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A Morte do Lorde Almirante / Kurt Mahr
A Morte do Lorde Almirante / Kurt Mahr

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Morte do Lorde Almirante

 

Encontram o planeta solitário —  e um morto morre pela terceira vez.

Crest, o primeiro amigo arcônida de Perry Rhodan, previra que um dia os terranos, uma raça ativa e arrojada, governariam o império decadente dos arcônidas, a fim de erguer sobre seus escombros o reino estelar da Humanidade. Será que já chegou o dia em que a previsão de Crest deve cumprir-se...?

O Império Solar do ano 2.015 — ou seja, de menos de um século e meio depois do dia em que os humanos penetraram pela primeira vez no espaço cósmico — já se tornou bastante forte para substituir os arcônidas no governo das partes conhecidas da Via Láctea...?

Atlan, o imperador, que nunca merecera as simpatias de seus patrícios decadentes, enfrenta tamanhas dificuldades, que só com o auxílio dos terranos consegue manter sua posição.

Em Árcon as intrigas e as conspirações tornaram-se assuntos corriqueiros, e é uma dessas conspirações que causa A Morte do Lorde Almirante...

 

                                          

 

O ruído alegre da grande festa cessou de repente. Só restava o pequeno aposento, mobiliado com poucas peças, muito preciosas, o traço nítido que separava a claridade da escuridão e, naturalmente, a porta aberta atrás dele.

A porta aberta às costas do Almirante Thekus.

Para alcançá-la, Thekus teria de virar-se. Sabia que nunca conseguiria. A posição da única lâmpada que havia no mesmo aposento fazia com que ele se sentisse ofuscado. Via tudo que ficava dentro do círculo de luz ofuscante, mas atrás dele tudo era uma escuridão impenetrável.

E o homem que se encontrava na escuridão podia acompanhar todos os seus movimentos.

— Não admitimos qualquer tipo de traição, almirante! — chiou a voz vinda da escuridão.

Thekus não costumava ocultar suas intenções. E o procedimento do desconhecido provava que este estava muito bem informado. De qualquer maneira, nessa altura seria inútil recorrer a subterfúgios.

— O traidor é o senhor! — respondeu Thekus com a voz tranqüila. — O senhor e as pessoas que o acompanham. Eu só desejo o que há de melhor para o império.

Quase chegou a ter uma sensação física do vazio em que penetraram essas palavras. Seria impossível convencer o homem que se encontrava atrás da linha que delimitava as sombras, pois este viera com uma intenção bem definida e não deixaria de agir de acordo com a mesma.

Não se proferiu mais uma única palavra. O Almirante Thekus ficou esperando. Muitas vezes refletira sobre as sensações que experimentaria quando tivesse chegado sua hora. Não sentia medo. Era tudo muito simples.

De repente notou um brilho fosco em meio à escuridão. Os olhos de Thekus alcançaram-no e se agarraram ao mesmo. O cano fino de uma arma entrou no campo de visão, levantou-se e parou enquanto apontava para o almirante.

A voz chiante não mais se fez ouvir. Thekus viu um raio fulgurante finíssimo, que subitamente irrompeu do cano da arma. Acompanhou o raio até o lugar em que o mesmo penetrou em seu peito. Não sentiu dor. Foi muito rápido.

E caiu de tal maneira que as pessoas que se encontravam na sala nem notaram o incidente.

 

Na opinião do Marechal Julian Tifflor, chefe de representação do Império Solar no território do Império de Árcon, a festa foi um grande sucesso.

Mas de repente notou que por algum motivo inexplicável uma das portas da sala estava aberta. Encontrava-se próximo à mesma. Foi até lá e examinou o pequeno aposento que ficava atrás da porta. Viu as coisas da mesma maneira que o Almirante Thekus as encontrara noventa minutos antes. Notou a estranha regulagem da lâmpada, que espalhava sua luminosidade de tal maneira que a metade do aposento ficava mergulhada numa claridade ofuscante, enquanto na outra reinava a mais completa escuridão. A única diferença era que, quando Thekus entrou no aposento, nenhum morto jazia no chão.

O Marechal Tifflor imediatamente reconheceu o almirante. Era um dos homens mais importantes do Império de Árcon e figurava como convidado de honra na festa daquela noite.

Julian Tifflor deu um passo para trás. Envergava seu uniforme de gala, mas mesmo quando isso acontecia nunca deixava de trazer consigo uma arma. Num movimento instantâneo segurou, desajeitado, o pequeno instrumento. Julian ficou com os olhos semicerrados, procurando enxergar na escuridão para além da linha divisória.

Foi uma reação instintiva. Vira a ferida de tiro no peito de Thekus e receara que o assassino ainda se encontrasse no aposento. Dali a alguns segundos pôs-se a refletir. Ninguém sabia há quanto tempo Thekus estava estendido ali. Julian lembrara-se de que há duas horas falara com ele pela última vez. Depois disso, quando vira a porta aberta, ainda levara três minutos para separar-se do círculo de convidados que conversavam com ele.

O assassino já se retirara. Afastara-se depois que fora bem-sucedido no seu crime. Algumas dezenas de idéias diferentes atropelaram-se na cabeça de Julian. À festa que dera nos salões da embaixada terrana só haviam comparecido pessoas convidadas. Ninguém poderia entrar sem antes exibir o convite aos ordenanças que se encontravam na entrada, nem mesmo o assassino. Quer dizer que era um dos convidados... ou um serviçal!

Por um instante, Julian pensou em fechar as saídas do edifício e revistar os convidados. Mas logo abandonou a idéia, que era absurda por dois motivos diferentes. Primeiro, o assassino já se poderia ter livrado de sua arma — se fosse um homem inteligente, sem dúvida procederia assim. Depois, uma medida radical como esta deixaria contrariados os hóspedes e provocaria dificuldades diplomáticas entre Árcon e a Terra.

E o assunto não era tão importante que valesse tamanho risco. A tarefa de um embaixador terrano consistia em defender os interesses de seu mundo, e não bancar a polícia arcônida.

De qualquer maneira, devia fazer alguma coisa. O Almirante Thekus fora assassinado no edifício da embaixada terrana. Não haveria meio de ocultar esse fato. E qualquer negligência da parte do anfitrião também não contribuiria para melhorar as relações diplomáticas entre os dois impérios.

Julian Tifflor virou a cabeça. Estava de pé junto ao corpo imóvel de Thekus. Encontrava-se numa posição tal que, ao olhar pela porta, só via a parede vazia do lado sul do salão. Depois do jantar ninguém mais havia ido para lá. Era justamente este motivo por que Thekus não fora encontrado antes.

Julian recuou e fechou a porta. A festa chegara a um estágio em que a ausência do anfitrião por alguns minutos não seria notada.

Depois disso Julian regulou a lâmpada de tal maneira que o aposento ficou todo iluminado. Ajoelhou ao lado de Thekus e examinou a ferida. Na altura do peito, o precioso uniforme estava totalmente queimado num círculo de uns dois centímetros de diâmetro. O furo era cercado por uma borda chamuscada. O raio penetrara na altura do coração. Thekus morrera imediatamente. A arma do crime devia ser um radiador, formado por um gerador que criava radiações cujo comprimento de onda variava entre cinco e vinte mícron, e que eram concentradas a ponto de se tornarem tão intensas que seriam capazes de cortar uma chapa de aço de um metro de espessura a cem metros de distância. O tiro deveria ter sido muito rápido; o criminoso só tocara ligeiramente o gatilho. Se não fosse assim, o raio teria atravessado o corpo de Thekus, deixando seus rastros na parede.

Julian levantou-se e foi até o aparelho de intercomunicação instalado na parede oposta à porta. Ligou-o. Imediatamente o rosto atento de um ordenança apareceu na pequena tela. Ao reconhecê-lo, o homem endureceu. Julian possuía o privilégio de uma boa memória. Havia mais de mil ordenanças na embaixada terrana, e ele os conhecia todos pelo nome.

— Brent, tenho uma tarefa difícil para o senhor — principiou.

Brent fitou-o atentamente.

— A maneira de executá-la dependerá exclusivamente da sua criatividade — prosseguiu Julian. — Encontro-me no aposento número duzentos e trinta e sete. Daqui em diante ninguém mais poderá entrar neste aposento. Faça o favor de transmitir o aviso.

Brent parecia perplexo.

— Naturalmente, sir — confirmou. — Mas não vejo por que a tarefa seria difícil.

Julian interrompeu-o com um gesto.

— É claro que não é. Mas há mais alguma coisa. É claro que a proibição não se aplica ao nosso hóspede mais distinto. Pelo contrário. Quero que o imperador compareça quanto antes a este aposento. Traga-o para cá. O senhor deve saber como fazê-lo.

 

Numa atitude de perplexidade Sua Majestade Gonozal VIII, Imperador do Reino Estelar de Árcon, fitava o morto. Atrás dele, Brent, o ordenança, estava encostado à porta fechada.

Julian Tifflor olhava discretamente para o imperador, a fim de acompanhar-lhe as reações. Achava que Gonozal VIII, que antes se chamara de Atlan, era seu amigo e protetor. Nem por isso, porém, costumava informá-lo sobre todas as medidas que adotava. Julian Tifflor gostaria de saber se Sua Majestade tinha ou não tinha algo a ver com o assassinato do decano dos seus almirantes.

Viu que o susto de Gonozal VIII não foi fingido. Por alguns instantes não conseguiu dizer uma palavra, por mais que seus lábios se esforçassem. Ajoelhou ao lado do corpo de Thekus.

— Quem... quem fez isso? — perguntou em tom exaltado.

— Não sabemos, majestade — respondeu Julian prontamente. — Encontrei-o no momento em que estranhei que a porta deste aposento estivesse aberta. Depois disso ainda não fiz mais nada; apenas mandei chamar Vossa Majestade. Prefiro que Vossa Majestade decida sobre o que deve ser feito.

O imperador fez um gesto distraído.

Levantou-se com um suspiro.

— Precisamos chamar um médico para verificar o momento da morte — disse a Julian.

— Face às circunstâncias — ponderou o terrano — peço permissão para fazer outra sugestão.

Gonozal VIII fitou-o com uma expressão de surpresa.

— Pois não.

— Um robô-médico excutaria a tarefa com maior rapidez e precisão que um médico humano.

O imperador refletiu por alguns segundos. Parecia reconhecer os argumentos em que se baseava a sugestão de Julian. Fez um sinal de concordância.

— O senhor tem razão, Julian — respondeu. — Dou-lhe carta branca para agir. Faça o favor de chamar um robô-médico.

 

Quando o robô apareceu, Sua Majestade o Imperador já se misturara aos outros visitantes. Sua ausência não deixara de ser notada, mas face às boas relações reinantes entre o imperador e a embaixada terrana, ninguém atribuiu maior importância ao fato.

A festa prosseguiu normalmente. Mais de três mil convidados, quase todos arcônidas, divertiam-se a valer, enquanto o robô-médico realizava suas pesquisas para determinar o momento exato da morte de Thekus.

Chegou à conclusão de que isso acontecera entre as vinte e quatro e as vinte e cinco horas. Um médico orgânico não teria sido capaz de fazer uma indicação tão precisa. Já passava da meia-noite e fazia quatro horas que Thekus morrera. Mas a informação que acabara de ser prestada não ajudava muito. A indagação sobre a autoria do assassinato e seu motivo continuava em aberto.

A festa terminou oito horas depois da meia-noite, quando o último convidado se retirou. Este convidado, ou um dos que se haviam despedido antes, era o assassino do Almirante Thekus, pertencente à frota espacial arcônida.

 

A conversa seguia a trilha de sempre.

O Major Ron Landry, o Capitão Larry Randall, o sargento Meech Hannigan e Lofty Patterson, um colaborador paisano, haviam sido convocados pelo Coronel Nike Quinto para participarem de uma conferência, durante a qual receberiam informações sobre a próxima tarefa. Não houve discussões. Nike Quinto tomara todos os preparativos à maneira minuciosa que lhe era peculiar. Nem mesmo o grande centro de computação de Terrânia seria capaz de encontrar qualquer falha.

Isso não deixa de ter suas razões. É que os planos haviam sido elaborados pelo próprio centro de computação. Quando surgia uma situação de emergência, o Coronel Nike Quinto, chefe do Fundo Social Intercósmico de Desenvolvimento, podia usar pelo tempo que quisesse o maior centro de computação positrônico da Terra. Uma hora de trabalho do computador custava nada menos que dois milhões e meio de solares.

Conforme já dissemos, tudo seguiu pela trilha usual. Ron, Larry e Lofty obtiveram seu ensinamento hipnótico, que fixou em seus cérebros tudo que precisavam saber. Já Meech fez desfiar uma série de fitas magnéticas, e depois disso estava tão bem preparado quanto os outros.

Mas havia uma diferença. E uma diferença muito importante. Ao despedir-se, Nike Quinto disse:

— Prestem atenção, cavalheiros! A tarefa que temos pela frente é de tamanha importância para a política galáctica que participarei pessoalmente da mesma.

 

A notícia da morte do Almirante Thekus foi divulgada no dia seguinte. Os convidados de Julian Tifflor, que já haviam saído dos seus leitos higrossomáticos, ficaram sabendo pelo meio-dia que por pouco não presenciaram um repugnante assassinato.

Os órgãos oficiais do governo manifestaram um desprezo profundo pela pessoa do assassino e pelos motivos determinantes do crime. O estilo foi tão franco e vigoroso que, ao ouvir as notícias, Julian Tifflor logo suspeitou de que o governo estivesse ocultando alguma coisa.

Os órgãos particulares mantinham uma discrição evidente no que dizia respeito ao julgamento do ato sob o ponto de vista moral. Em compensação desenvolveram hipóteses bem interessantes. Essas hipóteses pareciam dividir-se em dois grupos. Um dos grupos sustentava que Thekus conspirava contra o atual governo e fora eliminado por alguém que agia a mando do mesmo. Já o outro grupo acreditava que Thekus mantinha um contato com grupos revolucionários, que o haviam matado por terem descoberto que na verdade era um oficial fiel do governo.

O noticiário prendeu as atenções de Árcon por alguns dias.

Mas de repente surgiu outra notícia.

Cientistas terranos haviam descoberto o mistério da vida!

Era esta a formulação usada pelas agências noticiosas para que seus ouvintes e espectadores compreendessem do que se tratava. O que pretendiam dizer era que certos médicos terranos se haviam declarado capazes e dispostos a restituir a vida ao Almirante Thekus.

O público arcônida era bastante crítico. As agências foram acusadas de terem caído numa esparrela. E as agências retrucaram. Publicaram notícias vindas diretamente da Terra. Apresentaram entrevistas com os cientistas mais importantes e uma série de fotografias dos aparelhos que seriam utilizados na revitalização do almirante assassinado.

Ainda assim o público não se convenceu de vez. Restou um pouco de desconfiança. De qualquer maneira, a possibilidade de revitalização do almirante passou a ser levada a sério.

Isso acontecia principalmente com certo grupo de pessoas, às quais a simples idéia de um almirante ressuscitado causava fortes dores de cabeça.

 

Nike Quinto provou que era um estrategista muito hábil. Fez sua tosca nave esférica pousar no maior porto espacial do planeta Árcon I, que era o mundo residencial dos arcônidas, e mandou descarregar com a maior calma os aparelhos que a nave trazia.

Uma porção de repórteres esteve presente por ocasião do pouso da nave e das operações de descarga. A maior parte deles era formada por robôs. Os aparelhos estavam muito bem acondicionados, mas uma mente imaginativa não teria dificuldade em ver neles os mesmos aparelhos a que se aludira antes, durante a entrevista com os médicos terranos.

Finalmente toda a carga foi colocada num pesado veículo de transporte, que a levou ao edifício onde funcionava o governo, a oitocentos quilômetros. O Coronel Quinto e seus colaboradores já se haviam retirado muito antes. Teve-se a impressão de que não se preocupavam muito com os aparelhos, que sem dúvida deviam ser muito preciosos.

O edifício do governo consistia na realidade num conjunto de construções de todos os tipos e tamanhos. A sede governamental cobria uma superfície de aproximadamente dois mil quilômetros. Esse número pode parecer impressionante, mas para sede de um império que abrangia vários milhões de anos-luz cúbicos esses dois mil quilômetros tornavam-se um fato surpreendente.

Há milênios os imperadores arcônidas passavam seu tempo de governo despreocupadamente dentro desse conjunto de edifícios, sem que recorressem a medidas de segurança especiais. Naquele tempo ninguém teria pensado em tentar contra a vida do governo do império.

Mas nesse meio tempo a situação sofrera uma modificação profunda. Os séculos de decadência durante os quais o império começou a esfacelar-se, o período em que o governo foi exercido pelo grande centro de computação, que em virtude de sua crueldade fria provocou o ódio dos povos coloniais — tudo isso fez com que o lugar assumido por Gonozal VIII, no momento em que passou a substituir o computador-regente, se tornasse o mais perigoso em todo o império.

E as medidas de segurança foram adaptadas a essa situação. O Coronel Quinto e seus companheiros atravessaram cinco controles visíveis e provavelmente mais de uma dezena de controles invisíveis, até que chegassem ao núcleo da sede do governo. Meech Hannigan, que tinha um sentido todo especial para esse tipo de coisa, registrou por duas vezes uma exposição a raios X de intensidade tamanha que na Terra seria considerada ilegal, em virtude do perigo que representava a dose excessiva de radiações.

O planador parou à frente de um amplo edifício em forma de cubo. Do lado direito da fachada, uma fita transportadora reluzente levava para a larga entrada, que representava o único acesso visível do gigantesco edifício. O carro que acabara de trazer Nike Quinto e seus companheiros parou próximo à fita transportadora. Nike Quinto abriu a escotilha e desceu antes que o piloto automático anunciasse que haviam chegado ao destino.

Não era a primeira vez que Nike Quinto se encontrava em Árcon. Mas, com olhos de um turista contemplou a fachada impressionante do enorme edifício, as árvores e arbustos do parque muito bem instalado e as formas bizarras dos edifícios mais distantes.

O Coronel Quinto era um homem de baixa estatura. Mas o que lhe faltava em altura sobrava-lhe em volume do corpo. Seu rosto sempre estava vermelho. Os cabelos raros de uma feia coloração amarelenta só cobriam parte do crânio. Nike Quinto parecia um homem doente e... antipático. Sabia disso e fazia tudo para reforçar essa impressão.

Passou a mão pela testa e soltou um suspiro.

— Se o calor continuar — lamentou-se com a voz muito aguda — minha pressão sangüínea subirá tanto que sucumbirei a um ataque cardíaco.

Ron Landry já descera do carro. Larry Randall, Lofty Patterson e Meech Hannigan seguiram-no de perto. Quando ouviu as palavras de Nike Quinto, o rosto de Ron transformou-se numa careta.

— As noites são bem frescas — observou. — Talvez deveríamos modificar nossos hábitos de trabalho.

Nike Quinto fitou-o como se refletisse sobre a sugestão.

— O senhor quer dizer que deveríamos trabalhar de noite e descansar de dia?

Sem desconfiar de nada, Ron Landry fez um gesto afirmativo.

— O senhor tem idéias muito estranhas a respeito do seu serviço! — esbravejou Nike Quinto imediatamente. — Temos de cumprir uma tarefa por aqui, e uma tarefa muito importante. Trabalharemos dia e noite, até que a tarefa esteja concluída.

 

Por algum motivo estranho o imenso edifício era ainda mais impressionante em seu interior. Os corredores e poços de elevadores estavam desertos. Até parecia que por ali não havia ninguém que trabalhasse. Sem dizer uma palavra, os cinco terranos subiram à fita transportadora. Nike Quinto ia à frente do grupo. Dava mostras de saber exatamente para onde devia dirigir seus passos. Os outros espantaram-se com o número enorme de curvas e cruzamentos dos corredores. Até parecia que por aqui os arcônidas haviam criado mais um dispositivo de segurança, que fazia com que a pessoa que quisesse atentar contra a vida do imperador e a segurança do império se perdesse.

Ron Landry esforçou-se para pensar friamente. Sabia que no Império de Árcon havia poucos funcionários orgânicos, dos quais a maioria trabalhava nas administrações regionais. O governo do império era formado principalmente por robôs. Não eram robôs feitos à semelhança e imagem dos seus criadores, que se locomoviam sobre duas pernas, mas antes aparelhos que dispensavam as amenidades do formato orgânico em prol do aumento de capacidade. Atrás das portas que se abriam de ambos os lados da fita transportadora não havia seres humanos que aparecessem de manhã para trabalhar, executassem suas atividades com um senso de responsabilidade mais ou menos pronunciado e voltassem para casa de noite. O que havia atrás daquelas portas eram cérebros positrônicos. E estes trabalhavam dia e noite.

Era por isso que os corredores estavam vazios e o enorme edifício parecia uma casa habitada por fantasmas.

Nike Quinto saltou para dentro de um elevador antigravitacional e flutuou para cima. Seus companheiros seguiram o exemplo. Pelos cálculos de Ron Landry, percorreram pelo menos cinqüenta metros antes que uma saída do poço aparecesse acima de suas cabeças e Nike Quinto se empurrasse para a frente, a fim de utilizá-la.

A saída dava para um recinto circular, do qual partiam corredores em todas as direções. Nike Quinto dirigiu-se para uma porta que ficava na parede oposta à saída e tocou-a com a mão.

A porta deslizou para o lado, deixando livre a entrada para uma sala de tamanho médio, escassamente iluminada. Ron Landry viu uma espécie de escrivaninha e algumas poltronas confortáveis. Junto às paredes havia armários automáticos, nos quais provavelmente estavam guardados registros.

Atrás da escrivaninha estavam Julian Tifflor, que era marechal e embaixador do Império Solar em Árcon, e Sua Majestade Gonozal VIII, Imperador de Árcon.

Ron Landry inclinou-se diante do imperador. Depois ficou em posição de sentido e cumprimentou o marechal, segundo o regulamento.

 

— Sinto decepcioná-los — disse o imperador depois que haviam trocado as primeiras palavras. — Sem dúvida acreditam que posso prestar-lhes alguns esclarecimentos sobre os motivos do crime.

Fitou Nike Quinto e seus colaboradores. Seus olhos exprimiam desânimo.

— Infelizmente não posso.

Numa atitude diplomática, Nike Quinto ficou à espera. Tinha à sua frente um imperador e um marechal. Não seria recomendável abrir a boca enquanto um dos dois tivesse algo a dizer. Só dali a alguns segundos, o coronel começou a falar:

— Majestade, nós esperávamos que nestes poucos dias que se passaram desde o assassínio do almirante já houvesse tempo de esclarecer o ato e seus motivos. Estamos preparados para começar do princípio.

O imperador confirmou com um gesto.

— Caso tenham um plano e acreditem poder familiarizar-me com ele, peço-lhes que falem — disse.

Nike Quinto fez um gesto e prontamente expôs suas idéias perante os dois ouvintes, dando todas as explicações relativas às mesmas.

— O senhor conhece os riscos que estará assumindo? — indagou o Marechal Tifflor, uma vez concluído o relato.

— Sim, senhor — respondeu Nike Quinto. — Acontece que este é o melhor dentre os planos elaborados que possam produzir resultado dentro de poucos dias.

 

O cadáver do Almirante Thekus fora levado à sede do governo. Assim que a palestra com o imperador chegou ao fim, Nike Quinto e seus colaboradores dirigiram-se ao lugar em que o corpo estava guardado. Os aparelhos vindos pela nave já haviam sido transportados para lá. Nike Quinto certificou-se de que o local estava hermeticamente fechado por meio de guardas-robôs e de barreiras invisíveis. Logo se pôs a trabalhar.

Árcon não esperaria muito pelo almirante.

 

A primeira coisa que sentiu foi a impaciência.

Era uma estranha impaciência. Testou sua inteligência. Foi tateando para todos os lados e chegou à conclusão de que tudo continuava mergulhado na escuridão. Que a vida ainda não penetrara em todos os setores. Teve a impressão bem nítida de que, quando tivesse acordado de vez, seria capaz de coisas muito mais grandiosas. E era esta a causa da impaciência.

Tinha sua memória. Revistou-a, pois queria descobrir quem era e por que se encontrava nessa situação. Acontece que também a memória ainda não despertara de vez. Por isso só encontrou fragmentos de lembranças, cujas peças teve de juntar com muito trabalho.

Tinha um nome. Esse nome era Thekus.

E tinha um posto. Era almirante da frota espacial arcônida e conselheiro do Imperador Gonozal VIII. Gonozal VIII não era seu amigo?

Fora assassinado!

Por quem?

Ainda estava à procura da resposta quando já retornara de vez à vida. Só então percebeu que não havia resposta à sua pergunta. Não havia nenhuma parte de sua memória que permanecesse no escuro. E não tinha nenhuma lembrança que pudesse responder à indagação sobre o motivo do assassinato cometido contra sua pessoa.

Achou aquilo bastante estranho.

Num recanto da memória encontrou suposições vagas que diziam respeito a atividades revolucionárias, revoltas e traições. Não havia detalhes sobre isso em sua memória. Tratava-se apenas do resultado da combinação de uma série de observações. Ao que parecia eram deduções lógicas.

Abriu os olhos e percebeu que o sentido da visão estava intacto.. Viu à sua frente dois homens com os quais, segundo indicava sua memória, nunca se encontrara. Um deles era baixo e gordo e tinha o rosto muito vermelho. Já o outro era grande, de ombros largos e louro.

Thekus constatou que se encontrava numa maca. Sentiu-se bastante forte para levantar. Quis levantar-se tão depressa como concebera o pensamento. Mas mal começou a mexer-se, percebeu que pensar num movimento e executá-lo são duas coisas diferentes. Era mais rápido que os dois homens que se encontravam de pé à sua frente e o observavam, mas apesar disso seu movimento era mil vezes mais lento que seu pensamento.

Foi a primeira experiência que colheu. Armazenou-a cuidadosamente em sua memória. Os pensamentos são entidades imateriais que se movem com muita rapidez. Já os membros do corpo humano são feitos de matéria, e por isso trazem em si uma grande dose de inércia.

Aprendeu depressa. Enquanto se levantava e enfrentava o olhar dos dois homens, colheu pelo menos mais dez experiências.

— Como vai, almirante? — perguntou de repente um dos dois homens.

De início Thekus só percebeu os sons. Mas logo um processo extremamente rápido se desenrolou nas camadas mais profundas do consciente; compreendeu a pergunta. E, mais que isso, até conseguiu responder. Disse com a voz clara e falando num arcônida impecável:

— Obrigado. Consideradas as circunstâncias, posso dizer que estou passando bem.

Contemplou seu corpo. Estava nu, fato que não o incomodava. No meio do tórax havia alguma coisa sob a pele que produzia um abaulamento. Logo se deu conta de que esse detalhe não provinha da natureza.

— O que é isto? — perguntou, fitando o homem baixo e gordo.

O homem gordo lançou um olhar para o homem alto e louro.

— Ainda não sabe, almirante? — perguntou este.

Thekus fez um gesto vago com a mão esquerda.

— Não... acho que não sei — respondeu em tom hesitante.

O gordo dirigiu-se ao seu companheiro louro:

— Não se esqueça deste detalhe, Landry. Alguma coisa não deu certo.

O homem alto, que atendia ao nome Landry, disse em tom otimista:

— Não há nada que não se possa arranjar rapidamente, sir.

— Pois então arranje, major.

Por um instante Thekus sentiu-se confuso. Será que o nome daquele homem era Landry, ou era major? E que língua era essa em que os dois conversavam? Ele a entendia, mas não era a mesma que havia usado antes. Deu-se conta de que dominava duas línguas diferentes. Ele também sabia combinar as duas línguas. E, ao fazer isso, compreendeu que a palavra major designava um posto militar, enquanto Landry certamente era um nome próprio.

Sentiu-se satisfeito com os progressos que estava alcançando.

Landry colocou-se à sua frente e fitou-o prolongadamente. Depois falou muito devagar:

— Leia o cem!

Thekus compreendeu imediatamente a ordem e começou a ler. Sob a cifra 100 encontrou os valores que deveria ler. E após estes, o comando seguinte. Esse comando ordenava-lhe que distinguisse entre três alternativas. Primeiro: IMPR é igual a zero. Isso correspondia à seguinte afirmativa: não há ninguém perto de mim. Seguiu-se a cifra 213, que correspondia à ordem de ficar calado. Segunda alternativa: IMPR é menor que zero. Isso significava: há um inimigo perto de mim. A cifra correspondente era 1001, e sob o 1001 Thekus encontrou o esclarecimento que procurava:

— O aparelho que se encontra no meu peito serve para manter provisoriamente o processo de circulação do sangue. Ainda não estou inteiramente recuperado.

Terceira alternativa: IMPR é maior que zero. Isso significava: há um amigo perto de mim. A essa afirmativa correspondia a cifra 1125, que trazia o seguinte esclarecimento:

— O aparelho que se encontra no meu peito é um gerador de campo magnético e produz os campos que ativam ou desativam os diversos setores do banco central de dados.

Sentiu-se um tanto admirado por não se ter lembrado disso sem auxílio. Não se sentia muito satisfeito consigo mesmo.

Sem que ninguém pedisse, relatou suas descobertas ao homem que atendia pelo nome de Landry. E Landry parecia satisfeito. Virou a cabeça e sorriu para o homem baixo e gordo.

— Está vendo, sir?

O gordo confirmou com um gesto da cabeça.

— É formidável — comentou. — Mas ainda teremos de realizar uma série de testes para ter certeza.

De repente Thekus compreendeu que fora criado para uma tarefa toda especial. Sabia que teria de prestar serviços aos dois homens que se encontravam à sua frente. Isso não o ofendia. Os sentimentos desse tipo lhe eram completamente desconhecidos.

Afinal, era apenas um robô, se bem que um robô bastante sofisticado.

 

Meech Hannigan não disfarçou a curiosidade com que contemplava o novo colega, enquanto os dois se preparavam para a recepção oferecida em homenagem à “ressuscitação” do Almirante Thekus.

Para Meech, aquilo representava uma nova experiência. Estava acostumado a lidar com outros robôs, mas estes podiam ser reconhecidos como tais ao primeiro relance de olhos. Realizavam serviços úteis e não havia necessidade de fazer com que se parecessem com gente de carne e osso. Com ele mesmo e com o robô que atendia ao nome de Thekus, as coisas eram diferentes. A Divisão III do Fundo Social Intercósmico de Desenvolvimento chegara à conclusão de que seria útil aos seus objetivos ter em seus quadros um membro que não estivesse sujeito a qualquer tipo de influência psicológica e fosse capaz de reações mais rápidas que qualquer pessoa. E um robô atendia a essas exigências. Acontece que o inimigo modificaria sua estratégia assim que compreendesse que a criatura que tinha à sua frente era um robô. Por isso Meech foi disfarçado como gente. A pessoa que o observasse ou falasse com ele nunca desconfiaria de que aquilo não era um homem de carne e osso.

A tarefa de Thekus era mais fácil de definir. Ninguém sabia quem havia assassinado o verdadeiro Almirante Thekus. Evidentemente havia um movimento clandestino que funcionava no âmbito escuso da ilegalidade, e era claro que esse movimento seria responsável pela morte de Thekus. Seria ainda mais difícil descobrir que papel o próprio Thekus desempenhara face a esse movimento clandestino.

Cabia ao robô Thekus descobrir a resposta a essas indagações. Ao iniciar a viagem da Terra para Árcon, fora apenas uma armação com os necessários equipamentos positrônicos, guardada num recipiente semelhante a um esquife. E agora, quando doze dias se haviam passado desde sua chegada a Árcon, não havia mais nada que o distinguisse do verdadeiro Thekus.

A não ser que alguém removesse o envoltório de substância celular viva que cobria seu corpo feito de metal plastificado e visse o que havia embaixo do mesmo.

Meech Hannigan viu-se numa situação estranha. Embora fosse da mesma natureza de Thekus, tinha que dedicar um respeito todo especial para com ele. Meech era apenas um sargento, enquanto Thekus era almirante.

 

Durante a recepção não houve nenhum incidente. Se o inimigo resolvera aparecer, então julgara preferível manter-se quieto por enquanto.

Thekus recebeu grande número de repórteres. Relatou como se sentira durante o processo da revitalização e explicou que ainda carregava certos aparelhos que permitiam que o corpo debilitado continuasse a viver, alcançando o máximo possível de saúde. Falava em tom coloquial, imitando tão bem a voz de Thekus que ninguém chegou a desconfiar de que uma pessoa estranha pudesse desempenhar o papel do almirante.

A cerimônia não durou mais de uma hora. Segundo os médicos terranos, não se deveria exigir um esforço maior do paciente. A recepção terminou no momento em que Sua Majestade, o Imperador, apareceu em cena, abraçou o almirante e felicitou o caro amigo pela cura milagrosa. Os repórteres afastaram-se às pressas, a fim de transmitir a novidade aos órgãos de informação. Árcon teria alguma coisa de que pudesse falar. Na expressão de Nike Quinto, o Almirante Thekus voltara a entrar em circulação.

Ao retornar juntamente com seus colaboradores à casa que haviam alugado, o coronel disse:

— A isca foi lançada. Só nos resta esperar e ficar com os olhos bem abertos.

 

O dia do Almirante Thekus foi organizado discretamente, de tal maneira que sempre ficavam de olho nele. O público foi informado que o estado de saúde de Thekus ainda não lhe permitia sair de casa. Por isso alugou-se para ele uma casa, situada nas proximidades da residência de seus “médicos” terranos. As duas casas ficavam a menos de vinte quilômetros da sede do governo. Era perfeitamente compreensível que os terranos ainda quisessem manter o paciente sob controle. E qualquer pessoa acharia perfeitamente natural que nos seus passeios ligeiros Thekus sempre fosse acompanhado por um terrano.

O que muita gente não compreenderia era o fato de a casa de Thekus ter sido equipada com toda sorte de aparelhos de escuta e de vigilância. Nike Quinto, que escolhera a casa, logo incumbira Meech Hannigan de instalar o equipamento. Thekus era um robô perfeito, no que dizia respeito ao desempenho do papel que lhe fora atribuído. Mas justamente por causa dessa perfeição não havia lugar em seu interior para instalar os necessários aparelhos de comunicação e advertência. Meech Hannigan instalara-os cuidadosamente nas paredes, tetos e soalhos da casa que serviria de residência do almirante.

Cinco terranos, que se encontravam em sua própria casa, a quinhentos metros de distância, revezavam-se no controle dos instrumentos.

Geralmente era Ron Landry que acompanhava Thekus nos seus passeios. Seu aspecto correspondia melhor à idéia que os arcônidas faziam de um cientista terrano: era alto, vistoso e tinha um rosto inteligente. Além dele praticamente era só Larry Randall que podia desempenhar esse papel.

Naquele dia, Ron Landry apareceu, como de costume, pouco depois do meio-dia à frente da casa de Thekus e acionou o sinal de chamada. Quase no mesmo instante a porta larga e afunilada abriu-se, permitindo a entrada de Ron Landry. Não se via ninguém na ante-sala que ficava logo atrás dessa porta. Os médicos de Thekus haviam insistido em que recebesse apenas a criadagem estritamente necessária, enquanto não estivesse completamente restabelecido. O paciente só recebera três robôs de múltiplas finalidades. O motivo disso era evidente. Qualquer criado orgânico poderia ser subornado. Se a casa dispusesse do número usual de criados, o inimigo poderia facilmente seqüestrar o almirante. Ou matá-lo, se o plano previsse essa alternativa.

Ron saltou para dentro de um dos sete elevadores antigravitacionais que subiam da ante-sala. Como de costume desceu no quinto pavimento da casa afunilada, pouco acima da extremidade superior do jardim. Encontrou Thekus numa das varandas da qual se podia contemplar a parte interna da casa.

Ron fez continência.

— Tomei a liberdade de vir buscá-lo para dar o seu passeio, sir — disse.

Thekus cumprimentou-o com um gesto amável.

— Vamos andando — sugeriu. — Será que já me posso dar o luxo de dar uma volta de carro em vez de um passeio a pé?

Ron Landry meneou a cabeça.

— Acho que podemos arriscar, sir — disse depois de algum tempo. — Chamarei um carro.

Naquela casa, Thekus não possuía veículo próprio. Ron saiu do terraço e entrou num dos aposentos que ficavam nos fundos. Em cada peça havia um aparelho de intercomunicação. Ron imprimiu o código do ponto de táxis. Não havia necessidade de dizer nada. No ponto de táxi os impulsos seriam captados e classificados segundo o tempo e a procedência. Um carro automático partiria prontamente e chegaria dentro de cinco minutos, o mais tardar.

Ron levou seu protegido para baixo. Thekus disse a um dos serviçais para onde pretendia ir. Quando Ron e o almirante saíram da casa, o veículo já os esperava. Thekus acomodou-se no assento traseiro, soltou um suspiro, como se a perspectiva da viagem o deixasse feliz, e disse:

— Gostaria de dar uma olhada nas lojas do setor leste. Acabo de lembrar-me de que amanhã ou depois minha sobrinha dará uma festa. Gostaria de mandar-lhe um presente.

Ron confirmou com um gesto.

— Está bem. Não sei onde ficam as lojas do setor leste, mas aqui...

Apontou o disco de escolha de endereços que ficava entre os dois assentos. Thekus inclinou-se para frente e introduziu uma série de letras e algarismos no dispositivo automático. O veículo foi posto em movimento.

Por alguns segundos, Ron Landry dedicou-se ao sentimento de alegria que lhe infundia o fato de que a programação de Thekus funcionava tão bem. Naturalmente sabia onde ficavam as lojas do setor leste. Ele mesmo formulara a programação de tal maneira que em determinado dia, que era hoje, e em determinada hora, que era agora, o “almirante” pediria que o levasse às mesmas. Com isso pretendia-se expor Thekus à vista dos outros por um tempo mais prolongado que o usual. O inimigo teria oportunidade para lançar o primeiro ataque.

Ron tinha certeza de que ninguém desconfiaria, mesmo que o veículo automático estivesse devidamente preparado e equipado com aparelhos de escuta. Isso parecia muito natural.

O veículo ergueu-se bem acima da paisagem que parecia ser constituída por um único parque, preenchendo as lacunas entre as casas afuniladas arcônidas. Na direção sudoeste, os gigantescos edifícios da sede do governo foram recuando rapidamente. Depois de alguns segundos avistou-se o conjunto de edifícios, que na região costumava ser designado como as lojas do setor leste.

Ron Landry já estivera aqui. Conhecia aquela confusão de edifícios redondos, quadrados, retos e tortos. Já andara pelas ruas margeadas de ambos os lados pelas vitrinas das casas de negócio. Conhecia a confusão de pessoas que constantemente enchiam as ruas, os corredores e as lojas. Era este o lugar em que o arcônida deixava patente que sua civilização altamente sofisticada não lhe podia dar tudo. Bastava que apertasse um botão em sua casa para que lhe fosse entregue qualquer coisa que desejasse. Mas não se satisfazia com isso. Queria escolher pessoalmente. Queria apalpar, cheirar e sentir os objetos expostos à venda. Desejava conversar sobre o preço e talvez quisesse pechinchar. Para ele, isso representava uma pequena aventura, se bem que geralmente se sentia tão cansado que a única coisa que fazia era assistir aos programas fictícios. Dava-se ao trabalho de andar alguns quilômetros de carro para chegar até aqui e divertir-se um pouco.

Todos os donos das lojas eram não-arcônidas. Nenhum arcônida de boa estirpe se rebaixaria a exercer as funções de mercador.

A área do centro comercial estava interditada ao tráfego aéreo e terrestre.

O veículo do Almirante Thekus obedeceu ao regulamento. Pousou numa das áreas de estacionamento situadas na periferia do centro. Ron foi o primeiro a descer. Thekus comprimiu o botão vermelho que ficava à frente do assento dianteiro. O botão vermelho designava a ordem de esperar. Depois disso também desceu. Dali em diante serviu de guia, já que Ron Landry “não conhecia” o centro de compras. Ron seguia-o de perto. Mantinha a mão direita discretamente no bolso. O microrradiador pequeno e desajeitado estava pronto para disparar. Fora ativado e por isso zumbia e vibrava levemente na mão de Ron.

A poucos metros da área de estacionamento o tumulto das pessoas que desejavam fazer compras tornou-se impenetrável. Ron teve de esforçar-se para acompanhar Thekus. Era bem verdade que, em sua opinião, o inimigo desconhecido não escolheria justamente este lugar para seqüestrar o almirante. Thekus caminhou a passo seguro pela multidão e acabou por entrar numa rua secundária, onde o tráfego era menos intenso. Essa rua descrevia curvas estranhas. Os edifícios que a margeavam tinham o aspecto de gigantescos ovos em pé. Geralmente a metade inferior do ovo era formada por uma única janela, da qual saía uma luminosidade vermelha. Ao aproximar-se, o transeunte notava que o espaço atrás das janelas não estava cheio de ar, mas de um líquido. Era esse líquido que emitia a luminosidade vermelha. Vez por outra apareciam criaturas grotescas, que se movimentavam preguiçosamente no líquido, permaneciam por algum tempo junto a uma vidraça e voltavam a desaparecer.

Era a rua dos laurelianos, o lugar em que os arcônidas costumavam adquirir as espécies de animais domésticos que mais apreciavam. Eram seres vindo de Laurel, que se caracterizavam tanto pelas faculdades extraordinárias que distraíam o dono como pelo formato grotesco.

Thekus parou.

— Minha sobrinha gosta dos animais laurelianos — disse, dirigindo-se a Ron. — Acho que lhe darei um mocoqui.

Ron sorriu. Era uma decisão típica de um almirante arcônida. O preço de um mocoqui era representado por uma soma que um major da frota terrana não ganharia em dois anos de serviço. O mocoqui era o animal doméstico mais sofisticado que se poderia imaginar. Entre os arcônidas a posse de um mocoqui de Laurel representava um sinal de status bastante elevado.

A entrada do edifício em forma de ovo ficava do lado. A porta abria-se automaticamente sempre que alguém se aproximava a menos de um metro. Atrás da porta havia um corredor debilmente iluminado, que exalava um cheiro de subterrâneo. O líquido em que viviam as criaturas de Laurel continha ácido sulfídrico, cloro e cianuretos em dissolução. Depois de percorridos alguns metros o corredor alargou-se, terminando numa espécie de cúpula envidraçada de todos os lados. Atrás do vidro corria o líquido vermelho-brilhante e animais das mais variadas espécies moviam-se no mesmo. A única iluminação da cúpula consistia na luminosidade vermelha irradiada pelo líquido.

Thekus e Ron não esperaram muito. Uma figura preta e disforme saiu dos fundos da área coberta pelo líquido e nadou em direção à parede de vidro. Quatro tentáculos saíram do corpo. Pareciam não ter contornos definidos. Encostaram-se ao vidro e abriram-se em ventosas. Um quinto tentáculo levantou-se, chegando ao ponto mais alto da cúpula. Ouviu-se uma voz mecânica saída de um alto-falante invisível:

— Sinto-me muito honrado em ver Sua Excelência, o senhor almirante, por aqui — disse a voz em arcônida. — O que posso fazer pelos cavalheiros?

Ron sentiu-se fascinado ao ver a criatura que aparecera atrás da parede de vidro. Viera numa espaçonave cheia de líquido a fim de dedicar-se, em Árcon, a um comércio lucrativo com os animais que trouxera de Laurel. Era o mais velho dos laurelianos que se encontravam em Árcon. Seu exemplo frutificara. Outras pessoas de Laurel haviam vindo, e agora as mesmas ocupavam toda uma rua situada no bairro das lojas do setor leste.

— Gostaria de comprar um mocoqui — respondeu Thekus.

O alto-falante transmitiu um som borbulhante.

— Muito bem, excelência. O senhor já sabe que em minha loja sempre encontra os mocoquis mais bonitos e inteligentes. Mostrar-lhe-ei alguns. É claro que só exibirei os melhores exemplares.

O mercador não abandonou o lugar em que se encontrava. Ao que parecia, tinha um método todo especial para atrair os animais ao lugar em que se encontrava. De repente apareceram umas dez ou doze criaturas redondas, do tamanho de uma cabeça de criança. Vieram rapidamente e seus tentáculos pequenos e graciosos grudaram-se à parede de vidro.

Ron contemplou-os com muita curiosidade. Os pequenos corpos mantinham-se constantemente em movimento. Pareciam ser formados de uma carne mole, sem músculos. A superfície dos corpos era branco-amarelenta, sendo mais clara que a pele do mercador de Laurel. Não se notava nenhum traço especial nos mocoquis. No centro do corpo esférico havia um pequeno chifre. Talvez fosse um olho ou uma orelha. Mas o chifre acabou por desaparecer, e sua função passava a ser executada por outra parte do corpo.

Não demorou, e uma estranha modificação começou a acontecer com um dos mocoquis. Esticou o corpo. A esfera transformou-se numa espécie de ovo. Seus contornos tornaram-se angulosos. Uma série de linhas horizontais paralelas surgiu na parte superior. Entre elas formaram-se duas reentrâncias paralelas ao eixo central do corpo. Entre essas reentrâncias cresceu uma espécie de chifre que se estendeu para baixo. Finalmente, uma fenda abriu-se sob o chifre. A parte inferior do estranho corpo adiantou-se, formando um queixo firme e bem saliente.

Tudo isso demorou apenas alguns segundos. O mocoqui fizera um trabalho perfeito. Ron sabia que as faculdades daquele animal eram extraordinárias, mas assim mesmo sentiu-se confuso por um instante quando viu seu próprio rosto.

Era isso mesmo. Não faltava o menor traço. Era como se olhasse para um espelho. Apenas faltavam os cabelos e as cavidades dos olhos estavam vazias.

Enquanto isso outro mocoqui se dedicava ao almirante. Deformou-se muito depressa e imitou o rosto de Thekus. Era claro que este sabia do que um mocoqui era capaz. Não teve necessidade de fingir espanto. No entanto, soltou uma risada alegre assim que o estranho animal concluiu seu trabalho.

Os mocoquis eram os papagaios galácticos, com a diferença de que não imitavam palavras, mas rostos.

— É formidável! — exclamou Thekus. — Ficarei com este.

O mercador desprendeu-se da parede.

— Estou às ordens de Vossa Excelência — disse a voz modificada que saiu do alto-falante. — A remessa será providenciada imediatamente.

Thekus fez um gesto negativo.

— De forma alguma — disse em voz bem alta. — Levarei o mocoqui.

Ron fitou-o com uma expressão de espanto. A programação de Thekus não incluía este desejo. O mesmo fora elaborado por ele mesmo. Suas faculdades eram tão desenvolvidas que seria perfeitamente capaz disso. Em grande parte, as esperanças terranas repousavam no fato de que, se enfrentasse uma situação difícil, Thekus seria capaz de tomar decisões independentes e acertadas.

Mas por que teria manifestado esse desejo?

O mercador confirmou ter compreendido a solicitação. Numa linguagem muito cortês pediu aos dois fregueses que esperassem até que o animal tivesse sido embalado para o transporte. Depois disso desapareceu nas profundezas do seu ambiente vital vermelho, luminoso.

Thekus virou-se.

— Atenção! — cochichou. — Alguém está chegando.

No mesmo instante abriu-se a porta que ficava na extremidade oposta do corredor. Por alguns segundos, a luz forte do dia penetrou no ambiente. Ron viu perfeitamente os contornos de quatro homens que entraram apressadamente.

Estavam com os braços estendidos e seguravam armas.

 

Ron não hesitou nem sequer uma fração de segundo.

Tirou a mão do bolso e apontou a pequena arma de radiações para os vultos que distinguia na escuridão do corredor. Um raio finíssimo e ofuscante saiu do cano. Lá adiante alguém soltou um grito forte.

Thekus desviou-se para o lado e comprimiu o corpo contra a parede de vidro. Ron saltou para o lado oposto. Thekus não possuía arma e Ron tinha suas dúvidas de que seria capaz de rechaçar os inimigos com a pequena arma de radiações que trazia na mão. O lugar parecia ser especialmente feito para um ataque de surpresa. Não deveriam ter demorado tanto nessa loja.

Uma salva em leque atravessou a penumbra do corredor. Dirigia-se para a frente, sem ferir Thekus ou Ron. Mas atingiu a parede de vidro atrás da qual nadavam os preciosos animais de Laurel. Não chegou a derretê-la totalmente. O tiro fora muito breve. Mas o próximo tiro romperia o vidro, e se isso acontecesse seria o inferno. Nesse caldo vermelho com seus componentes tóxicos, um ser humano não conseguiria manter-se vivo nem pelo tempo necessário para que o líquido o arrastasse para fora da loja.

Ron respondeu ao tiro em leque. Ouviu-se mais um grito. Depois disso o inimigo atacou em cheio. De repente uma sombra saiu da penumbra, bem à frente de Ron. Este virou o corpo para o lado e absorveu o impacto com o ombro. O atacante desconhecido foi atirado para trás e caiu ao chão. No mesmo instante, Ron precipitou-se sobre ele e desferiu-lhe um forte golpe. Ron por sua vez recebeu uma pancada na parte traseira do crânio, que o deixou inconsciente por alguns segundos. Sentiu-se cair ao chão e percebeu que os ruídos se transformavam num murmúrio surdo e distante.

Quando voltou a raciocinar, tudo havia passado. Ergueu o corpo e viu um vasilhame cúbico transparente cheio de líquido vermelho no chão de vidro, bem à sua frente. O mocoqui adquirido por Thekus boiava nesse liquido. Ao que parecia, o mercador não se interessara pelo incidente.

Thekus estava encostado à parede. Segundo parecia, nada lhe acontecera. Lançou um olhar atento para Ron.

— O que houve? — perguntou este.

— Parece que quiseram pegar-me — respondeu Thekus. — Um deles deve ter sido atingido gravemente pelos seus disparos. Só três conseguiram entrar. Você derrubou um deles, quando o outro lhe pegou por trás. O terceiro estava prestes a precipitar-se sobre mim, mas justamente nesse instante o chão abriu-se e um mecanismo automático trouxe o recipiente com o mocoqui. Parece que o terceiro atacante se assustou com isso. Gritou alguma coisa para os outros e todos saíram correndo. Levaram o ferido.

Ron refletiu sobre o incidente e sacudiu a cabeça. Parecia absurdo. Por que três conspiradores que pretendiam seqüestrar um almirante haveriam de assustar-se com um pequeno mocoqui?

— Realmente não tentaram fazer-lhe mal, sir? — perguntou Ron.

— Não. Ao menos não tive essa impressão. O homem que me atacou guardou a arma antes de sua investida.

Ron percebeu que cometera um erro. O seqüestro do almirante combinava perfeitamente com o plano de Nike Quinto.

Desejava-se que o almirante fosse seqüestrado, O almirante-robô trazia consigo pequenas unidades de intercomunicação, que podiam ser ativadas a partir da escrivaninha de Nike Quinto. Dessa forma Nike Quinto descobriria quem eram os seqüestradores e quais eram suas intenções. Se Ron tivesse percebido que a ação desenvolvida na loja do laureliano só visava a um seqüestro, teria apenas esboçado uma defesa simulada. Acontece que os homens haviam entrado com as armas apontadas para ele. Tudo levava a crer que se tratava de uma segunda tentativa de assassinar o almirante.

E era claro que a segunda morte de Thekus atrapalharia todos os planos de Nike Quinto.

O laureliano voltou a grudar-se à parede de vidro.

— Pelo que vejo, tudo acabou bem — disse a voz mecânica. — Ainda bem que meu aquário não foi danificado. Seu mocoqui está no chão, à sua frente, excelência. Gostaria de pedir-lhe...

Thekus confirmou com um gesto e dirigiu-se ao lugar em que estava o recipiente de vidro. Pôs a mão no bolso e tirou o talão de cheques. O preço do animal estava marcado no recipiente. Thekus preencheu uma ordem de pagamento com a quantia correspondente, arrancou-a do talão e colocou-a no chão, junto ao recipiente. Uma área quadrada de soalho desapareceu, deixando para trás um buraco escuro. Dali a algum tempo a placa de vidro voltou. Estava vazia.

No mesmo instante, a voz do laureliano começou a soar no alto-falante.

— Fico-lhe muito grato, excelência. Peço-lhe que em breve me dê novamente a honra de sua visita.

Thekus fez um gesto de cumprimento. Ron pegou o recipiente com o mocoqui, e os dois se retiraram.

 

Na primeira oportunidade Ron, que se encontrava no interior do carro, entrou em contato com o Coronel Quinto.

Nike Quinto ouviu a história e deu suas instruções:

— Volte para a casa de Thekus. Meech e eu estaremos à sua espera.

Ron transmitiu a instrução a Thekus. Este introduziu o endereço de sua residência no dispositivo automático. O veículo foi colocado em movimento. Instantes depois pousou à frente da casa afunilada de Thekus. Este pagou o aluguel do carro. Desceram e despacharam o veículo e este, subindo acima das árvores, desapareceu na direção oeste.

Thekus abriu a porta, usando uma chave que continha um código. Deixou que Ron, que segurava o pesado recipiente, passasse à sua frente. De repente uma voz disse:

— Queiram entrar no elevador número três.

Ron estremeceu. A voz era de Quinto. Este procurara disfarçar, mas não havia dúvida de que a voz era dele. Quais seriam as intenções do coronel?

Ron saltou para o elevador número três, seguido por Thekus. Desceram na altura do quinto andar, atravessaram a varanda e entraram no aposento do qual duas horas antes Ron chamara o táxi. Mais precisamente, pretendiam entrar no aposento.

Alguém desligara as luzes e fechara as cortinas das janelas que davam para a varanda. O aposento estava completamente às escuras. Ron hesitou um pouco.

Naquele instante, alguma coisa segurou-o com uma força tremenda pelo ombro e atirou-o para o lado. Ron, que segurava o recipiente com o precioso animal, não conseguiu amortecer a queda. Caiu ruidosamente e perdeu alguns segundos para pegar o recipiente e colocá-lo em lugar seguro.

Depois levantou-se de um salto. Uma luminosidade ofuscante surgiu nos fundos do aposento. Ron estremeceu e entesou o corpo. Acreditava que iria sentir a dor penetrante do impacto, mas não foi atingido. Em compensação uma forte luminosidade surgiu na extremidade oposta do aposento. Por uma fração de segundo, Ron distinguiu os contornos do robô que desempenhava o papel de Thekus. Viu suas vestes preciosas pegarem fogo e o metal plastificado que formava a armadura do corpo derreter-se.

Sentiu uma terrível raiva. Tirou sua arma e apontou-a para o lugar do qual viera a luminosidade ofuscante que vira antes de Thekus ser atingido.

Não chegou a atirar. Uma voz penetrante gritou:

— Não faça isso, sir! Guarde a arma! Ron estacou em meio ao movimento. A voz era de Meech Hannigan. Meech estava parado na escuridão. Por quê...?

Lá no outro canto, Thekus estava reduzido a um montículo incandescente e fumegante de peças derretidas de metal plastificado. O calor e o mau cheiro enchiam o recinto. Por que Meech permitira a destruição de Thekus?

A luz voltou a acender-se. Bem nos fundos do aposento, Nike Quinto estava de pé, com a pesada arma na mão. Meech Hannigan encontrava-se junto à porta, atrás de Ron.

Ron fitou Meech e Quinto e baixou a mão que segurava a arma.

— Já não entendo mais nada — balbuciou.

 

Nike Quinto aproximou-se.

— É simples — disse sua voz aguda. — O inimigo usou nosso truque contra nós.

Ron ainda não estava compreendendo. Nike Quinto parecia notar.

— Não mantivemos os aparelhos sob observação, enquanto o senhor estava andando por ali com Thekus — explicou. — Por que haveríamos de fazer isso? Afinal, o senhor andava de olho no almirante. Mas no momento em que o senhor entrou em contato conosco para relatar o estranho incidente na loja, começamos a desconfiar.

Procuramos entrar em contato com Thekus. E conseguimos. Apenas, Thekus já se encontrava a bordo de uma espaçonave que se dirigia para Árcon II.

Ron contemplou os destroços fumegantes. Ainda não compreendera.

— O que... o que vem a ser isto? — perguntou em tom hesitante.

— Trata-se de outro robô que o inimigo colocou a seu lado, em substituição ao Almirante Thekus.

Por alguns segundos Nike Quinto observou a reação de Ron. Depois soltou uma estrondosa gargalhada.

E mesmo depois que já haviam saído da casa de Thekus e tinham voltado à residência dos “médicos”, Nike continuava rindo. Por enquanto Ron não achava a situação tão engraçada assim. Achou que desempenhara um papel muito triste. Mas, depois de algum tempo, compreendeu por que Nike Quinto achava aquilo tão engraçado.

Para enganar o inimigo desconhecido, haviam substituído o Almirante Thekus por um robô. E o inimigo, por sua vez, seqüestrara o almirante robotizado e colocara um robô ao lado das pessoas que o vigiavam, a fim de ganhar tempo.

A troca fora realizada na loja do setor leste. Ron lembrou-se de ter ficado inconsciente por alguns segundos. E esses segundos foram suficientes para que os atacantes se apoderassem do verdadeiro robô, que deveria desempenhar o papel de Thekus, e o substituíssem por uma falsificação.

Até ali tudo compreendido.

“Resta saber se o inimigo tem conhecimento de que acaba de seqüestrar um robô. Em caso afirmativo”, pensava Ron, “podemos dizer que nosso plano fracassou.”

Será que a esta hora o inimigo já saberia que o verdadeiro Almirante Thekus estava morto e que nem mesmo a “habilidade dos médicos” terranos conseguira ressuscitá-lo? Seu verdadeiro objetivo consistira em eliminar Thekus. E o inimigo não mais incomodaria se soubesse que o novo Thekus não passava de um robô. Isso significava que não deixaria mais nenhuma pista. Se isso acontecesse, o Coronel Quinto e seus homens poderiam arrumar as malas e voltar para casa. Não encontrariam mais nada.

Ron discutiu o assunto com Nike Quinto.

— Procure raciocinar logicamente — pediu Quinto. — Não houve nada que pudesse ser interpretado por nossos inimigos como um sinal evidente de que Thekus na verdade é um robô. O simples fato de ter feito todo esse esforço para seqüestrar o almirante prova que por enquanto não desconfiam de nada.

— Mas interrogarão Thekus, não é verdade? — ponderou Ron. — Pretendíamos transformar a ressurreição numa situação tal que o inimigo nunca mais tentasse matar Thekus. Desejávamos provocar a curiosidade do inimigo. Queríamos que se interessasse pela maravilha médica. Tudo isso para que seqüestrasse Thekus em vez de matá-lo. O seqüestro nos apontaria a pista do inimigo. A idéia básica foi esta.

— E daí? — perguntou Nike Quinto, em tom de espanto.

— Pois está na hora. Thekus foi seqüestrado. A primeira coisa que o inimigo fará com ele será mandar examiná-lo por alguns médicos muito competentes. Estará interessado em saber de que forma um morto pôde ser chamado de volta à vida. Independentemente do aspecto político, qualquer pessoa gostaria de conhecer esse segredo. Quando começarem a cortar Thekus, a fazer radiografias e... a desmontá-lo, não demorarão a descobrir o que há de errado com ele.

Nike Quinto acenou com a cabeça. Parecia pensativo. De repente levantou-se.

— Venha comigo — pediu, dirigindo-se a Ron.

Atravessaram o aposento e entraram em outro no qual estava instalada uma série de instrumentos que ligavam a casa à residência de Thekus e em certo grau com o próprio robô. No aposento reinava uma semi-escuridão. As escalas luminosas dos instrumentos eram as únicas fontes de luminosidade. Ron viu a sombra de Meech Hannigan mover-se na penumbra.

Nike Quinto ficou em pé atrás de Meech.

— E agora? — perguntou.

Meech apressou-se em responder com a voz indiferente:

— Vai saindo aos poucos do campo de alcance dos nossos instrumentos, sir. O veículo que o conduz encontra-se nas proximidades de Árcon II. Parece que se prepara para pousar.

— Há algum indício de alguma atividade especial?

— Não se nota nada, sir. Depois que o prenderam ninguém o incomodou.

Nike Quinto parecia satisfeito. Fez um gesto com a cabeça, virou-se e voltou a sair. Ron seguiu-o.

— Veja só — disse Nike Quinto depois que se haviam retirado. — Por enquanto não foi molestado. O pouso demorará pelo menos uma hora. Antes de ocupar-se com ele, querem colocá-lo em lugar seguro.

Ron não compreendia onde o coronel pretendia chegar. Manteve-se em silêncio.

— Podemos ter certeza de que o interrogatório, ou o exame médico, não começará antes de duas horas a partir de agora. E até lá espero encontrar-me suficientemente próximo ao local para poder influenciar o curso dos acontecimentos.

— O senhor pretende voar para Árcon II? — perguntou Ron, em tom de espanto.

— Eu? — disse Nike Quinto, sacudindo a cabeça e fazendo-se de zangado. — Nós voaremos.

 

A pequena nave viajava de um dos planetas centrais arcônidas para outro. Mantinha-se enfileirada na corrente ininterrupta de naves robotizadas que ligava um planeta ao outro. Com isso evitava o risco de ser chamada por algum veículo especial tripulado. Além disso, as naves automáticas representavam um fato tão corriqueiro que ninguém lhes dava atenção, nem mesmo as estações de guarda de superfície de Árcon I e Árcon II que velavam pela segurança do transporte robotizado.

Havia cinco homens a bordo: um prisioneiro, um homem gravemente ferido e outro levemente ferido e dois outros que gozavam tanto de saúde como de liberdade. Um deles controlava o vôo. O outro encontrava-se num pequeno compartimento contíguo à sala de comando, onde supervisionava alguns instrumentos. O homem levemente ferido estava sentado a seu lado.

Haviam desligado as luzes e examinavam uma pequena tela de imagem. Uma paisagem coberta de parques desfilava em seqüência rápida. A paisagem estava emoldurada por barras de metal plastificado. Evidentemente estava sendo fotografada da cabina de um carro-voador. Às vezes a imagem girava e o interior do veículo tornava-se visível. Nessas oportunidades enxergava-se um homem louro, de ombros largos, confortavelmente recostado na poltrona, parecendo refletir sobre alguma coisa.

O homem à frente da tela de imagem fez um sinal para seu companheiro que sofrerá leves ferimentos.

— Não está desconfiando de nada — disse em voz baixa, usando a língua arcônida.

— Não; caiu no nosso truque.

De repente o quadro sofreu uma modificação total. Ao que parecia, o carro-voador descia em direção ao ponto de destino. Uma casa afunilada muito alta e larga surgiu à frente do veículo. O homem louro desceu. A imagem do interior do carro permaneceu na tela por mais alguns segundos. Finalmente as travessas metálicas da cabina foram ficando para trás. O “homem” que carregava a objetiva também acabara de descer. Ao que parecia, permaneceu imóvel por um instante. O aparelho captou a imagem do carro automático que foi subindo e se afastou por cima das árvores.

O homem louro, que carregava um recipiente cheio de líquido vermelho, entrou na casa. Os dois homens que observavam a tela viram a porta ampla aproximar-se e depois disso tiveram uma visão ligeira da ante-sala da casa afunilada. Ouviram uma voz estranha, muito aguda, mas não entenderam o que dizia. Usava uma língua desconhecida.

Um dos homens que não estava ferido começou a inquietar-se.

— Precisamos ouvir isso — disse. — Quero saber o que foi dito.

A imagem de um poço de elevador antigravitacional surgiu à sua frente. O louro e a “pessoa” que carregava a objetiva foram subindo pelo mesmo. Seguiu-se um terraço e, para além, viram as plantas do jardim. Nos fundos do terraço havia uma porta. O louro abriu-a e entrou.

De repente os acontecimentos passaram a desenrolar-se muito depressa. Os dois observadores viram o louro cambalear e cair de lado. Não puderam ver a causa. Atrás da porta reinava uma escuridão total. A “pessoa” que carregava a objetiva parecia não se incomodar com isso. Prosseguiu na sua caminhada.

— Pare aí, seu idiota! — gritou um dos observadores, em tom muito exaltado.

Acontece que esse observador não tinha a menor influência sobre os acontecimentos. A objetiva atravessou a porta, e a tela escureceu. É bem verdade que só escureceu por alguns segundos. De repente uma luz ofuscante surgiu no meio da escuridão. Por alguns instantes, um verdadeiro fogo de artifício chiou na tela. Dali a pouco não havia mais nada, apenas faixas coloridas tremiam e dançavam, indicando que do outro lado da linha não havia mais nada que pudesse captar e transmitir imagens.

O homem que estava sentado à frente do receptor levantou-se de um salto.

— Caramba! — disse em tom furioso. — Quer dizer que acabaram...!

Empurrou a poltrona para trás, virou-se abruptamente e com mais três passos colocou-se na escotilha que dava para a sala de comando. A escotilha reagiu à sua presença e abriu-se automaticamente.

— Arfar! — gritou o homem. — Eles descobriram.

Um arcônida alto e magro estava sentado à frente do painel principal de controle. Virou-se um pouco mais calmamente do que exigiria a notícia alarmante.

— Como? — perguntou.

— Não tenho a menor idéia. Abateram o robô a tiros.

Arfar examinou os instrumentos. Parecia sentir-se satisfeito com a maneira pela qual as linhas coloridas atravessavam as telas verde-claras, reunindo-se em travessas grossas e voltando a separar-se. Levantou-se.

— O piloto automático pode assumir por algum tempo — disse. — Quero ver a gravação.

Acompanhando a pessoa que acabara de chamá-lo, dirigiu-se à pequena sala contígua. O homem ferido continuava sentado à frente do receptor, e os traços coloridos e trêmulos ainda brincavam na tela. Arfar contemplou-os por algum tempo. Finalmente desligou a pequena tela de imagem, comprimiu alguns botões num painel e pôs-se a esperar. O receptor voltou a funcionar. A transmissão, que fora gravada em VT, poderia ser exibida a qualquer momento. Arfar viu a mesma coisa que seus companheiros haviam observado poucos minutos antes.

No ponto em que a voz estranha soou na ante-sala da casa afunilada, Arfar parou a fita. Fez retorná-la e voltou a ouvir as palavras.

— É claro que está falando em terrano — constatou. — Alguém disse: “Queiram entrar no elevador número três.”

— Em terrano? — repetiu um dos seus companheiros. — Quem pode ter sido?

Arfar parecia pensativo.

— Os agentes da Terra estão em toda parte — disse em voz baixa. — É bem possível que já os tenhamos visto em algum lugar. Talvez sejam membros da embaixada terrana.

Ao que parecia, aquilo não o inquietava muito.

— Isso não o deixa muito preocupado, não é? — perguntou o homem que não estava ferido.

Arfar fez um gesto com a mão esquerda.

— Não. O que importa é o fato de Thekus estar em nosso poder; e naturalmente também o de não saberem para onde o levamos.

Fez um gesto e voltou à sala de comando. Parecia satisfeito.

 

No último instante, Nike Quinto modificou seus planos. Um novo fator de suspeita acabara de aparecer. Em virtude disso, Ron Landry não se encontrava a caminho de Árcon II, conforme acontecia com Nike Quinto e os outros homens que o acompanhavam naquela operação. Protegido pela escuridão da noite, aproximava-se do grande centro, onde ficava a garagem dos carros automáticos daquele distrito.

Era a primeira vez que Nike Quinto dera apenas algumas instruções vagas. Estava com pressa. A última coisa que disse foi:

— Sei que não posso fazer muita coisa pelo senhor, Landry. Só posso oferecer-lhe algumas suposições. De qualquer maneira, peço-lhe que faça algo pela minha pressão! Mantenha-a baixa, comportando-se como um homem inteligente.

Era um gesto típico de Nike Quinto. Equipado com esses conselhos, Ron Landry deveria descobrir qual era o funcionário da garagem que colocara um aparelho de escuta no carro-voador, usado no passeio que ele e Thekus haviam dado na tarde daquele dia.

Depois de ligeira reflexão concluíram que evidentemente esse aparelho existia. O ataque na loja do mercador laureliano fora desfechado cerca de uma hora depois do momento em que o carro levantara vôo à frente da casa de Thekus. A viagem dali até a área de estacionamento, situada junto às lojas do setor leste, consumira cerca de quinze minutos. Ron e Thekus haviam levado meia hora para atravessar as multidões de consumidores. Finalmente entraram na rua secundária e dirigiram-se à loja do mercador de Laurel. Se não existisse o aparelho de escuta, o inimigo só poderia saber nesse instante em que lugar poderia desfechar seu golpe. Acontece que o ataque fora realizado dez minutos depois disso. Portanto, devia-se concluir que a conversa entre Thekus e Ron fora captada antes do início da viagem, ou que o endereçamento em código, fornecido por Ron, fora ouvido por alguém, a não ser que se quisesse admitir que o inimigo mantinha seus homens preparados para o ataque, em todos os pontos de Árcon ao mesmo tempo.

Estas elucubrações levavam a uma afirmação: alguma pessoa que se encontrava no centro de distribuição havia preparado o veículo.

Quem era o homem? E que informações sobre o inimigo invisível poderia fornecer?

Ron guardara seu veículo a quinhentos metros do centro. Pretendia informar-se discretamente sobre o movimento na gare, antes de dar o passo seguinte.

Faltavam algumas horas para a meia-noite. O movimento no centro era bastante intenso. Constantemente chegavam os chamados de veículos, vindos de todos os lados. Ron viu carro após carro sair das longas fileiras de garagens, erguer-se do solo e desaparecer na escuridão. As garagens eram boxes escuros que tinham exatamente o tamanho necessário para abrigar um veículo. Não havia portas. Esses boxes estavam dispostos em filas duplas, com cerca de cem abrigos de cada lado da fila. Ron contou cinqüenta filas duplas, que se dispunham num pavimento asfaltado e liso que nem um campo de pouso espacial. Não era um terrano muito propício para quem desejava aproximar-se sem ser notado.

Ron ficou observando por meia hora. Do ponto em que se encontrava, via as extremidades de cinco filas duplas de boxes. Era um total de aproximadamente oitenta garagens. Durante essa meia hora notou apenas duas vezes um robô atravessar o espaço situado entre duas filas, tirar um carro da garagem, trabalhar nele por alguns minutos e recolocá-lo no interior da mesma. Provavelmente tratava-se de pequenos defeitos que tinham de ser reparados imediatamente.

Talvez o carro-voador utilizado na tarde daquele dia tivesse sido preparado dessa maneira. Para isso só se precisava de um robô disposto — e todos estariam — e de um ligeiro movimento de mão.

Ron constatou que em cima das garagens havia letreiros. Os que conseguia ler eram designadas por A 82, A 84, A 86, B 91, B 93. Outros traziam as letras C, D ou E. De repente lembrou-se de que o carro no qual saíra juntamente com Thekus trazia a indicação G 1. Ao que parecia, as garagens assinaladas com algarismos baixos ficavam na extremidade oposta da área. Ron calculou haver algum edifício destinado às atividades administrativas. Não era possível que o serviço do centro fosse executado exclusivamente por robôs. Sempre existia um chefe orgânico atrás dos mesmos. Talvez esse edifício ficasse do outro lado, onde se erguiam as garagens de números baixos.

Ron teve uma idéia. Abandonou seu posto de observação, dirigiu-se ao seu carro e contornou o centro de distribuição de táxis num círculo bem amplo. Finalmente aproximou-se, vindo do oeste. Antes de chegar à área asfaltada, viu que tivera razão. Um edifício longo, cujas janelas estavam fortemente iluminadas, estendia-se em sentido perpendicular às filas de garagens. Ron reconheceu as caixas de controle dos minicomputadores e viu as sombras humanas que deslizavam lá dentro. Por lá ainda se trabalhava, e era possível que uma das pessoas no interior do edifício soubesse o que acontecera com o carro G 1 na tarde daquele dia.

Ron refletiu sobre como deveria proceder.

O tempo foi passando. Era uma hora da manhã quando a nave que deveria levar Nike Quinto para Árcon II decolou. Não podia perder mais tempo.

Saiu do seu esconderijo e foi caminhando em direção ao edifício da administração. De repente ouviu um ruído. Abaixou-se imediatamente e pôs-se a escutar. À sua esquerda, nos limites do campo asfaltado, havia alguns arbustos. Era de lá que vinha o ruído. Parecia um grande animal que tentava livrar-se dos galhos e espinhos. Ron esperou, prendendo a respiração.

Viu uma sombra que saía entre os arbustos. Tratava-se de um veículo; quanto a isso não havia a menor dúvida. Fascinado, Ron viu-o movimentar-se na horizontal, acelerar rapidamente e desaparecer na escuridão. No último instante notou, à luz das lâmpadas que iluminavam o campo do centro de distribuição, uma lâmina alta e estreita que servia de visor. Atrás dela havia uma luminosidade vermelha.

Ron ficou perplexo. Uma idéia passou pela sua cabeça. Logo a abandonou, mas a idéia voltou. Não conseguia livrar-se dela.

Saiu correndo. Era tão fácil ter certeza. Atravessou a saltos largos a área pavimentada que ficava entre o lugar em que se encontrava e a parede oeste do edifício. Ajoelhou-se e passou rastejando entre as fileiras de janelas. Vez por outra levantava-se rapidamente para olhar por uma das janelas. Atrás delas via recintos que no momento não o interessavam. Nelas havia computadores, escrivaninhas, aparelhos de registro e outras coisas semelhantes. O que lhe despertou a atenção foi o fato de que não descobria um único ser humano, pois há dez minutos observara uma atividade intensa no edifício.

Sabia que alguma coisa havia acontecido. Continuou a avançar por baixo das janelas. Finalmente encontrou aquilo que procurava.

Lançou um olhar rápido para dentro de um dos recintos. Era pequeno. A porta estava aberta, e atrás dela comprimia-se a multidão. Um homem de estatura média estava parado na porta e impedia a passagem com os braços. Ninguém poderia entrar no recinto, com exceção das três pessoas que já se encontravam no interior do mesmo.

Esses três eram: o homem parado junto à porta, um arcônida esbelto e de cabelos brancos, que estava de joelhos no centro da sala e um outro estendido no chão, com o rosto desfigurado e os olhos arregalados de pavor.

Esse homem estava morto; não havia a menor dúvida.

Sua cabeça jazia numa poça de líquido vermelho. Não era sangue. Era uma coisa vermelha e luminosa, que continha ácido sulfídrico, cloro e cianuretos.

 

Meio confuso, Ron fez meia-volta, entrou no carro e foi para casa.

Laurel ficava a quarenta mil anos-luz de Árcon e a sessenta mil da Terra. E a distância que separava a mentalidade dos laurelianos da dos arcônidas e dos terranos era ainda maior.

O que teria levado o mercador laureliano a matar o homem do centro de distribuição de táxis? Será que ele sabia de alguma coisa que tinha ligação com o assassínio de Thekus? Conheceria os homens que manipulavam as coisas? Será que o homem do centro de distribuição era um deles?

O que Ron conhecia a respeito dos laurelianos era muito pouco; no fundo, sabia tanto quanto os outros. Eram admirados pela sua lealdade. Nunca haviam participado de qualquer ação hostil ao governo. Por que então?

Ron sacudiu a cabeça e desistiu de pensar sobre isso. Ainda faltavam cinqüenta minutos para a decolagem da espaçonave. Deveria estar a bordo pelo menos dez minutos antes. Ainda dispunha de quarenta. Só dera a volta para ir a sua residência porque queria levar o mocoqui. O animal era muito caro e não poderia deixá-lo abandonado à morte.

Deixou o carro com o motor parado junto à ponta da casa afunilada e subiu ao pavimento onde ficava seu quarto. O recipiente com o mocoqui estava no chão, ao alcance de suas mãos. O mocoqui nadava alegremente no liquido vermelho.

Quando o intercomunicador emitiu um zumbido, Ron fechou a mão em torno do cabo do recipiente. Refletiu por um segundo sobre se deveria responder ao chamado. Soltou o recipiente, foi até a mesa e ligou o aparelho.

Ficou perplexo ao ver a pequena tela, na qual não surgiu nenhuma imagem. O campo de visão ficou cheio de um vermelho brilhante. Antes que tivesse tempo de descobrir o que significava isso, uma voz indiferente começou a falar:

— Fiz um pequeno trabalho para o senhor, terrano. Espero poder prestar-lhe mais ajuda.

Ron estremeceu. Conhecia aquela voz produzida por um aparelho, mais precisamente, por um conversor de línguas. E o conversor devia ser um modelo antigo ou de qualidade inferior. Já ouvira a fala saída desse aparelho em outra oportunidade.

Na loja do mercador de Laurel!

— Pode falar — respondeu Ron. — Estou ouvindo.

— Hoje de noite o senhor chegou um pouco antes da hora — prosseguiu a voz. — Cheguei antes do senhor. Acho que foi melhor. De qualquer maneira, tenho certeza de que não poderia ter feito nada. Como faria para encontrar o homem que procurava no meio de tantos outros?

Ron respondeu com outra pergunta.

— Como foi que o senhor conseguiu encontrá-lo?

— Os nativos de Laurel têm algumas faculdades especiais. No momento em que esse homem entrou em minha loja, pensava com uma sensação de alívio em como a instalação do aparelho de escuta no seu táxi fora coroada de êxito. Compreendo uma coisa dessas sem a menor dificuldade. E basta conhecer a estrutura dos impulsos mentais para compreender que não tive a menor dificuldade em descobrir que fora ele mesmo que montara o aparelho de escuta. Ron ficou surpreso.

— Quer dizer que o homem que trabalhava no centro de distribuição de táxis participou pessoalmente do ataque?

— Naturalmente. Se não fosse assim, como poderia reconhecê-lo?

Ron hesitou.

— Espere aí — disse depois de algum tempo. — Não compreendo. Como poderia...?

— No momento do ataque, eu não estava presente — interrompeu-o a voz. — Acontece que meus mocoquis nadavam nas proximidades das vidraças. Viram os intrusos e depois apenas tive de olhar os rostos que imitaram para obter uma imagem exata dos atacantes. É claro que vi quatro rostos. Não sabia qual deles pertencia ao homem que procurava. Por isso dirigi-me ao centro de distribuição de táxis e fiquei observando por algum tempo. Minha memória é muito boa. O resto foi fácil.

Ron ficou calado. Estava pensativo.

— Aliás, é bom que o senhor saiba de uma coisa — prosseguiu a voz. — Seu mocoqui também viu os atacantes. Numa das gavetas do recipiente onde ele está guardado, o senhor encontrará um alimento designado como Aa-Ki. Dê-lhe uma ração de quinze em quinze minutos, e ele começará a imitar os rostos que viu nos últimos dez dias. Talvez isso possa ajudá-lo.

— Obrigado — respondeu Ron, em tom distraído. — O senhor acaba de me dar um bom conselho. Mas...

— Pois não.

— Ainda não compreendi por que matou o homem.

— O senhor não acha que o fato de ter seqüestrado um almirante e tentado contra sua vida representa um motivo suficiente?

— Pra mim representa — admitiu Ron. — Mas para o senhor?

— Bem, tenho mais um motivo. Foi ele que atirou sem mais aquela contra a parede de vidro de minha loja. Nem se preocupou com o perigo que isso representava para mim.

Nesse instante, a luminosidade vermelha da tela apagou-se. Ron tinha mais uma pergunta na ponta da língua, mas era tarde. O laureliano não quisera revelar outros segredos...

 

O girino K 3605 possuía todo o equipamento de que Nike Quinto precisava para poder seguir o robô Thekus. Meia hora depois da decolagem, quando a nave se encontrava a duzentos mil quilômetros de Árcon II, Thekus voltou a chamar.

A situação parecia inalterada, com a única exceção de que Thekus não se locomovia mais. Fora levado da espaçonave a um lugar seguro. Nike Quinto providenciou uma imediata busca goniométrica provisória, que revelou que o esconderijo se localizava no hemisfério norte do planeta, mais precisamente, no setor 01-01110. Com isso, a área a ser vasculhada ficou restrita a um trecho de menos de cinco milhões de quilômetros quadrados, o que correspondia apenas a um cento e vinte e oito avôs de todo o planeta. E Nike Quinto poderia recorrer quantas vezes quisesse ao equipamento goniométrico, estreitando cada vez mais o círculo.

Nike Quinto introduzira ligeiras alterações em seu plano. Logo após a decolagem de Árcon I, incumbira o computador positrônico de bordo do girino da solução de certos problemas. Já dispunha dos resultados. O computador combinara a rota e a velocidade da nave inimiga com outros dados resultantes das observações e chegara à conclusão de que a liberdade de movimentos do inimigo era bastante reduzida.

À primeira vista parecia ser uma informação sem importância. Ao que tudo indicava os homens que haviam assassinado o verdadeiro Thekus e seqüestrado o falso pertenciam a uma organização clandestina, e para esta era de bom tom sofrer certa restrição na liberdade de movimentos. Mas o que não era sem importância era a informação do computador segundo a qual os autores do atentado não tinham praticamente nenhum elemento de apoio em Árcon II. O aparelho chegou a essa conclusão em virtude da cautela com que a nave inimiga se aproximara do planeta. Ao que parecia, em Árcon II não havia ninguém que estivesse disposto a ajudar um movimento revolucionário.

A nave inimiga deslocara-se em meio às naves robotizadas e saíra da fileira das mesmas quando se encontrava mil quilômetros acima do grande espaçoporto robotizado de Tourhathon. Fizera tudo para não ser localizada.

Face a esses dados, era fácil concluir qual seria a ação provável do inimigo nas próximas horas. Não permaneceria no lugar em que pousara pela primeira vez. Seria muito perigoso. Deixaria a nave parada e por bons instantes ficaria quieto a seu lado. Se não acontecesse nada, prosseguiria sua viagem depois de algum tempo. Desta vez iria por terra, em algum veículo que não despertasse desconfianças. Provavelmente a viagem seria interrompida várias vezes, para que o inimigo tivesse certeza de que não havia ninguém na sua pista. Só depois disso dirigir-se-ia ao esconderijo propriamente dito, para iniciar o interrogatório do prisioneiro ou seu exame clínico.

Nike Quinto tinha certeza de que algumas horas se passariam antes que isso acontecesse. Sabia que a lógica arcônida se guiava, em parte, pelas mesmas regras da terrana, e ele próprio não teria agido de outra forma. Havia um único fator de incerteza em seus cálculos. Era possível que, entre os autores do atentado, houvesse um não-arcônida, que se baseasse em alguma lógica desconhecida para tomar suas decisões.

A K 3605 pousou num anexo do porto espacial de Tourhathon. O imenso campo de pouso e decolagem das naves cargueiras robotizadas ficava a mais de cinqüenta quilômetros do local onde se encontrava o girino. Mas enquanto desciam da nave e durante a viagem de carro-planador, Nike Quinto e seus homens ouviram o rugido incessante dos motores das naves. O céu noturno estava profusamente iluminado pelo fogo dos jatos-propulsores.

O anexo-norte do porto espacial de Tourhathon tinha sua própria administração. Esta tinha seus escritórios numa série de edifícios baixos e compridos. Cabia às pessoas que trabalhavam ali manter o registro do tráfego de espaçonaves no porto de Tourhathon-Norte. Tratava-se de um porto espacial da frota de guerra arcônida, se bem que pouca gente sabia disso.

O carro-planador automático parecia conhecer perfeitamente o destino. Largou os passageiros à frente de um dos edifícios baixos. Assim que Nike Quinto saiu do assento, a porta larga do edifício, iluminada pelas lâmpadas solares, abriu-se e um homem alto que envergava o uniforme de almirante arcônida saiu pela mesma.

Aproximou-se de Nike Quinto. O coronel fez continência, mas o oficial estendeu-lhe a mão à maneira terrana e sorriu.

— Esqueça-se disso, meu caro — pediu. — Não sou seu superior, e o senhor não é meu subordinado.

Nike Quinto apertou a mão do outro. Seus companheiros já haviam descido do veículo. O carro-planador ergueu-se com um zumbido e desapareceu na escuridão. O almirante pediu aos visitantes que entrassem em seu escritório e a Nike Quinto que lhe relatasse o que havia acontecido em Árcon I. Vez por outra a curiosidade fazia brilhar seus olhos avermelhados.

— Isso é tão estranho que quase chega a ser inacreditável — disse depois de algum tempo. — Um almirante é assassinado no coração do Império Arcônida — balançou a mão de um lado para outro. — Aqui em Árcon II só ouvimos boatos a esse respeito. Não se percebe o menor sinal das atividades de uma organização clandestina.

Nike Quinto inclinou o corpo para a frente.

— O senhor está fornecendo uma descrição genérica da situação reinante em Árcon II, excelência... — principiou.

O almirante interrompeu-o com um gesto.

— Naturalmente. Já recebi minhas instruções — sorriu. — Na verdade, a atuação dos senhores proporcionou-me a honra de receber uma ordem pessoal de Sua Majestade, o Imperador. Fui incumbido de vigiar todo o tráfego espacial que se desenvolve acima deste planeta.

— E então? — perguntou Nike Quinto, muito curioso.

O almirante fez um gesto.

— Nada! Absolutamente nada! O tráfego é perfeitamente normal. Não se registrou nenhum vôo que não tivesse sido previsto.

Nike Quinto voltou a recostar-se na poltrona. Não deu mostras da decepção que acabara de experimentar.

— Os conspiradores agem com a maior cautela — confessou. — Provavelmente não será possível pegá-los com o equipamento normal.

O arcônida sentiu-se grato com a desculpa que lhe era oferecida. Nike Quinto procurou explicar por que viera apenas com três homens em vez de quatro, conforme fora anunciado. Pediu que, após identificar-se, Ron Landry fosse orientado e que lhe fosse cedido um bom veículo.

— Ainda não sei onde estaremos quando ele chegar — acrescentou com um sorriso meio embaraçado. — De qualquer maneira Vossa Excelência será mantido a par.

— Isso seria um favor — respondeu o almirante.

Nike Quinto trazia mais algumas perguntas na ponta da língua, mas não teve oportunidade de fazê-las. Pretendia indagar sobre o setor 01-01110, no qual Thekus fora localizado. Mas houve um imprevisto.

De repente um estranho zumbido agudo encheu o ambiente. Nike Quinto levantou-se de um salto e olhou para Meech Hannigan. Meech fez um gesto de assentimento e também se levantou. Larry Randall e Lofty Patterson levantaram-se nesse mesmo instante. O arcônida olhou em torno, perplexo.

— O que foi isso? — perguntou em tom de espanto.

— Precisamos sair, excelência — respondeu Nike Quinto, desviando-se da pergunta que acabara de ser formulada. — Será que podemos receber um carro?

O almirante mostrou-se muito solícito.

— Naturalmente — disse, inclinando-se para o lado e comprimindo um botão que ficava no painel de sua escrivaninha. — Quando chegarem lá fora, o veículo já estará à sua disposição.

Nike Quinto apressou-se em dizer algumas palavras corteses, enquanto seus. companheiros saíam. Num gesto tão rápido que o almirante não compreendia mais nada, virou-se e retirou-se.

O carro estava pronto, conforme prometera o arcônida. Larry Randall, Meech Hannigan e Lofty Patterson já haviam ocupado seus lugares. Nike Quinto acomodou-se no assento dianteiro. Assim que fechou a porta, o veículo colocou-se em movimento. Antes de Nike Quinto embarcar, alguém introduzira o endereço K 3605 no dispositivo automático.

— Caramba! — exclamou o coronel, em tom furioso. — Não pensei que fossem começar tão cedo a ocupar-se de Thekus.

 

Onze minutos antes da decolagem, Ron Landry e seu mocoqui subiram a bordo da nave que os levaria para Árcon II. Ainda não recebera nenhum chamado de Nike Quinto. Dali se concluía que, em Árcon II, a situação ainda não se tornara perigosa.

A nave utilizada por Ron fazia uma das linhas regulares mantidas pelo governo. Era pilotada por um robô. Ron teve a impressão de que este não faria nenhuma objeção, caso ele ficasse na sala de comando durante a viagem. Raramente tivera uma oportunidade de assistir ao funcionamento do sistema de pilotagem robotizada. A frota terrana não possuía naves robotizadas, com exceção das destinadas a fins experimentais. Ron sentiu-se fascinado com o clique dos relês, o zumbido misterioso dos instrumentos e o jogo de luzes fantasmagórico das lâmpadas de controle. As instalações da sala de comando permitiam que a nave também fosse pilotada por tripulantes orgânicos. A adaptação da pilotagem automática para a manual era realizada pela estação de superfície. A adaptação só poderia ser realizada pela própria tripulação se houvesse alguma falha na estação de superfície.

A nave decolou e acelerou rapidamente. Ron acomodou-se numa poltrona. Por algum tempo observou o comportamento misterioso do robô-piloto. Finalmente dedicou sua atenção ao recipiente onde estava guardado o mocoqui. Até parecia que o animal compreendia que alguém se interessava por ele. Nadou em direção à parede de vidro através da qual via Ron e transformou o corpo de modo a imitar o rosto deste. Ron esperou pacientemente. Por alguns minutos o mocoqui ficou com o mesmo formato do rosto do major. Depois este se desmanchou e seu corpo voltou a assumir a forma esférica. Ao que parecia, o mocoqui não estava com vontade de imitar outros rostos.

Ron examinou as sete gavetas embutidas num dos lados do recipiente e abriu a que trazia um letreiro com a palavra Aa-Ki. Na gaveta havia um pó cinzento inodoro.

Ron encheu uma medida do pó e introduziu-o na eclusa de alimentação que ficava na tampa do recipiente. Dali a alguns segundos a comporta interna abriu-se. O pó desceu para dentro do líquido vermelho. O mocoqui movimentou-se imediatamente. Por várias vezes atravessou a nuvem do pó que descia. Não se podia ver se abria a boca ou coisa que o valha, mas quando voltou a permanecer imóvel no ângulo inferior do aquário não havia mais sinal do pó.

Ron olhou para o relógio. Dali a quinze minutos daria outra ração de pó ao mocoqui. Lembrou-se de que o laureliano não lhe dera qualquer informação sobre a quantidade de alimento que deveria dar ao animal. Deveria prosseguir na alimentação até o momento em que o bicho começasse a imitar rostos? Ao que parecia o procedimento mais razoável era este.

Durante o vôo para Árcon II voltou a alimentar o mocoqui por sete vezes, mas não notou qualquer resultado. Até parecia que o animal se tornava mais preguiçoso com a absorção do alimento. Estava saciado. Foi a única reação que mostrou.

Durante os minutos consumidos no pouso, a viagem para os edifícios em que funcionava a administração do porto espacial de Tourhathon-Norte e as primeiras palavras trocadas com o almirante arcônida, Ron não prestou atenção ao mocoqui. Esqueceu-se de alimentá-lo. Prestou atenção ao conteúdo da fita em que o arcônida gravara a palestra com Nike Quinto.

Sabia que poderia confiar no almirante, já que este fora recomendado a Nike Quinto por Gonozal VIII em pessoa. Além disso, não podia perder tempo. Teria de entrar imediatamente em contato com o coronel. Não podia esperar que estivesse a sós e à vontade.

Levantou-se e com um gesto pediu desculpas ao arcônida. Ergueu o braço e comprimiu um botão que colocou em funcionamento o pequeno transmissor-receptor que trazia no pulso. Tanto o transmissor como o receptor funcionavam na base das hiperondas. Estavam regulados para a faixa de ondas que Nike Quinto reservara às comunicações urgentes com seus homens. Por isso não era de admirar que a voz aguda de Nike Quinto respondesse logo que Ron soltou o botão.

— Galinha choca vermelha chamando pinto número um — disse a voz rangedora, saída do receptor. — Responda, pinto número um.

— Pinto número um falando — respondeu Ron. — Solicito instruções, galinha choca vermelha.

— Anote. Zero um, zero um um um zero, traço, um, traço, zero, traço, um, traço, zero. Repito...

— Obrigado. Já anotei — interrompeu Ron. — Confirmarei...

Leu a série de algarismos que acabara de ouvir. Nike Quinto não notou qualquer erro.

— Aguardo-o quanto antes — disse, concluindo a palestra. — Desligo.

Ron examinou sua anotação. 01 01110-1-0-1-0. Pelo que sabia sobre a divisão da superfície de Árcon II em segmentos quadráticos, concluiu que tais algarismos designavam uma área de aproximadamente duzentos e sessenta mil quilômetros quadrados. Nike Quinto não poderia esperar uma área equivalente à da antiga Grã-Bretanha fosse ainda revistada. Enquanto examinava o bilhete, perguntou:

— Excelência, permite que formule um pedido? Onde poderei obter uma informação rápida sobre a maneira de localizar esta...

Não concluiu a frase. O arcônida, que se encontrava atrás dele, emitiu um som abafado. Ron virou-se abruptamente e viu que os olhos arregalados do almirante estavam pregados no recipiente onde se achava o mocoqui.

O animal começava a imitar rostos.

— Não... não é possível! — exclamou o arcônida, em tom apavorado. — É tão parecido. Onde será que ele o viu?

Ron fitou o mocoqui de lado. O rosto que mostrou era tipicamente arcônida: estreito, exibia uma testa alta e inteligente. Pelo que se lembrava, nunca vira esse rosto.

— Quem é? — perguntou, dirigindo-se ao almirante.

O almirante levou algum tempo para recuperar-se do susto.

— Carba...! — gaguejou finalmente. — Carba, da família dos Minterol.

 

Dali a meia hora o mocoqui morreu. Só imitara o rosto de Carba. Ron censurou-se amargamente. Provavelmente a alimentação que dera ao animal não fora adequada. O mocoqui ainda poderia fornecer-lhe indicações valiosas...

Todavia, era possível que o homem de Laurel quisesse evitar um envolvimento muito intenso na política arcônida. Fosse lá por que fosse, fizera um favor a Ron. Mas apenas isso bastava, e tomara suas providências para que o mocoqui morresse no momento certo.

Restava saber se Carba, da família dos Minterol, realmente participara do ataque na loja do laureliano. Era incrível que um membro de uma das famílias mais importantes do império se prestasse a um ato como este.

Nike Quinto recomendara muita pressa, mas Ron ficou algum tempo com o almirante, na intenção de que este lhe pudesse fornecer certas informações sobre Carba. A fonte de informações mais importante era o próprio almirante. Mas este não soube dizer nada sobre o paradeiro de Carba.

No entanto, foi fácil fazer uma ligação para Árcon I e perguntar discretamente a algum conhecido quais eram as últimas novidades sobre Carba.

A resposta foi muito interessante. Dela se concluía que o mocoqui devia ter visto Carba na loja do mercador de Laurel.

Em Árcon I, todos sabiam que Carba, o rebento de uma família muito rica, os Minterol, se encontrava há várias semanas numa viagem de inspeção pelos confins da Galáxia.

 

O conjunto de cifras 01 01110-1-0-1-0 designava um retângulo que media 720 quilômetros de comprimento e 360 quilômetros de largura. A maior parte desse retângulo era tomada pelo maior porto espacial de Árcon II, o campo de pouso e decolagem de Farthor. Só sobrava uma pequena nesga de terra. E nessa nesga, os depósitos enfileiravam-se um ao lado do outro.

A K 3605 estava pousada na extremidade norte do campo de pouso, a menos de quarenta quilômetros do lugar em que ficavam os depósitos. A escolha dessa distância chamou a atenção de Ron Landry. Era suficientemente pequena para que o girino pudesse atingir os depósitos por assim dizer num salto, e suficientemente grande para não despertar as desconfianças de quem porventura se encontrasse nos depósitos.

Ron tinha certeza de que, naquele instante, Nike Quinto concentrava sua atenção para o conjunto de depósitos. Será que o inimigo se refugiara nesse local? A idéia não seria nada má. Se receasse haver alguém atrás dele, esse perseguidor o procuraria em áreas mais afastadas. Era bem verdade que justamente em Árcon II se tornaria bastante difícil encontrar uma área afastada. Nestas condições seria um lance muito inteligente recolher-se justamente a um lugar bem movimentado.

Tomando este raciocínio como base, Ron estava certo de poder afirmar que o inimigo ainda não percebera que Thekus, o “almirante” aprisionado, não passava de um robô. Do contrário saberia que este mantinha contato ininterrupto com os homens que o controlavam, e sendo assim não haveria nenhum esconderijo que pudesse ser considerado seguro.

Eram estas as idéias que passavam pela mente de Ron, enquanto seu carro-planador passava junto ao limite bem iluminado do campo de pouso. O veículo podia locomover-se no solo ou no ar, e por isso não tinha direito ao uso do porto espacial propriamente dito. Ron pousou junto à fileira dos edifícios destinados à administração. Esses edifícios eram maiores e mais vistosos que os de Tourhathon-Norte, pois em Farthor também havia tráfego de passageiros. Mandou que o veículo voltasse para Tourhathon e dirigiu-se a uma série de guichês existentes no grande hall, a fim de obter um bilhete que lhe permitisse penetrar na área reservada ao campo de pouso. Perguntaram-lhe que nave pretendia visitar. Ron respondeu conforme a verdade, e uma consulta feita a Nike Quinto, que se encontrava a bordo da K 3605, confirmou que o hóspede seria bem-vindo.

O robô que ficava atrás do guichê preencheu a permissão que habilitaria Ron a visitar a nave. Ron tomou um dos ônibus aéreos, que se dirigiam à pista onde desejava chegar, e pediu que o deixassem a duzentos metros da K 3605. A nave trazia a iluminação regulamentar. Quinze minutos depois do momento em que mandara o carro-planador voltar para Tourhathon, Ron subiu à fita transportadora que levava do campo de pouso para a eclusa de entrada do girino.

Não foi recebido por ninguém. Atravessou os corredores nas fitas transportadoras e dirigiu-se à sala de comando, onde estavam reunidos Nike Quinto, Larry Randall e Lofty Patterson. Meech Hannigan não estava presente.

Assim que viu Ron, Nike Quinto levantou-se de um salto.

— Até que enfim! — exclamou. — Onde está o mocoqui... ou seja lá qual for o nome do bicho?

Antes de mais nada, Ron sentou-se. Depois iniciou seu relato. Nike Quinto não mostrou se as palavras o impressionavam. Só quem o conhecesse bem deduziria do vermelho cada vez mais intenso de seu rosto que as informações ouvidas o deixavam nervoso.

— Carba — disse depois de algum tempo. — Da família Minterol. Quem diria?

Virou-se abruptamente e fez um sinal para Ron.

— Venha! — ordenou.

Ron seguiu-o. Nike Quinto abriu uma escotilha que ficava numa parede lateral da sala de comando. Era tudo como poucas horas antes, na casa afunilada de Árcon I.

Sentado à frente de uma série de aparelhos, Meech Hannigan os observava com muita atenção. Dedicou seu interesse principalmente a um receptor de imagem de tamanho médio.

O quadro apresentado pelo mesmo era impressionante. Mostrou um grande recinto em forma de pavilhão, cuja extremidade oposta estava mergulhada na escuridão. Mais na frente havia uma espécie de arco voltaico que iluminava perfeitamente a cena que se desenvolvia no primeiro plano. Havia três poltronas em torno de uma mesa. Duas delas estavam ocupadas por homens que Ron nunca vira. Um deles era arcônida, enquanto outro pertencia a uma raça que Ron não conseguiu identificar no momento.

A terceira poltrona era ocupada pelo robô Thekus.

— É num desses depósitos — disse Nike Quinto num cochicho, a fim de não perturbar o trabalho de Meech. — Não sabemos exatamente qual é. De qualquer maneira, no momento seria inútil fazer alguma coisa. Talvez consigamos descobrir algo. A palestra mal começou. Por enquanto não apareceu nada de interessante.

O arcônida, que se encontrava à frente de Thekus, em posição lateral, inclinou o corpo para a frente. O receptor transmitiu uma voz contrariada:

— Assim não é possível, almirante. Trabalhamos juntos durante três anos e o senhor afirma agora que não me conhece.

Num gesto lento e compenetrado como convinha a um almirante, o robô virou a cabeça para o lado. Ron viu seu rosto de perfil. Parecia exprimir tédio e um pouco de nojo.

— Não sei o que o senhor espera ganhar ao duvidar da minha palavra — respondeu Thekus. — Não o conheço... nem o senhor, nem o outro seqüestrador que está aqui.

Entusiasmado, Nike Quinto deu uma pancada no ombro de Ron. Este ouviu-o fungar. Não compreendia o nervosismo do coronel. Thekus estava formidável. Encontrava-se numa situação perigosa. As pessoas com que se defrontava eram conhecidas do verdadeiro Almirante Thekus. Acontece que este levara sua memória para o reino dos mortos. Por isso o robô não dispunha das informações que lhe permitissem enfrentar a situação, sem recorrer a um estratagema.

— Quem sabe se a operação não afetou seu cérebro? — disse o terceiro homem. Falava um arcônida impecável. Não tinha nenhum sotaque que pudesse revelar sua procedência. — Acho que devemos examiná-lo, Arfar.

O arcônida chamado Arfar fez um gesto de desprezo.

— Isso será feito de qualquer maneira. Acontece que no momento não temos tempo. Além disso, aquilo que acaba de dizer é uma tolice. Ele sabe de tudo. Por que teria esquecido justamente nossas pessoas?

Ron estremeceu. Já ouvira muitas vezes o nome Arfar. Tratava-se de um militar de patente elevada pertencente à frota arcônida. Infelizmente nem Ron nem Nike Quinto haviam visto uma fotografia dele. Será que o homem que interrogava Thekus era o mesmo militar?

— Teste parênteses A parênteses dois barra dois oito vírgula dois barra dois oito vírgula três zero zero! — gritou Ron.

A ordem fora dirigida a Meech. Ron guardava na memória outros detalhes da programação de Thekus. O fato de transmitir a instrução destinada a Meech em linguagem cibernética positrônica representava uma economia de pelo menos meio segundo. Meech não precisaria fazer a tradução. E num interrogatório meio segundo representa muito tempo.

Na tela viu-se que Thekus inclinava a cabeça, como se ouvisse alguma coisa. Realmente estava ouvindo. Meech transmitiu-lhe a ordem. Thekus ativou outro setor de seu programa.

Era um estratagema grosseiro.

— Não venha me dizer — observou Thekus — que o senhor é o Arfar que administra os bilhões da frota arcônida, em nome de Sua Majestade!

Ao que parecia, Arfar já estava perdendo a paciência. Levantou-se de um salto. Possuía uma disposição espantosa para um arcônida.

— Agora chega! — gritou em tom furioso para Thekus. — O senhor me conhece; logo, sabe perfeitamente que Arfar eu sou.

A-0, decidiu a lógica positrônica. O teste não dera resultado. Mas o programa estava disposto em círculo, motivo por que Thekus retornaria ao comando primitivo. O número-índice tivera um crescimento igual a um. Teria de tentar outro truque.

— Sei que o senhor não pode ser o alto funcionário — disse com um sorriso. — Arfar, uma pessoa que infelizmente nunca vi, não é um homem capaz de envolver-se em atividades tão sujas.

Arfar estava bem à frente da poltrona em que Thekus estava sentado. Bateu ruidosamente com o punho cerrado no encosto da mesma.

— Deixe minha moral de lado! É preferível que cuide da sua!

A é maior que zero, concluiu o equipamento positrônico. O teste fora bem-sucedido. A expressão “minha moral” constituía o fator decisivo. O resto correu automaticamente. Nos dez minutos que se seguiram, todos os dados sobre o alto funcionário Arfar, de que se dispunha a bordo da K 3605, foram introduzidos na memória de Thekus. Isso representava mais do que o verdadeiro Thekus sabia a respeito do colega. Mas por outro lado faltavam certos detalhes, como por exemplo os que diziam respeito às atividades clandestinas de Arfar, que não estavam registrados em lugar algum.

Nike Quinto deu uma palmadinha no ombro de Ron.

— Foi um serviço bem-feito — disse num cochicho.

Ron espantou-se. Nike Quinto não costumava dar elogios.

A conversa refletida na tela prosseguiu. O não-arcônida manteve-se num silêncio quase total; apenas fez algumas observações ligeiras. A troca de palavras desenvolvia-se entre Thekus e Arfar. De qualquer maneira, descobriu-se que o terceiro homem se chamava Melaal, mas esse nome não revelava nada sobre sua origem.

Agora, que já sabia quem era o homem com o qual se defrontava, Thekus abandonou a atitude discreta. Era suficientemente hábil e lento para fazer com que Arfar, que desejava penetrar logo ao núcleo da questão, sempre se sentisse impaciente. O arcônida voltara a acomodar-se na poltrona. Muitas vezes interrompeu Thekus em meio às frases longas e bem estruturadas. As palavras que Ron conseguiu entender logo, independentemente de um exame prolongado da gravação em fita, deixavam claro que tanto Arfar como Thekus eram — ou já haviam sido — membros de um movimento revolucionário cujo objetivo consistia na reforma do Império de Árcon. O primeiro passo da reforma seria a deposição do Imperador Gonozal VIII. A conversa não revelou o que viria depois.

Mas outro detalhe sobressaiu nitidamente do diálogo. De repente Thekus abandonara o movimento. Ao que parecia, discordara não tanto dos objetivos, mas dos métodos usados pelos conspiradores e dera o fora, conforme disse Arfar, usando uma linguagem um tanto vulgar. Seria muito perigoso para os conspiradores que Thekus ficasse andando por aí, sabendo o que sabia. Por isso resolveram “cuidar dele”.

— O senhor ainda está com um pé na cova — advertiu Arfar, usando uma expressão pertencente à gíria terrana, que se tornara bastante usual em Árcon. — Nossos planos a respeito do senhor modificaram-se. Mas não se modificaram tanto que não sejamos capazes de eliminá-lo imediatamente, se voltar a desviar-se da rota correta. É bom que se acostume à idéia de que a esta altura é apenas uma figura secundária em nosso jogo.

Thekus fez um gesto amável, como se acabasse de receber um elogio.

— Diga logo — exigiu Arfar, em tom furioso — por que de repente ficou xucro.

Neste ponto Thekus cometeu um erro. Como robô que era, estava acostumado a ligar cada pergunta ao ponto precedente da discussão, se o sentido desta não fosse inequívoco. Além disso, para ele o sentido da frase era um só todo. Não julgava com base em palavras isoladas. Para Thekus, a palavra xucro referia-se ao comportamento que demonstrara durante a discussão. Em sua opinião, Arfar usara esse termo para designar a maneira pela qual se recusara a reconhecer seu interlocutor.

Por isso deu a seguinte resposta:

— Se eu reconheço ou deixo de reconhecer uma pessoa, isso é comigo. No seu caso resolvi não reconhecê-lo por enquanto. Será que lhe devo alguma coisa por isso?

Ron Landry prendeu a respiração. Era claro que com sua pergunta Arfar queria obter uma explicação sobre os motivos que levaram Thekus, de repente, a afastar-se do movimento revolucionário. E Thekus não compreendera a pergunta.

Mas o perigo passou. Arfar acreditou que, com sua resposta, Thekus quisesse esquivar-se mais uma vez e não deu maior atenção à mesma.

— Não é a isso que me refiro — disse, fazendo um gesto de desprezo para as palavras ditas por Thekus. — Quero saber por que resolveu abandonar-nos de uma hora para outra.

Ron também observava o homem que atendia ao nome de Melaal. Este não demonstrara nenhuma reação diante do erro que Thekus acabara de cometer.

Num gesto muito bem representado, Thekus levantou a mão e coçou o queixo.

— Ora — respondeu em tom hesitante — acho que já expliquei isso. Por que vou contar tudo de novo?

Arfar atirou os braços para cima. Revelava uma agilidade fora do comum para um arcônida.

— Quero que o senhor nos diga a verdade — gritou. — Não estou interessado em ouvir que o senhor não gostou da substituição dos membros da comissão de finanças e que acha que a revolução está em perigo, se as pessoas que terão de cuidar da parte financeira não forem bem escolhidas. Quero saber por que o senhor se retirou.

Thekus não respondeu. Naturalmente não sabia por que o verdadeiro almirante se retirara da conspiração. Sua hesitação produziu bons resultados.

— Não gosta das pessoas desconhecidas? — perguntou Arfar, numa tentativa de facilitar a resposta para o prisioneiro.

Ron teve sua atenção despertada por estas palavras. Os desconhecidos! Quem seriam eles? Será que havia não-arcônidas que ocupavam postos importantes no movimento revolucionário? Muito tenso, aguardou a resposta do robô, sem lembrar-se de que Thekus não poderia dar nenhuma resposta, já que não sabia o que se passara na mente do verdadeiro Thekus.

Os espectadores a bordo da K 3605 esqueceram-se por alguns segundos da verdadeira natureza da situação. Por instantes viram em Thekus o almirante da frota espacial que estava prestes a fazer uma revelação sensacional de suas idéias. Por instantes Thekus, o robô, desapareceu dos pensamentos daqueles homens.

E isso por pouco não leva à destruição do ser mecânico.

De repente o terceiro homem, Melaal, formulou uma pergunta que pegou todos de surpresa. Aliás, não a formulou. Inclinou-se para a frente e disparou-a contra Thekus.

— O que sabe a respeito de Belubal?

Thekus virou abruptamente a cabeça. Ron, que o olhava de lado, pôde ver seu rosto transformado numa máscara.

Era essa a armadilha que todos temiam!

Quem era Belubal?

Ron nunca ouvira esse nome. E Thekus não poderia recorrer à mesma jogada de dizer que não sabia nada. Essa atitude despertaria a desconfiança de seus interlocutores. Sem dúvida a revolução não escolhera os mais tolos dentre os conspiradores para interrogar o almirante.

Quem era Belubal? Ron daria um reino pela resposta correta.

A voz estridente de Nike Quinto fez-se ouvir ao lado de Ron.

— Chega! Vamos terminar com isso! Um desmaio.

Meech Hannigan cumpriu a ordem com a rapidez de um robô. Moveu uma chave. Ron ouviu um estalo.

A tela mostrou que Thekus amolecia em sua poltrona. Ficara “inconsciente”.

Saíram da sala em que haviam feito suas observações. Nike Quinto enxugou a testa banhada em suor.

— Quase houve um desastre — disse num gemido, — Santo Deus, minha pressão. Até parece que meu coração bate na cabeça — colocou a mão em cima do crânio. — Caramba! Afinal, quem é Belubal? — indagou em tom queixoso.

Larry e Lofty levantaram os olhos. Havia algumas folhas de papel à frente de Larry, que estava desenhando um diagrama para uma nova programação do robô. Lofty olhara por cima de seu ombro, para aprender alguma coisa. Os dois estavam curiosos para saber o que havia acontecido na outra sala, mas ninguém formulou perguntas.

— Não sei — respondeu Ron. — Acho que deveríamos consultar Árcon I.

Nike Quinto confirmou com um gesto. Fitou Larry.

— Randall, faça o favor de perguntar se nos fichários de Sua Majestade existe algum dado sobre Belubal. Peça uma ligação urgente, pois precisamos da informação dentro de alguns minutos.

Ron olhou para a porta da sala de observação, que voltara a fechar-se atrás dele.

— Meech está tomando conta? — perguntou. — Talvez resolvam chamar um médico.

Nike Quinto fez um gesto.

— Não se preocupe. Meech continuará no aparelho. Se chamarem um médico, o mesmo provavelmente apenas tomará o pulso de Thekus. E esse pulso funciona muito bem. Não acredito que um médico interessado em descobrir o motivo de um desmaio descobriria que Thekus é um robô. E é bem provável que eles não disponham de um médico justamente nesse depósito.

Ron vasculhou a memória, à procura de qualquer indicação que pudesse fornecer uma pista do misterioso Belubal. O nome não era arcônida. De onde vinha essa pessoa? E quais foram suas relações com Thekus?

— Quer saber uma coisa? Não gosto muito desse Melaal — disse Nike Quinto, interrompendo as reflexões de Ron. — É um sujeito traiçoeiro. Não me admirarei se alguém me disser que já descobriu quem é Thekus.

Ron não prestou muita atenção às suas palavras. Seus pensamentos ainda vagavam em torno do nome Belubal.

Quando a escotilha se abriu com um zumbido, não levantou os olhos. Só a voz estridente de Nike Quinto conseguiu despertar sua atenção.

— Por que abandonou seu posto, sargento?

Meech Hannigan encontrava-se na escotilha que dava para a sala de observação e fazia continência.

— Queira desculpar, sir — respondeu com a voz tranqüila. — No momento não há nada para observar. Os dois homens saíram do recinto em que está Thekus, e este continua inconsciente. Permite que eu faça uma observação?

Nike Quinto animou-o com um gesto.

— Comece logo, Meech!

— Como sabe, domino muitas línguas e dialetos. Já ouvi o nome Belubal e, se não me engano, sei a que dialeto pertence.

— A que dialeto? — perguntou Nike Quinto, em tom de espanto. — Em primeiro lugar gostaríamos de saber qual é a língua.

Meech não se perturbou.

— Na verdade, não se trata propriamente de um dialeto, sir. Costuma-se dizer que o arcônida oficial é uma língua; todas as formas de linguajar que tenham apenas alguma semelhança com o arcônida são consideradas dialetos. Nossos conhecimentos de Filologia deveriam ensinar-nos que essa concepção não é muito correta.

“Às vezes este sujeito é muito complicado”, pensou Ron, que começou a impacientar-se. Mas no mesmo instante deu-se conta do que Meech pretendia dizer. Uma onda de pavor tomou conta dele.

— Na verdade, nesse tronco lingüístico existe um idioma mais antigo que o arcônida — disse o robô, concluindo suas explicações. — E é a esse idioma que pertence o nome Belubal. Trata-se do acônida.

 

Por um instante todos se sentiram perplexos.

Os acônidas!

Eram os habitantes misteriosos do Sistema Azul, a raça da qual provinham os arcônidas e que hoje era uma inimiga do Grande Império.

Se os acônidas participavam da conspiração que se verificava em Árcon I, o perigo realmente era muito grave.

Nike Quinto resolveu não precipitar nada. A Terra teria de ser informada imediatamente. Mas não queria dar um alarma falso. Pediu que Meech Hannigan lhe explicasse de que forma interpretara o nome Belubal. Meech conhecia perfeitamente o dialeto acônida e os conhecimentos de Nike Quinto eram apenas suficientes para acompanhar sua exposição e compreender que Meech não se enganara. E seria mesmo bastante estranho que um robô se enganasse.

Concluiu que Belubal era um acônida que estava envolvido na conspiração. Nike Quinto redigiu um telegrama codificado a ser expedido para a Terra pela onda direcional e mandou que Meech voltasse ao seu posto. Dali a alguns minutos o telegrama foi irradiado. Sua recepção na Terra ocorreu quase no mesmo instante, sem que houvesse a menor possibilidade de que alguém pudesse captar a mensagem ou decifrar seu texto.

Nike Quinto suspirou aliviado. Acabara de livrar-se de um problema.

Meech Hannigan chamou pelo intercomunicador para avisar que o robô Thekus “recuperara os sentidos” e que os dois conspiradores haviam voltado.

Ron Landry e Nike Quinto retornaram aos seus lugares na sala de observação.

 

Melaal lançou um olhar penetrante para Thekus.

E Thekus desempenhava seu papel com uma perfeição absoluta. Seus olhos pareciam sonolentos, quando voltou a abri-los. Olhou em torno, confuso. Seus lábios mal e mal conseguiram balbuciar:

— Onde... onde estou?

Arfar agarrou os ombros de Thekus e levantou-o à força.

— O senhor está aqui! — disse em tom furioso. — Bem à minha frente.

Thekus fitou seu rosto com uma expressão de indiferença.

— O que me diz a respeito de Belubal? — berrou Arfar.

Era a mesma pergunta. Por enquanto Thekus só sabia que Belubal era um nome acônida. As investigações de Larry Randall ainda não haviam produzido nenhum resultado. Será que o simples conhecimento da origem lingüística do nome serviria para alguma coisa?

Ron inclinou-se para a frente e transmitiu a Meech uma instrução em linguagem programada positronicamente. A reação de Meech foi imediata.

Thekus, que aparecia na tela de imagem, deu uma risada.

— Belubal, o acônida — disse em tom distraído, como se só naquele instante se lembrasse do nome. — Que homem! — acrescentou em tom irônico.

— É um dos homens mais importantes do nosso movimento — gritou Arfar num acesso de fúria. — Se não fosse ele...

Ninguém chegou a saber o que aconteceria se os conspiradores não pudessem contar com o acônida Belubal. Houve um imprevisto.

Ouviram-se passos apressados, vindos da parte dos fundos do pavilhão. De início viu-se apenas uma sombra confusa projetada na tela. A sombra cresceu rapidamente. O homem que caminhava deslocava-se em direção ao hipercampo gerador de imagens irradiado por Thekus.

Finalmente penetrou no círculo de luz irradiado pelo arco voltaico. No mesmo instante foi reconhecido por Ron.

Era Carba, o membro da família dos Minterol!

Ron vira seu rosto uma única vez — quando foi imitado pelo mocoqui. Mas ninguém se esqueceria facilmente desse rosto, mesmo que tivesse visto apenas uma imitação. Agora exibia traços severos e marcantes, uma testa alta e um queixo enérgico. Era um rosto arcônida em toda linha, mas diferente dos rostos que a gente esperava ver nos arcônidas desses tempos de cansaço e decadência.

Arfar já estava de pé. Melaal levantou-se assim que reconheceu Carba.

— Temos que dar o fora — exclamou Carba, em tom de alarma. — Desconfio que os terranos estejam na nossa pista. Os médicos de Thekus desapareceram de sua residência há algumas horas. Talvez sejam agentes. Não podemos assumir riscos. De qualquer maneira teremos de ir para Kusma.

— Em que nave? — perguntou Arfar, confuso.

— A nave de vocês ficou em Tourhathon — respondeu Carba. — Pegaremos a minha. Decolaremos dentro de quinze minutos. A decolagem não poderá sofrer adiamento. Levem o prisioneiro e Minther, caso ele ainda não possa se locomover. Avisem Palor. Depressa!

Num movimento preciso, virou-se e desapareceu na escuridão. Nike Quinto entrou em movimento quase no mesmo instante. Quando a escotilha larga foi aberta, uma luminosidade forte vinda da sala de comando penetrou no recinto.

— Preparar para a decolagem! — gritou Nike Quinto.

Havia poucos preparativos. A K 3605 não havia desligado seus propulsores.

Larry Randall trouxe a notícia de que em Árcon I não havia ninguém que soubesse quem era Belubal. Nike Quinto mandou-o imediatamente de volta para o telecomunicador, a fim de que indagasse a respeito de um mundo chamado Kusma.

Enquanto Larry cumpria a ordem, os minutos arrastavam-se numa lentidão martirizante. Meech Hannigan era o único que tinha algo a fazer. Acompanhou o caminho seguido por Thekus e seus guardas. Constatou que o depósito possuía um acesso direto — e, portanto, ilegal — para o porto espacial. Thekus foi colocado num carro-voador, e dali a alguns segundos o veículo se encontrava acima do campo de pouso. Meech não demorou a descobrir que o destino da viagem só poderia ser uma certa nave, pois em torno da mesma o campo da teleobjetiva estava vazio.

Chamou o coronel. Seguindo sua programação, Thekus regulara o hipercampo gerador de imagens de tal forma que este envolvia o carro-voador, sem que houvesse qualquer interferência da carroçaria do veículo. Naquela hora da noite, o campo de pouso estava bem visível à luz ofuscante dos arcos voltaicos. As luzes coloridas de sinalização da nave apareciam ao longe. Nike Quinto procurou seu tamanho.

— É uma nave esférica — constatou.

Dez minutos depois que lhe fora confiada a tarefa, Larry Randall voltou da sala do telecomunicador.

— Nada, sir — anunciou. — Não se conhece este tal mundo chamado Kusma.

Nike Quinto fitou-o com uma expressão de surpresa.

— O quê? O mundo é desconhecido? Com quem foi que o senhor falou?

— Com o imperador em pessoa. Ele demonstra um interesse extraordinário pela operação que estamos realizando. Utilizou sua linha especial para consultar o registro do grande centro de computação positrônica, o antigo regente. E o nome Kusma não consta desse registro. Existe um mundo cujo nome é Korzama, mas é só isso...

Nike interrompeu-o com um gesto.

— Não, preciso é de Kusma e não de “só isso” — disse.

Dali a trinta segundos superou a contrariedade, que lhe trouxera a notícia, e falou:

— Carba e seus comparsas estão bem à nossa frente. Basta segui-los.

Ron sabia que Nike não dava a devida importância às dificuldades que teriam pela frente. A nave arcônida estava equipada com o sistema usual de propulsão por transições. Atingiria o destino por meio de saltos através do hiperespaço. Já a K 3605 possuía o propulsor linear, que representava a última novidade. Tal propulsor possibilitava à nave deslocar-se no semi-espaço a uma velocidade superior à da luz, sem perder de vista o destino situado no universo einsteiniano. Eram duas maneiras diferentes de locomoção.

A situação, pois, não era tão ruim assim. Ao penetrar no hiperespaço e sair do mesmo, o arcônida deixaria seus rastros.

Por meio de uma série de instrumentos apropriados podia-se registrar perfeitamente o abalo da estrutura espaço-temporal, semelhante ao que se produz quando um avião a jato rompe a barreira do som. E os instrumentos não registravam apenas a existência do abalo estrutural, mas também a distância e a direção em que este se verificava.

Um pouco desagradável era o fato de que, para ser equipada com o sistema de propulsão do último tipo, a K 3605 tivera de renunciar a outros equipamentos. Seu computador positrônico, por exemplo, executava tão-somente as tarefas que se podia esperar de um sistema normal de computação para a navegação espacial. Seria difícil converter os resultados das medições goniométricas com a rapidez necessária em dados utilizáveis na pilotagem da nave.

Essas preocupações ainda ocupavam a mente de Ron, quando de repente o alto-falante do sistema de intercomunicação emitiu um estalo e a voz calma de Meech Hannigan começou a falar:

— A nave inimiga está decolando com a aceleração máxima.

 

Dali a meia hora, a K 3605 seguiu a nave inimiga.

Isso não resultava de um simples cálculo. Era possível que Carba tivesse deixado seus espiões no espaçoporto, a fim de descobrir se os terranos estavam no seu encalço. O tráfego espacial que se desenvolvia no campo de pouso de Farthor era muito intenso. Centenas de veículos decolaram depois da nave arcônida, ou melhor, antes do veículo espacial terrano. Os espiões de Carba, se é que existiam, não teriam motivo para suspeitas.

Além disso, por enquanto não havia pressa. O desempenho dos propulsores da K 3605 era superior ao da nave arcônida. Seria inútil acompanhá-la pelo espaço, pois, de qualquer maneira, teriam de esperar o primeiro sinal de transição a fim de seguir a pista.

O sinal foi recebido vinte e cinco minutos depois da decolagem do veículo espacial arcônida. O computador de bordo levou cinco minutos a fim de converter os dados para apurar o local e a direção da transição. Assim que os cálculos foram concluídos, Nike Quinto deu ordem para que a nave decolasse. Por ocasião do pouso, tivera a cautela de colocar a nave numa área afastada das principais rotas de aproximação. Não havia necessidade de aguardar a permissão de decolagem. A K 3605 poderia sair do porto espacial quando quisesse. Desenvolvendo uma aceleração normal, a fim de não perturbar o serviço de controle de tráfego espacial de Farthor, o girino subiu ao céu noturno. Dali a alguns minutos, o sol ofuscante de Árcon surgiu acima da linha do horizonte.

Nike Quinto introduziu no computador positrônico o comando de manter o girino na rota adequada. O abalo estrutural que a nave arcônida provocara no início da transição apontava o caminho. O segundo abalo, que surgiria no fim da transição, ainda não fora registrado — o que levava à conclusão de que o hipersalto havia sido dado por uma distância de dezenas de milhares de anos-luz.

Utilizando os propulsores convencionais, a K 3605 se afastara cem mil quilômetros de Árcon II, quando foi captado o segundo sinal. Era pouco nítido, porque vinha de grande distância. O computador de bordo levou quinze minutos para interpretá-lo. Com exceção da distância, o resultado não era surpreendente. Ficava quase exatamente na rota que o girino passara a adotar depois do primeiro abalo estrutural. Nike Quinto realizou mais uma correção de rota. Depois disso ligou o gerador kalupiano. A pequena nave terrana ficou envolta num campo estrutural de seis dimensões, criando um manto protetor semelhante a uma bolha. A K 3605 corria vertiginosamente nesse “furo no espaço”. Depois de alguns segundos, sua velocidade em relação a Árcon parecia fazer pouco caso de todas as leis que regem o espaço de quatro dimensões.

Apesar disso Nike Quinto sentiu-se preocupado. O mecanismo de propulsão linear transformava as distâncias imensas da Galáxia em pulos de gato. Mas como um pulo consome tempo, e Nike Quinto não sabia de quanto tempo poderia dispor.

Afinal, o pulo teria de transpor uma distância de quase quarenta e cinco mil anos-luz...

 

A K 3605 levou pouco menos de onze horas para vencer aquela distância. O setor espacial em que Nike Quinto desligou o gerador kalupiano, fazendo com que a bolha de semi-espaço que envolvia a nave se desfizesse, não possuía estrelas e estava mergulhado numa escuridão assustadora.

Durante o vôo o computador positrônico determinou a posição galáctica desse setor espacial. A K 3605 encontrava-se na periferia da Galáxia. Sua distância da Terra quase chegava a ser equivalente ao eixo longitudinal da Via Láctea. O local que Carba e seus comparsas haviam escolhido para a fuga ficava entre dois braços da espiral. A densidade de matéria excedia em muito pouco a que reinava lá fora, no abismo que se abria entre as ilhas cósmicas.

Nenhum outro sinal fora captado. A nave arcônida ainda devia estar nas proximidades. Mas a primeira coisa que apareceu na tela do rastreador não foi uma espaçonave, mas uma fonte de energia de primeira grandeza.

Tratava-se de um sol!

Ficava a quinze horas-luz da K 3605. Para o rastreador sua radiação era considerável, mas o sol só se tornava perceptível ao olho humano se o aparelho soubesse em que direção teria de procurá-lo.

Os detectores registraram outro corpo de grandes dimensões. Dali a dez minutos constatou-se que este se deslocava em torno do sol a uma distância constante.

Era um planeta!

Provavelmente seria Kusma.

Não se via o menor vestígio da nave arcônida. O sol e seu planeta impossibilitavam a localização de um objeto tão pequeno a essa distância.

Nike Quinto resolveu reduzir a distância entre a K 3605 e o estranho sistema solar.

 

Ron Landry sentiu um calafrio.

Não estava habituado ao quadro que se ofereceu na grande tela panorâmica.

Duas nebulosas afastadas uma da outra emitiam uma débil luminosidade a uma distância imensurável. Eram os dois braços da espiral da Via Láctea, que penetravam bem longe no espaço. O lugar do setor oeste em que se reuniam quase não era visível na tela. Aquela coisa — parecia um nó e emitia uma luminosidade tão débil que a pessoa não sabia se realmente a via ou se a vista lhe estava pregando uma peça — era a massa imensa da Galáxia.

“Como mudam os padrões de medida”, pensou Ron. “Um dia, os homens viajarão entre as Galáxias com o mesmo desembaraço com que hoje deslocam entre as estrelas pertencentes à nossa Galáxia. E, ao se depararem com o espaço sem matéria, não ficarão mais admirados do que nós ficamos hoje, quando nossa nave se encontra entre dois sistemas solares.”

Ron Landry sobressaltou-se em meio às reflexões. Viu à sua frente, no setor norte da tela panorâmica, um olho vermelho-alaranjado: devia ser o sol Kusma. Ainda não passava de um pequeno disco. Podia-se por ora fitá-lo, pois os olhos não doíam. O planeta Kusma ainda não era visível. A K 3605 encontrava-se a uma hora-luz do mesmo.

A tela circular verde-luminosa do rastreador mostrou um pontinho. O sistema de localização eliminava automaticamente o sol e seu planeta. Portanto, o ponto não correspondia nem a um, nem a outro.

Só podia ser a nave arcônida.

Ron Landry acompanhou cuidadosamente sua rota. Se é que ainda houvera algumas dúvidas de que esse sistema abandonado, situado entre dois braços da espiral, realmente era o destino de Carba, agora essas dúvidas deixavam de existir. O pequeno computador positrônico não se enganara. O arcônida estava viajando de volta para casa.

Ron calculou a rota da nave inimiga que se encontrava à sua frente e comparou-a com a da K 3605. No ponto de maior aproximação, a distância entre as duas naves seria de apenas oitocentos mil quilômetros. Se Thekus, o robô, estivesse a bordo da nave arcônida, os instrumentos registrariam sua presença.

Ron lançou um olhar ligeiro para a porta, atrás da qual o incansável Meech Hannigan estava debruçado sobre os instrumentos. Larry, Nike e Lofty dormiam.

O ponto projetado na tela vermelha tornou-se mais forte e aproximou-se do centro do campo de imagem.

O girino deslocava-se sob a proteção de uma aparelhagem que impedia a localização. Os mecanismos de detecção da nave arcônida, desde que fossem do tipo usual, não registrariam a presença da nave terrana. Ron não se preocupou com isso. Enquanto se encontrassem no espaço vazio, longe de qualquer estação de rastreamento de superfície, poderiam ter certeza de que não seriam descobertos. A situação só se tornaria crítica quando descessem em Kusma. Não havia equipamento capaz de proteger uma nave contra a localização de uma estação rastreadora de superfície, equipada com os instrumentos mais modernos e que disponha de um abundante suprimento de energia.

Ron ligou o sistema de intercomunicação e chamou Meech.

— A nave arcônida está abandonando Kusma, Meech — disse. — Fique com os olhos bem abertos. É possível que nossos amigos ainda estejam a bordo.

— Por enquanto não temos qualquer indicação, sir — respondeu Meech, prontamente.

Ron mediu a distância. Naquele momento chegava a um milhão e quinhentos mil quilômetros, o que correspondia aproximadamente ao dobro do mínimo. Se Thekus estivesse a bordo da nave, sua presença já teria sido registrada.

Dali a mais alguns minutos teve certeza absoluta. As duas naves acabavam de passar pelo ponto máximo de aproximação, e Meech não captara qualquer sinal. Thekus não se encontrava a bordo do veiculo espacial arcônida. Ron não sabia o que teria acontecido com Carba, Melaal e Arfar. De qualquer maneira, achou pouco provável que tivessem voado para Kusma somente para largar Thekus e dar o fora. Todos eles estavam em Kusma. Haviam mandado a nave de volta, pois não precisavam mais dela.

Muito impaciente, Ron esperou que a nave arcônida desaparecesse da tela do rastreador. Depois disso fez o que Nike Quinto lhe ordenara. Transmitiu pelo hiper-rádio o sinal codificado que colocaria em estado de prontidão certas unidades da frota terrana.

Não se podia permitir que o arcônida escapasse. Nenhuma informação deveria ser perdida.

As naves terranas apresariam o veículo arcônida, a uma distância segura de Kusma, e prenderiam seus tripulantes.

A K 3605 prosseguiu em direção a Kusma. Aproximou-se lentamente, quase em queda livre, do sol alaranjado e de seu companheiro solitário.

 

Parecia inacreditável, mas o fato é que a K 3605 se aproximou do planeta Kusma a uma distância de um milhão de quilômetros, ou seja, três segundos-luz e um terço, sem que fosse localizada.

Quem se encontrava em Kusma devia estar dormindo.

Já fazia algum tempo que os sinais emitidos por Thekus eram captados com grande nitidez. A imagem transmitida pelo robô revelou o estranho mundo que era o planeta Kusma.

No corpo complicado de Thekus, havia um controle que lhe permitia afastar o hipercampo gerador de imagem o quanto quisesse de seu corpo. Dessa forma podia transmitir uma imagem que nem sequer ficava dentro do alcance de seu equipamento ótico, ou seja, que não podia ser vista por ele. Thekus representava a lente do campo gerador de imagem — para estabelecermos uma comparação baseada nos conceitos simplificados da ótica geométrica. Quem se encontrasse junto ao painel de comando da K 3605 podia transmitir-lhe uma ordem para que fizesse o campo gerador de imagem passear pelo planeta, e assim pudessem ser visualizadas as amplas áreas de Kusma.

Logo que a comunicação com Thekus funcionou perfeitamente, Nike tomou esta providência. E as imagens que viu depois disso poderiam ser tudo, menos encorajadoras.

Kusma nem sequer era um planeta esférico. Não passava de uma gigantesca rocha que o sol prendera em certa oportunidade em seu campo de gravitação. Era um supermeteoro que por milhões de anos vagara, solitário, pelas amplidões da Galáxia, até ficar retido num campo de gravitação mais potente, que o levou a entrar numa órbita estável.

A massa de Kusma não era suficiente para prender uma atmosfera. E o sol em torno do qual gravitava não era bastante potente para aquecê-lo. Os vapores que saíam da rocha logo se transformavam em geada. Tudo que permanecesse no estado gasoso era tangido para o espaço. Até mesmo naquele frio, que se aproximava do zero absoluto, o equilíbrio termodinâmico entre a massa sólida e o gás devoraria lentamente a geada. Acontece que o gás saía incessantemente da rocha, evaporava-se lentamente e voltava a ser substituído. Em Kusma havia áreas muito extensas que refletiam totalmente o brilho vermelho-alaranjado do sol.

Kusma era um mundo desolado. Ninguém acreditaria que jamais criaturas inteligentes vivessem por aqui, se não houvesse uma abóbada reluzente situada num grande vale.

Essa abóbada semi-esférica elevava-se acima do solo inóspito do vale. Suas dimensões eram impressionantes. O ponto mais elevado ficava quase cem metros acima da rocha. O diâmetro do círculo que esta formava na superfície chegava a duzentos metros.

E não era só. Depois de satisfazer a curiosidade de Nike Quinto em relação à superfície do planeta Kusma, Thekus passou a transmitir imagens do interior da abóbada. Nike Quinto sempre acreditara que a técnica de todos os seres inteligentes, fossem eles de que raça fossem, funcionava com base no mesmo princípio, motivo por que uma pessoa experimentada teria a maior facilidade em descobrir um sentido até mesmo na forma mais estranha. Entretanto, com aquilo que começou a ver, Nike pensou estar fora de seu juízo normal...

O interior da abóbada era formado por um só recinto gigantesco!

As formas avistadas no interior desse recinto bastavam para deixar qualquer pessoa bastante confusa. Havia uma caixa que apresentava um rígido corpo retangular, mas estendia para bem longe uma figura parecida com a cabeça de uma anta. Havia outros objetos idênticos a torres esféricas; suas paredes eram lisas e não apresentavam a menor indicação de sua finalidade. Figuras metálicas esbeltas contorciam-se pelo chão que nem serpentes. Portões arqueados... Folhas metálicas quebradiças e afiadas como navalhas subiam para o alto, formando espirais a dez metros de altura.

Arfar, Melaal, o homem de origem desconhecida, e Carba continuavam nas proximidades de Thekus. Ao que parecia, não havia mais ninguém na abóbada.

O interior da construção arqueada não fora adaptado a uma permanência prolongada. Ron Landry não deixou de notar esse detalhe. Não havia abrigo, nem mesmo mesas ou lugares para sentar. Aliás, via-se alguns objetos com aspecto de poltronas, mas pareciam pertencer à estranha aparelhagem, e ninguém se atreveria a aproximar-se deles.

Thekus transmitiu a palestra dos três conspiradores. Carba quis ouvir a opinião dos outros sobre a situação geral. Arfar achava que se deveria prosseguir no interrogatório de Thekus. Já na opinião de Melaal deveriam retirar-se dali quanto antes, pois Kusma poderia ser tudo, menos um esconderijo seguro. Carba perguntou por que pensava assim, mas Melaal só fez um gesto vago com as mãos e disse que tinha uma impressão indefinida.

Carba acabou aceitando a sugestão de Arfar, e sua palavra costumava ser aceita. Os três homens sentaram-se no chão. Thekus recebeu ordem para ficar de pé à sua frente. Logo voltou a ser interrogado. Ron Landry e Nike Quinto acompanharam tudo pelo alto-falante e pela tela de imagem. Meech Hannigan estava sentado à frente dos controles.

Carba mantinha uma atitude discreta. Também Melaal adotou o mesmo comportamento de antes; parecia indiferente e até entediado. Arfar começou a formular as perguntas.

— Estávamos falando a respeito de Belubal — principiou. — O que é feito dele?

Thekus gesticulou com a mão esquerda.

— Nem sei de quem o senhor está falando.

Ao que tudo indicava, Arfar procurava controlar-se na presença de Carba.

— Essa não — respondeu. — Em Árcon o senhor respondeu: Belubal, o acônida. Então, o que é feito de Belubal?

Thekus deu uma palmadinha no próprio joelho.

— Foi embora — disse.

— Até aí já sabemos. Para onde?

Thekus levantou a mão.

— Para lá.

— Quer dizer que o senhor tomou conta dele?

Thekus confessou.

— Sim, tomei conta dele. Tornou-se muito perigoso e antipático.

Ron não pôde deixar de sentir certa admiração pelo robô. Thekus dera essas respostas por iniciativa própria. Nike Quinto não lhe pudera fornecer outras informações sobre o acônida Belubal. Nesse meio tempo, Thekus verificara sua programação e sua memória, a fim de elaborar outra tática. E representava muito bem.

— Custa-me acreditar nisso — disse Arfar, que mal conseguia reprimir a raiva. — Logo o senhor foi matar um homem como Belubal! Antes que pensasse nisso, Belubal já teria sabido a quantas andava com o senhor. Quando aconteceu isso? Quando mandamos Belubal para junto do senhor, a fim de que discutissem a questão deste posto?

Thekus confirmou tranqüilamente.

— Fale logo! — gritou Arfar. — Como foi que o senhor fez?

— Ora — respondeu Thekus com a maior tranqüilidade. — Assim que entrou em minha casa, eu lhe dei um tiro.

Arfar recuou, perplexo.

— O senhor não o conhecia. Nem sabia quem estava chegando à sua casa.

Thekus sorriu com um ar de superioridade.

— Tenho gente que trabalha para mim. Afinal, o senhor também tem...

Ron suspirou, aliviado. A situação chegara a um ponto crítico.

Arfar olhou para trás, como se esperasse que alguém o ajudasse. Carba encorajou-o com um gesto, para que prosseguisse no interrogatório. Melaal levantou-se. Caminhou lentamente e em atitude pensativa entre as fileiras de máquinas, que antes pareciam um pesadelo, e desapareceu nos fundos do recinto. Ron teve a atenção despertada para o fato. Melaal sempre costumava manter-se em segundo plano e já causara dificuldades a Thekus por meio de uma pergunta-armadilha.

Quais seriam suas intenções? Por que resolvera não assistir mais ao interrogatório?

 

Melaal parou na sombra de uma das grandes máquinas. Num movimento seguro pôs a mão no lugar em que havia uma pequena porta invisível. Bastou uma ligeira pressão da mão para que a porta se abrisse. Uma iluminação mortiça encheu o espaço. Atrás da porta havia um nicho com um aparelho de intercomunicação. Melaal pegou o microfone e esperou que a tela se iluminasse. Parecia conhecer o homem cujo rosto foi projetado na mesma.

— A nave está preparada para a decolagem, Laaseph? — perguntou.

— Naturalmente — respondeu Laaseph, em tom de espanto.

— Pois quero que todos subam a bordo. Provavelmente teremos de abandonar Kusma às pressas... e daqui a pouco.

Laaseph arregalou os olhos.

— Por quê? — perguntou com a voz curiosa.

Melaal fez um gesto para que se calasse.

— Não tenho tempo para explicações, Laaseph. Os terranos estão atrás de nós. Infelizmente por aqui não temos rastreadores que prestem. Sempre nos sentimos seguros demais em Kusma. Os terranos podem chegar a qualquer momento. Assim que pousarem, teremos que dar o fora.

— Por que não vamos agora?

— Em outra oportunidade explicarei. Por enquanto preciso de alguém que saiba ativar os comandos de segurança da abóbada. Não posso cuidar disso. Minha ausência chamaria a atenção.

— Que comandos de segurança? — perguntou Laaseph.

— Carba e o outro estão sentados em cima da tampa de um elevador antigravitacional. Receio que, quando a coisa começar, não compreendam com a rapidez necessária o que está acontecendo. E não poderei esperar até que isso aconteça. Devemos combinar algum sinal breve para que o poço do elevador se abra. Bem, no momento em que eu gritar “Terra”, a tampa terá de ser afastada.

Laaseph fez uma careta.

— Logo uma palavra como esta! Bem, não há problema.

— Está bem. Temos pressa. Vou desligar.

Colocou o microfone no suporte. A tela apagou-se. Fechou a portinhola e voltou devagar ao lugar em que estavam Carba e Arfar. Quem olhasse seu rosto impassível nem desconfiaria do que estava pensando.

A essa hora tinha certeza.

O homem que estava sendo interrogado não era o Almirante Thekus.

Era um robô.

Descobrira por acaso. Quando estava sentado no chão, teve a impressão de que Thekus era muito grande. Isso não era de admirar. Uma pessoa que está sentada no chão sempre tem a impressão de que outra pessoa que se encontra à sua frente é muito grande. Mas desta vez a impressão parecia muito nítida. Melaal pôs-se a examinar discretamente o almirante:

Teve sua atenção despertada pelos sapatos. A sola parecia ser muito grossa. Era estranho que um homem como Thekus, que por si já tinha uma boa altura, ainda realçasse a mesma, usando sapatos de sola grossa. Depois de algum tempo Thekus deslocou o peso do corpo de uma perna para outra e Melaal notou que as solas grossas vergavam sob o peso, como se fossem feitas de chapas de plástico, muito finas. Procurou avaliar o peso de Thekus. Devia chegar pelo menos a duzentos e cinqüenta quilos, pois, do contrário, as solas não se curvariam desse jeito.

Lembrou-se da cena durante a qual Thekus demorara a confessar que conhecia Arfar. E aquelas observações estranhas sobre a “honestidade” de um funcionário. Aquilo não era o teste típico do negativo-zero-positivo, que costumava ser utilizado na linguagem da programação positrônica? O teste estava oculto sob um disfarce, mas suas linhas gerais eram nitidamente perceptíveis. Por que Thekus desmaiara quando lhe fora dirigida a pergunta sobre Belubal? Seria uma pergunta tão horrível que era capaz de causar um desmaio num homem? Nada disso. Thekus obedecia a um comando externo. Os homens que o controlavam não sabiam nada a respeito de Belubal e, no momento, não se lembraram de nenhum truque para ajudar Thekus a sair do aperto.

“Esse Thekus é um robô,” concluiu mentalmente.

Melaal não se baseou apenas em suposições. Havia uma grande vantagem no fato de fazer com que Carba e Arfar permanecessem sobre a tampa de um elevador antigravitacional. Ele o fizera porque se habituara a escolher sempre um lugar que lhe permitisse a fuga. Aquela tampa só suportava determinado peso. Embaixo dela havia o poço vazio, que tinha uma profundidade considerável. Havia uma balança destinada a verificar o peso que se encontrava sobre a tampa. A tal balança estava instalada na parte externa de uma máquina, tal qual o aparelho de intercomunicação que Melaal usou pouco depois. Enquanto caminhava entre as fileiras de máquinas, passara discretamente pelo lugar, abrira o respectivo nicho e lera as cifras da escala da balança. O aparelho indicava a marca de aproximadamente oitocentos quilos. Arfar e Carba juntos não pesavam mais de cento e oitenta quilos. Os seiscentos e vinte quilos restantes deviam pertencer ao terceiro personagem que se encontrava sobre a tampa. Esse terceiro personagem era Thekus. Estava ali a prova. Nenhum arcônida pesava tanto assim. Thekus só poderia ser um robô.

Melaal assustou-se, embora tivesse previsto o resultado há alguns minutos. Um robô terrano encontrava-se no interior da abóbada; não havia nenhuma dúvida de que o engenho era de construção terrana. E os terranos não seriam idiotas a ponto de deixarem de equipar sua criatura com instrumentos que lhes permitissem manter contato ininterrupto com a mesma. Provavelmente, a essa hora os terranos viam e ouviam perfeitamente o que se passava em Kusma.

Atacariam. Melaal tinha certeza absoluta. E, se não quisesse pôr em perigo o resultado de todo o trabalho, não deveria resistir. Teriam de fugir.

O primeiro impulso de Melaal fora o sugerido por Laaseph: partir imediatamente. Por sorte lembrou-se de que uma fuga precipitada deixaria os terranos desconfiados. Notariam que seu truque fora descoberto. Era possível que o robô dispusesse de uma carga explosiva. E os terranos a detonariam assim que notassem que seu plano falhara.

Não poderia assumir o risco. Devia esperar um momento em que os terranos estivessem tão preocupados com seus problemas, que não pudessem prestar muita atenção ao robô. Seria o momento em que pousassem. O momento em que tentassem penetrar na construção abobadada. Quando partissem para o ataque, não carregariam o painel que controlava o robô.

Devia ter paciência...

E, no fim, provocaria aos terranos uma peça de que não se esquecessem pelo resto da vida.

Isso se Carba e Arfar reagissem como deviam!...

 

Melaal voltou para junto dos dois arcônidas. A situação continuava na mesma. Thekus esforçava-se para livrar-se das numerosas perguntas por meio de truques. Arfar estava prestes a perder a paciência pela segunda vez.

Nesse instante, Meech Hannigan observou alguma coisa. Nenhum ser humano teria sido capaz de notar a sombra fugaz que se moveu por uma fração de segundo nos fundos do quadro. Mas esta não escaparia aos olhos de um robô.

Um homem andara por lá. Quer dizer que as pessoas que se encontravam na construção abobadada não eram apenas os dois arcônidas, Melaal e o prisioneiro. Havia pelo menos um quinto homem.

Meech virou-se e relatou sua observação em palavras secas e lacônicas.

Nike Quinto começou a impacientar-se. Sabia que não poderia duvidar das informações de Meech, mesmo que ele e Ron não houvessem visto nada.

— Ative a passagem, sargento! — ordenou Nike Quinto, com a voz aguda.

Meech moveu uma chave.

Um estalo deu início à última fase da operação.

 

É difícil dizer se, sob o ponto de vista humano, um robô é capaz de assustar-se. Qual seria a seqüência de impulsos positrônicos que poderia ser definida como um susto? Haveria um meio de descobrir de que forma um robô reagiria a esses impulsos?

Mas uma coisa era certa. No momento em que Meech Hannigan moveu a chave, Thekus sabia que teria pouco tempo de vida. Um setor de seu corpo que até então estivera paralisado fora posto a funcionar. Uma informação foi introduzida na memória de Thekus: essa parte de seu corpo só poderia funcionar plenamente por uns poucos minutos até que o resto do corpo do robô sofresse danos. O limite máximo de funcionamento era de cinco minutos e meio. Depois disso Thekus deixaria de existir.

Seu banco de dados registrou o fato: dali a pouco chegaria a sua hora.

 

— O senhor não vai continuar a contar mentiras — disse Melaal, intervindo na palestra. — E o senhor não poderá retardar a execução dos nossos planos. Já está próximo o dia em que Árcon se transformará num conjunto de mundos desamparados, que ficarão satisfeitos se alguém puser ordem no caos. Nós passaremos a exercer o governo. Quando chegar esse dia, o monstro repugnante que usurpa as funções de imperador deixará de existir.

Carba e Arfar fitaram-se com uma expressão de espanto. Melaal colocou a cabeça numa posição em que o robô não podia ver seu rosto e arriscou uma piscadela dos olhos. Teve sorte. O sinal foi compreendido. Carba recostou-se, segurou o joelho e suspirou.

— É uma pena que o senhor não esteja mais do nosso lado, almirante — disse.

 

Nike Quinto estremeceu.

— ...esse monstro repugnante que usurpa as funções de imperador...

Nike Quinto não demorou em compreender o sentido da ameaça.

— Santo Deus! — gritou em tom de surpresa. — Este sujeito pretende destruir o computador-regente.

Logo se calou. Alguma coisa levara Melaal a dizer algo muito importante. Talvez houvesse outros pronunciamentos desse tipo.

Mas não houve mais nada. Com a intervenção de Melaal, o interrogatório chegou ao fim. Carba ainda formulou algumas perguntas sem importância. Thekus não teve dificuldade em encontrar a resposta.

Finalmente Arfar dirigiu-se a Melaal e perguntou:

— O que estamos esperando?

 

Melaal resolveu dar um lance rápido.

— A qualquer momento nossa frota deverá entrar em contato conosco — respondeu.

 

Para Nike Quinto, estas palavras representavam a senha.

Uma frota estava sendo esperada em Kusma. Nike Quinto ficou refletindo sobre se convinha chamar algumas unidades da frota terrana, a fim de estabelecer um certo equilíbrio de forças.

Mas logo resolveu que não faria nada disso. As transmissões de Thekus, isto é, do mecanismo de imagem e som, não representavam qualquer prova contra os revolucionários que se encontravam no planeta. Se chamasse uma frota para prendê-los, estaria criando um incidente diplomático.

Teria de agir por conta própria. E não queria concluir a operação sem que pudesse registrar ao menos um êxito perceptível, pois até então só conseguira colher indícios e fragmentos de provas.

Teria de penetrar na construção abobadada, nem que mil naves inimigas procurassem impedi-lo. Se andasse depressa, talvez conseguisse chegar antes das naves.

Entregou a Larry Randall o comando da K 3605. Cabia ao capitão manter a nave em condições de manobrar a qualquer momento, de prestar atenção à aproximação da frota inimiga, de observar os acontecimentos que se desenvolviam no interior da abóbada e de manter aberta “a passagem”.

Nike pretendia entrar na abóbada juntamente com Ron, Meech e Lofty. Distribuiu as tarefas.

— Landry e Patterson, os senhores me ajudarão a prender os três conspiradores e colocá-los a bordo da nave. Hannigan, o senhor dará uma volta pela abóbada e registrará tudo aquilo em que conseguir pôr os olhos. Entendido?

A ordem foi confirmada. Nike Quinto entregou as armas. Tratava-se de pesados radiadores de choque, que paralisam o inimigo e o deixam inconsciente.

Finalmente ordenou a Larry Randall, que já ocupara o lugar de Meech Hannigan, que abrisse a passagem.

Essa ordem trazia consigo o seguinte comando: matar o robô Thekus.

 

Thekus percebeu nitidamente a investida das energias formidáveis. Seu corpo de metal plastificado aqueceu-se numa fração de segundo, entrando em incandescência. O tecido cutâneo vivo que o cobria, transformando-o numa criatura tão semelhante a um homem, queimou-se.

Thekus perdeu a consciência. Havia somente uma parte de seu corpo que ainda funcionava: era aquela que até então se mantivera inativa. Captou as tremendas energias que a K 3605 irradiava em sua direção, converteu-as e formou a passagem, ou seja, a saída do canal invisível que, passando pelo semi-espaço, levava da nave terrana para o interior da abóbada.

A única coisa que restava do orgulhoso robô era a parte que os técnicos costumavam designar como transmissor.

 

Melaal contava com isso.

Mas não esperara que os terranos lançassem mão de um transmissor de matéria. Apavorado, perdeu um precioso segundo fitando o robô, que se desfazia em fumaça. Viu surgir o arco reluzente que delimitava o campo de transmissão. Finalmente compreendeu que o perigo era muito maior do que acreditara no início.

Levantou-se de um salto. Atirou todo peso de seu corpo atarracado contra o robô fumegante. O impacto fez com que a criatura mecânica cambaleasse. Movendo as pernas que já não obedeciam a nenhum cérebro, recuou uns três ou quatro passos, saindo da tampa do elevador antigravitacional.

Era o que Melaal queria.

— Terra! — gritou o mais alto que pôde.

Laaseph fizera um trabalho bem-feito. Antes que Melaal voltasse a fechar a boca, a chapa em que apoiava os pés moveu-se. Carba e Arfar estavam paralisados de espanto, sem compreender o que estava acontecendo. A chapa afundou meio palmo e deslizou para o lado. Melaal saltou sobre Carba e deu-lhe um forte empurrão. Carba soltou um grito de pavor quando caiu na escuridão do poço do elevador. Mas não caiu de verdade. Sustentado por um campo de gravitação artificial, foi descendo lentamente.

Quanto a Arfar, não houve necessidade de que ninguém lhe dissesse nada. Saltou. Melaal foi o último a sair da construção abobadada. Enquanto saltava olhou para o arco luminoso e viu uma sombra que se movia. Um homem baixo e gordo que segurava uma arma saiu do arco luminoso, a poucos metros do elevador, transformando-se em realidade.

Olhou em torno, perplexo. Virou a cabeça, provavelmente para dar ordens a alguém.

Foi a última coisa que Melaal viu. A chapa fechou-se acima de sua cabeça e as luzes ofuscantes do elevador antigravitacional acenderam-se.

 

Nike Quinto compreendeu que alguma coisa não dera certo. No lugar em que a tela mostrava ainda há poucos segundos os três conspiradores, só via o chão liso. Aquilo que restava do robô Thekus jazia mais para trás, envolto na luminosidade do campo de transmissão de matéria.

Nike Quinto teve a impressão de ter visto uma abertura quadrada e escura no chão, no momento em que atravessava a passagem. Mas era possível que fosse uma ilusão. Afinal, os hipercampos que possibilitam o transporte de matéria criam efeitos de toda espécie.

Nike virou-se e gritou:

— Cuidado! É possível que tenham armado uma cilada.

Ao avançar pelo corredor, procurou abrigar-se atrás das máquinas. Os homens que o acompanhavam espalharam-se por outros corredores. Puseram-se a revistar a construção abobadada. Trabalharam depressa e dali a quinze minutos tiveram certeza de que o inimigo não se encontrava no interior da abóbada. Meech Hannigan participara das buscas. Seu sistema ótico observou a imagem das estranhas máquinas e registrou-as num filme que corria no interior do complicado corpo do robô.

Nike Quinto voltou para junto dos restos de Thekus.

— Quer dizer que nos enganaram — constatou em tom amargurado. — Será que alguém tem uma idéia do lugar para onde podem ter ido?

Ron e Lofty sacudiram a cabeça, contrariados. Meech manteve-se em silêncio, de olhos fitos no chão. Dali a alguns segundos levantou a cabeça.

— Encontramo-nos sobre uma placa de pedra bem fina, sir — disse. — Embaixo dela existe um poço de aproximadamente setenta metros de profundidade. Talvez tenham tomado este caminho.

Nike Quinto sobressaltou-se.

— Um poço? Por que não disse antes?

Meech procurou justificar-se.

— Porque tive outra tarefa, sir.

Ninguém lhe deu atenção. Atiraram-se ao chão e martelaram a placa com as coronhas de suas armas. Numa área quadrada de cerca de quatro metros de lado, o ruído produzido pelas batidas era mais abafado.

Nike Quinto levantou-se de um salto.

— Hannigan! Abra a placa a tiro. Afastem-se, Patterson e Landry.

Ron e Lofty retiraram-se. Meech recuou um pouco. Depois disso estendeu o braço direito, com o dedo apontado para baixo, e disparou. Um raio finíssimo muito branco saiu da ponta do indicador. A energia concentrada fez um corte na pedra sólida de que era feita a placa. O dedo de Meech descreveu um círculo perfeito. No momento em que as duas extremidades da linha se uniram, uma peça de dois metros de diâmetro desprendeu-se da placa e foi descendo. Revelando uma agilidade de que ninguém o julgaria capaz, Nike Quinto ajoelhou-se junto ao buraco e viu que a peça recortada descia lentamente.

— Um elevador antigravitacional! — exclamou surpreso. — Foi por aqui que eles fugiram.

Levantou a cabeça. Por alguns segundos seus olhos procuraram Meech Hannigan. Ron percebeu. Sabia o que se passava na mente de Nike Quinto.

Quando havia uma missão perigosa a cumprir, costumava-se mandar um robô na frente — desde que se dispusesse de um. Por mais precioso que fosse o artefato, sempre era uma máquina. Se fosse destruído, poderiam construir outro. Era a primeira lei que se ensinava aos homens que tinham robôs entre seus subordinados.

Mas desta vez Nike Quinto tomou uma decisão que contrariava esta lei.

Ron sabia por quê. Meech acabara de fotografar as instalações existentes embaixo da abóbada. Trazia em seu interior um rolo de filme completo com as estranhas máquinas. Nike, Ron e Lofty haviam visto as mesmas de perto, mas nunca seriam capazes de fornecer uma descrição tão perfeita como Meech, que se transformara num importantíssimo banco de dados. Sua “vida” não deveria ser colocada em perigo.

— Prestem atenção — disse Nike. — Irei na frente. Abrirei o raio da arma em leque. Se não enviarem robôs para enfrentar-nos, ninguém conseguirá aproximar-se de nós. Sigam-me. Procurem manter-se sempre na mesma altura que eu.

No momento em que Nike saltou para dentro do poço, reinava um silêncio completo.

 

Poucos minutos depois que Melaal gritara a palavra “Terra” para fazer com que o poço se abrisse, já se encontrava, são e salvo, a bordo da espaçonave, juntamente com os dois arcônidas.

Soltou um suspiro de alívio. A situação que haviam atravessado nas últimas horas era mais perigosa do que ele imaginara.

Mas havia conseguido. Carba, que no momento era o elemento mais importante, encontrava-se em segurança. Os tripulantes da nave demonstraram o respeito e a servilidade a que fazia jus o membro de uma das mais antigas famílias de Árcon. Não era de admirar. Os oficiais e soldados não sabiam nada sobre o papel que Carba deveria desempenhar. Até mesmo entre os oficiais, poucos sabiam qual era o lugar que Carba, o arcônida, deveria ocupar no plano traçado pelos dirigentes do movimento revolucionário.

É claro que Melaal sabia. O plano grandioso era como uma máquina gigantesca. E Carba era uma peça dessa máquina. Não era uma peça qualquer. Era um elemento de precioso plástico platinado. Um dispositivo sem o qual a máquina não funcionaria. Mas, de qualquer maneira, era apenas uma peça da máquina.

Já os dirigentes ficavam do lado de fora e comandavam a máquina, da qual Carba era uma peça.

Pois bem. Carba era uma peça da máquina. E os terranos?

Um sorriso de desprezo aflorou ao rosto de Melaal quando este se lembrou de como iria se livrar dos mesmos. Dali a trinta minutos, ninguém teria uma idéia da existência de Kusma e de sua estranha construção abobadada... com exceção dos que deviam saber.

“É uma pena que tenhamos de perder a base”, pensou Melaal, “mas paciência. Não há como evitar isso.”

Colocou a nave em movimento, sem que as pessoas que se encontravam no interior desta o percebessem. Acelerando rapidamente, passou por uma galeria que media algumas centenas de quilômetros e levantou-se da superfície de Kusma, num ponto em que a nave terrana não poderia registrar sua presença.

X menos vinte e sete.

 

O poço terminou numa área quadrangular, da qual partiam corredores em oito direções diferentes. Nike Quinto mandou que Meech prestasse atenção a eventuais fontes de energia. Meech possuía um órgão que lhe permitia notar a presença de campos de disseminação de fontes geradoras ou centros consumidores hipertróficos.

Meech levou menos de um segundo para constatar a presença de um motor que se encontrava em funcionamento a uns três quilômetros dali. Naturalmente não sabia que se tratava de uma nave. Apenas registrou os campos de disseminação e informou Nike Quinto sobre a descoberta.

— Fica nessa direção? — perguntou Nike. — Vamos andando.

Dirigiu-se rapidamente ao corredor apontado por Meech.

— Um instante, sir — gritou o robô atrás dele.

— O que houve? — perguntou Nike em tom de impaciência.

— Raios gama, sir — respondeu Meech laconicamente.

— E daí? Os raios gama existem em toda parte, Hannigan. Isso não é motivo para que o senhor me faça perder tempo.

— Os raios vêm de lá — disse Meech, apontando para a rocha que ficava à sua direita. — Atravessam vários metros de rocha e ainda consigo captá-los perfeitamente. Deve ser uma fonte de radiação muito intensa.

Nike Quinto começou a interessar-se pelo fato.

— O senhor seria capaz de identificar a fonte de radiações?

Meech manteve-se calado por algum tempo. Finalmente disse:

— Só até certo ponto, sir. Trata-se de uma substância radioativa que se encontra num processo de desintegração extremamente rápido. A taxa de desintegração fica entre uma e duas vezes dez na potência de menos cinco por segundo.

— Faça o cálculo de conversão! — ordenou Nike Quinto, em tom impaciente.

— Isso corresponde a uma meia-vida de dez a vinte horas, sir.

Nike Quinto retornou imediatamente.

— Vamos evacuar isto! — gritou. — Voltem para a nave pelo caminho mais rápido. Uma bomba-relógio está funcionando.

 

Melaal não esperara que um dos terranos fosse um robô, pois, do contrário, teria ligado a bomba a outro mecanismo-relógio. Um homem normal não seria capaz de constatar a presença da intensa radiação gama do sódio-24.

Mas um robô podia. E podia mais. Com base na taxa podia calcular a meia-vida, e assim identificar com razoável segurança, o elemento que estava em processo de desintegração.

A técnica de detonação de bombas-relógio baseada na desintegração de um elemento radioativo era conhecida em toda a Galáxia. Tinha muitas variantes. A técnica mais simples baseava-se no uso de um metal que o processo de desintegração transformava em outro metal. A condutividade específica dos dois metais era diferente. A resistência da peça básica modificava-se mais ou menos rapidamente, conforme o tempo maior de meia-vida da substância radioativa.

O metal radioativo geralmente preferido era o sódio-24. Era barato e fácil de ser conseguido.

O processo permitia uma escolha bastante ampla do tempo de detonação. A bomba descoberta por Meech poderia explodir dentro de quatro dias, ou dentro de alguns segundos.

Nike Quinto e seus companheiros subiram pelo poço do elevador o mais depressa que conseguiram. Meech Hannigan foi o primeiro a atingir a saída. Saltou para fora do poço e estendeu a mão a Nike Quinto, para ajudá-lo a sair.

O arco reluzente continuava a cercar os restos fumegantes de Thekus. Nike Quinto dispôs-se a atravessar a passagem. Estava praticamente em segurança. Bastava dar um passo para que se encontrasse a bordo da K 3605, a pouco menos de cem mil quilômetros de Kusma, onde a explosão da bomba não poderia atingi-lo.

Naquele instante Ron Landry gritou atrás dele:

— Espere aí! Lofty não veio.

Nike Quinto reagiu com uma rapidez espantosa. Levantou o braço e ativou o pequeno transmissor que trazia em torno do pulso, como se fosse um relógio.

— Patterson! — disse em tom penetrante. — Suba imediatamente! Proíbo-lhe fazer qualquer tolice aí embaixo.

Depois de algum tempo, Lofty respondeu.

— Perdão, sir, mas no momento tenho meus próprios planos. Se existe alguém capaz de encontrar esta maldita bomba, sou eu. Acho que Kusma bem vale um risco. Se não der certo, não perderemos muita coisa. Apenas um velho. Basta ir a Passa para encontrar muitos “exemplares” do meu tipo. Sou substituível. Mas se eu conseguir...

— Pare com essa conversa idiota! — berrou Nike Quinto. — Suba imediatamente!

— Não senhor; não subirei — respondeu Lofty. — Acho que acabei de encontrar a pista...

Ron sabia perfeitamente que Nike Quinto não conseguiria fazê-lo mudar de idéia.

— Descerei para buscá-lo, Patterson! — gritou Nike.

Lofty enfureceu-se.

— O senhor não vai fazer nada disso, seu idiota. Não procure impedir um velho de fazer o que ele acha necessário.

O rosto de Nike Quinto ficou vermelho como um pimentão. De repente virou-se e caminhou em direção à passagem, enquanto falava para dentro do microfone de pulso:

— Está bem, sua mula teimosa. Deixaremos a passagem aberta. Vá a bordo o mais rápido possível... se ainda tiver tempo.

O coronel deu mais um passo e desapareceu na passagem, sob as vistas de Ron Landry. Ron seguiu-o a passo hesitante. Naquele momento temia tanto pelo velho Lofty Patterson, que não conseguia conceber uma idéia clara.

Meech Hannigan, o robô, foi por último.

 

Aquilo que Lofty chamara de pista era apenas um corredor que seguia aproximadamente na direção da qual vinham as radiações constatadas por Meech.

O raciocínio de Lofty era simples e lógico. Ninguém se daria ao trabalho de esconder uma bomba em meio a milhares de toneladas de rocha. Esta devia encontrar-se num lugar ao qual poderia ser levada sem dificuldade. O corredor em que Lofty se achava era o único que seguia na direção indicada por Meech. Portanto, era bastante provável que esse caminho levasse à bomba.

Os corredores estavam escuros. Lofty ligou a lanterninha para orientar-se. Naquele momento ainda não tinha a sensação do perigo que o ameaçava. Sua mente consciente ainda não se dera conta de que nas próximas cem horas Kusma poderia transformar-se num sol explosivo, se ele não tivesse êxito em sua busca.

A única coisa que pensava era que estava à procura de algo.

O corredor descreveu uma curva suave. Lofty passou pela mesma, deu mais alguns passos e de repente parou. O ruído provocado por seus pés era estranho. Dirigiu a luz da lanterna para cima. Essa luz não era muito forte. Assim mesmo, até então sempre alcançara o teto do corredor. Agora não o conseguia ver. O teto desaparecera. Isso significava que ficava a mais de dez metros acima de sua cabeça.

E as paredes à sua direita e à sua esquerda também tinham desaparecido. Encontrava-se um recinto amplo e muito alto. Deixou que o feixe de luz vagasse pela escuridão. Parou de repente, quando teve a atenção despertada por um reflexo brilhante.

A poucos metros do lugar em que se encontrava, uma peça cilíndrica de metal reluzente saía do chão. Deixou que o feixe de luz subisse por ela até onde fosse possível este alcançar. Havia travessas que saíam da peça em pelo menos doze lugares diferentes. Lofty dirigiu a luz para a direita e para a esquerda. Notou que de ambos os lados havia outros cilindros.

Aquilo era uma armação. Lofty não seria capaz de dizer qual era a finalidade da mesma. A luz da lanterna não atingia a extremidade superior.

Avançou alguns passos, passou por baixo de duas travessas e viu-se no interior da armação. Mais uma vez dirigiu o feixe de luz para cima. Viu oito travessas, que partiam de quatro cilindros metálicos e se uniam no centro, formando uma espécie de ninho.

O símile era bem escolhido. Realmente parecia um ninho. E no ninho havia um ovo! Um ovo gigante, que quase chegava a medir dois metros de comprimento. Seu envoltório era de metal plastificado que emitia um brilho fosco. Lofty deixou que a luz da lanterna pousasse sobre o objeto. O envoltório parecia completamente liso. Qualquer pessoa que entrasse no recinto sem idéias preconcebidas pensaria que se tratava de um peso destinado a dar maior estabilidade à armação.

Mas Lofty sabia do que realmente se tratava.

Era a bomba...

Seria facílimo subir pelas travessas. Era bem verdade que para isso teria de usar ambas as mãos, motivo por que foi obrigado a guardar a lanterna. Não enxergava mais nada. Mas guardara na memória a posição do ninho. Bastava parar vez por outra, apoiar-se bem e fazer o feixe de luz girar em torno dele. Com isso conseguiria orientar-se.

Começou a dar-se conta do perigo que o ameaçava. Esse estranho ovo poderia a qualquer momento transformar-se numa fornalha infernal, que derreteria as paredes do recinto em que se encontrava, espalharia seu fogo pelo planeta e transformaria Kusma num inferno atômico.

Parou, apoiou-se com o braço direito em uma das travessas e tirou a lanterna do bolso com a mão esquerda. Com uma ligeira pressão do dedo fez que o tubo de gás se iluminasse. O feixe luminoso foi tateando pelas travessas e encontrou o ninho... e, com ele, a bomba.

Que aspecto inofensivo tinha esse engenho traiçoeiro!

De repente Lofty teve a nítida sensação do medo que durante todo o tempo estivera oculto em seu subconsciente.

Mordeu o lábio e subiu numa das travessas. Sentou-se de costas para uma chapa de metal frio e foi escorregando centímetro por centímetro. A travessa tremia sob o peso de seu corpo, o que o deixava nervoso.

O suor penetrou nos seus olhos. Com um gesto furioso enxugou-o. Inclinou o corpo para a frente. Sua mão apalpou a faixa metálica que formava a borda do ninho. Apoiou um braço sobre a mesma e com a outra mão acendeu a lanterna.

A bomba estava bem à sua frente. Bastava inclinar-se mais um pouco para tocar nela.

Foi o que fez. Até chegou a subir na borda do ninho e apalpou todo o envoltório da bomba. Constatou que o mesmo era liso, não apresentando a menor falha. Não havia nenhum lugar em que pudesse abri-la. Tratava-se de uma bomba-relógio irreversível. Uma vez ativado o mecanismo de tempo, não haveria como desligá-lo.

Talvez pudesse fazer alguma coisa se dispusesse de um aparelho de solda de alta temperatura. Acontece que não dispunha. Era um idiota. Durante todo o tempo não se lembrara de que o inimigo deveria ter colocado uma bomba que não pudesse ser desativada. E sabia que esse tipo de bomba existia.

O trabalho fora em vão.

 

De repente o medo começou a atrapalhar-lhe as ações.

Praticamente despencou da armação. Foi infeliz na queda e machucou o pé direito. Mancando e praguejando, correu pelo corredor que acabara de atravessar.

Fungava quando chegou à área da qual saía o corredor. O elevador gravitacional ficava um pouco acima de sua cabeça. Uma luz débil, vinda do alto, penetrava no poço. Lofty guardou a lanterna, colocou-se na parte direita do elevador, onde o campo de gravitação artificial era mais forte que o natural. Empurrou-se do solo. O pé doeu. Como ao empurrar-se tivesse feito mais força com a perna esquerda, perdeu o equilíbrio e deu algumas cambalhotas antes de atingir a extremidade superior do poço.

Finalmente sentiu chão firme sob os pés. Viu à sua frente o arco luminoso do transmissor. Atravessou-o.

Alguma coisa atingiu-o com uma força terrível na cabeça. Sentiu-se atirado para trás. Anéis luminosos dançavam à sua frente. Ouviu ainda uma voz colérica, antes de desmaiar.

 

No momento em que a passagem situada na extremidade oposta do canal de transmissão deu sinal positivo, Nike Quinto colocou-se junto ao receptor. Assim que Lofty Patterson apareceu no arco de recepção, avançou violentamente o braço direito e o punho cerrado atingiu o rosto de Lofty.

Este não teve a menor chance.

— Isso o ensinará a não chamar-me de idiota — esbravejou Nike Quinto.

Ron Landry achou que era uma vingança pouco decente, mas sabia, que em troca do soco, Nike Quinto renunciaria ao direito de processar Lofty Patterson por insubmissão — o que poderia fazer, embora o infrator fosse um funcionário civil.

Com isso os padrões seriam resguardados... ao menos em parte. Depois de recuperar os sentidos, Lofty sentir-se-ia satisfeito pelo fato de o processo ter sido substituído por um soco.

A K 3605 acelerou. Quando se encontrava a menos de duzentos mil quilômetros de Kusma, o pequeno planeta transformou-se numa massa incandescente de rocha.

Dois sóis, bem próximos um ao outro, brilhavam no espaço sem estrelas, situado entre os braços da espiral.

A misteriosa base instalada sob a abóbada deixara de existir.

 

O administrador do Império Solar viajou para Árcon. O imperador recebeu o amigo em seus aposentos particulares, localizados no palácio do governo.

Perry Rhodan não ocultou a preocupação que sentia pelo amigo.

— Já examinei o relatório de Quinto — disse, iniciando a palestra. — Mandei que alguns dados contidos no mesmo fossem interpretados por um computador positrônico. Só posso dizer uma coisa: não gostaria de estar na sua pele, Atlan.

O imperador fitou-o com um sorriso e respondeu com o rosto impassível:

— Bem que eu imaginava.

Perry Rhodan prosseguiu:

— Andei refletindo sobre isto. Os homens com que você pode contar não estão em condições de protegê-lo. A bordo da minha nave há alguns membros do Exército de Mutantes da Terra. Eles ficarão com você até que o perigo tenha passado.

O imperador ergueu as sobrancelhas.

— Vai ter todo esse trabalho por causa de um velho?

Perry Rhodan permaneceu sério.

— Você sabe perfeitamente que além da nossa amizade, a política galáctica também assume certa importância. No momento, a Terra não se pode dar ao luxo de tolerar desordens no Império de Árcon. O equilíbrio cósmico tem de ser mantido.

Atlan, o imperador, confirmou com um gesto.

— Compreendo. Aceito sua oferta e fico-lhe muito grato.

Perry Rhodan suspirou, aliviado.

— Muito bem. Dessa forma já conseguimos alguma coisa. O filme que nosso homem fez em Kusma já foi interpretado?

— Já. E o resultado não é muito animador. O grande centro de computação positrônica, ou seja, o antigo computador-regente, examinou as imagens. Conseguiu reativar um velho setor esquecido de sua memória, e dessa forma lembrou-se das máquinas reproduzidas no filme. É bom ressaltar que já conhecemos a finalidade dessas máquinas, mas nem mesmo o grande centro de computação conhece o princípio de seu funcionamento. Não seríamos capazes de construir outras iguais. E, uma vez que não poderemos mais pôr as mãos em Kusma...

Fez um gesto de incerteza.

— Compreendo — respondeu Perry Rhodan. — Qual é mesmo a finalidade das máquinas?

— A ativação de cérebros humanos e o aumento de sua capacidade. Ou melhor: a ativação do setor especial do cérebro que todo ser inteligente possui, embora não costume utilizá-lo, e que representa a sede das faculdades paramecânicas e parapsicológicas.

— É uma instalação igual àquela a que você foi exposto há uns dez mil anos, não é?

— Isso mesmo. Deve ter sido mais ou menos assim.

— O que Carba pretendia fazer lá?

Atlan respondeu em tom hesitante:

— Não sabemos.

— Temos que descobrir — disse Perry Rhodan, numa objeção ao princípio de letargia do amigo.

Depois falou com uma ênfase suave.

— Nossa frota conseguiu apresar a nave arcônida que levou Carba a Kusma. Dois companheiros seus, Minther e Palor, encontravam-se a bordo. No momento em que perceberam que naves terranas se interessavam por eles, suicidaram-se. A única coisa que nossos homens conseguiram fazer foi guardar os cadáveres. Quer dizer que nessa operação não descobrimos nada.

Atlan o interrompeu.

— Mas já sabemos disso. Há pessoas do Sistema Azul metidas nisso. Os acônidas estão envolvidos na conspiração. E com isso a situação torna-se tão séria que não podemos interromper nossos esforços por um minuto que seja.

Ao prosseguir, o imperador parecia curioso.

— Acabo de lembrar-me de uma coisa — disse. — A polícia arcônida encontrou o cadáver de um homem cujos documentos registravam o nome Harathron Belubal Yazgan. Era um imigrante acônida. O cadáver foi encontrado a dez quilômetros da casa do Almirante Thekus.

Perry Rhodan sorriu.

— Quer dizer que nosso robô não contou uma mentira tão grande assim, quando afirmou que Thekus se livrara do acônida que começava a incomodá-lo.

— Não; não foi isso. Temos certeza de que o homem foi morto a tiro, de frente. Gostaria de saber como Thekus conseguiu fazer uma coisa dessas. Até mesmo depois de morto, Belubal parecia um adversário bem difícil.

O administrador estalou os dedos.

— Acho que estávamos todos enganados em relação a Thekus. Acho que pertencia a um grupo que conspirava contra a ordem estabelecida. Apesar disso mantinha-se no posto importante que ocupava. Imagine quanta desgraça poderia causar se não tivesse divergido dos métodos dos companheiros, tornando-se incômodo aos mesmos?

Levantou-se e soltou uma gargalhada.

— Aonde vai com tanta pressa, bárbaro? — perguntou o imperador, em tom alegre.

— Acabo de ter uma idéia — respondeu Rhodan. — Num lugar não muito afastado daqui está um oficial, mais precisamente, um coronel, que se martiriza porque ele e seus companheiros percorreram oitenta mil anos-luz e não conseguiram registrar o menor êxito. Devo consolá-lo. Tenho que dizer-lhe que ele nos ajudou bastante.

A porta abriu-se à frente do terrano de estatura elevada. Enquanto passava pela mesma, este virou-se e acrescentou com um sorriso:

— Não posso deixar de fazer isto. Se ninguém o consolar, sua pressão sangüínea poderá matá-lo.

 

                                                                                            Kurt Mahr

 

                      

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