Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PERIGO NO NILO / Barbara Cartland
PERIGO NO NILO / Barbara Cartland

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

PERIGO NO NILO

 

            Uma viagem ao Cairo... O renascer para o amor!

            Cairo, Egipto. ‑ Seria amor? Algumas semanas antes, Regine se deixara envolver pelo atraente e sedutor conde Alex, o playboy que perseguia as jovens mais lindas de Londres para em seguida abandoná‑las fria e cruelmente.

            Decepcionada com o breve e infeliz interlúdio, Regine jurou que nunca mais abriria seu coração...

            Martin Forde, porém, não era o tipo de homem que pedia licença para invadir corações. Com seu ar de mistério e sedução, ele estava disposto a fazer Regine mudar de idéia!

 

‑ Não, Alex! Não! Por favor!

Não havia verdadeira intenção naquele protesto. Ao perceber isso, o homem abraçou Regine com mais força.

 ‑ Por que resiste? ‑ indagou, com expressão de triunfo no olhar. ‑ Você me quer. Eu sei. Pare de lutar. Podemos ser muito felizes juntos. Eu lhe ensinarei tudo sobre esse sentimento glorioso, arrebatador e fascinante que é o amor.

O tom de voz de Alex era profundo e exercia um efeito hipnótico sobre Regine.

De repente, contudo, um ruído quebrou o silêncio. Embora fosse quase imperceptível, Alex enrijeceu, pressentindo o perigo.

Regine ergueu a cabeça das almofadas que enfeitavam o sofá de veludo vermelho colocado em frente à lareira. Olhou ao redor e não notou nada de estranho. Como a porta que ligava o hall à sala de estar estava aberta, acreditou que o som tivesse vindo de lá.

‑ Não seria a caixa de correspondência? ‑ sugeriu.

A tensão dominava Alex. Ele fitou‑a de modo inquiritivo.

‑ A caixa de correspondência? ‑ repetiu.

Mal Alex terminou de falar, Regine pensou ouvir passos abafados vindos do corredor.

‑ Talvez eu deva verificar ‑ Regine murmurou e fez sinal para que Alex se afastasse de modo que ela pudesse levantar-se.

O vestido que comprara especialmente para a festa fantasia daquela noite estava amassado. Alisou‑o com as mãos com um movimento rápido e impaciente. Mal podia acreditar que estivera prestes a ceder à insistência de Alex em fazerem amor.

Sua cabeça estava pesada. Pareceu rodopiar no instante que ela se levantou. O efeito deveria ter sido provocado pelo vinho que tomara no baile. Não costumava beber. Naquela noite, porém, regada a champanhe, tinha consciência de haver abusado. Não por sua própria vontade. Lembrava‑se perfeitamente de ter dito várias vezes à Alex para não tornar a encher sua taça.

Inconformada com sua fraqueza, Regine encaminhou‑se para o hall e olhou para a cadeira, para o console dourado e para a caixa de correspondência junto à porta.

Alex permanecera no mesmo lugar, de pé, de costas para a lareira. Estava ajeitando o traje com que fora ao baile e que o fazia parecer um nobre russo do século dezassete, segundo a descrição que fazia de si mesmo.

Seria impossível negar. Alex era um homem muito atraente. Podia ter todas as mulheres que quisesse. Em especial quando estava vestido de modo tão galante, com uma pele atada à gola do casaco e botas de couro vermelho de cano alto.

 ‑ Eu estava certa ‑ Regine anunciou. ‑ Colocaram uma carta em minha caixa de correspondência.

 ‑ A esta hora da noite? ‑ Alex indagou.

Regine consultou o relógio no alto da parede. Eram quase duas e trinta da madrugada.

‑ É muito estranho ‑ Regine concordou, apreensiva.

Passado o primeiro instante de surpresa, ela abriu a caixa e retirou o envelope. A carta continha seu nome e a letra foi reconhecida de imediato. Não fora trazida pelo correio. Não havia nenhum selo colado em sua parte superior.

 ‑ É uma carta de... ‑ Ela se deteve. Seus olhos haviam se voltado novamente para a caixa e notado algo que não percebera antes. Um envelope amarelo.

O telegrama deveria ter sido entregue muito antes da carta. Deveria estar lá quando chegara do baile. Se Alex não a tivesse praticamente empurrado para o sofá da sala de estar no momento que a porta fora aberta, já estaria a par da mensagem.

 ‑ Que carta é essa? ‑ Alex quis saber. ‑ Quem a enviou?

Regine não respondeu. Suas mãos estavam trémulas e seu rosto havia perdido a cor.

 ‑ Regine, por que está demorando?

Ela voltou a si com o chamamento impaciente. Olhou para a figura alta e máscula contra a luminosidade das chamas na lareira e precipitou‑se ao seu encontro.

 ‑ Saia daqui! Vá embora! Depressa!

Alex fitou‑a, atónito.

 ‑ O que há com você, Regine? De que está falando? ‑ Alex perguntou, obviamente chocado com aquela súbita mudança de comportamento.

‑ Eu já disse e não quero repetir nem explicar. Quero apenas que se vá. Agora!

Ainda houve uma tentativa por parte de Alex de permanecer ao lado dela. Mas após uma ligeira hesitação, ele resistiu ao desejo de tocá‑la e se afastou. Virou‑se apenas quando chegou à porta.

‑ Você me fez muito feliz esta noite.

Regine não respondeu. Assim que se viu sozinha, deixou‑se cair em uma poltrona e cobriu o rosto com as mãos.

 

Eram dez e trinta da manhã, no dia seguinte, quando o telefone tocou no escritório do general Fortescue.

‑ Estou ocupado ‑ ele disse, áspero, ao atender.

 ‑ Sim, senhor ‑ respondeu a secretária ‑, mas creio que apreciará saber que a Senhorita Huntley se encontra aqui que necessita vê‑lo com urgência.

O general mandou que a jovem entrasse. Seu cenho estava franzido. Olhou para o homem que estava sentado do outro lado de sua mesa e murmurou:

‑ Ela deve ter sido informada.

‑ Com certeza ‑ concordou o homem ao mesmo tempo que se levantava. ‑ Eu os deixarei a sós, mas lembro‑o de que ainda restam assuntos a serem discutidos.

‑ Prefiro que fique ‑ o general retrucou. ‑ Talvez Reme tenha algo a nos dizer. Nunca se sabe.

‑ Não creio

A porta foi aberta naquele instante.

‑ Sinto interrompê‑lo, padrinho ‑ Regine se desculpou enquanto cumprimentava o general com um beijo no rosto.

Ela e o irmão o chamavam por aquele apelido desde que eram crianças e esse tratamento afectuoso sempre o emocionava. Naquele dia, essa emoção se intensificou ao notar os olhos vermelhos e a tristeza na voz da afilhada.

‑ Estava à sua espera ‑ ele confessou.

‑ Então você já sabe? ‑ Regine perguntou com um fio de voz.

 ‑ Sim, infelizmente.

 ‑ Quem lhe contou? ‑ Antes que o general respondesse, ela prosseguiu. ‑ Oh, é claro que a notícia já lhe chegou aos ouvidos. Eu demorei a encontrar o telegrama. Ele deve ter chegado horas antes. mas eu não estava em casa.

‑ Quem o enviou? ‑ o general quis saber.

‑ A Embaixada Britânica no Cairo.

 ‑ É compreensível. Eles tinham de notificá‑la.

 ‑ Eles? ‑ Regine perguntou, intrigada.

O general tocou Regine no ombro.

 ‑ Não tenho palavras para exprimir o quanto lamento o que aconteceu. Sei o quanto você e Chris se amavam.

Regine fez um gesto para que o general a escutasse.

‑           Minha visita se deve a outro motivo. Vim avisá‑lo de que estou de partida para o Cairo. Seguirei imediatamente. Sinto que há algo errado nessa história. Chris não morreu de dengue como eles afirmam.

 ‑ O que você está pensando?

‑ Que meu irmão foi assassinado ‑ Regine declarou. ‑ E eu não descansarei enquanto não descobrir a verdade.

‑ Não!

A negativa ricocheteou pelas paredes. Pela primeira vez, desde que entrara no escritório, Regine notou que o general e ela não estavam a sós.

Havia um homem magro e alto de cabelos escuros atrás dela. Sua expressão era cínica, se não sarcástico.. Sua aversão por ele foi imediata.

‑ Quem é ele? ‑ Regine perguntou, desconfiada.

‑ Desculpe, querida, mas não tive chance de apresentá‑lo a você. Este é Martin Forde. um velho amigo meu e também de Chris.

 ‑ Meu irmão nunca o mencionou.

Martin Forde se aproximou lentamente de Regine.

‑ Nós estudamos juntos em Oxford e passamos a nos encontrar com frequência desde aquela época.

‑ É estranho que ele nunca tenha me falado a seu respeito ‑ Regine insistiu. ‑ Eu conhecia todos seus amigos.

‑ Talvez ele tivesse suas razões ‑ Martin sugeriu. ‑ Mas eu lhe garanto que estou profundamente chocado com a notícia da morte de seu irmão. Chris era um excelente companheiro.

‑ Obrigada ‑ Regine agradeceu e tornou a se dirigir ao general. ‑ Como eu estava dizendo, padrinho, tenho motivos para crer que a morte de Chris não foi acidental.

‑ O que a faz ter tanta certeza? ‑ o general perguntou.

‑ Recebi uma carta dele.

‑ Uma carta? ‑ Não foi o general, mas Martin Fonte quem demonstrou interesse. ‑ Quando ela chegou?

‑ Queira me desculpar ‑ Regine encarou‑o com desprezo ‑, mas gostaria de falar em particular com meu tutor.

A troca de olhares entre Martin Forde e o general foi interceptada por Regine.

‑ Preciso saber o que havia na carta ‑ Martin Fonte insistiu.

Diante do silêncio e da raiva que brotou nos olhos de Regine, o general resolveu interceder.

 ‑ Sente‑se, Regine ‑ pediu com delicadeza. ‑ Precisamos conversar.

‑ A sós, por favor.

‑ Está bem, mas antes escute o que tenho a lhe dizer.

Regine sentou‑se e ele segurou‑lhe a mão após olhar mais uma vez em direcção do outro homem.

‑ Martin foi realmente amigo de Chris e eu havia lhe comunicado a morte de seu irmão pouco antes de você chegar. Assim como você, ele concluiu que a morte não deveria ter sido natural e me pediu permissão para ir ao Cairo fazer uma investigação. Por essa razão, querida, torna‑se de vital importância que nos forneça todos os detalhes que possam nos ajudar a esclarecer essa dúvida.

O olhar de Regine para Martin Forde continuava carregado de desconfiança.

 ‑ Ele é um de seus homens? Tem certeza de que é de confiança?

 ‑ Conheço Martin há tanto tempo quanto conheço você ‑ replicou o general Fortescue. - Eu confiaria minha vida a ele.

‑ Nesse caso, ele poderá ficar na sala ‑ Regine concordou. ‑ A carta foi entregue ontem à noite.

 ‑ Pelo correio? ‑ perguntou o general.

‑ Não. Por um portador. Ela foi deixada em minha caixa de correspondência às duas e trinta da manhã.

 ‑ Como sabe? Estava acordada?

A ousadia contida na pergunta irritou‑a.

‑ Sim. Se faz questão de saber, eu fui ontem a um baile.

‑ Estava sozinha?

Dessa vez Regine não conseguiu disfarçar o ressentimento.

‑ Não creio que isso seja de sua conta.

‑ Todas as informações ligadas ao facto podem ser importantes.

Era óbvio que Martin Forde também havia notado algo de estranho na entrega da carta, mas ela não estava disposta a satisfazer sua curiosidade. Não podia nem sequer se lembrar de Alex. quanto mais falar a seu respeito.

Estava retirando as folhas redigidas à mão do envelope, quando foi surpreendida com a repetição da pergunta, dessa vez por parte do general.

‑ Havia alguém com você, Regine?

‑ Sim, havia ‑ ela respondeu com ar de desafio. ‑ Alguém que me trouxe para casa do baile. Eu o convidei para um drinque.

As faces de Regine coraram. Ela se sentiu tão constrangida que precisou olhar para o chão.

 ‑ Eu o conheço? ‑ continuou o general. ‑ Qual é o nome dele?

 ‑ Creio que tenha ouvido falar em Alexander Salvekov.

 ‑ Regine encolheu os ombros. ‑ Ele não costuma faltar a nenhuma festa.

Mais uma vez, Regine presenciou uma troca de olhares entre os dois homens.

 ‑ Sim, já ouvi falar sobre o conde. Seu nome aparece frequentemente nos jornais. ‑ O general respirou fundo.

‑ Mas, vamos ao mais importante. à carta. Regine começou a ler:

 

"Minha irmã querida.

Estou cumprindo a promessa que fiz de lhe escrever. Reconheço que o intervalo entre esta e a anterior foi grande, mas estive muito ocupado. E escondido. Acho que tropecei em algo proibido. Estou averiguando sua veracidade. Se a história se confirmar, serei o responsável pela maior notícia do século. Prepare‑se, pois muitas cabeças augustas irão rolar.

Estou lhe enviando esta carta por um portador em quem confio. Pessoas de confiança hoje em dia são raras. No momento, não estou confiando nem sequer no correio.

Se o encontrar, peço que seja amável. Ele tem a pele negra como carvão, mas seu coração é feito de ouro puro.

Espero vê‑la no aeroporto quando retornar em breve. E embora eu já deva ter me tornado famoso, não se preocupe em estender um tapete vermelho para me receber.

Deus te abençoe e proteja, querida.

Chris"

 

A voz de Regine embargou ao ler as últimas palavras, mas ela se controlou e ergueu o queixo com determinação.

O general estendeu a mão.

‑ Posso ver essa carta?

Enquanto ele lia novamente a mensagem, Regine não pôde evitar um suspiro.

‑ Há um endereço no alto da página ‑ o general observou.

‑ Sim. nós sabemos ‑ afirmou Martin Forde.

‑ De qualquer forma, nos tranquiliza saber que nossos informantes estavam certos.

Regine se levantou, perplexa.

‑ Isso é tudo que vocês têm a dizer? Não percebem que Chris havia esbarrado em algo perigoso? ‑ Ela esperou por algum comentário, mas os homens permaneceram calados. ‑ Eu vivia alertando Chris para não se aprofundar tanto em suas descobertas. ‑ Regine hesitou. ‑ Ou ele não estava apenas fazendo seu trabalho de jornalista? Padrinho, Chris estava trabalhando para o senhor?

             ‑ Não directamente ‑ o general respondeu. ‑ Como você está ciente, seu irmão sempre quis ser um jornalista autónomo para poder correr o mundo. Eu nunca interferi.

 ‑ Mas ele costumava lhe passar informações, não costumava?

‑ Sim, informações importantes, de maneira geral. Mas tudo que fazia ou descobria era por sua própria conta. Ele não seguia minhas ordens.

‑ Então, o que Chris descobriu dessa vez que lhe tirou a vida?

O general fez um movimento de desalento com as mãos.

 ‑ Eu gostaria de saber tanto quanto você.

Regine apontou para a carta sobre a mesa e repetiu:

‑ "Prepare‑se, pois muitas cabeças augustas irão rolar." O que isso significa? O que Chris pode ter descoberto?

 ‑ O que acha, Martin? ‑ questionou o general.

 ‑ Poderia ser uma infinidade de crimes. Contrabando de armas, por exemplo. Ou tráfico de escravos ou de drogas. O Oriente vive surpreendendo o mundo com suas histórias de ilegalidade. Chris certamente encontrou a pista de uma delas.

Martin Forde pôs‑se a andar pelo escritório. Parou, por fim, atrás do general e encarou‑a sobre o ombro dele.

 ‑ Salvekov leu essa carta?

 ‑ Lógico que não! ‑ Regine exclamou. ‑ Eu jamais a mostraria a ele. Abri‑a somente depois que ele se foi.

 ‑ Mas ele sabe sobre sua existência e a do telegrama, não?

 ‑ Ele não viu o telegrama e não sabe sobre o conteúdo da carta. Eu pedi que fosse embora. ‑ A vergonha que sentia estampou‑se novamente em suas faces. Constrangida demais para permanecer ali por mais tempo, levantou‑se.

‑ Viajarei esta noite ou amanhã de manhã, o mais tardar. Pegarei o primeiro avião disponível.

 ‑ Não fará nada disso!

A ordem dada por Martin Forde foi tão categórica que Regine virou‑se para ele, espantada.

‑ Se fizer isso, piorará ainda mais a situação ‑ ele explicou, mais brando. ‑ Eu mesmo investigarei a morte de Chris. Assim que ela for esclarecida, será informada de imediato.

A arrogância daquele homem que a tratara como se fosse uma criança deixou‑a perplexa. Não retrucou. Precisava de alguns minutos para recuperar o controle. Enquanto isso, ocupou‑se em recolher as páginas escritas por seu irmão e colocá‑las de volta no envelope.

Sua voz soou baixa, mas firme.

‑           Lamento, sr. Forde, mas não estou interessada em suas tácticas. Vim aqui com o único propósito de avisar meu tutor que estou de partida para o Cairo.

 ‑ Insisto para que não vá.

Regine olhou para o general.

 ‑ Ficarei hospedada no Shepheard's, caso queira se comunicar comigo. Calculo que minha permanência no Egipto seja de uma semana no mínimo.

‑ Por favor, ouça‑me ‑ implorou Martin Forde. ‑ Ao menos por enquanto, ninguém pode suspeitar de que Chris não teve morte natural. O general já entrou em contato com a Embaixada Britânica. Quem os informou sobre o passamento de Chris foi o médico egípcio que o atendeu. Soubemos que o enterro aconteceu ontem.

- O médico informou sobre a data da morte também?

‑ De acordo com ele, Chris morreu há quatro dias ‑ Martin respondeu. ‑ A notícia só não foi transmitida antes porque ninguém conhecia a nacionalidade de Chris.

‑ Isso é ridículo! ‑ Regine exclamou. ‑ A nacionalidade de Chris era evidente. Qualquer um veria que ele era um cavalheiro inglês.

 ‑ Ele poderia estar disfarçado ‑ Martin sugeriu.

 ‑ Eu havia me esquecido desse detalhe ‑ Regine concordou. ‑ Não me surpreenderia se Chris tivesse se apresentado como árabe. Ele se divertiu muito quando não foi reconhecido em seu disfarce de indiano em plena Índia.

‑ Imagino que Chris tenha usado vários disfarces ao longo de sua vida ‑ disse Martin. ‑ Disfarces são bons, desde que não sejam descobertos.

‑ O que o faz pensar que Chris estava disfarçado em sua missão no Cairo?

‑ O facto de ele ter mudado de endereço recentemente. Soube que se deslocou para um dos bairros mais pobres da cidade.

‑ Quem lhe contou? Alguém da Embaixada Britânica?

‑ Não. Foi alguém com quem falei esta manhã ao telefone ‑ Martin explicou. ‑ Ele viu Chris há uma semana, antes de voltar para a Inglaterra.

 ‑ Ele não lhe falou mais nada?

‑ Não, porque não chegou a conversar com Chris. Apenas o reconheceu em um café em um local pouco recomendável do Cairo e segui‑o até uma casa.

Regine apertou os punhos.

 ‑ Se Chris tivesse me ouvido, poderia estar vivo agora. Eu sempre pedia que não se arriscasse desnecessariamente. Acho que o perigo o atraía mais do que qualquer outra coisa.

 ‑ Você está certa ‑ afirmou o general. ‑ Seu irmão era um jovem corajoso, mas imprudente. Também se recusava a ouvir meus conselhos.

‑ Bem, estou decidida a descobrir o que aconteceu. Não ficarei de braços cruzados quando meu irmão é morto a sangue‑frio. Pretendo terminar o que ele começou.

 ‑ Não pode fazer isso! ‑ Martin Forde deu um soco na mesa. ‑ É uma mulher.

 ‑ Sim, sou uma mulher e é de conhecimento geral que as mulheres são as melhores espiãs. Não é verdade, general?

O general deu um pequeno sorriso.

‑ Sim, é verdade. Acho que deve uma desculpa ao sexo oposto, Martin.

‑ Está bem, peço desculpas ‑ resmungou Martin lorde mal‑humorado. ‑ Mas, pelo amor de Deus, impeça‑a de ir ao Cairo e empunhar sua espada de fogo, dando chances a que o inimigo destrua as pistas e desapareça.

As palavras de Martin Forde faziam sentido. Se ele não a tivesse deixado tão zangada, talvez o tivesse escutado. Mas em seu presente estado de espírito, zangada com todos os homens, nada que pudesse dizer a faria voltar atrás em sua resolução.

‑ Sinto muito, mas não mudarei de idéia. ‑ Regine virou‑se para o tutor. ‑ Adeus, padrinho. Estarei sempre em contacto com você.

Regine ajeitou o casaco sobre os ombros. Quando deu um passo em direcção à porta, o general a deteve.

 ‑ Pouco antes de você chegar, Regine, como eu já disse, Martin me pediu permissão para ir ao Cairo. Não tive chance de responder. Agora, acho que vocês teriam condições de fazer um bom trabalho, se fossem juntos.

 ‑ Juntos? ‑ Regine e Martin perguntaram em uníssono.

 

Regine colocou a mala aberta sobre a cama e examinou o guarda‑roupa, indecisa sobre que deveria levar na desagradável viagem. Além do motivo que a impulsionava, teria de suportar a companhia de um homem antipático e com quem nada tinham em comum.

"Bem, melhor viajar com Martin Forde do que não viajar", Regine pensou. Era essencial afastar‑se de Londres quanto antes. Algo lhe dizia que Alex não desistiria de tentar conquistá‑la.

Seus pensamentos foram interrompidos pelo toque da campainha.

Era um jovem com uma enorme cesta de flores. Pelo papel que a embrulhava, Regine reconheceu uma das mais caras floriculturas de Mayfair.

‑ Senhorita Huntley?

‑ Sim.

‑ Por favor, assine aqui.

Ele apresentou um caderno de capa dura para que ela registrasse o recebimento e em seguida lhe entregou a cesta.

Regine levou‑a para a sala de estar e depositou‑a sobre a mesinha em frente à lareira. Depois de olhar para ela por alguns instantes, rasgou ansiosamente o papel.

A cesta continha orquídeas brancas e roxas maravilhosas muito caras.

Havia um envelope preso à alça da cesta. Regine abriu‑o e retirou um pequeno cartão.

 

"Para a jovem mais linda de Londres, em lembrança a uma noite adorável".

 

Regine enrijeceu. O presente e aquelas palavras a faziam sentir‑se ainda mais humilhada do que na noite do acontecimento. A culpa não era de Alex; era dela. Deveria ter se dado ao respeito.

Com um soluço, Regine atirou a cesta com toda sua força contra a parede. E sem olhar para as flores esparramadas pelo chão, correu de volta para o quarto.

‑           Preciso ir embora daqui ‑ falou consigo mesma. Tinha certeza de que Alex não tardaria a lhe telefonar. Ele queria levá‑la para jantar e obviamente continuar o que havia começado.

O presente perturbou‑a tanto que não conseguiu mais prestar atenção à arrumação da mala.

Já deveria ter dobrado a metade das roupas de seu armário, sem saber quais, quando a campainha tornou a tocar.

Seria Alex? Olhou para o relógio sobre a mesa‑de‑cabeceira. Faltavam vinte minutos para a uma. O momento era impróprio. E ela não acreditava que Alex a visitaria sem ligar antes. A não ser que ele tivesse telefonado enquanto estava fora.

Não podia se arriscar. Se abrisse a porta e desse de frente com Alex, se sentiria pior do que já estava se sentindo.

Ao segundo toque, ficou alarmada.

‑           Se for Alex, fecharei a porta e me recusarei a falar com ele ‑ Regine decidiu.

Mas não era Alex e sim Martin Forde.

‑ Começava a recear que tivesse batido à porta errada ‑       Martin declarou.

‑           O que você quer? O combinado era você ligar para mim quando soubesse o horário do voo.

‑           Posso entrar? ‑ Martin perguntou, gentil.

A delicadeza dele a fez reconhecer o quanto estava sendo rude.

‑ Desculpe‑me. Não estou muito bem esta manhã.

‑           Eu entendo ‑ ele respondeu como se estivesse compadecido. Por certo analisara seu comportamento e o atribuíra à sua infelicidade pela morte de Chris.

‑ Entre, por favor ‑ murmurou. ‑ Aviso‑o, porém, de que ainda não terminei de fazer as malas.

Ele fechou a porta e pendurou o chapéu no cabide do hall. Embora fizesse frio, não usava um casaco. Ela o conduziu para a sala. Não se lembrou das flores espalhadas no chão até vê‑las.

Martin Forde foi discreto e olhou em outra direcção.

‑ Gostaria de um drinque? ‑ Regine ofereceu.

‑ Sim, por favor, gostaria de uma dose de uísque. ‑ Martin estendeu as mãos para o fogo e perguntou, sem fitá‑la. ‑ Esta casa pertence a Chris. Por que está aqui?

‑           Eu morava no interior até há um ano atrás. Como Chris raramente vem a Londres, decidimos cortar as despesas e dividirmos este lugar.

Regine preparou um copo de uísque com soda e serviu‑o. Depois que tomou um gole, Martin voltou a falar:

‑           Obrigado. Estou aqui para avisá‑la que os planos foram alterados.

‑           Alterados? ‑ Regine protestou. ‑ Nada me impedirá de ir ao Cairo. Não me interessa o que você decidiu.

‑           Ninguém está tentando impedi‑la de fazer o que deseja. Tive uma conversa com o general e lhe fiz uma nova sugestão.

‑ E ele aceitou? ‑ Regine indagou, desconfiada.

‑ Não gostaria de saber qual é o plano em primeiro lugar? ‑ Martin perguntou e se sentou em uma das poltronas sem ser convidado.

Regine arqueou uma sobrancelha. Não havia se enganado. Martin Forde era um homem arrogante. Considerava‑se o mais inteligente dos seres.

‑           Está bem.

‑           Em minha opinião, não iremos muito longe como simples turistas. Afinal, por que os amigos e os inimigos de Chris se aproximariam de nós? Neste instante, já contamos com alguém no bairro onde seu irmão estava vivendo e ele deu início às investigações.

‑           Eu preferiria que ninguém se intrometesse. Quero descobrir pessoalmente o que houve com meu irmão. ‑ Regine deu‑se conta subitamente de que estava errada. Um profissional teria mais acesso ao caso. ‑ Está bem. Conte‑me.

‑           Se tivermos sorte, acredito que saíremos vitoriosos nessa missão. Por outro lado, você correrá ainda mais perigo.

‑           Eu já disse que não me importo. Quero descobrir o que aconteceu com Chris custe o que custar.

‑ É obstinada como ele.

Poderia ser um elogio ou uma crítica. Fosse qual fosse, nada que viesse do sexo oposto lhe dava prazer no momento.

Martin prosseguiu depois de tomar mais um gole do uísque

‑           Nas últimas edições dos jornais da noite será publicado que um milionário grego de nome Nickoylos chegou a Londres, vindo da América, para fazer uma oferta de compra a Lucien. O dono da maior rede de cassinos do Ocidente. Será anunciado também que ele está disposto a pagar meio milhão de libras.

‑           Quem é esse homem exactamente ‑ Regine indagou ‑         e o que ele tem a ver com nossa história?

‑           Esperava que fizesse essa pergunta ‑ Martin respondeu. ‑ Esse homem está sentado a sua frente.

‑           Você se fará passar pelo milionário grego? ‑ Regine perguntou, atónita. ‑ As pessoas acreditarão nisso?

‑           Por que não? Nickoylos reservou uma suíte no Savoy e já submeteu uma proposta a Lucien.

‑           E se ele aceitá‑la?

‑           Negociações levam tempo ‑ Martin explicou. ‑ . E o sr. Nickoylos estará embarcando amanhã de manhã para o Cairo.

‑           Compreendo ‑ Regine murmurou. ‑ Você criou uma nova personagem que terá acesso aos possíveis responsáveis, no Cairo, pela morte de Chris. É isso, não?

‑           Exactamente. Conhece o ditado "Diga‑me com quem andas e eu te direi quem és?" Quanto mais mundano ele parecer. mais chances terá de encontrar aquela gente.

‑           Qual será meu papel nessa história? ‑ Regine perguntou.

‑           Será a namorada de Nickoylos.

Regine franziu o cenho. O papel não lhe agradava, mas estava disposta a qualquer sacrifício para descobrir o que acontecera.

‑           Nesse caso, terei de comprar roupas apropriadas.

‑ Já pensei nisso e em outros detalhes. Você chegará de Nova York às dezassete horas de hoje. Possui um leve sotaque americano, embora tenha morado grande parte de sua vida em Manchester.

‑ Acho esse esquema arriscado ‑ Regine afirmou. ‑ Não será difícil eles descobrirem que não cheguei ao aeroporto de Londres.

‑           Mas você chegará! ‑ Martin a contradisse. ‑ Pegará o voo das duas e trinta para Glasgow. às quatro, passará para um avião da Pan American e desembarcará no aeroporto de Londres.

‑           Você pensou em tudo.

‑ Sempre existe a possibilidade de algum passageiro reconhecê‑la, mas prefiro considerar improvável esse tipo de azar. As estrelas de cinema, afinal, conseguem passar despercebidas quando estão fora dos estúdios. Coloque óculos escuros e amarre um lenço na cabeça. Seria recomendável usar um casaco de pele também. Espero que tenha um.

‑ Sim, eu tenho.

‑           Mais tarde, quando chegar ao Savoy, nós lhe proporcionaremos um tratamento completo: cílios postiços. tintura nos cabelos e todos os acessórios de praxe que as artistas costumam usar.

‑ Muito obrigada, mas você acha isso realmente necessário?

Ao ouvir essa pergunta, Martin abandonou o tom de superioridade que vinha usando e disse, sério.

‑ Você conheceu Chris melhor do que ninguém. Acha que ele teria revelado que estava atrás de uma grande história, se não fosse verdade?

‑ Não. Você está certo.

Martin suspirou.

‑ É por isso que preciso cercar todas as possibilidades. Se Chris afirmou que era uma grande história, então ela era grande mesmo. Não se trata de nos aproximarmos de simples assaltantes de banco, mas de pessoas extremamente perigosas e inteligentes. Se não nos tornarmos de interesse para eles, não chegaremos a lugar algum.

‑           Acho que você tem razão ‑ Regine concordou mais uma vez.

Com um movimento afirmativo de cabeça, Martin retirou o passaporte de Regine do bolso.

‑           O general tinha uma foto sua e lhe atribuiu uma nova identidade. A partir de agora, passará a usar o nome de Regine Faye.

‑           O sobrenome de solteira de minha mãe? ‑ Regine indagou, surpresa.

‑           Costumo insistir nesse detalhe porque quem está sob disfarce e não é experiente nesse tipo de trabalho, apresenta sérias dificuldades em se lembrar do nome falso em caso de emergência. Quando tiver de assinar um documento, apenas pense em sua mãe e tudo dará certo.

‑ E você, que nome usará?

‑           O meu próprio. Seria muito arriscado trocar. Já pensou se estivéssemos diante de outras pessoas e você me chamasse de Martin? Afinal, estaremos juntos quase todo o tempo. Além disso, os nomes Martin e Nickoylos combinam, não acha? ‑ ele indagou em tom humorado.

Ela sorriu em resposta.

‑           Também gostei da combinação Regine Faye. Soa artístico.

‑           A propósito. seu último trabalho foi uma ponta em Ben Hur. Antes, você esteve em Os Dez Mandamentos. Um toque religioso, em minha opinião, lhe dará charme.

‑           Pensei que quisesse me transformar em uma actriz glamourosa.

‑           Eu quero ‑ Martin garantiu. ‑ Serei um grego moreno, com ancestrais de várias nacionalidades, que gosta de loiras de olhos azuis, sofisticadas ao exagero.

‑           Obrigada mais uma vez ‑ Regine respondeu, sarcástica. ‑ Confesso que preferiria inventar eu mesma meu papel.

‑           Não há tempo. Preciso ir agora. Um carro virá buscá‑la à uma hora para levá‑la ao aeroporto. Terá de se apressar. Pegue esta passagem e guarde‑a imediatamente na bolsa. Enquanto isso, prenderei as etiquetas em sua bagagem.

Regine verificou a passagem

‑           A procedência é Nova York! ‑ exclamou.

‑ Lógico que sim. Eu lhe disse que estaria chegando esta tarde daquela cidade em um voo da Pan Am. Sua paragem em Glasgow será apenas para encontrar uma velha amiga.

‑ Admito que o esquema parece estar muito bem montado ‑ Regine elogiou.

‑           Não há tempo a perder ‑ Martin insistiu depois de consultar o relógio sobre a mesa‑de‑cabeceira. ‑ Não quer se atrasar e ter seu nome na lista dos atrasados, não é? Eles poderiam chamá‑la pelo alto‑falante.

‑           Não, é claro que não ‑ Regine respondeu. Enquanto Martin prendia as etiquetas. ela vestiu o casaco de peles.

‑ Não esqueça os óculos escuros.

‑ Já estão em minha bolsa - Regine tranquilizou‑o.

Cinco minutos depois, estava pronta.

‑ Incrível! Milagres sempre acontecem ‑ Martin caçoou. ‑ As mulheres costumam fazer os homens esperarem.

‑ Prepare‑se, então, para se surpreender comigo.

‑ Talvez já tenha me surpreendido, Regine. É diferente de todas as moças que conheço. ‑ Ele fez uma pausa. ‑ A propósito, não teria sido Alex Salvekov quem lhe enviou as orquídeas que mereceram seu descaso?

Regine não esperava por aquele tipo de pergunta. Não soube o que responder.

‑           A fama de sedutor de Alex é conhecida. Deve ter sido a primeira vez que um de seus pequenos presentes recebe tal destino.

‑           Não creio que valha a pena conversarmos sobre esse assunto ‑ Regine murmurou.

‑           Espero que não. Por outro lado, não acha que o conde estranhará seu súbito desaparecimento?

‑           Alex Salvekov não significa nada para mim. Não me importa o que ele possa pensar a meu respeito.

‑           De qualquer forma, seria mais prudente redigir um pequeno bilhete, agradecendo pelas flores e avisando que estará ausente por alguns dias. Poderia dizer que fará uma visita a sua tia em Bournemouth. Assim, ele não tentará segui‑la.

‑ Duvido que faça isso.

‑ Eu não teria tanta certeza ‑ Martin respondeu. ‑ Você é bonita e Salvekov deve ter gasto um bom dinheiro com as flores.

Regine mordeu o lábio.

‑           Está bem. Enviarei um bilhete, embora o conheça há apenas uma semana. Já o vira antes, em festas, é claro. Mas só fomos apresentados em casa de lady Davidson.

‑           Ele está sempre presente nos eventos da alta sociedade ‑   Martin disse com pouco caso.

‑           Sim. É muito rico e divertido ‑ Regine declarou. Não gostava de Alex e não queria defendê‑lo. Mas a arrogância de Martin a obrigou a tomar essa atitude.

‑           Uma combinação a que nenhuma mulher resiste.

Um forte rubor subiu às faces de Regine. Sentia raiva de si mesma. Afinal, portara‑se como as outras mulheres e quase cedera ao charme daquele homem.

Humilhada, mas de cabeça erguida, escreveu algumas linhas e entregou‑as a Martin dentro de um envelope.

Sabia que o bilhete seria lido porque não podiam correr riscos, mas não conseguiu evitar a irritação quando Martin o leu à sua frente.

‑ Providenciarei a entrega. ‑ Ele guardou o envelope mo bolso e olhou ao redor. ‑ Acho que está tudo em ordem. - O que disse à sua criada?

‑           Que iria viajar por alguns dias. Ela está acostumada com minhas idas e vindas e as de Chris. ‑ Regine hesitou. ‑   Eu não lhe contei sobre meu irmão. Não tive coragem. Ela o adora. Trabalhou para ele por dez anos.

Martin concordou em silêncio.

‑ Boa viagem.

‑ Obrigada. Descerá comigo?

‑ Não. Aguardarei alguns instantes e sairei pelos fundos como entrei. Aliás, é extremamente fácil entrar neste prédio sem ser visto. Nosso amigo deve ter entrado por lá ontem à noite.

‑ Se fez isso, Chris o instruiu a esse respeito.

‑ Gostaria de saber quem ele é ‑ disse Martin. ‑ Nunca estive em um caso tão misterioso.

Em seguida, Martin abriu a porta.

‑ Tente não chamar a atenção do ascensorista e do porteiro. Entre directamente no carro. Há um Jaguar cinza à sua espera. Até logo, Senhorita Faye. O sr. Nickoylos estará aguardando‑a na sala nupcial do Savoy.

Era hora de almoço. O ascensorista estava de folga e o porteiro estava conversando com outro morador. Não a viram sair do prédio.

O motorista abriu‑lhe a porta do carro e esperou que se acomodasse no banco antes de fechá‑la.

Enquanto seguiam para o aeroporto, ela se recostou e tentou descansar. Estava exausta.

Quando abriu os olhos, estavam quase chegando ao aeroporto.

O motorista deixou‑a na ala de embarques domésticos. A bagagem e a passagem foram entregues.

Regine Huntley não mais existia. Regine Faye havia assumido seu lugar.

 

Regine chegou ao Savoy e perguntou pelo sr. Nickoylos. Sentia‑se amedrontada. Seu coração batia forte.

Foi levada a uma suíte e convidada a aguardar na sala de estar. A porta que dava para o que deveria ser uma sala de reuniões estava aberta e Regine ouviu vozes masculinas.

‑ A Senhorita Faye pede para vê‑lo, sr. Nickoylos ‑ anunciou o pajem.

Martin surgiu à porta. Ela mal o reconheceu. Seus cabelos estavam cortados em estilo diferente e ele usava longas costeletas. Sua pele estava mais escura e as roupas eram justas e caras.

‑ Regine ‑ ele exclamou e abriu os braços. Quando a beijou em ambas as faces, Regine enrijeceu, mas retribuiu os beijos. ‑ Estava contando os minutos para que chegasse. Descanse um pouco e refresque‑se. Assim que terminar com esses cavalheiros, irei ao seu encontro. ‑ Martin indicou a sala contígua. ‑ Mandou que trouxessem sua bagagem? Muito bem. Pedirei que o garçom lhe sirva uma taça de champanhe. Deve estar com sede após a longa viagem.

Martin deixou‑a. Antes de voltar à companhia dos outros homens, voltou‑se e lhe jogou um beijo.

‑ Desculpem‑me, homens ‑ Regine ouviu‑o dizer ‑ uma amiga muito especial acaba de chegar de Hollywood.

‑ Quem é ela, sr. Nickoylos, uma estrela?

‑ Por favor, sem perguntas. Não costumo comentar minha vida particular. Portanto, peço que não mencionem a presença da jovem em suas matérias. Qualquer indiscrição poderá me causar problemas.

Regine atravessou lentamente a sala e entrou em seu quarto. Ele era enorme. Se Martin queria parecer um milionário, estava sendo bem‑sucedido.

Encontrou uma caixa com orquídeas sobre a penteadeira e antes que pudesse tirar as luvas e tocá‑las, bateram à porta e lhe trouxeram uma garrafa de champanhe e duas taças.

O garçom lhe serviu a bebida. Ela bebeu um gole com prazer. Precisava de um pouco de estímulo para enfrentar o restante do dia.

Alguns minutos depois, ouviu uma batida discreta à porta e mandou que entrassem, certa de que era alguém com sua bagagem. Viu‑se, no entanto, diante de um homem com um avental branco.

‑ Sou o cabeleireiro, madame. Recebi ordens de atendê‑la.

O homem falou tão baixo que Regine mal o ouviu. Surpresa, acompanhou‑o com o olhar enquanto se dirigia à penteadeira e retirava pentes, escovas e cosméticos de sua maleta.

Quando terminou de penteá‑la e de maquilhá‑la Regine teve certeza de que nem sequer sua melhor amiga a reconheceria. Estava bonita e sexy, embora um tanto vulgar.

O cabeleireiro consultou seu relógio de pulso.

‑ Preciso ir agora. Suas roupas logo chegarão.

‑ Minhas roupas? ‑ Regine estranhou.

‑ Sim. Até logo, Senhorita Faye. Desejo‑lhe sorte.

O homem estendeu a mão e Regine aceitou‑a. O instinto lhe dizia que não se tratava de um cabeleireiro comum e que ela não deveria lhe oferecer uma gorjeta.

Não havia ficado a sós mais do que cinco minutos quando tornaram a bater.

‑ Boa noite, madame ‑ disse uma vendeuse. Várias caixas estavam espalhadas ao seu redor. ‑ O sr. Nickoylos contou‑nos sobre a perda de sua bagagem no aeroporto em Hollywood. Deve estar furiosa. Que desastre! Espero que goste dos vestidos que providenciamos.

A mulher fez sinal para que os carregadores trouxessem as caixas para dentro da suíte e se pôs a exibir as roupas.

Não havia nada que Regine normalmente usasse. Os vestidos de noite eram bordados com pedrarias e decotados; os vestidos para o dia eram tão justos que ela não se arriscaria a se sentar com eles e todas as roupas eram tão coloridas que as pessoas teriam de usar óculos escuros se quisessem olhar para ela.

Martin havia adivinhado seu manequim de maneira brilhante. Todas as roupas lhe serviram, com pouquíssimas excepções.

Eram nove horas quando terminaram. Regine ofereceu uma taça de champanhe à vendedora e encaminhou a nota de compra a Martin, que já se encontrava a sós, lendo um jornal.

‑           Gostou de algo, querida? ‑ ele perguntou, sem se levantar, como deveria mandar seu novo papel.

‑ De muitas coisas, mas não sei se você irá gostar quando verificar a conta.

‑           Não poupo despesas para agradar minha pequena ‑ Martin respondeu, galante. ‑ Pegue minha caneta.

Regine viu uma caneta dourada sobre a mesa e apanhou‑a. Martin tirou um talão de cheques do bolso. Ela ficou boquiaberta ao ver que era de um banco em Atenas.

‑ Diga à vendedora que o cheque poderá ser descontado no Banco Westminster da rua Lombard e que descontei cinco por cento por pagamento à vista.

Regine voltou para junto de Martin assim que a vendedora foi embora, muito contente com o negócio que acabara de fazer.

‑           O que faremos com essas fantasias quando tudo terminar? ‑ Regine indagou. ‑ Uma doação a um teatro?

Martin fitou‑a com frieza e falou em tom de censura.

‑ Comentários desse tipo são desnecessários e perigosos. Regine Faye jamais diria isso.

‑ Então nós continuaremos representando mesmo estando a sós? ‑ Regine indagou surpresa.

‑ Sempre ‑ Martin insistiu. ‑ É mais seguro. E se alguém estiver nos espionando?

Regine engoliu em seco.

‑           Está insinuando que pode haver um microfone escondido nesta suíte?

‑           Acho pouco provável, mas não tenho tanta certeza sobre os lugares que visitaremos.

Pela primeira vez, Regine se consciencializou de que aquilo não era uma farsa, mas uma missão perigosa. Não poderiam vacilar nem sequer por um segundo e nunca, em hipótese alguma, deveriam subestimar o inimigo, fosse ele quem fosse.

Sentiu‑se subitamente constrangida, como uma criança que acabara de cometer uma gafe.

‑ Desculpe‑me. Não tornará a acontecer.

‑ Vá trocar de roupa, querida, enquanto peço o jantar ‑ Martin voltou a empregar o tom de disfarce. ‑ Não pretendo dividi‑la com mais ninguém, ao menos por enquanto.

‑ Irei imediatamente. Estou faminta ‑ Regine disse com um amplo sorriso e desapareceu.

Martin permaneceu imóvel por um longo tempo. Seu cenho estava franzido. Por fim, pediu o jantar.

Mais tarde, percorreram vários night clubs. Martin apresentou‑se a cada um dos proprietários e lhes manifestou seu desejo de tornar‑se um dos grandes empresários da noite em Londres.

Quando voltaram ao hotel, Regine estava tão cansada que adormeceu no momento que sua cabeça tocou o travesseiro.

Partiram cedo para o aeroporto de Londres. Antes, porém, foram compradas novas malas para Regine acomodar suas novas roupas, telegramas enviados aos conhecidos em Nova York, e feita uma ligação a Lucien a fim de verificar se ele já havia se decidido sobre a venda de suas casas de jogo.

Por fim, após Regine receber mais uma caixa de orquídeas, embarcaram em uma limusine para o aeroporto.

A apreensão e a saudade de casa tomaram conta de Regine no instante que o avião descolou.

A primeira escala foi em Roma. O pouso durou trinta minutos para abastecimento. Quando o avião tornou a descolar, Regine pôde ver o Coliseu, redondo, deserto e sombrio. E também o memorial a Victor Emmanuel incrivelmente branco à luz do sol.

Um arrepio lhe percorreu as costas. A aventura mal estava começando. Mas lembrou‑se, em seguida, do irmão, e precisou lutar para não desabar em lágrimas.

No assento ao lado, Martin desafivelou o Cinto de segurança e estalou os dedos para a comissária de bordo.

‑ Champanhe, por favor. Preciso de um drinque.

Havia uma nota tão arrogante em sua voz que Regine não pôde evitar um sorriso. Precisava aprender a representar tão bem quanto ele. Embora não simpatizasse com Martin, admitia que era magnífico.

O tempo passou célere.

Martin adormeceu e ela aproveitou para observá‑lo. Mesmo dormindo, ele parecia outro homem. Era incrível que pudesse estar disfarçado com tão poucos artifícios ao contrário de uma mulher.

Mirou‑se ao espelho que trazia em sua bolsa.

Seus lábios estavam vermelhos, os cabelos louro‑platinados, os cílios eram postiços e as orelhas exibiam brincos dourados e imensos. Nos pulsos, exibia uma infinidade de pulseiras. Parecia uma corista.

Sobressaltou‑se ao sentir a mão de Martin em seu joelho e ouvir sua voz:

‑ Acorde, querida. Estamos chegando. Prometo lhe comprar um gin fizz assim que nos acomodarmos no hotel. O Cairo é o melhor lugar do mundo para tomar essa bebida.

Regine espiou pela janela. Estavam descendo das nuvens e o Cairo se estendia sob eles banhado pelos últimos raios do sol. A rápida visão que teve foi a de casas com telhados planos, de altas mesquitas e de um rio largo e sinuoso. Logo depois, o avião estava se dirigindo ao local de desembarque, todo iluminado.

Um carro os esperava dirigido por um motorista egípcio. Ele estava acompanhado por outro homem que seria o guia da viagem.

‑           Onde ficaremos? ‑ Regine quis saber.

‑ A escolha foi difícil, baby ‑ Martin respondeu. ‑ Eu sempre me hospedava no Shepheard's, mas ele pegou fogo. O Semiramis, então, passou a ocupar o primeiro lugar entre os melhores hotéis da cidade, mas, com a recente inauguração de um hotel americano, o Semiramis caiu para o segundo lugar. Eu a levarei para o novo, é claro, para que não sinta muita saudade. Já ouviu falar no Nile Vista?

‑ Claro que sim! ‑ Regine respondeu com proposital petulância.

‑ Gostou de minha escolha?

‑ Oh. sim. você sempre escolhe o que há de melhor.

‑ O senhor está certo ‑ interrompeu o guia. ‑ Todos que se hospedam no Nile Vista ficam muito satisfeitos. Nós lhe reservamos uma boa suíte. Alias, a melhor do hotel.

O guia não exagerou. Regine ficou fascinada com o luxo da decoração. A suíte, localizada no quarto andar, parecia um palácio.

Os quartos não eram tão grandes quanto os do Savoy, mas contava com amplos terraços com vista para o Nilo

O cenário era tão magnífico que Regine se esqueceu de sua missão por um momento. O céu estava forrado de estrelas. As águas do Nilo haviam adquirido um brilho metálico sob as luzes das pontes e dos barcos.

Ouviu, então, a voz de Martin orientando os carregadores sobre onde colocarem as malas, e voltou à realidade. Todo cuidado era pouco a partir daquele instante. Não poderia cometer nenhum erro.

Os carregadores se retiraram contentes. Obviamente haviam sido bem recompensados.

Sozinho, Martin começou a vasculhar os aposentos. Regine acompanhou seus movimentos em silêncio, cogitando se algum microfone seria encontrado, ou se isso fora um exagero da parte dele.

Não foi. havia um microfone dentro do ventilador, na sala. Havia outro atrás da cabeceira da cama do quarto dela e atrás da penteadeira do quarto dele.

Terminadas as investigações, Martin lhe fez um sinal para que o acompanhasse ao terraço.

‑ Percebi que estava ansiosa por falar. Aqui é mais seguro. Assim mesmo. apenas sussurre.

Enquanto conversavam, Martin enlaçou‑a pelo ombro e atraiu‑a de encontro ao próprio corpo para que, quem os visse, pensassem que estavam namorando.

‑ Você imagina quem foi que colocou os microfones? ‑ Regine indagou. ‑ Teria sido o pessoal do hotel?

Martin negou com um movimento de cabeça.

‑ Acho improvável.

‑ Será que alguém sabe que estamos aqui por causa do que aconteceu com Chris?

‑           Não ‑ ele respondeu. ‑ Mas posso estar enganado. Agora precisamos voltar aos nossos papéis. É um erro esquecermos disso, mesmo que seja por um instante.

‑           Oh, pare, querido ‑ Regine apressou‑se a usar a voz que criara para a Senhorita Faye. ‑ Ainda é muito cedo para deitarmos. Quero o drinque que me prometeu.

Pelo brilho nos olhos de Martin, Regine percebeu que ele havia ficado satisfeito com sua actuação.

‑           Está pronta, querida? ‑ ele perguntou assim que Regine terminou a bebida.‑ Quero ver o Cairo à noite. Dizem que sua vida nocturna equivale à de Paris.

 

Por volta das duas horas da manhã, Regine começou a duvidar da veracidade dos comentários. Já haviam visitado meia dúzia de locais e nenhum a entusiasmara. Nem sequer o jantar que lhe serviram estava apetitoso.

‑           Lamentavelmente ‑ Martin observou ‑ , os grandes chefs devem ter se recusado a permanecer no Cairo após os desentendimentos com a França.

A bebida foi a mesma em todos os locais por onde passaram. Champanhe.

Visitaram um night club oriental onde assistiram a uma exibição da dança do ventre. Em outro, um jovem dançou equilibrando uma bandeja com um aparelho de chá sobre a cabeça. Os demais tampouco apresentaram algo de espectacular. Ou era música e dança nativa, ou dança do ventre.

‑           Sei o que você quer, baby ‑ Martin disse quando retornaram ao carro. ‑ Uma casa de diversão aos moldes europeus.

O guia os interrompeu mais uma vez.

‑           Sei o que desejam. Eu os levarei em seguida a um local muito bonito. É um clube exclusivo.

‑           Era o que esperava que fizesse. Até agora, só nos levou a lugares que não valem o preço de uma coca‑cola.

‑           Peço que o cavalheiro me perdoe. Antes que a senhorita se queixasse, não tinha certeza de onde poderia levá‑los.

A casa era realmente digna de ser conhecida. Deveria ter sido um palacete antes de ser transformada em um clube nocturno. Estava lotada. As salas de carteado ficavam no primeiro andar, as pistas de dança no segundo andar, e o terceiro abrigava as salas onde aconteciam os jogos de azar.

Frequentadores das mais diversas camadas sociais se misturavam pelos salões. Havia homens ricos e bem vestidos e mulheres adornadas de jóias. Mas também havia pessoas que não pareciam ter mais de alguns centavos nos bolsos.

Os olhos de Regine lacrimejavam devido á fumaça que impregnava o ambiente. Queria se sentar, mas aparentemente não havia lugares disponíveis.

‑           Gostaria de jogar, senhor? ‑ perguntou um atendente.

‑           Não esta noite ‑ Martin respondeu com um movimento negativo de cabeça. ‑ Mas reserve‑me um lugar maior das mesas amanhã.

‑           Obrigado, senhor. Joga alto?

‑           O mais alto que puder ‑ Martin respondeu. - Caso contrário, o jogo se torna monótono.

‑           Está bem, senhor. Posso lhe perguntar seu nome?

‑           Nickoylos ‑ Martin respondeu, condescendente. Quem o ouvisse, poderia pensar que era o rei da Inglaterra. ‑ Avise o proprietário sobre minha visita e diga que talvez fosse de seu interesse me procurar. Estou hospedado no Nile Vista.

Regine seguiu‑o até o topo da escadaria.

‑           Podemos ir embora? Estou exausta.

Martin gesticulou para que o casal que se aproximava passasse à sua frente e de Regine.

‑           Sinto muito, baby, mas ainda não vi tudo.

Estavam no meio da escada quando o casal se deteve, O homem, de aparência egípcia, parecia zangado.

‑ Não pode ter desaparecido!

A mulher vasculhou a bolsa.

‑           Estava aqui, eu juro, mas não consigo encontrá‑lo!

‑           Sua mentirosa! Você o roubou!

O homem ergueu a mão e golpeou‑a no rosto. A mulher largou a bolsa e pôs‑se a chorar. O conteúdo da bolsa se espalhou pelos degraus.

Por um instante, Regine e Martin permaneceram imóveis. De repente, Martin se lançou sobre o agressor e atingiu‑o com um soco no queixo que o derrubou.

O homem desmaiou. A mulher ficou parada, boquiaberta. Era muito bonita. Tinha cabelos e olhos escuros.

Regine não disse nada, mas pensou que Martin havia sido impulsivo demais. Nickoylos não teria se envolvido.

A mulher recolheu o batom, o pó compacto e um lenço e colocou‑os de volta na bolsa. Depois se dirigiu às pressas para a cortina de veludo vermelho que cobria a porta, após um rápido olhar ao homem que continuava desacordado.

Regine viu algo no chão e apanhou‑o.

‑ Espere. Você esqueceu isto.

Como a mulher não a ouviu, tentou segui‑la, mas ainda não havia dado dois passos quando Martin a segurou pelo braço.

Ninguém presenciara a cena. mas a aproximação de vozes indicava que em poucos instantes o caso poderia complicar.

Martin puxou‑a para uma porta lateral.

‑           A saída não é por aqui ‑ Regine murmurou.

Ele não respondeu. Continuou puxando‑a através de um longo corredor que deveria conduzir à cozinha, pelo som de talheres e louças.

Um garçom surgiu inesperadamente e quase trombou com eles.

‑ Onde fica a porta dos fundos? ‑ Martin aproveitou para perguntar.

‑ Continue em frente, senhor ‑ o garçom respondeu como se estivesse acostumado a ver estranhos ali. ‑ É a última porta à esquerda.

Saíram em um beco escuro. Martin fez sinal para que Regine apressasse ainda mais o passo. Quando chegaram à rua, chamou um táxi que estava passando e pediu que os levasse ao hotel.

‑ E o carro? ‑ Regine quis saber, mas se calou quando Martin meramente olhou para ela.

Ele só tornou a falar quando se encontravam no saguão do Nile Vista.

‑ Ligue para o Clube Pirâmide ‑ pediu ao recepcionista ‑       e diga‑lhes que dispensem o carro do sr. Nickoylos. Ele não mais será necessário esta noite.

No corredor do quarto andar, depois que o elevador desceu, Regine mostrou a palma da mão.

‑           Era isso que eu tentei devolver a ela.

Martin pegou o pequeno anel. Parecia ser de ouro e tinha o formato de uma cobra.

‑           É uma jóia valiosa? - Regine perguntou.

‑           Não sei, mas acredito que não.

‑ Por que agrediu aquele sujeito?

‑ Não gosto de homens que batem em mulheres.

‑           Achei esse comportamento estranho para um grego, dono de uma rede de clubes nocturnos.

Martin não respondeu. Era evidente que estava constrangido. Não tornou a falar até que estivessem no interior da suíte e o anel já estivesse guardado em um compartimento seguro de sua carteira.

‑ Seria isso que o homem queria?

‑ Esqueça!

O tom foi tão autoritário que ela não discutiu. Mas não resistiu ao impulso de provocá‑lo uma última vez.

‑           A mulher não pareceu muito grata a você.

Fechou‑se em seu quarto, sorrindo consigo mesma. Mas estava intrigada. Não entendia por que Martin se interessara pelo anel. Tinha quase certeza de que era uma imitação.

Estava terminando de se preparar para dormir quando ouviu uma porta fechar. Aguçou os ouvidos. Curiosa, foi até o quarto de Martin e bateu. Como não houve resposta, abriu a porta. O            quarto estava vazio.

 

Regine despertou com a luminosidade que se infiltrava pelas finas cortinas que cobriam a janela de seu quarto. Sentia‑se bem‑disposta. Com o ar‑condicionado, a temperatura ambiente era fresca e agradável.

Os eventos da noite anterior lhe voltaram à mente: a longa sucessão de clube nocturnos, Martin atacando o homem que agredira a mulher de cabelos escuros.

Lembrava‑se nitidamente do homem. Havia algo de sinistro na linha de sua boca. Os olhos eram próximos um do outro e apresentavam uma expressão de crueldade.

As feições da mulher, no entanto, eram muito bonitas. Ela parecia ser fina e educada. O que estaria fazendo no Clube Pirâmide em companhia daquele homem?

Os objectos que recolhera eram caros. O estojo do pó compacto com figuras de borboletas eram exclusivos do Boucheron. O lenço tinha o acabamento em renda.

O anel, contudo, não combinava. Tinha certeza de que era comum e barato.

Precisava parar de pensar naquele assunto, como Martin ordenara.

Levantou‑se, escovou os cabelos, aplicou pó no rosto e um toque de batom nos lábios. Deixaria a maquilhagem pesada para mais tarde.

Vestiu uma camisola de nailon e renda que comprara no Savoy. Era provocante e até mesmo um pouco indecente. Abriu a porta e examinou a sala. Os jornais continuavam espalhados como Martin os deixara. As taças estavam sujas e a garrafa de champanhe aberta. Atravessou‑a e bateu levemente à porta do outro quarto. Não houve resposta. Um estremecimento a percorreu. E se Martin não tivesse voltado? E se algo lhe houvesse acontecido?

Abriu a porta e suspirou de alívio ao vê‑lo no terraço, tomando o café da manhã.

Estava vestido com um pijama cor de laranja e um robe ridículo de cetim laranja com listras brancas. Estava longe de se parecer com o homem que conhecera no escritório de seu tutor.

‑ Bom dia.

 ‑          Olá, baby ‑ cumprimentou‑a, sem se levantar. ‑ Sente‑se. Mandarei que lhe sirvam o café.

‑           Não se apresse. ‑ Ela baixou o volume de voz. ‑ É seguro falar aqui?

‑           Aqui e lá dentro também ‑ Martin respondeu ‑, graças a um pequeno instrumento que lhe mostrarei daqui a pouco.

‑ Não estou interessada nisso no momento ‑ Regine retrucou. - Quero saber aonde você foi ontem à noite e por que não me disse nada. E se lhe acontecesse algo?

‑           Então você me ouviu sair?

‑           Claro que ouvi e não gostei do que fez. Se o assunto dizia respeito a Chris, deveria ter me levado consigo. E se não dizia, expôs‑se desnecessariamente.

‑           Fala como se fosse uma velha professora ‑ Martin caçoou, mas ao perceber que a deixara realmente assustada, desculpou‑se. ‑ Perdoe‑me, estou tão acostumado a trabalhar sozinho que às vezes me esqueço de que agora tenho uma parceira.

A explicação foi tão inesperada que a raiva evaporou no mesmo instante.

‑           Está perdoado, mas insisto que me diga aonde foi e o que fez. ‑ Ela notou a hesitação de Martin mas não desistiu de pressioná‑lo. ‑ Por favor, o caso é sério. Nenhum de nós está aqui para se divertir.

‑           Bem, eu queria encontrar um amigo.

‑           Ele tem um nome, não? Ou isso é segredo?

‑           Sim, é segredo. Somos instruídos a nunca mencionar nomes a menos que seja absolutamente necessário. O nome dele é Paul. Esperava que entrasse em contato comigo. Como isso não aconteceu, tentei encontrá‑lo.

‑           Ele também é um dos homens de meu tutor? ‑ Antes que Martin respondesse, Regine repreendeu‑se em silêncio. Estava se comportando como uma criança. ‑ Bem, o que ele disse?

‑           Não o encontrei em seu apartamento. Deve ter viajado. Dei por falta de algumas roupas.

‑           Quer dizer que passou quase toda a noite fora?

‑           Para ser franco, acabei de chegar.

‑           Não tem medo que alguém o tenha seguido?

‑           Não da maneira como saí e como voltei.

Martin pareceu se distrair por um instante, admirando a vista do Nilo. Foi um choque, portanto, vê‑lo subitamente inclinado sobre ela e sentir um beijo em sua boca.

Sem soltá‑la, Martin fez com que se levantasse e levou‑a para a sala.

‑           Quem lhe deu ordem para...?

‑           Veja por si mesma. ‑ Martin colocou um objecto em sua mão. ‑ Coloque‑se no canto da janela de forma a não ser notada.

O objecto era um binóculo. Olhou através dele para uma torre que havia sido construída recentemente na outra margem do Nilo, de acordo com o guia. Ali funcionava um restaurante que atraía muitos turistas.

O sol se reflectia nos vidros. Não dava para ver nada por trás deles.

‑           O que foi que você viu? ‑ Regine perguntou, intrigada, e ficou ainda mais ao notar uma expressão estranha no rosto de Martin.

‑           Talvez eu tenha me enganado, mas tive a impressão de que estávamos sendo observados.

‑           Por que alguém faria isso?

‑ Não sei. Como já disse, talvez tenha sido apenas minha imaginação. Mas precaução nunca é demais.

‑           Quer dizer que beijos afastam o perigo?

‑           Em nosso caso, sim. Não seria natural se dois amantes se limitassem a conversar, não acha?

Regine não respondeu de imediato.

‑ Está bem. Você está certo. Mas saiba que não gosto de intimidades com estranhos.

Em vez de mostrar‑se ofendido, como ela esperava, Martin jogou a cabeça para trás e riu.

‑ Qual é a graça? ‑ Regine protestou.

‑ Você! Sua seriedade não combina com esse traje ridículo que está usando!

‑           Não ria de mim! Temos um assunto sério para discutir. A propósito, tem certeza de que estamos seguros?

‑           Sim. Eu trouxe um pequeno aparelho emprestado de Paul. Pretendia mostrá‑lo a você, mas disse que não estava interessada.

‑           Agora estou.

Ele abriu um estojo que continha uma espécie de compasso.

‑ O que é isso?

‑           Algo que estou querendo há tempos e que tomei emprestado de Paul sem seu conhecimento. Afinal ele não o está usando e minha necessidade dele é grande.

‑ Qual é sua finalidade?

‑           Detectar microfones. Sei que os russos e os japoneses os empregam em seu trabalho, mas eu ainda não tive a oportunidade de manuseá‑lo.

‑           Como funciona?

‑           Quando é ligado, o aparelho faz a agulha girar na direcção do local onde estiver instalado um microfone

‑ É muito interessante ‑ Regine concordou.

‑ Bem, precisamos pedir seu café. Procure se deitar em uma dessas espreguiçadeiras e fazer uma pose sensual quando o garçom trouxer a bandeja.

‑ Farei o melhor que puder.

Regine não se sentia à vontade na presença de Martin. Fechou os olhos na esperança de que ele não tornasse a lhe falar, ao menos até que lhe trouxesse o dejejum. E também para não surpreender nenhum olhar malicioso por causa de seu traje.

‑           Aonde iremos hoje? ‑ Regine indagou enquanto bebia o suco de laranjas frescas que acabava de ser servida.

‑ Visitar alguns pontos turísticos. Você deverá fingir grande interesse em ver as jóias de Tutancamon. É o tipo de coisa que atrairia a atenção da Senhorita Faye. Mais tarde. verificaremos o último endereço deixado por Chris.

‑           Está falando sério? Não seria arriscado demais irmos até lá sem nos disfarçarmos?

‑           Tenho todos os detalhes planeados. Direi ao guia que preciso ver um jornalista que me ajudou no passado com a publicidade de meus clubes nocturnos. Seria um erro nos disfarçarmos. Nossos inimigos devem estar à espreita e se nos vissem nessa situação teriam certeza de que estamos realmente em uma missão.

‑           Entendo. Vou tomar um banho e me arrumar para sairmos. Colocarei um vestido ainda mais bonito do que os que Nefertiti, a rainha do Egipto, usava.

‑           Faça isso ‑ Martin concordou ‑ e não se esqueça de sua pintura de guerra.

No meio do caminho, Regine parou e virou para trás.

‑ Lembre‑me de lhe dizer mais tarde o quanto o abomino.

Regine se afastou para o quarto ao som das risadas de Martin. Escolheu um vestido rosa‑choque com flores brancas que atraía olhares de todos os homens que se encontraram no hall de entrada. Tentava caminhar como se fosse uma estrela de cinema. Estava determinada a desempenhar bem seu papel.

Havia momentos que os olhares não lhe pareciam apenas de admiração. Estaria sendo seguida?

O guia e o motorista os esperavam nos fundos do hotel que dava para uma praça.

‑           O museu fica do outro lado da praça ‑ Martin contou ‑, mas como sei que você não gosta de andar, iremos de carro.

‑           Detesto andar! ‑ Regine exclamou, afectada.

Havia um jardim magnífico diante do museu com muitos canteiros de flores e com pequenos lagos com peixes coloridos que nadavam entre os numerosos nenúfares.

Em contraste com a luz do sol, o interior do museu parecia escuro e sombrio.

‑           Museus sempre me deprimem ‑ Regine observou em voz alta.

‑           Mas você disse que queria ver as jóias, baby.

‑ Oh, sim. Adoro jóias. Especialmente as grandes e vistosas.

Enquanto se dirigiam ao primeiro andar, o guia começou a apontar e a dar explicações sobre a corja de estátua ou objecto que surgiu.

‑ Não estamos interessados ‑ Martin interrompeu‑o, ríspido. ‑ A senhorita quer ver as jóias. Não nos faça perder tempo.

Não foi necessário simular admiração pelos tesouros encontrados na tumba de Tutancamon. A mobília em ouro, as pedras coloridas e o sarcófago eram de tirar o fôlego.

Era tudo tão magnífico e tão perfeitamente conservado através dos milénios que até mesmo Martin se esqueceu eventualmente de seu disfarce e fez duas ou três perguntas ao guia.

Regine estava examinando um pequeno barco que também havia sido encontrado na tumba do faraó quando viu, do outro lado da sala, a mulher de cabelos escuros da noite anterior.

Estava usando um lindo vestido de Linho branco que certamente fora adquirido em Paris, na maison Dior. Como acessório, trazia um pequeno chapéu enfeitado com minúsculas flores brancas e de suas orelhas pendiam brincos de diamante. A bolsa não era preta como a da noite anterior, mas azul‑clara como suas luvas e sapatos de saltos altos.

Seu acompanhante era outro. Um homem bem mais velho do que ela, de constituição robusta, com olhos cinzentos e astutos.

Quando o viu se afastar dela e se deter diante de uma estátua, Regine, movida por um súbito impulso, foi ao encontro da mulher.

‑ Estou feliz em encontrá‑la. Tentei alcançá‑la ontem à noite, mas não consegui. Encontrei um anel no chão em forma de uma serpente. Achei que deveria ser seu.

Os olhos da mulher apresentaram a mesma expressão de terror de antes.

‑           Não sei de que você está falando. Afaste‑se de mim!

Sua voz era um sussurro. Seus lábios tremiam ao falar. Ela parecia ter muito medo de ser ouvida.

‑ Mas... ontem à noite... no Clube Pirâmide...

‑ Jamais estive nesse lugar. Não sei de que você está falando. Se não me deixar em paz, chamarei a polícia.

A mulher saiu literalmente correndo em direcção ao homem com quem conversara um minuto antes e que não parecia ter presenciado o encontro entre as duas.

Eles se afastaram após a mulher dar o braço a ele. Regine ficou imóvel, como que paralisada, durante um longo tempo, perplexa demais para tomar outro tipo de atitude.

Pestanejou ao notar que Martin estava a seu lado.

‑ Então, já viu tudo que queria ver?

‑ Se a senhorita quiser visitar a sala contígua, terá a oportunidade de admirar lindos colares de pedras preciosas que foram encontrados em outras tumbas.

‑ Oh, acho que já vi o suficiente por hoje ‑ Regine respondeu, como se estivesse enfadada. Enquanto isso, Martin consultava seu relógio de pulso.

‑ Ainda temos uma hora antes do almoço. Eu gostaria de aproveitar e tentar trocar algumas palavras com aquele jornalista sobre o qual lhe falei.

‑ Deseja ir a algum outro lugar? ‑ o guia se prontificou.

‑ Sim. Se não me engano, a rua chama‑se Sharia Bein al Nahasseen.

‑ Deve estar enganado, senhor! ‑ o guia retrucou, surpreso.

‑ Talvez. Preciso verificar novamente minha agenda. ‑ Martin tirou‑a do bolso e folheou‑a. ‑ O endereço está correcto.

‑ Mas essa rua fica em um bairro miserável.

‑ É verdade. Esse amigo é jornalista. Quando redige uma matéria, ele sempre faz questão de mergulhar fundo. Nada lhe escapa. A atmosfera, o povo... Agora deverá se instalar no mundo do jogo e dos night clubs caso aceite o trabalho que quero lhe oferecer.

‑ Sabemos que é o rei da noite, senhor - o guia disse com respeito. ‑ Pretende abrir um clube aqui no Cairo?

Martin deu um sorriso enigmático.

‑ Isso irá depender de você. Preciso conhecer algo mais interessante do que você me mostrou ontem à noite.

‑           Bem, existem muitos outros clubes na cidade.

‑ Espero visitar todos, mas agora, só quero visitar meu amigo.

No carro, Regine ainda não havia se recuperado do estupor. O homem que Martin agredira deveria ser o amante daquela mulher, enquanto o senhor que a acompanhara ao museu deveria ser o marido. Era a única explicação.

Estavam percorrendo ruas estreitas e apinhadas de gente de carroças. Aquela parte da cidade era muito diferente do que vira. As casas eram pobres, as paredes sujas e descascadas e havia moscas em abundância.

O carro seguia devagar por entre as pessoas e bodes e por entre barracas de onde vinha um cheiro forte de fritura.

‑           Esta é a rua Sharia Bein al Nahasseen, senhor ‑ avisou o guia. ‑ Sabe o número?

Martin tornou a abrir a agenda.

‑ Dez.

A rua estreitou‑se a tal ponto que foram obrigados a descer do carro e seguirem a pé. O guia quis acompanhá‑los, mas Martin não permitiu.

‑           Fique com o motorista e manobre o carro de forma que esteja preparado para voltarmos assim que eu falar com meu amigo.

O guia hesitou, mas a firmeza de Martin o impediu de insistir.

Martin segurou Regine pelo braço e conduziu‑a pela rua de pedra.

Ninguém atendeu no número dez. Quando Martin se preparou para bater novamente, um homem os chamou, do outro lado da rua, disse algo que eles não entenderam, e apontou para o carro.

Martin e Regine entreolharam‑se. E antes que dissessem algo, viram uma mulher vestida de preto com uma cesta, subindo a rua.

A roupa e as feições eram europeias.

Quando se aproximou deles, puderam notar uma expressão de medo em seus olhos.

‑ Estavam batendo em minha casa, monsieur? ‑ a mulher perguntou em francês e Martin respondeu no mesmo idioma.

‑           Mora aqui?

‑           Sim. Chamo‑me Goha.

‑           Bonjour, madame.

A mulher tirou uma chave do bolso e introduziu‑a na fechadura.

‑           O que desejam?

‑           Podemos entrar e lhe falar por um momento?

Ela os fitou com desconfiança, mas fez um sinal de assentimento com a cabeça.

Era a casa mais pobre que Regine já vira.

Madame Goha largou a cesta no chão e tirou o xale preto que lhe cobria a cabeça. Sem ele, não pareceu tão idosa.

‑           Pois não, monsieur. O que desejam de mim?

Martin sorriu e Regine percebeu o quanto ele estava se esforçando para agradar à mulher.

‑ Foi muita bondade sua nos receber, madame. Estou procurando um amigo que talvez esteja hospedado em sua casa. Ele trabalhou para mim há algum tempo e estou precisando novamente de seus serviços pelos quais lhe pagarei muito bem.

A mulher não respondeu. Regine achou‑a tensa.

‑ Eu o conheci como Christopher Huntley, mas é possível que esteja usando outro nome agora.

‑           Ele foi embora.

‑           Então Christopher já esteve aqui?

‑           Já, mas foi embora ‑ a francesa repetiu

‑           Quando?

‑           Faz algum tempo. Não me lembro.

‑ Morou com a senhora por muito tempo?

‑ Não, por pouco. Não posso lhe dizer mais nada, monsieur.

Sem se preocupar com o que Martin poderia pensar, Regine se colocou entre ele e a francesa. Tirou os óculos escuros e olhou nos olhos dela.

‑ Por favor, madame, ajude‑nos. Christopher era um amigo muito querido. Ele e eu nos conhecemos desde crianças. Estamos ansiosos por encontrá‑lo.

‑           Não posso ajudá‑los, mademoiselle. Ele não está aqui.

‑           Não poderia nos informar para onde ele foi? Estava doente?

‑           Não, ele não estava doente. Foi embora. isso é tudo que tenho para dizer.

Regine não conseguiu evitar as lágrimas.

‑           Por favor, madame.

A mulher fez um movimento negativo com a cabeça. Regine fechou os olhos. Quando os abriu, Martin estava tirando algumas notas do bolso.

‑           Eu lhe pagarei pelas informações, madame.

A mulher olhou para o dinheiro, hesitou e olhou para o outro lado.

‑           Não tenho nada para lhes dizer.

‑ Apenas nos conte o que aconteceu com ele ‑ Martin implorou e contou as notas. Eram cinco. Valiam duas libras cada.

A mulher respirou fundo, foi até à porta, abriu‑a e tornou a fechá‑la.

‑           Eles vieram e o levaram embora.

‑           Eles quem? A polícia?

‑           Não. Homens.

‑           Egípcios?

‑           Como posso saber? Sou apenas uma pobre viúva. Eles ordenaram que eu me afastasse de seu caminho e subiram. Quando tornaram a descer, o moço estava junto.

‑           Tem certeza de que ele não estava doente? ‑ Regine insistiu.

‑           Tenho. Ele saiu daqui com seus próprios pés. E nunca mais voltou. Só os homens.

‑           Então os homens voltaram? ‑ Martin perguntou, ansioso.

‑           Sim. Vieram apanhar as coisas dele. Levaram tudo. ‑            A mulher deu um suspiro. ‑ Não posso dizer mais nada.

Regine olhou para Martin com desespero. A visita fora inútil. Confirmava apenas a suspeita de que Chris fora assassinado.

Esperou que Martin entregasse o dinheiro para a mulher e que fossem embora em seguida. Em vez disso Martin puxou mais cinco notas do bolso e espalhou‑as sobre a mesa.

A mulher humedeceu os lábios com a ponta da língua.

‑           Eu acho, madame, que a senhora não nos contou tudo. Eles esqueceram algo aqui, não?

Regine notou que a testa da mulher cobriu‑se de suor.

‑           Tenho medo, monsieur ‑ ela confessou com um fio de voz.

‑           Ninguém saberá de nossa conversa ‑ Martin provocou‑a. ‑ E dinheiro sempre tem utilidade.

‑           Eles me interrogaram, monsieur, e eu jurei que não havia ficado com nada do moço.

‑           Juro que não a trairei ‑ Martin prometeu. ‑ O que aconteceu realmente?

‑           Quando eles desceram a escada, eu estava escondida atrás da porta. Dois homens estavam na frente e dois atrás de monsieur Huntley. Ele me viu e disse que precisava pagar o aluguel atrasado. Fiquei surpresa. pois ele havia me pagado um dia antes, mas não fiz nenhum comentário. Depois que eles se foram, ao contar o dinheiro, encontrei um pedaço de papel.

‑           Um bilhete? ‑ Martin indagou. ‑ Ainda o tem?

‑ Sim. Mal o havia guardado em lugar seguro, os homens voltaram e vasculharam todo o quarto. Levaram tudo o que pertencia ao moço. E me fizeram perguntas. Eu neguei tudo. Senti que o moço estava correndo perigo ou ele não teria me deixado uma quantia dez vezes maior do que o total que me fora pago durante sua permanência em minha casa. ‑ A mulher apontou para a cesta de comida. ‑ É a primeira vez que me alimento bem em minha vida.

‑ Poderia nos entregar aquele bilhete agora? ‑ Martin pegou as notas e colocou‑as diante da mulher. Ela as recolheu guardou‑as no decote do vestido. Em seguida, foi até a cesta tirou o papel de dentro de uma carteira velha e surrada.

‑ Pegue e vá embora depressa ‑ suplicou.

Martin guardou o bilhete no bolso e agradeceu. A mulher estava prestes a abrir a porta quando Regine a impediu.

‑ Por favor, só mais um segundo. Eu gostaria de ver o quarto de Chris.

‑           O quarto está sendo usado por outro pensionista. Aluguei‑o há três dias. Ele disse que também era amigo do sr. Huntley

‑           Como é o nome dele? ‑ Martin perguntou, desconfiado.

‑           Smith. Também é inglês.

‑ Ele se encontra aqui agora?

‑           Não sei. Saí cedo para o mercado e demorei a voltar. A comida anda escassa e caríssima no Cairo.

‑           Por favor, podemos subir e verificar? ‑ Regine pediu.

‑           Sim, mas rápido. Os homens poderão voltar e fazer mais perguntas.

Ela fez menção de subir, mas Martin se adiantou. Quando chegaram ao topo da escada, que não possuía nem sequer um corrimão, quase precisaram curvar os corpos. O pé direito era tão baixo que as cabeças quase tocavam o tecto.

A única porta estava encostada. Martin bateu. Como ninguém respondesse, ele empurrou‑a.

O quarto estava inteiramente revirado. Os conteúdos das gavetas estavam espalhados pelo chão, a cama e a cadeira de pernas para cima. Ao fundo, por trás da cama, viram um pé e uma perna de homem.

Martin fez sinal para que Regine não entrasse. Andou por cima das gavetas e se inclinou sobre o corpo.

‑           Meu Deus! Meu Deus!

Apesar da ordem recebida, Regine foi até ele. O corpo era de um jovem loiro. Havia uma faca cravada em seu peito. Uma enorme mancha de sangue se espalhara sobre a camisa branca.

‑ Meu Deus! ‑ Martin sussurrou. ‑ Paul!

 

Madame Goha os esperava ao pé da escada.

‑ O quarto estava vazio, não estava?

‑ Pegue sua cesta, madame, e volte para o mercado ‑ Martin interrompeu‑a. ‑ Se encontrar algum vizinho, diga que esqueceu de comprar algo e fique fora desta casa o maior tempo que puder.

Regine notou que a mulher empalidecia.

‑ Então ele...

‑ Sim. Não entre no quarto. Não faça nada excepto o que eu lhe disse. Acha que pode confiar em seus vizinhos?

‑           Eles têm medo, como todo mundo. É melhor sairmos logo e juntos.

A mulher pegou a cesta, foi ao que deveria ser a cozinha e Regine e Martin a ouviram despejar as compras em algum Lugar.

Regine tocou o braço de Martin.

‑           Acho que vou desmaiar.

Ele se virou. notou sua palidez e surpreendeu‑a ao se mostrar zangado.

‑ Pensei que tivesse fibra!

Aquelas palavras tiveram o efeito de um jacto de água fria no rosto de Regine. A raiva substituiu a tontura. Quando a francesa se reuniu a eles, estava pronta para acompanhá‑los.

Martin abriu a porta e o sol ofuscou‑lhes a vista após a penumbra a que haviam se acostumado no interior da casa.

‑ Obrigado, madame ‑ Martin falou em voz alta. ‑ Foi muito amável em nos receber. Quando o sr. Huntley regressar, peça que entre em contacto comigo imediatamente. Tenho certeza de que ele gostará de saber que há um bom trabalho à sua espera. Estou hospedado no Nile Vista.

‑ Oui, monsieur. Eu lhe darei seu recado assim que voltar.

O carro os aguardava conforme Martin havia ordenado.

Regine invejou‑o por sua capacidade de controle. Ela estava tremendo. Sentia os dentes baterem uns contra os outros. Enquanto isso, recostado no banco, Martin conversava com o guia.

‑ Encontrou o cavalheiro que procurava?

‑ Infelizmente não. A mulher que mora naquela casa disse que ele viajou por alguns dias. Que lugar horrível! Meu amigo deve estar em má situação para se hospedar ali. Mal pode imaginar a chance que está perdendo de ganhar um bom dinheiro!

‑ Será uma grande falta de sorte se ele não voltar a tempo ‑ concordou o guia.

Não demoraram a alcançar a grande avenida que margeava o Nilo, ao longo do qual muitos novos hotéis estavam sendo construídos.

Ao chegarem ao Nile Vista, Martin pediu a Regine que não demorasse a se preparar para o almoço.

No quarto, Regine atirou‑se sobre a cama, aliviada por poder ficar alguns instantes sozinha. Fechou os olhos, incapaz de pensar em outra coisa que não fosse na faca cravada no peito do amigo de Martin.

Voltou a si com o tilintar de pedras de gelo dentro de um copo.

‑ Beba isto! ‑ Martin ofereceu.

‑ O que é?

‑           Uísque.

Ela tentou apanhar o copo, mas suas mãos ainda tremiam tanto que Martin levou a bebida a seus lábios.

‑ Obrigada, já estou melhor.

‑           Beba tudo e não fale.

Martin saiu do quarto. Deveria ter ido buscar o aparelho que tomara emprestado de Paul e que agora, lamentavelmente, não mais precisaria devolver.

Ao retornar, Martin verificou a possibilidade de terem colocado microfones.

‑ Está tudo limpo. Pode falar. Está se sentindo melhor?

‑ Quem teria feito aquilo? Por que o mataram?

‑           Espero que o bilhete nos dê uma pista.

Regine colocou o copo vazio sobre a mesa‑de‑cabeceira e teria se levantado se Martin não se sentasse ao lado dela.

Ele desdobrou o papel com cuidado.

‑           Não se trata de uma carta. Isto deve fazer parte de um relatório que estivesse escrevendo para o general ou, talvez, para o jornal em que trabalhava. Acho, embora não tenha certeza, que era um rascunho e que ele não teve tempo de codificá‑lo.

‑ Deve ser muito importante ‑ Regine murmurou. ‑ Chris escrevia quase sempre directamente na máquina.

‑           Ouça.

 

"...um plano incrível, até mesmo fantástico, que pode ter êxito. Não tenho nenhuma dúvida de que tudo começou na China, em pequenas plantações. Alastrou como fogo. Já está sendo produzida aqui e vicia com extrema facilidade Mais, inclusive, do que a heroina e a cocaína.

Pessoas notáveis, de muitos países, fazem parte do esquema. A droga é chamada por eles de yin. A senha, isto é, a ave que descerra o segredo, é um anel em formato de...

 

Martin virou a página, mas ela estava em branco. Seu cenho estava franzido ao olhar para Regine.

‑           Meu Deus! Chris havia descoberto uma trama que envolvia tráfico de drogas!

‑           De uma nova droga ‑ Martin corrigiu. ‑ Não é de admirar que estivesse tão preocupado. Esse novo narcótico está sendo plantado não apenas na China, mas aqui, obviamente nas margens do Nilo. ‑ Martin se deteve e olhou pela janela. ‑ Milhares, se não milhões de pessoas serão atingidas a menos que possamos destruir o esquema.

‑           Chris estava tentando algo assim?

‑           Talvez. Chris disse que as plantações ainda eram pequenas. Precisamos fazer algo a esse respeito com urgência!

‑           Mas como?

‑           Se avisarmos a polícia, as plantações poderão ser descobertas e destruídas, mas os responsáveis não serão identificados. Chris teria feito isso se tivesse certeza do resultado. No entanto, preferiu conduzir a investigação sozinho, os envolvidos nesse tráfico devem ser muito espertos para terem escapado dos agentes internacionais da liga anti‑drogas. Afinal, eles têm realizado um magnífico trabalho no Cairo. É por isso que penso que Chris estava certo. Se essas pessoas estão conseguindo traficar apesar da vigilância, isso significa...

‑           Isso significa? ‑ Regine perguntou de imediato.

‑ Que "cabeças augustas irão rolar", como Chris escreveu em sua carta. Há gente muito importante envolvida, não apenas no Egipto, mas em vários países do mundo.

Martin andava de um lado para o outro do quarto como uma fera enjaulada.

De repente, Regine deu um pequeno grito.

‑           Martin, eu tive uma idéia! O anel! Eu queria ter-lhe contado antes, mas não houve oportunidade. Esta manhã, no museu, aconteceu algo esquisito.

Regine contou o ocorrido entre ela e a mulher de cabelos escuros.

‑           Você tem certeza? ‑ Martin perguntou.

‑           Absoluta. Ela ficou aterrorizada quando mencionei o anel. Tanto quando ficara na noite anterior quando aquele homem a agrediu.

Martin tirou o anel do bolso e examinou‑o. à luz do dia, os rubis colocados nos olhos da serpente e as três pequenas pérolas sobre a língua adquiriram um novo significado.

‑           Confesso que não pensei que os assuntos estivessem ligados. O que ela estava usando no museu?

‑           Um vestido branco, um chapéu com florzinhas e brincos de diamante. Parecia muito rica. Você deve tê‑la notado. Havia um homem com ela. Era baixo e robusto e tinha cabelos grisalhos.

‑           Usava um cravo amarelo na lapela?

‑           Sim, acho que sim ‑ Regine respondeu. ‑ Por quê?

‑           Nosso guia apontou‑o para mim. Disse que era um empresário alemão em visita a negócios a este país. Impressionou‑o saber que o homem havia estado com o presidente Nasser.

‑           Você acredita que a mulher era sua esposa?

Martin suspirou.

‑           Cabeças augustas, lembra‑se? A esposa poderia estar sendo usada como intermediária. O homem que encontrou no Clube Pirâmide poderia ser um distribuidor. Ou algo no género. Ele ficou furioso com a perda do anel. Talvez ele seja uma peça importante no esquema.

‑           Estou com medo.

Martin interrompeu a explicação.

‑           Vamos almoçar?

‑           Não posso. Não estou em condições de me apresentar em público.

A voz de Regine estava trémula e seu rosto tão pálido que Martin não insistiu.

‑           Nickoylos é do tipo que gosta de se exibir, principalmente ao lado de uma mulher bonita, mas desta vez, apenas desta vez, pediremos o almoço no quarto.

‑           Obrigada ‑ Regine respondeu, grata. ‑ Enquanto você faz o pedido, posso ler mais uma vez o bilhete de Chris?

Martin hesitou, mas entregou‑o e saiu do quarto.

Enquanto o ouvia conversando com o garçom na sala, Regine alisou o papel e chorou.

‑           Oh, Chris, meu irmão...

Alguns instantes depois, enxugou as lágrimas, foi até a penteadeira e retocou a maquilhagem. Seus olhos estavam vermelhos, mas os óculos escuros resolveriam o problema. Não podia fraquejar. Tinha de descobrir o que haviam feito a seu irmão.

‑           Nós os encontraremos. Aqueles que mataram você e Paul responderão pelos crimes!

Martin bateu à porta e entrou sem esperar permissão.

‑           O almoço logo será servido. Inventei uma desculpa sobre você estar com dor de cabeça e mandei avisarem o guia e o motorista que não precisaremos do carro antes das três e trinta.

‑           Obrigada. Já estou me sentindo melhor.

‑           Ainda bem. Receei que você fosse me deixar sozinho.

 - Desculpe‑me, mas não esperava ver algo tão horrível. Ele era muito amigo seu?

‑           Sim ‑ Martin respondeu.

‑ Você fala como se isso fosse natural ‑ Regine disse. chocada. ‑ Não se importa que seu amigo tenha sido assassinado daquela forma?

‑           Claro que me importo, mas não posso comprometer a missão com sentimentalismos. Agora é sua vida e a minha que estão em jogo.

‑           Acredita que estamos sendo seguidos?

‑ Tenho tomado precauções a esse respeito desde que deixamos Londres. Sabemos que as pessoas envolvidas são cruéis e impiedosas. Já mataram seu irmão e Paul. Estão cientes da existência de um pedaço de papel que pode incriminá‑los. Não descansarão enquanto não o encontrarem.

‑           O que você fará com ele?

‑           Eu o destruirei. Não podemos carregar uma evidência que nos incrimine. Isso só acontece em histórias de ficção. Nós dois já conhecemos a mensagem. O importante agora é passar essa informação a quem terá condições de fazer bom uso dela.

‑ Ao general? ‑ Regine sugeriu.

‑ Entre outros. Mas não ainda. Como Chris, prefiro colher mais dados antes.

‑ Mas isso é perigoso! ‑ exclamou Regine.

‑ Muito perigoso ‑ Martin concordou e mudou de voz ao ouvir um ruído. ‑ Vamos, querida, faça um esforço. Precisa comer algo.

Ela se esforçou, mas à simples visão de tantos pratos, enjoou ainda mais. Foi um alívio, portanto, quando o garçom serviu o café e o licor. A sós, finalmente, Martin acendeu um charuto.

‑           Paul era um grande sujeito ‑ murmurou. ‑ Era um de nossos melhores agentes. Se ele foi caço, não tenho muitas esperanças de alcançar êxito nesta missão. Vá para casa, Regine, e desista de ser uma heroína.

‑           Não pretendo ser nenhuma heroína ‑ Regine protestou. ‑ Não adianta tentar me convencer a desistir. Estou aqui para descobrir o que houve com meu irmão. Agora que a história começou a vir à tona, quer que eu pare? Não, meu caro. Irei até o fim.

Martin deu uma baforada que exibiu toda sua irritação. Regine não conseguiu evitar de sorrir.

‑           Se formos sinceros um com o outro, admitiremos o quanto estamos sendo tolos. Estou com raiva de você porque está tentando salvar minha vida. E você está com raiva de mim porque recuso‑me a ser salva.

Martin mudou de atitude.

‑           Sinto muito. Eu deveria ter imaginado que você não desistiria. É tão obstinada quanto seu irmão.

‑ O que fará a seguir?

‑           Bem, acho que não adianta esconder de você. Em primeiro lugar, mandarei um telegrama comunicando a morte de Paul. Depois, darei um jeito de informar que Chris estava certo e que estamos farejando algo grande.

‑           Como pretende fazer isso? Por telefone?

‑           Não. Seria perigoso demais.

Martin sentou‑se á mesa e pôs‑se a escrever. Quando terminou, entregou o telegrama a Regine para que ela lesse.

Estava endereçada a uma firma atacadista de Londres e dava instruções para a venda de algumas mercadorias e compra de outras. A assinatura era de "Nickoylos".

‑           Você escreveu em código, não?

‑           Sim. Duvido que alguém mais o entenda, excepto o destinatário. Quando descermos, aproveitarei para enviá‑lo.

‑           São quase três e trinta ‑ Regine lembrou. ‑ Precisamos mesmo sair?

‑           Ao menos até uma joalheria. Nosso guia ficará desapontado se não conseguir ganhar sua comissão.

‑           Não escolherei nada caro, prometo.

‑           Está bem, mas não deixe de fazer comentários sobre nada ser bom o suficiente para seu gosto.

‑           Estou pronta ‑ Regine disse alguns minutos depois. Havia mudado de vestido, como a Senhorita Faye faria, e retocado a maquilhagem de forma a combinar com as novas cores da roupa.

Martin ficara esperando‑a na sala, Em profunda concentração. Ela notou que enquanto raciocinava, Martin gostava de deitar de costas e colocar os braços atrás da cabeça.

‑           Está deslumbrante ‑ Martin elogiou.

‑           Obrigada, mas sinto‑me como uma árvore de Natal. Tenho certeza de que nenhum de meus amigos me reconheceria.

Martin também havia trocado de roupa. Parecia vulgar com um casaco vermelho sobre o terno cinza, de tecido pouco encorpado.

Foram levados a uma joalheria e recepcionados com chá de menta conforme o costume local. Mostraram‑lhes ametistas, turquesas, rubis e esmeraldas, de qualidade duvidosa, mas de um valor astronómico.

Regine representou de maneira impecável, afirmando que nada era tão bonito quanto vira em Paris e que ela teria preferido ficar com o broche que Martin se recusara a comprar em Londres.

Após cerca de uma hora, Regine escolheu um anel de água‑marinha.

‑           Acho que ficarei com este, embora não seja tão bonito quanto meus outros anéis.

‑ É apenas um suvenir ‑ Martin lembrou. ‑ Sei que possui outros ainda mais bonitos. Como eu. Tenho certeza de que nenhum outro se comparará a este do qual nunca me separo. ‑ Martin mostrou o anel de brilhante em seu dedo anelar. ‑ A propósito, eu gostaria de lhe fazer uma pergunta aproveitando que estou aqui. ‑ Martin pegou o anel de cobra e mostrou‑o ao joalheiro. ‑ Estas pedras são verdadeiras?

O joalheiro colocou uma lente junto a um dos olhos.

‑           Sim, senhor. As pedras são verdadeiras, mas como usaram apenas lascas, elas quase não têm valor.

O joalheiro devolveu o anel com um sorriso. Regine olhou em direcção à entrada da loja para verificar se havia algo de incomum. Notou a presença de um egípcio de meia‑idade, com um turbante. Ele parecia hesitante sobre qual atendente procurar. Seu olhar recaiu sobre o anel que Martin estava pegando de volta. Ele ficou estarrecido. Após um instante, se encaminhou para uma vendedora e perguntou sobre sua carteira de cigarros.

‑           Ela já está pronta, Excelência.

O homem sentou‑se em uma cadeira enquanto aguardava. Regine e Martin se prepararam para sair. Estavam passando pelo homem quando ele se levantou bruscamente e bateu no braço de Martin.

‑ Desculpe‑me. Não percebi.

‑ Está tudo bem ‑ Martin respondeu.

‑ Já não nos encontramos? ‑ o homem indagou. ‑ No Sahara City, talvez?

‑ Não creio. Com licença.

No carro, Regine quis saber sobre a razão de o homem ter trombado deliberadamente com Martin, mas ele lhe fez um sinal subtil para que não continuasse a falar.

‑ Onde fica o Sahara City? ‑ Martin perguntou ao guia.

‑ No deserto, senhor. É o melhor night club da cidade. O cabaré foi montado em uma tenda.

‑ Iremos lá esta noite.

‑ Sim, senhor. A que horas deseja o carro?

‑           Eles servem o jantar?

‑ Não, senhor. Ou melhor, sim, senhor, mas o melhor horário para visitá‑lo é após as dez horas. A comida não é tão boa quanto deveria ser.

‑ Nesse caso, jantaremos no hotel e iremos para lá mais tarde. Peça para o motorista nos apanhar às dez. Você está dispensado.

‑ Mas estou aqui para servi‑lo, senhor.

‑ Obrigado, mas seus serviços não serão necessários esta noite. O motorista sabe ir ao Sahara City, não?

‑ Sim, senhor.

‑ Aproveite e descanse. Amanhã quero que nos leve às pirâmides.

‑ Ninguém deve deixar o Cairo sem ver as pirâmides e a Esfinge ‑ declarou o guia.

Regine estava impaciente para ficar a sós com Martin. Quando o guia se afastou, apressou‑se a falar.

‑ O que você achou do homem de turbante? Ele olhou com assombro para o anel.

‑ Porque o anel tem algum significado, é claro.

‑ E se ele nos seguir até o Sahara City?

‑ Posso estar enganado, mas não creio que eles tentem nos matar em público.

‑ É o que também espero ‑ Regine murmurou.

 

Regine passou o restante do dia tentando esquecer a imagem de Paul e cogitando se Chris perdera a vida daquela mesma forma.

Cada vez lhe parecia mais difícil fingir que estava alegre como era seu dever.

No saguão do hotel, Martin convidou‑a para saírem e assistirem ao show do Sahara City, que era um dos melhores da cidade segundo informações que recebera.

‑ Espero me divertir esta noite ‑ Martin reclamou. ‑ É uma vergonha o que fazem os clubes locais ao atraírem os turistas e depois lhes apresentarem apenas algumas damas do ventre.

A noite estava quente e a brisa atingiu seus rostos como me fosse de veludo. No carro, embora o motorista não falasse inglês, preferiram optar pela precaução e não conversarem. Percorreram as ruas da cidade, passaram pelos subúrbios e, quando as construções começaram a escassear, o céu pareceu ainda mais estrelado. Ao longe, sob o luar, as pirâmides pareciam ter saído de um mundo de fantasia.

‑           Agora entendo ‑ Regine murmurou ‑ porque todos que olham para as pirâmides passam a acreditar na reencarnação. A sensação que tenho é de que já estive aqui antes. Talvez tenha sido uma escrava que ajudou a construí‑las.

‑ Ou o faraó que ordenou sua construção.

‑ Acho que esse papel cabe melhor a você. Posso imaginá‑lo, com um chicote na mão, castigando os pobres escravos.

‑ Você não gosta de mim ‑ Martin interrompeu‑a.

Surpresa com a afirmação, Regine não respondeu. Ele prosseguiu: ‑ Não diga nada. Li isso em seus olhos e ouvi isso no tom de sua voz. Compreendo suas razões. Eu a contrariei e não está acostumada a ser contrariada.

‑ Fala como se eu fosse uma jovem mimada.

‑ Exactamente.

Na escuridão da noite, calaram‑se. Estavam se arriscando demais ao conversar diante do motorista.

Regine entregou‑se às suposições. E se o Sahara City não existisse? E se ela e Martin estivessem caindo em uma armadilha? Por outro lado, quem estaria interessado neles? Mesmo que soubessem sobre a curiosidade deles em relação à morte de Chris, não havia razão para pensarem que Martin e ela não fossem o que aparentavam ser.

‑           Veja! ‑ Martin exclamou.

‑ E o Sahara City? ‑ Regine quis saber ao notar as luzes. ‑ Não parece tão especial quanto nos fizeram crer.

‑ Segundo as informações que recebi é o clube nocturno mais original do mundo.

‑ As informações não teriam sido fornecidas por alguma agência de turismo local? ‑ Regine perguntou, céptica.

‑ Não está sendo romântica, baby. Eu, ao contrário, estou ansioso por conhecer esse cassino que se não for estupendo, ao menos será único.

‑ Espero que não fique desapontado.

Desceram no estacionamento que já estava ocupado por numerosos carros. Regine sentiu a areia do deserto invadir suas sandálias. Estava usando um vestido longo com fitas de cetim e um xale de lamé prateado sobre os ombros. Aconchegou‑se a ele.

‑ Está com frio? ‑ Martin indagou, solícito.

Mas ela não estava. Os arrepios deviam‑se à expectativa.

Martin estava certo. O ambiente era incomum. Dentro da tenda, suficientemente grande para comportar centenas de pessoas, havia uma pista de dança no centro e três fileiras de sofás e banquetas ao redor, com mesas em metal dourado.

Foram recepcionados por um garçom de turbante que conduziu‑os a uma das melhores mesas. Todas estavam arrumadas com uma garrafa de uísque ao centro.

O show ainda não havia começado. Regine aproveitou para observar o local.

Havia poucos europeus presentes. Quase todos os ocupantes das mesas eram egípcios com aparência próspera e se faziam acompanhar por mulheres morenas.

Martin serviu‑se de uma dose de uísque e pediu que o garçom trouxesse uma soda para Regine.

‑ Gostaria de comer algo? ‑ ele ofereceu. Regine negou com um movimento de cabeça.

‑           Que lugar extraordinário!

Um grupo de pessoas entrou naquele momento e estava se acomodando em mesas próximas quando o espectáculo começou e embora mostrasse novamente a dança do ventre, a bailarina era perfeita em sua arte, além de muito bonita.

Foi aplaudida com entusiasmo assim como a dançarina seguinte que exibiu um número que causou um efeito quase hipnótico sobre a plateia.

A chegada de novos visitantes distraiu Regine.

‑ Olhe! ‑ ela exclamou subitamente.

Martin virou‑se e viu o homem que agredira na noite anterior. Havia algo no corte de sua roupa e de seus cabelos e no modo de ele andar, que a fez pensar em um tipo homossexual.

Seus acompanhantes eram apenas homens. Três. E suas vozes lhe pareceram um tanto agudos.

‑           Acho que está na hora de irmos embora ‑ Martin murmurou.

‑ Por quê?

‑           Tenho certeza de que ele me reconheceu. Não estou disposto a brigar novamente.

Mal os homens se acomodaram numa mesa, Regine notou que o sujeito da noite anterior ficara sobressaltado ao deparar com a figura de Martin. Em seguida, inclinou‑se sobre a mesa e se pôs a falar com os outros três.

‑ Sim, ele o reconheceu ‑ Regine avisou.

‑           Eu sei. Capriche na representação. Preciso de uma desculpa para ir embora tão cedo.

Ele esvaziou o copo de uma só vez e fingiu ficar embriagado. Levantou‑se e quando tentou andar, atrapalhou‑se com as pernas. Amparou‑se em Regine e começou a resmungar em voz alta.

‑           Acho melhor voltarmos para o hotel. Você não está bem ‑ Regine aconselhou.

‑           Se você quer ir, baby, estou pronto. Sempre faço o que você quer, não? ‑ Martin se inclinou e pousou os lábios sobre os dela em um beijo interminável.

Regine tentou se desvencilhar, mas custou a conseguir.

‑           Você bebeu demais ‑ zangou‑se, mas procurou não deixar transparecer. Quando chamou o garçom e pediu a conta, Martin tirou uma nota do bolso e jogou‑a sobre a mesa.

‑ Fique com o troco.

Levantou‑se em seguida e cambaleou. Regine segurou‑o pela cintura e conduziu‑o com esforço para o estacionamento. Como não havia ninguém por perto, Martin parou de fingir e puxou‑a para um local escuro.

‑           O que está fazendo? ‑ perguntou, alarmada. ‑ Vamos ficar quietos e esperar.

A música os alcançava. Alguns minutos depois, adivinharam que um novo espectáculo estava tendo início.

Nesse instante, dois homens deixaram a tenda. Eram os mesmos que se sentaram á mesa daquele que Martin agredira. Traziam algo nas mãos que brilhava à luz da lua. Facas!

Martin esperou até que chegassem bem perto para saltar sobre eles. Atingiu o primeiro com um soco no queixo que lhe tirou os sentidos. O segundo lhe deu mais trabalho. Após contorcer‑se com o soco no estômago, tentou revidar. Mas Martin atingiu‑o na nuca e ele caiu de joelhos e depois de bruços.

Nenhum dos dois deixou escapar nem sequer um gemido. Martin apanhou a faca que caíra ao lado do corpo, examinou‑a e franziu o cenho. Era igual à que matara Paul.

Com um movimento rápido, cravou‑a na mão de seu agressor ao mesmo tempo que uma salva de palmas lhes chegava aos ouvidos.

‑ Precisamos sair daqui ‑ disse para Regine, com urgência. ‑ Mas não corra.

Ao entrarem no carro, foram abordados por um dos homens que normalmente guardam os estacionamentos e que insistem em receber gorjetas embora não tenham feito nada para merecê‑las.

Martin tirou algumas moedas do bolso. Quando foi entregá‑las, o luar incidiu sobre o anel de cobra que ele colocara no dedo mínimo.

‑ Sinto muito, senhor ‑ murmurou o homem ‑ não há mercadoria disponível.

‑           Quando chegará? ‑ Martin quis saber.

‑           Talvez amanhã.

O som de vozes fez Martin decidir afastar‑se sem perda de tempo.

Durante o trajecto, Regine procurou manter silêncio, mas acabou se descontrolando.

‑           Por que fez aquilo? ‑ sussurrou.

Não havia necessidade de explicações.

‑           Ele mereceu.

‑           Você é tão mau quanto eles.

‑           Por que diz isso?

‑           Sentiu prazer em torturá‑lo.

‑           Ele mereceu ‑ Martin repetiu. ‑ Mudemos de assunto.

‑           Prefiro ficar de boca fechada ‑ Regine retrucou e se afastou para junto da porta de modo a ficar distante de Martin o máximo que pudesse.

Ele respeitou sua vontade. Pouco a pouco, conforme recordava os eventos da noite, Regine sentiu‑se envergonhada. Se Martin não tivesse fingido que estava bêbado, os homens teriam se aproveitado de sua fraqueza para matá‑lo. E a ela, talvez. Mas Martin a protegera mais uma vez. Estavam tratando com a escória. Homens como aqueles haviam matado Paul e seu irmão.

‑           Sinto muito ‑ disse, hesitante.

‑           Não há nada que se desculpar ‑ Martin respondeu. ‑ Você estava certa. Foi uma acção desnecessária. Nesse tipo de missão, nunca podemos perder o controle.

‑           Será que aqueles homens tiveram algo a ver com a morte de Chris?

‑ Não sei, mas de que estão envolvidos nessa história, não tenho dúvida.

O carro logo alcançou as ruas iluminadas e cruzou a ponte sobre o Nilo.

Quando entraram no hotel, o primeiro movimento de Regine foi consultar a hora. Passavam alguns minutos da meia‑noite. Tanto havia acontecido desde que deixaram aquele prédio que sua impressão era de que já estivesse amanhecendo.

Ao chegarem à suíte, Regine fez menção de falar, mas Martin a proibiu com um gesto. Antes teria de examinar tudo com o aparelho que trouxera do apartamento de Paul.

Daquela vez, haviam instalado um microfone atrás da cabeceira da cama.

Regine esperava que Martin fosse desligá‑lo. Em vez disso, ele se pôs a falar daquele jeito afectado de seu personagem Nickoylos.

‑ Gostou, baby? Foi uma noite divertida, não?

‑           Sim, foi adorável. mas estou morta de cansaço.

Enquanto ela falava, Martin abriu a gaveta da penteadeira.

‑           Diabo! Quem mexeu em minhas coisas? Alguém esteve aqui enquanto saímos! ‑ Ele pegou sua pasta e examinou‑a.

‑ Ela foi aberta! Alguém vasculhou meus papéis. Que descaramento! Não admitirei isso!

‑           Mas quem poderia ter mexido em suas coisas? ‑ Regine indagou, ciente de que estavam sendo ouvidos.

‑ É o que pretendo descobrir ‑ Martin respondeu com voz furiosa e tirou o fone do gancho. ‑ Fala o sr. Nickoylos. Quero ver o gerente imediatamente. Não me interessa que ele já tenha se recolhido. Quero que venha até minha suíte e depressa!

‑           Não consigo entender por que fizeram isso ‑ Regine queixou‑se.

‑           Eu entendo muito bem. Homens como eu, bem‑sucedidos nos negócios, sempre têm inimigos. Há sempre quem queira espionar meus segredos comerciais para me fazerem perder, enquanto eles ganham.

‑           Você tem certeza de que alguém entrou aqui?

‑           Claro que tenho. A fechadura de minha pasta estava trancada quando saímos e as gavetas da penteadeira foram vasculhadas. Não nasci ontem, menina!

Martin tornou a chamar a recepção.

‑           Já avisaram o gerente? Sim, pode ser o subgerente. Ele está subindo? óptimo!

Martin bateu o telefone, olhou para Regine, sorriu e lhe deu uma piscada.

Ela não saberia explicar o porquê, mas aquele gesto tocou‑a de um modo indescritível.

 

O subgerente era jovem e loiro, de origem escandinava. Seu inglês era perfeito e suas maneiras eram tão gentis que cheiravam a formalidade.

‑           . Lamento profundamente, senhor, que tenha encontrado razões para reclamar de nossos serviços.

‑           Meus papéis foram vasculhados. Qual é a explicação que pode me dar diante de tal ultraje?

‑           Não entendo, senhor. Temos muito cuidado quando contratamos nossos funcionários e fazemos tudo que está ao nosso alcance para proteger nossos hóspedes. Está absolutamente certo de que alguém entrou em seu quarto?

‑           Se eu estivesse enganado, por que teria encontrado isto? ‑ Martin fez sinal para que o subgerente o seguisse e lhe mostrou o microfone.

O homem arregalou os olhos.

‑           Acho melhor desligá‑lo antes de continuarmos nossa conversa ‑ Martin sugeriu.

O homem fez um gesto de desalento com as mãos quando o serviço foi terminado.

‑           O que me diz agora? ‑ Martin perguntou.

‑           Infelizmente nada, senhor. Não consigo entender como isso aconteceu. Garanto‑lhe apenas que esse tipo de microfone não e usado por nossa polícia.

‑           Quer dizer que conhece o tipo que eles usam?

‑           Sim. A policia já investigou alguns de nossos hóspedes.

‑           O que me diria se eu lhe contasse que este microfone é de fabricação russa?

O subgerente não respondeu. Sua sinceridade parecia genuína.

De repente, encaminhou‑se para o telefone e chamou o valete.

O funcionário que se apresentou era o mesmo egípcio que estava em serviço quando Martin e Regine saíram.

‑           Abdous, este cavalheiro, que está sob seus cuidados, informou‑me que seus papéis foram remexidos. O que tem a me dizer a esse respeito?

‑           Não é possível, senhor! ‑ O homem se defendeu. ‑ Ninguém poderia ter entrado no quarto sem que eu visse. E não abandonei este andar esta noite nem sequer por um minuto.

‑           Conte‑me o que viu.

‑           O cavalheiro e a moça saíram por volta das nove horas. Cerca de uma hora e meia mais tarde, eu o vi sair do elevador e entrar novamente no quarto.

‑ O senhor fez isso? ‑ o subgerente perguntou a Martin.

‑           Não. Nós jantamos no restaurante e saímos em seguida, sem voltarmos ao quarto.

O subgerente franziu o cenho.

‑           A que horas o homem deixou o quarto, Abdous?

‑           Ele esqueceu a chave na fechadura quando entrou ‑ o egípcio continuou. ‑ Fui chamado ao quarto 490 e vi a chave. Dez minutos depois ou pouco mais, ouvi uma porta fechar e vi este cavalheiro trancando‑a para depois se dirigir ao elevador.

‑           A que distância você estava? ‑ Martin quis saber.

‑           Encontrava‑me no final do corredor, mas tenho certeza de que era o senhor.

‑ E eu tenho certeza de que não era eu. Como explica isso?

‑           O caso é sério, Abdous ‑ declarou o subgerente. ‑ Tente se lembrar. O homem não falou com você? Não lhe deu dinheiro?

‑ Não, senhor. Eu juro. Sou honesto. Nunca aceitei dinheiro para deixar que alguém entrasse em um quarto.

‑           Você sempre foi um bom funcionário. Está bem, Abdous. Pode se retirar. ‑ Assim que ficaram a sós, o subgerente olhou, perturbado, para Martin. ‑ Só há uma explicação possível, senhor.

‑ Qual?

‑ Aconteceu‑me algo semelhante uma vez quando trabalhei na Riviera. Um ladrão de jóias entrou no hotel e roubou um colar muito valioso de uma de nossas hóspedes. Sua actuação foi engenhosa. Talvez tenha acontecido o mesmo aqui esta noite.

‑           Explique‑se.

‑ Quando sai do hotel, deixou a chaves na recepção?

‑ Sim.

‑ Falou com o porteiro?

‑ Não. Deixei a chave no balcão e fui embora.

‑ Exactamente. O porteiro. então, sem ver seu rosto, limitou‑se a apanhar a chaves e a pendurá‑la no quadro de acordo com o número de sua suíte. O ladrão, o homem que Abdous viu entrando em seu quarto, deveria estar de tocaia, esperando que saísse. Após alguns instantes, dirigiu‑se ao porteiro, e solicitou sua chave. Ele deve ter escolhido para essa tarefa por ser muito parecido com o senhor. Nós, europeus, costumamos pensar que todos os japoneses se parecem, assim como os negros. Bem, eu desconfio de que eles pensam o mesmo a nosso respeito. O porteiro da noite deve ter visto um homem alto, de cabelos escuros, com um terno cinza, e confundiu‑o com o senhor. Não hesitou, portanto, em lhe entregar a chave.

Martin andou de um lado para o outro do quarto.

‑           Bem, meus inimigos ou concorrentes, venceram‑me desta vez. Agora só me resta voltar a Londres o quanto antes. As informações que guardava em minha pasta podem me prejudicar muito se caírem em mãos erradas.

- É lamentável, senhor, que tenha de abreviar sua estadia em nosso estabelecimento.

Regine não se intrometeu na conversa, mas lhe parecia estranho que o segundo homem na administração de um hotel de alta categoria encarasse com tanta naturalidade um roubo ou uma invasão nas suas dependências.

‑           A Senhorita Faye e eu partiremos amanhã no primeiro voo. Poderia providenciar as reservas? As agências não devem estar abertas a esta hora.

‑           Certamente que não, senhor, mas eu mesmo providenciarei as reservas. Em nome deste estabelecimento, expresso meu sincero pesar pelo que houve.

‑ A culpa não é sua ‑ Martin resmungou. ‑ Quando financiamos grandes projectos, sempre tememos uma sabotagem. Ao menos eu descobri o problema a tempo.

‑           O senhor foi muito esperto. Confesso que eu não teria notado aquele microfone. Estava muito bem escondido.

‑           Bem, a partir de agora, meus concorrentes não terão tanta facilidade em me atingir. Tenha uma boa noite.

‑ Boa noite, senhor. A que horas quer ser acordado?

‑           Avise‑me assim que conseguir as reservas. Eu saberei, então, o horário que precisarei me levantar.

‑           Perfeitamente, senhor. Mas como eu tenho quase certeza de que o avião parte às nove, terá de se levantar bem cedo.

‑           Não tem importância. Não conseguirei dormir esta noite, de qualquer maneira.

‑           Sinto muito, senhor ‑ o assistente se despediu.

Assim que ficaram a sós, Regine virou‑se, ansiosa, para Martin.

‑ Não iremos embora de verdade, iremos?

‑ Sim, iremos. A luz vermelha se acendeu esta noite.

‑           Está me dizendo que prefere abandonar tudo e fugir?

‑           A regra deste jogo é saber recuar na hora certa.

‑           E Chris? Você o esqueceu?

‑           Não seja tola! Teremos de partir amanhã.

‑           Não irei com você ‑ Regine o contradisse.

‑           Oh, sim, você irá. O sr. Nickoylos não partiria sem sua namorada.

‑           Não posso acreditar que você queira desistir quando já fizemos tanto progresso.

Regine pôs‑se a chorar. Martin encarou‑a.

‑           Quem falou em desistir? Só disse que deixaríamos o Egipto. Ao menos por enquanto.

Foi como se uma nuvem escura que a engolfara se afastasse e permitisse a volta do sol.

‑           Oh, Martin, você me assustou!

Sem pensar no que estava fazendo, Regine atravessou o quarto e abraçou‑o.

‑           Cheguei a acreditar que você queria desistir.

Martin correspondeu ao abraço, mas quando Regine o sentiu pressionar o corpo ao dela, afastou‑se.

‑           Já me chamaram de vários nomes, mas nunca de covarde ‑ Martin se defendeu. ‑ Mas não é covardia lutar pela própria vida neste tipo de jogo. Agora, trate de fazer as malas.

Regine sorriu. Estava se dirigindo a seu quarto quando uma idéia lhe ocorreu.

‑           E se mexeram também em minhas coisas?

‑           Espere um instante. Vou buscar o detector de microfones. ‑ Quando nada foi encontrado, Martin pediu que ela fizesse uma verificação nas roupas e objectos.

Regine abriu as gavetas da penteadeira uma por uma.

‑           Aqui está tudo em ordem.

‑ óptimo. Agora olhe os armários.

‑           Acho que está intacto. Não tenho certeza. Não sou tão organizada quanto você.

Em seguida, Regine pegou uma de suas malas e colocou‑a sobre a cama. Deu um grito ao abri‑la. Martin que havia acabado de deixar o quarto, voltou correndo.

‑           O que houve?

‑           Minha camisola! Eles a examinaram e deixaram do avesso! Oh, Martin, e agora?

‑           Não estou gostando nada disso. É óbvio que eles sabem sobre a carta de Chris.

‑           Eles não podem saber! A menos que madame Goha...

‑           Que madame Goha não tenha resistido à pressão e contado.

‑           Está querendo dizer que eles a torturaram? ‑ Regine perguntou, horrorizada.

‑           É melhor você não pensar nisso. Teremos de ir embora daqui o mais depressa que pudermos.

Enquanto falava, Martin foi até à porta e espiou para ambos os lados do corredor. Regine o seguiu.

‑           Está esperando que eles forcem a entrada em nossa suíte?

‑           Devem ter feito uma cópia da chave. Talvez não desconfiem de nossa súbita partida e não venham mais esta noite, mas precaução nunca é demais.

‑           Você está certo. Desculpe se o incomodo com tantas perguntas. mas até hoje só vi cenas de mortes violentas em filmes.

Sem perder tempo, Martin retirou as gavetas da cómoda e arrastou‑a até à porta, para tornar a colocá‑las.

‑           O móvel não é pesado, mas se alguém tentar abrir a porta, o barulho nos servirá de alerta.

Regine sentiu um arrepio lhe percorrer a espinha.

‑           Não vejo a hora de partir.

Ela se apressou a arrumar as malas. Cada vestido colorido e exagerado que dobrava a fazia recordar a missão desde o início, quando tudo lhe parecera uma alegre representação, para terminar em cenas macabras.

Deixou apenas o vestido e o casaco que usaria na viagem. Em seguida se despiu, vestiu uma camisola e a camisola de renda e voltou ao quarto de Martin.

Ele também estava de malas prontas e usava apenas um pijama e um robe. Em uma das mãos, segurava um pequeno revólver automático.

‑           O que está fazendo com isso? ‑ Regine surpreendeu‑se.

‑           Nada. Apenas não gosto de visitas inesperadas após a meia‑noite.

Regine consultou o relógio sobre a mesa‑de‑cabeceira.

‑           São quase duas horas.

‑           Eu sei. Volte para seu quarto e procure dormir. Não creio que eles venham, mas tranque a porta como precaução.

‑           Detesto sentir‑me presa ‑ Regine retrucou. ‑ Além disso, de que adianta trancar a porta que dá para a sala, se o invasor pode chegar pelo terraço?

‑           Isso seria impossível. Seu quarto dá para a rua e a altura é muito grande.

‑ Ainda bem. Tem alguma informação sobre as reservas? Martin fez um sinal afirmativo com a cabeça.

‑           Partiremos no voo das nove. O assistente não cabia em si de satisfação quando me deu a notícia. Parece que está ansioso por se livrar de nós.

‑ Tive o mesmo pensamento. Bem, boa noite.

Regine trancou‑se no quarto segundo as instruções de Martin e se deitou. Ao fechar os olhos, as cenas do dia se repetiram. uma por uma. Depois começaram a embaralhar... o beijo... as facas... o toque de Martin em seu braço...

Acordou, sobressaltada. Alguém estava batendo à sua porta.

‑           São sete horas. Acorde! Já pedi para trazerem o desjejum.

‑           Já vou me levantar ‑ Regine respondeu, sonolenta. Os sonhos ainda estavam nítidos em sua mente. Não foi fácil voltar à realidade.

‑ Dormiu bem? ‑ Martin perguntou, já sentado e saboreando o café quente e forte com pães e biscoitos.

‑           Por incrível que pareça, sim. Pensei que não fosse pregar o olho a noite inteira.

‑           O cansaço sempre vence. É nosso mecanismo de defesa para expulsar temporariamente as preocupações.

‑           A explicação parece boa, mas não é o que acontece comigo de modo geral. Quando algo me preocupa, demoro horas para conciliar o sono.

Regine percebeu que estavam conversando com naturalidade. Enquanto se preparava para encontrá‑lo, porém, sentira‑se tímida. O beijo que ele lhe dera não saía de sua cabeça, assim como o modo impulsivo como o abraçara.

Ela estava passando manteiga em uma fatia de pão. Quando ergueu os olhos, surpreendeu Martin encarando‑a.

‑ Você se esqueceu dos cílios postiços.

‑ É verdade ‑ Regine respondeu após tocar uma das pálpebras. ‑ Eu me distraí.

‑           Procure ficar atenta. É essencial que eles acreditem que se trata de uma partida normal e não de uma fuga. Com certeza estaremos sendo observados até subirmos no avião. Comporte‑se como a Senhorita Faye faria. Seja desagradável. Lembre‑se de que ela estava de férias e de que não teve tempo para visitar todos os pontos turísticos do Cairo. As dificuldades financeiras de seu namorado não lhe interessam.

‑           Sim, é claro. Você tem toda a razão ‑ Regine concordou, quase humilde.

Martin consultou seu relógio de pulso e se levantou.

‑           Apresse‑se. Mandarei buscarem as malas.

Regine voltou ao quarto, colocou os cílios postiços e maquilhou‑se. Por último, vestiu o casaco vermelho com o qual chegara ao Egipto e apanhou a bolsa de verniz que fazia conjunto com os sapatos de salto agulha.

Martin estava mal‑humorado como nunca ao se despedir do gerente e do subgerente. Questionou alguns itens no momento de pagar a conta e saiu afirmando que era um alívio deixar aquele país e voltar à civilização.

Regine tentou ser mais simpática e estendeu a mão no momento de se despedir. Em seguida, precisou se apressar. Martin estava se dirigindo ao carro sem ela.

O guia não se conformava com a súbita partida do casal. Tentou conversar e ser simpático mas as respostas secas de Martin acabaram por silenciá‑lo.

No aeroporto, Regine viu muitas pessoas acenando para os passageiros. Um deles poderia ser um matador, pensou, e procurou controlar o súbito tremor que a percorreu.

‑           Diga adeus e não au revoir a este maldito lugar ‑ Martin grunhiu.

Regine não disse nada, mas estranhou que Martin continuasse se portando daquela forma. Afinal, não precisariam nem sequer ter feito reservas. A primeira classe estava quase vazia.

Outra atitude de Martin que a desagradou foi a insistência que lhes servissem champanhe.

‑           Servirei as bebidas assim que descolarmos e for dada a permissão para soltarmos os cintos.

‑           Seremos obrigados a esperar todo esse tempo?

‑           São as regras, senhor.

Assim que a comissária se afastou, Regine quis saber onde fariam a primeira escala.

‑           Em Atenas. Espero que nos sirvam algo para comer antes.

‑           Não sei se conseguirei comer mais alguma coisa após o desjejum que tomamos no hotel ‑ Regine sussurrou. Martin fitou‑a com o cenho franzido. Só então ela entendeu que algo deveria estar errado.

Examinou a cabine a fim de verificar quais eram os tipos de pessoas que seguiriam com eles naquela viagem. Pareciam turistas em geral. Com exceção de um casal de egípcios. Ela era muito elegante e o homem, mais velho, parecia um cavalheiro.

Estivera distraída ao caminhar pelo aeroporto. mas agora, lembrava‑se vagamente de ter visto aquele casal embarcar. escoltado por oficiais. Deveriam ser pessoas importantes.

Um lanche foi servido. Depois que as bandejas foram retiradas, Martin disse que se sentaria no banco atrás dos deles, que estava vazio, para se sentir mais confortável.

Sozinha, Regine cochilou. Mas acordou de imediato ao ouvir uma voz de mulher, aos múrmurios.

‑ Preciso lhe falar por um instante!

‑           Sente‑se, por favor.

O tom de Martin foi delicado, mas Regine detectou sua surpresa.

‑           Eu o vi ontem à noite no Sahara City. Você foi embora antes. Consiga‑me um pouco. Eles disseram que o estoque havia acabado.

‑ Eles não mentiram ‑ Martin declarou. ‑ Disseram‑me o mesmo.

‑ Não acredito em você! ‑ O tom tornou‑se áspero. ‑ Estou disposta a lhe pagar qualquer quantia. Só um pouco. Eu preciso.

‑ Sinto muito, mas é verdade. O homem do estacionamento disse que a mercadoria ainda não havia chegado.

‑ É mentira! ‑ a mulher exclamou, histérica.

‑ Você sabe de onde ela vem? ‑ Martin indagou com ar inocente.

‑           Não sei e não me interesso em saber. Sei apenas que preciso conseguir um pouco. Tem certeza de que não está mentindo para mim?

‑ Por acaso lhe deram um anel...?

‑ Agora entendi! Você não confia em mim. Espere. Eu o mostrarei a você. Está em minha bolsa

‑           Quem o deu a você?

Regine sentiu a tensão no banco de trás.

‑           Não posso dizer. Você sabe disso! Nós fizemos um juramento que nunca revelaríamos a ninguém... ‑ Ela se deteve. ‑ Você não está usando o seu.

‑           Está guardado em minha carteira. Quer vê‑lo? ‑ Martin perguntou. E antes que a mulher respondesse, mostrou‑o.

‑ Sim, é igual ao meu. Você também faz parte. Por favor, ajude‑me.

‑ Eu ajudaria se pudesse ‑ Martin garantiu. ‑ Mas recebi a mesma informação que você.

‑           Tenho medo de não conseguir nada na Europa.

‑           Por quê?

‑           Medo apenas.

‑           Acha que a mercadoria é trazida do Egipto?

‑           Não sei, mas acredito que a tenham em maior quantidade em meu país, embora eu já tenha conseguido adquiri‑la também em Londres.

‑           Onde? ‑ Martin perguntou com uma nota de ansiedade na voz.

‑           Não lhe direi! ‑ a mulher retrucou. ‑ Você poderia comprá‑la antes de mim e me deixar sem nada!

Regine ouviu quando a mulher se levantou e se afastou. Olhou para trás. Era a egípcia que lhe parecera importante.

 

Martin voltou a ocupar o assento ao lado de Regine.

‑           Você escutou? ‑ ele perguntou baixinho e percebeu que sim pelo modo como ela o fitou. ‑ Chegaremos em Atenas em trinta minutos. Finja que está se sentindo mal. Preciso de uma desculpa para interromper a viagem.

Uma sensação de alívio inundou‑a. Estava receosa de que, em Londres, seu tutor tentasse persuadi‑la a abandonar a investigação.

‑ Era o que pretendia fazer desde o início, não?

O pequeno sorriso que ele lhe deu foi suficiente.

‑           Por que não me disse? ‑ Regine acusou‑o. ‑ Acho‑o um sádico!

Dessa vez ela deveria tê‑lo atingido, pois sua atitude armou‑se mais gentil.

‑ Não quero que pense isso de mim. Apenas detesto fazer planos com antecedência, dá azar.

‑ Foi aquela mulher que o fez mudar de idéia?

Martin segurou‑lhe a mão e apertou‑a. Ela entendeu que não era seguro conversarem ali. Para disfarçar, abriu a bolsa e olhou‑se ao espelho. Sua aparência era saudável demais. Passou um chumaço de algodão nas faces para retirar um pouco do rouge e nos lábios, para retirar o batom. Em seguida, empoou‑se de forma que suas faces parecessem pálidas. Por fim, colocou os óculos escuros.

‑           Muito bom ‑ Martin elogiou. Alguns segundos depois, chamou a comissária. ‑ Minha namorada não está se sentindo bem. Teria uma aspirina ou algo assim?

‑            Claro que temos. Trarei imediatamente.

A moça Voltou com um copo d'água e dois comprimidos.

‑ Tome, baby ‑ Martin pediu, mas Regine se limitou a dar um resmungo. ‑ Deixe‑os comigo, por favor. Eu os darei a ela.

‑ Sim, senhor. Gostaria de cobri‑la com uma manta?

‑ Sim, por favor.

A comissária apanhou uma manta no compartimento sobre as poltronas e estendeu‑a sobre Regine. Nesse ínterim, Martin havia guardado os comprimidos no bolso e estava dando de beber a Regine.

‑ Mais um gole, baby.

Ao se aproximarem de Atenas, os passageiros foram instruídos a afivelarem os cintos e apagarem os cigarros.

‑ Como estou? ‑ Regine quis saber.

‑ Perfeita. Apoie‑se em mim para andar.

No aeroporto, Martin fê-la sentar-se e disse numa voz alta que teriam de interromper a viagem.

‑ Iremos para o melhor hotel da cidade. Você precisa de uma cama. Um bom sono a fará sentir‑se melhor.

Assim que a bagagem foi liberada, Martin chamou um táxi e lhe forneceu um endereço. Quando deixaram a cidade para trás e passaram a percorrer um vale muito verde cercado de montanhas, Regine teve certeza de que não estavam se dirigindo a nenhum hotel.

Cerca de quinze quilómetros depois, o táxi parou diante de uma linda vila com janelas pintadas de azul e paredes brancas.

‑ Que lugar é este? ‑ Regine perguntou, surpresa.

‑ Logo verá ‑ Martin respondeu e desceu do carro após pedir que ela e o motorista aguardassem um minuto.

Regine ficou observando‑o enquanto subia os degraus que conduziam à varanda com a agilidade de um felino. Martin não era uma pessoa comum.

A porta foi aberta e ele entrou. Quando retornou ao táxi, estava sorrindo. Um homem de cabelos grisalhos o acompanhava. Tinha a aparência inconfundível de um inglês.

‑ Está tudo bem, Regine. ‑ Martin abriu a porta para que ela descesse. ‑ Nosso amigo disse que terá muito prazer em hospedar‑nos.

O homem de olhos azuis estendeu a mão.

‑           Este é Jack Harrison ‑ Martin apresentou. ‑ Regine Huntley.

‑ É uma honra conhecê‑la ‑ disse e Jack Harrison. ‑ Venha comigo enquanto Martin cuida da bagagem. Quero lhe apresentar minha esposa.

O inglês a conduziu pela varanda a uma sala ampla e ensolarada. Regine ficou fascinada com a profusão de flores espalhadas por todos os cantos e com seu perfume.

Viu a mulher somente quando ela se levantou de uma poltrona em frente à lareira. Era uma senhora fina e bonita. Trajava uma saia de tweed bege e um cardigã cor‑de‑rosa claro. Exibia um colar de pérolas no pescoço e brincos que lhe faziam conjunto. Era uma perfeita dama inglesa.

‑ É um prazer conhecer uma amiga de Martin ‑ disse com a mão estendida.

‑ Margaret, como vai? Tem certeza de que não estamos atrapalhando? ‑ Martin entrou na sala antes que Regine tivesse tempo de corresponder ao cumprimento.

‑ Mesmo que eu dissesse sim, acha que Jack o deixaria ir embora? ‑ a Sra. Harrison indagou com um pequeno sorriso.

‑ Se quer que eu seja franco ‑ interrompeu o Sr. Harrison ‑, sua chegada foi a melhor coisa que me aconteceu neste mês. Este lugar anda muito monótono. Apenas em vê‑lo, sinto‑me mais animado. O que tem feito?

‑           Ficará perplexo quando souber.

Martin sentiu que Regine enrijecia a seu lado e apressou‑se a tranquilizá‑la.

‑           Está tudo bem. Eles são amigos. Também foram amigos de Chris.

‑ Parece que foi o outro dia que ele e eu estávamos nos arrastando para escapar das balas que zuniam sobre nossas cabeças ‑ disse Jack Harrison com um sorriso. ‑ Como ele está? Não o vejo há anos.

Martin apertou o ombro de Regine.

‑ Morto. Assassinado. Regine e eu estamos tentando descobrir o porquê.

‑           Assassinado? ‑ a Sra. Harrison deu um grito. ‑ Oh, sinto muito. Mas não vamos falar sobre isso agora. Venha comigo, querida. Talvez queira se refrescar antes do almoço.

A Sra. Harrison levou Regine a um pequeno, mas adorável quarto com a decoração em tons de branco e lilás com vista para o jardim. Um criado entregou‑lhe a bagagem logo em seguida e Regine se apressou a abri‑la. Queria vestir algo menos espalhafatoso enquanto estivesse naquela casa.

Um vestido de algodão lhe pareceu a peça mais adequada. Mesmo assim, substituiu o cinto e tirou o bordado da gola.

Livrou‑se dos cílios postiços, lavou o rosto e aplicou uma maquilhagem leve. Gostaria de voltar a usar a cor natural de seus cabelos, mas como poderia ser obrigada a representar novamente o papel de Regine Faye, conformou‑se em permanecer com sua "pintura de guerra" como Martin a chamava.

A reunião continuava quando retornou à sala.

Martin também havia mudado de roupa. Estava usando uma calça cinza e um paletó desportivo de tweed.

O sr. Harrison se levantou ao vê‑la.

‑           Prepare‑lhe um martini seco. Espero que goste.

‑           Gosto muito. Em especial depois de ter sido obrigada a consumir, em poucos dias, mais champanhe do que já tomei durante minha vida inteira.

‑           Acho que o pior sacrifício que teremos de fazer quando estamos em uma missão é beber o que não apreciamos. Tive de suportar doses e doses de Bourbon durante um mês inteiro, uma vez. Se há algo que detesto é esse tipo de uísque ‑ Jack Harrison confidenciou.

Todos riram, mas a pergunta de Martin devolveu o clima de seriedade ao grupo.

‑           Mas você sente falta de acção, não estou certo. .Jack?

‑           Não, Martin. Sou muito feliz aqui com Margaret. Dedicamo‑nos ao nosso jardim e às nossas vinhas e mantemos uma intensa vida social. Além disso, o clima é excelente e costumamos receber muitos amigos.

‑           Amigos como eu? ‑ Martin perguntou.

‑           Não tão excitantes, eu diria, não é, Margaret? ‑ Jack sorriu.

‑           O que deve ser um alívio para vocês ‑ Martin brincou.

‑ Ao menos não lhes dão tanto trabalho. Nós, por exemplo, precisaremos de novas roupas e de novos passaportes para irmos embora, o que pretendo fazer amanhã. Em resumo, precisamos assumir outra identidade.

‑           Você não poderia me dar uma notícia melhor ‑ Regine disse, satisfeita. ‑ Detestava aquelas roupas e aquele jeito exagerado. Se tivesse de ouvi‑lo chamar‑me de baby mais uma vez, juro que o mataria!

Martin sorriu.

‑           Ainda bem que me lembrei de que você estava morando aqui, Jack. Afinal, como fiz me passar por grego, ninguém achará estranho que eu tenha vindo à Grécia.

‑           Acredita que alguém se interessou em saber sobre seu paradeiro? ‑ Jack Harrison perguntou.

‑           Não sei. De qualquer forma, espero tê‑los despistado com sucesso. Mas havia uma mulher no avião que poderá falar a meu respeito quando chegar a Londres.

‑           Ela estava viajando sozinha? ‑ Jack Harrison quis saber.

‑           Não. Havia um homem de cabelos grisalhos em sua companhia e que parecia ser alguém importante.

‑           Quer dizer que ela era uma viciada? ‑ Margaret voltou ao assunto. ‑ Pobrezinha. Eu sempre lamento que um ser humano possa descer tanto.

‑           Tem idéia de quem está por trás de tudo? ‑ Jack Harrison perguntou.

‑           Não. ‑ Martin suspirou e se dirigiu à janela. ‑ É lindo e calmo aqui. No entanto, estou arriscando a vida de Regine e a minha. Você nos aconselharia a voltar para Londres?

‑           Não! ‑ Regine gritou. ‑ Lembre‑se de Chris! Lembre‑se de Paul!

‑           No momento, só estou me lembrando de você.

Margaret Harrison tomou a palavra.

‑           Ninguém deve decidir nada de estômago vazio. Passemos para a sala de jantar. Mandarei que sirvam a refeição imediatamente.

O espaço era reduzido. mais parecia uma estufa de plantas. Eram tantas, tão coloridas e diferentes, que pareciam ser originárias de outro planeta.

‑ Apresento‑lhes meu tesouro ‑ anunciou a Sra. Harrison. orgulhosa. ‑ Fui muito pobre e sobrevivi à guerra. Pensei que jamais me livraria da sujeira e da subnutrição. Prometi a mim mesma que, se tivesse chance, um dia cultivaria flores. Como vêem, meu sonho tornou‑se realidade.

‑           São lindas ‑ Regine elogiou.

Antes que as mulheres pudessem prosseguir, os homens vieram ao seu encontro.

A refeição foi agradável. Não tornaram a falar em trabalho até tomarem o café.

‑ Quais são as ordens? ‑ Jack Harrison perguntou por fim.

‑           Por que não seguem para a Inglaterra e informam o general antes de passarem pela segunda etapa da missão? ‑             Margaret sugeriu.

‑           Não me atrevo! ‑ Martin exclamou. ‑ Quando o general souber do esquema, terá de informar a liga internacional anti‑drogas. Não pretendo ser melhor do que eles, mas receio que uma operação em larga escala acabe afugentando nossas presas. ‑ Martin fez uma pausa. - Se eles estão realmente tentando produzir a droga no Egipto em vez de importá‑la da China, então teremos de agir rápido. Se outras pessoas descobrirem que a produção é possível em qualquer parte será uma catástrofe!

‑           Você acha que são poucos os que detém o segredo? ‑ Jack indagou.

‑           Sim. O abastecimento é difícil. Talvez ainda não tenham conseguido colher nada no Egipto e os estoques sejam todos provenientes da China.

‑           Enquanto isso, estão desenvolvendo a clientela ‑ Jack Harrison murmurou.

‑           Exactamente ‑ Martin confirmou. ‑ É assim que funciona. Uma vez estabelecida a demanda, eles calculam o preço.

‑           Como poderemos ajudá‑los? ‑ Margaret quis saber.

‑           Eu pensei muito e cheguei à conclusão que devemos sair daqui como marido e mulher.

Regine sentiu o coração bater mais depressa, mas não protestou.

‑           Poderíamos pegar o voo nocturno para Beirute e a primeira conexão para o Cairo.

‑ É uma boa idéia ‑ aprovou Jack. ‑ Quanto aos passaportes, temos um amigo, que trabalhou connosco durante a guerra, que poderá cuidar disso. Direi a ele que vocês precisam ir a Beirute em busca de alguém que desapareceu. Quando chegarem ao Cairo, o que pretendem fazer?

‑ Pensei em seguirmos para Luxor e subir o rio. Há muitos lugares em suas margens onde pode estar sendo cultivada a droga.

‑           E se você não encontrar nada?

‑           Então descerei o rio até o Cairo.

‑           Precisamos pensar agora em Regine ‑ declarou Jack.

‑ Margaret, você pode lhe emprestar uma roupa decente e levá‑la a Atenas para comprar alguns vestidos do tipo que são encontrados nas ruas de Londres?

‑ Lógico que sim.

‑           Obrigado ‑ agradeceu Martin. ‑ Agora, preciso de um banho quente. Quanto a Regine...

‑           Eu cuidarei dela ‑ Margaret se prontificou. ‑ Não se preocupe.

No quarto de Margaret, Regine recebeu uma saia cinza e uma blusa branca.

‑           Eu as devolverei assim que comprar algo mais apropriado à minha nova identidade ‑ Regine garantiu, constrangida. ‑ Espero não lhe dar prejuízo. A propósito, quem paga todas essas despesas? ‑ Regine não conteve a curiosidade que vinha atormentando‑a havia dias.

‑           Martin sempre carrega muito dinheiro consigo.

A surpresa de Regine foi tão grande que ela não encontrou palavras por um momento.

‑           Foi ele quem pagou todas as contas?

‑           A maior parte. As organizações não costumam pagar bem seus agentes. A menos que eu esteja enganada, Martin sempre financiou suas actividades.

‑           Nesse caso, farei questão de lhe devolver cada centavo.

‑           Não será necessário ‑ Margaret garantiu. ‑ Ele é muito rico. Seu pai morreu no início da guerra, abatido em um avião, e sua mãe faleceu pouco tempo depois. Martin era filho único e herdou toda a fortuna da família. Um tio o criou. Quando morreu, deixou‑lhe outra fortuna.

Foi divertido fazer compras em Atenas. Afinal, qual a mulher que resiste a isso? Margaret e Regine andaram de loja em loja embora acabassem adquirindo quase todas as peças em uma única.

No trajecto de volta para casa, Regine confessou que estava exausta. Sem a maquilhagem, Margaret achou‑a uma bonita jovem e não resistiu ao impulso de bancar o Cupido.

- Você gosta de Martin? Acho‑o um homem fascinante.

Regine pensou em responder que achava‑o muito arrogante, mas descobriu, de repente, que não era verdade. Admirava‑o.

‑           Sabe o que aprecio em Martin? ‑ Margaret prosseguiu. ‑ A bondade. Ele se preocupa com as pessoas. Jack me contou que, em sua propriedade, todos o procuram para pedir conselhos.

‑           Propriedade?

‑           Ele a adora. Assim como adoro minhas flores. A casa é em estilo Tudor. Quando não está trabalhando, ele vive lá sozinho. Já lhe disse uma porção de vezes que aquela casa precisa de uma mulher e que está na hora de ele encontrar uma esposa.

Regine percebeu aonde Margaret queria chegar e resolveu cortar o assunto.

‑           Talvez ele não queira se casar, assim como eu.

‑           Concordo que certas pessoas sejam mais felizes sozinhas. Os santos, por exemplo. Em minha opinião, nem você, nem Martin se encaixam nessa categoria.

Margaret Harrison conduziu o carro até a entrada da casa. Buzinou uma vez para avisar o marido e Martin que estavam de volta. Eles não vieram recebê‑las.

Regine percebeu uma expressão de ansiedade se estampar no rosto de Margaret à medida que subiam os degraus da varanda e entravam na sala.

‑           Estranho! Eles já deveriam estar aqui. ‑ Ela apanhou um binóculo que estava sobre a mesa e olhou por ele. ‑ Uma das vantagens de morar no alto de uma colina é poder avistar os arredores num alcance de vários quilómetros. às vezes consigo ver Jack saindo da cidade.

Regine observou‑a em silêncio. Quando Margaret devolveu o binóculo à mesa sem fazer mais nenhum Comentário, Regine murmurou:

‑ Você está preocupada.

A mulher balançou a cabeça.

‑ Sou uma tola. Mas Jack e eu já tivemos tantos problemas na vida, que não consigo evitar o nervosismo.

Ela acendeu um cigarro com mãos trémulas.

‑ Não deveria estar lhe dizendo isso, mas o melhor tipo de marido é aquele que leva uma vida boa e sem complicações, que tem um emprego normal. Que sai de manhã para o trabalho e que volta todas as noites para casa. Imagino que seja isso que toda mulher quer, isto é, toda mulher apaixonada.

 

Naquela noite, quando Regine se deitou, as palavras de Margaret lhe voltaram à mente.

‑ Acho que nunca me apaixonei ‑ falou consigo mesma.

Alex Salvekov havia fascinado‑a com seu charme e com suas atenções. O facto de ele tê‑la escolhido, bonito como era, e lhe telefonado dia após dia a fizera pensar que estava apaixonada. Mas isso fora antes da noite que ele a levara para casa e a deitara no sofá para beijá‑la.

A imagem de Alex a perseguia desde que deixara Londres. O que ele teria sentido ao descobrir sobre seu desaparecimento? Teria ficado triste? Ou tratara de arrumar logo outra mulher mais complacente?

‑ Detesto Alex! Detesto todos os homens! ‑ Regine exclamou. Estava cansada, mas os pensamentos não a deixavam dormir.

Zangada com sua falta de controle, levantou‑se, vestiu uma das camisolas glamourosas que usara como Regine Faye e foi até o terraço.

A lua brilhava no céu e transformava as montanhas em silhuetas arroxeadas. Regine imaginou os deuses do Olimpo sentados em seus tronos e rindo dos pobres seres humanos na Terra.

Apesar da beleza do cenário, Regine sentiu‑se invadir por uma súbita depressão. Estava sozinha e insegura tanto de seu passado quanto de seu futuro. Precisava de algo ou de alguém em quem se agarrar. Chris havia partido. Deixara um vazio em seu coração.

‑           Chris... Chris... ‑ Regine murmurou e logo se pôs a soluçar.

‑           Não conseguiu dormir? ‑ . perguntou Martin nas suas costas,

‑           Não.

‑           Nem eu. ‑ Martin terminou de fumar e atirou o cigarro no jardim abaixo. ‑ Engraçado o modo de o organismo funcionar. O cérebro às vezes torna‑se uma entidade independente e ignora o cansaço do corpo.

Martin aproximou‑se dela e parou a seu lado.

‑           Você é uma jovem adorável ‑ ele disse sem que ela esperasse.‑ Não percebi isso no início. Mas você me detesta.

‑           Não mais ‑ Regine confessou. ‑ Você era muito arrogante, mas mudou.

‑           Parece que nos conhecemos há um longo tempo, não? O que acha de cultivarmos essa amizade que está florescendo?

‑           Concordo. É mais fácil nos darmos bem do que vivermos brigando.

‑           Se pararmos para pensar, nossa situação é divertida. Somos amigos, mas fazemos de conta que nos tornamos marido e mulher. Isso me faz lembrar os conselhos de minha velha babá. Ela não admitia que duas pessoas deixassem o sol se pôr, brigadas. Dizia que era preciso trocarem um beijo e fazerem as pazes, gostassem ou não da idéia.

Regine sorriu das palavras de Martin, mas, por dentro, sentiu‑se estranha e inquieta. A verdade era que gostaria muito que Martin a beijasse naquele instante.

 

‑ Temos muito a fazer ‑ lembrou Martin ao se aproximarem de Atenas, no pequeno carro de Jack. ‑ Talvez seja melhor nos separarmos. Jack e eu cuidaremos dos passaportes. Por sorte, trouxe fotos extras suas e minhas.

‑           Como sempre, você pensa em tudo ‑ Regine caçoou. ‑ Chega a ser monótono viajar com alguém que antes que você imagine o o problema, ele já esteja resolvido, não acha, Margaret?

A mulher riu.

‑ Esses homens são todos iguais. Devem sofrer de uma espécie de complexo de James Bond. Jack fica acordado a noite inteira fazendo planos. Antes preocupava‑se com espiões. Agora preocupa‑se com o telhado ou com os encanamentos da casa.

‑ Você se esqueceu do mais importante, querida ‑ retrucou Jack. ‑ Acima de tudo, eu me preocupo com nossa segurança. Em especial com a sua.

‑           Enquanto vocês criam novas identidades, o que Margaret e eu ficaremos fazendo? ‑ Regine quis saber.

‑ Mais compras ‑ Martin respondeu. ‑ Aproveite a volta à loja para buscar as roupas que ficaram para ser ajustadas. Precisa de mais dinheiro?

‑           Não ‑ Regine respondeu, rude, para se arrepender em seguida. A verdade é que não carregava consigo o suficiente para pagar por tudo que comprara no dia anterior.

‑           Leve mais um pouco para garantir ‑ Martin insistiu.

‑           Receio chamar a atenção com tanto dinheiro vivo ‑ Regine confessou.

‑           Ninguém estranha que um turista pague em dinheiro ‑          Martin tranquilizou‑a.

‑           Nem que faça muitas compras, tanto em forma de roupas quanto de suvenires ‑ completou Margaret.

‑           Bem, como teremos de mudar nossos nomes, alguém quer dar uma sugestão?

‑           Robinson ‑ disse Jack. ‑ É comum e respeitável.

‑           Sugestão aceite ‑ concordou Martin.

Jack parou o carro.

‑           A que horas nos encontraremos? ‑ Margaret perguntou antes de descer.

Martin consultou seu relógio de pulso.

‑           Calculo que precisaremos de uma hora e meia para cuidar dos passaportes. Que tal ás três e trinta no saguão do Hotel Central?

‑           Combinado ‑ respondeu Margaret. ‑ Até mais tarde,

Regine e Margaret desceram do carro e entraram na loja onde Regine resolveu adicionar alguns itens à lista do dia anterior. Foi com surpresa que recebeu a conta. Para liquidá‑la, precisou usar quase todo o dinheiro que Martin havia lhe dado.

O facto de Martin dispor de tanto dinheiro para financiar        aquela viagem não lhe saía da cabeça. Lembrava‑se das queixas de Chris sobre o pouco que os agentes recebiam para realizar tarefas difíceis e arriscadas.

‑ Faltam três minutos para às três e trinta ‑ disse Margaret com satisfação quando saíram da loja. ‑ Aposto que Jack e Martin ficarão surpresos com nossa pontualidade.

‑ Sou sempre pontual ‑ Regine afirmou.

‑ Eu não ‑ Margaret confessou. ‑ Por mais que me esforce, nunca consigo me aprontar a tempo. Jack acabou se acostumando com o passar dos anos, mas no início do casamento, isso o incomodava muito.

‑ Gosta muito dele, não?

Uma expressão radiante surgiu no rosto de Margaret.

‑ Para mim, Jack é o melhor homem do mundo, O mais maravilhoso e o mais doce. Sempre agradeço ao destino por nos ter unido.

Regine sentiu uma pontada de inveja. Queria conhecer esse tipo de amor. Queria falar de alguém com a mesma paixão que Margaret e ser olhada por alguém da mesma forma que Jack olhava para a esposa.

As duas mulheres chegaram ao Hotel Central e entraram.

‑           Chegamos antes do que eles! ‑ Margaret exclamou. ‑ Não é uma vitória? Aposto que Jack está garantindo a Martin que não precisam se apressar porque ainda teriam de esperar muito por nós. ‑ Ela olhou para o relógio numa parede. ‑ Você se importa se eu aproveitar e der uma escapada para ver uma amiga doente? Pretendia visitá‑la amanhã, mas já que estou aqui e ela mora nesta rua, acho que aproveitarei a oportunidade. Assim estarei livre amanhã caso você e Martin precisem de algo. Não se importa se eu a deixar sozinha por alguns minutos?

‑ Claro que não. Tenho certeza de que estarei segura aqui.

As mulheres examinaram o ambiente. Não havia ninguém além delas.

Margaret se dirigiu à saída. Regine permaneceu no mesmo lugar. Aproveitaria e retocaria a maquilhagem antes que Martin chegasse.

Estava tão distraída, empoando o rosto, que não viu três homens entrarem e se aproximarem do balcão, até ouvir um deles dizer:

‑           Estou enjoado. Detesto aviões.

Olhou para trás, certa de que se tratava de um turista como outro qualquer. Seu coração quase parou de bater quando notou algo familiar no grupo. Depois empalideceu, ao reconhecer o mais alto, a quem estavam se dirigindo pelo nome Taha.

Era o homem que agredira a mulher elegante de cabelos escuros no Clube Pirâmide e que depois se apresentara no Sahara City em companhia dos dois sujeitos que tentaram atacar Martin no estacionamento.

O saguão pareceu rodar. Regine guardou silenciosamente o estojo de maquilhagem na bolsa e baixou a cabeça. Ouviu, então, o recepcionista informar os números dos quartos: 220 e 224.

‑           Vou subir e me deitar ‑ disse aquele que não estava se sentindo bem. ‑ E vocês?

‑           Acho que tomarei um drinque antes ‑ avisou o que se chamava Taha.

Regine mordeu o lábio. Se os homens ficassem ali, Martin e Jack praticamente trombariam com eles. Precisava dar um jeito de sair e avisá‑los.

Levantou‑se. Se mantivesse a cabeça baixa, não a reconheceriam. Deu alguns passos com a respiração suspensa. Estava tudo indo bem quando o homem que não estava se sentindo bem tropeçou no instante de entrar no elevador. Ela vacilou. A bolsa, então, escapou de suas mãos. O estojo de maquilhagem, que guardara de qualquer jeito por causa da pressa, caiu no chão.

O segundo homem inclinou‑se para apanhá‑lo. Quando o entregou a ela, Regine agradeceu com um murmúrio. Pressentiu, mais do que viu, Taha prender o fôlego.

Nesse momento, perdeu a cabeça e cometeu o maior erro de sua vida: correu!

As compras ficaram esquecidas em volta da cadeira que ocupara enquanto retocava a maquilhagem.

Na calçada, olhou para a direita e para a esquerda e deu um suspiro de alívio ao ver o pequeno carro de Jack se aproximando da calçada.

Acabou de descer os degraus em disparada. Abriu a porta de trás do carro com ele ainda em movimento.

‑           Não pare! ‑ gritou.

‑           O que houve? ‑ Martin quis saber. Mas não precisou esperar pela resposta. O que viu na porta do hotel foi o suficiente para esclarecê‑lo.

‑           Oh, será que eles nos viram? ‑ Regine perguntou, aflita.

‑           Sim, eles nos viram ‑ respondeu Martin.

‑           Eles entraram no hotel. Eu estava sozinha. Tentei sair para avisar vocês, mas fui reconhecida.

‑           Onde está Margaret? ‑ Jack perguntou abruptamente.

‑           Ela foi visitar uma amiga.

‑           Ainda bem ‑ ,Jack murmurou. ‑ Aonde iremos?

‑           Continue em frente. ‑ Martin virou‑se e olhou pela janela traseira. ‑ Eles estão entrando em um táxi.

‑           Oh, eu sinto muito ‑ Regine disse com um fio de voz.

‑           A culpa não é sua. Eu deveria ter imaginado que eles não engoliriam essa história de descermos em Atenas em vez de seguirmos para Roma ou para Londres.

‑           O nome dele e Taha ‑ Regine contou.

‑           Do mais alto? ‑ Martin indagou. ‑ Ele é o chefe. obviamente. O outro deve seguir suas ordens.

‑ Havia um terceiro homem. Disse que estava enjoado e que subiria para se deitar. Ouvi‑o falar. É um inglês

‑ Um a menos para enfrentarmos no momento ‑ Martin declarou. ‑ Depressa, Jack.

‑           Logo estaremos fora da cidade. Devo seguir em direcção ao Parthenon?

‑           Boa idéia. Evite lugares desertos. Lembre‑se de que Regine está connosco.

‑           Fui um tolo em sair desarmado ‑ Jack lamentou. ‑ Não esperava por isso. Não tão depressa, pelo menos.

O Parthenon surgiu alvo e brilhante contra o céu de um azul intenso. Centenas de pontos coloridos se alinhavam no plató. Eram os carros de centenas de turistas que visitavam uma das grandes maravilhas do mundo.

‑ Pare aqui ‑ Martin pediu. ‑ Vamos descer.

‑           O que pretende fazer? ‑ Jack perguntou.

‑           Não há tempo para explicações ‑ Martin respondeu ‑ , mas tenho um plano. Por favor, não discuta comigo. Deixe‑me aqui com Regine, volte para a cidade, pegue Margaret e vá para casa. Não faça perguntas. Comporte se de maneira natural. Com um pouco de sorte, eles não descobrirão quem você é.

‑           Seguirei suas ordens sob protesto ‑ Jack resmungou.

‑           Eu sei, mas não há outro jeito ‑ Martin garantiu. ‑ Se algo nos acontecer e não voltarmos para sua casa dentro de algumas horas, entre em contacto com o general e transmita‑lhe tudo que lhe contei. Não se envolva, Jack. Lembre‑se de que está aposentado e de que sua esposa depende de você.

‑           Maldição! ‑ Jack praguejou. ‑ Não há nada que eu possa fazer?

‑           Apenas siga minhas ordens.

Martin saltou do carro e ajudou Regine a descer. Em seguida, de mãos dadas, subiram em largas passadas a colina pedregosa.

Quase sem fôlego, após alguns minutos, e com o rosto vermelho sob o sol escaldante, Regine agradeceu ao hábito que tinha de cavalgar e de se exercitar. Como Chris costumava dizer, estava tão apta quanto qualquer homem a enfrentar uma emergência.

‑           Misture‑se a eles! ‑ Martin ordenou ao se aproximarem da multidão de turistas. ‑ Fique o mais perto do guia que puder.

Regine notou que a maioria dos turistas eram ingleses. Muitos, em especial as mulheres, estavam se queixando da dificuldade em subirem.

‑           Espero que valha a pena o esforço!

‑           Deveriam instalar elevadores!

Regine sentiu‑se aliviada pela oportunidade de um descanso, enquanto se dirigiam à frente do grupo, onde se encontrava o guia. E como estavam no alto, não foi difícil notar a aproximação de um táxi.

Dois homens desceram e olharam para cima.

Estavam sendo seguidos!

Ela olhou para Martin, mas ele não parecia disposto a dar mais nenhum passo naquele instante.

O guia começou a falar sobre o Parthenon. Sua voz era monótona ao repetir a mesma história que já deveria ter contado milhares de vezes a outros grupos de turistas.

Cada vez que ele dava um passo ou apontava para algo, a multidão repetia o gesto. Inclusive ela.

De repente, Regine sentiu um nó na garganta. Martin havia desaparecido. Estava sozinha! Completamente sozinha entre estranhos!

Afastou‑se do centro para procurá‑lo. Viu os dois homens subindo a colina. O mais alto estava com a mão dentro do bolso. Faltava pouco para alcançarem o grupo.

Viu Martin em seguida. Ele estava correndo em direcção ao Eructem, o templo que ocupava o lugar mais sagrado da Acrópole.

Ele se escondeu atrás de uma coluna e ela o viu colocando um silenciador em sua arma. Vira seu irmão fazer isso muitas vezes. Mas, em vez de continuar sob a protecção do templo, Martin saltou para baixo, correu e desapareceu entre uma profusão de arbustos.

Aterrorizada, certa de que nunca mais o veria. Regine pôs‑se a correr, sem refletir no que fazia. O instinto a fez olhar para trás. Taha havia localizado Martin. Parou, ofegante. Em seguida, ouviu um grito. Mas ele se perdeu no ar. misturado ao ronco potente de um avião que sobrevoou o templo.

Sem saber o que fazer, como se estivesse no meio dum pesadelo, ela viu Taha correndo, agora, em sua direcção. Escondeu‑se atrás de uma coluna. Encolheu‑se ao ouvir o zunido de uma bala sobre sua cabeça. Seu corpo e sua mente ficaram paralisados de terror. Viu Taha fazer pontaria para tornar a atirar, mas não conseguiu se mover. Então viu Martin. Ele apontou e atirou.

Uma expressão de espanto, mais do que de dor, surgiu no rosto de Taha. Em seguida, seu corpo tombou e ele desapareceu no precipício.

Regine permaneceu onde estava, sacudida por tremores, até Martin segurá‑la com força pelo braço.

‑           Por que está aqui? Por que não fez o que mandei? ‑ Ele a sacudiu com força. ‑ Poderia estar morta!

Ela ergueu para ele o rosto extremamente pálido.

‑           Martin, eu...

‑           Cale‑se! Ande devagar e não olhe para trás!

A descida, se possível, foi ainda pior do que a subida. Parecia não ter fim. Sem poder falar, Regine pensou que explodiria de ansiedade.

Ao chegarem ao local do estacionamento, ambulantes se apressaram a cercá‑los, mas Martin conseguiu afastá‑los e chegar à praça de táxis.

‑           Foi um passeio fascinante ‑ Martin declarou ao motorista após lhe fornecer o endereço de um hotel. ‑ Pena eu ter esquecido minha máquina fotográfica. Gostaria de ter tirado muitas fotos deste lugar para colocarmos em nosso álbum.

Regine recostou‑se no banco e fechou os olhos. Sabia que o          motorista estava ouvindo a conversa e que precisava fingir que era uma turista, mas estava se sentindo péssima com o que acontecera.

Martin havia matado Taha! E ela escapara por um triz da morte!

‑           Está exausta, não? ‑ Martin continuou. ‑ Sempre digo que não há nada mais cansativo do que fazer turismo. Deite‑se um pouco quando chegarmos para poder estar disposta mais tarde, quando saírem para conhecer a vida nocturna de Atenas.

Regine estava atordoada com o palavrório de Martin, Ao mesmo tempo, sentia‑se envergonhada de sua fraqueza.

Desceram diante de um hotel e Martin conduziu‑a ao bar, amparando‑a pelo cotovelo.

‑           O que irá tomar? ‑ perguntou.

‑           Uma xícara de chá.

‑           Chá para a senhorita ‑ Martin pediu ao garçom ‑ e uísque com soda para mim.

Assim que ficaram a sós, Martin voltou a repreendê‑la.

‑           Da próxima vez, não se torne um alvo fácil. O episódio poderia ter tido um desfecho muito diferente.

‑           Sinto muito ‑ Regine murmurou.

‑           Você fez uma grande tolice. Sabia que eles estavam à nossa procura e colocou‑se na linha de fogo.

‑           Sinto muito ‑ .Regine repetiu. ‑ Não pensei que eles tentariam me matar.

‑           O que pensou? Que eles queriam lhe dar flores? Homens daquela espécie sentem prazer em matar. Além disso, foi para isso que os mandaram aqui.

‑           Mandaram? ‑ Regine se apressou a indagar. ‑ Quem?

‑ É o que espero descobrir.

Havia uma expressão satisfeita no rosto de Martin. Regine respirou fundo.

‑           Você parece calmo. Não receia que o outro homem nos persiga?

‑           Eu o atingi no joelho. Levará algum tempo até que volte a andar.

Regine calou‑se por um instante.

‑           Pretendia matar Taha antes que ele atirasse em mim? Ou foi porque ele estava tentando me matar, que você o matou?

‑           Por que não esquece o que passou? Não se sinta culpada por nada. Tenho quase certeza de que ele foi o responsável pela morte de Paul. Devemos festejar sua morte não lamentá‑la.

O garçom trouxe o chá e o uísque.

Após beberem alguns goles, Regine olhou intensamente para Martin.

‑           Ainda não lhe disse obrigada.

‑           Obrigada por quê?

‑           Por você ter salvo minha vida. Perdoe‑me por tê‑lo desobedecido. Foi uma tolice de minha parte.

‑           Não precisa me agradecer. Você é muito importante para mim. Não quero perdê‑la.

 

Regine sentiu as faces corarem. Aquelas palavras soavam como uma promessa de algo que poderia mudar toda sua vida.

‑ Você é corajosa. Muito corajosa. ‑ Ele sorriu e consultou seu relógio de pulso. ‑ Precisamos ir.

‑ Eu sei ‑ Regine murmurou. ‑ Você me trouxe aqui apenas para que me recuperasse do choque.

‑ Você foi incrível. ‑ Martin tornou a elogiá‑la e lhe estendeu a mão para que fossem embora.

Regine seguiu‑o com o coração apertado. Lamentava deixar aquele lugar. Algo importante havia acontecido ali. Algo que não esperara e cujo significado não lhe era totalmente claro.

Lá fora, esperava‑os o sol e a realidade. Martin fez um sinal para um táxi que passava, e eles subiram.

Então, para seu espanto, Martin fitou‑a e apertou‑lhe a mão. Após um instante, abraçou‑a pelo ombro e atraiu‑a a seu encontro.

Regine olhou para ele de esguelha. Sem os trejeitos de Nickoylos e a arrogância que ostentara diante do general, Martin parecia mais jovem e mais bonito.

Como se adivinhasse seus pensamentos, Martin inclinou‑se e lhe disse ao ouvido:

‑ Feliz?

Ela sorriu. Era a última coisa que eles poderiam estar sentindo naquele momento. No entanto, inexplicavelmente, era felicidade que Regine estava sentindo. Uma alegria estranha, fantástica, algo que nunca sentira antes. Uma espécie de felicidade mesclada de medo e expectativa.

Sim, estava feliz. E por quê?

A resposta atingiu‑a como um raio. Estava feliz porque estava com Martin. Porque estava apaixonada por ele.

Por um instante, o pensamento atordoou‑a. Fechou os olhos como se quisesse esconder seu segredo. Martin não podia desconfiar de seus sentimentos por ele. Seria humilhante.

Regine só tornou a abrir os olhos quando o táxi parou diante da vila dos Harrison.

Cercada de flores, a propriedade parecia tão tranquila que parecia quase impossível acreditar que haviam estado ali poucas horas antes de tantos episódios desagradáveis acontecerem.

Mal Martin pagou pela corrida e o táxi se afastou, Margaret e Jack vieram correndo ao encontro deles.

‑ Graças a Deus, você estão bem! ‑ Margaret exclamou.

‑ Entrem, entrem! ‑ Jack chamou. ‑ Acho que estão precisando de um drinque tanto quanto eu.

‑ O que houve? Jack e eu não sabíamos mais o que fazer de tanta preocupação!

‑ Foi terrível ‑ Martin confessou ‑ , mas consegui dar cabo daqueles dois. Deixei um com a perna quebrada e o outro, que Regine ouviu que se chamava Taha, está morto.

‑ Morto? ‑ Margaret repetiu, chocada. ‑ E a polícia?

‑ Nós conseguimos escapar antes que o corpo fosse descoberto. Não creio que alguém possa nos relacionar com o crime.

‑ Foi uma sorte você estar levando um silenciador consigo ‑ Jack Harrison murmurou depois que Martin relatou toda a história. ‑ Estou perplexo. Faz cinco anos que moro aqui e juro que nunca vi acontecer nada igual.

‑           Deveria escolher melhor seus amigos ‑ Martin ironizou.

‑           Eu não sabia o que pensar ‑ Margaret contou. ‑ Quando voltei ao hotel e o recepcionista informou que Regine havia ido embora sem levar seus pacotes, soube instintivamente que algo muito ruim havia acontecido. Sentei‑me e aguardei. Até que Jack aparecesse, alguns minutos depois, senti como se tivessem passado horas.

‑           Você agiu bem ‑ aprovou Martin.

‑           Jack fica zangado quando resolvo agir por minha própria conta ‑ Margaret respondeu.

‑           Se vocês não tivessem chegado, acho que eu já estaria correndo a cidade com meu carro ‑ Jack murmurou.

‑           Eu lhe disse para não se expor ‑ Martin censurou o amigo.

‑           É mais fácil falar do que fazer ‑ Jack retrucou. ‑           Você teria me abandonado e à Margaret nas mesmas circunstâncias?

‑           Seria diferente. ‑ Martin franziu o cenho.

‑           Como? ‑ Jack encarou‑o e depois deu uma gargalhada. ‑ Você é duro apenas em aparência. Tenho certeza que sairia atrás de nós, assim como Margaret e eu pretendíamos fazer.

Martin serviu‑se de outro drinque e mudou de assunto.

‑           Fez aquilo que lhe pedi?

‑           Sim ‑ Jack respondeu. ‑ O avião chega às sete e quinze e nosso homem em Roma garantiu que convenceria um casal a lhes ceder seus assentos.

‑           Quando saberemos com certeza?

O telefone tocou naquele instante e Jack se levantou para atender. Falou tão depressa, em italiano, que Regine não conseguiu entender nenhuma palavra. Mas um simples olhar a Martin a tranquilizou, pois ele parecia estar completamente a par da situação.

‑           Por favor, o que está acontecendo? ‑ perguntou assim que Jack retornou ao grupo. ‑ Estou angustiada!

‑           Conte a ela, Jack.

‑           A idéia foi de Martin ‑ Jack passou a relatar. ‑ Ele e eu tivemos uma conversa esta tarde, antes de você entrar naquele trio, e decidimos que era muito perigoso remarem ao Cairo como um casal, pois a essa altura, os chefões já estão no seu encalço.

‑           Por favor, continue.

‑           Entrei em contato com um amigo em Roma e ele cocou‑os em uma excursão que está se dirigindo ao Cairo neste momento.

‑           Concordo plenamente ‑ disse Margaret. ‑ Ninguém suspeitará de um grupo de turistas.

‑ É o que também espero ‑ Regine murmurou.

‑           E lembrem‑se de que é por Nickoylos e por uma jovem artista que eles estão procurando.

‑           Eu não teria tanta certeza de que o trabalho será mais fácil agora. Eles não são tolos e já devem ter descoberto que Nickoylos era apenas um disfarce.

‑           Jamais subestimo um inimigo ‑ Jack defendeu‑se. ‑   Mas também acho um erro superestimá‑lo. Além disso, os egípcios não são surtis.

‑           Não sabemos nada sobre a nacionalidade deles ‑ Martin declarou.

‑           Não acredita que sejam os egípcios que estão por trás do esquema das drogas? ‑ Jack Harrison indagou, atónito.

‑           Sabemos apenas que o palco dos acontecimentos é o Egipto. Como Chris, eu acredito que o problema seja muito mais complexo. ‑ Martin respirou fundo. ‑ São quase cinco horas. Precisamos nos preparar. Logo teremos de ir para o aeroporto.

‑           Sim, é claro ‑ disse Margaret. ‑ E Regine ainda não fez as malas. A propósito, o que devo fazer com as roupas e pertences de Regine Faye?

‑           Queime‑as ‑ Martin ordenou.

As mulheres se entreolharam, chocadas com a extravagância.

‑           Queimá‑las?

‑           Sim, queime‑as ‑ Martin repetiu. ‑ Sei que seria mais caridoso doá‑las a alguma instituição de caridade que trabalhe com peças teatrais, mas elas poderiam deixar pistas. Acima de tudo, não as guarde na vila. Não podem ter nada em comum com Regine Faye ou com Nickoylos. Portanto, façam uma boa fogueira imediatamente. Os vizinhos poderão estranhar isso, Jack?

‑           Não, eu costumo queimar o mato uma ou duas vezes por semana.

‑           Sinto tentar ensinar o padre‑nosso ao vigário. Jack ‑ Martin continuou ‑, mas enterre bem fundo o que não puder ser queimado.

‑           Acho que estou fora de forma ‑ Jack resmungou. ‑ O que está querendo dizer?

‑           Os botões das roupas, por exemplo. Os braceletes e também as pulseiras que a Senhorita Faye usou.

‑           Que desperdício de dinheiro! ‑ Regine exclamou.

‑ É melhor perder dinheiro do que a vida ‑ Martin lembrou.

Regine seguiu Margaret até o quarto. Sabia que Martin estava preocupado com os amigos. Um arrepio de medo lhe percorreu o corpo enquanto se preparava para transferir as roupas que comprara em Atenas, das caixas para a mala.

Uma hora depois, Regine e Martin seguiram para o aeroporto.

Jack insistiu em levá‑los em seu carro, mas Martin não permitiu. Despediram‑se na vila, com um beijo. Regine notou que os olhos de Margaret se encheram de lágrimas ao abraçar Martin. Uma onda de ternura invadiu‑a. Era maravilhoso saber que fizera dois grandes amigos em tão curto espaço de tempo.

‑           Deus os abençoe! ‑ Margaret disse quando eles entraram no táxi e comoveu‑a ver a expressão de Jack. Apesar dos longos anos de treinamento, ele não conseguiu evitar que a emoção o vencesse.

Martin instruiu‑a para que fosse ao toalete assim que chegassem ao aeroporto e que os passaportes fossem carimbados e que aguardasse lá até que a chegada do voo procedente de Roma fosse anunciada.

‑ Dê algum tempo para que os passageiros desembarquem e depois se misture com eles. Suba a bordo em seguida, não preste atenção em mim. Enquanto estivermos aqui, não podemos parecer um casal.

Só havia uma mulher no toalete. Era uma grega e deveria ser funcionária do aeroporto porque estava sentada em um canto, tricotando.

Regine lavou as mãos e mirou‑se ao espelho sobre a pia. Era bom voltar a ser ela mesma, sem os cílios postiços e a maquilhagem exagerada. Por outro lado, talvez tivesse parecido mais atraente a Martin quando se mostrara uma mulher sexy.

‑           Eu o amo ‑ falou consigo mesma. ‑ Sempre zombei dos poetas que dizem que o amor é algo maravilhoso e sagrado. Agora admito que eles estão certos.

Sua vida havia mudado muito em pouco tempo. A morte de Chris em primeiro lugar e agora a descoberta de seu amor por Martin. Um amor quase sem esperanças. Afinal, por que Martin se apaixonaria por ela? Era um peso para ele. Forçara‑o, praticamente, a levá‑la consigo em sua missão.

O anúncio de que o voo procedente de Roma havia chegado a trouxe de volta ao presente.

Retocou a maquilhagem, penteou os cabelos e, com calma, certa de que os passageiros já deveriam estar lotando as salas do aeroporto, saiu do toalete.

Alguns estavam comprando suvenires gregos nas lojas que se espalhavam pelo imenso salão. Outros estavam comprando jornais, outros tomavam café e muitos estavam sentados. meramente esperando para seguirem viagem.

Regine caminhou com naturalidade. Martin orientara‑a para que não se portasse como se tivesse medo, para não chamar a atenção das pessoas.

Ao ver uma poltrona vazia, Regine sentou‑se. Havia uma senhora de meia‑idade ao lado.

‑ O voo foi bom? ‑ Regine indagou, para puxar uma conversa.

‑ Oh, foi excelente ‑ a mulher respondeu com um sorriso e apontou para os demais passageiros que se aglomeravam diante das lojas. ‑ Estou com a bolsa lotada de suvenires. Mas, confesso, que gostaria de comprar mais coisas. Quando vejo as pessoas apinhadas diante de uma vitrine, não resisto. Sabe se há muitos artigos interessantes para comprar aqui?

‑ Eu esperaria para fazer compras no Cairo ‑ Regine respondeu. ‑ É mais barato.

A mulher exibiu um sorriso radiante.

‑ É mesmo?

‑ Ao menos foi o que me disseram ‑ Regine apressou‑se a corrigir seu erro. ‑ Um primo meu esteve lá o ano passado comprou peças incríveis. Ele me contou que é preciso pechinchar para conseguir bons preços.

‑ Eu ouvi dizer o mesmo ‑ a mulher concordou.

Enquanto conversava, Regine notou que Martin havia pedido um café no bar e que estava em companhia de dois outros homens.

Não demorou para que os passageiros fossem chamados a prosseguirem viagem.

Quando todos se levantaram e se dirigiram ao sector de embarque, Martin se aproximou dela, colocou o cartão de embarque em sua mão, e voltou para o bar.

Regine sabia o que tinha de fazer. Continuar junto da mulher até que embarcassem, pelo menos.

O guia da excursão estava de pé junto à porta e saudava todos os passageiros à medida que entravam. Ao ver Regine, perguntou‑lhe o nome.

‑ Sra. Robinson.

‑           Oh, sim, é claro. Espero que a senhora e seu marido façam uma boa viagem connosco.

‑           Obrigada ‑ Regine agradeceu e procurou sua poltrona. Sentou‑se e tirou imediatamente as luvas. Ao ver a aliança de ouro no dedo, sentiu‑se estremecer. Que destino a esperava no Cairo?

Pensou em Paul, em Chris, em Taha. Muitas mortes haviam ocorrido por causa de uma droga que servia apenas para destruir aqueles que a procuravam.

De repente, Regine percebeu que a mulher do aeroporto estava ocupando uma poltrona próxima.

‑           Posso me sentar a seu lado? ‑ perguntou. ‑ Meu marido está demorando.

‑           Claro, querida. Será agradável ter alguém para conversar. A maioria do pessoal está acompanhado nesta excursão.

‑           Por que não trouxe uma amiga? ‑ Regine perguntou.

‑           Era o que pretendia fazer, mas minha amiga trabalha como enfermeira particular e, no ultimo momento, seu patrão piorou de saúde e ela não pôde deixá‑lo.

‑           Lamento pela senhora e por sua amiga ‑ Regine murmurou.

Por fim, Regine viu Martin entrar no avião e dirigir‑se a ela.

‑           Você demorou ‑ disse em tom de acusação, como faria qualquer mulher com seu marido.

‑           Achei que uma ou duas cervejas me fariam sentir melhor ‑ Martin disse em tom propositadamente alto ‑ Mas a dor de cabeça não passou. Piorou, para ser franco.

‑ Oh, seu marido está com dor de cabeça? ‑ perguntou a nova amiga. ‑ Eu tenho aspirinas na bolsa, se ele quiser.

‑ É muita bondade sua ‑ Regine agradeceu.

Logo depois, a comissária serviu as bebidas e o jantar e os passageiros se aquietaram. Pela primeira vez, desde que iniciaram aquela aventura, Regine e Martin sentiram‑se seguros por algumas horas.

Havia um ónibus à espera do grupo no aeroporto do Cairo. Durante o trajecto, Regine cogitou, com o coração agitado no peito, se Martin havia providenciado apenas um quarto para eles, pelo facto de estarem viajando como um casal.

 

Foram levados a um hotel pequeno e simples, mas limpo e confortável, em um bairro afastado do centro.

Com uma calça de flanela cinza e um paletó de tweed algo fora de moda, Martin parecia um sujeito comum. Assim como ela, com seu vestido sóbrio.

Mas quando fechou a porta e olhou para ela com um sorriso malicioso, Martin voltou a ser como era.

Regine sentiu as faces corarem.

‑ O que acha? ‑ ele perguntou.

‑ De quê?

‑ De nossa pequena suíte nupcial?

Regine olhou para as duas camas de solteiro, separadas apenas por um criado‑mudo, e engoliu em seco.

‑ Parece confortável ‑ respondeu, zangada consigo mesma por ter enrubescido. ‑ Já dividi quartos com Chris antes.

‑ Não está constrangida?

A impressão que ela teve era de que Martin estava piorando a situação com suas perguntas.

Encolheu os ombros para fingir desinteresse.

‑ Claro que não! Estava preparada para esse tipo de eventualidade.

‑ Você fala como se tivesse experiência.

Dessa vez, Regine sustentou‑lhe o olhar.

‑ Por que disse isso?

‑ Porque não conheço nada sobre seu passado. Você não me contou nada.

‑ Não tive oportunidade.

‑           Admito que não. Mas você está se comportando como uma mulher, não como uma jovem. A maioria das moças estaria chamando pela mãe em uma situação como esta.

‑           Sinto desapontá‑lo, mas após tudo o que já passamos juntos, dividir um quarto me parece o menor dos males.

‑ O que sugere que façamos? ‑ Martin perguntou.

‑ Você poderia descer e beber algo enquanto eu me preparo para dormir. Prometo não abrir os olhos, depois, enquanto você se troca.

Martin deu uma risada.

‑ É uma boa solução.

‑           Se achou‑a tão engraçada ‑ Regine murmurou, ofendida ‑, por que não propõe uma sugestão melhor?

Martin ficou sério imediatamente.

‑           Desculpe‑me. Fui rude. Depois de tudo por que você passou hoje, não tinha o direito de fazer brincadeiras. Confesso que não resisti quando a vi obrigar‑se a agir como se não estivesse preocupada com o facto de estarmos sendo obrigados a dividirmos o mesmo quarto. Você me perdoa?

Ela não duvidou da sinceridade do pedido e encerrou o assunto.

‑           Bem, agora que o problema foi esclarecido, devo informá‑la de que não pretendo ir para a cama tão cedo.

‑           Está querendo sair, não é? ‑ acusou‑o. ‑ Mas não sairá daqui! Não temos mais nada a fazer no Cairo. Espere até chegarmos a Luxor. Se eles o virem, todos os esforços que fizemos e também os de Margaret e de Jack irão por água abaixo. Deveria estar feliz por termos conseguido voltar sem que eles desconfiassem. Não coloque tudo a perder agora. Eles podem matá‑lo.

A voz de Regine vibrava com a intensidade de suas emoções. Martin notou e pareceu impressionado por um momento. Depois voltou a usar seu costumeiro humor.

‑           Não quer ficar sozinha, não é isso?

‑           Claro que é ‑ Regine concordou, satisfeita por ele lhe ter dado uma desculpa. ‑ Quero que fique comigo.

Regine virou‑se e encaminhou‑se para a penteadeira. Suas mãos tremiam. Não tinha nenhum medo de ficar sozinha. Tinha medo de que algo acontecesse com Martin.

‑           Está bem ‑ ele disse, por fim. ‑ Mas parece‑me que estou perdendo uma boa oportunidade de continuar com a investigação.

‑           O que mais poderia descobrir excepto que a droga continua em falta? Tenha mais um pouco de paciência. A resposta está em Luxor. ‑ Regine tornou a fitá‑lo. ‑ A propósito, a que horas deveremos partir para lá?

‑           Amanhã à noite. Ficaremos lá durante três dias e retornaremos ao Cairo para uma permanência de mais dois dias. Após isso, voltaremos para casa.

‑           Mal posso esperar! ‑ Regine exclamou. ‑ Por enquanto, vamos tratar de continuar vivos!

‑           Eu já inventei uma desculpa para não participar da excursão pela cidade amanhã ‑ Martin contou. ‑ Disse que me canso com facilidade depois que tive uma febre quando servi na Malásia.

‑           Parabéns. Assim, não correremos riscos

‑           Você poderá ir com eles, se quiser.

‑           Oh, não, sou uma boa esposa ‑ Regine respondeu. ‑             E você, seja um bom marido e vá buscar um refrigerante para mim.

‑           Sim, madame ‑ Martin respondeu e fez uma mesura.

‑           De quanto tempo precisa para que sua sede aumente?

‑           Dê‑me dez minutos.

Assim que Martin saiu do quarto, Regine se despiu e colocou uma camisola. Em seguida, deitou‑se, apagou as luzes, deixando apenas o abajur aceso, e se cobriu.

Dez minutos depois, ouviu uma batida na porta.

‑           Sua bebida, madame.

‑           Estou pronta para fechar os olhos ‑ Regine respondeu.

‑           Não sou tímido ‑ Martin declarou. ‑ Uma vez, numa missão, tive de fingir que era um nudista.

Regine não conteve o riso.

‑           Não diga isso diante de minha nova amiga. Ela ficaria escandalizada.

‑           Seria prudente, se você descesse pela manhã e tomasse o desjejum com ela. Aproveite para fazer confidências a respeito de meu estado de saúde.

‑           Combinado ‑ Regine respondeu.

Um minuto depois, ela ouviu Martin deitar‑se.

‑           Boa noite, Sra. Robinson.

‑           Boa noite ‑ Regine respondeu, ansiosa para que Martin dissesse algo mais. Seria maravilhoso conversarem no escuro, mas ele adormeceu quase que instantaneamente a julgar pelo som de sua respiração.

Regine, porém, demorou a conciliar o sono. Ficou pensando em Martin por um longo tempo, desejando olhar para ele e sentir mais uma vez o calor daquelas mãos em sua pele.

 

‑ Você deve estar entediada ‑ disse Martin, recostado na cama, onde lia um exemplar de três dias antes do Daily Telegraph. Sua voz era gentil. O tom sarcástico, tão comum no início da missão, havia desaparecido.

Regine levantou‑se e foi até à janela para que ele não lesse a verdade em seus olhos. Poucos minutos antes de Martin fazer aquela observação, estivera justamente pensando no quanto se sentia feliz.

Aquele quarto silencioso e mergulhado em suave penumbra, com as persianas fechadas para protegê‑los do sol da tarde, parecia um porto de paz.

A impressão que lhe dava era de estarem casados: Martin lendo na cama, ela sentada em uma poltrona, mantendo um diálogo calmo e comum.

‑ Não, não estou entediada. Acho que tivemos excitação suficiente nos últimos dias para durar por um longo tempo.

Houve um momento de silêncio até que Martin disse Inesperadamente:

‑ Em que estava pensando? Você tem um hábito de fechar às vezes, que me deixa intrigado.

Regine quase disse que ficava contente por ele se interessar por ela, mas não teve coragem. Virou‑se, então, e disse:

‑ Não acha que é uma loucura querermos resolver isso sozinhos? E se voltássemos e relatássemos nossas descobertas ao general? Ele não enviaria agentes mais especializados para enfrentar a situação?

‑ Creio que ele me enviaria de volta ‑ Martin declarou com simplicidade.

Regine suspirou. Apesar de suas palavras, nada a faria deixá‑lo. Nem o perigo, nem sequer a morte. Preferia correr riscos ao lado de Martin do que ficar de braços cruzados, em casa, com o coração despedaçado de preocupação.

De repente, Martin murmurou:

‑           Vá para casa, Regine. Não quero que se envolva mais neste caso. É linda e delicada demais.

‑           Obrigada pelo elogio, mas pretendo ir até o fim.

‑           Quando a vi pela primeira vez, pensei que fosse uma dessas moças mimadas da sociedade, do tipo que menos gosto.

‑           Sinto muito se lhe dei essa impressão.

‑ Não foram apenas suas palavras e a antipatia que sentiu por mim ‑ Martin continuou. ‑ Foram aquelas orquídeas espalhadas pelo chão, o facto de ter saído com aquele crápula russo.

Regine não respondeu. Não queria falar sobre Alex com Martin. A mera lembrança daquela noite, a mesma que recebera a carta de Chris, a entristecia.

‑ Acho que passei a antipatizar com os altos círculos ‑           Martin contou ‑ desde que minha mãe começou a me pressionar para que me relacionasse com jovens de boas e respeitáveis famílias porque achava que eu precisava encontrar uma esposa.

‑           Que tipo de esposa você desejaria? ‑ Regine perguntou com cuidado para não trair suas emoções.

‑ Pura e sincera, principalmente.

Não era a resposta que Regine esperava. O impacto daquelas palavras fizeram‑se sentir como um golpe. Ela nunca seria o ideal de Martin. Ele não queria alguém que recebesse orquídeas de um homem conhecido por todos como um sedutor inveterado.

‑           Está muito calada ‑ Martin murmurou.

‑           Estava pensando.

‑           No passado ou no futuro?

‑           No futuro ‑ Regine mentiu.

‑           Por falar nisso, a que horas precisaremos estar prontos?

‑ O avião parte ás seis horas. Teremos de sair daqui às quatro e trinta.

‑ São três e trinta ‑ Martin afirmou. ‑ Vou tomar um banho. Você me emprestaria algo que me fizesse parecer pálido? Afinal, devo apresentar um aspecto doentio.

‑ Darei um jeito de apagar essa sua cor saudável ‑ Regine prometeu.

Martin se levantou, pegou uma muda de roupa e se trancou no banheiro. Regine fechou os olhos. Estar com Martin. sob aquelas circunstâncias era o inferno e o paraíso ao mesmo tempo. Abraçou o paletó que ele usara e assim permaneceu, esquecida de tudo, a não ser da Inglaterra da qual já sentia saudade.

‑ Logo voltaremos para casa ‑ falou consigo mesma. Talvez, se Martin a visse no campo, em seus jardins, passasse a se interessar mais por ela.

Era uma esperança ténue, mas precisava se agarrar a ela para sobreviver.

‑ O banho me fez bem ‑ Martin confidenciou. ‑ Acho que conseguirei enfrentar a viagem a Luxor.

Regine sorriu.

‑ Você está saudável demais para ser convincente. Deixei o pó e o lápis preto sobre a penteadeira. Use‑os.

Martin seguiu o conselho e em poucos instantes estava pálido e com olheiras. Parecia não ter dormido várias noites seguidas.

‑ Estou pronto ‑ Martin avisou. ‑ E minha querida esposa?

Regine mostrou‑lhe o vestido sério, sem atractivos, as sandálias baixas e os cabelos esticados para trás e presos.

Martin balançou a cabeça.

‑ Seu problema é que continua parecendo uma linda jovem, mesmo que não queira.

‑ Ora, não diga isso! ‑ Regine protestou, rindo. ‑ Está me deixando nervosa. Ainda bem que os homens da excursão são velhos demais para se interessarem por mim.

‑ Concordo ‑ Martin respondeu. ‑ Sou um marido ciumento.

Arrumaram as malas no meio de brincadeiras e risadas. Alguns minutos antes das quatro e trinta, desceram para se encontrar com o grupo.

‑ A senhora perdeu um grande passeio, Sra. Robinson ‑       disse Leonora Huggins, a mulher do aeroporto. ‑ Fomos à Citadel e à principal mesquita. Lembrei‑me várias vezes da senhora e de seu marido e lamentei sua ausência.

‑ Espero poder visitá‑las quando voltarmos de Luxor ‑ disse Regine. ‑ graças a Deus, meu marido melhorou com o repouso.

O guia andava de um lado para outro, organizando a ida para o aeroporto, onde embarcaram num avião da Arab Airlines.

Martin sentou‑se à janela, por insistência de Regine, que dizia de forma que todos ouvissem que ele se sentiria melhor se pudesse se distrair. Mas Regine sabia que a atenção de Martin estava voltada unicamente para o facto de não haver elementos no aeroporto que pudessem estar seguindo‑os.

A viagem foi curta e tranquila. Quando desceram em Luxor, mais uma vez Regine se aproximou da Sra. Huggins e entabulou uma conversa de forma que ninguem pudesse adivinhar que ela e Martin estavam juntos.

Seguiram para o hotel por uma estrada estreita e poeirenta. A noite havia caído. O ar estava seco e perfumado. Regine gostaria de rir e de falar a Martin sobre a emoção que estava sentindo, mas esperou até que estivessem a sós, no quarto.

‑           Sempre sonhei em conhecer este lugar. É maravilhoso estar aqui, não? ‑ Antes que Martin respondesse, ela saiu para a varanda e olhou para o rio e, muito além, mal discernível ao luar, o misterioso Vale do Reis. ‑ É realmente fantástico!

Mas Martin não a estava ouvindo. Quando o procurou com os olhos, encontrou‑o debruçado sobre a mesa, examinando um mapa.

‑           O que procura? ‑ Regine quis saber.

‑ Durante o trajecto para cá, perguntei ao guia sobre a construção recente de alguma casa ou vila pelos arredores. Ele não desconfiou de nada, é claro. Afinal, turistas primam pela curiosidade. Contou‑me que uma vila muito grande e luxuosa acaba de ser construída ao norte. ‑ Martin apontou para o mapa. ‑ Eu acredito que a localização exacta seja atrás das ruínas deste templo.

‑           Poderia ser o local que procuramos ‑ Regine murmurou.

‑           Sim. Em especial porque o guia me contou também que a vila está cercada por muros altos e que a entrada de estranhos é proibida. ‑ Martin hesitou. ‑ Talvez eu esteja sendo desconfiado demais, mas tentarei investigá‑la.

‑           Quando? ‑ Regine perguntou com um fio de voz.

‑           Esta noite.

A resposta fez a pulsação de Regine acelerar de medo.

‑           Sim, é claro ‑ disse. ‑ O quanto antes, melhor.

‑           Não creio que seja preciso recorrermos a disfarces desta vez. Dois turistas passeando não despertam suspeitas.

‑ Tem razão ‑ Regine concordou.

‑           Use as sapatilhas que Margaret lhe deu ‑ Martin aconselhou. ‑ Eu trocarei meus sapatos por outros com sola de borracha. Teremos de andar muito e em areia.

Alguns instantes depois, quando saíram para o corredor, foram vistos por outros membros da excursão.

‑           Está melhor, Robinson? ‑ perguntou um.

‑           Sim, obrigado. Vamos tomar um pouco de ar antes de dormir.

‑           Faz calor nesta terra, não? ‑ brincou outro.

‑           Muito calor ‑ Martin concordou. ‑ Se eu fosse um milionário, me hospedaria apenas em hotéis com ar‑condicionado.

Os outros riram e desejaram boa‑noite.

Havia muita gente caminhando junto à margem do rio. Aos poucos, Martin foi conduzindo Regine, pelo braço, para longe da linha dos hotéis, casas e lojas.

Era difícil e cansativo caminhar sobre areia e cactos. Quando pensou que não iria mais aguentar de cansaço, Regine perguntou:

‑           Falta muito?

Martin que estava alguns passos à sua frente virou‑se e fez sinal para que se calasse. Ela pestanejou. Não havia notado até àquele momento que havia um muro alto, poucos metros adiante. E barcos ancorados à margem do rio.

Em vez de seguir para lá, contudo, Martin puxou‑a na direcção contrária. Examinou o muro, centímetro por centímetro. De repente, parou e sorriu.

‑           Encontrei! Há buracos no concreto suficientes para apoiarmos nossos pés. ‑ Ele subiu até o alto do muro e espiou para dentro.

Regine estava tensa porque vira cacos de vidro sobre o muro, mas Martin parecia ter encontrado brechas para apoiar as mãos.

‑ É fácil ‑ ele garantiu. ‑ Saltarei para o lado de dentro e ficarei esperando‑a. A construção deve ter sido feita por nativos. Está cheia de falhas. E para proteger suas mãos, jogarei meu paletó sobre os cacos de vidro.

Ao contrário do que esperava, Regine não teve dificuldade em subir. Porém, quando chegou ao topo, hesitou.

‑           Coragem! ‑ Martin sussurrou. ‑ Eles a verão, se continuar aí.

Regine respirou fundo e saltou. Caiu nos braços fortes de Martin. Ele a sustentou por um instante. Seus olhos se encontraram. Os lábios estavam próximos, muito próximos. Martin beijou‑os. Mas tão rápido quanto o impulso foi o afastamento.

Por alguns segundos, Regine não conseguiu se lembrar de onde estava; nada mais importava excepto o beijo que Martin lhe dera. A noite, a escuridão, o perigo, tudo desapareceu para dar lugar apenas à felicidade e à chama de amor que a consumia.

‑           Venha comigo.

O chamamento a trouxe de volta à realidade. Estavam no meio de uma plantação de arbustos que cresciam junto aos muros, o que lhes dava alguma protecção.

Após caminharem em silêncio por alguns minutos, Martin se deteve à sua frente.

O que viram era algo espantoso. A propriedade parecia um imenso jardim aquático, com numerosos pequenos lagos arredondados, muito próximos uns dos outros, e ligados por diminutos córregos, talvez tubulações, provavelmente alimentados pelo Nilo.

O lugar estava silencioso e parecia deserto. A vila, grande e alta, parecia muito branca ao luar, mas não havia luzes nas janelas.

A lua estava reflectida em cada um dos lagos e incidia sobre as plantas que brotavam entre as águas como chafarizes.

Antes que Regine pudesse manifestar seus pensamentos, Martin virou‑se para ela:

‑ Preciso pegar uma amostra.

Ele correu e se ajoelhou junto ao lago mais próximo e estava mergulhando as mãos na água quando, de repente, a propriedade ficou toda iluminada.

Martin se levantou e Regine correu para ele. Mas não foi a única a seguir esse impulso. Muitos homens surgiram de todos os lados. Eram mais de vinte.

Martin olhou ao redor e soube que seria impossível escapar.

Os homens os cercaram sem fazerem nenhum ruído, o que parecia ainda mais assustador. Nesse instante, um homem alto e jovem, com uma calça preta e botas e uma camisa branca saiu da casa. Tinha o aspecto de um egípcio, mas falou em inglês.

‑ O que estão fazendo aqui?

Regine engoliu em seco ao ver um revólver em sua mão.

‑ Perdoe‑nos por termos invadido sua propriedade. Pensávamos que estivesse vazia ‑ Martin explicou. ‑ Confesso que estávamos curiosos por conhecê‑la. Somos turistas. Chegamos a Luxor esta noite numa excursão.

‑ Esta é uma propriedade particular.

‑ Sim, eu entendo e mais uma vez peço que nos desculpe. Disseram‑nos no hotel que não havia ninguém morando aqui.

‑ Acho que está mentindo, mas aproxime‑se.

Regine esperou que Martin desse o primeiro passo. Antes de fazê‑lo, ele vestiu o casaco que puxara de cima do muro antes de caminharem por entre os arbustos. Regine prendeu o fôlego. Tinha certeza de que a arma deveria estar em um dos bolsos.

Foram conduzidos, pelos seguranças armados com rifles, até a porta da casa. A razão por ela parecer estar às escuras eram as venezianas pintadas de preto.

O egípcio levou‑os até uma sala. de pé, junto à mesa de centro, estava um outro egípcio, também vestido com roupas europeias.

‑           Estávamos à sua espera, sr. Nickoylos.

‑           Não sei de que está falando ‑ Martin protestou. ‑ Meu nome é Robinson, e esta é minha esposa. Se não acredita, verifique meu passaporte.

O homem de cabelos grisalhos tirou o documento da mão de Martin, examinou‑o e atirou‑o ao chão.

‑           É Nickoylos. Fomos avisados de que tentaria entrar aqui, mais cedo ou mais tarde.

‑           O que está dizendo é uma bobagem ‑ Martin zangou‑se. ‑ Meu nome é Robinson. Minha esposa e eu estamos hospedados no Hotel Imperial. Se não acredita em mim, procure o guia da agência de turismo Cook e ele esclarecerá sua dúvida. Admito que errei ao invadir sua propriedade, mas realmente pensamos que estivesse vazia e não resistimos à curiosidade de ver como é uma vila egípcia por dentro.

O modo de falar de Martin foi tão convincente que o egípcio pareceu indeciso por um instante.

‑           O que sugere que façamos com esses dois? ‑ ele perguntou ao mais jovem.

‑           Ele foi apanhado com as mãos na água.

‑           Então, é mesmo Nickoylos ‑ repetiu o mais velho.

‑           Francamente, não sei de que estão falando ‑ Martin garantiu. ‑ Peçam que alguém confirme minhas palavras. Procurem o guia no hotel. O nome dele é Wren.

‑           Ele estava tentando arrancar uma das plantas da água ‑       disse o mais novo.

‑ Eu não estava fazendo isso! ‑ Martin negou. ‑ Apenas quis lavar minhas mãos. Quando subi no muro, devo ter tocado em sujeira de passarinho, ou algo assim.

A dúvida surgiu mais uma vez no rosto do egípcio mais velho, mas o mais jovem foi categórico.

‑           Os mortos não falam. Acho que devemos afogá‑los aqui mesmo e depois jogarmos os corpos no rio. Quando os corpos forem encontrados, a polícia pensará que foi um acidente. Podemos soltar um dos barcos para dar maior veracidade à história.

‑           Oh. não! ‑ Regine implorou. ‑ Por que querem nos matar? Não lhes fizemos mal algum!

O gípcio mais jovem aproximou‑se de Regine. Ela se encolheu. Aquele rosto lembrava‑lhe alguém. Taha. Ambos tinham o mesmo modo sinistro de olhar e de apertar os lábios.

O pânico invadiu‑a. Subitamente, ela se deu conta de que sua vida e a de Martin estavam por um fio.

Os homens começaram a falar em árabe, e pareciam nervosos.

‑           Verifiquem se ele está armado! ‑ ordenou o mais jovem.

No mesmo instante, Martin foi agarrado por três homens. Um deles, encontrou facilmente o revólver.

‑           Muito bem, sr. Nickoylos, acabou a farsa! ‑ O mais velho deu um tapa no rosto de Martin.

Regine gritou de horror.

‑           Não sou! Não pode provar! ‑ Martin se defendeu. ‑ Sempre ando armado, desde a guerra. Em especial quando visito países como este.

O homem tornou a agredi‑lo. E, dessa vez, o anel cortou‑o.

Era um anel em forma de serpente. Regine e Martin o notaram ao mesmo tempo.

‑           Está bem ‑ Martin disse em tom de voz completamente diferente. ‑ A comédia acabou. Soltem‑me e eu lhes mostrarei algo.

‑           Outra arma? ‑ zombou o mais velho.

‑           Não. Algo mais importante. Um anel, igual ao que está usando.

Os dois homens se entreolharam.

‑           Tenho uma história para lhes contar que lhes será de grande interesse. ‑ Martin esperou um instante e olhou‑os com superioridade. ‑ Vão me soltar ou não?

Dada a ordem para que o soltassem, Martin pegou a carteira e colocou o anel na palma da mão.

‑           Deve tê‑lo roubado ‑ acusou o mais jovem.

‑           Ao contrário. Ele me foi entregue por uma razão.

‑           Que razão? ‑ os dois perguntaram ao mesmo tempo.

‑           Para que viesse aqui e falasse com seu chefe. Tenho uma proposta a lhe fazer.

‑           Está mentindo! ‑ exclamou o mais jovem. ‑ Tudo que diz é mentira. É Nickoylos!

‑ Não, não sou. Sou alguém que tentou entrar em contato com seu chefe em Londres, mas não teve sucesso. Esse é o motivo de minha presença aqui.

‑           Quem lhe deu o anel? ‑ o mais velho perguntou após um instante de silêncio.

‑           Não tenho permissão de revelar seu nome, mas foi um de seus próprios homens. E minha proposta é genuína. Há um milhão de dólares em jogo.

Regine notou que os olhos dos homens haviam adquirido um brilho de cobiça.

‑           Quem o enviou? ‑ insistiram. - Se não disser, não acreditaremos em você.

‑           Os interessados são tão importantes que só poderei revelar seus nomes ao chefe.

‑           Vamos matá‑los de uma vez! ‑ insistiu o mais jovem.

‑           Apesar de que eu esperaria um pouco mais para me livrar da jovem.

Regine encolheu‑se diante da ameaça.

‑           Não ‑ respondeu o mais velho. O chefe decidirá sobre o destino deles. ‑ Afinal de contas, ele logo estará aqui.

‑           Esta noite ainda, não? ‑ insinuou Martin.

‑           Como soube? ‑ o mais velho perguntou com ferocidade.

‑           Minha gente está bem informada ‑ Martin respondeu em tom de provocação. ‑ Ou não teria um milhão de dólares pronto para ser entregue.

Os homens receberam ordens para retirá‑los da sala. No mesmo instante, Regine sentiu‑se agarrar por mãos que pareciam tentáculos. Ela e Martin foram empurrados por um longo corredor e jogados em uma cela escura.

Regine tentou se levantar. De joelhos, tacteou o chão de pedra.

‑           Martin...

‑           Estou aqui ‑ ela o ouviu dizer. ‑ Você se machucou?

Então, uma voz de homem misturou‑se às deles.

‑           Martin?

 

Um silêncio de estupefacção inundou o ambiente. Em seguida, com voz estrangulada, Regine perguntou:

‑           Quem está aí?

As palavras pareceram ecoar na escuridão antes de o homem responder com voz trémula:

‑           Não pode ser...

Antes que ele pudesse continuar, Regine deu um grito.

‑           Chris!

‑ Regine! O que está fazendo aqui?

A escuridão vibrou com as emoções.

Em seguida, a voz de Martin foi ouvida:

‑ Esperem.

Ele acendeu um isqueiro e seu rosto e o de Regine foram iluminados. Chris acendeu um fósforo e um toco de vela em um canto.

‑           Chris, meu querido irmão, você está vivo!

Regine se atirou nos braços do homem que estava sentado sobre um tosco colchão.

Era Chris, mas ele estava muito mudado. Regine mal o reconheceu.

Estava magro e esfarrapado. A barba cobria suas faces e a testa estava machucada. Mas ele estava vivo e só isso importava.

‑           Oh, Chris, o que fizeram com você? ‑ Regine murmurou entre lágrimas.

‑           E vocês? O que estão fazendo aqui?

Martin falou pela primeira vez.

‑           É bom ver você, Chris. Viemos ao Egipto para tentar descobrir a razão de sua "morte".

‑           Maldita curiosidade! ‑ Chris exclamou. ‑ Eu deveria ter imaginado que você viria atrás de mim! Mas por que trouxe Regine?

‑           Eu o obriguei a me trazer ‑ Regine interrompeu‑os. ‑ Ele não queria. Tentou se livrar de mim o tempo todo. Mas eu tinha de saber o que havia acontecido.

‑           Agora, estamos todos encrencados ‑ Chris observou.

‑           Conte‑nos o que lhe aconteceu ‑ Martin pediu. ‑ Depois falaremos sobre nós.

‑           Se houver tempo ‑ Chris murmurou.

‑           Por quê?

‑           O chefão virá aqui esta noite. O que estão sabendo?

‑           Apenas o que você escreveu e que deixou aos cuidados de madame Goha ‑ Martin respondeu.

‑           Tive razão em confiar nela, então.

‑           Paul foi morto ‑ Martin continuou.

Regine percebeu pela pressão dos dedos de Chris em sua mão o quanto a notícia o abalou.

‑           Eu fui mantido vivo ‑ ele confidenciou ‑ porque me recusei a lhes dar a informação que queriam.

‑           Que informação?

‑           O nome da pessoa que me contou sobre a droga.

‑           Nós não conseguimos avançar em sua pesquisa ‑ Regine declarou. ‑ Apenas sabemos que se trata de alguém importante por causa de seu bilhete.

‑ É tão importante que eu fui um tolo em querer guardar esse segredo comigo em vez de dividi‑lo.

‑           Conte‑nos ‑ Martin implorou.

‑           Deveria ter contado ao menos ao general ‑ Regine censurou o irmão.

‑           Eu sei. Fui orgulhoso demais ao querer resolver tudo sozinho. Conheci uma pessoa que convenci a me levar ao local de reunião dos distribuidores. Um clube nocturno. Eu os enganei. Fiz com que acreditassem que iria ajudá‑los. No meio da reunião, de repente, houve uma briga. Um dos principais agentes estava envolvido. Um homem repulsivo conhecido como Taha.

‑           Ele está morto ‑ Martin apressou‑se a informar. ‑ Eu o matei.

‑           Essa foi a melhor notícia que recebi em um longo tempo ‑ Chris disse com um sorriso. ‑ Taha foi quem começou a briga. Não consegui saber o motivo. No final, ele atirou no outro e a pessoa que me levou ao clube apressou‑se a me tirar dali por uma porta dos fundos. Nunca vi alguém tão assustado. Ele não parava de repetir que Taha não gostava de testemunhas.

‑ Taha era um homem abominável ‑ Regine concordou.

‑           Meu amigo desapareceu o mais depressa que pôde ‑           Chris continuou ‑, mas eu fiquei por ali. Um quarto de hora mais tarde, encontrei o homem jogado em um beco, esvaindo‑se em sangue. Não havia mais como salvá‑lo, mas eu ainda tentei saber se podia ajudá‑lo de alguma forma.

‑ Você não muda, Chris ‑ Regine disse com um suspiro. ‑    Sempre arruma uma encrenca, tentando ajudar alguém.

‑           Estávamos sozinhos ‑ Chris respondeu. ‑ Achei que seria seguro. O homem disse que era católico e que queria se confessar. Como não havia tempo para eu sair em busca de um padre, ofereci‑me para ouvi‑lo.

‑           O que ele lhe contou? ‑ Martin insistiu.

‑           Que a droga estava sendo plantada aqui no Egipto porque ela se desenvolve em uma determinada espécie de lama, facilmente encontrada nas margens do Nilo. É o narcótico mais revolucionário que já foi descoberto. Serve a duas finalidades. As flores e as sementes, quando transformadas em pó, produzem uma sensação de força e invulnerabilidade. Aqueles que o usam, sentem‑se deuses em forma humana. ‑             Chris respirou fundo. ‑ As raízes, depois de secas transformadas em pó. produzem inércia e uma sensação de profunda felicidade.

‑           Deus! ‑ Martin exclamou.

‑ É terrível ‑ Chris continuou. ‑ Aqueles que estão cultivando a droga, pretendem governar o mundo. Os distribuidores e consumidores recebem um anel.

‑           Eu consegui um ‑ Martin contou.

‑           Você notou que há três pérolas na língua da cobra? Elas significam aniquilamento, segregação e supremacia. São os três objetivos da organização.

‑ E quem é o chefe?

‑ É o que eu estive tentando descobrir todo esse tempo ‑      Chris respondeu. ‑ É o que saberemos esta noite.

- Trata‑se de um esquema político? ‑ Martin perguntou.

‑           Talvez. Ou, talvez, seja fruto da mente doentia e ambiciosa de um só homem.

‑           A única esperança é que eles fiquem sem a droga.

‑           As plantas estão crescendo em largas proporções ‑ Chris explicou. ‑ Apenas não floresceram ainda.

‑           Eu notei ‑ disse Chris. ‑ Quanto tempo as flores ainda demoram a nascer?

‑           Cerca de duas semanas. Mas será tarde demais para nós. Mas...

‑           É inútil tentar nos enganarmos ‑ Chris interrompeu Martin. ‑ Esses homens são bestiais. Eu os subestimei. Não acreditei que tivessem me visto aquela noite no clube. Todas as outras pessoas devem ter sido silenciadas há tempos.

‑           E por que o pouparam? ‑ Martin quis saber.

‑           Por causa das duas primeiras páginas da carta que eu havia escrito. Como vocês devem ter adivinhado, eu estava transcrevendo‑as em código quando eles invadiram meu quarto. Quiseram que eu lhes contasse o nome de meu informante.

Chris escondeu o rosto com as mãos por um instante e Regine viu as marcas em seu peito.

‑           Chris! Eles o torturaram!

‑           Sim ‑ Chris fez um gesto afirmativo com a cabeça ‑ mas eu não falei. Sabia que era a única maneira de me deixarem vivo. Eles não imaginaram que meu informante era o homem que haviam abandonado à morte naquele beco.

‑           Eles o fizeram sofrer! ‑ Regine lamentou.

‑           Se não tivesse sido treinado para resistir, acho que não sobreviveria ‑ Chris confessou.

‑ Teremos alguma chance? ‑ Regine perguntou com um fio de voz.

‑           Muito pequena ‑ Chris foi sincero. ‑ Eles me disseram que esta noite, ou eu falo, ou morro.

‑           Detestei aqueles homens no momento que os vi ‑ disse Regine.

‑           Zarifa, o mais velho, não é tão mau. Hosaris, o mais jovem, contudo, é terrível.

‑           E os seguranças?

‑           Foram transformados em zumbis. Perderam a capacidade de raciocinar. Apenas obedecem a ordens. Como acontecerá com os habitantes de nosso planeta. Os chefes reinarão absolutos e o povo vive para cumprir suas ordens.

‑ É fantástico! É impossível! ‑ Martin exclamou.

‑           Não, não é. Infelizmente ‑ Chris retrucou. ‑ Eles estão lidando em primeiro lugar com os diplomatas, políticos e grandes empresários para depois atingir o povo.

‑           Meu Deus! Temos de detê‑los! ‑ Martin afirmou.

‑           Como? ‑ Regine balançou a cabeça. ‑ Como?

‑           Que horas são? ‑ Chris perguntou.

‑           Vinte para as onze ‑ Martin respondeu depois de consultar seu relógio de pulso à luz da vela.

‑           O chefe deve chegar às onze.

‑           O que faremos? Não podemos ficar de braços cruzados esperando que nos matem!

Os amigos se entreolharam.

‑           Você trouxe algum dinheiro, Martin?

‑           Sim. Estranhei que os seguranças não o tomassem quando me revistaram. Tenho cinquenta libras egípcias na carteira.

‑           Entregue‑me! Rápido!

Regine viu o irmão mancar em direcção à porta da cela. A camisa estava rasgada nas costas. Havia marcas horríveis de chicotadas.

‑           Nahas! ‑ Chris gritou.

Após alguns instantes, ouviram passos do lado de fora. Chris disse algo em árabe.

‑           Ele está pedindo para ir ao banheiro ‑ Martin traduziu para Regine. ‑ Disse que tem algo para dar ao guarda.

Chris se afastou e Martin sentou‑se ao lado de Regine no colchão.

‑           O que acontecerá agora? ‑ ela sussurrou.

‑ O que quer que aconteça, precisamos ter coragem.

‑ Não sou corajosa. Estou com medo ‑ Regine confessou.

‑ Todos nós estamos.

Havia algo diferente na voz de Martin. Regine fitou‑o nos olhos.

‑ Regine, se temos de morrer, não quero que isso aconteça sem que saiba o quanto te amo.

‑ Martin...

‑ Eu te amo. Acho que te amei desde o primeiro instante. Mesmo quando olhava para mim como se me detestasse. E agora, talvez seja tarde demais para nós.

‑ Oh, Martin, eu sempre pensei que você não gostava de mim.

‑ Eu não queria levar uma mulher comigo. Achava que você poderia me atrapalhar. Com a beleza, poderia me impedir de raciocinar.

Ele olhou nos olhos dela e no precisou de nenhuma resposta de seus lábios. A resposta estava escrita naquele rosto adorável, naqueles lábios entreabertos.

Um abraço forte os uniu. Em seguida, Martin procurou os lábios de Regine em um beijo suave no inicio, mas subitamente apaixonado e possessivo.

Por um instante, Regine se esqueceu de onde estava e os perigos que os rodeavam. Entregou‑se por inteiro à felicidade, à maravilha e à glória do amor, sensações que experimentava pela primeira vez.

‑           Eu te amo, minha querida, como nunca pensei que pudesse amar alguém.

‑ Eu também te amo. Amo‑te tanto que não consigo traduzir o que sinto em palavras.

Martin tornou a beijá‑la e a abraçá‑la de um modo intenso, quase febril. De repente, soltou‑a.

‑ Por Deus! Nós temos de sair daqui! Não podemos morrer agora!

Ele se levantou quase que ao mesmo tempo que a chave girava na fechadura.

Chris entrou. Parecia diferente, mais seguro de si.

‑           Há uma chance, não? ‑ Martin quis saber.

Ele respondeu com um movimento afirmativo.

‑ É tão pequena que precisaremos usar toda nossa imaginação. Mas temos de tentar. ‑ Ele foi até Regine.‑ Que horas são?

‑ Oito para as onze.

‑           Falta pouco. Ouçam com atenção. Tenho tentado me aproximar de Nahas desde que cheguei aqui. Ele é mais culto do que o resto. Estudou na Universidade do Cairo e seu único sonho na vida é viver na Inglaterra. Foi ele que me conseguiu velas e me deu comida suficiente para me manter vivo, em troca de algum dinheiro que consegui lhe pagar. Ele não se importa comigo, é claro, mas meu dinheiro significa uma chance de conquistar sua liberdade. Além disso, ele parou de consumir as drogas.

‑           Você o convenceu a fazer isso? ‑ Martin perguntou.

‑           Isso e a nos dar uma chance de fuga no barco de Zarifa e de Hosaris. É o barco mais rápido da vila. Ninguém nos alcançará se conseguirmos chegar até ele, depois de sermos levados ao chefe.

‑           Será praticamente impossível. Esse é o único plano? ‑         Martin suspirou.

‑           Sim. Precisamos esperar para ver o que acontece. Você tem algum tipo de arma?

‑           Eles ficaram com meu revólver, mas não viram a faca em meu sapato.

‑ Eu não tenho nenhuma arma, mas consegui capturar um escorpião ‑ disse Chris. ‑ Quero que fique com ele, Regine.

‑ Não, obrigada.

‑ É importante. Aqueles homens não são muito delicados quando estão sob os efeitos da droga.

Regine estremeceu.

‑ Está bem.

Ela guardou a caixa de fósforos com o escorpião na bolsa.

‑           Cuidado para não abri‑la por descuido ‑ Chris avisou. ‑ É um escorpião venenoso. Sua picada mata em pouco tempo.

Chris interceptou, naquele instante, um olhar entre Regine e Martin.

‑           Vocês estão apaixonados? ‑ perguntou, surpreso.

O sorriso que viu naqueles rostos foi a resposta.

‑ Agora, mais do que nunca precisamos escapar! Faço questão de ser o padrinho do casamento de meu melhor amigo com minha única irmã.

‑           Você conhece a casa? ‑ Martin perguntou.

‑           Não, mas Nahas me contou que há uma varanda na frente e que há degraus para o embarcadouro. Não há acesso aos barcos excepto pela água.

Foram interrompidos por passos e por vozes.

Regine deixou escapar um grito abafado, fechou a bolsa e deu a mão a Martin. Ele a ajudou a se levantar e guardou a faca no bolso do casaco. Chris estava de pé junto à porta.

Hosaris se apresentou com dois guardas.

‑           Leve‑os para cima! ‑ ordenou.

Entraram em uma sala suntuosa, decorada com sofás de veludo e almofadas de cetim. Havia uma mesa, coberta de iguarias, e um homem à sua cabeceira, de cabeça baixa.

‑           Mande os guardas embora! ‑ ele ordenou a Hosaris. ‑           Ninguém mais precisa saber quem nos traiu, excepto você e Zarifa.

Regine sentiu o sangue gelar nas veias ao ouvir a voz daquele homem.

Não podia ser!

Não se enganou. Quando ele ergueu a cabeça, ela viu Alex. Alex Salvekov.

O ar se recusou a penetrar em seus pulmões. Sua cabeça rodopiou.

Ele ainda não havia olhado para ela. Quando o fez, sua surpresa pareceu genuína.

‑           Regine! Não fazia ideia de que minha jovem hóspede fosse você!

Alex olhou, em seguida, para Chris e para Martin.

‑           Seu irmão e, é claro, Nickoylos. Que estupidez a minha! Deveria ter imaginado. Ou melhor, a estupidez foi sua, Regine. Não deveria ter se envolvido nesta história. Poderíamos ter passado momentos muito agradáveis juntos. Eu estava esperando ansiosamente por um encontro com você.

‑           Nunca lhe prometi nada! ‑ Regine se defendeu.

‑           Não em palavras, talvez. Mas com seus lábios.

‑           Eu não queria! Como pude ser tão tola?

‑           Venha cá, Regine.

‑           Não! ‑ Ela apertou a mão de Martin.

‑           Se quiser ajudar esses dois cavalheiros, faça o que estou mandando.

Dessa vez, ela não podia se omitir. Com relutância, dirigiu‑se à mesa.

‑           Sente‑se. Coma comigo alguns destes deliciosos morangos. Sei que você adora morangos.

Ela olhou para o prato. Os morangos estavam cobertos por uma fina camada de açúcar. Isso a fez lembrar a noite da festa. Agora entendia o porquê de Alex ter feito tanta questão que os provasse.

‑           Não era açúcar... Você me drogou! Foi por isso que o deixei levar‑me para casa...

‑           Minha querida ‑ Alex a interrompeu ‑, precisa se portar assim diante de uma audiência?

‑ Você me dopou! Se a carta de Chris não tivesse chegado naquele momento...

Ao se dar conta do que fizera, Regine levou ambas as mãos aos lábios.

‑           Nós teríamos continuado com aquelas deliciosas carícias e feito amor ‑ Alex murmurou com um sorriso de malícia. ‑ Aliás, é o que pretendo fazer esta noite ainda.

Regine afastou as mãos e retrucou, muito pálida.

‑           Nunca! Prefiro morrer.

‑           Não quando descobrir o que meus amigos sabem sobre as diversas maneiras de morrer.

‑           Cale‑se! ‑ Regine gritou. ‑ Como pode dizer isso? É um homem civilizado. Eu o conheci em casa de pessoas decentes. Eles não podem imaginar que...

‑           Que eu em breve me transformarei no homem mais poderoso do mundo? Serei o responsável por uma nova era. A mais pacífica e magnífica que já existiu.

‑           Você enlouqueceu! Jamais alcançará esse propósito absurdo!

‑           Quem poderá me deter? Você? Esses cavalheiros que a acompanham? Por que lutar contra o inevitável? Sente-se e divirta‑se. Coma meus morangos. Logo estará pensando de maneira diferente. Nesse ínterim, seu irmão nos contará como descobriu meu plano e o que fez com a parte da carta que meus homens não conseguiram encontrar.

Alex fez um sinal para Hosaris. Ele ergueu o chicote que trazia em uma das mãos e açoitou Chris com toda sua força.

Chris, caço de surpresa, gemeu e caiu de joelhos.

‑ Pare! ‑ Regine implorou. ‑ Não faça isso! Não seja tão cruel!

Enquanto Regine chorava, Alex exibia um sorriso de triunfo.

‑ Muito bem. Está começando a se portar como uma mulher. Mudou de idéia sobre os morangos?

Regine hesitou. Não sabia o que dizer nem o que fazer. Seu rosto estava banhado em lágrimas. Movida por um súbito impulso, abriu a bolsa para apanhar seu lenço.

Levou um susto quando Alex tirou a bolsa de suas mãos e virou seu conteúdo sobre a mesa. Seu estojo de maquilhagem, a medalha de São Cristóvão da qual nunca se separava, o lenço, o pente e a caixa de fósforos que Chris havia lhe dado na cela se espalharam.

‑ Exactamente o que esperava ‑ Alex disse e riu. ‑ Por um segundo, cogitei se estaria carregando algo mais perigoso.

Ele tornou a rir quando Regine pegou o lenço e enxugou os olhos.

Como em um sonho, então, Alex colocou um cigarro entre os lábios e apanhou a caixa de fósforos que ficara próxima a seu prato.

Aconteceu tão rápido que Regine não teria conseguido preveni‑lo, mesmo que quisesse. Assim que a caixa foi aberta, o escorpião deslizou para dentro da manga do casaco de Alex.

Ele deu um grito de susto e se levantou. Sacudiu o braço. O grito seguinte foi de pânico total.

Zarifa e Hosaris tentaram alcançá‑lo. Quando se afastaram de seus postos, Martin atirou a faca em Hosaris e Chris colocou o pé na frente de Zarifa. Ele tropeçou. Chris, movido pelo desespero, golpeou‑o mortalmente na nuca.

‑ Corra! ‑ Martin chamou‑a.

Embora todo seu corpo tremesse, Regine fez o que lhe mandavam. Não demorou a avistar o barco. O motor já estava ligado.

Martin foi o primeiro a pular para dentro. Quando Regine saltou, caiu nos braços dele. Chris embarcou por último. Sua respiração estava ofegante, mas ele sorria.

‑           O senhor conseguiu! O senhor conseguiu! ‑ o egípcio exclamou, incrédulo.

Regine sorriu e chorou ao mesmo tempo de emoção.

‑ Nós conseguimos, querida ‑ Martin sussurrou em seu ouvido, incapaz de soltá‑la nem sequer por um segundo. ‑ O perigo acabou. Estamos salvos!

Ela estava arfante demais para responder. Só conseguia abraçá‑lo e sentir um alívio e uma felicidade intensos demais para serem traduzidos em palavras.

Martin beijou‑a, então, e ela soube que nada mais importava, que não havia nada a dizer.

 

                                                                                            Barbara Cartland  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades