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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O Salvador do Império / K. H. Scheer
O Salvador do Império / K. H. Scheer

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O Salvador do Império

 

Roubam o conversor do tempo e fazem uma viagem ao passado. — Outra aventura de Atlan.

Crest, o primeiro amigo arcônida de Perry Rhodan, já previra que os terranos, uma raça arrojada e empreendedora, um belo dia governariam o império decadente dos arcônidas e construiriam sobre seus destroços o reino estelar da Humanidade.

Será que já chegou o dia em que a previsão de Crest se transforma em realidade? Será que no ano 2.106, menos de um século e meio depois do dia em que o homem foi ao espaço pela primeira vez, os terranos já se tornaram bastante poderosos para substituírem os arcônidas no governo dos setores conhecidos da Via Láctea? De qualquer maneira Atlan, o imperador, que nunca gozou das simpatias dos seus decadentes cortesãos, enfrenta tamanhas dificuldades, só conseguindo manter sua posição com o auxílio dos terranos, e com o apoio do poderoso computador-regente.

Em princípios do ano de 2.106 o regente subitamente recusa todas as sugestões de Atlan e exige que seja realizado um duelo psicológico, de cujo resultado dependeria a escolha do novo imperador.

Atlan sai derrotado e perde o título!

Mas, numa tentativa de recuperar o poder ou destruir o cérebro positrônico, Perry e Atlan empreendem uma viagem ao passado...

 

                                 

 

— Deixe-me saltar! Por favor, sir! O senhor não tem condições de fazer o trabalho.

Interrompi-o com um gesto. Ras Tschubai, um dos teleportadores do Exército de Mutantes, lançou-me mais um olhar de súplica. Finalmente retirou-se.

O arco do transmissor ergueu-se à minha frente. Os projetores fixados ao solo despejaram um fogo azulado, que só se tornava vermelho na altura dos pólos.

O rugido dos reatores de energia superava os outros ruídos. Ras Tschubai falara comigo pelo rádio de capacete.

Entre as colunas do arco do transmissor de matéria surgiu o campo de desmaterialização, situado numa categoria espacial de ordem superior. Coloquei as mãos sobre a bomba pendurada ao meu peito.

A mesma fora produzida nos laboratórios nucleares terranos. Seu processo de liberação de energia desenvolvia-se em base térmica. Não haveria uma detonação no sentido convencional do vocábulo. Se tudo corresse conforme se previa, ainda conseguiria sair em tempo da área de perigo.

“Se...!”, transmitiu o setor lógico de minha mente.

Virei a cabeça. Já fechara o capacete pressurizado do meu traje de combate arcônida. O equipamento de climatização estava funcionando, e não havia qualquer problema com o suprimento de oxigênio. Estava preparado para qualquer emergência.

Ainda não poderia ligar o campo defensivo individual. O mesmo não se harmonizava com as linhas energéticas do transmissor arcônida. Segurei mais fortemente a bomba termonuclear.

Os acônidas! Esse povo representava os personagens misteriosos da área dos fundos do palco galáctico. Se não fosse sua colaboração e o auxílio da tecnologia daquele povo, um traidor arcônida jamais teria conseguido enganar o computador-regente.

Cerca de três meses se haviam passado desde o dia da minha fuga. Encontrava-me novamente no interior do grupo estelar M-13, mas desta vez não comparecera na qualidade de imperador em exercício, e sim como governante destituído do poder.

— Desempenho máximo dentro de quarenta e dois segundos — anunciou alguém pelo rádio.

Reconheci a voz de Perry Rhodan, que se encontrava na sala de comando da Ironduke.

Fazia um minuto que a nave linear terrana emergira do semi-espaço kalupiano.

Encontrava-se a vinte anos-luz das linhas defensivas externas. Não podíamos arriscar-nos a chegar mais perto. Provavelmente as fortificações do computador-regente já haviam determinado nossa posição.

“Que vergonha!”, pensei, amargurado.

“Tolice! Isso é uma necessidade estratégica”, disse meu cérebro suplementar.

O ruído dos reatores era ensurdecedor. Encontrava-me só na sala do transmissor. Nos segundos de que ainda dispunha antes que tivesse início a “Missão Desespero” — nome que havíamos dado à operação — os últimos acontecimentos passaram por meu cérebro, como se fossem um filme condensado.

Carba, um membro da família pouco importante dos Minterol, colocara-me fora de ação. Há três meses fora nomeado imperador, com o nome de Minterol I. O Serviço Secreto Solar apurara que, em virtude de um processo de ativação cerebral excessivamente rápido, Carba já não era dono de seu raciocínio. Seu colapso psíquico devia estar iminente.

Isso fazia com que fosse ainda mais apreciado pelas inteligências que se serviam de sua pessoa para alcançar o poder no Império de Árcon.

Essas pessoas dirigiam o computador-regente por intermédio do imperador reconhecido pela tal gigantesca máquina positrônica. O cérebro não sabia distinguir entre as instruções espontâneas de Carba e as que lhe haviam sido impostas.

Surgira exatamente a situação que meus veneráveis antepassados pretendiam evitar por meio da construção de um supercomputador. O império estava caindo nas mãos de gente estranha. Esfacelado, estava sendo repartido entre os diversos grupos de interesses. Era o fim de um império estelar fundado há vinte mil anos. Provavelmente, também seria o fim da Humanidade. Rhodan já fizera milagres com a construção do Império Solar, mas não era capaz de praticar artes de magia. Sem o apoio da frota robotizada, o planeta Terra estaria perdido.

Ao que tudo indicava, planejava-se uma ofensiva. Provavelmente a frota do regente não estaria só. Poucas inteligências apreciavam os terranos, que começavam a tornar-se incômodos. A maior parte delas odiavam-nos, especialmente os mercadores galácticos, os aras, os antis e mais recentemente os acônidas, aos quais Rhodan infligira a derrota mais grave de sua história.

Quanto a mim, já não dispunha da menor parcela de poder. Para os terranos, minha dedicação ao planeta Terra poderia ser uma coisa bela, mas já não se revestia da menor utilidade. Eu, imperador arcônida deposto, representava agora carga e não auxílio em sua política externa.

Tomara a decisão de fazer a caminhada mais pesada que já realizara em minha vida. Estava disposto a fazer aquilo que durante mais de cem anos fizera tudo para evitar: a destruição do cérebro positrônico.

Rhodan compreendia perfeitamente minha ansiedade mental. Não fizera perguntas nem formulara qualquer pedido, até que eu mesmo me declarasse disposto a destruir o regente numa explosão. Só depois disso fiquei sabendo que a Segurança Solar já prepara tudo.

Uma vez eliminado o cérebro, a salvação do império dependeria dos terranos e de mim. Naquele momento nem podia pensar nos problemas que isso acarretava.

O regente comandava as atividades industriais, o abastecimento alimentar e o poderio militar do império. Se fosse colocado fora de ação de um momento para outro, a catástrofe seria inevitável. No entanto, havíamos refletido intensamente sobre as revoltas e as guerras restritas, que se seguiriam, seriam mais graves que a divisão do império entre as potências galácticas que aguardavam avidamente o momento de abocanhar seu pedaço.

Não poderia deixar de fazê-lo. O incremento criminoso da inteligência de Carba acarretaria o fim do império. O regente fora convencido, através de meios desonestos, de que Carba deveria ser o imperador, em virtude de seu elevado Q.I. Por meio de um duelo psicológico travado no plano de uma lógica mecanizada — dificilmente compreensível — meus inimigos conseguiram provar que eu era um mau governante. Disseram que, contrariando a vontade dos antepassados, apoiara o desenvolvimento dos terranos, fornecendo-lhes certos segredos técnicos e acalentando um inimigo praticamente imbatível.

O robô não compreendera minhas preocupações com o futuro do império. Guiara-se pela antiqüíssima programação de emergência denominada Epetus, segundo a qual o imperador seria deposto sempre que não cuidasse exclusivamente do bem-estar do império.

Não consegui provar numa base puramente lógica que a amizade com os terranos, uma raça arrojada e muito inteligente, seria muito útil ao nosso Estado.

Carba fora nomeado imperador. Tive de fugir para a Terra.

— Salto dentro de três segundos. Boa sorte, amigo — comunicou Rhodan.

Sobressaltei-me. A bomba era uma realidade áspera. Teria que detoná-la no setor de controle do regente.

“Você deveria ter enviado um mutante terrano”, disse o setor lógico de minha mente.

Na verdade, um teleportador teria mais facilidade de safar-se em caso de perigo. Todavia, cabia a mim destruir a obra grandiosa dos meus antepassados.

Minha origem e meu cargo impunham-me o dever de tentar a salvação do império.

“Isso é uma atitude muito heróica!”, observou o cérebro suplementar.

Não lhe dei atenção. O setor lógico de minha mente, artificialmente incrementado, não dava muito valor aos sentimentos. A rigor era um computador orgânico que me comunicava os resultados de suas operações. Uma vez feito isso, seus ensinamentos poderiam ou não ser aceitos por mim.

O arco do transmissor tinha cerca de dois metros de altura. As colunas energéticas se adensaram.

A lâmpada roxa acendeu-se e caminhei em direção à boca escancarada que se formara entre as linhas energéticas. Mais um passo, e sairia no computador, situado a vinte anos-luz de distância.

Os terranos souberam aproveitar a técnica acônida. Os transmissores a grande distância, antes cercados de mistério, já não representavam o menor segredo.

Senti a sucção do campo de desmaterialização. Respirei profundamente, afastei de minha mente todas as reflexões sobre a utilidade ou a inutilidade do empreendimento e preparei-me para o salto.

— Pare, recue! — gritou alguém. — Recue, Atlan, há perigo pela frente. A estação receptora está em curto-circuito.

Agi sem pensar, conforme tantas vezes fizera nos últimos anos. Um homem ameaçado constantemente por grupos de assassinos adquire uma espécie de sexto sentido, que no meu caso seria o sétimo.

Antes que entendesse perfeitamente o sentido daquelas palavras, dei um salto para trás. Caí a um metro do arco do transmissor. O equipamento pesado embaraçava meus movimentos. Rastejei até que me visse fora do círculo de perigo assinalado no solo e coloquei-me atrás do campo protetor térmico.

A escotilha abriu-se. Ras Tschubai, seguido de outro homem, precipitou-se para dentro da sala. Sem dizer uma palavra, os dois arrastaram-me para fora da sala do transmissor. Depois disso colocaram-me de pé.

— Tudo bem com o senhor, sir? — perguntou um jovem.

Reconheci o Tenente Brazo Alkher, um dos oficiais da jovem geração que um dia acabaria influindo nos destinos do Império Solar.

— Tudo bem, obrigado. O que houve?

Falei baixo. Era difícil superar o rugido dos conversores. Repeti a pergunta.

Alkher comprimiu o botão que abria meu capacete, que caiu sobre o ombro, onde ficou preso no suporte magnético. Ras Tschubai pegou a bomba. Sorriu como quem pede desculpas, concentrou-se e desapareceu numa forte luminosidade.

Senti-me perplexo. Meu cérebro recusava-se a absorver os últimos acontecimentos.

Rhodan apareceu juntamente com o comandante. Jefe Claudrin desligara seu microgravitador. Atravessou o corredor a saltos enormes. Até parecia que a bordo da Ironduke não havia nenhuma gravitação.

Mais uma vez fiquei sem resposta. Fui conduzido para fora, como se fosse uma criança. Ao que parecia, os terranos haviam notado minha disposição de espírito, semelhante a um desmaio. No momento em que Rhodan me colocou sobre um leito anatômico, no interior da sala de comando, senti-me sonolento.

Por aqui reinava o silêncio. O zumbido dos aparelhos não incomodava.

Fiquei admirado comigo mesmo. Normalmente deveria estar nervoso. Mas no estado em que me encontrava tinha de fazer um grande esforço para realizar qualquer movimento. Era como se tivesse sofrido um choque. Fora arrancado subitamente de um estado de extrema concentração e de tensão nervosa que durara semanas.

Um médico aplicou-me uma injeção. Alguns segundos depois recuperei a atividade.

Perry estava ajoelhado à minha frente. Os oficiais da Ironduke cercavam meu leito. A figura gigantesca do professor Kalup era inconfundível. Ergui-me sobre o leito.

— Vaso ruim não quebra — disse Kalup, em tom gentil. — O senhor sabia que já se encontrava sob os efeitos do campo de desmaterialização? Como conseguiu voltar em tempo?

— Uma reação automática, o instinto de autoconservação, sei lá!

— Que instinto! O transmissor entrou em curto-circuito no momento exato em que o senhor pretendia entrar... Dessa forma a estação receptora não mais aceitaria qualquer porção de matéria. Qualquer objeto expedido pelo transmissor, enquanto o aparelho se encontra nestas condições, deve ser atirado de um lado para outro umas cem mil vezes, no espaço de um microssegundo.

Rhodan fitou-me com um sorriso. Era um sorriso forçado. Pôs a mão no meu ombro para tranqüilizar-me.

— Esqueça. Percebemos no último instante.

As reflexões atropelaram-se em meu cérebro. Durante os longos anos em que exercera as funções de imperador, sob o nome Gonozal VIII, conseguira instalar um transmissor nos subterrâneos do computador-regente. O cérebro positrônico nunca chegara a desconfiar, pois sua estrutura não lhe permitiria constatar a presença dos campos energéticos de categoria superior. Além disso, o receptor fora construído por especialistas terranos. Havia dispositivos de segurança que eram desconhecidos até mesmo para os acônidas.

Quem provocara o curto-circuito no aparelho? Quem estaria em condições de fazê-lo?

Um som estranho me fez aguçar o ouvido. Parecia um cachorro gemendo. Rhodan Olhou para uma tela que mostrava o recinto da estação transmissora instalada a bordo da nave. Alguns segundos depois, o ruído tornou-se mais estridente, crescendo até transformar-se no chiado de uma serra mecânica.

— Mandamos um robô para o campo de desmaterialização — gritou Perry. — Olhe!

Levantei-me de um salto. Mais uma vez minhas pernas pareciam trabalhar completamente desligadas dos comandos do cérebro. Desconfiei de que estava pálido de susto.

O campo de desmaterialização situado entre as colunas energéticas, que costumava ser negro, brilhava numa luminosidade esverdeada. No centro desse campo destacava-se uma figura de contornos nebulosos, que sofria uma deformação progressiva a cada segundo que passava.

Jefe Claudrin deu uma ordem. O transmissor instalado a bordo da nave foi desligado. Um raio fulgurante saiu da abertura. Alguma coisa bateu contra a parede blindada do recinto em que estava instalado o equipamento energético, e ficou grudada na mesma.

Mesmo quando o rugido dos conversores já ia amainando, continuamos a fitar a tela. O robô transformara-se numa esfera metálica do tamanho de um punho cerrado. Ao que parecia, transformara-se numa porção de matéria altamente condensada. Brilhando numa incandescência branca e pulsando na superfície como se fosse um ser vivo, continuava grudada na chapa de aço.

Não consegui pronunciar uma única palavra. As pessoas da sala de comando podiam imaginar perfeitamente qual seria meu aspecto se não tivesse dado um salto para trás.

Rhodan pigarreou. Kalup passou o lenço pela calva.

— Esses grupos de átomos não estão muito bem arrumados — disse. — Será que o senhor poderia informar o que aconteceu com seu transmissor, sir? Sempre pensei que o senhor o tivesse escondido.

Dominei o nervosismo que ameaçava apoderar-se de mim. Era tudo inútil. Ninguém proferiu uma palavra. Depois de algum tempo principiei em tom hesitante:

— Essa é uma boa pergunta, professor. O regente nunca seria capaz de descobri-lo. Nem Carba. Conclui-se que deve ter havido a interferência de certas inteligências entendidas em transmissores acônidas.

— Em transmissores terranos construídos segundo o princípio dos aparelhos acônidas — retificou Kalup, irritado.

Interrompi-o com um gesto.

— Está bem. Sei perfeitamente que o senhor fez o que pôde. Apesar disso a máquina foi localizada e, segundo parece, sua técnica foi compreendida. Alguém esperou até que nosso transmissor entrasse em funcionamento e irradiasse o impulso de prontidão para o salto e provocou o curto-circuito. Desta vez ainda escapei bem. Resta saber como provocar a explosão no interior do cérebro positrônico.

Kalup retirou-se. Segui o homem corpulento com os olhos, até que desaparecesse na sala dos aparelhos de localização. O tom ruidoso de sua voz não me atingia mais. Sabia que esse tom correspondia ao seu gênio colérico. Não tinha a intenção de ofender-me.

Rhodan estava com as mãos apoiadas numa mesa de mapoteca. Fitava a tampa da mesa como se quisesse perfurá-la com os olhos. Sem erguê-los, fez uma constatação que eu não poderia contestar.

— Foi a última oportunidade de atacarmos o cérebro com um risco relativamente reduzido. Cientistas acônidas penetraram no centro de computação. Obtiveram permissão para fazer alguma coisa que sempre nos foi proibida. Não há dúvida de que houve uma reprogramação no regente, em seus setores de segurança mais importantes. Com isso transformou-se numa máquina que representa um perigo para a comunidade. Constatamos que grandes contingentes da frota robotizada receberam ordem para dirigir-se ao sistema de Árcon. Além de inútil, um ataque frontal representaria uma ameaça à própria existência da Humanidade. Nossos mutantes não conseguem penetrar no cérebro. O transmissor fictício seria a única solução.

Agucei o ouvido. O aparelho encontrava-se a bordo da nave capitania da Frota.

— Já se provou que o campo energético do cérebro não pode ser rompido. As armas defensivas foram modernizadas pelos acônidas, e além disso também possuem naves lineares. O que pretende fazer?

Fitou-me. Jefe Claudrin esquivou-se ao meu olhar. Naquele instante comecei a desconfiar de que os terranos haviam discutido um assunto sobre o qual ainda não fora informado.

— Nada, Atlan, ou melhor, por enquanto não pretendo fazer nada. Tudo depende do que você resolver.

— Sobre o quê?

— Preciso de seu consentimento para provocar um incêndio nuclear em Árcon III. Dali resultaria a destruição do planeta. Um momento — levantou a mão, e procurei dominar minha exaltação. — Deixe-me concluir. Sabemos perfeitamente que isso afetaria o estreito elo gravitacional que liga os três mundos arcônidas. Se a massa do planeta de guerra deixar de existir, os astros capturados por seus antepassados sem dúvida sairão de suas órbitas. Realizamos cálculos sobre isso. Árcon I e Árcon II, o mundo industrial, sofreriam terremotos e maremotos devastadores. Além disso haveria uma modificação das condições climáticas. Não posso deixar de ressaltar este ponto.

Dirigi-me à sala de observação espacial. Sentia-me profundamente atingido pelas palavras de Rhodan.

— Sou de opinião que o plano deve ser rejeitado — disse e virei a cabeça.

O rosto de Perry parecia indiferente, quando concluí:

— Obrigado. Não é possível. O plano poderia representar a morte de bilhões de arcônidas. Se necessário, ainda poderia concordar com a destruição de Árcon III. Por lá quase não vive ninguém. Seria possível evacuar os habitantes. No entanto, não podemos admitir qualquer abalo do mundo de cristal e do planeta número dois. Ainda não desisti de destruir o computador.

A porta blindada abriu-se e atravessei-a. Não tinha a menor dúvida de que chegáramos a um ponto em que já não sabíamos o que fazer.

Rhodan seguiu-me. Paramos diante das telas que retratavam os ecos dos rastreadores de energia. Ouvimos a voz de Jefe Claudrin, vinda da sala de comando. Deu ordens para que os propulsores fossem colocados em funcionamento.

Quando os rastreadores estruturais começaram a rugir, eu já estava preparado. Contara com isso. Rhodan soube interpretar meu sorriso cansado.

Viéramos, para destruir o regente. Se este deixasse de existir, os planos de Carba estariam condenados ao fracasso. Os grupos acônidas não mais se interessariam por sua pessoa. E, o que era mais importante, cerca de cem mil espaçonaves da frota robotizada de Árcon ficariam impossibilitadas de entrar em ação.

“Se!”, observou o setor lógico de minha mente.

Não dei atenção à objeção. Os acônidas, que comandavam a revolta, haviam conseguido o que pretendiam. O regente agia sem a menor lógica. Isso provava que sofrera uma influência decisiva em sua programação.

O rugido indicava a existência de grande número de transições. Isso provava que o cérebro nos atacava.

Não dei atenção ao uivo das sereias de alarma. A Ironduke estava preparada para entrar em combate. Poucos segundos depois da primeira localização a grande distância, começou a deslocar-se pelo espaço. Como sempre acontecia em ocasiões como esta, as ordens pareciam atropelar-se.

Os homens de prontidão correram para os postos de combate. As torres de canhões escamoteadas provavam que o planeta Terra já não estava tão indefeso como estivera há cem anos.

A manobra de imersão das espaçonaves, que acabava de ser registrada, provocou uma segunda onda de choque, também registrada pelos rastreadores superdimensionais.

As telas do sistema de eco dos localizadores de massa mostraram quatro pontinhos verdes. Dali a alguns segundos transmitiram a interpretação dos dados. O sistema de localização terrana de ultraluz baseava-se no princípio da interpretação do eco de hipercomunicação. Conseguira-se provocar um eco, até mesmo nos objetos feitos de substância material comum. Já não se dependia exclusivamente das ondas de impulso energéticas dos propulsores, que permitiam determinar a distância e a posição do objeto, mas não serviam à determinação de seus contornos.

A voz do oficial de plantão saiu dos alto-falantes. Naquele momento a Ironduke precipitava-se pelo espaço, acelerando à razão de 600 km/seg2.

— São quatro supercouraçados da classe Império no vermelho 33,467, vertical 7,27465 graus. Voam em formação e fazem manobra de reunião. Tomam nossa direção. Estão abrindo fogo.

Franzi a testa, contrariado. Não havia dúvida de que as gigantescas naves pilotadas por robôs haviam recebido ordens de destruir a Ironduke.

No entanto, estranhei que o grande cérebro positrônico tivesse dado ordens para abrir fogo. Os quatro veículos espaciais haviam saído do hiperespaço a uma distância de cerca de dez milhões de quilômetros. Deslocavam-se a uma velocidade que equivalia aproximadamente à da luz. Seria ridículo querer alcançar algum efeito com um impacto produzido a essa distância. Além disso, a distância era muito grande para poder atingir um inimigo veloz.

Rhodan não deu a menor atenção às trilhas energéticas invisíveis que passavam por nós.

— As baterias do costado começaram a disparar — comunicou o sistema de observação espacial. — São miseráveis! Perdão, sir.

Corri para a sala de comando. As telas de grandes dimensões mostravam nitidamente os pontos projetados pelos ecos. As espaçonaves do império estavam desacelerando. Os fatores de influência sobre as trajetórias de tiro, resultantes da manobra, não podiam ser solucionados nem mesmo pelos dispositivos positrônicos do regente.

O trovejar dos propulsores de nossa nave não permitia a comunicação normal. Peguei um rádio de capacete, comprimi os fones contra os ouvidos e liguei o aparelho.

Logo ouvi as ordens de Rhodan, que estava sentado na poltrona de comando. O comandante, que se encontrava a seu lado, verificava os controles da artilharia e das máquinas.

— ...devemos tentar. Abrir fogo — disse Perry.

Lancei um olhar de surpresa para as telas de vigilância. Um foguete antiquado, do tipo que utilizáramos na luta contra os antis, saiu da cúpula de disparo.

No momento em que atravessou os campos defensivos invertidos de nossa nave, via-se o chamejar dos seus micropropulsores. Um ponto luminoso verde surgiu nas telas dos rastreadores energéticos. O foguete acelerava com um máximo de 800 quilômetros por segundo ao quadrado.

Possuía um mecanismo de autocontrole. Seu mecanismo direcional baseava-se em três princípios distintos, que dificilmente poderiam ser reconhecidos por uma nave robotizada. Os projéteis armados estavam fora de uso há milênios.

— Será que vai dar certo? — perguntei.

Rhodan parecia tranqüilo.

— Um ditado terrano diz que mais vale experimentar que pensar. Quero ver como reagirão diante disso. No momento estamos trabalhando com o rastreador de matéria. Se este sofrer alguma interferência, o rastreador energético entrará em ação. Tal aparelho se tornará ineficaz se os propulsores forem desligados. As radiações remanescentes são pouco intensas para permitir a localização a grande distância. O coletor de reflexos reforçado por laser representa o método mais primitivo. Entrará em função assim que penetrar no setor que já tenha sido atingido pelo raio luminoso refletido pelas naves. Dificilmente haverá alguma possibilidade de evitar o reflexo. É bem verdade que o projétil terá de correr atrás da nave que prossegue em seu vôo.

Fiquei impressionado. Esses homens não hesitavam em recorrer às armas adequadas a cada caso, mesmo que essas armas representassem uma “engenhoca” antiquada, que outras inteligências rejeitavam numa atitude de arrogância.

As naves robotizadas continuavam a disparar. Sua rota aproximava-se da nossa, mas haviam desistido de voar em formação.

Antes que penetrássemos no semi-espaço kalupiano, o centro de observação espacial da nave anunciou uma violenta irrupção de energia a uma distância de oito milhões de quilômetros.

Um dos pontos desapareceu da tela que retratava os ecos. No mesmo lugar surgiu uma mancha alaranjada.

— Houve uma liberação de aproximadamente quarenta mil megatons — informou o oficial de plantão no centro de observação espacial. — A nave foi derrubada. É uma perda total. Os combustíveis nucleares dos propulsores participaram do processo.

Rhodan recostou-se na poltrona. Tremi por todo o corpo. Então a incapacidade do regente chegara a tal grau que suas naves podiam ser destruídas por projéteis nucleares primitivos! Haveria pelo menos dez possibilidades de destruir o foguete bem perceptível por meio de um disparo ou de desviar-se do mesmo. Esquivei-me ao olhar de Rhodan.

O uivo do conversor de compensação cessou. O espaço estrelado desapareceu das telas.

Mais uma vez senti-me fascinado pelo fenômeno do vôo linear a velocidade superior à da luz.

Ouvi a voz de Rhodan que saía do alto-falante de meu capacete.

— O computador-regente está no fim. Nunca acreditaria que fosse capaz de atingir uma nave da classe Império, quanto mais destruí-la. Está na hora de destruirmos a máquina pensante, que está causando tanta desgraça. Dentro de alguns minutos toda a Galáxia ferverá em revolta. Até lá, Carba deverá enlouquecer. Daí em diante, o domínio dos acônidas será ainda mais fácil. Por enquanto ainda terão de ter alguma consideração. Já imaginou o que acontecerá quando isso não for mais o caso?

Confirmei com um gesto. Senti-me deprimido. Sim, já havia imaginado. Mas mesmo que o comportamento das quatro naves robotizadas fosse estranho, a Frota Solar não teria condições de enfrentar cem mil unidades desse tipo...

Além dessas unidades as naves dos saltadores penetrariam no sistema solar, além dos veículos espaciais de inúmeros povos coloniais, que continuavam submetidos ao Império de Árcon.

Apesar de tudo, ainda acreditava que seria capaz de pôr o regente fora de ação. Para nós, esse ato representaria o corte do nó górdio.

 

Já estava acostumado a ouvir muita coisa do “homenzinho”, nome que se dava ao personagem franzino que desempenhava as funções de chefe da Segurança Solar. Desta vez, porém, o marechal solar apresentou a idéia mais maluca de que já ouvira falar.

Ao que parecia, quanto mais avançava a tecnologia, mais os terranos preferiam as soluções aparentemente impossíveis às outras.

Conhecia o gênero humano há dez mil anos. Sempre haviam sido inteligentes, resolutos e dotados de uma curiosidade amedrontadora.

Essas qualidades me deram o que pensar ao tempo em que era almirante arcônida. Quando pela primeira vez pus os pés no planeta Terra, refleti, com base na minha educação, no meu posto e nas minhas concepções arcônidas, sobre a maneira de redigir o relato da situação.

Achei que deveria informar meus descendentes de que, nesse mundo pertencente ao sistema de nove planetas da estrela denominada Sol, estava crescendo um povo que valia a pena ser observado atentamente.

E agora os terranos se haviam transformado num fator importante no jogo galáctico de forças. Lutavam pela vida, fato que se tornara inevitável com sua apresentação oficial no cenário da grande política estelar.

Allan D. Mercant representava um fenômeno importante no jogo rhodaniano, que visava ao reconhecimento dos terranos, à sua expansão e à ação fulminante. Era semimutante, dotado de reduzidas faculdades telepáticas, e possuía o cérebro de um gênio.

Já fora chefe do Serviço Secreto da OTAN. Foi graças a ele que a chamada Terceira Potência, fundada por Rhodan, no curso do século vinte, não enfrentou dificuldades ainda maiores.

Mercant costumava dizer que seu passatempo predileto era a atividade ligada ao serviço secreto. No meu entender, o uso de um serviço desse tipo era indispensável, mas não podia ser considerado muito limpo. Nenhum chefe de segurança consegue evitar dissonâncias ocasionais na atuação de seu instrumento específico.

Fazia dois dias que havíamos chegado a Terrânia. A cidade crescera e se modernizara ainda mais. Nem mesmo Rhodan conhecia exatamente o número exato de habitantes da cidade.

Atendendo a um convite de Mercant, comparecêramos a uma reunião na pequena sala de conferências. As medidas de segurança eram apavorantes. Além dos robôs que serviam de sentinela, das paredes à prova de som e dos mutantes que andavam pela área, a pequena sala de conferências fora envolta num campo defensivo.

Nenhum serviço de escuta seria capaz de captar nossa palestra. Estávamos reunidos em atitude descontraída. No ambiente que rodeava Mercant, não havia as típicas mesas verdes em ferradura. As reuniões promovidas por Mercant sempre pareciam uma festa.

Os homens mais importantes do Império Solar participavam da reunião. Constatei que, entre as pessoas ali reunidas, não havia ninguém que não tivesse recebido uma ducha celular conservadora da vida.

Até mesmo Homer G. Adams, o chefe onipotente da GCC solar, comparecera à reunião. As iniciais GCC significavam General Cosmic Company e designavam uma organização criada nos anos setenta de um século em que a navegação espacial tripulada dos terranos era praticamente desconhecida; essa situação perdurou até o dia 19 de junho de 1.971, quando Rhodan realizou o primeiro vôo à Lua. Esse dia marcara o início de um jogo cuja fase mais importante começava a desenvolver-se naquele momento.

Continuei a olhar em torno. Os Marechais Solares Mercant e Freyt estavam presentes, bem como os Generais Deringhouse e Kosnow. Também Rhodan e Reginald Bell, Ministro da Defesa, alguns cientistas proeminentes e outros homens que só conhecia por ouvir falar.

O Coronel Nike Quinto, chefe de uma das divisões da Segurança, era um homem cercado de mistério. Dizia-se que era um mestre no jogo de esconder. Sem dúvida a idéia maluca de Mercant provinha ao menos em parte de Quinto, que se mantinha sentado num canto, transpirando profusamente e falando a todas as pessoas que se dispusessem a ouvi-lo sobre suas doenças imaginárias.

Ali estava reunida uma equipe de trabalho que seria capaz de abalar a Galáxia.

Fitei Homer G. Adams com sua GCC, cujo potencial financeiro lhe permitiria levantar uma “doação” especial de quinhentos bilhões de solares com uma simples assinatura, Mercant com sua misteriosa Segurança e Rhodan com a Frota Solar, sobre cuja força verdadeira não dava informações a ninguém.

Há alguns minutos reinava um silêncio tenso. A exposição de Mercant parecia inacreditável.

— Será... será que o senhor está bêbado, meu caro? — perguntou Rhodan, perplexo.

Mercant lançou um olhar para Quinto.

Já conhecia o sorriso gentil do chefe de segurança. Nunca vira um homem tão perigoso, com aspecto tão inofensivo.

— Peço licença para dizer que não — disse Mercant.

De repente Rhodan pareceu sentir frio. Seu corpo foi sacudido por um calafrio. Também tive impressão de que uma corrente de água fria corria pelas minhas costas.

— Isso é uma loucura, Mercant! — observei em tom hesitante, mas no mesmo instante notei, estupefato, que também já me sentia dominado pelo fogo do entusiasmo.

Mercant, que era um hábil psicólogo, piscou os olhos para mim. Parecia saber interpretar o brilho do meu olhar.

— Agora já são dois que se fazem de doidos — afirmou Bell.

— Como? — perguntou o professor Kalup, em voz alta. — Sinto-me fascinado.

— Vejam só como divergem as opiniões das pessoas — disse Rhodan, com uma risada seca. — Quinto, será que foi o senhor que sugeriu essa idéia louca e temerária ao nosso chefe de segurança?

Nike Quinto, um homem baixo e rechonchudo, inflou as bochechas.

— Sir, face à minha pressão sangüínea excessivamente elevada nunca me daria ao luxo de provocar o nervosismo dos meus superiores, pois isso traria conseqüências desagradáveis para mim mesmo. E, como minha pressão sangüínea seria incapaz de resistir a uma ten...

— Tomara que o senhor estoure logo — resmungou Kalup. — Suas bochechas moles andam tremendo demais.

Quinto sorriu. Parecia chocado. Recuperei a tranqüilidade interior. Rhodan olhou para mim. Naquele momento notei que, em seu rosto, também havia a expressão que sempre aparecia quando uma empresa arriscada estava iminente.

— Então, meu velho pirata? — perguntei. — Isso lhe fez cócegas?

Rhodan riu. Estávamos entendidos.

— Encontramos o que queríamos — gracejou Bell. — São dois loucos do mais alto gabarito. Queira desculpar, majestade aposentada.

Fez uma mesura irônica. Comecei a impacientar-me. Mercant deixara que déssemos vazão às nossas reações.

— O senhor mandou fazer uma interpretação cuidadosíssima dos dados que lhe forneci, Mercant? — perguntei de repente. — O senhor sabe perfeitamente que o menor erro poderá representar nosso fim?

O marechal fez um sinal para Quinto. O chefe do chamado “traste de cérebros”, também conhecido como Divisão III, levantou-se fungando. Para Nike Quinto era arriscado tocar o chão com os dois pés ao mesmo tempo. “Rolou” agilmente em direção a um painel de controle. A poltrona rangeu, quando se deixou cair na mesma.

Uma chave estalou. As luminárias existentes no recinto sem janelas apagaram-se. A imagem tridimensional de uma espaçonave surgiu na tela do tamanho de uma parede.

Levantei-me de um salto. Perplexo, segurando firmemente a mesa que se encontrava à minha frente, fitei a tela. Não era possível, a não ser que os terranos tivessem aprendido a arte da magia.

— Mercant...! — disse com um gemido. — Tenha pena de mim. Um arcônida também possui nervos.

— O que lhe estamos mostrando é um fato, sir. Este filme foi rodado hoje de manhã. O que o senhor está vendo é um cruzador pesado de Sua Majestade Tutmor VI, chamado Sotala, que é comandado pelo Capitão de Segunda-Classe Tresta, pertencente à família nobre dos Efelith.

“No dia 10 de fevereiro de 2.106 fará exatamente 6.023 anos terranos que o Grande Conselho de Árcon recebeu uma mensagem de hiper-rádio expedida pela nave Sotala. Era uma notícia tão importante que foi apresentada ao Imperador Tutmor VI. — O Capitão Tresta conseguira libertar do inimigo dois mundos situados no setor das nebulosas. Seu cruzador foi destruído durante a operação. A Sotala nunca mais voltou a Árcon. O Capitão Tresta passou a ser considerado um herói na história de seu povo, sir.

“Recorremos a todos os nossos especialistas e não medimos os custos para adaptar uma espaçonave, transformando-a na velha Sotala. O veículo espacial é igual ao seu protótipo até a última solda. A Segurança Solar garante que não há nenhuma falha. Durante a adaptação tivemos de considerar vários detalhes. As dimensões externas da nave tiveram de ser reduzidas para cento e oitenta e nove metros. Os dispositivos positrônicos modernos tiveram de ceder lugar ao sistema de computação então em uso. Os propulsores, as unidades energéticas, o armamento, os circuitos elétricos, os centros de cálculo, os alojamentos dos oficiais e tripulantes, tudo teve de ser copiado, tal qual dezenas de milhares de outros detalhes. Até mesmo a potência dos propulsores foi imitada da antiga nave. Qualquer técnico arcônida dos tempos do Imperador Tutmor VI poderia fazer uma inspeção detalhada da espaçonave e não encontraria a menor divergência. Examinamos cuidadosamente as plantas da nave, que encontramos nas microfitas magnéticas salvas pelo senhor.”

Tremi que nem uma pessoa febril. Meu cérebro suplementar, que se identificava com minha memória fotográfica, deu sinal de vida. Sabia como meus antepassados costumavam construir suas naves.

Caminhei em direção à tela; até parecia hipnotizado. O nome Sotala fora pintado em caracteres arcônidas em dois pontos do envoltório esférico. Estava escrito no vermelho-chamejante então em uso.

— A composição da tinta é correta — disse Mercant com tranqüilidade de quem faz uma observação sobre o tempo.

De repente senti medo. Os terranos eram mestres na arte do disfarce, mas desta vez Mercant quebrara seus próprios recordes.

A protuberância pontuda que abrigava os propulsores correspondia ao tipo de nave da Sotala. As eclusas destinadas à passagem dos tripulantes e passageiros eram hexagonais. Também neste ponto a construção fora correta. As colunas de apoio possuíam a protuberância típica na articulação inferior, que abrigava o dispositivo hidráulico adicional. As torres de canhões ainda estavam equipadas com as antenas de rastreadores individuais, destinadas a orientar o fogo concentrado das peças isoladas. Preferia-se não confiar exclusivamente no comando centralizado.

Examinei os menores detalhes, mas não encontrei qualquer erro.

— Por dentro a nave também é assim, Mercant? Foi tão bem imitada quanto do lado de fora?

— Posso dar-lhe minha palavra de que foi — asseverou Quinto.

Concluí que ele tinha algo a ver com aquilo.

— Seu hipócrita — observou Kalup. — De qualquer maneira dou-lhe meus parabéns.

Estupefato, voltei a acomodar-me na minha poltrona anatômica. O ativador celular pendurado ao meu pescoço produzia um ruído mais forte que de costume. Aquilo representava mais um lembrete da minha idade avançada. Parecia que, nos momentos de nervosismo, tornava-se necessário ativar a regeneração celular.

Rhodan ofereceu-me uma bebida.

— Está satisfeito? Não descobriu nenhum defeito?

— Nenhum — respondi. — Naturalmente ainda falta examinar o interior da nave. Mercant, para que servirá isso?

Até então o chefe de segurança falara pouco. Apesar disso — seu plano ligado aos temas da correção das linhas temporais e da penetração no cérebro — deixara-nos bastante perplexos. E o que veio depois fez com que, vez por outra, prendesse a respiração.

Mercant foi objetivo. Nem mesmo quando abordava os pontos mais importantes revelava qualquer paixão. Além disso usava um estilo telegráfico, motivo por que sua exposição se tornava fragmentária. Isso, porém, fazia com que fosse ainda mais impressionante. Nem por um instante tivemos a impressão de estarmos ouvindo um sonhador.

— Depois de a Sotala ter transmitido a notícia do êxito alcançado, não se recebeu mais nenhuma mensagem daquela nave. Segundo relatos posteriores da sede da frota arcônida, o cruzador foi destruído. Assumiremos o papel da Sotala. Regressaremos a Árcon três dias depois do recebimento da mensagem já conhecida e pousaremos. Atlan desempenhará o papel de comandante. Estamos providenciando os uniformes, a documentação de todos os tipos e os mantimentos então em uso, que assumiam a forma de alimentos desidratados e de conservas. Os números das peças de munição correspondem aos que o chefe de armamento da Base 187 forneceu à nave. Não esquecemos o menor detalhe. Até mesmo o nome do fabricante, impresso na parte interna da gola dos uniformes, corresponde ao original. Os arcônidas eram gente muito minuciosa, e dispomos da série completa de dados antigos sobre o assunto. Quando pousarem em Árcon III, os senhores realmente serão os tripulantes da Sotala. Não existe a menor possibilidade de erro.

— Quando pousarmos? — repetiu Rhodan, em tom enfático. — Quando será isso? Não venha me dizer que a correção das linhas temporais tem alguma relação com isso.

— A mesma constitui a condição básica, sem a qual o plano estará condenado ao fracasso, sir — respondeu Mercant no mesmo tom gentil de antes. — A adaptação de um cruzador terrano e a transformação de seus tripulantes em velhos arcônidas da época de Tutmor VI só terão alguma utilidade se conseguirmos penetrar na época correspondente. Acho que conseguiremos isso por meio de um aparelho especial acônida, que os mutantes e agentes do serviço secreto da Segurança descobriram no planeta central do Sistema Azul.

— Não é possível! — observei, estupefato.

— É isso mesmo, sir. Lembro-me perfeitamente do ataque acônida contra o computador-regente, realizado pouco depois da descoberta do planeta Sphinx. Naquela oportunidade houve uma tentativa de alterar as linhas temporais. A Frota-Fantasma ficou atacando a Terra, até que conseguimos destruir o aparelho de conversão do tempo. No planeta central dos acônidas existe outra máquina desse tipo.

— Trata-se de um deslocamento do tempo? — perguntou Rhodan, inclinando o corpo para a frente.

— É mais ou menos isso, sir. Não será uma viagem pelo tempo, do tipo sobre o qual já se fizeram diversas conjeturas. O aparelho produz um campo de absorção na quinta dimensão, em cuja área de influência se torna possível produzir uma modificação na condição temporal, ligada ao terreno do conceptual. Não é possível abandonar realmente o tempo em que vivemos, para irmos viver em outra época.

“Não se pode viajar pelo tempo, desempenhando o papel do visitante, vindo do futuro. De qualquer maneira, o raio de ação do aparelho, bastante limitado, deverá ser suficiente aos nossos objetivos.”

Kalup forneceu outras explicações técnicas. O princípio era perfeitamente compreensível, muito embora ninguém conseguisse explicar de que maneira os acônidas influenciavam as linhas temporais existentes.

Mercant esperou pacientemente. Aos poucos, a conferência ia-se transformando numa reunião descontraída. Vários grupos discutiam animadamente. Os presentes só voltaram a dedicar sua atenção ao tema central, quando Rhodan pediu que se fizesse silêncio.

— Prossiga, Mercant. Estamos preparados para qualquer coisa.

— Obrigado, sir. Descobrimos que se trata de uma máquina estacionaria. Seria necessário transportá-la numa nave e, transferi-la para o cruzador adaptado, quando este se encontrasse no espaço. Já conhecemos a equipe que lida com o conversor. Trata-se de quatro cientistas acônidas, que ainda hoje estão em condições de comandar o aparelho. Mas não são capazes de reparar eventuais avarias do mecanismo. O segredo da construção perdeu-se nas brumas do tempo. Um eventual defeito do aparelho não representará nenhum perigo. Não existe o risco de ficarmos presos numa época temporal diversa. Assim que o campo energético se apaga, o sistema estabilizador entra em ação. Nosso comando em Sphinx já recebeu instruções de vigiar os quatro cientistas. Os mutantes tomarão todas as providências para que eles compareçam na hora exata ao lugar em que se encontra o conversor. Este encontra-se num museu. Sua utilização é proibida sob pena de morte. Só se permitem experiências realizadas sob controle governamental. Para nós, Isso representa um ponto de ataque.

“Consiga o aparelho, instale-o na imitação da Sotala e saia voando por aí. Antes de chegar ao sistema de Árcon, ligue o campo temporal. Este deve ser cuidadosamente regulado. Capte a mensagem de rádio da verdadeira Sotala, espere dois dias e avise pelo telecomunicador que está voltando de uma missão bem-sucedida. O cruzador verdadeiro não lhe poderá causar problemas. No momento em que pousarem no planeta, a nave primitiva já terá sido destruída.”

Respirei apressadamente, que nem uma pessoa, gravemente enferma. Mercant só podia estar louco. Uma viagem pelo tempo, no sentido literal da expressão, seria um absurdo. Talvez houvesse a possibilidade de um deslocamento do campo temporal, mas tal acarretaria problemas que não poderiam ser solucionados nem pelos terranos, nem por mim.

Não havia mais ninguém que compreendesse o aparelho deixado pela velha ciência acônida.

Quem comprimisse o respectivo botão iniciaria uma operação que não oferecia a menor segurança quanto ao bom funcionamento do aparelho ou quanto à segurança da nossa missão.

Além dessas dificuldades, ainda havia o problema da necessária subtração da máquina e do seqüestro de alguns cientistas. Estes provavelmente haviam descoberto, depois de anos de experiências, que chave teria de ser acionada para alcançar este ou aquele efeito.

Nem por isso se poderia dizer que sabiam lidar com a máquina. Além disso não sabíamos que efeitos a mudança do estado temporal produziria sobre nós.

Mesmo que fôssemos pousar em Árcon III, 6.023 anos antes do nosso tempo, continuaríamos a ser componentes energéticos de nosso tempo. Mercant confessara que seria impossível penetrar de forma estável na época de Tutmor VI ou fazer uma viagem pelo tempo. O plano era absurdo.

A voz de Mercant arrancou-me do estado de rigidez em que me encontrava. As palavras finais de sua exposição deixaram claro que os cientistas da Segurança não ignoravam as dificuldades.

— O alcance do campo temporal chega, a uns duzentos quilômetros, isto quando o conversor é ativado ao máximo de sua potência. Ninguém deve afastar-se a mais de duzentos quilômetros do aparelho. A falsa Sotala deverá pousar o mais perto possível do cérebro positrônico, no qual naquela época havia um trecho aberto. O campo defensivo energético ainda não existia. Os senhores terão de penetrar no labirinto com muita habilidade e com o auxílio dos mutantes e esconder uma bomba nuclear de tal forma que não seja encontrada. Essa bomba possui um relógio de urânio que desempenha as funções de detonador. O processo de fusão será desencadeado exatamente 6.023 anos depois. Isso corresponde ao dia 15 de fevereiro de 2.106. Em outras palavras, a detonação se verificará dentro de poucos dias.

Rhodan levantou-se. Enfiou as mãos nos bolsos do uniforme, dirigiu-se ao projetor de filmes e parou junto ao mesmo.

— Mercant, desta vez suas especulações são muito loucas. Se a bomba deve explodir no dia 15 de fevereiro, teoricamente a mesma já deve encontrar-se no interior do cérebro positrônico.

— Existe uma explicação relativista — observou Kalup, em tom apaixonado. — Pode estar, mas não se pode dizer que tenha de estar. O funcionamento do aparelho acônida é por ora fictício.

— Professor, acho que minha inteligência não foi turvada. Acontece que não consigo acompanhar seu raciocínio.

— Nós também não conseguimos — confessou Mercant. — Apesar disso devemos tentar. Não vejo outra possibilidade de destruir o cérebro. Os acontecimentos mais recentes provam que as alterações nos seu controles mais importantes transformaram o centro de computação num grave perigo. Descobriram-se comandos energéticos acônidas. Teria sido possível prender os oito cientistas, se o cérebro não tivesse tomado uma decisão precipitada e provocado um curto-circuito. Atlan não pôde utilizar seu transmissor. Não se pode cogitar da utilização da arma mais perigosa que possuímos, pois isso representaria o fim do sistema de Árcon. Os mutantes não são capazes de atravessar o campo energético modernizado. Será que o senhor poderia dizer como afastar o perigo que nos ameaça?

— A Divisão III é de opinião que sei deve arriscar alguma coisa — disse Nike Quinto. — Diante de acontecimentos extraordinários deve-se recorrer a meios extraordinários. Já elaboramos um plano que prevê como se deve agir. Nossa missão ainda encontrará vivo o maior cientista dos arcônidas, o membro do Grande Conselho chamado Epetran. O mesmo faleceu oito anos depois. Talvez se consiga influenciar Epetran de maneira a levá-lo a modificar a programação do robô, e isso desde o início.

— Tolice! Se isso tivesse acontecido, hoje teríamos de agir de forma diferente — afirmou Rhodan.

Concordei com sua opinião.

— Talvez não — replicou Nike. — Da situação atual podemos concluir tudo ou nada. Ainda não sabemos se o senhor esteve no cérebro há 6.023 anos ou não. Teremos de aguardar o dia 15 de fevereiro.

— Pois aguardemos! — respondi num gemido.

Mercant fez um gesto. De repente pareceu muito decidido.

— Isso é impossível, majestade! Dessa forma perderíamos o momento adequado. A mensagem de hiper-rádio da Sotala é recebida no dia 10 de fevereiro, há 6.023 anos. O comandante da nave recebe ordens para regressar imediatamente. Terá de chegar ao sistema de Árcon dentro de dois dias. Isso corresponderia ao dia 12 de fevereiro, falando em termos terranos. Os senhores receberão a tabela de conversão para os dados arcônidas. Disporão, então, de dois dias, no máximo de dois dias e meio, para esconder a bomba ou obrigar Epetran, que dirigiu a construção do grande centro de computação, a montar um outro dispositivo de segurança. A bomba deverá explodir no dia 15 de fevereiro. Se perdermos esses momentos decisivos, não teremos mais nenhuma possibilidade de fazer com que os senhores pousem em Árcon na época do Imperador Tutmor VI. A circunstância de a Sotala ter transmitido a notícia de um grande êxito e não ter regressado representa um fato único. Não se poderá copiar outra espaçonave.

— Por quê? Nas batalhas que se travaram naqueles tempos foram destruídas milhares de naves arcônidas.

— Sem dúvida, sir! Acontece, porém, que, nos poucos dias que são importantes para nós, isso só aconteceu com a Sotala.

Meu cérebro adicional avisou-me de que Mercant cometera um erro de lógica. Levantei-me. Rhodan fitou-me com uma expressão indagadora. Dirigi-me ao chefe de segurança.

— Mercant, o senhor sabe quanto tempo demora a programação da frota robotizada. Deverá haver um ataque à Terra, mas este não será realizado amanhã nem dentro de vinte dias. Por isso pergunto-lhe por que motivo o dia 15 de fevereiro, o cruzador Sotala e os outros detalhes assumem uma importância tão decisiva. Acontece que com o conversor acônida podemos influenciar o tempo. Se a operação for iniciada mais tarde, ainda poderemos aproveitar o momento adequado.

Tive a impressão de que acabara de desenvolver uma argumentação lógica, mas estava enganado. Os terranos sabiam pensar.

— Sem dúvida poderíamos partir dentro de trinta dias e atingir o ponto decisivo, sir. Mas sempre se teria de chegar a Árcon no dia 12 de fevereiro. Nenhum aparelho pode mudar isso. E, para conseguir tal coisa, deve-se recorrer à Sotala.

— Não compreendo.

— Sir, há 6.023 anos, nestes mesmos dias, foram realizadas as últimas manipulações com o regente. Se chegarmos um pouco mais tarde, o campo energético defensivo já existirá. Quer dizer que o dia do pouso deverá corresponder a um momento que seja anterior à ativação desse campo e ainda corresponda à possível chegada da Sotala. Esse momento corresponde ao dia 12 de fevereiro. Para nós, a perda dessa nave representa uma feliz coincidência. O dia 15 de fevereiro representa uma referência de cálculo para o detonador de urânio da bomba. Foi difícil fixar o momento exato, face ao semitempo intercorrente. Para que modificar esse ponto e começar tudo de novo? Afinal, ainda existe a possibilidade de subtrair o aparelho dos acônidas e dar início à operação. De qualquer maneira, não podemos dispensar a Sotala.

Senti que acabara de receber uma lição do chefe de segurança. E estava com a razão! Dali a mais alguns dias, o campo energético do computador já teria sido levantado, motivo por que qualquer atraso poderia ter conseqüências catastróficas. Os terranos não se haviam esquecido de nenhum detalhe.

Rhodan voltou para a poltrona. Também voltei a acomodar-me. Fitamo-nos atentamente. O silêncio reinava na sala.

Fiz um gesto hesitante de assentimento. Rhodan suspirou, aliviado.

— Mr. Mercant, mande apresentar o filme mais uma vez. Queremos ver também as instalações internas do cruzador.

Senti-me reconfortado. Rhodan tomara uma decisão. A operação teria início. Meu cérebro adicional transmitiu um impulso que não me dizia nada. Provavelmente quis chamar-me de idiota.

A imagem da Sotala voltou a surgir na tela. Reginald Bell disse em tom de resignação:

— Já vi muita coisa depois que surgiu a Terceira Potência, mas esta é a operação mais louca em que já estive envolvido.

— Pois você está enganado — retificou Rhodan, com voz trêmula. — Você assumirá o comando da Frota e esperará até que o regente tenha sido destruído. Quando isso tiver acontecido, você começará imediatamente a capturar as naves robotizadas desgovernadas do regente.

— O quê...?

— Isso mesmo; comece imediatamente — confirmou Rhodan. — Temos uma vantagem: sabemos que alguma coisa vai acontecer. Devemos agir antes que as outras inteligências descubram como é fácil apoderar-se das preciosas unidades espaciais da frota do regente. Você terá de cuidar desde logo de verificar onde podem ser encontradas as maiores aglomerações de naves. Cuide delas em primeiro lugar. As naves solitárias que se acham nas profundezas do espaço ficarão para depois. Mercant, passe adiante. Quero ver o interior da nave.

Senti-me bem tranqüilo. Os dados haviam sido lançados. Rhodan começou a agir com a desenvoltura de sempre. Já pensava em coisas de que até então nem me lembrara.

Era claro. Se o cérebro positrônico fosse destruído, cem mil naves da frota arcônida estariam indefesas. Qualquer pessoa poderia facilmente apoderar-se das mesmas.

“Se!”, observou o setor lógico de minha mente. Nem sei quantas vezes chegara a usar essa expressão ilusória.

Dali a duas horas, os arranha-céus da Segurança Solar pareciam um hospício. Era impossível falar com Rhodan. Encontrava-se numa sala de controle na qual havia pelo menos cinqüenta aparelhos de comando. Na sala ao lado estava reunido o estado-maior da Frota. Senti-me perdido em meio a essa lufa-lufa, que só poderia acontecer na Terra. Um reino estelar pequeno, mas muito ativo, preparava-se para desferir seu golpe. Um caminho fora descoberto, e passou-se a trilhá-lo resolutamente.

Era exatamente isso que eu admirava nos homens. Uma vez tomada uma decisão, não desistiam enquanto não alcançassem seus objetivos.

Retirei-me aos meus alojamentos. Quase de hora em hora, alguém me chamava pelo videofone para pedir alguma informação.

Quiseram saber, por exemplo, qual era a posição social de um capitão arcônida de segunda-classe.

Um alfaiate da Segurança incumbido da feitura dos uniformes pediu as medidas exatas de meu corpo. Os especialistas em armamentos indagaram se os oficiais da frota arcônida daqueles tempos tinham permissão para portar pistolas muito enfeitadas.

Durante dois dias ocupei-me exclusivamente em satisfazer a curiosidade dos terranos. Convenci-me cada vez mais de não estar lidando com um grupo de sonhadores. Esses homens eram especialistas de primeira categoria, que pensavam em coisas que geralmente passavam despercebidas.

Mais uma vez fiquei à espera. Preferi não dar conselhos que pudessem influenciar as medidas tomadas por Rhodan. Ainda haveria tempo para isso, se notasse alguma coisa.

 

Os acontecimentos começaram a precipitar-se. Quando partimos na Ironduke a fim de fazer uma visita oficial de cortesia ao Grande Conselho de Ácon, a imitação da velha Sotala também decolou.

O comandante-substituto da nave era o Major Heintz, um especialista da Segurança Solar que possuía treinamento cosmonáutico.

A tripulação era formada por setecentos e cinqüenta homens, o que correspondia ao número costumeiro nos cruzadores pesados do império. Na época ainda dispúnhamos de soldados para isso. O povo dominante mal começara a degenerar.

Rhodan, eu, Jefe Claudrin e alguns oficiais do comando da Ironduke só seriam transferidos mais tarde para o cruzador. Nosso equipamento especial, formado principalmente por uniformes, armas, documentos pessoais e outras coisas mais já se encontravam a bordo da Sotala.

Avançamos em vôo linear direto até os confins da área central da Via Láctea. Uma vez lá, expedimos uma mensagem de rádio destinada ao Grande Conselho.

Quando recebemos a resposta, o gigantesco sol azul denominado Ácon, cujo quinto planeta era o mundo dos acônidas, já brilhavam nas telas de nossa nave.

Claudrin só iniciou a manobra de frenagem dali a dez horas. Mais uma vez tive oportunidade de admirar Ácon V.

Rhodan batizara o planeta com o nome Sphinx. Os acônidas costumavam chamá-lo de Drorah.

A recepção que nos foi dispensada por alguns delegados do Conselho foi de uma frieza impressionante. Assim que chegamos ao planeta, recolhemo-nos à base comercial terrana, onde encontramos quase todos os membros do Exército de Mutantes.

Dois dias foram consumidos em festividades e excursões. Os acônidas não deixaram de dispensar as devidas atenções ao chefe do governo do Império Solar. Tornou-se, cada vez mais claro que os membros do Grande Conselho apoiavam os rebeldes arcônidas.

Fizeram-me saber que minha presença em Sphinx poderia ser tolerada, mas que, para facilitar os entendimentos com o novo imperador, minha visita teria de ser a mais breve possível.

O serviço de escuta de rádio do entreposto comercial captou e decifrou algumas mensagens de hiper-rádio. Nessas mensagens comunicou-se ao meu sucessor, Minterol I, que infelizmente fora impossível evitar que eu aparecesse em Sphinx, uma vez que fazia parte do séquito do chefe de governo terrano.

Naquela altura não me importava o que pensassem ou decidissem a meu respeito. Sabia que a Sotala se mantinha à espera a dez mil anos-luz de distância, num setor espacial praticamente desconhecido. Só estávamos interessados em apoderar-nos do conversor de tempo.

Os mutantes haviam tomado todos os preparativos. Fazia uma hora que Rhodan voltara de uma recepção. Cansado, estava tentado em sua poltrona e ouvia o relato de John Marshall, Chefe do Exército de Mutantes.

Gucky, o rato-castor, saíra no cumprimento de uma missão. Transportava o mutante Kitai Ishibashi, que deveria “preparar” os quatro cientistas acônidas.

O dom especial de Ishibashi consistia na capacidade de, numa variante do hipnotismo, impor sua vontade a outros indivíduos. O sugestionamento global era persistente e praticamente imperceptível.

Até ali fizera-se tudo para possibilitar a subtração do aparelho. Mas ainda havia alguns lances perigosos que teriam de ser considerados.

As telas do chamado entreposto comercial — na verdade um posto de Segurança Solar, dotado dos equipamentos mais modernos — mostravam os edifícios principais do porto espacial central de Sphinx.

Desde o dia em que o Sistema Azul fora descoberto por Perry Rhodan, os acônidas se esforçavam para praticar novamente a navegação espacial. Continuavam a realizar o tráfego interestelar por meio de gigantescos transmissores de matéria que, embora muito bem construídos, não eram muito eficientes sob o ponto de vista militar.

Rhodan não teve a menor dificuldade em conquistar o sistema com a Frota Solar, destruindo as usinas energéticas espaciais. Depois disso, o campo energético azul deixara de existir.

Os acônidas perceberam claramente que apesar de sua avançada tecnologia de transportes não poderiam desempenhar seu papel na política galáctica, enquanto não dispusessem de uma navegação espacial.

Sem dúvida não se teriam mostrado tão pacíficos se estivessem em condições de convocar dez mil couraçados espaciais. Os terranos eram considerados intrusos. Sabia perfeitamente o que pensavam a respeito de mim, que era o antigo governante de um povo colonial que se separara. Para os acônidas, os arcônidas eram selvagens degenerados e uma praga estelar, que não devia merecer qualquer atenção.

Tudo estava em calma no novo porto espacial da cidade. Não se viam espaçonaves robotizadas do regente. As naves mercantes de outros povos não tinham permissão de pousar. Os acônidas guardavam zelosamente suas áreas de influência, que se estendiam por um número desconhecido de planetas coloniais. Esses mundos eram atingidos e abastecidos exclusivamente por meio dos grandes transmissores. Criara-se um sistema de transporte que funcionara até que Rhodan descobrisse o Sistema Azul.

Com isso os acônidas foram perturbados em sua calma. E naquele momento estávamos sentindo as conseqüências disso. Os agentes terranos haviam apurado que o Grande Conselho mantinha relações com os rebeldes de Árcon. Há alguns meses ainda costumavam negar o fato. Mas neste meio tempo a situação se modificara.

Rhodan acompanhou meu olhar e disse em tom pensativo:

— Lá fora está tudo muito quieto. Dentro de alguns anos, as espaçonaves de todos os tipos enxamearão por ali. A produção acônida será iniciada em breve. Face ao elevado nível de adiantamento científico dessas inteligências, devemos contar com o aparecimento de versões sensacionais de espaçonaves.

— Não precisamos esperar por isso, sir — observou Marshall. — Já começaram a fazer nossa caveira. O Imperador Minterol foi “reconhecido” politicamente: sabe-se que não passa de um boneco. As investigações mais recentes revelaram que o governo enviou equipes científicas para Árcon. A fase das guerrilhas passou. Daqui a alguns meses, os comandos do regente serão modificados de forma tal que se transformarão numa gigantesca calculadora, não desempenhando nenhuma função de comando. Com isso os acônidas deverão transformar-se na nação dominante da Galáxia. Já estão tomando preparativos para apoderar-se da frota do regente. A tarefa principal de novos estaleiros espaciais, construídos cor enormes dispêndios, consistirá na adaptação das naves automáticas. A situação está ficando séria, sir!

Rhodan levantou-se. As linhas energéticas do campo defensivo brilhavam nos limites da área extraterritorial do entreposto terrano. Nossos rastreadores estruturais reagiam ininterruptamente. Os transmissores acônidas voltaram a entrar em atividade.

— Estão enviando tripulações para Árcon, e o cérebro positrônico aceita esse procedimento — constatou Rhodan. — Pois bem, John. Quais foram as providências que tomou? A “Missão Desespero” está entrando na fase crítica.

Lancei um olhar atento para a Ironduke, estacionada na parte do campo de pouso pertencente à área de influência terrana. Jefe Claudrin e a tripulação estavam a bordo. O couraçado espacial estava pronto para entrar em combate. Por enquanto não havia no Sistema Azul nenhuma espaçonave capaz de enfrentar o gigante terrano. Os poucos veículos espaciais de reduzidas dimensões dos comandos energéticos acônidas haviam sido destruídos em dezembro de 2.102. Na oportunidade sabíamos perfeitamente que os acônidas não se manteriam passivos diante de tamanho golpe. No entanto, contáramos com uma pausa de pelo menos trinta anos. Nem mesmo com os recursos de que dispunham, ser-lhes-ia possível levar avante um programa de construção de espaçonaves em grande estilo, num prazo menor que este.

E agora haviam encontrado um caminho mais propício, com o auxílio de meus patrícios rebelados. O império possuía cerca de cem mil unidades robotizadas dos tipos mais modernos, que poderiam ser adaptadas rapidamente para serem comandadas por uma tripulação. Era um plano diabólico, que correspondia perfeitamente ao caráter dos acônidas.

O relato oferecido por Marshall foi breve. Só se tratava de fixar os últimos detalhes.

— O conversor de tempo está guardado em Impton. O orgulho dos acônidas pelas realizações dos antepassados levou-os a construir uma cidade-museu, que recebeu o nome de um físico importante chamado Impton. O aparelho é de forma cúbica com cerca de 8,3 m de aresta. Está colocado sobre uma plataforma quadrada de 5 m de espessura. A unidade energética está montada nessa plataforma. Trata-se de um reator de alta potência de características estranhas. Aplicou-se um processo de fusão que os cientistas acônidas dos nossos dias ainda não conseguiram imitar. A potência da usina é desconhecida. Pelos nossos cálculos deve chegar a uns cinqüenta milhões de quilowatts.

Fiquei impressionado. A cifra nada tinha de extraordinário e, a bordo de uma grande espaçonave, até chegava a ser corriqueira, mas para uma unidade de dimensões tão reduzidas a potência era tremenda.

— A cidade-museu é trancada por grades energéticas. O respectivo espaço aéreo é mantido sob vigilância ininterrupta. A subtração da máquina só será possível se usarmos nossas qualidades especiais. Em outras palavras, devemos recorrer aos mutantes para penetrar na cidade sem sermos notados e podermos ligar a máquina. O conjunto que abriga o museu foi construído há uns três mil anos. Devemos dar um salto de quatro mil anos no passado. Provavelmente acabaremos numa área não construída. Devemos levar veículos antigravitacionais de transporte. Sob os efeitos do campo temporal, o conversor poderá ser facilmente levado ao lugar em que quatro mil anos mais tarde surgiu o entreposto terrano. Dessa forma traríamos a máquina para cá. O museu terá de ser destruído numa explosão atômica. Tal fato explicaria o súbito desaparecimento do conversor.

— Destruído como? — perguntou Rhodan.

— Um comando está pronto para entrar em ação. Os órgãos oficiais acônidas já foram informados de que, há dias, agentes desconhecidos tentaram penetrar em Impton, a fim de roubar os objetos produzidos pelos acônidas antigos. Falou-se na atuação de terranos, e os funcionários do Serviço de Segurança de Ácon acreditaram nisso.

— Não é de admirar — disse num sopro.

Rhodan soltou uma risada. Marshall olhou para o relógio e prosseguiu:

— Os cientistas que sabem lidar com o conversor chegarão pontualmente. Kitai já entrou em ação. É só, sir.

Olhei em torno. A sala de observação espacial parecia um acampamento militar, com a diferença de que os guerreiros presentes não possuíam lanças ou espada, mas estavam equipados com as armas energéticas mais recentes da Via Láctea.

Usava uniforme terrano. Meus cabelos de arcônida louro-claros estavam cobertos pelo capacete de rádio. Os especialistas mais competentes do planeta Terra aguardavam o momento de dar início a ação que seria decisiva para os destinos do sistema solar.

Começou a escurecer. O sol azul do Sistema Azul desapareceu embaixo da linha do horizonte. A profusão de estrelas do centro da Via Láctea surgiu diante de nossos olhos tão de repente que até parecia que alguém tinha levantado uma cortina.

— Vamos acertar os relógios — disse Rhodan. — Os cientistas chegarão dentro de duas horas.

Meu cérebro adicional manifestou-se. Não havia dúvida de que os homens do Serviço de Segurança haviam feito um trabalho cuidadoso. Apesar disso tinha meus receios. O plano era muito ousado, ainda mais que ninguém sabia prever os efeitos do deslocamento temporal.

Mesmo que o plano fosse bem-sucedido, restaria saber se a explosão seria capaz de disfarçar o desaparecimento do aparelho, a tal ponto que ninguém se lembrasse do que poderia ter acontecido.

Só mais tarde descobri que outra vez subestimara Mercant. Esse homem conhecia o jogo que se travava atrás dos bastidores. A idéia de fazer com que os órgãos acônidas de segurança fossem informados sobre as atividades de agentes terranos fora genial.

 

O comando era formado por vinte homens dirigidos pelo telepata John Marshall.

Rhodan e eu fomos os últimos a saltar. Fomos transportados pelo rato-castor Gucky e pelo teleportador Tako Kakuta.

O neutralizador gravitacional já desaparecera. Os três teleportadores haviam unido suas forças para levá-lo à cidade-museu.

Usávamos trajes de combate terranos, fabricados segundo o modelo arcônida. Apenas, os homens haviam introduzido aperfeiçoamentos notáveis nos mesmos. Os campos de reflexão, por exemplo, já não podiam ser registrados por aparelhos. Suas vibrações eram captadas e absorvidas por um aparelho especial.

Os olhos fiéis de Gucky estavam pousados em mim.

— Está nervoso? — perguntou com sua voz aguda.

— Lógico; nem poderia deixar de estar. — respondeu Rhodan em tom mais áspero do que pretendera.

A pequena criatura, ofendida, torceu o nariz pontudo de camundongo.

— Gostaria de saber por que todo mundo está perdendo os nervos por aqui. Afinal, chegamos bem. É bem verdade que os acônidas postaram sentinelas e colocaram aparelhos de espionagem nas entradas, mas só a Seção de Física do museu possui umas mil salas. Não é possível exercer uma vigilância cuidadosa em todas elas.

— Existe uma vigilância mais forte na sala em que fica o conversor?

— A vigilância não é mais nem menos forte que em outras salas. Provavelmente acreditam que não saberíamos o que fazer com a máquina.

— Isso logo mudará — disse Rhodan. — Está pronto, Atlan?

Fiz que sim, abaixei-me e coloquei o pequeno nos meus braços. Gucky usava seu traje especial, que até possuía um estojo: para a cauda.

O rato-castor beliscou meu nariz. Nós nos entendíamos muito bem.

Alguns segundos depois, verificou-se a desmaterialização. Antes que tivesse uma percepção nítida da dor aguda, já me encontrava no destino.

Num movimento automático comprimi o botão do campo de deflexão. O funcionamento do microreator era totalmente silencioso. Gucky agarrava-se a mim. Era a única criatura viva que conseguia enxergar naquele momento. Os homens do comando, já presentes, deslocavam-se sob a proteção de seus campos de deflexão de luz. Eram invisíveis.

Meu coração batia forte e ruidosamente. Em meio ao silêncio, a arma que trazia na mão parecia ridícula. Guardei a pistola e olhei em torno.

Viéramos ter a um gigantesco salão. Em todos os cantos viam-se máquinas e aparelhos, cuja finalidade desconhecia. No entanto, as placas com letreiros escritos na antiga língua arcônida revelavam a finalidade que esses objetos desempenhavam antigamente.

— Coloque os óculos de absorção — cochichou a pequena criatura que eu trazia nos braços.

Pus a mão no capacete e puxei para baixo o visor móvel. O mesmo eliminava o efeito defletor dos campos energéticos que nos envolviam, e ainda permitia uma visão perfeita.

Vi os homens que haviam procurado um abrigo. Estavam dispostos em semicírculo junto à passagem formada por um grande arco.

Num movimento cuidadoso coloquei Gucky no chão. Ras Tschubai e o terceiro teleportador do Exército de Mutantes, Tako Kakuta, fizeram um sinal para que nos aproximássemos. Rhodan caminhou silenciosamente para onde estava Marshall, que se encontrava atrás de uma máquina alongada.

Só nos comunicávamos por meio de gestos. Todos sabiam o que tinham a fazer. E o espia? Wuriu Sengu estava parado junto à parede que nos separava da sala contígua. Era lá que estava guardado o conversor. Os filmes feitos pelos mutantes provavam que um lugar especial fora reservado a esse aparelho. Era uma sala relativamente pequena, na qual não se exibiam outros objetos.

Sengu olhava fixamente para a parede. A luz das poucas lâmpadas de neon parecia incomodá-lo. Depois de algum tempo levantou a mão. Os quatro dedos abertos em leque revelavam que, provavelmente, a segurança acônida mandara vigiar a peça mais preciosa deixada por seus antepassados, mais intensamente que os outros objetos.

Gucky tocou-me com a mão. Antes de dirigir-me ao lugar em que estava Rhodan, vi-o desaparecer juntamente com os outros teleportadores.

Haviam recebido a incumbência de trazer os quatro cientistas familiarizados com o funcionamento do conversor. Se as coisas estavam correndo conforme o plano, esses quatro homens deviam ter-se encontrado há poucos minutos, a fim de discutir um assunto que lhes fora sugerido por Ishibashi.

Sob o aspecto prático nosso objetivo não era muito difícil. Acontece que os fatores psicológicos assumiam uma importância extraordinária. Teríamos de impedir que se notasse o desaparecimento do aparelho, pois isso levaria a certas conclusões óbvias.

A base do fator psicológico, segundo Marshall, eram os quatro cientistas. A Segurança Solar resolvera levá-los à força para dentro do museu.

O seqüestro seria comunicado ao Serviço Secreto de Ácon assim que a máquina estivesse em condições de entrar em funcionamento. Para esse fim combinara-se um contato telepático entre Marshall e um mutante que esperava do lado de fora.

A primeira conseqüência de uma dica recebida de pessoa desconhecida seria a ocupação de toda a área em que estava instalado o museu. Quando isso acontecesse, já deveríamos ter desaparecido juntamente com o aparelho, mas um grupo de robôs especiais se envolveria numa batalha no curso da qual se verificaria a explosão atômica.

Era um plano complicado, que envolvia vários pontos de risco, que não poderiam deixar de ser considerados.

Antes de mais nada, o seqüestro dos cientistas não deveria ser descoberto antes do momento adequado. Estes encontraram-se na casa de campo de um físico chamado Artol de Penoral. Nesse lugar seriam dominados e levados pelos teleportadores à cidade-museu, sem que ninguém o percebesse.

Perry apontou para a passagem. Alguém proferiu um comando em voz alta. Outra voz respondeu.

— Os guardas receberam ordem de atirar — cochichou. — Está dando certo.

Rhodan examinou sua arma de choques. Não deveríamos atacar antes que os cientistas estivessem presentes. Se não pudéssemos contar com o auxílio dos mesmos, a utilização do conversor seria impossível. Até parecia que o ponteiro de segundos de meu relógio não andava mais. Era sempre a mesma coisa quando se verificava uma situação como esta: o tempo não passava.

Um sargento ruivo caminhou cuidadosamente em direção à passagem. Sengu entregou-lhe um bilhete em que explicava a posição dos guardas acônidas. Outros especialistas pertencentes ao comando fitavam os instrumentos de localização. Do outro lado da parede não aconteceu nada que indicasse uma liberação mais intensa de energia. Ao que parecia, ninguém esperava um ataque ao conversor de tempo.

Só dali a alguns minutos apareceram os teleportadores. Em dois saltos trouxeram os cientistas e Kitai Ishibashi, cuja atividade sugestionadora fez com que os acônidas tivessem a impressão de que sua chegada ao museu era um fato corriqueiro.

Tako Kakuta aproximou-se. O ranger das suas botas era quase imperceptível, mas tive a impressão de que era ouvido em todos os cantos do museu.

Rhodan levantou a mão. Kakuta parou e passou um pano pela sola das botas. Ao que parecia estas, haviam entrado em contato com alguma substância semelhante à cera. Quando prosseguiu, caminhou tão silenciosamente quanto os outros.

— Com licença — cochichou. — O seqüestro foi bem-sucedido. Betty foi informada. Podemos começar.

Fitei os acônidas. Usavam mantas vermelhas que representavam o sinal externo de sua dignidade. Por enquanto havia um vazio em seus olhos, mas logo mudaria. Perguntei-me se um sugestionamento integral não poderia produzir conseqüências indesejáveis. Se os acônidas não manipulassem o aparelho com toda precisão, a missão seria impossível. Nesse caso só nos restaria a fuga.

Rhodan saiu de trás da máquina. A um sinal seu, os membros do comando entraram em atividade. Penetrei no recinto contíguo, juntamente com Marshall.

Era um pavilhão grande e abobadado, no qual estava guardado o aparelho mais estranho em que já pusera os olhos.

Realmente parecia um cubo que descansava sobre uma plataforma de um metro de espessura. De uma das faces do “alicerce” quadrado, havia degraus. Ao lado desses degraus via-se uma escotilha de aço que permitia o acesso à unidade energética. Olhei em torno para ver se descobria os guardas. Dois deles estavam junto à porta que ficava do lado oposto. Outro estava agachado embaixo da escada, enquanto o último se encontrava tão perto de mim que poderia tê-lo tocado.

Os terranos agiram rapidamente e em silêncio. Dois soldados de cada vez saltavam sobre um dos guardas e impediam que gritasse, enquanto o outro colocava uma máscara de anestesia em seu rosto. Depois disso os acônidas, inconscientes, eram entregues aos médicos, que os colocavam num estado de sono profundo.

Ainda desta vez não se pronunciou uma única palavra em voz alta. Kitai Ishibashi exercia um domínio total sobre os cientistas. Imaginava perfeitamente como as faculdades paramentais do mutante os obrigavam a esquecer as circunstâncias exteriores. Acreditavam que tinham vindo espontaneamente, a fim de realizar uma experiência permitida pelo Grande Conselho. Moviam-se com a segurança de quem se encontra na companhia dos mais altos dignitários.

Além disso não falavam uns com os outros. Marshall e Gucky levaram-nos para junto da máquina. Um deles, chamado Artol de Penoral, tirou do bolso o pequeno emissor de código que desligava a grade energética de dois metros de altura que cercava a máquina.

Fiz um gesto de aprovação. Os terranos não se haviam esquecido de nenhum detalhe. Um projeto como o nosso poderia fracassar em virtude de insignificâncias desse tipo.

Fiquei parado até que o plano elaborado em todas as minúcias tivesse sido executado. Os técnicos planaram para dentro do recinto, com o auxílio dos potentes aparelhos gravitacionais.

Vinte robôs de combate tomaram posição nas entradas do recinto. Estavam equipados com potentes armas energéticas. Sua programação especial correspondia a uma ordem de extermínio. Deviam manter a posição até que tivéssemos desaparecido juntamente com o conversor de tempo. Após isso a bomba seria detonada. Se o destino da Terra estivesse em jogo, Rhodan não teria a menor dúvida em sacrificar vinte robôs.

Do lado de fora só ficaram uns poucos soldados. Subi os degraus e passei por uma eclusa de ar. Ouviram-se palavras vindas do corredor. John Marshall instruiu seus homens.

— Por aqui, sir — disse o sargento ruivo. — Faça o favor de desligar o campo de deflexão.

Comprimi o botão. O zumbido do projetor cessou. Empurrei para cima o visor do capacete e voltei a enxergar normalmente.

O corredor levava para a unidade energética, protegida por uma série de escotilhas. Tratava-se de um recinto que também tinha formato cúbico e estava recheado de aparelhos de todos os tipos. Ali só cabiam poucas pessoas.

Ninguém me deu a menor atenção. Abriguei-me num canto, atrás de três telas de imagem triangulares, e acompanhei o trabalho dos acônidas. Nem pensavam em desobedecer às instruções de Ishibashi. Além disso realmente pareciam estar familiarizados com aqueles controles misteriosos.

Ouviu-se um zumbido. No mesmo instante, meu cérebro adicional emitiu um impulso de advertência e eu falei:

— Acho preferível esperarmos até que a segurança acônida ataque. Existe a possibilidade de localização energética.

Rhodan confirmou com um gesto. Mandou que o ritmo das máquinas fosse reduzido.

O sugestor transmitiu a ordem aos acônidas. Dali a alguns segundos chegou uma mensagem telepática. Marshall e Gucky captaram-na ao mesmo tempo.

— Betty está chamando — disse a pequena criatura. — A segurança local foi informada do seqüestro dos cientistas. Comandos aéreos estão sendo acionados. O estado de alarma total foi proclamado para a cidade-museu.

Mal acabara de falar, quando se ouviram ruídos vindos de fora. Agucei o ouvido.

Escutamos o rugido típico de arma energética. Rhodan olhou para o relógio. Finalmente os cientistas receberam permissão de falar. Imediatamente começam a conversar sobre os problemas ligados à ativação do campo energético. Compreendi apenas parte de suas explanações. Pensaram que nosso sugestor fosse o presidente do Grande Conselho. Não deram a menor atenção aos soldados do comando.

Do lado de fora a luta estava rugindo. O trovejar das armas pesadas dos robôs provava que a segurança acônida agira conforme se esperava.

— Preparar — gritou Rhodan. — Ras, coloque a bomba no lugar.

O terrano de pele escura confirmou com um gesto. Trazia sobre o peito uma micro-carga explosiva de produção terrana.

Ras Tschubai desmaterializou-se. Ao retornar informou ter colocado a bomba na sala contígua. Desta vez eu olhei para o relógio. Ainda dispúnhamos de dez minutos. Até lá os robôs teriam de defender nossa posição.

O sugestor não disse uma única palavra. O suor que gotejava em sua testa nos últimos minutos deixou-me preocupado. Sem dúvida Ishibashi tinha de fazer um esforço extraordinário, para manter os quatro acônidas sob controle ininterrupto.

— Ativar — disse Rhodan, falando um pouco depressa. — Mande que o campo de conversão seja erguido de forma a envolver apenas a máquina.

O último homem pertencente ao comando subiu a bordo. As escotilhas do aparelho foram fechadas. Os reatores que forneciam a energia despertaram sob nossos pés. Os ponteiros deslizavam pelas escalas. Já conhecia os controles energéticos. Nas velhas naves arcônidas, sua disposição fora quase idêntica.

Notei que os reatores foram postos a funcionar com apenas dois por cento de sua potência. O físico Artol parecia ser o personagem dominante. Todo mundo ouvia suas instruções. Geralmente só conseguíamos imaginar o sentido de suas explanações.

— Mais rápido! — disse Rhodan, em tom insistente.

A palidez de seu rosto traía o nervosismo exterior.

Procurei controlar a atividade dos acônidas. Os controles energéticos progressivos do conversor eram acionados por meio de uma série de botões. Mas por enquanto só a unidade energética fora posta a funcionar. A intensidade da corrente capaz de alimentar um projetor, fosse ele qual fosse, seria indicada por outras cifras.

Kitai tateou à procura de apoio. Saltei para a frente, empurrei um técnico terrano e segurei o mutante magro. Marshall também compreendeu o que estava acontecendo.

Esperei alguma coisa que não poderia prever nem calcular. Para um cérebro comum, o deslocamento ou a transformação das linhas temporais era uma coisa tão extraordinária que o mesmo se recusava a encetar as operações de raciocínio ligadas ao mesmo.

Por isso tive de lutar obstinadamente por uma área de imaginação que correspondesse à situação que se aproximava.

Uma vez criado o campo, o conversor não sairia do lugar. Isso significava que várias coisas aconteceriam no mesmo lugar e ao mesmo tempo, mas estas coisas estavam separadas por vários planos de referência. O fator mais importante era o tempo, não o conceito distância.

Ishibashi soltou um gemido. Segurei-o mais fortemente. Seus olhos vidrados mostravam que estava próximo ao esgotamento total. Vinha trabalhando há dias para poder realizar o sugestionamento global. Se fraquejasse naquele instante, ninguém poderia prever como agiriam os acônidas.

Era claro que poderíamos recorrer a outros meios para obrigá-los a fazer o que desejávamos. Restava saber quanto tempo levaríamos para submetê-los à nossa vontade.

O zumbido da unidade energética deixou-me nervoso. Era um ruído monótono, cuja uniformidade não permitia qualquer conclusão sobre os fatores técnicos.

Rhodan mantinha-se abaixado atrás dos acônidas. Estes fitavam intensamente os controles. As telas já estavam funcionando. Algumas delas mostravam o mundo exterior, outras o aparelho.

— Gucky, prepare-se para destravar o detonador da bomba — disse Rhodan.

Estremeci. Dali a dois minutos, a bomba detonaria. Se até então não tivéssemos saído da época presente, teríamos um fim terrível.

— Falta um minuto. O salto será realizado trinta segundos antes da detonação — informou Marshall.

O sargento ruivo fez um gesto ostensivo para pegar sua arma energética. A fuga do museu poderia transformar-se numa catástrofe. Uma evolução política inconcebível desenhava-se diante de nossos olhos. Se algum terrano fosse ferido e viesse a ser encontrado, Rhodan teria perdido mais que uma simples batalha!

O rato-castor ficou parado a meu lado. Os joelhos de Kitai começaram a tremer. Lá fora rugiam as armas dos robôs. Vez por outra ouviam-se chiados, geralmente seguidos de explosão. Evidentemente nossas máquinas de guerra estavam sendo destruídas.

Segundo o plano deveriam travar uma batalha de pequena duração. O cronograma ligado ao cálculo da capacidade de combate estava correto, mas já deveríamos ter saído do plano temporal presente.

— Gucky...!

O pequeno animal olhou para Rhodan. Faltavam cinco segundos. Concentrou-se para o salto. Todos o olhavam fascinados. Fui a única pessoa que não teve oportunidade para isso, pois Kitai caiu contra meu peito.

Naquele momento vi a imagem projetada nas telas. De repente os robôs que combatiam haviam desaparecido. Outro aparelho começou a rumorejar sob meus pés. Gritei sem pensar:

— Pare! Volte. Estamos emigrando. Fique aqui, Gucky!

Deixei que o mutante caísse nos braços de Marshall e dei um salto para a frente. Os acônidas conversavam; pareciam fascinados. Artol de Penoral estava com o corpo inclinado para a frente e fitava uma tela redonda, colocada acima dos botões de ajustamento do campo.

No momento em que cheguei ao lugar onde estava o rato-castor, este despertou de sua concentração. Levantei-o com um gesto brutal e sacudi-o fortemente.

— Vamos, acorde — gritei. — Não salte, pequeno. Seria seu fim.

Gucky compreendeu. Sem dizer uma palavra, encostou a cabeça ao meu ombro e fechou os olhos. Percebi que um rato-castor também tem nervos.

Ishibashi estava deitado no chão. O médico pertencente ao comando cuidou dele. Rhodan e os outros mutantes olhavam para os cientistas. Ao que parecia, ainda não haviam notado a falta de Kitai, do que se concluía que o bloqueio sugestivo era muito profundo.

— Podemos despertá-lo? — perguntou Rhodan, em tom apressado.

André Noir, o hipno, respondeu com toda calma:

— Kitai fez um trabalho bem-feito. Por enquanto não sabem o que está acontecendo. Se mostrarem qualquer nervosismo, entrarei em ação. Nada de pânico, sir.

Meus olhos estavam pousados nas telas. A bomba devia ter explodido aproximadamente há um minuto, e não havíamos percebido nada. Era difícil imaginar que o grande pavilhão, que víamos como num filme que condensasse o processo temporal, já fora destruído.

Acompanhei o olhar de Artol. O ponteiro luminoso que encimava os controles parecia medir o retrocesso do tempo relativo. Mas a faixa verde não se sobrepunha a qualquer grupo de algarismos ou símbolos. Era impossível constatar quantos anos já havíamos penetrado no passado.

Depois de alguns instantes o setor lógico de minha mente deu sinal de vida. Observou que a idéia de uma viagem pelo tempo gerava confusão e além disso era falsa. O ponteiro luminoso apenas revelava a potência com que fora ativado o campo de conversão. Tornava-se necessário localizar uma calculadora que trabalhava sincronizada com o mesmo.

Transmiti minhas reflexões a Rhodan. Depois disso tornou-se mais fácil localizar a calculadora. Ela se encontrava atrás de mim.

Os diagramas teriam de ser decifrados posteriormente. Ao que parecia, Artol os conseguia ler.

Os quadros na tela mudavam numa seqüência tão rápida que mal conseguíamos distingui-los. Parecia um filme que corresse depressa demais. As fases culturais sofriam modificações constantes, mas a imagem do pavilhão em que nos encontrávamos continuava inalterada.

De repente deixou de existir!

Vimos uma área livre, limitada ao norte por grandes florestas. Chegáramos a um tempo em que a cidade-museu de Impton ainda não existia.

Ouvimos o som de uma campainha estridente. O campo de conversão, ativado pelo dispositivo automático, manteve-se constante. Isso significava que estávamos parados.

Parecia que estava despertando de um sonho. Rhodan continuava a fitar as telas.

— Conseguimos, excelência — disse o cientista Artol.

Mais uma vez seus olhos pareciam apagados. André fez um gesto para mim. Compreendi que o bloqueio sugestivo aplicado por Kitai fora muito mais intenso do que prevíramos.

Adiantei-me, já que dominava melhor arcônida antigo que os terranos. Ao que parecia, de algum tempo para cá o físico acreditava que eu era o presidente do Conselho.

— Segurem o aparelho neste tempo. Qual é o raio do campo de conversão?

— Vinte metros, excelência. Abrange apenas o epotron.

Compreendi que a última palavra correspondia à designação acônida do aparelho.

— Existe algum risco em sair deste recinto para ir à plataforma externa?

— Talvez não, mas acho que seria recomendável intensificarmos o campo de conversão.

— Por quê?

— Dispomos dos resultados das experiências, excelência — respondeu o cientista, em tom reservado.

Rhodan pigarreou para transmitir sua advertência. Não dei maior atenção à observação que acabara de ser feita. Naturalmente Artol realizara estudos experimentais. Achei que seria inútil despertá-lo do estado de rigidez em que se encontrava em virtude do processo sugestivo.

André afastou-me.

— Vou assumir — disse num cochicho. — Cuide do transporte.

Acompanhei Rhodan, que já chegara à eclusa externa. Ao que parecia, há quatro mil anos as condições atmosféricas do planeta Sphinx não eram piores que na época atual que conhecíamos. Podia arriscar-me a abrir a eclusa, sem tomar qualquer precaução especial.

Quando saímos à plataforma, presenciei um fenômeno que só compreendi depois de alguns segundos.

“Isso é ilógico”, disse meu cérebro adicional. “Há algo de errado. Se as dimensões do campo são tão reduzidas, como se explica que fora de sua área de atuação não se enxergue o ambiente do tempo presente?”

Segurei o braço de Rhodan. O setor lógico de minha mente estava com a razão. Comuniquei a Perry o resultado de minhas reflexões. Pigarreou e disse em tom de embaraço:

— O senhor pergunta demais. Deveríamos ter trazido Kalup. Suponho que um homem colocado no interior da área de conversão seja incapaz de enxergar o mundo normal.

— Mesmo que essa área só abranja uma fração do campo de visão? — perguntei em tom de dúvida. — Estou preocupado, Perry. Pelo que nos disseram, não se tratava de uma viagem pelo tempo no sentido literal da expressão, mas apenas de uma alteração dos pontos de referência. Na minha opinião, deveríamos ver tudo que se encontra no interior da área de conversão, mas não deveríamos ver nada do que fica fora da mesma, ou então só deveríamos ter uma visão nublada dos respectivos objetivos. Para falar mais precisamente, fora da área de conversão deveríamos ver os objetos do tempo presente.

Se os outros estavam tão espantados quanto eu não o mostravam. Cuidaram do elevador antigravitacional, que resistira muito bem à estranha viagem que acabara de realizar.

— Falaremos sobre isso mais tarde — disse Rhodan, esquivando-se. — Antes de mais nada precisamos chegar à Ironduke.

Retirei-me e caminhei pela plataforma. Ao leste do lugar em que nos encontrávamos, ficava a cidade-museu. Estávamos no interior do pavilhão que já fora destruído pela bomba nuclear.

— Isto é de enlouquecer — disse Gucky.

Virei-me. A pequena criatura estava parada junto à escada, e olhava para baixo com uma expressão de insegurança. Bem à nossa frente cresciam árvores acônidas de raízes aéreas. Não se via ninguém.

— Gostaria de saltar, Atlan. Assim saberíamos como realmente estão as coisas lá fora.

— Você não vai fazer nada disso.

— Eu daria um jeito de sair — disse o rato-castor.

Seu dente-roedor brilhava, dando-lhe uma expressão de arrojo.

Sem dizer uma palavra, segurei sua mão e tirei-o de junto da escada. Não sabia quais eram as leis físicas que nos regiam naquele momento, mas imaginava o que poderia acontecer se alguém saísse de repente da área temporal modificada.

Os homens do comando tomaram suas posições junto à plataforma que servia de alicerce. As armas apontavam ameaçadoramente para a frente. Os técnicos colocaram em funcionamento o elevador antigravitacional e fizeram com que o respectivo campo agisse sobre a massa do aparelho.

— Logo veremos se isso combina com o campo de conversão temporal — disse um jovem engenheiro, numa indiferença forçada.

Rhodan procurou escutar o que se passava no corredor. Destacara um observador que o manteria constantemente informado sobre as reações dos cientistas, que ainda acreditavam estar realizando uma experiência solicitada.

Um solavanco inesperado me fez cair no chão. Agarrei-me ao parapeito da plataforma e fiquei à espera do comando.

Os reatores do elevador antigravitacional rugiam. O conversor de tempo levantou-se, balançando e tremendo. Parou três metros acima do solo, sendo equilibrado pelo dispositivo automático.

Continuei deitado. Fiquei de costas e olhei para Rhodan, cujo rosto tremia. Naquele momento desconfiei de que havia algo de errado nos cálculos. O campo antigravitacional mal e mal bastava para neutralizar a estação.

Esperei pacientemente até que os dois micropropulsores começassem a assobiar. Havíamos soldado a parte de baixo dos mesmos com a base do conversor de tempo.

O aparelho começou a mover-se lentamente. Não me dei ao trabalho de calcular a resistência do ar, nem procurei calcular a velocidade que aquele objeto pesado seria capaz de alcançar. A força de empuxo dos propulsores era de cento e cinqüenta quiloponds por unidade.

Fiquei satisfeito ao notar que, de qualquer maneira, o objeto se movia. Contornamos um grupo de colinas. Uma nova visão abriu-se à nossa frente. O sol azul de Árcon acabara de nascer. Devíamos estar nas primeiras horas da manhã.

— Agora tudo depende apenas de pousarmos exatamente na área extraterritorial do entreposto terrano — disse Rhodan.

Soltei uma risada irônica. Como parecia simples! O mutante Wuriu Sengu sorriu. Preferi não retribuir. A energia mental dos terranos era tremenda. Nunca parava de admirar seu espírito empreendedor.

Levantei-me, sacudi a poeira do uniforme e, enquanto contemplava a paisagem irreal, esforcei-me para dar uma expressão indiferente ao meu rosto.

— O café da manhã será tomado dentro de três minutos, sir — disse o sargento de cabelos ruivos e seu sorriso levou-me à conclusão de que adivinhara meus pensamentos.

Dali a uns dez minutos surgiu um veículo. Fiquei curioso para ver a reação dos dois ocupantes do mesmo.

Só notaram nossa presença quando já tínhamos chegado bem perto. Alguém gritou algumas palavras que não entendi. Rhodan fez um gesto tranqüilizador. Compreendi que o deslocamento das linhas temporais nos permitia entrar em contato com os habitantes de determinada época.

— Esses dois homens morreram há quatro mil anos — disse Sengu.

Não respondi. Com os olhos em brasa fitei as figuras que minguavam progressivamente. À nossa frente surgiram as primeiras casas da cidade. Eram muito menores que os edifícios da época atual. O porto espacial ainda não existia.

Aproximamo-nos do grupo de colinas a cujo pé os engenheiros terranos haviam construído o entreposto comercial. Nosso destino era aquele. Se pousássemos exatamente numa reentrância em forma de tulipa, deveríamos retornar à época atual a uns trinta metros de uma das colunas de apoio da Ironduke.

Fomos avistados mais duas vezes. Resolvi consultar oportunamente as crônicas acônidas, a fim de verificar se havia algum registro do estranho acontecimento.

Rhodan voltou para dentro do conversor de tempo. Fiquei parado na plataforma que servia de alicerce até que o aparelho pousasse suavemente. O uivo do gerador antigravitacional sobrecarregado cessou.

Os rostos dos homens estavam tensos. Segundo os planos, a máquina deveria voltar imediatamente ao tempo presente. Como seria feito isso?

A passagem foi tão súbita que me senti atingido como que por uma onda de pressão. Senti uma dor lancinante. Uma neblina vermelha agitava-se diante dos meus olhos.

Quando voltei a enxergar claramente era noite. As estrelas da Via Láctea brilhavam acima de nossas cabeças, e à nossa direita os contornos do couraçado espacial subiam ao céu.

O horizonte estava iluminado por um incêndio atômico vermelho. Era nossa bomba! Rhodan colocou-se a meu lado. Alguns vultos correram em nossa direção. Eram soldados da Ironduke. O Major Claudrin foi o primeiro a subir os degraus, que estremeceram sob o peso daquele homem nascido em Epsal.

Sua voz foi a mesma de sempre: potente e trovejante. Avancei às apalpadelas em sua direção e estendi a mão. Claudrin guardou a arma no coldre e apertou minha mão.

Uma dor violenta atravessou meu corpo. Se aquele gigante apertava qualquer parte do corpo, a gente sentia.

— Está bem, sir, sou eu — disse. — Queira desculpar, mas tive a impressão de que deveria comprimir com mais força que de costume. Só assim o senhor estaria certo de que havia voltado, não é mesmo?

— Foi um sonho maluco — disse Rhodan, em tom débil. — Aperte minha mão também, Jefe. Não, aperte com muita força.

Quando o terrano dobrou os joelhos e soltou um gemido, consegui rir de novo.

— Já chega — disse.

O comandante do couraçado espacial recuou.

— O senhor veio cedo, sir. Esperávamos vê-lo somente daqui a uma hora. Há cerca de uma hora um comando de guardas acônidas quis falar com o senhor. Não dei permissão para isso. A explosão ocorreu há quarenta e sete minutos.

— Naquele momento havíamos mergulhado num passado de uns quatro mil anos atrás, Jefe — respondi. — Quer dizer que nossa chegada foi exata? Não houve nenhum deslocamento temporal? Os preparativos da partida consumiram cerca de trinta minutos. Pelos meus cálculos, o vôo propriamente dito demorou uns quarenta e cinco minutos.

— Isso combina exatamente, sir. E o fato prova que, uma vez desligado o campo temporal, verifica-se um retorno imediato ao nosso plano temporal. O intervalo que prevalece entre nós é considerado no processo. Neste ponto não existe o menor perigo. Nunca poderão perder-se.

Alguém soltou um grito. Virei a cabeça. Uma faixa de luz estreita saiu da escotilha que acabara de abrir-se. Ouvi um ruído surdo. A luminosidade desapareceu.

Sengu saiu do interior do conversor do tempo. Sua voz parecia indiferente.

— Os quatro cientistas acabam de acordar, sir. Quais são as instruções?

Rhodan refletiu por algum instante. Quatro homens se movimentavam na escuridão projetada pela gigantesca nave esférica. A escotilha de carga abriu-se. Seria suficiente para recolher dois conversores iguais ao que havíamos trazido.

Tudo foi feito sem o menor ruído e em meio a uma escuridão completa. A resposta de Rhodan só veio depois que um homem anunciou que o raio de tração estava preparado para entrar em funcionamento. Daqui em diante seria fácil lidar com a massa das máquinas.

— Prendam-nos oficialmente e recolham-nos à Ironduke — ordenou Perry.

— Prendê-los? — respondi em tom de surpresa.

— Sim senhor, prendê-los — confirmou Rhodan. — O Serviço Secreto apurou que o físico Artol de Penoral desempenhou um papel decisivo nas modificações introduzidas no computador-regente. Dessa forma violou o pacto de não-agressão celebrado entre a Terra e o Império de Ácon.

— Estava cumprindo ordens, Perry.

— Provavelmente, mas para mim isso é irrelevante. Os outros três cientistas, que são sumidades do Sistema Azul, também tiveram sua participação. Cumpra a ordem que acaba de ser dada, Claudrin.

Rhodan deu-me as costas. Meu cérebro adicional manifestou-se.

“Que idiota! Será que isso é importante? Será que importa quando a existência de seu povo está em jogo?”

Olhei em torno. Não me sentia muito à vontade. Até parecia que alguém ouvira a repreensão.

Saltei da plataforma. O aparelho foi levado e colocado no porão inferior da Ironduke.

— Vamos andando — gritei para Gucky. — Foi um trabalho de alta categoria. Que jogo, não é, meu caro?

A pequena criatura soltou uma risada aguda. Dirigi-me para a eclusa de passageiros. O abaulamento da nave encobria o céu. A luminosidade vermelha, que se erguia sobre a cidade-museu de Impton, era o único sinal do incompreensível acontecimento que acabara de verificar-se. O que era feito dos homens que víramos há quatro mil anos?

Quatro mil anos? Para mim fora apenas um instante. Senti um calafrio ao pensar na máquina que me ajudaria a destruir o computador-regente.

 

Ela chegara há quinze minutos num planador. Dirigiu-se em voz baixa ao oficial de plantão e pediu que lhe fosse permitido falar com Perry Rhodan.

Não tivemos outra alternativa senão convidar aquela mulher jovem a comparecer à sala de comando do couraçado espacial. E agora estava parada à nossa frente.

Senti-me fascinado por Auris de Las-Toor. Seus olhos escuros contrastavam com os cabelos cor de cobre. Tive a impressão de que conhecia nossos planos.

Naturalmente não possuía provas, mas não havia necessidade disso. Conhecia os homens, especialmente Perry Rhodan. Auris compreendia o sentido do nosso súbito aparecimento no planeta, ligado com os acontecimentos que se haviam desenrolado na cidade-museu.

Usava o uniforme do comando energético acônida. Sua manta ondeante constituía o único sinal da dignidade em que se achava investida como cientista de um grande povo.

Perry fitou-me como quem pede ajuda. Quando se encontrava em presença de uma mulher, esse homem genial se tornava inseguro; especialmente quando se tratava de uma mulher bonita.

Além de bonita, Auris era inteligente. Sabia que nutria uma forte simpatia pelo terrano à sua frente. A mim só dispensara um sorriso, que retribuí com uma mesura.

Essa demonstração de cortesia, usual na Terra, fez com que franzisse a testa, surpresa. Fiz uma observação irônica:

— Para a pessoa que é tolerada num lugar, fica bem adotar os costumes do anfitrião. A senhora há de me perdoar.

Auris respondera com um aceno de cabeça e recusara o convite de se acomodar numa poltrona anatômica.

Os tripulantes de serviço na sala de comando retiraram-se. O Major Claudrin e Marshall foram os únicos que não foram.

Fiquei preocupado ao notar o tremor quase imperceptível de seu rosto. A pele morena aveludada entesara-se sobre os maxilares. Auris de Las-Toor não viera para fazer uma visita de cortesia.

Passou a mão pelos cabelos abundantes. O gesto parecia o sinal de uma resolução. Preferiu não prosseguir na conversa vazia que vínhamos mantendo.

Rhodan sentiu que estava sendo observado. Pigarreou, nada satisfeito, escondeu seus sentimentos atrás de um rosto indiferente e lançou-me um olhar do qual depreendi que eu deveria tomar a palavra.

Refleti por alguns segundos. Só havia um meio de aliviar a carga que pesava sobre Perry.

Fiz um sinal para Claudrin e adiantei-me. Auris media alguns centímetros menos que eu.

— Seja bem-vinda a bordo de minha nave, excelência. Será que posso chamá-la de Auris?

A mulher fitou-me por algum tempo. Seus lábios carnudos tremiam ligeiramente. O Major Claudrin compreendia. Sua perplexidade cessou.

— Vossa Majestade é o comandante? Será que posso chamá-lo de Atlan?

Sorri.

— Excelente. Faça o favor de chamar-me assim, Auris. É como a senhora acaba de dizer. Sou o comandante deste couraçado e ainda comando o grupo de cruzadores pesados número quatrocentos e oitenta da Frota Solar. A senhora veio visitar-nos numa hora incomum. Infelizmente devo avisá-la de que decolaremos dentro de quinze minutos.

— Acho que é o administrador que deve decidir sobre isso.

Rhodan esquivou-se ao seu olhar.

— Foi a ordem que dei, madame. Minha presença na Terra é indispensável. Face aos usos e costumes terranos não me compete interferir nas decisões de um chefe de grupo e comandante de nave. Sou apenas um hóspede a bordo deste couraçado espacial.

Por enquanto Auris conservava o auto-controle. Fitei-a prolongadamente. Mais uma vez constatei que era muito atraente.

Nossos olhares encontraram-se. Mudando de assunto abruptamente, passou a falar na finalidade de sua visita.

— Está bem. Decolem. Mas antes disso quero pedir-lhes que libertem meu tio e seus três assistentes e descarreguem certo aparelho que se encontra a bordo desta nave. Nesse caso assumirei a obrigação de, sem estardalhaço, encerrar o assunto. Exerço uma influência considerável sobre os demais membros do Grande Conselho.

Rhodan ergueu as sobrancelhas numa demonstração de surpresa. Olhei em torno, perplexo.

— Como é mesmo? Acho que nenhum dos presentes compreendeu o sentido de suas palavras.

Auris não perdeu a calma.

— Era o que eu imaginava — disse. — Meu tio é o físico Artol de Penoral. Pelo que dizem o aparelho a que acabo de referir-me foi destruído numa explosão nuclear. Vim só, sem que os competentes funcionários da segurança soubessem disso, a fim de evitar complicações, o que corresponde ao seu interesse e ao meu. Será que vocês acreditam que para mim esses acontecimentos representam um simples acaso? O fato de terem pousado em Drorah constitui um indício inequívoco.

— Ainda não compreendi, Auris.

— Gostaria de discutir o assunto com o administrador — respondeu Auris.

— Confio plenamente no Almirante Atlan — observou Perry.

Os olhos de Auris foram obscurecidos pela raiva e pelo nervosismo. Lancei um olhar para Marshall. Ele prestava atenção ao que diziam seus sentidos incompreensíveis. Quando Auris pôs a mão no braço, num gesto menos espontâneo, a fim de levantar a pulseira, o telepata começou a respirar apressadamente.

Rhodan assumiu a postura de um animal que se prepara para dar o salto. Fiz um esforço para conservar-me calmo. Fingi que refletia e caminhei na direção de Auris. Parei tão perto dela que senti o perfume sedutor de seu cabelo.

Sem dizer uma palavra, segurei sua mão, puxei-a violentamente para cima e bati com a pulseira na chapa de revestimento de um computador. A pulseira quebrou-se e caiu de seu pulso.

Seu grito deixou-me indiferente. O impacto não poderia ter produzido nenhuma dor.

Rhodan abaixou-se para levantar a jóia, que tinha uma boa largura. Auris de Las-Toor estava encostada à parede, pálida e trêmula. Fiquei esperando. Sabia perfeitamente que naquele momento meu rosto não exprimia nenhuma gentileza.

Alguma coisa tilintou às minhas costas. Só me virei depois de Rhodan ter levantado a peça de metal nobre. Objetos microscópicos apareceram na fenda produzida pela ruptura.

— Nada mau — disse, esticando as palavras. — A senhora deveria ter ligado imediatamente o transmissor, Auris.

— Seu bárbaro — chiou Auris. — Quero sair desta nave.

Peguei o radiotransmissor disfarçado e examinei-o. Era um emissor de grande potência. Depois disso olhei para o relógio.

Antes que pudesse dizer qualquer coisa, Rhodan tomou a iniciativa.

— Major Claudrin, prepare a nave para uma decolagem de emergência. Avise a central energética para que abram o campo. Auris de Las-Toor ficará aqui mesmo.

Fez um gesto indiferente e dirigiu-se à escotilha blindada. As sereias começaram a uivar no interior da Ironduke. Os homens correram para seus postos. Dali a três minutos, as máquinas entraram em funcionamento.

Durante esse tempo fiquei parado junto à jovem mulher, que não tentou rebelar-se contra a decisão de Rhodan. Não havia mais nada que pudesse ser escondido. Aquela mulher descobrira nosso plano.

— Sinto muito, Auris, mas a senhora terá de acompanhar-nos. Não é a primeira vez, não é mesmo? Da última vez fomos seus hóspedes, e agora somos nós que temos a honra de hospedar uma mulher encantadora.

Auris controlou-se muito bem. A palidez de seu rosto foi o único sinal do que se passava em sua mente.

— O senhor está indo longe demais, Atlan. O Grande Conselho de Ácon desconfia de que o senhor tenha subtraído o conversor do tempo. As nuvens que toldam o horizonte político terão que descarregar-se.

Acreditei que a declaração fosse sincera, até que vi os lábios de Marshall, contorcidos num sorriso irônico. Ao que parecia, estava conseguindo romper o bloqueio mental que a natureza dera à acônida.

— Peço licença para retificar, madame — observou. — Ninguém desconfia de que nos tenhamos apoderado do aparelho. Acreditam que tentamos penetrar no museu para colher certas informações de natureza técnica. Ainda acreditam que nossos agentes foram localizados pelas forças de segurança e mortos numa explosão nuclear. O Conselho e o Serviço de Segurança não sabem que a senhora veio a esta nave.

— O senhor está sonhando!

— Sinto muito, madame, mas não penso como a senhora. Seu microtransmissor devia irradiar nossa palestra, que seria gravada numa fita da estação receptora automática. Após isso, a senhora deixaria a nave e usaria a fita para obrigar-nos a entregar a máquina. Agradecemos pela boa vontade que demonstrou para conosco, madame.

Só então compreendi tudo. Aquela mulher maravilhosa oferecera-nos uma chance. Mais precisamente, não queria que Rhodan se visse em dificuldades.

Seu rosto mostrava um desespero real. Seu olhar vagou em torno, à procura de uma saída.

Pus a mão em seu braço. Os tripulantes da sala de comando haviam voltado a seus lugares. Alguns oficiais da Segurança Solar discutiram sobre o súbito aparecimento de Auris. Cochichei para a mesma:

— O destino do império estelar terrano está em jogo, Auris. Peço-lhe que procure compreender que não podemos permitir que saia desta nave. Suas suspeitas são tão bem fundamentadas, que não podemos assumir o risco de deixá-la falar perante os inteligentes acônidas. Acredita-se que a máquina do tempo foi destruída. Seu tio está passando bem. Quero pedir-lhe que nos acompanhe nesta viagem e aguarde o resultado da operação.

Auris afastou minha mão. Dirigiu um olhar para Rhodan, que estava atando os cintos de segurança da poltrona de comando.

— Os senhores me obrigam a transformar-me numa traidora.

— Nada disso! De qualquer maneira, a senhora não poderia provar nada. Será que a senhora acredita que Perry permitiria que a Ironduke fosse revistada?

O telepata voltou a entrar em ação. Não consegui descobrir se Auris reduzia voluntariamente o bloqueio parapsicológico que protegia sua mente, a fim de permitir que John lesse seus pensamentos.

— Uma esquadrilha de couraçados da frota do regente se aproxima, sir — anunciou Marshall. — Convém apressar a decolagem.

Perry virou-se e brindou Auris com um estranho sorriso. A mesma atirou os cabelos para trás com um movimento violento da cabeça e finalmente acomodou-se numa poltrona anatômica. Naquele momento compreendi que transmitira conscientemente as informações que acabavam de ser captadas.

Pigarreei e sentei a seu lado.

— Muito obrigado, Auris. Como foi transmitido o aviso ao regente? Nossos receptores não captaram nenhuma mensagem de rádio.

— Enviaram um mensageiro pelo transmissor, sir — respondeu Marshall.

Ao que parecia, começava a sentir-se embaraçado por sondar os pensamentos da jovem mulher, que se abriam diante dele.

Fiz um sinal para ele. Marshall fez uma mesura e retirou-se. Auris de Las-Toor não disse mais nada. Prestamos atenção aos anúncios do chefe do setor. Rhodan deu pessoalmente o aviso da partida aos acônidas. Eles tentaram deter a nave, mas não se atreveram a recorrer aos meios violentos.

Rhodan disse que lamentava os acontecimentos de Impton e perguntou se alguém fora ferido ou morto.

A palestra de videofone foi interrompida abruptamente pelo presidente do Grande Conselho. Evidentemente cogitava-se da possibilidade de ter havido uma atividade dos agentes terranos, mas por enquanto não haviam dado com a pista correta.

Dali a alguns minutos, a gigantesca nave subiu ruidosamente ao céu. A incandescência da cratera da explosão surgiu nas telas. Não era muito grande. Só uma parte reduzida da cidade-museu fora destruída na explosão.

Só quando nos encontrávamos fora do alcance dos tiros dos fortes espaciais acônidas, soltei um suspiro de alívio. Acelerando fortemente, penetramos no espaço, onde não demoramos a localizar os choques produzidos pela imersão de vinte naves pesadas. Ninguém deu atenção ao rugido dos rastreadores estruturais. As naves robotizadas do regente estavam chegando tarde.

Rhodan sentou-se ao nosso lado. O comandante preparava a nave para o vôo linear.

— Por que não comunicou suas suspeitas ao Serviço de Segurança de Ácon Auris? — perguntou.

Auris limitou-se a olhá-lo. Não disse uma palavra. E Rhodan não deixou de notar meu olhar irônico. Esse terrano poderia ser um estadista de primeira e talvez possuísse qualidades ainda mais assinaladas de comandante de frota, mas o fato é que não entendia nada de mulheres.

Lançou-me um olhar de perplexidade, enrubesceu que nem um colegial, gaguejou um pedido de desculpas e saiu andando. Soltei uma risadinha.

— Ele não demorará a compreender, Auris — observei em tom indiferente. — O que teria acontecido se não tivéssemos descoberto seu rádio de pulseira?

Auris baixou a cabeça. Provavelmente vira-se diante de um conflito de consciência e deixara a decisão ao acaso.

Tentara manter-se leal ao seu povo, mas nutrira a esperança de que surgisse alguma circunstância que a impedissem de revelar seus pontos de suspeita.

Comecei a imaginar o motivo por que fizera um movimento tão espalhafatoso para pegar a chave. Provavelmente ninguém sabia que tinha entrado na Ironduke. Era o que supunha Rhodan, pois não aludira à sua presença ao falar com o presidente do Conselho. E ninguém perguntara por Auris.

Ela olhava fixamente para um canto. Apresentava a face descontraída. Tive a impressão de que, vez por outra, um sorriso fugaz passava por seus lábios.

Levantei-me e suspirei. Meu lugar era à frente dos controles. Marshall fez um gesto. Cuidaria da mulher. Antes que eu me afastasse, a bela acônida fez uma pergunta em voz baixa:

— Atlan, quem é esse novo imperador?

Parei. Auris lembrara-me de repente da missão que tinha de cumprir.

— É um patife e um doente mental, do qual um bando de acônidas loucos está ajudando.

— O senhor acredita que o Grande Império se esfacelará ou cairá em mãos estranhas?

— Sem dúvida, a não ser que Minterol I seja deposto.

— Quer dizer que o computador-regente está falhando?

— Isso mesmo. A máquina sofreu uma interferência. E seu tio desempenhou um papel de destaque na operação. Está a bordo na qualidade de prisioneiro de guerra.

— O que pretendem fazer com a máquina do tempo?

Finalmente virei-me. Seus olhos mostravam-se vivos e despertos. Estava à procura da verdade.

— Auris, a senhora trilhou o caminho correto. Se estiver disposta a resguardar a paz galáctica, não faça mais perguntas. Resolvi destruir o produto mais genial deixado por meus antepassados. Um computador que começa a esboçar reações errôneas tornou-se imprestável. O regente chega mesmo a representar um perigo. Terá de ser destruído, pois do contrário os povos da Via Láctea...

— Já sei — interrompeu Auris.

O resultado transmitido por um dos aparelhos de rastreamento foi anunciado pelo sistema de intercomunicação global. Estávamos chegando perto da velocidade relativista. As telas do sistema de localização de rádio-eco a grande distância apresentou vários pontinhos verdes. As naves robotizadas realizavam a manobra de frenagem.

Captamos algumas mensagens condensadas e codificadas. Já não estávamos interessados nas mesmas.

Dali a alguns minutos penetramos no semi-espaço, protegidos pelo campo de compensação kalupiano. A tela-destino da paralocalização mostrou um sol verde solitário. Era o lugar em que a imitação do cruzador imperial Sotala esperava por nós.

Reclinei a poltrona. Auris parecia meditar. Vez por outra, um calafrio sacudia seu corpo. Dera a entender que era uma das nossas...

Das nossas? Lancei um olhar para Rhodan.

“É dele, seu idiota!”, avisou o setor lógico de minha mente.

Acenei com a cabeça sem que o percebesse. Alguns anos já se haviam passado, desde o momento em que Rhodan conhecera a jovem mulher. Nesse meio tempo os sentimentos que ela nutria para com ele haviam amadurecido. Renunciei às esperanças de que Auris algum dia viesse a pertencer-me.

Após isso fiquei pensando no que poderia ter acontecido se o Grande Conselho ou o Serviço de Segurança de Ácon tivessem sido alertados.

Sem dúvida teriam feito tudo para impedir a decolagem da Ironduke. Até nesse ponto o plano maluco dos terranos fora bem-sucedido. Nesses momentos não devia pensar em minha tarefa. Quando procurei imaginar o funcionamento da máquina do tempo, senti uma angústia.

Os propulsores rugiam. Dentro de algumas horas chegaríamos ao lugar em que se encontrava a falsa Sotala. Depois disso, o jogo do poder entraria na fase final.

Lembrei-me dos quatro cientistas acônidas. Quais seriam as conclusões resultantes de seu desaparecimento? Os agentes que trabalhavam em Sphinx haviam fornecido uma dica à segurança acônida isso quando os físicos já haviam sido seqüestrados.

Provavelmente acreditava-se que os homens foram mortos na explosão. Mas essa opinião levaria os acônidas a estabelecer certos paralelos com a máquina do tempo.

Mas se conseguíssemos chegar a Árcon III numa época diferente, todas as medidas dos acônidas se tornariam ineficazes. Para evitar nosso ataque vindo do nada, teriam que tomar-nos o aparelho.

Nesse estágio dos acontecimentos dos governantes do Sistema Azul já haviam perdido o jogo. Caso chegassem à conclusão correta, só lhes restaria fazer votos de que houvesse alguma falha.

Meus olhos umedeceram-se. Minhas reflexões colocaram-me num estado de exaltação progressiva que se tornava incompatível com as tarefas que teria que desempenhar. Tive de controlar-me à força.

— Está nervoso? — perguntou Auris.

Seu rosto voltara a assumir a expressão de indiferença que mostrara logo após sua chegada à nave.

Era isso mesmo: estava nervoso. Afinal, não é todos os dias que um homem se encontra com os antepassados.

 

Os alto-falantes do receptor de hiper-rádio soltaram um chiado. Tratava-se de uma mensagem condensada e codificada, expedida na faixa especial da frota intergaláctica arcônida que era comandada pelo Almirante Notath.

A mensagem fora dirigida ao comando geral da Frota em Árcon III. O sinal de chamada não estava codificado. Esperamos que os aparelhos silenciassem. O interpretador automático empurrou a placa com o registro magnético do chamado para dentro do decifrador. Uma vez decodificada a mensagem seria encaminhada ao computador da Divisão Matemática.

Conhecíamos o código. A decifração consumiu doze minutos, o que indicava um fator de probabilidade de aproximadamente seis bilhões. Meus antepassados sabiam proteger seus segredos.

Na Terra registrava-se o dia 10 de fevereiro de 2.106. Havíamos recorrido à máquina do tempo para mergulhar num passado de 6.023 anos atrás e aguardar a chegada da mensagem histórica. Éramos as únicas pessoas que sabiam que a verdadeira Sotala seria destruída dali a duas horas. Ocuparíamos seu lugar.

Era um acontecimento inconcebível. A imitação do cruzador pesado estava envolta no campo temporal. Para mim tomava-se difícil compreender como, em meio a esse envoltório de deslocamento temporal, formado por linhas energéticas invisíveis e imperceptíveis ao tato, seria possível receber uma mensagem de rádio expedida por uma espaçonave, há mais de seis mil anos.

Mercant e o Coronel Nike Quinto também se encontravam na sala de comando, cujas instalações foram muito bem copiadas. Usávamos os uniformes cinzentos da frota arcônida. Nos ombros e no peito do uniforme apareciam os símbolos e as divisas coloridas, usados naquele tempo.

Rhodan era o imediato, enquanto eu fazia o papel de comandante. Os setecentos e cinqüenta tripulantes haviam sido submetidos a mais um processo de ensinamento hipnótico do arcônida antigo e da tecnologia do passado.

Procurei levar alguns homens a dizerem alguma coisa comprometedora. Não reagiram às perguntas-ciladas. Realmente eram arcônidas da época do Imperador Tutmor VI.

Logo após a minha chegada entrei furtivamente num dos laboratórios químicos e analisei um dos uniformes cortados. Ao perceber que os homens da Segurança Solar haviam até imitado as fibras artificiais, desisti. Aquela gente não havia cometido qualquer erro.

Fazia vinte e quatro horas que havíamos chegado ao sistema que era meu mundo natal. Encontrávamo-nos no espaço, a oito anos-luz do sol de Árcon. A proteção contra a localização era fornecida por uma estrela vermelha, cujo campo gravitacional nos proporcionava uma relativa segurança. Sabíamos que o anel externo de fortificações já existia.

Na sala de comando, ninguém disse nada. Em compensação os rostos dos terranos estavam marcados pela tensão nervosa. Rhodan voltara a abrigar-se atrás de um rosto indiferente. O sorriso de Mercant era mais cordial que antes, enquanto os poros de Quinto despejavam torrentes de suor.

Cada um reagia à sua maneira. Os mutantes encontravam-se no porão de carga inferior da Sotala. Os telepatas, o sugestor Ishibashi e Noir, o hipno, vigiavam os quatro cientistas de cuja atuação dependeria o êxito da operação.

O campo de conversão não oscilava. O plano temporal que havíamos atingido manteve-se constante. Não saberia dizer de que maneira haviam obrigado os acônidas ou os convencido de que o bom funcionamento do aparelho era muito importante. Ao que parecia, os mutantes já não desempenhavam qualquer papel decisivo. Seria impossível exercer uma influência ininterrupta sobre os arcônidas. Além disso ainda se precisaria muito das forças dos mutantes, especialmente de Ishibashi.

Auris de Las-Toor colocara-se francamente do nosso lado. Já não tinha outros compromissos.

No momento pouco importava de que maneira haviam feito os cientistas trabalharem para nós. A mensagem de rádio expedida pelo homem, que ora se apresentava e que na verdade morrera há mais de seis mil anos, estava à nossa frente, em texto comum.

Examinei-a. Rhodan respirava apressadamente. Estava mais nervoso do que queria confessar. Talvez fosse o caráter extraordinário de nossa missão que fazia os corações baterem mais depressa e produzia a vibração dos nervos.

 

CCFK-1919-ABOAT — Cruzador pesado Sotala comandado pelo capitão II-K Tresta ao comando central da frota ARK III, à tenção de Sua Majestade Onisciente Tutmor VI. “Missão Nebulosa”, operação especial quarto Ascante concluída. Destruímos quatro cruzadores de metano e duas estações de rádio. Evacuação números II e IV sistema Ilatzi realizada. Solicito naves de transporte com tropas de desembarque. Mantenho a posição. As. Tresta, C II-K, de Sua Majestade. Nave Sotala.

 

Li a mensagem duas vezes. A mesma correspondia ao texto histórico. Rhodan tossiu. Devia estar com a garganta ressequida.

O chefe de segurança, Allan D. Mercant, pegou a folha com o texto em linguagem comum.

— Dentro de alguns minutos deveremos receber a resposta do comando geral da frota. Tresta receberá instruções para regressar imediatamente. Durante a “Missão Nebulosa” utilizou-se pela primeira vez uma nova arma. A guerra contra os metanenses estava chegando ao fim.

Estava dizendo coisas que já sabíamos. Esperamos apenas mais um minuto. Os soldados da era de Tutmor VI agiam rápida e coerentemente. As manifestações de degenerescência só haviam sido notadas pelos cientistas. O fato de ter sido ordenada imediatamente a construção de um computador gigantesco dava um testemunho vivo do caráter resoluto dos dirigentes de então.

A nova mensagem foi decodificada. O texto era correto. Tresta recebeu ordens para voltar imediatamente e apresentar um relato dos acontecimentos.

Continuamos em recepção, mas a Sotala não deu mais sinal de vida. Mercant olhou para o relógio. Depois de algum tempo entesou o corpo magro e olhou em torno.

— Neste momento o cruzador pesado está sendo destruído numa batalha com um número superior de unidades inimigas. Não há sobreviventes e não foi possível expedir um pedido de socorro.

Minha voz recusou-se a obedecer. Tive de abrir a boca algumas vezes antes que conseguisse formular minha objeção:

— Já começo a duvidar da minha inteligência. O senhor disse que a Sotala está sendo destruída?

— Isso mesmo. Encontramo-nos exatamente no plano temporal da mesma.

Sentei. Minhas pernas tremiam. Quem dera que ao menos eu tivesse a fria sensação física de uma máquina!

Acontece que não senti nada.

Os sóis do grupo estelar M-13 começaram a cintilar na tela. Era o quadro que sempre conhecia. Estava tudo como antes. Naturalmente o lapso de apenas seis mil anos era muito pequeno para produzir uma modificação visível na constelação.

Mercant dirigiu-se a Rhodan. Estava tão perturbado quanto eu. Vi que os terranos também reconheciam quando seu equilíbrio emocional perdia a estabilidade.

— Sir, torna-se necessário irradiar com uma potência reduzida a mensagem dirigida ao comando geral da Frota. Temos de confirmar o recebimento da ordem de retirada.

— Faça o que achar mais conveniente — disse Rhodan, com a voz gutural.

Acenou para o oficial da equipe de rádio. Os especialistas que se encontravam atrás da parede blindada mas transparente da sala de telecomunicações começaram a trabalhar. A confirmação foi expedida na mesma faixa e sob o mesmo código.

Mercant acenou com a cabeça; parecia satisfeito. Olhei para meu uniforme simples. O símbolo do Grande Império brilhava sobre o peito.

Espantei as idéias ligadas ao passado. Levei apenas alguns segundos para lembrar-me de que me encontrava nesse passado. Seria errôneo pensar em termos de um presente que deixara de existir. O ano 2.106 do calendário terrano perdera todo sentido, muito embora o tempo atual existisse a alguns quilômetros do lugar em que se encontrava a Sotala.

Constantemente repetia para mim mesmo que a relação relativista só tinha validade no interior do campo temporal.

— Está na hora de comer — gritou Quinto.

Transpirando fortemente, dirigiu-se ao elevador que nos antigos cruzadores arcônidas ia direto da sala de comando à cantina dos oficiais.

Levantei-me. Rhodan voltou a tossir.

— Você deveria falar com o médico, terrano — disse em tom contrariado.

A resposta de Rhodan foi proferida num resmungo; não a entendi. As pessoas a bordo sabiam que deveríamos esperar por dois períodos de vinte e quatro horas. A verdadeira Sotala não poderia chegar antes do dia 12 de fevereiro. Era uma nave típica que se locomovia aos saltos. Como seu dispositivo hiperautomático ainda não fosse completo, cada transição exigia cálculos demorados. Apesar disso as naves mais modernas da frota robotizada não eram muito diferentes, com exceção da inexistência de seres vivos pensantes.

Retiramo-nos da sala de comando. Não chegamos a entabular qualquer conversa.

Engoli o alimento sintético repugnante, que me fez lembrar a época de dez mil anos atrás.

Naquele tempo partira do sistema de Árcon, em direção aos planetas de uma estrela insignificante. Os colonos do segundo mundo dessa estrela haviam enviado um pedido de socorro.

A estrela era o Sol terrano. Tive de fazer um esforço para reprimir as recordações, pois do contrário poderia perder-me em devaneios. Para facilitar a tarefa, afastei o mingau vermelho-azulado. Era o único alimento existente nas naves de guerra arcônidas. Quando estas entravam em ação, não havia distinções sociais entre oficiais e tripulantes.

Recolhi-me ao meu camarote. As recordações voltaram a tomar conta de mim. Finalmente pedi ao médico de bordo que me aplicasse uma injeção que produzia um sono profundo. Quando apareceu, contou-me que muitos homens haviam pedido essa injeção. Perry era um deles.

Adormeci com um sorriso nos lábios. Era a melhor maneira de atravessar o período de espera.

 

Um fenômeno esboçou-se diante de nós. Este reforçava a teoria de Kalup, que rejeitáramos há poucas horas.

O fato de que fora do campo temporal não víamos a época atual, mas aquela correspondente ao passado relativista, levara o cientista genial a tirar certas conclusões. Antes que a nave decolasse, transmitiu-nos o resultado de suas pesquisas.

Afirmou que todos nós, bem como a Sotala e todos os átomos existentes dentro do campo de conversão, continuávamos a pertencer ao tempo presente. Esse tempo correspondia ao dia 11 de fevereiro de 2.106, do calendário terrano.

Acontece que a existência no âmbito da época presente é um fato relativo. Para um observador do plano temporal relativista da época do Imperador Tutmor VI, éramos corpos materialmente estáveis pertecentes ao seu tempo. Dali resultava um efeito estranho.

Kalup, desta vez, nada explicou. Apenas afirmou quase de forma mística:

— Os mortos nos observam...

A interpretação final revelou que a viagem pelo tempo era extremamente confusa e, teoricamente, inexplicável...

Dali a pouco partimos. Antes disso, um barco espacial saiu pela eclusa. Um dos propulsores da protuberância equatorial da nave foi destruído por um tiro. Queríamos chegar ao planeta com uma nave avariada, pois isso nos daria uma possibilidade de escolher o local de pouso.

Deixamos que a abertura produzida pelo impacto energético esfriasse e entramos em transição, que nos fez retornar ao Universo einsteiniano, na órbita do sexto planeta. A transição não produziu qualquer modificação nas linhas temporais artificialmente criadas. Dali se concluía que a energia do conversor temporal agia fora do âmbito das leis que regem a quinta dimensão.

Kalup teve motivo para sentir-se exultante. Fomos localizados por alguns cruzadores que vigiavam a área e que pediram que nos identificássemos, muito embora o campo temporal de duzentos quilômetros de diâmetro que envolvia nossa nave não os atingisse.

Eles nos viam e até eram capazes de localizar-nos pelo rádio-eco. Isso provava a veracidade da afirmação de Kalup. Realmente existíamos para os mortos!

Mandei irradiar o código e o número da Sotala. A resposta foi satisfatória. O comando da frota imediatamente concedeu a permissão de pousar.

Naquele momento a nave se deslocava a velocidade moderada em direção a Árcon III. Um cruzador ligeiro nos acompanhava. Pela primeira vez tive oportunidade de falar com uma pessoa falecida há muito tempo. O comandante, que era um capitão de quarta-classe, dispensou um tratamento muito respeitoso a mim, que era o falso Tresta. Ao que parecia, já sabia do êxito que “eu” alcançara no setor das nebulosas.

Como já tivesse galgado mais alguns degraus na escala de promoções e meu tempo de serviço fosse maior, o jovem me deu o tratamento de Excelência.

Na velha frota do Império de Árcon essas coisas eram consideradas muito importantes. Ninguém deixava de dar a devida atenção à lista das graduações. Pedi pelo rádio que me fosse designado um local de pouso nas proximidades dos estaleiros centrais. Sabíamos que o computador-regente fora construído naquela época, bem perto desse local.

Meu pedido foi encaminhado aos canais competentes. As normas então vigentes não me permitiam estabelecer contato direto com a administração espaço portuária, quando estivesse presente o comandante de uma nave de vigilância.

Enquanto aguardava o deferimento do pedido, Rhodan disse com um sorriso irônico:

— Viva a burocracia. Vocês devem ter travado uma guerra de papéis bastante intensa.

Aceitei a ironia com a maior tranqüilidade. Será que existia algum lugar onde não houvesse burocracia? Assim que as criaturas inteligentes começam a pensar verdadeiramente, costumam entrincheirar-se atrás dos formulários e das normas, que em geral provêm de pessoas que não têm a menor noção do aspecto prático das coisas. Lembrava-me perfeitamente da época áurea do império. Apesar da minha posição, de príncipe de cristal do império e comandante de um contingente importante da frota, tive de assinar cinco vezes antes de poder receber um suprimento de água potável num planeta colonial.

E agora estava acontecendo um caso semelhante. O comandante do cruzador comunicou que eu tinha permissão para consultar a administração espaço portuária. Entrei em contato com os burocratas e voltei a formular o mesmo pedido.

O comandante do porto pediu que me dirigisse ao oficial encarregado do estaleiro, que por sua vez teve de consultar o comando central para saber se o pouso não tinha nenhum inconveniente. Quando um jovem tenente me avisou que deveríamos descer na pista KP 176, já estávamos penetrando na atmosfera com os propulsores trovejantes.

— Pelo grande Júpiter! — exclamou o Major Heintz, que no momento exercia o comando da nave. — Prometo esquecer tudo que já disse contra os regulamentos terranos.

Lancei-lhe um olhar furioso. A bordo da Sotala setecentos e cinqüenta homens começaram a rir, Os terranos possuíam um humor estranho, que geralmente se manifestava em momentos nos quais as outras inteligências começavam a chorar. Talvez fosse este o aspecto mais grandioso desse jovem povo galáctico.

Olhei para as telas de visão externa. O comandante do cruzador que nos acompanhava despediu-se. Quando concedi a permissão para que se retirasse, ele teve de avisar o comandante das fortificações de superfície de que eu concordava com sua partida. Só depois disso sua nave esférica poderia partir para o espaço.

Naquele momento, nem desconfiei que a burocracia desgastante dos funcionários arcônidas contribuía para que os terranos encarassem a tarefa que tínhamos pela frente com o interesse do desportista de primeira categoria. Os homens divertiam-se com minha pessoa e com as almas mesquinhas que ocupavam os diversos cargos atuais.

Sobrevoamos as instalações gigantescas do planeta da guerra. Fomos captados pela estação de teledireção, que nos levou para o corredor aéreo adequado.

Meu protesto enérgico ocasionou uma repreensão suave do comandante do porto espacial. Ele me fez observar que a avaria no propulsor de minha nave era uma bagatela. Respondi em tom furioso que seria preferível deixar que um soldado da ativa que se encontrasse a bordo da nave avariada decidisse esse ponto.

Apesar da situação perigosa em que nos achávamos, Rhodan teve um humor fúnebre que lhe permitiu derramar lágrimas de tanto rir. De repente parecia que achava a missão bem divertida.

Nos diversos setores da Sotala foram realizadas as últimas consultas aos textos. Conhecíamos os nomes dos membros da tripulação do verdadeiro cruzador pesado. Na história arcônida sempre se mantinha um registro de heróis.

Tivemos uma prova da eficiência do treinamento hipnótico. Cada um sabia qual seria seu nome, de onde vinha e como fora sua pretensa vida. Neste ponto, o espírito pedantesco dos funcionários administrativos revelara-se bastante útil. Não poderia haver nenhuma falha, a não ser que nos encontrássemos com algum arcônida que conhecesse pessoalmente o comandante, os oficiais ou algum tripulante. Nesse caso, o desastre só poderia ser evitado com a ação imediata dos mutantes.

A Segurança Solar não esquecera nenhum detalhe. Quando as colunas de suporte da nave já estavam sendo escamoteadas para o pouso, Mercant ainda se achava transmitindo instruções pelo sistema de alto-falantes.

Pudemos lançar um ligeiro olhar para a gigantesca construção. Lá estava sendo completado o computador-regente, por meio do trabalho dos cientistas e técnicos mais capazes de meu venerável povo. Dentro de mais alguns dias de tempo relativista, seria erguido o campo energético impenetrável.

No momento em que tocamos o solo e as colunas hidráulicas do trem de pouso cederam por meio de sucessivos balanços, resolvi colocar o quanto antes a bomba especial no interior do cérebro e iniciar a fuga. Teríamos de encontrar um meio regulamentar de levantar vôo.

Se não tivéssemos licença para decolar, não iríamos longe com o cruzador. Os arcônidas daquela época foram homens muito sagazes. Ninguém poderia sair de Árcon III contra a vontade dos comandantes. E isso também se aplicava a Perry Rhodan.

As máquinas pararam de funcionar com um rugido. Voltei a dirigir uma advertência a Perry Rhodan:

— Preste atenção, bárbaro! Na época em que realmente viviam estes arcônidas, seus antepassados ainda habitavam em cavernas enfumaçadas e choramingavam ao ouvir um trovão. Nem pense em comparar os soldados que se encontram lá fora com os arcônidas do ano 2.106, do calendário terrano. Você teria uma decepção. Deve considerar meus antepassados iguais aos seus melhores soldados de elite. Dessa forma saberá como agir.

— Entendido, sir — respondeu Mercant, fazendo às vezes de Perry. — O que mais importa é o funcionamento do conversor de tempo. Se o aparelho falhar, ficaremos colocados, de repente, diante do regente e... sujeitos às ordens de um comando energético acônida. Gostaria de saber se pode haver uma situação pior que esta.

Lancei-lhe um olhar perscrutador. Era o autodomínio em pessoa.

O Major Heintz, que figurava oficialmente como segundo-oficial, deu-me a manta verde do comandante. Encostei os suportes magnéticos aos pólos embutidos nas ombreiras. Meu rádio de capacete era lindo. O Capitão Tresta tivera o privilégio de usar um modelo especial. Até mesmo esse detalhe foi devidamente registrado no relatório sobre os tripulantes da Sotala, gravado em microfita audiovisual. Os especialistas terranos não tiveram nenhuma dificuldade em produzir uma imitação do capacete.

— Quer que alguém o acompanhe? — perguntou Rhodan, em tom hesitante.

— Isso é impossível. O comandante sai só da nave, toma o veículo com uma escolta de recepção de robôs e apresenta-se na sede do comando geral. A tripulação, inclusive os oficiais, tem de permanecer a bordo até que o comandante volte. Fica a seu critério dispensar ou não os tripulantes.

Perry olhou em torno. Esses fatos já eram conhecidos.

— Devemos observar os costumes arcônidas — acrescentei.

Mercant pigarreou.

— Os problemas estão começando, sir. Tome cuidado para não topar com alguém que conheça o verdadeiro Tresta. O senhor sabe lidar com o projetor mental?

— Não. A arma destina-se ao uso em planetas estranhos. Tenho a impressão de que os terranos travaram conhecimento com esta nos idos de 1.971.

Consegui dar uma risada. Rhodan ficou perplexo. Parece que nem se lembrava mais de que, depois de ter regressado no foguete lunar Stardust, Reginald Bell alcançara êxitos notáveis por meio do projetor.

Quinto olhou para o relógio. Ainda não sabíamos exatamente que horas eram. O conversor de tempo permitia-nos a determinação do dia, mas não da hora. Os astrônomos já estavam trabalhando. Não era possível que o movimento de rotação de Árcon III tivesse sofrido alguma modificação.

Antes que me retirasse da nave, a hora oficial do dia foi anunciada. Eram 13 horas e 24 minutos. No momento em que entrei na eclusa de passageiros e as solenidades tiveram início, o telepata John Marshall apareceu à minha frente. Informou-me de que os cientistas acônidas agiam conforme queríamos. Não disse se o faziam espontaneamente ou não.

Vinte tripulantes da falsa Sotala haviam entrado em forma. Um oficial fez a apresentação e atravessei a fileira dupla, fazendo continência. Mais adiante, o veículo terrestre da escolta me esperava. Ouviu-se uma música robotizada estridente. As máquinas barulhentas mecânicas continuavam a ser as mesmas de antes. Lembrava-me dos chiados e assobios do tempo em que exercia o governo. Esse tipo de ruído já maltratara bastante os meus ouvidos.

Aproximei-me dos robôs em atitude compenetrada, conforme convinha à minha graduação. Um indivíduo uniformizado que se achava no interior do carro levantou-se. Refleti sobre se devia conhecê-lo. Tratava-se de um capitão de primeira-classe. Seu queixo estava coberto por uma barba escura.

Fitei seus olhos vermelhos de arcônida. Seu cabelo quase totalmente branco estava ondeado segundo a moda. Aparecia sob o capacete.

Parei à frente do planador, coloquei a mão aberta sobre o coração e inclinei a cabeça.

Não havia dúvida de que o capitão era meu superior tanto em graduação como em tempo de serviço. Qualquer oficial arcônida seria capaz de perceber diferenças sutis como esta. Todos esperavam que os outros lhe dirigissem a palavra segundo mandava o regulamento. Por isso disse em tom respeitoso:

— O Capitão Tresta apresenta seus cumprimentos, excelência. Comunico meu regresso e faço referência à mensagem que expedi pelo rádio.

O capitão levantou a mão. Tremi por dentro. Mantinha a direita em cima da minha arma. Face a seu olhar curioso, tive a impressão de que aquele oficial nunca vira o verdadeiro Tresta. Realmente era assim.

— Sou eu que lhe apresento cumprimentos, capitão. Seja bem-vindo em Árcon III. Recebi ordens para transmitir-lhe um pedido do almirante que se encontra no comando. O mesmo solicita seu comparecimento imediato.

A última frase neutralizava os efeitos da fórmula de cortesia. Na frota sempre fora assim. Qualquer pessoa que exercesse o comando formulava pedidos, mas tais pedidos representavam ordens que não poderiam ser desprezadas.

Mais uma vez inclinei a cabeça. Esperei até que uma das máquinas de guerra abrisse a porta do carro e entrei.

Mantive-me em silêncio até que meu superior se tivesse acomodado. O sol de meu sistema natal dardejava em cima de nossas cabeças. Os raios fustigantes me faziam bem. Os terranos nunca haviam gostado deles.

O carro partiu com um solavanco. Tocando uma sereia estridente, atravessamos o porto espacial cujos confins se perdiam no horizonte. Lancei um olhar que me parecia discreto para o lugar em que progredia a grande construção. O capitão notou. Um sorriso amável surgiu em seu rosto.

— O trabalho está avançando a passos rápidos — disse. — O senhor esteve fora por três anos, não esteve?

— Estive, excelência.

— Nos próximos dias, o grande centro de computação será coberto por um novo campo defensivo. Queira desculpar, mas esqueci de apresentar-me. Sou o Capitão Usaph, primeiro-ajudante do almirante que está no comando. Sua Excelência, o Almirante Kreto, foi substituído há um ano. O comandante atual é o Almirante Aichot.

Agradeci pelos esclarecimentos, aos quais não poderia deixar de dar a necessária atenção. Um arcônida nobre espera que qualquer pessoa o conheça. Seguindo os costumes, indaguei sobre a família de Aichot, muito embora já tivesse obtido esses dados dos elementos fornecidos pelo regente.

Acontece que esses detalhes pertenciam à mentalidade de meu povo. Não poderia esquecer-me deles, para não me expor.

A seguir tomei a liberdade de soltar os gracejos costumeiros sobre as manias burocráticas do funcionário da administração espaço portuária. Qualquer oficial da ativa gostava de ouvir isso. A inimizade secreta entre os “pomadinhas”, nome que dávamos aos soldados que executavam tarefas administrativas, e os oficiais das frentes de combate, representava uma fonte constante de alegria.

Depois de termos percorrido um caminho longo os edifícios altos do comando geral da frota ergueram-se para o céu límpido. Nossa palestra fora interrompida constantemente pelo rugido das naves que pousavam ou decolavam. Na época, Árcon III representava o cordão umbilical do Universo. Nenhum povo poderia atrever-se a enfrentar-nos.

Vez por outra, um grande grupo de naves avançava para o espaço. Nesses momentos o rugido tornava-se insuportável, fazendo com que comprimíssemos as mãos contra os ouvidos.

O carro parou. Mais uma vez fiz continência para uma guarda de honra. Desta vez a mesma era formada por arcônidas veteranos. Era possível que um dos mesmos conhecesse Tresta. Por isso baixei a cabeça e dirigi-me rapidamente aos degraus largos da escada.

Entramos num elevador antigravitacional. O movimento nos grandes pavilhões era estonteante. Tive de esperar duas horas até que o comandante se dispusesse a receber-me.

Escapei-me bem da palestra. O Almirante Aichot era um homem ainda jovem, que provavelmente devia sua posição, antes de mais nada, à sua origem nobre. Comandava a frota estacionada no planeta, desempenhava as funções de assessor militar do Grande Conselho e pertencia ao almirantado do estado-maior.

Durante uma hora fiquei em posição de sentido à frente do poderoso personagem, que me dispensava um tratamento amável e condescendente.

Forneci uma explicação minuciosa da nova arma. Tratava-se de um projetor de vibrações de efeitos biológicos. Sabia que fora abandonado pouco depois. O aparelho não aprovara, e foi exatamente isso que eu afirmei. Aleguei que destruíra os cruzadores inimigos com armas convencionais de impulsos e de desintegração.

Após isso arrisquei um pedido. Solicitei permissão para entrar em contato com o físico Epetran, chefe da equipe científica do Grande Conselho.

O Almirante Aichot não disfarçou a surpresa. Era uma coisa fora do comum um comandante da minha graduação querer falar com um homem tão importante.

— Com Epetran? O que quer com ele?

— Quero apresentar-lhe algumas sugestões relativas a uma técnica simplificada de transição.

Aichot fitou-me com uma expressão de compaixão.

— Será que entendi bem? Quer apresentar-lhe sugestões?

— Isso mesmo, excelência. As experiências que colhi no curso destes anos ainda se reforçaram durante o combate com os quatro cruzadores dos metanenses. Acredito que poderei fornecer alguns dados científicos.

Talvez Aichot fosse um comandante medíocre, mas sempre era um oficial espacial da ativa. Ao que se dizia, esses homens sabiam decidir depressa.

Dali a três horas recebi a permissão escrita. Sem ela não poderia atrever-me a entrar no palácio do Grande Conselho.

Com isso, a palestra chegou ao fim. Naturalmente o comandante pediu um relato das minhas experiências. Aichot não poderia saber que esse relato já fora elaborado por especialistas terranos.

Retirei-me. Outro planador levou-me para bordo da Sotala, cujas avarias já haviam sido examinadas por uma equipe do estaleiro. O imediato, ou seja, Rhodan, recebera ordens para informar-me que os reparos do cruzador só poderiam ser realizados dentro de cinco ou seis dias. Durante esse tempo, a tripulação ficaria às minhas ordens.

Isso significava que poderíamos gozar uma licença em Árcon III, mas também significava uma contribuição valiosa ao nosso plano. O impacto no propulsor fora idéia de Quinto. Quando cheguei à nave, o coronel se refestelava na alegria dos homens que não haviam contado com a possibilidade de as coisas tomarem outro rumo.

Fiz uma observação que representou uma ducha fria na euforia:

— Parece que o ensinamento hipnótico que receberam foi mais pobre do que eu pensava. É impossível gozar licença no passado! Além disso, só poderiam passar seu tempo livre nas cidades subterrâneas do planeta. Vamos todos ficar a bordo. Não quero que se encontrem com algum arcônida que deveria conhecê-los. Na nossa frota, as ligações entre os soldados de diversas unidades eram muito freqüentes. As substituições eram uma constante. Seria de admirar se entre os tripulantes de outras unidades não houvesse ninguém que não se gabasse por ter de cumprimentar um homem da célebre Sotala. Por isso peço-lhes que controlem seu entusiasmo.

— Isto foi uma ordem — disse Rhodan pelo sistema de alto-falantes. — Cumpram-na. Mr. Heintz, mande os homens aos postos de combate.

O oficial do Serviço de Segurança lançou um olhar contrariado para o teto.

— Sir, há muitas horas o cruzador está pronto para entrar em combate.

Rhodan engoliu em seco e deu uma risada.

— Perdão. Não está mais aqui quem falou.

Lancei um olhar de admiração para o rosto do terrano. Aquele homem era o Administrador do Império Solar, comandava milhares de naves e era adorado por cinqüenta bilhões de terranos e habitantes das colônias do planeta Terra. Valia muito mais que o Almirante Aichot. Apesar disso era capaz de rir de um erro de raciocínio que acabara de cometer, sem pensar sequer que isso pudesse afetar seu prestígio.

Perry Rhodan era um ótimo amigo e um homem admirável. Em Árcon sempre foram raros os homens possuidores de um caráter como o seu. Cheguei a conhecer alguns homens semelhantes a Rhodan, mas todos haviam morrido há muito tempo..

Só nesse momento lembrei-me de que na verdade, os arcônidas pertencentes ao campo temporal relativista em que nos encontrávamos haviam nascido depois de mim. Eu nascera e fora mandado à guerra quatro mil anos antes deles.

Perry notou meu estado de perturbação e quis ajudar. Senti sua mão pousada em meu ombro.

— Não pense mais nisso, Atlan. Já passou. Nunca se esqueça de que somos seres pertencentes ao ano 2.106, do calendário terrano. O que vemos e sentimos aqui é uma coisa fantasmagórica, uma espécie de fraude contra as forças onipotentes da natureza. Receio que o Criador não continue por muito tempo a assistir pacientemente a isto, mesmo que nossos objetivos sejam bons.

Caminhou em direção à porta. Segui-o com os olhos. Pouca gente sabia que esse homem era religioso!...

 

Fazia três horas que o sol desaparecera embaixo da linha do horizonte, mas a noite ainda não havia descido sobre o planeta da guerra.

A área era iluminada por inúmeras lâmpadas, sóis atômicos, que flutuavam no ar, e holofotes giratórios. Os propulsores chamejantes das naves que decolavam pareciam um pomposo fogo de artifício. O rugido era incessante.

Em cima dos estaleiros centrais, que eram os mais modernos do planeta, o céu brilhava numa luminosidade vermelha. Era ali que os exaustores dos fornos despejavam as escórias gaseificadas. Árcon nunca dormia. A fabricação de espaçonaves de todos os tipos, em série, controlada por robôs, representava o nervo vital do império.

Entre as pessoas que se encontravam no planeta, os terranos e eu éramos os únicos a saber como seriam as coisas dali a seis mil anos. Naquele tempo o exército dos astronautas arcônidas era incomensurável. Os soldados de todas as armas enxameavam pelas cidades.

Os tempos áureos do império já pertenciam ao passado, mas já estávamos em condições de enviar ao espaço cem mil veículos tripulados. No planeta da guerra não se tolerava a presença dos povos auxiliares. Na melhor das hipóteses, estes eram utilizados nos mundos coloniais.

Gucky e Ras Tschubai acabavam de voltar. Haviam saído numa missão de reconhecimento. O terceiro teleportador ainda estava a caminho com o sugestor. Kitai Ishibashi procuraria experimentar o cientista Epetran.

Minha visita à sua residência não produzira nenhum resultado. Epetran não vivia num palácio em forma de funil. Apenas ocupava um alojamento de oficial igual àquele a que eu teria direito. Seus subordinados mandaram-me embora em tom cortês, mas decidido. Disseram que no momento Epetran não tinha tempo para ouvir as sugestões de um oficial da frota e pediram que expusesse minhas idéias por escrito.

Mercant, o chefe de Serviço de Segurança, limitara-se a acenar com a cabeça ao ouvir o meu relato. Dissera que era o que ele imaginara. Logicamente o maior cientista dos arcônidas teria coisa mais importante a fazer do que discutir com um simples capitão.

Segundo nossa tabela, na Terra registrava-se o dia 13 de fevereiro. Não podíamos perder mais muito tempo.

Gucky, que estava exausto, enrolara-se sobre um leito anatômico. Ras Tschubai também respirava pesadamente. Imaginamos que a tarefa não seria nada fácil.

Tivemos de esperar até que os dois especialistas recuperassem as forças. Aproveitei o tempo para fazer uma visita aos quatro cientistas acônidas.

O conversor de tempo funcionava ininterruptamente. Continuávamos a existir na época do Imperador Tutmor VI, e por isso o bom funcionamento da máquina já não comportava qualquer dúvida.

Artol de Penoral supervisionava o aparelho. Dois telepatas do Exército de Mutantes observavam-no. Auris encontrava-se no mesmo porão de carga. Nos últimos dois dias preferira não comparecer à sala de comando. Perguntei pelo seu bem-estar.

— Vou passando conforme as circunstâncias. Quando pretendem entrar em ação?

Não estava em condições de responder a esta pergunta. Trocamos mais algumas palavras; cheguei à conclusão de que estava nervosa.

Quando voltei à sala de comando, se desenvolvia ali uma atividade intensa. Tako acabara de voltar com o sugestor. Gucky informou que o aspecto do grande centro de computação já era igual ao que conhecíamos nos nossos dias. Isso significava que sua construção estava praticamente concluída.

— Qual é a vigilância do regente? — perguntou Quinto.

— É muito forte, sir — disse Tschubai. — Temos de saltar constantemente para não sermos descobertos. Por duas vezes o alarma deu um sinal, e uma vez chegaram a disparar contra mim.

— Com que tipo de arma?

— Com um desintegrador, sir.

— Com uma arma mortífera como esta?

— Sim senhor. Não estavam brincando. Vimos a equipe de cientistas. Uns cem homens estão realizando uma última verificação dos controles. Só se entra com uma autorização especial. Nessa autorização está gravado o modelo das vibrações individuais do portador, que é controlado constantemente pelos guardas. Acho que é impossível entrar sem permissão. O campo energético ainda não existe, mas os arcônidas tomaram todas as providências necessárias à segurança do centro de computação.

Olhei em torno. Havia uma expressão obstinada nos rostos dos homens. Mercant tamborilava com os dedos sobre a mesa. Rhodan fez uma constatação:

— Quer dizer que não temos outra alternativa senão entrarmos lá com o auxílio dos teleportadores. Pode apresentar algum resultado, Kitai?

O homem magro ao qual acabavam de ser dirigidas estas palavras enxugou o suor da testa. Feito de uma substância dotada de vida biológica, que imitava uma cabeleira de arcônida, seu cabelo emitia um brilho úmido.

— Nada, sir, ou quase nada. Encontramos Epetran na Divisão Matemática. Mora ao lado da mesma. Provavelmente estava fabricando folhas de programação com instruções especiais.

— Foi ele que construiu o setor de segurança A-l — observou Quinto.

— É possível que no momento esteja; trabalhando nisso — confirmou o mutante. — Procurei influenciá-lo, mas não sei se consegui. Epetran possui um bloqueio voluntário de força extraordinária. E Tako afirma que ele nos reconheceu apesar dos campos de deflexão.

Senti-me gelado de pavor. Até agora ninguém descobrira nossa farsa, mas aquele cientista idoso seria capaz disso... Possuía um cérebro ativado dotado de faculdades especiais!

Rhodan imaginou quais eram meus receios e fez um gesto tranqüilizador.

— Nada de pessimismo, amigo. Nem mesmo Epetran sabe tudo. Se realmente tivesse desconfiado, alguma coisa já teria acontecido.

Não havia como contestar essa afirmativa. Apesar disso, meu nervosismo crescia a cada segundo. Arrependi-me amargamente de ter pedido ao Almirante Aichot a permissão para visitar o cientista. Nas condições expostas por Kitai seria preferível evitar um encontro com o cientista.

Mercant olhou para o relógio.

— O senhor participará de algumas recepções, sir; o mais tardar logo após o nascer do sol — disse.

Confirmei com um gesto. Já havia recebido os convites. Meus colegas queriam ver o Capitão Tresta. A situação começava a tornar-se insustentável.

Quando o setor de observação espacial chamou, Quinto ia dizer alguma coisa.

— Atenção, comandante! Um estranho veículo parou perto do cruzador.

Rhodan estremeceu. Num gesto automático Heintz comprimiu o botão de alarma. Os homens que estavam de prontidão foram arrancados do sono.

O setor de observação manipulou os controles. As telas da sala de comando mostraram um carro disforme, que corria sobre esteiras largas e estava equipado com inúmeras antenas.

Antes que víssemos direito, o veículo afastou-se. Desapareceu atrás de um couraçado, voltou a entrar no campo de visão e mergulhou numa galeria blindada de superfície.

Fitamo-nos, perplexos, até que Mercant perguntasse com um sorriso cordial:

— Será que os senhores cientistas podem informar o que vem a ser isso?

Kalup continuava a olhar para as telas. Estreitara seus olhos a tal ponto que estes quase desapareceram em meio à face gorda.

— Foi um veiculo de controle — afirmou. — Não existe a menor dúvida. Quem foi que o trouxe para perto da Sotala? Quem procurou descobrir alguma coisa?

— Descobrir alguma coisa? — perguntou Quinto, em tom apressado. — O senhor realmente falou em descobrir?

Kalup não chegou a responder. Caminhou apressadamente em direção à escotilha. Disse alguma coisa que soou como “verificar os rastreadores”.

Quando desapareceu, notei que meu ativador celular trabalhava mais intensamente que de costume.

Um sussurro iniciou-se...

Interrompi um princípio de discussão. Rhodan continuava à frente das telas.

— É inútil tentar decifrar o enigma. Parece que não há possibilidade de exercer uma influência parapsicológica sobre Epetran. Já não faço nenhuma questão de travar conhecimento com ele. O relato de Kitai prova que o contato só pode representar um perigo. Vamos partir para o ataque. Penetraremos no cérebro com o auxílio dos mutantes, instalaremos a bomba relógio e daremos o fora.

— Como? — perguntou Rhodan, que aguçara o ouvido.

— Acho que será muito mais fácil escapar de Árcon III pelo nosso tempo que pela época de Tutmor VI. As pessoas que se encontram a bordo já sabem que as medidas de segurança são muito eficientes. Sugiro que nos guiemos pela segunda parte do plano de fuga. Desligamos o conversor, arriscamos um ataque de robôs e decolamos. A frota comandada por Bell, que se mantém em posição de espera, poderá cobrir nossa retirada.

— Sou da mesma opinião — disse Mercant. — Acontece que, antes disso, teremos de liquidar uma coisa. Acho que seria mais agradável se pudéssemos esclarecer o caso com o auxílio de Epetran.

— O senhor acha que devo dizer a esse homem que vim do futuro para salvar meu povo? — retruquei em tom irônico.

Mercant fitou-me com uma expressão séria.

— Isso talvez não seja nada mau.

— O senhor está sonhando, Mercant — disse Rhodan.

— Não acredito, sir. Esse cientista foi o primeiro arcônida que notou o início do processo de degenerescência e compreendeu imediatamente as conseqüências do fenômeno. Além disso, seu grande saber permite-lhe imaginar como funciona um conversor de tempo. Estou pensando na idéia de informar Epetran...

Rhodan recusou em termos ásperos. Meu cérebro adicional chamou. Para meu espanto manifestou-se a favor do plano de Mercant. Apesar disso, também fui de opinião que deveríamos dispensar a colaboração de Epetran.

Rhodan levantou-se e dirigiu-se ao computador central. Começou a acionar os controles.

— Acho que uma interpretação lógica será inútil — observei em meio ao silêncio. — Mr. Mercant, também me vejo obrigado a recusar sua proposta. Podemos ter certeza de que a bomba explodirá, enquanto as reações de Epetran são imprevisíveis. Não podemos arriscar-nos a sermos presos ou mesmo mortos a um simples aviso seu. Atacaremos conforme planejamos desde o início. Eu mesmo instalarei a bomba.

O chefe de segurança confirmou com um gesto. A decisão acabara de ser tomada. Talvez tivéssemos cometido um erro. Ninguém seria capaz de dizer.

O computador fez clique. Enquanto esperava o resultado, o oficial de plantão apareceu diante de nossa eclusa. Seu rosto surgiu na tela.

— Tenente Pinch falando, sir. Entregaram uma carta para o senhor.

— Como é?

— Trata-se de um envelope alongado, sir. Foi entregue por um robô.

Rhodan interrompeu seus cálculos. Muito nervosos, esperamos que a carta chegasse às nossas mãos.

— Será que é mais um convite? — perguntou o Major Heintz, dominado por maus pressentimentos.

Sacudi a cabeça. Se fosse um convite, o mesmo não viria por um robô. Geralmente assuntos como este eram liquidados pelo radiofone.

A carta chegou. Tratava-se de um envelope fluorescente com o símbolo do Grande Conselho.

As mãos de Rhodan estavam umedecidas pela transpiração. Entregou-me a mensagem. Puxei o fecho especial. A folha de papel abriu-se.

— É uma carta manuscrita! — disse Quinto. — De quem será?

Tive a impressão de que meu coração iria parar. O selo e a assinatura eram inconfundíveis. Deixei cair a folha de papel e fitei os homens.

— É mesmo um convite! Epetran pede que eu lhe faça uma visita, já que o Almirante Aichot lhe disse que tenho sugestões para o aperfeiçoamento da técnica das transições.

Rhodan leu a mensagem.

— Os oficiais informados a este respeito também serão bem-vindos — observei. — Que coisa! Quais serão as intenções deste homem?

“Perigo!” transmitiu meu cérebro adicional.

Fiz uma constatação, quase contra minha vontade:

— Não podemos recusar o convite. Um pedido de Epetran equivale a uma ordem. Quem irá comigo?

Rhodan chamou seu robô-criado.

— Meu uniforme especial, rápido! — ordenou.

Dali a meia hora, um veículo oficial parou junto à eclusa de passageiros do cruzador.

— Esse homem acha muito natural que estejamos prontos dentro de trinta minutos — disse Rhodan, em tom zangado. — Vamos indo. Não, Kitai, sinto muito. Não o levarei. Seus esforços seriam inúteis, já que esse cientista tem um cérebro ativado.

O sugestor ficou. Descemos pelo elevador antigravitacional e entramos no veículo robotizado que trazia as insígnias do Grande Conselho.

John Marshall era o terceiro homem de nossa equipe; caber-lhe-ia procurar desvendar os pensamentos do sábio. Oficialmente era o engenheiro-chefe da Sotala.

O veículo foi posto em movimento. Não sabíamos o que nos esperava no alojamento de Epetran. Sem dúvida, nem pensara em preparar-nos uma recepção de gala. Provavelmente, a palestra seria conduzida em tom frio. Os arcônidas que ocupavam a posição de Epetran costumavam raciocinar com muita clareza. Só se interessavam pelos fatos. Do cientista-chefe do Grande Conselho costumava-se dizer que raramente participara de festas ruidosas, embora gozasse da simpatia do imperador.

Entramos na área isolada que ficava junto à grande construção. Pavilhões longos surgiram à nossa frente. Por certo Epetran não via nada de anormal em convidar-nos para uma visita no meio da noite. Pertencia à classe dos arcônidas em cuja opinião um soldado deve estar disposto a entrar em ação a qualquer momento para defender o império.

Rhodan ficou nervoso ao notar que não houve nenhum controle. Atravessamos livremente as barreiras energéticas.

Meu cérebro adicional não deu mais nenhum sinal de sua presença. Um anel de ferro parecia cingir meu crânio. Sabíamos que Epetran fora o maior vulto da História de Árcon. Sentimo-nos constrangidos em defrontar-nos com uma personalidade como esta.

— É o Capitão Tresta? — perguntou o oficial das sentinelas. Pertencia a uma conhecida unidade de elite.

— Sou eu mesmo. Estes são os oficiais Telater e Toote — apontei para Rhodan e Marshall.

— Sua Excelência já os espera. A duração da visita fica limitada a uma hora.

O oficial fez continência. Respondi com um aceno de cabeça e o carro voltou a ser colocado em movimento. Descemos em frente a um edifício com o formato de uma torre. Tínhamos chegado.

 

O rosto de Marshall mudou de cor. A cor morena da pele, realçada pela cabeleira biológica, foi substituída por uma tonalidade cinzenta. Entendi o sinal que me fez.

Era perigoso tentar penetrar na mente de Epetran. Tive a impressão de que o telepata queria comunicar-me que o cientista havia percebido seus esforços.

Se realmente era assim, Epetran não fez nenhum gesto que revelasse o fato. Recebeu-nos com toda amabilidade. Era um arcônida alto com cabelos bem brancos, que pendiam sobre os ombros. Nunca vira um homem de testa tão alta e de olhar tão bondoso.

No momento em que entramos, seu olhar obscureceu. Tive a impressão de que no seu íntimo o membro do Grande Conselho acabara de condenar-nos à morte. Momentos depois, aconteceu uma coisa estranha: a situação ameaçadora parecia ter desaparecido.

Minha exposição consumiu duas horas. As perguntas de Epetran esgotaram meus conhecimentos técnicos. Levara apenas alguns segundos para compreender como deveriam ser feitos os cálculos dos desvios, para conferir maior rapidez e precisão aos saltos secundários. A História de Árcon revela que, pouco antes de sua morte, Epetran introduziu importantes modificações no setor! Se não estou enganado fomos nós, que ainda não tínhamos nascido, que desempenhamos o papel decisivo para que isso acontecesse...

Rhodan e Marshall também tomaram a palavra. Na oportunidade o terrano arriscou-se a fazer uma referência ao mecanismo de propulsão linear.

Epetran ainda estava fascinado. Parecia que queria penetrar Perry com os olhos. Sempre que formulava uma pergunta, a tensão fazia vibrar sua voz profunda.

Estávamos no interior de um laboratório de Física, cujas instalações pareciam indicar que se tratava de uma unidade de programação. As máquinas e aparelhos cercavam-nos por todos os lados. Epetran realmente não demonstrara a intenção de proporcionar-nos uma recepção de gala.

Senti-me aliviado ao notar que Rhodan preferiu não fazer mais indicações e voltou a fingir que não conhecia outros detalhes. Nesse momento, o sorriso silencioso voltou a aflorar aos lábios do ancião. Usava os trajes de trabalho do cientista. O símbolo do Grande Conselho era o único sinal do cargo, elevado que ocupava.

— Fico-lhe muito grato, Telater. Sua exposição foi muito interessante. Acho que será conveniente examinar primeiro as sugestões de seu comandante e aperfeiçoar os propulsores que já conhecemos. Os senhores ainda terão notícias minhas. Quanto tempo pretendem demorar em Árcon III?

Tive a impressão de que essas palavras haviam sido dirigidas a mim. O cientista fitava-me em cheio.

— De qualquer maneira ficaremos até que o cruzador tenha sido preparado, excelência. Depois disso aguardarei novas ordens.

Epetran acenou com a cabeça. Parecia pensativo.

— Está satisfeito com o potencial de fogo do cruzador? — perguntou.

— Bem que poderia ser melhor, excelência.

O ancião respondeu em tom indignado:

— O armamento da Sotala é o melhor possível.

— Acho que dentro em breve se tornará insuficiente, excelência. Os inimigos do império não estão dormindo. Peço-lhe que me permita usar de toda franqueza.

— Naturalmente, se é o que deseja. Não conheço nenhum povo galáctico que esteja em condições de derrotar nossa frota.

— Refiro-me às inteligências em desenvolvimento, excelência. Ninguém sabe o que nos reserva o futuro.

O cientista levantou-se, o que era um sinal de que dispensava nossa presença. As últimas palavras que proferiu fizeram com que aguçasse o ouvido.

— Quando nós tivermos deixado de existir, o império encontrará amigos poderosos. Tudo depende de que se tomem as medidas adequadas.

Retiramo-nos. O velho ficou em meio às suas máquinas. Marshall foi o primeiro a sair. Segui logo atrás dele. Notei a falta de Rhodan. Virei-me e vi-o bem ereto no meio da sala. Seu olhar parecia fundir-se com o de Epetran.

Marshall suspirou baixinho quando ouvimos as palavras de despedida de Perry:

— Sem dúvida um dia o império encontrará amigos, excelência. Quando isso acontecer, todos recordarão a personalidade genial de Vossa Excelência.

Fez continência e finalmente saiu para o corredor. A escotilha fechou-se.

— Por que fez isso? — chiei, furioso. — Tive a impressão de que esse homem descobriu quem realmente somos.

— Eu também — respondeu Rhodan, muito impressionado. — Pouco me importa o que pense das minhas palavras.

— Silêncio! — disse o telepata num cochicho.

Dois soldados da guarda surgiram à nossa frente. Pus a mão na arma. A única coisa que fizeram foi chamar nossa atenção por termos excedido, e em muito, o tempo que nos fora concedido. Não era correto obrigar Epetran, por meio de uma série de perguntas obstinadas, a prolongar o tempo dedicado a uma visita.

Lembrei-me da hospitalidade de meu povo. Não tive a impressão de que o ancião fora coagido a envolver-se numa conversa tão prolongada. Sem dúvida, ele nos teria dispensado com uma pontualidade absoluta se não estivesse interessado em ouvir-nos.

Pedi desculpas ao oficial da guarda, que nos dispensou em tom menos amável. Dali a meia hora voltamos a entrar na sala de comando da Sotala.

— Nada de extraordinário — informou o Major Heintz.

Lá fora nascia o sol. Perguntei-me quando era que Epetran dormia. Rhodan olhou para o relógio. Segundo a tabela de conversão estávamos no início do dia 14 de fevereiro.

— A bomba explodirá amanhã, às doze horas — disse num tom estranho. — Gucky e Ras Tschubai, preparem-se para entrar em ação. Marshall, seu rosto ainda está pálido. O que houve?

O telepata fitou-nos com os olhos vidrados. Suas palavras abalaram nossa autoconfiança.

— Ao que parece, Epetran sabe quem somos e de onde viemos... Logo após nossa entrada fomos testados no plano parapsicológico. O senhor e Atlan ficaram inconscientes por trinta segundos. Quanto a mim, consegui resistir. Não sei se Epetran rompeu meus bloqueios psíquicos. Acho que com Atlan isso não aconteceu. Como estarão as coisas com o senhor, administrador?

Rhodan sentou-se. Fitou o chefe do Exército de Mutantes. Parecia estupefato.

— Ficamos inconscientes? Será que o senhor não está enganado?

— De forma alguma, sir. Fiquei bem acordado. O senhor e Atlan adormeceram com os olhos abertos. Provavelmente a esta hora está sendo interpretado o parapsicograma gravado naquele momento. Recomendo encarecidamente que a bomba seja escondida imediatamente no interior do cérebro e que abandonemos a época de Tutmor VI.

Lancei um olhar automático para as telas. Lá fora as espaçonaves de meu povo decolavam e pousavam. Os veículos que levavam as tripulações atravessavam a área. Ninguém se aproximou da Sotala.

Rhodan ligou o sistema de alto-falantes.

— Atenção, todos os tripulantes. Emergência de primeiro grau. Talvez sejamos atacados. Se isso acontecer, o conversor de tempo deverá ser desligado. Se retornarmos de repente ao tempo presente, estaremos nas proximidades do regente e de sua frota robotizada. Nesse caso abram fogo independentemente de novas ordens. Atenção, sala de rádio. Preparem-se para transmitir um pedido de socorro destinado à Frota, que deverá preparar-se para a decolagem de emergência. É só. Muito obrigado.

Rhodan desligou. Os especialistas compareceram com uniformes de combate terranos. Eram muito superiores aos produtos arcônidas da época de Epetran. Os campos energéticos mostravam-se mais potentes e os campos de deflexão haviam sido aperfeiçoados.

Gucky e Ras Tschubai apresentaram-se. Estávamos preparados para o salto. Dois técnicos de armamentos trouxeram a bomba. O detonador de urânio já entrara em funcionamento. O relógio de semitempo desencadearia o impulso dentro de 6.023 anos.

Mercant ficou nervoso.

— Acho muito errado que os dois homens que nos são mais importantes arrisquem suas vidas. Abandonamos nosso plano temporal no dia 10 de fevereiro. Portanto, não temos condições de saber se ainda estavam vivos no dia 14 de fevereiro, que é hoje, dentro do tempo presente.

— Não me deixe totalmente confuso, Mercant — respondeu Rhodan, em tom de irritação. Ao que parecia, naquele momento não possuía nenhum senso de humor. — Se usarmos esse tipo de lógica, posso afirmar que nunca cheguei a viver.

Mercant lançou um olhar de perplexidade para o professor Kalup. O cientista não disse uma palavra. Estudava as palavras de Epetran, gravadas em microfita.

— Esse homem até parece um oráculo — disse Kalup. — Quem sabe ler entre as linhas pode tirar algumas conclusões. Vamos esperar a interpretação. No momento não posso provar coisa alguma.

— Recusado. Vamos saltar. A bomba deve ser colocada no interior do regente. Está pronto, Atlan?

Fiz que sim. Não havíamos colocado os capacetes pressurizados. Havia ar respirável por toda parte.

Mostrei mais uma vez aos teleportadores o recinto afastado da unidade energética no qual eu pretendia operar. Conhecia-o desde o tempo em que era imperador. Tive permissão para entrar no cérebro sempre que o desejasse.

Finalmente saltamos.

 

A rematerialização verificou-se num recinto não muito amplo. Havia um reator energético de emergência acoplado com o conversor. Mais à esquerda estavam montados os comandos, ligados ao reator por cabos de dez centímetros de diâmetro.

Os dutos de alta pressão corriam pelas paredes de rocha, submetidas a um processo térmico de vitrificação, e terminavam numa sala contígua, na qual havia tanques com um reator catalisado. Era ali que estavam as bombas sosator, cuja finalidade consistia em regular o desempenho energético do reator por meio de uma injeção mais ou menos abundante de matéria físsil.

Sabia que o reator de emergência nunca fora usado. Encontrara-o numa das numerosas inspeções que realizara no interior do cérebro e, examinado seu contador, constatara que fora montado em vão.

O aparelho estava montado num pedestal de cerca de metro e meio de altura, feito de plástico blindado. Uma das paredes do pedestal era interrompida pela abertura destinada aos reparos. O corredor que ficava atrás da abertura permitia que se rastejasse até a fenda destinada à limpeza da zona de reação. Da mesma forma como o agregado energético, essa fenda nunca fora utilizada. Era este o lugar adequado para a bomba. Aqui ela poderia ficar durante seis milênios sem que ninguém a encontrasse, aguardando o momento em que o detonador de urânio lhe permitisse o impulso.

Gucky revistou as salas contíguas. Descobriu alguns técnicos, que realizavam exames de rotina. Alguns controles foram testados.

A construção do gigantesco centro de computação consumira alguns séculos. A sala de reatores em que nos encontrávamos devia ter sido montada há cerca de vinte anos. Nesse setor não se realizavam trabalhos de instalação. O único risco que corríamos era o de sermos vistos por uma equipe de controle.

Desliguei o campo defletor. A sala era iluminada por uma lâmpada que sempre ficava acesa. Esperamos que nossos olhos se acostumassem à luz débil da mesma.

Fazia calor. O traje de combate incomodava, mas preferi não ligar o sistema de climatização. Face ao perigo da localização energética seria preferível que o pequeno reator não fosse solicitado a fornecer qualquer porção de energia. Sua irradiação remanescente bastava para chamar a atenção de alguém.

Gucky voltou de um salto mais longo. Ras Tschubai estava parado junto à porta de aço e procurou ouvir o que se passava do outro lado da mesma.

— Tudo bem — cochichou o pequeno e olhou em torno, assustado. — Não há ninguém por aí; apenas os técnicos.

— Quase chega a ser fácil demais, não é? — disse Rhodan.

Lembrei-me de Epetran e do que Marshall dissera há pouco. Se é que o sábio sabia quem éramos, seu comportamento fora muito estranho. Por que não dava o alarma? Será que não imaginava o que pretendíamos fazer? Talvez achasse que éramos visitantes muito importantes do futuro, que vieram para transmitir-lhe certos conhecimentos.

Nada disso. Epetran era um homem muito inteligente, e por isso não deixaria de pensar na possibilidade de que havíamos vindo para destruir a obra de sua vida. Será que o cientista concordaria com isso?

Não sabia o que fazer. Depois de algum tempo meu cérebro adicional me informou de que Epetran havia adivinhado nossa origem, mas não conseguira decifrar o conteúdo de nossas mentes. Dependia exclusivamente dos resultados, pouco precisos, colhidos pelas máquinas.

Essa informação fez com que me sentisse mais aliviado. De qualquer maneira, por enquanto ninguém nos havia perturbado. Ao que parecia, nem desconfiavam de que estávamos nesse subsolo. Havia uns mil metros de rocha acima de nós. Os guardas só interviriam quando recebessem ordens para isso. Evidentemente isso ainda não acontecera, pois, do contrário, já estariam à nossa procura.

— O que está esperando? — perguntou Rhodan, arrancando-me das reflexões.

Perplexo, notei que o terrano desconfiava de mim. Seus olhos traíam os sentimentos. Sempre tinham essa expressão quando desconfiava de outras inteligências.

— Seu bárbaro terrano — disse em tom zangado. — Será que você acha que vou recuar no último instante? Você nunca aprende!

De repente o Administrador do Império Solar sorriu como se fosse um jovem cadete espacial. Gucky exibiu seu dente de roedor.

— Voltou a assumir uma atitude tipicamente humana, não é mesmo?

Tirei a bomba cilíndrica das correias que serviam para carregá-la. Rhodan a segurou, enquanto eu abria a escotilha da abertura destinada aos reparos. Rastejei pelo corredor, pedi que me entregassem o artefato explosivo e o colei com um adesivo de ação instantânea à parede de aço plastificado.

Não havia necessidade de fazer qualquer verificação. A arma estava lacrada. Não havia nada que examinar.

Em movimentos hesitantes saí do corredor e fechei a escotilha. Gucky ativou seus impulsos telepáticos para ouvir eventuais impulsos mentais.

— Isso quase é bom demais para ser verdade — disse Ras Tschubai. — Foi só isso?

Fiz que sim.

— Então vamos soltar de volta para a nave — ordenou Perry Rhodan. — Não podemos esperar seis mil anos.

Esforçou-se para sorrir, mas não conseguiu. Gucky correu para perto de mim. Coloquei-o nos meus braços, pois esta era a posição mais confortável para a teleportação,

— Você tem certeza de que o reator não será examinado? — voltou a perguntar Rhodan.

A mesma pergunta já fora feita muitas vezes. A única informação que pude dar foi a de que o reator nunca fora usado. A aparelhagem principal nunca entrara em pane.

Demorei demais a compreender por que Ras gemeu de repente. Encontrava-se a poucos metros de mim, perto de Rhodan. Antes que compreendesse por que contorciam o corpo, também fui atacado por uma dor lancinante.

Gucky soltou um grito estridente. Seu corpo tremia. Tive a impressão de que um fogo líquido corria pelas minhas veias. Agachei-me e deixei que a pequena criatura rolasse para o chão.

Dali a três segundos tudo terminou. A dor desapareceu tão depressa como aparecera.

A reação de Rhodan foi instantânea. Pegou a arma. Meus olhos desanuviaram-se. Quando pretendia perguntar qual era a causa daquilo, Ras voltou a gemer. Seus olhos pareciam bolas de pedra. Virei a cabeça e compreendi o que estava acontecendo.

O reator de emergência estava completamente modificado. O revestimento dos isoladores, que há pouco ainda fora impecável, estava manchado. Vez por outra apareciam fendas e outros sinais de deterioração. Uma grossa camada de pó cobria o soalho e os aparelhos.

Levantei-me de um salto. Rhodan já se pusera de pé. Gucky ainda rolava pelo chão.

— Como é que um reator novo em folha pode transformar-se num montão de destroços dentro de três segundos? — perguntou Rhodan, e sua voz tinha um tom áspero.

Preferi não dar resposta. Já a conhecíamos.

— O campo temporal — balbuciou Tschubai, apavorado. — Saímos do campo de conversão. A máquina do tempo falhou.

Ajudei Gucky a levantar-se. Seu rosto de camundongo estava desfigurado.

— O campo desapareceu — confirmou. — Estou captando muitos impulsos. São acônidas. Retornamos ao nosso tempo. A bomba...!

Virei-me apressadamente e olhei para a escotilha pela qual saíra naquele instante. Naquele instante? Rhodan procurou tranqüilizar-nos.

— Não fiquem nervosos. Saímos da Sotala no dia 14 de fevereiro. Não demoramos mais de uma hora. Ainda temos mais de vinte horas.

As últimas palavras foram abafadas por um uivo enervante. Eram as sereias de alarma. O regente acabara de constatar nossa presença. Há seis mil anos ainda era uma máquina inofensiva. Agora tínhamos de acostumar-nos novamente à idéia de que fora afetado pela modificação do controle de segurança A-l.

Gucky acalmou-se. Voltei a colocá-lo nos meus braços. Rhodan segurou-se a Tschubai.

— Para onde vamos? — perguntou o teleportador em tom calmo.

Ras estava acostumado a utilizar o plano paramental para escapar dos inimigos.

Hesitei um pouco. Para onde poderíamos fugir? Se a máquina do tempo realmente deixara de funcionar, o cruzador encontrava-se no tempo presente. Isso significava que seria envolvido numa batalha que acabaria causando a destruição da nave. Não havia outra explicação para nosso súbito retorno ao tempo presente. Só podia ser uma falha da máquina. No momento não importava que essa falha fosse intencional ou acidental.

— Iremos à Sotala — decidiu Rhodan. — Uma vez lá, veremos o que fazer.

Esperei pelo choque de desmaterialização, mas este não veio. Gucky começou a tremer. Ficou com os olhos vidrados. Ras Tschubai cambaleava. Rhodan segurou-o. Senti um calafrio.

— Gucky...!

— São os antis. Há antis por perto — disse. — Não consigo concentrar-me. Eles absorvem minhas energias mentais. Atlan, não consigo saltar.

Tschubai confirmou a informação. Não perdi tempo com perguntas. Sabíamos que os sacerdotes de Baalol apoiavam os acônidas. E os campos mentais dos mesmos neutralizavam as faculdades de nossos mutantes.

Tirei o minicomunicador do cinto de meu traje de combate e liguei-o. O pedido de socorro foi transmitido pela hiperfreqüência da frota. Os impulsos magnéticos de pequena intensidade conseguiam romper o campo energético em favo. Se os radioperadores da Sotala estivessem prestando atenção, não deixariam de ouvir-me, isso naturalmente se o cruzador também tivesse voltado ao tempo presente.

Prendemos a respiração e pusemo-nos a escutar. Gucky captou impulsos cerebrais. Depois de algum tempo não percebeu mais nada. Os antis se aproximavam.

A Sotala não respondeu. Em compensação ouvimos uma voz estranha, que fornecia a indicação do tempo em língua inglesa. Alguém estava transmitindo pela nossa faixa de freqüência.

— Ironduke; são 11 horas e 43 minutos do dia 15 de fevereiro de 2.106.

O anúncio foi repetido a intervalos regulares, modificando-se apenas a hora do dia. Fiquei estarrecido. Mal senti a pressão dos dedos de Rhodan.

— Quinze de fevereiro — disse Ras, estupefato. — Sir, a bomba explodirá dentro de dezessete minutos.

— Mas nós saímos da nave no dia quatorze — objetou Rhodan em tom hesitante.

— A tabela...

— Não é correta — interrompi. — O conversor do tempo não funcionou com a precisão que se supunha. Estou ficando nervoso, meu caro.

Rhodan soltou meu braço. Gucky informou que suas faculdades parapsicológicas haviam sido anuladas completamente. Lá fora um inimigo implacável nos esperava. Comunicamo-nos por meio de olhares. Na verdade, pouco importava que morrêssemos. Um tiro de arma energética pode tornar-se mais desagradável que a onda de compressão escaldante provocada pela explosão de uma bomba de cinqüenta megatons.

— Vamos usar o corredor lateral. Estão preparados?

Ativamos nossos campos individuais. Sua potência bastava para absorver a descarga de uma arma de fogo portátil. Mais uma arma usada por robô poderia tornar-se perigosa. Os campos defletores tornavam-nos invisíveis. Coloquei o visor de absorção sobre os olhos. Com isso voltei a enxergar os companheiros.

Ras abriu a escotilha de emergência que se encontrava nos fundos do pavilhão. Vimos um corredor debilmente iluminado. Por enquanto não havia ninguém.

O hipertransmissor da Ironduke continuava a fornecer a hora. Eram onze horas e quarenta e seis minutos.

 

Os campos defletores eram gerados por energia mecânica. Nem mesmo as faculdades mentais seriam capazes de localizar as linhas energéticas que desviavam os raios de luz.

Era nossa única chance. Mas logo surgiram técnicos acônidas equipados com rastreadores energéticos, que reagiam aos nossos microrreatores. O isolamento de absorção dos terranos, tantas vezes elogiado, revelou-se inútil. Era inegável que os acônidas dispunham de excelente tecnologia.

Não se via nenhum arcônida. Isso provava que os homens do Sistema Azul já haviam dominado os membros de meu povo.

Estávamos num recinto alongado, em que nunca pusera os pés. Sem uma planta seria impossível orientar-se naquele labirinto de salas e corredores. O grande número de planos horizontais tornava ainda mais difícil a orientação. Muitos pavilhões eram subdivididos duas ou três vezes por meio de tetos rebaixados.

Estava deitado atrás de uma chave geral, da qual partiam cabos grossos em direção a outras chaves. O zumbido que saía de baixo das chapas de revestimento provava que o regente estava trabalhando a toda força. Ao que parecia, todos os setores adicionais haviam sido ativados.

A iluminação era escassa. Mal conseguíamos ver os vultos dos atacantes que se deslocavam constantemente. Ainda mais que milhares de luzes de controle acendiam-se e apagavam-se constantemente, produzindo um efeito ofuscante bastante desagradável.

Rhodan estava agachado atrás do pedestal de um conversor, a poucos metros do lugar em que eu me encontrava. O zumbido do aparelho permitia que nos comunicássemos aos cochichos.

Vi o terrano encostar ao ombro a pesada arma energética. Ainda não havíamos usado as armas que trazíamos no cinto. Os campos defensivos dos antis, cuja carga era reforçada por meio de suas energias mentais, eram praticamente impenetráveis. Não trouxéramos as novas armas versáteis destinadas ao combate contra os antis. Ninguém esperava ter de lutar contra essas medonhas criaturas.

Enxerguei um vulto no fim do corredor. Seus contornos pareciam desmanchar-se. Isso provava que o sacerdote ativara seu campo defensivo a toda potência. Seria inútil abrir fogo contra ele.

Olhei para o relógio. Acertara-o pelas indicações transmitidas pelo rádio, a fim de saber quando chegasse o momento. A tolerância do detonador de urânio terrano era, mais ou menos, de três minutos.

Fazia votos de que houvesse uma falha, mas sabia que a mesma não ocorreria.

Minhas reflexões foram interrompidas por um rugido. Ras Tschubai acabara de disparar. O raio térmico chamejante iluminou a escuridão. Alguém soltou um grito estridente. Um acônida cambaleante saiu de trás de um aparelho destruído.

Não disparei, embora o acônida apenas parecesse ferido. Dois outros arrastaram-no para trás dum banco de dados.

Ras modificou sua posição. As trilhas energéticas esverdeadas saídas das armas do inimigo não produziram nenhum ruído. Nos locais de impacto qualquer porção de matéria era transformada em pó.

O regente voltou a dar o alarma. Toda vez que qualquer parte de seu equipamento era destruída, fazia soar as sereias.

Rhodan deu um salto através do corredor e deixou-se cair a meu lado.

— Vamos voltar para a escada — disse. — Devemos subir. Está pronto?

Fiz um sinal para Gucky e Ras. Saímos correndo. No mesmo instante o lugar em que me abrigara foi destruído por um raio de desintegrador. Os controles foram arrebentados. Raios de mais de um metro de comprimento atravessaram as chapas de revestimento.

O uivo das sereias tornou-se mais forte. O ruído permitia que nos comunicássemos à vontade. Vimos a escada à nossa frente. Rhodan gritou que, antes de subir, procurássemos um abrigo. Obedecemos.

A tática que seguíamos na luta surgira numa questão de minutos. Teríamos de arriscar um ataque com nossas armas e mudar imediatamente de posição. Os aparelhos de rastreamento dos acônidas sempre demoravam um pouco a localizar-nos.

“Realmente”, refleti, “temos uma boa chance, enquanto o inimigo não se lembrar de orientar seu ataque exclusivamente pelos nossos disparos. Para isso bastará desencadear um ataque frontal, enquanto grande número de atiradores se mantém escondido”.

Dessa forma seríamos obrigados a assumir uma posição defensiva, e os atiradores poderiam guiar-se prontamente pelos raios disparados por nossas armas. Sabia que não demoraria muito até que os acônidas resolvessem agir de forma coerente.

Comunicamo-nos por meio de gestos. Gucky informou que estávamos cercados. Nos fundos do pavilhão surgiram robôs de guerra do regente. Ao que parecia, estavam sendo informados pelo rádio sobre nossa posição. Era possível que estivessem em condições de localizar-nos. No momento isso não importava.

Num movimento rápido, Rhodan fez descer a mão. Disparamos ao mesmo tempo. Apontei ao acaso para as instalações do centro de computação, percorri alguns metros aos saltos e voltei a disparar.

O rugido de nossas armas energéticas abafou o barulho das sereias. Controles — insubstituíveis — explodiram. Os fragmentos atravessaram o ar, danificando outros aparelhos.

Uma vez terminado o ataque, resolvemos arriscar todas as chances numa só cartada. As posições que acabáramos de abandonar foram atacadas e as nuvens de fumaça impediam a visão. Naquele momento usamos o equipamento gravitacional para subir ao teto.

Regulei o dispositivo de absorção de gravidade, comprimi a palma da mão contra o teto e rastejei que nem uma mosca em direção à abertura por onde passava a escada.

— Pare! — gritou Rhodan.

Encostei os pés ao corrimão da escada, mas retirei-os imediatamente, pois os robôs de guerra estavam abrindo fogo contra a escada em caracol. Seguramo-nos a alguns tubos de refrigeração, para não sermos empurrados pelas ondas de compressão.

Fragmentos incandescentes bateram no material do teto, bem perto de nós. No lugar em que pouco estivera a escada, surgiu uma massa borbulhante de plástico.

Nossos campos defensivos refletiam o calor. Atravessamos a abertura da escada e subimos imediatamente.

Dali a alguns segundos estávamos pendurados ao teto de outra sala. Num pavimento abaixo do nosso a confusão parecia ser completa. As armas dos robôs rugiam sem parar. Gases sufocantes subiam pela abertura da escada.

— Estão abrindo fogo contra os antis — gritou Ras. — Aonde vamos? Temos uma pequena pausa.

— Daqui em diante vamos voar — respondi num grito. — Ainda não descobriram que podemos flutuar. Vamos logo. Procurem localizar as aberturas no teto. Deve haver alguma abertura. Enquanto não abrirem um fogo dirigido bem contra nós, não atirem. É possível que resolvam disparar incessantemente para levar-nos a revelar nossa posição.

Gucky descobriu a abertura mais próxima e a escada de plástico que levava até lá.

Atravessamos a abertura e fomos parar num recinto abobadado, que abrigava o banco de dados para uma das unidades secundárias mais importantes. Nos bancos estavam armazenados bilhões de dados diferentes, que poderiam ser utilizados a qualquer instante.

Quando já acreditávamos estar em relativa segurança, voltamos a ser localizados. Gucky captou alguns impulsos mentais, que logo cessaram. Os antis estavam em toda parte. Ao que parecia, esforçavam-se ao máximo para neutralizar as faculdades dos nossos mutantes.

Finalmente ficamos presos de vez. Os robôs de guerra e os acônidas nos cercavam de todos os lados. Voltei a olhar para o relógio. Eram doze horas e quatro minutos do dia 15 de fevereiro de 2.106.

Já não pudemos ouvir as indicações de tempo da Ironduke. Havia um transmissor que interferia na mesma faixa. O alto-falante de meu intercomunicador só emitia um chiado.

Descemos e abrigamo-nos atrás do pedestal de uma máquina. Num gesto de resignação, Rhodan guardou a arma. Depois disso olhou fixamente para meu relógio.

A explosão deveria ocorrer a qualquer momento. Mais adiante alguém estava atirando. As armas dos robôs intervieram na luta. Outras máquinas explodiram. Não demos a menor atenção às ondas de compressão.

Um ribombar terrível me fez estremecer. Ras atirou-se ao chão e agarrou-se ao pedestal da máquina. Esperamos a morte, mas esta não veio.

O ruído tornava-se cada vez mais forte. Parecia o uivo de um furacão e não tinha a menor semelhança com o ruído de explosão atômica. Até parecia que um furacão estava soprando nos labirintos do computador-regente.

O rosto de Tschubai estava desfigurado. Rhodan segurou meus ombros. Ainda nos esforçávamos para identificar o ruído. Os tiros haviam cessado. Vez por outra, as ondas de pressão atravessavam as escotilhas blindadas dos acessos. O regente estava abrindo todas as portas.

Senti-me estupefato. Rhodan apontou para a frente. Uma porta de aço abriu-se. As máquinas ali instaladas estavam incandescentes. Descargas elétricas destruíam o material.

Não havia a menor dúvida de que o regente estava sendo destruído, embora nossa bomba não tivesse explodido. Fitamo-nos perplexos.

Gucky levantou-se. Inclinou a cabeça para ouvir melhor. Depois de algum tempo gritou:

— Estou recebendo uma mensagem telepática. Os antis estãos mortos ou batem em retirada!

— Já está em condições de saltar? — perguntou Rhodan.

Havia um lampejo de esperança em seus olhos.

— Ainda não. Atenção; alguém se aproxima. Está transmitindo no plano parapsicológico. Repete sempre o mesmo texto: Não atirem; sou seu amigo.

As fúrias da destruição rugiam em todos os setores do regente, mas no recinto em que nos encontrávamos remava a calma. Nenhuma máquina explodiu; apenas, o zumbindo dos bancos de dados cessou de repente.

Um objeto estranho apareceu no corredor. Era um veículo articulado, que se movia como uma lagarta.

— É o transmissor! — gritou Gucky, em tom exaltado.

Esperamos até que o veículo parasse à nossa frente. A parede lateral abriu-se. Vimos uma série de assentos do lado de dentro. Vi que se tratava de um veículo destinado às viagens de inspeção. Parecia ser um modelo especial.

Não perdi tempo. Na situação em que nos encontrávamos, era indiferente para onde fôssemos. Entrei no veículo, acomodei-me num dos assentos e esperei que meus companheiros também entrassem.

A parede lateral fechou-se. O veículo de inspeção era completamente automatizado. Uma tela iluminou-se à nossa frente.

Estremeci ao ver o rosto de Epetran... Seu sorriso não tinha nada de falso. O mistério desaparecera daquele rosto. Alguns alto-falantes estalaram. A voz de Epetran era inconfundível.

— Isto é uma fita gravada depois da visita de Sua Majestade o Imperador Gonozal VIII e de Perry Rhodan, Administrador Solar. No futuro não se conseguirá mais descobrir o princípio de funcionamento de um conversor do tempo. A duração de minha vida é limitada. O interrogatório psicológico revelou quem são vocês, de onde vêm e quais são suas intenções. Mas, depois de estudar o futuro, resolvi destruir o regente no momento em que ele fosse influenciado por uma potência estranha e passasse a agir contra os interesses do império. Coloco os destinos do Grande Império nas mãos de Vossa Majestade.

Epetran calou-se e inclinou a cabeça. Comecei a compreender. Rhodan empalidecera.

— As investigações realizadas por meu veículo especial, que foi avistado pelos tripulantes da Sotala, revelam que Vossa Majestade e seus companheiros não recuaram diante dos perigos e das dificuldades, no intuito de conservar o reino estelar, segundo as intenções dos velhos arcônidas. Conheço o conteúdo de suas mentes. Estou informado sobre a situação reinante em sua época. Quando ouvirem minha voz, já terão retornado ao seu plano temporal. Para abreviar o processo, fiz com que a imitação da Sotala fosse levada a outro local de pouso antes que penetrassem no cérebro. Sei perfeitamente que Vossa Majestade estará em perigo, mas foi a melhor solução que me ocorreu. Este veículo robotizado foi exclusivamente para conduzir Vossa Majestade e seus companheiros a um lugar seguro.

“Lamento muito ser obrigado a destruir a obra de minha vida. Tomei a liberdade de remover a bomba-relógio do pedestal do reator. Em compensação introduzi mais um controle no computador-regente. Este controle entra em ação assim que Vossa Majestade, que é o verdadeiro imperador que traz a verdade no coração, enfrentar uma situação que coloque sua vida em perigo. Trata-se do chamado comando-loucura, que acaba de ser acionado. O regente se auto-destruirá. Fico muito grato pelas informações relativas à nova técnica de transição. Dirijo meus cumprimentos aos verdadeiros amigos do império. Não sei o que acontecerá depois. Só pude acompanhar o conteúdo de sua mente até o mês de fevereiro do ano de 2.106. Assuma a herança dos antepassados. Fiz tudo que estava ao meu alcance.”

A voz silenciou e a imagem de Epetran desapareceu da tela. Gritei ansiosamente o nome do ancião, mas este não apareceu mais. Rhodan pegou meu braço e sacudiu-me fortemente. Só depois disso, eu me reencontrei comigo mesmo.

Já compreendíamos o que significava aquele veículo com antenas. Rhodan e eu fomos interrogados sem que o soubéssemos. Quando nos despedimos de Epetran, ele já sabia o que aconteceria nos milênios seguintes. Foi bastante inteligente para não destruir o regente antes do momento adequado, pois, com isso, teria interferido no curso da História. Escolhera o dia 15 de fevereiro como data-base.

Senti-me abalado. Só agora compreendemos toda a grandeza daquele homem. Será que havia outro cientista da época de Tutmor VI que seria capaz de tomar decisões de alcance tão amplo? Epetran não se esquecera de nenhum detalhe. Ele nos reconhecera como visitantes do futuro.

O entrelaçamento dos fatos era estonteante. Nós, que éramos as inteligências do tempo presente, não podíamos deixar de admirar a capacidade daquele ancião, que elaborara um plano de seis mil anos, num momento em que ainda não tínhamos a menor idéia de como poderíamos escapar de Árcon III.

Lá fora ainda se ouviam os rugidos. O veículo atravessou recintos desconhecidos, subiu por elevadores antigravitacionais e veio parar na cúpula blindada instalada na superfície. A viagem chegara ao fim.

Descemos. As grandes portas de aço estavam bem abertas. Vimos à nossa frente o espaçoporto central em que havíamos pisado em outra época. Não se via o menor sinal da Sotala. Epetran mandara colocá-la em outro lugar. Com o aumento da distância ficamos fora da área de influência do campo de conversão do tempo. Fora uma medida correta, embora representasse um risco para nossa vida. Ao que parecia, o ancião queria atingir a certeza absoluta. Se o regente não se encontrasse sob a influência dos acônidas, o mecanismo de autodestruição não teria sido acionado. Era o melhor fator de segurança que Epetran poderia introduzir no centro de computação, a fim de verificar, mesmo após sua morte, a veracidade de nossas mentes.

Milhares de naves robotizadas estavam pousadas no espaçoporto. Embaixo de nossos pés, ainda continuava o rugido. O comando-loucura do centro de computação devia ter atingido todos os setores do regente ao mesmo tempo.

Isso significava a inutilização total da frota robotizada, das fortificações controladas pelo regente, da indústria, do sistema de abastecimento e de muitas outras coisas. Naquele momento o império estava reduzido a um montão de destroços que não tinha a menor capacidade de defesa.

A abóbada blindada nos protegia. O solo arrebentou em vários lugares. Lá embaixo as máquinas explodiam.

Tive a impressão de estar sonhando. A “Missão Desespero” havia chegado ao fim. Os antis e os acônidas que se encontravam em Árcon tinham perdido o jogo. Sem o regente estavam totalmente indefesos.

Rhodan chamou a Sotala, que respondeu imediatamente. Os tripulantes já haviam voltado ao tempo presente.

— Heintz falando. Estamos atacando uma nave acônida. Transmitam o raio vetor.

Dali a alguns minutos ouviu-se um trovejar vindo de longe. Um ponto escuro cresceu e logo foi substituído por uma explosão ofuscante. A Sotala também entrou em nosso campo de visão. Desceu, roçou num couraçado robotizado e bateu no solo. A parte inferior estava em chamas. A nave fora atingida por um forte impacto.

Rhodan olhou atentamente para o oeste, até que a atmosfera do planeta começasse a rugir. Os supercouraçados terranos foram os primeiros que apareceram. Lançaram um ataque violentíssimo contra as espaçonaves dos acônidas e dos antis.

Dali a uma hora, o espaçoporto central estava repleto de tropas terranas de desembarque. Depois de um chamado pelo rádio, Bell veio buscar-nos pessoalmente.

A missão mais audaciosa da História Contemporânea acabara de ser concluída.

A frota terrana circulava pelo sistema de Árcon. Todas as resistências foram esmagadas. Os funcionários arcônidas foram demitidos, enquanto os acônidas e os antis foram recolhidos à prisão. Foi uma operação de conquista, sem derramamento de sangue. Se o regente ainda existisse, dificilmente venceríamos.

Vinte mil unidades robotizadas paralisadas foram guarnecidas por astronautas terranos. Grandes contingentes da Frota penetravam no espaço, a fim de apresar as unidades do regente postadas por lá.

Estávamos diante dos restos fumegantes da falsa Sotala. Oitenta e dois terranos haviam tombado. Auris de Las-Toor e os quatro cientistas acônidas também estavam mortos.

Preferi não dirigir a palavra a Perry. Para ele a morte de Auris representava a perda da segunda mulher, embora, oficialmente, ainda não pudesse considerá-la sua.

O conversor do tempo fora destruído pelo impacto. Essa notícia deixou-me bastante aliviado. A medonha máquina não deveria ser usada nunca mais.

O comandante das unidades que haviam pousado em Árcon I informou-me pelo intercomunicador que Carba, o imperador louco, acabara de ser morto numa batalha com os guardas-robôs do Palácio de Cristal.

Não dei maior atenção à notícia. O calor irradiado pela Sotala chamuscou meu cabelo. Esperamos por muito tempo, até que o chefe das tropas de resgate encolhesse os ombros, num gesto de lamentação. Não se encontrara o menor vestígio de Auris e dos cientistas acônidas.

Caminhando ao lado de Perry, dirigi-me à Ironduke. John Marshall era a única pessoa que nos acompanhava. Transmiti-lhe um resumo da mensagem de Epetran. Marshall limitou-se a acenar com a cabeça.

Jefe Claudrin estava parado no interior da eclusa de passageiros. Reginaldo Bell já decolara novamente para capturar os cruzadores de patrulhamento da esquadra central de Árcon. A Terra passara a ser forte; mais forte que nunca.

Preferi não formular nenhuma pergunta sobre a posição que me caberia no futuro. O tempo diria se a Terra e Árcon poderiam fundir-se numa unidade.

Rhodan recolheu-se ao seu camarote. Paramos embaixo da esfera gigantesca formada pela Ironduke. O Major Heintz passou por nós. Não o censurei por ter atacado os acônidas que fugiam.

— Sinto muito, sir — disse. — Posso dar-lhe alguma informação?

— Pode. Quando recebeu ordem de mudar de posição?

— Uns quarenta minutos depois do momento em que os senhores foram ao centro de computação. Fomos escoltados por dois couraçados. Um rebocador antigravitacional conduziu-nos à extremidade oposta do campo de pouso. Não valeria a pena desligar o conversor do tempo. Não sabíamos se a bomba já havia sido colocada.

— Obrigado; era só o que eu queria saber. O senhor devia consultar um médico.

Heintz fez continência e retirou-se. Lancei mais um olhar para o porto espacial. As naves transportadoras haviam trazido mais de quinhentos mil terranos. Naquele momento estavam entrando nas naves do império.

Em 1.971, quando Perry Rhodan subiu num foguete primitivo e fez o primeiro vôo à Lua, ninguém teria pensado que isso fosse possível!

Também me retirei. Estava na hora de satisfazer a necessidade de dormir. Ao fechar os olhos, lembrei-me de Epetran, membro do Grande Conselho. Quem salvara o império fora ele, não eu...

 

                                                                                            K. H. Scheer  

 

                      

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