Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DESCENDENTE DE XANADU / Harold Robbins
DESCENDENTE DE XANADU / Harold Robbins

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

DESCENDENTE DE XANADU

 

A PROCURA

1976-1980

A minúscula médica, escondida por detrás dos óculos escuros de fabrico europeu, levantou-se da secretária onde estivera sentada e dirigiu-se para a janela. Fez-lhe sinal para que se aproximasse. Ele colocou-se atrás dela, enorme, seguindo-lhe depois o gesto da mão, que apontava para a gigantesca fonte que se via no meio de uma imensidão de relva verde-azulada.

- Sabe que fonte é aquela, senhor Crane? - perguntou-lhe ela com o seu sotaque centro-europeu.

- Claro, doutora Zabiski - anuiu ele. - É a fonte de Ponce de Leon.

Ela ergueu os olhos para ele.

- Trata-se de uma lenda, senhor Crane. De uma alegoria. Nada de real. Semelhante realidade nunca existiu.

Ele permaneceu em silêncio durante um momento.

- Também tenho conhecimento desse facto, doutora Zabiski - observou ele.

Ela regressou à sua secretária e sentou-se no cadeirão. Pegou nos óculos escuros com a mão direita e em seguida pousou-os em cima do tampo da secretária, à sua frente.

- O senhor tem olhos azuis-cobalto - disse ela. Ele esboçou um pequeno sorriso.

- E os seus são castanhos com um toque de amarelo-torrado, quase como os de um gato.

Ela olhou-o directamente nos olhos.

- Se aquilo que procura aqui é a imortalidade, senhor Crane - disse ela em voz suave -, perdeu o seu tempo.

Ele não desviou o olhar.

- Não foi o que me constou.

- Então informaram-no incorrectamente - disse ela. A expressão dele não se alterou.

- Acha vinte milhões de dólares incorrectos? Os óculos escuros voltaram a cobrir-lhe os olhos.

- Isso leva-me a crer que aquilo que ouvi dizer de si é verdade - observou ela. - O senhor é um dos homens mais ricos do mundo.

- Aí tem um aspecto sobre o qual não a informaram com verdade - disse ele suavemente. - Eu sou o homem mais rico do mundo.

Ela inclinou a cabeça.

- Mais do que o rei saudita, Getty, Ludwig, Hughes?

- Todos esses não parecem mais do que crianças a divertirem-se com jogos - respondeu ele. - Basta-me dar um estalo com os dedos para que fiquem sem os seus berlindes.

- Então só resta um jogo para si - concluiu ela. - O da imortalidade.

- É o último jogo, doutora. Jogámos ao do espaço e ganhámos. O jogo das profundezas do oceano: esse também vencemos. Velocidade, altura, profundidade, tudo o que quiser, ganhámo-los a todos. E já experimentei todos os outros jogos. Dinheiro, poder, sexo. Adoro estes e jogo-os constantemente, mas não passam de brincadeiras de crianças. Agora quero o maior de todos. Imortalidade. Quero ser o primeiro homem a viver eternamente.

- As suas pretensões são modestas, não haja dúvida! Referem-se apenas àquilo que nunca nenhum homem conseguiu. - Ela observava-lhe os olhos cuidadosamente. Estes mantiveram-se inalteráveis. - Mas acredita em mim se lhe disser que eu própria também ainda não fui capaz de a conseguir?

- Acredito - respondeu ele. Ela hesitou.

- Então não compreendo - disse. - Que espera de mim?

- Nada - respondeu ele tranquilamente. - Tudo. Você foi a pessoa no mundo que mais próxima se encontrou daquilo que desejo.

- Obtive bons resultados em determinados casos de retardamento geriátrico. Não na área da suspensão geriátrica. Isso não é a imortalidade.

- Mas ajudou muita gente importante - disse ele.

A Dra. Zabiski permitiu-se um pequeno sorriso modesto.

- É verdade. E gosto de sentir que ajudei essas pessoas. Der Alte, que veio expressamente da Alemanha, o Papa de Roma, até Estaline, de Moscovo. Mas a seu tempo todos eles morreram.

- Mas vieram aqui. Todos eles. E conseguiram na realidade alguma coisa.

Ela esboçou um lento sinal de aquiescência.

- Em qualquer dos casos, a qualidade da sua existência tornou-se melhor, independentemente da idade.

- Sob o ponto de vista mental ou físico? Era mais uma afirmação do que uma pergunta.

- Sim - respondeu ela. - Mas acabaram por morrer. Ele fitou-a.

- Quanto tempo acha que lhes deu, em média? A médica cruzou as mãos à sua frente.

- Não sei. Foram tantos os factores a tomar em consideração. Não apenas as idades mas a altura em que me procuraram para fazer o tratamento. - Hesitou de novo. - Há quem não demonstre qualquer espécie de reacção a este processo. Não existem garantias.

- Se eu reagir ao seu tratamento, que devo esperar?

- Em termos de média? - Ela reflectiu durante um momento. - Tem agora quarenta e dois, não é verdade?

Crane fez um sinal afirmativo.

- Daqui a oito anos, em mil novecentos e oitenta e quatro, com cinquenta, geriatricamente teria quarenta e cinco; aos setenta, talvez sessenta, e, aos oitenta, possivelmente entre sessenta e quatro e sessenta e seis. - Fez uma pausa antes de continuar. - Isso, evidentemente, partindo do princípio de que levava o programa até ao seu termo.

- Ou seja, até ao fim da minha vida? - perguntou Crane.

- Trata-se de um programa de vida, senhor Crane - concordou ela. - Para começar, precisa de aqui permanecer durante dois meses a fim de determinarmos o grau de reacção que mostrará ao nosso tratamento. Depois, se verificarmos que existem probabilidades de uma reacção favorável, de três em três meses terá de passar uma semana connosco a fim de se submeter ao tratamento em si.

Ele esboçou um sorriso vagamente prazenteiro.

- Doutora Zabiski, digamos que continuo até ao termo de todo o tratamento. Que lhe acontece a si?

Ela devolveu-lhe o sorriso.

- Terei morrido há muito. Mas isso não tem importância. O tratamento prosseguirá.

Ele permaneceu em silêncio durante alguns momentos.

- Para além do tempo necessário para o tratamento, terei de gastar mais duas semanas para chegar aqui. Isso representará quase dois meses anuais do meu tempo. Não poderei tratar devidamente dos meus negócios.

- A decisão é sua, senhor Crane.

- Haverá alguma forma de os tratamentos serem levados até mim?

Ela abanou a cabeça.

- Lamento, senhor Crane. Levei trinta anos a desenvolver este complexo e ele é o único existente no mundo.

- Os doutores Aslam, Filatov e Niehans exportam os seus métodos e a senhora inclui parte da metodologia utilizada por eles nos seus.

- É verdade - concordou ela.

- Então qual é o ingrediente secreto em relação ao qual se mostra tão ciosa que não o deixa ir para mais lado nenhum do mundo?

A Dra. Zabiski esboçou um pequeno sorriso.

- O ingrediente secreto, senhor Crane, tal como diz, é o senhor.

- Não compreendo.

- Não me parece que seja assim, senhor Crane.

- Conheço todas as teorias - observou ele com sinceridade. - Sei que incorpora a procaína, o magnésio e os minerais de Aslam, os excertos de placenta fresca de Filatov e as injecções de células de feto de bezerro de Niehans. Por vezes chego mesmo a pensar que as juntou a todas numa só fórmula. Mas isso seria demasiado simples. Daí que calcule que existe um ingrediente secreto.

- O senhor não me escutou, senhor Crane - disse ela pacientemente. - Já lhe disse que o ingrediente secreto é o senhor.

Ele olhou para ela atentamente. Ela permaneceu em silêncio. A voz dele não passava de um murmúrio.

- Recriação a partir de células existentes no próprio organismo?

Ela não respondeu.

- Implantação de células vivas retiradas do reservatório do próprio corpo. - Os olhos azuis-cobalto dele pareceram ficar da cor do céu à noite. - Esse método nunca alcançou sucesso entre os humanos.

Pela primeira vez na sua vida, ela sentiu medo, como se um vento gélido lhe envolvesse o corpo. A voz quase lhe tremia.

- Senhor Crane, tenho outros pacientes à minha espera. Ele continuou silencioso.

- Mas talvez possamos marcar nova consulta para amanhã - acrescentou a médica.

A voz dele era tranquila.

- Amanhã estarei em Pequim.

- Então noutra altura - disse ela. Crane levantou-se da cadeira.

- Vinte milhões de dólares não serão suficientes; agora compreendo-o - disse ele. - Cinquenta milhões de dólares? Chegam?

Ela ergueu o olhos para ele.

- O senhor não compreende - disse. - O dinheiro não é importante. Estamos num país socialista. Tudo o que aqui se encontra pertence ao Estado.

- Então esqueça a palavra “dinheiro" e no seu lugar coloque “prioridades" - disse ele. - Cada país tem as suas próprias prioridades e a sua ordem própria para as mesmas.

- Agora sou eu que não o entendo, senhor Crane - disse a Dra. Zabiski.

Ele sorriu.

- Doutora Zabiski, a senhora é médica e cientista, e percebe da sua profissão. Por favor, permita-me que lhe diga, a minha profissão baseia-se na negociação das prioridades. - Estendeu-lhe a mão. - Muito obrigado pelo tempo que me concedeu, doutora Zabiski.

A mão dela era firme e quente.

- Estarei sempre à sua disposição, senhor Crane - disse-lhe ela, dirigindo-lhe um aceno de cabeça e um sorriso com que ele não contara.

Acompanhou-o até à porta.

- Adeus, senhor Crane.

Ele deteve-se no umbral da porta por instantes.

- A senhora é uma grande mulher - disse. - Auf wiedersehen1, doutora Zabiski.

Assim que Judd Crane partiu, a porta privada do gabinete da Dra. Zabiski abriu-se para deixar passar um russo de elevada estatura e rosto fortemente autoritário, que a alcançou quase

 

' Em alemão, no original: Adeus. (N. da T.)

 

antes de ela ter tido tempo de contornar a sua secretária. Era seguido por uma jovem atraente envergando uma bata branca, que fechou a porta atrás de ambos. Zabiski sentou-se no seu cadeirão.

- Que pensam dele? - perguntou.

- O porco egoísta! - praguejou o russo. - Pensa que o dinheiro dele pode comprar tudo o que lhe apetecer.

A jovem baixou os olhos para a médica sentada.

- A mim pareceu-me bastante atraente. - disse. - E tenho a impressão de que é muito inteligente.

Zabiski olhou para o indivíduo que se encontrava do outro lado da secretária.

- Não o subestime, camarada Nicolai - disse a pequena médica. - Ele é muito esperto. Repare como foi rápido a apreender a nossa metodologia.

- Isso não interessa, camarada doutora - disse Nicolai. - Tem de se certificar de que ele não nos escapa.

- O que o torna assim tão importante para nós? - perguntou Zabiski. - Para mim não passa de mais um homem que deseja prolongar o seu período de vida. Exactamente como muitos outros que passam por esta clínica.

Nicolai olhou para ela. Ao falar, fê-lo como se se dirigisse a uma criança.

- As Indústrias Crane não só constituem o maior complexo industrial do mundo, como também são o maior fornecedor de produtos do Governo dos Estados Unidos. Produtos que vão desde o material de escritório, médico, aeroespacial ao armamento pesado.

“Há muitos anos que estamos a tentar infiltrar-nos no aparelho executivo dessa companhia. Mas tem sido impossível. E isso porque é o próprio Judd Crane a possuí-la e a dirigi-la sozinho. E ele que toma todas as decisões e os seus assistentes limitam-se a levá-las à prática. A pessoa que conseguir aproximar-se dele não pode deixar de ficar a saber mais sobre as políticas e planos dos Estados Unidos do que, provavelmente, o próprio presidente desse país.

A Dra. Zabiski ergueu os olhos para ele.

- Se está à espera de que eu venha a ser essa pessoa, está completamente enganado. Se ele deseja que eu vá com ele a fim de tratá-lo, isso é impossível. Estou demasiado velha e não seria capaz de estar à altura dele sob o ponto de vista físico.

- Não estamos à espera de que faça o trabalho físico. Queremos que o convença de que cooperará com ele. Designará então Sofia para sua substituta. Ela possui credenciais legítimas, tanto como médica como professora assistente de Geronto-logia e Geriatria, e é perfeitamente competente para levar os testes a cabo e prepará-lo para os tratamentos que a doutora Zabiski orientará pessoalmente. - Calou-se por momentos. - Escutei a vossa conversa pelos microfones. Ele está de tal maneira confiante que não hesitará em aceitar todas as sugestões que lhe propuser.

Sofia virou-se para ele.

- Nicolai, ele é capaz de pensar que eu sou demasiado jovem.

Nicolai sorriu.

- Não sejas estúpida, Sofia. Ter trinta anos não é ser jovem. Além disso, és uma mulher bonita e sabes como utilizar esse atributo. Já o fizeste anteriormente. Limita-te a deixá-lo pelo beicinho.

- Ele não é assim tão ingénuo - observou Sofia, contrariada.

- Temos o apartamento dele no hotel completamente sob escuta - disse Nicolai. - Tem três putas à espera dele cá em baixo. Claro que são nossas empregadas, mas ele desconhece o facto.

- É isso o que pensas de mim? - perguntou Sofia friamente. - Que sou apenas uma prostituta profissional?

Nicolai afastou-se bruscamente dela.

- Sugiro que contacte com Crane o mais depressa possível - disse ele à Dra. Zabiski.

- Pode estar descansado, camarada Nicolai - respondeu a médica.

Nicolai baixou os olhos para ela.

- Relativamente àquela ideia maluca a que ele se referiu, a da reconstrução celular? Acha que isso alguma vez será possível?

A Dra. Zabiski abriu as mãos em ar de dúvida.

- Quem sabe? Uma coisa é certa: temos muito a aprender com ele. Alguns dos nossos colegas que estiveram nos Estados Unidos disseram-me que a Corporação de Engenharia DNA Crane está anos-luz à frente de nós em tudo o que se encontra ligado ao DNA.

- Como vês - disse Nicolai virando-se para Sofia -, isso torna ainda mais premente a necessidade de te aproximares dele.

Sofia lançou-lhe um olhar de desprezo e em seguida abandonou o gabinete da médica.

Sofia atravessou o corredor e subiu para o seu quarto. Ficou a olhar pela janela, fumando um cigarro. Observava a fonte cintilante quando a porta se abriu nas suas costas. Não se virou.

Sentiu as mãos dele pousarem nos seus ombros. Ainda assim, continuou a olhar em frente.

- Que diabo te deu? - perguntou ele furioso.

- Oito anos - disse Sofia com amargura. - Mas continuas casado com Ekaterina.

- Já te expliquei a situação muitas vezes, Sofia - respondeu ele, tentando abrandá-la. - O pai dela continua no Polit-buro. Se me divorciar dela, a minha carreira vai pelo cano abaixo. Temos de esperar que Andropov faça a sua jogada e só depois é que poderei tornar-me independente e casar contigo.

Sofia continuou silenciosa, de cigarro na mão.

As mãos dele moveram-se rapidamente nas costas dela. Rodeando-lhe a cintura com um braço, puxou-a para ele, levantando-lhe a saia para cima. Para além das meias, ela tinha as coxas e as nádegas nuas. Ele colocou-lhe a mão em forma de concha sobre o púbis.

- Estás toda molhada - disse-lhe com voz rouca. Ela não se moveu.

- Estou sempre molhada - observou.

Sofia ouviu os botões da braguilha dele a abrirem-se e ele a exercer pressão sobre o meio das costas dela, levando-a a inclinar-se sobre o peitoril da janela. Um momento mais tarde sentiu-o, enorme e duro, dentro dela. Arquejou, deixando cair o cigarro para fora da janela e apoiando as mãos à base de madeira. Voltou a arquejar. Um som semelhante a um miado soltou-se da sua garganta.

As suas mãos apertaram-se como um torno sobre os quadris dela enquanto ele se movimentava contra ela como um pistão, imprimindo-lhe impulsos para dentro e para fora. Na sua voz notava-se um forte sentimento de triunfo.

- Continuas a adorar isto!

Ela não respondeu, gemendo e esforçando-se por respirar. As suas unhas cravavam-se nas ancas dela.

- Maldita! - rosnou ele. - Diz-me. Diz-me que continuas a adorar isto!

- Sim, sim! - quase gritou ela de dor e prazer. - Adoro isto!

 

Judd saiu do elevador e dirigiu-se para as enormes portas duplas do apartamento do hotel, carregando no botão da campainha. Os carrilhões fizeram-se ouvir através das portas fechadas. Um momento mais tarde, Fast1 Eddie abriu-as, de Colt 45 automático na mão. Judd olhou para o pequeno negro enquanto se encaminhavam os dois para o interior das instalações.

- Qualquer dia arranjas uma hérnia só de levantares uma peça como essa.

Fast Eddie trancou a porta e enfiou a arma no cinto.

- A Jugoslávia é o cano de esgoto do mundo - disse. - Até baratas tem debaixo do tampo das sanitas.

- É a vida - concordou Judd. - Há gente sem classe nenhuma.

Dirigiu-se à sala de estar e deteve-se em frente da pasta de documentos que se encontrava em cima da secretária. Rodou o segredo e abriu-a. A placa de bronze estava coberta de válvulas electrónicas.

- Parece uma árvore de Natal - comentou. Fast Eddie concordou.

Judd rodou um pequeno manípulo que se via na placa e em seguida carregou em três botões. De súbito todos os díodos se tornaram amarelos. Judd sorriu.

- Será que as baratas têm os tímpanos furados? Fast Eddie riu-se.

- Isso não faz parte do meu departamento, patrão. Não se esqueça de que sou apenas o seu criado de quarto.

- Então arranja-me uma bebida - disse Judd.

- A do costume?

- Coca-Cola com cherry de Atlanta e muito gelo - disse Judd.

Ficou a ver o homenzinho deslocar-se para o interior do bar.

 

Rápido, célere. (N. da T.)

 

- Que foi que te fez ficar tão nervoso? - perguntou Judd ainda admirado por tê-lo encontrado de automática em punho.

- Demasiado pessoal de serviço. - O homenzinho encheu o copo de cubos de gelo. - Três criadas, um homem com um aspirador, dois lavadores de janelas, um electricista, dois técnicos do telefone. Estava a começar a fazer lembrar o Aeroporto O'Hare.

Abriu uma garrafa de Coca-Cola e encheu o copo, pousando-a a seguir cuidadosamente.

- Um “cheirinho"? - perguntou.

- Por enquanto, não - disse Judd. - Beberricou pensativamente. Olhou para Fast Eddie. - Quantas divisões tem esta suitel

- Cinco.

- Já foste a todas?

- Sim.

- Incluindo os armários?

- Não.

Judd pousou a bebida sobre o tampo da secretária e tirou um pequeno objecto em forma de caixa da pasta dos documentos. Carregou num botão que tinha de lado e envolveu-a com a mão.

- Agarra na tua peça - ordenou.

Fast Eddie tirou a pistola do cinto e foi atrás de Judd pelos quartos. Ao chegar diante de cada armário, encostava a caixa às portas fechadas.

- Essa é nova - disse Fast Eddie.

- Novinha em folha - corroborou Judd. - É um detector de calor corporal. Se houver alguém ali dentro, sabê-lo-emos sem abrir a porta.

- Engenhocas - comentou Fast Eddie. - É maluco por elas. Tal e qual um puto.

O dispositivo deu sinal na divisão mais afastada da entrada. Judd olhou para a minúscula agulha tremulante.

- Ali dentro - disse.

- Que fazemos agora? - perguntou Fast Eddie.

- Aguarda um minuto - disse Judd. Observou a agulha por instantes. - Não fazemos nada. Este tipo já está com as pulsações aceleradíssimas. Que estupidez terem colocado um agente numa área tão confinada como esta. E o mais estúpido de tudo foi designarem um homem com um problema cardíaco, que o mais pequeno choque sonar poderá matar.

Voltou à sala de estar, guardou o detector de calor na mala e desligou os botões e o pequeno manípulo. Os díodos amarelos voltaram a parecer-se como uma árvore de Natal a verde e vermelho. Fechou a mala e regulou a combinação de segurança. Virou-se para Eddie.

- Já me podes dar o tal “cheirinho".

Fast Eddie puxou a corrente de ouro que trazia ao pescoço para fora da camisa. Abriu a garrafinha de ouro que vinha junto com uma pequena colher do mesmo material, e entregou ambas cuidadosamente a Judd. Este inalou fortemente por duas vezes.

- Também me apetecia uma - disse Fast Eddie olhando para ele. - Ainda estou a tremer.

- Fazes favor.

Fast Eddie fez jus à sua alcunha. Num segundo ficou com melhor aspecto. Frasco e colher desapareceram num abrir e fechar de olhos.

Olhou para o seu patrão. - Outra Coca-cola!

- É melhor - Obrigado - disse Judd. - Creio que esta já perdeu a graça toda.

Precisamente quando o homenzinho se dirigia para o bar, o telefone tocou.

- Eu atendo - disse Judd, pegando no auscultador.

- Daqui fala Crane.

- Senhor Crane, daqui é a doutora Zabiski. - Ao telefone o sotaque da sua voz era mais acentuado. - Estive a pensar na conversa que tivemos há pouco.

- Sim, doutora - disse ele.

- Posso ir ter ao seu hotel às vinte e uma horas, se não tiver nada em contrário.

A sua voz fazia ressonância no telefone. Judd olhou de relance para o relógio de pulso. Eram seis da tarde.

- Por mim está óptimo, doutora. Talvez queira fazer-me companhia ao jantar, não?

- Terei de levar a minha assistente comigo.

- Não há problema.

- Então está combinado, senhor Crane. Até logo. Obrigada.

- Obrigado eu, doutora. - Pousou o auscultador e olhou para Fast Eddie. - Em que quarto está Merlin?

- No mil e nove. No andar abaixo do nosso.

Judd ligou para o referido quarto. O seu assistente atendeu.

- Sim, senhor Crane?

- Importa-se de vir aqui acima e trazer o telefone portátil consigo? - pediu Judd.

- Ainda aqui tenho três secretárias à espera de serem entrevistadas.

- Não teremos tempo para as atender - disse Judd.- Pague-lhes e livre-se delas.

- Sim, senhor Crane. Fá-lo-ei imediatamente. Fast Eddie trouxe a bebida fresca. Abanou a cabeça.

- É uma pena, senhor Crane. Aquelas gatinhas jugoslavas pareciam artigo de primeira.

Judd bebeu um gole e soltou uma risada.

- Não podemos tê-las a todas.

O telefone portátil encontrava-se guardado numa pasta de documentos semelhante àquela que se via em frente de Judd. Merlin entregou-a assim que Fast Eddie lhe abriu a porta. O homenzinho voltou a fechá-la e fez-lhe um gesto antes que ele pudesse falar. Levou o indicador aos lábios e apontou para as luzes do tecto e para os telefones. Merlin acenou a cabeça em sinal de entendimento e atravessou a divisão, acercando-se de Judd.

- Tenho aqui as mensagens para o senhor Crane - disse.

- Obrigado, Merlin.

Judd colocou o aparelho sobre a secretária e entregou a outra pasta a Merlin. Aceitou a série de mensagens que o assistente lhe entregou.

- Diga ao capitão que estaremos prontos para partir logo a seguir à meia-noite.

- Sim, senhor Crane.

Merlin abriu a pasta de documentos e pegou no telefone portátil, enquanto Judd lia as mensagens. Ouviu o que o capitão lhe disse e depois virou-se para Judd.

- O capitão diz que teremos de fazer uma paragem a meio do caminho para reabastecer o aparelho.

- Veja se ele consegue resolver o problema durante o voo - disse Judd. - Se paramos podemos perder duas ou três horas.

Merlin transmitiu a mensagem e pousou o telefone.

- O capitão diz que irá fazer os possíveis para consegui-lo.

- Óptimo - disse Judd, e devolveu as mensagens a Merlin. - Amanhã vemos isso durante a viagem. Tenho um jantar marcado com a doutora Zabiski para as nove. É capaz de nos reservar uma mesa no restaurante do hotel? Vou tentar dormir um pouco e tomar um duche antes disso.

- Tem um encontro combinado com o subsecretário do Turismo para as sete - disse Merlin.

Judd esboçou um sorriso amarelo.

- Lá se vai a minha sesta. Creio que terei de me contentar só com o duche.

- Mais alguma coisa, senhor? - perguntou Merlin.

- Penso que por agora é tudo. Poderá regressar ao avião juntamente com Fast Eddie quando eu descer para jantar.

- Posso portanto avisar que nos vamos embora.

- Boa ideia - disse Judd. - Assim posso ir directamente do restaurante para o avião.

- Camisa branca, gravata e fato preto, senhor? - perguntou Fast Eddie.

- Temos mais algum? - observou Judd com um sorriso.

- Não, senhor. Mas posso sonhar, não posso?

Até Merlin sorriu. Judd denominara aquelas fatiotas de fardas de combate. Devia haver mais de uma centena de fatos pretos idênticos nos guarda-fatos que Judd tinha espalhados por todo o mundo, onde quer que vivesse.

Eram dez para as nove e já se encontravam no vestíbulo do hotel, aguardando a chegada da Dra. Zabiski. Merlin e Fast Eddie vigiavam o paquete, que estava a carregar as malas para a limusina.

- Levo o telefone portátil comigo - disse Judd. Merlin anuiu, ficando apenas com a outra pasta na mão. Fast Eddie olhou para o seu patrão.

- Estou preocupado com a suite de onde acabaste de sair - disse-lhe. - Penso que devias vir para o avião connosco.

- Vinte milhões afiançam que não vai haver problema de espécie nenhuma - observou Judd. - O Departamento de Turismo ficou muito satisfeito com os quatro clubes adriáticos e os dois hotéis.

- Talvez o interesse fulcral deles não esteja aí - disse Fast Eddie -, mas sim noutro departamento qualquer.

- Só há um departamento - disse Judd. - O do Governo. Eles controlam tudo. Porque imaginas que Zabiski telefonou tão prontamente? Deram-lhe ordens para negociar comigo. Não estou preocupado.

Olhou para a porta giratória da entrada.

- Lá vem ela - disse.

E deixando os dois sozinhos, foi receber a médica.

Uma jovem alta de cabelo louro-escuro, vestindo um saia-casaco mal copiado de Chanel, entrou pela porta giratória, atrás da médica. Nem mesmo a imitação inferior da fatiota era capaz de esconder o corpo que se encontrava por baixo. As palavras de Fast Eddie vieram-lhe à lembrança: “Artigo jugos-lavo de primeira."

 

Assim que o chefe de mesa se retirou com os pedidos, a pequena médica abordou directamente a questão.

- A doutora Ivancich tem sido minha primeira-assistente nos dois últimos anos - disse. - Antes disso trabalhou como professora-assistente na Academia de Ciências da Geórgia, nos dois anos anteriores formou-se em Estudos Gerontológicos e Geriátricos na Academia de Ciências Soviética de Moscovo, dois anos anteriores a essa data tinha-se ocupado de estudos especiais no Instituto Nacional da Velhice em Baltimore. Formou-se em Medicina na Escola Médica da Universidade da Colúmbia, em Nova Iorque.

Judd olhou para a jovem mulher.

- Estou impressionado - disse com sinceridade. - A doutora Ivancich possui demasiados méritos para a idade que tem.

Ela falava americano com acentuado sotaque inglês.

- Já não sou assim tão nova como pode imaginar, senhor Crane - disse suavemente. - Tenho trinta anos.

- Isso é ser jovem - observou Judd.

O criado de mesa serviu o consommé. Judd aguardou que o homem se afastasse para voltar a falar. Olhou para a Dra. Zabiski.

- Disse-me que tinha reflectido bastante depois da nossa conversa.

A Dra. Zabiski concordou.

- Se está interessado nos meus tratamentos, talvez possamos abreviar os primeiros dois meses para duas semanas.

- Como?

- Posso arranjar uma dispensa para a doutora Ivancich para viajar consigo. Isso permitir-lhe-á encarregar-se dos exames e testes iniciais destinados a verificarmos se o senhor irá, ou não, reagir ao nosso tratamento.

Enquanto falava, passou-lhe um minúsculo pedaço de papel para a mão. Judd leu-o discretamente. Estava escrito à mão e a lápis e dizia o seguinte: “Destrua depois de ler. A Dra. I. é de absoluta confiança. Estou muito interessada na sua proposta."

 

Judd olhou para ela sem se manifestar. Amachucou o papel na palma da mão e em seguida atirou-o para dentro da boca. Mastigou-o lentamente durante uns momentos e engoliu-o com algumas colheradas de consommé. Depois sorriu.

- Sempre gostei muito de pedacinhos de pão torrado na sopa.

A Dra. Zabiski também sorriu, pela primeira vez. Acenou a cabeça aprovadoramente.

- Parto esta noite - disse Judd. - Se não se importarem de me dizer a que horas a doutora Ivancich está pronta, organizarei as coisas de modo a que ela vá ter comigo ao local onde me encontrar.

- Poderá perfeitamente ser esta noite, senhor Crane - disse a pequena médica. - As malas dela encontram-se no meu carro. Já tomei as providências necessárias.

Judd sorriu.

- Assim que nos encontrámos, soube imediatamente que era o meu tipo preferido de médica.

Virou-se para a Dra. Ivancich.

- Espero que goste de viajar, doutora.

- Adoro, senhor Crane.

- Óptimo - disse ele. - Fá-lo-emos com muita frequência.

Fez uma pausa antes de acrescentar:

- Doutora Ivancich é um tratamento muito pomposo. Qual é o seu primeiro nome?

- Sofia - respondeu ela.

- Eu sou Judd - disse ele. - Tratar as pessoas pelo primeiro nome é um costume muito americano. Importa-se, doutora?

- Absolutamente nada, Judd - respondeu ela, esboçando um pequeno sorriso. - No fim de contas, é preciso ver que a minha mãe era americana e fiz quase todos os meus estudos nos Estados Unidos.

O chefe de mesa aproximou-se.

- Doutora Zabiski, tem uma chamada telefónica para si - disse, com uma ligeira vénia.

A pequena médica virou-se para Judd.

- Dá-me licença?

Judd dirigiu-lhe um sinal afirmativo, erguendo-se até ela se afastar e virando-se em seguida para a Dra. Ivancich.

- Passado curioso o seu, Sofia - disse. - América e Rússia.

- Nem por isso - respondeu ela. - Estes dois países eram os únicos que podiam proporcionar-me a possibilidade de me dedicar a pesquisas na área em que decidira especializar-me.

“Se não se tivesse dado o facto de o meu pai ter passado quase vinte e cinco anos em Nova Iorque, onde nasci, provavelmente nada disto teria sucedido. Só depois de regressar à Jugoslávia é que vivi na Rússia. E mesmo aí, só até a obra da doutora Zabiski ser reconhecida pelo nosso Governo, altura em que fiquei apta a vir trabalhar com ela.

- Esses acontecimentos tiveram lugar há dois anos atrás? - inquiriu Judd. - Com certeza a sua qualificação profissional permitir-lhe-ia ganhar mais dinheiro em algum outro lado que não aqui na Jugoslávia.

- É possível - disse ela -, mas se assim fosse, não teria tido a oportunidade de acompanhar o trabalho da doutora Zabiski, que é, na minha opinião, um dos maiores génios da nossa área.

- É um grande elogio - observou Judd.

- Digo-o com toda a franqueza - disse ela.

Pelo canto do olho, Judd reparou que a pequena médica voltava para junto deles. Levantou-se. Ela parecia ligeiramente pálida.

- Tudo bem? - perguntou ele, segurando-lhe na cadeira. Ela olhou para o outro lado da mesa, enquanto Judd regressava ao seu lugar.

- Nada de importante - respondeu.

Em seguida mergulhou intensamente o olhar no azul-cobalto-escuro dos olhos de Crane, sentindo-se de novo invadir pela mesma sensação gélida que já a acometera no consultório. Era como se ele lhe invadisse a mente.

Ela baixou os olhos para a toalha e pousou o guardanapo em cima dos joelhos, antes de voltar a encará-lo.

- Não seria estranho - disse em voz suave - se descobríssemos que a morte e imortalidade são uma e a mesma coisa?

Morte e imortalidade. As palavras ecoaram no recôndito da sua mente. Tinham-se passado mais de vinte anos desde que seu pai lhe exprimira exactamente o mesmo pensamento.

 

Estava-se em 1956. Precisamente dois dias depois de o Presidente Eisenhower ter sido reeleito para o seu segundo mandato. Judd apanhara o comboio das oito e dois que o trouxera de Boston. O dia estava fresco e ensolarado em Nova Iorque e ele subira a escadaria que ficava ao fundo de Grand Central e fora a pé pela Park Avenue. Nova Iorque mostrava-se excitante e cheia de vida, e as pessoas movimentavam-se atarefada e rapidamente de um lado para o outro. Era muito diferente do ambiente quase indolente que se vivia na cidade universitária de Harvard, em Cambridge.

Olhou para o relógio de pulso. Ainda não eram onze da manhã. Tinha tempo. Seu pai pedira-lhe para se encontrar com ele no escritório ao meio-dia.

Ainda tinha vinte minutos à sua frente quando chegou defronte do novo edifício de escritórios e olhou para as lustrosas letras de aço inoxidável que encimavam a entrada: INDÚSTRIAS CRANE. Subiu as escadas que se estendiam entre as duas fontes e atravessou as portas envidraçadas. Como ainda era cedo, resolveu encostar-se à parede de mármore e ficar a olhar para as pessoas que entravam e saíam do prédio.

Mal se tinham escoado alguns minutos quando foi abordado por um guarda da Segurança. Era um indivíduo corpulento, todo cheio de importância por trás do seu cinturão Sam Browne e da sua arma guardada no coldre.

- Nada de andar por aqui a vadiar, rapaz - disse com voz roufenha.

- Não estou a vadiar - respondeu Judd delicadamente. - Cheguei adiantado a um encontro. Portanto, decidi esperar aqui.

- Tem paciência, rapaz - insistiu o guarda -, mas se ainda não estás na hora, voltas mais tarde.

Judd encolheu os ombros.

- Se assim fizesse já não chegava a horas - disse, principiando a caminhar em direcção ao bloco de elevadores onde se encontrava aquele que era destinado ao quadragésimo quinto andar.

O guarda deteve-o.

- Esse é o andar dos executivos.

- Eu sei - respondeu-lhe Judd.

- Com quem é que tem a reunião?

- Com o senhor Crane - respondeu Judd.

O guarda olhou para ele com ar céptico. Fez sinal a um colega que se encontrava em frente do bloco de elevadores, que se aproximou deles.

- Este moço diz que tem uma reunião com o senhor Crane. O segundo guarda olhou para ele.

- Traz algum documento de identificação consigo, senhor? - perguntou delicadamente.

Judd abriu a jaqueta, descobrindo o suéter castanho com a letra “H" bordada que, sob a luz que vinha dos elevadores, parecia quase preto em contraste com a camisa branca. Tirou uma carteira de documentos de couro de um dos bolsos interiores.

- A licença de condução serve?

- Perfeitamente - asseverou o segundo guarda, abrindo a carteira, olhando para o seu conteúdo e em seguida para Judd. Voltou a fechá-la e devolveu-a.

- Desculpe, senhor Crane - disse em tom de desculpa. - Temos de ser muito cuidadosos. Nas últimas semanas tivemos alguns problemas com pessoas que não apresentaram razão nenhuma para estarem aqui.

- Compreendo - disse Judd, voltando a guardar a carteira no bolso.

O segundo guarda rodou determinada chave no quadro de controle do bloco de elevadores. As portas de um dos elevadores abriram-se.

- Quadragésimo quinto, senhor Crane - disse, recuando. Judd entrou no elevador e carregou no botão. As portas

principiaram a fechar-se, ao mesmo tempo que a voz do segundo guarda lhe chegava aos ouvidos.

- Grande nabo - dizia este ao primeiro -, era o filho do patrão que tu estavas a...

Judd sorriu de si para si, enquanto a voz se perdia no meio do ruído provocado pela deslocação de ar que se fez ouvir quando o aparelho subiu. Encostou-se à parede e ficou a ver o indicador luminoso. Faltavam cinco para o meio-dia quando saiu do elevador.

A recepcionista aguardava-o à porta.

- Bom dia, senhor Crane. O seu pai está à sua espera. Abriu as portas do elevador particular que ia dar ao gabinete

do pai, o único que ocupava o andar cimeiro do edifício.

A secretária do pai veio ao encontro dele quando saiu do pequeno elevador.

- Olá, Judd - disse, sorrindo.

- Menina Barrett - cumprimentou-a, inclinando-se para lhe depositar um beijo no rosto. - Parece mais jovem e bonita que nunca.

Ela riu-se.

- Muito simpático da tua parte - observou com afecto -, mas conheço-te desde que nasceste. Comigo escusas de vir com esses modos de Harvard.

- Pode acreditar no que lhe digo. - Riu-se. - Estou a ser sincero. Isto não tem nada a ver com Harvard.

Seguiu-a através da sala das secretárias até àquela em que trabalhava, ao lado da de seu pai.

- Como está ele? - perguntou. - Já não o vejo há quase seis meses.

- Sabes como o teu pai é - respondeu-lhe ela com uma entoação estranha na voz. - Parece que está sempre na mesma.

Judd deteve-se a olhar para ela.

- Que espécie de resposta é essa? Há algum problema? Ela não falou. Em vez disso, abriu-lhe a porta que dava para

o gabinete do pai. Judd teve a impressão de lhe ver os olhos húmidos ao passar em frente dela. A porta foi fechada nas suas costas.

Seu pai encontrava-se em frente da janela a olhar para fora, de costas viradas para ele.

- Judd?

- Sim, pai - respondeu-lhe Judd de junto da porta.

- Chega aqui - disse ele, continuando onde estava. Judd aproximou-se da janela, colocando-se ao lado do pai. Continuavam sem olharem um para o outro.

- Está muito límpido. Daqui pode-se ver Battery, Staten ísland mais além e, a nordeste de Long Island, Sound e Con-necticut.

- Sim - respondeu Judd calmamente. - Está muito límpido.

Seu pai fez uma pausa e em seguida virou-se para ele. Estendeu a mão.

- Estás com óptimo aspecto, Judd - disse.

Judd agarrou na mão do pai e, segurando nela por momentos, tentou aparentar um ar jovial.

- Será que cresci demasiado para cumprimentar o meu pai com um beijo?

De súbito o pai abraçou-o e beijou-o no rosto.

- Nunca chegarás a ser demasiado velho para o fazeres, espero - disse.

Judd retribuiu o beijo do pai.

- Assim está melhor - observou, sorrindo. - Estava a começar a pensar que já não gostava de mim.

- Que tolice - disse o pai. - Gosto muito de ti, meu filho.

- Também gosto muito de si, pai. O pai afastou-se.

- Inicialmente tinha pensado em irmos almoçar no Vinte e Um, mas depois achei que era melhor comermos aqui no escritório. Já não conversamos um com o outro há muito tempo e aqui sempre estamos mais à vontade.

- Para mim está óptimo.

- Tens fome? Judd sorriu.

- Tenho sempre fome.

O pai carregou num botão da secretária. Umas portas corrediças abriram-se mostrando uma pequena sala de jantar com uma mesa redonda de dimensões suficientes para acomodar oito pessoas, mas tendo apenas dois lugares preparados. Ligou o intercomunicador.

- Podem trazer o almoço - ordenou. Virou-se para Judd.

- Vou tomar um uísque com água. E tu?

- Também quero um - disse Judd, seguindo o pai até à sala de jantar.

Uma outra porta abriu-se para deixar passar um negro de pequena estatura, trajado de preto.

- Senhor Crane, faça favor.

- As duas bebidas do costume, Fast Eddie - disse o pai de Judd.

O homem pequeno e franzino mostrou-se à altura da sua alcunha. As duas bebidas já estavam a sair do bar antes mesmo de serem pedidas.

- Fast Eddie, este é o meu filho Judd - apresentou-o o pai, pegando na sua bebida.

Fast Eddie entregou a outra bebida a Judd.

- Muito prazer, senhor Crane.

- Obrigado - respondeu Judd. - Ficou a ver Fast Eddie desaparecer pela porta da sala de jantar. - Saúde.

- Saúde - repetiu o pai.

- Há quanto tempo trabalha Fast Eddie para si, pai? - perguntou Judd.

- Há cerca de três meses. É neto do velho Roscoe, que o treinou durante dois anos. O rapaz é muito eficiente. Custa a crer que tenha acabado de fazer os dezoito anos.

- Parece boa pessoa.

- É como o avô - observou o pai. - Está sempre onde é preciso. - Sentou-se à mesa e olhou para o filho. - Ficaste admirado por te ter chamado, não?

Judd anuiu.

- Temos muito que falar. - O pai hesitou um momento. - Por onde havemos de começar, pelas boas notícias ou pelas más?

- Como o pai achar melhor.

- Então vamos primeiro às boas notícias. Desde que a tua mãe morreu, há quinze anos atrás, que vivo sozinho. Claro que tenho tido mulheres, mas isso é outra coisa. Neste momento estou a pensar casar-me. E creio que também tu vais gostar dela.

Judd olhou para ele.

- Se o pai a aprecia, isso é o que importa. Ficarei feliz por si.

O pai sorriu.

- Ainda nem sequer me perguntaste o nome dela. Calou-se por instantes, antes de acrescentar:

- É a Barbara.

A voz de Judd mostrava bem o espanto de que este se sentia possuído.

- A menina Barrett? O pai riu-se.

- A surpresa é assim tão grande?

- É - respondeu Judd, sorrindo. - Mas muito boa. De certo modo não compreendo muito bem por que razão o pai não casou há mais tempo com ela. Parece que fez sempre parte da família. Posso ir lá dentro felicitá-la?

- Ela não tardará em se juntar a nós para o almoço - respondeu-lhe o pai.

- Quando é o casamento?

- Às seis da tarde de hoje - respondeu-lhe o pai. - A cerimónia é presidida pelo juiz Gitlin e tem lugar no nosso apartamento.

- Conheço o tio Paul - riu Judd. - Tenho de ver se arranjo uma gravata preta.

- Isso não é assim tão importante. Só estarão presentes alguns dos nossos amigos mais chegados.

Nesse momento seu pai tornou-se sério.

- E agora as más notícias. Judd aguardou em silêncio.

- Sofro da doença de Hodgkin - disse-lhe o pai.

- Não conheço essa doença - observou Judd.

- É uma espécie de cancro no sangue.

O pai aguardou um momento antes de acrescentar:

- Mesmo assim podia ser pior. Os médicos dizem que ainda tenho cinco ou seis anos mais ou menos confortáveis, e quem sabe se até lá não descobrem a cura?

Judd continuou silencioso. Respirou fundo, esforçando-se por conter as lágrimas.

- Espero que sim. Não. Estou certo de que encontrarão maneira de curar essa doença.

- E se assim não for - disse o pai -, não me queixarei. Apesar de tudo tive uma vida boa.

Judd calou-se, olhando o pai nos olhos.

- Não tenho medo da morte - disse-lhe o pai suavemente. - Morte e imortalidade sempre foram praticamente a mesma coisa para mim.

 

O jipe com os funcionários da alfândega conduziu a limusina pelos portões que davam para o campo de aterragem. Seguiram pela faixa que se estendia em frente de uma longa fileira de armazéns, passaram pelos aviões comerciais estacionados ao fundo do campo, e entraram na área reservada aos aparelhos militares. O B-747 azul-escuro fazia lembrar uma abelha-mestra gigante no meio do aglomerado de minúsculos caças jugoslavos que o cercavam.

Judd saiu de dentro da limusina e estendeu a mão a Sofia. Esta ergueu os olhos para o avião. A insígnia branca do guindaste gigantesco de hastes no ar, como que a levantar voo, seguida das palavras INDÚSTRIAS CRANE - era perfeitamente visível sob a luz que se escoava das janelas do aeroporto. Sob a janela do piloto estava uma bandeira americana pintada, vendo-se também uma, de maiores dimensões, sobre o gigantesco leme de direcção do aparelho.

Sofia olhou para Judd.

- Nunca tinha visto nenhum Jwnbo, excepto uma vez num filme - disse. - Aquele tinha uma escada enorme encostada a ele.

Judd sorriu.

- Normalmente fazem-nas rolar até aos aviões quando estes estacionam em aeroportos que não dispõem de rampas móveis. Mas esta é especial. Foi construída de acordo com indicações minhas.

Os funcionários da alfândega aproximaram-se deles.

- Se não se importam dão-nos os passaportes para os podermos carimbar - disse um dos homens.

Judd entregou-lhe o seu passaporte, que retirou de um dos bolsos do casaco, enquanto Sofia tirava o seu da bolsa. O funcionário da alfândega pegou neles e levou-os até ao jipe, onde os examinou à luz de uma lanterna.

O motorista tirou três malas do porta-bagagens do carro. Uma delas era feita de alumínio. Colocou-a ao lado de Sofia. Nesse momento, um elevador suportado por cabos de aço desceu de um vão situado debaixo de uma das rodas do avião, transportando dois homens uniformizados que depois se dirigiram a eles. Judd apresentou-os a Sofia.

- Sofia, este é o capitão Peters e este é o comissário-chefe Raoul. Senhores, a doutora Ivancich.

O capitão Peters apertou-lhe a mão.

- Bem-vinda a bordo.

Raoul levou a mão à pala do boné, fazendo a continência.

- Também lhe dou as boas-vindas, senhora doutora.

- Obrigada, senhores - replicou Sofia. Um dos funcionários da alfândega regressou.

- Os passaportes encontram-se em ordem. Mas temos de inspeccionar a bagagem da doutora Ivancich, a não ser que nos apresente uma licença especial para exportação de equipamento médico.

Sofia dirigiu-se a eles em servo-croático, demonstrando irritação. O funcionário respondeu-lhe em tom de desculpa, movimentando as mãos expressivamente. Ela virou-se para Judd.

- Terei de ir até ao escritório deles - explicou. - São uns burocratas. A licença de exportação devia estar pronta. Mas, como de costume...

O capitão Peters virou-se para ela.

- Vou consigo, doutora. Também tenho de submeter o plano de voo à aprovação deles.

- Vão na limusina - disse Judd. - Esperá-los-ei a bordo.

- Lamento - disse ela.

- Não há problema - objectou Judd. - São as fitas do costume.

Os funcionários alfandegários colocaram as malas de Sofia no jipe e a limusina foi atrás deste. Judd dirigiu-se para o elevador, ao mesmo tempo que Raoul se juntava a ele, carregando no botão próprio. Passaram pelo compartimento existente sobre a roda e entraram na cabina principal.

- Instale a doutora na cabina principal dos convidados - disse Judd ao comissário.

- Sim, senhor Crane.

Judd dirigiu-se para a escada do posto de pilotagem, por detrás do qual se encontrava a sua cabina pessoal. Virou-se para o comissário.

- Importa-se de ir dizer ao Merlin para vir falar comigo?

- Imediatamente, senhor.

Judd subiu as escadas e passou pela porta que separava a sua cabina do compartimento da tripulação de serviço, no posto de pilotagem. Fast Eddie tinha uma Coca-Cola gelada à sua espera. Judd despiu o casaco e pegou na bebida. Merlin bateu à porta no preciso momento em que Judd provava a bebida. Fast Eddie foi abri-la.

- Faça favor, senhor Crane - disse Merlin, de livros de apontamentos na mão.

- Doutora Sofia Ivancich - disse Judd. Merlin já estava a anotar as suas palavras.

- Quero uma investigação completa sobre ela. Tudo o que possamos descobrir.

Acrescentou rapidamente todos os dados que a Dra. Zabiski lhe dera.

- Não quero surpresas.

- Mais alguma coisa, senhor? - perguntou Merlin.

- Sim - acrescentou Judd. - Pergunte ao doutor Sawyer da Investigação Médica se já ouviu falar da implantação de células auto-regenerativas em seres humanos.

- Tratarei do assunto assim que descolarmos, senhor - disse Merlin.

Judd olhou para Fast Eddie quando Merlin saiu da cabina.

- Põe uma garrafa de Cistale a refrescar - disse, pegando no intercomunicador para entrar em contacto com o comissário.

- Quando a doutora regressar - disse-lhe -, pergunte-lhe se se quer juntar a mim no posto de pilotagem para assistir à partida.

Fast Eddie já tinha a garrafa de Cristal num balde cheio de gelo, assim como duas taças de champanhe em cima da prateleira que ficava ao lado do seu assento. Judd dirigiu-se para o fundo da cabina, passando ao seu quarto, onde começou a despir a camisa.

- Arranja-me um fato de treino de veludo - pediu.

Fast Eddie abriu um dos armários e retirou do seu interior o fato pedido, que estendeu sobre a cama. Aos pés desta colocou uns sapatos de quarto do mesmo material e, ao lado do fato, uns slips de seda franceses. Judd entrou no pequeno poliban da casa de banho, carregou no botão que misturava automaticamente água com sabão e em seguida retirou este quando a água voltou a sair límpida. O poliban libertou automaticamente a cabina do vapor de água: secou o corpo com um toalhão. Vestiu-se rapidamente e penteou o cabelo. Mirou-se ao espelho. “Okay", pensou. Continuava a sentir-se fatigado. E isso não lhe agradava. Ainda tinha vários assuntos a tratar.

Abriu uma gaveta de onde retirou um frasquinho dourado cuja tampa abriu, expondo assim um tampão de plástico em forma de bala. Desarrolhou-a, fazendo aparecer um orifício minúsculo. Introduziu-o então numa das narinas e carregou na base do frasco, fazendo expelir a cocaína ao mesmo tempo que a inalava. Voltou a repetir a operação na outra narina. Sentiu-se imediatamente reavivar pelo calor. Voltou a meter o frasco na gaveta sem o fechar. Olhou de novo para o espelho. Já não parecia tão cansado. Sorriu para si mesmo. “Aqui está uma das vantagens de se ser dono exclusivo de uma companhia de produtos químicos", pensou para consigo. “Não há que ter preocupações em relação à porcaria que se vende nas ruas."

Fast Eddie estava à espera dele na cabina do lado. Sorriu-lhe.

- Não há nada que chegue a um duche quente e a um bom “cheirinho", patrão - disse. - Já está com outro aspecto.

- E tu és um diabo de um espertalhão - ripostou-lhe Judd, também com um sorriso. - Já estão todos a bordo?

- Vêm precisamente a subir, senhor - respondeu Fast Eddie.

Judd pegou no telefone e ligou para o comissário.

- Diga à doutora que se sentirá mais confortável num dos fatos de treino. Penso que o número oito lhe servirá.

- Já tinha pensado nisso, senhor - respondeu Raoul calmamente. - Mas deixei-lhe o número sete no beliche. Aproxima-se mais das medidas da senhora.

- Submeto-me à costura francesa - riu-se Judd, pousando o auscultador.

A voz do capitão fez-se ouvir através dos altifalantes.

- Todo o pessoal a postos. O avião levanta voo dentro de um minuto.

Judd olhou para Sofia, que ia sentada a seu lado. Esta espreitava pela janela. Sentiu a pequena trepidação que acompanhou o início do movimento do enorme aparelho. Olhou para as mãos dela. Encontravam-se crispadas sobre os braços da cadeira. Manteve-se em silêncio enquanto começavam a circular velozmente sobre o solo, erguendo-se, de repente e suavemente, no ar.

A voz dela possuía uma entoação baixa.

- Parece quase uma casa com asas. Ele riu-se.

- Creio que pode ser considerado como tal.

Ela olhou para baixo, em direcção às luzes de Dubrovnik.

- A que altitude estamos?

Judd carregou num botão e uma luz acendeu-se no tabique da cabina que estava diante deles.

- A cerca de dois quilómetros - disse ele. - Vamos atingir uma altitude de cruzeiro de vinte quilómetros, cerca de trinta e oito mil pés. Nessa altura voaremos a muito perto de mil quilómetros por hora.

As luzes que indicavam a proibição de fumar e a necessidade de se manterem os cintos apertados, apagou-se. Judd desapertou o cinto de segurança que lhe cruzava o peito e inclinou-se para a ajudar. Ela hesitou um momento. Ele sorriu.

- Está tudo bem.

Ela acenou-lhe afirmativamente com a cabeça e deixou-o desapertar-lhe o cinto de segurança.

Fast Eddie entrou nesse momento e foi colocar uma bandeja com caviar e tostas numa mesinha defronte deles. Em seguida encheu-lhes rapidamente as taças de champanhe e desapareceu da cabina.

Ele entregou uma das taças a Sofia.

- Bem-vinda aos céus amistosos da América.

- Ali em baixo ainda é a Jugoslávia - disse ela.

- Mas você não está lá em baixo, pois não? - perguntou ele a rir.

- Pois não - respondeu ela, sorrindo. - Bebeu um gole de champanhe. - Delicioso. - Olhou para o tabuleiro. - É mesmo caviar russo?

Ele fez sinal que sim.

- Nem isso podemos ter na Jugoslávia - observou Sofia. Judd depositou uma porção de caviar numa tosta e entregou-lha.

- O desanuviamento tem as suas vantagens.

- Gosto muito disto - disse ela.

- Também eu - referiu ele, servindo-se por sua vez.

- Também tem vodca russo a bordo?

- Claro.

- Posso tomar um pouco? - perguntou Sofia quase a medo. - Ali em baixo a única coisa que arranjava para tomar era slivovitz, que me enjoava terrivelmente.

- Vou já servi-la.

Fast Eddie trouxe uma garrafa com gelo ainda agarrado, que acabara de tirar do congelador. Encheu dois copos e depois de colocar a garrafa ao lado da que já se encontrava no tabuleiro, retirou-se.

Sofia pegou no copo com vodca e olhou para Judd por momentos e em seguida bebeu a porção de uma só vez. Ele reparou no ligeiro rubor que lhe subiu às faces.

- Gostou?

- Já há muito tempo que não o provava. - Olhou para ele de relance. - Não o vejo a beber.

- Não tenho grande inclinação para as bebidas - disse. - Limito-me a tomar vinho, cerveja e um uísque leve antes do jantar. O álcool deprime-me. E eu não gosto de me sentir em baixo.

- Droga? - perguntou ela?

- Alguma.

- Marijuana, cocaína, erva, alucinogéneos? - perguntou Sofia, olhando-o.

Judd sorriu.

- De vez em quando.

- Aí está uma coisa muito americana - disse ela. - Lembro-me dos tempos em que lá andava, na escola. - Pegou no copo de vodca e esvaziou-o, parecendo em seguida soltar um pequeno suspiro. - E isto é muito europeu.

- A cada pé o seu chinelo - observou ele, sorrindo. Sofia recostou-se nas costas da cadeira.

- Sinto-me quente - disse. - Creio que estou a ficar ligeiramente embriagada.

- Se se sente cansada, pode ir dormir.

- Oh, não, estou a gostar imenso - disse ela, sorrindo. - Já há muito tempo que não me divertia tanto. Lá em baixo são todos muito sérios.

Fechou os olhos por momentos e em seguida fitou-o.

- Tem alguma cocaína?

Ele fez um sinal de assentimento.

- Posso tomar um bocadinho? - Reparou na hesitação dele. - Não me fará mal. Espevitar-me-á um pouco. Não quero ir já dormir.

Judd dirigiu-se ao seu quarto e voltou trazendo o frasquinho dourado. Revolveu-o entre os dedos e deu-lhe pequenas pancadinhas; o pó branco encheu a secção superior de plástico.

- Isto é um injector - explicou. - Introduza-o numa das narinas, comprima o fundo e aspire.

- Parece complicado - observou ela. - Não se importa de o fazer por mim?

Judd assim fez.

- Aspire - disse, premindo a base do frasco.

Sofia suspendeu a respiração. Ele fez-lhe rapidamente o mesmo à outra narina.

- Outra vez!

Voltou a suster o ar dentro dela, virando depois os olhos muito abertos e brilhantes para ele.

- Senti-a ir direita ao meu cérebro. Judd riu-se.

- Às vezes acontece.

- Agora sinto-me verdadeiramente quente - disse ela. - Até os meus mamilos estão quentes e rijos.

Judd observou-a em silêncio.

- Estou a ver que não me acredita - disse-lhe ela.

- Acredito - respondeu ele, sorrindo.

- Está a rir-se de mim - disse Sofia. Puxou o fecho do fato de treino para baixo.

- E agora, já acredita no que lhe digo? - perguntou.

Os seus seios eram fartos e cheios, de mamilos cor de ameixa, erectos, salientes. Ele olhou para o rosto dela.

- Maravilhosos.

- Toque-me - implorou ela com voz rouca. - Por amor de Deus toque-me ou tenho mais um orgasmo sozinha como me tem acontecido de há cinco anos para cá!

Judd atraiu-a para o peito dele, mantendo a cabeça dela encostada a ele e acariciando-lhe os seios com a outra mão. Sentiu o corpo dela estremecer de encontro ao seu. Acariciou-lhe meigamente o longo cabelo. Instantes depois ela acalmava. Ele não se moveu.

A voz de Sofia soou abafada de encontro ao peito dele.

- Esteve com as três raparigas que eles mandaram à sua suite?

- Não - respondeu ele. - Mandei-as embora. Sofia manteve-se em silêncio durante momentos.

- Ainda bem. Eles tinham câmaras escondidas no seu quarto, por cima da cama.

- Que estupidez - disse Judd. - Que esperavam ganhar com esse gesto?

- Não sei - disse ela. - Tinham as divisões todas sob escuta.

- Isso já é costume - observou ele. - Já o esperava. - Riu-se. - Não passam de brincadeiras de crianças.

- Não eram brincadeiras de crianças - disse ela. - Um homem foi morto e três outros estão hospitalizados porque algo não correu bem na instalação de som que lá colocaram.

- Uma pena - disse ele. - Nem dei por ela.

De repente, Sofia espirrou. Judd levantou-lhe a cabeça e entregou-lhe um Kleenex.

- E a coca - disse. - Limpe o nariz com água. Indicou-lhe a casa de banho e voltou para a sua cadeira. Estava a tomar champanhe quando Sofia regressou. Olhou

para ela. Lavara o rosto e escovara o cabelo.

- Tem-me em muito má conta? - perguntou-lhe Sofia.

- Não - respondeu Judd. - É apenas humana. Pode ser médica, mas também é mulher, uma mulher muito bonita, e ambas têm necessidades que devem ser satisfeitas para que fiquem realizadas.

Sofia hesitou.

- Penso que é melhor regressar à minha cabina. Judd ergueu-se.

- Se é o que deseja... Se está fatigada... Ela fitou-o nos olhos.

- E o que deseja você? - perguntou. Ele esboçou, lentamente, um sorriso.

- Já sabe o que é.

 

A ligeira aceleração dos motores do jacto despertou-o. Pegou no telefone que tinha ao lado da cama.

- Como está a viagem a decorrer? - perguntou.

- À tabela, senhor Crane - respondeu o capitão Peters do posto de pilotagem. - Temos dez horas e meia de viagem, sobrevoamos neste momento Deli, na índia, a sete mil metros, e estamos a carregar combustível. Esperamos aterrar em Pequim daqui a oito horas e vinte minutos. Todos os sistemas se encontram perfeitamente operacionais.

- Obrigado - disse ele, pousando o auscultador.

Virou-se na cama. Sofia estava voltada para ele, fitando-o com os olhos muito abertos.

- Bom dia - disse ela.

- Dormiste bem? - perguntou Judd.

- Não sei. Tenho a impressão de que estive sempre a sonhar - disse Sofia.

Ele riu.

- Mas olha que dormiste. Bem o vi.

- Que pena - disse ela suavemente. - Quase que preferia ter sonhado.

Judd inclinou-se para o rosto dela.

- Também eu - disse ele, beijando-a. Sentou-se. - Gostarias de tomar um pouco de café?

- Posso lavar-me primeiro? Cheiro de tal maneira a sexo que me sentiria bastante embaraçada se tivesse de atravessar o avião.

Ele riu-se.

- Não estou a brincar - disse Sofia com ar sério. - A excitação sexual provoca-me rapidamente reacções multiorgásticas.

Judd tentou mostrar-se igualmente sério.

- Nunca tinha ouvido a questão explicada dessa maneira, doutora.

- Sim - continuou ela. - Por exemplo, enquanto estavas ao telefone, ainda agora, bastou-me a visão do teu pénis semierecto por causa do sono para que as minhas secreções começassem imediatamente a brotar.

- É um problema - concordou ele gravemente. - Só agora o compreendo.

- E de origem psicológica, eu sei - acrescentou ela. - Mas tenho de ser eu a resolvê-lo.

Judd virou-se de lado, para ela.

- Quererás resolver esse problema neste momento, doutora?

- Não compreendo o que queres dizer - disse ela, atónita. - E porque me tratas por doutora? Pensei que ia passar a chamar-me Sofia.

Ele empurrou a cabeça dela em direcção ao seu falo.

- Sofia, Sofia - disse ele meio a rir, meio sério. - Não sabes que isto semierecto nunca é suficiente?

Ela ergueu a cabeça, olhando para ele.

- Agora estás a fazer pouco de mim, não estás?

- Sua fêmea idiota! - exclamou ele, agarrando-lhe nos cabelos. Com a outra mão introduziu-lhe o membro na boca.

- Chupa-o com força se queres fodê-lo. Sofia afastou-se dele cheia de raiva.

- Falas comigo como se eu não passasse de uma pega! - exclamou com os olhos cheios de lágrimas.

Judd olhou para ela durante um momento e, em seguida, aproximou o rosto dela do seu.

- Não, Sofia - disse ele com meiguice, beijando-a na boca. - Não como a uma pega. Mas sim como a uma mulher a quem foram negadas demasiadas coisas durante bastante tempo.

Sofia desceu a escada em espiral que ia dar ao compartimento principal, atrás dele. Judd virou-se para ela, que entretanto se detivera.

- Em frente das escadas fica o escritório - disse ele, afastando as cortinas de modo a ela poder ver o interior do compartimento.

Merlin estava sentado à sua secretária, assim como outros dois homens, cada um deles tendo na sua frente um processador de dados e palavras com o respectivo écran. Merlin, ao ver Judd, virou-se para ele.

Já venho ter consigo

- disse Judd, deixando cair a

cortina e afastando-se com ela da escada. - Primeiro fica a sala de estar dos hóspedes, a seguir os aposentos destes. Por trás estão as cabinas do pessoal, depois a sala de estar deles. Ambas as salas de estar servem também para nelas se tomarem as refeições.

A voz dela era baixa mas impressionada.

- Quantas pessoas tens neste avião?

- O pessoal de voo é composto pelo capitão e mais dez elementos; o pessoal das cabinas são nove, incluindo o meu assistente e o meu criado de quarto, tu e eu próprio, perfazendo ao todo vinte e nove pessoas a bordo. Mas podemos ca enfiar cinquenta e uma se necessário for.

Ela abanou a cabeça.

- É como uma casa! Precisas realmente de um aparelho

deste tamanho? Só para ti? Ele sorriu.

- Penso que sim. Gasto quase trinta e cinco por cento da minha vida neste avião em viagens, por causa dos meus negócios. O tipo de equipamento que tenho a bordo permite-me estar em contacto permanente com os escritórios e negócios que tenho espalhados pelo mundo.

- Todos os homens de negócios americanos como tu

possuem aviões destes? .

- Não sei - disse ele; sorrindo. - Mas muitos deles tem

dois e três.

- É demasiado - disse ela.

- É muito americano - observou ele.

- Foi o que dissemos quando fui para a universidade nos Estados Unidos. - Ela sorriu - Demasiado.

- Se almoçarmos daqui a meia hora também será demasiado? - perguntou ele.

- Não - respondeu ela. - Estou a ficar esfomeada.

Ele ficou a vê-la afastar-se pela sala em direcção a sua cabina e, em seguida, passou as cortinas que tapavam a entrada do escritório. Merlin levantou-se da secretária. Judd olhou para ele.

- É de manhã ou de tarde? - perguntou.

- Na índia são quatro da tarde e temos aproximadamente doze horas de voo. Mas já estamos no dia seguinte - respondeu Merlin.

- Não há meio de entender o processo.

- Já estamos de posse do relatório de hoje - disse Merlin.

- Vamos a isso - respondeu Judd, sentando-se a uma pequena mesa de reunião.

Merlin pousou um dossier de folhas soltas sobre a mesa. Judd abriu-o durante instantes e depois voltou a fechá-lo.

- Alguma coisa de especial? - perguntou. - Estou arrasado.

- Para dizer com franqueza, nem por isso, é fim de semana, sabe - replicou Merlin. - Só um dado importante. A Malásia adjudicou-nos a construção, cinquenta e cinco milhões de dólares pela ponte sobre o rio Pahang.

- Merda! - exclamou Judd. - Como é que caímos nessa? Estávamos certos de que o nosso preço era suficientemente elevado.

- E era - disse Merlin. - Mas é o que tem de se pagar por uma boa reputação. Eles disseram que apesar de a nossa quantia ser elevada, sentiam-se mais seguros com as Construções Crane.

- Bolas. Vamos deitar entre doze a catorze milhões ao ar. - Ergueu os olhos para Merlin. - Vê o que se está a passar com os produtores de aço japoneses. Os envios de lá ficam mais baratos do que dos Estados Unidos ou da Europa. Talvez assim possamos poupar quatro ou cinco milhões.

- Vou ver o que se pode fazer. Vou dizer ao Judson, de São Francisco, para tratar da questão.

- Mais alguma notícia boa? - perguntou Judd sombriamente.

- O doutor Sawyer - replicou Merlin - diz que não sabe de que raio o senhor fala. Tudo aquilo de que tem conhecimento relaciona-se com as experiências de engenharia genética e com o projecto DNA levado a cabo pelo Departamento de Defesa. Necessita de mais pormenores da sua parte.

- Falaremos pessoalmente em Miami, no fim da semana - disse Judd. - A Segurança já mandou dizer alguma coisa acerca da doutora?

- Ainda não - respondeu ele. - No entanto, os primeiros dados devem aparecer dentro de poucas horas.

Judd levantou-se.

- Okay. Voltamos a falar depois do almoço. - Fez uma pausa, olhando em seguida para Merlin. - A propósito, venha almoçar comigo e com a doutora, se tiver tempo. Gostaria de conhecer a sua opinião sobre ela.

O almoço é simples. Uma chávena de caldo leve, costeletas de borrego grelhadas e mal passadas, acompanhadas de feijão verde e cenouras cortadas em tiras finas, e uma salada temperada com azeite e vinagre, e queijo para finalizar. A refeição foi regada com um Chateaux Margaux de mil novecentos e setenta e um e Quando a mesa foi levantada o café foi servido em chávenas próprias.

Sofia olhou para Judd.

- Pareces alimentar-te com racionalidade.

- Como muito pouco - disse ele. - O facto de me encontrar constantemente em viagem afecta-me. A comida em excesso diminui-me as faculdades.

- Consigo acontece o mesmo, senhor Merlin? - perguntou Sofia.

- Todos nós o fazemos, doutora - disse ele. - O nosso

programa alimentar é concebido pelos especialistas de nutrição do Instituto de Pesquisas, com vista ao máximo desenvolvimento da emergia. No programa de refeições, cada um de nós recebe diariamente uma determinada quantidade de vitaminas e suplementos minerais.

- Quer dizer que o senhor Crane não toma necessariamente

as mesmas vitaminas que o senhor, não é assim?

- Cada uma das pessoas que viajam neste avião tem a sua

fórmula própria.

- Quem foi que o decidiu?

- Todos os anos somos sujeitos a um exame no Centro

Médico Crane de Boca Raton, na Florida. A inspecção física não leva na generalidade, três dias a fazer.

- A do senhor Crane também?

- Sim.

Sofia virou-se para Judd.

- Seria possível mostrarem-me os resultados do teu exame?

Judd anuiu, sorrindo.

- Sem dúvida. Os dados estão todos computadorizados.

Amanhã de manhã estarei de posse deles aqui no avião.

- Obrigada - disse ela. - Estou certa de que serão extremamente úteis ao meu trabalho.

- A Doutora manda - disse ele. - Podes pedir tudo aquilo de que necessitares.

- Isto já será um começo - disse ela -, antes de avançarmos. - Pousou a chávena do café. - Importas-te de que vá descansar um pouco, Judd? Estou a sentir-me muito fatigada.

- A vontade - disse ele. - Penso que é uma boa ideia também para mim. Tenho um banquete marcado para a meia-noite, em Pequim.

Judd inclinou-se para Merlin depois de Sofia se afastar.

- Que achas?

- Não sei - disse Merlin. - Ela parece ser uma pessoa muito directa. Agora no que diz respeito às suas aptidões profissionais, não estou qualificado para me pronunciar.

- O relatório deve esclarecer-nos sobre esse ponto - disse Judd. - Acorda-me assim que chegar.

Merlin olhou para Judd.

- Conheço-o muito bem. Alguma coisa o preocupa.

- Não é a experiência médica que ela possa ter - disse Judd. - É a sua frieza. Algo que ultrapassa o facto de ser médica. Ela tem antenas. Está atenta. Não é só aquilo que aparenta.

Merlin acompanhou-o até à escada.

- Assim que o relatório chegar, aviso-o.

Pouco tempo se tinha passado quando a campainha do telefone de Judd tocou, acordando-o.

- Posso subir? - perguntou-lhe Merlin.

- Estou acordado.

Judd levantou-se da cama e foi para a sala de estar quando Merlin entrou. Judd tirou-lhe ofotofax das mãos.

- As informações médicas condizem todas - disse Merlin. - Só as últimas linhas é que são interessantes.

Judd leu rapidamente.

- “Fontes não confirmadas da CIA, repetimos, não confirmadas, indicam que a pessoa em questão foi recrutada pela KGB por ordem de Andropov. Consultar-se-ão outras fontes de informação."

Merlin olhou para Judd.

- Se isso for verdade, que quer ela de nós? Judd abanou a cabeça.

- De nós, nada. A única pessoa que lhes interessa é Zabiski - disse Judd.

- Não compreendo.

- Zabiski é, de todos, a tipa mais esperta. Não vai entregar os seus sucessos de mão beijada. Nem mesmo os Russos o sabem. Foi por isso que ela despachou Sofia para mim. Assim, as coisas ficarão um bocado mais confusas durante uns tempos.

- Não vejo em que é que isso pode favorecer os nossos interesses - disse Merlin.

Juddy sorriu-lhe.

- Limitar-nos-emos a jogar como eles querem. Tenho o pressentimento de que Zabiski nos passará a bola para as mãos assim que estiver pronta.

- Tens a certeza de que será assim? - perguntou Merlin.

- Sim - respondeu Judd. - Olhei a velhota bem nos olhos e toquei-lhe na mão. Sentia-a. Entendemo-nos um ao outro.

 

- Quaaludes e Interferon - observou Judd. - Não percebo. É uma combinação disparatada.

- Não tão disparatada como possa parecer - disse Li Chuan, recostando-se no assento da limusina. - No fundo, o que está em jogo é uma grande quantidade de dinheiro.

Li Chuan era um chinês nascido na América que trabalhava como director de vendas para os Produtos Farmacêuticos Crane, em Hong Kong.

- Em mil novecentos e oitenta a produção de Quaaludes será praticamente banida do mundo ocidental. A Europa e a América Latina já deixaram de a fazer. As pressões nos Estados Unidos estão a aumentar e Lemon está a fazer planos para parar. O facto é que a maior parte dos ludes está falsificada e é de má qualidade, vendendo-se através de passadores de rua.

- Nesse caso, por que razão os Chineses estão tão interessados nisso?

- Tudo indica que os Chineses são mais sensíveis aos anti-depressivos do que os Americanos e a maior parte dos Caucasianos. A droga actua neles com mais eficácia porque a metabolizam mais lentamente e não passam por crises de excitação violentas. Portanto, no que lhes diz respeito, é uma prática médica perfeitamente legítima. - Fez uma pausa. - O Governo chinês é de opinião de que, se o seu povo enfiar Quaaludes em vez de fumar ópio, tanto melhor. Ópio e trabalho não ligam bem entre si.

- Têm conhecimento da atitude do resto do mundo - disse Judd.

Li Chuan concordou.

- Portanto, o fundo da questão é... eles querem que os Produtos Farmacêuticos Crane sejam os seus passadores de droga em todo o mundo.

- Sim - anuiu Li Chuan. - Mas dar-lhe-ão um prémio. Possivelmente duzentos por cento do fornecimento total de Interferon para todo o mundo. E os Produtos Farmacêuticos Crane serão o único distribuidor desse material.

- Merda! - Judd olhou para fora do carro. - Estamos tramados se o fazemos e tramados se não o fazemos.

- Se bem conheço os seus amigos - disse Li Chuan -, eles arranjarão maneira de exportar os Quaaludes, quer nós o façamos ou não. Isso representa muito dinheiro para eles.

- Eles que se lixem - declarou Judd calmamente. - Não aceito. - Lançou um olhar ao avião que aguardava na pista. - Sofia já terá acordado?

Merlin sorriu.

- Já tinha obrigação de o estar, a não ser que o senhor lhe tenha aplicado alguma dose sem ela saber.

- Eu era incapaz de fazer uma coisa dessas - respondeu-lhe Judd prazenteiro, e virando-se para Li Chuan: - Sofia é a

médica jugoslava de que lhe falei.

Li Chuan esboçou um pequeno sinal de entendimento, embora a expressão do seu rosto se tenha endurecido ao ouvir a decisão tomada por Judd relativamente aos Quaaludes.

- Tenho o pressentimento de que ela vai demonstrar ter imenso interesse - disse.

Sofia acordou lentamente na escuridão da sua cabina. Precisou de alguns momentos para se dar conta de que o avião se encontrava em terra firme e que a força dos jactos a trabalharem não fazia vibrar suavemente a sua cama. Virou-se para o relógio digital que tinha ao lado. O mostrador azul-claro mostrava serem três horas e dez minutos.

Sentou-se na cama, admirada por não ter acordado com a aterragem do avião. Ergueu a persiana de uma janela e a luminosidade das luzes eléctricas espalhadas no solo em redor do aparelho invadiu-lhe a cabina. Voltou a fechá-la rapidamente e foi para a casa de banho. A um dos cantos desta via-se um poliban. Fechou a porta da zona do duche e pegou no chuveiro manual. A água estava quente e teve o condão de a relaxar. Fez o jacto passar primeiro pelos ombros, depois pelos seios. Num pequeno botão da parede lia-se a palavra SABÃO. Carregou nele. O chuveiro deixou passar uma espuma de sabão à mistura com a água. Depois tirou rapidamente o sabão do corpo e, em seguida, apontou o jacto de água para a zona situada entre as coxas. Atingiu o clímax quase instantaneamente. Susteve a respiração, com receio de que algum som lhe escapasse dos lábios. Depois saiu do chuveiro e enrolou uma toalha à sua volta, regressando à cabina.

Estava uma hospedeira a arranjar-lhe a cama, de costas viradas para ela. A porta do duche deu um pequeno estalido ao fechar-se e a rapariga virou-se para ela.

- Bom dia, doutora - disse. - Chamo-me Ginny. Trouxe-lhe sumo de laranja e café.

Sofia olhou para o tabuleiro pousado sobre a mesinha-de-cabeceira.

- Obrigada. - Hesitou por um momento. - Estamos em Pequim?

- Sim, doutora.

- O senhor Crane está a bordo?

- Não, doutora - disse Ginny. - Esperamo-lo por volta das quatro da tarde.

- Acha que terei tempo para dar uma vista de olhos pela localidade? - perguntou. - Nunca estive em Pequim.

A hospedeira riu-se.

- É um dos problemas comuns a este trabalho. Tenho estado em muitos locais sem verdadeiramente os chegar a conhecer. Contamos partir para Hong Kong assim que o senhor Crane voltar para bordo.

- O senhor Crane não me informou do facto - observou Sofia.

- Ele deu-me um recado para si. Pede-lhe que vá às compras comigo e que me forneça as suas medidas de roupas e sapatos a fim de podermos transmiti-las para Hong Kong. Deseja que a doutora obtenha um guarda-roupa completo antes de seguirmos viagem para São Francisco, amanhã.

Sofia sentia-se aborrecida.

- Já tenho roupas suficientes. Ginny sorriu.

- O senhor Crane lá tem as suas ideias. Ele diz que a senhora tem um corpo digno de Paris e que, portanto, deve possuir um guarda-roupa de Paris.

- Ele é assim com todas as pessoas?

- Somente com aquelas de quem gosta - disse Ginny. Sofia manteve-se em silêncio durante um momento.

- Não sei quais são as minhas medidas segundo o padrão ocidental.

Ginny estendeu-lhe a mão.

- Dê-me essa toalha - disse. - Sou boa avaliadora. Saberei ver quais são as suas medidas.

Sofia entregou-lhe a toalha sem dizer palavra. Ginny mirou-a com ar apreciativo.

- Tem um corpo estupendo - disse a hospedeira em tom casual.

- Parece ter experiência - observou Sofia.

- Gosto de roupas - disse Ginny. - E de corpos bonitos. Sofia olhou para a rapariga, mas não lhe detectou nenhuma expressão especial no rosto. Estendeu a mão para a toalha, sentindo-se embaraçada.

- Obrigada.

Ginny dirigiu-se para a porta da cabina.

- Estarei na sala de estar. Se desejar alguma coisa de mim é só carregar no botão da mesinha-de-cabeceira.

Sofia deteve-se por momentos.

- Importa-se de me avisar assim que o senhor Crane chegar a bordo?

- Com certeza, senhora doutora.

- Obrigada.

Sofia aguardou que a porta se fechasse depois da hospedeira sair e, em seguida, sentou-se na cama, levando o copo com sumo de laranja aos lábios.

- O senhor Crane já se encontra a bordo - informou a hospedeira pelo telefone.

- Posso falar com ele? - perguntou Sofia.

- Carregue no botão do telefone que tem o número onze marcado - disse Ginny. - Ele está lá em cima, na sua sala.

Sofia assim fez. Foi Judd quem atendeu.

- Gostaria de falar contigo - disse ela. Estás sozinho?

- Sim - respondeu ele. - Sobe.

Fast Eddie abriu-lhe a porta e Sofia entrou na sala. Judd beberricava um copo com Coca-Cola.

- Dormiste bem? - perguntou-lhe.

- Muito bem - respondeu ela, com ar aborrecido. - Porque insistes tratar-me como uma puta?

- Não sei do que estás a falar.

- Não preciso de uma porcaria de um guarda-roupa - disse ela. - As minhas roupas são suficientemente boas.

- Talvez para a Europa de Leste, mas não para o sítio para onde vais - observou ele. - E não quando estás comigo. Tens de ser a melhor.

Ela fitou-o.

- Sou uma médica, não um estupor de um modelo.

- Então volta para a Jugoslávia - respondeu ele. - Se queres esconder a mulher bonita que és, não preciso de ti. Estou certo de que existem outros médicos capazes de fazerem o que a doutora Zabiski deseja.

Sofia permaneceu em silêncio.

Judd pegou no frasco dourado e na colher.

- Toma um pouco. Far-te-á sentir melhor. De repente, ela soltou uma gargalhada.

- E agora quem é que está a brincar aos médicos?

- Tu é que és a médica - disse ele, levando-lhe a colher dourada ao nariz. - Portanto, perdoa-me que te veja apenas como uma bela mulher.

A cocaína animou-a instantaneamente.

- Esqueci-me de tantas coisas...

- Agora já podemos falar de assuntos importantes. Já tenho os resultados médicos que pediste.

Virou-se para tirar um dossier de uma prateleira.

Sofia baixou os olhos para este. Na primeira folha estava escrito o nome dele: JUDD MARION CRANE - HISTÓRIA CLÍNICA. No seu interior encontravam-se sete páginas passadas a computador.

DATA DE NASCIMENTO: 25 JUNHO 1934 N.Y.N.Y.

DOCTORS HOSPITAL - 17H01

GENEALOGIA:

PAI: SAMUEL TAYLOR CRANE

NASCIDO:

FALECIDO:

1962

18 FEV

 

Barbara espraiou a vista para lá da janela, observando o tapete branco de neve que cobria o Central Park.

- O teu pai dizia que esta era a paisagem mais bonita de Nova Iorque. O Central Park cheio de neve e a linha do horizonte recortada a cinzento e vidro pelos edifícios que ficam ao fundo.

Judd colocou-se ao lado dela.

- O meu pai era um homem estranho.

- Só para ti - disse ela. - E porque era teu pai. Todas as crianças acham os pais estranhos.

- A Barbara adorava-o - observou mais em tom afirmativo do que interrogativo.

- Sim.

A resposta dela foi simples.

- Porque esperaram tanto tempo para se casarem? A sua resposta foi igualmente simples.

- Porque ele não mo pediu antes.

- Mas a senhora andava com ele, não?

- Refere-se a dormirmos um com o outro? - perguntou Barbara, respondendo logo de seguida. - Não.

Judd fitou-a.

- Estranho. Sempre pensei que isso acontecia.

- Toda a gente era dessa opinião - disse ela. - Mas o teu pai tinha uma maneira muito especial de pensar. Nunca misturava o trabalho com as emoções pessoais.

- Era um tolo.

- Talvez - disse ela. - Mas agora tudo isso já lá vai. E seja como for, deixou de ter importância.

Judd manteve-se em silêncio durante um momento.

- Como se sente?

- Bem - respondeu Barbara. - Mas agora que aconteceu, entorpecida.

- Vai ser um autêntico circo - observou Judd. - Todo o mundo vai lá estar. Excepto Kennedy. O presidente nunca gostou dele. Talvez não lhe agradasse a ideia de o pai ter mais dinheiro do que dele. De qualquer modo, vai mandar o vice-presidente Johnson ao funeral. Johnson gostava do pai. Sempre apreciou muito as pessoas com dinheiro e poder. Barbara sorriu vagamente.

- O teu pai não se importou com o facto enquanto era vivo, e estou certa de que agora também não.

Judd concordou.

- É mais ou menos sobre isso que desejo falar-lhe. Sei que depois das cerimónias fúnebres, em St. Thomas, o corpo dele vai ser levado para um crematório.

- Foi o desejo expresso por ele - disse Barbara. - A ideia de vir a ser enterrado num cemitério nunca foi do seu agrado.

- Eu tenho outra ideia - contrapôs Judd. - Não quero que o corpo dele seja cremado. Desejo que seja enviado para o Hospital de Pesquisas de Boca Raton.

- Que interesse poderá isso ter? - perguntou Barbara. - Eles já devem estar a preparar o corpo dele para a cremação na casa mortuária.

- Não o fizeram - disse Judd. - Ainda não se tinham passado cinco minutos sobre a sua morte, consegui que o corpo dele fosse congelado criogenicamente.

- Não me digas que acreditas nessas baboseiras - exclamou ela. - Nessas teorias que dizem que podem fazê-lo ressuscitar daqui a uns anos, quando a doença que o vitimou tiver cura!

- Não é isso o que estou a tentar fazer. - Respirou fundo. - Neste momento possuímos uma tecnologia que nos permite examinar as células do seu corpo sob o ponto de vista genético e, através da metodologia DNA, descobrir as causas que deram origem à sua doença.

- Isso parece vampiresco - disse ela.

- Não o é - respondeu Judd com ar grave,

- Não sei - disse Barbara. - Os desejos do teu pai foram explícitos.

- Os desejos dele já não são vinculativos. Morto, não é dono do seu próprio cadáver. Este é propriedade sua, dele podendo fazer o que muito bem entender. É a lei.

Barbara fitou-o.

- É por essa razão que me fazes esse pedido? Ele anuiu.

- Como sua mulher, assiste-lhe esse direito legal. A mim não.

- Que direitos tens tu?

- Nenhuns. A não ser que o tivesse precedido, tornando-me assim o sobrevivente consanguíneo seguinte.

Ela sentou-se por momentos, mantendo-se em silêncio.

- Preciso de uma bebida.

Ele atravessou o aposento e foi encher dois copos de uísque com gelo. Beberricaram em silêncio. Passados alguns instantes, Barbara olhou para Judd.

- Achas que alguma coisa de bom poderá vir daí?

- Não sei - respondeu ele. - Mas estamos a tentar aprender mais coisas sobre o prolongamento da vida. Foi para isso que construí o Centro de Pesquisas Médicas em Boca Raton. Quem sabe se não tivéssemos começado há mais anos não teríamos podido prolongar-lhe a vida...

- E tu, Judd - perguntou ela com voz branca -, que desejas tu?

- Eu desejo viver eternamente.

Ela olhou para ele e depois terminou a bebida.

- Muito bem, acedo ao teu pedido.

Ele tirou um documento dobrado de dentro de um dos bolsos.

- Tem de assinar isto. Ela olhou o papel.

- Já sabias que eu iria concordar, não é?

- Sim.

- Que foi que te levou a supô-lo?

- O facto de nos amarmos todos uns aos outros - disse ele, beijando-a no rosto.

Ela ergueu os olhos para ele.

- És muito parecido com o teu pai, mas, ao mesmo tempo, diferente. Não tens os desejos esquisitos que lhe eram característicos. Ele queria deitar a mão a todos os negócios que lhe aparecessem pela frente. Tu contentas-te em manter os que tens.

- Foi o pai que construiu todo este império - disse Judd. - Nessa área já não havia mais nada para eu fazer. Ele formou um aparelho que se basta a si próprio. Se todos nós desaparecêssemos, o negócio permaneceria por si mesmo. Trata-se, de certo modo, de uma máquina em perpétuo movimento.

- Foi por isso que fizeste aquilo há três anos atrás? - perguntou ela. - Como uma espécie de experiência?

Judd anuiu.

- A princípio o teu pai ficou preocupado. Depois suponho que começou a entender.

- Espero que sim - observou Judd. - Lembro-me do dia em que ele me entregou a direcção do seu escritório. Foi na semana logo a seguir ao fim do meu curso e aquando da primeira vez em que lhe disse que tencionava começar a construir o Centro de Pesquisas de Boca Raton.

- Ele não conseguiu concordar com esse empreendimento - lembrou ela. - Não traria dinheiro nenhum.

- E tinha razão - disse Judd -, mas não me impediu de o fazer.

- Manteve a sua palavra - afirmou Barbara. - Disse que seria coisa tua e cumpriu o prometido.

Judd entrara no gabinete do pai nesse dia de Junho. Este encontrava-se à sua secretária. A princípio sentiu-se chocado com o estado de magreza do pai, mas depois fitou-o nos olhos e deu-se conta de que a viveza de espírito ainda estava dentro dele. Beijou o pai, depois Barbara, em seguida apertou a mão ao juiz Gitlin, assim como aos três advogados e aos contabilistas sentados em redor da mesa de reuniões, tendo na frente uma resma de documentos.

Na parede do fundo via-se um écran descoberto. A primeira imagem projectada foi um organigrama da companhhia mostrando as várias empresas Crane e os elos de ligação existentes entre elas. Debaixo de cada empresa .estava o nome do respectivo director e primeiro-assistente.

Nas cabeceiras da mesa viam-se duas cadeiras. Seu pai levantou-se e com a ajuda de uma bengala dirigiu-se para uma delas, fazendo um gesto a Judd para que fosse para a outra. Barbara encontrava-se sentada à esquerda do pai; o juiz Gitlin também se foi sentar à mesa, à direita de Judd.

O silêncio era geral. Todos mantinham os olhos fixos em seu pai, mostrando um ar solene. Este respirou profundamente antes de falar.

- O rei não está morto - disse com tranquilidade. - Abdicou.

O silêncio manteve-se.

- Todos tinham conhecimento do meu plano - continuou. - Plano que possivelmente acreditavam eu não chegar a levar à prática. Não sei. Mas agora vêem que tencionava concretizá-lo...

As pessoas sentadas à mesa da conferência continuaram em silêncio.

- Judd também manteve a promessa que me fez. Terminou o curso em Harvard o ano passado, completou os estudos no MIT e entrentanto viajou e visitou todas as companhias e fábricas que controlamos em várias partes do mundo.

Fez uma pausa, bebendo um gole do copo de água que tinha a sua frente.

- A transferência de poderes é sempre difícil. Tanto nas companhias como no Governo.

“A ambição de meu pai era construir a companhia mais eficaz e diversificada do mundo. Uma companhia que englobasse todas as áreas da economia americana. Esse era o seu grande desejo.

“Mas não foi o meu. A minha ambição foi a de expandir o negócio até o transformar numa corporação multinacional que abrangesse todo o mundo. Dotá-la de um poder e de uma riqueza capazes de influenciar os governos por aí espalhados. Na verdade, a companhia número um da Fortune 500'.

“Mas a visão que eu tenho das coisas não é, necessariamente, a mesma que a do meu filho. Ele terá a sua maneira própria de ver as coisas. E toda a sabedoria que lhe deixo pode resumir-se a estas palavras.

Voltou a beber novo gole de água.

- O poder é simultaneamente maléfico e benéfico. Nunca deixei de ter consciência desse facto. No que me diz respeito, creio que me inclinei sempre mais para o lado do bem. Mas admito que, ocasionalmente, o mal tenha levado a sua avante. Espero que, no fim, o bem tenha prevalecido.

Tomou novo gole de água.

- Não tenciono aborrecer-vos com todos os detalhes técnicos relacionados com a transferência de poderes que aqui vai ter

 

' Publicação americana ligada ao mundo dos negócios. (N. da T.)

 

lugar. Os fundamentos, todas as medidas necessárias ligadas às leis que protegem as heranças, já foram devidamente tratadas e as coisas passar-se-ão da forma habitual. O meu filho herdará a responsabilidade, o poder e a riqueza que me pertenceram, assim como a meu pai antes de mim. Virou-se para o juiz Gitlin.

- Agora é contigo, Paul.

O juiz Gitlin ergueu-se da sua cadeira.

- Simplifiquei os acordos o mais possível, mas ainda assim há que assinar vinte documentos em seis cópias. Tu, Judd, e Barbara, têm de os assinar para depois serem reconhecidos pelo notário. Devem ser necessárias várias horas. Samuel, achas-te com forças para esta empreitada?

- Dou um jeito - disse este. - Comecemos. Judd interferiu.

- Pai, é melhor ouvir o que tenho para propor. O pai fitou-o.

- Nem sequer quero escutar-te. Disse que te passava o menino para as mãos. Agora toma tu conta dele.

- Muito bem, pai. - Judd olhou para o juiz Gitlin. - Estou pronto.

O advogado começou a colocar os documentos diante deles. As assinaturas levaram quase três horas. Quando a sessão chegou ao fim, o velho Crane estava muito pálido e fatigado.

Fitou Judd quando o último papel ficou pronto. Este mostrava-se silencioso. O pai inclinou-se para ele e depositou-lhe um beijo na face.

- Que Deus esteja contigo, filho.

Barbara deu a volta à mesa e beijou Judd na outra face. A seguir, o juiz Gitlin e as outras pessoas presentes juntaram-se ao coro das congratulações.

Judd só se pronunciou depois de estas terminarem. Levantou-se da cadeira.

- Muitos de vós não gostarão dos projectos que tenho em mente, mas, tal como meu pai disse, compete-me agora fazer o que muito bem entender.

“Tenciono retirar todos os directores que actualmente dirigem as companhias e substituí-los pelos respectivos sucessores directos. Isso porque pretendo que as pessoas à cabeça de todas as empresas sejam exclusivamente leais a mim e a mais ninguém.

O juiz Gitlin esboçou um sinal de aprovação.

- Bem pensado, Judd.

Judd fitou-o com um pequeno sorriso.

- Ainda bem que concorda, tio Paul - disse Judd porque o seu nome é o primeiro que vem à cabeça da lista.

 

- Um milhão de dólares por ano - disse Judd.

.- Para quê? - perguntou Barbara. - Não me fazem falta.

teu pai tomou conta de tudo com o fundo de maneio que me deixou. Sou uma mulher rica. Além disso, tenho este apartamento, as casas de Connecticut e de Palm Beach.

- Dinheiro para os seus alfinetes - disse Judd. - Agora a

a vida mudará por ter ficado viúva. Toda a sua vida social foi construída em redor do meu pai. As pessoas não prestam, assim que descobrirem que não pode fazer nada por elas, desaparecerão.

- Já não preciso delas - disse Barbara. - Estou habituada a viver só.

Judd fitou-a.

- Tinha dezanove anos quando começou a trabalhar para as Indústrias Crane, vinte e três quando ascendeu ao lugar de assistente pessoal. Quando assumiu essas funções passou a viver num outro mundo. O dele. Isso foi antes de casarem'

- Continuei a voltar para minha casa depois da hora de sair.

- Não é desse aspecto que estou a falar - disse Judd. - - Ficou perto do centro da acção. Agora... zero.

Barbara permanceu calada durante instantes.

- E que sugeres que faça neste momento?

- Que construa uma vida só para si - respondeu ele.

Ela mergulhou o seu olhar no azul-cobalto dos olhos de Judd.

- Não sei como fazé-lo. - Fitou as mãos. - Moldei minha vida, desde o início, à conveniência dele. Quando nos Casámos pensei que isso fosse mudar. Não não foi o que aconteceu na realidade. A única alteração que teve lugar residiu no facto de me mudar para casa dele com um novo título. Sua mulher, não sua assistente. Os deveres eram os mesmos.

- Mas amava-o?

- Sim - respondeu ela. - E acredito que também ele me amava. Mas já nada podíamos fazer um pelo outro. Ele encontrava-se doente e tudo estava acabado. Não houve sexo, filhos, futuro. Unicamente planos para dias que não nos incluíam aos dois juntos porque ele ia morrer.

Judd sentou-se ao lado dela, no sofá.

- Ainda é uma mulher jovem - disse. - Poderá encontrar a felicidade.

- Tenho quarenta e oito anos - disse ela com amargura. - Olha para mim. O único atractivo que me resta para oferecer é o meu dinheiro. Teria de enfrentar a competição de mulheres mais jovens.

- Está enganada - disse Judd. - Fisicamente o seu rosto e corpo ainda estão bem. Em dois meses podemos fazer os ponteiros do relógio retrocederem quinze anos, levando-a de novo para os trinta.

Barbara riu-se.

- Cirurgia plástica?

- Não troce - observou ele. - As técnicas de hoje são inacreditáveis.

- Mas mesmo partindo do princípio de que eu me submetia a elas - disse Barbara -, de que me serviria esse esforço? Nada sei da vida. Creio que só fiz sexo uma única vez. Nos meus tempos de rapariga, no banco de trás de um automóvel, e detestei.

- Isso também pode ser corrigido - disse Judd. Ela abanou a cabeça.

- Judd, Judd. Tu realmente não compreendes, pois não?

- Talvez quem não compreenda seja a Barbara - disse ele.

- Fazes lembrar o teu pai - retorquiu ela. - Era precisamente o que ele costumava dizer.

Judd sorriu.

- Recorda-se de quando eu tinha doze anos e caí daquele salgueiro que havia no pátio da casa de Connecticut?

Barbara acenou que sim com a cabeça.

- Sim, e também me lembro de o teu pai ter ficado muito zangado contigo porque nunca chegaste a explicar-lhe por que razão tinhas trepado para os ramos da árvore sabendo que estes eram muito frágeis.

- Não lhe podia dizer a verdade - observou Judd.

- Porque não? - quis saber Barbara.

- Subia àquela árvore para poder espreitar pela janela do seu quarto e vê-la nua. Assim que a avistava começava logo a masturbar-me.

- Não acredito - disse ela.

- É verdade - asseverou ele. - E uma vez, ao ter o orgasmo, larguei o ramo. Foi nessa altura que dei o trambolhão.

Ela começou a rir.

- Crianças.

- Nunca mais o esqueci - disse ele. - Parece que estou a vê-la na minha mente. Ainda hoje, de vez em quando, enquanto não adormeço, dou comigo a acariciar-me.

- Isso nunca me passou pela cabeça, nunca vi nada que me pudesse levar a imaginar semelhante coisa - disse Barbara.

- Uma pena - exclamou ele. - Costumava pensar que se pudesse ver-me, ficaria ainda mais excitada.

Barbara permaneceu em silêncio. Judd fitou-a.

- Só de pensar nisso agora faz-me ficar erecto. Ela levantou-se do sofá.

- Foi um dia muito cansativo - disse. - Penso que é melhor ir dormir. O avião sai logo de manhã.

Judd agarrou-lhe no braço e empurrou-a de volta ao sofá, colocando-se à frente dela.

- Freud - disse.

- Que tem Freud? - perguntou ela.

- Ele diz que as frustrações conduzem à loucura.

- Essa inventaste tu - protestou ela. - Nunca ouvi falar nessa teoria.

- Quero que fique aí sentada a observar-me.

- Não - respondeu ela. - Isso é que é uma verdadeira loucura. Já não és nenhuma criança nem eu sou a rapariga que costumavas espreitar.

Judd abanou a cabeça.

- Não compreende. Nada mudou. A Barbara e eu continuamos a ser os mesmos de sempre.

- Na tua cabeça - disse ela.

- E que importa tudo o resto? - perguntou ele. - A única coisa que interessa é o que está na nossa mente. Ainda é muito bela.

Puxou o fecho das calças para baixo e pegou no pénis. Falou com voz rouca.

- Não é obrigada a fazer nada. Limite-se a olhar para mim. Ela sentiu os dedos dele apertarem-se em torno do braço

dela e ficou a olhar para o membro que cada vez se tornava maior na mão dele. Sentiu-se sufocar, como se lhe custasse a respirar. Viu a glande avermelhada aparecer de dentro do prepúcio e a mão dele, que parecia uma sombra, a envolver o membro. Em seguida, um som rouco saiu-lhe da garganta e o sémen começou a jorrar violentamente, espalhando-se pela mão e calças de Judd.

Barbara virou o rosto para o lado. Os olhos dele, por momentos velados, retomaram o habitual azul-cobalto. Ele observou-a durante um momento e depois sorriu.

- Quinze anos - disse. Ela não replicou.

- Arranje-me alguns Kleenexes - pediu Judd. Estou todo sujo.

Barbara entrou no bar em silêncio e voltou com uma caixa de lenços de papel. Ele fitou-a.

- Limpe-me - ordenou.

Ela agarrou nuns quantos e, sem falar, assim fez. Judd ergueu os olhos para ela.

- É bela - disse.

- Sinto-me estúpida.

- Não é estúpida - disse ele. - Agora é livre. E eu também.

Ela voltou a guardar a caixa de lenços no bar e preparou dois uísques, oferecendo-lhe um. Bebeu o dela lentamente.

- Em relação à tal cirurgia plástica de que me falaste, achas que resultará verdadeiramente?

- Sim - asseverou Judd. - Ainda melhor do que pensa. Barbara respirou fundo.

- Muito bem. Quando é que posso começar?

- Já está tudo combinado - disse Judd. - O avião levá-la-á até Boca Raton, onde já tem um médico à sua espera.

A voz do piloto fez-se ouvir em todo o avião.

- Daqui fala o vosso capitão. Em primeiro lugar quero agradecer-vos por terem voado na Pan American e espero que se tenham sentido confortáveis durante a viagem entre Londres e São Francisco. Aterraremos dentro de doze minutos aproximadamente, e entretanto podem ver à vossa esquerda a famosa Ponte Golden Gate e à direita a ponte de Oakland Bay. Mais uma vez, obrigado por viajarem na Pan-Am.

Barbara relanceou o olhar pela janela durante alguns momentos e, em seguida, abriu a sua caixa de pó-de-arroz. De cada vez que olhava para o espelho não conseguia deixar de se sentir surpreendida. Já se tinham passado dois anos desde que Judd a levara para Boca Raton a fim de se submeter à cirurgia plástica. O rosto reflectido no espelho parecia o de uma mulher com pouco mais de trinta anos. E Judd também tivera razão em insistir com ela para que passasse os anos seguintes na Europa. Pela primeira vez na vida sentira-se mulher na verdadeira acepção da palavra. Retocou rapidamente a maquilhagem e pensou em Judd. Teria mudado muito em dois anos?

Barbara lera notícias em jornais e revistas acerca das Indústrias Crane, mas nenhuma delas se fazia acompanhar de fotografias de Judd. Mostravam imagens de seu pai e de muitos outros executivos da companhia, não sendo nenhum destes últimos seu conhecido. Limitavam-se a mencionar o nome de Judd sem nunca o mostrarem. Recebera o telegrama dele no Hotel Dorchester, em Londres:

Adorava que cortasses a fita que inaugurará a nova sede mundial das Indústrias Crane, em Crane City, nos arredores de São Francisco, a 14 de Setembro. Ansioso por te ver.

Beijos, Judd.

A primeira pessoa que ela avistou quando saiu do avião e entrou na passagem coberta foi Fast Eddie. Ao lado deste estava um homem franzino vestido de escuro e um funcionário de alfândega uniformizado. Fast Eddie aproximou-se dela com um enorme ramo de rosas vermelhas na mão.

- Estou muito contente por vê-la, senhora Crane.

- Também tenho muito gosto em te ver, Fast Eddie - disse ela, sorrindo, ao mesmo tempo que abria o sobrescrito que acompanhava as flores.

O cartão fora escrito à mão por Judd.

Bem-vinda a casa, Barbara. Beijos, Judd.

Barbara ajeitou as rosas nos braços. Fast Eddie apresentou o jovem.

- Este é Marcus Merlin, assistente pessoal de Judd - disse.

- Muito prazer, senhora Crane. Barbara apertou-lhe a mão.

- Muito gosto, senhor Merlin.

- Conseguimos arranjar-lhe algumas facilidades no aeroporto, senhora Crane - disse Merlin. - Se me der o seu passaporte e os talões das bagagens, poderei transferi-la directamente para o helicóptero.

Barbara anuiu e Merlin conduziu-a por uma porta lateral, descendo em seguida umas escadas que os conduziram à pista onde eram aguardados por uma limusina. Os funcionários da alfândega receberam o seu passaporte e os talões de bagagem e afastaram-se. O motorista abriu-lhe a porta do carro para a deixar entrar. Fast Eddie abriu rapidamente uma garrafa de champanhe e encheu-lhe uma taça.

- O seu preferido - disse. - Cristale.

- Obrigada pela lembrança.

- Ela foi da autoria do senhor Crane - observou Fast Eddie, sorrindo. - Está realmente com um óptimo aspecto, senhora Crane.

Barbara devolveu-lhe o sorriso.

- Sinto-me francamente bem, Fast Eddie. - Bebeu um gole de champanhe. - E Judd, como está?

- Ele também está muito bem, minha senhora - respondeu Fast Eddie. - Mas é como o pai, sempre atarefadíssimo.

Merlin aproximou-se da porta aberta.

- São seis malas?

- Exactamente.

Ele fez um sinal ao funcionário da alfândega. O motorista colocou as malas no porta-bagagens da limusina com a ajuda de Fast Eddie. Este sentou-se ao lado do motorista. Merlin olhou para ela.

- Dá-me licença que vá consigo, senhora Crane?

- Evidentemente - disse Barbara. O automóvel começou a andar.

- O helicóptero encontra-se na ponta mais afastada do aeroporto - disse Merlin. - Penso que vai gostar. É o nosso modelo mais recente para transporte de passageiros. Leva vinte e quatro pessoas, entre passageiros e tripulação. O modelo mais recente da Hughes só tem lugar para catorze.

Barbara acenou com a cabeça.

- O voo durará apenas vinte e cinco minutos - revelou Merlin. - É menos tempo do que ir de carro até São Francisco.

- Pelo que me constou, Judd construiu uma autêntica cidade - disse.

- É verdade, senhora Crane - confirmou Merlin. - Seiscentos apartamentos, cem vivendas e doze edifícios para escritórios. Claro, também há escolas, jardins, centros comerciais e, escusado será dizer, um hospital.

Barbara fitou-o.

- Mas porquê alft - perguntou. - A sede da companhia sempre foi em Nova Iorque.

- Sim - respondeu Merlin. - Mas se se recordar, sessenta por cento da produção encontrava-se no Leste e no Sul. Agora quarenta e cinco por cento está no Oeste e apenas quinze por cento continua no Leste e no Sul. Os microchips e os computadores crescem como erva daninha em Silicon Valley. Fazemos mais vinho no norte da Califórnia do que a Itália e a França. A produção de material aeroespacial encontra-se espalhada pelos estados de Washington, Califórnia, Nevada e Colorado. Os nossos estudos mostram-nos que, daqui a dez anos, o nosso crescimento será de mais quinhentos por cento.

- Mas toda uma cidade? - insistiu ela.

- Isso foi uma ideia que o senhor Crane trouxe do Japão. Ele viu que todas as grandes companhias japonesas, a Mitsubishi, a Nissan, a Asahi, a National, a Panasonic and Sony mantinham a sua produção com base numa mão-de-obra a quem garantiam segurança para a vida inteira.

- Não sei se os Americanos reagirão da mesma maneira - disse ela.

- Veremos - replicou Merlin. - Mas como o senhor Crane diz, é apenas uma experiência.

O carro parou. Merlin saiu e estendeu-lhe a mão. Com a outra indicou o helicóptero.

- Ali o tem - disse. - O senhor Crane foi de opinião de que a primeira unidade devia levar o seu nome.

Barbara permaneceu imóvel por alguns instantes. A visão do helicóptero prateado fez com que os seus olhos ficassem cheios de lágrimas. As letras que se viam no exterior do aparelho eram enormes: BARBARA UM!

 

- Faz lembrar o campus de uma universidade - disse Barbara. - Creio que não há aqui uma única pessoa que tenha mais de trinta.

Judd sorriu.

- Com excepção da minha pessoa. Ela riu-se também.

- Desculpa. - Puxou do cartão de plástico que servia de chave para entrar na sua suite. - Entra para uma última bebida.

Ele aceitou.

Barbara abriu a porta e Judd seguiu-a. A porta fechou-se automaticamente. Ela conduziu-o até ao bar da sala de estar.

- Um uísque com gelo?

- Não, obrigado, preferia uma Coca-Cola com cherry. Ela fitou-o.

- Aí está uma novidade.

- Sim. O álcool não me faz bem.

- E a Coca-Cola faz? - inquiriu. - Cafeína e açúcar?

- Algo mais - disse Judd. Ela olhou de relance para ele.

- Cocaína - disse ele.

- Isso não é perigoso?

- Viver já é perigoso para a nossa saúde - disse ele. - Mas a combinação mantém-me vivo.

- Não sei - retorquiu Barbara em tom de dúvida. - Nunca experimentei.

- Não o recomendo - observou ele. - Mas reconheço que comigo resulta. Consultei o meu médico sobre a questão e ele disse-me que as consequências não são piores do que aquelas que são provocadas por excesso de álcool. O segredo está em utilizá-la cuidadosamente.

 

' Terrenos de uma universidade ou escola; campo de desportos. (N. do E.)

 

- Quando é que sabes que te excedeste? - quis saber Barbara.

Judd riu-se.

- Quando o nariz me cai. Barbara fez uma careta.

- Isso parece horrível. Ele voltou a rir.

- Muito bem. Então, tomarei o uísque.

Barbara pôs gelo nos copos e, em seguida, deitou-lhe uma porção de uísque. Judd pegou no seu.

- Saúde - disse ele.

- Saúde. - Ela fitou-o. - Já tomaste outras drogas?

- Evidentemente - respondeu ele. - Tem de compreender. Estamos na era da droga e dos produtos químicos, tal como no tempo do meu pai foi a era da cerveja e do álcool.

- Já tomas isso há muito tempo?

- Desde os tempos da escola preparatória e do liceu.

- Engraçado - observou Barbara. - Nunca demos por isso.

- Nunca estive em casa muito tempo.

Judd aproximou-se de uma cadeira e deixou-se afundar nela.

- Fale-me de si - pediu. - Já não nos vemos há dois anos.

- Tem sido diferente - disse Barbara, sentando-se em frente dele. - Estou diferente.

- Isso vejo eu.

- O que vês agrada-te?

- Sim - anuiu ele. - Agora sinto que assumiu a sua verdadeira identidade. Antigamente era apenas um satélite a girar em torno do meu pai.

- Não me importava - disse calmamente. - Amava-o.

- Eu sei - respondeu ele. Bebeu mais um gole de uísque. Os seus olhos azuis-escuros mergulharam nos dela. - Suponho que deve estar cheia de curiosidade em relação às razões que me levaram a pedir-lhe que viesse até cá.

Barbara fez um sinal de assentimento, não proferindo palavra.

- É tempo de voltar ao trabalho - disse ele. - Preciso de si.

- Precisas de mim? Não serei um bocado velha de mais para ti?

Ele riu-se.

- Touché.

- Está bem - disse ela. - Fala-me do que tens em mente.

- A guerra do Vietname deixou Johnson entre a espada e a parede. Ela irá agravar-se até arrebentar com ele. Entretanto, o dinheiro está a jorrar.

- Continuo a não saber o que tem esse assunto a ver comigo.

- O general Connally - disse Judd.

Barbara permaneceu em silêncio durante um momento.

- Willie?

- Sim - anuiu Judd. - Ouvi dizer que o vão trazer da NATO para o porem a chefiar a aquisição de todo o equipamento bélico para o Departamento de Defesa.

- Ainda não percebi que tem isso a ver comigo.

De repente, os olhos de Judd tornaram-se vazios de expressão.

- Tem andado a dormir com ele - disse Judd. - As conversas de travesseiro sempre venderam mais armamento do que o suborno.

- Ele quer divorciar-se da mulher e casar comigo - confessou Barbara.

- Não o deixe fazê-lo - observou Judd calmamente. - Isso daria cabo da carreira dele.

- E nós não lucrávamos nada com o facto - acrescentou Barbara.

- Aprende depressa - disse Judd.

Barbara dirigiu-se ao bar e voltou a encher os copos.

- Só para tua informação - disse, devolvendo o copo a Judd -, não era meu intento aceitar a proposta dele.

Judd manteve-se em silêncio.

- Exactamente em que espécie de material estás interessado? - perguntou Barbara.

- Helicópteros de transporte armados. Hughes e Bell já estão a preparar os seus projectos. Viaturas de transporte terrestre armadas. A Chrysler e a General Motors já andam a trabalhar nelas. Barcos de fundo plano para transporte fluvial, accionados a jacto, em vez de hélices. Jacuzzi e Piaggio têm estado a mandar algumas unidades para cá, a fim de serem submetidas a testes.

- E isso pode representar a entrada de muito mais dinheiro? - perguntou Barbara.

- Poderão ser vários biliões de dólares.

Ela deixou-se ficar em silêncio até chegar quase ao fim da bebida.

- Vários biliões de dólares! Não há dúvida de que, para uma puta, é um belo preço.

Judd não respondeu.

- Que aconteceu aos teus ideais? - perguntou Barbara. - Aos sonhos que alimentavas em relação à imortalidade?

- Continuo a tê-los - disse ele. - Mas também herdei um negócio de que tenho de cuidar.

Barbara respirou fundo.

- Se o teu pai me tivesse feito um pedido como esse, não teria hesitado porque o amava. E não me teria sentido como uma prostituta.

- Todos nós nos prostituímos pelos mais variados motivos - observou Judd. - Poder, dinheiro, sexo, ideais. As coisas boas da vida.

- Acreditas verdadeiramente nisso? - perguntou ela. Judd fez um sinal de assentimento.

- Estás enganado - observou ela suavemente. - Esqueceste-te do mais importante de tudo.

- O quê?

As lágrimas começaram a escorrer dos olhos de Barbara.

- Do amor.

 

Sofia levantou os olhos do relatório médico saído do computador.

- Aqui não vem nenhuma informação sobre a possibilidade de tu alguma vez te teres casado ou não.

- Nunca fui casado - disse Judd. Ela desviou o olhar.

- Isso é fora do comum. Normalmente, um homem da tua idade, quarenta e dois...

Judd interrompeu-a.

- Disseste-me que tinhas trinta e que nunca casaras. Também não achas essa situação fora do comum?

- Sim - respondeu ela. - Mas eu tive uma razão. A minha profissão é muito absorvente.

- Talvez a minha também o seja - observou Judd, sorrindo. - Mas não me sinto frustrado. E tu?

Ela permaneceu silenciosa durante um momento.

- As vezes - reconheceu com honestidade. - Por minha vontade ter-me-ia casado e mandado vir filhos, mas as coisas nunca se proporcionaram de modo a que tal acontecesse.

- Devias ter casado - disse Judd. - E não apenas porque adoras fornicar. Terias dado imenso de ti aos teus filhos.

Os olhos dela voltaram a fixar-se na folha de resultados saída do computador.

- Segundo o que aqui vem indicado, estás de óptima saúde.

- Isso deve-se à vida de dissipação que levo e à falta de horas de sono - disse Judd, sorrindo.

- Queres dizer, apesar disso - observou ela com seriedade. Pousou os papéis. - Teremos de arranjar tempo para te obrigar a ficares num hospital durante três dias.

- O próximo fim-de-semana em Boca Raton - disse Judd. - De qualquer maneira temos de ir lá.

- Entretanto devo fazer-te vários testes. Não te roubarão muito tempo.

- Tu é que és a médica - contrapôs ele.

O telefone, que estava ao lado da cadeira onde se sentara, tocou. Escutou por momentos o que lhe diziam.

- Manda-o subir - disse. Virou-se para Sofia.

- É Li Chuan, o director de vendas das Indústrias Crane para a Ásia.

Ela levantou-se.

- Posso voltar para a minha cabina se desejares ficar a sós com ele.

- Antes disso, ficas a conhecê-lo - disse Judd. - Ele entregou a Ginny uma lista das lojas que escolheu para visitares quando aterrarmos em Hong Kong.

Li Chuan entrou na cabina e Judd procedeu às apresentações. Sofia sorriu.

- Obrigada pela sua gentileza.

- O prazer foi todo meu. Inclinou-se ligeiramente. Ela olhou para Judd.

- Ver-nos-emos em terra?

- Lamento muito - desculpou-se Judd -, mas estarem muito atarefado.

- Compreendo.

Dirigiu uma inclinação de cabeça a Li Chuan e saiu da cabina. Quando entrou na que lhe servia de aposento, as luzes indicando a proibição de fumar e aconselhando à colocação dos cintos, tinham acabado de se acender. Sofia acomodou-se na sua cadeira.

Ginny abriu a porta e entrou na cabina. Olhou de relance para as cadeiras existentes na divisão.

- Importa-se de que lhe faça companhia? - perguntou.

- Faça favor.

Ginny sentou-se em frente de Sofia e prendeu o cinto.

- Li Chuan forneceu-me uma lista com lojas muito interessantes.

- Para dizer a verdade, não tenho vontade de visitar nenhuma delas.

Ginny sorriu.

- O senhor Crane acha que deve munir-se de um guarda-roupa completo.

- As ideias dele diferem das minhas. As roupas não são assim tão importantes para mim.

- Mesmo assim, fique com elas - disse Ginny, sorrindo. - Ele é do género de homem que gosta de levar a sua vontade avante.

- Ele é assim em tudo?

Ginny acenou afirmativamente com a cabeça.

Sofia espreitou pela janela. As rodas estavam prestes a tocar no solo. Um momento mais tarde, o enorme avião corria suavemente ao longo da pista.

- Não percebo como o piloto consegue fazer este trabalho - disse Sofia. - Uma pessoa nem dá pela aterragem.

- É uma das regras do senhor Crane. Se ele sente as rodas tocarem no chão, o melhor que o piloto tem a fazer é arranjar uma desculpa suficientemente boa para apresentar ou então começar a procurar novo emprego. - Ginny ergueu-se. - Podemos sair daqui a um quarto de hora?

- Está bem - respondeu Sofia.

Quando a porta se fechou atrás de Sofia, Li Chuan perguntou:

- A sua doutora Ivancich é jugoslava?

- Sim - disse Judd. - Como é que soube?

- Já tinha ouvido falar no nome dela. Passou algum tempo com Mão Tsé-tung antes de ele morrer. Também houve um boato, posto a circular pela mulher dele e outros do Bando dos Quatro, segundo o qual ela o teria morto.

Judd manteve-se em silêncio. Em seguida olhou pela janela.

- A investigação que fizemos via computador sobre ela não nos disse nada disso. - Voltou a virar-se para Li Chuan. - Acha que me pode obter informações mais detalhadas sobre a questão?

- Ainda não posso dizer - respondeu o asiático. Em seguida soltou uma risada. - Entretanto não a deixe dar-lhe seja que comprimidos forem.

Judd também se riu.

- Creio que sobre esse aspecto escusamos de nos preocupar.

 

Judd olhou pela janela. Em baixo viu Sofia e Ginny a entrarem na limusina. O telefone voltou a tocar. Era Merlin.

- Judson está em linha, de São Francisco.

- Podes passar - disse Judd. - Ouviu-se um clique. - Como estás, Judson?

- Bem, senhor Crane. Tenho algumas informações acerca do aço para a ponte da Malásia.

- Conta.

- As Indústrias Pesadas Mitsubishi fornecem-lhe o aço por menos seis milhões, mas há um problema. Querem que utilize a frota mercante deles, o que fará elevar o preço de custo em cerca de oitocentos mil.

- Isso é só tirar de um bolso para meter no outro - observou Judd. - Tens alguma outra sugestão?

- O senhor está em Hong Kong - disse Judson. - Veja se consegue arranjar um encontro com S. Yuan Ling. Ele é dono da maior frota comercial do mundo. E a maior parte dos barcos dele foram construídos pela Mitsubishi. Pode poupar-lhe umas massas.

- A última vez que ouvi falar dele - disse Judd - estava no México a tratar da questão do petroleiro com a Pemex.

- Já voltou para Hong Kong - fez notar Judson.

- Está bem, vou tentar essa via - disse Judd. - Mais alguma coisa?

- Pelo meu lado, é só - respondeu Judson.

- Então, até breve - volveu Judd. Virou-se para Li Chuan.

- Põe-te em contacto com S. Yuan Ling e informa-o de que quero encontrar-me com ele esta tarde.

- Ele só trabalha de manhã - disse Li Chuan. - Almoça no iate, nada durante uma hora e depois dorme até ao jantar.

- Tanto se me dá que ele fique uma hora sentado na sanita. Dizes-lhe que quero vê-lo.

- Sim, senhor - respondeu Li Chuan. - Então o melhor é ir imediatamente à cidade.

- Acho que sim - disse Judd.

- E quanto ao negócio dos produtos farmacêuticos? - inquiriu Li Chuan quando já ia a sair.

Apesar da impassibilidade que era comum ao seu rosto de oriental, parecia ansioso.

- Já sabes qual é a minha decisão. Se está dependente dos Quaaludes, nada feito.

- Os Quaaludes estão onde há dinheiro.

- Talvez isso seja verdade no que diz respeito a eles - observou Judd -, mas não se passa, porém, o mesmo connosco. No entanto, podes dizer-lhes que triplico a oferta pelo Inter-feron.

- Assim farei - anuiu Li Chuan. - Telefono-lhe da cidade assim que conseguir contactar com S. Yuan Ling.

- Obrigado - disse Judd.

Ficou a ver o asiático afastar-se e, em seguida, chamou Merlin.

Fast Eddie entrou na cabina antes de Merlin chegar.

- Precisa de animar um pouco, patrão? Judd concordou.

- Boa ideia.

- Coca-Cola com o respectivo complemento?

- Isso mesmo.

O copo com a Coca-Cola já estava sobre a mesa quando Merlin entrou na sala. Este aguardou que Judd deitasse uma colher de cocaína na bebida e a engolisse de um trago.

- Era assim que se fazia em Atlanta, no princípio. Merlin concordou. Já ouvira falar muitas vezes no caso.

A cafeína substituíra a cocaína por volta de 1903... ou teria sido em 1912... altura em que fora publicada a Lei dos Alimentos e Drogas.

Judd fitou-o.

- Manda-me um telex à Segurança a pedir mais dados sobre a doutora Ivancich. Pergunta-lhes por que motivo não fui informado de que a doutora passou um ano com Mão Tsé-tung antes de este morrer. Eles que também investiguem Li Chuan. Tenho a impressão de que ele é capaz de estar a querer fazer o negócio dos Quaaludes para proveito próprio.

Merlin olhou para Judd.

- Sim, senhor. Mais alguma coisa? Judd abanou a cabeça negativamente.

- Agora vou dormir um pouco. Acorda-me assim que Li Chuan telefonar a dizer quando é o encontro com o senhor Ling.

 

A vendedora francesa mirou-as com ar superior e

dirigiu-se -lhes adoptando uma entoação snobe.

- Temos de posse das últimas revistas publicadas: L'Offi-ciel. Vogue francesa e outras. Podemos fornecer-lhe tudo aquilo que escolher entre os modelos apresentados em doze horas.

Sofia respondeu à rapariga em francês. Esta acenou afirmativamente com a cabeça e, fazendo-lhes sinal para que se sentassem, afastou-se.

- Que foi que lhe pediu? - quis saber Ginny.

- Disse-lhe que não estávamos interessadas em haute cou-ture'. Que tinha de ser tudo prêt à porter2 porque só ficávamos três horas em Hong Kong.

A vendedora regressou logo a seguir, acompanhada de uma outra mulher que parecia ser a gerente da casa.

- Em quê, exactamente, é que podemos servir a madame! Sofia respondeu em inglês.

- Quero dois fatos saia-casaco simples, um em lã e outro num material mais leve. Três vestidos para a tarde, um de cocktail, preto, e outro comprido, também preto. Acessórios a condizer, assim como sapatos. Três saias, uma branca, outra bege e outra preta, Seis camiseiros em várias cores. Dois pares de calças compridas, uma em azul-marinho e outra em preto. Três pares de jeans.

- Sim, madame - disse a gerente respeitosamente.

- Importa-se de me acompanhar até à sala de provas? Um momento mais tarde, Sofia encontrava-se num espaçoso

salão de provas. Ginny sentou-se numa cadeira, enquanto Sofia se despia. A gerente franziu o nariz de desagrado quando viu que a roupa interior de Sofia era de algodão.

- Talvez a madame deseje algumas peças da nossa linge-rie, não? - sugeriu. - Temos o que de mais recente foi fabricado no género em França e na América. Em seda e nylon.

 

' Em francês no original: alta costura. (N. do E.)

' Em francês no original: pronto-a-vestir. (N. do E.)

 

Sofia sorriu.

- Obrigada, madame. Talvez não seja má ideia levar também uma colecção de ambos os géneros.

A gerente aproximou-se de Sofia com uma fita métrica e esta tirou o soutien e as calcinhas. A vendedora registou as medidas com ares de profissional. Pouco depois saía, deixando as duas mulheres sozinhas.

Ginny fitou Sofia.

- Já lho disse antes, mas olhe que ninguém adivinharia o corpo fantástico que tem, a julgar pelas roupas que veste.

- Obrigada - respondeu Sofia.

- Não admira que o senhor Crane lhe queira comprar um novo guarda-roupa.

Sofia sorriu.

- Pensei que ele o fazia a todas as namoradas. Ginny soltou uma risada.

- Nem a todas. Mas é a primeira vez que o faz ao seu médico pessoal.

Sofia contemplou a imagem do seu corpo reflectida no espelho alto. Reparou que, atrás de si, Ginny se levantava.

- Já fez alguma operação de cirurgia plástica aos seios? - perguntou Ginny.

Ela fitou a rapariga nos olhos.

- Nunca.

- Não posso acreditar - exclamou Ginny. - São absolutamente perfeitos.

Sofia continuava a observá-la através do espelho.

- Se não acredita, pode verificar por si.

Ginny hesitou um momento e, em seguida, rodeou Sofia com os braços, por trás, envolvendo-lhe os seios com as mãos. Sofia fitou-a pelo espelho. As mãos da hospedeira estavam quase quentes; Sofia sentiu os mamilos começarem a enrijecer.

- Agora já acredita em mim? - perguntou.

Lenta e relutantemente, Ginny retirou as mãos. Os olhos de ambas continuavam presos uns nos outros, através do espelho. Ginny sussurrou com voz rouca:

- Sim.

Pouco depois, a porta da sala de provas abriu-se. Ginny voltou para a sua cadeira, ao mesmo tempo que várias raparigas entravam com pilhas de roupas nos braços.

Na ponta mais afastada da ilha, o sol estava quente e o ar carregado de humidade acima da superfície da água. Li Chuan e Judd seguiam sentados ao lado do marinheiro que conduzia o Riva de mogno. Li Chuan apontou para um iate a motor que vogava a cerca de meia milha de distância deles.

- O barco é aquele. Está sempre na Repulsa Bay.

- Podemos subir a bordo? - perguntou Judd.

- Não, segundo o horário dele, neste momento esta a nadar - replicou Li Chuan. - Ele disse que o encontro mais rápido que lhe podia marcar consigo seria para daqui a três dias.

A voz de Judd soou com decisão.

- Vamos falar com ele imediatamente. Abranda para dois nós e vê se o descobres.

Os poderosos motores abrandaram até ficarem a emitir apenas um sussurro. O Riva começou a fazer um círculo largo. Dez minutos depois avistavam uma bóia amarela a flutuar na agua e, mais à frente, três cabeças negras.

Judd começou a despir as roupas.

- Aproxima-te o mais que puderes deles, mas mantém uma certa margem de segurança.

Quando o Riva ficou a vinte metros dos banhistas, ele tirou os sapatos e as meias. Passou por sobre o pára-brisas e ficou de pé em cima da proa da embarcação. Acenou com os braços. As cabeças negras que se viam na água viraram-se para ele, transformando-se, de repente, em rostos.

- Pára os motores - ordenou Judd.

Judd encontrava-se agora nu, com excepção dos slips. Viu um dos homens que se encontrava na água erguer uma metralhadora Uzi envolvida num plástico à prova de água, que rasgou com gestos eficientes.

Judd mergulhou na água e emergiu ao lado do indivíduo.

- Tenha cuidado com esse brinquedo - avisou -, caso contrário acabamos todos feitos aos bocados aqui na água.

Outro homem, que se encontrava perto, perguntou:

- Que quer de nós

- Chamo-me Judd Crane - respondeu, mantendo-se a flutuar na água.

O homem mirou-o.

- O seu empregado não lhe disse que lhe marquei um encontro para daqui a três dias?

- Sim - confirmou Judd -, mas pensei que era melhor encontrarmo-nos imediatamente.

- Aqui? No rio?

- É um sítio tão bom como outro qualquer.

- Devo dizer que esta situação é altamente irregular. - Um pequeno sorriso surgiu no rosto do indivíduo. - Tem o hábito de adoptar este sistema para as suas reuniões?

- Nem sempre - respondeu Judd. - Mas também nem sempre os negócios me oferecem a oportunidade de conhecer homens como S. Yuan Ling.

Ling soltou uma risada.

- E mais jovem do que eu supunha, senhor Crane.

- Obrigado - exclamou Judd. - Pode ouvir-me?

- Isso faz-me lembrar um provérbio chinês - disse Ling. - “O ouvido surdo é aquele que não ouve a oportunidade."

Judd aproximou-se mais dele e ambos ficaram a flutuar na água, virados um para o outro.

- Tenho uma informação segundo a qual o senhor fez um depósito de vinte milhões de dólares destinados a pagarem os seis navios que a Mitsubishi está a construir para si. E também que os primeiros três vão à experiência na próxima Primavera.

- É verdade - anuiu Ling.

- Essa informação também refere que a Mitsubishi planeia enviar o aço da ponte que vou construir na Malásia por esses navios, na respectiva viagem de experiência que vão efectuar. Depois disso, os barcos ser-lhe-ão entregues, pagando-lhes o senhor para tanto a quantia que ficou estipulada.

O chinês permaneceu em silêncio por momentos.

- Quanto é que eles estão a pensar cobrar-lhe pelo transporte do aço?

- Oitocentos mil dólares. Ling acenou com a cabeça.

- Muito espertos, esses japoneses. Judd fez um sinal de concordância.

- Muito espertos, na verdade.

- Concordaria em pagar quatrocentos mil dólares pelo serviço?

- Sim - respondeu Judd.

- Então, está combinado. - O chinês ergueu uma das mãos. - Posso convidá-lo para almoçar comigo a bordo do meu iate?

- Peço que me desculpe - disse Judd -, mas já estou atrasado para outros compromissos. Se não se importa, deixarei essa honra para outra oportunidade.

- Com certeza - replicou o chinês. - Ficará para outra oportunidade.

Judd nadou de regresso ao Riva. O marinheiro estendeu-lhe uma das mãos para o ajudar a subir para bordo. Judd virou-se então para o chinês, que continuava a nadar, e acenou-lhe com a mão. Em seguida voltou-se para o marinheiro.

- Vamos.

O Riva retrocedeu lentamente, afastando-se dos nadadores e lançando-se depois num círculo largo. O homem do leme pôs o motor no máximo e a embarcação precipitou-se velozmente em direcção a terra.

 

A limusina parou ao lado do avião. Sofia e Ginny saíram de dentro desta.

- Farei com que lhe enviem todas as compras para a sua cabina - disse Ginny.

- Obrigada - agradeceu Sofia, sorrindo. Levou a mão ao cabelo, ao mesmo tempo que se lhe notava um pequeno sinal de nervosismo na voz. - Acha que ele vai gostar do meu aspecto?

Ginny sorriu.

- Se assim não for é porque enlouqueceu.

- Foi a primeira vez, em cinco anos, que fui a um salão de beleza - disse Sofia. - Mal me reconheci ao espelho.

- Está com óptimo aspecto - afirmou Ginny. - Deixe de se preocupar.

- Custou uma fortuna.

- Não para ele - disse Ginny. - Agora vá andando. Depois levo-lhe as roupas a fim de poder vestir uma das peças novas. Ele vai cair para o lado.

Li Chuan estava na sala quando Sofia entrou. Inclinou-se ligeiramente diante desta.

- As suas compras correram bem, senhora doutora?

- Optimamente, obrigada - respondeu Sofia. - O senhor Crane encontra-se a bordo?

- Está na sua cabina a receber uma massagem - informou ele. Estendeu a mão para Sofia. - Foi um prazer conhecê-la, senhora doutora.

- Já está de saída? - perguntou ela.

- Sim - respondeu ele -, tenho de voltar para o escritório e o avião parte para os Estados Unidos às oito horas.

Sofia consultou o relógio. Eram sete horas.

- Falta uma hora - observou, admirada. Ele anuiu.

- O senhor Crane disse ao capitão para esperar pelo seu regresso.

Fez uma pequena pausa; quando voltou a falar, fê-lo em chinês.

- Não lhe referi que já nos conhecíamos. Ela fitou-o. O seu olhar continuava impávido.

- Obrigada, camarada - replicou Sofia, também em chinês.

Li Chuan falou rapidamente.

- Creio que ele ficaria mais confiante se lhe falasse do seu trabalho com Mao, em vez de o vir a saber através dos seus serviços de segurança.

Sofia esboçou um sinal de concordância.

- Também lhe agradecia que me transmitisse todos os comentários que ele fizer relativamente ao negócio dos produtos farmacêuticos.

- Sim, camarada.

Li Chuan retomou o inglês.

- Espero que nos voltemos a encontrar, senhora doutora.

- Também o espero, senhor Li Chuan - disse ela, também em inglês. - E mais uma vez, obrigada.

Ficou a vê-lo sair da sala, altura em que Ginny entrava, acompanhada por dois carregadores que transportavam os embrulhos das compras.

O telefone que tinha ao lado tocou. Sofia carregou no botão do reóstato para diminuir a intensidade da luz.

- Sim - respondeu com voz rouca.

- Desculpa - disse Judd com suavidade. - Não quis acordar-te.

- Não tem importância - respondeu Sofia. - Nunca supus que fazer compras fosse tão cansativo.

- Foi divertido?

- Sim, para minha grande surpresa - disse ela. - A propósito, obrigada por todas aquelas coisas bonitas.

- O prazer foi todo meu.

- A massagem foi boa? - perguntou ela. Ele pareceu hesitar.

- Sim. Gostarias de levar uma?

Ela apercebeu-se do zumbido dos jactos e espreitou rapidamente pela janela. As estrelas brilhavam no firmamento escuro.

- Não me digas que também tens uma massagista a bordo...

Ele soltou uma risada.

- Uma não, duas. E são extremamente eficientes. Vão só até Honolulu e depois voltam para Hong Kong.

Sofia ficou calada.

- Podes pensar nessa hipótese mais tarde - disse Judd. - Telefonei-te para te pedir que me faças companhia ao jantar.

Ela olhou de relance para o relógio azul de onde emanava uma luminosidade azul.

- São dez e meia.

- Não tenho pressa - observou ele. - Eu espero.

Ela ouviu o telefone desligar do outro lado antes de poder responder. Sentou-se lentamente, voltou a pegar no telefone e premiu no botão de serviço.

Quem atendeu foi Ginny.

- Sim, doutora?

- Pode trazer-me uma chávena de café forte, por favor? - perguntou.

- Com certeza, senhora doutora - respondeu Ginny. - Estarei aí dentro de um minuto.

Sofia levantou-se da cama e foi para o chuveiro. Alguns minutos mais tarde estava de volta à sua cabina, enrolada numa toalha. A hospedeira já ali se encontrava à sua espera.

O café estava quente, espesso e forte.

- Que bom - exclamou Sofia, deliciada. Ginny não se moveu.

Sofia olhou para ela.

- Algum problema?

A voz da hospedeira apresentava uma entoação dura, tensa.

- Vai ter com ele lá acima, não vai?

- Claro que vou - anuiu Sofia,

Os olhos de Ginny encheram-se de lágrimas.

- Por favor, não vá. Não esta noite, não depois de termos passado um dia tão lindo uma com a outra.

- Ginny - exclamou Sofia docemente, compreendendo. - Criança.

- Por favor. - Ginny parecia quase implorar. - Não quero que ele a use como faz a todas as outras. Amo-a.

- Já alguma vez...

- Não temos outro remédio - interrompeu-a Ginny. - Ele compra e possui todas nós.

Sofia fitou-a, atraindo-a em seguida a si. A voz de Ginny soou abafada, de encontro ao seu ombro.

- Mas a doutora não é obrigada a aceder aos desejos dele. Ele não é o seu dono.

- Criança, criança - sussurrou Sofia. - Não compreende. Todas as pessoas, sim, todas as pessoas pertencem a algo ou a alguém.

Ginny ergueu os olhos para ela.

- Quer dizer que não está apaixonada por ele?

- Não - respondeu Sofia -, não estou apaixonada por

ele.

- Mas irá ter com ele?

- Sim - admitiu ela.

- Odeio-o! - exclamou Ginny raivosamente. Sofia permaneceu em silêncio.

- Ama-me? - perguntou Ginny. Sofia fitou-a directamente nos olhos.

- Talvez, com o tempo.

O sol, que entrava a rodos pela janela, fazia-lhe arder os olhos. Cerrando as pálpebras, conseguiu que o efeito diminuísse. A cabeça doía-lhe terrivelmente, mas fez um esforço e abriu de novo os olhos. Sentou-se. Encontrava-se na sua própria cabina. Inspirou profundamente.

Era bastante estranho. Não se recordava de ter descido as escadas.

Rolou para fora da cama e dirigiu-se ao quarto de banho. Engoliu rapidamente duas aspirinas e um Valium. Inalou o ar profundamente e entrou no chuveiro, abrindo a água ao máximo de modo a sair inicialmente um jacto gelado, depois quente, e de novo gelado. A cabeça começou a ficar-lhe um pouco mais desanuviada.

Saiu de debaixo do chuveiro e estendeu a mão para a toalha de banho, estacando subitamente com o que se lhe deparou no espelho alto. Viu que tinha o corpo nu completamente cheio de nódoas negras desde a zona do peito à do ventre e das ancas. Olhou para si, mal podendo acreditar no que os seus olhos viam. O seu púbis fora completamente rapado e o monte-de-vénus mostrava-se inchado e o clitóris sobressaía, dorido e vermelho, cor de lava, por entre os grandes lábios.

Sofia respirou fundo e virou-se para observar as costas. Estas e as nádegas estavam cobertas de marcas delgadas e vermelhas provocadas por pequenas vergastadas. Tocou, hesitante, nas partes magoadas. Não lhe doíam. Passou novamente os dedos pelas nádegas e apalpou os seios. Continuava a não sentir dor.

Enrolou-se lentamente na toalha e voltou à cabina. Sentou-se na cama, tentando recordar-se do que acontecera na noite anterior. Mas nada lhe ocorreu.

Pegou no telefone e ligou para o serviço. Raoul, o comissário-chefe, atendeu.

- Sim, senhora doutora?

- A que horas está previsto aterrarmos em Honolulu? A voz de Raoul manteve-se impassiva.

- Deixámos Honolulu há três horas, senhora doutora. Sofia hesitou um momento.

- É capaz de pedir a Ginny que me traga uma chávena de café forte?

- Lamento, senhora doutora - respondeu o comissário, sem expressão -, mas Ginny ficou em Honolulu. Eu mesmo lhe levarei o café.

De repente fez-se luz no espírito de Sofia. Precisamente quando pousou o telefone. Parecia ter sido um pesadelo. As pequenas chinesas iguais como duas ervilhas da mesma vagem. Gémeas idênticas. Nuas e fazendo rolar nas palmas das mãos uma pequena bola de ópio do tamanho de um comprimido, acendendo o cachimbo e segurando com as mãos delicadas na haste deste, de modo a introduzirem-lho na boca.

Em seguida as adoráveis nuvens e a neblina prateada que a envolveram. Flutuando dentro do seu corpo e depois sentindo no exterior a beleza deste quando as raparigas lhe tocaram, sentindo o amor em todas as suas terminações nervosas. Em seguida o orgasmo, que explodira num milhão de minúsculos fragmentos, dissolvendo-lhe o corpo no negrume da noite.

O negrume fora dissipado pela dor. Ela combatera a noite para recuperar a consciência. Depois a dor voltara de novo. Abrira os olhos e vira o rosto de Ginny contorcido pela raiva e pelo ódio, rasgando-a com os dentes. Depois as finas tiras do chicote. Gritara e gritara e gritara.

Nesse momento a porta abrira-se violentamente. Ginny desaparecera de repente. Judd olhava para ela. Sofia tentou falar, mas não emitiu qualquer som.

Foi a voz dele que Sofia, finalmente, ouviu.

- Saco de gelo, procaína e pomada ACTH. Grande quantidade. Duas syrettes de Demerol.

- Dor - disse ela. - Dor.

- Desaparecerá num instante - sossegou-a ele. A seguir fora a escuridão.

Bateram à porta.

- Entre - disse Sofia. Judd espreitou.

- Posso?

Ela fez-lhe sinal para que entrasse.

Judd afastou-se para o lado a fim de deixar passar a hospedeira, que foi colocar o tabuleiro com a chávena de café sobre a pequena mesa-de-cabeceira. Aguardou que esta se retirasse.

- Como te sentes?

- Dorida - respondeu Sofia. Bebeu um gole de café. - Talvez sejas melhor médico do que eu. Não cheguei a aperceber-me do que estava a acontecer.

- O ópio arrumou contigo - disse Judd. - Estavas a dormir quando te trouxemos aqui para a cabina.

- Obrigada - disse Sofia. - Podia ter sido morta.

- A rapariga era completamente louca - proferiu ele. - Nenhum de nós o teria podido adivinhar. Isso só aconteceu quando arrombámos a porta e vimos o que ela estava a fazer.

Sofia fitou-o

- Lamento muito o que aconteceu. Não queria arranjar-vos problemas.

- Não tiveste a culpa - disse ele. - De qualquer modo, fico contente por ver que estás bem.

Ela permaneceu silenciosa por um momento.

- Mais uma vez, obrigada.

- Daqui a quatro horas chegamos a São Francisco - disse Judd. - Porque não dormes até lá? Conheço um médico naquela cidade que te fará desaparecer essas marcas em menos de um dia.

 

O helicóptero que os transportou do aeroporto de São Francisco a Crane City largou-os exactamente às onze da manhã. Eram aguardados por dois automóveis.

Ao descerem do helicóptero, foram recebidos por vários homens.

Um deles, um indivíduo alto, ar distinto e cabelos salteados de fios grisalhos, estendeu a mão a Judd.

- Judd, como estás? Este retribuiu-lhe o gesto.

- Olá, Jim. Obrigado por acorreres tão prontamente à nossa chamada.

Virou-se para Sofia.

- Sofia, apresento-te o doutor Marlowe, o brigadeiro-ge-neral Marlowe, reformado, outrora responsável pelo Centro de Queimaduras e Afecções da Epiderme, no Hospital da NASA, em Houston. Jim, esta é a doutora Sofia Ivancich.

Os dois médicos apertaram as mãos.

- Como se sente, doutora? - perguntou Jim.

- Magoada - respondeu Sofia. - Mas creio que não passam de pequenas contusões superficiais.

Jim sorriu.

- Veremos do que se trata. Vou levá-la para a clínica. Sofia virou-se para Judd, olhando-o com ar interrogativo. Este sorriu-lhe tranquilizadoramente.

- Estarei no meu escritório. Assim que Jim cuidar de ti, trazer-te-á de volta.

Judd ficou a ver o automóvel do Dr. Marlowe afastar-se. Fast Eddie e Merlin entraram, juntamente com ele, no outro carro.

Depois de erguer o vidro que separava o motorista dos passageiros, fitou Merlin.

- Por que razão o relatório psicomédico de Ginny não referia a psicose latente de que esta sofria?

- Ninguém sabe - respondeu Merlin. - Os testes estão a ser novamente examinados.

- Quero que procedam a uma revisão geral de todos os testes e processos. Basta uma pessoa louca como aquela para nos fazer rebentar a todos lá em cima no ar.

Merlin sabia que não devia responder. A raiva de Judd nunca era aparente à superfície, mas não deixava de ser mortífera. Não tolerava erros.

Judd mudou de assunto.

- Informaram Judson do negócio feito com S. Yuan Ling?

- Sim. Ficou muito satisfeito. Também me pediu que lhe dissesse que está a repensar o projecto da construção da ponte no que se refere à mão-de-obra, e calcula que isso poderá poupar-lhe mais um milhão de dólares.

- Óptimo - concordou Judd. - Barbara vai encontrar-se comigo no escritório?

- Sim, senhor.

Judd acenou com a cabeça e recostou-se no assento, baixando a divisória de vidro que dava para os lugares da frente. Deu um estalo com os dedos. Fast Eddie olhou para trás. Sabia o que desejavam dele.

O pequeno frasco dourado e a respectiva colher passaram para Judd. Este pegou em ambos e virou-se para o lado. Sentiu-se logo outro quando as duas inalações de cocaína o atingiram. Acenou afirmativamente com a cabeça e devolveu os objectos a Fast Eddie.

Beijou Barbara no rosto.

- Estás muito bonita. Ela sorriu.

- Lisonjeador. Tenho sessenta anos.

- No teu lugar não o dizia a ninguém - observou Judd. - Passas muito bem só por quarenta.

- Obrigada - disse ela. - Pareces cansado.

- E estou - disse Judd. - Mas depressa me passará. Vou fazer um fim-de-semana prolongado em Boca Raton.

- Devias atribuir-me um título dentro da corporação - observou ela.

- E só dizeres qual é. Barbara riu.

- O de madrinha. - Voltou a assumir uma expressão séria. - Estou preocupada contigo.

- Tudo correrá bem - disse ele.

- Espero que a médica que trouxeste da Jugoslávia te faça, ao menos, algum bem - observou ela. E que não volte a meter-se em brincadeiras com taradas.

Ele mostrou-se surpreendido.

- Que sabes tu acerca desse assunto?

- Já te disse que sou a madrinha. - Fez uma pausa. - Vi o telex que enviaste para a clínica.

Judd abanou a cabeça, aborrecido.

- Merda.

- Não te zangues - pediu ela. - Não te esqueças de que tens uma família muito unida.

- Estou a começar a compreendê-lo - disse Judd. - No tempo do meu pai era o mesmo.

- Pior - observou Barbara. - Tu ainda passas mais tempo fora do que ele.

Judd virou-se para a janela. A hora do almoço aproximava-se e os escritórios começavam a ficar vazios. Voltou-se de novo para Barbara.

- Jack Maloney contou-me que a NASA não nos está a dar colaboração absolutamente nenhuma. Hughes tem os próximos seis satélites bem presos.

- É verdade - disse ela. - Falei com o general Stryker, que trabalha para Hughes. É um velho amigo meu. Confirmou-me que os têm bem agarrados.

- Neste momento pretendo apenas dois dos seis.

- Não deves ter sorte nenhuma. Judd reflectiu por momentos.

- Os semicondutores direccionais do Hughes são fornecidos por nós, não são?

- Sim - anuiu Barbara.

- Já foram expedidos por via marítima?

- Não sei - respondeu ela. - Qual é a tua ideia?

- Se o Hughes não tiver os semicondutores, os satélites não sobem. Certo?

- Não percebo nada de engenharia - observou Barbara. Judd chamou Merlin ao seu gabinete.

- Telefona para o departamento comercial de Hughes e informa-os de que não lhes mandamos os semicondutores. Diz-lhes que ainda não estão prontos e que nem sabemos quando o estarão.

- Isso vai custar-lhe uma indemnização de quarenta milhões - advertiu Merlin.

- Que se lixem! - exclamou ele.

- O patrão é o senhor - disse Merlin, saindo do gabinete. Judd virou-se para Barbara.

- Agora tens uma oportunidade para brincares um pouco às madrinhas. Telefonas ao teu amigo general Stryker e dizes-lhe que o teu relacionamento comigo te permitirá expedir os tais semicondutores se eles deixarem dois satélites para mim.

- Isso é chantagem - disse Barbara.

- Exactamente - respondeu Judd. Ela riu-se.

- Adoro!

Ia a sair do gabinete quando se virou novamente para trás.

- Conheço a organização Hughes. O processo deve levar algum tempo. Tudo passa pelos canais respectivos.

- Eu tenho imenso tempo - disse Judd. - Eles é que têm pressa.

- Terei oportunidade de conhecer a tua médica?

- Ao jantar - respondeu ele.

- Óptimo - disse Barbara, saindo da sala.

- Não sabia que a tua madrasta era casada com o doutor Marlowe - comentou Sofia quando Fast Eddie abriu a porta do apartamento que Judd tinha permanentemente reservado no Mark Hopknis.

- Já lá vão seis anos - disse Judd, entrando atrás dela na suite.

- É uma mulher jovem - observou ela. Judd esboçou um sinal de concordância.

- E o doutor Marlowe é um génio. Nunca ouvi falar de semelhante técnica. Há coisas, na medicina americana, que estão anos-luz à nossa frente.

- Que foi que ele fez?

- Injecções de dispersão subcutânea de uma mistura de ACTH, procaína e colagéneo antialérgico. O toque dele é tão suave que nem o senti.

- É muito eficiente - observou Judd. - A NASA não o queria deixar vir embora, mas ele atingiu agora os setenta e decidiu que já chegava de trabalho e reformou-se.

- Eles têm uma bela casa em Nob Hill, não é assim que lhe chamam? Já a têm há muito tempo?

- Já. É da família há muitas gerações - disse Judd. - Ele é daqui.

- A tua mãe deve ser uma mulher feliz.

- E é - concordou Judd.

Conduziu-a ao quarto. Ao fundo do aposento, mesmo defronte de uma enorme janela oval que ia do chão ao tecto, via-se uma piscina oval. Judd carregou num botão e a água começou a jorrar. Olhou para Sofia.

- A temperatura da água está boa para ti? - perguntou-lhe.

- Se não estiver demasiado quente - respondeu ela.

- Oitenta e oito graus Fahrenheit, está bem?

- Penso que sim.

- Então vamos tomar banho - disse ele.

Entrou na piscina antes dela. Virou-se para a olhar, vendo-a aproximar-se, nua.

- Ele é mesmo bom - comentou Judd. - Já quase não se nota nada.

- Disse-me que amanhã já não restarão quaisquer vestígios. - Meteu cuidadosamente o pé dentro de água. - Está óptima.

Judd estendeu a mão para a ajudar. Ela reparou que ele sorria.

- Em que estás a pensar? - perguntou Sofia.

- Na tua coisinha - disse ele. - Parece a de um bebé.

- Não tem um aspecto cómico? Ele abanou a cabeça.

- Pelo contrário, até está muito excitante. Sobretudo a maneira como o clitóris espreita.

Ela fitou-o intensamente.

- Gostarias de o saborear antes de lhe passar água e sabão?

- Que pergunta mais idiota - replicou ele.

Sofia rodeou-lhe a cabeça com as mãos e depois afastou as pernas de modo a poder montar-lhe o rosto.

 

O Dr. Lee Sawyer, director do Centro de Pesquisas Médicas Crane em Boca Raton, Florida, era um homem de estatura mediana, quarentão, calvo, com olhos de um azul muito claro e a expressão lúgubre de um cão basset1. Encontrava-se sentado numa cadeira, ao lado da cama de hospital onde Judd estava deitado.

- Nunca pensei que levasse esta avante - disse. - Há quanto tempo não passava três dias seguidos no mesmo sítio?

Judd fitou-o.

- Não sei. Onde está Sofia?

- Ela quer acompanhar cada um dos seus testes - disse o Dr. Sawyer. - Arranjei-lhe uma suite perto da sua.

- Que pensa dela?

O Dr. Sawyer encolheu os ombros.

- Está a pedir muitas informações sobre si. E eu, honestamente, não compreendo para que precisa ela de tudo aquilo. - Baixou os olhos para a folha de papel que tinha nas mãos. - Segundo o que aqui vem indicado, no primeiro dia tem de se sujeitar a seis contagens e análises de esperma, metade das quais será examinada aqui, e a outra metade congelada e enviada para a Jugoslávia. Ainda por cima todas elas têm de ser feitas com quatro horas de intervalo.

- Isso significa que tenho de ter ejaculações?

- Não conheço nenhum outro processo - respondeu o médico. - E mais, temos de lhe espremer a próstata de cada vez que isso acontecer, a fim de deixarmos os testículos bem vazios.

Judd ficou a olhar para ele.

- Não sei o que fez àquela senhora - continuou o Dr. Sawyer -, mas o certo é que a deve ter convencido de que é uma espécie de Tarzan.

 

' Cão de caça de pernas curtas usado para forçar as lebres a saírem dos buracos em que se abrigam. (N. do E.)

 

- Que outras coisas tenho de fazer, segundo a lista que aí tem? - perguntou Judd.

- Um exame CAT completo, análise através de sonar e raios X a todos os órgãos vitais, amostras desses mesmos órgãos obtidas através de biópsias, vinte e quatro análises ao sangue, estudo da capacidade de retenção de oxigénio, dos níveis de monóxido de carbono e nitrogénio, amostras de pele, cabelo, unhas de ambas as mãos e pés. Ainda há mais, quer que continue a ler?

- Já fiquei cansado - disse Judd. - Ela não lhe deu nenhuma ideia relativamente às razões que a levam a fazer todos estes exames?

- Apenas me disse que a doutora Zabiski os pediu.

- Já descobriu mais alguma coisa acerca dos testes sobre as células auto-regenerativas nos humanos? - perguntou Judd.

- Ainda não - respondeu o Dr. Sawyer.

Nesse momento, Sofia entrou no quarto. A bata branca fazia-a parecer diferente.

- Como te sentes? - perguntou a Judd.

- Bem - respondeu este. - Explica-me uma coisa, já alguma vez fizeste estes exames a alguém?

- Sim, uma vez - respondeu Sofia. - Normalmente é a doutora Zabiski que os supervisiona a todos na clínica, mas tu foste a segunda pessoa a quem ela permitiu desfrutar desta possibilidade. A primeira foi Mao Tsé-tung.

Judd fitou-a.

- Também trabalhaste para ele?

- Fiquei junto deste durante um ano, até à sua morte. Ele fez questão em se submeter a todo o processo, apesar de a doutora Zabiski o ter avisado de que não era o candidato mais adequado para se sujeitar aos seus tratamentos.

- Então, que fizeste por ele?

- A doutora Zabiski enviava-lhe um fornecimento semanal por avião. Era um soro que eu lhe injectava por via intravenosa, duas vezes por dia, de manhã e à noite.

- De que espécie de soro se tratava? - inquiriu Judd.

- Não sei - respondeu Sofia. - Só a própria doutora Zabiski é que sabia. Até se fizeram análises laboratoriais para tentar separar os elementos componentes. Os Chineses nunca conseguiram descobrir do que se tratava.

- Parece difícil de acreditar - comentou o Dr. Sawyer.

- Não houve exames que não se experimentassem. Espec-trométricos, eléctricos, radiológicos, químicos. Nenhum deles resultou. Pode acreditar, a doutora Zabiski é a única pessoa que está de posse do segredo. Provavelmente possui um sistema próprio para contrariar qualquer tentativa de análise do soro.

- Não me agrada nada - observou o Dr. Sawyer. - Virou-se para Judd. - Quem raio sabe o que ela lhe poderá injectar? Não temos forma de saber se não será alguma coisa capaz de o matar.

Sofia fitou o médico.

- Conheço a doutora Zabiski muito bem. O único objectivo que tem em relação à vida é o de prolongá-la. Esse é o seu sonho.

Judd olhou para o Dr. Sawyer.

- De momento estou apenas a fazer uma série de testes. Até ver não há nada neles que me possa prejudicar.

O médico anuiu.

- Então avancemos. Mais tarde se verá o resto. Sofia olhou para Judd.

- A primeira coisa que deves fazer é ter uma boa noite de sono. Começamos às seis da manhã.

- Mas ainda são só sete da tarde - exclamou Judd. - Nem sequer jantei.

- Mandei vir uma refeição ligeira - disse Sofia. - Às nove horas já deves estar a dormir.

Nesse momento, o telefone que se encontrava sobre a mesinha-de-cabeceira, tocou.

- Está? Era Barbara.

- Acabei de falar com o general Stryker. Ele diz que tem estado os últimos três dias ao telefone mas que, ainda assim, não conseguiu obter nenhuma resposta em relação ao problema dos satélites. Afirma que estamos prestes a atingir o limite de tempo. O primeiro lançamento será para o dia cinco de Abril. O contencioso deles já preparou um processo contra nós, que porá a andar se não fizermos a entrega.

- Por que razão não consegue ele obter uma resposta? - perguntou Judd.

- Somente duas pessoas podem aprovar a troca: Billy Gay ou o próprio Howard Hughes. Nenhum deles aparece. Hughes está em Ácapulco, mas não atende o telefone.

- Isso custa a acreditar - comentou Judd.

- É verdade - asseverou Barbara. - Stryker diz que há anos que ninguém fala directamente com Hughes. Todas as mensagens que se dirigem a ele passam pelo Gay ou pelos homens deste, que estão permanentemente com Hughes.

- Então temos de falar com Hughes pessoalmente - disse Judd. - Obrigada por telefonares. Depois direi alguma coisa.

- Boa sorte - desejou Barbara. - Beijos.

- Beijos - retribuiu Judd, pousando o telefone. Sentou-se na cama. - Tragam-me as minhas roupas. Desculpem, mas temos de adiar os testes por alguns dias.

Sofia fitou-o.

- Mas já está tudo preparado.

- Lamento muito - repetiu ele, saindo da cama. Virou-se para o Dr. Saywer. - Faça-me um favor, peça ao Merlin para cá vir imediatamente.

Merlin já se encontrava no quarto ainda antes de Judd ter tido tempo de abotoar a camisa.

- Sim, senhor?

- Liga para o avião e diz-lhes que partimos para Acapulco assim que eu chegar ao aeroporto. Depois fala com o general Martés, de México City, e avisa-o de que preciso de dezfedera-les da polícia secreta deles à espera do avião em Acapulco. Informa-o de que ele leva cem mil dólares e cada um dos homens mil. Diz-lhe também que quero saber em que parte de Acapulco Hughes está e que me façam um plano que possa furar qualquer esquema de segurança que rodeie Hughes. - Enfiou as meias e os sapatos. - Encontramo-nos daqui a dez minutos no carro.

Merlin saiu do quarto. Judd voltou-se para Sofia.

- Faz de conta que estás em tua casa. Daqui a menos de dois dias estou de volta.

Ela fitou-o.

- Nunca estive em Acapulco.

- Então, vem daí - disse-lhe ele.

- Mas, que devo levar para vestir? - perguntou ela. Judd riu-se.

- Em Acapulco, a única coisa de que precisas é de um biquini.

 

Quando o avião aterrou em Acapulco, um indivíduo jovem, de uniforme militar, subiu a bordo. Saudou Judd formalmente.

- Sou o coronel Ayala - anunciou em inglês.

- Eu sou Judd Crane - disse este, apertando a mão ao militar.

- Sou o ajudante do general Martés. Estou de posse de todas as informações que solicitou. - Apresentou um dossier. - Talvez seja mais simples explicar-lhe o que aí está, pois encontra-se escrito em espanhol, não acha?

- Obrigado, coronel - agradeceu Judd.

Levou o militar até ao pequeno aposento de reuniões da sala principal.

O militar apresentou os vários papéis.

O senor Hughes ocupa um andar inteiro no Acapulco Prin-cess. Aqui tem a planta, que permite ver a disposição das divisões. Como pode observar, o aposento do canto é o maior de todos e está virado para o mar, sendo nele que o senor Hughes se encontra. Ao lado fica uma sala mais pequena. Tem vários telefones, um telex, cadeiras e dois divãs. Também lá está um homem de vigia. A porta que dá para os aposentos do senor Hughes mantém-se sempre aberta. O andar tem mais quatro quartos, que são ocupados pelo pessoal do senor Hughes. Normalmente tem cinquenta pessoas no seu grupo, mas neste momento desconhece-se o seu número exacto. Sabemos que quatro deles estão ausentes do México, assim como o seu médico pessoal. Para dizer a verdade, aqui há uns dias o médico do hotel foi chamado por um dos homens do senor Hughes para o examinar. Depois disso ouvimos dizer que ele está muito doente e tinha de ser hospitalizado. Mas também sabemos que não se tomarão nenhumas iniciativas antes de o médico dele regressar amanhã.

Judd olhou para o militar.

- O médico emitiu alguma opinião sobre a natureza da doença de Hughes?

- Ignoramos o que o seu próprio médico mandou fazer.

Temos conhecimento de que lhe tiraram análises ao sangue. Mas nem sequer temos a certeza de que tenham verdadeiramente sido levadas a cabo.

- Os homens de Hughes andam armados?

- Alguns - informou o militar. - Não são guarda-costas profissionais, mas principalmente secretários e assistentes pessoais. À porta do elevador que dá para aquele andar está um guarda profissional, mas é um mexicano da segurança do hotel e não muito competente.

Judd analisou a planta.

- Acha que nos outros quartos se pode ouvir o barulho que se fizer no do senhor Hughes?

- Depende do barulho - observou o militar.

- Nenhum que seja produzido por armas, apenas o de vozes a falarem baixo.

- Penso que não deve haver problema - disse o militar. - Se subirmos pelo elevador de carga, evitando o vestíbulo, poderemos escapar à vigilância do guarda porque este está sempre atento aos passageiros que vêm pelos elevadores normais. Depois o elemento surpresa poderia subjugar qualquer das outras pessoas que pudessem dirigir-se para a suite dele.

Judd olhou atentamente para a planta.

- Não quero ninguém ferido - disse. - Pretendo, muito simplesmente, falar com o senhor Hughes, nada mais.

- Compreendo, senor - disse o militar. - Vem sozinho connosco?

Judd reflectiu por um momento. Em seguida virou-se para Sofia.

- Importas-te de vir connosco? Se ele está doente pode precisar de ajuda.

- Sim, claro - respondeu Sofia. Judd virou-se para o militar.

Esta senhora é médica - disse. - Acompanhar-nos-á. O militar olhou para Judd com ar céptico, mas a sua voz soou respeitosamente quando respondeu.

- Como desejar, senor.

Do aeroporto ao hotel distavam oito quilómetros seguidos de mais um de estrada, esta particular, do hotel, que atravessava o campo de golfe e ia dar à entrada do edifício. Sofia, que ia sentada na parte de trás de um automóvel de quatro portas, olhou para Judd.

- Que bonito que este local é! - exclamou. - Gostaria de conhecê-lo melhor um dia.

Judd sorriu.

- Tenho um amigo que é dono de uma ilha aqui perto. Talvez possamos lá passar um fím-de-semana.

- Mas não desta vez - objectou ela. - Primeiro temos de regressar à clínica para fazeres os testes.

O coronel Ayala, que ia sentado ao lado do condutor, virou-se para eles, apoiando-se ao encosto do banco.

- Vamos dar a volta até chegarmos à entrada de serviço.

Judd concordou. Olhou pelo vidro da retaguarda. Os militares que os acompanhavam seguiam numa carrinha preta, toda fechada e sem janelas. As duas viaturas contornaram o edifício e detiveram-se no parque de estacionamento que dava para a entrada das traseiras. Todos saíram.

O coronel falou rapidamente com o porteiro que, em silêncio, lhes fez sinal para que avançassem. Atravessaram o corredor da cave e pararam junto do elevador de carga. Uma mulher da limpeza estava a empurrar um carrinho de mão para dentro deste. O militar falou-lhe com rispidez e a mulher puxou nervosamente o carro cheio de roupa de cama para trás, deixando o elevador livre. Entraram todos nele e o militar carregou no último botão. A porta fechou-se

O coronel Ayala olhou para Judd e Sofia.

- Esperem no elevador até eu lhes dizer que podem sair. Judd anuiu. Olhou para o mostrador luminoso do elevador

que, por cima da porta, ia indicando os andares. Os números passavam lentamente. Parecia que tinha decorrido uma eternidade quando aquele que correspondia ao último andar se acendeu.

Alguns dos soldados precipitaram-se rapidamente para fora do elevador mal as portas deste se abriram. Segundos mais tarde seguiram-se outros. O coronel Ayala fez um gesto para os restantes elementos saírem. Carregou num botão para manter a porta do elevador aberta.

O guarda estava deitado no chão, de barriga para baixo e as mãos algemadas atrás das costas, em frente do elevador de passageiros que tinha por missão vigiar. O coronel Ayala falou-lhe suavemente. O homem indicou uma das portas com a cabeça, movendo os olhos com nervosismo.

O coronel Ayala começou a avançar lenta e cuidadosamente, de costas coladas à parede, até chegar junto da porta, para cuja maçaneta estendeu a mão. Esta rodou com facilidade e a porta abriu-se. Não estava fechada à chave. O militar penetrou silenciosamente na suite, seguido de Judd. Com a cabeça apoiada nos braços cruzados em cima de uma mesa a que estava sentado, via-se um homem profundamente adormecido.

O militar acercou-se do indivíduo e bateu-lhe com suavidade no ombro. O homem acordou assustado. Abriu desmesuradamente os olhos ao ver o cano do Colt 45 automático apontado para ele. Quis falar.

Judd adiantou-se rapidamente.

- Tenha calma. Ninguém o vai magoar. O homem virou-se para ele.

Judd tranquilizou-o.

- Não estamos aqui para ferir ninguém. - Fez uma pequena pausa. - Onde estão os outros?

O homem respirou fundo.

- Três deles encontram-se nos seus quartos a dormir. Os restantes foram até à cidade. Hoje passa um filme de língua inglesa.

Judd olhou na direcção do quarto de Hughes.

- Ele está ali dentro?

O homem acenou afirmativamente com a cabeça.

- Gostaria de falar com ele - disse Judd.

- Não pode ser - objectou o homem. - Ele está doente e a dormir.

- Acorde-o - ordenou Judd.

- Não posso fazê-lo - asseverou o homem. - Ele está completamente inconsciente. Penso que tomou alguns comprimidos.

- Então conduza-nos até lá dentro - ordenou Judd. - A senhora que está aqui é médica.

O homem olhou para Sofia por momentos, baixando em seguida o olhar para a maleta de médico que esta levava na mão. Levantou-se. Seguiram-no devagar até ao quarto.

Este encontrava-se quase completamente às escuras, com os cortinados bem corridos. A única luz que iluminava a divisão era a que provinha de um pequeno candeeiro pousado na mesi-nha-de-cabeceira. A alcatifa estava meticulosamente coberta, de ponta a ponta, por Kleenexes, que se alinhavam impecavelmente ao lado uns dos outros. No ar pairava um odor insuportável, que nem mesmo o ar condicionado conseguia disfarçar.

- Corram as cortinas e abram as janelas - ordenou Judd. - Temos de fazer desaparecer este cheiro horrível. E também façam-me sumir esses malditos lenços de papel. Só servem para aumentar a imundície.

- Não podemos! - exclamou o homem. - Está tudo selado. Rigorosamente trancado! E não temos autorização para apanhar os Kleenexes. Ele acredita que essa é a única forma de impedir que os micróbios o atinjam. São ordens do senhor Hughes.

- Então acenda mais algumas luzes - ordenou Judd.

O homem ligou um outro candeeiro que estava próximo da porta. Judd examinou o indivíduo que se encontrava estendido em cima da cama. Este jazia de lado, com a face apoiada numa almofada. Tinha os olhos fechados, a respiração através da boca aberta era difícil. A barba estava por fazer; o cabelo caía-lhe em longas e emaranhadas mechas grisalhas que quase lhe chegavam aos ombros.

Judd sentiu-se chocado, mal podendo acreditar no que os seus olhos viam.

- Senhor Hughes - sussurrou-lhe com voz branda. Hughes não se mexeu.

Judd voltou a chamá-lo, desta vez com voz mais alta.

- Ele não lhe vai responder - disse o empregado. - Já o informei de que está doente. Tem estado assim a maior parte da semana. Não conseguimos dar-lhe nada para comer.

Judd fez um gesto a Sofia.

- Dá-lhe uma vista de olhos.

Sofia aproximou-se da cama. Abriu a pasta e tirou o estetoscópio para fora. Auscultou-o durante alguns momentos, depois sentiu-lhe a pulsação.

- Ele está muito fraco - disse. Judd observa-a em silêncio.

Sofia levantou o lençol e lançou um olhar ao corpo de Hughes; deixou-o cair de novo. Inclinou-se sobre o rosto dele, erguendo-lhe uma das pálpebras por momentos. Por fim, endireitou-se.

- Este homem devia ser imediatamente levado para o hospital.

- Que é que ele tem? - perguntou Judd.

- Não tenho a certeza - respondeu ela -, mas creio que começa a mostrar sinais de envenenamento urémico.

- Como é que uma coisa dessas pode acontecer? - perguntou Judd.

- Olha - disse ela.

Judd colocou-se ao lado de Sofia. Esta ergueu o lençol.

- Está cheio de marcas de agulhas. Repara também no seu estado emaciado. Está completamente desidratado, os ossos quase que lhe furam a pele e tem uma ferida aberta na testa, como se um tumor lhe tivessem por acidente arrebentado.

- Poderá fazer alguma coisa por ele neste momento e aqui? Sofia abanou a cabeça.

- Não, sem o equipamento adequado de um hospital.

- Nem ao menos uma injecção que lhe alivie as dores?

- Tenho o pressentimento de que ele já se injectou com analgésicos mais do que suficientes - disse Sofia. - Além disso, depois de ter observado os olhos dele, diria mesmo que se encontra mais do que ligeiramente comatoso.

Judd fez um sinal de aquiescência e, em seguida, virou-se para o empregado de Hughes.

- Que diabo se está a passar aqui? - perguntou-lhe.

- Eu limito-me a cumprir ordens - disse o homem. - E, segundo estas, ninguém deve tocar nele até o médico voltar dos Estados Unidos amanhã.

- Quem foi que lhe deu essas ordens?

- O velho em pessoa. Na semana passada, precisamente quando começou a ficar doente. E ninguém, ninguém contradiz as ordens dele.

Judd fitou-o.

- Será que não há ninguém capaz de entender que ele já não é responsável pelos seus actos? Quem é que pode receitar-lhe o tratamento adequado?

- Só o médico dele - respondeu o homem.

- Vocês dispõem de um telex - disse Judd asperamente. - Ponha-se em contacto com os escritórios de Hughes. Alguém de lá deve assumir a responsabilidade.

- O telex está desligado.

- Têm telefones.

- Já ligámos. Por isso é que o médico dele está de volta. Judd fitou o homem por momentos e, em seguida, virou-se

para o militar.

- Vamos embora - disse. Sofia encarou Judd.

- Se não o ajudarmos rapidamente, ele morre. Judd fitou-a. O seu olhar era gélido.

- Não é da nossa responsabilidade.

- Mas trata-se de um ser humano!

- Que se lixe! A opção foi dele - disse Judd friamente. - Não há nada que ele possa fazer por mim, Ou eu por ele.

- Essa é a tua única regra de conduta?

- Conheces alguma melhor? - replicou ele sarcastica-mente. - Se não tivesse pago aquele^ miseráveis hotéis na Jugoslávia, achas que eles te teriam deixado sair do país comigo?

Ela fitou-o durante momentos. Em seguida, encaminhou-se para fora do quarto. Judd virou-se para o empregado e colocou uma nota de mil dólares em cima da mesa diante dele.

- Isto é para o ajudar a esquecer-se de que nos viu. O homem pegou no dinheiro e guardou-o no bolso.

- Esquecer quem?

Encontravam-se há duas horas no ar, de regresso à Florida, quando Sofia subiu as escadas que levavam à sala de estar de Judd.

- Posso falar contigo por um instante?

- Claro - disse Judd. - Entregou-lhe um telex. Não passou tudo de um exercício escusado. Acabámos de saber que eles aceitaram a nossa proposta.

Ela pousou o papel sem o ler.

- Peço desculpa - disse. - Sei que não era da minha conta, mas o homem estava à morte.

- Não precisava de que mo dissesse^. Também tenho olhos na cara.

- Mas por que razão um homem que tinha tudo o que desejava no mundo quis viver assim? - perguntou ela. - Sozinho. Encerrado numa bolha de vácuo, afastado de todo o contacto com a realidade?

- Talvez pensasse que essa era a forma de viver eternamente - observou Judd, mantendo-se depois em silêncio durante alguns instantes. - Ou talvez quisesse, na verdade, morrer e não tivesse coragem para concretizar esse desejo...

 

O edifício era todo de vidro verde espelhado, reflectindo o brilhante sol da Florida. O telhado plano do andar único ficava completamente oculto pelos gigantescos ciprestes da Florida, situados a um bloco de distância do Centro Médico Crane. Ao lado das portas envidraçadas cor de esmeralda via-se uma pequena placa de metal:

CENTRO PE PESQUISAS CRANE

MEDICINA NUCLEAR

PARTICULAR

Em frente das portas trancadas viam-se dois guardas da Segurança, armados, a quem as viseiras de vidro verde escondiam os olhos, fazendo-os parecerem-se com robots.

O Dr. Sawyer estacionou o seu automóvel em frente do edifício e subiu as escadas que conduziam à entrada deste. Fez um sinal aos guardas, aO mesmo tempo que apoiava a mão aberta de encontro à placa de identificação fotossensível. O seu nome apareceu escrito nesta em letras LED rosa, e as portas deslizaram suavemente para o deixarem passar.

O andar principal encontrava-se completamente vazio, com excepção de um outro guarda da Segurança, este sentado a uma secretária, entre dois blocos de elevadores.

O guarda ergueu os olhos para ele.

- A doutora Zabiski manda dizer que o aguarda no quarto

piso, senhor - disse.

- Obrigado- respondeu o médico, abrindo as portas do

elevador.

Estas voltaram a fechar-se rapidamente depois de ele entrar e carregou então no botão que indicava o piso quatro. O elevador começou a descer. Olhou para o mostrador luminoso. Daquela vez os números não se encontravam em escala crescente. Iam do rcs-do-chão, o andar cimeiro, ao nove, o último dos pisos subterrâneos. Todo o edifício fora construído debaixo do solo.

Saiu do elevador. Voltou a acenar com a cabeça ao sempre presente guarda da Segurança e apressou-se, corredor abaixo, em direcção ao gabinete da Dra. Zabiski.

Abriu a porta sem bater. A Dra. Zabiskj estava sentada à sua secretária.

- Vim assim que recebi a sua chamada- disse ele ansiosamente. - Há algum problema?

- Não há nenhum problema - respondeu a minúscula médica em tom tranquilizador. - Mudámo-lo para uma unidade de cuidados intensivos. Pensei que talvez desejasse estar presente quando ele acordasse.

O médico deixou escapar um suspiro de alívio e sentou-se pesadamente na cadeira que estava em frente da secretária da médica.

- Jesus! - exclamou, tirando o maço de cigarros do casaco. As mãos ainda lhe tremiam ao acender um.

- Isto é uma loucura - disse, inalando profundamente o fumo. - Começo a acreditar, mais do que nunca, que durante estes três anos todos nós nos tornámos Frankensteins.

- Todos os médicos têm um pouco de Frankenstein. -

A médica esboçou um sorriso lento. - Haverá algum de nós que não sonhe em fazer de Deus?

- É capaz de ter razão - disse Sawyer - Inalou nova

quantidade de fumo. - Mas todos nós sabemos quem Deus é, não é verdade?

Ela riu-se. Mas os olhos castanhos de gata não mostravam nenhum indício de humor.

- Judd Crane?

Foi a vez de ele se rir, também contra Vontade.

- Ele tem de ser Deus. Não conheço mais ninguém que se possa dar a esse luxo.

Ela permaneceu silenciosa durante instantes e depois concordou.

- Provavelmente tem razão - disse. - Quando inicialmente me falou em vinte milhões e depois em cinquenta, não acreditei nele. Nunca imaginei que existisse assim tanto dinheiro no mundo. Mas nesse momento olhei-o nos olhos. E acreditei. Não no dinheiro, mas no homem. Ele tenciona valer-se de todos os conhecimentos existentes no mundo para concretizar o seu sonho pessoal: a imortalidade.

Sawyer apagou o cigarro.

- E o seu sonho, qual é? - perguntou, ficando a ver

o cigarro a apagar-se no cinzeiro que estava em cima da secretária dela.

- Gostaria de participar no sonho dele - disse a Dra. Zabiski.

Mas ele apercebeu-se do laivo de amargura que transpareceu na voz dela.

- Não sei, verdadeiramente, não sei. Teremos nós a possibilidade de realizar o sonho que ele acalenta? Talvez a sabedoria e a ciência não bastem - murmurou ela.

Os olhos de ambos encontraram-se.

- Não nos podemos esquecer de que, tal como ele, também nós somos humanos, não dotados de poderes divinos.

Ela anuiu lentamente.

- Doutora Zabiski, começo a achar que gosto de si. Ela sorriu.

- Obrigada, doutor Sawyer. - Mudou deliberadamente o tom da conversa. - Vejamos como ele está a reagir.

Sawyer levantou-se da cadeira e colocou-se ao lado da Dra. Zabiski, enquanto esta carregava em vários botões do computador que tinha na sua secretária. No écran começaram a aparecer números amarelos, vermelhos, azuis, verdes, roxos e brancos.

- Tem de me explicar tudo isso, doutora - disse Saywer. - Não tenho o código comigo.

- Desculpe, pensei que já estivesse informado - proferiu ela. - Vou dizer-lhe como é. Trata-se de um simples código colorido em que o branco significa óptimo ou o fim que nos propomos atingir. O resto é normal, representando as cores os vários índices dessa normalidade. Todos os sinais vitais e a patologia estão a ser constantemente monitorizados. Neste momento o que mais nos preocupa é a temperatura do corpo. Pretendemos, relativamente a este caso, estabilizá-la em noventa e cinco graus Fahrenheit. Não nos podemos esquecer de que este é o terceiro tratamento a que ele se submete em três anos. Nos primeiros dois conseguimos fazer baixar a temperatura de noventa e oito vírgula seis para noventa e sete vírgula três, no segundo, para noventa e sete vírgula um. Em qualquer dos casos, mantivemos as temperaturas estáveis durante um ano inteiro, antes de passarmos ao tratamento seguinte.

Sawyer baixou os olhos para ela.

- Se bem me recordo das tabelas de sobrevivência que me mostrou, a manutenção da temperatura do corpo a noventa e cinco graus deveria proporcionar-lhe uma esperança de vida na ordem dos cento e cinquenta anos.

- Exactamente - disse ela. - Mas esse não é o único factor a ter em consideração. A implantação celular, assim como a de placenta e a procaína da Roménia, devem acentuar-lhe a vitalidade geral do corpo, de modo a desacelerar significativamente outro factor de envelhecimento..- Fitou Sawyer. - Temos de compreender que o corpo tem de ultrapassar o factor tempo a que está sujeito.

Sawyer permaneceu em silêncio por momentos.

- Cento e cinquenta anos - murmurou Sawyer. - Isso deve ser mais do que suficiente para qualquer pessoa.

- Não para ele - retorquiu a Dra. Zabiski. - Ele falou em imortalidade. Temos mais quatro tratamentos de temperatura planeados para um período de quase cinco anos. Isso deverá trazer a temperatura do corpo dele para um valor fixo de oitenta e sete vírgula oito graus, o que significa uma previsão de sobrevivência que deverá atingir os duzentos e oitenta anos. Mas, como já disse, não sei. Até agora, estes dados mais não são do que cálculos de computador.

- Merda! - exclamou Sawyer. - Estou assustado. A Dra. Zabiski desligou o computador.

- Também eu.

Encheu um copo com água que retirou de um termo que tinha em cima da secretária. Bebeu um gole.

- Brincar com o hipotálamo, até mesmo com um laser nuclear, com a intenção de fazer baixar a temperatura do corpo, não é brincadeira nenhuma. Basta um microssegundo para o matar.

Sawyer voltou a instalar-se na sua cadeira.

- Talvez o possamos persuadir a parar depois deste tratamento.

- Já o tentei anteriormente - observou a Dra. Zabiski. - E pode ter a certeza de que não desistirei. Mas já sei qual vai ser a resposta.

Os olhos de ambos encontraram-se.

- Qual?

- “Eu posso morrer num acidente a qualquer momento", dirá ele. Ou: “Prefiro morrer sem ser de morte natural." Carregou novamente num dos botões do computador e, em seguida, olhou para Sawyer. - Podemos ir lá abaixo. Acordá-lo-emos daqui a quinze minutos.

O elevador levou-os até ao terceiro piso. O guarda da Segurança fez-lhe sinal para que seguissem por detrás da sua secretária, ao passarem pelas portas de vidro que davam para outro corredor. Este virava subitamente à direita, escondendo-os dos olhos do guarda. Diante deles apareceram novas portas de vidro, onde, em letras prateadas, se liam as seguintes palavras: SALA DE CONTROLE.

A Dra. Zabiski premiu a palma da mão contra a placa de identificação. As portas abriram-se e eles entraram na sala. Embora o Dr. Sawyer já a tivesse visto muitas vezes, tinha sempre a impressão de que a sala de controle era uma miniatura da divisão que, na NASA, servia nos mesmos objectivos durante os voos espaciais. Entraram numa pequena plataforma; três andares levaram-nos até ao piso principal, cujas paredes estavam cobertas de computadores a passarem fitas onde ficavam gravadas as informações recebidas pelos écrans prateados. A parede do fundo era toda em vidro, separando aquela divisão da unidade de cuidados intensivos em que Judd se encontrava. Em frente deste estavam três técnicos, cada um deles sentado diante do seu próprio computador, em cuja impressora e écran controlavam todos os sinais interiores e exteriores do corpo do paciente.

Sawyer seguiu a pequena mulher até ao interior do quarto e, tal como ele, passeou os olhos em redor. Judd estava a dormir, com o corpo completamente desnudo coberto de eléctrodos sem fios que enviavam informações para os computadores. Os únicos tubos ligados a ele encontravam-se fixos por ventosas presas à testa, e era através deles que o oxigénio lhe entrava pelas narinas.

A Dra. Zabiski virou-se para os monitores, enquanto o Dr. Sawyer continuava a observar Judd. Pensou detectar um pequeno estremecimento. O movimento tornou-se mais pronunciado. Inconscientemente, Judd estava a ter uma erecção.

Sawyer virou-se para a pequena médica.

Deve estar a ter uns lindos sonhos - comentou, rindo. - Está a ficar todo operacional sem a ajuda de ninguém.

A Dra. Zabiski endireitou-se, olhando para Judd. Uma sombra de preocupação passou-lhe pelo rosto.

- Não me agrada nada - disse. - Ainda é muito cedo.

Virou-se para o primeiro técnico.

- Dê-me os resultados do último electrocardiograma que lhe tenham feito e chame imediatamente o neurologista. Diga também ao doutor Ablon, o cardiologista, para vir até cá.

O segundo técnico chamou-a

- Doutora Zabiski, temos indicações de que a temperatura do corpo está a subir. Acabou de aumentar meio ponto, para noventa e cinco e meio. Não, agora para noventa e cinco vírgula seis - corrigiu rapidamente.

- Quero já uma leitura química do sangue e de todos os sinais vitais - ordenou a Dra. Zabiski sem hesitar, olhando por cima do ombro do primeiro técnico. Analisava as linhas que se iam estendendo através do écran do computador. Ergueu os olhos para Sawyer.

- Não há dúvida de que está a sonhar - observou. - Nota-se um movimento hiperactivo definido mas ligeiro no sector alfa.

- Na sua opinião, que está a acontecer? - perguntou o Dr. Sawyer.

A Dra. Zabiski olhou para ele.

- Ainda não sei. Mas posso imaginar.

Não se ofereceu, porém, para o elucidar. Sawyer ficou a olhá-la calmamente, aguardando.

- Tenho a impressão de que o hipotálamo está a rejeitar todos os tratamentos e a retomar o seu funcionamento normal - disse ela, por fim.

- Isso representará algum perigo para ele? - perguntou Sawyer.

- Não o creio - respondeu ela, analisando os dados que estavam a aparecer no écran. - Os sinais vitais estão todos bons. A química do sangue não mostra qualquer anormalidade ou infecção. - Pegou no telefone e ligou para o anestesista que estava na sala ao lado. - Mantenha o paciente a dormir durante mais um pouco. Queremos examinar algumas questões antes de o acordarmos

- Onde diabo anda Sofia? - inquiriu Sawyer. - Não devia estar aqui?

- Dei-lhe alguns dias de licença - respondeu a Dra. Zabiski. - Depois de estar a trabalhar três anos quase sem interrupção, pensei que passar alguns dias afastada daqui só lhe faria bem. Especialmente pelo facto de se ter oferecido para ser o controle. Ficou muito fatigada depois do último conjunto de experiências.

- E estas foram bem sucedidas? - quis saber Sawyer. A Dra. Zabiski fitou-o.

- Se se refere à possibilidade de ela ter engravidado - respondeu imediatamente -, digo-lhe desde já que sim.

- Para onde foi ela? - perguntou ele.

- Para o México - respondeu a Dra. Zabiski. Sofia sentia uma grande curiosidade por aquele País desde que esteve em Acapulco. .

Sawyer ficou em silêncio, pensativo. O México não deixava

de ser uma opção curiosa para Soffia. Se era de sol que andava à procura, ali, em Boca Raton, havia-o em profusão. Talvez tivesse algum outro motivo. Resolveu dizer a Merlem para mandar a Segurança investigar a viagem da médica.

 

Judd premiu o botão que tinha ao lado da mesinha-de-cabeceira, ergueu a parte superior desta de modo a ficar sentado, e pegou no telefone. Merlin atendeu imediatamente.

- Que aconteceu - perguntou Judd.

- Recebemos dois telefonemas veementes da comissão de inaugurações. Reagan quer incluir-nos na sua festa particular.

- Isso é na semana que vem, não é?

- Sim.

- Diz-lhes que terei muita honra em lá ir. E também que tomarei as minhas próprias providências quanto à viagem e ao alojamento. - Olhou de relance para o relógio de parede. - Mais alguma coisa?

- O secretário das Finanças do Brasil quer uma reunião para discutir se nós participamos ou não no Projecto Ludwig que vai ser levado a cabo lá no país deles. Correm boatos insistentes de que D.K. tenciona desistir.

Judd reflectiu por momentos.

- Antes de mais nada vamos ver se descobrimos mais coisas sobre a questão. Diz-lhe que lhe arranjamos uma reunião assim que eu puser o Brasil na minha agenda. Mas certifica-te de que ele compreende que planeamos apenas participar na discussão. Não estamos interessados no projecto.

- Sim, senhor - disse Merlin. - O Governo aprovou a nossa proposta de fusão da South and Western Savings e da Loan Association com os Serviços Financeiros Crane. Esse facto traz-nos cento e cinco filiais bancárias e um bilião de fundos que podemos transformar em capital líquido. Isso significa podermos dispor, se quisermos, de oitocentos milhões em dinheiro no prazo de trinta dias, senhor.

- Óptimo - disse Judd. - Já há alguma resposta relativamente à proposta que fizemos ao Governo mexicano? O peso não vale nada e se eles não garantirem a construção do laboratório e da fábrica por trinta milhões para os Produtos Farmacêuticos Crane, não iniciaremos qualquer produção no México.

- Ainda não nos disseram nada.

- Aperta-os um bocado. Diz-lhes que o Brasil está altamente interessado em falar de negócios connosco.

- Assim farei - disse Merlin. Mudou de assunto. - Como se sente?

- Uma porcaria - observou Judd. - Mas não te preocupes. Dentro de poucos dias estarei fora daqui.

- Ainda bem - disse Merlin.

- Obrigado - respondeu Judd, pousando depois o telefone.

Uma nova rapariga, que ele nunca tinha visto, entrou no quarto. Era bastante ruiva, e o cabelo brilhava-lhe como uma chama por cima dos olhos suavemente azuis.

- Como te chamas?

- Bridget O'Maylley - respondeu ela, mostrando um pequeno sotaque.

- Irlandesa? - inquiriu ele. - E acabadinha de sair do barco, não?

- Do avião, senhor Crane - disse ela. - Fui especialmente recrutada para este trabalho.

- Deve preencher requisitos muito especiais para a minha gente a escolher para vir para aqui trabalhar - observou Judd. - Que requisitos são esses?

O rosto da jovem ficou ligeiramente ruborizado.

- Preferia não falar desse assunto - disse ela, com o sotaque ainda mais carregado.

- Tenho sede - interrompeu ele sem aviso. - Traga-me uma Coca-Cola.

- Desculpe, senhor Crane, mas só pode beber sumo de laranja ou água, nada mais.

- Então sumo de laranja - disse ele, observando o ligeiro rubor que ainda lhe pairava no rosto.

A enfermeira principiou a afastar-se.

- Bridget - chamou ele.

A jovem voltou a aproximar-se da cama.

- Sim, senhor Crane? Ele fitou-a.

- Informaram-na de que estou a sofrer de um problema temporário de priapismo?

Os olhos dela desceram para determinado ponto do lençol situado mais abaixo.

- Um dos requisitos especiais porque a escolheram deveu-se ao facto de ter experiência a cuidar de pacientes atacados de priapismo? - inquiriu Judd.

Ela anuiu silenciosamente.

- Onde adquiriu o seu treino?

- Estive quatro anos no Hospital dos Veteranos, em Denvon.

- Que tratamentos prescrevia lá, Bridget? Ela fitou-o.

- Determinados medicamentos, acupressão, relaxamento muscular através de biofeedback de registos da electromiografía...

- Muito interessante - observou Judd, interrompendo-a. - Obrigado, Bridget, pela informação. Agora gostaria de tomar o meu sumo de laranja.

Aguardou que ela voltasse com um copo cheio do referido líquido. A sua erecção era bastante intensa e fazia-lhe pulsar dolorosamente o pénis. Bebeu um gole de sumo.

- Ouvi dizer que há uma operação que pode corrigir esta anomalia.

- Sim, senhor Crane - disse ela em tom impessoal -, mas não desejará certamente submeter-se a ela porque, uma vez feita, é irreversível. Nunca mais voltaria a ter uma erecção na vida. Essa operação só é efectuada em casos de priapismo permanente e doloroso.

Ele fitou-a.

- Posso garantir-lhe que neste momento também é amaldi-çoadamente doloroso. Que devo fazer, Bridget? Voltar a masturbar-me? O meu pénis começa a ficar magoado e a arder--me. Quando atinjo o orgasmo, é uma autêntica agonia.

Não desviou o olhar dela. Bridget pegou no mapa de registos que estava aos pés da cama e anotou qualquer coisa nele.

- Deixe-me ir consultar o médico - disse.

- Para quê esperar por ele - objectou Judd. - Pensei que a tinham mandado vir para aqui principalmente pela sua experiência, conhecimentos e métodos.

- Sou apenas uma enfermeira, senhor Crane - disse ela delicadamente. - Não posso empreender nenhuma iniciativa sem o consentimento específico do médico.

- Os médicos que se lixem! - exclamou Judd furioso. - Eu sou dono deste maldito hospital e de tudo o que nele se encontra, incluindo os médicos. Portanto, se me pode ajudar, o melhor que tem a fazer é pôr mãos à obra.

- O médico demitir-me-á - disse ela.

- Não lhe dizemos nada - alvitrou ele.

Ela apontou para o monitor de televisão que se via na parede, por trás da cama.

- O senhor está a ser permanentemente controlado e registado.

Judd atirou uma toalha para cima do aparelho. A câmara de filmar ficou completamente tapada.

- Agora ninguém vê - ripostou ele agastado. Atirou o lençol para baixo dos joelhos. O seu pénis ergueu-se violentamente, liberto, como uma fera selvagem acabada de escapar de uma jaula, vermelho e pulsante. - Agora, raios!

Ela hesitou um momento e depois colocou-se ao lado da cama. Pousou um dos joelhos sobre esta e agarrou-lhe energicamente no membro com a mão esquerda. Servindo-se dos dedos da outra mão, começou a carregar nos nervos localizados na zona do escroto, mesmo abaixo dos testículos. Fitou-o.

- É capaz de doer um pouco - preveniu com voz suave. Os olhos azuis-cobalto de Judd mantiveram-se impassíveis.

Anuiu silenciosamente.

Ela começou, devagar, a exercer pressão sobre os nervos, ao mesmo tempo que abria e fechava os dedos que tinha em redor do pénis de Judd, forçando o sangue a voltar para a base do falo, em direcção ao escroto. Pouco depois pareceu apanhar o ritmo. Continuou a efectuar os dois movimentos, cada vez mais intensamente.

Ela olhou para ele, à espera de algum sinal que lhe mostrasse que a dor estava acima do que ele podia suportar, mas Judd suportava estoicamente a sua agonia de dentes cerrados.

- Desculpe - disse ela -, mas é só mais um bocadinho.

Ele fez-lhe sinal de que compreendia, enquanto uma pequena camada de transpiração começava a aparecer-lhe na testa. De repente, teve a sensação de que uma faca lhe rasgava a virilha. Deixou escapar um gemido involuntário.

A enfermeira ergueu-se rapidamente.

- Terminou, senhor Crane.

Judd susteve a respiração por instantes e baixou os olhos para si próprio. O seu pénis estava a voltar ao tamanho normal e descontraído. Virou-se para a enfermeira.

- Conseguiu mesmo - disse ele, ainda mal refeito da surpresa.

- É verdade, senhor Crane - confirmou ela calmamente.

- Estou-lhe muito grato - proferiu Judd, soltando um profundo suspiro de satisfação. - Apesar de tudo, acho que esse processo não substitui a sucção e a fornicação.

Pela primeira vez ela sorriu.

- Nem eu, senhor Crane - acrescentou.

Judd sentou-se na cama e olhou para a Dra. Zabiski.

- Que foi que correu mal? - perguntou.

- Nada de especial - disse ela secamente. - Apenas que milhões de anos de evolução não se deixaram subjugar pelos nossos computadores. - Olhou de relance para a folha da impressora que tinha na mão. - No entanto, alcançámos um pequeno sucesso. A sua temperatura encontra-se agora fixada nos noventa e oito vírgula quatro. Isso representa dois décimos abaixo do normal.

- Que é que isso me dá?

- Entre dez a quinze anos de vida a mais. E segundo os exames PerScan e SonarScan, o programa de implantações foi muito bem tolerado pelo seu corpo. Se prosseguirmos com esse programa, poderá ficar com mais de vinte e cinco anos. Tendo em conta o tempo de vida normal num homem da sua classe social e económica, que é de oitenta anos, já prolongou a sua esperança de vida para os cento e vinte e cinco anos.

- Isso não é a imortalidade - disse Judd numa voz tão seca que arrepiava.

A Dra. Zabiski manteve-se em silêncio.

- Não acha que devemos voltar a tentar o processo do laser nuclear? - perguntou ele.

- Não - respondeu ela sem rodeios. - Desta vez tivemos sorte. Da próxima corremos o risco de destruir o hipotálamo e o senhor ficaria frio para sempre.

Os olhos dele eram negros como a noite.

- Então é na engenharia genética que temos de procurar.

- Receio bem que tenhamos de perder demasiado tempo antes de sabermos o suficiente acerca do código genético para podermos fazer algum uso dele - disse ela com um suspiro.

- Tenho tempo. No fim de contas, não me disse já que disponho de cento e vinte e cinco anos? - Ele olhou para a Dra. Zabiski e sorriu. - Muito bem. E agora diga-me, quando é que posso sair daqui?

- Amanhã de manhã - respondeu ela. - Fisicamente, encontra-se de perfeita saúde. Ainda melhor do que quando nos conhecemos. Se quer calcular este facto em termos de anos, posso dizer-lhe que passou dos quarenta e dois anos de idade para os quarenta, em vez de ter ido até aos quarenta e seis.

- É melhor do que esperávamos, não é?

- Sem dúvida - respondeu ela. - Mas tem de cuidar um pouco mais de si. Alimentação, bebida, descanso, drogas. Deve tentar outro estilo de vida.

- Não se referiu ao sexo?

- O priapismo deve ser temporário - respondeu ela. - Mas, depois disso, não se exceda.

- Não sei - observou ele com um sorriso. - Talvez o mantenha. Acho excitante a ideia de o ter sempre pronto para quando preciso dele.

Ela não sorriu.

- Se assim fizer, deitará toda a vida fora através do pénis.

- Então que me aconselha para resolver o problema? - perguntou.

- Não lhe sugiro nada - respondeu ela. - O senhor controlar-se-á a si mesmo. Biofeedback, electromiografia e ioga. Que tal lhe parece?

- Muito semelhante à feitiçaria, doutora - disse ele.

- Melhor do que salitre. - Ela levantou-se. - Sabe, Judd, estou a começar a gostar de si e quero que saiba cuidar da sua pessoa. Também acalento o seu sonho e não desejo, para bem dos dois, que nada prejudique o homem que lhe serve de guardião.

 

O telefone que se encontrava sobre a secretária de Merlin tocou duas vezes. Este pegou no auscultador.

- Daqui fala Merlin.

- Daqui John D., da Segurança - principiou a voz.

- Que há, John? - perguntou Merlin.

- O nosso agente seguiu-a de avião até à cidade do México - prosseguiu John D. - Daí apanhou um voo na Aero-mexico para Havana, altura em que ele a perdeu porque não tinha visto para seguir para Cuba.

- Temos algum agente em Havana?

- Sim, senhor, seis homens.

- Quero que três deles aguardem a chegada dela a Havana. Não a percam de vista durante toda a sua permanência nessa cidade, Escutas por todo o lado, dentro e fora. Perceberam?

- Sim, senhor.

- Quero relatórios de três em três horas - ordenou Merlin.

- Assim faremos - respondeu John D. - Recebemos a informação de que Li Chuan chega a Havana pela Air Canada. E muito provável que tenham um encontro marcado para ali.

- Que o vigiem a ele também - ordenou Merlin.

- Okay - disse John D. - Já recebeu o relatório de Hong Kong sobre os Quaaludos?

- Sim - respondeu Merlin. - Três milhões desse material por ano. São muitos Quaaludos.

- Quinze milhões de dólares - disse John D. - Transferidos da conta dos Produtos Farmacêuticos para os bancos das Baamas e da Suíça. Neste momento estamos a tentar descobrir de quem são essas contas.

- Tenho um pressentimento de que uma delas é do próprio Li Chuan, e que a outra é provavelmente do Governo chinês - asseverou Merlin. - A nossa conta de Interferon com eles não chega a um milhão de dólares.

- Havemos de descobrir o que se passa - exclamou John D. - Mais alguma coisa, senhor?

- De momento, não - respondeu Merlin. - Obrigado.

Olhou para a impressora do computador que tinha na secretária. Todos os registos pareciam normais. Inspirou profundamente. Esse facto, só por si, parecia-lhe suspeito. Por norma detectava numerosos pequenos erros de computador. Era a primeira vez, tanto quanto sabia, que o computador era perfeito.

Pegou no telefone e ligou para o Computador Central, na Califórnia. Um momento mais tarde estava em linha com o director dos Serviços de Informática.

- Quero uma inspecção a todas as transacções efectuadas nos últimos três anos. E também necessito de que me veja se alguém andou a introduzir-lhe alterações e a bisbilhotar os nossos bancos de memórias.

- Todos os dias levamos a cabo uma inspecção de rotina, senhor - disse o director.

- Eu sei - observou Merlin asperamente. - Mas desta vez quero que desenvolva uma forma de investigação diferente da que é normalmente utilizada. Assim que souber alguma coisa, ligue para mim.

- A “mãe" não vai gostar nada disto - disse o director. - Sabe como ela fica perturbada quando a rotina é alterada.

Merlin alinhou na gíria profissional do director, falando do computador como se de uma pessoa se tratasse.

- Diz à senhora para deixar de armar em esperta, caso contrário desligamos-lhes alguns dos seus microchips favoritos.

Pousou o telefone e acendeu um cigarro.

- Malditas mães! - praguejou silenciosamente de si para si. Pegou de novo no telefone a fim de ligar para Judd, mas

voltou a pousá-lo sem concretizar a intenção. Não valia a pena, dali a mais um dia ele estaria no escritório, pensou. E talvez nessa altura dispusesse de mais informações para trabalhar o problema antes de o apresentar ao patrão. Apagou o cigarro. Mais um dia não teria importância. Fosse qual fosse o mal feito, já estava concretizado, concluiu Merlin.

Havana estava quente e húmida, apesar de o sol estar prestes a desaparecer. Quando Sofia chegou ao hotel, vinda do aeroporto, levava a roupa colada à pele. O seu quarto fora reservado antecipadamente e o recepcionista carregou na campainha para chamar o paquete que a conduziria até ele sem demora.

O ar condicionado ainda não está ligado - disse o rapaz, pousando a bagagem. Dirigiu-se para as janelas corrediças que davam para o terraço. - A medida que for escurecendo, tornar-se-á mais fresco - acrescentou, abrindo-as à fornalha que reinava no exterior.

Ela deu-lhe uma nota de cinco dólares, pela qual ele agradeceu demasiado efusivamente, abandonando depois o quarto. Ela aguardou que a porta se fechasse antes de sair para o terraço.

A grande avenida que se estendia entre o hotel e a praia mostrava-se vazia de tráfego. O ar quente começava a ficar um pouco mais fresco devido à brisa que soprava do lado do oceano. Pouco depois viu o largo passeio que corria ao lado da praia encher-se de pessoas que davam a sua volta de fim de tarde. Voltou a entrar no quarto e abriu a mala. Pendurou rapidamente o seu fato de linho e dois vestidos no guarda-fatos enfiando a lingerie numa gaveta. Fechou a mala com um gesto e atirou com o roupão para cima da cama. Levou a sua pequena mala de cosméticos para a casa de banho e colocou-a ao lado do lavatório. Abriu a torneira da água da banheira espremeu um tubo de gel perfumado para o jacto. Aguardou que o perfume chegasse até ela e, em seguida, foi para o quarto e começou a despir-se. Pendurou ordeiramente o vestido ao lado dos outros e guardou a roupa interior dentro de outra gaveta. Nua, virou-se para o roupão e ia a pegar nele quando ouviu meter a chave à porta. Esta abriu-se antes que tivesse tempo para o enfiar.

Diante de si estava Nicolai, alto, corpulento, o cabelo negro agora entremeado de fios grisalhos. Este olhou para Sofia silenciosamente enquanto fechava a porta atrás de si.

O roupão continuava na mão dela, que não fez nenhum gesto para se cobrir.

- Vieste cedo - disse Sofia em russo.

- Quatro anos, Sofia, foi demasiado tempo - comentou ele. Vi-te quando atravessaste o vestíbulo e achei que já não podia esperar mais tempo.

- Não queria encontrar-me contigo pegajosa e a cheirar a suor - disse ela. - Ia tomar um banho perfumado.

Ele rodeou-a com os braços e beijou-a.

- Preciso de ti independentemente de todos os cheiros que possas ter - sussurrou-lhe ele.

Ela continuava em silêncio, indiferente. Ele fitou-a com intensidade.

- Há algum problema, Sofia?

- Foram quase quatro anos, Nicolai - disse ela. - Não desaparecem de um momento para o outro.

Ele deixou cair os braços.

- Já não me amas? Existe mais alguém?

- Preciso apenas de um pouco de tempo. Passei demasiados anos noutro mundo. - Vestiu o roupão, fugindo à pergunta dele. - Tenho a pasta aberta em cima da secretária. Porque não dás uma vista de olhos aos relatórios enquanto tomo banho?

- Mandei vir uma garrafa de champanhe - disse ele.

- Óptimo - agradeceu ela. - Não demoro muito.

Ele viu-a fechar a porta da casa de banho no preciso momento em que a campainha tocava. O paquete pousou o balde de gelo com a garrafa de champanhe na mesinha-de-cabeceira e saiu do quarto. Nicolai passeou o olhar entre a porta fechada da casa de banho e a garrafa de champanhe. Retirou rapidamente o arame e fez saltar a rolha.

Sofia achou a água sedosa com a acção do gel borbulhante. Recostou-se luxuriosamente na banheira. O perfume elevava-se, misturado com o vapor de água, até às suas narinas. Fechou os olhos. A água cobria-lhe sensualmente o corpo. De súbito, uma corrente de ar frio quebrou o encanto; olhou para a porta.

Nicolai estava na ombreira desta, nu, com a garrafa de champanhe numa das mãos e na outra o pénis de glande vermelha, rígido e esticado, sobressaindo entre a espessa mata de pêlos negros que lhe cobria o ventre. Aproximou-se da banheira e chegou o pénis à cara dela, despejando champanhe sobre este. A sua voz era rouca e raivosa.

- Adoravas champanhe, assim como adoravas a minha gaita. Vejamos se ainda te lembras. Agora bebe-os aos dois!

- Não! Não! - gritou Sofia, tentando afastar o pénis de si com a mão.

Ele encostou fortemente o rosto dela contra o membro erecto e o seu orgasmo explodiu quase nesse mesmo instante.

- Cabra! Puta! - rosnou.

Sofia começara a tossir, enquanto o sémen dele, que também ficara espalhado sobre as suas maçãs do rosto, lhe começava a escorrer para o queixo. Ele retirou o membro da boca dela e entrou dentro da banheira, ajoelhando-se na sua frente, entre as pernas, e colocou-a em cima dele, com as pernas a rodearem-lhe o torso, de modo a poder penetrá-la. Impulsionou violentamente o corpo para cima dela. Sofia tentou afastar-se dele.

- Não! Por favor, não - sussurrou ela.

- Sua puta maluca! - exclamou ele com voz malévola. - Que foi que te fez mudar?

- Por favor - implorou Sofia, chorando. - Não vês que estou grávida?

Ele ficou a olhar para ela.

- Grávida?

- Sim. De dez semanas.

Sofia fitou-o. Sentiu-o encolher dentro de si.

Ele permaneceu em silêncio durante alguns momentos e, em seguida, afastou-a de si. Saiu da banheira, não deixando de a fitar.

- Não és apenas uma cabra de uma puta - disse ele com desprezo. - Também és estúpida. Quem é o pai, ou será que até nem tu mesma sabes?

- Sei quem é - respondeu Sofia calmamente. - Judd Crane.

Ele olhou-a silenciosamente durante alguns instantes mais e depois agarrou numa toalha e enrolou-a à sua volta.

- Vou vestir-me - disse-lhe. - Gostaria de levar a tua pasta para o escritório a fim de tirar uma fotocópia do seu conteúdo. Devolvo-te tudo quando te vier buscar para jantar.

- Como quiseres - replicou ela com indeferença.

- Li Chuan jantará connosco - acrescentou ele.

- Está bem.

Ele fechou a porta da casa de banho depois de sair. De repente, ela sentiu-se invadir por um cansaço enorme. Lentamente, pôs-se de pé na banheira, deixando a água escoar-se e ligando o chuveiro, limpando-se da ejaculação que Nicolai deixara sobre o seu rosto com o jacto de água quente.

As pernas pareceram-lhe transformarem-se em borracha e teve de se apoiar à parede para recuperar o equilíbrio. Desligou o chuveiro e saiu da banheira. Enrolou uma toalha à volta do corpo e passou ao quarto.

Nicolai já ali não estava. Olhou para a secretária. A pasta de documentos também tinha desaparecido. Sentou-se na beira da cama por um momento e em seguida puxou a bolsa para junto de si. Abriu-a com um movimento brusco e olhou para o fras_ quinho de cocaína que Judd lhe oferecera. Procedeu imediatamente a duas inalações.

O efeito esperado não se verificou. Ela estava demasiado esgotada, demasiado deprimida e exausta. Voltou a guardar Os objectos na bolsa e estendeu-se na cama. Fechou os olhos adormecendo rapidamente.

 

Foi acordada por uma corrente de ar fresco. Sentou-se na cama, completamente transpirada depois do sono profundo em que estivera mergulhada. O zumbido do motor do ar condicionado chegava até ela através das grades. Levantou-se, enrolou-se numa toalha de banho e fechou as janelas que davam para o terraço. Era noite e as luzes iluminavam a estrada que corria paralela às praias que circundavam a baía.

Sofia olhou para o relógio de pulso. Oito e meia. Era tempo de se vestir. Dirigiu-se rapidamente para o quarto de banho e tomou novo duche, envergando em seguida um saia-casaco de linho fresco. O telefone tocou precisamente quando estava a acabar de se maquilhar.

Era Nicolai.

- Acordada? - perguntou.

- E vestida - respondeu ela.

- Óptimo - disse ele. - Estarei aí dentro de um quarto de hora.

- Queres que espere por ti no quarto ou no vestíbulo?

- No quarto - respondeu ele. - Vamos jantar a um restaurante. Ainda temos algum tempo. Li Chuan vai encontrar-se lá connosco às dez horas.

- Muito bem - disse ela, pousando o auscultador. Mirou-se ao espelho. A maquilhagem realizava autênticos

milagres. Os sinais de cansaço tinham desaparecido. Mas isso era à superfície, lá no fundo continuava a sentir-se em baixo. Preocupada consigo mesma, apesar da imagem que via reflectida no espelho, pegou na carteira.

Abriu o bolsinho interior e retirou deste uma caixinha de prata de comprimidos e o pequeno frasco da cocaína. Introduziu na boca uma cápsula verde e branca contendo um estimulante e engoliu-a sem água. Em seguida, tomou uma boa inalação de cocaína em cada narina com o auxílio da colher de ouro que Judd lhe oferecera com as suas iniciais gravadas no cabo.

Sentiu o impacte quase imediatamente. A combinação insuflou-lhe nova vida. Respirou fundo. Agora começava a sentir-se mais ela mesma, mais forte e capaz de enfrentar tudo o que viesse a acontecer. Voltou a guardar o frasquinho e a colher no bolso da carteira e virou-se para o espelho. O seu rosto ficara ainda com melhor aspecto. Os olhos que, do outro lado, a fixavam, tinham retomado o brilho habitual.

Nicolai esperou que o paquete abrisse a garrafa de champanhe, enchesse as duas taças e, em seguida, saísse do quarto. Entregou uma das taças a Sofia e pegou na outra.

- Peço desculpa - disse. Ela fitou-o.

- Não há necessidade disso.

- Fui um estúpido - objectou ele - - Devia ter compreendido até que ponto também te tens sacrificado.

- Não tem importância - disse Sofia. - Cada um de nós tem uma tarefa a cumprir. Isso é que é importante.

Ele tocou na taça que ela empunhava com a sua.

- A ti, Sofia. Para mim nunca houve uma mulher como tu. Ela beberricou o champanhe, fitando-o por cima do rebordo

da taça.

- Não olhes para mim desse modo, não fales comigo desse modo - disse.

- Raios! -exclamou Nicolai. Respirou profundamente. - Sei que não devia sentir-me ciumento, mas acontece que o estou mesmo. Ciumento de todas as vezes em que estiveste com ele e não comigo.

- Nicky - murmurou ela suavemente. - Não devias ficar assim. Todos nós estamos a cumprir a nossa missão.

- Foi realmente só isso que aconteceu contigo? - perguntou ele. - Sentiste alguma coisa por ele?

- Eu não disse isso - observou ela. - Mas conheces-me melhor do que ninguém. Nesse tempo pensava que não podia passar sem sexo, quer existissem sentimentos ou não. Por vezes o meu corpo necessitava mais de sexo do que de alimentos ou de ar. Nos anos em que estive confinada ao Instituto, chegava a utilizar o meu vibrador três e quatro vezes por dia. E sempre que o fazia pensava em ti.

Ele bebeu um gole de champanhe e soltou uma risada.

- Lembras-te da primeira vez em que estivemos juntos? Pensei que eras uma ninfomaníaca. Nunca mais paravas.

Ela não riu.

- Quando era jovem, costumava pensar que o era. Tratava-se de algo que não fui capaz de enfrentar até os médicos me explicarem que tinha os nervos sexuais extraordinariamente sensíveis. As verdadeiras ninfomaníacas nunca obtêm satisfação e muito raramente alcançam o orgasmo. Portanto, Nicky, eu simplesmente não me adapto a essa definição. Só de estar a falar contigo sobre este assunto fez com que o clitóris me começasse a vibrar e os sucos a humedecerem-me.

- Quero tocar em ti - murmurou Nicolai.

- Não, Nicky - disse ela. - Estou diferente. Já não sou a mesma rapariga que conheceste. Amadureci.

- Não - contrapôs ele enfaticamente. - Continuo a amar-te. Ainda mais do que antigamente. E sei que tu me amas. Aquele homem meteu-te ilusões na cabeça com o dinheiro dele, o seu poder, as suas drogas e o seu estilo de vida. Alguma vez ele te disse, nem que tenha sido só uma vez, que te amava?

Ela não respondeu.

- Alguma vez te pediu que casasses com ele? Sofia abanou a cabeça silenciosamente.

- Ele está a servir-se de ti - disse Nicolai. - Exactamente como se serve de todos os que interessam à sua conveniência, à sua busca do poder eterno. - Abanou a cabeça, fitando-a. - Não tarda que te deite fora, como a um brinquedo que deixou de o divertir. Ou que não lhe serve para mais nada.

- Ele não é assim - exclamou Sofia na defensiva. - É uma pessoa cheia de consideração e franqueza. Apesar de esta ser tão honesta que chega a ser cruel.

- Pensas que estás a defendê-lo, mas a verdade é que estás a defender-te a ti própria para te convenceres - disse Nicolai. - Tenho a certeza de que não terias essa opinião se não te tivesses deixado engravidar.

- Talvez - observou ela pensativamente. - Mas de que se tratou? De uma experiência, nada mais. Não sou a primeira cientista a oferecer o seu corpo à experiência. A velhota estava preocupada com a possibilidade de os tratamentos o terem tornado estéril.

- De modo que te propuseste fornicar com ele para tirarem as dúvidas, não foi?

- Nada disso. Retiraram-lhe esperma e introduziram-no nos ovários de uma dúzia de mulheres diferentes.

- E todas elas ficaram grávidas?

- Nem todas. Apenas dez - disse Sofia.

- E tu foste uma das felizardas - comentou Nicolai amargamente.

Sofia manteve-se em silêncio.

- Que vai acontecer agora? - perguntou ele.

- Na próxima semana prefazem-se as dez semanas - respondeu Sofia. - Todas as grávidas vão sujeitar-se a um aborto.

- Concordaste com isso?

- Sim - respondeu ela. Nicolai fitou-a durante momentos.

- Porquê tu? Fazias parte do corpo médico. Tenho a certeza de que não teriam qualquer problema em encontrarem uma outra mulher. Porque decidiste envolver-te pessoalmente?

- Porque sentia curiosidade em relação ao meu próprio corpo, Nicky - disse Sofia. - Nunca tinha ficado grávida, apesar de nunca ter usado nenhum anticoncepcional. Havia algo de dinâmico nele. Pensei...

- Até que enfim que admitiste a verdade! - interrompeu-a ele, furioso. - No fundo, quiseste o bebé dele!

- Sim - reconheceu Sofia sem mais rodeios, fitando-o em seguida. - Mas que diferença é que isso faz? Na semana que vem tudo estará terminado.

- És tão estúpida como qualquer outra mulher - disse Nicolai cheio de sarcasmo. - Estivemos juntos tantos anos, por que razão nunca tiveste um filho meu?

Sofia fitou-o e respondeu com simplicidade: - Porque nunca mo pediste.

Tinha a pasta de documentos aberta à sua frente. Analisava as folhas do relatório quando ela regressou ao quarto.- A velhota é esperta - comentou Nicolai. - Já se passaram oito anos e ainda não sabemos se descobrimos o método que ela utiliza para a impregnação de células reconstruídas.

- Conhecemos o método de impregnação celular. A fórmula da reconstrução em que ela trabalha sempre sozinha no laboratório é que ainda não conseguimos detectar.

- Alguma vez estiveste com ela nessas ocasiões? - inquiriu ele o mais casualmente que foi capaz.

- Não. E não sei de ninguém que o tenha estado - respondeu Sofia. - Começo a desconfiar de que o processo de reconstrução das células é invenção dela. Possivelmente estava à espera de que Crane, com todo o seu equipamento e computadores, o descobrisse por ela.

Nicolai pousou os papéis e mudou abruptamente de assunto.

- Ela disse-te que as duas iam voltar para a Rússia? Sofia ficou surpreendida.

- Não. Porquê?

- Porque devem ir falar com o Brejnev.

- Não tocou no assunto.

Ele permaneceu em silêncio durante um longo momento.

- Talvez pensasse que era melhor esperar que fizesses o aborto.

- É possível - disse Sofia. - Que se passa com o presidente?

- Só ouvi boatos - respondeu ele. - Uns dizem que se trata de cancro; outros afirmam que é um aneurisma ou hemorragias cerebrais. Até aqui não passam de rumores. Mas de uma coisa tenho eu a certeza: ele move-se com dificuldade e é um bocado entaramelado a falar. Ela fez-lhe quatro consultas o ano passado. Depois mandaram dizer que devias passar a ser tu a tratar dele.

- Mas... e o trabalho que estou a fazer?

- É uma questão de prioridades - respondeu Nicolai. - Para nós, Brejnev é mais importante do que Crane.

Sofia anuiu pensativamente.

- Ela está a ser muito esperta, Nicky. Conheço pelo menos quatro assistentes dela que podiam mandar para junto de Brejnev, no entanto prefere mandar-me a mim, pois assim corre menos riscos de que o método dela venha a ser descoberto.

- Que te leva a pensar que podes vir a ter alguma oportunidade de o apanhares?

- Tudo o que diz respeito à pessoa de Judd Crane e aos seus negócios entra no Computador Central, que está na Califórnia. Embora não acredite que ela tenha registado a sua fórmula no computador, tudo de quanto necessita em termos de materiais e equipamentos encomendados e comprados fica automaticamente registado no computador. Se conseguirmos apossar-nos de algumas dessas informações, somos capazes de nos aproximar bastante da descoberta do método dela. – Abanou a cabeça com desânimo. - Mas para termos essas informações não podemos deixar de ter acesso ao computador. E as únicas pessoas que eu conheço que podem fazê-lo são o próprio Crane, o seu assistente pessoal, Merlin, e o director do Computador Central. Nicolai fitou-a.

- Talvez haja uma outra pessoa que o possa fazer - sugeriu lentamente.

Sofia encarou-o, perplexa.

- Não compreendo.

- Li Chuan - disse Nicolai. - É por isso que nos viemos encontrar os três aqui, Sofia. O homem diz que tem acesso ao código e pode pôr essa informação ao nosso dispor.

- Não faz sentido - observou Sofia. - Mesmo que ele a tivesse, não acredito que fosse assim tão altruísta para no-la entregar de mão beijada.

- O altruísmo não tem nada a ver com isto - disse Nicolai, rindo. - Troca-o por vinte milhões de dólares.

 

O toque suave do telefone privado colocado junto da sua cabeça sobrepôs-se ao som do programa de televisão a que estivera a assistir. Pegou no auscultador.

- Crane.

- Está acordado? - perguntou Merlin.

- Sim - respondeu Judd. - Tenho estado a ver televisão.

- Gostava de ir até aí falar consigo - disse Merlin.

- Pode ser às oito da manhã?

- Agora seria melhor.

Judd reflectiu por um momento. Escusava de perguntar a Merlin se era importante. O pedido já o dava a entender.

- Daqui a quanto tempo é que consegue cá estar? - perguntou.

- Estou no escritório de Boca Raton - disse Merlin. - Cerca de trinta ou quarenta minutos. A esta hora não deve haver trânsito.

- Diga ao Fast Eddie para o conduzir de carro e também que me traga uma muda de roupa.

- Certo - disse Merlin, desligando.

Judd carregou no botão que tinha ao lado para chamar a enfermeira e desligar a televisão. Um momento mais tarde, Bridget entrava no quarto.

- O senhor Crane chamou? - perguntou.

- Tire-me estas agulhas dos braços e ajude-me a sair desta cama para ir tomar um duche - disse ele.

- Não o posso fazer sem o consentimento da doutora Zabiski - respondeu.

- Então chame-a - ordenou ele. Ela fitou-o, hesitante.

- Já - disse ele peremptoriamente.

A porta fechou-se nas costas dela. Passados instantes o telefone tocou.

- A enfermeira apresentou-me o seu pedido, senhor Crane - principiou a médica. - Trata-se de alguma coisa verdadeiramente importante?

- Sim - replicou ele.

- Muito bem - disse ela. - Mas terei de estar junto de si quando lhe retirarem o equipamento a fim de me certificar de que está bem. Vou vestir-me e estarei no seu quarto daqui a dez minutos. Entretanto, a enfermeira pode começar a prepará-lo.

Um momento mais tarde, Bridget entrava no quarto. Trazia um tabuleiro com uma seringa hipodérmica coberta por uma toalha.

- Deite-se de lado - disse ela. - Esta é para levar no traseiro.

- De que se trata? - perguntou Judd.

- Sou apenas a enfermeira - volveu-lhe a jovem. - Não tenho por missão saber do que se trata, mas sim limitar-me a cumprir as ordens do médico.

Judd virou-se de lado, ao mesmo tempo que a enfermeira lhe puxava o lençol para baixo. Ele sentiu a frieza húmida do algodão com álcool e, em seguida, a picada da agulha.

- Mantenha-se imóvel - pediu ela. - É comprida.

- Merda - exclamou ele. Ela riu-se.

- Sádica - chamou-lhe Judd. Calou-se por um segundo. - Creio que estou a ter uma erecção. Que tal uma sucçãozita?

Ela voltou a rir-se, retirando a agulha e colocando-lhe depois um penso redondo no sítio da picada.

- Nem pensar - disse. - A culpa foi sua. O senhor é que estava com pressa. Penso que a injecção se destina precisamente a resolver-lhe esse problema.

Ele rolou novamente para cima das almofadas e fitou-a.

- Bridget - disse, sorrindo -, aparece sempre qualquer coisa a estragar-nos este grande prazer da vida.

- Fique sossegado um momento - observou-lhe ela. - Vou trazer-lhe sumo de laranja espremido de fresco.

- Preferia uma Coca-Cola com cherry.

- Mas vai tomar sumo de laranja - disse ela, fechando a porta ao sair.

Judd encontrava-se sentado na cama, com as pernas penduradas a balouçar. A doutora Zabiski acabou de lhe medir a tensão arterial.

- Óptimo. Doze de máxima e oito e meio de mínima.

Fez um sinal à enfermeira do laboratório que estava a amarrar uma tira de borracha ao braço de Judd. Esta, rápida e experientemente, retirou quatro tubos de ensaio de uma máquina espirométrica portátil.

Estendeu-lhe um tubo de plástico.

- Inspire profundamente e depois expulse o ar para fora. - Ele assim fez. - Agora repita a operação, desta vez ainda com mais força. - Ela aguardou que ele enchesse os pulmões. - Atire o ar fora o mais fortemente que puder, por favor - ordenou.

Pelo canto do olho ele podia vê-la a analisar o que aparecia no écran da televisão situada aos pés da cama. Ele expirou o ar com quanta força tinha, até os pulmões ficarem completamente vazios. Caiu para trás, meio sufocado.

- Óptimo - disse a pequena médica. - Só mais um teste, se não se importa.

Um outro assistente fez rolar para junto da cama o que parecia ser um aparelho de electrocardiogramas.

- Deite-se - ordenou. - Isto vai ser muito rápido. É electrónico.

O homem colocou-lhe as ventosas do costume nas pernas e no peito. Carregou nos botões habituais e analisou a mesma fita de sempre que emergia da máquina. Judd ergueu os olhos e viu que a médica estava a ler os mesmos dados dessa folha no écran da televisão. Depois de a fita estar completada, o assistente removeu as ventosas e retirou-se. A Dra. Zabiski concentrou então a sua atenção no aparelho de controle remoto que tinha na mão. Carregou em determinados botões, fazendo aparecer dois écrans de televisão na parede que, até ali inactivos, ganharam vida sob o seu comando.

Vários símbolos apareceram, faiscantes, nos écrans, cruzando-os vertical e horizontalmente, dançando em uníssono e dividindo-se com graciosidade em padrões verdes e amarelos, um conjunto que fazia lembrar um ballet abstracto. Judd fitou a médica.

- Que significa tudo aquilo?

- Análises ao sangue - elucidou a Dra. Zabiski. - Tudo o que nesse campo se passa dentro de si, o que cada gota faz no seu corpo. - Fez uma pequena pausa e depois prosseguiu, acenando aprovadoramente com a cabeça. - Está tudo bem.

- Posso tomar um duche rápido?

- Não - replicou ela com ar decidido. - Quero que avance devagar. A Bridget dá-lhe um banho de esponja e depois ajudamo-lo a preparar-se. Quero-o numa cadeira de rodas durante algum tempo, antes de se começar a movimentar à vontade. Lembre-se de que esteve quase três semanas de cama e deve voltar a habituar-se a coisas simples como a gravidade e o estar de pé. Não quero que dê nenhum trambolhão desnecessário.

- A senhora é que é a médica.

- É nessa qualidade que devo dizer-lhe que gostaria de estar presente, a seu lado, quando tiver essa tal reunião. Não me agradaria nada não estar no local se o senhor não fosse capaz de suportar alguma espécie de stress e, de um momento para o outro, tivesse problemas.

- Que poderia acontecer?

- Sabe-se lá. Estamos a pisar terreno desconhecido, um terreno completamente desconhecido, senhor Crane. Nunca o esqueça.

Ele fitou-a em silêncio, por momentos. Crane sabia que ela não desconhecia o que o fazia hesitar tanto.

- Pode crer - acrescentou a médica com ar sério - que não tenho interesse absolutamente nenhum nas suas questões particulares.

- Eu sei, doutora - observou ele. - Mas se, tal como diz, todos os testes estão bons, que me poderia acontecer para necessitar da sua presença imediata?

- Possivelmente nada - disse ela. - Mas sou a sua médica e tenho responsabilidades sobre si. Talvez esteja a ser excessivamente cautelosa, mas preferia fazer essa opção e acabar por ver que me enganei.

Ele reflectiu por mais alguns momentos.

- Está bem - concordou. - Mas começo a sentir-me como um bebé que precisa de ser vigiado constantemente.

- Judd, como é que pensa que eu me sinto? - murmurou ela suavemente. - De certo modo, o senhor é o meu bebé. Neste momento não há nenhuma mãe no mundo capaz de criar um filho como o senhor.

- Está com óptimo aspecto - observou Merlin. - Sinto-me bem - replicou Judd.

Fez a cadeira de rodas rolar para junto da mesa de reuniões que havia na sala de estar ao lado do quarto do hospital. Fast Eddie sorriu.

- Aquela enfermeira irlandesa que o está a tratar é um mimo.

Judd soltou uma risada.

- É a história da minha vida. Tenho sempre material à mão quando não me posso servir dele.

Merlin olhou para a Dra. Zabiski, que se encontrava sentada a um canto da sala, afastada da mesa de reuniões. Judd fez sinal em direcção a ela.

- Não há problema. Podemos falar.

Merlin abriu a sua pasta de documentos e retirou do interior desta uma folha de computador. Colocou-a sobre a mesa, em frente de Judd.

- Ainda não disponho de todas as informações, mas estou convencido de que o nosso código de acesso foi violado.

Judd olhou-o surpreendido.

- Que foi que o levou a tirar essa conclusão?

- Pequenos pormenores - replicou Merlin. - Os registos continuam a sair sempre perfeitos. Nem um único engano. Era costume surgirem alguns erros.

- É um palpite? - perguntou Judd.

- Sobretudo.

- É capaz de ter razão - disse Judd. - Altere o código.

- Ainda bem que concorda - observou Merlin. - Já pedi ao Computador Central para o fazer, mas preciso das suas iniciais para efectivar a mudança e torná-la oficial.

- Pode dispor delas - disse Judd.

Merlin entregou-lhe uma folha de papel e uma caneta. Judd assinou. Tinha duas cópias. Guardou uma para si e devolveu a outra a Merlin, que a guardou na sua pasta, indo o original para dentro de um sobrescrito, que seria depois guardado no cofre do director da Central de Computadores.

- Mais alguma coisa?

Merlin esboçou um gesto em direcção à folha que Judd tinha na sua frente.

- Esse é o primeiro registo obtido da South and Western Savings e da Loan Association depois da aprovação do tribunal.

- E que tem?

- Consulte a segunda página. Depósitos à ordem sem juros e em nome individual. Duzentos milhões de dólares. Olhe para o anexo dois, na segunda página, onde vêm os nomes e as quantias de cada conta. Onze nomes, cada um deles com várias contas, espalhados entre as cento e cinquenta sucursais. Tenho a Segurança a verificar os nomes. Quatro cubanos, cinco colombianos, dois peruanos, todos eles com fama de grandes senhores no mundo do comércio dos narcóticos.

Judd analisou a folha sem fazer comentários. Pouco depois voltou a olhar para Merlin.

- Talvez não fosse má ideia mudar o nome do banco para South and Western Laundry Company'.

Merlin não sorriu.

- Quanto deste dinheiro está seguro pela FDIC? - perguntou Judd.

- A cem mil dólares em cada conta de todas as sucursais perfaz um total de cento e quinze milhões de dólares.

- Quem quer que sejam, de estúpidos não têm nada - observou Judd.

- Concordo - disse Merlin. - Estamos a investigar todos os depósitos individuais. Cada um tem à volta de nove mil dólares ou menos. Isso significa, evidentemente, que o banco não foi obrigado a informar as Finanças da sua existência.

Judd concordou.

- Espertos. Mas trata-se de uma rotina habitual no meio, não é?

- É realmente uma actuação perfeitamente habitual. Que fazemos? - perguntou Merlin.

- Comunique o facto às Finanças - disse Judd sem hesitação. - Eles que se encarreguem do caso a partir daí.

- A publicidade pode dar cabo do banco - observou Merlin. - Podemos perder quatrocentos milhões de dólares.

- Então o que é que sugere? - perguntou Judd com um sorriso estranho.

- Podíamos mandar fechar as contas muito pacatamente e devolver o dinheiro aos respectivos donos.

- Isso seria ocultar o crime - disse Judd. - Houve uma coisa que aprendi com o meu pai e também com o tio Paul:

 

' Companhia de Lavagem de Roupa Suja. (N. do T.)

 

nunca melhorar uma situação irremediável porque mais cedo ou mais tarde fica-se enterrado na merda. E mais aconselhável aguentar o embate e avançar o melhor que puder. Merlin permaneceu silencioso.

- Quem é que tem a responsabilidade desta situação? - perguntou Judd.

- McLaren, o presidente dos Serviços Financeiros Crane.

- E ele não disse nada sobre o que se estava a passar?

- Tanto quanto sabemos, absolutamente nada.

- E nos arquivos também não consta nada?

- Nada.

- Mande-o para a rua - ordenou Judd, os olhos azuis-cobalto fazendo lembrar duas pedras de gelo. Ficou silencioso por momentos, antes de voltar a falar. - Há mais alguma coisa que deva chegar ao meu conhecimento?

- Li Chuan - respondeu Merlin, passando imediatamente a resumir a situação perante um gesto de Judd. - Meteu-se no negócio dos Quaaludes por conta própria, movimentando o dinheiro por intermédio das nossas contas.

- Mais um para despedir - disse Judd sem emoção. - Tem algum terceiro para apresentar?

Merlin pareceu embaraçado. Olhou de relance para a Dra. Zabiski, que continuava sentada no seu canto. Hesitou, mas, por fim, fez um sinal de assentimento.

A pequena médica levantou-se da cadeira.

- Parece que está a passar bem - disse a Judd. - Não ficarei aborrecida se quiser que me retire neste momento.

Judd abanou a cabeça.

- Não. Já que está aqui vai continuar a assistir a toda esta trapalhada em que me encontro metido.

Merlin desviou o olhar da médica e pousou-o em Judd.

- Sofia - principiou. - Encontra-se em Havana. Li Chuan também. E Nicolai Borovnik, o número três do KGB. Temos a Segurança a vigiá-los, mas até agora ainda não recebemos nenhum relatório

Judd olhou para a médica.

- Tinha algum conhecimento acerca desta ligação da sua assistente com o homem do KGB? - perguntou friamente.

A pequena mulher enfrentou o olhar dele sem pestanejar.

- Não. A situação é completamente nova para mim. Mas sei que Borovnik e ela foram amantes e que numa altura ele tentou divorciar-se da mulher para casar com Sofia. Foi quando o divórcio não foi aprovado que ela se ofereceu voluntariamente para trabalhar comigo.

Judd fitou-a com curiosidade.

- Nesse caso, para que se daria ela ao trabalho de se ir encontrar com ele em Havana? - perguntou.

- Não tenho a certeza - respondeu ela -, mas creio que ele deve ter querido falar com ela sobre Brejnev.

- Sobre Leonidas Brejnev? O líder dos líderes? - Judd estava genuinamente surpreendido e não se deu ao cuidado de o ocultar.

- Sim - respondeu a médica. - Estava previsto ele ser o próximo paciente de Sofia.

- Quer dizer que ela não irá regressar? - perguntou Judd secamente.

- Ela voltará - limitou-se a dizer a médica.

- Apesar do presidente?

- Exactamente.

- E do Politburo?

- Sim, senhor.

- E do KGB?

- Sim.

- Como consegue ela desenvencilhar-se de uma pandilha de tal envergadura?

- Vai ter de lutar um pouco. Mas acabará por conseguir.

- Porquê, doutora?

- Há um teste muito importante que só ela pode completar.

- Quer dizer que não o pode passar para outra pessoa qualquer?

- Precisamente.

- De que se trata, doutora?

- De um aborto - disse a doutora Zabiski calmamente. E acrescentou: - O dela própria.

Ele ficou a olhar para a médica.

- Não me diga que ela foi uma das que...

- Exactamente, senhor - respondeu a médica.

- Por que razão não mo disse?

- Não o desejava fazer.

- Mas porque fez semelhante coisa? - Vislumbrou um pequeno brilho ao canto dos olhos da médica. - Com certeza conhece a resposta a esta pergunta, não é verdade?

- Efectivamente.

- Então transmita-ma, doutora.

- Não posso, senhor Crane.

- Mesmo que lhe peça por favor, doutora?

- Mesmo que mo ordene, senhor.

- Segredo profissional, é isso? - perguntou Judd.

- Isso mesmo, senhor. Agradeço a sua compreensão.

- Aceito-o, mas não o compreendo.

- Só lhe posso dizer o seguinte: foi a pedido insistente dela. Pediu para ser uma das voluntárias.

Judd respirou profundamente, um sorriso vago a enrugar-lhe os cantos da boca. Mas, por fim, a única coisa que conseguiu dizer foi:

- Merda!

 

O restaurante ficava numa hacienda1 localizada numa antiga área residencial dos arredores de Havana. A sua cozinha podia comparar-se à de qualquer restaurante de Paris ou Nova Iorque, mas era desconhecida, no entanto, de noventa e nove vírgula nove por cento da população cubana. Tratava-se de um restaurante destinado apenas à elite que frequentava o mundo de Castro, assim como aos seus convidados. Mesas enormes à moda antiga, com toalhas de linho adamascado branco, talheres de ouro e prata, serviço de copos de cristal de Bacará, porcelana inglesa de rebordo dourado e fundo de arranjos florais. Cada mesa emitia um suave fulgor, que partia de pequenas velas individuais. E o que talvez ainda fosse mais importante, as mesas redondas estavam longe umas das outras. Quando era necessário dispor ainda de maior privacidade, a alcova em que cada mesa estava situada podia ser totalmente rodeada por cortinados de veludo cor de vinho.

Sofia era a única mulher que se encontrava na mesa de seis lugares. Nicky e Li Chuan sentavam-se cada um do seu lado. A seguir a Nicky estava um indivíduo corpulento, chamado Karpov, um dos elementos do KGB da Embaixada russa. Do outro lado da mesa, defronte dela, sentava-se o seu anfitrião, Santos Gómez, um cubano alto e magro, que devia andar na casa dos trinta, envergando o uniforme de campanha em cujo colarinho aberto se viam duas estrelas que indicavam tratar-se de um major-general.

Entre ele e Li Chuan via-se um pequeno homem chinês de fato completo cinzento, chamado Doy Sing, que era o representante não oficial da República Popular da China, que não tinha Embaixada em Cuba.

Li Chuan limitava-se a beber café. Quando se levantou, não teve de aguardar que os elementos do grupo lhe dispensassem a sua atenção total.

 

' Em espanhol no original: fazenda, herdade. (N. do E.)

 

- As minhas palavras poderão chocar-vos, camaradas - principiou -, mas encontramo-nos aqui reunidos para falarmos de poder, não de um poder teórico, mas sim de um poder real, efectivo. Permitam-me que comece por dizer que o poder, no mundo de hoje, não é político. Nem o comunismo nem o capitalismo têm algum significado. Poder é simplesmente dinheiro, e hoje o grande elemento desencadeador de dinheiro é a energia. Petróleo e gás. Essa é a fonte de poder dos países do Médio Oriente e do bloco da OPEP. E a energia representa o poder dos Estados Unidos porque eles previram todos estes factos e passaram a controlar esses países produtores de energia.

“Agora que outros países descobriram ainda mais fontes de energia, o que nos surpreende é que o poder dos Estados Unidos esteja a crescer ainda mais. Deixem-me que vos explique a razão desse fenómeno. A razão reside no facto de esses países competirem uns com os outros, de uma fonte de energia entrar em despique com a outra, acabando todos por lutar uns contra os outros pelo controle não só das fontes de energia como também do sistema de distribuição que abrange todo o mundo. Neste jogo, infelizmente, nós não passamos de modestos jogadores de níquel. Os imperialistas ianques têm todas as cartas na mão, até o próprio jogo lhes pertence. No entanto, trata-se de um jogo apenas. Existe um outro a que nós podemos deitar mão e batê-los se para tanto tivermos coragem.

Olhou desafiadoramente para todos quantos o rodeavam na mesa. Ninguém lhe respondeu.

Continuou a falar com um pequeno sorriso que depressa desapareceu.

- Não falo de confrontação, campos de batalha ou de alianças com os países do Terceiro Mundo. Tudo isso são jogadas do xadrez político que não tomam em consideração as realidades do dinheiro e do poder a que me refiro. Aquilo a que me refiro é a uma fraqueza cancerosa de que os muito ricos do mundo ocidental começaram a padecer. É para a procura crónica que se verifica do falso contentamento que os narcóticos e os produtos químicos trazem que chamo a vossa atenção. Esta principiou nos anos sessenta, inicialmente na América, e encontra-se agora espalhada pelo mundo ocidental, o que significa toda a Europa e talvez outras economias altamente produtivas de outros continentes. Temos de encarar, quer isso nos agrade ou não, este novo facto de enorme potencial no mundo, o qual não pode, não poderá, continuar a ficar muito mais tempo dentro dos limites em que hoje se encontra.

Fez uma pausa prolongada.

Os restantes elementos que se encontravam à mesa, tão conscientes como ele da situação que os levara a reunirem-se ali, permaneceram em silêncio e rigidamente atentos à continuação do seu discurso.

- Para colocar a questão de forma simples e rápida - recomeçou Li Chuan, depois de ter analisado os rostos durante mais alguns instantes -, antigamente o mundo dos narcóticos era controlado pela Mafia. Através da intimidação, da corrupção e da violência, a fonte única que partiu da Sicília e da França começou a ser alvo de empreendedores atrevidos e esfomeados de outros países. Os lucros que todos eles procuravam, questão a que já voltarei, são, no mínimo, espantosos. O movimento de capital tornou-se tão vasto que o negócio deixou de ter interesse apenas para os antigos mercadores de prostituição, contrabando e jogo ilegal. Fabricantes de produtos químicos, especuladores do mercado financeiro, sim, até líderes políticos em dificuldades à procura de uma solução para a desesperada confusão doméstica. Todos os tipos de amadores capitalistas gananciosos começaram a ver todo um mundo de possibilidades nos narcóticos, capaz de aliviar até a dor e a agonia política.

Ficou em silêncio durante um momento mais e, em seguida, fitou cada um dos rostos que o rodeavam à mesa antes de voltar a usar da palavra.

- E eu pergunto-lhes, camaradas: Que estamos nós afazer em relação a isso?

Mais uma vez olhou em redor como que à espera de uma resposta. Nenhuma surgiu.

- Se é de moralidade que me querem falar, camaradas, não se preocupem. Estamos a lidar com factos concretos. Na nossa luta não há lugar para a moralidade. Só para os resultados. Vida e morte. A força capaz de nos fazer atingir o nosso objectivo, ou um século de servidão política, de joelhos dobrados diante da grande aliança industrial que se opõe a nós, uma vida de estados-clientes sempre à espera de satisfazerem os desejos do amo. Dispomos de capacidades e recursos para nos apoderarmos totalmente do mercado mundial da droga. E que melhor altura poderíamos desejar senão a que neste momento se nos apresenta para desintegrarmos a vontade que o mundo ocidental tem em nos resistir? A que melhor processo poderíamos aspirar para o conseguir? Que outro modo mais eficaz poderíamos arranjar para os nossos países alcançarem o poder de que lhes falei?

 

O general Santos Gómez fez deslizar para cima o vidro que o separava do condutor e do seu assistente, que iam no banco da frente do automóvel. Ligou o ar condicionado para esconder a conversa que iria ter lugar e olhou para Sofia e NicKy, que seguiam a seu lado.

- Li Chuan é um louco - comentou. - Fala demasiado. Sofia fitou-o. Não se pronunciou. Nicky abanou a cabeça.

Um sinal que ela entendeu.

- Estive tempo suficiente com ele sozinho para aquilo que desejava, general - disse.

- Acha que é importante adquirirmos o código de acesso que ele nos está a querer oferecer? - perguntou o general.

- Não - disse Nicky. - O mais provável é que o alterem ao mais pequeno indício de que descobrimos maneira de o utilizar.

- Também pensei nessa possibilidade - disse o general. - O homem está demasiado preocupado com problemas de longo alcance, provavelmente porque além de ganancioso também é louco. - Fez uma pequena pausa. - No entanto estou preocupado com Doy Sing. Os Chineses vão fazer um dinheirão com aquele material.

Nicky espraiou o olhar pelas ruas escuras por onde o carro ia passando.

- Neste momento não dispomos de grandes hipóteses - disse. - Quando eles souberem que Li Chuan tem o código de acesso, não levarão muito tempo a descobrir que já estamos a trabalhar no seu plano principal.

- Ficaria mais descansado se levássemos a questão ao conhecimento de Fidel - observou o general.

- Eu também - concordou Nicky. - Mas se aguardarmos, corremos o risco de nos atrasarmos. Doy Sing não deixará, com toda a certeza, de contactar com a sua gente assim que lá chegar. Os primeiros que tomarem conta do mercado serão aqueles que granjearão uma posição mais forte. Até mesmo os bons amigos têm de ter este aspecto em consideração.

O general concordou.

- Tem razão.

Pegou no telefone que tinha ao lado do banco e carregou num botão. Uma voz ininteligível soou-lhe ao ouvido. Ele pronunciou apenas uma palavra: “Agora."

Pousando o telefone, virou-se para Sofia e Nicky, soltando um suspiro e sorrindo.

- Antes da Revolução havia um espectáculo em Havana que era o favorito dos americanos com dinheiro. Até Hemin-gway se referiu a ele num dos seus livros. Claro, depois veio a Revolução e, de acordo com a lei, teve de ser fechado. Mas para algumas pessoas importantes está sempre a funcionar. Talvez queiram conhecê-lo. Decorre durante toda a noite. - Procurou um charuto num dos bolsos e, em seguida, lançou um olhar para Sofia. - É certo que não deixa de ser chocante-mente pornográfico, mas é o único no mundo, podendo mesmo tornar-se bastante curioso, camarada doutora... ou talvez não esteja interessada em assistir a ele?

Sofia olhou para Nicky e depois para o general, não respondendo.

- Claro - acrescentou o general, acendendo o charuto -, mantemo-lo sempre a funcionar para nos lembrarmos dos nossos amigos do capitalismo decadente no seu pior aspecto.

Sofia virou-se para o general. Tinha a sensação de que este aguardava a sua aprovação.

- Nesse caso, camarada general - disse -, penso que todos nós lucraríamos em vê-lo, quanto mais não seja para melhor compreendermos a natureza da corrupção burguesa.

- Estou certo de que o achará divertido, doutora - asseverou o general, com uma expressão de inconfundível satisfação no rosto.

O clube ficava num edifício de aspecto vulgar, próximo do porto. O carro deteve-se na rua estreita e eles saíram deste, dirigindo-se em seguida para uma pequena porta de madeira desprovida de qualquer indicação, que era guardada por dois homens corpulentos. Estes acenaram silenciosamente com a cabeça ao general e abriram a porta para deixar passar o grupo.

Penetraram num vestíbulo iluminado por um pequeno candeeiro de tecto. Um chefe de mesa de casaca inclinou-se diante do general e, sem proferir palavra, conduziu-os por outra porta que ia dar a um longo corredor que, por sua vez, tinha várias portas fechadas. Detiveram-se, por fim, em frente da última. Afastou-se para o lado depois de a abrir.

A pequena sala fazia lembrar um camarote de teatro. Viam-se vários sofás confortáveis colocados em redor de uma mesa baixa de cocktail. Aperceberam-se da existência, do outro lado, de um pequeno palco iluminado por luzes cor-de-rosa muito fracas. Estas providenciavam a única iluminação existente no recinto. Em redor deles vislumbravam-se sombras escuras noutros camarotes, embora não tivessem possibilidade de saber se estes se encontravam verdadeiramente preenchidos ou se tal era apenas fruto da sua imaginação.

Sofia olhou para a mesa de cocktail. Champanhe, conhaque, uísque, vodca e rum. Havia copos e gelo. Em redor deles, pairando no ar, sentia-se um vago cheiro a haxixe ou marijuana, e ninguém se mostrou surpreendido ao ver uma caixa de cigarros em prata e um reluzente prato de cocaína com minúsculas colheres de ouro e palhinhas arrumadas ao lado.

- Champanhe? - perguntou o general.

- Por favor - disse Sofia.

O general fez sinal ao chefe de mesa. O homem retrocedeu para deixar passar dois jovens e duas raparigas para o camarote. Estes encontravam-se completamente despidos, com excepção de uma pequena pala de tecido sobre os órgãos genitais. Um dos jovens abriu silenciosamente a garrafa de champanhe e encheu as taças que estavam diante dos visitantes. As raparigas ofereceram cigarros da caixinha de prata a todos e, em seguida, o pratinho da cocaína.

- Colher ou palha? - perguntou o general. - Por mim, prefiro a palha.

- Eu não quero nada - disse Nicky.

Sofia olhou para ele e, em seguida, para o general.

- Eu aceito a sua sugestão.

Uma das raparigas dispôs, silenciosamente, várias linhas de cocaína sobre uma placa espelhada. Entregou uma palhinha a Sofia que, rapidamente, inalou uma linha através de cada narina. A cocaína explodiu-lhe no cérebro.

O general, ao ver a expressão de surpresa que se espelhara no rosto dela, riu-se.

- Pura - disse. - Só encontra material deste aqui.

O general aspirou duas linhas em cada narina e virou-se para Nicky.

- Não sabe o que perde.

- Isso não quer dizer nada, general - observou este. - O facto é que nunca me meti nisso. Basta-me o vodca.

Santos Gómez ergueu a taça de champanhe.

- Uma bela combinação. Santé.

- Santé - repetiram todos em uníssono, bebendo o champanhe.

- O espectáculo não tardará a começar - informou o general. - Entretanto, se o desejarem, os nossos assistentes tentarão ser-vos agradáveis.

- Eu estou bem assim - respondeu Sofia.

- Como preferir - disse o general, fazendo sinal a um dos homens, que se aproximou dele. Estendeu a mão e levantou a pala de pano que lhe cobria o sexo.

- Fantástico, não acham? Todos estes rapazes têm um pénis de comprimento não inferior a dezassete centímetros, qualificação indispensável ao trabalho que desenvolvem aqui. Quanto é que isso dá em polegadas?

Sofia sentiu a cocaína activar-lhe o cérebro. Tentou falar com voz inexpressiva.

- Não tenho jeito nenhum para números, general - observou.

- E você, camarada, quais são os seus cálculos? - perguntou o general.

- O único interesse que me move é de ordem cultural, não matemática. Camarada general, sinto-me fascinado por tão acentuada decadência capitalista.

O general soltou uma risada.

- Mas não sejamos demasiado dogmáticos. Isto pode ser divertido. - Afundou a sua palhinha na cocaína e inalou várias linhas através das narinas. Acenou a uma das raparigas. - Dá uma ajuda àquele pobre rapaz que nos permita apreciar o seu verdadeiro tamanho.

A rapariga ajoelhou-se em frente do jovem e, agarrando-lhe o membro com uma das mãos, começou a lamber a cabeça do pénis com movimentos rápidos da língua. A expressão do rosto do jovem manteve-se impassível, mas o seu falo principiou a enrijecer e a engrossar. Nesse preciso momento, bateram à porta.

O chefe de mesa entrou rapidamente na pequena divisão e foi segredar algo ao ouvido do general. Este esboçou um sinal de aquiescência e levantou-se.

- Tenho de me ausentar por um pequeno instante - informou. - É uma chamada telefónica. Por favor, não parem por minha causa.

A porta fechou-se nas suas costas. O jovem casal continuava a actuar como se ele ainda ali estivesse. Nicky tocara no braço de Sofia para chamar a atenção desta.

- É nojento - comentou em russo. - Parecem animais. Sofia fitou-o.

- Não sei - disse com honestidade. - Acho o sexo desprovido de envolvimento emocional fascinante.

- És uma puta - disse Nicky furioso.

- Sou honesta - contrapôs Sofia. - Ao menos digo o que sinto. Tu não consegues confessar que achas isto sedutor e excitante.

- Não sou feito de ferro.

- Ainda não, mas já não deve faltar muito - provocou-o Sofia. - Estás a ficar erecto.

- Cabra - murmurou ele.

- Porquê? Porque aceito o meu corpo tal como é, uma coisa que tu te mostras incapaz de fazer? Talvez todos os homens sejam, no fundo, uns hipócritas - disse ela suavemente, virando-se de súbito para a porta quando esta se abriu violentamente. Nem a penumbra conseguia esconder a expressão de pânico que se lia no rosto do general.

- Está morto! - exclamou este.

- Quem? - perguntou Sofia, começando a ficar hirta.

- Li Chuan! E os outros também!

Nicky colocou-se calmamente ao lado de Sofia.

- Os seus homens são bastante eficientes, general - comentou sem emoção.

- Não fomos nós que os matámos - afirmou o general. - Os meus homens nem sequer estavam por perto quando aquilo aconteceu. Liquidaram-nos assim que saíram do restaurante.

- Alguém viu os assassinos? - perguntou Nicky.

- Nem sequer os tiros foram ouvidos. As armas deviam ter silenciadores. Os cadáveres só foram descobertos quando o motorista foi buscá-los com o carro.

- CIA - disse Nicky. - Ouvimos dizer que Li Chuan trabalhava para os dois lados - Encolheu os ombros. - Se é verdade ou se eles descobriram que o fazia para nós... De qualquer modo, não interessa. Quem quer que o tenha feito, prestou-nos um favor. Pelo menos não temos de explicar o facto.

- Mas isso significa que os assassinos também têm conhecimento de que estivemos a falar com Li Chuan. Talvez tencionem vir atrás de nós - disse o general com voz preocupada.

Nicky sorriu tranquilizadoramente.

- Eles não estão interessados nas nossas pessoas - disse. Sabem de que lado estamos.

Sofia virou-se para este.

- Qual é o papel que me cabe em toda esta história? - perguntou.

Nicky abanou a cabeça.

- Penso que não tens de te preocupar. A CIA não tem qualquer interesse na tua pessoa.

- Não compreendes - exclamou Sofia. - Não é na CIA que estou a pensar. É em Judd Crane.

Nicky esboçou um gesto de desprezo.

- Ele não passa de um homem. Além do mais, um homem idiota e egoísta. Que pode ele fazer?

- Nicky, tu é que és o idiota - disse Sofia, levantando-se. - Li Chuan estava a pensar em Judd Crane quando falou de poder. Judd Crane tem poder. Um poder que ultrapassa a tua capacidade de compreensão. Se foi a CIA que matou Li Chuan, então foi Judd Crane que lhes ordenou que o fizessem.

Nicky ficou a olhar silenciosamente para ela.

- Penso que é melhor mandar vir alguns guarda-costas extras para nos protegerem durante o percurso de regresso ao hotel - disse Sofia. - Quero viver o tempo suficiente para apanhar o avião para o México amanhã de manhã.

 

Judd recostou-se na almofada, tendo à sua frente, sobre os joelhos, o tabuleiro do pequeno-almoço. Olhou para Bridget, que acabara de escrever uma observação no mapa de registos que estava pendurado aos pés da cama.

- Estou com uma erecção - disse-lhe. Ela respondeu com ar indiferente.

- É normal. Depois de urinar, passará.

- Mazinha! - exclamou ele sem rancor. - Ao menos uma vez podia lembrar-se de que é mulher, não apenas enfermeira. Dê-me um trato em vez de um tratamento.

- Senhor Crane - disse a enfermeira, rindo -, não sei como hei-de lidar consigo. É um adolescente ansioso ou um velho de tendências sujas?

- Porque não ambos? - perguntou Judd, sorrindo.

- Isso é muito pouco profissional - volveu ela sem expressão. - Temos de ter bem a certeza do tipo de paciente com que lidamos.

O telefone tocou. Judd atendeu.

- Sim?

- Daqui fala Merlin. - A voz deste soava com nitidez. - Como se sente esta manhã, senhor?

- Pronto para me pôr a mexer daqui para fora - respondeu Judd. - A médica autorizou-me a fazê-lo daqui a uma hora, mais ou menos.

- Óptimo - observou Merlin. - Temos notícias da Segurança.

- E então?

- Li Chuan morreu. A Segurança revistou-lhe o quarto enquanto jantava. Descobriram uma série de coisas. Uma delas foi o código de acesso ao nosso Computador Central. E também que tencionava vendê-lo por vinte milhões de dólares.

- Foi um estúpido - observou Judd. - Ninguém no seu perfeito juízo pagaria semelhante quantia por uma coisa daquelas. Qualquer perito pouco eficiente saberia que os códigos de acesso são alterados com a maior das facilidades.

- Ele não era perito em questões práticas - volveu Merlim - - A Segurança também deu uma boa vista de olhos ao conteúdo da sua mala de viagem. Aparentemente fazia-se acompanhar de uma cópia completa dos documentos que temos sobre a South and Western Savings and Loan. Portanto, sabemos, pelo menos, por que razão ele andou a bisbilhotar no nosso computador. Agora não teremos dificuldade em descobrir como foi que ele desviou o dinheiro das nossas contas para a* dele.

- Quem foi que o matou? - inquiriu Judd.

- Foquei esse aspecto com a Segurança. Eles vivem num mundo muito deles, no entanto souberam que foi o ex-namorado de Sofia que congeminou o plano com os assassinos.

Judd fez uma pausa.

- E quanto a Sofia? - perguntou.

- Tem andado muito ocupada - observou Merlin. - Estou de posse das gravações chegadas via satélite. Entrego-lhas quando o senhor vier ao escritório.

Judd riu.

- Quer dizer que és um velho mais perverso do que eu imaginava. E quanto à designação para ir tratar da enfermidade do camarada Brejnev?

- Isso é verdade - disse Merlin.

- Então segue directamente de lá para a Rússia, não?

- Não - elucidou Merlin. - Tem uma passagem marcada mas é na Aeromexico, para a Cidade do México. Deve lá chegar esta tarde.

- Está bem - disse Judd. - Mais alguma coisa?

- Nada que não possa esperar até o senhor chegar ao escritório - respondeu Merlin.

Judd pousou o telefone e olhou para a enfermeira, que estava aos pés da cama.

- A erecção mantém-se - informou-a, em tom de provocação.

Ela entregou-lhe um comprimido dentro de um pequeno copo de plástico.

- Engula isto com o resto do seu sumo de laranja, depois urine e tome um bom duche frio. Verá como passa.

Judd engoliu o comprimido sem desviar os olhos dela.

- Mulher de gelo - disse-lhe em voz trocista e maliciosa.

- Meio ambiente total - disse a Dra. Zabiski. Judd enfiou a camisola.

- Que quer dizer com isso?

- Precisamente o que ouviu - respondeu a médica.- Se não pudermos controlar o meio ambiente total, não temos possibilidade de controlar o seu tempo de vida. Tudo o que fizemos a nível médico e tecnológico foi anulado pelo seu estilo de vida.

Judd virou-se para ela.

- Não posso continuar indefinidamente neste hospital. Ainda dou em doido.

- Eu sei - disse a médica.

- Nem a vida numa estação espacial com o ambiente totalmente controlado seria melhor.

- É verdade - anuiu ela.

- Então o que sugere?

- Construa o seu próprio meio ambiente. Pode dar-se a esse luxo. - Fitou-o. - De certo modo, já o faz, no seu avião. Mas esse é móvel. Compreendo que é obrigado a viajar constantemente pelo mundo inteiro por causa dos seus inúmeros negócios; no entanto, isso significa que os seus objectivos de saúde ocupam um lugar secundário em relação a outras questões.

“Reflicta sobre o assunto. Haverá alguma coisa no mundo que possa trazer até si em vez de ser o senhor a ir até junto dela? Se criar um meio ambiente total, tudo poderá ficar à sua disposição: comunicações, tecnologia, alimentos. Até mesmo os necessários contactos pessoais tão importantes para o seu estilo de vida. Tudo poderia ir até si, se o exigisse.

Judd fitou-a alguns instantes sem falar.

- Isso significaria ter de construir uma pequena cidade só para mim.

A médica encolheu os ombros.

- E isso que tem? Está a planear viver para sempre, não está? - perguntou. - O que o impede então de criar um local onde viva exactamente a seu gosto?

- Que loucura! - exclamou ele.

- Nem por isso - observou a Dra. Zabiski. - Dispõe da oportunidade e do dinheiro para realizar a sua ambição. Mais do que qualquer homem alguma vez sonhou poder possuir. A única coisa que lhe falta é vontade.

Ele permaneceu silencioso.

- Reflicta na questão - aconselhou a médica. - A ilha que possui na costa da Jórgia, nos Estados Unidos, é utilizada apenas como estância de veraneio. Seria o local ideal para levar à prática esta ideia.

Judd fitou-a.

- Terei de pensar muito bem no assunto.

- Sim - volveu ela. - Evidentemente. Ele suspirou fundo.

- Não quero transformar-me noutro Howard Hughes.

- Não o será - afirmou a médica. - Ele fugia do mundo porque tinha medo dele... e de morrer. O senhor não tem medo de nenhuma dessas coisas: nem do mundo, nem da morte. Poderia contactar com o mundo trazendo-o até junto da sua pessoa. Para si a morte é um facto da evolução que pretende alterar. E para alcançar a imortalidade que deseja, talvez tenha de aceitar a possibilidade de a sua vida também vir a sofrer alterações.

 

Nicky estava ao telefone quando Sofia saiu do quarto de banho. Trazia uma toalha enrolada no corpo e dirigiu-se para a cómoda, pegando nas peças de roupa interior. Ele pousou o telefone e olhou para ela.

- Escusas de te apressar - disse-lhe. - Surgiram alterações.

Sofia fitou-o interrogadoramente.

- O avião para o México parte às dez. A seguir só há um às seis da tarde.

- Não regressas ao México - disse ele. - Temos reservas no voo do meio-dia para Moscovo. Queremos-te de volta.

- Mas o aborto - protestou Sofia - está marcado para amanhã.

- Já não te submetes a ele - disse Nicky. - Eles querem que tenhas o bebé.

- Isso é um perfeito disparate - exclamou Sofia. - Não sabemos o que pode acontecer à criança. Introduziram-lhe tantas alterações no sistema bioquímico que ela pode vir a ser um monstro.

- É um risco que temos de correr - disse Nicky. - Segundo o nosso ponto de vista, essa criança poderá vir a ser o único herdeiro de Judd Crane. Através dela conseguiremos controlar tudo o que ele possui: companhias e dinheiro. Tornar-nos-íamos senhores do maior complexo industrial do mundo ocidental.

- Mas não passou tudo de uma experiência...

- Deixou de o ser - volveu Nicky. - E um facto da vida. Poder. Lembras-te do que aquele chinês que morreu disse?

- Não - ripostou Sofia. - Vou voltar para o México, tal como ficou combinado.

- Nem pensar, Sofia - disse Nicky. - Recebeste as tuas ordens.

- E se decidir não lhes obedecer?

- Isso é traição - respondeu ele. - E tu sabes qual é a penalização atribuída a semelhantes atitudes.

Ela apertou o soutien e vestiu as calcinhas de renda.

- E quem é que me vai matar? - perguntou com ar casual. - Tu, Nicky?

- Também eu tenho ordens a cumprir.

- Mas tu amas-me - observou ela suavemente. - Afirma-lo a toda a hora.

- Isso continua a ser verdade - disse ele. - Sempre será.

- Mas o teu amor à obediência é ainda maior, certo? Não fez qualquer esforço para disfarçar o tom sarcástico da voz. Nicky não respondeu.

- Então o sentimento que nutres por mim não é amor verdadeiro, Nicky - disse Sofia. - A única coisa que te interessa é a tua ambição e o teu desejo de poder.

Ele continuou silencioso.

- Agora compreendo muitas coisas, Nicky. Fui mais parva do que pensava - continuou. - Nunca tiveste intenções de te divorciares de Ekaterina para casares comigo. Essa atitude perturbaria os teus projectos. O pai dela ocupa uma posição excessivamente importante no Conselho e está demasiado próximo do Politburo.

Ele observava-a.

- Não acertaste bem no alvo, Sofia. As coisas não se passaram exactamente desse modo. Analisando a questão, decidi-me a utilizar-te para obter o que pretendia porque o casamento, para ti, simplesmente não constava dos teus planos. Eles sabiam tudo sobre ti e a tua reputação. Os nossos dirigentes nunca te aceitariam.

Ela permaneceu alguns momentos a olhar para ele e, em seguida, tirou a sua pequena mala do armário, pareceu mudar de ideias e envergou o fato de linho que ele lhe vira à chegada. Colocou a mala em cima da cama e abriu-a. Olhou por cima do rebordo da tampa antes de a fechar.

- Terás de me matar - disse com ar decidido. - Vou regressar, Nicky.

Ele olhou para Sofia sem poder acreditar no que ouvia.

- Não podes estar a falar a sério.

- Nem eu acredito que me mates.

Ele permaneceu, rígido, na cadeira em que se encontrava, junto do telefone.

- Tenho ordens. Sou um soldado. Não me resta outra alternativa. - Empunhou uma Beretta negro-azulada, que tirou do bolso do casaco. - A nenhum dos dois, se não voltares comigo.

Os olhos dele encontraram, por breves instantes, os dela, depois hesitaram e baixaram para a mala. Não chegou a ouvir o suave estampido do silenciador quando a bala despedaçou um dos lados da mala de Sofia antes de se afundar no seu peito, nem o segundo ruído idêntico que lhe rasgou a cara ao meio como um melão. A força das detonações silenciosas fê-lo cair da cadeira para o chão.

Ela permaneceu ali o tempo suficiente para se lembrar da arma que tinha na mão. O sangue dele espalhara-se por todo o lado, rodeando-o desde a parede ao tecto. Sofia ficou a olhar para o corpo imóvel.

- Nicky, pobre Nicky - murmurou suavemente. - Foste um estúpido. Nunca soubeste de uma coisa que Judd Crane me ensinou. Que há sempre uma segunda oportunidade.

 

- Pai do ano - ironizou Judd -, e nem sequer fui para a cama com elas.

O Dr. Sawyer soltou uma risada.

- Não tem que se queixar. A ideia foi sua. - Ficou alguns momentos calado. - Mas a doutora tem razão. O melhor que tenho a fazer agora é ir até ao fim.

- O tio Paul e o contencioso vão ficar doidos - disse Judd.

- É para isso que lá estão - observou Sawyer. - Estou certo de que arranjarão uma solução qualquer.

Merlin subiu à cabina do piso superior.

- Aterraremos na Cidade do México daqui a quarenta minutos.

- Óptimo - disse Judd. Fitou-o. - Já há notícias dela?

- Viaja no voo da Aeromexico que aterra uma hora depois de chegarmos - informou Merlin. - Continua na lista de passageiros.

- A Segurança está a postos para a tirar de lá se houver algum problema?

- Estamos a tomar todas as disposições possíveis - respondeu Merlin. - Tivemos sorte com o facto de eles terem entrado no quarto dela no momento em que saía. Encontraram-no antes da própria polícia e limparam tudo o que puderam, mas não sabemos durante quanto tempo vamos conseguir exercer pressão para que mantenham o caso abafado.

- Tiramo-la do avião e ficamos com o problema resolvido - disse Judd.

- As gravações registadas pela Segurança mostraram-nos que ele tencionava matá-la - afirmou Merlin. - Ainda não sabemos de que forma ela conseguiu trocar-lhe as voltas.

- Tenho um palpite - disse Judd. - Ela levou a minha mala pequena.

Merlin fitou-o.

- Aquela que tem uma trinta e oito com silenciador adaptado ao interior do fecho de segredo?

Judd anuiu.

- Essa mala tem muitas capacidades, mas não pode deslocar-se sozinha. Não estava no meu quarto quando voltei do hospital.

Merlin acenou aprovadoramente com a cabeça.

- Aquela senhora tem miolos - comentou. - Isso significa que também é perigosa.

Judd soltou uma risada.

- Todas as mulheres que valem a pena são perigosas. Pegou numa folha de papel.

- E as outras raparigas - perguntou. - As futuras mamãs. Estamos a tomar todas as disposições necessárias para as dispersarmos pelo país?

- A Segurança está a trabalhar no caso neste momento. Devemos ter o plano amanhã à noite. - Merlin olhou para Judd. - Qual foi a decisão que tomou em relação a Sofia?

- Ainda estou a reflectir sobre o assunto - respondeu Judd. - Quero falar um pouco com ela.

- Estamos programados para estar no palácio presidencial da Cidade do México quando ela chegar ao aeroporto. Penso que é melhor o senhor não ficar por perto. Além disso, o encontro com o secretário do Comércio para tratar da questão dos Produtos Farmacêuticos Crane será a essa mesma hora. Em seguida almoçará com López Portillo antes de voltar para o avião. Partimos depois para o Brasil, às quatro da tarde. Assim terá tempo para pensar, senhor - disse Merlin, só meio a brincar.

Judd olhou para o relógio de pulso e, em seguida, para as pessoas com quem estava sentado à mesa. Eram três e meia e o presidente já estava com uma hora de atraso. Judd virou-se para o ministro das Finanças, que estava a seu lado.

- Talvez el Presidente tenha questões mais importantes para tratar do que vir a este almoço. Se foi obrigado a cancelá-lo, não ficarei ofendido.

- Não há nada mais importante, senhor Crane - observou o bem-parecido ministro das Finanças em inglês impecável. - O facto é que el Presidente nunca almoça antes das quatro.

Judd olhou para Merlin e, em seguida, de novo para o ministro das Finanças. Levantou-se.

- Por favor apresente as minhas desculpas ao Senor el Presidente. Infelizmente também eu tenho um horário a cumprir. Tenho um encontro marcado no Brasil para amanhã e a minha partida está prevista para as quatro horas. Já só falta meia hora. Talvez a nossa conversa possa ficar para depois de amanhã, altura em que regresso aos Estados Unidos.

O rosto do ministro exprimiu o mais profundo pesar.

- Mas el Presidente vai ficar extremamente desapontado, senor Crane. Está ansioso por poder falar consigo.

- E eu também - observou Judd. - Tenho muita vontade de trocar impressões com ele.

- Mas a questão de que falámos... Estou certo de que ele deseja falar-lhe de mais pormenores sobre ela.

- Para dizer a verdade, não há nada a falar - disse Judd. - Nós compreendemos a vossa posição. Eu quero que construam o laboratório e a fábrica por trinta milhões de dólares. Passarão, deste modo, a possuir cinquenta por cento dos Produtos Farmacêuticos Crane, no México. Os senhores oferecem apenas cinco milhões e querem que seja eu a investir os restantes vinte e cinco, retirando-os dos meus recursos. Em americano simples e directo, isso é um negócio de merda. Sou um homem de negócios, senhor ministro, e não tenciono transformar-me em mais nenhum banco para me juntar aos outros a cujos recursos o México recorreu e já não tem possibilidade de pagar.

- A sua opinião é contrária à de muitos dos bancos com quem temos negócios - replicou o ministro friamente. - Os campos de petróleo do México são os maiores do mundo. Eles são as únicas garantias de que necessitamos, independentemente do aspecto que as nossas finanças possam ter, senhor.

- Possivelmente, Excelência - condescendeu Judd. - Não obstante não sou nem exportador nem refinador de petróleo, tão-pouco tenho qualquer interesse nessa forma de energia. Só me interessam as coisas que tenho já em mão. Estamos no fim de mil novecentos e setenta e nove e o México já tem uma dívida de cinquenta e cinco biliões de dólares. À velocidade a que pedem empréstimos, nos dois anos que faltam para o termo do mandato do presidente, essa dívida subirá provavelmente para oitenta biliões ou ainda mais. Nessa altura já o mundo estará a abarrotar de petróleo. Deixarão de falar em escassez e conservarão e pedirão que se faça alguma coisa para dar vazão ao excesso. Não vislumbro nenhuma possibilidade de pagarem a vossa dívida.

- Mas o panorama que traça significa que outros países se acharão nessa mesma posição. Também quer dizer que a resolução do problema será tomada noutros lugares, tal como aqui.

- É verdade - disse Judd. - Mas não sou obrigado a mexer um dedo que seja. Nenhum dos meus bancos ou companhias financeiras se juntou ao consórcio de empresas que atribuem empréstimos baseados em garantias dadas por companhias petrolíferas. O futuro, tal como o encaro, já não está dependente da produção, nem é uma era de tecnologia industrial. Basear-se-á na informação, na comunicação e nos serviços médicos.

“A primeira indústria que vos ofereço está ligada à medicina. O investimento que vos proponho é mínimo, algo a que não se podem abalançar com o petróleo. Dentro de dois anos, garanto-vos que a quantia que vos sugiro adiantarem, trinta milhões de dólares, será recuperada em duzentos milhões de dólares em negócios. E isso, senhor ministro, apenas nas nações da América Central e a norte da América do Sul. A segunda indústria que planeio oferecer-vos só vos será apresentada depois de a base sólida que estabelecemos para a primeira der mostras de ser lucrativa. Isso significa que teremos a certeza de que a primeira indústria que instalámos não se deixará afundar na corrupção e no roubo que, infelizmente, conspurcam algumas das vossas indústrias. Ofereço comunicações e informações electrónicas, tudo construído e mantido no México: uma empresa que pode abranger e controlar o mundo de língua espanhola. E esse mercado pode valer incontáveis biliões de dólares.

“É destes aspectos, senhor ministro, que peço que fale a el Presidente - concluiu Judd.

O ministro ficou a olhar para ele.

- Fala com muita crueza, senor Crane.

- É a única maneira que conheço-o, senor ministro. O progresso só pode ser construído sobre o granito da verdade, não sobre vigas de madeira podre.

A voz do ministro soou com amargura.

- Essa é a atitude que os Norte-Americanos assumem no geral. Abaixo do Rio Grande ficam os parentes pobres.

- O Presidente Cárter veio à Cidade do México com um ramo de oliveira na mão. Propôs uma maior compreensão entre os nossos dois países. Suponho que foi um gesto simplista e que os milagres não são coisas que aconteçam entre as nações, pelo menos nos tempos que correm. O que ele veio encontrar foram invectivas, um desprezo estudado e insultos. Diga-me, senhor ministro, que foi que Castro ofereceu ao México que os torna a todos tão contentes por lhe sugarem a teta de trás? Nada, excepto subversão e dissensões, ataques ao vosso estilo de governação e aos vossos princípios democráticos. Porque não insultam vocês Fidel, senhores? O ministro ficou calado.

- O México dispõe de uma indústria açucareira rendável. Hoje o México importa açúcar. Também o faz relativamente ao cacau, ao café e aos cereais. Todas as culturas lucrativas preteridas em favor de um produto que está enterrado no mar e leva muitos anos a trazer ao de cima, e que pode ser substituído por outra forma de energia antes de começar a mostrar sinais de rendibilidade nos vossos registos económicos.

O elegante ministro das Finanças replicou com voz desapontada.

- Lamento muito verificar, senhor Crane, o baixo conceito em que nos tem a nós, Mexicanos

- Isso não é verdade, senor ministro - objectou Judd. - Adoro este povo, o seu espírito galante, a sua natureza generosa. As minhas companhias dão trabalho a milhão e meio de mexicanos, tanto legais como ilegais. Considero-os a todos competentes e hábeis. Mas lamento o povo mexicano, sobretudo as infelizes perspectivas que animam os seus futuros líderes. É que daqui a dois anos, quando o novo Governo tomar o lugar deste, estarão tão atarefados a raspar a porcaria das botas que talvez nem tenham comida para o povo levar à boca.

O ministro fitou-o.

- Acredita verdadeiramente no que acaba de referir?

- Tenho muita pena, mas assim é. Penso que não porá em dúvida a franqueza e o afecto que manifesto pelo seu país e pelo seu povo.

- Então que devemos fazer? - perguntou o ministro brandamente.

Judd olhou-o sem pestanejar.

- Não sou nem mexicano nem político. Sou um estrangeiro. Não possuo respostas. Apenas acredito na grandeza do México, assim como na possibilidade de este país vir a tornar-se o líder da América Central. Não no vassalo de alguém que, por sua vez, está completamente manietado e dominado por um povo que nutre por todos vós um desprezo aberto.

O ministro quebrou o seu silêncio com um suspiro profundo.

- Não pode mesmo adiar a sua partida?

- Lamento sinceramente, mas não tenho essa possibilidade, senhor ministro - disse Judd.

- Mas voltará cá para outra reunião, não é verdade?

- Se me convidarem, ficarei muito honrado em o fazer, senhor ministro - respondeu Judd.

- Farei os possíveis para que assim seja.

O telefone que tinha a seu lado tocou. O ministro atendeu e escutou por momentos o que lhe diziam do outro lado da linha, respondendo em seguida em espanhol. Voltou a ouvir por mais um instante e, em seguida, tapou o bocal com a mão e dirigiu-se a Judd.

- A Polícia de Imigração do aeroporto tem a doutora Sofia Ivancich retida a pedido da polícia cubana. Exigem que ela permaneça sob custódia até poder ser enviada o mais depressa possível para Havana. Ela afirma que é sua hóspede e também sua empregada, encontrando-se em trânsito para o seu avião com um visto legal dos Estados Unidos passado pelo seu próprio país.

Judd fitou-o.

- Onde se encontra ela neste momento?

- No Departamento de Imigração da sala de trânsito.

- A polícia cubana tem alguma autoridade sobre essa zona?

- Não legalmente - respondeu o ministro. - Mas temos um acordo não oficial.

- Mas que, apesar disso, não é legal, pois não?

- Não é legal.

Judd olhou para o ministro.

- A doutora Ivancich é uma pessoa muito importante, que faz parte do nosso pessoal de investigação médica. Agradecia que o senhor ministro pedisse ao Departamento de Imigração que a conduzisse pessoalmente ao meu avião e lhes dissesse que me deu a sua garantia no que se refere ao salvo-conduto da doutora.

- A polícia cubana insiste que ela é acusada de crimes graves - disse o ministro.

Não?

Em Cuba - observou Judd. - Não no México, pois

- Não no México.

- A sala de trânsito ainda se mantém sob jurisdição mexicana, não é verdade? A polícia cubana não dispõe de nenhum poder dentro dessa área, pois não?

- É verdade. A jurisdição pertence unicamente ao México.

- A doutora Ivancich está a trabalhar no âmbito de um contrato especial assinado entre os Estados Unidos e a Jugoslávia. Penso que a sua detenção iria causar embaraços ao Governo mexicano se este abdicasse dos seus direitos de soberania em prol dos interesses dos Cubanos. Além disso, senhor ministro, ficar-lhe-ia pessoalmente muito agradecido se pudesse usar da sua influência para obter a satisfação do meu pedido.

O ministro fitou-o rapidamente e, em seguida, voltou a falar ao telefone. Pouco depois pousou-o.

- Será feito, sehor Crane. Já ordenei ao Departamento de Imigração que a conduza na companhia de um corpo de guarda-costas.

- Obrigado, sehor ministro.

- Ela estará no seu avião em menos de dez minutos.

- Mais uma vez os meus agradecimentos - disse Judd. O ministro sorriu.

- Só uma pergunta, senhor Crane. Por acaso formou-se na Faculdade de Economia de Harvard?

Judd esboçou um sinal afirmativo.

- Sim.

- Eu também - disse o ministro, acentuando o sorriso e estendendo-lhe a mão. - Dou-lhe os meus parabéns pela forma como interpreta os factos e apresenta as soluções. Espero que um dia esteja a dar o jogo da minha posição e eu me encontre no seu lugar.

- Já me aconteceu, sehor ministro.

- E diga-me uma coisa, senhor Crane, nessa ocasião também foi bem sucedido?

- Nós não ganhamos ou perdemos. Aprendemos a fazer o melhor que podemos. Não, senhor ministro, sou eu quem deve felicitá-lo.

 

As luzes da Cidade do México desapareceram sob a espessa camada de nevoeiro que as submergia. Pouco depois o avião atingia altura suficiente para encontrar o azul ensolarado do céu.

- Coberto por um manto de merda - comentou Judd, olhando pela janela.

- O seu sumo de laranja, senhor Crane. Bridget pousou a bandeja com os dois copos.

- Nunca se esquece, pois não? - observou Judd com modos rabugentos.

- É para isso que me pagam - disse ela. Aguardou que ele engolisse o comprimido e o sumo.

- O jantar será às sete e meia - acrescentou. - E a hora de recolher às nove.

- Já não estou no hospital - disse Judd.

- Ordens da médica - respondeu Bridget. - Vai ter de obedecer a esta rotina durante mais duas semanas.

- E que tal uma fornicadela? - perguntou Judd em tom de provocação.

- Isso não faz parte das minhas funções - respondeu-lhe a enfermeira em tom igualmente desafiador. - Mas está muito melhor. Em breve poderá levar a sua vida com normalidade.

- Muitíssimo obrigado - resmungou Judd. - Mas não fique por perto quando isso acontecer. Não me esquecerei de que se recusou a valer-me em momentos de necessidade.

Judd ficou a vê-la sair da cabina e depois olhou para Fast Eddie, que se encontrava atrás do bar.

- São todas umas descaradas - observou.

Fast Eddie mostrou os dentes alvos num sorriso rasgado.

- Se são!

- A porcaria da laranja tem o gosto de qualquer merda! - exclamou Judd. - Dá-me uma Coca-Cola com cherry.

- Um minuto, patrão! - protestou Fast Eddie. - Lembre-se das ordens da médica.

- Ela que se lixe! - ripostou Judd com brusquidão. - Não é para ela que trabalhas.

- Mas...?

- Faz o que te digo.

Fast Eddie preparou rapidamente a bebida. Judd engoliu de imediato um trago.

- Que bom - murmurou com um suspiro. - Sentiu-se revigorar. - Os médicos não têm o monopólio da verdade.

O Dr. Sawyer e Merlin entraram na cabina.

- Tudo bem, senhores? - perguntou-lhes Judd.

- Tudo okay - respondeu Merlin.

- E quanto a Sofia? - inquiriu Judd.

- Está óptima - respondeu o Dr. Sawyer. Depois reparou na expressão inexpressiva do rosto de Judd. Olhou de relance para Merlin. - Não lhe disseste?

Este abanou a cabeça negativamente.

- Pensei que o tinhas feito tu.

Judd olhou para os dois interrogadoramente.

- De que diabo estão vocês a falar? O Dr. Sawyer fitou-o.

- Alguém tentou acabar com a doutora Ivancich disparando contra ela com uma arma munida de silenciador, quando atravessava a sala de trânsito. No entanto, o tiro não foi muito certeiro e apenas a feriu sem profundidade num dos braços.

- Apanharam o tipo? - perguntou Judd.

- Nem sequer o viram - respondeu Merlin. - A Segurança mexicana não chegou a saber que ela foi atingida. A doutora manteve a mão direita sobre o ferimento do braço, aparentando um ar perfeitamente indiferente, de modo que ninguém deu pelo sangue até chegar ao avião.

- Onde se encontra agora?

- A dormir na sua cabina - respondeu o médico. - Perdeu muito sangue, como é evidente. Administrei-lhe duas porções de plasma, liguei-a e pu-la a dormir. Está bem. Só acordará daqui a dez, doze horas.

- Bom trabalho, mas diabos levem isto tudo! - exclamou Judd. - Queria saber o que se passou em Havana.

- Sabemos perfeitamente o que aconteceu - disse Merlin. - Aquela senhora conseguiu manter o domínio suficiente para trazer os papéis de Boronovik. Já estive a dar-lhes uma vista de olhos. Todos aqueles depósitos feitos no South and Western Savings and Loan faziam parte de uma recompensa do Governo cubano. Os negociantes trabalhavam através deles.

- Descobrimos realmente uma grande marosca, não foi? - perguntou Judd.

Merlin anuiu.

- E agora? - perguntou Judd.

- O nosso Governo também está metido na questão - respondeu Merlin. - Além disso, as Finanças, o FDIC, o IRS, as alfândegas, o FBI e a CIA andam a querer meter o nariz em tudo isso.

Judd fitou-o.

- Qual é a solução que agora nos resta?

- Acabar com a South and Western Savings. Talvez nos tivéssemos safado com uma retirada de quatrocentos milhões, mas da forma como as coisas agora se apresentam, com tantas agências metidas no assunto, parece que estamos a braços com mais de seiscentos milhões. A única maneira de aguentarmos a situação é introduzir um apoio de trezentos milhões do nosso próprio dinheiro.

A voz de Judd não mostrou o mais leve indício de hesitação.

- Façam-no.

- Corre o risco de perder a quantia toda - objectou Merlin.

- O que está em jogo é o nosso nome e o nosso dinheiro - disse Judd. - Este não é importante. O que me desagrada é a nossa estupidez.

Permaneceram sentados em silêncio durante alguns instantes.

- Mais alguma coisa? - perguntou Judd.

- Todas as raparigas completaram os seus exames médicos e encontram-se em perfeitas condições - principiou o Dr. Sawyer. - O contencioso tem todos os contratos preparados e devidamente assinados, de modo que até os advogados estão contentes. A Segurança colocou-as em vários lares espalhados pelo país. Nenhuma das raparigas sabe nada sobre as outras, evidentemente, e não faz a menor ideia da ligação que tem com o projecto. Escusado será dizer que tanto elas como os seus filhos serão protegidos até ao fim da vida por um fundo irrevogável. Já está tudo preparado. Elas estão muito satisfeitas. Daqui a seis ou sete meses teremos uma farta colheita de mães felizes e bebés lindos como nenhum homem ainda fez desde Ibn Saud.

- Esse teve novecentos filhos - observou Judd. - Pelo menos fê-los a todos.

- Ah, bem, não se pode ter tudo - disse o Dr. Sawyer a rir. - A época em que vivemos é outra.

Judd permaneceu silencioso por momentos.

- Há uma mulher que sabe, doutor. Sofia. O médico concordou.

- Eu e a doutora Zabiski já falámos sobre esse assunto. Ela submeter-se-á ao aborto tal como foi previsto. No caso dela, pensará que todas as outras mulheres também procederam à interrupção da gravidez.

Judd olhou pela janela. Na linha do horizonte, estendia-se uma pequena faixa cor de laranja, antecipando a chegada da noite. Não se virou para eles.

- Parece que têm tudo em ordem.

- Fizemos os possíveis - disse o Dr. Sawyer.

- Óptimo.

Judd virou-se para Merlin.

- Que se está a passar com a estância de Grane Island?

- As Construções Crane já formaram um grupo de estudo. O problema com que deparam neste momento é o de encontrarem as pessoas mais indicadas para levarem a cabo o que pretendemos. Mas crêem que terão esse trabalho preliminar feito daqui a cerca de dois meses.

- Então quanto tempo faltará para que tenham tudo construído e pronto?

- Um ano para começarem a construir e mais outro para terminarem. - Merlin olhou para Judd com ar de dúvida. - Continua a querer avançar com o projecto? Estou convencido de que teremos talvez de gastar uns quarenta milhões de dólares.

Judd virou-se para ele.

- Analisaremos o projecto antes de tomarmos essa decisão. Ainda temos tempo.

Bridget entrou na cabina.

- Desculpem, senhores - disse -, mas está na altura de o meu paciente dormir a sua sesta antes de jantar.

- Minha doce e atenta cabra - murmurou Judd. Mas não se notava qualquer nota de rancor na sua voz. Começava a sentir-se fatigado.

O suave zumbido dos jactos infiltrou-se na sua cabina. Abriu os olhos lentamente. Bridget encontrava-se ao lado da sua cama, com o uniforme branco fazendo lembrar uma aparição fantasmagórica na penumbra da cabina.

- Está aí há muito tempo? - perguntou Judd.

- Somente há poucos minutos - respondeu a enfermeira. - Dormia tão profundamente que não sabia se havia de o acordar para o jantar, ou não.

- Jantar parece-me uma boa ideia - disse ele. - O almoço foi ao ar. Não cheguei a comê-lo.

- Muito bem - anuiu ela. - Comunicá-lo-ei ao cozinheiro. Judd sentou-se na cama.

- Vou barbear-me e tomar um duche - disse. - A que horas é que o jantar está pronto?

- Quando quiser - respondeu a enfermeira.

- Daqui a meia hora, está bem?

- Com certeza.

Ele viu a porta fechar-se nas costas dela e, em seguida, abriu a luz da cabina. Ao baixar os olhos viu a luz vermelha de chamada do telefone a piscar. Levantou o auscultador.

- A sua mãe telefonou de São Francisco enquanto dormia, senhor Crane - informou-o o técnico de comunicações.

- Ponha-me em contacto com ela - disse Judd. - Pousou o telefone e dirigiu-se ao quarto de banho. O telefone tocou ainda ele não tinha saído de dentro deste. Pegou no telefone de parede que tinha ao lado da sanita.

- Tenho a senhora Marlowe ao telefone para falar com o senhor.

- Obrigado - disse ele. - Ouviu o ruído da ligação a ser estabelecida. - Barbara?

- Já passaram quase seis semanas desde que falei contigo pela última vez - disse esta. - Onde estás agora?

- Neste preciso momento estou na sanita, a fazer um chi-chi - respondeu Judd.

- Tolo - exclamou ela a rir. - Sabes muito bem a que me refiro.

- Segundo o plano de voo devemos estar algures sobre o Amazonas, mas não tenho a certeza. Acabei de acordar.

- Como estás? Tens passado bem? - perguntou ela.

- Nunca me senti tão bem - respondeu ele.

- E os tais tratamentos?

- Uma delícia - respondeu ele. - E como vai a senhora e o Jim?

- Estamos bons - disse Barbara. - Ouvi dizer que vais à inauguração.

- É verdade.

- Nós também recebemos um convite - disse ela. - Pensei que seria agradável irmos juntos.

- Acho a ideia formidável - concordou ele. - Vamos combinar como vai ser.

- Fá-lo-emos. - Hesitou por momentos. - Tens a certeza de que estás bem?

- Sim, Barbara - respondeu Judd. - Estou óptimo. Dê um abraço meu ao Jim e um grande beijo para si.

- Um grande beijo para ti também - disse ela. - Estamos ansiosos por te vermos em Washington. Agora adeus.

Judd desligou o telefone e acercou-se do lavatório de mármore. Inclinou-se sobre este por momentos e, em seguida, carregou no botão de chamada da enfermeira.

Bridget entrou na cabina e ficou à porta da casa de banho.

- Que se passa? - perguntou.

- Olhe para isto - respondeu ele, apontando. - Estou com uma erecção tão forte que não consigo urinar.

- Que foi que desencadeou essa reacção? - perguntou ela.

- Estive a falar com a minha madrasta ao telefone - disse Judd. - Ela costumava excitar-me. Creio que ainda o faz.

Ela fitou-o com um meio sorriso nos lábios.

- Seu pervertido incestuoso - observou, rindo. - Meta-se debaixo de um duche frio. Depois disso não terá nenhum problema em urinar.

 

- Neste momento encontramo-nos a dezasseis quilómetros da costa - informou o capitão através dos intercomunicadores da cabina.

Judd carregou no respectivo botão.

- Passe-o para o écran grande.

Raoul, o comissário-chefe, desenrolou o écran prateado sobre a comprida parede de madeira da cabina de Judd e fechou as cortinas das janelas, impedindo assim a luz do sol tropical de entrar. Quase de imediato, uma longa faixa de areia branca apareceu, varrida pelas ondas de um mar azul. Começou a desaparecer, sendo logo substituída por quilómetros intermináveis de floresta verde.

- O delta do rio está no centro do écran - elucidou o capitão.

Judd voltou a carregar no botão do intercomunicador.

- Aumente a imagem, por favor.

- Estamos a treze mil metros de altitude - informou o capitão. - A imagem pode estar granulosa.

- Não tem importância - disse Judd. - Esta é precisamente a zona que quero ver. Depois mantenha um curso estável rio acima.

- Sim, senhor - respondeu o capitão, desligando.

Judd observou o écran cuidadosamente. A imagem tornou-se maior, enchendo este de tal maneira que até a cor lamacenta do vasto caudal do Amazonas se tornou claramente visível. Alguns momentos mais tarde o delta perdia-se ao fundo do écran e o enorme rio começava a assenhorear-se deste, até parecer extravasá-lo.

- As fábricas devem estar a aparecer dentro de um minuto ao cimo do écran, senhor - informou o capitão através do intercomunicador.

- Não podemos baixar um pouco e voar em círculo por cima delas? - perguntou Judd.

- Só temos permissão para voar a treze mil metros de altitude. Se alterarmos essa altitude eles ficarão furiosos.

- Eles que se lixem! - exclamou Judd. - Baixe para onze mil. Eu tomo a responsabilidade. - Virou-se para Merlin, que estava sentado ao lado dele. - Que diabo! Foi para isto que viemos até aqui.

Merlin permaneceu em silêncio, de olhos postos no écran.

A primeira fábrica apareceu neste. Penachos de fumo negro-acinzentado elevavam-se de seis chaminés gigantescas. Viam-se longas docas com embarcações atracadas e um tapete rolante que se estendia desde um dos lados da fábrica directamente até aos navios de carga.

- Aquela é a fábrica de papel - indicou Judd.

A imagem no écran alterou-se e outra fábrica começou a aparecer. A nitidez era agora mais acentuada e era possível ver que as fábricas tinham sido construídas sobre o solo mas ancoradas ao rio, de modo a ficarem ao mesmo nível da terra.

- Esta fábrica faz tábuas de madeira e acabamentos - disse Judd. - A madeira que fica de desperdício é que vai para a fábrica de papel.

- Inacreditável - comentou Merlin. - Fábricas como estas no meio da selva mais primitiva que existe ao cimo da Terra.

- D.K. é um génio - disse Judd. - Foi ideia dele. Sabia que não podiam fazer semelhante construção ali. Então mandou fazer as fábricas no Japão, fê-las atravessar o oceano e colocou-as ali. Ficaram ancoradas naquele local e prontas para entrar em acção quase do dia para a noite.

Uma terceira fábrica apareceu no écran. Por trás desta, o rio corria sem parar, embora completamente coberto de toros de madeira centenas de milhares deles, rolando interminavelmente uns sobre os outros como que no interior de mandíbulas escancaradas de não se sabe que monstro pré-histórico.

- Aquela deve ser a serração onde se procede ao descasque, ao corte e à selecção - disse Judd.

Apontou para o cimo do écran. Uma gigantesca barragem de cimento começava a aparecer.

- Mais um sinal do génio de Ludwig. Nunca precisou de petróleo ou energia nuclear. De nada a não ser água. Energia electroeléctrica, fornecida pela generosidade da Natureza. Ele não só pensou nisso como se antecipou às necessidades da própria Natureza e do reabastecimento futuro de matéria-prima. Criou um programa de reflorestação que faz com que a floresta seja renovada de vinte em vinte anos!

- Então não compreendo - disse Merlin. - Porque deseja ele desfazer-se daquilo?

- Creio que por duas razões - respondeu Judd. - Uma delas, porque a selva trocou-lhe as voltas. Calculou uma renovação das florestas para vinte anos. Mas estas movem-se a uma velocidade tal que não há nada que o homem possa fazer para a abrandar. Ludwig descobriu que precisava pelo menos de dez homens apenas para impedir que a floresta invadisse o domínio das fábricas.

- E qual é a outra razão? - perguntou Merlin.

- O próprio D.K. O homem está com mais de oitenta anos e creio que começa a compreender que o tempo lhe falta para terminar a sua obra. - Judd ficou alguns instantes em silêncio e em seguida olhou para Merlin. - Achas que ele desejaria abandonar tudo isto se tivesse o dom da imortalidade?

Merlin não respondeu.

Judd carregou no botão do intercomunicador.

- Pode retomar o seu curso, capitão - disse. - De momento, terminei. Obrigado.

- Muito bem, senhor - respondeu o capitão. - Aterraremos em Brasília dentro de três horas e trinta e cinco minutos.

Bridget entrou na cabina no momento em que Raoul levantava as persianas das janelas. A luz do sol invadiu o compartimento.

- Está de novo na hora - disse a enfermeira, de bandeja na mão.

Judd pegou no comprimido e engoliu-o com o sumo de laranja.

- Nunca se farta de fazer isto? - perguntou-lhe Judd.

- É o meu trabalho - respondeu ela, fitando-o. - A doutora Ivancich está acordada.

- Como se encontra ela?

- Bem - respondeu a enfermeira com voz fria. - Está a vestir-se, mas o doutor Sawyer fez questão em que mantivesse o braço com a tala.

- Vou lá abaixo vê-la - disse Judd.

- Não tem necessidade de o fazer - observou ela no mesmo tom de frieza. - Ela tenciona cá vir assim que puser alguma maquilhagem.

Judd fitou-a.

- Tenho a impressão de que estou a notar um pequeno sinal de ciúme na sua voz.

- De todas menos dela - replicou Bridget sarcastica-mente. - Tem quase idade suficiente para ser minha mãe.

E abandonou a cabina com um menear ligeiro das ancas que ele nunca lhe notara antes. Judd olhou para Merlin.

- Tenho a sensação de que a nossa enfermeira está a começar a descongelar.

Merlin soltou uma risada.

- É possível - disse. - Mas a quantidade de números que tenho metida na cabeça não me deixa espaço para reparar nessas coisas.

Judd sorriu.

- Alguma novidade na situação da South and Western?

- Todas as agências governamentais que possa imaginar estão lá metidas de mãos e pés. A única coisa que o poderia intrigar é o facto de tudo indicar que o principal sócio do banco é Castro.

- Merda! - exclamou Judd com secura. - Porque será que todos os políticos querem ser homens de negócios?

Merlin pôs-se de pé.

- Não se importa de que vá passar pelas brasas? Estive quase toda a noite a pé.

- E melhor aproveitar enquanto pode - disse Judd. - Tenho o pressentimento de que as coisas hoje não vão ser nada fáceis.

Ficou a ver a porta fechar-se depois de Merlin sair e falou a Fast Eddie, que se encontrava atrás do bar.

- Uma Coca-Cola com o tratamento do costume.

- É para já, patrão.

Judd estava precisamente a beber um gole da sua bebida preferida quando Sofia apareceu à porta da cabina, hesitando como quem não tem a certeza se será bem recebida.

- Entra, Sofia - disse-lhe Judd com à-vontade, pousando o copo.

Ela aproximou-se da cadeira onde ele estava sentado e deu-lhe um beijo suave na face.

- Obrigada - disse.

- Estás melhor, minha querida?

- Sim, senhor.

- Já não tens dores?

- Não, Judd. Estou óptima.

Ele fitou-a directamente nos olhos.

- Não tens que pedir desculpas ou explicares o que quer que seja, Sofia - disse ele. - Somos amigos, não somos?

- Sim, sim - respondeu ela. - Assim o espero.

Ele apontou para uma cadeira. Aguardou que ela se sentasse.

- Todos nós fazemos aquilo que consideramos necessário.

- Tive receio de que achasses que eu te tinha traído - disse Sofia.

- Acreditaste verdadeiramente que eu era capaz de pensar uma coisa dessas? - inquiriu ele.

Ela não hesitou.

- Não.

- Então não o receaste - disse ele.

- É uma velha história - respondeu Sofia. - Queres que ta conte?

Judd abanou a cabeça.

- Não és obrigada a isso. Já a sei toda.

- E não estás zangado? Ele riu-se.

- Não. Vivi tempo suficiente para saber que as velhas lealdades não desaparecem de um momento para o outro.

Sofia permaneceu em silêncio. Olhou para o copo que Judd tinha na sua frente.

- Sabes que não devias tomar essa bebida.

- Eu sei - concordou ele. - Mas também isto é uma velha lealdade.

Ela não disse nada.

- Além disso, agora não estás de serviço, doutora - acrescentou.

- É verdade - anuiu Sofia.

- Pareces cansada, doutora - disse ele. - Posso oferecer-te um cheirinho?

- É provável que me faça bem - observou ela.

Judd fez um sinal a Fast Eddie, que se aproximou com o pequeno frasco dourado. Sofia pegou nele com a mão válida, mas não conseguiu utilizá-lo devido ao outro braço. Fast Eddie levou-lhe a colher às narinas. Ela inalou duas porções fortes como dinamite. Fast Eddie voltou para o bar.

- Estou muito melhor - disse Sofia. - Os olhos dela encontraram os de Judd. - És um homem estranho, Judd Crane.

Ele não respondeu.

- Pensas mesmo que vais viver eternamente? - continuou Sofia.

- Não disse que era eternamente - replicou ele. - Imortalidade foi a palavra que utilizei.

- É a mesma coisa, não é? - observou ela. - Uma questão de semântica.

- Nunca fui muito bom em linguística. Apesar disso, independentemente daquilo que aches, é o que eu espero alcançar.

- E para teu próprio bem, também o espero - disse ela. - A tua nova enfermeira não gosta de mim.

- Isso não tem qualquer importância - respondeu Judd.

- Andas a dormir com ela, evidentemente.

- Por enquanto não - respondeu ele.

- Não tens vontade de o fazer?

- Provavelmente - replicou ele. - Mas também esse aspecto é desprovido de qualquer importância.

- Vou fazer um aborto na próxima semana - disse ela. Ele fez um sinal de anuência.

- Eu sei.

Sofia olhou-o directamente.

- Gostaria de conservar o teu bebé. A voz dele tornou-se dura.

- Todos nós sabíamos que não passava de mais outra experiência.

- Uma entre dez não é assim uma perda tão grande para ti - disse Sofia.

- Seria uma a mais - respondeu ele. - Foi uma experiência e é assim que deve continuar a ser, Sofia.

- Mas que ficará de ti se morreres? - perguntou ela.

- Eu não morrerei - observou ele. - E mesmo que isso me aconteça, nada ficará perdido.

Sofia permaneceu em silêncio por momentos.

- Posso tomar outra dose? - perguntou.

Judd fez um gesto a Fast Eddie sem lhe responder. Sorveu lentamente a bebida, vendo-a tomar mais duas inalações. Em seguida ela virou-se para olhar pela janela.

- O céu está tão azul - disse.

- A treze mil metros está sempre. Sofia virou-se para ele.

- Tenho medo - declarou. - Não quero morrer.

- Não morrerás.

- Não os conheces - disse ela. - Não são como tu. No mundo deles, acreditam que eu traí. E nunca o esquecem. Mais cedo ou mais tarde acabam por me deitar a mão.

- Podes desaparecer - admitiu Judd. - Na América muitos se têm mantido escondidos deles e nunca foram encontrados. Alguns dos grandes cientistas foram esquecidos, até por eles.

- Talvez - disse Sofia. - Mas não o será comigo. O meu crime não foi unicamente a traição, mas também o assassínio de uma pessoa que se encontrava apenas a um passo do próprio Politburo.

Tirou um cigarro da caixa que estava em cima da mesa e acendeu-o. Inalou profundamente o fumo.

- Nunca fui muito boa em corridas - articulou. - O melhor que tenho a fazer é regressar.

- Muito bem - concordou Judd. Ela fitou-o.

- Quer dizer então que não te importas que eu morra...

- Não morrerás - observou ele. - Esqueces-te de algo muito importante. Eles precisam de ti.

- Para quê? Sofia olhou para ele. Judd sorriu.

- Brejnev. O teu próximo paciente. Ela permaneceu em silêncio.

- Achas que eles se arriscariam a colocar em perigo a vida dele simplesmente porque deste cabo de um parvo de terceira categoria que era genro de um burocrata do Politburo? Adropov e o Politburo não são estúpidos. Se conseguires prolongar a vida de Brejnev nem que seja só por mais dois anos, isso dá-lhe mais tempo para consolidar a sua posição de modo a poder tomar o lugar de Brejnev.

Sofia fitou-o nos olhos.

- Acreditas no que acabas de dizer?

- Posso dar-te a certeza de que é assim - disse Judd. - As Indústrias Crane também dispõem de contactos importantes no Politburo.

 

Brasília era uma cidade novinha em folha, tão nova que o seu coração ainda nem principiara a bater. As ruas eram vastas e vazias, os edifícios modernos, feitos de cimento e vidro. Até mesmo os automóveis e os autocarros, accionados por uma mistura de etilo e álcool de cereais, não poluíam o céu azul que cobria a cidade.

A conferência teve lugar numa enorme sala rodeada de janelas, vinte e dois pisos acima das avenidas da cidade. Os presentes sentavam-se em redor de uma mesa oval de madeira de carvalho nodosa, instalados em confortáveis cadeiras de encosto alto e forradas de couro na mesma tonalidade da mesa.

Judd encontrava-se sentado em frente do presidente da delegação brasileira, na parte mais larga da mesa.

Era ladeado por Merlin e pelo Dr. Sawyer. O presidente brasileiro também tinha um homem de cada lado.

Todos falavam inglês, mas Judd apercebeu-se de um ligeiro sotaque alemão na voz do presidente.

- Doutor Schoenbrun - disse -, se bem entendo, o senhor Ludwig investiu meio milhão de dólares neste projecto.

O Dr. Schoenbrun concordou.

Do outro lado da mesa, Judd fitou-o.

- E que desejam da minha pessoa?

A pronúncia do Dr. Schoenbrun estava a tornar-se ligeiramente mais acentuada.

- Neste projecto, senhor Crane, não desejamos nada do senhor.

Judd disfarçou a sua surpresa permanecendo em silêncio, embora várias coisas lhe ocorressem de imediato.

- As nossas negociações com o senhor Ludwig foram finalizadas - prosseguiu o presidente. - O Governo brasileiro irá tomar conta de todo o projecto. O senhor Ludwig concordou com uma divisão justa dos lucros e com uma taxa de juro baixa e a longo prazo. A seu tempo, chegaremos ao pagamento capital inicial, de acordo com os vários factores económicos que combinámos ter em consideração.

- As minhas felicitações, doutor Schoenbrun - disse Judd. - Na minha opinião, deram um grande contributo à economia do vosso país.

- Obrigado, senhor Crane - agradeceu o Dr. Schoenbrun, permitindo-se esboçar um pequeno sorriso de orgulho.

Judd acenou afirmativamente com a cabeça.

- Nesse caso, devem ter outra proposta em mente para me fazerem. Caso contrário, porque me teriam convidado para vir aqui?

- Assim é, senhor Crane - disse o Dr. Schoenbrun. - Mas antes de mais nada devo apresentar as minhas desculpas por o ter levado a uma falsa conclusão quanto à verdadeira razão. O mundo está inundado de muitos ouvidos e por isso considerámos de importância vital conservarmos esta conversa só entre nós.

- Concordo - anuiu Judd.

- Falo-lhe dos Produtos Farmacêuticos Crane - disse o Dr. Schoenbrun. - Essa indústria é um dos sectores mais fracos da nossa economia. Devo dizer-lhe honestamente que já procedemos a vários contactos. Primeiro foi com a Hoffmand-La Roche, mas eles decidiram instalar-se na Costa Rica. Depois foi com a Bayer Chemical Welgesschaft, mas eles só estão a fabricar produtos para as donas de casa. Quanto aos materiais mais pesados, preferem mantê-los perto deles.

Judd fitou-o.

- E Du Pont? Monsanto?

- Esses poderiam estar interessados - respondeu o Dr. Schoenbrun -, mas estavam preocupados com a política de direitos humanos do Presidente Cárter. Acharam que poderiam acabar com mais problemas do que aqueles que poderiam resolver.

- Quer dizer que a Crane apareceu no fim da vossa lista? - inquiriu Judd secamente.

- Em termos físicos, é verdade - respondeu o Dr. Schoenbrun candidamente. - Em termos reais, de modo algum. Em determinada área, sobretudo, temos estado sempre mais próximos um do outro do que de qualquer dos outros.

- A que se refere? - perguntou Judd.

O Dr. Schoenbrun fitou-o directamente nos olhos do outro lado da mesa.

- Medicina nuclear - disse.

Passado um momento, Judd pronunciou uma única palavra:

- Alemanha.

O presidente anuiu.

- Depois da guerra, muitos dos cientistas alemães fugiram, como sabe. De acordo com as condições de rendição, a Alemanha não tem permissão para desenvolver uma indústria nuclear, destine-se ela a que fim se destinar. O Brasil não assumiu essas proibições. Assim, cada vez mais alemães começaram a vir para cá. A “Indústria Silenciosa", como lhe chamamos. Ninguém se refere a ela, mas existe. Hoje dispomos de dois complexos perfeitamente modernos, já em funcionamento, que fornecem energia eléctrica a Brasília e São Paulo.

- Totalmente dirigidos e ocupados por alemães - observou Judd.

- Não apenas por alemães - replicou o Dr. Schoenbrun rapidamente. - Também temos muitos americanos e franceses.

Judd fitou-o.

- Têm a bomba?

- Não - respondeu o Dr. Schoenbrun. - Mas claro que a podemos ter se quisermos.

- O fabrico de mais bombas nucleares não me seduz - disse Judd.

- Tão-pouco a mim - replicou o Dr. Schoenbrun, fitando-o de igual modo. - Dispomos de outra instalação que talvez possa interessá-lo.

- Qual é?

- No planalto de um vulcão extinto dos Andes, a cerca de seiscentos e cinquenta quilómetros do empreendimento de Ludwig, construímos um gerador nuclear a trezentos metros de profundidade no interior da cratera. Ludwig lembrou-se de que lhe poderíamos fornecer toda a energia para as suas fábricas a partir daí. Mas depois desistiu e o dinheiro acabou-se-nos por causa da crise financeira. Agora o trabalho lá está, à espera de que a selva o enterre.

- Que desejam que eu faça em relação a isso? - perguntou Judd.

- Pensei que poderia utilizá-lo para construir um centro de medicina nuclear. Neste momento temos três biliões de dólares gastos nele. Entregamo-lo a si por mais um bilião. Mais dois biliões e construirá ali a fábrica mais moderna do mundo. E o que ainda é mais importante, encontra-se num local perfeitamente secreto e inacessível a intrusos. Por isso o denominámos de Xanadu.

- Aonde encontraremos pessoal para o construir e manter? - inquiriu Judd.

- Já temos esse problema resolvido. Dispomos de um quadro completo de pessoal pronto a tomar funções.

Judd reflectiu por momentos.

- É possível que esteja interessado. Quando é que poderei vê-lo?

- Quando o desejar - respondeu Schoenbrun. Judd levantou-se.

- Entrarei em contacto com os senhores. - Estendeu-lhe a mão. - Obrigado, doutor Schoenbrun.

- É de arrepiar - disse Judd ao Dr. Sawyer assim que Bridget lhe entregou o sumo de laranja e o comprimido. - Querem apenas três biliões de dólares.

- Uma autêntica pechincha - comentou o Dr. Sawyer, sarcasticamente.

Judd riu-se.

- Faz com que o México, em comparação, pareça um paraíso de integridade. Tudo o que estes tipos desejam é um canto no mercado da corrupção.

- Quer dizer que não vai fazer negócio com eles?

- Claro que vou fazer negócio com eles. Talvez não exactamente como eles pretendem, mas o suficiente para lhes proporcionar uma sensação enganadora de segurança em relação a nós. - Sorriu secamente. - Para negar, às vezes é preciso integrar.

O Dr. Sawyer fez uma pequena pausa.

- De onde é que pensa que todo o equipamento deles veio? Todas as instruções e etiquetas da maquinaria estão escritas em inglês. Mas não podem ter vindo dos Estados Unidos. Cárter nunca o teria permitido.

- Aposto o que quiseres em como foi a França - respondeu Judd. Depois reparou na expressão de incredulidade do médico. - Não seja ingénuo. Apesar do acordo de não proliferação assinado entre a França, os Estados Unidos e outros países ocidentais de poderio nuclear, quando se trata de dinheiro a França acha sempre uma saída.

- Os nossos amigos - comentou o Dr. Sawyer com sarcasmo.

- Com amigos desses, não precisamos de inimigos.

Judd espreitou pela janela e carregou no botão do inter-comunicador que o punha em contacto com o capitão.

- Ainda estamos próximos do Rio? - perguntou.

- Aproximadamente a duzentas e sessenta milhas marítimas, senhor Crane - respondeu o capitão.

- Voltemos. Ligue para eles a pedir licença para aterrar - disse Judd. Virou-se para o Dr. Saywer. - É tempo de nos divertirmos um pouco.

- O senhor devia estar na cama às nove e meia - observou o Dr. Sawyer.

- Só por uma vez, doutor - disse-lhe Judd -, esqueça que é meu médico. Estou farto do tratamento de mão a que tenho andado a recorrer. Além disso, as raparigas de Ipanema são verdadeiramente tudo aquilo de que fala a canção. Até talvez lhe façam algum bem a si.

O som das gargalhadas despertou Bridget. Esta olhou em volta, no meio da escuridão total em que a sua cabina estava mergulhada. O mostrador luminoso do relógio indicava serem três e meia. Espreitou pela janela e viu três ou quatro raparigas a saírem de duas limusinas paradas junto do avião. Soltavam pequenas risadas, seguindo atrás de Judd e do Dr. Sawyer em direcção ao elevador.

Bridget voltou para a sua cama. Fitou a escuridão; deixou de ouvir sons. O seu quarto ficava na cauda do avião. Fechou os olhos e tentou voltar a conciliar o sono.

Fast Eddie já tinha doze longas linhas de cocaína dispostas sobre a superfície espelhada da mesa. As raparigas riram e deram risadas ainda mais altas quando pegaram nas palhinhas para se servirem.

- Isto é uma loucura - disse ele. - Nunca fiz nada do género. Qual delas é que o senhor quer?

- Todas - respondeu Judd, rindo. - Neste momento, com a erecção que tenho, sinto-me capaz de as fornicar todas.

O Dr. Sawyer olhou para Judd.

- Um momento. Não se esqueça de que tem de ter um certo cuidado.

- Terei esse cuidado amanhã - disse Judd. - Neste momento sinto-me como um rapazinho numa loja de rebuçados.

- Porque não te vens, Judd? - perguntou Sylvia, arquejante. - Tens o pénis tão teso que já estou a ficar magoada.

As outras duas raparigas concordaram.

- E eu também! Nunca senti uma coisa tão dura! - exclamou uma.

- Não abranda nem um bocadinho - insistiu a outra. - Continua a funcionar como se fosse um cano de aço. Só sinto a dor. E o prazer divinal!

Judd olhou para a quarta rapariga.

- E tu, pequena?

Esta hesitou por um momento.

- Ainda que tenha a impressão de sentir sangue, o prazer é perfeitamente absorvente!

Judd sentou-se no meio das raparigas.

- Lamento muito - disse. - Na verdade não desejava magoar-vos. Talvez tenha tomado demasiada cocaína.

- Normalmente, o excesso de cocaína torna isso mole - comentou Sylvia.

- As drogas exercem efeitos diferentes sobre as pessoas - disse Judd.

Levantou-se e envergou o robe.

- Está a fazer-se tarde - observou. - Talvez seja melhor irem agora. E da próxima vez será melhor para todos nós.

Sylvia olhou para ele.

- Mas ainda está erecto - observou. - Temos a impressão de que o desiludimos.

- Vocês são maravilhosas - disse Judd. - E não me enganaram. Adorei estar com vocês.

- Voltaremos a ver-nos? - perguntou Sylvia.

- O mais breve possível - respondeu ele.

As raparigas enfiaram rapidamente os respectivos vestidos. Judd carregou no botão para chamar Fast Eddie.

- Toma conta delas.

Judd beijou-as na face antes de saírem da cabina.

- Agora não te esqueças, Judd - lembrou Sylvia -, de que disseste que nos voltaríamos a encontrar em breve.

- Não me esquecerei - disse ele.

Encaminhou-se lentamente para a porta. Pelo canto do olho viu Fast Eddie entregar uma nota de mil dólares a cada uma das raparigas. Fechou a porta e despiu o robe. A sua erecção ainda estava mais acentuada e começava a ser-lhe dolorosa. Dirigiu-se apressadamente para o duche e abriu a torneira da água, que estava fria como gelo.

 

O Dr. Sawyer entrou na sala de Judd. Fast Eddie estava a limpar o bar.

- O senhor Crane está na sua cabina?

- Sim, está - respondeu Fast Eddie.

- Achas que já acordou?

- Acabei de o ouvir ligar o chuveiro - respondeu Fast Eddie.

O Dr. Sawyer bateu à porta da cabina.

- Posso entrar? - perguntou. A voz de Judd soava abafada.

- Pode.

Sawyer abriu a porta. A princípio não viu quase nada; as luzes da cabina tinham sido reduzidas ao mínimo. Depois os seus olhos habituaram-se à penumbra.

Judd encontrava-se sentado numa cadeira, com os pés pousados no chão e o corpo encolhido, ao mesmo tempo que os braços se mantinham bem apertados de encontro à zona genital. Tinha a cabeça completamente inclinada e o queixo descansava sobre o peito.

- A rapariga... -principiou o Dr. Sawyer, calando-se subitamente. - Que se passa?

Judd ergueu os olhos para ele.

- Não sei.

A voz soava-lhe abafada, como se viesse de uma grande distância, não de dentro dele.

- Creio que estou metido num grande sarilho.

O médico procurou o reóstato da parede. O compartimento ficou inundado de luz. Viu o rosto de Judd empalidecido e banhado por uma transpiração proveniente de um estado doloroso. Os olhos azuis-cobalto tinham adquirido uma tonalidade quase negra. Aproximou-se rapidamente da figura curvada. Pousou-lhe a mão na testa. Sob as gotas de suor, estava fria.

- Consegue pôr-se de pé? - perguntou, não tentando ajudá-lo.

- Penso que sim - respondeu Judd.

Lentamente, começou a endireitar-se. Pousou cuidadosamente as palmas das mãos sobre os braços da cadeira e impulsionou o corpo para cima. Tinha os lábios brancos e fortemente comprimidos; as narinas tremiam-lhe quando inspirava o ar; o suor continuava a brotar-lhe às catadupas. Conseguiu erguer-se em parte, mas depois teve de parar.

- Não consigo - observou, com uma voz curiosamente calma.

- Então não se esforce mais - disse o médico. - Eu ajudo-o. - Rodeou-lhe o tronco com um braço. - Vou conduzi-lo lentamente para a cama. Não entre em pânico. Vai correr tudo bem.

- Não estou em pânico - replicou Judd com uma risada lúgubre. - Não sabe que sou imortal?

O médico estendeu-o na cama. Chamou Fast Eddie pela porta aberta.

- Diz à enfermeira para vir cá e trazer a minha maleta e o estojo de primeiros socorros. Chama também a doutora Ivan-cich. E manda o Raoul trazer imediatamente a garrafa de oxigénio para baixo.

- É para já - respondeu Fast Eddie, que não perdeu mais tempo.

O médico ajoelhou-se ao lado da cama.

- Fale-me da dor. Onde é? Judd fitou-o.

- Começou no pénis e, em seguida, os testículos pareceram transformar-se em rocha e o meu membro tornou-se tão duro lá no fundo que parecia querer furar-me a parte de trás, em direcção ao rabo. Espalhou-se pelas minhas virilhas, depois para cada um dos lados, como se os rins e a bexiga se tivessem transformado em pedra. Quis urinar mas não saiu nada. Tive a sensação que o meu pénis e a uretra se tinham tornado em rocha sólida.

- Muito bem - disse o Dr. Sawyer. - Agora tente relaxar-se. Nós tratamos de tudo.

Judd fez uma careta.

- Creio que, afinal de contas, aquela festa não foi boa ideia.

- Possivelmente - concordou o Dr. Sawyer. - Mas não deixou de ter a sua piada. Por certo excedeu-se, nada mais.

- Doutor Sawyer - disse Bridget nas costas deste.

- Prepare uma intravenosa - ordenou. - Vinte miligramas de Valium, cinco centímetros cúbicos de morfina numa solução salina de trinta minutos.

A enfermeira fez um sinal afirmativo e começou a remexer na maleta de emergência do médico. Preparou rapidamente o suporte de metal para segurar a garrafa e, em seguida, juntou o Valium e a morfina à solução que esta continha. Por fim ligou o tubo à garrafa, ajustou a agulha à extremidade daquele e pendurou o recipiente no suporte.

- O doutor injecta?

- Sim - respondeu este. - Mantenha-lhe o braço imóvel. Ela fez um sinal de assentimento e no momento seguinte o Dr. Sawyer introduziu-lhe a agulha na veia. Bridget prendeu-a rapidamente ao braço de Judd com um adesivo. Olhou em seguida para o médico.

- A garrafa de oxigénio está aqui no carrinho.

- Dispositivo para as narinas - disse ele. - Comecemos por dois litros por minuto durante uma hora.

- Muito bem, senhor - concordou ela.

Enquanto a enfermeira tomava as disposições necessárias para a aplicação do oxigénio, o Dr. Sawyer virava-se para a sua mala. Abriu-a para retirar o termómetro electrónico. Achou a leitura que este indicava. Era baixa: noventa e sete vírgula nove. O mostrador digital luminoso da tensão arterial mostrava, a vermelho, uma máxima de dez vírgula dois e uma mínima de sete.

Judd viu os números. A intravenosa já estava a começar a fazer efeito. Sorriu fracamente.

- Que esperava, doutor? Provavelmente tenho o sangue todo concentrado aqui no material.

- Também posso medir-lhe a tensão aí, se quiser - brincou o Dr. Sawyer. - Se calhar está suficientemente grande para se lhe poder ajustar o aparelho.

Judd fitou Bridget.

- Só se for ela a fazê-lo.

A enfermeira não respondeu.

- Aposto em como nunca viu um pénis deste tamanho - disse Judd. - Por muita experiência que tenha tido naquele hospital.

- Não se gabe - ripostou ela em tom malicioso. - Tenho visto alguns que fazem o seu parecer o de um bebé.

Sofia entrou na cabina.

- Desculpem ter demorado tanto tempo. Não me conseguia vestir por causa da tala. Que aconteceu?

- Um ataque agudo de priapismo - disse o Dr. Sawyer. Sofia olhou para Judd. Este sorriu-lhe.

- Mete respeito, não mete? Ela riu-se.

- Fantástico. Estou apaixonada.

Judd virou-se para Bridget, a fim de se meter com ela.

- Ao menos há pessoas que sabem apreciar-me. Bridget não sorriu.

- Nem eu esperava outra coisa dela.

- Como se sente agora? - perguntou o médico, tentando desviar o antagonismo entre as duas mulheres.

- Melhor - respondeu Judd. - Agora acho que tenho de urinar.

- Arranje uma garrafa, enfermeira - disse o Dr. Sawyer. Bridget fitou-o.

- Pachos de gelo ajudam.

- Você é que é a especialista - observou o médico. - Muito bem.

Bridget saiu da cabina. Judd ergueu os olhos para Sofia.

- O menos que podes fazer é beijá-lo.

- Teria receio - disse ela. - Parece-me que já tens problemas que cheguem.

Judd virou-se para o Dr. Sawyer.

- A injecção intravenosa já está realmente a funcionar. Assista à derrocada dos poderosos.

Estavam sentados à mesa da sala de Judd quando a enfermeira entrou, vinda da cabina, fechando em seguida a porta.

- Está a dormir - informou.

- Óptimo - disse o Dr. Sawyer. - Há alguma alteração sensível no seu estado?

- Muito ligeira - respondeu a enfermeira. - Já conseguiu libertar algum líquido, mas mesmo a dormir parece ter dores.

- Falei com um urologista do hospital da Florida. Ele pensa que se espremermos a glândula da próstata o poderemos aliviar.

- Já tive vários pacientes no mesmo estado em Devon - disse Bridget. - Nada podíamos fazer até a turgidez abrandar ligeiramente, de modo a podermos induzir a ejaculação. Isso, por sua vez, provocava pressão suficiente para ajudar o paciente a alcançar uma flacidez normal.

O Dr. Sawyer olhou para Sofia, que se encontrava do outro lado da mesa.

- Que acha se lhe dermos uma injecção de Compazine? Sofia esboçou um sinal de concordância.

- Isso ajudá-lo-á a relaxar, e mesmo que não funcione, pelo menos não o magoará.

- Quanto tempo falta para terminar a aplicação da intravenosa? - perguntou o médico.

- Cerca de quinze minutos - respondeu Bridget.

- Muito bem - disse o Dr. Sawyer. - Damos-lhe a Compazine assim que terminar.

- Quer que ele continue a receber oxigénio, doutor?

- Sim.

- Obrigada, doutor - disse Bridget, regressando à cabina de Judd.

Sofia fitou Sawyer.

- É uma rapariga estranha - observou. - Que a terá levado a especializar-se em doenças do pénis?

Sawyer sorriu.

- Se calhar passou a adolescência nas traseiras dos automóveis a fazer trabalhos de mão.

Merlin também sorriu, mas Sofia não percebeu patavina. Merlin fitou o Dr. Sawyer.

- Que deseja que façamos neste momento? Que fiquemos aqui ou regressemos a casa?

- Voltemos para casa - respondeu o médico. - Ficarei mais descansado depois de o colocar sob os cuidados de especialistas.

- Isso cria outro problema - disse Merlin. - Este diz respeito à doutora Ivancich.

- Qual? - perguntou Sofia.

- A Segurança informou-nos de um afluxo súbito de cubanos à nossa área. Estranhos a respeito de quem ainda não sabemos nada. Só nos resta concluir que andam à sua procura.

- Já o receava - articulou Sofia. - Até mencionei o facto a Judd.

- Eu sei - disse Merlin. - Judd já me pediu para arranjar outro plano de voo para si.

- Fê-lo? - perguntou ela. Merlin anuiu.

- Sim. Novos documentos de identificação, passaporte, tudo. Neste momento viaja na qualidade de esposa de um dos homens da segurança deste avião. Daqui seguirá na Varig até Dálias, de lá pela American Airlines até Washington. Temos um hospital privado nos arredores dessa cidade. Ficará lá registada sob outro nome. Judd encontrar-se-á consigo nesse local, na próxima semana, quando for à inauguração.

Sofia hesitou por um momento.

- Creio que não me resta outra alternativa, pois não?

- Não, se deseja continuar viva - afirmou Merlin. A médica anuiu lentamente.

- Suponho que aproveitarão essa altura para realizar o aborto, não?

- Exactamente.

Ela humedeceu os lábios que, de súbito, se tinham tornado secos.

- Não há possibilidade de Judd me abandonar neste momento, pois não?

- Se ele o desejasse fazer, tê-la-ia deixado no México - respondeu o Dr. Sawyer. - Mas não é assim que ele faz as suas jogadas.

 

- É microcirurgia por laser - declarou calmamente o Dr. Orrin, o urologista. - A técnica foi adaptada a partir da que era utilizada na transplantação da retina, mas é tão avançada como o vaivém espacial Columbia o é em relação ao avião dos irmãos Wright de Kitty Hawk.

Judd fitou-o.

- Já foi experimentado antes?

- Não em humanos, nem sequer em animais - disse o médico. - Este método foi especialmente concebido para o seu caso. Mas foi examinado vezes sem conta pelo computador. Não há possibilidade de sair mal.

Judd permaneceu silencioso por momentos, antes de se virar para o Dr. Sawyer.

- Que acha?

- Estive a reflectir sobre o assunto e também falei com a doutora Zabiski ao telefone, para a Jugoslávia. Ambos concordamos em que é completamente viável e que não trará resultados negativos ao nosso outro programa.

- Ainda assim, não sei - observou Judd. O Dr. Sawyer riu-se.

- O senhor é um homem estranho. Arriscou a sua vida nas experiências perigosas que levámos a cabo. Todas elas poderiam ter dado cabo de si, mas não hesitou. Começo a pensar que o seu pénis é mais importante do que a sua vida.

Judd virou-se para o urologista.

- Qual é a alternativa?

- Somente o velho método. Laqueia-se a veia que fornece o sangue aos vasos capilares do pénis. A partir daí está terminado, de uma vez para sempre, mas claro que fica impotente para o resto da vida e o processo é irreversível - replicou o Dr. Orrin. - O pénis é seu e a opção também é sua.

Judd baixou os olhos para o microchip, que pouco maior era do que a cabeça de um alfinete.

- É só isto? - perguntou. - Nunca tem de ser mudado? - Não há nenhuma bateria para ser substituída?

O Dr. Orrin anuiu.

- É só o que aí está. A energia é fornecida pela electricidade do seu próprio sistema nervoso. O microchip é feito de titânio e é perfeitamente tolerado pelo órgão onde é implantado. Substitui as funções físicas daquela pequena parte do nervo que ficou danificada pelo tratamento nuclear e, talvez o que ainda é mais importante, terá uma duração eterna.

- Então posso ter uma vida como se fosse normal?

- Não “como se". O senhor “será" normal, senhor Crane. Limitar-nos-emos a transplantar um nervo manufacturado para junto dos seus. A erecção será normal, o orgasmo e a ejaculação serão normais e o sangue retirar-se-á permitindo uma flacidez completamente normal - disse o Dr. Orrin.

- Então quanto tempo levarei até atingir nova erecção? - perguntou.

O Dr. Orrin riu-se.

- Isso depende de si, senhor Crane. Não posso antecipar o quando e o quem do seu acto amoroso por si.

Judd também riu.

- Quanto tempo leva o processo todo a completar?

- A intervenção demora sete minutos apenas porque temos de nos aproximar da próstata. Passadas entre vinte e quatro e trinta e seis horas, estará completamente curado e pronto para entrar em acção.

Judd desviou os olhos do Dr. Sawyer para o urologista.

- Amanhã de manhã - disse. Aguardou que este saísse do quarto. - Não é irónico que a primeira parte do meu corpo a alcançar a imortalidade seja o meu pénis?

- Harlem, meu amor! - exclamou Fast Eddie, apontando da janela do helicóptero que os levou do aeroporto de Newark para Nova Iorque. - Harlem! Estamos em casa.!

Judd soltou uma gargalhada. Sentia-se bem. E ainda só tinham passado três dias após a operação. O doutor estava certo. Não tinha nenhuma dor.

- Consigo ver o Empire State Building - disse Bridget em voz excitada. - Custa-me a acreditar que não se trate apenas de um filme.

- Nunca esteve em Nova Iorque? - perguntou Judd.

- Nunca - respondeu ela.

- Então tem de arranjar tempo para a conhecer - disse Judd. - Ficaremos aqui dois dias, antes de irmos até Washington para a tomada de posse de Reagan.

- Também posso ter dois dias de folga, patrão? - perguntou Fast Eddie. - Gostava de ir ver o meu velho avô e alguns amigos.

- Estás autorizado - disse Judd. Virou-se para Bridget. - Também pode dispor de dois dias.

- Tem a certeza de que não precisa de mim? - perguntou esta.

- Para quê? - inquiriu com um sorriso. - Estou curado. Não há problema.

Merlin disse do outro lado da coxia.

- Não se esqueça de que temos de estar no escritório daqui a uma hora.

- Chegaremos a tempo - respondeu Judd. - Fast Eddie levará Bridget ao apartamento na segunda limusina.

O tráfego de Nova Iorque, como de costume, estava insuportável. Embora o edifício dos escritórios se encontrasse apenas a alguns quarteirões de distância do local onde o helicóptero parara, a limusina levou trinta e cinco minutos a lá chegar.

Eram onze menos um quarto, portanto, faltavam ainda quinze minutos para a reunião marcada ter início, quando Judd entrou no seu gabinete, o mesmo que outrora pertencera ao pai. Fechou a porta atrás de si e olhou para o retrato do progenitor. As palavras com que o pai costumava recebê-lo vieram-lhe à memória: “Olá, filho."

Suavemente, respondeu:

- Olá, pai. Como vê, nada mudou. Tal como era seu desejo.

“Nada mudou", ecoou-lhe na mente, no entanto teve a impressão de que ouvia a voz do pai a dizer: “Contudo, tudo mudou."

Judd permaneceu imóvel e em silêncio, olhando para o retrato.

O eco persistiu: “Mas é assim que as coisas se devem passar, filho. Lá fora está um novo mundo, o teu mundo."

- Também é o teu mundo, pai - sussurrou Judd. - Ambos o fizemos. Sem ti, nunca teria sido possível.

O eco desaparecera. Judd caminhou para trás da secretária e olhou para a cidade através das janelas, virando-lhe depois as costas e sentando-se. O seu peso fez ranger o antiquado cadeirão forrado a couro, proporcionando-lhe uma sensação de conforto. Também ele, pensou, pertencera ao pai. Pegou lentamente no telefone e carregou no botão que o punha em contacto com a secretária.

- Fala Crane - disse. - Desculpe não saber o seu nome.

- Não necessita de pedir desculpa, senhor Crane. A voz era precisa, eficiente e perfeitamente familiar.

- Mãe! - exclamou Judd, soltando uma gargalhada ao telefone.

- Estamos num escritório ligado a uma empresa, senhor Crane - disse ela numa voz decidida -, onde não são toleradas nenhumas familiaridades. Mas pode tratar-me por Barbara se o desejar.

Ele abandonou o auscultador sobre a secretária e atravessou a sala, abrindo a porta e apanhando-a ainda de telefone na mão.

- Barbara! - exclamou, abraçando-a. Ela ria, ao mesmo tempo que ele a beijava.

- Judd.

Ele conduziu-a ao seu gabinete.

- Ainda agora, quando estava aqui dentro - disse-lhe ele -, tive a impressão de que voltava a ser um rapazinho.

Ele encontrava-se sentado à cabeceira da mesa de reuniões, tal como seu pai fizera. Barbara estava à sua direita e o tio Paul à sua esquerda. Merlin acomodara-se ao lado de Barbara, enquanto, do outro lado do tio Paul, ficavam dois advogados, de ar solene; na frente de todo o grupo instalara-se uma secretária apretrechada com uma máquina de taquigrafia.

Judd sorriu.

- Cada vez o tio se parece mais com Burl Ives - observou. - Porque não apara a barba e os caracóis que lhe caem pela nuca em vez de fazer lembrar um hippie velho?

- Gosto de andar assim - respondeu Paul. - E enquanto estamos para aqui a falar um com o outro, porque não te lembras das tuas boas maneiras? O teu pai tinha sempre uma garrafa de Glenmarangie na mesa à minha frente.

Judd sorriu e, sem proferir palavra, pegou numa garrafa que estava no chão e pousou-a diante de Paul, juntamente com um copo, também antiquado.

- Não admira que não possamos permitir que estejas no desemprego. Nunca mais dávamos vazão ao maior fornecimento de Glenmarangie do mundo. Assim está melhor? - perguntou.

- Muito melhor - disse o tio Paul, abrindo a garrafa, deitando algum uísque num copo e bebendo-o de um trago. - Agora podemos falar de negócios.

- Sou todo ouvidos - observou Judd.

- A questão do Banco South and Western deixou-nos atolados na merda - principiou Paul. - Chegou-me ao conhecimento, através de fontes fidedignas, que a Comissão da Banca Privada vai cair-nos em cima com toda a fúria assim que a tomada de posse terminar e o Congresso reunir. Já estão a preparar intimações para ti assim como para todos os responsáveis, tanto presentes como passados, para comparecerem a uma auditoria especial.

- Não é de admirar - disse Judd. - Mas não nos podem fazer nada. O facto é que fomos nós que despertámos a atenção do Governo para este problema.

- Neste caso, a verdade é o que menos importa - observou Paul. - Trata-se de política, e a política adora cabeçalhos. A verdade fica enterrada ao fundo da última página.

- Qual é a tua sugestão?

- Temos amigos - respondeu Paul. - Recorramos a eles. É nesta altura que as pessoas mostram o que valem.

- Muito bem - disse Judd. - Avança.

- Custará muito dinheiro - advertiu Paul.

- É para isso que o dinheiro serve - replicou Judd. Fez uma breve pausa. - Que outras novidades agradáveis têm para mim?

Paul serviu-se de novo de uísque.

- Não são boas nem más - disse. Esvaziou o copo. - Tinhas razão. O Brasil arranjou o seu equipamento nuclear de um dos nossos aliados nucleares. Também temos conhecimento de que a equipa presidencial de transição está-se nas tintas para aquilo. Os militares acham que estão muito bem com os Brasileiros. Sentem que o Brasil nos apoiará totalmente contra os Soviéticos.

- Esse pormenor é, na minha opinião, decisivo - disse Judd. - Vamos fazer o acordo com o Brasil.

- E em relação ao México? - perguntou Paul.

- Também concretizamos esse. Mas de outra maneira. A América Central será considerada como um mercado à parte.

- Faz sentido - observou Paul. - Agora falemos de mais uma questão apenas e podemos encerrar a reunião.

- De que se trata? - inquiriu Judd.

- Investir quarenta milhões de dólares na ilha Crane é um perfeito disparate - disse Paul. - Oponho-me terminante e irrevogavelmente contra a ideia. Especialmente porque me disseste que era apenas para utilização provisória até Xanadu estar pronto. Que diferença faz esperarmos mais um ano ou dois? Nunca mais verás esse dinheiro.

- O tempo é que é importante, não o dinheiro. A ilha Crane vai avançar com o seu projecto. - Judd olhou para as pessoas que se encontravam à mesa. - Mais alguma questão comercial?

- Nada de importante - respondeu Paul. - Apenas convém que saibas que os Russos concordaram com a sugestão que lhes fizeste relativamente à médica jugoslava e manifestam-te a sua gratidão.

- Então a reunião está encerrada - disse Judd. Levantou-se da sua cadeira e deu a volta à mesa para depositar um beijo na face do tio Paul. - Obrigado.

- Esta é uma forma maluca de terminar uma reunião - observou Paul. - Além disso, ainda não acabei a minha garrafa de uísque.

- Dou-lhe licença para que a leve para casa num saquinho - disse Judd.

 

Paul levou-os a almoçar para a mesa que habitualmente ocupava junto do lago no Restaurante “As Quatro Estações". Barbara e Judd sentaram-se nas cadeiras instaladas junto da água borbulhante que movimentava suavemente o límpido lago de fundo verde. Jim, o marido de Barbara, encontrava-se ao lado desta, enquanto Paul ficava a seguir a Judd.

Um empregado de mesa colocou um uísque duplo com gelo em frente de Paul sem proferir palavra.

- Saúde - disse este, bebendo um gole. Em seguida perguntou o que gostariam eles de beber.

Paul Kovi e Tom Margittai apareceram com uma garrafa gelada de champanhe rosado Cristale de 75, antes de os ocupantes da mesa terem oportunidade de pedir uma bebida.

- É o preferido da senhora - disse Paul, inclinando-se delicadamente para depositar um beijo na mão de Barbara.

- Não se esqueceu - observou esta, sorrindo. - Que simpático da sua parte. Obrigada.

- E tão raro vê-la por aqui - disse Tom. Virou-se para Judd. - E a si também, meu caro jovem.

- Passo pouco tempo na cidade - contrapôs Judd. - Tenho de trabalhar para viver.

- Evidentemente - concordou Tom sem convicção. Paul olhou para Judd.

- Não sei porquê, mas o certo é que o acho mais jovem do que a última vez em que o vi, há três anos atrás. Qual é o seu segredo?

Judd riu-se.

- Deitar cedo e cedo erguer... Conhece o velho ditado. Os dois proprietários do restaurante sorriram e retiraram-se

depois de se inclinarem uma vez mais, enquanto Oreste procedia ao cerimonial da abertura do champanhe. Judd provou-o e acenou aprovadoramente com a cabeça. Oreste encheu as finas taças em forma de túlipa.

- Bon apétit - disse, afastando-se em seguida. Judd ergueu a sua taça.

- A todos vocês.

- E a ti - retribuiu Barbara carinhosamente. Paul fitou-o.

- Apesar de todos os nossos problemas, a máquina continua a funcionar - disse. - Somando a Fundação Crane, as empresas, os teus bens pessoais, no fim do ano que está a decorrer, tudo perfazerá uma quantia superior a quinhentos biliões de dólares.

- Não passam de números - disse Judd. - Não existe assim tanto dinheiro no mundo. Se assim é, então não percebo por que razão se põe em causa o investimento na ilha Crane.

Paul fez um sinal a pedir novo uísque.

- É provável que tenhas razão - observou. - Apesar de todas as minhas dúvidas pessimistas, parece que acabas por estar certo.

- Obrigado, tio Paul - agradeceu Judd. - Nunca pensei que chegaria a ouvi-lo dizer semelhante coisa.

Um dos empregados de uniforme cinzento aproximou-se, de telefone na mão.

- Senhor Crane, tenho uma chamada telefónica para si. Perante o sinal afirmativo de Judd, enfiou a ficha numa

tomada oculta algures na árvore que estava atrás da cadeira de Judd.

Judd remexeu nos seus bolsos. Estavam vazios.

- Tio Paul, dê-lhe alguma coisa por mim.

Paul resmungou, entregando ao jovem uma nota de cinco dólares.

- Agora percebo como foi que fizeste todo aquele dinheiro - disse.

Judd começou a falar ao telefone.

- Daqui fala Crane.

A voz familiar da Dra. Zabiski chegou-lhe aos ouvidos.

- Judd, Merlin disse-me onde poderia encontrá-lo.

- Onde está? - perguntou Judd.

- No Aeroporto JFK - respondeu ela. - É muito importante que nos encontremos.

- Em que terminal se encontra?

- No da Pan American.

- Aguarde aí - disse ele. - Vou buscá-la daqui a meia hora.

Levantou-se imediatamente da mesa.

- Terão de me dispensar do almoço - declarou. - Surgiu um imprevisto importante.

Todos sabiam que não valia a pena interrogarem-no sobre o assunto.

- Poderemos jantar juntos? - perguntou-lhe Barbara.

- Não sei - respondeu Judd. - Depois telefono-vos. Disse-lhes adeus e afastou-se. O seu motorista já estava à

espera na limusina, estacionada em Park Avenue. Judd saiu pela porta lateral do Edifício Seagram e entrou no carro.

- Para a Pan American no Aeroporto Kennedy - ordenou. - Imediatamente.

A limusina fez o percurso em vinte e três minutos. Judd saiu do carro e correu para o edifício. A Dra. Zabiski estava à espera dele, mesmo atrás das portas de vidro. A seu lado tinha duas pequenas malas de viagem. Judd beijou-a no rosto e, pegando nas duas malas, acompanhou-a até ao automóvel. O motorista abriu-lhes a porta, e, em seguida, preparou-se para guardar as malas no porta-bagagens.

- Por favor, não - pediu a Dra. Zabiski. - Prefiro levá-las junto de mim.

- Sim, minha senhora - disse o motorista, ajeitando-as no chão do carro, ao lado deles. Depois voltou a instalar-se atrás do volante e olhou para trás. - Para onde vamos, senhor?

- Para o apartamento da Quinta Avenida - disse Judd.

- Talvez não tenhamos tempo - disse a minúscula médica. - Devo ir buscar Sofia e levá-la comigo para Moscovo no voo da Aeroflot desta noite.

- Então leve-nos até à entrada dos aviões particulares de LaGuardia - ordenou ele.

Carregou no botão que comandava o fecho da janela que os separava da secção do motorista e depois virou-se para a médica.

- Podemos falar - disse-lhe. - Aqui ninguém nos pode ouvir.

Ela pegou num cigarro e acendeu-o com mão nervosa.

- Tenho de lhe falar de muitas coisas; não sei por onde começar.

- Então diga uma de cada vez - sugeriu ele. Os olhos castanhos da médica suavizaram-se.

- Tenho um cancro - disse. - Devem restar-me apenas dois meses. Possivelmente menos.

Os olhos azuis-cobalto dele procuraram os dela.

- Não tem nenhuma dúvida?

- Absolutamente nenhuma - respondeu ela em tom indiferente e profissional. - Já o sei há algum tempo. Agora o fim aproxima-se.

- Lamento.

- Não o faça - disse a Dra. Zabiski. - Tive uma vida boa. Sei que pensava que eu estava no fim da casa dos sessenta. Mas a verdade é que eu tenho setenta e dois anos.

Ele permaneceu em silêncio.

Ela voltou a inalar o fumo do cigarro.

- Segunda questão: o meu trabalho de pesquisa. Não quero que caia nas mãos dos Russos. Deixei a maior parte dos dados nos meus arquivos para os levar a pensar que está tudo lá. - Apontou para as duas malas. - O trabalho completo encontra-se nestas duas malas. Gravações, microfilmes e livros de apontamentos. Podem existir algumas omissões, mas apesar do código amador criado por mim própria estou convencida de que os seus computadores não terão problema nenhum a decifrá-lo. Só lhe peço que o guarde com cuidado e o utilize sabiamente. Não apenas para proveito próprio, mas também para benefício da Humanidade.

Judd acenou afirmativamente com a cabeça.

- Desculpe-me por um momento.

Pegou no telefone e carregou dois números. Uma voz atendeu.

- Aviação Crane.

- Daqui fala Judd Crane - disse ele. - Estarei aí aproximadamente dentro de doze minutos. Quero que preparem o jacto Falcon Twenty. Que esteja pronto a largar para Langley Field, Washington. Vão dois passageiros, regressam três.

- Com certeza, senhor Crane - respondeu a voz. Judd pousou o telefone e virou-se para a médica.

- Não telefono a Sofia a avisá-la. Não me quero arriscar a que alguém tenha a linha dela sob escuta.

- Compreendo - disse ela. - Apagou o cigarro. - Não sei como o conseguiu, mas o certo é que os Russos ilibaram-na por completo. Tenho ordens para a entregar pessoalmente a Brejnev.

- Que lhe acontecerá depois de Brejnev morrer? - perguntou Judd.

- Não sei. Só espero que eles percebam que ela sabe o suficiente do meu trabalho para lhe permitirem continuá-lo. Preferia que ela tivesse possibilidades de voltar para trabalhar consigo, mas sobre isso nada podemos fazer.

- Depois regressa à Jugoslávia?

- Não - disse ela. - Ficarei no Hospital Máximo Gorki, em Moscovo.

- Quer dizer que nunca mais poderei vê-la?

- É verdade.

Judd ficou silencioso.

- Merda. - Olhou para a médica. - Terei saudades suas.

- Eu também sentirei a sua falta, Judd Crane - disse ela. - Nunca conheci nenhum homem como o senhor. - Pousou a mão sobre a dele. Era macia, pequena e frágil. - As velhas também se apaixonam - acrescentou.

Judd levou a mão dela à boca.

- O que as mantém eternamente belas - disse.

Em Langley Field tinha outra limusina à sua espera, assim como dois guardas da Segurança. Um deles assumiu o lugar de condutor. Depois de se instalarem no automóvel, ficando os dois homens da Segurança no banco da frente, Judd pegou no telefone e ligou para a clínica. A telefonista pô-lo em contacto com Sofia quase imediatamente.

Não a chamou pelo nome nem ela o fez em relação a ele.

- Estou a trinta minutos da clínica - disse ele. - Não faças as malas nem leves nada. Limita-te a vestir um casaco e a sair como se fosses dar um passeio. Duas ruas a seguir à clínica fica um centro comercial, à esquina da Langley com a Arling-ton. Há aí um armazém enorme nessa esquina. Entras dentro dele e sentas-te na geladeira, o mais perto possível da janela, de modo a poderes ver o que se passa no exterior. Aguardas aí até eu ir ao teu encontro. Entendido?

- Perfeitamente - respondeu ela. Interromperam a ligação.

Menos de meia hora depois ele entrava no centro comercial. Sofia estava sentada no local indicado. Judd instalou-se ao lado dela.

- A doutora Zabiski está à espera no carro - disse-lhe ele.

- Penso que estou a ser seguida - informou-o ela.

- Onde?

- Ali, à porta da loja da frente. Um indivíduo corpulento de casaco de fazenda escuro. Creio que já o vi várias vezes na clínica.

Judd anuiu. Levou o pequeno botão que tinha na mão ao ouvido.

- Ouviram?

Fez uma pequena pausa.

- Muito bem - acrescentou. - Levem-no dali. Levantou-se e colocou uma nota de cinco dólares em cima

do balcão.

A limusina aproximou-se na altura em que se dirigiam para a saída. Deteve-se na frente deles e a porta do lado dos passageiros abriu-se de imediato. Judd empurrou-a rapidamente à sua frente. Sofia foi parar, meio a voar, dentro do carro, logo seguida de Judd, que fechou a porta atrás de si. Puxou-a para baixo e ergueu-se o suficiente para olhar pelas janelas enquanto o carro arrancava.

Viu o homem corpulento caído no passeio, em frente da loja onde tinha estado. O homem da Segurança já havia desaparecido. Nesse momento a limusina saiu do parque de estacionamento e acelerou em direcção ao aeroporto.

Encontravam-se na sala de passageiros da Aeroflot, no terminal da Pan American. A luz vermelha que indicava o embarque acendeu-se.

Judd virou-se para a pequena médica. Ficou em silêncio por momentos e depois beijou-a três vezes. Duas nas faces e a terceira nos lábios.

- É uma grande senhora - disse ele.

- Boa sorte, Judd Crane. Oxalá todos os seus sonhos se transformem em realidade.

Em seguida voltou-se e caminhou em direcção ao portão. Judd encarou Sofia.

Esta ergueu os olhos para ele. Os lábios tremiam-lhe e lágrimas tinham começado a formar-se.

- Lamento. Queria o teu filho - disse ela.

- É melhor assim - respondeu ele.

Ela abanou a cabeça.

- Não sei - disse.

Ele não fez qualquer observação. Sofia respirou profundamente.

- Voltarei a ver-te mais alguma vez?

- Espero que sim - respondeu ele.

- Estás a ser sincero?

- Sim - murmurou ele. - Representas algo muito especial para mim. Desejo verdadeiramente que nos voltemos a encontrar um dia.

Ela rodeou-lhe o pescoço com os braços e beijou-o.

- Amo-te, Judd Crane - declarou. - De um modo muito meu, mas amo-te de verdade.

Virou-se e correu para a porta de saída. Ele ficou a vê-la até a porta se fechar depois de ela passar, atravessando então o terminal de regresso ao seu carro. O motorista tinha a porta aberta à sua espera.

- Senhor Crane - disse, estendendo-lhe um pequeno bilhete dobrado. - A jovem senhora deixou isto para si.

Judd pegou no bilhete e instalou-se no carro. A limusina principiou a afastar-se e ele baixou os olhos para o papel aberto. Leu-o rapidamente.

Para Judd...

Lembra-te:

A vida é para os vivos.

A imortalidade para a História.

Amor, Sofia.

 

A DESCOBERTA

1983-1984

 

Os raios de sol reflectidos pelos espelhos solares formavam uma coluna que se erguia em direcção ao céu azul e límpido.

- Ali - apontou o Dr. Sawyer através da janela do helicóptero. - A ilha Crane.

Sofia pestanejou, colocando os óculos de sol.

- É enorme - comentou. - Maior do que eu pensava. Sawyer fez um sinal de concordância.

- A ilha tem dezanove quilómetros de comprimento e treze de largura, na zona mais larga, ao centro. O meio ambiente temporário de Judd, como ele o designa, não gosta de lhe dar o nome de lar, é uma cúpula geodésica inteiramente constituída por espelhos solares de células de energia. Tem quinhentos e trinta e seis metros de diâmetro, três pisos acima do solo e dois abaixo.

Sofia voltou-se para Sawyer.

- E ele tenciona viver ali?

Sawyer esboçou um sinal de assentimento.

- Não por muito tempo, mas já ali está há nove meses e ainda de lá não saiu. Tanto quanto sei, não pôs os pés no continente.

Sofia acendeu um cigarro e deixou o fumo deslizar pelas narinas.

- Alcatraz - observou pensativamente. Sawyer olhou-a perplexo.

- Não é esse o nome da ilha onde vocês, Americanos, colocam os vossos prisioneiros de modo a não poderem escapar? Tal como a Ilha do Diabo é para os Franceses?

- Não tinha pensado nisso - disse ele.

- A ideia foi da doutora Zabiski, não é verdade? - perguntou ela.

- Começou por ser - explicou Sawyer. - Mas não me parece que ela tivesse podido antecipar a dimensão com que ele transformaria essa ideia em realidade.

Sofia abanou a cabeça.

- A velhota estava louca. Então, no fim, piorou ainda mais. Visitei-a no dia em que faleceu. Olhou para mim e disse: “Ele viverá para sempre. Dei-lhe todos os conhecimentos de que precisa para isso."

“- Que conhecimentos, doutora?" - perguntei-lhe.

“- Todos", disse ela. “Mas ele deve reuni-los. Estão dispersos em parcelas e fragmentos. Não o pude fazer. Mas agora ele tem as ferramentas. Computadores. Eles pensam um milhão de anos num segundo. Toda a minha vida não foi suficiente para pensar assim tanto. Sim, Judd tem as ferramentas. Ele será bem sucedido onde eu não fui. Verás!"

“- Então porque não partilha os seus conhecimentos com o mundo? Não apenas com ele?", perguntei. Ela olhou para mim e respondeu: “Porque o amei. E ele é o único homem a quem confiaria esta sabedoria. O mundo utilizá-la-ia para alcançar poder e ganhos. Ele já dispõe de tudo isso à sua vontade. A única coisa de que precisa é do tempo em si." Depois fechou os olhos e adormeceu.

Sawyer fitou Sofia.

- Voltou a falar mais alguma vez com ela?

- Não - respondeu Sofia. - Tive de regressar ao meu próprio trabalho. O Chefe do Estado ia partir em viagem e eu devia acompanhá-lo. Nessa mesma noite informaram-me de que tinha morrido.

- Foi por essa razão que telefonou a Judd nessa noite? - perguntou ele.

O rosto de Sofia manifestou uma expressão de grande surpresa.

- A única pessoa a quem falei no assunto foi ao chefe. Não falo com Judd desde que nos despedimos no aeroporto de Nova Iorque. Já lá vão mais de três anos.

- No entanto, houve alguém que lho disse - insistiu Sawyer.

- Não sei quem terá sido - afirmou Sofia. - Mas Judd uma vez disse-me que tinha contactos importantes no interior do próprio Politburo.

- O facto não me surpreende - disse Sawyer. - Judd tem uma rede de pessoas espalhadas por todo o mundo.

- É perfeitamente possível - anuiu Sofia. Os indicativos para se apertarem os cintos e apagarem os cigarros acenderam-se, ao mesmo tempo que se ouvia um pequeno toque de campainha.

Sofia desfez-se do cigarro. - Estava no Bangladesh quando recebi a mensagem.

- Ficou surpreendida?

Sofia acenou afirmativamente com a cabeça.

- Pensei que Andropov e o KGB eram as únicas pessoas que sabiam para onde eu fora depois de Brejnev morrer.

- Acha que eles neste momento estão a par da sua vinda para aqui?

- Provavelmente. Penso que eles conhecem todos os passos que dou.

- Mas não a detiveram?

- Não - respondeu ela. - Mas entrarão em contacto comigo quando me quiserem ou precisarem de mim.

A voz do piloto do helicóptero fez-se ouvir através do altifalante da cabina.

- Vamos aterrar em North Helipad. Fast Eddie está à vossa espera.

Sofia sorriu.

- Fast Eddie! - exclamou. - Vou gostar imenso de o voltar a ver.

- A corrente do Golfo passa a cerca de catorze quilómetros e meio da ilha - disse Fast Eddie, que ia instalado ao volante do Land Rover com ar condicionado. - Até no Inverno a água está quente. A pequena tribo de índios Seminolas que ali vivia chamava-lhe o Rio Sagrado.

- Muito interessante - comentou Sofia, arreliando-o. - Como lhe chamas tu?

Fast Eddie sorriu.

- Chato.

Ela olhou para a estrada estreita.

- Não gostas disto?

- Não.

- E que pensa o senhor Crane? Fast Eddie olhou para ela.

- Ele não se manifesta, portanto, não sei.

- É verdade que ele ficou ali metido durante nove meses sem se ausentar nunca?

- Tanto quanto sei - respondeu Fast Eddie. - Mas eu vou a casa uma semana em cada mês.

O carro virou para um caminho que conduzia até à parte da frente de uma pequena casa. Fast Eddie apontou para esta.

- Aí tem o local onde vai ficar. Existem doze cabanas para hóspedes na ilha.

Sofia permaneceu silenciosa por momentos.

- De repente fiquei com a impressão de que um cheirinho me iria fazer bem. Já lá vai muito tempo.

Ele fitou-a.

- Sei o que quer dizer - disse, tirando o pequeno frasco da corrente de ouro.

Retirou-lhe rapidamente a tampa e entregou-o a Sofia, juntamente com a colher.

As mãos dela tremiam ligeiramente, depressa ficando firmes depois de duas inalações. Sofia fitou Fast Eddie.

- Isto ajudou.

- Óptimo - respondeu ele, voltando de novo a guardar os objectos.

- Sinto-me assustada - murmurou ela. Fast Eddie ficou em silêncio.

- Ele mudou? - perguntou Sofia.

- Continua a drogar-se - respondeu Fast Eddie com um sorriso. - Portanto, creio que não mudou completamente.

Saiu do carro e foi dar a volta para lhe abrir a porta.

- Venha - disse-lhe. - Vou mostrar-lhe o local.

Ao aproximarem-se, a porta da frente abriu-se. Na ombreira da porta da casa apareceu um negro de casaca branca, que manteve a porta aberta para eles passarem e ao lado de quem se encontrava uma atraente senhora negra, de saia e blusa cinzentas, por baixo de um avental branco.

- Este é Max, o seu criado, e Mae, mulher dele e sua cozinheira e criada - apresentou Fast Eddie. Fitou o casal. - A doutora Ivancich, a vossa hóspede.

- Como está? - disse o casal quase em uníssono. - Seja bem-vinda.

- Obrigada - agradeceu Sofia.

Alongou o olhar pelo corredor. Num dos lados do átrio de entrada havia uma enorme sala de estar e uma sala de jantar no outro. Uma escadaria conduzia aos quartos, que ficavam no andar de cima.

Fast Eddie virou-se para Sofia.

- Eles tratarão bem de si. Basta-lhe pedir tudo aquilo que desejar. - Sorriu. - O “material" está na gaveta do meio da sua cómoda.

- Pensaste em tudo - observou ela.

- Eu não, o senhor Crane - disse ele rapidamente. - O jantar será às nove horas. Traje de passeio. Max conduzi-la-á.

- Estarão presentes outros hóspedes? - perguntou Sofia.

- Não - respondeu Fast Eddie. - Apenas o senhor Crane e a senhora.

- E o doutor Sawyer?

- Regressa ao continente às seis horas.

Sofia olhou de relance para o relógio de pulso. Eram três e meia. Ficou em silêncio.

- Tenha calma, senhora doutora. - disse Fast Eddie tranquilamente. - Descontraia-se. Tome um banho. À vontade. Talvez lhe faça bem dormir um pouco. Não se esqueça de que fez uma longa viagem para chegar aqui. Quando se levantar, ponha só um pouco de pó-de-arroz no rosto e ficará surpreendida em verificar como se sente óptima.

Sofia fez um sinal de aquiescência.

- Muito bem. Obrigada. Fast Eddie fez um sinal a Max.

- Por favor, traga as malas da senhora doutora para dentro. Em seguida virou-se de novo para Sofia.

- Não se esqueça de que estou aqui - disse, sorrindo.

 

Judd trajava um fato de treino e sapatilhas. O rosto bronzeado mostrava-se coberto por uma fina camada de transpiração. Fez sinal ao Dr. Sawyer para que se sentasse, enquanto falava ao telefone.

- Livre-se desse maldito banco - disse. - Diga à Justiça de que estamos dispostos a assinar a autorização.

A voz de Merlin fez-se ouvir através do auscultador.

- São duzentos milhões de dólares! Parecia chocado.

- É barato - disse Judd. - Quanto pensa que me custaria ter de passar o resto da vida em frente de uma comissão nomeada pelo Congresso a responder a perguntas estúpidas?

- Mas podemos vencê-los - comentou Merlin.

- Estou-me nas tintas - respondeu Judd. - Já gastei quatro anos com esse assunto. O pessoal da Transatlantic quer aquilo, eles que fiquem com as dores de cabeça.

- O senhor é que manda - observou Merlin. De repente soltou uma risada. - Provavelmente tem razão. Nostradamo disse que este ano não seria nada bom para as instituições financeiras.

Judd também sorriu.

- Mas certifica-te de que ele incluiu David Rockefeller nas suas previsões.

- Tenho sentido a sua falta, Judd - disse Merlin. - Quando é que pensa sair daí?

- Em breve - respondeu Judd. - Prometi experimentar o programa por um ano. Já só faltam três meses.

- Porte-se bem - observou Merlin.

- Farei os possíveis - replicou Judd. Pousou o telefone e voltou-se para o Dr. Sawyer.

- Estava a correr quando vi o helicóptero chegar. Apanhei-vos no visor do escritório precisamente quando vinham a descer. Ela pareceu-me bem.

- Creio que está mais magra - observou Sawyer.

- Não se notou pelo que vi - disse Judd.

Pegou num cigarro e começou a rolá-lo entre os dedos.

- Sofia contou-lhe alguma coisa sobre o que andava a fazer no Bangladesh? - perguntou.

- Não falou de nada - respondeu Sawyer. - O que o leva a estar curioso?

Judd atirou o cigarro para o cesto dos papéis sem o ter acendido.

- Por enquanto ainda são só suposições, mas creio que sei - disse Judd. - Tenho um pressentimento de que a velha só

me entregou parte dos papéis. Deve ter dado o resto a Sofia. Os nossos documentos têm data da altura em que iniciou as Fontes de Ponce de Leon, em mil novecentos e cinquenta e três, e vão até ao presente. Existem muitas notas que fazem referência a papéis escritos por ela antes dessa data.

- Li as notas - articulou Sawyer. - Não fiquei com essa impressão.

- Porque na altura ainda não as tínhamos traduzido - disse Judd. - Ela escreveu-as em urdu, o dialecto menos utilizado na índia. Citou um swamil que na altura se encontrava a viver na zona da índia que mais tarde se tornou o Paquistão e depois o Bangladesh. As citações referiam-se a várias conversas tidas com o maharishi Raj Naibuhr. “A imortalidade do homem só pode ser alcançada quando a sua paz interior se tornar uníssona com o seu meio ambiente físico." Provavelmente foi por essa razão que ela quis que eu construísse esta ilha.

- Acha que Sofia encontrou os papéis? Judd sorriu.

- Se os descobriu no Bangladesh, só se foi por milagre. O maharishi já se mudou para pastagens mais verdes.

- Quer dizer que morreu? Judd soltou uma risada.

- Não. Ficou rico. Hoje é o maharishi que fundou a universidade que, nas montanhas de São Bernardino, alberga dois mil estudantes. Também adquiriu uma vasta parcela de terreno ao norte de Malibu, na Califórnia.

- Espere um minuto - interrompeu-o Sawyer. - É aquele sobre o qual a televisão apresentou a cobertura?

 

' Mestre hindu da religião. (N. do E.)

 

- Precisamente - disse Judd.- E pode crer que é tão difícil de contactar pessoalmente como o próprio Presidente dos Estados Unidos ou o Chefe de Estado da União Soviética.

- E acha que Sofia seria capaz de chegar até ele? - perguntou Sawyer.

- Assim espero - disse Judd. - Talvez haja alguma coisa nos papéis que a velha lhe deu que lhe atribuam algum ascendente sobre ele. Também há o facto de o maharishi ser muito prolífero em esposas, sobretudo jovens... embora não seja do conhecimento público, até mesmo do dos seus adeptos.

- Talvez seja um homem jovem - alvitrou Sawyer.

- Creio que está na casa dos setenta, embora se diga que tem mais de mil anos nesta sua actual reencarnação.

- Não é nada mau - brincou Judd.

- Tenho a impressão de que a velha o tratou. Que ele foi um dos seus pacientes.

- O que ainda é mais importante - observou Sawyer. - Então o que acha que Sofia estava a fazer no Bangladesh?

- Diabos me levem se sei! - exclamou Judd. - Mas tenciono perguntar-lhe. - Olhou de relance para o médico. - Gostaria de ficar para o jantar?

Sawyer abanou a cabeça.

- É melhor voltar para a Florida. Estou cheio de problemas até mais não. Sou médico, não homem de negócios. O Centro de Pesquisas Crane e os Produtos Farmacêuticos andam a gastar três milhões de dólares por mês. Se esta situação se mantiver por muito mais tempo, será mais prudente arranjar uma infusão de capital ou começar a cortar... talvez até mesmo vender alguma das companhias.

- Estou certo de que consegue resolver o problema - interrompeu Judd.

- Obrigado - disse Sawyer. - Agradeço a sua confiança, mas eu não sou o senhor. A minha cabeça não funciona da mesma maneira.

- Os computadores fornecem-lhe todos os dados de que necessitar. Não deve ser complicado.

- Para si, não para mim - objectou Sawyer. - Para mim, todos os computadores se limitam a dar informações. Continuo a ser eu quem tem de tomar as decisões. E como extraí-las de folhas de computador?

Judd deixou-se ficar em silêncio por momentos.

- Se realmente é essa a sua opinião, comece a reduzir nas companhias até achar que as pode gerir.

- Não me parece que tenha o direito de fazer semelhante coisa. Elas são propriedade sua, portanto é a si que essa responsabilidade devia caber.

- Apoio-o incondicionalmente - disse Judd. - Pode deitar tudo a perder que não me pronunciarei. Para ser franco, tanto se me dá.

- Lamento que encare as coisas dessa maneira - observou Sawyer. - Você é um homem muito especial, Judd Crane. E poderia dar muitas coisas ao mundo.

- Sinto-me muito velho, Lee. Já joguei todos os jogos e fartei-me deles.

- Mal chegou aos cinquenta, Judd - exclamou Sawyer. - Se neste momento se sente assim, o que o leva a pensar que a imortalidade que procura o fará sentir-se mais jovem e menos entediado? Creio que o que e passará será o contrário. Ficará ainda mais aborrecido e sentir-se-á muito mais velho. A vida em si não significa apenas sobrevivência, ela também representa partilhar e dar.

- Nunca pensei que fosse assim tão dado a filosofias - comentou Judd secamente.

- Nem eu - respondeu Sawyer. - Estou apenas a começar a sentir-me assim. Mas sou médico. Já não sei o que penso ou o que deveria pensar.

Judd fitou-o.

- Está cansado. O que precisa é de tirar umas férias. Sawyer riu-se com ironia.

- Não preciso de umas férias, Judd - disse com simplicidade. - Preciso de si. A meu lado, apoiando-me, partilhando comigo, inspirando-me. Sem a sua ajuda não sou o homem que deveria ser.

Judd permaneceu silencioso.

- Esse sentimento não é apenas meu - continuou Sawyer brandamente. - Barbara, Merlin, e muitos outros acham que...

Judd interrompeu-o com voz dura.

- Mais três meses - disse. - Preciso de mais esse tempo para decidir o caminho que devo tomar. Podem dar-mo?

- Já que viemos até tão longe juntos, podemos esperar mais três meses - respondeu Sawyer.

- Ali fora não se sente o mundo - comentou Sofia. - É quase como se estivéssemos noutro universo.

Sawyer estava aos pés da cama, olhando para Sofia, recostada nas almofadas.

- É outro universo - disse ele. - O universo de Judd. Ela observou-o em silêncio durante instantes, em seguida

empurrou as cobertas para o lado e, nua, atravessou o quarto para ir buscar o robe de seda. Enfíou-o rapidamente e regressou para junto de Sawyer.

- Tem tempo para tomar uma chávena de chá comigo? - perguntou Sofia.

Ele fez um sinal de assentimento. Sofia pegou no telefone. Max atendeu.

- Faça favor, senhora doutora.

- Podemos tomar um chá?

- Com certeza, senhora doutora. O peco de laranja de Ceilão está a seu gosto? - perguntou ele.

- Perfeitamente - disse ela.

- Biscoitos ou bolinhos?

- Basta o chá - respondeu Sofia.

- Obrigado, senhora doutora.

O telefone ficou mudo. Sofia virou-se para Lee.

- Vamos até ao terraço?

Ele seguiu-a até à varanda sem proferir palavra. Via-a fechar a porta.

- Acha que está sob escuta? - perguntou.

- Sim - disse ela. - Sob escuta e controle visual.

- Tem a certeza? - inquiriu ele. Sofia abanou a cabeça negativamente.

- Então como é que sabe? - continuou Sawyer.

- Intuição - replicou ela. - Eu, no lugar dele, era o que fazia. Talvez até mesmo este terraço esteja a ser vigiado.

Sawyer fitou-a sem falar durante alguns instantes.

- É possível. Já não o reconheço.

- Está mudado? - perguntou Sofia.

- Sim e não. Não tenho uma certeza absoluta. Foi por isso que quis vir falar consigo antes de regressar ao continente. À senhora é médica. Quero que o observe e me transmita as conclusões a que chegar.

Max bateu à porta da varanda, entrando em seguida com um tabuleiro onde vinha um bule de chá, um pequeno jarro com água, uma leiteira, um prato com rodelas de limão e uma taci-nha com mel e outra com açúcar. Colocou-o sobre a mesa redonda de plástico que estava na varanda.

- Mais alguma coisa, senhora doutora? - perguntou.

- É tudo, obrigada - respondeu Sofia.

Depois de o empregado se retirar, voltando a fechar a porta, Sofia começou a servir o chá. Aguardou que ele saísse para falar de novo. Entregou uma chávena de chá a Sawyer.

- O senhor é o médico dele - disse. - O que o leva a pensar que posso aperceber-me de mais pormenores? Conhece-o há muito mais tempo do que eu.

- Esta foi a primeira vez em que o vi desde que se mudou para a ilha. Só temos mantido contacto pelo telefone e através das informações físicas que o computador me transmite semanalmente.

- Então ele tem um médico de serviço aqui?

- Não - respondeu Sawyer. - Estão cá várias enfermeiras, que se encarregam das máquinas a que ele está ligado para os tais tratamentos.

- Aquela rapariga irlandesa, a Bridget, ainda trabalha para ele?

- Não - disse Sawyer. - Deixou-o em Nova Iorque, pouco depois da sua partida.

- Conhece as enfermeiras? - perguntou Sofia.

- Não pessoalmente - respondeu Sawyer -, embora as tenha contratado a todas, como é evidente. No fundo, são mais técnicas de engenharia médica do que enfermeiras. Têm maiores conhecimentos sobre as máquinas e o computador do que sobre a própria medicina.

- Tem alguma cópia dos últimos resultados?

Sawyer tirou uma folha de papel dobrada de um dos bolsos interiores do casaco e entregou-lha. Sofia examinou-a rapidamente. Passado um momento, ergueu os olhos para ele.

- Interessante - observou. - Todas as suas funções físicas foram retardadas: o ritmo cardíaco, a tensão sanguínea, a temperatura do corpo. A capacidade pulmonar aumentou, apesar da diminuição da velocidade respiratória. As análises do sangue e da urina estão normais. - Devolveu a folha. - Se nos basearmos nesses dados, podemos dizer que ele está em óptimas condições. O que o preocupa?

Sawyer fitou-a, tomando um gole de chá.

- A sua cabeça - respondeu. - Antigamente nunca se entediava. Agora nada lhe desperta interesse.

- Talvez precise de um psiquiatra, não de mim - alvitrou Sofia.

- Talvez - replicou ele -, mas você é a única pessoa em quem confio. - Fitou-a. - Dará uma ajuda?

Sofia também olhou para ele.

- Não sei até que ponto posso ser útil, mas farei os possíveis.

Sawyer concordou.

- A única coisa de que tenho a certeza é de que temos de o trazer de novo para este universo. Tenho o pressentimento de que o tipo de imortalidade que ele procura não passa de uma outra forma de decadência.

Capítulo terceiro

Alguns minutos depois de Sawyer ter partido, bateram suavemente à porta.

- Entre - disse Sofia.

Era a criada, que transportava uma caixa enorme nos braços.

- O senhor Crane envia-lhe isto, senhora doutora - disse. Sofia olhou para a caixa. Christian Dior. Fitou a criada.

- Importa-se de a abrir por mim? - pediu.

- Com certeza, senhora doutora. - Entregou-lhe um pequeno sobrescrito. Isto também é para si.

Sofia abriu-o. O cartão que continha trazia o nome de Judd impresso num dos lados e, no outro, em linhas escritas à mão por este: “Comprei-te esta lembrança, mas partiste antes de ta poder entregar. Espero que desta vez não seja demasiado tarde. Judd."

A caixa já estava aberta. Sofia tirou o vestido. Era comprido, de noite, em cetim branco, com duas alças muito finas no ombro esquerdo e uma longa racha de cada lado, que ia do chão quase até às coxas.

- É lindo - comentou Sofia. - Mas não me parece que eu caiba dentro dele. É demasiado pequeno.

- Porque não o experimenta, senhora doutora? - sugeriu a criada. - Se precisar de algum instrumento, talvez Max possa dar um jeito.

- Não sei - disse Sofia, hesitante.

- Não custa nada tentar - incitou-a a criada. Sofia continuou na dúvida durante mais um momento.

- Espere um pouco - pediu.

Dirigiu-se à casa de banho, pendurou o robe num cabide e tentou enfiar o vestido pela cabeça.

- Não consigo fazê-lo passar dos ombros - disse à criada pela porta aberta.

Mae estava à entrada da casa de banho.

- Não é assim que ele se veste - disse.- Meta os pés dentro do vestido e puxe-o para cima.

Sofia seguiu as instruções de Mae. Tinha a sensação de que o vestido era uma segunda pele. Olhou-se no espelho de corpo inteiro. Ele era uma segunda pele. Os mamilos pareciam querer furar o tecido, as ancas e as nádegas ficavam completamente moldadas, quase rasgando o material. Olhou para a criada através do espelho.

- Está demasiado justo - observou. - É capaz de abrir ao mais pequeno movimento.

- Isso não acontecerá - disse Mae. - O tecido dá de si.

- Mesmo que isso aconteça - disse Sofia -, não sou capaz de usar uma coisa destas. Faz-me parecer completamente nua.

- O senhor Crane vai gostar - observou Mae. Sofia virou-se para ela.

- O que a leva a ter essa opinião?

- Não se trabalha nove meses para uma pessoa sem se ficar a conhecer os seus gostos pessoais.

- Ele tem tido muitas raparigas aqui? - inquiriu Sofia. Mae hesitou, abstendo-se de responder.

- Pode falar comigo - disse Sofia.- Sou uma das médicas do senhor Crane, apesar da minha condição de mulher.

- Não sei... - murmurou Mae. Sofia pôs-se a adivinhar.

- Estou certa de que Fast Eddie lhe contou muitas coisas a meu respeito.

- Contou.

- Então pode dizer-me aquilo que pretendo saber - disse Sofia. - Não estou apenas a ser curiosa. O doutor Sawyer pediu-me que desse uma opinião e quanto mais dados obtiver sobre o senhor Crane, maiores possibilidades terei de o ajudar.

Mae manteve os olhos afastados de Sofia, pousando-os nos azulejos do chão da casa de banho.

- Todas as semanas o senhor Crane manda vir três raparigas do continente. Normalmente ficam uma noite ou duas e depois regressam.

- São sempre as mesmas?

- Não - disse Mae. Mudam constantemente. Nenhuma torna a voltar.

Sofia manteve-se em silêncio por momentos.

- E ele oferece a cada uma delas este estilo de vestido? Mae fez um sinal afirmativo.

- Da mesma cor?

- Sempre brancos, sempre os mesmos. Vêm de Paris. Duas dúzias de cada vez.

Sofia ficou em silêncio.

- A senhora doutora não vai dizer a ninguém o que lhe contei, pois não? - perguntou Mae.

- Absolutamente - sossegou-a Sofia.

Tirou as alças do ombro e começou a puxar o vestido para baixo, saindo em seguida de dentro dele. Pegou na peça de roupa e entregou-a a Mae.

- Então não o vai vestir? - perguntou a criada. Sofia fitou-a.

- Passe-o a ferro - disse. - Depois de tomar banho e descansar um pouco resolverei se o visto ou não. Chamá-la-ei.

- Obrigada, senhora doutora.

Sofia vestiu o robe enquanto a criada saía da casa de banho. Reflectiu por alguns instantes e depois abriu a gaveta do meio da cómoda. O frasco encontrava-se precisamente no sítio indicado por Fast Eddie. Depois das inalações de cocaína, sentiu a cabeça ficar mais leve.

Pegou no cartão que viera a acompanhar o vestido. Observou a letra de Judd. Era estranho. Porque lhe teria ele mentido? Não havia razão para dizer fosse o que fosse acerca do vestido, excepto que desejava que ela o vestisse. Sawyer tinha razão. Judd mudara. Antigamente não era capaz de mentir nem a ela nem a ninguém.

Sentou-se na beira da cama, pensativa. Rememorou lentamente os vários passos inerentes aos tratamentos a que Judd se sujeitara. Eram tão numerosos... Todos eles poderiam ter-lhe alterado a mente. Pegou num cigarro e acendeu-o. Deixou o fumo evolar-se lentamente. O facto é que ela não sabia o que se passava. Nem talvez alguém viesse alguma vez a saber. Nem sequer o próprio Judd.

A casa era formada por uma cúpula geodésica facetada como um diamante monstruoso que reflectia a luz que vinha do interior para a escuridão da noite. A limusina parou lentamente e, em seguida, Max desligou o motor. Sofia dirigiu-se a ele do banco de trás.

- Não vejo a entrada.

- Mas ela está ali, senhora doutora - disse Max respeitosamente. - Vai ver.

Um minuto mais tarde ouviu-se um zumbido de motores que vinha de debaixo do carro. Sofia viu, pela janela do condutor, duas gigantescas portas de vidro deslizarem, mostrando uma entrada; apercebeu-se de que o carro começava a mover-se lentamente em direcção a essa abertura.

- É uma entrada eléctrica? - perguntou a Max.

- Sim, senhora doutora - respondeu este. - Na verdade, é antes uma plataforma giratória. Evita que os gases do automóvel se introduzam no sistema de filtragem do ar.

Sofia viu as portas de vidro fecharem-se atrás do carro e a plataforma giratória parar em frente de uma entrada interior. Max saiu do veículo e foi abrir-lhe a porta. Sofia saiu para o exterior. A entrada abriu-se e Fast Eddie desceu os três degraus para vir ao encontro dela.

Sorriu-lhe.

- Descansou um pouco, senhora doutora?

- Sim, um pouco - anuiu Sofia.

- Óptimo - observou ele. - Vou levá-la lá acima aos aposentos do senhor Crane.

- A que horas é que Max vem buscar-me? - perguntou.

- Isso não constitui problema - replicou Fast Eddie. - Temos sempre carros e pessoal de serviço.

O átrio consistia num enorme salão redondo de paredes brancas. O chão era de mármore branco, a secretária do recepcionista apoiava-se em quatro suportes de aço inoxidável e tinha o tampo igualmente branco. O homem que se encontrava por detrás desta vestia um blusão e umas calças brancas. Sofia apercebeu-se do pequeno volume que a arma fazia abaixo do ombro esquerdo. Pareceu-lhe notar uma expressão curiosa nos olhos antes de o homem os baixar para a secretária e carregar num dos botões do painel acoplados a esta. Sofia ouviu a porta fechar-se nas suas costas.

Havia mais três portas envidraçadas no salão, uma de cada um dos lados do recepcionista e outra nas suas costas. Os vidros só permitiam a visibilidade através de uma das faces. Junto de cada entrada viam-se duas estátuas. Eram quase de tamanho natural, em mármore branco sobre uma base de aço inoxidável, Apolo e Vénus, ou talvez Adão e Eva, olhavam um para o outro por toda a eternidade.

Fast Eddie conduziu-a até à porta da direita. Fez um sinal ao recepcionista, que carregou noutro botão, fazendo abrir as portas do elevador. Fast Eddie acompanhou-a até ao interior deste e premiu um dos botões. As portas fecharam-se e o elevador começou a subir. Ela pôde ver o homem até este desaparecer no andar de baixo.

Sofia virou-se para Fast Eddie.

- Estou com algum ar esquisito? - perguntou. - Tive a impressão de que o recepcionista me olhava de forma estranha.

- É o seu sari - respondeu ele. - O homem ficou surpreendido com o seu colorido. Normalmente aqui andam todos de branco.

Sofia fitou-o. Até ele vestia casaco e calças brancas.

- Qual a razão?

- O senhor Crane gosta. É higiénico e sanitário. Ele também acha que se andarem todos vestidos da mesma cor e no mesmo estilo, se evitam antagonismos e choques de personalidade entre os membros do pessoal.

- E os visitantes? - perguntou ela. - Foi por essa razão que ele me mandou um vestido branco para eu usar?

- Não sabia que ele tinha mandado alguma coisa - respondeu Fast Eddie.

Mas ela sabia que ele não estava preparado para lhe responder a todas as perguntas. Estendeu o olhar pelas portas envidraçadas que davam para o piso seguinte. Também ali se via um recepcionista sentado.

- Que há neste piso? - perguntou.

- Comunicações, escritórios da administração e computadores. No andar principal, por onde entrou, ficam os apartamentos e as instalações do pessoal. As salas de recreio encontram-se no primeiro andar subterrâneo. No segundo está a clínica e, no último, todo o equipamento que fornece a energia ao edifício. O apartamento do senhor Crane está situado no andar do topo, que é o terceiro. Ele tem tudo ali: quarto de dormir, casa de banho, ginásio, sala de estar, sala de jantar, cozinha, bar, biblioteca e o seu gabinete de trabalho privativo.

Sofia permaneceu em silêncio durante algum tempo.

- De certo modo - comentou -, é muito semelhante ao avião, apenas de maiores dimensões.

- É algo no género - concordou Fast Eddie. Fitou-a.

- Quer um cheirinho? Sofia olhou-o, por sua vez.

- Acha que preciso?

- Mal não lhe fará - disse ele.

Entregou-lhe o frasco e ficou a vê-la levar a colher ao nariz.

- Tome uma boa dose - aconselhou-a. - O mundo em que vai entrar de vulgar não tem nada

Sofia devolveu-lhe o frasco e as portas abriram-se antes de ter tempo para perguntar o que queria ele dizer com aquelas palavras.

 

O som de uma cítara ecoava suavemente no apartamento quando ambos saíram de dentro do elevador. Fast Eddie conduziu Sofia até ao bar da biblioteca. Viam-se dois pequenos sofás separados por uma mesa de cocktail. Ele fez-lhe sinal para que ocupasse um dos sofás e dirigiu-se para o bar. Alguns minutos mais tarde voltava com uma enorme bandeja de prata que colocava sobre a mesinha, em frente de Sofia. Esta baixou os olhos. Uma lata de quilo de caviar estava rodeada de gelo moído. Num dos lados desta encontrava-se uma garrafa de Cristale aberta, e uma outra de vodca Starka, igualmente aberta e metida em gelo; do outro lado, os acompanhamentos - tostas finas, cebolinhas, ovo cozido picado muito fino, creme azedo e manteiga. Fast Eddie fitou-a aguardando que ela lhe dissesse o que desejava tomar.

- Vodca - pediu Sofia.

O fino copo também estava gelado. Encheu-o rapidamente. Colocou-o sobre a mesinha, em frente de Sofia.

- O senhor Crane juntar-se-á a si dentro de alguns momentos - disse ele, saindo em seguida da sala e fechando a porta.

Sofia espraiou o olhar pelas janelas que tinha diante de si. A Lua, cheia e branca, traçava uma faixa refulgente na superfície do oceano. Era belo. Tão belo que parecia irreal. Pegou no copo de vodca.

- Nasdrovya.

A voz dele soou através do altifalante.

- Nasdrovya - replicou ela quase automaticamente, engolindo a bebida. Em seguida olhou em redor. A sala continuava vazia. - Estás a ouvir-me? - perguntou Sofia.

- Estou.

- Já lá vai muito tempo - observou ela. Gostaria de te ver.

- Eu posso ver-te.

- Não é justo - disse ela. - Eu não posso ver-te.

- Porque não puseste o vestido que te mandei?

- Era demasiado pequeno, não cabia dentro dele - respondeu ela. - Talvez isso fosse possível há três anos, mas agora não.

Judd não respondeu.

- Demoras muito? - perguntou Sofia.

- Não - disse ele. - Ao lado da cadeira tens uns botões que te permitem ligar o aparelho de televisão.

- Não me faz falta - disse Sofia. - O reflexo do luar no oceano é muito agradável de ver. Esperarei.

Ouviu-se um clique vindo do altifalante e a música de cítaras voltou a encher a divisão. Sofia deitou nova dose de vodca no copo e bebeu-a. De repente sentiu apetite, pelo que começou a servir-se de caviar e tostas. Comeu quatro fatias e bebeu três vodcas antes de Judd chegar.

Sofia ergueu-se do sofá. Sentia a cabeça leve.

- Creio que estou ligeiramente embriagada - disse.

Ele sorriu-lhe e beijou-a, agarrando-a em seguida pelo cotovelo.

- Nesse caso - observou -, é melhor voltares a sentar-te.

- Que é que o vodca tinha? - perguntou ela, erguendo os olhos para Judd.

- Nada - respondeu este. - Assim que comeres alguma coisa, sentir-te-ás melhor.

- Estás com óptimo aspecto - comentou ela.

O cabelo escuro de Judd estava salpicado de fios brancos e os seus olhos azuis-cobalto brilhavam, destacando-se no rosto profundamente bronzeado. Vestia uma vistosa camisa de seda branca aberta no peito, umas calças e umas mocassinas da mesma cor.

- Também tu estás com um belíssimo aspecto - alvitrou ele.

- Ganhei um pouco mais de peso - disse Sofia. - Mais hidrocarbonetos do que proteínas na alimentação. Mas isso porque não há muito por onde variar em termos de alimentação no Bangladesh. Tudo é praticamente à base de arroz. - Espalhou caviar numa tosta. - Não há nada disto.

Judd sorriu, sentando-se em frente de Sofia.

- Calculo.

- Queres que te sirva um pouco? - perguntou ela.

- Não, obrigado. É demasiado salgado para mim - respondeu ele.

- Há um aspecto em relação ao qual me sinto curiosa - observou Sofia. - Como foi que deste comigo no Bangladesh?

- Muito simples - disse ele. - O teu nome apareceu mencionado numa encomenda feita pelo hospital onde trabalhas. Todos os pedidos do género que são dirigidos aos Produtos Farmacêuticos Crane passam pelo computador, onde os nomes são verificados. Sempre que aparece um que tenha alguma ligação com a minha pessoa, é imediatamente transferido para o meu ficheiro pessoal.

- Pensei que tinhas recorrido ao KGB - disse ela.

- Nada de tão complicado, como podes ver.

- Porque desejavas ver-me?

- Por causa dos arquivos - respondeu Judd. - A doutora Zabiski deu-me apenas parte deles. Não tenho nenhum dos registos feitos antes de mil novecentos e cinquenta e três.

Sofia permaneceu silenciosa por instantes.

- Não compreendo. Falei com ela na véspera da sua morte e ela disse-me que te tinha entregue tudo.

- Então omitiu alguma coisa - disse Judd. - Continuamos a não encontrar a resposta.

- Ela também me fez referência a esse aspecto. Afirmou ter-te dado todas as ferramentas. Disse-me que terias de encontrar as respostas.

- Já examinei tudo recorrendo a todos os especialistas que existem sobre a matéria - disse Judd. - Zero.

Sofia respirou profundamente.

- A velha filha da mãe! - exclamou em voz baixa.

- Que queres dizer?

- Levou-nos a todos à certa. Tu, eu, até mesmo Andro-pov. Neste momento deve estar a rir-se de nós lá na sepultura. - Fitou-o. - Ainda não compreendeste? Ela pretendia que nos voltássemos a encontrar. No fim de contas sou a única especialista com quem te falta trabalhar.

Ele ficou a olhá-la em silêncio.

- Mandaste buscar-me, não foi? - perguntou ela. Não esperou por resposta. - Voltamos à primeira forma. Teremos de começar tudo de novo.

- Foi por essa razão que foste para o Bangladesh? - inquiriu Judd.

- Em parte - respondeu Sofia. - Mas também porque Andropov me queria ver fora da Rússia e da Jugoslávia.

- Porque Brejnev morreu, tal como Mao - disse ele. Sofia fitou-o com firmeza.

- Não tive absolutamente nada a ver com a morte de qualquer dos dois.

- Mas será que Andropov o sabe? Mas morreu. Eras a médica particular dele. Brejnev morreu. Também neste caso eras a médica privativa dele. Agora, segundo me informas, Andropov está doente. Mas não te manda chamar, tal como fez em relação aos outros. Possivelmente perdeu a confiança que depositava em ti.

Sofia não desviou o seu olhar do dele.

- Desconheço as suas razões - disse, tranquilamente. - Não me fez sua confidente.

- Aqui há muito tempo - observou Judd - a doutora Zabiski disse-me que, quando chegava a altura certa, todos morriam. Que não existiam garantias. Que tudo o que se podia fazer era melhorar a qualidade das suas vidas.

- Ela também mo disse a mim.

- No entanto, fez-me acreditar que... - principiou ele, acabando por se calar.

Sofia sorriu meigamente.

- Talvez ela pensasse que tu podias ser bem sucedida onde ela falhara.

Bateram à porta. Fast Eddie entrou no quarto.

- O jantar está na mesa - informou.

A sala de jantar não era grande. Havia uma mesa de tampo de vidro grosso que era suportado por pernas de plástico de forma rectangular, fazendo lembrar delgados blocos de gelo com o mesmo formato. A única luz que emanava de um holofote preso no tecto, mesmo no centro da mesa, arrancava reflexos coloridos ao vidro. A mesa era redonda e tinha espaço para seis pessoas, embora só dois dos lugares estivessem sempre preparados. Em cada um destes estava colocada uma base espelhada e os pratos, em prata, condiziam com os talheres, que também eram do mesmo material. Os guardanapos, de linho branco, estavam seguros por uma argola de prata, e os copos eram de cristal de Bacará. À direita de cada um dos pratos havia uma vela branca e baixa, colocada num castiçal também de cristal de Bacará. As cadeiras tinham a armação em aço inoxidável e o assento e as costas destas eram forrados com um tecido branco macio e confortável.

Sofia estava sentada em frente de Judd. Podia ver, por trás dele, as janelas e a luz do luar a reflectir-se no mar. Judd regulou um reóstato que tinha ao lado da cadeira, de modo a diminuir a luminosidade da sala, limitando-a às velas, cuja luz se reflectia nos rostos de ambos.

Sofia sorriu.

- Parece o cenário de um filme. Judd soltou uma risada.

- Foi concebido por um cenógrafo. Gosto da sensação de drama. Normalmente as salas de jantar são monótonas e falhas de interesse, nada mais do que estábulos onde se ingere comida. Mas existem também muitos outros sentidos que necessitam de ser satisfeitos.

- Nunca me tinha ocorrido - exclamou ela. - É muito bonito.

- Obrigado - agradeceu ele. - Espero que o jantar proporcione um prazer igual.

- Estou certa de que assim acontecerá - respondeu ela. Sofia ouviu uma porta abrir-se nas suas costas. Duas criadas

entraram, ambas vestindo blusas brancas e minissaias da mesma cor que iam só até ao começo das coxas, marcando forte contraste com o negro da pele e as pernas compridas. Eram tão parecidas que dir-se-iam gémeas: o cabelo comprido e esvoa-çante até aos ombros, as duas pequenas toucas triangulares na cabeça, os olhos brilhantes e dentes refulgentes de tão brancos. Tinham as mãos tapadas com luvas de renda branca. Colocaram o primeiro prato em frente de cada um deles e saíram da sala.

- Raparigas bonitas - comentou Sofia.

- Evidentemente - respondeu Judd. - Estavas à espera de que fosse o contrário?

- Americanas? - inquiriu ela.

- Não - respondeu ele. - Das ilhas Maurícias. O agente que lá tenho manda-as para aqui com contratos de dois anos. São seis.

- Parecem muito jovens.

- Dezasseis e dezassete anos - disse ele. - Falam francês e inglês e andam ansiosas por aprender e agradar.

- E que acontece quando o contrato chega ao fim?

- Voltam para a terra delas e vêm outras.

- Isso é muito conveniente para ti - observou Sofia. - Mas o que é que as raparigas ganham com isso?

- Educação, conhecimentos e uma respeitável soma de dinheiro para o dote. Ficam muito satisfeitas.

Sofia sorriu.

- Como se diz na América, tens tudo organizado. - Levou o garfo à boca e provou o cocktail de camarão. - Está uma delícia!

- É camarão bebé, trazido de avião do golfo do México esta manhã - elucidou Judd. - É do melhor.

- Tudo o que tens é do melhor - observou ela.

- Estás a ser sarcástica - ripostou ele, agastado.

- Não - disse ela. - Isso não é verdade. Acontece apenas que me sinto subjugada.

Judd ficou em silêncio.

- Tens de compreender - continuou ela. - Ontem estava no Bangladesh, hoje estou aqui. É um outro mundo.

O jantar era muito americano. Lombo de vaca mal passado, em fatias finas. Puré de batata, molho, ervilhas e salada. O vinho era francês: Montrachat com os camarões e Chateaux Margaux com a carne. A sobremesa era gelado de baunilha com um pouco de hortelã-pimenta por cima.

Sofia fitou Judd.

- Já quase me tinha esquecido do prazer que se pode obter dos alimentos.

Mas não deixara de reparar que Judd mal tocava na comida, pouco mais fazendo do que espalhá-la pelo prato.

- Ainda bem que gostas - disse ele, levantando-se. - Tomaremos o café e os licores na biblioteca.

Deu a volta à mesa e puxou-lhe a cadeira para trás, olhando-a.

- Continuas a ser uma bela mulher - observou.

- Também disso me esqueci - disse ela. - Estava a começar a sentir-me velha ao pé das lindas crianças que tens aqui.

- Isso é outra coisa - disse Judd. - Tu és uma mulher. Muito real e excitante. Elas não passam de crianças que brincam.

 

Ao voltarem para a biblioteca, tinham um serviço de café em prata em cima da mesinha, assim como o respectivo par de chávenas. Também havia uma garrafa de vidro fumado de conhaque e dois cálices tipo balão. Judd olhou para Sofia, depois de se instalar no sofá.

- Café? - perguntou.

- Sim, por favor.

Ele serviu-lhe uma chávena de café.

- Conhaque?

- Importas-te que continue a tomar vodca?

- Claro que não - respondeu ele, dando um estalo com os dedos.

Fast Eddie entrou na divisão.

- O Starka - ordenou Judd.

- E acompanhamentos? - perguntou Fast Eddie. Judd fitou Sofia.

- Temos erva, cocaína, excitantes, calmantes, activadores da mente e tudo o que possas imaginar.

- Não sei que hei-de pedir - disse ela. - A única coisa que tínhamos no Bangladesh era haxixe.

- Estava convencido de que havia ópio - observou Judd.

- Sim - disse Sofia -, mas para dormir e sonhar. Não era coisa que eu apreciasse particularmente.

- Temos aqui uma erva tratada com ópio que te fará subir às alturas. Expandirá a tua mente quase da mesma maneira que o ácido, mas os sonhos serão agradáveis, não pesadelos, e, acima de tudo, manterás o controle sobre ti e não adormecerás.

- Parece interessante - comentou Sofia. - Quanto tempo dura?

- O tempo que tu quiseres - respondeu ele. - Como já te disse, ficarás senhora da situação. Podes anular a sua influência no momento em que desejares.

- Onde é que obténs esse material?

- A erva é sensimilla. Temo-la no nosso laboratório, onde é tratada.

- Costumas utilizá-la? - inquiriu ela.

- De vez em quando.

- E os outros?

- Também de tempos a tempos. Depende bastante da minha disposição.

- A doutora Zabiski foi sempre contra qualquer espécie de drogas. Admiro-me de que nunca te tenha proibido de as utilizar. Tinha receio de que prejudicasse os tratamentos que lhe estava a fazer.

- Ela disse-mo - observou Judd. - Mas eu tenho a minha opinião própria sobre a questão. As drogas existem desde o começo da civilização. Sinto que deve haver uma razão para explicar essas reticências.

Sofia ficou calada durante alguns momentos.

- Apetece-te tomar alguma coisa? Judd encolheu os ombros.

- Não sei. Vejo que nos sentimos os dois ligeiramente constrangidos um com o outro. Quase como se nos estivéssemos a bater, não a comunicar, como costumávamos fazer.

- Não será natural? - perguntou ela. - No fim de contas, já há muito tempo que não nos vemos. As pessoas não conseguem reajustar-se de um momento para o outro.

- É verdade - reconheceu ele. - Mas por vezes a droga ajuda.

- Por enquanto não me sinto preparada para tomar nada - disse ela. - Mas posso fazer algumas inalações. Isso manter-me-á desperta.

Judd dirigiu um sinal de assentimento a Fast Eddie.

- Dá à doutora o que ela deseja e a mim traz-me dois comprimidos de XTC. Diz a Amarinth que os prepare.

- Muito bem, senhor - disse Fast Eddie.

Sofia aguardou que a porta se fechasse depois de este sair.

- Qual é o efeito que esses comprimidos provocam?

- E um estimulante do espírito, que criamos no nosso laboratório. Algo que se assemelha ao Elavil ou ao Triavil, mas para muito melhor. Um ligeiro toque que nos afasta os medos interiores.

- Tens tudo o que desejas. Haverá ainda alguma coisa que receies? - perguntou Sofia.

Judd fitou os olhos dela.

- Tu.

Ela retribuiu o olhar. Os seus olhos azuis-cobalto pareceram, de súbito, transformarem-se em negro. Não falou.

- Tenho medo de ti - disse ele lentamente. - Dos teus conhecimentos, do que sabes sobre mim. De que tu tenhas a resposta e eu não.

Sofia deixou escapar um ligeiro suspiro.

- Ainda não compreendeste que ninguém tem a resposta? Ninguém no mundo.

Judd levantou-se do sofá e virou-se para a janela, ficando de costas voltadas para ela.

- Sofia - disse -, não posso acreditar no que dizes. Passaste demasiados anos com a velhota. Provavelmente sabe-lo e não te dás conta do facto. - Virou-se para ela. A voz soou-lhe com dureza. - Conheces o maharishi Raj Naibuhr?

- Não.

- Não foste para o Bangladesh para o procurares?

- Não - respondeu ela. - Nunca ouvi falar dele.

- A doutora Zabiski ouviu - disse ele. - Faz-lhe muitas referências nos seus registos.

- Talvez seja como dizes - alvitrou Sofia. - Mas o certo é que nunca o mencionou a mim.

A porta abriu-se nas suas costas. Passos suaves ouviram-se na sua direcção. Sofia voltou-se. Era outra rapariga, esta de tez mais clara, longos cabelos castanhos e olhos verdes. Dirigiu um aceno de cabeça a Sofia e sorriu-lhe, fazendo-o a seguir para Judd. Trazia uma bandeja de prata nos braços. Ajoelhou-se no chão e colocou a bandeja na mesinha. Deixou-se ficar nessa posição, olhando para Judd.

- Senhor Crane - disse com voz límpida e suave, quase cantante -, deseja que os prepare já? Ou prefere aguardar?

- Atende primeiro a nossa hóspede - ordenou Judd com maus modos.

A rapariga inclinou a cabeça. Em silêncio, deitou vodca Starka num copo e entregou o frasquinho a Sofia. Esta baixou os olhos para ela.

- Também eu posso esperar, minha filha - disse Sofia suavemente.

Judd voltou a sentar-se no sofá, diante de Sofia. Fitou-a.

- Frustração - disse. - Para onde quer que me vire, só vejo frustração.

Sofia não respondeu.

Judd virou-se para a rapariga.

- Levanta-te.

A jovem pôs-se de pé. Não estava trajada com tanta modéstia como as raparigas que tinham servido o jantar. Vestia uma blusa de seda branca, sem alças, que revelava a nudez do corpo que se encontrava por baixo.

- Amarinth tem só dezassete anos - disse Judd. - Possui um dos corpos mais belos que já vi.

Sofia bebeu um gole do seu vodca.

- Gostarias de o ver? - perguntou Judd.

Sofia fitou-o. Os olhos dele mantinham-se inexpressivos.

- Se tu quiseres - respondeu.

Sem desviar os olhos dela, Judd dirigiu-se à rapariga.

- Deixa cair o vestido no chão, Amarinth.

A rapariga puxou o vestido para baixo, fazendo-o passar sobre os seios. Este caiu no chão sem dificuldade e ela ergueu os braços, mantendo-os esticados sobre a cabeça, as palmas das mãos unidas.

Sofia olhou para a rapariga. Judd tinha razão. Era muito bela, parecia uma delicada estatueta de marfim.

- Volta-te, Amarinth - ordenou Judd -, de modo que a senhora possa ver como realmente és bonita.

A rapariga executou uma pirueta sem ter a mínima noção do que fazia, olhando sobre o ombro para Sofia. Passou suavemente a língua pelos lábios vagamente sorridentes.

- Amarinth prefere raparigas - disse Judd. - Gostarias de a teres contigo enquanto aqui estás?

Sofia afastou os olhos do corpo da rapariga para os fixar em Judd.

- Não te estou a compreender, Judd.

- Conheço-te - observou este. - Sei como ficas ruborizada quando a tua coisinha se torna molhada de tanta excitação.

- E tu achas que foi ela que me fez ficar nesse estado? Ele olhou para ela sem falar.

Sofia fitou-o.

- Claro que me excitou. Mas não foi só ela. Tu também estás aqui, Judd. Reparei na expressão excitada com que ficaste e no súbito volume nas tuas calças. - De repente susteve a respiração e pousou o copo na mesa com a mão que tremia ligeiramente. Pôs-se de pé. Abriu o fecho que segurava o sari no ombro. Lentamente, foi despindo a seda e deixou-a cair no chão. Por baixo trazia o vestido de seda que se colava ao seu corpo, projectando-lhe os mamilos sob o tecido. Colocou uma das mãos sobre a pequena mancha de humidade que se lhe via sobre o púbis. Baixou os olhos para ele. - Tenho tido orgasmos contínuos desde que estou aqui, sobretudo desde o momento em que ouvi a tua voz pelo altifalante.

Judd olhou-a fixamente, continuando a manter-se em silêncio.

- É isto o que desejas de mim, Judd? - perguntou Sofia. - Certificaste-te do poder que continuas a exercer sobre a minha pessoa?

Ele começou a abanar a cabeça, mas ela não o deixou falar.

- Tens de ter a certeza desse facto, Judd, caso contrário és um louco. Ainda não compreendeste que desde o momento em que te conheci me tornei mais tua escrava do que as raparigas que alguma vez compraste?

- Estás à espera de que acredite numa coisa dessas? - perguntou ele. - De que nunca estiveste com outro homem?

- Não foi o que eu disse - respondeu ela furiosa. - Tu, melhor do que ninguém, sabes até que ponto necessito de sexo. Mas essa é outra questão. Não sou escrava do sexo, mas do homem completo. Não basta que tenha morto Nicky para voltar para ti? Não basta que tenha vindo aqui, atravessando o mundo a teu pedido?

Ele reparou que os olhos dela começavam a encher-se de lágrimas. Tomou-lhe a mão entre as suas.

- Perdoa-me - murmurou. Ela abanou a cabeça em silêncio.

- Esquece a cocaína - disse ele. - Talvez fosse melhor dormires um pouco.

- Não - objectou ela. - A não ser que durma contigo.

- Talvez não venhas a gostar de o fazer - disse ele. - Costumo dormir com duas raparigas ao lado. É um costume chinês. Ying e Yang1, para que o nosso espírito encontre o equilíbrio no nosso corpo enquanto dormimos.

 

' Segundo os antigos Chineses a vida do corpo humano é regulada pelo fluxo de dois princípios interactivos, que se opõem no plano essencial: Ying (que representa o negativo, o passivo) e Yang (que representa o positivo, o activo). (N. do T.)

 

- Podemos fazer amor primeiro? - perguntou ela.

- Normalmente não o faço - respondeu ele. - As raparigas fazem amor uma com a outra e as suas energias entram em mim, absorvendo as minhas.

- Que acontece depois? - perguntou Sofia.

- De um modo geral, acordo completamente refrescado.

- E as raparigas?

- Dormem o resto do dia, recuperando da exaustão - respondeu ele.

Ela riu de súbito.

- Isso parece uma loucura.

- Talvez - disse Judd. - Mas ninguém sabe se o é, pois não?

- É verdade - respondeu Sofia. - Mas então, quando é que fazem amor?

- Antes de eu ir para a cama - respondeu ele. Sofia fitou-o.

- Agora não estás na cama.

Judd fez um sinal de assentimento. Voltou-se para Amarinth.

- Prepara os comprimidos XTC para nós tomarmos.

A rapariga acenou afirmativamente com a cabeça e ajoelhou-se no chão, ao lado da mesinha de cocktail, erguendo em seguida os olhos para ele.

- Senhor Crane - pediu -, por favor, posso também preparar um para mim?

Judd virou-se para Sofia interrogadoramente. Esta olhou para a jovem nua que tinha a seus pés. Era linda. Ajoelhou-se ao lado dela e fitou Judd.

- Deixa-a fazê-lo - pediu. - Talvez nós as duas descubramos uma nova espécie de Ying e Yang para ti.

 

Ela devia ter estado a dormitar. De repente abriu os olhos e sentou-se no sofá. Uma pequena luz cinzenta começara a encher o horizonte. Amarinth agitou-se e moveu-se no chão, ao lado do sofá que se encontrava em frente dela. Levou o indicador aos lábios, avisando Sofia para que permanecesse em silêncio.

Sofia fez-lhe um sinal afirmativo e olhou em redor de si. Judd não se encontrava na sala. Baixou os olhos para a rapariga e depois pegou no sari que estava no chão, começando a levantar-se.

Continuando a manter o seu dedo sobre os lábios em sinal de silêncio, Amarinth aproximou-se dela sem fazer ruído. Tocou suavemente no braço de Sofia, guiando-a.

De sari ainda na mão, esta permitiu que a jovem a conduzisse. Em silêncio, deram a volta ao bar e entraram numa outra divisão escondida por detrás do ângulo que este formava com a janela. Amarinth deteve-a, fazendo-lhe um gesto com a mão.

Era um quarto pequeno e oblíquo, com as janelas em forma de pirâmide, que se erguiam até ao tecto. Por baixo do vértice da pirâmide estava Judd, sentado na posição do lótus, sobre uma plataforma circular situada a cerca de dez centímetros do chão.

Sofia fitou-o. Ele mantinha-se imóvel, dando a impressão de que nem sequer respirava, de olhos muito abertos, no entanto alheio à madrugada que iluminava o céu.

Amarinth tocou-lhe no braço, trazendo-a de volta à biblioteca. Atravessaram-na juntas e entraram numa outra divisão, cuja porta fecharam sem um som. Era um quarto de vestir de paredes todas espelhadas, em cujo centro se encontrava uma banheira redonda cheia de água perfumada e borbulhante. Uma outra porta entreaberta permitia ver uma casa de banho luminosa e refulgente, de azulejos cor de jade.

- Entre - sussurrou-lhe Amarinth. - Vamos lavar-nos e refrescar-nos nas águas perfumadas.

Sofia seguiu lentamente a rapariga.

- E Judd virá ter connosco?

- Não - respondeu ela. - O Mestre está a viajar entre as estrelas. Quando o sol lhe fechar os olhos, regressará à sua cama para dormir. Ying e Yang penetrarão nele e expelir-lhe-ão os fluidos do corpo, aliviando-lhe as tensões interiores e restaurando-lhe o equilíbrio mental.

- Mas nós fizemos amor com ele - disse Sofia. - Isso não o satisfez?

- Muito - respondeu Amarinth. - Mas não é através dessa forma que ele se manifesta.

Sofia fitou a rapariga.

- Quer dizer que ele não atinge o orgasmo? A jovem baixou os olhos.

- Assim é. O seu sistema não é esse. Sofia mirou-a em silêncio.

- Não compreendeis - disse Amarinth com gravidade. - É através desse processo que ele adquire a sua energia e conserva a sua essência.

- Então por que motivo se dá ao incómodo de fazer amor? - inquiriu Sofia, tendo a nítida sensação de que estava a falar com uma criança.

- Ele absorve a nossa essência para que esta se misture com a sua - disse ela.

- Foi assim que aconteceu com todas as raparigas, independentemente de quem eram?

- Sim - respondeu Amarinth. - Ele só se exprime no seu sono. Depois acorda logo, completamente fortalecido.

Sofia fitou-a.

- Ele disse-me que você prefere raparigas. E por essa razão?

Amarinth não respondeu.

- Todas as raparigas sentem o mesmo que você? Amarinth fez um sinal afirmativo.

- Mas nunca nenhuma delas deseja mais alguma coisa? - perguntou Sofia.

- Não - respondeu Amarinth com voz débil. - Encontramos a nossa felicidade a servir o Mestre.

Sofia permaneceu em silêncio durante instantes.

- Preferia regressar à casa que me foi destinada - disse por fim.

Amarinth fitou-a.

- Como desejar.

Abriu um armário e retirou de dentro deste um robe de veludo para Sofia. Ela envergou um vestido de seda branca, igual àquele que usara anteriormente.

- Venha comigo - disse Amarinth. - Conduzi-la-ei ao seu carro.

Acordou na sua própria cama. A luz brilhante do sol era visível pelos cantos dos reposteiros. Premiu o botão que tinha ao lado da mesinha-de-cabeceira. Os reposteiros abriram-se e o sol inundou o quarto. Olhou para o relógio de pulso. Eram duas e meia da tarde. Estendeu a mão para o telefone.

- Sim, senhora doutora? - perguntou Max.

- Pode trazer-se um pouco de sumo de laranja e de café, por favor?

- Com certeza. Deseja alguma coisa para comer?

- Por enquanto não.

- Tenho dois recados para a senhora doutora - disse Max. - O senhor Crane gostaria que lhe ligasse para o escritório quando acordasse e o doutor Sawyer aguarda que lhe fale para o seu gabinete no Centro de Pesquisas Crane às seis horas.

- Obrigada, Max - agradeceu Sofia. - Falarei com o senhor Crane assim que tomar um pouco de café.

- Sim, senhora doutora - disse Max. - O número da extensão do senhor Crane é o um.

O sumo de laranja era doce e refrescante e o café quente e forte. Estava a seu gosto, não era fraco como o que se tomava habitualmente na América. Tomou meia chávena e ligou para Judd.

Atendeu uma voz feminina.

- Fala do escritório do senhor Crane.

- É a doutora Ivancich. Ele pediu-me que lhe ligasse.

- Só um momento, senhora doutora - disse a secretária. - Vou anunciá-la.

Um momento mais tarde ouviu-se um clique no telefone e a voz dele atendeu.

- Descansaste bem, Sofia?

- Muito bem - respondeu ela.

- Óptimo - observou Judd. - Estou a tomar as devidas providências para que tenhas conhecimento dos arquivos da doutora Zabiski. Estão gravados na íntegra. Podes escolher a língua que quiseres, assim como ter acesso aos próprios documentos originais.

- Preferia os originais - disse ela. - Gostaria também de uma cópia em inglês.

- Tê-los-ás à tua disposição. Serão projectados num écran duplo que te permitirá uma consulta num e noutro lado, conforme preferires. Depois também poderás rever as notas. Tenho muitos especialistas a estudá-los e a interpretá-los.

- Isso ajudaria bastante.

- Quando é que achas que podes começar?

- Amanhã de manhã, se não vires inconveniente - respondeu ela. - Gostaria de começar o trabalho completa-mente revigorada.

- Óptimo. Vou mandar preparar um escritório para ti.

- Obrigada - disse ela. - Há uma outra coisa que gostaria de te pedir.

- Que é?

- Já passaram três anos desde a última vez em que te examinei. E sou médica, se bem te recordas. Gostaria de te fazer um exame físico de modo a poder verificar os progressos já alcançados por ti.

- Isso dir-te-á mais alguma coisa para além do que vem referido nas notas da doutora Zabiski? - perguntou Judd.

- Ainda não sei - respondeu Sofia. - Talvez não sirva de nada. Mas também nunca se sabe, por outro lado, se não haverá algo dentro de ti que possa lançar alguma luz sobre o que ela estava a tentar dizer-me.

- O doutor Sawyer tem todas as informações de que podes precisar sobre mim, no computador.

- O computador é o computador. Com todo o respeito que é devido ao doutor Sawyer, para mim essas informações serão sempre em segunda mão. Sentir-me-ia mais à vontade se pudesse ver e compreender por mim própria.

A voz dele soou com um tom que não admitia contradições.

- Não penso que seja necessário.

- Desculpa, Judd, mas eu acho que é.

- Não - disse ele sem mais rodeios. O telefone ficou mudo na mão de Sofia.

Ela aguardou um momento e, em seguida, voltou a ligar para ele. A voz da secretária fez-se ouvir do outro lado.

- Quero falar novamente com o senhor Crane - disse.

- Desculpe, senhora doutora, mas o senhor Crane não está disponível.

- Pode dar-lhe um recado meu?

- Com certeza, senhora doutora.

- Diga-lhe que considero não poder ser-lhe de utilidade e que gostaria de que fossem tomadas providências para eu poder regressar ao meu trabalho habitual.

Passados instantes Judd telefonou-lhe.

- És uma cabra - disse-lhe ele.

- Talvez - respondeu ela com gravidade. - Mas sou médica e tenho de fazer as coisas à minha maneira.

Ele ficou em silêncio.

- Vai pensando no assunto - disse ela. - Entretanto vou telefonar ao doutor Sawyer para lhe pedir que venha até cá ajudar-me.

- Achas que ele não tem mais nada que fazer?

- Não me cabe a mim julgá-lo - respondeu Sofia. - Ele é teu amigo. E teu médico. Tu é que tens de decidir.

Judd fez uma pequena pausa.

- Ele amanhã de manhã está aqui.

- Óptimo - disse ela. - Então achas que poderei ver-te em qualquer altura desta tarde?

- Para quê?

- Será útil procedermos a alguns testes ao sangue e a urina antes de passarmos ao exame físico. Poderá poupar-nos algum tempo.

- Mais alguma coisa? - inquiriu Judd, sarcástico.

- Estou a lembrar-me de mais alguns pormenores - observou Sofia -, mas de momento contento-me só com estes.

- Obrigado - disse Judd. - Vês algum inconveniente em que seja às seis e meia?

- Não, está perfeito.

- Muito bem. Aproveitarei a ocasião para te mostrar as instalações onde vais trabalhar.

- Certo. Só mais uma coisa - disse ela. - Não quero voltar a usar nenhum daqueles vestidos brancos.

- Se prometeres não vestir nenhum sari.

- Prometo - disse ela, soltando uma risada.

- Não deixas de ser uma cabra - observou ele.

- Seja como for, amo-te - respondeu-lhe ela, pousando o telefone.

 

Sofia virou-se para Sawyer.

- Tinha razão - disse. - As condições físicas em que ele se encontra são perfeitas. Há só um pequeno pormenor que me preocupa: os dados referentes à energia registados pelo electrocardiograma parecem mais baixos do que os do ano passado.

Sawyer fitou-a.

- Mas é uma diferença infinitesimal. Pode estar relacionada com a hora do dia em que foi medida.

- Mandei repetir o exame três vezes, com intervalos de quatro horas. Não tem nada a ver com a hora do dia. A energia útil apresentada pelo seu cérebro mantém-se constantemente baixa. Acha que seríamos capazes de o convencer a submeter-se a uns testes mais rigorosos?

- Não me parece - respondeu Sawyer. - Ele teria de sair da ilha e voltar a Boca Raton. Disse-me que não abandonaria a ilha antes de o primeiro ano estar completo. Neste momento faltam três meses.

Sofia ficou em silêncio, premindo alguns dos botões do computador. Comparou os dados obtidos pelo EEG feitos naquela altura com os que tinham sido tirados no ano anterior. Carregou noutro botão e parte da imagem apareceu muito aumentada no écran.

- É na zona alta. Repare como ela oscila sobre a linha principal. Não compreendo.

- Vamos transferir estes dados para o computador do Centro de Pesquisas e ver o que os neurologistas pensam sobre eles.

- Pode ajudar - disse ela. - Mas sentir-me-ia mais descansada com um exame geral.

- De que anda à procura? - perguntou Sawyer.

- É mais intuição do que saber exactamente do que se trata - respondeu Sofia. - Lembra-se de me ter feito referência ao aborrecimento e à crescente sensação de isolamento por que ele estava a passar... tive oportunidade de me dar conta da sua falta de participação pessoal em relação àqueles que o rodeiam, até mesmo em circunstâncias de carácter mais físico.

- Sexo? - perguntou Sawyer.

- Sim. Sob o ponto de vista físico, funciona. Mas lá dentro não sente nada. Nem mesmo as drogas o ajudam.

- Por vezes essas produzem o efeito oposto, como sabe, doutora.

- Não são as drogas - disse ela. - Por isso me referi a intuição. Sou mulher. Sei quando um homem está a fazer amor a sério ou não. O acto é o mesmo, mas existem diferenças.

- Podia ser o facto de esterilização - alvitrou ele. - Uma das experiências a que ele se sujeitou foi à de controlar a sua esterilidade através da mente, mostrando que pode separar a impotência da esterilidade... que pode mesmo impedir a saída do esperma numa ejaculação orgástica. Como certamente sabe, ele está a tentar chegar a todas as bases: médicas, físicas, tecnológicas, metafísicas e ioga, assim como ao controle tântrico da mente.

- Isso é óptimo - disse ela. - O prazer está na cabeça do homem, não no seu pénis. Quero saber o que se passa no seu cérebro e penso que o scan pode dar-nos algumas pistas.

- De momento nada podemos fazer - observou Sawyer. - Temos de esperar por ele.

Sofia desligou o écran do computador.

- De qualquer modo, se é que isso nos pode servir de consolo, fisicamente ele não envelheceu um único dia desde a última vez em que o encontrei. Portanto, alguma coisa está a dar resultado, embora não saibamos o quê.

Judd entrou na sala. Lançou-lhes um olhar rápido.

- Satisfeitos? - perguntou.

- Creio que sim - respondeu Sawyer. - Não encontramos nada de errado sob o ponto de vista físico em si.

- Isso podia eu mesmo ter-vos dito - disse Judd sem expressão.

- Ainda assim gostaria de conhecer melhor o que se passa na tua cabeça - declarou Sofia. - Tanto física como psicologicamente.

Judd fitou-a.

- Não compreendo.

- O electrocardiograma mostrou uma pequena quebra nas ondas eléctricas cerebrais - respondeu ela.

- Isso não deveria ser normal? - inquiriu ele. - No fim de contas, abrandei todas as minhas funções físicas.

- Não sei - disse ela. Fitou-o nos olhos. - Como te sentes? Achas que manténs a mesma agudeza e interesse de antigamente? A mim parece-me que não te mostras tão envolvido nas coisas como era teu hábito.

- Já não me interesso por essas coisas - proclamou ele secamente. - Nos velhos tempos tinha o costume de me envolver em jogos. Negócios, dinheiro, pessoas. Neste momento sinto-me farto de tudo isso. Acho que o que estou a fazer é mais importante e com muito mais interesse. Qualquer pessoa pode fazer dinheiro se o quiser. Eu já o fiz e tenho em maior quantidade do que os outros, portanto não preciso de me voltar a afirmar. Raparigas, sexo, a mesma coisa. Já passei por tudo isso. Agora só me é necessário para manter a maquinaria a funcionar.

Sofia fitou Sawyer, voltando em seguida a olhar para Judd.

- Amor?

- Sob o ponto de vista emocional? - perguntou ele. Sofia fez um sinal afirmativo.

- Sim. Penso que é importante para ti, tanto física como mentalmente.

- Achas que estou maluquinho? - perguntou ele calmamente. - Que não sinto as coisas?

Ela fitou-o nos olhos.

- Não sei.

Judd virou-se para Sawyer.

- E o doutor, que acha? Sawyer ergueu as mãos.

- Não sei responder-lhe. Vocês os dois ultrapassam-me. Judd sorriu para Sofia.

- Sinto-me diferente - disse. - Não creio que as minhas sensações sejam tão intensas como as tuas. Mas não deixo de as ter, à minha maneira. Tenta compreender a questão do meu ponto de vista. Vou viver para sempre, e se isso é verdade, sou obrigado a considerar-vos a todos vocês como temporários. Não me posso tornar muito ligado a vocês porque daqui a vinte, cem anos ou mais, vocês já cá não estão e eu estarei a viver com outras pessoas, noutro tempo.

- Então suprimes os teus sentimentos porque tens medo de perder aqueles que amas? Tens medo de te magoares a ti mesmo?

Sofia sentiu a garganta apertada.

- É possível - respondeu ele, pensativamente. Respirou fundo. - Talvez amar também faça parte da mortalidade. Cada pessoa que amamos e perdemos faz-nos morrer um pouco.

Sofia esforçou-se por conter as lágrimas.

- Se tivesses filhos - disse -, viverias através deles.

- Mas eu não viverei - respondeu ele. - Tal como meu pai também não vive. Quero estar vivo, não ser apenas uma recordação.

Sofia virou-se para o computador e premiu vários botões. Números faiscaram no écran. Carregou em mais dois botões e os números deram lugar a uma curva demográfica. Falou para Judd, sem se voltar para ele.

- Segundo o computador, neste momento tens uma esperança de vida de cento e trinta anos. Isso significa que a tua actual idade física, que é de quarenta e nove anos, corresponde à de um homem normal de trinta e um. - Virou-se para ele. - Presentemente as tabelas são de EV setenta e quatro. Neste momento tens uma E V de quase o dobro.

Judd desviou os olhos do écran para Sofia.

- Que me estás a dizer? - perguntou.

- Em determinada altura, a doutora Zabiski tinha conseguido uma EV aproximada de cento e cinquenta. Ao tentar alargar esse número, quase te matou. Não estarias disposto a contentares-te com o que tens em vez de continuares a fazer experiências que podem destruir-te?

- Se tenho de morrer - disse ele com simplicidade -, não me interessa saber daqui a quanto tempo ou quando é que isso acontecerá. Neste momento ou noutro. Aquilo que procuro é o infinito.

- O infinito não existe - observou ela com gravidade. - Nem mesmo para além das estrelas.

Judd ficou pensativo durante momentos e depois olhou pra Sawyer e para ela.

- Fiz os exames físicos que pediste. Estás pronta para começares a estudar os apontamentos da doutora Zabiski amanhã?

- Amanhã de manhã - respondeu Sofia.

- Óptimo - replicou ele. - Esta noite jantamos às nove horas?

- Sim, obrigada - respondeu Sofia. Judd virou-se para Sawyer.

- E você, Lee?

Sawyer abanou a cabeça negativamente.

- Não, obrigado. Tenho de regressar. Mas fica para a próxima.

- Está combinado - disse Judd. - Mas, entretanto, vamos todos lá acima tomar uma bebida.

Judd bebia sumo de laranja, o Dr. Sawyer tomava um uís-que com gelo e Sofia deliciava-se com um minúsculo copo com vodca Starka quase gelado por ter estado no congelador. Uma campainha de telefone soou perto da cadeira de Judd. Este pegou no auscultador e escutou por um momento, entregando-o, em seguida, a Sawyer.

- É do teu escritório.

Sawyer levou o auscultador ao ouvido.

- Sim?

A voz da sua secretária soava em tom apologético.

- Desculpe incomodá-lo, doutor, mas acreditei que era importante. Acabámos de receber uma chamada telefónica de alguém do Departamento Estatal de Washington a perguntar se a doutora Ivancich se encontrava connosco. Disse-lhe que não.

- Fez muito bem - respondeu Sawyer. - Além disso, corresponde à verdade.

- Também me perguntaram se tinha possibilidades de entrar em contacto com ela. Disse-lhes que não, porque não sabia onde ela estava. Depois perguntaram por si e eu informei-os de que o senhor doutor estava em viagem e deveria ir ao escritório amanhã de manhã.

- Muito bem - disse Sawyer. Pousou o telefone. Olhou depois para Judd. - O Departamento Estatal anda à procura de Sofia.

- Estranho - comentou Judd. Virou-se para Sofia. - Tens alguma ideia do que os leva a estarem tão interessados na tua pessoa?

Sofia encolheu os ombros.

- É o teu Governo, não o meu. Não percebo nada sobre a forma como funciona. Na maior parte das vezes nem mesmo sei como o meu próprio Governo actua.

- Arranjaste a tua licença para viajar no Bangladesh? - perguntou ele.

- Não. Servi-me de um visto de entrada ilimitado que tu obtiveste para mim há alguns anos. - Ficou alguns momentos em silêncio. - Mas quando passei pelo Departamento de Imigração, no Aeroporto JFK, dei como endereço da minha visita nos Estados Unidos o Centro Médico Crane, em Boca Raton, Florida.

- Foi correcto - observou Judd. Reflectiu por instantes. - Por norma é a Imigração que toma conta desse aspecto relativamente aos visitantes.

- Foi o que ela disse.

- Volte a ligar para ela e vê se ficou com o nome da pessoa que telefonou. Assim que estivermos de posse dele, posso mandar a Segurança investigá-lo. Se é o Governo que está envolvido, quero ficar a saber.

 

O jantar foi servido numa pequena mesa redonda situada numa alcova rodeada de janelas da biblioteca. Judd virou-se quando Sofia entrou na sala.

- Puseste o vestido branco - observou. Ela sorriu.

- Mandei-o arranjar.

- Não era necessário - disse ele. - Ter-te-ia enviado outro.

- Estou sentimentalmente ligada a este - respondeu Sofia.

Ele entregou-lhe um copo gelado com vodca. Em seguida pegou no seu.

- Santé.

- Santé - respondeu Sofia, olhando para a mão dele. - Coca-Cola com cherryl

Judd soltou uma risada.

- Também tenho as minhas ligações sentimentais. - Ajudou-a a sentar-se na cadeira e depois foi para o outro lado da mesa, sentando-se em frente dela. - Não sou tão frio como pensas.

- Desculpa - disse Sofia. - Não queria ferir os teus sentimentos.

- Não tens que pedir desculpa - advertiu ele. - Lá porque tenho um sonho, não quer dizer que não seja humano.

- Essa seria a última coisa com a qual eu me preocuparia - observou Sofia. - Não há dúvida de que és humano, talvez demasiado.

- Não te consigo compreender - disse Judd. Ela sorriu.

- Nem tentes. Limita-te a atirar as culpas para o facto de eu ser mulher.

- Muito bem - disse ele deliberadamente. - Pensei que seria bom termos um jantar leve e irmos cedo para a cama. Tivemos um dia muito atarefado e amanhã tu mesma irás ter uma jornada muito cansativa.

O jantar consistia em finas fatias de peito de galinha acompanhadas de um molho leve, rodelas de cenoura cozida al dente e ervilhas, a que se seguiu uma salada leve a acompanhar uma fatia de queijo de Brie. Judd bebeu água e Sofia tomou Chablis seco. Nenhum deles se serviu de café.

- Muito bom - disse ela, empurrando a cadeira para trás. - Já não posso mais.

- Achas que consegues dormir?

- Vou tentar - respondeu. - Se não for capaz, tomarei um comprimido.

- Desiludida? - inquiriu Judd, fitando-a. Ela encolheu os ombros.

- Não exactamente. Conheço-te o bastante para saber que não estás interessado em todos os detalhes da questão.

- Não estás zangada? - perguntou ele.

- Não - respondeu ela, levantando-se. - Que foi que uma vez me disseste... Um americanismo: “Cada um é como cada qual."

- Esse dito não é meu - protestou ele. - É coisa de Fast Edclie!

Ela riu-se.

- Não interessa quem o disse. - Baixou os olhos para ele. - O que eu sei é que não mudei. Adoro fazer amor, ainda não posso passar sem isso.

- Amarinth... - principiou Judd. Ela interrompeu-o.

- Não a quero a ela. Quero-te a ti.

- Amarinth é muito talentosa - advertiu ele. - Tem umas mãos pequenas e macias e com um punho é capaz de te encher mais e penetrar-te mais fundo do que qualquer homem.

- Não, obrigada - disse Sofia. - Prefiro recorrer ao meu vibrador. Mas ficar-me-ei por um comprimido.

Judd suspirou e levantou-se. Beijou-a no rosto e pegou-lhe na mão.

- Anda - disse-lhe. - Vou acompanhar-te até ao carro.

Quando ele entrou no quarto de dormir, o telefone estava a tocar. Carregou num botão do painel de controle, accionando o altifalante que tinha na parede com microfones acoplados.

- Daqui fala Crane - disse com voz natural.

- Espero não o ter acordado - articulou Merlin.

- Nem pouco mais ou menos - respondeu Judd. - Aqui pouco passa das onze da noite.

- Fechámos o negócio do banco - informou Merlin. - A Transatlantic irá transferir quinhentos milhões amanhã. Tomam conta do banco no dia a seguir.

- O Departamento de Justiça aprovou?

- Tudo - respondeu Merlin. - Vamos mandar quatrocentos milhões para a Fundação. Que deseja que façamos aos cem milhões que restam?

- Quanto é que tenho de pagar de impostos sobre essa soma?

- Não tem nada a pagar - replicou Merlin. - Ainda fica com um prejuízo pessoal de duzentos milhões a haver.

Judd reflectiu por um momento.

- Muito bem. Transfira vinte e cinco milhões para o Centro Médico Crane como um empréstimo pessoal e mande os setenta e cinco milhões que restam para as contas particulares que tenho na Suíça e nas Baamas, metade para cada lado.

Merlin disse sem expressão:

- O Centro Médico precisava de mais do que isso, mas o dinheiro é seu.

- Perfeito - respondeu Judd secamente. - O dinheiro é meu.

Merlin ficou sem palavras perante aquela observação.

- Mais alguma coisa? - inquiriu Judd.

- As Mitsubishi Heavy Industries oferecem-nos um bilião e meio pela Engenharia e Construções Crane - disse Merlin relutantemente.

- Quanto é que vale, neste momento, o activo?

- Líquido, o dobro do que eles propõem. Três biliões. Judd pensou durante alguns momentos.

- Diz-lhes que a podem ter por dois biliões.

- Não quero estar a pôr em causa as suas decisões - disse Merlin -, mas tenho a impressão de que está com vontade de se desfazer de tudo.

- Talvez seja assim - respondeu Judd. - O dinheiro deixou de ter importância para mim. Tenho mais do que aquele de que necessito.

- Mas aceitar a oferta da Mitsubishi é perder um bilião de dólares.

Merlin não conseguiu continuar a falar. Judd mostrou-se paciente.

- Se recebermos os três biliões de dólares, que impostos iremos ter de pagar?

Quase podia ver Merlin a manusear o seu computador, às voltas com os números.

Passados alguns instantes, falou.

- Entre setecentos e oitocentos milhões de dólares.

- Então que quantia líquida representaria mais um bilião de dólares? Não o suficiente para compensar os aborrecimentos que os chatos dos homens das Finanças nos dariam. E podiam manter-nos afastados do dinheiro durante cinco anos. Desta maneira, a tinta vermelha mostra-se bem visível, eles ficam sem argumento e nós ficamos com um lucro líquido de cento e sessenta milhões para a Fundação e quarenta milhões para mim.

Merlin não proferiu palavra.

- Não te deixes ir abaixo - disse-lhe Judd suavemente. - É tempo de nos livrarmos de algumas das nossas responsabilidades. Talvez assim possamos gozar a vida um pouco mais.

O altifalante deixou escapar o suspiro profundo dado por Merlin.

- Não creio que o seu pai concordasse com semelhantes passos.

A voz de Judd soou com secura.

- Meu pai está morto. E eu penso que joguei demasiado tempo de acordo com a sua vontade. Ainda estou vivo e tenciono obter maior prazer da vida.

- Muito bem - disse Merlin com a entoação de quem se sente muito desconsolado. - Vou transmitir a sua proposta à Mitsubishi.

- Obrigado - disse Judd. - Boa noite.

- Boa noite - respondeu Merlin.

Judd interrompeu a ligação e atravessou o quarto em direcção à janela. Olhou para o mar. A Lua estava a subir no firmamento e a sua luz começava a brincar sobre a água. Judd deu início aos seus exercícios respiratórios. Começou a sentir todas as suas funções vitais a diminuírem em ritmo.

Sentiu, mais do que ouviu, pequenos passos a entrarem no quarto. Depressa eles se puseram a seu lado. Dedos leves e macios começaram a despi-lo. A camisa e as calças pareceram flutuar, afastando-se do seu corpo, ao mesmo tempo que mãos minúsculas o conduziam para cima de um colchão redondo e firme, situado a cerca de quatro centímetros do chão. Sem ver as mãos que o ajudavam, assumiu a posição do lótus, ficando virado para as janelas que davam para a noite. As luzes que iluminavam o quarto foram diminuídas até se confundirem com o firmamento nocturno. Diante dele, quase ao nível dos olhos, uma vela começou a tremeluzir.

Ele olhou fixamente para a luz até as suas pálpebras começarem a tornar-se pesadas e a fechar-se. Dedos minúsculos fecharam-lhe os olhos, mas a luz da vela continuou impressa no interior das pálpebras. Depressa os passos deixaram de se ouvir. Ele ficou em silêncio e sozinho.

A sua mente deambulou pelo seu corpo. Sentiu os dedos dos pés, os seus pés, depois as suas pernas. Os seus testículos e o pénis estavam macios e quentes, as virilhas e o ventre relaxados. O peito movia-se suavemente sobre os pulmões e o bombear tranquilo do coração ecoava-lhe nos ouvidos.

Depressa se afastou dali; a consciência abandonou-o. Sentiu-se em uníssono com a consciência de todo o universo. O poder que tinha dentro de si era o poder que tinha fora de si. O seu espírito elevou-se. E dormiu na noite infinita da sua alma. Outra estrela, mais outra, e mais outra...

 

Os ponteiros luminosos na mesinha-de-cabeceira marcavam seis e meia. Sofia carregou no botão que tinha ao lado desta e os reposteiros abriram-se. O sol matinal já se tinha erguido sobre o oceano. Pegou no telefone.

- Bom dia, senhora doutora - disse Max, ao atender.

- Toranja, café, ovos mexidos com bacon e uma boa chávena de café.

- Com certeza, senhora doutora. Imediatamente.

Sofia pousou o telefone e dirigiu-se à casa de banho. Tomou um duche rápido, afastando os últimos vestígios de sono que tinha. Ainda se sentia mole, apesar da alternância da água quente com a fria. Enrolou-se num toalhão e foi para o quarto. A mesinha do pequeno-almoço já se encontrava preparada.

Serviu-se de café antes de se sentar. Era negro e forte. Esvaziou a chávena, encheu-a de novo e sentou-se, pegando na colher com que comeria a toranja.

O telefone soou. Não teve de se levantar para atender.

- É a doutora Ivancich - disse ao pegar no auscultador.

- Sofia - respondeu Sawyer -, espero não a ter acordado.

- Já estou a tomar o pequeno-almoço.

- Fiz uma experiência interessante - disse-lhe ele entusiasmado. - Comparei os electrocardiogramas tirados nos últimos anos com os scans obtidos nas mesmas ocasiões. Reduzimo-los a números e depois voltámos a reconvertê-los. Depois inserimo-los em gráficos no computador. E eles ficaram muitíssimo parecidos com os scans originais. Segui o mesmo processo com os electrocardiogramas que fizemos ontem. São de grande interesse, Sofia.

- Gostaria de poder vê-los agora - disse ela rapidamente.

- E pode - confirmou ele. - Acenda o aparelho de televisão que tem no quarto. Está ligado ao computador central. Carregue nos números sete quatro oito seis um zero um nove cinco três. Registou?

Ficou à espera de que ela voltasse a falar com ele.

- Já o fiz, mas o écran continua vazio.

- Dactilografe a palavra “Computrac".

O écran ganhou vida. A imagem era vagamente semelhante à de um perscan, apresentando, inclusivamente, o mesmo colorido.

- Já consegui - disse ela. - E agora, que procuro?

- Vou sobrepor este novo material aos scans antigos. Repare no minúsculo traço azul luminoso que aparece no último registo.

- Estou a vê-lo.

- É o nível eléctrico existente neste momento. Agora repare no mesmo pormenor, mas no registo sobreposto. Parece estar a mover-se mais rapidamente. E o novo scan parece indicar uma fracção de aumento na área total do cérebro.

- Quer dizer que o cérebro dele pode estar a crescer? Sofia parecia incrédula.

- Não tenho bem a certeza, mas tudo indica que o peso do seu cérebro aumentou duas gramas. Se isso for verdade, aí temos uma explicação para o abrandamento da velocidade de impulsos. Ele está realmente a utilizar mais intensamente as suas células cerebrais e isso levou-o a criar maior número delas para aguentar a sobrecarga.

- Ainda estou a ver se consigo entender o fenómeno - disse Sofia.

- Temos de ter muito cuidado - observou ele. - Ainda é um gráfico de computador, não é autêntico. Mas ocorreu-me uma ideia. Sabe se a doutora Zabiski lhe injectou algumas das células cerebrais dele próprio durante a terapia celular combinada quando trabalhou com ele?

- Desconheço - respondeu ela. - Essa arte do processo não me foi dada a conhecer. Nunca permitiu que ninguém assistisse ao seu desenvolvimento.

- Foi só uma ideia - disse Sawyer, quase como se falasse de si para si. - Ainda assim gostaria de lhe fazer um scan o mais depressa possível.

- Mostremos-lhe isto - alvitrou Sofia. - Talvez ele concorde.

- Conta vê-lo mais tarde?

- Penso que sim - respondeu ela. - Esta manhã começo a trabalhar nos registos deixados pela doutora Zabiski. Tocar-lhe-ei no assunto quando me encontrar com ele.

O écran ficou em branco.

- Boa sorte comunicação.

- Obrigada - disse Sofia.

desejou-lhe Sawyer, interrompendo a E boa sorte também para si.

A luz do sol infiltrou-se pelas pálpebras de Judd. Este abriu os olhos sem se mover sobre o colchão duro. O quarto parecia nublado; a visão tornou-se-lhe mais clara. Virou a cabeça e olhou para as jovens sentadas no chão, a seu lado.

Estas falaram quase em uníssono.

- Bom dia, Mestre.

- Bom dia - respondeu ele lentamente.

- Viajou até longe? - perguntaram.

- Até muito longe - murmurou ele.

- Maravilhoso - disseram elas. - Ficamos muito felizes em sabê-lo. Obrigada, Mestre.

Os seus corpos nus, dourados pelos raios do Sol, brilharam ao saírem em silêncio para fora do quarto.

Judd estendeu-se calmamente na cama. Um momento mais tarde sentiu o corpo a tremer. Não se moveu. Voltou a tremer. Ouviu a porta abrir. Não desviou os olhos.

Amarinth, envergando o vestido branco sem alças, olhava para ele, os olhos escuros e húmidos. Ele estremeceu uma vez mais e ergueu os olhos para ela.

- O Mestre viajou para muito longe e ainda está gelado por causa da viagem - disse ela. - Deixe que o meu fogo interior o aqueça.

Ele não proferiu palavra. Fitou os olhos dela, em seguida o torso que se inclinava para ele. Viu a mão dela agarrar a sua erecção e as pontas dos dedos cobrirem-lhe os testículos. Respirou profundamente, mas permaneceu em silêncio.

- A sua força é o tronco da palmeira, abrindo-se para lançar um jorro de amor sobre os meus dedos. - Os olhos escuros dela mantinham-se fixos nos de tom azuis-cobalto dele. - Por favor, Mestre - implorou -, permita-me que o sirva.

Judd não proferiu palavra.

Amarinth levantou o vestido até à cintura e ajoelhou-se por cima dele, na cama. Continuando a segurar no pénis com a mão, inclinou-se para trás, apoiando-se sobre as ancas e guiou-o para dentro do seu corpo. As suas nádegas começaram a rebolar-se num frenesim orgíaco.

- Mestre! Mestre! - gritou. - Faça-me um filho! Por favor, faça-me um filho!

Nesse momento olhou para os olhos dele. Mostravam-se distantes e cegos, velados por uma película que ela não conseguia penetrar.

- Mestre - exclamou, com as lágrimas a rolarem-lhe pela cara abaixo.

Lentamente, saiu de cima dele. O seu pénis estava agora mole, desaparecida a erecção. Ela ajoelhou-se na cama ao lado dele. Judd sentiu as suas lágrimas caírem suavemente sobre a sua mão.

- Perdoe-me, Mestre. Perdoe-me por não ter podido satisfazê-lo.

Ele virou-se para ela e beijou-lhe a cabeça.

- Não te lamentes, criança - disse ele meigamente. - Satisfizeste-me. Eu é que não te posso fazer o mesmo.

Sentou-se na cama.

- Por favor, prepara-me o banho - pediu. - E brincaremos maravilhosamente os dois na água, como crianças.

- Mas não compreendo, Mestre. Nunca se veio dentro de mim.

- Isso não tem importância, criança - disse Judd. - A morte só virá se eu permitir que me tome.

- Na minha terra, Mestre - disse Amarinth -, acreditamos que os filhos prolongam a vida.

- É uma outra terra e um outro país - murmurou ele lentamente.

Quando entrou no seu gabinete de trabalho, em cima da sua secretária encontrava-se o copo de sumo de laranja habitual. Eram onze da manhã e o seu rosto bronzeado estava coberto de transpiração, que também lhe manchava o fato branco de jogging. Bebeu um gole de sumo e carregou no botão que activava as mensagens computadorizadas que lhe chegavam da Central de Computadores. Havia algumas: de Merlin; do director de Controle da Segurança; do Dr. Sawyer; de Barbara, sua mãe; do Dr. Schoenbrun, do Brasil.

Carregou em mais dois números. O primeiro telefonema que fez foi para Schoenbrun. Era o mais importante da lista. A chamada foi imediatamente transmitida pelo seu satélite particular, que tinha o seu nome. Ligou o écran e o rosto do Dr. Schoenbrun encheu-o.

- Viva, doutor Schoenbrun - disse. O médico alemão sorriu, satisfeito.

- Tenho boas notícias para si, senhor Crane.

- Óptimo - observou Judd. - Fazem sempre muito jeito.

- O reactor nuclear foi colocado - observou o médico. - Duas semanas antes do que estava previsto.

- Os meus cumprimentos, doutor - disse Judd. - A partir de quando é que posso contar que esteja tudo terminado?

- Daqui a dois meses, pelo menos dez semanas - respondeu Schoenbrun. - Ainda falta terminar a canalização e soldar o centro da cúpula. Quando essa parte estiver acabada, o bulldozer cobrirá as instalações com sete metros de terra. Plantar-se-ão árvores e arbustos e em menos de uma semana nem a mais sofisticada câmara de satélite será capaz de as descobrir. O local não deferirá absolutamente nada da floresta circundante.

- Muito bem - disse Judd. - E quando é que acha que será possível activar o reactor nuclear?

- Daqui a três meses, ou menos - respondeu Schoenbrun. - Nessa altura já teremos todos os testes terminados.

- Ninguém o liga a não ser eu - recomendou Judd.

- Com certeza, senhor Crane - respondeu Schoenbrun brandamente. - Foi o senhor que o tornou possível, portanto é a si que cabe a honra de carregar no botão que o põe a funcionar.

Judd ficou pensativo durante alguns instantes.

- O Projecto Xanadu - disse, quase que só para si mesmo. - Já lá vão três anos.

- Exactamente, senhor Crane - replicou Schoenbrun. - A princípio não compreendi o significado do nome Xanadu. Depois li o poema e entendi. Mas o seu sonho é maior que o de Cubilaicão.

- De agora em diante quero que me façam chegar relatórios semanais.

- Como desejar, senhor Crane. - Schoenbrun sorriu, satisfeito consigo mesmo. - Ninguém acreditaria na existência de semelhante obra neste local. É a fábrica de energia nuclear mais poderosa do mundo, enterrada nas profundezas do solo e a mais de mil quilómetros para o interior da selva do Amazonas.

- Sem o trabalho pioneiro de Ludwig, talvez o que agora desenvolvemos nunca tivesse podido realizar-se - disse Judd.

- Foi o seu génio que tornou tudo isto possível, senhor Crane. Até a mim me custa a acreditar que tenhamos uma fábrica de tal modo automatizada que basta apenas um homem para a manter a funcionar.

- Não subestime o seu próprio génio e trabalho, doutor Schoenbrun. Talvez um dia o mundo venha a apreciá-lo. Do mesmo modo que eu - acrescentou Judd.

- Obrigado, senhor Crane - agradeceu Schoenbrun, hesitando por um momento.

Judd interrompeu-o, pois dava-se conta do que o cientista ia a dizer a seguir.

- Esta manhã transferiremos cinco milhões de dólares para a sua conta na Suíça. Outros cinco milhões chegar-lhe-ão às mãos quando eu carregar no botão que activa o reactor.

- Muito obrigado, senhor Crane - agradeceu Schoenbrun, quase se inclinando no écran.

- Adeus, doutor Schoenbrun - disse Judd.

Carregou num dos botões do computador e a imagem desapareceu. Fez passar outras mensagens rotineiras e depois ligou para o Controle da Segurança. Foi o director quem atendeu.

- John? - principiou. - Daqui fala Judd Crane.

- Sim, senhor Crane - respondeu o director da Segurança. O homem era sempre cauteloso.

- Podemos falar à vontade, senhor? - perguntou.

- Sim - respondeu Judd. - Avance.

- A nossa doutora está outra vez envolvida em problemas - disse John.

- Explique-se - pediu Judd.

- Está a ser procurada por quatro países, senhor - disse John. - União Soviética, Jugoslávia, China e pelos Cubanos, que contrataram a Mafia. O facto de serem os quatro muito difíceis de bater, torna as coisas muito complicadas.

- Não estou a perceber, John. Porquê agora? Ela passou quase três anos no Bangladesh, onde poderiam ter-lhe deitado a mão em qualquer altura.

- Tudo indica que eles acham que ela roubou alguns documentos ultra-secretos, cuja falta só agora detectaram. Esses papéis tinham algo a ver com as experiências e os arquivos da falecida doutora Zabiski, pelo que depreendi.

- Devem ser os registos que a doutora Zabiski me deu - observou Judd.

- Não são esses, de que eles já têm conhecimento. Creio que o senhor só está de posse de parte do arquivo. Eles permitiram que a doutora lhe passasse esses documentos para que a deixasse regressar para junto deles.

Judd permaneceu em silêncio.

- Onde estão os restantes papéis?

- Com a doutora Ivancich, presumo. Caso contrário, por que razão se dariam eles a tanto trabalho neste momento para a caçarem? - Fez uma pequena pausa. - Penso que é melhor reforçarmos a segurança em redor da ilha Crane. Não precisarão de muito tempo para descobrirem que ela está aí.

- O doutor Sawyer já tem conhecimento destes factos?

- Ainda não - respondeu John. - O senhor é que é o patrão. A si cabe receber a mensagem em primeira mão.

- Por enquanto não lhe diga nada - pediu Judd. - Não quero que ele se enerve. Mas ponha-lhe uma boa cobertura. Não tenho vontade nenhuma que alguém dê cabo dele para lhe extrair informações.

- Com certeza, senhor - disse John. - E quanto à ilha Crane?

- Quero quatro helicópteros bem armados a patrulharem a ilha vinte e quatro horas por dia. Oito lanchas de alta velocidade e igualmente armadas de serviço permanente na água. E vinte dos nossos melhores atiradores espalhados pelo terreno da ilha, em vigilância de dia e de noite.

- Precisamos de seis horas para pôr tudo em funcionamento, senhor - disse John.

- Têm duas horas. Podemos não dispor de seis horas. Judd desligou.

 

A voz de Sofia soava furiosa ao telefone.

- Essa velha filha da mãe! Enganou-nos a todos!

A voz de Judd chegou-lhe sem expressão através do auscultador que ela tinha junto do ouvido.

- E que mais há de novo?

- Não me pareces excitado - observou ela. - Talvez não tenhas compreendido o que eu disse. Nunca foi intenção dela dar-te todas as respostas.

- Não sou estúpido - observou Judd. - Isso já eu sabia. Por que razão achas que te pedi para vires aqui? Pensei que algumas delas estivessem em teu poder. Não foi isso o que roubaste dos arquivos russos?

- Como é que soubeste desse facto?

- Agora não interessa - disse ele. - Tens metade do mundo de Leste atrás da tua pele. Não tens onde te esconder, excepto aqui comigo.

- Foi isso o que o Departamento Estatal te contou?

- Em parte - respondeu ele. - E que me dizes relativamente aos teus registos?

- Vou arranjá-los - disse Sofia. - Mas não bastarão. Ainda existe um terceiro arquivo. Mas creio que sei onde esse se encontra.

- Diz-me. - A voz dele era seca. - Quem os tem?

- O indiano que vem referido nos teus registos. Ela nunca falou dele nos que estavam com os Russos. Condiz. Os teus papéis abrangem todo o tempo desde mil novecentos e cinquenta e três em diante. Os Russos têm os teus arquivos, com excepção dos papéis que falam do indiano. Os deles são de mil novecentos e quarenta e quatro, altura em que se apoderaram do laboratório experimental alemão onde ela trabalhava.

- Ela trabalhava para os Alemães? Judd mostrou-se surpreendido.

- Sim - respondeu Sofia. - Porque estás tão admirado? O teu povo não apanhou todos os cientistas alemães especializados em foguetões e não os trouxe para os Estados Unidos?

- Está bem, está bem - condescendeu ele com impaciência. - Que estás a tentar dizer-me?

- Os Russos apanharam-na juntamente com alguns dos outros médicos, mas, não se sabe como, os ficheiros que faziam referência aos anos que distavam entre mil novecentos e quarenta e um e quarenta e três nunca foram encontrados. Ela contou-lhes que tinham sido queimados, juntamente com um cientista indiano que os nazis consideraram não-ariano. Mas eu penso que conseguiu fazê-lo sair de lá com os documentos antes de os Russos chegarem.

- Então como é que ela conseguiu mencionar o indiano nos meus papéis? - inquiriu Judd.

- Repara bem no teu original. Os apontamentos que se referem ao indiano foram escritos com uma esferográfica e na sua estenografia especial de que ela se servia. As restantes notas ou estão dactilografadas ou passadas com caneta de tinta permanente. Depreendo que as tenha acrescentado no avião, quando vinha ter contigo. Também creio que o indiano não fazia parte do quadro médico. Foi ele que, sabe-se lá como, assegurou o êxito das suas experiências pessoais. Por isso ela quis salvá-lo.

- Que aconteceu aos outros? - perguntou ele.

- O arquivo russo que tenho em meu poder fala de muitas experiências que foram enterradas com os cientistas que as levaram a cabo. - Ficou pensativa por um momento. - Tinhas razão quando disseste que ela era uma mulher dura.

- Ela era uma mulher dura.

- Mas também era um génio. E tu foste a única pessoa em quem ela alguma vez confiou.

- Mas não o suficiente para me entregar todo o jogo, calculo - disse Judd.

- Talvez não tivesse podido reunir todos os pormenores num arquivo único. Se o tivesse feito, possivelmente os Russos ter-lhe-iam deitado a mão e ela não sabia que uso eles poderiam fazer deles- Tu foste o único homem no mundo em quem ela sentiu poder confiar esse poder. - Fez nova pausa. - E agora?

- Por que razão não tentaste entrar em contacto comigo mais cedo? - perguntou ele.

- Uma vez esforcei-me por isso. Mas o tempo escasseava e não consegui encontrar-te. Tinha de regressar. Ainda era a médica de Brejnev. Depois de ele morrer enviaram-me para o Bangladesh para trabalhar em experiências sobre nutrientes numa clínica infantil. Quando recebi a tua mensagem, saí de lá a meio dessa mesma noite. Se tivesse esperado pelo dia seguinte, estaria tudo acabado para mim. Eles teriam interceptado o teu recado e teriam acabado comigo. Apesar de lhes ser muito útil, não deixava de saber de mais.

Judd ficou em silêncio.

Sofia sentiu um grande cansaço,

- Creio que agora tudo acabou. O melhor que tenho a fazer é regressar. Podes ficar com os arquivos. De qualquer maneira iam para ti, se eu morresse.

- Prefiro vê-los contigo viva - disse ele com voz firme. - Não tenciono perder-te neste momento.

- Que queres dizer?

- Foi o que eu disse, não foi? - ripostou-lhe ele bruscamente. - Agora fechas a porta do teu escritório e só a abres quando ouvires a minha voz do lado de fora.

O clique do telefone a ser desligado chegou-lhe ao ouvido. Sofia pousou lentamente o auscultador e ia a levantar-se quando bateram à porta com suavidade.

Ela abriu a mala de mão e tirou de dentro desta uma Ma g num de cano curto, de fabrico especial, que empunhou com ambas as mãos.

- Quem é? - perguntou.

- Max, senhora doutora. - A voz dele soou abafada através da porta. - O senhor Crane pediu-me que a levasse ao escritório dele para almoçarem.

- Entre - disse Sofia calmamente. - A porta está aberta. A porta abriu-se e ela viu-o, rebuscando algo no interior do

bolso do casaco com uma das mãos. O rosto exprimiu surpresa ao vê-la de arma apontada para ele. Foi a última coisa que viu na vida.

A bala de grande calibre atirou-o através da porta aberta para o corredor, ao mesmo tempo que o sangue lhe brotava do peito, cobrindo-lhe o casaco branco. O homem rodopiou, tentou agarrar-se à parede e, em seguida, escorregou lentamente para o chão, mesmo em frente das portas do elevador. O tiro ecoou pelos corredores como uma explosão.

Sofia deixou-se ficar no escritório, mantendo a arma fortemente apertada nas mãos. Ouviu passos acelerados no corredor em direcção a ela e, nesse momento, as portas do elevador abriram-se.

Fast Eddie saltou rapidamente para fora do elevador, com o seu enorme Colt na mão; ajoelhou-se ao lado do corpo de Max enquanto os guardas da Segurança acorriam. Judd vinha a seguir a estes, também a correr.

Sentiu, mais do que viu, a porta de um dos cantos do corredor abrir-se.

- Atrás de ti - gritou a Fast Eddie.

Fast Eddie rodou sobre si, mas Sofia foi ainda mais rápida. Apertou o gatilho da Magnum assim que Mae apareceu no corredor, de metralhadora Uzi nas mãos já sem vida. Mais uma vez o tiro ecoou como uma explosão pelos corredores. Mae caiu de costas no quarto de onde tinha saído, ao mesmo tempo que a Uzi se estatelava ruidosamente no chão.

Fast Eddie examinou Mae da soleira da porta. Olhou de novo para os outros.

- Esta também ficou arrumada - disse.

Judd passou por cima do corpo de Max e aproximou-se de Sofia. Reparou na terrível palidez que esta tinha no rosto e na tensão que lhe enrijecia o corpo. Estendeu a mão e tirou-lhe a Magnum.

- E nós é que tínhamos por missão proteger-te - comentou suavemente.

A tensão abandonou o corpo de Sofia e o medo desapareceu-lhe dos olhos. Deixou escapar um profundo suspiro.

- Calculei que esta era a única coisa a fazer, se querias viver eternamente, Judd - disse, com um ligeiro sorriso nos lábios.

- Não era atrás de mim que eles andavam - observou ele.

- As balas têm o condão de alterar a esperança de vida - disse ela. - Temos de ser extremamente cuidadosos.

Judd baixou os olhos para a Magnum. Desprendeu a patilha de segurança e abriu o tambor. Virou-o e deixou as balas caírem-lhe na palma da mão. Havia quatro balas intactas e dois invólucros vazios. Examinou as primeiras.

- Engraçadas - disse, fitando-a. - Cabeças explosivas. Nesta arma tudo é especial. Onde é que a arranjaste?

- Foi o KGB que ma deu - respondeu Sofia. - Eles têm um homem especializado em brinquedos como esse.

Judd fez um sinal de entendimento.

- Já a tens há muito tempo?

- Dez anos - respondeu ela. - Foi a primeira vez que a utilizei, com excepção dos treinos.

Judd meteu a arma e as balas no bolso do fato de treino. Virou-se para olhar para o corredor. Estava cheio de homens da Segurança. Fez sinal a Fast Eddie.

- Vamos voltar para o meu gabinete - disse, pegando na mão de Sofia.

Sofia seguiu-o até ao interior do elevador, ambos acompanhados por Fast Eddie. Judd tapou o botão antes que ele pudesse premi-lo.

- Qual de vocês é o responsável pela vigilância neste turno?

- Sou eu, senhor Crane - respondeu um indivíduo alto e corpulento de cabelo entremeado de brancas. - Agente Carlin.

- Agente Carlin, mande limpar esta barafunda - ordenou. - Depois envie um grupo à casa onde a doutora Ivancich estava alojada. Revistem tudo e mandem as coisas da doutora para o meu apartamento.

- Sim, senhor - respondeu Carlin. - Lamento o sucedido, senhor Crane. Não fazíamos a menor ideia. Esta gente tinha os documentos todos em ordem, passados pelo Controle da Segurança.

- A culpa não foi sua, agente Carlin - disse Judd. - Eu trato da questão com o Controle da Segurança.

Carregou no botão e as portas do elevador fecharam-se.

 

- Sinto muito, senhor Crane - disse John calmamente. - Receio bem que tenha de sair da ilha. Não temos possibilidade de o defender aqui.

Judd olhou em redor, para a sua biblioteca. Merlin estava sentado ao lado do director da Segurança, Sofia e o Dr. Sawyer instalados no sofá. Fast Eddie encostava-se ao bar. Judd virou-se para as janelas e espraiou o olhar pelo firmamento nocturno. O mar estava escuro e agoirento; nuvens cobriam a Lua.

- Não compreendo como foi que aqueles dois conseguiram iludir a nossa barreira de segurança, mas o facto é que o fizeram - prosseguiu John. - Na cabana não encontrámos nada que lhes pertencesse. Temos de partir do princípio de que estabeleceram contacto com a gente deles, em Havana. As impressões digitais que obtivemos do FBI identificam-nos como tendo feito parte da primeira leva de refugiados que Castro embarcou para os Estados Unidos há dez anos atrás. - John parecia profundamente aborrecido com o sucedido. - Como foi que isso nos escapou é que não sei. Mas o certo é que aconteceu e nada mais posso dizer para além de que lamento profundamente, senhor.

Judd fitou-o sem expressão.

- Preciso de ficar aqui mais três meses.

- Nem que dispuséssemos de um exército o poderíamos ajudar, senhor. Eles podem pôr mais de uma centena de homens na ilha da noite para o dia. A única maneira de o protegermos é rnantê-lo em constante movimento.

Sofia levantou-se do sofá e olhou para Judd.

- Deixa-me voltar - pediu. - É a mim que eles querem. Depois poderás prosseguir os teus projectos sem interferências.

Judd fitou-a.

- Estás enganada - disse. - Se isso fosse verdade, por que motivo teriam colocado quadros operacionais na ilha muito antes de alguém desconfiar que vinhas para aqui? Tenho a nítida sensação de que eles nos querem aos dois, ou separados ou juntos, mas aos dois.

- Por acaso concordo com o senhor Crane. O problema já ultrapassa a sua pessoa, doutora - observou John.

- Mesmo que eu leve os arquivos comigo? - perguntou ela.

- Não sei o que há nesses registos - disse Judd -, mas independentemente do que lhes possa dar, eles continuarão a pensar que falta alguma coisa.

Sofia virou-se para Judd.

- Lamento.

- Não o faças - alvitrou ele. - Não te esqueças de que fui eu quem te convidou para vir aqui. - Virou-se para o Dr. Sawyer. - Quando é que acha que eles têm o equipamento todo em Xanadu?

- Xanadu? - perguntou ele. - Já está pronto?

- Não completamente - respondeu Judd. - Mas podíamos dar um empurrão. Talvez não sejamos capazes de pôr já tudo a funcionar, mas pelo menos podemos começar a arrumar as coisas no lugar.

Sawyer reflectiu por um momento.

- Duas semanas para desmanchar isto aqui, talvez uma para a transferência, depois talvez duas ou três para nos instalarmos em Xanadu.

- Mês e meio? - perguntou Judd.

- Mais ou menos - respondeu Merlin.

- Xanadu? - inquiriu Sofia, admirada.

- Depois conto-te mais pormenores - disse Judd. - Mas não tardei em descobrir, quando estávamos a construir esta ilha, que a doutora Zabiski não estava certa quanto às suas premissas. Ela só raciocinava dentro dos seus próprios parâmetros. A ilha Crane era para estar aberta ao mundo, muito à semelhança da sua clínica. Ela pensava que o facto de estar a cerca de cinco quilómetros da costa lhe providenciaria protecção e privacidade suficientes. E eu também. A princípio.

- De modo que começaste a construir outro complexo destinado a substituir este, não foi? - perguntou Sofia.

Ele fez um sinal de assentimento sem proferir palavra e, em seguida, virou-se para John.

- Achas que podemos aqui ficar mais seis semanas?

- Não. - O tom da sua voz não deixava margem a dúvidas. - Tem de estar em constante movimento. E ninguém deve saber para onde vai, como ou quando.

- Mas... e o equipamento? - perguntou Judd. - Mesmo que eu parta, eles vêm aqui se pensarem que ainda estou na ilha.

- Deixá-los-emos aperceberem-se da sua partida - disse John. - Depois teremos de agir com rapidez e argúcia. Ora o vêem, ora o perdem de vista. O senhor tem de se movimentar rapidamente e sem levar grandes carregos atrás de si.

Judd não fez nenhum comentário. Merlin esboçou um sinal de impotência.

- E o seu negócio, as companhias?

- Temos de descobrir um processo de nos mantermos em contacto um com o outro. Entretanto tentamos desfazer-nos de tudo o que for possível, com excepção das companhias de produtos médicos e das que lhes estão ligadas.

- Isso representará deitar fora quatro biliões de dólares - disse Merlin.

- Qual é a diferença que existe entre quatro biliões de dólares e quatro cêntimos para um homem morto? - replicou Judd. Virou-se para John. - Ponha a máquina em movimento. Quero sair da ilha amanhã.

- E qual será a primeira paragem? - perguntou o director da Segurança.

- Washington, D.C. - respondeu Judd. - Que melhor maneira posso arranjar para ser notado do que um encontro com o próprio Presidente dos Estados Unidos na Casa Branca?

- Gostaria de lhe fazer um scan CAT - disse Sawyer. - Posso providenciar para que se realize em Washington. Só levará dez minutos e pode fazé-lo a caminho da Casa Branca ou de regresso ao aeroporto.

Judd virou-se para John.

- Acha que temos tempo para isso? John anuiu.

- Vamos dar um jeito.

- Muito bem - disse Judd. Fitou Sawyer directamente. - As experiências que dizem respeito à reconstrução química das células já foram completadas?

- Sim - respondeu Sawyer. - O Departamento de Engenharia DNA informou-me que os resultados foram bastante bons. Não é possível distinguir as células naturais das artificiais.

Sofia olhava ora para um, ora para outro.

- Começo a sentir que estou por fora de certas coisas que se passam aqui. Estão todos a ultrapassar-me.

- Nem por isso - observou Sawyer. - Moscovo está a desenvolver um projecto semelhante.

- Desconheço completamente.

- Talvez tenha sido por isso que eles te enterraram no Bangladesh - disse Judd. - Mas se ficares por aqui, não tarda que estejas a par de tudo.

- Falta lembrar só mais uma coisa - prosseguiu Sawyer. - Trata-se apenas de testes laboratoriais. As células nunca foram utilizadas clinicamente em humanos. Somente em ratos.

- Estás a pensar em experimentá-las tu mesmo? - perguntou Sofia a Judd.

- Neste momento não - replicou Judd. - É apenas uma reserva, para o caso de não conseguirmos obter aquilo que desejamos verdadeiramente.

- Óptimo - disse ela. - Penso que já fizeste experiências suficientes na tua pessoa.

Judd olhou para o relógio de pulso.

- É uma da manhã. Creio que é melhor irmos descansar todos um pouco. Voltamos a reunir-nos às sete.

Os homens deram as boas-noites; somente Sofia e Fast Eddie permaneceram na biblioteca na companhia de Judd. Este fitou Sofia.

- Fast Eddie vai levar-te ao teu quarto.

Ela levantou-se da cadeira e começou a caminhar em direcção à porta, virando-se de repente para Judd.

- Que vai acontecer às raparigas?

- Regressarão às suas casas - respondeu ele.

- Mas, a Amarinth... - disse ela, sustendo a respiração. - Ela ama-te.

Judd fitou-a nos olhos.

- Não temos outra alternativa. Já tenho problemas que bastem em nos mantermos a nós vivos. Não devemos levar excesso de bagagem.

- Excesso de bagagem? - exclamou ela em tom desafiador. - Ela é um ser humano.

- Eu sei - disse Judd suavemente. - Mas prefiro que volte para casa e fique viva do que permaneça aqui e corra perigo. Se nos metermos em problemas, ela será a primeira vítima. É uma inocente e não tem defesas.

Sofia respirou profundamente.

- Vai ficar bastante magoada. Não compreenderá. Vai chorar.

Os olhos de Judd, ao encontrarem os de Sofia, estavam azuis-escuros e inexpressivos.

- Eu choraria ainda mais se fôssemos a causa da sua morte.

 

- Ele está com bom aspecto - comentou Barbara, olhando para o écran da televisão. - O tempo para ele não corre. Sei que tem quarenta e nove, mas está com a mesma aparência que tinha aos quarenta.

Os olhos de Sofia permaneceram fixos na televisão.

- No aspecto físico parece o mesmo, mas por dentro está diferente. Tanto a nível psicológico como mental. Tudo indica ter regredido emocionalmente.

Barbara viu Judd apertar as mãos ao presidente. Quando este lhe acenou em sinal de despedida e entrou pela porta da Casa Branca, Judd desceu a escadaria do pórtico para enfrentar o batalhão de jornalistas e câmaras.

- Foi uma visita pessoal ao presidente - replicou ele às perguntas que lhe faziam. - Não tratámos de negócios.

- Não perguntou ao presidente a opinião dele em relação à venda das Companhias de Engenharia e Construções Crane aos Japoneses? - perguntou um dos jornalistas.

- Não - respondeu Judd. - Nem o presidente manifestou qualquer opinião. Esses assuntos são sempre resolvidos pelo meu Contencioso e pelo Departamento de Justiça.

- A mim parece-me - disse outro jornalista -, que o senhor está a vender os bens do seu império, senhor Crane. A comunidade financeira está muito preocupada com a questão.

- Não vejo por que razão isso possa estar a acontecer - contrapôs Judd. - Esta decisão encontra-se inserida numa série de outras que tenho vindo a tomar e como as companhias são minha propriedade exclusiva, não afectam o mercado da bolsa ou qualquer outra área do mundo financeiro.

- Mas as suas companhias são consideradas entre as mais rentáveis do mundo - disse o jornalista do Wall Street Journal. - Por que razão deseja livrar-se delas?

Judd olhou para o jornalista.

- Acreditará em mim se lhe disser que começo a sentir-me fatigado com as responsabilidades que todas essas companhias representam para mim? Que não tenho tempo suficiente para dedicar à minha própria vida? Que somente se me retirar dessas actividades é que serei capaz de conduzir a minha vida de acordo com as minhas próprias inclinações pessoais?

- Tem alguns planos para o futuro? - perguntou o jornalista.

- Muitos - disse Judd. - Mas existem prioridades. Estas questões estão primeiro. Mais tarde tratarei dos meus planos.

- Falou de todas estas questões com o presidente?

- Tal como já referi, a minha visita foi unicamente de carácter particular. Nada mais. - Judd fez uma pequena pausa. - É tudo quanto tenho a dizer, senhores. Obrigado.

Atravessou o grupo de jornalistas, entrou na limusina que o aguardava e desapareceu por detrás dos vidros escuros. O carro principiou a afastar-se.

Barbara desligou o televisor.

- Então é isso - observou. - Ele não lhes disse nada.

- Ele não diz nada a ninguém - observou Sofia. - Até ao Merlin e ao doutor Sawyer.

Barbara aproximou-se de uma pequena caixa que se encontrava sobre a mesa e continha cassettes e livrinhos de apontamentos.

- Isto é tudo o que ele queria que lhe trouxesse? Sofia esboçou um sinal afirmativo.

Barbara fitou-a.

- Não acha que lhe devia falar na criança? Sofia abanou negativamente a cabeça.

- Tenho medo da reacção dele. Tenho medo do que ele poderá pensar se souber. Ninguém sabe o que se passa dentro da sua cabeça. Pode estar a viver à beira da loucura.

- Talvez a criança o traga de novo à razão - alvitrou Barbara.

- Teria medo de me arriscar a dizer-lho - contrapôs Sofia. - Não o teria também?

Barbara suspirou.

- Triste. Muito triste. É uma criança linda. Tem os mesmos olhos azuis-cobalto do pai.

Os olhos de Sofia ficaram húmidos.

- Quem me dera vê-lo. Mas sei que não o devo fazer. Se o fizesse não tenho a certeza se seria capaz de o deixar. - Respirou profundamente. - Talvez daqui a uns tempos. Talvez quando Judd conseguir compreender.

Barbara concordou.

- Para onde é que Judd lhe disse que ia?

- Ele não me disse nada - respondeu Sofia. - Só sei que a Segurança me irá levar até junto dele.

Barbara olhou pela vasta janela da sala onde tomavam os pequenos-almoços e observou as luzes que se estendiam pela Ponte de Golden Gate como um colar de pérolas. Voltou a encarar Sofia.

- Onde está Judd neste momento? - perguntou.

- Não sei - respondeu Sofia. - Sei que ia fazer um exame ao cérebro. Não me disse para onde iria depois disso. - Sofia reflectiu um momento. - Ele alguma vez lhe falou de Xanadu?

- Xanadu? - repetiu Barbara. - Não é um desses hotéis que a Companhia de Estâncias de Recreio está a construir? Penso que fica em Brasília.

- Não é um hotel - disse Sofia. - Pelo que depreendi das conversas que ouvi entre ele e Sawyer, faz-me lembrar mais um laboratório do que outra coisa. Creio que parte do equipamento que estava na ilha Crane ia ser mandado para lá.

- Então não sei do que se trata - disse Barbara. - Perguntou-lhe?

- Sim, mas ele sempre me respondeu que com o tempo ficaria a saber.

- Então penso que nada mais lhe resta fazer senão aguardar. Eu já me habituei a fazê-lo. Mesmo quando era criança, quando não queria falar, nada o fazia mudar de ideias.

O telefone tocou. Ouviu-se uma voz pelo intercomunicador.

- A limusina da doutora chegou.

- Obrigada - disse Barbara. - Ela descerá imediatamente.

Sofia olhou para ela com ar hesitante.

- Tem alguma fotografia do meu menino?

Barbara acenou afirmativamente sem proferir palavra. Abriu uma pequena gaveta da secretária. A fotografia tinha uma moldura de prata. Entregou-a a Sofia.

Esta analisou-a detalhadamente.

- É grande - sussurrou.

- Não se pode esquecer de que tem quase três anos - disse Barbara. - Mas é muito grande para a idade. E inteligente, também.

- É tão parecido com Judd - murmurou Sofia.

- Devia contar ao pai.

- Ele nunca me perdoará - respondeu Sofia. - Especialmente porque recorri a si sem ele saber.

Entregou a fotografia a Barbara.

- Pode ficar com ela - disse-lhe Barbara. - Tenho mais. Sofia abanou a cabeça.

- Não disponho de privacidade. Não tenho nenhum sítio onde possa escondê-la que não acabasse por ir parar às mãos de Judd. Talvez um dia lhe conte, e em breve. Mas não neste momento.

Barbara abraçou Sofia impulsivamente. Beijou-a no rosto. Durante um momento, ambas choraram.

Sofia pegou na pequena caixa que continha os livros e as fitas gravadas. Esforçou-se por manter a voz controlada.

- Nunca poderei agradecer-lhe suficientemente. Barbara não foi capaz de responder. Ficou a ver Sofia sair

da sala, antes de voltar a colocar a fotografia na secretária. Fitou-a durante um longo momento e, em seguida, cobriu o rosto com as mãos.

- Meu Deus - sussurrou. - Por favor, meu Deus. Ajuda-os. Ajuda-nos a todos nós.

Dois homens da Segurança aguardavam Sofia quando esta saiu do edifício. Desceram com ela as escadas, ladeando-a de cada um dos lados. Um outro homem abriu-lhes a porta da limusina. Ao entrar no carro, Sofia reparou que havia outros dois carros a escoltarem aquele em que ela seguia, um à frente e o outro atrás. Cada um deles levava quatro homens.

Sofia recostou-se no assento do automóvel. Os dois homens que a acompanhavam sentaram-se junto dela no banco de trás, ladeando-a. O indivíduo da Segurança que lhes abrira a porta fechou-a rapidamente e sentou-se ao lado do motorista. Todos os carros arrancaram calmamente.

- Chamo-me Brad, doutora - apresentou-se o homem da Segurança que tinha à sua direita. - Esse meu colega é o Lance. Iremos consigo no avião até Los Angeles.

- É para aí que vamos? Não sabia.

- Para ser mais preciso, aterraremos em Ontário. Los Angeles tem muita barafunda e demasiado tráfego.

Puxou o pequeno banco acoplado às costas do banco da frente para baixo e sentou-se nele de modo a poder ficar de frente para Sofia e, ao mesmo tempo, olhar pela janela da retaguarda.

- Assim ficará mais confortável. Apontou para a caixa.

- Os arquivos estão aí?

Sofia acenou afirmativamente com a cabeça.

- Deixe-os ficar no carro quando formos para o avião - disse ele com ar decidido. - Serão depois entregues no escritório.

- Muito bem - respondeu ela.

Reparou num letreiro que indicava a direcção de Bay Bridge.

- Vamos para o aeroporto de Oakland?

- Exactamente - respondeu ele. - Temos um avião à nossa espera.

Vinte minutos mais tarde o carro atravessava o enorme portão gradeado que dava para a secção dos aviões particulares. Passou vários hangares até se deter diante de um jacto Lear. Sofia estendeu a mão para a porta.

Brad agarrou esta.

- Aguarde um momento, por favor.

Ela espreitou pela janela do carro. Ao lado do avião, observando-os, encontravam-se vários indivíduos da Segurança. Dois dos homens que tinham vindo nos carros da escolta saíram primeiro e foram falar com os outros. Um subiu as escadas que conduziam ao avião. Desapareceu por um momento, aparecendo pouco depois à porta para fazer um sinal a Brad.

- Já podemos sair - disse este, abrindo a porta e adiantando-se a Sofia.

Ajudou-a a sair e conduziu-a sem demora escada acima até entrarem no avião. Voltou atrás e deu uma pancadinha no ombro do homem que continuava à entrada do avião. Este desceu as escadas e Lance entrou no aparelho. As escadas subiram e a porta fechou-se, ficando imediatamente trancada.

Sofia ia sentada na primeira fila da pequena cabina, a olhar pela janela. Dois dos homens da Segurança que tinham participado na escolta entraram para os lugares de trás da limusina. O carro afastou-se e o jacto começou a trabalhar. Um momento mais tarde o avião deixava o hangar e enveredava pela pista de descolagem.

Sofia olhou para o relógio. Faltavam dez para as dez. O aviso do cinto de segurança acendeu-se com um clique.

Apertou o cinto. Instantes depois o avião ganhava velocidade, chegava à extremidade da pista e elevava-se em direcção ao céu. As luzes de São Francisco ficaram para trás. Recostou-se no assento; sentia-se fatigada.

- Quanto tempo vamos demorar - perguntou.

- Cerca de uma hora - respondeu Brad.

- E depois para onde é que eu vou?

- Não sei - disse Brad. - Temos ordens para a entregarmos a outro grupo da Segurança.

Sofia virou-se de novo para a janela. Fechou os olhos e começou a dormitar. De repente sentiu uma picada no braço. Abriu os olhos assustada. Olhou para Brad.

- Que é isto? - perguntou.

- Não tenha receio - disse ele suavemente. - É só uma injecção para a ajudar a dormir.

Pouco depois adormecia.

 

Abriu os olhos com lentidão. A princípio a visão ficou nublada, mas depressa voltou ao normal. Ergueu os olhos para o azul suave do tecto e, em seguida, para o sol brilhante que vislumbrava para lá das janelas. Antes de ter tempo de ver a enfermeira que se aproximava dela, o odor peculiar que lhe chegou às narinas fê-la compreender que se encontrava num hospital.

A enfermeira era uma japonesa esguia, de uniforme branco e cabelo negro brilhante que lhe caía até aos ombros. Chegando-se ao pé da cama, dirigiu-lhe um sorriso. Um pequeno alfinete de cabeça redonda luzia-lhe na touca branca.

- Bom dia - disse-lhe em voz suave e num americano desprovido de qualquer sotaque.

Pegou no telefone que estava sobre a mesinha-de-cabeceira da cama.

- Doutor Walton - disse -, a sua paciente está acordada.

Virou-se para os pés da cama e carregou num botão. A parte

de cima do leito ergueu-se ligeiramente.

- Confortável? - perguntou, acrescentando logo a seguir: - Não esteja assustada. Encontra-se entre amigos.

Voltou a sorrir-lhe.

- Um copo de sumo de ananás acabado de fazer e muito fresco pô-la-á como nova.

Sofia viu-a dirigir-se a uma pequena alcova. De um frigorífico tirou uma taça cheia de pedaços de ananás, que deitou numa máquina de fazer sumos. Momentos mais tarde apresentava a Sofia um copo embaciado devido à baixa temperatura a que se encontrava o seu conteúdo.

O sumo refrescou-a. Sofia bebeu o líquido doce e gelado com satisfação, esvaziando completamente o copo. Não sabia que estava tão desidratada. A enfermeira, como se tivesse o condão de ler os seus pensamentos, repetiu todo o processo sem proferir palavra, trazendo-lhe novo copo de sumo.

Sofia bebeu-o, desta vez mais devagar. Ao mesmo tempo ia examinando o quarto. Não se tratava do quarto convencional de uma unidade hospitalar; paredes azuis-claras, quadros com suaves motivos tropicais, mesa e cadeiras Lucite e uma confortável cadeira de recosto para ler. Olhou para a enfermeira.

- Onde fica a casa de banho?

A enfermeira abriu uma porta. Sofia pôde ver uns azulejos de padrão tropical. Tentou sentar-se.

- Se se sentir tonta - disse a enfermeira -, deixe que eu ajudo-a.

Sofia sacudiu a cabeça.

- Creio que isto já passa. - Sentou-se, agarrando-se à beira da cama. - Depressa ficarei bem.

- Tem tempo para tomar um duche, se quiser - disse a enfermeira. - O doutor Walton ainda ficará na cirurgia por mais dez minutos.

Ainda vacilante, Sofia virou-se para as janelas e olhou para fora enquanto se dirigia para a casa de banho. No exterior viu uma longa faixa de areia branca, enormes palmeiras alinhadas ao longo da avenida que se estendia paralela à praia e edifícios brancos e altos construídos na curva da estrada. Voltou-se para a enfermeira.

- Onde é que estamos? - perguntou, indecisa. - Isto é Santa Mónica?

A fala da enfermeira era americana, mas as suas gargalhadas eram puramente japonesas.

- Está muito longe de Santa Mónica - disse, apontando para a janela. - Será que aquilo lhe parece Santa Mónica?

- Não sei - respondeu Sofia. - Nunca estive nessa terra. A enfermeira sorriu, voltando a apontar.

- Aquela colina que desce até ao mar é Diamond Head.

- Havai? - exclamou Sofia, estupefacta.

- Honolulu - especificou a jovem japonesa. - O seu quarto encontra-se praticamente no centro da praia de Waikiki.

Sofia olhou fixamente para a praia durante instantes e depois voltou a fitar a enfermeira.

- Há quanto tempo estou aqui?

- Entrei de serviço às sete da manhã e a senhora ainda dormia. - A pequena enfermeira soltou uma risada. - Segundo o seu registo clínico, foi admitida às duas da madrugada.

- Não me lembro de nada - disse Sofia.

- A enfermeira que esteve no turno da noite informou-me de que estava a dormir quando entrou. - A pequena enfermeira voltou a dar nova risada. - Deve ter sido uma rica festa de despedida, senhora Evans.

Sofia olhou-a admirada, mas abstendo-se de exprimir a sua surpresa. Evans? Não havia dúvida de que se parecia muito com Ivancich.

- Creio que preciso de um duche - disse.

- Devolver-lhe-á as energias - concordou a enfermeira. - E, entretanto, vou mandar vir o seu pequeno-almoço. Ovos mexidos com bacon, torradas e café. Está a seu gosto?

- Montes de café - disse Sofia. - E bem forte. A jovem japonesa voltou a gargalhar.

- A nossa especialidade é o café forte, senhora Evans - observou. - É café Kona, o mais forte do mundo, cultivado aqui mesmo no Havai.

- Acha que tem tempo antes de o doutor chegar?

- Muito tempo - respondeu a enfermeira. - Os dez minutos do doutor Walton aproximam-se sempre da meia hora. Encontrará toalhas lavadas e um lindo robe de seda à sua espera na casa de banho.

Sofia ia na sua terceira chávena de café quando o médico bateu à porta. A enfermeira foi abri-la.

Ele ainda não tinha entrado quando a sua voz chegou aos ouvidos de Sofia.

- Pode fazer um intervalo, Jane - disse o médico com uma voz que lhe pareceu vagamente familiar. - Chamo-a assim que acabar de falar com a senhora Evans.

O médico entrou no quarto e fechou a porta.

- Descansou o suficiente durante a noite, senhora Evans? - perguntou com um ligeiro sorriso.

- Brad? - perguntou ela, surpreendida.

- Doutor Walton - emendou-a ele.

- Isso não se faz - disse Sofia. - Não sou nenhuma criança. Podiam ter-me dito.

- Pensámos que ficaria em maior segurança se estivesse imobilizada, em vez de se movimentar à vontade, o que poderia ter levado a uma identificação acidental, trazendo-nos logo problemas. Depois da invisibilidade, a maneira mais eficiente de se passar despercebido é fazer de paciente numa maca bem coberta.

- Não fomos incomodados... - observou ela.

- Isso por causa do nosso amigo - disse o médico. - Ele fez de isca. Tinha uma série de agentes à perna, aguardando que ele os conduzisse até si. Felizmente não era ele o alvo, mas sim a doutora.

- O senhor é mesmo médico ou um agente da Segurança?

- Sou verdadeiramente médico - respondeu ele, sorrindo. - Nas horas vagas faço de homem da Segurança.

- Muito bem, agora o que vai acontecer?

- Tentarei explicar a situação de forma o mais simples possível. O Governo dos Estados Unidos tem um programa especial que é administrado conjuntamente pelos Departamentos Estatal, da Defesa e da Justiça. Cada um deles, por razões particulares, necessita por vezes de trocar antigas identidades por novas. Bem-vinda ao programa, senhora Evans.

Sofia ficou a olhar para ele.

- E foi o nosso amigo que conseguiu isso?

- Exactamente.

- Mas como? Trata-se de um programa governamental.

- Ele tem muitos amigos - disse Brad. - E o Governo concorda com ele, relativamente ao facto de a doutora se encontrar bem qualificada para recorrer aos serviços do programa.

- Quer dizer que o senhor é um agente do Governo? - inquiriu ela.

- Não verdadeiramente - replicou ele. - Digamos que é mais uma das áreas em que eu faço uma perninha.

Sofia permaneceu em silêncio durante momentos e, em seguida, aproximou-se da janela. Falou-lhe sem se virar.

- Conte-me mais pormenores acerca dessa identidade que têm planeada para mim.

- Vamos mudá-la completamente: aspecto físico, personalidade, meio ambiente. Alterar o seu aspecto cosmético não é suficiente. Um gesto da sua mão ou a maneira de andar ou falar pode denunciá-la a um perito. Portanto ensinamos-lhe outros modos que substituam os seus velhos hábitos. E, por fim, colocamo-la noutro meio ambiente onde iniciará uma nova vida que lhe permita viver em segurança. Longe dos perigos que neste momento a ameaçam.

Sofia continuou de costas voltadas para ele.

- Isso significa que nunca mais poderei regressar? Nem para ninguém, nem para nada que alguma vez tenha amado?

- Sim - respondeu o médico.

Sofia voltou-se para ele, fitando-o directamente.

- E se eu não quiser transformar-me noutra pessoa? E se preferir ficar como sou?

- A senhora não se encontra aqui na qualidade de prisioneira - observou ele. Pode sair por aquela porta quando muito bem lhe apetecer. Mas lembre-se, nós garantimos-lhe a segurança, enquanto outros que possa conhecer a farão perigar.

Sofia permaneceu em silêncio, observando-o.

- E claro que ficará completamente entregue a si mesma. Não lhe podemos enviar nada nem ninguém para a ajudar - acrescentou ele.

- Até mesmo o nosso amigo? - perguntou ela. - Ele também é dessa opinião?

- Não posso falar por ele - respondeu o médico. - Só me posso pronunciar pelo programa.

Sofia fitou-o nos olhos.

- Também eu sou médica - disse lentamente. - Toda a vida tenho trabalhado nesta profissão, toda a vida tenho tentado alargar as fronteiras da existência do homem. Se o seu programa não me permite trabalhar no meu sonho, então a segurança deixa de ter significado para mim. A vida deixa de me interessar.

- O seu trabalho terá de ser um dos primeiros aspectos a fazer desaparecer. Acabaria por denunciá-la e isso significaria o fim.

O médico fez uma pequena pausa. Quando voltou a falar, a sua voz era branda.

- Compreendo-a, doutora. Mas por favor reflicta sobre o programa antes de o rejeitar. Existem muitas outras coisas maravilhosas na vida.

A voz de Sofia tinha um tom que não admitia réplica.

- Não para mim.

- Como queira, a decisão é sua - disse ele. - Mas ao menos deixe-me ajudá-la. Talvez lhe possa proporcionar uma pequena ajuda.

- Como?

- Se mantiver o aspecto que tem, eles deitam-lhe a mão em menos de três dias depois de aparecer em público. Sugiro que nos deixe aplicar-lhe algumas alterações cosméticas. Um pequeno lift facial, um toque ínfimo nos seus olhos e no seu nariz. Podemos colocar-lhe uma capa nos dentes da frente, encurtando-os ligeiramente. Depois disso disfarçamos os olhos com lentes de contacto castanhas, cortamos o seu cabelo loiro comprido e fazemos caracóis depois de o pintarmos de castanho-dourado. Ensinamos-lhe a utilizar uma maquilhagem que complemente o tom mais escuro do cabelo e dos olhos. - Fez uma breve pausa. - Não é perfeito, mas representa uma grande ajuda para si. Pelo menos terão de olhar duas vezes antes de a reconhecerem. Especialmente se se habituar à sua nova identidade. Todos os documentos de identificação que lhe vamos arranjar também ajudarão. Passaporte, uma conta antiga num bom banco, cartões de crédito, carta de condução, tudo o que é preciso.

- Está autorizado a fazer isso por mim, mesmo que me recuse a submeter-me ao programa?

Ele hesitou por um instante.

- Não oficialmente.

- Então porquê? - perguntou ela.

- Conheço vagamente o trabalho que tem desenvolvido - respondeu o médico. - Respeito-a. É uma médica autêntica. Seria terrível que todos os conhecimentos que adquiriu se perdessem.

Sofia baixou os olhos para as mãos.

- Obrigada, Brad - disse com gratidão. - Quanto tempo levará tudo isso?

- Dez dias. Talvez menos. Depende da velocidade com que sarar - respondeu ele.

Sofia respirou fundo.

- Muito bem. Quando começamos?

- Amanhã de manhã.

 

Junto da auto-estrada da costa do Pacifico, a norte de Mah-bu, há uma pequena praia chamada Paradise Cove. Nos fins-de-semana e feriados, a pequena estrada de terra que conduz a praia está cheia de carros e carrinhas de pessoas que ali acorrem em busca das ondas e do sol. Ha um pequeno restaurante que serve os mais abonados, pelo que a maior parte das pessoas que nele se vêem são de meià-idade. A grande maioria dos visitantes são jovens e estão mais interessados no mar e no sol do que na comida. Trazem cestos com alimentos ou servem-se nas barracas que vendem cachorros quentes e pizas ao pé do parque de estacionamento não oficial.

Eram três da tarde daquele sábado e o Sol, que principiara a mover-se para ocidente, banhava, brilhante, a praia e os corpos que se bronzeavam. Viam-se poucos surfistas, porque a rebentação era insuficiente. Para norte, numa pequena formação rochosa que terminava numa escarpa que se erguia perpendicularmente sessenta metros acima do mar os homossexuais e os amantes encontravam minúsculos esconderijos para usufruírem da privacidade dos seus mundos particulares. De vez em quando o piar agudo das gaivotas em busca de restos sobrepunha-se ao murmúrio das vozes dos banhistas e da suave rebentação das ondas na praia. „ Outro som se fez ouvir, vindo do céu. Os motores de um helicóptero. Os nudistas agarraram nos biquinis e as raparigas que faziam topless apressaram-se a cobrir os seios, ao mesmo tempo que erguiam os olhos para o céu. Um murmúrio de desapontamento ergueu-se da praia quando as palavras que estavam escritas na porta do aparelho se tornaram visíveis: IGREJA DA VIDA ETERNA. Enquanto o helicóptero avançava na direcção da escarpa elevada, fazia chegar a praia a sua mensagem: “A Igreja da Vida Eterna deseja-vos paz!" Até que o aparelho desapareceu por trás da elevação de terreno.

O cenário da praia voltou ao normal. Os nudistas voltaram a despir-se e as raparigas voltaram os seios jovens para o sol. De um dos abrigos rochosos ergueu-se uma voz estridente.

- Diabos te levem! - disse uma voz de rapaz. - Sujaste-me a cara toda!

- Parvo - ripostou uma voz de tom mais grave -, não devias ter virado a cabeça.

- Mas pensei que era o helicóptero da polícia - protestou a outra voz.

Um estalo ecoou entre as rochas.

- Cala mas é essa boca - respondeu a outra voz.

A praia voltou, deste modo, a apresentar os sons normais.

Aquilo que nenhum dos banhistas notou foi num pequeno dirigível a flutuar no céu, oculto pelo resplendor fervente do sol da tarde que estava por trás.

Judd, Fast Eddie e John encontravam-se sentados em redor de um aparelho de televisão com um écran de um metro e vinte e sete centímetros. Por baixo dos seus pés estavam os cabos que estabeleciam a ligação com a câmara vídeo e as suas lentes telescópicas zoom; a imagem era coordenada por um microfone direccional.

O operador da câmara de vídeo dirigiu-se a eles:

- O helicóptero está a aterrar. Querem que o foque?

- Avance - disse Judd. Todos examinaram o écran.

O som dos rotores trovejou através dos altifalantes, enquanto o helicóptero deslizava lentamente até uma plataforma circular de cimento situada a trinta metros da beira do recife; as pás levantaram pouca poeira. O motor foi desligado e os rotores imobilizaram-se completamente. O microfone deixou passar o som de vozes jovens a cantarem, ao mesmo tempo que uma pequena escada saía da cabina até alcançar o solo.

Em primeiro lugar surgiram dois indivíduos jovens e altos, envergando longas túnicas cinzentas, que desceram as escadas. Viraram-se e ajoelharam-se, tocando com a testa no chão, de frente para a porta do helicóptero. Um momento mais tarde foi o próprio maharishi que apareceu. Era ainda mais alto que os dois jovens e o seu cabelo e barba grisalhos esboaçavam ao vento, rodeando-lhe o rosto régio. Deteve-se, em silêncio, escutando o canto das vozes jovens.

- Aumenta a imagem - ordenou Judd. - Quero ver as raparigas.

A imagem aumentou no écran gigante. Eram catorze.

Todas elas envergavam saris de chiffon cor de violeta. Todas tinham flores brancas nos cabelos compridos e levavam uma cesta com mais flores. As vozes suaves cantavam e as palavras flutuavam docemente no ar: “Hare Krishna, Hare Krishna."

O maharishi, que continuava à porta do helicóptero, baixou os olhos para elas, de braços estendidos. A sua voz era suave e de entoações profundas.

- Desejo-vos paz, minhas filhas.

As raparigas ajoelharam-se todas ao mesmo tempo, tocando com as testas no chão diante dele.

- Toda a paz vem do Pai - entoaram. - Todo o amor vem do Pai.

O maharishi agradeceu a saudação e pediu-lhes que se levantassem. Começou a descer os degraus da escada. As raparigas correram à frente dele, espalhando flores, que tiravam dos seus cestos, no caminho por onde ele seguia. Os dois jovens seguiram-no.

- Ela está ali? - perguntou Judd a John.

- Sim - respondeu este. - Dirigiu-se ao operador da câmara. - Foca e aumenta a rapariga que vai no meio da fila da direita.

A imagem de uma jovem começou a encher o écran. Era bonita, mas não diferia das outras.

- Como é que podes ter a certeza? - perguntou Judd. - A mim parecem-me todas iguais.

- Observe - disse John.

Ficaram a olhar durante alguns momentos para a jovem, que entretanto pareceu tropeçar ligeiramente. Uma das flores tombou-lhe do cabelo e ela, ao ajoelhar-se para pegar nela e voltar a prendê-la no sítio, virou-se ligeiramente, como se procurasse de propósito ficar de frente para a câmara.

- Lá está ela - disse John sem expressão. - Sabia que vinha no grupo. Alana é provavelmente a rapariga mais eficiente que temos.

Judd continuou a examiná-la.

- Onde é que a encontraram?

- Estava no Departamento da Polícia de Nova Iorque a trabalhar à paisana na rua. Queriam que ela aceitasse um posto de secretária, mas recusou. Gosta de acção. Veio ter connosco.

- É jovem - comentou Judd.

- Não tão jovem quanto parece - disse John. - Vinte e cinco.

- Isso é ser jovem - ripostou Judd. Pegou no telefone que o punha em contacto com o piloto. - Vamos voltar para a base.

John fitou-o.

- Não quer ver o retiro e a propriedade?

- Já temos tudo isso gravado, não temos? - perguntou Judd. - Então damos-lhe uma vista de olhos no meu escritório. Sempre deve ser mais confortável do que esta lata de sardinhas.

Os escritórios ficavam no décimo oitavo piso de um edifício todo espelhado e de construção recente que fora erguido no Century Boulevard, perto da entrada do aeroporto de Los Angeles. A sala de conferências era interior e não dispunha de janelas. No centro desta havia uma enorme mesa completamente coberta por um mapa em baixo-relevo feito em papier-mâché que representava a Igreja da Vida Eterna e toda a área circundante.

John servia-se de um ponteiro de madeira para proceder às suas indicações.

- A escala do mapa é de dois centímetros vírgula cinquenta e quatro para quatrocentos metros. A linha vermelha mostra os limites da propriedade, que vai desde o recife junto ao mar até aos portões que interrompem a estrada particular que parte da auto-estrada da costa.

“Reparem nestes dois círculos a amarelo. O maior indica os limites do recife onde o helicóptero aterrou. O mais pequeno mostra a zona aberta que rodeia os portões da estrada. As linhas amarelas representam os nossos alvos de descida.

- Por que razão não nos limitamos a rebentar com os portões? - perguntou Judd.

- Porque não é assim tão fácil como parece. Eles têm três barras de aço reforçado com seis metros de altura. Cada portão abre-se na direcção oposta do que está a seguir, um para a direita, o outro para a esquerda e assim por diante, até o último voltar a ser novamente para a direita. Todos eles estão electrifi-cados e ligados por arame farpado ao cimo do muro de pedra que rodeia a propriedade. Também estão em ligação com o Departamento da Polícia e dos Bombeiros de Malibu e com o Departamento de Bombeiros de Trancas. O maharishi tomou todas as providências para que tudo esteja dentro da legalidade. Escusado será dizer que as suas relações com as autoridades locais são as melhores.

- Como é que tenciona entrar lá dentro? - perguntou Judd. - Pára-quedas?

- Não - respondeu John. - Em primeiro lugar, os aviões ouvir-se-iam. Em segundo lugar, precisaríamos pelo menos de uma altitude de dois mil metros para manobrar os pára-quedas de maneira a caírem nos alvos. Temos de ir por terra e em silêncio.

- Muito bem - repetiu Judd. - Então como?

- Voo livre.

- Boa ideia - observou Judd.

O ponteiro tocou num pico situado do outro lado da auto-estrada da costa, ligeiramente a norte da propriedade.

- No cimo desta elevação de terreno existe uma plataforma que fica a cerca de duzentos e cinquenta metros acima da escarpa - prosseguiu John. - Tenho dez especialistas de planação que me afirmam serem capazes de conseguirem lá chegar.

- Mas eles precisam que o vento esteja a favor - disse Judd. - Primeiro deixam-se cair, mas se não apanham vento não conseguem subir.

- Já mandei instalar duas catapultas ali. Lançamo-los através desse processo, à semelhança dos aviões dos porta-aviões. Esteja descansado que sobem - afirmou John satisfeito. - O problema que temos de enfrentar a seguir é o da segurança do maharishi. Temos sorte num aspecto. Ele não permite que os homens andem com armas de fogo ou de outro tipo. Mas todos eles são cinturões-negros e mestres em artes marciais. Além disso, tem cerca de quinze cães de guarda doberman a patrulharem os terrenos de manhã à noite. Mas até os cães são ensinados a não matar, apenas a deter e imobilizar.

- Esses são os aspectos positivos - disse Judd, incitando-o a que se apressasse. - Quais são os negativos?

- Boa visibilidade - respondeu John. - Ver-nos-ão com facilidade. Aquilo de que precisávamos era de um nevoeiro cerrado ou de uma nuvem baixa que nos cobrisse. Se o vento soprar do lado do mar a mais de quatro nós, cairemos muito longe dos alvos. Finalmente, se não silenciarmos os cães e os guardas logo no princípio, eles dão o alarme e ficamos todos tramados.

- De que modo espera silenciá-los assim tão rapidamente? - perguntou Judd.

John mostrou uma curiosa arma de cano comprido.

- Esta arma dispara doze dardos automaticamente. Todos eles põem homem ou animal em que toquem imediatamente a dormir. Ficarão inconscientes durante cerca de quatro horas e acordarão com uma ressaca que durará pelo menos mais duas horas.

Judd fitou o homem da Segurança.

- Imaginemos que tudo corre bem. E depois?

- O senhor estará no carro, que se encontra a uns cem metros, ao fundo da estrada. Nós abrimos os portões e a sua entrada fará lembrar a do próprio presidente.

- Quando é que tenciona pôr este plano em execução?

- Depende das condições atmosféricas - respondeu John. - A previsão metereológica dos próximos cinco dias não nos é muito favorável. Boa visibilidade em todos eles. Mas estamos no Pacífico. Tudo pode acontecer. Em qualquer altura.

- Pode avisar-me com um dia de antecedência?

- É provável - respondeu John. - Porquê? Judd fitou-o.

- Já passaram dez dias desde que Sofia tirou férias. Pensei em ir até lá vê-la.

- Ela não aceitou submeter-se ao programa - disse John.

- Eu sei - observou Judd. - Disse que não queria transformar-se noutra pessoa. Gosta de ser como é.

- Uma coisa não podemos deixar de reconhecer - disse John. - Aquela senhora tem coragem.

Judd soltou uma risada.

- Os seus atributos não se ficam por aí

- Teremos de reorganizar a Segurança - observou John.

- Exacto - anuiu Judd. - Mas este jogo é mesmo assim.

 

Bateram à porta.

- Senhora Evans?

Sofia reconheceu a voz de Judd.

- Só um momento - gritou, virando-se para o espelho do toucador.

Retocou a maquilhagem. Passou um pouco de bâton de brilho nos lábios; deu um pequeno toque de pó-de-arroz no rosto que acentuou o tom castanho-dourado do cabelo curto e encaracolado. Saiu da frente do espelho e dirigiu-se para a porta, abrindo-a. Conseguiu manter uma expressão inexpressiva.

- Faça favor - disse.

Judd fitou-a e, em seguida, sorriu com ar zombeteiro.

- Senhora Evans? Devo ter-me enganado. Conheço-a?

- Judd! - exclamou ela, rindo. Atirou-se para os braços dele, apertando-se de encontro ao seu corpo e beijando-o. - Agora já me conheces?

- Como não podia deixar de ser - disse ele, sorrindo. Observou-a com ar aprovador.

- Meu Deus, como és bela! - exclamou. - Por muitas alterações que te tenham feito, isso não conseguiram eles tirar-te. És bela.

- Gostas de verdade?

- Sim, muito francamente. E fizeste bem em não os deixares porem-te uma capa nos dentes. Estás com um aspecto estupendo.

- Não me faças chorar - implorou ela, tentando rir -, senão ainda acabo por deixar cair as lentes de contacto, pois ainda não me habituei a elas.

Judd sorriu-lhe.

- Antes de mais nada és uma mulher.

Ela concordou silenciosamente. Sabia o que ele queria dizer.

- Sentes-te com disposição para uma conversa de médico? - perguntou ele.

Sofia conduziu-o até uma mesa que estava colocada perto de uma janela, onde se sentaram.

- Um pouco de sumo? - ofereceu ela. - Eles fazem sumo de ananás fresco. É uma delícia.

- Óptimo.

Sofia foi ao frigorífico e encheu dois copos.

- Não é champanhe Cristale - observou, sorrindo -, mas, de qualquer modo, saúde.

- Saúde.

- Muito bem - disse Sofia. - Podes falar. Judd adoptou um ar sério.

- Sawyer quer que eu suspenda de imediato todos os tratamentos.

- Explicou as razões?

- Os exames mostram um minúsculo alargamento do cérebro. Não chega a um milímetro na área total, portanto não é o perigo de um crescimento ou de um tumor que o preocupa a ele e aos neurologistas. O último scan que fiz foi há dez meses atrás. O alargamento verificou-se desde essa altura.

- Sentiste alguma pressão ou dores de cabeça fora do comum?

- Não.

- Alguns problemas de locomoção, orientação, audição ou visão? - prosseguiu ela.

- Não - respondeu Judd.

- Alterações sexuais, urinárias ou digestivas?

- Não.

Sofia permaneceu alguns instantes em silêncio.

- Tens alguma dificuldade em adormecer, perda de capacidade de concentração ou cansaço físico e mental?

- Não.

- Perda ou acréscimo de peso?

- Sempre o mesmo - respondeu ele. - Setenta e nove quilos.

- Perda de altura? Ele riu-se.

- Que pergunta engraçada. Continua a ser um metro e oitenta e cinco. Porque perguntas?

- Processo de envelhecimento - disse ela. - A partir de certa idade, o esqueleto mirra.

- Ainda não estou assim tão velho.

- Concordo - observou ela -, mas estou só a perguntar. - Bebeu novo gole de sumo em silêncio. Fitou-lhe os olhos. O azul-cobalto mostrava-se límpido sob a luz que entrava pela janela e incidia sobre eles. - Sentes alguma diminuição na capacidade de raciocínio?

- Muito pelo contrário - respondeu ele. - Parece muito mais veloz. Às vezes os pensamentos correm-me tão depressa pela cabeça que tenho de os abrandar conscientemente a fim de os reter, caso contrário parecem transformar-se de imediato em factos.

- Como agora? - perguntou ela.

- Não percebo o que queres dizer.

- Vês-me como eu sou? - perguntou Sofia. - Ou apareço-te com o aspecto que tinha antes das alterações cosméticas que me fizeram?

Judd fitou-a.

- A mim pareces-me sempre a mesma.

- Fecha os olhos - disse ela. Esperou que ele o fizesse.

- Descreve-me - pediu.

- Tens um metro e sessenta de altura, pesas cerca de cinquenta e oito quilos, tens cabelo louro e comprido, olhos cinzentos, seios grandes de mamilos salientes, setenta e quatro de cintura, noventa e oito de anca...

- Já chega - interrompeu-o ela. - Agora abre os olhos e descreve-me de novo.

Judd mostrou-se surpreendido.

- Não te pareces nada com a pessoa que acabei de referir. Tens o cabelo castanho e curto. Olhos castanhos. - A voz soou-lhe cheia de admiração. - Porque foi que te imaginei daquele modo?

- Estiveste a descrever as tuas recordações - observou ela. - Não o que viste.

Judd permaneceu alguns momentos em silêncio.

- Isso é mau?

- Bastante normal - disse Sofia. - Todos nós vemos aquilo de que nos recordamos. Substituir a memória pela realidade leva algum tempo.

- Mas eu estava convencido de que o meu processo de pensamento era mais rápido do que antigamente - protestou Judd.

- É provável que tenhas razão - disse ela. - Mas a nova visão que tens da minha pessoa ainda está tão fresca na tua memória que recorres à anterior. Se voltares a fechar os olhos, é natural que desta vez depares com a nova realidade.

Judd cerrou as pálpebras e deixou-se ficar imóvel durante alguns instantes.

- Tens razão - disse lentamente. Fitou-a. - E eu a pensar que estava a fazer alguma coisa de especial.

- Pareces desiludido - observou ela.

- E estou - replicou ele. - Acreditei que estava mais avançado do que qualquer outra pessoa.

- E isso é verdade. Mas também não é. Não te esqueças de que ainda és um ser humano.

- Serei sempre assim? - inquiriu Judd. - A viver as minhas recordações?

- Provavelmente - respondeu Sofia, acrescentando logo a seguir: - A não ser que vivas eternamente. Nesse caso terás de descobrir maneira de perderes parte delas, caso contrário acabarão por te sobrecarregar o cérebro.

Judd fitou-a.

- Será por esse motivo que o meu cérebro está a aumentar de volume? Para que possa armazenar e tratar mais bancos de memória?

Sofia fitou-o nos olhos.

- Não sei. Mas não acho a hipótese nada provável. Sob o ponto de vista biológico e antropológico, o cérebro humano é o resultado de milhões de anos de evolução. Nunca tivemos conhecimento de nenhum cérebro que se tenha transformado devido a uma mutação. - Calou-se por instantes. - No entanto, lembra-te de uma coisa: o cérebro funciona dentro dos limites do crânio humano que o contém. E os ossos não dilatam.

Judd desviou os olhos dela e fixou-os na parede em frente.

- Lembra-te igualmente - acrescentou Sofia - de que o tamanho do cérebro não tem nada a ver com os poderes mentais. O cérebro da vaca é de muito maiores dimensões do que o do homem.

Judd voltou a fitá-la.

- Então que sugeres?

- Alinho pela sugestão do doutor Sawyer - concluiu. - Suspendamos os tratamentos. Pelo menos até sabermos mais coisas sobre a causa que deu origem a este fenómeno.

- Sawyer quer que eu regresse ao hospital de Boca Raton.

- Parece-me boa ideia - disse Sofia.

- Não tenho tempo. Sofia fitou-o com ar trocista.

- Que diferença é que o tempo pode ter para um homem que está a planear viver eternamente?

Judd ficou pensativo, não lhe respondendo.

- Tenho a sensação - prosseguiu ela - de que sabes de algo que não partilhaste nem com Sawyer nem comigo.

Ele continuou silencioso. Sofia deitou-se a adivinhar.

- Terá Xanadu alguma coisa a ver com o projecto de reconstrução celular DNA?

- Não armes em esperta - disse-lhe ele sarcástico. Mas não mostrava indícios de estar zangado. - Já te disse que te poria ao corrente de tudo assim que chegasse a altura exacta.

Sofia encolheu os ombros em sinal de aceitação.

- Mas não tencionas ir para Boca Raton?

- Exactamente - respondeu ele.

- Então que vais fazer? - perguntou ela.

- Estou a pensar num encontro com o maharishi - respondeu ele.

- Já foi marcado?

- Não disse que as coisas se iriam passar assim - respondeu Judd. - Limitar-nos-emos a aparecer sem nos fazermos anunciar.

- Gostaria de me encontrar com ele na mesma altura que tu - alvitrou Sofia.

- Se o fizeres, lá se vai possivelmente o teu disfarce - objectou ele.

- Que disfarce? - perguntou ela. - Já lhes disse que não estou interessada no programa.

- Então, mais cedo ou mais tarde acabam por te descobrir. Sofia fitou-o directamente nos olhos.

- Não estejas muito preocupado com o facto - disse. - A minha curiosidade profissional é bastante mais importante. Talvez possua algum conhecimento daquilo de que andamos à procura.

- E isso é mais importante do que a tua vida? O olhar dela manteve-se firme.

- Eu não desejo viver para sempre, Judd.

Ele manteve-se inexpressivo.

- Começo a pensar que fui egoísta em te vir ver.

- Não encares o facto dessa maneira - disse ela com voz branda. - Amo-te. E se não tivesses sido tu a vires ver-me, teria sido eu a ir ver-te.

 

O telefone que se encontrava sobre a mesa onde eles estavam sentados tocou. Sofia atendeu.

- Daqui fala a senhora Evans.

- É o doutor Walton - replicou a voz. - O nosso amigo ainda aí está?

- Sim.

- Posso falar com ele?

- Claro - respondeu ela, acrescentando: - Há algum problema?

- Não sei. Mas Fast Eddie acabou agora de chegar ao meu gabinete e acha que foi seguido.

- Vou passar-lhe Judd - disse Sofia. Judd pegou no auscultador.

- Sim?

Escutou por momentos e depois olhou para Sofia.

- Vai até à janela e diz-me se vês alguma carrinha branca a alguns metros de distância da limusina.

Sofia assim fez.

- Tem algum letreiro de lado?

- Lavandaria Island - respondeu ela.

- Mais alguma coisa? Número de telefone?

- Não vejo nenhum - respondeu Sofia.

- Afasta-te da janela - ordenou Judd. - Apesar de os vidros não deixarem ver nada do lado de fora, não quero correr nenhum risco. - Falou de novo para o telefone. - Lavandaria Island. Sabem de quem se trata?

- Nunca ouvimos falar nesse estabelecimento - disse Brad. - A que nos serve chama-se Waikiki. Fast Eddie também está a dizer que viu dois homens entrarem no vestíbulo quando o senhor ia a subir no elevador, e que ainda lá estão.

- Merda! - exclamou Judd.

- Quer que lhes tratemos da saúde? - perguntou Brad.

- Isso só serviria para nos denunciar - respondeu Judd. Reflectiu por instantes. - Vamos pôr em prática o velho truque. Só que o chapéu será um paciente.

- Entendido.

- De quanto tempo precisa para pôr o plano em execução? - inquiriu Judd.

- Dê-me um quarto de hora - respondeu Brad, desligando o telefone.

Judd fitou Sofia.

- Desculpa-me.

- Porquê?

- Por ter infringido as minhas próprias regras. Dei ordens para que ninguém se aproximasse de ti para tua própria defesa, e agora fui eu mesmo que deitei tudo a perder.

Sofia fitou-o.

- Não lamentes o sucedido - disse-lhe. - Também isto teria de acontecer mais cedo ou mais tarde.

A pequena enfermeira japonesa encontrava-se ao lado de Brad, enquanto este colocava uma compressa sobre o nariz de Judd. Ajeitou-a com suavidade, mas de modo eficiente.

- Ponha o adesivo, Jane - ordenou.

A enfermeira manuseou o adesivo cirúrgico com eficiência, cobrindo-lhe o nariz até às maçãs do rosto, de modo a que o centro deste ficasse totalmente escondido.

- Está bem assim, doutor? - perguntou ela. Brad consultou Judd.

- Como se sente?

- Parece que tenho o nariz entupido - disse ele.

- Isso é da porcaria barata que ele tem andado a cheirar - comentou Fast Eddie com uma risada. - Já o avisei de que ainda acabava por ter de arranjar uma protecção de plástico para as narinas.

- Não tem piada nenhuma - ripostou Judd sarcastica-mente. Mas estava a sorrir.

Jane virou-se para Sofia.

- É a sua vez, senhora Evans. Sofia fitou-a.

- Pensei que já estivesse tudo terminado.

- Em termos cirúrgicos, sim - disse a enfermeira, sorrindo. - Mas ainda faltam alguns retoques. Nas suas mãos e braços, por exemplo, ou na zona do decote.

Sofia olhou para as mãos.

- Não me parecem ter nada de especial.

- Aproxime-as do seu rosto - disse Brad. - Estão completamente brancas, muito ao contrário do tom que tem na pele da cara. Chamariam com certeza a atenção de alguém que andasse à sua procura.

Sofia fitou-o sem proferir palavra.

- Jane tem uma tinta própria para tingir o corpo. Ela é uma perita na sua aplicação. Não demorará muito - continuou Brad.

- Duas aplicações devem ser suficientes, senhora Evans - disse Jane. - A primeira mantém-se cinco minutos, depois toma um duche e seca-se. Passamos então uma segunda, que secamos com um secador de cabelo. A cor deverá manter-se na sua pele pelo menos durante dois meses, mesmo que tome vinte duches por dia.

Sofia olhou para Judd, interrogadoramente.

- Temos tempo?

- Não nos restam muito mais alternativas - disse ele. Sofia acenou afirmativamente com a cabeça para a enfermeira e dirigiram-se as duas para a casa de banho.

- Comecemos - disse.

A enfermeira pegou na enorme maleta do médico e seguiu-a, fechando a porta depois de entrarem.

- Por favor, tire toda a roupa, senhora Evans - pediu Jane. - E depois retire toda a maquilhagem.

Sofia despiu-se rapidamente e retirou a pintura com um creme de limpeza que sacou de um boião grande. Passou o rosto por um pano húmido e, em seguida, secou-o. Virou-se então para a enfermeira.

- E agora?

- Muito bem - disse a jovem, sorrindo. - Agora entre para a zona do chuveiro. Ponha uma touca a proteger o cabelo e vire-se para mim, mantendo os olhos bem fechados. Ergueu a lata de spray que tinha na mão. - A tinta pode arder um bocado, mas será por pouco tempo. Só se vire de costas quando eu lhe disser.

- Está bem.

Sofia fechou os olhos. Ouviu o silvo da lata de spray e sentiu um ligeiro ardor quando o produto lhe tocou na pele. A impressão foi-se espalhando lentamente pelo corpo até aos pés. Passado um momento, foi interrompida.

Sentiu a mão da enfermeira tocar-lhe no braço.

- Continue a manter os olhos fechados - recomendou-lhe a rapariga. - Eu oriento-a de modo a ficar de costas viradas para mim.

Sofia sentiu a jovem a mover-se ao mesmo tempo que se virava.

- Agora afaste ligeiramente as pernas. Pode apoiar as palmas das mãos na parede do chuveiro, de modo a conseguir equilibrar-se.

- Estou bem assim - disse Sofia.

A sensação de ardor principiou de novo, desta vez a partir do pescoço, estendendo-se pelos ombros e costas até chegar às pernas. Podia sentir o spray na parte de trás das pernas, notando que esta incidia depois na zona interior das coxas, começando a descer a partir daí, passando-lhe pela barriga das pernas.

Ouviu a japonesa soltar uma risada.

- Desculpe, senhora Evans, mas devo pedir-lhe que abra ligeiramente as nádegas se puder, pois tem a pele dessa zona demasiado branca.

- Não o posso fazer nesta posição - objectou Sofia.

- Se se inclinar ligeiramente para a frente, já consegue - disse a jovem.

- Raios! - exclamou Sofia quando o spray a atingiu. - Isso faz realmente doer.

- Mil perdões - disse a rapariga. - Mas ser absolutamente indispensável. Agora termos tempo. Poder descansar.

Sofia esboçou um ligeiro sorriso pelo facto de o embaraço ter levado a jovem a retomar a pronúncia japonesa. Endireitou-se e virou-se para a enfermeira, saindo de dentro do chuveiro. Mirou-se no espelho alto.

- Estou toda amarela! - exclamou. A enfermeira soltou nova risada.

- Muito japonês - concordou. - Mas não se preocupe. A próxima aplicação fá-la-á recuperar uma pele com uma coloração morena normal.

Judd estava sozinho quando ela voltou da casa de banho, à frente da enfermeira, que trazia a maleta do médico.

- Volto dentro de instantes, senhora Evans - disse. - Trago-lhe a sua roupa e ajudo-a a maquilhar-se se o desejar.

- Penso que não será necessário - respondeu Sofia. Virou-se para o espelho do toucador. Começou a aplicar o baton. Pelo espelho reparou no olhar estranho com que Judd a fitava. - Alguma coisa de errado? Ele abanou a cabeça negativamente.

- Sempre que olho para ti pareces-me outra pessoa.

- É a cor - disse ela. - Não estás habituado a ela. Agora é dourada.

Judd não disse nada.

- Faz-me lembrar vagamente a tonalidade da pele de Amarinth - observou Sofia, entreabrindo ligeiramente o robe. - Mas é mais escura que a dela.

Judd desviou o olhar.

- Acaba de te maquilhar - ordenou quase asperamente. - Estamos prontos para partir.

Pegou no telefone que estava na mesa e ligou para o gabinete de Brad.

- Valerie Ann já chegou? - inquiriu.

A voz de Brad fez-se ouvir através do auscultador.

- Fast Eddie acabou agora mesmo de atravessar o vestíbulo com ela. Quer que os dois indivíduos a vejam bem antes de subirem no elevador. Levo-os até aí assim que chegarem ao meu gabinete.

- Quem é Valerie Ann? - perguntou Sofia assim que Judd pousou o auscultador.

- Uma das hospedeiras do meu avião - elucidou Judd. - Vais ocupar o lugar dela. Não quero correr mais riscos, no caso de alguém perceber que trouxe uma rapariga a mais a bordo.

- Que irá acontecer a essa rapariga?

- Ficará aqui alguns dias e depois regressará a casa. - Aproximou-se da janela. - A carrinha ainda ali está.

- Não achas que é uma coincidência? - perguntou Sofia.

- Sei que não é - respondeu ele. - Enquanto estavas na casa de banho mandámos verificar a matrícula. É falsa.

Bateram à porta e a enfermeira japonesa entrou, trazendo uma mala pequena e um saco. Virou-se para Sofia.

- As roupas que vestia quando veio para cá estão nesta mala. A sua bolsa também.

- Deixe-as sobre a cama - ordenou Judd. - Ela não vai usar nenhum desses artigos.

- Com certeza, senhor - disse Jane. Pôs as coisas sobre a cama e fitou Sofia. - Posso ajudá-la, senhora Evans?

- Creio que não é necessário. Judd interrompeu-a.

- Agradecia que ficasse, menina. Podemos necessitar de proceder a mais algumas alterações.

Um momento mais tarde, Brad entrava no quarto fazendo-se acompanhar de Fast Eddie e de uma jovem negra de pele clara, vestida de hospedeira. Os olhos da jovem eram vivos e inteligentes, o nariz aquilino e os lábios ligeiramente grossos e largos. Reparou na ligadura que cobria parte do rosto de Judd, mas absteve-se de fazer comentários.

- Obrigada por ter vindo tão depressa, Valerie Ann - disse Judd. - Preciso de lhe pedir um favor muito importante.

- O senhor Crane manda - respondeu Valerie Ann. Judd apresentou Sofia.

- Valerie Ann, esta é a senhora Evans. A jovem negra fitou Sofia.

- Muito prazer, senhora Evans - cumprimentou com delicadeza.

- Obrigada. Igualmente, Valerie Ann - retribuiu Sofia.

- Gostaria que dispensasse o seu uniforme à senhora Evans - disse Judd. - Isso permitir-lhe-á regressar comigo ao avião.

A hospedeira desviou os olhos de Sofia para os pousar em Judd.

- A questão do uniforme não apresenta qualquer problema, senhor Crane - disse -, mas esta senhora nunca poderá parecer minha congénere.

- Não compreendo - observou Judd.

- As raparigas negras são diferentes das brancas - explicou Valerie Ann. - Em primeiro lugar, ela necessita de um tom mais escuro no rosto, pescoço e garganta, as zonas que estão mais à vista, depois são os lábios, que têm de ser maiores e mais grossos. Mas talvez o aspecto mais importante seja a maneira de caminhar. Os traseiros das raparigas negras são dotados de “suportes" maiores, característica que as faz moverem-se de forma diferente. Basta colocarem-lhe um traseiro postiço. Como aqueles a que o Fredericks de Hollywood recorre nos seus anúncios.

Judd voltou-se para Brad.

- Acha que consegue providenciar a correcção desse detalhe?

Brad mostrou-se confundido.

- Da maquilhagem podemos nós tratar, agora de traseiros é que já não sei. É uma coisa completamente diferente.

- Creio que posso resolver esse problema - disse a enfermeira. Enrubesceu ligeiramente. - As raparigas japonesas têm, de um modo geral, o rabo descaído. Em Little Tokyo existem várias lojas especializadas em traseiros artificiais.

- De verdade? - admirou-se Judd. Jane ficou ainda mais vermelha.

- Sim, senhor Crane. Eu própria recorro a eles quando tenho de me vestir a rigor.

- Vivam as Nações Unidas! - exclamou Fast Eddie com uma risada. - Quem vê caras não vê corações. Vive la différence.

 

Envergando ainda o roupão de seda que Sofia lhe dera, Valerie Ann acercou-se da janela e olhou para fora.

- Devem estar mesmo a sair - disse. Jane colocou-se a seu lado.

- Lá vão eles! - exclamou.

Viram Fast Eddie abrir a porta da limusina. Judd atravessou rapidamente o passeio e entrou no carro, de imediato seguido por Sofia e Brad. Fast Eddie saltou para dentro do automóvel, fechando logo a porta atrás de si. Momentos depois este arrancava, misturando-se com o tráfego.

- Já partiram - disse Jane. Valerie Ann virou-se para ela.

- Qual foi o significado de tudo isto?

- Não sei - respondeu Jane. - Mas passa-se aqui qualquer coisa fora do comum. O doutor Walton é um dos melhores cirurgiões plásticos desta clínica, e muitas das doentes que cá vêm fazem questão em manter o anonimato.

Valerie Ann dirigiu-se para à mesa e sentou-se.

- Tens alguma coisa para beber para além de sumo de ananás?

- Há uma garrafa de vinho branco no frigorífico - disse Jane.

- Então de que estás à espera? - perguntou Valerie Ann. Jane foi buscar a garrafa e trouxe-a para a mesa juntamente

com dois copos.

- O vinho não é grande coisa - disse em tom de desculpa, retirando a capa de plástico da garrafa.

- Não me estou a queixar - observou Valerie Ann, sorrindo. - Agora só preciso de uns cigarros e de um cheirinho.

Jane encheu os copos e depois tirou um maço de cigarros de um bolso e um pequeno frasco de meia grama do outro. Este trazia uma pequena colher presa à tampa por uma corrente. Colocou tudo em cima da mesa, entre as duas.

- É um produto farmacêutico, saído directamente do nosso dispensário.

- É tempo de festa! - exclamou Valerie Ann, rindo. Minutos depois acomodavam-se as duas, descontraida-

mente, nas suas cadeiras. Jane estendeu o isqueiro aceso à hospedeira.

- Tenho tido um trabalhão dos diabos - comentou. Valerie Ann deixou escapar uma baforada de fumo e bebeu

um gole de vinho.

- O teu médico é engraçado - observou. - Achas que ele tem algum preconceito contra as raparigas negras?

Jane soltou mais uma das suas pequenas risadas japonesas.

- Nem pensar. Mas isso não te serve de nada.

- Talvez eu o consiga convencer - disse Valerie Ann.

- Cerca de metade das enfermeiras cá do sítio gostariam de que isso acontecesse. Mas não têm sorte nenhuma.

- É do género do senhor sério? - perguntou Valerie Ann. - Relações estritamente profissionais?

A jovem japonesa voltou a soltar nova risada.

- Nada disso. Estritamente homossexuais.

- Merda! - rugiu Valerie Ann desapontada. - Maldita sorte a minha. Todos os tipos que me interessam são maricas.

- O teu patrão parece estranho - comentou Jane.

- Ele é estranho - concordou a jovem negra.

- Já alguma vez foste com ele para a cama?

- Não - respondeu ela. - É de gelo. - Fitou a enfermeira. - Gostava de saber o que vê ele na senhora Evans. Ela já não é propriamente uma criança.

- Talvez se dê o caso de apreciar mulheres mais velhas. Valerie Ann sorriu.

- Com certeza já reparaste nesta curvazinha que eu tenho no nariz. Achas que o teu patrão se importava de lhe dar um jeito? Já agora juntava o útil ao agradável e aproveitava o tempo que aqui vou ter de passar.

Jane riu-se.

- Caramba! - exclamou Valerie Ann, dando de repente uma palmada na testa. - Lembrei-me agora de que prometi à minha irmã ir passar o fím-de-semana com ela num retiro que a Igreja da Vida Eterna vai fazer. Mas estou aqui presa no Havai. Seria possível eu telefonar-lhe para Los Angeles a avisar que não posso ir?

- Com certeza - respondeu Jane. - Podes ligar directamente deste telefone.

Brad e Fast Eddie iam sentados nos banquinhos que saíam das costas do encosto da frente e ladeavam a consola que tinha o bar, o écran de televisão e o rádio. Em cima da referida consola estava um aparelho telefónico com vários botões. Brad dirigiu-se a Judd e Sofia.

- Agradeço que cada um se desvie para o seu canto. Preciso de ter a visão desimpedida.

Brad olhou pela janela da retaguarda e depois inclinou-se para o motorista.

- Segue pela estrada antiga que vai dar ao aeroporto, por trás do centro comercial.

- Muito bem - replicou o motorista. Brad virou-se de novo para a frente.

- Não há dúvida de que eles vêm mesmo atrás de nós - disse. Baixou os olhos para os botões do telefone e carregou num deles. Uma fila de luzes vermelhas acendeu-se e começou a piscar. - Estão a servir-se de um telefone móvel - informou. - Vejamos se conseguimos apanhar a frequência do canal deles.

E carregou no botão de intercepção automática de frequências.

Fast Eddie falou ao motorista.

- Dê-me a caixa do trompete que deixei no banco a seu lado. O motorista estendeu-lhe a referida caixa com uma das

mãos. Fast Eddie pegou nela e colocou-a em cima dos joelhos, começando a abrir os fechos.

- Não me diga que vai tocar trompete a uma hora destas! - exclamou Brad surpreendido.

Fast Eddie sorriu-lhe.

- Então não sabe que a música amansa as feras? - Abriu a caixa e retirou de dentro dela um cilindro negro com cerca de cinquenta centímetros de comprimento e dois vírgula cinquenta e quatro centímetros de diâmetro. Prendeu duas braçadeiras ao cilindro, uma de cada lado. Ajustou uma caixa de metal rectangular lisa à abertura que ficou formada na parte interior do cilindro. - Uma beleza, não é? - perguntou.

Sem esperar que lhe respondessem, carregou no interruptor para fazer abrir o tejadilho que se encontrava por cima do compartimento dos passageiros. Ergueu o cilindro e, sem se levantar, fê-lo passar pela abertura, colocando-o do lado de fora. Apertou fortemente os parafusos das braçadeiras e, por fim, virou-se para Brad com um sorriso.

- Dê uma olhadela.

Brad espreitou pela minúscula abertura. A carrinha branca que os seguia surgiu com nitidez entre as linhas cruzadas de uma lente telescópica. Brad voltou a recostar-se.

- É um periscópio! - exclamou. - Mas para que diabo precisamos nós de um instrumento desses se podemos ver com toda a clareza se espreitarmos pela janela?

- Não se trata apenas de um periscópio - disse Fast Eddie num tom vagamente magoado. - Acha que eu perderia tempo com um brinquedo desses?

- Então de que raio se trata?

- É uma versão miniaturizada da arma antitanque sueca que o Exército dos Estados Unidos utiliza. Este pequeno foguete é accionado por ar comprimido e é infalível em relação a um alvo situado a cento e cinquenta metros. Transporta explosivo incendiário suficiente para transformar aquela carrinha numa bola de fogo e fazer com que nada mais reste dela do que poeira. - Fitou Brad com ar sarcástico. - Continua a pensar que é um brinquedo?

Brad observou-o durante um momento e depois sorriu.

- Sabe uma coisa, Fast Eddie - disse. - Tenho a impressão de que você é um mauzinho.

- Não gosto de gente que ande a brincar connosco - disse Fast Eddie. Tirou a corrente de ouro que prendia um pequeno frasco. - Alguém é servido de um cheirinho?

- Nem pensar - respondeu Brad, fixando o olhar na caixa do telefone.

- A mim sabia-me bem - alvitrou Sofia.

- Faça favor - disse Fast Eddie, entregando-lhe o frasco. - Mas tenha cuidado, pois vem muito vento da abertura no tejadilho.

Sofia virou-se para o canto, colocou as mãos em forma de concha e inalou o produto.

- Que bom - disse, tornando a virar-se para a frente. Brad falou com excitação.

- Apanhamos-lhe o canal. Ligou o altifalante.

Ouviram uma voz masculina, roufenha mas claramente audível.

- Já vos disse. Não vai mais nenhuma mulher no carro, só a hospedeira negra que veio do avião.

Ouviu-se outra voz, mas um súbito agravamento no som não permitiu entender as palavras proferidas. A voz do primeiro indivíduo voltou a soar.

- Sei lá porque é que ele mandou chamá-la! Se calhar quer que ela lhe chupe o material a caminho do avião. Ou que lhe pegue na mão. Já te disse que ele leva um penso enorme em cima do nariz. Talvez tenha mandado pôr um revestimento de plástico nas narinas. Toda a gente sabe que é um maluco por cocaína.

- Raios os partam! - exclamou Fast Eddie furioso. - Vamos dar cabo deles!

Judd ergueu uma mão.

- Oiçamos mais um pouco.

- Está bem - dizia o homem. - Vou regressar. Terminado.

A luz vermelha apagou-se. Brad espreitou pela janela de trás.

A enorme carrinha branca diminuiu de velocidade; viram-na fazer uma curva apertada e voltar para a cidade.

- Foram-se embora - disse Judd com um suspiro de alívio.

Virou-se para olhar pela janela. A carrinha ganhava velocidade, afastando-se deles.

- Agora já posso tomar esse tal cheirinho - disse a Fast Eddie. - E guarda o nosso brinquedo. Mas com cuidado.

- Serei cauteloso - respondeu Fast Eddie. - Mas essa sua ligadura não lhe vai permitir tomar cheirinho nenhum. Deve precisar de uma palha.

- Que se dane! - exclamou Judd, começando a tirar a ligadura.

- É melhor deixá-la estar - acudiu Brad rapidamente. - Nunca se sabe se eles não têm gente no aeroporto a vigiar-nos.

Judd, sentado à mesa, deixou-se ficar silencioso enquanto o avião descolava. Sofia relanceou o olhar pela janela enquanto este dava a volta à ilha, ganhando rapidamente altura. A tarde já ia avançada; o sol imprimia uma tonalidade dourada a tudo o que se estendia por baixo deles, até mesmo às vagas de crista branca que iam morrer na praia.

- Que lindo! - exclamou Sofia.

Judd fitou-a. Parecia deprimido e sem vontade de falar. A campainha soou e o letreiro que mandava apertar os cintos apagou-se. Judd desprendeu o seu e levantou-se.

- Vou para a minha cabina - disse. - Quando te apetecer comer alguma coisa, chama o Raoul.

- E tu? - perguntou Sofia.

- Não tenho fome - respondeu ele, saindo da sala. - Não voltou a olhar para ela, dirigindo-se para a sua cabina, cuja porta fechou depois de entrar.

Fast Eddie saiu de detrás do bar e aproximou-se de Sofia. Esta voltou a espraiar o olhar para lá da janela.

- O crepúsculo não tarda aí - comentou ela.

- Estamos a seguir em direcção à noite - observou ele. - Aterraremos em São Francisco às nove da manhã.

- É aí que desembarcamos?

Ele abanou a cabeça negativamente.

- Não, nós seguimos viagem. Mas a senhora doutora sai porque mudamos o pessoal da tripulação. O patrão acha que, no meio deles, passará mais despercebida.

Colocou um sobrescrito grande de couro fechado em cima da mesa, diante dela.

- Tudo o que está aí dentro é para si - disse. - O patrão pediu-me que lhe explicasse todos os pormenores.

Abriu o sobrescrito e despejou o conteúdo sobre a mesa. Sofia baixou os olhos para ver do que se tratava. Passaporte, cartões de crédito, livro de cheques, carta de condução, tudo no nome dela: Marissa Evans. Até as fotografias do passaporte e da carta de condução eram dela. Também havia uma carteira cheia de notas de cem dólares.

- Estão aí cinco mil dólares - informou Fast Eddie.

- Muito bem - disse Sofia. - E agora, que faço?

- É simples - disse ele. - O autocarro da tripulação deixa-a ficar no centro de São Francisco. Caminha alguns quarteirões, o suficiente para se certificar de que não a seguem. Se desconfiar que o estão a fazer, tem um número de telefone na primeira página do seu passaporte. Liga para ele e diz onde está. A Segurança irá buscá-la. Não se preocupe que eles reconhecem-na e tratá-la-ão pelo seu nome.

- Senhora Evans? - perguntou Sofia.

- Exactamente.

- E se não conseguirem ou não puderem fazê-lo?

Fast Eddie colocou uma pequena automática negra de calibre 25 sobre o tampo da mesa.

- As balas são providas de cabeça explosiva. Dê-lhes cabo do canastro e ponha-se a mexer de lá o mais rápido que puder. Depois ligue novamente para a Segurança.

- E se eu não conseguir escapar?

- Já a vi em acção - disse ele com ar confiante. - Não terá problemas.

Sofia permaneceu silenciosa por momentos.

- E depois, que faço?

- Vá a um armazém e compre algumas roupas e uma mala. Pague em dinheiro. Enfie o seu uniforme de hospedeira num contentor de lixo que encontre na rua e vá à agência de aluguer de carros mais próxima. Arranje um bom automóvel de tamanho médio. Apanhe a auto-estrada número cinco para Los Angeles e siga até chegar à saída para Marina Del Rey. Vá em frente até encontrar o Hotel Marina City Club. Tem lá uma reserva em seu nome.

- E se me perder - perguntou ela. - Não conheço Los Angeles.

Fast Eddie riu-se.

- Pergunte a um polícia. Ela sorriu.

- Quanto tempo durará a viagem?

- Se seguir o limite de velocidade de cem quilómetros à hora, levará entre sete a oito horas - respondeu ele. - Se tudo correr conforme o previsto, estará na auto-estrada ao meio-dia. Mesmo que pare para meter gasolina ou comer alguma coisa, deve chegar ao hotel entre as oito e meia e as nove da noite. Jante no seu quarto e aguarde aí. Entraremos em contacto consigo.

Sofia ficou calada durante alguns instantes e, em seguida, voltou a meter tudo no sobrescrito de couro. Fitou Fast Eddie.

- Creio que preciso de uma ajudinha. Ele sorriu.

- Com certeza. - Em seguida acrescentou: - Mas não abuse, senão não será capaz de adormecer.

O conselho de Fast Eddie veio-lhe à ideia quando, na sua cabina às escuras, viu que não conseguia conciliar o sono. Aborrecida, acendeu a luz que tinha ao lado da cama e levantou-se. Pegou num cigarro e acendeu-o, inalando profundamente o fumo,

- Raios! - exclamou, expelindo-o.

Olhou para o relógio de parede. Já tinham passado quase três horas de voo. Há mais de uma hora que tentava, em vão, adormecer. Voltou a puxar de nova fumaça até que, por fim, ligou para a sala da tripulação.

Passados momentos a voz ensonada de uma hospedeira atendeu.

- Está?

- Por acaso o senhor Crane está aí? - perguntou.

- Não, senhora Evans - respondeu a rapariga. - Ele não voltou a sair do seu quarto.

- Obrigada - disse Sofia, pousando o auscultador. Fitou a pequena porta que dava para as escadas circulares

que conduziam à cabina de Judd. Pouco depois levantou-se, enrolou um toalhão de banho em volta do corpo e subiu as escadas.

Bateu à porta dele.

- Estás acordado? - sussurrou.

A voz dele soou como um eco longínquo.

- Entra.

Sofia abriu lentamente a porta. Precisou de alguns instantes até os seus olhos se adaptarem à luminosidade avermelhada que reinava no interior da cabina. Distinguiu Judd sentado na posição do lótus na extremidade mais afastada da cama, de costas para ela.

- Deita-te - disse-lhe ele sem se virar, ao mesmo tempo que a sua voz continuava a soar como um eco curioso.

Sofia aproximou-se da cama e estendeu-se atrás dele. Tentou vê-lo, mas Judd parecia mais uma sombra do que uma realidade tangível. Tocou-lhe suavemente no ombro.

- Estás bem? - perguntou.

A voz dele tornou-se, de súbito, áspera.

- Quero foder-te.

Ela permaneceu em silêncio.

Ele pôs-se rapidamente de pé, ao lado da cama. Ela fitou-o. Sob o fulgor avermelhado, a sua erecção parecia grotescamente imensa e túrgida. Falou-lhe de um modo quase irado.

- É isto que queres, não é?

Sofia fechou os olhos, abanando a cabeça negativamente.

Murmurou.

Mas a voz morreu-lhe na garganta quando ele se atirou sobre o seu corpo. Sentiu-se como que trespassada quando ele a penetrou. Depois, quase instantaneamente, ele irrompeu num orgasmo que desencadeou uma ejaculação em cascata. Gritou a sua agonia e, em seguida, deixou-se desfalecer sobre ela, tentando recuperar o fôlego.

Passados momentos, Sofia tocou-lhe na face com os dedos. Sentiu-a molhada de lágrimas.

- Judd - sussurrou.

A voz dele soou abafada, de encontro ao ombro de Sofia.

- Amarinth morreu - murmurou Judd com voz enrouquecida de dor. -• Disseste que choraria. Suicidou-se.

Sofia ficou em silêncio e, em seguida, comprimiu o rosto dele contra o seio.

- Tenho muita pena, meu querido. - Chorou com ele. - Por favor, amor, não sofras mais.

 

Sofia acordou, no meio da escuridão e virou-se para Judd. Este desaparecera. Sentou-se e acendeu a luz. O relógio de parede marcava nove e trinta da manhã. Saiu da cama e aproximou-se da janela, correndo a persiana. A luz do sol invadiu a cabina, fazendo-a pestanejar.

Olhou para baixo e viu Fast Eddie caminhar rapidamente em direcção a um helicóptero pousado a cerca de cem metros do avião. Viu-o entrar no aparelho juntamente com Judd e as portas fecharem-se atrás de ambos. Os rotores começaram logo a trabalhar; pouco depois, o helicóptero levantava voo. Ela ficou a observá-lo da janela até ele desaparecer de vista; em seguida, desceu as escadas estreitas em direcção à sua cabina.

Sentia-se deprimida e curiosamente desapontada. Apercebera-se de algo em Judd, na noite anterior, que nunca lhe detectara antes. Talvez fosse apenas uma sensação. Não estava muito certa do que sentia. Não saberia dizer se era coisa sua se algo que lhe fora transmitido por ele. Meteu-se debaixo do chuveiro. Devia estar na altura de dar início ao programa previsto.

Raoul aguardava-a na sala.

- Bom dia, senhora Evans.

- Bom dia - respondeu Sofia.

- Se quiser, tem tempo para tomar o pequeno-almoço - disse ele.

- Só um pouco de café, obrigada - pediu Sofia. Ele principiou a afastar-se. Sofia chamou-o.

- O senhor Grane deixou algum recado para mim? Ele abanou a cabeça negativamente.

- Lamento, senhora Evans. Nenhum.

- Não tem importância. - Tentou sorrir. - Também não estava à espera.

- Mas Fast Eddie deixou uma coisa para si.

Sofia fitou-o com curiosidade. Raoul entregou-lhe um pequeno sobrescrito branco e, em seguida, retirou-se. Ela abriu-o rapidamente. Continha um frasquinho de cocaína e uma colher de prata, acompanhados de um pequeno bilhete. Ela leu-o rapidamente. Dizia o seguinte:

É para lhe manter o espírito elevado. F. E.

Sofia sorriu de si para si e sentou-se à espera do café.

O gabinete de trabalho no edifício administrativo situado no centro de Crane City era bastante diferente daquele que her ara de seu pai na sede de Nova Iorque. Aquele era simples, decoração quase espartana, dotado de móveis modernos, tudo em plástico branco e preto, e fórmica. Era um gabinete para trabalhar, não para exibir. Persianas que se estendiam do chão ao tecto escondiam a sala do mundo que se encontrava para além das janelas.

Judd escondeu a sua surpresa ao ver Barbara, Paul Jetlin, o Dr. Sawyer e Merlin ali à sua espera. Olhou de relance para Merlin com manifesto desagrado.

- Não sabia que convocara uma reunião de directores.

- Desculpe - disse Merlin, nervoso -, mas penso que é importante.

Judd dirigiu-se para trás da secretária e sentou-se.

- Que há assim de tão importante?

Merlin fitou-o e, em seguida, virou-se para Paul.

- Talvez o senhor Gitlin lhe possa explicar.

- Que se passa, tio Paul? - perguntou Judd.

Caso raro, Paul não se fazia acompanhar da habitual garrafa de uísque.

- Vou simplificar-te as coisas - principiou. - Não podes dispor das Indústrias Crane como seria do teu agrado. A estrutura geral é demasiado complicada e encontra-se bastante interligada. Não tens possibilidade de desfazê-la.

Judd fitou-o por momentos.

- Sou dono dela, não sou? - perguntou.

- Sim - respondeu Paul. - Mas tens responsabilidade^. Por exemplo, possuis certos acordos bonafide e contratos

 

' Em latim no original: de boa-fé. (N. do E.)

 

o Governo. Estes não te permitem atribuir nenhuma das companhias a entidades que eles não aprovem de acordo com as suas estritas medidas de segurança. Para já, isso abrange a Crane Aerospace and Aircraft, a Crane Compucrafts, a Crane Micro-craft and Microconductores, a Crane Lasercraft... Judd interrompeu-o

- De que é que me permitem desfazer?

- Das indústrias de lazer - respondeu Paul secamente. - Hotéis, sistemas de entretenimento, artigos eléctricos para o lar e casas de espectáculos, editoras, produtoras de filmes.

- Refere-se à maior parte das que não dão lucro - disse Judd. - As mais difíceis de vender.

- Não exactamente - observou Paul. - Eles não discordariam de que te desfizesses da Crane Land and Development, dos Serviços Financeiros Crane e de outras do género. Tenho uma longa lista de ambas as partes que te posso fornecer.

Judd ficou silencioso.

Olhou em volta da mesa. Um a um fitou todos os que estavam presentes.

- A única coisa que estou interessado em manter é o grupo de companhias que trata de engenharia médica e biológica - disse, por fim.

- Sobre isso não há problema - respondeu Paul, sorrindo. - Tenho um palpite que me diz que o Governo não te deixaria vender essas, fosse de que maneira fosse.

- Então que sugere, conselheiro?

- Fica com tudo - respondeu Paul. - Tens-te saído bem. Para quê fazer balançar o barco?

Judd olhou-o com firmeza.

- Estou farto disto. Quero ficar livre.

- Não tens outra hipótese, Judd - disse Paul. - A criança é tua e tens de a aturar.

Judd ficou, mais uma vez, silencioso.

- Não podíamos designar um representante?

- Quem, por exemplo? - perguntou o advogado. - Não há ninguém que conheça as Indústrias Crane como tu. Seria um desastre completo.

- Merda! - exclamou Judd. - E eu a pensar em instalar-me em Xanadu.

- Esse é mais um dos teus sonhos - observou Paul. - Primeiro foi a ilha Crane, depois, mal tinhas acabado de dar

início à sua construção, mudaste para Xanadu- Sabes em quanto ficou a ilha Crane. Agora, Xanadu irá ficar vinte vezes mais cara.

- O dinheiro era meu - objectou Judd. - Nunca gastei um tostão que pertencesse à Fundação. Tem sido sempre com o meu próprio dinheiro.

- Não me estou a queixar sobre esse aspecto - disse o advogado. - Estou simplesmente a chamar-te à atenção para o facto de ter sido um desperdício, quer se tratasse do teu dinheiro ou não. Agora vai passar-se a mesma coisa com Xanadu.

Judd fitou-o com frieza.

- Tens mais alguma coisa a dizer?

Judd viu-o baixar os olhos para a mesa. Virou-se para Merlin.

- Venda tudo o que eles deixarem - ordenou.

- Isso estoirará com mais trinta ou cinquenta biliões de dólares - disse Merlin.

- Líquido, depois de pagos os impostos?

- Não - respondeu Merlin. - Líquido, talvez uns quatro biliões. Mas não deixa de ser muito dinheiro.

- Eu reembolsarei a Fundação - disse Judd. - Assumo todos os prejuízos.

- Isso irá fazer baixar o valor líquido da sua conta para menos de metade - disse Merlin.

- Continuarei a ter mais do que o suficiente - retorquiu ele. Olhou de relance para as pessoas reunidas em volta da mesa. - Mais algum argumento?

- Uma pergunta - disse Paul, de olhos fixos sobre o tampo da mesa. - Quem é que dirige o espectáculo depois de tu te afastares?

- Sawyer pode tomar conta das corporações médicas - respondeu Judd. - Merlin zelará por tudo o resto. Os dois sabem provavelmente mais sobre a matéria do Que eu.

- E se eles se recusarem a fazê-lo?

- Não têm muito mais alternativas - disse Judd, meio a brincar. - Vocês se encarregaram disso. Os contratos que fiz com eles mantêm-nos ligados a mim de corpo e alma.

- Não há contrato no mundo que obrigue um homem a trabalhar se ele não o quiser fazer. Que tencionas fazer nesse caso, processá-los? - perguntou-lhe o advogado em tom de desafio.

Judd sorriu e fitou os outros.

- Vocês tencionam desistir os dois? Ninguém proferiu palavra.

Judd olhou para Paul.

- Isso nunca acontecerá - afirmou. - Eles não são apenas empregados, também são amigos.

Barbara levantou-se da cadeira.

- Lamento, Judd - disse. - Penso que o que estás a fazer não é correcto. E é, de certo modo, injusto. Estás a atirar as tuas próprias responsabilidades para os ombros dos teus amigos. É um gesto que, pessoalmente, não me agrada, e também não me parece que o teu pai aprovasse semelhante coisa.

Judd fitou-a nos olhos.

- O meu pai morreu. O que ele pensava quando estava vivo era importante. Agora já não o é. O que agora importa é a minha vida e as minhas decisões.

Barbara ficou a olhá-lo por momentos e, em seguida, pegou nas suas coisas, afastou a cadeira e abandonou a sala. Judd fitou os restantes.

- Alguém mais deseja sair?

Não obteve respostas. Virou-se para o advogado.

- Fala com ela - disse. - Não quero que se vá embora zangada.

- Porque não falas tu mesmo com ela? - perguntou Paul. - É tua mãe, não minha.

Encontrou Barbara sentada a um canto da sala de recepção, limpando os olhos com um pequeno lenço. Sentou-se ao lado dela.

- Desculpa, Barbara - disse. - Não queria magoar-te. Ela fez um esforço para se controlar. Mas continuou sem

falar. Pela primeira vez ele deu-se conta do quão frágil ela se tinha tornado com o tempo.

- Barbara - murmurou Judd suavemente, virando-lhe o rosto para ele. - Lamento. Estou a ser sincero.

Na voz dela havia dor e mágoa.

- Não estou verdadeiramente zangada, Judd - disse com voz enrouquecida. - Acontece apenas que só agora comecei a aperceber-me de como tu és louco.

- Porque me quero desfazer de parte do negócio?

- Não se trata disso - respondeu ela. - É por te ver deitar fora todas as oportunidades de seres feliz, perseguindo um sonho insano.

- Não é um sonho insano - objectou ele. - Cada dia que passa aproximo-me mais dele.

- E cada dia que passas perdes mais - disse ela. - Não me refiro apenas ao dinheiro. Poder. Tudo o que tens. incluindo as pessoas que amas.

Ele permaneceu em silêncio.

- Nem sequer compreendes o que estou a dizer.

- Sei aquilo que quero - retorquiu ele.

- Não, não sabes - disse Barbara em voz branda. - Tornaste-te absolutamente egoísta. O teu pai era egoísta com os seus negócios, mas encontrou tempo dentro de si para amar a tua mãe e para te amar a ti e, mais tarde, para me amar também. Mas tu não arranjas tempo no teu íntimo para amar ninguém.

- Eu não sou o meu pai - disse ele. - Não tenho de sentir da mesma maneira que ele.

- Talvez devesses fazê-lo, Judd - alvitrou Barbara suavemente. - Porque não dás a ti próprio uma oportunidade?

- E achas que não o fiz já? - perguntou ele. - Mas que recebi em troca dos outros? Nada para mim. Que mais podia eu fazer com eles?

- Alguma vez pediste a alguém alguma coisa para ti mesmo? - perguntou ela tranquilamente. - A Sofia, por exemplo.

- Tudo o que signifiquei para ela foi mais outra experiência, mais outra descoberta - observou Judd.

- Estás enganado - disse Barbara. - Talvez começasse por ser assim, mas tudo se transformou. Ela ama-te.

Ele fitou-a sem proferir palavra.

- Se ela não te amasse não teria tido o teu filho, mantendo-o depois afastado de ti.

Desviou os olhos para ele e as suas palavras ficaram a pairar no ar.

Judd obrigou-a a olhar para ele.

- Sofia tem um filho? - perguntou com voz rouca. Barbara não respondeu.

- O meu filho? - insistiu ele. - Porque não me disseram?

- Porque ela teve medo de ti - respondeu Barbara. - Ela não queria que utilizassem a criança como uma arma.

- Não acredito no que me estás a dizer - afirmou ele furioso. - Se é verdade, onde foi que o manteve escondido durante todo este tempo?

Barbara fitou-o nos olhos.

- Comigo - respondeu lentamente. - E ele é teu filho, Judd, sem sombra de dúvida. Parece-se imenso contigo. Até tem os teus olhos. Os mesmos olhos azuis-cobalto que tu.

Os lábios dele crisparam-se.

- Não é meu filho - disse sombriamente. - Foi o resultado de uma das experiências de inseminação artificial da doutora Zabiski. E todas elas falharam. Sawyer disse-me que tinha arranjado as coisas de modo a todas as mulheres abortarem. E também se fez o mesmo em relação a Sofia.

- Sei de tudo o que se passou. Ela mesma me contou. Também me disse que não se submeteu ao aborto. Como não fazia parte das suas experiências, a doutora Zabiski concordou em deixá-la ser o controle, permitindo que tu engravidasses Sofia naturalmente.

- Ela mentiu-me - murmurou Judd com amargura. - Desde o preciso momento em que nos encontrámos no aeroporto, na altura em que ela voltava para a União Soviética com a velhota. Provavelmente queriam manter a criança nesse país.

- Mas não foi o que ela fez - disse Barbara. - Como se arranjou é que eu não sei, mas o certo é que um dia bateu-me à porta, em São Francisco. No dia a seguir dava entrada numa clínica particular para ter o bebé e cinco dias mais tarde regressava à Rússia.

- E que foi que fizeste com a criança? - perguntou Judd. Barbara fitou-o directamente.

- Ele era teu filho - disse calmamente. - Fizemos o que devia ser feito. Adoptámo-lo, tomámos conta dele e demos-lhes muito amor.

- E nunca me disseram nada porquê? - perguntou Judd com amargura.

- Não o fizemos - respondeu ela. - Teria havido alguma alteração se o tivéssemos feito?

Judd ficou silencioso.

- Não me parece - observou Barbara.

- Quem mais sabe? - perguntou ele. - Paul, Sawyer?

- Mais ninguém - respondeu ela. - Apenas Sofia, Jim e eu. Todos os registos que dizem respeito ao nascimento foram escondidos onde ninguém os pode encontrar.

- Isso não muda nada - disse Judd finalmente, de modo inexpressivo.- No que me diz respeito, é como se ele nunca

tivesse nascido. Continuarei a planear a minha vida à minha própria maneira.

Barbara levantou-se do sofá e baixou os olhos para Judd.

- Sinto pena de ti, Judd - disse com voz branda mas firme.

Em seguida virou-se e, sem olhar para trás, deixou-o sozinho na sala de recepção.

 

- Levamos três semanas de avanço em relação ao programa previsto - disse Sawyer. - A unidade de refrigeração da cultura de células recriadas está neste preciso momento a ser colocada no avião. Irei a acompanhá-la quando o avião levantar voo de Atlanta.

- Pensei que te encontrarias comigo em Boca Raton - confessou Judd. - E que depois iríamos para baixo juntos.

- Sinto-me mais descansado se for eu próprio a acompanhar as culturas - disse Sawyer.

Judd analisou-o com atenção.

- Está bem. Já te conheço há muito tempo. O que é que te anda a preocupar?

- Aquele maldito alemão - respondeu Sawyer. - Anda a meter o nariz onde não devia. Eu estava convencido de que a única coisa que lhe competia fazer era concluir o reactor nuclear e pôr a fábrica de energia em condições de funcionar. Agora chega-me aos ouvidos que ele anda a passear-se pelos laboratórios médicos. E a fazer perguntas sobre as unidades de refrigeração da terapia celular.

- Faz parte das funções dele certificar-se de que temos energia suficiente para a pôr em funcionamento - observou Judd.

- É verdade - confirmou Sawyer. - Mas as perguntas que ele anda a fazer ultrapassam de longe esse âmbito. Quer saber para que servem as unidades. Eu simplesmente não confio no homem.

- Tu é que estás a tomar conta das coisas, doutor - disse Judd. - Vai-me mantendo ao corrente do evoluir da situação.

- Sentir-me-ia mais seguro se mandasse a Segurança dar-lhe nova vista de olhos. Talvez nos tenha escapado alguma coisa. Ainda não consegui esquecer-me daqueles dois que conseguiram infiltrar-se na ilha.

- Muito bem - disse Judd. - Vou mandar a Segurança tomar conta do caso. - Espreitou pela janela ao lado da qual ia sentado. Os nove mil metros de altitude só lhe permitiam ver nuvens. Pegou no telefone que tinha ao pé e ligou para a cabina de pilotagem. - Como é que estão as condições atmosféricas na zona de Los Angeles?

A voz do capitão fez-se ouvir através do auscultador.

- Neste momento toda a área, a cerca de três mil metros de altitude, está coberta por um manto de nuvens que eles esperam vir a tornar-se mais denso, aparecendo também nevoeiro na costa por volta das dez horas. Não se verá um palmo à frente do nariz. Estão a prever terem de encerrar o aeroporto por volta da meia-noite.

- Obrigado.

Carregou noutro botão. Ouviu-se nova voz.

- Segurança.

- Daqui é Crane - disse. - Quero falar com o director. Instantes mais tarde, Judd ouviu a voz de John.

- Já tem o relatório sobre o tempo? - perguntou-lhe.

- Já cá está - respondeu John. - Estávamos só à espera de que entrasse em contacto connosco. Penso que devemos poder ir esta noite.

- Aterramos em Los Angeles dentro de quarenta minutos - disse Judd.

- Estaremos prontos e à sua espera, senhor.

- E tragam a senhora Evans de caminho.

- Com certeza, senhor.

- E mais uma coisa - acrescentou Judd. - Façam nova investigação sobre o doutor Schoenbrun. Não estamos nada satisfeitos sobre a maneira como ele se anda a comportar.

- Imediatamente, senhor.

- Óptimo - disse Judd, concluindo. - Até daqui a meia hora.

Fitou Sawyer que se encontrava do outro lado da mesa.

- Que avião de ligação vai apanhar em Atlanta? Sawyer sorriu-lhe.

- Agora sou o presidente do Centro Médico Crane, não sou?

- Exactamente - respondeu Judd.

- Os presidentes não andam em voos comerciais - disse Sawyer rindo. - Tenho um Cl à minha espera em terra.

Judd também riu.

- Está a aprender depressa. Esse é o modelo setecentos e sete mais recente que temos.

Sawyer concordou, ainda a rir. - Tive um bom professor.

 

À medida que o dia se ia aproximando do fim, as nuvens cinzentas começaram a ficar negras. A limusina saiu da estrada e enveredou pelo campo em direcção ao planalto da montanha que servia de plataforma de lançamento para o voo livre. Judd saiu do carro. Viu John e um homem que não conhecia aproximarem-se.

- Senhor Crane - disse John -, este aqui é Mark David-son, director da escola de voo livre e pára-quedismo.

Davidson não era alto, mas tinha os ombros largos e o corpo entroncado e robusto. O seu aperto de mão era a condizer.

- Parece-me que esta é a operação mais divertida que me aparece desde os meus saltos no Vietname.

- Quero que seja divertida - disse Judd com gravidade - e não que se transforme numa guerra. Já sabe que não desejo que haja mortes, nem mesmo em autodefesa.

- Assim se fará, senhor Crane - disse Davidson. - Sabemos o que temos a fazer. Completámos o treino com o equipamento destinado à missão, senhor.

- Óptimo. - Judd olhou para o céu. - Que acha? Davidson fitou o céu, do lado do mar.

- Temos boas hipóteses. Se não aparecer nenhum vento inesperado, poderemos saltar às vinte e duas horas.

Judd ergueu uma mão com os dedos cruzados.

- Isto é para lhe desejar boa sorte.

- Entre no barracão - disse Davidson. - Quero mostrar-lhe o que planeámos.

Judd virou-se para John.

- Que aconteceu à senhora Evans?

- Temos um carro a apanhá-la neste preciso momento, senhor - disse John. - Deve estar aqui dentro de meia hora.

- Muito bem.

Judd voltou-se para seguir Davidson até ao barracão das operações. Deteve-se à porta, virando-se para ver um homem que naquele momento regressava de um voo livre. Este esticou os pés em direcção ao solo, tocando nele ao pousar. Dobrou rapidamente os joelhos e, em seguida, tirou os braços das asas, endireitando-se. Judd fitou Davidson.

- Fascinante. Parece um pássaro a pousar em terra - declarou.

- A técnica é exactamente essa, senhor - disse Davidson-

- Gostaria de experimentar um dia - afirmou Judd.

- E eu teria muito gosto em o levar até lá acima - retorquiu Davidson. - Talvez depois de esta operação acabar, numa ocasião qualquer.

- Não me refiro a uma ocasião qualquer - disse Judd. - Que tal agora?

Davidson olhou para ele estupefacto.

- Não deve estar a falar a sério, senhor. Não teria tempo para aprender a técnica.

- Quanto tempo temos ainda de luz? - perguntou Judd.

- Cerca de hora e meia.

- Vamos tentar - disse Judd.

Davidson fitou Judd consternado. John virou-se para Judd.

- Sou responsável pela sua segurança - objectou. - Tenho por missão fazê-lo entrar no cercado são e salvo. Não terei possibilidades de o fazer se o senhor se puser a voar por esses céus fora como um pássaro.

Judd encolheu os ombros, e virando-se, sem proferir palavra, deu a volta ao barracão e dirigiu-se para um dos hangares. Encostados à parede viam-se vários aparelhos de voo livre, cujas asas de seda negra faziam lembrar morcegos gigantes prontos a cair, ao menor sinal, do tecto. Olhou para a orla do recife, onde as hastes das três catapultas apontavam para o oceano que se espraiava adiante. Ali perto, um grupo de voadores em fatos de saltar negros, sentavam-se em círculo com uma chávena de café nas mãos. Não lhes dirigiu palavra.

John aproximou-se dele.

- Há ocasiões em que o patrão não pode divertir-se como desejaria, senhor. É um dos aspectos inerentes a quem tem responsabilidades.

Judd encolheu os ombros e voltou para junto de Davidson.

- Faremos como disse, quando isto tiver terminado - declarou em tom rude.

- Será uma honra, senhor. Agora permita-me que o leve até lá dentro para lhe mostrar os planos que fizemos para esta operação.

Havia um mapa de cartão, em baixo-relevo, a cobrir uma mesa larga. Davidson pegou num pequeno ponteiro.

- Esta colina, a mais elevada que vemos neste mapa, é aquela sobre a qual nos encontramos neste momento. Esta outra, mais baixa e perto do oceano, é o nosso objectivo. Entre as duas colinas temos de atravessar a auto-estrada junto do Pacífico. A distância entre as duas colinas é de quatro mil e duzentos metros. A altura da nossa plataforma de lançamento é de dois mil e seiscentos metros, a altura do objectivo a duzentos metros. Assim que chegarmos lá acima temos de conseguir uma queda média de quase dois mil e quatrocentos metros nessa distância. Vai ser uma queda difícil. No entanto, os meus homens são bons e vamos consegui-lo.

Judd não desviava os olhos do mapa.

- Como é que eles vão ser capazes de ver o terreno do ar se este está tapado pelo nevoeiro?

- Também contámos com esse pormenor - respondeu Davidson.

Dizendo isto, estendeu uma cobertura sobre o mapa. Esta era opaca e Judd não via nada através dela. Davidson entregou-lhe então uns óculos.

Judd colocou-os, prendendo-os atrás da cabeça. Ao voltar a olhar para o mapa coberto, os seus olhos puderam distinguir setas vermelhas brilhantes que apontavam para o objectivo.

- Óculos nocturnos de infravermelhos - declarou Davidson. - Pintámos setas nos tejadilhos de vinte carros que estacionámos no caminho.

Judd tirou os óculos e virou-se para Davidson.

- Os meus parabéns - disse. - Parece-me que pensou em todos os pormenores.

- Obrigado, senhor - respondeu Davidson.

- Excepto num - acrescentou Judd. Davidson mostrou-se surpreendido.

- Quem é que conduz a operação? - perguntou Judd.

- Eu próprio, senhor - respondeu Davidson. - Sou o primeiro a levantar voo.

Judd acenou pensativamente com a cabeça e, em seguida, sorriu.

- Então talvez seja melhor pintar o seu rabo de vermelho para o caso de algum dos seus homens lhe perder o rasto.

Davidson sorriu e depois desatou a rir.

- Esteja descansado que do meu traseiro não se esquecem eles - disse. - Se o fizessem despedia-os.

Judd saiu do barracão e aproximou-se da borda da colina. O nevoeiro começava a concentrar-se com rapidez. Junto do oceano era mais denso, mas invadia já a auto-estrada, transformando os faróis dos automóveis em pequenos pontos luminosos. Consultou o seu relógio de pulso. Vinte e uma horas. Davidson acercou-se dele.

- Pelo que as coisas indicam, podemos começar mesmo à hora prevista - declarou ele. - Tenho os homens a equiparem-se.

Judd acenou afirmativamente com a cabeça e, em seguida, virou-se para John.

- Onde diabo está a senhora Evans? A meia hora de que falaste já se escoou há muito tempo, John.

- Não se preocupe, senhor - disse John. - Fast Eddie tem dois dos seus melhores homens com ela. Chegará aqui a tempo.

Regressaram ao barracão das operações. John apontou para uma enorme casa em forma de estrela de cinco pontas que se via no mapa, indicando depois as outras que a circundavam.

- Alana disse que o maharishi vive na divisão do centro da casa em forma de estrela. Cada uma das pontas da estrela tem uma cortina de cor a separá-la da divisão central, cortina que é aberta quando ele dá as suas audiências. Ele senta-se sempre virado para o centro e de costas para uma dessas cortinas, detrás da qual aparece. Nunca é a mesma cortina e cada cor tem o seu significado, relacionando-se este com um outro plano colorido da vida. A cor desta noite é a vermelha, a cor do sangue. Estas audiências têm sempre lugar exactamente às dez horas.

- Já não é mau - observou Judd. - Ao menos sabemos onde ele vai estar.

- Há sempre dois guardas por trás de cada cortina - disse John. - Isso significa que, uma vez controlada a situação no exterior, teremos de nos haver com os guardas que estão no interior. Não quero correr riscos nenhuns. Tenho dois carros, cada um deles transportando sete especialistas, que vão à frente do senhor.

Judd concordou.

- E onde está a sua rapariga enquanto tudo isto se processa?

- Ela estará junto dos portões, abrindo-os para nós passarmos.

- Estão aí dois homens. Como é que ela tenciona ver-se

livre deles?

John sorriu.

- Já lhe disse que ela é brilhante. Vai até à casa do portão,

completamente nua. E parecerá estar tão fora de si que não sabe o que faz. Diante de um corpo como o dela, não há homem no mundo capaz de se ficar sem abrir a porta para ver o que se passa. Assim que esta abrir, ela atira com duas ampolas de vidro para dentro da casa dos guardas e estes ficam fora de acção em dois segundos. Ela precisa de mais cinco segundos para o gás se evaporar e poder carregar no botão que abre os portões - os dois primeiros homens a sair do carro são dois peritos em electrónica. Encarregam-se do sistema de alarme e nessa altura já nós vamos a caminho das casas. Alana conduzir-nos-á directamente à ponta da estrela que dá para as costas do nosso homem.

Judd sorriu-lhe.

- Ela continuará completamente nua, espero?

John não sorriu.

- Não, senhor. Temos um fato de treino preparado para ela.

Nesse momento um carro parou em frente do barracão das operações. Fast Eddie entrou acompanhado de Sofia.

- Que diabo vos demorou tanto? - perguntou-lhes Judd

assim que os viu.

Fast Eddie fez um gesto de impotência.

- Mulheres - disse. - Nunca chegarei a entendê-las.

Sabe onde é que acabei finalmente por encontrá-la? No instituto

de beleza!

Judd olhou para Sofia com ar sério. Não proferiu palavra.

Sofia dirigiu-lhe um sorriso.

- Descobri uma fabulosa cabeleira comprida. De um negro

retinto e brilhante. Gostas?

Por um momento, Judd engasgou-se até que, por fim, conseguiu recuperar a voz.

- Fazes lembrar precisamente uma daquelas mulheres que

frequentam os bares para solteiros de Marina Del Rey.

- Uma coisa tipicamente americana - respondeu ela.

Ele concordou.

- Sim" bastante. Agora preparemo-nos. Devemos estar

prestes a partir. - Pegou-lhe no braço. - Voltemos para o carro.

Deteve-se junto da porta aberta do automóvel. Davidson aproximou-se dele.

- Está na hora, senhor. Vinte e duas horas.

- Boa sorte - desejou Judd.

Ficou a ver Davidson caminhar para a catapulta e prender ao corpo a armação que fazia lembrar as asas de um morcego. Davidson colocou os pés em posição adequada na catapulta. Ouviu-se um breve silvo e ele desapareceu no meio do nevoeiro que pairava sobre a beira do planalto. Um a um, os restantes elementos do grupo seguiam Davidson, sumindo no ar denso.

Depois do último homem desaparecer entre o nevoeiro impenetrável, Judd entrou no carro.

- Vamos - disse aos outros. - O nosso rendez-vous é daqui a vinte minutos.

 

Havia já dois carros parados em frente dos portões parcialmente abertos quando a limusina se acercou. Judd abriu a porta e saiu do carro.

- Porque não avançamos? - perguntou a John quando este se aproximou dele.

- Estamos tramados - disse ele sem hesitar. - Nunca nos passou pela cabeça que o mecanismo de abrir os portões funcionasse em rotações combinadas. A parte do centro abriu, mas a exterior fechou-se depois de se deslocar sessenta centímetros. Tenho os peritos em electrónica a tentar resolver o problema.

- Estamos a perder tempo - disse Judd em tom áspero. - Arrebentem com eles.

- Se o fizéssemos não tardava que tivéssemos toda a polícia da Califórnia em cima de nós - sussurrou um dos peritos.

John virou-se para Judd.

- Não temos possibilidade de abrir os portões. Têm um mecanismo de segurança que fecha tudo instantaneamente mal o sistema de alarme é desligado.

- Podemos esgueirar-nos pela abertura de sessenta centímetros - alvitrou Judd. - Vamos a pé.

- Daqui até à casa são mil e duzentos metros - disse John. - E não sabemos se dominámos todos os guardas e cães.

- Seja como for, vamos - ordenou Judd.

- Talvez seja melhor esperar no seu carro, senhor Crane. Depois de vermos que o caminho está desimpedido, chamamo-lo.

- E talvez nessa altura já o maharishi tenha escapado. Se ele é tão esperto como o imagino, com certeza terá um esconderijo seguro e uma via de fuga. A única possibilidade que temos de o apanhar é chegarmos lá o mais rapidamente possível. Vamos a correr.

John fez um sinal de assentimento e virou-se para os homens que aguardavam junto do portão. Acenou-lhes com a mão.

- Vão! - gritou.

Os homens enfiaram-se pela abertura do portão e começaram a correr caminho acima. Fast Eddie e Sofia seguiram logo atrás de Judd. Ao passarem pela casa da guarda, John fez-lhes um gesto. Alana saiu de dentro desta, a acabar de puxar o fecho do fato de treino para cima.

- Merda! - exclamou ela, dirigindo-se a John. - Lamento. Deitei tudo a perder. Devia ter imaginado esta possibilidade.

- Está feito - disse John. - Agora desembaracemo-nos o melhor que pudermos. - Virou-se para dois dos seus homens. - Vocês dois mantenham-se próximos do senhor Grane. Não quero que lhe aconteça nada.

Puseram-se todos a correr pelo caminho acima, com Alana à frente a orientá-los. Alguns metros mais adiante começaram a ver vários dos planadores espalhados pelo terreno. Perto deles estavam dois homens estendidos no chão com três doberman, todos a dormirem tranquilamente.

Sofia fitou-os e tocou no braço de Judd.

- Não há problema - assegurou-lhe este. - Arrumámo-los com os nossos dardos embebidos em droga. Ficarão a dormir durante quatro horas e depois acordarão sentindo apenas uma dor de cabeça.

- Devias ter-me avisado para trazer uns ténis - disse Sofia, que vinha atrás. - Os sapatos de salto alto não são nada próprios para isto.

- Deixa-te de queixas - ripostou Judd. - Podes muito bem correr descalça.

Ela atirou os sapatos para o lado e já foi capaz de se manter a par de Judd. Passaram por mais guardas e cães, todos eles estendidos no chão. Ali perto viam-se várias asas de voo livre no solo, completamente esmagadas.

Passados alguns minutos, Sofia estava sem fôlego.

- Tenho de parar - gritou. - Não consigo respirar. Nunca fui treinada para este tipo de corrida.

- Parta duas coisas destas debaixo do seu nariz - disse Fast Eddie, colocando-lhe duas cápsulas na mão.

- Que raio me farão duas cápsulas de nitrato de amilo? - perguntou ela. - Caio para o lado e tenho vinte orgasmos.

- Não é o que está a pensar - disse Fast Eddie. - São estimulantes especiais fabricados nos nossos laboratórios.

Libertam oxigénio sob pressão, à mistura com um pouco de cocaína.

Partiu rapidamente uma para si mesmo.

- Ah! - exclamou. - Sou o Super-Homem.

Sofia imitou-o. Sentiu a energia irromper dentro dela. De repente reparou que deixara de ter dificuldades em respirar. Sentiu-se capaz de correr os cinco mil metros das Olimpíadas.

Olhou para Judd, que corria com rapidez e facilidade, parecendo não apresentar nenhum problema respiratório. Interrogou-se sobre se ele o fazia naturalmente ou se, tal como ela e Fast Eddie, também tinha recorrido a alguma cápsula. Tomou mentalmente nota do facto para lho perguntar mais tarde.

Ao chegarem ao cimo do caminho, vários homens envergando fatos de treino negros saíram do meio da escuridão. Davidson correu para eles.

- Vêm atrasados - disse a John. - Que aconteceu?

- Os portões tramaram-nos - respondeu John. - E vocês, que tal se saíram?

- Muito bem - disse Davidson. - Penso que os arrumámos a todos. Claro que deve haver mais no interior da construção, mas tínhamos ordens para esperar por si.

- Óptimo! - exclamou John. - Virou-se para Alana. - E, agora, por qual das entradas é que vamos?

Alana apontou para a segunda ponta das estrelas.

- Há uma coisa de que não podemos esquecer-nos. Assim que pousarmos o pé no cimento que rodeia a casa, todos os holofotes se acendem.

- Entendido - disse John. - Virou-se para os seus homens. - Quero dois indivíduos na entrada de cada uma das pontas. Três vão para a entrada de cada uma das casas que fazem parte do círculo. Quatro ficam nos portões dos canis. Não quero que ninguém saia das casas. Mantenham-nos presos lá dentro. Sem falhas.

Virou-se para Judd.

- Levo três homens connosco. Vamos à frente. Quando começarmos a avançar, vocês tomam todas as vossas posições. - Olhou em redor. - Está tudo compreendido? - Ninguém falou. - Voltou a encarar Judd. - Agora é o senhor que manda.

Judd anuiu.

- Muito bem. Vamos.

Ainda nem tinham começado a correr para a casa quando a luz dos holofotes inundou tudo, transformando a noite em dia.

- Raios partam! - praguejou ele. - Que diabo aconteceu?

Alana apontou para um enorme doberman que, de orelhas espetadas, os observava, alerta. Nesse momento ouviram um ligeiro silvo. O cão cambaleou até à esquina da casa, estacou de repente, levantou uma perna para lançar alegremente um jacto de urina sobre um gerânio e, em seguida, deitou-se tranquilamente, adormecendo.

Alana foi a primeira a chegar à porta. Abriu-a. Judd entrou atrás dela. John e os outros seguiram-nos. Caminharam o mais silenciosamente que podiam sobre o pavimento de mármore e ela conduziu-os até junto de uma enorme cortina de contas vermelhas. Afastou ligeiramente algumas das fiadas.

Judd espreitou e viu as costas do maharishi. Na frente deste encontravam-se entre dezasseis a vinte raparigas todas elas sentadas na posição do lótus, de olhos pousados no guru com adoração.

Judd fez um sinal com a mão, indicando silenciosamente aos homens que tomassem posição para prenderem o guru. Assim que estes ficaram prontos, Judd atravessou a cortina.

Ainda mal tinha acabado de dar dois passos quando sentiu que lhe rodeavam o peito com braços de aço, fazendo-o erguer-se do chão.

Ouviu uma voz perto da orelha.

- Descontraia-se! Se resistir, não será morto, mas poderá ficar aleijado para o resto da vida.

Judd lutou para recuperar o fôlego, ao mesmo tempo que era atirado violentamente para o chão. Depois ouviu um pequeno silvo; os braços que o prendiam largaram-no, como se o aço se tivesse derretido.

Uma outra voz, profunda e tranquila, chegou até ele.

- Senhor Crane. - Viu o maharishi virar-se lentamente. - Já há muito tempo que estou à sua espera. Talvez há mais tempo do que possa imaginar.

Judd fitou o maharishi enquanto este se levantava. Era mais alto do que lhe parecera, talvez porque se encontrava sobre uma plataforma elevada ou devido à sua magreza ascética e ao drapejado da túnica que lhe caía desde os ombros até às sandálias.

Virou-se para as jovens, que começavam a erguer-se das suas posições, nervosamente conscientes da súbita intrusão. Pareciam ansiosas por sair dali, embora não soubessem por que lado ir. O guru estava calmo.

- Não se assustem, minhas filhas - pediu-lhes. - Retomem a vossa tranquilidade interior. Estes homens não lhes farão mal nenhum. Vêm como amigos, em busca de sabedoria.

As raparigas, mais sossegadas, instalaram-se na plataforma, voltando à posição do lótus. O guru voltou-se para Judd.

- A nossa conversa poderia ser mais produtiva se solicitasse aos seus homens que partissem. A proximidade de tantos estranhos perturba a nossa tranquilidade e meditação. Aqui todos nós compreendemos que a vida se estende desde um passado sem fim até à eternidade.

Saiu de cima da plataforma e encaminhou-se para Judd. Os seus olhos eram amarelo-acastanhados e muito penetrantes.

- Temos muitas coisas para falar, meu filho - disse.

- Sim - observou Judd.

O guru fez um sinal de assentimento.

- Mas agora devo ir repousar. Já não sou jovem como outrora. Se não dormir não funciono tão bem como deveria. Penso que serão precisas seis horas para o seu grupo partir e a organização desta casa voltar ao funcionamento normal. Gostaria de que me permitisse descansar de modo a podermos começar a nossa reunião precisamente ao nascer do Sol.

Judd permaneceu em silêncio, não muito certo das intenções do homem.

- Dou-lhe a minha palavra de que não o enganarei. Encontrar-nos-emos, tal como prometi - prosseguiu o maharishi.

Judd sentiu algo de familiar na presença do maharishi. Não pôde disfarçar a sua surpresa. Fitou os olhos amarelos-topázio que tinha diante de si.

- Eu conheço-o - disse com voz inexpressiva.

- É muito observador - disse o guru. - Conhecia a minha irmã.

- Zabiski! - exclamou Judd. - Evidentemente!

- Ela era a minha irmã mais velha.

- Isso dá sentido a muita coisa - disse Judd. - Mas o que...

- Tudo lhe será explicado - observou o guru. - A minha irmã era um génio. Mas falaremos de todos estes aspectos quando nos voltarmos a encontrar ao nascer do Sol. Agora deve descansar.

O guru pôs-se de pé.

- Sinto-me mais repousado com duas jovens a meu lado. Equilibra o Ying e o Yang que existem dentro de mim.

Judd ficou em silêncio.

- Ouvi dizer que o senhor também encontrou esse equilíbrio. Se o desejar, posso ofercer-lhe a mesma ajuda.

Judd respirou profundamente.

- Obrigado - disse -, mas creio que desta vez passarei sem isso. Esta noite busco apenas dentro de mim mesmo.

- Como desejar - respondeu o guru. - Os meus amigos acompanhá-lo-ão aos seus aposentos.

Os quartos dos hóspedes ficavam numa casa afastada, no perímetro da construção principal. Era de pequenas dimensões, assim como os quartos. Cada um continha uma única cama estreita e uma cadeira, uma pequena cómoda com quatro gavetas. A casa de banho tinha apenas um pequeno recinto para o duche e um pequeno armário de madeira não pintada para nele se pendurarem as roupas. A sanita, desprovida de tampo, ficava em frente de uma janela alta escavada na parede. As paredes do quarto estavam pintadas de branco, sem qualquer decoração ou quadros. Não havia telefone ou rádio.

Fast Eddie olhou para Judd.

- Tem mais espaço na parte de trás do seu carro.

- Não te queixes. Cá nos arranjaremos.

- Como? - perguntou Fast Eddie. - Deitei o olho a algumas das raparigas, mas estes quartinhos não têm espaço onde as possa enfiar.

- Mas olha que quando há vontade tudo se consegue - alvitrou Judd, rindo. - Talvez uma das moças te leve para o quarto dela.

- Isso é que era bom - disse Fast Eddie aborrecido. - Com todos esses guardas monstruosos e cães malucos que andam para aí! Nem sequer me vou atrever a meter o nariz fora da porta, quanto mais o pénis. Pequeno já ele é.

- Vai para a cama. Amanhã temos de nos levantar cedo. Fast Eddie esgueirou-se de lado pela porta de modo a deixar

Sofia passar.

- Que pensas de tudo isto? - inquiriu esta a Judd sem rodeios.

- De tudo isto o quê? - perguntou ele.

- Do irmão da doutora Zabiski! Acreditas?

- Não tenho motivos para não o fazer - respondeu Judd.

- Estranho - observou ela. - Nunca ouvi falar de nada que se relacionasse com esta personagem, no entanto ela parece conhecer tudo a nosso respeito.

- Que é que pensas? - perguntou ele.

- A única pessoa que sabe assim tanto sobre nós é Andropov.

Judd fitou Sofia.

- Achas que ele pode estar a trabalhar para os Russos? Ela encolheu os ombros. .

- Não sei. Só sei que já não confio em ninguém. É possível que ele trabalhe directamente para o Comité Central do Politburo. Todos eles são homens de idade, até mesmo Andropov. E todos gostariam de prolongar as suas vidas e o seu poder.

- Não sei que te diga - observou Judd- A Segurança informou-me de que toda a gente, o FBI e o IRS, andavam a ver se o apanhavam.

- Tenho medo - disse ela.

Nesse momento Fast Eddie entrou apressadamente no quarto.

- Adivinhem o que eu tenho para lhes contar. exclamou.

Judd fitou-o admirado. Fast Eddie olhou para ele.

- Lembra-se daquela hospedeira que estava no nosso avião, a Valerie Ann? - perguntou. - Acabo de encontrar a irmã dela. É uma das raparigas que está aqui e tem cem vezes melhor aspecto do que a irmã.

E saiu do quarto antes que lhe pudessem dizer alguma coisa. Judd olhou então para Sofia.

- Talvez esteja aí a razão pela qual o Maharishi estava à nossa espera - disse.

- Talvez - repetiu Sofia. - Mas continuo assustada. Judd fez uma pequena pausa.

- Nada vai acontecer até amanhã. Aconselho-te a dormir um pouco.

Ela fitou-o.

- Importas-te de que fique contigo?

Ele apontou para a cama estreita.

- Nisto?

Ela anuiu.

- Não me importo de dormir no chão.

 

De repente acordou na cama estreita. Rolou para o lado, virando-se, Judd estava sentado no chão, sem se mover, as pernas cruzadas na posição do lótus. Os olhos abertos fixavam-se na sua direcção.

- Bom dia - disse ele.

- Ficaste toda a noite assim? - perguntou ela. Judd fez um sinal afirmativo.

- Não eras obrigado a fazê-lo. Havia espaço para os dois. Ele sorriu.

- Pensei que ficarias mais confortável sozinha na cama. Além disso, estou habituado a ficar nesta posição. - Pôs-se de pé. - Queres fazer-me companhia no duche?

- Se houver espaço suficiente para os dois, de bom grado.

- Então anda daí - disse ele. - Vamos ver se há.

A água que saía do chuveiro estava gelada. Sofia ficou arquejante.

- Jesus! - exclamou, a tremer. Ele puxou-a para junto dele.

- Assim estás melhor?

- Muito melhor - disse ela. Ergueu o rosto para ele. - Não te compreendo, Judd.

Ele sorriu.

- Isto não tem nada para compreender. Sinto-me excitado. Sofia sentiu o pénis dele duro.

- Que bom - sussurrou.

Ele meteu os braços por baixo dos joelhos dela e levantou-a. Sofia rodeou-lhe o pescoço com os braços e o torso com as pernas.

- Meu Deus! - exclamou ao senti-lo penetrá-la fundo. - Está tão rijo!

Judd fitou-a nos olhos.

- Não é assim que gostas dele? - murmurou com voz rouca.

- Adoro-o - disse ela ofegante. - Amo-te. Quero manter-te dentro de mim para sempre. - Começou a tremer sob a acção de um orgasmo intenso. - Oh, Deus! Já me estou a vir.

As mãos dele apertavam-lhe as nádegas tão fortemente de encontro às suas virilhas que ela não se conseguia mover contra ele.

- Vai devagar - ordenou-lhe ele asperamente. - Já não tenho o controle que tinha dantes e não quero vir-me demasiado depressa.

Ela manteve-se imóvel e ergueu-se para o beijar na boca.

- Meu amante - sussurrou. - Meu belo amante.

- Sofia! - A voz dele exprimia surpresa. - Não sei o que está a acontecer comigo.

Ela viu os seus olhos ficarem marejados de lágrimas.

- É possível, Judd - disse ela suavemente -, é possível que estejas a apaixonar-te.

Ele impeliu quase iradamente o corpo contra o dela.

- Não! - exclamou em tom áspero. - Não! Não posso apaixonar-me. Não me é permitido!

Ela sentiu o orgasmo dele começar a explodir dentro de si e fê-lo acompanhar do seu próprio. Apertou fortemente as coxas em torno dele.

- O amor não se submete às leis de ninguém - sussurrou.

Ficaram os dois presos um ao outro até as forças os abandonarem. Caíram então juntos no chão do chuveiro. A água gelada continuava a cair abundantemente sobre eles.

A biblioteca do maharishi estava cheia de estantes com livros do chão ao tecto, mas não tinha uma única cadeira, sofá ou secretária. Havia almofadões espalhados em cima do tapete que cobria o chão. O guru tinha o longo cabelo atado atrás da cabeça, caindo-lhe até aos ombros da túnica de algodão cor de púrpura que envergava. A sua barba fora impecavelmente escovada. Sentava-se, de pernas cruzadas, sobre um almofadão, e fez-lhes sinal para entrarem na divisão.

Fitou-os. Fast Eddie seguiu-os. Ergueu os olhos para Judd.

- Peço-lhe mil perdões - disse suavemente -, mas sentir-me-ia mais à vontade se apenas o senhor e a jovem permanecessem na sala.

Judd anuiu e olhou para Fast Eddie, que hesitou um momento.

- Não te preocupes - disse Judd. - Aqui estarei em segurança.

Fast Eddie fez um sinal afirmativo e saiu da sala. A seguir, o maharishi premiu um botão que tinha ao lado do seu almofadão; a porta fechou-se com um estalido. Fitou Judd.

- Obrigado.

Judd sentou-se num almofadão, ao lado do maharishi. Ficou a ver Sofia instalar-se antes de se voltar para o guru.

- A Fénix renasce das cinzas da Fénix, tal como o Dalai Lama nasce no momento em que o Dalai Lama morre.

O maharishi não proferiu palavra. Judd fitou os olhos do homem.

- O senhor não é a mesma pessoa com quem falei ontem. O guru concordou lentamente.

- É verdade. Meu pai preveniu-me de que o senhor era muito bom observador.

- Com todo o respeito, falarei apenas com o seu pai. O guru esboçou um sinal de concordância.

- O meu pai não tardará a estar consigo. Carregou noutro botão.

Toda uma parede coberta de estantes com livros deslizou para o lado, pondo a descoberto uma nova divisão. Esta encontrava-se mobilada num estilo mais convencional. Atrás de uma secretária de madeira de sândalo, ornamentada em rosa e marfim, sentava-se o maharishi. Também ele trajava de maneira mais convencional: fato, camisa e gravata brancas e um turbante de seda também branca na cabeça. Levantou-se da cadeira e curvou-se numa reverência.

- Senhor Crane, doutora Ivancich - disse. Judd pôs-se de pé e retribuiu o cumprimento.

- É o seu filho, maharishi'? - perguntou. - Ou o produto de células reconstruídas?

- Meu filho é produto de células reconstruídas - disse o maharishi. - Ele é apenas um entre os muitos filhos que tenho, ou produtos de células reconstruídas, como lhes chama. - Sorriu. - Mas que são os filhos do homem senão produtos reconstruídos a partir da sua semente?

- Vim procurar sabedoria junto de si, senhor - disse Judd -, não trocar observações filosóficas.

- São uma e a mesma coisa, meu filho - afirmou o homem mais idoso. - Reparo que tem muitos pontos em comum com a minha irmã. Também ela acreditava apenas na ciência, não na verdade que existe dentro da alma do homem.

- Mas permitiu-lhe fazer experiências sobre si, não foi? - perguntou Judd ao acaso e de forma arguta.

- Eu fui o primeiro - respondeu o maharashi. - E, portanto, o primeiro a descobrir que a ciência só por si não basta.

- Ela confiou-lhe muitos pensamentos seus que nunca transmitiu a mais ninguém - observou Judd delicadamente.

- Mas ainda assim as nossas crenças eram muito diversas - disse ele. - No fim informou-me de que o senhor seria o herdeiro de toda a sua sabedoria. - Pegou num livro de apontamentos de capa de couro e entregou-o a Judd. - Aqui estão as notas por ela apontadas entre mil novecentos e trinta e cinco e mil novecentos e quarenta e quatro.

Judd baixou os olhos para o livro de apontamentos e virou várias páginas. Algumas estavam anotadas a tinta; a maior parte escrevinhadas à pressa a lápis. Fitou o maharishi.

- Alemão?

- Sim - respondeu este. - Eram escritas à noite, em segredo, no laboratório do campo de concentração nazi.

- Quer dizer então que ela trabalhou para eles.

- Todos nós o fizemos - replicou ele sem hesitar. - Não tínhamos por onde escolher. Ou trabalhávamos ou matavam-nos.

Judd entregou o livro de apontamentos a Sofia em silêncio. Virou-se de novo para o homem idoso.

- Que trabalho faziam lá?

- Estudos de longevidade. As ordens vinham directamente do Fúhrer. Ele, assim como os membros do Terceiro Reich, queriam viver mil anos. - Suspirou e desviou-se um pouco de Judd. - No fim de quarenta e quatro já todos nós sabíamos que a Alemanha tinha perdido a guerra. O pânico instalara-se em todo o lado, tanto entre os prisioneiros como entre os guardas. Depois chegaram ordens para todos os registos serem destruídos. Todas as pessoas que tinham estado ligadas às experiências deviam ser mortas.

“Mas a minha irmã resistiu. Aproveitando-se do facto de eu ter herdado uma pele mais escura da segunda mulher de meu pai, que era indiana, colocou-me na estrada por onde o exército inglês deveria passar. Disfarçando-se com roupas de camponesa, ela própria seguiu para as linhas russas, ao norte. Levava consigo o bilhete de identidade de sua mãe, que era russa. Assim, ficámos separados. Daquele modo talvez um de nós sobrevivesse.

- Que experiências tinha ela realizado consigo? - perguntou Judd.

- As mesmas que levou a cabo em si - respondeu ele. - Uma espécie de terapia celular.

- Como a de Niehans? - inquiriu Judd. - Mas onde é que conseguia arranjar a quantidade necessária de fetos de cordeiro?

Os olhos do velho fixaram-se nos seus sem pestanejar.

- Não dispúnhamos de nenhuns.

Judd continuou a olhar para ele. Por momentos, não falou.

- São essas as experiências a que ela se refere nesse livro de notas?

- Sim - respondeu o maharishi.

- Mas eu pensava que ela tinha descoberto algum processo de auto-reconstrução celular. Não servindo-se de fetos humanos.

- Isso também - disse o velho. - Mas era apenas uma parte do todo. - Inspirou profundamente. - A vontade humana de sobreviver é mais forte do que a aceitação da morte, mais forte ainda do que qualquer sentido de moralidade.

Judd continuou a fitá-lo sem proferir palavra. O velho não hesitou.

- Não se deixe subjugar pelo choque ou pela repugnância - observou ele. - Em breve terá também de fazer a sua opção.

- Não me parece - disse Judd em tom decidido. - Os enormes avanços que a engenharia genética DNA está a alcançar tornarão todos os métodos dela obsoletos. Já desenvolvemos um número de células humanas no laboratório que não se conseguem distinguir das originais. Até células que se reparam a si mesmas quando danificadas e algumas que se podem auto-reproduzir se essa reparação não for concretizável.

- Está a dizer-me - observou o velho - que descobriu o segredo da vida?

- Ainda não - disse Judd. - Mas havemos de lá chegar um dia.

O velho permaneceu em silêncio durante um momento; depois abanou a cabeça em ar de dúvida.

- Lamento - observou -, mas o segredo da vida só pertence integralmente ao Criador.

- E se for o próprio homem o Criador? - objectou Judd. O macharishi fitou-o.

- Agora é o senhor que está com filosofias.

- É mais difícil considerar as coisas deste modo do que os métodos da sua irmã? - retorquiu Judd delicadamente.

- Já disse anteriormente que nem sempre concordo com muitas das ideias e dos métodos da minha irmã - repetiu o velho.

- Mas permitiu-lhe que o tratasse como a uma cobaia.

- Ela também aplicou os mesmos testes a ela própria - insistiu o maharishi. Fez uma breve pausa, de cansaço. - Mas tudo isso teve lugar há muitos anos atrás. É para o presente que nos devemos virar.

- Concordo - disse Judd.

- Muitas das observações que ela fez no seu livro de apontamentos são difíceis de entender e obscuras, até mesmo na linguagem dela. Talvez possa perfazer um todo se juntar essas notas àquelas que já tem em seu poder. E então provável que sejamos capazes de entender os seus pensamentos e descobertas.

Inclinou-se sobre a secretária, em direcção a Judd.

- Sou um velho - disse. - Gostaria de o ajudar nesse trabalho se pudesse. O meu desejo é compreender um pouco mais o trabalho e os sonhos de minha irmã.

Judd voltou-se para Sofia.

- Achas possível este homem poder ajudar-te mais do que se avançares sozinha?

- Sim - respondeu Sofia. - Ele é uma parte única na história que nunca poderíamos ter vindo a conhecer sem ele.

Judd olhou de novo para o velho.

- Importar-se-ia de que conduzíssemos o nosso trabalho aqui? - perguntou. - Teremos de instalar todos os sistemas necessários para um estudo mais complexo. Será preciso dispormos de terminais que conduzam directamente ao nosso Computador Central.

- Não tenho objecções a fazer - respondeu o velho.

- Então iremos fazê-lo. - Judd voltou-se para Sofia. - É uma decisão razoável. Além disso, aqui ficarás mais segura do que em qualquer das nossas unidades.

- E tu, onde estarás? - perguntou ela.

- Tenho outras coisas a fazer - respondeu ele. - Mas estaremos em contacto permanente. Encontrar-nos-emos assim que terminares todo o teu trabalho.

O maharishi levantou-se.

- Obrigado, meu filho, e que as suas descobertas nos tragam paz.

Fez uma pausa e acrescentou:

- Agora estou fatigado e devo voltar a repousar.

- Obrigado, Mestre - disse Judd. O maharishi sorriu debilmente.

- Vejo que conhece algumas palavras em hindi, meu filho. A palavra “guru" significa mestre em inglês. - Ergueu a mão numa espécie de bênção. - A paz e a verdade estejam convosco.

Dirigiu-se para a porta e desapareceu. Judd virou-se para o jovem que estava sentado no almofadão.

- O seu pai é um homem extraordinário - disse. - Posso perguntar quantos anos tem ele?

- Claro, senhor Crane - concordou o jovem sem hesitar. - Ele é eterno.

 

A seis mil metros acima do nível do mar, a neve cobria o cume dos Andes, quer fosse Verão ou Inverno. Judd, sentado no lugar do co-piloto do novo Crane VTOL com as suas peculiares asas em forma de X, observava a cruz escura que a sombra destas traçava sobre a superfície branca e refulgente.

- É lindo, senhor Crane - comentou o piloto.

- É verdade, Tim - replicou Judd. - Na Florida não vemos neve como esta.

- Refiro-me ao avião, senhor Crane - disse Tim. - Movimenta-se como se tivesse nascido águia. Nunca houve um avião como este.

- Eu sei - murmurou Judd.

- Se o Departamento de Defesa não ficar com seiscentas unidades destas, é porque está tudo chanfrado - disse o piloto. - Já os guiei a todos. Desde o primeiro Harrier ao último modelo. Este põe-nos a todos de lado.

- Ficarão com eles - afirmou Judd. Olhou para o espinhaço da montanha que se erguia acima do planalto. - Estamos quase a chegar.

- São mais cinco minutos - disse o piloto.

Judd virou-se para as traseiras da cabina. Fast Eddie ia sentado, sozinho, num dos seis assentos dos passageiros.

- Que pensas disto? - perguntou Judd.

- Se pudéssemos levar toda esta neve para os Estados Unidos - disse Fast Eddie, sorrindo -, fazíamos um bilião de dólares.

- Sempre a pensar em algo para comer - comentou Judd com uma risada.

- Aposto que está um frio de rachar ali fora - disse Fast Eddie.

- Vinte graus centígrados abaixo de zero.

- Isso é um frio de rachar - observou Fast Eddie. Judd voltou-se para o piloto.

- Avise-os de que estamos a chegar. Quero ir para a cratera, não aterrar sobre o planalto.

- Sim, senhor Crane - disse o piloto.

Começou a manusear o painel digital das comunicações. Ouviu-se um guincho e, em seguida, ele começou a falar para ele.

- Atenção Rádio Xanadu. Atenção Rádio Xanadu. O altifalante deixou ouvir uma voz.

- Daqui Rádio Xanadu à escuta. Temos o vosso aparelho no nosso radar. Estão a sete mil e cem metros da nossa pista do nordeste. O vosso coeficiente é de vinte e um, vinte e um, zero, noventa e três, vinte e um. Confirmem.

- Confirmado, Xanadu. Estamos a entrar. - Ligou o localizador automático de direcção. - Daqui fala Crane, de bordo do Crane VTOL número seis. Pede permissão para aterrar na cratera.

- O vosso aparelho parece bastante grande - clamou o altifalante. - Não estou a ver que tenhamos espaço suficiente para vocês aqui em baixo.

Judd falou através do microfone que tinha ao pescoço.

- Talvez não nos tenha ouvido com clareza, controlador. Sou Judd Crane, você vai arranjar espaço para nós, estou-me nas tintas para a maneira como o vai conseguir.

A voz que se ouviu pelo altifalante mudou imediatamente de tom.

- Desculpe, senhor. Dê-nos apenas alguns minutos para termos tempo de mudar alguns helicópteros lá para cima para o planalto.

- Obrigado, controlador - disse Judd, desligando o seu micro. - Nabo!

Dez minutos mais tarde o VTOL número seis descia a direito sobre a cratera como se fosse um elevador a deslizar nos seus cabos. No seu interior, os três ocupantes envergaram blusões compridos com capuz e forrados a pele e aguardaram pelo sinal que lhes indicaria poderem abrir a porta. Uma rajada de ar gelado mostrou-lhes que podiam desembarcar. O piloto premiu um botão e a escada surgiu diante deles.

Judd desceu as escadas em primeiro lugar. O Dr. Sawyer sorriu-lhe de dentro do seu blusão de pele.

- Bem-vindo a Xanadu, o topo do mundo.

Judd deu-lhe um aperto de mão caloroso. Atrás de Sawyer podia ver o Dr. Schoenbrun. Estendeu a mão ao alemão.

- Bem-vindo, senhor Crane.

- Saiamos deste gelo - disse Sawyer, principiando a afastar-se.

Todos foram atrás dele. Judd apercebeu-se rapidamente do que o cercava - homens a embarcarem em helicópteros que iam ser levados para o planalto, outros a subirem no elevador fechado construído na parede da montanha. Os sacos de voo que levavam indicaram-lhe que iam para bordo do enorme C-5s que vira prestes a levantar voo. Sawyer abriu uma enorme porta de aço; penetraram no calor que reinava no interior do edifício.

- Duas semanas - disse Sawyer sem se preocupar em esconder a sua satisfação. - Conseguimo-lo fazer em duas semanas.

- É verdade, senhor Crane - acrescentou o alemão. - Está tudo pronto para si. Quando a manhã chegar poderá carregar no botão e pôr o gerador nuclear a começar a aquecer.

- Quanto tempo levará a ficar completamente operacional? - perguntou Judd.

- Uma semana - respondeu o Dr. Schoenbrun. - Assim que atingir a sua força máxima, desliga e liga automaticamente. Vigia-se a si próprio por intermédio de um sistema de robots e tem uma duração infinita.

- E se tiver alguma avaria? - inquiriu Judd.

- Isso não deverá acontecer - respondeu o alemão em tom pedante. - Primeiro, não há secções móveis, trata-se unicamente de pura energia atómica. Segundo, se houver alguma avaria, o processo está montado de maneira a ela reparar-se a si mesma. Asseguro-lhe, senhor Crane, que esta é a máquina de movimento perpétuo mais perfeita que o homem alguma vez construiu.

- Quero apenas certificar-me - disse Judd. - No fim de contas é a minha própria vida que está em jogo.

- A máquina funcionará - afirmou o Dr. Schoenbrun rigidamente. - A sua vida não posso eu garantir.

- Amanhã de manhã às sete horas - disse Judd em tom áspero.

O médico alemão mostrou-se surpreendido.

- Como disse, senhor Crane?

- Nós carregamos no botão - respondeu Judd. Virou-se para Sawyer. - Vou para o meu apartamento tomar um duche. Que tal jantarmos às nove esta noite?

Lee anuiu. Judd virou-se de novo para o Dr. Schoenbrun.

- Doutor?

- Com prazer, senhor Crane - respondeu, com um bater de tacões.

Lee estava sentado num sofá beberricando um uísque com gelo quando Judd entrou na sala, vindo do duche. Esperou que este apertasse o cinto do roupão.

- Sente-se bem? - perguntou.

- Optimamente - respondeu Judd. - Porque pergunta?

- Não tem dores de cabeça?

- Absolutamente nenhumas. - Judd fitou-o. - Em que está a pensar?

- Sinto-me curioso em relação ao aumento de células cerebrais. Que pensa Sofia?

- Ela é de opinião de que se deve aguardar para ver o que acontece. Também ela não compreende o fenómeno.

- Gostaria de que fizesse outro scan. Um electrocardiograma, enfim, todos os exames - disse Lee. - Ficaria mais descansado se o scan não mostrasse indícios de que essa actividade prossegue.

- De que tem medo? - perguntou Judd. Lee fitou-o directamente nos olhos.

- De que não me tenha contado toda a história. Penso que injectou algumas daquelas células reconstruídas em si.

- E se assim for? - perguntou Judd. - Estou bem. Não sinto nenhum efeito nocivo.

- O aumento de células cerebrais pode ter um efeito nocivo. O crescimento celular selvagem pode dar origem a um cancro ou a um tumor. Simplesmente não sabemos.

- Eu estou bem - disse Judd, aborrecido. - Mudemos de assunto.

- Saúde - brindou Lee, bebendo novo gole de uísque. - O facto de estar aqui há duas semanas fez-me perder o contacto com as coisas. Sempre conseguiu encontrar-se com o maharishil

- Consegui - respondeu Judd.

- Obteve dele o que queria?

- Em parte - disse Judd. - Ele estava de posse das notas de que andávamos à procura. Descobrimos que a doutora Zabiski era irmã dele. Trabalharam juntos num laboratório alemão quase até ao fim da guerra. O objectivo do estudo que desenvolviam era a longevidade.

Lee permaneceu em silêncio.

- A velhota começou a fazer experiências de terapia celular muito antes de qualquer outro cientista. Mas tens alguma ideia sobre o tipo de células que ela utilizava?

Lee anuiu.

- Tenho um palpite. Fetos humanos.

- O que te leva a tirar essa conclusão? - continuou Judd.

- A insistência que ela demonstrava na fecundação artificial daquelas raparigas. No fim de contas, uma teria sido suficiente para testar a sua capacidade para gerar uma criança normal. Uma dúzia de raparigas foi um excesso desnecessário.

- Mas todas essas jovens abortaram - afirmou Judd.

- Isso não foi da sua responsabilidade - disse Lee. - Consegui providenciar a interrupção da gravidez para elas. O meu estômago não era suficientemente forte para resistir ao que a velhota tencionava fazer. Os seres humanos ainda não estão preparados para substituir os animais nos laboratórios, independentemente do que os anos passados a trabalhar para os nazis possam ter feito à boa doutora.

- Sabias que tenho um filho? - perguntou Judd com ar casual.

A surpresa demonstrada por Lee era verdadeira.

- Não.

- De Sofia - prosseguiu Judd. - Não sei como foi que ela conseguiu fazê-lo, mas o certo é que não se submeteu a nenhum aborto. Depois veio da Rússia para os Estados Unidos a fim de ter a criança.

Lee fitou-o.

- Tinha conhecimento do facto?

- Não até Barbara me falar dele naquele dia em que saiu da sala durante a reunião que tivemos em São Francisco.

- Já falou com Sofia acerca do assunto?

Judd abanou negativamente a cabeça.

- De que haveríamos nós de falar? A responsabilidade não me pertence e não vou alterar a minha vida por causa disso.

- Mas a criança - principiou Lee -, e com respeito a ela?

- Barbara está a tomar conta dela, o que por mim está bem.

- Não sente curiosidade? Não apenas em vê-la, mas em saber se se parece consigo...

- Barbara pôs-me ao corrente do que eu precisava de saber - interrompeu-o Judd. - Já sei que tem olhos azuis como os meus. Na realidade, tanto se me dá.

Lee pôs-se de pé a fim de se servir de um novo uísque.

- O senhor é um homem estranho, Judd. Creio que nunca hei-de chegar a entendê-lo. Provavelmente ninguém alguma vez o conseguirá.

- Isso também não é importante - observou Judd, sorrindo. - Depois de jantar achas que teremos tempo para dar uma vista de olhos pelo laboratório onde estão as culturas?

- Se o desejar.

- Desejo-o - respondeu Judd. - E muito.

- Entretanto, antes de irmos para baixo jantar - pediu Lee -, importa-se de que lhe veja a tensão arterial e o ritmo cardíaco? Esta altitude pode provocar umas alterações curiosas.

- À vontade - respondeu Judd.

Lee pegou numa pequena maleta e abriu-a.

- Trouxe o aparelho de electrocardiogramas comigo. - Olhou de relance para Judd. - Já tomou alguma droga hoje?

- Não. Estou impecável - respondeu Judd.

- Deite-se no divã - pediu Sawyer.

Colocou os eléctrodos, leu cuidadosamente os resultados que saíram na tira de papel e, por fim, desligou os fios do aparelho, começando então a medir a tensão arterial de Judd em ambos os braços, assim como na barriga das pernas.

- Também me devia medir a tensão arterial na pila - gracejou Judd ao levantar-se do divã.

- Nem pensar. Arrebentaria com a escala. - Sorriu para Judd e abanou a cabeça em sinal de admiração. - Tudo indica que está em óptimas condições físicas. A tensão está a catorze e oito, o coração bate regularmente, não mostra sinais de nenhuma anomalia.

- Sente-se melhor, doutor? - brincou Judd. Lee pôs-se de pé.

- Agora deixo-o para que se possa vestir. Vemo-nos ao jantar.

O jantar foi simples. Lombo mal passado acompanhado de cogumelos, batatas assadas e feijão verde e cenouras às tiras. Depois seguiu-se uma salada de alface simples com queijo francês de Brie. O vinho foi bordeau de marca Chateaux Mouton Rothschild. A finalizar, café.

O sorriso do Dr. Schoenbrun revelava a satisfação que lhe ia no íntimo.

- O bom cozinheiro é o pilar da civilização. Judd sorriu.

- Realmente ainda não me tinha apercebido de que o senhor é um filósofo, doutor.

- A filosofia começa no estômago, não na cabeça - comentou o alemão.

Judd bebeu um gole do seu café.

- Está satisfeito com os seus progressos, doutor?

- Muitíssimo, senhor Crane - replicou ele sem hesitar. - Amanhã vai-se embora o último grupo de trabalhadores. Depois disso só os técnicos de base continuarão nas instalações. Não devem ser precisos mais de dez homens para efeitos de protecção. Daqui a uns três meses nem mesmo esses serão necessários.

- Isso é óptimo - observou Judd. - Devo congratulá-lo, doutor. Não conheço ninguém que pudesse levar a cabo semelhante projecto com tanta rapidez e eficácia.

O alemão sorriu orgulhosamente.

- Estou ansioso para que a manhã chegue.

- Eu também - disse Judd. - E agora, se me dão licença, vou recolher-me. Tive um dia extenuante.

Eram onze da noite quando Judd se foi juntar a Sawyer no elevador que os levou até ao piso do laboratório. Entraram na pequena sala de recepção; em frente da porta do elevador estava um guarda, sentado atrás de uma secretária.

Sawyer conduziu Judd até um pequeno vestiário, onde despiu a roupa, metendo-se a seguir debaixo do chuveiro e fazendo sinal a este para que o imitasse. Pouco depois envergavam os dois roupa limpa e asséptica, barretes e luvas de borracha cirúrgicas.

Entre o vestiário e o laboratório havia mais uma pequena antecâmara. Sawyer fechou a porta depois de entrarem carregou num botão da parede. O ventilador deixou escapar um ligeiro odor a ozone. Pouco depois a porta que dava para o laboratório abriu-se por si.

No interior deste, tinham dois técnicos à espera deles. Sawyer dirigiu-lhes um aceno de cabeça.

- Este é o senhor Crane - anunciou.

Os uniformes unissexo não permitiam que Judd distinguisse o sexo a que pertenciam os dois elementos.

- O senhor Bourne e o senhor Payson - apresentou Sawyer.

Cumprimentaram-se sem apertar as mãos.

Sawyer conduziu Judd até ao conjunto de gavetas de plexis-glás que cobria as paredes. Cada gaveta estava numerada de acordo com um sistema de registo. Em frente das paredes viam-se três mesas de aço que se deslocavam sobre carris. Em cima de cada uma delas encontrava-se um braço-robot que podia abrir qualquer delas sob o comando de um painel ligado a um computador. Ao lado deste havia um microscópio electrónico de três lentes, pronto a projectar a imagem num écran de computador de maiores dimensões.

Sawyer virou-se para Judd.

- De momento a energia é-nos fornecida por seiscentas e quatro baterias a trabalharem alternadamente em períodos de quatro horas. Quando o gerador de energia for ligado, as baterias desligarão automaticamente. Gostaria de ver mais alguma coisa?

Judd respondeu afirmativamente.

- Células do córtice.

Sawyer dirigiu um sinal aos técnicos, que se apressaram a carregar em vários botões do computador. Uma das mesas começou a mover-se ao longo das paredes; de súbito estacou. O braço-robot dirigiu-se para o banco de células, onde fez uma pausa suficiente apenas para puxar uma gaveta e colocá-la debaixo do microscópio. O técnico ligou o écran grande.

Simultaneamente, todas as luzes do laboratório se apagaram. Judd fitou o écran. Este mostrava uma imagem dividida em duas. Os números do registo apareceram ao cimo. Um dos conjuntos de números estava marcado com a letra R.

Sawyer dirigiu-se a Judd.

- A letra R indica as células reconstruídas, as restantes são as originais.

Judd olhou demoradamente para a imagem e, em seguida, falou.

- Não vejo nenhuma diferença entre elas.

- Não há nenhuma - afirmou Sawyer. - Pelo menos que nós possamos ver. Mas isso é secundário. Ainda não sabemos se funcionam exactamente da mesma maneira.

- Não podem deixar de o fazer - disse Judd. - São precisamente iguais.

- Não é bem assim - observou Sawyer. Judd fitou-o interrogativamente.

- O que Deus criou já nós conhecemos - disse Sawyer suavemente. - Aquilo que foi obra do homem ainda não passa de uma conjectura.

 

Judd saiu da sua máquina Náutilo, no ginásio, com o fato de treino encharcado de suor. Inalou profundamente o ar enquanto Fast Eddie lhe servia um enorme copo de sumo de laranja. Bebeu-o às goladas.

- Deus, como estava a precisar disto - disse. - Sentia-me completamente desidratado.

- Tenho coisas para lhe dizer - observou Fast Eddie.

- Espera um minuto - pediu Judd, estendendo-se numa cadeira a descansar.

- Há duas particularidades erradas neste lugar - disse Fast Eddie. - Primeiro, não se pode ir lá fora. Ficávamos logo com os tomates enregelados. Segundo, não há positivamente nenhum borrachinho por aqui.

Judd riu-se.

- Não tem piada nenhuma - observou Fast Eddie com ar sério. - Nunca pensei que o senhor optasse por uma vida de monge. Sempre me governei muito bem com as sobras dos seus amores.

- Lamento muito - disse Judd, sorrindo. - Creio que estou a ficar velho.

- O senhor Crane não está a ficar velho - insistiu Fast Eddie. - O que está a ficar é chateado. Anda com a cabeça noutras coisas.

- Ainda só passou uma semana - afirmou Judd.

- Parece ter sido mais tempo - disse Fast Eddie, abanando a cabeça com ar de dúvida.

- Seja como for, a seca deve terminar amanhã - contrapôs Judd. - Sofia vem para cá com o maharishi e ele traz uma dezena de raparigas consigo. Nunca viaja sem elas.

- Espero que tragam roupas mais quentes do que aquelas que as vi usar na Califórnia. Ficavam enregeladas antes de termos tempo para as enfiar em casa - disse Fast Eddie.

- No avião há agasalhos de pele para todos.

- O senhor pensa em tudo - observou Fast Eddie com admiração. - Quem mais é que vem?

- Sawyer e Merlin, da Florida. O doutor Schoenbrun, do Rio. O reactor deve passar para o automático amanhã.

- Vai ser um grande dia.

- Espero que sim - respondeu Judd.

- Começo a desconfiar que o senhor anda todo embeiçado pela doutora Ivancich - observou Fast Eddie com simplicidade.

- Não passa de uma relação de trabalho - disse Judd, continuando a negar os seus próprios sentimentos.

- Uma pequena relação de cama não prejudica ninguém. - Fast Eddie sorriu. - Talvez não fosse má ideia tomarmos uns cheirinhos só para treinar.

- Fá-lo tu. Eu estou a tentar aguentar-me assim. Os médicos andam a pensar fazer-me novos exames.

Fast Eddie entregou-lhe o segundo copo de sumo de laranja.

- Então é melhor beber isto. Vai precisar de um pouco de ajuda.

- Que te leva a pensar isso? - perguntou Judd.

- Conheço muito bem aquela senhora doutora. Ela anda sempre mortinha por si. Apanhando-o, espreme-o todo.

Fast Eddie saiu do ginásio a rir.

Judd abanou a cabeça em desacordo, mas Fast Eddie já tinha fechado a porta atrás de si. Judd bebeu o conteúdo do copo e, por fim, dirigiu-se para o chuveiro.

O telefone tocou estava ele a secar-se. Pegou no auscultador.

- Tem a sua mãe em linha, senhor - disse o telefonista. Carregou no botão da linha directa.

- Barbara? - perguntou.

A voz dela deu-lhe a entender o grau de nervosismo em que se encontrava.

- Onde estás, Judd? /

- Em Xanadu - respondeu ele. - Algum problema?

- O bebé foi raptado - respondeu ela com a voz a tremer, esforçando-se por falar o mais rapidamente possível. - A enfermeira trazia-o do parque quando dois homens saíram de um carro, puseram-na a dormir, levaram o bebé e deixaram-lhe um bilhete na mão, arrancando depois velozmente.

A voz quebrou-se-lhe.

- Tem o bilhete consigo? - perguntou Judd calmamente.

- Sim - respondeu ela.

- Então leia-o, Barbara - ordenou ele o mais brandamente que conseguiu.

- “Sabemos quem a criança é" - leu ela com dificuldade. - “E também quem é o pai e a mãe. Se concordarem com as nossas condições, nenhum mal lhe acontecerá."

- O bilhete só diz isso?

- Só - respondeu ela.

- Recorda-se de me dizer que ninguém tinha conhecimento da existência do bebé? - perguntou ele.

Barbara soluçava ao telefone.

- Era o que eu pensava, Judd.

- Há quanto tempo tudo isso aconteceu?

- Mais ou menos há duas horas.

- Que horas são neste momento em São Francisco? - perguntou ele.

- Quatro da tarde - respondeu ela. - Levei quase duas horas a localizar-te. - Começou novamente a soluçar. - Que vamos fazer?

- Já telefonou para o John, da Segurança?

- Ainda não.

- Então entre imediatamente em contacto com ele. Levará alguns homens para aí e começará a trabalhar já no caso. - Fez uma pequena pausa. - Se a enfermeira dispõe de alguma informação sobre os homens ou o aspecto que tinham, certifique-se de que conta os pormenores todos aos homens da Segurança.

- E quanto a Sofia? Acho que ela deve saber.

- Eu me encarrego desse aspecto - disse Judd. - Entretanto fique calma. Eles disseram que querem fazer um acordo comigo, portanto o bebé não sofrerá nada. Garanto-lhe.

- Assim que souber de alguma coisa telefona-me, está bem? - perguntou Barbara.

- Sim - respondeu Judd. - E se houver alguma novidade do vosso lado, faça o mesmo em relação a mim.

Ela respirou profundamente.

- Assim farei.

- Agora tome um tranquilizante e descontraia-se - disse Judd calmamente. - Tudo há-de correr bem. Adeus.

Desligou a chamada e ligou para a Segurança. John veio imediatamente ao telefone.

- Sofia e o maharishi já chegaram a Los Angeles?

- Há cinco horas - respondeu John.

- A minha mãe deve estar a telefonar para si não tarda. Ela lhe dará todos os detalhes. Certifique-se de que não deixa escapar nada. Comece por falar com os contactos que temos na CIA. Tente descobrir se há algum acontecimento especial entre os agentes russos, como um rapto, por exemplo. Desta vez não é espião, mas sim um rapazinho de três anos.

- Compreendido, senhor - disse John sem emoção.

- Agora diga-me uma coisa, descobriram algo mais sobre o doutor Schoenbrun? Tenho a vaga sensação de que ele tem alguma coisa a ver com tudo isto.

- Os nossos registos não deixam transparecer nenhum indício relacionado com o facto, senhor - disse John. - As coisas do costume. Assistiu aos simpósios sobre física nuclear que tiveram lugar nos países escandinavos, na Alemanha e no Japão. Nada de especial. Uma reunião com cientistas de todo o mundo, incluindo da União Soviética.

- Sabe se ele chegou a atravessar para Berlim Oriental?

- Duas vezes. Mas sempre em camionetas cheias de turistas.

- Merda. - Reflectiu por momentos. - Seja como for, investigue Mossad. Os tipos dos Serviços Secretos israelitas são uns bons filhos da mãe. Partilham informações com os seus aliados para verem se há alguma coisa que lhes interesse do outro lado.

- Boa ideia, senhor. Irei tratar imediatamente do assunto. Que tal acha a Segurança no local onde se encontra? Pensa que é suficiente?

- Estamos bem - respondeu Judd. - Veja apenas se descobre o máximo que puder sobre aquela criança.

Pousou o auscultador e chamou Fast Eddie ao quarto.

- Sim, patrão? - disse Fast Eddie.

- Primeiro dá-me um cheirinho, depôs a Coca-Cola do costume - pediu.

- Voltamos aos bons velhos tempos. - O negro sorriu, procedendo rapidamente à satisfação do pedido feito. - Adoro ver os seus olhos a brilhar.

Judd tomou duas inalações e em seguida começou a beber a Coca-Cola. Olhou para Fast Eddie.

- De quantas ATW suecas dispomos, mais ou menos? Fast Eddie fitou-o.

- De uma dúzia. Está à espera de algum sarilho? Judd encolheu os ombros.

- Nunca se sabe. Mantém-nas à mão.

- Muito bem. Mais alguma coisa?

- Quantas armas de meter na manga automáticas de calibre vinte e cinco temos?

- Duas - respondeu Fast Eddie. - Uma para cada um.

- Óptimo - observou Judd. Bebeu novo gole de Coca-Cola. - De agora em diante, assim que algum dos convidados chegar, não saias de junto de mim.

- Patrão, estarei tão perto de si que hão-de pensar que estou colado ao seu traseiro.

Era quase meia-noite quando o telefone que estava ligado à Segurança tocou, ao lado da cama de Judd.

- Senhor Crane, daqui fala John. Temos algumas informações para lhe transmitir.

- Estou acordado, continue - disse Judd.

- Não possuímos dados nenhuns sobre os raptores, mas detectámos a presença de dois homens e uma criança de três anos a bordo de um avião da Canadian Pacific que partiu de SFX para Montreal. Ali chegado, o grupo apanhou um avião cubano para Havana. Entrámos em contacto com um dos nossos homens nessa cidade e ele disse-nos que o aeroporto está rodeado de rigorosas medidas de segurança. Corre o rumor de que um chefão russo está para chegar.

- Acha que temos possibilidades de os interceptar lá?

- Duvido. É demasiado arriscado. Mas soubemos algo de surpreendente através de Mossad. O nosso doutor Schoenbrun, pressupostamente no Rio, está em Caracas. A informação refere que tem mais dois bilhetes reservados no nome dele, um para ele mesmo, de Caracas para o Rio. O outro destina-se a uma criança com menos de cinco anos.

- E quanto a apanhá-los no Rio?

- Não disponho de pessoas para isso - respondeu John. - Até Mossad, que gostaria de ajudar, só tem duas mulheres no escritório.

- Então teremos de ser nós mesmos a tomar conta do assunto - afirmou Judd. - Não me restam dúvidas de que eles vão trazer a criança para aqui.

- Posso colocar um exército de homens nesse local até amanhã à meia-noite - disse John.

- Isso será demasiado tarde. Não se preocupe. Nós tomamos conta da questão.

- Lamento, senhor Crane. Realmente não consigo dar conta deste problema.

- Não podemos ganhá-las a todas - disse Judd, pousando o auscultador.

Ficou sentado na cama durante alguns instantes, a pensar. Por fim entrou em contacto com a torre de controle através do telefone.

- Daqui é Crane - disse. - Quero todos os helicópteros fora da cratera e lá em cima, no planalto. O único aparelho que fica aí é o VTOL. Compreendido?

- Sim, senhor Crane.

- E todos os aviões que pedirem permissão para aterrar, vão para o planalto. Não quero nem um na cratera. Quero com isto dizer que a ordem se aplica a todas as pessoas. Incluindo o doutor Schoenbrun.

- Entendido, senhor.

- Mais uma coisa, assim que algum avião pedir assistência via rádio, quero ser imediatamente informado. Desejo saber quem e quantas pessoas vêm em cada aparelho. Está tudo percebido?

- Sim, senhor.

- E a partir das oito da manhã você entra em contacto comigo de hora a hora a fim de me dar conta da situação, quer haja tráfego aéreo ou não. Não quero que nenhum avião se esgueire cá para dentro sem nos darmos conta. Também registou?

- Sim, senhor Crane. - Se não surgir nenhuma alteração, começamos a ligar para si a partir das oito horas. Adeus, senhor.

Judd pousou o auscultador e apagou a luz. Nada correra da maneira desejada. Não conseguiu dormir. Deu voltas e mais voltas na cama, até a luz turva da manhã começar a entrar pelas janelas.

 

- Onde estão as garotas? - perguntou Fast Eddie observando o écran da televisão e vendo os passageiros que desciam as escadas encostadas ao 707 pousado num dos cantos da pista.

- Tem calma - disse Judd.

Também ele se sentia curioso. Sofia já tinha saído pela porta da frente. Começou a descer as escadas, atrás dos dois homens que ajudavam o maharishi. Passados momentos, três outros indivíduos apareceram na plataforma de saída. Por fim, chegou a vez das raparigas. Eram sete, ao todo.

- Eles não disseram nada sobre guarda-costas - comentou Fast Eddie.

- Ele é um homem de idade - disse Judd. - É natural que precise de ajuda.

Fast Eddie ficou em silêncio, continuando a espreitar para o écran.

- O aspecto da doutora não é nada bom. Parece demasiado rígida.

- É capaz de ser do frio - disse Judd.

Observou-a cuidadosamente. Talvez Fast Eddie tivesse razão. Algo não estava bem na maneira de andar de Sofia. Virou-se para Fast Eddie.

- Acompanha-os até aos respectivos quartos - ordenou. Assim que Sofia estiver instalada, avisa-me.

- Onde é que o senhor vai estar? - perguntou Fast Eddie.

- Vou descer para junto do gerador nuclear. O doutor Schoenbrun já lá está com Sawyer e Merlin. O gerador deve estar prestes a ligar para o automático. Gostaria de assistir.

- Disse-me que não despegasse de si - observou Fast Eddie.

- São só alguns minutos - disse Judd. - Por enquanto nada vai acontecer.

- Muito bem, o senhor manda. - Fitou Judd. - Trouxe a sua arma de manga?

Judd estendeu o braço. Uma pequena automática apareceu--lhe na mão.

- Está bem assim? - perguntou Judd.

- Nada mal - respondeu Fast Eddie. - Já volto a estar consigo.

Judd saiu do elevador para a plataforma de observação que rodeava o gerador, trezentos metros abaixo da superfície da cratera. Schoenbrun estava sentado num banco alto, de olhos fixos no painel de instrumentos. A seu lado estava Merlin e Sawyer, perfeitamente fascinados.

O alemão ouviu as portas do elevador a abrirem e os passos de Judd a soarem na plataforma de aço. Sem desviar os olhos do painel de instrumentos, disse:

- Chegou mesmo a tempo, senhor Crane. Dentro de trinta segundos o gerador fica ligado ao automático.

Judd aproximou-se dele em silêncio. O segundo mostrador digital estava na contagem decrescente: vinte e* cinco, vinte e quatro, vinte e três. O circuito de luzes vermelhas, que indicava a transferência para o automático, ainda estava aceso. Olhou para o gerador através dos vidros. Os técnicos de bata branca já estavam a abandonar o andar onde o gerador se encontrava através de uma pequena porta que os faria passar para uma escada que levava à plataforma. A contagem aproximava-se do fim: quinze, catorze, treze, doze.

A porta que se encontrava do lado da plataforma abriu-se para deixar passar os técnicos. Cada um colocou-se no seu lugar em silêncio, ficando a olhar ansiosamente para o gerador. Ninguém falou. A maquinaria não deixava escapar nenhum som. Ouviam-se apenas os ligeiros cliques da contagem decrescente do mostrador digital.

Sawyer virou-se para Judd e ergueu a mão, de dedos cruzados. Merlin percebeu o gesto e fez o mesmo. Judd sorriu-lhes e ergueu o polegar para cima.

Cinco, quatro, três. Todos inspiraram o ar, sustendo a respiração. Dois, um, zero. As luzes do circuito mudaram do vermelho para o verde.

De repente, os técnicos soltaram um berro e começaram a bater palmas.

Judd juntou-se aos aplausos, fazendo o mesmo. Dirigiu um sorriso ao alemão.

- Parabéns, doutor Schoenbrun. Parabéns! Estendeu-lhe a mão.

O alemão apertou-lha, batendo os tacões automaticamente.

- Estou muito satisfeito - disse, sorrindo igualmente. - Os meus parabéns também para si e obrigado, senhor Crane.

Merlin parecia intrigado.

- Mas eu não ouvi nada - afirmou. - Nem motores, nem mecanismos. Nada.

- Dê-se por muito feliz, senhor Merlin - disse Schoen-brun, sorrindo. - Se tivesse ouvido algum ruído, provavelmente era o último da sua vida.

- Acompanhem-me ao meu gabinete para tomarmos uma bebida - convidou Judd.

- Posso ficar aqui mais um pouco, senhor Crane? - perguntou o alemão. - Quero olhar ainda durante algum tempo para o meu bebé.

- Faça favor - respondeu Judd. - E, mais uma vez, os meus parabéns.

Dirigiu-se para o elevador, seguido de Sayer e Merlin.

- Três biliões de dólares - comentou Merlin.

- É barato - observou Judd. - Se o complexo nuclear não estivesse já construído e pago, metade pela Ludwig e a outra metade pelo Governo, teria custado o dobro.

- Ainda não consegui compreender por que razão pararam a meio - disse Merlin.

- Muito simples - respondeu Judd. - Ludwig desistiu porque não via como obter rendimentos do projecto e, quanto ao Governo, faltou-lhes o dinheiro. O Brasil já na altura tinha uma dívida de oitenta biliões e não conseguia obter mais empréstimos. Os bancos e o FMI enfiaram-lhes um programa de austeridade pela garganta abaixo. Ficaram todos satisfeitos com a minha oferta de um bilião, dinheiro que lhes cobriu o que já haviam gasto aqui.

- E continua a pensar ficar aqui? - perguntou Merlin.

- Vou ficar aqui - respondeu Judd sem rodeios.

- Diz-lhe que não vai resultar. Ele não tem possibilidades de viver eternamente - disse Merlin a Sawyer.

-- Mas é uma coisa que não posso afirmar - contrapôs Sawyer. - Ninguém sabe se resultará ou não.

- Só o tempo o dirá - observou Judd. Fast Eddie entrou no gabinete.

- Já estão todos instalados - informou Judd. - No entanto, há algo que não entendo. Pensei que o maharishi não permitia que os seus homens andassem armados.

- Exactamente - disse Judd.

- Então alguma coisa está errada - afirmou Fast Eddie. - Os homens dele vêm armados até aos dentes. Cada um trás uma Uzi automática.

- Falaste a Sofia? - perguntou Judd.

- Não consegui. Uma das raparigas informou-me de que a doutora Ivancich não se estava a sentir bem e que, por isso, tivera de se deitar imediatamente - respondeu Fast Eddie. - Mas isso também não faz sentido. Reparei que ela olhava para mim como se não me reconhecesse. Pareceu-me estar drogada ou algo do género.

Judd reflectiu por momentos.

- Talvez esteja doente. Vou ligar para ela e perguntar-lhe se deseja que Sawyer a vá examinar.

Pegava no telefone quando o Dr. Schoenbrun entrou no gabinete.

Foi o maharishi quem atendeu.

- Sim?

- Fala Crane - disse Judd. - Ouvi dizer que Sofia se encontra doente. Posso mandar um médico vê-la.

A voz do maharishi era tranquilizadora.

- Não me parece que seja necessário - afirmou. - Tem estado engripada. Creio que a viagem de avião foi demasiado prolongada para ela.

- Talvez um antibiótico ajude - alvitrou Judd. Carregou no botão que ligava o écran do Intertel. O rosto

do maharishi encheu todo o espaço. Judd carregou na focagem automática. Sofia estava sentada atrás dele.

- Penso que ela ficará melhor depois de repousar um pouco - respondeu o maharishi. - Já temos todos os apontamentos traduzidos e incorporados no computador. Estaremos prontos assim que o senhor quiser.

prontos assim que o senhor quiser.

- Trataremos do assunto quando Sofia ficar melhor - disse Judd. - Telefone-me.

E desligou o telefone.

Schoenbrun não lhe deu tempo para falar.

- Sabe quem é aquele homem? Judd fitou-o.

- Diga-me o senhor.

- É do KGB - disse Schoenbrun. - Já o conhecemos há muito tempo, mas eu nunca tinha estado assim tão perto dele.

- O senhor disse “conhecemos" - observou Judd. - Nós quem?

- Mossad - respondeu Schoenbrun. - Eu não sou agente deles, mas já trabalhei muitas vezes para essa organização. Até mesmo naquela questão do Eichmann. O KGB tentou apanhá-lo, mas nós adiantámo-nos.

- Raios! - praguejou Judd, - Acha que Sofia está a trabalhar para o maharisht?

- Não conheço a rapariga - respondeu Schoenbrun. Fast Eddie fitou Judd.

- Não acredito que esteja. Penso que a têm cheia de droga até às orelhas.

Sawyer aproximou-se de Judd.

- E agora, que fazemos?

- A primeira coisa que faço é tirá-lo a si e a Merlin para fora daqui - respondeu Judd.

- Tira, uma ova! - exclamou Merlin.

- Não têm outra hipótese - disse Judd. - Sem a sua assistência e a de Sawyer as Indústrias Crane iam por água abaixo.

Judd ligou para a torre de controle.

- O Cl número dois já está reabastecido de combustível?

- Já sim, senhor Crane.

- Prepare-o para partir imediatamente - Pousou o auscultador e virou-se para os dois. - Muito bem, já podem ir.

Sawyer e Merlin ficaram a olhar para ele.

- Ponham-se a andar! - ordenou-lhes Judd asperamente. - Os dois já têm responsabilidades que cheguem. Eu resolvo este assunto. - Voltou-se para Schoenbrun. - O senhor também vai, doutor. Esta luta não tem nada a ver consigo.

- Não tem, uma ova! - exclamou Schoenbrun. - Tenho parentes que andam a tentar sair da Rússia há mais de vinte anos.

- Mas então com quem é que se foi encontrar em Caracas? - perguntou Judd.

- Com minha mulher e meu filho, que chegavam da Suíça. O rapaz tinha de fazer uma operação que não podia ser efectuada cá. Não dispúnhamos nem da técnica nem do equipamento.

Judd fitou-o.

- Além disso - prosseguiu Schoenbrun -, este bebé é tanto meu como seu. É a mim que se deve a construção deste reactor.

Judd virou-se para Merlin e Sawyer.

- Muito bem. Vão então só vocês os dois, e já. Assim que estiverem no ar, contactaremos convosco de duas em duas horas.

Os dois homens apertaram silenciosamente a mão a Judd e abandonaram o gabinete. Judd voltou-se para Fast Eddie.

- Acompanha-os ao avião. Certifica-te de que entram para bordo. Não os quero escondidos por aqui em algum corredor.

 

Judd ligou o écran do Intertel e manobrou a câmara de modo a que esta abrangesse o planalto da torre de controle.

O Cl número dois estava a entrar na pista de descolagem. Momentos depois ganhava velocidade, lançando-se no céu. Judd ficou a observá-lo por instantes, reparando então num outro avião que estava na pista. Ligou para a torre de controle.

- Que avião é aquele? - perguntou.

Antes que o controlador pudesse responder, o Dr. Schoenbrun fê-lo por ele.

- É meu. Está a levar os técnicos de volta para o Rio. Agora que o reactor passou ao automático, dei-lhes licença para irem passar uns tempos a casa.

A voz do controlador ouviu-se no telefone de Judd.

- É o B setecentos e trinta e sete para o Rio, senhor.

- Está bem, controlador - disse Judd. - Ha mais algum aparelho na pista aí de cima?

- Apenas dois helicópteros e o setecentos e sete que acabou de chegar com o último grupo.

- Onde estão as tripulações dos aviões.

- Na casa do pessoal, no campo, senhor.

- Certifique-se de que todos os aviões são devidamente reabastecidos.

- Sim, senhor. _ ... Judd pousou o telefone no momento em que Fast Eddie

entrava no gabinete.

- Já partiram - informou este.

- Muito bem - disse Judd, ligando para o responsável do pessoal.

- Fala Crane. Que pessoal temos neste momento?

- Vou verificar no computador, senhor - respondeu o homem. - Quatro guardas, oito homens no serviço da limpeza, dez nos abastecimentos, três na manutenção, quatro no controle aéreo, oito da tripulação aérea, três técnicos de laboratório e dois da secção de pessoal, de que eu mesmo faço parte. Ao todo, quarenta e dois.

- Os guardas estão armados?

- Não senhor. Os únicos deveres que têm são os de registar a movimentação do pessoal e dos hóspedes. Não são guardas

da Segurança.

- Compreendo - disse Judd. - Ordene a todo o pessoal que fique em estado de alerta para eventual evacuação, mas com a maior discrição possível.

- Sim senhor Crane - respondeu o homem. - Chamo-me Jack Somer, senhor - acrescentou. - Sou do Centro de Segurança e estou armado, para o caso de vir a precisar da

minha ajuda.

- De momento limite-se a ficar à sua secretária, Jack - disse ele - Obrigado. Manter-me-ei em contacto consigo. - Pousou o telefone e virou-se para Fast Eddie e para o Dr Schoenbrun. - Tenho o pressentimento de que se Sofia está drogada, o maharishi só entrará em contacto connosco quando os efeitos lhe passarem.

Observaram-no em silêncio. Judd respirou profundamente.

- Tenho a impressão - disse, ligando para a Central de Segurança e começando a falar com John - de que fomos enganados desde o princípio. O maharishi enfiou-nos o barrete. Temos estado a seguir uma pista falsa. Quantos homens pode colocar neste momento na propriedade que ele tem em Malibu?

- Vinte e dois, vinte e três homens - respondeu John.

- Penso que a criança está lá - disse Judd. - Só desse modo é que teria conseguido convencer Sofia para alinhar com o plano dele.

- Quer que saltemos sobre eles? - perguntou John.

- Vão de helicóptero. E arrumem com quem quer que se atravesse no vosso caminho - recomendou Judd. - Depois informem-me imediatamente se tenho razão ou não.

- Partimos já - disse John.

Judd desligou o telefone e dirigiu-se para os dois.

- O melhor será almoçarmos enquanto esperamos.

Já se tinha passado mais de uma hora quando o maharishi ligou.

- Crane - disse suavemente-, Sofia_sente-se agora muito melhor. Talvez possamos ter a nossa reunião, não é verdade?

- Claro - respondeu Judd. - Talvez seja melhor eu encontrar-me convosco na sua suite e depois dar uma volta consigo para lhe mostrar Xanadu. Estou certo de que tem interesse em ver o gerador nuclear e o laboratório da reconstrução de células artificiais, não?

- Teria muito interesse nisso, senhor Crane.

- Óptimo - disse Judd. - Estarei aí dentro de um minuto. Levarei também o doutor Schoenbrun comigo. A ele se deve o desenvolvimento de toda esta instalação e poderá responder a qualquer pergunta que deseje fazer.

Pousou o auscultador e virou-se para Fast Eddie.

- Vais até à torre de controle. Prepara pelo menos quatro ATW carregadas e espera lá que eu te chame.

- A ideia de o deixar não me agrada - disse Fast Eddie.

- Não estarás a deixar-me - objectou Judd. Virou-se para o Dr. Schoenbrun. - Sabe manejar uma arma?

- Sei - respondeu o médico.

- Dá-lhe a tua arma - disse Judd a Fast Eddie. - E mostra-lhe como funciona.

Enquanto Fast Eddie ensinava ao médico como a arma devia ser utilizada, Judd ligou para o responsável do pessoal.

- Jack - disse, tratando o homem pelo nome -, vou-me encontrar com o maharishi no andar dele, donde sigo para a plataforma do gerador e depois para o laboratório. É natural que acabemos por vir para o meu gabinete. Tente manter-nos no écran o máximo de tempo que puder. Se detectar alguma coisa que possa pôr em perigo a vida dos membros do pessoal, evacue-os imediatamente. Se houver algum perigo, quer para o doutor Schoenbrun, quer para mim próprio, não intervenha. Neste momento as nossas pessoas não são importantes. Compreende?

- Perfeitamente, senhor - respondeu Jack. - Estarei atento.

Judd virou-se para Fast Eddie.

- Pronto? Este anuiu.

- Muito bem - disse Judd. - Vamos.

Saíram para o corredor. Judd viu Fast Eddie subir num dos elevadores, enquanto ele e o alemão desciam num outro. Saíram no andar reservado aos hóspedes e dirigiram-se para os aposentos do maharishi.

Um dos guarda-costas do maharishi abriu-lhes a porta. Judd entrou no quarto, seguido pelo Dr. Schoenbrun. O maharishi fez-lhes um gesto com a mão e disse:

- Que a paz seja consigo, meu filho. Judd sorriu.

- E consigo, Mestre.

Sofia saiu de um quarto adjacente. Judd dirigiu-se a ela, abraçou-a e beijou-a na face. Esta parecia de gelo.

- Sentes-te melhor, Sofia?

- Muito melhor - respondeu ela com ar abatido. - Creio que tive uma gripe ou outro vírus qualquer.

- Talvez estivesses melhor na cama - disse Judd. - Não há pressa. Podemos fazer a reunião amanhã.

Pareceu-lhe vislumbrar um clarão de medo nos olhos quando ela relanceou o olhar para além dele, pousando-o rapidamente no maharishi.

- Não - respondeu. - Sinto-me muito melhor agora. Judd anuiu. Fez um sinal ao Dr. Schoenbrun.

- Este é o doutor Schoenbrun. Sem ele esta instalação nunca teria sido possível.

O Dr. Schoenbrun inclinou-se formalmente. Apertou as mãos a Sofia e, em seguida, ao maharishi.

- Sinto-me honrado - disse. Judd virou-se para o maharishi.

- Se está pronto, podemos acompanhar o doutor Schoenbrun.

- Se não se importa, senhor Crane - pediu o maharishi -, será que eu podia ver o gerador nuclear numa outra altura? Estamos mais interessados no laboratório. Sinto que a movimentação em excesso pode fatigar Sofia.

Judd disfarçou um sorriso, ao mesmo tempo que Schoenbrun tinha dificuldade em disfarçar o seu desapontamento. O gerador era o seu bebé. Mas o alemão portou-se à altura das circunstâncias.

- Com certeza - disse rigidamente.

Conduziu-os, em silêncio, até ao elevador. O pequeno compartimento deste ficou cheio quando dois dos guarda-costas do maharishi se juntaram a eles.

Judd apertou a mão de Sofia. Sentiu-a fria e peganhenta. Ajudou-a a sair pela porta do elevador. O guarda, sentado na secretária, cumprimentou Judd.

- Senhor Crane. Entraram no vestiário.

- O laboratório está completamente isolado - explicou Judd. - Temos de mudar de roupa, tomar um duche, colocar umas fardas, luvas de borracha e barretes cirúrgicos.

O maharishi olhou de relance para ele.

- Não haverá possibilidade de olharmos por uma janela? O Dr. Schoenbrun fitou Judd. Este anuiu.

- Temos uma janela dupla de vidro lá fora no corredor - disse Judd. - Ligarei para os técnicos e dir-lhes-ei para que lhe mostrem uma das culturas de células através do écran. Podem vê-la pela janela.

- Creio que é uma bela ideia - respondeu o maharishi.

Em silêncio, ficaram a observar as culturas que eram projectadas no écran através da janela. Judd olhou para o maharishi, depois para Sofia, enquanto explicava que o écran estava dividido ao meio de modo a mostrar as células genuínas ao lado das artificiais. O maharishi analisava tudo com muita atenção, mas Judd teve a impressão de que Sofia não mostrava o menor interesse.

- Agora podemos ir para o gabinete - disse Judd -, e ver o que descobrimos da última série de apontamentos da sua irmã.

Regressaram ao elevador em silêncio. Junto das portas deste, Judd fitou Sofia.

- Estás certa de que tens forças para isto? Podemos continuar amanhã.

- Não! - exclamou ela, quase em tom de desespero. - Estou bem. Acreditem que estou bem.

Judd anuiu sem comentários e conduziu-os do elevador para o seu gabinete. Uma vez no interior da divisão palaciana, convidou-os a sentarem-se num canto confortavelmente preparado para trocas de impressões. O maharishi e Sofia sentaram-se ao lado um do outro no sofá, enquanto os guarda-costas se colocavam por trás destes. Schoenbrun instalou-se numa cadeira, ao lado, enquanto Judd fazia o mesmo numa que ficava de frente para eles, tendo uma mesinha pequena de permeio.

- Posso oferecer-lhes um chá? - perguntou este.

- Não me parece que seja necessário. Estamos bem - respondeu o maharishi.

- Posso ir à casa de banho? - perguntou Sofia.

- pela porta que fica atrás de ti - disse levantando-se. - Eu indico-te onde fica.

Ela seguiu-o até junto da referida porta, que ele indicara.

- Segues em frente - disse ele, colocando-lhe rapidamente e disfarçadamente duas cápsulas de cocaína especial na mão, voltando logo a seguir para o gabinete e sentando-se. - Que acha de Xanadu? - perguntou Judd à laia de conversa. - Quero dizer, do pouco que viram.

- Um feito extraordinário - observou o maharishi.

- Isto ainda é só uma parte do projecto - disse Judd. - Quando estiver tudo terminado ficará, como sabem, completamente automatizado. Poderia viver aqui sozinho, sem Pessoal. Todas as minhas necessidades serão satisfeitas: alimentação, repouso, exercício, todas as comunicações, tudo o que desejarmos.

- Espantoso - murmurou o maharishi, acenando com a cabeça.

Sofia voltou da casa de banho. Judd ergueu os olhos para ela. Nesse momento tinha os olhos límpidos e alerta. Sentou-se ao lado do maharishi.

- Agora vejamos - disse Judd -, o que descobrimos nos tais apontamentos.

O maharishi virou-se para Sofia.

- Penso que Sofia pode explicá-lo melhor do que eu.

Sofia fitou Judd.

- Para dizer a verdade, não é muito mais do que Ja sabíamos ou tínhamos calculado teoricamente. De facto, ficamos a saber que, pela primeira vez, a doutora Zabiski procedeu a experiências de terapia celular utilizando fetos humanos, mais tarde passou a combinar as células humanas com as de fetos de animais, sobretudo cordeiros. Tudo indica que o principal problema com que ela deparou foi o facto de um número inesperado de indivíduos não poderem tolerar as injecções de células. Muitos morreram de choque anafiláctico, aPesar da administração maciça de antiestamínicos e cortisona.

- Então, em que medida é que esse dado vem trazer, alguma contribuição àquelas que já possuíamos? Nós já estávamos ao corrente desses factos - disse Judd. .

- Foi por isso que ela te incitou a que fizesses melhor o processo de engenharia genética DNA na criação de uma célula humana artificial - observou Sofia.

Judd fitou-os.

- Pois bem, já o viram. Esse processo já está em andamento. Estamos no limiar da imortalidade. Agora o homem pode viver eternamente.

- Estou bastante interessado na fórmula que o senhor desenvolveu para este fim - exclamou o maharishi educadamente.

Judd sorriu.

- É só para meu uso exclusivo. Nunca pensei em partilhá-la com ninguém.

- Penso que o devia fazer, meu filho. Deve-o ao mundo - disse o maharishi untuosamente.

Judd riu-se, desta vez mais alto.

- O mundo que se lixe. Não devo nada a ninguém.

- Estou em desacordo, meu filho - disse o velho. - A vida do seu filho depende disso.

- Não tenho filho nenhum - afirmou Judd.

- O filho que Sofia deu à luz - contrapôs ele.

- Se ela teve o filho foi porque quis - observou Judd. - Não tenho responsabilidades em relação a esse facto.

O maharishi fitou-o nos olhos.

- Deixemo-nos de brincadeiras - disse. Judd aguentou-lhe firmemente o olhar.

- Não estou a brincar - afirmou.

O maharishi permaneceu alguns momentos em silêncio.

- Basta eu fazer um telefonema e o rapaz será morto. Judd estendeu a mão para o telefone e colocou-o em cima

da mesinha, em frente dos dois.

- Faça favor.

Os guarda-costas empunharam imediatamente as metralhadoras. O maharishi voltou a falar.

- Também estamos preparados para matar Sofia e a criança que ela trás no ventre.

Judd fitou Sofia.

- Isso é verdade?

Os olhos dela começaram a encher-se de lágrimas.

- É.

- Que estupidez! - exclamou ele.

- Por favor, Judd - implorou Sofia. - Por favor, dá-lhes a fórmula. Não é assim tão importante.

- Para mim é - afirmou Judd friamente.

- Mesmo que eles fiquem a conhecê-la, não deixas de a ter em teu poder. Alcançarás a imortalidade que procuras - disse ela a chorar.

Ele riu-se.

- Nem pensar. Agora é que estás a ser mesmo estúpida - disse ele. - Ainda não te apercebeste de que assim que ele tiver a fórmula morremos todos? Também ele não tenciona partilhá-la.

O telefone tocou e Judd pegou no auscultador. O maharishi levantou uma mão.

- Quero ouvir essa conversa.

Judd concordou. Carregou num botão e a voz fez-se ouvir através do altifalante da sala.

- Senhor Crane - disse John com voz excitada.

- Sim, John? - respondeu Judd.

- Tinha razão. Temos a criança. Está bem. Somente chora e diz que quer voltar para junto da avó.

- Leva-o - disse Judd.

- Mais alguma coisa, senhor?

- Não, John, mais nada, para já. Obrigado. Judd pousou o telefone e olhou para o maharishi.

- A sua ameaça já não tem razão de existir. O velho fitou-o.

- Ainda estamos de posse de outros argumentos.

O maharishi fez um sinal aos guarda-costas. Estes moveram-se ligeiramente. As explosões das suas armas ecoaram na sala. Schoenbrun foi atirado contra as costas da sua cadeira com o impacte das balas que o rasgaram, escorregando depois da cadeira para o chão.

O maharishi aparentava grande frieza.

- Isto deve convencê-lo da seriedade das minhas intenções. As próximas balas serão para Sofia, a não ser que me dê a fórmula.

Judd fitou Sofia. Esta estava pálida, de lábios crispados pelo medo. Encarou novamente o maharishi.

- Tenho a fórmula. Mas é muito complicada e está no Computador Central.

- Pode transferi-la para aqui? - perguntou o velho.

- Posso - respondeu Judd. As armas viraram-se para Sofia.

- Então faça-o - ordenou o maharishi.

Judd deixou escapar um profundo suspiro.

- Está bem.

Aproximou-se do computador que tinha em cima da sua secretária. O velho seguiu-o juntamente com um dos guarda-costas. O outro ficou junto de Sofia. Judd ligou o computador e começou a estabelecer contaco com o Computador Central. Uma luz esverdeada iluminou o écran.

Judd marcou o código de acesso: “FORM. PROJ. ENG. CCHA ADN.”

- Que quer isso dizer? - perguntou o maharishi.

- Fórmula do Projecto de Engenharia de Criação de Células Humanas Artificiais pelo Processo DNA - respondeu Judd.

No écran surgiram as seguintes palavras: “Este código é restrito. Indique o seu número de autorização.”

O maharishi dirigiu-se a Judd.

- Pode fazer uma cópia aqui?

- Sim - respondeu Judd, apontando para a máquina que estava encostada à parede. - Basta carregar no botão ON que-se vê em cima e depois no que indica as cópias.

O maharishi virou-se para o seu guarda-costas.

- Vai ligá-la.

Judd aproveitou o momento em que o velho se virou para o lado para carregar rapidamente na barra, comunicando as seguintes informações ao computador: “Transmitir e apagar para a frente e para trás.” Em seguida começou imediatamente a escrever o seu código de autorização: “JCI-1-02-102-JCI.”

No écran surgiu a palavra “Confirmado”. Um momento depois, as letras: “PRINCIPIANDO TRANSF. FORM. PROJ. ENG. CCHA ADN.”

O maharishi chamou o guarda-costas.

- A copiadora está a funcionar?

- Sim, senhor - respondeu o homem. - Vejo as palavras a aparecerem no écran.

O maharishi olhou para o écran por cima do ombro de Judd. Os números e as letras que formavam o código começaram a aparecer numa linha, passando logo a seguir para a linha seguinte.

- Quanto tempo durará tudo isto?

- Entre três horas a três horas e um quarto - respondeu Judd.

- Não pode acelerar? - perguntou.

- Posso, mas a velocidade será tão grande que o senhor não conseguirá ler o que aparecer escrito. Será apenas uma mancha indistinta.

- E assim quanto tempo levaria? - perguntou o velho.

- Entre doze a catorze minutos - respondeu Judd.

- Faça-o - ordenou o velho.

Judd carregou imediatamente no botão da VELOCIDADE TRANSF. A imagem no écran reagiu e transformou-se numa mancha em que os números e as letras passavam veloz e indistintamente. Olhou por cima do computador para Sofia. O outro guarda-costas mantinha-se ao lado desta, de arma apontada às suas costas.

Fixando os seus olhos nos azuis-escuros de Judd, perguntou:

- O bebé está verdadeiramente bem? Judd anuiu.

- Está mesmo bem. Ouviste o que John disse. Provavelmente a esta hora vai a caminho de São Francisco com Barbara.

Ela respirou fundo.

- Graças a Deus - sussurrou.

Judd permaneceu em silêncio. Observava o écran, as linhas indistintas que continuavam a correr. Virou-se para o maharishi.

- Não sei se consegue compreender estes dados.

- Eu talvez não - respondeu o velho. - Mas tenho cientistas que o farão.

- Talvez - retorquiu Judd. Olhou de relance para o corpo do médico alemão. - De que é que lhe serviu fazer aquilo?

- Esse médico judeu! - exclamou o velho. - Já o conhecíamos há muito tempo. Estava arrumado. E talvez o tenha convencido de que não estávamos a brincar.

Judd ficou silencioso. Relanceou o olhar para o écran.

- Imagino que despachou o verdadeiro maharishi através do mesmo processo.

- Esse acontecimento teve lugar há seis anos atrás. A irmã nunca chegou a perceber que falava com um morto - disse ele. Consultou o seu relógio. - Quando tempo levará ainda?

Judd baixou os olhos para o mostrador do computador.

- Cerca de quatro minutos. O maharishi fitou-o.

- Ligue para a torre de controle e peça-lhes que tragam o nosso avião para o princípio da pista com a porta aberta e a escada automática descida. Depois mande-os trazerem um Land Rover até à porta do elevador e, em seguida, o motorista que se retire, deixando o motor a trabalhar.

Judd fitou-o durante alguns momentos e depois ligou para a torre e transmitiu exactamente as ordens que lhe tinham dado.

- Diga à torre para ligar para cá assim que estiver tudo pronto - disse o velho.

- Avisem-me logo que tudo esteja preparado - repetiu Judd, pousando o auscultador a seguir.

O contador do gravador começou a emitir uns ruídos. De repente ouviu-se uma campainha e o écran mostrou uma nova série de palavras: “Gravação completa. Transmissão terminada."

Judd desligou o computador. O maharishi fez-lhe sinal.

- Tire a gravação.

Judd dirigiu-se para o gravador e desprendeu a bobina, tirando-a para fora. Entregou-a ao maharishi. Ficou a observar o velho enquanto este abria a caixa da fita e guardava a bobina no interior desta.

- Abra a porta - ordenou o maharishi.

Judd encaminhou-se para a porta e abriu-a. Do lado de fora, à espera deles, encontravam-se mais três guarda-costas.

- Muito bem, para fora - ordenou o velho. - Primeiro a rapariga, depois você.

Judd viu, em silêncio, Sofia atravessar a porta. Fitou-a.

- Espero que Deus esteja a velar por nós - disse em voz bem audível. - A única coisa que neste momento podemos fazer é manter a calma.

O telefone tocou.

Judd atendeu. Era Fast Eddie, que lhe falava da torre.

- Está tudo pronto, senhor.

- Está pronto - repetiu Judd, pousando o auscultador.

- Então siga atrás da rapariga - ordenou o maharishi. - Vamos todos subir no elevador.

- Se vamos lá acima precisaremos de casacos - disse Judd.

- Não precisarão de casacos por muito tempo - objectou o maharishi sem mais rodeios.

Entraram no elevador em silêncio e este principiou a subir em direcção ao planalto. Quando as portas que davam para o exterior se abriram, chegou até eles uma rabanada de ar gelado.

O maharishi fez sinal a um dos homens, que empurrou Judd e Sofia para a frente do grupo. Seguiram-nos cuidadosamente.

Tal como fora ordenado, o Land Rover estava em frente da porta do elevador com o motor ligado. O 707 encontrava-se na ponta da pista, ao fundo do planalto, com a porta aberta e a escada automática descida.

Dois dos guarda-costas empurraram Judd. Passando à frente deste, olharam em volta.

- Não há ninguém à vista - disse um deles para o maharishi.

O velho saiu para fora do elevador.

- Vocês os dois mantenham as mãos ao alto se querem viver. Comecem a andar devagar à nossa frente em direcção ao carro.

Caminharam devagar, sentindo o corpo a ficar enregelado pelo frio intenso. Um dos guarda-costas empurrou-os com modos rudes. Assim que chegaram junto do carro, o maharishi saltou lestamente para o interior deste. Um dos seus homens colocou-se atrás do volante. Os restantes guardas atiraram Judd e Sofia para o chão e entraram para a viatura atrás dos outros.

O Land Rover começou a mover-se e Judd rodou de modo a poder ver os dois guardas, que começaram a levantar as suas pistolas automáticas. Atirou-se para cima de Sofia, apontou a arma que tinha na manga e disparou. Um dos homens pareceu cair para trás desajeitadamente.

O Land Rover ia quase a cem metros de distância quando o outro guarda fez pontaria em direcção a eles. Judd susteve a respiração e tentou formar com o corpo um escudo protector para Sofia.

Nesse momento sentiu uma estranha deslocação de ar quando o míssil ATW passou, a assobiar, por cima deles.

Um fraco estampido foi seguido de uma tremenda explosão. Apertou-se mais de encontro a Sofia, olhando para o Land Rover. Este estava agora transformado numa bola de fogo que se afastava no sentido oposto a eles. Nesse momento ouviu outro assobio e nova explosão atingiu a bola de fogo, desfazendo-a em pedaços que se dispersaram pelo ar.

Judd ajudou Sofia a pôr-se de pé e ambos começaram a correr em direcção ao elevador. Um momento mais tarde Fast Eddie estava junto deles acompanhado de vários homens.

- Enfia Sofia dentro de alguma coisa quente - gritou-lhe Judd.

Os homens começaram a ajudá-la. Fast Eddie virou-se olhando para Judd.

- O patrão está bem? - perguntou.

- Óptimo - respondeu Judd, arquejando.

- Não tente enganar-me - disse Fast Eddie, sorrindo. - É com Deus que tem estado a falar.

Na manhã seguinte, Judd e Fast Eddie foram ver as raparigas do maharishi a embarcarem no avião. Fast Eddie olhou para o écran do Intertel.

- Merda! - exclamou. - Tanto borrachinho e eu sem tef posto a mão num sequer.

- C'est la vie - observou Judd. Bateram à porta. Fast Eddie foi abrir.

- Posso entrar? - perguntou Sofia. Trazia um pesado casaco de pele no braço.

Sem esperar por resposta, entrou na sala e aproximou-se de Judd.

- Lamento muito - disse.

- Não lamentes o que quer que seja - respondeu ele. -Tudo acabou por correr bem.

- Não, não correu - objectou ela.

- Não compreendo.

Ela tirou uma caixa de Kleenexes de debaixo do casaco e estendeu-a a Judd.

- Isto não vai resultar - afirmou. - Assim como não resultou para Hughes.

- Continuo a não compreender - disse ele.

- Tudo o que tens, tudo o que fizeste - observou ela -" é como se fosse um Kleenex. Não resultará para ti. Mesmo que quisesses ficar aqui sozinho não viverias eternamente, por muito que te esforçasses nesse sentido. Acabarias apenas por morrer sozinho.

Judd permaneceu em silêncio. Sofia fitou-o nos olhos.

- Adeus, Judd Crane - disse. - Falarei aos teus filhos de ti.

Ele ficou a olhar para ela.

- Por que razão te estás a despedir?

- Não me vou embora juntamente com as outras pessoas?

- Não disse que ias - respondeu Judd. - Apaguei as gravações por ti e também desliguei a energia do laboratório. Depois transferi Xanadu para as Indústrias Crane a fim de ser utilizado como centro de pesquisa de medicina nuclear com o nome do doutor Schoenbrun. E agora queres abandonar-me?

- Não disse que o faria - observou Sofia, com um ligeiro brilho de lágrimas nos olhos.

- Então espera - disse ele com toda a simplicidade, agarrando-lhe na mão. - Espera que vamos os dois juntos para casa.

 

                                                                                            Harold Robbins

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades