debaixo da grande deusa, o homem contou-lhe o que eles sofriam com o gênio do capitão.

— Por mim não me importaria, — disse o homem, — pois eu sei, agora, que ele não tem mau coração e aprendi como saltar para salvar-me. Quando ele levanta o pé eu pulo alto, quando ele levanta a mão para apanhar uma pedra ou uma espada, eu me agacho.

— Meu irmão tem esse mau gênio? — perguntou Lao Er.

— Algumas vezes, — respondeu o homem pacientemente. — E nós perdoamos, pois o que ele precisa, senhor, é de uma mulher que seja dele mesmo. Por essa razão, eu fui escolhido, por sorte, entre duzentos e cinqüenta homens, para pedir ao seu pai que encontre uma boa esposa para o filho, para que ele fique calmo e seja um homem completo, pois assim todos estaremos melhor.

Lao Er mal podia deixar de rir, mas prometeu ao homem que faria o que ele pedia. Disse então:

— Mas eu não tenho idéia da espécie de esposa que meu irmão precisa.

O homem ficou sério diante disso.

— Não é fácil tarefa escolher mulher para um homem como ele, — disse. — Ela deve ser forte de corpo, porque ele é forte, e deve ter um gênio capaz de suportar o dele, sem ser igual. Quando ele for o calor ela deverá ser o frio, quando ele for a escuridão ela deverá ser a luz, e quando ele estiver desvairado ela deverá estar cheia de senso.

— Há poucas mulheres sábias assim, — disse Lao Er pensando em Jade. Mas mesmo Jade não era tão sábia.

— Sei, — disse o homem tristemente.

Eles ficaram silenciosos um momento, cada um pensando nas dificuldades, e então o homem falou:

— É uma coisa estranha, mas o capitão vem aqui muitas vezes, fita essa deusa e olha-a com olhar carrancudo.

— É? — indagou Lao Er.

— Nós o vimos, — tornou o homem, — e isso foi o que primeiro nos indicou que ele queria uma esposa.

— Bem, falarei a meu pai, -+- disse Lao Er. — Dir-lhe-ei tudo que acaba de me contar. Veremos o que nos trará o futuro.

O homem saudou e se foi, deixando Lao Er sozinho. Ele subiu até à deusa e olhou-a bem perto, pela primeira vez na vida. Nunca tinha sido um adorador nos templos, nem seu pai o fora, pois os homens deixam essas coisas para as mulheres. Mas Ling Sao sempre estivera muito ocupada e não ia aos templos mais de uma vez por ano. E não tinha a necessidade que certas mulheres têm, pois possuía filhos bastantes. Assim Lao Er, nem mesmo quando era criança, fora muitas vezes ao templo, e mesmo quando ia lá com sua mãe, esta não adorava a deusa que dá filhos às mulheres, pois era fértil. Adorava sempre o deus que dá riqueza e fertilidade à terra.

Agora ele estava sozinho diante desta deusa. Os seus pequenos pés descansavam sobre as escumas de um dragão dourado e era esculpida com uma graça tão suave, feita de gesso, ouro e pintura, que, olhando-a; parecia ver-lhe uma espécie de vida, tão bela era. De alguma forma o velho fazedor de ídolos, sendo um homem, pusera nesta deusa aquilo que faz da mulher a fêmea do homem. Ainda que tivesse feito uma deusa, ele tinha secretamente e com grande habilidade, feito uma mulher também. Isso podia ser visto nas curvas suaves dos seus lábios orgulhosos, nos cantos dos seus olhos longos e astuciosos, na plenitude dos seus membros escondidos e não escondidos sob as vestes, e nos seus seios cobertos mas evidentes. Quanto mais Lao Er olhava para a deusa, tanto mais sentia a mulher.

Nesse momento entrou alguém, que não era mais que seu irmão mais moço, dizendo aborrecidamente:

— Procurei você por toda parte e, por acaso, escutei meu ajudante dizer que estava aqui. Que está fazendo?

Lao Er apontou para a deusa com o queixo.

— Nunca a vi de perto antes, — disse.

— Argila, — disse o irmão, — barro e pintura, como todas as outras mulheres.

E, na sua juventude, olhava com escárnio para a deusa.

— Há algo mais do que isso aqui, — disse Lao Er habilmente, fazendo com que o irmão se aproximasse mais. — O homem que fez esta deusa amava-a.

O irmão chegou diante da deusa, então, e a olhou de senho franzido.

— Não há mulheres assim, — disse finalmente.

— Você já viu todas as mulheres existentes? — perguntou Lao Er com um sorriso curto.

— Nunca vi uma como esta, — disse o irmão.

— Se houvesse uma você a quereria como esposa? — disse Lao Er, rindo. — Vem, vou fazer um contrato com você: se tal mulher aparecer você a toma como sua esposa?

Enquanto falava voltou-se para o irmão, e ficou surpreso com a mudança de sua face, transtornada por uma luta entre o ódio e o escárnio, que engoliu seu riso.

— Não quero mulher, — disse Lao San. — Que farei com ela quando for lutar?

— Deixe-a em casa, que é seu lugar, — disse Lao Er.

— Sim, tendo seus choros e gemidos a pedir-me que não vá!

— Esta deusa não choraria nem gemeria, — tornou Lao Er, olhando-a novamente.

— Não gosto de brincadeiras, — disse Lao San irritadamente.

— Espere e veja se é brincadeira, — retrucou o irmão mais velho.

Então ele percebeu que já dissera bastante. Puxou o irmão do aposento e não falaram em outra coisa senão em guerra.

Mas, na próxima noite, quando estava em casa outra vez, disse ao pai o que o homem lhe havia contado sobre o irmão mais moço. Ling Sao e Jade estavam lá também e ouviram tudo. E o pai disse:

— Ainda que você fizesse disso uma brincadeira, há aí alguma coisa muito séria.

E ele contou-lhes como ficara transtornado porque o filho aprendera a gostar da guerra e do morticínio, e como tais homens jamais permitiriam que a paz viesse ao mundo em parte alguma, pois deles a guerra rebentaria como o fogo rebenta de uma mecha escondida.

— Tão transtornado eu fiquei, — disse ele, olhando em torno, para todos, — que disse a mim mesmo não me lamentar quando um dia alguém viesse avisar-me de que meu filho estava morto, pois tais homens devem morrer da mesma forma por que fazem os outros morrer. Fez uma pausa e prosseguiu:

— Eu tenho visto homens como esse meu filho; são sempre maus para com as mulheres, não são bons maridos, nem bons pais.

Fez outra pausa e continuou novamente:

— Contudo, esse homem é meu filho, e eu não o esqueço.

— Mas, onde poderemos encontrar uma mulher como Kwan-yin, que é uma deusa? — perguntou Ling Sao.

Esse seu filho mais moço estava agora tão longe de tudo que ela conhecia e compreendia, que não se sentia surpresa, mas simplesmente aterrorizada.

— Nunca vi uma mulher que fosse como uma deusa, — disse.

— Não há nenhuma dúvida, — assegurou Jade, — mas se pudermos encontrar alguma que ele pense que é, será bom.

Ela olhou para o marido, riu e ele recebeu o riso dela com olhos sorridentes. Mas Ling São não riria sobre uma coisa tão séria como achar mulher para um dos seus filhos.

— Uma mulher de qualquer espécie é difícil, agora, — disse ela. — Não vejo nas redondezas uma jovem que não esteja maculada pelo inimigo. Sei que meu filho não quereria uma dessas, por mais barata que fosse.

— Não quereria, — disse Ling Tan severamente.

— Então deveremos encontrar uma nas terras livres, — disse Jade.

E ainda que todos vissem que esse era um conselho sensato, como poderiam realizá-lo?

Ora, durante muitos meses, havia quase um ano mesmo, eles não ouviam nada sobre Pansiao.

Ling Sao irritava-se porque não podia ir à sua filha e providenciar seu casamento ou trazê-la de volta à casa.

— É bom para ela estar segura, agora, mas como terminará isso? — dizia. — Ela não pode continuar para sempre em cavernas, aprendendo a ler e a escrever. O que será dos seus es-ponsais e de sua vida de mulher?

— Você deve estar contente que, nestes tempos, ela esteja fora do alcance do inimigo, — disse-lhe Ling Tan um dia, quando descobriu porque ela andava rabugenta e sem descanso. — Você esquece Orquídea?

Diante disso Ling Sao ficou silenciosa, não disse mais nada, mas tinha saudades da filha e procurava descobrir como casá-la de um modo seguro, embora estivesse tão longe. Planejou como enviar uma carta para alguém lá, para ver se um bom casamento podia ser feito, de qualquer maneira. Se uma mulher não era casada melhor seria morrer, pois para que viveria?

Ora, com sua mente sempre pensando em casamento para os filhos, pois sabia que esse era o seu dever e achava que não poderia terminar sua vida em paz se não os arranjasse, Ling Sao pensou na filha mais moça, subitamente, e disse:

— Se pudéssemos escrever a Pansiao, pediríamos a ela que visse o que pode ser encontrado para seu irmão, lá nas terras livres. Uma escola está sempre cheia de virgens, e ela conhece o irmão. O que poderia ser melhor do que isso? E seria bom para ela pensar em casamento e falar pelo irmão. Isso poria o seu espírito nessas coisas e faria com que ficasse mais pronta para quando chegasse a sua vez, pois devemos pensar nisso também.

A princípio eles só podiam pensar em Pansiao como uma criaturinha calma sentada no tear, e como poderia fazer uma coisa tão importante como essa? Além disso, não sabiam como enviar a tal carta. Mais de uma vez Ling Sao dissera ao marido que devia ir à mulher branca e perguntar-lhe o nome da escola em que Pansiao estava e o nome do lugar. Ele sempre dizia que iria, mas esquecia nas atrapalhações que tinha, sabendo que pelo menos a pequena estava segura. Agora Ling Sao voltou-se para ele e exclamou:

— Eu tenho dito e repetido que você deve ir a essa mulher branca para descobrir onde ela pôs Pansiao. É uma coisa triste não saber onde está a minha própria filha!

— Não precisa se esquentar, minha velha, — disse ele. — Irei lá amanhã.

Assim fez, percorrendo o caminho sinuoso, até à velha porta. Entrou na cidade, e atravessou as terras vazias, junto aos altos muros em que vivia a mulher branca. Quando chegou diante da porta, achou-a fechada. Bateu. Ninguém veio atendê-lo e esperou muito tempo, não ouvindo nada a não ser o silêncio pesado. Então apanhou uma pedra e bateu, até que o portão se abriu. Lá estava o velho porteiro, mas agora muito amedrontado e abatido, abrindo a porta apenas o suficiente para passar sua cara.

— Devo falar com a mulher branca, — disse Ling Tan, procurando no seu cinto uma moeda, que tinha posto ali para um caso de necessidade.

Mas o porteiro disse:

— O dinheiro poderá comprar o seu caminho até ela, agora? Ainda não ouviu dizer?

— O quê? — perguntou Ling Tan.

— Morreu, — disse o porteiro.

Ling Tan ficou boquiaberto. O porteiro abriu mais a porta, saiu, e sentou-se na soleira de pedra. Suspirou, tirou o gorro de feltro da cabeça, cocou o cocuruto e pôs o gorro novamente.

— Sim, e ela morreu por sua própria vontade, — disse ele tristemente. — E fui eu quem fui encontrá-la. Fui cedo à capela, para abrir as janelas, pois sou pago para fazer isso nos dias de culto. Lá estava ela, morta, diante do altar. Oh! o seu sangue! Ela tinha cortado os pulsos e o sangue escorria pela nave. A mancha ficou lá para sempre. Apesar de todas as lavagens continua lá.

— Mas, por quê? — gaguejou Ling Tan. — Ela estava segura, tinha comida.

O porteiro limpou os olhos com a ponta do casaco.

— Não é o bastante? Mas não para ela. Deixou uma carta, dizem. Eu não sei ler. Além disso ela escreveu na sua própria língua e só a nossa velha virgem pode ler isso. Escreveu-a para os da sua raça, no outro lado do oceano. Ela disse: "Eu fracassei".

— Fracassou! — disse Ling Tan, sem compreender. — Fracassou em quê?

— Quem sabe o que ela quis dizer? — replicou o porteiro tristemente. — Assim escreveu ela.

Ling Tan ficou silencioso um instante, sentado sobre os calcanhares para descansar. O que ele sentia era metade pena pelo fim da mulher branca e metade desolação para consigo mesmo, pois, como iria descobrir onde sua filha estava? Por isso contou sua desgraça ao porteiro e este disse:

— Vou procurar a nossa velha virgem porque ela sabe o que eu não sei. Entre e pergunte.

Assim, Ling Tan entrou e ficou esperando, enquanto o porteiro se afastava. Logo apareceu uma mulher de meia-idade, magra, com óculos no nariz, como se fosse um sábio. Ao ouvir o que Ling Tan queria disse:

— Essa escola é nas cavernas de uma grande montanha, nas terras livres. Todos estão em segurança, passam bem, e lá há outra mulher branca como chefe. Não precisa temer.

— Eu gostaria de mandar uma carta para minha filha, — disse Ling Tan. — Quer escrever o nome desse lugar?

A mulher rasgou um pedaço de papel de um livro que tinha em baixo do braço, e, observando-a, Ling Tan maravilhou-se de que ela pudesse escrever tão facilmente quanto um homem. Ela deu-lhe* o papel e foi embora outra vez.

— Só há esta virgem velha neste lugar? — perguntou Ling Tan, dobrando o papel e pondo-o no cinto.

— Só ela e algumas criadas, — respondeu o porteiro. — E faria os seus olhos verterem lágrimas, o saber quantos anos essa mulher branca trabalhou, acabando-se, para erguer estas casas e reunir alunos nas províncias. Aposto que eles vinham para cá, de todas as direções, sob o firmamento. Esta já foi uma escola famosa.

— Aqui, também, houve trabalho desses demônios, — disse Ling Tan, olhando para os jardins devastados e os edifícios esburacados.

E foi-se embora.

Quando chegou em casa contou o que tinha acontecido. Todos ouviram e Ling Sao sentiu-se penalizada em ter parecido a essa mulher branca menos grata do que poderia ter sido.

— Se pudesse adivinhar que ela iria dar cabo do próprio corpo eu teria sido melhor, — disse tristemente.

Suspirou, tirou o furador de orelhas do cabelo e esgaravatou os ouvidos um instante, desejando ter sido um pouco melhor.

— Pobre coração estrangeiro, — disse finalmente. — Por que teria ela vindo de tão longe, do seu lar, para praticar as suas bondades? Agora nem mesmo pode ser enterrada em sua própria terra. — E continuou: — Não é boa coisa para as mulheres estudar muito e não casar. Que podem elas fazer senão serem freiras? Temos que escrever a Pansiao e apressar todos os nossos casamentos.

— Escreva-lhe, — disse Ling Tan a Jade, — e diga-lhe qual é o negócio, o que queremos que ela faça, e que seu pai e sua mãe ordenam-lhe que faça.

Então, ele disse uma coisa que jamais dissera noutros tempos:

— E diga-lhe que seu irmão quer alguém como essa deusa. Uma mulher comum não servirá para ele. Escreva de acordo com suas próprias idéias, pois você conhece bastante essas coisas, com toda essa leitura, invenções de histórias, disfarces e uma porção mais. Muitas vezes eu penso que você teria sido uma dessas artistas, que vimos em retratos estrangeiros antes da cidade cair.

Ele tornava-se vermelho à medida que falava isso, pois não era natural, para qualquer homem, dizer tanta coisa à mulher do filho e principalmente sobre tal assunto. Levantou-se então, deixou o quarto com toda sua dignidade e, nas suas costas, Lao Er e Jade entreolharam-se, com aquele seu riso secreto. Como esses dois se amavam nesse sorriso!

Mas Jade escreveu a carta pelo que ela era e conhecia, pelo amor ao marido, pelo seu conhecimento do irmão mais moço. Assim escreveu ela: "E não escolha uma boba só porque tenha uma cara bonita. Algum dia ele poderia matar uma mulher como essa por ficar irritado com a sua estupidez. Ele tem um braço direito ligeiro, agora. E não tem mais ilusões. Kwan-yin não é tola."

Quando ela acabou, leu a carta para o marido, que disse, para espicaçá-la:

— Quê! Você escreveu tão bem que eu mesmo estou pronto a amar essa deusa. E você ficará com ciúmes!

Ela agitou as pálpebras uma ou duas vezes e, curvando-se sobre ele, pôs a língua de fora.

— Não há mulher assim, — disse, fazendo uma careta. E ele riu novamente, feliz ao lado dela.

 

Na sua parte da caverna, Pansiao sentou-se, de costas para as outras, e leu a carta que Jade tinha escrito. Lia facilmente, mas era tão recente o poder ler, que ainda se sentia orgulhosa quando o fazia.

Jade escrevera a carta a duas mil milhas de distância e ela chegara aqui através de terra, mar e ar, carregada por muitas mãos, pois o milagre era que existisse ainda quem cumprisse o seu dever no meio da guerra, incêndios e enchentes. Quando a carta chegou a Pansiao era inverno novamente, as cavernas estavam frias e a água que gotejava pelas rochas congelar-se-ia se não houvesse uma fogueira no meio, sobre o chão rochoso. Uma cavidade, no teto de pedra, conduzia a fumaça para cima, mas, quando a porta era aberta, uma corrente de ar desviava a fumaça da cavidade e o seu cheiro ficava em toda parte. Mas Pansiao não o notava. Na cozinha de sua casa, se o vento soprava do noroeste, como acontecia tantas vezes durante o inverno, a fumaça voltava da chaminé. Assim tinha sido desde o tempo dos seus ancestrais e, sabendo que era o Céu que mandava os ventos, eles suportavam sempre a fumaça.

Depois de ler a carta, ela dobrou-a cuidadosamente, ajustando cada dobra no seu lugar. O papel era fino e frágil, mas precioso porque fora difícil chegar até aqui e ninguém pensaria em por papel fora, nestes tempos. E que grande dever esse papel punha sobre ela!

"Como posso encontrar uma mulher para o meu irmão, ainda mais este irmão?" pensou ela.

Pois de toda a família, Pansiao era a única capaz de diferençar um irmão do outro e conhecia melhor do que sua mãe as diferenças íntimas entre eles. Nesses dias compridos, em que ela se sentava ao tear, tinha pouco com que se preocupar e, desde que o modelo que tecia era simples, em que mais podia pensar senão naquela casa que era tudo que conhecia? Assim, tinha ela morado dentro de cada membro da família, e especialmente nos irmãos, porque sempre lamentava ser uma filha e não um filho. No momento em que nasce, os muros cerram-se sobre uma mulher mas as portas abrem-se para um homem. Contudo, aqui estava ela, feita livre pelo acaso da guerra, e a única da família vivendo nas terras livres, longe do alcance dos próprios aviões inimigos. Haveria alguma entre as suas companheiras, que quisesse desprezar tal liberdade?

Pôs a carta no seio e voltou-se. Na caverna havia umas doze pequenas que tinham suas camas junto à dela. Estavam todas ali, pois era uma hora em que podiam fazer o que quisessem. Algumas liam, outras falavam e havia riso e contentamento. Mas qual dessas poderia ser uma esposa para seu irmão? Umas eram bonitas, outras feias, cuidadosas e descuidadas, baixas e altas, mas não havia uma que pudesse encarar como a mulher do irmão. Contudo, essas eram as que ela conhecia melhor, e, se não podia escolher entre elas, como escolheria entre aquela centena de outras, que ela não conhecia a não ser por ver suas faces quando aprendiam as lições juntas ou quando comiam na caverna central? Era uma tarefa muito pesada essa que o pai lhe pusera sobre os ombros. Uma deusa! Ela não via deusa aqui.

Um alarido ecoou através das rochas. Levantaram-se todas numa confusão, gritando, chamando, rindo, puxando umas às outras, e numa desordem alegre, correram para fora ao longo de um parapeito largo, cavado na rocha, e entraram em. outra caverna onde as professoras esperavam. Lá, reuniram-se todas as cento e doze. Não havia assentos para elas. Sentavam-se em esteiras de palha sobre o chão, como fazem os padres budistas quando oram, para livrarem os pés da umidade dos ladrilhos. Pansiao olhava todas as faces, sem ver uma deusa, e foi-lhe difícil, nesse dia, ouvir a professora.

Durante dias, fizesse o que fizesse, indo e vindo, ela não esquecia sua missão. Não ousava escrever que não podia obedecer ao pai, mas também não tinha coragem para escrever que podia. Depois de muito medo e muita dúvida veio-lhe o pensamento de que estava errada, pensando na jovem. Devia pensar primeiro no irmão. Devia lembrar-se de tudo que sabia sobre ele e, quando estivesse cheia da sua memória, de um modo que ele parecesse viver com ela novamente, poderia olhar para as moças mais uma vez e ver se alguma servia.

Assim, sempre que tinha oportunidade, e algumas vezes diante das próprias professoras, ela pensava no irmão e ele lhe vinha, um rapaz alto e esbelto, com uma bela face. Sabia coisas sobre o irmão que ninguém mais sabia na casa dos pais, pois era a única mais moça do que ele. Sobre ela é que ele desfechava pequenas vinganças e crueldades, no tempo em que eram crianças. Se seu pai o repreendia por qualquer coisa que fazia ele não respondia, pois que era filho. Mas Pansiao tinha aprendido a conservar-se longe do irmão porque, sem aviso, ele pegava-lhe a pele macia do braço, entre o polegar e o indicador, e apertava-a. E então, o seu belo rosto abaixava-se, carrancudo, diante dela.

— Mas que foi que eu fiz? — lamentava-se ela.

Porém o irmão nunca respondia.

"Era uma criança então," pensava, agora, no seu coração terno. E, contudo, "Ele não deve ter uma esposa muito delicada — alguém como eu. Eu não quereria um marido assim," pensou ela.

E havia tempos em que ele caía num silêncio amargo, e os mais velhos não notavam, pois é dever do mais moço conservar silêncio diante do mais velho. Mas ela notava. Então, quando lhe falava como uma irmã fala a um irmão, ele não respondia, ou batia-lhe, e se ela perguntava "Por que você está zangado?" ele também não respondia.

"Ela deve ser capaz de rir", Pansiao pensava, agora, e "não ser como eu que, se alguém fica triste perto de mim, também fico".

Havia momentos em que ele era gentil e bondoso, passando metade de um dia fazendo uma flauta de chorão para ela. Arrancava a casca da madeira tão cuidadosamente que a cana ficava inteira e talhava um bocal tão delicadamente, que ela podia tocar uma melodia na flauta. Em dias bons, como esse, eles conversavam como nunca conversavam com qualquer outra pessoa, tendo uma diferença de idade tão pequena. E, de tais conversas, ela soubera quanto ele ambicionava deixar a casa paterna, para ir a lugares que nunca tinha visto.

— Mas, que faria você em lugares estranhos? — perguntava ela sempre. — E, quando a noite vier, onde dormirá? Quem lhe dará comida?

— Pouco me importa onde dormir, — dizia ele, — e, quanto a comida, eu posso pedir ou roubar!

— Roubar! — murmurava ela. — Você não roubaria!

— Roubaria, se gostasse, — respondia zangado.

Mas, mesmo agora, não poderia dizer se ele afirmara aquilo para fazer-se grande diante dela ou se aquela era sua natureza.

"Ela deve ser bem esclarecida," pensou Pansiao, "bastante sábia para dizer se ele está ou não mentindo, pois eu nunca o soube".

E, naturalmente, ela devia ser bela, pois todos sabem que é ruim uma mulher ter um marido mais bonito do que ela. Quanto mais bonito for o marido, tanto mais bela deve ser a mulher.

Ela amava ou odiava o irmão quando pensava nele? Um pouco das duas coisas, pensou, pois ele era ao mesmo tempo amável e odioso. Talvez todas as mulheres, mesmo a procurada, devesse amá-lo e odiá-lo. Devia ser uma criatura em quem esses dois sentimentos não brigassem, de modo que, quando o ódio chegasse, o amor não fosse morto por ele, e quando o amor crescesse, o ódio permanecesse como uma salvaguarda.

A isto Pansiao podia chegar — a mulher devia ser mais forte do que seu irmão, ou não seria bastante forte.

Mas, quando viu tudo isso claramente, olhou outra vez para as cento e doze e nenhuma era assim.

Contudo, nesse momento, hora a hora, aproximava-se das montanhas uma mulher de quem Pansiao nunca tinha ouvido falar. Essa mulher vinha de um país estrangeiro, distante muitas milhas, para o seu próprio país, de que já não se recordava. Anos atrás ela fora levada embora por seu pai e lá, sozinha com ele, pois a mãe morrera, tornou-se mulher.

Ela não tinha ainda dezenove anos e brigara com o pai, isto é, tanto quanto este permitiria uma briga. Ele não queria que ela deixasse a escola e o lar no estrangeiro, onde tinham vivido em segurança durante tantos anos, para voltar, numa hora dessas, ao país que haviam deixado há tanto tempo.

Ele próprio não desejava voltar, porque a saída do seu país misturava-se em sua memória com a dor da morte de sua esposa, bela e jovem, no seu primeiro parto. Ela fora de uma família maometana, e a descendência do velho sangue árabe arqueara-lhe as sobrancelhas, tornara delicado o seu nariz, dera-lhe um brilho escuro aos olhos, e elevara-a a uma altura incomum numa mulher. Ele amara-a por essas distinções, e perdera-a num momento, só lhe ficando a menininha forte e chorona. Pusera-lhe o nome de Mayli, como a mãe se chamava, e, .então, aceitara no estrangeiro um posto que vinha recusando havia dois anos porque sua jovem esposa não quisera abandonar o lar na sua própria província. Agora, ela nunca mais deixaria a cidade onde nascera, pois jazia enterrada fora dos muros, junto aos seus maiores, e ele fugira dali o mais rapidamente que pudera e nem mesmo podia suportar a idéia de voltar. E tinha vivido tanto no estrangeiro que, sabia, morreria lá. Apenas seus ossos voltariam para descansar ao lado dos da esposa. Quando ela morrera, ele tinha tomado a sua doutrina. Assim, quando morresse, iria ser enterrado ao lado dela.

— Mas eu não posso ficar aqui, feliz e segura, enquanto o povo do mar oriental toma nosso país, — dizia Mayli, agora, ao seu pai, nesse país estrangeiro.

Ela falava mal sua própria língua mas, recentemente, determinara-se a falá-la. Isso, observava o pai, era apenas um dos muitos sinais de sua intenção de voltar ao seu próprio país. Deixara, também, de usar as roupas estrangeiras a que se acostumara. Agora usava somente as roupas longas e estreitas das modernas mulheres chinesas. Nada dizia, enquanto essas mudanças se operavam, mas observava-as todas.

Uma manhã, à mesa do almoço, ele mergulhou os dedos delicados numa vasilha de prata cheia d'água, antes de responder-lhe. Terminavam o almoço, e não havia criados no aposento.

— Não posso imaginar o que você pensa fazer se voltar, — disse ele em inglês. — Eles precisam de homens, engenheiros e técnicos militares, mas dificilmente precisarão de uma jovem que ainda nem completou sua educação.

Ela parecia com a mãe, pensou ele, e, contudo, estava contente, pois alguma coisa, talvez este país estrangeiro, dera-lhe um ar que fazia com que ela fosse para ele inteiramente diferente daquela que sepultara havia tanto tempo, e que permanecia tão viva dentro dele, que, embora pensasse muitas vezes que devia casar e ter filhos, nunca fora capaz de fazê-lo. Não era tão necessário neste país como teria sido necessário no seu próprio.

— Eu encontrarei alguma coisa, — disse Mayli com firmeza. Seus grandes olhos negros brilharam de uma maneira que ele

conhecia muito bem. Era uma perda de tempo discutir com ela e ele havia abandonado essa idéia quando Mayli tinha quatorze anos. Desde então ela fazia exatamente o que entendia. Havia vezes em que ele, Wei Ming-ying, primeiro secretário do embaixador chinês nesta capital estrangeira, permanecia acordado metade da noite por causa do seu fracasso em tornar possível a filha casar. Tanto quanto podia observar, em nada ela estava ajustada para ser uma esposa. Estremecia de medo pensando que, um dia, o futuro genro havia de recriminá-lo amargamente.

"Juro que não pude fazer nada", murmurava ele, muitas vezes, para esse homem de sua imaginação. "Fiz o melhor. Cedo ela tornou-se forte demais para mim. Não podia gastar minha vida numa luta inútil. Além disso, eu tinha que sustentá-la e pagar a sua educação. Não tive tempo para mais nada."

Entretanto o tal genro não tinha aparecido. Jovens tinham amado Mayli, mas ela própria os recusara e seu pai nada tinha a ver com isso.

— Então você vai, — disse Wei, suspirando. Ele ergueu os olhos castanhos, calmos, num último apelo. — Que vai ser de mim, sozinho, num país estrangeiro?

Mayli riu, alto demais para uma moça chinesa.

— Isso é culpa sua, pai, — disse ela levantando-se da cadeira. — Não há, pelo menos, três damas que há muito o consolam?

Ela não podia recordar-se da mãe e, assim, não poupava o pai com suas ironias. Ele era muito belo e sua natural cortesia levava-o muitas vezes mais longe do que percebia. Uma veia de malícia fazia-a gozar diante da perturbação das damas que ele, inocentemente, iludia.

— Ao menos diga-me quando você parte, — murmurou ele apressadamente. Ela sempre sabia muito mais do que devia saber!

Foi apenas uma questão de semanas e ela já estava a caminho, através do oceano. Não houvera dificuldade em encontrar um lugar quando a Embaixada Chinesa soube que ela o queria. A única trapaça que seu pai praticou no caso foi esconder dela que não permitira que nenhum lugar lhe fosse oferecido nas zonas perigosas. Desejava que, se fosse possível, ela fosse colocada como professora numa das escolas missionárias, de modo que o que a cercasse fosse o que haveria de mais velho. Felizmente, uma escola de moças nas cavernas da cadeia de montanhas do alto oeste, no interior da China, pareceu-lhe romântico, e, em sua própria opinião, achava-se capaz de ensinar alguma coisa.

Assim, numa manhã clara e fria, chegou à escola de Pansiao. O gelo encrustara-se no frágil aeroplano que a trouxera. Que ele estivesse pronto para trazê-la, fora outro arranjo que o pai tinha feito na capital desse país estrangeiro tão distante. A ela, parecera bastante simples. Quando saltou do aparelho, o piloto a esperava. Depois de escoltá-la do campo de aterrissagem até às cavernas no alto das montanhas, disse que tinha ordens de levá-la de volta quando ela quisesse, e deu-lhe seu endereço secreto.

— Não voltarei, — disse ela altivamente.

— De qualquer forma, tome-o, para que eu tenha cumprido o meu dever, — disse o piloto apressadamente.

Ele estava com medo dessa mulher alta e zangada que, em todos os momentos, sabia o que queria ou não queria fazer. E ficou contente por livrar-se dela. Supondo-se que ela mesma quisesse guiar o avião, que faria ele? Mas ela não havia querido isso. Sentara-se imóvel, silenciosa, com o vento do oeste afastando da boca o seu cabelo curto. A meio caminho ela comeu, gostosamente, de um grande embrulho de pão, carne e frutas que trouxera. Não ofereceu a ele, que comeu seu arroz com peixe frio.

Apesar de tudo, neste momento, ela abriu uma bolsa de couro estrangeiro que segurava na mão, tirou uma quantia de dinheiro três vezes maior do que ele esperava, e deu-lhe. Então ele gostara mais dela, ao deixá-la, do que em qualquer outra ocasião. Saudou-a e desceu a montanha a pé, como subira, enquanto ela sentava-se numa cadeira de bambu. E ele esperou nunca mais vê-la.

Mayli ficou cheia de contentamento com o quarto que lhe deram, numa caverna, com uma janela para o sul. As aberturas da caverna eram cobertas de tábuas, com portas e janelas. E a paisagem que via da sua janelinha era mais selvagem do que tudo que poderia imaginar. As montanhas nuas se enrolavam como grandes ondas de música solene, trovejantes no seu silêncio.

Ela abrira a janela inteiramente, ainda que aquele fosse um dia de frio penetrante, e, agora, esticava os braços, num gesto que parecia falso mas não era.

— Meu! — murmurou. — Isto é tudo meu. Montanhas, aqui estou, novamente, com vocês!

Ficou de pé um momento, lembrou-se de que tinha fome e que a criada que a conduzira ao quarto tinha-lhe dito que as aulas terminariam dentro de poucos minutos. Mas, primeiro, ela devia ir ao escritório, ver a diretora estrangeira, que agora estava dando uma aula, e depois comeria. Voltou-se, examinando-se num espelhinho que havia sobre uma mesa. Escovou o comprido cabelo preto, limpou o rosto com uma toalha úmida, pôs pó de arroz e coloriu um pouco a face. Tornou os lábios vermelhos, no tom exato que lhe assentava. Quanto à roupa, ficou com a que estava. Era uma túnica de lã vermelho-escura, estrangeira, e a roupa mais quente que tinha.

Assim, dirigiu-se, por uma passagem escura e tortuosa, para o lugar em que a criada lhe dissera ser o escritório. Sem acanhamento, abriu a porta e entrou. Sentada à mesa estava uma mulher branca, grande e rude, cuja aparência, apesar de vulgar, não deixava de ser bondosa.

— É Miss Freem?

Miss Freem, pensando que quem falava era uma estrangeira, ergueu o olhar, espantada. Ela era a única estrangeira em centenas de milhas e nenhuma dessas pequenas era capaz de colocar juntas mais de quatro palavras estrangeiras. Mas, quando olhou para cima, percebeu quem era.

"Não vou gostar dessa mulher," pensou Mayli.

"Se eu não tomar cuidado, vou ter atrapalhações com essa pequena audaciosa," pensou Miss Freem.

Desta maneira elas começaram a vida em comum.

Na caverna principal, onde as moças faziam suas refeições, olhando para cima, Pansiao viu a nova professora com amor no coração. A recém-chegada tinha entrado com a diretora estrangeira a quem Pansiao nunca ousara dirigir uma palavra, e falava-lhe tão facilmente como se tivesse vivido com ela desde a infância. Pansiao largou os pausinhos e olhou, admirada.

Um murmúrio correu por entre as pequenas, "É a nova professora, a nova professora". Levantaram-se todas, como sempre faziam quando a diretora entrava, permanecendo de pé até que ela se sentasse. Mas, para Pansiao, ela estava se levantando apenas para a nova professora. Todos a contemplavam agora, olhando-lhe a cor, a altura, sua naturalidade, os seus movimentos estranhos, rápidos, e o material estrangeiro de sua roupa. Contudo ela era uma delas, pois tinha cabelo preto, e a pele, embora clara, era como a de todas. Pansiao estava espantada com aquela beleza. Sob a tábua nua da mesa, suas mãos geladas se apertavam. Sentia que um amor doce e quente lhe invadia o peito.

E então, com a simplicidade que só podia existir em alguém tão simples quanto ela, Pansiao pensou: "O Céu enviou alguém para meu irmão!"

Esta era uma volta estranha. Mayli, levantando-se da cama pelas manhãs, olhava pela janela para o campo selvagem e tempestuoso. As montanhas atiravam-se juntas até onde a vista podia alcançar. Tudo que era humano estava contido numa vila, agarrada à abertura de um vale, e tão pequena, a essa distância, que a palma da mão poderia contê-la.

Dessa vastidão exterior ela passava ao padrão dos dias íntimos tão planejados minuto a minuto, e tão vazios de significado atualmente, que ela desejava desfazê-los como se fossem uma teia de aranha que a apanhasse. "Em épocas tão importantes para o nosso país," pensava ela com raiva devastadora, "ensinar essas pequenas, exatamente como se elas estivessem em alguma cidadezinha americana!" A impaciência tornou-se seu estado comum. Assim, uma manhã, indo cedo à sala de aulas, encontrou Pansiao curvada sobre um livro, murmurando para si mesma, o rostinho contraído pelo esforço.

— Que estuda você, menina? — perguntou Mayli descuidadamente.

Ela ainda não aprendera a distinguir uma cara da outra, mas pensava que, seguramente, esta era uma das menores alunas da escola.

Pansiao tinha vindo cedo para a classe intencionalmente. Ali, dentro de instantes, sua adorada iria ensinar-lhe o mistério dos números. Se ela viesse cedo Pansiao seria a primeira a .vê-la. Mas ela mal podia esperar uma sorte dessas — estar sozinha com a professora. Enquanto isso estudara o inglês que Miss Freem ensinava. Agora, com aquele belo rosto em cima dela e aquela voz fazendo-lhe essa pergunta, Pansiao ficou sem fala. Só pôde erguer o livro.

— "O Galope de Paul Revere"! — exclamou Mayli com escárnio. — Não posso acreditar! — Apanhou o livro. — Sim, é isso mesmo! Você tem que decorá-lo?

Pansiao acenou com a cabeça.

— É muito difícil, — murmurou.

E ficou confundida quando a sua adorada atirou o livro no chão.

— Que idiotas, que disparate, — esbravejou Mayli. — "O Galope de Paul Revere"! — quando, todos os dias, os nossos próprios guerreiros lutam como heróis!

Pansiao abaixou-se para apanhar o livro, sem entender nada daquele inglês feroz. Mas Mayli impediu-a. Pôs o pé não muito pequeno sobre o livro e calcou-o. Então abaixou-se, apanhou o livro e saiu da sala.

Atrás dela Pansiao tremia. "Ora, fiz com que ela ficasse zangada", murmurou. O coração saltava-lhe no peito e quis chorar. "De todas as coisas, o que menos desejo é deixá-la zangada," pensou, confundida com a sua ignorância.

Mas Mayli dirigiu-se diretamente ao gabinete de Miss Freem e, sem bater, entrou. Miss Freem lia a Bíblia pela manhã, mas Mayli não deu atenção a isso. Pôs, sobre a Bíblia, o livro que tirara de Pansiao. O chão das cavernas era úmido e a marca do seu pé ainda se via no "O Galope de Paul Revere." Miss Freem recostou-se e olhou-a. Num mês, ela e Mayli tinham brigado pelo menos dez vezes. Ambas eram francas e destemidas, defendendo os seus pontos de vista em cada questão.

— Veja isso! — disse Mayli, sem respeito à posição de Miss Freem. — Encontrei uma das meninas aprendendo isso, de cor!

Miss Freem endireitou os óculos e Curvou-se para ver o que era.

— Essa é a lição de inglês marcada para hoje, — disse. — Há quinze dias que elas estudam essa lição e, hoje, ela deve ser terminada.

— Por que essa coisa tão estúpida? — perguntou Mayli. — Nestes dias, nestes tempos, numa guerra infinitamente maior do que qualquer outra travada pela liberdade, aqui, em seu próprio país, por que uma menina chinesa tem que aprender, de cor, "O Galope de Paul Revere"?

Miss Freem, agora, estava um pouco assustada. Havia vezes em que ela imaginava se essa pequena tinha o juízo no lugar.

— Porque é do curso, — respondeu firmemente.

Mayli riu. Então disse para si mesma que devia ser razoável.

— Escute, Miss Freem, temos que nos guiar por um currículo de escola superior, aqui nas montanhas? Pense onde nós estamos, Miss Freem! Estamos a duas mil milhas, no interior da China, em cavernas, ocultas das bombas dos invasores. Temos um punhado de meninas chinesas e as estamos educando, ninguém sabe para quê. Mas não é para isto.

Apanhou o livro, e rasgou-o ao meio, atirando os pedaços na cesta embaixo da secretária.

Miss Freem não se moveu. Havia muito tempo, quando era menina, seu pai prevenira-a contra o seu temperamento.

— Se você não tomar cuidado, Ellen, dissera ele — algum dia matará alguém. Você deve pedir a Deus que a livre do pecado.

E desde então, durante toda sua vida, vivera com medo, pois sabia que ele dissera a verdade. Todos os dias pedia a Deus que a ajudasse a controlar seu gênio. E, por isso, tinha sempre na sua mesa a mesma Bíblia que o pai lhe dera. Quando percebia que o calor da ira subia-lhe à cabeça, esticava a mão, colocando-a sobre a Bíblia. Assim fez agora, sua mão apertando as páginas, procurando auxílio. Quando sentiu que podia falar, falou, sua voz áspera e sufocada.

— Eu sou a diretora desta escola. Decido o que as alunas têm que aprender.

"Sou uma tola," — pensou Mayli.

Sentou-se na cadeira oposta a Miss Freem e curvou-se sobre a mesa, com o seu rosto belo muito próximo à outra. Como poderia saber que nada amedrontava e repelia mais a Miss Freem do que um belo rosto como o seu?

— Veja, Miss Freem, — começou Mayli. — Só quero pedir que não nos roube da nossa grandeza. Esta é a nossa luta pela liberdade; você tem a sua! Devemos ensinar a essas pequenas nossos próprios poemas, as nossas próprias canções. Por que sempre cantamos hinos? Devemos cantar as canções do nosso povo, as canções novas. Não pode perceber quanto me pareceu errado vir para a pátria no meio disto, — ela esticou um braço longo e poderoso para a janela, cheia de montanhas escarpadas, — e cantando o quê? Oh! bem, "Abide with me", e "From Greenland's Icy Mountains". — Ela começou a rir alto. — Percebe o que quero dizer, Miss Freem?

Miss Freem ergueu-se, para livrar-se dessa face forte e demasiado bonita.

— Penso neste lugar como um refúgio, — disse ela solenemente. — Deus construiu-nos um refúgio.

— Nós não queremos refúgio! — exclamou Mayli. — Estamos no meio da guerra!

Ela ergueu-se e, entre essas duas mulheres elevaram-se todas as barreiras, sem que nenhuma das duas falasse. Então Mayli voltou, abandonando o aposento e Miss Freem curvou-se, 'apanhando da cesta o livro rasgado. Livros eram preciosos e este podia ser emendado.

Mas Mayli caminhava furiosamente para a sala de aulas. "Não posso ficar aqui", murmurava. "Não quero ser paga para ficar aqui. Devo ir embora."

Tinha esquecido a pequena que deixara na classe e entrou, carrancuda, falando sozinha. Viu, então, a pequena sentada, exatamente como a deixara, mas pálida, com o olhar assustado.

— Que foi? — perguntou Mayli.

— Eu fiz a senhora zangar-se, — murmurou Pansiao: — As lágrimas enchiam seus olhos. — Eu devia ter morrido antes de deixá-la zangar-se comigo!

Sua adoração brilhava como uma chama através das lágrimas. Estirou a mão tímida pegando na túnica de Mayli.

— Mas, você é apenas uma criança, — disse Mayli. — Como deixaram que viesse para tão longe de casa?

— Tenho quase dezesseis anos, — disse Pansiao. — Não sou mais criança. Trabalhei no tear durante três anos. Então o inimigo chegou e meu pai mandou-me embora.

E na sua maneira simples, ela contou a Mayli a história do seu lar, a cidade em que ficava, e ela falou até mesmo do marido da sua irmã, Wu Lien, que tinha ido para o inimigo e vivia numa casa rica da cidade em que o inimigo mostrara-se tão mau. Antes que ela tivesse terminado, outras pequenas entraram e Mayli disse:

— Eu devo ouvir isso porque minha mãe nasceu nessa cidade. Venha ao meu quarto esta noite, antes de dormir.

Pansiao assentiu, adorando. Passou esse dia inteiro ofuscada. Uma ou duas vezes Mayli viu-a olhando e sorriu. Nessas vezes Pansiao parava de respirar e só o percebia quando estava quase desmaiando.

"Como pode essa criança ter sofrido tanto?" pensava Mayli.

O que Pansiao contara ficara com ela o dia inteiro. Esqueceu da briga que tivera com Miss Freem, e falou-lhe tão agradavelmente, quando ela passou, que Miss Freem pensou que Deus respondera às suas preces transformando o coração de Mayli. Assim, agradecida com essa paz, ela deixou o dia passar. Logo que Deus lhe mostrasse o que fazer ela faria. "Senhor, — rezava ela silenciosamente nessa noite, — mostre um meio de livrar-me dessa jovem!"

Nessa noite Mayli esperou a visitante com sofreguidão. Lia sempre todos os jornais que podia encontrar, ouvia todas as noites o rádio proibido que trouxera do estrangeiro, e que escapou à busca por viajar com um passaporte diplomático, mas a história que Pansiao lhe contara era uma como nunca ouvira. Quando escutou uma tosse delicada à sua porta, gritou: "Entre!" A porta abriu-se e, vendo Pansiao, ela sorriu um dos seus sorrisos extraordinários, cumprimentando a menina.

— Sente-se aqui, — disse, puxando um banco para o braseiro cheio de carvão. — Está muito frio. E veja, vou lhe dar um doce que trouxe através do oceano. Guardei-o para uma ocasião especial e acho que esta é a ocasião.

Então Pansiao sentiu-se colocada sobre um banco acolchoado, junto a um fogo como nunca vira e tendo na mão um doce quadrado, de alguma espécie de açúcar escuro.

— Isso vem de uma árvore muito distante, — disse Mayli. — Prove, é gostoso.

Ela provou, lambendo-o com a ponta da língua, e Mayli riu.

— A sua língua parece com a língua de um gatinho, — disse. Pansiao riu também. A voz de Mayli parecia vir de muito distante. Ela estava tão aturdida de felicidade, tão bêbeda de amor, que parecia ver uma nuvem sobre a cabeça de Mayli.

— A senhora se parece com Kwan-yin — murmurou Pansiao. Mayli abriu os olhos grandes.

— Eu? Ah, você não me conhece! Como meu pai riria! Porque, menina, eu tenho muito mau gênio. Eu sou feroz!

— Não posso acreditar, — murmurou Pansiao. Tinha esquecido o doce na mão. Fitava aquele rosto lindo, rosado à luz dos carvões.

— Eu lhe peço — disse ela temerosamente, seu amor dando-lhe forças. — Oh, imploro-lhe: quer casar com meu irmão?

Ora, de tudo que Mayli poderia esperar dessa jovem, isto seria a última coisa. Deixou cair o belo queixo contemplando-a.

— Eu ouvi direito o que você disse, ou não? — perguntou. Pansiao abandonou o doce e caiu-lhe aos joelhos.

— Meu terceiro irmão, — gaguejou. — Ele é capitão entre os montanheses. Procura alguém como a senhora. E meu pai escreveu ordenando-me que arranjasse uma esposa para meu irmão, nas terras livres, porque lá, onde o inimigo está, não há mulher para ele. Mas eu não pude encontrar nenhuma; não havia nenhuma que servisse para ele aqui, antes que a senhora viesse.

Então, tremendo com a sua audácia, ela tirou do peito a carta de Jade. Pusera-a no bolso quando viera para cá, essa noite, pensando que, se as suas próprias palavras falhassem, as escritas falariam por ela.

Sem acreditar ainda, Mayli tomou a carta e leu. E enquanto ela lia, Pansiao levantava-se, limpava os joelhos e mordiscava o doce, observando a fisionomia de Mayli. Primeiro o riso, depois a surpresa e, por último, a gravidade, apareceram naquela bela boca vermelha e naqueles cílios negros.

Esses cílios ela os ergueu quando terminou de ler a carta. Dobrou-a então, entregando-a a Pansiao, sem dizer nada.

"Em que outra parte do mundo isto poderia acontecer?" pensou para si mesma. "Quem poderia acreditar nisto sem ver? Que direi a esta criança?"

Pansiao largou o doce novamente e esperou. . — É uma boa carta, — disse Mayli. — A escrita é clara e o estilo muito simples. O seu irmão escreve assim tão bem?

— Quem? — repetiu Pansiao. — Ele não lê nem escreve.

— Vê você, — disse Mayli com simplicidade, — seria difícil para mim casar com um homem que não sabe ler nem escrever.

— Oh, ele é muito inteligente, — exclamou Pansiao. — Se não aprendeu é porque não viu nenhum bem nisso. Ninguém lê nem escreve em nossa vila, a não ser um primo velho, e esse é doido.

Ela examinou ansiosamente o rosto de Mayli.

— Se a senhora desejasse que aprendesse, ele aprenderia. Se lhe ensinasse, ele aprenderia bem depressa!

Mayli disse muito gentilmente:

— Eu poderei casar com um homem que nunca vi?

— Quem vê o homem com quem vai casar? — perguntou Pansiao, espantada.

"Este é outro mundo", pensou Mayli. "Mas não é o meu? Se não tivesse sido tirada daqui quando era muito pequena, eu responderia assim." «

— Fale-me sobre o seu irmão, — disse ela alto.

Não tinha a mínima idéia do homem e o que a criança dissera era absurdo, para rir, mas este era o seu mundo, aqui era a sua pátria.

Então Pansiao disse-lhe tudo que recordava do irmão, da sua juventude. Foi honesta e falou também sobre o seu mau gênio e suas crueldades. Ao ouvir isto Mayli riu. Então Pansiao narrou os seus atos de bravura e Mayli a ouviu seriamente. Passou-se muito tempo antes que Pansiao acabasse. Tanto tempo que já havia, sobre os carvões vermelhos, uma cobertura de cinzas. E a noite estava em meio, sem que nenhuma das duas o notasse. Elas estavam muito distantes, cada uma vivendo outra vida a seu próprio modo, vendo um rapaz forte, audacioso, irritado, ignorante mas poderoso.

— Esse é meu irmão, — disse Pansiao, finalmente.

— Você descreveu-o muito claramente, — afirmou Mayli. Ela viu que Pansiao a olhava, esperando algo mais do que isso, e sacudiu a cabeça. — Querida filha, — disse. — Isso tudo é muito estranho para mim, como a história de um livro. Agora você deve ir para a cama. A boa Miss Freem pode, talvez, saber que você está fora e se encontrá-la aqui ficará furiosa!

Tocou a face da menina, ergueu-se e levou-a até à porta. Pansiao só podia implorar com o olhar, pois sentia a língua tolhida.

— Boa noite, — disse Mayli. — Eu sonharei esta noite! Quando Pansiao saiu tudo estava mudado para Mayli. Até agora esse quarto tinha sido seu, uma parte do país de onde viera. Tinha-o tornado estrangeiro, colocando, aqui e ali, uma almofada, um quadrinho sem moldura ou uma fotografia da casa do pai. Agora ele não era mais o seu quarto. Um jovem guerrilheiro permanecia ali, uma sombra forte, um fantasma poderoso, uma presença que ela não podia afugentar. Sentou-se outra vez junto aos carvões cinzentos pensando nele e em tudo que ouvira contar sobre ele.

"Uma pena," pensou, "uma vergonha que um homem como esse não tenha tido uma oportunidade!" E pensava nele outra vez. "Seria mais bravo se soubesse ler? Tornar-se-ia mais audacioso contra o inimigo?" Lembrou-se dessa manhã e deu uma risadinha. "Talvez Paul Revere também fosse um ignorante," pensou.

Ela se ergueu então para quebrar o encanto desse homem que nunca vira. "Não devo ser romântica," pensou.

Assim determinada, dirigiu-se à janela, abriu-a e permaneceu lá durante muito tempo. A Lua, alta, derramava seus raios sobre os cumes estéreis. Eram cinzentos e ferozes. Nem uma árvore podia ser vista neles e a sombra que uns atiravam contra os outros era negra. Pela sua beleza formavam uma paisagem como nenhuma outra no mundo, mas era necessário ter um coração forte para contemplá-la sem medo. Ela não tinha medo. Fitou-a sem emoção por mais de uma hora.

"Não devo ser tola," pensou. E foi para a cama.

 

Durante dias ela evitou Pansiao e, muitas vezes, quando por acaso encontrava os olhos ansiosos da jovem, sorria rapidamente e voltava a cabeça. O que esses olhos pediam era impossível.

E, contudo, certas forças trabalhavam para aquele impossível. Havia a força das montanhas, e ela sentia essa força, dia e noite, impelindo-a a abandonar a dócil rotina dos seus dias.

"Eu nunca desejei ser professora," pensava apaixonadamente. "Não nasci para cantar hinos!"

Mas o que queria ser? Agora, constantemente, perguntava isso a si mesma. Que podia uma mulher fazer sozinha? Ela brincava com a sua imaginação. E se mandasse chamar o piloto que a trouxera aqui e lhe ordenasse para levá-la a qualquer parte?

Mas onde podia ir? Para a família de sua mãe? Eles estavam dispersados e a cidade ocupada pelo inimigo. Não, sozinho nada podia fazer. Devia aliar-se.

Mas aliar-se com quem? Com um exército, talvez. Havia os exércitos de Noroeste. Lá as mulheres lutavam ao lado dos homens. Mas, ela não queria lutar como uma entre muitas. Era demasiado orgulhosa para isso. Desejava um lugar de força ou em que pudesse adquirir força. Ela pensou em uma mulher, conhecida em todo o mundo, uma mulher da sua própria raça, educada no estrangeiro como ela própria fora, uma mulher rica, bela e obstinada, que se casara com um guerreiro — um homem como, pelo que Pansiao lhe contara, devia ser seu irmão. Essa mulher tinha encontrado um homem forte, mas rude e ignorante, e como sua esposa transformara-o num governador cujo nome o mundo inteiro conhecia. Ela não poderia fazer o mesmo?

"Tenho que fazer alguma coisa," pensava Miss Freem, dia após dia, contemplando-a através dos seus espessos óculos. "Sinto como se essa jovem estivesse se transformando num tigre. Ó Deus, deixa-me encontrar um meio de livrar-me dela!"

À noite, sozinha no seu aposento, Mayli ligava o rádio, procurando a voz. Ela vinha toda noite, entre as duas e três horas, do coração do seu país, contava vitórias e derrotas difíceis de suportar. Durante os dias, ajustados sobre ela como gaiolas, esperava pela noite. Depois de ouvir a voz, ela se voltava sempre para as montanhas. Fizesse o frio que fizesse ela abria as janelas, permanecia ali, e as montanhas faziam seu trabalho.

"Eu devo sair daqui," pensava.

Mas foi Miss Freem quem a libertou.

— Deus deu-me força, — disse Miss Freem às outras professoras. — Durante semanas orei a Deus para que ele me livrasse dessa carga. Mas o caminho não me tinha sido mostrado. Até que um dia eu ouvi com meus ouvidos. Incitava as jovens a fugirem, essas queridas jovens confiadas aos meus cuidados e à minha guarda! Aconteceu-me passar pela sua classe onde, supunha-se, estava ensinando história americana, e ouvi-a dizer: "É desprezível que estejamos aqui nestas cavernas, estudando o que outras nações têm feito. Devemos todas sair e lutar a nossa própria luta. Venham! Se eu for, quem irá comigo?" Isso foi o que eu ouvi. Abri a porta e Deus me deu força. "Miss Wei," disse eu, "Miss Wei, considere o seu contrato terminado."

As dóceis professoras murmuraram o seu horror. Muitas delas tinham sido alunas de Miss Freem e sabiam como esta se sentia.

Mayli, ouvindo mais tarde por intermédio delas como Deus auxiliara Miss Freem, riu seu riso demasiado alto. "Ela sabe como Deus usou-a a meu favor? Ele usou-a para me libertar!"

E, escarnecedoramente, pediu o salário inteiro a Miss Freem, ordenou ao porteiro que chamasse um mensageiro da montanha, e enviou um telegrama à cidade mais próxima. Esse telegrama trouxe o piloto que a levou embora. Partiu sem tornar a ver Pansiao.

Quanto a esta, quando soube que a sua deusa tinha partido, chorou longa e secretamente. Onde estava essa deusa? Ela a fizera partir implorando-lhe para ser a esposa de uma criatura tão humana como o seu terceiro irmão? Quem poderia dizer? Não havia ninguém para responder.

Mayli acomodou-se no assento estreito do avião.

— Vou voltar à costa, — disse ao piloto.

Tinham-se encontrado numa vila, ao pé das montanhas. Ele estava lá, nessa manhã, quando o carro de Mayli parou diante da hospedaria. Caminhou para a frente, sorrindo porque tinha medo dela, o velho boné na mão, e o uniforme de algodão azul mais desbotado do que antes. Ele não se surpreendera quando, poucos dias atrás, recebera a mensagem dizendo-lhe para estar ali em determinado dia. Ao deixá-la não pensara que uma mulher tão jovem pudesse permanecer muito tempo nas montanhas.

— Estarei pronta dentro de uma hora, — fora a única saudação dela.

Entrara então na hospedaria e, depois de dizer ao hospedeiro que a casa dele era a mais porca das duas metades do mundo, comeu um prato de pinhas, saiu com o casaco de peles enrolado no corpo e entrou no avião.

Virou-se no assento para um último olhar às montanhas e subiram. Então dirigiu a face para o mar e o espírito para o que pretendia fazer. Nunca deixara Pansiao saber o que pensara ao ouvi-la falar sobre seu pai e sua casa e, quando a menina atenazava-a com perguntas tímidas, ela ria apenas. A qualquer um teria dito que era tolice pensar num homem ignorante, que jamais vira. E, contudo, o que Pansiao lhe contara tinha dominado seus pensamentos e sua imaginação. Agora, com todo um mundo para escolher, sem que ninguém soubesse onde estava, sentia-se tão livre como uma nuvem.

Nunca tivera uma liberdade tão completa. O homem ao lado não representava nada para ela. Era parte da máquina. Não lhe falou nem uma vez e quando ele a olhava via sua face voltada para o céu, imóvel, fitando à frente.

Mas, dessa liberdade, sua mente formava um plano. Por que ela não ia e via por si mesma se esse irmão era tão belo como Pansiao o dissera? Porque Pansiao, com uma habilidade feminina, repetia-lhe sempre a grande beleza do irmão. "Alto", dissera ela, "muito mais alto do que a senhora". Seus olhos eram grandes, com o preto tão preto e o branco tão branco que, quem quer que o olhasse, sentia nele o deus. Assim dissera ela.

Ora, Mayli era dessas mulheres que nunca vira um homem que achasse seu igual. Zombava dos homens e, contudo, apaixonada, desde os treze anos sonhara com um homem de que. não escarnecesse, ela que escarnecia até do próprio pai. O saber no homem não representava valor para ela. E isso juntava alguma coisa a esse homem, que, segundo ouvira, não sabia ler nem escrever. Se, sem saber, ele tinha tanta força, o que não seria quando tivesse esse saber, também? Ela o imaginava como o seu homem feroz, mais forte do que ela e, todavia, dependendo do seu saber. Ela o queria indomado e indomável e procurava, contudo, um meio de talhá-lo. Seria doce ter sua própria força sobre um homem selvagem e poderoso, um homem tal como jamais vira em palácios, cidades e cadeiras de governos, onde se reuniam os homens delicados e gentis.

Assim, através de todo aquele dia comprido, lá em cima, sobre a terra, ela imaginou como poderia aproximar-se desse homem, o bastante para vê-lo e saber se ele era ou não alguma coisa como o que sonhara e jamais vira.

Não era muito difícil. Podia ver um caminho muito claro se desejasse tomá-lo. Pansiao tinha-lhe falado no marido de sua irmã mais velha, que trabalhava para o inimigo na cidade, e cujo nome era Wu Lien. Da costa ela poderia escrever ao fantoche, governador da cidade natal de sua mãe, e pedir-lhe, simplesmente, que lhe permitisse ir até lá sob a sua salvaguarda a fim de visitar o lugar em que a mãe nascera e a sua sepultura. O fantoche tinha sido amigo de seu pai uma vez, e ela o conhecera quando o pai ainda era livre e não havia fantoches. Um eterno rebelde, não pela força mas pela fraqueza, porque nunca lhe tinham dado tanto quanto queria, este homem, agora um fantoche, tinha lutado contra o seu próprio governo e passara anos no estrangeiro, exilado, ainda que com algumas honras medíocres, pois ele tinha força de família e riqueza para ampará-lo. Mayli tinha-o visto mais de uma vez em casa de seu pai, onde ele ia — como a muitos outros lugares — para queixar-se, secretamente, do que se passava no seu país. Vira como nunca fora atendido, deixado de lado, e como, à sua maneira, ele conspirava fracamente nas capitais estrangeiras e entre muitos sobre quem pensava ter alguma força. Seu pai não pudera deixá-lo inteiramente de lado, porque o homem era seu concidadão e tinham sido colegas de escola, na infância. Quando o inimigo chegou, conquistando, quem daria um melhor fantoche do que este homem descontente?

E, contudo, devia estar tão desejoso de justificar-se aos olhos daqueles que haviam sido seus amigos que, se Mayli escrevesse pedindo-lhe para salvaguardá-la enquanto visitasse a sepultura da mãe, na cidade agora conquistada, ele concederia a custódia e haveria de instar com ela para ir e permanecer na sua casa, oferecendo-lhe as suas honrarias servis, mostrando aos inimigos, dessa maneira, os amigos que tinha e como a filha de um homem honrado vinha procurar a sua proteção. Bem sabia ela quanto ficaria zangado o pai, mas alguma vez consultara-o quando pretendia fazer algo que ele não iria apreciar?

Assim, o seu plano delineava-se mais e mais claro. Sim, e depois de estar na casa do fantoche poderia fazer facilmente com que ele encontrasse aquele Wu Lien. E iria para o campo, ao cemitério, uma vez que soubera por Pansiao onde ficava a casa de Ling Tan e a sua aldeia. Ela podia ir ver por si mesma tudo nessa casa e talvez mesmo aquele a quem mais desejava ver. Tudo era claro diante dela e prosseguiria sem falar a ninguém. Se ela encontrasse o homem que Pansiao descrevera, bem, então, quem poderia dizer o que iria acontecer? Se o homem fosse apenas um campônio, tinha somente que voltar outra vez, e chamar àquilo aventura e divertimento. Acontecesse o que acontecesse não corria risco algum.

Assim planejou. Eles desceram e passaram a noite numa ci-dadezinha da fronteira, numa hospedaria suja como todas as hospedadas e na qual os percevejos a morderam. Isso a deixou irritada e disse-o ao hospedeiro quando saía pela manhã. O homem arreganhou os dentes apenas, mas a sua mulher não teve tanta paciência e amaldiçoou aquela garota alta, com cara de estrangeira:

— Fique certa de que não tenho pena de si, mas dos percevejos! Se beberam o seu sangue negro estarão envenenados. Quem já ouviu falar de gente boa e honesta que não tenha percevejos e piolhos? Quando essas criaturinhas vão-se embora de uma casa, a sorte as acompanha.

— Você é uma idiota ignorante, — disse Mayli, — e o inimigo é bem-vindo à gente como você. Que bem traz para o seu país ter elementos como você?

Finalmente o piloto implorou-lhe que fosse embora, o hospedeiro pôs a mão na boca da esposa e conseguiram apartar as duas mulheres. O piloto andou mais rapidamente nesse dia, a fim de livrar-se dessa carga à noite, e levou-a até à costa.

Mayli fez como planejara, mandando, pelo telégrafo, sua mensagem ao fantoche. Dentro de poucas horas chegava a resposta, como ela estava certa de que chegaria, pedindo-lhe que viesse, pois ele ia preparar-lhe um lugar especial e esperá-la com seu próprio carro. Ele mesmo queria protegê-la. E assinava seu nome claramente, como governador da terra. Ela sorriu de lado, ao ver isso, lembrando-se de sua face imbecil.

Esperou dois dias, parecendo apenas uma jovem orgulhosa e bela com dinheiro na mão. Ia e vinha sozinha. Comprou roupas novas, algumas pérolas e, se viu alguma coisa odiosa nessa cidade costeira, não disse aos estranhos que a rodeavam. Mas viu muita coisa odiosa. Havia ruínas em muitos lugares e a cidade estava cheia com os reduzidos à miséria e os sem lar, não somente do seu próprio povo mas de outras partes do mundo também. Viu faces brancas, esfomeadas, caras de judeus afugentados, desesperadas, procurando abrigo aqui, neste lugar sombrio. Metade do mundo estava arruinado, sem lar. Mas esta cidade grande e rica pertencera ao seu povo e porque precisara sucumbir? Sozinha, sem conhecer ninguém, recusando os olhares amistosos de todos que desejavam saber quem era ela, meditou sobre o que via, e toda a sua ira reuniu-se em ódio contra o inimigo.

Assim tomou o lugar que lhe fora preparado no trem, e como uma princesa aborrecida que não diz o motivo de seu aborrecimento, dirigiu-se para a cidade natal de sua mãe. E, à noite, chegou lá.

"Sinto-me solitário," disse o governador fantoche, e Mayli sabia que ele estava pensando se podia curvar-se mais para ela e tocar-lhe as mãos. Desde que ele a vira pela última vez, tinha-se tornado uma mulher. Ela olhou-o e ele percebeu que não podia tocá-la. Curvou-se para trás, pousando a xícara sobre a mesa.

— Naturalmente que você está solitário, — disse ela calmamente. — O que fez eliminou-o.

Falavam em inglês, que ambos conheciam igualmente.

— Mas, você me compreende? — Seu rosto franco e belo implorava compreensão. — Eu não sou um traidor. Sou um realista. Se reconhecermos a verdade de que a metade do país está conquistada, nossa única esperança é trabalhar com os conquistadores. Além disso, o que faço é inteiramente chinês. A história nos repete que sempre parecemos ter baqueado diante dos conquistadores, mas continuamos governando e os inimigos sucumbem.

— Nesses tempos éramos mais fortes do que os conquistadores, — disse ela. — Somos agora?

Ela não disse o que pensava — que ficara aterrorizada entre os altos oficiais inimigos com quem jantara, contemplando a sombria força concentrada nas suas faces e a natureza conciliatória e fraca do rosto do fantoche.

Ele não respondeu. Alguém entrara no aposento, e ele voltou-se rapidamente, irritado, pois tinha dado ordem para que ninguém o incomodasse enquanto estivesse com a sua hóspede. Mas, quando viu quem era, reprimiu seu mau humor.

— Ah, Wu Lien, — exclamou ele, dizendo para Mayli: — este é meu secretário, um homem que me é muito fiel e que me compreende.

Então, se esse cunhado tinha-se elevado tão alto entre os inimigos, tudo era ainda mais fácil do que ela supusera!

Wu Lien curvou-se, sem olhar diretamente para a bela mulher. Seu pai, acostumado a vender mercadorias a damas ricas, ensinara-lhe cortesia. Então disse ao chefe:

— Senhor, sinto incomodá-lo, mas há más notícias.

O fantoche ergueu-se imediatamente. Os dois saíram e Mayli ficou sozinha, pensando em Wu Lien.

Quando o homem voltou tinha a face transtornada.

— Deve desculpar-me, — disse. — Uma coisa horrorosa aconteceu. Um bando de homens arrojou-se das montanhas e matou a guarnição estacionada no sopé da mesma. Não ficou um.

— Mas, você será culpado disso? — perguntou Mayli.

— Naturalmente, de alguma forma, — respondeu ele. — Eles sabem que eu não concordaria com uma tal barbaridade do meu próprio povo, mas sinto os efeitos.

Wu Lien seguira-o e o fantoche voltou-se, desejando que ela saísse.

— Leve minha hóspede aos seus aposentos, — disse. Wu Lien curvou-se, esperando que Mayli o seguisse.

— Boa noite, — disse o fantoche. — Amanhã acharemos alguma coisa com que se divertir.

— Não se incomode, — disse ela. — Posso me divertir sozinha. Quando ficou sozinha com Wu Lien perguntou:

— É possível andar pela cidade amanhã?

— Com escolta, é — respondeu Wu Lien.

— E fora da cidade, alguém pode ir?

— Com escolta, — respondeu ele de novo. Ela fez uma pausa.

— É necessário que sejam soldados?

O rosto dele era tão sem vida como uma pedra.

— Compreenda, — disse ela, — é duro para mim andar com soldados inimigos. Esta é a cidade em que minha mãe e eu nascemos.

Assim ela tentou-o, sem que a expressão dele mudasse.

— Quero visitar a sepultura de minha mãe, — disse, — porque sou sua filha única.

Ante o Céu, ele haveria de compreender a necessidade disso, pensou ela. Ele cedeu:

— Verei se eu mesmo posso acompanhá-la, — disse. — Pelo menos, poderemos deixar os guardas a uma certa distância.

Tudo que ela dissera era verdade. A sepultura de sua mãe estava no cemitério pertencente à sua religião. Mas onde, ela não sabia. Parecia-lhe, contudo, que, se ouvisse o nome da vila, lembrar-se-ia.

— Como posso agradecer-lhe? — murmurou.

— Não preciso de agradecimentos, — disse ele, curvando-se.

— Mas acharei um meio de agradecer-lhe, — tornou ela, sorrindo.

Assim eles se separaram, pois estavam agora na porta dos seus aposentos e ela entrou. Eram aposentos ricos, confortáveis, e era muito dela poder apreciá-los embora pertencessem ao inimigo. Dormiu bem.

Quando alguém tem um plano, não é fácil segui-lo? Ela saiu, no dia seguinte, e o seu anfitrião compreendeu também aquela vontade de visitar a sepultura de sua mãe e, desejoso de auxiliá-la a recordar o nome da vila, chamou Wu Lien. 'Quando este soube para que o queriam disse:

— Vou chamar minha esposa, porque ela cresceu nesta região, sua família ainda vive aqui e, assim, sabe o nome das vilas melhor do que eu.

E, sem esforço, Mayli viu a mulher de Wu Lien entrar, reconhecendo-a imediatamente como irmã de Pansiao, pois as duas eram muito parecidas embora esta mais velha tivesse um rosto mais estúpido e mais feio do que Pansiao. Quando a esposa de Wu Lien soube o que queriam pensou um momento, e disse:

— Esse cemitério deve ficar a oeste da vila de meu pai, e eu o conheço muito bem, porque é o único cemitério maometano por aqui.

Então voltou-se para o marido:

— Por que não leva a mim e às crianças consigo? Poderíamos parar na casa de meu pai e, enquanto você fosse ao cemitério, eu me aliviava da vontade de vê-los e saber como vão.

Assim, simplesmente, a coisa estava feita, pela vontade do Céu.

 

Ora, nesse dia, Ling Tan, sentado num banco da eira, consertava a canga do búfalo. Tantas vezes salvara o animal do inimigo, que era, para ele, como seu próprio pai. Muitas vezes tinham examinado e lhe pesado a carne, mas em todas elas Ling Tan dizia ao inimigo como o animal era velho, mostrava-lhe os ossos quase furando a pele e dizia-lhes que olhassem as chagas que tinha nas costas. Secretamente, Ling Tan esfregava essas chagas com limão. Mas pedia perdão ao animal quando o fazia.

— É para salvar sua vida, — dizia junto à orelha cabeluda, e ainda que o animal gemesse, ele fazia aquilo.

Mas esta manhã, quando estava arando, a canga quebrou-se e ele sentou-se para consertá-la. Estava cansado, pois não dormira a maior parte da noite? Tinha havido dois dias e duas noites cheios de perigos. Seis ou sete dias atrás o filho mais velho viera avisá-lo de que ia haver um ataque a uma vila no sopé do monte, a vila mais próxima dali, onde o inimigo tinha que ser destruído. Isso tinha sido feito três vezes antes, e de cada vez o inimigo tornava a guarnição mais forte, de modo que agora era muita audácia atacá-lo e havia dúvida quanto aos montanheses poderem vencer.

Tinham vencido, e, nesse momento, os dois filhos de Ling Tan dormiam na sua casa, cansados com o que tinham passado. E o terceiro filho também, que tinha um pequeno ferimento no braço, obrigando-o a trazê-lo dobrado sobre o peito.

Assim, nessa manhã, ainda que Ling Tan parecesse apenas um lavrador velho e pacífico, estava muito inquieto, observando todos que iam e vinham pelas proximidades. Tinha medo, menos que os dois primeiros filhos fossem encontrados do que o último, pois, teimoso, ele não quisera dormir no quarto secreto, dizendo que ali o ar era muito pesado. Assim, audaciosamente, dormira num outro quarto. Se alguém chegasse à porta e ele tivesse de passar pela cozinha para chegar à entrada secreta, seria visto. Mas, agora, a que palavras do pai obedeceria esse filho?

"Que farei com ele se essa guerra parar?" pensou Ling Tan outra vez. E assim pensando, curvou-se, carrancudo, sobre o trabalho. "Como poderemos dominar esse meu filho, em tempos de paz, quando os heróis são inúteis?" perguntou-se mais uma vez, sem poder responder.

Os seus olhos, levantando-se amiudadas vezes para examinar a estrada, caíram, nesse momento, sobre Wu Lien e a esposa que se aproximavam com os filhos. Quando ele os avistou tinham descido da carruagem em que vieram e se aproximavam a pé. Ora, Wu Lien já se elevara a tal posição que não temia mais os guardas inimigos. Ordenou que esperassem e eles esperaram. Mas, quando se aproximaram o bastante, Ling Tan viu que havia um estranho entre eles, uma jovem alta e tão estranha de maneiras que tomou-a por uma inimiga e não ficou muito satisfeito.

Não se ergueu enquanto eles se aproximavam, gritando, sem parar de trabalhar:

— Estão chegando?

— Estamos, — respondeu Wu Lien delicadamente; — esperamos encontrar todos com saúde.

— Vamos tão bem quanto se pode ir nestes tempos, — grunhiu Ling Tan.

Não tinha vontade de mostrar-se amigo de Wu Lien, mas sabia que seria loucura parecer inimigo.

— Aqui estamos nós com as crianças, pai — disse a filha. — E aqui está uma amiga que visita os que estão acima de nós. Ela veio visitar a sepultura de sua mãe, no cemitério maometano.

Diante disto Ling Tan soube que ela não era inimiga e, erguendo-se, disse a Mayli:

— Pensei que fosse inimiga, porque parece estrangeira, mas, se é uma maometana, aí está por que tem essa aparência.

Ela sorriu, dando uma resposta gentil:

— Vim incomodá-lo.

— Não, não veio, — disse ele.

Mas sentia-se incomodado porque os filhos estavam em casa. Pensou que isso era próprio de Wu Lien, escolher justamente esse dia para vir e ficou imaginando se Wu Lien não saberia alguma coisa. E temeu que sim. Experimentou pensar em algum meio rápido para entrar em casa antes deles e avisar os filhos. Se não fosse pela visita poderia consegui-lo, mas como iria mostrar maus modos agora? Pois podia ver que aquela mulher não era vulgar. Era uma mulher de alta posição em algum lugar.

Ora, enquanto ele hesitava, sem saber o que pensar, viu, para seu horror, que o filho mais moço chegava à porta, puxando o cinto para afrouxar as calças, pronto a livrar-se da água que bebera, como todos os homens fazem para não sujarem a casa.

— Contenha-se! — rugiu Ling Tan. — Há uma mulher estranha aqui!

Mas o terceiro filho já estava fora da porta e o seu olhar de súbita vergonha foi tão forte, e a perturbação de Ling Tan tão grande, que Mayli riu como nenhuma outra mulher menos livre teria rido. Mas, que não faria ela? E a primeira vez que o terceiro filho de Ling Tan pôs-lhe os olhos, ela estava rindo, — a luz do Sol caía sobre ela, e assim ele a viu: o cabelo preto brilhando, as faces vermelhas, os lábios vermelhos, os dentes brancos, a cabeça atirada para trás, gargalhando, e ele foi atingido como que por uma espada através do coração. Mas agora como estava envergonhado! Deixou pender a cabeça como um menino trombudo, fechou a cara, voltou-se, e correu para dentro de casa.

— Esse não era meu terceiro irmão? — exclamou a mulher de Wu Lien.

Então Ling Tan fez o que jamais sonhara fazer: caiu aos pés de Wu Lien porque sabia que suas vidas estavam nas mãos dele, pôs a cabeça no pó e Wu Lien bem sabia porque ele fazia isso. Apressou-se em erguer Ling Tan, olhando para a esposa, dizendo: "Não vi ninguém".

Por isto Ling Tan sabia que Wu Lien prometia não trair seus filhos e ficou diante dele, com o coração mudado nesse momento. E disse humildemente:

— Nunca mais julgarei. Somente o Céu deve julgar! Agora ele tinha coragem de pedir que entrassem e apressou-se a convidá-los. Todos entraram e ele chamou a mulher, dizendo-lhe para servir chá.

Diante dos seus olhos Mayli via reunida aquela família de quem Pansiao lhe falara e foi reconhecendo um por um. Ouvia-os e contemplava-os, sorridentes, silenciosa. E viu Jade sair pesada por causa do filho que esperava, e Mayli gostou dela porque não era tímida. E gostou de todos. Apenas os dois que estavam escondidos não apareceram.

Mas Ling Tan tinha fechado a porta e, agora, todos estavam trancados no pátio, em segurança. E ele disse ao segundo filho:

— Diga aos seus irmãos para saírem. Aqui todos são amigos. E quando o filho mais velho apareceu, Mayli viu um homem quieto e tímido. Mas o terceiro filho não queria aparecer. Estava sentado, dentro do quarto em que estivera dormindo, e se amaldiçoava por ser tão grosseiro a ponto de se precipitar para fora como qualquer homem que acorda com uma necessidade e justamente no momento em que aparecia uma mulher como a que havia visto! Ele estava mais orgulhoso do que nunca, pois tinha crescido acostumado a julgar-se acima de seus companheiros, e, agora, julgava-se desonrado, pois ela rira dele. Sentou-se na beira da cama, feroz, carrancudo, mordendo os lábios vermelhos. Quando o segundo irmão veio chamá-lo, não respondeu, — pegando o travesseiro de madeira atirou-o e o outro teve que agachar-se e fechar a porta rapidamente para salvar-se.

— Meu terceiro irmão não vem, — disse ele ao pai, rindo.

— Por quê? Que há agora? — exclamou a mãe. — Há meses que não vejo meus três filhos juntos e, agora, ele não vem?

Ela saltou do banco, correu para dentro, pegou o filho pela orelha e o trouxe para fora, embora ele protestasse, fazendo força para trás. Mas sempre obedecera mais à mãe do que ao pai.

— Deixe que eu vou, — rosnou, — não sou criança.

— Seu bobo! — disse ela rindo.

Mas já estavam no pátio e, para salvar sua honra, Lao San não pôde deixar de olhar em cheio para Mayli. E ela devolveu-lhe o olhar.

E ele pensou: "Nunca sonhei ver uma mulher como esta." E ela pensou: "Ele é exatamente como Pansiao descreveu."

— Eu devo continuar, — disse ela apressadamente a Wu Lien, e este ergueu-se à sua voz.

E então um afastou os olhos do outro. Wu Lien voltou-se para a esposa:

— Fique aqui, mãe de meus filhos, e, quando voltarmos, esteja pronta.

Ela levantou-se quando ele lhe ordenou isso e Mayli ergueu-se também. Saudou-os com um ligeiro sorriso e um movimento de cabeça e todos a contemplaram enrolando-se no capote. Ficaram um momento de pé, por gentileza, e Ling Tan e Ling Sao dirigiram-se com ela até à porta.

Ora, quando Ling Tan voltou para o seu banco logo viu que o terceiro filho queria falar-lhe, porque sacudia a cabeça rta direção dum quarto. O pai seguiu-o, a xícara de chá na mão. Era o quarto em que Lao San dormira. Sentou-se na beira da cama, novamente, pôs as mãos nos joelhos e curvou-se para a frente, enquanto o pai sentava-se num banco.

— Que há, agora? — perguntou Ling Tan. Espantava-se de ver o rosto do filho vermelho, afogueado, com uma expressão tão pesada.

— Essa mulher, — murmurou Lao San por entre dentes.

— Que mulher?

— Essa do capote, — disse Lao San, estendendo a mão na direção da porta.

— Bem, que há sobre ela? — perguntou Ling Tan. Preparava-se para ouvir o filho dizer que era uma espia e que não devia tê-la deixado entrar. Na verdade ele próprio tinha um receio secreto, mas ficara tão transtornado com a bondade de Wu Lien, que tinha esquecido a sabedoria.

— Consiga-a para ser minha mulher, — disse Lao San. Ora, Ling Tan era o mais econômico e o mais cuidadoso dos homens, e nesta casa era motivo de lamentações a quebra do mais insignificante prato, mas, ao ouvir isto, ele abriu a mão, espantado, e a sua bela xícara de chá, que lhe fora dada pelo pai, caiu no chão, transformando-se em pedaços inúteis.

Ficou tão irritado que sua raiva jorrou em cima do filho.

— Veja isso! — gritou.

Abaixou-se para apanhar os cacos mas eram muitos e pequeníssimos. Mesmo o melhor consertador de louça não seria capaz de juntá-los. E Ling Tan amaldiçoou o filho de todo o coração:

— Você, seu esqueleto! — exclamou, — seu idiota!

Ora, Ling Sao, ouvindo o barulho, veio correndo também, para ver o que estava errado, e gritou por sua vez, à vista de uma xícara tão bonita perdida. E Ling Tan exclamou:

— Foi essa tartaruga que você deu à luz!

— Que há agora? — gritou ela de volta, preparando-se para defender o filho contra o pai, como sempre fazia por qualquer filho.

Somente quando uma filha errava Ling Tan podia esperar justiça dela.

— Ele obrigou-me a fazer isto, — disse Ling Tan.

— Que é uma louça? — tornou ela.

— Não é pelo diabo da louça, — disse ele. — É esse seu filho; ele quer engolir o Sol e a Lua. Esquece de que é um homem e um filho mais moço. Qual, ele pensa que fez o céu e a Terra!

— Você não passa de um velho esqueleto, — disse ela. — Sobre que está falando? Seria mais fácil perceber sentido no grasnar dos patos. Que filho é esse, não é seu?

Já ambos estavam irritados e o filho mais velho com a filha entraram para esfriar-lhes a raiva. A filha disse:

— Como ninguém, senão o senhor, sabe por que está zangado, vamos manter silêncio até que possa falar.

Assim eles esperaram até que ele recuperasse a respiração. A filha trouxe-lhe uma xícara de chá fresco e o filho mais velho acendeu-lhe o cachimbo. Mas o mais moço continuava sentado ali, sem dizer nada.

Por fim, Ling Tan entrava em si mesmo outra vez, e, puxando o cachimbo, enquanto a fumaça saía pela boca, disse:

— Essa coisa que é o meu terceiro filho — esse que não quer se casar com qualquer mulher, diz agora, "consiga-a para minha esposa!"

Engoliu fumaça e tossiu.

— Quem? — perguntou Ling Sao espantada e cheia de alegria. Conversa sobre casamento era perfume para as suas narinas, alimento para o seu estômago, e ainda mais se se tratava deste filho.

— Quem? — repetiu Ling Tan. — Essa estrangeira do capote! Então eles também ficaram chocados. Quando Ling Tan falou isso, ninguém disse uma palavra. No silêncio Lao San lançou um olhar furtivo de uma face a outra, por debaixo das sobrancelhas bem feitas. Mas, quanto mais olhava mais irritado ficava. Lançou a cabeça para cima e pulou sobre os pés.

— Nenhum de vocês sabe quem sou eu! — exclamou. — Para vocês eu sou uma criança. Eu não sou uma criança! Mãe, já me esqueci se fui amamentado no seu peito. Pai, eu não como a sua comida. Quanto aos outros, quem são? Não tenho pais, nem irmãos, nem irmãs. Juro que vou embora desta casa!

Atirou-se em direção à porta, mas a mãe correu, segurou-o pelo casaco, torcendo a aba com sua mão forte.

— Aonde vai você? — gritou. — Que está fazendo?

Ele deu um puxão, mas tão forte era a mão de sua mãe que o casaco rasgou-se, e ele só se livrou com o casaco pendendo do ombro nu.

— Pelo menos deixa-me remendar o rasgão! — gritou ela atrás dele.

Mas Lao San não ficaria.

— Quando me derem o que eu quero voltarei para casa de novo, — exclamou sobre o ombro.

E saiu, pelo portão, para a luz plena do Sol, cheia de perigos para ele. Todos correram para o portão, atrás dele, e o viram caminhando rapidamente pela estrada, em direção às montanhas.

Ling Tan sentou-se então, pôs a cabeça entre as mãos e gemeu para a mulher:

— Como é que isso saiu do seu ventre?

— Como foi que você pôs isso dentro de mim? — exclamou ela como resposta.

— Ele não saiu nem de mim nem de você, — disse Ling Tan pesadamente. — Ele saiu destes tempos. E que faremos com ele quando estes tempos passarem?

Sentou-se, tentando aliviar-se com grandes gemidos, mas não se sentia mais aliviado, pois sabia que era seu dever de pai ver o filho casado, e seu dever, também, para com as gerações anteriores e posteriores a ele. Mas como podia ser feito esse casamento? Olhando em todas as direções, norte, sul, este, oeste, não via meio da coisa poder ser realizada. Como podia ele, um lavrador, e seu filho, um filho de lavrador, propor casamento a uma tal mulher? Seu fel nunca fora tão amargo, nem seu fígado tão grande.

Mas Ling Sao achava seus filhos bons para qualquer mulher, e, depois de remoer as coisas consigo mesma durante uns momentos, acenou para a filha, que entrou na cozinha com ela. E a mãe disse:

— Você está lá no coração dos negócios e pode esticar os ouvidos e as mãos para ver quais são as possibilidades. Descubra se essa mulher já é casada e se não é — bem, um homem é um homem, e ela pode procurar muito longe e não encontrar um pedaço de homem como o meu filho!

— Ela é uma mulher de muito saber, — disse a filha, duvidosamente.

— De que vale o saber na cama? — respondeu Ling Sao. —*Quem quer leitura e escrita lá?

Diante disso a filha enrubesceu, pois, vivendo há muito tempo na cidade, tinha-se tornado mais delicada do que a mãe. Assim, não respondeu.

— Pelo menos eu posso falar com o pai de meus filhos, — disse.

Ling Sao curvou-se sobre ela, muito séria agora, e murmurou:

— Arranje isso para o seu irmão, menina, e juro que esquecerei tudo que tenho contra você e seu marido. Aconteça o que acontecer no futuro, eu direi que o seu dever para com os seus pais foi cumprido, se você conseguir isso.

— O que eu puder fazer, farei, — disse a filha, mas continuava duvidando.

Assim ficou a coisa. Ling Sao contou ao marido o que tinha feito, mas ele sacudiu a cabeça e estava cheio de melancolia.

— Vocês, mulheres, façam o que puderem, — disse ele. — Isto está fora do alcance de um homem. Quanto a você, minha velha, conheço a sua habilidade em juntar duas criaturas — juro que você seria capaz de casar uma águia com um corvo, mas estes dois são águia e tigre. Um voa no céu e o outro caminha sobre a terra.

— Deixe isso nas minhas mãos, — disse ela vigorosamente. Ele suspirou e entregou-lhe o caso.

Ora, Lao San não tinha caminhado tão diretamente quanto parecia. Bem sabia que todos, seu pai, sua mãe, irmão e irmãs, estavam olhando, assustados com o seu gênio. Assim, fez que ia direto para as montanhas. Mas, fora da vista deles, voltou-se para o Ocidente, dirigindo-se para o cemitério maometano. Quando chegou perto, arrastou-se por entre o mato novo e alto, silenciosamente, da maneira que os montanheses aprendem com os tigres da montanha. Afastando os tufos de verdura, espiou por entre eles. E ali viu a mulher que amara tão súbita e apaixonadamente. Ela estava de pé, junto à sepultura da mãe, a cabeça curvada, o casaco enrolado em torno do corpo, e ele apreciou-a ainda mais, porque não estava ajoelhada.

"Ela é muito alta," pensou ele, e gostou da sua altura. Gostou da beleza de águia da sua face, da cor de âmbar da sua beleza e das suas mãos longas apertando o casaco.

Lao San não era um homem simples como seu irmão mais velho. E mesmo o seu segundo irmão era mais simples do que ele. O sangue dos seus antepassados trouxera ao seu sangue alguma coisa que era muito velho. Uma vez, em um passado longínquo, houvera outro como ele, que tinha lutado contra um imperador e quase vencera. Assim, olhando essa mulher, ele verificava que não era apenas desejo o que sentia. Queria-a de muitas maneiras, para preencher os defeitos do seu próprio ser, e ficava satisfeito por sabê-la culta e diferente dele. Porque conhecia seu próprio valor, não temia deixá-la ser melhor do que ele em algumas coisas, pois sabia que, noutras coisas, ela era como ele, e sentia-a idêntica a si nos pontos mais profundos.

Assim, ficou observando-a avidamente, e ela, sem erguer a vista uma vez sequer, não o viu. Isso agradou-o também, pois era bastante moço para pensar. "Não quero que ela me veja novamente até que eu esteja o melhor possível. Vou arranjar roupas novas para vestir, por minha espada, cortar o cabelo e pôr-lhe óleo."

E ele ficou com os olhos e o espírito cheios dela, até que ela voltou-se, dirigindo-se com Wu Lien para casa de Ling Tan. E o jovem ficou contemplando-a, até não poder mais vê-la. Então as hastes de capim voltaram ao seu lugar e ele seguiu o seu caminho na direção das montanhas.

Ora, Lao Er e Jade não ficaram lá para ver tudo que acontecera porque, logo que Wu Lien saiu, Jade puxara o marido pela manga e o levava para o quarto secreto. Lá, ela voltou-lhe sua face cheia de triunfo.

— Você viu? — perguntou.

— Vi o quê? — inquiriu ele, sem saber o que ela queria dizer.

— Mas, essa é ela! — exclamou Jade.

— Ela quem? — voltou ele a indagar.

— Oh, seu tolo! — lamentou Jade. — Oh! seu pelota de barro debaixo dos meus pés! Porque o céu faz os melhores homens sob a forma de idiota? Ela é a deusa, a deusa do seu irmão!

O queixo de Lao Er caiu quando percebeu o que ela significava.

— Mas, ela está muito alta, — disse, — como irá olhar para um de nós? E, depois, o que será ela do inimigo?

Jade olhou-o séria.

— É mesmo! — disse. — Eu não tinha pensado nisso. Você não é tão tolo.

Sua mente de mulher pôs-se a correr sobre o assunto como um cão de faro.

— Mas duvido que ela se importe com o inimigo, — disse. — Nenhuma mulher pensa primeiro em quem governa ou está por cima, se tem do lado o homem que deseja.

— Ele não está ao seu lado, — disse Lao Er. — Está muito longe dela. E ele irá achá-la boa estando com o inimigo? Nisso os homens não são como as mulheres.

— Ora, você está errado, — disse ela. — Os homens acham a mulher de tão pouco valor e se acham tão fortes que pouco importa o que ela seja.

Ele riu.

— Teremos de brigar por causa de homens e mulheres? Mas Jade não riu.

— Não, mas aí está uma coisa, — disse ela obstinadamente.

— É uma coisa que não podemos decidir, só porque uma mulher estranha parece com uma deusa dum templo, — disse ele.

Assim, depois de uns instantes, eles subiram de novo, e ele auxiliou-a ternamente na escada, pois ela esperava o segundo filho dentro de breves dias. Quando subiram, Lao San já tinha ido embora e eles descobriram que, enquanto discutiam no subsolo, acontecera, lá em cima, o que eles afirmavam não ser possível.

— Mas, como juntar esses dois? — perguntou Jade.

Era uma pergunta a que ninguém podia responder.

E, quando voltou ao palácio do fantoche, Mayli dirigiu-se diretamente aos seus aposentos. Tirou o casaco cuidadosamente, lavou-se, escovou o cabelo, sentou-se, então, diante de uma mesinha e contemplou-se no espelho, longamente. A manhã tornara o seu coração audacioso estranhamente frágil. Não fora a visita à sepultura de sua mãe, pois sua mente estava cheia de coisas de que não podia recordar-se, mas das quais se recordava. Sua mãe morrera no seu nascimento e contudo, esta manhã, de pé na sua sepultura, entre a relva de verão, sentiu a recordação de uma bela face, enérgica, o bastante para dizer que não acompanharia o marido, mas tão doce que o tornava feliz permanecendo onde ela estava. Porque seu pai, durante toda sua infância, falara-lhe sobre a mãe, e ela conhecia o amor que houvera entre os dois. E, para ela, isso tornara o amor a melhor coisa que podia ser possuída no mundo, desde que fosse um amor como esse.

Sobre um coração amolecido imprimia-se, agora, o rosto de um jovem. Fosse o que fosse, ignorante ou não, ele era bravo, extraordinariamente belo e ela podia sentir que havia força nele. E essas três coisas não eram o suficiente? Antes, nunca as vira juntas num homem. E, contudo, como poderia ser possível, a ela, tornar-se parte daquela casa? A casa de Ling Tan era mais estranha para ela do que qualquer casa estrangeira. Em toda a sua vida não entrara numa casa como aquela e não poderia viver lá.

"Teríamos que ir embora", pensou ela. "Ele teria que abandonar todos e dedicar-se só a mim e eu abandonaria todos que conheço e dedicar-me-ia só a ele. Bem, não seríamos iguais, então? Construiríamos o nosso próprio mundo."

Mas, onde poderia ser feito o tal mundo? Ela ergueu-se e girou sem descanso pelo quarto como se estivesse sobre asas. Nos velhos tempos, que não mais voltariam, o que ela sonhava teria sido impossível. Não haveria um lugar em que duas pessoas como eles pudessem construir um mundo. Este velho mundo estava feito e conformado, firme, fixado, e eles teriam sido proscritos não pertencendo a ele. Mas, agora, o velho mundo tinha desaparecido, as velhas leis quebradas e os velhos costumes mortos. Os jovens podiam agir como entendessem, pois não havia mais tradições.

"Poderíamos ir para as terras livres," pensou, "para qualquer parte que quiséssemos. Porque a sua força não se juntaria à minha? O que eu sei ensinarei a ele, e o que ele souber me ensinará. Oh, como estou enfastiada dos homens cultos e delicados! Como eram fortes suas mãos! Ele foi ferido na batalha. Uma vitória!"

Ela se recordava de cada traço de sua fisionomia, da maneira orgulhosa do seu andar. E tudo que lhe causava desgosto era, apenas, a família de que ele saíra. Eram demasiado humildes para ele.

"Deve deixá-los", pensou ela. "Os homens como ele nascem em famílias baixas por acaso. Não pertencem a ninguém."

Assim meditava ela, e quando desceu para jantar com o fantoche, este achou-a silenciosa.

— Irritei-a? — perguntou ele.

Tivera uma manhã cheia de aborrecimentos porque seus senhores não o tinham poupado.

— Não fique zangada, — disse ele experimentando rir. — Eu preciso de um pouco de conforto. Disseram-me que tenho que pegar o chefe desses homens que ontem assassinaram a guarnição. Como poderei fazer isso?

— Como poderá você? — repetiu ela friamente. — E viu, dentro de seu coração, aquele rosto jovem. — Você não pode, — disse.

Assim, a seu modo, o Céu determina e dirige. Apesar de Ling Tan e sua esposa ficarem insones, apesar de Lao Er e Jade não perceberem um meio de trazer à Terra essa deusa, apesar de Wu Lien sacudir a cabeça ao que lhe dizia a esposa, afirmando que a coisa era impossível, que seu terceiro irmão devia ter bebido vinho demais e que o certo seria esquecer aquilo, contudo, Mayli sozinha, sem que ela mesma decidisse nada, movendo-se apenas à vontade do Céu, voltou à casa de Ling Tan.

Ela esperou durante dois dias e, então, soube que o que sentia agora não poderia ser posto de lado. A única maneira de curar-se, se pudesse ser curada, era entregar-se um pouco ao seu amor repentino. Não poderia chamar amor àquilo, pois era demasiado perspicaz para não ver sua loucura. Mas, pelo menos, iria à casa de Ling Tan e não inventaria pretexto. Perguntaria por Jade, dir-lhe-ia que conhecera Pansiao e veria o que sairia disso.

Então, naquele seu modo muito destemeroso, ela deixou a residência do fantoche, na tarde do segundo dia. Tão friamente como se não houvesse ruínas por toda parte e como se nada visse que pudesse atemorizar uma moça, alugou uma velha carruagem a cavalo — e havia poucas porque, hoje em dia, os cavalos eram comidos — e, dizendo ao cocheiro onde desejava ir, lá foi.

Ora, nesse dia Jade não trabalhava em coisa alguma, porque andava muito desajeitada para sentir-se à vontade. Estava volumosa com a criança e ficava imaginando como esta podia ser tão grande. Mas assim era. Estava sentada, sozinha, no pátio, com o filho de dois anos, quando ouviu uma batida forte na porta. Escutou e a batida se repetiu. Não era o barulho que os inimigos faziam batendo com armas. Devia abrir a porta? Nesse dia Ling Sao fora para os campos com Ling Tan, e Lao Er estava longe, no seu trabalho. O pai tinha-lhe pedido para ver se o irmão mais moço tinha chegado às montanhas em segurança, pois saíra de casa com tanta fúria. Assim Jade, estando sozinha com a criança, tornou a voz roufenha, velha, e exclamou:

— Quem está aí?

— Eu! — gritou Mayli por cima da porta.

E era muito dela esquecer de dizer o nome, pensando que qualquer um reconheceria aquele "eu".

Mas Jade era viva e o reconheceu. Assim, levantou-se e abriu a porta.

— Oh! — disse ela, apressando-se em ser mais cortês. Eu sou muito grosseira mas eu sou... eu não a esperava.

— Por que esperaria? — tornou Mayli.

Ela entrou. Jade fechou a porta, trancou-a e Mayli sentou-se. Ela parecia tão calma e à vontade que ninguém poderia saber como o seu coração se contorcia e batia dentro do peito. E Jade não sabia. Contudo, mais tarde, ela disse ao marido:

— Eu vi que este não era um dia comum. Senti que estava sendo guiada por uma estrada que conduzia a algum destino.

Mas, a outros, pareciam apenas duas mulheres conversando. Jade serviu chá e levantou o filhinho assustadiço. Mayli louvou-o, bebendo o chá, e disse, depois de conversar um pouco:

— Eu não pude falar tão livremente quanto desejava quando estive aqui, há dois dias passados. Eu trazia, em minha mente, uma obrigação para com minha mãe. Mas, hoje, voltei para dizer-lhe que conheço Pansiao, a irmã do seu marido, e ensinei-a durante algum tempo.

Aí estavam novidades que Jade dificilmente podia acreditar. Mas Mayli continuou, contando-lhe como tinha sido, e Jade, ouvindo-a, pensava que tudo tinha acontecido como que naturalmente, mas quem poderia dizer que o Céu não concebera tudo?

— De maneira que, quando cheguei aqui, — disse Mayli, olhando pelo pátio, — pareceu-me conhecer o que via. Pansiao tinha me contado tudo. A pequena gostava muito de mim — como saberei por quê? Mas ela conversava comigo e eu me alegrava ouvindo-a. Permaneci muito tempo no estrangeiro e ela falava-me de minha terra.

— Ela falou-lhe sobre nós todos? — perguntou Jade.

Uma espécie de ardil entrara em sua mente, e ela esgueirou-se na direção de um certo fato como o gato arrasta-se para o rato.

— Ela falou-me de todos, um por um, — disse Mayli — de modo que quando os vi, já sabia seus nomes.

Jade fingiu estar muito preocupada com o menino, levantou-o, colocou-o no colo, alisou seu cabelo e pareceu ver-lhe uma partícula no canto do olho.

— Ela mostrou-lhe uma carta que eu escrevi?

Ao perguntar isto olhou firme nos olhos de Mayli. E Mayli não voltou a cabeça.

— Eu vi a carta, — disse ela muito claramente. E não voltou a cabeça ainda.

A ausência de medo nela fez com que Jade perdesse o seu. Na verdade, a não ser por onde e como tinham passado suas vidas, essas duas mulheres não eram diferentes.

— Ele amou-a assim que a viu, — disse Jade.

— Há homens assim, — assentiu Mayli.

E tentou sorrir, espantando-se como estavam endurecidos os seus lábios.

— Ele não é igual a qualquer outro homem. — disse Jade. Desceu a criança.

— Eu devo falar quando o Céu me ordena que fale. Que devo dizer a ele?

Agora, ambas eram apanhadas juntas, como se uma onda as arrojasse até sua crista. Mayli olhava nos grandes olhos de Jade, pensando o quanto eram bonitos e Jade fitava os olhos negros de Mayli, pensando o quanto eram límpidos e corajosos. Cada uma admirava o que a outra era como as mulheres inferiores não podem admirar.

— Como você é alta, — disse Jade. — É mais alta do que eu.

— Sou alta demais, — disse-lhe Mayli sorrindo.

— Ele gosta de mulheres altas, — disse Jade.

E esticou a mão, tocando a mão de Mayli com a ponta dos dedos.

— Que direi a ele? — perguntou outra vez, com a voz muito macia.

Sob esse toque suave e forte, Mayli moveu-se, voltando a cabeça para o lado.

Então, ela mergulhou a mão no seio e tirou um pedaço de seda brilhante, dobrado. Sacudiu-o e Jade viu a bandeira do povo livre — azul e vermelho, com um sol branco e puro sobre tudo. Ninguém podia ter essa bandeira aqui, temendo a morte, se o inimigo a descobrisse, mas alguns a tinham escondida.

— Oh! — sussurrou Jade — a bandeira livre! Você é tão audaciosa quanto ele!

Mas Mayli colocou-a nas mãos de Jade.

— Diga-lhe que eu vou para as terras livres, — disse a Jade. — Diga-lhe que eu vou para Kunming.

 

Depois que Mayli partiu, Jade ficou sentada durante muito tempo, indolentemente. Observava a criança a seus pés, percebia a outra mexendo-se no seu corpo, e ainda que contente por ambas, sabia que, se pensava, era com inveja da liberdade daquela mulher alta. Em seu peito estava a bandeira dobrada.

"Se meu marido e eu tivéssemos ficado nas terras livres, — pensou, — não poderíamos, juntos, ter feito grandes coisas? Mas ele preferiu voltar para esta servidão."

E pensava como a vida era presa dentro destes muros e quão pouco tempo tinha para outra coisa que não fosse o trabalho de casa e o cuidar do filho. E não tinha mais tempo para ler livros, nem dinheiro para comprar um livro novo, embora não houvesse livros novos. Os livros que existiam para serem comprados, eram mentiras escritas pelo inimigo.

Podia ser visto, em toda parte, que o povo, ensinado pelos seus ancestrais a reverenciar qualquer papel em que houvesse letras escritas, agora queimava esses papéis, por causa das mentiras inimigas, e a sua reverência ao saber quase desaparecera.

"Tudo que faço aqui é ficar sentada produzindo filhos," pensou meio tristemente e, em seu peito, a bandeira livre parecia queimar.

Quando os outros chegaram em casa, ao meio-dia, encontraram a refeição pronta e quente. Jade tinha-a preparado bem, com as poucas coisas que havia hoje em dia, com pouco sal e menos azeite. Embora ela tivesse grandes novidades para contar, Lao Er notou que uma névoa escondia a todos o coração de Jade, e decidiu esperar até que pudesse ficar sozinho com ela, para perguntar-lhe a razão daquela névoa.

Enquanto isso, aqui estavam as novidades e ela as narrou com prazer. Nesse ínterim, eles comiam, falavam entre si, virando-se e revirando-se, para fazerem toda a luz sobre o presente e ó futuro. E olharam a bandeira de Jade, regozijando-se com ela, mas não ousavam guardá-la em casa.

— Leve-a para o quarto secreto, — disse Ling Tan ao segundo filho. — Se esse quarto for, em qualquer tempo, descoberto, nós morreremos de qualquer forma.

Assim Lao Er pegou a bandeira e escondeu-a. Quando voltou Ling Sao tivera tempo para pensar numa coisa de que não gostava.

— Ela disse que meu filho tinha que segui-la? — perguntou Ling Sao um tanto aborrecida. — Mas, o que é isso para uma nora? Nunca ouvi de um homem que fosse encontrar uma mulher. A mulher deve ir a ele.

— Fique certa de que essa mulher nunca será sua nora, — disse Ling Tan.

Tirou o prato da cara e ficou mastigando enquanto falava. Estava com fome e, ainda que houvesse dias, nestes tempos, em que teria vendido seu polegar direito por um pedaço de boa carne, tal como costumava comprar quando ia à cidade vender seus cereais e legumes, esta comida ainda era melhor do que qualquer outra, porque Jade era uma cozinheira hábil.

— Como pode qualquer mulher ser esposa do meu filho e não ser minha nora? — perguntou Ling Sao, disposta a opor-se a ele.

— Você verá, minha velha, se ele casar com ela, — disse Ling Tan.

Arreganhou os dentes, pôs o prato diante do rosto novamente e tragou as pinhas e os' trevos selvagens que compunham o jantar.

— Então ela não é uma mulher, — disse Ling Sao friamente — e duvido que tenhamos um neto dela. Eu sempre disse: deixe ' uma mulher rodar sobre pés tão grandes como os dela, que esteve em escolas por toda parte, que isso matará nela a mulher.

— Ela é tão mulher que fez nosso filho jurar que ou teria ela ou nenhuma outra, — disse Ling Tan. — De qualquer forma, ela deve ter alguma .coisa de feminino.

— Quando foi que algum rapaz soube o que queria? — perguntou Ling Sao aborrecidamente. — Desejaria que ela nunca tivesse entrado em nossa porta. Algum demônio mandou-a e fez com que nosso filho ficasse aqui, quando ele não devia estar aqui uma vez sequer, e nada de bom sairá daí.

— Deixe disso, — disse Ling Tan. — Você só está zangada porque não tem as mulheres de todos os filhos num lugar em que possa apertá-las com as garras. Eu lhe digo — há alguns que podem lutar nas terras livres e há outros, como nós, que podemos lutar aqui, na nossa própria terra, e posso ver muito bem que nosso filho mais moço é para a terra livre. Que ele vá, para onde queira, desde que combata o inimigo.

Isto era um punhado de palavras para Ling Tan dizer e, sempre que ele falava seriamente, ninguém lhe respondia nesta casa. Até mesmo sua mulher se recordava do seu dever quando ele tomava este lugar sobre ela, embora sempre lhe fosse difícil manter-se silenciosa.

— Quanto a você, meu filho, — disse Ling Tan a Lao Er, — leve a mensagem ao seu irmão mais moço, e diga-lhe que não tenho meios de seguir essa mulher. Não posso deixar a minha terra, seja por amor, ou por que seja. Mas os pés dele são livres, não estão amarrados a parte alguma. Que faça o que quiser. Apenas que não parta sem nos mandar dizer, e, se for, não demore muitos anos e não fique sem nos dizer nada.

Lao Er curvou a cabeça e assim a refeição terminou. Queria demorar até que Jade tivesse lavado os pratos, para segui-la ao quarto, e lá perguntar-lhe por que parecia triste, mas bem sabia que não poderia fazer isso, à luz do dia, sem que a mãe lhe perguntasse porquê. Assim, ele só lhe pôde sorrir secretamente, perguntando-lhe se se sentia bem e se a criança estava começando a vir. Quando ela sacudiu a cabeça a isto, ele disse:

— Não irei ao meu irmão até amanhã. Hoje vou trabalhar com papai, até terminar o campo de trigo.

Ela assentiu, tentando sorrir, e ele a deixou. Durante toda essa tarde Jade permaneceu silenciosa e Ling Sao, que ficou fiando a fibra de algodão no seu carretel, deixou-a estar silenciosa, supondo que Jade estava sentindo o peso da criança dentro dela. O algodão era muito difícil de chegar, agora, e Ling Sao economizava tudo o que podia produzir, e não vendia nenhum, porque precisava dele para as suas próprias roupas de inverno e, uma vez que outra criança estava para vir, haveria necessidade de mais roupas de inverno. Ela sentava-se revirando o carretel, molhando o polegar e o indicador na boca, para tornar a fibra lisa e firme, e, de vez em quando, dirigia-se a Jade, dizendo-lhe como ela estaria quando desse à luz. E Jade ouvia, sem falar quase nada.

No campo, Ling Tan e seu segundo filho trabalhavam juntos. Os tempos estavam melhores do que tinham sido para os lavradores. Contudo, Ling Tan conservava os olhos na estrada, e, sempre que via o inimigo, dizia ao filho. Lao Er apressava-se para dentro de casa e levava a mulher e o filho para o quarto secreto, até que fosse seguro subir novamente. Pois quem podia acreditar que o inimigo fizesse outra coisa senão mal?

A crueldade do jugo inimigo não diminuía. Do que Ling Tan arrancava à terra, ficava com bem menos de um terço e suas taxas eram dolorosas. Ele só podia amaldiçoar, pois bem sabia que essas taxas não aproveitavam aos inimigos altos, mas aos inimigos do fundo, os mesquinhos. Todos eles sabiam, de boca a ouvidos, que nunca governadores tão rapaces tinham se imposto a um povo. Não havia nada que esse inimigo não fizesse por dinheiro, e se alguém desejasse comprar, vender ou contrabandear mercadorias, poderia fazê-lo pondo, primeiramente, bastante dinheiro nas mãos inimigas. Os próprios canhões que os da montanha usavam, hoje em dia, que vinham do estrangeiro, eram contrabandeados por pequenos inimigos que pensavam somente no seu próprio lucro, e eram traidores até mesmo para com os da sua espécie. Os canhões podiam ser contrabandeados para o exército das terras livres, se dinheiro fosse dado às muitas mãos estendidas.

Todas estas coisas Ling Tan sabia, como todos sabiam, e eram muito boas notícias. Ainda que os homens pudessem ranger os dentes, no momento, tal podridão do inimigo, em toda parte, significava que, algum dia, ele estaria bastante apodrecido para ser derrubado e arrastado ao mar.

— Nós esperamos o dia, — dizia Ling Tan ao filho. — Guardaremos a terra até esse dia.

— Não é nada, — disse Jade.

Voltou a cabeça para longe do marido e encheu-lhe uma xícara de água quente, antes de ele dormir. Agora, não havendo chá em casa, a maior parte das vezes eles bebiam água quente.

Mas Lao Er segurou-lhe os pulsos, tirando-lhe o bule.

— Há alguma coisa, — disse. — Pensa que você pode respirar diferentemente sem que eu saiba?

— Você não deve me vigiar assim, — disse Jade, e tentou livrar-se, mas não pôde.

— Eu não a vigio, — voltou ele. — Eu sei, sem vigiá-la. Quando você muda eu sei, de dentro de mim mesmo.

Adulando-a assim, enquanto ela mordia o lábio inferior, e, primeiro rindo, depois tornando a repetir que não era nada, depois levando a manga aos olhos para enxugar as lágrimas, mas irritada porque, agora que esperava a criança, chorava muito facilmente, ela rendeu-se e disse:

— Isso só veio a mim hoje — que eu não sou melhor do que nenhuma mulher do campo, e, se ficássemos na terra livre, não teríamos feito alguma coisa de grande, também? Eu podia ser mais útil — você e eu juntos.

— Isso é porque você viu aquela mulher, — disse ele.

— Há algum pecado nela ou em mim, porque faz-se desejar querer alguma coisa maior do que sentar-me atrás destes muros e dar à luz crianças? — perguntou Jade com calor, afastando-se dele.

— E é tão pouco para você dar à luz meus filhos? — perguntou ele.

Mas, agora, ela não respondia, e por um momento ele não falou também, primeiro porque estava um tanto ferido por ela, e segundo porque não tinha palavras prontas. Primeiro tinha que escolher os sentimentos e depois traduzi-los em palavras. O sentimento estava lá, forte e rude, e Lao Er sabia que ela estava errada, mas como poderia dizer-lhe isso e fazê-la sentir como dissesse? Jade estava misturada com coisas grandes e insignificantes que ele devia assegurar-se, agora, de escolher a parte certa. E lutava contra sua própria simplicidade.

— Se eu fosse um homem culto! — murmurou.

Não poderia ter falado melhor, pois isso tocou-a e ela ficou de tal forma, que não ouviria falar em falta que não fosse sua.

— Você é bem bom, — disse, mais gentil.

Ele percebeu que tinha andado bem até ali e prosseguiu.

— Para mim, fazemos a coisa mais valente, — disse, falando vagarosamente, procurando a verdade. — Como é fácil ir para as terras livres! Como é seguro lá! É fácil juntar armas e homens e cair sobre uma guarnição, aqui e ali. É o meio mais fácil de arriscar a vida. E todos nós arriscamos a vida estes dias, se odiamos o inimigo. E, então, há glória — fazer como meu irmão mais moço faz é ganhar a glória muito facilmente. Mas quem nos dá glória? Nós só permanecemos aqui, tentando viver como sempre vivemos. Esta é a nossa maneira de fazer guerra — permanecer, e fazer com que o sofrimento não seja causa de retirada. Nisto, não há glória.

Ele parou, considerando.

— Pode ser que, algum dia, dêem-nos glória por isto, também, — disse. — Mas eu não sei. Que importa a glória, se retivermos a terra?

— Contudo, até mesmo a terra pertence ao inimigo, se ele governa aqui, — ajuntou ela.

— A terra pertence a quem a cultiva, — disse ele. — Se o inimigo nos pusesse fora da terra e mandasse os da sua própria espécie tratá-la, ará-la e segá-la, então... mas ainda haveríamos de lutar.'

Ela não respondeu a isto e ele continuou:

— Você, a seu modo, quando dá à luz uma criança, junta mais um para reter a terra. E quem pode fazer isso, senão mulheres como você? Nós, que somos homens, podemos fazer crescer a alimentação, mas podemos fazer outros homens para tomar nossos lugares? É você quem faz isso, e o que você faz é o que deve ser feito, para que o nosso povo viva. Se as mulheres não fizerem filhos, poderemos viver?

"Ela sentou-se, muito parada, ouvindo essas palavras, enquanto ele as deixava sair, uma a uma, tão dolorosamente como se as estivesse forjando. ,

— Quando você pari um filho, — disse ele — você retém a terra através dele.

Isso era tudo. Ele não podia dizer mais e estava tão cansado como se tivesse travado uma batalha. Tinha travado uma batalha, e vencera. Ela sabia que ele tinha razão.

Ora, em tudo isto, quem dirigia um pensamento para o filho mais velho? Ele permanecia nas montanhas, cumprindo o seu dever simples, e armava as suas armadilhas aqui e ali, pegava um ou dois inimigos umas poucas vezes por mês, mas não tantos como noutros tempos. Pois o inimigo tinha se tornado avisado quanto às arapucas e ele tinha que torturar seus miolos para arquitetar novos meios de fazer armadilhas. A seu próprio modo ele era bastante corajoso, pois se aproximava da cidade, cada vez mais, e fazia suas armadilhas tão próximas dela que ninguém, a não ser os inimigos, era apanhado. Mas pela manhã, se espiando na cova encontrava, praguejando no fundo dela, um lavrador honesto, um mendigo ou um bufarinheiro, ele sempre os deixava ir livres e era perdoado quando sabiam o fim da armadilha.

Ele continuava o seu trabalho, mas, nestes dias, levava um coração raivoso e não dizia a ninguém porquê. A verdade é que ele sentia-se desprezado, abandonado e esquecido, com todos esses negócios do irmão mais moço. Achava que seu irmão mais moço não devia ter uma esposa antes dele e que seus pais haviam esquecido do dever para com ele.

Quando o segundo irmão veio contar ao irmão mais moço o que a mulher havia dito, este fez um grande estardalhaço a fim de aprontar-se para ir à terra livre. Dentre seus homens iriam todos os que quisessem ir com ele, e cada um, se não possuía família muito pesada, estava desejoso disso. A ele, também, seu irmão chamara e dissera, muito senhoril:

— Meu irmão, quer ir comigo para a terra livre? Se quer, pode dizer aos meus pais que eu disse que você fosse. Providenciarei para que nada de mal lhe aconteça.

Ora, de maneira alguma Lao Ta apreciava esse modo de falar. Lao San não o chamara irmão mais velho, como devia,_ e como podia ir sob um mais moço do que ele? Não tinha nada a ver com essa mulher nem com o que fazia seu irmão.

— Desde que o melhor que faço são minhas armadilhas, — disse, — que farei de bom, lá onde não há inimigos?

O irmão mais moço franziu o sobrolho.

— Você quer dizer que eu vou porque não há inimigo? — perguntou com raiva.

Lao Ta teve um sorriso seco.

— Ouvi dizer que você vai porque há uma mulher lá, — disse. — Se é ou não uma inimiga, não posso dizer.

— Se fosse, iria para a terra livre? — perguntou-lhe Lao San, irado.

Ora Lao Er tinha-lhe falado do sinal da bandeira, embora Ling Tan não permitisse que ele a trouxesse, pois o inimigo poderia descobri-la, se fosse detido ocasionalmente, como podia acontecer a qualquer um. Mas, apenas ouvir falar da bandeira era, para Lao San, uma prova daquela a quem amava.

— Como saberei alguma coisa sobre ela? — respondeu Lao Ta. — Sou um homem estúpido.

Assim negou-se ao irmão e foi embora, de volta ao seu trabalho, antes que Lao San pudesse falar novamente.

Mas a raiva continuou nele e não foi à casa de seu pai durante muitas semanas. E depois ficou com mais raiva porque ninguém mandava perguntar porque ele não vinha.

"Quem se importa se vivo ou morro?" pensava. Parecia-lhe que a boa parte da sua vida terminara e pensava nos filhinhos mortos e em Orquídea, que esposa fora ela, sempre pronta, quente, bondosa e como ele estava solitário, agora, sem ter mais essa mulher.

Assim ele tornou-se saudoso, pronto para uma troca, mas, onde encontraria uma mulher para tomar o lugar de Orquídea?

"Certamente que não pedirei auxílio a meu pai e a minha mãe", pensou. "Se eles não se importam comigo o suficiente para cumprirem o seu dever, devo implorar e envergonhar-me?"

Ele sabia que estava pronto para começar uma vida para si mesmo e precisava de mulher e filhos, novamente. E procurava sem saber que procurava. Mas, onde haveria uma mulher para ele, no campo? Não havia mulheres a não ser velhas, doentes, ou aquelas que haviam sido violadas pelo inimigo. E ele não tomaria uma cortesã.

Contudo, um dia, aconteceu-lhe encontrar uma mulher. Era uma mulher como, antes, ele nem teria pensado servir para ele, mas quando um homem se torna tão decidido quanto ele estava agora, qualquer mulher parece boa, desde que seja limpa e inteira. E ele encontrou uma assim. Acontecera-lhe armar uma arapuca numa estrada nova, onde ainda não havia armado nenhuma. Cavara-a profundamente e cobrira-a com tábuas bastante fortes para suportar pedras, e, contudo, tão habilmente dispostas, que um peso menor podia desarmá-las. Fez isso porque ouvira dizer que o inimigo enviaria coletores de taxas a esta região, dentro de um ou dois dias. Ao terminar a armadilha, como sempre fazia, avisou aos que moravam nas proximidades da estrada, para que não passassem por ali, até que o inimigo chegasse, o que lhe agradeceram.

Quando, no dia seguinte, abriu a armadilha para ver o que caíra dentro, encontrou uma mulher soluçante. Ela ficara ali toda a noite, e, como ninguém passava, ninguém ouvira seus gritos de socorro. Ele olhou para baixo, à luz pálida da madrugada, e viu que não era inimigo.

— Vou erguê-la, — e saltou para o buraco a fim de ajudá-la a subir. Então viu que, apesar de não ser mais uma mulher jovem, o seu rosto zangado era macio, tinha uma boca infantil e seus olhos estavam vermelhos de chorar.

— Eu estou tão assustada que quase não posso respirar, — lamentou-se.

— Foi um acaso que a pôs nesse caminho, — disse ele. — Como eu poderia saber?

Ajudava, enquanto falava, e, empurrando e puxando, pô-la fora do buraco, sobre seus pés. Ela agradeceu-lhe, endireitando as roupas. E disse então, enxugando o rosto com a ponta do casaco de algodão azul:

— Pode me dizer onde estou? Sou uma estranha, e meu marido foi morto pelo inimigo. Disse-me que, se morresse, eu devia procurar-lhe o pai, e a mãe na sua vila, para ver se podem cuidar de mim.

Então ela disse o nome de uma vila na qual Lao Ta nunca ouvira falar.

— Penso que deve estar muito enganada, — disse. — Eu nunca soube de tal vila.

A isso ela começou a chorar novamente, dizendo:

— Como posso continuar? Gastei todo o meu dinheiro e, que posso fazer agora? Ouvi dizer que o inimigo é muito mau para as mulheres, e que será de mim, se cair nas suas mãos? — Então olhou dolorosamente para ele e disse: — Você é um homem bom e honesto. Eu vejo isso no seu rosto.

E ele pensou consigo mesmo: "Todas as mulheres não ..sãs iguais? Certamente esta mulher parece delicada e bondosa. Ela é viúva, mas isso é culpa dela?"

E disse:

— Tem alguma coisa para comer?

Quando ela disse que não tinha nada, ele a levou à hospedaria mais próxima, só parando para recompor sua armadilha, e, lá, comprou comida para ela. Enquanto ela comia, sentou-se, pensativo. Não se sentou com ela porque isso seria uma falta de cortesia, mas observava-a pelo canto dos olhos. È pensava: "Não foi o Céu que ma mandou? Ela caiu na minha armadilha."

Por essa razão, quando ela acabou de comer, disse-lhe que o seguisse. Então, com muito alarde de sua coragem — e não teria feito se ela não tivesse tanta ansiedade em agradecer-lhe a gentileza — disse:

— A casa do meu pai não é muito longe daqui, e, com um dia de caminhada, chegaremos lá. Minha mãe é uma boa mulher. Assim, deixe que eu a leve lá.

Isso ele disse para verificar se ela queria; e porque não quereria ela que não tinha um teto, nem um homem para alimentá-la? Ela disse com grande gratidão:

— Como posso recusar aquele em cujas mãos o Céu me lançou?

Assim, sem mais uma palavra, ele marchou, à frente dela, para a casa do pai. E ela seguiu atrás dele, carregando a sua trouxa de objetos amarrados num grosseiro pano azul.

Por muitas milhas ele não disse nada e ela não falava se ele não falava. Mas Lao Ta ouvia os passos dela, seguindo-o, na poeira. E, enquanto prosseguia, pensava: "Se for bom, falarei outra vez, antes de chegar em casa de minha mãe. Devo apresentar a razão de trazer uma mulher para casa."

Assim, quando chegaram à vista da vila, ele reuniu toda a sua coragem, voltou-se, ainda que a sua boca ficasse seca, e disse para a mulher como se falasse para si mesmo:

— Eu perdi minha esposa e dois filhos. Você perdeu o marido. Não somos duas partes? Se nos juntarmos não formaremos um inteiro?

A esse tempo a mulher estava tão esfalfada e tão ansiosa por encontrar um lar para si mesma, que dificilmente teria recusado qualquer homem e disse:

— Se me quiser!

Lao Ta assentiu e, sem falar mais, continuou e chegaram à casa do pai.

Ora, dificilmente poderia chegar num momento pior do que esse em que aconteceu chegar. Porque, nessa manhã, o filho de Jade começou a vir e suas dores tinham durado o dia inteiro. Mas a criança, por qualquer razão, agarrava-se ao ventre e não queria sair. Ling Sao estava ao lado dela, Lao Er ficara frenético, e todas as mulheres da vila haviam se reunido ali, para dizer o que fariam. Tudo tinha sido feito, a criança ainda não nascia, e a coragem de Jade começou a enfraquecer.

— Essa criança é muito grande, — sussurrou ela.

E em seu próprio coração começou a duvidar se iria ou não trazê-la à luz.

Assim, neste momento, quando Ling Sao viu o filho mais velho chegar com uma mulher estranha, não teve tempo para o que ele pretendia dizer. Seu gênio estava o pior possível com o que passara e com as más perspectivas seguintes. Mas o filhe mais velho, sendo demasiado simples para pensar noutra coisa que não ele próprio, falou abruptamente, assim que viu a mãe:

— Mãe, esta mulher é a sua nova nora.

— Não me fale em noras agora, — gritou ela. — Com elas não tenho comido nada que não seja amargo. Aí está Jade que não pode ter seu filho, e o que faremos? Não há outra coisa que não seja amargura nos filhos, e nos filhos dos filhos. Nunca terei paz.

Ora, esta mulher tinha vivido o bastante para saber o que era melhor para si mesma e, no momento em que chegara à vila, gostara dela. Viu que essa era uma boa fazendola, uma bela casa, e na sua idade, poderia procurar coisa melhor? A sorte a colocara na armadilha e devia tirar o melhor partido disso, agradecendo aos tempos que lhe davam um homem forte como este, ainda que pelo menos dez anos mais moço do que ela. Bem, então devia tentar o máximo por ele. Assim, cansada como estava, largou a trouxa, alisou o cabelo, e disse, com voz macia e agradável:

— Eu sou muito audaciosa e reconheço o meu pouco valor mas, como já tenho assistido a muitas mulheres, pode ser que seja útil aqui. Também, por que o Céu me mandou a uma casa que eu nunca vi antes? O Céu não me pôs na estrada errada sem alguma intenção, pois que estou a milhas de onde julgava estar. E por que caí na armadilha do seu filho e não pude sair antes de ele vir me salvar?

— Venha comigo, — gritou Ling Sao, não compreendendo daquilo tudo senão o que precisava.

Pegou a mulher pelo pulso, arrastou-a até à cabeceira de Jade e disse a esta:

— Aqui está uma enviada do Céu para ajudar você, menina. Deixe-nos criar ânimo.

A mulher arregaçou as mangas, sorriu para Jade, levantou-lhe as roupas e começou a fazer-lhe massagens no ventre e nas costas. Se uma cara nova restituiu a coragem a Jade ou se as massagens aliviaram-na por um momento, a verdade é que ela se sentiu melhor, recobrou ânimo e tentou outra vez. E aquela mulher tinha grande paciência, animava Jade com palavras, continuando no seu trabalho. E todos esperavam, para ver o que aconteceria.

— A criança mexeu-se um pouco, — Jade arfou por fim.

E caiu em nova agonia. A isto a mulher enfiou a mão e o braço dentro do corpo de Jade e exclamou:

— Eu sinto a cabeça de um menino!

Todos tomaram nova coragem e Ling Sao disse a Jade que devia prosseguir, uma vez que era um menino. A mulher puxava gentilmente com a mão, Jade empurrava, e o menino, de má vontade, não teve outra coisa a fazer senão render-se, embora dificilmente. Assim, aproximadamente duas horas depois, ele nascia. Então Ling Sao o pegou.

Mas a mulher olhou para Jade e exclamou:

— Há outra criança.

E então, começou a trabalhar duro outra vez, e em poucos momentos outra criança nascia, sobre um grande borbotão do sangue de Jade.

— Oh! misericórdia do Céu! — exclamou Ling Sao, estendendo o braço para o segundo menino.

E esses pimpolhos choravam tão fortemente como se tivessem nascido há uma semana.

Ora, quem poderia duvidar de que Deus enviara essa mulher?

— Você deve comer, descansar e acalmar-se. Esteja certa de que agradecer-lhe-ei como puder, — disse Ling Sao.

Entregou as crianças às mulheres que esperavam, com tanto orgulho como se ela própria tivesse feito aquilo tudo, e entrou na cozinha, a fim de aprontar para Jade o açúcar quente derretido em água fervendo. Isso renovaria suas forças. Chamou o segundo filho para que o levasse e dissesse a Jade como se portara bem.

Mas, enquanto fazia isso, pensava secretamente: "Essa mulher é muito velha para meu filho, porém, como posso recusá-la agora? Mas como será, para mim, ter uma nora tão velha?"

E quando Lao Er saiu com a bebida de açúcar, ela chamou o marido, para conversar com ele e saber como deveria tratar essa mulher — como estranha ou como nora. Ora, Lao Ta já havia contado ao pai o que ele queria e, assim, Ling Tan estava pronto.

— O Céu nos prega cada peça, nestes dias, — disse Ling Sao, alimentando o fogo enquanto falava, esquentando a comida para a mulher. — Juro que jamais poderia pensar que mulheres como esta iriam surgir do ar, para os meus filhos. Estes não são tempos normais.

— Poderemos recusar nosso filho mais velho, agora? — perguntou ele.

Ela percebeu que ele estava querendo e só ergueu uma barreira.

— Se ela for muito velha para a gravidez, ele não pode ficar com ela. Qual é a utilidade de uma mulher numa casa, se não pode ter filhos.

— Ela foi útil hoje, — respondeu ele.

— Mas hoje não é todo dia, — disse ela. — Na vida de algumas pessoas nunca há um dia destes.

E ela arranjou seu expediente. Quando levou comida à mulher, perguntou sua idade com toda certeza, como uma pessoa pergunta a um estranho. A mulher disse, meio triste:

— Bem sei que estou muito velha. Tenho trinta e seis anos.

E Ling Sao pensou para si mesma, embora apreciasse a honestidade da mulher, que, na verdade, era muito velha. Mas, se fosse fértil, ainda poderia ter três ou quatro filhos. Assim, lançou outra pergunta cortês:

— Tem filhos?

A mulher começou a chorar dizendo:

— Eu tive filhos, porque sempre gerei facilmente, mas perdi-os todos — cinco juntos, na batalha dos aviões. Só eu e meu marido ficamos vivos, e, depois, ele perdeu-se também, num; batalha de soldados, porque foi levado para o exército. Ele era um remendão e seu negócio levava-o para as ruas. Não podia ficar em casa, escondido, como certos homens podem. Quando veio ordem dos que estão acima de nós para que, da nossa comarca, mil homens fossem enviados para fazer parte do exercito da terra livre, ele foi facilmente apanhado, pois era forte e tinha as pernas robustas pelas longas caminhadas que fazia com sua carga. Ele não veio para casa durante muitos dias e eu temi que tivesse sido levado. Enviou-me um recado dizendo onde estava e eu fui para junto dele. Mas nunca cheguei a vê-lo porque havia muitos mil soldados lá e antes que pudesse encontrá-lo ouvi dizer que tinha morrido.

— Que amargura! — murmurou Ling Sao.

E, nesse momento de piedade, rendeu-se ao filho mais velho e aceitou o que o Céu lhe enviara.

 

Assim, a casa de Ling Tan estava cheia novamente e, apesar da opressão inimiga não diminuir, sua vida continuava. Tanto quanto podia ver, não havia esperança de melhora. Suportava, como todos os outros, os mais cruéis impostos, a mais injusta voracidade e, em cada primavera, como podia depreender, haveria a batalha do ópio a ser travada contra o inimigo. E nesta batalha, agora, o inimigo era o vencedor, ópio, nesses dias, era vendido na cidade a quase um dólar de prata a grama, e um dólar por dia era suficiente para um homem, se ele não comprasse comida. E mais e mais eram os que preferiam ,o ópio à alimentação. Candeeiros e cachimbos de ópio eram vendidos abertamente pelas ruas, coisa jamais ouvida desde tempos remotos. O inimigo lançava uma taxa sobre cada candeeiro e cada cachimbo e prosperava sobre a fraqueza dos desesperados. Mas entre os inimigos o ópio era proibido. E havia poucas lojas de tecidos e sedas, porque confiscavam todas essas mercadorias. Todas as fábricas de seda estavam nas suas mãos e a farinha pertencia a eles, assim como o peixe, o arroz e o cimento.

Vendo como o povo era roubado e como o inimigo levava para seu próprio país todas as mercadorias das casas e das lojas, e o ferro de toda espécie, até mesmo pregos, fechaduras, garfos, facas, enxadas e espadas, qualquer coisa de metal que não estivesse escondida, Ling Tan muitas vezes pensava amargamente: "A terra é uma coisa que eles não podem levar para esse seu maldito país." E, como se a própria terra se revoltasse, as colheitas reduziam-se à metade do que haviam sido.

E, em outra ocasião ele disse:

— Esses inimigos não declararam guerra, mas fizeram guerra contra nós. Agora, eles declaram paz mas não podem fazê-la.

E os odiava mais porque, em toda sua vida até então, tinha sido um homem livre e orgulhoso e, agora, tinha que se sujeitar ao silêncio diante do inimigo. E diante do menor, do mais fraco e do pior desses pernas-de-barril ele tinha que ouvir e ficar calado. E isto ele fazia apenas porque ainda lhe restava a terra e permanecia fiel a ela.

Mas havia tempos em que a sua garganta apertava, não podia comer e nada o deixava melhorar — nem os carinhos de sua esposa, nem a vista dos netos, nem nada do que tinha.

— Se eu encontrar esses inimigos sobre a minha terra, uma vez mais, será demais — dizia à mulher.

E ela não respondia, pois ele não podia ser consolado. Não havia consolo.

— Se eu tivesse tanto quanto uma semente de esperança, — repetia ele, — se eu visse um fim, embora muito distante, se um dia pudéssemos nos erguer e lançar o inimigo para o mar! Mas tudo que podemos fazer é tolerar. E a vitória poderá ser conquistada somente com tolerância?

E novamente Ling Sao não podia responder coisa alguma. Estas eram as ocasiões que ela temia, pois quando Ling Tan estava abatido, a casa toda escurecia com a sua melancolia, e até mesmo os filhos nada podiam fazer contra isso.

Houve uma ocasião dessas, no fim do verão deste ano. Começou no dia de aniversário de Ling Tan e foi o mais triste que ele tivera até então. Nos velhos tempos o aniversário de Ling Tan era um feriado para toda a vila: ele convidava seus amigos e dava uma grande festa. Ano após ano ele esperava por seu sexagésimo aniversário, pois o sexagésimo é o melhor aniversário de um homem que é bom e tem filhos. Se os tempos estivessem normais, os filhos ter-se-iam reunido em torno dele e haveria dias de alegria. Ele teria roupas novas, dar-lhe-iam muitos presentes, distribuiria dinheiro por todos da casa, e tudo seria diversão e regozijo.

Mas, como poderia ser uma coisa dessas agora? O terceiro filho estava longe, na terra livre, e o filho mais velho ia e vinha das montanhas. Ling Tan via o seu aniversário aproximar-se e não tinham tanto quanto um pedaço de carne, nem dinheiro para comprá-la. Tudo que tinham devia ser economizado da parca alimentação que os mantinha vivos. Além disso, o verão tinha sido muito longo e rigoroso, e, aproximando-se o seu fim, Ling Tan sentia-se cansado, velho, e sua vida era demais para ele.

"Não tenho prazer nem na minha terra", pensou ele um dia, quando saiu para ir ver o arroz que se elevava para a colheita, em grande quantidade. "Se a colheita é boa, torna-se um aborrecimento para mim porque vai alimentar o inimigo. Se é insuficiente, sinto que a terra está zangada porque não a tratei bem. Um homem não tem prazer em nada, enquanto esse perverso inimigo está debruçado sobre nós como animal feroz."

Pela primeira vez pôs-se a imaginar se era bom ter preferido permanecer na terra — porque, ano após ano, tinha que alimentar o inimigo, e isso era uma tarefa muito amarga.

— Se houvesse um pouco de esperança em alguma parte do Céu, — disse ele um dia a seu filho, — se avistássemos uma esperança, até mesmo do tamanho da mão de um homem, para nos ajudar — mas ninguém irá nos ajudar. Em toda parte do mundo os homens pensam somente em si mesmos.

Porque, agora, até mesmo homens como ele sabiam que nenhum dos países do mundo tinha avançado tanto para o seu lado, para auxiliá-los nessa guerra desesperada. E ele e todos os seus companheiros tinham ouvido que, mesmo nos países que se diziam amigos, homens vendiam armas e mercadorias de guerra ao inimigo, pelo preço que podiam obter, e ele, e os outros como ele, ficaram com o coração ferido, porque a decência não mais podia ser encontrada entre os homens. A seu próprio modo, cada um era igual ao outro, e ainda que alguns homens não fizessem guerra, como os outros faziam, vendiam suas mercadorias, com lucros, aos fazedores de guerra. E faziam-na melhor porque não traziam a arma em suas próprias mãos, se a tinham feito e vendido, colocando-a, assim, nas mãos daqueles que a usavam contra os inocentes? Bem que Ling Tan sabia tudo isso e estava cansado de esperar auxílio. Não haveria auxílio e, vagarosamente, a esperança se dissipava nele, enquanto o quinto ano de guerra passava, lentamente, em direção ao outono.

— Todos os homens são maus, — dizia ele ao filho. — Não há ninguém debaixo do Céu que pense mais sobre o certo e o errado. E quando isso acontece, nós sucumbimos.

E começou a perder a vontade de comer, trabalhava menos e não sentia mais nenhum dos velhos prazeres do plantio e da colheita, que o haviam mantido vivo e jovem durante tantos anos.

Isso continuou até que Ling Sao se sentiu amedrontada porque, para ela, ele era mais do que tudo. Um dia chamou o segundo filho à cozinha, e disse:

— Você deve pensar em algum meio de por esperança no seu pai, pois ele é um homem que jamais na sua vida abandonou a esperança.

— Pede-me uma coisa muito difícil, minha mãe — disse Lao Er tristemente. — Onde encontraremos esperança para nós hoje em dia? Posso comprá-la em algum lugar ou encontrá-la no chão? Esperança deve criar-se daquilo que temos ou não será esperança, mas um sonho.

— Então a vida de seu pai terminou, — disse Ling Sao chorando. — E a nossa longa luta está perdida. Agora o inimigo nos conquistou.

E dirigindo-se para o seu próprio quarto, fechou a porta e chorou.

Lao Er tomou isso muito gravemente e pôs-se a descobrir se havia algo de bom que pudesse dizer ao pai; mas onde encontraria o bom?

Mesmo nestes tempos de homens maus, o Céu podia ser mau também. Um ano houvera chuvas para assolar a terra e, agora, o ano que acabava de passar estava cheio de miséria, pois mais uma vez havia desolação no norte e o povo, esfomeado, impelia-se para o sul, de miséria em miséria. Em outros anos eles tinham sido impelidos assim e Ling Tan, com outros, os haviam auxiliado. Mas que auxílio havia agora, com metade das vilas destruídas pelo fogo?

Na cidade, o fantoche sentava-se no seu assento, enviava suas ordenzinhas, e as nações estrangeiras, que favoreciam o inimigo, chamavam-no governador. Na terra livre, era verdade, eles souberam de um grande exército que se reunia, mas nunca haviam visto esse exército, que ficou sendo apenas um boato para os que, aqui, viviam em servidão. O inimigo providenciava para que não lhes chegassem notícias e o povo ainda vivia em silêncio, completamente fechado ao mundo exterior. Dentro desse silêncio o inimigo inflexível reinava e, ainda, um homem podia ser morto sem motivos. Muitos eram mortos agora por uma falta insignificante ou por coisa alguma, uma veneta do inimigo. Ninguém podia respirar livremente. Lentamente, os corações dos homens eram esmagados em toda parte e muitos morriam interiormente e se abandonavam, como quem se afoga deve primeiro querer ser afogado, e cessa a luta pela vida, antes de poder morrer. Muitos, que não desejavam fumar ópio, votavam-se a ele.

Então, procurando em toda parte dentro de si mesmo, Lao Er pensou no velho primo, que esquecera durante tantos meses. Sabia que ele continuava vivo, pois, de vez em quando, de boca a ouvido, a despeito do inimigo, pequenas notícias se arrastavam pelo campo, mudadas e torcidas pelos que as contavam, de modo que, quando atingiam as vilas, ninguém poderia saber o que haviam sido no início. E Lao Er pensou: "Irei à casa daquele osso velho, e verei se ele tem qualquer coisa boa para contar, então pedirei ao meu pai para ir comigo, e, se houver alguma coisa boa, ele ouvirá também e saberá que eu não estou dizendo palavras vazias, para consolá-lo."

Assim, quando chegou o aniversário de Ling Tan, não houve festa senão de um peixe apanhado secretamente e escondido até a refeição; depois de o terem comido atrás das portas cerradas Lao Er disse ao pai:

— Por que, esta noite, não tiramos algumas horas para nos' divertir? Poderemos ir à cidade, àquela casa de chá, para ver o nosso primo e ouvir o que ele tem a dizer.

Primeiro Ling Tan pensou que não iria, porque estava muito cansado e desesperado por ouvir boas notícias, mas viu que seu filho insistia. E mudou as palavras que pretendia dizer:

— Ainda que não tenha gosto nisso, se é você quem quer, e se é dia de meu aniversário, eu vou.

Assim aconteceu que, mais uma vez, Ling Tan e seu filho se ocultaram entre os outros na casa de chá. Tudo foi como tinha sido antes e eles penetraram no quartinho. Lá, depois de um momento, o velho primo apareceu, mais magro, mais seco, mais sonolenta do nunca, e, agora, se Ling Tan lhe dissesse quem era, o velho viciado não o reconheceria através da ofuscação dos seus sonhos. Mas ainda estava claro bastante para aquilo que fazia todos os dias, porque o seu ópio dependia daquilo, embora todos pudessem ver que não viveria muito para precisar dele.

Quando o velho entrou, sentou-se no seu banco e falou de dentro da sua barba numa voz tão baixa que todos tinham que esticar-se para ouvi-lo. E disse:

— Falei-lhes, ontem, sobre o encontro dos dois grandes homens brancos, que teve lugar no mar. Um dos homens brancos veio do país de Mei e o outro de Ying e se encontraram. Hoje, o de Ying falou.

O velho tateou no peito, puxou um pedacinho de papel manchado e seus óculos de chifre. Com dificuldade pôs os óculos no nariz. Eles caíram porque as mãos lhe tremiam muito, e os colocou outra vez e outra vez eles caíram. Todos esperavam, com grande paciência, até que o velho tentou uma terceira vez e os óculos se ajustaram. Então levantou o papel e leu estas palavras, em voz alta:

— As provas exigidas aos povos conquistados serão duras. Devemos dar-lhes esperanças. Deveremos dar-lhes a convicção de que seus sofrimentos e sua resistência não serão vãos. O túnel pode ser longo e negro, mas haverá luz na extremidade.

Neste quarto velho e escuro, imundo pelos anos e, agora, pelas ruínas, Ling Tan, de pé, ouvia essas valentes palavras. Seu coração tinha fome, como a terra de pousio tem fome e as palavras caíram, como sementes, dentro dele.

— Qual foi o homem que disse isso? — gritou ele, — Eu não estava aqui ontem; diga-me hoje!

O velho primo não precisou responder. Outros estavam prontos a contar o que sabiam, e um homem e outro, falando juntos, ávidos de falar, cheios de esperanças e dúvidas por causa da longa demora, contaram a Ling Tan que, agora, finalmente, havia esses dois povos, por quem esse homem falara — o povo de Mei e o povo de Ying. Ling Tan ouviu a este e àquele, sorvendo cada palavra, as sementes lançando raízes no seu coração.

— Se esses povos são contra este inimigo, — perguntou ele, — não estão conosco?

— Não estão? — outros ecoaram satisfeitos.

Então, do seu longo cansaço, Ling Tan sentiu lágrimas que lhe subiam vagarosamente aos olhos. Através de todos aqueles anos amargos ele não chorara. Vira a ruína na sua casa e na sua vila, vira a morte em toda parte mas não chorara, e se espantava, agora, chorando às primeiras notícias boas que lhe davam em mais de quatro anos.

— Vamos, — disse ele ao filho.

Este o seguiu e saíram da cidade. Ling Tan não disse nada.

Logo estava longe da cidade desolada, e a estrada de pedras redondas estreitava-se, desviando seu velho caminho pelo leito do vale. As montanhas jogavam-se escuras contra o céu. Não havia Lua nessa noite.

Ora, durante todo esse tempo Lao Er permanecia incrédulo e estava em seu coração dizer ao pai: "É melhor para nós não contarmos com auxílio certo de parte alguma. Haverá homens que dêem seu auxílio por nada?" Mas esperou que o pai falasse.

Porém, como só havia silêncio, ele conservou silêncio, também, e pensou por fim que deixaria essa esperança a seu pai. "Sou jovem", pensou Lao Er. "Não preciso de esperança. Posso viver."

E assim, com o coração frio e amargo dentro do peito, Lao Er deixou que o pai lhe tomasse a dianteira e o viu erguer a cabeça para contemplar as estrelas e levantar a mão para sentir o vento.

— Não há uma promessa de chuva? — perguntou Ling Tan, subitamente, dentro da escuridão. Havia necessidade de chuva há muitos dias.

— Apenas uma promessa, — disse Lao Er.

 

                                                                                            Pearl S. Buck  

 

                      

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