Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O Morto que Não Deve Morrer
O espírito de Ellert trava uma luta com o plasma... E seu corpo entra em decomposição!
Estamos no ano 2.113 do calendário terrano. Quer dizer que, para o homem do planeta Terra, menos de cento e cinqüenta anos se passaram desde que o primeiro foguete de propulsão química conseguiu pousar na Lua, dando início à verdadeira navegação espacial.
Esse tempo é extremamente curto, se medido pelos padrões cósmicos. Mas o Império Solar, criado e dirigido por Perry Rhodan, conseguiu transformar-se numa das vigas mestras do poder galáctico.
Naturalmente os terranos encontraram colaboradores importantes na execução da tarefa por eles mesmos proposta. Basta mencionar o arcônida Crest, o Ser energético de Peregrino, Atlan, Harno, os swoons e Gucky, o rato-castor. Mas a tarefa nunca poderia ser cumprida se não fosse a atividade desinteressada e a capacidade de sacrifício de todos os terranos, que traziam no coração o anseio de atingir as estrelas.
A situação criada na Galáxia pela ação destrutiva dos robôs positrônico-biológicos já se tornou menos tensa. A aliança entre a Terra, os arcônidas e os acônidas foi estabelecida por contrato. Só assim Perry Rhodan ficou com as costas livres, ainda mais que os acônidas suspenderam, por ora, os ataques traiçoeiros que lhes granjearam uma triste fama.
Por isso Perry Rhodan pode dedicar-se exclusivamente ao problema de apoderar-se da arma destrutiva dos pos-bis. Ernst Ellert, o “regulador”, presta-lhe ajuda. O título — O Morto que não Deve Morrer — representa uma alusão à sua pessoa.
Há cem anos a hipótese não seria considerada apenas inconcebível, mas passaria por loucura rematada. A hipótese de que hoje, num certo dia do mês de outubro do ano 2.113, alguém pudesse vencer com um único passo a distância que separa Árcon e o sistema solar — uma distância superior a trinta mil anos-luz.
Bastava um passo, e o homem atravessava metade da Via Láctea.
Evidentemente essa proeza só se tornava possível num lugar em que tivesse sido montado um transmissor de matéria.
No caso de que aqui se trata, Rhodan e Reginald Bell haviam saltado de Árcon III para Marte — ou, mais precisamente, haviam andado. Os acônidas, que eram aliados dos terranos, haviam instalado transmissores de matéria em ambos os lugares. A nave capitania Teodorico permaneceu em Árcon III, onde seria preparada para a operação especial que se pretendia levar a efeito.
Reginald Bell caminhava ao lado de Rhodan pelo gigantesco hall do porto espacial de Marte e resumiu:
— É exatamente como costumava ser na Terra. O vôo de Londres para Paris era mais rápido que a viagem do aeroporto ao hotel. E hoje leva-se menos tempo para atravessar metade da Galáxia que o consumido no vôo de Marte para a Terra.
— Não se esqueça — disse Rhodan — que hoje somos passageiros comuns que participam do tráfego normal Terra—Marte. Utilizamos os vôos escalados entre os dois planetas. Se viajássemos na Teodorico, chegaríamos mais depressa.
— Tomara que não haja problemas na alfândega — disse Bell, em tom irônico, enquanto contemplava o movimento estonteante no interior do porto espacial. — Uma nave de hora em hora! Quem pensaria nisso há algum tempo, quando nosso vôo à Lua foi uma sensação mundial?
— Os tempos mudam — limitou-se Rhodan a dizer, enquanto cumprimentava amavelmente um oficial, que parará de repente, perplexo.
A memória fisionômica de Rhodan era fenomenal.
— É o Coronel Jenkins, se não estou enganado. Ainda continua em Marte?
— Mister Rhodan... que surpresa vê-lo aqui! Desculpe, mas eu estava tão distraído. Bom dia, mister Bell.
Bell também o cumprimentou.
— Será que o senhor é o oficial alfandegário? — perguntou para certificar-se.
— É claro que não. Cuido do movimento dos viajantes. A alfândega é um setor subordinado, mas o senhor sabe perfeitamente que ela já não desempenha um papel importante. Só tomamos cuidado para que ninguém leve doenças de um lugar para outro.
— Quer dizer que as doenças pagam direitos? — perguntou Bell, com uma risada.
Rhodan sorriu e olhou para o relógio. O foguete da linha regular decolaria dentro de dez minutos.
O Coronel Jenkins sacudiu a cabeça.
— É claro que não, mas a Alfândega cuida disso. Caso alguém tente contrabandear um alienígena para a Terra, então passa a existir o perigo de que certos germens desconhecidos...
— Entendido — disse Bell, batendo nos bolsos do uniforme. — Como vê, não escondi nenhum sáurio venusiano.
— Não leve isso muito a sério, coronel. Mister Bell aproveita-se do fato de viajarmos como simples passageiros. O senhor há de reconhecer que isso não acontece todos os dias. Mas acho que devemos ir andando, senão a nave decolará sem nós.
— Isso é perfeitamente possível, mister Rhodan — confirmou Jenkins, com um cumprimento respeitoso. — Boa viagem, cavalheiros.
Mais tarde, quando já se encontravam na cabina dupla, Bell espreguiçou-se, muito satisfeito, na cama, e fechou os olhos.
— É estranho — disse com um suspiro. — Outras pessoas têm de arranjar algo de especial para divertir-se. Conosco acontece exatamente o contrário. Agimos como pessoas normais, para descansar. Percorremos o trecho Árcon—Terra num transmissor, mas agora estamos numa nave de passageiros e voamos à Terra. Poderíamos ter voado perfeitamente num cruzador da frota estacionada em Marte.
— Pois é justamente isso! — disse Rhodan, e também sé deitou.
Queria aproveitar em cheio as poucas horas de descanso.
— O homem sempre procura aquilo de que normalmente não pode dispor. O cidadão médio procura o extraordinário e nós... o absolutamente normal. Para seu governo, trata-se de um problema psicológico.
Bell não respondeu. Conservou os olhos fechados e sentiu a trepidação leve produzida pelos propulsores. Marte já mergulhara nas profundezas do espaço, e a nave desenvolvia mais de mil quilômetros por segundo. Lembrou-se de que há uma hora ainda se encontravam em Árcon III, o planeta do governo dos arcônidas, situado na nebulosa M-13. Gucky, o rato-castor, protestara violentamente ao saber que teria de ficar. Rhodan lhe prometera que só demoraria alguns dias. Depois disso ele e Bell voltariam e trariam alguém.
Dali em diante, Bell costumava refletir intensamente para descobrir quem era a pessoa que Rhodan pretendia levar. Qual seria o ser que Rhodan pretendia levar da Terra, a fim de apoiá-lo na luta contra os pos-bis, os robôs pensantes que ninguém sabia de onde vinham?
Rhodan mantivera-se calado.
A nave de passageiros corria cada vez mais velozmente pelo espaço, até o momento em que percorreu metade do percurso gigantesco, quando começou a desacelerar.
Pousou no porto espacial de Terrânia cinco horas após a decolagem de Marte.
Ninguém poderia negar que os habitantes da Terra davam muito valor a certas tradições.
O trecho poderia perfeitamente ser percorrido em dez minutos.
A paciência de Bell foi submetida a uma prova muito dura.
Depois de algumas conferências preliminares com Mercant e outras pessoas, Rhodan encontrou-se, no Instituto de Ciências de Terrânia, com o médico ara Kule-Tats e com o robólogo Van Moders, que eram os maiores especialistas vivos na área da pesquisa de robôs. Kule-Tats, que se juntara aos terranos há pouco tempo, já prestara serviços valiosíssimos e ajudava o especialista Van Moders na execução de sua difícil tarefa. O objetivo da dupla consistia em pesquisar as funções dos robôs positrônico-biológicos, também conhecidos como pos-bis, e desvendar o mistério que envolvia essa raça meio orgânica e meio mecânica.
Bell preparou-se para uma palestra monótona e enervante, pois sabia que os cientistas têm um hábito bastante incômodo para o leigo, que é o de exprimir as coisas mais simples em termos extremamente complicados. Mas teve uma surpresa agradável.
— Já conseguimos bons progressos — disse Van Moders, quando entraram no escritório bem iluminado. — Se não fosse Kule-Tats, por certo não teria conseguido descobrir certos dados importantes.
— Van Moders participou do trabalho tanto quanto eu — objetou o ara, um homem muito magro.
Desde que se formara a grande coalizão galáctica entre os acônidas, os arcônidas e os terranos, o ara passara a trabalhar com um fervor redobrado. O temor de um inimigo aparentemente invencível unira as raças da Via Láctea, que passaram a realizar esforços comuns em prol da tarefa de descobrir o ponto fraco na defesa dos pos-bis, ou de construir uma arma capaz de destruí-los.
Para isso tornava-se necessário antes de mais nada saber exatamente quem e o quê eram os pos-bis.
— Nenhum dos senhores deveria ser modesto demais — disse Rhodan ao sentar.
Os dois cientistas e Bell também se acomodaram.
— Façam o favor de relatar tudo — pediu Rhodan.
O ara lançou um olhar para Van Moders. Este começou a falar:
— Está bem. Falarei por nós dois, mas conheço Kule-Tats. Ele me interromperá depois de duas ou três frases. Ele é de opinião que uma discussão é mais fecunda e mais fácil de compreender que uma exposição seca.
— Também penso assim — disse Bell, em tom indiferente. — Pode começar.
Van Moders respirou profundamente.
— Sempre estivemos convencidos de que os pos-bis sempre fossem aquilo que parecem ser hoje em dia.
Principiou, para logo em seguida fazer uma pequena retificação:
— Sem dúvida tínhamos suposições, mas nunca conseguimos provas concludentes para as mesmas. Dessas suposições, juntamente com as pesquisas já realizadas e a consulta formulada ao computador positrônico resultou um... bem, digamos que disso resultou uma resposta global provisória.
Rhodan inclinou o corpo e fitou-o.
— Ah!
Foi só o que disse. Bell manteve-se em silêncio e observava ora o ara, ora Van Moders.
— Temos certeza — prosseguiu o especialista em robôs — de que originariamente os pos-bis eram apenas robôs iguais a quaisquer outros, que funcionavam em base mecânica e positrônica.
Olhou em torno, como se esperasse que alguém manifestasse sua concordância com esta constatação, mas apenas encontrou os olhares curiosos de Rhodan e Bell.
— Em outras palavras, os seres que hoje são chamados de pos-bis já foram robôs comuns, que há várias dezenas de milênios foram construídos pelos seres de Mecânica, que os deixaram para os laurins. Já sabemos disso, mas ainda não sabemos por que aconteceu isso. Talvez os seres de Mecânica tenham construído os robôs por ordem dos laurins, talvez foram mesmo obrigados a fazê-lo. Como sabe, trabalhamos exclusivamente na base de suposições.
Rhodan confirmou com um gesto. Kule-Tats apressou-se a dizer antes que Van Moders pudesse prosseguir:
— Não há dúvida de que os habitantes de Mecânica, que então já eram conhecidos como excelentes construtores de robôs, trabalhavam por conta dos laurins, esses seres invisíveis e misteriosos, vindos do espaço interestelar. Van Moders já ressaltou que os laurins receberam robôs normais. De que forma esses robôs se transformaram em seres dotados de sentimentos? Quem lhes deu o plasma pensante, aquilo que eles chamam de “interior?”
— Era o que eu pretendia explicar — interrompeu Van Moders. — Os laurins encomendaram os robôs para uma finalidade perfeitamente definida, finalidade sobre a qual evidentemente nada sabemos. Apenas podemos formular suposições, mas acho que o senhor não se dará por satisfeito com isso. De qualquer maneira Kule-Tats e eu estamos convencidos de que os laurins implantaram os blocos de plasma celular nos robôs. Seja qual for o motivo pelo qual isso aconteceu, tal implantação representou uma experiência que até hoje provavelmente não encontrou igual. Os laurins procuraram construir máquinas capazes de pensar independentemente.
— Isso mesmo — disse Kule-Tats. — Neste ponto estamos perfeitamente de acordo. Mas há outro ponto que deu origem a divergências. Quanto a mim, sou inclinado a acreditar que a mutação da massa plasmática resultou de um puro acaso, mas meu colega Van Moders defende a opinião errônea de que...
— Opinião errônea? — perguntou Van Moders com um movimento de desprezo. — Quem cometeu um erro foi o senhor.
— Por enquanto — disse Rhodan — não posso saber qual dos dois está errado. Provavelmente esta pergunta só poderá ser respondida num futuro distante... se é que um dia isso se tornará possível. Exponha sua teoria, mister Moders. Veremos se a mesma parece mais plausível que a de seu amigo Kule-Tats.
Van Moders sorriu como quem quer pedir desculpas.
— Perdão se me deixei levar pelo fervor científico. Sou de opinião que, desde o início, os laurins pretendiam, por meio da implantação do plasma, levar os robôs a adotar um comportamento bem definido. Pretendiam conferir-lhes uma carga mental... Tal carga traria certas vantagens para os laurins. Se não fosse assim, nunca teriam realizado a experiência com o plasma implantado. Acho que esta teoria tem bastante lógica para ser aceita, inclusive por Kule-Tats.
— Até aqui estamos de acordo — disse o ara.
— O que aconteceu depois disso? Dê a sua opinião — solicitou Rhodan.
Van Moders continuou a defender seu ponto de vista:
— Os laurins fizeram com que o plasma “pensasse” da forma que eles queriam. Neste ponto cabe ressaltar que nem Kule-Tats nem eu estamos em condições de dizer uma única palavra sobre a origem dessa misteriosa substância. Por enquanto sua procedência continua envolta em mistério. No curso das experiências, o plasma sofreu uma mutação degenerativa. Deixou de pensar conforme os laurins queriam, e passou a investir contra os mesmos, e isso com um ódio inacreditável. Isso me leva à suposição de que o plasma, que até então permanecera indefeso diante dos laurins, finalmente encontrara nos robôs um meio adequado de agir contra os antigos opressores.
Rhodan fitou o jovem robólogo com uma expressão pensativa.
— Isso parece bastante plausível, mister Moders. A diferença entre sua concepção e a de seu colega é insignificante e não influi no resultado. Sabe-se que o exército de robôs, formado pelos laurins para fins desconhecidos, de repente se revoltou e investiu contra seus antigos senhores. Os robôs adquiriram sua independência. Transformaram-se em inimigos mortais de seus criadores. É estranho, bastante estranho... Qual terá sido o acontecimento que de repente os levou a odiar seus “pais”, e odiá-los de tal forma que mesmo hoje, quando muitos milênios já se passaram, continuam a ser inimigos mortais dos invisíveis?
“Um dia teremos de encontrar a resposta a esta pergunta. Mas, por enquanto, quero agradecer-lhes. Os senhores prestaram um serviço inestimável, não só a mim, mas a toda a Galáxia”.
Rhodan fitou atentamente os dois cientistas e concluiu!:
— Pretendo realizar uma operação especial, tendo como alvo os pos-bis. Por enquanto não me perguntem pelos detalhes. Nem mesmo mister Bell os conhece. Gostaria que um dos senhores me acompanhasse. De início iremos a Árcon. Quem está disposto?
Van Moders lançou um olhar indagador para o ara.
— Se Kule-Tats quiser acompanhá-lo, não terei nenhuma objeção, mister Rhodan. Minhas pesquisas entraram num estágio muito importante e...
— Irei com o senhor — disse Kule-Tats, batendo no ombro do terrano, num gesto de agradecimento. — Existem certas coisas que eu gostaria de examinar, mas isso só se tornará possível lá fora, durante a operação. Quero estudar o comportamento dos pos-bis, especialmente quando se vêem em situação difícil. O senhor acredita que terei oportunidade para isso?
Um sorriso condescendente surgiu no rosto de Rhodan.
— Receio que até tenha mais oportunidades do que deseja.
Levantou-se e fez um sinal para Bell.
— Eu o avisarei, Kule-Tats. Iremos a Marte amanhã ou depois de amanhã e dali voltaremos a Árcon III pelo transmissor.
Apertou as mãos dos dois cientistas e despediu-se.
— Mais uma vez, muito obrigado. Um dia teremos certeza quanto ao plano que os laurins pretendiam levar avante. No momento, o mais importante é obrigar os pos-bis a ficarem no seu lugar. Os laurins ainda não o conseguiram. Talvez nós consigamos.
Quando, já no corredor, caminhavam em direção à saída, Bell perguntou:
— Você não veio para buscar o ara, não é mesmo? Você poderia tê-lo chamado sem que fosse necessário que viéssemos para cá.
Rhodan balançou a cabeça.
— Não. Só precisamos de Kule-Tats como consultor técnico. O que nos falta é a arma. A arma contra o plasma que pensa e sente. E é o que viemos buscar.
— Uma arma? — perguntou Bell, em tom de perplexidade. — Sempre pensei que ainda não tivéssemos nenhuma arma contra os pos-bis.
Um sorriso enigmático surgiu no rosto de Rhodan.
— Não me exprimi com a necessária clareza. Queira desculpar; o erro foi meu. O que quero dizer é que levaremos para Árcon III o homem que fará com que possamos tirar a arma mais eficiente dos pos-bis, a fim de utilizá-la contra eles.
— Quem é este homem?
— Voaremos para onde está ele — disse Rhodan, enquanto se dirigia ao helicóptero que os esperava na frente do Instituto.
Durante o vôo, Rhodan fez um relato.
— Quer saber de uma coisa, Kule-Tats? Até hoje sou de opinião que o mutante Ellert é o mais formidável de todos. É bem verdade que o mesmo perdeu a capacidade de fazer seu subconsciente viajar para o futuro. Em compensação havia adquirido outra faculdade quando voltou para junto de nós, vindo da dimensão temporal dos druufs. Tornou-se capaz de abandonar seu corpo e, transportando-se por espaços inconcebíveis, penetrar em outros seres vivos. Na verdade, assumir esses seres.
“Ernst Ellert, que passou a ser chamado de 'regulador' porque, conforme já ressaltei, entre suas faculdades se inclui a de regular-se em conformidade com inteligências estranhas, quase não foi utilizado em nenhuma operação no curso dos últimos decênios. Geralmente seu corpo jaz na antiga pirâmide fúnebre, que reúne as condições para sua conservação. Quando o espírito de Ellert abandonou o corpo, este quase cessou de existir. Isto só não aconteceu porque tomamos certas precauções.
“Naquela época, há cento e tantos anos, Ellert vagou como ser incorpóreo pelo Universo e pelo tempo. Assistiu ao surgimento da Galáxia e de seus sóis, avançou até o fim dos tempos e 'imaginou o ato final'. Acabou por ser arrastado para a dimensão temporal dos druufs. Na oportunidade viveu aventuras inacreditáveis. Contou-me a respeito das mesmas, e tenho certeza de que um dia as apresentará ao público, juntamente com os conhecimentos que adquiriu. Depois de algum tempo voltou para junto de nós. Libertou-se da dimensão temporal dos druufs e encontra-se novamente no tempo presente. Perdeu o domínio do tempo, mas continua a dominar o espaço. Quando se separa de seu corpo, as distâncias deixam de existir.
“Nos últimos cinco ou seis decênios, Ellert quase não demorou no interior de seu corpo, com o qual afinal não pode fazer muita coisa. Como sabe, Kule-Tats, ele perdeu o braço direito. Deram-lhe um novo braço com uma arma térmica embutida. Este braço nunca chegou a ser usado. Seu corpo jaz na pirâmide fúnebre, mas seu espírito sempre está viajando. Ellert conhece maior número de sóis e planetas que todos os acônidas, arcônidas e terranos reunidos. Conhece seus habitantes, pois já viveu dentro dos mesmos. Ellert revelou-me muita coisa sobre certas raças estranhas, mas nunca me contou nada sobre os laurins e os pos-bis. Nunca se encontrou com eles.”
O ara compreendeu.
— O senhor pretende pedir a Ellert que entre em contato com os pos-bis?
Rhodan fez que sim.
— Isso mesmo. Acho que ninguém faria isso melhor do que ele.
— Mas... — principiou Bell, mas logo foi interrompido por Rhodan.
— Sei qual é a objeção que você pretende formular. Os pos-bis não têm alma.
Não é isso? Pois bem, mas o plasma? Será que o mesmo não tem alma? Você sabe? Alguém sabe?
O helicóptero foi descendo lentamente. Lá embaixo, nos arredores de Terrânia, continuava de pé a pirâmide íngreme que se erguia em meio a uma grande área livre. Sua ponta subia ao céu límpido do antigo deserto. O monumento era guardado por duas sentinelas.
O helicóptero pousou e os três homens dirigiram-se à entrada da pirâmide. A câmara funerária em que estava guardado o corpo de Ellert ficava cinqüenta metros abaixo da superfície. Permanecera ali durante cento e cinqüenta anos, apenas com algumas ligeiras interrupções.
Quando reconheceram Rhodan e as pessoas que o acompanhavam, as sentinelas fizeram continência. Informaram que o dispositivo de alarma ainda não anunciara o retorno do espírito de Ellert, que estava em viagem há várias semanas.
Rhodan dirigiu-se a Bell.
— Você vai fazer o favor de esperar aqui juntamente com Kule-Tats. Tentarei trazer Ellert de volta. Não posso ser incomodado, pois só assim poderei concentrar-me.
Dali a alguns segundos Rhodan entrou no elevador que o levaria para baixo. A velha descida secreta ainda existia, mas dificilmente era usada. Quando entrou na câmara funerária propriamente dita, voltou a experimentar a estranha sensação de alheamento ao tempo, que sempre se apossava dele quando via o corpo de Ellert.
O corpo magro — que na verdade era um cadáver vivo — jazia imóvel na cama. Havia fios ligados ao peito e à cabeça, que levavam a complicados aparelhos. O dispositivo de alarma colocado à frente da boca de Ellert registraria e transmitiria imediatamente o primeiro movimento respiratório daquele corpo. Até então Ellert só permanecera uns poucos dias ou mesmo algumas horas no interior do corpo, para abandoná-lo logo a seguir. Enquanto procedia assim, o corpo não envelhecia.
Rhodan sentou-se na cadeira que se encontrava junto à cama. Contemplou o rosto sério e tranqüilo de seu mutante. Os olhos estavam firmemente cerrados. Até se poderia ser levado a acreditar que esse homem estivesse morto. Vivia em qualquer ponto do Universo.
Colocou a mão aberta sobre a testa de Ellert, a fim de estabelecer o contato físico. Depois disso começou a falar. Falava em voz baixa e em tom insistente, devagar e de forma concentrada:
— Ernst Ellert, seja qual for o lugar em que você se encontra, volte para Terrânia. Preciso de você, Ernst Ellert. Todos precisamos de você e de suas faculdades. Você me ouve, Ernst Ellert?
Rhodan sabia que a resposta não seria imediata. Certa vez chegara a chamar durante três dias antes que Ellert respondesse. Precisaria de paciência.
— Ernst Ellert, você me ouve? — repetiu, e prosseguiu em sua fala.
Repetia constantemente as mesmas frases, pois estas encerravam a urgência da tarefa que se apresentava à sua frente.
— Responda, Ellert! Eu o espero! Onde está você?
Depois de duas horas, quando Rhodan já pretendia interromper as tentativas daquele dia, sentiu a resposta.
Ele a sentiu. Não a ouviu. A resposta surgiu de repente em sua consciência, silenciosa e enfática ao mesmo tempo, mas vinda de uma distância infinita.
— Perry Rhodan, é você? Eu o ouço. Acontece que não posso comparecer... ainda não. Preciso concluir uma tarefa.
— Aqui também há uma tarefa para você, Ernst Ellert.
— Se você desejar que um planeta habitado seja destruído, comparecerei ainda hoje. Mas não gostaria disso. Os habitantes do planeta confiam em mim, acreditam que sou um deus...
— Onde você se encontra?
— Nas proximidades da Galáxia, no interior de um grupo estelar solitário. Os habitantes do planeta são seres adoráveis, mas seu mundo está ameaçado de destruição. Só eu poderei salvá-los.
— Quanto tempo?
— Dois dias, Perry Rhodan. Talvez menos.
Rhodan cedeu.
— Está bem. Esperarei. Daqui a dois dias voltarei para cá a fim de recebê-lo. De acordo?
— Todo mundo agradece a vida a você.
— A mim não, Ellert, mas a você. Boa sorte.
O contato foi interrompido.
Rhodan voltou à superfície, onde os dois homens o esperavam com grande ansiedade.
— Então? — perguntou Bell. — Não o trouxe logo?
— Viremos buscá-lo dentro de dois dias — respondeu Rhodan.
Nada mais Perry falou.
Voltaram para Terrânia sem dizer uma palavra.
Rhodan liquidou alguns assuntos urgentes e recolheu-se ao seu quarto. As horas de descanso e descontração total tornavam-se cada vez mais raras, mas sempre que havia oportunidade procurava recuperar a perda. Em Terrânia iria começar a vida noturna, pois nessa cidade ficava o maior porto espacial da Terra. Mas Rhodan não ouviu nada.
Deitou-se e fechou os olhos.
Era imortal e poderoso, mas continuava a ser homem. Seu corpo era vulnerável e impunha-lhe limites que não poderia ultrapassar.
O que seria Ellert?
Dali a dois dias, Rhodan voltou a descer à sepultura.
O contato foi imediato; Ellert começou a mexer-se. Abriu os olhos, mas continuou deitado. Levou nada menos de dez minutos para reconhecer Rhodan, pois o estágio da transferência assemelhava-se a um estado de sono próximo à morte.
— Ainda se sente muito fraco? — perguntou Rhodan em tom preocupado, pois lembrava-se de que, certa vez, fora obrigado a chamar um médico.
Ellert mostrara-se indignado e ressaltara que, se alguma coisa não desse certo, nenhum médico poderia ajudá-lo. Pelo contrário. Dali em diante, Rhodan passou a comparecer sozinho.
— Tudo bem. Mas acho que se torna cada vez mais difícil voltar para dentro de meu corpo. Será que um dia conseguirei existir definitivamente sem ele?
— Acho que isso não é impossível, mas todo mundo achará bastante estranho.
— Eu também acharei — confirmou Ellert, erguendo-se lentamente. — Ainda me sinto fraco, mas isso passará logo. Desta vez a viagem foi muito longa. Sabe o que fui? Um verme.
— Um verme? — repetiu Rhodan, em tom de espanto.
— Isso mesmo. No planeta solitário de que já lhe falei vivia uma raça de vermes muito pacatos e inteligentes. Quase chegavam a inocentes. Por isso mesmo não entendiam absolutamente nada de tecnologia e ciências naturais. Este último ponto me deixou bastante admirado, pois viviam em ligação estreita com a natureza. Seu mundo foi ameaçado por uma catástrofe. Por isso tornei-me um deles. Apliquei minha experiência e conquistei prestígio e posições elevadas. Consegui evitar a catástrofe. Os vermes acharam que eu era um gênio, o produto de uma mutação psíquica positiva, se bem que não usaram esta expressão.
— Você passa por estranhas experiências, Ellert — disse Rhodan, olhando para o relógio. — Será que já tem forças para acompanhar-me? Lá fora há gente que espera por você.
Ellert levantou-se. Recuperara as forças. Dominava o próprio corpo tão bem quanto os que assumia.
— Qual é a tarefa que você tem para mim?
— Van Moders explicará, Ellert. Você já o conhece de nome.
— Van Moders? — perguntou Ellert. — Não é especialista em robôs?
— Sim, é isso mesmo. Acho que você também já ouviu falar nos pos-bis. São eles que nos causam problemas.
— Se ouvi! Mas nunca me encontrei com eles.
— Você logo terá oportunidade para isso.
Ellert, que estava caminhando à frente de Rhodan, parou de repente.
— O quê? Com os robôs? Será possível?
— Moders explicará — repetiu Rhodan, fazendo um sinal para o “regulador” — Está esperando lá em cima.
O braço direito endurecido de Ellert pendia junto ao corpo. Todos sabiam que poderia levantá-lo num instante e despedir um mortífero raio energético. Foi uma recompensa tecnológica que Bell dispensou ao mutante.
Quando se encontravam no helicóptero, Van Moders disse depois de uma exposição prolongada:
— O senhor já conhece a situação, Ellert. O plasma é orgânico; quanto a isto não existe a menor dúvida. Mas também é uma substância estranha. Encontra-se em todas as naves dos pos-bis; praticamente é o cérebro das mesmas.
— É um cérebro — interrompeu Rhodan. — Mas, por outro lado, não chega a ser um cérebro no sentido convencional. Trata-se de uma fusão de bilhões de células autônomas, que passam a formar uma união permanente. É bom que você saiba, Ellert, que a tentativa de penetrar no cérebro de plasma dos pos-bis é muitíssimo arriscada. Sua vida poderá correr perigo, pois ninguém sabe qual será a reação do plasma pensante. Sem dúvida procurará defender-se. Mas talvez consigamos alguma coisa num golpe de astúcia.
Ellert fitou Rhodan e Van Moders com um ligeiro espanto.
— Devo confessar que ainda não consegui encontrar os pos-bis, embora os tenha procurado, mas na minha opinião estamos exagerando o perigo. Se este realmente surgir, poderei retirar-me a qualquer momento. O fato de nunca ter conseguido estabelecer contato com os pos-bis pode ter sua causa na circunstância de o plasma pensante ter uma constituição totalmente diferente da de um cérebro normal.
— Pode haver outros motivos — ponderou Rhodan em tom preocupado. — De qualquer maneira tomaremos todas as cautelas imagináveis. Não quero perdê-lo, Ellert!
No dia seguinte, os quatro homens entraram juntos no terminal expedidor do transmissor de matéria instalado em Marte. Deram um único passo, e no mesmo instante encontraram-se no receptor de Árcon III. Um veículo levou-os diretamente ao porto espacial, que ficava nas proximidades do transmissor. Ali a Teodorico os esperava.
A gigantesca esfera espacial de um quilômetro e meio de diâmetro repousava sobre seus campos antigravitacionais, pois, do contrário, seu peso causaria danos à superfície do planeta. Havia outras naves nas proximidades, e estas estavam sendo preparadas para a entrada em ação. Na maior parte eram unidades da frota arcônida, mas também havia naves pertencentes aos terranos e aos saltadores. Agora eram todos aliados. Só mesmo um inimigo forte e perigoso conseguiria unir a Via Láctea! O medo conseguira aquilo que a diplomacia e a boa vontade não foram capazes de realizar.
O Comodoro Jefe Claudrin, o “quadrático”, esperava na sala de comando. Procurou reduzir o volume de sua voz, mas de nada adiantou.
— Tudo em ordem a bordo da Teodorico, sir. O equipamento especial destinado ao mutante Ellert já foi instalado. A equipe científica vinda da Terra está pronta para entrar em ação.
Rhodan agradeceu e cumprimentou também os outros homens, que eram oficiais, mutantes ou cientistas. Dirigindo-se a Ellert, disse:
—Você deve saber que as instalações existentes a bordo da Teodorico praticamente são a cópia fiel do seu mausoléu. Você poderá “viajar” daqui mesmo e abandonar seu corpo pelo tempo que quiser, sem que haja o risco de qualquer dano. A renovação celular está garantida. Achei de bom alvitre providenciar isso, pois não sabemos quanto tempo durarão suas “viagens”.
Ernst Ellert apertou a mão dos presentes. Ofereceu-lhes a mão esquerda. O braço direito pendia imóvel na vertical. Todos sabiam qual era sua função e sentiam-se satisfeitos por não ser usado por ocasião dos cumprimentos.
— Perry, você ainda não me disse como faremos para nos aproximarmos de um pos-bi sem provocar suspeitas.
— Já pensei nisso. Realizaremos um ataque simulado e faremos com que nos persigam — falou e balançou a cabeça. — Devo confessar que preferiria uma solução menos perigosa, mas acontece que esta não existe. Não ficarei zangado caso você se recuse a participar da operação.
— Acha que seria capaz disso? — disse Ellert com um sorriso. — Ainda mais agora, à frente de tanta gente?
— Você também não se recusou quando estávamos sós no mausoléu — lembrou Rhodan. — Sei que não recua diante de nenhum perigo, já que não tem motivo para temer pelo seu corpo. E mesmo que um dia o perca, você ainda não estará morto.
Jefe Claudrin viu que algumas luzes de controle se acenderam.
— A Teodorico está pronta para decolar, sir — disse. — Houve alguma modificação na rota prevista?
— Nenhuma, Claudrin. Pode decolar. Nossa conferência prosseguirá durante o vôo — apontou para Kule-Tats. — Permite que lhe apresente Kule-Tats, um grande biólogo dos aras e o colaborador mais chegado de Van Moders, que todos conhecem? Kule-Tats cuidará em primeira linha do corpo de Ellert, e só posteriormente se encarregará da interpretação dos dados. Farei mais uma ligeira palestra sobre a exposição geral.
“O Serviço de Segurança Solar apurou com toda segurança que os acônidas desistiram dos ataques que costumavam lançar contra a Terra. Parece que pretendem cumprir os contratos que celebraram. Antes assim, pois, dessa forma, ficaremos com as costas livres. É bem verdade que ninguém pode dizer se essa situação não mudará, caso um dia os pos-bis sejam derrotados ou mesmo destruídos. É bem possível que nesse caso os acônidas denunciem o tratado ou simplesmente deixem de cumpri-lo. Também deveremos pensar nesta hipótese.” O planeta Árcon III foi ficando para trás e diminuía cada vez mais nas telas. A gigantesca nave passou livremente pelas fortalezas cósmicas do império. Desenvolvendo velocidade cada vez maior, penetrou no espaço e seguiu pela rota previamente calculada. O sistema de propulsão linear permitia o vôo direto a velocidade superior à da luz, independentemente de uma transição.
— Já posso informá-los sobre o objetivo da operação — prosseguiu Rhodan.
Perry viu o rato-castor Gucky pôr as orelhas de pé. Por mais que se esforçasse, o pequeno telepata ainda não descobrira nada, pois Rhodan estava isolando seus pensamentos.
— A arma narcótica que usamos há pouco — continuou Rhodan — não conservou sua eficácia por muito tempo. Os pos-bis aprendem muito depressa. Encontraram um meio de defesa e por isso não podemos surpreendê-los mais com essa arma. A finalidade da operação planejada consiste em descobrir o segredo da maior e mais apavorante arma dos robôs: o raio conversor.
Os homens acompanharam atentamente a exposição. Seus olhos refletiram o pavor que a simples menção dessa arma terrível lhes provocava.
O raio conversor!
— Os senhores já conhecem os efeitos dessa arma — prosseguiu Rhodan. — Mas ninguém sabe como funciona. Farei uma recapitulação ligeira do que sabemos a este respeito. Pelo que conseguimos apurar até agora, trata-se de um raio energético superdimensional, que também exerce as funções de transmissor, isso nos mesmos moldes do transmissor fictício que perdemos. O raio conversor transporta uma bomba atômica diretamente ao alvo, fazendo-a atravessar quaisquer campos energéticos defensivos. A bomba, que via de regra tem uma potência de mil gigatons, detona tão próximo ao alvo que a destruição total se torna inevitável.
“Não existe nenhuma proteção contra o raio conversor. Qualquer campo energético rompe-se e é esfacelado. As mais poderosas armas de radiações não passam de um brinquedo de criança em comparação com o raio conversor. Nossos técnicos e cientistas esforçaram-se em vão para descobrir alguma coisa sobre a estrutura dessa arma. A única coisa que conseguiram foi dar-nos um conselho. 'Procurem apoderar-se de uma arma desse tipo, que nós a imitaremos', disseram. E é o que tentaremos fazer.”
Os homens fitaram Rhodan, mudos e pálidos.
Ernst Ellert, que se acomodara no sofá e estava acariciando o pêlo de Gucky, foi o único que falou com a maior tranqüilidade:
— De que forma poderei ajudar? Um espírito não é capaz de roubar projetores de raios ou plantas de construção e de transportá-los.
Rhodan fitou-o demoradamente.
— O problema não é tão simples assim, Ellert. Só poderemos chegar ao destino por meios indiretos, e você nos ajudará. Ninguém exigirá que você traga plantas de construção.
Aquilo era uma suave repreensão. Ellert manteve-se calado.
— Não posso deixar de mencionar que Atlan não é da mesma opinião. Segundo ele, seria mais importante procurar a sede desconhecida dos pos-bis, com a qual já chegamos a manter contato... Atlan tem razão num ponto. Torna-se necessário descobrir essa sede, mas na minha opinião o raio conversor é mais importante. Se não dispusermos de uma arma diante da qual os pos-bis também se vejam indefesos, nunca poderemos atacar a sede. O que adiantaria descobri-la, enquanto não dispusermos dessa arma?
— A arma é mais importante — disseram alguns dos presentes.
— Foi por isso que resolvi realizar esta operação — disse Rhodan, em tom de satisfação. — Atlan reconheceu a validade dos meus argumentos e cedeu certo número de unidades de sua frota. Mantemos contato ininterrupto com essas unidades, que nos prestarão apoio assim que o solicitarmos. De qualquer maneira, a Teodorico continuará a ser a sede da operação, isso pelo simples motivo de Ellert encontrar-se a bordo.
Ernst Ellert levantou os olhos.
— Qual será o papel que eu desempenharei nisso?
Rhodan deu alguns passos e atravessou a sala de comando. Parou à frente do “regulador”. Colocou as mãos sobre os ombros do mesmo.
— Pode parecer simples, Ernst, mas provavelmente será a tarefa mais difícil que já impus a um ser humano. Quero que você assuma os cérebros de comando de uma nave fragmentária dos pos-bis e nos conceda permissão para desmontarmos um ou dois projetores de raios conversores.
Um silêncio tenso passou a reinar na sala de comando.
Todos já sabiam o risco que o plano de Rhodan encerrava. Os terranos já haviam conseguido mais de uma vez apresar e revistar naves derrubadas dos robôs. Mas, em nenhuma dessas oportunidades, um canhão conversor ficara inteiro. Algum controle misterioso provocava a autodestruição dessas armas antes que qualquer ser estranho penetrasse na nave.
De repente a atuação de Ellert adquiriu um novo sentido.
Ele, que era capaz de assumir a consciência de outros seres e transmitir-lhe ordens, era a única pessoa que poderia evitar a autodestruição dos canhões conversores.
Teria de transformar-se num pos-bi.
— Não sabemos se conseguiremos, mas devemos tentar — disse Rhodan, rompendo mais uma vez o silêncio. — Se houver qualquer dificuldade, Ellert voltará imediatamente. Sua vida não deverá ser colocada em perigo. A Teodorico nunca se afastará da respectiva nave fragmentária a uma distância tal que possa afetar a possibilidade da volta.
— A distância não influi em nada — disse Ellert com a maior tranqüilidade.
Rhodan formulou uma restrição.
— Em certas circunstâncias pode influir, Ellert. Entendeu perfeitamente. Assim que surgir a menor possibilidade, você voltará.
Ellert não respondeu.
— Onde encontraremos as naves fragmentárias? — perguntou Bell. — Elas sempre aparecem quando não precisamos delas, mas quando as procuramos...
— Iremos ao lugar em que sempre se encontram naves desse tipo — disse Rhodan. — Iremos para Frago.
Frago!
Com isso o último ponto obscuro ficou esclarecido.
A Teodorico preparava-se para voar diretamente para o inferno.
Há vários milênios os pos-bis — ao menos se supunha que haviam sido eles — tinham roubado certos planetas da Via Láctea. Equiparam os mesmos com máquinas propulsoras planetárias e os desviaram para o abismo intergaláctico. Muitos desses planetas acabaram esquecidos e foram abandonados à própria sorte, enquanto outros foram transformados em bases dos robôs.
Frago era um desses planetas.
Ficava a uma distância de noventa e dois mil anos-luz do grupo estelar M-13.
Quer dizer que ficava situado no espaço intercósmico, entre as galáxias. Seu diâmetro chegava a uns quinze mil quilômetros; era maior que a Terra. Frago não possuía sol, e os pos-bis, cujo mecanismo visual funcionava em base infravermelha, não o iluminavam. Por isso era um planeta sem luz a vagar pela escuridão do espaço vazio.
Frago era uma espécie de mundo industrial dos robôs. Sua superfície tinha alguma semelhança com as paredes externas acidentadas das naves fragmentárias. Estava repleta de formas bizarras, cujas finalidades quase sempre eram desconhecidas...
Frago era vigiado por uma frota das perigosíssimas naves fragmentárias. Tratava-se de figuras desajeitadas de aproximadamente dois quilômetros de diâmetro.
— Boa noite! — disse Bell com um gemido e acomodou-se sobre o sofá, ao lado de Ellert.
Gucky permaneceu praticamente imóvel quando formulou a pergunta:
— Está com medo, gorducho?
— Todos estamos com medo — disse Rhodan, tirando Bell do aperto. — Inclusive você, Gucky. Só mesmo um fanfarrão desavergonhado seria capaz de numa situação destas dizer que não está com medo. Procuraremos levar uma das naves fragmentárias a separar-se do grupo. Depois disso, Ellert tentará assumir o cérebro do comandante, ou de preferência o cérebro de pilotagem. Não sabemos o que acontecerá a seguir.
O Comodoro Jefe Claudrin, que até então se mantivera ocupado exclusivamente com os controles da Teodorico, anunciou:
— Rota correta, velocidade de cem vezes a velocidade da luz. Velocidade continua a aumentar. Poderemos chegar ao destino em dois dias.
— Já providenciou a prontidão do resto da frota? — perguntou Rhodan para certificar-se.
— Nas proximidades de Frago duzentas unidades aguardam o momento de entrar em ação, sir. Entre essas unidades há uma nave-tender, em conformidade com as instruções do senhor.
— Excelente — disse Rhodan, e voltou a dirigir-se aos outros ocupantes da sala de comando. — No momento é só. Muito obrigado.
Esperou que os mutantes se retirassem, com exceção de Gucky e Ellert.
— Kule-Tats — prosseguiu Rhodan. — Quero que o senhor examine o equipamento especial juntamente com Ellert. Verifique tudo. Talvez seja recomendável fazer uma experiência no interior da nave. Devemos ter certeza de que não deixamos de fazer nada do que era humanamente possível para garantir o êxito da operação. Dispomos de dois dias, durante os quais dificilmente acontecerá qualquer coisa que nos perturbe. No interior do campo de absorção kalupiano, estamos protegidos contra ataques.
Atrás da Teodorico, as estrelas da Via Láctea foram se juntando. À frente da nave estendia-se o vazio infinito do abismo que separa as ilhas cósmicas. Antigamente costumava-se dizer que a palavra vazio devia ser tomada ao pé da letra, mas posteriormente constatou-se que a matéria que flutua entre as galáxias seria suficiente para a construção de milhares de sistemas solares. Até havia sóis solitários, que descreviam sua trajetória nas proximidades da Galáxia, juntamente com seus planetas, e por vezes se afastavam da mesma, tomando um destino desconhecido.
O vôo que a Teodorico estava realizando tinha por fim apoderar-se de uma arma dos pos-bis. Não haveria tempo para pesquisas de ciência pura, mas nem por isso os astrônomos deixariam de aproveitar essa oportunidade única.
Estavam reunidos no recinto abobadado da gigantesca nave.
O recinto abobadado, também conhecido como posto de observação, tinha o aspecto de uma transparente bolha, colada ao envoltório da Teodorico. Os instrumentos de precisão mais modernos inventados pelos cientistas terranos transformaram o local num centro de pesquisa ideal, pois não havia nenhum tipo de atmosfera que obstruísse a visão. Até mesmo a vista nua conseguia abranger milhões de anos-luz de espaço. E os instrumentos colocavam os objetos mais distantes ao alcance da mão... se bem que só aparentemente.
O astrônomo Zecharius, chefe do Observatório de Terrânia, pulava nervosamente de um pé para outro, enquanto regulava a nitidez da imagem projetada na tela acoplada a um telescópio de radar.
— Eu lhes provarei que estou com a razão. Neste abismo não existem apenas planetas roubados pelos pos-bis e alguns sóis solitários; nele se encontram verdadeiros grupos estelares. Não foram descobertos por simples falta de tempo.
— E ainda porque nunca nos levaram, não é? — disse o professor Olaf Judge, chefe do Observatório de Monte Palomar.
— Isso mesmo ! — disse Zecharius em tom sério.
— O que é mesmo que o senhor pretende provar? — perguntou Judge em tom cauteloso, enquanto seus colegas aprovavam com acenos de cabeça. — Que neste abismo, que costumava ser considerado vazio de estrelas, existe mais de um sol? Já sabemos disso.
— Aludi a grupos estelares, colega. A aglomerações de estrelas, a verdadeiras galáxias em miniatura.
— Entre nossa Via Láctea e Andrômeda? — perguntou Judge, em tom de dúvida. — Isso é absurdo e ridículo, meu caro colega.
Zecharius perdeu a calma.
— Os senhores verão que estou com a razão.
Apontou para a tela, que retratava com uma nitidez nunca vista um setor do abismo intergaláctico.
— O que será isso?
Todos olharam para a tela, que ocupava uma parede inteira. Formava a única parede da abóbada que não era transparente. Não havia muita coisa para ver no negrume do espaço que a Teodorico cortava em direção a Andrômeda. Do outro lado do abismo viam-se manchas luminosas, difusas e pouco nítidas. Algumas eram achatadas como lentes, outras esféricas e ainda outras tinham o aspecto de círculos giratórios de fogo que tivessem parado de repente.
— Onde quer chegar, Zecharius? — perguntou alguém, apontando para as nebulosas. — O que vemos aí são galáxias; quanto a isso não existe a menor dúvida. Ficam a dois ou dez milhões de anos-luz do lugar em que nos encontramos. E essa mancha luminosa alongada é Andrômeda, que conhecemos desde os bancos escolares. Onde estão os grupos de estrelas solitárias? Como é que os mesmos vieram parar aqui?
Zecharius controlou-se, mas seu rosto ficou vermelho.
— Olhe esta mancha clara — disse, apontando para uma mancha luminosa quase redonda. — Acha que é uma galáxia, situada a milhões de anos-luz de distância? O senhor está enganado, colega. Aposto como está.
— Esta é boa! — disse Judge, em tom irônico. — Como é que se pode apostar se não há condições de provar nada?
— Até parece que o senhor se esquece de que dispomos de instrumentos de alta precisão — respondeu Zecharius, indignado. — Veja o telêmetro astral. Por meio dele poderei provar o que acabo de afirmar. Foi montado na Teodorico durante sua última permanência na Terra. Ainda não tivemos oportunidade de utilizá-lo para fins de pesquisa. O princípio de seu funcionamento é semelhante ao de um localizador.
— Quem nos garante que o senhor não está mentindo?
Zecharius mediu seu interlocutor com um olhar furioso e passou a dedicar sua atenção ao telêmetro astral.
Seus dedos hábeis mexeram nos controles. Números foram aparecendo num pequeno quadro, passaram a mover-se mais lentamente e, por fim, pararam.
Zecharius inclinou o corpo para a frente e leu:
— Oitenta e dois mil...! Um objeto que se encontra a uma distância de oitenta e dois mil anos-luz e irradia tamanha luminosidade não pode ser constituído por um único sol. Pelos meus cálculos são pelo menos dois ou três mil sóis.
Ouviram-se protestos indignados. Todos falavam ao mesmo tempo e gritavam com Zecharius. Este tirou com a maior tranqüilidade sua agenda de bolso e fez algumas anotações. Escreveu a direção em que ficava o objeto descoberto, a distância, o número provável de sóis, sua disposição e densidade. Hesitou por um instante, prestou atenção à discussão apaixonada de seus colegas, inclinou a cabeça e perguntou:
— Alguém tem alguma objeção a que este grupo estelar seja chamado de Zecharius 1?
A perplexidade foi tamanha que ninguém conseguiu dizer uma única palavra. Zecharius interpretou o silêncio como concordância e colocou o nome embaixo dos dados que anotara em sua agenda. Muito satisfeito, acenou com a cabeça e perguntou:
— Qual foi mesmo nossa aposta?
Bell, que dormira algumas horas e, como já acontecera muitas vezes, queria observar o espaço cósmico a partir da abóbada, irrompeu em meio à confusão. Por mais frio que pudesse ser seu estado de ânimo, a visão direta do infinito não poderia deixar de produzir seus efeitos. Podia ficar ali por horas, contemplando as manchas nebulosas apagadas das galáxias distantes. Enquanto isso, sua fantasia traçava os quadros mais loucos... Via-se como participante da primeira expedição que teria de atravessar todo o abismo para penetrar numa galáxia estranha. Lá as leis naturais seriam diferentes! As condições seriam indiferentes! Seria uma série de aventuras inimagináveis...
Bell parou, perplexo, ao escutar sobre o que os cientistas discutiam.
— Entre! — gritou Judge, arrastando-o para dentro do recinto abobadado. — O senhor poderá servir de árbitro.
— Árbitro? — Bell já não compreendia mais nada. — De que se trata mesmo?
A explicação foi fornecida em palavras prolixas. Zecharius falou por último.
— A descoberta que acabo de fazer não será a última, mister Bell. Sempre desconfiei de que o abismo só fosse aparentemente vazio. Na verdade, parece que por aqui só existem alguns sóis extraviados e nuvens de pó. Mas a um exame mais minucioso percebe-se...
— Senhor professor — interrompeu Bell, apontando para o telêmetro astral. — Já verificou a distância com isso?
— Perfeitamente.
— Acredito. O aparelho funciona muito bem. E, uma vez conhecida a distância, torna-se possível determinar as dimensões de um objeto. Como vêem, senhores astrônomos, não existe a menor dúvida quanto à exatidão da descoberta de seu colega, mas...
Os astrônomos estavam prestes a irromper em protestos, porém o mas de Bell impediu-os. Entesaram o corpo e aguçaram os ouvidos. Zecharius não formou nenhuma exceção.
— Mas o quê? — perguntou.
— Sua descoberta é verdadeira — repetiu Bell, muito satisfeito — mas não posso concordar com o nome sugerido pelo senhor. Zecharius 1 soa bem, mas não podemos dar nome a esse grupo estelar, pois ele já tem...
Zecharius recuou, apavorado. Fitou Bell como se estivesse vendo um fantasma.
— Já tem nome? Qual é?
Bell caminhou lentamente em direção à porta e abriu-a.
— Reginald Bell 1 — disse e desapareceu no mesmo instante.
O grito indignado de Zecharius afogou-se nas risadas irônicas dos colegas.
Quando o segundo período de vinte e quatro horas estava para terminar, a velocidade da Teodorico baixou para menos de luz-zum. O planeta Frago devia estar bem perto, a não ser que tivesse se deslocado mais rapidamente do que se calculara. Como não possuísse sol e fosse completamente escuro, aparelhos de rastreamento entraram em ação. Sentados à frente das telas, os técnicos esperavam ansiosamente o momento em que Frago aparecesse à sua frente. Não seria perceptível a olho nu, mas não escaparia aos rastreadores.
Na verdade, o êxito da missão nem dependia tanto de Frago.
Lá embaixo, no porão de carga, Ernst Ellert deitou-se na cama que fora preparada para ele. Rhodan e alguns mutantes permaneceram em sua companhia, e ainda alguns médicos, o ara Kule-Tats e vários especialistas. Foram estes que haviam verificado mais uma vez o equipamento, sob a orientação do ara.
Esse equipamento assemelhava-se nos menores detalhes ao instalado no mausoléu de Terrânia.
As telas mantinham o contato com a sala de comando, o posto de observação e a sala de localização.
— Acabam de “descobrir” Frago — piou Gucky em tom exaltado e apontou para uma das telas. — Está quase na hora.
Gucky encontrava-se ao lado de Iltu, uma pequena companheira de raça que participaria das operações. Dominava a telepatia tão bem quanto o rato-castor, e nada ficava a dever ao mesmo em matéria de telecinese e teleportação. Os dois formavam uma excelente equipe, embora brigassem constantemente.
Rhodan fez um sinal para Ellert.
— Você sabe o que deve fazer. Tudo depende de que você assuma os cérebros de comando da nave que escolhermos. Fugiremos à velocidade exata que permita a essa nave seguir-nos. Pelo comportamento da nave fragmentária veremos se você foi bem-sucedido ou não, isso se não conseguirmos entrar em contato com você.
— Entrarei com contato com vocês de qualquer maneira — prometeu Ellert.
Deixou-se cair no leito macio. Estava cansado e necessitava de repouso. As faces achavam-se encovadas e mostravam manchas vermelhas que indicavam um forte nervosismo. Os olhos jaziam profundamente nas órbitas.
— A única coisa que vocês terão de fazer é cuidar do meu corpo. Não gostaria de perdê-lo, se bem que é mais fácil de substituir que a alma...
Rhodan fez um gesto tranqüilizador. Mas, em seu interior, o nervosismo e a incerteza o agitavam. Não estaria arriscando levianamente a vida de seu mutante? Se a situação não o obrigasse, nunca teria assumido esse risco... Mas quanto a Ellert sabia que o mutante poderia existir sem corpo. Contudo isso era um fraco consolo, entretanto não deixava de ser um consolo.
Jefe Claudrin chamou da sala de comando.
— Acabamos de ser localizados por quatro naves fragmentárias, sir. Estão atacando. Quais são as ordens?
— Vamos fugir na direção da Via Láctea. Voaremos com uma velocidade que permita que eles nos sigam. Mas a nossa velocidade deve também nos proteger do fogo de suas armas. Quanto ao mais, atenha-se ao que foi combinado. Entendido?
— Perfeitamente, sir.
Rhodan inclinou o corpo para falar com Ellert.
— Vamos tentar, Ellert. Você já sabe como agir. Assim que conseguir exercer algum controle sobre o robô-comandante, faça a nave fragmentária desviar-se do seu curso e ordene uma transição para a Via Láctea. Ficaremos esperando por lá, isto é, no espaço livre, até que consigamos localizá-lo. Talvez você possa transmitir um sinal goniométrico. Entendido?
Ellert limitou-se a fazer um gesto afirmativo.
Notava-se perfeitamente que se concentrava para que ninguém desviasse sua atenção. Os cientistas e técnicos mantinham-se em ponto mais afastado, silenciosos e na expectativa. Gucky e Iltu estavam de mãos dadas. Seus rostos também revelavam um máximo de concentração. Vigiavam por via telepática os pensamentos de Ellert.
Rhodan olhou para o rosto do amigo.
Parecia descontraído, mas ainda dava sinais de vida. Para Ellert tornava-se cada vez mais difícil encontrar o caminho de volta para seu corpo. Será que também se tornara mais difícil abandoná-lo? Será que a capacidade de realizar viagens incorpóreas estava diminuindo?
Kule-Tats aproximou-se de Rhodan.
— Seu espírito já abandonou o corpo — cochichou. — Os traços aparentemente flácidos enganam. O corpo já endureceu. Procure convencer-se por si mesmo.
Rhodan passou cautelosamente as pontas dos dedos pelo rosto de Ellert. Parecia frio e rígido como o rosto de um morto.
— Já está naquela nave — disse Gucky. — Consigo acompanhá-lo, mas o contato é pouco intenso. Quando se “transformar” num pos-bi, eu o perderei.
— Qual é a situação? — perguntou Rhodan, dirigindo-se ao comandante.
Claudrin ofereceu um relato em frases curtas e entrecortadas.
— Velocidade é aproximadamente a da luz. Quatro naves fragmentárias nos seguem ininterruptamente. Nenhum disparo. Nossa nave está fora do alcance de seus canhões.
— Obrigado — disse Rhodan e voltou a olhar para Ellert.
O corpo, que até então jazera imóvel, começou a executar movimentos convulsivos, como se o “regulador” sentisse dores...
Por uma vez os olhos chegaram a abrir-se e fitaram Rhodan com a expressão vazia de quem está colocado fora do tempo. Voltaram a fechar-se. A mão esquerda de Ellert fechou-se. Os joelhos foram encolhidos e voltaram a esticar-se. O corpo parecia muito agitado.
— Isso é um quadro horrível — cochichou Rhodan ao ouvido de Kule-Tats, que se mantinha em silêncio a seu lado, sem tirar os olhos dos aparelhos de controle. — Receio que esteja exigindo demais dele. Talvez não deveria ter feito isso.
— Será difícil enganar os pos-bis — respondeu o ara, sem distrair-se de sua tarefa. — Precisaremos de muita paciência.
Claudrin voltou a chamar.
— A nave fragmentária que vai à frente sofreu um ligeiro desvio de rota, sir. As outras três continuam a seguir-nos diretamente.
— Qual é a distância?
— Três minutos-luz, sir.
— Mantenha a distância, Claudrin.
Rhodan inclinou-se sobre Ellert e colocou a mão em sua testa. Era fria e dura como pedra. De repente o corpo empertigou-se. O “regulador” fitou Rhodan com os olhos muito arregalados.
Os lábios firmemente cerrados emitiram sons hesitantes e quase incompreensíveis. Depois de algum tempo, esses sons tornaram-se entendíveis.
— Tive contato, Perry... muito difícil... resistem. — o corpo entrou em convulsões. — Seis cérebros de plasma na sala de comando... estou me adaptando. Estabeleço contato parapsicológico... voltarei a falar com você assim que puder...
O corpo voltou a cair para trás. Os olhos fecharam-se e as juntas endureceram. Sob o ponto de vista da ciência física, Ernst Ellert acabara de morrer.
Os ponteiros dos instrumentos tremeram, desceram e pararam no ponto mais baixo. O corpo de Ellert não dava mais sinal de vida.
Rhodan ficou com os lábios cerrados. Uma ruga vertical surgiu entre as sobrancelhas. Finalmente fez um esforço e perguntou:
— Ainda mantém contato, Gucky?
— O contato não é bom. Só consigo captar fragmentos de pensamentos que dão notícia de um esforço tremendo. Ainda há sinais de dores e sofrimentos. Também há um pouco de medo, mas não sei se é Ellert ou o pos-bi que sente medo.
— Se houver alguma modificação, avise imediatamente.
Gucky fez um gesto afirmativo e voltou a concentrar-se.
Kule-Tats estava ajoelhado ao lado do corpo de Ellert e o examinava.
Quando se ergueu, seu rosto parecia sério e espantado ao mesmo tempo.
— Se fosse qualquer outra pessoa, não teria a menor dúvida em assinar o atestado de óbito — disse em tom irritado. — Mas com Ellert as coisas são diferentes. Provavelmente seu corpo deve estar morto para que possa conseguir alguma coisa por meio do espírito.
Rhodan não respondeu. Formulou uma pergunta dirigida a Claudrin.
— Alguma novidade, comodoro?
— As quatro naves fragmentárias continuam a perseguir-nos. O desvio de rota de uma delas continua a ser insignificante. Deu-se uma pequena correção. Por enquanto não houve nenhum ataque. Velocidade de zero vírgula nove da luz — hesitou um pouco. — Alguma ordem, sir?
— As mesmas de antes. Prossiga no vôo. Mantenha a distância. É só.
Restava esperar.
Rhodan voltou a fitar o rosto de Ellert.
Era um rosto morto, mas Ellert estava vivo.
Rhodan daria muita coisa para saber o que Ellert sentia, pensava e experimentava nesse momento.
Aconteceu como sempre acontecia...
Ernst Ellert viu Rhodan, Kule-Tats e tudo mais desmanchar-se diante de seus olhos. Depois disso desprendeu-se de seu corpo e foi subindo. Não teve a menor dificuldade em atravessar as paredes metálicas da nave. Passou a flutuar no espaço. A Teodorico era uma esfera gigantesca, e Ellert mantinha a mesma velocidade que ela. Lá atrás, muito ao longe, viam-se quatro pontos luminosos muito débeis. Eram os perseguidores.
Concentrou-se neles — e a eles se juntou.
Caso se tivesse concentrado em Andrômeda, ele se teria transportado com a mesma rapidez para a galáxia distante e desconhecida.
A nave fragmentária que ia à frente das outras parecia a mais adequada às suas finalidades. Sem o menor esforço penetrou na gigantesca nave e levitou pelos longos corredores. Encontrou-se com robôs que cuidavam de seus afazeres, sem desconfiar de nada. Finalmente chegou à sala de comando.
Conseguiu uma percepção pouco nítida das vibrações irradiadas pelo cérebro de plasma... Os impulsos que o atingiram eram fracos e confusos. O comandante dos pos-bis parecia farejar sua presença.
Ellert agiu no mesmo instante, a fim de aproveitar o fator surpresa.
O cérebro central era formado por seis blocos de plasma. Todos diferentes entre si, mas interligados e protegidos por uma camada metálica de dez centímetros de espessura. Para Ellert, isso não significava um obstáculo de monta.
O que se tornou mais difícil foi a penetração no cérebro propriamente dito.
Houve uma dificuldade inesperada. O comandante pos-bi resistia. Ellert sabia que conseguiria vencer a resistência, mas não tinha a menor idéia de quanto tempo conseguiria manter-se. Era perfeitamente possível que, depois de alguns segundos ou minutos, fosse “posto para fora”.
Depois de um ligeiro contato, retirou-se e “viajou” para a Teodorico, a fim de informar Rhodan. Depois voltou e atacou com toda força.
Graças à sua concentração extrema atirou para trás os impulsos do cérebro de plasma. Na primeira investida conseguiu pôr fora de ação o comandante, mas nem por isso o perigo fora afastado. Ao contrário do que acontecera nas operações anteriores, o cérebro atacado não se mantinha em atitude passiva. Esforçou-se ao máximo para reconquistar o lugar que lhe cabia.
No interior do próprio cérebro de plasma surgiu uma luta.
Por isso Ellert só pôde dedicar parte de seu ego especializado à tarefa propriamente dita, já que o restante estava ocupado em manter o robô-comandante sob controle.
Começou a “transformar-se” num pos-bi.
Suas ordens foram transmitidas fielmente pela estação retransmissora. A nave fragmentária modificou cautelosamente a rota, desviando-se da linha de perseguição. Outros dez minutos se passaram antes que Ellert conseguisse “se ajeitar” no relutante cérebro de plasma.
Ellert gastou mais de uma hora em conhecer a nave e seus robôs. Deixou que parte de sua consciência permanecesse no interior do robô-comandante e pesquisou as característica dos pos-bis.
Só conseguiu desvendar aspectos superficiais, mas estes foram tão surpreendentes e estranhos que por pouco não esqueceu sua tarefa primitiva. Os pos-bis não possuíam memória! Não sabiam nada do que tinha acontecido antes. A única coisa que conheciam era seu trabalho, as ordens do cérebro-comandante e o dever de se auto-destruírem sempre que se encontrassem numa situação em que não havia mais nenhuma esperança.
Quando retornou ao cérebro central, Ellert percebeu por que o domínio do estranho intelecto se tornava tão difícil.
Em todos os demais cérebros, as respectivas células formavam uma unidade compacta. Cada célula dependia das demais; se fosse isolada, morreria imediatamente. No cérebro de plasma as coisas eram totalmente diferentes. Cada uma das células podia pensar e existir sem as outras. Cada uma de per si tinha de ser subjugada e mantida sob controle. A consciência de Ellert tinha de dividir-se milhões de vezes para subjugar o robô-comandante.
Aquilo representava um esforço que não conseguiria manter por muito tempo.
A primeira ordem decisiva foi transmitida à pilotagem automática.
— Preparar transição em direção à Galáxia.
Os órgãos de controle aos quais fora dirigida a ordem entraram em funcionamento. O ponto de transição foi calculado e fornecido à central. As coordenadas e o momento da transição foram solicitados. Além disso precisava-se saber a respectiva magnitude.
Ellert lembrou-se das ordens que recebera de Rhodan. “Em qualquer lugar, no interior do grupo estelar M-13”, dissera o amigo. “Eles me encontrariam. Devo expedir sinais goniométricos?” E, rapidamente, ordenou:
— Transição com interrupções para o interior da Galáxia mais próxima. Distância pouco inferior a cem mil anos-luz.
Naturalmente as indicações de tempo e distância foram fornecidas na linguagem simbólica dos pos-bis.
Dali a alguns segundos, veio a confirmação.
Ellert certificou-se de que dominava a situação. O cérebro de plasma não resistia mais. Suas ordens eram obedecidas imediatamente. Ellert passara a ser o comandante da nave fragmentária.
Mandou ligar as telas. A amplificação mostrou primeiro as outras três naves fragmentárias e depois a Teodorico. A nave esférica, que se encontrava a três minutos-luz, corria velozmente em direção à Via Láctea. Os pos-bis seguiam-na ininterruptamente. A distância não permitia o uso dos raios conversores.
Os cérebros de controle transmitiram um impulso.
— Transição número um em dez segundos.
Ellert fez mais uma tentativa de estabelecer um contato ligeiro, ao menos com Gucky. Não conseguiu. Dali a alguns segundos, a nave fragmentária desaparecia das telas da Teodorico. Rhodan saberia que Ellert assumira o robô-comandante, mas não saberia com certeza onde procurá-lo.
Além disso ainda havia o nada.
Quando a nave fragmentária rematerializou-se, a Via Láctea estava bem mais próxima e se tornara maior.
A segunda transição foi realizada apenas cinco minutos depois.
Quando Jefe Claudrin deu a notícia há muito esperada, Rhodan sobressaltou-se.
“É estranho”, pensou. “A gente se assusta com alguma coisa pela qual há bastante tempo esperava ansiosamente.”
— A nave fragmentária que ia na frente acelerou fortemente e entrou em transição. Como sempre não existe nenhuma indicação sobre a direção e a extensão do salto. Quais são as ordens?
Seria inútil continuar a voar à frente das três naves fragmentárias que continuavam na perseguição. A finalidade do primeiro estágio de operação fora alcançada. Conseguiram assumir, por intermédio de Ellert, o cérebro-comandante de uma nave dos pos-bis. Talvez o controle não fosse completo, mas já havia sido suficiente para que a nave deixasse de perseguir a Teodorico.
— Seguir em direção a Árcon. Aceleração máxima. A frota de escoltamento deverá acompanhar-nos.
Claudrin confirmou o recebimento da ordem e transmitiu suas instruções.
Dali a alguns segundos, as três naves fragmentárias ficaram definitivamente para trás e acabaram por desaparecer nas profundezas do abismo. Não podiam deslocar-se a velocidade superior à da luz sem entrar em transição. E, uma vez realizada esta, não seria possível manter contato com a nave terrana.
O vôo de regresso com a duração de dois dias teve início.
No mesmo instante, os equipamentos de rastreamento da Via Láctea entraram em funcionamento, a fim de procurar a nave fragmentária desaparecida. Ninguém sabia se Ellert estaria em condições de transmitir sinais goniométricos. Era impossível registrar as transições dos pos-bis por meio de rastreadores estruturais. Dessa forma toda a operação de busca transformou-se num puro jogo de azar.
“Em qualquer lugar, no interior do grupo estelar M-13 ou nas suas proximidades”, dissera Rhodan.
Essa frase abrangia pelo menos um setor espacial de mil anos-luz de diâmetro.
Seria possível encontrar, no interior desse setor, uma nave parada que, em comparação com o espaço circundante, não seria maior que um grão de areia no Pacífico? Só mesmo a utilização de grande número de naves e instrumentos proporcionava alguma chance. Ainda havia necessidade de boa dose de conhecimentos e... sorte.
Sempre havia a possibilidade de que fossem transmitidos sinais goniométricos. Para atender a essa eventualidade, Rhodan mandou pôr em funcionamento todos os conversores de impulso capazes de captar as transmissões dos pos-bis.
Rhodan dormiu algumas horas e voltou para junto de Kule-Tats, que permanecia ao lado do corpo de Ellert. Quando olhou para o rosto do “regulador”, levou um susto. A alteração verificada ultrapassava todas as expectativas.
Manchas azuladas apareciam na pele pálida. Os olhos haviam afundado ainda mais nas órbitas. Os lábios estavam firmemente cerrados e os dedos da mão esquerda crispados. Os pés estavam um tanto encolhidos, e as tentativas de estendê-los fracassaram diante da rigidez completa dos membros.
Kule-Tats, o cientista ara, também mostrava uma palidez e um cansaço assustadores. Diante do olhar indagador de Rhodan, levantou as mãos num gesto de perplexidade.
— Não sei o que é isso — disse em tom de desânimo, apontando para os instrumentos. — Já sabíamos que o corpo de Ellert morreria, ao menos temporariamente. O processo de regeneração celular deveria retardar o fenômeno. Acontece que está surgindo uma espécie de rigidez cadavérica, contra a qual não podemos fazer nada. Bem que gostaria de saber o que fazer. Já não sei mais o que pensar. Os aparelhos não podem falhar...
— Nem Ellert! — disse Rhodan em tom enfático, mas não muito convincente. — Não é possível que sua ausência tenha qualquer relação com as alterações que se verificaram aqui. Já esteve fora por meses, sem que seu corpo se modificasse. E agora, depois de algumas horas...
Quando Bell entrou, o ara levantou os olhos.
— Não tenho nenhuma explicação — voltou a confessar.
— O que houve? — perguntou Bell, mas logo viu com os próprios olhos e assustou-se. — Como pôde acontecer uma coisa dessas? O funcionamento dos aparelhos é impecável. Será que isso tem algo a ver com os pos-bis?
— Talvez — disse Rhodan, enquanto verificava os aparelhos.
Dois especialistas acompanharam-no durante a inspeção, enquanto Bell ajoelhava junto ao corpo de Ellert e fitava o rosto do “regulador”. Apalpou cautelosamente com as pontas dos dedos o rosto enrijecido. Até parecia que se julgava capaz de, por um golpe de mágica, fazer a vida retornar àquele corpo. Finalmente levantou-se e fitou o ara.
— Será que desta vez Ellert terá de morrer? — perguntou em voz baixa.
— Ninguém é capaz de dizer — respondeu Kule-Tats, desanimado.
Rhodan retornou da inspeção.
— Tudo em ordem — informou. — Todas as instalações funcionam impecavelmente. Não é por isso. Se alguma coisa não der certo, a culpa não será dos nossos cientistas. Se alguém é culpado sou eu, que exigi o impossível de Ellert...
— A esta hora ninguém deveria “entreter-se” com sentimentos de culpa — disse Bell, colocando as mãos sobre os ombros de Rhodan. — Não poderíamos deixar de fazer a experiência, e o próprio Ellert a desejava. Nunca deixaria escapar esta oportunidade de colocar suas faculdades a serviço de uma causa justa. E não acredito que devamos abandonar todas as esperanças. Esperemos até encontrarmos a nave fragmentária. Mesmo que o corpo morra, Ellert não estará morto. Na minha opinião Ellert é imortal.
— Qualquer homem é imortal... ao menos em relação à alma — falou Rhodan. — Ellert é o único homem que conhecemos, que sabe dominar sua alma. Separa-a do corpo, entrega-lhe sua consciência e torna-se independente de qualquer tipo de matéria. E é isso que me serve de consolo, pois, neste ponto, você tem razão. Ellert não morrerá, mesmo que seu corpo se torne inaproveitável.
A central de hiper-rádio de Árcon III informou que até então não havia recebido notícia de qualquer êxito alcançado nas operações de busca. Isso não significava muita coisa, pois Rhodan esperava que a busca da nave fragmentária se estendesse por dias ou até semanas, a não ser que Ellert conseguisse irradiar sinais goniométricos ou controlar a nave a tal ponto que lhe fosse possível voar diretamente para Árcon.
Esta hipótese foi abordada mais tarde, quando Rhodan se encontrava em seu camarote, juntamente com alguns oficiais e mutantes.
— Suponhamos — disse Bell — que Ellert consiga influenciar os cérebros de plasma dos pos-bis a ponto de realizar uma transição em direção a Árcon. Neste caso deverá conseguir, no curso das experiências subseqüentes, aproximar a nave cada vez mais do destino. Ellert sabe perfeitamente que, quanto mais perto de Árcon se encontrar, maiores serão as chances de que o localizem. Se houver alguma chance, ele tentará. Nesse caso descobriremos a nave fragmentária nas proximidades de Árcon.
— Isso parece bastante plausível, mas não é certo — disse Rhodan. — É possível que Ellert tenha que dar-se por satisfeito se conseguir realizar uma ou duas transições. Talvez tenha sucumbido na luta contra milhões de células. Talvez...
— Por que vamos formular suposições? — Bell olhou para além de Rhodan. — Elas não nos servirão de nada. O que está acontecendo com os telepatas? Não conseguem encontrar Ellert? Será que estão tentando?
Gucky fez menção de que queria falar. Estava sentado sobre o sofá, ao lado de Iltu. Empertigou-se, para que todos o vissem.
— Ora, gorducho! Você sempre fala com a sabedoria de quem entende de todas as ciências deste mundo. Acha que nós dormimos? Por uma vez Marshall conseguiu estabelecer um contato ligeiro com Ellert. Foi pouco antes da primeira transição. Iltu também conseguiu por alguns segundos. Foi só. Você acha que depois disso ficamos dormindo?
— Não foi isso que eu quis dizer — disse Bell para desculpar-se, fazendo um gesto tranqüilizador para o rato-castor. — A espera sem-fim e a incerteza me deixam louco.
— Será que você sempre vive na incerteza? — conjeturou Gucky, numa alusão maliciosa e deixou-se cair sobre o sofá.
Depois voltou a “procurar” os impulsos de Ellert.
Rhodan esteve a ponto de dizer alguma coisa, quando o intercomunicador emitiu um zumbido.
— Sir, temos uma mensagem expedida pela estação central de rádio de Árcon. Quer que eu leia ou...?
— Leia! — interrompeu Rhodan.
Claudrin começou a ler:
— Cruzador Heidelberg para a Teodorico. Aparelhos de rastreamento registraram nave fragmentária parada. Nenhuma resposta às mensagens expedidas pelo rádio. Talvez seja a nave procurada. Posição BD-59-KG. Distância de Árcon três vírgula dois anos-luz. Peço instruções. Ass.: Comandante Prescott.
— Até que enfim! — exclamou Bell, em tom de alívio.
Rhodan continuou frio e objetivo.
— Avise a central de rádio de Árcon de que todas as unidades que estão de prontidão sejam estacionadas em torno das coordenadas indicadas pela Heidelberg. As naves deverão ficar preparadas para o combate, mas só realizarão ações defensivas. Aguardarão a chegada da Teodorico. Cercar a nave fragmentária e impedir sua fuga.
Claudrin confirmou e desligou.
— Conseguimos! — disse alguém.
Gucky, que se encontrava num lugar mais afastado, piou em tom de ceticismo:
— Esperem, seus otimistas.
Rhodan lembrou-se do corpo alterado de Ellert, que jazia lá embaixo, num compartimento especial, e também abafou o sentimento de alegria.
A segunda fase da operação estava começando...
O cubo gigantesco estava estacionado no espaço. As excrescências bizarras das seis faces lembravam as obras de artistas plásticos futuristas, do tipo das que são criadas por artistas visionários do planeta Terra ou encontradas em planetas mortos onde vicejaram civilizações há muito desaparecidas. Não havia nenhum campo defensivo que envolvesse o cubo ou o defendesse das influências vindas de fora. Nenhum canhão foi acionado.
O Comodoro Jefe Claudrin fitou a construção monstruosa com um obstinado silêncio. Mantinha a mão direita nas proximidades dos controles de vôo, pois não confiava naquela calma. Se o pos-bi resolvesse usar um raio conversor, a Teodorico estaria irremediavelmente perdida.
A distância entre as duas naves era a de meio segundo-luz, e era só nas telas que o veículo espacial fragmentário podia ser visto com tamanha nitidez. Rhodan mandara que a Teodorico se aproximasse lentamente. A frota dos arcônidas e dos terranos, disposta num círculo bem amplo, estava à espreita, para registrar imediatamente o primeiro movimento do inimigo.
— Se Ellert não estivesse lá e se não estivesse no controle do cérebro plasmático de comando, o cubo já teria atacado — asseverou Rhodan, que não estava gostando do silêncio de Claudrin.
Perry sabia que suas palavras não eram muito convincentes, pois aquilo também poderia ser um estratagema dos pos-bis, que tivesse por fim atrair os terranos, para de repente utilizarem sua arma mortífera.
— Em hipótese alguma faremos qualquer coisa, enquanto não tivermos certeza. Bell, mantenha seu comando em estado de prontidão.
Notou o susto espelhado no rosto do amigo e esboçou um sorriso ligeiro.
— Sua tarefa consiste unicamente em manter os técnicos e os mutantes de prontidão no interior da eclusa. Você ficará a bordo da Teodorico. Foi o que combinamos.
— Não é isso que me assusta, Perry. Acho que seria um erro irmos logo à nave fragmentária. Talvez estejam armando uma cilada para nós
— Esperaremos até que tenhamos certeza — disse Rhodan para tranqüilizá-lo. — Bem que gostaria de fixar o momento em que isso deveria acontecer. Entraremos em ação assim que Ellert chamar e ...
Interrompeu-se diante do zumbido do intercomunicador. Era Kule-Tats.
— Alô, mister Rhodan. O corpo de Ellert me preocupa. Está quase totalmente coberto de manchas azuis e vermelhas. O sangue já entrou em decomposição. Mesmo que Ellert voltasse agora, não haveria possibilidade de salvar o corpo.
Rhodan sentiu-se profundamente abalado.
— Gucky está aí?
— Está tentando estabelecer contato com Ellert, juntamente com Iltu e Marshall. Um momento. Vou perguntar...
Depois de ligeira pausa, o ara informou:
— Nada, absolutamente nada! Gucky diz que Ellert não tem tempo para transmitir qualquer informação. Já tem muito trabalho para manter os cérebros sob controle.
— Isso é perfeitamente possível — disse Rhodan em tom pensativo. — Se houver qualquer novidade, avise-me. Mais uma coisa. Mande os telepatas se dirigirem à eclusa onde o comando está à espera. Só Iltu ficará com o senhor. Deverá manter contato conosco.
Logo que Rhodan desligou, Bell falou:
— Se é assim, já está na hora. Irei para lá e cuidarei de tudo. Quando é que você irá?
— Quando tivermos nos aproximado o suficiente.
Bell saiu da sala de comando. Não faria parte do comando de abordagem. Claudrin seguiu-o com os olhos.
— Ele não se sente muito bem. Acho que preferiria ir também.
— Pois deveria sentir-se feliz porque pode ficar — disse Rhodan.
Mais uma hora passou. Bell voltou e informou que Gucky e os treze homens pertencentes ao comando se mantinham de prontidão no interior da eclusa. O tender também estava preparado.
Rhodan olhou para as telas e encontrou o tender. Tinha o aspecto de uma gigantesca plataforma retangular, sem proeminências. Só na parte da frente, em relação ao sentido do deslocamento, havia uma saliência abobadada. Nessa saliência ficava a sala de comando e os camarotes dos tripulantes. Os propulsores ficavam embaixo da plataforma. O veículo espacial media oitocentos metros por trezentos e tinha por fim recolher as naves avariadas, quando ainda valia a pena repará-las. Rhodan pretendia usar o tender para levar o canhão de raios conversores a um lugar seguro, depois de retirado da nave fragmentária.
O tender permanecia nas proximidades da Teodorico. Sem dúvida o comandante não se sentia muito à vontade, pois um tender não possui armamento suficiente nem campo defensivo de alguma potência. Este último, de qualquer maneira, não serviria para muita coisa caso os pos-bis resolvessem atacar. E as outras unidades da frota ficavam longe demais para poderem trazer ajuda imediata.
Quando a nave fragmentária se encontrava a cinco mil quilômetros, Kule-Tats voltou a chamar de repente. Sua voz parecia exaltada e estridente.
— Mister Rhodan, Ellert está se mexendo. Faça o favor de vir imediatamente.
Rhodan estacou por um instante, mas logo fez um sinal para Claudrin e desapareceu pelo corredor. Disparou em direção ao elevador e deixou-se cair no mesmo. O campo antigravitacional transportou-o para dentro da esfera. Dois minutos depois de ter recebido a notícia alarmante, entrou no porão de carga, que fora adaptado para servir de laboratório.
— Está morto, mas mexe-se — disse o biólogo ara, apontando para o corpo de Ellert. — Seus lábios proferem palavras incompreensíveis. Os lábios estão azuis, enrijecidos, mortos. Não compreendo, mister Rhodan.
Rhodan observou Ellert.
Quase não reconheceu o amigo. O rosto parecia o de uma múmia. Estava encovado, descolorido e enrugado. Apesar disso fazia movimentos. As rugas tremiam e as pálpebras levantaram-se, pondo à mostra por alguns segundos os olhos vidrados. Os olhos pareciam sem vida. O peito subia e descia em movimentos convulsivos. O braço direito permaneceu imóvel, mas o esquerdo levantou-se. Os dedos crisparam-se e a mão cerrou-se em punho. As pernas começaram a mover-se. Finalmente o corpo de Ellert ergueu-se.
— Não compreendo — gemeu Kule-Tats, perplexo.
Dirigiu-se a Iltu, que estava de pé junto à cama, com os olhos fechados.
— Conseguiu estabelecer contato, Iltu?
A rata-castora sacudiu a cabeça.
— Por incrível que possa parecer, Ellert não está pensando. Move-se, mas não possui cérebro pensante. Seu corpo executa movimentos mecânicos, como os de um robô. Os nervos não são comandados por qualquer tipo de inteligência, mas por um mecanismo que não compreendo. Não consigo estabelecer contato com Ellert.
— Será que não existe alguma explicação? — perguntou Rhodan, dirigindo-se a Kule-Tats. — Qualquer explicação, por mais improvável que pareça!
O ara meneou a cabeça.
— Minha especialidade abrange duas ciências naturais situadas em campos opostos: a Biomedicina e a técnica robotista. Talvez seja por isso que tenho uma explicação. Mas esta explicação não pode aspirar à precisão científica.
Interrompeu-se, pois nesse momento o corpo de Ellert sentou-se, em posição ereta, enquanto seus olhos pareciam enxergar através dos homens. Dava mostras de saber para que serviam esses olhos, mas não conseguia usá-los. As pernas desceram ao chão e Ellert levantou-se.
— O que é isso? — disse Rhodan e recuou instintivamente.
Rhodan sabia perfeitamente que, se Ellert ainda existia, nunca mais poderia retornar ao seu antigo corpo. Esse corpo, que resistira à ação do tempo durante cento e cinqüenta anos, decompunha-se a olhos vistos. Dentro de alguns dias teria que ser sepultado.
— Dê-me sua teoria, Kule-Tats, rápido! Não temos tempo.
— Agora?
— Por que não? — respondeu Rhodan, sem tirar os olhos da figura cambaleante de Ellert. — Talvez sua teoria sirva para alguma coisa.
Os outros médicos abandonaram a rigidez. Falavam todos ao mesmo tempo, gesticulavam violentamente e procuravam segurar Ellert. Mas o morto — sob o ponto de vista clínico Ellert estava morto — empurrou-os para o lado e prosseguiu em sua caminhada. Inseguro, como se estivesse cego, foi cambaleando em direção à porta.
— Van Moders e eu fizemos um estudo minucioso da estrutura dos cérebros de plasma — disse Kule-Tats em tom apressado. — A estranha disposição das células, que são todas autônomas, torna perfeitamente possível uma divisão temporária. A consciência de Ellert também tem essa possibilidade. Suponhamos...
— Mais depressa! — interrompeu Rhodan, que, com uma expressão tensa, fitava Ellert. O corpo do “regulador” estava abrindo a porta e saía para o corredor. Não poderiam perder mais tempo. Se algum tripulante que não soubesse de nada se encontrasse com o cadáver, poderia haver um desastre.
— Houve uma espécie de intercâmbio! — resumiu o ara. — Ellert transformou-se num pos-bi ou... em vários. De outro lado, parte da consciência do cérebro de plasma veio para junto de nós e... assumiu o cadáver de Ellert.
— Isso é uma loucura! Isso é...
Sacudiu a cabeça, fez um sinal para alguns dos homens e seguiu Ellert, que caminhava pelo corredor, cambaleante e cego, como se procurasse alguma coisa.
— Devemos tentar levá-lo de volta ao seu lugar — disse Kule-Tats em tom preocupado. — Como foi que ele conseguiu desprender os contatos do aparelho de regeneração celular?
Rhodan nem se lembrava desse detalhe. O pos-bi não poderia ter conhecimento disso, a não ser que tivesse absorvido parte da memória de Ellert. Teria sido realmente uma espécie de intercâmbio? Em caso positivo, o cadáver ambulante de Ellert seria o inimigo mais perigoso com que poderiam defrontar-se. Talvez até se tornasse necessário eliminá-lo.
Todo o ser de Rhodan rebelava-se diante da idéia de matar Ellert ou aquilo que parecia ser Ellert!
Os médicos alcançaram Ellert e seguraram-no pelos braços. Ellert não resistiu, mas parecia possuir forças tremendas. Continuou a caminhar como se não tivesse acontecido nada. Ninguém conseguiu detê-lo.
Evidentemente mais de metade dos tripulantes, cujo número era superior a mil, não entendia o que acontecia a bordo da nave. Os oficiais eram os únicos que sabiam o que estava em jogo. E um número muito maior de pessoas não sabia ao menos o que estava acontecendo com Ellert.
O homem que dobrou a curva do corredor para dirigir-se a um dos numerosos compartimentos de carga devia ser um simples cadete que pela primeira vez participava de uma operação, a julgar por seus distintivos. Esbarrou em Ellert, pediu desculpas e só então notou quem se encontrava à sua frente. Ao ver o rosto desfigurado da pessoa que não conhecia, as manchas coloridas e os médicos assustados, seus olhos quase saltaram das órbitas.
Soltou um grito estridente, fez meia-volta e saiu correndo, berrando ininterruptamente para pedir socorro. Haveria um belo tumulto, se o cadete se encontrasse com outros novatos. Até era possível que acreditasse ter encontrado um monstro que entrara na nave às escondidas para matar os tripulantes.
Rhodan correu ao interfone mais próximo e chamou Claudrin.
— Preste atenção, comodoro. Ellert está andando por aí. Os homens ficarão assustados se o virem. Já sabe o que deverá fazer se receber notícias alarmantes, não sabe?
— Sei, sim senhor — respondeu a voz retumbante de Claudrin.
— Está bem — disse Rhodan e desligou.
Logo, foi atrás do grupo que acompanhava Ellert.
— Kule-Tats, faça o possível para levar Ellert de volta à sua cama. Isso terá de ser feito de qualquer maneira, antes que eu vá à nave fragmentária com meu comando.
— O senhor não acha que no momento isso é muito perigoso?
— Cada segundo é precioso; não podemos esperar mais.
O ara transmitiu suas instruções. Ellert foi cercado e empurrado na direção de onde havia vindo. Por certo não entendia uma única palavra, mas instintivamente todos lhe falavam em tom tranqüilizador. Conseguiram aos poucos. Ellert obedeceu e voltou ao compartimento de carga do qual havia escapado.
Mas só quando estava deitado novamente na cama foi que Rhodan soltou um suspiro de alívio. Um morto que perambulasse por uma nave não era um fenômeno muito freqüente. Mas no seu íntimo tinha esperanças de que Ellert não estivesse morto. Não podia estar morto! O corpo talvez pudesse ser substituído, mas com a alma isso não era possível.
— Amarrem-no! — ordenou.
Amarraram o corpo rebelde e convulsionado com largas correias de couro que o prendiam ao leito. Depois disso, os contatos com os aparelhos foram restabelecidos.
Acontecesse o que acontecesse, Ellert já não poderia levantar. A única parte do corpo que poderia mover era o braço esquerdo. Tiveram o cuidado de amarrar o braço direito de tal maneira que a pseudo-mão apontava para baixo. Ninguém se arriscaria a ser atingido por um raio energético.
— Iltu — disse Rhodan, dirigindo-se à “moça” pertencente à raça dos ratos-castores. — Daqui em diante muita coisa dependerá de você. Está em contato com Gucky?
— Ele se encontra na eclusa juntamente com os outros e está esperando.
— Muito bem. Mantenha o contato. Comigo também. Tentaremos fazer a abordagem da nave fragmentária. Se alguma coisa não der certo, avise Claudrin. Aja assim que eu tiver um pensamento nesse sentido. Posso confiar em você?
— Pode confiar em mim tanto quanto confia em Gucky — disse Iltu, em tom orgulhoso.
Um sorriso fugaz aflorou aos lábios de Rhodan, que acariciou o pêlo marrom de Iltu.
— Ainda bem que posso contar com você e Gucky — disse, fazendo um sinal para os homens. — Desejem-nos boa sorte.
Os homens não disseram uma palavra. Seguiram-no com os olhos, até que desaparecesse.
— A esta hora não gostaria de estar em sua pele — disse Kule-Tats, em voz baixa.
De início tudo correu bem.
O teleportador Ras Tschubai saltou sozinho para a nave fragmentária, enquanto os outros membros do comando, inclusive Gucky, ficaram à espera no interior da comporta da nave terrana. A Teodorico estava parada junto ao costado da nave dos pos-bis.
A escotilha externa estava aberta. Os membros do comando usavam trajes espaciais. Gucky manteve contato com Ras Tschubai.
— Está se materializando na nave fragmentária — disse em tom hesitante.
Sua voz parecia um pouco distorcida nos receptores dos capacetes. A mão de Rhodan estava pousada sobre a coronha da pesada arma de impulsos que trazia no cinto. Todos usavam armas desse tipo.
— Há alguns robôs, mas ele não o atacam. Não tomam conhecimento de sua presença. Ras acredita que estejam agindo assim por ordem de alguém. Vai indo em direção à eclusa principal, para ficar bem em frente do lugar em que nos encontramos. Não faz absolutamente nada, mas as escotilhas abrem-se à sua frente como se alguém quisesse ajudá-lo.
Rhodan fitava a nave fragmentária com uma expressão de ansiedade. Os contornos da grande escotilha apareciam nitidamente. Alguma coisa moveu-se. A escotilha abriu-se lentamente, num movimento que até parecia convidativo.
A distância não chegava a cinqüenta metros.
— Vamos! — ordenou Rhodan e empurrou-se.
Gucky e os homens seguiram-no imediatamente. Impelidos pelo impulso inicial, flutuaram sobre o abismo imenso, que se abria embaixo deles numa extensão de milhões de anos-luz. Vez por outra, alguém corrigia a rota por meio de um disparo da pistola energética. Finalmente foram pousando, sãos e salvos, no interior da eclusa.
Ras Tschubai já os esperava.
— Ao que parece, Ellert mantém o controle da nave fragmentária — disse o africano, que se mantinha de arma em punho.
— Ninguém nos ataca. Bem que gostaria de saber o que está acontecendo com Ellert...
— Deve estar bastante ocupado em manter os cérebros de plasma sob controle — retrucou Rhodan. — Não devemos perder tempo.
Moveu um controle em seu transmissor, e perguntou:
— Tender, está me ouvindo?
— Aqui fala o tender! A equipe técnica está preparada, sir.
— Aproxime-se e desembarque os homens.
Rhodan jogava todos os trunfos numa única cartada. Se, nesse momento, Ellert falhasse, ficariam presos no interior de uma nave dos pos-bis. E os robôs inimigos não hesitariam em matá-los imediatamente.
Rhodan dirigiu-se a um dos homens.
— Major Narco, o senhor é especialista em armamentos. Já sabe o que deve fazer.
Slide Narco limitou-se a acenar com a cabeça. Mantinha os lábios firmemente cerrados.
No interior da nave fragmentária, os corredores estavam desertos.
Era a primeira vez na história da guerra entre os humanóides e os robôs pos-bis que um grupo de homens penetrava em condições tão favoráveis numa nave intacta do inimigo. Até então isso só tinha acontecido em condições bem piores, durante os combates e numa situação de perigo constante. Na maior parte das vezes, as naves abordadas se tornavam destroços, dos quais só se conseguiam recolher certas peças, mas nunca o temível canhão de raios conversores.
— Por aqui — disse Slide Narco, entrando num corredor largo. — As abóbadas de canhões não podem estar muito longe.
Rhodan voltou a chamar o comandante do tender.
— Os técnicos devem ficar de prontidão sobre o casco da nave fragmentária. Os aparelhos de solda de radiações foram preparados?
— Estamos aguardando suas ordens, sir. Rhodan sabia que, quando chegassem ao lugar que procuravam, as coisas seriam muito rápidas. Não haveria tempo para desmontar as instalações de um canhão de raios conversores, seguindo todas as regras da arte e na maior calma. Todo o conjunto teria de ser recortado e levado ao tender. Face às condições de ausência de gravidade reinantes no espaço, isso não seria difícil. O Major Narco parou.
— É ali — disse, apontando para um bloco gigantesco, cuja parte dos fundos era formada pelo casco da nave. — São os geradores do canhão de radiações. É o que nos interessa.
— Não há nenhuma eclusa por perto?
— Não. Os controles do canhão de raios conversores ficam na sala de comando. A única possibilidade será cortarmos o envoltório com o maçarico de radiações.
Rhodan voltou a chamar o tender e mandou que este fizesse a determinação goniométrica de sua posição. Depois disso ordenou a ação-relâmpago há muito preparada.
Jefe Claudrin, que se encontrava a bordo da Teodorico, acompanhou o espetáculo singular. Grande número de pontos escuros afastaram-se do tender e pousaram num lugar bem determinado do casco da nave fragmentária. Depois disso seguiram máquinas-ferramenta, guindastes e maçaricos de radiações. Os guindastes não passavam de chapas magnéticas, ligadas ao tender por meio de cabos de aço. Uma vez grudados ao canhão de raios conversores, eles o prenderiam facilmente ao tender.
Rhodan sobressaltou-se quando Gucky tocou seu braço.
— É Ellert... — cochichou o rato-castor. — Está chamando. Consegui estabelecer um débil contato, mas não compreendo o que diz.
— Está pensando? — perguntou Rhodan, em tom ansioso. — Está enviando impulsos?
— Os impulsos são distorcidos e confusos, Perry. Deve estar na sala de comando. Vamos para junto dele?
Rhodan viu que os homens se retiravam, pois, no recinto em que se encontravam, o calor aumentava rapidamente. As marcas vermelho-incandescentes do maçarico já atravessavam o casco. Traçavam um círculo muito grande em torno do gerador. A nave fragmentária não demoraria a perder parte de seu envoltório — e um dos seus canhões de raios conversores.
— Major Narco, assuma o comando por algum tempo. Ficarei em contato com o senhor. Se houver algum imprevisto, avise-me. Se conseguir tirar esta peça de artilharia mais depressa do que se previa, pegue outra. Entendido?
— Entendido, sir. Daremos conta do recado.
— Assim que o canhão tenha sido retirado, mande transportá-lo para o tender. Haja o que houver, não podemos permitir que esta operação seja realizada em vão. Nossos cientistas precisam de um canhão de raios conversores intacto. Não se esqueça disso, major.
— O senhor pode confiar em mim.
Rhodan sorriu.
— Sei disso — segurou a mão de Gucky e saiu para o corredor. — Vamos saltar, para ganhar tempo.
O rato-castor confirmou com um gesto, se concentrou e se desmaterializou juntamente com Rhodan. Quando voltaram a enxergar, encontravam-se na sala de comando semicircular da nave dos pos-bis. Não viram um único robô. O bloco do cérebro de comando parecia inalterado.
— Os impulsos mentais de Ellert estão mais fortes — cochichou Gucky. — Quer comunicar-nos alguma coisa.
— Ainda bem que conseguimos estabelecer contato.
Gucky não respondeu. Parecia perscrutar seu interior e para isso teve de concentrar-se fortemente. Rhodan não o perturbou. Não soltava a mão do rato-castor, pois assim poderiam afastar-se imediatamente, caso surgisse algum perigo. Sem o contato físico com um telepata não seria possível sua teleportação.
As vozes dos membros do comando soaram em seu receptor. Falavam todos na mesma faixa de onda, motivo por que muitas vezes não se compreendia o que diziam uns aos outros. Mas não havia razão para preocupar-se. Tudo estava correndo conforme o plano.
Gucky ergueu-se.
— Ellert tem que travar uma luta muito difícil. Diz que não agüentará por muito tempo. No início os cérebros de plasma procuraram jogá-lo para fora, mas não conseguiram. Depois disso houve um momento de calma. E agora...
Hesitou, e voltou a ouvir. Rhodan estava curioso.
— O que aconteceu agora?
Não demoraria a saber.
O Major Slide Narco chamou:
— O primeiro canhão de raios conversores já foi retirado, sir. Está sendo levado para o tender. Tudo deu certo. Está intacto; retiramos a instalação completa. Neste momento os homens estão iniciando a desmontagem da segunda peça.
— Muito bem, Narco — respondeu Rhodan. — Prossigam o mais rápido que puderem. Não temos muito tempo.
Gucky esperou até que Rhodan concluísse sua fala.
— Ellert informa que de início sua consciência foi obrigada a dividir-se em milhões de partes, e agora o cérebro de plasma paralisado começa a sugar cada uma dessas ilhas de consciência.
— Começa a sugar...?
Rhodan assustou-se até a medula dos ossos. Não sabia quais seriam as conseqüências dos fatos que Ellert acabara de informar, mas começou a imaginar que, se o tivessem posto para fora, isso teria sido o mal menor. Seria apenas um gesto de defesa dos pos-bis. Já a absorção da mente parecia ser um ataque!
— Pergunte a Ellert qual é o tempo de que ainda podemos dispor.
— Ele diz que não é muito. Daqui a pouco perderá o controle sobre o cérebro. Não sabe o que acontecerá depois disso. Já não consegue nem mesmo desprender-se da consciência plasmática.
Rhodan cerrou os dentes. Estava com medo, não por ele, mas por Ellert.
A voz de Slide Narco interrompeu suas reflexões.
— A desmontagem do segundo conversor também foi concluída, juntamente com a do equipamento projetor. Os raios de tração retiraram o equipamento dos guindastes e o colocaram no tender. Quais são as ordens?
— O grupo do tender deverá retirar-se imediatamente. O tender desatracará e seguirá em direção à Terra. O senhor comparecerá à sala de comando, juntamente com os homens de nosso grupo. Temos que destruir o robô-comandante, antes que alguma coisa aconteça a Ellert.
Gucky sacudiu a cabeça.
— Os impulsos mentais de Ellert tornam-se cada vez mais débeis e confusos. O que pretende fazer?
O próprio Rhodan não sabia.
Se voltasse para a Teodorico, poderia estar cometendo um erro irreparável. Será que Ellert conseguiria libertar-se com as próprias forças? O que era mais importante: o corpo ou a alma aprisionada pelo cérebro de plasma?
— Ellert sofre terrivelmente — informou o rato-castor. — Quem sabe, se Marshall estivesse aqui...
— Não demorará a chegar juntamente com os outros — disse Rhodan, em tom tranqüilizador. — Libertaremos Ellert, mesmo que tenhamos que raptar o cérebro-comandante e levá-lo à Teodorico. Talvez seja a única solução.
— Talvez — repetiu Gucky.
Narco veio com os outros homens do grupo. Estava radiante.
— Conseguimos dois conversores, sir. Já estão a caminho da Terra.
Por um instante o rosto de Rhodan iluminou-se.
— Não demorará, e os pos-bis sentirão os efeitos de sua própria arma. Com isso, a guerra entrará numa fase decisiva. Talvez consigamos rechaçá-los, empurrando-os para o lugar do qual vieram.
— Sem dúvida! — concordou o major.
— Dê-me a mão, John — disse Gucky. — Juntos poderemos receber melhor as mensagens de Ellert. Dois telepatas valem mais que um só.
Dirigiu-se a Rhodan.
— Aliás, Iltu mantém-se constantemente em contato conosco. Não estamos sós.
— Apesar disso não temos muito tempo... sinto que não temos — alertou Rhodan.
Naquele momento nem desconfiava de que o tempo de que dispunham era menor do que imaginava...
O Comodoro Jefe Claudrin quase morreu de impaciência.
Em sua opinião, a operação fora concluída; chegara a bom termo. Por que Rhodan não voltava logo para a Teodorico? Por que se expunha a um risco desnecessário? Ellert voltaria só. Não provara tantas vezes que era capaz disso? Para ele, a distância não significava nada.
A Teodorico continuava parada ao lado da nave fragmentária, em cujo casco se abriam dois buracos redondos. Era o lugar em que antes se encontravam os conversores, que já estavam a caminho da Terra.
O nervosismo de Claudrin crescia cada vez mais. A uma distância tão reduzida bastava recorrer ao intercomunicador para acompanhar a conversa entre Rhodan e os homens de seu grupo. Por isso mesmo Claudrin sabia o que estava acontecendo na outra nave e qual era o motivo da espera de Rhodan.
De repente certos fatos aconteceram! E aconteceram de tal maneira que ninguém teve tempo para agir...
O contato pelo rádio foi interrompido abruptamente!
No mesmo instante, a nave dos pos-bis foi envolvida por um campo defensivo relativista, que para as armas terranas era tão impenetrável quanto a própria Eternidade.
Iltu perdeu o contato telepático com Gucky e Marshall.
Exatamente um segundo depois disso, a nave fragmentária desapareceu!
Perplexo, Bell fitou as telas vazias.
— Onde... onde está essa caixa? Saltou para junto de Claudrin e abriu os braços, como se com isso pudesse trazer a nave fragmentária desaparecida de volta.
— Onde está? Fale logo!
Claudrin não tirou os olhos das galáxias distantes.
— Não sei, Mr. Bell. Como é que eu poderia saber? Só existe uma explicação. Ellert falhou, e os pos-bis recuperaram o controle da nave e... não perderam tempo. Seqüestraram Rhodan e seu grupo. Nós teremos de encontrá-los.
— Encontrá-los onde?
Iltu materializou-se na sala de comando.
— O que aconteceu? — perguntou com a voz muito aguda e estridente. — Gucky desapareceu. Não recebo mais nenhum impulso. Até parece que está morto.
Bell esteve a ponto de dar uma resposta áspera, quando fitou os olhos castanhos da bela “moça” da raça dos ratos-castores, e viu um brilho nos mesmos. Eram lágrimas. Estacou e sentiu o coração amolecer. Num gesto varonil reprimiu a emoção e inclinou-se sobre Iltu.
— Gucky não está morto, pequena. Os pos-bis apenas colocaram sua nave atrás de um campo temporal. Nem mesmo os impulsos mentais são capazes de atravessá-lo. Encontraremos Gucky e os outros membros do grupo. Mas você terá de ajudar-nos.
Iltu fitou-o com uma expressão valente. Limpou as lágrimas com a patinha sedosa e disse em tom queixoso:
— É claro que ajudarei, mas o que posso fazer se não consigo estabelecer contato?
— Deixemos isso para depois — disse Bell e dirigiu-se a Claudrin. — Que direção pode ter tomado a nave fragmentária?
— Quanto a isso só podemos formular suposições. Meu palpite é Frago. É bem possível que volte para lá, com Rhodan e os membros do comando a bordo. Será uma boa presa para os pos-bis.
— Tomara que não saibam — disse Bell, fitando Iltu. — O que está acontecendo com Ellert lá embaixo? O que diz Kule-Tats?
— Ellert está morto; pelo menos seu corpo está. Pelo que diz o ara, nunca poderá ser resto... resta...
— Restaurado? — perguntou Bell.
— Sim, é isso mesmo. Ainda diz que Ellert deve ser sepultado.
— E depois? Para onde irá o espírito de Ellert, quando voltar?
Iltu gingou em direção ao sofá onde Gucky gostava de sentar-se e saltou para cima do estofamento macio.
— Eu não sei. Mas Kule-Tats diz que ele entrará em contato conosco... por intermédio de um de nós. Parece que Gucky já fez isso...
— É verdade! — disse Bell. — Mas isso não foi muito agradável para a respectiva pessoa. Por outro lado, antes assim que morto.
Claudrin acionou alguns controles e entrou em contato com as outras unidades, que esperavam a grande distância a ordem de entrar em ação. Em ligeiras palavras informou os comandantes sobre os acontecimentos e concluiu:
— Neste momento Reginald Bell, representante do Administrador do Império Solar, assume o comando da frota. Dentro em breve serão transmitidas novas ordens. Fiquem na recepção.
Interrompeu a ligação e lançou um olhar indagador para Bell.
— Então?
Bell aproximara-se de Iltu e estava acariciando seu pêlo castanho sedoso.
— Você gosta muito de Gucky, não gosta?
— Muito mesmo.
— Gosta mais dele que de Rhodan? Iltu fez que sim.
Bell não parava de acariciá-la.
— Mas Rhodan é mais importante que Gucky.
Iltu fitou-o com uma expressão ingênua.
— Assim mesmo gosto mais de Gucky. Para mim pouco importa quem seja mais importante — falou e levantou-se. — Aliás, Gucky, Rhodan e os treze homens estão enfrentando o mesmo perigo. Por isso é indiferente que eu goste mais deste ou daquele. Vamos salvar todos, não vamos?
— É claro que vamos — asseverou Bell em tom suave, deu uma palmadinha carinhosa em Iltu e voltou para junto de Claudrin. — Siga em direção a Frago, comandante, e avise a frota. Cercaremos o planeta dos pos-bis e ficaremos à espera. A nave fragmentária acabará aparecendo por lá, e, quando isso acontecer, nós a reconheceremos imediatamente pelos buracos abertos em seu casco.
Jefe Claudrin deu ordens para que a frota que se mantinha à espera entrasse em ação.
Mais de mil naves saíram em disparada, tomando a direção do abismo do intercosmo.
Os dois conversores de raios estavam a caminho da Terra. Ainda não se conhecia o preço que teria de ser pago pelos mesmos...
Gucky estava totalmente desorientado.
— Ellert está em silêncio — disse num cochicho.
Marshall confirmou com um aceno de cabeça.
— Retirou-se completamente ou... então...
— Por enquanto não sabemos de nada — disse Rhodan. — O que realmente importa é que Ellert mantenha o controle sobre o cérebro. Talvez deveríamos pensar em retirar-nos para Teodorico.
O Major Narco, que se encontrava junto à porta que dava para o corredor, virou-se abruptamente e gritou:
— Os pos-bis! Vêm para cá! São robôs de guerra...
Rhodan estremeceu, lançou um olhar apressado para o robô-comandante, como se esperasse que este lhe desse uma resposta e, dirigindo-se a Gucky, perguntou:
— O que houve com Ellert?
— Perdi o contato. Em compensação estou captando impulsos dos pos-bis. Tornam-se cada vez mais intensos, mas não os compreendo.
De repente Rhodan empalideceu.
— Se os pos-bis conseguiram libertar-se do controle de Ellert, estaremos perdidos. Não possuímos neutralizadores individuais. Os robôs logo nos identificarão como seres orgânicos e, portanto, como inimigos mortais. Temos de voltar para a Teodorico. Marshall, salte primeiro...
Telas iluminaram-se. No gigantesco bloco do robô-comandante começou a desenvolver-se uma atividade intensa. Chaves e controles moviam-se. Até parecia que mãos invisíveis executavam uma série de ordens inaudíveis.
— Iltu... perdi o contato com Iltu! — exclamou Gucky.
Marshall confirmou. Parecia muito perturbado.
Rhodan chamou Jefe Claudrin, mas o receptor permaneceu mudo.
Todas as ligações com a Teodorico haviam sido interrompidas.
— O campo defensivo! — gritou Slide Narco. — Os pos-bis ativaram seu campo defensivo! Não poderemos mais sair da nave fragmentária.
Mas por que estava acontecendo isso? Será que Ellert falhara por completo? Onde estaria Ellert?
Apesar do campo defensivo via-se perfeitamente a Teodorico. A gigantesca esfera espacial encontrava-se a menos de cem metros. Até parecia que os cascos das duas naves se tocavam.
De repente a Teodorico desapareceu, como se tivesse entrado em transição.
Rhodan percebeu a verdade. Era exatamente o contrário.
— Os pos-bis dominaram Ellert. A nave fragmentária entrou em transição. Não sentimos nada. — sua voz parecia rouca. — Receio que desta vez realmente nos tenham enganado. Podem levar-nos para onde quiserem.
Os homens não responderam. Fitaram-no, mudos e ainda confiantes. Sabiam que Rhodan não desistiria dos seus esforços de salvar a si mesmo e aos membros de seu grupo. E sabiam que os outros os procurariam, fosse qual fosse o lugar para onde seriam levados. Ainda era cedo para perder as esperanças.
O vôo pôde ser acompanhado nas telas.
Seguiram-se várias transições que os levaram para fora da Via Láctea. As pausas foram cada vez maiores. O cérebro de plasma precisava descansar. Não se percebia mais nada de Ellert. Gucky e Marshall esforçavam-se em vão para captar seus impulsos mentais. Será que Ellert havia voltado para o corpo que se encontrava na Teodorico?
De repente Narco, que continuava a montar guarda junto à porta, disse:
— Estão chegando; são pelo menos quatro dessas pequenas máquinas de guerra.
Rhodan confirmou com um gesto.
— Ainda bem que o comandante dos pos-bis não está armado. E os soldados-robôs? Bem, nós lhes daremos uma recepção condigna. Não terão um jogo fácil conosco.
— Será que eles teriam algum motivo para nos matar? — perguntou um dos cientistas, em tom de espanto. — Se estivesse no lugar deles, procuraria levar meus prisioneiros a um lugar seguro, vivos, a fim de examiná-los calmamente.
— Os pos-bis costumam agir de forma contrária à nossa lógica — ponderou Rhodan. — Nunca se sabe o que farão. Talvez fiquem satisfeitos se um de nós for capturado vivo.
Narco levantou a arma de radiações e apontou para o corredor.
— Quer que atire? — perguntou.
Rhodan aproximou-se.
Quatro figuras metálicas rolavam lentamente em direção à sala de comando.
— Vamos liquidá-los antes que cheguem perto demais — ordenou Rhodan e levantou sua pesada arma de impulsos.
Atiraram como se estivessem num exercício de tiro. Os disparos foram rápidos e precisos. Suas mãos não tremeram, e os raios energéticos atingiram os pos-bis nos lugares mais sensíveis.
Numa questão de segundos, os quatro inimigos estavam reduzidos a um montão de metais fumegantes. O revestimento de plástico da parede pegou fogo, mas este se apagou assim que o sistema automático de proteção contra incêndio entrou em atividade.
— Ellert voltou a chamar — gritou Gucky, que estava agachado num canto, embaixo do robô-comandante. — Parece que está sentindo dor. Será possível? Ele não tem corpo.
Rhodan não teve tempo para responder a perguntas. Além disso não conhecia a resposta.
— Temos que trancar a porta — disse. Mas isso não foi tão simples assim. A porta não possuía controles manuais. — Gucky! Tente falar com Ellert que...
O rato-castor sacudiu a cabeça.
— É impossível. Ellert está ocupadíssimo. Defende-se contra as investidas constantes de milhões de células que querem sugá-lo; foi o que consegui compreender. Se sua vigilância diminuir por um segundo que seja, estará perdido. Não consegue abandonar o cérebro de plasma.
Rhodan parecia estarrecido. Continuava com a arma na mão.
Ellert não conseguia sair do pos-bi! Estaria preso, da mesma forma que fora prisioneiro dos druufs? Não se poderia contar mais com ele.
— Vamos tentar chegar a uma das eclusas, de preferência à eclusa principal. Lá existem telas ligadas à sala de comando. A qualquer momento saberemos onde estamos. Talvez consigamos sair da nave antes que esta pouse. Se os pos-bis se dirigirem a Frago, poderemos contar com auxílio. Jefe Claudrin não é nenhum idiota.
— Naturalmente supõe que eles nos levem para Frago — observou o Major Narco. — Afinal, foi lá que a caçada teve início. Logo, é lá que ela terminará.
— Nem tudo está perdido — disse John Marshall. — É possível que toda a frota que participa da operação nos espere nas proximidades de Frago. A nave fragmentária na qual nos encontramos é fácil de ser identificada.
— De qualquer maneira — disse Rhodan em tom mais sério que antes — não podemos esperar até que a nave pouse. Geralmente Frago está envolto num campo defensivo relativista. Se formos levados para lá, dificilmente alguém poderá ajudar-nos.
Depois de uma ligeira pausa de reflexão prosseguiu:
— Espero que Ellert também saiba. Ras Tschubai saltou para dentro do corredor e certificou-se de que o caminho estava livre. Não se via nenhum daqueles robôs pequenos, mas extremamente perigosos. Rhodan e os outros membros do grupo seguiram-no. Gucky formou a retaguarda da pequena força. Protegia-a contra ataques dos corredores laterais.
Chegaram sem problemas a um elevador, que funcionava perfeitamente. Na parte de cima ficavam os canhões de raios conversores, enquanto a eclusa principal ficava embaixo. Se conseguissem chegar lá, ainda haveria esperanças.
Ninguém saberia dizer quais seriam essas esperanças. Enquanto Ellert fosse mantido preso pelo cérebro de plasma, praticamente não haveria a menor esperança de saírem vivos da nave dos pos-bis.
A eclusa possuía controles manuais, motivo por que era independente do robô-comandante. Naturalmente também podia ser controlada a partir da sala de comando, mas o grupo de Rhodan não poderia contar com este controle. Jamais lhes abririam voluntariamente a porta para a liberdade.
No momento isso não adiantaria muito. Ficariam presos no interior do misterioso campo energético ou temporal que envolvia a nave fragmentária.
A câmara da eclusa era grande. Em seu interior também havia uma atmosfera respirável, e por isso Rhodan mandou abrir os capacetes. Não mandou tirá-los, pois queria que pudessem ser fechados em poucos segundos. Os pos-bis gostavam de permanecer numa atmosfera de oxigênio, mas ainda não se conseguira descobrir um motivo plausível para isso, pois os robôs podiam conservar a existência até mesmo no espaço vazio.
Rhodan suspirou aliviado.
— Aqui desfrutamos uma segurança relativa — apontou para algumas telas que se encontravam na parede. — Daqui vê-se a sala de comando. Se houver alguma modificação por lá, não deixaremos de perceber. Aliás, acaba de haver outra transição. A Via Láctea está mais longe. Acho que nossa suposição é correta. Viajamos em direção a Frago. Isso é bom, no que diz respeito a Claudrin e à frota. Só nos resta esperar que cheguem lá antes de nós.
— Não constato mais o menor sinal da presença de Ellert — informou Gucky, preocupado.
O rato-castor escolhera um bom lugar no canto que ficava junto à escotilha externa. Estava sentado numa caixa de metal e apoiava as costas na parede.
— É como se nunca tivesse existido — concluiu.
— Você acredita que ele sabe onde estamos?
Gucky preferiu não responder. Ajeitou o capacete do pequeno traje espacial feito sob encomenda. A cauda saía por uma abertura, e esta “inovação” no uniforme dava origem a muitas brincadeiras. Mas hoje ninguém pensava em brincar, com Gucky.
— Talvez. Não consigo constatar.
Examinaram as armas e acomodaram-se o melhor que puderam. Estavam condenados à inatividade, pois teriam de esperar até que acontecesse alguma coisa.
A nave fragmentária continuava a correr ininterruptamente pelo espaço.
Deslocando-se em vôo linear, a frota aliada, vinda da Via Láctea, corria em direção a Frago. O planeta escuro não era reconhecível a olho nu. A única informação sobre sua situação provinha dos aparelhos de rastreamento. Ainda faltavam trinta mil anos-luz. Seriam mais algumas horas de vôo.
Durante essas horas, o Comodoro Jefe Claudrin e Reginald Bell dormiram um sono inquieto.
Ao despertarem, encontraram-se na sala de comando com os outros oficiais superiores da Teodorico, a fim de debater a situação. Bell principiou com uma seriedade e reserva extraordinária:
— Dependemos exclusivamente de nós mesmos. Qualquer demora poderá trazer conseqüências catastróficas para Rhodan e os membros de seu grupo. E a pressa exagerada poderá trazer conseqüências não menos catastróficas. É de se supor que a nave fragmentária tenha recebido ordens diferentes. Nesse caso nossas buscas serão infrutíferas.
— Ninguém sabe quantos desses planetas errantes foram transformados em bases pelos robôs — observou um tenente.
Bell confirmou com um gesto.
— É verdade, tenente. Acontece que conhecemos Frago, e a nave fragmentária veio de lá. Quer dizer que o grau de probabilidade de que volte para lá é bastante elevado. O Comodoro Claudrin já instruiu os comandantes de nossa frota a formarem um anel em torno de Frago. Veremos se nossa suposição é correta.
— O que faremos se a nave fragmentária aparecer por lá? — perguntou o tenente. — Não poderemos atacá-la.
— Por causa do campo relativista? Ora, não se preocupe com isso, pelo menos por enquanto. No momento, o mais importante é encontrarmos uma pista. Ainda espero que Ellert consiga recuperar a influência que parece ter perdido temporariamente. Se conseguir desligar o campo defensivo, nem que seja por alguns segundos, será o quanto basta. Poderemos retirar Rhodan e os membros do comando da nave fragmentária.
Jeff Claudrin pigarreou.
— Isso parece simples demais... — disse, comentando o plano de Bell. — De qualquer maneira tentaremos. Tomara que sejamos mais rápidos que a nave fragmentária. Afinal, esta se desloca por meio de transições, enquanto nós realizamos o vôo linear.
— Tenho certeza de que somos mais rápidos... em grandes distâncias. Não chegaremos a Frago depois deles... supondo sempre que sua nave se dirija a esse planeta — supôs o tenente.
O intercomunicador emitiu um zumbido. Claudrin fez a ligação.
— É Kule-Tats — disse apressadamente, antes que a pequena tela se iluminasse, mostrando o rosto do biólogo ara. — O que houve?
O rosto do ara parecia preocupado.
— O que faremos com Ellert, comodoro? Acho que seria uma irresponsabilidade de minha parte se deixasse o corpo por mais tempo neste lugar. O mesmo já apresenta sinais evidentes do início da putrefação. Contudo, por estranho que possa parecer, de algumas horas para cá seu estado se mostra estacionário. Mas não posso prever quando o processo...
— Estacionário?! — repetiu Bell e colocou-se à frente da tela, para que o ara pudesse vê-lo. — Quer dizer que a decomposição do corpo não prossegue?
— É isso mesmo, mas...
— Não vejo o menor perigo — interrompeu Bell. — O corpo de Ellert deve permanecer embaixo do regenerador celular. Mande refrigerar o recinto, para evitar que a putrefação prossiga. Repito: Ellert ficará no lugar em que se encontra. Entendido?
— Perfeitamente — respondeu o ara em tom ligeiramente indignado. — A responsabilidade será sua.
— Seria uma irresponsabilidade se, pura e simplesmente, destruíssemos o corpo, Kule-Tats. É possível que Ellert volte, e quando isso acontecer, ele precisará de um refúgio, ao menos por alguns minutos. Sempre se poderá ver o que acontecerá depois. Por isso peço-lhe que tome todas as providências para que o corpo seja conservado pelo maior tempo possível. O senhor, com seu saber, escolherá os passos necessários para isso.
O ara limitou-se a acenar com a cabeça. A tela apagou-se.
— Suas intenções são boas, Reginald Bell — disse a voz retumbante de Claudrin. — Não tenho a menor dúvida. Apenas acredito que já abandonou todas as esperanças de que Ellert possa voltar...
— Pois eu não abandonei — retrucou Bell e voltou a dirigir-se aos oficiais. — Os senhores já conhecem a situação. Peço-lhes que voltem aos seus postos. Temos mais algumas horas de vôo pela frente. Depois disso... — hesitou e mordeu o lábio inferior. — Ninguém pode prever o que acontecerá. Fiquem preparados.
Os oficiais retiraram-se da sala de comando.
Claudrin examinou calmamente as telas. A Via Láctea encolhera e ficara para trás. Bem à frente brilhavam as manchas luminosas das Galáxias e grupos isolados de sóis muito distantes.
Era por lá que ficava Frago, o planeta escuro.
De repente o comodoro falou com a voz completamente alterada. Na presença dos oficiais esforçara-se para parecer calmo e confiante, mas agora, que se encontrava a sós com Bell, não havia motivo para manter a mesma reserva.
— Que diabo, mister Bell! — olhando para além do gorducho, continuava a fitar as telas. — O chefe está numa armadilha da qual não conseguirá escapar. Acho que o senhor concorda comigo, não concorda?
— O senhor já esteve numa situação totalmente desesperada, comodoro? — perguntou Bell. — Refiro-me a uma situação da qual o senhor poderia dizer com uma certeza de cem por cento que a mesma não oferecia a menor esperança. Vejo que não responde logo. Quer que eu lhe diga por quê? Porque não existe nenhuma situação totalmente desesperada. Até mesmo quando se encontravam embaixo da forca, os pobres pecadores de outros tempos ainda esperavam um milagre. E às vezes esse milagre até acontecia. Não, Claudrin, eu não desisto. Ninguém desistirá, pois a situação só se tornaria desesperada quando isso acontecesse.
Claudrin confirmou com um gesto.
— Acho que o senhor interpretou mal minhas palavras, mister Bell. Naturalmente eu também não seria capaz de desistir. O que quero dizer é que a situação é gravíssima.
— O senhor poderia ter dito isso em outras palavras — disse Bell, com um sorriso.
De repente, Iltu apareceu a seu lado.
— Conseguiu estabelecer contato, pequena?
Iltu sacudiu a cabeça, num comovedor gesto humano.
— Não, Bell. Nada, absolutamente nada. Gucky é o mais poderoso dos telepatas, mas até mesmo dele não consigo captar o menor impulso. Marshall e Rhodan também se mantêm em silêncio. E Ellert já está em silêncio há muito tempo.
— Não desista! — recomendou Bell, acariciando Iltu com um “entusiasmo” que sem dúvida deixaria Gucky louco, se pudesse vê-lo. — Você precisa de algumas horas de sono, para que no momento decisivo esteja bem-disposta. Dentro em breve chegaremos a Frago.
— Não estou cansada — protestou Iltu.
— Apesar disso deve dormir. É possível que, nas próximas horas, você não possa descansar um instante. Por isso precisa conservar suas forças e deve estar bem descansada. Seja razoável, Iltu. Peço-lhe encarecidamente.
Iltu exibiu por um instante seu lindo dente-roedor cor-de-rosa e acenou com a cabeça como uma menina bem comportada.
— Está bem. Se você acha que devo fazer isso, obedecerei. Mas não deixe de acordar-me, quando chegar a hora.
— Não se preocupe — disse Bell e esperou que Iltu desaparecesse.
Depois voltou a dirigir-se a Claudrin:
— Se existe alguém que pode ajudar-nos, é Iltu.
— Ela é formidável — confirmou o comodoro. — Mas também não pode fazer milagres.
Bell voltou a olhar para as telas.
— Não pode fazer milagres iguais aos que acontecem nas lendas, mas pode fazer coisas que quase chegam a ser milagrosas — asseverou em tom pensativo.
A sala de rádio chamou.
A presença de Frago está sendo registrada pelos rastreadores, sir. Se mantivermos a velocidade atual, poderemos alcançar o planeta em três horas.
— Obrigado — respondeu Claudrin, e percorreu várias vezes a sala de comando.
Finalmente parou à frente de Bell.
— Ainda faltam três horas, mister Bell. Três horas para chegarmos ao inferno...
— Esta foi a sexta transição — disse o Major Slide Narco, apontando para as telas, que voltaram a mostrar as estrelas. — Se realmente estivermos voando para Frago, não poderemos reconhecer o planeta escuro. Sabemos onde estamos?
— A julgar pelo tamanho da Via Láctea, estamos na rota certa — respondeu Rhodan.
Estava sentado em cima de algumas chapas de metal, cuja finalidade era desconhecida. Gucky, que continuava sentado numa caixa, parecia desorientado. Há horas vinha tentando estabelecer contato com Ellert, mas não conseguira o menor resultado.
— A direção e a distância são corretas. Pelos meus cálculos, a próxima transição nos levará para Frago — supôs Rhodan.
— Isso pode ser tudo, menos agradável — disse John Marshall, em tom de desânimo. — Quando nos encontrarmos em Frago, embaixo do campo relativista, estaremos perdidos.
— Mas por outro lado Frago é nossa única chance — objetou Rhodan. — Se pudermos contar com o auxílio de nossa frota, esse auxílio será prestado nas proximidades de Frago. Notamos que as pausas entre as transições aumentavam cada vez mais. A Teodorico é mais veloz que a nave fragmentária. Quer dizer que já estarão à nossa espera.
— Acontece que os pos-bis também estarão.
Rhodan lançou um olhar penetrante para Marshall.
— É exatamente o que desejamos. Estarão mais ocupados com a frota que se aproxima que conosco. E há outro detalhe. A nave fragmentária não poderá atingir Frago num hipersalto. Antes de chegar lá, terá de retornar ao Universo normal e prosseguir viagem a velocidade inferior à da luz. Com isso teremos tempo de agir e... Bell também.
— Talvez disponhamos apenas de alguns minutos — disse Ras Tschubai.
— Em certas circunstâncias os minutos se transformam numa eternidade.
Rhodan pôs as mãos em Gucky e concluiu:
— Acho que deveríamos voltar mais uma vez à sala de comando. É possível que Ellert nos “veja” por lá. Talvez entre em contato conosco.
— Se é que Ellert vê, ele enxerga em qualquer ponto da nave — retrucou o rato-castor, que parecia cansado e desesperançado. — Receio que o cérebro de plasma tenha sido mais forte que ele.
— Mas Ellert não pode desaparecer sem mais nem menos.
Gucky fitou Rhodan.
— Pode, sim. Basta lembrar a planta carnívora sobre a qual pousa um inseto. Este é preso, subjugado e sugado. Desaparece, para transformar-se numa ramificação da planta. Com Ellert deve ter acontecido uma coisa parecida.
— Um espírito não pode ser sugado. O espírito não é matéria, Gucky.
O rato-castor não deixou que estas palavras o perturbassem.
— É verdade que o espírito de Ellert não possui matéria. Mas a consciência do cérebro de plasma também não possui. Quer dizer que foi uma luta de espírito contra espírito, e o espírito dos pos-bis foi mais forte. É tão simples.
— Mas nem por isso é uma verdade definitiva — respondeu Rhodan. — É possível que Ellert só precisasse de uma pausa, para subjugar o pos-bi no momento adequado.
— Esta é nossa única esperança — disse Slide Narco em tom sério.
E depois acrescentou:
— Se tudo sair errado, ainda terei um consolo. Os terranos logo terão o canhão de raios conversores, e quando isso acontecer seremos vingados.
Gucky fitou-o com uma expressão de desaprovação.
— Caso você esteja interessado em conhecer minha opinião, para mim nenhum tipo de vingança será um consolo. E ela não nos servirá de nada. Quando chegar a hora, nós é que teremos de agir. É isso que me serve de consolo. Isso e mais nada.
Voltaram a mergulhar em profunda meditação, enquanto as imagens das telas continuavam inalteradas. A transição seguinte demorou quase uma hora. Não houve nenhum abalo, nenhum choque, nenhuma dor provocada pela distorção. As telas escureceram e voltaram a iluminar-se. A Via Láctea tornara-se ainda menor, e outro planeta surgiu, ameaçador, nas proximidades.
Era Frago!
Um dos técnicos apontou para a bola que irradiava uma luminosidade vermelha. .
— Como é que conseguimos vê-lo? Não está escondido atrás de um campo defensivo? E não é totalmente escuro?
— É por causa da tela infravermelha especial — disse Rhodan e levantou-se. — Acho que não haverá outras transições. Pelos meus cálculos, a nave iniciará o pouso dentro de uma ou duas horas, incluídas as necessárias manobras de desaceleração.
Deu uma pancadinha no ombro de Gucky.
— Vamos, pequeno. Temos de fazer alguma coisa. Vamos saltar para a sala de comando, onde procuraremos entrar em contato com Ellert.
O rato-castor também se levantou.
— Acho que não adiantará, mas não custa nada tentar.
— Espere aqui, major — disse Rhodan, dirigindo-se a Slide Narco. — Marshall ficará em contato comigo. Além disso nossos rádios de capacete funcionam no interior da nave. Fechem os trajes espaciais, para qualquer eventualidade. Se não voltarmos dentro de trinta minutos, Ras nos procurará.
Fez um gesto para o teleportador e para os outros membros do comando, pegou a mão de Gucky e pôs-se a esperar. Dali a alguns segundos, os dois desapareceram no redemoinho típico, que antecede qualquer desmaterialização.
Havia dois robôs de guerra pequenos na sala de comando. Estes deviam sentir-se muito seguros, pois não chegaram a esboçar a menor defesa quando Rhodan, com dois tiros certeiros, os pôs fora de combate. A porta que dava para o corredor estava trancada, motivo por que daquele lado não poderia vir nenhum perigo.
O bloco do robô-comandante continuava inalterado — ao menos aparentemente — na parte dianteira. Seu metal fosco parecia irradiar uma ameaça fria. Ellert estava em algum lugar, atrás desse metal, Mas, além dele, havia seis blocos com cérebros de plasma.
Haviam saído vencedores no estranho duelo.
— Ninguém nos perturbará e ainda temos tempo — disse Rhodan, depois de lançar um olhar atento para as telas. — Frago ainda está longe. Essa tela fornece uma imagem bastante ampliada do planeta. Será que você já pode tentar estabelecer contato com Ellert?
Gucky concentrou-se.
Seus olhos pareciam perfurar o metal. Rhodan notou que suas patinhas se transformaram em punhos. Depois de algum tempo, o rato-castor fechou os olhos, a fim de concentrar-se ainda melhor.
Rhodan, que estava parado bem a seu lado, permanecia em silêncio. Sabia que a menor distração bastaria para pôr fim à concentração do rato-castor.
Viu Gucky mover os lábios como quem falasse consigo mesmo. Isso aconteceu duas ou três vezes. Finalmente o rato-castor abriu os olhos. Um suspiro de alívio saiu de sua boca.
— Então? — perguntou Perry Rhodan.
— Tive contato com ele, mas só por um instante. Ellert está preso, mas tem certeza de que conseguirá dominar o inimigo num golpe de surpresa, desde que concentre suas forças num único ponto. Seus impulsos mentais irradiam dor, mas não é uma dor física. Está sendo mentalmente subjugado, sugado e aprisionado pelas células do plasma.
— Quer dizer que está vivo? — perguntou Rhodan, em tom de alívio.
— Ellert não morre “tão depressa” — disse Gucky. — É possível que nunca possa morrer. Acontece que se encontra numa situação desesperada... — olhou para o relógio. — De qualquer maneira, Ellert pretende impedir que os pos-bis nos levem para Frago. Não teve tempo para dizer com maiores detalhes o que devemos fazer. Diz que os teleportadores devem tentar danificar os segredos e certas peças dos propulsores. Quer que eu use a telecinese. Daqui a exatamente uma hora, Ellert tentará recuperar o controle do cérebro. Diz que talvez só o consiga por alguns segundos, mas isso deverá ser suficiente. Avisará antes de entrar em ação.
— Só isso?
— Não acha que é muita coisa? — perguntou Gucky, contrariado.
Saltaram de volta para comporta, onde já estavam sendo esperados com impaciência. Rhodan mandou que todos ficassem em silêncio e informou os homens sobre o êxito parcial que haviam alcançado. Ao concluir, disse:
— Ninguém sabe por quanto tempo Ellert nos poderá ajudar. Se forem apenas alguns segundos, o tempo talvez não seja suficiente. Temos de ir em seu auxílio. Ras e Gucky tentarão danificar os propulsores a tal ponto que a nave fragmentária não consiga pousar. Com isso ganharemos mais algum tempo. Talvez seja possível encontrar o gerador que produz o campo temporal. Nesse caso teríamos uma possibilidade de eliminar o campo defensivo que cerca a nave e impede todo e qualquer contato com o mundo exterior. De qualquer maneira, o tempo de inatividade já passou.
Os dois teleportadores conferenciaram, formularam algumas perguntas a Slide Narco e resolveram levá-lo. O oficial da equipe técnica sabia “onde pôr as mãos” para paralisar até mesmo a máquina mais complicada.
Os três desapareceram na teleportação.
Rhodan e mais onze homens se calaram.
Marshall, que acompanhava a ação por via telepática, era o único que falava constantemente, mantendo os outros informados sobre o curso dos acontecimentos. Falava em voz baixa e em tom enfático, mas sem a menor dramaticidade.
— Acabam de encontrar-se com um robô de vigilância que pretendia dar o alarma. Narco o destruiu sem maiores problemas.
Marshall manteve-se calado durante uns cinco minutos. Finalmente prosseguiu:
— Agora estão na sala de máquinas. Não sabem por onde começar. Se danificarem muita coisa, a nave poderá perder a capacidade de manobra. Mas se agirem com uma “timidez” excessiva, a nave talvez consiga pousar. Narco está dando instruções. Gucky está usando a telecinese, já que com as armas de radiações não se pode conseguir muita coisa. As chapas de revestimento são muito espessas, e, se fossem derretidas, o calor se tornaria insuportável. Gucky foi bem-sucedido. Um dos geradores deu uma tremenda descarga e entrou em pane.
Rhodan confirmou com um gesto.
— Não sei se destruiu o gerador certo... Nossas telas também se apagaram. Estamos cegos!
Marshall não respondeu. Continuou a fazer seu relato em tom frio, objetivo:
— Um dos propulsores, ao menos Narco está convencido de que se trata de um propulsor, está falhando. Estão danificando uma máquina atrás da outra. Robôs estão aparecendo e avançam. Gucky e os dois homens têm de retirar-se. Vão...
Os três sabotadores materializaram-se no interior da eclusa.
O Major Narco abriu o capacete e enxugou o suor da testa.
— Foi um trabalho duro — disse em tom convincente. — Por lá o calor é quase insuportável. De qualquer maneira, a confusão que criamos fará com que, em hipótese alguma, a nave possa pousar com seus próprios recursos. Terá de permanecer no espaço, à espera de socorro. Quando este chegar, nossa frota também estará por aqui. Sinto muito, mas não pudemos fazer mais que isso.
— As telas não estão funcionando mais — disse Rhodan.
Narco ficou apavorado, mas Rhodan fez um gesto tranqüilizador.
— Isso não tem muita importância, major. O que realmente importa é que ganhamos tempo — olhou para o cronômetro. — Dentro de exatamente vinte e três minutos veremos se a tática de Ellert será bem-sucedida. Suponho que concentrará sua consciência num dos cérebros, a fim de recuperar o controle sobre o mesmo. Não conseguirá executar a operação com os seis cérebros, pois está muito fraco.
Rhodan não sabia como um espírito in-corpóreo pode tornar-se fraco, mas exprimiu o conceito.
— Se ao menos pudéssemos entrar em contato — disse um dos técnicos com um suspiro. — Isso me deixaria mais tranqüilo.
— Daqui a vinte minutos — respondeu Rhodan.
Mais tarde todos eles diriam que esses vinte minutos foram os mais longos de suas vidas. Cada segundo que atravessavam em martírio aproximava-os do momento de que dependia tudo.
As telas continuaram escuras. Depois da atuação dos teleportadores, o zumbido que saía das profundezas da nave se tornara mais irregular, mas não cessara de vez. Vez por outra ouviam robôs rolando junto à escotilha da eclusa.
Gucky voltara a sentar-se na mesma caixa. Mantinha os olhos semicerrados, à espera do sinal de Ellert. Marshall, que estava sentado a seu lado, segurava sua mão. Juntos, esforçavam-se para captar os impulsos do “regulador”, dos quais dependia tudo.
Rhodan ficou pensativo. Refletia, refletia, mas não disse uma única palavra sobre seus pensamentos.
— Faltam dez minutos — disse Ras Tschubai.
Ninguém respondeu. Sentados ou de pé no interior da eclusa debilmente iluminada os homens mantinham um silêncio obstinado. Depois que as telas se apagaram, mal se vislumbravam as paredes.
O zumbido irregular das máquinas foi interrompido por uma forte explosão. De repente Gucky arregalou os olhos na direção de Narco.
— Parece que foi na sala de máquinas — disse o oficial. — Provavelmente, uma conseqüência de nossa atuação! Tomara que tenha arrebentado todos os propulsores...
Um sorriso fugaz aflorou ao rosto de Gucky, que voltou a concentrar-se de olhos fechados.
Rhodan teve a impressão de que o tempo estava passando ainda mais devagar. A explosão distante aumentara suas esperanças de que a nave deixasse de obedecer ao robô-comandante. Se fosse assim, o tão temido pouso em Frago seria impossível por algum tempo. Se os prisioneiros fossem transferidos para outra nave, haveria necessidade de desligar os campos defensivos. Para a frota de Claudrin, isso representaria a única possibilidade de realizar uma intervenção salvadora. Desde que tomasse conhecimento dessa ocorrência!
Faltavam cinco minutos.
As telas voltaram a iluminar-se. A ligação com a sala de comando não fora afetada. Mas por que o comandante voltara a ligar essas telas?
Frago estava um pouco maior, mas ainda ficava a alguns minutos-luz. Era só por causa da forte ampliação que o planeta se apresentava com o aspecto de uma esfera.
— Ellert ativou as telas — cochichou Gucky abrindo os olhos. — Está iniciando o ataque aos cérebros de plasma.
O rato-castor voltou a fechar os olhos.
Rhodan sentiu o nervosismo crescente que sempre se verifica quando um fato decisivo está para acontecer. Olhou para o relógio. Faltavam quatro minutos.
Eram quatro longos minutos, quatro minutos infinitamente longos!
Gucky moveu os lábios. Rhodan sabia que costumava fazer isso quando mantinha um contato telepático pouco intenso, que exigia um máximo de concentração. Marshall manteve-se imóvel.
Faltavam três minutos para o momento combinado.
— Ellert diz que devemos abrir a escotilha externa — disse Gucky. — Não sei...
Rhodan examinou os controles manuais da eclusa e fez um sinal para que Narco se aproximasse.
— Sabe lidar com isso?
— Acho que sim, sir. Os conceitos técnicos fundamentais são idênticos.
— Abrir a eclusa? — repetiu Ras Tschubai, que parecia muito confuso. — Para quê? Não podemos sair daqui, pois o campo defensivo...
— Faremos exatamente o que Ellert nos pede — disse Rhodan, cortando as discussões no nascedouro.
Narco apontou para uma roda de ajuste.
— Girem esta roda para a esquerda. Acho que antes disso deveríamos parafusar os capacetes, pois quando o ar escapar, poderemos ficar numa situação bastante desagradável.
Esperou que isso fosse feito e começou a girar a roda.
— Faltam dois minutos — disse Marshall, para em seguida concentrar-se em sua verdadeira tarefa.
Sentou-se ao lado de Gucky, e manteve um silêncio absoluto.
A pressão do ar encerrado na câmara comprimia a escotilha externa contra o revestimento da nave, impedindo sua abertura. Narco descobriu um dispositivo situado da escotilha oval. Logo adivinhou sua finalidade. Tratava-se de uma série de dispositivos que mantinham a porta fechada, não deixando que o ar pudesse escapar para o vácuo. Era uma precaução simples, mas bem eficaz.
Quando o chiado do ar cessou, a porta abriu-se com a maior facilidade.
Viram uma superfície leitosa, que começava a poucos metros do lugar em que se encontravam. Não repararam o menor sinal de estrelas ou galáxias. O campo relativista fechava-lhes a visão. Parecia um envoltório feito de uma névoa impenetrável.
— E agora? — perguntou Narco. — Será que Ellert quer que esperemos neste lugar até que os pos-bis venham buscar-nos?
Rhodan olhou para Gucky e Marshall. O rato-castor levantou a cabeça. Soltou a mão de Marshall.
— Ellert acaba de fornecer instruções precisas. Quanto tempo ainda nos resta?
— Sessenta segundos — informou Rhodan.
— Pois bem, serei breve, Ellert está a ponto de controlar todo o cérebro da pilotagem automática. Isso exige forças sobre-humanas, e o controle só durará alguns segundos. Tudo será decidido nesses segundos. Ellert pretende desativar o campo relativista. Quer...
Gucky fez uma pausa e engoliu em seco.
— Quer que saiamos da eclusa assim que o campo relativista desapareça — concluiu.
Rhodan inclinou-se para a frente e fitou os olhos de Gucky. Um silêncio tenso enchia o ambiente.
— Quer que façamos o quê? — perguntou com a voz fraca.
— Quer que saltemos para fora da comporta, nos empurremos fortemente e façamos o possível para afastar-nos da nave o mais rapidamente possível. Foi só o que Ellert disse.
Rhodan olhou para o relógio.
— Faltam vinte segundos... Meu Deus, vamos saltar para fora da nave? Para dentro do abismo? Tem certeza de que Ellert disse isso?
— Não existe a menor possibilidade de engano — respondeu o rato-castor e levantou-se.
Foi à saída e olhou para a nebulosidade branca.
— Ellert diz que devemos saltar assim que pudermos ver as estrelas. Não sei o que acontecerá depois — parecia resignado. — Ellert também não sabe.
Dez segundos... cinco... um segundo...
Os homens comprimiram-se junto ao limiar do nada. Havia milhares de indagações em suas mentes mas não tinham tempo para formular uma única. Sabiam que o terrível salto para o abismo representava a última chance de escapar ao campo temporal relativista, e assim fugir aos robôs.
Só lhes restava confiar em que Ellert não estivesse enganado.
De um instante para outro a parede branca, isto é, o campo relativista, desapareceu.
— Vamos! — gritou Rhodan e empurrou-se fortemente, partindo para o negrume do nada.
Mais uma vez tinha embaixo de si o abismo sem fim, com a diferença de que desta vez não havia nenhum destino visível.
— Usem as armas de radiações. Quando o campo entrar novamente em atividade, deveremos estar a uma distância suficiente.
Quinze pontinhos minúsculos, iluminados vez por outra pelos golpes energéticos corretores das armas de radiações, afastaram-se da nave fragmentária, em direção à incerteza sem luz. Os homens manejavam as armas com o maior cuidado, pois bastaria um impacto de raspão para produzir um vazamento no traje espacial de um companheiro. Chegaram cada vez mais perto um do outro. Finalmente tocaram-se e seguraram-se pelas mãos. Formaram um anel, a fim de evitar a perda do contato.
Quando a nave fragmentária se encontrava a cem metros, o campo defensivo voltou a ser ativado. A nave desapareceu atrás da parede leitosa, que parecia engolir a mesma.
— É Ellert! — disse a voz exaltada de Gucky nos rádios de capacete. — Está sendo subjugado de novo. Diz que a nave fragmentária pousará em Frago, mesmo com os propulsores avariados.
— A nave cairá! — asseverou o Major Narco, em tom zangado.
— Ellert sabe disso, mas não pode fazer nada. Diz que devemos fazer o possível para sermos recolhidos por Claudrin. A nave fragmentária está perdida. Quanto a Ellert...
— O que está acontecendo com Ellert? — perguntou Rhodan.
Notou que a nave fragmentária estava acelerando. Afastava-se muito rapidamente. Sua rota levava diretamente a Frago, que se tornava visível através dos visores dos capacetes sob a forma de uma débil luminosidade.
— Ellert não consegue fugir? — tornou a indagar Perry.
— Não — respondeu Gucky. — Cairá juntamente com a nave. Ninguém poderá evitar que isso aconteça, nem mesmo Ellert.
Rhodan olhou para a nave fragmentária, que continuava a afastar-se, cercada por uma nuvem leitosa. A nave já se encontrava a milhares de quilômetros e descia vertiginosamente em direção a Frago. Se Narco tivesse razão, não haveria possibilidade de frear a nave, que cairia sobre o campo relativista do planeta.
Quando a nuvem se afastou, a escuridão passou a reinar. As estrelas distantes forneciam pouca luz, mas os pequenos faroletes dos capacetes facilitavam a visão. Faziam com que Frago se tornasse visível, e permitiam que os homens vissem os companheiros.
Também estavam caindo. Desenvolvendo uma velocidade que, à falta de um ponto de referência, não conseguiam determinar, precipitavam-se sobre Frago. Afinal, conservavam a mesma velocidade com que a nave se deslocava no momento em que a abandonaram. Não havia nada que freasse a queda. As armas de radiações não seriam capazes de produzir uma desaceleração significativa. Dali a cinco ou seis horas, aqueles homens também entrariam em contato com o misterioso campo defensivo que protegia Frago.
Rhodan procurou reconhecer os rostos dos homens atrás dos visores. Seus olhos já se haviam habituado à escuridão. O Major Narco parecia sério, mas controlado. Marshall e Tschubai estavam lado a lado, bem à frente de Rhodan. A expressão de seus rostos também era séria, mas não desesperada.
Ao que parecia, o teleportador Ras Tschubai refletia sobre as possibilidades que sua faculdade especial poderia proporcionar.
Ele e Gucky poderiam teleportar-se para um lugar seguro — naturalmente para um lugar relativamente seguro. Cada um deles poderia levar dois homens. Depois disso teriam de voltar para levar mais quatro. Mas será que encontrariam o ponto do espaço em que haviam deixado os primeiros quatro?
Rhodan adivinhou os pensamentos do africano.
— Acho que isso não adiantaria muito. Ras. Não devemos separar-nos, pois, nesse caso, Claudrin ainda teria de procurar grupo por grupo. Ainda temos algumas horas. O salto para o espaço pelo menos nos fez ganhar um pouco de tempo. A nave fragmentária deverá chegar a Frago dentro de uma hora.
— Acho que a esta hora já deve ser possível estabelecer contato com Iltu — disse Gucky.
— Tente — disse Rhodan e passou a dedicar sua atenção aos outros homens, especialmente aos técnicos e cientistas.
Teve uma boa impressão dos mesmos. Ao que parecia, ninguém desanimara. Flutuavam no espaço, longe de qualquer sol e até mesmo da Via Láctea, que não passava de uma faixa luminosa, ocupando metade do céu. Mas sua luz era tão fraca que não conseguia iluminar a noite eterna.
O suprimento de ar bastaria para muitas horas. Também havia provisões de água e alimentos.
Não falaram muito. Usaram as armas de radiações para estabilizar a queda. O anel formado pelos homens parou de girar. As galáxias distantes deixaram de caminhar pelo céu; permaneceram no mesmo lugar. Além de facilitar a orientação, a estabilização evitava o mal-estar que costuma surgir nessas situações.
— Recebo impulsos — cochichou Gucky, de repente. — Impulsos mentais. Ainda não consigo identificá-los, mas tenho certeza de que são de terranos. São muitos. E são bastante intensos e fortes. Quem dera que IItu pudesse chegar a mim...
A telepatia era uma coisa maravilhosa, mas também tinha seus senões. Podia-se dizer que todos os impulsos mentais eram transmitidos e recebidos na mesma faixa de ondas. Dali surgia uma confusão no cérebro do receptor, semelhante à que surgiria num receptor de rádio, caso este não tivesse o seletor de faixas. As transmissões de todas as emissoras são recebidas ao mesmo tempo e no mesmo lugar. Torna-se quase impossível selecionar a emissora desejada. A especificação só se torna possível depois de encontrada a faixa. Só assim as transmissões das outras emissoras podem ser eliminadas, e o receptor, então, passa a se concentrar apenas na que se deseja ouvir.
De qualquer maneira, os impulsos recebidos por Gucky já representavam um começo.
Os rostos dos homens iluminaram-se. Sabiam que o contato de Gucky com a Teodorico era só uma questão de tempo.
Marshall apoiou o rato-castor, duplicando a capacidade do receptor.
Agora, que a salvação parecia próxima, Rhodan já podia respirar aliviado. Tinha certeza quase absoluta de que seus mutantes conseguiriam realizar a tarefa, e de que Claudrin chegaria em tempo. Girou o corpo para poder ver Frago.
O planeta sem luz ainda estava muito distante, mas os náufragos caíam em direção ao mesmo com uma velocidade que chegava a pelo menos dez mil quilômetros por segundo. Percorriam um segundo-luz a cada meio minuto que passava. Em meia hora percorriam um minuto-luz.
Sem a ampliação das telas, Frago era um ponto reluzente vermelho. Não se reconhecia sua superfície, nem o campo defensivo. Era possível que este tivesse sido desligado, a fim de que a nave fragmentária pudesse pousar livremente.
Rhodan olhou para os pés, que pendiam sobre o abismo. Abaixo deles, numa extensão de milhões de anos-luz, não havia nada. Atrás dele ficava a faixa luminosa da Via Láctea, e para além de Frago estavam as galáxias distantes. Andrômeda ficava em posição ligeiramente elevada. Seus contornos eram alongados e confusos, mas a nebulosa era iluminada e nitidamente perceptível. Um dia seria o destino das naves expedicionárias terranas e arcônidas.
Seria de lá que vieram os pos-bis? Ou os invisíveis, os laurins? Estas indagações também teriam de ser respondidas, a fim de que as raças da Via Láctea pudessem viver sem medo. Havia tanta coisa para fazer, uma quantidade infinita de coisas. Os problemas que tornam qualquer vida digna de ser vivida nunca chegariam ao fim. Nunca... enquanto houvesse alguma forma de vida inteligente.
— É Iltu! — disse Gucky de repente. — Acabo de encontrá-la.
— Conhece sua posição?
— Estou fazendo a determinação goniométrica — respondeu o rato-castor. — Isso não é muito fácil. Talvez fosse mais simples se eu saltasse. Posso estabelecer contato goniométrico com Iltu sem saber onde está. Vou me teleportar, mas ficarei em contato com Marshall. Depois trarei a Teodorico para cá.
— Tem certeza de que nos encontrará?
— É claro que tenho certeza — disse Gucky em tom indignado. — Se puder contar com Marshall, ele será um transmissor goniométrico tão bom quanto Iltu está sendo neste momento. Vocês sabem perfeitamente que a telepatia me permite determinar a direção, mas não a distância exata. Por isso terei que dar vários saltos, sempre na mesma direção, até avistar a Teodorico.
— Boa sorte — foi a única coisa que Rhodan disse.
O rato-castor soltou as mãos dos homens que se encontravam a seu lado, empurrou-se suavemente contra os mesmos e foi se afastando. Chegou a vinte metros de distância, mas não se teleportou.
— O que está esperando? — perguntou Rhodan, em tom indiferente.
Todos ouviram a risadinha de Gucky.
— Vocês estão tão esquisitos — disse para surpresa deles. — Até parecem rolhas amarradas boiando num mar invisível.
— Faz muito tempo que você não faz mais piadas — disse Rhodan. — Logo se vê que não está mais com medo.
— Nunca tive medo — afirmou Gucky em tom orgulhoso e continuou a afastar-se. — Se tive, foi só por causa de vocês.
Rhodan engoliu a resposta; limitou-se a soltar um suspiro. Havia situações em que Gucky gostava de exagerar, e quando isso acontecia não valia a pena discutir com ele. Além disso ninguém conseguia zangar-se.
Ras Tschubai foi o único que se zangou:
— Se não der o fora logo, eu ajudarei. Ouviram Gucky fungar nos alto-falantes dos capacetes.
— Logo você, que é o mais esquisito de todos, tem de se meter! Venha até aqui, para ver como está esquisito, visto deste lugar. Os outros pelo menos têm rostos, mas a cara de você é tão preta que a Via Láctea nem chega a iluminá-la. Até parece que ela está com medo de você.
— Dê o fora logo! — disse Rhodan.
Gucky soltou mais uma risadinha alegre e desapareceu.
Materializou-se no nada, para orientar-se, e voltou a teleportar-se.
Iltu mantinha contato ininterrupto com Gucky e o conduzia com rapidez e segurança. Depois de ter dado o sétimo salto, o rato-castor avistou um pequenino ponto luminoso que ficava alguns segundos-luz à frente. Estava na direção exata da qual vinham os impulsos mentais de Iltu.
O oitavo salto levou-o para dentro da sala de comando, onde Claudrin, Bell e Iltu o esperavam.
— Um dia destes você dá a louca, teleporta-se pelo espaço intercósmico e faz uma visita aos “andromedanos” — disse Bell a título de cumprimento.
— É possível que o aspecto deles seja mais agradável que o seu — retrucou Gucky, boxeando amistosamente nas costelas de Bell, para o que teve de pôr-se na ponta dos pés.
Depois cumprimentou Claudrin com um gesto e aproximou-se de Iltu, cingindo-a carinhosamente contra o peito.
— Que coisa! — disse Bell, fazendo-se de indignado.
Gucky tirou o capacete e dirigiu-se ao comodoro.
— Pelos meus cálculos Rhodan e seu grupo encontram-se a dez minutos-luz daqui. Estão caindo em direção a Frago. Por isso acho que logo devemos dar no pé.
— Esta expressão eu jamais falei — interveio Bell apressadamente.
Para Claudrin, isso era totalmente indiferente.
— Está bem, Tenente Guck. Estabeleça contato goniométrico com Marshall e controle a rota. Acho que não levaremos meia hora para chegar lá.
Dali a exatamente vinte e nove minutos, os homens estavam entrando na gigantesca eclusa de ar da Teodorico, onde foram recebidos por Gucky e Iltu. Os dois ratos-castores achavam-se lado a lado, na mais perfeita harmonia, e recebiam com o maior estoicismo os agradecimentos e os elogios dos que acabavam de ser salvos.
Só quando Rhodan — o último a entrar na eclusa — colocou a mão no ombro de Gucky e lhe dirigiu a palavra, foi que este sorriu satisfeito.
— Obrigado, Gucky! — disse Rhodan.
— Você poderá manifestar seus agradecimentos quando tivermos tempo para assuntos particulares — respondeu Gucky. — Iltu e eu... gostaríamos... acho que ficaria bem se nós... ora, você sabe o que eu quero dizer.
Rhodan sabia.
— Em outra oportunidade — prometeu, virando o rosto para os dois. — Em outra oportunidade, eu lhes garanto.
Os dois seguiram-no com os olhos. Depois foram atrás dele e dos outros.
Caminhando de braços dados, eram a imagem perfeita da harmonia e de uma evidente afeição.
Mil naves formaram uma concha em torno de Frago. A Teodorico aproximou-se do planeta o mais que pôde, a fim de melhor observar o pouso — ou a queda — da nave fragmentária avariada.
Rhodan preocupava-se cada vez mais com Ellert.
Depois de sua última atuação o “regulador” não voltara a chamar. Seu corpo permanecia inalterado sob os aparelhos dos médicos. O recinto era frio e pouco acolhe-dor, mas Kule-Tats agüentou, esperando que Ellert retornasse e desse os primeiros sinais de vida.
Mas Ellert ainda não tinha voltado.
As telas mostraram o primeiro ato do drama.
A nave fragmentária, em cujo casco havia dois furos grandes e redondos, corria loucamente em direção a Frago. As tentativas de modificar sua rota deviam ter falhado. Era possível que a queda fosse causada não apenas pelas avarias produzidas pelos mutantes juntamente com o Major Narco. Entretanto também por alguma interferência de Ellert...
Mas será que isso não representaria sua própria sentença de morte? Era possível que o “regulador” esperasse que, com a destruição total dos cérebros de plasma, conseguiria libertar-se dos mesmos.
Algumas naves fragmentárias permaneciam nas proximidades, mas face à evidente superioridade preferiam não atacar. Mantinham-se imóveis em suas posições de vigilância, como se estivessem à espera de ordens.
— Cinco minutos no máximo — observou Rhodan, apontando para a tela oval.
Frago era uma esfera que emitia uma fraca luminosidade. À frente da esfera flutuava a nave fragmentária. Parecia estar imóvel, mas na verdade percorria uma distância enorme a cada segundo. Rhodan já havia calculado a velocidade.
— Vinte e cinco mil quilômetros por segundo!
Cinco minutos...!
Kule-Tats chamou pelo intercomunicador.
— O corpo de Ellert mexeu-se. Foram débeis movimentos, que duraram apenas alguns segundos. Agora voltou a endurecer. E começa a apodrecer mais depressa. Não posso fazer nada.
Rhodan mordeu o lábio.
— Espere por mim; irei até aí. E dirigindo-se a Claudrin, disse:
— Fique aqui com Bell. Se houver qualquer ataque, afaste-se a uma distância em que não corra nenhum risco. Filme o momento em que a nave fragmentária que está caindo penetrar no campo defensivo de Frago. Preciso ver isso.
Foi o mais rápido que pôde ao centro da esfera espacial, avisou Gucky e levou-o logo. Kule-Tats já o aguardava.
“Está um pouco perplexo e desanimado”, pensou Rhodan ao vê-lo.
Não era de admirar. A experiência não correra pela forma que todos haviam imaginado. Mas, sem dúvida, haviam colhido algum êxito: conseguiram apoderar-se de dois canhões de raios conversores. Mas será que a perda de Ellert não representava um preço elevado demais?
Mas... será que Ellert realmente estava perdido?
— De um minuto para cá não se mexe mais — voltou a informar o ara, em tom apressado. — O corpo está coberto de manchas. Parece um cadáver exposto durante alguns dias ao sol tropical. Um processo que costuma demorar alguns dias ou mesmo semanas desenrola-se diante de nossos olhos numa questão de minutos. É uma coisa horrível!
Gucky fitou Ellert apenas por um instante. Logo retirou-se para um canto e sentou-se. Fechou os olhos e fez mais uma tentativa de entrar em contato com o “regulador”. A esperança era mínima, mas não deixava de ser uma esperança.
Rhodan sentiu um calafrio ao ver o corpo de Ellert. O ara dissera a verdade. O “regulador” nunca poderia voltar a esse corpo.
— Tem alguma explicação?
— Não, não tenho — disse Kule-Tats, que parecia perplexo e abalado. — Aqui cessa o poder da Ciência. É possível que Ellert tenha retirado do corpo todos os vestígios da consciência, da alma, causando a súbita decomposição. Talvez o estado do corpo dependa do destino da alma distante. O senhor não disse que ela estava sendo sugada pelas células do cérebro de plasma? Se for assim, provavelmente a explicação da decomposição do corpo é esta.
Rhodan não pôde deixar de reconhecer que essa solução não era nada satisfatória. Mas, dali a um segundo, já não teve mais tempo para pensar nisso, pois duas coisas aconteceram ao mesmo tempo.
O cadáver de Ellert abriu os olhos.
E Gucky, que continuava sentado no canto, disse:
— Estabeleci contato! Ellert está chamando; deve estar bem perto.
Rhodan pôs-se a esperar, ansioso...
Assim que Rhodan e os homens de seu grupo abandonaram a nave fragmentária e foram levados a um lugar seguro, Ellert cedeu à pressão do cérebro de plasma que investia contra ele. A vontade estranha abateu-se sobre ele como se fosse uma onda gigantesca. Perdeu todo controle sobre o equipamento de pilotagem da nave fragmentária e o campo defensivo foi restabelecido. O contato com Gucky e Marshall foi interrompido.
Estava só de novo.
Mais que isso. Teve de reunir toda força de vontade e concentração para defender-se do ataque que veio em seguida. Uma por uma as células da massa plasmática pensante, que se contavam por muitos milhões, passaram ao ataque.
Ellert sabia que sua existência estava em jogo.
Retirou-se conscientemente e concentrou-se num ponto. Dessa forma conseguiu manter o controle sobre si mesmo, mas perdeu a possibilidade de exercer qualquer influência sobre a nave fragmentária ou seus mecanismos de controle. Isso não importava, pois sabia que Rhodan e seus homens estavam em segurança. Flutuavam lá fora, no espaço livre. Alguém os encontraria.
O que acontecia com seu corpo também não tinha muita importância. Se necessário, poderia arranjar-se sem ele, caso um dia regressasse.
Sua consciência estava como que numa fortaleza sitiada. No início conseguiu rechaçar os ataques do inimigo, mas sabia que a periferia de seu ser estava sendo sugada pelas células de plasma. O inimigo começava a absorvê-lo.
Ellert nunca passara por qualquer situação que tivesse a semelhança mais remota com a em que se encontrava.
Não sabia quanto tempo já se tinha passado, mas sabia que devia tentar a fuga. Porém, antes disso, concentrou-se inteiramente em outra experiência. Ordenou a uma parte de sua consciência que se defendesse dos ataques ininterruptos e agüentasse até que a outra parte voltasse.
Feito isso, separou-se de si mesmo.
O campo temporal da nave fragmentária não representou nenhum obstáculo. Atravessou-o sem sentir.
Quase não reconheceu seu corpo, embora fosse de esperar que algo parecido estaria acontecendo. E assustou-se menos do que receara...
Viu Kule-Tats e Rhodan de pé ao lado de seu corpo. Gucky estava sentado num canto, concentrado, como quem espera alguma coisa.
Ellert resolveu utilizar seu próprio cérebro como estação retransmissora da mensagem telepática. Para dar um sinal a Rhodan, abriria os olhos pertencentes ao corpo inutilizado.
Ellert abriu os olhos, e Gucky captou seus pensamentos com a maior clareza.
— Não tenho muito tempo, amigos. Gucky, você proferirá em voz alta as frases que eu formular em pensamento. Farei as necessárias pausas. Entendido?
— Entendido — respondeu Gucky.
— Só disponho de um ou dois minutos — prosseguiu Ellert, agora via-Gucky. — Por isso terei de apressar-me. A nave fragmentária escapou ao meu controle e cairá. Os cérebros de plasma absorvem minha consciência. A queda para dentro do campo defensivo relativista dos pos-bis os destruirá e evitará, talvez, que eu perca minha existência. É possível que o impacto de dois planos temporais produza efeitos que ainda não consigo imaginar. É possível que, com esse impacto, eu consiga libertar-me, mas também é possível que aconteça outra coisa...
Rhodan aproveitou a pausa para perguntar:
— Você não escapou? Por que não fica aqui?
— Só metade de minha consciência encontra-se no interior do cérebro de Ellert. A outra metade continua na nave fragmentária. Preciso voltar para lá. Preste atenção, Rhodan. Este corpo tornou-se inútil. Você pode... bem, pouco me importa o que faça com ele. Não preciso mais dele.
— Nós o levaremos de volta ao mausoléu de Terrânia e o sepultaremos.
— Obrigado, Perry. Nós ainda nos encontraremos... se um dia eu conseguir escapar aos pos-bis.
Rhodan lançou um olhar ligeiro para a tela, que o mantinha informado sobre o que se passava na sala de comando. Viu o rosto de Bell.
— Quanto tempo, Bell?
— Mais trinta segundos. Depois a nave fragmentária atingirá o campo temporal.
Rhodan voltou a fitar os olhos mortos e vidrados de Ellert.
— Eu o procurarei em toda parte, Ernst. Não acredito que isto seja o fim. Não consigo acreditar!
— Dê lembranças minhas à Terra, Perry, e a todos os amigos. E não se esqueça de mim. Preciso voltar...
Ellert fechou os olhos.
— Não está mais aqui — disse Gucky. — Por que diabo resolveu voltar para esse maldito cérebro de plasma do robô-comandante?
Estas foram as últimas palavras que Ellert ouviu.
Voltou a atravessar o campo defensivo da nave fragmentária e uniu-se à outra parte de sua consciência, que continuava a lutar contra as células vorazes. Mas lutavam em vão...
Frago aumentou rapidamente, transformando-se numa gigantesca esfera. O campo defensivo tinha o aspecto de uma atmosfera muito densa. Os dois campos temporais chocaram-se a uma velocidade doze vezes inferior à da luz.
Ellert não viu nem sentiu nada. Apenas percebeu que, de repente, já não era ele mesmo, mas passara a ser outra coisa. Foi atirado para fora do plano existencial concreto juntamente com o cérebro de plasma da nave fragmentária. Enquanto a nave se consumia em chamas, no interior do campo defensivo, a massa plasmática transformou-se numa consciência imaterial, encapsulou Ellert e entrou em transição.
Ellert pôde ver mais alguma coisa.
Viu a faixa da Via Láctea encolher-se no curso de um segundo e transformar-se numa mancha luminosa alongada, que não se distinguia de milhares de outras manchas de luz.
Depois disso o negrume e o vazio foram totais.
Ainda via, mas o que enxergava era o nada absoluto!
Bell e o Comodoro Claudrin viram a explosão ofuscante no interior do campo temporal que cercava o planeta Frago. Os aparelhos registraram o fenômeno, para que Rhodan também pudesse contemplar calmamente o fim da nave fragmentária. Talvez dessa forma conseguissem colher certos dados que então não haviam notado.
Kule-Tats fora incumbido de tentar guardar o cadáver de Ellert de tal forma que o processo de putrefação fosse detido. Depois disso Rhodan e Gucky teleportaram para a sala de comando.
Bell apontou para a tela oval.
— Uma nuvem incandescente. É só o que sobrou da nave fragmentária e de Ellert. Você acredita que isso representa mesmo seu fim?
— Nós já o enterramos uma vez — respondeu Rhodan.
O administrador pediu que Claudrin lhe explicasse a situação estratégica e ordenou:
— A frota se retirará do setor espacial em torno de Frago. A missão foi cumprida. Atlan voltará a assumir o comando da frota estacionada em Árcon. A Teodorico seguirá diretamente para a Terra.
As naves dos pos-bis mantiveram-se totalmente passivas diante da retirada. Não atacaram. Isso era tão extraordinário que Rhodan não conseguiu evitar um ligeiro mal-estar. Será que os robôs já tinham aprendido mais alguma coisa? Teriam aprendido num tempo ainda menor do que aquele de que os cientistas terranos precisavam para desmontar e imitar o canhão de raios conversores?
As últimas instruções foram transmitidas, e a Teodorico separou-se da frota, que tomou o curso de Árcon. O comodoro Claudrin entregou o comando da nave ao imediato e acompanhou Rhodan ao camarote do mesmo. Bell também o acompanhou, enquanto Gucky obteve uma licença.
O vôo de regresso à Terra durou cinco dias.
No sexto dia, Ellert foi sepultado no túmulo situado sob a pirâmide, da mesma forma que já o fora há uns cento e cinqüenta anos. Mas havia uma diferença. Naquela oportunidade um corpo inteiramente conservado fora colocado sobre o leito, embaixo dos complicados equipamentos despertadores e de alarma. Um corpo ao qual apenas faltava a alma!
Atualmente mais que a alma faltava ao corpo de Ellert. O sangue se decompusera e a carne entrara em putrefação. Os instrumentos foram removidos. A pequena sala retangular estava vazia. Ellert foi colocado num esquife metálico, feito do mesmo material de que eram construídas as espaçonaves terranas. A tampa foi firmemente fechada.
Rhodan, Bell e o Comodoro Claudrin permaneceram junto à pirâmide e esperaram que Kule-Tats voltasse com os técnicos. A entrada foi lacrada. Ninguém poderia penetrar no jazigo de Ellert. A câmara funerária ficava cinqüenta metros abaixo da superfície. Mesmo quando a pirâmide erguida sobre o solo já tivesse sido reduzida a pó, ainda continuaria intacta.
— É estranho que sejamos obrigados a enterrar o corpo de uma pessoa a qual se acredita que ainda esteja viva — disse Bell, em voz baixa.
— Não é o que acontece com todo homem cujo corpo baixa à terra? — perguntou Rhodan, levantando os olhos para a ponta da pirâmide, que emitia um brilho vermelho sob os raios do Sol nascente. — A alma é imortal, a alma de qualquer ser humano. Apenas, ainda não conquistou a capacidade de penetrar em outro corpo. Não sei o que acontece com ela; nem sequer sei se continua a ter uma existência consciente. Ninguém sabe, pois Ellert nunca se encontrou com outra alma. Mas o Universo é grande. Cem bilhões de homens já existiram sobre a Terra. Suas almas caberiam em nosso sistema solar. E teriam tanto espaço que só por acaso duas delas se encontrariam. E sabemos que Ellert andou por todo o Universo, e ainda esteve em outras dimensões e planos temporais. Será que não se encontrou mesmo com outra alma?
Kule-Tats aproximou-se.
— Sinto muito, Perry Rhodan, por não conseguir cumprir melhor a tarefa que me foi confiada. Falhei. Talvez deveríamos ter levado Van Moders...
— Van Moders não é médico; é robólogo, Kule-Tats — disse Rhodan, colocando a mão sobre o ombro do homem magro. — Ninguém teria cuidado de Ellert melhor que o senhor. E ninguém, ninguém mesmo, seria capaz de impedir o que aconteceu. O senhor cumpriu seu dever. Sinto-me orgulhoso pela sua cooperação.
Kule-Tats não olhou para ele; contemplou a pirâmide. Nada respondeu. Rhodan viu o brilho de lágrimas nos cantos de seus olhos.
Bell encostou a mão ao quepe, ficou imóvel por alguns segundos e fez meia-volta. Caminhou lentamente em direção ao helicóptero que os esperava.
Claudrin e Kule-Tats seguiram-no.
Rhodan continuou no mesmo lugar.
Dali a alguns dias, os principais engenheiros e cientistas reuniram-se na sala de conferências do Instituto de Tecnologia. Forneceriam um relatório sobre as primeiras pesquisas a Rhodan e seus especialistas.
Os dois canhões de raios conversores dos pos-bis haviam chegado a Terrânia antes da Teodorico. Uma vez descarregados, foram levados ao laboratório. Uma das peças permaneceu intacta, enquanto a outra foi desmontada.
Van Moders encarregou-se de oferecer o relato em nome de todos.
— Os exames preliminares ainda não foram concluídos. Por enquanto não podemos dizer nada sobre a natureza da arma. Mas uma coisa é certa. Nunca vi uma arma destrutiva mais eficiente.
— Justamente por isso — começou Rhodan, em tom indiferente — tomamos a decisão de apoderar-nos de uma arma desse tipo. Não vi outro meio de deter o avanço dos robôs.
Van Moders fez uma ligeira mesura para Rhodan, e olhou prolongadamente para os representantes de Árcon e Ácon.
— A natureza do canhão de raios conversores é terrível. A simples idéia de sua utilização é capaz de perturbar o equilíbrio psíquico do ser humano. Um robô não sabe o que é o equilíbrio psíquico. Talvez fosse por isso que inventaram essa arma. Teremos dificuldades até mesmo em imitá-la. Não são dificuldades técnicas, mas psicológicas. Por isso sugeri que da conferência só participassem terranos. Pelo que vejo, minha sugestão não foi aceita.
Rhodan notou o nervosismo generalizado que se apoderou das pessoas reunidas. Os representantes de Árcon e de Ácon fitaram-se com uma expressão indagadora.
— Não tive conhecimento de sua sugestão — disse Rhodan a título de desculpa, olhando na direção dos não-terranos. — Mas ainda posso acolhê-la. Também acho que, a bem da aliança, será recomendável instituir uma censura mais rigorosa. Mais tarde, quando conhecermos o funcionamento dos canhões de raios conversores e conseguirmos construí-los, nossos aliados também tirarão proveito dessa arma, sempre que participarem das lutas contra os pos-bis.
O arcônida levantou-se.
— O imperador de Árcon ficará espantado ao ouvir as palavras saídas da boca de Rhodan — disse em tom orgulhoso.
— Não ficará, não — disse Rhodan, em tom frio. — Pelo contrário. Terá bastante compreensão para concordar comigo. Ficaria espantado se um segredo deste tipo fosse discutido em público. O mesmo deve pensar o Grande Conselho de Ácon.
— Protesto! — gritou o acônida.
Era parecido com o arcônida, mas usava uma manta violeta bem ampla, que o identificava como um dos membros da casta governante de Ácon.
— Celebramos um tratado que nos dá o direito de... — ficou sem conclusão a fala do acônida.
— É verdade! — confirmou Bell.
Rhodan contemplou-o com um olhar espantado. Ergueu as sobrancelhas e, dirigindo-se a Van Moders, disse:
— Peço que me diga mais uma vez, Van Moders. O senhor não pode assumir a responsabilidade de falar sobre o funcionamento do conversor na presença dos arcônidas ou dos acônidas? Pretende fazer revelações que se revistam da natureza de um segredo de Estado?
Van Moders fez um gesto afirmativo.
— Sim, pretendo revelar segredos. Não posso assumir a responsabilidade de fazê-lo na presença dos arcônidas e acônidas.
O arcônida saiu de cabeça erguida. O acônida logo o seguiu.
— Será que isso não poderia ter sido evitado? — perguntou Bell, em tom indignado. — Quem terá de pagar o pato sou eu. Terei de me ver com as queixas e reclamações. Por que os acônidas não podem saber que, dentro em breve, possuiremos uma arma eficientíssima, face à qual até eles terão de se cuidar? Afinal, celebraram um tratado conosco, e conosco lutam contra os pos-bis. São nossos aliados.
Rhodan abanou lentamente a cabeça.
Os presentes assistiriam espantados à discussão que se travaria entre os amigos. Sabiam que muitos outros não hesitariam em proclamar sua opinião em bom som.
— É verdade, celebramos um tratado com eles, mas esse tratado foi gerado pelo medo e pela insegurança. E isso aconteceu de ambos os lados. Foi o medo dos pos-bis que nos transformou em aliados. Acontece que uma amizade que teve sua origem no medo, face a um inimigo, não se revela duradoura em tempo de paz. É só por isso que os acônidas não deverão receber nenhuma informação sobre os raios conversores.
“São excelentes em matéria de tecnologia. Uns poucos dados que nós lhes fornecêssemos bastariam para que formassem um quadro coerente. Um dia, num futuro distante, quando o perigo dos pos-bis não existir mais, outro perigo poderá surgir e surpreender-nos. E esse fator de perigo nos surpreenderia ainda mais se soubesse tudo a nosso respeito. Não sei como poderíamos defender-nos de acônidas equipados com canhões de raios conversores, ainda mais se eles atacarem a Terra, de surpresa, por meio de transmissores instalados às escondidas nos lugares mais diversos.
Um silêncio constrangedor encheu a sala. Bell pigarreou. Parecia embaraçado.
— Você acredita que romperão o tratado celebrado conosco e... — retrucou Bell.
— É exatamente o que acredito — disse Rhodan. — Você acha que isso é impossível, depois que deixaram de honrar por mais de uma vez a palavra empenhada para conosco? Só são amigos de alguém enquanto isso for útil para eles. No seu íntimo eles nos desprezam, porque em sua opinião não passamos de arrivistas. É claro que desprezam ainda mais os arcônidas, que descendem deles e proclamaram sua independência.
Quando os dois extraterrenos se retiraram do Instituto, Van Moders respirou aliviado. Pôs-se a folhear suas anotações.
— Já realizamos os exames preliminares e constatamos que os recursos técnicos de que dispomos nos permitem construir um canhão de raios conversores. Esse canhão será capaz de teleportar ao alvo não apenas bombas, mas qualquer outro objeto material. É isso mesmo: o canhão será capaz de realizar a teleportação. O princípio de funcionamento do canhão conversor é o mesmo que rege a atuação dos teleportadores, e ainda do transmissor fictício que perdemos. É bem verdade que por enquanto ninguém pode dizer se haverá possibilidade de fazer um ser humano transitar pelo campo energético gerado pelo canhão conversor. No campo teórico essa possibilidade existe.
Os ouvintes discutiam entre si essa possibilidade. Rhodan fitou Van Moders com uma expressão de curiosidade. O especialista em robôs prosseguiu:
— O alcance dos raios conversores é limitado; não ultrapassa alguns segundos-luz. Mas ouso esperar que isso possa ser modificado. Os canhões de que nos apoderamos apresentam deficiências. Até parece que, uma vez descoberto o princípio, este não foi mais desenvolvido. Os senhores sabem o que quero dizer. Para estabelecer uma comparação, pode-se dizer que é como se tivessem inventado a pólvora e se contentassem com a espingarda de carregar pela boca, sem pensar na possibilidade de, com base nessa invenção, criar a metralhadora.
Pela primeira vez Rhodan ficou surpreso.
— Quer dizer que o raio conversor dos pos-bis não está inteiramente amadurecido, Van Moders?
— É exatamente o que quero dizer, mister Rhodan. Trata-se de uma arma que ainda se encontra no estágio inicial. E é uma arma terrível e eficiente. Uma arma contra a qual nunca haverá qualquer proteção eficaz; a única proteção consistirá na fuga ou na rendição incondicional. Com essa arma pode-se conquistar o Universo.
Ouviu-se o ruído da respiração nervosa dos presentes.
— Foi por isso que o senhor exigiu que nossos aliados não estivessem presentes enquanto ouvíamos seu relato, Van Moders? — perguntou Rhodan, em voz baixa.
— Perfeitamente.
Rhodan confirmou com um gesto
— O senhor tem toda razão. Concordo plenamente com o que fez. Se os acônidas vierem a saber sobre essa arma mais do que deveriam, então deveremos temer o dia em que os pos-bis forem definitivamente derrotados.
Passou a olhar para Bell.
— Então, o que diz?
Bell limitou-se a acenar com a cabeça.
Rhodan sorriu.
Van Moders respirou profundamente e iniciou suas explicações fascinantes.
Todos compreenderam que os pos-bis dispunham de uma arma que lhes permitiria conquistar a Via Láctea em poucos anos.
Mais tarde, quando o Sol já descia para a linha do horizonte, Rhodan e Bell pegaram seu carro-voador e foram para as margens do lago Goshun, onde ficavam suas casas de campo. Era o único lugar em que podiam desfrutar a paz e a tranqüilidade. Uma linha de videofone era a única ligação com Terrânia e os postos de comando.
Estavam sentados na varanda que se debruçava sobre a margem. Fazendo pouco de todos os avanços técnicos, Bell acendeu um fogo de lenha numa lareira aberta. As chamas subiram e começaram a espalhar uma luz bruxuleante e acolhedora. Depois acomodaram-se e deleitaram-se com o silêncio.
Mas não se deleitaram por muito tempo.
Duas figuras pequenas atravessaram o gramado, balouçantes, e subiram os degraus. Gucky e Iltu entraram na varanda de braços dados, arrastaram duas cadeiras e acomodaram-se nas mesmas como se estivessem em casa.
Bel suspirou.
— Diga-me para onde tenho que ir para que vocês me deixem em paz — disse em tom queixoso, embora não tivesse a intenção de ofender.
Rhodan sorriu. Quase chegava a sentir-se em família.
— Bem, você pode ir para a cama — sugeriu Gucky. — Preciso tirar as castanhas do fogo, e depois...
— Que castanhas são essas? — perguntou Bell.
— Bell sempre é tão gentil, Gucky — disse Iltu. — Por que gosta de aborrecê-lo?
— O que você diz que o gordo é? — perguntou Gucky, em tom de perplexidade. — Gentil? Quando é que ele já foi gentil?
— Quando você esteve preso na nave fragmentária dos pos-bis ele foi muito gentil. Costumava consolar-me. Foi um verdadeiro pai.
Gucky empertigou-se, desconfiado.
— Ah, é? Então ele foi gentil com você? Quando eu não estava perto?
Mediu Bell com um olhar ameaçador.
— Gorducho, no futuro você deve ter mais cuidado quando estiver a sós com minha noiva, senão posso ser levado a acreditar...
Bell sobressaltou-se.
— Sua noiva? — repetiu Bell, respirando com dificuldade. — Repita isso.
— Pois é o que acabo de dizer. Iltu é minha noiva — disse Gucky, em tom valente, deixando-se cair na cadeira. — Alguma objeção?
— Não... pelo contrário... — gaguejou Bell, que começava a recuperar-se do espanto. — O que acha, Perry? Que coisa, não é? O velho Gucky quer casar com uma jovem rata-castora. É a primavera senil, a segunda infância... Se não fosse tão robusto, eu teria sofrido um colapso.
— Seu invejoso! — disse Gucky, com uma risadinha. — Com essa sua cara e barriga você nunca arranja noiva.
Bell ia replicar, mas logo pensou melhor.
— Quando será o casamento? — perguntou. — Não vão me convidar?
— É claro que vamos — disse Gucky, em tom conciliador. — Convidaremos qualquer pessoa que nos traga um bom presente.
Rhodan colocou um pedaço de lenha na fogueira. Já estava escuro. As primeiras estrelas cintilavam no céu. O Sol já desaparecera há muito.
— É claro que terão de casar segundo os costumes terranos — disse. — Bell e eu seremos as testemunhas...
— Não precisamos de testemunhas! — disse Iltu, com sua voz estridente.
Gucky, que estava mais familiarizado com os usos e costumes terranos, esclareceu-a sobre o que vinha a ser uma testemunha de casamento. Depois disso concordou.
— Quando será? — perguntou Gucky, perscrutando os pensamentos de Rhodan.
Este fez um gesto vago para o céu noturno.
— Quando as estrelas permitirem. Quando reinar a paz. Não se deve casar em tempo de guerra, Gucky.
O rato-castor protestou:
— Nunca teremos paz... nunca! Hoje são os pos-bis, depois serão os acônidas, os saltadores, os... sei eu lá quem mais! Casaremos assim que tivermos tempo.
— Estão com tanta pressa? — perguntou Bell, com uma ponta de ironia.
Sem olhar para ele, Gucky esclareceu:
— Nos ratos-castores nunca existe esse tipo de pressa, gordo. Teríamos muitos anos... se é a isso que está aludindo. Todavia...
— Cuidarei disso — prometeu Rhodan.
A paz desceu sobre eles. Multidões de estrelas iam se destacando da escuridão do céu, como se quisessem reforçar a promessa de Rhodan.
Era bom viver com um objetivo. Era bom ter amigos e ficar sentado com eles à frente da lareira, em plena era da navegação interestelar.
Era maravilhoso poder viver da forma que se quer viver.
Clark Darlton
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