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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A Caçada de Aralon / Willian Voltz
A Caçada de Aralon / Willian Voltz

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Caçada de Aralon

 

Em Aralon muita gente quer o ativador celular... E a grande caçada tem início!

Estamos no ano 2.326 do calendário terrano. Durante o tempo que se passou depois dos acontecimentos relatados no volume 149, houve modificações importantes nos setores conhecidos da Via Láctea.

A partir de 1o de janeiro de 2.115, data em que Atlan renunciou à posição de Imperador de Árcon, o Império Solar e o Império de Árcon deixaram de existir. Passaram a formar o Império Unido, governado pelo Grande Administrador Perry Rhodan.

O arcônida Atlan exerce agora as funções de chefe da USO, cujos especialistas fazem uma espécie de “segurança galáctica”.

Sempre que surgem problemas que não sejam de natureza estritamente planetária, podendo produzir suas conseqüências no âmbito galáctico, a USO, criada pelo lorde-almirante Atlan, entra em ação...

A fuga precipitada do Ser espiritual do planeta artificial Peregrino, e o fato de ter o mesmo espalhado a vida eterna multiplicada por vinte e cinco, trouxeram a confusão para todos os povos da Via Láctea. As espaçonaves pertencentes a várias raças correm velozmente de um planeta a outro, mas via de regra são as tripulações das naves terranas que têm sorte e êxito na busca. Afinal, a frota do Império Unido é a maior da Galáxia.

Será que o homem que encontra Um Punhado de Vida pode ser feliz...?

O homem contra o qual é feita A Caçada de Aralon aprende onde realmente está a felicidade...

 

                                 

 

Assim que anoitecia e o parque mergulhava numa profunda escuridão, Darfass acostumara-se a ver os fregueses entrarem em sua lojinha. De dia, como agora, o negociante costumava ficar sentado junto ao pequeno aquecedor atômico localizado atrás do balcão. E com os olhos semicerrados observava os transeuntes que passavam à porta de seu estabelecimento. Vez por outra pegava uma folha de morum e a enfiava na boca desdentada.

Darfass era um velho gordo, frio e esperto, que tinha um instinto genial para os bons negócios. Seu estabelecimento dispensava os modernismos e a propaganda chamativa. A entrada era fechada por uma cortina de veludo gasta e cheia de furos. Na vitrina via-se uma velhíssima arma térmica do tipo terrano, em cuja coronha estavam gravados estranhos sinais. Um tapete esfarrapado, cuja cor primitiva fora apagada por uma camada de pó, formava os fundos do quadro. Ao lado da arma térmica havia uma lança que, segundo se dizia, era feita de marfim legítimo.

Darfass costumava enganar os fregueses. Estes sabiam, mas conformavam-se com isso, pois Darfass era o único lojista de Aralon que negociava com os pouners. Ainda acontecia que também era enganado por seus fornecedores. Ninguém sabia se o negociante era rico. Sempre trajava uma calça amarrotada e uma camisa disforme.

Quando um homem entrou em sua loja e apontou uma arma de cano longo para sua barriga, Darfass piscou os olhos de surpresa. O homem parecia arruinado, suas vestes estavam sujas e rasgadas. Enquanto uma das mãos segurava a carabina apontada para Darfass, a outra fechava cuidadosamente a cortina de veludo. Respirava pesadamente, como se tivesse corrido um bom trecho. Darfass abriu os olhos de vez. Percebeu que o homem que se encontrava à sua frente não era nenhum ara. O intruso era um terrano.

O desconhecido lançou um olhar penetrante para Darfass.

— O senhor está só? — perguntou em intergaláctico.

— Veja o senhor mesmo — sugeriu Darfass. — No quarto dos fundos apenas encontrará uma cama.

O terrano olhou pela vitrina para ver o parque. Até parecia que esperava que alguém o estivesse seguindo. Darfass ficou na expectativa. Ainda não sabia como devia agir diante desse homem.

— Feche a loja — ordenou o intruso. Darfass levantou-se, arrastou os pés em direção à entrada e desceu parcialmente a cortina. Sorriu como quem pede desculpas.

— Infelizmente é só o que posso fazer — disse. — Minha loja fica aberta ininterruptamente.

— Pendure uma placa que diga que o senhor adoeceu de repente — ordenou o terrano. — Não quero que nenhum freguês me perturbe.

Darfass foi para trás do balcão e tirou uma folha de papel. Escreveu em torguense sobre a mesma:

 

Ofertas especiais.

Só hoje.'

 

O desconhecido fitou-o atentamente. Quando Darfass pretendia sair com a folha escrita, sentiu a mão do homem pousada em seu ombro. O papel foi-lhe tirado da mão. O terrano rasgou-o em pedacinhos.

— Escreva em intergaláctico — disse desconfiado.

Darfass obedeceu e encheu outra folha.

— Pretende roubar-me? — perguntou em tom calmo.

Um gesto com a arma deu-lhe a entender que deveria apressar-se. Darfass prendeu o cartaz à vitrina.

— Onde estão armazenadas suas mercadorias? — perguntou o terrano.

Diante da arma e da forte desconfiança demonstrada pelo desconhecido, o mercador compreendeu que não valeria a pena mentir. Abriu o alçapão, que havia atrás do balcão, e apontou para um buraco escuro.

— Isso pode ser trancado por dentro? — perguntou o terrano.

Darfass fez que sim. Lembrou-se de que lá embaixo havia mais de mil pouners. Como faria o terrano para retirá-los da loja? E, o que era mais importante, o que pretendia fazer com isso?

— Pegue uma lanterna e vá na frente. Darfass olhou para o parque como quem quer pedir socorro, mas nenhum dos transeuntes deu-lhe atenção. Nenhum ara arriscaria sua boa fama, visitando a loja de Darfass de dia. O negociante pegou a lanterna e desceu à frente do desconhecido. O terrano esperou até que Darfass trancasse cuidadosamente o alçapão. Examinou pessoalmente o fecho. Os pouners começaram a choramingar.

— O que é isso? — perguntou o desconhecido.

O negociante sentiu-se perplexo. Afinal, o que queria esse homem? Será que ainda não sabia que Darfass trabalhava com pouners?

— São pouners — respondeu Darfass. — Sentem-se incomodados.

Iluminou algumas fileiras de jaulas nas quais se viam animaizinhos de olhos azuis e rabos peludos.

— Traga uma corda — ordenou o homem magro, com a voz cansada.

O negociante hesitou. A essa hora já estava desconfiado de que aquele homem não viera apenas para roubar alguns dos animais tutelados por uma legislação protetora.

O rosto do desconhecido assumiu uma expressão dura. Uma amargura infinita desenhou-se em seus olhos.

— Uma corda! — repetiu.

Darfass apressou-se em cumprir a ordem. Sem dizer uma palavra, o terrano pegou a corda que Darfass lhe trouxe. Depois apontou para uma cadeira.

— Sente-se.

Darfass não teve alternativa. Obedeceu. O homem começou a amarrar Darfass à cadeira. Prendeu-o tão fortemente que mal conseguia fazer um movimento.

— Se gritar, o senhor morrerá — ameaçou aquele homem misterioso, que, logo depois, juntou alguns sacos cheios de retalhos de panos, espalhou-os pelo chão e deitou.

Darfass ficou espantado ao vê-lo adormecer dali a alguns segundos. À luz débil da lanterna, pôde observar o terrano. Era um homem grande, marcado pela estafa. Sua roupa estava totalmente esfarrapada. Os olhos jaziam profundamente nas órbitas, e uma barba de vários dias cobria-lhe o rosto.

Darfass resolveu conformar-se, por enquanto, com a situação em que se encontrava. Ao que parecia, sua vida não estaria em perigo, desde que obedecesse às ordens desse homem. A corda cortava-lhe profundamente as carnes. Uma vez desamarrado, levaria algumas horas para recuperar-se.

Os pouners foram se acalmando. O silêncio passou a reinar nas jaulas. Darfass esforçou-se para dormir um pouco, mas não conseguia tirar os olhos do terrano. Quem seria esse homem e qual era seu objetivo? Quanto a uma coisa não havia dúvida. O homem que se encontrava à frente de Darfass estava fugindo. Mas, de quem?

O negociante gravou na memória o rosto do homem que estava dormindo, para que mais tarde pudesse reconhecê-lo imediatamente. Naquele momento descobriu a corrente fina presa ao pescoço do intruso.

Darfass esperou pacientemente que o homem fizesse um movimento, para ver o que trazia preso ao pescoço. Talvez fosse um talismã. O terrano dormia profundamente, mas vez por outra seu corpo fazia movimentos convulsivos. Os nervos desse homem deviam estar submetidos a uma tensão prolongada.

Depois de algum tempo, o terrano virou o corpo e um objeto metálico oval saiu da blusa esfarrapada.

Darfass descobriu ao primeiro relance o que aquele homem estava carregando. O terrano possuía um ativador celular.

O coração de Darfass começou a bater com mais força. A descoberta era tão extraordinária que teve a impressão de estar sonhando. Darfass era um velho, mas em sua lojinha recebia informações vindas de muitos planetas. Darfass, contudo, nunca ouvira falar que alguém tivesse encontrado um ativador! Porém isso não era de admirar, pois havia apenas vinte e cinco aparelhos desse tipo espalhados pela Galáxia...

E agora, a apenas cinco metros do lugar em que se encontrava, estava um terrano totalmente exausto, que dormia com um ativador celular pendurado ao pescoço. Fazia anos que o negociante não sentia uma emoção tão forte. Os pensamentos atropelavam-se em seu cérebro, produzindo os planos mais arrojados para conseguir o ativador.

Darfass lutou contra as cordas que o prendiam, mas o desconhecido amarrara-o de tal forma que, a cada movimento, as laçadas tornavam-se mais apertadas. O velho fez um esforço para reconhecer a seqüência de fatos que haviam levado aquele homem à sua loja.

O terrano estava fugindo; quanto a isso não havia a menor dúvida. Quem estaria atrás dele? Os agentes de Perry Rhodan? Tropas do Império? Aras? Provavelmente dependeria exclusivamente da personalidade do perseguidor que este descobrisse o esconderijo ou não. Se os lendários mutantes de Rhodan participassem da ação, o fugitivo não teria a menor chance. Mas, afinal, aquele terrano conseguira chegar à loja de Darfass, e por isso este duvidava de que houvesse elementos psi entre os perseguidores. Rhodan recorreria aos seus melhores mutantes para procurar qualquer um dos ativadores...

Darfass chegou à conclusão de que o grande administrador ainda não sabia da existência do homem que se encontrava à sua frente. Teve a nítida impressão de que provavelmente só havia um pequeno grupo que sabia da existência do aparelho. Esse grupo brevemente se ampliaria. Isso era mais que certo.

Um dos concorrentes que se esforçaria para conseguir o ativador estava amarrado à cadeira... Era ele mesmo! Darfass usaria sua esperteza para enganar aquele terrano. Nos últimos anos os olhos do negociante se haviam tornado cada vez mais fracos, as veias das pernas tinham inchado e ele se tornava cada vez mais preguiçoso. Isso significava simplesmente que estava envelhecendo rapidamente.

Por mais capazes que fossem os médicos, Darfass morreria dentro de alguns anos. Até então ele se conformara com isso. O comércio de pouners deixava-o satisfeito até certo ponto.

O equilíbrio psicológico do negociante desapareceu no momento em que resolveu roubar o ativador. Darfass era de opinião que o terrano nunca mais deveria sair de sua loja.

Quem sabe, amanhã Darfass estaria sentado novamente ao lado da vitrina de sua loja olhando os transeuntes... seus fregueses. Estes o tratariam com a consideração que costuma ser dispensada aos velhos. Quando todos esses homens já tivessem morrido, Darfass ainda estaria vivo.

Darfass prestou atenção à respiração do desconhecido. Antes que este acordasse, teria de descobrir um bom plano.

Hendrik Vouner nem desconfiava das idéias de seu prisioneiro. Dormia o sono pesado e profundo em que só uma pessoa totalmente exausta costuma mergulhar.

 

Três carrinhos vermelhos correram vertiginosamente pelo enorme campo de pouso. Atrás deles vinha o veículo de carga. A equipe de robôs estava pendurada à carroçaria, pronta para saltar.

— Estão chegando! — exclamou Sorgun e colocou-se ao lado de Hefner-Seton.

O comandante virou-se para trás e contemplou a eclusa aberta da Kotark. Depois olhou para o parque, no qual o terrano desaparecera há menos de três minutos.

— Acho que vão querer uma porção de explicações — disse Sorgun, em tom sombrio. — Perguntarão por que a Kotark não desceu no campo de pouso que lhe era destinado. Perguntarão pelos tripulantes e cientistas. Quererão saber...

— Quando chegarem aqui, não nos encontrarão — interrompeu Hefner-Seton. — Se esperarmos até que nos levem, não demorarão em arrancar-nos a história do ativador celular. Depois disso não teríamos a menor chance de conseguir o aparelho. Também vamos dar o fora. Talvez consigamos encontrar o terrano.

— Enviarão uma equipe de busca — disse Sorgun. — A nave vazia lhes dará o que pensar.

O ara muito alto não chegara a ouvir o fim da frase, pois saíra correndo. Sorgun também entrou em movimento. Alcançou o comandante quando este ia entrar no parque. Esconderam-se numa moita e viram os carros robotizados chegarem à Kotark.

Ao que parecia os robôs não souberam o que fazer com a nave, até que um impulso expedido pelo controle remoto os fizesse subir pelo passadiço.

— O que acontecerá agora? — perguntou Sorgun, em tom desconfiado.

Hefner-Seton passou a mão pela calva. Um sorriso malévolo surgiu em seu rosto.

— Levarão pelo menos cinco minutos para recuperar-se da surpresa — disse. — A esta hora estão acompanhando a transmissão de imagens feita pelos robôs que se encontram na Kotark. Quando constatarem que não há ninguém na nave, avisarão o Conselho Médico. Depois disso alguns especialistas subirão a bordo da Kotark. Pelo menos uma hora se passará até que comecem a procurar-nos. — Acenou com a cabeça, satisfeito. — Procurarão toda a tripulação, pois na mensagem enviada pelo rádio apenas avisamos o regresso da Kotark. Com isso sua tarefa se tornará mais difícil.

Sorgun tremia de medo e nervosismo.

Seus olhos refletiam a ânsia de possuir o ativador e o desejo de eventualmente apresentar-se às equipes de busca. Hefner-Seton reconheceu que, com o tempo, o radioperador representaria um perigo. O principal culpado pelo fato de controlar a Kotark até o pouso era ele. Só foram salvos graças ao truque de Hefner-Seton, que levara o homem para Aralon. Para o leigo, a Terra e Aralon, vistas do espaço, eram praticamente iguais. No momento em que acreditava que o ativador estava firmemente em suas mãos, o terrano teve de constatar que caíra numa cilada.

Mas Hefner-Seton não estava disposto a desistir dos esforços de apoderar-se do ativador. Se tivesse aguardado as equipes oficiais a bordo da Kotark, teria saído do episódio são e salvo, mas um exército gigantesco de robôs, especialistas e soldados fecharia hermeticamente a área e não demoraria a prender o terrano. Se evitasse que o Conselho Médico tivesse conhecimento da existência de um ativador em Aralon, Hefner-Seton teria uma chance de conseguir o aparelho.

Seria um erro levar Sorgun. Era um homem cheio de complexos. Representaria um obstáculo.

Hefner-Seton afastou as folhas com as mãos e lançou mais um olhar para o campo de pouso.

— Acho que devemos separar-nos — disse.

Sorgun sacudiu a cabeça. Parecia assustado.

— Está com medo? — perguntou Hefner-Seton, em tom de desprezo.

— Não estamos armados — disse Sorgun. — O que faremos se os perseguidores nos alcançarem?

— Arranje uma roupa que não desperte a atenção — sugeriu o comandante. — O terrano provavelmente procurará chegar a Doun, onde fica a base do Império.

Sorgun fitou-o com uma expressão de incredulidade.

— Doun fica do outro lado do grande oceano — disse. — Como é que um homem pode chegar lá sozinho?

Hefner-Seton afastou a objeção com um gesto.

— Não se esqueça de que esse homem conseguiu sair do segundo planeta do sistema de Velander...

Tiveram de ficar calados, pois um ara idoso passou bem perto deles. Hefner-Seton esperou até que o caminhante desaparecesse e saiu de trás da moita.

— Vamos embora — ordenou. — Siga nessa direção. Eu continuarei por aqui.

Sorgun saiu correndo pelo gramado bem cuidado. Logo ficou fora do alcance da vista de seu antigo superior. Hefner-Seton soltou um suspiro de alívio. Agora podia dedicar-se intensamente à procura do emigrante terrano.

O ara procurou colocar-se na situação do terrano. Para onde teria ido, se fosse ele?

O homem que possuía o ativador não conhecia Aralon. O ambiente devia parecer-lhe estranho e perigoso. Provavelmente o fugitivo nem sabia que grande parte das cidades ficava no subsolo. Um terço do planeta estava escavado. A maior parte da superfície estava coberta por gigantescos parques.

Antes de mais nada Hefner-Seton precisava de uma arma. O homem por ele perseguido não hesitaria em usar a sua, assim que constatasse que um velho conhecido estava atrás dele.

Hefner-Seton esperou até que o caminho que atravessava o parque ficasse abandonado à sua frente. Só depois disso saiu do esconderijo. Caminhou com o maior sangue-frio pela trilha já existente. Os robôs ainda estavam revirando a Kotark, a fim de solucionar o enigma do desaparecimento dos tripulantes. Talvez uma equipe de especialistas já estivesse a caminho, mas mesmo esta teria de aguardar a decisão do Conselho Médico, que por certo ainda não fora informado.

Toda a série de acontecimentos seria bastante vergonhosa para os comandantes do campo de pouso.

De repente Hefner-Seton lembrou-se do lugar em que poderia encontrar uma arma. Havia nas proximidades uma velha loja que, segundo se dizia, contrabandeava pouners. Hefner-Seton lembrou-se de ter visto uma velha arma de radiações na vitrina dessa loja, quando passara por ali. Apressou o passo. Se fosse bastante generoso para com o velho, este ficaria com a boca fechada...

Dali a pouco chegou à lojinha. O aspecto repugnante da espelunca chocava-o. Mas, no momento, não poderia fazer nada para modificar isso. Sobre a entrada da loja havia uma placa com o nome do proprietário. “Darfass”, leu Hefner-Seton. Depois disso lançou um olhar para a vitrina e viu o bilhete, segundo o qual a loja estava fechada por motivo de doença de seu proprietário. A arma térmica estava ao lado do bilhete.

O ara olhou em torno, desconfiado, Não havia ninguém por perto. A cortina de veludo, que fechava a entrada, só estava parcialmente fechada. Hefner-Seton abriu-a e entrou rapidamente. Sentiu-se atingido pelo cheiro de mofo. Não viu ninguém. O ara dirigiu-se à sala dos fundos. Uma cama desfeita era praticamente a única instalação do recinto. Hefner-Seton foi para junto da mesma e colocou a mão sobre ela. Estava bem fria. E, ao que parecia, os utensílios de cozinha não haviam sido utilizados há tempo. Apenas o aquecedor atômico da loja estava funcionando, mas isso não significava nada, pois tratava-se de um aparelho que queimava por muito tempo sem precisar de nenhuma manutenção.

Hefner-Seton parou atrás do balcão. Estava indeciso. Será que por ali havia outra sala bem escondida?

— Darfass! — gritou o ara. — Onde o senhor se meteu, Darfass?

Não houve resposta. Hefner-Seton pôs-se a escutar. Depois de algum tempo foi até a vitrina e tirou a arma. Teve uma tremenda decepção, pois constatou que a arma não estava em condições de ser usada. Furioso, atirou-a ao chão.

Uma manta desbotada estava pendurada na parede. Hefner-Seton tirou a que lhe cobria os ombros, enrolou-a e prendeu-a ao cinto. Mais tarde ele a enterraria. Tirou a velha peça de roupa pendurada na parede e vestiu-a. Havia um pote de tinta atrás do balcão. Hefner-Seton pegou-o e escureceu as sobrancelhas. Era um disfarce primitivo, mas no momento não podia fazer coisa melhor.

Voltou a olhar em torno e saiu da loja.

Provavelmente seria muito perigoso procurar o terrano por ali, pois o próprio Hefner-Seton teria que sair dessa área. O homem acabaria por descobrir que só em

Doun estaria em segurança. Procuraria chegar à base do Império.

Isso significava que um belo dia apareceria em Pasch, a cidade litorânea. Quando chegasse lá, Hefner-Seton já o estaria esperando.

Ouviu-se o som das sereias de alarma, vindo do campo de pouso. Os transeuntes pararam e olharam para trás, muito curiosos. Hefner-Seton passou a andar mais depressa. Acabara de colocar-se como um fora-da-lei, mas isso não o preocupava.

Estava atrás do portador de um ativador celular. Face a isso, tudo mais deixava de ser importante. Teve uma ligeira lembrança de Sorgun, que, naquele momento, se esgueirava todo assustado através das moitas.

Hefner-Seton levou menos de uma hora para chegar ao fim do parque. Uma fita transportadora fê-lo descer para Forungs, a grande cidade subterrânea situada nas proximidades do porto espacial.

Então o comandante passou a ser um entre muitos milhares.

 

Assim que acordou, Hendrik Vouner pôs a mão no ativador celular. Só depois disso olhou para o negociante. O velho observava-o num misto de medo e curiosidade. Vouner escondeu o ativador sob a blusa esfarrapada e levantou-se. Mesmo enquanto dormia profundamente, seu subconsciente sofrera com a idéia de que poderia perder o aparelho.

— Desamarre-me — pediu Darfass. — A circulação dos meus braços e pernas está completamente bloqueada.

Sem dizer uma palavra, Vouner dirigiu-se ao lugar em que estava o negociante. Soltou rapidamente a corda. Darfass moveu-se cautelosamente. Gemeu baixinho e pôs-se de pé, mas logo voltou a cair sobre a cadeira.

— Faça um pouco de massagem nas pernas — recomendou Vouner.

Darfass lançou-lhe um olhar odiento. O terrano pegou a lanterna e levantou-a. Iluminou o rosto do negociante, que fechou os olhos, ofuscado.

— É claro que o senhor viu o ativador, não viu? — perguntou Vouner.

Darfass protegeu o rosto com os braços. Alguns pouners acordaram e rosnaram, aborrecidos.

— Pretende matar-me por isso? — perguntou Darfass.

— Depende — respondeu Vouner, com um sorriso apagado. — Preciso de algumas informações.

Darfass pôs-se a massagear as coxas. Teve de inclinar-se bem para a frente, já que a barriga o perturbava.

— Faça suas perguntas terrano — pediu.

— Como devo fazer para chegar bem depressa à base do Império?

Darfass interrompeu o tratamento que estava dispensando às pernas dormentes e reclinou-se com uma expressão de incredulidade.

— A base do Império é em Doun — informou Darfass. — E Doun fica do outro lado do grande oceano.

Com esta Vouner não contara... A poucos quilômetros do campo de pouso, teve logo de descobrir que o lugar ao qual pretendia chegar era praticamente inatingível, pois ficava em outro continente! Fez um grande esforço para não deixar perceber a decepção.

— A que distância fica a costa? — perguntou.

Darfass levantou-se e desta vez continuou de pé.

— Não tente chegar a Doun. Será inútil.

— Existem navios no oceano?

— Não. Há apenas algumas embarcações esportivas no litoral. Com estas o senhor nunca conseguiria chegar a Doun.

Darfass ajeitou a manta e caminhou lentamente para uma jaula onde havia alguns pouners acordados.

— O tráfego para Doun é feito exclusivamente pelo ar — disse, falando por cima do ombro. — Em Pasch existe uma estação de transmissor de matéria para pessoas que têm muita pressa. O preço do transporte é elevadíssimo. Além disso as pessoas que querem utilizar este meio de transporte têm de apresentar prova de identidade.

Vouner contemplou suas vestes.

— Preciso de roupa nova — disse. — Pode fazer alguma coisa por mim?

Darfass fitou-o com uma expressão pensativa.

— Será que tenho algum motivo para isso? O senhor me maltratou sem motivo.

Vouner levantou a carabina.

— Posso obrigá-lo.

De repente Darfass tomou uma decisão.

— Eu o ajudarei a chegar a Pasch. Isso não passa de uma loucura, mas espero fazer um bom negócio.

Estas palavras despertaram imediatamente a desconfiança de Vouner, que fez a luz da lanterna incidir sobre o velho, a fim de examinar a expressão de seu rosto. Havia um sorriso astucioso no rosto de Darfass.

— Eu o acompanharei — disse em tom resoluto.

— Logo o senhor?! — exclamou Vouner, perplexo.

Provavelmente o negociante estava tramando alguma coisa. Vouner acompanhou cuidadosamente os movimentos do velho. Mas Darfass acenou despreocupadamente com a cabeça.

— Sem um guia experimentado o senhor nunca conseguirá chegar a Pasch.

Vouner apontou para o teto do recinto subterrâneo.

— Haverá de chegar a hora em que todo o planeta me caçará, pois alguns astronautas sabem que tenho o ativador. O senhor deve ter um motivo todo especial para expor-se a um risco tão grave.

Darfass acariciou o ventre. Lamentou-se de não ter nenhuma folha de morum para mastigar. No estado em que se encontrava, o suco dessa planta seria um bom estimulante.

— Foi justamente o risco que fez com que eu resolvesse acompanhá-lo — disse. — Espero que lhe aconteça alguma coisa.

— Dessa forma o senhor estaria em condições de apoderar-se do ativador — constatou Vouner. — Então é isso que lhe serve de estímulo...?

Darfass fez que sim. Completou as rações de comida de algumas das jaulas e disse:

— Se contra todas as expectativas formos bem-sucedidos, o senhor terá de pagar uma retribuição adequada.

Vouner fitou-o com uma expressão de desprezo.

— Provavelmente o senhor fará tudo que estiver a seu alcance para que isso não aconteça.

— É um risco que o senhor terá de assumir.

Duas ordens de idéias diferentes conflitavam na mente de Vouner. As suspeitas que nutria levavam-no a querer rejeitar a proposta do negociante, enquanto o raciocínio frio lhe recomendava que aceitasse o plano do negociante. As chances de chegar a Pasch ou até a Doun sem ajuda eram tão reduzidas que não tinha outra alternativa senão assumir o risco.

— Está bem — disse a contragosto. — Mas não se esqueça que ficarei sempre de olho no senhor. Encontrarei um meio de tomar minhas precauções para reduzir a possibilidade de ser traído. Assim que tiver de usar minha arma para defender-me, o primeiro tiro será disparado contra o senhor.

Darfass pegou um pouner e acariciou-o. O animal achegou-se ao seu peito e ronronou de satisfação. O negociante parecia a própria encarnação do gênio pacífico, mas seus olhos falavam uma linguagem diferente. Vouner não era bom psicólogo, mas sabia que a única coisa que interessava a Darfass era o ativador.

— Arranjarei roupas com as quais o senhor não chamará a atenção — disse Darfass, em meio aos seus pensamentos. — Talvez até consiga um documento de identidade que corresponda aproximadamente às suas características. Mas isso demorará um pouco, pois terei de agir com cuidado.

Vouner voltou a ficar desconfiado.

— Onde ficarei durante esse tempo? — perguntou.

— Aqui mesmo — disse Darfass, sorrindo. — Ninguém o encontrará neste subterrâneo.

— Ninguém me encontrará, enquanto não aparecerem os soldados que o senhor vai avisar.

O negociante voltou a colocar o pouner na jaula. Vouner esperou que dissesse alguma coisa, mas Darfass ficou calado. Vouner começou a perceber que estava em apuros. Estaria preso no subterrâneo, a não ser que conseguisse confiar um pouco no velho. O único objetivo que Vouner tinha em vista era chegar com o ativador celular à base do Império em Aralon.

— Vamos! — exclamou. — Arranje roupas e tudo mais que preciso.

Andando muito devagar, como se receasse que Vouner pudesse resolver outra coisa, Darfass passou pelo terrano e dirigiu-se à saída. Evitou o olhar para Vouner. Os pouners, que se encontravam nas jaulas rosnaram, deram mostra da decepção que lhes causava a retirada do dono.

— Ilumine aqui, para que possa ver o fecho — gritou Darfass, que já se encontrava na escada.

Vouner levantou a lanterna. A luz caiu sobre a figura corpulenta de Darfass. O alçapão foi aberto. Uma luz mortiça entrou no recinto. No mesmo instante, o negociante saltou para fora e fechou ruidosamente o alçapão.

Vouner correu escada acima e procurou forçar o alçapão com o ombro.

A saída fora trancada por Darfass. Numa raiva incontida, Vouner ergueu a carabina de radiações para libertar-se.

Nesse momento uma janelinha abriu-se. O rosto enrugado de Darfass surgiu na mesma.

— Pare de bancar o selvagem — gritou para Vouner. — Se não o prender, o senhor acaba por descontrolar-se e agir por conta própria.

Vouner tremia de raiva. O subterrâneo em que se encontrava era a armadilha ideal. Darfass fechou a janela e Vouner ouviu que ele se afastava. Os ruídos dos passos desapareceram a distância, mas logo voltaram. Darfass abriu o alçapão e desceu para onde estava Vouner.

— O que houve? — perguntou o terrano.

Darfass enxugou o suor da testa.

— O parque está cheio de soldados — informou. — Estão armados e carregam aparelhos de localização.

Vouner sentiu um frio na espinha. Não poderia sair dali. Seu rosto ficou desfigurado. Segurou a gola da manta de Darfass, que recuou.

— Estão à minha procura. Acabarão por entrar na loja.

Darfass abriu a boca, e o cheiro desagradável das folhas de morum atingiu Vouner.

— Solte-me! — Darfass respirava com dificuldade. — É claro que aparecerão na minha loja, mas não o encontrarão.

Vouner praguejou e soltou o velho.

— Poderá demorar alguns dias até que os soldados desapareçam — disse com a voz áspera.

Desceu a escada e sentou na cadeira. Darfass fitou-o com uma expressão assustada. No seu íntimo, Vouner lamentou-se do azar que o perseguia desde o momento em que pendurara o ativador ao pescoço. Até parecia que pesava uma maldição sobre o aparelho.

Vouner lembrou-se da ameaça proferida por Hefner-Seton. O ara profetizara que Vouner seria caçado sem descanso.

Ouviu Darfass sair novamente do recinto subterrâneo. Desta vez não fez menção de impedir a saída do negociante. Ficou sentado na cadeira, mergulhado em reflexões sombrias. Teve uma débil lembrança da hora em que decolará da Terra. Ao subir a bordo da Olira, sentira-se tranqüilo, confiante e esperançoso. E agora era um homem cheio de ódio, que não confiava em ninguém.

Acontecia que, naquele momento, carregava a imortalidade sobre o peito. Vouner tinha certeza de que, assim que chegasse à base, as coisas mudariam. A caçada à sua pessoa chegaria ao fim. Uma nave o conduziria à Terra, onde poderia levar sua vida de imortal. Era só esta idéia que o mantinha de pé.

Desta vez Darfass demorou bastante. Quando levantou o alçapão, o velho trazia no rosto um sorriso matreiro. Vouner esperou que se colocasse a seu lado.

— Falei com os soldados — disse com a maior calma.

— E daí? — perguntou Vouner, em tom nervoso.

— Qual é seu nome? — perguntou Darfass.

— Vouner — respondeu o terrano. — Hendrik Vouner.

O negociante sorriu, satisfeito.

— Os soldados estão à procura dos tripulantes da Kotark. Parece que nem sabem da existência do senhor.

Vouner fitou seu interlocutor com uma expressão de perplexidade. Esforçou-se para compreender totalmente o que acabara de ouvir.

— Quando a nave pousou só havia dois aras a bordo — disse em tom pensativo. — E estes devem ter relatado os fatos.

Darfass puxou uma caixa e acomodou-se.

— Conte toda a história — pediu. Vouner contou o que tinha acontecido depois da Olira ter caído sobre o segundo planeta de Velander. Contou que todos os tripulantes tinham encontrado a morte, enquanto ele, Vouner, que era o único sobrevivente, descobrira o ativador celular na selva daquele mundo. Depois disso pousou a nave dos aras. Após vencer grandes dificuldades, conseguiu enganar a tripulação. Obrigou os astronautas que haviam ficado na nave a levar a Kotark à Terra. Mas Hefner-Seton, comandante ara, conseguiu enganar o terrano e pousou em Aralon.

— Além de Hefner-Seton só havia o radioperador a bordo da nave — concluiu Vouner. — Como se explica que os soldados estejam à procura de toda a tripulação? Será que Hefner-Seton não lhes contou a verdade?

Darfass coçou o queixo. Parecia pensativo.

— A explicação é o ativador celular — disse depois de algum tempo. — Devemos partir do princípio que todos se sentem fascinados pelo aparelho.

Vouner recostou-se na cadeira. A tensão de que se sentia possuído diminuiu um pouco. Naquele instante pôde confiar no negociante. A consciência de não estar sob a pressão ininterrupta do perigo deixou o terrano mais aliviado.

— Hefner-Seton e o radioperador também fugiram — prosseguiu Darfass. — É sua única chance de conseguirem o ativador. Se os dois astronautas tivessem esperado, os soldados logo teriam arrancado a verdade deles. Dessa forma, todo o planeta se levantaria para sair à sua procura. Nesse caso, eu mesmo não poderia fazer nada pelo senhor. Acontece que Hefner-Seton também quer o ativador. Conclui-se que se escondeu em algum lugar. Procurará encontrar o senhor.

Isso parecia lógico. Vouner acreditou no que o negociante acabara de dizer. Com isso sua situação melhorava bastante, pois, a partir de agora, as pessoas que estavam atrás dele e do ativador também passariam a enfrentar certas dificuldades. Hefner-Seton e Sorgun teriam de ter cuidado com as equipes de busca. Darfass estava sob o controle direto de Vouner.

Darfass cruzou as mãos sobre o ventre. Seu rosto “amarrotado” parecia satisfeito.

— Vamos para Pasch — disse com um sorriso.

Vouner levantou-se. Havia um brilho estranho em seus olhos.

— Vamos para Pasch — repetiu com a voz áspera.

 

Dali a três dias, os soldados que andavam nas proximidades da loja de Darfass

retiraram-se. Por quatro vezes revistaram a loja. Todas essas vezes Vouner prendera a respiração, enquanto escutava as pisadas das botas. Sentir-se-ia aliviado se ouvisse Darfass arrastar os pés em direção ao alçapão e dizer: “Foram embora!”

A espera foi um verdadeiro martírio para Vouner. O fato de ele, um imortal, ter de passar os dias num subterrâneo escuro, justamente com centenas de animaizinhos barulhentos, causava-lhe grandes sofrimentos. Darfass trazia-lhe comida à vontade, mas Vouner estava tão nervoso que não comia com gosto. O negociante procurou ensinar-lhe o torguiche, mas a impaciência de Vouner era tamanha que os resultados foram insignificantes. Vouner caminhava ininterruptamente de um lado para outro. Parecia um animal enjaulado que não conseguia conformar-se com o ambiente em que se encontrava.

Finalmente Darfass desceu ao subterrâneo e disse:

— Já se retiraram do parque.

De um salto Vouner levantou-se da cadeira em que acabara de sentar. A expressão tensa havia desaparecido. Mas os olhos continuavam inflamados.

— Será que os soldados prenderam os dois aras? — perguntou.

— Em hipótese alguma — respondeu Darfass. — Os dois já devem ter encontrado um esconderijo. É muito difícil controlar os habitantes das cidades subterrâneas.

Vouner deu um pontapé na cadeira, fazendo-a cair.

— Finalmente podemos sair desta ratoeira.

Darfass ergueu os braços.

— Calma! — disse. — Vou arranjar umas roupas.

Vouner já havia compreendido que seria inútil discutir com Darfass. O negociante não se deixava demover da execução dos seus planos. Conhecia muito bem o mundo em que se encontravam, e por isso Vouner não tinha outra alternativa senão prestar atenção às suas palavras.

— Suba à loja — sugeriu Darfass. — De dia, nunca os fregueses aparecem.

Vouner preferiu continuar onde estava. Achava que era mais seguro ficar perto dos animais. Passaram-se mais dois dias, durante os quais o negociante quase sempre estivera fora de casa. Mais uma vez Vouner iniciou suas caminhadas nervosas pelo subterrâneo.

Ao ver Darfass descer pela escada, ficou curioso. O velho segurava uma trouxa. Atirou-a para Vouner.

— Tome — disse. — Eu trouxe para o senhor.

Vouner abriu a trouxa e encontrou uma estranha manta.

— O que é isso? — perguntou.

— Uma espécie de uniforme — respondeu Darfass. — Alguns institutos de pesquisas médicas dispõem de voluntários vindos de todos os planetas, que se colocam à disposição para as experiências. Essas pessoas são muito conceituadas. Entre elas existem alguns terranos. Todos usam este tipo de manta.

— Está bem — disse Vouner. — Acho que vai dar certo.

Tirou as vestes esfarrapadas e vestiu as roupas que Darfass acabara de trazer. Além da manta o negociante trouxera calças curtas e um par de sandálias de salto baixo. Uma fita para o cabelo e um cinto largo completava o quadro.

Vouner passou a mão aberta pela barba desgrenhada.

— Só falta eu tomar banho e fazer a barba.

Darfass fez um gesto convidativo em direção à escada.

— Lá em cima — disse. — Está tudo preparado.

Vouner passou por ele. A escada estalava enquanto o terrano subia por ela. Não acreditara que um dia pudesse conseguir sair daquele porão...

Darfass seguiu-o com os olhos. Seu rosto de velho parecia indiferente. A desconfiança do terrano já diminuíra. Com o tempo acabaria confiando cada vez mais em Darfass.

Quando isso acontecesse, deveriam estar chegando a Pasch.

E então Darfass desferiria um golpe implacável! O negociante subiu para a loja, atrás do terrano.

— Vai tirar o ativador enquanto estiver tomando banho? — perguntou. Hendrik Vouner respondeu que não.

 

Hefner-Seton esperou até que os robôs que guarneciam o carro atravessassem a estrada e desaparecessem entre os edifícios baixos dos depósitos. Depois disso desprendeu as placas de suporte do revestimento inferior do veículo, que era muito liso, e desceu ao solo. Saiu de debaixo do carro e olhou apressadamente em torno. Era de madrugada, e a estrada estava vazia.

O aspecto de Hefner-Seton estava mudado. Já não usava a manta típica dos astronautas. Suas vestes eram iguais às de qualquer cidadão de Aralon. Pintara o rosto. O ex-comandante da Kotark parecia ter envelhecido trinta anos.

Afastou-se rapidamente do veículo e atirou as placas de suporte no capim alto que crescia ao lado da estrada. Já não precisava delas. Percorrera no veículo robotizado a grande distância que o separava de Forungs, sem que os robôs tivessem notado a presença do passageiro clandestino.

A maior parte dos habitantes de Aralon vivia sob a superfície. As grandes cidades haviam sido construídas nas escavações subterrâneas. Só havia aras nos parques, que eram sempre grandiosos. Com isso tornara-se muito mais fácil para Hefner-Seton sair de Forungs sem que ninguém o percebesse. Entrara numa pequena agência de despachos e examinara os horários das viagens. Os veículos de carga só deslizavam sobre a superfície de noite, motivo por que nem havia necessidade de cautela muito grande. Ao anoitecer, antes que os robôs-motoristas entrassem no carro, Hefner-Seton se enfiara embaixo do veículo e se prendera ao mesmo com as chapas de suporte.

A viagem para Pasch não fora confortável. O veículo desenvolvia velocidade muito elevada e o vento frio fustigava o corpo do ara. Junto à costa haviam sido construídos gigantescos túneis de acesso, que por ocasião das inundações ou das ressacas eram fechados hermeticamente por meio de dispositivos eletromagnéticos.

Pasch também podia ser alcançada por quem vinha do interior. Gigantescas vias de acesso desciam abaixo da superfície. O solo que cobria Pasch lembrava uma enorme peneira, e cada furo desta representava uma entrada ou uma saída. Em tempos remotos, Pasch fora a cidade mais poderosa de Aralon. Os arrojados navegantes que a habitavam dominavam o continente e construíram bases em todos os pontos do litoral. Mas, com a disseminação de tecnologia moderna, Pasch perdera a hegemonia político-militar. Quando a indústria aeronáutica criou aperfeiçoamentos cada vez melhores, Pasch até perdeu a primazia na área comercial. O transporte de cargas por foguete era mais rápido que o realizado por água.

Pasch continuava a ser uma grande cidade, mas o movimento de negócios entorpecera. Seus habitantes pareciam sonhar com os tempos passados. Um grande transmissor de matéria deveria ter consolidado a posição que a cidade já desfrutara, mas havia outras cidades que também dispunham de um ou dois aparelhos desse tipo.

Pasch perdera muito do seu antigo fascínio. A cidade nunca deixaria de existir, mas jamais voltaria a alcançar a prosperidade humana que desfrutara no passado. Atualmente o comércio era dominado por cidades como Forungs, que possuíam portos espaciais próprios.

Hefner-Seton subiu numa das fitas transportadoras que levavam para as profundezas. O túnel estava iluminado. Cartazes eleitorais estavam grudados nas paredes. Por aqueles dias Pasch deveria escolher seus dirigentes. Hefner-Seton contemplou as placas coloridas com uma expressão de indiferença. Para ele, os nomes escritos nas mesmas não significavam nada. O túnel levava até a periferia da cidade. Ao notar que a barreira estava fechada, o ara ficou espantado. O ex-comandante viu dois robôs reluzentes à sua frente.

Hefner-Seton não teve outra alternativa senão saltar da fita transportadora. O robô mostrou-lhe sua placa de identificação.

— De onde vem? — foi a pergunta estereotipada.

Hefner-Seton refletiu instantaneamente. Por certo os setores competentes de Forungs haviam enviado certas informações a Pasch. Qualquer pessoa suspeita que chegasse a Pasch seria submetida a um controle rigoroso. Hefner-Seton aspirou fortemente. Se não conseguisse convencer os dois robôs de que era um elemento inofensivo, a situação se tornaria bastante crítica.

— De Hosool — respondeu com a maior tranqüilidade.

— Documentos — rangeu a voz do robô.

As chances de Hefner-Seton estavam desaparecendo.

— Por quê? — perguntou. — Não tenho.

O outro robô aproximou-se. Segurou o ara pelo braço.

— Sinto muito — disse o robô, com uma delicadeza mecânica. — O senhor terá de submeter-se a um controle.

Hefner-Seton lançou um olhar ansioso para o outro lado da barreira. Pôs-se a revirar o bolso com a mão livre.

— Ah! — disse, fingindo-se de aliviado. — Aqui está!

Tirou um pedaço de papel velho e, fingindo um descuido, deixou-o cair sobre a fita transportadora. A folha de papel afastou-se rapidamente. A pressão no braço do ara cessou. Os dois robôs correram atrás do falso documento.

O ara deu dois saltos, alcançou a barreira e a transpôs. As primeiras casas estavam bem perto. Procurou não ser alcançado pela luz das lâmpadas. Continuou a correr.

Os robôs haviam caído no seu truque, porque seus cérebros positrônicos não podiam reagir com a necessária rapidez a uma conduta arbitrária como esta. Hefner-Seton alcançou a primeira casa. Estava com a respiração entrecortada. Ainda não estava em segurança.

Dali a alguns minutos, a folha de papel iria parar nas mãos de um alto funcionário. E, daí em diante, toda a cidade de Pasch se transformaria num posto de controle.

O papel que Hefner-Seton usara como documento de identidade era um velho recibo de carga da Kotark.

 

Na manhã do dia da partida, Darfass parecia mal-humorado pela primeira vez. Seu rosto zangado apareceu na abertura que levava ao porão. Vouner desconfiou de que era a preocupação com os pouners que deixava o velho tão aflito.

— O senhor tem de sair daí — disse Darfass.

Vouner fitou-o com uma expressão indagadora.

— Um conhecido meu cuidará da loja durante minha ausência — disse Darfass. — É preferível que não o veja. Vá ao parque. Irei dentro de alguns minutos.

Vouner pegou a pequena carabina de radiações. A arma que tirara de Sorgun, no interior da Kotark, estava escondida em seu cinto.

— Deixe isso — pediu Darfass, apontando para a carabina. — Ninguém anda com uma coisa dessas pelo parque.

O terrano parecia indeciso. Segurou a arma que tantas vezes lhe salvara a vida. Não gostaria de separar-se dela. Muito triste, descarregou-a e entregou-a ao negociante. Darfass lançou um olhar zangado para a munição que Vouner segurava.

— Ainda está desconfiado, não está? — perguntou em tom furioso.

Vouner não respondeu. Enfiou a carga no bolso. O velho desapareceu com a carabina. Vouner saiu do subterrâneo. Parou junto ao balcão e olhou para o parque. O dia estava amanhecendo. Não havia ninguém por perto.

— Vá até aquela árvore grande e espere por mim — disse Darfass.

— Nada de tolices — advertiu Vouner. Darfass fez um gesto de pouco-caso. Vouner afastou a cortina de veludo e retirou-se da loja. Uma lufada de ar puro atingiu-o. Sentiu-se forte e repousado. Aqueles dias de descanso lhe haviam feito bem. O chão parecia vibrar sob os seus passos. As solas de suas sandálias-sapato fazia ranger as pedrinhas ornamentais. Ouviu o ruído de uma espaçonave que decolava, vindo do porto espacial. Será que o veículo se dirigia ao Sistema Solar?

Vouner olhou para trás e viu uma figura encapuzada entrar na loja. Provavelmente era o substituto do velho, que por algum motivo desconhecido não queria aparecer em público. Darfass parecia ser um personagem bastante duvidoso. A simples existência dessa birosca na superfície era um mistério. Mas estes problemas não diziam respeito a Vouner. Seu objetivo consistia em chegar a Pasch, e depois a Doun.

Parou junto à grande árvore. A manhã era bastante fresca. Vouner bafejou as mãos para esquentar-se.

Depois de algum tempo Darfass apareceu na porta da loja, olhou rapidamente para os lados e foi caminhando em direção ao parque. O velho não podia andar muito depressa. Se tivesse de fugir, representaria um estorvo.

Quando chegou ao lugar em que estava Vouner, Darfass fungava.

— O que houve? — perguntou o terrano. — Não está mais acostumado a andar?

— Sou um velho — respondeu Darfass, irritado.

Apontou a direção e Vouner seguiu-o imediatamente. O parque subia por uma encosta suave. Em toda parte viam-se chafarizes e pedras revestidas de mosaicos.

— O senhor tem algum veículo que possa levar-nos para Pasch? — perguntou Vouner.

— Não. Seria muito perigoso.

Vouner parou, contrariado.

— Como pretende chegar a Pasch? — indagou.

— A pé — respondeu Darfass, em tom seco.

Vouner não pôde deixar de rir ao olhar para o velho que lhe dizia com a maior tranqüilidade que pretendia caminhar por mais de uma semana.

— Dentro de quatro dias estaremos em Pasch — disse Darfass.

— Mas...

Vouner ficou perplexo. Darfass fez um gesto para que ele se calasse.

— Controle suas energias — recomendou. — Se não agüentar até o fim, será uma tragédia.

Havia um tom de desafio na voz do velho.

— Pretende realizar uma competição? — perguntou.

— Um velho não é muito rápido na corrida — disse Darfass em tom calmo. — Em compensação, às vezes... tem muita resistência.

Quando o parque já tinha ficado bem para trás, Kesnar, o pequeno sol amarelo, subiu acima das árvores. As brumas começaram a desvanecer-se. Sem dizer uma palavra, Darfass caminhava à frente do terrano, arrastando os pés. Era uma forma de locomoção que parecia pesada, mas quase não exigia nenhum consumo de energia...

Vouner já sentia dores lancinantes nas barrigas das pernas. Estavam caminhando por uma extensa área, coberta de areia vermelha. Não viam nada, com exceção de alguns marcos que apontavam a direção do parque mais próximo.

Ao anoitecer, o último acesso de Forungs já havia ficado bem para trás. As primeiras estrelas começaram a cintilar no céu, mas Darfass continuava a caminhar. Entraram em outro parque. Viram uma cabana de pedra destinada a embelezá-lo. Passariam a noite no interior da mesma. Darfass preparou uma refeição ligeira.

Vouner sentia-se cansado. Encostou-se à parede. Tirou as sandálias. Ao que parecia, a marcha forçada não afetara Darfass. Comeram sem trocar palavras.

Finalmente Darfass resmungou e passou a mão pela boca.

— Chegamos mais longe do que eu esperava — disse.

Vouner enfiou os pés nas sandálias-sapato e levantou-se.

— Tenho de revistá-lo — disse.

O velho fitou-o com uma expressão zangada.

— O que é isso? — perguntou.

— Dormiremos juntos nesta cabana — disse Vouner. — O senhor teve oportunidade para conseguir uma arma. Vamos logo! Levante-se!

Darfass praguejou e pôs-se de pé. Vouner revistou cuidadosamente as vestes do mercador. Encontrou uma minúscula pistola e um punhal de lâmina dobrável.

— O senhor está atrás do ativador — gritou o terrano fora de si. — Diz que quer ajudar-me, mas já está planejando meu assassinato.

Pegou a arma de radiações de Sorgun e apontou-a para Darfass.

— Vamos! Atire! — disse Darfass, com a maior tranqüilidade. — O senhor nunca chegará a Pasch.

As paixões e a voz do instinto começaram a dominar Vouner, que costumava ser um homem ponderado. A imortalidade, que pretendia conservar, custasse o que custasse, produzira uma modificação total em sua mente. Esbofeteou o comerciante. Antigamente sentiria repugnância diante de um ato como este.

Darfass recuou cambaleante. Encostou-se à parede e lançou um olhar odiento para o terrano. Vouner tremia. Os únicos sentimentos que provocava onde quer que estivesse eram o ódio, sempre o ódio, e a inveja. Jamais seria capaz de encontrar um verdadeiro amigo. Mas isso não importava, desde que conseguisse salvar a imortalidade.

— O senhor me levará para Pasch — disse Vouner com a voz rouca. — Esta arma sempre estará apontada para suas costas.

Mandou que o negociante se deitasse e amarrou-o.

— Não quero que o senhor fique rastejando por aí de noite — disse em tom odiento.

Vouner dormiu mal. Várias vezes acordou sobressaltado, acreditando que Darfass quisesse subjugá-lo. Mas o velho dormia tranquilamente. Vouner era agitado por sonhos horríveis. O ativador era o centro de todos eles.

Quando surgiu o crepúsculo que anunciava o amanhecer, Vouner ficou feliz. Acordou Darfass e desamarrou-o. O frio da noite enrijecera as juntas dos dois homens. Espreguiçaram-se para aquecer o corpo.

Vouner comeu sem muita vontade um pouco das provisões que haviam trazido. Depilou os fios de barba com uma pomada e voltou a colocar a fita que lhe prendia o cabelo.

Darfass não disse uma palavra. O tapa bem aplicado fizera inchar seu lábio superior. Vouner não se arrependera. Qualquer pessoa que quisesse apoderar-se de seu ativador teria de contar com uma forte reação. Concluíram a higiene matutina primária e saíram da cabana.

Levaram toda a manhã andando pelo parque que parecia não ter fim. Darfass caminhava à frente de Vouner com o semblante fechado. Encontraram-se com algumas pessoas, mas ninguém lhes dirigiu a palavra. Vez por outra olhavam curiosos para Vouner, mas a manta que este usava parecia explicar tudo. Encontraram-se com um grupo de soldados, mas estes não demonstraram o menor interesse por eles. Aos poucos, Vouner foi ficando mais tranqüilo.

— Vamos fazer uma pausa? — perguntou em tom apaziguador.

Sentaram-se num banco. Darfass observava os pássaros que mergulhavam num chafariz próximo, enquanto Vouner comia alguma coisa. Um animal que não era maior que um esquilo terrano aproximou-se, à procura de restos da comida de Vouner. Este lhe deu um pontapé. O animal afastou-se, soltando assobios apavorados.

— Por que fez isso? — perguntou Darfass.

— Não gosto de animais — respondeu Vouner.

Na Terra, ele não era assim. Acontece que naquele tempo ainda não possuía nenhum ativador celular. O animal ficou sentado a alguns metros de distância e lhes lançava olhares assustados. O medo e a fome lutavam em seu pequeno cérebro. Darfass atirou-lhe algumas migalhas.

Vouner bateu em sua mão.

— Não faça isso! Darfass fitou-o de lado.

— O senhor vive só para si, terrano — disse. — Trancou-se para tudo que acontece ao seu redor.

Vouner lançou um olhar odiento para o animal que comia. Não suportava mais aquele quadro.

— Vamos andando — decidiu.

Seus olhos ardiam e os músculos da face salientaram-se. Esperou impaciente que Darfass levantasse.

No fim da tarde haviam percorrido o gigantesco parque. Chegaram a uma densa floresta, cortada por trilhas estreitas, mas bem cuidadas.

Darfass parou. Tirou um relógio da manta e constatou:

— Chegaremos a Pasch no tempo previsto.

 

Hefner-Seton comprimiu o corpo contra a casa e ficou à espera de uma vítima. As grandes lâmpadas do teto estavam desligadas. Só havia algumas luzes de segurança acesas. O ara escolhera a rua do canal. A maioria dos habitantes de Pasch dormia. Vez por outra alguém andava pelas ruas desertas. Hefner-Seton tivera de desviar-se continuamente das patrulhas e dos grupos de controle, mas conseguira chegar à área costeira. Precisava com urgência de outras roupas, pois os dois robôs por certo haviam fornecido uma descrição minuciosa de sua pessoa.

O homem que lhe forneceria essas roupas aproximou-se lentamente. Hefner-Seton sentiu o concreto frio nas costas. Estava cansado e com fome. Não dormia nem comia desde o momento em que chegara a Pasch, ao amanhecer.

O ara passou sem ver a sombra que se comprimia junto à casa. Hefner-Seton deu um salto e com um golpe abateu o homem. Revistou-o. Encontrou algum dinheiro e duas entradas para um concerto espacial. Havia um documento de identidade, dois comprimidos de concentrado de vitamina e um título de eleitor num bolso lateral.

Tirou rapidamente as vestes do homem inconsciente e colocou-as em seu corpo. Depois enfiou a vítima em suas vestes. O ara reprimiu um princípio de escrúpulos. Já não havia como recuar. Se fosse preso, um tribunal o condenaria à morte... ou, o que seria pior, ao degredo num planeta-penitenciária.

Ninguém perturbou a ação criminosa de Hefner-Seton. Quando esta terminou, levou o homem inconsciente ao canal e empurrou-o para dentro do mesmo. O assassino viu o corpo bater n’água. Enojado, Hefner-Seton franziu a testa. Será que o ativador celular justificava um ato destes?

O ara virou-se abruptamente e saiu andando. Abandonou a rua do canal e voltou ao centro da cidade. Com as vestes que trazia no corpo não provocava tantas suspeitas. Procurou um hotel barato e entrou.

Teve de tocar a campainha quatro vezes antes que surgisse um robô de serviço. O setor de fala estava defeituoso. O robô não conseguia pronunciar o R. Entregou uma chave magnética a Hefner-Seton.

— Faça o favo de usa o elevado — disse. — O quato o senho pode abi com esta chave fica no teceio anda.

Não perguntou de onde vinha o ara nem lhe pediu documentos. Hefner-Seton chegou ao quarto sem que houvesse qualquer incidente. Era pequeno e imundo. O ara aproximou-se do interfone.

— Gostaria de comer alguma coisa — disse.

— Já vou sevi — respondeu o robô, com uma rapidez surpreendente.

Antes que Hefner-Seton tirasse a roupa, um outro robô entrou com um prato cheio de biscoitos.

— Quer tomar alguma coisa?

— Não — respondeu o ara. — Dê o fora!

Assim que se viu só, estendeu-se na cama suja. Por enquanto estava em segurança. Comeu um pouco e logo adormeceu. Na manhã do dia seguinte, o robô defeituoso trouxe-lhe o café miserável. Hefner-Seton pagou uma conta vergonhosamente elevada e saiu do hotel. Mergulhou por entre a multidão que andava pelas ruas. Seu objetivo continuava vivo em sua mente. Não se apressou. Sempre que via uma patrulha, entrava numa loja e contemplava as mercadorias expostas. Assim que o perigo passava, saía e prosseguia em sua caminhada.

Antes de chegar aos túneis que levavam ao mar, o ara sentiu o cheiro da brisa marítima. O número de edifícios diminuía. Hefner-Seton resolveu assumir um risco. Saltou para cima de uma fita transportadora. Chegou sem nenhum incidente à entrada do túnel. Não viu barreiras nem soldados. Os táxis corriam velozmente de um lado para outro e suas buzinas estridentes abafavam os outros ruídos. Hefner-Seton entrou no túnel. Estava fortemente iluminado. Em toda parte viam-se cartazes de propaganda eleitoral. Certo candidato pedia votos com os olhos que brilhavam numa projeção tridimensional e uma boca móvel, que proferia promessas bem audíveis.

Ninguém lhe poderia prometer a imortalidade; teria de lutar por ela. Um aspirador robotizado passou pelo túnel, a fim de remover a umidade que se formava ininterruptamente. Hefner-Seton esperou que o veículo ruidoso se afastasse. Atrás dele vinham três homens com vestes típicas de astronautas. Ao que parecia, estavam passando férias naquele lugar. Hefner-Seton não os conhecia, mas seu aspecto provocou certas recordações em sua mente.

Sacudiu os pensamentos sombrios e prosseguiu. Um homem muito velho, todo curvo, aproximou-se lentamente. Estendeu a mão para mendigar alguma coisa. O ara contornou-o. Ouviu uma praga às suas costas.

O túnel levava diretamente ao mar.

Ao sair do mesmo, Hefner-Seton viu a praia a cinqüenta metros dali. Uma fileira de construções pequenas estendia-se paralelamente à costa. Eram construções muito simples, parcialmente destruídas pelas águas do mar sempre que havia alguma catástrofe natural.

O ara viu, ancoradas longe da costa, as embarcações. Saltitavam sobre as ondas como se fossem bolinhas azuis. Um vento forte soprava do mar. Um pequeno barco de pesca encostou no cais de pedra.

Pasch já possuíra o maior porto de Aralon, mas atualmente não se via mais o menor sinal do mesmo. A costa parecia uma visão de tempos idos.

Hefner-Seton dirigiu-se a um homem que usava a manta amarela dos guardas-costeiras.

— Quero alugar um barco — disse. — Com quem devo falar?

O homem mal olhou para ele. Apontou para uma das cabanas que ficavam junto à praia.

— Está vendo aquela placa redonda?

— Obrigado — respondeu o ara e seguiu seu caminho.

Chegou à cabana com a placa redonda. O vento sacudia as janelas, e um pedaço de plástico solto batia no telhado. Hefner-Seton abriu a porta. Sentiu um calor agradável.

Um velho estava sentado num banco e batia com um martelo num remo à sua frente, sobre uma mesa. Quando Hefner-Seton entrou, levantou-se.

— Sempre há alguma coisa quebrada nestes barcos — disse o velho com a voz tranqüila. — A maior parte das pessoas não sabe lidar com eles.

Em comparação com as instalações complicadas da Kotark, a oficina parecia muito rudimentar.

— Sou astronauta — disse Hefner-Seton em tom orgulhoso, mas logo mordeu o lábio.

Não usava o traje típico dos astronautas. Acabara de cometer um erro. Contudo o velho não reagiu às suas palavras.

— Faça o favor de sentar — disse.

— Quero alugar um barco — anunciou o ara alto.

O homem interrompeu o trabalho e lançou os olhos para o mar agitado.

— Caramba! — disse em tom de elogio. Hefner-Seton começou a ficar nervoso.

Tirou do bolso parte do dinheiro que possuía e colocou-o sobre a mesa. O alugador de barcos interrompeu o trabalho e fitou Hefner-Seton de frente.

— Daqui a pouco chegará um amigo meu — disse o astronauta. — Pedirá um barco para alugar. — Forneceu uma descrição ligeira de Hendrik Vouner. — Faça o favor de me avisar assim que aparecer aqui. Quero fazer-lhe uma surpresa. Não sabe que estou aqui.

— Quer sair num barco juntamente com ele?

— Quero — confirmou o comandante, que nunca mais dirigiria uma espaçonave. — Onde posso esperar até que ele chegue?

O velho levantou-se e apertou a mão de Hefner-Seton.

— Meu nome é Kler-Basaan — disse. — Pode ficar ali.

Apontou para um aposento vizinho.

— Combinado — disse Hefner-Seton, em tom de alívio.

Kler-Basaan sorriu.

— O número das pessoas que se interessam pela pesca e pelas viagens marítimas é cada vez menor — disse em tom triste. — Fico muito satisfeito pelo senhor ter vindo.

Hefner-Seton confirmou com um gesto. Podia dar-se por satisfeito. Por enquanto estava a salvo das pessoas que pretendiam agarrá-lo. E conseguira armar a cilada para Vouner. Antes da chegada do terrano, ele, Hefner-Seton, teria de arranjar uma arma.

As chances do homem que possuía o ativador chegar a Pasch não eram muito grandes, mas o terrano provara ser um homem corajoso e persistente. Hefner-Seton achou-o capaz de muita coisa. Para Vouner só havia um caminho que levava para Doun: o mar.

Antes de atingi-lo, Hefner-Seton faria com que perdesse a vida e o ativador celular. O rugido do vento e o barulho das ondas fizeram o ara estremecer.

Aquela visão parecia transmitir um pouco da imortalidade que estava procurando.

Kler-Basaan fitou seu hóspede com uma expressão de espanto. Nunca vira um homem que se sentisse tão fascinado pelo mar selvagem!...

 

— Olhe as barreiras! — gritou Vouner fora de si. — Estão ocupadas.

Darfass segurou-o e puxou-o para dentro de um nicho que ficava junto à fita transportadora.

— Será que o senhor ficou louco? — cochichou. — Se berrar desse jeito, eles cairão em cima de nós.

Vouner recostou-se. Respirava pesadamente. A visão da entrada da cidade guarnecida por robôs deixara-o louco. Felizmente percebera em tempo e saltara da fita transportadora.

— Como faremos para entrar em Pasch? — perguntou em tom de desespero.

— Não poderemos entrar por aqui — disse Darfass. — Pense um pouco em vez de bancar o doido.

A entrada da cidade subterrânea por eles escolhida era igual a muitas outras. Havia duas fitas transportadoras, uma que subia e outra que descia. Uma amurada de três metros de altura separava as duas faixas, a fim de evitar acidentes. Quem viesse de cima só poderia voltar depois de ir até o fim e mudar de faixa no lugar adequado.

Bem à frente dos seus pés a fita deslizava em boa velocidade. O nicho mal dava para duas pessoas. Viram que os robôs que se encontravam junto às barreiras controlavam todas as pessoas que queriam entrar na cidade.

— Para mim não há problema. Posso entrar em Pasch quando quiser — disse Darfass. — Meus documentos estão em ordem. Mas não há como fazer o senhor passar pela barreira.

— Temos de voltar e procurar outro caminho — disse Vouner.

Darfass fez um gesto irônico para a fita transportadora.

— Voltar... como? — perguntou.

— Temos de chegar à outra faixa — disse Vouner em tom resoluto. — Não temos alternativa.

— Não possuo vocação para suicida — recusou-se Darfass.

Vouner não respondeu. Saiu do nicho e saltou sobre a fita que deslizava velozmente. Mal-e-mal conseguiu manter o equilíbrio. Deu alguns passos em direção ao outro lado da fita, correndo sempre o perigo de levar uma queda. Pouco lhe importava que Darfass o seguisse ou não. Encontrava-se na entrada de Pasch e não precisaria do velho para entrar na cidade.

A fita transportadora levou-o em alta velocidade em direção à barreira. Teria de agir antes de despertar a atenção dos robôs. Vouner impeliu o corpo com ambas as pernas. Por um momento pairou no ar. O impulso transmitido pela fita quase o fez girar. Finalmente suas mãos seguraram as travessas da amurada que separava as duas faixas. Encontrou um apoio para os pés. Iniciou a escalada. A amurada era firme. Olhou para o lado e a alguns metros de distância viu Darfass subir com a agilidade de um macaco.

Chegaram ao lado oposto. Quando se encontrava a um metro de altura, Vouner saltou sobre a fita transportadora. Caiu e foi arrastado. Teve de fazer um grande esforço para girar o corpo. Viu o negociante saltar de cima da amurada. Darfass deu uma cambalhota, rolou quase até a outra extremidade da fita e ficou deitado imóvel.

Dois aras que estavam de pé nas proximidades aproximaram-se, preocupados.

Vouner pôs a mão sobre a arma que trazia embaixo da manta. Um dos dois homens disse-lhe algumas palavras em torguense. Ao ver Darfass levantar e saltitar em sua direção, Vouner sentiu-se aliviado. Parecia que o velho já usara muitas vezes as fitas transportadoras, pois sabia arranjar-se perfeitamente sobre elas.

Darfass dirigiu-se aos dois aras e falou com eles em torguense. Vouner contemplou a cena com uma expressão de desconfiança. De repente os dois desconhecidos começaram a rir. Vouner sentiu que o motivo do riso era ele mesmo.

Conversaram animadamente com Darfass, até atingirem o ponto final da fita, onde esta passava a deslizar na direção oposta, depois de passar pelo rolo de inversão.

Os aras despediram-se de Darfass e fitaram Vouner com uma expressão amável. Este respondeu com um aceno de cabeça. Parecia contrariado.

— O que andou contando a eles? — perguntou a Darfass, depois que os aras se haviam afastado em outra direção.

O negociante manteve um silêncio obstinado. Vouner desistiu.

— Como faremos para entrar na cidade? — perguntou.

— Em todas as entradas as barreiras devem estar guarnecidas — respondeu Darfass.

Vouner voltou a sentir a mesma impaciência de antes.

— O que podemos fazer?

Darfass sacudiu lentamente a cabeça.

— Acho que será preferível voltarmos a Forungs e esperarmos até que as barreiras sejam liberadas. Normalmente não costuma haver nenhum controle.

— Para Forungs? Nunca! — exclamou Vouner, em tom exaltado. — Agora que chegamos a Pasch não vamos desistir.

Darfass fitou o terrano com uma expressão pensativa.

— Sabe nadar? — perguntou.

Vouner respondeu que sim.

— Perto da costa existe uma entrada que fica submersa. Desabou há alguns anos, e depois disso foi fechada ao público. Talvez consigamos passar por lá.

— Vamos tentar — respondeu Vouner, resoluto.

O negociante olhou para o relógio.

— Chegaremos à entrada ao anoitecer. Isso nos favorece.

Vouner viu-se dominado pela mesma inquietação que sentira no momento em que encontrara o ativador celular. A cada dia que deixava passar inutilmente crescia a probabilidade de Hefner-Seton ou Sorgun serem presos. Os aras conseguiriam arrancar a verdade deles. E, alguns minutos depois, teria início a grande caçada a Hendrik Vouner.

Doun! O nome parecia encerrar uma promessa. Vouner pôs a mão no ativador. Era um movimento que costumava repetir praticamente a cada hora que passava. O aparelho continuava no mesmo lugar, e uma corrente tépida parecia fluir dele.

Face à imortalidade proporcionada pelo ativador, as canseiras, os perigos e as lutas perderiam o significado.

 

A previsão de Darfass fora correta. Quando começou a escurecer, chegaram a um pequeno parque. Em toda parte havia placas de advertência. Nelas as pessoas eram prevenidas em torguense e intergaláctico de que não deveriam prosseguir. O perigo de desmoronamentos estava em toda parte.

— Estas placas só servem para evitar que as crianças entrem no túnel desabado — disse Darfass.

Continuaram. O solo nu estendia-se à sua frente. Havia instalações em ruínas que estavam cobertas por ervas rasteiras. Vouner reconheceu no crepúsculo um chafariz semidestruído, de cujos destroços saía um filete de água.

Passaram por cima de montões de terra. Vouner admirou-se de que o negociante conhecesse tão bem o local. A escuridão era quase completa. Mas Darfass parecia conhecer perfeitamente o caminho, pois movia-se com a segurança de quem morava pelas redondezas. Passaram por outras placas, mas a escuridão não permitia que Vouner lesse o que estava escrito nestas.

Finalmente chegaram a uma entrada parcialmente obstruída. Era apenas um buraco escuro. Darfass soltou um assobio.

— Não há ninguém por aqui — disse depois de aguçar o ouvido.

Naquele momento, Vouner tinha certeza de que o negociante já conhecia essa passagem há bastante tempo. Provavelmente era utilizada nos seus escusos negócios.

— Fique bem perto de mim — disse Darfass. — O que temos pela frente não é nenhuma brincadeira.

Entraram no túnel. Vouner viu que o solo se tornava cada vez mais mole. Sentiu o cheiro de mofo e umidade. Começou a esfriar.

— Precisamos de luz — cochichou o terrano.

— Que nada! — respondeu a voz de Darfass, saída da escuridão. — Siga-me.

Vouner tirou a arma de radiações que trazia no cinto. Não queria ser surpreendido pelo velho no meio da escuridão. O velho parecia ter interpretado corretamente o movimento, pois disse com uma risadinha:

— Não se preocupe, Vouner.

Depois de algum tempo, um pedaço da antiga fita transportadora travou seus passos. Darfass parou. Vouner sentiu que suas mãos estendidas tocavam em metal.

Darfass praguejou furiosamente.

— Parece que andaram explodindo alguma coisa — disse. — Tomara que consigamos prosseguir.

Vouner rastejou para cima da fita transportadora destruída, mantendo-se atrás do negociante. Dali em diante teria de confiar exclusivamente na capacidade de orientação do ara. De repente ouviu o ruído da água.

— Cuidado! — gritou Darfass. — Nossos problemas vão começar.

Vouner escorregou por um trecho em declive. Suas pernas mergulharam na água. Só quando já tinha mergulhado até os quadris, conseguiu apoiar os pés.

— Daqui a pouco a profundidade vai aumentar — disse Darfass.

Vouner ouviu-o sair nadando. Prendeu a arma de radiações o melhor que podia na fita do cabelo e deixou-se escorregar para as águas profundas. Darfass resfolegava que nem um hipopótamo. Vouner orientou-se pelo ruído. Nadava calmamente, num ritmo constante. De repente uma débil luminosidade penetrou no túnel. Acima deles havia um buraco pelo qual passava a luz das estrelas. Vouner não viu muita coisa, apenas a superfície reluzente da água e os contornos sombreados dos objetos que o cercavam.

Os ruídos provocados pelos movimentos do negociante cessaram. Vouner deixou-se arrastar um pedaço. Movia apenas as pernas para manter-se na superfície.

— Darfass! — gritou.

Tudo continuou em silêncio. Será que o velho morrera afogado? Ou teria ele armado uma cilada?

Vouner sentiu raiva. Se não pudesse contar com os conhecimentos do velho, estaria irremediavelmente perdido ali embaixo. Preferiu não chamar de novo, pois com isso revelaria sua posição.

De repente sentiu chão firme sob os pés. Parou um instante e foi saindo da água. As mãos apalparam a saliência de um objeto metálico. Segurou-se na mesma. As vestes molhadas pendiam pesadamente em seu corpo. Tremia de frio.

Seu instinto lhe disse que havia alguém por perto. Conteve a respiração, e a única coisa que ouviu foi o ruído dos pingos que caíam de suas vestes. Vouner pôs a mão na arma de radiações, para soltá-la da fita de cabelo.

Naquele momento levou uma terrível pancada na nuca. A força do golpe fê-lo perder o apoio dos pés. Cambaleou e voltou a cair na água. A dor quase lhe roubou os sentidos. Procurou respirar afobadamente A água penetrou no nariz e na boca, quase o sufocando. Debatendo-se furioso, voltou à superfície. Naquele momento alguém atirou-se sobre ele e puxou-o pela corrente do ativador celular. Vouner debatia-se que nem um louco. Atingiu um corpo, sentiu o tecido sob as mãos e agarrou-se ao mesmo.

— O senhor nunca mais sairá daqui — gritou Darfass e tentou empurrá-lo para a água.

Dores insuportáveis fustigavam o corpo de Vouner. Por pouco não perdeu os sentidos. Apesar de tudo manteve-se agarrado ao negociante. Por algum tempo travaram uma luta encarniçada. Finalmente Darfass perdeu o apoio e escorregou para dentro da água.

Vouner segurou o pescoço do velho. O velho fungava e resfolegava. Totalmente exausto, Vouner apertou o pescoço de Darfass com ambas as mãos. A arma de radiações mergulhara na água.

— Pare com isso! — conseguiu dizer Darfass, a muito custo. — Solte-me.

Vouner aliviou a pressão dos dedos. Os dois saíram da água, ofegantes, e caíram ao chão.

— Sem dúvida o senhor pensava que este era o momento adequado de roubar o ativador celular — disse Vouner, cheio de ódio.

— O senhor não sairá vivo daqui — voltou a ameaçar Darfass.

— Por causa do ativador o senhor quis-me matar.

Vouner pareceu nem ter ouvido as palavras do outro.

— Ainda o conseguirei para mim — disse o negociante, numa fala entrecortada.

Depois disso ficaram deitados por algum tempo, enquanto a água pingava de suas roupas. Finalmente Vouner conseguiu reunir forças suficientes para. levantar-se e dar um pontapé no velho.

— Vamos — disse. — A viagem prosseguirá.

Darfass procurou resistir, mas Vouner ergueu-o à força. O negociante defendeu-se como pôde, e os dois voltaram a lutar. Darfass parecia enxergar na escuridão, pois constantemente atingia Vouner. De repente mergulhou por baixo do terrano e desapareceu na escuridão.

Sua voz — vinda não se sabia de onde — disse:

— Aqui o senhor morrerá de fome, terrano.

Vouner teve a impressão de que as dores na nuca amorteciam qualquer outro sentimento. Saiu correndo, com a mente revolta. Teria de contar a qualquer momento com um novo ataque do velho.

Por algum tempo conseguiu avançar rapidamente, pois a fita transportadora marcava o caminho. Mas, depois de algum tempo, ela voltou a mergulhar num lago subterrâneo. Vouner parou.

Ouviu-se uma risada de deboche, vinda do túnel. O eco repetido várias vezes desabou sobre Vouner.

Era Darfass!

Estava prosseguindo na guerra de nervos contra Vouner. Este verificou a corrente do ativador. A mesma não fora afetada pela luta. Mais tranqüilo, Vouner entrou na água. No lugar em que se encontrava, era gelada. Ouviu-se um leve borbulhar. Parecia que a água passava por um pequeno orifício. Vouner continuou a nadar cautelosamente.

Depois de alguns minutos esbarrou de repente num paredão de rocha. Não encontrou apoio para os pés. Continuou a nadar junto à parede, mas não encontrou nenhuma abertura. O corpo de Vouner sofria sob os efeitos da água fria. Procurou trazer o corpo para fora da água e subir pela rocha, mas sempre que tentava encontrava pedras salientes, que o impediam de subir.

Continuou a procurar desesperadamente. Devia haver alguma passagem. Voltou a nadar pelo trecho já percorrido e encontrou um suporte da fita transportadora destruída.

A fita levava para baixo.

Vouner segurou-se e procurou refletir. Não sabia qual era a largura daquele paredão de terra caída. Só sabia que tinha de passar.

Respirou profundamente e mergulhou junto à travessa. Sentiu a pressão da água subir. Sua manta ficou presa, mas conseguiu desvencilhar-se. Foi pego por uma correnteza e deixou que esta o arrastasse. De repente os destroços da fita transportadora não estavam mais ali. Vouner teve de orientar-se.

Seus pulmões martirizados exigiam ar puro. A pressão tornava-se cada vez mais forte. Vouner soltou o ar. Teve de fazer um grande esforço para não engolir água. Parecia que seu tórax não conseguiria resistir mais à pressão.

De repente começou a subir rapidamente. A cabeça emergiu. Conseguiu respirar. Aliviado, saiu nadando.

— Vouner! — gritou Darfass, em meio à escuridão.

— O que deseja? — perguntou Vouner.

— Vamos fazer as pazes — sugeriu o negociante. — Acho que o senhor é um osso duro demais para eu roer.

Vouner nadou na direção da qual vinha a voz. Seus pés tocaram no chão firme. Saiu da água. Um par de mãos segurou-o. Num gesto instintivo, procurou defender-se.

— Caramba! — gritou Darfass, zangado. — Quero ajudar.

— Não acredito que tenha sido a vontade de ajudar que o fez vir para cá — disse Vouner. — Sabe perfeitamente que tem de ficar comigo para estar perto do ativador. E o senhor fará outra tentativa de apoderar-se do mesmo, assim que haja uma chance.

— Acho que qualquer pessoa o faria — disse Darfass, com a maior calma.

— Isso mesmo — confirmou Vouner. — Qualquer pessoa.

Por algum tempo mantiveram-se quietos em meio à escuridão. Talvez fosse este o único momento em que os dois homens se haviam aproximado um pouco. Mas com o passar dos segundos, quando Vouner voltou a falar, a desconfiança de antes vibrou em sua voz.

— Está na hora de sairmos daqui — disse.

— Venha comigo — disse Darfass.

O último trecho do túnel não oferecia nenhum perigo. A fita transportadora estava quase totalmente intacta. Finalmente encontraram um obstáculo. Os punhos de Vouner bateram no metal.

— Isso é obra do prefeito — disse Darfass. — Mas nossa organização encontrou outro caminho.

Andaram junto à parede metálica. Vouner ouviu o negociante passar a mão pela superfície do obstáculo.

— É aqui — disse Darfass, depois de algum tempo.

Colocou nas mãos de Vouner uma corda na qual havia quatro nós. Vouner não sabia como o velho conseguiria subir por ali.

— Vá na frente — sugeriu Darfass.

— Não — respondeu Vouner.

Darfass praguejou, arrancou a corda das mãos de Vouner e foi subindo. Vouner segurou-se também à corda. Ouviu o negociante fungar enquanto subia. Finalmente ouviu uma voz vinda de cima.

— Agora é sua vez, terrano.

Vouner esperava que seus dons esportivos fossem suficientes para que também chegasse em cima. Segurou firmemente a corda e foi subindo. Conseguiu apoiar os pés na parede metálica. Chegou a uma espécie de pedestal. Darfass estava sentado no mesmo e estendeu-lhe a mão.

Vouner recuou instintivamente quando o ara o tocou. Por um instante chegou a acreditar que Darfass quisesse empurrá-lo. Mas este o puxou para cima do pedestal. Vouner soltou a corda. Ouviu-a bater algumas vezes contra o obstáculo.

— Cuidado, que o pedestal não é muito largo — disse Darfass.

Andaram de quatro pelo pontilhão estreito.

— Pronto — disse Darfass.

Vouner pareceu ouvir alguma coisa se arrastando. Dali a pouco a luz penetrou no lugar em que se encontravam.

No início, os olhos ofuscados de Vouner só viram a cabeça do negociante. Era um rosto velho cortado por rugas bem marcadas. Depois de algum tempo acostumou-se à luz e começou a distinguir outros detalhes. Estavam sentados sobre uma borda estreita, que não media mais de quarenta centímetros. Darfass afastara uma portinhola do obstáculo.

Vouner olhou para o lado. A única coisa que viu foi o escuro sem fundo do túnel. Darfass enfiou o corpo na abertura. Teve dificuldades em fazer o ventre volumoso passar pela mesma, mas depois de algum tempo desapareceu por completo. Vouner aproximou-se e viu que atrás do obstáculo, a organização à qual Darfass se referira abrira um túnel na terra. Este avançava uns cinco metros, até chegar à superfície.

Vouner chegou ao fim do túnel. Viu os contornos pouco nítidos do busto de Darfass em cima do lugar em que se encontrava. De repente sentiu-se tocado por uma lufada de ar fresco e puro. Pôs a cabeça para fora e viu o mar.

Encontravam-se num paredão íngreme de rocha, bem em cima da costa, a uns cem metros da praia. Vouner saiu de vez. As aves marinhas, que chocavam seus ovos no paredão, bateram asas ruidosamente. Darfass apontou para baixo.

— Era lá que ficava a saída do túnel. É claro que não poderíamos passar por ali; seria muito perigoso. — A pele do rosto estava azulada de frio, mas Darfass sorria. — Aqui em cima nada nos acontecerá. Ninguém chega até aqui, com exceção dos pássaros. A uns quinhentos metros daqui, o senhor vê o túnel mais próximo que leva a Pasch.

O vento parecia arrancar-lhe as palavras da boca, mas Vouner compreendeu o sentido. Tremia que nem vara verde.

— Como faremos para sair daqui? — perguntou.

— Vamos descer pelo paredão — respondeu Darfass. — Ali embaixo, onde se vê essa rocha saliente, há uma pequena caverna, onde poderemos mudar de roupa.

No lugar em que se encontravam, crescia um capim fino e ralo. A semente que o vento tangera dos parques lutara contra as fúrias da Natureza para conservar a existência. Em certas partes, o esterco dos pássaros dera uma cor branca à rocha. Bem ao longe, no mar, Vouner viu uma rocha que saía da água. Quase chegou a ter a impressão de estar na Terra.

Começaram a descida. Seus dedos estavam congelados. A terra e o esterco dos pássaros ficaram grudados nas vestes molhadas. Darfass já parecia estar acostumado a isso, pois conseguiu descer mais depressa que Vouner.

De repente Vouner se lembrou de que na caverna em que, segundo dizia Darfass, encontrariam roupas limpas, provavelmente também haveria armas. Apressou-se para alcançar o negociante. Chegaram juntos à entrada bem camuflada da caverna.

Vouner segurou o ombro do velho.

— Calma — disse. — Vamos ficar lado a lado.

Passaram de quatro pela entrada não muito alta. Darfass pôs a mão numa reentrância e tirou uma lanterna. Iluminou a caverna. O chão estava revestido por um plástico limpo.

— As roupas estão guardadas ali — disse Darfass, enquanto se aproximava de um armário.

Com um movimento rápido, Vouner dobrou o braço do negociante para cima.

— Devagar — ordenou. — Quem vai abrir este armário sou eu.

Abriu a porta, no interior do armário havia um grande sortimento de armas.

Vouner empurrou Darfass para o centro da caverna. Darfass soltou um grito de raiva.

Vouner pegou uma arma de radiações e apontou-a para o chão. Deu um tiro. A arma estava carregada. Darfass afastou-se para o lado.

Vouner enfiou a arma na manta.

— A roupa faz a pessoa — disse em tom irônico. — Acho que a esta hora o senhor já compreendeu o sentido deste provérbio terrano.

O negociante levantou-se. Parecia resignado. Vouner ficou atrás dele, com a arma apontada, enquanto abria o baú para tirar roupas adequadas para si e para o terrano. Este escolheu uma calça confortável e uma jaqueta grossa. Darfass preferiu manter-se fiel às vestes tradicionais.

Comeram e beberam alguma coisa dos suprimentos guardados na caverna. Vouner acreditava que tudo aquilo pertencia a alguma organização de contrabandistas. Mas isso não o interessava. O único objetivo que tinha em vista era chegar a Doun com o ativador.

Quando se encontravam novamente fora da caverna, Vouner apontou para a costa.

— De quem são esses barcos?

— De um velho pescador chamado Kler-Basaan — respondeu Darfass.

Vouner sabia que, para chegar a Doun, teria de atravessar metade do planeta. Em comparação com os meios de que dispunha, era um trecho enorme. Já conseguira realizar coisas inacreditáveis, estimulado pelo pequeno aparelho que trazia sobre o peito.

Hendrik Vouner transformara-se num homem calculista. Era frio, cínico e também egoísta. Não teria a menor dúvida em usar outras pessoas para atingir seus objetivos.

Acontece que o ativador celular atraía os homens, como a carniça atrai as hienas. Vouner sabia que teria de enfrentar dificuldades tremendas para chegar a Doun.

Qualquer pessoa que lhe prestasse ajuda tentaria roubar-lhe o ativador.

“Um imortal não encontra amigos, apenas invejosos!”, pensou o terrano.

 

Vouner gostaria de saber como Darfass conseguiu encontrar prontamente a cabana certa em meio a tantas, quase iguais, que se estendiam junto à praia.

— É ali que mora Kler-Basaan — disse Darfass, apontando para a placa redonda que ficava em cima da porta. — Esse pescador é um esquisitão. Dependerá exclusivamente do seu bom ou mau humor, conseguirmos um barco.

Quase não se via nenhum ara na praia. Junto ao cais algumas mulheres conversavam. Uma coluna de robôs estava trazendo placas de revestimento de ruas e as espalhava em cima do pequeno porto. Ninguém demonstrou o menor interesse pelos dois homens.

— Nesta época do ano, o mar sempre está agitado — disse Darfass.

Chegaram à cabana de Kler-Basaan. Darfass bateu à porta e entrou. Vouner pôs a mão na arma e seguiu-o. No interior da cabana sentiram um calor agradável.

O velho pescador estava parado junto à janela e contemplava o mar. Virou-se e cumprimentou os recém-chegados com um gesto. Lançou um olhar penetrante para Vouner.

— Façam o favor de sentar — disse Kler-Basaan.

Esperou que os dois homens se acomodassem e tirou alguns peixes secos de uma gaveta que ficava embaixo da mesa.

— Faz muito tempo que não nos vemos — disse, dirigindo-se a Darfass.

— O mesmo falo eu — disse uma voz áspera, vinda da porta que dava para o aposento contíguo.

Vouner virou-se abruptamente, mas antes que pudesse tirar a arma Hefner-Seton encostou-lhe uma pistola de nêutrons aos quadris.

— O senhor conseguiu — disse em tom de elogio. — Realmente conseguiu chegar a Pasch.

Vouner tremeu.

— O senhor percorreu um caminho muito longo — disse Hefner-Seton. — E agora chegou ao rim desse caminho.

 

Sorgun acordou e imediatamente voltou a sentir a fome, a sede e o cansaço. Saiu de debaixo da moita. Já fazia alguns dias que errava pelo parque. Levava uma vida de animal. Roubava comida das caixas de alimentos para os animais e bebia nos chafarizes.

Já sabia que Hefner-Seton o enganara, mas o medo do castigo duro que o esperava fizera com que não se apresentasse aos grupos de busca.

Sorgun passou as mãos pelo rosto pouco cuidado. Caminhou lentamente em direção ao chafariz que se destacava como uma sombra cinzenta na bruma matutina.

Arrastou os pés pela grama. Chegou ao chafariz, inclinou-se e deixou que a água enchesse sua mão aberta em concha. Estava atordoado. O frio da noite enrijecera seu pescoço. Esfregou a água no rosto e bebeu um pouco. Tossiu.

No momento em que ergueu o corpo, três soldados vieram correndo, vindos do outro lado do chafariz.

— Pare! — gritaram.

Quando lhe amarraram as mãos nas costas, Sorgun não ofereceu resistência.

— O senhor é tripulante da Kotark? — perguntou um dos soldados.

— Sou um zero — respondeu Sorgun, em tom indiferente.

Naquele momento levou um soco e saiu cambaleando pela grama molhada, à frente dos guardas.

 

Tabes, Presidente do Conselho Médico de Aralon, não demonstrou a menor emoção ao contemplar o astronauta que estava sentado numa cadeira à sua frente. Por duas vezes bateu com a mão aberta no rosto do homem quase inconsciente.

Sorgun abriu os olhos e fitou Tabes com uma expressão de perplexidade.

O presidente dirigiu-se ao médico que se encontrava atrás dele.

— Tem certeza absoluta de que, sob o efeito da injeção, este homem disse a verdade? — perguntou.

— Tenho — respondeu o médico, em tom de veneração.

Tabes era um homem alto e muito magro, com um sinal de nascença do lado direito da face. Sua cabeça era totalmente calva. Os olhos emitiam um brilho dourado. Parecia muito inteligente.

— Reconheço perfeitamente a importância de suas declarações — disse. — Em algum lugar, em Aralon, existe um ativador celular. Que coisa fantástica! — Encostou as pontas dos dedos umas nas outras.

— Não será fácil encontrá-lo — ponderou o médico.

— Provavelmente já mudou de dono mais de uma vez. Dificilmente ainda estará nas mãos do terrano.

Tabes pôs-se a refletir. As chances de que naquele momento o aparelho se encontrasse nas mãos de Hefner-Seton, comandante da Kotark, eram bastante reduzidas. Sem dúvida o terrano e Hefner-Seton já haviam sido mortos por alguém. O presidente fitou Sorgun, que estava totalmente exausto. O que deveria fazer? Se informasse todos os membros do Conselho Médico, os conflitos seriam inevitáveis. Tabes era um homem experimentado. Previa que uma série de grandiosas operações de busca não traria o resultado desejado. Dentro de pouco tempo, toda a população de Aralon saberia que o Conselho Médico estaria atrás do ativador celular. Seria o princípio do fim, pois todos se achariam com direito de sair em busca do aparelho.

E, com isso, o ativador seria destruído ou cairia nas mãos de algum criminoso...

Seria inútil realizar uma operação de busca em grande escala. O presidente teve a impressão de que seria bem melhor recorrer aos melhores agentes, que trabalhariam calma e discretamente. Tabes resolveu usar doze homens. Fez um sinal.

— Leve-o daqui — disse, dirigindo-se ao médico.

O doutor ergueu Sorgun.

— O que acontecerá comigo? — perguntou o astronauta, em tom assustado.

Ninguém respondeu. Sabia da existência do ativador. Tabes estava interessado em evitar que o círculo das pessoas informadas se ampliasse muito. Fez um sinal para o médico. Sorgun parecia ter compreendido o sentido desse sinal, pois resistiu violentamente quando o levaram para fora da sala.

Desapareceu no enorme edifício, entre corredores escuros e abandonados.

Morreu num pequeno cubículo, só e quieto, sem que ninguém lamentasse sua morte.

Assim que o prisioneiro foi retirado, Tabes ligou o videofone. Pediu ligação com um canal particular. A tela iluminou-se e o rosto entediado de um ara apareceu na mesma.

— Uwasar, o senhor terá trabalho — disse Tabes.

— Sempre tenho — respondeu Uwasar.

— Pegue onze dos seus melhores homens e compareça imediatamente à minha presença — ordenou o presidente. — Trata-se de uma missão especial muito urgente.

— O senhor voltou a usar o canal particular — disse Uwasar. — O Conselho Médico não está informado sobre a missão?

— Não — respondeu Tabes, com um sorriso. — O senhor logo saberá o motivo.

Tabes desligou e recostou-se na poltrona. Precisava agir com cautela. Uwasar era um gênio. Se conseguisse pôr as mãos no ativador celular, seria difícil tirá-lo dele. Num caso como este, até mesmo a autoridade de um presidente não valia muita coisa. Tabes resolveu tomar todas as cautelas para que Uwasar não se esquecesse do seu dever de lealdade. O homem mais poderoso de Aralon era frio e calculista.

Uwasar e cautela. Essa união representava o ativador celular, e este por sua vez significava a imortalidade.

A imortalidade para Tabes, Presidente do Conselho Médico de Aralon.

 

Todos os movimentos cessaram no interior da pequena sala. O único ruído era o rumorejar das ondas que penetrava pela janela aberta. Até parecia que aqueles quatro homens estavam parados ali há muito tempo paralisados por uma catástrofe misteriosa.

Kler-Basaan disse com a voz tranqüila:

— Descarreguei a arma.

Várias coisas aconteceram ao mesmo tempo. Hefner-Seton puxou o gatilho, mas não aconteceu nada. Darfass fez menção de saltar sobre Vouner, mas o terrano já se recuperara do choque e sacara sua arma.

O velho pescador levantou-se.

— Há dois dias tive de arranjar essa pistola de nêutrons para o senhor. — Apontou para Hefner-Seton. — Compreendi imediatamente que havia algo de errado. Para esperar um amigo não se precisa de arma. Por isso resolvi descarregá-la, para evitar derramamento de sangue.

O rosto de Hefner-Seton retratou uma decepção sem limites, que logo foi substituída por uma fúria descontrolada.

— Este homem tem um ativador celular! — gritou para Kler-Basaan. — Sabe o que significa isso, seu velho idiota?

Vouner dirigiu-se a Darfass.

— Abra a janela, para que possa jogar fora a pistola — ordenou.

O negociante obedeceu. Hefner-Seton atirou fora a arma. Vouner dirigiu-se a Kler-Basaan.

— Preciso do maior navio que o senhor tiver — disse.

O pescador dirigiu os olhos para Vouner. Aquele velho vivia calmo e solitário, mas aqueles homens haviam levado a luta pelo ativador à sua cabana.

— Para que precisa dele? — perguntou.

— Preciso ir ao outro lado do oceano — respondeu Vouner. — Tenho de chegar a Doun.

O rosto do velho iluminou-se ligeiramente.

— Não vê que isso é uma loucura? — gritou Hefner-Seton. — Esse sujeito endoideceu de vez.

— Só existe um navio que talvez possa fazer a travessia — disse Kler-Basaan, em tom pensativo. — Seu nome é Burast.

Vouner notou que conseguira despertar o interesse do velho.

— O senhor nunca conseguirá sem uma tripulação adequada — prosseguiu Kler-Basaan. — Precisará pelo menos de dois marinheiros experimentados. Acontece que não sei quem entende disso em Aralon além de mim.

— Será que o senhor ainda não percebeu o que está em jogo? — perguntou Darfass. — Esse terrano possui um ativador celular. Quer ir a Doun a fim de chegar à base do Império com o aparelho. Se o senhor lhe der qualquer apoio, será castigado. O ativador celular pertence ao Conselho Médico de Aralon.

— Não parece que qualquer dos senhores represente os interesses do Conselho Médico — disse Kler-Basaan, em tom de deboche. — Tenho a impressão de que cada um só fala por si.

O negociante fez mais uma tentativa.

— O senhor sabe perfeitamente que é impossível atravessar o oceano com um desses navios.

— É difícil, mas não impossível — respondeu Kler-Basaan.

— Parem de influenciar o velho — advertiu Vouner.

— O senhor já tem um tripulante — disse Kler-Basaan, dirigindo-se ao terrano. Há dois anos estou à espera de uma oportunidade como esta.

Hefner-Seton ficou vermelho.

— Este velho vai unir-se ao terrano — gritou em tom indignado.

Vouner não se abalou. Apontou com o cano da arma para Darfass e o astronauta.

— Aí está o resto da tripulação — disse. — Nem sequer precisamos obrigá-los a acompanhar-nos, pois estão interessados em permanecer próximos do ativador. Podemos começar imediatamente a equipar o navio e reunir as provisões.

Notava-se que Kler-Basaan queria começar imediatamente com o trabalho. Vouner notou que o pescador não simpatizava com ele. E não parecia estar interessado no ativador. O que parecia entusiasmá-lo era apenas a perspectiva de uma viagem marítima muito arriscada.

— O Burast foi construído exclusivamente para fins esportivos, que nem as outras embarcações — disse Darfass numa nova tentativa. — Não podemos arris...

Vouner fez pontaria e atirou. O raio da arma passou junto à cabeça de Darfass. Um orifício de dez centímetros de diâmetro surgiu na parede, atrás do negociante. Darfass empalideceu e ficou calado.

— Sou contra toda e qualquer violência

— disse Kler-Basaan em tom contrariado, dirigindo-se a Vouner. — Não se esqueça disso.

Vouner bateu com o punho cerrado na mesa, fazendo saltar os peixes secos.

— Quem dá ordens aqui sou eu — gritou. — Encarregue-se dos assuntos de navegação. O resto fica por minha conta.

Hefner-Seton quis dizer mais alguma coisa, mas calou-se diante do olhar ameaçador de Vouner. Este sabia que Kler-Basaan representaria o êxito ou o fracasso de seu plano. O velho estava tão apaixonado por uma extensa viagem marítima, que não hesitaria em aceitar as ordens de Vouner.

— Darfass e Hefner-Seton ficarão presos no quarto vizinho, até que o Burast esteja pronto para zarpar — decidiu Vouner.

— É preferível que ninguém saia da casa, com exceção de Kler-Basaan.

— Peça que alguém lhe mostre um mapa — gritou Darfass. — É bom que o senhor veja ao menos o que pretende fazer.

— É uma boa idéia — disse Kler-Basaan. — Trarei um mapa marítimo. — Olhou para Vouner. — O senhor realmente acredita que nossa tripulação estará bem guardada no quarto vizinho?

— O senhor tem uma sugestão melhor?

— O Burast — disse Kler-Basaan. —

Vamos levá-la ao ancoradouro num pequeno barco e trancá-la no navio até que os preparativos tenham sido concluídos.

— Está certo — concordou Vouner. — Se os aras ficassem presos no navio, não teriam possibilidade de entrar em contato com o mundo exterior.

De arma em punho, Vouner obrigou Darfass e o astronauta a saírem juntamente com ele e com Kler-Basaan. Não havia ninguém por perto. Vouner lançou um olhar para os navios que lá longe dançavam sobre as ondas. Um deles era o Burast. Ali Darfass e Hefner-Seton estariam bem guardados. Kler-Basaan levou-os a um pequeno barco jogado na areia da praia. Todos juntos o levantaram, carregaram-no para a água e entraram. Kler-Basaan ligou o motor de popa e o barco afastou-se da praia.

O vento fustigava o rosto de Vouner. Estava de pé na parte traseira do barco, junto ao pescador, que segurava o leme. Hefner-Seton e o negociante estavam agachados na proa.

O nervosismo acelerou a pulsação de Vouner. Todos os homens que sabiam da existência do ativador estavam em seu poder, com exceção de Sorgun. Se tivesse um pouco de sorte, chegaria a Sorgun dentro em breve.

O barco balançava. Hefner-Seton pôs-se a praguejar quando a água passou por cima da proa e entrou na embarcação.

Encostaram junto ao casco da Burast e subiram pela escada embutida. Vouner foi o último.

— Venha logo — insistiu Kler-Basaan. — Mais tarde examinaremos o navio.

Trancaram os dois homens num camarote e voltaram para a praia.

— O senhor tem dinheiro? — perguntou Kler-Basaan.

— Não — respondeu Vouner.

O velho amarrou o barco. Suas mãos eram enrugadas e tinham as veias salientes. Apesar disso pareciam ter uma força extraordinária.

— O dinheiro que tenho não será suficiente para equipar o navio. — Kler-Basaan sacudiu a cabeça; parecia triste. — Quem sabe se na cidade não consigo crédito?

Vouner lançou os olhos para a encosta rochosa.

— Acabo de ter uma idéia — disse. — Vá à cidade e tente trazer tudo que conseguir. Enquanto isso darei uma olhada por aí.

Kler-Basaan fitou-o com uma expressão de desconfiança.

— Não pense em roubar as cabanas de meus amigos.

— Tolice — disse Vouner para tranqüilizá-lo. — Não pretendo fazer nada disso.

O velho pôs-se a caminho. Vouner seguiu-o com os olhos por algum tempo. Finalmente virou-se. Na caverna à qual Darfass o havia levado, encontraria muitas das coisas de que precisavam. O negociante não ficaria nada satisfeito ao ver Vouner aparecer na Burast com as reservas do misterioso entreposto comercial.

Naquele momento Vouner nem desconfiava de que nunca mais veria Darfass nem Hefner-Seton...

 

Uwasar escolhera o método simples de agir, pois acreditava que era o que prometia melhores resultados. O chefe do serviço secreto sabia que intimidava os homens comuns. E reforçava este efeito por meio de um rosto severo e de decisões implacáveis.

Por isso não afastou a cortina de veludo que fechava a loja de Darfass, mas arrancou-a com um movimento abrupto. E não perdeu tempo. Pisou na cortina e entrou na loja. Um homenzinho saiu de trás do balcão. Uwasar fez um gesto autoritário para que seus acompanhantes revistassem cuidadosamente a loja e suas dependências.

— O senhor é dono do estabelecimento? — perguntou em tom áspero, enfiando suas credenciais embaixo do nariz do homenzinho.

— Não — gaguejou este.

Uwasar começou a ficar impaciente.

— É inquilino?

— Esta loja pertence a Darfass — disse o homenzinho, apressado.

Seu rosto ficou vermelho. Parecia atordoado.

— Onde está ele? — perguntou Uwasar no mesmo instante.

Dois dos seus homens saíram do quarto dos fundos e sacudiram a cabeça sem dizer uma palavra. Uwasar apontou com o polegar para o chão. Seus acompanhantes começaram a usar seus aparelhos ultra-sensíveis, à procura de algum recinto subterrâneo.

— Está doente — respondeu o substituto de Darfass. Deu um passo em direção a Uwasar. — Não tenho nada a ver com o que quer que seja. Dirijo os negócios de...

— Silêncio! — gritou Uwasar.

— Olhem! — disse um dos seus acompanhantes. — Aqui embaixo deve haver um recinto.

O chefe do serviço secreto acenou com a cabeça, como se não esperasse outra coisa. Franziu as sobrancelhas escuras. Deu uma forte pancada no homenzinho.

— Vamos! — ordenou. — Abra. Tremendo por todo corpo, o negociante foi até o alçapão e deixou livre o acesso ao subterrâneo do estabelecimento de Darfass.

O choro dos pouners perturbados em seu sossego chegou até a loja. Uwasar pôs-se a escutar.

— Iluminem — ordenou.

Um dos agentes foi à frente, com uma lanterna forte. Uwasar segurou o homenzinho pelo braço e arrastou-o escada abaixo. O agente que carregava a lanterna iluminou as jaulas. Uwasar praguejou. Estava decepcionado.

Instantes depois descobriram as vestes que Vouner deixara para trás.

Dali a mais um minuto, o representante do negociante revelou-lhes que Darfass estava a caminho de Pasch, juntamente com um terrano.

Uwasar empurrou o homenzinho, obrigando-o a subir a escada à sua frente.

— O senhor está preso — disse em tom severo. — Apresente-se no posto policial do espaçoporto.

Uwasar olhou para o relógio. Como sempre, seu trabalho era rápido, preciso e coroado de êxito. Para ele e seus homens, o caso não representava nenhum problema. Apontou para o planador que estava estacionado à frente da loja.

— Vamos embora. Para Pasch! — disse.

 

Vouner reuniu todas as ferramentas que lhe pareciam apropriadas e as guardou num saco bem forte. Disse a si mesmo que não faria mal que estivesse bem armado. Tirou do armário uma pequena pistola carregada com projéteis energéticos. Além disso enfiou duas facas no saco.

Pelas condições do lugar, as instalações da caverna podiam ser consideradas completas. Não havia praticamente nada que não pudesse encontrar por lá. Encheu uma sacola com alimentos concentrados de todos os tipos. Provavelmente Kler-Basaan, que fora à cidade, traria principalmente os objetos necessários à navegação.

Vouner fazia votos de que o velho não cometesse o erro de gabar-se em Pasch com a empresa que pretendia levar avante. Não tinha nenhum interesse em ver alguns curiosos na praia.

Encheu o saco e fechou-o cuidadosamente. Depois disso amarrou uma corda grossa numa das alças. Seria difícil carregar a bagagem pela encosta, motivo por que pretendia descê-la por uma corda e ir depois.

Em tempos passados, Vouner ficaria impotente numa situação como aquela. Mas, desde o momento em que pendurara o ativador ao pescoço, transformara-se num homem completamente diferente.

Vouner carregou o saco para fora da caverna. Olhou para a praia. Visto do lugar em que se encontrava, o Burast parecia um brinquedo. O barco de Kler-Basaan era apenas uma mancha escura na praia. A cabana do pescador estava deserta e abandonada.

Kler-Basaan não demoraria muito a voltar da cidade. Vouner levou o saco até a beira da encosta. Amarrou a corda a uma grande pedra e começou a descer a bagagem. O saco ficou preso a uma rocha, mas Vouner conseguiu soltá-lo.

Finalmente as provisões foram parar na plataforma que seria a primeira parada no caminho. Vouner desamarrou a corda e iniciou a descida.

De repente uma minúscula figura apareceu na praia e dirigiu-se à cabana de Kler-Basaan. Era o velho que estava voltando da cidade. Pelo que Vouner podia ver, estava carregado.

Vouner esperou que Kler-Basaan desaparecesse no interior da cabana. Mas, antes que pudesse começar a descer pela encosta, apareceu um planador. Vouner estacou. Não se precisava de muita inteligência para adivinhar o lugar em que iria pousar o veículo aéreo: na praia.

Vouner mordeu os lábios. Talvez houvesse uma explicação perfeitamente natural para o aparecimento do planador, mas o mais provável era que Kler-Basaan o tinha traído.

Por quê? Talvez não tivesse sido de propósito. Ainda bem que Vouner não havia revelado a existência da caverna ao pescador.

Olhou atentamente para a praia. A pessoa que pilotava o planador parecia ter pressa.

Vouner acompanhou o desenrolar dos acontecimentos com a mente obstinada. O planador pousou perto da cabana de Kler-Basaan. Uma nuvem de areia subiu num esguicho. Seis homens saltaram do veículo, seguidos de perto por outros dois.

Vouner ficou triste por não ter encontrado nenhum aparelho de observação na caverna. Os homens que haviam saído do planador dirigiram-se a uma das cabanas. Três esperaram do lado de fora e cinco entraram. Sentiu-se aliviado ao constatar que, segundo parecia, aqueles homens não estavam interessados na residência de Kler-Basaan. Mas os cinco logo abandonaram a cabana. Um deles fez um sinal para os que se mantinham à espera.

Todos saíram andando. Caminharam pela praia em fila, que nem marionetes guiados por uma mão invisível. Vouner soltou ruidosamente o ar.

Os homens seguiram em direção à casa de Kler-Basaan.

Vouner teve a nítida sensação do perigo. Nos últimos dias de fuga, criara um instinto para as situações melindrosas.

Mais uma vez, três dos homens ficaram do lado de fora, enquanto os outros entravam na casa de Kler-Basaan. Vouner encostou-se levemente à rocha e observou os acontecimentos. Dali a instantes ficaria sabendo se aqueles homens realizavam uma inspeção de rotina, ou se estavam atrás dele.

No seu íntimo, Vouner já abandonara a idéia de fugir a bordo do Burast. Os cinco homens saíram da cabana. Traziam o velho pescador e o empurravam à sua frente. Vouner mordeu os lábios. Não sentiu pena por Kler-Basaan, apenas um ódio indomável pelos homens que se encontravam na praia.

Kler-Basaan foi arrastado em direção ao mar. Colocou o barco na água, ajudado pelos oito homens. Os cinco que haviam entrado em sua cabana embarcaram. Dali a pouco o barco correu velozmente pela superfície revolta, em direção ao Burast.

Os homens que continuaram na praia não permaneceram inativos. Evidentemente estavam procurando alguém.

Vouner sabia que a cada segundo que permanecesse no mesmo lugar aumentaria o perigo de ser preso. O caminho marítimo para Doun acabara de ser trancado.

Vouner não viu nenhuma chance de chegar lá por via aérea. Se sabiam de sua existência, por certo já haviam tomado suas precauções para fazer um controle rigoroso de todos os passageiros que embarcassem nas aeronaves. E a possibilidade de viajar como clandestino parecia extremamente reduzida.

Nem o mar nem o ar ofereciam a menor possibilidade de êxito.

Vouner sentiu-se acossado. Resolveu fazer mais uma tentativa desesperada.

Procuraria usar o grande transmissor de matéria para chegar a Doun...

 

As aves marinhas pousadas na amurada do Burast saíram voando quando Uwasar e seus companheiros subiram a bordo. Kler-Basaan ficou triste ao ver a porta por onde se descia para os camarotes ser aberta com um pontapé.

O pescador era um homem velho. Sua única riqueza eram os navios mas como ninguém se interessasse por eles... Os barcos representavam uma riqueza para Kler-Basaan.

Desceu atrás de Uwasar e abriu a porta do camarote em que Darfass e Hefner-Seton estavam trancados.

Os dois aras levantaram-se de um salto. Uwasar entrou no camarote e lançou-lhes um olhar frio. Fitou prolongadamente Hefner-Seton e tirou do bolso uma fotografia.

— Hefner-Seton — disse. — O comandante da Kotark que desertou.

— Quem é o senhor? — perguntou Hefner-Seton, nervoso.

— Quem faz perguntas aqui sou eu — disse Uwasar, em tom penetrante. — O senhor é um oficial e sabe qual será seu castigo. Exijo que me dê informações precisas sobre o ativador celular. É verdade que o aparelho ainda está em poder do terrano que se encontrava a bordo da Kotark quando a nave pousou neste planeta?

— É — disse Hefner-Seton, em tom deprimido.

No seu íntimo, Uwasar estava espantado, mas não o demonstrou. Um homem que seguisse sua profissão não podia mostrar surpresas. Não compreendia como o terrano conseguira chegar com um objeto tão precioso a Pasch. E não era só. Esse homem ainda estava em liberdade.

Uwasar sempre estivera convencido de que um agente deve estar informado sobre todos os detalhes do caso para levar sua missão a bom termo. Por isso mandou que o ex-comandante da Kotark lhe contasse toda a história de Vouner.

— O resto este homem poderá contar — disse Hefner-Seton ao concluir e apontou para Darfass. — Foi ele que trouxe Vouner para Pasch.

Uwasar passou a dirigir-se ao contrabandista.

— Para nossa organização o senhor não é nenhum desconhecido — disse. — Sua loja consta dos nossos registros. Lembro-me perfeitamente de que, muitas vezes, o senhor nos forneceu informações preciosas. Por isso seu comércio de pouners era tolerado.

Com estas palavras, Darfass criou novas esperanças. Seu rosto iluminou-se ligeiramente.

— É verdade — disse. — Sempre me esforcei para manter boas relações com as autoridades.

— Naturalmente o senhor só agiu assim por egoísmo. Desta vez arriscou demais. Oportunamente será responsabilizado por isso. Seu estabelecimento será fechado.

Darfass “desmoronou”. Aquele terrano só lhe trouxera desgraças. Provavelmente no fim da vida ainda seria deportado para um planeta-penitenciária. Só lhe restava esperar que muitos dos seus amigos que ocupavam posições importantes o ajudassem. Mas o Serviço Secreto era uma organização poderosa, submetida diretamente ao Conselho Médico e a seu presidente. Se os agentes o incriminassem, ninguém poderia fazer nada por ele.

Uwasar começou a andar de um lado para outro do camarote. Seus companheiros estavam reunidos junto à porta. Sua atitude discreta fazia parte do drama que costumava representar, pois realçava seu poder.

— Quer dizer que nenhuma das pessoas aqui presentes sabe onde esse terrano se encontra no momento — disse Uwasar. — Bem, é perfeitamente possível que realmente seja assim. Ninguém tem um motivo especial para apoiar o tal do Vouner... O terrano não pode estar longe daqui. Talvez tenha visto nosso planador. E não terá nenhuma dificuldade em tirar as conclusões acertadas do fato de termos chegado. Provavelmente a esta hora está fugindo de novo.

O agente parou.

— Darfass, conte como conseguiu chegar a Pasch com Vouner. Não existe nenhum detalhe que não seja importante. Só assim conseguiremos uma indicação sobre o lugar em que deveremos procurar esse homem.

Darfass não teve outra alternativa senão revelar os caminhos secretos de sua organização. Uwasar não se mostrou muito surpreso. Parecia ter conhecimento da existência do grupo de contrabandistas. Esperou calmamente que Darfass concluísse.

— Por enquanto todos estão presos — disse. — Gesan os levará.

Um dos companheiros de Uwasar adiantou-se.

— Não cometi nenhum crime — disse Kler-Basaan. — Por que devo ser preso?

Uwasar não respondeu. Queria ter certeza de que ninguém mais ficasse sabendo da existência do ativador celular. Para isso teria de prender todas as pessoas que tivessem tido contato com Vouner.

Mas não estava em condições de prender o personagem mais importante.

Hendrik Vouner continuava em liberdade.

Mas aquele homem era um estranho em Aralon. Não poderia fazer milagres. Acabaria sendo abandonado pela sorte. Por enquanto só amadores haviam participado da sua caçada. Uwasar estalou os dedos. Dali em diante, a perseguição seria feita com método.

Quando Uwasar saiu do Burast, seu corpo rijo se entesou. Há muito tempo esperava um meio adequado para melhorar sua posição. Devia exercer uma pressão bem forte contra o Conselho Médico, especialmente contra Tabes.

E o ativador celular seria o melhor meio para isso. Uwasar tinha sede de poder. Era ativo e ambicioso.

Se quisesse aumentar sua área de influência, Hendrik Vouner seria a chave para uma ação bem-sucedida.

Tornava-se necessário sacrificar Vouner, para que ele, Uwasar, se tornasse mais forte.

O agente ficou parado na praia, enquanto os homens amarravam o barco. Gesan afastou-se com os presos. Provavelmente Kler-Basaan não sofreria nenhuma pena. Mesmo Darfass, o negociante sagaz, conseguiria mais uma vez salvar a pele. Com Hefner-Seton as coisas eram diferentes. Sua carreira chegara a um fim nada glorioso.

Para Uwasar, o destino do astronauta não representava nenhuma advertência.

“O poder só deve ser colocado nas mãos das pessoas que sabem lidar com ele”, reflexionou.

Uwasar estava tendo um mau sonho, mas não teve consciência disso. A história de todos os planetas habitados ensinava uma lição: dificilmente um homem que adquire o poder pela violência consegue manter sua posição por muito tempo.

— Ele tentará viajar clandestinamente num foguete de passageiros — disse Uwasar. — E será descoberto. Quando isso acontecer, deveremos estar presentes, pois, do contrário, o ativador poderá desaparecer. De qualquer maneira procuraremos localizar o terrano em Pasch.

A caça de Vouner e do ativador celular acabara de entrar na fase decisiva.

 

Hendrik Vouner usou um dos numerosos túneis para sair da área litorânea. Ainda não tinha uma idéia precisa de como chegar ao transmissor. Acreditava que metade dos habitantes da cidade soubesse de sua existência e que seria perseguido assim que o reconhecessem.

Sempre que alguém vinha ao seu encontro enfiava-se rapidamente num dos nichos embutidos nas paredes, de ambos os lados da fita transportadora. Como terrano fatalmente teria que despertar a atenção dos habitantes de Pasch, embora por certo não fosse o único ser do planeta Terra que se encontrava naquela cidade litorânea.

Ao pensar nisso, Vouner teve uma idéia. Precisava entrar em contato com outro terrano. Apenas junto a uma pessoa da mesma raça poderia contar com o apoio de que precisava. E assim poderia descobrir onde ficava o transmissor.

Chegou ao centro da cidade em hora de grande movimento. Uma vida febril vibrava nas ruas. Os anúncios luminosos das empresas disputavam as preferências dos compradores que atravessavam as ruas aos grupos.

Vouner foi a um ponto de táxi. No centro da cidade não havia fitas transportadoras, pois o trânsito podia fluir praticamente em todas as direções. Os edifícios agrupavam-se em círculos, contornados pelas ruas.

Ao notar que ninguém lhe dava atenção. Vouner sentiu-se aliviado. Junto ao ponto de táxi, uma agência de viagens fazia propaganda dos vôos à Terra. Vouner examinou os cartazes.

Quadros da América do Sul, da Flórida, da Espanha, o mar azul e o céu límpido, os rostos alegres procuravam atrair a clientela. Vouner afastou-se. Reuniu o dinheiro que lhe restava e entrou num dos táxis. Depois de ter feito o pagamento ao aparelho automático, a voz do motorista-robô perguntou:

— Aonde deseja ir?

— Quero que o senhor me leve para junto do grande transmissor e pare num lugar tranqüilo. — Aborreceu-se por ter chamado o robô de senhor, mas no estado de nervos em que se encontrava a possibilidade de erro não podia ser afastada. O veículo saiu silenciosamente da fila e entrou no fluxo de tráfego.

Vouner soltou um suspiro de alívio e recostou-se no estofamento. Lojas, rostos, anúncios luminosos, quadros, veículos, tudo foi passando velozmente. Passaram por dois policiais, mas estes não deram a menor atenção ao táxi.

Naquele momento a caça à sua pessoa estaria sendo iniciada nos arrebaldes da cidade.

O tráfego ficou menos intenso. O veículo foi abrindo caminho. Parou nas proximidades de um gigantesco edifício.

— Chegamos — disse o robô.

A porta abriu-se e Vouner desceu. O autômato deu o troco e o carro afastou-se. O terrano fez as moedas tilintarem em suas mãos e dirigiu-se ao edifício em cujo interior devia ficar o transmissor.

Percebeu imediatamente que nunca conseguiria passar legalmente. A entrada estava guarnecida com uma barreira dupla. Uma parte desta barreira estava ocupada por robôs e a outra por aras.

Vouner atravessou a rua. Havia várias casas expedidoras que trabalhavam em conjunto com a administração do transmissor. Numa das placas Vouner leu um nome terrano.

Spencer Legarth — mostrava o anúncio luminoso em letras altas:

DESPACHO

Vouner entrou pela porta antiquada e ouviu uma campainha suave. Não havia balcão, apenas três cadeiras simples e uma mesa de pernas retorcidas. Em cima da mesa viam-se os últimos números de uma revista local impressa em intergaláctico. Vouner teve vontade de pegar uma delas para verificar se trazia alguma notícia sobre sua pessoa.

Mas naquele momento a porta dos fundos abriu-se e uma moça surgiu. Era uma terrana de feições angulosas e cabelos amarrados para cima. O fato de um terrano ter entrado na loja não parecia surpreendê-la. Fitou Vouner com uma expressão desinteressada.

— O que posso fazer pelo senhor? — perguntou, depois de ter cumprimentado Vouner.

Parecia que o olhar de Vouner fazia a moça sentir-se insegura. Vouner preferiu não encará-la diretamente.

— Quero falar com Mr. Legarth — disse.

A moça pegou uma pequena agenda, que se encontrava numa prateleira, e pôs-se a folhear a mesma.

— Tem hora marcada? — perguntou.

— Não — respondeu Vouner.

— Pode fazer seu pedido comigo — disse a moça.

Vouner engoliu o desaforo que trazia na ponta da língua.

— Preciso falar com Mr. Legarth — insistiu em tom impaciente.

— Qual é o assunto?

— Que diabo! — explodiu Vouner. Perdendo o autocontrole, empurrou a moça e dirigiu-se à porta dos fundos.

— O senhor não pode fazer uma coisa dessas — gritou a moça, mas Vouner já abrira a porta e entrara na sala.

Um terrano de pequena estatura achava-se junto à janela e acariciava um pouner que estava sentado num cesto, sobre o peitoril. À entrada de Vouner, virou-se. Sua pele mostrava um bronzeado natural. No seu rosto havia vestígios de uma operação plástica recente.

— Papai, este homem está invadindo nosso escritório — disse a moça, que se encontrava na porta.

— Essa jovem precisa nos deixar a sós — exigiu Vouner, em tom áspero. — Vamos, diga a ela.

Legarth examinou-o atentamente.

— Isso é um assalto? — perguntou.

— Nada disso — respondeu Vouner. — Preciso falar com o senhor.

— Esta é minha filha — disse Legarth. — Não há nada que ela não possa ouvir. O que deseja?

Vouner viu que só estava perdendo tempo. Se a moça gozava da confiança do pai, devia haver um motivo para isso.

— Estou fugindo — falou sem rebuços.

Legarth ergueu as sobrancelhas.

Afastou-se da janela e sentou-se atrás da escrivaninha. Com a maior tranqüilidade pegou um charuto e acendeu-o. Vouner observava-o atentamente.

— Quem está atrás do senhor? — perguntou Legarth.

— Todas as pessoas que sabem de minha existência — disse Vouner, em tom sarcástico.

Notou que a filha de Legarth o observava de esguelha, com uma expressão de desconfiança.

Legarth refletiu sobre a resposta de Vouner.

— Por quê? — perguntou.

Vouner ergueu a manta, para que pai e filha pudessem ver o ativador celular.

— Por causa disto — limitou-se a dizer.

— Ele tem um ativador! — exclamou a moça.

O despachante contemplou com uma expressão de fascínio o pequeno aparelho que Vouner trazia sobre o peito. Vouner voltou a cobrir o ativador e tirou a pistola.

— Este ativador não está à venda nem pode ser obtido por qualquer outro meio — disse, enfatizando as palavras. — Outras pessoas já tentaram.

Legarth tirou uma baforada rápida. Seus dedos grossos tamborilavam nervosamente sobre a mesa.

— É verdadeiro? — perguntou.

— Naturalmente — respondeu Vouner. — O senhor acha que eu arriscaria a vida se não fosse?

— E o senhor é seu legítimo proprietário? — Legarth voltara a controlar sua voz. — Não conseguiu o aparelho por meios ilegais?

— Nenhum tribunal do Império deixará de reconhecer meu direito ao ativador — asseverou Vouner.

Acabara de revelar seu segredo ao despachante. E se havia alguma coisa que levava um homem a entrar em ação era o ativador.

— O senhor veio com um propósito definido, não veio? — conjeturou Legarth.

Ao notar que o despachante estava passando diretamente ao problema, Vouner ficou satisfeito.

— Pensei que talvez o senhor tivesse acesso ao transmissor — disse.

Legarth fez um gesto afirmativo.

— Fiz um contrato com a administração, segundo o qual posso remeter diariamente certa quantidade de carga para Doun — disse. — Acontece que não possuo licença para transportar pessoas.

— Não existe uma possibilidade de me “contrabandear” para Doun juntamente com alguma carga? — perguntou Vouner, ansioso.

O rosto de Legarth parecia exprimir a recusa. Levantou ambos os braços, num gesto de súplica.

— Sou o único terrano que conseguiu celebrar com os aras um contrato que me permite utilizar o transmissor. Sem isso, meu negócio não poderia ser bem-sucedido. Não posso arriscar meu futuro. — Com um gesto nervoso amassou no cinzeiro o charuto, do qual ainda restava mais que a metade. — Quase todas as naves cargueiras da Terra que pousam em Forungs trazem mercadorias destinadas a mim. Sai mais barato fazer esse tipo de transporte e...

— Não estou interessado em saber como o senhor faz seus negócios — disse Vouner. — Provavelmente nunca ninguém descobrirá que o senhor me ajudou.

Legarth refletiu intensamente. Sua filha parecia ter vontade de dizer alguma coisa, mas resolveu ficar calada. Vouner não apressou o homem.

— Está bem — disse Legarth, depois de algum tempo. — Vamos tentar.

Vouner acenou com a cabeça. Parecia satisfeito.

— Como pretende fazer? — perguntou. Legarth levantou abruptamente e foi à janela. O pouner saltou para fora da cesta e colocou-se sobre as patas traseiras. Legarth começou a acariciá-lo com movimentos lentos.

— Há algumas caixas na rampa de carregamento. Serão transportadas para Doun — disse. — Enfiaremos o senhor em uma delas. Seu peso deve ser aproximadamente igual ao da mercadoria que...

— O conteúdo das caixas não costuma ser controlado? — perguntou Vouner, espantado.

— Para quê? — perguntou Legarth. — Possuo uma licença que me permite transportar certa quantidade de mercadorias por dia. Costumam apenas fazer a soma, para evitar que eu remeta demais. Por ocasião da descarga da espaçonave, a mercadoria é submetida a um controle rigoroso, para evitar que se introduzam mercadorias proibidas em Aralon. — Sorriu. — Além disso os comerciantes terranos são conhecidos por sua honestidade.

A súbita disposição de ajudar despertou em Vouner dúvidas quanto à sua sinceridade. Não podia dar nenhum passo irrefletido.

— Quer dizer que não há perigo de que me descubram?

— O senhor chegará são e salvo a Doun — disse Legarth.

— Quanto tempo terei de ficar na caixa?

Legarth olhou para o relógio pendurado em cima da escrivaninha. O mostrador tinha duas escalas de tempo, a torguense e a terrana, permitindo que se comparasse as respectivas horas.

— No máximo uma hora — respondeu Legarth. — Venha comigo. Vou levá-lo à rampa de carregamento.

Os dois homens saíram do escritório. Assim que a porta se fechou atrás deles, June Legarth soltou um suspiro, foi até a escrivaninha e deixou-se cair na cadeira do pai. A vida em Aralon era uma agitação constante. Um belo dia abandonaria o pai e voltaria à Terra. Essa decisão já fora tomada muitas vezes, mas nunca chegou a ser executada...

Lembrou-se do homem com o ativador celular. Era um tipo estranho, de olhar sombrio e rosto amargurado. Seria um aventureiro? Um criminoso? Um agente? Ou um homem igual a qualquer outro, que o acaso arrastara para um torvelinho de acontecimentos, cuja marcha não podia ser interrompida?

June fazia votos de que seu pai não cometesse nenhum erro. O homem que estava com ele parecia ser muito egoísta. Quando Legarth voltou, ainda estava mergulhada em suas reflexões. O despachante fechou ruidosamente a porta. Sua respiração era apressada.

— Pronto — disse em tom exultante. — O homem caiu na cilada.

June levantou-se de um salto. Parecia assustada.

— O que é isso? Pretende entregá-lo à polícia?

— Não, nada disso. — Num gesto tranqüilizador, Legarth colocou as mãos nos ombros da filha. — Está sentado dentro de uma caixa, à espera de que alguém vá buscá-lo...

June soltou um suspiro de alívio. Não queria ser envolvida em coisas que lhe causavam repugnância.

— Vamos à nossa casa de campo — disse o pai, de repente. — Logo deverá chegar lá.

— Quem deverá chegar? — perguntou June em tom de espanto.

— O homem que tem o ativador celular. Fiz com que entrasse na caixa errada. Sabe, é aquela com os mantimentos que costumamos receber da Terra. O carro dirigido por robô levá-lo-á à nossa casa de campo, não ao transmissor. Quando descobrir que fui mais esperto que ele, terá uma grande surpresa. O ativador não continuará por muito tempo em suas mãos.

Surpresa, June desprendeu-se das mãos do pai.

— Você quer ficar com o ativador?! — exclamou em tom apavorado. — Pretende roubar esse homem?

— Será que você acredita que ele conseguiu o aparelho por meios honestos? — contra-indagou o pai, em sua defesa.

June olhou pela janela com uma expressão pensativa.

— O que acontecerá com ele?

— Terei de matá-lo — disse Legarth, em tom frio.

Naquele momento June sentiu que o último elo que a ligava ao pai se rompera. Seus lábios entreabertos não proferiram uma única palavra. Legarth segurou-a violentamente pelo braço.

— Vamos — disse. — Não tenho alternativa. Precisamos chegar à casa de campo antes do carro robotizado.

 

A casa de campo de Legarth ficava junto a um grande parque, nas proximidades de Pasch. Seu estilo mostrava sinais inequívocos de arquitetura terrana. Enquanto subia juntamente com o pai os degraus que levavam à porta de entrada, June Legarth nem notava a beleza da paisagem. Legarth levou-a à sala de jantar e trancou a jovem.

— Fique quieta — disse o pai.

Depois afastou-se ruidosamente pelo corredor.

Da janela da sala de jantar, June via a rua pela qual deveria chegar o carro robotizado com a carga humana. Estava muito preocupada. Ouviu o pai entrar na sala de estar. Provavelmente fora buscar uma arma. Fechou os olhos por um instante. Não podia fazer nada para evitar que o inconcebível acontecesse. O pai se transformaria num assassino para alcançar a imortalidade. June esforçou-se para compreender o fato incrível; queria entender os motivos que levavam aquele homem idoso a praticar tal ato. Devia ser alguma coisa que não compreendia, alguma coisa que seu espírito não conseguia absorver.

Permaneceu imóvel junto à janela.

De repente viu o veículo robotizado passar pela curva que ficava junto ao parque. Enquanto se precipitava pela pista bem aplainada, refletia a luz do sol. O velho Legarth apareceu na escada e saiu lentamente para a rua. Segurava a arma térmica embaixo do braço.

June acompanhou o desenrolar dos acontecimentos. Estava apavorada, mas não conseguia tirar os olhos daquele quadro.

O carro robotizado aproximou-se velozmente. June já distinguia a caixa em sua plataforma de carga. Começou a soluçar.

Seu pai se transformaria num assassino. Viu que o carro estava reduzindo a velocidade. Legarth esperava calmamente junto à estrada.

A ânsia de alcançar a imortalidade arrancara mais um homem do chamado “bom caminho”.

Em algum lugar do Universo, devia soar a essa hora uma risada fantasmagórica. Alguém sentiria uma alegria mordaz pela fraqueza dos humanos. O jogo dos ativadores celulares fora encenado pelo Ser espiritual de Peregrino. Os atores eram os homens.

Seres humanos como Spencer e June Legarth, como Darfass e Kler-Basaan!

Seres humanos como Hendrik Vouner...

 

A idéia de alcançar a vida eterna apagara todos os sentimentos em Spencer Legarth.

Esperou obstinadamente pelo veículo robotizado. Torcia para que o tempo não se tornasse muito longo. Mas o homem não poderia saber que caminho o veículo percorreria para chegar ao transmissor e quanto tempo levaria para chegar lá.

O carro robotizado parou perto de Legarth. Este saltou sobre a rampa de carregamento. A caixa estava lá. Legarth apontou a arma.

Esperou que o terrano abrisse a tampa da caixa. Mas não aconteceu nada. Provavelmente estava desconfiado e procurava escutar alguma coisa.

Legarth não conseguiu reprimir mais a impaciência. Deu um pontapé na tampa da caixa, que caiu do outro lado do veículo.

Spencer Legarth fitou a caixa. Estava estupefato. Não encontrou nenhum alvo, pois o homem que esperara encontrar desaparecera!

Legarth respirava pesadamente. Havia um bilhete no fundo da caixa. Legarth pegou-o e leu as linhas traçadas em letras apressadas:

 

Um velho negociante de nome Darfass deu-me algumas lições da língua torguense. Os conhecimentos que adquiri bastam para identificar os letreiros das caixas. Dessa forma não demorei a descobrir qual era a carga destinada ao transmissor. Legarth, o senhor é um mentiroso nojento.

Vouner.

 

Perplexo, Legarth deixou cair o bilhete. Desceu do carro e voltou para dentro da casa. Abriu a porta da sala de jantar. Sua filha estava encostada à parede e fitava-o.

— Escapou... — disse Legarth.

— Não ficarei mais com você — disse June, enojada. — Voltarei à Terra na primeira nave.

Legarth nem parecia ouvi-la. Foi até o armário e pegou uma garrafa. Abriu-a apressadamente e bebeu. O álcool ardia em sua garganta.

Se andasse depressa, poderia avisar a administração do transmissor antes que fosse tarde. Mas isso representaria sua própria sentença de morte.

Não podia fazer nada, absolutamente nada. Voltou a beber. Atirou a arma para longe.

— Foi embora — repetiu.

June Legarth passou por ele, saiu para o corredor, desceu pela escada e tomou o caminho que dava para a estrada.

A brisa ligeira tangeu uma folha de papel à frente dos seus pés. Era o bilhete de Vouner. June não o notou. Da casa de campo que tinha ficado para trás, não se ouvia o menor som. A única coisa que June ouviu foi o ruído de seus passos, que faziam ranger a areia ornamental.

 

Quando viu Legarth sair com a filha, Vouner não teve mais a menor dúvida de que o despachante lhe armara uma cilada. Assim que Legarth voltara ao escritório, Vouner saíra da caixa em que o despachante o havia colocado.

Perto da rampa viam-se os veículos robotizados que executavam todos os trabalhos. Vouner fora sorrateiramente até o escritório, mas só conseguira ouvir algumas palavras. Depois de algum tempo, Legarth e sua filha saíram. Vouner correu em torno do edifício e ainda chegou a ver quando os dois se afastaram num veículo particular.

Voltou à rampa de carregamento. Examinou os letreiros das caixas. Não demorou a descobrir que aquela em que Legarth o fizera entrar se destinava à casa do despachante. Compreendeu imediatamente o que pretendiam fazer com ele.

Foi ao escritório e escreveu uma pequena mensagem dirigida a Legarth. Colocou-a na caixa. Dali a pouco um dos veículos robotizados pegou a carga. Vouner acenou com a cabeça. Estava acontecendo exatamente aquilo que ele esperara. Sem dúvida, Legarth esperaria sua “carga” em algum lugar, com a arma engatilhada...

Vouner percebeu que não podia confiar nem mesmo nos seres pertencentes à sua raça que moravam em Aralon. Também estes fariam o possível para tirar-lhe o ativador celular

Examinou cuidadosamente as caixas. Escolheu uma que se encontrava bem na frente e, segundo o letreiro, se destinava a Doun.

A tampa estava fechada. Abriu-a à força. A caixa estava cheia de artigos de madeira trabalhada. Vouner pegou as figuras e levou-as ao escritório de Legarth. Colocou-as sobre a escrivaninha.

Olhou para o relógio. Passava um pouco das três horas, tempo padrão. Em Pasch ou em Aralon, isso não significava muito tempo. Na Terra registrava-se o dia 29 de abril de 2.326. Vouner espantou-se. Tinha a impressão de já ter passado uma eternidade em Aralon.

Vouner voltou para o pátio e escondeu cuidadosamente o material de embalagem. Provavelmente pesava um pouco mais que os artefatos de madeira, mas a diferença não podia ser muito grande. Entrou na caixa de plástico e pegou a tampa. Enganchou-a dos dois lados e deixou que o fecho entrasse no lugar. Não havia a possibilidade de sentir falta de ar, pois no fundo da caixa havia orifícios de ventilação.

Vouner ficou encolhido em seu esconderijo pouco confortável. Tudo dependia de que o carro robotizado chegasse antes de Legarth, que em dado momento descobriria que seu plano fracassara. Os veículos de transporte obedeciam a uma programação previamente determinada e prosseguiam em seu trabalho, mesmo na ausência do ser humano.

Depois de alguns minutos, Vouner percebeu que o desejo de levantar a tampa e olhar para fora da caixa era cada vez mais intenso. Contara com isso. Fez um esforço para controlar-se. O êxito de seu plano dependia da boa execução de suas tarefas. Se por acaso alguém passasse por ali e visse que uma das caixas se abria por si, as esperanças de Vouner se teriam desvanecido.

Por isso ficou quieto no escuro, esperando a cada momento ouvir passos que se aproximassem. O medo de que de repente alguém pudesse levantar a tampa quase chegou a transformar-se em pânico.

As mãos de Vouner seguraram firmemente a arma. Perdeu a noção do tempo.

De repente a caixa sofreu um ligeiro solavanco. Vouner soltou um grito, mas logo comprimiu ambas as mãos contra a boca. Praguejou. Sentia medo. Alguma coisa ergueu a caixa. Devia ser o dispositivo de carregamento de um veículo robotizado. Por alguns segundos Vouner e sua caixa atravessaram o ar. De repente a caixa foi colocada no chão com um baque. Não apareceu ninguém para olhar para dentro dela. Vouner voltou a respirar mais tranquilamente.

Por algum tempo não aconteceu nada. Provavelmente os robôs estavam colocando outras peças de carga no veículo. Vouner fazia votos de que a caixa na qual se encontrava estivesse entre as outras, num lugar em que não despertasse a atenção.

Ouviu um ruído. Mais uma vez sentiu-se dominado pelo desejo de abrir a tampa. Tentou abrir apenas uma pequena fresta. Fez pressão contra a tampa, mas esta não cedeu. Concluiu que havia outras mercadorias empilhadas sobre a caixa.

Vouner contou os segundos. Por que esse maldito carro não saía logo? Estava banhado em suor, mas só lhe restava esperar. Ele mesmo se colocara numa situação da qual não haveria saída, se houvesse o menor incidente.

Finalmente o carro partiu. Desceu silenciosamente da rampa. O molejo pneumático absorveu quase totalmente as irregularidades da pavimentação.

“É agora”, pensou Vouner. “O carro está saindo da propriedade de Legarth.”

 

A imagem do presidente do Conselho Médico de Aralon tornou-se mais nítida. Uwasar não se sentiu nada à vontade ao fitar seu superior imediato. Ligou seu equipamento transmissor. A expressão de seu rosto mudou.

— Então? — perguntou Tabes. — Já conseguiu alguma coisa?

— Nada — confessou o agente. — Até parece que esse terrano se desmanchou no ar.

Tabes ficou indignado.

— Quer dizer que esse homem ainda está de posse do ativador celular? — perguntou.

— Isso mesmo — confirmou Uwasar. — Quase conseguiu atravessar o oceano.

— Num barco? — perguntou Tabes, em tom de incredulidade.

— É claro que não ia fazer a travessia a nado! — exclamou Uwasar, que estava aborrecido com algumas tentativas fracassadas. — Mantemos ocupados todos os locais de pouso e decolagem em Pasch. Não existe a menor possibilidade de que ele escape pelo ar. O caminho marítimo também foi fechado. O homem só pode estar em Pasch, mas ainda não o descobrimos. Na costa existe uma caverna usada pelos contrabandistas, cuja organização o senhor vem tolerando.

Uma crítica amarga vibrou nas palavras de Uwasar quando concluiu:

— Se não fosse o apoio de um chefe dos contrabandistas, ele nunca teria chegado a Pasch.

— Deixe as considerações de lado — exigiu Tabes, em tom enfático. — Sua tarefa consiste em prender esse terrano, não em criticar as falhas do conselho.

Uwasar pediu desculpas.

— Quero dizer-lhe mais uma coisa — falou Tabes. — Não pense em enganar-me. O senhor é um agente muito eficiente, mas não entende de diplomacia.

O agente empalideceu. Tabes sorriu.

— E o transmissor de matéria? — perguntou o presidente. — Ele talvez queira chegar a Doun através dele?

— O senhor sabe que todas as pessoas que utilizam o transmissor são submetidas a um rigoroso controle — ponderou Uwasar.

— Talvez não tenha atravessado o transmissor como pessoa.

Os olhos de Uwasar chamejaram.

— O senhor acha que pode ter-se metido na carga? Não é possível. Para isso ele teria de recorrer a um despachante.

— Em Pasch vive um negociante terrano — lembrou Tabes. — Não consigo lembrar-me do nome. O homem tem um contrato com a administração do transmissor. Esse contrato lhe permite transportar para Doun as mercadorias terranas vindas de Forungs.

O agente bateu animadamente as mãos.

— Aí está uma pista — disse. — Cuidaremos disso imediatamente...

O tom de sua voz demonstrava perfeitamente o aborrecimento que sentia por não ter tido essa idéia.

— Não perca tempo — recomendou Tabes. — Talvez já seja tarde.

 

Vouner sentiu que o veículo estava parando. Acabara de aproximar-se do transmissor. Sem dúvida, Legarth não era o único despachante que utilizava o aparelho. Por isso era possível que Vouner ainda tivesse uma espera prolongada pela frente.

Aos poucos começou a acreditar que conseguiria passar pelo transmissor. Mas a tensão não diminuiu. O que aconteceria quando saísse em Doun? Quem seria o destinatário da carga? As caixas seriam guardadas num depósito, ou seriam abertas imediatamente?

A resposta a estas perguntas só seria encontrada assim que chegasse ao destino, se é que teria tempo para isso.

O carro voltou a deslocar-se. Vouner passou a refletir ainda mais. Ergueu o corpo no esconderijo apertado. O que significava isso? Será que a mercadoria estava sendo levada a um posto de controle? Quem sabe se Legarth não telefonara à administração do transmissor depois que descobrira o bilhete? Não, pois com isso só se prejudicaria a si mesmo.

Vouner agarrou firmemente o ativador celular, que continuava pendurado no seu peito. O pânico quase chegou a dominá-lo. Sentiu que fora descoberto, mas logo obrigou-se a reflexionar logicamente.

Uma voz masculina gritou números torguenses. A voz era cada vez mais nítida, e Vouner logo compreendeu por quê. As caixas empilhadas em cima dele estavam sendo levadas uma após a outra. Dali a pouco chegaria sua vez.

Ouviu o ruído de uma forte batida.

— Cuidado! — gritou alguém em intergaláctico. — Se deixarmos cair as caixas, elas podem estourar.

Vouner sentiu-se dominado pelo medo. O que faria se isso acontecesse com a caixa na qual se encontrava? De repente sentiu que seu esconderijo apertado começava a balançar. Foi levantado e, balançando constantemente, levado a outro lugar. A caixa descrevia movimentos pendulares. Vouner segurou a tampa com ambas as mãos, para evitar que ela se abrisse.

O guindaste colocou a caixa no chão. O volume começou a deslizar sobre uma fita transportadora.

— Dezessete — disse alguém em tom de indiferença.

A caixa foi detida, e alguém pareceu aplicar-lhe um carimbo.

— Vamos — disse alguém.

Os lábios de Vouner tremiam. Mas se atrevia a respirar. Será que isso nunca teria um fim? Sentiu que continuava a ser transportado.

Ouviu o ruído e a trepidação de motores. Vouner procurou interpretar esse ruído. De repente parou de novo. Alguma coisa passou sobre a caixa.

— Chi-clac-chi-clac.

Vouner perdeu o controle dos nervos. Soltou um grito e comprimiu o corpo contra a tampa da caixa, para abri-la. Sentia-se dominado por uma idéia: sair desse lugar apertado, do esquife de plástico em que se sepultara.

Mas a tampa não cedeu. Os braços de Vouner amoleceram. Sabia perfeitamente o que tinha acontecido. Uma máquina colocava cintas de aço em torno das caixas, para evitar que as mesmas abrissem.

Essa precaução também fora tomada com a caixa em que Vouner se encontrava. Se ninguém o ajudasse, não poderia sair dela, caso usasse uma das duas armas que trazia, seria morto pela ação reflexa, pois o alvo estava próximo demais, por menor que fosse o desempenho energético.

Vouner não teve alternativa. Só lhe restava esperar que aparecesse alguém e abrisse a caixa.

Já tinha certeza de que chegaria a Doun, mas lá cairia irremediavelmente nas mãos dos aras.

Conseguira coisas incríveis. Durante a fuga atravessara quase metade do planeta. E fizera tudo isso apenas para acabar preso.

Teve outra idéia. E se essas caixas fossem depositadas em algum lugar? Se não fossem abertas imediatamente. Se ficasse ali por dias, semanas, meses... não suportaria!...

A caixa voltou a rolar. Quando parou, encontrava-se no interior do transmissor.

Vouner compreendeu isso no momento em que perdeu os sentidos.

 

— Peças de madeira — disse Uwasar, em tom pensativo. — A escrivaninha está cheia de peças de madeira, e de Legarth, nem sinal. E está na hora do expediente. — Fez um sinal para os homens que o acompanhavam. — Revistem tudo. Irei até a rampa de carregamento.

Poucos minutos depois concluíram que ali não alcançariam nenhum resultado palpável. Uwasar voltou ao escritório com um maço de papéis.

— Recibos de carga! — exclamou. — Legarth envia mercadorias ao transmissor quase durante todo o dia. Precisamos falar pessoalmente com ele.

— Aqui há uma remessa particular — disse Klaron. — Nela se alude a uma casa de campo.

— O endereço consta dos documentos? — perguntou Uwasar.

— Fica fora da cidade, junto ao parque de Jetin.

Uwasar abriu a porta do escritório.

— Vamos no planador — ordenou. — Certamente vamos encontrá-lo lá.

Os agentes saíram apressadamente. Todos eles haviam passado por um treinamento especial. Sabiam perfeitamente como agir em cada caso.

O planador estava parado no pátio do estabelecimento de Legarth, junto à rampa de carregamento. Entraram apressadamente. Uwasar ligou o sinal luminoso. Só os veículos policiais tinham permissão para voar sobre os edifícios das cidades subterrâneas.

Uwasar decolou e fez o planador subir rapidamente. Dirigiram-se velozmente ao túnel mais próximo, passando rente aos edifícios. Dali a alguns minutos atingiram a superfície de Aralon e, logo a seguir avistaram a casa de campo de Legarth junto ao parque de Jetin.

— Há um veículo de carga robotizado parado perto da casa — constatou Klaron e olhou através do aparelho de localização. — Também vejo um veículo menor. Deve ser o carro particular de Legarth.

Uwasar acenou com a cabeça. Parecia contrariado. Foram se aproximando.

Não apareceu ninguém para protestar por terem pousado nesse local. Os agentes correram escada acima. Uwasar passou pela porta da maneira como sempre fazia... Chegaram ao corredor. No primeiro instante a construção tipicamente terrana deixou os homens perturbados, mas logo voltaram a agir...

Encontraram Spencer Legarth na sala de estar, numa poltrona junto à gigantesca janela. Havia uma garrafa vazia jogada no chão. Legarth roncava. Seu enorme tórax subia e descia a intervalos regulares.

Uwasar mandou que os homens que o acompanhavam esperassem junto à porta.

Legarth era terrano e gozava da proteção do Império, ao contrário de Vouner, de cuja presença em Aralon nenhuma organização terrana tinha conhecimento. Até certo ponto, Uwasar estava com as mãos atadas, mas como a ação girava em torno de um ativador celular, resolveu arriscar mais do que normalmente arriscaria com um terrano.

Bateu no rosto do despachante.

Legarth grunhiu, abriu lentamente os olhos e piscou para Uwasar.

— O senhor está bêbado! — gritou Uwasar.

Segurou Legarth pela gola da jaqueta e levantou-o. O terrano cambaleou, mas ficou de pé. Abaixou-se para procurar a garrafa, mas Uwasar deu-lhe um pontapé que a fez rolar para a extremidade oposta da sala.

— Somos do Serviço Secreto do Conselho Médico — informou Uwasar. — Temos de interrogá-lo.

Um brilho de insegurança surgiu nos olhos de Legarth.

— Já conseguiram agarrá-lo? — perguntou.

Legarth estava aludindo ao terrano. Uwasar sentiu-se contagiado pelo nervosismo do terrano.

— O homem esteve aqui? — gritou para Legarth.

— Aqui?! — repetiu o terrano, com uma risadinha. — Esse demônio me mandou uma caixa vazia. Isso mesmo! Uma caixa vazia e uma carta para “um velho amigo”.

— Onde está o homem que tem o ativador? — perguntou Uwasar.

Por um instante o despachante pareceu estar livre dos efeitos do álcool. Seu rosto assumiu uma expressão tristonha.

— Em Doun — respondeu. — A esta hora está em Doun.

Os olhos de Uwasar estreitaram-se. Quer dizer que Vouner já não podia ser encontrado em Pasch! Seria inútil continuar a interrogar o bêbado. Provavelmente Legarth ajudara o terrano a entrar no transmissor juntamente com a carga. Era possível que Vouner o tivesse obrigado a isso.

Empurrou Legarth para dentro da poltrona.

— Apresentarei queixa contra o senhor — protestou Legarth.

Uwasar fez um sinal para seus homens. A primeira coisa que teriam de fazer era ir ao transmissor. Devia haver uma possibilidade de verificar para que parte de Doun fora expedida a carga mais recente entregue por Legarth e quem era o destinatário. Face aos poderes de que dispunha, Uwasar conseguiria que também o atirasse pelo transmissor, juntamente com seus agentes. Dessa forma ainda poderiam prender Vouner antes que o terrano chegasse à base do Império.

Quando saíram da sala, Legarth gritou alguma coisa.

— Mais uma vez ele nos escapou — disse Klaron, em tom amargurado.

— Até parece um fantasma — observou Uwasar. — Quando pensamos que o encontramos, ele desaparece.

Nunca o chefe do Serviço Secreto de Aralon fizera um elogio destes a um dos seus adversários.

Suas palavras também significavam que a caçada prosseguiria.

— Um fantasma também pode ser agarrado — acrescentou. — Estamos nos seus calcanhares... Sua dianteira vai diminuindo. Deveremos alcançá-lo em Doun.

 

As células dissolveram-se em moléculas e as moléculas em átomos. Um turbilhão energético, que era a reprodução dimensional de Hendrik Vouner, foi atirado através do transmissor praticamente num tempo zero. Era possível formular a representação formal do fenômeno, mas este nunca podia ser compreendido em toda extensão.

Sob o ponto de vista matemático, Vouner sofria uma perda de energia durante sua viagem pelo ativador. A perda era tão reduzida que quase não podia ser expressa em números. E o homem que surgiu no receptor era o mesmo Hendrik Vouner. Antes dele, milhares de homens haviam recuperado a consciência e constataram satisfeitos que nada lhes acontecera.

Os físicos costumavam dizer que o corpo que saía dos transmissores só devia ser o mesmo que havia entrado neles.

Os filósofos afirmavam que nunca seria possível provar isso. Falavam em outros planos de probabilidade, nos quais mergulhava o corpo original. Enquanto isso a reprodução continuava a viver no mesmo universo, e um dos corpos não tinha conhecimento da existência do outro.

Assim que Hendrik Vouner recuperou os sentidos, as angústias de antes, a preocupação martirizante pelo ativador, o ódio contra todos que punham os olhos nele voltaram a surgir em sua mente.

Tinha certeza de que conseguira fazer o salto pelo transmissor. Encontrava-se em Doun. Estava trancado numa caixa de plástico na qual mal havia lugar para um corpo humano.

Não tinha outra alternativa senão esperar que a carga chegasse ao destino e alguém a abrisse.

Numa ironia feroz lembrou-se de que representava um substituto miserável para as figuras de madeira destinadas a algum colecionador.

Não demorou a ser transportado. Uma máquina pareceu agarrá-lo levemente e o carregar. Vouner segurou firmemente a arma.

Depois de algum tempo, a caixa em que estava Vouner sofreu um solavanco e foi colocada no chão de forma nada suave. Vouner bateu com a cabeça contra o material duro.

Esperou pacientemente. Uma ligeira trepidação o fez concluir que se encontrava num veículo em movimento. Apenas podia supor que a carga voltara a ser colocada num veículo, que a transportaria ao lugar de destino. Era uma viagem para o desconhecido.

Se a situação fosse outra, Vouner talvez tivesse se conformado com a situação em que se encontrava, mas o fato de possuir um ativador celular modificava as coisas por completo. Afinal, havia uma diferença entre perder a vida e perder a imortalidade... Vouner teve a impressão de que a perda do ativador equivaleria a uma morte multiplicada muitas vezes!

Durante a fuga, a idéia que Vouner fazia da imortalidade tornara-se cada vez mais confusa. Se conseguisse pisar em solo terrano com o ativador, seria um imortal, mas também seria um homem amargurado, desconfiado, odiado, sem amigos.

Seria o preço que Hendrik Vouner teria de pagar. Naturalmente não tinha uma idéia nítida disso. As pessoas que o caçavam, que corriam atrás do ativador, eram pessoas repugnantes, invejosas, verdadeiras encarnações do Mal.

Sob o ponto de vista psicológico, Vouner encontrava-se na fase que costuma ser atravessada por uma pessoa que não consegue enfrentar um problema e, para livrar-se dele, transfere todos os aspectos negativos da situação ao ambiente que o cerca.

A viagem pelo desconhecido transformou-se num pesadelo. Vouner sentia-se agitado pelo medo e pela incerteza. Enquanto o veículo rolava por Doun, Vouner aprendeu o que significava sentir pavor. Ninguém o ameaçava, e sua vida não corria um perigo imediato. Mas havia a caixa apertada, a escuridão, o silêncio interrompido apenas pelo ruído monótono do veículo.

Vouner assobiou, mas não conseguiu formar nenhuma melodia.

— Fiu-fiu-fiu!

Seriam dez quilômetros! Cem quilômetros? Mil quilômetros?

Os tremores lhe causavam um suor frio...

O ativador celular que trazia sobre o peito parecia pesar mais de cem quilos. Vouner gritava palavras desconexas. Tinha medo. Círculos e figuras coloridas pareciam dançar diante dos seus olhos.

— Fiu-fiu-fiu... Era o fim!

O carro parou.

O pavor desapareceu. Vouner respirou profundamente e comprimiu as mãos trêmulas contra o peito. Alguma coisa acontecera com ele, alguma coisa mudara nessa viagem apavorante. Vouner estava tão preocupado consigo mesmo que quase não percebeu que estava sendo carregado.

O choque que sofreu quando a caixa foi colocada no chão fê-lo voltar à realidade.

— Tragam para cá! — disse uma voz áspera, em intergaláctico.

Vouner estremeceu. Foi levantado e carregado mais um pedaço.

— Está bem — disse a mesma voz. — Larguem isso e saiam.

A pessoa que acabara de falar devia ter mandado embora dois ou mais robôs. Mas o que era mais importante era o fato de que o homem que, dentro de instantes, abriria a caixa estava só. As esperanças de Vouner renasceram.

Vouner segurou firmemente a arma. Apontou-a exatamente para o lugar em que a tampa deveria ser levantada.

Alguém pigarreou fortemente. Vouner ouviu um rangido.

Passos aproximaram-se. O corpo de Vouner ficou tenso que nem uma mola. As fitas de aço foram cortadas. Um calafrio desceu pela espinha de Vouner.

Finalmente a tampa abriu-se.

Vouner viu um rosto velho e barbudo, que parecia enrijecer numa expressão aterrorizada.

Vouner fez um gesto ameaçador com a arma. Falou com a voz quebradiça:

— Não se mexa, velho!

 

Seguido por seus homens, Uwasar atravessou os controles existentes na entrada do transmissor com as credenciais em punho. Segurou o braço do primeiro ara em que pôs os olhos e gritou:

— Suspenda imediatamente as remessas pelo transmissor! São ordens do Conselho Médico.

O homem fitou-o com uma expressão de perplexidade. Uwasar enfiou seu documento de identidade embaixo do nariz do homem.

— Vamos logo! — chiou. — Ande depressa, senão acaba ficando sem o emprego.

O homem precipitou-se para o interior de uma pequena cabina e pegou o interfone. Olhando através do visor, Uwasar notou que o funcionário proferia palavras apressadas. Logo depois o ara saiu da cabina.

— Tomei todas as providências — disse, bastante confuso. — Hodron manda pedir que compareça a seu escritório, para dar à administração uma explicação sobre a estranha medida.

Uwasar soltou uma risada.

— Se Hodron quiser conversar comigo, que venha. — O funcionário empalideceu. — Leve-nos imediatamente ao setor de carga!

O ara, que parecia chocado, apontou para o largo corredor.

— Queira seguir-me.

— Deixe-se de cerimônias — disse Uwasar. — Nós iremos na frente.

O funcionário apressou o passo para continuar ao lado dos agentes. Chegaram a uma grande rampa. Os robôs carregavam ininterruptamente pacotes e embrulhos nas fitas e empilhavam os volumes na rampa. Dali eram transportados em carros, depois de carimbados.

O funcionário fez sinal para que outro ara se aproximasse.

— Quero apresentar Zoun-Pergal — disse. — É o chefe do turno.

— Foi o senhor que deu ordem para que as remessas fossem interrompidas? — perguntou Zoun-Pergal, em tom zangado.

— Isso mesmo — disse Uwasar, áspero. — Faça o favor de suspendê-la imediatamente.

Mostrou seus documentos ao homem.

Zoun-Pergal parecia ter sido picado por uma tarântula. Virou-se abruptamente e gritou algumas ordens. As fitas pararam. Os robôs mantiveram-se em posição de espera.

— Temos suspeitas fundadas de que um criminoso muito perigoso se tenha introduzido entre a carga... — principiou Uwasar. — O senhor já enviou hoje a Doun carga de certo terrano cujo nome é Legarth?

— Um momento — pediu Zoun-Pergal.

Dirigiu-se ao pequeno escritório que ficava no fim da rampa e logo voltou com um maço de recibos de carga. Folheou-os, enquanto Uwasar olhava em torno.

— Há pouco foi despachada uma remessa para Doun, por ordem de Mr. Legarth — respondeu Zoun-Pergal, depois de algum tempo.

— Todas as caixas despachadas por Legarth serão examinadas imediatamente — disse Uwasar e fez um sinal para os homens que o acompanhavam. — Eu e os meus ajudaremos. Graças ao equipamento que possuímos, não será necessário abrir todas as caixas.

Começaram a trabalhar sob a direção de Uwasar. Em vinte minutos, todas as cargas expedidas por Legarth foram submetidas a um rigoroso exame.

— Nada! — exclamou Uwasar, decepcionado. — Absolutamente nada!

Dirigiu-se a Zoun-Pergal.

— Tem certeza de que a carga que Legarth despachou hoje é só esta?

— Já lhe disse que parte da carga já foi remetida para Doun.

— Quero ver os recibos — disse Uwasar. — Preciso saber para onde as mercadorias de Legarth foram levadas em Doun.

Zoun-Pergal entregou-lhe os documentos. Uwasar folheou-os apressadamente. De repente empalideceu.

— Algo de errado? — perguntou Zoun-Pergal, cautelosamente.

Uwasar pegou os recibos de carga e os reduziu a um bolo. Enfiou os papéis amassados no bolso e disse:

— Voltem para Forungs. Prosseguirei sozinho no trabalho.

Afastou as objeções com um gesto resoluto.

— Preciso ir a Doun — disse, dirigindo-se a Zoun-Pergal. — Envie-me para lá pelo transmissor.

Zoun-Pergal obedeceu prontamente.

Uwasar atravessou o grande arco do transmissor e foi transferido para Doun.

Mais tarde se diria que nunca chegara a sair do aparelho em Doun, mas isso era uma lenda. O fato é que Uwasar desapareceu em Doun. Nunca mais foi visto. As investigações realizadas por ordem do Presidente do Conselho Médico apenas revelaram um boato: Uwasar abandonou Aralon!

 

Vouner saiu da caixa de um salto, mantendo sempre a arma apontada para o velho. Vouner percebeu imediatamente que era um terrano. Viu-se numa sala não muito grande, que servia simultaneamente de escritório e dormitório.

— Quem é o senhor? — gaguejou o velho, que aos poucos foi recuperando o autocontrole. — Como entrou nessa caixa?

— Sente-se — ordenou Vouner. — E nem pense em pedir socorro.

O barbudo obedeceu. Vouner esperou calmamente que ele se sentasse.

— Preste atenção — disse. — Estou numa situação desesperada, e não há nada que eu não seja capaz de fazer...

O velho fitou Vouner como se tivesse um fantasma pela frente.

— Em que cidade estou? — perguntou Vouner.

— Cidade? — perguntou o barbudo, em tom de perplexidade. — O que quer dizer? Não compreendo.

Vouner deu um passo em direção ao velho, mantendo sempre a arma apontada para o mesmo.

— Não me venha com desculpas. Sei que estou num local de Doun.

— O senhor só pode estar louco — disse o velho terrano.

— Pois vou reformular minha pergunta — disse Vouner. — Qual é o caminho mais rápido para a base do Império?

Para surpresa de Vouner, o velho começou a rir.

— O que pretende fazer na base? — perguntou.

— Estou fugindo. Preciso da proteção do Império.

— Pois não — respondeu o homem. — Concedo-lhe esta proteção.

— Chega! — gritou Vouner. — Não tente fazer-me de bobo por mais tempo. Se não disser coisa com coisa, o interrogatório será conduzido de forma diferente.

— Antes que o senhor me mate eu lhe direi onde está, jovem. — Um sorriso amável surgiu no rosto do velho. — Neste momento o senhor está falando com O'Day, comandante da base do Império. O senhor se encontra no interior da base.

Hendrik Vouner baixou a arma. Recuou um passo e fechou os olhos. Sentiu-se inundado por um tremendo alívio.

— Esperava um lote de esculturas em madeira — disse O'Day. — Sou um colecionador apaixonado desse tipo de coisa. Talvez o senhor possa explicar por que saiu da caixa no lugar das esculturas.

— Pretende entregar-me? — perguntou Vouner.

O'Day levantou-se. Vouner não procurou impedi-lo. O comandante fechou a tampa da caixa e fitou Vouner de lado.

— Quem poderia pedir sua extradição?

— Muita gente de Aralon estaria interessada — respondeu Vouner.

— Ah, é? — perguntou O'Day, esticando as palavras. — Por quê?

Vouner abriu a capa, para que o comandante pudesse ver o ativador celular.

— Será que este motivo basta?

— Sem dúvida — respondeu O'Day, em tom indiferente. — Como conseguiu arranjar isso?

— Encontrei o ativador no segundo planeta do sistema de Velander.

— Como assim? — perguntou O'Day.

Vouner explicou. E contou toda a história de sua fuga. Não omitiu nada. O'Day não o interrompeu. Era o melhor ouvinte que Vouner já tivera. Levantou-se uma única vez para servir um copo de vinho a Vouner.

Vouner também estava sentado. Guardara a arma no cinto. Sentia-se feliz por poder falar à vontade.

— Se sua história for verdadeira, o ativador celular é seu. Acontece que o administrador lhe proporá a compra do aparelho pelo preço de dez milhões de solares — disse O'Day.

— Isso é muito dinheiro — disse Vouner, em tom indiferente.

O'Day lançou-lhe um olhar penetrante.

— Evidentemente seu relato será conferido. Não quero deixar de mencionar que tentarão provar que o senhor cometeu alguma falta ou fraude, para poder tomar-lhe o ativador pelos meios legais.

— Isso será pura perda de tempo — disse Vouner.

O'Day recostou-se na cadeira. Esperou que Vouner tomasse o vinho.

— Quer comer alguma coisa? — perguntou.

— Quero — respondeu Vouner. — Os últimos dias não foram nada agradáveis para mim.

O rosto de O'Day assumiu uma expressão pensativa.

— Devido as circunstâncias o caso do senhor poderá trazer complicações. Até pode acontecer que Aralon se separe do Império. — Levantou-se e dirigiu-se ao interfone. — Espero que não haja nada, mas de qualquer maneira o administrador deve ser avisado imediatamente.

— Pretende falar com Terrânia agora?

— Não — respondeu O'Day, com uma risada. — Pretendo pedir uma refeição para o senhor.

— Obrigado — disse Vouner.

O'Day mandou que trouxessem comida quente. Não perturbou Vouner enquanto o fugitivo comia. Quando terminou, O'Day ofereceu-lhe um charuto.

— Esperei de propósito que o senhor se acalmasse um pouco. O senhor pode tomar banho e dormir na minha residência, que não é grande. Mostrar-lhe-ei tudo. Enquanto isso falarei com Terrânia.

De repente Vouner pôs-se de pé.

— Espere aí — gritou. — Antes de sair desta sala, o senhor tem de provar que realmente me encontro no interior da base.

O'Day sorriu e passou a mão pela barba. Fez um sinal para Vouner.

— Vamos até a janela — pediu. Vouner colocou-se ao lado do comandante e olhou pela janela. Viu a bandeira do Império tremular sobre uma abóbada. Dessa abóbada saíam quatro construções secundárias.

— Está satisfeito? — perguntou O'Day.

Vouner fez que sim. Parecia embaraçado. Mas nem por isso sua desconfiança desapareceu. Estava tão acostumado em cuidar-se com as pessoas, que sentia dificuldade em reconhecer intenções honestas em alguém.

O'Day mostrou-lhe onde ficava o banheiro e a cama. Depois deixou Vouner só. Hendrik encheu a banheira e tirou a roupa.

Lembrou-se de uma cena parecida na loja de Darfass. Parecia que fora há vários anos.

Tirou o ativador e entrou na água. Adormeceu no banho. O'Day apareceu depois de algum tempo e acordou-o. Viu que Vouner logo pôs a mão no ativador, mas não disse nada.

— Falei pessoalmente com Perry Rhodan — informou o comandante. — Já está a caminho de Aralon.

Vouner pegou a toalha. O'Day explicou:

— Isso significa que preciso fazer a base brilhar. Rhodan não é muito exigente nessas coisas, mas o regulamento manda que, quando aparece um superior, tudo deve estar impecável.

— Quer dizer que Rhodan vem a Aralon por minha causa? — perguntou Vouner.

O'Day apontou para o ativador.

— Não acredito que o senhor seja o verdadeiro motivo — disse.

 

A Pusan era uma das naves mais modernas da Frota do Império. Destinava-se principalmente a missões especiais, que exigiam uma ação rápida. Tinha quinhentos metros de diâmetro, mas podia ser manobrada por trinta homens. As instalações da Pusan revelavam o uso da tecnologia mais recente.

Naquele momento, Perry Rhodan, Reginald Bell e Gucky, o rato-castor, encontravam-se a bordo, além da tripulação normal.

Via-se perfeitamente que Gucky fora convocado de surpresa para a missão, pois não se esforçava para dissimular a contrariedade.

— Acho que tudo isso não passa de uma lenda — resmungou mais uma vez, depois que Rhodan pedira a distância que os separava do sol Kesnar.

— O'Day não costuma contar lendas — disse Bell. — Além disso qualquer pista de um ativador deve ser seguida. Para alguns mutantes já está chegando a hora da ducha celular. Ainda não dispomos de ativadores para eles.

— São vinte e poucos aparelhos — disse Rhodan, em tom amargurado. — Precisaríamos pelo menos dez vezes este número, se quiséssemos suprir as personalidades mais importantes.

— Temos de conformar-nos com a idéia de que no Império só existem vinte e sete pessoas importantes, inclusive você e Atlan — disse Bell, em tom zangado.

Rhodan fitou o amigo com uma expressão séria.

— Isso é um raciocínio falho, gorducho. Sem dúvida o Ser espiritual de Peregrino espalhou vinte e cinco ativadores celulares pela Galáxia. Acontece que, por enquanto, só encontramos nove. Os outros dezesseis ainda não foram descobertos, ou então vêm sendo usados por pessoas que não são muito importantes...

Bell sabia perfeitamente que Rhodan tinha razão. Ele mesmo usava um dos ativadores que já haviam sido encontrados... O gorducho sabia como fora difícil encontrá-lo.

Teve uma vaga lembrança do sofrimento que lhe causara a idéia de, por acaso, perder a imortalidade. Naquele momento, muitos outros homens deviam sentir o mesmo tipo de medo.

Para um, dentre muitos, voltara a haver uma ligeira esperança. Era bem verdade que O'Day ressaltara que o homem que encontrara o ativador parecia tê-lo conseguido de forma legítima e, segundo parecia, nem pensava em vender o aparelho por dez milhões de solares.

Na opinião de Bell era uma atitude compreensível, mas totalmente errada.

Ao espalhar apenas vinte e cinco ativadores, e ainda por cima em lugares desconhecidos, o Ser de Peregrino tivera uma idéia diabólica. Bem, não esperavam outra coisa daquilo. A pergunta que mais interessava os dirigentes do Império, além dos ativadores, dizia respeito ao lugar para o qual teria fugido o Ser.

Quem ou o que teria um poder tão grande que lhe permitia pôr fuga o Ser espiritual de Peregrino? A idéia de que um poder desses pudesse existir não era nada agradável.

Gucky interrompeu as reflexões de Bell.

— O'Day caiu num truque estúpido — piou. — Alguém procura tirar-nos um montão de dinheiro.

— O dinheiro não será seu — respondeu Bell, irritado.

O rato-castor respondeu com um olhar ingênuo:

— Queira desculpar, gorducho, mas acontece que sou muito mais pontual no pagamento dos impostos que você. E, como bom contribuinte, tenho o direito de interessar-me pelos dispêndios públicos.

Bell soltou um gemido. Rhodan limitou-se a sorrir.

— Vamos ver o que nos aguarda em Aralon — disse em tom apaziguador. — Façam as pazes, pelo menos até que saibam se O'Day tem ou não razão.

A Pusan desenvolvia dezenas de vezes a velocidade da luz. No fundo, todos aqueles homens estavam bastante tensos. Afinal, um ativador celular estava em jogo.

Era mais um... Se O'Day tivesse dito a verdade, mais um homem importante poderia ser salvo.

O que aconteceria se o legítimo proprietário se recusasse a vender o ativador? Nesse caso o aparelho estaria perdido, a não ser que se conseguisse provar que aquele homem adquirira a posse do aparelho por meios ilegítimos.

Se alguém conseguisse conservar um ativador para seu uso, a notícia se espalharia pela Galáxia com a velocidade do vento. Qualquer pessoa que tivesse um meio de viajar pelo espaço correria atrás dos aparelhos restantes.

A idéia de que isso pudesse acontecer provocou visões desagradáveis na mente de Rhodan. Nunca seria capaz de dar ordem para tirar um ativador à força de um homem que o tinha conseguido de forma honesta.

A violência representava o fim da liberdade e da bondade. Rhodan nunca abriria caminho para essas coisas.

Precisava do ativador de Vouner, mas conformar-se-ia em ficar sem ele, caso não encontrasse um meio legítimo de adquiri-lo.

 

Ouviram-se passos firmes e vozes. Portas batendo, vozes de comando e as batidas de calcanhares.

Vouner saiu da cama e foi à sala de O'Day.

Estava na hora.

Perry Rhodan acabara de chegar à base. Nas últimas horas, Vouner se recuperara muito bem. O'Day quase sempre o deixara só e não tentara tirar-lhe o ativador.

Para o velho comandante, o aparelho nem parecia existir.

Vouner foi à janela e olhou para o edifício secundário. Em algum lugar, atrás daquelas paredes, Perry Rhodan estava caminhando para ir ao lugar em que se encontrava ele, Hendrik Vouner, o homem do ativador...

O'Day dera-lhe roupas novas. Via-se a corrente do ativador pela gola aberta. Vouner passava as mãos nervosamente pelas esculturas de madeira espalhadas no quarto de O'Day. O comandante possuía uma coleção muito valiosa.

Os passos foram se aproximando. Finalmente alguém bateu à porta.

Nesse exato momento, Hendrik Vouner lembrou-se de que há muitos dias subira a bordo da Olira a fim de emigrar para o Sistema Azul.

Para emigrar?

Fugira da Terra — fugira de si mesmo, de sua fraquezas, do fracasso, mas tudo isso o acompanharia por toda parte.

Até que ponto teria de chegar um homem para reconhecer seus erros?

— Entre — gritou Vouner.

Dali a instantes, Vouner deparou-se com um imortal.

Viu Perry Rhodan à sua frente. Atrás do grande administrador entrou O'Day, com um sorriso largo no rosto barbudo.

— Bom dia, mister Vouner — disse Rhodan.

Vouner fez uma mesura.

— Sir.

Ouviu O'Day fechar a porta. Rhodan e o comandante haviam vindo sós. Não havia nenhum guarda, nenhum soldado, nenhum mutante.

Vouner vira muitas vezes Perry em retratos. Mas nenhum deles correspondia à realidade. Viu à sua frente um homem alto e esbelto, de rosto sério, mas bastante expressivo. Naquele rosto brincava um par de olhos inteligentes, de olhos que haviam visto muito mais do que Vouner veria em toda sua vida de homem mortal.

Perry Rhodan era um imortal. A gente via. A gente sentia.

Acontece que Hendrik Vouner não era.

— Vamos sentar — sugeriu Rhodan.

— Naturalmente — disse O'Day com a maior naturalidade e pegou três cadeiras. — Dessa forma poderemos conversar melhor.

O comandante era um velho muito fino.

E Hendrik Vouner era um homem amargurado, cheio de ódio e desconfiança. Sentia-se infeliz.

Rhodan fitou Vouner de frente.

— É claro que o senhor sabe por que vim — disse. — Seria inútil procurarmos enganar um ao outro. Quero comprar o ativador celular que o senhor tem. E darei mil motivos por que deve vendê-lo.

Vouner fez um gesto de assentimento, e Rhodan começou a falar. Ninguém o interrompeu; apenas O'Day pigarreava de vez em quando e a expressão de seu rosto levava a crer que pretendia arranjar cem ativadores celulares ou mais para Rhodan. Este falou a respeito de suas dificuldades e dos homens que já não tinham certeza de que conseguiriam a ducha celular. Vouner descobriu coisas de que nem desconfiara.

— É só — concluiu Rhodan. — Agora o senhor vai falar.

— Acho que mister O'Day já lhe disse pelo que passei antes de trazer o ativador para cá — principiou Vouner. — Fiz coisas que me dão nojo, só para alcançar a imortalidade.

— Já sei — respondeu Rhodan.

— Cheguei a matar — disse Vouner. — Por minha causa alguns aras se encontram no segundo planeta do sistema de Velander, à espera de auxílio. Em Aralon arranquei algumas pessoas da trilha do bem e trouxe-lhes a desgraça. Paguei muito caro pelo aparelho.

— Compreendo — disse Rhodan.

— Em compensação aprendi alguma coisa — prosseguiu Vouner. — Descobri que certas coisas já não nos parecem tão importantes, quando sentimos que são naturais. Acontece que na verdade não são naturais e são muito importantes.

Num movimento rápido Vouner tirou o ativador celular do pescoço e o fez descrever movimentos pendulares.

— Enquanto usei este aparelho, não conheci a amizade. Ninguém me ajudou — lembrou Vouner. — Todo mundo me caçava, todos tentavam tirar-me o ativador, mesmo que tivessem de matar-me. Não havia nenhum lugar em que eu me sentisse seguro. Não possuía nada, a não ser... a imortalidade.

Rhodan levantou-se.

— O ativador celular é seu — disse. — Seria um crime comprá-lo...

— Não — respondeu Vouner e também se levantou.

Dirigiu-se a Rhodan e ofereceu-lhe o ativador.

— Aqui está. É seu.

Os dois homens entreolharam-se, como se quisessem ler os pensamentos um do outro. Num gesto lento e hesitante, Rhodan pegou o aparelho.

— Quer entregá-lo voluntariamente?

— Quero vender o ativador celular por quinhentos mil solares — respondeu Vouner com a voz firme.

— Que diabo, Vouner, isso vale dez milhões de solares — falou O'Day, em tom exaltado, empalidecendo. — Desculpe, sir. — Isto me escapou não sei como.

Sem dizer uma palavra, Rhodan foi à escrivaninha de O'Day e tirou alguma coisa do bolso. Vouner e O'Day viram que estava escrevendo. Depois disso entregou um papel a Vouner.

— Preenchi este cheque com a importância de dez milhões de solares — disse.

Vouner pegou o cheque. Os dois homens apertaram-se as mãos. Sem nada dizer, Vouner virou-se e saiu apressadamente. Sabia que estava sendo grosseiro, mas não poderia agir de outra forma. Atravessou um corredor comprido e foi à cantina da base. Quando entrou viu três homens que estavam jogando baralho. Aproximou-se da mesa em que estavam sentados e puxou uma cadeira.

— Quer jogar? — perguntou um dos homens, em tom amável.

Pela primeira vez em muitos dias, Vouner conseguiu sorrir.

— Acho que iria gostar muito — disse.

Um deles puxou uma cadeira, e Vouner acomodou-se.

— O senhor tem dinheiro? — perguntou um outro, com um sorriso.

— Tenho um pouco — respondeu Vouner.

Estava muito cansado, mas resolvera não deixar que os outros percebessem.

Era muito importante estar sentado ali e ver aqueles homens rirem. E era muito importante estar sentado e rir também.

Sem desconfiança. Sem amargura. Sem ódio.

Tudo que acontecesse na vida curta de Hendrik Vouner era importante e digno de ser vivido.

 

Rhodan guardou o ativador celular no bolso do uniforme. O'Day dirigiu-se a ele. Estivera olhando pela janela.

— Ele lhe deu o ativador celular por convicção, sir — disse O'Day. — Acho que queria livrar-se dele. É incrível! Esse homem possuía a imortalidade e praticamente a deu de presente. — O'Day sacudiu a cabeça. — E olhe que deve ter sofrido um bocado antes de chegar à base. É realmente incrível!...

Rhodan mostrou um sorriso silencioso.

— Pois eu o compreendo — disse com a voz tranqüila.

— É mesmo, sir?

— Existem certas coisas que são mais importantes que a imortalidade — respondeu Rhodan. — Vouner percebeu isso.

O'Day passou a mão pela barba. Parecia pensativo.

— O senhor realmente acredita no que diz, sir? O que pode ser mais importante para um homem do que prolongar a vida praticamente por um tempo ilimitado?

— Existe uma coisa — começou Rhodan — ...uma coisa mais importante que a imortalidade.

— O que é, sir?

Rhodan olhou pela janela e viu a bandeira do Império tremular ao vento.

— A liberdade, comandante O'Day — respondeu. — A liberdade!

 

                                                                                            Willian Voltz

 

                      

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