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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CONTÁGIO PERVERSO / Patricia Cornwell
CONTÁGIO PERVERSO / Patricia Cornwell

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CONTÁGIO PERVERSO

 

A noite caia límpida e fria sobre Dublin e o vento gemia lá fora como se fosse o som de um milhão de tubos de órgãos a tocar. Rajadas de vento sacudiam as velhas vidraças, soando como espíritos apressados, enquanto eu ajustava uma vez mais as almofadas, até descansar por fim de costas num emaranhado de linho irlandês. Mas o sono não queria tocar-me e as imagens desse dia regressaram. Vi os corpos sem membros e sem cabeça e sentei-me na cama, a transpirar.

Acendi os candeeiros e o Hotel Shelbourne envolveu-me de repente num quente clarão de madeiras antigas e de axadrezados em vivos de tons vermelhos. Vesti um roupão e os meus olhos demoraram-se a olhar o telefone ao lado da cama revolta. Eram quase duas da manhã. Em Richmond, estado de Virgínia, seriam cinco horas mais cedo e Pete Marino, comandante da brigada de homicídios da polícia da cidade, devia estar ainda de pé. Talvez estivesse a ver a televisão, fumando e comendo qualquer coisa que lhe fazia mal à saúde, a não ser que andasse ainda na rua.

Marquei o número e ele pegou de imediato no auscultador como se estivesse mesmo ao lado do telefone.

— Doçura ou travessura?! - Estava sem dúvida no bom caminho para apanhar uma piela.

— Está um tanto adiantado - disse eu, já a arrepender-me de ter ligado. - Ainda faltam umas semanas.

— É a doutora? - Parou, atrapalhado. - Dra. Scarpetta? Já está de volta em Richmond?

— Ainda estou em Dublin. Que barulheira é essa?

— São só alguns amigos meus, todos eles tão feios que nem precisamos de máscaras. Todos os dias são Dias das Bruxas. Olhem! Bubba está a fazer batota - gritou ele para fora do bocal.

— Estás sempre a pensar que toda a gente faz batota - ripostou uma voz. - Se calhar é por seres detective há tanto tempo.

— De que é que estás a falar? Marino nem é capaz de detectar o seu próprio odor corporal.

Ouviam-se risadas sonoras ao fundo, enquanto prosseguiam os comentários jocosos, alimentados pela bebida.

— Estamos a jogar póquer - disse Marino para minha informação.

— Que raio de horas serão aí?

— É melhor nem perguntar - respondi-lhe. - Tenho algumas notícias desagradáveis, mas está-me a parecer que não se acha preparado para elas.

— Não, não. Espere aí. Deixe-me só levar o telefone para outro sítio. Merda. Não gosto nada do modo como os fios se enrolam, está a perceber-me? Raios para isto tudo. - Podia escutar os seus pesados passos e uma cadeira a ser arrastada. - Pronto, doutora. Que raio se passa por aí?

— Estive quase todo o dia a discutir os casos dos aterros sanitários com a patologista forense. Marino, estou cada vez mais convencida de que os casos dos corpos desmembrados registados na Irlanda são trabalho do mesmo indivíduo que temos andado a investigar na Virgínia.

Pete levantou a voz.

— Eh, vocês aí, façam menos barulho!

Enquanto eu ajustava a dobra da colcha, podia ouvi-lo a distanciar-se dos seus amigalhaços. Estendi o braço para beber os restos do Black Bush que tinha levado para junto da cama.

— A Dra. Foley trabalhou nos cinco casos de Dublin - prossegui. - Estive a passá-los todos em revista. Troncos de corpos. Colunas cortadas horizontalmente pela parte final da quinta vértebra cervical. Braços e pernas amputados pelas articulações, o que não é habitual, conforme já assinalei previamente. As vítimas pertencem a várias raças, com idades estimadas entre os dezoito e os trinta e cinco. Estão todas por identificar, tendo os casos sido classificados como homicídios por meios não especificados. Em todos estes casos, as cabeças e os membros nunca foram localizados, tendo as restantes partes sido encontradas em aterros de propriedades particulares.

— Macacos me mordam se isso não me faz recordar qualquer coisa -            atalhou ele.

— Há outros pormenores. Mas a verdade é que as semelhanças são profundas.

— Por isso é possível que aquele safado esteja agora em terras americanas - disse Pete. - Acho que foi bom a doutora ter ido aí, bem vistas as coisas.

Mas ao principio não tinha sido essa a sua opinião. Nem dele nem de ninguém, na realidade. Eu era a investigadora-chefe dos serviços de medicina legal do estado de Virgínia e, quando o Real Colégio de Cirurgiões me convidou para fazer uma série de conferências na escola médica de Trinity, não fui capaz de desperdiçar essa oportunidade de investigar os homicídios de Dublin. Marino tinha achado que era uma perda de tempo, enquanto que o FBI considerava que a validade da investigação seria pouco mais do que estatística.

Aquelas dúvidas eram compreensíveis. Os homicídios da Irlanda tinham mais de dez anos e, como aliás também acontecia com os casos registados na Virgínia, havia muito poucos elementos para estudo. Não dispunhamos de impressões digitais, amostras de dentição, configuração de seios ou testemunhas que tornassem possível a identificação. Não tínhamos amostras biológicas de pessoas desaparecidas para comparar com o ADN das vítimas. Desconhecíamos o método usado nos homicídios. Consequentemente, era muito difícil saber alguma coisa a respeito do homicida, excepto a minha suspeita de se tratar de alguém experiente no uso de uma serra de carne, e que muito provavelmente utilizava uma na sua profissão, ou teria utilizado no passado.

— O último caso na Irlanda, que se saiba, ocorreu há uma década - estava eu a dizer a Marino pelo telefone. - Nos dois últimos anos tivemos quatro na Virgínia.

— Pensa portanto que ele esteve parado durante oito anos? - perguntou Pete. - Porquê? Teria estado na prisão, talvez, por qualquer outro crime?

— Não sei. Talvez se tivesse mantido em actividade em qualquer outro local e os casos não tenham sido relacionados - respondi-lhe, enquanto o vento provocava ruídos medonhos do outro lado da janela.

— Há aquele caso de homicídios em série na áfrica do Sul - adiantou Pete, como se estivesse a pensar em voz alta. - E em Florença, na Alemanha, na Rússia, na Austrália. Merda, agora que penso nisso tem havido crimes em série por toda a parte. Eh! - Tapou o bocal com a mão. - Fuma os teus próprios cigarros! Que julgas tu que é isto? Algum asilo?

Ao fundo ouviam-se vozes desordeiras. - Parece que estão a divertir-se bastante - comentei secamente. - Por favor não me convide no próximo ano.

— Cambada de animais - resmungou ele. - Nem me pergunte porque é que faço isto. Dão-me cabo das bebidas, fazem batota ao jogo...

— O modus operandi nestes casos é muito peculiar. - O meu tom de voz tinha a intenção de po-lo sóbrio.

— Ora bem - disse ele. - Então, se este tipo começou em Dublin, talvez estejamos à procura de algum irlandês. Acho que deveria voltar depressa para cá. - Ele arrotou. - Parece-me que precisamos de ir a Quântico para reactivar este assunto. Já contou a Benton?

Benton Wesley era o chefe da CASKU, Unidade de Casos de Crianças Vitimas de Crimes em Série, do FBI, de que Marino e eu éramos consultores.

— Não tive ainda oportunidade para falar com ele - respondi, hesitante. - Talvez você possa pô-lo ao corrente. Voltarei para aí assim que puder.

— Amanhã seria bom.

— Ainda não terminei aqui a série de conferências - esclareci.

— Não há nenhum sítio no mundo onde não queiram que a doutora vá dar conferências. Talvez não precisasse de fazer mais nada, - aventou Pete, e percebi que ele estava prestes a entrar comigo.

— Exportamos violência para os outros países - disse eu - e é justo que tentemos transmitir-lhes o que sabemos, o que temos aprendido ao longo dos anos em que trabalhamos com esses crimes...

— Não é por causa das conferências que está na terra dos duendes, doutora - interrompeu ele, e ouvi uma caixa de cigarros a abrir-se.

— Não é essa a razão, e sabe-o muito bem. Marino - avisei-o. - Não me faça isso.

Mas ele insistiu.

— Desde que Wesley se divorciou, está sempre a encontrar uma razão ou outra para seguir pela Yellow Brick Road e sair da cidade. E agora não está com vontade de voltar, como percebo pelo seu tom de voz, porque não está disposta a dar cartas, examinar a sua mão e correr a sua sorte. Deixe-me que lhe diga. Chega sempre a altura em que é preciso pedir para ver ou deitar as cartas na mesa...

— Percebi. - Tive o cuidado de não o ofender ao interromper a conversa, pois sabia que as suas intenções eram boas. - Marino, não fique acordado durante toda a noite.

 

O gabinete do médico legista ficava no número 3 da Store Street, em frente da alfândega e da estação central dos autocarros, próximo das docas e do rio Liffey. O edifício de tijolo era pequeno e velho e o beco que dava para as traseiras estava fechado por um pesado portão negro com a palavra MORGUE pintada a toda a largura em grandes letras brancas. Subindo os degraus até à porta de estilo georgiano, toquei a campainha e esperei na névoa.

Estava fresco naquela manhã de terça-feira e as árvores começavam a prenunciar a chegada do Outono. Podia sentir os efeitos da falta de dormir. Os olhos ardiam-me, a cabeça pesava, e estava enervada com o que Marino me dissera antes de quase lhe ter desligado o telefone na cara.

— Olá! - O administrador acolheu-me calorosamente. - Como estamos nós esta manhã, Dra. Scarpetta?

Chamava-se Jimmy Shaw e era muito jovem e muito irlandês, com cabelo cor de cobre e olhos azuis como o céu.

— Já estive melhor - confessei.

— Bem, estava mesmo a preparar o chá - disse o rapaz, fechando-nos num corredor estreito e mal iluminado, pelo qual seguimos até ao seu gabinete. - Parece-me que está a precisar de uma chávena.

— Seria óptimo, Jimmy - disse eu.

— Quanto à nossa amiga doutora, deve estar a concluir um inquérito. - Olhou para o relógio ao entrarmos no seu pequeno e desarrumado gabinete. - Não irá demorar.

A secretária era dominada por um enorme livro negro, encadernado em cabedal grosso, com o titulo "Inquéritos do Médico Legista", e Jimmy tinha estado a ler uma biografia de Steve McQueen e a comer torradas antes da minha chegada. Colocou uma caneca de chá à minha frente, sem me perguntar como gostaria de o beber, porque agora já sabia.

— Vai uma torradinha com doce? - perguntou, como fazia todas as manhãs.

— Já comi no hotel, obrigada. - Dei-lhe a resposta do costume enquanto ele se sentava à secretária.

— Isso nunca me impede de repetir o pequeno almoço. - Sorriu, pondo os óculos. - Vamos então rever o seu programa. Tem uma conferência às onze esta manhã e depois outra à uma da tarde. Ambas na faculdade, no velho edifício de Patologia. Estou a contar com uns setenta e cinco alunos em cada sessão, mas podem ser mais. Não sei. A senhora é muito conhecida aqui, Dra. Kay Scarpetta - disse animadamente. - Ou então é porque aquela violência americana é tão exótica para nós.

— Isso é a mesma coisa que chamar exótica a uma praga - respondi.

— Bem, não podemos deixar de sentir-nos fascinados com o que vemos.

— E acho que isso me causa uma certa preocupação - disse-lhe com um ar amistoso mas ao mesmo tempo funesto. - Não se deixe fascinar em excesso.

Fomos interrompidos pelo telefone, que ele arrancou do descanso com a impaciência de quem o atende demasiadas vezes.

Escutando por um momento, disse bruscamente.

— Está bem, está bem. Neste momento não podemos fazer uma encomenda dessas. Vou ter de voltar a contactá-lo mais tarde.

— Há anos que preciso de computadores - queixou-se depois de desligar. - Não há dinheiro quando se é o cão que abana a cauda socialista.

— Nunca haverá dinheiro que chegue. Os mortos não votam.

— É uma grande verdade. Bem, qual é o tópico para hoje? - perguntou.

— Homicídios sexuais - respondi. - Especificamente, o papel que o ADN pode desempenhar.

— Aqueles corpos desmembrados em que está tão interessada. - Bebeu um pouco de chá. - Acha que podem ser crimes sexuais? Quer dizer, poderia ser essa a motivação de quem quer que os tenha cometido? - Os seus olhos brilhavam de interesse.

— É certamente um elemento a considerar - respondi.

— Mas como se poderá saber, visto que nenhuma das vitimas foi identificada? Poderá ser alguém que mata apenas por desporto? Como, digamos, o vosso Filho de Sam, por exemplo.

— O que o Filho de Sam fazia tinha mesmo um elemento sexual - disse, enquanto olhava em volta para ver se a minha amiga patologista estaria a chegar. - Acha que ela ainda se vai demorar? É que hoje estou com uma certa pressa.

Shaw olhou de novo para o relógio.

— Pode ir ver se a encontra. Talvez tenha ido directamente para a morgue. Temos um caso a chegar. Um jovem, sexo masculino, suspeito de suicídio.

— Vou ver se consigo encontrá-la. - Levantei-me.

Ao principio do corredor, junto da entrada, situava-se a sala dos inquéritos, onde se analisavam perante um júri os casos de morte por causas duvidosas. Nestes incluíam-se os acidentes de trânsito ou de trabalho, os homicídios e os suicídios, decorrendo os inquéritos à porta fechada, porque na Irlanda não era permitido tornar públicos muitos detalhes. Entrei numa sala despida e fria, com alguns bancos corridos envernizados e paredes nuas, na qual diversos homens arrumavam papéis nas suas pastas.

— Estou à procura da médica legista - disse.

— Saiu daqui há uns vinte minutos. Parece-me que tinha um exame — informou um deles.

Saí do edifício pela porta das traseiras. Atravessando um pequeno parque de estacionamento, dirigi-me à morgue, de onde um homem idoso vinha a sair. Parecia desorientado, vacilante, enquanto olhava à sua volta, confuso. Durante um instante olhou para mim, como se eu tivesse alguma resposta para lhe dar, e senti pena dele. Nenhum motivo que o trouxera aqui podia ser agradável. Vi-o dirigir-se rápido para o portão, enquanto a Dra. Margaret Foley surgia atrás dele, apressada, com o cabelo grisalho em desalinho.

— Meu Deus! - Quase chocou comigo. - Volto as costas por um minuto e ele desaparece.

O homem abriu o portão e saiu, deixando-o escancarado. Foley atravessou a correr o parque de estacionamento para o fechar de novo. Quando voltou para junto de mim, faltava-lhe o fôlego e quase tropeçou numa saliência do pavimento.

— Kay, vieste cedo hoje - disse ela.

— Algum parente? - perguntei.

— Era o pai. Foi-se embora sem o identificar, antes mesmo que eu tivesse levantado o lençol. Isto vai ser o suficiente para me estragar o resto do dia.

Levou-me consigo para dentro da pequena morgue de tijolos com mesas de autópsia em porcelana branca, que possivelmente tinham ganho o direito de ser expostas nalgum museu de medicina, e um velho fogão de ferro que já não aquecia nada. O ar estava frio, e o único equipamento moderno existente eram as serras eléctricas para as autópsias. Uma fraca luz acinzentada penetrava pelas clarabóias opacas, mal iluminando o lençol de papel branco que tapava o corpo que um pai não tivera coragem de ver.

— Esta é sempre a parte pior - dizia ela. - Ninguém devia ter de vir aqui para ver alguém.

Segui-a até uma pequena arrecadação e ajudei-a a retirar algumas caixas com seringas novas, máscaras e luvas.

— Enforcou-se nas traves do celeiro - disse ela, enquanto ia trabalhando. - Estava a ser tratado contra um problema de alcoolismo e depressão. É sempre o mesmo. Desemprego, mulheres, droga. Enforcam-se, ou saltam do alto de pontes. - Deitou-me um olhar enquanto reabastecíamos um carrinho de apetrechos cirúrgicos. Graças a Deus que aqui não usamos armas. Especialmente porque não disponho sequer de um aparelho de radiologia.

Foley era uma mulher franzina que usava espessos óculos de modelo antigo e com uma propensão para vestir fatos de tweed. Tínhamo-nos conhecido anos antes, durante uma conferência internacional de medicina legal em Viena, quando as patologistas eram ainda uma espécie rara, especialmente na Europa. Depressa nos havíamos tornado amigas.

— Margaret, vou ter que voltar aos Estados Unidos mais cedo do que supunha - disse, respirando fundo e olhando à minha volta, perturbada. - Não consegui dormir nada a noite passada.

Ela acendeu um cigarro, a observar-me.

— Posso arranjar-te cópias de tudo o que quiseres. Precisas delas com muita urgência? As fotografias podem demorar alguns dias, mas poderei enviar-tas depois.

— Acho que há sempre uma certa urgência quando alguém deste teor anda à solta - comentei.

— Não me dá satisfação nenhuma saber que ele agora é um problema teu. E tinha algumas esperanças de que, passado todo este tempo, já tivesse desistido. - Sacudiu irritada a cinza do cigarro, exalando o forte fumo do tabaco inglês. - Sentemo-nos por uns momentos. Os sapatos já me estão a apertar por causa dos pés inchados. É um pesadelo envelhecer em cima destes soalhos de madeira.

A sala de estar limitava-se a um par de cadeiras baixas dispostas a um canto e uma pequena mesa na qual Foley tinha colocado um cinzeiro.

— Não consigo esquecer-me daquela pobre gente. - Pôs-se a falar de novo dos seus casos de homicídios em série. - Quando me apareceu o primeiro, julguei que fosse obra do IRA. Nunca tinha visto uma pessoa despedaçada daquela maneira, excepto em consequência do rebentamento de bombas.

Isto fez com que me recordasse de Mark de um modo que não queria recordar, e os meus pensamentos desviaram-se para ele enquanto vivo, quando estávamos apaixonados. De repente, passou a ocupar-me a mente, sorrindo com os seus olhos cheios de uma luz maliciosa que se tornava electrizante quando ria ou quando brincava comigo. Tinha havido muitos desses momentos na faculdade de Direito em Georgetown, alegrias e brincadeiras e muitas noites em claro, um forte desejo de um pelo outro impossível de saciar. O tempo passou e casámos com outras pessoas, divorciámo-nos e tentámos de novo. Ele era o meu leitmotif, hoje comigo, depois já longe, em seguida novamente ao telefone ou a bater-me à porta para me destroçar o coração e arrasar a minha cama.

Não consegui afastá-lo dos meus pensamentos. Ainda não me parecia possível que a explosão de uma bomba numa estação dos caminhos-de-ferro em Londres tivesse finalmente levado ao seu termo a tempestade do nosso relacionamento. Não conseguia imaginá-lo, porque não havia uma imagem final que me pudesse conceder alguma paz. Nunca chegara a ver o seu corpo, fugindo de qualquer possibilidade de o fazer, tal como o velho dublinense não fora capaz de ver o filho. Apercebi-me entretanto de que Foley estava a tentar dizer-me alguma coisa.

— Desculpa - repetiu, porque conhecia bem a minha história. - Não era intenção minha despertar em ti uma recordação dolorosa. Pareces-me bastante em baixo esta manhã.

— Mencionaste um ponto interessante. - Tentei mostrar-me cheia de ânimo. - Penso que o homicida que procuramos tem muitas semelhanças com um bombista. Não lhe interessa saber quem vai matar. As vitimas são pessoas sem rosto e sem nome. Não são mais do que símbolos do seu perverso credo privado.

— Ficavas muito incomodada se te fizesse uma pergunta a respeito de Mark? - perguntou.

— Pergunta o que quiseres. - Sorri. - Acabarás por perguntar, de qualquer modo.

— Já foste alguma vez ao sítio onde aquilo aconteceu, já visitaste o local da sua morte?

— Não sei onde aquilo aconteceu - respondi imediatamente.

Olhou para mim e continuou a fumar.

— O que eu quero dizer é que não sei exactamente em que sítio da estação dos caminhos-de-ferro. - Falava de modo evasivo, quase a gaguejar.

Ela permaneceu silenciosa e esmagou o cigarro debaixo do pé.

— Na realidade - prossegui - não sei bem se cheguei a voltar à estação de Vitória desde que ele morreu. Não me parece que tenha tido qualquer motivo para ir lá apanhar algum comboio. Penso que a última estação de caminhos-de-ferro em que estive foi a de Waterloo.

— A grande cena de um crime que a Dra. Kay Scarpetta nunca há-de visitar. - Retirou outro Consulate do maço - Queres um?

— Sabe Deus quanto queria. Mas não posso.

Suspirou.

— Lembro-me de Viena. Todos aqueles homens, e nós duas a fumarmos mais do que eles.

— Talvez que a razão para nós fumarmos tanto fosse a presença de todos aqueles homens - disse eu.

— Pode ter sido essa a causa, mas para mim parece não haver cura. Por aí se vê que o que fazemos não tem qualquer relação com o que sabemos, e que as nossas sensações não têm cérebro. - Apagou o fósforo. - Tenho visto os pulmões de fumadores. E também tenho visto a minha quota de fígados gordos.

— Os meus pulmões estão melhores desde que deixei de fumar. No que diz respeito ao fígado, já não posso pronunciar-me - disse. - Ainda não pus de parte o uísque.

— Não ponhas, pelo amor de Deus. Acabavas por te tornares muito chata. - Calou-se por um instante e depois prosseguiu, abertamente: -           Claro, as sensações podem ser dirigidas, educadas, para que não conspirem contra nós.

— Possivelmente vou ter de ir-me embora amanhã - disse, voltando ao assunto.

— Vais precisar de ir primeiro a Londres, para mudar de avião. - Olhou-me nos olhos. - Fica por lá. Ao menos um dia.

— Como disseste?

— É um assunto em aberto, Kay. Há muito tempo que tenho pensado nisto. Precisas de enterrar o Mark James.

— Margaret, a que propósito virá isso? - Estava uma vez mais a tropeçar nas palavras.

— Percebo bem quando alguém anda a querer fugir. E tu andas a fugir, exactamente como o tal homicida.

— Ora aí está uma ideia reconfortante - respondi, e não sentia vontade nenhuma de continuar esta conversa.

Mas ela não queria largar-me desta vez.

— Por razões muito diferentes e também por razões muito semelhantes. Ele é diabólico e tu não és. Mas nem um nem o outro quer deixar-se apanhar.

Ela tinha conseguido chegar ao meu ponto fraco e sabia-o.

— E quem ou o quê estará a tentar apanhar-me, na tua opinião? - O tom da minha voz era ligeiro, mas podia sentir a ameaça das lágrimas.

— Presentemente, diria que é Benton Wesley.

Olhei para longe, para lá da maca e do pé incolor que dela se projectava, com uma etiqueta atada a um dedo. A luz vinda das clarabóias ia-se deslocando lentamente, centímetro a centímetro, acompanhando o movimento das nuvens que encobriam o sol, e o cheiro da morte nos azulejos e nas lajes já tinha alguns cem anos.

— Kay, que queres tu fazer? - perguntou-me suavemente, enquanto eu limpava as lágrimas.

— Benton quer casar comigo - respondi.

 

Regressei a Richmond e os dias tornaram-se semanas, enquanto o frio começava a apertar. As manhãs surgiam vidradas com a geada e as noites passava-as em frente da lareira, a pensar e a atormentar-me. Havia tanto por resolver e eu enfrentava as minhas dúvidas como sempre fizera, penetrando cada vez mais fundo no labirinto do meu trabalho até que já não conseguia encontrar uma saída. A minha secretária estava a dar em doida.

— Dra. Scarpetta? - Ela chamou o meu nome, andando com passos fortes e rápidos no pavimento de tijoleira do sector das autópsias.

— Estou aqui! - respondi, ao som de água corrente.

Estávamos a 30 de Outubro. Encontrava-me no lavatório da morgue, esfregando mãos e braços com sabão antibactérias.

— Onde esteve? - perguntou Rose ao entrar.

— A trabalhar num cérebro. Aquela morte súbita de há uns dias, lembra-se?

Trazia a minha agenda nas mãos e estava a folheá-la. Tinha o cabelo grisalho repuxado para trás e preso num rolo e vestia um fato vermelho-escuro que parecia condizer com a sua disposição. Rose estava muito zangada comigo, como estava desde que eu partira para Dublin sem me despedir dela. Depois, já no meu regresso, esqueci-me dos seus anos. Fechei a torneira e sequei as mãos.

— Inchaço, com dilatação dos girencéfalos e aperto dos sulcos, tudo aponta para uma encefalopatia isquémica ocasionada pela profunda hipotensão sistematológica do paciente - citei.

— Tenho andado à sua procura - disse ela, com pouca paciência.

— Que terei eu feito desta vez? - Levantei as mãos no ar.

— Devia ter ido almoçar ao Skull and Bones com o Jon.

— Oh, meu Deus, - disse, num lamento, pensando nele e nos outros internos da escola médica, para os quais eu tinha sempre tão pouco tempo disponível.

— Mas eu lembrei-lhe o almoço esta manhã. Na semana passada também se esqueceu dele. O Jon precisa mesmo de falar consigo, sobre o regime de internato dele e sobre a Clínica de Cleveland.

— Eu sei, eu sei. - Sentia-me pessimamente a respeito do assunto enquanto olhava para o meu relógio. - É uma e meia. Talvez ele possa vir tomar café ao meu gabinete.

— A doutora vai ter de fazer um depoimento às duas, prestar declarações às três a respeito do caso Norfolk-Southern. Uma conferência sobre ferimentos provocados por tiros, às quatro, na Academia de Medicina Legal, e um encontro às cinco com o Investigador Ring da polícia estadual. - Rose continuou a analisar a lista.

Eu não simpatizava com Ring nem com a sua maneira agressiva de se apoderar dos casos. Quando foi encontrado o segundo tronco humano, ele metera-se na investigação, parecendo convencido de que sabia mais do que o FBI.

— Posso muito bem passar sem falar com Ring - disse eu, despachando o assunto.

A minha secretária olhou-me durante um longo momento, enquanto se ouvia a água e o esfregar com as esponjas na sala das autópsias.

— Vou cancelar o encontro com Ring e poderá então atender Jon.

— Espreitou-me por cima dos óculos como uma ríspida mestra de escola primária. - Depois vá descansar, sou eu que mando. Amanhã, Dra. Scarpetta, deixe-se ficar em casa. Não se atreva a deixar que eu a veja a fazer sombra à minha porta.

Comecei a protestar, mas ela atalhou a direito.

— Nada de discussões - prosseguiu, com firmeza. - Está a precisar de um dia de descanso, de um longo fim-de-semana. Eu não falaria nisso se não soubesse que estou cheia de razão.

Claro que ela tinha razão; ao pensar que ia ter um dia de descanso comecei logo a sentir-me melhor.

— Não há nada que não possa ser adiado - prosseguiu a minha secretária. - Além disso, - e sorriu - estamos à espera de uns dias de Verão de São Martinho, com temperaturas na casa dos vinte graus e céus azuis. As folhas das árvores estão mais belas do que nunca, as dos choupos estão de um amarelo quase perfeito. Os áceres, parece que estão em fogo. Além disso, a Noite das Bruxas está a chegar. Sempre pode entreter-se a retalhar uma abóbora.

Tirei do armário o casaco e os sapatos.

— Rose, devia ter ido para advogada - disse-lhe.

 

No dia seguinte o tempo estava exactamente como Rose previra e acordei excitada. Quando as lojas começaram a abrir fui comprar prendas para o Dia das Bruxas e também para o jantar, e fui até Huíl Street, ao meu centro de jardinagem preferido. As plantas do Verão já tinham murchado há muito em volta da casa e não gostava de ver os seus caules secos nos vasos. Depois de almoçar, levei para a minha varanda alguns sacos de terra preta, caixas de plantas e um regador.

Deixei a porta entreaberta para poder continuar a escutar Mozart enquanto envasava os amores-perfeitos no seu novo e suculento leito de terra. O pão estava a crescer no forno, o guisado fervilhava ao lume, e enquanto trabalhava chegavam-me ao nariz os aromas do alho, do vinho e da terra adubada. Tinha convidado Marino para vir jantar comigo, e iríamos oferecer chocolates aos meus pequenos e assustadores vizinhos. O mundo era um bom lugar para viver, até que às três e trinta e cinco o meu pager vibrou-me no cinto.

— Bolas! - exclamei, ao mesmo tempo que transmitia o número ao meu serviço de resposta telefónica.

Corri para dentro de casa, lavei as mãos e peguei no telefone.

O serviço deu-me o número do telefone de um Detective Grigg, do Departamento do Xerife do Condado de Sussex, e fiz imediatamente a ligação.

— Grigg - respondeu-me uma voz grave de homem.

— Daqui é a Dra. Scarpetta - disse, olhando desanimada através das janelas para os vasos de barro na varanda e para os restos ressequidos dos hibiscos.

— Oh, ainda bem! Obrigado por me ter telefonado tão prontamente. Estou aqui a falar de um telemóvel, por isso não quero demorar muito. - Falava com o ritmo do velho Sul, e levava o seu tempo.

— E onde fica aqui, exactamente?

— No Aterro Sanitário Atlântico na estrada de Reeves, à saída da 460 Leste. Encontraram algo que acho que terá interesse em ver.

— Será do mesmo tipo de coisa que tem aparecido em locais do mesmo género? - perguntei secretamente, enquanto o dia parecia tornar-se mais escuro.

— Parece-me bem que sim - disse ele.

— Dê-me indicações, que vou já pôr-me a caminho.

Tinha vestido um par de jeans sujos e uma t-shirt do FBI que a minha sobrinha Lucy me oferecera, e não tive tempo para mudar de roupa. Se não recuperasse o corpo antes do anoitecer, teria de ficar ali até de manhã, o que seria inaceitável. Agarrando na maleta, saí porta fora, deixando a terra, as plantas e os gerânios espalhados pela varanda. Obviamente o meu Mercedes negro estava com pouco combustível. Parei na Amoco para o reabastecer, e depois pus-me a caminho.

A viagem devia ter levado uma hora, mas estava com pressa. A luz do entardecer reflectia-se branca na parte inferior das folhas, e as fiadas de milho nas quintas e herdades estavam acastanhadas. Os campos eram mares de soja agitados e verdes, e as cabras pastavam à solta nos quintais de casas cansadas. Pára-raios garridos com esferas coloridas espreitavam de todos os picos e recantos, e tentei imaginar quem seria o vendedor intrujão que chegara àquele lugar como uma tempestade para explorar o medo das pessoas.

Logo depois apareceram os silos de cereais que Grigg tinha dito para eu procurar. Virei para a estrada de Reeves, passando por minúsculas casas de tijolos e parques de caravanas com camionetas pequenas e cães sem coleira. Painéis publicitários anunciavam Mountam Dewli e Virginia Diner, e passei com estrondo e trepidação por cima de carris de comboio, enquanto o pó vermelho levantado pelas minhas rodas formava penachos como se fossem de fumo. à minha frente, milhafres debicavam à beira da estrada os despojos de infelizes animais que tinham sido demasiado lentos, o que me parecia um mórbido prenúncio.

À entrada do Aterro Sanitário Atlântico parei o carro e fiquei a observar uma paisagem lunar de áridos hectares onde o sol estava a pôr-se como um planeta em fogo. Camiões de lixo, nédios e brancos e com cromados brilhantes, arrastavam-se ao longo do cume de uma montanha de lixo que crescia constantemente. Caterpillars amarelos pareciam escorpiões ao ataque. Vi um turbilhão rodopiante de poeira afastando-se do aterro, saltitando a grande velocidade sobre os sulcos do chão. Quando chegou perto de mim transformou-se num Ford Explorer vermelho sujo, conduzido por um jovem que aparentemente se sentia aqui perfeitamente à vontade.

— Posso ajudá-la, senhora? - perguntou o rapaz numa arrastada pronúncia sulista, parecendo ansioso e excitado.

— Sou a Dra. Kay Scarpetta - respondi, exibindo-lhe um crachá de bronze dentro de uma carteira preta, que costumo apresentar em locais onde não conheço ninguém.

O rapaz examinou as minhas credenciais, e depois fixou os seus olhos negros nos meus. Estava a transpirar através da camisa de ganga, com o cabelo molhado na nuca e nas fontes.

— Disseram que o médico legista vinha cá e que eu tinha de esperar por ele - disse-me.

— Bem, o médico legista sou eu - respondi com alguma malícia.

— Ah, sim senhora. Não disse aquilo com intenção... - Calou-se quando os seus olhos se voltaram para o meu Mercedes, que estava coberto por uma camada de pó tão fino e persistente que nada podia impedir que penetrasse. - Talvez seja melhor deixar aqui o carro e seguir comigo - acrescentou.

Olhei para o aterro, para os Caterpillars com lâminas e baldes rampantes imobilizados no cume. Dois carros da polícia e uma ambulância aguardavam-me no local onde se encontrava o problema e os agentes eram pequenas figuras reunidas à volta da traseira de um veículo mais pequeno do que os outros. Perto deles alguém andava a picar o chão com um pau, o que aumentou a minha pressa de chegar ao local.

— Pronto - disse-lhe. - Vamos a isso.

Arrumando o carro, tirei da bagageira a minha maleta e as roupas de trabalho. O jovem observou-me com silenciosa curiosidade, enquanto me sentei no lugar do condutor, com a porta aberta, para calçar as minhas botas de borracha, riscadas e maltratadas por alguns anos passados a calcorrear matas e rios por conta de pessoas assassinadas e afogadas. Cobri-me com uma ampla camisa de sarja descolorida que tinha surripiado ao meu ex-marido, Tony, durante um casamento que agora me parecia irreal. Depois entrei para o Explorer e cobri as mãos com dois pares de luvas. Puxei uma máscara cirúrgica sobre a cabeça e deixei-a à solta em volta do pescoço.

— Acho que é uma boa ideia - comentou o meu motorista. - O cheiro é bastante desagradável. Eu que lho diga.

— Não é por causa do cheiro - expliquei. - O que me preocupa são os microorganismos.

— Caramba - disse ele, ansioso. - Talvez eu também devesse usar uma dessas coisas.

— Não precisará de se aproximar o suficiente para ter problemas.

Ele não respondeu, e não tive dúvidas de que já o tinha feito. Para a maioria das pessoas o espreitar era uma tentação demasiado forte. Quanto mais horrível fosse a cena, maior era a tentação.

— Lamento muito o pó - disse o rapaz enquanto atravessávamos um emaranhado de ervas douradas na orla de uma pequena lagoa povoada por patos. - Como pode verificar, aplicamos uma camada de aparas de pneus em toda a parte para que a poeira não levante, e regamos o chão com freqüência. Mas nada parece resultar como devia. - Pausou nervosamente, antes de prosseguir. - Recebemos aqui mais de três mil toneladas de lixo por dia.

— Vindo de onde? - perguntei.

— Desde Littleton, Carolina do Norte, até Chicago.

— De Boston também? - perguntei, pois tudo indicava que os quatro primeiros casos tinham ocorrido bastante longe.

— Não, senhora. - Sacudiu a cabeça. - Talvez um dia destes. Aqui levamos muito mais barato por tonelada. Vinte e cinco dólares, contra sessenta e nove em Nova Jérsia ou oitenta em Nova Iorque. Além disso, fazemos reciclagem, realizamos ensaios para detecção de resíduos perigosos e captamos gás metano do lixo em decomposição.

— Quais são as vossas horas de funcionamento?

— Vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana - disse com orgulho.

— E têm algum modo de saber de onde vêm os camiões?

— Temos um sistema por satélite que usa uma grelha. Podemos pelo menos dizer quais os camiões que despejaram lixo durante um certo período de tempo na área onde o corpo foi encontrado.

Cruzámos um charco profundo próximo de um grupo de retretes portáteis e passámos por um posto de lavagem automática onde os camiões estavam a ser preparados para o regresso às estradas da vida.

— Não me parece que tenhamos alguma vez encontrado uma coisa assim - disse. - Mas acho que já se encontraram partes de um corpo na lixeira de Shoosmith. Pelo menos é o que consta.

Olhou para mim, pensando talvez que eu pudesse saber se o boato era verdade. Mas eu não confirmei o que ele dissera, enquanto o Explorer ia chapinhando através de lama salpicada de lascas de borracha e o fedor acre do lixo em decomposição já chegava à cabina. A minha atenção fora atraída pelo pequeno camião que estivera a observar desde que tinha chegado, com os meus pensamentos correndo por mil pistas diferentes.

— A propósito, o meu nome é Keith Pleasants. - Esfregou a mão nas calças e estendeu-ma. - Prazer em conhecê-la.

A minha mão enluvada apertou a dele num ângulo mal jeitoso, enquanto alguns homens segurando lenços ou trapos contra o nariz nos viam chegar. Eram quatro ao todo, reunidos em redor da traseira do que agora via ser um enfardador hidráulico, usado para despejar os descarregadores e para comprimir o lixo. Cole's Trucking Co. estava pintado nas suas portas.

— Aquele sujeito que está a picar o lixo com um pau é o detective do condado de Sussex - disse-me Pleasants.

Era um homem já de uma certa idade, em mangas de camisa, com um revólver sobre a anca. Parecia-me que já o tinha visto em algum sitão.

— Chama-se Grigg? - calculei, referindo-me ao detective com quem falara ao telefone.

— Isso mesmo. - A transpiração corria pelo rosto de Pleasants, que parecia mais excitado. - Sabe, nunca tive qualquer contacto com o departamento do xerife, nem sequer uma multa por excesso de velocidade.

O carro imobilizou-se e eu mal podia ver através do pó que se levantara no ar. Pleasants deitou a mão ao manípulo da porta.

— É melhor esperarmos um minuto - disse-lhe.

Esperei que a poeira pousasse, olhando através do pára-brisas e analisando o local como sempre faço ao chegar à cena de um crime. O balde da carregadora estava imobilizado no ar, e o enfardador por baixo dele estava quase cheio. A toda a volta, o aterro continuava atarefado e cheio do barulho dos diesels, pois o trabalho só tinha sido interrompido neste local. Por um momento fiquei a ver os potentes camiões brancos roncando colina acima, enquanto os Cats lançavam as garras e os compactadores esmagavam o chão com as suas rodas cortantes.

O corpo iria ser transportado de ambulância, e os paramédicos estavam a olhar para mim através das janelas empoeiradas da sua cabina equipada com ar condicionado, esperando para ver o que eu iria fazer. Quando me viram ajustar a máscara sobre a boca e o nariz e abrir a porta, saíram também. As portas bateram ruidosamente. O detective veio imediatamente ter comigo.

— Detective Grigg, Departamento do Xerife de Sussex - disse. - Fui eu que lhe telefonei.

— Esteve todo este tempo aqui? - perguntei-lhe.

— Desde que fomos notificados, por volta das treze horas. Sim senhora. Fiquei sempre aqui para me certificar de que nada seria perturbado.

— Desculpe - interrompeu um dos paramédicos. - Vai precisar já de nós?

— Talvez daqui a uns quinze minutos. Alguém irá chamá-los - disse, e eles não perderam tempo a regressar à ambulância. - Vou precisar de algum espaço aqui - disse para os outros.

Todos se afastaram ruidosamente, revelando o que tinham estado a guardar e a observar. A carne parecia invulgarmente descolorida na luz moribunda da tarde de Outono, o tronco um hediondo cepo que caíra de uma pazada de lixo, aterrando de costas. Pensei tratar-se de uma pessoa de raça branca, mas não tinha a certeza, e os gusanos acumulados na região genital dificultavam a determinação do sexo da vitima sem um exame mais apurado. Nem sequer podia determinar se a vítima era pré ou pós-púbere. A gordura corporal era anormalmente reduzida, com as costelas a sobressair por baixo dos seios planos que podiam ou não ser femininos.

Agachei-me e abri a maleta. Com uma pinça, recolhi alguns gusanos que guardei num boião para que o entomólogo os examinasse mais tarde, e decidi, após uma inspecção mais cuidadosa, que se tratava realmente de uma mulher. Tinha sido decapitada num ponto baixo da coluna cervical, e os braços e as pernas tinham sido separados do tronco. Os cotos estavam secos e escuros com o passar do tempo e reparei desde logo que havia uma diferença entre este caso e os restantes.

Esta mulher tinha sido desmembrada por meio de cortes através dos ossos rijos do úmero e do fémur, não pelas juntas. Tirando um bisturi da maleta, senti os homens a observar-me enquanto fazia uma incisão de um centímetro do lado direito do torso, introduzindo por ali um longo termómetro químico e colocando um segundo termómetro em cima da mala.

— Que está a fazer? - perguntou um homem com camisa aos quadrados e boné de basebol, que parecia estar prestes a vomitar.

— Preciso de saber a temperatura do corpo, para determinar a hora da morte. A temperatura do fígado é a mais exacta - expliquei pacientemente. - E também preciso de saber qual é a temperatura ambiente.

— Posso garantir-lhe que está bastante calor - disse outro homem.

— Trata-se então de uma mulher.

— Ainda é muito cedo para se saber - respondi. - Este enfardador é seu?

— É, sim.

Era um homem novo, com olhos negros e dentes muito brancos, e com tatuagens nos dedos, o que eu normalmente associava a pessoas que tinham estado na prisão. Tinha um lenço manchado de suor à volta do pescoço com um nó atrás e não conseguia olhar para o torso sem desviar imediatamente os olhos.

— No sitio errado, no momento errado - acrescentou, sacudindo a cabeça com hostilidade.

— Que quer dizer? - Grigg estava a olhar para ele.

— Não fui eu quem o trouxe. Isso sei eu - disse o condutor, como se esta fosse a declaração mais importante que iria fazer em toda a sua vida. - O Cat desenterrou-o enquanto estava a espalhar a minha carga.

— Então não podemos saber quando isto veio aqui parar? - Observei os rostos à minha volta.

Quem me respondeu foi Pleasants.

— Vinte e três camiões foram descarregados neste local desde as dez da manhã, sem contar com este. - Olhou para o enfardador.

— Porquê dez da manhã? - perguntei, pois parecia-me uma hora muito arbitrária para se começar a contar os camiões.

— Porque foi a essa hora que espalhámos a última camada de aparas de pneus. Por isso não há qualquer possibilidade de ter sido descarregado antes disso - explicou Pleasants, a olhar para o corpo. - E na minha opinião não devia estar aqui há muito tempo, porque não tem o aspecto que teria se tivesse sido pisado por um compactador de cinquenta toneladas com rodas cortantes, por camiões ou mesmo por esta carregadora.

Olhou para outros pontos do aterro onde o lixo compactado estava a ser arrancado dos camiões enquanto enormes tractores o esmagavam e espalhavam. O condutor do enfardador estava a ficar cada vez mais nervoso e impaciente.

— Temos máquinas enormes aqui por toda a parte - acrescentou Pleasants. - E quase nunca estão paradas.

Olhei para o enfardador e para a carregadora pintada de um amarelo brilhante, com a sua cabina vazia. Um farrapo de saco preto de lixo saiu a esvoaçar do balde levantado no ar.

— Onde está o condutor da carregadora? - perguntei.

Pleasants hesitou antes de responder.

— Bem, acho que sou eu. Houve uma baixa por doença e pediram-me para vir trabalhar para a colina.

Grigg aproximou-se mais da carregadora, olhando para o que restava do saco de lixo a flutuar no ar quente e árido.

— Diga-me o que viu - pedi a Pleasants.

— Não vi muito. Estava a descarregar aquele. - Fez um aceno na direcção do condutor. - E o meu balde apanhou o saco de lixo, aquele que vê ali. O saco rasgou-se e o corpo caiu e ficou onde está agora. - Calou-se, limpando o rosto à manga e sacudindo as moscas.

— Mas não sabe de certeza de onde veio este lixo - tentei de novo, enquanto Grigg escutava, apesar de provavelmente já ter recolhido as declarações de todos.

— Eu podia tê-lo desenterrado - concordou Pleasants. - Não digo que seja impossível. Mas não me parece.

— Isso é porque não queres pensar no assunto. - O condutor deitou-lhe um olhar enraivecido.

— Sei muito bem o que penso. - Pleasants não vacilou. - O balde tirou aquilo do teu enfardador quando estava a descarregá-lo.

— Olha que, não podes ter a certeza de que veio do meu lixo - ripostou o condutor com irritação.

— Não, não posso ter a certeza. Mas faz sentido.

— Para mim não faz. - A cara do condutor era ameaçadora.

— Pronto, meus senhores. É melhor ficarmos por aqui - avisou Grigg, aproximando-se mais, recordando com a sua presença que era forte e estava armado.

— Acho que tem razão - disse o condutor. - Começo a ficar farto desta merda. Quando é que posso ir-me embora? Já estou bastante atrasado.

— Quando acontece uma coisa destas, traz incómodos a toda a gente - disse Grigg, com olhar firme.

Rolando o olhar e resmungando palavrões, o condutor afastou-se e acendeu um cigarro.

Retirei do corpo o termómetro e levantei-o no ar. A temperatura interna era de vinte e nove graus, igual à temperatura ambiente. Voltei o torso, para ver que mais haveria, e notei um curioso grupo de vesículas cheias de fluido espalhadas pela zona inferior das nádegas. Procurando com mais atenção, encontrei indícios de outras na região dos ombros e nas coxas, nos rebordos dos cortes.

— Metam-na num saco - pedi. - Preciso do saco de lixo onde ela vinha, incluindo a parte que ficou presa no balde. Preciso também da camada de lixo à volta e por baixo dela, metam tudo no saco.

Grigg desdobrou um saco para lixo de grandes dimensões abriu-o. Tirou um par de luvas de um dos bolsos, agachou-se e começou a apanhar lixo às mãos cheias enquanto os paramédicos abriam a traseira da ambulância. O condutor do enfardador estava encostado à sua cabina, e eu podia sentir a sua fúria como se fosse uma onda de calor.

— De onde vinha o seu enfardador? - perguntei-lhe.

— Veja as etiquetas - respondeu-me num tom agreste.

— De que parte da Virgínia? - Recusava-me a a deixar que me intimidasse.

Quem respondeu foi Pleasants.

— Da região de Tidewater, minha senhora. O enfardador pertence-nos. A nossa firma tem uma série deles alugados.

 

O edifício da administração do aterro erguia-se perto da lagoa dos patos, contrastando singularmente com o ambiente febril e poeirento das cercanias. Era uma construção em estuque num claro tom de pêssego, com pequenos canteiros de flores nas janelas e uma sebe esculpida a debruar o passeio. Os estores eram cor de creme, e havia na porta um batente em latão com a forma de um ananás. No interior,

fui acolhida por um ambiente fresco e limpo que me deu um maravilhoso alivio e consegui entender facilmente a razão pela qual o Investigador Percy Ring resolvera fazer as suas entrevistas neste local. Era capaz de apostar que ele nunca chegara a aproximar-se do local do achado.

Encontrava-se na sala de descanso, sentado com um homem mais velho em mangas de camisa, a beber Diet Coke e a examinar diagramas impressos por computador.

— Esta é a Dra. Scarpetta. Desculpe - disse Pleasants, dirigindo-se a Ring - Não sei qual é o seu nome próprio.

Ring fez-me um grande sorriso e uma piscadela de olho.

— A doutora e eu conhecemo-nos há muito.

Vestia um fato azul bem passado, louro e ressudando uma pura inocência juvenil em que era fácil acreditar. Mas a mim não conseguia enganar. Era um conversador fascinante, mas era basicamente preguiçoso e eu não tinha deixado de notar que, sempre que se envolvia num destes casos, registavam-se frequentes fugas de informação para os meios de comunicação.

— E este é Mr. Kitchen - dizia-me Pleasants. - É o proprietário do aterro sanitário.

Kitchen vestia com simplicidade, calças de ganga e botas Timberland e os seus olhos eram cinzentos e tristes. Estendeu-me a mão grande e áspera.

— Sente-se, por favor - disse, puxando uma cadeira. - Hoje é um dia bem triste. Especialmente para quem quer que tenha sido a vítima.

— O dia triste daquela pessoa já foi há mais tempo - disse Ring. -    Agora já não sofre.

— Esteve lá em cima? - perguntei-lhe.

— Só cheguei aqui há cerca de uma hora. E aquilo não é a cena do crime, apenas o sítio onde o corpo foi parar - comentou. - Número cinco. - Desembrulhou uma barra defuicy Fruit - Agora o fulano já não espera tanto tempo. Desta vez só se passaram dois meses desde o anterior.

Senti a habitual arremetida de irritação. Ring gostava de chegar a conclusões precipitadas e de verbalizá-las, com a convicção de alguém que não sabe o suficiente para compreender que pode estar enganado. Isto devia-se em parte ao facto de querer obter resultados sem grande esforço.

— Ainda não examinei o corpo nem confirmei o sexo - disse, na esperança de que ele se recordasse da presença de mais pessoas na sala. - Não me parece ser esta a melhor altura para se formularem suposições.

— Bem, vou andando - disse Pleasants nervosamente, encaminhando-se para a porta.

— Irei precisar de si dentro de uma hora, para recolher o seu depoimento - lembrou-lhe Ring, falando alto.

Kitchen estava calado, examinando os diagramas, quando Grigg entrou. Cumprimentou-nos com um aceno e ocupou uma cadeira.

— Não acho que seja uma suposição dizer que o que temos aqui é um homicídio - disse Ring, olhando para mim.

— Disso não restam dúvidas. - Devolvi-lhe o olhar.

— E que é exactamente como os anteriores.

— Isso já não se pode afirmar com toda a certeza. Ainda não examinei o corpo, - repliquei.

Kitchen moveu-se desconfortavelmente na sua cadeira.

— Alguém quer um refresco? Talvez café? - perguntou. - Temos lavabos no corredor.

— É a mesma coisa - disse-me Ring, como se soubesse. - Mais um torso num aterro.

Grigg observava-nos inexpressivo, tamborilando no seu livro de apontamentos. Clicando por duas vezes a esferográfica, falou, dirigindo-se a Ring.

— Concordo com a Dra. Scarpetta. Parece-me que não devíamos estar já a relacionar este caso com qualquer outro. Especialmente em público.

— Deus me ajude. Podia bem passar sem este género de publicidade - disse Kitchen, suspirando com desânimo. - Sabem, quando estamos neste ramo, sabemos que isto pode acontecer, especialmente quando recebemos desperdícios de sítios como Nova Iorque, Nova Jérsia, Chicago. Mas nunca pensamos que casos destes irão aterrar no nosso quintal. - Olhou para Grigg. - Gostaria de oferecer uma recompensa a quem ajude a encontrar quem cometeu este crime terrível. Dez mil dólares por informações que levem à detenção.

— Isso é uma proposta bastante generosa - disse Grigg, impressionado.

— Os investigadores também podem candidatar-se? - Ring sorriu.

— Não me interessa quem vai resolver o caso. - Kitchen não estava a sorrir quando se voltou para mim. - Agora diga-me o que poderei fazer para ajudá-la, minha senhora.

— Constou-me que usa um sistema de localização por satélite - disse. - É disso que tratam esses diagramas?

— Estava justamente a explicá-los - disse Kitchen.

Empurrou diversos diagramas na minha direcção. Os seus padrões de linhas ondeadas assemelhavam-se a cortes de geodes, e estavam marcados com coordenadas.

— Isto é uma imagem da face do aterro - explicou Kitchen. - Podemos recolhê-la de hora a hora, diariamente, semanalmente, sempre que quisermos, para determinar onde o desperdício foi originado e onde foi depositado. As localizações no mapa podem ser assinaladas usando-se estas coordenadas. - Bateu de leve no papel. - É mais ou menos como se estivéssemos a traçar um gráfico em geometria ou álgebra. - Olhando para mim, acrescentou: - Acho que deve ter sofrido um bocado com coisas destas na universidade.

— Sofrido não é um termo suficientemente forte para retratar a realidade. - Sorri-lhe. - Dessa forma podem-se comparar as imagens para se saber como a face do aterro vai mudando de aspecto, de carga para carga.

Confirmou com um gesto da cabeça.

— É isso mesmo, em poucas palavras.

— E que lhe foi possível determinar?

Colocou oito mapas lado a lado. As linhas ondeadas em cada um deles diferiam, como rugas desiguais no rosto da mesma pessoa.

— Cada linha, basicamente, representa um nível de profundidade - explicou. - Desta forma podemos identificar com bastante precisão qual o camião responsável por uma dada profundidade.

Ring esvaziou a sua lata de Coke e atirou-a para o cesto de papéis. Folheou o livro de notas como se estivesse empenhado em encontrar qualquer coisa.

— Este corpo não podia estar muito enterrado - comentei. - Está muito limpo, dadas as circunstâncias. Não apresenta danos post-mortem e, segundo me foi possível observar lá fora, os Cats sacam dos camiões os fardos de lixo, rebentam-nos, e espalham os desperdícios no chão para que o compactador possa desfazê-los com a lâmina e compactá-los.

— É isso, mais ou menos. - Kitchen olhou-me com interesse. - Quer um emprego?

Sentia-me preocupada com imagens mentais da maquinaria, semelhante a dinossauros robóticos, com as suas garras mordendo os fardos embrulhados em plástico nos camiões. Conhecia bem os danos apresentados nos casos anteriores, em que os despojos humanos apareciam triturados e moídos. Descontando-se o que o homicida fizera, esta vítima apresentava-se intacta.

— É difícil encontrar empregadas boas - estava Kitchen a comentar.

— Dou-lhe toda a razão, amigo - disse Ring, enquanto Grigg o observava com crescente desdém.

— Parece ser um pormenor interessante - disse Grigg. - Se aquele corpo tivesse ficado durante algum tempo no chão, estaria bastante massacrado.

— Os primeiros quatro estavam - comentou Ring. - Calandrados como carne para hambúrguer. - Olhou para mim. - Este tem aspecto de ter sido compactado?

— O corpo não parece comprimido - respondi.

— Isso também é interessante - disse, meditativo. - Como se poderia explicar esse pormenor?

— Não deve ter partido de uma estação de transferência, onde seria compactado e embalado - disse Kitchen. - Deve ter partido de um descarregador que foi esvaziado pelo enfardador.

— E o enfardador não enfarda? - perguntou Ring, com uma expressão dramática. - Pensava que era por isso que se chamavam enfardadores. - Encolheu os ombros e sorriu para mim.

— Depende do local onde o corpo estava em relação ao outro lixo quando se fez a compactação - disse eu. - Depende de uma quantidade de coisas.

— Ou se foi mesmo compactado, dependendo da carga que o camião já teria - acrescentou Kitchen. - Estou a pensar que deve ter sido o enfardador. Ou, no máximo, um ou dois camiões antes dele, se estamos a falar das coordenadas exactas do local onde o corpo foi encontrado.

— Parece-me que vou precisar dos nomes desses camiões e dos locais de onde vieram - disse Ring. - Temos de entrevistar os condutores.

— Então agora está a classificar os condutores como suspeitos - disse-lhe Grigg, friamente. - Tenho de confessar, isso é no mínimo original. Não foram eles que originaram o lixo, acho eu. O lixo foi originado pelas pessoas que o deitaram fora. E acho que é uma dessas pessoas que nós procuramos.

Ring olhou para ele, sem qualquer indício de perturbação. - Penso que prefiro ouvir o que os condutores têm a dizer. Nunca se sabe. Seria um bom sistema para se despachar um trabalhinho. Deitamos o corpo num local que esteja dentro do nosso trajecto habitual e asseguramo-nos de que somos nós a levá-lo até ao aterro. Ou, melhor ainda, metemo-lo no nosso camião. Ninguém vai suspeitar de nós, não é verdade?

Grigg empurrou a sua cadeira para trás. Aliviou o colarinho e moveu os maxilares como se estivessem doridos. O pescoço deu um estalido, e a seguir fez estalejar os nós dos dedos. Por fim, atirou o livro de notas para cima da mesa e todos olhámos para ele enquanto deitava um olhar de irritação a Ring.

— Importa-se que seja eu a trabalhar nisto? - perguntou ao jovem investigador. - Não gostaria nada de não fazer o trabalho que o condado me paga para fazer. E parece-me bem que este caso é meu, e não seu.

— Só estou aqui para ajudar - disse Ring com toda a naturalidade, encolhendo os ombros mais uma vez.

— Eu não sabia que estava a precisar de ajuda - replicou Grigg.

— A polícia estadual organizou uma equipa de trabalho reunindo várias autoridades quando o segundo torso apareceu num condado diferente do do primeiro caso - disse Ring. - Você entrou no jogo um tanto atrasado, meu amigo. Parece-me que vai precisar de algumas informações de quem anda nisto há mais tempo.

Mas Grigg já não o ouvia, e disse para Kitchen:

— Vou também precisar de informações sobre os veículos.

— E se eu vos desse detalhes dos últimos cinco camiões que estiveram lá em cima, só para trabalharmos pelo seguro? - sugeriu Kitchen a todos nós.

— Isso ajudar-nos-ia bastante - concordei, levantando-me da mesa.

— Quanto mais cedo puder ser, melhor.

— A que horas começa a trabalhar amanhã? - perguntou-me Ring, ainda sentado na sua cadeira, como se houvesse pouco que fazer na vida e tanto tempo disponível.

— Está a referir-se à autópsia? - perguntei.

— Acertou em cheio.

— É possível que não abra esta vítima nos próximos dias.

— Posso saber porquê?

— A parte mais importante é o exame externo. Precisarei de muito tempo para isso. - Podia ver o interesse dele a desvanecer-se. - Tenho de examinar o lixo, de procurar vestígios, de desengordurar e desencarnar ossos, de consultar o entomólogo sobre a idade dos gusanos para ver se posso ter alguma ideia de quando o corpo teria sido deitado ao lixo, et cetera.

— Talvez seja melhor que me diga depois o que descobriu - decidiu.

Grigg vinha atrás de mim ao sairmos, sacudindo a cabeça enquanto dizia, com seu modo calmo e lento de falar:

— Quando deixei a tropa há muitos anos, era para a polícia estadual que queria ir. Não posso acreditar que tivessem recebido um palhaço destes.

— Felizmente, não são todos como ele - comentei.

Caminhámos na direcção do pôr do sol enquanto a ambulância descia lentamente a colina, envolta em nuvens de pó. Camiões punham-se na fila para a lavagem, enquanto outra camada desfeita da moderna América era adicionada à montanha. Era já noite quando chegámos aos nossos carros. Grigg parou perto do meu, a examiná-lo.

— Não sabia de quem seria este - disse, num tom de admiração.

— Um destes dias hei-de guiar um carro assim. Só para experimentar.

Sorri-lhe, enquanto destrancava a porta.

— Faltam-lhe coisas importantes, como a sereia e as luzes a piscar.

Ele riu-se.

— Marino e eu pertencemos à mesma liga de bowling. A equipa dele é a Baus of Fire, e a minha a Lucky Strikes. Aquele sujeito é talvez o marreta mais mesquinho que alguma vez conheci. Bebe cerveja e farta-se de comer. Depois pensa que toda a gente está a fazer batota. Da última vez levou consigo uma rapariga. - Sacudiu a cabeça. - Ela jogava como o raio dos Flintstones, e vestia-se como eles, com uma espécie de pele de leopardo. Só lhe faltava o osso espetado na cabeleira. Bem, diga-lhe que depois falamos.

Afastou-se, fazendo tilintar as chaves.

— Detective Grigg, agradeço-lhe a ajuda - disse-lhe.

Lançou-me um aceno de despedida e entrou no seu Caprice.

 

Ao planear a minha casa, certifiquei-me de que a lavandaria ficaria logo à saída da garagem, porque depois de trabalhar em cenários como aquele não queria largar vestígios de morte pelos quartos da minha vida privada. Minutos depois de sair do carro já tinha a roupa na máquina de lavar e as botas e os sapatos numa pia industrial onde os esfreguei com detergente e uma escova rija.

Embrulhando-me num roupão que deixava sempre pendurado na porta da lavandaria, dirigi-me ao quarto principal e tomei um longo duche bem quente. Estava exausta e decepcionada. Naquele momento não tinha sequer energia para pensar na mulher, ou no seu nome, ou com quem ela teria andado, e expulsei odores e imagens dos meus pensamentos. Preparei uma bebida e uma salada, olhando decepcionada para a taça de guloseimas em cima do balcão, e pensei nas plantas que, na varanda, estavam à espera de ser envasadas. Depois telefonei a Marino.

— Ouça - disse-lhe quando atendeu. - Acho que Benton devia estar aqui amanhã de manhã para tomar conta disto.

Houve uma longa pausa.

— Concordo - disse ele. - Segundo entendi, quer que lhe diga para vir para Richmond. Mas não quer ser a doutora a dizer-lho.

— Se não se importar. Estou derreada.

— Não há problema. A que horas?

— Quando ele quiser. Vou estar lá o dia todo.

Voltei ao meu escritório antes de me deitar, para ver se tinha alguns e-mails. Lucy raramente me telefonava quando podia usar o computador para me dizer onde e como estava. A minha sobrinha era agente especial do FBI, a técnica especialista da Equipa de Recuperação de Reféns, ou HRT. Podia ser enviada para qualquer ponto do mundo de um momento para o outro.

Como uma mãe-galinha, habituara-me a procurar com freqüência mensagens dela no meu computador, receando o dia em que o seu pager se pusesse a tocar, enviando-a para a Base da Força Aérea de Andrews com os rapazes, para embarcar em mais um cargueiro C-141. Movimentando-me entre as rimas de publicações à espera de serem lidas e de espessos volumes técnicos comprados há pouco tempo mas que ainda não tivera tempo de arrumar nas estantes, sentei-me à secretária. O meu escritório era onde passava a maior parte do meu tempo livre, e planeara-o com um fogão de sala e amplas janelas que davam para um recanto rochoso do rio James.

Ligando o computador à America On Line, ou AOL, fui acolhida por uma voz mecânica masculina anunciando-me que tinha correio. Tinha e-mails a respeito de vários casos, julgamentos, reuniões profissionais e artigos de jornais especializados, e uma mensagem de alguém que não reconheci. O seu nome de utilizador era deadoc. Imediatamente me senti inquieta. Não havia qualquer descrição do que este indivíduo me teria mandado, e, quando abri o que ele me tinha escrito, dizia apenas dez.

A mensagem tinha um ficheiro gráfico anexado. Copiei-o e abri-o. Uma imagem começou a materializar-se no monitor, uma fila de pixels de cada vez. Percebi que estava a olhar para a fotografia de uma parede da cor de massa de vidraceiro e do rebordo de uma mesa com uma espécie de cobertura azul pálido, manchada por alguma coisa num tom vermelho-escuro. Depois começou-se a ver no ecrã um ferimento aberto, vermelho vivo e de contornos irregulares, seguido por tonalidades de carne que se transformaram em cotos e mamilos ensanguentados.

Fiquei a olhar estupefacta, enquanto aquele horror ia ficando nítido, e depois agarrei-me ao telefone.

— Marino, acho que precisa de vir já aqui - disse-lhe, num tom apavorado.

— Que se passa? - disse ele, alarmado.

— Há aqui uma coisa que precisa de ver.

— A doutora sente-se bem?

— Nem sei.

— Aguente firme. - Tinha tomado conta do caso. - Vou já para aí.

Imprimi o ficheiro e gravei-o na minha drive A, receando que a imagem desaparecesse de repente. Enquanto esperava por Marino, reduzi a intensidade das luzes no escritório, para que os detalhes e as cores se tornassem mais nítidos. O meu pensamento corria em círculos enquanto olhava para aquela selvajaria, com o sangue a formar um retrato abjecto que para mim, normalmente, não seria estranho. Outros médicos, cientistas, advogados e autoridades policiais enviavam-me frequentemente fotografias como estas através da Internet. Era normal ser convidada, através de e-mails, a examinar cenas de crimes, órgãos, ferimentos, diagramas, até reconstruções animadas de casos prestes a ser apresentados em tribunal.

Esta fotografia poderia facilmente ter-me sido enviada por um detective, um colega. Poderia ter vindo de um assistente do Ministério Público ou do CASKU. Mas havia algo que obviamente não estava certo. Até agora não tínhamos nenhum cenário do crime para este caso, apenas um aterro sanitário para onde a vítima havia sido atirada, além do lixo e do saco rasgado que estavam à sua volta. Só o homicida ou alguém relacionado com o crime poderia ter-me enviado este ficheiro.

Quinze minutos depois, quase à meia-noite, a campainha da porta tocou, e saltei da cadeira. Corri pelo corredor para abrir a porta a Marino.

— Que raio será agora? - disse ele sem mais rodeios.

Estava a transpirar numa T-shirt cinzenta da polícia de Richmond que lhe ficava muito justa ao corpo e à barriga, e vestia calções largos e sapatos de atletismo com peúgas puxadas até cobrirem as barrigas das pernas. Cheirava a suor e a cigarros.

— Venha - disse-lhe.

Seguiu-me corredor fora até ao meu escritório, e quando viu o que estava no ecrã do computador sentou-se na minha cadeira, com uma careta de espanto.

— Esta merda será o que eu penso que é? - disse ele.

— Parece que a foto foi feita quando o corpo foi desmembrado.

Não estava habituada a ver alguém invadir-me o meu lugar privado, e sentia-me cada vez mais ansiosa.

— Foi isto que encontrou hoje.

— O que está aqui a ver foi obtido pouco depois da morte - comentei. - Mas, sim, este é o torso do aterro.

— Como sabe? - perguntou Marino.

Tinha os olhos pregados no monitor, e regulou a posição da minha cadeira. Depois os seus grandes pés derrubaram uma pilha de livros, enquanto procurava uma posição mais confortável. Quando o vi pegar em pastas e mudá-las para outro local na secretária, não consegui conter-me por mais tempo.

— Tenho as minhas coisas no lugar onde as quero - disse-lhe sem meias palavras, devolvendo as pastas ao seu local habitual.

— Tenha calma, doutora - disse ele, como se aquilo não tivesse importância. - Como podemos saber que esta coisa não é um embuste?

Voltou a deslocar as pastas para o lado, e agora fiquei mesmo irritada.

— Marino, vai ter de sair da minha cadeira - disse-lhe. - Não deixo que ninguém se sente à minha secretária. Está a dar comigo em maluca.

Deitou-me um olhar furioso e saiu da minha cadeira.

— Olhe, faça-me um favor. Da próxima vez chame outra pessoa quando tiver um problema.

— Tente ser mais delicado...

Marino cortou-me a fala, perdendo a cabeça.

— Não. Você é que precisa de ser mais delicada, e deixe de ser tão comichosa com as suas coisas. Não admira que a doutora e Wesley tenham problemas.

— Marino - avisei-o. - Acaba de cruzar uma linha e é melhor parar aí mesmo.

Ficou calado, olhando em volta, a suar.

— É melhor voltarmos a este assunto. - Sentei-me na minha cadeira, reajustando-a. - Não me parece que isto seja um embuste, e creio que é mesmo o torso encontrado no aterro.

— Porquê? - Não foi capaz de me fitar, com as mãos enterradas nos bolsos.

— Os braços e as pernas estão cortados através dos ossos longos, e não pelas articulações. - Toquei no monitor. - Há outras analogias. É ela, a não ser que outra vitima com um tipo de corpo semelhante tenha sido morta e desmembrada pelo mesmo método, e ainda não a encontrámos. E não sei como alguém poderia perpetrar um embuste como este sem saber como a vítima foi desmembrada. Não nos esqueçamos também de que este caso ainda não foi comentado nos jornais.

— Merda. - Tinha o rosto muito avermelhado. - E haverá alguma indicação de um remetente?

— Há. Alguém na AOL com o nome D-E-A-D-O-C.

— Como em Dead-Doc (doutora morta)? - Estava tão intrigado que se esquecia do seu mau humor.

— Acho que sim. A mensagem tinha só uma palavra: dez.

— E mais nada?

— Em letra minúscula.

Olhou para mim, a pensar.

— Se contarmos com os da Irlanda, este é o caso número dez. Tem uma cópia desta coisa?

— Tenho. E os casos de Dublin e a sua possível ligação com os primeiros quatro daqui foram referidos nos jornais. - Entreguei-lhe uma cópia impressa. - Qualquer pessoa podia saber isso.

— Não interessa. Partindo do princípio de que se trata do mesmo homicida, que agora volta a atacar, ele saberá muito bem quantas foram as suas vitimas até agora - disse. - Mas o que não percebo é como ele sabia a quem enviar este ficheiro.

— O meu endereço na AOL não seria difícil de adivinhar. É o meu nome.

— Jesus, custa-me a crer que tenha feito uma coisa dessas - voltou ele a explodir. - Isso é como usar a data de nascimento como código de acesso ao alarme anti-roubo.

— Uso o e-mail quase exclusivamente para contactar colegas, elementos do Departamento da Saúde, a policia. Precisam de alguma coisa fácil de decorar. Além disso - acrescentei, enquanto ele continuava a olhar-me com ar crítico - nunca tive qualquer problema.

— Bem, agora já tem, com toda a certeza - disse. - O lado positivo é que talvez seja possível encontrarmos alguma coisa aqui que possa ajudar-nos. Talvez tenha deixado um rasto no computador.

— Na Internet.

— Pois, ou isso - disse ele. - Talvez fosse melhor chamar a Lucy.

— Benton é quem deveria fazê-lo - recordei-lhe. - Não posso pedir-lhe para me ajudar num caso só porque sou tia dela.

— Por isso acho que também tenho de lhe falar nesse assunto, não é? - Procurou caminho por entre a desarrumação, aproximando-se da porta. - Espero que tenha algumas cervejas cá em casa. - Parou e voltou-se para mim. - Sabe, doutora, não tenho nada a ver com isso, mas vai ter de falar com ele mais cedo ou mais tarde.

— Tem toda a razão - disse-lhe. - Não tem nada a ver com isso.

 

Na manhã seguinte, acordei com o som abafado da chuva que batia pesadamente no telhado, e com o toque persistente do despertador. Ainda era cedo para um dia em que deveria estar de folga, e ocorreu-me de súbito que durante a noite o mês mudara para Novembro. O Inverno não vinha longe, e era mais um ano que passava. Abrindo os estores, observei o dia. Pétalas das minhas rosas juncavam o chão, e o rio corria agitado em volta de rochas que pareciam negras.

Sentia-me culpada a respeito de Marino. Tinha sido impaciente com ele ao mandá-lo para casa sem lhe oferecer sequer uma cerveja. Mas não queria conversar a respeito de assuntos que ele não compreenderia. Para ele era tudo simples. Eu estava divorciada. A mulher de Benton Wesley tinha-o trocado por outro. Tínhamos um caso amoroso, por isso podíamos avançar para o casamento. Durante algum tempo tinha concordado com o plano. Durante o Outono e o Inverno do ano anterior, Wesley e eu fizemos esqui, mergulhámos, fomos às compras, cozinhámos em casa e ao ar livre, e até trabalhámos a arranjar o quintal. Mas não nos entendíamos.

Na realidade, não o queria na minha casa como não quisera Marino sentado na minha cadeira. Quando Wesley mudava uma peça de mobília de sítio, ou mesmo quando arrumava pratos e talheres nos armários errados, sentia uma raiva secreta que me surpreendia e consternava. Nunca acreditara que o nosso relacionamento fosse correcto enquanto Wesley continuava casado, mas nesse tempo tínhamos apreciado melhor a companhia um do outro, especialmente na cama. Receava que a minha impossibilidade de sentir o que achava que tinha de sentir revelava um aspecto de mim que me recusava a reconhecer.

Fui de carro para o meu serviço, com os limpa-vidros trabalhando sem descanso enquanto a chuva martelava furiosamente no tejadilho. O trânsito era escasso, pois mal passavam das sete, e o panorama da baixa de Richmond surgiu lentamente através da névoa chuvosa. Pensei novamente na fotografia. Parecia-me vê-la de novo a surgir pouco a pouco no meu monitor, e os pêlos dos meus braços puseram-se em pé, enquanto sentia um arrepio passar por mim. Fiquei perturbada de um modo que não podia definir ao ocorrer-me pela primeira vez que a pessoa que ma tinha enviado podia ser alguém que eu conhecia.

Virando para a saída da Seventh Street, circundei a praça de Shockoe Slip, com o seu empedrado molhado e os restaurantes da moda, que a esta hora permaneciam escuros. Passei por parques de estacionamento que mal começavam a encher-se, e entrei naquele que se localizava atrás do meu edifício de quatro andares. Mal podia acreditar quando constatei que o meu espaço de estacionamento, claramente identificado por um letreiro dizendo INVESTIGADORA-CHEFE, estava ocupado pela furgoneta de um programa noticioso da televisão. A equipa sabia que, se esperasse o tempo que fosse necessário, seria recompensada com a minha presença.

Aproximei-me e fiz-lhes sinal para se deslocarem, enquanto que as portas da furgoneta se abriam. Um operador de câmara saltou para o exterior, envergando um impermeável, e veio na minha direcção, seguido por uma jornalista com o seu microfone. Desci ligeiramente o vidro da janela.

— Saiam daí - disse, e não fiz qualquer esforço para ser delicada. - Estão a ocupar o meu espaço.

Não reagiram, enquanto alguém saía do veículo com projectores portáteis. Por um momento fiquei a olhar, cheia de raiva. A jornalista estava a obstruir-me a porta, enfiando o microfone através da abertura da janela.

— Dra. Scarpetta, pode confirmar que o Carniceiro atacou outra vez? - perguntou ela, em voz alta, enquanto a câmara rodava e as luzes ardiam.

— Afastem a furgoneta - disse, com calma férrea e a olhar fixamente para ela e para a câmara.

— É verdade que encontraram um torso? A chuva escorria-lhe do capuz enquanto fazia avançar mais o microfone para dentro do carro.

— Vou-lhes pedir pela última vez para retirarem o carro do meu lugar de estacionamento - disse, como um juiz prestes a citar desrespeito pelo tribunal.

O operador de câmara procurou um novo ângulo, accionando o zoom, com as luzes fortes a incidir-me nos olhos.

— Foi desmembrado como os outros...?

A jornalista puxou o microfone mesmo a tempo quando fiz subir o vidro da janela. Engrenei a marcha-atrás e arranquei, pondo a equipa em fuga enquanto descrevia uma volta de trezentos e sessenta graus. Os pneus guincharam e derraparam enquanto estacionava o carro mesmo atrás da furgoneta, prendendo-a entre o Mercedes e o prédio.

— Espere lá!

— Eh! Não pode fazer isto!

Pareciam não acreditar no que viam, enquanto eu deixava o meu carro. Sem me preocupar com a chuva, corri para a porta e abri-a com a chave.

— Eh! - os protestos continuavam. - Não podemos sair!

Dentro do recinto fechado, a água que cobria o tejadilho da enorme station castanha ia gotejando para o chão de cimento. Abri outra porta e entrei no corredor, olhando em volta para saber quem já teria chegado. Os azulejos brancos estavam impecáveis, o ar cheirava a desodorizante industrial, e ao entrar no escritório da morgue vi que as maciças portas de aço inoxidável estavam a abrir-se.

— Bom dia! - disse Wingo, com um sorriso de surpresa. - Veio cedo.

— Obrigada por ter trazido a station para o recinto coberto - respondi.

— Que eu saiba, não estão para chegar novos casos, por isso pensei que não faria mal deixar o carro cá dentro.

— Viu alguém lá fora ao chegar? - perguntei.

Ele pareceu perplexo.

— Não. Mas isso foi há cerca de uma hora.

Wingo era o único membro da minha equipa que chegava sempre ao trabalho antes de mim. Era ágil e atraente, com traços fisionómicos agradáveis e cabelos escuros e compridos. Um obsessivo-compulsivo, passava pessoalmente a ferro as batas de serviço, lavava a station e as macas anatómicas diversas vezes por semana, e estava sempre a polir as portas de aço inox até brilharem como espelhos. A sua tarefa era fazer funcionar a morgue, e fazia-o com a precisão e o orgulho de um chefe militar. Os descuidos e a indiferença não eram permitidos por nenhum de nós, e que ninguém se atrevesse a processar sem cautelas os resíduos perigosos ou a dizer piadinhas sobre os mortos.

— O caso do aterro está no frigorífico - disse Wingo. - Quer que o traga para fora?

— É melhor esperarmos pela reunião da equipa - respondi. Quanto mais tempo estiver refrigerada, melhor, e não quero que ninguém circule por aí a espreitar.

— Isso nunca acontecerá - disse Wingo, como se lhe tivesse sugerido que talvez não estivesse a cumprir os seus deveres.

— Nem mesmo quero que alguém da equipa venha para aqui só por curiosidade.

— Oh. - Os olhos faiscaram-lhe, irados. - Não consigo perceber esta gente.

Nunca os compreenderia, porque não era como eles.

— É melhor ir avisar a segurança - pedi-lhe. - Os jornais já andam no recinto de estacionamento.

— Deve estar a brincar. Tão cedo?

— O Canal Oito estava à minha espera quando cheguei. - Entreguei-lhe as chaves do meu carro. - Deixe-os ferver por mais alguns minutos, e depois liberte-os.

— O que quer dizer, liberte-os? - Franziu a testa, olhando para as chaves que tinha na mão.

— Estão no meu espaço de estacionamento. - Dirigi-me ao elevador.

— Estão o quê?

— Há-de ver. - Entrei na cabina. - Se eles por acaso tocaram no meu carro, vou acusá-los de invasão de propriedade privada e danos intencionais. Depois peço à administração que reclame junto do director da estação. Sou capaz de processá-la. - Sorri para ele enquanto as portas do elevador se fechavam.

O meu escritório situava-se no segundo andar do Edifício dos Laboratórios, que tinha sido construído na década de setenta e que dentro em pouco iria ser abandonado por nós e pelos cientistas do andar superior. íamos finalmente dispor de instalações espaçosas no novo Parque Biotécnico da cidade, logo a seguir à Broad Street, não longe do Marriott e do Coliseum.

A construção já tinha começado, e eu passava demasiado tempo a discutir detalhes, plantas e orçamentos. O que tinha sido o meu lar durante anos estava agora em desordem, pilhas de caixas ao longo dos corredores e funcionários sem disposição para a manutenção dos arquivos, visto que mais tarde ou mais cedo tudo teria de ser arrumado de novo. Tentando não prestar atenção às caixas, segui pelo corredor até ao meu gabinete, onde a mesa de trabalho se encontrava no seu estado habitual de desorganização.

Fui consultar mais uma vez o meu e-mail, quase na expectativa de encontrar outro ficheiro anónimo, mas só estavam lá as mesmas mensagens, e dei-lhes uma nova leitura, enviando respostas breves. O endereço deadoc aguardava calmamente na minha caixa de correio, e não resisti à tentação de abri-lo e ao ficheiro com a fotografia. Estava a concentrar-me tão esforçadamente que não dei pela chegada de Rose.

— Parece-me que Noé devia construir uma nova arca - comentou ela.

Assustada, voltei-me e vi-a junto da porta que ligava o meu gabinete ao dela. Estava a despir o impermeável, e parecia preocupada.

— Não queria assustá-la - disse.

Hesitante, entrou no gabinete, a observar-me com atenção.

— Sabia que ia encontrá-la aqui, apesar dos meus conselhos - acrescentou. - Parece que viu um fantasma.

— Que está a fazer aqui tão cedo? - perguntei.

— Tinha um pressentimento de que a doutora ia estar muito ocupada. - Despiu o casaco. - Já viu o jornal desta manhã?

— Ainda não.

Abriu a mala de mão e tirou os óculos.

— Toda esta conversa do Carniceiro. Pode imaginar a agitação. Enquanto vinha a guiar, ouvi no noticiário que, desde que estes casos começaram a surgir, a venda de armas pessoais atingiu níveis nunca imaginados. Por vezes chego a pensar se os armeiros não estarão na origem de coisas deste género. Assustam-nos de morte para irmos todos a correr comprar uma .38 ou uma semiautomática.

Rose tinha o cabelo cor de aço, que usava sempre puxado para cima, dando ao rosto um ar aristocrata e intenso. Nada havia que ela nunca tivesse visto, e não temia ninguém. Eu vivia com o receio de que o momento da sua reforma viesse, pois conhecia a sua idade. Rose não tinha necessidade de trabalhar. Ia ficando porque gostava do que fazia, e porque não tinha ninguém à sua espera em casa.

— Venha ver - disse-lhe, puxando a minha cadeira para trás.

Ela dirigiu-se ao meu lado da secretária e aproximou-se tanto que eu podia cheirar o seu White Muslt, o perfume que descobrira na Body Shop, onde eram contrários às experiências com animais. Rose tinha recentemente adoptado o seu quinto galgo reformado. Criava gatos siameses, possuía diversos aquários, e estava a um passo de se tornar perigosa para quem usasse casacos de pele. Fixou o olhar no meu monitor, e parecia não saber o que estava a observar. De repente ficou rígida.

— Deus meu - murmurou, olhando para mim por cima dos seus bifocais. - É isto o que está lá em baixo?

— Acho que é uma versão mais antiga - respondi. - Foi-me enviado através da AOL.

Ela estava sem fala.

— Parece-me desnecessário acrescentar - prossegui - que confio em si para guardar com cuidado este local enquanto eu estiver lá em baixo. Se aparecer alguém no átrio da entrada que não conheçamos, ou de que não estejamos à espera, quero que a segurança os intercepte. Nem pense em ir lá fora ver o que eles querem. - Olhei-a de modo penetrante, sabendo como ela era.

— Pensa que ele seria capaz de vir aqui? - perguntou-me em tom perfeitamente normal.

— Não sei bem o que pensar, excepto que ele tinha necessidade de me contactar. - Desliguei o ficheiro e levantei-me. - E pôde fazê-lo.

 

Por volta das oito e meia, Wingo empurrou o corpo na maca de rodas até à balança e iniciámos o que iria ser um longo e meticuloso exame. O torso pesava cerca de vinte e um quilos e tinha cinquenta e três centímetros de comprimento. A livormortis apresentava-se esbatida na face posterior, significando que, ao cessar a circulação, o sangue assentara de acordo com a gravidade, indício de que a vítima ficara de costas durante horas ou dias após a morte. Não conseguia olhar para ela sem ver a maltratada imagem no ecrã do meu computador e fiquei convencida de que ela e o torso correspondiam à mesma pessoa.

— Que altura teria ela? - perguntou Wingo enquanto levava a maca para junto da primeira mesa de autópsia.

— Usaremos a altura das vértebras lombares para calcular a altura, porque obviamente não dispomos de tíbias ou fémures - respondi-lhe, atando um avental de plástico por cima da bata. - Mas parece pequena. Frágil, mesmo.

Momentos depois, o radiologista tinha terminado o processamento, e estava a montar as chapas nas caixas de luz. O que vi então contava uma história que parecia não fazer sentido. As faces da sínfise púbica, ou seja as superfícies em que uma púbis se encosta à outra, não se apresentavam rugosas e arestadas, como sucede durante a juventude. Em vez disso, a matéria óssea apresentava-se bastante desgastada, com margens labiadas irregulares. Outras chapas revelavam extremidades esternais das costelas com excrescências osseas irregulares, tendo o osso paredes muito finas e com rebordos afiados, e notavam-se também alterações degenerativas nas vértebras lombo-sacrais.

Wingo não era antropólogo, mas via também o que era óbvio.

— Se não tivesse a certeza, diria que as chapas dela tinham sido trocadas pelas de outra pessoa - comentou.

— Esta senhora é idosa - disse eu.

— Qual seria a idade, é capaz de calcular?

— Não gosto de calcular. - Estava a estudar as radiografias. - Mas diria que era capaz de ter uns setenta anos. Ou, jogando pelo seguro, entre sessenta e cinco e oitenta. Venha. Vamos analisar um pouco o lixo.

As duas horas seguintes foram passadas esquadrinhando um enorme saco de lixo trazido do aterro e que tinha estado directamente em redor e por baixo do corpo. O saco de lixo em que ela estivera acondicionada era negro, com uma capacidade de uns cem litros, e fora fechado com um atilho plástico amarelo, com serrilha. Tendo colocado máscaras e luvas, Wingo e eu afastámos as aparas de borracha e os restos de acolchoados que eram usados como cobertura no aterro. Examinámos incontáveis farrapos viscosos de plástico e de papel, extraindo gusanos e moscas mortas e guardando-os numa caixa de papelão.

Os nossos tesouros foram escassos, um botão azul que talvez nada tivesse a ver com o caso e, curiosamente, um dente de criança, que imaginei ter sido trocado por uma moeda deixada debaixo de alguma almofada. Encontrámos um pente retalhado, uma pilha esmagada, diversas estilhas de louça, um cabide de arame dobrado, e a tampa de uma Bic. O resto era sobretudo borracha, cotão, película plástica rasgada e papel espapaçado que deitámos para a lata do lixo. Depois montámos candeeiros potentes à volta da mesa e colocámos o torso sobre um lençol limpo.

Com recurso a uma lente, comecei a examiná-lo um centímetro de cada vez, e a sua carne parecia um microscópico aterro de detritos.

Com pinças extraí pálidas fibras do coto escuro de sangue que dantes tinha sido o seu pescoço, e encontrei cabelos, três, grisalhos, com uns trinta e seis centímetros de comprimento, aderindo a sangue seco, posteriormente.

— Preciso de outro sobrescrito - disse a Wingo, ao encontrar outra coisa de que não estava à espera.

Embebidos nas extremidades de cada úmero, ou seja o osso da parte superior do braço, e também nas margens do músculo em volta, descobri mais fibras e minúsculos fragmentos de tecido que parecia ser azul-claro, sugerindo que a serra teria cortado através dele.

— A mulher foi desmembrada ainda com a sua roupa ou com qualquer coisa em que estava embrulhada - declarei, espantada.

Wingo suspendeu o que estava a fazer e olhou para mim.

— As outras não foram.

As outras vitimas pareciam ter estado nuas quando tinham sido serradas e cortadas aos pedaços. Wingo tomou mais notas enquanto eu prosseguia o meu exame, espreitando através da lente.

— Fibras e pedacinhos de tecido estão também embebidos em ambos os fémures. - Examinei mais de perto.

— Portanto ela estava também vestida da cintura para baixo? - perguntou Wingo.

— É o que parece.

— Nesse caso, alguém esperou que ela fosse desmembrada, e depois tirou-lhe as roupas? - Olhou para mim, emocionado, enquanto a imagem começava a formar-se-lhe no cérebro.

— Não queria que nós encontrássemos as roupas. Talvez houvesse aí demasiadas informações - sugeri.

— Nesse caso, porque não teria ele tirado as roupas da vítima antes de começar?

— Talvez não quisesse ver-lhe o corpo enquanto estava a desmembrá-la.

— Oh, então deve tratar-se de uma pessoa de grande sensibilidade - pronunciou Wingo, como se sentisse um profundo desprezo por semelhante pessoa.

— Tome nota das medições - pedi-lhe. - A coluna cervical está cortada transversalmente ao nível C-5. O fémur residual do lado direito mede cinco vírgula zero oito centímetros abaixo do trocanter inferior, e o do lado esquerdo seis vírgula trinta e cinco centímetros, com marcas de serra visíveis. Os segmentos direito e esquerdo do úmero têm dois centímetros e meio, marcas de serra visíveis. Na anca superior direita há uma velha cicatriz de vacinação com dois centímetros.

— E quanto a isto? - Referia-se às numerosas vesículas cheias de fluido que se espalhavam nas nádegas, nos ombros e na parte superior das coxas.

— Não sei - respondi, estendendo o braço para pegar numa seringa. - Estou a pensar no vírus de herpes zona-zoster.

— Olá! - Wingo afastou-se da mesa num salto. - Era melhor que me tivesse dito isso há mais tempo. - Estava aterrorizado.

— Zona. - Comecei a preparar uma etiqueta para um tubo de ensaio. - Talvez seja. Tenho de confessar que acho isto um pouco esquisito.

— Explique-se, se faz favor. - Estava a ficar mais enervado em cada momento que passava.

— Quando se trata de zona - respondi - o vírus ataca os nervos sensoriais. Quando as vesículas rebentam, fazem-no numa faixa que acompanha a distribuição dos nervos. Debaixo de uma costela, por exemplo. E as vesículas terão idades diversificadas. Mas aqui trata-se de uma colheita, todas elas com idades semelhantes.

— Que mais poderia isso ser? - perguntou. - Varicela?

— Trata-se do mesmo vírus. As crianças apanham varicela. Os adultos apanham zona.

— E se eu apanhar isso? - perguntou Wingo.

— Teve varicela enquanto miúdo?

— Não faço ideia.

— E quanto à vacina V7V? - perguntei. Foi vacinado?

— Não.

— Bem, se não tem anticorpos para V7V, é melhor que seja vacinado. -          Olhei para ele. - Sabe se o seu sangue tem imuno-supressivos? - Ele não disse nada enquanto se aproximava de um colector de lixo, arrancando das mãos as luvas de borracha e atirando-as para o recipiente. Transtornado, pôs um novo par de luvas mais espessas, de Nitrile. Fiquei a observá-lo até que regressou para junto da mesa.

— Só penso que poderia ter-me avisado antes - disse, parecendo prestes a rebentar em lágrimas. - Quer dizer, não é que se possam tomar muitas precauções num sítio destes, como vacinas, a não ser para a hepatite B. Por isso espero que me diga o que pode acontecer.

— Acalme-se.

Tentei ser amável com ele. Wingo era demasiado sensível para o seu próprio bem, e era esse realmente o único problema que alguma vez me tinha dado.

— Não é possível apanhar-se varicela ou zona desta senhora a não ser por troca de fluidos corporais - expliquei-lhe. - Por isso, desde que use luvas e faça a sua vida normal, e não se corte nem se pique com alguma seringa, não ficará exposto ao vírus.

Por um instante os seus olhos rebrilharam, e olhou rapidamente para outro lado.

-Vou começar a tirar fotografias - disse.

 

Marino e Benton Wesley apareceram a meio da tarde, enquanto a autópsia prosseguia. Nada mais havia que eu pudesse fazer com o exame externo, e Wingo tinha acabado por ir almoçar tarde, por isso estava sozinha. Os olhos de Wesley fixaram-se em mim assim que passou a porta, e podia ver pelo estado do casaco dele que lá fora continuava a chover.

— Só para que saiba - disse Marino, logo à entrada - há um alarme de uma possível inundação.

Como não havia janelas na morgue, não tinha hipótese de saber como estaria o tempo lá fora.

— O alarme é grave? - perguntei. Entretanto Wesley aproximara-se do torso e examinava-o.

— Suficientemente sério para que, se isto continuar, alguém tenha de começar a empilhar sacos de areia - respondeu Marino, enquanto arrumava o chapéu de chuva a um canto.

O meu edifício situava-se a vários quarteirões do rio James. Anos atrás, o piso inferior tinha-se inundado, corpos doados à ciência ficaram a flutuar nas tinas transbordadas e infiltrou-se água envenenada com formalina na morgue e no recinto de estacionamento das traseiras.

— Devo começar a preocupar-me? - perguntei, ralada.

— Vai começar a afrouxar - disse Wesley, como se também pudesse prever o comportamento do tempo.

Despiu o seu impermeável, e o seu fato era de um azul tão escuro que parecia preto. Vestia uma camisa branca engomada e uma gravata de seda num padrão conservador; o cabelo grisalho estava mais comprido do que era normal, mas apresentava-se bem penteado. As feições severas faziam-no parecer mais intenso e intimidante do que realmente era, mas hoje o seu rosto mostrava-se ameaçador, e não só por minha causa. Ele e Marino aproximaram-se de uma das mesas para pôr máscaras e luvas.

— Peço desculpa pelo atraso - disse Wesley, enquanto eu continuava a trabalhar. - Sempre que tentava sair de casa o telefone punha-se a tocar. Esta história é um verdadeiro problema.

— Para ela é, sem dúvida - disse eu.

— Merda. - Marino contemplou o que restava de um ser humano.

— Como poderá alguém fazer uma coisa destas?

— Eu digo-lhe como - disse eu, enquanto retalhava algumas fatias do baço. - Primeiro pega-se numa velhota e faz-se tudo para que não seja adequadamente alimentada e dessedentada, e quando adoece não se lhe dão cuidados médicos. Depois dá-se-lhe um tiro ou bate-se-lhe na cabeça. - Deitei um olhar a ambos. - Estou capaz de apostar que ela apresenta uma fractura basilar do crânio, ou talvez outro tipo de trauma.

Marino olhou-me com estupefacção.

— Ela não tem cabeça. Como pode afirmar isso?

— Posso afirmá-lo porque há sangue no canal de ventilação.

Aproximaram-se mais para ver o que eu estava a dizer.

— Um dos modos pelos quais isso podia ter acontecido - prossegui, - é no caso de ela ter tido uma fractura basilar do crânio, o sangue ter sido derramado para a garganta, sendo aspirado daí para o canal de ventilação.

Wesley observou cuidadosamente o corpo com o desprendimento de quem já viu mutilação e morte um milhão de vezes. Depois olhou para o espaço onde estaria a cabeça, como se pudesse imaginá-la.

— Apresenta hemorragia no tecido muscular. - Fiz uma pausa para que esta informação fosse absorvida. - Ainda estava viva quando se iniciou o desmembramento.

— Jesus Cristo - exclamou Marino com repugnância, enquanto acendia um cigarro. - Não me diga uma coisa dessas.

— Não estou a dizer que ela estivesse consciente - acrescentei. - É provável que isto tenha acontecido mais ou menos na altura da morte. Mas ela ainda tinha tensão arterial, por fraca que fosse. A hemorragia ocorre em redor do pescoço. Mas não nos braços ou nas pernas.

— Então a cabeça foi separada em primeiro lugar - comentou Wesley.

— Pois.

Ele estava a observar as radiografias nas paredes.

— Isto não se ajusta à vitimologia do homicida - disse. - Nem nada que se pareça.

— Nada neste caso parece ajustar-se - repliquei. - Excepto que, uma vez mais, foi usada uma serra. Encontrei também alguns cortes em osso que não podem ter sido feitos com uma faca.

— Que mais poderás dizer-nos a respeito da vítima? - perguntou Wesley, e podia sentir os seus olhos em cima de mim enquanto deitava mais uma secção de órgão no frasco de formalina.

— Ela apresenta uma espécie de erupções que poderiam ser zona, e duas cicatrizes no rim direito que podem indicar pielonefrite, ou infecção no rim. O colo do útero apresenta-se alongado e radiado, o que pode sugerir que ela tenha tido filhos. O miocárdio, ou músculo do coração, está mole.

— O que significa...

— Isso pode ter sido provocado por toxinas produzidas por microorganismos. - Olhei para ele. - Conforme já mencionei, ela encontrava-se doente.

Marino andava de um lado para o outro, observando o torso de variados ângulos.

— De quê, faz alguma ideia?

— Baseando-me nas secreções dos pulmões, sei que tinha bronquite. De momento, não sei que mais, excepto que o fígado estava em muito mau estado.

— Provocado pela bebida - disse Wesley.

— Amarelado, nodular. Sim - concordei. - E diria também que costumava fumar.

— É só pele e ossos - comentou Marino.

— Ela não comia - disse. - Tem o estômago tubular, vazio e limpo. - Mostrei-lhes.

Wesley dirigiu-se a uma secretária próxima e arrastou uma cadeira. Ficou imerso em pensamentos enquanto eu puxava um fio eléctrico enrolado junto ao tecto, ligando-o a uma serra Stryker. Marino, que detestava esta parte do procedimento, afastou-se da mesa. Ninguém falou enquanto eu serrava as extremidades dos braços e das pernas, fazendo levantar no ar uma fina poeira óssea, e o ruído da serra era mais forte do que o da broca de um dentista. Coloquei cada um dos pedaços numa caixa etiquetada e disse-lhes o que pensava.

— Não me parece que estejamos desta vez perante o mesmo assassino - comuniquei-lhes.

— Não sei o que pensar - replicou Marino. - Mas temos duas coisas importantes em comum. Um torso, e foi deitado para o lixo na Virgínia central.

— Ele tem sempre tido uma vitimologia variada - disse Wesley, com a máscara cirúrgica solta em redor do pescoço. - Uma negra, duas brancas, as três do sexo feminino, e uma quarta vítima, também negra, do sexo masculino. As cinco vítimas em Dublin eram também uma mescla. Porém, todas estas eram pessoas novas.

— Seria agora de esperar que ele escolhesse uma vítima idosa? - perguntei-lhe.

— Francamente, não. Mas gente deste tipo não constitui uma ciência exacta, Kay. Trata-se de alguém que faz o que lhe apetece fazer, e sempre que lhe apetece.

— O desmembramento não é idêntico, não é feito pelas articulações -             recordei-lhes. - E penso que estava vestida ou embrulhada em qualquer coisa.

— Talvez esta vítima o tenha perturbado mais - sugeriu Wesley, retirando a máscara e atirando-a para cima da secretária. - O impulso de matar de novo pode ter sido irresistível, e ela pode ter sido fácil de matar. - Olhou para o torso. - Por isso ataca, mas o seu M. O. altera-se de repente, e ele não gosta. Deixa-a pelo menos parcialmente vestida ou coberta porque violar e matar uma velha não é o que o excita. E corta-lhe a cabeça primeiro para não ter de olhar para ela.

— Encontra algum indício de violação? - perguntou Marino.

— Raramente se encontra - disse. - Estou prestes a terminar. Ela vai para o congelador como as outras, na esperança de obtermos eventualmente uma identificação. Tenho tecido muscular e medula para os ensaios de ADN, esperando que algum dia tenhamos uma pessoa desaparecida com quem possamos compará-lo.

Estava decepcionada, e mostrava-o. Wesley foi buscar o impermeável, pendurado atrás de uma porta, deixando um pequeno charco no pavimento.

— Gostaria de ver a foto que te enviaram através da AOL - disse-me.

— A propósito, também isso não se adapta ao M. O. - comentei, começando a suturar a incisão em Y. - Nos casos anteriores ninguém me enviou nada.

Marino estava com pressa, como se tivesse de ir a algum lado.

— Vou a Sussex - disse ele, dirigindo-se à porta. - Tenho de me encontrar com Ring, o Cavaleiro Solitário, para que me dê algumas lições sobre como se investigam assassínios.

Saiu abruptamente, e eu sabia porquê. Apesar das suas lições sobre o casamento, o meu relacionamento com Wesley incomodava-o secretamente. Uma parte dele sentiria sempre ciúmes.

— Rose pode mostrar-te a foto - disse a Wesley enquanto lavava o corpo com mangueira e esponja. - Ela sabe como entrar no meu e-mail.

A desilusão relampejou-lhe nos olhos antes de poder disfarçá-la. Levei as caixas com os pedaços de osso para um balcão afastado, onde seriam postos a ferver numa solução fraca de lixívia, para os desengordurar por completo. Wesley ficou onde estava, esperando e observando-me até eu voltar. Não queria que se fosse embora, mas também não sabia o que fazer com ele.

— Poderemos conversar, Kay? - disse ele por fim. - Raramente te tenho visto. Pelo menos desde há vários meses. Eu sei que estamos ambos bastante ocupados, e que esta não é uma boa ocasião, mas...

— Benton - interrompi-o, emocionada. - Aqui não.

— Claro que não. Não estou a sugerir que conversemos aqui.

— Será apenas mais uma dose da mesma coisa.

— Prometo que não será. - Virou-se para o relógio na parede. - Olha, já é tarde. Porque é que não fico na cidade? Podíamos ir jantar.

Hesitei, com a ambivalência a saltitar de um extremo ao outro do meu cérebro. Tinha medo de estar com ele, e medo de não estar.

— Está bem - acedi, finalmente. - Na minha casa, às sete. Eu arranjo qualquer coisa. Não esperes nada de especial.

— Podíamos ir jantar a qualquer lado. Não quero dar-te trabalho.

— Neste momento não tenho vontade nenhuma de estar num local público - disse.

Os seus olhos ficaram em mim durante mais algum tempo, enquanto eu colocava etiquetas em tubos de vidro e vários tipos de recipientes. Os tacões dos seus sapatos ressoaram no mosaico ao ir-se embora, e ouvi-o falar com alguém enquanto as portas do elevador se abriam no corredor. Segundos depois, Wingo entrou.

— Teria vindo mais cedo. - Dirigiu-se a um armário e começou a pôr coberturas novas nos sapatos, máscara e luvas. - Mas aquilo lá em cima está um verdadeiro zoo.

— Que quer dizer com isso? - perguntei, desatando a minha bata nas costas enquanto ele vestia uma lavada.

— Jornalistas. - Colocou um resguardo no rosto e olhou para mim através do plástico transparente. - No átrio. Em volta do edifício com as suas furgonetas. - Olhou-me com ansiedade. - Não queria dizer-lhe isto, mas agora é o Canal Oito que lhe tapou o caminho. Tem a furgoneta mesmo encostada ao seu carro para não a deixar sair, e ninguém está dentro dela.

Senti a raiva subir-me ao rosto com uma onda de calor. - Telefone à policia e mande vir o reboque - disse-lhe de dentro do vestiário. Acabe o serviço aqui, que eu vou lá acima resolver o assunto.

Atirei a bata embrulhada para dentro do cesto da roupa suja, e arranquei as luvas, as coberturas dos sapatos e a touca. Esfreguei-me vigorosamente com sabão antibactérias e abri o meu armário com mãos subitamente desajeitadas. Estava muito transtornada. Este caso, a imprensa, Wesley, tudo parecia estar contra mim.

— Dra. Scarpetta?

Wingo surgiu repentinamente à porta do vestiário quando estava a abotoar a minha blusa,e a sua entrada enquanto me vestia não era nenhuma novidade para mim. Nenhum de nós se sentia incomodado com esse hábito, e estava tão à vontade com ele como se estivesse acompanhada por uma mulher.

— Estava a pensar se teria tempo... - Hesitou. - Bem, eu sei que está muito ocupada hoje.

Guardei as Reeboks vermelhas no armário e calcei os sapatos que trouxera de casa. Depois vesti o meu casaco do serviço.

— Na realidade, Wingo - controlei a minha cólera para que não se reflectisse nele - também gostaria de falar consigo. Quando acabar o trabalho aqui, venha ao meu gabinete.

Não precisava de me dizer nada. Parecia-me que já sabia. Fui no elevador para cima, num estado de espírito tão negro como uma tempestade prestes a rebentar. Wesley ainda estava no meu gabinete, estudando o que o monitor mostrava, e continuei a andar corredor fora sem afrouxar o passo. Era Rose quem eu queria encontrar. Quando cheguei ao gabinete de entrada, os funcionários atarefavam-se a atender os telefones que não paravam de retinir, enquanto a minha secretária e o administrador olhavam pela janela para o parque de estacionamento da frente.

A chuva não diminuíra de intensidade, mas não era suficiente para desencorajar um único jornalista, operador de câmara ou repórter fotográfico da cidade. Pareciam possessos, como se o caso fosse suficientemente importante para se enfrentar uma implacável carga de água.

— Onde estão Fielding e Grant? - perguntei. Eram o meu chefe substituto e o médico legista estagiário deste ano.

O meu administrador era um xerife reformado com pendor para água de colónia e fatos elegantes. Afastou-se da janela, enquanto Rose continuava a olhar para fora.

— O Dr. Fielding está no tribunal - disse ele. - O Dr. Grant teve de sair porque a cave da casa dele está inundada.

Rose voltou-se com o ar de alguém preparado para entrar em luta, como se o seu ninho tivesse sido invadido.

— Mandei Jess para a sala de arquivo - disse, referindo-se à recepcionista.

— Então não está ninguém na entrada. - Olhei para o átrio.

— Ora, gente é o que não falta lá - disse zangada a minha secretária, enquanto os telefones tocavam e tocavam. - Não quis que ninguém ficasse sentado lá à frente com todos aqueles abutres. Não interessa se o vidro é à prova de bala.

— Quantos jornalistas estão no átrio?

— Quinze ou vinte, da última vez que fui ver - respondeu o meu administrador. - Fui uma vez lá fora e pedi-lhes que saíssem. Disseram que não iam sem obter primeiro uma declaração sua. Pensei que podia escrever qualquer coisa e...

— Eu dou-lhes a declaração, pois dou - disse com brusquidão.

Rose pôs a mão no meu braço.

— Dra. Scarpetta. Não sei se será boa ideia...

Interrompi-a, também. - Deixe isso comigo.

O átrio era pequeno, e a divisória de vidro grosso tornava impossível o acesso de qualquer pessoa não autorizada. Quando virei a esquina, não podia acreditar no número de pessoas que se acotovelavam na pequena divisão, com o chão imundo de pegadas e charcos de água. Assim que me viram, os projectores das câmaras acenderam-se. Os jornalistas começaram aos berros, aproximando da minha cara microfones e gravadores, enquanto os flashes relampejavam.

Levantei a voz acima das deles.

— Por favor! Calem-se!

— Dra. Scarpetta...

— Silêncio! - gritei com mais força, olhando para aquele grupo de pessoas excitadas que as luzes mal me deixavam distinguir. - Tenho de vos pedir delicadamente que saiam - disse.

— Trata-se do Carniceiro outra vez? - Uma das jornalistas levantou a voz acima das dos outros.

-Está tudo a ser investigado - expliquei.

— Dra. Scarpetta.

Dificilmente reconheci o rosto da jornalista da televisão, Patty Denver, cujas feições bonitas enfeitavam painéis publicitários por toda a cidade.

— Fontes fidedignas dizem que está a considerar este caso como uma nova vítima nesta série de homicídios - disse ela. - Pode confirmar?

Não lhe respondi.

— É verdade que a vítima é asiática, provavelmente pré-pubescente, e foi transportada num camião saído desta cidade? - prosseguiu ela, para meu desalento. - E podemos admitir que o homicida pode estar agora na Virgínia?

— O Carniceiro anda agora a matar na Virgínia?

— É possível que ele quisesse largar os outros corpos aqui?

Levantei um braço para os acalmar.

— Não é esta a melhor oportunidade para conjecturas - declarei. - Só vos posso dizer que estamos a encarar este caso como um homicídio. A vítima é uma mulher branca não identificada. Não é uma pré-pubescente, mas sim uma adulta idosa, e pedimos a quem possa ter informações sobre este caso que entre em contacto com este serviço ou com o departamento do xerife do condado de Sussex.

— E quanto ao FBI?

— O FBI está também interessado no caso - disse.

— Então está a tratar disto como sendo um acto do Carniceiro...

Voltando-me para trás, digitei um código num painel e a porta abriu-se. Ignorei as vozes, fechando a porta atrás de mim, com os nervos em franja ao cruzar rapidamente o corredor. Quando cheguei ao meu gabinete, Wesley tinha partido, e sentei-me à secretária. m'arquei o número do pager de Marino, e ele telefonou-me logo em seguida.

— Pelo amor de Deus, estas fugas de informação têm de parar! - exclamei para o telefone.

— Ring. - Não duvidava, mas não era capaz de prová-lo.

— O imbecil ficou de se encontrar comigo no aterro. Isso era há mais de uma hora - prosseguiu Marino.

— Parece que os media não têm qualquer problema em encontrá-lo.

Contei-lhe o que as fontes fidedignas tinham divulgado a uma estação de televisão.

— Raio de idiota! - foi a reacção de Marino.

— Por favor, encontre-o e diga lhe para conservar a boca fechada -               disse a Marino. - Os jornais quase que nos puseram hoje na rua, e agora a cidade toda vai acreditar que anda um homicida em série à solta entre nós.

— Pois, mas infelizmente essa parte pode ser verdade - disse Marino.

— Não acredito nisto. - Estava a ficar cada vez mais enraivecida. -  Tenho de libertar informações para corrigir outras informações incorrectas. Não permito que me coloquem nesta posição, Marino.

— Não se preocupe, vou tratar disto e de muito mais - prometeu.

— Calculo que não saiba.

— Não saiba o quê?

— Correm boatos de que Ring anda metido com Patty Denver.

— Julgava que ela era casada - disse, enquanto pensava que a tinha visto uns minutos antes.

— E é - confirmou.

Comecei a ditar o caso 1930-97, tentando focar a minha atenção no que estava a dizer e a ler pelas minhas notas.

— O corpo foi recebido dentro de um saco de plástico selado - disse para o gravador, reorganizando os papéis manchados com o sangue proveniente das luvas de Wingo. - A pele apresenta-se pastosa. Os seios são pequenos, atrofiados e enrugados. Há dobras de pele sobre o abdome, sugerindo perda de peso...

— Dra. Scarpetta? - Wingo estava a espreitar da porta do gabinete. - Desculpe - disse, ao ver o que eu estava a fazer. - Parece-me que não é a melhor altura.

— Entre - disse-lhe com um sorriso cansado. - É melhor que feche a porta.

Ele fechou-a, e fechou também a que separava o meu gabinete do de Rose. Nervosamente, puxou uma cadeira para perto da minha secretária, e tentou que o seu olhar não encontrasse o meu.

— Antes de começar, deixe que eu fale. - O meu tom de voz era firme mas afável. - Conheço-o há muitos anos, e a sua vida não é um segredo para mim. Não me compete formular juízos nem pôr etiquetas. Para mim, há só dois géneros de pessoas no mundo: as que são boas, e as que não são. Mas preocupo-me consigo porque a sua orientação o coloca numa posição de risco.

Ele concordou com um aceno.

— Eu sei - disse, com os olhos brilhantes de lágrimas.

— Se o seu sangue tem imunosupressivos - prossegui - tem de me dizer. Provavelmente não devia trabalhar na morgue, pelo menos em certos casos.

— Sou HIV-positivo. - A voz tremia-lhe, e começou a chorar.

Deixei-o à vontade por uns minutos, cobrindo o rosto com os braços, como se não suportasse que alguém olhasse para ele. Os ombros tremiam, e as lágrimas manchavam-lhe as mangas. Levantei-me e dei a volta à secretária para lhe levar uma caixa de lenços de papel.

— Tome. - Coloquei os lenços perto dele. - Está tudo bem. - Abracei-o e deixei-o chorar. - Wingo, quero que se controle para podermos falar disto, está bem?

Ele acenou com a cabeça, assoou-se e limpou os olhos. Por um momento deixou a cabeça encostada a mim, e segurei-o como a uma criança. Dei-lhe algum tempo, e depois olhei-o a direito, segurando-lhe os ombros.

— O momento é para ter coragem, Wingo - disse-lhe. - Vejamos o que poderemos fazer para combater isto.

— Não sou capaz de dizer à minha família - disse com a voz embargada. - O meu pai odeia-me, de qualquer forma. E quando a minha mãe tenta, ele fica ainda pior. Zanga-se com ela. Percebe?

Aproximei mais a minha cadeira.

— E o seu amigo?

— Separámo-nos.

— Mas ele sabe.

— Só descobri há duas semanas.

— Tem de lhe dizer e a todas as pessoas com quem foi íntimo - disse-lhe. - É o mínimo que pode fazer. Se alguém lho tivesse dito a si, talvez não estivesse agora aqui sentado, a chorar.

Ficou em silêncio, olhando para as mãos. Respirando fundo, perguntou:

— Vou morrer, não vou?

— Todos acabamos por morrer - disse-lhe com suavidade.

— Mas não desta maneira.

— Poderia ser desta maneira - disse-lhe. - Em todas as inspecções a que me submeto, faço sempre o teste do HIV. Sabe bem aquilo a que me exponho aqui. O que se passa consigo podia muito bem acontecer-me a mim.

Olhou para mim, com os olhos e a face a arder.

— Se apanhar sida, mato-me!

— Não se mata, não.

Começou a chorar outra vez.

— Dra. Scarpetta. Não serei capaz de aguentar! Não quero acabar num desses lugares, algum hospício, numa cama ao lado de outros moribundos que nem conheço! - As lágrimas escorriam-lhe, num rosto trágico e decidido. - Estarei sozinho como sempre estive.

— Ouça. - Esperei até que ele acalmasse. - Não vai passar por tudo isso sozinho. Tem-me a mim.

Desfez-se uma vez mais em lágrimas, tapando a cara e soluçando tão alto que certamente poderiam ouvi-lo no átrio.

— Tomarei conta de si - prometi-lhe ao levantar-me. - Agora quero que vá para casa. Quero que faça o que tem de fazer e conte aos seus amigos. Amanhã falaremos mais, para vermos como havemos de enfrentar esta crise. Preciso do nome do seu médico, e de autorização sua para lhe falar.

— É o Dr. Alan Riley. No Colégio Médico da Virgínia.

— Conheço-o. Quero que lhe telefone amanhã de manhã dizendo-lhe que vou entrar em contacto com ele e que quer que ele fale comigo.

— Está bem. - Olhou-me furtivamente. - Mas... não vai contar a ninguém, pois não?

— Claro que não - disse-lhe com emoção.

— Não quero que ninguém daqui saiba. Nem Marino. Não quero que ele saiba.

— Ninguém saberá - garanti-lhe. - Pelo menos por mim.

Levantou-se lentamente e aproximou-se da porta com a insegurança de alguém embriagado ou aturdido.

— Não vai despedir-me, pois não? - Parou, com a mão na maçaneta e os olhos raiados de sangue voltados para mim.

— Wingo, pelo amor de Deus - declarei com emoção. -Esperava que tivesse melhor opinião de mim.

Abriu a porta.

— Tenho melhor opinião de si do que de qualquer outra pessoa. - As lágrimas soltaram-se de novo, e limpou-as à camisola, expondo a barriga magra. - Sempre tive.

Fiquei a ouvir os seus passos rápidos pelo corredor, e depois a campainha do elevador soou. Fiquei imóvel enquanto ele saía do meu edifício e regressava a um mundo que nem dava por ele. Descansei a testa no punho cerrado e fechei os olhos.

— Santo Deus - murmurei - por favor ajudai-o.

 

A chuva caía ainda com força quando segui no carro para casa e o trânsito estava terrível por causa de um acidente que provocara o bloqueio de faixas de rodagem nos dois sentidos na 1-64. Havia carros de bombeiros e ambulâncias, e brigadas de salvamento abriam à força portas encravadas com o embate e acorriam com macas e tábuas. Estilhaços de vidros rebrilhavam no pavimento molhado, e vários condutores quase paravam para mirar os feridos. Um carro descontrolara-se e dera diversas voltas sobre si mesmo antes de pegar fogo. Vi sangue num pára-brisas quebrado noutro carro e reparei que o volante estava torcido. Sabia o que isso queria dizer e disse uma prece por quem quer que fosse. Esperava não os ver na minha morgue.

Em Carytown, parei na P. T. Hasting's. Ornamentada com redes de pesca e flutuadores, vendia o melhor peixe da cidade. Quando entrei o ar estava condimentado e pungente com peixe e mar, e os filetes pareciam espessos e frescos no gelo dentro das vitrinas. Lagostas com as pinças atadas arrastavam-se no seu tanque de água, e nada tinham a recear de mim. Era incapaz de ferver um ser vivo e não conseguia comer carne se tivesse visto os animais enquanto vivos. Nem sequer podia pescar um peixe sem o atirar de novo para a água.

Estava a tentar decidir o que havia de comprar quando Bev apareceu, vinda do fundo do estabelecimento.

— O que há de bom hoje? - perguntei-lhe.

— Olhem quem está aqui! - exclamou, efusiva, limpando as mãos ao avental. - É capaz de ser a única pessoa que se atreve a sair com esta chuva. Por isso tem muito por onde escolher.

— Não tenho muito tempo, preciso de qualquer coisa leve e fácil de preparar - expliquei.

Uma sombra passou-lhe pelo rosto ao abrir um frasco de rábanos.

— Parece-me que adivinho o que tem andado a fazer - disse ela. -Tenho estado a ouvir nas notícias. - Sacudiu a cabeça. - Deve estar esgotada. Nem sei como consegue dormir. Deixe-me dizer-lhe o que pode fazer esta noite.

Dirigiu-se a uma caixa de caranguejo gigante refrigerado. Sem perguntar, meteu meio quilo de carne limpa numa caixa.

— Acabados de chegar fresquinhos da ilha de Tangier. Escolhi-os eu mesma, e depois diga-me se encontrou um pedacinho só de cartilagem ou de concha. Não vai jantar sozinha, pois não?

— Não.

— Ora ainda bem.

Piscou-me um olho. Já tinha vindo aqui com Wesley noutras ocasiões.

Bev escolheu meia dúzia de camarões-tigre, descascados e estripados. Depois colocou perto da registadora um frasco do seu molho caseiro para cocktail de marisco.

— às vezes perco a cabeça a temperar os rábanos - disse ela - podem puxar as lágrimas aos olhos, mas estão óptimos. - Começou a registar as minhas compras. - Ponha os camarões a saltear na gordura ao lume sem deixar cozer, percebe? Depois ponha-os a refrigerar, e fica com o aperitivo pronto. A propósito, os camarões e o molho são oferta da casa.

— Não precisava...

— Não tem importância. Quanto ao caranguejo, minha querida, ouça. Um ovo ligeiramente batido, meia colher de mostarda em pó, uma gota ou duas de molho Worcestershire, quatro bolachas de água e sal desfeitas. Pique uma cebola, um pimento verde. Uma ou duas colheres de chá de salsa picada, sal e pimenta ao gosto.

— Deve ser saboroso - disse-lhe, agradecida. - Bev, que faria eu sem si?

— Agora misture tudo muito bem e forme uns bolinhos. - Explicou-me com gestos. - Salteie-os em gordura com calor médio até ficarem ligeiramente corados. Faça talvez uma salada, ou então leve um pouco da minha salada de couve. E pronto. Nenhum homem me faria trabalhar mais do que isto a preparar-lhe um jantar.

Também não trabalhei mais do que aquilo. Comecei a fazer o jantar logo que cheguei a casa, e os camarões estavam a refrigerar quando liguei a música e entrei na banheira. Deitei na água um pouco daqueles sais aromáticos que dizem aliviar o stress, e fechei os olhos enquanto o vapor levava as fragrâncias calmantes às minhas narinas e aos poros da pele. Pensei em Wingo, e o coração doeu-me e pareceu-me perder o ritmo, como um pássaro angustiado. Chorei um bocadinho. Começara a trabalhar no serviço ao mesmo tempo que eu, tendo depois partido para regressar à escola. Agora estava de volta, e a morrer. Era horrível.

às sete horas estava outra vez na cozinha e Wesley, pontual como sempre, encostou o seu BMW prateado à entrada da minha casa. Estava ainda com o fato que usara à tarde, e trazia uma garrafa de chardonnay Cakebread numa das mãos e uma de uísque irlandês Black Bush na outra. Finalmente tinha deixado de chover, tendo as nuvens partido para outras frentes.

— Olá - disse ele, quando lhe abri a porta.

— Previste bem o tempo. - Beijei-o.

— Não é por nada que eles me pagam tão bem.

— O teu dinheiro vem-te da família - disse-lhe a sorrir, enquanto ele me seguia. - Sei muito bem quanto o Bureau te paga.

— Se soubesse gerir o dinheiro tão bem como tu, não precisaria do dinheiro da família.

Na minha sala de estar havia um bar, e aproximei-me dele porque sabia o que Wesley queria.

— Black Bush? - perguntei, só para me certificar.

— Se estás a servi-lo. Foste tu quem me pegou esse hábito.

— Enquanto conseguires arranjá-lo na capital, servir-to-ei sempre que quiseres - repliquei.

Preparei as nossas bebidas em gelo com uma gota de água gasosa. Depois fomos para a cozinha e sentámo-nos à mesa confortável em frente de uma ampla janela que dava para o meu quintal arborizado e para o rio. Gostaria de poder contar-lhe a respeito de Wingo e do quanto isso me deprimia. Mas não podia violar uma promessa.

— Podemos falar primeiro um pouco sobre o trabalho? - Wesley despiu o casaco e pendurou-o nas costas da cadeira.

— Eu também tenho alguns assuntos a apresentar-te.

— Começa tu. - Tomou um pequeno trago da sua bebida, com os olhos nos meus.

Contei-lhe das fugas de informação para os jornais, acrescentando:

— Ring é um problema que se está a tornar cada vez mais grave.

— Se for ele o culpado, e não digo que é nem que não é. A dificuldade está em obter-se provas.

— Não tenho qualquer dúvida na minha mente.

— Kay, sabes que isso não chega. Não podemos expulsar ninguém de uma investigação só com base na nossa intuição.

— Marino ouviu boatos de que Ring tem um caso com uma conhecida jornalista da televisão - disse-lhe então. - Ela trabalha para a mesma estação que tinha aquelas informações incorrectas sobre o caso, dizendo que a vitima era asiática.

Wesley ficou calado. Eu sabia que estava outra vez a pensar em provas, e tinha razão. Tudo isto me soava a fofoquices, mesmo sendo eu própria a espalhá-las.

Por fim falou:

— Este sujeito é muito esperto. Conheces por acaso o seu historial?

— Não sei nada a respeito dele.

— Licenciado com honrarias pela William and Marv, diplomado em psicologia e em administração pública. O tio dele é o secretário da segurança pública. - Estava a tornar pior uma situação já de si bastante feia. - Harlow Dershin, é como ele se chama, e é um homem honesto. Como compreendes, não é uma boa situação para se formularem acusações, sem que estejamos cem por cento seguros do que afirmamos.

O secretário da segurança pública do estado da Virgínia era o superior directo do superintendente da polícia estadual. O tio de Ring não poderia deter mais poder, a não ser que fosse o governador do estado.

— Portanto, o que estás a dizer é que Ring é intocável - comentei.

— O que estou a dizer é que a sua base académica demonstra que tem altas aspirações. Um sujeito como ele pretende ser chefe, comissário, político. Não se contenta com ser polícia.

— Um sujeito como ele preocupa-se apenas consigo próprio - disse com impaciência. - Ring está-se nas tintas para as vitimas e para os que ficam para trás sem nada saberem do que aconteceu aos seus familiares. Ele não se interessa pelos que são assassinados.

— Provas - recordou-me ele. - Para sermos justos, há muita gente -               incluindo os que trabalham no aterro - que podia ter dado informações aos jornais.

Não tinha qualquer argumento para lhe contrapor, mas nada poderia apagar as minhas suspeitas.

— O que é importante é deslindarmos estes casos - prosseguiu ele -              e a melhor maneira de o conseguirmos é continuar o nosso trabalho e ignorar Ring, tal como Marino e Grigg estão a fazer. Há que seguir cada pista que tivermos, contornando os obstáculos. - Os olhos dele pareciam de âmbar à luz do candeeiro do tecto, e brandos quando fixaram os meus.

Empurrei a cadeira para trás.

— Temos de pôr a mesa.

Ele foi buscar os pratos e abriu o vinho, enquanto eu dispunha os camarões frios nos pratos e passava para uma taça o molho Kicked by a Horse preparado por Bev. Cortei limões em metades e envolvi-as em guardanapos de papel, e enfeitei os bolinhos de caranguejo. Wesley e eu pusemo-nos a comer o cocktail de camarão enquanto a noite caía, lançando a sua sombra sobre o leste.

— Tinha saudades disto - disse ele. - Talvez não queiras ouvir, mas é a verdade.

Não disse nada porque não queria entrar numa nova discussão que duraria horas, deixando-nos ambos esgotados.

— De qualquer modo. - Colocou o garfo no prato como as pessoas educadas fazem quando terminam. - Obrigado. Tenho sentido a tua falta, Dra. Scarpetta. - Sorriu.

— Tenho muito gosto em que estejas aqui, Agente Especial Wesley. - Retribui-lhe o sorriso e levantei-me. Acendendo o fogão, aqueci óleo numa frigideira enquanto ele levantava os pratos.

— Quero dizer-te o que penso da fotografia que te enviaram - disse ele. - Primeiro, precisamos de comprovar que se trata realmente da vitima em que estiveste a trabalhar.

— Vou comprovar isso na segunda-feira.

— Partindo do principio de que é - prosseguiu - trata-se de uma dramática alteração no modus operandi do homicida.

— Isso e tudo o mais. - Os bolinhos de caranguejo começaram a crepitar na frigideira.

— Pois - disse Wesley, servindo a salada de couve. - Ele está a ser muito evidente neste caso, como se quisesse irritar-nos. E, claro, a vitimologia está toda errada. Isso está com um óptimo aspecto - acrescentou, observando o que eu estava a cozinhar.

Quando nos sentámos de novo, disse-lhe com total confiança:

— Benton, não se trata do mesmo sujeito.

Hesitou antes de responder.

— Também não me parece que seja, se queres saber a verdade. Mas não estou pronto a pôr de parte a hipótese de se tratar do mesmo. Não sabemos em que jogos estará agora envolvido.

Sentia-me outra vez frustrada. Nada podia ser provado, mas a minha intuição, os meus instintos, davam-me razão.

— Bem, não me parece que esta velhinha assassinada tenha qualquer coisa a ver com os casos anteriores, tanto os daqui como os da Irlanda. Alguém está a querer que pensemos isso. Parece-me que estamos perante um imitador.

— Iremos analisar a fundo essa possibilidade. Na quinta-feira. Parece-me ser essa a data que marcámos. - Provou um bolinho de caranguejo.

— Isto está uma maravilha. Está mesmo bom! - O tempero puxou-lhe lágrimas aos olhos. - A isto é que eu chamo um molho de categoria!

— Uma encenação. Disfarçando algum crime cometido por outra razão - disse eu. - E não te ponhas a elogiar-me muito. A receita foi-me dada pela Bev.

— A fotografia incomoda-me.

— Também a mim.

— Estive a falar com Lucy a respeito dela.

Agora tinha realmente captado o meu interesse.

— Diz-me só quando precisas dela aqui. - Estendeu a mão para a garrafa de vinho

— Quanto mais cedo, melhor. - Fiz uma pausa, e depois acrescentei: - Como está ela? Sei o que ela me diz, mas gostava de saber por ti.

Reparei que precisávamos de água na mesa, e levantei-me para ir buscá-la. Quando voltei, ele estava a olhar-me calmamente. Por vezes era-me difícil olhá-lo de frente, e as minhas emoções começaram a entrar em conflito, como instrumentos musicais desafinados. Adorava o seu nariz bem cinzelado, com a cana muito direita, os olhos - que podiam atrair-me para profundezas nunca dantes ensaiadas - e a boca, com o seu sensual lábio inferior. Olhei pela janela, e já não podia ver o rio.

— Lucy - recordei-o. - Há uma avaliação do seu comportamento para a tiazinha?

— Ninguém está arrependido de a termos contratado - disse ele, secamente, falando de alguém que todos sabíamos tratar-se de um génio. - Ou talvez esta seja a maior simplificação do século. Ela é simplesmente fantástica. Quase todos os agentes aprenderam a tratá-la com reverencia. Querem-na perto deles. Não estou a afirmar que não haja problemas. Nem toda a gente acha bem haver uma mulher no HRT.

— Continuo a pensar que ela está a esforçar-se de mais - queixei-me.

— Bem, ela está em excelente condição física. Disso podes ter a certeza. Ninguém me convenceria a fazer-lhe frente.

— É precisamente a isso que me refiro. Quer sempre conservar-se a par dos outros, quando na realidade isso seria impossível. Sabes bem como ela é. - Voltei a olhá-lo nos olhos. - Tem sempre de se provar a si mesma. Se os colegas estão a saltar à corda ou a correr pelas montanhas com mochilas de vinte e cinco quilos, ela acha que tem de fazer o mesmo, quando deveria contentar-se com os seus conhecimentos técnicos, os seus robots e tudo o mais.

-Esqueces-te da sua maior motivação, do seu principal modelo - disse Wesley.

— O quê?

— Tu própria. Ela acha que tem de dar provas de si à sua tia, Kay.

— Não tem qualquer razão para pensar assim. - O que ele estava a dizer perturbava-me. - Não quero sentir que sou a razão pela qual ela põe a vida em risco com todas aquelas coisas que acha que tem de fazer.

— Não se trata aqui de estabelecer culpas - disse ele, levantando-se da mesa. - Trata-se da natureza humana. Lucy adora-te. Tu és a única figura materna decente que ela teve. Quer ser igual a ti, e pensa que as pessoas a comparam contigo, o que envolve uma grande responsabilidade. Quer que tu também a admires, Kay.

— Mas com certeza que a admiro, pelo amor de Deus. - Levantei-me também, e começámos a levantar os pratos. - Agora é que me puseste preocupada.

Benton passou a louça por água, e eu meti-a na máquina de lavar.

— Talvez tenhas razão para te preocupares. - Deitou-me um olhar rápido. - Posso dizer-te que ela é uma dessas perfeccionistas que não escuta ninguém. A seguir a ti, é o ser humano mais teimoso que jamais conheci.

— Muito agradecida.

Sorriu e pôs os braços à minha volta, sem se importar com as mãos molhadas. - Podemos sentar-nos e conversar durante algum tempo? - disse ele, com o rosto e o corpo perto de mim. - Depois tenho de pôr-me a andar.

— E depois disso?

— Vou falar com Marino de manhã, e durante a tarde tenho outro caso a chegar. Do Arizona. Sei que amanhã é domingo, mas não pode esperar.

Continuou a falar enquanto levávamos os copos para a sala de estar.

— Uma garota de doze anos raptada entre a escola e a sua casa, tendo o corpo sido abandonado no deserto de Sonora - disse. - Pensamos que este fulano já matou outras três crianças.

— É difícil sermos optimistas, não é? - comentei com angústia, enquanto nos acomodávamos no sofá. - A maldade nunca pára.

— Pois não - respondeu. - E receio bem que nunca chegue a parar. Enquanto existirem pessoas no planeta. Que vais fazer com o que sobra do fim-de-semana?

— Papelada.

Um dos lados da minha sala de estar tinha portas envidraçadas de correr, e através delas o bairro estava escuro, com uma lua cheia que parecia de ouro, nuvens transparentes deslizando por cima dela.

— Porque estás tão zangada comigo? - A voz dele era delicada, mas transmitia-me a sua dor.

— Nem sei. - Não conseguia olhar para ele.

— Sabes, sim. - Pegou-me na mão e começou a massajá-la com o polegar. - Adoro as tuas mãos. Parecem as de uma pianista, só que são mais fortes. Como se o que fazes fosse uma arte.

— E é - confirmei com simplicidade. E ele falava muitas vezes das minhas mãos. - Parece-me que tens um fetiche. Na tua qualidade de profiler, isso devia preocupar-te.

Ele riu-se, beijando-me as articulações e os dedos das mãos, como era seu hábito.

— Podes crer, tenho um fetiche, e não são só as tuas mãos.

— Benton. - Olhei para ele. - Estou zangada contigo porque estás a arruinar-me a vida.

Ele ficou imóvel, chocado.

Levantei-me do sofá e comecei a andar de um lado para o outro. Tinha a minha vida organizada exactamente como pretendia - disse, com emoção crescente. - Estou a construir um novo escritório. Sim, tenho sabido gerir bem o meu dinheiro, fazendo investimentos que me permitem usufruir de tudo isto. - Indiquei a casa com um movimento abrangente da mão. - A minha própria casa, toda planeada por mim. Para mim, tudo estava no seu lugar até que tu...

— Achas que sim? - Estava a observar-me intensamente, e a voz reflectia a sua ira. - Gostavas mais do tempo em que eu continuava casado e estávamos sempre a sentir-nos miseráveis por causa disso? Quando não éramos mais do que amantes e tínhamos de mentir a toda a gente?

— Claro que não gostava mais desse tempo! - exclamei. - Só gostava que a minha vida fosse minha.

— O teu problema é que tens medo de te comprometeres. É só isso, nada mais. Quantas vezes tenho de te dizer isso? Acho que devias consultar alguém. Palavra. Talvez a Dra.. Zenner. Vocês são amigas. Sei que confias nela.

— Não sou eu quem está a precisar de um psiquiatra. - Arrependi-me assim que o disse.

Benton pôs-se em pé, zangado, como se se preparasse para sair. Ainda não eram nove horas.

— Meu Deus, estou demasiado velha e cansada para isto - murmurei por entre dentes. - Benton, desculpa. Não fui justa contigo. Por favor senta-te.

Não se sentou, ficando de pé junto da janela envidraçada, de costas para mim.

— Não estou a tentar magoar-te, Kay - disse ele. - Não apareço de vez em quando só para ver como poderei lixar-te a vida, sabes bem disso. Admiro tudo o que tu fazes. Só queria que me deixasses aproximar-me de ti mais um bocadinho.

— Eu sei. Desculpa-me. Por favor, não te vás embora.

Esforçando-me para não chorar, sentei-me e fiquei a olhar para o tecto com as suas vigas expostas e as marcas de colher de trolha visíveis no estuque. Para onde quer que olhasse, só via detalhes projectados por mim. Por um momento cerrei os olhos, enquanto as lágrimas me corriam pelo rosto. Não as limpei, e Wesley sabia quando não devia tocar-me. Sabia quando não devia falar. Sentou-se silencioso ao meu lado.

— Sou uma mulher de meia idade com hábitos firmados - disse-lhe com voz incerta. - Não posso evitá-lo. Tudo o que tenho é o que construí. Não tenho filhos. Não posso aturar a minha própria irmã, e ela não pode aturar-me. O meu pai esteve a morrer na cama durante toda a minha infância, e depois foi-se quando eu tinha doze anos. A minha mãe é impossível de aturar, e agora está a morrer de enfisema.

Não posso ser o que tu queres, uma boa esposa. Nem sei mesmo o que isso será. Apenas sei ser Kay. E uma visita ao psiquiatra não iria alterar nada.

Mas Wesley disse:

— E estou apaixonado por ti e quero casar contigo. Também não posso alterar isso.

Não lhe respondi.

Acrescentou:

— E pensava que também me amasses.

Ainda não conseguia falar.

— Pelo menos em tempos amaste-me - prosseguiu, com a voz carregada de dor. - Vou-me embora.

Começou a levantar-se, e pus a minha mão no seu braço.

— Não desta maneira. - Olhei para ele. - Não me faças isso.

— A ti? - Parecia incrédulo.

Reduzi a intensidade das luzes até ficarem quase extintas, e a Lua era uma moeda polida contra um céu negro crivado de estrelas. Fui buscar mais vinho e acendi a lareira, enquanto ele observava tudo o que eu fazia.

— Senta-te mais perto de mim - disse-lhe.

Ele sentou-se, e desta vez segurei-lhe as mãos.

— Benton, sê paciente. Não me apresses - pedi-lhe. - Por favor. Eu não sou como Connie. Como outras pessoas.

— Não estou a pedir-te que o sejas - disse ele - Nem quero que sejas. Eu também não sou como os outros. Sabemos aquilo que vemos. Outras pessoas nunca poderiam compreender. Nunca podia falar com Connie sobre como passo os meus dias. Mas contigo posso falar.

Beijou-me com suavidade, e começámos a ir mais longe, tocando rostos e línguas e despindo-nos com ligeireza, fazendo aquilo que dantes fazíamos tão bem. Ele colheu-me com a boca e com as mãos, e ficámos no sofá até ao principio da madrugada, quando a luz da Lua esmoreceu. Depois de se ir embora passeei com um copo de vinho na mão por toda a casa, vagueando sem destino, com a música fluindo dos altifalantes montados em cada divisão. Terminei o passeio na minha sala de trabalho, onde tinha muito com que me distrair.

Comecei por folhear as revistas, arrancando os artigos que mereciam ser arquivados. Tentei trabalhar num artigo que ficara de escrever. Mas não estava com disposição para aquilo, e decidi consultar o meu e-mail para saber se Lucy teria deixado alguma mensagem sobre a sua vinda a Richmond. A AOL anunciou que tinha correio à minha espera, e quando consultei a minha caixa de correio senti-me como se alguém me tivesse agredido. O endereço deadoc esperava por mim como um perverso desconhecido.

A mensagem estava em letras minúsculas, sem pontuação, mas com espaços. Dizia, pensas que és tão esperta. Abri o ficheiro anexo e mais uma vez vi imagens coloridas sendo pintadas no monitor, pés e mãos cortados alinhados numa mesa coberta pelo que parecia ser o mesmo pano azul da imagem anterior. Fiquei a olhar para o ecrâ durante algum tempo, tentando descobrir uma razão para o que esta pessoa me estava a fazer. Agarrei-me ao telefone, alimentando a esperança de que ele tinha acabado de cometer um grande erro.

— Marino! - exclamei assim que ele atendeu.

— Hem? Que aconteceu? - clamou, logo que se recompôs.

Contei-lhe.

— Merda. São só três da manhã. Você nunca dorme?

Parecia satisfeito, e eu suspeitava de que ele estava a calcular que não lhe teria telefonado se Wesley ainda estivesse aqui.

— Sente-se bem? - perguntou.

— Escute. As mãos estão com as palmas para cima - acentuei. - A fotografia foi feita de perto. Consigo ver bastantes pormenores.

— Que género de pormenores? Haverá alguma tatuagem ou coisa parecida?

— Pormenores das impressões digitais - esclareci.

 

Neils Vander era o chefe da secção de análise das impressões digitais, um homem idoso com cabelo ralo e amplas batas de laboratório permanentemente manchadas de roxo e negro com ninidrina e pó de realce. Sempre apressado e acolhedor, provinha de boas famílias da Virgínia. Vander nunca me tratara pelo meu nome próprio nem entrara em assuntos pessoais comigo durante os longos anos em que nos conhecíamos. Mas tinha maneiras de mostrar que gostava de mim. Por vezes era um donut na minha secretária de manhã ou, durante o Verão, alguns tomates da sua horta.

Famoso pelo seu olhar de águia capaz de comparar laçadas e circunvoluções com uma só mirada, era também especialista no realce de imagens, tendo mesmo sido treinado pela NASA. Com o correr dos anos, ele e eu tínhamos materializado uma multidão de rostos a partir de manchas fotográficas. Tínhamos descoberto escritas onde elas não existiam, lido impressões e reavivado palavras apagadas. O conceito era muito simples, ainda que a execução não o fosse.

Um sistema de processamento de imagem de alta resolução podia distinguir duzentos e cinquenta e seis tons de cinzento, enquanto que o olhar humano poderia, na melhor das hipóteses, diferençar trinta e dois. Por isso, podíamos transferir uma imagem para o computador e deixá-lo ver aquilo que nós não conseguíamos distinguir. Deadoc devia ter-me mandado algo mais do que pretendera. A primeira tarefa esta manhã era comparar uma fotografia do torso, tirada na morgue, com a que me tinha sido enviada através da AOL.

— Deixe-me acrescentar aqui mais um pouco de cinzento - disse Vander, trabalhando com o teclado do computador. - E vou também dar-lhe alguma inclinação.

— Assim fica melhor - concordei.

Estávamos sentados a par, dobrados sobre o monitor de dezanove polegadas. Próximo, ambas as fotos estavam no scanner, e uma câmara de vídeo enviava-nos as suas imagens em directo.

— Mais um bocadinho daqui. - Outra tonalidade de cinzento entrou no monitor. - Deixe-me intensificar esta parte um pouco mais.

Inclinou-se para o scanner e corrigiu a posição de uma das fotografias. Colocou um filtro diferente na lente da câmara.

— Não sei bem - comentei, observando o monitor. - Parece-me que se via mais facilmente. Talvez precise de deslocá-la um pouco mais para a direita - acrescentei, como se estivéssemos a pendurar quadros.

— Está melhor. Mas ainda há uma quantidade de interferência do fundo que tinha interesse em eliminar.

— Gostaria de dispor do original. Qual é a resolução radiométrica desta coisa? - perguntei, referindo-me à capacidade que o sistema tinha para distinguir tons de cinzento.

— Muito superior à que se tinha anteriormente. Desde os primeiros tempos, creio que se terá duplicado o número de pixels que podem ser digitalizados.

Os pixels, como os pontinhos numa impressora matricial, eram os mais pequenos elementos de uma imagem, as moléculas, os pontos de cor impressionistas que formam uma pintura.

— Temos alguns subsídios, como sabe. Num destes dias quero passar para o processamento de imagens por ultravioletas. Não faz ideia do que eu poderia fazer com cianoacrilato - e continuou a louvar os méritos da Super Cola, que reagia aos componentes na perspiração humana e era excelente para desenvolver impressões digitais difíceis de ver em condições normais.

— Bem, desejo-lhe sorte - disse-lhe, porque o dinheiro era sempre escasso, mandasse quem mandasse.

Voltando a corrigir a posição da fotografia, colocou um filtro azul sobre a lente da câmara e dilatou os pixels mais claros, aumentando a luminosidade da imagem. Realçou os detalhes horizontais e removeu os verticais. Dois torsos estavam agora lado a lado. Surgiram sombras, tornando mais nítidos e contrastados os macabros detalhes.

— Podem ver-se os extremos ósseos - referi. - A perna esquerda cortada nas imediações do trocânter inferior. A perna direita - desloquei o dedo no monitor - cerca de dois centímetros mais abaixo, mesmo através do eixo.

— Gostava de poder corrigir o ângulo da câmara, a distorção da perspectiva - disse Vander, como se falasse só para si, o que aliás era frequente nele. - Mas não tenho as medidas de nada. É pena que quem tirou a foto não lhe tenha adicionado uma régua graduada para servir de escala.

— Nessa altura é que começaria mesmo a preocupar-me com quem estamos a enfrentar - comentei.

— É realmente disso que precisamos. Um homicida igual a nós. - Definiu os rebordos, e reajustou as posições das fotografias uma vez mais. - Vejamos o que acontece se as sobrepusermos.

Fê-lo, e o resultado foi extraordinário, pois as extremidades ósseas e mesmo a carne esfarrapada em redor do pescoço cortado eram idênticas.

— Fico convencida - anunciei.

— Não me restam quaisquer dúvidas - concordou ele. - Vamos imprimir isto.

Clicou o rato e a impressora laser começou a zunir.

Removendo as fotografias do scanner, substituiu-as pela dos pés e mãos, deslocando-a até ficar perfeitamente centrada. Ao começar a ampliar as imagens, a visão tornou-se ainda mais grotesca, com o sangue no pano de um vermelho vivo, como se tivesse acabado de ser vertido. O homicida tinha alinhado cuidadosamente os pés, como se fossem um par de sapatos, com as mãos lado a lado como luvas.

— Devia ter voltado as mãos com as palmas para baixo - disse Vander. - Porque não o teria feito?

Usando filtragem espacial para conservar só os detalhes mais importantes, começou a eliminar as interferências, como o sangue e a tessitura da cobertura azul.

— Consegue obter algum detalhe das estrias? - perguntei-lhe, debruçando-me tanto sobre o monitor que podia cheirar o aftershave de Vander.

— Acho que sim - respondeu.

A voz dele soava subitamente jovial, porque nada havia que gostasse mais de fazer do que ler os hieróglifos de dedos e pés. Por baixo daquele porte calmo e distraído estava um homem que tinha enviado milhares de pessoas para a penitenciária, e algumas dezenas para a cadeira eléctrica. Ampliou a fotografia e atribuiu cores arbitrárias às várias tonalidades de cinzento, para podermos vê-las melhor. Os polegares eram pequenos e pálidos, como pergaminho antigo. Havia estrias neles.

— Os outros dedos não vão resultar - declarou alheado, como se em transe. - Estão demasiadamente torcidos para que possamos vê-los. Mas os polegares estão com bom aspecto. Capturemos isto. - Com um dique do rato chamou um menu ao monitor, e gravou a imagem no disco rígido do computador. - Vou querer trabalhar nisto durante algum tempo.

Era sinal de que eu podia ir-me embora, e empurrei a cadeira para trás.

— Se conseguir apanhar alguma coisa, mando-a logo através do AFIS, - referindo-se ao Sistema Automático de Identificação Dactiloscópica, capaz de comparar impressões latentes com as existentes numa base de dados de milhões de exemplares.

— Seria óptimo - disse eu. - E depois consultarei também o sistema HALT.

Ele deitou-me um olhar de curiosidade, porque o sistema de Investigação de Pistas e Avaliação de Homicídios era uma base de dados organizada pela polícia estadual da Virgínia conjuntamente com o FBI. Seria o lugar para começar se suspeitássemos de que o caso era local.

— Apesar de termos razão para pensar que os outros casos não são daqui - expliquei-lhe - acho que devemos estudar todas as possibilidades. Incluindo as bases de dados da Virgínia.

Vander estava ainda a introduzir correcções, olhando para o monitor.

— Desde que não seja obrigado a preencher mais requisições... - respondeu.

No corredor havia mais caixas de cartão marcadas. PROVAS TESTEMUNHAIS alinhadas ao longo de ambas as paredes e empilhadas até ao tecto. Junto a elas passavam cientistas e técnicos, apressados, levando nas mãos documentação e amostras que poderiam levar alguém ao tribunal sob acusação de crime. Cumprimentámo-nos sem diminuir o andamento enquanto me dirigia ao laboratório de fibras e vestígios, que era amplo e silencioso. Mais cientistas de bata branca estavam dobrados sobre microscópios ou sentados às secretárias, entre balcões negros dispostos ao acaso com misteriosos embrulhos de papel castanho.

Aaron Koss estava de pé em frente de uma lâmpada ultravioleta que emitia um brilho roxo-avermelhado, enquanto examinava uma lâmina através de uma lente, para ver o que as ondas longas reflectidas lhe poderiam dizer.

— Bom dia - cumprimentei-o.

— O mesmo para si. - Koss sorriu.

Moreno e simpático, parecia demasiado novo para ser um perito em fibras microscópicas, resíduos, tintas e explosivos. Esta manhã vestia jeans desbotados e botas de correr.

— Hoje não tem tribunal, já vejo - disse-lhe, pois era fácil determiná-lo pela maneira como se vestia.

— Não. Estou cheio de sorte - respondeu. - Aposto que está com muita curiosidade a respeito das suas fibras.

— Estava aqui perto - retorqui. - Pensei que seria melhor dar cá um salto.

Eu tinha fama de passar frequentemente pelos laboratórios, e de um modo geral os especialistas suportavam com paciência a minha insistência, e pareciam até ficar agradecidos. Sabia que estava a colocá-los sob pressão quando já se submetiam a uma grande carga de trabalho. Mas quando havia pessoas a ser mortas e desmembradas, os indícios tinham de ser estudados com urgência.

— Bem, ao menos deu-me uma oportunidade para adiar o meu trabalho com o bombista dos canos - disse ele com outro sorriso.

— Não tem tido sorte com esse caso, pelos vistos.

— Houve outra bomba, a noite passada. Na estrada 1-195 Norte, próximo de Laburnum, mesmo debaixo do nariz das Operações Especiais. Você sabe, onde o Terceiro Distrito Policial esteve instalado. Custa a crer.

— Façamos votos para que esse se vá contentando com o fazer explodir sinais de trânsito - comentei.

— Concordo. - Afastou-se um pouco da lâmpada ultravioleta e ficou muito sério. - Foi isto o que consegui obter até agora com o que me deixou. Fibras de restos de tecido embebidos no osso. Cabelos. E resíduos que aderiam ao sangue.

— Cabelos dela? - perguntei, perplexa, porque não tinha enviado a Koss os cabelos grisalhos e compridos. Não eram da sua especialidade.

— Os cabelos que vi ao microscópio não me pareceram humanos, - respondeu Koss. - Talvez de dois tipos diferentes de animais. Mandei-os a Roanoke.

O estado só tinha um especialista em cabelos ou pêlos, que trabalhava nos laboratórios forenses do distrito ocidental.

— E quanto aos resíduos? - perguntei.

— Calculo que sejam detritos do aterro. Mas quero examiná-los ao microscópio electrónico. O que tenho agora debaixo da lâmpada ultravioleta são as fibras - prosseguiu. - Melhor dizendo, são fragmentos, e dei-lhes um banho ultrasónico em água destilada para remover o sangue. Quer dar uma olhada?

Deu-me espaço para que eu pudesse espreitar pelo olhal, e cheirou-me a colónia Obsession. Não pude deixar de sorrir, porque me recordava de ter tido a idade dele e de ter ainda a energia para me aperaltar. Havia três fragmentos montados, fluorescentes como luzes de néon. O tecido era branco ou quase branco, e um dos fragmentos brilhava com o que parecia ser salpicos de ouro.

— Que poderá ser aquilo? - Olhei-o de relance.

— Debaixo do estereoscópio parece sintético - respondeu. - Os diâmetros são regulares, consistentes com o que seriam se obtidos por extrusão através de fieiras, em vez de serem naturais e irregulares. Como no algodão, por exemplo.

— E estes salpicos florescentes? - eu estava ainda a espreitar.

— Aí é que está a parte interessante. - disse ele - Apesar de ter de fazer ainda mais ensaios, à primeira vista parece-me tinta.

Parei por momentos para digerir esta informação.

— De que tipo? - perguntei.

— Não é lisa e fina como a que se usa nos automóveis, é arenta, mais granular. Parece ser dum tom pálido, do tipo casca de ovo. Estou a pensar que seja estrutural.

— São estes os únicos fragmentos e fibras que já examinou?

— Estou agora a começar. -  dirigiu-se a um outro balcão e puxou um banco alto - Vi-os todos à luz ultravioleta e diria que foram todos cortados com a mesma serra. Não os marcou?

— Marquei OS ossos apenas quanto aos lados direito e esquerdo - disse. - Deveria tê-los marcado melhor. Mas usualmente é tão grande a diferença que não se torna necessário.

— Não sou perito neste aspecto, mas, se não soubesse, seria capaz de afirmar que todos os cortes foram feitos com a mesma serra. - Devolveu-me o osso, e comecei a encerrá-lo num saco hermético de provas testemunhais. - Vai ter de levá-los a Canter de qualquer modo, não é?

— Ele não vai ficar nada contente comigo - reconheci.

 

A minha casa tinha sido construída em alvenaria no extremo de Windsor Farms, um antigo bairro de Richmond com ruas de nomes ingleses e imponentes casas nos estilos georgiano e Tudor a que algumas pessoas não hesitariam chamar mansões. Havia luzes nas janelas por que ia passando, e por trás das vidraças podia ver bons móveis e lustres, e pessoas movendo-se de um lado para o outro ou vendo televisão. Ninguém parecia correr as cortinas nesta cidade, a não ser eu. As folhas tinham começado a cair. Estava fresco e o céu apresentava-se encoberto, e ao entrar no recinto pavimentado em frente da porta vi fumo saindo da chaminé e o velho Suburban verde da minha sobrinha estacionado em frente.

— Lucy? - chamei, enquanto fechava a porta e desligava o alarme.

— Estou aqui - respondeu do outro extremo da casa, onde ela costumava alojar-se.

Enquanto me encaminhava para o gabinete de trabalho, para deixar aí a pasta e a braçada de papéis que tinha trazido para trabalhar em casa, ela emergiu do seu quarto, enfiando uma T-shirt cor de laranja pela cabeça.

— Olá! - Sorridente, deu-me um abraço, e constatei mais uma vez que pouco tinha de mole.

Segurando-a com os braços estendidos, examinei-a bem, como sempre fazia.

— Oh, oh - disse ela, a brincar. - Hora da inspecção! - Levantou os braços e deu meia volta, como se fosse sujeitar-se a uma busca.

— Espertalhona - disse-lhe.

Na realidade, teria preferido que ela pesasse um pouco mais, mas apresentava-se intensamente bonita e saudável, com cabelo ruivo cortado curto mas bem cuidado. Depois de todo este tempo ainda não conseguia olhar para ela sem rever a precoce e vivaz garota de dez anos que, na realidade, não tinha mais ninguém a não ser eu.

— Passaste na inspecção - anunciei.

— Desculpa-me por ter vindo tão atrasada.

— Conta-me outra vez o que estiveste a fazer - pedi-lhe, porque ela tinha telefonado durante o dia a informar que só poderia chegar à hora de jantar.

— Um procurador geral assistente decidiu fazer uma visita na companhia de um grupo de dignitários. Como de costume, quiseram que o HRT fizesse uma demonstração.

Fomos para a cozinha.

— Recorri ao Totó e ao Homem de Lata - acrescentou.

Eram robôs.

— Usei fibras ópticas, realidade virtual. O habitual, só que é bastante interessante. Atirámo-los de pára-quedas de um Huey, e pu-los a abrir buracos numa porta de metal com lasers.

— Espero que não tenhas feito gracinhas com os helicópteros - comentei.

— Os meus colegas é que fizeram isso. Eu fiz a minha xaxada em terra. - Não parecia muito feliz com isso.

O problema era que Lucy queria fazer acrobacias com helicópteros. A HHRT tinha cinquenta agentes. Ela era a única mulher, e tinha tendência para reagir mal quando não a deixavam fazer coisas que, na minha opinião, não tinha necessidade nenhuma de fazer. Claro, eu não podia ser muito objectiva a esse respeito.

— Acho muito bem que te fiques pelos robôs - declarei, e estávamos agora na cozinha. - Há qualquer coisa que cheira bem. Que estiveste a preparar para o jantar da tua velha e cansada tiazinha?

— Espinafres frescos salteados num pouco de azeite e alho, e escalopes que vou agora pôr a grelhar. Este é o único dia da semana em que posso comer carne, por isso também tem de ser o teu. Até comprei uma garrafa de vinho realmente bom, uma marca que Janet e eu descobrimos.

— Desde quando é que os agentes do FBI se podem dar ao luxo de beber vinho realmente bom?

— Eh! - disse ela. - Eu não ganho assim tão mal. Além disso, nunca tenho tempo para gastar dinheiro.

Pelo menos não o gastava em roupas. Sempre que a via, estava de uniforme de caqui ou de fato de treino. Uma vez por outra vestia jeans e um casaco ou blazer, e fazia pouco das minhas ofertas de roupa que eu já não vestia. Não era capaz de envergar algum dos meus fatos à advogada ou as blusas com gola alta, e, para falar com franqueza, o meu porte era mais volumoso do que a sua compleição atlética. Talvez nada do que eu tinha no guarda-roupa lhe servisse.

A Lua estava enorme e baixa num céu escuro e enevoado. Vestimos casacos e sentámo-nos na varanda com um copo de vinho enquanto ela cozinhava. Tinha começado por assar batatas, e estavam a demorar um pouco, por isso íamos conversando. Nos últimos anos o nosso tipo de relacionamento tinha deixado progressivamente de ser o de uma mãe com a sua filha, transformando-nos antes em colegas e amigas. A transição não era fácil, porque frequentemente era ela que me ensinava, tendo até chegado a trabalhar em alguns dos meus casos. Sentia-me estranhamente perdida, já insegura do meu papel e da minha influência na vida dela.

— Wesley quer que eu investigue esta coisa da AOL - estava ela a dizer. - Sussex quer também que a CASKU dê uma ajuda.

— Conheces Percy Ring? - perguntei-lhe, pensando no que ele dissera no meu gabinete, sentindo-me outra vez enfurecida.

— Esteve numa das minhas aulas e era muito chato, nunca se calava. - Lucy estendeu o braço para a garrafa de vinho. - Mas que autêntico pavão.

Começou a encher os nossos copos. Levantando a cobertura do grelhador, experimentou as batatas com um garfo.

— Creio que estamos prontas - disse, satisfeita.

Momentos depois voltou à varanda, trazendo os escalopes. Começaram a crepitar assim que os colocou no grelhador.

— Não sei bem como, descobriu que tu és minha tia. - Estava outra vez a falar de Ring. - Não que isso seja segredo, mas começou a fazer-me perguntas, uma vez depois da aula. Sabe como é: se a tia me aconselhava, se me ajudava nos meus casos, como se eu não fosse capaz de fazer nada só por mim, esse género de coisas. Parece-me que ele embirra comigo só porque sou uma nova agente e sou mulher.

— Talvez isso venha a ser o maior erro da vida dele - comentei.

— E queria também saber se eu era casada. - Os olhos de Lucy estavam na sombra, pois as luzes da varanda incidiam sobre um dos lados do rosto.

— Gostava de saber qual será o verdadeiro interesse dele - reflecti.

Ela deitou-me um olhar enquanto cozinhava.

— Deve ser o costume. - Encolheu os ombros, pois estava habitualmente cercada por homens e não prestava atenção aos comentários ou aos olhares.

— Lucy, ele referiu-se hoje a ti, no meu gabinete - disse-lhe. - Uma referência velada.

-A quê?

— Ao teu modo de vida. à tua colega de quarto.

Por mais frequentemente que falássemos disto, ela ficava sempre frustrada e impaciente.

— Fosse verdade ou não - disse, e o crepitar da carne sobre as brasas parecia imitar o seu tom de voz - haverá sempre mexericos porque sou uma agente do FBI. É ridículo. Conheço colegas casadas e com filhos, e os homens pensam que são todas lésbicas, também, só porque são polícias, agentes, tropas, Serviço Secreto. Há quem pense o mesmo a teu respeito. Pela mesma razão. Por causa da tua posição, do teu poder.

— Não estou a falar-te de acusações - recordei-lhe com suavidade. - Trata-se de saber se alguém poderá fazer-te mal. Ring é muito esperto, e sabe apresentar-se como digno de crédito. Parece-me que ele ressente o facto de tu seres do FBI, do HRT, e ele não.

— Acho que já o demonstrou. - A voz dela era dura.

— Só faço votos para que o imbecil não continue a querer sair contigo.

— Ora, já o tem tentado. Pelo menos uma meia dúzia de vezes. - Sentou-se. - Até já convidou Janet para sair com ele, se puderes acreditar. - Riu-se. - Deve andar ressaibado.

— O problema é que me parece que ele não percebe - disse-lhe, num tom agoirento. - É como se estivesse a preparar-se para te atacar, a reunir indícios.

— Bem, deixá-lo reunir. - Deu bruscamente por terminado o nosso debate. - Conta-me, então: que mais se passou hoje?

Disse-lhe o que tinha aprendido nos laboratórios, e falámos das fibras embebidas no osso e das análises que Koss lhes fizera, e levámos a carne e o vinho para dentro. Sentámo-nos à mesa da cozinha, com uma vela acesa, digerindo informações que poucas pessoas poderiam discutir durante uma refeição.

— As cortinas num motel ordinário podiam ser forradas assim - sugeriu Lucy.

— Isso ou alguma espécie de resguardo, por causa da substância parecida com tinta - repliquei. - O espinafre está uma maravilha. Onde o compraste?

— Na Ukrop's. Muito gostava eu de ter uma loja como aquela ao pé da minha casa... Portanto, essa pessoa embrulhou a vítima num resguardo, e depois desmembrou-a através dele? - perguntou, enquanto cortava a carne.

— Pelo menos é o que parece.

— Qual é a opinião de Wesley? - Olhou-me nos olhos.

— Não tive ainda oportunidade de falar com ele. - Isto não era exactamente verdade. Nem tentara telefonar-lhe.

Por um momento, Lucy ficou calada. Levantou-se e trouxe para a mesa uma garrafa de Evian. - Então, por quanto tempo mais tencionas fugir dele?

Fiz que não tinha ouvido, esperando que ela não começasse com essa conversa.

— Sabes bem o que andas a fazer. Estás com medo.

— Isso não é assunto para discutirmos. Especialmente agora, que estamos a ter um serão tão agradável.

Lucy estendeu a mão para a garrafa de vinho.

— É realmente muito bom - comentei. - Gosto de pinot noir por ser muito leve. Não é pesado como um merlot. Não estou agora com disposição para qualquer coisa que seja pesada. Portanto escolheste muito bem.

Lucy cortou outro pedaço de carne, tendo percebido a minha intenção.

— Diz-me: como vão as coisas com Janet - prossegui. - Continua nas investigações criminais na capital? Ou começa a dedicar mais tempo ao ERF?

Lucy olhou pela janela para a lua, enquanto fazia o vinho rodopiar dentro do copo.

— Acho que é melhor pôr-me a trabalhar no teu computador.

Enquanto eu levantava a mesa, ela meteu-se no meu gabinete. Não quis perturbá-la durante bastante tempo, quanto mais não fosse porque percebia que estava ressentida comigo. Ela queria uma franqueza total, e eu nunca fora boa nisso, fosse com quem fosse. Sentia-me mal, como se tivesse decepcionado todos aqueles a quem amava. Por algum tempo fiquei sentada à mesa da cozinha, falando com Marino pelo telefone, e liguei também para ter notícias da minha mãe. Aqueci água para o descafeinado, e levei duas canecas pelo corredor fora.

Lucy estava atarefada ao teclado, de óculos, com a testa ligeiramente franzida com a concentração. Coloquei o café perto dela e espreitei por cima da sua cabeça para ver o que ela estaria a escrever. Não percebi nada. Nunca percebera.

— Como vai isso? - perguntei.

Podia ver a minha cara reflectida no monitor enquanto ela premia uma vez mais a tecla enter, executando mais um comando em UNiX.

— Bem e mal - respondeu-me com um suspiro de impaciência. - O problema com as aplicações como a AOL é que não se pode localizar um ficheiro se não se conseguir entrar na linguagem de programação original. É onde estou agora. É como seguir-se uma pista de migalhas através de um universo com mais camadas do que uma cebola.

Puxei uma cadeira e sentei-me ao seu lado.

— Lucy, - perguntei - como poderia alguém enviar-me aquelas fotos? Podes explicar-me, passo a passo?

Suspendeu o que estava a fazer, tirou os óculos e colocou-os sobre a secretária. Esfregou a cara nas mãos e massageou as fontes, como se lhe doesse a cabeça.

— Tem algum Tylenol? - perguntou.

— Não se deve misturar acetaminofene com álcool. - Abri uma gaveta e tirei um frasco de Motrin.

— Para começar - disse Lucy, engolindo um par de comprimidos - isto não teria sido fácil se o nome do teu endereço não fosse igual ao teu nome verdadeiro: KSCARPETTA.

— Essa facilidade foi propositada, para que os meus colegas pudessem mandar-me correio - expliquei uma vez mais.

— Tornaste possível a qualquer pessoa enviar-te correio. - Olhou-me com ar de acusação. - Já tinhas recebido algum correio de gente excêntrica?

— Acho que isto é pior do que o correio excêntrico.

— Por favor, responde à pergunta.

— Algumas coisas. Nada que me preocupasse. - Fiz uma pausa, e depois prossegui: - Geralmente depois de muita publicidade a respeito de algum caso, de um julgamento de sensação, qualquer coisa.

— Devias mudar o teu nome de utilizador.

— Não - disse eu. - Deadoc talvez queira mandar-me mais alguma coisa. Agora não posso mudá-lo.

— Que maravilha... - Voltou a pôr os óculos. - Então agora queres que ele seja teu correspondente.

— Lucy, por favor - disse, calmamente, enquanto começava a sentir também uma dor de cabeça. - Cada uma de nós tem o seu trabalho a executar.

Ficou calada por um momento. Depois pediu desculpa. - Acho que estou a ficar demasiado protectora, como tu sempre foste em relação a mim.

— E ainda sou. - Dei-lhe uma pequena palmada no joelho. - Muito bem, portanto ele conseguiu o meu endereço através da lista de assinantes da AOL, certo?

Ela confirmou com um aceno.

— Falemos do teu perfil na AOL.

— Lá só consta o meu título profissional, o número do telefone e a morada do trabalho - expliquei-lhe. - Nunca lhe meti detalhes pessoais, como o estado civil, a data de nascimento, os passatempos, etc. Não sou pateta a esse ponto.

— Já experimentaste procurar o perfil dele? - perguntou Lucy. - O perfil de deadoc?

— Francamente, nunca me ocorreu que ele pudesse ter algum.

Deprimida, lembrei-me das marcas de serra que não conseguia distinguir, e senti que tinha feito mais um disparate.

— Ora, claro que há-de ter. - Lucy estava a usar de novo o teclado. - Quer que tu saibas quem ele é. Foi por isso que o escreveu.

Chamou a listagem de associados e, quando abriu o perfil de deadoc, eu não podia acreditar no que tinha perante os meus olhos. Percorri a lista de palavras-chave que podiam ser consultadas por alguém interessado em encontrar outras pessoas às quais elas também se aplicavam.

Advogado, autópsia, chefe, investigadora-chefe, Cornell, cadáver, morte, desmembramento, FBI, forense, Georgetown, italiano, Johns Hopkins, judicial, homicida, medicina, patologia, scuba, Virgínia, mulher

A lista não ficava por aí, informações profissionais e pessoais, passatempos, tudo a descrever-me.

— É como se deadoc estivesse a dizer que ele e tu são a mesma pessoa - disse Lucy.

Estava perplexa, e de repente senti frio.

— Isto é de enlouquecer.

Lucy empurrou a cadeira para trás e olhou para mim.

— Ele tem o mesmo perfil que tu. No ciberespaço, na WWW, tu e ele são a mesma pessoa com duas assinaturas diferentes.

— Não somos nada a mesma pessoa. Não posso crer que tenhas dito semelhante coisa. - Olhei para ela, chocada.

— As fotografias são tuas, e enviaste-as a ti própria. Foi fácil. Simplesmente introduziste-as no teu computador através de um scanner. Não tem problema. Qualquer pessoa pode comprar um scanner portátil a cores por quatrocentos ou quinhentos dólares. Anexas o ficheiro à mensagem dez, que endereças a KSCARPETTA, enviá-la a ti mesma, por outros termos...

— Lucy! - interrompi-a, - pelo amor de Deus, pára com isso!

Ela ficou calada, inexpressiva.

— Isto é ultrajante! Não posso crer que estejas a dizer isso! - Levantei-me da cadeira, exaltada.

— Se as tuas impressões digitais estivessem na arma do crime - respondeu - não gostavas que to dissesse?

— As minhas impressões digitais não estão em coisa nenhuma.

— Tia Kay, estou só a demonstrar-te que alguém anda lá por fora a perseguir-te, a passar por ti, na Internet. Claro que não fizeste nada. Mas o que pretendo que entendas é que sempre que alguém faz uma busca por assunto, por precisar do auxílio de alguém como tu, vai apanhar também o nome de deadoc.

— Como poderia ele ter recolhido tanta informação a meu respeito? — prossegui. - Não está no meu perfil. Não meti lá nada a respeito da Faculdade de Direito, ou da Faculdade de Medicina, ou que sou de ascendência italiana.

— Talvez em coisas escritas a teu respeito ao longo dos anos.

— É possível. - Sentia-me como se estivesse a adoecer com qualquer coisa. - Apetece-te alguma bebida? Estou exausta.

Mas ela estava novamente perdida no espaço negro do ambiente UNIX com os seus estranhos símbolos e comandos como cat, :q! e vi.

— Tia Kay, qual é a tua palavra-passe na AOL?

— O mesmo que uso para tudo mais - confessei, sabendo que ela ia repreender-me outra vez.

— Merda. Não me digas que continuas a usar Sinbad. - Olhou para mim.

— O nome do raio do gato da minha mãe nunca foi mencionado em nada que tenha sido escrito a meu respeito - declarei, em minha defesa.

Fiquei a olhar enquanto ela teclava o comando password e introduzia Sinbad.

— Conhece alguma coisa a respeito de actualização de palavras-passe? - perguntou-me, como se toda a gente tivesse obrigação de saber o que isso queria dizer.

— Não faço a menor ideia do que estás a dizer.

— É uma rotina para se mudar de palavra-passe pelo menos todos os meses.

— Não - respondi.

— Quem mais conhece a tua palavra-passe?

— Rose conhece-a. E agora tu, também - disse. - Não há hipótese de deadoc a conhecer também.

— Há sempre hipótese. Ele podia usar um programa de descodificação em UNIX para codificar todas as palavras existentes num dicionário, e depois comparar cada uma das palavras codificadas com a tua palavra-passe...

— Isso seria complicado de mais - disse, convicta. - Aposto que quem fez isto não sabe nada de UNIX.

Lucy fechou o que estava a fazer, e olhou-me com curiosidade, rodando a cadeira para ficar de frente para mim. - Porque diz isso?

— Porque ele podia ter lavado o corpo primeiro para que os vestígios não ficassem colados ao sangue. Não devia ter-nos dado uma foto das mãos dela. Agora talvez possamos dispor das impressões digitais da vitima. - Estava de pé, encostada à ombreira da porta, agarrada à cabeça que me doía. - Ele não é assim tão esperto.

— Talvez não ache que as impressões digitais são importantes - disse, levantando-se. - É verdade - acrescentou ao passar por mim. - Qualquer manual de computador dir-lhe-á que é uma parvoice escolher uma palavra-passe que corresponda ao nome de um amigo ou do seu gato.

— Sinbad não é o meu gato. Não era capaz de aturar um miserável siamês que olha para mim com olhos de carneiro mal morto e que me persegue quando visito a minha mãe.

— Bem, deve gostar dele um bocadinho, ou não estaria disposta a pensar nele sempre que quer ligar o seu computador - disse Lucy, já ao fundo do corredor.

— Não gosto dele nem um bocadinho - insisti.

 

Na manhã seguinte, o ar estava fresco e limpo como uma maçã fresca, as estrelas ainda se viam no céu, e o trânsito era constituído sobretudo por camiões de longo curso. Saí da estrada na rua 64 East, logo a seguir ao recinto da feira, e minutos depois estava a deambular pelas filas de carros arrumados nos parques de estacionamento de curta duração do Aeroporto Internacional de Richmond. Escolhi um espaço no sector 5 porque sabia que seria fácil de fixar, e isso fez-me pensar novamente na minha palavra-passe, e noutros casos de óbvio descuido causados por excesso de carga mental.

Ao retirar a maleta da bagageira, ouvi passos atrás de mim e voltei-me imediatamente.

— Não dispare! - Marino levantou os braços no ar. O ar estava tão fresco que podia ver o bafo da sua respiração.

— Não era má ideia se assobiasse ou qualquer coisa ao chegar perto de mim no escuro - disse, fechando com estrondo a tampa da bagageira.

— Pois. E os mauzões não sabem assobiar. Só os bonzões como eu. - Pegou-me na mala. - Quer que pegue nisso também?

Estendeu a mão para o robusto estojo Pelican de cor preta que hoje levava comigo para Memphis, onde já estivera em numerosas ocasiões. Nele guardava vértebras e ossadas humanas, provas testemunhais que não podia abandonar.

— Este fica agarrado a mim - disse, pegando no estojo e na minha pasta. - Lamento muito tê-lo incomodado, Marino. Acha mesmo que é necessário vir comigo?

Tínhamos discutido este ponto por diversas vezes, e não achava que fosse necessário ele acompanhar-me. Não conseguia ver qual seria a razão.

— Conforme já lhe disse, há um safado qualquer que anda a brincar consigo - disse ele. - Eu, Wesley, Lucy, todo o raio do Bureau achamos que devo acompanhá-la. Se pensarmos bem, vemos que está constantemente a fazer este trajecto, pelo que se torna previsível. E tem sido dito pelos jornais que a doutora recorre com frequência a este sujeito na Universidade de Tennessee.

Os parques de estacionamento estavam bem iluminados e cheios de carros, e não podia deixar de reparar nas pessoas que passavam lentamente por nós, procurando um lugar que não ficasse a quilómetros de distância do terminal. Pus-me a pensar em que mais deadoc saberia a meu respeito, e arrependi-me de ter trazido só uma gabardina. Estava com frio, e tinha-me esquecido das luvas.

— Além do mais - acrescentou Marino, - nunca cheguei a visitar Graceland.

Primeiro, pensei que ele estivesse a brincar.

— Está na minha lista - prosseguiu.

— Qual lista?

— A lista que fui organizando desde que era miúdo. Alasca. Las Vegas e o Grand Ole Opry , em Nashville - disse, como se a ideia o enchesse de alegria. - Não tem nenhum sítio que gostaria de visitar, se pudesse fazer tudo o que quisesse?

Tínhamos chegado ao terminal, e ele segurou a porta para eu entrar.

— Tenho, pois. A minha cama, na minha casa.

Dirigi-me ao balcão da Delta, recolhi os bilhetes e fomos para cima. Como era costume a esta hora, nada estava a funcionar a não ser a segurança. Quando coloquei o meu estojo no tapete rolante, já sabia o que iria acontecer.

— Minha senhora, vai ter de abrir essa mala - disse a segurança, que era uma agente.

Abri-a e soltei os fechos. Lá dentro, acondicionados em espuma de borracha, estavam vários sacos etiquetados contendo os ossos. Os olhos da guarda arregalaram-se.

— Já tenho passado por aqui várias vezes com coisas deste género - expliquei-lhe pacientemente.

Ela estendeu a mão para um dos sacos.

— Por favor não toque em nada - avisei-a. - Tratam-se de provas testemunhais num caso de homicídio.

Já havia uma fila de viajantes atrás de mim, e estavam a escutar tudo o que se dizia.

— Bem, tenho de examinar isto.

— Não pode. - Mostrei-lhe o meu crachá de médica legista. - Se toca em qualquer coisa, terei de incluí-la no rol de testemunhas quando o caso chegar ao tribunal, e nessa altura será convocada por contrafé.

A agente de segurança não precisava de mais explicações, e deixou-me seguir.

— Parvalhona - comentou Marino, enquanto seguíamos.

— Está só a exercer a sua função - repliquei.

— Olhe - disse ele. - Só vamos regressar amanhã de manhã, o que quer dizer que, se não tenciona gastar o dia todo a olhar para os ossos, poderemos ir a qualquer lado.

— Pode ir sozinho a Graceland. Tenho muito que fazer no hotel. Além disso, o meu lugar é na secção dos não-fumadores. - Escolhi um lugar ao entrar na sala de espera. - Por isso, se quiser fumar, é melhor ir para aquele lado. - Apontei.

Ele pôs-se a observar os outros passageiros que, como nós, estavam à espera do embarque.

— Sabe uma coisa, doutora? - disse ele. - O seu problema é que detesta divertir-se.

Tirei o matutino da minha pasta, e abri-o. Ele sentou-se ao meu lado. - Aposto que nem sequer ouviu Elvis alguma vez.

— Como poderia eu nunca ter ouvido Elvis? Ele está na rádio, na TV, nos elevadores.

— Elvis é o rei.

Olhei para Marino por cima do jornal.

— A voz dele, tudo. Nunca houve ninguém como ele - prosseguiu Marino, como se estivesse apanhado. - Quer dizer; é como a música clássica e aqueles pintores de que gosta tanto. Acho que as pessoas assim só aparecem uma vez em cem ou duzentos anos.

— Por isso agora está a compará-lo com Mozart e Monet. - Voltei uma página, desinteressada da política e da finança local.

— Às vezes, a doutora parece uma presumida. - Levantou-se, rabugento. - Se ao menos uma vez na sua vida pensasse em ir a algum lado onde eu também gostasse de ir... Já me viu alguma vez jogar bolIing? - Fixou-me, zangado, puxando pelo maço de cigarros. - Alguma vez disse alguma coisa bonita a respeito do meu camião? Alguma vez quis ir pescar comigo? Alguma vez tomou uma refeição na minha casa? Não, eu é que tenho de ir à sua casa, porque a sua casa está na melhor zona da cidade.

— Se quiser cozinhar para mim, estou disposta a ir à sua casa - disse eu, e continuei a ler.

Afastou-se, zangado, e eu podia sentir o olhar dos presentes. Possivelmente pensavam que Marino e eu éramos um casal, sem nunca nos termos entendido bem. Sorrindo para comigo, voltei a página. Não só iria com ele a Graceland, iria oferecer-lhe esta noite um jantar de grelhados.

Como parecia que ninguém podia voar directamente de Richmond para qualquer parte à excepção de Charlotte, fomos desviados para Cincinnati, onde mudámos de avião. Chegámos a Memphis ao meio dia, e registámo-nos no Peabody Hotel. Tinha negociado para nós um preço especial para representantes do governo, de setenta e três dólares por noite, e Marino ficou a ver as instalações, admirando desajeitado o enorme átrio de vitrais e a fonte cheia de patos-reais.

— Raios me partam - comentou. - Nunca tinha visto um sítio cheio de patos a sério. Estão em toda a parte.

Entrámos no restaurante, apropriadamente chamado Mallards (Patos Reais), que exibia pelas paredes objectos de arte baseados em patos. Havia também, espalhados pelas paredes, quadros de patos pintados a óleo, e os patos estavam também presentes nos coletes e nas gravatas verdes do pessoal.

— Têm um palácio para patos no telhado - informei. - E estendem o tapete vermelho duas vezes por dia quando eles chegam e quando partem, ao som das marchas militares de John Philip Sousa.

— Está a brincar - comentou Marino.

Disse à recepcionista que queríamos uma mesa para dois.

— Na zona dos não-fumadores - acrescentei.

O restaurante estava cheio de casais exibindo grandes rótulos com nomes, de algum congresso de agências imobiliárias reunido no hotel. Ficámos sentados tão próximos de outros convivas que conseguia ler os relatórios que estavam a consultar e ouvir as suas conversas. Pedi fruta fresca e café, enquanto que Marino se ficava pelos hambúrgueres grelhados do costume.

— Mal passados - recomendou ao empregado.

— Mal passados - disse a Marino, numa censura indirecta.

— 'Tá bem, 'tá bem - disse ele, e encolheu os ombros.

— E.coli enterohemorrágico - disse-lhe, quando o criado se afastou. - Acredite, não vale a pena.

— Nunca sente vontade de fazer coisas que possam ser más para a saúde? - perguntou.

Parecia deprimido e repentinamente envelhecido, sentado à minha frente neste belo local, com pessoas bem vestidas que ganhavam mais do que um capitão da polícia em Richmond. Os cabelos de Marino estavam reduzidos a uma faixa desordenada que lhe orlava as orelhas, como um halo de prata embaciada. Não perdera um grama de peso desde que o conhecia, com a barriga a saltar-lhe do cinto e a encostar-se ao rebordo da mesa. Não passava um dia em que não me preocupasse com ele. Não conseguia imaginar como seria capaz de funcionar sem o apoio dele.

Meia hora depois da uma da tarde saímos do hotel num carro alugado. Era ele quem ia a conduzir; pois nunca aceitava outra hipótese, e entrámos na Madison Avenue e seguimos para leste, afastando-nos do Mississippi. Os edifícios da universidade, com fachadas de tijolos, estavam tão próximos que podíamos ter vindo a pé, com o Centro Regional de Medicina Legal em frente de uma loja de pneus e do Centro de Dadores de Sangue. Marino arrumou o carro nas traseiras, perto do acesso para o gabinete do médico legista.

O centro era financiado pelo condado, e tinha aproximadamente o mesmo tamanho que o meu serviço em Richmond. Dispunha de três patologistas forenses, além de dois antropólogos forenses, o que era muito raro e invejável, porque eu adoraria ter alguém como o Dr. David Canter na minha equipa. Memphis tinha uma outra diferença, que decididamente nada tinha de invejável. O investigador-chefe tinha estado envolvido em dois dos mais infelizes casos ocorridos no país. Tinha realizado a autópsia de Martin Luther King, e assistira à de Elvis.

— Se não ficar zangada, - disse Marino ao sairmos do carro - acho que vou fazer alguns telefonemas, enquanto a doutora trata dos seus afazeres.

— Concordo. Certamente que eles poderão indicar-lhe algum gabinete que possa utilizar.

Marino levantou os olhos para o céu azul do Outono, e depois olhou à sua volta enquanto caminhávamos. - Não posso acreditar que esteja aqui. Foi para aqui que o trouxeram.

— Não - corrigi-o, porque sabia exactamente ao que ele estava a referir-se. - Elvis Presley foi transportado para o Hospital Baptista Memorial. Nunca chegou a vir para aqui, ainda que devesse ter vindo.

— Como assim?

— Foi tratado como tendo sido vitimado por morte natural - respondi-lhe.

— Bem, e foi. Morreu de ataque de coração.

— É verdade que tinha o coração em muito mau estado - concordei. - Mas não foi isso que o matou. A sua morte deveu-se ao abuso de drogas medicamentosas.

— A morte dele foi devida ao Coronel Parker - proclamou Marino sombriamente, como se tivesse vontade de o matar.

Olhei para ele ao entrarmos no edifício.

— Elvis tinha dez drogas dentro dele. Devia ter sido tratado como vítima de um acidente. É uma tristeza.

— E sabemos que a culpa foi realmente dele - disse Marino.

— Oh, pelo amor de Deus, Marino!

— O que foi? Viu as fotografias? Tem a certeza do que aconteceu? -              insistiu.

— Sim, vi as fotografias. E sim, tenho a certeza - disse, ao chegarmos ao balcão da recepcionista.

— Então o que é que está nelas? - Não se calava.

Uma moça chamada Shirley, que já me tinha atendido noutras ocasiões, esperou que Marino e eu parássemos de discordar.

— Não tem nada com isso - declarei melodiosamente a Marino.

— Shirley, como vai?

— De volta outra vez? - Sorriu-me.

— Com más notícias, lamento dizer - respondi.

Marino começou a aparar as unhas com um canivete de bolso, olhando em volta como se Elvis pudesse surgir de um momento para o outro.

— O Dr. Canter está à sua espera - disse Shirley. - Venha. Eu acompanho-a.

Enquanto Marino se afastava para ir fazer os seus telefonemas algures ao fundo do corredor, fui conduzida ao modesto gabinete de um homem que conhecia desde os seus tempos de residente na Universidade de Tennessee. Quando o conhecera, Canter teria mais ou menos a idade que Lucy tinha agora.

Grande admirador do antropólogo forense Dr. Bass, que tinha montado em Knoxville as instalações para o estudo do apodrecimento do corpo humano conhecidas pelo nome de Quinta dos Corpos, Canter beneficiava do patrocínio da maioria dos grandes no seu domínio. Era considerado a maior autoridade mundial no que dizia respeito a marcas de serras, e eu não conseguia entender bem o que fazia deste estado um lugar tão propenso ao desenvolvimento de especialistas em ossadas humanas e em horas de ocorrência da morte.

— Kay. - Canter levantou-se, estendendo-me a mão.

— Dave, é sempre tão amável por me atender quase sem aviso prévio. - Levei uma cadeira para perto da sua secretária.

— Bem, conheço perfeitamente aquilo por que está a passar. - Tinha cabelos pretos todos penteados para trás a partir da testa, pelo que sempre que baixava a cabeça o cabelo caía-lhe para a cara. Estava sempre a afastá-lo da frente, mas parecia nem dar por isso. Tinha um rosto juvenil e agradavelmente anguloso, com olhos muito juntos e um nariz forte, bem como o queixo.

— Como estão Jill e os pequenos? - perguntei.

— Estão óptimos. Vem mais um a caminho.

— Parabéns. É o terceiro?

— É o quarto. - O seu sorriso ampliou-se.

— Não sei como consegue - disse-lhe com sinceridade.

— O consegui-lo é a parte mais fácil. Que especialidades me traz desta vez?

Apoiando o estojo rígido na beira da secretária, abri-o e retirei dele as ossadas acondicionadas em sacos de plástico. Entreguei-lhas, e ele pegou primeiro no fémur esquerdo. Estudou-o com a sua lente debaixo de uma lámpada, rodando-o para um lado e para o outro.

— Hmmm. Portanto não marcou o lado do corte. - Deitou-me um breve olhar.

Não estava a criticar-me, apenas a recordar-me, e senti-me zangada comigo própria. Era tão cuidadosa, normalmente. Tinha até fama de ser obsessivamente cuidadosa.

— Parti de um princípio errado - disse. - Não esperava descobrir que o homicida usara uma serra com características muito semelhantes às da minha.

— De um modo geral, nunca usam serras de autópsia. - Empurrou a sua cadeira para trás, e pôs-se em pé. - Nunca tive um caso destes, realmente, só estudei em teoria esse tipo de marcas de serra aqui no laboratório.

— Então fica confirmado, não é? - Era como suspeitara.

— Não posso ter a certeza enquanto não vir ao microscópio. Mas os dois extremos parecem ter sido cortados com uma serra Stryker.

Reuniu os sacos de ossos, e segui-o corredor fora, enquanto a minha apreensão ia aumentando. Não sabia o que iria fazer se ele não conseguisse distinguir as marcas de serra. Um erro destes seria suficiente para destruir um caso levado a tribunal.

— Sei que provavelmente não vai poder dizer-me muito a respeito do osso vertebral - disse eu, pois era trabecular; menos denso que outros ossos e portanto não constituindo uma boa superfície para marcas de ferramentas.

— Nunca fará mal experimentar. Talvez tenhamos sorte - disse, ao entrarmos no laboratório.

Não havia um centímetro de espaço vago. Tambores de cento e trinta litros de desengordurante e de verniz de poliuretano estavam arrumados onde quer que coubessem. Prateleiras desde o chão até ao tecto estavam carregadas com ossadas acondicionadas, e em caixas ou sobre carrinhos de rodas viam-se todos os tipos de serras conhecidos do homem. Casos de corpos desmembrados eram raros, e eu só sabia de três motivações óbvias para se cortar uma vitima em pedaços. O transporte do corpo tornava-se mais fácil. A identificação era dificultada, se não impossibilitada. Ou, simplesmente, o homicida era perverso.

Canter puxou um banco para perto de um microscópio equipado com uma câmara fotográfica. Afastou uma bandeja com costelas fracturadas e cartilagem tireóidea com que devia ter estado a trabalhar.

— Este sujeito levou um pontapé na garganta, entre outras coisas - disse distraído, enquanto calçava luvas cirúrgicas.

— Vivemos num mundo muito agradável - comentei.

Canter abriu o saco Ziploc contendo o segmento do fémur direito. Como não conseguia montá-lo na platina do microscópio sem cortar uma secção suficientemente fina para ali caber; pediu-me para segurar o pedaço de osso, com cerca de cinco centímetros, contra o rebordo da mesa. Depois torceu um cabo de fibras ópticas com uma ampliação de vinte e cinco vezes junto de uma das superfícies serradas.

— Sem dúvida uma serra Stryker - disse ele, espreitando pelo olhal. -             É necessário um movimento rápido e recíproco para se obter um polimento como este. Quase parece pedra polida. Quer ver?

Afastou-se para eu olhar. O osso apresentava-se com ligeiros ressaltos, como água congelada em suave ondulação, e rebrilhava. Contrariamente a outras serras motorizadas, a Stryker tinha uma lâmina oscilante que não possuía um longo curso. Não cortava pele, só a superfície dura a que era encostada, como osso ou um molde de gesso que se pretendesse remover depois de um osso partido ter sido reparado.

— Como é óbvio - esclareci, - os cortes transversais através do veio são meus. Causados ao remover amostras da medula para ensaio de ADN.

— Mas as marcas de faca não são.

— Não. Certamente que não.

— Bem, somos capazes de não ter muita sorte com elas.

Em geral, os cortes com faca encobriam as suas próprias pistas, a não ser que a vítima tivesse sido repetidamente atingida ou retalhada.

— Mas a boa nova é que temos alguns começos em falso, um corte mais largo, e TPI, - disse, ajustando a focagem do microscópio enquanto eu continuava a segurar o osso.

Nada sabia a respeito de serras antes de ter começado a passar tanto tempo com Canter. O osso é uma excelente superfície para marcas de ferramentas, e, quando os dentes da serra mordem nele, forma-se uma ranhura ou corte. Examinando-se através do microscópio as paredes e o fundo da ranhura, pode-se determinar o cinzelado de saída do lado de que a serra saiu do osso. Ao determinar-se as características dos dentes individuais, o número de dentes por centímetro (DPC), o seu espaçamento e as estrias, pode-se conhecer o formato da lâmina.

Canter regulou o ângulo da fibra óptica para tornar mais nítidas as estrias e as marcas.

— Pode-se ver a curva da lâmina. - Apontou para diversos começos em falso, onde alguém tinha empurrado a lâmina da serra contra o osso, para a seguir recomeçar noutro ponto.

— Não são meus - garanti. - Ou pelo menos espero ser mais hábil do que isso.

— Como se trata também da extremidade onde se encontra um maior número de cortes de faca, vou concordar que não foi a colega. Quem fez isto tinha de cortar primeiro com outra coisa, pois uma lâmina oscilante não corta carne.

— E no que diz respeito à lâmina da serra? - perguntei, porque sabia o que eu tinha usado na morgue.

— Os dentes são grandes, sete por centímetro. Por isso trata-se de uma serra circular para autópsia. Voltemo-lo.

Voltei o osso, e ele dirigiu a luz para o outro extremo, onde não havia começos em falso. A superfície estava polida e ondulada como a outra, mas, para o olhar conhecedor de Canter; não era igual.

— Uma serra motorizada para autópsia com uma lâmina de corte grande - disse ele. - Corte multidireccional, porque o raio da lâmina é demasiado pequeno para praticar o corte através de todo o osso de uma só vez. Assim, quem fez este corte limitou-se a mudar de direcção, partindo de um ângulo diferente, com bastante perícia. Temos uma ligeira curvatura das ranhuras. O cinzelado de saída é mínimo. Também isto denota grande perícia com a serra. Vou aumentar um bocado a ampliação para ver se podemos acentuar a harmonia.

Referia-se à distância entre os dentes da serra.

— A distância entre dentes é de zero vírgula dezasseis. Seis dentes por centímetro - contou. - A direcção é recíproca, cinzel tipo dentado. Estou capaz de apostar que este corte é seu.

— E acertou - disse, aliviada.

— Bem me parecia. - Ainda estava a examinar o osso. - Não acreditava que usasse uma lâmina circular para qualquer coisa.

As lâminas circulares para autópsia eram pesadas e de funcionamento contínuo, e destruíam muito os ossos. Geralmente eram usadas nos laboratórios ou em consultórios para cortar moldes de gesso.

— As raras ocasiões em que uso uma lâmina circular é quando estou a trabalhar com corpos de animais.

— De duas ou de quatro pernas?

— Tenho extraído balas de cães, pássaros, gatos e, numa ocasião, de uma píton atingida durante uma rusga anti-droga - respondi.

Canter estava a olhar para outro osso.

— E pensava eu que mais ninguém se divertia com estas coisas.

— Não acha estranho que alguém use uma serra de cortar carne em quatro casos de desmembramento, e depois mude de repente para uma serra eléctrica de autópsia? - perguntei.

— Se a sua teoria é correcta sobre os casos na Irlanda, então podemos falar de nove casos com uma serra de carne - disse ele. - Importa-se de segurar isto aqui, para tirar uma foto?

Segurei o osso do fémur esquerdo entre as pontas dos dedos, e ele premiu o obturador.

Em resposta à sua pergunta - disse Canter - acho que seria extremamente invulgar. Falamos aqui de dois perfis diferentes. A serra de carne é manual, física, normalmente com quatro dentes por centímetro. Corta através dos tecidos e arranca um pedaço de osso em cada curso, ficando as marcas mais irregulares, mais indicadoras de alguém com perícia e força. E convém também ter em mente que nos casos anteriores o homicida corta através da articulação, e não através do osso, o que também é muito raro.

— Não pode ser a mesma pessoa. - Mais uma vez articulei a minha crescente certeza.

Canter tirou-me o osso da mão e olhou para mim.

— Também voto consigo.

Quando regressei ao átrio do gabinete do médico legista, Marino continuava ao telefone ao fim do corredor. Esperei um pouco, e depois saí lá para fora, porque estava necessitada de ar. Precisava de sol e de cenários que não fossem lúgubres. Decorreram uns vinte minutos até que Marino finalmente saiu e veio ter comigo junto do carro.

— Não sabia que já estava aqui - disse. - Se alguém me tivesse dito, tinha largado o telefone.

— Não tem importância. Que dia bonito.

Ele abriu o carro.

— Como correram as coisas? - perguntou, sentando-se no lugar do condutor.

Resumi em seu benefício o que se tinha passado, enquanto permanecíamos parados no parque de estacionamento.

— Quer voltar ao Peabody? - perguntou, tamborilando no volante com o polegar.

Sabia exactamente o que ele queria fazer.

— Não - respondi. - Graceland é capaz de ser exactamente aquilo de que estou a precisar.

Engrenou o carro e não conseguiu reprimir um vasto sorriso.

— Queremos encontrar a auto-estrada Fowler - disse-lhe, porque tinha estado a estudar o mapa.

— Gostava que me pudesse conseguir uma cópia do relatório da autópsia - começou ele, regressando ao assunto que mais lhe parecia interessar. - Quero ver por mim próprio o que lhe terá acontecido. Depois já saberei e não continuarei com as minhas dúvidas.

— Que pretende realmente saber? - Olhei para ele.

— Se foi como disseram. Morreu na retrete? Isso sempre me fez muita confusão. Sabe quantos casos como esse já encontrei? - Olhou para mim num relance. - Não interessa que se trate de um calão ou do presidente dos Estados Unidos. Acaba-se morto com um vinco à volta do rabo. Só espero que isso não me aconteça a mim.

— Elvis foi encontrado no chão da casa de banho. Estava despido, e crê-se de facto que terá escorregado da sanita de porcelana preta.

— Quem o encontrou? - Marino estava cativado por este assunto.

— Foi uma amiga que estava num quarto próximo. Ou pelo menos é o que se diz.

— Quer dizer que ele vai à casa de banho, está porreiro, senta-se e pum? Sem aviso nem nada?

— Só sei que tinha estado a jogar racquetball de manhã, e parecia bem disposto - comentei.

— Está a brincar. - A curiosidade de Marino era insaciável. - Essa parte nunca tinha ouvido. Não sabia que ele jogava racquetball

Atravessámos uma zona industrializada, com comboios e camiões, e depois passámos por recintos com roulottes à venda. Graceland estava cercada por motéis baratos e lojas, e não parecia muito imponente, dada a vizinhança. A mansão de alvenaria cinzenta-clara, com as suas colunas, parecia completamente deslocada naquele local, como uma anedota ou o cenário para um filme rasca.

— Ena pá - disse Marino, ao entrar no parque de estacionamento.

— Olhem-me para aquilo. Fantástico.

Deu livre curso aos seus comentários elogiosos, como se tivesse chegado ao Palácio de Buckingham, enquanto arrumava o carro ao lado de um autocarro.

— Sabe, gostava de o ter conhecido - confidenciou-me, com tristeza.

— Talvez pudesse tê-lo conhecido, se ele tivesse cuidado melhor da sua saúde. - Abri a minha porta enquanto ele acendia um cigarro.

Nas duas horas seguintes vagueámos entre dourados e espelhos, carpetes desgrenhadas e vitrais com desenhos de pavões, enquanto a voz de Elvis nos perseguia por todo o seu mundo. Centenas de admiradores tinham chegado em autocarros, e a sua paixão por este homem estava-lhes espelhada no rosto ao deambularem, escutando a explicação da visita gravada em cassette. Muitos depositaram flores, cartões e cartas no seu túmulo. Alguns choravam como se o tivessem conhecido bem.

Passeámos em redor dos seus Cadillacs roxos e rosados, dos Stutz Blackhawks, e por um verdadeiro museu de outros carros. Vimos os seus aviões e visitámos a galeria de tiro e o Corredor de Ouro, com as molduras de discos de ouro e platina, troféus e outros prémios que até a mim assombraram. O corredor tinha pelo menos uns vinte e cinco metros de comprimento. Não conseguia deixar de olhar para as esplêndidas roupagens de ouro e lantejoulas, e para as fotografias de quem tinha sido um ser humano extraordinariamente belo e sensual. Marino andava de boca aberta, com uma expressão quase dolorida no rosto que me lembrava um ar de amor intangível, enquanto percorríamos salão atrás de salão.

— Sabe, não queriam que ele se mudasse para aqui quando comprou esta propriedade - anunciou-me Marino, finalmente já cá fora, numa tarde fresca e límpida. - Alguns dos presunçosos desta cidade não o aceitaram. Acho que aquilo o ofendeu muito, talvez isso o tenha levado ao que o apanhou no final. A doutora sabe, todos aqueles remédios e analgésicos.

— Não era só isso que ele tomava - voltei a dizer-lhe enquanto caminhávamos.

— Se a doutora tivesse sido a médica legista, poderia ter feito a autópsia dele? - Tirou do bolso o maço de cigarros.

— Certamente que sim.

— Não lhe teria tapado a cara? - Parecia indignado, enquanto acendia o cigarro.

— Claro que não.

— Eu não tinha coragem. - Sacudiu a cabeça, sugando o fumo. Nem era capaz de ficar na mesma sala.

— Gostava que o caso tivesse sido tratado por mim - disse-lhe. Nunca lhe teria passado a certidão de óbito como morte natural. O mundo tinha o direito de saber a verdade, e talvez alguém pensasse duas vezes antes de engolir Percodan.

Estávamos agora em frente de uma das lojas de recordações, e lá dentro juntavam-se pessoas diante de aparelhos de televisão, vendo vídeos de Elvis. Através dos altifalantes no exterior, ele estava a cantar Kentucky Ram, com uma voz potente mas brincalhona, diferente de qualquer outra voz que eu alguma vez escutara. Começámos de novo a andar, e disse-lhe a verdade.

— Há muito que sou admiradora de Elvis, e tenho uma grande colecção dos seus CD's, se por acaso está interessado em saber - confessei a Marino.

Ele nem queria acreditar; mas ficou emocionado.

— E agradecia-lhe que não desse publicidade a esta informação.

— Há tantos anos que a conheço, e nunca me tinha dito nada? - exclamou. - Não está a gozar comigo, pois não? Nunca havia de pensar. Nem num milhão de anos Olhe, talvez agora saiba que também tenho bom gosto.

A conversa prolongou-se enquanto aguardávamos a chegada de um minibus que nos levaria ao parque de estacionamento, e depois prosseguiu no carro.

— Lembro-me de o ter visto uma vez na TV quando era miúdo em Nova Jérsia - dizia Marino. - O meu velhote chegou a casa bêbedo, como de costume, e começou a gritar-me para desligar o aparelho. Nunca me esqueci.

Afrouxou o andamento do carro e virou para o Peabody Hotel.

— Elvis estava a cantar Hound Dog. Em Julho de 1956. Lembro-me porque era o meu aniversário. O meu pai entra, a chamar nomes a toda a gente, desliga a TV, e eu levanto-me e ligo-a outra vez. Dá-me um tabefe na cabeça, desliga a TV. Volto a ligá-la e caminho na sua direcção. Foi a primeira vez que toquei nele. Empurro-o contra a parede, aproximo a minha cara à cara dele, e digo ao filho da mãe que, se torna a tocar em mim ou na minha mãe, dou-lhe cabo do caneco.

— E ele voltou a bater-vos? - perguntei, enquanto o porteiro me abria a porta do carro.

— Chiça, nunca mais.

— Então devemos estar gratos a Elvis - respondi-lhe.

 

Dois dias mais tarde, na quinta-feira 6 de Novembro, comecei cedo a viagem de noventa minutos entre Richmond e a Academia do FBI em Quantico, Virgínia. Marino e eu seguíamos cada um no seu carro, porque nunca sabíamos quando poderia acontecer alguma coisa que enviasse cada um para seu lado. Para mim podia ser a queda de um avião ou um descarrilamento, enquanto que ele tinha de aturar a administração da cidade e uma série de escalas hierárquicas. O sol aparecia e desaparecia entre as nuvens e o frio era suficiente para trazer neve.

— Scarpetta - disse ao telefone alta-voz.

A voz de Marino encheu o habitáculo do meu carro. - Os vereadores da Câmara Municipal estão quase marados - disse ele. Primeiro há o caso de McKuen, cuja menina foi apanhada por um carro, agora toda a gente fala do nosso caso, na TV, nos jornais, ouça a telefonia.

Mais fugas de informação tinham surgido durante os últimos dois dias. A polícia tinha um suspeito nos assassínios em série que incluíam os cinco casos em Dublin. Estava iminente uma prisão.

— Dá para acreditar nesta merda? - exclamou Marino. - Estamos a falar de quem? Um rapazola de vinte e poucos anos que, vá lá saber-se como, esteve em Dublin durante os últimos anos? Resumindo, a vereação decidiu subitamente realizar uma reunião pública sobre o assunto, possivelmente porque estão convencidos de que está tudo prestes a ser resolvido. Têm de fazer boa figura, não é, demonstrar o seu empenhamento aos cidadãos. - Estava a ser cauteloso com o que dizia, mas fervia. - Por isso, tenho de dar meia volta e aparecer na câmara às dez horas. Ainda por cima, o chefe diz que quer falar comigo.

Vi as suas luzes traseiras mais à frente, quando se aproximava de uma saída. A 1-95 estava cheia de movimento esta manhã, camiões e carros com pessoal que todos os dias se deslocava até aos seus locais de trabalho na capital. Por muito cedo que saísse, sempre que ia para norte, o trânsito era terrível.

— Bem vistas as coisas - disse a Marino pelo telefone, - ainda bem que você tem de estar lá. Tome conta de tudo. Depois ponho-me em contacto consigo, para lhe contar o que se passou deste lado.

— Está certo. Quando vir Ring, torça-lhe o pescoço - disse ele.

Cheguei à Academia, e o guarda no seu cubículo fez-me sinal para avançar porque já conhecia o meu carro e a chapa de matrícula. O parque de estacionamento estava tão cheio que acabei por estacionar quase no meio da mata. O treino com armas de fogo já estava a decorrer nos campos de tiro do outro lado da estrada, e agentes dos Narcóticos exercitavam-se em camuflados, agarrados a carabinas de assalto, com cara de maus. A relva estava carregada de orvalho e encharcou-me os sapatos quando me meti por um atalho que levava à entrada principal do edifício de tijolos de uma cor castanho-amarelada, a que fora atribuído o nome de Jefferson.

No interior do átrio de entrada via-se bagagem arrumada junto das poltronas ou ao longo das paredes, porque havia sempre membros da Academia Nacional prestes a partir para qualquer parte, ou assim parecia. O letreiro de vídeo por cima da recepção recomendava que todos tivéssemos um bom dia e exibíssemos apropriadamente o nosso crachá. O meu estava ainda na mala de mão e retirei-o, pendurando-o ao pescoço pela sua longa corrente. Introduzindo um cartão magnetizado numa ranhura, destravei a porta de vidro gravada com o selo do Departamento de Justiça, e segui por um longo corredor com paredes envidraçadas.

Estava mergulhada nos meus pensamentos, mal reparando nos novos agentes, trajando de azul-escuro ou de caqui, ou nos novos estudantes da Academia, vestidos de verde. Cumprimentavam-me e sorriam ao passar; e eu correspondia-lhes, mas distraída. Estava a pensar no torso, nas doenças e na idade da vítima, no seu deplorável saquito dentro do congelador; onde iria permanecer durante anos ou até sabermos o seu nome. Pensava em Keith Pleasants, em deadoc, em serras e lâminas afiadas.

Cheirou-me a solvente Hoppes ao entrar na sala de limpeza de armas de fogo, com as suas fileiras de balcões negros e de compressores forçando ar através das entranhas das armas. Nunca era capaz de cheirar estes cheiros ou de ouvir estes ruídos sem pensar em Wesley, e em Mark. Sentia o coração apertado por sentimentos demasiado fortes para mim, até que escutei uma voz conhecida chamando o meu nome.

— Parece que vamos para os mesmos lados - disse o Investigador Ring.

Impecavelmente vestido de azul-marinho, aguardava o elevador que nos levaria vinte metros abaixo do solo, onde Hoover tinha construído o seu abrigo antibombas. Passei a minha pesada pasta para a outra mão, e segurei melhor a caixa de diapositivos debaixo do braço.

— Bom dia - disse-lhe, inexpressiva.

— Ouça, deixe-me ajudá-la com uma parte da sua carga.

Estendeu a mão enquanto as portas do elevador se abriam, e reparei que tinha as unhas polidas.

— Estou bem assim - respondi-lhe, porque não queria nenhuma ajuda dele.

Entrámos no elevador, ambos olhando em frente ao iniciarmos a descida para um piso sem janelas directamente por baixo do pavilhão interior de tiro ao alvo. Ring tinha participado comigo em conferências noutras ocasiões, tomando sempre copiosos apontamentos, que até agora nunca tinham surgido nos meios de comunicação. Era demasiado esperto para isso. Sem dúvida, se viesse a constar no exterior alguma informação divulgada durante estas conferências do FBI, seria fácil seguir-lhe a pista. Eram poucos os que poderiam ter-lhe dado origem.

— Senti-me bastante decepcionada com as informações que chegaram não sei como à posse da imprensa - disse, enquanto saíamos do elevador.

— Compreendo-a perfeitamente - respondeu Ring, com uma expressão de sinceridade no rosto.

Manteve aberta a porta que dava acesso a um labirinto de corredores que formava aquilo que começara com a designação de Ciências do Comportamento, mudando depois para Apoio Investigativo, e era agora a CASKU. Os nomes mudavam, mas os casos não. Homens e mulheres vinham frequentemente para trabalhar aqui ainda de noite, saindo depois de anoitecer de novo, passando dias e anos a estudar as minúcias de monstros, as suas marcas de dentadas ou as pegadas na lama, o modo como pensam e cheiram e odeiam.

— Quanto mais informação sair lá para fora, piores vão ser as conseqüências - prosseguiu Ring enquanto nos aproximávamos de outra porta, conduzindo a uma sala de reuniões onde eu passava pelo menos alguns dias em cada mês. - Uma coisa é fornecer detalhes capazes de ajudar o público a colaborar connosco...

Ia continuando a falar; mas eu não o escutava. Lá dentro, Wesley já estava sentado à cabeceira de uma mesa polida, com os seus óculos de ler. Estava a examinar uma série de grandes fotografias marcadas nas costas com o nome de Departamento do Xerife do Condado de Sussex. O detective Grigg estava a alguns lugares dele, com muitos papéis espalhados à sua frente, estudando o que parecia ser um esboço ou bosquejo. Do outro lado da mesa sentava-se Frankel, do Programa de Captura de Criminosos Violentos, ou VICAP, e, no outro extremo da mesa, a minha sobrinha. Estava a escrever num portátil, e olhou para mim sem me cumprimentar.

Fui ocupar a minha cadeira habitual ao lado de Wesley, abri a pasta e comecei a ordenar os vários dossiers. Ring sentou-se do outro lado e continuou a falar.

— Temos de aceitar como um facto que este tipo lê tudo o que vem nos noticiários - disse ele. - Isso é para ele uma parte do gozo.

Tinha captado a atenção geral, os olhos de todos estavam fixados nele, e na sala silenciosa só se ouvia a sua voz. Falava calmamente e com sensatez, como se a sua única missão fosse propagar a verdade sem chamar sobre si uma atenção imerecida. Ring era um vigarista nato, e o que ele estava a dizer à frente dos meus colegas enchia-me de fúria.

— Por exemplo, e temos de ser honestos a respeito disto - disse, olhando para mim - penso que não foi boa ideia tornar públicas informações sobre a raça, a idade e tudo o mais da vítima. Talvez esteja errado. - Olhou à sua volta. - Mas parece-me que quanto menos se disser melhor será.

— Não pude evitar - disse eu, e não conseguia impedir um toque de irritação na minha voz - porque alguém tinha estado a divulgar informações erróneas.

— Mas isso há-de acontecer sempre, e não me parece que deverá forçar-nos a divulgar detalhes antes de estarmos preparados - disse Ring, com o seu tom de sinceridade.

— Não nos vai ajudar nada se o público estiver concentrado numa asiática pré-pubescente desaparecida. - Olhei fixamente para ele, olhos nos olhos, enquanto toda a gente assistia.

— Concordo - disse Frankel, do VICAP. - Seríamos invadidos por participações de desaparecimentos de toda a parte. Um erro como esse tem de ser corrigido.

— Um erro como esse nunca devia ter acontecido, para começar - disse Wesley, olhando em volta da sala por cima dos seus óculos, como costumava fazer sempre que estava zangado. - Connosco esta manhã encontram-se o detective Grigg, de Sussex, e a Agente Especial Farinelli. - Olhou para Lucy. - Ela é a analista técnica da HRT, dirige a Rede Criminal de Inteligência Artificial, que toda a gente conhece por CAIN, e está aqui para nos auxiliar relativamente a uma situação envolvendo computadores.

A minha sobrinha não levantou os olhos e continuou a escrever, com uma expressão intensa. Ring estava a fixá-la, como se tivesse vontade de lhe comer a carne.

— Que situação? - perguntou, continuando a devorá-la com os olhos.

— Lá chegaremos - disse Wesley, e prosseguiu. - Deixem-me fazer um resumo, e depois passaremos aos detalhes. A vitimologia neste caso mais recente é tão diferente da dos quatro casos anteriores -    ou nove, se quisermos incluir os da Irlanda - que me leva a concluir que se trata de um homicida diferente. A Dra. Scarpetta vai analisar as suas verificações técnicas, que, na minha opinião, tornarão perfeitamente claro que o M. O. é totalmente atípico.

Prosseguiu, e levámos até ao meio-dia a rever os meus relatórios, diagramas e fotografias. Fizeram-me numerosas perguntas, sobretudo Grigg, que queria perceber bem todas as facetas dos casos de corpos desmembrados para compreender melhor sob que aspectos o que tinha ocorrido sob a sua alçada diferia dos anteriores.

— Qual é a diferença entre alguém cortar através das articulações e através dos ossos? - perguntou Grigg.

— O corte através das articulações é mais difícil - disse - porque requer conhecimentos de anatomia, possivelmente alguma experiência anterior.

— Como por exemplo se alguém trabalhasse num talho ou numa indústria de processamento de carne.

— Isso mesmo - respondi.

— Bem, acho que uma serra de cortar carne se ajusta perfeitamente a esse caso - acrescentou.

— Certo. E é muito diferente de uma serra de autópsia.

— Sob que aspecto? - Quem perguntava era Ring.

— Uma serra de carne é um serrote manual que se destina a cortar carne, cartilagens, osso. - Prossegui, olhando para todos os presentes. - Tem habitualmente uns trinta e cinco centímetros de comprimento, com uma lâmina muito fina, dispondo de uns quatro dentes tipo cinzel por centímetro. É usada em vaivém, exigindo uma certa força do utilizador. A serra de autópsia, em contrapartida, não corta através dos tecidos, que primeiro têm de ser afastados com outra ferramenta, como por exemplo uma faca.

— Que é o que foi usado neste caso - comentou Wesley.

— Existem cortes no osso que se ajustam às características de uma faca. Uma serra de autópsia - continuei a explicar - destina-se apenas a trabalhar em superfícies rijas mediante uma acção reciprocante que é basicamente a de empurrar e puxar, penetrando apenas um pouco de cada vez. Sei que todos estão familiarizados com o assunto, mas disponho de algumas fotografias.

Abrindo um sobrescrito, retirei dele diversas fotos com vinte por vinte e cinco centímetros mostrando as marcas de serra que o homicida tinha deixado nas extremidades dos ossos que eu tinha levado a Memphis. Distribuí-as pelos presentes.

— Como podem ver - prossegui - o padrão da serra é multidireccional, com um elevado polimento.

— Deixe ver se percebi - disse Grigg. - Esta é precisamente a mesma serra que usa na morgue.

— Não. Não é precisamente a mesma - esclareci. - Normalmente uso uma lâmina de secção maior do que aquela que aqui é usada.

— Mas isto é de uma serra de utilização médica. - Levantou a fotografia no ar.

— Correcto.

— Onde poderia qualquer pessoa obter uma serra deste tipo?

— Num consultório médico, num hospital, numa morgue, num estabelecimento de acessórios cirúrgicos - respondi. - Em numerosos locais. A sua venda não é condicionada.

— Por isso podia tê-la adquirido sem pertencer à classe médica.

— Facilmente - confirmei.

— Ou podia tê-la roubado. Podia ter decidido fazer qualquer coisa diferente desta vez, para atrapalhar - disse Ring.

Lucy estava a olhar para ele, e eu conhecia a expressão nos seus olhos. Considerava Ring um imbecil.

— Se se trata do mesmo homicida - interrompeu ela - então porque será que se põe de repente a mandar ficheiros através da Internet, quando nunca o tinha feito?

— Um pormenor interessante - concordou Frankel.

— Quais ficheiros? - perguntou Ring.

— Lá iremos. - Wesley tomou de novo o comando da reunião. Temos um M. O. diferente. Temos uma ferramenta diferente.

— Suspeitamos de que a vítima tivesse sofrido um trauma na cabeça - disse eu, distribuindo à minha volta diagramas da autópsia e as fotos recebidas por e-mail, - devido à presença de sangue nos canais de ar. Este pormenor poderá ou não ser diferente dos outros casos, porque desconhecemos a causa das mortes. Contudo, os exames radiológicos e antropológicos revelam que esta vítima é muito mais idosa do que as outras. Também recuperámos fibras indicando que ela estava coberta por algo semelhante a um resguardo ao ser desmembrada, o que também é inconsistente com os restantes casos.

Expliquei com mais detalhe os pormenores das fibras e da tinta, sempre ciente de que Ring estava a observar a minha sobrinha e a tomar notas.

— Portanto é possível que ela tenha sido cortada em alguma oficina ou garagem - disse Grigg.

— Não sei - respondi. - E, como viram nas fotos que me foram enviadas por e-mail, só podemos saber que estava numa divisão com paredes pardacentas e uma mesa.

— Deixem-me assinalar de novo que Keith Pleasants dispõe de uma barraca atrás da casa que usa como oficina - recordou-nos Ring. - Tem lá uma grande bancada e as paredes são de madeira não tratada. - Olhou para mim. - Que poderiam passar por pardacentas.

— Parece-me que deve ter sido bastante difícil limpar todo aquele sangue - comentou Grigg, em tom de dúvida.

— Um resguardo com forro de borracha poderá explicar a ausência de sangue - disse Ring. - A ideia é essa. Para que nada derrame.

Todos olharam para mim, aguardando a minha reacção.

— Teria sido bastante invulgar não espalhar sangue num caso como este - respondi. - Em especial porque a vitima ainda tinha tensão arterial ao ser decapitada. Pelo menos seria de esperar a presença de sangue no grão da madeira, nas gretas da mesa.

— Podemos experimentar fazer alguns ensaios químicos para esse efeito. - Ring estava agora transformado num especialista forense. - Como com luminol. Se estiver algum sangue presente, irá reagir e brilhar na escuridão.

— O problema com o luminol é que é destrutivo - respondi. - E vamos querer fazer ADN, para ver se conseguimos obter uma comparação. Por isso, não vamos querer destruir o pouco sangue que conseguirmos encontrar.

— Não dispomos de causa provável para irmos à oficina de Pleasants e começar a fazer qualquer tipo de ensaio. - O olhar de Grigg, do outro lado da mesa, era declaradamente conflituoso.

— Parece-me bem que dispomos. - Ring respondeu ao olhar de Grigg com outro olhar incisivo.

— Só se alteraram as regras sem me terem dito nada - disse Grigg, com lentidão.

Wesley estava a observar tudo isto, avaliando as pessoas e as palavras como sempre fazia. Tinha a sua própria opinião, e era mais que provável que estaria certo. Mas continuava calado, enquanto a discussão prosseguia.

—Pensei... - Lucy tentava falar.

— Há uma forte possibilidade de se tratar de um imitador - disse Ring.

— Oh, tenho a certeza de que é - disse Grigg. - Só que não engulo a sua teoria a respeito de Pleasants.

— Deixem-me acabar. - O olhar penetrante de Lucy passeou-se pelos rostos à sua volta. - Pensei poder-vos apresentar um resumo de como os dois ficheiros foram enviados através da America On Line para o endereço de e-mail da Dra. Scarpetta.

Soava-me estranho ouvi-la referir-se a mim pelo meu nome profissional.

— Eu cá estou cheio de curiosidade. - Ring tinha o queixo apoiado na concha da mão, a estudá-la.

— Primeiro, será preciso um scanner - prosseguiu Lucy. - Isso não é difícil. Algo com aptidão para cores e uma resolução decente, pelo menos setenta e dois pontos por polegada. Mas neste caso parece-me haver uma resolução superior, talvez uns trezentos dpi. Podemos estar a falar de um scanner de mão que custa trezentos e noventa e nove dólares, ou então de um scanner de diapositivos de trinta e cinco milímetros que não se arranja por menos de uns milhares...

— E a que tipo de computador se poderia ligar isso? - perguntou Ring.

— Ia chegar aí. - Lucy estava farta de ser interrompida por ele. Requisitos do sistema: um mínimo de oito megas de RAM, um monitor a cores, software como o FotoTovtch ou o Scanman, e um modem. Podia ser um Macintosh, um Performa 6116CD ou ainda mais antigo. O que interessa é que a introdução de ficheiros gráficos num computador e o seu envio pela Internet estão ao alcance de quase toda a gente, e é por essa razão que as infracções através das telecomunicações nos dão cada vez mais trabalho.

— Como aquele caso de pornografia infantil e pedofilia recentemente desvendado - disse Grigg.

— Isso, fotos enviadas através da WWW sob a forma de ficheiros, através dos quais as crianças podem ser contactadas por desconhecidos - disse ela. - Mas o que interessa na situação que estamos a discutir é que o scanning a preto e branco não tem nada de especial, mas, quando passamos para a cor, a coisa começa a tornar-se sofisticada. Por outro lado, os rebordos e as margens nas fotos enviadas à Dra. Scarpetta estão relativamente nítidos, sem muito ruído de fundo.

— Parece-me que estamos a falar de alguém que sabe o que estava a fazer - comentou Grigg.

— Precisamente - concordou Lucy. - Mas não se trata necessariamente de algum analista-programador ou de alguém especializado em gráficos. Nada disso.

— Hoje em dia, desde que se tenha acesso ao equipamento e a alguns livros de instruções, qualquer pessoa pode fazê-lo - disse Frankel, que também lidava com computadores.

— Muito bem, as fotos foram metidas no sistema - disse eu a Lucy. -              E depois? Qual foi o trajecto que as levou até mim?

— Primeiro faz-se a transferência do ficheiro, que neste caso se trata dum ficheiro gráfico, ou GIT. - respondeu. - Em geral, para se mandar um ficheiro destes com êxito, é preciso determinar o número de bits de dados, os bits de stop, a regulação da paridade, o que for necessário para se encontrar a configuração apropriada. Essa é a parte difícil. Mas a AOL faz tudo isso por nós. Assim, o envio dos ficheiros torna-se simples. Basta metê-los no sistema, e lá vão eles. - Lucy olhou para mim.

— E tudo isto foi feito através do telefone, basicamente - disse Wesley.

— Certo.

— Há possibilidades de investigar o trajecto?

— A Brigada 19 já está a trabalhar nisso. - Lucy referia-se à divisão do BT que investigava as utilizações ilegais da Internet.

— Não sei bem como se classificaria o crime neste caso - assinalou Wesley. - Obscenidade, se as fotografias forem falsas, e isso infelizmente não é ilegal.

— As fotos não são falsas - garanti.

— É difícil provar. - Wesley aguentou o meu olhar.

— E se não forem falsas? - perguntou Ring.

— Então transformam-se em provas testemunhais - disse Wesley, acrescentando, depois de uma pausa - Uma violação do artigo dezoito, parágrafo oitocentos e setenta e seis. Envio de comunicações ameaçadoras através do correio.

— Ameaçadoras para quem? - perguntou Ring.

Os olhos de Wesley continuavam fixados em mim.

— Como é óbvio, para quem as recebe.

— Não houve nenhuma ameaça declarada - recordei-lhe.

— O que temos é suficiente para um mandato judicial.

— Primeiro vamos precisar de encontrar a pessoa - disse Ring, espreguiçando-se na cadeira como se fosse um gato.

— Estamos à espera de que ele volte a entrar em contacto, - esclareceu Lucy. - Está a ser monitorizado vinte e quatro horas por dia. -  Continuou a bater nas teclas do portátil, controlando o fluxo constante de mensagens. - Mas se conseguirem imaginar um sistema telefónico global com uns quarenta milhões de utilizadores, sem uma lista geral e sem telefonistas, é isso que a Internet representa. Não existe nenhuma relação de membros, nem sequer a AOL tem uma, a não ser dos que se dispõem a preencher um perfil. Neste caso, tudo o que temos é a alcunha deadoc.

Como saberá ele para onde enviar o correio da Dra Scarpetta?

— Grigg olhou para mim.

Expliquei-lhe, e depois perguntei a Lucy:

— Isto é tudo feito através de um cartão de crédito?

Ela confirmou com um aceno.

— Até aí já nós chegámos. Um cartão da American Express emitido em nome de Ken E. Perley. Professor liceal reformado. Norfolk. Setenta anos, vive só.

— Temos alguma ideia de como alguém poderia ter acesso a esse cartão? - perguntou Wesley.

— Parece que Perley não dá muito uso aos seus cartões de crédito. Da última vez foi num restaurante de Norfolk, o Red Lobster. Isso foi a dois de Outubro, quando foi jantar com o filho. A conta era de vinte e sete dólares e trinta cêntimos, incluindo a gorjeta, que levou a débito da American Express. Nem ele nem o filho se recordam de qualquer coisa fora do normal nessa noite. Mas, quando chegou a altura de pagar a conta, o cartão ficou exposto em cima da mesa durante algum tempo, porque o restaurante estava cheio de actividade. Em dado momento, enquanto o cartão estava à vista, Perley foi aos lavabos, e o filho foi fumar um cigarro no exterior.

— Cristo. Foi uma manobra inteligente. Teria alguém do pessoal notado a presença de qualquer pessoa próximo da mesa? - perguntou Wesley a Lucy.

— Como já referi, era intenso o movimento no restaurante. Estamos a coligir uma lista dos clientes que naquela noite pagaram com cartões de crédito. O problema vai ser as pessoas que pagaram a dinheiro.

— E presumo que seja ainda muito cedo para que os débitos da AOL constem dos extractos fornecidos pela American Express a Perley - disse Wesley.

— Certo. Segundo a AOL, a conta foi aberta recentemente. Mais precisamente, uma semana depois do jantar no Red Lobster. Perley está a colaborar muito bem connosco - acrescentou Lucy. - E a AOL deixou a conta em aberto sem custos, para o caso de o perpetrador pretender mandar mais alguma coisa.

Wesley concordou com um aceno.

— Ainda que não nos seja possível confirmar, devemos partir do principio de que o autor do crime, pelo menos no caso do aterro sanitário Atlântico, terá estado em Norfolk há cerca de um mês.

— Não parece haver dúvidas de que este caso se apresenta cada vez mais limitado à nossa região - comentei, pretendendo com isto realçar, uma vez mais, esta minha opinião.

— É possível que alguns dos corpos tenham sido refrigerados? - perguntou Ring.

— Neste caso, não - Wesley foi rápido a responder. - Nem pensar. O sujeito nem era capaz de olhar para a sua vítima. Teve de tapá-la, de cortá-la através do resguardo, e a minha opinião é de que não deve ter ido muito longe para se ver livre dela.

— Faz lembrar uma telenovela - comentou Ring.

Lucy estava a ler qualquer coisa no monitor do seu portátil, batendo suavemente nas teclas, com o rosto tenso.

— Acabamos de receber uma mensagem da Brigada 19 - disse ela, continuando a fazer rolar o texto no monitor. - Deadoc mandou uma mensagem há cinquenta e seis minutos. - Olhou para nós. - Enviou um e-mail endereçado ao presidente.

 

O correio electrónico tinha sido enviado directamente para a Casa Branca, o que não constituía uma grande proeza dado que o endereço era público e estava acessível a qualquer utilizador da Internet. Uma vez mais, a mensagem apresentava-se estranhamente em letras minúsculas e usava espaços para a pontuação, e dizia: peçam desculpa ou começarei pela frança.

— Há diversas implicações - disse-me Wesley enquanto o ruído das explosões na galeria de tiro do andar superior chegava até nós como uma guerra distante e amortecida. - E todas elas me causam nervos por tua causa.

Parou junto do bebedouro.

— Não me parece que isto tenha alguma coisa a ver comigo - disse.

— Só tem a ver com o presidente dos Estados Unidos.

— É uma questão simbólica, se queres conhecer a minha opinião. Não tem nada de literal. - Começámos a caminhar. - Parece-me que este homicida está descontente, zangado, e sente que alguém no poder é responsável pelos seus problemas.

— Como o Unabomber - disse, e entrámos no elevador para subir.

— Muito parecido. Talvez mesmo inspirado por ele - disse Wesley, olhando para o relógio. - Posso pagar-te uma cerveja antes de te ires embora?

— Só se for alguém a guiar. - Sorri. - Mas podes convencer-me a tomar um café.

Atravessámos a sala de limpeza de armas de fogo, onde dúzias de agentes do FBI e dos Narcóticos estavam a desmontar as suas armas e a limpá-las com jactos de ar. Olharam para nós com curiosidade, e pensei se eles teriam ouvido os boatos. O meu relacionamento com Wesley era desde há algum tempo um motivo de conversa na Academia, e isso incomodava-me mais do que deixava transparecer. Muitas pessoas, parecia, acreditavam que a mulher dele o tinha deixado por minha causa, quando na realidade ela o tinha feito por causa de outro homem.

No piso superior, a fila para a loja mista estava comprida: uma modelo exibia o mais recente conjunto de t-shirt e jeans, e havia nas montras abóboras e perus para o Dia de Acção de Graças. Mais adiante, na cafetaria, havia gente a comer pipocas e a beber cerveja. Sentámo-nos o mais longe possível dos outros clientes, ambos bebendo café.

— Como interpretas a ligação com a França? - perguntei.

— Obviamente, este individuo é inteligente e está a par das notícias. As nossas relações com a França estiveram muito tensas durante o seu programa de ensaios de armas nucleares. Talvez te lembres dos actos de violência e de vandalismo, do boicote ao vinho francês e a outros produtos. Registaram-se muitos protestos em frente das embaixadas francesas.

— Mas isso foi já há uns dois anos.

— Não interessa. As feridas levam muito tempo a sarar. - Olhou pela janela para a tarde que começava a escurecer. - Mais importante, a França não iria gostar que exportássemos para lá um assassino em série. Só posso supor que seja isto o que deadoc pretende dizer. Há muitos anos que a polícia francesa e de outras nacionalidades se preocupam com a ideia de que os nossos problemas possam eventualmente chegar aos seus países. Como se a violência fosse uma doença contagiosa.

— E é verdade que é.

Ele concordou com um aceno, e pegou de novo na sua chávena.

— Talvez fizesse mais sentido se acreditássemos que os dez crimes daqui e da Irlanda tivessem sido cometidos pela mesma pessoa - comentei eu.

— Kay, não podemos pôr de parte qualquer hipótese. - Parecia cansado, ao repetir isto.

Sacudi a cabeça.

— Ele está a dar-se como culpado dos crimes de outra pessoa, e agora ameaça-nos. Talvez não tenha qualquer noção de como o seu M. O. é diferente daquilo que sabemos dos casos anteriores. Claro que não podemos pôr de parte qualquer hipótese, e tenho a esperança de que a identificação desta vitima mais recente será a chave.

— Tens sempre essa esperança. - Sorriu, brincando com a colher.

— Sei bem para quem trabalho. Neste momento, estou a trabalhar para aquela pobre mulher cujo torso está guardado no meu congelador.

Já era noite lá fora, e a cafetaria enchia-se depressa com homens e mulheres jovens, de aspecto saudável, envergando fatos de trabalho cuja cor dependia do sector de cada um. O ruído ambiente dificultava a conversa, e precisava de falar com Lucy antes de me ir embora.

— Tu não gostas de Ring. - Wesley inclinou-se para trás para retirar o casaco das costas da cadeira. - Ele é esperto e parece motivado e sincero.

— Não tenhas dúvidas de que essa parte final do perfil que fizeste está totalmente errada - disse, ao levantar-me. - Mas acertaste na primeira parte: não gosto nada dele.

— Pensei que isso era perfeitamente óbvio, pelo teu comportamento.

Abrimos caminho por entre pessoas que procuravam onde colocar jarros de cerveja.

— Acho que se trata de um homem perigoso.

— É vaidoso e quer tornar-se conhecido - disse Wesley.

— E tu não achas que isso pode ser perigoso? - Olhei para ele.

— Quase todas as pessoas com quem tenho trabalhado são assim.

— Excepto no meu caso, espero.

— Tu, Dra. Scarpetta, és uma excepção a praticamente tudo o que me possa ocorrer.

Caminhávamos por um longo corredor, a caminho do átrio, e não queria que ele se fosse já embora. Sentia-me só e não sabia porquê.

— Gostava que jantássemos juntos - disse - mas Lucy tem qualquer coisa que quer mostrar-me.

— Porquê? Pensas que não tenho já planos para o jantar? - Segurou a porta aberta para eu passar.

A ideia incomodou-me, apesar de saber que ele estava a brincar comigo.

— É melhor esperarmos até que eu esteja despachado daqui - disse ele, e íamos já a caminhar para o parque de estacionamento. - Talvez no fim-de-semana, quando poderemos ficar mais à vontade. Desta vez cozinho eu. Onde estacionaste?

— Aqui. - Apontei o comando à distância da chave. As portas destravaram-se e a luz do habitáculo acendeu-se. Como era habitual, não nos tocámos. Nunca nos tínhamos tocado quando alguém podia estar a ver.

— Por vezes odeio isto - comentei, entrando no carro. - Não faz mal falarmos de pedaços de corpos, de violações e homicídios durante o dia inteiro, mas não podemos abraçar-nos ou darmos as mãos. Deus nos livrasse se alguém visse. - Pus o motor a trabalhar - Achas isso normal? Não é que continuemos a ter um caso ou que estejamos a cometer um crime. - Cruzei o cinto de segurança sobre o peito. - Haverá alguma regra interna do FBI que ninguém me tenha transmitido, dizendo que não se pode perguntar e não se pode contar?

— Há, sim. - Beijou-me nos lábios enquanto um grupo de agentes passava perto. - Portanto não contes a ninguém - disse ele.

Momentos depois estacionei defronte do Edifício de Investigação Técnica, ou ERF, uma vasta construção ao estilo da era espacial em que o FBI realizava os seus trabalhos técnicos de investigação e desenvolvimento. Se Lucy sabia o que se passava nestes laboratórios, não me contava, e eram poucas as zonas do edifício em que me deixavam entrar, mesmo acompanhada por ela. Estava à minha espera perto da porta, enquanto eu apontava ao carro o meu comando à distância, sem que nada acontecesse.

— Aqui não funciona - disse ela.

Olhei para o telhado carregado de antenas e discos côncavos, enquanto travava as portas manualmente com a chave.

— Já tinha obrigação de saber isso - comentei.

— O teu amigo investigador, Ring, tentou acompanhar-me até aqui depois da reunião - disse ela, aplicando o polegar contra um fecho biométrico ao lado da porta.

— Meu amigo é que ele não é - assegurei-lhe.

O átrio possuía tectos altos, e dispunha de diversos armários envidraçados nos quais se expunham exemplos de volumosas e ineficientes peças de equipamento de rádio e de electrónica usadas pelas autoridades antes da organização do ERE.

— Convidou-me outra vez para sair com ele - informou-me.

Os corredores eram monocromáticos e aparentemente intermináveis, e ficava sempre impressionada com o silêncio e com a sensação de que não havia ninguém aqui. Cientistas e engenheiros trabalhavam atrás de portas fechadas em espaços suficientemente amplos para receber automóveis, helicópteros e mesmo pequenos aviões. No ERE trabalhavam centenas de pessoas, que não tinham praticamente nenhum contacto connosco do outro lado da rua. Nem lhes conhecíamos os nomes.

— Tenho a certeza de que há um milhão de pessoas que gostariam de sair contigo - disse, ao entrarmos num elevador; e Lucy voltou a dar a ler o seu polegar.

— Normalmente, só enquanto não me conhecem bem - disse ela.

— Não sei; conheço-te bem, e ainda não quis ver-me livre de ti.

Mas ela parecia muito séria.

— Assim que começo a falar no meu trabalho, os fulanos desligam. Mas este é dos que gostam de um bom desafio, se a tia conhece o género.

— Conheço-o bem demais.

— Ele pretende alguma coisa de mim, tia Kay.

— Queres tentar adivinhar o que será? E para onde queres levar-me, já agora?

— Não sei. Só tenho esta estranha impressão. - Abriu a porta de um laboratório de ambiente virtual, acrescentando: - Tive uma ideia que me parece interessante.

As ideias de Lucy eram sempre mais do que interessantes. Normalmente eram assustadoras. Segui-a até uma sala cheia de processadores virtuais e computadores gráficos montados uns sobre os outros e balcões sobrecarregados de ferramentas, placas de computador, chips e periféricos como DataGloves e monitores montados em capacetes. Fios eléctricos estavam enfeixados em espessas meadas espalhadas pelo vasto pavimento de linóleo no qual Lucy se perdia frequentemente pelo ciberespaço.

Pegou num comando à distância, e dois monitores de vídeo acenderam-se, e reconheci neles as fotografias que deadoc me tinha enviado. Eram grandes e coloridas nos monitores, e comecei a sentir-me enervada.

— Que estás a fazer? - perguntei à minha sobrinha.

— A questão básica foi sempre saber se a imersão num ambiente beneficiaria de facto o rendimento do operador - disse ela, teclando comandos no computador. - Nunca tiveste oportunidade de mergulhar neste ambiente, na cena do crime.

Olhámos ambas para os pedaços sangrentos de um ser humano apresentados nos monitores, e senti um arrepio.

— E se tivesses agora essa oportunidade? - prosseguiu Lucy. - Se pudesses sentir-te dentro da casa de deadoc?

Comecei a interrompê-la, mas não me deixou.

— Que mais poderias ver? Que mais poderias fazer? - disse ela, e sempre que se entusiasmava a este ponto parecia quase maníaca. - Que mais poderias aprender sobre a vítima e sobre o homicida?

— Não sei se serei capaz de utilizar uma coisa destas - protestei.

— Com certeza que és. Ainda não tive tempo para lhe juntar som sintético. Bem, à excepção dos sinais audíveis típicos, pré-gravados. Assim, um som de pisar é qualquer coisa que se abre, um dique é um comutador a ligar ou a desligar; um tinido significa que se esbarrou em alguma coisa.

— Lucy - disse eu, enquanto ela me agarrava pelo braço esquerdo, - de que raio estás tu a falar?

Calçou cuidadosamente a minha mão esquerda com uma luva DataGlove, certificando-se de que ficava bem ajustada.

— Utilizamos gestos nas comunicações humanas. E também podemos usar gestos, ou posições como lhes chamamos, para comunicarmos com o computador - explicou.

A luva era de lycra negra com sensores de fibra óptica montados nas costas. Estes eram por sua vez ligados a um cabo que partia do computador de alto rendimento em cujo teclado Lucy estivera a escrever. A seguir pegou num monitor montado num capacete ligado a outro cabo, e o terror agitou-me o coração ao vê-la dirigir-se a mim.

— Um VPL Eyephone HRX, - anunciou, alegremente. - Igual aos que estão a ser usados no Centro de Investigações Ames, da NASA, que foi aliás onde o arranjei. - Estava a ajustar os cabos e as faixas. Trezentos e cinquenta mil elementos de cor. Resolução superior e um largo campo de visão.

Colocou-me o capacete na cabeça, e era pesado e tapava-me os olhos.

— Estás a espreitar através de pequenos displays de cristais líquidos, iguais aos usados nos monitores de vídeo. Chapas de vidro, eléctrodos e moléculas, fazendo uma série de coisas muito giras. Como te sentes?

— Como se estivesse prestes a cair no chão e a sufocar.

Começava a deixar-me invadir pelo pânico, exactamente como me sentira no meu primeiro mergulho com equipamento de scuba.

— Não te vai acontecer nada. - Lucy estava a ser muito paciente comigo, amparando-me com a mão. - Relaxa-te. É normal ser-se fóbico ao principio. Eu digo-te o que terás de fazer. Agora fica imóvel e respira fundo. Vou ligar-te.

Fez alguns ajustes, apertando o capacete em redor da minha cabeça, e depois regressou ao computador. Sentia-me cega e desequilibrada, com uma minúscula TV em frente de cada olho.

— Pronto, cá vamos nós - disse ela. - Não sei se isto servirá para alguma coisa, mas mal não fará.

Ouvi o barulho das teclas, e senti-me de repente atirada para dentro daquele quarto. Lucy começou a instruir-me sobre o que devia fazer com a mão para subir ou para descer; e como segurar em objectos e largá-los. Movi o indicador; fiz movimentos de teclar; juntei o polegar à palma da mão, e movimentei a mão à frente do peito, começando a transpirar. Passei uns cinco minutos no tecto e a embater nas paredes. A certa altura vi-me em cima da mesa onde o torso descansava na sua ensanguentada cobertura azul, pisando os indícios e a morta.

— Parece-me que vou vomitar - avisei.

— Aguenta-te por um momento - recomendou Lucy. - Respira fundo.

Fiz um gesto ao começar a dizer qualquer coisa, e vi-me instantaneamente no chão virtual, como se tivesse caído do ar.

— Foi por isso que te disse para não te moveres - disse ela, enquanto via o que eu estava a fazer através dos monitores. - Agora mexe a mão e aponta com o indicador e o médio na direcção de que ouves chegar a minha voz. Estás melhor assim?

— Melhor - confirmei.

Estava em pé no soalho do quarto, como se a fotografia tivesse regressado à vida, tridimensional e ampla. Olhei à minha volta e não vi nada que não tivesse visto antes, quando Vander tornara a imagem mais nítida. O que contava era o que isto me fazia sentir, e o que sentia alterava tudo o que eu via.

As paredes tinham a cor da massa de vidraceiro, com ligeiras descolorações que até agora atribuíra a danos causados por água, o que seria normal numa cave ou numa garagem. Mas agora pareciam diferentes, mais uniformemente distribuídas, algumas delas tão ténues que mal podia vê-las. A pintura pardacenta destas paredes já estivera tapada com papel de forrar paredes. Tinha sido removido mas não substituído, acontecendo o mesmo ao varão do cortinado. Por cima das janelas tapadas por estores corridos viam-se pequenos orifícios onde tinham sido fixados os suportes do varão.

— Não foi aqui que aquilo se passou - anunciei, com o coração a bater com força.

Lucy não disse nada.

— Ela foi trazida para aqui para ser fotografada. Não foi neste local que foi morta e desmembrada.

— Que estás a ver agora? - perguntou.

Tinha movido a mão, aproximando-me mais da mesa virtual. Apontei para as paredes virtuais, para mostrar a Lucy o que estava a ver.

— Onde teria ele ligado a serra de autópsia? - perguntei.

Só consegui encontrar uma tomada de electricidade, localizada na base de uma parede.

— E o resguardo será também daqui? - prossegui. - Não se ajusta a todo o resto. Não há tintas, não há ferramentas. - Continuei a olhar em redor. - E olha para o chão. A madeira está mais clara junto às paredes, como se em tempos houvesse aqui um tapete. Quem usa tapetes em oficinas? Quem tem paredes forradas a papel e cortinados? Onde estão as tomadas de força motriz para a maquinaria?

— Qual é a tua impressão? - perguntou Lucy.

— A minha impressão é de que este é um quarto, em casa de alguém, do qual foi retirada toda a mobília, com excepção de uma espécie de mesa, que foi tapada com qualquer coisa. Talvez uma cortina de chuveiro. Não sei bem. A impressão que recolho é de ser um quarto de alguma habitação.

Estendi a mão e tentei tocar no rebordo da coberta da mesa, como se pudesse levantá-la para revelar o que estaria por baixo, e enquanto olhava em redor diversos detalhes tornaram-se-me nítidos. Não sabia como esses detalhes me poderiam ter escapado anteriormente. Fios eléctricos estavam expostos no tecto directamente por cima da mesa, como se algum candeeiro ou outro tipo de luz tivesse estado ali pendurado.

— Haverá alguma modificação na percepção de cores? - perguntei.

— Penso que não.

— Então há outra coisa. Estas paredes. - Toquei-lhes. - A cor parece tornar-se mais clara nesta direcção. Haverá alguma abertura. Talvez uma porta, com a luz a vir de lá.

— Não há nenhuma porta na foto - lembrou-me Lucy. - Só poderás ver o que está lá.

Era estranho, mas por um momento pareceu-me que podia cheirar o seu sangue, a pungência de carne velha e morta já há dias. Recordei-me da textura pastosa da pele da vítima, e das estranhas erupções que me faziam suspeitar de zona.

— Esta não foi escolhida ao acaso - disse.

— E as outras foram.

— Os outros casos não têm nada a ver com este. Estou a apanhar duplas imagens. Podes regular isso?

— Disparidade vertical retinal das imagens.

Depois senti-lhe a mão no meu braço. - Normalmente desaparece passados quinze ou vinte minutos - disse ela. - É melhor interrompermos aqui.

— Não me sinto lá muito bem.

— Desalinho da rotação das imagens. Fadiga visual, náusea da simulação, ciberdoença, chamem-lhe o que quiserem, - disse Lucy. - Causa o enevoar das imagens, lágrimas, mesmo enjoo.

Mal podia esperar que ela me retirasse o capacete, e vi-me de novo sobre a mesa, de cara para baixo no sangue antes de poder afastar dos olhos os displays de cristais líquidos.

Tinha as mãos a tremer enquanto Lucy me ajudava a tirar a luva.

Sentei-me no chão.

— Sentes-te bem? - perguntou Lucy, carinhosamente.

— Aquilo foi horrível - comentei.

— Então foi bom. - Foi depositar o capacete e a luva num dos balcões. - Estiveste mergulhada no ambiente. Era isso mesmo que devia ter acontecido.

Estendeu-me diversos lenços de papel, e limpei a cara.

— E quanto à outra fotografia? Queres experimentar também com ela? - perguntou-me. - A que tem as mãos e os pés?

— Já estive naquele quarto o tempo mais que suficiente - respondi.

 

Voltei para casa obcecada. Tinha visitado cenários de crimes durante toda a minha vida profissional, mas nunca tinha estado no meio de um deles. A impressão de ter estado dentro da fotografia, de imaginar que conseguia cheirar e apalpar o que restava do corpo, tinha-me perturbado profundamente. Era quase meia-noite quando entrei com o carro na garagem, e parecia-me não ser capaz de destravar a porta com a necessária rapidez. Para entrar em casa desliguei o alarme, mas voltei a ligá-lo assim que fechei e aferrolhei a porta. Olhei à minha volta para me certificar de que tudo estava no seu lugar.

Acendendo a lareira, preparei uma bebida e senti de novo a falta dos cigarros. Liguei a música para me fazer companhia, e depois entrei no escritório para ver o que ali me aguardaria. Tinha vários faxes e mensagens telefónicas, e outra comunicação no correio electrónico. Desta vez, tudo que deadoc tinha para me dizer era repetir a frase pensas que és tão esperta. Estava a imprimir a mensagem, e a pensar se a Brigada 19 também a teria visto, quando o telefone tocou, assustando-me.

— Olá - disse Wesley. - Era só para saber se tinhas chegado bem a casa.

— Há mais correio - disse, e contei-lhe o que era.

— Grava e vai-te deitar.

— É difícil não pensar nisto.

— Ele quer que fiques acordada toda a noite a pensar nisso. É essa a sua força. É esse o jogo dele.

— Porque me teria escolhido a mim? - Estava desorientada, e ainda me sentia nauseada.

— Porque tu representas um desafio. Mesmo para pessoas simpáticas como eu. Vai dormir. Falamos amanhã. Amo-te.

Mas não consegui dormir por muito tempo. Poucos minutos depois das quatro da manhã o telefone tocou de novo. Desta vez era o Dr. Hoyt, um médico de clínica geral em Norfolk, onde desde há uns vinte anos era o médico legista nomeado pelo estado. Andava perto dos setenta anos, mas conservava-se activo e lúcido como um jovem. Nunca o vira alarmado por coisa nenhuma, e fiquei instantaneamente enervada pelo seu tom de voz.

— Dra. Scarpetta, lamento muito - disse ele, falando muito depressa. - Estou na ilha de Tangier.

Estranhamente, tudo o que me veio à cabeça nesse momento foram os bolinhos de caranguejo.

— Que está a fazer aí?

Acomodei as almofadas atrás de mim, e peguei no livro de apontamentos e na caneta.

— Fui chamado ontem ao final do dia, tenho estado aqui desde há várias horas. A Guarda Costeira teve de me trazer a bordo de um cúter; e não gosto mesmo nada de barcos, sacudido e batido como se fosse um ovo. Ainda por cima estava frio como o raio.

Não fazia qualquer ideia do que ele estaria a falar.

— Da última vez que vi qualquer coisa parecida com isto foi no Texas, em 1949 - prosseguiu, falando depressa, - quando estava a fazer o meu internato e estava prestes a casar...

Tive de lhe cortar a conversa.

— Mais devagar, Fred. Diga-me o que se passou.

— Uma senhora de Tangier com cinquenta e dois anos de idade. Provavelmente está morta há mais de vinte e quatro horas no seu quarto. Apresenta severas erupções da pele em manchas. Está toda coberta delas, incluindo as palmas das mãos e as plantas dos pés. Ainda que pareça disparate, faz lembrar varíola.

— Tem razão, parece disparate - disse, enquanto se me secava a boca. - E quanto a varicela? Há possibilidade de esta mulher ter tido problemas de imunologia?

— Não sei nada a seu respeito, mas nunca vi varicela com este aspecto. As erupções seguem o padrão da varíola. Estão em manchas, como já disse, todas mais ou menos da mesma idade, e quanto mais se afastam do centro do corpo mais densas se tornam. Portanto são confluentes, na cara, nas extremidades.

Estava a pensar no torso, na pequena área de erupções que me tinham parecido tratar-se de zona, com o coração pesado de receio. Não sabia onde aquela vítima tinha morrido, mas pensava-se que tinha sido algures na Virgínia. A ilha de Tangier também se situava na Virgínia,

uma minúscula ilha situada na baía de Cheasapeake cuja economia tinha por base a apanha de caranguejos.

— Hoje em dia há por aí uma quantidade de estranhos vírus - estava ele a dizer.

— Sim, tem razão - concordei. - Mas o Hanta, o Ebola, o HIV, o dengue, e tudo o mais, não causam os sintomas que me descreveu. Isso não quer dizer que não haja outra coisa qualquer que desconheçamos.

— Conheço a varíola. Tenho idade suficiente para a ter visto com estes dois olhos. Mas não sou especialista em doenças infecciosas, Kay. E com certeza que os meus conhecimentos não estão ao nível dos seus. Mas seja o que for neste caso, a verdade é que a mulher morreu e que o         que a matou foi algum vírus do tipo vanólico.

— Obviamente, ela vivia sozinha.

— Assim é.

— E quando teria sido vista com vida pela última vez?

— O chefe está agora a trabalhar nisso.

— Qual chefe? - perguntei.

— O departamento policial de Tangier tem um polícia. O chefe é ele. Estou agora a telefonar-lhe da roulotte dele.

— Mas ele não está a escutar-nos?

— Não! Anda a falar com os vizinhos. Fiz os possíveis para recolher informações, mas não tive muito êxito. Já cá esteve alguma vez?

— Não, nunca.

— Digamos só que não devem acreditar muito na rotação das colheitas. Haverá talvez uns três apelidos em toda a ilha. Em geral as pessoas crescem aqui e por aqui ficam. É bastante difícil perceber-se uma única palavra do que dizem. Usam um dialecto que não se ouve em qualquer outro local da terra.

— Que ninguém toque nela até termos uma ideia do que estamos a enfrentar - disse, ao mesmo tempo que desabotoava o pijama.

— Que acha que é melhor que eu faça? - perguntou ele.

— Peça ao chefe da polícia que guarde a casa. Ninguém pode entrar nem se aproximar até que eu diga. Vá para casa. Mais logo falarei consigo.

Os laboratórios não tinham ainda completado a microbiologia do torso, e agora já não podia esperar. Vesti-me à pressa, mexendo desajeitadamente em tudo como se a minha motricidade estivesse defeituosa.

Cruzei rapidamente as ruas desertas, e cerca das cinco horas arrumei o carro no meu espaço atrás da morgue. Ao entrar no recinto assustei o guarda da noite, do mesmo modo como ele me assustou a mim.

— Deus todo poderoso, Dra. Scarpetta - disse Evans, que guardava o edifício pelo menos desde que eu trabalhava lá.

— Desculpe - disse-lhe com o coração a bater desordenado. - Não tinha intenção de assustá-lo.

— Estou só a fazer a minha ronda. Está tudo bem?

— Espero que esteja. - Passei por ele.

— Estará alguma coisa para chegar?

Seguiu-me pela rampa acima. Abri a porta de acesso, e olhei para ele.

— Que eu saiba, nada - respondi.

Ficou completamente confuso, pois não entendia a razão para eu estar ali àquela hora, quando não estava a chegar nenhum caso. Começou a abanar a cabeça enquanto regressava à porta que dava para o recinto de estacionamento. Daí, iria para o seu cubículo no edifício dos Laboratórios Consolidados, onde ficaria sentado em frente do seu pequeno aparelho de televisão até chegar a altura de fazer uma nova ronda. Evans nunca entrava na morgue. Não percebia como alguém seria capaz de fazê-lo, e eu sabia que tinha medo de mim.

— Não vou ficar aqui por muito tempo - disse-lhe. - Depois vou para o andar de cima.

— Sim senhora, - disse ele, ainda a abanar a cabeça. - Sabe onde eu vou estar.

Mais ou menos ao meio do corredor, no sector das autópsias, havia uma sala pouco usada, e foi lá que parei primeiro, abrindo a porta com uma chave. No interior havia três congeladores diferentes dos outros. Eram de grandes dimensões, em aço inox, com a temperatura indicada digitalmente nas portas. Cada um deles apresentava uma lista com números de casos, indicando os despojos não identificados nele armazenados.

Abri uma das portas, e uma onda de nevoeiro soltou-se do interior, enquanto o ar frígido me mordia a cara. Ela estava num saco, e este repousava numa bandeja com rodas; fui pôr a bata, as luvas, o resguardo para a cara, todos os géneros de protecção de que dispúnhamos. Sabia que talvez já estivesse em apuros, e a ideia de Wingo com o seu estado vulnerável encheu-me de temor ao levantar o saco e colocá-lo numa mesa de aço inoxidável no meio da sala. Abrindo o fecho de correr do saco de vinil preto, expus o torso ao ar ambiente e fui abrir a porta da sala de autópsias.

Reuni um bisturi e algumas lâminas limpas de vidro, puxei a máscara cirúrgica para me tapar a boca e o nariz, e regressei à sala dos congeladores, fechando a porta. A camada externa da pele do torso estava húmida com o início da descongelação, e usei toalhas humedecidas e aquecidas para acelerar o processo antes de começar a levantar as vesículas ou as erupções acumuladas sobre a anca e nos rebordos irregulares das amputações.

Com o bisturi raspei os leitos vesiculares, e apliquei borrões deles nas lâminas de vidro. Voltei a fechar o saco, marcando-o com etiquetas fluorescentes cor de laranja, indicadoras de perigo biológico. Quase não consegui voltar a colocar o torso na sua prateleira frígida, com os braços tremendo com o esforço. Não havia ninguém que me ajudasse a não ser Evans, por isso tive de me bastar a mim própria, e voltei a pôr etiquetas de perigo na porta.

Subi até ao segundo andar e abri um pequeno laboratório que seria igual aos outros se não fossem os vários instrumentos usados apenas no estudo microscópico dos tecidos, ou histologia. Num balcão estava um processador de tecidos, que fixava e desidratava amostras de fígados, rins, baços, e depois impregnava-os com parafina. Daí, os blocos iam para o centro de embutidura, de onde seguiam para o micrótomo, onde eram reduzidos a finas fitas. O produto final era o que usualmente me mantinha dobrada sobre o meu microscópio no andar inferior.

Enquanto as lâminas secavam ao ar, pus-me a procurar pelas prateleiras, afastando corantes de laranja vivo, azul e rosa em frascos, desprezando iodo de Gram para as bactérias, Oil Red para gordura e fígado, nitrato de prata, Biebrach Scarlet e Acridine Orange, enquanto pensava na ilha de Tangier, de onde nunca tivera um caso. Não havia lá muitos crimes, tinham-me dito, só embriaguez, que era usual entre homens isolados pelo mar. Pensei de novo no caranguejo azul, e desejei irracionalmente que Bev me tivesse vendido antes bodião ou atum.

Tendo encontrado o frasco de corante Nicolaou, introduzi nele um conta-gotas e cuidadosamente depositei uma minúscula quantidade do fluido vermelho em cada lâmina, tapando-as. Estas guardei-as numa robusta pasta de cartão, e desci para o meu andar. Entretanto iam começando a chegar pessoas ao trabalho, e olhavam-me com estranheza ao ver-me atravessar o corredor e entrar no elevador com bata, máscara e luvas. No meu gabinete, Rosa estava a remover da minha secretária canecas sujas de café, e estancou ao ver-me.

— Dra. Scarpetta! - exclamou, admirada. - Que está a passar-se?

— Não tenho a certeza, mas espero que não seja nada - repliquei, sentando-me à secretária e retirando a capa do meu microscópio.

Ela ficou à porta, observando-me enquanto eu colocava uma lâmina na platina. Sabia pelo meu porte, se não por qualquer outra coisa, que havia algo de muito errado.

— Que poderei fazer para ajudar? - disse, num tom severo mas calmo.

A amostra colocada na lâmina foi focada, ampliada quatrocentos e cinquenta vezes, e depois apliquei-lhe uma gota de óleo. Fiquei a observar as ondas de um vermelho brilhante das inclusões eosinófilas nas células epiteliais infectadas, ou os corpos citoplasmáticos Guarnieri indicativos de um vírus do tipo vanólico. Montei no microscópio uma Polaroid MicroCam, e fiz diversas fotos instantâneas coloridas de alta resolução daquilo que suspeitava que de qualquer modo teria provocado a morte cruel da idosa mulher. A morte não lhe dera a escolher; mas eu teria preferido uma arma de fogo ou uma lâmina.

— Fale ao MCV, veja se Phyllis já terá chegado - disse a Rose. Diga-lhe que a amostra que lhe mandei no sábado não pode esperar.

Uma hora depois, Rose tinha-me deixado na esquina das ruas Marshaíl e Eleventh, no Colégio Médico de Virgínia, ou MCV, onde eu tinha feito o meu internato de patologia forense quando não era muito mais velha do que os alunos a quem leccionava agora ao longo do ano. O Sanger Haíl representava a arquitectura dos anos sessenta, com uma fachada de berrantes azulejos azuis que podia ser vista a quilómetros de distância. Entrei num elevador carregado com outros médicos que eu conhecia e com estudantes que os receavam.

— Bom dia.

— Bom dia para si também. Vem dar alguma aula?

Abanei a cabeça, cercada por batas brancas.

— Preciso de pedir emprestado o vosso TEM.

— Ouviu falar da autópsia que fizemos lá em baixo há uns dias? - perguntou-me um especialista de doenças pulmonares quando as portas começaram a abrir-se. - Pneumoconiose de poeira mineral. Beriliose, mais especificamente. Quantas vezes se encontra disso por estes lados?

No quinto andar, dirigi-me rapidamente para o Laboratório de Microscopia Electrónica Patológica, onde se encontrava o único microscópio electrónico de transmissão, ou TEM, da cidade. Como habitualmente, não havia um centímetro de espaço nas mesas com rodas ou nos balcões, carregados com microscópios de foto e de luz e outros instrumentos esotéricos para analisar tamanhos de células e para revestir de carbono os espécimes para microanálise de raios X.

Normalmente o TEM estava reservado para os vivos, sendo mais frequentemente usado em biopsias renais e tumores específicos, e mais raramente em vírus, e quase nunca em espécimes de autópsias. Em termos das minhas necessidades, e com os meus pacientes já mortos, era difícil pôr os cientistas e médicos muito excitados quando as camas hospitalares já estavam cheias com gente que aguardava uma palavra que poderia conceder-lhes um adiamento a um final trágico. Por isso nunca insistira com a microbióloga Phyllis Crowder quando tinha precisado nela no passado. Mas ela sabia que agora era diferente.

Do átrio reconheci a sua pronúncia britânica enquanto falava ao telefone.

— Bem sei, compreendo isso - estava ela a dizer quando bati na porta aberta. - Mas vai ter de alterar o programa, ou então ir sem mim. Surgiu outra emergência. - Sorriu-me, e fez sinal para entrar.

Conhecia-a dos meus tempos de internato, e sempre acreditara que as palavras amáveis de professores como ela tinham sido a razão pela qual tinham pensado em mim quando a posição de médico legista chefe ficara vaga na Virgínia. Tinha mais ou menos a minha idade e nunca casara, com cabelos curtos do mesmo tom cinzento-escuro que os seus olhos, e usava sempre o mesmo colar com uma cruz que devia ser uma antiguidade. Os seus pais eram americanos, mas tinha nascido na Inglaterra, onde tirara o curso e onde tinha tido o seu primeiro trabalho de laboratório.

— Malditas reuniões - queixou-se ao desligar o telefone. - Não há nada que mais odeie. Pessoas sentadas na conversa, em vez de estarem a trabalhar.

Tirou luvas de uma caixa e passou-me um par. Depois seguiu-se uma máscara.

— Há uma bata extra pendurada atrás da porta - acrescentou.

Segui-a até à pequena sala escura onde estivera a trabalhar antes de ir atender o telefone. Pondo a bata, encontrei uma cadeira enquanto ela espreitava para um ecrã fosforescente verde dentro da enorme câmara de visionamento. O TEM parecia mais um instrumento para oceanografia ou astronomia do que um microscópio normal. A câmara fazia-me sempre lembrar o capacete de mergulho de um fato seco, através do qual se podiam ver imagens estranhas e fantasmagóricas num mar iridescente.

Através de um espesso cilindro metálico chamado escopo, que ia da câmara ao tecto, um feixe de cem mil vóltios estava a bombardear o meu espécime, que neste caso era fígado que tinha sido aparado a uma espessura de seis ou sete centésimos de mícron. As amostras como as que tinha visto no meu microscópio de luz eram demasiado espessas para serem penetradas pelo feixe de electrões.

Sabendo disto durante a autópsia, tinha preparado secções de fígado e baço em glutaraldeido, que penetrava muito rapidamente nos tecidos. Estes tinham sido enviados a Crowder; que eventualmente os teria embebido em plástico e cortado no ultramicrótomo e depois na faca de diamante, antes de serem montados numa minúscula grelha de cobre e coloridos com iões de urânio e chumbo.

O que nenhuma de nós tinha esperado era o que agora estávamos a ver, ao espreitarmos para a sombra verde de um espécime ampliado quase cem mil vezes. Botões clicavam enquanto ela ajustava intensidade, contraste e ampliação. Olhei para as partículas do vírus, com o formato de tijolos e ligadas pela dupla fiada do ADN, com duzentos a duzentos e cinquenta nanómetros de tamanho. Sem respirar, estava a olhar para varíola.

— Que acha? - perguntei, esperando que ela me dissesse que eu estava errada.

— Sem qualquer dúvida, é alguma espécie de vírus vanólico - disse ela, sem querer comprometer-se. - Resta saber qual. O facto de as erupções não terem seguido qualquer padrão nervoso, o facto de a varicela ser incomum em alguém desta idade, o facto de talvez ter um outro caso com estas mesmas manifestações, tudo isto me dá grande preocupação. Há a necessidade de se proceder a outros ensaios, mas eu consideraria isto uma crise médica. - Olhou para mim. - Uma emergência internacional. Eu contactaria o CDC.

— É exactamente isso que vou fazer - respondi, engolindo com dificuldade.

— Que sentido poderá este caso fazer quando associado a um corpo desmembrado? - perguntou Phyllis, enquanto fazia mais ajustes, a espreitar para a câmara.

— Para mim não faz sentido nenhum - respondi, pondo-me em pé e sentindo-me enfraquecida.

— Homicídios em série aqui, e na Irlanda, pessoas cortadas aos bocados.

Olhei para ela.

— Nunca sentiu o desejo de ter ficado na patologia hospitalar?

— Os assassinos com que você lida são mais difíceis de ver - respondi.

 

A única maneira de chegar à ilha de Tangier era pelo mar ou por avião. Como não havia ali uma grande actividade turística, os barcos de travessia eram poucos e não funcionavam a partir de meados de Outubro. Assim, era necessário ir de carro até Crisfield, no Maryland, ou, no meu caso, percorrer quase cento e quarenta quilómetros,até Reedville, onde a Guarda Costeira iria buscar-me. Saí do escritório quando a maioria das pessoas pensava no almoço. A tarde estava agreste, com o céu enevoado e um vento frio e forte.

Tinha deixado instruções para Rose falar ao Centro de Controlo e Prevenção das Doenças (CDC) em Atlanta, porque sempre que eu tinha tentado tinham-me posto em linha de espera. Ela devia também contactar Marino e Wesley e dizer-lhes onde eu ia e que lhes iria telefonar logo que pudesse. Tomei a 64 Leste até à 340, e depressa me encontrei numa região agrícola.

Os campos estavam acastanhados com milho de pousio, e os falcões picavam e recuperavam altura numa parte do mundo em que as igrejas baptistas tinham nomes como Fé, Vitória e Zion. As árvores estavam vestidas de geada que lembrava cotas de malha, e na margem oposta do rio Rappahannock, na Northern Neck, as casas eram vastas mansões antigas que os actuais possuidores já não podiam manter. Passei por mais campos e murtas, e depois pelo Tribunal de Northumberland, construído antes da guerra civil.

Em Heathsville havia cemitérios com flores de plástico e talhões bem cuidados, e de vez em quando uma âncora pintada. Saí da 360 através de bosques densos de pinheiros, passando por milheirais tão próximos da estrada que era capaz de tocar nas hastes acastanhadas se estendesse a mão para fora da janela. Na Marina de Buzzards's Point barcos à vela estavam preparados para o Inverno, e o vapor vermelho, branco e azul que costuma servir para excursões, o Brisa de Chesapeake, não iria a lado nenhum antes da próxima Primavera. Não tive qualquer problema para estacionar o carro, e não havia ninguém na cabina para me pedir os dez cêntimos da entrada.

À minha espera na doca estava um barco branco da Guarda Costeira. Os membros da equipagem usavam fatos-macaco anti-intempérie, azuis e laranja, conhecidos pela designação de fatos Mustang, e um dos homens estava no cais. Era mais velho do que os outros, com olhos e cabelos negros, e trazia uma Beretta de nove milímetros à cintura.

— Dra. Scarpetta? - Não impunha a sua autoridade, mas também não a disfarçava.

— Sim - confirmei, e mostrei-lhe uma série de bagagem, incluindo uma pesada caixa rígida contendo o meu microscópio e a MicroCam.

— Deixe-me dar uma ajuda com as bagagens. - Estendeu a mão. - Chamo-me Ron Martinez, e sou o chefe de estação em Crisfield.

— Obrigada. Fico-lhe muito agradecida - respondi.

— Nós também.

O espaço entre o cais e o barco-patrulha de doze metros aumentava e diminuía a acompanhar o balouçar do barco. Agarrando-me ao corrimão, entrei a bordo. Martinez desceu uma escada muito íngreme e eu segui-o, entrando num porão cheio de material de salvamento, mangueiras de incêndio e enormes rolos de corda, com o ar pesado com as emanações dos motores diesel. Martinez arrumou os meus pertences num recanto seguro, e atou-os. Depois deu-me um fato Mustang, um colete salva-vidas e um par de luvas.

— Vai precisar de pôr estas, para o caso de ir à água. Não é uma ideia agradável, mas pode suceder. A água deve rondar os dez graus. -            Olhou-me melhor e depois disse: - Talvez seja melhor ficar aqui em baixo - enquanto o barco embatia no cais.

— Não enjoo com facilidade, mas sou claustrofóbica - disse-lhe, sentando-me numa estreita prateleira para tirar as botas.

— Pode ficar onde quiser; mas vai ser agitado.

Voltou a subir a escada enquanto me esforcei para vestir o fato, que era um exercício em Velcro e fechos de correr; e reforçado com cloreto de polivinil para me manter viva durante um pouco mais no caso de o barco se voltar. Tornei a calçar as botas, depois vesti o colete, com a faca e o apito, o espelho de sinalização e os foguetes luminosos. Subi para a cabina porque ninguém me faria ficar no porão. A tripulação fechou a tampa do motor na coberta, e Martinez ocupou a cadeira do piloto e colocou os cintos de segurança.

— O vento sopra do noroeste a vinte e dois nós - anunciou um dos tripulantes. - As ondas levantam-se em crista a um metro e vinte.

Martinez começou a afastar-se do cais.

— É este o problema da baía -             explicou-me. - As ondas estão demasiado próximas umas das outras, e por isso é difícil encontrar-se um bom ritmo, como no alto mar. De certeza que sabe que podemos ser chamados de um momento para o outro. Não há nenhum outro barco patrulha em serviço, e por isso se houver algum problema temos de acorrer.

Começámos a passar lentamente por velhas casas com cercas e relvados.

— Se alguém precisar de ser salvo, temos de ir - acrescentou, enquanto um tripulante verificava os instrumentos.

Vi um barco de pesca passar por nós, um velhote com botas até às ancas guiando de pé o motor fora-de-borda. Deitou-nos um olhar como se fôssemos veneno.

— Portanto podíamos acabar em qualquer outro sítio. - Martinez estava a gostar de insistir neste ponto.

— Não seria a primeira vez - comentei, enquanto começava a notar um cheiro muito revoltante.

— Mas, de um modo ou outro, acabaremos por levá-la até lá, como fizemos com o outro doutor. Não cheguei a saber o nome dele. Desde há quanto tempo trabalha para ele?

— O Dr. Hoyt e eu conhecemo-nos há muito - disse, sem me dar por achada.

À nossa frente começavam a surgir fábricas de processamento de peixe, cobertas de ferrugem, expelindo baforadas de fumo, e ao aproximarmo-nos podia ver correias transportadoras fortemente inclinadas na direcção do céu, transportando milhões de peixes para serem transformados em adubo e óleo. Gaivotas voavam em círculos ou esperavam ávidas, pousadas na estacaria, observando os minúsculos e malcheirosos peixes passando por elas, enquanto o barco prosseguia o seu caminho perto de outras fábricas que eram ruínas de tijolos a desfazer-se para a água. O cheiro pestilento era agora insuportável, e eu era de certeza mais estóica do que a maioria.

— Alimento para gatos - esclareceu um tripulante.

— Não admira que os gatos tenham mau hálito. Nunca seria capaz de viver perto daqui.

— O óleo de peixe é um produto muito valioso. Os índios usavam óleo destes peixes para adubar o milho - comentei.

— Em que escola andou? - perguntou Martinez.

— Não interessa. Pelo menos não preciso de cheirar aquilo para ganhara vida. A não ser quando estou embarcada com maçarucos como vocês.

— O que é um maçaruco?

A troca de gracejos prosseguiu enquanto Martinez aumentava a aceleração, com os motores a rugir e a proa enterrada na água. Passámos por esconderijos para caçar patos e flutuadores marcando a localização de nassas para caranguejos, enquanto o borrifo da água na nossa esteira criava múltiplos arco-íris. Martinez levou a velocidade até aos três nós e entrámos no mar alto da baía, onde hoje não se viam barcos de recreio, e apenas um paquete formava uma escura montanha no horizonte.

— É muito longe? - perguntei a Martinez, agarrada às costas da cadeira dele, e grata pelo conforto do meu fato.

— Vinte e nove quilómetros no total. - Levantou a voz, cavalgando as ondas como um surfista, deslizando lateralmente sobre elas, com os olhos sempre a direito. - Normalmente, não demoraria muito. Mas isto está pior do que normalmente. Muito pior.

A tripulação continuava a conferir os detectores de profundidade e de direcção, enquanto o sistema GPS apontava o caminho por satélite. Agora não via mais nada senão água, enormes vagas levantando-se à nossa frente e batendo com força no casco, enquanto a baía nos atacava por todos os lados.

— Pode dizer-me alguma coisa a respeito do nosso destino? - Quase precisei de gritar.

— População, umas setecentas almas. Até há cerca de vinte anos produziam a sua própria electricidade, têm uma pequena pista de aviação construída com material das dragagens. Bolas. - O barco caiu com força numa depressão entre duas ondas. - Aquela quase que me virava.

O rosto dele tinha uma expressão intensa, enquanto ia cruzando a baía como um domador de cavalos selvagens, com os tripulantes calmos mas vigilantes, agarrados ao que podiam.

— A economia da ilha é baseada na apanha de caranguejos, que são expedidos para todo o país - prosseguiu Martinez. - Na realidade, está sempre a chegar gente rica em aviões particulares só para comprar caranguejos.

— Ou pelo menos é o que dizem que vêm comprar - comentou alguém.

— Há de facto um problema de embriaguez, contrabando, droga - prosseguiu Martinez. - Abordamos os barcos deles quando andamos a inspeccionar os coletes de salvação ou a procurar contrabando de droga, e eles dizem que estão a ser vistoriados. - Sorriu para mim.

— Pois, e nós somos os guardas - comentou um tripulante. - Cuidado, vêm aí os guardas!

— Eles usam a linguagem de um modo muito esquisito - disse Martinez, rolando sobre outra onda. - É capaz de ter alguns problemas a tentar percebê-los.

— Quando é que acaba a época dos caranguejos? - perguntei, e preocupava-me mais o que eles exportavam do que o modo como falavam.

— Nesta época do ano andam a fazer dragagens, a dragar o fundo do mar para levantar os caranguejos. Irão fazer isso durante todo o Inverno, catorze ou quinze horas por dia, ficam fora uma semana inteira.

A estibordo, à distância, um casco escuro sobressaía da água como uma baleia. Um tripulante apanhou-me a olhar.

— Um navio tipo Liberty da segunda guerra mundial que ficou encalhado - explicou. - A Marinha usa-o como alvo para exercícios de tiro.

Estávamos por fim a navegar mais lentamente enquanto nos aproximávamos da costa ocidental, onde tinha sido construído um esporão com enormes pedregulhos, barcos desfeitos, frigoríficos enferrujados, carros e outra sucata, para combater a erosão da ilha. A terra estava quase ao nível da baía, apenas poucos metros acima do nível do mar no seu ponto mais alto. Casas, o campanário de uma igreja e um depósito azul de água mostravam-se altaneiros no horizonte desta minúscula e árida ilha cujos habitantes suportavam um clima agreste com pouca coisa debaixo dos seus pés.

Navegámos lentamente através de paúis e charcos. Velhos molhes de madeira carcomida estavam carregados com armadilhas para caranguejos feitas de rede de capoeira e equipadas com flutuadores coloridos, e barcos de madeira, mal conservados e com popas bojudas e volumosas, estavam ancorados mas não inactivos. Martinez accionou a sirene, e o som rasgou o ar ao passarmos. Tangierinos de avental olharam-nos inexpressivamente, como as pessoas costumam fazer quando alimentam opiniões privadas que não são sempre favoráveis, e continuaram o seu trabalho enquanto o barco encostava à doca próximo das bombas de combustível.

— Como a maioria das pessoas daqui, o nome do chefe é Crockett - disse Martinez enquanto os tripulantes amarravam o barco. Davy Crockett. Não se ria. - Os seus olhos passearam pelo cais e por um café que não tinha aspecto de estar a funcionar nesta época do ano.

— Venha.

Segui-o até ao cais, e o vento que soprava vindo do mar estava tão frio como se estivéssemos em Janeiro. Não tínhamos andado muito quando uma pequena camioneta aberta virou uma esquina, com os pneus a raspar no cascalho, e dela saiu um jovem com aspecto ansioso.O seu uniforme era constituído por jeans azuis, um casaco escuro de Inverno e um boné de pala com uma etiqueta dizendo Polícia de Tangier, e os seus olhos saltaram de Martinez para mim e de novo para Martinez. Depois olhou para a minha bagagem.

— Pronto - disse-me Martinez. - Vou deixá-la com Crockett. - Para Crockett, acrescentou: - Esta é a Dra. Scarpetta.

Crockett fez-me um aceno.

— Venham todos.

— É só a senhora quem vai.

— Eu levo-a lá.

Já tinha ouvido este modo de falar em remotos recantos da montanha, cujos habitantes não pertencem realmente a este século.

— Ficaremos aqui à sua espera - prometeu Martinez, encaminhando-se para o seu barco.

Segui Crockett até à camioneta. Podia apostar que ele a lavava por dentro e por fora pelo menos uma vez por dia, e notei que gostava ainda mais de after-shave do que Marino.

— Calculo que tenha estado dentro da casa - disse-lhe, enquanto ele punha o motor a trabalhar.

— Não estive, não. Foi um vizinho que esteve. E quando fui informado daquilo, falei para Norfolk.

Começou a fazer marcha atrás, uma cruz de estanho pendente do porta-chaves. Através da janela fui observando uma série de pequenos restaurantes de madeira pintada de branco, com tabuletas enfeitadas e gaivotas de plástico penduradas nas montras. Um camião transportando armadilhas para caranguejos vinha na direcção contrária, e teve de encostar para podermos passar. Pessoas andavam de um lado para o outro em bicicletas que não tinham travões nem engrenagens, e o método preferido de transporte parecia ser constituído por motoretas.

— Qual é o nome da falecida? - Comecei a tomar notas.

— Lila Pruitt - disse ele, sem se importar que a porta do meu lado estivesse quase a tocar na vedação de correntes do quintal de alguém. - Uma senhora viúva, não sei de que idade. Vendia receitas aos turistas. Bolinhos de caranguejos e outras coisas.

Tomei nota disto, sem saber bem ao que ele se referiria, enquanto passávamos pela Escola Mista de Tangier e por um cemitério. As pedras tumulares inclinavam-se para um lado e para o outro, como se tivessem sido apanhadas por um vendaval.

— Quando é que ela foi vista com vida pela última vez? - perguntei.

— Na Daby's, foi onde foi. - Confirmou com um aceno. - talvez em Junho.

Agora sentia-me totalmente perdida.

— Desculpe - disse - ela foi vista pela última vez num sítio qualquer chamado Daby's, em Junho passado?

— Sim senhora, - confirmou, como se tudo isto fizesse muito sentido.

— O que é Daby's, e quem foi que a viu lá?

— O armazém. Daby and Son. Posso levá-la lá. - Olhou para mim, à espera de confirmação, mas fiz-lhe sinal de que não era preciso. - Estava a fazer umas compras, e vi-a. Foi em Junho, parece-me.

As suas estranhas sílabas e cadências envolviam-me como toda a água do seu mundo. Era leih em vez de lá, vi-a era veiah, e foihe queria dizer foi.

— E quanto aos vizinhos dela? Alguns deles tê-la-iam visto? - perguntei.

— Não desde há dias.

— Então, quem foi encontrá-la? - perguntei.

— Ninguém.

Olhei para ele, desesperada.

— Foi só que Mrs. Bradshaw foi lá por causa de uma receita, entrou e deu pelo cheiro.

— Teria Mrs. Bradshaw chegado a entrar no quarto?

— Disse que não. - Abanou a cabeça. - Foi direita à minha procura.

— Qual é a morada da falecida?

— É onde estamos. - Estava prestes a parar a camioneta. - Rua da Escola.

Fazendo esquina com a Igreja Metodista de Swain, a casa de tábuas tinha dois pisos, com roupa ainda pendurada na corda de secar e uma casinha roxa para abrigo de pássaros no topo de um mastro ferrugento nas traseiras. Um velho bote a remos e diversas armadilhas para caranguejos espalhavam-se pelo quintal, misturados com cascas de ostras, e hidrângeas pardas orlavam uma vedação onde havia uma curiosa fileira de pequenos cubículos pintados de branco voltados para a rua de terra batida.

— Para que servem aqueles? - perguntei a Crockett.

— Era por ali que ela vendia receitas. A um quarto de dólar cada. Deitado na ranhura. - Apontou. - A senhora Pruitt não se dava muito com ninguém.

Compreendi finalmente que ele estava a falar de receitas de culinária, e deitei a mão ao manípulo da porta.

— Fico aqui à espera - disse ele.

A expressão na cara dele suplicava-me que não lhe pedisse para entrar na casa comigo.

— Não deixe entrar ninguém. - E saí da camioneta.

— Não tem que se preocupar nada com isso.

Olhei para as outras casitas e para as roulottes nos seus quintais de terra arenosa. Algumas tinham pequenas sepulturas, porque deviam enterrar os seus mortos onde quer que houvesse chão suficientemente fundo, com pedras tumulares desgastadas como greda e inclinadas ou descaídas. Subi os degraus dianteiros da casa de Lila Pruitt, reparando em mais lápides funerárias à sombra dos zimbros num canto do pequeno quintal.

A porta de rede estava a enferrujar-se nalguns pontos, e a mola protestou ruidosamente quando entrei para uma varanda fechada inclinada para a rua. Havia um balouço estofado de plástico florido, e ao seu lado uma pequena mesa de plástico, e imaginei-a sentada ali a beber chá gelado enquanto via os turistas a comprarem as suas receitas a um quarto de dólar. Pensei se ela costumaria pôr-se a espiar para se certificar de que todos deixavam lá a sua moeda.

A porta de entrada não estava fechada à chave, e Hoyt lembrara-se de fixar nela um aviso escrito em letras maiúsculas: DOENÇA; NÃO ENTRAR! Talvez ele tivesse decidido que os Tangierinos não sabiam o que era um perigo biológico, mas deixara o aviso. Entrei numa saleta envolta em penumbra, onde um retrato de Jesus orando ao Seu Pai pendia da parede, e chegou-me ao nariz o odor fétido de carne humana em decomposição.

Na sala de estar havia indícios de que alguém não estivera bem desde há algum tempo. Almofadas e cobertores amontoavam-se no sofá, e na mesinha de café havia lenços de papel, um termómetro, frascos de aspirina, linimento, chávenas e pires sujos. Ela tinha estado febril e dorida, e refugiara-se aqui para ficar mais confortável e para se entreter com a televisão.

Eventualmente, não conseguira levantar-se da cama, e foi lá que a encontrei, num quarto do andar de cima com paredes forradas a papel com rosas e uma cadeira de balanço junto da janela que deitava para a rua. O espelho de corpo inteiro estava tapado com um lençol, como se ela não pudesse continuar a ver-se reflectida nele. Hoyt, experiente como era, tinha respeitosamente coberto o corpo com a roupa da cama, sem ter tocado em mais nada. Sabia que não convinha retocar o cenário da morte, em especial quando a sua visita seria seguida pela minha. Fiquei parada por alguns minutos no meio do quarto, a pensar. O mau cheiro parecia fazer com que as paredes ficassem mais chegadas, tornando o ar mais negro.

Os meus olhos vaguearam pela escova ordinária e pelo pente em cima da cómoda, e pelos chinelos felpudos cor-de-rosa debaixo de uma cadeira coberta por roupas que ela não tivera energia para arrumar ou para lavar. Sobre a mesa de cabeceira estava uma Bíblia com capa de cabedal negro já ressequido e a escamar; e uma amostra de spray aromatizante facial Vita que, imaginava, ela teria usado num esforço para aliviar a intensa febre. Amontoados no chão estavam dúzias de catálogos de vendas pelo correio, com os cantos de várias páginas dobrados para dentro para assinalar as suas pretensões.

Na casa de banho, o espelho por cima do lavatório estava tapado com uma toalha, e outras toalhas no chão de linóleo estavam sujas e manchadas de sangue. Tinha-se-lhe acabado o papel higiénico, e a caixa de bicarbonato de sódio ao lado da banheira dizia-me que ela experimentara o seu próprio tratamento no banho para aliviar o tormento. Na farmácia caseira não havia medicamentos, apenas fio dental velho, preparados para hemorróidas, creme facial. A dentadura estava numa caixa de plástico em cima do lavatório.

Pruitt tinha sido uma velha solitária, com muito pouco dinheiro, e provavelmente teria saído poucas vezes da ilha em toda a sua vida. Calculava que não tivesse pedido a ajuda de ninguém porque não tinha telefone, e também por recear que, se alguém a visse, fugiria horrorizada. Nem mesmo eu estava preparada para o que vi ao desviar a cobertura.

A mulher estava coberta de pústulas, cinzentas e duras como pérolas, com a boca desdentada repuxada para dentro, e o cabelo tingido de vermelho em desordem. Puxei a cobertura mais para baixo, desabotoando a camisa de noite, e notei que a densidade das erupções era maior nas extremidades e no rosto do que no tronco, tal como Hoyt assinalara. A comichão levara-a a arranhar os braços e as pernas, fazendo-os sangrar e criar infecções secundárias que estavam inchadas e cobertas por crostas.

— Que Deus tenha dó de ti - murmurei, horrorizada.

Imaginei-a com comichão, com dores, ardendo de febre, e receando a sua própria imagem de pesadelo no espelho.

— Horrível - disse, e a imagem da minha mãe ocorreu-me de súbito. Rebentando uma pústula com o bisturi, barrei o conteúdo numa lâmina, e depois desci à cozinha e coloquei o microscópio em cima da mesa. Já estava convencida do que iria encontrar. Não era zona. Todos os indicadores apontavam para a devastadora e desfiguradora doença variola major, mais conhecida por varíola. Ligando o microscópio, coloquei a lâmina na platina, regulei a ampliação para quatrocentas vezes e ajustei o foco, e o denso centro, os corpos citoplasmáticos Guarnieri, surgiram à vista. Tirei algumas Polaroids de algo que não podia ser verdade.

Arrastando a cadeira para trás, comecei a andar de um lado para o outro, enquanto o relógio da parede marcava o ritmo dos meus passos.

— Onde foste arranjar isto? Onde? - perguntei-lhe em voz alta.

Regressei à rua onde Crockett tinha estacionado a camioneta. Não me aproximei muito.

— Estamos com um verdadeiro problema - disse-lhe. - E não sei o que poderei fazer.

 

A minha dificuldade imediata era encontrar um telefone seguro, o que por fim decidi ser impossível. Não poderia telefonar de qualquer das lojas locais, e certamente também não da casa de algum vizinho ou da roulotte do chefe. Restava-me o meu telemóvel, que normalmente nunca utilizaria para fazer uma chamada deste género. Mas não havia outra hipótese. às três e quinze, uma voz feminina atendeu o telefone no Instituto de Investigação Médica de Doenças Infecciosas do Exército dos Estados Unidos, ou USAMRIID, localizado no Forte Detrick, em Frederick, estado de Maryland.

— Preciso de falar com o Coronel Fujitsubo - disse.

— Lamento muito, está em reunião.

— É muito importante.

— Minha senhora, terá de experimentar outra vez amanhã.

— Pelo menos ligue-me ao assistente, à secretária...

— No caso de não ter ouvido, todos os funcionários federais não essenciais estão de licença temporária...

— Jesus Cristo! - exclamei, frustrada. - Estou abandonada numa ilha com um cadáver infeccioso. Poderá haver uma espécie de surto epidémico aqui. Não me diga que tenho de esperar até que o raio da vossa licença temporária termine!

— Perdão?

Podia ouvir telefones retinindo sem descanso em segundo plano.

— Estou a falar de um telemóvel. A bateria pode ir abaixo de um momento para o outro. Pelo amor de Deus, interrompa a reunião! Ligue-me a ele! Já!

Fujitsubo estava no Edifício Russell, na Colina do Capitólio, para onde a minha chamada foi transferida. Sabia que devia estar no gabinete de algum senador; mas não me importei, e expliquei-lhe rapidamente a situação, tentando controlar o meu pânico.

— Isso é impossível - disse ele. - Tem a certeza de que não é varicela, sarampo...

— Não. Mas seja o que for, tem de ser contido, John. Não posso mandar isto para a minha morgue. Tem de tomar conta disto.

O USAMRIID era o principal laboratório de investigação médica do Programa de Investigação de Defesa Biológica dos Estados Unidos, cujo objectivo era proteger os cidadãos da possível ameaça de guerra biológica. Mais apropriadamente, o USAMRIID dispunha do mais completo laboratório de contenção biológica do Nível 4 existente no país.

— Não posso fazer nada, a não ser que se trate de terrorismo - disse Fujitsubo. - Os surtos epidémicos vão para o CDC. Parece-me que é para aí que deverá falar.

— E com certeza que falarei para lá eventualmente - disse. - E com certeza que estarão quase todos também de licença temporária. E foi por isso que não consegui falar há mais tempo. Mas eles estão em Atlanta, e o senhor está em Maryland, não longe daqui, e preciso de tirar o corpo da ilha o mais depressa possível.

Ficou silencioso.

— Ninguém espera mais do que eu estar enganada - prossegui, com suores frios. - Mas se não estou, e se não tivermos tomado as devidas precauções...

— Estou a entender; estou a entender - disse, rapidamente. - Bolas. Neste momento estamos reduzidos a uma equipa de recurso. Está bem, dê-nos algumas horas. Vou entrar em contacto com o CDC. Quando foi a última vez que se vacinou contra a varíola?

— Quando era demasiado nova para agora me lembrar.

— Virá a acompanhar o corpo?

— O caso é meu.

Mas sabia o que ele queria dizer. Haviam de querer pôr-me de quarentena.

— Tratemos é de tirá-la da ilha, que depois nos preocuparemos com o resto - acrescentei.

— Onde vai estar?

— A casa é no centro da vila, próximo da escola.

— Meu Deus, isso é terrível. Tem alguma ideia de quantas pessoas possam ter estado expostas?

— Não faço qualquer ideia. Há um ribeiro nas proximidades. Procure isso e a igreja metodista. Tem um campanário alto. De acordo com o mapa há uma outra igreja, mas essa não tem campanário. Há uma pista de aterragem, mas quanto mais próximo puder ficar da casa, melhor será, para não termos de levá-la à vista de toda a gente.

— Claro. Um pânico generalizado é algo que temos de evitar.

Fez uma pausa, e a sua voz tornou-se mais suave.

— Sente-se bem?

— Espero bem que sim. - Sentia lágrimas nos olhos, e as mãos tremiam-me.

— Quero que se acalme, tente relaxar-se, e não se preocupe. Iremos tratar de si - disse ele, enquanto o meu telefone ficava sem bateria.

Sempre fora uma possibilidade teórica que, depois de tanta violência e loucura a que assistira ao longo da minha carreira, acabaria por morrer de doença. Nunca sabia ao que estaria a expor-me ao abrir um corpo e mexer no seu sangue e respirar o ar. Tinha muito cuidado com cortes e picadas de agulhas, mas havia mais com que me preocupar do que a hepatite e o HIV. Novos vírus estavam a ser constantemente descobertos, e às vezes pensava se eles nos dominariam algum dia, ganhando por fim uma guerra iniciada no princípio dos tempos.

Durante algum tempo fiquei sentada na cozinha, escutando o tiquetaque do relógio enquanto a luz se alterava do outro lado da janela, com o passar das horas. Estava a sentir a agonia de um ataque de ansiedade quando a voz esquisita de Crockett me chamou subitamente do exterior.

— Senhora? Senhora?

Quando cheguei à varanda e olhei pela porta, vi no degrau de cima um pequeno saco de papel castanho e uma bebida com tampa e uma palhinha. Levei-os para dentro enquanto Crockett regressava à sua camioneta. Tinha-se ausentado o suficiente para me trazer o jantar, o que fora uma acção amável, ainda que pouco inteligente. Agradeci-lhe com um gesto, como se ele fosse o meu anjo da guarda, e senti-me um pouco melhor. Fiquei sentada no balouço, bebendo pequenos goles do chá gelado vindo do Recanto do Pescador. A sandes era de solha frita em pão branco. Há muito que não comia qualquer coisa que me soubesse tão bem.

Baloucei-me e beberriquei chá, observando a rua através da rede enferrujada, enquanto o sol escorregava pelo campanário da igreja como uma bola vermelha tremeluzente e os gansos desenhavam negros ângulos voando no alto. Crockett ligou os faróis enquanto as janelas começavam a iluminar-se nas casas, e duas raparigas de bicicleta passaram rápidas pela casa enquanto olhavam para mim. Tinha a certeza de que elas sabiam. Toda a ilha sabia. A notícia da chegada dos médicos e da Guarda Costeira, por causa daquilo que estava na casa de Pruitt, devia ter chegado a toda a parte.

Entrando de novo, calcei luvas novas, voltei a colocar a máscara sobre a boca e o nariz e regressei à cozinha para ver o que poderia encontrar no lixo. O recipiente de plástico estava forrado com um saco de papel e metido por baixo do lava-louças.

Sentei-me no chão, examinando uma peça de cada vez para ver se podia formar uma ideia da duração da doença de Pruitt. Via-se que não tinha esvaziado o lixo desde há já algum tempo. Latas vazias e involucros de alimentos congelados estavam já secos, e as cascas de nabos e de cenouras mostravam-se duras e engelhadas.

Visitei todas as divisões da casa, estudando todos os cestos de lixo que podia encontrar. Mas o da sala de estar era o mais doloroso de todos. Esse continha diversas receitas manuscritas em tiras de papel, para Solha Fácil, Bolinhos de Caranguejo e Guisado de Castanhola da Lila. Ela tinha-se enganado e riscado os erros, e era provavelmente por isso que teria amachucado os papéis, deitando-os para o cesto. No fundo do recipiente estava um pequeno tubo de cartão de uma amostra que tinha recebido pelo correio.

Tirando do meu saco uma lanterna de pilhas, saí e fiquei nos degraus, esperando até que Crockett saísse da camioneta.

— Dentro de pouco tempo isto vai encher-se de actividade - disse-lhe.

Ficou a olhar para mim como se fosse louca, e nas janelas iluminadas podia ver rostos de pessoas a espreitar-nos. Desci os degraus, ultrapassei a vedação na beira do quintal, e com a lanterna comecei a examinar os cubículos em que Pruitt vendera as suas receitas. Crockett afastou-se.

— Estou a tentar determinar desde há quanto tempo ela estava doente - expliquei-lhe.

Havia bastantes receitas nos cubículos, e apenas três moedas de um quarto de dólar na caixa do dinheiro.

— Sabe quando veio cá o último barco com turistas? - Apontei a lanterna para outro cubículo, encontrando nele talvez meia dúzia de receitas de Caranguejos Fáceis da Lila.

— Há uma semana. Depois não voltou cá.

— As vizinhas também lhe compravam as receitas? - perguntei.

Ele franziu a testa como se esta fosse uma pergunta estranha.

— Elas já têm as delas.

Agora as pessoas começavam a sair das suas varandas fechadas, movendo-se silenciosamente nas sombras dos quintais, observando esta mulher maluca com a bata de cirurgião, a touca na cabeça e as luvas, espreitando com uma lanterna os cubículos da vizinha e conversando com o chefe da polícia.

— Vai haver aqui muito movimento dentro de pouco tempo - voltei a dizer-lhe. - O Exército vai mandar uma equipa médica que deve estar a chegar; e vamos precisar que diga às pessoas que estejam calmas e fiquem dentro de casa. Agora quero que vá buscar a Guarda Costeira, dizendo-lhes que vai precisar da ajuda deles, está bem?

Davy Crockett partiu tão depressa que os pneus patinaram.

 

Desceram ruidosamente da noite aluarada às nove horas. O Blackhawk do Exército atroou os ares por cima da igreja metodista, açoitando as árvores com a terrível turbulência das pás rotativas, enquanto o seu foco potente procurava um local para descer. Vi-o pousar como um pássaro no quintal do lado, enquanto centenas de pasmados Tangierinos se espalhavam pelas ruas.

Da varanda, fiquei a olhar através da porta de rede, vendo a equipa de evacuação médica descer do helicóptero enquanto as crianças se escondiam atrás dos pais, observando tudo em silêncio e de olhos arregalados. Os cinco cientistas do CDC e do USAMRIID não pareciam pertencer a este planeta com os seus fatos e capacetes insuflados de plástico cor de laranja e os aparelhos de respiração accionados por baterias transportados em mochilas. Vieram caminhando pela rua, transportando uma maca envolta numa bolha de plástico.

— Graças a Deus que já cá estão - disse-lhes, quando chegaram perto de mim.

Os pés deles provocavam um curioso som de escorregamento na madeira do chão, e não se deram ao trabalho de se apresentarem enquanto a única mulher da equipa me entregava um fato laranja dobrado.

— Talvez já seja um pouco tarde - comentei.

— Mal não vai fazer. - Os seus olhos encontraram os meus, e não me parecia mais velha do que Lucy. - Vá, ponha-o.

Tinha a consistência de uma cortina de chuveiro, e sentei-me no balouço para o vestir por cima da roupa e dos sapatos. O capacete era transparente, com um avental que ajustei bem ao peito. Liguei o aparelho de respiração.

— Ela está lá em cima - disse, por cima do ruído do ar a entrar no capacete.

Segui à frente do grupo a indicar o caminho, e eles levavam a maca. Por um momento ficaram silenciosos quando viram o que estava na cama.

Um dos cientistas comentou:

— Jesus, nunca vi nada parecido com isto. - Depois, todos começaram a falar depressa.

— Embrulhem-na nos lençóis.

— Ensacada e selada.

— Tudo o que está na cama, os lençóis, tudo tem de ir para a autoclave.

— Merda. Que vamos fazer? Queimar a casa?

Fui à casa de banho juntar as toalhas do chão enquanto eles levantavam o corpo embrulhado. Ela estava escorregadia e difícil de manobrar enquanto tentavam transferi-la da cama para dentro do isolador portátil concebido para pessoas vivas. Vedaram as abas de plástico, e a visão de um corpo ensacado dentro do que parecia uma tenda de oxigénio era chocante, mesmo para mim. Levantaram a maca pelos dois extremos e descemos as escadas e chegámos à rua.

— Que vai acontecer quando nos formos embora?

— Três de nós vão ficar aqui - respondeu um deles. - Temos outro helicóptero a chegar amanhã.

Fomos interceptados por outro cientista igualmente vestido com o fato de protecção, trazendo um contentor metálico não muito diferente do usado por exterminadores profissionais. Descontaminou-nos a nós e à maca coberta, espalhando um produto químico enquanto as pessoas continuavam a juntar-se e a observar-nos. A Guarda Costeira estava reunida próximo da camioneta de Crockett, e este conversava com Martinez. Dirigi-me a eles, e ambos pareciam desconcertados com o meu vestuário protector, recuando um passo sem muita subtileza.

— A casa tem de ser selada - disse a Crockett. - Até termos a certeza do que se passa aqui, ninguém poderá entrar nem sequer aproximar-se.

Crockett tinha as mãos enterradas nos bolsos do casaco, e pestanejava constantemente.

— Preciso de ser informada imediatamente se alguém daqui adoecer também - disse-lhe.

— Nesta altura do ano toda a gente fica doente - retorquiu ele. - Uns constipam-se, outros ficam engripados.

— Se tiverem febre, dores nas costas, erupções na pele - prossegui - telefone-me imediatamente, ou contacte o meu departamento. Estes senhores ficam aqui para o ajudar. - Apontei para a equipa.

A expressão no rosto dele indicava muito claramente que não queria que ninguém ficasse aqui, na sua ilha.

— Por favor; tente compreender - disse-lhe. - Isto é muito, muito importante.

Concordou com um aceno da cabeça, ao mesmo tempo que um rapazito aparecia por detrás dele, vindo do escuro, e agarrou-lhe na mão. O rapaz parecia ter, no máximo, uns sete anos, com cabelo louro desgovernado e olhos pálidos muito abertos que se fixavam em mim, como se eu fosse a mais aterradora de todas as aparições.

— Papá, gente do céu. - O rapaz apontou para mim.

— Darryl, vai-te embora - disse Crockett ao filho. - Põe-te a andar para casa.

Segui o bater das pás do helicóptero. O ar circulante arrefecia-me a cara, mas o resto do corpo estava desconfortável porque o fato não respirava. Atravessei o quintal ao lado da igreja enquanto as pás ressoavam, e alguns pinheiros frágeis foram arrancados pelo estrondoso vento.

O Blackhawk estava aberto e com as luzes interiores acesas, e a equipa estava a fixar a maca da mesma maneira que com um paciente vivo. Entrei a bordo, ocupei um dos assentos da tripulação e apertei as correias, enquanto um dos cientistas trancava a porta. O helicóptero era barulhento e trepidante enquanto ganhávamos altura. Era impossível ouvir-se qualquer coisa sem os auscultadores, e estes não se ajustavam adequadamente aos capacetes.

Isto intrigou-me ao princípio. Os nossos fatos tinham sido descontaminados, mas a equipa não queria despi-los, e depois percebi a causa. Eu estivera exposta a Lila Pruitt, e ao torso antes disso. Ninguém queria respirar o meu ar a não ser que este passasse primeiro por um filtro de alta eficácia. Por isso permanecemos mudos, olhando uns para os outros e para a nossa vítima. Fechei os olhos enquanto nos dirigíamos velozmente para Maryland.

Pensei em Wesley, Lucy e Marino. Não faziam qualquer ideia do que se passava, e deviam estar bastante preocupados. Não sabia quando voltaria a vê-los, e em que condições estaria então. As minhas pernas pareciam-me instáveis, e os pés excessivamente quentes, e não estava a sentir-me nada bem. Não conseguia deixar de recear aquele primeiro indício fatídico, um arrepio, uma dor; a confusão e a secura da febre. Quando criança tinha sido vacinada contra a varíola. Mas Lila Pruitt também devia ter sido. Tal como a mulher cujo torso estava ainda no meu congelador. Tinha visto as cicatrizes delas, aquelas pequenas áreas de pele esticada, do tamanho de uma moeda, que lhes tinham sido deixadas pela doença.

Ainda não eram onze horas da noite quando aterrámos não sabia onde. Tinha dormido apenas o suficiente para ficar desorientada, e o regresso à realidade foi barulhento e abrupto quando abri os olhos. A porta abriu-se de novo, com luzes azuis e brancas piscando num heliporto situado em frente de um vasto edifício angular. Muitas janelas estavam iluminadas, apesar da hora, como se muitas pessoas estivessem a aguardar a nossa chegada. Os cientistas soltaram a maca e carregaram-na rapidamente na traseira de um camião, enquanto que a mulher que me tinha dado o fato para eu vestir me veio acompanhar, com a mão no meu braço.

Não vi para onde teriam levado a maca, mas eu fui conduzida a uma rampa do lado norte do edifício. A partir dali não precisámos de caminhar muito ao longo de um corredor até ser metida num chuveiro e submetida a um prolongado jacto de Envirochem. Despi-me e apanhei um novo duche de água quente e sabão. Sequei os cabelos com uma toalha. Seguindo as instruções recebidas, deixei as minhas roupas no meio do chão, juntamente com todos os meus bens.

Uma enfermeira aguardava-me no corredor e conduziu-me rapidamente através da sala de cirurgia e de paredes cheias de autoclaves que me recordavam campânulas de aço para mergulho, com o ar fétido do cheiro de animais de laboratório escaldados. Iria ficar na Enfermaria 200, na qual uma linha vermelha traçada no chão logo a seguir à porta avisava os pacientes em isolamento de que não deviam cruzá-la. Olhei em redor para a pequena cama hospitalar com o seu cobertor de calor húmido, o ventilador, o frigorífico e o pequeno aparelho de televisão montado num suporte de parede a um canto. Reparei nas tubagens amarelas flexíveis de ar ligadas aos canos na parede, na caixa de aço fixada na porta através da qual seriam passadas as bandejas com as refeições, sendo depois irradiadas com luz ultravioleta ao procederem à sua remoção.

Sentei-me na cama, sozinha e deprimida, e sem vontade de pensar na situação em que poderia estar. Passaram-se alguns minutos. Uma porta exterior fechou-se com estrondo, e a minha abriu-se de par em par.

— Bem vinda à Gaiola - anunciou o Coronel Fujitsubo ao entrar.

Tinha um capuz Racal e uma veste de grosso vinil azul, à qual ligou um dos tubos flexíveis de ar.

—John - disse eu. - Não estou preparada para isto.

— Kay, seja sensata.

O seu rosto forte parecia severo, mesmo assustador por detrás do plástico, e senti-me vulnerável e abandonada.

— Preciso de informar várias pessoas de que me encontro aqui - queixei-me.

Aproximou-se da cama, rasgando uma embalagem e retirando um pequeno frasco e um conta-gotas com a mão enluvada.

— Mostre-me o ombro. São horas de ser revacinada. E vamos dar-lhe também um pouco de globulina de imunização à vaccinia, por causa das dúvidas.

— Fico muito contente.

Regou-me o ombro direito com um pacho de álcool. Fiquei muito quieta enquanto ele me arranhava a carne por duas vezes com um escarificador e lhe deitava o soro.

— Esperemos que isto não seja necessário - acrescentou.

— Ninguém espera mais do que eu.

— A boa nova é que deverá ter uma bela reacção anamnésica, com um mais alto nível de anticorpos do que nunca. A vacinação dentro de vinte e quatro a quarenta e oito horas da exposição terá normalmente esse resultado.

Não respondi. Ele sabia tão bem como eu que podia já ser tarde demais.

— Vamos autopsiar o cadáver da mulher às nove da manhã, e iremos conservá-la a si por aqui durante alguns dias, só para termos a certeza - disse ele, deitando os papéis no recipiente do lixo. - Sente alguns sintomas em especial?

— Dói-me a cabeça e sinto-me irritadiça.

Ele sorriu, com os olhos nos meus. Fujitsubo era um médico brilhante que subira com facilidade todos os escalões do Instituto de Patologia das Forças Armadas, ou AFIP, antes de aceitar o comando do USAMRIID. Era divorciado, e um pouco mais velho do que eu. Foi buscar um cobertor dobrado aos pés da cama, abriu-o e colocou-mo sobre os ombros. Puxou uma cadeira e cavalgou-a, com os braços apoiados ao topo do encosto.

— John, estive exposta há quase duas semanas - disse-lhe.

— No caso do homicídio.

— Já devia estar infectada, agora.

— Consoante o que possa ser. O último caso de varíola ocorreu em Outubro de 1977, na Somália. A partir dessa data, foi erradicada da face da terra.

— Sei bem o que vi no microscópio electrónico. Poderia ter sido transmitida através de uma exposição anormal.

— Deliberada, quer dizer.

— Não sei. - Estava a sentir dificuldade em manter os olhos abertos. - Mas não acha estranho que a primeira pessoa infectada tenha também sido assassinada?

— Acho estranho tudo isto. - Levantou-se. - Mas, para além de assegurarmos uma contenção biologicamente segura tanto ao corpo como a si, não poderemos fazer muito mais.

— Claro que poderão. Não há nada que não possam fazer. - Não estava interessada em escutar pormenores dos seus conflitos jurisdicionais.

— Neste momento trata-se de um problema de saúde pública, e não um problema militar. Sabe bem que não podemos simplesmente retirar isto da alçada do CDC. Na pior das hipóteses, o que temos é um surto de qualquer coisa. E é disso que eles tratam melhor.

— A ilha de Tangier deve ser posta de quarentena.

— Falaremos disso depois da autópsia.

— A qual tenciono ser eu a fazer.

— Veremos como se sente - disse ele, enquanto uma enfermeira aparecia à porta.

Conferenciou brevemente com ela ao sair, e depois ela entrou, envergando também uma veste azul. Jovem e incomodamente bem-disposta, explicou-me que normalmente trabalhava no Hospital Walter Reed mas vinha aqui ajudar quando havia pacientes em contenção especial, o que felizmente era raro.

— Da última vez foi quando dois funcionários de um laboratório estiveram expostos a sangue parcialmente descongelado de um rato de campo contaminado com Hantavirus - contou ela. - Estas doenças hemorrágicas são nojentas. Parece-me que tiveram de ficar aqui uns quinze dias. O Dr. Fujitsubo disse que quer um telefone. - Pôs um frívolo roupão em cima da cama. - Tratarei disso depois. Tem aqui um pouco de Advil e água. - Colocou-os na mesa de cabeceira. - Está com fome?

— Queijo e bolachas de água e sal, qualquer coisa do género, seria agradável. - O meu estômago estava tão vazio que até me sentia mal.

— Como se sente, descontando a dor de cabeça?

— Bem, obrigada.

— Esperemos que isso não se altere. Porque não vai à casa de banho, esvazie a bexiga, lave-se e meta-se nos lençóis. Tem ali a televisão. - Apontou, falando como se eu andasse na segunda classe.

— Que acontece às minhas coisas?

— Vão ser esterilizadas, esteja descansada. - Sorriu-me.

Não conseguia aquecer-me, e tomei mais um duche. Nada seria capaz de lavar este desditoso dia, e continuei a ver à minha frente uma boca afundada, olhos semiabertos e cegos, um braço descaído rigidamente de uma cama de morte. Quando saí da casa de banho, um prato de queijo e bolachas estava à minha espera, e a televisão estava ligada. Mas não havia telefone.

— Ora bolas - resmunguei, e meti-me de novo na cama.

Na manhã seguinte, o pequeno-almoço chegou através da caixa da porta, e coloquei a bandeja no colo enquanto via o programa Today, que normalmente não via. Martha Stewart estava a preparar qualquer coisa com merengue enquanto eu debicava um ovo escalfado que nem sequer estava quente. Não era capaz de comer; e não sabia se as costas me doíam por estar cansada ou por qualquer outro motivo em que nem queria pensar.

— Como estamos nós? - A enfermeira chegou, respirando ar filtrado.

— Não tem calor com essa coisa? - perguntei, apontando com o garfo.

— Acho que acabaria por ter, se estivesse muito tempo dentro desta vestimenta. - Trazia na mão um termómetro digital. - Ora bem. Isto vai demorar só um minuto.

Meteu-mo na boca, enquanto eu fiquei a olhar para a TV. Agora estava um médico a falar da vacina antigripal deste ano, e fechei os olhos até que o bip do termómetro indicou estar terminada a medição.

— Trinta e seis vírgula um. A sua temperatura está até um pouco baixa. O normal é trinta e seis vírgula sete.

Enrolou uma manga de medição da tensão arterial à volta do meu braço.

— E a tensão arterial. - Premiu vigorosamente a pêra de borracha, enviando ar para a manga. - Dez vírgula oito sobre sete. Parece-me que está quase morta.

— Obrigadinha - resmunguei. - Preciso de um telefone. Ninguém sabe nada de mim.

— Precisa é de muito descanso. - Agora estava a manejar o estetoscópio, que empurrou contra a minha bata. - Respire fundo. - O aparelho estava frio onde quer que ela o aplicasse, com o rosto sério enquanto escutava. - Outra vez. - Depois passou-o para as costas e repetiu a rotina.

— Peça por favor ao Coronel Fujitsubo que passe por aqui.

— Certamente que lhe deixarei um recado. Agora tape-se. - Puxou o cobertor até ao meu queixo. - Deixe-me dar-lhe mais um pouco de água. Como está a dor de cabeça?

— Melhor - menti. - Tem mesmo de lhe pedir para passar por aqui.

— Decerto que virá quando puder. Sei que ele está muito ocupado.

O seu modo condescendente estava mesmo a irritar-me.

— Desculpe - disse-lhe num tom exigente. - Pedi repetidamente um telefone, e começo a sentir-me numa prisão.

— Sabe bem o que eles chamam a este sítio - cantarolou. - E além disso os pacientes não têm...

— Não me interessa o que eles possam não ter. - Olhei-a fixamente, enquanto o seu porte se alterava.

— Acalme-se! - Os olhos dela faiscavam por detrás da máscara transparente, e a voz elevara-se.

— Não é uma paciente terrível? Os médicos são-no sempre... - disse o Coronel Fujitsubo ao entrar no aposento.

A enfermeira olhou para ele, espantada. Depois os seus olhos ressentidos fixaram-se em mim, como se não pudesse acreditar na verdade.

— Um telefone está a chegar - disse ele, trazendo uma vestimenta laranja, que depositou aos pés da cama. - Beth, já foi apresentada à Dra. Scarpetta, médica legista chefe do estado de Virgínia e patologista forense consultora do FBI? - Para mim, acrescentou: - Ponha isto. Venho buscá-la dentro de dois minutos.

A enfermeira franziu a testa ao pegar na minha bandeja. Aclarou a garganta, embaraçada.

— Não conseguiu comer os seus ovos - comentou.

Colocou a bandeja na caixa de passagem. Eu estava a pôr a vestimenta laranja.

— Tipicamente, quando se entra aqui não se pode sair. - Fechou a gaveta da caixa.

— Isto não é típico. - Fixei o capuz e liguei o ar. - O caso desta manhã é meu.

Podia perceber que ela era uma dessas enfermeiras que antipatizam com as médicas, porque preferiam que fossem os homens a dizer-lhes o que haviam de fazer. Ou talvez tivesse desejado ser médica, tendo-lhe sido dito que as meninas crescem para ser enfermeiras e casar com médicos. Só podia tentar perceber. Mas recordava-me nos tempos em que frequentava a escola no Johns Hopkins, ter sido um dia enfrentada pela enfermeira-chefe, que me puxara de parte por um braço. Nunca esquecerei a sua expressão de ódio, ao dizer-me que o filho não tinha entrado na escola por eu ter ocupado a sua vaga.

Fujitsubo estava de volta ao quarto, sorrindo para mim ao entregar-me um telefone, que foi ligar à tomada da parede.

— Tem tempo para uma chamada. - Levantou um dedo no ar. - Depois teremos de ir.

Telefonei a Marino.

 

O sector de contenção biológica do Nível 4 estava localizado ao fundo de um laboratório normal, mas a diferença entre as duas áreas era óbvia. O Nível 4 queria dizer cientistas que tinham declarado guerra ao Ebola, ao Hantavirus e outras doenças desconhecidas para as quais não havia cura. O ar deslocava-se num único sentido, com uma pressão negativa que impedia que o ar contaminado se espalhasse por qualquer outra parte do edifício, e passava por filtros HEPA antes de ingressar no nosso corpo ou na atmosfera, e tudo era submetido ao vapor das autoclaves.

Ainda que as autópsias fossem infrequentes, quando eram realizadas era num espaço hermeticamente selado a que se dava o nome de Submarino, por detrás de duas maciças portas de aço inoxidável com vedações herméticas tipo submarino. Para lá chegarmos, tínhamos de seguir por outro caminho, através de um labirinto de vestiários e chuveiros, em que o género dos ocupantes era identificado por luzes coloridas. Os homens eram verdes, por isso acendi a luz vermelha e despi tudo o que tinha em cima de mim, pondo uma bata e chinelos novos.

As portas de aço abriram-se e fecharam-se automaticamente quando passei através de outro sector hermético, entrando no vestiário interno, ou sala quente, na qual as vestimentas de espesso vinil azul, com botas e capuzes incorporados, estavam penduradas em cabides ao longo de uma das paredes. Sentando-me numa bancada, pus uma daquelas vestes, encerrando-me nela com fechos de correr e uma junta diagonal semelhante às que se usam na louça Tupperware. Meti os pés em botas de borracha, depois calcei diversos pares de luvas, com as exteriores fixas por fita isoladora à volta dos pulsos. Já começava a sentir-me quente, com as portas a fecharem-se atrás de mim enquanto outras ainda mais espessas se abriam com ruído para me deixar entrar na mais claustrofóbica sala de autópsias em que jamais me vira.

Agarrei uma tubagem amarela e liguei-a à junção rápida localizada por cima da anca, e o ruído do ar a entrar lembrava-me o de um colchão de praia a esvaziar-se. Fujitsubo e um outro médico estavam a marcar pipetas e a lavar o cadáver com uma agulheta. Assim despida, a doença da velha senhora era ainda mais aterradora. De um modo geral trabalhámos em silêncio, pois não nos tínhamos preocupado com o uso de equipamento de comunicações, e o único modo de falarmos entre nós seria apertarmos os tubos de ar durante o tempo suficiente para nos ouvirmos.

Foi o que fizemos enquanto retalhávamos e pesávamos, e eu ia registando as informações num protocolo. A paciente apresentava as alterações degenerativas típicas de faixas e placas gordurosas na aorta. O coração estava dilatado, e os pulmões congestionados eram consistentes com um principio de pneumonia. Tinha úlceras na boca e lesões no tracto gastrointestinal. Mas era o cérebro que contava a história mais trágica da sua morte. Tinha atrofia cortical, um alargamento dos sulcos cerebrais e perda de parênquima, indícios inegáveis da doença de Alzheimer.

Dificilmente poderia imaginar a confusão dela ao adoecer. Poderia não se recordar de onde estava e mesmo de quem era, e na sua demência poderia ter imaginado que alguma criatura de pesadelo chegava através dos espelhos. Os nodos linfáticos estavam intumescidos, o baço e o fígado apresentavam-se turvos e inchados com necrose focal, tudo consistente com varíola.

Parecia ter tido morte natural, cuja causa não podíamos ainda provar, e duas horas mais tarde tínhamos terminado. Saí pelo mesmo caminho por onde tinha vindo, a começar pela sala quente, onde me sujeitei a um duche químico de cinco minutos sobre a vestimenta, em cima de um tapete de borracha e esfregando cada centímetro com uma escova rija, debaixo do esguicho constante das agulhetas de aço. A pingar, reentrei na sala externa, onde pendurei o fato para secar, tomei um novo duche e lavei a cabeça. Vesti um fato laranja estéril e regressei à Gaiola.

A enfermeira estava no meu quarto quando entrei.

— Janet está a escrever-lhe uma mensagem - disse ela.

— Janet? - Estava atordoada. - Lucy não está com ela?

— Vai passar-lhe a mensagem pela caixa. A única coisa que sei é que está lá fora uma mulher nova chamada Janet. Está sozinha.

— Onde está ela? Tenho de falar-lhe.

— Sabe que isso é impossível neste momento. - Estava a medir de novo a minha tensão arterial.

— Até as prisões têm sítios para as visitas - disse, quase a refilar. - Não haverá algum sítio onde possa falar com ela através de um vidro? Ou então não poderá ela pôr uma vestimenta e entrar aqui, como a senhora enfermeira entra?

Claro, tudo isto necessitava de autorização, uma vez mais, do coronel, que decidiu que a melhor maneira seria eu pôr uma máscara de filtragem HEPA e ir à sala das visitas. Esta situava-se na Enfermaria de Investigação Clínica, onde se realizavam estudos de novas vacinas. Conduziu-me através de uma sala de recreio do Nível 3, onde alguns voluntários estavam a jogar pingue-pongue e bilhar, ou a ler revistas e a ver televisão.

A enfermeira abriu a porta do Compartimento B, onde Janet estava sentada do outro lado do vidro, numa zona não contaminada do edifício. Pegámos nos nossos telefones ao mesmo tempo.

— Não posso acreditar nisto - foi a primeira coisa que ela me disse. -              Encontra-se bem?

A enfermeira continuava de pé atrás de mim no espaço em que eu me encontrava, que tinha o tamanho de uma cabina telefónica, e virei-me para ela e pedi-lhe para sair. Ela não se mexeu.

— Desculpe - disse-lhe, e estava farta de aturá-la. - Trata-se de uma conversa privada.

A irritação reflectia-se-lhe nos olhos ao sair, fechando a porta atrás de si.

— Não sei bem como estou - disse ao telefone. - Mas não me sinto muito mal.

— Quanto tempo demora? - Vi-lhe receio nos olhos.

— Em média dez dias, no máximo catorze.

— Bem, isso é bom sinal, não é?

— Não sei bem. - Sentia-me deprimida. - Depende do que estivermos a enfrentar. Mas se ainda estiver bem dentro de alguns dias, calculo que me deixem sair.

Janet parecia muito adulta e bonita no seu saia-e-casaco azul-escuro, a pistola bem disfarçada por baixo do casaco. Sabia que ela não teria vindo sozinha se alguma coisa não estivesse a correr mal.

— Onde está Lucy? - perguntei.

— Bem, na realidade estamos ambas aqui em Maryland, perto de Baltimore, com a Brigada 19.

— Ela está bem?

— Sim - disse Janet. - Estamos a trabalhar nos seus ficheiros, tentando seguir-lhes o rasto através da AOL e do UNIX.

—E...?

Ela hesitou.

— Parece-me que a melhor maneira de apanhá-lo é ficar em linha aberta.

Franzi a testa, perplexa.

— Não estou bem a perceber...

— Essa coisa é desconfortável? - Estava a olhar para a minha máscara.

— Um bocado.

Não gostava do aspecto da máscara. Tapava-me metade da cara, como se fosse um açaime, e estava sempre a bater no telefone enquanto falávamos.

— Mas só o podem apanhar em linha aberta se ele estiver a enviar-me mensagens!

Janet abriu uma pasta de arquivo em cima do seu balcão de Fórmica.

— Quer ouvi-las?

Confirmei com um gesto enquanto sentia o estômago a apertar-se num nó.

— Vermes microscópicos, fermentos multiplicáveis e miasma - leu ela.

— Perdão? - disse eu.

— É tudo. Um e-mail enviado esta manhã. O outro chegou esta tarde. Estão vivos, mas ninguém estará. E a seguir, cerca de uma hora mais tarde, Humanos que tiram de outros e exploram são macro parasitas. Matam os seus hospedeiros. Tudo em tipo minúsculo e sem pontuação excepto os espaços. - Olhou para mim através do vidro.

— Filosofia médica clássica - disse-lhe. - Vem dos tempos de Hipócrates e de outros praticantes de medicina. As suas teorias sobre o que causa as doenças. A atmosfera. A reprodução de partículas venenosas gerada pela decomposição da matéria orgânica. Vermes microscópicos, etc. E depois o historiador McNeill escreveu sobre a interacção dos micro e macro parasitas como meio para se compreender a evolução da sociedade.

— Nesse caso deadoc deve ter tido estudos de medicina - disse Janet. - E parece que está a referir-se ao que possa ser esta doença.

— Não poderia ter qualquer conhecimento disto - comentei, e comecei a alimentar um novo e terrível receio - Não sei como ele poderia.

— Vinha qualquer coisa nas noticias - disse Janet.

Senti um ímpeto de raiva.

— Quem poderia abrir a boca desta vez? Não me diga que Ring tem conhecimento disto, também.

— O jornal dizia simplesmente que o seu serviço está a investigar uma morte invulgar na ilha de Tangier, uma estranha doença que provocou a remoção do corpo por avião militar.

— Chiça!

— O caso é que, se deadoc tem acesso às noticias na Virgínia, podia saber do caso antes de lhe enviar os e-mails.

— Espero que seja isso o que terá acontecido - retorqui.

— Porque não haveria de ser?

— Não sei, não sei. - Estava esgotada e sentia uma indisposição no estômago.

— Dra. Scarpetta. - Aproximou-se mais do vidro. - Ele quer falar consigo. É por isso que está a mandar-lhe estas mensagens.

Estava a sentir arrepios outra vez.

— A ideia é esta. - Janet guardou as páginas impressas na pasta. - Podia pô-la numa sessão de conversa privada com ele. Se conseguirmos conservá-lo em linha aberta durante o tempo suficiente, poderemos segui-lo de linha telefónica em linha telefónica, até chegarmos a uma cidade, e por fim a um endereço.

— Não acredito nem por um instante que este sujeito esteja disposto a participar - comentei. - É demasiado esperto para isso.

— Benton Wesley pensa que poderá.

Fiquei calada.

— Ele pensa que deadoc está suficientemente fixado em si para participar numa sessão de conversa consigo. Não é só querer saber o que a doutora pensa. Quer também que saiba o que ele pensa, ou pelo menos é esta a teoria de Wesley. Tenho aqui um computador portátil, tudo o que será necessário.

— Não. - Abanei a cabeça, - Não quero meter-me numa coisa dessas, Janet.

— Não vai poder fazer mais nada durante os próximos dias.

Ficava irritada sempre que alguém me acusava de ter pouco que fazer.

— Não quero entrar em comunicação com esse monstro. É arriscado demais. Eu poderia dizer alguma coisa errada e causar a morte de mais pessoas.

Os olhos de Janet fixavam-me intensamente.

— Estão a morrer, de qualquer modo. Talvez outras estejam também, mesmo enquanto falamos, de que ainda não tenhamos conhecimento.

Pensei em Lila Pruitt sozinha na sua casa, confusa, demente com a doença. Vi-a a olhar para o espelho, gritando angustiada.

— Só precisa de pô-lo a falar, um pouco de cada vez - prosseguiu Janet. - Aja com relutância, percebe, como se ele a tivesse apanhado desprevenida, pois de outro modo pode suspeitar. Entretenha-o durante alguns dias, enquanto tentamos descobrir onde ele estará. Ligue-se à AOL. Entre nas salas de conversa e descubra uma com o nome M. L., está bem? Depois vá ficando por lá.

— E depois? - Tinha interesse em saber.

— A nossa esperança é que ele venha à sua procura, pensando ser aqui que faz trocas de impressões com outros médicos e cientistas. Não conseguirá resistir. É essa a teoria de Wesley, e concordo com ele.

— Ele sabe que estou aqui?

A pergunta era ambígua, mas ela percebeu a quem me referia.

— Sabe - disse Janet. - Marino pediu-me para lhe telefonar.

— Que disse ele?

— Quis saber se a doutora estava bem. - Estava a ficar evasiva. - Está ocupado com um caso antigo na Geórgia, qualquer coisa sobre duas pessoas mortas à facada numa loja de bebidas, e o crime organizado está metido no assunto. Numa pequena vila próximo da ilha de St. Simons.

— Ah, então anda por fora.

— Acho que sim.

— E você, onde estará?

— Com a brigada. Na realidade vou ficar em Baltimore. No porto.

— E Lucy? - perguntei de novo, desta vez de um modo directo a que ela não podia fugir. - Quer contar-me o que se passa na realidade, Janet?

Respirei o meu ar filtrado, olhando através do vidro para alguém que eu sabia nunca poder mentir-me.

— Está tudo bem? - insisti.

— Dra. Scarpetta, estou aqui sozinha por duas razões - disse por fim. - A primeira, é que Lucy e eu entrámos numa enorme discussão a respeito desta hipótese de entrar em linha aberta com este tipo. Por isso toda a gente envolvida no caso pensou que seria melhor que não fosse ela a falar-lhe desse plano.

— Isso posso bem compreender - disse eu. - E acho bem.

— A minha segunda razão é bastante mais desagradável - prosseguiu. - É a respeito de Carne Grethen.

Fiquei assombrada e encolerizada com a simples menção do nome. Anos antes, quando Lucy estava a desenvolver CAIN, tinha trabalhado com Carne. Depois alguém tinha decifrado o código, e Carne tratara de fazer com que a culpa parecesse recair na minha sobrinha. Tinha havido também alguns crimes, sádicos e terríveis, em que Carne fora cúmplice de um psicopata.

— Ela ainda está na prisão - comentei.

— Eu sei. Mas o julgamento está marcado para a próxima Primavera - disse Janet.

— Estou bem ciente disso. - Não compreendia onde ela quereria chegar.

— A doutora é a testemunha principal. Sem si, a Comunidade não tem um caso suficientemente forte. Pelo menos, tratando-se de um julgamento com júri.

— Janet, estou muito confusa - queixei-me, e a dor de cabeça atacava-me de novo.

Ela respirou fundo.

— Tenho a certeza de que sabe que durante algum tempo Lucy e Carne foram intimas. - Hesitou. - Bastante intimas.

— Claro - respondi com impaciência. - Lucy era uma adolescente quando Carne a seduziu. Sim, sim. Estou perfeitamente ciente.

— Percy Ring também.

Olhei para ela, chocada.

— Parece que ontem Ring foi falar com o acusador público do caso, chamado Rob Schurmer. Ring conta-lhe, de amigo para amigo, que tem um grande problema porque a sobrinha da principal testemunha teve uma ligação com a ré.

— Meu Deus do céu. - Nem podia acreditar no que estava a ouvir. -                Mas que grande animal.

Como advogada, sabia o que isso significava. Lucy teria de ser convocada para prestar informações sobre o seu caso com outra mulher. A única maneira de evitá-lo era eu ser dispensada como testemunha, permitindo que Carne fosse libertada.

— O que ela fez não tem nada a ver com os crimes de Carne - disse, enraivecida com Ring ao ponto de poder tornar-me violenta.

Janet passou o telefone para o outro ouvido, tentando mostrar-se calma. Mas eu podia ver o medo que ela sentia.

— Não preciso de lhe dizer como os casos deste género são ali encarados - disse ela. - Não perguntem nada, não digam nada. Não é tolerado, por muito que digam em contrário. Lucy e eu temos de ter muito cuidado. As pessoas podem suspeitar, mas não sabem nada, e não é como se andássemos vestidas de cabedal negro e correntes.

— Nem nada que se pareça.

— Acho que isto poderia arruiná-la - declarou com muita franqueza. - A publicidade, e nem posso imaginar como seria o HRT quando ela ali aparecesse. Todos aqueles machões. Ring está só a fazer isto para tramá-la, e talvez a si também. E talvez a mim. Isto também não irá ajudar muito a minha carreira.

Ela não precisava de continuar. Eu compreendia.

— Alguém saberá qual foi a reacção de Schurmer quando Ring lhe contou?

— Perdeu o controlo, chamou Marino e disse que não sabia o que ia fazer, que quando a defesa soubesse ficava tramado. Depois Marino veio falar comigo.

— A mim não me disse nada.

— Não queria perturbá-la num momento destes - disse Janet. - E achava também que não lhe competia a ele.

— Percebo - disse. - Lucy sabe disto?

— Tive de lhe contar.

— E...

— Pôs-se a dar pontapés nas paredes - respondeu Janet. - Depois disse que, se tivesse de fazê-lo, iria prestar depoimento.

Janet pôs a palma da mão contra o vidro, abrindo os dedos e esperando que eu fizesse o mesmo. Era a única forma de nos tocarmos, e os meus olhos encheram-se de lágrimas.

— Sinto-me como se tivesse cometido um crime - confessei.

 

A enfermeira trouxe o equipamento de computador para o meu quarto e entregou-mo sem uma palavra antes de voltar a sair. Por um momento fiquei a olhar para o computador portátil como se fosse alguma coisa capaz de me fazer mal. Estava sentada na cama, continuando a transpirar profusamente, ao mesmo tempo que não deixava de sentir frio.

Não sabia se o que sentia era devido a algum micróbio ou se estaria a ter alguma reacção emocional ao que Janet me dissera. Lucy desejara ser uma agente do FBI desde criança, e já era uma das melhores que eles tinham tido. Isto era tão injusto. Nada fizera, a não ser deixar-se atrair por uma pessoa perversa quando tinha apenas dezanove anos. Estava desesperada por sair deste quarto e encontrá-la. Queria ir para casa. Estava prestes a tocar a campainha quando uma outra enfermeira entrou no quarto.

— Acha que me poderá arranjar uma bata lavada? - perguntei-lhe.

— Posso trazer-lhe outra camisa comprida.

— Uma bata, por favor.

— Bem, é um bocadinho fora do normal. - Franziu a testa.

— Eu sei.

Liguei o computador à tomada do telefone, e premi um botão para ligá-lo.

— Se eles não ultrapassam depressa este impasse do orçamento, não haverá ninguém para meter a roupa ou qualquer outra coisa nas autoclaves. - A enfermeira continuava a falar dentro da sua vestimenta azul, enquanto aplicava uma coberta sobre as minhas pernas. - No noticiário desta manhã, o presidente disse que o programa de distribuição de refeições aos necessitados, Refeições Sobre Rodas, estava quase falido, o Ministério do Ambiente não está a limpar as lixeiras tóxicas, os tribunais federais poderão ter de fechar, e que ninguém pense em visitar a Casa Branca. Está pronta para o almoço?

— Se fizer o favor - disse, enquanto ela prosseguia o seu rol de desgraças.

— Para não se falar já dos Serviços de Medicina Social, da poluição do ar, do combate à epidemia de gripe ou do ensaio das reservas de água à procura do parasita Cryptosporidium. Tem muita sorte por estar agora aqui, porque para a semana somos capazes de ficar fechados.

Não queria pensar sequer em discussões do orçamento, pois desperdiçava nelas a maior parte do meu tempo de trabalho. Receava que, se a crise federal se propagasse ao nível estadual, o meu edifício novo nunca seria acabado e as minhas fracas verbas actuais ficariam ainda mais reduzidas. Os mortos não tinham lobbies. Os meus doentes não tinham partido e não votavam.

— Tem duas opções - estava ela a dizer.

— Perdão? - Voltei a prestar-lhe atenção.

— Galinha ou presunto.

— Galinha. - Não tinha vontade nenhuma de comer. - E chá quente.

Desligou a sua tubagem de ar e deixou-me no silêncio. Coloquei o computador na prateleira e liguei à America Online. Fui direita à minha caixa de correio. Havia bastante, mas nada de deadoc que a Brigada 19 não tivesse já aberto. Segui por vários menus até às salas de conversa, puxei uma lista dos membros e verifiquei quantas pessoas estariam na sala chamada M.L.

Não estava ali ninguém, por isso entrei e reclinei-me nas almofadas da cama, olhando para o ecrã em branco com a sua fiada de icones no topo. Não tinha ninguém com quem conversar, e pensei que isto pareceria ridículo a deadoc, se acaso estivesse a observar. Não era óbvio se eu estivesse sozinha numa sala? Não pareceria que eu estava à espera? Mal tinha formado este pensamento quando surgiu uma frase no meu ecrã, e comecei a responder.

QUINCY:                Olá. De que vamos falar hoje?

SCARPETTA:         Do impasse do orçamento. Estará também a afectá-lo?

QUINCY:                Trabalho no departamento na capital federal.

Um pesadelo.

SCARPETTA:         É médico legista?

QUINCY:                Sou. Temo-nos encontrado em diversas reuniões.

Conhecemos algumas das mesmas pessoas. Hoje não está muita gente, mas poderá melhorar se formos pacientes.

Foi então que percebi que Quincy era um dos agentes da Brigada 19. Prosseguimos a nossa sessão até que o almoço chegou, e depois continuámos durante quase uma hora. Quincy e eu discutimos os nossos problemas, fizemos perguntas sobre soluções, tudo o que pudéssemos pensar caber numa conversa normal entre colegas ou pessoas com quem se pudessem trocar pontos de vista. Mas deadoc não mordeu o isco.

Dormi um pouco e acordei uns minutos depois das quatro. Por uns instantes fiquei muito quieta, sem saber onde estava, e depois recordei-me, com deprimente alacridade. Sentei-me, apertada debaixo da prateleira, com o computador ainda aberto nela. Liguei outra vez à AOL, e regressei à sala de conversa. Desta vez veio fazer-me companhia alguém que dava a si mesmo o nome de MFDEX, e falámos sobre o género de base de dados que eu usava na Virgínia para guardar informações sobre os vários casos e para produzir estatísticas.

Exactamente cinco minutos depois das cinco uma campainha soou rouca dentro do computador e a janela de Mensagem Instantânea dominou o ecrã. Fiquei a olhar descrente quando surgiu uma comunicação de deadoc, palavras que eu sabia que mais ninguém na sala de conversa poderia ver.

DEADOC:               pensas que és tão esperta

SCARPETTA:         Quem é você?

DEADOC:               sabes quem sou sou o que fazes

SCARPETTA:         Que será o que faço?

DEADOC:               morte doutora morte tu és eu

SCARPETTA:         Eu não sou você.

DEADOC:               pensas que es tão esperta

Calou-se abruptamente, e quando premi o botão Disponível este indicou-me que tinha desligado. O meu coração batia desordenadamente enquanto mandava outra mensagem a MEDEX, dizendo-lhe que tinha estado ocupada com um visitante. Não obtive resposta, ficando de novo sozinha na sala de conversa.

— Bolas - exclamei em voz baixa.

Tentei mais uma vez às dez horas da noite mas ninguém apareceu à excepção de Quincy, para me dizer que deveríamos tentar outro encontro na manhã seguinte. Todos os outros doutores, disse ele, tinham ido para casa. A mesma enfermeira voltou para saber como eu estaria, e foi simpática. Tinha pena dela pelas suas longas horas de trabalho, e pelo desconforto de ter de pôr a vestimenta especial sempre que vinha ao meu quarto.

— Onde está o novo turno? - perguntei-lhe, quando me tirava a temperatura.

— O novo turno sou eu. Estamos todas a fazer o melhor que podemos. - E voltou a falar-me da licença temporária concedida à maioria dos funcionários. -                Não há agora nenhum técnico de laboratório a trabalhar - prosseguiu. - É muito capaz de acordar amanhã e ser a única pessoa no edifício.

— Agora tenho a certeza de que vou ter pesadelos - comentei, enquanto ela apertava a manga do medidor de tensão à volta do meu braço.

— Bem, está a sentir-se melhor, e isso é que importa. Desde que comecei a fazer serviço aqui, pus-me a imaginar que estava a apanhar uma coisa ou outra. A mais pequena dor ou o menor espirro, e pronto. Portanto, que género de medicina é que pratica?

Expliquei-lhe.

— Eu ia ser pediatra. Depois casei-me.

— Estaríamos em muito maus lençóis se não houvesse enfermeiras dedicadas como a senhora - disse-lhe com um sorriso.

— Muitos médicos nem dão por isso. Têm geralmente aquelas atitudes...

— Dou-lhe toda a razão - concordei.

Tentei adormecer, e passei a noite toda em sobressalto. As luzes da rua, vindas do parque de estacionamento por baixo da janela, entravam pelos intervalos dos estores, e por mais que me voltasse não conseguia descansar. Era-me difícil respirar, e o coração nunca acalmava. às cinco da manhã sentei-me finalmente na cama e acendi a luz. Passados minutos, a enfermeira estava de volta.

— Sente-se bem? - Parecia exausta.

— Não consigo dormir.

— Quer que lhe dê alguma coisa?

Abanei a cabeça e liguei o computador. Entrei na AOL e voltei à sala de conversa, que estava vazia. Premi o botão Disponível, e verifiquei se deadoc estava em linha. Não havia qualquer sinal dele, e comecei a visitar as diversas salas de conversa ao dispor dos assinantes e familiares.

Havia mesmo coisas para todos os gostos, locais para namoricos, para pessoas solitárias, homossexuais, lésbicas, americanos nativos, afro-americanos, e gente perversa. Pessoas que preferiam servidão, sado-masoquismo, sexo em grupo, bestialidade, incesto, podiam encontrar-se e trocar arte pornográfica. O FBI nada podia fazer. Era tudo perfeitamente legal.

Deprimida, ajustei as almofadas atrás de mim e, sem dar por isso, adormeci. Quando voltei a abrir os olhos uma hora depois, estava numa sala de conversa chamada ARTE-AMOR. Uma mensagem esperava calmamente por mim no monitor. Deadoc tinha-me encontrado.

 

DEADOC:               uma imagem vale mil palavras

 

Fui ver apressadamente se ele ainda estaria em linha, e encontrei-o calmamente enrolado como uma serpente no ciberespaço, à minha espera. Teclei a minha resposta.

 

SCARPETTA:         Que tem para negociar?

 

Não respondeu imediatamente. Fiquei a olhar para o ecrã por três ou quatro minutos. Depois regressou.

 

DEADOC:               não negoceio com traidores dou de graça que pensas que acontece a pessoas assim

SCARPETTA:         Porque não me diz?

 

Silêncio, e fiquei a olhar enquanto ele saía da sala, e um minuto depois estava de regresso. Andava a apagar as suas pegadas. Sabia exactamente o que estávamos a fazer.

 

DEADOC:               acho que sabes

SCARPETTA:         Não sei.

DEADOC:               hás-de saber

SCARPETTA:         Vi as fotos que me mandou. Não estavam muito nítidas. Qual foi a intenção?

 

Mas ele não respondeu, e sentia-me estúpida e de raciocínio lento. Tinha-o mas não conseguia agarrá-lo. Estava a sentir-me frustrada e decepcionada quando outra mensagem instantânea surgiu no monitor, esta vinda novamente do esquadrão.

 

QUINCY:                T. K. S., Scarpetta. Ainda preciso de falar daquele caso consigo. A auto-imolação.

 

Foi então que compreendi que Quincy era Lucy. T. K. S. queria dizer Tia Kay Sempre, o código dela para mim. Estava a tomar conta de mim, como eu tomara conta dela durante tantos anos, e dizia-me para não perder a calma. Teclei a resposta.

 

SCARPETTA:         Concordo. O teu caso é muito preocupante. Como vais enfrentá-lo?

QUINCY:                Vai ver-me no tribunal. Continuo depois.

 

Sorri e meti o comando de saída, e encostei-me nas almofadas. Já não me sentia tão sozinha nem tão deprimida.

 

— Bom dia. - A primeira enfermeira estava de volta.

— O mesmo para si. - Senti a depressão regressar.

— Vejamos esses indícios vitais. Como nos sentimos hoje?

— Sentimo-nos bem.

— Pode escolher entre ovos e cereais.

— Fruta - disse eu.

— Isso não é alternativa. Mas talvez possamos encontrar uma banana.

Meteu-me o termómetro na boca, e enrolou a manga da tensão à volta do braço, sempre sem parar de falar.

— Está tanto frio lá fora que é capaz de nevar - estava ela a dizer. - Não chega a um grau. Dá para acreditar? Tinha o pára-brisas coberto de gelo. As bolotas estão grandes este ano. Isso quer sempre dizer que o Inverno vai ser rigoroso. Ainda não chegou aos trinta e seis e meio. Que se passa consigo?

— Sabe porque não teriam deixado aqui o telefone? - perguntei.

— Vou procurar saber. - Desenrolou a manga do medidor de tensão. - A tensão arterial também está baixa.

— Por favor, peça ao Coronel Fujitsubo para passar por cá esta manhã.

Ela afastou-se um pouco e olhou para mim.

— Vai queixar-se a meu respeito?

— Não, que ideia - respondi. - Apenas preciso de sair daqui.

— Bem, custa-me muito dizer-lhe, mas isso não depende de mim. Há pessoas que ficam cá até duas semanas.

Estou quase a ficar maluca, pensei.

O coronel não apareceu antes do almoço, que era peito de frango grelhado, cenouras e arroz. Quase não comi nada, porque me sentia cada vez mais tensa, e a TV cintilava em silêncio ao fundo do quarto, porque lhe tinha tirado o som. A enfermeira voltou às duas da tarde e anunciou que eu tinha outra visita. Por isso, pus a máscara com o filtro HEPA e segui atrás dela pelo corredor fora até à clínica.

Desta vez entrei no compartimento A, e Wesley estava à minha espera do outro lado. Sorriu para mim quando os nossos olhos se encontraram, e cada um de nós pegou no seu telefone. Estava tão aliviada e surpreendida por vê-lo, que gaguejei por uns momentos.

— Espero que tenhas vindo libertar-me - disse.

— Não faço frente a médicos. Foste tu que me ensinaste.

— Pensava que estivesses na Geórgia.

— Estive. Dei uma olhadela à loja de bebidas onde os dois homens foram esfaqueados, estudei o local. Agora estou de volta.

— É...?

— É...? - Levantou uma sobrancelha. - Crime organizado.

— Não estava a pensar na Geórgia.

— Diz-me então em que estavas a pensar. Parece-me que estou a perder o jeito para ler o pensamento. E tu estás particularmente bonita hoje, se me permites o comentário - disse Wesley para a minha máscara.

— Acabo por endoidecer se não sair depressa daqui - informei-o.

— Preciso de ir ao CDC.

— Lucy diz-me que tens estado em comunicação com deadoc. - A expressão divertida tinha-lhe desaparecido do rosto.

— Só de passagem e sem qualquer resultado - disse-lhe, zangada.

Estar em comunicação com este homicida era de enfurecer, porque era precisamente isso o que ele pretendia. Tinha prometido a mim mesma que nunca daria prendas a gente como ele.

— Não desistas - disse Wesley.

— Ele faz alusões a assuntos de medicina, como doenças e germes - disse. - Isto não te preocupa, em face do que se está a passar?

— Mostra que anda a par das notícias. - Parecia compartilhar a opinião de Janet.

— Mas se for mais do que isso? - perguntei. - A mulher que ele desmembrou parece ter a mesma doença que a vítima encontrada em Tangier.

— Mas não és ainda capaz de confirmar isso.

— Sabes, não cheguei ao lugar que tenho a fazer suposições e a tirar conclusões infundadas. - Estava a ficar bastante irritada. - Confirmarei esta doença assim que puder, mas parece-me que entretanto devemos guiar-nos pelo bom senso.

— Não sei bem se estou a entender o que queres dizer. - Os olhos dele não largavam os meus.

— Estou a dizer que devemos encarar isto como uma guerra biológica. Um Unabomber que usa uma doença.

— Espero que estejas enganada.

— Mas a ideia também já te passou pelo pensamento. Não me digas que achas que uma doença fatal ligada de algum modo a um corpo desmembrado é uma coincidência.

Estudei-lhe o rosto, e percebi que lhe doía a cabeça. A mesma veia na testa dele ficava sempre saliente como um cordão azulado.

— E tu tens a certeza de que te sentes bem? - perguntou Wesley.

— Tenho. Estou mais preocupada contigo.

— E quanto a esta doença? E quanto ao risco para a tua saúde? — Estava a irritar-se comigo, como sempre acontecia quando achava que eu corria perigo.

— Fui revacinada.

— Foste revacinada contra a varíola - disse ele. - E se se tratar de outra coisa?

— Então estamos cheios de problemas. Janet veio visitar-me.

— Já sei - disse ele para dentro do seu telefone. - Lamento muito. A última coisa de que agora podias precisar...

— Não, Benton - interrompi-o. - Eu tinha de saber. Nunca há uma boa oportunidade para noticias como aquela. Que achas que poderá acontecer?

Mas ele não quis dizer.

— Então pensas também que ela vai ficar arruinada - disse, desesperada.

— Duvido de que corram com ela. O que geralmente acontece é que se acabam as promoções, fica-se com as tarefas que menos interessam, é-se nomeado para alguma filial no meio de nenhures. Ela e Janet poderão ficar separadas por milhares de quilómetros. Uma delas ou ambas acabarão por desistir.

— E achas que isso é melhor do que ser despedida? - disse, enraivecida.

— Temos de viver um dia de cada vez, Kay. - Olhou para mim. - Vou demitir Ring da CASKU.

— Tem cuidado com o que possas fazer por minha causa.

— Já está feito - disse ele.

 

Fujitsubo só voltou ao meu quarto ao princípio da manhã seguinte, e vinha sorridente, pondo-se a abrir os estores para que o sol entrasse tão forte que me fez doer os olhos.

— Bom dia, e até agora tudo bom - disse ele. - Tenho muito prazer em ver que não parece estar doente, Kay.

— Nesse caso, posso ir-me embora - disse, pronta a saltar imediatamente da cama.

— Não tão depressa como isso. - Estava a analisar a folha com os resultados das medições. - Sei que isto é muito difícil para si, mas não acho bem dar-lhe alta tão depressa. Aguente por mais algum tempo, e poderá ir-se embora depois de amanhã, se tudo correr bem.

Sentia vontade de chorar quando ele se foi embora, porque não me parecia poder aguentar mais uma hora de quarentena. Infeliz, sentei-me debaixo da coberta e olhei lá para fora. O céu estava de um azul brilhante, com penachos de nuvens debaixo da pálida sombra de uma lua matinal. As árvores em frente da minha janela estavam despidas e balouçavam à brisa suave. Pensei na minha casa em Richmond, nas plantas à espera de ser envasadas e no trabalho a acumular-se na minha secretária. Queria ir dar um passeio ao frio, cozinhar brócolos e sopa de cevada. Queria esparguete com ricotta ou frittata recheada, música e vinho.

Durante metade do dia não fiz mais do que sentir pena de mim mesma e olhar para a televisão e dormitar. Depois a enfermeira do turno seguinte chegou com o telefone e disse que havia uma chamada para mim. Esperei até ser transferida e agarrei o auscultador como se isto fosse a coisa mais excitante que poderia acontecer-me.

— Sou eu - disse Lucy.

— Graças a Deus. Sentia-me emocionada com a voz dela.

— Cumprimentos de todos. Correm boatos de que a tia ganha o prémio para a paciente mais difícil de aturar.

— É bem possível. Todo aquele trabalho no meu serviço. Se ao menos o tivesse aqui...

— Precisa de descansar - disse ela. - Para que as suas defesas não enfraqueçam.

Isto fez-me pensar em Wingo, preocupada.

— Porque é que não tem estado no computador? - Entrava assim no objectivo do telefonema.

Fiquei em silêncio.

— Tia Kay, ele não vai falar connosco. Só irá falar consigo.

— Então um de vocês poderá entrar em linha com o meu nome - respondi.

— Nem pensar. Se suspeitar de alguma coisa, acabamos por perdê-lo de vez. Este tipo é tão esperto que assusta.

O meu silêncio foi o meu comentário, e Lucy apressou-se a preenchê-lo.

— O quê? disse ela com emoção. - Acha que posso fingir que sou uma patologista forense com um curso de direito que já trabalhou em pelo menos um dos casos deste sujeito? Não me parece.

— Não quero contactá-lo, Lucy, - disse. - Gente como ele tira prazer disso, é o que ele quer, quer a atenção. Quanto mais entro no jogo dele, mais poderá sentir-se encorajado. Já pensaste nisso?

— Claro. Mas pense nisto: seja uma pessoa desmembrada, sejam vinte, ele acabará por fazer mais alguma perversidade. As pessoas como ele não param simplesmente. E não temos a menor ideia, a menor pista, de onde raio ele possa estar.

— Não é que eu tenha medo só por mim - comecei a dizer.

— É bem natural que tenha.

— Só não quero fazer qualquer coisa que piore ainda mais a situação - repeti.

Isso, claro, era sempre um risco que se corria quando se pretendia ser criativo ou agressivo numa investigação. O autor de um crime nunca era completamente previsível. Talvez fosse simplesmente qualquer coisa que eu pressentia, uma vibração intuitiva que captava dentro de mim. Mas sentia que este homicida era diferente, motivado por qualquer coisa para além da nossa percepção. Receava que ele soubesse exactamente o que tentávamos fazer, e que estivesse a gostar.

— Agora fala-me de ti - disse. - Janet esteve aqui.

— Não quero entrar nesse assunto. - Sentia a sua fúria na voz. - Tenho coisas melhores para ocupar o meu tempo.

— Estou sempre contigo, Lucy, decidas o que decidires.

— Disso estive sempre certa. E disto poderá toda a gente estar certa: aconteça o que acontecer, Carne não vai sair tão cedo da prisão.

A enfermeira regressou para me retirar o telefone.

— Não estou a perceber isso - reclamei, ao desligar. - Tenho um cartão para pagar as chamadas, se é isso que a preocupa.

Ela sorriu.

— São ordens do coronel. Ele quer que descanse, e sabe que não vai descansar se estiver o dia inteiro ao telefone.

— Estou a descansar - disse, mas a enfermeira já se tinha ido embora.

Não percebia por que razão me deixaria ele usar o computador, e suspeitava de que Lucy ou alguém lhe tivesse falado. Ao ligar de novo à AOL, sentia que estavam a conspirar contra mim. Mal tinha entrado na sala de conversa M.L. quando deadoc surgiu, desta vez não como uma mensagem instantânea mas antes como um associado que podia ser visto por qualquer pessoa que decidisse entrar em linha.

 

DEADOC:               onde estiveste

SCARPETTA:         Quem é você?

DEADOC:               já te disse

SCARPETTA:         Eu não sou você.

DEADOC:               ele deu lhes poder sobre espíritos sujos para expulsá-los e curar todo o tipo de doença e todo o género de manifestações clinico patofisiológicas vírus como hiv a nossa luta darwiniana contra eles eles são perversos ou seremos nós

SCARPETTA:         Explique o que quer dizer.

DEADOC:               eles são doze

 

Mas ele não tinha qualquer intenção de se explicar, pelo menos agora. O sistema alertou-me de que ele tinha saído da sala.

Esperei durante algum tempo, para ver se ele regressaria, enquanto tentava perceber o que ele quisera dizer com doze. Carregando no botão da cabeceira chamei a enfermeira, que estava a fazer-me criar complexos de culpa. Não sabia se ela ficava aguardando à porta do meu quarto ou se teria de pôr e tirar a vestimenta azul sempre que vinha e ia. Mas nada disto poderia ser agradável para ela, incluindo a minha disposição.

— Ouça - disse-lhe, logo que ela apareceu. - Seria possível arranjar-me uma Bíblia, algures por aí?

Ela hesitou, como se nunca tivesse ouvido falar de semelhante coisa.

— Ora, isso é que não sei.

— É capaz de tentar?

— Está a sentir-se mal? - Olhou-me suspeitosa.

— Estou óptima.

— Há uma biblioteca. Talvez haja lá alguma Bíblia. Desculpe, é que não sou muito religiosa. - Continuava a falar ao sair.

Regressou talvez meia hora depois, com uma Bíblia encadernada em cabedal negro, edição de Cambridge, que me disse ter pedido emprestada do gabinete de alguém. Abri-a e encontrei um nome na página de rosto, escrito com caligrafia esmerada, e uma data indicando que tinha sido oferecida ao seu proprietário a comemorar alguma ocorrência há uns dez anos. Quando comecei a folheá-la, lembrei-me de que não ia à missa há meses. Invejava as pessoas com uma fé tão forte que guardavam as suas Bíblias no local de trabalho.

— Agora tem a certeza de que se sente bem? - insistiu a enfermeira, não saindo de junto da porta do quarto.

— Nunca me disse o seu nome - disse-lhe.

— Sally.

— Tem sido muito simpática, e estou-lhe bastante grata. Sei que não é divertido ter de trabalhar no Dia de Acção de Graças.

Isto pareceu ter-lhe agradado bastante, dando-lhe a confiança necessária para dizer:

— Não tenho querido meter o nariz no que não me diz respeito, mas não posso deixar de ouvir o que as pessoas dizem. Aquela ilha na Virgínia, de onde veio o seu caso. Não fazem mais nada senão apanhar caranguejos?

— É mais ou menos isso - respondi.

— Caranguejo azul.

— E caranguejo de carapaça mole.

— Ninguém se tem preocupado com isso?

Sabia ao que ela pretendia chegar, e isso também me estava a preocupar. Tinha uma razão pessoal para me preocupar, por causa de Wesley e de mim mesma.

— Eles exportam essas coisas para todo o país, não é? - prosseguiu ela.

Confirmei com um aceno.

— E se aquilo que aquela senhora tinha se transmitisse através da água ou dos alimentos? - Os olhos dela rebrilhavam por detrás do capuz. - Não vi o corpo dela, mas ouvi falar. É mesmo de meter medo.

— Bem sei - disse-lhe. - Espero podermos ter uma resposta para isso dentro de pouco tempo.

— A propósito, o almoço é peru. Não espere nenhum petisco.

Desligou o seu tubo de ar e calou-se. Abrindo a porta, lançou-me um aceno de despedida e saiu. Voltei a minha atenção para a Concordância, e tive de pesquisar várias palavras durante algum tempo, até que localizei a passagem que deadoc me referira. Estava em São Mateus 10, Verso um, e dizia na sua totalidade: -Jesus chamou os doze discípulos e deu-lhes poder de expulsar os espíritos impuros e de curar toda a enfermidade e toda a doença.

No verso seguinte os discípulos eram identificados pelos seus nomes, e depois Jesus invocava-os para irem procurar as ovelhas tresmalhadas e pregar-lhes que o reino dos céus estava próximo. Ordenava aos seus discípulos que curassem os doentes, limpassem os leprosos, ressuscitassem os mortos, expulsassem os demónios. Enquanto ia lendo, não sabia se este assassino que dava a si mesmo o nome de deadoc teria uma mensagem em que acreditava, se doze se referia aos discípulos, ou se estava apenas a participar num jogo.

Levantei-me e pus-me a caminhar de um lado para o outro no quarto, olhando pela janela enquanto a luz do dia enfraquecia. A noite chegava agora cedo, e habituara-me a observar as pessoas caminhando para os seus carros. A respiração formava penachos de vapor à sua frente, e o recinto estava quase vazio devido às licenças temporárias. Duas mulheres conversavam, enquanto uma delas mantinha aberta a porta de um Honda, e agitavam-se e gesticulavam como se tentassem resolver os grandes problemas da vida. Fiquei a espreitá-las através das persianas até que se foram embora.

Tentei adormecer mais cedo para fazer o tempo passar. Mas estava de novo irrequieta, mudando de posição com frequência. Imagens flutuavam diante das minhas pálpebras, projectadas como filmes velhos montados ao acaso. Vi duas mulheres conversando ao lado de uma caixa de correio. Uma delas tinha um sinal numa face que se transformava numa série de erupções espalhadas por todo o rosto enquanto ela resguardava os olhos com uma das mãos. Depois surgiam palmeiras contorcendo-se debaixo do vento forte de um furacão vindo do mar, com as frondes a soltar-se e a voar. Um torso despido, uma mesa coberta de sangue com mãos e pés cortados.

Sentei-me na cama a transpirar, e esperei que os meus músculos deixassem de contorcer-se. Era como se houvesse uma perturbação eléctrica em todo o meu sistema, ou como se estivesse a ter um enfarte ou uma apoplexia. Respirando fundo e lentamente, forcei o pensamento a esvaziar-se. Não me mexi. Quando a visão passou, chamei a enfermeira.

Quando viu a expressão no meu rosto, não se atreveu a argumentar comigo quando lhe pedi o telefone. Assim que ela saiu liguei a Marino.

— Ainda está na Gaiola? - perguntou.

— Parece-me que ele matou a sua cobaia - disse, de chofre.

— Espere aí. Comece outra vez do princípio.

— Deadoc. A mulher que ele matou e desmembrou talvez fosse a cobaia dele. Alguém que ele conhecia e a quem tinha fácil acesso.

— Tenho de confessar, doutora, não faço a menor ideia do que está a falar. - Podia perceber, pelo seu tom de voz, que Marino estava seriamente preocupado com o meu estado mental.

— Faz sentido que ele não pudesse olhar para ela. O M. O. faz todo o sentido.

— Agora é que estou mesmo confuso.

— Se alguém quisesse matar pessoas por meio de um vírus - expliquei-lhe - primeiro teria de descobrir um método. A forma de transmissão, por exemplo. Será um alimento, uma bebida, poeira? No caso da varíola, a transmissão faz-se através do ar, espalhado por gotículas ou pelo fluido das lesões. A doença pode ser transportada numa pessoa ou na sua roupa.

— Comece antes por isto - disse ele. - Para principiar, onde é que essa pessoa ia arranjar o vírus? Não é exactamente qualquer coisa que possa ser encomendada através do correio.

— Não sei bem. Que eu tenha conhecimento, existem apenas dois locais no mundo onde a varíola é conservada em arquivo: o CDC e um laboratório em Moscovo.

— Portanto, isto é capaz de ser alguma conspiração dos russos - disse Marino, sardónico.

— Deixe-me propor-lhe um cenário. O homicida alimenta um forte rancor, talvez mesmo alguma ilusão religiosa de que foi eleito para trazer de regresso uma das piores doenças que este mundo já conheceu. Tem de descobrir um modo para infectar pessoas ao acaso e certificar-se de que o método resulta.

— E para isso precisa de uma cobaia - acrescentou Marino.

— Precisamente. Vamos agora supor que tem um vizinho, um parente, uma pessoa idosa e doente. Talvez esteja até a cargo dele. Que melhor maneira para ensaiar o vírus do que nessa pessoa? E, se resultar, mata-a e encena a morte para que pareça ter sido outra coisa. É evidente que não poderá deixar constar que morreu de varíola. Principalmente havendo uma ligação entre ela e ele. Poderíamos descobrir a sua identidade. Por isso, dá-lhe um tiro na cabeça, e corta-lhe os membros para nós pensarmos que se trata outra vez dos crimes em série.

— Então como é que passa daí para a senhora da ilha de Tangier?

— Ela esteve exposta - disse, com toda a naturalidade.

— Como? Alguma coisa que lhe foi enviada? Recebeu alguma coisa pelo correio? Teria sido transportado pelo ar? Foi por alguma picada enquanto dormia?

— Não sei.

— Pensa que deadoc mora em Tangier? - perguntou Marino.

— Não, não penso - respondi. - Acho que terá escolhido esse sítio porque a ilha é o local ideal para se lançar uma epidemia. Pequeno, auto-suficiente. Também fácil de pôr em quarentena, o que significa que o homicida não pretende aniquilar toda a sociedade de uma só vez. Está a tentar um pouco de cada vez, a cortar-nos aos bocadinhos.

— Pois. Como fez à velhota, se a doutora tiver razão.

— Ele quer alguma coisa - disse. - Tangier é para chamar a atenção.

— Sem ofensa, doutora, espero que esteja errada do princípio ao fim.

— Vou a Atlanta amanhã de manhã. Agradeço-lhe que contacte Vander, para sabermos se teve sorte com a impressão digital do polegar.

— Até agora não conseguiu nada. Parece que a vítima não tem ficha nas bases de dados dactiloscópicas. Se surgir alguma coisa, mando uma mensagem para o seu pager.

— Bolas - disse num resmungo, porque a enfermeira também tinha levado isso.

O resto do dia passou interminavelmente lento, e só depois do jantar Fujitsubo veio despedir-se. Ainda que o acto de me dar alta significasse que eu não me encontrava infectada nem infecciosa, não tinha dispensado a sua vestimenta azul, que ligou a um tubo de ar.

— Deveria mantê-la aqui por mais tempo - disse, logo de entrada, enchendo-me o coração de temor. - A incubação, em média, é de doze a treze dias. Mas pode demorar também vinte e um. Quero dizer com isto que ainda há a possibilidade de adoecer.

— Compreendo isso - disse, estendendo a mão para o copo de água.

— A revacinação poderá ou não ajudar, dependendo do estágio em que estava quando lha dei.

Concordei com um aceno.

— E eu não estaria com tanta pressa de sair daqui se o doutor tomasse conta disto, em vez de me encaminhar para o CDC.

— Kay, realmente não posso. - A voz dele estava parcialmente abafada pelo plástico. - Sabe que não tem nada a ver com o que gostaria de fazer. Mas não me é possível tomar conta de um caso pertencente ao CDC, tal como a doutora não poderia agarrar-se a um caso que não pertencesse à sua área de jurisdição. Já falei com eles. Estão muito preocupados com a possibilidade de um surto epidémico, e começarão os ensaios assim que a doutora chegar com as suas amostras.

— Receio que haja um problema de terrorismo envolvido nisto. - Recusava-me a desistir.

— Até que haja provas disso - e espero bem que não haja - nada mais podemos fazer aqui por si. - O seu pesar parecia sincero. - Vá a Atlanta e veja o que eles lhe podem dizer. Estão a trabalhar também com uma equipa reduzida. A ocasião não podia ser pior.

— Ou melhor escolhida - comentei. - Se o coronel fosse uma pessoa de maus instintos a planear cometer crimes em série com um vírus, qual seria a melhor altura senão quando as principais autoridades sanitárias federais estão com equipas reduzidas por causa destas licenças temporárias, que já decorrem há algum tempo e não se sabe quando irão terminar.

Ele não disse nada.

— John - prossegui - ajudou-me com a autópsia. Já viu alguma vez uma doença como esta?

— Só nos livros de estudo - respondeu com ar severo.

— Como poderá a varíola reaparecer assim de um momento para o outro, por obra do acaso?

— Se se tratar realmente de varíola.

— Seja o que for, é virulenta e mata - tentei ainda convencê-lo.

Mas ele não podia fazer mais nada e durante o resto da noite vagueei de sala em sala na AOL. De hora a hora, ia ver o meu correio. Deadoc permaneceu em silêncio até às seis horas da manhã, quando entrou na sala M.L. O meu coração deu um baque quando o nome dele surgiu no monitor. A minha adrenalina começou a dar à bomba, como sempre acontecia quando ele falava comigo. Estava em linha, agora tudo dependia de mim. Só poderia apanhá-lo se conseguisse passar-lhe uma rasteira.

 

DEADOC:               domingo fui à igreja aposto que não foste

SCARPETTA:         A homilia foi a respeito de quê?

DEADOC:               sermão

SCARPETTA:         Você não é católico.

DEADOC:               cuidado com os homens

SCARPETTA:         São Mateus 10. Diga-me o significado.

DEADOC:               dizer que ele lamenta

SCARPETTA:         Quem é ele? E que fez ele?

DEADOC:               deverás beber da taça de que eu bebo

 

Antes de poder responder, já tinha desaparecido, e comecei a folhear a Bíblia. O verso que ele citara desta vez era de São Marcos, e novamente era Jesus falando, o que me sugeria, se nada mais, pelo menos que não devia ser judeu. Mas também não era católico, a avaliar pelos seus comentários a respeito da igreja. Não era teóloga, mas a referência a beber da taça devia referir-se a eventual crucificação de Cristo. Por isso deadoc tinha sido crucificado, e eu seria também?

Eram as minhas últimas horas aqui, e a enfermeira Sally era mais liberal com o telefone. Mandei uma mensagem ao pager de Lucy, que me ligou quase imediatamente.

— Estou a falar com ele - disse. - Vocês estão lá também?

— Nós estamos lá. É preciso que ele fique por mais tempo - disse a minha sobrinha. - Há tantas linhas secundárias, e temos de pôr as várias companhias telefónicas a escutar e a seguir o rasto. A chamada mais recente veio de Dallas.

— Estás a brincar... - Sentia-me decepcionada.

— Não era a origem, era apenas um ponto de comutação. Não pudemos chegar mais longe porque ele desligou. Vá tentando. Dá a impressão de que este tipo é algum maníaco religioso.

 

Nessa mesma manhã fui-me embora num táxi quando o sol estava a ganhar altura entre as nuvens. Não tinha nenhuma roupa para além da que levava vestida, toda ela esterilizada na autoclave ou por meio de gases. Ia com pressa, e guardava com cuidado uma grande caixa de cartão branco com várias etiquetas de aviso: PERECíVEL URGENTE! URGENTE! É IMPORTANTE CONSERVAR DIREITO.

Como um quebra-cabeças chinês, a minha caixa continha caixas dentro de caixas contendo BioPacks. Dentro destes iam Bio-tubos do fígado, do baço e do fluido espinal de Lila Pruitt, protegidos por resguardos de cartão e embrulhados em folhas de plástico com bolhas de ar. Tudo isto estava acondicionado em gelo seco com etiquetas de SUBSTÂNCIA INFECCIOSA e PERIGO, para prevenir alguém que ultrapassasse a primeira linha de defesa. Obviamente, não podia perder de vista a minha carga. Além do risco inerente, podia vir a constituir provas testemunhais, caso se viesse a saber que Pruitt era uma homicida.

No aeroporto internacional de Baltimore-Washington, encontrei uma cabina telefónica e liguei à minha secretária Rose.

— A USAMRIID tem a minha maleta médica e o microscópio. - Não perdi tempo. - Veja o que pode fazer para que eles me sejam enviados com urgência. Estou no aeroporto B-W, a caminho do CDC.

— Tenho estado a tentar entrar em contacto consigo - disse ela.

— Talvez eles possam devolver-me o pager também. - Tentei recordar-me se me faltaria mais alguma coisa. - E o telemóvel, também, -                acrescentei.

— Chegou um relatório que talvez ache interessante. Os pêlos de animais encontrados no torso. De coelho e de macaco.

— Bizarro - foi o único comentário que me ocorreu.

— Detesto ter de lhe dar esta noticia. Os jornalistas têm andado a fazer perguntas a respeito do caso de Carne Grethen. Aparentemente, constou alguma coisa.

— Raios o partam! - exclamei, pensando em Ring.

— Que quer que eu faça?     - perguntou Rose.

— Experimente falar com Benton. Não sei o que possa dizer. Estou um pouco confundida.

— Isso nota-se pela sua voz.

Olhei para o relógio.

— Rose, tenho de ver se consigo meter-me no avião. Não queriam deixar-me passar no aparelho de raios X, e calculo o que vai acontecer quando tentar entrar a bordo com esta coisa.

Foi exactamente como esperava. Quando entrei na cabina, uma hospedeira olhou para mim e sorriu.

Deixe-me ajudá-la. - Estendeu as mãos. - Vou guardar isto na bagagem.

Isto tem de seguir comigo - disse-lhe.

— Não cabe na caixa de bagagem por cima dos assentos, e ainda menos debaixo da sua cadeira, minha senhora. - O sorriso tornou-se forçado.

— Podemos discutir isto fora do caminho das pessoas? - disse, dirigindo-me para a cozinha.

Ela veio logo atrás de mim.

— Minha senhora, este voo está superlotado. Não temos simplesmente espaço.

— Olhe - disse, e mostrei-lhe a documentação. Os olhos dela passaram rapidamente pela Declaração de Mercadorias Perigosas, e imobilizaram-se a meio de uma coluna onde estava mencionado que eu transportava comigo "Substâncias infecciosas susceptíveis de afectar seres humanos". Olhou nervosamente em redor e fez-me chegar mais próximo dos lavabos.

— Os regulamentos exigem que só uma pessoa experiente possa mexer em mercadorias perigosas como estas - expliquei. - Por isso a caixa tem de ir ao pé de mim.

— Que material é? - perguntou em voz baixa, com os olhos muito abertos.

— Espécimes de autópsias.

— Santa Mãe de Deus.

Pegou imediatamente na planta dos assentos. Pouco depois, acompanhava-me até uma fileira de cadeiras vazias na primeira classe.

— Ponha a caixa no assento ao lado do seu. Não há o perigo de verter, pois não?

— Descanse, que tomarei boa conta dela - prometi-lhe.

— Devemos ter algumas vagas aqui, a não ser que muitos passageiros queiram mudar de classe. Mas não se preocupe. Eu encaminho-os para os outros lugares. - Movimentou os braços, como se fosse a dirigir um automóvel.

Ninguém se aproximou de mim ou da minha caixa. Bebi café durante um voo muito pacifico até Atlanta, sentindo-me despida sem o pager nem o telemóvel, mas satisfeita por não estar dependente de outras pessoas. No aeroporto de Atlanta desloquei-me por uma série de passeios e escadas móveis, num trajecto que parecia ser de quilómetros, até chegar ao exterior e apanhar um táxi.

Seguimos a 85 North até à estrada de Druid Hilís, passando primeiro por lojas de penhores e escritórios de alugueres de carros, e depois por vastas selvas de sumagreiras e centros comerciais. O Centro para Controlo e Prevenção de Doenças localizava-se perto dos recintos de estacionamento da Universidade de Emory. Em frente da Sociedade Americana do Cancro, o CDC estava instalado num edifício de seis andares, com uma fachada de tijolos castanhos com realces cinzentos. Apresentei-me numa recepção que dispunha de guardas e circuito fechado de televisão.

— Isto destina-se ao Nível Biológico 4, onde o Dr. Bret Martin está à minha espera - expliquei.

— Minha senhora, vai ter de ser acompanhada - disse um dos guardas.

— Óptimo - comentei, enquanto ele pegava no telefone. - Ando sempre a ficar perdida.

Segui-o até à parte traseira do edifício, onde as instalações eram de recente construção e estavam sujeitas a uma intensa vigilância. Havia câmaras por toda a parte, as áreas envidraçadas eram à prova de balas, e os corredores eram passagens aéreas com pisos de grelhas. Passámos por laboratórios de bactérias e de gripe, e pela zona de tijolos vermelhos e cimento dedicada à raiva e à sida.

— Isto é impressionante - comentei, pois não vinha aqui desde há vários anos.

— É mesmo, é. Têm toda a segurança que possa ser necessária. Câmaras, detectores de movimento em todas as entradas e saídas. Todo o lixo é fervido e queimado, e usam daqueles filtros para o ar em que qualquer coisa que lá entre fica morta. Excepto os cientistas. - Riu-se enquanto usava um cartão-chave para abrir uma porta. - Então que más noticias nos traz aí?

— Estou aqui precisamente para saber isso - respondi, e tínhamos agora chegado ao átrio.

O NB-4 não era na verdade nada mais do que uma vasta capota laminar com espessas paredes de cimento e aço. Era um edifício dentro de outro edifício, com as janelas cobertas por estores. Os laboratórios estavam por detrás de espessas paredes de vidro, e os únicos cientistas com vestimentas azuis que estavam a trabalhar neste dia de licença temporária eram aqueles que se importavam realmente com o seu trabalho.

— Este braço-de-ferro do governo - estava a dizer o guarda, abanando a cabeça. - Em que estão eles a pensar? Que estas doenças como a Ebola fiquem à espera até que acertem o orçamento? - Voltou a abanar a cabeça.

Passámos por salas de contenção que estavam às escuras, e por laboratórios sem ninguém lá dentro, e depois por gaiolas para coelhos, sem ocupantes, num corredor, e jaulas para primatas. Um macaco olhou para mim através das grades e do vidro, com olhos tão humanos que me enervaram, e pensei naquilo que Rose me tinha dito. Deadoc tinha transferido pêlos de macaco e de coelho para uma vítima em que, sabia-o, tinha tocado. Era capaz de trabalhar num local destes.

— Atiram-nos com lixo - disse o guarda ao passarmos. - A mesma coisa que os activistas dos direitos dos animais também fazem. Condiz uma coisa com a outra, não é verdade?

A minha ansiedade estava a aumentar.

— Onde é que vamos? - perguntei.

— Onde o doutor me disse para levá-la, minha senhora - respondeu o guarda, e entrávamos agora num novo nível de passadeiras, encaminhando-nos para outra parte do edifício.

Ultrapassámos uma porta e entrámos num corredor onde havia uma série de congeladores Revco de temperaturas ultrabaixas, semelhantes a computadores do tamanho de grandes fotocopiadoras. Estavam fechados à chave, e pareciam deslocados neste corredor, no qual um homem corpulento, vestindo uma bata de laboratório, me aguardava. Tinha cabelos louros muito finos, e estava a transpirar.

— Sou Bret Martin - disse ele, estendendo-me a mão. - Obrigado, - agradeceu ao guarda, indicando-lhe que estava dispensado. Entreguei a Martin a minha caixa de cartão.

— É aqui que guardamos a nossa reserva de varíola - disse, fazendo um gesto na direcção dos congeladores, ao mesmo tempo que colocava a minha caixa em cima de um deles. - Fechada à chave a uma temperatura de setenta graus centígrados negativos. Que posso eu dizer? - Encolheu os ombros. - Estes congeladores estão aqui fora no corredor porque não temos espaço disponível em qualquer outro local na zona de máxima contenção. Parece uma coincidência que me entregue isto a mim. Não que me parece que a sua doença seja a mesma.

— Tudo isto é varíola? - perguntei espantada, enquanto olhava à minha volta.

— Nem tudo, e não por muito mais tempo, contudo, porque pela primeira vez na história foi decidido em consciência proceder-se à eliminação de uma espécie.

— Parece irónico - comentei. - Depois de essa espécie de que estamos a falar ter eliminado milhões de pessoas.

— Portanto, acha que devíamos simplesmente pegar nesta doença de origem e metê-la toda na autoclave.

A expressão dele dizia aquilo que eu estava acostumada a ouvir, que a vida era mais complicada do que eu fazia crer, e que só as pessoas como ele sabiam distinguir as tonalidades mais subtis.

— Não estou a dizer que devíamos destruir qualquer coisa - respondi. - Nada disso. Na realidade, até talvez não devêssemos. Por causa disto. - Olhei para a caixa que tinha acabado de lhe entregar. O facto de metermos a varíola na autoclave não significa certamente que a faremos desaparecer. Acho que é como qualquer outra arma.

— É essa exactamente a minha opinião. Muito gostaria eu de saber onde é que os russos guardam hoje em dia a sua reserva de varíola, e se terão vendido alguma ao Médio Oriente ou à Coréia do Norte.

— Vai fazer com isto a análise PCR? - perguntei.

— Vou.

— Imediatamente?

— Logo que possa.

— Por favor - pedi. - Trata-se de uma emergência.

— É por isso que estou aqui agora - disse ele. - O governo acha que sou não-essencial. Devia estar em casa.

— Tenho fotografias que a USAMRIID fez o favor de revelar enquanto eu estava na Gaiola - disse, com um traço de ironia.

— Gostava de vê-las.

Voltámos no elevador para cima, saindo no quarto piso. Guiou-me até uma sala de conferências onde o pessoal costumava reunir-se para conceber estratégias destinadas a fazer face a terríveis flagelos que nem sempre podiam identificar. Normalmente juntavam-se neste local bacteriologistas, epidemiologistas, especialistas em quarentenas, comunicações, patogenias especiais e análise PCR (reacção em cadeia da polimerase). Mas agora a sala estava em silêncio, mais ninguém estava aqui além de nós dois.

— Neste momento - disse Martin, - só pode contar comigo.

Retirei um espesso sobrescrito da minha mala, e ele começou a examinar as fotografias. Por um momento ficou a olhar com uma expressão de espanto para as fotos coloridas do torso e para as de Lila Pruitt.

— Santo Deus - exclamou. - Acho que devemos procurar imediatamente rotas de emigração. Toda a gente que pudesse ter tido contacto com isto. E tem de ser depressa.

— Poderemos fazer isso na ilha de Tangier - sugeri. - Talvez.

— Não restam dúvidas de que não se trata de varicela nem de sarampo. Nem pensar - comentou Martin. - Sem dúvida relacionada com a varíola.

Examinou depois as fotografias das mãos e dos pés cortados, com os olhos esbugalhados.

— Ena. - Ficou a olhar sem pestanejar, com a luz a reflectir-se nos óculos. - Que diabo vem a ser isto?

— Ele dá a si próprio o nome de deadoc - expliquei. - Enviou-me ficheiros gráficos através da AOL. Anonimamente, é claro. O FBI está a tentar localizá-lo.

— E esta vitima aqui, foi desmembrada por ele?

Confirmei com um gesto.

— Também apresenta manifestações similares às da vítima em Tangier. - Martin estava a observar as vesículas no torso.

— Assim parece.

— Sabe, desde há anos - disse ele - que temos tido casos de vírus variólico em macacos na áfrica Ocidental, do Zaire à Serra Leoa. Até agora não apareceu o vírus da varíola. O meu receio, contudo, é que num destes dias algum vírus variólico no reino animal descubra um modo de infectar pessoas.

Lembrei-me novamente da minha conversa ao telefone com Rose, sobre crimes e pêlos de animais.

— Tudo o que é preciso para que isso aconteça é que o microorganismo se estabeleça no ar, digamos, e encontre um hospedeiro apropriado.

Voltou a examinar a foto de Lila Pruitt, de corpo desfigurado e atormentado na sua chocante cama.

— Ela esteve obviamente exposta a uma quantidade do vírus suficiente para lhe causar uma doença devastadora - comentou, tão absorto que parecia estar a falar sozinho.

— Dr. Martin - perguntei. - Os macacos apanham o vírus, ou são apenas portadores?

— Apanham-no e transmitem-no onde quer que haja contacto com outros animais, como por exemplo nas florestas húmidas de áfrica. Existem neste planeta nove vírus variólicos conhecidos, e em apenas dois deles se dá a transmissão a seres humanos. O vírus da varíola, que, graças a Deus, já não encontramos, é o moiluscum contagiosum.

— Resíduos que estavam colados ao torso foram identificados como sendo pêlos de macaco.

Virou-se para mim e franziu as sobrancelhas.

— Que disse?

— E pêlo de coelho, também. Já pensei se haverá alguém lá por fora a realizar as suas próprias experiências laboratoriais.

Martin levantou-se da mesa.

— Vamos começar já a trabalhar nisto. Onde poderei contactá-la?

— Em Richmond. - Entreguei-lhe o meu cartão e saímos da sala de conferências. - Haverá alguém que possa mandar vir-me um táxi?

— Certamente. Peça a um dos guardas na recepção. Não temos cá nenhum funcionário administrativo.

Transportando a caixa, carregou com o cotovelo no botão do elevador.

— Isto é um pesadelo. Temos salmonela em Orlando, proveniente de sumo de laranja não pasteurizado, outro surto potencial de E.coli zero-um-cinco-sete-H-sete a bordo de um paquete de cruzeiros, possivelmente causado por carne picada mal cozinhada. Botulismo em Rhode Island, e uma doença respiratória num lar de terceira idade. E o Congresso não está disposto a conceder-nos verbas.

— A quem o diz - comentei.

Íamos parando nos vários pisos, esperando que outras pessoas entrassem. Martin continuava a falar.

— Imagine isto - prosseguiu. - Uma estância de turismo em que suspeitamos a presença de shigela, provocada pela descarga de água da chuva para dentro de poços particulares. E não conseguimos pôr a FPA, a Agência de Protecção do Ambiente, a tratar do assunto.

— Chama-se a isso missão impossível - disse alguém, sardonicamente, enquanto as portas se abriam de novo.

— Se é que ela ainda existe - disse Martin, com um toque de sarcasmo. - Recebemos catorze mil telefonemas por ano, e só dispomos de duas telefonistas. Mais precisamente, neste momento não temos nenhuma. Qualquer pessoa que esteja por perto é que atende o telefone. Incluindo eu mesmo.

— Por favor; não deixe que este caso fique parado - pedi-lhe, ao chegarmos ao átrio de entrada.

— Não se preocupe. - Parecia mesmo interessado no caso. - Conheço três tipos que vou mandar regressar de casa imediatamente.

Esperei no átrio durante meia hora, e usei um telefone, e por fim o meu táxi chegou. Segui em silêncio, observando as praças de granito polido e mármore, e os complexos desportivos que me fizeram pensar nos Jogos Olímpicos, e edifícios de prata e vidro. Atlanta era uma cidade de grandes aspirações, e as suas monumentais e sumptuosas fontes pareciam um símbolo de generosidade e esperança. Sentia-me enregelada e com a cabeça oca, e invulgarmente cansada para quem acabara de passar a maior parte de uma semana na cama. Quando cheguei ao meu corredor para o avião da Delta, as costas tinham-me começado a doer. Não conseguia aquecer ou pensar com clareza, e sabia que estava com febre.

 

Estava doente ao chegar a Richmond. Quando Marino veio ter comigo à porta de desembarque, a expressão no seu rosto transformou-se num terror abjecto.

— Chiça, doutora - disse ele. - Está com um aspecto diabólico.

— É exactamente como me sinto.

— Tem bagagem?

— Não. Tem notícias?

— Tenho - disse ele. - Uma pequena informação que irá apreciar muito. Ring deu voz de prisão a Keith Pleasants na noite passada.

— Por que razão? - perguntei, tossindo ao mesmo tempo.

— Por tentativa de fuga. Supostamente, Ring ia a segui-lo à saída do aterro depois do trabalho, e tentou mandá-lo parar por excesso de velocidade. Supostamente, Pleasants não parou. Por isso está agora na prisão, com fiança estabelecida em cinco mil, se dá para acreditar. Não vai a parte nenhuma nestes tempos mais próximos.

— Assédio. - Assoei-me. - Ring anda a persegui-lo. A perseguir Lucy. A perseguir-me a mim.

— A sério? Talvez tivesse feito melhor ficando em Maryland, na cama - disse ele, ao subirmos na escada rolante. - Sem ofensa, mas não vai pegar-me isso, pois não?

Marino tinha medo de tudo o que não era capaz de ver; fosse radiação ou fosse algum vírus.

— Não sei o que tenho - disse-lhe. - Talvez alguma gripe.

— Da última vez que apanhei isso fiquei na cama por duas semanas. - Encurtou os seus passos, para não ter de ir a par comigo. - Além do mais, a doutora tem estado em contacto com outras coisas.

— Nesse caso, não se chegue, nem me toque, nem me beije - disse-lhe, resoluta.

— Eh, não se preocupe.

Isto prosseguiu até que saímos para a tarde fria.

— Escute. Vou apanhar um táxi para casa - disse, e estava tão zangada com ele que quase me punha a chorar.

— Não quero que faça uma coisa dessas. - Marino parecia assustado e nervoso.

Agitei um braço no ar, engolindo fundo e tapando a cara quando um táxi Blue Bird se aproximou.

— Você não precisa de ficar com gripe. Rose também não precisa. Ninguém precisa - disse-lhe, furiosa. - Sabe, estou quase sem dinheiro. Isto é horrível. Olhe para a minha roupa. Pensa que as autoclaves passam os fatos a ferro e deixam um cheiro agradável? Já para não falar nas meias. Não tenho casaco, nem luvas. Aqui estou eu, e qual é a temperatura? - Abri com força a porta do táxi. - Uns zero graus?

Marino ficou espantado a olhar para mim. Entregou-me uma nota de vinte dólares, tendo o cuidado de evitar que os dedos tocassem nos meus.

— Precisa de qualquer coisa da loja? - gritou, quando o carro começou a rodar.

Tinha a garganta e os olhos inchados de lágrimas. Tirando da mala alguns lenços de papel, assoei-me e comecei a chorar.

— Não queria chateá-la, senhora - disse o condutor, um homem de certa idade. - Mas para onde é que vamos?

— Windsor Farms. Depois indico-lhe quando lá chegarmos. - Sentia-me sufocada ao falar.

— Discussões. - Abanou a cabeça. - Não gosto nada de assistir. Lembro-me de uma vez em que eu e a minha senhora nos pusemos a discutir num desses comes-e-bebes ao ar livre em que se pode comer tudo o que quisermos sem pagar mais. Ela leva-me o carro, e eu tenho de voltar à boleia. Mais de oito quilómetros, através da zona mais bera da cidade.

Estava a acenar com a cabeça em confirmação do que contara, enquanto me espreitava pelo retrovisor. Percebi que pensara que Marino e eu tínhamos tido um arrufo doméstico.

— Com que então, está casada com um chui? - perguntou. Tinha-o visto chegar. - Não há um único carro não marcado da policia que cá o rapaz não consiga identificar. - Bateu no peito com a mão.

A minha cabeça parecia prestes a explodir, e a cara ardia-me. Recostei-me no assento e fechei os olhos, enquanto ele continuava a parlapatear sobre a vida e sobre a sua esperança de que o Inverno deste ano não trouxesse muita neve. Acabei por dormitar, um sono febril, e quando acordei não sabia onde estava.

— Senhora. Senhora. Já cá estamos - estava o condutor a dizer-me em voz alta, para me despertar. - Para onde quer que siga?

Tinha virado para a Canterbury e estava parado num stop.

— Ali adiante, vire à direita para a Dover - respondi.

Encaminhei-o até ao meu bairro, com a expressão no seu rosto cada vez mais confusa ao passar pelas mansões nos estilos georgiano e Tudor por detrás dos muros do sector mais luxuoso da cidade. Quando parou em frente da minha porta, ficou a olhar para a fachada de alvenaria, para o bosque em redor da casa, e observou-me enquanto eu saía do táxi.

— Não se preocupe, senhora - disse ele, quando lhe passei a nota de vinte dólares para a mão, dizendo-lhe para guardar o troco. - Tenho visto de tudo, e nunca digo nada. - Fez sobre os lábios um gesto de quem puxava um fecho de correr, e piscou-me um olho.

Para ele, eu era a esposa de um marido de teres e haveres, vivendo um agitado caso amoroso com um agente da polícia.

— Uma excelente política - comentei, a meio de um ataque de tosse.

O alarme contra intrusos acolheu-me com o seu pipilar irritante, e nunca na minha vida me tinha sentido tão aliviada por ter chegado a casa. Não perdi tempo a libertar-me das minhas roupas escaldadas, e fui directa tomar um duche quente, respirando o vapor para tentar limpar a chiadeira dos pulmões. Quando estava a embrulhar-me num espesso roupão de felpa, o telefone retiniu. Eram exactamente quatro horas da tarde.

— Dra. Scarpetta? - Era Fielding.

— Acabo de chegar a casa - disse eu.

— Não está com boa voz.

— Eu sei.

— Bem, as minhas noticias não vão ajudá-la - disse ele. - Talvez tenham sido encontrados mais dois casos em Tangier.

— Oh, não - foi a minha reacção.

— Mãe e filha. Febre de quarenta vírgula seis, e erupção cutânea. A CDC enviou uma equipa com leitos isoladores.

— Como está Wingo? - perguntei.

Calou-se por um instante, como se estivesse intrigado.

— Está bem. Porquê?

— Ele ajudou-me a trabalhar com o torso - recordei-lhe.

— Ah, pois. Bem, está como de costume.

Aliviada, sentei-me e fechei os olhos.

— Que se passa com as amostras que levou para Atlanta? - perguntou Fielding.

— Estão a fazer análises, espero, com as poucas pessoas que podem convocar agora.

— Portanto ainda não sabemos o que será.

— Jack, tudo aponta para a varíola - disse-lhe. - É assim que a coisa se apresenta por agora.

— Nunca a vi. E a doutora?

— Nunca, até agora. Talvez a lepra seja pior. Já é terrível morrer-se por doença, mas a desfiguração é uma crueldade. - Tossi de novo, e sentia muita sede. - Ver-nos-emos amanhã, e decidiremos então o que vamos fazer.

— Não me parece que esteja em condições de ir a qualquer parte amanhã.

— Tem toda a razão. Mas não tenho outra alternativa. - Desliguei e tentei apanhar Bret Martin no CDC, mas o telefonema foi atendido pela máquina, e ele não me retornou a chamada. Deixei também uma mensagem para Fujitsubo, mas também ele não me ligou, e pensei que estivesse em casa, como a maioria dos seus colegas. A guerra do orçamento não chegava ao fim.

— Raios! - praguejei ao pôr a chaleira ao lume, e enquanto procurava o pacote de chá nos armários. - Raios, raios, raios.

Ainda não eram cinco horas quando telefonei a Wesley. Em Quantico, ao menos, as pessoas ainda estavam a trabalhar.

— Graças a Deus que há alguém nalgum sítio a atender os telefones - desabafei com a secretária dele.

— É porque ainda não decidiram se sou essencial ou não - respondeu-me.

— Ele está? - perguntei.

Wesley atendeu o telefone, e parecia tão enérgico e bem disposto que me implicou logo com os nervos.

— Não tens o direito de pareceres tão bem disposto - queixei-me.

— Estás com gripe.

— Sei lá o que tenho.

— É só gripe, não é? - Ficou preocupado, e a sua disposição mudou logo para pior.

— Não sei. Só podemos presumir.

— Não quero parecer alarmista...

— Então não pareças. - Cortei-lhe a fala.

— Kay - disse, num tom firme. - Tens de fazer frente a isto. E se não for?

Não disse nada, porque não era capaz de suportar semelhantes pensamentos.

— Por favor - insistiu Wesley. - Não ignores isto. Não finjas que não tem qualquer importância, como costumas fazer com outras coisas na tua vida.

— Agora estás a irritar-me - respondi, zangada. - Chego a este maldito aeroporto e Marino não me quer no carro dele, por isso meto-me num táxi e o condutor pensa que ele e eu somos amantes e que o meu abastado marido não desconfia, e durante tudo isto estou cheia de febre e dói-me o corpo todo e só quero chegar a casa.

— O motorista do táxi pensa que tens um amante?

— Não me digas mais nada.

— Como sabes que estás com gripe? Que não será outra coisa?

— Não tenho erupções cutâneas. É isso que queres ouvir?

Houve um longo silêncio. Depois ele disse:

— E se tiveres?

— Então é possível que morra, Benton. - Tossi de novo. - Talvez não voltes a tocar-me. E não queria que voltasses a ver-me, se aquilo seguir o seu curso. É mais fácil ralarmo-nos com perseguidores, assassínios em série, pessoas que podemos rebentar com um tiro. Mas os homicidas invisíveis são os que sempre mais receei. Atacam-nos num dia de sol e num local cheio de gente. Metem-se na nossa limonada. Fui vacinada contra a hepatite B. Mas essa é apenas uma assassina numa vasta população. E quanto à tuberculose e à HIV, e Hanta e Ebola? E quanto a isto? Meu Deus. - Respirei fundo. - Começou com um torso e eu não imaginava.

— Ouvi falar de dois novos casos - disse ele, e a sua voz tornara-se calma e amável. - Posso chegar aí dentro de duas horas. Queres que vá ver-te?

— Neste momento não quero que ninguém me veja.

— Não interessa. Vou já para aí.

— Benton - disse. - Não faças isso.

Mas ele já se tinha decidido e, quando parou em frente da minha casa no seu BMW roncante, era quase meia-noite. Fui ter com ele à porta, e não nos tocámos.

— Vamos sentar-nos à lareira - disse ele.

Foi o que fizemos, e ele teve a amabilidade de ir preparar-me uma chávena de chá descafeinado. Sentei-me no sofá, ele numa poltrona, e as chamas alimentadas por gás envolveram o tronco artificial. Baixei a intensidade das luzes.

— Não duvido da tua teoria - disse, fazendo durar o seu conhaque.

— Talvez amanhã saibamos mais alguma coisa. - Estava a suar, e senti um arrepio, observando as chamas.

— Neste momento, estou-me marimbando para tudo aquilo.

Olhou-me desesperado.

— Não podes marimbar-te para tudo aquilo. - Limpei a testa a uma manga.

— Não.

Calei-me, e ele ficou a olhar para mim.

— Só me interesso contigo - disse ele.

Continuei sem lhe responder.

— Kay. - Agarrou-se-me a um braço.

— Não me toques, Benton. - Fechei os olhos. - Não me toques. Não quero que adoeças também.

— Pois, isso é que te convém. Ficares doente. E eu não poder tocar-te. E tu no teu papel de nobre doutora, mais preocupada com o meu bem-estar do que com o teu.

Fiquei calada, decidida a não chorar.

— Muito conveniente. Queres agora ficar doente para que ninguém se aproxime de ti. Marino nem te dá uma boleia. E eu não posso pôr as mãos em cima de ti. E Lucy não pode ver-te, e Janet tem de falar contigo através de um vidro.

— Onde queres chegar?

— Doença funcional.

— Oh, deves ter estudado isso na escola. Talvez ao tirares o teu mestrado em psicologia ou qualquer coisa.

— Não gozes comigo.

— Nunca o fiz.

Podia adivinhar que estava a ferir os seus sentimentos quando virei a cara para o fogo, com os olhos fechados.

— Kay. Não te atrevas a morrer.

Não disse nada.

— Não te atrevas! - A voz tremia-lhe. - Não te atrevas!

— Não te vais safar com essa facilidade - disse eu, levantando-me do sofá. - Vamos deitar-nos.

Ele dormiu no quarto em que Lucy costumava ficar e eu estive quase toda a noite de pé, tossindo e a tentar arranjar uma posição confortável, o que era simplesmente impossível. Na manhã seguinte, ele estava de pé às seis e meia, e o café estava a ferver quando cheguei à cozinha. A luz era filtrada pelas árvores em frente das janelas, e podia ver pela encolhida curvatura dos rododendros que o ar estava muito frio.

— Quem cozinha sou eu - anunciou Wesley. - Que vai ser?

— Não me parece que seja capaz. - Sentia-me fraca, e sempre que tossia parecia-me que os pulmões se despedaçavam.

— Claramente, estás pior. - O receio reflectia-se-lhe nos olhos. - Devias ir ao médico.

— Eu é que sou a médica, e é cedo para ir a outro médico.

Tomei aspirina, descongestionante e um grama de vitamina C. Comi um bolo seco, e começava a sentir-me quase humana quando Rose telefonou e estragou tudo.

— Dra. Scarpetta? A mãe de Tangier morreu ao princípio desta manhã.

— Meu Deus, não! - Estava sentada à mesa da cozinha, passando os dedos pelos cabelos. - E a filha?

— Continua em estado grave. Ou pelo menos continuava há algumas horas.

— E o corpo?

Wesley estava atrás de mim, massajando-me os ombros e o pescoço.

— Ninguém lhe mexeu ainda. Ninguém sabe o que há-de fazer. E o escritório do médico legista de Baltimore tem estado a tentar contactá-la. O CDC também.

— Quem no CDC? - perguntei.

— Um Dr. Martin.

— Preciso de falar com ele primeiro, Rose. Entretanto, fale para Baltimore e diga-lhes que em nenhuma circunstância deverão remover o cadáver para a morgue deles sem que primeiro falem comigo. Qual é o número do Dr. Martin?

Ela deu-mo e liguei imediatamente. Ele respondeu ao primeiro toque, e parecia muito excitado.

— Fizemos PCR nas amostras que nos trouxe. Três tecidos primários, e dois deles condizem com a varíola, mas um deles não.

— Então será ou não será varíola?

— Pesquisámos a sua sequência genómica, e não condiz com qualquer vírus variólico conhecido em qualquer laboratório de referência em todo o mundo. Dra. Scarpetta, creio que se trata de um vírus em mutação.

— Quer isso dizer que a vacinação contra a varíola não vai ter qualquer efeito - disse-lhe, sentindo que o coração ia saltar-me para fora do peito.

— A única coisa que podemos fazer é proceder a ensaios no laboratório de animais. Vai passar-se pelo menos uma semana antes de sabermos, para então podermos começar a pensar numa vacina nova. Para todos os efeitos, vamos chamar a isto varíola, mas na realidade não sabemos de que raio se tratará. Posso também lembrar-lhe que desde 1986 estamos a trabalhar numa vacina para a sida, e não estamos agora mais próximos do que estávamos então.

— A ilha de Tangier precisa de ficar imediatamente de quarentena. Temos de conter isto - exclamei, alarmada e quase em pânico.

— Pode crer, sabemos isso muito bem. Estamos neste momento a juntar uma equipa e vamos mobilizar a Guarda Costeira.

Desliguei e sentia-me desesperada ao dizer a Wesley:

— Tenho de ir. Temos um surto de qualquer coisa de que ninguém nunca ouviu falar. Já matou duas pessoas. Talvez três. Talvez quatro.

Ele seguia-me ao longo do corredor enquanto eu falava.

— É varíola, mas não é varíola. Temos de descobrir como está a ser transmitida. Lila Pruitt conheceria a mãe que agora morreu? Teriam tido algum contacto, ou talvez a filha? Viveriam próximas uma da outra? E quanto ao abastecimento de água? Um reservatório de água. Azul. Lembro-me de o ter visto.

Comecei a vestir-me. Wesley ficou parado à porta, com o rosto quase cinzento e como se fosse de pedra.

— Vais voltar lá - disse ele.

— Preciso de passar primeiro pelo serviço. - Olhei para ele.

— Eu guio - disse Wesley.

 

Wesley deixou-me no serviço e disse que ia ao escritório da Agência em Richmond por algum tempo e depois falaria comigo. Os meus saltos faziam barulho no pavimento enquanto caminhava ao longo do corredor, dando os bons dias aos membros da minha equipa. Rose estava ao telefone quando entrei, e o olhar que deitei à minha secretária através da porta do gabinete dela provocou-me arrepios. Centenas de relatórios e de certidões de óbito aguardavam a minha assinatura, e o correio e os recados telefónicos transbordavam do cesto de entrada.

— O que vai aqui? - comentei, quando Rose saiu do telefone. - Parece que estive fora durante um ano.

— Dá-me a impressão de que esteve mesmo.

Estava a esfregar loção nas mãos, e reparei no pequeno recipiente metálico de spray facial Vita na beira da minha secretária, ao lado do tubo de cartão dentro do qual tinha sido expedido pelo correio. Havia também um recipiente igual na secretária de Rose, ao lado do seu frasco de Vaseline Cuidado Intensivo. Olhei para um e para o outro, do meu spray para o dela, com o subconsciente a processar o que estava a ver antes que o raciocínio o fizesse. A realidade parecia transformar-se, e agarrei-me à ombreira da porta. Rosa pôs-se subitamente em pé, empurrando para trás a sua cadeira de rodinhas, e correu em volta da secretária direita a mim.

— Dra. Scarpetta!

— Onde arranjou isto? - perguntei-lhe, olhando para o spray.

— É só uma amostra. - Parecia desnorteada. - Veio uma série delas pelo correio.

— Já a usou?

Agora estava realmente preocupada, enquanto olhava para mim.

— Bem, só chegou agora. Ainda não o experimentei.

— Não toque nisso! - disse com severidade. - Quem mais tem disso?

— Deus meu, palavra que não sei. O que é? O que se passa? - disse Rose, levantando o tom da voz.

Depois de ir buscar um par de luvas ao meu gabinete, peguei no spray facial de cima da sua secretária e meti-o num saco triplo.

— Todos à sala de reuniões, imediatamente!

Apressei-me ao longo do corredor até à sala da frente, e fiz a mesma convocação. Dentro de poucos minutos, toda a minha equipa, incluindo médicos ainda de batas cirúrgicas, estava reunida. Algumas pessoas pareciam sem fôlego, e todos olhavam para mim, enervados e perplexos.

Levantei no ar o saco triplo transparente contendo a amostra do spray Vita.

— Quem tem um destes sprays? - perguntei, olhando em volta, e quatro pessoas levantaram a mão.

— Já alguém o usou? - perguntei. - Preciso de saber se alguém já o terá usado.

Cleta, uma funcionária administrativa, parecia assustada.

— Porquê? Que aconteceu?

— Aplicou-o na cara?

— Nas minhas plantas - informou.

— As plantas têm de ser metidas em sacos e queimadas - disse. - Onde está Wingo?

— No MCV.

— Não tenho a certeza absoluta - disse a toda a gente - e espero estar errada. Mas talvez estejamos a lidar com adulteração de produtos. Não entrem em pânico, mas em nenhuma circunstância deverão tocar nestes sprays. Alguém sabe como é que chegaram?

Quem falou foi Cleta.

— Quando cheguei esta manhã ainda não havia ninguém da sala da frente. Havia relatórios policiais metidos na ranhura do correio, como de costume. E estas amostras também lá tinham sido metidas. Estavam acondicionadas em pequenos tubos de cartão dos que se usam nas expedições pelo correio. Eram onze ao todo. Eu sei porque os contei para saber se chegariam para todos.

— E o correio não os trouxe. Tinham sido simplesmente metidos pela ranhura na porta da frente.

— Não sei quem os terá trazido. Mas pareciam ter vindo pelo correio.

— Quaisquer tubos que ainda tenham, por favor tragam-mos - disse eu.

Fui informada de que ninguém tinha usado as amostras, e todas foram reunidas e trazidas ao meu gabinete. Pondo luvas de algodão e óculos de protecção, comecei a examinar o tubo que me vinha destinado. A franquia correspondia a uma remessa de quantidade, e era obviamente uma amostra do fabricante, e achei muito estranho que um envio deste género fosse endereçado a um determinado indivíduo. Olhei dentro do tubo, e encontrei um cupão para o spray. Segurando-o contra a luz, reparei que as suas margens estavam quase imperceptivelmente irregulares, como se tivessem sido recortadas à mão, e não numa máquina.

— Rose? - chamei.

Ela entrou no meu gabinete.

— O tubo que recebeu - disse. - A quem vinha endereçado?

— Ao residente, parece-me. - O rosto dela mostrava tensão.

— Então o único com um nome é o meu.

— Assim parece. Isto é horrível.

— É mesmo. - Peguei no tubo. - Olhe para isto. Letras todas do mesmo tamanho, o carimbo dos correios na mesma etiqueta que o endereço. Nunca vi uma coisa assim.

— Como se tivesse saído da impressora de um computador - comentou Rose, enquanto a sua estupefacção crescia.

— Vou ao laboratório de ADN, do outro lado da rua. - Levantei-me. - Telefone já ao USAMRIID e diga ao Coronel Fujitsubo que precisamos de organizar uma conferência telefónica entre ele, nós, o CDC e Quantico, com urgência.

— Onde quer fazê-la? - perguntou, enquanto eu ia a sair.

— Aqui não. Veja o que Benton diz.

Na rua, corri pelo passeio, passei o meu parque de estacionamento, e atravessei a Fourteenth Street. Entrei no Edifício Seaboard para onde se tinham mudado, alguns anos antes, diversos laboratórios de medicina forense, entre eles o do ADN. Na recepção chamei a Dra. Douglas Wheat, a quem tinham dado um nome de homem apesar de ser mulher.

— Preciso de um sistema de ar fechado e um capuz - expliquei-lhe.

— Venha ter comigo.

Um longo corredor em rampa, sempre cuidadosamente polido, conduzia a uma série de laboratórios com as paredes em vidro. Lá dentro, cientistas ocupavam-se com pipetas e geis e sondas radioactivas forçando as seqüências de código genético a revelar as suas identidades. Wheat, que tinha de lutar com papelada quase tanto como eu, estava à sua secretária, teclando qualquer coisa no computador. Era uma mulher atraente e forte, com uns quarenta anos e sempre amável.

— Que problemas nos traz agora? - Sorriu, e depois olhou para o meu saco. - Até tenho medo de perguntar.

— Possível adulteração de produtos - disse. - Preciso de aplicar um pouco numa lâmina, mas é essencial que não passe para o ar ou para mim ou seja quem for.

— O que será? - Estava agora muito séria, e pôs-se em pé.

— Possivelmente um vírus.

— Como o de Tangier?

— É esse o meu receio.

— Não acha que seria mais apropriado mandar isto ao CDC, e deixá-los...

— Sim, Douglas, seria mais apropriado - expliquei-lhe pacientemente, tossindo de novo. - Mas não temos tempo. Tenho de saber já. Não fazemos uma ideia de quantas destas amostras estarão já nas mãos dos consumidores.

O seu laboratório de ADN tinha diversos capuzes de sistema de ar fechado, cercados por resguardos biológicos de vidro, porque a prova testemunhal aqui ensaiada era o sangue. Conduziu-me a um deles, e colocámos máscaras e luvas, e deu-me uma bata de laboratório. Ligou uma turbina que aspirava o ar para dentro do capuz, através de um filtro HEPA.

— Preparada? - perguntei, retirando o spray do saco. - Isto vai ser rápido.

Segurei numa lâmina limpa e na lata de spray dentro do capuz, e vaporizei um pouco do conteúdo na lâmina.

— É melhor metermos o spray numa solução de dez por cento de lixívia - disse. - Depois pômo-lo num saco triplo, e enviamo-lo mais as outras dez amostras para Atlanta.

— Vou buscar - disse Douglas, e saiu.

A lâmina secou quase instantaneamente, e apliquei-lhe uma gota de corante Nicolaou e tapei com uma cobertura apropriada. Estava já a vê-la ao microscópio quando Wheat regressou com um recipiente com solução de lixívia. Mergulhou nele repetidamente o spray enquanto os meus receios se iam acumulando, transformando-se numa terrível fulminação enquanto sentia a pulsação latejando-me no pescoço. Estava a ver no microscópio os corpos Guarnieri que tanto receava.

Quando levantei os olhos para Wheat, ela soube logo pela expressão na minha cara.

— Nada bom - disse ela.

— Nada bom. - Desliguei o microscópio e atirei a máscara e as luvas para o lixo bioperigoso.

 

Os sprays Vita do meu escritório foram transportados de avião para Atlanta, e um aviso preliminar foi difundido por todo o país para qualquer pessoa que tivesse recebido uma amostra similar. O fabricante mandou recolher todas as amostras em trânsito, e as linhas aéreas internacionais removeram os sprays dos kits de viagem oferecidos aos passageiros de primeira classe. A potencial difusão desta doença, no caso de deadoc ter adulterado centenas, milhares de sprays faciais, era assustadora. Poderíamos, uma vez mais, ver-nos perante uma epidemia a nível mundial.

A reunião realizou-se à uma hora da tarde na agência local do FBI, localizada em Staples Mul Road. As bandeiras estaduais e federais, nos seus altos postes, lutavam contra o vento forte que não cessava de arrancar folhas castanhas das árvores e que parecia tornar a tarde mais fria do que realmente estava. O edifício revestido de tijolo era de construção recente, e tinha uma sala de conferências segura, dispondo de equipamento audiovisual, permitindo-nos ver pessoas instaladas noutros locais afastados ao mesmo tempo que falávamos com elas. Uma jovem agente sentava-se à cabeceira da mesa, em frente de uma consola. Wesley e eu puxámos cadeiras e ajustámos os microfones. Por cima de nós, nas paredes, estavam os monitores de vídeo.

— De quem mais estamos à espera? - perguntou Wesley quando o agente especial encarregado, ou S.A.C., entrou na sala com uma braçada de papéis.

— Miles - respondeu o S.A.C., referindo-se ao Comissário da Saúde, meu superior imediato. - E a Guarda Costeira. - Consultou os seus papéis. - O chefe regional, localizado em Crisfield, Maryland. Um helicóptero vem trazê-lo. A viagem não deve durar mais de trinta minutos num daqueles passarões.

Mal acabara de dizer isto quando escutámos o bater distante das pás. Minutos depois, o Jayhawk retumbava por cima de nós e pousava no recinto situado na retaguarda do edifício. Não me recordava de um helicóptero de salvamento da Guarda Costeira ter alguma vez sobrevoado a nossa cidade, e a chegada deste devia ter constituído um espectáculo memorável para quem andava na rua. O Chefe Martinez entrou na sala tirando o casaco. Reparei no seu camisolão azul escuro de Comando e nas calças de uniforme, e nos mapas enrolados em tubos, e a situação tornou-se ainda mais sinistra.

A agente na consola estava a regular os comandos quando o Comissário Miles entrou na sala e veio sentar-se na cadeira ao lado da minha. Era um homem de meia idade, com cabelo branco abundante que era mais difícil de domar do que a maioria das pessoas que ele dirigia. Hoje sobressaíam tufos em todas as direcções, e o seu rosto apresentava-se austero ao pôr os óculos de armação grossa e preta.

— Parece-me abatida - disse-me ele, ao mesmo tempo que tomava alguns apontamentos.

— Estou um bocado engripada - justifiquei-me.

— Se soubesse não me tinha sentado ao seu lado. - E não estava a brincar.

— Já ultrapassei o período de contágio - disse, mas ele já não estava a ouvir.

Os monitores estavam a acender-se à volta da sala, e reconheci a cara do Coronel Fujitsubo num deles. Depois apareceu Bret Martin, olhando directamente para nós.

— Câmara ligada. Microfones ligados. Alguém que queira contar em voz alta - disse a agente na consola

— Cinco-quatro-três-dois-um, - disse o S.A.C. para o seu microfone.

— Está bem o nível?

— Aqui está óptimo - disse Fujitsubo em Frederick, Maryland.

— Óptimo - disse Martin em Atlanta.

— Estamos prontos quando quiserem. - A agente na consola olhou à volta da mesa.

— Só para me certificar de que estamos todos ao corrente - comecei. - Temos um surto do que aparenta ser um vírus variólico que até agora parece estar restrito à ilha de Tangier, vinte e nove quilómetros ao largo da costa de Virgínia. Duas mortes participadas até agora, e uma outra pessoa doente. É também possível que uma recente vítima de homicídio tenha sido infectada com este vírus. Suspeita-se de que o modo de transmissão seja a contaminação deliberada de amostras de spray facial Vita.

— Isso não foi ainda determinado. - Foi Miles quem falou.

— As amostras devem estar a chegar aqui a qualquer momento - disse Martin, em Atlanta. - Começaremos os ensaios imediatamente, e esperamos poder dar-vos os resultados durante o dia de amanhã. Entretanto, as amostras estão a ser retiradas da circulação até sabermos exactamente o que estamos a enfrentar.

— Podem fazer um PCR para se verificar se se trata do mesmo vírus- disse Miles para os monitores de vídeo.

— É isso que faremos - confirmou Martin.

Miles olhou em redor da sala.

— Que estaremos então aqui a dizer? Que anda algum lunático lá por fora, algum homicida género Tylenol, que decidiu usar uma doença? Como sabemos que esses frasquinhos de spray não se encontram já aí por toda a parte?

— Parece-me que o homicida não está com pressas - Wesley começou a raciocinar em voz alta, fazendo o que melhor sabia fazer. - Começou com uma vitima. Quando esse caso resultou, passou para uma minúscula ilha. Agora essa também está a resultar, e ele resolve-se a atacar os escritórios de um departamento sanitário na baixa. - Olhou para mim. - Irá passar ao estágio seguinte se não o fizermos parar ou se não conseguirmos desenvolver uma vacina. Outra razão que me leva a suspeitar de que se trata ainda de um caso localizado é que, segundo parece, as amostras de spray facial são distribuídas manualmente, com falsas etiquetas de franquia nos tubos para dar a impressão de que vieram pelo correio.

— Pensa portanto, sem sombra de dúvida, que se trata de adulteração de produto - disse o Coronel Fujitsubo, olhando para ele.

— Prefiro chamar-lhe terrorismo.

— Com que objectivo?

— Ainda não sabemos - confessou Wesley.

— Mas isto é muito pior do que qualquer homicida de Tyleno ou do que o Unabomber - disse eu. - A destruição causada por eles é limitada a quem quer que tome as cápsulas ou abra as embalagens armadilhadas. No caso do vírus, irá propagar-se muito para além da vítima primária.

— Dr. Martin, que poderá dizer-nos deste vírus em particular? - perguntou Miles.

— Temos quatro métodos tradicionais para o ensaio da varíola. - Observou-nos rigidamente do seu monitor. - Microscopia electrónica, com a qual observámos uma visualização directa da varíola.

— Varíola? - interrompeu Miles, quase a gritar.

— Espere um pouco - pediu Martin. - Deixe-me acabar. - Também obtivemos uma verificação de identidade antigénica mediante gel de ágar-ágar. Depois, as culturas de membranas corio-alantóicas de embriões de pinto ou outras culturas de tecidos vão demorar dois ou três dias, e por isso não dispomos ainda de qualquer resultado. Mas temos o PCR, que confirmou a presença de um vírus variólico. Só que não sabemos qual. É muito estranho, nada que se conheça já. Não é varíola clássica, maior ou menor, ainda que pareça estar-lhe relacionada.

— Dra. Scarpetta - interveio Fujitsubo. - Pode dizer-nos o que haverá neste spray facial, na sua opinião?

— água destilada e um perfume. Não apresenta nenhuma lista de ingredientes, mas de um modo geral é essa a constituição deste género de sprays - disse.

Ele estava a tomar notas.

— Será asséptico? - Olhou para nós através do monitor.

— Espero que sim, pois as instruções recomendam a sua aplicação no rosto e nas lentes de contacto - respondi.

— Então a minha dúvida - prosseguiu Fujitsubo via satélite - é qual será a duração activa média destes sprays contaminados? A varíola não é muito estável em condições de humidade.

— Um ponto interessante - disse Martin, ajustando o seu auricular. - Tem uma grande duração quando seca, e à temperatura ambiente pode sobreviver entre alguns meses e um ano. É muito sensível à luz solar; mas dentro dos atomizadores isso não constituiria qualquer problema. Não gosta do calor; o que, infelizmente, faz desta época a altura ideal.

— Então, dependendo do que as pessoas fazem quando recebem as amostras - disse eu - poderá haver muitos sprays que entretanto tenham perdido a eficácia.

— Esperemos que sim - disse Martin.

— Parecem não restar dúvidas de que a pessoa que procuramos tem bastantes conhecimentos de doenças infecciosas - disse Wesley.

— Tem de ter - concordou Fujitsubo. - O vírus tem de ser cultivado, propagado, e, tratando-se realmente de terrorismo, então o perpetrador está familiarizado com técnicas laboratoriais básicas. Soube manobrar uma coisa destas mantendo-se protegido. Estamos a partir do principio de que se trata de uma única pessoa?

— É essa a minha teoria, mas será melhor dizer que não sabemos -               disse Wesley.

— Dá a si mesmo o nome de deadoc - disse eu.

— Como em Doctor Death (Doutor Morte)? Será que está a dizer-nos que é médico? - perguntou Fujitsubo.

Era difícil saber-se, mas a pergunta mais incómoda é sempre a mais difícil de fazer.

— Dr. Martin - disse eu, enquanto Martinez se recostava silenciosamente na sua cadeira, a escutar. - Segundo depreendo, o seu departamento e um laboratório em Moscovo são as duas únicas fontes dos isolados virais. Tem alguma ideia de como alguém possa ter conseguido obtê-los?

— Exactamente - interveio Wesley. - Por muito desagradável que seja a ideia, precisamos de analisar a lista dos seus funcionários. Haverá alguns despedimentos recentes? Alguém que se tenha despedido nos últimos tempos?

— A nossa reserva do vírus da varíola é tão cuidadosamente vigiada e inventoriada como o plutónio - disse Martin, em tom confiante. - Eu próprio já pensei nessa hipótese e posso afirmar com toda a certeza que nada falta ali. E não é possível ter acesso aos congeladores sem autorização, e sem conhecimento dos códigos de alarme.

Ninguém falou por alguns momentos. Depois Wesley disse:

— Acho que seria boa ideia se tivéssemos uma lista das pessoas que, nos últimos cinco anos, tenha tido essa autorização. Inicialmente, baseado na minha experiência, posso imaginar este individuo como sendo um homem branco, possivelmente na casa dos quarenta. É muito provável que viva só, mas, se vive acompanhado, terá uma parte da sua residência a que mais ninguém tem acesso, o seu laboratório...

— Desta forma, estamos talvez a falar de um antigo funcionário de laboratório - disse o S.A.C.

— Ou de alguém com o mesmo perfil - disse Wesley. - Uma pessoa com preparação académica, experiente. Tratar-se-á de um introvertido, e baseio esta suposição numa série de factores, como por exemplo a sua tendência para escrever sem maiúsculas. A sua recusa de usar pontuação sugere que acredita ser diferente dos outros, e que as regras comuns não se lhe aplicam. Não gosta de falar; e pode ser considerado uma pessoa reservada ou tímida por quem o conheça. Dispõe de muito tempo livre, e, mais importante, considera que tem sido maltratado pelo sistema. Sente que tem direito a um pedido de desculpas emitido pela autoridade máxima do país, pelo governo, e creio que é esta a chave para a motivação deste individuo.

— Então trata-se de uma vingança - disse eu. - Pura e simples.

— Nunca é pura nem simples. Antes fosse - comentou Wesley. - Mas penso que a vingança é mesmo a chave, e é por essa razão que considero importante que todas as agências governamentais que trabalhem com doenças infecciosas nos forneçam registos de quaisquer funcionários repreendidos, despedidos, suspensos, dispensados ou qualquer outra coisa, nos últimos meses ou anos.

Fujitsubo aclarou a garganta.

— Bem, falemos então de logística. - Era a vez de a Guarda Costeira apresentar um plano. Martinez levantou-se da sua cadeira e foi fixar grandes mapas num painel, enquanto os ângulos das câmaras eram ajustados para que os nossos convidados à distância pudessem observá-los.

— Consegue apanhar os mapas? - perguntou Martinez à agente na consola.

— Já estão - disse ela. - E os senhores? - Olhou para os monitores.

— Estão bem.

— Não sei. Talvez possa aumentar o zoom.

Ela aproximou um pouco mais a câmara, enquanto Martinez tirava do bolso um ponteiro de laser. Dirigiu o seu intenso ponto cor-de-rosa para a linha Maryland-Virginia na baía de Chesapeake que cortava através da ilha Smith, um pouco ao norte de Tangier.

— Temos uma quantidade de ilhas que se estendem na direcção da haia Fishing e do rio Nanticoke, no Maryland. Há a ilha Smith, a South Marsh, a Bloodsworth. - O ponto rosa ia saltando de uma para outra.

Depois chegamos ao continente. E temos Crisfield aqui, que fica apenas a quinze milhas náuticas de Tangier. - Olhou para nós. Crisfield é para onde muitos pescadores trazem os seus caranguejos. E muitos habitantes de Tangier têm parentes em Crisfield. Isso preocupa-me bastante.

— E a mim preocupa-me que os habitantes de Tangier não queiram colaborar - disse Miles. - Uma quarentena irá retirar-lhes o seu único meio de subsistência.

— Sim, senhor - disse Martinez, olhando para o relógio. - E estamos a isolá-la, neste preciso momento. Temos barcos, cúters, vindos mesmo de locais distantes, como Elizabeth City, para nos ajudar a cercar a ilha.

— Por isso, a partir de agora ninguém sai de lá - disse Fujitsubo, enquanto o seu rosto continuava a dominar-nos do alto do seu monitor de vídeo.

— Está correcto. Óptimo.

— E se as pessoas resistem? - Era uma pergunta óbvia. - Que irá fazer com eles? Não pode prendê-los e arriscar-se ao contágio.

Martinez hesitou. Olhou para Fujitsubo no monitor.

— Comandante, quer responder a esta pergunta? - inquiriu.

— Na realidade, já discutimos este ponto com bastante rigor - informou-nos Fujitsubo. - Falei com o secretário do Departamento de Transportes, com o Vice Almirante Perry, e evidentemente com o Secretário da Defesa. Basicamente, este ponto está a ser acelerado pelas vias próprias até à Casa Branca, para autorização.

— Autorização para quê? - Quem fez a pergunta foi Miles.

— Para usar força mortífera, se tudo o mais falhar - informou-nos Martinez.

— Cristo - comentou Wesley em voz baixa.

Estava a escutá-los com incredulidade, olhando para os deuses do Dia de Juízo.

— Não temos outra hipótese - disse Fujitsubo, calmamente. - Se as pessoas entram em pânico e começam a fugir da ilha e não acatam os avisos da Guarda Costeira, irão com certeza - e não provavelmente - trazer a varíola para o continente. E estamos a falar de uma população que não deve ter sido vacinada nos últimos trinta anos, ou que o foi há tanto tempo que a imunização já perdeu a eficácia. Por outro lado estamos a falar de uma doença que sofreu uma tal mutação que a vacina actual já não tem poderes de protecção. Pondo o caso em termos diferentes, o cenário não se apresenta nada favorável.

Não sabia se o mal-estar que sentia no estômago era por me sentir doente ou se era pelo que tinha acabado de escutar. Pensei naquela aldeia piscatória, massacrada pelo mau tempo, com as suas pedras tumulares descaídas e os seus habitantes rudes e sorumbáticos que só queriam que os deixassem em paz. Não era gente capaz de acatar as ordens fosse de quem fosse, pois só respondiam ao poder mais alto de Deus e das tempestades.

— Tem de haver outra maneira - disse eu.

Mas não havia.

— Por reputação, a varíola é uma doença infecciosa altamente contagiosa. Este surto tem de ser contido - disse Fujitsubo, insistindo no que todos sabiam. - Temos de preocupar-nos com as moscas domésticas que esvoaçam à volta dos pacientes, e com os caranguejos que vão para o continente. Como saberemos que não precisamos de nos preocupar com a possibilidade de transmissão através dos mosquitos? Nem sequer sabemos o que teremos de recear, pois não somos ainda capazes de identificar a doença.

Martin olhou para mim.

— Já temos equipas em campo, enfermeiros, médicos, isoladores de camas, para podermos manter estas pessoas fora dos hospitais e nas suas próprias casas.

— E quanto a cadáveres, contaminação? - perguntei.

— De acordo com as leis dos Estados Unidos, isto constitui uma emergência sanitária pública da Classe Um.

— Sim, sei disso - disse-lhe, impacientemente, porque via que ele estava a armar-se em burocrata. - Vamos ao que interessa.

— Queimar tudo menos o paciente. Os corpos serão cremados. A casa de Pruitt tem de ser destruída pelo fogo.

Fujitsubo tentou acalmar-nos.

— O USAMRIID tem uma equipa a caminho. Vamos falar com os cidadãos, tentar levá-los a entender o problema.

Pensei em Davy Crockett e no filho, nas pessoas e no pânico delas ao verem os cientistas nos seus fatos espaciais ocupando a ilha e começando a incendiar-lhes as casas.

— Podemos ter a certeza de que a vacina da varíola não vai resultar? - perguntou Wesley.

— Não sabemos isso, por enquanto - respondeu Martin. - Os ensaios em cobaias demorarão dias ou semanas. E mesmo se a vacinação resultar num animal, isto poderá não significar que vai proteger os humanos.

— Visto que o ADN do vírus foi alterado - avisou Fujitsubo - não sei se o vírus vaccinia será eficaz.

— Eu cá não sou médico nem nada - disse Martinez - mas estou a pensar se não seria bom vacinar toda a gente, para o caso de dar resultado.

— É demasiado arriscado - explicou Martin. - Se não for varíola, para quê expor deliberadamente as pessoas à varíola, com a possível conseqüência de provocar a doença em algumas pessoas? E quando desenvolvermos a nova vacina, não vamos querer voltar a vacinar as pessoas semanas depois, desta vez com um vírus vanólico diferente.

— Por outras palavras - acrescentou Fujitsubo - não podemos usar os habitantes de Tangier como cobaias. Se conseguirmos conservá-los na ilha e mandar-lhes uma vacina logo que possível, talvez consigamos conter esta coisa. A boa notícia a respeito da varíola é que se trata de um vírus estúpido, que mata as suas vitimas tão depressa que acaba por se destruir a si mesmo, se conseguirmos restringi-lo a uma dada área.

— Certo. Portanto, uma ilha inteira é destruída enquanto nos limitamos a ficar a ver - disse Miles, colérico. - Não posso crer. Bolas para isto. - Bateu na mesa com o punho fechado. - Isto não pode estar a acontecer no estado de Virgínia!

Levantou-se da sua cadeira. - Meus senhores. Gostaria que me dissessem o que poderemos fazer se começarmos a ter doentes noutras partes deste estado. A saúde do estado de Virgínia, se querem saber; foi o que o governador me confiou, quando me nomeou para este cargo. - O rosto dele tinha um tom avermelhado e escuro, e estava a transpirar. - Deveremos fazer o que os ianques fizeram, e começar a pegar fogo às nossas cidades e vilas?

— No caso de se propagar este surto - disse Fujitsubo - não restam dúvidas de que teremos de utilizar os nossos hospitais, de reservar enfermarias para ele, tal como temos feito noutras ocasiões. O CDC e as minhas equipas estão já a alertar o pessoal médico local, e trabalharão em estreita colaboração com ele.

— Compreendemos que o pessoal hospitalar é o que se sujeita a maiores riscos - acrescentou Martin. - Seria interessante se o Congresso resolvesse acabar com estas malditas licenças temporárias, para não ficarmos com uma mão e os dois pés atados.

— Pode crer, o presidente e o Congresso estão cientes da situação.

— O Senador Nagle garantiu-me que o impasse terminará amanhã de manhã.

— Têm sempre a certeza, dizem sempre as mesmas coisas.

O inchaço e a comichão no braço em que fora revacinada era para mim um lembrete constante de que tinha sido inoculada com um vírus que talvez não me servisse de nada. Queixei-me a Wesley durante todo o trajecto até ao parque de estacionamento.

— Fui reexposta, e estou doente com qualquer coisa, o que talvez queira dizer que a minha imunidade tenha ficado suprimida, por cima de tudo o mais.

— Como sabes que não estás contaminada? - perguntou-me, com todo o cuidado.

— Não sei.

— Nesse caso, podias estar infectada.

— Não, não podia. Uma erupção é sempre o primeiro indício, e todos os dias me observo de uma ponta à outra. Ao primeiro sintoma de uma coisa dessas, regressaria a correr para o isolamento. Não seria capaz de chegar a menos de trinta metros de ti ou de qualquer outra pessoa, Benton - disse-lhe, com a minha raiva irracionalmente espevitada pela sua sugestão de que poderia arriscar-me a infectar qualquer um, mesmo com uma corriqueira constipação.

Olhou fixamente para mim ao destrancar as portas do carro, e percebi que estava muito mais preocupado do que era capaz de confessar-me.

— Que queres que faça, Kay?

— Leva-me a casa, para que possa ir buscar o meu carro.

 

A luz do dia enfraquecia rapidamente enquanto ia percorrendo quilómetros e quilómetros de pinhais. Os campos não estavam cultivados, com tufos de algodão ainda agarrados a caules mortos, e o céu estava húmido e frio como bolo a descongelar. Quando tinha chegado a casa, depois da reunião, havia uma mensagem de Rose à minha espera. às duas horas da tarde, Keith Pleasants telefonara da prisão, pedindo desesperado que o visitasse, e Wingo tinha ido para casa com uma gripe.

Ao longo dos anos já estivera por muitas vezes no edifício do tribunal do condado de Sussex, tendo-me habituado a apreciar a excentricidade e os inconvenientes de uma construção do século passado. Construído em 1825 pelo mestre pedreiro e oleiro de Thomas Jefferson, era um edifício avermelhado com ornatos e colunatas brancas, e sobrevivera à Guerra Civil apesar de os ianques lhe terem destruído todo o recheio. Pensei nos longos dias de Inverno que passara nos seus relvados enquanto aguardava que me chamassem ao banco das testemunhas. Lembrava-me bem de todos os casos que me tinham trazido a este tribunal.

Agora as actividades desse teor decorriam no espaçoso edifício construído recentemente ao lado do velho tribunal e, ao passar por ele, a caminho do parque de estacionamento nas traseiras, senti uma profunda tristeza. Estas novas instalações constituíam um monumento à inflação do crime, e tive saudades dos tempos mais simples em que me mudara para o estado de Virginia, sentindo-me diminuída perante a imponência do velho tribunal, símbolo de uma antiga guerra que nunca chegava ao fim. Naquela altura ainda fumava. Talvez revivesse então a aura de romance do passado, como sucede a muita gente. Mas agora sentia a falta dos cigarros e dos tempos de espera, sujeita ao tempo agreste, num tribunal que nem sequer tinha aquecimento. A evolução dos tempos fazia-me sentir velha.

O departamento do xerife situava-se no mesmo edifício de tijolos vermelhos com ornatos bancos, e o recinto de estacionamento e a cadeia estavam cercados por uma vedação metálica coroada por arame farpado. Do outro lado da vedação, dois reclusos trajando fatos-macaco cor de laranja estavam a enxugar um carro sem distintivo que tinham acabado de lavar e polir. Olharam-me com olhos matreiros quando estacionei o carro, um deles batendo no outro por brincadeira com uma camurça molhada.

— Olá. Como vai? - segredou um deles, quando passei.

— Boa tarde. - Olhei para os dois.

Afastaram-se, desinteressados por não poderem intimidar-me, e abri a porta da frente. No interior, o departamento era modesto ao ponto de se tornar deprimente e, como praticamente todas as instalações públicas de todo o mundo, não tinha conseguido acompanhar o crescimento do meio em que funcionava. Lá dentro havia máquinas de bebidas não alcoólicas e de aperitivos, paredes forradas com cartazes de indivíduos procurados pela lei, e o retrato de um agente caído no cumprimento da sua missão. Parei na recepção, onde uma moça jovem folheava uma rima de papéis e mordiscava a esferográfica.

— Desculpe-me - disse-lhe. - Venho visitar Keith Pleasants.

— Está na lista de visitantes dele? - As lentes de contacto da rapariga faziam-na olhar de soslaio, e tinha nos dentes uma armação correctora de arame com enfeites cor-de-rosa.

— Pediu-me para vir vê-lo, portanto espero que sim.

A funcionária folheou as páginas de um livro de folhas soltas, parando quando chegou àquela que procurava.

— O seu nome?

Disse-lho, e o dedo dela começou a percorrer a página.

— Ora cá está. - Levantou-se da cadeira. - Venha comigo.

Deu a volta à secretária e destrancou uma porta gradeada. Lá dentro havia uma apertada zona de processamento para recolher as impressões digitais e as fotos dos detidos, uma maltratada mesa metálica confiada a um corpulento assistente. A seguir havia uma outra pesada porta com grades, e através dela podia ouvir os barulhos da cadeia.

— Vai ter de deixar aqui a sua mala - disse-me o assistente. Chegou-se ao seu aparelho de rádio. - Podes chegar aqui?

— Dez-quatro. Vou a caminho - respondeu uma voz de mulher.

Pousei a minha mala no balcão e meti as mãos nos bolsos do casaco. Ia ser revistada, e não estava a gostar.

— Temos uma salinha aqui onde eles recebem os advogados - disse o assistente, fazendo um sinal com o polegar como se estivesse a pedir boleia. - Mas alguns destes sujeitos escutam tudo o que se diz, por isso se quiser, pode ir ao andar de cima. Temos ali uma sala para visitas.

— Acho que lá em cima será melhor - disse, enquanto uma auxiliar, robusta e com cabelos curtos espigados, se aproximava com o seu detector manual de metais.

— Braços abertos - disse-me ela. - Tem qualquer coisa metálica nos bolsos?

— Não - respondi, ao mesmo tempo que o detector bufava como um gato mecânico.

Ela experimentou de um lado do corpo, e depois do outro. O aparelho continuava a fazer barulho.

— É melhor despir o casaco.

Coloquei-o em cima da secretária, e ela experimentou de novo. O detector continuava a emitir o seu desagradável barulho, enquanto a assistente se mostrava admirada e continuava a tentar.

— Traz jóias? - perguntou.

Disse-lhe que não, e por fim recordei-me de que estava a usar um soutien com armação de arame, que não tinha qualquer intenção de lhe participar. Ela pôs de lado o detector e começou a apalpar-me, enquanto que o outro auxiliar, sentado à secretária, ia seguindo os acontecimentos, de boca entreaberta, como se estivesse a assistir a algum filme ordinário.

— Está bem - disse ela, convencida de que eu era inofensiva. - Siga-me.

Para chegarmos ao andar superior tivemos de passar pela ala feminina da prisão. As chaves tilintaram ao desaferrolhar uma pesada porta que bateu com estrondo ao fechar-se atrás de nós. As detidas pareciam jovens e empedernidas nas suas roupas de sarja, em celas que mal dariam para um animal, com uma sanita branca, um beliche e um lavatório. Umas entretinham-se com jogos de cartas, outras encostavam-se às grades. Tinham roupas penduradas no gradeamento, e os caixotes de lixo perto das portas estavam atestados com o que não tinham comido ao jantar. O cheiro dos alimentos em decomposição deu-me volta ao estômago.

— Olá menina.

— Quem temos nós aqui?

— Uma senhora fina! Olaré!

— Olha quem é uma flor!

Mãos estenderam-se através das grades, tentando tocar-me ao passar e alguém imitava o ruído de beijos, enquanto outras emitiam acessos forçados de gargalhadas.

— Deixem-ma aqui. Só por um quarto de hora. Vem à mamã!

— Preciso de cigarros.

— Cala-te, Wanda. Estás sempre a precisar de qualquer coisa.

— Vocês todas estejam caladas, - disse a assistente numa voz isenta de emoção, ao abrir uma nova porta.

Segui-a escada acima, e notei que as minhas pernas tremiam. A divisão onde ela me pôs estava cheia e desarrumada, como se tivesse tido alguma função em tempos idos. Painéis de corticite estavam encostados contra uma parede, um carrinho com rodas ocupava um recanto, e uma quantidade de panfletos e boletins espalhavam-se por toda a parte. Sentei-me numa cadeira de dobrar em frente de uma mesa cheia de cicatrizes de nomes e piadas rudes escavadas a esferográfica.

— Ponha-se à vontade, que ele vem já - disse ela, deixando-me só.

Lembrei-me dos rebuçados para a tosse e dos lenços de papel que guardava na mala e no casaco, que agora não me acompanhavam. Fungando, fechei os olhos, até ouvir passos pesados. Quando o auxiliar corpulento trouxe Keith Pleasants consigo, quase não o reconheci. Estava pálido e emagrecido, a dançar nas suas calças de sarja, com as mãos incomodamente algemadas à sua frente. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas quando olhou para mim, e os seus lábios estremeceram quando tentou sorrir.

— Senta-te e fica sentado - ordenou o ajudante. - Não quero problemas aqui, ouviste? Olha que se não for assim, volto e a visita acaba-se.

Pleasants agarrou-se a uma cadeira, quase a cair.

— Ele precisa mesmo de estar algemado? - perguntei. - Está preso por uma infracção de trânsito.

— Minha senhora, ele está fora da zona de segurança. É por isso que tem de estar algemado. Volto daqui a vinte minutos - disse o assistente ao sair.

— Nunca me vi metido numa coisa destas. Importa-se que fume? - Ao sentar-se, Pleasants riu-se com um nervosismo muito próximo da histeria.

— Fume à vontade.

As mãos tremiam-lhe tanto que tive de lhe acender o cigarro.

— Não me parece que tenham um cinzeiro. Talvez não seja permitido fumar aqui. - Estava preocupado, com os olhos a correr à sua volta. - Meteram-me numa cela com um sujeito que é traficante de droga, percebe? Tem uma série de tatuagens e não me deixa em paz. Sempre a meter-se comigo, a chamar-me nomes de maricas, percebe? - Engoliu uma quantidade de fumo e fechou os olhos por um instante. - Não ia a fugir de ninguém. - Olhou para mim.

Vi um copo de plástico no chão e fui buscá-lo para lhe servir de cinzeiro.

— Obrigado - disse ele.

— Keith, conte-me o que lhe aconteceu.

— Ia só a caminho de casa como sempre faço, depois de sair do aterro, e de repente vejo um carro sem qualquer distintivo atrás de mim com as sirenes a tocar e as luzes a piscar. Por isso, parei logo na berma. Era aquele investigador imbecil que anda a fazer-me a vida negra.

— Ring. - A fúria começava a tomar conta de mim.

Pleasants confirmou.

— Disse que vinha a seguir-me desde há mais de dois quilómetros, e que eu não tinha feito caso das luzes dele. Pode crer, era uma perfeita mentira. - Os olhos faiscavam-lhe. - Andava há tanto tempo a importunar-me que não havia maneira de o ignorar se ele fosse atrás do meu carro.

— Disse-lhe mais alguma coisa quando o mandou parar? - perguntei.

— Disse, sim senhora. Disse que os meus problemas mal tinham começado. Foram estas exactamente as palavras dele.

— Porque disse que queria falar comigo? - perguntei. Julgava saber, mas queria que fosse ele a dizer-me.

— Estou metido numa série de problemas, Dra. Scarpetta. - Os olhos voltaram a encher-se-lhe de lágrimas. - A minha mãe está velha e não tem ninguém para cuidar dela a não ser eu, e há pessoas a pensar que sou um assassino! Nunca matei nada na minha vida! Nem mesmo pássaros! As pessoas já não me querem no trabalho.

— A sua mãe está inválida? - perguntei.

— Não. Mas tem quase setenta anos e sofre de enfisema. - Chupou outra vez o cigarro. - Já nem está capaz de guiar.

— Quem está agora a cuidar dela?

Abanou a cabeça e limpou os olhos. Tinha as pernas cruzadas, e o pé no ar saltava como se estivesse prestes a levantar voo.

— Não tem ninguém que lhe faça as compras? - perguntei.

— Só eu. - As palavras sufocavam-no.

Olhei outra vez à minha volta, agora à procura de qualquer coisa com que pudesse escrever, e encontrei um lápis de cor e uma toalha de papel castanho.

— Dê-me a morada e o número de telefone dela - disse. - Prometo-lhe que mandarei alguém visitá-la e ver se está bem.

Ele mostrou-se bastante aliviado ao dar-me as informações solicitadas, que anotei.

— Pedi-lhe para vir porque não sabia a quem recorrer - começou de novo a falar. - Não poderá alguém fazer qualquer coisa para me tirar daqui?

— Disseram-me que a sua fiança foi fixada em cinco mil dólares.

— Isso é outra coisa que está mal! É dez vezes o que normalmente se usa para infracções deste género, de acordo com o sujeito que está na minha cela. Não tenho dinheiro nenhum, nem maneira de o arranjar. Quer isso dizer que tenho de ficar aqui até ao julgamento, e isso pode demorar semanas. Meses. - As lágrimas saltaram-lhe novamente aos olhos, e parecia aterrorizado.

— Keith, costuma usar a Internet? - perguntei-lhe.

— A quê?

— Computadores.

— No aterro, uso. Lembra-se? Contei-lhe do nosso sistema de satélite.

— Então sempre usa a Internet.

Parecia não saber o que era.

— Correio electrónico. - Tentei de novo.

— Usamos GPS. - Parecia confuso. - E sabe do camião que largou o corpo? Tenho quase a certeza de que foi o de Cole, e o descarregador deve ter vindo duma zona em que há muitas construções. Vão recolher lixo a uma série de áreas em urbanização na zona sul de Richmond. Seria um bom local para largar uma coisa daquelas, um terreno onde há construções. Basta chegar lá num carro quando não há movimento, e ninguém dá por nada.

— Falou disso ao Investigador Ring? - perguntei.

Uma onda de ódio espelhou-se-lhe na cara.

— A esse não digo nada. Nunca mais. Tudo o que ele faz é tramar-me.

— Porque pensa que ele tenha interesse em tramá-lo?

— Tem de deitar as culpas a alguém. Quer ser o herói. - De repente tornou-se evasivo. - Diz que ninguém sabe o que anda a fazer.       Hesitou por um instante. - Incluindo a senhora.

— Que mais disse ele? - Sentia-me a transformar-me numa pedra fria, como acontecia sempre que passava da ira à fúria.

— Olhe, quando andava a mostrar-lhe a minha casa e tudo, ele punha-se a falar. Gosta mesmo de falar.

Pegou na ponta do seu cigarro e colocou-a desajeitadamente de pé sobre a mesa, para se apagar sem queimar o copo. Ajudei-o a acender outro.

— Disse-me que a senhora tem uma sobrinha - prosseguiu Pleasants. - E que ela é uma espertalhona mas que não tem mais futuro no FBI do que a senhora tem como médica legista chefe. Porque. Bem.

— Continue - disse-lhe, com voz controlada.

— Porque ela não gosta de homens. Parece-me que ele pensa que a senhora também não gosta.

— Isso é interessante.

— Ele estava a rir-se a respeito disso, e que sabia por experiência própria que nenhuma das duas saía com homens porque ele tinha tentado. E que eu devia ficar a ver o que acontecia a pessoas pervertidas, porque a mesma coisa ia acontecer-me a mim.

— Espere um momento. - Fi-lo calar-se. - Ring chegou mesmo a ameaçá-lo por ser homossexual, ou por ele pensar que é?

— A minha mãe não sabe. - Inclinou a cabeça. - Mas algumas pessoas sabem. Tenho ido a bares. Na realidade, conheço Wingo.

Esperava que não o conhecesse intimamente.

— Estou preocupado com a minha mãe. - Mais uma vez começou a chorar. - Está transtornada com o que me aconteceu, e isso não é bom para a saúde dela.

— Digo-lhe uma coisa: eu própria vou ver como ela está, no meu regresso - disse, tossindo de novo.

Uma lágrima escorregou-lhe pelo rosto, e limpou-a rudemente com as costas das mãos algemadas.

— Uma outra coisa que vou fazer - disse-lhe, ao ouvir passos nos degraus. - Vou ver o que posso fazer por si. Não acredito que tenha assassinado ninguém, Keith. E vou pagar-lhe a fiança e tratar de lhe arranjar um advogado.

A boca entreabriu-se-lhe de descrença enquanto os auxiliares entravam ruidosamente no compartimento.

— Palavra? - perguntou Pleasants, quase a desequilibrar-se ao pôr-se de pé, com os olhos muito abertos fixos nos meus.

— Se me jurar que está a dizer a verdade.

— Estou, sim senhora!

— Pois, pois - disse um dos ajudantes. - Tu e todos os outros.

— Terá de ser amanhã - disse a Pleasants - porque o juiz já deve ter-se ido embora.

— Vamos. Para baixo. - O ajudante agarrou-o por um braço.

Pleasants disse-me uma última coisa.

— A minha mãe gosta de leite com chocolate, com xarope Hershey. É praticamente a única coisa que consegue aguentar no estômago.

Depois levaram-no, e fui conduzida pela escada e através do corredor da secção das mulheres. As reclusas estavam caladas desta vez, como se eu já não servisse de distracção. Talvez alguém lhes tivesse dito quem eu era, porque me voltaram as costas, e uma delas cuspiu para o lado.

 

O xerife Rob Roy era uma lenda viva no condado de Sussex e vencia incontestado sempre que havia eleição para o cargo. Tinha estado muitas vezes na minha morgue e, na minha opinião, era um dos melhores agentes da autoridade que conhecia. às seis e meia da tarde fui encontrá-lo na cafetaria Virginia Diner, sentado à sua mesa habitual, ponto de reunião dos notáveis da cidade.

Era uma longa sala com toalhas de xadrez e cadeiras pintadas de branco, e estava a comer uma sandes de presunto frito e a beber café, sem açúcar, com o seu rádio portátil em cima da mesa a debitar intermináveis informações.

— Não posso fazer isso, nem pensar. E depois? Não deixavam de vender crack - estava ele a dizer a um homem magro e desgastado, com um boné de basebol com o logotipo das máquinas John Deere.

— Eles que vendam.

— Eles que vendam? - Roy deitou a mão à caneca de café, enérgico e calvo como sempre o conhecera. - Não sabes o que estás a dizer.

— Claro que sei.

— Posso interromper? - perguntei, puxando uma cadeira.

A boca de Roy abriu-se de espanto e, por um momento, parecia não acreditar no que via. - Bem. Macacos me mordam. - Levantou-se e estendeu-me a mão. - Que poderá andar a fazer por estes lados?

— À sua procura.

— Se me dão licença. - O outro homem tocou na pala do boné e levantou-se para se afastar.

— Não me diga que está aqui em serviço - disse o xerife.

— Então porque havia de ser?

O meu mau humor fê-lo acalmar.

— Há alguma coisa que eu não saiba?

— Sabe, sim - disse eu.

— Bem, e o que será então? Que quer comer? Recomendo-lhe a sandes de frango frito - disse, quando a empregada de mesa se aproximou.

— Chá quente. - Provavelmente nunca mais seria capaz de comer.

— Não me parece com muito bom aspecto.

— Sinto-me nas lonas.

— Há essa doença que corre por aí.

— Não conhece nem metade da história - disse-lhe.

— Que posso fazer? - Inclinou-se mais para mim, dando-me toda a sua atenção.

— Pretendo depositar a fiança para Keith Pleasants - disse-lhe. - Claro que isto não poderá suceder antes do dia de amanhã, infelizmente. Mas preciso que compreenda, Roy, que se trata de um inocente a quem foi armada uma ratoeira. Está a ser perseguido porque o Investigador Ring anda numa caça às bruxas e quer tornar-se famoso.

Roy parecia intrigado.

— Desde quando anda a defender reclusos?

— Desde que são inocentes - disse. - E este homem não é mais um homicida em série do que o xerife ou eu. Não tentou fugir à policia e possivelmente nem ia sequer com excesso de velocidade. Ring anda a persegui-lo e a mentir. Veja como lhe fixaram uma fiança tão alta para uma infracção de trânsito.

Roy estava silencioso, a ouvir.

— Pleasants tem uma mãe idosa e doente que não tem ninguém que cuide dela. Keith está prestes a perder o emprego. Sei que o tio de Ring é o secretário da segurança pública, e que também foi xerife em tempos - disse. - E sei como estas coisas acontecem, Roy. Preciso da sua ajuda. Ring tem de ser contrariado.

Roy empurrou o seu prato para o lado, enquanto o rádio o chamava.

— Crê realmente nisso?

— Creio, sim.

— Fala o cinquenta e um - disse para o aparelho, ajustando o cinto e o revólver nele pendurado.

— Já temos alguma coisa a respeito do assalto? - perguntou uma voz.

— Nada ainda.

Saiu da transmissão e encarou-me.

— Não tem dúvida nenhuma de que este rapaz não cometeu qualquer crime?

Confirmei com um aceno.

— Nenhuma dúvida. O assassino que desmembrou esta vítima comunica comigo pela Internet. Pleasants nem sequer sabe o que isso é. O caso é demasiado complexo para entrar agora em pormenores. Mas pode crer; o que se está a passar não tem nada a ver com este rapaz.

— E também não tem dúvidas a respeito de Ring. Quero dizer, tem de estar certa, se vou fazer isto. - Os seus olhos estavam fixos nos meus.

— Quantas vezes terei de repetir?

Bateu com o guardanapo no tampo da mesa.

— Isto faz-me realmente ferver o sangue. - Empurrou a cadeira para trás. - Não fico nada satisfeito quando me fazem prender um inocente na minha cadeia e um polícia anda lá por fora a fazer-nos passar por parvos.

— Conhece Kitchen, o dono do aterro? - perguntei-lhe.

— Claro que conheço. Pertencemos ao mesmo clube. - Tirou a carteira do bolso.

— Alguém precisa de falar com ele, para que Keith não perca o emprego. Temos de fazer isto como deve ser - acrescentei.

— Pode crer, é isso que vou fazer.

Deixou algum dinheiro em cima da mesa e saiu zangado. Fiquei no meu lugar até acabar o chá, examinando à minha volta os expositores de doces, molhos para grelhados e amendoins de todos os géneros. Doía-me a cabeça e sentia a pele quente quando descobri um supermercado na 460 e parei para comprar leite, xarope Hershey, hortaliças e sopa.

Fui andando de corredor em corredor, e quando dei por mim tinha o carrinho cheio de tudo, do papel higiénico às carnes frias. Depois pedi um mapa e localizei o endereço que Pleasants me tinha dado. A mãe dele não morava longe da estrada, e quando cheguei ela estava a dormir.

— Desculpe-me - disse-lhe da porta. - Não era minha intenção acordá-la.

— Quem é? - Espreitou às cegas para o escuro da noite e destrancou a porta.

— Sou a Dra. Kay Scarpetta. Não tem razão para...

— Que género de doutora?

Mrs. Pleasants era magra e corcovada, com o rosto enrugado como papel de crepe. Os seus longos cabelos grisalhos flutuavam no ar como fios de teias de aranha, e pensei no aterro e na senhora idosa que deadoc tinha assassinado.

— Faça o favor de entrar. - Abriu a porta e olhou-me assustada. - Keith encontra-se bem? Não lhe aconteceu nada, pois não?

— Vi-o durante a tarde, e ele está óptimo - assegurei-lhe. Trouxe algumas mercearias. - Tinha os sacos nas mãos.

— Aquele rapaz. - Abanou a cabeça, fazendo-me um gesto para entrar no seu pequeno e arrumado lar. - Que faria eu sem ele? Sabe, só o tenho a ele neste mundo. Quando nasceu, - disse-lhe - Keith, somos só tu e eu.

Estava assustada e perturbada, e não queria que eu notasse.

— Sabe onde ele está? - perguntei-lhe com suavidade.

Entrámos na cozinha, com o seu atarracado frigorífico e o fogão de gás, e não me respondeu. Começou a arrumar as mercearias, pegando desajeitadamente nas latas e deixando cair no chão o aipo e as cenouras.

— Espere. Deixe-me ajudá-la - tentei.

— Ele não fez nada de mal. - Começou a chorar. - Sei que não fez. E aquele polícia não o deixa em paz, sempre a vir cá e a bater à porta.

Ficou parada no meio da cozinha, limpando a cara com as mãos.

— Keith disse que a senhora gosta de leite com chocolate, e vou preparar-lho. São ordens da médica.

Fui buscar um copo e uma colher ao lava-louças.

— O seu filho vem para casa amanhã - disse-lhe. - E tenho a impressão de que o Investigador Ring não voltará a importuná-los.

Ela olhou para mim como se testemunhasse um milagre.

— Só queria certificar-me de que tem tudo de que necessita até que o seu filho volte - disse, entregando-lhe o copo de leite com chocolate, meio escuro.

— Só estou a tentar perceber quem será a senhora - disse ela por fim. - Isto está muito bom. Nunca me soube tão bem. - Foi bebendo, sem pressas, sorrindo e a saborear.

Expliquei-lhe resumidamente como conhecera Keith e o que fazia no meu trabalho, mas ela não entendeu. Devia ter pensado que estava embeiçada pelo filho, e que ganhava a vida a passar receitas médicas. No regresso ao carro, pus o CD a tocar bem alto para me conservar acordada enquanto seguia conduzindo através da espessa escuridão, em que por longos trechos não se via uma única luz a não ser a das estrelas. Peguei no telemóvel.

A mãe de Wingo veio ao telefone e disse-me que o filho estava doente. Mas ele veio atender.

— Wingo, estou preocupada consigo, - disse-lhe, com sinceridade.

— Sinto-me pessimamente. - Podia confirmá-lo pela voz dele. - Acho que não se pode fazer nada contra a gripe.

— Está sem defesas imunológicas. Quando falei pela última vez com o Dr. Riley, a sua contagem de células CD4 não estava bem. - Queria que ele enfrentasse a realidade. - Descreva-me os seus sintomas.

— Tenho dores de cabeça horríveis, e doem-me as costas e o pescoço. A temperatura, da última vez que a medi, estava nos quarenta. Estou sempre cheio de sede.

Tudo o que ele me dizia estava a accionar-me alarmes na cabeça, porque esses sintomas descreviam os primeiros estágios da varíola. Contudo, se a causa do seu contágio tivesse sido o torso, causava-me surpresa que não tivesse adoecido antes, especialmente dado o seu débil estado.

— Não tocou em nenhum daqueles sprays que recebemos no escritório? - perguntei.

— Quais sprays?

— Os sprays faciais Vita.

Não fazia qualquer ideia do que eu estaria a falar, e depois lembrei-me que ele não estivera no serviço durante quase todo o dia. Expliquei-lhe o que tinha acontecido.

— Oh, meu Deus - exclamou ele de repente, ao mesmo tempo que o pavor nos atravessava aos dois. - Veio um pelo correio. A minha mãe tinha-o no balcão da cozinha.

— Quando? - perguntei, alarmada.

— Não sei. Há uns dias. Quando teria sido? Não me lembro. Nunca tínhamos visto nada tão elegante. Imagine, uma coisa perfumada para refrescar a cara.

Eram assim doze no total as amostras que deadoc tinha enviado ao meu pessoal, e doze tinha sido a sua mensagem para mim. Era esse o número das pessoas empregadas a tempo inteiro na minha equipa, se me incluísse também na contagem. Como poderia ele conhecer pormenores tão triviais como o número de pessoas na minha equipa, e mesmo alguns dos seus nomes e onde residiam, se estivesse longe e anónimo?

Estava a temer a minha próxima pergunta, porque pensava que já sabia a resposta.

— Wingo, utilizou a amostra do spray?

— Experimentei-a, sim. Só para saber como era. - A voz dele estava trémula, e os ataques de tosse quase o sufocavam. - Quando a vi ali no balcão da cozinha. Peguei-lhe, só para ver. Cheirava a rosas.

— Teria sido usado por mais alguém na sua casa?

— Não sei.

— Quero que se certifique de que mais ninguém vai tocar no recipiente. Percebeu?

— Percebi, sim. - Estava a soluçar.

— Vou mandar algumas pessoas à sua casa para tomarem conta de si e da sua família, está bem?

O choro impedia-o de responder.

Quando cheguei a casa passavam alguns minutos da meia-noite, e sentia-me tão desorientada e doente que não sabia o que havia de fazer primeiro. Telefonei a Marino e a Wesley, e também a Fujitsubo. Disse a todos o que estava a acontecer e que Wingo e a família precisavam imediatamente de uma equipa em casa deles. às minhas más notícias acresceram as deles. A menina doente em Tangier tinha falecido, e agora um pescador tinha também a doença. Deprimida e desanimada, fui ver o meu e-mail, e deadoc lá estava com toda a sua maldade. A mensagem dele tinha sido enviada quando eu estava a visitar Keith Pleasants na cadeia.

espelho espelho meu onde estiveste tu

— Grande sacana! - gritei-lhe.

O dia tinha sido de mais. Tudo isto era de mais, e sentia-me dorida e tonta e completamente farta. Por isso, não devia ter entrado na sala de conversa, onde fiquei à espera dele como se isto fosse o O. K. Corral. Devia ter tentado noutra altura. Mas dei a conhecer a minha presença e fiquei a aguardar que o monstro aparecesse. Apareceu.

 

DEADOC:               labutas e aborrecimentos

SCARPETTA:         Que quer você?

DEADOC:               como estamos zangadas esta noite

SCARPETTA:         Estamos, sim.

DEADOC:               para que está a ralar se com pescadores ignorantes e com as suas ignorantes famílias e com essa gente tola que trabalha sob as suas ordens

SCARPETTA:         Acabe com isso! Diga-me o que quer para que tudo isto acabe.

DEADOC:               tarde demais o mal está feito foi feito muito antes disto

SCARPETTA:         Que mal lhe fizeram?

 

Mas ele não respondeu. Estranhamente, não deixou a sala, mas não respondeu a mais perguntas minhas. Pensei na Brigada 19 e fiz uma prece para que estivessem a escutar e a seguir-lhe a pista de linha em linha, até ao seu covil. Passou meia hora. Finalmente desliguei, e o telefone começou a tocar.

— És um génio! - Lucy estava tão excitada que me fazia doer os ouvidos. - Como raio conseguiste aguentá-lo durante tanto tempo?

— Que queres dizer? - perguntei, estupefacta.

— Onze minutos até agora. Mereces um prémio!

— Só estive em linha com ele talvez uns dois minutos. - Tentei refrescar a testa com as costas da mão. - Não faço ideia do que possas estar a dizer.

Mas ela não se importou.

— Conseguimos localizar o filho da mãe! -           Parecia extática. - Um parque de campismo em Maryland, os agentes de Salisbury já vão a caminho. Janet e eu temos de ir apanhar o avião.

 

Antes de me levantar na manhã seguinte, a Organização Mundial de Saúde lançou outro alerta internacional sobre o spray facial aromático Vita. A OMS assegurou toda a gente de que este vírus seria eliminado, que estávamos a trabalhar incessantemente para descobrir a vacina e que dentro em breve iríamos tê-la ao nosso dispor. Mas o pânico propagou-se na mesma.

O vírus, que os noticiários passaram a designar por Mutante, vinha na capa da Time e da Newsweek, e o Senado estava a nomear uma subcomissão enquanto a Casa Branca considerava a hipótese de se estabelecerem medidas de emergência. O spray Vita era distribuído em Nova Iorque, mas na realidade era fabricado em França. Parecia óbvio que deadoc estava a cumprir a sua ameaça. Apesar de não serem ainda conhecidos casos da doença em França, as relações económicas e diplomáticas entre os dois países estavam tensas por causa do encerramento forçado de uma enorme fábrica, e as acusações sobre o local onde teria sido feita a adulteração voavam de um lado para o outro.

Vários residentes de Tangier tentavam fugir da ilha nos seus barcos de pesca, e a Guarda Costeira tinha enviado novos reforços. Não conhecia todos os detalhes mas, baseando-me no que ouvira, havia um confronto ao largo da ilha entre as autoridades e os habitantes, com os barcos ancorados e imobilizados enquanto os ventos invernais rugiam.

Entretanto, o CDC tinha enviado uma equipa de médicos e enfermeiras a casa de Wingo, e o facto tornara-se conhecido. Os cabeçalhos dos jornais eram frenéticos, e as pessoas começavam a evacuar uma cidade que seria difícil, se não impossível, de pôr de quarentena. Estava mais angustiada e doente do que nunca tinha estado, no meu roupão de banho a beber chá quente, ao principio da manhã de sexta-feira.

A minha febre tinha atingido um máximo de trinta e Oito e nove, e o Robitussin DM nada me fazia, a não ser dar-me vómitos. Os músculos do pescoço e das costas doíam-me como se tivesse andado a jogar futebol com pessoas armadas com paus. Mas não era capaz de me meter na cama, porque havia tanto que fazer. Telefonei a uma agência de fianças e recebi a má noticia de que a única maneira de tirar Keith Pleasants da cadeia seria deslocar-me pessoalmente à agência e pagar. Por isso vesti-me e meti-me no carro, para regressar dez minutos depois porque me tinha esquecido do livro de cheques em cima da mesa.

— Meu Deus, ajudai-me - murmurei, enquanto acelerava, fazendo guinchar os pneus pelas curvas do meu bairro. Tentei imaginar o que teria acontecido em Maryland na noite anterior; e preocupei-me com Lucy, para quem todos os acontecimentos eram aventuras. Queria usar armas de fogo e fazer perseguições a pé, pilotar helicópteros e aviões. Temia que um tal espírito fosse esmagado no seu apogeu, porque eu sabia muito sobre a vida e sobre como ela terminava. Estava em ânsias para saber se deadoc teria sido apanhado, mas achava que, se isso fosse verdade, já teria sido informada.

Nunca conhecera um agente de fianças, e este, Vince Peeler, trabalhava com base numa oficina de reparação de calçado na Broad Street, uma artéria de lojas abandonadas com as montras vazias excepto de poeira e graffiti. Era um homem pequeno e baixo, com cabelos pretos lustrosos de brilhantina e um avental de cabedal. Sentado a uma maquina de costura Singer industrial, estava a coser uma sola nova num sapato. Quando entrei e fechei a porta, ele deitou-me um olhar penetrante de quem está acostumado a reconhecer sarilhos.

— É a Dra. Scarpetta? - perguntou, continuando a coser.

— Sim.

Tirei o livro de cheques e a caneta, não me sentindo nada benévola ao pensar em quantos indivíduos violentos este homem teria ajudado a devolver às ruas.

— São quinhentos e trinta dólares. Se quiser pagar com cartão de crédito, junte mais três por cento.

Levantou-se e aproximou-se do delapidado balcão carregado de sapatos e latas de graxa Kiwi. Podia sentir-lhe os olhos rastejando por cima de mim.

— Tem piada, pensei que fosse muito mais velha - comentou. - Sabe como é, a gente lê nos jornais a respeito das pessoas e fica-se por vezes com uma impressão errada.

— Ele será libertado hoje. - Era uma ordem, enquanto separava o cheque do seu talão e o entregava ao homem.

— Pois, com certeza. - Olhou para o relógio.

— Quando?

— Quando? - ecoou retoricamente.

— Sim! - insisti. - Quando é que ele será libertado?

Deu um estalido com dois dedos.

— Num instante.

— Óptimo - disse, assoando-me outra vez. - Vou ficar a ver se ele é libertado num instante. - Fiz também estalar os meus dedos. - E se não for? Sabe o que acontece? Também sou advogada e estou mesmo muito mal disposta. E virei tratar-lhe da saúde. Está bem?

Ele sorriu e engoliu em seco.

— Que tipo de advogada? - perguntou.

— De um tipo que não vai desejar conhecer - repliquei, ao sair porta fora.

Cheguei ao serviço talvez quinze minutos depois, e o pager estava a vibrar e o telefone a tocar quando me sentei à secretária. Antes de poder fazer qualquer coisa, Rose surgiu de repente, parecendo invulgarmente transtornada.

— Anda toda a gente à sua procura - disse.

— Como sempre, aliás. - Não reconhecia o número apresentado no visor do pager. - Quem será desta vez?

— Marino deve estar a chegar - prosseguiu Rose. - Vão enviar um helicóptero. Para o heliporto do MCV. O USAMRIID está no ar e vem para aqui. Já informaram os serviços do médico legista de Baltimore de que uma equipa especial vai ter de tomar conta disto, e que o corpo terá de ser autopsiado em Frederick.

Olhei para ela, ao mesmo tempo que o sangue parecia congelar-me nas veias.

— O corpo?

— Parece que há um parque de campismo onde o FBI localizou um telefonema.

— Isso sei eu. - Estava impaciente. - Em Maryland.

— Pensam ter encontrado a roulotte do homicida. Não estou certa de todos os detalhes. Mas tem o que parece ser um género de laboratório. E há um corpo lá dentro.

Não podia acreditar no que estava a ouvir.

— O corpo de quem?

— Pensam que é o dele. Um possível suicídio. Com um tiro. - Olhou para mim por cima dos seus óculos, e abanou a cabeça. - Devia estar em casa, na cama, com uma caneca de caldo de galinha.

Marino veio buscar-me à porta do edifício, com o vento a soprar em rajadas, fazendo agitar as bandeiras nos topos dos edifícios. Percebi que estava zangado quando pôs o carro em andamento mal eu tinha fechado a porta.

— Obrigada - agradeci-lhe, ao desembrulhar um rebuçado para a tosse.

— Ainda está doente. - Virou para a Franklin Street.

— Estou mesmo. Agradecida pelo seu cuidado.

— Não sei bem porque estou a fazer isto - disse ele, e reparei que não estava fardado. - A última coisa que quero fazer é chegar-me ao pé de um raio de laboratório onde alguém tem estado a fabricar vírus.

— Terá protecção especial - prometi-lhe.

— Talvez já precisasse dela agora, por estar ao pé de si.

— Estou com gripe, e o período de contágio já passou. Confie em mim. Destas coisas sei eu. E não esteja zangado, porque não estou com disposição para aturá-lo.

— É bom que tenha a certeza de que só tem uma gripe.

— Se fosse coisa pior; estaria a piorar e teria mais febre. Teria também erupções na pele.

— Pois sim, mas, se já está doente, não terá mais probabilidade de apanhar outra coisa? Por exemplo, não sei porque há-de querer fazer esta viagem, porque eu de certeza não queria. E não estou muito satisfeito por me arrastarem para isto.

— Então deixe-me sair e vá à sua vida - disse-lhe. - Não se ponha para aí com lamúrias, agora que o mundo todo está metido numa alhada.

— Como está Wingo? - perguntou, num tom mais conciliatório.

— Receio muito por ele - respondi.

Atravessámos o MCV, virando para um heliporto instalado atrás de uma vedação, onde chegavam os pacientes e os órgãos que eram enviados de urgência para o hospital. O USAMRIID não tinha chegado ainda, mas passados momentos pudemos ouvir o potente rugido do Blackhawk, e as pessoas que passavam perto, de carro ou a pé, pararam e ficaram a observar. Alguns automobilistas desviaram-se para fora da estrada para admirar a magnífica máquina escurecendo o céu ao baixar, soprando ervas e lixo à sua volta.

A porta abriu-se, e Marino e eu entrámos. Os assentos para a tripulação estavam já ocupados por cientistas do USAMRIID. Ficámos cercados por equipamento de salvação, e por outro isolador portátil que se fechava como um acordeão. Passaram-me um capacete com microfone, coloquei-o, e apertei o meu cinto de segurança de cinco pontos de fixação. Depois ajudei Marino com o dele, enquanto se acomodava cuidadosamente num assento de dobrar que não tinha sido concebido para uma pessoa do seu tamanho.

— Faço votos para que os jornais não tenham tido conhecimento disto - ouvi alguém dizer enquanto a porta se fechava.

Liguei o cabo do meu microfone a um receptor no tecto da carlinga.

— Hão-de ter. Possivelmente já foram informados.

Deadoc gostava de publicidade. Não acreditava que tivesse abandonado este mundo em silêncio, ou sem o seu pedido presidencial de desculpas. Não, devia ter mais alguma coisa guardada na manga, e nem queria imaginar o que poderia ser. A viagem até ao Parque Estadual da Ilha de Janes demorou menos de uma hora, mas foi complicada pelo facto de o recinto ser densamente arborizado. Não havia um lugar onde pudéssemos pousar.

Os nossos pilotos deixaram-nos na estação da Guarda Costeira em Crisfield, numa marina chamada Enseada de Somer; onde as embarcações de recreio acondicionadas para o Inverno balouçavam nas águas escuras e agitadas do rio Little Annemessex. Ficámos na bem arranjada estação só o tempo suficiente para nos equiparmos com fatos de protecção e coletes de salvação, enquanto o Chefe Martinez nos dava instruções.

— Temos uma série de problemas ao mesmo tempo - dizia ele, caminhando de um lado para o outro na sala de comunicações, onde nos tínhamos reunido todos. - Uma das razões é que os habitantes de Tangier têm parentes aqui, e tivemos que colocar guardas armados nas estradas que saem da vila, porque agora o CDC está receoso com a movimentação dos habitantes de Crisfield.

— Ainda ninguém adoeceu aqui - comentou Marino, esforçando-se para enfiar as bainhas apertadas das calças por cima das botas.

— Pois não, mas tenho medo de que, quando isto começou, algumas pessoas tenham conseguido fugir de Tangier para se refugiarem aqui. Por tudo isto, não esperem ter um bom acolhimento por estes sítios.

— Quem está no parque de campismo? - perguntou alguém.

— Neste momento, os agentes do FBI que descobriram o corpo.

— Haverá lá outros campistas? - perguntou Marino.

— O que me disseram - explicou Martinez - foi que, ao chegarem, deram com uma meia dúzia de campistas, dos quais só um tinha acesso ao telefone. Era no talhão dezasseis, e bateram na porta. Nada, por isso espreitaram pela janela e deram com o corpo no chão.

— Os agentes não entraram? - perguntei.

— Não. Pensando que pudesse ser o indivíduo procurado, recearam que estivesse contaminado, e por isso não entraram. Mas parece-me que um dos guardas-florestais chegou a entrar.

— Porquê? - perguntei.

— Conhece aquele ditado? Quem brinca com o lume queima-se. Parece que um dos agentes tinha ido à pista onde vocês aterraram, para ir buscar mais dois agentes. Como quer que seja, a certa altura não estava ninguém a olhar e o guarda-florestal resolveu entrar, para sair logo a seguir como se fosse um foguete. Disse que havia lá dentro uma espécie de monstro como nos livros de Stephen King. Não sei mais nada. - Encolheu os ombros e revirou os olhos.

Olhei para a equipa do USAMRIID.

— Teremos de levar o guarda-florestal connosco - disse um homem ainda novo cujas divisas do Exército indicavam ser capitão. - A propósito, chamo-me Clark, e esta é a minha equipa. - Iremos tomar boa conta dele, pô-lo de quarentena, olhar por ele.

— Talhão dezasseis - disse Marino. - Sabemos alguma coisa de quem terá arrendado esse talhão?

— Não dispomos ainda de detalhes - disse Martinez. - Estão todos preparados? - Inspeccionou-nos de passagem, e eram horas de partir.

A Guarda Costeira levou-nos em dois botes baleeiros porque para onde íamos a água era pouco funda para um cúter ou um barco-patrulha. Martinez ia a pilotar o meu, de pé e calmo como se conduzir um barco em águas agitadas a setenta quilómetros por hora fosse uma coisa muito normal. Sinceramente, cheguei a pensar que acabaria por ir borda fora, segurando-me fortemente ao corrimão. Era como cavalgar um touro mecânico, com o ar a entrar-me tão depressa pelo nariz e pela boca que quase não era capaz de respirar.

Marino ia à minha frente do lado oposto da embarcação, e parecia estar prestes a enjoar. Tentei transmitir-lhe uma palavra de conforto, mas ele limitou-se a olhar para mim inexpressivamente, agarrando-se com toda a força ao que podia. Eventualmente chegámos a uma enseada chamada Flat Cat, com vegetação cerrada e tabuletas NÃO PASSAR, e o parque ia ficando mais próximo. Só via pinheiros por todos os lados. Depois, ao aproximarmo-nos, vimos trilhos e casas de banho, uma pequena estação de guardas-florestais, e um único campista a espreitar-nos. Martinez encostou o barco ao cais, e um outro tripulante lançou um cabo a uma estaca, enquanto o motor morria.

— Vou vomitar - disse-me Marino ao ouvido, enquanto tentava desastradamente saltar para o cais.

— Não vai nada. - Segurei-o com força por um braço.

— Não pense que me fazem entrar naquela roulotte.

Voltei-me para ele e olhei para o seu pálido rosto.

— Esteja descansado. Não vai ter de entrar na roulotte - disse. - Esse é o meu trabalho, mas primeiro precisamos de localizar o guarda-florestal.

Marino afastou-se antes que a segunda embarcação tivesse acostado, e olhei através das árvores para a roulotte de deadoc. Com aspecto de velha e faltando-lhe o que quer que fosse que a rebocara até aqui, estava arrumada o mais longe possível do posto dos guardas-florestais, semiescondida à sombra dos pinheiros. Quando já todos estávamos em terra, a equipa do USAMRIID distribuiu as vestimentas já minhas conhecidas com os seus respiradores e baterias adicionais com quatro horas de energia.

— Vamos fazer o seguinte - disse o chefe da equipa, de nome Clark. - Pomos as vestimentas e retiramos o corpo.

— Gostaria de entrar primeiro - anunciei. - Sozinha.

— Está bem - concordou Clark. - Depois veremos se há ali alguma coisa de perigoso, esperando que não. Retiramos o corpo, e levamos a roulotte daqui para fora.

— Trata-se de uma prova testemunhal, - disse, olhando para ele. - Não podemos simplesmente tirá-la daqui.

Pela expressão no rosto dele, sabia em que estava a pensar. O homicida estará provavelmente morto, e o caso encerrado. A roulotte constituía uma ameaça biológica e precisava de ser destruída.

— Não - insisti. - Não vamos dar o caso como encerrado com tanta rapidez. Não podemos.

Clark hesitou, bufando de frustração e a olhar para a roulotte.

— Vou lá dentro - disse, - e depois dir-lhe-ei o que precisamos de fazer.

— Concordo. - Levantou de novo o seu tom de voz. - Rapazes? Vamos. Ninguém entra a não ser a M.L. até novas ordens.

Seguiram-nos através da floresta, com o isolador portátil na cauda da fila, uma arrepiante caixa que parecia não pertencer a este mundo. As agulhas dos pinheiros estalavam-me debaixo dos pés, como trigo acabado de cortar; e o ar estava frio e limpo enquanto nos aproximávamos da roulotte. Tratava-se de um atrelado de turismo Dutchman, com uns cinco metros e meio de comprido, com um toldo às riscas cor de laranja.

— Já é velho. Oito anos, aposto - disse Marino, que sabia destas coisas.

— De que precisaria para ser rebocada? - perguntei, enquanto punhamos as nossas vestes de protecção.

— Uma camioneta - disse ele. - Talvez uma furgoneta. Não precisa de nada com muita potência. Que devemos fazer? Pôr isto por cima do que temos vestido?

— Pois - confirmei, fechando os fechos de correr. - Gostaria de saber o que aconteceu ao veículo que trouxe isto de reboque para aqui.

— Boa pergunta - disse Marino, esforçando-se a pôr a vestimenta.

— E onde estará a chapa de matrícula?

Tinha acabado de ligar o ar quando um homem ainda novo surgiu por entre as árvores, com uma farda verde e um chapéu de abas largas. Parecia desorientado ao ver-nos com as nossas coberturas cor de laranja, e senti o seu receio. Não se aproximou muito de nós, apresentando-se como o guarda-florestal do turno da noite.

Marino falou-lhe primeiro.

— Viu alguma vez a pessoa que ocupava esta roulotte?

— Não - disse o guarda.

— E os seus colegas dos outros turnos?

— Nenhum deles se recorda de ter visto alguém, só as luzes acesas durante a noite, por vezes. É difícil dizer. Como vê, está estacionada bastante longe do posto. Podia ter ido aos chuveiros ou qualquer coisa sem ser visto.

— Não há mais campistas por cá? - perguntei, por cima do ruído do ar a entrar no capuz.

— Agora não. Havia talvez três outras pessoas quando descobri o corpo, mas disse-lhes que era melhor irem-se embora porque podia haver alguma doença.

— Fez-lhes primeiro algumas perguntas? - perguntou Marino, e podia ver que estava irritado com este jovem guarda por ter afugentado todas as testemunhas.

— Ninguém sabia nada, a não ser um deles que pensava que o tinha visto. - Fez um sinal na direcção da roulotte. - Na noite de anteontem. Na casa de banho. Um sujeito forte e sujo, com cabelo escuro e barba crescida.

— A tomar duche? - perguntei.

— Não, senhora. - Hesitou. - A verter águas.

— A roulotte não terá casa de banho?

— Realmente não sei. - Hesitou de novo. - Para falar com franqueza, não fiquei lá. No momento em que vi aquele... Bem, seja o que for. Estive lá talvez um segundo.

— E não sabe o que terá trazido isto de reboque? - perguntou Marino.

O guarda-florestal parecia agora sentir-se muito desconfortável.

— Nesta altura do ano isto está geralmente muito sossegado, e escuro. Não tinha qualquer razão para reparar no veículo que vinha a rebocar a roulotte, e até não tenho qualquer ideia de ter vindo algum.

— Mas há-de ter um número de chapa de matrícula. - O olhar fixo de Marino através do capuz nada tinha de amável.

— Claro que tenho. - Aliviado, o guarda tirou do bolso um documento dobrado. - Tenho o seu registo aqui mesmo. - Abriu-o. Ken A. Perley, de Norfolk, Virginia.

Entregou o papel a Marino, que comentou com sarcasmo:

— Oh, que maravilha. O nome que o imbecil foi copiar de um cartão de crédito. Por isso tenho a certeza de que o número da matrícula que apontou também deve ser correcto. Como foi que ele pagou?

— Por cheque visado.

— Entregou-o a alguém, pessoalmente? - perguntou Marino.

— Não. Fez a reserva pelo correio. Ninguém viu nada além do documento que tem na mão. Como já disse, nunca o vimos.

— E em relação ao sobrescrito em que isto veio? - disse Marino. - Tê-lo-ia guardado, para podermos ver a marca do correio?

O guarda sacudiu a cabeça. Olhou nervosamente para os cientistas nos seus trajos cor de laranja, que estavam a escutar tudo o que ele dizia. Depois deitou um olhar para a roulotte e passou a língua pelos lábios.

— Gostava de saber o que se passa ali dentro. E o que me vai acontecer porque entrei lá ? - A voz do homem fraquejou, e parecia prestes a chorar.

— É possível que a roulotte esteja contaminada com um vírus - disse-lhe eu. - Mas não temos a certeza. Todos os que estão aqui vão cuidar de si.

— Disseram-me que iam fechar-me num compartimento isolado, como a solitária de uma prisão. - O receio veio à tona, reflectido nos seus olhos desvairados e na voz muito alta. - Quero saber exactamente o que está ali dentro e que doença posso ter apanhado!

— Vai ficar num local igual àquele em que eu mesma estive durante a semana passada - garanti-lhe. - Um quarto agradável, com enfermeiras simpáticas. Só para alguns dias de observação.

— Faça de conta que são umas férias. Palavra que não é nada de importante. Só porque nós estamos a usar estes fatos esquisitos, não perca a calma - disse Marino, como se fosse a pessoa mais indicada para falar no assunto.

Prosseguiu como se fosse um grande especialista em doenças infecciosas, e deixei-os aos dois e aproximei-me sozinha da roulotte. Por um instante, parei a um metro de distância e olhei à minha volta. à minha esquerda estendiam-se hectares de floresta, e depois o rio onde os nossos barcos estavam acostados. Do lado direito, através de mais árvores, podia ouvir os ruídos de uma estrada movimentada. A roulotte estava estacionada num macio leito de agulhas de pinheiros, e o que primeiro me chamou a atenção foi uma zona raspada no engate pintado de branco.

Aproximando-me mais, agachei-me e passei os dedos enluvados pelos profundos riscos e arranhões na superfície de alumínio, onde deveria constar o número de identificação do veículo. Próximo do tejadilho verifiquei que uma etiqueta de vinil tinha sido queimada, ficando convencida de que alguém lhe teria aproximado um maçarico de gás propano, para fazer desaparecer o segundo número de identificação. Dei a volta para o outro lado.

A porta não estava fechada à chave e não se ajustava bem à sua moldura porque alguém a tinha forçado com alguma espécie de ferramenta, e os meus nervos começaram a vibrar. A cabeça limpou-se-me, e fiquei de repente completamente absorta, como me costumava acontecer sempre que encontrava indícios divergentes do que as testemunhas teriam narrado. Subindo os degraus metálicos, entrei e fiquei imóvel, examinando cuidadosamente um cenário que poderia não dizer nada à maioria das pessoas, mas que para mim era a confirmação de um pesadelo. Estava na fábrica de deadoc.

Primeiro, o aquecimento estava no máximo, e desliguei-o, assustando-me quando uma patética criatura branca saltitou de repente sobre os meus pés. Dei um salto, espantada, quando o vi chocar atarantado contra a parede, para depois se sentar; trémulo. O desgraçado coelho tinha sido escanhoado em várias zonas do corpo, e escarificado com a infecção, apresentando horríveis erupções escuras. Reparei na sua gaiola de arame, que parecia ter caído de cima da mesa, ficando com a porta aberta.

— Anda cá. - Agachando-me, estendi a mão enquanto ele me observava com olhos orlados de vermelho, as longas orelhas mexendo-se descontroladas.

Cuidadosamente, fui-me aproximando mais porque não podia deixá-lo à solta. Era uma fonte viva de propagação de doença.

— Anda cá, pobre desgraçado - disse ao monstro do guarda-florestal. - Prometo que não te faço mal.

Depois segurei-o suavemente nas mãos, sentindo-lhe o coração que batia desgovernado e o corpo a tremer. Devolvi-o à sua gaiola, e dirigi-me à traseira do atrelado. A porta por onde passei era pequena, e o corpo lá dentro quase enchia o quarto. O homem estava de rosto para baixo sobre um tapete amarelo manchado de sangue. O seu cabelo era escuro e ondulado, e quando o voltei a rigor mortis já tinha chegado e partido. Lembrava-me um lenhador num imundo casaco e umas calças cor de ervilha. As mãos eram enormes, com unhas sujas, e a barba e o bigode nunca tinham sido tratados.

Despi-o da cintura para cima para observar o padrão da livormortis, que é a fixação do sangue por acção da gravidade após a morte. O rosto e o peito apresentavam um tom roxo avermelhado com áreas de embranquecimento onde o corpo estivera apoiado no chão. Não vi qualquer indicação de ter sido deslocado depois da morte. Tinha sido atingido com um tiro no peito à queima-roupa, possivelmente com a caçadeira Remington de cano duplo que estava ao seu lado, perto da mão esquerda.

A difusão dos grãos de chumbo era apertada, tendo aberto um amplo orifício com rebordos irregulares no meio do peito. Detritos de plástico branco provenientes da caçadeira colavam-se-lhe à roupa e à pele, que não apresentava indícios de um ferimento por contacto. Medindo o comprimento da arma e dos braços da vítima, não via como ele poderia ter accionado o gatilho. Também não encontrei nada que indicasse ter montado algum dispositivo para lhe facilitar a tarefa. Examinando-lhe os bolsos, não encontrei qualquer carteira ou identificação, apenas uma faca de mato, com a lámina dobrada e riscada.

Não perdi mais tempo com ele e saí da roulotte, e a equipa do USAMRIID parecia enervada, como se precisassem de ir a algum lado e receassem perder o avião. Olharam para mim quando desci os degraus, e Marino afastou-se um pouco mais. Estava quase escondido entre as árvores, braços cor de laranja cruzados sobre o peito, ao lado do guarda-florestal.

— Trata-se de uma cena de crime completamente contaminada - anunciei. - Temos um homem branco morto sem identificação. Preciso de alguém que me ajude a transportar o corpo para o exterior. Necessita de ser isolado. - Olhei para o capitão.

— Levamo-lo connosco - disse ele.

Concordei com um aceno.

— Vocês podem encarregar-se da autópsia e talvez pedir a alguém dos serviços do médico legista de Baltimore para ser testemunha. O atrelado é outro problema. Tem de ser levado para algum local onde se possa trabalhar nele em segurança. Há indícios para recolher e descontaminar. Isto, francamente, está fora das minhas possibilidades. Se não dispuserem de uma instalação de contenção capaz de receber uma coisa deste tamanho, talvez seja melhor levarmos isto para Utah.

— Para Dugway? - disse ele, de modo dúbio.

— Sim - disse. - Talvez o Coronel Fujitsubo possa ajudar.

A Zona de Ensaios de Dugway era a maior instalação do Exército para investigação de defesas contra armas químicas e biológicas. Ao contrário de USAMRIID, instalado no coração da América urbana, Dugway dispunha da vastidão do deserto do Grande Lago Salgado para ensaiar lasers, bombas inteligentes, efeitos de fumo. Mais apropriadamente, possuía a única câmara de ensaio nos Estados Unidos capaz de processar um veículo do tamanho de um tanque de guerra.

O capitão pensou por um momento, olhando ora para mim ora para o atrelado, enquanto tomava uma decisão e formalizava um plano.

— Frank, põe-te ao telefone e trata de mobilizar isto logo que possível - disse a um dos cientistas. - O coronel terá de coordenar com a Força Aérea a respeito do transporte, mandar vir alguma coisa depressa, porque não quero que isto fique aqui durante a noite toda. E vamos precisar de um camião de plataforma aberta, e de uma camioneta para o reboque.

— Deve ser possível arranjar isso aqui nas proximidades, com todo o movimento de exportação de peixe que têm - disse Marino. - Vou já tratar do caso.

— Óptimo - prosseguiu o capitão. - Alguém me traga três sacos para corpos e o isolador. - Depois disse-me: - Aposto que precisa de ajuda.

— Pode ter a certeza - respondi-lhe, e ambos nos dirigimos à roulotte.

Abri a porta retorcida de alumínio e ele seguiu-me para o interior, e não demorámos a chegar à traseira. Podia ver nos olhos de Clark que nunca tinha visto nada parecido com isto, mas graças ao capuz e ao respirador pelo menos não tinha de suportar o cheiro pestilento da carne humana em decomposição. Ajoelhou-se num dos extremos e eu no outro; o corpo era pesado e o espaço disponível impossivelmente limitado.

— Está calor aqui, ou sou só eu? - comentou, aflito, enquanto porfiávamos com os membros amolecidos do cadáver.

— Alguém regulou o aquecimento ao máximo. - Já me estava a faltar a respiração. - Para acelerar a contaminação virológica, a decomposição. É um método corriqueiro para se corromper a cena de um crime. Muito bem. Fechemo-lo dentro do saco. Vai ser um pouco apertado, mas parece-me que conseguimos.

Começámos a metê-lo num segundo saco, as mãos e os fatos escorregadios com o sangue. Demorámos quase trinta minutos a metê-lo no isolador, e os músculos dos braços tremiam-me quando o levámos para o exterior. O coração batia-me desordenadamente, e estava a transpirar. Cá fora, fomos cuidadosamente regados com um produto químico de lavagem, bem como o isolador, que foi transportado de camião para Crisfield. Depois a equipa começou a trabalhar no atrelado.

Todo ele, à excepção das rodas, seria embrulhado num forte vinil azul com uma camada filtrante HEPA. Tirei o meu fato com grande alívio, e recolhi ao posto dos guardas-florestais, aquecido e bem iluminado, onde lavei meticulosamente a cara e as mãos. Tinha os nervos em franja, e daria qualquer coisa para me meter na cama, tomar uns NyQuil e adormecer.

— Está ali um rico sarilho - disse Marino ao entrar, trazendo consigo uma grande quantidade de ar frio.

— Por favor, feche a porta - pedi-lhe, a tiritar.

— Quem anda a fazer-lhe mal? - Sentou-se do outro lado da sala.

— A vida.

— Custa-me a crer que tenha vindo para aqui doente como está. Bem me parece que a doutora perdeu o juízo.

— Agradecida pelas suas palavras de conforto - disse-lhe.

— Bem, isto para mim também não são exactamente umas férias. Aqui preso com uma série de gente para interrogar, e não tenho transporte. - Parecia desolado.

— Que conta fazer?

— Hei-de arranjar alguma coisa. Ouvi dizer que Lucy e Janet estão por perto, e poderão dar-me uma boleia.

— Onde? - Fiz menção de me levantar.

— Não se excite. Andam lá por fora à procura de pessoas para interrogar, como eu também tenho de fazer. Tenho de fumar um cigarro. Já se passou quase um dia.

— Aqui não. - Apontei para um letreiro.

— Há pessoas a morrer de varíola, e a doutora preocupa-se com um cigarro.

Tirei uma caixa de Motrin e engoli três sem água.

— Então o que irão fazer agora todos estes cadetes do espaço? - perguntou Marino.

— Alguns deles ficarão na área, procurando mais alguém que possa ter-se exposto, quer em Tangier quer no parque de campismo. Trabalharão em turnos com outros membros da equipa. Acho que também irá contactá-los, no caso de dar com alguém que possa ter-se exposto.

— O quê? Vou ter de andar dentro de um fato cor de laranja durante toda a semana? - Espreguiçou-se, e o pescoço deu-lhe um estalido. - São mesmo chatos. Quentes como um raio, a não ser no capuz. - Sentia-se secretamente orgulhoso de ter vestido um.

— Não, não vai precisar de usar o fato de plástico - disse-lhe.

— E o que acontece se descobrir que alguém que esteja a interrogar esteve exposto ao vírus?

— Só é preciso que não se lhe ponha aos beijos.

— Não acho que isto tenha alguma piada. - Olhou para mim, zangado.

— Não tem, realmente.

— E com respeito ao tipo que foi morto? Vão cremá-lo, quando nem sabemos quem ele era?

— Será autopsiado de manhã - informei. - Calculo que irão guardar o corpo enquanto for possível.

— Tudo isto é muito esquisito. - Marino esfregou a cara com as mãos. - E a doutora viu um computador lá dentro.

— Vi, um portátil. Mas sem impressora nem scanner. Tenho a impressão de que isto é o refúgio de alguém. A impressora e o scanner devem estar em casa.

— E encontrou algum telefone?

Pensei por um minuto.

— Não me lembro de ter visto.

— Bem, há uma linha telefónica entre o atrelado e a caixa da companhia. Veremos o que conseguimos descobrir a respeito disso, como por exemplo em nome de quem estará. Também vou avisar Wesley do que se passa.

— Se a linha telefónica foi usada só para a ligação à AOL - disse Lucy, ao entrar, fechando a porta atrás de si - não haverá qualquer contrato com a companhia. A única conta será com a AOL, que continuará a ser enviada a Perley, o sujeito cujo cartão de crédito foi roubado.

Parecia bem disposta mas um pouco amarrotada, de jeans e com um casaco de cabedal. Sentada ao meu lado, examinou-me a córnea dos olhos, e apalpou-me as glândulas do pescoço.

— Mostra-me a língua - disse, sem se rir.

— Está quieta com isso! - Empurrei-a, tossindo e rindo ao mesmo tempo.

— Como te sentes?

— Melhor. Onde está Janet? - perguntei.

— A conversar. Algures lá por fora. Que tipo de computador há na roulotte?

— Não perdi tempo a estudá-lo - respondi. - Não registei nenhum detalhe.

— Estaria ligado?

— Não sei. Não fui ver.

— Preciso de lhe ter acesso.

— Que queres tu fazer? - perguntei, a olhar para ela.

— Acho que preciso que vá comigo.

— Pensa que eles vão deixar? - perguntou Marino.

— Quem raio são eles?

— Os chatos para quem trabalha - respondeu ele.

— Puseram-me a tratar do caso, e devem querer que o resolva.

Os seus olhos nunca paravam de examinar as janelas e a porta. Lucy tinha sido infectada e acabaria por sucumbir por ter estado exposta ao cumprimento da lei. Por baixo do casaco tinha uma pistola Sig Sauer de nove milímetros num coldre de cabedal com carregadores sobresselentes. Talvez manoplas de cobre no bolso. Ficou alerta quando a porta se abriu e um outro guarda-florestal entrou apressado, com o cabelo ainda húmido do duche, olhos nervosos e excitados.

— Posso dar-lhes alguma ajuda? - perguntou, tirando o casaco.

— Pode, sim - disse Marino, levantando-se da cadeira. - Que tipo de carro é que tem?

 

O camião de caixa aberta estava à nossa espera quando chegámos, com a roulotte em cima dele, embrulhada em vinil azul que rebrilhava estranhamente à luz das estrelas e da lua, e ainda atrelada a uma camioneta. Estávamos a arrumar o carro nas proximidades, num caminho de terra batida, no extremo de um campo aberto, quando um enorme avião passou por cima de nós a uma altura assustadoramente reduzida, mais barulhento do que um jacto comercial.

— Que raio é isto? - exclamou Marino, abrindo a porta do Jeep do guarda-florestal.

— Parece-me que é a nossa boleia para o Utah - disse Lucy, do seu lugar no assento traseiro, que ambas ocupávamos.

O guarda estava a olhar pelo pára-brisas, incrédulo e enlevado.

— Ena pá! Estamos a ser invadidos!

Um VRAMAM (Veículo de Rodas de Alta Mobilidade para Aplicações Múltiplas) foi lançado primeiro, envolvido em cartão franzido, com uma robusta plataforma de madeira por baixo. Caiu com um barulho semelhante a uma explosão quando aterrou no chão do campo coberto de ervas mortas, e foi arrastado por alguma distância pelos pára-quedas a que vinha agarrado. Depois o cordame de nylon verde caiu em anéis desordenados sobre o veículo multirodas, e outras mochilas se abriram nos céus enquanto mais carga continuava a descer para o chão de terra. A seguir vieram os pára-quedistas, oscilando duas ou três vezes antes de aterrarem ágeis em pé, correndo para se libertarem dos seus pára-quedas, recolhendo-os nos braços enquanto o som do seu C-17 ia esmorecendo por detrás da lua.

A Equipa de Controlo de Combate da Força Aérea, vinda de Charleston, Carolina do Sul, tinha chegado precisamente treze minutos depois da meia-noite. Ficámos sentadas no Jeep a observar, fascinadas, enquanto os aviadores começavam a verificar a resistência do piso, porque o que estava prestes a aterrar nele pesava o suficiente para demolir uma pista de aterragem normal revestida de alcatrão. Fizeram-se medições e vistorias, e a equipa começou a instalar dezasseis luzes de demarcação ACR de comando à distância, enquanto que uma mulher envergando um camuflado desembrulhou o VRAMAM, pôs a trabalhar o seu barulhento diesel e retirou-o de cima da sua plataforma.

— Tenho de descobrir um sítio qualquer de onde possa ver isto - disse Marino, enquanto apreciava o espectáculo. - Como raio irão eles fazer aqui pousar um grande avião militar num campo tão pequeno?

— Uma parte posso eu explicar - disse Lucy, que nunca tinha escassez de explicações técnicas. - Acho que o C-17 foi concebido para pousar com carga em pistas pequenas e não aprovadas, como esta. Ou no leito de um lago seco. Na Coréia, têm mesmo usado estradas normais.

— Lá vamos nós - disse Marino com o seu sarcasmo habitual.

— O único outro avião que poderia meter-se num espaço apertado como este é o C-13C - prosseguiu ela. - O C-17 pode até fazer marcha-atrás, não é fantástico?

— Não acredito que nenhum avião possa fazer tudo isso - comentou Marino.

— Bem, pois este menino pode - disse Lucy, como se tivesse vontade de adoptá-lo.

Marino começou a olhar em redor.

— Estou tão esfomeado que era capaz de comer um pneu, e dava o meu ordenado de uma semana por uma cerveja. Vou abrir a janela e fumar um cigarro.

Percebi que o guarda-florestal não queria ninguém a fumar dentro do seu bem cuidado Jeep, mas tinha acanhamento de o dizer.

— Marino, vamos até lá fora - disse. - O ar fresco há-de fazer-nos bem.

Saímos, e ele acendeu um Marlboro, chupando nele como se fosse leite materno. Membros da equipa do USAMRIID, que tomavam conta do camião de plataforma e da sua arrepiante carga, ainda envergavam os seus fatos protectores, mantendo-se afastados dos outros. Estavam reunidos na estrada de terra, vendo os aviadores trabalhando num campo plano que nos meses mais amenos deveria ser usado em actividades desportivas.

Um Plymouth escuro sem distintivos chegou ao local perto das duas horas da manhã, e Lucy foi correndo ao seu encontro. Vi-a conversar com Janet através da janela aberta do condutor. Depois o carro foi-se embora.

— Estou de volta - disse Lucy, tocando-me num braço.

— Está tudo bem? - perguntei-lhe, e sabia que a vida que elas viviam devia ser dura.

— Por enquanto está tudo controlado - respondeu.

— Zero-Zero-Sete, foi muito amável por ter vindo ajudar-nos hoje — disse Marino a Lucy, fumando como se este fosse o seu último cigarro.

— Sabe, há uma lei federal que castiga a falta de respeito por agentes federais, - disse ela. - Especialmente às minorias de raízes italianas.

— Espero bem que você pertença a uma minoria. Não quero encontrar muitas outras iguais a si. - Sacudiu a cinza, enquanto ao longe se podia ouvir um avião.

— Janet vai ficar aqui - disse Lucy a Marino. - Quero dizer, vocês dois irão trabalhar nisto juntos. Não pode fumar dentro do carro, e, se lhe bater, eu trato-lhe da saúde.

— Calem-se - disse aos dois.

O jacto regressava barulhento do Norte, e ficámos calados a observar o céu quando as luzes se acenderam num repente. Formavam uma linha de ígneos pontos coloridos, verdes para a aproximação, brancos para a zona de segurança, e finalmente vermelhos a assinalar o final do campo. Imaginei como esta cena seria fantasmagórica para quem tivesse o azar de passar por aqui enquanto o avião se aproximava. Podia ver a sua sombra escura e as luzes tremeluzentes nas pontas das asas enquanto ia reduzindo a altitude, e o barulho tornava-se estonteante. O trem de aterragem baixou e uma luz verde esmeralda espalhou-se do poço das rodas enquanto o C-17 se dirigia a nós.

Tive a paralisante sensação de que estava a testemunhar um avião em queda, de que esta monstruosa máquina cinzenta com as pontas das asas verticais ia despenhar-se no chão. Soava como um furacão ao passar sobre as nossas cabeças, e tapámos os ouvidos enquanto as suas enormes rodas tocavam no chão, fazendo esvoaçar ervas e terra, grandes torrões arrancados dos sulcos abertos pelas rodas e pelas cento e trinta toneladas de alumínio e aço. Os flaps das asas estavam levantados, os motores rugiam em rotação invertida, e o jacto foi parar no extremo de um campo que não dava para um jogo de futebol americano.

Depois os pilotos engrenaram-no em marcha-atrás e puseram-no a recuar por cima da erva, na nossa direcção, para depois haver uma distância suficiente para tentarem levar voo. Quando a cauda alcançou o extremo do campo o C-17 parou, com o escape dos jactos dirigido para cima. A traseira abriu-se como a boca de um tubarão, (uma rampa desceu, mostrando o porão de carga totalmente aberto e iluminado e rebrilhante do metal polido.

Por algum tempo ficámos a observar a equipa no seu trabalho. Tinham posto equipamento de guerra química, capuzes escuros e óculos e luvas pretas, que metia medo, especialmente à noite. Rapidamente tiraram a camioneta e o atrelado de cima do camião de plataforma, separaram-nos, e o VRAMAM rebocou a roulotte para dentro do C-17.

— Vamos - disse Lucy, puxando-me pelo braço. - Não queremos perder a nossa boleia.

Dirigimo-nos ao campo, e não podia acreditar no barulho e na sensação de potência ao subirmos a rampa automática, abrindo caminho por entre os rolos e os aros incorporados no pavimento metálico, com quilómetros de cabos e isoladores junto ao tejadilho. O avião parecia suficientemente grande para transportar diversos helicópteros, ambulâncias da Cruz Vermelha, tanques, e tinha pelo menos uns cinquenta assentos. Mas a equipa estava reduzida esta noite, ficaram apenas o chefe da carga, os pára-quedistas, e uma primeiro-tenente chamada Laurel, que presumi ter-nos sido atribuida.

Era uma jovem atraente, de curtos cabelos escuros, que veio cumprimentar-nos, sorridente, como uma grácil anfitriã.

— A boa notícia é que não vão ficar sentadas aqui - disse-nos. Estaremos ao pé dos pilotos. Outra boa notícia, tenho café.

— Isso seria uma maravilha - comentei, enquanto a equipagem fixava ruidosamente o atrelado e o VRAMAM ao pavimento com correntes e redes de nylon.

Os degraus que iam do compartimento de carga à carlinga estavam pintados com o nome do avião, que neste caso era, apropriadamente, Metal Pesado. A carlinga era ampla, com um sistema electrónico de controlo de voo e painéis luminosos como os usados pelos pilotos de caça. A direcção era comandada por meio de alavancas, e não de canas de leme, e a instrumentação era totalmente intimidante.

Subi para um assento giratório, atrás de dois pilotos vestidos com fatos-macaco verdes, que estavam demasiado ocupados para darem por nós.

— Dispõem de auscultadores para poderem conversar, mas por favor não falem quando os pilotos estiverem a usar os deles - informou-nos Laurel. - Não precisam de pô-los, mas isto aqui torna-se bastante barulhento.

Eu estava a apertar o meu cinto de segurança com cinco pontos de fixação, e reparei na máscara de oxigénio pendurada ao lado de cada assento.

— Irei lá para trás, mas venho visitá-las de vez em quando - prosseguiu a primeiro-tenente. - O voo até Utah demora umas três horas, e a aterragem não deverá ser muito brusca. Têm uma pista capaz de receber um vaivém espacial, ou pelo menos é o que garantem. Mas sabem como o Exército costuma exagerar.

Voltou a descer os degraus, enquanto os pilotos falavam num calão técnico que nada significava para mim. Iniciámos a manobra de levantar voo logo trinta minutos depois da aterragem.

— Vamos começar a rodar na pista agora - disse um dos pilotos.

— Carga? - Presumi que estivesse a chamar o chefe da carga. - Está tudo bem seguro?

— Sim, senhor. - A voz ressoou nos meus auscultadores.

— A listagem de conferências está concluída?

— Está.

— O. K. Vamos rolar.

O avião deu um salto em frente, saltitando pelo campo com uma reserva de potência que nada tinha a ver com as minhas anteriores experiências de voo. Rugiu a mais de cento e sessenta quilómetros à hora, elevando-se a um ângulo tão acentuado que quase me esmagava contra o encosto do assento. De repente, as estrelas brilhavam no céu, e as luzes de Maryland formavam um complexo painel tremeluzente por baixo de nós.

— Seguimos a cerca de duzentos nós - disse um dos pilotos. Comando do avião 3C6C1. Levantar flaps. Executar.

Olhei para Lucy, que seguia atrás do co-piloto e tentava ver tudo o que ele estava a fazer, enquanto escutava o que diziam, talvez a decorar cada palavra. Laurel regressou com canecas de café, mas nada era capaz de conservar-me acordada. Caí num sono profundo a onze mil metros de altitude, enquanto voávamos para oeste a novecentos e sessenta quilómetros por hora. Só acordei quando ouvi a torre a comunicar.

Estávamos por cima de Salt Lake City e a descer, e Lucy ainda não se cansara da conversa de cockpit. Apanhou-me a olhar mas não ligou, e eu sabia que nunca conhecera ninguém como ela, nunca em toda a minha vida. Tinha uma curiosidade voraz sobre tudo o que pudesse ser montado, desmontado, programado e, de um modo ou outro, regulado de forma a fazer algo que ela queria que fizesse. As pessoas eram, por assim dizer, a única coisa que não conseguia compreender.

O controlo de Clover transferiu-nos para o controlo de Dugway, e depois começámos a receber instruções para a aterragem. Apesar do que nos tinham dito sobre o comprimento da pista, parecia que íamos ser arrancadas dos assentos quando os jactos começaram a rugir sobre uma pista piscando com quilómetros de luzes, com o ar a aturdir-nos os sentidos ao embater nos flaps levantados. A paragem foi tão abrupta que imaginei não ser fisicamente possível resistir-lhe, e cheguei a duvidar de que os pilotos já a tivessem alguma vez ensaiado.

— Chegámos - disse um deles num tom satisfeito.

 

Dugway era do tamanho do estado de Rhode Island, com cerca de duas mil pessoas a residir na base. Mas não conseguimos ver nada quando lá chegámos às cinco e meia da madrugada. Laurel entregou-nos a um soldado, que nos meteu num camião, levando-nos a um local onde poderíamos descansar e recompor-nos. Não havia tempo para dormir. O avião partiria mais tarde nesse mesmo dia, e precisávamos de estar a bordo.

Lucy e eu registámo-nos no Albergue do Antílope, em frente do Clube da Comunidade. Deram-nos um quarto de duas camas no primeiro piso, mobilado em madeira de roble e alcatifas, tudo em tons de azul. Tinha uma bonita vista sobre as casernas, onde as luzes começavam a acender-se com o alvorecer.

— Sabes, acho que não vale a pena tomarmos um duche, pois vamos precisar de vestir as mesmas roupas - disse Lucy, estendida em cima da cama.

— Tens toda a razão - concordei, tirando os sapatos. - Importas-te se desligar o candeeiro?

— Até agradeço.

O quarto ficou às escuras, e de repente senti-me tola.

— Isto faz-me lembrar uma daquelas festinhas em pijama de outros tempos.

— Pois, só que esta festinha começou no inferno.

— Lembras-te de quando vinhas ficar na minha casa quando eras pequenina? - disse. - às vezes ficávamos acordadas durante metade da noite. Nunca tinhas vontade de adormecer, estavas sempre a pedir-me para te ler mais uma história. Davas cabo de mim.

— Se bem me recordo, acontecia o contrário. Eu queria dormir, mas tu não me deixavas em paz.

— Mentira!

— Porque eras uma tia-galinha.

— Não era nada! Quase não era capaz de estar no mesmo quarto contigo - disse eu. - Mas tinha pena de ti, e queria ser amável.

Uma almofada atravessou o quarto às escuras e veio cair-me na cabeça. Atirei-a de volta. Depois Lucy saltou da cama dela para a minha, e quando lá chegou eu não sabia o que fazer, porque ela já não tinha dez anos e eu não me chamava Janet. Lucy levantou-se e voltou para a cama dela, amaciando ruidosamente as almofadas em que se encostava.

— Parece que estás bastante melhor - disse ela.

— Melhor, mas não muito. Sou capaz de continuar viva.

— Tia Kay, que vais fazer a respeito de Benton? Parece que já nem pensas nele.

— Com certeza que penso - respondi. - Mas as coisas têm andado ultimamente bastante descontroladas, para não dizer outra coisa.

— É sempre essa a desculpa que as pessoas dão. Sei isso por experiência própria. Ouvi-o da minha mãe durante toda a minha vida.

— Mas não de mim - repliquei.

— Precisamente. Que pensas fazer, a respeito dele? Vocês podiam casar-se.

A ideia encheu-me outra vez de nervos.

— Não me parece que possa fazer isso, Lucy.

— Porque não?

— Talvez esteja demasiado habituada à minha maneira de viver, numa rotina de que agora não sou capaz de sair. Exigem demasiado de mim.

— Precisas também de viver a tua vida.

— Eu também acho - disse. - Mas talvez não seja isso o que os outros pensam.

— Tens estado sempre pronta a aconselhar-me - disse Lucy. - Talvez tenha agora chegado a minha vez. E não acho que devas casar-te.

— Porquê? - Estava mais curiosa do que surpreendida.

— Parece-me que nunca chegaste a enterrar o Mark. E, até que o faças, não deves casar-te. Não estarias ali de corpo inteiro, se é que me faço compreender.

Sentia-me triste, e ao mesmo tempo satisfeita por ela não poder estar a ver-me no escuro. Pela primeira vez na vida de ambas, estávamos a conversar como duas boas amigas.

— Ainda não me habituei à sua ausência, e é provável que nunca me habitue - disse. - Mark foi realmente o meu primeiro amor.

— Sei tudo isso - prosseguiu a minha sobrinha. - Mas preocupo-me ao pensar que, se acontecer alguma coisa, nunca haverá também mais ninguém para mim. E não quero passar o resto da minha vida sem ter o que tenho agora. Sem ter alguém com quem possa conversar a respeito seja do que for, alguém que se preocupe e seja minha amiga. - Hesitou, e o que disse a seguir devia ter algum sentido obscuro. - Alguém que não fique com ciúmes e que não se sirva de mim.

— Lucy - disse-lhe. - Ring não vai voltar a usar um crachá durante toda a vida, mas só tu podes retirar a Carne todo o poder que tem sobre ti.

— Ela não tem qualquer poder sobre mim - disse Lucy, com um acesso de mau génio.

— Claro que tem. E eu compreendo. Também a desprezo.

Lucy ficou calada por um momento, e depois falou com uma voz mais débil.

— Tia Kay, que me irá acontecer?

— Não sei, Lucy - disse. - Não tenho respostas. Mas prometo que estarei sempre a teu lado durante todo o caminho.

O trajecto tortuoso que a conduzira até Carne trouxe-nos eventualmente de regresso à mãe de Lucy, que era evidentemente a minha irmã. Revisitei os altos e baixos dos meus anos formativos, e fui honesta com Lucy a respeito do meu casamento com o seu ex-tio Tony. Falei-lhe do que eu sentia com a minha idade sabendo que provavelmente nunca teria filhos. Entretanto, o céu começava a clarear, e chegava a altura de principiar o dia. O motorista do comandante da base esperava por nós às nove horas, um jovem soldado que mal precisaria ainda de fazer a barba.

— Temos uma outra pessoa que chegou logo a seguir às senhoras - disse o soldado, ao pôr os seus Ray-Ban. - Vindo de Washington, do FBI.

Parecia muito impressionado com isto, e era óbvio que não tinha qualquer ideia da identidade de Lucy, e a sua expressão não se modificou quando lhe perguntei:

— Que faz ele no FBI?

— É cientista ou qualquer coisa. Muito importante - respondeu, olhando para Lucy, que não perdera a beleza por estar acordada durante toda a noite.

O cientista era Nick Gallwey, chefe da Brigada de Desastres do Bureau, e um especialista forense de considerável reputação. Conhecia-o desde há anos, e quando chegou ao átrio demos um abraço um ao outro, e Lucy apertou-lhe a mão.

— É um prazer, Agente Especial Farinelli. Pode crer, tenho ouvido muito a seu respeito - disse-lhe ele. - Portanto, Kay e eu vamos fazer o trabalho sujo, enquanto você brinca com o computador.

— Sim, senhor - confirmou ela, melodiosamente.

— Haverá algum sitio onde se possa tomar o pequeno-almoço? - perguntou Gallwey ao soldado, que ficara subitamente confuso e tímido.

Conduziu-nos no Suburban do comandante da base, debaixo de um céu interminável. Cordilheiras não povoadas cercavam-nos ao longe, e o deserto mostrava flora como a salva, o abeto ou o carvalho americano, mirrada por falta de água. O trânsito mais próximo ficava a sessenta e cinco quilómetros de distância neste Lar dos Mustangs, como chamavam à base, com os seus depósitos de munições, o armamento da Segunda Guerra Mundial e o vasto espaço aéreo. Viam-se vestígios de sal de antigos oceanos, e encontrámos um antílope e uma águia.

A Stark Road conduziu-nos à zona de ensaios, a uns quinze quilómetros do centro habitacional da base. A cafetaria Ditto ficava no caminho, e parámos o tempo suficiente para o café e sandes de ovo. Depois seguimos para a zona de ensaios, instalada em modernos e amplos edifícios por detrás de uma vedação metálica com o topo orlado por arame farpado.

Havia letreiros de aviso por toda a parte, garantindo que os transgressores não eram bem-vindos e seriam perseguidos com força mortífera. Os edifícios eram identificados por códigos indicando quais os serviços que os ocupavam, e reconheci símbolos de gás de mostarda e de agentes de nervos, bem como os do Ebola, do Antraz e do Hantavirus. As paredes eram de cimento armado, disse-nos o soldado, com sessenta centímetros de espessura, e os congeladores no interior podiam resistir a explosões. A rotina não era diferente da que experimentara em outras ocasiões. Guardas conduziram-nos através das instalações de contenção tóxica, e Lucy e eu entrámos no vestiário das mulheres enquanto Gallwey ia para o dos homens.

Tirámos todas as nossas roupas e vestimos roupas verde-oliva, e por cima destas os fatos especiais, camuflados com capuzes dispondo de óculos protectores, e fortes luvas negras de borracha e botas. Como as vestes azuis do CDC e do USAMRIID, estes eram conectados a tubagens de ar no interior da câmara, que neste caso era forrada de aço inoxidável do tecto ao chão. Era um sistema completamente vedado com duplos filtros de carbono, no qual veículos contaminados, como tanques por exemplo, podiam ser bombardeados com agentes e vapores químicos. Foi-nos assegurado que poderíamos trabalhar aqui durante o tempo que quiséssemos, sem pôr ninguém em perigo.

Talvez fosse até possível descontaminar e guardar algumas provas testemunhais. Mas era difícil dizer. Nenhum de nós tinha previamente trabalhado num caso como este. Começámos por abrir as portas do atrelado e fazer incidir a iluminação no seu interior. Dava uma estranha sensação mover-nos dentro desta câmara, com o chão metálico a deformar-se ruidosamente como lâminas de serra debaixo dos nossos pés. Por cima de nós, um cientista do Exército sentava-se na sala de controlo atrás de uma parede de vidro, a observar tudo o que fazíamos.

Uma vez mais, fui eu a primeira a entrar, porque queria examinar cuidadosamente a cena do crime. Gallwey começou a fotografar as marcas na porta e a procurar impressões digitais, enquanto eu entrava e olhava à minha volta como se nunca lá tivesse estado. A pequena área de estar que normalmente conteria um sofá e uma mesa tinha sido extirpada e convertida num laboratório, equipado com material que não era novo nem teria sido barato.

O coelho ainda estava vivo, e dei-lhe de comer e coloquei a sua gaiola sobre um balcão esmeradamente construído de contraplacado e pintado de preto. Debaixo dele estava um frigorífico, no qual encontrei Vero e células fibroblásticas de pulmões embriónicos humanos. Tratava-se de culturas de tecidos rotineiramente usados para a alimentação de vírus variólicos, como se usam adubos para alimentar certas plantas. Para manter estas culturas, o louco agricultor deste laboratório móvel possuía uma boa reserva de caldo de cultura essencial mínimo Fagle, reforçado com dez por cento de soro fetal de vitelo. Isto, e a presença do coelho, dizia-me que ele estava a fazer mais do que a sustentar o vírus, estava ainda no estágio de propagá-lo quando a sua hora chegara.

Conservara o vírus num congelador de nitrogénio líquido que não precisava de ser ligado à corrente, bastando reatestá-lo a intervalos de alguns meses. Era parecido com uma garrafa térmica de aço inoxidável, com uma capacidade de cerca de quarenta litros, e quando desenrosquei a tampa extraí de lá sete criotubos tão antigos que, em vez de serem de plástico, eram de vidro. Os códigos que deviam identificar a doença eram diferentes de tudo o que vira até então, mas exibiam uma data, 1978, e a indicação de um local, Birmingham, Inglaterra, com diminutas abreviaturas escritas com tinta preta, cuidadosamente desenhadas em letra minúscula. Devolvi os tubos de horror congelado ao seu refúgio frígido, encontrei vinte amostras de spray facial Vita e seringas de tuberculina que o homicida, sem dúvida, tinha usado para inocular os recipientes com a doença.

Claro, havia pipetas e bolbos de borracha, pratos petri, e os frascos com tampas de enroscar nos quais o vírus crescia. O caldo no interior dos frascos era rosado. Se tivesse começado a tornar-se amarelo claro, o equilíbrio PH indicaria a presença de acidez. Isto significaria que as células carregadas de vírus não teriam sido banhadas desde há algum tempo na sua cultura de tecidos rica em nutrientes.

Lembrava-me dos meus tempos de escola médica e do meu treino como patologista, de que, ao propagar-se um vírus, as células têm de ser alimentadas. Isto é feito com o caldo cor-de-rosa, que tem de ser aspirado a intervalos de poucos dias com uma pipeta, quando os nutrientes são substituidos por detritos. O facto de o caldo ainda se apresentar rosado indicava que esta operação tinha sido realizado havia pouco tempo, pelo menos nos últimos quatro dias. Deadoc era meticuloso. Cultivara a morte com amor e cuidado. Contudo havia dois frascos quebrados no chão, talvez consequência dos saltaricos do coelho infectado, acidentalmente escapado da sua gaiola. Não me dava a impressão de suicídio, mas de alguma catástrofe imprevista que pusera deadoc em fuga.

Lentamente, prossegui o meu exame, através da cozinha, onde uma tigela e um garfo tinham sido lavados e postos a secar em cima de um pano ao lado do lava-louças. Os armários estavam também arrumados, com ordeiras filas de especiarias simples, caixas de cereais e de arroz e latas de sopas de legumes. No frigorífico havia leite magro, sumo de maçã, cebolas e cenouras, mas não havia carne. Fechei a porta, cada vez mais surpreendida. Quem era ele? Que faria ele nesta roulotte, dia após dia, além de construir as suas bombas virais? Veria televisão? Entreter-se-ia a ler?

Comecei à procura de roupas, abrindo as gavetas sem qualquer sorte. Se este homem passava muito tempo aqui, porque não teria nada para vestir além do que já trazia vestido? Porque não haveria fotografias nem recordações pessoais? E quanto a livros, catálogos para encomendar acessórios para o seu laboratório, material de consulta sobre doenças infecciosas? Mais importante ainda, que acontecera ao veículo utilizado para levar a roulotte até ao parque? Quem o teria levado, e quando?

Demorei-me mais no quarto, cuja carpete estava enegrecida com o sangue que tinha sido arrastado para os outros compartimentos ao removermos o corpo. Não podia cheirar nem ouvir nada a não ser o ar que circulava pelo meu fato quando parei para substituir a bateria de quatro horas. Este compartimento, como o resto do atrelado, era genérico, e puxei a colcha de flores para verificar que a almofada e o lençol de um dos lados estavam amachucados por alguém ter dormido ali. Encontrei um cabelo grisalho curto, e recolhi-o com uma pinça ao recordar-me de que o cabelo do morto era comprido e negro.

Uma gravura na parede era banal, e retirei-a para ver se teria alguma indicação do fabricante da moldura. Examinei o pequeno sofá debaixo de uma janela do outro lado da cama. Era forrado de vinil verde brilhante, e em cima dele estava um cacto envasado que era a única coisa viva dentro do atrelado, se se descontasse o que estava na gaiola, no incubador e no congelador. Ensaiei a consistência da terra com um dedo, e não estava muito seca, e depois coloquei o vaso no chão e abri o sofá.

A avaliar pelas teias de aranha e pelo pó, ninguém o usara durante muitos anos, e encontrei nele um gatinho de borracha, um boné azul descorado e um cachimbo de carolo de milho, muito mordido. Não me parecia que nada disto pertencesse a quem morava aqui nos últimos tempos. Tentei imaginar se a roulotte teria sido comprada em segunda mão ou se pertenceria à família, e pus-me de joelhos no chão até encontrar o cartucho e a bucha, que também fechei num saco de provas.

Lucy estava a sentar-se em frente do computador portátil quando regressei à área do laboratório.

— Palavra-passe do poupa-ecrã - disse para o seu microfone activado pela voz.

— Esperava que encontrasses alguma coisa difícil - disse-lhe.

Lucy já estava a reentrar em ambiente DOS. Conhecendo-a, sabia que teria a palavra-passe removida dentro de minutos, como já a tinha visto fazer.

— Kay. - A voz de Gallwey parecia estar dentro do meu capuz. - Tenho aqui fora qualquer coisa interessante.

Desci os degraus, com cuidado para não embaraçar o meu tubo de ar. Ele estava em frente do atrelado, agachado junto do engate de reboque de onde o número de identificação tinha sido removido. Tendo polido o metal com uma lixa extra-fina até se apresentar liso e brilhante, estava agora a aplicar-lhe uma solução de cloreto de sódio e ácido hidroclórico para dissolver o metal raspado e restaurar o número profundamente gravado por baixo, que o homicida julgara ter limado por completo.

— As pessoas não pensam como é difícil verem-se livres destas coisas - disse, com a voz a encher-me os ouvidos.

— Excepto quando são ladrões profissionais de carros - acrescentei.

— Bem, quem apagou isto não fez um bom trabalho. - Estava a tirar fotografias. - Parece-me que já apanhei o número.

— Esperemos que a roulotte esteja registada - disse eu.

— Quem sabe? Talvez tenhamos sorte.

— E quanto a impressões digitais? - A porta e a sua moldura de alumínio estavam enfarruscadas com um pó preto.

— Algumas, mas só sabe Deus de quem - disse ele, levantando-se e endireitando as costas. - Daqui a pouco vou rebentar com o interior.

Lucy estava a rebentar com o computador e, como eu, não conseguia encontrar nada que nos pudesse dizer quem era deadoc. Mas dera com ficheiros que ele tinha gravado das nossas conversas electrónicas, e era deprimente vê-las no monitor e tentar imaginar quantas vezes as teria ele relido. Havia detalhados apontamentos laboratoriais documentando a propagação das células de vírus, o que era interessante. Parecia que o trabalho tinha sido iniciado já em princípios do Outono, menos de dois meses antes do aparecimento do torso.

No final da tarde já tínhamos feito tudo o que podíamos fazer, sem quaisquer revelações sensacionais. Tomámos duches químicos, enquanto o atrelado era fumigado com gás de formalina. Fiquei com a minha roupa verde-oliva porque não queria voltar a vestir o fato depois de tudo o que ele tinha passado.

— Estás com um belo guarda-roupa - comentou Lucy quando saímos do vestiário. - Devias experimentar um colar de pérolas com isso. Ficavas mais elegante.

— Por vezes falas como Marino - disse-lhe.

 

Os dias passaram-se, veio o fim-de-semana, e depressa também esse passou sem surgirem novos desenvolvimentos. Tinha-me esquecido do aniversário da minha mãe. Nem sequer me tinha passado pela cabeça.

— O quê? Também estás com Alzheimer? - disse-me ela, friamente, pelo telefone. - Nunca vens visitar-me. Agora nem te dás ao trabalho de me telefonar. Fica sabendo que não estou a ficar mais nova.

Começou a chorar, e eu tinha vontade de fazer o mesmo.

— Para o Natal - disse, como dizia todos os anos. - Hei-de arranjar alguma coisa. Levo Lucy comigo. Prometo. Não é assim tão longe.

Dirigi-me ao meu serviço, sem inspiração e cansada até aos ossos. Lucy tinha tido razão. O único uso dado pelo homicida à linha telefónica instalada no parque de campismo era a ligação à AOL, e no final os custos eram debitados ao cartão de crédito roubado a Perley. Deadoc não voltou a ligar para mim. Eu estava obcecada com as consultas à sala de conversas, e por vezes dava comigo à espera, mesmo quando não tinha a certeza de que o FBI continuava a manter a escuta.

A origem do vírus congelado encontrado no congelador de nitrogénio do atrelado permanecia um mistério. Prosseguiam as tentativas de estudo do seu ADN, e os cientistas do CDC sabiam que o vírus era diferente mas não o que seria, e até agora os primatas vacinados permaneciam sensiveis a ele. Quatro outras pessoas, incluindo dois pescadores de caranguejos descobertos em Crisfield, tinham apanhado apenas casos moderados da doença. Mais ninguém parecia adoecer, enquanto a quarentena da aldeia piscatória prosseguia, arruinando a economia da ilha. No referente a Richmond, apenas Wingo continuava doente, o corpo emaciado e o rosto amável crivados de pústulas. Não me deixava ir vê-lo, por mais que tentasse.

Sentia-me decepcionada, e achava difícil pensar noutros casos porque este parecia não terminar. Sabíamos que o homem encontrado morto na roulotte não podia ser deadoc. As impressões digitais tinham identificado um vagabundo com um longo rol de delitos, principalmente relacionados com roubos e tráfico de drogas, e dois casos de assalto e tentativa de estupro. Estava em liberdade condicional quando usara a faca de mato para forçar a porta do atrelado, e ninguém duvidava de que a sua morte com a caçadeira tinha sido um homicídio.

Cheguei ao meu serviço às oito e um quarto. Quando Rose me ouviu, veio ter comigo através da porta do seu gabinete.

— Espero que tenha descansado um pouco - disse, mais preocupada comigo do que nunca me parecera.

— Sim, descansei, obrigada - e a sua preocupação fazia-me sentir culpada e envergonhada, como se fosse má. - Há algumas novidades?

— Nada a respeito de Tangier. - Podia ver-lhe a preocupação nos olhos. - Tente não pensar mais no caso, Dra. Scarpetta. Temos cinco casos esta manhã. Olhe para a sua secretária, se conseguir encontrá-la. E estou quase com quinze dias de atraso com a correspondência, porque não tem estado cá para ma ditar.

— Eu sei, eu sei, Rose - disse-lhe, tentando ser agradável. - Vamos por ordem. Experimente novamente apanhar Phyllis. Se lhe disserem que está com baixa de doença, peça um número para onde lhe possamos telefonar. Há dias que tento o seu número de casa e ninguém responde.

— Se conseguir apanhá-la, quer que transfira para aqui a chamada?

— Sem dúvida - disse.

Isso aconteceu quinze minutos depois, quando estava prestes a sair para a reunião do pessoal. Rose tinha Phyllis Crowder ao telefone.

— Por onde tem andado? E como se sente? - perguntei.

— Esta maldita gripe - disse ela. - Veja se não a apanha.

— Já apanhei, e ainda não me vi livre dela - comentei. - Tenho tentado contactá-la na sua casa em Richmond.

— Ah, é que estou em casa da minha mãe, em Newport News. Como sabe, trabalho quatro dias por semana, e desde há anos que passo aqui os outros três dias.

Não sabia. Mas também, nunca tínhamos fraternizado.

— Phyllis - disse-lhe. - Custa-me incomodá-la quando está doente, mas preciso da sua ajuda com uma coisa. - Em 1978 houve um acidente num laboratório em Birmingham, Inglaterra, onde você trabalhou em tempos. Tenho andado a procurar informações sobre o caso, e só sei que uma fotógrafa estava a trabalhar directamente por cima do laboratório de varíola...

— Pois, pois - interrompeu-me. - Lembro-me bem desse caso. Parece que a fotógrafa foi exposta através de uma conduta de ventilação, e morreu. O virólogo suicidou-se. O caso é constantemente citado pelas pessoas que são a favor da destruição imediata de todas as reservas de vírus congelados.

— Estava a trabalhar nesse laboratório quando isto aconteceu?

— Não, graças a Deus. Foi alguns anos depois de sair. Nessa altura já estava nos Estados Unidos.

Fiquei decepcionada, e ela começou a tossir e mal podia falar.

— Desculpe - e voltou a tossir. - É o que acontece quando se mora sozinho.

— Não tem ninguém a tomar conta de si?

— Não.

— E quanto à comida?

— Cá me vou governando.

— Podia levar-lhe alguma coisa - sugeri.

— Nem pense nisso.

— Ajudo-a se me ajudar - acrescentei. - Tem alguns documentos relacionados com Birmingham, com o trabalho que se fazia ali quando ainda lá trabalhava? Qualquer coisa que possa consultar?

— Com certeza, enterrados algures cá em casa - disse ela.

— Então desenterre-os, e eu levo-lhe um guisado.

Estava na rua passados cinco minutos, a correr para o meu carro. Chegando a casa, tirei do congelador uma panela do meu guisado caseiro, depois fui atestar o carro com gasolina antes de me meter na estrada 64. Pelo telemóvel disse a Marino o que ia fazer.

— Está mesmo perdidinha, desta vez - exclamou ele. - Vai percorrer quase duzentos quilómetros para levar comida a alguém?

— O meu objectivo não é esse. E pode crer, tenho um objectivo. - Coloquei os óculos de sol. - É capaz de haver aqui alguma coisa. Ela talvez saiba alguma coisa que nos ajude.

— Está bem, depois informe-me - disse Marino. - Tem o seu pager ligado, não tem?

— Claro.

O trânsito estava reduzido a esta hora, e regulei o controlo da velocidade para os cento e dez quilómetros, pelo que não apanhei nenhuma multa. Em menos de uma hora passei por Williamsburg, e passados vinte minutos segui as instruções que Crowder me tinha dado para encontrar a morada dela em Newport News. O bairro chamava-se Brandon Heights, onde a classe económica era mista, e as casas iam aumentando de tamanho à medida que me aproximava do rio James. A dela era uma modesta construção de dois pisos, recentemente pintada de branco casca-de-ovo, e o jardim parecia bem cuidado.

Estacionei atrás de uma furgoneta e carreguei com o guisado, a mala de mão e a minha pasta suspensa do ombro. Quando Phyllis Crowder veio abrir a porta, estava com um aspecto péssimo, com o rosto pálido e os olhos ardendo de febre. Tinha vestido um roupão de flanela e calçava chinelos de cabedal que pareciam ter pertencido em tempos a um homem.

— Nem posso acreditar na sua amabilidade - disse ela. - Ou então é maluca.

— Depende da pessoa a quem perguntar.

Entrei, parando para observar as fotografias emolduradas ao longo do átrio de entrada. A maioria era de pessoas à pesca ou em passeio, e todas tinham sido tiradas há bastante tempo. Os meus olhos fixaram-se numa delas, um homem de certa idade com um chapéu azul pálido e com um gato ao colo, sorrindo com um cachimbo de carolo de milho.

— Era o meu pai - disse Crowder. - Era aqui que os meus pais viviam, e antes deles também moraram aqui os pais da minha mãe. São aqueles ali. - Apontou. - Quando a loja do meu pai começou a fraquejar na Inglaterra, vieram para cá e passaram a morar com a família dela.

— E você?

— Fiquei lá, andava na escola.

Olhei para ela e não me pareceu que fosse tão velha como queria fazer-me crer.

— Está sempre a tentar fazer-me acreditar que é um dinossauro comparada comigo - comentei. - Não sei porquê, mas não acredito.

— Talvez suporte melhor do que eu os anos que passam. - Os seus olhos febris fixaram-se nos meus.

— Ainda tem algum parente vivo? - perguntei, continuando a observar as fotografias.

— Os meus avós faleceram há uns dez anos, e o meu pai há cinco. Depois disso, passei a vir cá todos os fins-de-semana para tratar da minha mãe. Ela aguentou-se enquanto pôde.

— Isso deve ter sido terrível para a sua carreira profissional - comentei, olhando para uma sua foto antiga, na qual ela estava a sorrir num barco, mostrando uma truta arco-íris.

— Quer entrar e sentar-se? - perguntou. - Deixe-me ir pôr isto na cozinha.

— Não, não, indique-me o caminho e poupe as suas forças - insisti.

Conduziu-me através de uma casa de jantar que não devia ter sido usada havia anos, já sem candeeiro, os fios expostos pendentes sobre uma velha mesa, e com as cortinas substituidas por estores. Quando entrámos na ampla cozinha antiga, senti o meu cabelo pôr-se em pé na cabeça e no pescoço, e precisei de me controlar para colocar o guisado no balcão.

— Quer chá? - perguntou ela.

Já não tossia, e, se bem que pudesse estar doente, não seria por essa razão que inicialmente deixara de ir ao trabalho.

— Não quero nada, obrigada - respondi.

Sorriu para mim, mas os seus olhos fixavam-me penetrantes, e enquanto continuávamos sentadas à mesa da cozinha eu ia tentando freneticamente pensar no que poderia fazer. Aquilo de que eu estava a suspeitar não podia estar certo, ou deveria ter percebido há mais tempo? Conhecia-a desde há mais de quinze anos. Tínhamos trabalhado juntas em numerosos casos, partilhando informações, mostrando compaixão pelo que víamos. Nos velhos tempos, bebíamos café e fumávamos juntas. Achara-a encantadora, brilhante, e certamente nunca sentira nela nada de sinistro. Contudo, sabia que era precisamente isto o que as pessoas diziam do homicida em série que morava na casa ao lado, do violador, do pedófilo.

— Falemos então de Birmingham - sugeri.

— Falemos. - Já não estava a sorrir.

— A fonte congelada desta doença foi encontrada - disse. - Os frascos têm etiquetas datadas de Birmingham em 1978. Gostava de saber se o laboratório teria estado a investigar estirpes mutantes de varíola, qualquer coisa de que possa ter conhecimento...

— Não estava lá em 1978 - interrompeu ela.

— Bem, Phyllis, parece-me que estava.

— Não interessa. - Levantou-se e pôs a chaleira ao lume. Eu não disse nada, esperando que ela voltasse a sentar-se.

— Estou doente, e por esta altura você também deve estar - disse ela, e sabia que não se referia à gripe.

— Surpreende-me que não tenha produzido a sua própria vacina antes de ter começado tudo isto - disse eu. - Parece-me que foi um pouco de descuido para uma pessoa tão meticulosa.

— Nunca teria precisado dela se não fosse aquele malvado ter-me assaltado a roulotte, estragando tudo - replicou. - Aquele porco imundo e nojento. - Tremia de raiva.

— Enquanto estava na AOL, a conversar comigo - acrescentei. Foi por isso que se conservou em linha comigo, sem ter chegado a sair, porque ele estava a forçar-lhe a porta. E você deu-lhe um tiro e fugiu na sua furgoneta. Possivelmente passava os seus longos fins-de-semana na ilha de Janes, para poder passar a sua bela doença para novos frascos, para alimentar os queridinhos.

Enquanto falava, sentia a minha cólera crescer. Ela parecia não se importar, mas estava a gostar.

— Depois de uma vida inteira na medicina, acha que as pessoas não são mais do que lâminas de microscópio e pratos petri? O que acontece às caras delas, Phyllis? Eu vi as pessoas a quem fez isto. - Aproximei-me mais dela. - Uma velhinha que morreu sozinha na sua cama imunda, sem ninguém para ouvir as suas súplicas. E agora Wingo, que não me deixa ir vê-lo, um jovem decente e amável, a morrer. Você conhece-o! Ele tem ido ao seu laboratório! Que mal lhe teria feito ele?

Ela permanecia inabalável, com a raiva também a fervilhar.

— Deixou a amostra de spray de Lila Pruitt num dos cubículos onde ela deixava as receitas para vender. Diga-me se não tenho razão. Ela pensou que o correio tinha sido entregue na morada errada, e depois deixado ali por uma vizinha. Que coisinha tão engraçada para receber de graça, e aplicou o spray na cara. Tinha-o na mesa de cabeceira, usando-o sempre que estava com dores.

A minha colega continuava silenciosa, com os olhos rebrilhando.

— Possivelmente entregou todas as suas bombazinhas em Tangier ao mesmo tempo - disse eu. - Depois foi distribuir as que eram destinadas a mim e à minha equipa. Qual era o seu plano para depois disso? O mundo?

— Talvez - foi tudo o que ela disse.

— Porquê?

— Porque mo fizeram primeiro a mim. Quem com ferro mata...

— Que lhe teriam feito que seja parecido com isso? - Era um esforço manter a minha voz controlada.

— Estava em Birmingham quando aquilo aconteceu. O acidente. Pensaram que eu tinha tido a culpa, em parte, e fui obrigada a vir-me embora. Era completamente injusto, uma ruína completa para mim, que ainda era nova e estava sozinha. Assustada. Os meus pais tinham vindo para os Estados Unidos, para viverem nesta casa. Gostavam do ar livre. Campismo, pesca. Todos eles gostavam.

Durante um longo momento ficou a olhar para longe, como se tivesse regressado aos velhos tempos.

— Ninguém se importou comigo, mas tinha trabalhado muito. Encontrei outro trabalho em Londres, três níveis abaixo do que tivera anteriormente. - Os olhos dela fixaram-se em mim. - Não era justo. Foi um virólogo quem causou o acidente, mas, como eu estava lá naquele dia, e como ele resolveu matar-se, foi fácil lançarem as culpas sobre mim. Além disso, não era mais do que uma garota, realmente.

— Por isso roubou a reserva de vírus ao sair - comentei.

Ela sorriu friamente.

— E guardou-o durante todos estes anos?

— Não é difícil quando todos os locais onde se trabalha dispõem de congeladores de nitrogénio. Ofereci-me sempre para controlar a reserva - disse com orgulho. - Consegui mantê-la viva.

— Porquê?

— Porquê? - A voz dela aumentou de tom. - Era eu quem estava a trabalhar naquilo quando se deu o acidente. Era meu. Por isso tratei de levar algum comigo, bem como as minhas outras experiências, quando me puseram na rua. Para que havia de deixá-los ficar com tudo? Não eram suficientemente espertos para fazerem o que eu fiz.

— Mas isto não é varíola. É alguma outra coisa - disse eu.

— Bem, isso é que é pior, não é? - Os lábios tremiam-lhe de emoção ao recordar esses dias. - Consegui enxertar o ADN da varicela no genoma da varíola.

Estava cada vez mais excitada, e as mãos tremiam-lhe ao limpar o nariz a um guardanapo.

— E depois, no inicio do novo ano escolar, passaram por cima de mim e deram o lugar de chefe do departamento a outra pessoa - prosseguiu, os olhos flamejando com lágrimas de fúria.

— Phyllis, não é justo...

— Cale-se! - gritou. - Depois de tudo o que fiz por aquela maldita escola? Sou a funcionária mais sénior, que ensinou toda a gente, incluindo você. E dão o lugar a um homem, porque não sou médica. Sou apenas doutorada em filosofia - disse, desdenhosa.

— Deram o lugar a um patologista especializado em Harvard, que tem todas as qualificações necessárias - declarei peremptoriamente.

— Mas isso não interessa. Não há qualquer justificação para aquilo que fez. Guardou um vírus durante todos estes anos? Para fazer uma coisa destas?

A chaleira estava a apitar ao lume. Levantei-me e apaguei o fogão.

— Não é a única doença exótica que tenho nos meus arquivos. Tenho andado a coleccionar - disse ela. - Cheguei a pensar que algum dia seria capaz de me ocupar de algum projecto importante. Estudar o vírus mais temido do mundo e aprender mais alguma coisa sobre o sistema imunológico humano que pudesse libertar-nos de outros flagelos como a sida. Pensei que talvez pudesse ganhar um Prémio Nobel. - Tornara-se estranhamente calma, como se estivesse satisfeita consigo. - Mas não, não diria que em Birmingham a minha intenção era criar algum dia um surto epidémico.

— Bem, e não criou - repliquei.

Ela fitou-me com olhos semicerrados de maldade.

— Ninguém adoeceu excepto os que devem ter usado o spray facial - disse-lhe. - Tenho estado exposta diversas vezes a pacientes, e encontro-me bem. O vírus que criou é um beco sem saída, afectando apenas a vitima primária mas sem replicar-se. Não há infecção secundária. Não há epidemia. O que você criou foi um pânico, além de doença e morte para uma mão cheia de vítimas inocentes. E arruinou a indústria piscatória de uma ilha cheia de pessoas que provavelmente nunca ouviram falar no Prémio Nobel.

Recostei-me na cadeira, a estudá-la, mas ela parecia não reagir.

— Porque me mandou as fotos e as mensagens? - inquiri. - Fotografias tiradas na sua casa de jantar, em cima daquela mesa. Quem foi a sua cobaia? A sua velha e doente mãe? Contagiou-a com o vírus, para saber se resultava? E quando resultou deu-lhe um tiro na cabeça. Desmembrou-a com uma serra de autópsia para que ninguém relacionasse essa morte com a futura contaminação do spray?

— Pensas que és tão esperta - disse ela, deadoc.

— Matou a sua própria mãe e embrulhou-a num resguardo porque não era capaz de olhá-la enquanto a retalhava.

Ela evitou os meus olhos, e senti a vibração do meu pager Peguei nele e li o número de Marino. Tirei o telemóvel da bolsa, sempre a olhar para ela.

— Sim - disse quando ele respondeu.

— Tivemos sorte com a roulotte - disse ele. - Pudemos identificar o fabricante, e daí fomos dar a uma morada em Newport News. Pensei que gostasse de saber. Os agentes devem estar agora a chegar lá.

— Seria bom que o Bureau tivesse descoberto isso um pouco mais cedo - comentei. - Vou esperar os agentes à porta.

— Que disse?

Desliguei o telefone.

— Entrei em contacto consigo porque sabia que iria dar-me atenção. - Crowder continuava a falar com uma voz mais intensa. - Para fazê-la tentar e falhar por uma vez na vida. A famosa doutora. A famosa directora.

— Você era uma colega e uma amiga - disse.

— E invejo-a! - Tinha a cara avermelhada, com o peito a arfar em ânsias. - Sempre invejei! O sistema sempre a tratou melhor do que a mim, toda a atenção que lhe davam. A grande Dra. Scarpetta. A lenda. Mas ah! Olhe quem ganhou. No final, fui eu a mais esperta, não fui?

Não conseguia responder-lhe.

— Baralhei-lhe as voltas, não foi? - Olhou-me intensamente, pegando num frasco de aspirina e retirando de lá dois comprimidos. Levei-a até às portas da morte, e fi-la aguardar no ciberespaço. à minha espera! - disse, triunfante.

Algo metálico bateu fortemente na porta dianteira. Empurrei a minha cadeira para trás.

— Que vão eles fazer-me? Matar-me? Ou talvez você. Sei que tem uma pistola numa das suas malas. - Estava a ficar histérica. - Também tenho uma no quarto, e vou buscá-la já.

Pôs-se em pé, enquanto continuavam a bater à porta. - Abra! FBI!

— Agarrei-lhe um braço. - Ninguém vai dar-lhe um tiro, Phyllis.

— Largue-me!

Empurrei-a na direcção da porta. Largue-me!

— O seu castigo será morrer como os outros morreram. - Puxei-a atrás de mim.

— Não! - gritou ela enquanto a porta era rebentada, indo embater na parede e soltando dos seus ganchos as fotos emolduradas.

Dois agentes do FBI entraram, de pistolas em punho, e um deles era Janet. Algemaram a Dra. Phyllis Crowder, caída no chão. Uma ambulância levou-a para o Hospital Geral Sentara, de Norfolk, onde passados vinte e um dias morreu, acorrentada à cama, coberta de pústulas fulminantes. Tinha quarenta e quatro anos.

 

Não fui capaz de tomar uma decisão imediatamente, adiando-a para a véspera do Ano Novo, ocasião em que as pessoas costumam fazer mudanças, intenções, promessas que sabem que nunca irão cumprir. A neve cobria o meu telhado de lousa, e Wesley e eu estávamos sentados no chão em frente da lareira, bebericando champanhe.

— Benton - disse. - Preciso de ir a um sítio.

Ele parecia confuso, como se eu quisesse dizer imediatamente, e respondeu:

— Agora está quase tudo fechado, Kay.

— Não. Uma viagem, talvez em Fevereiro. A Londres.

Ele ficou calado, sabendo o que eu queria dizer. Pousou o copo na pedra da lareira e pegou-me na mão.

— Tinha esperança de que quisesses ir - disse. - Por mais que te custe, acho que deves ir. Para que o caso seja encerrado e tenhas paz de espírito.

— Não sei se me será possível ter paz de espírito.

Afastei a minha mão da dele e puxei o cabelo para trás. Isto também era difícil para ele. Tinha de ser.

— Também deves sentir a falta dele - disse-lhe. - Tu nunca me falas dele, mas era como um irmão para ti. Recordo-me dos tempos em que fazíamos coisas juntos, nós os três. Cozinhávamos, íamos ao cinema, conversávamos sobre os nossos casos e sobre as mais recentes partidas que o governo nos pregava. Como as licenças temporárias, os impostos, os cortes no orçamento.

Ele sorriu um pouco, olhando para as chamas.

— E eu pensava como ele era um felizardo por ter-te só para ele. Gostava de saber o que ele sentia. Bem, agora já sei, e tinha razão. Era um sujeito cheio de sorte. Era talvez a única pessoa, além de ti, com quem eu realmente podia conversar. É estranho, de certo modo. Mark era uma das pessoas mais concentradas em si mesmo que alguma vez conheci, uma daquelas belas criaturas, narcisista como um raio. Mas era bom. Era esperto. Acho que nunca se deixa de sentir a falta de alguém como ele.

Wesley tinha vestido um camisolão de lã branca e umas calças de caqui cremes, e à luz das chamas quase refulgia.

— Se saíres à rua esta noite vais desaparecer - disse-lhe.

Ele mostrou-me uma expressão de incompreensão.

— Vestido como estás, no meio da neve. Se cais numa vala, ninguém dá por ti antes da Primavera. Devias vestir uma coisa escura numa noite como estas. Percebes, para fazer contraste.

— Kay, e se eu fosse fazer um bocado de café?

— É como as pessoas que querem um veículo de tracção às quatro rodas para o Inverno. Por isso vão e compram um carro branco. Diz-me se isso faz sentido, quando se derrapa numa estrada forrada de branco debaixo de um céu branco com a neve branca a rodopiar no ar.

— De que estarás tu a falar? - Os olhos dele fixavam-se em mim.

— Nem sei.

Tirei a garrafa de champanhe do seu balde de gelo. A água pingava enquanto voltava a encher os copos, e eu já ia com algum avanço sobre ele, talvez de dois para um. O aparelho de CD estava carregado com êxitos dos anos setenta, e os Three Dog Night faziam vibrar os altifalantes nas paredes. Era uma daquelas raras ocasiões em que seria capaz de ficar tocada. Não podia deixar de pensar no caso e de rever tudo mentalmente. Não suspeitara de nada até entrar na casa de jantar com os fios eléctricos pendurados do tecto e ver a mesa onde as mãos e os pés decepados tinham sido arrumados em fila. Fora só nessa altura que a verdade me tinha cauterizado o cérebro. Não era capaz de me perdoar.

— Benton - disse, calmamente. - Devia ter desconfiado que era ela. Devia ter sabido antes de lhe entrar em casa e de ver as fotografias na parede e aquela divisão. Quero dizer, uma parte de mim devia ter sabido, mas eu não escutei.

Ele não respondeu, e tomei isto por uma acusação silenciosa.

— Devia ter sabido que era ela - repeti por entre dentes. - Talvez se tivessem poupado algumas vidas.

— Devia é sempre fácil de dizer depois do acontecimento. - O seu tom de voz era suave mas firme. - As pessoas que moram ao lado dos Gacys, dos Bundys, dos Dhamers deste mundo são sempre os últimos a perceber, Kay.

— E eles não sabem o que eu faço, Benton. - Bebi mais um pouco de champanhe. - Ela matou Wingo.

— Fizeste o melhor que podias - recordou-me.

— Sinto a falta dele - disse com um suspiro de lamento. - Ainda não tive coragem para ir visitar o seu túmulo.

— Porque não passamos antes a beber café? - disse Wesley de novo.

— Não achas que tenho o direito de me deixar ir, uma vez por outra? - Não tinha vontade de permanecer consciente.

Ele começou a massagear-me o pescoço, e fechei os olhos.

— Porque será que tenho a obrigação de fazer sentido em tudo o que faço ou digo? De ser precisa a respeito disto, de ser exacta a respeito daquilo. Consistente com, e característico de. Expressões frias e aguçadas, como os bisturis que uso. E de que me servirão no tribunal? Quando é Lucy quem está em risco? A sua carreira, a sua vida? Tudo por causa daquele sacana, Ring. Eu, a testemunha pericial. A tia-galinha. - Uma lágrima escorreu-me pela cara. - Oh meu Deus, Benton! Sinto-me tão cansada...

Ele aproximou-se e tomou-me nos braços, puxando-me para o seu colo para que eu pudesse encostar a cabeça.

— Eu vou contigo - disse ele em voz baixa para o meu cabelo.

 

Apanhámos um táxi negro até à estação de Victoria em Londres no dia 18 de Fevereiro, o aniversário da explosão de uma bomba escondida num recipiente de lixo que provocara o colapso de uma das entradas para o metropolitano, um bar e uma cafetaria. Os destroços tinham voado, e os fragmentos do telhado envidraçado tinham chovido com uma força terrível como estilhaços de granada. O alvo do IRA não tinha sido Mark. A sua morte nada tinha a ver com o facto de trabalhar para o FBI. Apenas estivera no sítio errado no momento errado, como acontece a tantas vítimas de casos como este.

A estação estava cheia de passageiros habituais que quase nos atropelavam enquanto abríamos caminho até à zona central onde os bilheteiros da Railtrack estavam muito ocupados nos seus compartimentos, e os cartazes nas paredes davam informações sobre os horários e os destinos das composições. Quiosques vendiam doces e flores, e podia-se tirar uma série de fotos para documentos ou trocar dinheiro. Recipientes para o lixo estavam arrumados no interior da McDonald's e de outras lojas do género, mas não encontrei um único a descoberto.

— Agora já não são um local apropriado para se esconder uma bomba. - Wesley tinha reparado no mesmo.

— Aprender até morrer - comentei, começando a tremer por dentro.

Fiquei silenciosa a olhar à minha volta, vendo os pombos a esvoaçar por cima de nós e a caminhar rápidos atrás das migalhas. A entrada para o Hotel Grosvenor era a seguir à Victoria Tavem, e era neste local que aquilo acontecera. Ninguém sabia o que Mark estivera a fazer ali àquela hora, mas supunha-se que estivesse a uma das pequenas mesas altas em frente do bar quando a bomba explodiu.

Sabíamos que estava a aguardar a chegada do comboio de Brighton, porque ficara de encontrar-se com alguém. Nunca tinha chegado a saber quem, porque a identidade do individuo ficara secreta por razões de segurança. Era isso que me tinha sido dito. Nunca tinha entendido muitas coisas, por exemplo a coincidência do tempo, nem se esta pessoa clandestina teria morrido também. Observei a cobertura de vigas de aço e painéis de vidro, o velho relógio na parede de granito, e as arcadas. A explosão não deixara cicatrizes permanentes, excepto nas pessoas.

— Brighton é um local esquisito para se visitar em Fevereiro - comentei a Wesley com voz trémula. - Porque viria alguém de uma estância de veraneio nesta época do ano?

— Não faço qualquer ideia - disse ele, olhando em volta. - Este caso girava todo à volta do terrorismo urbano. Como sabes, era nesse campo que Mark estava a trabalhar. Por isso ninguém quer falar muito.

— Claro. Era nisso que estava a trabalhar, e foi nisso que morreu - disse eu. - E ninguém parece pensar que talvez houvesse uma ligação. Que a morte dele talvez não tivesse sido fortuita.

Ele não respondeu, e olhei-o, com a alma pesada e a afundar-se na escuridão de um mar sem fundo. As pessoas, e os pombos, e os intermináveis avisos nos altifalantes confundiam-se num alarido ensurdecedor, e por um instante tudo ficou negro. Wesley conseguiu amparar-me.

— Estás bem?

— Preciso de saber de quem estaria ele à espera - insisti.

— Anda, Kay - aconselhou ele. - Vamos para algum sítio onde possas sentar-te.

— Quero saber se a bomba lhe era destinada porque um certo comboio ia chegar a uma certa hora - teimei. - Tenho de saber se tudo isto foi uma ficção.

— Ficção? - perguntou.

Os meus olhos estavam marejados de lágrimas.

— Como hei-de saber se tudo isto não passa de um grande embuste, e se ele não estará ainda vivo e escondido? Uma testemunha protegida com uma identidade nova.

— Não está. - O rosto de Wesley estava pesaroso, e apertava a minha mão na dele. - Vamo-nos embora.

Mas eu não estava disposta a mexer-me.

— Tenho de saber a verdade. De quem estava ele à espera, e onde está agora essa pessoa?

— Não me faças isto.

As pessoas passavam rentes a nós, indiferentes. Pés caminhavam ruidosamente, e o aço ressoava onde os operários estavam a instalar carris novos.

— Não acredito que ele estivesse à espera de alguém. - A minha voz tremia, e limpei as lágrimas dos olhos. - Tenho a certeza de que isto é mais uma tramóia do Bureau.

Wesley suspirou, olhando para longe.

— Não é tramóia nenhuma, Kay.

— Então quem era? Preciso de saber! - clamei.

Algumas pessoas começavam a olhar para nós, e Wesley afastou-me do caminho delas, na direcção da plataforma 8, de onde o comboio das onze e quarenta e seis estava quase a partir para Denmark Hill e Peckham Rye. Levou-me por uma rampa de azulejos azuis e brancos até uma sala com bancos e cacifos, onde os passageiros podiam guardar os seus pertences e levantar bagagem. Estava a soluçar, e não conseguia controlar-me. Sentia-me confusa e furiosa, enquanto ele me encaminhava para um recanto isolado, onde carinhosamente me fez sentar numa bancada.

— Conta-me - pedi-lhe. - Benton, por favor, tenho de saber. Não me faças passar o resto da vida sem conhecer a verdade. - O choro sufocava-me.

Ele pegou-me nas duas mãos.

— Podes pôr este caso de lado imediatamente. Mark morreu. Juro-te. Pensas realmente que eu teria este relacionamento contigo se ele estivesse vivo, algures? - insistiu com paixão. - Meu Deus, como poderás tu imaginar uma coisa dessas!

— Que aconteceu à pessoa de quem ele estava à espera? - continuei a insistir.

Wesley hesitou.

— Morreu também, infelizmente. Estavam juntos quando a bomba explodiu.

— Então, para quê todo este segredo sobre a identidade dele? - exclamei. - Isso não faz qualquer sentido!

Ele hesitou de novo, desta vez durante mais tempo, e por um instante os seus olhos encheram-se de compaixão por mim, e cheguei a pensar que ele ia chorar.

— Kay, não era um ele. Mark estava com uma mulher.

— Alguma agente? - Não estava a compreender.

— Não.

— Que queres dizer?

Levei tempo a entender porque não queria entender, e, quando ele continuou calado, percebi.

— Não queria que tu soubesses - disse. - Não pensei que precisasses de saber que ele estava com outra mulher quando morreu. Vinham a sair do Grosvenor Hotel quando a bomba rebentou. O atentado não tinha nada a ver com ele. Apenas estava ali naquele momento.

— Quem era ela? - Sentia-me aliviada, e repugnada ao mesmo tempo.

— Chamava-se Julie McFee. Era uma advogada londrina, de trinta e um anos. Tinham-se conhecido por causa de um processo em que ambos estavam a trabalhar. Ou talvez através de outro agente. Não tenho bem a certeza.

Olhei-o nos olhos.

— Há quanto tempo sabias disto?

— Desde há algum tempo. Mark tencionava dizer-te, e não me competia a mim. - Tocou-me no rosto, limpando as lágrimas. - Lamento muito. Não fazes ideia de como isto me faz sentir. Como se não tivesses já sofrido bastante.

— De certo modo, isto torna as coisas mais fáceis - disse.

Um adolescente com brincos na cara e um penteado à mohawk bateu com a porta de um cacifo. Esperámos até que ele se afastasse com a sua miúda revestida de cabedal preto.

— É típico da minha relação com ele, na realidade. - Sentia-me vazia, e mal podia pensar ao pôr-me de pé. - Não era pessoa para tomar um compromisso, para correr um risco. Nunca o faria, fosse com quem fosse. Viveu tão pouco e tão superficialmente, e é isso que mais me entristece.

Cá fora estava húmido, e o vento soprava áspero, e a fila de táxis em volta da estação parecia não ter fim. Fomos andando, de mãos dadas, e comprámos algumas garrafas de Hooper's Hooch, porque não era ilegal beber limonada alcoólica nas ruas de Inglaterra. Policias nos seus cavalos malhados passeavam-se pelas cercanias do Palácio de Buckingham, e no parque de St. James uma banda de guardas com barretes de pele de urso marchavam enquanto as pessoas lhes apontavam as suas máquinas fotográficas. As árvores bailavam ao vento e o rufo dos tambores foi ficando para trás enquanto íamos caminhando a pé até ao Hotel Athenaeum em Piccadilly.

— Obrigada. - Pus o meu braço à volta dele. - Amo-te, Benton - disse-lhe.

 

                                                                                            Patricia Cornwell  

 

                      

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