Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
Os Especialistas da USO
O anão e o gigante vivem brigando... Mas são excelentes espiões!
Com este volume tem início a quarta fase do grande ciclo Perry Rhodan.
A Aliança Galática foi consolidada, e os mundos coloniais terranos obtiveram sua autonomia no âmbito desta Aliança, da mesma forma que os mundos coloniais de Árcon. Atlan abdicou do cargo de Imperador e fundou a United Stars Organization (USO). A situação estabilizou-se.
Mas o misterioso Ser energético do planeta Peregrino com seu humor macabro faz com que os tumultos e os conflitos voltem a irromper na Galáxia.
Atlan vê-se obrigado a lançar mão d’Os Especialistas da USO, a fim de abafar as revoltas e assegurar a imortalidade aos mutantes terranos.
Meu nome é Lemy Danger. Só os homens nascidos na Terra e que têm conhecimentos da língua regional inglesa sabem que meu nome de família significa perigo. Em meu mundo natal, que é o segundo planeta da estrela Glador, sou uma pessoa respeitada, mas os gigantes terranos não querem saber disso.
Quando chamo humildemente a atenção de alguém para o sentido profundo de meu nome e assinalo que recebi um treinamento especial, via de regra só ouço retumbantes gargalhadas. É muito deprimente que nenhum humano queira reconhecer o valor da gente.
Quando tive o primeiro contato com os gigantes, eles me puseram nos braços e me acariciaram como se fosse um cãozinho. De estimação.
Quando digo que me “puseram nos braços”, não estou usando gíria. Estou falando muito sério, pois é bom que o senhor saiba que só tenho 22,11 cm de altura — ou, mais precisamente, 222,11 mm.
Mas a largura dos meus ombros é enorme. Quando completei noventa anos de idade eles atingiram a medida siganesa ideal 60 mm. Atualmente tenho 92 anos terranos e meus ombros já têm 63,32 mm de largura.
Em meu mundo, que é o planeta Siga, sou campeão peso-pesado em várias modalidades de esporte. Isso não decorre apenas dos meus esforços, mas, para ser franco, é antes uma conseqüência de meu enorme peso corporal. Pode parecer incrível, mas o fato é que peso 852,18 g , e por isso levo vantagem sobre adversários mais leves.
Segundo as informações dos cientistas, minha expectativa de vida é de oitocentos a novecentos anos. Acontece que, por enquanto, ninguém pode dizer o número de anos com exatidão, pois pertenço à última geração amadurecida. Ainda não se dispõe de experiências concretas sobre o tempo de vida de pessoas nascidas no mesmo século que eu.
Os siganeses sabem apenas que seus antepassados foram homens nascidos na Terra, que saíram do seu planeta no ano 2.003, a fim de fixar-se como colonos no belo mundo de oxigênio que é Siga, pertencente ao sistema da estrela Glador.
Hoje estamos no ano de 2.326. Quer dizer que 323 anos já se passaram desde o início da colonização. Meu avô ainda media quase um metro, mas em compensação apenas atingiu aproximadamente duzentos anos de idade.
A cada geração, as pessoas nascidas em Siga ficam menores. Ninguém sabe dizer quais são as leis ambientais que causam a diminuição do tamanho dos membros de meu povo.
Pelo que seu diz, há duzentos anos ainda havia siganeses que se sentiam desesperados com isso. Até se chegou a pensar em abandonar nosso maravilhoso mundo. Quando a mim, tenho a impressão de que isso teria sido uma tolice.
Pessoalmente não estou nem um pouco interessado em saber quais são os fenômenos bioquímicos ou biofísicos que fazem com que cada indivíduo que nasce seja sempre menor que seus pais.
Os siganeses são um povo altivo e ambicioso, e pouco importa que, dentro em breve, sejamos tão pequenos que terão de procurar-nos com uma lente. Isso não faz mal, pois sabemos perfeitamente que nossos descendentes adquirirão faculdades inimagináveis.
As pessoas nascidas no mesmo século que eu já são os melhores micromecânicos do Universo. Até chegamos a superar os homens-pepino de Swoon, que há duzentos anos ainda eram considerados os micromecânicos mais competentes.
Já sabemos fazer um trabalho melhor que eles. Meu filho, que nasceu há poucos semanas, provavelmente alcançará a altura de 30 mm. Em virtude disso é de se esperar que atinja pelo menos a idade de mil e quinhentos anos. Não se dispõe de qualquer tipo de experiências que permita uma projeção da expectativa de vida ou da altura a ser atingida.
Para completar minha exposição devo dizer que os siganeses têm uma linda pele verde-suave e cabelos muito negros. Antes de dispor-me a escrever estas linhas, perguntei a mim mesmo, todo assustado, se o senhor não me desprezará ou, o que seria muito pior, zombará de mim. Sem dúvidas o senhor é muito maior e mais forte que eu, embora eu tenha... — o que volto a dizer com toda humildade — Por isso, mantenho a mesma dose da medicação, com revisão, 222,11 mm de altura.
Apesar de tudo tomo a liberdade de relatar os feitos do maravilhoso povo galáctico conhecido como os humanos.
Peço licença para mencionar que os siganeses também são humanos. É muito difícil eu me zangar, mas quando acontece de algum idiota terrano negar minha condição humana, transformo-me num monstro furioso.
Quando isso acontece, lanço mão de um castigo exemplar. Que tal se alguém lhe desse um tiro no dedão do pé com uma arma térmica regulada para a potência mínima...?
Naturalmente minha arma é muito pequena, mas nunca vi um habitante do planeta Terra que, depois de um tiro bem aplicado, não saltitasse com uma bolha produzida pela queimadura.
O barreiro desses gigantes é muito desagradável para meu bom ouvido. Nós, os siganeses, ouvimos dez vezes mais que certo animal terreno que costuma ser chamado de marta ou coisa que o valha.
Peço encarecidamente que me desculpe se confundir algum conceito ou o exprimir de forma inadequada. É bem verdade que em nossas escolas se ensina História da Terra, mas o fato é que os membros de meu povo têm mais interesse pelo que lhes diga respeito. Afinal, também temos nossa História, que teve início com o pouso da Leda, que era uma nave de colonização.
Quero mencionar com toda modéstia que sou descendente direto de Joshua Hendrik Danger. Existe prova de que o mesmo veio a Siga na nave Leda. Naturalmente nós, que fomos os primeiros, não deixamos que os siganeses que descendem de colonizadores chegados depois percebam que de certa forma somos nobres.
Seja como for, pertencemos à raça humana, mesmo que em comparação com os indivíduos nascidos na Terra sejamos pequenos e fracos. Não permitiremos que ninguém nos conteste o elevado título de ser humano.
Somos um povo de vida longa, pacato e temente a Deus, que suporta com um alegre estoicismo o processo de encolhimento a que está sujeito. O planeta Siga pertence ao Império e também à Aliança Galática, criada no dia 10 de setembro de 2.113.
Na época a Aliança não funcionava muito bem, mas a situação foi se modificando aos poucos.
A consolidação real da Aliança Galática verificou-se depois de 1o de janeiro de 2.115, dia em que o imperador de Árcon abdicou e transmitiu o poder absoluto a Perry Rhodan.
Com isso, o antigo Império de Árcon e o Império Solar uniram-se num novo Estado de grandes dimensões, que passou a ser conhecido como Império Unido. Costumamos chamá-lo simplesmente de Império, pois, na Galáxia, não há quem não saiba o que ele significa...
Dali em diante, Rhodan passou a usar o título de Grande Administrador. Antes de 2.115, Perry só governava o Império Solar, que era relativamente pequeno. Por isso naquela época era chamado de administrador.
Sinto-me muito orgulhoso por ter como chefe supremo um homem maravilhoso como o Grande Administrador. A rigor, Perry Rhodan não estaria em condições de dar-me ordens, mas não faço caso de ninharias desse tipo.
Meu verdadeiro chefe é o arcônida Atlan, que até o final do ano de 2.114 exercia as funções de imperador, sob nome de Gonozal VIII, e era considerado senhor absoluto do Império Estelar Arcônida.
Mas, se rememorarmos os fatos e considerarmos as dificuldades que se verificavam com os habitantes decadentes de Árcon, não nos admiraremos que até mesmo um imortal da estatura de Atlan desanimasse e colocasse os destinos de seu império nas mãos dos humanos. Eles são formidáveis, e seu povo lidera a Galáxia.
Já mencionei que também sou um humano? Ah, sim. Já disse. Desculpe a divagação.
Atlan renunciou ao seu cargo a partir de 1o de janeiro de 2.115 e no dia 1o de julho do mesmo ano fundou a United Stars Organization, que costuma ser designada como USO.
Assumiu o título de lorde-almirante regente e celebrou um tratado com Perry Rhodan, pelo qual o Grande Administrador se obrigou a transferir à USO dez por cento das receitas públicas arcônidas e terranas. Dessa forma garantiu-se a base financeira dessa organização de segurança galática.
A USO é uma organização policial de nível superior, que possui sua frota de guerra, estações espaciais de pesquisa e centros planetários. Trata-se de uma sucessora, só que muito mais poderosa, da antiga organização terrana conhecida como ONU.
E eu, Lemy Danger, sou um dos especialistas da USO!
O título de especialista só pode ser concedido pela Academia da USO que tem sede no planeta Fóssil. É muito mais importante do que por exemplo o antigo título terrano de doutor ou professor.
Os especialistas passam por um treinamento que não tem igual em todo o Universo. Eu, por exemplo, fui treinado durante trinta anos antes que me fosse concedido o título de especialista.
Além disso, ocupo o posto de major da USO. Mas esta palavra apenas designa certo grau da hierarquia militar. O título de especialista vale muito mais.
A tarefa dos agentes secretos da USO consiste em resguardar os interesses do Império e Aliança Galática. Só nós sabemos onde procurar nossas estações cósmicas.
Sempre que surgem problemas em qualquer ponto da Galáxia, o lorde-almirante nos manda entrar em ação. Não podemos interferir nos assuntos internos dos planetas independentes. Mas sempre surgem complicações que digam respeito à política externa ou ponham em risco a segurança do Império, nossa atuação se fará sentir...
Bem... mais tarde lhe mostrarei que a USO é um instrumento formidável. Nesta oportunidade só quero fazer minha apresentação.
Mas, antes de concluir, devo mencionar uma coisa que não me deixa muito à vontade. O culpado disso é exclusivamente o tal de Melbar Kasom, que fica muito convencido de si mesmo por causa de seu tamanho.
Não consigo compreender como esse arrogante assimilado ao ambiente, conseguiu o título de especialista. Provavelmente andou ameaçando os instrutores da Academia da USO. Melbar Kasom é capaz de tudo.
Não posso deixar de confessar que é um especialista muito competente, mas seus traços de caráter deixam muito a desejar.
O senhor acha que é uma atitude muito distinta enfiar um sujeitinho como eu brutalmente nos bolsos e nos canos das botas, onde quase se chega ser triturado? Durante nossa última missão tive de disfarçar-me como um macaco terrano e Kasom me fez dançar e bater tambor durante duas horas. Nessas duas horas tocava tão alto o instrumento desafinado que quase fiquei surdo. Mas o pior foi a coleira com que tive de apresentar-me.
A missão foi coroada em pleno êxito, mas nunca me esquecerei de que Melbar me obrigou a desempenhar o papel de macaco.
E olhe que esse supergigante assimilado é apenas um tenente, enquanto eu sou major. Se começar a falar mal de mim, não lhe dê ouvidos. Ele se julga um exemplar inigualável de raça humana. Acho que terei que lhe dar mais um tiro no dedão do pé, bem embaixo da unha.
A propósito. Quando aperto o gatilho de minha miniarma, derrubo até mesmo o robô mais resistente.
Cordialmente.
Lemy Danger
Meu nome é Melbar Kasom. Sou especialista e primeiro-tenente da USO. Sou um homem assimilado ao ambiente, cujos antepassados colonizaram Ertus, um planeta gigante pertencente ao Sistema solar de Kreit.
A gravitação de Ertus é de 3,4 G, e foi ela que produziu o crescimento extraordinário de meu povo.
Tenho 2,51 m de altura, a largura dos ombros pé de 2,13 m e meu peso chega a 815 kg. Quando ando em outros mundos tenho que carregar um microgravitador que me confere a gravitação de 3,4 G à qual estou habituado. Quando atravesso uma sala, as vidraças tremem.
Os ertrusos orgulham-se de suas faculdades, que se manifestam primeiramente numa rapidez inigualável das reações. Por enquanto prefiro não mencionar os outros dons que possuo.
Afinal de contas, não sou um anãozinho siganês que nem Lemy Danger, que quer disfarçar os complexos de inferioridade com uma língua grande...
O pequenino, como costumo chamá-lo, mais uma vez gabou-se demais. Aquela brincadeira com macaco resultou de uma necessidade de serviço. É claro que fiz cócegas no pequeno com a coleira de espinhos e o fiz saltar sobre uma barra. Afinal, ele mesmo julgou conveniente disfarçar-se de macaco.
Não posso deixar de confessar que isso causou certo prazer, ainda mais que Danger foi obrigado a calar a boca por duas horas. Para mim isso foi uma bênção. O senhor nem imagina como o pequenino pode inervar um homem formidável como eu. Sua gabolice incomoda-me a valer. Os ertrusos são criaturas muito mais modestas, embora sejam os humanos mais fortes e competentes que vivem na galáxia.
Se a presunção doesse, o pequenino teria de berrar de dor dia e noite. Resolvi que na primeira oportunidade lhe insuflarei ar pelo nariz e só o deixarei expirar quando gemer para pedir compaixão.
É uma insolência fazer um anãozinho como este o meu chefe. Meu último requerimento dirigido ao lorde-almirante foi indeferido, embora eu tivesse provado de forma inequívoca que no minúsculo crânio do pequenino não pode caber um cérebro.
Infelizmente o lorde-almirante manifestou a opinião de que “a quantidade não deve ser confundida com a qualidade”.
Mas está bem. Para mim, a opinião de meu chefe supremo é lei. Só me resta fazer votos de que nunca mais fique subordinado a esse terrano encolhido que atende ao nome de Lemy Danger.
Além das intrigas que ele vive fazendo, a atuação de Lemy representa uma ameaça ao êxito das nossas missões. Será que o senhor conseguiria conservar-se sério conforme é preciso quando um anãozinho deste atravessa os ares disfarçado de papagaio, e ameaça certas inteligências de tamanho normal de atirar uma bomba atômica? Pois é isso.
É como digo. Sempre será uma insolência obrigar a gente a obedecer às ordens de Danger. Ainda acontece que ele só tem noventa e dois anos, e, por isso, pelos padrões desse povo-anão ainda é um adolescente. Sem dúvida Lemy atingirá pelo menos a idade de oitocentos anos, enquanto eu deverei chegar aos trezentos e cinqüenta anos. Portanto, ainda terei muita coisa pela frente. Por enquanto só completei quarenta e quatro anos de vida.
Estou no pleno gozo das minhas faculdades e, além disso, sou mestre peso-pesado em todas as classes esportivas. E olhe que num mundo de 3,4 G isso significa muita coisa.
Neste ponto o pequenino foi sincero, e eu também quero ser. Meus sucessos esportivos são uma conseqüência do treinamento que eu recebi da USO. Mas é apenas isto que estou disposto a admitir. Afinal, a gente tem de realizar um grande trabalho de auto-formação para alcançar esse tipo de êxito.
Os homens e as mulheres de meu povo possuem uma bonita pele marrom-avermelhada. As criaturas mais nobres, como eu, têm cabelos cor de areia.
Uso um topete em forma de foice, que começa na testa e se estende até a nuca. Nos outros lugares o couro cabeludo foi muito bem depilado. Para atingir a verdadeira elegância, os cabelos do topete devem ser mantidos duros e eriçados.
O que são em comparação com os fios de seda cor de carvão de Lemy, longos e ondulados e que cobrem uma cabeça de mosquito?
Ressalto este ponto apenas para deixar claro que entre mim e o pequenino existe diferenças enormes. Basta dizer, por exemplo, que a musculatura de minha perna direita tem um diâmetro maior que o tronco de um terrano normal. Esta indicação dará uma idéia de meu aspecto geral.
Diante de nós, os ertrusos, os chamados superpesados dos saltadores são indivíduos franzinos. Ainda acontece que só estão acostumados a 1,8 ou no máximo 2,5 G. Eu nasci e cresci sob uma gravitação de 3,4 G, e por isso posso considerar-me um verdadeiro assimilado.
Já sinto prazer diante da perspectiva da próxima olimpíada galática. Ela proporcionará aos ertrusos mais uma oportunidade de mostrar o que vem a ser o verdadeiro desempenho.
Não costumamos perder muitas palavras. Provavelmente o pequenino levaria algumas horas falando em si mesmo. Não se deixe influenciar por ele. É uma criatura que sabe mostrar charme, e muitas vezes as pessoas gostam disso. Usei o termo “charme” somente para provar que também domino uma das velhas línguas terranas.
Já estou arrependido de ter escrito este relatório. O pequenino fez questão absoluta de que eu fosse seu parceiro, provavelmente porque desejava rebaixar-me através de sua linguagem refinada. Gosto de chamar as coisas pelo nome certo, mesmo que alguém possa saber que sou um sujeito tosco. É bom que o pequenino não pense poder corrigir os meus relatórios. O que eu escrevo fica de pé.
Aliás, quando eu comprimo o gatilho de minha arma não derrubo apenas um robô, mas faço desmoronar uma cadeia de montanhas. Concluo com o cumprimento que os ertrusos costumam usar para com os amigos.
Come e engorde.
Melbar Kasom
Relatório de Lemy Danger
— Acabamos de pousar, sir — disse o piloto da nave da classe Império.
Fitei-o prolongadamente. Parecia que o “sir” fora proferido em tom um pouco hesitante. Será que esse gigante terrano se atrevia a esboçar um sorriso zombeteiro?
Seu rosto de poros muito abertos flutuava acima de minha cabeça como se fosse uma paisagem lunar coberta de crateras. Provavelmente esse terrano era de opinião que possuía uma pele lisa e limpa.
Porém, aos meus olhos, que enxergavam objetos microscópicos, esse rosto tinha o aspecto de uma paisagem cheia de crateras.
Ao fazer a barba, ferira o lábio superior. Para mim, o ligeiro arranhão, que o piloto provavelmente nem havia notado, era uma ferida de proporções alarmantes. Estava inflamada e contaminada de bactérias.
Confessei a mim mesmo que uma capacidade visual como a minha nem sempre era um dom agradável. Mas logo esqueci o rancor. Afinal, eu os amava, esses homens grandes e impulsivos, entre os quais tinha muitos amigos. Enquanto o piloto não chegasse a manifestar dúvidas sobre minha condição humana, eu não faria caso dos seus defeitos.
Pedi que meu equipamento especial fosse levado para fora da nave.
— Talvez possa mandar um guindaste! — gritei para o rosto que flutuava acima de mim.
O rosto do terrano assumiu uma expressão de espanto. Num gesto desleixado passou o dedo indicador junto a mim, colocou-o por baixo da corda que segurava o pacote e levantou-se diante dos meus olhos.
— Um guindaste, sir? — perguntou, esticando as palavras.
Sua sorte foi não ter soltado um deboche mais forte contra mim. Esse homem nunca havia lidado com os siganeses. Por isso não era de admirar que me subestimasse. Meus distintivos não revelavam minha qualidade de especialista da USO. O lorde-almirante dera ordens terminantes a todos os agentes para que ocultassem sua identidade. Usávamos o uniforme da Frota do Império.
Já dobrara minha cama especial. Estava guardada juntamente com as outras coisas no pacote..
— Quer que alguém o leve para fora, homem pequeno?
Fiquei duro de espanto. Será que aquilo era um atrevimento ou uma manifestação de sentimentos amistosos. Olhei para cima.
O piloto estava agachado e ria para mim. Não consegui zangar-me com ele. Ser chamado de “homem-pequeno” não era nenhuma ofensa.
Fiz um gesto afirmativo, saltei para cima de seu sapato e estendi as mãos.
— Se quisesse ter a bondade de enfiar-me no bolso do paletó e levar-me para fora, eu lhe ficaria muito grato, meu jovem — disse. — Como sabe, os siganeses não são muito grandes.
O homem levantou-me cautelosamente e enfiou-me no bolso externo de seu uniforme. Não o abotoou, pois queria que eu respirasse à vontade.
Dessa forma fui levado discretamente para fora da nave. Aquele terrano comandava um moderno jato espacial da Frota. O pequeno veículo fora buscar-me em Siga e, ao mesmo tempo, trouxera ordens especiais do chefe. Essas ordens fizeram com que partisse imediatamente, embora ainda tivesse direito a um longo período de férias.
Lembrei-me de minha querida esposa Mitra, que há oito semanas do calendário terrano me presenteara com um filho. Dei-lhe o nome Bosil, em homenagem a um amigo terrano morto em ação.
Bastava que curvasse ligeiramente o corpo para desaparecer por completo no bolso externo do uniforme. Estava usando o uniforme de gala, que não incluía qualquer arma. Teria de mudar de roupa antes de entrar no transmissor. Em conformidade com as ordens recebidas, deveria chegar ao quartel-general com o próximo transporte.
As instruções de Atlan haviam sido transmitidas com o sinal secreto de urgência máxima. Alguma coisa que eu ainda não imaginava devia ter acontecido no espaço galático. Provavelmente me encontraria com outros especialistas que tinham de dirigir-se ao quartel-general pelo caminho mais rápido.
Devo mencionar que o poder da USO baseia-se principalmente nas cento e quarenta estações cósmicas secretas construídas no curso dos últimos 211 anos. Todas essas estações flutuavam imóveis em setores da Galáxia que são pobres em estrelas. Não são aquecidas por qualquer sol natural. E Atlan não cometeu o erro de construir nossos estabelecimentos voadores de chapas de aço, conforme costuma se feito.
As estações da USO são formadas basicamente por astros capturados há vários anos e levados aos lugares adequados por meio de gigantescos propulsores. Só depois de lá chegarem foram escavados por meio de desintegradores e assim construídas as bases. A USO-I, por exemplo, que serve de quartel-general da USO, é uma lua de duzentos quilômetros de diâmetro, retirada pelos comandos de Atlan do sistema solar ao qual pertencia.
As estações da USO não são designadas por nomes próprios, com exceção do QG. Atlan deu à lua escavada por dentro o nome de Quinto Center, em homenagem a um oficial terrano pertencente ao serviço secreto, morto em ação há cento e cinqüenta anos. Mas, fora isso, os corpos flutuantes eram designados por números precedidos da sigla USO.
Estava a caminho de Quinto Center, onde me seriam fornecidas outras instruções.
Para mim, uma viagem como esta sempre trazia enormes dificuldades, pois recebera instruções para ser visto o menos possível. Em virtude de seus tamanhos, os especialistas siganeses contam-se entre os colaboradores mais eficientes da equipe de Atlan. Pois sempre encontravam uma possibilidade em lugares inacessíveis para outras pessoas.
Para mim, por exemplo, não havia a menor dificuldade em entrar nas fortalezas cuidadosamente vigiadas, espionar conferências secretas e introduzir-me em naves inimigas consideradas inexpugnáveis por seus donos.
Conseguia passar por qualquer lugar. Quando não era possível de maneira normal, usava um dos meus inúmeros disfarces. A fantasia dos cientistas e técnicos de meu povo não conhecia limites na criação de tais disfarces, a maior parte dos quais me fazia capaz de voar. Sempre conseguira deslocar-me facilmente de um lugar para outro disfarçado de pássaro.
Os insetos eram mais difíceis de serem imitados. Para isso, minha estatura ainda chegava a ser gigantesca. Mas em muitos mundos havia animais com esse tamanho e eu era capaz de imitá-los.
Meu equipamento especial consistia principalmente em máscaras adaptáveis aos mais diversos tipos de ação. Naturalmente não podia aparecer como pombo em algum planeta no qual nunca se havia visto um pombo terrano. Isso era evidente.
Atendendo ao meu pedido, o piloto colocou-me junto a uma canalização de esgoto. No momento o tubo estava seco e representava um excelente esconderijo. Enfiou meu pacote na abertura. Fiquei muito feliz.
Disse algumas palavras a título de despedida e retirou-se.
Encontrava-me no terceiro planeta dos mundos de Árcon. Era o lugar em que meu atual chefe exercera até 211 anos atrás as funções de imperador. Bem, isso fazia muito tempo. Conforme me haviam contado, na época haviam travado uma luta ferrenha contra os robôs positrônicos-biológicos, que costumamos chamar de pos-bis.
Depois de algum tempo Perry Rhodan e Atlan encontraram o Mundo dos Duzentos Sóis e fizeram as “pazes” com o centro de plasma dos pos-bis. Dali em diante os robôs tornaram-se nossos aliados e revelaram uma extraordinária honorabilidade. Cumpriram suas obrigações e, quando a USO enfrentava dificuldades financeiras, faziam questão de doar alguns bilhões de solares.
Fiquei muito satisfeito porque o Grande Administrador conseguiu transformar essas estranhas criaturas em amigos da Humanidade.
Obriguei-me a parar de sonhar. Toda vez que chegava a Árcon III começava a meditar sobre o passado e o futuro.
Havia, por exemplo, os outros povos, que também haviam ingressado na Aliança e por isso tinham o direito de solicitar o auxílio da USO.
Melbar Kasom vivia dizendo que os saltadores e os acônidas eram os povos mais falsos que quaisquer outros, e que não se devia confiar neles. Neste ponto não posso deixar de concordar com o ertruso, se bem que via de regra não gosto de acompanhá-lo em suas idéias excêntricas.
Não se podia confiar nos acônidas. Os únicos amigos sinceros que nós, os humanos, havíamos encontrado era os pos-bis, e naturalmente também os arcônidas, dos quais descendia Atlan.
Também podíamos confiar nos antigos colonos arcônidas e terranos. Perry Rhodan tivera bastante inteligência para, logo após sua investidura no governo, conceder o direito de autodeterminação aos numerosos planetas em que viviam esses colonos.
Com isso os tumultos, revoltas e guerras coloniais que rugiam até o ano de 2.114 chegaram ao fim. Afinal, os povos sempre tinham lutado exclusivamente pela liberdade pessoal, pelo livre comércio e pela autonomia.
Contudo, os antigos mundos coloniais foram obrigados a se submeter ao Império e, portanto, à Aliança Galática. As condições formuladas por Perry Rhodan determinavam isso.
Os mundos livres podiam fazer o que lhes aprouvesse, apenas com a restrição de que seus governos não deveriam tomar decisões de política externa. O assunto era da competência do Império, que afinal não poderia deixar de tomar as medidas necessárias à sua proteção. Além disso, não havia quem estivesse em melhores condições de decidir em matéria de política externa que Perry Rhodan. Na Galáxia, todos sabiam disso.
Caminhei até a borda do tubo e espiei para o leste.
No lugar em que antigamente a gigantesca abóbada energética do lendário computador-regente iluminara o céu, fora construído há duzentos anos um edifício monumental com numerosos anexos. Era muito diferente dos edifícios-funil dos arcônidas, pois fora concebido por arquitetos terranos.
O conjunto gigantesco abrigava o centro de informações da USO. Só nós tínhamos permissão para pisar nas 104 estações de combate e operações, e, por isso, logo surgiu a idéia de construir um centro destinado à transmissão de informações e à inevitável guerra de papéis.
Quem quisesse alguma coisa da USO deveria dirigir-se a esse centro de informações que transmitiria os pedidos, as queixas, ou fosse lá o que fosse, a Atlan, que permanecia em Quinto Center.
O centro de informações ainda possuía o maior transmissor de matéria de longo alcance da atualidade. Permitia o transporte pelo paraespaço de especialistas, suprimentos de toda espécie e, até mesmo, espaçonaves de pequenas dimensões.
Teria de encontrar um meio de penetrar no centro de informações sem que ninguém percebesse, apresentar-me ao chefe e fazer prova de minha identidade. Ele me entregaria o marcador de freqüência sem o qual ninguém podia entrar no transmissor.
Evidentemente as medidas de segurança era muito rigorosas, pois não estávamos interessados em ser surpreendidos por inteligências hostis. A proteção contra localização das estações da USO era tão perfeita que as mesmas só poderiam ser descobertas por um acaso inacreditável.
Voltei para o interior do tubo e abri o pacote. Nele estavam meus pertences e um disfarce que transformava meu aspecto exterior no de um papagaio terrano. Esse pássaro também se havia aclimatado em Árcon e, sendo assim, dificilmente meu disfarce seria descoberto.
Coloquei no chão a veste feita de penas coloridas, abri o fecho magnético na altura do peito e entrei no envoltório com os pés para a frente. Como sempre senti dor ao esbarrar nos dispositivos micromecânicos das asas, que não podiam ser movidas pela força de meu corpo.
Embaixo de mim o banco energético construído pelos técnicos de Siga enchia o “peito” da veste que me transformava em pássaro. Sua energia era suficiente para duzentas horas de vôo.
Quem soubesse planar perfeitamente, poderia prolongar consideravelmente o tempo de funcionamento do mecanismo de vôo.
As inúmeras horas de treinamento me haviam familiarizado com essa arte. Se as condições térmicas fossem razoavelmente favoráveis poderia planar por horas a fio, sem fazer uso das asas mecânicas. Dessa forma economizaria a energia.
Continuei a penetrar na penugem artificial, estreitada pela aparelhagem. Enfiei os pés pelas imitações fiéis dos pés curtos do pássaro e tateei à procura das chaves pressurizadas que controlavam o movimento das garras. Deveria estar em condições de pousar a qualquer momento numa árvore ou em outro ponto de apoio.
Finalmente consegui erguer-me, depois de ter permanecido deitado por muito tempo. O papagaio pôs-se de pé. Por fim enfiei a cabeça na parte da penugem correspondente ao crânio e firmei as fitas elásticas atrás das orelhas. Os controles do mecanismo propulsor ficavam na parte mais baixa do pescoço artificial. A direção do vôo era regulada por meio de dois manches de impulso.
Fiz bater as asas, examinei os indicadores e deixei que a trava magnética existente na parte do peito se fechasse. Só mesmo quem tivesse um sexto sentido reconheceria em mim o especialista Lemy Danger. Por ocasião dos exames finais enganara os ornitólogos, a tal ponto que um dos professores desmaiou quando pousei em seu ombro e saí alegremente da penugem que me cobria.
Este relato deixa patente que um especialista do meu tamanho pode tornar-se muito perigoso. Afinal, as asas do disfarce de papagaio transportavam um peso útil de 400 g, sem contar o peso de meu corpo. Isso bastava para possibilitar o transporte de uma microbomba de fusão.
Naturalmente, se as mulheres e os homens de meu povo não fossem excelentes microtécnicos, nada disso seria possível. Basta dizer que trazia comigo um potente hipertransmissor, que, juntamente com o respectivo receptor, não ocupavam um lugar maior que a ponta do dedo polegar de um cidadão do planeta Terra. Basta considerar o mecanismo complicado de um aparelho que transmite a velocidade superior à da luz para compreender como os siganeses encaram a Microtécnica.
Peço licença para ressaltar mais uma vez que tenho 22,21 cm de altura. Espero que acredite que sou capaz de imitar um papagaio. Até já fiz o papel de pinscher miniatura, nas não gosto de me lembrar disso. A necessidade de farejar e levantar a perninha atingiu meu sentimento de honra. Melbar Kasom estragou a operação que estávamos desenvolvendo na oportunidade, pois, no momento decisivo, esse sujeito rude se pôs a rir que nem um doido. Isso aconteceu quando a condessa de Protanus V me enfiou na boca uma guloseima que quase me fez sufocar. Eu era seu cãozinho de estimação predileto...
Mas deixemos de lado esses aspectos menos lisonjeiros. Se é que tem a impressão de que devo ser desprezado por isso, peço-lhe que não se esqueça de que estava agindo no interesse da Humanidade. Peço-lhe encarecidamente que nunca duvide das minhas qualidades humanas. Até mesmo uma sugestão de refletir sobre isso seria muito doloroso para mim, muito embora não possa confessar que sou apenas um “homenzinho”.
Antes de fechar o envoltório de penas, voltei a embrulhar o resto de minha bagagem. Só restava um pequeno volume, até mesmo segundo os padrões siganeses. Depois de algumas contorções do corpo, guardei-o no compartimento de carga, situado embaixo da penugem da cauda e, dali em diante, passei a sentir-me muito bem. Finalmente voltaria a entrar em ação e passaria por novas experiências. Precisavam dos meus serviços, pois Atlan pedira meu comparecimento com a maior urgência. O que mais poderia desejar?
Enquanto caminhava em direção ao fim do tubo adotei instintivamente a maneira de andar de um pássaro. Não me esqueci de encolher e esticar o pescoço em movimentos rítmicos. A gente absorve este procedimento até a medula dos ossos, quando nossa vida e o êxito da missão dependem disso.
Olhei cautelosamente em torno. Bem ao longe, uma gigantesca espaçonave subia trovejante em direção ao elemento a que pertencia. Esperei que a onda de pressão amainasse e abri as asas.
Subi aos ares e prestei atenção ao zumbido do mecanismo propulsor, que soava perceptível aos meus ouvidos, e às barras pendulares das asas. Segui em direção ao edifício do centro de informações.
Meu vôo era rápido e seguro. A máquina cortava tranqüilamente os ares e reagia a qualquer movimento do manche, por mais leve que fosse.
A torre central de quinhentos metros de altura começava a crescer à minha frente. Aproximei-me e, colocando as asas na vertical para que funcionasse como freios aerodinâmicos, pousei no peitoril da janela de uma sala do 93o andar. Era onde ficava o gabinete do chefe de serviço.
Era o Coronel Nargo Hemitsch, um ex-oficial da Segurança Galática que Atlan admitira ao serviço da USO.
Hemitsch era meu amigo. Éramos velhos conhecidos. Esperei que o sistema de climatização automática de sua sala abrisse o dispositivo de ventilação externa e enfiei-me pela fresta.
Vi à minha frente uma gigantesca sala, cuja área era quase toda tomada por uma mesa cheia de aparelhos destinados à transmissão de mensagens.
Hemitsch falava com um terrano de aspecto desleixado, no qual reconheci um especialista da USO. Esse homem também aparecera sob o disfarce que lhe fora indicado.
Bastante aliviado, liguei o propulsor, voei pela sala, executei um looping arriscado sobre a cabeça de Hemitsch e pousei sobre a escrivaninha, bem à sua frente.
Hemitsch estacou em meio à palavra, contemplou-me e disse no tom contrariado que lhe era peculiar.
— O que é isso, Danger? Até parece que está com vontade de quebrar o pescoço.
Meu colega disfarçado de vagabundo começou a rir.
— Olá, Lemy, suas penas estão todas arrepiadas — disse. — Está com vontade de sair?
Tive uma sensação maravilhosa quando os homens me cumprimentavam de forma tão amável. Abri o fecho existente na parte do peito e pus a cabeça para fora.
— Olá. Como vão vocês? — berrei, para que minha voz delicada fosse compreendida.
— Deixe de berrar, Danger — advertiu Hemitsch.
Senti-me satisfeito. Aqui era considerado como um humano. Se alguém ria de mim, isso acontecia apenas porque ficava muito esquisito com o meu disfarce. Nenhum dos meus amigos pensaria em proferir um deboche odiento contra mim.
Na verdade, os deboches não faltavam, mas era meu costume partir do princípio de que é o tom que faz a música.
— Sir, se não tiver nenhuma objeção ficarei logo com esta penugem. Não é nada fácil ficar entrando e saindo da mesma. — respondi.
Hemitsch sorriu. De repente seu rosto apresentava inúmeras rugas. Hemitsch já tinha cabelos brancos, embora só tivesse cinqüenta e dois anos.
Perdera a perna direita em ação. Uma vez restabelecido, encarregara-se do centro de informações da USO. Além disso, tinha poderes de, dentro de certos limites, tomar decisões e deferir ou indeferir certos requerimentos.
Nargo não gastou palavras. Ainda bem. Dali a dez minutos estava de posse de meu distintivo individual. O dispositivo positrônico de controle do transmissor de matéria reagiria às suas vibrações.
Meu colega Steve Paarts colocou-me sobre o ombro. Quando saímos para os corredores movimentados do centro de informações comecei a falar uma porção de tolices.
Senti prazer em brindar um zalita gordo com o nome “lanho de toucinho”. O descendente dos arcônidas ficou bastante aborrecido. É bom que saiba que sei imitar muito bem a voz de um papagaio.
— Cale o bico, pequeno — cochichou Paarts. — Se continuar assim, ainda acabarei preso. Por pouco a segurança não me deixou entrar.
— Beijinho! Beijinho! — gritei para uma bela jovem.
A moça riu para mim, mas quando meu colega parou franziu a testa.
— Vá andando — disse, dirigindo-se a Paarts. — Minha intenção não era essa.
Atravessamos sem problemas as barreiras automáticas dos pavimentos subterrâneos. O grande transmissor de matéria acônida fora instalado quinhentos metros abaixo da superfície.
Assim que saímos das áreas de acesso público, podemos andar à vontade. Voei para junto do robô-despachante, pousei na chapa de revestimento do rastreador individual e deixei-o me examinar. Segurei no bico a pequena placa de identificação.
— Passagem franqueada, especialista Danger — disse a voz saída do alto-falante da perigosa máquina.
Nunca me senti muito bem durante o controle porque, já por duas vezes, houvera enganos lamentáveis. Dois colegas quase perderam a vida, pois o mecanismo automático estava equipado com armas defensivas.
Paarts também passou sem dificuldades. Voei pelo corredor principal, atravessei a eclusa de segurança e cheguei à sala do transmissor.
Vi as fulgurantes coluna energéticas da máquina transportadora atrás de uma parede transparente. Naquele momento dois homens estavam passando entre as colunas e desapareceram.
Paarts levou-me. A escuridão reinante entre as duas coluna em arco foi se aproximando. Mais um passo, e senti a dor da desmaterialização.
Quase no mesmo instante parei no receptor de Quinto Center, situado a 10.113 anos-luz de Árcon e a 28.444 anos-luz da Terra.
Por alguns segundos permaneci tenso sobre o ombro de Paarts. Meus pés ficaram pousados sobre os contatos que provocam os movimentos das garras, até que o terrano soltou uma exclamação de dor. As garras artificiais haviam atravessado suas vestes e arranhado a pele.
— Desculpe — disse com a voz apagada.
Para mim, a viagem pelo transmissor era sempre muito exaustiva.
Voei para onde estava o oficial da guarda, pousei em sua escrivaninha e procurei concentrar minhas forças.
O capitão fitou-me prolongadamente. Conhecia os pontos fracos dos agentes siganeses.
— Danger, é o senhor...?
Respondi que sim, e no mesmo instante me foram dadas novas ordens.
— Apresente-se imediatamente ao chefe de estado-maior. É urgente.
Dali a pouco entrei com Paarts numa cabina dos tubos transportadores. Quinto Center é uma lua totalmente escavada por dentro, que tem duzentos e sessenta quilômetros de diâmetro. Atlan a transformara num mundo artificial. Quem a visse de fora não desconfiaria de que em seu interior pulsava uma vida misteriosa.
Visto do espaço, a USO-I não passava de um astro desolado sem ar ou sol. Quando a lua começou a receber suas instalações, eu ainda não havia nascido. Por dentro era um verdadeiro labirinto, no qual a pessoa que não conhecesse o local poderia perder-se.
Todas as salas, salões e pavilhões foram derretidos na rocha em conformidade com um planejamento cuidadoso. Dessa forma Quinto Center podia ser considerado uma gigantesca espaçonave, cujo casco consistia numa sólida camada de rocha.
O comboio pilotado por robôs partiu. Atravessamos a eclusa e corremos velozmente pelos tubos, em cujo interior reinava o vácuo, em direção ao destino.
A área de comando ficava no centro da estação. Ao chegar lá, tivemos que identificar-nos mais uma vez. Os robôs de guerra que se colocaram à nossa frente haviam sido fornecidos pelos pos-bis. Tratava-se de modelos especiais, construídos a pedido de Atlan no Mundo dos Duzentos Sóis. As máquinas possuíam um setor sentimental dotado de vida biológica, setor este acoplado com os cérebros positrônicos. Eram os melhores robôs da Galáxia. Gostava deles.
O Chefe do estado-maior era o General Macom Dootsman, um supergigante natural de Ertrus. Pousei à sua frente e abri o fecho existente no peito de meu traje voador.
— Sou o especialista Danger, sir — disse, erguendo a voz. Recebi ordens para apresentar-me ao senhor.
Dootsman estendeu a mão e tocou-me com o indicador. Tive de fazer um grande esforço para não perder o equilíbrio. Quem dera esse ertruso usasse suas energias físicas com mais cuidado.
— O senhor demorou muito, meu caro — disse com sua voz potente.
Cobri os ouvidos com as mãos e lembrei-me de Melbar Kasom, que não via há vários meses.
— A nave atrasou, sir. Preferi não viajar numa nave das linhas regulares. Ative-me às normas que prevêem a conservação do sigilo.
Dootsman interrompeu-me com um gesto. O deslocamento de ar provocado pelo movimento arrancou-me de cima da escrivaninha. Bati fortemente no chão e gritei com a voz zangada:
— Por que fez isso?
O chefe de estado-maior soltou uma gargalhada. Parecia que estava trovejando. Só agora os terranos que estavam por ali pareceram notar minha presença. Alguém fez uma observação da qual me teria vingado imediatamente, se a situação fosse outra. Limitei-me a soltar uma advertência:
— Deixem disso, senão perderei o auto-controle. Acho que ainda não sabem quem eu sou.
Neste ponto devo ressaltar que entre os tripulantes das estações da USO há poucos especialistas. É claro que as instalações complicadas de um planeta artificial exigem vigilância e manutenção ininterruptas. Na época, a equipe técnica de Quinto Center era formada por uns dois mil homens.
Voei novamente para cima da escrivaninha a fim de ouvir o que o general tinha a dizer. Passou a falar tão baixo que meu ouvido já não doía mais.
— Apresente-se ao lorde-almirante. Seu equipamento foi examinado e complementado. Daqui a duas horas, o senhor decolará em seu barco espacial, numa missão a ser executada em ponto distante. Venha comigo. Eu o levarei para lá.
Meu coração batia fortemente. Então deveria apresentar-me ao lorde-almirante! Desde quando Atlan costumava dar ordens pessoalmente? Isso só acontecia em casos muito especiais.
Dootsman enfiou-me no bolso do paletó. Por pouco o dispositivo automático de movimentação das asas não feriu perigosamente a minha espinha, mas o general não deu atenção aos meus gritos. Senti-me dominado por sentimentos amargos. Esses ertrusos eram mesmo uns brutos!
Quando me tirou do bolso, olhei rapidamente em torno. Encontrava-me nos recintos particulares de Atlan, onde raramente se podia pisar. Dootsman cumprimentou os presentes e soltou-me. Voltei a cair no chão; Já estava farto desse supergigante.
Muito zangado, sai de dentro de minha máquina, coloquei-a num canto da sala, ajeitei-me e fiquei em posição de sentido. Minha continência foi tão apressada que derrubei o quepe. Felizmente ninguém percebeu.
Os gigantes nem sequer me haviam visto.
— O especialista Danger está presente! — gritei a plenos pulmões.
Naturalmente Dootsman não pôde deixar de intrometer-se. Minha voz nem foi ouvida.
Logo a seguir tive de fazer alguns movimentos apressados para não ser esmagado pelos pés de um terrano.
— Seu sem-vergonha! — gritei para ele.
Finalmente fui ouvido, mas a pessoa que tomou conhecimento de minha irrupção de cólera não foi nenhum terrano.
Um ser extraterrano aproximou-se. Reconheci Gucky, o rato-castor, do qual se contavam as coisas mais incríveis. Bastante aliviado, estendi as mãos. Logo me senti atingido pelas energias telecinéticas que me transportavam pelo ar.
Gucky tinha cerca de um metro de altura. Pelos padrões terranos ainda era pequeno, mas para mim era um gigante.
Fui parar sobre seu braço, onde fiquei deitado por um instante. Vi os olhos enormes de Gucky acima de mim. Seus pelos me faziam cócegas. Riu e disse:
— Você tem muita sorte, pequeno. Por pouco esse desajeitado não pisou em você.
— Se fosse só isso... — respondi com um suspiro. — O que está fazendo por aqui, Gucky. Vai acompanhar-me na minha missão?
O dente-roedor reluzente do ser extraterreno desapareceu. Consegui ler perfeitamente no rosto de camundongo de Gucky e identifiquei seus sentimentos.
Acomodou-se sobre o avantajado traseiro, deitou-me em seus braços e cochichou:
— Perry está aqui. Vim com ele. Mercant e Bell também vieram. Mas isso não tem nada a ver com as ordens que você receberá. Aconteceu alguma coisa que queremos discutir com vocês.
A palavra “vocês” deixou-me muito orgulhoso. Naturalmente representava uma referência aos especialistas da USO. Não vi nenhum mutante além de Gucky. Esses homens e mulheres eram uma espécie tão rara que dificilmente se podia esperar encontrar mais de um ao mesmo tempo.
Só Atlan tinha o direito de convocar mutantes. E isso só acontecia quando um especialista não conseguia resolver um problema, por mais que se esforçasse. O Exército de Mutantes obedecia exclusivamente às ordens dos dirigentes do Império. Quando precisávamos de um, tínhamos que pedi-lo a Perry Rhodan em pessoa ou ao Vice-Administrador Reginald Bell.
Desde o dia 1o de Janeiro de 2.115 Bell, como o rato-castor numa atitude desrespeitosa costumavam chamar o alto oficial e importante homem do estado, era vice-administrador de Árcon e comandante supremo da antiga frota de guerra arcônida.
Se Rhodan e Bell estavam presentes, devia ter acontecido alguma coisa que abalara a Galáxia até os alicerces. Senti-me preocupado.
Perguntei em voz baixa pelos detalhes, mas Gucky envolveu-se em silêncio. Conhecia os oficiais que estávamos esperando. Quando Atlan entrou, todos ficaram em posição de sentido.
Só Gucky não fez caso. Infringindo todos os regulamentos, arrastou-se pela sala sobre as pernas curtas e sentou-me sobre a tampa da mesa de conferencias de formato semicircular. Senti-me extremamente embaraçado, pois todos me fitavam intensamente.
Atlan, o imortal, logo me viu. Fiz a minha melhor continência. De tão embaraçado que me senti, apresentei-me em altas vozes, mencionando nome e posto, e esperei pela tormenta que desabaria sobre mim.
— Seria conveniente ensinar aos idiotas que trabalham com você que não se deve pisar nas pessoas pequenas! — gritou alguém com voz tão estridente que meus ouvidos doeram.
Lancei um olhar desesperado para Gucky. Senti-me agradecido e até emocionado por estar tão preocupado comigo, mas achei que naquele momento estava indo longe demais.
Mas não era bem assim. Atlan limitou-se a rir, retribuiu meu cumprimento e disse:
— Lemy, evite andar pelo chão. Fique em cima da mesa.
Gaguejei algumas palavras a título de desculpa e olhei em torno. Rhodan e Bell também apareceram. Fui apresentado ao Grande Administrador, e Atlan chegou a acrescentar com o rosto mais sério deste mundo que eu era, por assim dizer, a primeira estrela entre seus agentes.
Minhas continências foram ininterruptas, de tanta gente importante que me dirigiu a palavra.
Fitei o rosto de Rhodan com uma expressão de enlevo. Também era imortal, pois da mesma forma que Atlan usava um ativador celular. Reginald Bell e os mutantes recebiam a intervalos de aproximadamente sessenta anos a chamada ducha celular do planeta artificial Peregrino. Com isso o processo de envelhecimento era interrompido.
Esse procedimento acarretava graves riscos. Quando alguém que tivesse passado pelo tratamento celular não recebesse outra ducha assim que o prazo estivesse findo, a decadência do organismo era extremamente rápida. Isso não acontecia com Perry e Atlan, pois eram as únicas pessoas que possuíam um aparelho que produzia um efeito ativador permanente.
Os homens acomodaram-se. Continuei de pé sobre a mesa, até que Atlan me oferecesse alguma coisa em que pudesse sentar. Tratava-se de um radiofone portátil, no qual pude acomodar-me muito bem.
Só comecei a sentir-me melhor quando as atenções começaram a concentrar-se em Perry Rhodan. Estava sentado ao lado do arcônida Atlan. Só quando começou a falar percebi que todas as câmaras de transmissão estavam ligadas. Será que todas as pessoas que se encontravam na estação deveriam ouvir o que estava sendo falado?
Esta suposição logo se confirmou. Senti-me fascinado pelos olhos cinzentos de Rhodan. Irradiavam uma cordialidade aconchegante, mas naquele momento tive a impressão de que estavam sendo escurecidos por alguma coisa vinda de dentro.
— Cavalheiros, estamos numa conferencia informativa convocada em virtude de circunstâncias especiais. Atlan e eu desejamos que os especialistas da USO estejam sempre muito bem informados. Acredito que os mutantes não estejam em condições de desincumbir-se sozinhos das tarefas que têm pela frente. O Império solicita o auxílio dos especialistas.
Pigarreei e olhei em torno. O que era isso? Ninguém me dava atenção.
Será que acreditavam que não era um especialista? Ao que parecia, as grosserias nunca teriam fim.
Resignei-me e prestei atenção à exposição de Rhodan. Falava lentamente e sem a menor paixão, embora o tom de suas palavras fosse tão grave, que fazia estremecer até mesmo o insensível Dootsman.
— Há cinco dias, tempo padrão cósmico, recebi uma notícia do Ser energético de Peregrino. Não há necessidade de explicar-lhes quem é ele. As incríveis potencialidades técnicas e científicas dessa inteligência espiritualizada permitiram a aplicação das duchas celulares, que posso conceder a meu critério a qualquer dos meus colaboradores. Não é nenhum mistério que as primeiras pessoas a receberem esse tratamento foram os mutantes pertencentes ao exercito especial. Três homens desse exército terão de submeter-se ao processo de ativamento celular nos próximos meses, pois, do contrário, morrerão. E Reginald Bell deve ser tratado antes.
Rhodan virou a cabeça e fitou um oficial de estatura baixa. Farejei algum perigo, mas naquele momento não saberia dizer de que forma este manifestaria. Mas a solução do enigma não demorou a ser apresentada.
— A existência do Império e o domínio dos povos humanóides repousam em primeira linha na atividade dos mutantes. Os senhores especialistas nem precisam da minha exposição para saber que existem tarefas que eles não podem realizar sós. A criação da Terceira Potência e do Império Solar, por exemplo, nunca teria sido possível se não tivéssemos utilizado as faculdades extraordinárias dos mutantes. A segurança militar e política da Galáxia já estão consolidadas. Não tenho a menor dúvida de que, mesmo sem a colaboração do destacamento secreto, seríamos capazes de manter a paz e a ordem. Mas, para falar com franqueza, devo mencionar que a falta dos auxiliares paranormais nos poderia colocar em situação extremamente difícil. A longevidade dos mutantes depende da ducha celular. Acontece que há cinto dias fui informado de que a ativação revitalizadora não pode mais ser aplicada.
A informação produziu o efeito de uma bomba. Evidentemente sabíamos que os mutantes eram muito valiosos para o Império. Ninguém disse uma palavra. Rhodan prosseguiu:
— Não sabemos por que, de repente, o Ser energético resolveu quebrar sua promessa. Faz mais de trezentos anos que me foi concedido a utilização do grande ativador. Aliás, não caberá aos senhores investigar a conduta inexplicável de nosso amigo espiritualizado. Cuidarei disso pessoalmente. Convoquei-os para pô-los a par dos acontecimentos. Ainda devo mencionar que o Ser energético me transmitiu outra notícia, que só recebi um dia depois. Segundo essa notícia, o Ser de Peregrino tomou todas as providências para que vinte e cinco pessoas possam receber a vida eterna. Ao que parece, o estranho senso de humor do Ser não lhe permitiu exprimir-se em termos mais claros. Por isso transmiti as poucas palavras que me foram fornecidas ao computador impotrônico da Lua, onde serão interpretadas.
Acenei com a cabeça, num gesto de reconhecimento. Perry Rhodan agira acertadamente. Aliás, nunca procedera de forma errada. Consciente da culpa em que incorrera ao entreter-me em reflexões indevidas, lancei os olhos para o Grande Administrador, que ficava a mesa com uma expressão pensativa.
Consegui imaginar mais ou menos o resultado a que havia chegado Natan, nome que costumávamos dar ao novo centro de computação instalado na Lua terrana. A construção de Natan exigira duzentos anos de trabalho. Os pos-bis haviam equipado o cérebro com um suplemento de plasma fortemente ativado, que capacitava o gigantesco centro de computação a também formular juízos fundados no sentimento e processar certos dados de que um cérebro puramente mecânico nunca poderia tomar conhecimento. O desempenho de Natan era melhor que o do antigo computador-regente de Árcon, que se autodestruiu. As crônicas do Império revelavam que essa máquina se tornara presunçosa e se transformara num perigo público. Com Natan, isso nunca poderia acontecer. Natan era um sábio de verdade Os robólogos terranos e os microtécnicos de meu povo haviam tomado todas as providências nesse sentido.
Rhodan não levantou os olhos ao concluir sua fala com estas palavras impregnadas de profundo significado:
— Tenho à minha frente os resultados da interpretação, que foi fornecida com uma segurança de cem por cento. Considerados todos os fatos e a psique de Ser espiritual, que é conhecido por Natan, constatou-se que o Ser está disposto a distribuir vinte e cinco ativadores celulares. Como sabem, Atlan e eu usamos aparelhos desse tipo. Não seria possível que eu, por exemplo, cedesse meu aparelho ao outra pessoa, pois este foi ajustado às minhas vibrações individuais. E a mesma coisa acontece com o de Atlan. Acontece que existe uma probabilidade de oitenta por cento de que os vinte e cinco aparelhos que, segundo as declarações de Natan, estão à nossa disposição, foram construídos de forma a poderem ser usados por qualquer criatura inteligente. Basta manipular um teclado para que o aparelho se adapte às vibrações individuais de quem o estiver usando. O centro de computação ainda chegou à conclusão de que os vinte e cinco ativadores já foram espalhados...
Prendi a respiração. Os pensamentos atropelaram-se em meu cérebro. Estive a ponto de fazer uma observação, mas Rhodan logo prosseguiu.
— Os senhores entenderam o que eu disse: os aparelhos foram espalhados. Supomos que o Ser colocou os preciosos ativadores em algum lugar em que qualquer pessoa poderá encontrá-los. É só o que se pode dizer a este respeito. Se é que estou avaliando corretamente a personalidade do Ser, um belo dia obteremos informações mais precisas. Provavelmente virão de forma camuflada e representarão um verdadeiro enigma. Apenas peço aos senhores especialistas que no desempenho de suas missões sempre fiquem com os olhos e os ouvidos bem abertos. É esta finalidade de minha visita a Quinto Center. É possível que os cálculos de probabilidade de Natan não estejam corretos. A única coisa de que temos certeza é que o Ser distribuiu ou deu de presente vinte e cinco aparelhos, a fim de compensar-nos pela perda da ducha celular. Mas, se as suposições do centro de computação se confirmarem, temos tempos difíceis pela frente. Os senhores podem imaginar o que acontecerá na Galáxia se todo mundo ficar sabendo como fazer para encontrar a vida eterna multiplicada por vinte e cinco?
— Isso acabaria em morte, sir! — exclamei, em tom exaltado.
Rhodan fitou-me e acenou com a cabeça. Atlan animou-me com um gesto. Corri para o microfone de mesa. Parei junto ao mesmo e fiquei em posição de sentido.
— Tem alguma sugestão especial, especialista Danger? — perguntou o lorde-almirante.
A essa altura a presença dos oficiais não me incomodava mais. Ainda nervoso, respondi:
— Acho que ainda é cedo para isto, sir. A única coisa que podemos fazer é seguir o conselho do Grande Administrador. Se o Ser energético realmente espalhar vinte e cinco ativadores celulares pela Galáxia, teremos um caso na política interna, a não ser que consigamos recolher os aparelhos num prazo muito curto. Talvez consigamos descobrir em breve como devemos fazer para encontrar os aparelhos. Se for uma brincadeira do Ser, Aquilo não terá outra alternativa senão fornecer-nos novas indicações. Se for assim, deveremos recorrer a todos os meios.
Acabara de dizer o que poderia ser dito no momento. A conferência durou mais duas horas. Os especialistas e os cientistas terranos foram ouvidos, mas não se chegou a qualquer resultado.
Quando a conferência já ia terminar, recebemos uma notícia da Segurança Galática. O Marechal Solar Allan D. Mercant informou que as notícias que Rhodan recebera do Ser energético também haviam sido ouvidas em outros pontos da Galáxia. Isso significa que a essa altura criaturas estranhas já estariam realizando suas pesquisas. Muitos já tiveram sua atenção despertada para certas coisas que, com toda probabilidade, seriam corretamente avaliadas nos mundos centrais dos saltadores, dos aras e dos acônidas.
Com isso, a questão tornava-se ainda mais problemática. Caso, posteriormente, não se chegasse mesmo a descobrir onde se deveria procurar os ativadores, então teríamos tempos difíceis pela frente. Rhodan não exagerava.
Depois do almoço, os grandes do Império entraram num transmissor de matéria e viajaram para Árcon II. Estávamos a sós de novo. Conversei com os colegas sobre o caso. Ninguém estava em condições de fornecer-nos diretrizes específicas. Dependia exclusivamente da criatividade e da capacidade de decisão de cada um que pudesse ajudar Rhodan.
Depois de ter dormido duas horas recebi ordens para apresentar-me ao chefe. Sai ligeiro pelo corredor, enfiei-me pela porta blindada e fiz minha apresentação. Atlan estava só. Usava o uniforme preto da USO. Sem dizer uma palavra levantou-me e colocou-me sobre a escrivaninha. Seu rosto estava muito sério.
— Esqueça por enquanto estas coisas desagradáveis, Lemy — disse. — Não foi só por causa da conferência que mandei chamá-lo ao quartel-general. A equipe siganesa recebeu ordens para preparar sua nave para decolagem. A programação do sistema de pilotagem automática já foi concluída. Saia o quanto antes e, quando chegar ao ponto de encontro, passe para a Kaso V.
— Ka... Kaso V, sir? — gaguejei apavorado.
O rosto de Melbar Kasom surgiu em minha imaginação. Quase tive a impressão de sentir o cheiro oleoso de seu cabelo.
Os lábios de Atlan contorceram-se.
— Ora, Lemy! O que é que o senhor tem contra o Tenente Kasom?
— Ele dúvida que eu possua um cérebro, sir — respondi em tom queixoso. — Até me lembro de que formulou uma representação nesse sentido.
— Rejeitei a representação, especialista Danger. Mais alguma pergunta?
Atlan não se comoveu com a expressão de súplica que surgiu nos meus olhos. Limitou-se a sacudir a cabeça, num gesto de recriminação.
— O senhor se entenderá bem com Melbar Kasom, Lemy. Será que realmente acredita que ele dúvida de sua dignidade de homem? O senhor e Kasom formam a melhor dupla de que disponho.
Pigarreei e fiz um gesto.
— Está bem, sir, voltarei a tentar com o “monstro”.
— Muito bem. Em Haknor, o segundo planeta do sistema de Atanus, eclodiu uma guerra civil. Se alguma potência estranha estiver envolvida na mesma, o assunto passa a ser de competência da USO. Tome as providências que se fizerem necessárias. Tenho um interesse todo especial por Haknor por ser um dos raros planetas em que os saltadores se fixaram. O alarma foi dado pelo comandante de uma nave exploradora, que pousou em Haknor para reabastecer-se de água e verduras frescas. Na oportunidade, a nave Explorer 1.207 foi confiscada e seus tripulantes internados.
— Que insolência, sir! — exclamei indignado.
As naves de exploração da classe Explorer eram veículos inofensivos, tripuladas por cientistas das mais diversas especialidades. O ataque a esta nave representava uma clara violação das normas jurídicas.
Atlan fitou-me com uma expressão tão estranha que comecei a ficar desconfiado. Estaria achando graça por eu ter ficado zangado?
Estive a ponto de ressaltar o fato que era o especialista Lemy Danger, que tinha 22,21 cm de altura, quando Atlan prosseguiu:
— Para nós, a guerra de Haknor representa um mistério completo. Quase chego a ter a impressão de que foi provocada por criaturas desconhecidas. Embarque e leve os respectivos disfarces. O especialista Melbar Kasom desempenhará Oficina Ortopédica papel de um mercador não-licenciado pertencente a um clã saltador de categoria inferior. Oficialmente passará por um pendular. Sua espaçonave foi preparada para isso. Estávamos apenas esperando pelo senhor. Liquide o caso rápido e definitivamente. Quero saber qual era o jogo no segundo planeta do sol Atanus.
Fui dispensado com essas escassas indicações. Saltei da mesa, fiz um rolamento para amortecer a queda e voltei a colocar-me de pé. Neste ponto devo ressaltar que um siganês da minha estatura é capaz de saltar de alturas correspondentes a cerca de quinze vezes sua estatura.
Certa vez um gigante terrano tivera o atrevimento de comparar-me com uma pulga do planeta Terra, inseto que também é capaz de saltar muito mais longe do que o tamanho de seu corpo faria supor. E mostrei a esse terrano como sei saltar bem...
Esses gigantes nunca aprendem que não devem divertir-se à custa dos siganeses. Quando o fazem, esquecem-se da rapidez das nossas reações, que também resulta de nosso pequeno tamanho. Grande parte dos terranos não era capaz de acompanhar meus movimentos com a vista. Seria como observar as batidas de asa de um beija-flor.
Pus a mão na arma com uma rapidez que nenhum terrano seria capaz de imitar.
Atlan dispensou-me e corri em direção à porta. Uma vez do lado de fora, saltei sobre a fita transportadora lenta, passei para a mais rápida e deixei que me levasse ao setor de equipamento. Vez por outra tinha de expulsar pessoas que, de tão tolas, não haviam notado minha presença.
Disparei uma carga débil da arma térmica tão perto das grandes orelhas de um unitano de cabeça enorme que ele, muito assustado, brandiu a tromba. Saí correndo, soltando uma risada de deboche. O unitano gritou alguma coisa atrás de mim, que não consegui compreender... provavelmente, foi sua sorte.
Só tinha um interesse secundário pelo centro de suprimentos. Só um outro siganês pode cuidar de um especialista de nossa raça. Se tivesse encarregado um terrano de alimentar minha arma de impulsos, este não saberia como agir. Nossas armas, eram muito pequenas, mas seus efeitos não deixavam nada a desejar. Uma vez regulada para potência máxima e estreitando os feixes de raios, minha pistola era capaz de perfurar uma chapa de aço de trinta centímetros de espessura.
Mas Oficina Ortopédica que era muito mais perigoso era minha arma secreta, que disparava cargas de fusão de elevada capacidade energética. Os minifoguetes dotados de um sistema de aceleração química eram capazes de liberar uma carga energética equivalente a um quiloton de TNT, carga esta que era suficiente para reduzir a escombros uma cidade de tamanho médio. Não cometa o erro de subestimar os especialistas de Siga. Todos aqueles que o fizeram arrependeram-se amargamente.
Finalmente cheguei à divisão siganesa. As portas eram mais baixas e as instalações tinham o tamanho normal. Senti-me aliviado por escapar dos gigantescos pavilhões dos terranos.
Mas tive uma sensação desagradável ao lembrar-me de Melbar Kasom, que estava à minha espera nas profundezas do espaço.
Os técnicos e cientistas de meu povo aconselharam-me em relação ao meu equipamento especial. No planeta Haknor não poderia desempenhar o papel de papagaio. Mas estávamos muito bem informados sobre a fauna de lá, especialmente em relação às aves.
Dali a algumas horas, minha bagagem havia sido colocada na nave. Pegamos um carro e fomos aos hangares. Minha nave de operações, que também fora construída em Siga, estava pousada entre alguns barcos espaciais terranos.
Tinha dois metros e meio de comprimento, sessenta centímetros de diâmetro e o formato de um cilindro de ponta achatada. Os propulsores eram uma bela obra da nossa engenharia. Em vôo linear era capaz de percorrer distâncias imensas, provocando espanto até mesmo entre os técnicos terranos.
A escotilha já estava aberta. Entrei na ampla sala de comando, atei os cintos da poltrona e examinei os instrumentos. O microreator já estava funcionando.
Dali a dez minutos obtive licença para decolar. As comportas das eclusas dos hangares abriram-se à minha frente. Meu barco foi recolhido, e os trilhos de segurança recuaram. As telas estavam funcionando perfeitamente.
Aguardei o sinal verde do sistema de pressurização e comprimi a chave da catapultagem automática. Os jato-propulsores uivaram. No mesmo instante, o campo energético impeliu-me para fora do tubo pressurizado.
Prestei atenção ao zumbido do neutralizador de pressão e acelerei ao máximo. O ruído dos propulsores cresceu num trovejar. Quinto Center desapareceu alguns instantes depois. Estava só no espaço.
Recostei-me na poltrona. Sabia que o piloto automático de minha nave fora tão bem programado que não precisava preocupar-me com a rota.
Fitei com uma expressão de humildade os inúmeros sóis que cintilavam nas telas frontais. Senti-me fascinado diante da grandeza de nossa Galáxia.
Quando a nave atingiu cinqüenta por cento da velocidade da luz, o microcomputador positrônico deu o alarma. Endireitei-me na poltrona e esperei a manobra de mergulho. O campo de absorção kalupiano afastava as influencias energéticas do espaço normal. Antes que desse conta de mim, penetrei no semi-espaço, onde não prevaleciam nem as leis do Universo einsteiniano, nem as do hiperespaço.
Desenvolvia trinta mil vezes a velocidade da luz. Não tinha do que queixar-me a bordo de minha nave. Se os técnicos siganeses anunciavam que uma nave estava preparada para a decolagem, a mesma achava-se em perfeitas condições.
A estrela que marcava meu destino apareceu sob a forma de um disco vermelho-pálido na tela cambiante. Era lá que Melbar Kasom me esperava com sua espaçonave, que fora estragada de propósito. Por que Atlan escolhera justamente a mim para trabalhar com esse monstro? Teria preferido mil vezes desempenhar uma missão com Gucky...
Relatório de Melbar Kasom
Então? Seus nervos já se cansaram desse baixote? Já é capaz de imaginar o que sofre uma pessoa normalmente desenvolvida como eu quando tem de servir sob as ordens de um anãozinho siganês?
Eu, o especialista Melbar Kasom, mestre de todas as classes em Ertrus, aposto meu bíceps contra o dentinho de leite de Lemy que desta vez não me deixarei rebaixar diante da tripulação reunida.
Há quinze minutos recebemos uma mensagem condensada vinda do quartel-general. Essa mensagem relatou as graves revelações feitas pelo Grande Administrador. Meus homens e eu ainda estamos apavorados. Naturalmente haverá tumultos na Galáxia, se todo mundo for levado a acreditar que poderá conquistar a vida eterna.
Mas o que me deixa mais indignado é o papel que o baixinho desempenhou durante a conferência.
Mais uma vez sua autoconfiança doentia, que não passa da conseqüência de um complexo de inferioridade, levou-o a tomar a palavra na frente de um grupo de homens normais...
Se estivesse no lugar de Perry Rhodan, condenaria o baixinho a pelo menos três horas de exercícios de ordem unida. Enquanto o siganês me dá tempo para tal, estou redigindo este relatório. Dentro de alguns minutos sairá do semi-espaço em sua ridícula espaçonave e logo procurará fazer-se de importante a bordo de minha orgulhosa nave.
Infelizmente fui designado mais uma vez para servir sob ordens de Lemy. Entre os especialistas da USO, a disciplina é muito rígida. É claro que nunca pensarei em recusar obediência a uma ordem, nem mesmo que esta ordem venha de um anão teimoso como Lemy Danger. Danger, “perigoso”, ora, isso é ridículo.
Conseguiu ser promovido para major em virtude de certas circunstâncias misteriosas, enquanto eu ainda não passo do posto de primeiro-tenente. Por isso sou obrigado a obedecer, embora pudesse perfeitamente pegar Lemy sob o braço, juntamente com sua canoa, e atirá-lo no monte de sucata mais próximo.
Quero deixar claro mais uma vez que não sou capaz de exprimir-me em termos tão refinados como o baixinho. No entanto, sou um homem honesto, que não pensa em outra coisa senão cumprir fielmente seus deveres.
Não posso dizer que seja uma criatura simplesmente pequena e tola. A sua pequenez não confere com sua altura. Gosta de usar muitos truques para pôr-me de lado.
Basta dizer que nunca deu o devido valor à minha bela estatura, e nem sequer tentou apreciar minha musculatura de aço.
Terei de voar numa missão cujos preparativos se estenderam por dois meses. A tripulação de minha nave é composta de cinco especialistas, inclusive minha pessoa. A experiência, o saber qualificado e a coragem dessa equipe serão suficientes para pôr fim à guerra civil de Haknor.
Atendendo a sugestão que lhe fiz, o comando da USO arranjou uma carga que me fará ser muito bem recebido no mundo dos saltadores. Trata-se de duas mil toneladas de chapas de aço terconit, destinada à construção de naves. Tal material só pode ser trabalhado por meio dos modernos moldes termocomp. Não existe qualquer ferramenta capaz de agir sobre o aço T. Um maçarico atômico provoca fusão do material, mas ainda não vi nenhum técnico que conseguisse realizar uma solda perfeita.
Os moldes termocomp consistem em prensas termoenergéticas de alta pressão, que conferem ao material a forma exata, com a precisão de um qüingentésimo de milímetro, o que é mais que suficiente para chapas destinas à construção de naves.
Até mesmo Atlan mostrou-se satisfeito diante da idéia de ir a Haknor com uma carga desse tipo. É bom que Lemy não venha dizer que foi ele que cuidou de tudo.
Em virtude da minha estatura posso perfeitamente fazer-me passar por um saltador rebelde pertencente à raça dos superpesados. Trata-se de gente nascida em planetas de gravitação elevada.
É claro que não existe nenhum superpesado que realmente merecesse este nome. Isso me deixará ainda mais à vontade para durante a missão desempenhar esse papel.
Quando sair da eclusa de minha nave em portos estranhos, disfarçado em pendular sem lei, provocarei desmaios não apenas nas velhas solteironas. Até hoje ninguém me molestou, ao contrário do que tem acontecido com o baixinho, que certa vez foi engolido por um peixe, com o traje espacial e tudo mais.
Aparecerei junto ao segundo planeta de Atanus, fazendo-me passar pelo pendular Kasom. Pousarei e verificarei o que está acontecendo por lá. Não pode ser muita coisa, pois o ato relativamente inofensivo do internamento dos tripulantes da nave exploradora prova isso.
Provavelmente surgiram conflitos entre os criadores de gado de Haknor, que iniciaram uma guerra civil. Apresentar-me-ei como comerciante do mercado negro. Piscarei os olhos ao oferecer um lote de aço terconit de primeiríssima qualidade e deixarei entrever que esse material só costuma ser encontrado nos estaleiros pertencentes ao governo do Império. Depois disso veremos se os saltadores residentes em Haknor são rápidos em morder a isca.
Os relatórios secretos por nós examinados revelam que os habitantes de Haknor não se dedicam apenas à criação de gado. Existem pelo menos quatro grandes estaleiros e portos de suprimentos que são freqüentados por comandantes que não podem aparecer em outra parte. Entre estes comandantes incluem-se em primeira linha os pendulares, que não são párias nem membros regulares de um clã conceituado.
Na verdade, por ali também se encontram párias. Nenhum deles possui uma espaçonave aceitável segundo os nossos padrões. Por isso fui obrigado a transformar minha nave, a Kaso V, numa lata roída pela ferrugem que representa um verdadeiro perigo de vida. Mas as aparências enganam. Basta comprimir os gatilhos das armas ocultas para que o fim do mundo tenha início em Haknor. Evidentemente as coisas não deverão chegar a este ponto. Apenas quis mencionar o fato.
Sob o efeito do sol de haknor, minha linda pele ficará ainda mais fle...
— Acaba de chegar, sir. Os resultados da determinação goniométrica são positivos e os sinais codificados foram identificados e reconhecidos. Posso ligar o raio de tração, sir?
Sobressaltei-me. Com um movimento rápido coloquei meu diário numa gaveta da escrivaninha, fechei-a e liguei a trava eletrônica.
Pigarreei, olhei para o relógio e levantei-me. Meu imediato, o especialista Achard, apareceu na tela do videofone.
— Coloque-o dentro de nossa nave, Don. Tenha cuidado para não arrebentar a “caixinha”.
Preparei-me para o aparecimento de Lemy. Ao constatar que estava sendo dominado por um sentimento de alegria, espantei-me.
— Será que você ficou louco, especialista Kasom? — disse a mim mesmo.
Saí abanando a cabeça e dei um pontapé num robô enferrujado, fazendo-o movimentar-se na direção do elevador antigravitacional e dirigi-me à sala de comando.
No momento em que abri a porta e me abaixei para não bater com a cabeça, o robô exclamou:
— Suas ordens foram executadas, sir.
Fitei-o com uma expressão contrariada e lembrei-me de que um pendular deve andar por aí com um artefato enferrujado, que já deveria ter sido transformado em sucata. Nunca vira uma nave pendular em que um robô, quando havia um, estivesse em ordem.
Bastou um movimento de dedo para que o imediato se retirasse às pressas da poltrona de comando.
— Não repita isso — resmunguei.
O oficial ficou em posição de sentido, levantou os olhos para mim e anunciou segundo o figurino:
— A manobra de entrada acaba de ter início, sir. O mosquito está esperneando no raio.
— Será que o mosquito ao qual o senhor está aludindo é o Major Danger, especialista Achard?
O pequeno terrano, que não média mais de um metro e noventa, fitou-me com uma expressão de perplexidade.
Foi quando acrescentei aos gritos:
— Use o tratamento de senhor. Mesmo que vez por outra eu brinde meu amigo Lemy Danger com um apelido, o senhor não tem direito de fazer uso do mesmo. Estamos entendidos?
— Não...
Don Achard, segundo-tenente e especialista da USO, não entendera a pergunta final.
Aquele fracote que não pesava mais de cem quilos comprimiu as mãos contra os ouvidos, empalideceu e deixou-se cair numa poltrona.
O Tenente Ibraim Bentosa, um terrano de cabelos crespos muito negros, deu uma risada e num gesto ostensivo colocou os fones de ouvido. Bentosa também era especialista. A bordo da Kaso V tinha a seu cargo o rádio e o sistema de localização.
Satisfeito, deixei-me cair na poltrona, passei a manga de meu uniforme para a condecoração solar de segundo grau e fiquei ansioso para ver o rosto de Lemy. O baixinho ainda não sabia que o lorde-almirante me concedera uma condecoração.
Dali a cinco minutos, os controles mostraram que o veículo de Lemy acabara de entrar pela comporta e já se encontrava no hangar da nave.
O especialista Komo Hetete, um terrano de pele escura e lindos dentes brancos que eu invejava, foi buscar Lemy danger na eclusa. Hetete era primeiro-sargento e engenheiro-chefe da Kaso V. Pertencia à classe dos técnicos que tinham uma capacidade toda especial de encontrar defeitos ocultos e sabiam resolver tudo quanto era problema com os recursos de que dispunham a bordo. A tripulação da minha nave era excelente.
Quando as escotilhas blindadas da eclusa de ar se abriram, meu coração começou a bater fortemente.
Voltei a pigarrear, girei a poltrona e estiquei as pernas. Minha coxa esquerda tinha quase o dobro do diâmetro do corpo de Achard...
Hetete entrou, assumiu posição ao lado da escotilha e anunciou a chegada do especialista Lemy Danger.
Esperei até que o baixinho saltasse por cima da coleira, mas fiz de conta que não o via. Franzi a testa, olhei em torno, farejei que nem um cão que quer encontrar uma pista e perguntei em voz alta:
— Cadê o homem?
Hetete revirou os olhos e apontou para baixo. Junto aos seus pés havia uma “coisa” que tremia de raiva.
O anãozinho apoiou as mãos nos quadris e pôs-se a gritar:
— Sentido! — chilreou.
Era o que eu esperava.
Levantei-me e bati com os calcanhares de aço magnético de minhas botas, fazendo chispar fogo. Lemy procurou um lugar para proteger-se, tampou os ouvidos e gritou alguma coisa que, de propósito, deixei de ouvir.
Levantei a voz para fazer minha apresentação e expeli o ar com tamanha força que produzi um estouro semelhante ao do tiro de um fuzil antiquado.
Lemy não esboçou a menor reação. Caminhou em minha direção com um sorriso malicioso nos lábios e levantou os olhos. Conservei-me numa posição de sentido que atendia a todas as normas do regulamento. Hetete e Bentosa também estavam em posição de sentido. Só Archard esquivou-se. Fez de conta que era o oficial de plantão que não podia tirar os olhos dos controles.
— Fique à vontade, especialista Kasom — disse o baixinho com um gesto condescendente. — Bom dia, cavalheiros. Vejo que estão em ótimas condições. Não vamos perder tempo. Coloque a nave em rota, Kasom.
O anãozinho brindou-me com uma risada e saltou para cima da poltrona do controlador, que estava ao lado da minha. Dali pulou para cima do painel central de controle e acomodou-se sobre o botão do dispositivo automático de emergência.
Sentei-me e o anãozinho ficou aproximadamente na altura do meu rosto. Entreolhamo-nos por algum tempo, até que o baixinho disse:
— Caro Melbar, suas espinhas estão ainda mais feias.
Respirei profundamente e notei que o baixinho teve a precaução de agarrar-se ao botão.
— Não faça isso. Como estão as coisas a bordo? Tudo bem? Será que as máquinas não estão tão polidas que ninguém acreditará que somos pendulares?
Meu rosto ficou vermelho, Lemy já começava a tomar atitudes insolentes.
— Ainda falaremos sobre isso — respondi em tom revoltado. — Uma espaçonave comandada por Melbar Kasom sempre está em perfeitas condições.
— Está bem, está bem — gritou o baixinho, batendo palmas. — Pois não perca mais tempo. Decole logo. Estamos com pressa.
Recostei-me na minha poltrona, fiz um rosto de tédio e baixei a mão esquerda, que até então encobrira minhas condecorações.
O baixinho arregalou os olhos, enquanto eu rejubilava por dentro.
Ah! Isso o atingira Fitei-o intensamente, até que Lemy pusesse a mão no bolso e tirasse um objeto que reluzia num brilho dourado. Prendeu-o ao peito e disse em tom condescendente:
— Bem, já estava mesmo na hora de você receber ao menos a condecoração de segunda classe. Desde a missão de Lepatus possuo a Ordem Solar de Primeiro Grau. Está se sentindo mal, amigo?
Ibraim Bentosa ria desavergonhadamente, e Achard brindou o baixinho com um olhar tão carinhoso que eu, na melhor das hipóteses, teria dispensado apenas à minha mãe e mais ninguém?
— Preparar a manobra! — berrei, e bati com tamanha força na braçadeira estofada de minha poltrona que a pressão arrancou o baixinho de cima do botão de comando.
— Sargento Hetete, talvez o senhor queira dirigir-se logo à sala de máquinas para verificar se tudo está em condições.
Hetete desapareceu. Olhei em torno, furioso. O baixinho riu e voltou a arrastar-se para ima do botão, ao qual se amarrou com uma corda de plástico.
— Em caso de perigo infelizmente serei obrigado a bater com o punho nesse botão — observei, em tom sarcástico. — Digo isto apenas para sua orientação, major.
Lemy fez um gesto de indiferença. Dali a cinco minutos a Kasom V, uma nave em forma de granada, de oitenta e cinto metros de comprimento, começou a acelerar. Não dirigi mais a palavra ao baixinho, até que alcançássemos setenta e cinco por cento da velocidade da luz e o aparelho automático de hipersalto iniciasse a contagem regressiva.
Lemy inflou um minicolchão de ar, e amarrou-se nele. Prendeu a base do colchão por meio de ventosas ao revestimento de plástico do indicador de coordenadas.
Recuei na minha poltrona pressurizada e fiquei deitado. Neste ponto voltei a ser humilhado.
— Meu caro, quando contemplo as curvaturas de seu corpo sempre me lembro da carne de sáurio assada. Estes seres gigantes sem cérebro não pensam em outra coisa senão em saciar seu apetite e reproduzir-se.
A risada de deboche de Lemy ainda alcançou meu ouvido antes que tivesse início o processo de desmaterialização. O baixinho inchou e tornou-se invisível. A nave Kaso V não pode ser equipada ser equipada com propulsores lineares, pois nenhum pendular poderia dar-se ao luxo de adquirir esse equipamento dispendioso.
Meu último pensamento foi dedicado ao baixinho. Como resistiria ele aos efeitos de cinco saltos? Ainda nos encontrávamos a pouco mais de dez mil anos-luz do sistema de Atanus. O mesmo pertencia aos mundos anelares centrais, sobre os quais não se sabia praticamente nada. Haknor era um dos poucos planetas descobertos nos últimos duzentos anos pelas naves de pesquisa da frota.
Relatório de Lemy Danger
As zombarias de parte a parte já haviam terminado. Agora éramos todos humanos, e ninguém estava interessado em saber se o amigo era grande ou pequeno.
Fomos atacados logo após a quinta transição, que consumira as últimas reservas de energia de meu organismo.. Aconteceu fora do sistema de Atanus, nas proximidades da órbita do quinto planeta.
Uma gigantesca nave cilíndrica abriu fogo sem aviso prévio e só depois disso pediu nossa identidade pelo rádio. Mas até lá já tínhamos sofrido um impacto grave.
O disparo térmico havia rompido o casco na altura do porão de carga número dois, derreteu a escotilha lateral e gastou o resto de sua energia na sala de bombas.
Todos os sistemas hidráulicos deixaram de funcionar. O especialista Argo Multpol, outro engenheiro da nave, sofreu ferimentos graves. A esta hora estávamos fazendo grandes esforços para realizar o pouso exigido por nosso atacantes.
Melbar Kasom pilotava a nave por meio dos controles manuais. Achard e Komo Hetete procuravam remendar as mangueiras blindadas do sistema hidráulico e acionar a bomba sobressalente. Se não conseguissem fazer sair as colunas de pouso, a nave fatalmente tombaria após o pouso.
Iniciamos a terceira volta em torno do planeta. Embaixo de nós estendia-se a superfície marrom-avermelhada formada por extensos desertos e áreas pedregosas, rompidas em muitos lugares por enormes cadeias de montanhas.
Em Haknor a água nunca fora muito abundante. Os raros rios e lagos haviam produzido faixas de vegetação verdejantes, nas quais se aglomeravam as habitações dos saltadores.
Ibraim Bentosa e eu estávamos cuidando do engenheiro acidentado, cuja perna direita sofrera horríveis queimaduras.
Multpol não gemia mais. A injeção que lhe fora aplicada eliminara as dores e o fizera adormecer. Tinha minhas dúvidas de que sua perna ainda pudesse ser salva, a não ser que no planeta existisse uma clínica moderna.
Aplicamos um spray renovador dos tecidos sobre a queimadura e colocamos o ferido na cama. Era só o que podíamos fazer no momento.
Pedi a Bentosa que ficasse de guarda e corri para a sala de comando. Melbar Kasom, firme em sua poltrona, movia os controles com rapidez e precisão. Se havia alguém que conseguisse fazer pousar a Kaso V, apesar dos danos causados pelo impacto, este alguém era o ertruso.
Achard e Hetete trabalhavam nas profundezas da nave. Atrás de nós, a pouco menos de três quilômetros, a nave cilíndrica parecia estar pendurada no espaço. Seus canhões continuavam a ameaçar-nos.
Saltei sobre a poltrona do segundo-piloto e me abriguei atrás da braçadeira. Bentosa estabelecera a ligação audiovisual logo após o ataque.
— Depois de completar a volta você vai pousar, superpesado. Vamos ver como é que você vai fazer — disse uma voz estranha saída do alto-falante.
Espiei cautelosamente atrás do encosto da poltrona. O rosto moreno de um homem alto fitou-me de dentro da tela. Seus cabelos azuis estavam amarrados em inúmeras trancinhas que lhe caiam sobre os ombros.
Pertencia à raça dos descendentes dos saltadores sujeitos a mutações leves, que há cerca de mil anos haviam colonizado o segundo planeta do sol Atanus. Segundo as crônicas, a tripulação de uma nave fora parar nesse mundo em virtude de um acidente. Os sobreviventes se haviam fixado ali e alguns séculos depois foram redescobertos. Haviam abandonado o hábito de viver constantemente nas espaçonaves, que era peculiar aos mercadores.
O planeta Haknor era completamente independente e integrara-se na Aliança Galática há cinqüenta e um anos. Mas o ato resultara antes de um golpe de habilidade que de algum sentimento verdadeiro.
— O que é mesmo que você diz ter a bordo, cabelo-de-foice? — voltou a perguntar o interlocutor. — Aço terconit? Quantas toneladas?
— Eu lhe quebrarei a nuca, seu patife covarde — respondeu Kasom. — Espere até chegarmos lá em baixo.
O desconhecido, que era o comandante da nave dos saltadores, soltou uma estrondosa gargalhada.
— Você não terá oportunidade para isso.
— Eu, Melbar Kasom, um superpesado, terei oportunidade para isso seu idiota. Desde quando se costuma disparar contra um inofensivo pendular, que veio apenas para fazer seu negócio? Será que vocês são tão burros que não precisam de chapas de primeira qualidade para a construção de naves?
— Veremos se o que você diz é verdade.
— É verdade, sim!
— Veremos, eu já disse. Por enquanto atiramos. Haknor está em estado de guerra, cabelo-de-foice.
— Como é que nós iríamos saber disso? — gritou Kasom, e lançou um olhar furioso para a objetiva. — Isto custa uma fortuna. Se vocês não pagarem o prejuízo, farei com que nunca mais um pendular se dirija aos seus portos.
— Não seja tão arrogante, superpesado. Você esta falando com o representante de uma potência regular.
Kasom soltou uma estrondosa gargalhada. Tapei os ouvidos.
— Uma potência regular! Vocês só são grandes na arrogância. Pelo que ouvi, sempre gostam de fazer um bom negócio.
— O que é que isso tem a ver com o fato de sermos uma potência regular? — perguntou o haknorano com um sorriso de deboche.
Nesse momento firmei meu juízo sobre os saltadores de Haknor. Não eram nem um pouco melhores que os inúmeros negociantes clandestinos que cruzavam a Galáxia em suas naves quase imprestáveis. Apenas acontecia que os haknoranos estavam em melhores condições de manipular as coisas. Quanto mais refletia, mais me convencia de que as condições reinantes em Haknor se transformariam num problema para a USO. Estava na hora de pôr as coisas em ordem por aqui.
Fiz um sinal para Kasom, acenei com a cabeça em sinal de aprovação e saltei para fora da poltrona. Saí correndo, aproveitando todas as elevações do chão para abrigar-me. Melbar distraiu a atenção do desconhecido. Xingou-o conforme seria de esperar de um comandante dos pendulares. Senti-me constrangido ao ouvir certas expressões, com as quais normalmente não poderia concordar. Mas agora seu uso respondia a uma necessidade tática.
Uma vez chegado ao corredor que dava para os camarotes, pus-me a refletir. A situação em Haknor parecia ser mais séria do que supúnhamos. O ataque que havíamos sofrido falava por si. Por isso seria preferível que não me mostrasse sob o meu aspecto verdadeiro.
Em alguns minutos cheguei ao meu camarote. Chamei Bentosa e pedi-lhe que espalhasse minha bagagem pelo chão. Na medida em que pôde, ajudou-me com seus desajeitados dedos de gigante.
Minha máquina era o melhor modelo construído pelos microtécnicos siganeses. Fora criada especialmente para a missão a ser cumprida em Haknor.
Imitava uma ave nativa de Haknor e muito estimada por lá. Dizia-se que possuía um grau extraordinário de inteligência e habilidade de falar.
Tinha o aspecto de um corvo terrano, com a diferença de que era uns cinqüenta por cento maior e apresentava penugem preta e vermelha. Sentira-me entusiasmado tanto pela envergadura das asas como pelo elegante formato alongado. Essa ave, que em haknor era chamada de cobo, sabia planar muito bem. As correntes termais existentes nesse planeta permitiam-lhe circular por horas a fio sem bater as asas.
O comprimento do pescoço era outro detalhe que me agradava. E o longo bico triangular permitia a instalação de um canhão de impulsos, construído segundo as medidas siganesas.
Com ele poderia defender-me facilmente das aves de rapina. As aberturas para os olhos ficavam no tronco e no início do pescoço. E, o que era mais importante, o cobo possuía pernas robustas e compridas, em cujo interior podia facilmente abrigar as minhas.
O empuxo dos propulsores era três vezes maior que o do disfarce de papagaio. A capacidade das baterias permitia trezentas horas de funcionamento, durante as quais poderia mover ininterruptamente as asas.
O peito fora moldado em plástico maleável segundo o formato de meu corpo. Até era possível modificar a posição das áreas de apoio, o que me permitia ficar estendido quase na horizontal ou permanecer meio erguido. Durante um vôo mais prolongado, poderia retirar as pernas dos respectivos envoltórios e descansar confortavelmente. Bentosa colocou a máquina sobre as pernas. Abri o fecho instalado no peito. As luzes internas acenderam-se. Antes de enfiar-me na penugem, voltei a controlar o compartimento de carga que ficava na popa.
Por ali havia tudo de que um homem do meu tamanho precisa para viver durante trinta dias. Os alimentos concentrados até seriam suficientes para um mês e meio, mas o suprimento de água era limitado. Mas isso não representava um problema sério, pois, a qualquer momento, poderia encher o tanque existente no abaulamento do peito.
As armas estavam carregadas e as microbombas de fusão haviam sido penduradas nos dispositivos de lançamento instalados na popa.
Bentosa, que me contemplava com um sorriso, era um homem muito bem treinado, mas ao que parecia ainda não compreendera que aquela máquina camuflada em ave era muito perigosa. E seria de supor que estivessem mais bem informado sobre a energia do átomo que muitas outras pessoas. Cada bomba tinha uma semelhança espantosa com o ovo salpicado do cobo e seu tamanho não ultrapassava o de um dedal usado na Terra, mas sua força destrutiva era tamanha que um ser inteligente de grandes dimensões dificilmente poderia acreditar nela. Acho que qualquer um deveria ser capaz de saber o que representa a liberação de uma quantidade de energia equivalente a cem mil toneladas de TNT. Isso corresponde ao quádruplo da força explosiva do artefato empregado pela primeira vez no planeta Terra sobre um país denominado Japão.
Deixei que Bentosa risse à vontade. Seria inútil e um tanto penoso para mim dar lições aos terranos toda vez que surgisse uma situação como esta. Ao que parecia, o hábito de subestimar um ser do meu tamanho parecia ser uma das características das criaturas de maior porte...
Verifiquei se meu uniforme estava bem ajustado, respirei profundamente e, usando um rolo, saltei pela abertura do meu disfarce. Minhas pernas escorregaram pelo envoltório de passaro, e, no mesmo instante, fui acolhido macio.
Bastou uma ligeira pressão sobre o fecho para que este se trancasse. Os visores aplicados no pescoço e no peito abriram-se. Ofereciam um bom ângulo de visão. Além disso, o funcionamento do dispositivo de observação ótica a grande distância era excelente. Poderia ligar o ampliador até cem vezes, o que me proporcionaria um olho igual ao de um cobo.
Rememorei as instruções e os filmes sobre os hábitos de vôo e outras peculiaridades do cobo de Haknor. Naquele momento ouvi um uivo vindo do outro lado das paredes da nave. Melbar se preparava para a manobra de aproximação que deveria preceder o pouso. Isso significava que para mim estava na hora de procurar um esconderijo.
Sabia que há uma hora Kasom trazia seu microrreceptor no ouvido. Liguei meu radiofone e chamei-o. Kasom respondeu imediatamente.
— Tudo bem, baixinho? — perguntou com a voz abafada.
— Tudo perfeito. Conseguiu tirar as colunas de pouso?
— Consegui a muito custo. No momento estamos caindo à velocidade de cem metros por segundo. Deveremos pousar daqui a onze minutos. Acho que você deveria abrigar-se no compartimento de popa. Abrirei o anteparo do jato direcional de estibordo. O propulsor auxiliar não estará funcionado. Estabilizarei a nave com o giroscópio.
— Está bem. Mas nem pense em fazer chiar o jato propulsor de bombordo por pura brincadeira. Entendido?
Kasom soltou uma risadinha e fiquei surpreso ao notar que estava sorrindo. Será que estava prestes a encontrar uma desculpa para as molecagens desse jovem? Afinal, com meus noventa e dois anos ainda não era tão velho que deveria entreter sentimentos paternais. Não se deveria soltar as rédeas desse montão de músculos “acerebrado”.
Preferi formular mais uma advertência:
— Isto é uma ordem, tenente!
Meus alto-falantes transmitiram um rugido. Ao que parecia, Melbar Kasom engolira em seco.
Lá fora bramia a corrente de ar. Naturalmente Kasom realizava uma aterragem que faria empalidecer os instrutores da Academia da USO. Esse forçudo convencido nunca era capaz de agir como um homem normal.
Liguei o motor das asas, examinei o perfil e o ângulo de incidência do ar e regulei o perfil e o ângulo de incidência do ar e regulei o mecanismo motor para meia potência.
O cobo ergueu-se com a leveza de uma pena. Encolhi ligeiramente a perna, descrevi uma curva apertada através do camarote e passei a tomar a direção do alvo.
As escotilhas estavam abertas. Abri os visores do pescoço da ave o suficiente para poder enfiar o rosto pelos mesmos. Cheguei são e salvo à sala de comando, onde consegui sobrevoar a objetiva da câmara sem ser notado.
Achard voltara a sentar-se na poltrona do segundo piloto. Abriu a escotilha do teto e entrei no compartimento de popa, onde estava instalado o conjunto propulsor auxiliar, que funcionava em base químico-nuclear. O dispositivo automático que movia as garras funcionava perfeitamente. Consegui segurar-me perfeitamente na borda da escotilha. A sala de comando ficava embaixo de mim. O trovejar dos propulsores, ligados para metade do empuxo máximo de frenagem, impossibilitavam uma conversa normal.
Retirei-me de vez para o compartimento de popa e fui parar atrás do conversor térmico.
Dali a alguns minutos houve um forte solavanco. A Kaso V acabara de pousar.
Fiquei preocupado ao ouvir os chiados e o rumorejar das mangueiras do dispositivo hidráulico, precariamente reparadas. A nave inclinou-se rapidamente para a direita, voltou a erguer-se e imobilizou-se. O rumor cessou. O estouro a seguir provava que Kasom regulara o mecanismo de trava que bloqueava as colunas de apoio. Se a nave estava mais ou menos na vertical, sua posição não se modificaria mais.
— Conseguimos — disse a voz saída do alto-falante. — O cruzador está pousado ao norte do lugar em que nos encontramos. Um grupo de soldados aproximou-se em dois carros. Parece que já estavam à nossa espera. Tem alguma sugestão, baixinho?
— Não. Tenho é ordens — respondi. — Provavelmente seremos controlados e revistados. Continue a desempenhar seu papel de pendular, fique praguejando e proferindo ameaças. A seguir procure “colocar” seu carregamento. Se os haknoranos não tiverem enlouquecido de vez, eles não se atreverão a confiscar a carga de um pendular livre e politicamente neutro. Isso só esquentaria o sangue dos demais. Lembre-se disso quando estiver tratando com eles. E, o que é mais importante, ofereça-lhes provas evidentes de que esta é a nave de um pendular.
— Mais alguma coisa?
— Você e seus homens serão interrogados. Acho que isso durará dois ou três dias. Banque o selvagem e comporte-se conforme se espera de um homem grosseiro. Todos acham que os superpesados são muito malcriados. Quando tudo terminar, peça que o libertem. Provavelmente não lhe darão permissão de decolar e proibirão que use o rádio, para que os acontecimentos que se desenrolam em Haknor não se tornem públicos muito depressa. Quando chegarmos a esse ponto, veremos o que fazer depois. Entendido, grandalhão?
— Entendido? O que é que você fará nesse meio tempo?
— Entrarei em contato com a tripulação da nave exploradora. Se não estou enganado em relação a esses homens, eles darão todas as informações que nos interessam. Já estão aqui há bastante tempo e devem estar bem informados. Assim que tiver uma idéia sobre os passos seguintes, entrarei em contato com você. Procure ouvir também as outras pessoas. O que mais me interessa é conhecer a causa da guerra civil.
— Entendido. Tenho de abrir a comporta. Uns trinta homens uniformizados exigem que os deixemos entrar. Estão usando faixas vermelhas nos braços. Sabe o que significa isso? Final.
Kasom desligou. Enquanto refletia sobre o significado das faixas vermelhas, ouvi barulho vindo de baixo. O ertruso berrava que nem um sáurio na época do cio. As vozes eram quase incompreensíveis.
Não prestei mais atenção à gritaria de Melbar. Se havia alguém capaz de desempenhar o papel de um superpesado bem subdesenvolvido, esse alguém era meu amigo Melbar Kasom. Ora! Acabo de referir-me a ele como amigo? Deve ter sido um pequeno lapso. É claro que não posso gostar tanto de um sujeito presunçoso como ele.
Esperei que a tripulação se retirasse da nave. Espiei pela abertura do jato e vi que os homens estavam sendo transportados num carro aberto. Os haknoranos haviam colocado o ferido sobre uma maca. Provavelmente lhe dispensariam o tratamento de que precisava. Fiquei satisfeito.
Meu ouvido super-refinado percebeu vários ruídos. Eram os habitantes de Haknor que estavam revistando a Kaso V. Queria evitar que me descobrissem por acaso. Por isso saltei pela abertura do jato e passei os olhos pelo porto espacial. Era tão grande que não consegui distinguir o fim. Muitas naves estavam paradas nas áreas de pouso demarcadas em cores. Mas, entre elas, só vi uma que poderia ser a nave exploradora.
Mais ao leste avistei o vulto esférico de uma espaçonave que, sem a menor dúvida, fora construída num estaleiro terrano. Estava cercada por uma grade energética.
Não perdi tempo. Tinha muita pressa. Efetuei mais um controle, liguei o motor das asas, empurrei-me com os pés, e, batendo vigorosamente as asas, fui subindo pelos ares.
Ninguém me deu a menor atenção. Seria mesmo de estranhar que um haknorano tivesse a idéia de procurar uma criatura humana no interior de um cobo. E, por estranho que possa parecer, nenhum forasteiro conhecia o povo de gente pequena que habitava Siga. A vontade de voar tornou-se incontrolável. Era uma delícia subir cada vez mais com aquela máquina ágil, deixando para trás as coisas insignificantes.
Gritei fortemente para treinar a voz da ave. Meu grito ao canto não foi ouvido por ninguém, pois já atingira a altura de oitocentos metros.
Em cima do porto espacial encontrei condições térmicas favoráveis. Liguei o mecanismo das asas e regulei o vôo de maneira a desenvolver uma velocidade pouco inferior a sessenta quilômetros por hora. Apesar disso subia à razão de dois metros por segundo.
Era o vôo à vela mais elegante que poderia ser imaginado. O mecanismo propulsor já havia silenciado, mas eu continuava a circular sobre a área.
Vez por outra abandonava as correntes termais, voava longos trechos até alcançar a concentração de nuvens mais próximas e deixava que as vagas de ar me levantassem de novo.
Haknor era um típico mundo seco de temperatura média bastante elevada. Até mesmo um principiante seria capaz de planar.
Senti-me feliz da vida e depois de algum tempo subi o suficiente para abranger uma grande área com a vista. A nave esférica realmente era um veículo explorador do Império que trazia o nome Explorer 1207. Neste ponto devo realçar que as naves nunca são designadas por nomes próprios. Todas usam o nome da classe, Explorer, seguido de um número.
Mas ao oeste, as montanhas se estendiam para o céu verde-azulado. Meu rastreador energético deu um sinal. Por lá devia ter havido um descarga de energia atômica.
Depois de três horas de vôo, passei por cima das montanhas e prossegui no meu treino por sobre as terras desoladas e fustigadas pelo sol. Quando voltei ao porto espacial, tinha adquirido um domínio tão perfeito do cobo mecânico que não seria capaz de cometer qualquer erro.
Desci em amplas espirais. Durante a descida, tive de lutar constantemente contra correntes termais. Alguns minutos se passaram e o vulto da nave esférica cresceu tanto que não consegui vê-lo de uma só vez.
Com a maior cautela contornei a grade energética, que cercava a Explorer 1207 em circulo, evitando que a tripulação fugisse. Segundo as indicações de meu rastreador energético, a grade poderia ser sobrevoada sem o menor risco, desde que se mantivesse altitude de quinhentos metros.
Subi por meio de amplos movimentos das asas e, uma vez sobre a nave, entrei em mergulho. A cúpula polar superior serviu-me de ponto de referência.
A nave exploradora fora construída com o casco de um cruzador pesado. Tinha duzentos metros de diâmetro. Pousei no quente envoltório de aço e olhei em torno, à procura de uma abertura no casco. Depois de algum tempo encontrei-a na cúpula escamoteada do observatório de bordo.
Enfiei-me pela abertura e me vi num recinto em cujo interior havia um telescópio.
Dois homens trabalhavam contra a vontade no polimento das peças reluzentes do instrumento. Um deles era um cabo.
Voei em direção a uma amurada e pousei sobre a mesma. O cabo descobriu-me imediatamente. Fitei-o com os olhos leais de pássaro, inclinei a cabeça à maneira dos cobos e disse amavelmente com a voz rangedora, usando o intercosmo:
— Ei menininho, ei menininho trabalhador...?
O terrano guardou o pano com que estava limpando o telescópio, lançou os olhos pela abertura, depois olhou para mim e disse:
— Veja lá, seu bicho nojento! Se sujar a amurada, você se sairá mal.
Senti-me chocado com as palavras menos distintas usadas a título de cumprimento. Fiquei tão assustado que, por pouco, não cai de cima da amurada.
O outro homem riu, mas o rosto do cabo assumiu um expressão ainda mais zangada. Aproximou-se com um sorriso fingido e proferindo palavras carinhosas. Temi pela minha vida, e por isso apressei-me em abrir o fecho existente sobre o peito e enfiei cabeça pela a cabeça pela abertura.
— Faça o favor de usar uma linguagem descente — berrei.
O homem parou abruptamente, ficou pálido e começou a engolir em seco. Soltei uma risada irônica.
— Está com os pés frios? Quando estiver recuperado, coloque-me no ombro e leve-me ao comandante desta nave. Sou Lemy Danger, especialista e major da USO. Esta nave não irradiou um pedido de socorro?
Levei alguns minutos para convencer o cabo de que não era um fantasma. Santo Deus! Muitas vezes os terranos têm raciocínio muito lento.
Dali a trinta minutos pousei na escrivaninha do comandante. Vários oficiais e chefes das equipes científicas entraram correndo. Fui admirado e apalpado como se fosse a maior maravilha da Galáxia. Depois de algum tempo saí da máquina e exibi meu tamanho natural.
O Tenente Fred Hymik, comandante da Explorer 1207, soube guardar sua dignidade. Apenas se permitiu um pigarro.
— Seja bem-vindo a bordo — disse. — Já estava mesmo na hora da USO fazer alguma coisa. Posso oferecer-lhe alguma coisa? Acho que seu disfarce não é muito confortável.
Neste ponto o homem estava enganado, mas achei que seria uma descortesia retificar sua afirmativa.
Agradeci e passei diretamente ao assunto. Um oficial tomou as providências necessárias para que ficássemos a sós. O que ouvi em seguida derrubou todos os meus planos...
Relatório de Melbar Kasom
Os haknoranos libertaram-me ao nascer do sol, depois de se terem esforçado por dias a fio para descobrir alguma contradição em minhas declarações. Meu papel de superpesado e pendular fora desempenhado de maneira tão convincente que os haknoranos não tiveram outra alternativa senão restituir-me a liberdade.
Na verdade, tratava-se de uma liberdade restrita, pois haviam proibido a decolagem de minha nave e o uso do rádio. Ao voltar à Kaso V, deparei-me com os compartimentos de carga vazios e a estação de rádio quebrada. Minha reclamação não produziu nenhum resultado. Os funcionários da administração espaço-portuária lamentaram-se, mas explicaram que o estado de guerra reinante em Haknor exigia medidas duras. Todavia, oportunamente poder-se-ia discutir o preço das mercadorias transportadas em minha nave.
Achard, Hetete e Bentosa chegaram duas horas depois de mim. Também haviam sido interrogados dia e noite.
A morte de nosso colega Argo Multpol deixou-nos muito tristes. Morrera de embolia pulmonar dois dias depois de ter dado entrada num Hospital militar. De embolia, numa época em que a medicina evoluíra a um ponto em que este incidente já não representava nenhum problema... Bem que gostaria de saber que tipos de charlatões haviam sido encarregados de amputar a perna queimada.
Quando o nervosismo já estava diminuindo, Lemy apareceu. Conforme se esperara, podia mover-se perfeitamente em seu disfarce de pássaro.
Uma vez discutindo a situação, fui até a cidade. O núcleo populacional possuía cem mil habitantes. Seu nome era Tesonta e servia de sede ao governo. Em conformidade com as ordens de Lemy, fui a uma casa de animais e comprei um cobo. Na oportunidade notei que estava sendo vigiado pela polícia secreta de Haknor.
Ocupei-me com o passarinho. Coloquei uma correntinha em sua perna e voltei à nave, atravessando o espaçoporto a pé. Pouco antes do pôr-do-sol apareceu um oficial com um comando e proibiu nossa entrada na Kaso V.
Permitiram que dormíssemos mais uma noite em nossos camarotes. Teria sido simples enviar um pedido de socorro ao lorde-almirante por meio do hipertransmissor escondido.
Acontece que o baixinho também chegou à conclusão de que o perigo de escuta era muito grande, muito escasso o resultado das nossas pesquisas. Por isso preferimos não expedir a mensagem.
Durante à noite, Lemy subiu aos ares juntamente com o verdadeiro cobo. Colocara amarras na avaliação, que Lemy cortou quando já se encontrava bem longe da cidade. Dessa forma restituiu a liberdade ao cobo, e, dali em diante, passou a desempenhar o papel do habitante alado do planeta Haknor.
Depois do longo período noturno — Haknor leva 34:12 h para descrever um movimento de rotação — fomos obrigados a abandonar a nave, que passou a ser mantida sob vigilância. Ao que tudo indicava, os homens da polícia secreta na oportunidade do interrogatório não conseguiram decidir-se a proibir desde logo nossa entrada na nave. Afinal, as ameaças proferidas por mim era muito fortes, e até passei às vias de fato à maneira dos superpesados.
De qualquer maneira, parecia que já não éramos considerados um perigo político. Depois desses acontecimentos Lemy voltou a voar para a Explorer 1207 e mandou que lhe fornecessem os documentos fabricados nesse meio tempo.
Assim que voltou dirigi-me à polícia secreta e pedi permissão para viajar ao interior do país.
Para meu espanto não formularam nenhuma objeção à minha pretensão. A permissão foi concedida. Era bem verdade que insistiram para que me oferecesse como voluntário, para lutar pelo partido vermelho do governo, que tratava uma luta desesperada contra os verdes.
Os lavradores e criadores do país, que haviam perdido quase todos os contatos com os habitantes do leste, que dominavam a Astronáutica, constantemente encenavam revoltas para derrubar o governo.
Concordei. E assim parti juntamente com Lemy dois dias depois de ter sido libertado, a fim de dirigir-me ao front. Pelo que se dizia, havia por lá um comando de voluntários, formado por homens cujas naves haviam sido detidas no porto espacial. O comando dessa tropa era um saltador chamado de Tschatel, sobre o qual os tripulantes de nossa nave exploradora nos haviam fornecido minuciosas informações. As lutas em Haknor tinham começado depois da chegada desse mercado galático. Achamos conveniente ficar de olho nesse homem.
Um avião militar levou-me ao front juntamente com Lemy. O campo de batalha ficava nas montanhas inacessíveis do oeste. Na verdade, não se poderia falar num front propriamente dito.
Percebemos logo que ambos os lados davam preferência à tática das guerrilhas. Isso aumentava nossas possibilidades de êxito. Lemy e eu nem pensávamos em arriscar a vida por um objetivo insensato. Apenas estávamos interessados em saber o que estava acontecendo no segundo planeta de Atanus. Se o problema realmente se limitava a uma série de conflitos entre os colonos e os haknoranos residentes nas grandes cidades, não haveria necessidade de continuarmos por ali.
Mas se alguma potência estranha participava da luta, a intervenção da USO seria indispensável. Nesse caso teríamos de avisar o quartel-general e solicitar o envio de uma frota interventora.
A cidadezinha de Polma, situada nas margens do rio Azul, estava transformada num montão de destroços. Primeiro pertencera aos verdes, a seguir fora ocupada pelas tropas governamentais e depois os revoltosos voltaram a apoderar-se dela. Por ter mudado de dono tantas vezes, a cidade só podia ser identificada pelo traçado das ruas.
Em alguns lugares já haviam sido utilizados artefatos atômicos, embora houvesse um acordo tático para que não se usassem armas nucleares. Porém os canhões de radiações foram largamente usados.
Estava com meu radiador USO. Tratava-se de uma arma de impulsos grande e pesada, que poderia ser manipulada por um saltador. Pesava quase cinqüenta quilos, mas era tão curta que podia perfeitamente usá-la como arma manual.
Continuava com meu uniforme de uma peça, que já colocara a bordo da Kaso V. Ao que parecia, ninguém desconfiava do que estava escondido no mesmo. O trabalho conjunto dos microtécnicos siganeses e da divisão de equipamentos transformara o uniforme num verdadeiro arsenal. O peso não me incomodava. Bastava fazer uma pequena regulagem no meu microgravitor para que nem sentisse os quilos adicionais.
As condições reinantes em Polma eram diferentes das da capital. Ninguém queria saber de onde vinham as pessoas ou para onde iam. A população havia fugido há muito tempo.
Pude andar à vontade, mas tive o cuidado de não cruzar o caminho de um oficial de alta patente.
No momento o front ficava alguns quilômetros além das montanhas da sede. Pelo que se dizia, os rebeldes, conforme se costumava designar os colonos revoltados, se haviam entrincheirado por lá e estavam preparando um ataque contra as linhas de abastecimento das forças governamentais.
Em toda parte falava-se num homem que os cientistas da Explorer 1207 já nos haviam indicado como o elemento mais importante, e de confiança, nas fileiras dos verdes. Tratava-se de Bentlef Hakira, conhecido como o homem mais rico do país. Era grande proprietário de terras e o melhor amigo dos nativos que, em virtude de sua desenvoltura, costumavam ser chamados de sprinters.
Pelo que se dizia, corriam mais depressa que um cavalo terrano e, o que era mais importante, tinham mais resistência. Os sprinters me interessavam, pois dizia-se que possuíam inteligência e uma filosofia de vida. Era bem verdade que também se dizia que possuíam um orgulho todo especial, que representava um perigo de vida para os estranhos que não conseguiam adaptar-se ao mesmo.
A situação tornava-se cada vez mais interessante. No entanto, receava ser preso por ainda não me ter apresentado como voluntário.
O avião militar largara-nos em campo aberto, fora de Polma. Uns cem soldados e voluntários das áreas comerciais do leste haviam vindo conosco. Meu corpo logo chamou a atenção. Dois oficiais dirigiram-me um convite a manifestaram a esperança de que me dispusessem a trabalhar com eles como chefe subalterno.
Compreendia que estivessem interessados em minha colaboração, pois conheciam perfeitamente as qualidades que eu poderia desenvolver numa guerra de guerrilha.
Como de costume, o baixinho lançou-me um olhar irônico e soltou algumas observações que me ofenderam bastante. Parecia nem perceber o quanto sua situação era ridícula. Geralmente ficava sentado sobre meu ombro e grasnava palavras idiotas, provocando nos espectadores acessos de tosse.
Quando ia longe demais, dava um puxão na corrente presa à sua perna esquerda. Em virtude disso ouvi insultos pesado na presença de outras pessoas, o que provocava verdadeiras tormentas de gargalhadas entre a assistência.
Se eu quisesse, o baixinho já teria passado às mãos de outra pessoa. Um oficial ofereceu-me uma soma considerável por esse cobo extraordinário. E o anãozinho ainda chegou a orgulhar-se disso. Disse que estava desempenhando seu papel com a maior perfeição.
Depois de nossa chegada recolhi-me a um acampamento de soldados desgarrados e sondei a situação. As lutas faziam muitas vitimas e estavam sendo travadas de lado a lado com muita brutalidade e fanatismo. As tropas governamentais queixavam-se dos colonos, e estes afirmavam que o regime de Tesonta era corrupto.
No fundo pouco nos importava o que os haknoranos pensassem uns dos outros!... As guerras civis eclodiam em muitos pontos da Galáxia, mas ao que parecia a que se travava por aqui representava um caso especial.
O chefe dos verdes, ansiosamente procurado pelas tropas governamentais, esgueirara-se pessoalmente para bordo da nave exploradora logo após a chegada da mesma e pedira auxílio aos terranos. Era ele que havia fornecido as noticias transmitidas pelo Tenente Hymik.
Tínhamos de entrar em contato com Bentlef Hakira e conquistar a amizade dos nativos, pois estes já haviam descoberto que uma gigantesca nave desconhecida pousara nas montanhas desérticas...
Restava saber o que se devia entender por gigantesco. Para um sprinter, um cruzador ligeiro podia ser gigantesco. O que interessava realmente era saber o que se havia escondido nas montanhas e o que estava acontecendo por lá.
O sol amarelo de Atanus acabara de desaparecer atrás das íngremes montanhas da sede. Levantei-me da cama para esperar o baixinho ao ar livre.
Este saíra voando ao meio-dia, a fim de descobrir o quartel-general dos rebeldes.
As forças governamentais já não tinham a menor importância para nós. Já descobríramos tudo que seus componentes sabiam a respeito dos acontecimentos. Sentiam um ódio cego pelos colonos responsáveis pelas dissensões.
Sai com a mão pousada sobre a arma. O acampamento estava cercado por uma fileira de guardas, pois esperava-se a qualquer momento um assalto dos verdes.
O céu sem nuvens era iluminado por inúmeras estrelas. Até parecia que o dia estava prestes a raiar. Em Haknor nunca escurecia de vez.
Dali a pouco alguém me chamou. O cano de uma arma surgiu por trás do tronco alto de uma árvore-garrafa que um guarda estava usando como abrigo.
— Vá com calma! — exclamei em tom indignado. — Não está vendo que venho de trás?
— Isso não é motivo para deixar de controlá-lo. Você é o superpesado?
Respirei profundamente, apoiei as mãos nos quadris e perguntei:
— Já descobriu, cabelo-azul?
Outro homem soltou uma risada e o cano da arma desapareceu. Um dos guardas espremeu-se por um buraco. O outro seguiu-o imediatamente. Aproximei-me.
— Viram meu cobo? — perguntei por cautela.
Lemy poderia aparecer a qualquer momento.
Um dos haknoranos olhou em torno.
—Não; não vimos nada. Essa ave não costuma voar de noite. Deverá vir amanhã de manhã, a não ser que tenha sido atraída pelos nativos.
— Atraída?
— Sem dúvida. Você não sabia que para eles os cobos são aves sagradas? Um exemplar inteligente como o seu sem dúvida será transformado em símbolo da tribo.
Fiquei apavorado. Era só o que faltava... Talvez a essa hora o baixinho estivesse preso numa gaiola, gritando até não poder mais. Apressei-me em colher algumas informações sobre o culto que costumava ser praticado com os cobos.
— É esquisito demais — disseram. — Na opinião deles essas aves são milagrosas. Trazem a chuva e decidem sobre a guerra e a paz. Costumam amarrá-las a certas rochas e formular-lhes perguntas sobre determinados assuntos. O povo se orienta pela forma de seu grasnar.
Imaginei Lemy saltando sobre algumas pedras e dando informações aos sprinters. Talvez até tivessem torcido o pescoço. Quem sabe?
— Pare de sonhar — disse de repente uma voz dentro do meu ouvido.
Era o minirreceptor colocado no mesmo. Soltei um suspiro de alívio e olhei discretamente para cima. Provavelmente o baixinho era o único cobo de haknor que voava depois do pôr-do-sol.
— Caso você ainda não tenha percebido que enviaram um comando armado atrás de você, então já está na hora de tomar conhecimento disso — informou a voz de Lemy. — Um oficial do serviço de segurança está à sua procura. Provavelmente chegaram novas ordens de Tesonta. Estive no acampamento e ouvi que, de repente, você não é julgado mais digno de confiança. Parece que Bentosa fez uma tolice. Se entendi corretamente as conversas, ele tentou penetrar na nave e expedir uma mensagem pelo rádio. Foi preso na oportunidade. O aparelho foi confiscado.
Fiquei furioso. Será que Bentosa enlouquecera de repente? Deixara-o na capital juntamente com Achard e Hetete. Os três deveriam colher informações por lá.
Lemy voltou a chamar. Ouvi o ruído de suas asas bem em cima de minha cabeça.
— Bentosa deve ter descoberto alguma coisa que o levou a dirigir-se à Kaso V. Não consigo entrar mais em contato com ele. Dê o fora, grandalhão. O comando de captura aproxima-se.
— Qual é o seu peso, amiguinho? — perguntei a um dos haknoranos, que se encontrava um pouco mais afastado que o outro.
Segurei-o com dois dedos pelo cinto, levantei-o num movimento rápido e prendi-o entre as pernas.
— Ei... — disse o outro, mas eu já o havia agarrado.
Fez um esforço ridículo para defender-se, mas quando o apertei ao peito desistiu. Bastou uma batidinha com as pontas dos dedos no crânio para fazê-lo desmaiar imediatamente. Quando ao cabelo-azul que se debatia entre as minhas pernas, limitei-me a passar a palma da mão sobre sua testa.
Coloquei os dois homens que haviam perdido os sentidos numa depressão do solo e liguei meu microgravitador na posição zero. No mesmo instante fiquei livre da gravitação de haknor. Senti-me satisfeito por deixar meus músculos agirem à vontade.
Alguém chamou atrás de mim. Duas vozes responderam. Com um salto coloquei-me atrás de uma rocha a oito metros de onde estava, mas, mais uma vez, deparei-me com uma arma apontada para mim.
— Olá! — disse um desconhecido. — Siga diretamente para a frente, que você encontrará nossa máquina. Não está à procura de Bentlef Hakira?
O guerrilheiro logo exibiu a braçadeira verde, motivo por que preferi não enviar ao reino dos sonhos.
Dali a alguns segundos as fúrias do inferno pareciam estar soltas.
As armas de radiação começaram a rugir de todos os lados. As trilhas energéticas fulgurantes transformaram a luz crepuscular numa luminosidade solar. De repente o solo ergueu-se.
O ataque dos verdes estava sendo lançado a toda força. Os atacantes avançavam com a coragem da loucura, ficaram roucos de tanto gritar e disparavam incessantemente suas armas térmicas.
Dei saltos enormes pela escuridão. Lemy orientava-me pelo rádio. Depois de dez minutos cheguei ao leito quase seco de um riacho. Saltei por cima do mesmo. Não tinha mais de vinte metros de largura.
Um vulto ergueu-se atrás de um busto de espinhos e fez um sinal. Parei, preparei-me para dar um salto e esperei que o outro começasse a falar.
— O senhor é Melbar Kasom? — perguntou alguém.
— Sou eu mesmo — respondi mais alto que de costume.
Atrás de mim, um vulcão parecia ter entrado em atividade. O martelar de um canhão energético giratório provava que os atacantes não estavam brincando. Provavelmente não sobraria quase nada do acampamento.
O desconhecido aproximou-se, fez um sinal, e, no mesmo instante, um conversor de impulsos começou a uivar. Um veículo aéreo achatado, que flutuava sobre um campo antigravitacional, saiu de trás de um abrigo. Ninguém disse uma palavra sequer.
Subi no disco voador e deitei-me no centro, para que o piloto pudesse equilibrá-lo.
— Até parece que você engoliu meia dúzia de estatuas de bronze — disse o homem e começou a praguejar como raramente ouvira alguém fazê-lo.
De qualquer maneira conseguiu fazer subir o planador. O homem uniformizado que me dirigira a palavra também estava lá. Aproximou os lábios do microfone de um rádio-transmissor e falou tão alto que compreendi perfeitamente:
— A caixa d’água está grudada no galho, pronto, quebrem. Não se esqueçam dos concentrados. Final.
Fitei o haknorano que trajava um uniforme esfarrapado com uma expressão de espanto, que logo se transformou em indignação. As tranças caíam-lhe sobre os ombros.
— Será que a caixa d’água sou eu? — perguntei.
— Sem dúvida. Neste mundo sem água, isso representa uma homenagem. Não se afobe, bebê, você logo terá seu leite.
Por uma questão de cautela, o revolucionário colocou a pistola energética a frente do meu nariz. Isso não seria tão ruim caso não ouvisse a risada de Lemy.
O baixinho parecia ter escutado as palavras que acabavam de ser proferidas, embora estivesse voando trinta metros atrás do planador. Resolvi dar prova das minhas intenções pacatas e voltei a estender-me no chão da máquina voadora.
O piloto sobrevoou as cadeias de montanhas e mergulhou tão arrojadamente nos vales que nos protegiam contra localização, que logo vi chegada minha derradeira hora. Dali a alguns minutos, as encostas rochosas ergueram-se de ambos os lados. Não havia dúvida de que estávamos a caminho do lugar em que, no momento, se encontrava o quartel-general dos rebeldes.
Relatório de Lemy Danger
Melbar Kasom estava sentado muito à vontade sob o teto de folhagem. Fazia de conta que era um marajá e sorria, fazendo com que seu rosto largo se assemelhasse ainda mais a uma panqueca.
Amarrara-me numa corrente pequena tão curta que mal conseguia fazer qualquer movimento. Toda vez que me atrevia a bater as asas dava um puxão na corrente, dando a impressão de que iria arrancar minha perna direita.
A finalidade daquilo resumia-se numa apresentação para cinco nativos, que estavam sentados em posição humilde à frente do presunçoso ertruso e tremiam de medo ao ouvir as pragas que eu rogava.
Fora promovido ao posto de cobo sagrado, e, naquele momento, Melbar Kasom me apresentava aos sprinters que eram os únicos seres nascidos em haknor que sabiam em que lugar estava pousada a espaçonave.
Os sprinters eram criaturas perfeitamente humanóides, mas tinham dois metros e meio de comprimento, seus corpos eram muito finos e possuíam um par de pernas robustas que lhes permitiam correr muito. A parte superior da coxa, muito musculosa, era mais grossa que o tronco de um homem normal. Além disso, as pernas tomavam dois terços do comprimento total do corpo. Era fácil imaginar que essa gente sabia correr muito depressa.
Suas cabeças eram pequenas, tinham o formato de um ovo e possuíam um par de grandes olhos esféricos. O armamento dos sprinters consistia em lanças de aspecto muito perigoso, arremessadas por meio de um sistema de alavancas. Seus facões afiadíssimos pareciam ainda mais apavorantes.
Desde o momento em que Melbar Kasom descobriu que esses nativos calvos de cabeça azul tinham uma simpatia toda especial pelos cobos, minha paciência foi forçada ao máximo. Não parava de transpirar, pois tinha que realizar constantemente acrobacias aéreas, responder a chamados e voltar no ombro do gorducho.
Os cinco sprinters me veneravam. Quanto a isso não havia a menor dúvida. Assim que cheguei em Haknor esforcei-me para aprender as palavras mais importantes do vocabulário dos sprinters. Para um homem do meu grau de cultura isso não representava nenhuma dificuldade.
— Grande guerreiro “Lança-vermelha” — grasnei e acenei com a cabeça de cobo. — Grande guerreiro “Lança-vermelha” muito rápido, hein? Grande guerreiro.
Acionei o movimento automático das garras, arranhei a pele de Melbar e cochichei ao seu ouvido:
— Solte-me, seu dorminhoco. Isto foi um elogio.
Kasom abriu o cadeado da corrente. Voei para junto do sprinter mais idoso, que me fitava com uma expressão de enlevo. Possuía uma lança cuja ponta fora tingida de vermelho.
Bentlef Hakira, que se encontrava ao nosso lado, observando a cena, me dissera que esse nativo era um homem muito importante de seu povo. Chefiava todas as tribos residentes nessa área.
Voei para onde estava ele, sentei sobre sua arma de arremesso e continuei a grasnar:
— Morte ao estranho, morte ao cobo gordo, falso cobo. Lança-vermelha apontar caminho.
Preferi não arriscar mais que isso. Já chegara muito longe. Além disso, sentia-me envergonhado por abusar de forma tão vergonhosa das superstições dos nativos. Pelo que se dizia, eram seres decentes e relativamente pacatos. Pastoreavam as ovelhas dos criadores de Haknor em troca de uma pequena recompensa. Os animais haviam sido importados há muitos séculos. No curso do tempo se transformaram, em virtude de uma série de mutações determinadas pelo meio ambiente, em criaturas gigantescas e agressivas, mais sua lã era tão macia e perfumada que se transformara no mais valioso produto de exportação do planeta.
Voltei para o ombro de Melbar Kasom, soltei um grito de triunfo e voltei a insultar o ertruso.
Um dos sprinters levantou o braço. O movimento foi tão rápido que mal consegui acompanhá-lo com a vista. A ponta de uma lança penetrou no chão entre as pernas abertas de Melbar.
— Cuidado! — advertiu o chefe dos rebeldes em voz baixa. — O senhor não pode manter a ave acorrentada. Foi transformada em cobo sagrado.
Melbar obedeceu com um gesto de resignação. Soltou de vez a corrente que me prendia.
— Cobo sagrado! Ora essa! — resmungou o assimilado.
Subi aos ares descrevi alguns círculos, executei dois mergulhos e acabei pousando sobre a cabeça de outro sprinter, que desempenhava o papel de chefe de uma tribo montanhesa.
— Matar falso cobo — gritei e voltei a subir.
Prossegui no jogo, até que os nativos desaparecessem rapidamente e em silêncio. Não faziam o menor ruído e tiravam proveito de todas as possibilidades de abrigar-se. Assim mesmo consegui seguir seu caminho.
Corriam com a leveza de animais das montanhas sobre trilhas que passavam junto a abismos profundos. Sempre que me viam atiravam-se no chão e cumprimentavam com um gesto de humildade, erguendo as mãos.
Segui-os até a aldeia em que moravam. Uma vez lá, pousei sobre uma construção redonda feita de pedras naturais e voltei a soltar meu grito de guerra.
— Lança-vermelha chegando — gritei para alguns nativos.
Depois disso fui em vôo rápido ao acampamento dos revolucionários. Fora montado numa depressão, que oferecia a vantagem de não poder ser vista de cima. Além disso, havia uma fonte, e em Haknor a água era mais preciosa que o ouro ou os diamantes.
Pousei ao lado do chefe dos rebeldes, que me fitou por algum tempo. Bentlef Hakira era um homem alto e tinha os traços do rosto bem marcados. Seu olhar franco inspirava confiança. Tive certeza de que o governo deveria ter procedido muito mal, pois, do contrário, um criador de gado ponderado como este não teria chegado ao extremo...
— Excelente disfarce, sir — disse em meio às suas reflexões. — Naturalmente já sabe que se encontra numa das áreas mais inacessíveis do planeta. Nem por isso se pode dizer que os outros distritos disponham de maiores recursos ou sejam mais povoados. Só os nativos conhecem os raros locais em que se pode encontrar água. Caso esteja interessado em localizar a espaçonave, é bom que saiba que isso só pode ser feito com o auxílio dos sprinters. Posso fazer alguma coisa pelo senhor?
Estava banhado de suor. O uniforme estava grudado na minha pele. Além disso, sentia-me cansado.
Abri o fecho do falso pássaro, olhei em torno e tive o cuidado de saltitar mais para dentro da caverna. Uma vez lá, sai da máquina e deixei que a ventilação da mesma funcionasse a toda força.
Soltei um suspiro e sentei-me no chão ao lado do haknorano. Este permaneceu com o rosto impassível. Um homem como ele seria incapaz de rir de um homenzinho vindo do planeta Siga.
— Durma — recomendou Hakira. — No momento os nativos estão realizando uma grande conferencia. São gente sincera, mas gostam de falar. Grakhor vai...
— Quem é Grakhor?
— O chefe que o senhor chamou de “Lança-vermelha”. Falará por horas a fio no favor recebido do cobo sagrado e assumirá o novo nome. Naturalmente terá todos os chefes subalternos de seu lado, e dessa forma o senhor poderá contar com o apoio desta tribo de sprinters. É gente muito capaz, cuja inteligência não deve ser subestimada. São ótimos artífices, entendem de Astronomia e sabem trabalhar o bronze com perfeição. Seus moldes e fornos de fundição são excelentes. Basta ver as pontas de suas lanças.
Olhei para trás, mas a arma tinha desaparecido. Levantei-me, preocupado. No mesmo instante alguma coisa atravessou o ar com um chiado. Uma ponta de bronze atingiu uma árvore ressequida com tamanha força que o tronco foi perfurado.
— Isto é que é um arremesso de lança! — disse a voz trovejante de Kasom, que saiu de trás de uma rocha. O chão da caverna tremeu sob o efeito dos seus passos.
O criador de gado deu uma risada.
— Os senhores formam uma boa equipe — disse. — O máximo que posso fazer é destacar um homem para acompanhá-los. As tropas governamentais estão preparando uma ofensiva. Provavelmente amanhã teremos de abandonar este acampamento. Há algumas semanas entrei em contato com o comandante da nave exploradora porque pensava que ele pudesse ajudar-me. Mas no dia seguinte foi desarmado e aprisionado. Apesar disso conseguiu transmitir um pedido de socorro.
— É por isso que estamos aqui — observei.
Estava gostando daquele homem que amava a liberdade.
— Infelizmente chegaram tarde. Não sei o que está acontecendo nas montanhas. Antes da chegada da nave explorador localizamos uma espaçonave que, segundo parece, obteve permissão do governo para pousar nas montanhas do deserto. E continua lá até hoje. As informações dos nativos são bastante vagas. Daqui a uma hora conheciam as superstições dos sprinters e se aproveitaram delas.
— Quem foi que fez isso?
— Os tripulantes da espaçonave. Tratava-se de um veículo semelhante às esferas espaciais dos arcônidas, com a diferença de que os pólos são bastante achatados. Seu formato assemelha-se antes ao de um disco inflado.
— É a forma usada pelos acônidas — observou Melbar.
— É possível — disse o criador de gado. — Não conhecemos os acônidas. Seja como for, é uma nave gigantesca. Poucos dias depois de sua chegada Tschatel foi à capital, e depois disso começaram os conflitos. Sei de fonte segura que a insatisfação estava latente em ambos os lados. Ainda esperava sair vencedor nas próximas eleições. Mas, de repente, as tropas governamentais atacaram. Nossas fazendas foram bombardeadas, o gado foi morto a tiros disparados do ar e nossas agrovilas foram destruídas. Reuni o exercito clandestino que já existia há muito tempo e retirei-me para as montanhas. Nossos abastecimentos de armas e munições vêm do leste. Um mercador é sempre um mercador, e não há quem corrija um saltador estabelecido...
— O senhor descende desse povo, sir.
Bentlef Hakira fitou-me com uma expressão recriminadora.
— Sir, faz quinhentos anos que não temos nada a vez com os mercadores. Eles descendem dos arcônidas, e nós voltamos a transformar-nos em arcônidas. A terra livre nos pertence, que somos lavradores e criadores. Não permitiremos que ninguém nos tire a mesma ou a desvalorize por meio de impostos excessivos. Procure conhecer as montanhas, mas tenha cuidado para não perder a vida. Só os nativos poderão guiá-lo.
— Existe algum meio de transporte — perguntou Kasom. — Quem sabe se poderemos encontrar animais de montaria ou veículos capazes de trafegar neste terreno?
— Nada disso. Os sprinters são mais velozes que qualquer outra criatura de Haknor. Nunca chegaram a criar animais de montaria, embora algumas espécies de antílopes e até mesmo certas aves de corrida do planeta se prestassem a isso. Não posso ceder-lhes nenhum veículo. Possuo blindados de esteira estreita e planadores, mas se utilizarem os mesmos não demorará mais de dez minutos para serem localizados. Acho que não é o que querem.
Respondi que não. Era claro que não poderíamos utilizar qualquer meio de transporte cujas emanações energéticas pudessem ser registradas por alguém. Isso representaria o fracasso de nossa missão.
Tinham uma pergunta na ponta da língua desde o momento de minha chegada. Resolvi formulá-la:
— Sir, por que não atacou a espaçonave desconhecida, uma vez que já a localizou? Ou será que ainda tem alguma dúvida de que seus tripulantes são indiretamente responsáveis pelos conflitos que se verificam em Haknor?
Melbar Kasom encostou-se ao paredão de rocha e refletiu intensamente.
— As montanhas são muito extensas e possuem inúmeros vales e desfiladeiros. A localização foi feita durante o vôo de aproximação.
— Quer dizer que o senhor não sabe exatamente onde ela pousou?
— É isso mesmo, sir. Além disso, não possuímos as armas pesadas que seriam indispensáveis para o ataque. As poucas espaçonaves que possuímos foram derrubadas pelos veículos governamentais, antes da chegada dos desconhecidos. Não podemos operar com aviões bombardeio de grande altitude. A nave portadora de caças especiais Oskrusa pertence ao governo e circula em torno do planeta numa órbita permanente. O senhor já viu que nossa tática é inteiramente ligada ao solo. Não contem com o meu auxílio. Acho que só as tribos montanhesas sabem onde pode ser encontrada a nave. E os sprinters são gente muito calada.
— Mas eles devem ter dito alguma coisa! — exclamou Kasom em tom contrariado.
Bentlef Hakira passou a mão pelo cabelo e disse, muito deprimido:
— Devem ter dito alguma coisa? O senhor não conhece os sprinters. Ninguém consegue obrigá-los a fazer qualquer coisa. Interroguei-os várias vezes e só ouvi indicações vagas. A julgar por essas indicações, a área em que pousou a nave foi declarada “zona da morte”.
Tive minha atenção despertada.
“Zona da morte”! A expressão já fora usada pelo Tenente Hymik. O que vinha a ser isso?
Perguntei, mas o chefe revolucionário não sabia o que dizer.
— Comecei a trabalhar com os nativos quando ainda era muito jovem, mas nunca cheguei a conhecer muito bem os ritos que praticam. Só entendo da parte superficial.
Depois de uma hora a palestra chegou ao fim. Kasom carregou a bateria de minha máquina com a força dos geradores do acampamento.
Deitamos ao pôr-do-sol. Antes disso o ertruso disse:
— Tenho certeza de que Bentosa pretendia transmitir informações importantes à central. Ao que tudo indica, o governo anda de mãos dadas com a tripulação da nave. Por que será?
Não sabia responder. Lancei os olhos para minha máquina, que estava jogada no chão da caverna. Se expedisse uma mensagem de hiper-rádio por meu minitransmissor, os impulsos sem dúvida seriam captados por alguma espaçonave. Mesmo que a pequena duração de uma mensagem condensada não permitisse a determinação goniométrica da posição do transmissor, logo compreenderiam que alguém acabara de chamar. Quais seriam as conseqüências?
Era possível que a nave desconhecida decolasse. Nesse caso nunca descobriria o motivo da guerra civil irrompida em Haknor. Por isso não poderia pensar num pedido de socorro, ao menos nessa altura. Não se poderia colocar em risco o trabalho de coleta de informações.
Armei-me de paciência, uma qualidade incutida em todos os especialistas da USO. O cruzador da USO, que em conformidade com o plano esperava no espaço livre a apenas alguns meses-luz do sistema de Atanus, também teria de esperar. O lorde-almirante não poderia dar-se por satisfeito com informações incompletas. E, o que era mais importante, os acônidas se haviam intrometido em assuntos que não lhes diziam respeito. Tornava-se necessário descobrir o que estavam fazendo em Haknor e por que haviam aparecido em circunstancias tão estranhas.
Caso ficasse provado que o governo de haknor havia estabelecido contato com uma potência estranha sem informar o Império, então haveria um caso para a USO.
Quando inflei meu colchão de ar, o barulho ainda não cessara no acampamento.
— A situação de Bentlef Hakira é bastante difícil — constatou Melbar.
Não respondi e deitei para dormir. Os vôos prolongados dos últimos dias haviam sido bastante cansativos.
O planalto desértico a que aludira “Lança-vermelha” estendia-se lá embaixo de mim. Era uma área pedregosa que ficava cinco mil metros acima da planície. Era tão extensa que não consegui abrangê-la com a vista.
Vez por outra formações rochosas entrecortadas sobressaíam em meio à monotonia marrom-avermelhada. Numerosos vales e fendas do solo interrompiam o deserto. Muitos desfiladeiros davam a impressão de terem sido abertos a machado por algum gigante em meio à pedra.
Num desses desfiladeiros descobri a espaçonave. Estava pousada no fundo de uma fenda de quase quinhentos metros de profundidade, cuja largura logo chegava a cerca de trezentos metros. O fato de a nave ter sido manobrada para dentro duma depressão como esta provava que sua tripulação entendia de Astronáutica.
Se não tivessem cometido o erro de camuflar a parte superior do veículo eu teria passado por cima do desfiladeiro. Acontece que haviam estendido uma construção em forma de rede que qualquer pessoa confundiria com o solo.
Não consegui fazer a localização goniométrica da rede, mas sim a do campo periférico que a mantinha suspensa no ar.
Pousei numa rocha situada nas imediações do desfiladeiro e pus-me a refletir. A reação de meu rastreador energético era tão leve que me vi obrigado a modificar minha opinião sobre a leviandade dos acônidas.
Uma nave que voasse a grande altitude nunca seria capaz de registrar as emanações energéticas. Nesse caso, a camuflagem através da rede teria sido muito eficiente. Qualquer veículo, inclusive uma pequena máquina voadora, produzia suas próprias radiações, que teriam neutralizado as do campo energético que sustentava a rede. Acontece que meu cobo dispunha de um sistema de localização muito mais sensível.
A nave tinha cerca de duzentos metros de diâmetro na linha equatorial. Como e por que teriam conduzido esse colosso para dentro da fresta no solo?
Não se via o menor sinal das tropas do governo ou dos revolucionários. Os acônidas poderiam dedicar-se às suas ocupações sem receio de serem perturbados.
Minhas reflexões afastaram-se do tema principal. Até que ponto estariam os acônidas informados sobre os hábitos dos haknoranos? E, o que era mais importante, saberiam que um cobo era mais importante, saberiam que um cobo nunca se perde nas regiões desérticas ou nas montanhas da sede?
Fazia votos que não soubessem. Até mesmo os nativos evitavam, sempre que possível, arriscar-se por essas paragens. Os riachos eram muito raros, e, muitas vezes, as nascentes secavam de repente. Isso significaria a morte para qualquer homem que tivesse confiado na presença do líquido vital.
Até então tivemos sorte. Melbar Kasom precisava de muita água para conservar seu desempenho físico. Praticamente não sabia o que era cansaço, mas sempre que lhe faltava uma coisa de que necessitava suas forças se esgotavam relativamente depressa.
Marchara e saltara durante cinco dias juntamente com os sprinters até que atingissem os contrafortes do planalto. A subida pelas montanhas fora extenuante. Um homem normal nunca teria resistido a isso. O acampamento dos rebeldes ficava a apenas trezentos quilômetros. A bem da verdade, eram trezentos quilômetros em linha reta. Quanto a mim, não seria capaz de avaliar as canseiras da caminhada por essa distância, pois tinha voado. As condições térmicas da área montanhosa permitiam que planasse quase ininterruptamente. Até então praticamente não havia consumido nenhuma energia.
O barulho de um disparo de radiações arrancou-me das minhas reflexões. Sobressaltei-me, apavorado, e saltei instintivamente para dentro da caverna. Ouvi outro tiro. Pareceu-me que os disparos ocorridos no fundo do desfiladeiro.
Depois disso voltou a reinar o silêncio. Olhei em torno e notei o vis que circulava muito acima da minha cabeça. Os relatórios sobre haknor me haviam ensinado tudo sobre o perigoso lagarto-voador. Um vis atacava qualquer coisa que penetrasse em sua área.
Como não aconteceu mais nada, empurrei-me com o pé e voei em direção ao desfiladeiro. Penetrei no mesmo, baixando em espiral. Perdi a nave de vista. Depois de ter descido quinhentos metros, pousei numa rocha saliente. Caminhei até uma curva e espiei para o outro lado.
A uns cinqüenta metros voltei a ver a nave pousada sobre suas colunas de apoio. O intervalo entre o casco da nave e o paredão não ultrapassava trinta metros. Admirei-me da competência extraordinária do piloto. Não havia dúvida de que eu também teria conseguido levar para baixo o veículo espacial subtraído aos efeitos da gravidade, mas de qualquer maneira isso representava um trabalho de mestre.
Olhei pelas imediações e examinei meu rastreador energético, que não mostrou a menor reação. Os acônidas sentiam-se tão seguros que nem julgaram necessária a vigilância goniométrica.
Mas o que mais me interessou foi a atividade de três homens, que, por estranho que pudesse parecer, usavam trajes espaciais fechados. Contive a respiração e olhei para frente.
Os três homens aproximaram-se de um cadáver que, mesmo estando perto do lugar em que me encontrava, eu não havia notado. O acônida morto continuava a segurar sua arma de impulsos. Fitei o rosto desfigurado e voltei a olhar para os homens, que continuavam a avançar cautelosamente.
Sem dúvida o companheiro fora morto por eles. Por quê? E por que usavam trajes espaciais fechados quando o ar das montanhas era perfeitamente respirável? No fundo do desfiladeiro era muito mais fresco que lá em cima. Até parecia haver água, pois ouvi o sussurro de um regato.
Lancei os olhos encosta acima. O encurtamento resultante do ângulo de visão era tamanho que o céu do planeta ficou reduzido a um risco luminoso. Os olhos tiveram de acostumar-se à luz crepuscular.
Arrisquei-me a pôr a cabeça para fora do fecho que ficava na altura do peito. Comprimi a máquina contra a encosta, para que não pudessem notar minha presença.
Os três pararam junto ao cadáver e o apalparam. Ao que parecia, não encontraram o que estavam procurando. Recuaram apressadamente, e, depois de terem atingido uma certa distância, viraram-se e abriram fogo.
Os disparos energéticos atingiram a rocha pouco abaixo do lugar em que me encontrava. Esguichos de matéria liquefeita subiram ao ar. A pressão atirou-me contra a parede, onde fui atingido por uma chuva de pedras superaquecidas.
O alarma de minha máquina soou, Quase já era tarde quando percebi que minhas penas estavam fumegando. Sem dar atenção à onde de pressão, rolei sobre a trilha de rocha até extinguir o fogo lento. Fiquei deitado, exausto. A vontade de tossir me torturava. Gases venenosos subiram ao lugar em que me encontrava.
Depois de algum tempo a situação melhorou. Apesar da triste experiência que acabara de fazer voltei a avançar até meu posto de observação. O cadáver desaparecera. No lugar em que estivera há pouco, uma cratera fora aberta na rocha.
Os três acônidas já haviam chegado à espaçonave. Vi que, antes de atingirem a eclusa polar inferior, foram desinfetados.
Perplexo, sacudi a cabeça. Será que havia uma epidemia a bordo da nave? Quem sabe se os tripulantes que contraíram a moléstia foram expulsos da nave? Será que foram mortos quando tentavam entrar?
Levei apenas alguns segundos para abandonar a idéia. Nenhum povo de astronautas da Via Láctea adotaria um comportamento tão primitivo. Bastaria uma mensagem de rádio para colocar em estado de prontidão a base mais próxima dos aras. Não haveria praticamente nenhum caso em que os médicos galáticos não soubessem o que fazer. Até mesmo o governo de Haknor saberia como enfrentar uma epidemia.
Portanto, não era esta a causa do procedimento que acabara de observar. Mas, por outro lado, não havia a menor dúvida de que o morto atirara contra seus companheiros. Só depois disso fora abatido. Por que haviam usado trajes espaciais para aproximar-se dele? Qual o motivo da incineração levada a efeito depois da rápida busca?
Senti-me na pista de um mistério. Se não estava muito enganado, os tripulantes da nave não se achavam interessados no resultado das lutas que se travavam em Haknor. Se haviam provocado o conflito, eles o tinham feito para dedicar-se calmamente aos seus afazeres?
— Que afazeres seriam estes, especialista Danger? — perguntei-me em voz baixa.
Arrisquei-me a sair da máquina e examinar as avarias de seu revestimento externo. A penugem apresentava algumas manchas provocadas por queimaduras. O esqueleto resistira perfeitamente ao impacto.
Restaurei as forças ao ar livre e tomei um gole de água. Meu tanque só estava cheio até um quarto. Estava na hora de reabastecer-me.
Kasom e os cinco nativos que o acompanhavam já deviam ter chegado ao planalto desértico. Deviam esperar em certo desfiladeiro, no qual não havia água. A nascente mais próxima ficava a nove quilômetros do ponto de encontro. Teriam de atingi-la antes que anoitecesse. As reservas de Kasom já haviam sido consumidas, apesar do odre de trezentos litros que ele levava.
Dei uma olhada em meu equipamento microrrelógio e voltei para o interior do cobo. Todos os controles haviam acendido o sinal verde. Arrisquei-me a passar voando junto à espaçonave. Ninguém notou minha presença.
Mais adiante, o desfiladeiro descreveu outra curva. Neste ponto saíram várias ramificações. Uma delas subia ingrememente e facilitava o acesso do planalto. Outras serpeavam entre altas encostas. Nunca vira uma região tão selvática.
Quando estava prestes a subir aos ares, avistei um homem. Usava um traje espacial, mas seu capacete estava despedaçado. Corria em direção a uma rocha e bateu nela com o pé com tamanha força que soltou um grito de dor.
Observei a cena de cima de uma rocha saliente. De repente senti um nervosismo que não conseguia explicar. Dali a pouco estava tão irritado que até mesmo os mostradores de meus instrumentos me incomodavam.
Fiquei surpreso ao notar que começava a odiar os ponteiros e as escalas. Concentrei toda minha força de vontade para combater a sensação e voltei a raciocinar claramente. O treinamento duro que havíamos recebido na USO ajudou-me a recuperar o autocontrole.
Até então, assistira ao comportamento do desconhecido como um espectador relativamente desinteressado. Mas, nessa altura, já conseguia imaginar por que quase chegou a quebrar os ossos de encontro à rocha e investia furiosamente em tudo que encontrasse pela frente.
Não demorou, e aconteceu o que eu esperava. Três homens uniformizados apareceram sobre uma plataforma voadora. Aproximaram-se numa série de manobras arriscadas, abateram a tiros o homem que parecia ter enlouquecido. Depois desapareceram tão depressa que mal consegui acompanhar a curva que a máquina descreveu.
Esse assassinato cometido a sangue-frio deixou-me abalado. O que estava acontecendo por aqui? Lembrei-me de que o cacique do sprinters aludira várias vezes a uma “zona da morte”.
Por que as pessoas que se encontravam nessa área enlouqueciam? Examinei os instrumentos e procurei localizar alguma coisa que não podia imaginar o que seria. Foi em vão. Por aqui não havia radiações que pudessem danificar as células cerebrais.
Voltei a sentir a tendência de enfurecer-me. Liguei o mecanismo propulsor e saí voando o mais rápido que minhas asas permitiam. À medida que subia, meu estado melhorava. Quando me encontrei novamente sobre o deserto pedregoso, não senti mais nada.
Com a cabeça cheia de idéias confusas, voei para o leste. Dali a quinze minutos avistei o vale em cujo interior meus amigos deviam esperar-me.
Fiquei nervoso. Comecei a planar e espiei para abaixo, à procura deles. Não se via o menor sinal de Melbar Kasom e dos nativos. De repente meu alto-falante emitiu um estalido.
— Cuidado, baixinho. O vis está bem em cima de você.
Agi por instinto. Virei a máquina de costas e dei início à subida, que terminaria num mergulho. Um monstro passou perto de mim aos gritos. Vi as garras estendidas e um bico cheio de dentes pontudos passarem a alguns centímetros de distância.
O vis deu duas batidas de asas, controlando seu vôo e voltou a precipitar-se sobre mim. Em virtude do peso de seu corpo, sua velocidade de queda era bem maior que a minha.
Descrevi uma curva para a direita e subi velozmente, batendo asas. Consegui escapar ao segundo ataque. Por um instante vi o lagarto voador. A envergadura de duas asas chegava pelo menos a três metros. O visor de reflexos de minha arma de radiações iluminou-se. Comprimi um botão que abriu o bico do cobo, fazendo surgir um canhão de radiações.
Arrisquei tudo, pois era minha única chance. Encontrava-me pouco acima do monstro e mergulhei em direção ao mesmo. Consegui enquadrá-lo por alguns segundos no circulo luminoso de minha mira automática.
O vis me esperava. Estava com o bico bem aberto. Quando me encontrava a apenas dez metros do monstro, abri fogo. Logo que o canhão de impulsos começou a rugir, nada mais escutei. O raio atômico cortou o osso da asa direita do lagarto, penetrou no corpo e lá perdeu a maior parte de sua energia. Apesar disso a energia com que saiu do corpo ainda foi suficiente para decepar-lhe o pé esquerdo.
Encolhi as asas e passei rente ao vis, que caiu ao solo com um grito estridente.
O combate aéreo deixara-me mais cansado do que eu acreditava. Exausto, pousei numa ponta de pedra e bloqueei o mecanismo das pernas, para poder tirar as mãos dos controles. Soltei um gemido e massageei as têmporas. Finalmente chamei Melbar Kasom.
— Muito bem, baixinho. A esta hora os saltadores o adoram. Nunca viram coisa igual. O que houve com você? Não sabia que está área pertence a um vis?
— Foi apenas um pequeno “defeito estético” em minha vida emotiva — respondi com a voz apagada. — Minha mente estava ocupada com outras coisas. Onde estão vocês? Tenha cuidado, para que os nativos não o ouçam.
— Não se preocupe. Estou falando no microfone de laringe, sem mover os lábios. Não estão ouvindo nada. Acham-se deitados embaixo de uma rocha saliente. Vou fazer um sinal.
A mão de Melbar era perfeitamente visível. Sai voando e pousei ao seu lado. Compreendi que mais uma vez me salvara a vida. Se o vis tivesse danificado minha máquina, teria caído ao solo.
Exausto, dormi um pouco. Quando acordei, os nativos haviam desaparecido.
Melbar Kasom estava sentado atrás de uma rocha com a arma engatilhada e observava a área. Abri o fecho e pus a cabeça para fora. O ertruso limitou-se a olhar para mim. Soube interpretar corretamente a expressão preocupada de meu rosto. Até então os sprinters nunca se haviam afastado de nós. E agora não estavam mais por perto.
— Não encare isso de forma tão trágica — disse Kasom para consolar-me. — Errar é humano. Você diz que é humano, e por isso mesmo não pode ser perfeito. Os sprinters concluíram logicamente que você não é nenhum cobo. Acho que não há mais nada a ser dito...
Minha garganta estava ressequida. Bebi apressadamente um gole de água e pedi que me contasse os detalhes.
— Foram embora há uma hora. Um deles quis matá-lo, mas os outros não concordaram. Fiz tudo para que saíssem em paz. Não tive outra alternativa senão informá-los sobre nossa missão. Estão de pleno acordo em que esclareçamos tudo. Também não gostam de que haja estranhos andando em sua área. “Lança-vermelha” prometeu não fazer nada contra nós. Prefere não avisar os acônidas.
Imaginei que devia ter sido muito difícil apaziguar os nativos, pois eu desrespeitara sua crença.
— Como foi que eles descobriram que nós os enganamos?
Melbar sorriu.
— Você, enquanto dormia, deve ter tocado no mecanismo de fogo. Seu bico abriu-se e o minicanhão saiu uns dois centímetros. Isso bastou para que os sprinters soubessem de tudo. Não iriam acreditar num cobo com uma arma energética embutida no corpo. Paciência, baixinho, foi um azar. Sabe onde fica o lugar mais próximo em que se pode encontrar água?
Sentia-me deprimido. Como pôde acontecer uma coisa dessas? Lancei um olhar para minha máquina e vi que a arma ainda estava à vista.
— Perguntei onde podemos encontrar água, baixinho — disse Kasom, em tom insistente.
— Sei onde fica a nascente — respondi, distraído. — Tem certeza de que o cacique não prepara nenhuma traição?
Kasom fitou-me com um expressão estranha.
— Ora, meu caro, se essa gente diz uma coisa, suas palavras nunca significam o contrário. Convenci-os de que, para eles, é vantajosos que se mantenha a crença no cobo sagrando. Para eles, isso trará um êxito apreciável em sua política tribal. Você foi visto numa das suas aldeias. “Lança-vermelha” terá uma oportunidade de consolidar seu poder.
— Compreendo. Obrigado, grandalhão.
— Por nada. Já deu uma olhada no meu odre?
Sim. Eu já havia percebido que ele estava vazio. Melbar olhou para o relógio.
— Daqui a cinco horas o sol desaparecerá. Até lá preciso de água, pois, do contrário, você me poderá incluir na lista da USO como mais uma pessoa desaparecida. Faça uma verificação de sua máquina. Acho que, por enquanto, não deveria voar.
Sabia que desejava proporcionar-me uma pausa. Além disso, para Kasom não fazia a menor diferença que ele me carregasse.
Dali a dez minutos iniciamos a caminhada. Enfiado no bolso externo que ficava na altura do peito de Kasom, apontei-lhe o caminho. O ertruso atravessava a saltos largos os vales cheios de curvas. O esforço que estava exigindo de seu corpo era incrível.
Em toda parte havia desfiladeiros ligados por gargantas. Pelos meus cálculos mantivemo-nos sempre na altura da depressão em cujo interior estava pousada a nave dos acônidas.
O microgravitor de Kasom funcionava a plena potência, mas com os pólos invertidos. A gravitação do planeta foi reduzida em 0,4% de seu valor natural. Era o máximo que o aparelho conseguia fazer. Para Melbar Kasom, que considerava a gravitação de 3,4 G tão normal como um homem sente a de seu planeta, os nove quilômetros que nos separavam da nascente representavam um passeio.
Atingimo-la muito antes do pôr-do-sol. Tomei um banho refrescante, voltei a enfiar-me na minha máquina e realizei mais um vôo até a espaçonave. No caminho de regresso penetrei nos vales e marquei os caminhos mais fáceis por meio de adesivos infravermelhos.
Voltei ao anoitecer. Kasom estava descansando. Ao ouvir o farfalhar das minhas asas, abriu os olhos.
Pousei, abandonei minha máquina-pássaro e voltei a mergulhar na água límpida, que saia de uma fenda na rocha e se acumulava numa bacia. Pelo que dizia Melbar, o líquido evaporaria dentro de quinze dias no máximo.
Voltei à margem, respirando ruidosamente.
— Nem consigo enfiar o pé direito nisso — resmungou o ertruso. — Que pena que não sou um siganês. Quanto terei de andar, anãozinho?
— Nada de insultos — respondi com um olhar selvagem.
Kasom sorriu.
— Quanto tenho de andar?
— São três quilômetros em linha reta, o que representa uma caminhada de dezoito a vinte quilômetros. Teremos de atravessar gargantas estreitas. Há duas ladeiras que deverão ser vencidas. Será que você consegue? A próxima nascente fica junto à espaçonave.
O grandalhão pôs-se a refletir. Se não conseguíssemos chegar à fonte, seria praticamente impossível voltar ao lugar em que nos encontrávamos. Afinal, Melbar tinha uma necessidade tremenda de água e alimentos. Com sua ração diária eu poderia viver folgadamente durante um mês.
— Está bem. Partiremos depois do pôr-do-sol. Você ficará no bolso e controlará o visor infravermelho. Preste atenção a qualquer ruído suspeito. Concentrar-me-ei exclusivamente no caminho.
Partimos dali a duas horas. Naquela época do ano, à noite duraria cerca de treze horas.
Fiquei de pé no bolso do peito e apoiei os braços na borda do mesmo. Coloquei os óculos infravermelhos e procurei as faixas adesivas; descobri-as sem a menor dificuldade.
Melbar corria incansavelmente pelas gargantas, subia as encostas pedregosas e saltava por cima de gigantescas fendas. Muitas vezes acreditei que minha hora havia soado. Até parecia que estava voando. Só depois de uma hora fez uma pausa.
Vencemos a segunda encosta íngreme e iniciamos a descida para o desfiladeiro que nos levaria ao local em que estava pousada a nave. Melbar não tomou conhecimento dos vinte metros de paredão liso que ainda restavam: desceu num salto. Mal consegui deitar de costas e aproveitar a ação de molejo do material de que era feito o bolso. Assim mesmo o impacto foi tão violento que quase perdi os sentidos.
— Será que você ficou louco? — disse num gemido, enquanto me punha de pé.
Melbar não respondeu. Continuou correndo. Cada salto de suas pernas gigantescas aproximava-nos uns dez metros do destino. Melbar disse que estava fazendo uma corrida gostosa.
No início do desfiladeiro, onde estava a nave, havia uma caverna espaçosa. Já a inspecionara e chegara à conclusão de que se prestava às nossas finalidades. Antes de dispor-se a acampar em seu interior, Melbar passou os olhos pela mesma.
Depois começou a beber. Já o conhecia, mas assim mesmo fiquei perplexo ao ver as quantidades enormes de água que consumia. Quando descansou o bocal da mangueira e arrotou, satisfeito, havia ingerido pelo menos trinta litros!
— Infelizmente temos de economizar água — disse o gigante em tom queixoso. — Vossa Senhoria tem alguma ordem especial?
Empertiguei-me e lancei-lhe um olhar de repreensão.
— O volume de seu cérebro é uma verdadeira indecência. Não é de se admirar que nele se desenvolvam processos mentais de categoria inferior.
— Se eu baixar o pé, você ficará achatado que nem uma minhoca atropelada por um trator — respondeu Kasom.
Saltei para um lugar em que não podia alcançar-me e fiquei em posição.
— Sentido, tenente! — berrei.
— Hem?
Melbar enfiou o dedo no ouvido.
Estive a ponto de invocar minha patente, mas naquele instante a expressão do rosto de Kasom modificou-se. Fiquei curioso.
Kasom pôs a mão no bolso e tirou um radiofone do tipo que os homens terranos costumam carregar numa mochila.
A linha ondulada do medidor automático de freqüência erguera-se abruptamente e parara no mesmo lugar.
O alto-falante emitiu um chiado. Eram sinais Morse.
— Breve-breve-longo-breve-breve... repetição — constatou o ertruso. — O que será isso? Só mesmo um principiante usaria essa forma de transmissão de mensagens. Os sinais vêm pela faixa ultracurta. São lentos e bem marcados.
Senti-me dominado pelo nervosismo.
— Localize o transmissor — disse mais alto do que necessário. — Vamos logo. Faça a localização. De onde vêm os sinais?
Melbar entrou em atividade. Dali a cinco minutos já sabíamos que os sinais vinham do nordeste. A potência da transmissão era desconhecida, e assim não havia possibilidade de determinar a distância. Mas a intensidade era tamanha que a distância não poderia ser superior a alguns quilômetros.
— O raio é de aproximadamente dois mil metros — disse Melbar. — Existe uma explicação?
— Existe, sim — respondi, zangado. — Será que as transmissões vêm da nave?
— Por que é que eles emitiriam sempre o mesmo sinal? Isso até parece um jogo de marcação.
— Um jogo de marcação? Isso até parece uma loucura. Quem poderia ter montado um goniômetro por aqui? Não se esqueça de que nos encontramos nas montanhas da sede, meu caro. O planalto desértico só representa pequena parte da área ocupada pelas mesmas. Além disso, o alcance da transmissão é tão restrito que a alguns quilômetros daqui não se ouvirá mais nada. Ou será que o receptor já entrou em atividade mais cedo?
— Só ouvi agora. Afinal, qual de nós tem ouvidos mais afiados?
— É claro que sou eu — respondi em tom convicto. — É bem verdade que antes também não ouvi nada. Mas está bem. Não vamos brigar por isso. Qual é sua opinião?
Esperei ansiosamente a sua resposta, pois já tinha a minha.
A escuridão parecia tornar-se mais impenetrável a cada minuto que passava. Lá fora não se via mais nada. Vez por outra ouvimos ruídos que só podiam ter sido produzidos pelos tripulantes da nave. O desfiladeiro desempenhava as funções de uma concha acústica.
De repente ouviu-se o uivo de uma máquina. O solo rochoso tremeu com a passagem de um blindado versátil, cujos contornos mal conseguimos reconhecer.
— Estão lançando mão de recursos consideráveis — disse o assimilado. — Tenho a impressão de que a atividade dos acônidas tem alguma relação com os sinais goniométricos.
— Não diga!
— Não seja atrevido, baixinho. Caso alguém se dê tanto trabalho para agir despreocupadamente no raio de alcance de um transmissor tão fraco, então supõe-se que isso tem um motivo especial.
— Não diga!
— Acho que ainda terei de inalar você, siganês. Tenha cuidado! Você seria capaz de dizer por que os acônidas usam comunicar-se desta maneira? Será que estão à procura de alguma coisa? Mesmo que o transmissor marque o lugar em que estão ocultos os tesouros da Galáxia, não se sabe como os acônidas souberam disso. Será que aquilo que o transmissor goniométrico indica é tão importante que vale a pena provocar uma guerra civil?
— A finalidade da guerra civil consiste em desviar a atenção dos haknoranos daquilo que realmente importa.
— Está bem. Vamos aceitar essa idéia. Resta saber quem está indicando o local da estação transmissora. E a indagação de como os acônidas ficaram sabendo disso é ainda mais difícil de responder.
Tive de controlar-me ao máximo para no irromper com as suposições que, de repente, surgiram em minha mente.
— O transmissor fica na direção nordeste?
— Foi o que eu disse.
— Foi lá que vi aquele louco furioso de traje espacial. E também foi lá que quase cheguei a ser dominado pelo sentimento de ódio.
— Ora, seu superanão!
— Cale a boca. Trata-se de alguma coisa que consegui identificar. Será que o transmissor goniométrico também emite impulsos que podem levar alguém à loucura? Pense um pouco, grandalhão. Os tripulantes da nave estão matando homens vindos de fora. De início pensei que fosse alguma doença infecciosa, mas logo abandonei a idéia. Será que todos estão desanimados devido a um estado de pânico que os leva a atirar contra os homens que não estão no gozo das suas faculdades? Talvez tenham uma visão errônea das coisas e pensem que os doentes foram atingidos por uma epidemia...?
— Impossível. Os acônidas nunca incidiram num erro tão grave.
— Também acho. Por certo sabem que qualquer pessoa que sai da nave fica louca ou começa a ter certo tipo de reação... não temos nada a ver com as ordens que tenham sido dadas pelo comandante acônidas mas não há como negarmos os fatos. E o fato é que ele manda atirar contra seus próprios tripulantes. Eu os vi revistarem um morto. Como não encontraram nada, transformaram-no em cinzas.
— Como este calor um morto não pode ser largado por ali.
— É claro que não, mas sempre lhes poderiam dar uma sepultura decente.
— Nos mundos acônidas não se costuma fazer isso. Os mortos são dissolvidos.
Fiquei caldo e refleti sobre a objeção. Melbar Kasom fitou-me intensamente.
— Está bem — disse, esticando as palavras. — Quer dizer que são incinerados segundo os usos dos antepassados. Resta saber por que os matam. A ciência médica dos acônidas é bastante desenvolvida. Por que não curam os doentes mentais? Acho que haveria um meio de dominá-los. Afinal, existem excelentes antídotos.
Fitamo-nos prolongadamente. O rosto de Melbar mal se destacava na escuridão. Depois de algum tempo começou a falar em tom pensativo:
— Quem sabe se por aqui existe uma coisa tão preciosa que nem estão interessados em dispensar o necessário tratamento aos doentes? Afinal, estes teriam de ser contemplados na partilha.
— A hipótese não é impossível, mas pressupõe que o comandante seja um homem sem escrúpulos. Já se deu conta disso?
Melbar descontraiu-se. Permanecemos em silêncio e pusemo-nos a refletir sobre o problema. Enquanto isso, os sinais “breve-breve-longo-breve-breve” saiam ininterruptamente do alto-falante do receptor. Os sons entrecortados deixaram-me nervoso.
Depois de algum tempo não suportei mais a incerteza. Sem dizer uma palavra, Melbar tirou minha máquina da mochila.
— Você não pode deixar de agir — disse. — Saia voando por aí e determine a posição exata do transmissor. Você conhece a freqüência. Acontece que, se você entrar num estado de instabilidade psíquica, não poderei ajudá-lo. Sua geringonça não possui nenhum controle remoto.
Fiz um gesto de indiferença e acomodei-me na minha poltrona anatômica. Dali a alguns segundos dei saltos para a frente, liguei o visor infravermelho e saí voando.
Passei a fazer a observação pelo laser, por ser mais seguro. O quadro tornou-se mais nítido, mas ficou restrito à área da tela. Por isso acabei dando preferência ao visor infravermelho, que me proporcionava um ângulo de visão bem amplo através dos respectivos óculos.
Sobrevoei a espaço nave a grande altura e, só mais adiante, voltei a penetrar no conjunto de desfiladeiros e gargantas. O planalto parecia ser cortado por um número maior de desfiladeiros do que supusera.
Quando cheguei ao lugar em que observara os loucos, voltei a sentir de repente a mesma inquietação de antes. Apesar disso prossegui no vôo, embora, depois de umas poucas batidas de asas, minha raiva crescesse a tal ponto que tive vontade de arrebentar os controles.
Saí de um desfiladeiro e vi à minha frente um vale amplo, cercado de todos os lados por paredões de pedra verticais.
Neste ponto quase perdi a razão. Concentrei o que me restava de poder de autodeterminação e liguei o dispositivo automático de subida. Mal cheguei a sentir que meu cobo subiu cada vez mais, como se quisesse partir para o espaço a fim de proteger-se. Por fim, fui envolto pela noite do planeta.
Relatório de Melbar Kasom
Cada vez mais desconfiado, fui fazendo minhas observações pelo rastreador de impulsos. Havia três horas que Lemy desaparecera pela escotilha de carga da espaçonave, pois pretendia tentar influenciar os tripulantes.
Na verdade, o fato de meu rastreador de ecos não indicar nada significava que o baixinho não fora descoberto nem preso. Num caso ou noutro os acônidas teriam começado imediatamente a rastrear a área por meio do radar, pois a presença do baixinho os levaria a concluir que havia outros inimigos por perto.
Tinha todo motivo para sentir-me tranqüilo, mas não confiava mais naquela calma depois que Danger voltara naquele estado miserável do seu vôo de reconhecimento.
Estava quase inconsciente quando o retirei de dentro do pássaro robotizado. Quando se recuperou, Lemy ficou tão furioso que não tive outra alternativa senão fechá-lo na palma da mão e segurá-lo por uma hora.
Só depois disso, sua mente voltou ao normal. Já sabíamos que a perturbação do espírito fora passageira. Bastava retirar-se da área de influência do misterioso transmissor e esperar um pouco para voltar ao normal.
Seis horas antes do pôr-do-sol, o baixinho já estava bem-disposto. Em virtude de seu temperamento agitado, não me deu sossego enquanto não concordei em que fosse dar uma volta pela nave.
O homenzinho que usava o nome de Lemy Danger era mais ligeiro que um alce terrano. Coloquei o microneutralizador gravitacional nas costas do baixinho e o regulei para a gravitação local.
O baixinho perdeu o peso. Fui até a primeira curva do desfiladeiro e atirei-o para a espaçonave. Chegou são e salvo e, como já disse, desapareceu pela escotilha de carga.
Estava deitado numa faixa de rocha saliente que ficava uns trinta metros acima do fundo do desfiladeiro. O lugar fora descoberto por Lemy. A saliência impedia que alguém pudesse ver de baixo. No entanto, não poderia arriscar-me a um combate com armas de fogo, pois não teria para onde fugir.
A nave estava a uns cinqüenta metros do lugar em que me encontrava. As irradiações térmicas do casco e das escotilhas das eclusas eram tão intensas que eu consegui vê-la perfeitamente com meus óculos infravermelhos.
Olhei para o relógio e vi que o sol deveria nascer dali a, mais ou menos, três horas. Era duvidoso que pudéssemos fazer qualquer coisa à luz do dia. Bem que gostaria de aproveitar a escuridão para procurar o emissor dos sinais goniométricos.
Fiquei cada vez mais nervoso. Rastejei mais um pedaço par acompanhamento frente e passei os olhos pela superfície da nave. Se Lemy agisse conforme eu esperava, arriscaria o pescoço para escutar o que os tripulantes conversavam e descobrir o que estava acontecendo por ali. Provavelmente se esconderia atrás de tudo quanto era aparelho, atrás dos pés das poltronas e de outros objetos, onde nenhum homem sensato desconfiaria da presença de um espião.
Não havia quem superasse o baixinho como espia. Era bem verdade que seu pedantismo me incomodava. Enquanto não soubesse exatamente o que havia levado os acônidas a Haknor, ele não voltaria.
Mais trinta minutos se passaram. Comecei a refletir à procura de um meio de tirar o baixinho da situação difícil em que se encontrava. Nunca levara tanto tempo para espionar uma tripulação...
Procurei convencer-me de que, no interior da nave, todo mundo devia estar dormindo. Mas as estreitas faixas de luz, visíveis através das aberturas do casco, provavam que parte da tripulação estava acordada. A grande escotilha inferior até estava aberta o suficiente para que se pudesse ver o interior. Grande número de acônidas, dos quais só reconheci os contornos, mexiam num veículo em forma de blindado.
Se o baixinho fosse inteligente, ficaria constantemente nesse recinto. Um grupo de homens trabalhando gosta de falar sobre os problemas que esperam resolver por meio de sua atividade.
Dali a dez minutos vi finalmente um pontinho luminoso que se desprendeu da eclusa. Lemy deixou-se cair e passou a planar pouco acima do solo. As emanações do jato de seu sistema propulsor eram tão insignificantes que apesar dos óculos infravermelhos mal consegui distinguí-las.
Uma vez chegado num ponto situado bem embaixo de mim, o anão empurrou-se com o pé e foi subindo. Peguei-o e enfiei-o no bolso do peito juntamente com seu aparelho antigravitacional.
Lemy não disse uma palavra. Comecei a retirar-me pela trilha de rocha. No momento em que pretendia saltar para o fundo do desfiladeiro, meu rastreador de impulsos emitiu um sinal. A antena direcional começou a girar rapidamente, tateando desfiladeiro com seus raios de eco que se deslocavam à velocidade da luz.
Fiquei parado, até que o chiado cessasse.
— Foi um rastreador? — gritou o baixinho dentro do bolso. — Aí! Faça o favor de ter mais cuidado nos seus movimentos.
Ergui ligeiramente o tórax, a fim não esmagar aquele mosquito. Dali a pouco chegamos a uma caverna. Fiquei triste ao notar que no interior da mesma não havia nenhuma nascente.
Água: era este o primeiro problema que teríamos de enfrentar. Assim que nascesse o sol, começaria a sentir a sede martirizante. No meu odre só havia alguns goles de água. Talvez fossem cinco litros, no máximo.
O local em que havia água ficava numa ramificação do desfiladeiro. Para chegar lá. Teríamos de passar junto à espaçonave ou encontrar um meio de contorná-la.
Lemy saltou do meu bolso e tirou a mochila antigravitacional.
— Faltam duas horas e meia para o raiar do sol — observei em voz baixa. — Como estamos de água? Prefiro não saltar junto à nave. Eles me localizariam.
— Isso é bastante provável — confirmou Lemy. — Partiremos imediatamente. Conheço um lugar que leva à nascente.
Saímos naquele mesmo instante. Dali a pouco já estava correndo pelo labirinto de pedra. Fiquei refletindo sobre o que poderia ter descoberto o baixinho. Era estranho que se mantivesse calado por tanto tempo. Quanto a mim, era orgulho demais para pedir-lhe que me contasse o resultado de sua espionagem.
Dali a duas horas comecei a sentir-me cansado. Era uma conseqüência das corridas dos últimos dias.
Ao nascer do sol, vi-me no interior de uma formação parecida com uma chaminé. Teria de escalar uma subida de cerca de trezentos metros.
Quando cheguei no topo, vi o desfiladeiro que ficava do lado aposto. A descida não foi nada fácil, ainda mais que o calor aumentava a cada minuto que passava.
Uma vez chegado embaixo, bebi parte da minha água, descansei durante dez minutos e prossegui na minha corrida. Já nos encontrávamos ao oeste da nave. Finalmente cheguei ofegante ao desfiladeiro, em cujo interior Lemy descobrira a nascente. A espaçonave encontrava-se a uns quinhentos metros.
Bastava transpor uma encosta e descer na garganta mais próxima.
Lemy saiu voando em seu cobo, a fim de sondar a área. Esperei até que aparecesse na curva mais próxima e fizesse um sinal. Atingi a caverna numa desabalada corrida. Matei a sede, enchi o odre e voltei correndo. Descobrimos outra caverna numa ramificação do desfiladeiro. Ficava a uns seis metros de altura e sua entrada estava coberta por uma placa de pedra.
Finalmente pude descansar. Não se via o menor sinal dos tripulantes da nave. Vez por outra ouvia-se o uivo do motor de um blindado. Não se percebia o ruído de tiros.
Quando o sol subiu mais alto, espantando a escuridão, pude ver melhor o baixinho. A expressão de seu rosto deixou-me assustado. Sentei-me numa posição mais cômoda e encostei-me à parede.
— O que foi que você descobriu? — perguntei.
Lemy estava sentado sobre meu pé, que também lhe servia de leito. Como não respondesse logo, derrubei-o com um ligeiro movimento.
— Seu bruto — disse, mas seu rosto continuou impassível.
Isso me deixou ainda mais nervoso.
Finalmente levantou a cabeça. Estava parado à minha frente e olhava para fora.
— Eles não sabem que basta esperar que os loucos fiquem bons — disse sem nenhum intróito. — Além disso, ainda acreditam que se trata de alguma infecção. A bordo da nave, ninguém imagina que o estado doentio pode ser causado por efeitos parafísicos. Dessa forma se explica por que os doentes são mortos a tiros e por que, ao se aproximarem dos mortos, usam trajes espaciais, que posteriormente são desinfetados. Nestas condições é natural que os cadáveres sejam incinerados. Essa gente ainda não se lembrou de isolar um dos doentes por mais de três horas. Logo após o pouso isso foi tentado, mas o comandante ordenou que o doente fosse morto. Se tivesse esperado mais uma hora, tudo teria voltado ao normal. Estão sendo vitimas de um terrível engano.
Preferi nada comentar. Lemy falava em tom monótono. Percebi que não esperava que eu falasse.
— A guerra civil foi provocada pelos acônidas. Há anos o governo vem recebendo ajuda financeira. A simples ameaça de suspender as subvenções secretas bastou para que as hostilidades latentes com os criadores independentes degenerassem em luta armada. O interesse do governo acônida por esta área data dum tempo muito mais longo do que supúnhamos. Não existe a menor dúvida de que se trata de um caso da competência da USO.
Lancei um olhar prolongado para o cobo de Lemy, em cujo compartimento de carga estava escondido o minitransmissor. Porém o baixinho limitou-se a sacudir a cabeça.
— Não. Por enquanto não devemos usar o rádio. Se o comandante acônida notar a presença da frota da USO, ele lançará uma bomba no vale. O que está escondido por lá é tão valioso que ele nunca permitiria que caísse nas nossas mãos. As ordens nesse sentido foram dadas logo após o pouso. Os planos de expansão dos acônidas não permitem o fortalecimento do Império.
Meu nervosismo diminuiu. Não poderia deixar de notar o estado sonhador de Lemy. Descobrira alguma coisa que não cabia num relato de poucas palavras. Permaneci em silêncio.
Mas, quando de repente o baixinho me ditou intensamente e deixou cair a mão direito até o quadril, prendi a respiração. A arma de radiações de Lemy era muito pequena, mas seus efeitos não me eram desconhecidos. Será que Lemy enlouquecera?
Por que assumira a posição típica de quem vai atirar?
— Acho que você vai atingir mais ou menos trezentos e cinqüenta anos de idade, certo, grandalhão? — perguntou, esticando as palavras. — Acha que isso basta?
Encolhi as pernas.
— Fique sentado, Melbar Kasom. Quero saber se esse tempo de vida é suficiente.
— Perfeitamente. É minha opinião sincera.
— Ainda bem, grandalhão, pois a poucos quilômetros daqui está a vida eterna para um de nós. Você se lembra das conferências realizadas no quartel-general? O Grande Administrador informou que alguém havia espalhado vinte e cinco ativadores celulares pela Galáxia. Esse alguém é o Ser energético do planeta Peregrino.
— Isso é de enlouquecer.
— Nada de promessas vazias, por favor. Os sinais de rádio são emitidos pelo ativador. Há algumas semanas vêm sendo captados por um comando explorador dos acônidas e são interpretados de forma mais ou menos correta no mundo central de Ácon, uma vez que Ele ou Aquilo energético já comunicou a todos suas intenções. Como sabe, a mensagem de rádio pôde ser ouvida em toda parte. Os agentes secretos de Ácon, que atuam neste planeta, entraram em ação. Fizeram a medição da área de loucura e voltaram a entrar em contato com seu mundo. O cruzador foi enviado para cá e os acônidas provocaram a guerra civil.
“Já têm certeza de que um dos vinte e cinco ativadores se encontra no fundo do vale. Infelizmente ninguém consegue aproximar-se dele. Subestimaram o humor macabro do Ser; os acônidas nem sabem que as irradiações que provocam a loucura não passam de uma brincadeira. Acham que se trata de um efeito permanente e lhe atribuem uma importância maior do que merece. A História da Terra revela que em certa oportunidade o Imortal formulou um enigma galático cuja solução levou à descoberta do planeta artificial Peregrino. O presente caso é semelhante, se bem que não é tão complicado.”
Lemy ainda continuava com a mão sobre a arma. Gritei em tom indignado:
— Deixe disso. Que tolice é essa?
— Não se pode censurar nenhuma criatura inteligente pelo simples fato de ansiar pela imortalidade.
— É claro que não.
— Pois você é um ser humano com todos os erros e fraquezas inerentes a essa condição. Melbar Kasom, quem me garante que neste momento você não está pensando em esquecer seu juramento de lealdade para apoderar-se desse aparelho?
Fitei Lemy, perplexo. Fiquei confuso ao notar que, em meu interior, surgiu um sentimento que não consegui definir. Seria a avidez da vida eterna, a vontade de obter a ativação celular bioquímica, que impediria o processo de envelhecimento?
Lemy sorriu como quem compreende tudo.
— Já está sentindo, não está? Eu também. Não posso negar. Resta saber qual de nós possui mais força de vontade, decência e consciência do dever. Lembro-me de um homem que usa o título de marechal e que ocupava um lugar ao lado de Perry Rhodan. Seu nome é Reginald Bell. Pois esse homem morrerá dentro de algumas semanas, a não ser que consiga um ativador Tenho a maior estima por este homem, que construiu o Império juntamente com Rhodan e Atlan. Então, Melbar Kasom, qual é sua decisão?
Passei a mão pelos olhos e fiz um esforço para reprimir uma estranha vontade...
— Grandalhão, não posso fazê-lo sozinho. Os acônidas são técnicos excelentes. Estão criando um método que lhes permitirá atravessar o campo de radiações. Tenho certeza de que bastará tocar o aparelho para que os impulsos produtores da alienação mental cessem. Dessa forma, a brincadeira chegará ao fim. Qual é sua decisão, especialista Kasom?
— O que foi que você resolveu? — perguntei.
— Minha decisão é a favor do Império. Pediram-nos que ficássemos com os olhos e os ouvidos bem abertos. Foi o que fizemos. Nenhum de nós tem o direito de ficar com o ativador. Ainda acontece que chegarei com toda certeza aos novecentos anos, e é quanto basta. É bem verdade que você só terá trezentos e cinqüenta anos de vida.
Levantei-me. Em alguns minutos recuperei o autocontrole. O rumorejar martirizante em meu interior chegou ao fim.
— O que vamos fazer? Tem algum plano?
Lemy tirou a mão de cima da arma.
— Tenho. Já fiz a interpretação do diagrama de meu localizador de impulsos. A faixa de ondas espalha-se na horizontal em todas as direções.
— É na vertical?
— Também, mas a intensidade é menor. O ativador está numa caverna situada na encosta norte do vale. Para os acônidas, isso representa uma desvantagem, pois o acesso fica bem do lado oposto ao que se encontram. Terão de viajar, voar ou correr uns seiscentos metros para atravessar o vale. Terão de vencer as radiações periféricas menos intensas para atingir a entrada do vale.
— Por que não penetram no vale por cima?
— Já tentaram. As máquinas são muito grandes. Meu cobo representa uma chance melhor.
Discutimos o plano. Constantemente prestávamos atenção ao ruído dos motores dos blindados que uivavam lá fora. Lemy notara que os veículos mais velozes haviam sido equipados com tudo quando era dispositivo de defesa contra radiações.
Havia uma coisa que eu ainda não compreendia. Perguntei pelo comando explorador que pela primeira vez teria captado as transmissões goniométricas. O alcance das mesmas era muito reduzido. Por que aqueles acônidas haviam vindo às montanhas da sede?
— Por acaso — disse o baixinho. — Estavam à procura de um local adequado para a fabricação de armas proibidas. Nessa oportunidade passaram por aqui e ouviram os sinais Morse.
Discutimos todas as hipóteses possíveis e fomos dormir. À noite traria a decisão. Teria de restaurar minhas forças e o baixinho precisava controlar os nervos.
Foi um dia muito longo. A cada momento erguia-me, sobressaltado. Só o frescor do início da noite proporcionou-me o repouso de que precisava.
Relatório de Lemy Danger
A fim de chegar ao destino sem perda de tempo, arrisquei-me pouco antes do pôr-do-sol a fazer um ligeiro mergulho para dentro do vale e lançar uma luminária infravermelha nas proximidades do local em que se encontrava o ativador celular, cuja posição fora determinada goniometricamente.
Caiu bem próxima da entrada de uma caverna que tinha pouco mais de dois metros de altura. Distinguia perfeitamente suas irradiações térmicas. Essas irradiações eram tão intensas que até mesmo a abertura no paredão de rocha chegou a ser iluminada. Se conseguisse descer sem perda de um segundo e subir utilizando o impulso obtido ao amortecer a queda da máquina, haveria uma possibilidade de ser bem-sucedido.
Ao arremessar a luminária, já sentira a força medonha, embora tivesse acionado o mecanismo de lançamento cem metros acima do fundo do vale. Depois disso precisei de duas horas de descaso.
Todavia, a experiência revelara que o efeito enlouquecedor não surgia abruptamente. Podia-se resistir por algum tempo.
Agora tratava-se de recolher o aparelho depositado em haknor. A presença dos acônidas era um elemento perturbador. Pareciam loucos. Constantemente surgiam pessoas que queriam fazer mais uma tentativa de apoderar-se do ativador. O comandante dava-lhes cartas branca. Ainda dispunha de mil tripulantes...
Planei para uma encosta, pousei na mesma e apliquei-me uma injeção estabilizadora da circulação. Quando senti o efeito, tive consciência de ter feito o que estava ao meu alcance para fortalecer o corpo e o espírito.
Melbar recebera ordens para dar-me cobertura, acontecesse o que acontecesse.
Olhei para o relógio. Estava na hora. Por certo o assimilado já encontrara uma boa posição defensiva. Saí voando.
Quinhentos metros acima do vale já comecei a sentir um efeito menos intenso do aparelho. O fundo do vale ficava uns quatrocentos metros abaixo do nível do planalto. Dessa forma, as irradiações tinham um alcance de novecentos metros na vertical. Na horizontal chegavam muito mais longe. O lugar em que estava Melbar ficava pelo menos a mil e quinhentos metros do ativador...
Não perdi mais tempo. Fixei os olhos na luminária, encostei as asas ao corpo e desci num ângulo de noventa graus. As encostas rochosas aproximavam-se velozmente. Dali a alguns segundos cheguei aonde queria.
O impacto das radiações era tão forte que até tive a impressão de ter esbarrado num objeto sólido. Meus sentidos ficaram perturbados. Consegui neutralizar o primeiro acesso de raiva e, no mesmo instante, controlei a queda da máquina.
Passei para a horizontal junto ao solo e prossegui à velocidade máxima em direção à abertura do paredão.
Sabia que estava gritando que nem um louco. Uma energia parapsíquica queria obrigar-me a cessar toda atividade racional e passar a bater e atirar em tudo que aparecesse à minha frente.
Apesar disso prossegui no vôo, batendo fortemente as asas. Depois de algum tempo um espaço oco surgiu à minha frente.
Vi um objeto fosforescente sobre um bloco de pedra. Quando o fitei diretamente, ele me fascinou. Esqueci minhas intenções. As radiações paranormais envolveram-me por completo e comecei a esbravejar.
No entanto, antes de iniciar o vôo condicionei meu subconsciente de forma tal que, mesmo sem saber poderia agir corretamente. Reuni toda minha capacidade de autodeterminação e consegui dirigir a raiva incontrolável exclusivamente sobre o aparelho.
Fiquei submetido às radiações, mas continuei a voar em direção ao ativador. Dominado pela fúria destrutiva, precipitei minha máquina sobre o aparelho, passei os braços pela abertura do peito e segurei o metal reluzente. A pressão formidável desapareceu instantaneamente. Alguém riu tão alto que pensei que minha cabeça fosse estourar.
— Seja bem-vindo — disse a voz telepática. — Proteja o bem precioso que você acaba de conseguir e procure atingir a imortalidade ao menos por uma hora...
Mais uma vez a gargalhada se fez ouvir, mas logo cessou. Quase inconsciente, estava debruçado por sobre o aparelho que mal consegui abranger com os braços.
Ofegante e cada vez mais nervoso, saí da máquina e procurei descobrir uma solução. Ouvi um ruído. Peguei a arma e procurei abrigar-me.
— Sou eu, Melbar Kasom — disse a voz retumbante do ertruso. — Você deve ter encontrado o aparelho, senão as radiações não teriam cessado de repente. Onde está você, Lemy? Lemy...!
Respondi, e Kasom entrou correndo na caverna. Não deu a menor atenção ao ativador, que poderia proporcionar a vida eterna a um homem.
— Os acônidas não levarão mais de cinco minutos para descobrir que as radiações enlouquecedoras cessaram. Há dois veículos parados na entrada do desfiladeiro em cujo interior você viu um louco furioso. Qual de nós levará o ovo a um lugar seguro?
— Você não deveria ter vindo — disse num gemido.
O mal-estar e as dores de cabeça continuavam a martirizar-me.
— Como pretende fugir deste vale? Os acônidas bloquearão a entrada, Kasom.
— Não pude deixar de saber o que estava acontecendo com você, baixinho. Se tivesse havido algum imprevisto, eu poderia ao menos tentar salvar o ativador. Na costa sul existe um lugar em que se pode tentar a escalada. É possível que eles nos supreendam. Qual de nós ficará com o aparelho?
Quase não dissemos mais nada. Melbar enfiou a mão num dos seus profundos bolsos e tirou um microgravitador. Amarrei-o às minhas costas. Dessa forma o peso de meu corpo foi neutralizado, o que representou certo alívio para o funcionamento do mecanismo do cobo.
Atirei fora o equipamento que se encontrava no interior de meu compartimento de carga. Fiquei apenas com o hipertransmissor. O ativador celular estava preso a uma corrente, que servia para carregá-lo. Kasom passou essa corrente em torno das minhas pernas de cobo e fez um nó.
Entrei na máquina e apertei os cintos de segurança. O grandalhão carregou-me para fora da caverna. Uma vez ao ar livre, atirei-me para o alto e iniciei meu vôo, ligando a máquina à potência máxima. Quando o deserto pedregoso entrou em meu campo de visão, Kasom já estava pendurado no paredão íngreme e iniciava a escalada. Dali a alguns minutos, as fúrias do inferno pareciam estar às soltas no interior do vale.
Os veículos blindados atravessaram velozmente a garganta de acesso e dirigiram-se à caverna. Sentado na borda superior do vale, espiei para baixo. O calor do corpo de kasom produzia uma débil imagem infravermelha, mas esta mal se destacava da rocha aquecida.
Disposto a não recuar diante de nada, fiz sair a canhão pelo bico de minha ave e fiz pontaria para um dos veículos blindados. O intercâmbio de mensagens faladas entre os acônidas era tão intenso que podia perfeitamente assumir o risco de entrar em contato com Melbar.
— Onde está você, gorducho?
— Já venci metade da subida — respondeu este. — Você está em lugar seguro?
— Estou, sim. Já cheguei ao planalto.
— Pois continue voando.
— Sem você não.
— Não diga tolices, baixinho. O aparelho é mais importante que qualquer coisa. Desça para a planície, transmita o pedido de socorro e mude de lugar. Ficarei escondido e mais tarde transmitirei um sinal goniométrico.
Apesar de tudo esperei que Kasom concluísse a escalada. Lá embaixo irrompeu uma luta armada que provavelmente teve origem num engano. Melbar saiu correndo e segui-o com a máquina sobrecarregada. Neste momento um rugido saiu dos desfiladeiros.
— Estão decolando — transmitiu Kasom. — Aqui em cima serei localizado imediatamente. Qual é a melhor descida? Preciso chegar à nascente onde acampamos por último. Voe à minha frente e procure o caminho.
Ele já conhecia o terreno. Antes da nave acônida sair do esconderijo, o gigante ertruso já estava descendo pela encosta em desabalada carreira. Apontei-lhe o caminho que dava para a nascente e sai voando.
— Esperarei por você. Se não receber nenhum sinal goniométrico, não perca tempo procurando por mim. Faça um trabalho perfeito, meu pequeno amigo.
Enquanto atravessava à noite num vôo veloz meus olhos se umedeceram. Ainda estava pensando em Melbar Kasom, quando mergulhei sobre a planície a cem quilômetros de distância e transmiti uma mensagem ao cruzador da USO que se mantinha à espera. E imediatamente mudei de posição.
Mal o tinha feito, um monstro desceu do céu, cuspindo fogo. O solo abriu-se no lugar de que transmiti a mensagem. Os acônidas não tiveram a menor dúvida em devastar a paisagem com uma bomba nuclear de grande potência.
Dali a cinco minutos, o cruzador enviou sua resposta pela hiperfaixa da USO. Voltei a chamar e, por meio de um impulso condensado, pedi o estado de prontidão de primeiro grau. Dessa forma, uma esquadrilha da USO chegaria dali a pouco. Depois voltei a mudar de posição.
A espaçonave continuou visível até o raiar do dia. Meu rastreador de impulsos funcionava ininterruptamente. Os forasteiros estavam à procura do desconhecido que lhes tirava o ativador à frente do nariz. Mas o mais importante era que, com minhas mensagens de rádio facilmente determináveis pela goniometria, conseguiria não fazê-los sair a procura de Melbar Kasom.
Três horas depois do nascer só sol, a nave acônida acelerou de repente e rugiu em direção ao céu. Dali a quarenta minutos, o comandante do cruzador que se aproximara em vôo linear comunicou que se vira obrigado a destruir a nave do Sistema Azul.
Os acontecimentos que se seguiram não me interessaram mais. Voei cautelosamente ao planalto desértico e, no fim da tarde, cheguei ao lugar em que estava Melbar.
Não demorou mais de vinte e quatro horas e os membros do governo haknorano descobriram o que acontecia com quem viola as leis do Império. Uma frota interventora comandada por Atlan aproximou-se do planeta.
As hostilidades entre as tropas do governo e os rebeldes foram suspensas.
Melbar e eu fomos recolhidos por um barco espacial. Este nos deixou no porto espacial de Tesonta, onde o lorde-almirante deu ordem para que nos dirigíssemos à nave capitânia.
Envergando um uniforme bem passado, fiquei em posição de sentido sobre a escrivaninha do arcônida imortal.
O ativador celular encontrava-se na minha frente. Só depois de nossa chegada, Atlan descobrira o que havíamos encontrado em Haknor.
O gorducho estava de pé a meu lado. Os oficiais da esquadrilha estavam presentes, e também o Tenente Hymik, cuja equipe científica confirmou que a peça era genuína.
Atlan formulou uma pergunta. Refleti para encontrar a resposta. Depois de algum tempo respondo em tom discreto:
— Pois bem, sir, um homem que pode chegar aos novecentos anos não tem tanta vontade de alcançar a vida eterna. Além disso... — interrompi-me e passei os olhos pelo meu corpo. — além disso, por mais que quisesse, não poderia usar o aparelho.
A seriedade desapareceu do rosto de Atlan. Sua gargalhada alegre deixou-me muito feliz.
É bom que o leitor saiba que o dia em que um siganês pode prestar um favor a um terrano sempre é um dia de festa. Senti-me feliz, e era quanto bastava.
— Mas o senhor poderia usar o aparelho, Melbar Kasom — comentou Atlan.
Fitei o gorducho com uma expressão de curiosidade. Era um sujeito presunçoso, mas nem por isso deixava de ser meu amigo. Era claro que nunca lhe diria isso.
— Os belos exemplares de homem ertrusos também atingem uma boa idade, sir — respondeu tão confiante que me fez respirar profundamente. — Ainda acontece que Lemy havia dito que uma certa pessoa deverá morrer dentro de algumas semanas, se não receber o ativador.
Dessa forma o assunto estava resolvido.
Depois disso formos dispensados. A missão estava concluída. Quando cheguei à porta do camarote especialmente preparado por mim, medi Melbar Kasom com os olhos.
— Coma e engorde, seu belo exemplar de homem! — disse em tom zangado. — Veja lá, seu saco de toucinho. Ainda lhe ensinarei o que outras pessoas entendem por discrição e decência.
— Sua boca é maior que a partícula de poeira cósmica que você costuma chamar de Siga — respondeu Melbar.
Nesse momento colhi os frutos do cuidado que tivera ao regular minha arma para a potência mínima. Num movimento instantâneo saquei a arma e disparei no dedo do pé esquerdo do gigante. A bolha produzida pela queimadura lhe serviria de lembrete.
Kasom começou a berrar que nem um animal pré-histórico. Saltava num pé só. Enfiei-me no meu camarote e tranquei a porta. Ouvi atentamente as terríveis ameaças, que depois de algum tempo terminaram num gemido de dor.
Nunca se deve ofender um especialista siganês que tenha minha respeitável estatura...
K. H. Scheer
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