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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Esconderijo no Futuro / Kurt Mahr
Esconderijo no Futuro / Kurt Mahr

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Esconderijo no Futuro

 

Granada, um robô com sentimentos!?

    A destruição do computador-regente não causou a morte do Império Arcônida, pois este passou a ser ocupado e dirigido pelos terranos.

    Evidentemente essa ocupação haveria de causar atritos. Mas as dificuldades com que se defrontam Perry Rhodan e seus amigos não representam nada, diante dos perigos vindos do espaço intergaláctico.

    São os invisíveis, com os quais os terranos já travaram combate por mais de uma vez. E ainda há as espaçonaves gigantescas e praticamente inexpugnáveis dos pos-bis, que são robôs dotados de cérebros positrônico-biológicos.

    Os pos-bis e os laurins — nome que os terranos deram aos invisíveis — travam batalhas furiosas na periferia da Via Láctea.

    Mas o que é mais apavorante, os inimigos não se atacam apenas uns aos outros. Também investem contra qualquer ser vivo que surja em seu caminho.

    Quem lança um pouco de luz sobre a escuridão que por enquanto envolve a existência dos pos-bis é Meech Hannigan, o sargento-robô da Divisão III, desaparecido no espaço.

    Meech localiza o Esconderijo no Futuro...

 

                                     

 

    Até mesmo para um robô não é muito bom ficar vagando pelo espaço sem peso e sem apoio. Ainda mais quando esse espaço é absolutamente vazio.

    E Meech Hannigan estava fazendo exatamente isso. Seu sistema positrônico de autoconservação resistira facilmente aos seis meses que andou vagando sem rumo. No entanto, já estava próximo o momento em que a complicada vida interior de Meech correria sério perigo, em virtude das constantes perdas de calor. Sua temperatura atual era de trinta graus acima do zero absoluto. Se a mesma descesse, alguns controles se transformariam em supercondutores, o que seria o fim.

    Meech já não era tão bonito como costumava aparecer diante de seus amigos. O tecido celular, que constituía uma imitação perfeita da pele humana, fora vitimado pelo terrível frio do cosmos durante o primeiro décimo de segundo. Transformara-se numa massa preta e quebradiça, que Meech pôde remover facilmente de cima do corpo de metal plastificado.

    Realmente tinha o aspecto de um robô.

    Numa análise situacional, gastara os primeiros dias de seu vôo forçado pelo espaço. Tentara transportar-se por meio de um transmissor do posto de observação intergaláctica da Terra, denominado BOB-XXI, para bordo da Joann. A estação foi atacada por inteligências desconhecidas, e defendida por outras inteligências desconhecidas que se encontravam em seu interior. Estava prestes a explodir. Sofrera um bombardeio violento vindo de uma espaçonave em forma de caixa — um tipo que nunca fora visto na Galáxia. O sistema energético do transmissor deixara de funcionar perfeitamente. Em vez de sair na Joann, Meech Hannigan foi parar em pleno espaço. Perdera a pele e ligara os geradores de emergência, a fim de produzir o necessário calor. Feito isso, olhara em torno.

    Viu uma grande mancha leitosa nas profundezas do espaço. Meech admitiu que fosse sua Galáxia, embora com isso sua situação se tornasse bastante difícil. Se essa suposição fosse correta, encontrava-se a cerca de duzentos e quarenta mil anos-luz da Via Láctea. E a sua energia não seria suficiente para transportá-lo a uma distância como esta.

    Havia outras manchas luminosas, mas nenhuma delas tinha o tamanho e a luminosidade da que Meech descobrira em primeiro lugar. Não havia uma única estrela.

    Meech inventou um sistema de coordenadas no qual ele mesmo funcionava como ponto de origem. O eixo X positivo passava pela mancha luminosa. Gravou este fato em sua memória, e dali em diante estava em condições de, mediante uma série ininterrupta de observações, constatar em que direção e com que velocidade se deslocava. Além disso determinou as coordenadas próprias das manchas luminosas e comparou-as com os valores que lhes corresponderiam no catálogo estelar galáctico, fazendo a devida conversão.

    Fez uma descoberta. As manchas luminosas que representavam as galáxias estranhas ficavam, em linhas gerais, nos lugares em que Meech os supunha. Mas, depois de realizar seus cálculos com uma precisão ainda maior, como sempre costumava fazer, constatou que havia um pequeno desvio, mas inequívoco. Conhecia sua velocidade relativa de deslocamento face às diversas manchas luminosas. Era tão pequena que não poderia produzir um efeito relativista perceptível. A causa do desvio devia ser outra.

    Realizou a experiência do DT seguido de DS. Na verdade, não teve consciência do fato de que estava fazendo uma experiência. O aparelho que executava a mesma estava embutido em seu corpo. Funcionava pelo seguinte principio: Quaisquer efeitos dependentes da velocidade também variam em função da direção em que se desenrola o tempo do sistema em cujo âmbito se realiza a experiência. Coloca-se, por exemplo, uma pequena esfera de material capaz de absorver uma carga elétrica sobre um fio estendido, de tal forma que o fio sirva de trilho ao deslocamento da esfera. Após isso cria-se um campo elétrico ao longo do fio. Esse campo produzirá uma aceleração inicial do movimento da esfera, Quando a força do atrito exercido pelo fio sobre a esfera corresponder exatamente à energia desenvolvida pelo campo elétrico, a esfera passará a deslocar-se a uma velocidade constante.

    Suponhamos que essa experiência seja realizada por duas pessoas, em dois sistemas diferentes. Os relógios dessas pessoas movem-se em sentido contrário. Apesar disso, ao conferirem os resultados de suas experiências, descobrirão as mesmas leis naturais que regem o movimento da esfera. As coisas mudam de figura se a capacidade de aceleração produzida pelo campo elétrico estiver na dependência de alguma velocidade. O fio, por exemplo, poderá executar movimentos oscilantes para cima e para baixo. O gerador que produz o campo elétrico estará acoplado com o objeto que executa esse movimento, de tal forma que, no sistema I, o campo elétrico por ele gerado é tanto mais intenso quanto mais rápido seja o movimento ascendente do fio, e tanto mais fraco quanto mais rápido seja o movimento descendente.

    Suponhamos que o homem que se encontra no sistema II realize a mesma experiência. Concluída a experiência, os dois sujeitos comparam os resultados. No sistema I, o movimento da esfera sobre o fio foi tanto mais rápido quanto mais rapidamente subia o fio. Já no sistema II, a velocidade da esfera foi tanto maior, quanto mais rápido foi o movimento descendente do fio. Os dois homens ficam satisfeitos ao registrarem o resultado. Constataram que seus relógios se movem em sentido oposto e que os tempos de seus sistemas se movem em direção contrária. Em poucas palavras, concluem que T é igual a 2.

    No corpo de Meech Hannigan não havia nem fios nem esferas capazes de absorverem uma carga elétrica. As funções das esferas eram desempenhadas por um fluxo de íons. E, em vez do fio, toda a seqüência da experiência realizava movimentos ascendentes e descendentes. O resultado foi indicado em termos de graus de desvio do resultado normal.

    — Duas vezes dez na potência menos quatro, em medida arqueada — leu Meech.

    Dessa forma, o ângulo de fase que seu vetor atual temporal formava com o vetor temporal do sistema galáctico correspondia a pouco menos de um minuto do arco gradeado.

    Não era muita coisa. No entanto, o que interessava não era o ângulo da fase. O que importava era o fato de que o ângulo era diferente de zero. Isso significava que Meech se encontrava em outro sistema. Se acionasse seu equipamento de rádio, ninguém o ouviria. Ao menos as pessoas com as quais queria entrar em contato não captariam suas mensagens, já que viviam em outro sistema.

    Meech fizera essas constatações no início de sua forçada permanência no espaço. E também tirara outras conclusões. O transmissor da BOB-XXI não tivera força para transportá-lo a uma distância de duzentos e quarenta mil anos-luz, e nem estaria em condições de transferir, de maneira estável, um objeto para outro universo. Outros efeitos deviam ter desempenhado seu papel. Logicamente Meech apenas poderia supor que os acontecimentos verificados pouco antes da explosão da BOB-XXI tinham alguma relação com isso.

    Por que se encontrava justamente nesse lugar? Havia algo por perto que fizera com que fosse transportado justamente para lã? Em caso afirmativo, esse algo se encontraria no sistema temporal galáctico e era imperceptível para Meech. Teria havido uma interação recíproca entre a função transportadora do transmissor e outra função, que fizera com que só se pudesse atingir esse resultado, e nenhum outro.

    Meech procurou captar percepções de categoria mais elevada. A tarefa não era nada fácil. Para um robô tornava-se muito difícil amortizar os efeitos de primeiro e segundo grau, a tal ponto que os efeitos muito mais débeis de terceiro e quarto grau se tornassem perceptíveis. Mas vez o que estava ao seu alcance, e seus esforços foram bem-sucedidos.

    Havia algo por perto. Alguma coisa que produzia emanações energéticas das quais uma fração minúscula rompia a barreira entre os dois sistemas temporais. Naturalmente Meech não sabia o que era. Mas tinha certeza de uma coisa; não havia nenhum terrano nas proximidades. Até então nenhuma espaçonave terrana havia penetrado tão profundamente no abismo intergaláctico. Só havia alguma forma de vida inteligente nas proximidades, a mesma só poderia pertencer a uma das duas raças desconhecidas que há pouco tempo haviam aparecido pela primeira vez no campo de visão dos terranos.

    Meech resolveu prosseguir nas observações por mais algum tempo. E esse tempo teve a extensão de seis meses. No fim desses seis meses encontrava-se numa situação extremamente desagradável. Sabia que seu estado não era totalmente estável, mas apenas metaestável. Em outras palavras, a barreira existente entre os dois sistemas temporais não era muito elevada e poderia ruir a qualquer momento. Isso significava que suas mensagens poderiam ser captadas no sistema galáctico, desde que seu hiper-transmissor fosse posto a funcionar com a potência máxima. Infelizmente não seria ouvido apenas pelas naves terranas, mas também pelos desconhecidos, que se encontravam do outro lado da barreira, num local muito próximo.

    Ainda havia uma única esperança. A passagem de um sistema para outro causaria uma distorção da transmissão. Haveria ecos, que dificultariam a localização do transmissor, especialmente por quem se encontrasse nas proximidades do mesmo, podendo até torná-la impossível. Por outro lado, quem se encontrasse a grande distância não teria a menor dificuldade em fazer a localização goniométrica do transmissor.

    Meech irradiou um sinal em código.

    A temperatura do seu corpo ainda estava em vinte e nove vírgula oito graus absolutos.

 

    A mensagem percorreu uma trilha complicada, mas acabou chegando ao destino.

    Quem primeiro a captou foi a Vittorio, uma nave de patrulhamento que operava na periferia da Via Láctea. Pal Jerome, que era o terceiro-oficial da nave, mandou que a mensagem que a mensagem fosse gravada em fita magnética e submetida à interpretação positrônica. Pai teve certeza de que essa mensagem devia ter a mesma origem da que fora captada seis meses atrás. Naquela oportunidade continha uma estranha pergunta, formulada em sinais facilmente decifráveis:

    — Vocês são vivos de verdade?

    O código positrônico dos pos-bis fora introduzido em todos os decifradores da frota terrana. Pal esperava que o computador positrônico da nave levaria apenas alguns segundos para fornecer-lhe a tradução da mensagem que acabara de ser recebida. Sentiu-se surpreso ao notar que nos próximos minutos nada aconteceu. A resposta só foi fornecida depois de quinze minutos:

    — Informações insuficientes.

    Pal praguejou terrivelmente e experimentou outro código. O resultado foi o mesmo. O código em que fora redigida a mensagem era desconhecido ao computador positrônico da Vittorio. E era tão complicado que o mesmo não seria capaz de realizar a decodificação.

    Pal Jerome avisou o comandante. Este chegou à conclusão de que a mensagem deveria ser transmitida ao Serviço Secreto Solar. Pal Jerome providenciou a transmissão. Quarenta e cinco minutos depois do momento em que a Vittorio recebera o primeiro sinal, o Marechal Mercant foi informado.

    Mercant conhecia o código. Fora criado pela Divisão III do Fundo Social Intercósmico de Desenvolvimento, e era considerado inviolável. Mercant não perdeu tempo. Verificou a posição do cruzador Volta, no qual viajava o Coronel Nike Quinto, chefe da Divisão III, e ordenou à Vittorio que entrasse em contato direto com a nave Volta.

    Pal Jerome teve a impressão de que o assunto era muito importante. Redigiu outra hipermensagem e transmitiu-a à Volta, que circulava por trás do grupo estelar M-13.

    O mais estranho era que o transmissor desconhecido continuava a irradiar sua mensagem. Funcionava ininterruptamente, usando sempre os mesmos grupos de símbolos.

 

     “É a quinta discussão em vinte e quatro horas”, constatou Ron Landry com a mente resignada. “O tema sempre é o mesmo, e todas as discussões terminam sem nenhum resultado.”

    Nike Quinto inclinara-se bem para a frente em sua poltrona. Seu rosto estava mais vermelho que de costume. O círculo de cabelos cor de areia que cercava a calva estava desgrenhado. Os lábios carnudos de Nike Quinto avançavam violentamente, prontos para formular uma objeção. Os dedos grossos e curtos estavam enlaçados e apertavam-se uns aos outros, num nervosismo cada vez mais intenso.

    Larry Randall estava com o braço direito apoiado sobre o encosto da poltrona. Uma das mãos segurava o queixo. Fitava Nike Quinto e prestava atenção ao que o mesmo dizia. Lofty Patterson — o velho grisalho, vindo de Passa — mantinha-se num lugar bem afastado, como era seu costume, e só vez por outra soltava uma observação.

    “Está faltando alguém”, pensou Ron. “E não se pode deixar de notar essa falta... Meech Hannigan!”

    Fazia meio ano que o robô desaparecera, e não havia a menor esperança de encontrá-lo.

    “É estranho”, pensou Ron, “como a gente pode afeiçoar-se a um robô.”

    Essa discussão, como as que a precederam, foi travada na sala de estar da Volta. Formalmente Nike Quinto era o comandante da nave, mas preferiu deixar a direção da mesma a cargo do comandante Ellington. Preferiu cuidar apenas dos assuntos ligados ao seu serviço. A sala em que se encontravam era mais aconchegante que as que costumam ser encontradas a bordo de uma nave de guerra.

    — É impossível! — exclamou Nike Quinto, rejeitando a objeção de Larry. — Se Frago já existisse há mais tempo, os pos-bis, que são dominados por um ódio incontrolável contra tudo que é orgânico, já teriam atacado a Via Láctea há muito tempo.

    — Talvez tenha acontecido alguma coisa que os impediu de fazer isso — ponderou Larry.

    — Que nada! Já vimos que seu ódio não tem limites. Nada os teria impedido de lançar-se ao ataque.

    “É sempre a mesma coisa”, pensou Ron. “Quando se chega a um ponto em que não há mais base para discussões, o velho diz o que lhe vem à cabeça.”

    Viu pelo rosto de Larry que este refletia sobre a maneira de acusar Nike Quinto de falta de objetividade, sem provocar uma tormenta. Antes que chegasse a qualquer conclusão, Lofty, que se encontrava em ponto mais distante, disse:

    — Talvez os cavalheiros queiram ter a gentileza de notar que o intercomunicador já está piscando há alguns minutos.

    Nike Quinto levantou-se de um salto. A pequena tela instalada junto à escotilha principal emitia sinais vermelhos intermitentes. Ao mesmo tempo ouvia-se um zumbido agudo. Só Lofty notara o fato em meio à acalorada discussão.

    Nike correu para perto da escotilha e pronunciou a senha em código na direção da tela. O rosto do terceiro-oficial surgiu.

    — Nosso código? — perguntou Nike Quinto, em tom de espanto. — Naturalmente. Subirei num instante.

    Nike desligou. Abriu a escotilha e saiu correndo. Adotando uma atitude característica, não disse a ninguém por que estava saindo.

    Lofty Patterson soltou uma risadinha.

    — Desta vez nós o pegamos — constatou. — Podemos falar tudo quanto é tolice. Ele fica muito nervoso, mas não diz mais uma única palavra sobre sua pressão sangüínea.

    Ficaram em silêncio enquanto esperavam. Nike Quinto voltou dez minutos depois. Estava pálido. O suor porejava em sua testa. Cambaleava. Ron levantou-se de um salto e correu ao seu encontro. Mas, com um simples gesto, Nike Quinto dispensou seus cuidados.

    — Se as coisas continuarem assim — fungou — não chegarei ao meu próximo aniversário. Minha pressão... ó...

    Ron soltou um suspiro de alívio. Quando Nike começava a queixar-se de seu estado de saúde, tudo estava em ordem.

    — Permite que eu pergunte o que aconteceu que o deixou tão exaltado?

    — Não permito coisa alguma — esbravejou Nike. — Providencie um lugar em que eu possa sentar, a fim de que sofra meu infarto numa posição condigna.

    Larry levantou-se de um salto e empurrou uma poltrona para perto da escotilha. Nike Quinto deixou-se cair na mesma, recostou-se confortavelmente e fechou os olhos.

    — Que drama! — disse Lofty em voz baixa.

    Nike Quinto não reagiu a essa observação. Levou algum tempo para endireitar o corpo. Fitou os homens com um sorriso de deboche e disse:

    — Meech Hannigan foi encontrado!

 

    O quadro modificou-se de um instante para outro. Meech captou uma corrente de campos de disseminação, que indicavam a presença de aparelhos produtores ou consumidores de energia. De repente, as manchas luminosas que o cercavam desapareceram e foram substituídas por paredes cinzentas. Pela primeira vez nestes seis meses sentia chão firme sob os pés.

    Viu-se num corredor comprido, cujas paredes metálicas emitiam um brilho fosco sob a luz das lâmpadas azuis ofuscantes. Pelo que Meech pôde ver, não havia ninguém no corredor. Mas seu dispositivo sensorial acústico captou um leve zumbido vindo de todos os lados. Não sabia onde se encontrava, mas tinha certeza de que o lugar fervilhava de atividade.

    A condição metaestável chegara ao fim. Encontrava-se num sistema estável. Não teve a menor dúvida de que, no que dizia respeito à direção do vetor temporal, esse sistema era idêntico ao de que se afastara há seis meses. Refletiu sobre o comportamento que deveria adotar.

    Caminhou cautelosamente pelo corredor. Havia uma série de objetos montados nas paredes, com cuja finalidade Meech não conseguiu atinar. A tecnologia do novo ambiente em que se encontrava era-lhe totalmente estranha. Não tinha a menor dúvida de que acabara de entrar numa base ou nave espacial pertencente a uma das duas raças desconhecidas.

    Já desligara seu transmissor, que funcionava em código. Não devia chamar desnecessariamente a atenção dos seres da estranha raça. Já tinha muitos problemas.

    Depois de caminhar uns quinze metros, chegou ao lugar em que desembocava um corredor lateral. O mesmo estava debilmente iluminado. Mais ao longe, Meech ouviu um zumbido e o ruído de algo que era arrastado. Parou por algum tempo e notou que o ruído se aproximava. Seus aparelhos receptores registraram a intensidade crescente dos campos energéticos de uma máquina potente.

    Meech ficou parado. Era possível que o ruído representava um perigo. No entanto, precisava descobrir o que estava acontecendo, pois, do contrário, nunca seria capaz de lidar com o novo ambiente.

    Sentiu que o calor retornava ao seu corpo, fazendo com que os aparelhos recuperassem a capacidade de reação. Sob o ponto de vista humano, não fazia muito calor no corredor. A temperatura era de menos quarenta graus centígrados. Para Meech, isso representava mais duzentos graus que a temperatura reinante no lugar onde estivera há poucos minutos.

    Constatou que a gravitação era menor que a reinante a bordo das naves terranas.

    Os seres que haviam construído a nave em que se encontrava vinham de um mundo de gravitação mais elevada. Só consumiu uma fração segundo para fazer essas constatações. Logo voltou a dedicar sua atenção à penumbra do corredor lateral. Conseguiu notar alguns contornos. Viu uma caixa oblíqua, que se aproximava a uma velocidade não muito elevada. Tinha cerca de metro e meio de altura, e não havia a menor simetria em suas faces e arestas.

    Meech lembrou-se da nave em formato de caixa que haviam observado da BOB-XXI. Não havia a menor dúvida de que a caixa que se encontrava à sua frente era produto da mesma tecnologia. Provavelmente era um robô. Meech conseguiu identificar o ruído produzido pelo mesmo.

    A máquina rolava sobre correntes!

    Meech colocou-se numa posição em que o ser mecânico não poderia deixar de vê-lo imediatamente. O resultado foi espantoso. O ruído produzido pelas correntes cessou imediatamente. A caixa permaneceu imóvel, e dali a meio segundo um feixe de energia escaldante passou perto de Meech. Este teria sido atingido, se, no último instante, não tivesse captado o impulso positrônico através do qual a caixa ordenou às suas armas que abrissem fogo. Sua reação foi imediata.

    Recuou, abrigando-se atrás do canto do corredor lateral. A caixa voltou a produzir o ruído característico do arrastar de correntes e aproximou-se. Meech preparou-se para atirar. Quando o tremor do soalho metálico, provocado pela máquina, se tornou mais forte, Meech tomou impulso e saiu correndo para o outro lado. Teve o corredor lateral à sua frente por um centésimo de segundo, durante o qual disparou contra o monstro barulhento.

    Uma vez chegado do outro lado, voltou-se imediatamente, preparando-se para outro salto. Não ouviu mais o ruído das correntes arrastadas, e a recepção das irradiações provenientes do campo energético tornou-se menos nítida. Apesar disso, Meech agiu com todo cuidado. Só quando uma nuvem de fumaça cinzenta saiu do corredor lateral, abandonou seu abrigo.

    A caixa oblíqua tombara de lado e uma das esteiras cobertas por correntes se estendia para cima. O tiro de radiações disparado por Meech rompera uma chapa lateral e penetrara no dispositivo positrônico do robô. A fumaça que saía do mesmo começou a encher o corredor.

    Meech pulou o inimigo tombado. Avançou pela fumaça o mais rápido que pôde. Vez por outra parava e aguçava o ouvido. As pessoas que se encontravam a bordo da nave não tinham intenções amistosas para com ele. Seria preferível encontrar antes de mais nada uma base onde pudesse esconder-se, e de onde pudesse operar sem que ninguém o perturbasse. Avançou pelo estreito corredor e passou por uma placa metálica redonda, que parecia ter sido colada à parede que ficava à sua direita. Lembrava uma escotilha do tipo das existentes nas naves terranas. O diâmetro da placa era de aproximadamente dois metros. Talvez houvesse um bom esconderijo atrás da mesma.

    Não viu nenhum mecanismo que permitisse sua abertura. Meech apalpou a periferia da placa. Foi avançando em direção ao centro, examinando centímetro por centímetro. Suas mãos moviam-se com grande rapidez e precisão. Quando tocaram o centro da placa, a escotilha rolou para o lado, deixando livre a entrada para um tubo bem iluminado que parecia estender-se infinitamente.

    Meech entrou no tubo. Parecia ter encontrado um canal. Talvez servisse ao transporte de ar respirável ou de algum gás que era consumido em grandes quantidades na nave. As paredes eram muito lisas. Não havia a menor saliência ou reentrância.

    Meech achou que o comprimento do canal era fora do comum. Era bem verdade que o metal cintilante não permitia uma avaliação ótica precisa. Meech expediu um ligeiro impulso de radar. O eco só chegou depois de vinte microssegundos. O impulso percorrera uma distância de seis quilômetros. O comprimento do canal era de três quilômetros.

    Meech perguntou a si mesmo como seria uma nave, na qual cabia perfeitamente um canal de três quilômetros de comprimento.

    Encostou-se à parede e repetiu a experiência DT seguido de DS. Por enquanto a idéia de que se encontrava no sistema temporal da galáxia não passava de uma suposição. Precisava ter certeza.

    O resultado foi surpreendente, e fez com que a inteligência positrônica de Meech extinguisse imediatamente uma série de dados baseados numa suposição incorreta. Se pudéssemos falar em sentimento, poderíamos dizer que houve um misto de espanto e susto.

    O desvio crescera para o dobro. O ângulo da fase entre o vetor temporal de Meech e o de sua galáxia chegava a pouco menos de dois minutos.

    Afastara-se ainda mais das pessoas que poderiam salvá-lo.

 

    Em outro lugar, situado a dois quilômetros do esconderijo de Meech, dois seres estavam trocando informações. Um deles tinha certa semelhança com uma Granada de artilharia antiquada. Tinha dois metros e meio de altura. O diâmetro do pé era de um metro Em linhas gerais o projétil parecia esbelto e elegante.

    O outro ser era menos simétrico. O aspecto exterior era o de uma bacia ligeiramente deformada. No interior dessa bacia havia outra, menor, que ficava fora do centro. A altura total não ultrapassava setenta centímetros. O diâmetro da bacia maior era de um metro e meio. Embaixo da bacia havia duas séries de escovas metálicas reluzentes, sobre as quais esta se deslocava com uma rapidez apreciável. Naquele momento mantinha-se imóvel.

    — A observação estranha ainda se acha presente — disse Granada numa fala que nenhum ouvido humano teria captado.

    — O soldado sete dois três não existe mais — respondeu a “bacia”. — A observação estranha deu fim à sua existência. Não pode ser reparado.

    — Constatamos que é orgânico — disse Granada.

    O ódio tremendo que inspirava essas palavras despertou um sentimento idêntico na “bacia”.

    — Destruir — pediu.

    — Destruir — repetiu Granada.

    — Nova verificação com o fim de constatar se é orgânica ou não é necessária? — perguntou a “bacia”.

    — Não podemos perder tempo — respondeu Granada, em tom odiento. — Nossa percepção é inequívoca. A observação estranha surgiu pouco depois do último transporte energético a distância. Não se identificou, e qualquer ser aparentado teria feito isso. Tal fato constitui prova bastante. Matou um aparentado. Nenhum aparentado seria capaz disso. Não há necessidade de outras verificações.

    A “bacia” não teve a menor dificuldade em compreender esta explicação um tanto confusa. Deslocando-se sobre as escovas metálicas, aproximou-se rapidamente da parede inclinada que ficava nos fundos da sala. Não precisou abrir nenhuma porta. Atravessando a parede, saiu da sala de comando de teto em forma de telhado e chão abaulado.

    A sentença de morte de Meech Hannigan acabara de ser pronunciada.

 

    Meech achou natural que teria de sair do lugar em que se encontrava caso quisesse se salvar. Estava ainda mais longe de seus amigos que antes. Por menos confortável que fosse o espaço vazio, com sua temperatura próxima ao zero absoluto, o mesmo lhe oferecia maiores chances que a gigantesca espaçonave em que se achava. Infelizmente a causa que o tinha trazido a este lugar era totalmente desconhecida. E, enquanto não soubesse como fora parar ali, não poderia iniciar o caminho de volta. De qualquer maneira teria de abandonar a segurança que lhe oferecia o canal. Ali não encontraria resposta às suas indagações.

    Levantou-se e voltou para junto da escotilha. Esta abriu-se assim que colocou ambas as mãos sobre o centro da placa de metal. Saiu para o corredor. A placa fechou-se atrás dele. No mesmo instante sentiu as irradiações de máquinas que se aproximavam de ambos os lados. Ouviu uma porção de estranhos ruídos. O chão tremia fortemente. As máquinas deviam ser muito potentes.

    “Estão atacando”, pensou Meech com o ânimo objetivo. “Sempre souberam onde eu estava. Se tivesse demorado mais alguns segundos, eles me teriam pegado no interior do canal.”

    Sua análise combinatória constatou que tomara a decisão certa no momento adequado, mas por um motivo diferente da razão objetiva. Esse raciocínio era o equivalente positrônico da sensação de alívio.

    Dirigiu-se para a esquerda, pois viera de lá e conhecia ao menos parte do terreno. Além disso por lá se encontravam os destroços da caixa que o havia atacado. Talvez pudesse abrigar-se atrás dela, caso a situação se tornasse mais séria. Meech movimentou-se rapidamente e não se esforçou mais para evitar os ruídos. Os seres que estavam à sua frente faziam muito barulho. Além disso sabiam de qualquer maneira onde ele estava.

    Viu suas sombras, que encheram toda a largura e altura do corredor. Meech viu torrezinhas balouçantes, espirais cintilantes, esferas com reentrâncias, rolos, cilindros e bolas projetadas contra a luz forte do corredor principal. Seu cérebro positrônico teve de esforçar-se para absorver todas as impressões. Meech percebeu que a vanguarda da estranha força combatente já havia passado por cima dos destroços. Chegara tarde. O caminho para o corredor fora barrado. Atrás dele vinha outro bando de estranhas criaturas. Dentro de um ou dois minutos estaria entre dois fogos.

    Meech preparou-se para a luta. Sem a menor tristeza constatou que praticamente não tinha nenhuma chance.

 

    O deslocamento da tropa exigia energia. Granada era um ser muito previdente. Solicitou mais um transporte de energia a grande distância, indicando como motivo os estranhos acontecimentos que se desenrolavam a bordo da nave. É claro que a solicitação foi deferida. A transmissão de energia teve início. Por enquanto Granada nem desconfiava de que com isso atrapalhava seus próprios planos.

 

    A única alternativa que restava a Meech para escapar à destruição era a ação rápida. Uma profusão de campos energéticos investiu sobre ele. Não conseguiu determinar o número de inimigos que tinha pela frente e atrás de si.

    Levantou a arma e abriu fogo. Disparou uma salva de meio segundo à potência máxima para dentro do corredor; virou-se instantaneamente e repetiu o mesmo procedimento para o lado oposto.

    O inferno parecia estar às soltas. Alguns dos estranhos seres explodiram com fortes chiados e estrondos. As lascas de metal uivavam enquanto atravessavam o corredor e produziam um forte ruído quando atingiam algum alvo. Uma fumaça escura desdobrava-se em densas nuvens. Meech viu que as vítimas de suas salvas formavam uma barreira diante dos que vinham atrás deles. Mas a fumaça logo impediu a visão. A situação era tão confusa que nem mesmo pelo radar poderia orientar-se.

    “Uma luz ofuscante rompeu a escuridão. Estão respondendo ao fogo”, constatou Meech.

    Os tiros eram dados ao acaso. Penetravam no teto ou no soalho bem longe dele. O metal onde pisavam seus pés aqueceu-se. Meech esperou pacientemente. Se ficasse quieto talvez pensassem que já o tinham destruído.

    Mas o fogo continuou. Os impactos foram-se aproximando. Meech percebeu que as criaturas desconhecidas não possuíam a capacidade de agir com independência. Não tinham uma tática própria; não se notava o menor sinal da mesma. Meech teria que defender-se para sobreviver.

    Disparou mais duas salvas. A resposta foi uma série de estrondos e ribombos. A fumaça tornou-se ainda mais densa, e a temperatura do corpo de Meech subiu para duzentos graus centígrados. Mas o fogo inimigo não foi interrompido. Meech sabia que de ambos os lados havia sido colocado um número tão elevado de atacantes que seria impossível abatê-los com sua arma.

    Ganhara tempo; apenas isso. Acabaria sendo atingido. Era bem verdade que se sentia na obrigação de arrastar para a morte o maior número possível de inimigos. Essa obrigação fora incluída na programação que seus construtores haviam introduzido em seu corpo.

    Disparava ininterruptamente. Enviava salva após salva contra o inimigo. As paredes do corredor entraram em incandescência. O chão borbulhava. As ondas de compressão causadas pelas grandes explosões varriam o ambiente. Meech teve de esforçar-se para permanecer de pé.

    O inimigo prosseguia em seu ataque com uma obstinação maquinal. Não se preocupava com o número das vítimas. As fileiras de trás passavam por cima dos corpos dos robôs destruídos e avançavam passo a passo. As duas frentes que investiam contra Meech estavam a apenas seis metros.

    A cada centésimo de segundo, Meech esperava receber o tiro final. O grau de probabilidade de sua existência já descera a um nível extremamente baixo. Admirava-se de ainda estar vivo. Um tiro de radiações passou com um assobio por cima de seu ombro direito. O impulso provocado pela energia eletromagnética empurrou-o para trás. Seu corpo de metal plastificado caiu ruidosamente ao chão. Num movimento rapidíssimo rolou para o lado e voltou a colocar-se de pé.

    A inteligência de Meech constatou que não havia nenhum ferimento sério. Perdera cinco gramas de metal plastificado em virtude da fusão. Continuou a atirar. Se não fosse atingido logo teria de capitular, pois o cano de sua arma começava a amolecer.

    Mas seria atingido. Não poderia deixar de sê-lo! Não havia outra possibilidade.

    Uma claridade ofuscante surgiu à sua frente. As pálpebras mecânicas de Meech fecharam-se automaticamente. Seu sistema ótico não podia ser sobrecarregado. O sistema de sensores entrara num estado de extremo alarma. Procurou verificar o efeito que o disparo deveria ter produzido. Mas não o localizou.

    Constatou que a temperatura de seu corpo baixada rapidamente. Depois de alguns micros segundos de confusão positrônica as unidades de percepção registraram o fato de não haver mais o menor sinal dos campos energéticos disseminados pela tropa inimiga.

    Meech abriu os olhos. Mais uma vez seu dispositivo combinatório teve de extinguir uma série de informações que haviam sido admitidas prematuramente como seguras. Não se encontrava mais no corredor superaquecido de uma espaçonave, em cujo interior rugia uma luta violenta.

    Tinha diante de si o espaço, que já conhecia. Era o cosmos frio e vazio, com as manchas luminosas confusas em torno. Meech fez a medição do ângulo da fase do vetor temporal. Voltara è cifra antiga de duas vezes dez na potência menos quatro do arco graduado.

    Meech não conseguiu determinar o grau de probabilidade do acontecimento que acabara de retirá-lo, no último instante, da área de perigo. Apenas sabia que essa probabilidade era extremamente reduzida.

    Meech registrou na memória a sua salvação, sob a forma de... milagre!

   

    A Volta recebeu ordens para dirigir-se a Árcon II, nome dado ao mundo comercial da constelação de três planetas que formava o coração do Império de Árcon. O Coronel Nike Quinto recebeu instruções para pousar em qualquer porto espacial. Não compreendeu o motivo dessa ordem. Mas, quando solicitou permissão de pousar em Árcon II, começou a compreender.

    — Porto espacial de Vorpan chamando nave Volta, vinda da Terra. Todas as pistas ocupadas em cem por cento de sua capacidade. Queira dirigir-se ao porto vizinho de Pallida.

    A Volta dirigiu-se a Pallida, que ficava duzentos quilômetros ao noroeste. O comandante Rex Ellington solicitou permissão de pouso à administração do porto espacial de Pallida. O controle robotizado deu a seguinte resposta:

    — Porto espacial de Pallida chamando nave Volta, vinda da Terra. Todas as pistas ocupadas em cem por cento de sua capacidade. Queiram dirigir-se ao porto vizinho de Vorpan.

    — Volta chamando Pallida — gritou Ellington, em tom exaltado. — Venho de Vorpan.

    — Neste caso pedimos-lhe que se dirijam ao porto vizinho de Lymoor Um.

    Lymoor Um usou a mesma justificativa. Pediu que a nave se dirigisse a Lymoor Dois. Por estranho que possa parecer, Lymoor Dois anunciou que as pistas estavam ocupadas em cento e dez por cento de sua capacidade! Rex Ellington chamou o chefe do porto e pediu-lhe que reparasse quanto antes seus registros positrônicos. A Volta prosseguiu em seu vôo.

    Lymoor Três e Lymoor Quatro eram portos de dimensões reduzidas. Ambos estavam ocupados. Em Parathon, Aylor, Thap, Phoort e Thalas também não havia lugar para a Volta.

    Nike Quinto impacientou-se e discutiu com Ellington sobre a causa de tamanho caos no tráfego espacial. Ninguém soube indicar o motivo plausível. Nike Quinto encontrava-se na sala de estar. Ainda estava brigando com Rex Ellington, quando Lofty Patterson saiu de seu camarote. Ouviu os argumentos de Nike Quinto e esperou tranqüilamente que a palestra chegasse ao fim. Dispensou um sorriso alegre a Ron Landry e Larry Randall.

    — Se alguém quisesse dar-se ao trabalho de lembrar-se do óbvio — disse com a voz rouca, depois que Nike Quinto voltara para sua poltrona — já teríamos chegado a uma conclusão.

    Lançou um olhar de triunfo para Nike Quinto.

    — Em sua opinião, o que é o óbvio? — gritou Nike, em tom furioso.

    — É claro que o óbvio é não poder discutir com um comandante tão mal informado como a gente.

    O rosto de Nike Quinto ficou rubro.

    — Olhe para seu próprio nariz — chiou numa cólera extrema — e abstenha-se de observações desse tipo. Meu coração já bate que nem um... um...

    — Um martelete mecânico! — completou Ron Landry.

    — Isso mesmo, que nem um martelete mecânico. Se eu morrer da minha pressão sangüínea, o culpado será o senhor — de repente acalmou-se. Prosseguiu com a voz perfeitamente normal: — Pois bem, o que é que o senhor tem a contar?

    Lofty fez uma careta e exibiu os dentes reluzentes.

    — Andei pensando — disse em tom jovial. — Cheguei à conclusão de que lá embaixo deve estar acontecendo alguma coisa. Por isso resolvi ouvir as notícias.

    — Ora, as notícias! Quais foram as notícias que o senhor ouviu? — fungou Nike Quinto.

    — O senhor nunca ouviu dizer que em Árcon existem duas emissoras que transmitem notícias?

    Mais uma vez Nike Quinto parecia explodir. Percebia-se que engolia a raiva que o dominava.

    — Naturalmente — respondeu. — O que dizem as estações que transmitem noticias?

    — Em Árcon II reina o pânico — respondeu Lofty, com a maior tranqüilidade. — Estourou uma revolta no sistema Lydia.

    — O que é que isso tem que ver com os portos espaciais? Afinal, a frota de guerra arcônida está estacionada em Árcon III.

    — Isso nada tem a ver com a frota de guerra. Acontece que, em Árcon II, existem pelo menos dez milhões de lydianos. Na sua grande maioria são comerciantes ricos. Receiam eventuais represálias do governo. Afinal, quem se revoltou foram seus patrícios. Um de cada quatro desses lydianos tem sua nave. Quer dizer que são dois milhões e meio de naves que pretendem decolar dentro de alguns minutos. Isso é muito, até mesmo para Árcon II.

    — Por que o governo não impede a fuga? — perguntou Nike Quinto, em tom exaltado.

    — O senhor acredita que o locutor iria contar isso aos ouvintes que sintonizaram sua estação?

    Nike Quinto ficou matutando.

    — Caso esteja interessado — disse Lofty, com uma risadinha — acho que posso lhe dizer porque não fazem nada para impedir isso.

    — Por quê? — perguntou Nike Quinto, nervoso.

    — Imaginemos que dez milhões de pessoas ricas quisessem abandonar Árcon. Fugindo, podiam levar apenas pequena parte de seus haveres. A maior parte do que possuíam está depositada em bancos. Uma vez realizada a fuga, o governo arcônida não teria a menor dificuldade em apontá-los como incitadores da revolta. Dirão que saíram porque desejavam apoiar os habitantes de Lydia. A fortuna dos revoltosos costuma ser confiscada. A fortuna de dez milhões de pessoas, à razão de um milhão de solares por pessoa, em média, corresponde a... caramba, quanto é mesmo?

    — São dez trilhões — disse Larry.

    Nike Quinto levantou-se de um salto.

    — Isso não passa de uma especulação ridícula — gritou. — Além de ridícula, não nos interessa. O que interessa saber é onde encontraremos um local para pousar.

    Por algum tempo ninguém se atreveu a falar. Finalmente Ron Landry sugeriu:

    — Acho que só nos resta o porto livre, sir.

    Nike Quinto fitou-o prolongadamente e disse em tom de resignação:

    — Acho que o senhor está com a razão, Landry.

    Instruiu o comandante Ellington a dirigir-se ao porto livre. Rex Ellington recebeu a ordem sem pestanejar.

    Dali a alguns minutos, o terceiro-oficial informou que a Vittorio já não estava captando os sinais goniométricos de Meech Hannigan.

 

    — Ainda acabarei sendo chamado de administrador ambulante — disse o homem alto, de olhos cinzentos. — Por isso não me admirarei nem um pouco. Hoje estou em Árcon, amanhã na Terra, e depois de amanhã... quem sabe onde?

    O único ouvinte era um homem de estatura mediana, que aparentava seus quarenta anos de idade e trazia as divisas de major da Frota Espacial Terrana. A conversa estava sendo realizada numa sala não muito grande, decorada segundo o gosto terrano, cujas janelas amplas permitiam uma boa visão sobre o chão coberto de capim e arbustos. Mais ao longe viam-se as torres esféricas da exposição galáctica permanente, setor de alimentos finos. O nome do major era Everett Pterson, que no momento exercia as funções de ajudante do administrador. O homem que acabara de fazer a observação, na qual havia certo conteúdo de autocrítica, era o administrador em pessoa.

    Era Perry Rhodan, o imortal.

    Peterson manteve-se em silêncio. A observação que acabara de ouvir fora feita numa espécie de solilóquio. O administrador não esperava qualquer resposta. Perry Rhodan olhava por uma das janelas. Muito além das torres esféricas, um ponto reluzente descia das alturas e aproximava-se do porto livre. Era uma nave de transporte para grande distância.

    — Há alguma notícia de Quinto? — perguntou o administrador.

    — Há, sim senhor. Neste momento se prepara para pousar no porto livre. Ainda não sabe que foi o senhor em pessoa que deu ordem para que pousassem em Árcon II. Falei com ele.

    Everett sorriu; aquilo parecia diverti-lo.

    — A diferença da graduação não é muito grande. Além disso Nike Quinto é um homem importante. Deixou bem claro que em sua opinião essa ordem é uma tolice. Em primeiro lugar o pouso é totalmente inútil, e além disso representa uma perda de tempo na procura do robô Meech Hannigan — concluiu o major.

    — Por quê? Já conseguiu fazer a localização goniométrica do mesmo?

    — Não pode, sir. Não é ele que está captando os sinais. Mas, ao que parece, tem certeza absoluta de que a Vittorio conhece sua posição.

    Perry Rhodan afastou-se da janela. Sorriu.

    — Bem, ele está sendo tangido pelo próprio nervosismo — disse em tom alegre. — Aliás, quais são as notícias vindas da Vittorio?

    — Os sinais em código continuam a ser recebidos, sir. A interrupção não durou mais de treze minutos.

    — E nosso computador positrônico?

    — Está recebendo todos os dados relativos à intensidade, à regulagem das antenas e as características de ionização. A alimentação é feita automaticamente pela Vittorio. Pelos cálculos do Capitão Inquart, o resultado deverá estar disponível dentro de três ou quatro horas.

    O administrador soltou uma gargalhada.

    — Isso deverá ser suficiente para convencer Nike Quinto de que não perdeu tempo. Mas vamos adiante. Quais são as notícias de Árcon?

    — A revolta em Lydia está em plena efervescência. A guarnição arcônida, recrutada entre povos estranhos, dissolveu-se. Os revoltosos praticamente dominam o planeta.

    Perry Rhodan sacudiu a cabeça. Parecia pensativo:

    — Será que eles realmente pensam que podem levar isso avante? Dentro de quatro, cinco, ou seis dias o mais tardar, a frota sufocará a revolta. Afinal, o que é que essa gente quer? Será que sentem falta de alguma coisa?

    — Querem liberdade — respondeu Everett. — Sentem que estão submetidos ao imperador, e isso não lhes agrada.

    — Mas eles sabem perfeitamente que desse jeito nunca conseguirão aquilo que eles chamam de liberdade.

    O major ponderou:

    — Na minha opinião, sir, eles contam com um acontecimento bem definido.

    Rhodan parecia curioso.

    — Que acontecimento é este?

    — As revoltas estão eclodindo em todos os pontos do Império Arcônida. E os revoltosos conhecem a mentalidade arcônida, sir, especialmente a mentalidade dos arcônidas que habitam o coração do império. Na minha opinião esperam que um dia o imperador se canse de dar ordens para sufocar tudo quanto é revolta. Acham que um dia dirá: “Deixem para lá. Que façam o que quiserem, pois já estou cansado.”

    Perry Rhodan ergueu as sobrancelhas; parecia surpreso.

    — Diria que é uma opinião bem fundamentada — confessou. — Acontece que, se realmente é assim, essa gente subestima o imperador. Atlan nunca cederá. E a Terra apóia sua diretriz. Não podemos dar-nos ao luxo de assistir impassíveis ao esfacelamento do Império Arcônida.

    — Perfeitamente, sir — disse Everett Peterson.

    Dali a alguns segundos, um ordenança trouxe a notícia de que o cruzador Volta acabara de pousar no porto livre.

    Perry Rhodan sorriu.

    — Agora Nike Quinto começará a divertir-se!

 

    Nike Quinto encontrava-se na sala de comando da Volta, quando a nave tocou o solo. Seus olhos semicerrados fitaram com uma expressão de desconfiança o movimento confuso que se desenvolvia na periferia do porto. Nesse lugar não tinha validade a lei interestelar, segundo a qual se devia manter uma distância mínima entre duas naves pousadas, ou que estivessem realizando manobras de pouso ou decolagem. Os veículos espaciais amontoavam-se quase tão proximamente como os automóveis numa área de parqueamento de qualquer metrópole. Cada qual que resolvesse o problema de afastar-se no devido tempo da área crítica em torno de um propulsor que estivesse funcionando. E o problema de encontrar um local de pouso devia ser resolvido pelo comandante de cada nave.

    O porto livre era uma entidade privada. O consórcio que o explorava pagava um trilhão e meio de solares em moeda arcônida ao governo. Era o tributo mais elevado que no momento estava sendo pago por uma única instituição. O segundo tributo em valor situava-se um fator cem abaixo desse.

    No porto livre negociava-se tudo que a Galáxia tinha a oferecer. Havia peles de lagartos jekateriktas e carros-planadores de fabricação terrana, microaparelhos eletrônicos e gigantescas naves transportadoras, escravos de pele azul e cartas de alforria que restituíam a liberdade a esses mesmos escravos. Na verdade, porém, o porto era um centro de jogatina. Não era fácil encontrar compradores para as mercadorias, pois lá fora, onde terminava a área do porto, o serviço alfandegário arcônida fechava o cerco. Quem comprasse qualquer coisa tinha de pagar direitos alfandegários e outros tributos, sempre que isso fosse exigido. Havia artigos que podiam ser introduzidos em Árcon independentemente do pagamento de direitos, como os planadores terranos, e outros que, em hipótese alguma, poderiam sair da área do porto livre, como os escravos. O fato de que apesar disso havia em Árcon mais escravos que planadores terranos provava que o serviço alfandegário de Árcon apresentava brechas, que eram naturais ou então abertas pelo poder econômico. No porto livre ganhavam-se e perdiam-se verdadeiras fortunas numa questão de minutos. O lugar exercia uma força mágica de atração sobre os mercadores de toda a Galáxia. Até mesmo os representantes de certas raças, que costumavam ser encontradas apenas em seus planetas natais, apareciam por ali.

    — O senhor já pousou alguma vez no porto livre? — perguntou Nike Quinto, dirigindo-se ao comandante.

    — Não senhor — respondeu Rex Ellington. — Mas já ouvi os boatos mais inacreditáveis.

    Pegou o microfone do intercomunicador de bordo e transmitiu sua ordem.

    O recebimento da ordem foi confirmado. Nike Quinto olhou para uma das telas e viu a ponte deslizante sair de sob a linha equatorial da nave esférica e pousar suavemente no chão. Num instante uma multidão de pessoas de trajes coloridos reuniu-se ao pé do passadiço. Os mais Atrevidos procuraram subir pela fita deslizante, mas Rex Ellington transmitiu que não iria aceitar ninguém a bordo. E todos foram atirados para baixo.

    — O que é que eles querem? — perguntou Quinto, perplexo.

    — Querem vender suas mercadorias — respondeu Rex, sorrindo. — O senhor se admirará ao ver a variedade de mercadorias que estão sendo oferecidas.

    A tela do telecomunicador iluminou-se. Rex respondeu ao chamado. Um homem de uniforme foi projetado na tela.

    — Sou da administração portuária — disse a título de apresentação. — Façam o favor de permanecer a bordo. Mandaremos realizar uma inspeção.

    — Uma inspeção? — fungou Rex, em tom zangado. — Por quê?

    O homem uniformizado estendeu ambas as mãos, num gesto de lamentação.

    — Sinto muito, senhor. É o novo regulamento. É principalmente por questões de higiene. Nos últimos dois meses houve alguns casos de doenças extremamente contagiosas.

    — Está bem — gritou Rex. — Mas é bom que o senhor saiba de uma coisa. Não esperaremos mais que dez minutos terranos.

    — Ótimo! Andarei depressa!

    A ligação foi interrompida. Dali a alguns minutos, um planador aberto ocupado por dois homens uniformizados aproximou-se do passadiço. O piloto fez uma manobra tão “elegante” que os homens que esperavam no começo do passadiço não tiveram outra alternativa senão saltar para o lado. Um dos dois homens ficou no veículo e vigiou-o de arma em punho. O outro saltou para cima do passadiço e subiu à comporta. Rex Ellington invertera a direção da fita transportadora. Uma ordenança foi receber o homem uniformizado na eclusa e o encaminhou à sala de comando.

    Dali a pouco encontrava-se à frente de Nike Quinto. Era o mesmo homem com o qual Rex Ellington mantivera a palestra pelo telecomunicador. Não parecia ser um arcônida. Disse que seu nome era Xen Holla.

    — Por que a administração arcônida resolveu escolher um não-arcônida como inspetor? — perguntou Nike Quinto.

    Xen Holla parecia muito inseguro.

    — É possível que não encontrem arcônidas para esse tipo de lugar.

    — Onde estão seus aparelhos? — perguntou Rex Ellington. — Será que quer inspecionar a nave com os dedos?

    Desta vez Xen ficou realmente embaraçado.

    — Bem, é o seguinte — disse depois de algum tempo. — Quero fazer-lhes uma proposta.

    Rex Ellington esteve a ponto de levantar-se de um salto, mas Nike Quinto segurou-o pelo braço.

    — Pois fale — pediu ao uniformizado.

    Xen parecia sentir-se aliviado.

    — Desistimos da inspeção — disse. — Em compensação os senhores aceitam uma proposta muito favorável que lhes faremos.

    — Que proposta é esta?

    — O senhor compra quinze toneladas de madeira laktrônica perfumada por apenas um milhão de solares.

    Nike Quinto virou-se para Rex Ellington. Parecia a calma em pessoa.

    — É barato, não é mesmo?

    — Muito barato — disse Rex, em tom sarcástico. — Basta lembrar que fora da área do porto, depois de pagos os direitos, uma tonelada de madeira perfumada atinge o preço absurdo de trezentos mil solares.

    Nike Quinto fez-se de espantado.

    — Como é mesmo? Mas é barato demais...

    — Pois é — disse Ellington, num resmungo.

    Xen entusiasmou-se. Parecia falar com as mãos e os pés ao mesmo tempo.

    — É claro que podemos conversar sobre isto. É uma proposta sujeita a alterações. Devo-ressaltar que, nos últimos dias, os preços das madeiras perfumadas subiram bastante. Quem sabe se o senhor não obteve sua informação de...

    Nike Quinto interrompei-o com um movimento enérgico.

    — Preste atenção, meu jovem amigo — disse em voz baixa. — Agora sou eu que vou lhe fazer uma proposta!

    Xen empalideceu.

    — Pois... pois não... — disse em tom embaraçado.

    — O senhor poderá sair de minha nave dentro de um minuto — prosseguiu Nike Quinto — ou então eu lhe aplico umas bofetadas e mando que meus homens o ponham para fora.

    Xen Holla soltou um uivo indignado.

    — Sou um funcionário do porto livre. O senhor não me pode fazer uma proposta dessas. Formularei uma queixa contra o senhor. Vou...

    Interrompeu-se, pois Nike dirigiu-se a Rex Ellington.

    — O senhor olhou para o relógio? — perguntou Nike.

    — Sim senhor.

    — Muito bem. Ele ainda tem uma chance de se pôr para fora da nave sobre os próprios pés, depois de falar tanta besteira?

    — Não senhor.

    — Muito bem.

    Depois dessa observação lacônica, Nike voltou a dirigir-se ao estranho que subira a bordo. Agindo tão depressa que Xen não pôde acompanhar seus movimentos, aplicou uma ruidosa bofetada em um e outro lado da face de Xen.

    Este recuou, gritando. Depois voltou a esbravejar, mas Nike foi atrás dele. Continuou a distribuir bofetadas. Xen foi cambaleando escotilha afora. Os homens de Rex Ellington levantaram-no. Dali a pouco viram-no rolar pelo passadiço, cujo curso fora outra vez invertido.

    A sala de comando da Volta encheu-se de gargalhadas. Nike Quinto esfregou as palmas das mãos, como quem quer limpar o pó das mesmas, e disse com o rosto mais sério deste mundo:

    — Se houver mais um incidente como este, não escaparei ao infarto.

    Esta observação não diminuiu a alegria geral. Nike Quinto pediu que Ron Landry comparecesse à sua presença. Ron já devia ter ouvido falar no incidente enquanto caminhava de seu camarote à sala de comando, pois entrou com um sorriso na boca.

    — Qual é o motivo dessa risada estúpida, major? — gritou Nike.

    — Perdão, sir, mas ouvi falar a respeito de seu poder de persuasão sobre mercadores e tipos semelhantes.

    — Ah, Sim. Bem, o senhor logo poderá provar se nesse terreno é tão bem-sucedido quanto eu — virou-se e apontou para a tela. — Está vendo essa gente ao pé da escada?

    Era claro que Ron os estava vendo.

    — Pois bem. O senhor, o Capitão Randall e Lofty Patterson serão as primeiras pessoas a saírem da nave. Procure atrair as atenções dessa gente. Procure pechinchar com eles. Se quiser, compre alguma coisa, mas não gaste mais de duzentos solares. Entendido? Ficarei atrás dos senhores e espero passar sem ser molestado.

    Ron examinou a situação ao pé do passadiço. Rex Ellington mandou preparar dois planadores. Um deles saiu imediatamente pela comporta da nave e foi colocado ao pé do passadiço. Evidentemente o veículo do infeliz Xen Holla já desaparecera de lá. Ron Landry retirou-se da sala de comando, a fim de informar Larry e Lofty sobre a nova tarefa que lhes fora atribuída.

    Dali a pouco, os três desceram pelo passadiço. Nike Quinto ficou satisfeito ao notar que as hordas que se encontravam ao pé da escada logo se precipitaram sobre eles e os cercaram. Viu Ron Landry fazer gestos de defesa com os braços, enquanto Lofty Patterson bateu com ambos os punhos no peito de um vendedor insistente demais. O tal mercador do porto caiu para trás e arrastou alguns companheiros.

    — As coisas estão indo muito bem — disse Nike com um sorriso de deboche. — Mande sair meu carro, comandante.

    Dali a alguns segundos, um planador apareceu ao lado do que saíra em primeiro lugar. Os mercadores não demonstraram o menor interesse pelo mesmo. Estavam ocupados com as três “vítimas” que os enfrentavam.

    Nike Quinto saiu só da nave. Desceu pelo campo transportador sem que ninguém o notasse, contornou a massa humana, que berrava e pechinchava, e entrou no veículo.

 

    — Como vai sua pressão, coronel? — foi a primeira pergunta que Nike Quinto ouviu da boca de Perry Rhodan.

    Everett Peterson já o avisara durante o vôo do porto espacial para cá de que se encontraria com o administrador. Depois disso Nike Quinto passara a refletir sobre a palestra que mantivera com Everett antes que a Volta pousasse. Tinha certeza de que Everett compreendera perfeitamente que ele, Nike, achara que a escala em Árcon II era uma rematada tolice. E agora ficou sabendo que fora o administrador quem dera ordem para isso. Não se sentia muito à vontade.

    Apesar disso reagiu com a maior tranqüilidade à pergunta formulada num tom de ironia bonachona.

    — Obrigado pelo interesse, sir — respondeu em tom amável. — Um homem como eu nunca vai bem de saúde. Mas no momento não tenho motivo de queixa.

    Os olhos de Perry Rhodan piscaram alegremente. Mas seu rosto logo assumiu uma expressão séria. Passou ao que realmente importava.

    — Sei que em sua opinião a escala em Árcon não teria sido necessária — principiou.

    “Agora vou ouvir umas boas”, pensou Nike.

    — Acredito, porém, que poderei dissipar suas dúvidas — prosseguiu o administrador. — A Vittorio não possui a aparelhagem necessária à localização goniométrica do transmissor instalado no interior do robô. A mensagem constantemente repetida chega distorcida à nave. Há necessidade de correção e de reforço. Por isso mantemos contato ininterrupto com a nave Vittorio. Nosso computador positrônico pode fazer o trabalho. Daqui a duas ou três horas disporemos dos resultados das medições goniométricas. Antes disso o senhor não poderia fazer nada.

    Nike Quinto ouvia-o atentamente.

    — Permite que faça uma pergunta, sir?

    — Naturalmente.

    — Meech voltou a chamar nesse meio tempo? Enquanto nos aproximávamos de Árcon, o contato entre a Volta e a Vittorio foi interrompido.

    — Sim; o robô continua a transmitir — Respondeu o administrador. — A Vittorio continua a receber os impulsos da mesma forma que antes. Existe alguma interferência que afeta as transmissões. Não é só a distância, já descobrimos isso. Seu robô deve encontrar-se numa situação em que não pode transmitir da maneira usual.

    Nike Quinto não fez nenhuma observação.

    Perry Rhodan prosseguiu:

    — Muito bem. Este é o primeiro argumento. Logo lhe esporei o segundo. Para mim o assunto é tão importante que quero participar pessoalmente de seu vôo de reconhecimento.

    Nike lançou-lhe um olhar de surpresa. Mas, ao que parecia, naquele momento o administrador não estava disposto a dar explicações.

    — Decolarei com a Teodorico pouco antes ou pouco depois da Volta, conforme as circunstâncias. Por isso tivemos que preparar tudo como se fosse ao acaso. Estou em Árcon porque o império mais uma vez está enfrentando dificuldades. Desempenho o papel de um cão-de-fila galáctico. O público arcônida sabe da minha presença. Sem que o quisesse, transformei-me num fator importante do dia-a-dia arcônida. Se eu convocar uma conferência dos oficiais do estado-maior da minha frota, para ser realizada neste planeta, tal fato despertará as atenções de todos. Depois disso, todos ficarão sabendo que saí de Árcon logo após a conferências. Uma vez feita essa observação, chegarão à conclusão de que a Terra já não está interessada na manutenção da ordem no interior do Império. Em conseqüência haverá fortes quedas das cotações na bolsa, estado de histeria política, um máximo de problemas políticos internos para o imperador.

    “Não podemos dar-nos ao luxo de permitir que isso aconteça. Por isso devemos causar a impressão de que a Volta fez uma visita ocasional ao planeta. E não demonstrou a menor pressa. Procurou pousar nos diversos portos espaciais, até que finalmente encontrou lugar no porto livre. Ninguém verá nada de estranho no fato de que a primeira pessoa que o comandante procurou foi o administrador. Ninguém suporá que há algum motivo importante atrás disso. A Volta decolará e desaparecerá. Não há nada de especial em tudo isso.

    “Quanto à Teodorico, ninguém sabe onde ela se encontra. Quer dizer que sua decolagem não despertará a atenção a quem quer que seja. O público, arcônida continuará a acreditar que me encontro em Árcon. Nestas condições não teremos por que preocupar-nos.”

    Nike Quinto não demonstrara multo interesse pelas explicações de ordem política. Naturalmente compreendia por que deviam agir com cautela. Também chegou à conclusão de que sua escala em Árcon não causara nenhuma perda de tempo. Não poderia ter feito nada, pois ainda não se dispunha dos resultados das medições goniométricas.

    No entanto, a informação de que Perry Rhodan queria acompanhar a viagem da Volta a bordo da Teodorico deixou Nike Quinto bastante exaltado. Não era só porque a Teodorico, a nave capitânia do administrador, era a unidade mais poderosa da Frota Solar. Isso já bastava para tornar o assunto um tanto excitante. Mas o mais estranho era que o próprio administrador queria participar das buscas.

    Por quê? Haveria algo de tão importante no fato de que, depois de seis meses de silêncio, o robô Meech Hannigan, pertencente à Divisão III do Fundo Social Intercósmico de Desenvolvimento voltara a dar sinal de vida?

    Nike Quinto nem percebeu que o administrador o fitava intensamente. Estava absorto em suas reflexões. Só se sobressaltou quando Perry Rhodan disse com uma ligeira ironia:

    — Pelo que vejo, o senhor está quebrando a cabeça, coronel. Pois não quero deixá-lo por mais tempo na incerteza. O senhor já deve ter ouvido falar na estranha interferência que produz uma distorção nas transmissões do robô. Nossos cientistas não conseguem atinar com qualquer tipo de interferência capaz de produzir um efeito desse tipo numa hipertransmissão. Isso bastaria para despertar nosso interesse.

    “Mas existe outra circunstância. O computador positrônico da Teodorico ainda não forneceu o resultado exato das medições goniométricas. No entanto, já está em condições de fornecer a distância aproximada. E essa distância parece indicar que Meech Hannigan estabeleceu alguma espécie de contato com os desconhecidos que surgiram há cerca de seis meses na periferia de nossa Via Láctea. É que nenhuma espaçonave galáctica jamais penetrou tão longe no espaço intergaláctico.”

    Nike Quinto não conseguiu dominar mais seu nervosismo.

    — Qual é a distância, sir? — perguntou.

    — Bem, são uns duzentos e quarenta mil anos-luz... além dos limites da Via Láctea. — Respondeu Perry Rhodan, em tom sério.

 

    Nike Quinto ainda se sentia um tanto confuso quando regressou à Volta. Subiu ao passadiço reluzente e deixou que este o conduzisse rapidamente até a eclusa.. Rex Ellington veio ao seu encontro e acompanhou-o à sala de comando. Enquanto caminhavam, Nike Quinto disse em tom pensativo:

    — Encha o tanque, comandante. Temos uma viagem longa pela frente.

    Rex soltou uma risada.

    — O conteúdo do tanque da Volta permite uma viagem de duzentos mil anos-luz — disse — Acho que isso basta, não basta?

    Nike Quinto sacudiu a cabeça.

    — Não.

    Rex Ellington arregalou os olhos.

    — Não? — exclamou. — Que distância deveremos...

    — Apenas duzentos e quarenta mil... — respondeu Nike. — São duzentos e quarenta mil de ida e duzentos e quarenta mil de volta. Mais uns ridículos doze mil de vôo de aproximação. Devemos calcular com cerca de quinhentos mil anos-luz.

    Rex ficou paralisado.

    — Quinhentos mil...! — gaguejou.

    — Isso mesmo. É a viagem mais longa que já foi feita por uma espaçonave de nossa Galáxia.

    — Que já foi feita — disse Rex como num eco — Bem que gostaria que já a tivéssemos feito.

    — Ora, não se preocupe. Seremos muito bem escoltados.

    Rex fitou-o com uma expressão indagadora.

    — Pois o senhor se surpreenderá. — disse Nike Quinto. — Não é qualquer um que goza desse privilégio. Seremos acompanhados por “Sua Majestade”, a nave Teodorico.

    Rex Ellington ficou com o queixo caído e os olhos arregalados, enquanto se esforçava para digerir a novidade.

    — A... a Teodorico! — gaguejou depois de algum tempo. — Meus Deus, o que aconteceu?

    — Não lhe posso dizer — disse Nike.

 

    Quando Ron Landry e seus dois acompanhantes voltaram da manobra realizada a favor de Quinto, a Volta já havia enchido os tanques e Nike Quinto recuperara sua capacidade de ação, depois de um prolongado período de reflexão. Recebeu Ron na sala de estar.

    — Com licença, sir.

    — Teve alguma despesa?

    — Tivemos, sir. Cento e oitenta solares.

    Nike levantou-se de um salto.

    — Cento e oitenta! Será que o senhor enlouqueceu? Afinal, o que comprou?

    Ron Landry não perdeu a calma.

    — Um aparelho com o qual o antigo proprietário não sabia o que fazer.

    Nike Quinto deixou-se cair numa poltrona e perguntou:

    — O que é que o senhor pretende fazer com o aparelho?

    — Pretendo desmontá-lo e dar uma boa olhada em seu mecanismo — respondeu Ron. — Pelo que dizem, o aparelho tem alguma relação com a curvatura das linhas temporais.

    — Lorotas! — afirmou Nike Quinto. — Afinal, o que levou o senhor a fazer essa compra?

    — Foi a descrição do... bem, do homem que lhe entregou o objeto, fornecida pelo vendedor.

    — Como é mesmo?

    — O vendedor vem de Agladynn. Trata-se de um pequeno mundo, situado num lugar longínquo. Pelo que diz, uma bela noite encontrou no campo um estranho ser, que lhe dirigiu a palavra. Afirma que quase saiu correndo de medo. Aquele ser irradiava hostilidade mas, ao que aprecia, precisava de auxílio. Pediu-lhe que lhe fornecesse um bule de ácido clorídrico e algumas barras de zinco. O homem...

    — Ah! Precisava disso para produzir hidrogênio — interrompeu Nike Quinto.

    — Provavelmente. O homem voltou à aldeia e trouxe o que o desconhecido lhe pedia. Em, troca o ser deu-lhe a caixa que acabei comprando. Pelo que diz, o ser bebeu o ácido clorídrico, e engoliu zinco. O agladynense achou preferível afastar-se da cena da aventura. Posteriormente ficou sabendo que tal procedimento fora acertado. No campo irrompeu um incêndio na vegetação, que se propagou com uma velocidade inacreditável e só se extinguiu no dia seguinte, por falta de material combustível.

    — Ah, é? E o ser estranho desapareceu, não desapareceu?

    — Isso mesmo. Não se encontrou mais o menor vestígio do mesmo. Dali se conclui que não morreu no incêndio. O agladynense tem certeza de que o incêndio foi provocado no intuito de matá-lo.

    Nike Quinto mergulhou em profundas reflexões. Depois de bastante tempo pediu a Ron:

    — Bem, falta explicar como era o estranho ser.

    Ron estendeu as mãos, como quem quer avaliar o tamanho de um objeto invisível.

    — Seu formato é irregular — disse. — Parece um dado com o qual andaram jogando futebol. O homem diz que seu aspecto é totalmente louco e incompreensível.

    O silêncio passou a reinar na sala. Dali a algum tempo ouviu-se o pigarrear de Nike Quinto. Balançou a cabeça e perguntou:

    — O aspecto parece um tanto familiar, não parece?

    — Pela descrição só pode ter sido um pos-bi — comentou Larry Randall.

   

    A Volta decolou dali a duas horas. Nike Quinto foi avisado de que a Teodorico se afastaria do planeta dentro de quarenta minutos.

    O grande centro de computação positrônico já havia fornecido a localização exata. O resultado provisório fora correto. Meech Hannigan, o robô, encontrava-se num ponto situado a duzentos e quarenta mil anos-luz dos limites da Via Láctea.

    As pessoas a bordo da Teodorico e da Volta sabiam que as duas naves estavam prestes a empreender a viagem mais longa realizada por uma nave terrana. E não era só isso. Nem mesmo os arcônidas poderiam gabar-se de já terem penetrado tão longe nas profundezas sem estrelas entre as galáxias.

    Não houve nenhum pronunciamento oficial, embora o assunto bem o merecesse. O administrador não estava disposto a considerar essa missão uma coisa especial e nunca vista. Apesar disso as pessoas que se encontravam a bordo das duas naves não se sentiram muito à vontade.

    A Volta aumentou a aceleração bem longe do sistema solar arcônida. Embora não modificasse a velocidade, consumiu quantidades consideráveis de energia, a fim de penetrar na fase do vôo linear de velocidade superior à da luz.

    Depois disso acelerou mais ainda. Uma vez envolta na bolha estável do campo kalupiano, que protegia a nave contra as forças do semi-espaço, que repeliam qualquer corpo estranho, a Volta atingiu em pouco mais de quinze minutos uma velocidade que pelos padrões do espaço einsteiniano correspondia a 108 L, ou seja, a cem milhões de vezes a velocidade da luz. Os sensores lineares — aparelhos complicadíssimos, capazes de, por assim dizer, abrir um furo na parede que separava o semi-espaço do universo einsteiniano, permitindo a passagem de raios eletromagnéticos e outros semelhantes — tornavam possível a observação direta do espaço einsteiniano, sem qualquer distorção relativista. Logo depois foi avistada a bolha kalupiana que envolvia também a Teodorico. Rex Ellington e o comandante da nave capitânia fizeram a verificação da rota. Só se permitiu um ligeiro descanso quando coordenador positrônico anunciou que a nave estava na rota certa. Deixou os propulsores e mecanismos direcionais entregues a si mesmos.

    Nesse meio tempo, uma discussão violenta surgira na sala de estar da Volta. Discutia-se sobre o que vinha a ser um campo temporal.

    Os oficiais da Divisão III dispunham de boa formação científica e esforçavam-se para manter-se atualizados com as pesquisas mais recentes. Se Ron Landry tivesse de abandonar o serviço, seu grau de doutor em ciências naturais lhe permitiria encontrar emprego com a maior facilidade. E o mesmo acontecia naturalmente com Nike Quinto. Por enquanto Larry Randall só possuía um diploma, mas estava prestes a alcançar o doutorado.

    Nike Quinto afirmou que um campo temporal não passava de uma asneira inventada por alguém que gostou da expressão. Ron Landry não concordou com essa opinião.

    — Tudo depende da forma de abordagem do problema — disse em tom enfático. — Nossa ciência já se acostumou ao modelo que enxerga diversos níveis energéticos, separados por nosso plano temporal. Vê a série desses níveis da mesma forma que se viam há cento e cinqüenta anos ou mais os níveis esquemáticos de um átomo ou de um núcleo atômico.

    “Existem diferenças energéticas pouco pronunciadas, que podem ser superadas por meio de um salto bem delimitado, e às vezes nem podem sê-lo. Devo afirmar que até agora esse modelo não deu muito resultado. Os progressos que fizemos na teoria da variança dos tempos são mínimos. Talvez o motivo disso seja o modelo pouco favorável a que nos ativemos. A teoria da Física Nuclear não teria chegado ao ponto em que se encontra se, há um século e meio, Fermi tivesse adotado, em vez do modelo da gota, o de um balão cheio de gás. Quem sabe?”

    Uma expressão irônica surgiu nos olhos de Nike Quinto.

    — Quer dizer que o senhor criou uma nova teoria da variança do tempo? — perguntou com sua voz aguda.

    Ron sacudiu a cabeça.

    — De forma alguma. Mas bem que poderia imaginar um novo modelo.

    Nike Quinto soltou uma risadinha nojenta.

    — Estou curioso para ouvir.

    Ron não se sentia muito bem. Fazia pouco tempo que começara a refletir sobre essas coisas. Tinha a impressão de que o caminho pelo qual seguia era bastante promissor. Mas os pensamentos ainda não estavam maduros para serem transformados em palavras. Recriminou-se a si mesmo por se ter envolvido numa discussão com um homem do tipo de Nike Quinto. Agora tinha que mostrar suas cartas, pois, do contrário, Nike zombaria dele pelo menos durante seis meses.

    Principiou em tom hesitante:

    — Encare, de maneira puramente formal a distância entre dois pontos como um potencial. Para justificar essa imagem, devemos admitir a existência de uma força retropropulsora, que procure evitar que um objeto se desloque de um desses pontos para outro. Suponhamos que se trate de alguma forma de atrito ou de um campo gravitacional. A energia necessária para deslocar um objeto de um ponto para outro corresponde à integral da força a que está submetido esse objeto, multiplicado pelo elemento representativo do caminho a ser percorrido, que pode ser designado como DS. Se admitirmos que a força seja representada por uma constante, a integral representativa da mesma pode ser eliminada da equação.

    “Com isso o caminho percorrido pelo objeto se tornará a medida da diferença de potencial entre os dois pontos. Para simplificar, suponhamos que o senhoreai deslocar um bloco de ferro desta escotilha, até a parede oposta. A energia total que o senhor terá que despender dependerá do caminho que escolher. Será a menor possível se o bloco de ferro for empurrado através da sala em linha reta. Atingirá um valor muito mais elevado se o bloco for deslocado junto às paredes, ou seja, por um caminho mais longo.”

    Lançou um olhar indagador para Nike Quinto. Este acenou com a cabeça. A expressão de seu rosto era menos irônica que antes.

    — Consigo acompanhar seu raciocínio — disse.

    — Muito bem. Já definimos uma linha no espaço, que corresponde à diferença de potencial entre os dois pontos. Essa diferença depende do caminho percorrido — lançou um olhar para Larry e para Nike, e procurou localizar Lofty Patterson na semi-escuridão em que este se encontrava. — Sei que tudo isto pode parecer um absurdo — observou um tanto contrafeito — mas temos de encontrar um meio de explicar as coisas.

    — Não se acanhe — disse Nike Quinto, em tom animador. — Por enquanto a coisa parece bem interessante.

    Ron perdeu um pouco do seu nervosismo.

    — Passemos a considerar dois pontos que não estão separados no espaço, mas no tempo. Seus planos temporais são diferentes. Não fazemos qualquer afirmativa sobre o fluxo do tempo nos dois locais. A distância temporal pode ser considerada uma diferença de potencial, tal qual fizemos com a distância no espaço.

    “Para deslocar um objeto de um ponto para outro, haverá necessidade de certo dispêndio de energia. A existência de uma força retropropulsora semelhante ao atrito é certa. Os físicos a designam como a impendência T. Também podemos imaginar uma força constante que atue sobre o objeto. Com isso, em vez das linhas espaciais de que decorre a diferença de potencial entre dois pontos separados no espaço, obteremos linhas temporais. A soma de todas as linhas temporais imagináveis poderia ser designada como o campo das linhas temporais, ou simplesmente como o campo temporal. A linha reta representará a menor diferença de potencial.

    “Pelo que me disseram, o aparelho que adquiri por cento e oitenta solares é capaz de influenciar o fluxo das linhas temporais. À primeira vista, isto não parece ter muita importância. As linhas temporais são algo que apenas acabamos de criar em nossa imaginação. E não há muita coisa que possa ser curvada num quadro-modelo.

    “Acontece que o aparelho talvez possa produzir certo efeito. Quem sabe se não pode tornar impossível o deslocamento entre dois pontos, separados no tempo? Em outras palavras, o dispêndio que se tornará necessário para separar uma diferença no tempo será maior. É possível que, ao falar na curvatura das linhas temporais, o desconhecido que vendeu o aparelho ao agladynense tenha pensado nesse efeito.”

    Ron recostou-se na poltrona. Ao rememorar o que acabara de dizer, teve a impressão de que sua explanação não era muito convincente; em muitos pontos do raciocínio em que se baseava, a explicação parecia bastante forçada. Mas tinha a impressão de se encontrar na pista certa. Esperava que, dali a pouco, Nike Quinto faria uma careta e logo soltaria a gargalhada inevitável.

    Mas Nike não fez nada disso. Manteve-se por alguns minutos numa silenciosa meditação. Finalmente levantou a cabeça, fitou Ron e disse:

    — Isso parece perfeitamente razoável. Acredito que realmente encontramos uma pista bastante promissora. Seria conveniente pedirmos a alguns especialistas em matéria de tempo que pensassem no assunto.

    Ron não esperara por tal atitude.

    — Acontece que o senhor se esqueceu de uma coisa — prosseguiu Nike.

    Estas palavras por pouco não destruíram a sensação de triunfo de Ron.

    — De quê?

    — Na sua opinião o aparelho poderia tornar impraticáveis certos caminhos temporais entre dois pontos, aumentando o dispêndio de energia necessário ao percurso. É sua teoria, não é?

    — Isso mesmo — confirmou Ron.

    — Pois bem — observou Nike Quinto. — Se o aparelho é capaz de uma coisa dessas, também deveria ser capaz de alcançar o resultado oposto. Suponhamos que alguém se tenha ocultado atrás de um campo de linhas temporais encurvadas. Talvez o aparelho possa neutralizar a curvatura das linhas temporais e facilitar o acesso.

    A idéia era perfeitamente plausível. Todos a compreenderam no instante em que Nike Quinto pronunciou estas palavras. E tiveram a impressão de que tinham diante de si um fato novo, cujas conseqüências não poderiam ser menosprezadas.

 

    As duas naves levaram vinte horas para vencer a enorme distância que as separava do destino. Durante a viagem foram realizadas novas determinações goniométricas. Quando a Teodorico e a Volta permaneceram imóveis em relação à fronteira da Galáxia, não havia mais dúvida de que o robô devia encontrar-se em algum lugar situado num raio de mil quilômetros.

    A aparelhagem automática de localização logo entrou em funcionamento.

    Era bastante difícil localizar um objeto do tamanho de um homem no interior de uma esfera de dois mil quilômetros de diâmetro. Teriam de esperar que umas dez horas se passassem para saberem se a busca poderia ou não ser coroada de êxito.

    Durante esse tempo, os homens tiveram de acostumar-se ao novo ambiente. O negrume infinito deixava-os deprimidos. A Galáxia a que pertenciam era apenas uma débil mancha luminosa projetada nas telas de popa. Era fácil abrangê-la com a vista em toda a extensão. Era vista de um dos cantos. Cobria metade do campo de visão sob a forma de débil faixa nebulosa.

    No interior dessa nebulosa havia bilhões de sóis, e cada um deles era um gigante de massa e energia, um inferno incandescente. Em torno desses sóis circulavam centenas de bilhões de planetas, e em pelo menos vinte milhões, havia vida inteligente. Naquele instante trilhões e mais trilhões de seres vivos dedicavam-se ao seu trabalho ou descansavam. Milhões de espaçonaves faziam seu percurso entre as estrelas. Travavam-se guerras e celebravam-se festas. Novas descobertas eram feitas, enquanto o saber antiquado era relegado ao esquecimento. Tudo estava em movimento. As civilizações floresciam e morriam. Povos desapareciam e outros ocupavam seu lugar.

    Tudo isso acontecia numa pequena nesga de neblina luminosa que vagava pela escuridão. A luz que estava sendo captada pelos instrumentos das naves já havia partido de seus pontos de origem, quando, no terceiro planeta do sistema solar, o primeiro homem teve a idéia de que para certos fins poderia usar uma cunha de pedra em vez das mãos.

    Ao refletirem sobre isso, os homens deram-se conta da distância infinita que os separava de seus mundos. E durante as primeiras horas da busca não havia ninguém a bordo da Teodorico e da Volta que não refletisse sobre essas coisas.

    Era um céu sem estrelas, totalmente negro. As manchas luminosas da Via Láctea e de outras galáxias ainda mais distantes pareciam faixas pintadas por um pincel manejado ao acaso.

    O espaço que os cercava não tinha temperatura. A temperatura depende do volume da energia cinética das moléculas. Não era que lá fora as moléculas não tivessem energia cinética. E sim porque não existiam moléculas. A cada três ou quatro quilômetros havia um próton solitário, e talvez uns poucos elétrons. Era só. E era muito pouco para exercer qualquer influência sobre um objeto qualquer, fazendo com que sua temperatura se afastasse do zero absoluto.

    Era o vazio total. O nada absoluto. Era só uma questão de horas, e o homem exposto a um ambiente como este perderia a razão.

 

    As horas foram se arrastando. Os aparelhos de localização vasculharam cada metro cúbico de espaço situado no setor indicado pelos cálculos goniométricos. Fizeram um trabalho cuidadoso. O corpo do robô, feito de metal plastificado, não lhes poderia escapar. Ao menos a uma distância tão pequena. Precisavam apenas de tempo.

    Tiveram tempo. Apesar disso não conseguiram nada. Reiniciaram as buscas, enquanto os hiper-receptores recebiam com toda nitidez os sinais emitidos pelo robô. Houve apenas uma ligeira distorção provocada pelo estranho fenômeno sobre o qual os cientistas por enquanto mantinham silêncio. Realizaram-se novas determinações goniométricas.

    A posição de Meech Hannigan foi calculada com a precisão de um quilômetro! O setor em que os aparelhos de localização tiveram de realizar suas buscas foi reduzido.

    Mas foi tudo em vão. Os aparelhos não fizeram a menor indicação!

    Meech Hannigan simplesmente não foi encontrado.

 

    Em meio à penumbra da estranha sala, Granada fitava a chapa feita de um mosaico de metais. Para os sentidos supersensíveis de Granada, aquela placa tinha muita vida. As pedrinhas do mosaico irradiavam centenas de milhares de impulsos de curta duração, que se reuniram no cérebro de Granada, para formar uma imagem.

    Era a imagem de duas espaçonaves, uma pequena e outra média.

    O ódio dominou o ser e por um instante turvou a imagem.

    Lá estavam eles, os seres orgânicos. Tratava-se de seres horríveis, em cujas veias corria um líquido vermelho, ou branco ou verde, mas sempre um líquido. Essas criaturas possuíam uma coisa pulsante situada em algum lugar, sob a pele, e essa coisa tangia o líquido ininterruptamente por todas as partes do corpo. A inteligência desses seres estava encerrada numa repugnante massa viscosa branco-acinzentada, e os mesmos enxergavam por meio de olhos feitos de um liquido grosso e turvo.

    A cólera fez com que o ser tocasse numa série de chaves para desencadear certos fenômenos, que numa questão de segundos dariam cabo dessas criaturas. Mas conseguiu Reprimir a ira. A ordem que haviam recebido determinava que se mantivessem ocultos; houvesse o que houvesse.

    Por enquanto ainda estavam ocultos. Como é quedos seres feios e tolos que se encontravam lá fora podiam imaginar que o inimigo se achava num esconderijo impenetrável? A débil inteligência dos seres orgânicos jamais poderia conceber um esconderijo como este?

    Não. A estação tinha de manter-se em silêncio. A ordem era mais importante que qualquer tipo de emoção.

    Por isso Granada, para saciar ao menos parte de seu ódio, só pôde divertir-se com a falta de habilidade com que as organizações que se encontravam lá fora procuravam alguma coisa que, devido a sua tolice infinita, jamais encontrariam.

 

    O cientista que ocupava o posto de capitão demonstrou o devido respeito ao penetrar no pequeno recinto. Talvez não devesse ter feito continência. É que usava o jaleco branco do laboratorista, e, nestes trajes tal gesto parece um tanto ridículo.

    Era o único aspecto que perturbava a harmonia do quadro. O recinto era iluminado apenas por uma lanhada não muito forte que se encontrava sobre uma mesa. O administrador estava sentado atrás dessa mesa. Levantou a cabeça ao ver o cientista entrar e retribuiu o cumprimento.

    — Descobrimos um indício, sir — disse o homem de jaleco branco.

    — Faça o favor de sentar, Akkainen. Que indicio é este?

    Akkainen, que era um homem magro, de estatura média e cabelo negro, sentou-se na beira de uma poltrona.

    — Há um indicio de que nem tudo está em ordem lá fora, sir — disse apressadamente.

    Perry Rhodan soltou uma risada.

    — Ora essa! Como foi que o senhor descobriu?

    Akkainen percebeu que dissera o que não devia.

    — Perdão, sir — retificou. — Temos provas de que lá fora existe um campo temporal distorcido.

    Perry Rhodan ficou um tanto nervoso.

    — O que vem a ser isso? — perguntou.

    — Isso... isso... bem, sir, não sei — gaguejou o cientista. — Talvez seria preferível descrever a experiência que realizamos.

    O administrador limitou-se a fazer um gesto afirmativo. Akkainen iniciou relato.

    — Mandamos sair um barco espacial equipado com um fotômetro. O fotômetro foi acoplado a um relógio, e esse relógio é controlado a partir da Teodorico por meio de hiper-raios. Em outras palavras, emitimos um sinal luminoso e ao mesmo tempo transmitimos um hiperimpulso, que imediatamente põe o relógio em funcionamento. Acontece que algum tempo se passa até que o sinal luminoso atinge o barco. O observador que se encontra a bordo desse barco pode ler no relógio, que pára automaticamente à chegada do sinal luminoso, quanto tempo este levou para percorrer a distância que separa a Teodorico do fotômetro.

    “Utilizamos como transmissor de sinais um laser com a duração de oito nano segundos. Mandamos que o barco espacial se afastasse a uns mil quilômetros e que efetuasse medições constantes num raio de cem quilômetros. O robô Meech Hannigan só pode encontrar-se entre a Teodorico e o círculo em que foram realizadas essas medições. Na opinião dos operadores dos goniômetros não nos encontramos a mais de trezentos quilômetros do mesmo.

    “Na sua maioria os resultados das medições são perfeitamente normais. A luz do nosso laser consome um tricentésimo de segundo para vencer a distância de mil quilômetros. Em noventa por cento dos casos as medições de tempo acusaram esse valor. Dali se conclui que a luz percorre um caminho normal. Não existe nenhum obstáculo entre a nave e o barco espacial.”

    Akkainen lançou um olhar indagador para Rhodan. Este disparou sua pergunta:

    — O que aconteceu com os dez por cento restantes?

    — Não temos nenhuma indicação, sir — respondeu Akkainen, apressadamente.

    — Nenhuma indicação?

    — Por enquanto não, sir. Pedimos que o barco medisse todos os pontos do circulo e depois o enviamos a um ponto em que não conseguia captar nossos sinais. Existe a possibilidade de que os mesmos acabem chegando, depois de alguma demora.

    — Então é isso que o senhor entende por uma distorção do campo temporal?

    — Sim senhor. Sabemos que a distância temporal entre dois pontos situados no universo einsteiniano corresponde à distância espacial dividida pela velocidade da luz. Dentro do campo temporal, assim definido, um raio de luz deveria ser capaz de atravessar a distância que separa dois pontos. Ao que parece, alguém modificou a distância temporal lá fora. Produziu uma distorção da linha representativa da menor distância entre os dois pontos. É isso que, no meu entender, vem a ser uma distorção do campo temporal.

    — Até parece que o senhor já sabia onde deveria começar a procurar — disse Rhodan, em tom pensativo. — De quem foi a idéia?

    — Do Major Landry, sir.

    O administrador fitou-o com uma expressão de surpresa.

    — Faça o favor de pedir a Landry que compareça à minha presença — disse. — Fico-lhe muito grato pelas informações, Akkainen. É bem possível que estejamos na pista correta.

 

    Naturalmente os tripulantes do barco espacial foram escolhidos pelo pessoal da Volta. O que estava em jogo era muito importante; não se tratava apenas da descoberta de um esconderijo, mas da verificação da teoria elaborada por um dos homens de Nike Quinto. Por isso Nike fez questão de que o barco fosse pilotado por Larry Randall, enquanto Lofty Patterson observava o fotômetro.

    Tudo correra conforme o plano; pelo menos por enquanto. O que também correspondia ao plano era o fato de que a voz aguda de Lofty resmungava ininterruptamente. Não concordava com o fato de ter sido enviado ao espaço, para ficar comprimido sobre uma banqueta de laboratório entre dois instrumentos de medida, enquanto os outros ficavam sentados em confortáveis poltronas e mandavam que seus ordenanças lhes servissem bebidas.

    Apesar das reclamações, Lofty concentrava-se no seu trabalho. Toda vez que o relógio era posto a funcionar por meio de um sinal emitido pela Teodorico, ouvia-se um ligeiro zumbido. Quando isso acontecia, Lofty apenas virava a cabeça e lia o número de micros segundos decorridos entre o início do funcionamento do relógio e o recebimento do sinal laser. Não chegava a perceber que o relógio estava correndo. Um microcentésimo de segundo é um lapso de tempo tão pequeno que a consciência humana não pode fazer nada com o mesmo.

    Finalmente voltou a ouvir o zumbido, virou-se como de costume e constatou que o painel continuava escuro. Isso significava que o relógio ainda estava correndo. E também significava que o sinal luminoso, que deveria ter sido captado numa fração de segundo, ainda não percorrera a distância entre os dois pontos de referência.

    Lofty considerou todas as possibilidades imagináveis, inclusive a de um erro de regulagem. Dirigiu uma indagação à Teodorico, pois desejava saber se não havia uma possibilidade de que o sinal não fora captado porque o barco se encontrava num lugar em que não devia estar. A abertura do feixe de raios laser era de apenas alguns segundos do círculo gradeado. A mil quilômetros da fonte do raio laser, o diâmetro do feixe era de apenas dez metros. Na opinião de Lofty era perfeitamente possível que houvesse um erro de dez metros ou mais na localização do barco, e que por isso o sinal não tivesse sido recebido.

    Garantiram-lhe, porém, que não se podia cogitar de um erro direcional. O barco encontrava-se no lugar era que devia estar, com uma precisão de cinqüenta centímetros. Se o fotômetro não reagia, dali só se podia concluir que o sinal ainda não chegara.

    O barco continuou a deslocar-se. Consumiram-se várias horas para cobrir o círculo imaginário criado pelos cientistas com uma série de pontos de medição bem próximos. Constatou-se que o sinal luminoso não chegava a cerca de trinta pontos.

    Por ordem dos cientistas o barco acabou voltando para um dos pontos em que o resultado da experiência fora negativo, e pôs-se a esperar. Ron Landry explicou a situação aos dois homens que se encontravam no barco.

    — É possível que o sinal demore algumas horas para chegar — disse. — Por favor, não percam a paciência e fiquem a postos. É claro que lhes traremos tudo de que precisam.

    A espera teve início.

    Ron teve razão. Várias horas se passaram, sem que nada acontecesse. O estado de ânimo das pessoas a bordo do barco era estranho. Havia o espaço negro e totalmente vazio que os cercava. Face à ausência de luz, as duas naves que se encontravam a mil quilômetros só podiam ser reconhecidas nas telas do equipamento de observação espacial, sob a forma de fantasmagóricas manchas verdes. Havia a sensação de que atrás das paredes de metal plastificado do barco, que eram resistentes, mas não muito grossas, havia um inferno que ninguém jamais poderia ter imaginado pior. À medida que o tempo passava, crescia a impressão dos dois homens que se encontravam no barco, de que o vazio que se estendia lá fora não encerrava apenas o silêncio e a escuridão. Esse vazio procurava agarrá-los. Procurava um meio de penetrar no barco, a fim de devorar toda vida que se encontrasse em seu interior.

    Tiveram medo. Não quiseram confessá-lo a si mesmos. Afinal, pertenciam à Divisão III, cujos membros, por natureza ou em virtude de meticuloso treinamento, possuíam nervos de aço ou então nem tinham nervos.

    Mas agora o medo começou a apoderar-se deles.

    Ainda acontecia que nem sabiam se tudo àquilo não seria em vão. Se a posição do barco não estivesse desregulada, o laser poderia estar. Talvez nem estivessem em condições de captar o sinal. Quem sabe se algo não saíra errado? Era possível que ficassem por aí para todo o sempre, à espera de um sinal luminoso que há tempo passara por eles para precipitar-se no nada.

    Lofty foi o primeiro a ser aliviado de suas preocupações em virtude do cansaço, ao menos por algum tempo. Era mais velho que o outro. Larry renunciou voluntariamente a pausa para o descanso. Tomou um comprimido que espantou o sono e sentou-se no lugar de Lofty, atrás dos instrumentos de medida.

    Lofty dormiu cinco horas. Seu cansaço teria dado para muito mais, mas preocupava-se com Larry. Isso fez com que se erguesse abruptamente.

    No momento em que Larry se deitou para dormir, já fazia vinte horas que se encontravam nesse ponto. O sinal luminoso ainda não chegara. Lofty pôs-se a calcular. Se esse sinal ainda estivesse em algum lugar, a essa hora teria percorrido, por caminhos sinuosos, um trajeto de quase vinte e dois bilhões de quilômetros, e isso num setor de espaço cujo comprimento maior era de apenas mil quilômetros.

    O plantão de Lofty também chegou ao fim. Larry voltou a ocupar o lugar junto aos instrumentos. Lofty dormiu seis horas e voltou a acordar. O sinal ainda não havia chegado.

    Em vez do sinal, apareceu um planador de duas pessoas, enviado pela Volta. Trazia mantimentos. Antes de ser revezado pela terceira vez, Lofty preparou um almoço que, nas condições em que se encontravam, só podia ser considerado farto e devorou-o juntamente com Larry. Por estranho que possa parecer, o estômago cheio fez com que o medo se desvanecesse quase por completo.

    Quando já se tinham passado sessenta horas, ou seja, dois dias e meio, a Teodorico enviou uma mensagem segundo a qual o tempo de espera fora limitado num total de cem horas. Depois disso o administrador interromperia a experiência, ou mandaria que os dois homens que se encontravam no barco fossem substituídos.

    — Quarenta horas, quase dois dias! — exclamou Lofty, com um suspiro. — Que isso nos sirva de consolo!

    Setenta horas passaram-se. A experiência ensinara aos dois homens que uma boa alimentação ajudava a acalmar os nervos. Já se haviam acostumado ao ambiente.

    Setenta e sete horas! Lofty voltou a revezar Larry, que se sentia cansado. Tomou um pouco de café preparado por Larry, comeu uma salsicha com um pedaço de pão e fumou um cigarro. Enquanto fazia tudo isso, ficava sempre de olho no fotômetro.

    Finalmente sentou-se na cadeira desconfortável, à frente do painel de instrumentos, è, para passar o tempo, desenhou figuras num pedaço de papel. Mergulhou em reflexões. Nem sabia quanto tempo já havia passado quando ouviu um leve estalido.

    Virou-se abruptamente e notou que o mostrador do relógio se iluminara.

    Leu o número 288123.

    Lofty fez o cálculo num instante.

    O raio de luz levara cerca de oitenta horas para atingir o barco espacial.

   

    Nike Quinto falou com a voz bem acentuada e não deixou que ninguém percebesse o fato de a teoria não ter surgido primeiro em sua mente.

    — Bem à frente de nosso nariz — explicou — existe um ponto que só podemos atingir por um caminho muito mais longo. Um raio de luz levou oitenta horas para, depois de muitas voltas, chegar lá. Se medíssemos a distância em nosso universo, chegaríamos à conclusão de que deveria ter levado apenas alguns milésimos de segundo. Na verdade, porém, não podemos atingir o ponto em que se encontrava o barco em menos de oitenta horas, a não ser que abandonemos o universo einsteiniano. Isso acontecerá se seguirmos o mesmo caminho do raio laser.

    “Na Teodorico chamaram isso de campo de distorção, e o mesmo não surgiu por si. Foi criado artificialmente e esconde alguma coisa. Os caminhos de fluxo temporal contornam essa coisa. Para percorrer esse trajeto no tempo que à primeira vista pareceria adequado, ou seja, alguns segundos, teríamos de viajar para o futuro num trajeto de oitenta horas, menos esses segundos.

    “Quer dizer que podemos dizer que o desconhecido que se encontra à nossa frente se escondeu numa área situada oitenta horas no futuro.”

    Olhou em torno e notou que sua explanação de vulgarização científica representava um desperdício. Ron, Larry e Lofty continuavam tranqüilamente em suas poltronas. Parecia que não haviam prestado atenção às palavras de Nike. O único ouvinte que não dispunha da bagagem científica dos outros era Rex Ellington, que fitava Nike Quinto com o queixo caído. Evidentemente não havia compreendido quase nada.

    Nike aborreceu-se.

    — E, o que é mais importante — prosseguiu depois de pigarrear — um de nós viajará para esta região situada no futuro. O administrador em pessoa deu ordem para isso.

 

    A sensação experimentada por quem flutua livremente no espaço, apoiado apenas sobre uma chapa quadrada de metal, não é nada agradável. Especialmente quando a chapa tem apenas um metro e meio de lado, e a gente tem de enfiar os pés em estribos de arame para não ser tangido para longe.

    E as coisas tornam-se ainda piores quando a gente vê uma nave esférica de trezentos metros de diâmetro desaparecer na escuridão numa questão de segundos, muito embora a chapa se desloque a uma velocidade extremamente reduzida.

    A Volta não se encontrava a mais de um quilômetro, mas Ron já não a via. Normalmente deveria parecer uma montanha atrás da chapa de metal. Mas a nave tinha desaparecido. Sumira em meio à ausência absoluta de luz do abismo angustiante em que se encontrava. Nem chegara a ver a Teodorico.

    Ron deixou-se cair para trás, dobrou os joelhos e produziu um impacto mínimo ao sentar na chapa. A seu lado estava amarrado o pequeno aparelho que Nike Quinto chamava de caixinha dos cento e oitenta solares. Se virasse a cabeça cautelosamente para a esquerda, a fim de não criar nenhum impulso cinético indesejável, veria as pernas inchadas do traje espacial de Lofty. Este continuava de pé esforçando-se para localizar as duas espaçonaves.

    — É inacreditável — cochichou e também sentou na chapa.

    Sua voz revelava certo mal-estar. Ron procurou enxergar através do visor do capacete, mas até mesmo a uma distância tão reduzida a luz existente não bastava para isso.

    — Temos tempo para acostumar-nos — retrucou. — Não começaremos antes de duas horas.

    — Acho que deve ser justamente por isso, não é?

    — Exatamente. Nike pediu que não nos apressássemos. Não poderemos fazer nada enquanto nossas mãos tremerem de medo.

    — Que medo que nada! — disse Lofty, em tom de desprezo. — É como se a gente estivesse num quarto escuro, com os olhos fechados.

    Ron deu uma risada.

    — Mais ou menos.

    O tempo arrastava-se com uma lentidão martirizante. A chapa deslocava-se a uma velocidade de apenas quinze metros por segundo. Mas não se percebia nada desse movimento. Faltava o ponto de referência pelo qual se poderia constatá-lo.

    — Bem que gostaria de compreender um pouco melhor a teoria que há atrás disso — principiou Lofty, depois de algum tempo. — Nesse caso talvez poderia calcular nossas chances.

    — Pois tentarei dar-lhe uma ligeira explicação — sugeriu Ron. — Preste atenção. Se você escolher qualquer porção do universo einsteiniano, há de notar que, entre dois pontos quaisquer, sempre existem linhas, que podem ser designadas como linhas de percurso do tempo. Não podemos vê-las, mas seu curso pode ser determinado. Pois bem. Estas linhas podem ser consideradas retas, se desprezarmos a curvatura geral do Universo. A menor diferença de tempo imaginável entre os dois pontos é o tempo que um raio de luz gasta para percorrer esse ponto. Entendido?

    — Mais ou menos.

    — Muito bem. Imaginemos que apareça alguém que empurre as linhas de percurso da luz para um lado. Fatalmente há de causar uma curvatura das mesmas. A linha que une os dois pontos já não é reta; é curva e, portanto, mais longa. A menor diferença de tempo possível tornou-se maior que antes. Imagine um terceiro ponto, situado na linha de percurso da luz e existente antes da curvatura. Um momento. Temos que designar esses pontos por letras. O primeiro ponto será o ponto A. O segundo será designado pela letra B. E o ponto situado entre os pontos A e B será o ponto C.

    “Suponhamos que você se desloque para percorrer a linha que une o ponto A ao ponto B, Ainda não existe a curvatura da linha de percurso temporal. Enquanto você faz sua viagem, você se lembra de que talvez seria preferível ir a C, não a B. Será fácil. A distância até o ponto C é menor que aquela que o separa do ponto B. E o ponto C fica em sua linha de deslocamento. Isso significa que você pára quando alcança C.”

    Viu que Lofty acenava ligeiramente com a cabeça.

    — Suponhamos que alguém curve sua linha de percurso temporal. Para aumentar a diferença temporal entre A e B, curva essa linha bem para fora. Você volta a fazer o percurso de A para B. Se quiser ir para C, não terá possibilidade para isso. É que a linha de fluxo temporal que une A e B sofreu uma curvatura que a faz passar fora de C. O ponto C não fica mais nessa linha.

    — Isso não seria problema — disse Lofty. — Bastaria abandonar a linha. Poderia escolher outro ponto, chamado D, e dali poderia dirigir-me a C.

    — É uma objeção bem plausível — disse Ron, em tom de elogio. — Suponhamos, porém, que o desconhecido tenha produzido uma curvatura em todas as linhas de percurso temporal, fazendo com que não passem por C.

    — Nesse caso — gaguejou Lofty — o ponto C seria inatingível.

    — Exatamente. É o que parece ter acontecido aqui. À nossa frente existe um ponto que não pode ser atingido pelas linhas de percurso temporal, situadas na quarta dimensão. Todas as linhas contornam esse ponto. A experiência com o raio laser prova isso. O fenômeno resultante da distorção das linhas de percurso temporal pode ser designado como um campo de distorção. É um nome bem significativo, não é? Espera-se que o aparelho que trazemos conosco neutralize essa distorção, fazendo com que o caminho antigo possa ser percorrido de novo.

    Ron viu Lofty estender a mão e colocá-la sobre o aparelho.

    — Será que este aparelho cumpre a promessa? — perguntou em tom desconfiado.

    — É o que dizem. O pessoal de laboratório o desmontou e examinou. Sabiam o que deviam procurar, e por isso concluíram seu trabalho sem nenhuma demora. O aparelho produz outro campo de distorção. Basta direcioná-lo de maneira a neutralizar os efeitos do primeiro campo, e o caminho ficará livre.

    — Hum — fez Lofty e manteve-se calado.

    Ron olhou para o relógio. Nike Quinto lhe recomendara que esperasse duas horas, antes de iniciar seu trabalho. Além disso adotara outras precauções. A chapa de metal sobre a qual apoiavam os pés era uma delas. A mesma deveria evitar que o inimigo — se é que este existia — constatasse a presença de emanações energéticas, provenientes de aparelhos complicados, como as produzidas pelos geradores de um barco auxiliar ou mesmo as de um traje transportador arcônida. Ron e Lofty usavam trajes espaciais comuns. A energia de que precisavam era gerada por pequenas fontes de radiações. Além disso os transmissores de capacete haviam sido regulados para um alcance mínimo. Isso não significava quase nada num espaço que opunha uma resistência mínima às emanações eletromagnéticas. Acontece que as duas naves espaciais se mantinham nas proximidades, e os potentes transmissores das mesmas sobrepunham-se a quaisquer irradiações que os pequenos transmissores de capacete pudessem produzir.

    Por enquanto não poderiam fazer outra coisa. Era pouco. Nike Quinto não ocultara o fato de que estava destacando dois dos seus homens para uma espécie de comando suicida.

    O inimigo não se manteria impassível diante da tentativa de forçar a porta que dava para seu esconderijo.

    “Faltam oito minutos”, pensou Ron.

 

    Granada não conseguiu tirar os olhos do quadro que surgira à sua frente.

    Eram seres orgânicos feios, monstruosos, repugnantes.

    Devia haver um número inacreditável dos mesmos. Comprimiam-se em suas naves como se fossem vermes, preparando-se para precipitarem-se sobre uma carniça. Vermes — era esta a comparação adequada. Na verdade, para Granada isso não chegava a ser uma comparação. Havia uma identidade. Os vermes eram seres orgânicos, e as criaturas que se encontravam nas proximidades também eram formas de vida orgânica.

    Um pouco de inteligência não fazia muita diferença.

    Granada imaginou o que aconteceria se cortasse ao meio a maior das duas naves. A repugnante vida orgânica sairia pela abertura. Seriam milhares, dezenas de milhares?

    Enquanto existisse essas formas de vida orgânica, ele as destruiria.

    Mais uma vez a ânsia de destruição tornou-se muito forte. E mais uma vez Granada teve de esforçar-se para obedecer à ordem recebida.

    A ordem dizia que se mantivessem ocultos. Ninguém deveria tomar conhecimento de sua presença.

    Granada voltava constantemente a incutir essa ordem em sua mente. Não conseguiu fazer com que a recordação dessa ordem lhe fizesse esquecer sua repugnância. A recordação e a repugnância provinham de duas fontes distintas, que jorravam com a mesma intensidade. No entanto, a recordação acabou vencendo. Granada era um ser cônscio das suas responsabilidades.

    Por uma ironia do destino, o sistema de alerta entrou em funcionamento no momento exato em que Granada finalmente conseguiu dominar de vez a repugnância.

    A chapa feita de mosaicos de metal informou Granada de que havia algo de errado com o campo temporal. Os geradores que produziam o campo estavam em pleno funcionamento. Concluía-se que alguma influência externa estava agindo sobre o campo temporal.

    Alguém localizara o esconderijo.

    A ordem perdera sua finalidade.

 

    Mais uma vez, Meech percebeu que algo de extraordinário estava acontecendo em torno dele. Registrou estranhas emanações vindas de um ponto situado atrás dele. “Atrás dele” significava a direção onde ficava a maior das manchas luminosas que havia em torno de Meech, e que representaria sua Galáxia, caso o robô se encontrasse no Universo normal.

    Naturalmente o espaço estava vazio. A percepção direta era impossível. Meech apenas captou impulsos confusos, pouco nítidos e destituídos de sentido.

    Mas sabia que a estranha e gigantesca nave espacial, em cujo interior oferecera, há um dia terrano, um espetáculo impressionante, se encontrava à sua frente.

    O que significava, então, a nova percepção? Será que as estranhas criaturas em formato de barras, esferas, torres, frigideiras e bacias haviam saído de sua nave para atuar do lado de fora? Ou será que toda a nave contornava o ponto em que se encontrava?

    Seria impossível descobrir. Teria de esmerar e colher outros dados.

    Naturalmente também se lembrou da possibilidade de que os sinais em código que irradiava ininterruptamente houvessem sido captados por uma nave terrana e que esta tivesse atendido ao chamado. Afinal, era um robô, e seu mecanismo de processamento de dados considerava todas as possibilidades.

    No entanto, o setor lógico de Meech atribuiu a essa possibilidade um grau de probabilidade tão restrito que, embora Meech a armazenasse, ele resolveu eliminá-la por enquanto do setor consciente de sua memória positrônica.

 

    Continuou a esperar.

    As duas horas passaram.

    Ron já se acostumara ao vazio do espaço e ã falta de luz. Mas o nervosismo causado pela incerteza absoluta do que tinham pela frente crescera constantemente. No fundo, sentia-se bem pior que antes. Pela primeira vez em toda sua carreira a idéia de que não poderia voltar para junto de Nike Quinto e dizer-lhe que não agüentava mais, porque a situação era muito desconfortável, deixava-o deprimido.

    Confessou a si mesmo que sentia medo, muito medo.

    Lofty ajoelhara-se na borda dianteira da chapa. As botas estavam quase totalmente fora dos laços de arame. Retirara a caixa com o gerador dos fios que o prenderam e segurava-o junto ao corpo. O aparelho tinha uma base de aproximadamente quinze por quinze centímetros e trinta centímetros de altura. Lofty abriu a tampa. Sob a mesma havia um painel com uma série de botões e teclas. Os técnicos a bordo da Volta haviam instalado uma pequena lâmpada que iluminava o painel. Embaixo de cada botão havia uma faixa metálica com um letreiro gravado. Era outra novidade. Quando Ron adquiriu o aparelho em Árcon, das mãos do agladynense, não havia qualquer letreiro no mesmo.

    — Vamos começar? — perguntou Lofty.

    “Sua voz está normal”, pensou Ron. “Parece que não tem medo.”

    — É claro que sim. Já passaram duas horas.

    “Cuidado”, pensou autocensurando-se. “Nos últimos dois minutos você já repetiu isso cinco vezes.”

    Lofty fez um movimento com a mão. Ron escorregou para junto dele.

    — Agora gire este botão — disse apressadamente, apontando para um dos maiores botões giratórios.

    Lofty girou-o lentamente, até atingir o grau máximo.

    — Neste momento o gerador começa a produzir o campo de distorção — disse Ron.

    Lofty já sabia disso, e Ron deu-se conta de que só dissera isso para acalmar os nervos.

    — Vamos esperar três minutos, até que o campo esteja completo, e depois mudaremos de direção.

    Lofty acenou com a cabeça. Em meio à escuridão parecia apenas uma sombra que se movia. Ron colocou o braço numa posição que lhe permitia ficar de olho no mostrador luminoso de seu relógio. Os três minutos foram-se arrastando.

    — Vamos!

    Lofty pôs-se a girar outros botões. Alguns deles eram tão pequenos que era difícil segurá-los com a mão enluvada. Apesar disso fez um trabalho perfeito. Movia lentamente os dedos e modificou a direção do campo de distorção muito devagar.

    Ron fitou a escuridão. Seus olhos começaram a doer. Colocou a mão sobre o braço de Lofty e pediu-lhe que fizesse uma pausa. Não suportava mais olhar fixamente para o vazio, sem que dispusesse do menor ponto de referência pelo qual pudesse orientar-se.

    Tirou a mão de cima do braço de Lofty. Este continuava a girar o botão, milímetro por milímetro. Estrelas coloridas pareciam dançar diante dos olhos de Ron. Era inútil e doía muito. Era possível que o inimigo aparecesse a quinhentos quilômetros de distância, enquanto ele fitava um ponto situado a dois metros. Na fração de segundo em que o botão girado por Lofty passasse pelo ponto crítico não seria capaz de enxergar nada.

    Quis dar um sinal para que Lofty parasse.

    Foi então que aconteceu.

    Parecia uma sombra vinda das profundezas do espaço. De inicio apareceu sob a forma de débil luz branca. Ron achou que não passava de ilusão causada pelos olhos cansados. Mas, em um décimo de segundo, a luminosidade assumiu contornos definidos. Um enorme cubo estendia-se para as alturas e as profundezas, e esparramava-se até o infinito para ambos os lados.

    — Pare aí! Estamos enxergando!

    Era o texto da mensagem previamente combinada com a Teodorico. Receara-se que a falta de luz fizesse com que os dois homens que se encontrassem sobre a chapa não vissem o objeto, mesmo que este saísse do esconderijo situado no tempo... no futuro. Por isso as duas naves dirigiam raios de radar, vindos de todos os ângulos, para o ponto em que se supunha estar o esconderijo. Naquele instante haviam captado o primeiro eco. Numa área cujas dimensões ainda eram desconhecidas, o pequeno gerador havia neutralizado o campo de distorção criado pelo inimigo.

    Ron procurou avaliar a distância. Uns cem a trezentos metros deviam separá-los da parede mais próxima. Não podia ser mais que isso, pois, nesse caso, a parede não seria visível em meio à escuridão.

    Ron sentiu um calafrio. Já vira essa figura surrealista. A parede descia obliquamente e perdia-se nas profundezas. Acima da chapa, uma gigantesca rocha saliente.

    Não era lisa. Vez por outra as torres se erguiam para o alto. Pareciam bastões de calcário no interior de uma caverna. Cúpulas de metal polido erguiam-se sobre o fundo plano e fios de metal em espiral erguiam-se imóveis no espaço. Provavelmente eram antenas. Entre as cúpulas, as torres e as espirais, corria algo semelhante a sulcos, que terminavam em reentrâncias circulares, representando o equivalente oposto das torres. Era toda uma paisagem que se desenhava diante dos dois terranos. Uma paisagem estranha e deprimente; o sonho de um esquizofrênico.

    Ron jogou a cabeça para trás, a fim de ver a parte superior da parede. Não conseguiu. A borda ficava tão longe que a luz reduzida que recebia das estrelas e refletia não poderia atingir seus olhos. E, lá embaixo, acontecia a mesma coisa. A parede descia na escuridão e, a partir de certo ponto, tornava-se invisível. Não se via o fim. Ron tinha certeza de que a borda superior e inferior ficavam em posição oblíqua. O objeto gigantesco que tinham pela frente apresentava formato geométrico idêntico ao da nave fragmentária dos desconhecidos, que vira há seis meses.

    Lofty continuava sentado na borda da chapa. Ron Viu-o mexer no capacete, enquanto contemplava a paisagem artificial de cima para baixo, da esquerda para a direita. Ouviu a respiração apressada de Lofty.

    De repente notou que a perspectiva se modificava. Até então não saberia dizer se a parede ficava à sua frente ou atrás dele, em cima ou embaixo. Num ambiente em que não existe a gravidade essas expressões não têm sentido. Mas começou a perceber cada vez mais nitidamente que a parede ficava embaixo. Compreendeu imediatamente. A massa do objeto a que pertencia a parede era tamanha que a “coisa” criava um campo de gravitação próprio. Esse campo de gravitação não era muito potente, mas bastava para estabelecer a distinção entre o que era em cima e o que era embaixo.

    — Temos de frear, Lofty — disse Ron. — Nossa velocidade está aumentando. Bateremos nessa coisa.

    — Estou freando o tempo todo — respondeu Lofty.

    Ron sentiu a necessidade de desprender-se da impressão apavorante da parede, a fim de recuperar o controle de sua mente. Lofty manipulou um dos bocais de jato, instalado sob a chapa, e conseguiu imobilizar o estranho veículo.

    A Teodorico voltou a chamar.

    — X menos dez minutos — disse a voz.

    Ron suspirou aliviado.

    Teriam de agüentar mais dez minutos; depois iniciariam a viagem de volta. Sentir-se-ia feliz e satisfeito quando estivesse no interior da eclusa de carga da Volta.

    Os dez minutos seriam perfeitamente suportáveis. Era bem verdade que a gigantesca coisa que se encontrava à sua frente parecia obra do diabo. E ainda era verdade que tinha a impressão de que o silêncio mortífero dessa coisa irradiava a destruição.

    Na verdade, aquilo continuava imóvel, sem sair do lugar.

 

    Granada moveu uma série de controles.

 

    Uma dezena de flores verdes de fogo surgiu na grande tela do localizador da Teodorico. Alguém soltou um grito de advertência, mas ninguém chegou a ouvi-lo. A terça parte de um milésimo de segundo é um tempo miseravelmente curto.

    O grito e os outros ruídos mergulharam no rugido de milhares de trombetas de Jericó. Alguma coisa atingiu a gigantesca nave como se fosse uma batida de gongo. A Teodorico deu um salto, como uma bola em que se bate com uma vara. Por uma fração de segundo, uma tremenda pressão reinou nas salas e nos corredores. Os aparelhos de absorção não conseguiram neutralizá-la. Depois do primeiro impacto metade dos tripulantes ficaram feridos ou inconscientes, ou ambas as coisas.

    Ninguém sabia o que estava acontecendo. Tremendos impactos sacudiam a nave. Todos compreenderam que os campos defensivos não conseguiam absorver as cargas vindas de fora. Transmitiam o efeito mecânico dos mesmos para a nave. O interior da Teodorico transformou-se num inferno de ribombos, guinchos, gritos e estremecimentos. Os equipamentos desprendiam-se dos suportes e batiam ruidosamente nas paredes metálicas. Um dos impactos paralisou o sistema de ventilação. A nave foi se enchendo de gases irrespiráveis.

    Só duas pessoas continuavam a postos na sala de comando. Os outros eram incapazes de mover um braço que fosse. Depois de algum tempo, esses dois homens ouviram a voz do administrador em meio ao ruído infernal. Curiosos, procuraram seu rosto na tela de imagem. Estreitara os olhos, transformando-os em pequenas fendas e mantinha os dentes cerrados de tal maneira que a pele se entesava sobre os maxilares. Nem parecia mexer com a boca quando pela segunda vez deu ordem de partida.

 

    A Volta era uma unidade menor que sua nave-irmã, a Teodorico. Por isso mesmo os canais de informação eram mais simples, e a troca de mensagens se tornava mais rápida.

    Além disso Nike Quinto era um homem que, de vez em quando, gostava de agir como se não conhecesse escrúpulos.

    No momento em que a nave foi atingida pelo primeiro impacto, viu-se arrancado da poltrona e atirado contra a parede mais próxima. Não perdeu a consciência, mas havia alguma coisa errada com seu corpo, pois as pernas não o sustentavam mais. Chamou Larry Randall, que se encontrava na mesma sala que ele. Mas mesmo que este pudesse ouvi-lo em meio à barulheira infernal, não estaria em condições de dar qualquer resposta. O solavanco atirara-o de cabeça contra uma grande mesa que se achava no centro da sala. Deitado no chão, não percebia nada da confusão que se estabelecera em torno dele.

    Nike arrastou-se até o lugar onde havia um interfone pendurado na parede. Cerrou os dentes e fez de conta que suas pernas estavam bem. Usando os músculos que ainda funcionavam, atirou-se para o alto e conseguiu agarrar o aparelho. Segurou-se com a esquerda, enquanto a direita retirava o microfone. Ordenou a Rex Ellington que partisse imediatamente.

    Não havia necessidade de indagar o que se passava do lado de fora. A trepidação ininterrupta, que sacudia todos os cantos da Volta, constituía uma séria advertência.

    — Parta imediatamente! — voltou a gritar Nike.

    Rex Ellington entendeu apesar do barulho.

    Nike Quinto esperava que a Teodorico, cujos meios de defesa eram mais potentes que os da pequena Volta, manteria a posição. Foi só por isso que se apressou tanto em dar a ordem de retirada. Do contrário teria pensado um pouco antes de fazer uma coisa dessas.

    De qualquer maneira a Volta abandonou o palco dos acontecimentos trinta segundos antes da Teodorico.

 

    O inferno parecia abrir-se diante dele.

    A primeira coisa que Ron percebeu foi um lampejo de luz branca saído de uma das cúpulas colocadas sobre a parede que se estendia embaixo dele. Sentiu-se ofuscado e fechou os olhos. Os laços de arame que prendiam suas botas sofreram um solavanco e arrastaram-no consigo.

    Colocou-se numa posição em que não poderia ver a parede e abriu os olhos.

    Quase chegava a ser pior. Acima dele dois sóis brancos estenderam-se em meio ao negrume do espaço. Enquanto olhava e via manchas coloridas dançarem diante de seus olhos, outros dois sóis surgiram, mais dois, e ainda mais dois, até que o espaço se enchesse de uma massa de fogo infernal, que lhe machucava a vista.

    Alguma coisa atingiu a chapa sobre a qual se encontrava e atirou-a de um lado para o outro. Ron virou o corpo, deitando de barriga. Mantinha os pés presos nos laços de arame, enquanto do outro lado suas mãos se agarravam fortemente ao arco de metal.

    A única coisa em que conseguiu pensar foi na necessidade de não ser afastado da chapa.

    Fechou os olhos. Mas a claridade ofuscante atingiu-os até mesmo através das pálpebras. Uma vez garantida sua permanência sobre a chapa, começou a pôr as idéias em ordem. A chapa em si não corria o menor perigo. No entanto, parecia haver uma batalha de artilharia entre a coisa à qual pertencia a parede surrealista e as duas espaçonaves. O lampejo que vira em uma das cúpulas fora um disparo. O que teria acontecido com a Teodorico e a Volta? Estariam oferecendo resistência ao inimigo? Ou teriam partido para o ataque?

    Ron deitou-se de lado e abriu cautelosamente os olhos. Bem à sua frente viu um pequeno trecho da parede coberta de cúpulas e torrezinhas. Tinha a impressão de que poderia tocá-la com a mão. A chapa de aço sobre a qual estava havia se aproximado pelo menos uns cem metros. O horizonte ficara mais estreito. Bem ao longe, à sua direita, Ron viu outra cúpula irromper em fogo. Virou a cabeça e notou que uma nova flor de fogo se abria no espaço.

    Contemplou a parede que se encontrava abaixo dele. Tinha o mesmo aspecto de antes. Não fora danificada por qualquer impacto produzido pelas duas naves espaciais. Ron sabia o que significava isso. A Teodorico e a Volta nada podiam fazer contra o colosso desconhecido. Este devia estar envolto num campo defensivo que não podia ser rompido pelas armas das espaçonaves terranas. Se era assim, o que poderiam fazer as duas naves? Não deveriam ficar paradas para servir de alvo em pleno espaço, até que seus campos defensivos desmoronassem sob o fogo inimigo, apenas porque dois dos seus ocupantes estavam em pleno espaço, viajando sobre uma chapa de metal equipada às pressas com dois bocais de jato.

    A idéia atingiu Ron com a força de um choque. Raciocinando com lógica e considerando todos os argumentos, só poderia concluir que a Teodorico e a Volta nem poderiam agir de outra forma. Teriam de retirar-se, pois do contrário seriam destruídas.

    Quer dizer que os dois homens dependiam exclusivamente de si mesmos. Só havia um caminho que poderiam trilhar: para a frente.

    Ron virou a cabeça. A paisagem surrealista que se estendia sob a chapa aproximava-se cada vez mais. Pela terceira vez viu uma das cúpulas que, por um instante, se iluminou com uma claridade ofuscante, para logo a seguir voltar a mergulhar na escuridão.

    Teve uma idéia.

    O inimigo estava plenamente ocupado com a batalha. Não tinha tempo para dedicar sua atenção à pequena chapa ocupada por dois homens que se aproximava lentamente da gigantesca espaçonave. Nem sequer notaria quando a chapa pousasse sobre uma das paredes do veículo espacial. Só depois que as duas unidades terranas se tivessem retirado definitivamente, voltaria a dedicar sua atenção às imediações da nave.

    O momento adequado era agora. Os dois homens encontravam-se num ângulo morto. Se durante o tempo que lhes restava conseguissem pousar na parede e penetrar no veículo desconhecido, teriam alcançado um progresso notável.

    De repente Ron sentiu-se dominado novamente pelo entusiasmo e pelo arrojo. A chapa só balançava um pouquinho. Arriscou-se a retirar as mãos dos laços de arame e erguer o busto.

    — Vamos, Lofty, temos que descer lá! — gritou e olhou para trás.

    Só nesse momento percebeu que Lofty desaparecera.

 

    A cem horas-luz do campo de batalha as duas naves terranas voltaram a estabelecer contato. Relatórios foram trocados. Em ambas as naves haviam sido feitas espantosas observações, relativas aos efeitos das armas inimigas. Essas observações foram feitas pela aparelhagem automática. Os acontecimentos foram muito rápidos para poderem ser registrados pelo olho humano.

    A Volta ainda escapara relativamente bem. Dois conjuntos se haviam desprendido dos suportes. Foram atirados contra as paredes e se esfacelaram. Tiveram de ser reconstruídos e montados com as peças sobressalentes. O trabalho consumiu duas horas. Os aparelhos destruídos assumiam uma importância vital.

    Os trinta segundos que a Teodorico agüentou a mais que a Volta por pouco não se tornaram mortais. Era ao menos o que diziam os relatórios que a Volta recebeu no primeiro minuto que se seguiu ao reencontro. Segundo esse relatório, o interior da Teodorico tinha o aspecto de uma loja de Belchior sacudida por um tremor de terra.

    Em trinta minutos fez-se um inventário geral a bordo da nave capitania, e depois disso a situação adquiriu uma aparência mais favorável. Os efeitos mecânicos dos impactos, transmitidos pelos campos defensivos à própria nave, haviam colocado fora de ação três quartos da tripulação e metade das máquinas. Mas os médicos estavam otimistas, e a equipe mecânica também estava. A grande maioria dos feridos pôde deixar o leito algumas horas depois. E, das máquinas avariadas, só algumas eram de importância vital. O conserto das mesmas também só exigiria umas poucas horas. Depois disso a Teodorico estaria em condições de voltar ao local dos acontecimentos e prosseguir nas suas observações.

    Era bem verdade que, uma vez concluída a missão, haveria necessidade de reparos demorados numa das docas da Frota Solar.

    Nike Quinto teve a honra de falar pelo hipercomunicador com o administrador em pessoa. Era bem verdade que no caso teria desistido de bom grado desse privilégio. É que o administrador lhe deu ordem para que regressasse imediatamente com a Volta ao local dos acontecimentos. E também lhe explicou que nas próximas cinco ou seis horas não poderia contar com qualquer auxilio. A Teodorico não estava em condições de intervir nos acontecimentos. Perry Rhodan mostrou-se bastante preocupado com os dois homens que tiveram de ser deixados sós nas proximidades do inimigo. Encarregou Nike Quinto de verificar o que estava acontecendo com eles e dar-lhes apoio sempre que precisassem.

    Nike Quinto praguejou por dentro. Não se atreveu a fazer qualquer observação em voz alta. Não tinha meios de fazer com que o administrador compreendesse que, pelo que sabia de Ron Landry, o mesmo a essa hora estaria morto ou então se encontraria fora de perigo. Como explicar que, nessas condições, o novo avanço da Volta não passava de uma aventura desnecessária e perigosa? Seria capaz de apostar mil contra um que os canhões inimigos voltariam a cuspir fogo assim que a Volta reaparecesse nas proximidades. E todo mundo já sabia que não se poderia fazer nada contra as armas inimigas.

    Nike recebeu ordem e fez uma continência impecável antes que Perry Rhodan interrompesse a ligação. Depois virou a cabeça, chamou Rex Ellington e pediu-lhe que voltasse a colocar a nave em movimento.

    — Para onde?

    — Para o lugar de onde viemos, evidentemente! — respondeu Nike, fulo de raiva.

 

    O susto deixou Ron paralisado por alguns longos segundos.

    Lofty havia desaparecido!

    Devia ter perdido o apoio e saído pelo espaço enquanto a chapa de metal dançava sob os efeitos da tempestade magnética desencadeada pelos disparos da estranha nave. E agora, naturalmente, se encontrava em algum lugar na escuridão, caindo em direção à nave desconhecida.

    “Preciso encontrá-lo”, pensou Ron.

    No mesmo instante afastou essa idéia de sua cabeça. Como procurá-lo? A chapa metálica era capaz de realizar um número de manobras bastante limitadas. Com ela não se podia cruzar o espaço, descrever curvas e manter uma rota complicada.

    Só havia uma coisa a fazer. Contrariando as ordens estritas que recebera de Nike Quinto, aumentou a potência do transmissor de capacete e começou a chamar Lofty pelo nome. O nervosismo causado pelo desaparecimento de Lofty fizera com que se tornasse um tanto descuidado. Mal começara a chamar o amigo, uma cúpula iluminou-se embaixo dele. Um punho feroz parecia agarrar a chapa e sacudi-la. Os pés de Ron estavam presos nas argolas de arame. Atirou-se instintivamente para a frente e suas mãos seguraram novas argolas que ficavam do outro lado da chapa. Dessa forma evitou ser arrancado da mesma.

    Esperou que o veículo primitivo sobre o qual se encontrava parasse e voltou a chamar Lofty. Não tinha muita esperança de sucesso. Provavelmente o companheiro já havia tocado a parede da nave inimiga. Por certo a força gravitacional gerada pela massa da nave não era suficiente para que um corpo humano se esfacelasse no impacto. Mas bastava algum azar na ocasião do pouso para que o traje espacial se rompesse e isso, provavelmente, seria pior do que ter o corpo esmagado.

    Segundo toda a capacidade de previsão humana, Lofty já não estaria...

    Ron não chegou a concluir o pensamento. Foi interrompido por um ruído. Parecia que alguém estava gemendo. De início pensou que fosse uma ilusão acústica. Mas continuou a escutar e voltou a ouvir o gemido. Desta vez o som foi mais nítido. Só poderia ser Lofty, que vagava por ali e sentia dores. Talvez estivesse inconsciente.

    — Lofty! — gritou Ron. — Onde você se meteu?

    A única resposta foi o mesmo gemido. Ron inclinou-se sobre a borda da chapa e contemplou a parede entrecortada da espaçonave desconhecida. Por um segundo lembrou-se de que se encontrava a apenas cem metros da mesma, e que estava na hora de tomar alguma providência para garantir um pouso em condições favoráveis. Mas naquele instante nem pensou nisso. O que realmente importava era Lofty. Talvez estivesse deitado lá embaixo.

    — Responda, Lofty...!

    Era inútil. A uma distância dessas não se poderia distinguir um corpo humano. A escuridão era tremenda. Os canhões inimigos só disparavam a longos intervalos e, na maior parte das vezes, de pontos afastados. A luz irradiada pelas cúpulas não atingia a parte da parede situada abaixo de Ron Landry.

    Quando ia chamar de novo, ouviu uma voz débil e rouca no receptor.

    — Aqui... Ron. Já vou. Ajude-me!

    Ron olhou em torno.

    — Como posso ajudar se nem sei onde você está? — perguntou.

    Ron fungou.

    — Aqui... Bem perto... Eu...

    Ron voltou a olhar para trás. Alguma coisa se movia junto à borda da chapa. Inclinou-se para a frente e não acreditou no que seus olhos estavam vendo. O objeto que subia lentamente pela borda da chapa e procurava algum apoio era a luva de um traje espacial, grosseira mas ágil. Na luva estava “pendurado” um braço inchado. Quando surgiu o ombro desse braço, Bon segurou a mão e puxou o homem para cima da chapa.

    Lofty ficou deitado sobre a pequena plataforma. Ron enfiou cautelosamente seus pés nos laços de arame. A batalha ainda não chegara ao fim, embora tivesse amainado um pouco. A qualquer instante, a plataforma poderia ser sacudida por novo solavanco, que a atiraria para longe.

    De repente a tensão e o desassossego, que haviam dominado Ron, desvaneceram-se. Deu-se conta de que a situação era cômica e pôs-se a rir.

    — Quer dizer que você ficou o tempo todo embaixo da plataforma?

    — Isso... isso mesmo — disse Lofty, falando com dificuldade. Parecia sentir dores. — O primeiro solavanco arrancou-me da plataforma. Procurei agarrar-me a qualquer objeto e pus as mãos em alguma coisa. Puxei meu corpo para junto do objeto, examinei-o e vi que era um dos bocais existentes sob a plataforma. Essa continuava a executar uma dança louca. Tive de segurar-me a alguma coisa. Lá embaixo não existe nenhum laço de arame. O bocal de jato está preso a duas barras. Enfiei o braço esquerdo entre essas barras e segurei a mão esquerda com a direita. “Agora nada mais me arrancará da plataforma”, pensei, “a não ser que o bocal seja arrancado.” Por algum tempo minha situação parecia bastante confortável. Mas, de repente, a plataforma voltou a dançar. Todos os solavancos foram absorvidos pelo braço esquerdo. Não soltei as barras, mas a dor foi tão intensa que devo ter perdido os sentidos. Quando os recuperei, ainda estava pendurado na mesma posição. Alguém me chamava. Era o senhor?

    Ron fez que sim.

    — Como está agora? Ainda sente dores?

    — Naturalmente. Mas as dores são suportáveis.

    — Está bem. Temos que descer — apontou para a parede da nave inimiga, que ficava embaixo da borda da pequena plataforma. — Preciso do seu auxílio para pilotar isto.

    Lofty ergueu o corpo.

    — Vamos descer para lá? — perguntou em tom apavorado.

    Ron explicou-lhe o que havia acontecido nesse meio tempo. Não lhe ocultou que provavelmente a Teodorico e a Volta se haviam retirado.

    — Quer dizer que não temos alternativa — concluiu.

    Lofty compreendeu. Imediatamente puseram-se a trabalhar. Pendurados pelos pés nos laços de arame, manipulavam os jatos. De início a plataforma aumentou de velocidade. A parede aproximou-se mais rapidamente. Depois de algum tempo, Ron começou a frear. As pontas das torres mais altas já se erguiam bem acima de suas cabeças. A plataforma passou por cima de um sulco, que terminava algumas centenas de metros adiante numa reentrância circular.

    Lofty, Que controlava o bocal de popa, deu à plataforma um ligeiro impulso ascendente. Descrevendo uma curva suave, o veiculo venceu a distância que ainda os separava do destino. Desligaram os jatos e deixaram que o restante da manobra de pouso ficasse a cargo do campo gravitacional criado pela nave. A plataforma tocou a parede do veículo espacial junto à reentrância. Houve um forte solavanco. Ron e Lofty foram sacudidos fortemente. Mas depois das provações pelas quais haviam passado no curso da tempestade magnética provocada pelo duelo de artilharia, aquilo, não passava de uma amistosa palmadinha nas costas.

    Ron desceu da plataforma. A gravitação produzida pela nave era mínima, mas nitidamente perceptível. Tinha-se uma sensação perfeita de onde era em cima e embaixo. Ron olhou em torno. À sua esquerda, a depressão descia a uns cinqüenta metros de profundidade. As paredes eram lisas. Ao que parecia, não havia nenhum acesso ao interior da nave.

    À direita o terreno era plano. A uns cinqüenta metros do lugar em que se encontravam, uma torre entrecortada erguia-se para o alto. Atrás dela havia uma cúpula, quase invisível na escuridão. Entre a cúpula e a torre só havia a superfície metálica lisa.

    Era uma paisagem deprimente. Ron teve de fazer um esforço para lembrar-se de que não se achava num planeta desconhecido e exótico, mas na parte externa de uma espaçonave inimiga.

    Voltou a fitar a torre e chegou à conclusão de que, segundo a previsão humana, ali seria maior a probabilidade de encontrar um caminho para o interior da nave.

    Transmitiu sua opinião a Lofty. Esse concordou plenamente. Procurou o pequeno gerador que lhes possibilitara o ingresso no esconderijo do inimigo. O aparelho havia desaparecido. Ron nem o notara.

    — Deve ter sido afastado pelos solavancos — disse. — Não estava muito bem preso nos suportes quando o ligamos.

    Ron interrompeu-o com um gesto.

    — Não precisamos mais dele. Deveremos encontrar o caminho de volta mediante o auxílio de outrem... ou então nunca o encontraremos. Esta plataforma não nos oferece a menor chance de levantar vôo daqui.

    Lofty fitou a placa com uma expressão pensativa e acenou com a cabeça.

    — Acho que é isso mesmo — disse.

    Ron deu-lhe uma palmadinha no ombro.

    — Vamos para lá — disse. — Temos de encontrar um meio de entrar na nave.

   

    Granada sentiu-se confuso.

    Desferira o primeiro golpe com toda força mas, ao que parecia, nada acontecera às naves dos seres orgânicos. Certamente possuíam campos defensivos muito potentes. Retiraram-se em perfeitas condições e já conheciam o esconderijo.

    Granada certificou-se de que, naquele momento, o espaço estava vazio num raio de cinco horas-luz. A distância de cinco horas-luz correspondia ao alcance de suas peças de artilharia. O que ficava além desse limite não lhe interessava.

    Concluiu que ao menos havia posto os seres orgânicos em fuga. Granada lamentou-se por não conhecer a mentalidade dos mesmos. Sua lógica mecânica formulou essa objeção. O resto de seu ser consciente estava convencido de que, em muitos casos, nem havia necessidade de conhecer a mentalidade das criaturas orgânicas para prever seu comportamento. Sua covardia, por exemplo, era tamanha que, depois do que lhes havia acontecido sob o fogo dos canhões, eles se refugiariam num recanto afastado do espaço e nunca mais se atreveriam a sair de lá.

    “O esconderijo fora revelado aos orgânicos”, rememorou. “Mas”, concluiu, “o ser que o conhecia não faria uso desse conhecimento. Uma criatura dotada de um forte instinto de autoconservação ficaria satisfeita por ter escapado sã e salva.”

    Granada nem se deu conta de que sua consciência mecânica se revoltava violentamente contra essa conclusão. Achou que a mesma era apressada e insuficientemente fundamentada. Procurou pronunciar uma advertência. Mas Granada não a ouviu. Durante os minutos que durara o combate tivera que fazer um grande esforço para reprimir a consciência emocional. E, nesse meio tempo, tal consciência passara a dominá-lo.

    A bordo da nave fragmentária as atividades do dia-a-dia retomaram seu curso normal. Uma dessas atividades consistia na limpeza do corredor C-121-0011, em cujo interior a luta contra os intrusos orgânicos deixara muitos vestígios, inclusive os cadáveres de numerosos parentes. E a observação da nebulosa galáctica 00-101-101-01 (segundo a nomenclatura de Granada) constituía outra dessas atividades. Pois era justamente por isso que a nave fragmentária se encontrava no abismo intergaláctico.

    O incidente com as duas naves tripuladas por seres orgânicos foi armazenado na memória de Granada e eliminado de sua consciência...

 

    No momento em que encontraram a entrada e ficaram aliviados da tensão provocada pela busca, Ron Landry deu-se conta de que no fundo praticamente não tinham a menor chance.

    Afinal, onde estavam? A bordo de uma espaçonave inimiga. Essa espaçonave poderia ser considerada um planeta artificial. Sem dúvida havia em seu interior centenas de milhares dessas criaturas que nutrem um ódio intenso por tudo quanto é orgânico. E com esses seres defrontavam-se dois terranos, ou seja, dois seres orgânicos, que haviam vindo porque não tinham alternativa. Não tinham a menor idéia das instalações existentes no interior do planeta artificial, ou seja, da nave gigantesca. Sempre que abriam uma escotilha não sabiam se atrás da mesma encontrariam uma armadilha mortal ou um compartimento que não oferecia maiores perigos. Não sabiam se seus passos estavam sendo observados ou não. Não compreendiam o raciocínio dos estranhos. Nem sequer sabiam se seriam considerados automaticamente como inimigos. Partiram do pressuposto de que seriam, a fim de estarem preparados para qualquer eventualidade.

    O que era pior: na verdade não sabiam o que vieram fazer por ali. Naturalmente ficariam com os olhos bem abertos, a fim de colher o maior volume possível de informações. A maquina de guerra terrana faria um progresso imenso nos seus preparativos defensivos, se viesse a saber o que Ron Landry e Lofty Patterson haviam observado a bordo da nave inimiga.

    Será que jamais saberiam? Isso só aconteceria se os dois intrusos viessem a deixar o planeta artificial em condições de serem interrogados e se lá fora houvesse uma nave terrana que os recolhesse.

    E ambas as hipóteses ficavam fora de qualquer cálculo razoável de probabilidades. Quando viu à sua frente o corredor infinito, que desaparecia lá embaixo em meio à penumbra, Ron deu-se conta disso. O inimigo os atacaria antes que tivessem dado dez passos. E uma luta aberta contra um grupo de robôs em condições de superioridade seria a coisa em que mais dificilmente poderiam ter a menor chance de serem bem-sucedidos.

    — E agora? — perguntou Lofty.

    A escotilha interna da eclusa fechara-se atrás deles. Tinham deixado para trás a paisagem metálica formada pela parede externa da nave, com suas torres, cúpulas, antenas, sulcos e reentrâncias. Tinham pela frente o interior do colosso, que era estranho e desconhecido.

    — Vamos descer por ali — respondeu Ron, apontando para o corredor.

    Começou a andar. No interior do planeta artificial, a gravitação era mais intensa que sobre o envoltório externo. Chegava mesmo a ser mais intensa que a gravitação normal do planeta Terra. Ron sentiu perfeitamente que o corredor realmente descia. Perguntou de si para si por que motivo teriam construído um corredor desse tipo.

    Deram dez passos, vinte, trinta, cinqüenta, e nada aconteceu. Estranhos aparelhos apareceram nas paredes do corredor, ficando para trás enquanto caminhavam. Qualquer desses aparelhos poderia ser uma teleobjetiva que observasse o corredor e projetasse sua imagem em alguma tela. Se fosse assim, ninguém estaria examinando a tela, ou então a mesma não estava ligada. De qualquer maneira percorreram metro após metro, sem que ninguém se interpusesse em seu caminho.

    Atravessaram vários cruzamentos. Nesses lugares, o corredor abria-se num pavilhão oval ou em formato de cruz, cujo teto era abaulado, enquanto no soalho havia fendas de um metro e oitenta de profundidade. Ron e Lofty não tinham a menor idéia da finalidade de tais brechas. Tomaram conhecimento da área. Depois seguiram seu caminho sobre as elevações existentes entre as fendas e foram penetrando no interior da nave.

    Ouviram um zumbido constante, produzido por máquinas que não viam. Era o único sinal de que não se encontravam numa espaçonave vazia, abandonada há muito tempo.

    O estranho vazio deu o que pensar a Ron. Aquele colosso não podia ser uma espaçonave no sentido convencional da palavra, suas dimensões constituíam indício em sentido contrário. Mas quanto a este ponto poder-se-ia perfeitamente admitir, que os desconhecidos estavam acostumados a outros padrões de medida. Porém nos corredores e compartimentos de uma espaçonave, cuja finalidade consiste em locomover-se pelo espaço e percorrer trajetos mais ou menos longos no menor tempo possível deveria haver uma atividade febril e uma profusão de pessoal. Não viu nada disso. Os corredores eram vazios e silenciosos. Ron ainda não tentara abrir qualquer das escotilhas que se viam a intervalos irregulares, mas tinha certeza de que atrás das mesmas também não descobriria ninguém e não notaria qualquer sinal de atividade.

    Mas isso lhe deu uma idéia. Era possível que o colosso nem fosse uma espaçonave. Era uma estação ou um posto de observação estacionário. Isso explicaria o vazio. A operação de uma estação, cuja finalidade consiste apenas em ficar parada em determinado lugar do espaço, exigia uma tripulação muito menor.

    Era uma explicação. Por enquanto ninguém seria capaz de dizer se era correta. Talvez conseguissem descobrir novos detalhes se penetrassem mais profundamente na nave.

    O corredor acabou desembocando num recinto cilíndrico. O fim do corredor ficava bem no centro de uma das paredes circulares existentes nas extremidades longitudinais do cilindro. Do chão do corredor até o chão do recinto havia uma diferença de altura de sete ou oito metros. Felizmente a extremidade do corredor fora construída em forma afunilada. Dessa forma Ron e Lofty puderam escorregar pelo metal liso até chegarem ao chão do recinto cilíndrico. Levantaram-se, um tanto atordoados, e procuraram orientar-se. O recinto em que se encontravam parecia uma gigantesca mangueira. Mas a visão era limitada por paredes intermediárias de pequena altura que, segundo parecia, saíam de outras paredes circulares a intervalos regulares. O diâmetro do recinto era de quinze metros. A extremidade externa de cada uma das paredes circulares tinha o mesmo diâmetro. O diâmetro interno não era superior a seis metros. O intervalo entre as paredes circulares era de uns dez metros. Quer dizer que a cada dez metros havia um obstáculo, que Ron e Lofty nunca conseguiriam vencer se nas paredes circulares não houvesse fendas estreitas que, partindo da extremidade interior da parede anelar, atingiam a parte mais baixa do soalho.

    Aquilo era tão estranho que Ron se pôs a refletir sobre a finalidade do recinto, muito embora tivesse tomado uma decisão de não quebrar a cabeça com mais nada. O conjunto das instalações lembrava um tubo de ressonância. Nesse caso, a distância entre as paredes circulares corresponderia a um comprimento de onda das respectivas vibrações. E, no espectro eletromagnético, a distância de dez metros corresponde a uma onda ultracurta de trinta megahertz.

    Mas isso não explicava a finalidade do recinto. O que é que alguém poderia fazer com uma série de gigantescos tubos de ressonância como este?

    Ron e Lofty prosseguiram em sua caminhada. O chão do recinto era tão uso quanto o do corredor. Ao que parecia, todas as partes da gigantesca espaçonave haviam sido feitas de metal liso e polido.

    Conseguiram passar rapidamente pelas fendas das paredes circulares, muito embora, antes de sair de um setor, Ron examinasse cuidadosamente o setor seguinte. Acabou constatando que a precaução era inútil. O recinto cilíndrico estava vazio, tal qual tudo que haviam visto no interior da nave.

    Mas o zumbido monótono que enchia o colosso tornava-se cada vez mais intenso. Ao saírem por outra abertura afunilada, existente no lado oposto do recinto, Ron e Lofty tiveram a impressão de se encontrarem nas imediações de uma grande sala de reatores. Desta vez o funil pelo qual subiram lentamente não terminou num corredor. O recinto que se abriu à sua frente era difícil de classificar. Pelo tamanho, Ron o designaria como um pavilhão. No lugar em que desembocava, o funil tinha uns dez metros de largura por cinco de altura. Mais para os fundos as dimensões tornavam-se maiores. As paredes laterais descreviam um modelo confuso formado por pequenas superfícies e arestas inclinadas.

    Ron parou e olhou em torno. Sentiu-se perplexo. Procurou rememorar tudo que sabia sobre os pos-bis. Não era muita coisa. Durante os seis meses em que a frota terrana os havia encontrado ocasionalmente, esses seres sempre souberam manter em segredo suas peculiaridades, bem como suas intenções e objetivos. Sabia-se que pensavam segundo uma lógica totalmente estranha. Ainda se sabia que sua consciência era composta, em proporções iguais, de uma parte positrônica e uma parte biológica. Esses dados não bastavam para explicar o estranho formato do recinto. Parecia impossível que a confusão inacreditável das formas tivesse nascido simplesmente do capricho do arquiteto. Aquilo devia ter alguma finalidade. Era possível que a parede em ziguezague e o teto multifacetado permitissem o enfeixamento de algum campo ou de certo tipo de radiações. Nesse caso devia haver no interior do recinto um aparelho que gerasse o campo ou produzisse as radiações e...

    — Olhe lá atrás — disse Lofty de repente. Sua voz saída do receptor de capacete de Ron parecia abafada. — Uma máquina...

    Ron estreitou os olhos. A parte dos fundos do recinto estava mergulhada na penumbra. Ao que parecia, os pos-bis não gostavam de luz muito forte. Ron viu uma massa escura e disforme no lugar para o qual Lofty estava apontando.

    Teve a impressão de que aquilo confirmava sua teoria. O objeto que via lá adiante era o gerador que produzia o campo e as radiações. Não teve a menor idéia quanto à natureza do campo ou ao motivo por que o mesmo devia ter essa conformação. De qualquer maneira Ron resolveu examinar o gerador de perto.

    Ninguém os impediu de se aproximarem da máquina. Enquanto a distância se reduzia, tornou-se patente que o aparelho era uma coisa monstruosa. Quase alcançava o teto, cuja altura nesse lugar era aproximadamente de quinze metros. Em parte o zumbido que haviam ouvido ininterruptamente partia dessa máquina. Quando se encontravam ao pé da mesma, o chão tremia tão fortemente que os contornos se apagaram diante de seus olhos, A máquina apresentava um estranho aspecto de inacabada. Seu interior estava bem à vista. Não havia nenhuma tampa, nenhum revestimento. Ron viu uma série de fios que nem sequer estavam isolados. Era bem verdade que sua posição era tal que não poderia haver um contato indesejável. Examinou a disposição dos condutos, tubos, unidades de comando, de distribuição e mais algumas coisas, e chegou á conclusão de que, enquanto não se acostumasse ao modo de pensar em que se inspirava aquela tecnologia totalmente estranha, não poderia compreender as funções da máquina. Os seres que lidavam com a mesma eram robôs. Conheciam seu funcionamento. E também conheciam todos os seus detalhes, por mais insignificantes que fossem. Não eram seres orgânicos, que correriam perigo de, num movimento apressado, tocar algum ponto perigoso e levar um choque elétrico. Não precisavam de nenhum revestimento. O mesmo só poderia incomodar quando alguém quisesse ter acesso ao interior da máquina, para repará-la ou modificar algum dos seus comandos. Aquilo que para um ser orgânico parecia um símbolo da coisa fragmentária e inacabada representava na verdade a expressão máxima da atitude finalista.

    Ron compreendeu esse ponto. Aos poucos foi surgindo em sua mente a imagem do funcionamento da máquina. Descobriu certas semelhanças. Encontrou pontos de contato com algo que já havia visto. Viu pistas e seguiu-as. Finalmente deu-se conta de que haviam feito a mais importante das descobertas acerca da gigantesca nave inimiga.

    A máquina era apenas uma versão ampliada do aparelho que adquirira do agladynense em Árcon. Era o gerador que produzia o campo de distorção, em cujo interior o inimigo se mantinha escondido.

    Ron explicou o resultado de suas observações a Lofty. Este lançou um olhar curioso e desconfiado para o colosso e disse:

    — Quer dizer que chegamos ao fim de nosso caminho?

    Ron acenou lentamente com a cabeça.

    — Chegamos. Se danificarmos isto a ponto tal que os pos-bis não possam repará-lo, os mesmos já não disporão de nenhum esconderijo.

    — A não ser que exista um gerador sobressalente — ponderou Lofty.

    — Isso não é muito provável — objetou Ron. — Mesmo que seja assim, não temos outra alternativa.

    Essas palavras convenceram Lofty.

    — Está bem — disse. — Vamos começar.

    Sabiam perfeitamente que não poderiam fazer muita coisa depois desse ato. Talvez conseguissem destruir o gerador, mas alguns segundos depois disso um bando de pos-bis se precipitaria sobre eles — e isso seria o fim.

    — Afaste-se — gritou Ron para seu companheiro. — Quem sabe lá o que vai acontecer quando eu disparar contra isso!

    Lofty obedeceu.

    Ron tirou a arma. Tratava-se de um desintegrador portátil do tipo que Nike Quinto costumava entregar aos seus homens em ocasiões especiais. Era uma das armas mais eficientes do Universo.

    Lofty colocara-se em segurança, vinte metros atrás de Ron. Este olhou para o companheiro e começou a disparar. Varreu o gerador de cima para baixo. Numa questão de segundos a ponta em agulha que se erguia abaixo do teto dissolveu-se numa nuvem preguiçosa de gases esverdeados. O chiado do raio de desintegração que corria constantemente de um lado para outro absorvia todos os outros ruídos que até então enchiam o recinto. A gigantesca máquina foi desaparecendo sob os efeitos da arma. Uma neblina turbilhonante foi tomando o lugar da estranha máquina. Eram grupos de átomos da matéria de que fora feito o gerador. Ron mal se atrevia a respirar. A altura do colosso foi diminuindo metro após metro.

    Finalmente o raio de desintegração atingiu o ponto decisivo. Um raio fulgurante desprendeu-se da máquina. Ron recuou cambaleante. Em torno dele tudo parecia ribombar. Alguma coisa atingiu-o no ombro e atirou-o no chão. Ouviu Lofty gritar:

    — Cuidado! A máquina está caindo.

    Atordoado, Ron rastejou o mais rapidamente que pôde. Dando ao seu corpo o maior impulso de que era capaz, fez alguns rolamentos e ficou parado.

    As fagulhas e os círculos continuavam a dançar diante dos seus olhos. O barulho ficara para trás. A máquina parecia desmoronar. O chão ribombava.

    Finalmente reinou o silêncio. Depois de alguns segundos, Ron descontraiu-se, e ficou de pé. Quando ouviu as batidas fortes de chapas metálicas, colocou-se pronto a entrar em ação. Ainda não via nada. Mas ouviu a voz espantada de Lofty.

    — Meu Deus, que coisa esquisita é essa?

    Ergueu-se. Bem à sua frente havia algo horripilante. Aproximou-se mais um metro... e deparou-se com o robô mais feio que jamais vira.

 

    Continuava a segurar o desintegrador. Agarrara-o instintivamente, enquanto efetuava os rolamentos. Num gesto hesitante apontou-o para a cabeça da coisa que estava sentada à sua frente. Esta exibiu os dentes alvos, presos a um suporte metálico em forma de mandíbula, e disse com a voz metálica:

    — Por favor, não atire, sir. Sou o sargento Meech Hannigan. É bem verdade que o senhor nunca me viu neste estado.

    Ron quase deixou cair a arma, de tão surpreso que ficou.

    — Meech. — exclamou. — De onde você veio?

    Meech levantou-se. Era uma figura repugnante de metal e plástico, mas movia-se com a mesma agilidade de sempre.

    — Eu mesmo não sei, sir — respondeu. — Permaneci num estado de metaestabilidade temporal. Este estado terminou subitamente há alguns segundos. E agora estou aqui. Mas não acredito que tenhamos tempo para refletir sobre isto. Receio que daqui a pouco teremos de defender-nos... Os inimigos estão chegando... Sinto que...

    Ron virou a cabeça. No lugar em que estivera o gerador de campo de distorção só havia um poste metálico,

    — De onde vêm? — perguntou, dirigindo-se ao robô.

    — Dali — respondeu Meech, apontando para os fundos do recinto.

    — Está bem. Vamos andando para lá — apontou na direção oposta. — Lofty, onde está você?

    — Aqui. Já estou a caminho.

    No momento em que a voz de Lofty silenciou, Ron ouviu o ruído metálico vindo da penumbra reinante nos fundos do recinto. O ataque do inimigo estava iminente.

    Saíram correndo. Vez por outra Ron olhava para trás. Mas a luz débil do recinto só permitia uma visão limitada. O inimigo sempre continuava invisível. Prosseguia na perseguição. Era o que revelava o ruído metálico. Ao que parecia, não tinha pressa. Não se aproximava.

    Isso deu o que pensar a Ron, que fez uma pergunta a Meech:

    — Qual é a velocidade deles?

    — É menor que a nossa, sir — respondeu o robô.

    — Isso significa que se sentem seguros de que nos agarrarão, não é?

    — Sim senhor. A interpretação mais plausível é esta.

    Ron refletiu sobre o caminho que tinham pela frente. A saída provavelmente havia sido fechada. Mesmo que continuasse aberta, a plataforma em que haviam vindo não lhes oferecia a menor chance de abandonarem a nave inimiga.

    Teriam de mudar de rumo antes de chegarem à saída. Além do recinto com as paredes em ziguezague, havia uma série de corredores laterais. Se dobrassem para a esquerda ou para a direita, talvez conseguissem adiar um pouco o momento decisivo.

    Escorregaram funil abaixo e foram parar no pavilhão cilíndrico, que continuava vazio. O ataque do inimigo só poderia ser desfechado de um lado. Os pos-bis pareciam sentir-se muito seguros.

    Ron gritou para Lofty, pedindo que dobrasse para a esquerda no primeiro corredor lateral, assim que tivessem saído do pavilhão. Lofty confirmou e desapareceu pela primeira fenda. Ron seguiu-o a uma distância de dez metros. Meech, o robô, ia atrás de todos.

    De repente Ron ouviu a voz do robô, que atingiu seu receptor, vinda pelo microfone externo. Meech falava tranqüilamente:

    — Acabo de estabelecer contato com a Volta, sir. A mesma responde pelo hiper-rádio e diz que a nave fragmentária se tornou perfeitamente visível em sua tela.

    Ron soltou um suspiro de alívio. Já não estavam sós. Nike Quinto aguardava-os lá fora, com a Volta. Faria tudo que estivesse ao seu alcance para tirá-los dali.

    Mas, no mesmo instante, perguntou a si mesmo se isso serviria para alguma coisa. Nem mesmo Nike Quinto poderia fazer qualquer coisa por eles.

    Estavam presos.

 

    Granada notara há bastante tempo o reaparecimento da espaçonave dos seres orgânicos. Naturalmente não deixou de perceber que se tratava dá menor das duas naves que há pouco bateram em retirada sob a ação do fogo violento.

    Granada sentiu-se perturbado. A parte emocional de sua mente não poderia deixar de perceber que se enganara na avaliação da conduta dos seres orgânicos e retirou-se. A parte mecânica assumiu. E disse que previra o incidente que estava ocorrendo.

    Mas não soube dizer mais nada.

    Granada resolveu esperar.

    Tomou essa decisão alguns segundos antes que o gerador do campo temporal deixasse de funcionar e a estação ficasse desguarnecida diante dos canhões da nave inimiga.

    Depois disso, Granada não perdeu nem um décimo de segundo. Agiu imediatamente.

 

    A visão que se ofereceu, quando o cubo irregular surgiu de repente em meio ao negrume do espaço, foi bastante perturbadora. Felizmente, naquele momento Nike Quinto se encontrava na sala de comando da Volta, E levou pouco tempo para tomar sua decisão.

    Essa decisão baseava-se na suposição de que o campo de distorção temporal atrás do qual o inimigo se escondera até então era a única proteção de que o mesmo dispunha. Nike Quinto supôs não haver outro campo defensivo. Ou melhor: o colosso do inimigo estava desprotegido à sua frente.

    Nike Quinto deu ordem de abrir fogo.

    As torres de artilharia da Volta começaram a despejar torrentes imensas de energia destruidora contra o inimigo. O abismo escuro do espaço sem estrelas transformou-se num inferno de disparos incandescentes e explosões ofuscantes. Nike Quinto ficou satisfeito ao constatar que as salvas disparadas pela Volta atingiam o alvo e causavam danos. O inimigo não era invulnerável, conforme se supusera até então.

    A Volta sofreu o primeiro impacto. O campo defensivo iluminou-se e a nave deu um enorme salto. Mas um dos oficiais de artilharia prestara atenção. Vira que antes do impacto uma das cúpulas existentes na parede externa do inimigo se iluminara. A cúpula foi bombardeada e, depois de alguns segundos, deixou de existir.

    De repente tiveram uma surpresa. Meech Hannigan transmitiu uma mensagem pelo hiper-rádio. Fez um breve relato da situação. Informou que ele e seus companheiros não tinham possibilidade de sair da nave inimiga. Esperavam auxílio.

    Por um instante Nike Quinto ficou perplexo. Como poderia ajudar três homens que se encontravam a bordo de uma supernave inimiga, da qual ele mesmo mal e mal conseguia defender-se?

    Mas a perplexidade não durou muito. Lembrou-se de uma última possibilidade. Tratava-se de ação desesperada, que trazia uma chance em mil. Mas nem mesmo a oportunidade mais insignificante deveria ser desperdiçada. Nike deu suas ordens.

    — Preciso de dez robôs e de um transmissor fictício do tipo arcônida. E também um transmissor-receptor portátil. Os transmissores de bordo devem ser regulados para a Teodorico. Andem depressa! Cada segundo é precioso. O transmissor fictício da Teodorico é a única maneira de ajudarmos nossos companheiros.

 

    Seres orgânicos a bordo!

    Eram criaturas feias, repugnantes, feitas de carne e sangue. Os mesmos haviam destruído o gerador de campo temporal, deixando a nave desprotegida diante dos ataques vindos de fora.

    O ódio de Granada não conhecia limites. Todos os membros de sua família receberam ordens para caçar os inimigos e matá-los onde quer que se encontrassem.

    E a caçada teve inicio. Os orgânicos saíram correndo, e nem era de esperar que fizessem outra coisa. Mas estavam presos. Não tinham a menor possibilidade de sair da nave. Desta vez não escapariam à destruição.

 

    Lofty, que se encontrava em um dos corredores laterais, fez um sinal.

    — Vamos andando! — gritou Ron, erguendo o braço. — Não fique parado.

    Lofty desapareceu. Ron olhou para trás para ver se enxergava o robô. Meech estava parado. Parecia escutar. Lá atrás, bem ao longe, ainda se ouvia o ruído metálico da força inimiga. Naquele momento deviam estar no pavilhão de paredes em ziguezague.

    — É a Volta — disse Meech. — Precisam de um raio vetor permanente para a goniometria. Pretendem ajudar-nos.

    Ron reprimiu a pergunta que pretendia fazer. A essa hora não interessava saber como os homens da Volta pretendiam ajudá-los. Meech não saberia dar a resposta. A pergunta representaria uma perda de tempo.

    — Transmita o sinal — ordenou. — E venha conosco.

    Meech pôs-se em movimento. A partir daquele momento um dos aparelhos complicados que trazia dentro de seu corpo metálico irradiava um sinal contínuo, que era captado na Volta. Dessa forma os terranos a bordo da espaçonave mantinham-se informados ininterruptamente sobre a posição do robô. A determinação goniométrica era realizada com uma precisão de mais ou menos dez metros.

    Depois de uns cinqüenta metros o corredor lateral em que Lofty entrara se ampliava, transformando-se num salão vazio.

    As paredes eram lisas, enquanto o teto era ondulado. Era mais um dos compartimentos dos quais ninguém sabia para que servia... com exceção dos pos-bis.

    O ruído da força mecânica, vindo de trás, cessara. A dianteira dos três terranos era tão grande que nem sequer ouviam o inimigo.

    Permitiram-se uma pequena pausa. Descansaram e ficaram à espera de um milagre.

    Agora, que estavam parados, sentiam os fortes abalos que sacudiam o chão da nave. Ouviram um rumorejar distante. Meech, que entrara em contato com a Volta sem que ninguém percebesse, informou:

    — Estão bombardeando o colosso. Seu campo energético desmoronou. Nossa artilharia está causando grandes danos.

    Lofty soltou uma risadinha.

    — Nesse caso devem apressar-se para tirar-nos daqui antes que isto vá pelos ares.

    Ron praguejou baixinho. Quem dera que tivesse alguma idéia sobre os planos de Nike Quinto. Talvez pudessem preparar-se. Talvez houvesse uma possibilidade de apressar a operação de salvamento. O major ordenou a Meech que indagasse junto à Volta quais eram os planos. Meech chegou a irradiar a pergunta. Mas não conseguiu comunicar a resposta a Ron.

    Seres metálicos reluzentes, vindos do outro lado do salão, aproximaram-se. Deslocavam-se pelo ar. Eram muito mais rápidos. Aproximaram-se silenciosamente e abriram fogo quando se encontravam a vinte metros do grupo de terranos.

    — Abriguem-se! — gritou Ron.

    Deram um salto para o lado. Uma salva de tiros de radiações atingiu a parede junto à qual os dois terranos e o robô se encontravam um segundo antes. Enquanto caía para a frente, Ron arrancou seu desintegrador e apontou-o para uma das estranhas “aves”, formada por um cubo de arestas inclinadas de meio metro de diâmetro. A estranha criatura foi atingida com um chiado e desmanchou-se em pó. O pó caía lentamente ao chão, enquanto as nuvens de gases se afastavam.

    Meech e Lofty também abriram fogo. Ao que parecia, a ausência da pele orgânica não incomodava Meech. A estrutura metálica de seus dedos eram a arma, e todos os tiros que disparava atingiam o alvo.

    Os pos-bis voadores viram-se indefesos face uma defesa maciça como esta. Seus tiros foram confusos e disparados sem pontaria. Por algum tempo teve-se a impressão de que os terranos levariam a melhor.

    Mas, de repente, aconteceram duas coisas ao mesmo tempo.

    Outro grupo de pos-bis voadores aproximou-se, vindo da extremidade oposta do salão. Imediatamente abriram fogo contra os terranos. Estes voltaram-se contra o novo inimigo com uma raiva encarniçada, mas antes que se pudesse ver o resultado da troca de tiros, Lofty Patterson deu um salto e soltou um grito de surpresa.

    — Ora essa! Vejam!

    Até parecia que os pos-bis haviam compreendido suas palavras. Pararam de disparar. Ron rolou para o lado. Ainda viu os dez robôs se materializarem à sua frente. Cada um deles deu um pequeno passo, e o grupo encontrava-se no centro do salão. Eram dez robôs de guerra de modelo arcônida-terrano. Um deles segurava um aparelho em forma de caixa sob o braço. E outro gritou com a voz queixosa:

    — Ajudem-nos, parentes! Somos vida igual a vocês e estamos em dificuldades.

    O pedido foi acompanhado por uma série de sinais emitidos num código positrônico que só Meech Hannigan entendeu! Meech Hannigan e... os pos-bis voadores que nutriam uma terna simpatia por todas as formas de vida que não fossem orgânicas.

    A luta cessou.

   

    Ron compreendeu imediatamente. Os dez robôs, enviados por meio do transmissor fictício, representavam mais tempo. Os pos-bis cuidariam deles e se esqueceriam do inimigo orgânico. A caixa que um dos robôs carregava sob o braço era um aparelho de recepção e transmissão de matéria para um transmissor fictício do tipo arcônida. Não havia dúvida. Nike Quinto acabara de ativar os transmissores a bordo da Volta, a fim de construir uma ponte que pudesse colocar seus homens em segurança, por uma via situada além do tempo e do espaço. O aparelho trazido por um dos robôs representava o acesso a essa ponte, ou melhor, a própria ponte.

    Havia apenas dois problemas. Primeiro, o aparelho teria de ser retirado das mãos do robô sem que os pos-bis desconfiassem. Depois, o transmissor precisava de um aquecimento de dez minutos para funcionar a toda capacidade.

    — Tire o aparelho das mãos dele! — berrou Ron.

    A ordem foi transmitida pelo rádio de capacete. Meech compreendeu imediatamente. Aproximou-se cautelosamente do robô que carregava o aparelho.

    Enquanto isso Ron e Lofty observavam os pos-bis, que esvoaçavam em torno dos robôs terranos. Alguns deles haviam pousado nos ombros dos seres mecânicos. De seus corpos saíram longos braços metálicos flexíveis, que pareciam acariciar os robôs. Era uma visão grotesca. Não havia a menor duvida de que os pos-bis estavam muito mais preocupados em dispensar os necessários cuidados aos seus parentes que pediam auxílio do que no prosseguimento da luta. Os robôs mantinham-se eretos e não faziam o menor movimento, como se realmente precisassem de reparos. Ao que parecia, Nike Quinto introduzira neles uma programação nesse sentido. Nesses segundos, Ron sentiu-se muito grato pela ação de Nike.

    Meech aproximou-se do robô que trazia o terminal do transmissor sob o braço. Ninguém procurou impedi-lo. Os pos-bis voavam em torno dele. Meech não se incomodou. Prosseguiu sem parar, pegou a caixa, que o robô trazia sob o braço, e recuou.

    — Coloque-o lá atrás! — ordenou Ron. — Poderão recuperar a razão a qualquer momento, e quando colocarmos isso a funcionar precisarei de sossego.

    Lofty pôs-se em movimento. Correu para os fundos do salão o mais rápido que pôde. Meech seguiu-o. O pesado aparelho nem parecia pesar em suas mãos. Desta vez Ron seguiu por último. Estava preocupado com os dez robôs. Naturalmente os mesmos seriam deixados para trás caso isso se tornasse necessário. Mas se houvesse uma possibilidade tentaria fazê-los retornar à Volta através do canal do transmissor. Não tinha a menor idéia de quais seriam as programações que Nike Quinto introduzira neles. Acreditava que voltariam a entrar em atividade no momento adequado.

    Quando os pos-bis ficaram para trás, mergulhando na penumbra, Lofty parou. Meech colocou o transmissor no chão. Ron olhou em torno. Neste lugar a sala era mais larga que na parte da frente. Mais para trás, viam-se os contornos confusos de uma parede, que parecia descrever um arco de círculo de noventa graus. Havia uma série de portas. O lugar que tinham escolhido poderia ser tudo, menos seguro. Mas Ron não queria perder mais tempo. Mandou que Meech ligasse o emissor e o regulasse para os receptores instalados a bordo da Volta.

    Examinou os arredores. Do lugar em que se encontrava não via os dez robôs paralisados e os pos-bis que cuidavam deles como se fossem enfermeiras. A distância era muito grande e a luz muito fraca. Ouviam-se ruídos. Evidentemente os robôs ainda não se haviam colocado em movimento.

    Os abalos e os ribombos continuavam a sacudir o chão metálico do salão. Ron teve a impressão de que o bombardeio se tornara mais violento.

    Olhou para trás e viu Meech regular o último botão e erguer o corpo.

    — Faltam oito minutos — disse.

    Naquele instante, Lofty soltou um grito de pavor. Ron virou-se abruptamente. O braço direito de Lofty apontava para a parede redonda dos fundos do salão. O susto paralisou Ron.

    Um objeto gigantesco, de pelo menos quatro metros de altura e com o formato de um projétil, acabara de atravessar uma das portas e aproximava-se do grupo dos terranos.

 

    A cólera que se manifestara na consciência emocional de Granada crescia ininterruptamente. Desde o momento em que os repugnantes seres orgânicos haviam destruído o gerador do campo temporal, tudo começara a sair errado. A face da estação espacial voltada para as naves inimigas estava entrecortada de regos e crateras produzidas pelas explosões. Nenhuma das torres de artilharia dessa face continuava intacta.

    Granada começou a girar lentamente a estação. Dali a alguns minutos, as torres de artilharia de outra face poderiam disparar sobre o alvo. Mas Granada não tinha a menor certeza se essas cúpulas não teriam o mesmo destino das outras.

    Além disso havia seres orgânicos no interior da estação. Haviam fugido de um dos grupos de busca, para cair nos braços do outro. Tudo correu segundo os planos, até que surgissem os dez parentes desconhecidos que pediram auxílio. Naturalmente o grupo voador não poderia deixar de dispensar esse auxilio. Mas Granada não conseguiu livrar-se da impressão de que os dez parentes desconhecidos só haviam aparecido para proporcionar uma pausa aos seres orgânicos. Sabia que tal suspeita representava uma inconcebível blasfêmia. No entanto, não conseguiu livrar-se da mesma depois que sua consciência emocional a concebera.

    De repente notou que os seres orgânicos se aproximavam. Reprimiu a repugnância, que se apossara dele, e saiu do recinto de teto em forma de telhado e chão abaulado, a fim de tomar pessoalmente as providências que se faziam necessárias.

 

    Num movimento instintivo Lofty pós a mão na arma de radiações.

    — Espere aí! — disse Ron num cochicho. — Não atire.

    — Faltam seis minutos — informou Meech, com a maior tranqüilidade.

    Depois disso virou-se e fitou Granada. As lentes que ocupavam o lugar dos olhos, mantidas em posição rígida, observavam a estranha criatura. Eliminou de sua consciência positrônica tudo que perturbasse seu funcionamento ou a distraísse e concentrou-se no ser que se aproximava. Era um robô como ele.

    De repente começou a compreender os sinais irradiados pelo robô estranho:

    — Você é um parente! — essa mensagem foi transmitida por meio de uma série de impulsos positrônicos e representava uma constatação, não uma indagação. — O que está fazendo nas proximidades dos nojentos seres orgânicos?

    Meech hesitou. Numa fração de segundo avaliou dezenas de milhares de alternativas. Precisava encontrar uma que lhe desse mais seis minutos — tempo necessário para colocar em funcionamento o transmissor. Devia reter o desconhecido.

    Não poderia reconhecer que era um robô, pois nesse caso Granada destruiria Ron e Lofty.

    Lembrou-se de uma possibilidade.

    — Quem lhe deu essa idéia? — perguntou.

    Esforçou-se para usar o mesmo código de impulsos do robô-projétil, para que este o entendesse.

    Ao mesmo tempo formulou a pergunta em voz alta, para que Ron soubesse o que estava acontecendo.

    — Vocês quase me mataram quando entrei nesta nave pela primeira vez.

    — Então foi você — constatou Granada em tom indiferente. — Você entrou aqui sem permissão e não se identificou. Meu pessoal tratou-o como se fosse um ser orgânico. Já estou percebendo que não é.

    — Acontece que você está enganado — respondeu Meech. — Sou um ser orgânico, embora diferente dos que você está acostumado a ver.

    Teve uma sensação vaga do funcionamento do sistema de análise de Granada.

    — Como é que você pode ser orgânico? — perguntou o mesmo. — Pois seu corpo é metálico e você compreende meus impulsos.

    Meech arreganhou os dentes, que constituíam a única coisa que restava do seu tecido orgânico artificial.

    — Tenho um corpo metálico e trabalho com recursos positrônicos. Mas minha inteligência é orgânica, e é só o que conta.

    — Você tem razão — admitiu Granada. — Também será destruído.

    “Faltam quatro minutos”, pensou Meech.

    A confusão dos impulsos que se atropelavam em sua mente representava um tipo de desespero.

    — Eu o previno — disse em tom ameaçador. — Se nos atacar, você se arrependerá. Não viemos aqui para permitir que qualquer robô estúpido nos matasse.

    Jogava com uma chance diminuta, que era a parte emocional da consciência de Granada. Teria que irritá-lo. E conseguiu.

    A ofensa produziu um choque no pos-bi. O pedacinho de plasma, acoplado com a consciência mecânica por meio de um mecanismo hipertóictico, assumiu o controle.

    — Seu verme orgânico nojento! — chiaram os impulsos. — Eu os esmagarei. Vocês não merecem que um de nós sequer os olhe.

    — Não seja tão arrogante, seu montão de lata e plástico! — interrompeu Meech. — Você é tão idiota que não compreende as coisas mais simples deste mundo. Será que você acredita realmente que poderá eliminar três criaturas superiores?

    — Criaturas superiores? — Granada “Espumava de raiva”. — Não existe nada que seja superior a nós. Somos a beleza e a utilidade personificada. Vocês são repugnantes. Um líquido fedorento corre em seus corpos, e o pouquinho de inteligência que vocês possuem está encerrado numa massa cinzenta trêmula.

    — E você? Os fluxos passam lentamente pelas suas veias, você se aquece porque seus condutos foram corrigidos e seu cérebro trabalha devagar por causa da sujeira dos seus contatos. Como é que uma figura ridícula como você pode dizer que é a beleza e a utilidade personificada?

    Faltavam dois minutos. Granada parecia que ia explodir!

    Naquele momento deixara de ser um robô, enquanto defendesse o ponto de vista de um artefato desse tipo!

    Sua consciência emocional alcançara o controle total de todas as manifestações de seu ser!

    As unidades positrônicas estavam a serviço da emoção! Impulsos confusos atingiam Meech, que só compreendia alguns fragmentos:

    — ...nojento ...inútil ...uma vergonha ...eliminar tudo ...neste momento...

    Meech sentiu que a corrente de insultos positrônicos diminuía. Fez algumas observações odientas. Mas sentiu que Granada recuperava a capacidade de raciocinar. Não poderia impedir mais que ele o fizesse. Afinal, era um robô, e por isso mesmo em certa altura deveria entrar em funcionamento um controle de emergência, que faria com que a consciência positrônica recuperasse o controle. Esse momento acabara de chegar... e o transmissor fictício só poderia entrar em funcionamento dali a trinta segundos.

    Naquele momento aconteceu o milagre pelo qual Ron e Lofty esperavam,..

    Um golpe ribombante sacudiu o salão. Meech perdeu o apoio dos pés e caiu ruidosamente ao chão. Viu que com Ron e Lofty acontecera a mesma coisa. O terminal do transmissor escorregou pelo chão. Enquanto isso Granada, que estava envolvido no processo de transferência do controle de um para outro setor de sua consciência foi atirado pelo ar. Meech ouviu o ruído metálico do impacto na parte dos fundos do salão. Sabia que Granada não poderia ter sofrido prejuízos mais sérios, pois era protegido por um campo energético.

    Mas os trinta segundos já se haviam passado.

    — Preparem-se para o salto! — gritou.

    Ouviu-se um forte ruído vindo dos fundos da sala. Ron estava parado à frente do transmissor, junto ao anel cintilante que demarcava no ar os limites do campo de transporte da quinta dimensão. Estava pronto a atravessar o arco e retornar à Volta. Mas estacou ao ouvir o barulho.

    — Os robôs! — gritou Meech. — Para a nave! Irei depois...

    Não poderiam demorar um segundo que fosse. Lofty obedeceu imediatamente. Atravessou o círculo e desapareceu. Os robôs foram saindo da penumbra. Ron não teve necessidade de transmitir-lhes instruções. Seu programa dizia para onde deveriam ir. Foram atravessando o círculo.

    Meech observou Granada, que já se recuperara do choque e voltava a aproximar-se. Os pos-bis voadores também se aproximaram, vindos do lado oposto. Estavam à procura dos parentes, que há pouco ainda permaneciam imóveis e pareciam precisar de auxílio.

    Outro golpe atingiu a nave e estabeleceu a confusão no interior da mesma.

    “Não é a artilharia da Volta”, constatou Meech. “Deve ser outra coisa.”

    O último robô desapareceu pelo arco. Ron Landry seguiu-o. Quem atravessou o arco por último foi Meech Hannigan — uns dois ou três segundos antes do momento em que o salão sofreu um impacto direto que rasgou o teto de lado a lado.

 

    De início, na Volta, tudo correu de acordo com os planos. Constatou-se que o inimigo não era tão invulnerável como parecera. Nike Quinto atribuiu o fato à circunstância de que, por ocasião do primeiro ataque só fora aberta uma pequena brecha no campo de distorção temporal, enquanto agora, segundo as informações de Meech Hannigan, esse campo deixara de existir. Ron Landry destruíra o respectivo gerador.

    O reaparecimento de Meech Hannigan foi registrado com surpresa. Mas em meio ao nervosismo generalizado ninguém teve tempo para entregar-se às próprias reflexões. As torres de canhões do inimigo foram bombardeadas uma após a outra. Vez por outra uma salva inimiga atingia a Volta e sacudia-a em todos os cantos, mas era evidente que a nave terrana levava vantagem.

    Nesse meio tempo dez robôs haviam saldo de bordo por meio de um transmissor fictício a fim de, depois de passarem pelo grande transmissor instalado na nave capitania, acudirem a Ron Landry e a seus dois companheiros.

    Pelos cálculos de Nike, a Volta teria de agüentar mais uns cinco ou dez minutos. Se não houvesse nenhum imprevisto, a nave poderia suportar esse lapso sem sofrer maiores danos.

    Mal acabara de pensar isso, e o imprevisto aconteceu.

 

    À sua chegada, as telas dos aparelhos de observação espacial iluminaram-se num branco ofuscante. Até se tinha a impressão de ouvir o trovão com que irromperam do hiperespaço. Eram cinco naves colossais, de formato cúbico, que representavam o produto de uma civilização totalmente estranha.

    Não havia a menor dúvida quanto às suas intenções: atacariam a Volta. Haviam vindo em auxílio de sua estação. Foi ao menos o que Nike Quinto acreditou no primeiro instante.

    De um instante para outro, o cruzador terrano transformou-se numa casa de loucos que trepidava, sacudia, bramia. Os campos defensivos iluminaram-se sob o impacto da carga insuportável. Nike Quinto atou os cintos da poltrona e comprimiu o microfone contra o rosto, para que suas ordens pudessem ser compreendidas.

    — Preparar nave para a partida. Dentro de cem segundos partiremos com a aceleração máxima. Regular os geradores kalupianos para o desempenho máximo. Temos que desaparecer daqui.

    Sentiu a garganta ressequida. Teria de abandonar Ron Landry e seus companheiros, pois, do contrário, arriscaria a vida de todos os tripulantes. Desesperado, fitou a tela que o mantinha em contato com a estação de transmissor — e estremeceu. Um oficial que se encontrava na estação agitava os braços e gritava alguma coisa que Nike não compreendia em meio ao barulho. Mas reconheceu Lofty Patterson atrás do oficial. Um dos dez robôs, que há pouco tinham saído da Volta, atravessou o campo de visão. De repente apareceu Ron Landry e atrás dele uma repugnante criatura metálica — era o que restava de Meech.

    Nike Quinto afrouxou o cinto, a fim de estar preparado caso precisassem dele em algum lugar. Atingido por outro solavanco, foi arrancado da poltrona e atirado ao chão. Levantou-se, ligeiramente atordoado, e ouviu um grito de triunfo.

    — A Teodorico...!

    Levantou-se, segurando-se na poltrona, e fitou a tela. Um colosso que cuspia fogo passava entre as fogueiras trêmulas dos campos defensivos, dirigindo-se à linha formada pelas cinco naves fragmentárias. A confusão estabeleceu-se entre os inimigos. A Volta teve uma pequena pausa. Os solavancos diminuíram. E Nike Quinto viu uma coisa inacreditável.

    Uma das naves continuava a disparar. Suas salvas ofuscantes penetravam no colosso, na estação, no monstro surrealista que, segundo Nike acreditara até então, teria chamado as cinco naves para prestar-lhe socorro.

    Os veículos espaciais estavam destruindo sua própria estação!? Nike Quinto viu-o com os próprios olhos.

    Finalmente os cem segundos chegaram ao fim. Sob a ação dos seus propulsores, que desenvolviam a potência máxima, a Volta desapareceu do lugar em que por pouco não deram cabo dela.

 

    — Quero manifestar meu reconhecimento para com seus homens — principiou Rhodan. — Especialmente ao sargento Hannigan, se é que o mesmo tem a necessária receptividade para isso...

    — Ele tem — interrompeu Nike, com um sorriso.

    — Pois Meech revelou todo o material filmado que havia em seu corpo. Por enquanto não podemos avaliar a utilidade que isso nos proporcionará; de qualquer maneira, essa utilidade é considerável. Soube oferecer aos nossos cientistas um relato tão preciso das suas experiências que já sabemos exatamente o que aconteceu com ele. Em virtude de uma interação infeliz, entre o campo de transmissão gerado a bordo da BOB-XXI com o campo de distorção relativista da nave fragmentária, viu-se deslocado para uma zona intermediária metaestável, situada na periferia do campo relativista da estação fragmentária. Não sabemos por que foi parar justamente ali. No momento crítico parece ter havido uma ligação entre a nave que atacou a BOB-XXI e a estação a que já aludi. Talvez essa ligação consistisse numa transferência de energia.

    “Conforme depreendemos dos registros do sargento Hannigan, uma segunda transferência de energia levou-o por um espaço de tempo bastante curto para bordo da própria estação. E da mesma forma como tinha aparecido a bordo da estação voltou a desaparecer, voltando ao estado metaestável. O sargento Hannigan só foi libertado definitivamente quando o Major Landry destruiu o gerador que criava o campo relativista. Teve um comportamento admirável, até mesmo para um robô.

    “As fotografias tiradas pelos aparelhos da Teodorico por ocasião da primeira batalha forneceram novas informações sobre os métodos e o armamento do inimigo. Os pos-bis utilizam um canhão que, segundo parece, dispara um raio de energia enfeixada. Essa energia se materializa pouco antes de atingir o alvo, fazendo surgir um objeto como, por exemplo, uma grande bomba de hidrogênio, que poderá ser muito mais eficiente que qualquer raio energético.

    “Quanto ao campo relativista propriamente dito, tudo indica que fizemos bons progressos. Os cientistas de sua nave desmontaram o pequeno gerador que o Major Landry adquiriu em Árcon, e dentro em breve saberão construir outro igual a este. Mais dia menos dia deveremos possuir instalações mais potentes.”

    Lançou um olhar pensativo para Nike Quinto.

    — É o que eu queria dizer-lhe, coronel. Face ao excelente desempenho da Divisão III, julguei que o senhor devia ser a primeira pessoa a receber estas informações — um sorriso matreiro apareceu em seu rosto. — E o elogio também se inspira num motivo egoísta. Espero que o campo de atuação da Divisão III tenha um acréscimo num futuro muito próximo. Agora, que conseguimos mesmo chamar a atenção dos pos-bis para nós e para nossa Galáxia, por certo teremos muito que fazer.

    Quando Nike Quinto entrou na sala de estar da Volta, sua equipe já estava reunida. Ron Landry, que já não estava tão cansado, espreguiçava-se na poltrona. Larry Randall servia bebidas. Lofty Patterson acabara de sorver um gole. Parecia muito satisfeito. Meech Hannigan com sua feiúra mantinha-se em posição mais afastada.

    — Levem este espantalho! — gritou Nike. — Se tiver de olhar por mais tempo para essa caveira metálica, acabarei sofrendo um infarto. Robô, encomende quanto antes uma nova pele para você.

    Ron Landry ergueu-se lentamente.

    — Coronel, o senhor está ofendendo meu amigo — disse em tom sério. — O senhor já viu um robô que se fez passar por gente, apenas para salvar a vida de dois seres humanos? Um dos pos-bis, uma coisa gigantesca, em forma de Granada, já nos tinha na mira. Foi quando Meech começou a insultá-lo. Disse que era uma velha caixa de lata cheia de fios enferrujados e contatos sujos. Divertiu-se à sua custa, dizendo que os robôs eram as criaturas mais imperfeitas que conhecia, e que não havia nada que superasse a vida orgânica. Enfureceu o pos-bi a tal ponto que este nem conseguiu atirar. É uma pena que o senhor não tenha visto, coronel. Nem mesmo o senhor seria capaz de fazer uma defesa tão eficiente da raça humana como a que Meech formulou naquele instante.

    Por um instante Nike Quinto parecia ter sido atingido por um raio. Subitamente virou-se e fez alguma coisa que nunca ninguém esperaria dele.

    Aproximou-se de Meech e ofereceu-lhe a mão.

    — Você é um sujeito formidável, Meech — disse em tom de elogio. — Devo transmitir-lhe os elogios do administrador, e posso perfeitamente acrescentar os meus.

    Meech segurou a mão que lhe era oferecida e mostrou os dentes, como se realmente se sentisse contente. Nike Quinto voltou à sua poltrona e tirou um copo da bandeja que estava sendo oferecida por Larry. Para provar que continuava o mesmo de sempre, disse:

    — De qualquer maneira você poderia fazer alguma coisa a favor da minha pressão, Meech. Procure conseguir quanto antes uma pele nova.

 

                                                                                            Kurt Mahr  

 

                      

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