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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


POR UM TRIZ / Bernard Cornwell
POR UM TRIZ / Bernard Cornwell

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

POR UM TRIZ

 

SIR HENRY FORREST, banqueiro e vereador da cidade de Londres, quase sufocava ao entrar no Press Yard, de tal modo o cheiro era horrível, pior do que o fedor que se exalava dos detritos do esgoto de Fleet Ditch que lentamente escorriam para o Tâmisa. Era um fedor das profundezas dos infernos, um pivete de deixar um homem sem fôlego e de lágrimas nos olhos e que fez que Sir Henry desse involuntariamente um passo atrás e tapasse o nariz com um lenço, sustendo a respiração com receio de não conseguir conter os vômitos.

 

O guia de Sir Henry deu uma risadinha e comentou:

 

- Eu já não noto o cheiro, mas creio que deve ser muito mau, muito mau mesmo. Tenha cuidado com estes degraus, tenha cuidado.

 

Sir Henry afastou relutantemente o lenço do nariz e fez um esforço para falar.

 

- Porque é que chamam a este sítio o Press Yard?

 

- Noutros tempos, era aqui que os prisioneiros eram prensados. Eram espremidos. Punham-lhes pedras em cima para os persuadirem a contar a verdade. Hoje em dia, já não fazemos isso, há mais piedade e, por consequência, eles mentem com quantos dentes têm. - O guia, um dos carcereiros da prisão, era um homem gordo com calções de cabedal, um casaco sujo c munido de um pesado bastão. Soltou nova risada. - Se os interrogar, não há aqui um único homem ou mulher que se considere culpado!

 

Sir Henry evitava respirar fundo para não ter de inalar aqueles miasmas intoxicantes de dejectos, suor e podridão.

 

- Há sanitários aqui? - perguntou.

 

- E bem modernos. Temos um sistema adequado de esgotos aqui em Newgate. Mas eles são uns porcalhões. Conspurcam o seu próprio ninho. - O carcereiro fechou e trancou o portão gradeado por onde tinham entrado no pátio. - Durante o dia, os condenados gozam da liberdade de passear no Press Yard. excepto nos dias festivos e em ocasiões especiais como esta. - Sorriu para dar a entender a Sir Henry que se tratava de um chiste. - Virando à sua esquerda, encontrará os outros cavalheiros que estão na Sala de Convívio.

 

- A Sala de Convívio? - inquiriu Sir Henry.

 

- Onde os condenados se reúnem durante o dia - explicou o carcereiro - E aquelas janelas à sua esquerda são das arcas do sal.

 

Sir Henry viu, ao fundo do comprido pátio, quinze janelas gradeadas distribuídas por três andares. As celas que lhes ficavam por trás chamavam as arcas do sal. Não fazia ideia por que razão as denominavam assim, mas sabia que as quinze arcas do sal eram as celas dos condenados de Newgate. Um dos condenados, o seu olhar um mero lampejo por detrás das grades grossas, olhava fixamente para Sir Henry, que se virou logo que o carcereiro abriu a pesada porta da Sala de Convívio.

 

- Muito agradecido, Sir Henry. - O carcereiro levou a mão à testa ao ser presenteado por Sir Henry com um xelim como recompensa por tê-lo guiado através dos caminhos labirínticos da prisão.

 

Sir Henry foi saudado pelo curador, William Brown, um sujeito lúgubre, calvo e de grande queixada. A seu lado, com um sorriso untuoso, encontrava-se um padre de sotaina e sobrepeliz que usava uma antiquada cabeleira postiça.

 

- Permita-me que lhe apresente o nosso capelão, o reverendo Dr. Horace Cotton - disse o curador. - Sir Henry Forrest.

 

Sir Henry tirou o chapéu.

 

- Um seu criado, Dr. Cotton.

 

- Ao seu serviço, Sir Henry - respondeu o capelão com hipócrita subserviência, após uma grande vénia.

 

- Sir Henry está aqui em missão oficial - informou o curador.

 

- Ah! - O reverendo Cotton abriu desmesuradamente os olhos, como se considerasse estar Sir Henry ali para um acontecimento especialmente agradável - E esta é a sua primeira visita?

 

- A primeira - confirmou Sir Henry.

 

- Várias almas foram já ganhas para Cristo através desta provação

- disse o Dr. Cotton. Sorriu, após o que se curvou numa mesura exagerada quando o curador conduziu Sir Henry para o apresentar aos restantes seis convidados para o tradicional pequeno-almoço de Newgate. O último desses convidados, Matthew Logan, dispensava apresentações, já que ele e Sir Henry eram ambos vereadores da City. O Conselho de Vereadores era o governador oficial da Prisão de Newgate. Logan pegou no braço de Sir Henry e conduziu-o para junto da lareira, onde podiam falar em privado.

 

- Tem a certeza de que quer assistir a isto até ao fim? - perguntou Logan, solícito, ao seu amigo - Você está extremamente pálido.

 

Sir Henry era um homem bem-parecido, alto e elegante, de porte altivo e rosto inteligente. Era um banqueiro rico e bem-sucedido. O cabelo, prematuramente encanecido, já que perfizera cinquenta anos havia poucos dias, conferia-lhe uma aparência distinta; contudo, naquele momento, parecia fraco e envelhecido, com um aspecto doentio.

 

- A estas horas da manhã nunca estou no meu melhor, Logan justificou-se ele.

 

- Certo - concordou Logan -, mas esta experiência não é para toda a gente, embora deva dizer que o pequeno-almoço que se segue é bom. O curador serve rins grelhados com mostarda nos dias de enforcamento. Como vai Lady Forrest?

 

- Florence vai bem. Obrigado por perguntar.

 

- E a sua filha?

 

- Eleanor sobreviverá sem dúvida aos seus problemas - respondeu Sir Henry secamente. - Ainda está por provar que um coração destroçado seja fatal. - Estendeu as mãos para o lume que restava na lareira e que aguardava ser espevitado. - Pobre Eleanor. Se dependesse de mim, Logan, eu deixava-a casar; só que Florence nem quer ouvir falar disso.

 

- As mães geralmente percebem mais dessas coisas - retorquiu Logan displicentemente; depois, o murmúrio das conversas desvaneceu-se, e os convidados voltaram-se todos para uma porta gradeada que entretanto se abrira chiando ruidosamente. Com passos pesados, um homem entrou na sala com um enorme saco de couro. Era entroncado, tinha o rosto avermelhado e envergava calções pretos e casaco preto abotoado, demasiado justo para o seu ventre proeminente, e botinas castanhas de cano de pano. Ao deparar com aquele grupo de cavalheiros, tirou respeitosamente o chapéu surrado.

 

- Aquele ali - sussurrou Logan a Sir Henry - é Mr. James Botting, para os mais íntimos Jemmy, o executor.

 

Sir Henry recordou a si próprio que as pessoas não devem ser julgadas pela sua aparência exterior, embora fosse difícil não se achar desagradável um ser tão horroroso como James Botting, cujo rosto patibular e sanguinolento era ainda desfigurado por verrugas e cicatrizes. Botting atirou o saco de couro para cima de uma mesa, abriu-o e tirou de lá oito rolos de cordel branco que dispôs em fila sobre a mesa. Seguidamente, retirou quatro sacos de algodão, com cerca de trinta centímetros quadrados de área, que colocou ao lado dos rolos de cordel e, finalmente, quatro cordas grossas. Cada corda parecia ter três ou quatro metros de comprimento e apresentava um nó corredio numa ponta e na outra um olhai entrançado. James Botting depositou as cordas sobre a mesa, depois deu um passo atrás.

 

- Bom dia, meus senhores - saudou.

 

- Oh, Botting! - O curador falou num tom de voz que sugeria só nesse momento ter dado pela presença dele. - Um muito bom dia para si.

 

- E está mesmo uma excelente manhã - retorquiu Botting. Não se vê uma única nuvem, Sir. Sempre são só os quatro clientes, Sir?

 

- Só os quatro, Botting.

 

- E eles arrastaram uma grande multidão, isso é que é verdade, uma enorme multidão.

 

- Enorme, enorme - corroborou o curador com ar vago; depois regressou à conversa com um dos convidados para o pequeno-almoço.

 

Logan encarou de novo Sir Henry.

 

- Nós acompanhamos os procedimentos até certo ponto, Sir Henry, mas depois retiramo-nos para saborear os rins grelhados. Nesse momento, fez um gesto com a mão. - Está a ouvir?

 

Sir Henry ouviu o barulho de correntes a arrastarem. O silêncio regressara à sala, e ele sentiu-se tomado por um arrepio de horror.

 

Entrou outro carcereiro. Levou a mão à testa saudando o curador, depois foi colocar-se junto a um cepo de madeira colocado no chão. Este carcereiro trazia consigo um pesado martelo. Entretanto, o xerife e o xerife-adjunto assomaram à porta, introduzindo os prisioneiros na Sala de Convívio. Eram três homens e uma mulher. A última pouco mais era do que uma criança e tinha o rosto pálido e angustiado.

 

- Brandy, Sir? - perguntou um dos criados do curador, surgindo ao lado de Matthew Logan e Sir Henry.

 

- Obrigado - exclamou Logan, pegando em dois dos grandes cálices e oferecendo um a Sir Henry - Aquieta o estômago.

 

O sino da prisão começou subitamente a tocar. A rapariga estremeceu ao ouvir o sino, depois o carcereiro ordenou-lhe que colocasse um pé no cepo de madeira, de forma a poder tirar-lhe as grilhetas. Sir Henry bebeu um gole de brandy, mas receou que ele não se conservasse no estômago. Sentia a cabeça leve, como se não fizesse parte do corpo. O carcereiro bateu com o martelo os rebites da primeira grilheta, e Sir Henry viu que o tornozelo da rapariga estava coberto de feridas.

 

O sino continuava a dobrar a finados, e não iria parar até os quatro corpos serem retirados das cordas. Sir Henry estava consciente do tremor da sua mão.

 

Logan tinha o olhar cravado na rapariga, que tremia, assustada.

 

- Ela roubou o colar de pérolas da patroa e deve tê-lo vendido porque nunca mais o encontraram. O tipo alto ao lado dela é um salteador de estrada. Os outros dois assassinaram um merceeiro em Southwark.

 

Movendo-se desajeitadamente por já não estar acostumada a caminhar sem grilhetas, a rapariga afastou-se da bigorna improvisada. Botting ordenou-lhe secamente que fosse até junto dele.

 

- Bebe isso, se quiseres. - Apontou para um cálice que alguém colocara na mesa ao lado das cordas. A rapariga entornou uma parte porque as suas mãos tremiam, mas bebeu o resto, após o que deixou cair o cálice, que retiniu nas lajes de pedra. - Os braços ao longo do corpo, rapariga - ordenou Botting.

 

- Eu não roubei nada! - protestou ela, chorando.

 

- Silêncio, minha filha, silêncio. - O reverendo Cotton abeirara-se dela entretanto e colocara-lhe uma mão no ombro. - Deus é o nosso refúgio e a nossa força, minha filha, e devemos depositar Nele toda a nossa fé. Estás arrependida dos pecados que cometeste, filha? - inquiriu o capelão.

 

- Eu não roubei nada!

 

Sir Henry teve de respirar fundo por diversas vezes.

 

- Conseguiu ver-se livre daqueles títulos brasileiros? - perguntou a Logan.

 

- Vendi-os a Drummonds - respondeu Logan - Estou-lhe imensamente grato por isso, Henry, imensamente grato.

 

- Agradeça a Eleanor. Ela é que viu um relatório num jornal de Paris e tirou as devidas conclusões. E uma rapariga esperta, a minha filha.

 

- É uma pena isso do noivado desfeito - comentou Logan. Observava entretanto a rapariga condenada, que gritou alto quando Botting lhe atou os cotovelos atrás das costas com um pedaço de cordão, apertando-o tanto que ela gemia de dor.

 

- As mãos para frente, rapariga! - ordenou Botting, e quando ela levantou a custo as mãos, prendeu-lhe os pulsos à frente do corpo.

 

O salteador colocou uma moeda na mesa junto do cálice de brandy.

 

- Assim é que é, rapaz - exclamou baixinho o carrasco. A moeda assegurava que a morte do salteador seria tão rápida quanto estivesse ao alcance de Botting.

 

- Eleanor está muito infeliz - disse Sir Henry, agora de costas voltadas para os prisioneiros. - Eu sei que está.

 

- Sandman era um jovem muito respeitável - comentou Logan.

 

- E continua a ser um jovem muito respeitável - concordou Sir Henry, procurando ignorar o ténue soluçar da rapariga. - Só que praticamente sem futuro agora. E Eleanor não pode contrair casamento numa família caída em desgraça.

 

- Claro que não - corroborou Logan. Sir Henry abanou a cabeça.

 

- E nada disso é culpa de Rider Sandman. Porém, agora não tem um vintém de seu. Completamente falido.

 

Logan franziu a testa.

 

- Mas tem rendimentos, seguramente?

 

Sir Henry abanou de novo a cabeça.

 

- Vendeu o que tinha e dispôs do dinheiro para a sobrevivência da mãe e da irmã.

 

- Mas decerto não faltam pretendentes a Eleanor?

 

- Longe disso. - Henry falava num tom deprimido. - Formam fila na rua, Logan. Mas Eleanor põe defeitos em todos.

 

- Ela é boa nisso - comentou Logan em voz baixa, mas sem malícia, porquanto até simpatizava com a filha do seu amigo, embora a considerasse um tanto mimada. - No entanto, casará em breve, sem dúvida?

 

- Sim, sem dúvida - retorquiu Sir Henry, já que não só a sua filha era atraente como toda a gente sabia que ele doaria um rendimento generoso ao futuro genro, razão pela qual ele próprio se sentia muitas vezes tentado a consentir que ela se casasse com Rider Sandman; porém, a mãe de Eleanor não queria ouvir falar nisso. Florence pretendia que Eleanor tivesse um título, e Rider Sandman, além de não o possuir, agora nem sequer fortuna tinha. As cogitações de Sir Henry a respeito da filha foram interrompidas por um grito lancinante da condenada. Voltou-se e viu que Botting lhe pendurava uma das grossas cordas sobre os ombros e ela esquivava-se ao seu contacto.

 

O reverendo Cotton abriu o seu livro de orações. Todos os prisioneiros estavam agora imobilizados.

 

O xerife e o xerife-adjunto, ambos com as vestes e correntes inerentes às funções e ostentando bengalas com castão de prata, dirigiram-se ao curador, que lhes fez uma vénia antes de entregar ao xerife uma folha de papel.

 

- "Eu sou a ressurreição e a vida ..." - ia recitando o reverendo Cotton - "quem crê em Mim, ainda que esteja morto, viverá ..."

 

O xerife acenou com a cabeça e enfiou o papel num dos bolsos do seu manto debruado a pele. Até então, os quatro prisioneiros tinham estado ao cuidado do curador de Newgate, mas agora passavam para as mãos do xerife da City de Londres. O xerife sacou um relógio do bolso e abriu a tampa do mostrador.

 

- Hora de avançar, acho eu.

 

O xerife abriu a procissão à saída da Sala de Convívio. O reverendo Cotton seguia com uma mão pousada no pescoço da rapariga, guiando-a, ao mesmo tempo que lia alto a oração de finados. Os prisioneiros das celas que davam para o Press Yard soltavam gritos de revolta e de despedida à medida que eles iam passando. O xerife conduziu o cortejo por um lanço de escadas de pedra que descia para a passagem lúgubre que corria por debaixo da prisão principal.

 

- Eu não roubei nada - gritou subitamente a rapariga.


- Silêncio, moça - rosnou o curador. Os homens estavam todos nervosos. Queriam que os prisioneiros cooperassem, e a rapariga estava quase a entrar em histeria.

 

- "Senhor, dai-me a conhecer o meu fim" - rezava o capelão.

 

- Por favor! - implorava a rapariga - Não, não! Por favor. Um carcereiro acercou-se dela para o caso de ela desfalecer, mas ela prosseguiu arrastando os pés.

 

Sir Henry observou os prisioneiros a subirem as escadas ao fim do túnel e arrependeu-se de ter ido.

 

Ao cimo das escadas ficava o átrio, uma câmara de entrada cavernosa que dava acesso à rua chamada Old Bailey. A Porta dos Devedores, que conduzia à rua, estava aberta, mas por ela não passava nenhuma claridade, porquanto o cadafalso fora erguido logo à saída. O ruído da multidão era agora tão intenso que abafava o toque do sino da prisão, porém o sino da Igreja do Santo Sepulcro, que ficava na extremidade da Newgate Street, dobrava também pelas mortes iminentes.

 

- Meus senhores - exclamou o xerife, voltando-se para os convidados do pequeno-almoço -, se fizerem o favor de subir as escadas do cadafalso, encontrarão cadeiras do lado direito e do lado esquerdo.

 

Sir Henry avistou à sua frente o vão escuro do fundo do cadafalso, apoiado em toscas vigas de madeira. As pranchas da frente e dos lados do estrado estavam forradas com espessos panos de baeta preta, pelo que a única claridade provinha das frinchas das tábuas que formavam a plataforma elevada. Uns degraus de madeira conduziam a um pavilhão coberto construído na retaguarda do cadafalso. A cobertura destinava-se a proteger e manter secos os ilustres convidados em dias de tempo inclemente, mas naquele dia o sol brilhava o suficiente para, inclusivamente, levar Sir Henry a piscar os olhos ao emergir no pavilhão.

 

Um enorme aplauso saudou a chegada dos convidados. Ninguém se importava com quem eles eram, mas o seu aparecimento prenunciava a chegada dos prisioneiros. Old Bailey estava pejada de gente. Todas as janelas que davam para a rua se encontravam lotadas, e até havia gente no cimo dos telhados.

 

- Dez xelins pelo aluguel de uma janela - informou Logan. Apontou para uma taberna fronteira ao cadafalso. - Ali a Magpie and Stump dispõe das janelas mais caras porque delas pode avistar-se até o fosso onde eles caem. - Deu uma risadinha de satisfação. - Mas, claro, nós é que desfrutamos da melhor panorâmica.

 

Sir Henry pretendia sentar-se mais atrás, mas Logan ocupara já uma das cadeiras da frente, e Sir Henry teve de sentar-se aí também. Estava assombrado. Tanta gente! Por todo o lado viam-se rostos a olharem lá para o alto, para a plataforma forrada de preto. O cadafalso ficava diante do pavilhão coberto; tinha nove metros de comprimento por cerca de cinco de largura e era sobrepujado por uma viga enorme que ia desde a cobertura do pavilhão até ao final da plataforma. Na face inferior da viga, à qual se encontrava encostada uma escada, estavam cravados uns ganchos de talhante.

 

- Devem ter vindo por causa da rapariga - comentou Logan, cuja satisfação era evidente.

 

"Quão pouco conhecemos os nossos amigos", pensou Sir Henry, que preferia ardentemente ter antes Rider Sandman ali a seu lado. Sempre gostara de Sandman. Sandman fora soldado, e Sir Henry tinha para si que ele decerto não aprovaria que alguém fosse condenado à morte com tanta ligeireza.

 

- Devia permitir que ele a desposasse! - exclamou.

 

- O quê? - Logan teve de levantar a voz porque a turba clamava para que trouxessem os prisioneiros.

 

- Nada - respondeu Sir Henry.

 

Naquele momento, a multidão avistou a rapariga, que vinha a subir as escadas atrás de um carcereiro. A turba soltou um rugido enorme, aterrador, e chegou-se toda à frente. Com o cérebro atordoado, Sir Henry reparou subitamente nos quatro caixões abertos que se encontravam à ponta do cadafalso. A rapariga tinha a boca aberta, e as lágrimas corriam-lhe pelo rosto enquanto Botting a conduzia para cima do alçapão, ao centro da plataforma, que rangeu sob o peso de ambos. Botting tirou do bolso um saco de algodão e enfiou-o pela cabeça da rapariga. Ela gritou e tentou afastar-se de Botting, mas o reverendo Cotton colocou-lhe uma mão no braço, ao mesmo tempo que o carrasco pegava na corda suspensa dos ombros dela e começava a subir a escada. Enfiou então o pequeno olhai num dos ganchos de talhante e voltou a descer a escada. Ajustou o baraço à volta da cabeça dela, apertou o nó corredio junto à sua orelha esquerda, depois deu um pequeno puxão na corda, como para se certificar de que ela aguentaria o seu peso. Ela gritou.

 

Sir Henry fechou os olhos.

 

- "Ensinai-nos a contar assim os nossos dias" - lia o capelão em tom monocórdico - "para que guiemos o coração na sabedoria."

 

- Ámen - exclamou Sir Henry com fervor, com inusitado fervor. Os quatro prisioneiros estavam todos alinhados sobre o alçapão,

 

com os sacos de algodão a cobrir-lhe as caras e os baraços ao pescoço.

 

- Confessai os vossos pecados - exortava o reverendo Cotton. A multidão reclamava silêncio, na esperança de que fossem proferidas algumas últimas palavras.

 

- Eu não fiz nada! - gritou a rapariga.

 

- Vamos lá, Botting! - O xerife queria aquilo concluído depressa. Botting dirigiu-se então para a parte de trás do pavilhão, preparando-se para descer as escadas.

 

Naquele momento, apenas os quatro condenados e o capelão se encontravam expostos à luz do Sol. A rapariga estava agitada e, sob o pano fino de algodão que lhe escondia o rosto, Sir Henry distinguia perfeitamente a sua boca a abrir-se e fechar-se.

 

Debaixo da plataforma, o carrasco abanou a corda ligada ao barrote de madeira que suportava a porta do alçapão. O barrote moveu-se, mas não se deslocou completamente. Sir Henry, sem se dar conta de que sustinha a respiração, viu a porta do alçapão estremecer. A turba soltou um grito de excitação colectiva, que se extinguiu assim que se apercebeu de que os corpos não tinham caído; então, Botting deu um puxão violento à corda e a porta do alçapão desceu completamente, deixando cair os corpos. Foi uma queda pequena, talvez de um metro e meio ou um metro e oitenta no máximo, que não matou nenhum deles.

 

- Era mais rápido quando utilizavam a carroça em Tyburn - explicou Logan, inclinando-se para a frente. - Mas, desta forma, obtém-se mais Morris.

 

Sir Henry não precisou de perguntar o que Logan queria dizer com aquilo. Os quatro baloiçavam, contorcendo-se violentamente. Estavam a realizar a dança Morris do cadafalso, os sacões prenunciadores da morte provocados pelos esforços desesperados dos condenados para se libertarem dos baraços, que os sufocam e impedem de respirar. Sir Henry não observou nada disso porque conservou os olhos fechados. A multidão aplaudia selvaticamente, porque Botting subira entretanto para os ombros do salteador a fim de apressar a sua morte.

 

- O primeiro já lá vai - exclamou Logan enquanto Botting descia do cadáver. - E, por Deus, estou cá com um destes apetites!

 

Dos quatro, três ainda dançavam, mas cada vez mais frouxamente. O salteador morto baloiçava, de cabeça descaída para o lado, quando Botting se içava nos tornozelos da rapariga. De súbito, Sir Henry não conseguiu aguentar por mais tempo aquele espectáculo e, descendo, cambaleante, os degraus do cadafalso, saiu para a protecção escura e fresca do átrio de pedra e vomitou.

 

RIDER SANDMAN levantou-se tarde naquela manhã de segunda-feira, porquanto lhe tinham pago sete guinéus para jogar pelo onze de Sir John Hart contra uma equipa do Sussex. Os vencedores partilhariam entre si um prémio de cem guinéus, e Sandman obtivera sessenta e três pontos no primeiro turno e trinta e dois no segundo; não obstante o onze de Sir John tinha perdido. Isso acontecera no sábado, e Sandman atento ao comportamento dos restantes batedores, apercebera-se de que o jogo fora viciado. Os corretores de apostas tinham sido espoliados porque se esperava que a equipa de Sir John vencesse facilmente ao que não era indiferente o facto de Rider Sandman alinhar por ela mas alguém apostara fortemente no onze do Sussex. Corriam rumores de que ate mesmo Sir John apostara contra a sua própria equipa

 

Por conseguinte, o capitão Rider Sandman, retirado do 52 " Regimento de Infantaria de Sua Majestade, regressara a Londres a pé Regressara a pé porque se recusara a partilhar a carruagem com homens que tinham aceitado um suborno para perderem um jogo. Adorava críquete e era bom jogador, mas detestava corrupção e possuía um temperamento forte. Envolvera-se numa discussão acesa com os seus traiçoeiros companheiros de equipa, e enquanto eles tinham passado aquela noite na confortável mansão de Sir John e viajado confortavelmente para Londres de carruagem na manhã seguinte, ele não fizera nem uma coisa nem outra. Era demasiado orgulhoso

 

Orgulhoso e pobre. Não pudera viajar na diligência porque no meio da fúria, atirara o prémio de jogo à cara de Sir John Hart Por isso, regressara a casa a pé, tendo passado a noite de sábado num palheiro e caminhado todo o dia de domingo até a sola da bota direita quase se ter despegado. Chegara ao seu quarto alugado numas águas-furtadas em Drury Lane já muito tarde, despira-se completamente atara-se para cima da cama estreita e adormecera. Adormecera simplesmente. Na altura em que a porta do alçapão se abrira em Old Bailey, Sandman sonhava ainda, com os ouvidos cheios do fragor de cascos e do troar dos mosquetes e dos canhões. O sonho iria terminar com a carga de cavalaria a romper por entre as filas formadas pelos casacas vermelhas, mas, de repente, o fragor dos cascos transformou-se no rumor de passos apressados e num leve bater à sua porta. Abriu os olhos e, antes mesmo de conseguir dizer alguma coisa, já Sally Hood lhe entrava pelo quarto adentro. Sally riu-se.

 

- Raios, parece que o acordei. Por Deus, Peço imensa desculpa!

- tudo bem, Miss Hood. Que horas são?

 

- Acabam de soar as oito e meia em St. Giles - informou

 

- Oh, meu Deus! - Sandman sentou-se na cama, depois lembrou-se que estava completamente despido. - Está aí uma camisa de dormir pendurada na porta, Miss Hood, importa-se    ? Sally trouxe-lhe a camisa.

 

- Eu estou atrasada - Explicou ela. - o meu irmão Já saiu, e eu tenho de ir trabalhar, e o vestido tem de ser abotoado, entende? - Voltou-se, mostrando o dorso parcialmente nu. - Eu pedia a Mrs. Gunn para mo abotoar, mas há um enforcamento hoje, e ela saiu p'ra ver. Não há problema, pode levantar-se à vontade, eu tenho os olhos cerrados.

 

Sandman levantou-se cautelosamente, já que apenas dispunha de uma área muito limitada, naquele quarto de águas-furtadas, para estar de pé sem bater com a cabeça nas traves do tecto. Era alto, tinha cabelo louro-claro, olhos azuis e rosto comprido e ossudo. Não era propriamente um homem bem-parecido. O rosto era demasiado rude para isso, mas a sua expressão transmitia uma tal confiança e gentileza que dificilmente passava despercebido. Vestiu a camisa de dormir.

 

- Espero que seja um bom emprego - disse ele a Sally.

 

- Não é aquilo qu'eu esperava, porque não é no palco - respondeu Sally. Auto-intitulava-se actriz, embora Sandman, pelo que já observara dela, não achasse que o palco fosse o mais adequado para Sally, cujo comportamento roçava a extrema da respeitabilidade. Mas, como trabalho, não é mau de todo e é respeitável.

 

- Estou certo que sim - retorquiu Sandman. Interrogava-se por que razão ela parecia tão sensível à questão de um emprego respeitável; por sua vez, Sally perguntava a si própria por que motivo Sandman, visivelmente um cavalheiro, tomara de aluguer um quarto numas águas-furtadas da Wheatsheaf Tavern, em Drury Lane. Estaria, sem dúvida, em dificuldades financeiras, mas a Wheatsheaf era reconhecidamente uma hospedaria de má fama, um refúgio para toda a casta de ladrões, desde carteiristas a assaltantes de residências e de lojas, e queria parecer a Sally que o capitão Rider Sandman era de uma honestidade a toda a prova. Era um homem bom, achava Sally. Tratava-a como a uma dama e, conquanto só tivesse falado com ele duas ou três vezes, notara nele uma grande gentileza.

 

- E o senhor, capitão? Trabalha? - perguntou ela.

 

- Ando à procura de emprego, Miss Hood - respondeu Sandman. E era verdade, só que não conseguira ainda encontrar nenhum. Era demasiado velho para começar como amanuense, não tinha qualificações para lidar com leis ou dinheiro e era demasiado escrupuloso para aceitar ser condutor de escravos nas ilhas do açúcar.

 

- Ouvi dizer que o senhor é um excelente jogador de críquete disse Sally. - Pode ganhar-se dinheiro com isso, não pode?

 

- Não tanto quanto eu preciso - retorquiu Sandman. - E estou aqui perante um pequeno problema. Faltam alguns colchetes.

 

- É qu'eu nunca arranjo tempo p'rós coser - explicou Sally. Por isso, faça o melhor que puder. Passe isto por entre os buracos, capitão - disse ela, agitando um lenço de seda esgarçado por cima do ombro. - E já agora, se for descer para o pequeno-almoço, vá depressa, que depois das nove já não encontra nada p'ra morder. A taberna enche-se de gente sempre q'há um enforcamento em Newgate. Dá fome às pessoas. O meu irmão foi p'ra lá. Sempre q'há um enforcamento em Old Bailey, é p'ra lá qu'ele vai. - O irmão de Sally era um jovem misterioso que ia trabalhar a horas estranhas. Ele e Sally tinham dois quartos grandes alugados no primeiro andar da Wheatsheaf. Eles gostam de o ver por lá. Quase sempre conhece um dos pobres infelizes que vão ser torcidos, sabe?

 

- Torcidos?

 

- Enforcados, capitão. Torcidos, pendurados, esticados. Dançar o Morris de Newgate, dançar no palco de Jemmy Botting. Se continuar a viver aqui, vai ter de aprender a linguagem da gente, capitão.

 

- Estou a ver que sim - retorquiu Sandman. E mal começara a entrelaçar o lenço pelos intervalos das costas do vestido quando Dodds, o moço de recados da hospedaria, irrompeu pela porta meio aberta e fez um sorriso malicioso.

 

- Entram-te moscas se não fechares já essa goela imunda - exclamou logo Sally. - Ele só está a abotoar-me o vestido.

 

Dodds ignorou a ameaça e estendeu a Sandman uma folha lacrada.

 

- Uma carta para si, capitão.

 

- Foste muito simpático - disse Sandman. E debruçou-se sobre a sua roupa dobrada a fim de procurar umpenny para dar ao rapaz.

 

Sally afastou a mão de Sandman e arrancou a carta da mão de Dodds. Depois, empurrou-o para fora do quarto e fechou-lhe a porta na cara.

 

Sandman acabou de entrelaçar o lenço de seda por entre os colchetes, após o que deu um passo atrás.

 

- Está com um ar muito atraente, Miss Hood. - O vestido verde-pálido tinha flores, cujas cores jogavam bem com a pele cor de mel de Sally e com o seu cabelo encaracolado, que era tão louro como o de Sandman. Era uma rapariga bonita, de olhos azul-claros e sorriso contagiante.

 

- Acha que sim? Muito obrigada. Agora, feche os olhos, dê três voltas e diga alto três vezes o nome da sua amada antes de abrir a carta.

 

Sandman sorriu.

 

- E isso faz o quê?

 

- Faz que sejam boas notícias, capitão. - Sorriu e foi-se embora.

 

Sandman olhou para a carta, depois fez uma pausa. Sentia-se ridículo, mas fechou os olhos, deu três voltas e disse três vezes alto o nome da sua amada: "Eleanor Forrest." Depois, abriu os olhos, rasgou o selo de lacre vermelho e desdobrou a folha de papel. Leu a carta e tentou ajuizar se seriam ou não boas notícias.

 

Sua Senhoria o Visconde Sidmouth apresentava os seus cumprimentos ao capitão Sandman e solicitava a honra de uma visita ao seu gabinete na primeira oportunidade.

 

A primeira e instintiva reacção de Sandman foi a de considerar que as notícias eram más, que o seu pai devia ter ficado a dever algo ao visconde e que Sua Senhoria escrevia para reivindicar os farrapos patéticos do património Sandman. Porém, tanto quanto era do conhecimento de Sandman, o seu pai nunca travara conhecimento com Lord Sidmouth, e, se isso porventura alguma vez tivesse acontecido, ele decerto não teria deixado de se gabar desse facto, já que era um homem que apreciava a companhia de homens importantes. E poucos homens havia mais importantes do que o Ministro do Interior de Sua Majestade.

 

Por que razão quereria o ministro do Interior avistar-se com Rider Sandman?

 

Só havia uma maneira de descobrir.

 

O VISCONDE SIDMOUTH era todo ele fino: magro, tinha lábios finos, cabelo fino, nariz fino e um maxilar fino que terminava num queixo fino tipo doninha, e a sua voz fina era acutilante, seca e nada afável. Fizera Sandman esperar durante duas horas. Naquele momento, o ministro do Interior fitava, do outro lado da secretária e de testa franzida, o seu visitante. A um canto do gabinete, um relógio de pé de pêndulo tiquetaqueava ruidosamente.

 

- O senhor foi-me recomendado por Sir John Colborne. Fez parte do batalhão de Sir John em Waterloo, não é verdade?

 

- Fiz, sim.

 

Sidmouth soltou uma espécie de grunhido, como se não tivesse em grande apreço os homens que haviam combatido em Waterloo. Podia muito bem ser esse o caso, pois, embora já tivessem passado dois anos sobre as batalhas contra Napoleão, a Grã-Bretanha parecia ainda dividida entre aqueles que tinham lutado contra os Franceses e os que tinham ficado em casa. Sandman suspeitava que estes últimos sentiam ciúmes e gostavam de dar a entender terem sacrificado uma oportunidade de andar por fora em prol da necessidade de manter a prosperidade do país.

 

- Sir John diz-me aqui que procura emprego - comentou o ministro do Interior.

 

- Eu necessito, Vossa Senhoria.

 

- Não dispõe de rendimentos? - perguntou Sebastian Witherspoon, o secretário particular do ministro do Interior, um jovem de faces roliças e olhar penetrante sentado numa cadeira ao lado da secretária do seu superior.

 

- De alguns - respondeu Sandman, que achou melhor não esclarecer que o seu pequeno rendimento provinha de jogar críquete. O visconde Sidmouth parecia não ser homem que aprovasse esse tipo de coisas. - Mas não suficientes - esclareceu Sandman - E a maior parte daquilo que aufiro é para saldar as dívidas do meu pai.

 

Witherspoon franziu a testa e esclareceu:

 

- Legalmente, você não é responsável por nenhuma das dívidas do seu pai, Sandman.

 

- Sou responsável pelo bom nome da minha família - retorquiu Sandman. O pai de Sandman, perante a ameaça de prisão ou de exílio em resultado das enormes dívidas que contraíra, acabara com a própria vida, desgraçando o seu nome e deixando a mulher e a família na ruína.

 

O ministro do Interior inspeccionou longamente Sandman com o seu olhar amargo e disse:

 

- Preciso de um homem para executar uma missão. Mas devo avisá-lo de que é um cargo temporário.

 

Fez um gesto na direcção de um cesto que se encontrava no chão atapetado, à altura da cintura, atulhado de papéis. Uns estavam enrolados, outros dobrados e selados com lacre e alguns via-se que tinham pretensões jurídicas por estarem cintados com fitas vermelhas.

 

- Isso aí, capitão, são petições. Um criminoso condenado pode pedir clemência ao rei ou até o perdão total. Todas as petições vêm ao meu gabinete, e se o crime não for demasiado hediondo e as pessoas de posição se dispuserem a interceder a favor do criminoso, podemos demonstrar alguma clemência. Nós podemos comutar uma condenação à morte para uma de desterro, digamos.

 

- Vossa Senhoria? - perguntou Sandman, admirado com o emprego da palavra "nós".

 

- As petições são dirigidas ao rei - explicou o ministro do Interior -, mas a responsabilidade pela decisão a tomar está a cargo deste gabinete, e as minhas decisões são depois ratificadas pelo Conselho do Rei. - Sidmouth atirou uma petição para as mãos de Sandman. Ocasionalmente, uma petição pode persuadir-nos a investigar os factos em apreço. Nessas raríssimas ocasiões, capitão, nomeamos um investigador. - Fez uma pausa. - Há uma pessoa condenada à morte que já foi julgada e considerada culpada por um tribunal - explicou o ministro. - Não é nossa política desconsiderar a justiça, mas, embora muito raramente, nós também investigamos. Esta petição é um desses casos raros.

 

Sandman desenrolou a petição e leu:

 

- "Deus é minha testemunha em como ele é um bom rapaz e nunca podia ter matado Lady Avebury, porque, como Deus sabe, ele não é capaz de fazer mal a uma mosca sequer." - A carta prosseguia com mais afirmações do mesmo estilo.

 

- A questão diz respeito a Charles Corday - explicou Lord Sidmouth. - A petição, como pode verificar, provém da mãe de Corday, que assina como Cruttwell; o rapaz, porém, parece ter adoptado um nome francês, só Deus sabe porquê. Foi acusado de ter morto a condessa de Avebury. O miserável violou e apunhalou a condessa e merece seguramente ser enforcado. Quando é que está previsto ele ir para o cadafalso? - perguntou, voltando-se para Witherspoon.

 

- De hoje a uma semana - informou Witherspoon.

 

- Nesse caso, para quê investigar os factos? - inquiriu Sandman.

 

- Porque a peticionária, Maisie Cruttwell, é costureira de Sua Majestade a Rainha Charlotte, e Sua Majestade, generosamente, interessou-se pelo caso. - O tom de voz de Lord Sidmouth deixava perceber que sentia ganas de estrangular a mulher do rei Jorge III por ser assim tão generosa. - É meu dever de lealdade garantir a Sua Majestade que não existe a menor dúvida acerca da culpabilidade do miserável. Por conseguinte, escrevi a Sua Majestade informando-a de que vou nomear um investigador, que analisará os factos e garantirá, por conseguinte, que será feita justiça. - Sidmouth apontou um dedo ossudo a Sandman. - Pergunto-lhe se aceita ser esse investigador, capitão.

 

Sandman hesitou. Temia não possuir as qualificações necessárias para a investigação de um crime. Lord Sidmouth tomou aquela hesitação como relutância.

 

- A missão não lhe trará praticamente qualquer incómodo, capitão - comentou com acidez. - O miserável é plenamente culpado, e nós apenas queremos dar satisfação às preocupações femininas da rainha. Um mês de salário pelo trabalho de um dia.

 

Sandman bem necessitava de um mês de pagamento.

 

- Claro que o farei, Vossa Senhoria. Sinto-me muito honrado. Witherspoon levantou-se, sinal de que a audiência terminara, e o

 

ministro do Interior acenou com a cabeça em despedida.

 

- Witherspoon providenciará por que lhe seja entregue uma carta de autorização. E eu fico a aguardar o seu relatório. Um bom dia para si, capitão.

 

Sandman acompanhou o secretário até uma antecâmara onde se encontrava um amanuense a trabalhar à secretária.

 

- Vai demorar um pouco a selar a sua carta - disse Witherspoon -, por isso faça o favor de se sentar.

 

Sandman releu a petição, mas ela não produzia nenhuma argumentação contra os factos apurados. Maisie Cruttwell proclamava a inocência do filho, mas não aduzia qualquer prova em apoio dessa asserção.

 

- Esta carta - Witherspoon derretia agora um pau de lacre à chama de uma vela - confirma que o senhor está a conduzir um inquérito por incumbência do Ministério do Interior e solicita a colaboração de todas as pessoas. Mas tenha presente, capitão, que não temos autoridade legal para as obrigar a tal - acrescentou, ao mesmo tempo que fazia pingar o lacre sobre a carta e pressionava cautelosamente um selo de autenticação sobre o borrão escarlate. - Apenas podemos solicitar que o façam. Mas quer-me parecer que não precisa de se preocupar muito com os seus inquéritos. Não há dúvidas quanto à culpa do homem. Encontra Corday em Newgate e, se for suficientemente enérgico para com ele, não tenho dúvidas de que ele confessará o crime brutal, e a sua missão terminará aí. O que nós não queremos, capitão, é complicar as coisas. Forneça-nos um relatório sucinto que permita ao meu amo tranquilizar a rainha e depois esqueçamos este assunto deplorável.

 

- E se ele estiver inocente? - perguntou Sandman. Witherspoon pareceu ficar estarrecido com a sugestão.

 

- Como é possível estar? Já foi considerado culpado!

 

- Claro que foi - corroborou Sandman, tomando a carta das mãos de Witherspoon. - Sua Senhoria referiu-se a um emolumento.

- Detestava falar em dinheiro por ser assunto muito pouco cavalheiresco. - Seria um grande abuso da minha parte solicitar um adiantamento em dinheiro, Mister Witherspoon? Irão surgir despesas inevitáveis ... - A voz foi-lhe morrendo na garganta, já que lhe era completamente impossível imaginar quais podiam ser essas despesas.

 

Tanto Witherspoon como o amanuense olharam para Sandman como se ele tivesse acabado de deixar cair os calções.

 

- Em dinheiro? - perguntou Witherspoon. Sandman sentiu que corava.

 

- Os senhores querem o assunto resolvido rapidamente e ... - De novo a sua voz foi esmorecendo.

 

- Prendergast - disse Witherspoon ao amanuense -, vá, por favor, ao gabinete de Mister Hodge e peça-lhe para nos adiantar quinze guinéus - fez uma pausa e olhou para Sandman - em dinheiro.

 

O dinheiro apareceu, e Sandman saiu do ministério. "Maldita pobreza", pensou, mas tinha de pagar a renda à Wheatsheaf e havia já três dias que não comia uma refeição decente.

 

Mas agora já podia pagar uma refeição. Uma refeição, um pouco de vinho e uma tarde de críquete. Era uma perspectiva tentadora, mas ele não era homem para se furtar ao trabalho. Ia prescindir da refeição e adiar o críquete.

 

Porque tinha um assassino para visitar.

 

EM OLD BAILEY estavam a desmontar o cadafalso. O tráfego fora autorizado a reiniciar a circulação na rua, pelo que Sandman teve de esgueirar-se por entre carroças e carruagens para chegar à porta da prisão, onde deparou com um porteiro fardado.

 

- Vossa Senhoria procura alguém?

 

- Procuro Charles Corday. O meu nome é Sandman, capitão Sandman, e sou investigador oficial de Lord Sidmouth. Talvez deva apresentar os meus respeitos ao governador?

 

- O curador não lhe agradece os cumprimentos, senhor, pela simples razão de que não são necessários. Pode entrar à vontade para visitar o prisioneiro, senhor. Como é que disse que era o nome dele?

 

- Corday.

 

- E condenado, não é? Então, encontra-o no Press Yard. - O porteiro agarrou na lapela de Sandman para dar ênfase às suas palavras. Ele vai dizer-lhe que não fez nada. Não há aqui um único homem culpado, um único! E o que lhe vão dizer se lhes perguntar. Juram todos que não fizeram nada, mas é claro que fizeram. - Fez um grande sorriso e largou a lapela de Sandman. - Tem relógio? Ah, tem. É melhor não levar lá para dentro seja o que for que possa ser roubado. Fica aqui no armário, fechado à chave. Depois daquela esquina, encontra umas escadas, Sr. Capitão. Desça, atravesse o túnel e siga sempre em frente.

 

Dois carcereiros, ambos armados de bastão, guardavam o portão que dava para o Press Yard.

 

- Charles Corday? - respondeu um deles quando Sandman lhe perguntou onde podia encontrar o prisioneiro. - Não há que enganar. Ele parece uma menina, senhor. É amigo dele, é? - O homem fez um sorriso de orelha a orelha, que logo se lhe apagou perante o modo como Sandman olhou para ele. - Não o vejo aqui no pátio, senhor. O carcereiro fora soldado e, por conseguinte, assumiu instintivamente uma postura respeitosa ante o olhar duro de Sandman. - Portanto, deve estar na Sala de Convívio. É por aquela porta ali, meu senhor.

 

O Press Yard era um espaço acanhado comprimido entre edifícios altos e sombrios. A pouca luz que ali chegava era filtrada por uma floresta de espigões de ferro que coroavam o muro da Newgate Street, para lá do qual um grupo de prisioneiros, facilmente identificável pelas suas grilhetas de ferro, estava reunido com as respectivas visitas. Sandman atravessou o pátio e entrou na Sala de Convívio, um espaço amplo preenchido com mesas e bancos. Um lume de carvão ardia numa chaminé enorme, onde panelões de comida pendiam de um varão de ferro. As panelas estavam a ser mexidas por duas mulheres, que, obviamente, cozinhavam para uma dúzia de pessoas sentadas em redor de uma mesa comprida. O único carcereiro presente na sala, um homem ainda jovem armado de bastão, estava também sentado à mesa, partilhando uma garrafa de gin e a galhofa, que cessou abruptamente assim que Sandman entrou. As outras mesas também se quedaram silenciosas; quarenta ou cinquenta pessoas voltaram-se para mirar o recém-chegado. Havia qualquer coisa em Sandman que exalava autoridade, e aquele não era um lugar onde a autoridade fosse bem-vinda.

 

- Eu procuro Charles Corday! - exclamou Sandman, deixando transparecer na voz o habitual tom de comando. - Corday!

 

- Sim? - A voz que assim respondeu era trémula e provinha do canto mais afastado e mais escuro da sala. Sandman dirigiu-se para lá por entre as mesas e deparou com uma figura patética enroscada e encostada à parede. Charles Corday aparentava pouco mais de dezassete anos e era magro, ao ponto de poder ser considerado uma pessoa frágil. O seu rosto tinha a palidez da morte e era emoldurado por longos cabelos louros que lhe conferiam, efectivamente, uma aparência feminina. Tinha pestanas compridas, um tremor no lábio e uma nódoa negra numa das faces.

 

- És tu Charles Corday? - Sandman antipatizou instintivamente com o jovem, de tão frágil e choramingão.

 

- Sim, meu senhor. - O braço de Corday tremia.

 

- Levanta-te - ordenou Sandman. Corday piscou os olhos, surpreendido, mas obedeceu. - Fui enviado pelo ministro do Interior informou Sandman - e preciso de um sítio sossegado para conversarmos. Talvez possamos utilizar as celas. Como é que vamos para lá? Por aqui ou pelo pátio?

 

- Pelo pátio, meu senhor - respondeu Corday, embora parecesse não ter percebido bem as restantes palavras de Sandman.

 

Sandman conduziu Corday em direcção à porta.

 

- Veio fazer-te umas festinhas de despedida, foi, Charlie? - perguntou um homem com grilhetas nas pernas. Os outros riram-se.

 

Sandman continuou a andar, mas de súbito ouviu Corday gritar. Então, virou-se e viu um homem de cabelo gorduroso e barba por fazer a puxar os cabelos a Corday como se fossem uma trela.

 

- Dá cá um beijo, Charlie - disse o homem.

 

- Larga-o! - ordenou Sandman.

 

- Você aqui não dá ordens, seu idiota - rosnou o homem da barba crescida. - Aqui ninguém dá ordens, por isso pode ... - O homem calou-se abruptamente, depois soltou um grito estranho.

 

Rider Sandman sempre tivera mau génio. Lutava contra isso, mas os seus soldados há muito tinham aprendido que Sandman não era homem para brincadeiras porque o seu temperamento manifestava-se tão repentina e violentamente como uma trovoada de Verão. E era suficientemente forte para erguer no ar o prisioneiro barbudo e projectá-lo de encontro à parede. Depois, o seu punho afundou-se no estômago do homem, levando-o a soltar um grito de dor.

 

- Eu disse para o largares - rugiu Sandman. a voz cheia de promessas de uma violência terrível. A sua mão direita rodeava o pescoço do prisioneiro.

 

Fez-se um silêncio profundo na Sala de Convívio. O carcereiro, tão aterrado com a cólera de Sandman como qualquer dos prisioneiros, atravessou nervosamente a sala.

 

- O senhor está a sufocá-lo.

 

Sandman caiu subitamente em si e largou o prisioneiro.

 

- Venha, Corday - disse Sandman. E saiu silenciosamente da

 

Sandman conduziu um Corday aterrorizado pelo Press Yard em direcção à escada que levava às arcas do sal e subiu à procura de uma cela vazia no primeiro andar.

 

- Entra aí! - E o assustado jovem passou apressadamente pela frente dele, entrando na cela. No chão, havia um tapete de corda que obviamente fazia as vezes de colchão; por debaixo da janela gradeada, empilhavam-se cobertores para cinco ou seis homens, enquanto a um canto um vaso de noite por despejar exalava o seu cheiro pestilento.

 

- Eu sou o capitão Rider Sandman - apresentou-se -, e o ministro do Interior pediu-me para investigar o teu caso.

 

- Porquê? - atreveu-se a inquirir Corday, que entretanto se afundara sobre a pilha de cobertores.

 

- A tua mãe conhece pessoas influentes - respondeu Sandman laconicamente. - A rainha solicitou a confirmação da tua culpa.

 

- Mas eu não sou culpado - protestou Corday.

 

- Já foste condenado - replicou Sandman. - Portanto, a tua culpa não está em causa. - Não conseguia imaginar aquela criatura desprezível a resistir ao seu pedido de uma confissão. Corday era uma figura patética, efeminada, e encontrava-se prestes a romper em lágrimas. As suas roupas, embora desalinhadas, eram modernas e elegantes: calções pretos, meias brancas, uma camisa de folhos branca e um colete de seda azul. tudo roupas caras, segundo parecia a Sandman.

 

- Eu não fiz nada! - insistia Corday. Os ombros estreitos arquejavam, a voz tremia-lhe e as lágrimas corriam-lhe pelas faces pálidas.

 

Sandman não conseguia imaginar-se a espancar um prisioneiro para lhe extrair uma confissão. Era uma atitude indigna e impossível de levar a cabo, o que significava que ia ter de persuadir o infeliz rapaz a contar a verdade. Mas primeiro era necessário fazer que parasse de chorar.

 

- Porque é que te chamas Corday quando o apelido da tua mãe é Cruttwell? - perguntou Sandman, na tentativa de o animar.

 

- Eu sou retratista - retorquiu Corday com alguma arrogância.

- E os clientes preferem que os seus pintores tenham nomes franceses. Cruttwell não é um nome distinto. O senhor entregava a pintura do seu retraio a Charlie Cruttwell quando podia fazê-lo a Monsieur Charles Corday?

 

- Es pintor? - Sandman não conseguia dissimular a sua surpresa.

 

- Sou! - Corday, olhos vermelhos de choro, encarou Sandman com agressividade - Fui aprendiz de Sir George Phillips.

 

- Que tem muito sucesso, não obstante usar um prosaico nome inglês - comentou Sandman com sarcasmo.

 

- Achei que a mudança de nome podia ajudar - retorquiu Corday em tom sombrio. - Isso interessa?

 

- A tua culpa é que interessa - replicou Sandman com severidade. - E, se a confessares, sempre poderás encarar o Criador de consciência limpa.

 

Corday olhou fixamente para Sandman, como se ele tivesse perdido o juízo.

 

- Eu sou culpado de aspirar a mais alto do que a minha posição permitia, mas será que tenho aspecto de um homem com força para violar e matar uma mulher? - Não tinha, efectivamente. Sandman tinha de reconhecê-lo, pelo menos para si próprio, pois Corday era uma criatura insignificante, magra e frágil, que naquele momento estava de novo a chorar.

 

- Pára de chorar, por amor de Deus! - exclamou Sandman em tom ríspido, logo se penitenciando, todavia, por se ter deixado levar pelo seu temperamento. - Peço desculpa - murmurou.

 

Estas duas últimas palavras fizeram que Corday deixasse de chorar. Olhou para Sandman de testa franzida, intrigado.

- Eu não fiz nada - declarou baixinho.

 

- O que foi que se passou então? - inquiriu Sandman.

 

- Eu estava a pintá-la - explicou Corday. - O conde de Avebury queria um retraio da esposa e pediu a Sir George que o fizesse.

 

- Ele pediu a Sir George e, no entanto, eras tu que estavas a pintá-lo? - Sandman parecia céptico.

 

- Sir George bebe - exclamou Corday em tom de desprezo. Começa ao pequeno-almoço e emborca até à noite, o que quer dizer que as mãos lhe tremem. Por conseguinte, ele bebe, e eu pinto.

Sandman perguntou a si próprio se não estaria a ser ingénuo, mas o certo é que achava Corday curiosamente credível.

 

- E pintavas no estúdio de Sir George? - perguntou.

 

- Não. O marido queria que o retraio tivesse como fundo o quarto de dormir dela, por isso pintei-o lá. A ideia era ser um quadro intimista. Estão muito em voga, porque hoje em dia todas as mulheres querem ficar parecidas com Pauline Bonaparte, de Canova.

 

Sandman franziu o sobrolho.

 

- Não estou a entender.

 

- Canova fez um retrato fiel, muito aclamado, da irmã do imperador, e agora Iodas as beldades da Europa querem ser retratadas na mesma pose. A mulher aparece reclinada numa chaise longue, com uma maçã na mão esquerda e a cabeça apoiada na mão direita. Mas o aspecto mais marcante do quadro é o facto de estar nua - explicou Corday.

 

- Nesse caso, a condessa estava nua enquanto a pintavas?

 

- Não. - Corday hesitou, mas depois encolheu os ombros. Ela não sabia que ia ser retratada nua, por conseguinte estava vestida com uma camisa de noite e um roupão. Mais tarde, utilizaríamos um modelo no estúdio para delinear os seios. Eu estava ainda a efectuar o trabalho preliminar, o esboço e os tons. Carvão sobre tela, mas já com algumas cores esboçadas: as cores da colcha, do papel de parede, da pele e do cabelo da dama. Cabra que ela era!

 

Sandman sentiu renascer a esperança, já que as últimas quatro palavras que ele proferira tinham sido malévolas, tal como era de esperar que um assassino falasse da sua vítima.

 

- Não gostavas dela?

 

- Abominava-a! - exclamou Corday com azedume. - Era uma prostituta encoberta. Mas o facto de eu não gostar dela não faz de mim violador nem assassino. Além disso, acha que uma mulher como a condessa de Avebury ia permitir que um aprendiz de pintor estivesse a sós com ela? Ela esteve sempre acompanhada por uma aia durante todo o tempo em que lá estive.

 

- Havia uma aia? - inquiriu Sandman.

 

- Claro que havia. Uma cabra horrorosa chamada Meg.

 

- Então, presumo que Meg tenha deposto no teu julgamento.

 

- Meg desapareceu - retorquiu Corday com ar fatigado. - Na altura do julgamento, não conseguiram encontrá-la, e é por isso que eu vou ser enforcado. Mas estava lá uma aia. - E pôs-se a chorar de novo.

 

Sandman fixou o olhar nas lajes do chão.

 

- Onde é que fica a casa?

 

- Na Mount Street. - Corday estava dobrado ao meio, soluçando. Sandman sentia-se embaraçado pelas lágrimas de Corday, mas

 

prosseguiu, agora movido por uma curiosidade genuína.

 

- E tu admites ter estado na casa da condessa no dia em que ela foi assassinada?

 

- Eu estive lá até quase à altura de ela ter sido assassinada! confirmou Corday. - Havia uma escada nas traseiras, a escada de serviço, e alguém bateu aí à porta. Foi uma batida combinada, um sinal, e a condessa insistiu comigo para sair imediatamente. Por conseguinte, Meg desceu comigo pela escada da frente e acompanhou-me à porta. Tive que lá deixar tudo, as tintas, a tela, tudo, e isso mais convenceu os polícias de que era eu o culpado. Por isso, passada uma hora, apareceram no estúdio de Sir George e prenderam-me.

 

- E onde fica o estúdio?

 

- Na Sackville Street. Por cima do Gray's, joalheiros. - Corday fitava Sandman de olhos vermelhos. - O que é que vai fazer agora?

 

Sandman estava perplexo. Esperara assistir a uma confissão e depois seguir para a Wheatsheaf e escrever um relatório respeitoso. Mas, em vez disso, sentia-se confuso.

 

- Vou fazer averiguações - respondeu secamente, e de súbito, não conseguindo aguentar por mais tempo o mau cheiro, as lágrimas e toda aquela desgraça, deu meia volta e precipitou-se pelas escadas abaixo. Alcançou o ar mais fresco do Press Yard, mas ainda passou por um momento de pânico, temendo que os carcereiros não lhe abrissem o portão de acesso ao túnel. Mas claro que o fizeram.

 

O porteiro abriu o armário e tirou de lá o relógio de Sandman, um Breguet de ouro, oferta de Eleanor. Sandman tentara devolvê-lo juntamente com as cartas, mas ela recusara-se a aceitá-los de volta.

 

- Encontrou o seu homem, capitão? - perguntou o porteiro.

 

- Encontrei.

 

- E não tenho dúvida de que lhe contou uma bela história - comentou o porteiro com uma risada. - Mas há uma maneira simples de se saber quando um criminoso está a dizer mentiras, capitão.

 

- Eu agradecia muito saber qual é.

 

- Eles falam, capitão; é assim que ficamos a saber que nos estão a contar mentiras. - O porteiro achava aquela piada excelente e desatou à gargalhada, enquanto Sandman descia os degraus que davam para a Old Bailey.

 

Parou no passeio, insensível à multidão que percorria a rua. Sentia-se conspurcado pelo contacto com a prisão. Abriu a tampa do Breguet e verificou que pouco passava das 2.30. A inscrição "To Rider In aeternam", mandada gravar por Eleanor no interior do relógio, e a óbvia falsidade da promessa não ajudaram a melhorar-lhe o estado de espírito.

 

Enfiou o relógio no bolso apropriado e encaminhou-se para norte. Estava dividido. Corday fora considerado culpado e, no entanto, a história dele era credível. O porteiro tinha razão, sem dúvida, ao afirmar que toda a gente em Newgate estava convencida da sua própria inocência; contudo, Sandman não era totalmente ingénuo. Comandara uma companhia de soldados com inegável competência e gabava-se de saber distinguir quando é que um homem falava verdade. E se Corday estava inocente, então os quinze guinéus que lhe pesavam no bolso não seriam ganhos nem com rapidez nem com facilidade.

 

Concluiu que precisava de um conselho. Por conseguinte, foi assistir a um jogo de críquete.

 

SANDMAN CHEGOU ao Artillery Ground momentos antes de os relógios da City baterem as 3 horas e o repicar dos sinos abafar momentaneamente os aplausos dos espectadores. A avaliar por esses aplausos e pelos gritos de incitamento, encontrava-se ali reunida uma grande multidão e estaria a assistir-se a uma boa partida. O porteiro fez-lhe sinal para entrar.

 

- Não vou cobrar-lhe nada, capitão.

 

- Mas devias, Joe.

 

- Claro, e o senhor devia estar ali a jogar, capitão. Há muito tempo que não o vemos bater uma bola.

 

- O meu bom tempo já lá vai, Joe.

 

- Ora essa, já lá vai? O seu tempo já lá vai? Ainda nem sequer fez trinta anos. Vá lá, entre.

 

Uma forte vaia recompensou uma fase do jogo na altura em que Sandman se encaminhava para a vedação. A equipa do marquês de Canfield estava a jogar com uma equipa de Inglaterra, e um dos jogadores do marquês acabava de deixar cair uma bola fácil. Sandman lançou uma olhadela ao quadro e verificou que a equipa de Inglaterra, na sua segunda entrada, liderava por apenas sessenta pontos, mas ainda dispunha de quatro batedores.

 

Passou diante das carruagens estacionadas junto da vedação. O marquês de Canfield, de cabelo já todo branco, refastelado no seu landau, de óculo na mão, dispensou um ligeiro aceno de cabeça a Sandman, logo desviando ostensivamente o olhar noutra direcção. Há um ano, antes de o pai de Sandman ter caído em desgraça, o marquês tê-lo-ia saudado de outra forma, mas agora o nome de Sandman estava manchado. Foi então que de outra carruagem uma voz ansiosa chamou:

 

- Rider! Aqui! Rider!

 

A voz era de um jovem alto, ossudo e desengonçado com um fato preto surrado. Fumava um cachimbo de barro que lhe deixava um rasto de cinza pelo colete e pelo casaco. O cabelo ruivo estava a pedir tesoura, porquanto lhe caía pelo rosto narigudo e por cima da gola.

 

- Põe os degraus da carruagem para baixo e sobe - disse a Sandman. - Como vais, meu caro amigo? Devias estar a jogar. E estás com um ar macilento. Andas a alimentar-te bem?

 

- Eu ando - respondeu Sandman. - E tu, como é que estás?

 

- Deus zela por mim; na sua propalada sabedoria, zela por mim.

 

- O reverendo Lord Alexander Pleydell recostou-se no assento. Reparei que o meu pai te ignorou.

 

- Cumprimentou-me com um aceno de cabeça.

 

- Ah, que bondade. É verdade que jogaste para Sir John Hart?

 

- Joguei e perdi - respondeu Sandman com amargura. - Os outros foram todos subornados.

 

- Meu caro Rider! Eu avisei-te acerca de Sir John! O homem é ganancioso. Só quis que tu jogasses para que toda a gente pensasse que a sua equipa era incorruptível. E deu resultado, não deu? Tomas um chá? Claro que tomas. Oh, bem batida! Força, força! - Ele incitava a equipa de Inglaterra - Hughes, meu caro amigo, onde é que estás?

 

O criado particular de Lord Alexander acercou-se da carruagem.

 

- Vossa Senhoria?

 

- Hughes, acho que podíamos arriscar-nos a consumir um bule de chá e um bolo do quiosque de Mrs. Hillman, não achas? - Alexander enfiou dinheiro na mão do criado. - A sério, estás com um ar macilento, Rider, estarás doente?

 

- Com a febre das prisões.

 

- Meu caro amigo! - Lord Alexander pareceu ficar horrorizado.

 

- Febre das prisões? Senta-te, por amor de Deus. - A carruagem oscilou quando Sandman se sentou de frente para o amigo. Haviam frequentado a mesma escola, onde se tinham tornado amigos inseparáveis e onde Sandman, que sempre fora um ás em todos os jogos e por isso considerado um dos heróis da escola, protegera Lord Alexander dos rufiões que achavam que o pé-boto do rapaz justificava fazer dele objecto de troça. Após sair da escola, Sandman iniciara uma comissão na infantaria, ao passo que Lord Alexander, segundo filho do marquês de Canfield, seguira para Oxford, onde, no primeiro ano em que houvera prémios, arrebatara um duplo primeiro lugar. - Não me digas que estiveste preso. - Lord Alexander fitava agora Sandman com ar reprovador.

 

Sandman sorriu e descreveu a sua tarde, embora o relato fosse interrompido constantemente pelas exclamações de Lord Alexander, de aplauso ou crítica ao jogo de críquete, muitas delas proferidas com a boca cheia de bolo.

 

- Devo dizer - comentou, após reflectir sobre a história de Sandman - que considero altamente improvável que Corday seja culpado.

 

- Mas ele foi julgado. .

 

- Meu caro Rider! Meu caríssimo Rider! Alguma vez assististe as sessões de Old Bailey? Claro que não, andavas muito ocupado a atacar os Franceses. Mas eu arrisco-me a afirmar que, no decurso de uma semana, esses juizes julgam cinco casos por dia cada um. Aquela gente não é julgada, Rider. Entram ali completamente ofuscados na Sala de Audiências, são tratados como gado e empurram-nos de lá para fora já algemados! Aquilo não é justiça!

 

- Mas, com certeza, alguém os defende?

 

- Qual é o advogado que vai defender um jovem qualquer, sem nada de seu, que roubou um carneiro?

 

- Corday não é tão pobre assim.

 

- Mas aposto que não é rico. Oh, bem batida, Budd, bem batida! Corre, homem, corre! - Lord Alexander voltou a levar o cachimbo à boca.'- Trata-se de um sistema perfeitamente pernicioso - disse entre duas baforadas. - Sentenciam uma centena de pessoas à forca e depois só matam dez porque comutam a pena às restantes. E como é que se obtém uma comutação de pena? Ora, porque há um fidalgo ou um pároco ou um nobre que assina uma petição. Estás a compreender o que se passa na realidade, Rider? A sociedade, ou seja, as pessoas respeitáveis, tu e eu, arranjou uma forma de manter as classes mais baixas sob o seu controle. Fazemos que dependam da nossa complacência. Condenamo-las à forca, depois poupamos-lhes a vida e esperamos que nos fiquem gratas. Gratas! É pernicioso, é o que é. - Lord Alexander estava agora muito fatigado. Esfregava as suas mãos compridas uma na outra. Depois, surgiu-lhe uma ideia brilhante. - Eu e tu, Rider, havemos de ir assistir a um enforcamento!

 

- Não! .    , .

 

- É o teu dever, meu caro amigo. Agora, que es um funcionário deste Estado opressivo, tens de inteirar-te da brutalidade que aguarda essas almas inocentes. Vou escrever ao curador de Newgate a pedir que nos seja concedido acesso privilegiado, a ti e a mim, à próxima execução. Oh, mudança de lançador! Dizem que este fulano é perito em lançar bolas retorcidas. E, a propósito, vi Eleanor no sábado passado - disse Lord Alexander com a sua proverbial falta de tacto.

 

- Espero que estivesse bem de saúde.

 

- Estou certo que sim, mas acho que me esqueci de lhe perguntar. Mas estava com bom aspecto. Perguntou por ti, agora me lembro.

 

- Perguntou?

 

- E eu respondi não duvidar de que estarias em boa forma, bla e eu encontrámo-nos no Salão Egípcio. Eleanor deu-me um recado para ti.

 

- Deu? - O coração de Sandman bateu mais depressa. O seu noivado com Eleanor podia estar desfeito, mas ele ainda a amava. Qual foi?

 

- Qual foi? Perguntas bem. - Lord Alexander franziu a testa. Varreu-se-me da memória, Rider, varreu-se-me completamente. Meu Deus, mas não devia ser nada de importante. E essa condessa de Avebury? - exclamou, estremecendo o corpo todo.

 

- O que é que tem Sua Senhoria? - perguntou Sandman, sabendo ser inútil tentar retomar a conversa acerca do recado esquecido de Eleanor.

 

- Senhoria! Bah! Essa leviana - comentou Lord Alexander. Depois, recordando-se da sua condição, emendou: - Pobre mulher. Se alguém a queria ver morta, acho que era o marido. O infeliz deve ter a cabeça pesada de tantos cornos!

 

- Achas que foi o conde que a matou? - perguntou Sandman.

 

- Eles estavam separados, isso não constitui já uma indicação?

 

- Separados? - Sandman ficou surpreso, pois juraria que Corday afirmara ter sido o conde quem encomendara o retraio da esposa. Ora, porque havia ele de o fazer se estavam separados? - Tens a certeza?

 

- Soube pela mais qualificada das fontes - respondeu Lord Alexander. - Sou amigo do filho e herdeiro do conde, Christopher. Ele andava no Brasenose College quando eu andava no Trinity, depois saiu para ir para a Sorbonne. A falecida era, obviamente, madrasta de Christopher.

 

- Ele falou-te dela?

 

- Toda a gente se odiava naquela família, posso assegurar-te. O pai desprezava o filho, o pai odiava a mulher, a mulher detestava o marido e o filho, pensava o pior possível dos dois. Pode mesmo dizer-se que o conde e a condessa de Avebury constituíam o exemplo acabado dos perigos da vida doméstica. Oh, bem batida! Boa, homem! Rápido, rápido!

 

Sandman bebeu um gole do seu chá.

 

- Corday afirma que foi o conde quem encomendou o retraio. Porque faria ele isso se estavam separados?

 

- Tens que perguntar-lhe a ele - retorquiu Lord Alexander. Mas quer parecer-me que Avebury, embora ciumento, ainda eslava enamorado dela. Ela era reconhecidamente uma bela mulher, e ele, visivelmente um idiota. Mas, repara, eu duvido de que tenha sido o próprio marido a desferir-lhe o golpe fatal. Até mesmo Avebury é suficientemente sensato para ter contratado alguém para fazer esse trabalho sujo.

 

- O filho dele ainda está em Paris?

 

- Já voltou. Encontro-o de tempos a tempos.

 

- Podias apresentar-mo?

 

- O filho de Avebury? Acho que sim.

 

O jogo acabou pouco depois das 8, tendo a equipa do marquês saído derrotada quando só necessitava de noventa e três pontos para ganhar. A derrota agradou a Sir Alexander, mas deixou Sandman desconfiado de que o suborno teria uma vez mais influenciado o desfecho da partida. Contudo, não poderia prová-lo, e Lord Alexander escarneceu dessa hipótese.

 

- Ainda estás hospedado na Wheatsheaf? Sabes que é uma hospedaria de má fama?

 

- Só soube disso agora - admitiu Sandman.

 

- Porque não vamos lá jantar? É uma oportunidade de eu aprender alguma coisa sobre o mundo do crime de Londres e a sua gíria. Hughes! Reúne os cavalos da carruagem e avisa Williams de que vamos até Drury Lane.

 

Lord Alexander aprendeu a gíria e comprou as palavras que aprendeu pagando rodadas de cerveja e gin. Só saiu bastante depois da meia-noite, e foi por essa altura que chegou Sally Hood pelo braço do irmão. Passaram diante de Lord Alexander, que se encontrava junto da sua carruagem agarrado a uma roda para conseguir manter-se de pé. Ele ficou a olhar para Sally de boca aberta, completamente estarrecido.

 

- Estou apaixonado, Rider - exclamou, um pouco alto demais. Sally olhou para trás e presenteou Sandman com um sorriso estonteante.

 

Lord Alexander não despegou o olhar de Sally até ela desaparecer pela porta de entrada da Wheatsheaf.

 

- Fui atingido pela seta de Cupido. - Cambaleando, quis seguir atrás de Sally, mas o seu pé-boto tropeçou no empedrado e estatelou-se ao comprido. - Quero casar com aquela dama! - exclamou ele do chão. De facto, estava tão embriagado que não se aguentava de pé, mas Sandman, Hughes e o cocheiro lá conseguiram enfiá-lo na carruagem, que se afastou matraqueando as pedras da calçada.

 

A MANHÃ SEGUINTE apresentou-se chuvosa. Sandman estava com dores de cabeça e foi fazer chá no fogão da sala das traseiras, onde os inquilinos eram autorizados a aquecer água. Sally surgiu, apressada, encheu uma caneca de água e sorriu.

 

- Ouvi dizer que você 'tava muito feliz ontem à noite.

 

- Bom dia, Miss Hood - murmurou Sandman. Ela riu-se.

 

- Quem era aquele aleijadinho com quem 'tava ontem à noite?

 

- É meu amigo, o reverendo Lord Alexander Pleydell, segundo filho do marquês de Canfield.

 

Sally olhou fixamente para Sandman.

 

- Ele disse que estava apaixonado por mim. Sandman tivera esperança de que ela não tivesse ouvido.

 

- E sem dúvida que, quando ele estiver sóbrio, Miss Hood, continuará apaixonado por si.

 

Sally riu-se ante a resposta diplomática de Sandman.

 

- Ele é mesmo sacerdote? Não anda vestido como é costume.

 

- Recebeu as ordens depois de sair de Oxford - explicou Sandman. - Mas nunca procurou ocupação. Não necessita de paróquia nem de nenhuma outra espécie de emprego, pois é bastante rico.

 

- E é casado? - perguntou Sally com um sorriso malicioso.

 

- Não - respondeu Sandman, sem acrescentar que Alexander se apaixonava regularmente por todas as caixeiras bonitas que encontrava.

 

- Ora, há bem pior do que um padre aleijado, não é verdade? disse Sally, que logo se arrepiou ao ouvir um relógio bater as 9. Deus do céu, estou atrasada. - E saiu correndo.

 

Sandman envergou o seu capote e dirigiu-se para a Mount Street. Dispunha de seis dias para descobrir a verdade e resolveu começar pela aia desaparecida, Meg. Se ela existisse realmente, podia confirmar ou desmentir a versão do pintor. Quando alcançou a casa onde o assassínio fora cometido, Sandman estava encharcado até aos ossos.

 

Era fácil identificar a residência urbana do conde de Avebury, pois, mesmo com o tempo que fazia, estava uma vendedeira de folhas volantes agachada debaixo de uma lona, na esperança de continuar a poder vender os seus folhetos mesmo diante da porta da casa do crime.

 

- A história do crime - disse, saudando Sandman. - É só um penny.

 

- Dê cá uma. - Ela tirou uma folha de dentro do seu saco de lona, após o que Sandman subiu os degraus e bateu ao de leve na porta. As janelas da casa estavam fechadas.

 

- Não está ninguém em casa - informou a vendedeira.

 

- Mas é esta a casa do conde de Avebury, não é?

 

- É sim.

 

Nesse preciso instante, a porta da casa ao lado abriu-se e surgiu na soleira da porta uma mulher de meia-idade. Encolheu-se ao ver a chuva e depois abriu o seu chapéu.

 

- Minha senhora! - interpelou Sandman.

 

- Sim? - A modesta indumentária da mulher indicava tratar-se de uma serviçal.

 

Sandman tirou o chapéu.

 

- Desculpe, minha senhora, mas acontece que fui encarregado por Lord Sidmouth de investigar os tristes acontecimentos que tiveram lugar aqui. É verdade que havia nesta casa uma aia chamada Meg?

 

A mulher confirmou com um aceno de cabeça.

 

- Havia sim, senhor, havia.

 

- Sabe onde ela está agora?

 

- Eles foram-se embora. Para o campo, meu senhor, julgo eu. Fez uma vénia a Sandman, na esperança de assim o persuadir a partir.

 

- Para o campo?

 

- Foram-se embora. E o conde tem uma casa no campo, meu senhor, perto de Marlborough.

 

Sandman ainda lhe fez mais umas quantas perguntas, mas parecia evidente que pouco mais havia a descobrir ali na Mount Street, portanto foi-se embora.

 

MUITO EMBORA Lord Alexander escarnecesse da justiça inglesa, Sandman sentia dificuldade em perfilhar uma opinião tão pessimista. Passara a maior parte da última década a combater pelo seu país. Para Sandman era impensável um cidadão inglês livre não ter um julgamento justo. Porém, Meg existia, sem dúvida. Isso vinha confirmar parte da versão de Corday e lançar algumas dúvidas na crença firme de Sandman sobre a justiça inglesa.

 

Estava em Burlington Gardens, dirigindo-se para leste, quando verificou que o fim da rua estava bloqueado por uma carroça de pedreiro; por conseguinte, virou para a Sackville Street, onde deparou com uma pequena multidão abrigada da chuva debaixo do toldo da joalharia Gray's. O nome avivou a memória a Sandman.

 

Corday referira que o estúdio de Sir George Phillips ficava ali. Sandman parou e olhou para cima, para lá do toldo, mas não conseguiu descortinar nada nas janelas que ficavam por cima da loja. Então, voltou um pouco atrás e descobriu uma porta ao lado da loja, mas completamente separada da joalharia, guarnecida com uma lustrosa aldraba de latão. Levantou a aldraba e bateu-a com força.

 

Um pajem negro, de treze ou catorze anos, veio abrir a porta. Usava uma farda surrada e uma cabeleira postiça.

 

- É aqui o estúdio de Sir George Phillips? - perguntou Sandman.

 

- Se não tiver marcação, n'é bem-vindo - disse o rapaz.

 

- Eu tenho marcação - retorquiu Sandman em tom arrogante. Da parte do visconde Sidmouth.

 

- Quem é, Sammy? - inquiriu uma voz do cimo das escadas.

 

- Ele diz que vem da parte do visconde Sidmouth.

 

- Então, manda-o entrar! Não é que gostemos muito de pintar políticos, mas sempre podemos cobrar mais caro a esses piratas.

 

- Quer dar-me o seu casaco, meu senhor? - pediu o rapaz, fazendo uma vénia displicente.

 

- Fico com ele vestido. - Sandman atravessou o pequeno vestíbulo, decorado com um bonito papel de riscas e de cujo tecto pendia um pequeno candelabro. Mas, à medida que Sandman subia as escadas, a elegância foi ficando contaminada pelo intenso cheiro a aguarrás. A dependência do primeiro andar era o salão onde Sir George exibia as suas obras já completas, mas que ele convertera também num depósito de quadros inacabados, paletas com tinta seca, pincéis já gastos e trapos. Um segundo lanço de escadas levava ao andar do topo, e Sammy fez sinal a Sandman para prosseguir e perguntou:

 

- O senhor deseja café? Ou prefere chá?

 

- Agradeço um chá.

 

O tecto do andar de cima fora removido, deixando à vista os barrotes do telhado, e tinham sido instaladas clarabóias. O centro do estúdio era dominado por uma salamandra negra que servia de mesa a uma garrafa de vinho e um copo. Junto da salamandra, encontrava-se um cavalete que suportava uma tela gigantesca, enquanto no canto mais distante da sala se erguia um estrado onde posavam um oficial da Marinha juntamente com um marinheiro e uma mulher. A mulher deu um grito ao ver Sandman, após o que agarrou rapidamente numa toalha de mesa que cobria uma arca de chá.

 

Era Sally Hood. Tinha na mão um tridente, na cabeça um elmo e nada mais, embora as ancas e as coxas se encontrassem meio encobertas por um escudo oval de madeira onde fora desenhada apressadamente a bandeira da União. Ela representava a Britannia, segundo depreendeu Sandman.

 

- O senhor está a dar um festim aos seus olhos ao contemplar os seios de Miss Hood. E porque não? No tocante a seios, estes são esplêndidos - disse o homem ao lado do cavalete.

 

- Capitão - saudou Sally num fiozinho de voz.

 

- Um seu criado, Miss Hood - respondeu Sandman, fazendo uma vénia.

 

- Deus Todo-Poderoso! - exclamou o pintor. - O senhor veio para me ver a mim ou a Sally? - Era gordo como um barril de cerveja, tinha queixo duplo e uma barriga sobre a qual se esticava uma camisa de folhos manchada de tinta. O cabelo branco estava cingido por um desses gorros apertados que se usam por debaixo da cabeleira.

 

- Sir George? - perguntou Sandman.

 

- Ao seu serviço, meu senhor. - Sir George tentou fazer uma vénia, mas era tão gordo que mal conseguia dobrar-se - É bem-vindo desde que seja para fazer uma encomenda. Foi o visconde Sidmouth quem o enviou ?

 

- Ele não pretende ser pintado, Sir George.

 

- Nesse caso, pode pôr-se a mexer daqui para fora!

 

Sandman ignorou a sugestão; pelo contrário, pôs-se a examinar atentamente o estúdio.

 

Estavam dois jovens, um de cada lado de Sir George, pintando ondas na tela, e Sandman calculou que fossem aprendizes. Quanto à tela, que teria pelo menos três metros de largura, mostrava um rochedo solitário no meio de um mar iluminado pelo sol onde flutuava uma esquadra ainda inacabada. No cimo da rocha, sentado, encontrava-se um almirante, tendo a seu lado um jovem bem-parecido vestido de marinheiro e Sally Hood, despida, como Britannia. Sandman reparou depois que o jovem que posava como almirante envergava um uniforme debruado a ouro e tinha a manga direita vazia pregada ao peitilho do casaco.

 

- O verdadeiro Nelson já morreu, por isso temos de servir-nos aqui do jovem Master Corbett - explicou Sir George, que parecia ter adivinhado os pensamentos de Sandman. - Por amor de Deus, Sally, pára de te esconderes.

 

- O senhor não 'tá a pintar, por isso bem posso cobrir-me - replicou Sally, que deixara cair a toalha cinzenta e, no seu lugar, envergava agora o casaco de sair à rua.

 

Sir George pegou no pincel.

 

- Pronto, agora já estou a pintar - rosnou. - De repente, ficou importante demais para mostrar as maminhas, é? - Sir George voltou-se para Sandman. - Ela já lhe falou do que arranjou? Aquele que é todo mesuras para com ela? Em breve, vamos todos ter de lhe beijar os pés, não vamos?

 

- Ela não lhe mentiu - afirmou Sandman. - Ele existe, conheço-o, está de facto enamorado de Miss Hood e é imensamente rico. Suficientemente rico para poder encomendar-lhe uma dúzia de retratos.

 

Sally lançou-lhe um olhar de pura gratidão, enquanto Sir George, desconcertado, molhou o pincel na tinta da paleta.

 

- Quem diabo é você, afinal? - perguntou a Sandman.

 

- O meu nome é Rider Sandman e sou capitão.

 

- Da Marinha, do Exército, miliciano, de cavalaria, ou isso de capitão não passa de fantasia?

 

- Estive no Exército - retorquiu Sandman.

 

- Então, podes descobrir-te - exclamou Sir George, dirigindo-se a Sally -, porque o capitão foi soldado, o que quer dizer que já viu mais tetas do que eu.

 

- Mas não viu as minhas - retorquiu Sally, apertando o casaco

 

sobre o peito.

 

Sir George deu um passo atrás para examinar a sua obra.

 

- A Apoteose de Lord Nelson, encomendada por Suas Senhorias os Lordes do Almirantado. Sammy! - berrou Sir George. - Onde está esse chá? Será que ainda vais plantar o raio das folhas? Traz-me um pouco de brandy. - Olhou para Sandman com ar inquiridor. Afinal, o que quer de mim, capitão?

 

- Falar acerca de Charles Corday.

 

- Oh, pelo Santo Cristo - blasfemou Sir George. - Charles Corday? - proferiu em tom solene. - Sally, pelo amor de Deus, posa como és paga para fazer!

 

Sandman voltou cortesmente as costas enquanto ela deixava cair o casaco.

 

- O ministro do Interior solicitou-me que investigasse o caso de Corday.

 

Sir George soltou uma gargalhada.

 

- A mãe dele tem andado a lamentar-se junto da rainha. Tem sorte o pequeno Charlie. Quer saber se foi ele quem fez aquilo?

 

- Ele disse-me que não foi.

 

- Dificilmente ele confessaria, não acha? - comentou Sir George. - No entanto, é provável que esteja a falar verdade. Pelo menos, quanto à violação.

 

- Ele não a violou?

 

- Seria contra a natureza dele. - Sir George lançou a Sandman um sorriso malicioso. - O nosso Monsieur Corday, capitão, é uma borboleta.

 

- Borboleta? Sim, não interessa. Acho que sei o que quer dizer. Sir George riu-se perante a expressão de Sandman.

 

- Eles também enforcam uma pessoa por ser um desses maricas asquerosos, por isso não faz grande diferença a Charlie ser culpado ou inocente do crime, não é assim?

 

Sammy apareceu com uma bandeja com várias chávenas desirmanadas, um bule de chá e uma garrafa de brandy. O rapaz serviu o chá a Sir George e a Sandman, mas apenas Sir George foi presenteado com um cálice de brandy.

 

- Tem a certeza do que diz? - indagou Sandman.

 

- Claro que tenho a certeza. Podíamos despir Sally completamente que ele nem se dignava olhar. No entanto, estava sempre a tentar pôr as patas em cima aqui do Sammy, não é verdade, Sammy?

 

- Eu disse-lhe para se pôr a milhas - respondeu Sammy.

 

- Bem dito, Samuel! - retorquiu Sir George. Pousou o pincel e bebeu o brandy de um trago - E o senhor, capitão, está a pensar porque é que eu consenti em deixar entrar uma pessoa dessas neste templo de arte, não é verdade? Porque Charlie era mesmo bom. Desenhava maravilhosamente, capitão, desenhava como o jovem Rafael. Era um prazer vê-lo. E pintava tão bem quanto desenhava. O retraio da condessa deve estar para aí, se quiser ver como ele era bom. - Apontou na direcção de umas quantas telas encostadas a uma mesa. - Procura-o, Barney - ordenou a um dos seus aprendizes.

 

- Porque foi que o deixou pintar o retraio da condessa? - inquiriu Sandman.

 

Sir George riu-se.

 

- Deixe-me adivinhar. Ele disse que eu bebia, por isso teve de ser ele a pintar Sua Senhoria?

 

- Sim - admitiu Sandman.

 

Sir George levou o caso para a brincadeira.

 

- O sacaninha mentiroso.

 

- Mas então porquê? - insistiu Sandman.

 

- Pense bem, capitão - disse Sir George. - Porque, quando a leia voltasse para aqui, nós íamos pintar a dama nua. Era isso que o conde pretendia. Mas algum homem pendurava um quadro desses no seu salão para deleite dos amigos? Não. Ou o pendurava no seu quarto de vestir ou no seu escritório particular, onde ninguém o pudesse ver, a não ser ele próprio. E para que é que isso me servia? Quando eu pinto um quadro, capitão, quero que Ioda a cidade de Londres possa admirá-lo. Quero ver as pessoas a formar fila por aquelas escadas acima para virem pedir-me para pintar-lhes um igual. Eu pinto os quadros que dão dinheiro, Charlie encarregava-se dos quadros para a intimidade.

 

O aprendiz ia entretanto virando as leias, e subitamente Sandman pediu-lhe para parar.

 

- Deixe-me ver esse - exclamou, apontando para um retraio de corpo inteiro.

 

O aprendiz retirou-o do monte e colocou-o sobre uma cadeira, de forma que sobre ele recaísse a luz de uma das clarabóias. Mostrava uma jovem sentada a uma mesa, de cabeça bem erguida, no que era quase uma pose agressiva. Tinha o cabelo ruivo apanhado ao alto, revelando um pescoço longo e esguio circundado por safiras. Envergava um vestido azul e prata, com renda branca na gola e nos punhos. Os seus olhos como que saltavam da tela, filando-nos resolutamente e reforçando a sugestão de altivez, só atenuada pela sensação de que estaria prestes a sorrir.

 

- Essa aí - exclamou reverentemente Sir George - é uma jovem extremamente inteligente. Gosta, capitão?

 

- É ... - Sandman fez uma pausa - é maravilhoso - disse em voz fraca.

 

- É, de facto - exclamou Sir George com entusiasmo, deixando Nelson para vir admirar aquela jovem cujo cabelo ruivo fora penteado de forma a exibir a testa alta e larga, cujo nariz era recto e longo, cuja boca era ampla e generosa e que fora pintada numa sala luxuosamente mobilada, tendo por fundo uma parede coberta pelos retratos dos seus antepassados, embora, na verdade, o seu pai fosse filho de um boticário, e a mãe, filha de um pároco. - Miss Eleanor Forrest. O nariz é demasiado comprido, o queixo demasiado proeminente, os olhos mais separados do que o convencionalmente ideal e a boca demasiado exuberante; contudo, o resultado final é extraordinário, não é?

 

- É, de facto - exclamou Sandman com fervor.

 

- De todos os atributos desta jovem - Sir George abandonara entretanto o modo jocoso de se exprimir e falava agora com um entusiasmo genuíno -, é a sua inteligência que eu mais admiro. E receio bem que seja mal empregada naquele casamento.

 

- Ela vai casar-se? - Sandman teve de fazer um esforço para evitar que a voz lhe traísse os sentimentos.

 

- As últimas notícias que ouvi dão-na como a futura Lady Eagleton - informou Sir George, regressando ao seu Nelson. - Contudo, Miss Eleanor é demasiado sagaz para se casar com um idiota como Eagleton - comentou Sir George com desdém. - Mal empregada.

 

- Eagleton? - Sandman sentia-se como se uma mão fria lhe apertasse o coração. Teria sido esse o teor do recado esquecido por Lord Alexander? Que Eleanor estava comprometida com Lord Eagleton?

 

- Lord Eagleton, herdeiro do conde de Bridport e um sensaborão. Um sensaborão, capitão, e eu detesto sensaborões. Burney, vê lá se encontras a condessa.

 

O aprendiz prosseguiu na sua busca. Sandman espreitava, de olhar perdido, pelas janelas da frente, que davam para a Sackville Street. Estaria Eleanor, efectivamente, prestes a casar? Havia mais de seis meses que não a via e era bem possível. A mãe, pelo menos, andava cheia de pressa de ver Eleanor a caminho do altar, pois já completara vinte e cinco anos e, em breve, entraria no grupo das solteironas encalhadas. "Raios!", exclamou Sandman para si próprio.

 

- Aqui está. - Barney, o aprendiz, colocou um quadro inacabado por cima do retraio de Eleanor. - A condessa de Avebury.

 

"Outra beldade", pensou Sandman. A pintura mal estava começada; no entanto, era já estranhamente impressionante. Era o esquisso a carvão de uma mulher reclinada num leito. Corday pintara então troços do papel de parede, do tecido do dossel da cama, da colcha, do tapete, do rosto da mulher. Colorira ligeiramente o cabelo, dando-lhe um toque de rebeldia, como se a condessa se encontrasse ao ar livre, exposta ao vento, e conquanto o resto do quadro ainda mal tivesse sido trabalhado, estava já surpreendente e cheio de vida.

 

- Oh, ele sabe pintar, o nosso Charlie sabe pintar. - Sir George, limpando as mãos a um pano, viera, também ele, admirar o quadro.

 

- É fiel, o retrato?

 

- Oh, sim - confirmou Sir George, acenando com a cabeça. Sim, sem dúvida. Ela era uma beldade, capitão. Uma mulher que fazia virar as cabeças. Mas saíra da sarjeta; era bailarina de ópera, e Avebury foi um idiota. Podia ter feito dela sua amante, mas nunca ter casado com ela.

 

- Você referiu que foi o próprio conde de Avebury quem encomendou o retrato, não foi? - perguntou Sandman. - Porém, ouvi dizer que ele e a mulher estavam separados.

 

- Assim consta - retorquiu Sir George distraidamente, após o que soltou uma gargalhada malévola. - Ele foi seguramente encornado. A condessa gozava de uma certa reputação, que não era seguramente a de consolar os aflitos.

 

- O que levaria então um homem separado da mulher a gastar uma fortuna com o seu retrato? - inquiriu Sandman.

 

- O que faz mover as pessoas, capitão, é um mistério, até mesmo para mim - afirmou Sir George. - Terá de perguntar isso a Sua Senhoria. Julgo que ele vive perto de Marlborough, no entanto tem reputação de viver em reclusão, pelo que suspeito que vá perder o seu tempo numa viagem dessas. Talvez ele pretendesse vingar-se dela? Ninguém se faz valer mais do seu título do que uma prostituta elevada à condição de nobre, capitão, portanto porque não fazer recordar a essa cabra quem lhe proporcionou tal estatuto? Ah! - Esfregou as mãos ao ver o seu criado a subir as escadas com uma pesada travessa. - Jantar! Um bom dia para si, capitão; espero ter-lhe sido útil.

 

Sandman não tinha a certeza de Sir George lhe ter sido de alguma utilidade, a menos que fosse considerado útil aumentar a confusão que lhe ia no espírito.

 

- AQUELE MALANDRO gordo nunca nos oferece de jantar! - desabafou Sally Hood. Estava sentada diante de Sandman num botequim de Piccadiíly, partilhando com ele um jarro de cerveja e uma tigela de salmagundi: uma salada fria composta por carne cozida, anchovas, ovos cozidos e cebolas. Sally partiu um pedaço de pão, depois lançou um sorriso envergonhado a Sandman. - Fiquei tão embaraçada quando o vi entrar no estúdio.

 

- Sem necessidade - retorquiu Sandman.

 

Ao sair do estúdio de Sir George, convidara Sally a acompanhá-lo. Tinham corrido debaixo de chuva e vindo abrigar-se no Três Navios. Sally pôs sal na tigela e mexeu vigorosamente a salada.

 

- Eu sei que aquilo não é representar - explicou. - Mas é dinheiro, não é? E eu não devia ter falado do seu amigo. Senti-me uma idiota. Mas não quero fazer isto toda a vida. Já tenho vinte e dois anos e vou ter que arranjar qualquer coisa dentro de pouco tempo. É bom quando a vida nos corre bem. Há dois anos atrás, parecia nunca me faltar trabalho. Mas nestes últimos três meses? Nada! Mas vou entrar num espectáculo privado dentro de dias - acrescentou.

 

- Privado? - estranhou Sandman.

 

- Há aí um fulano rico que quer que a namorada seja actriz está a ver? Vai daí, alugou um teatro, paga-nos p'ra cantar e dançar paga a uma audiência p'ra aplaudir e paga aos jornalistas p'ra dizerem bem dela nos jornais. Não quer ir assistir? É na quinta-feira à noite em Covent Garden.

 

- Se puder, vou - prometeu Sandman.

 

- E uma única noite, por isso não vai dar p'ra pagar as minhas dívidas. Do que eu precisava - prosseguiu Sally - era d'entrar numa companhia, e até podia se estivesse disposta a fazer de rameira Sabe o que isso é? Claro que sabe. Mas eu não sou nenhuma rameira.

 

- Nunca supus que fosse.

 

- O meu irmão Jack matava o primeiro que dissesse que eu era uma rameira.

 

- Os meus parabéns a Jack - retorquiu Sandman. - Simpatizo bastante com o seu irmão.

 

Nas poucas ocasiões em que Sandman se cruzara com o irmão de Sally, ele parecera-lhe um homem confiante e tranquilo. Era popular era ele que presidia a uma mesa de caridade da taberna da Wheatsheaf e era extremamente bem-parecido, o que fazia dele o ai-jesus das raparigas. E era também um personagem misterioso, pois ninguém da hospedaria sabia exactamente qual era o seu modo de vida.

 

- O que faz o seu irmão? - perguntou Sandman, a propósito

 

- Não sabe quem ele é?

 

- Devia saber?

 

- É Robin Hood - Riu-se ao reparar na expressão de Sandman

 

- Santo Deus! - exclamou Sandman. Robin Hood era a alcunha por que era conhecido um salteador de estrada que todos os magistrados de Londres pretendiam capturar.

 

Sally encolheu os ombros.

 

- Passo a vida a dizer-lhe que ainda vai acabar a dançar ao som da musica de Jemmy Botting, mas ele não liga. Ele é bom p'ra mim lá isso e, e não deixa ninguém fazer-me mal. - Franziu a testa. - Toda a gente da hospedaria sabe quem ele é, mas ninguém o denunciará

 

- E eu também não - tranquilizou-a Sandman.


- Claro que não - retorquiu Sally; depois, fazendo um grande sorriso, perguntou: - Então, e o senhor? O que é que espera da vida?

 

- Acho que quero de volta a minha vida de antigamente.

 

- A guerra? Ser outra vez soldado?

 

- Não. Apenas o luxo de não ter de me preocupar de onde vem o próximo xelim.

 

Sally soltou uma gargalhada.

 

- Isso é o que toda a gente quer. - Deitou um pouco de óleo e de vinagre na tigela e voltou a mexer a salada. - Então, dantes tinha dinheiro, era?

 

- O meu pai tinha. Era um homem muito rico, mas depois fez uns maus investimentos, contraiu demasiados empréstimos, entregou-se ao jogo e perdeu. Acabou por estoirar os miolos.

 

- Céus! - exclamou Sally, olhando fixamente para ele.

 

- Assim, a minha mãe perdeu tudo o que tinha. Agora, vive em Winchester com a minha irmã mais nova, e eu tento olhar por elas. Pago-lhes a renda, ocupo-me das contas, esse tipo de coisas. - Encolheu os ombros. - Tudo isto aconteceu há um ano atrás, e, por essa altura, já eu tinha saído do Exército. Ia casar-me, mas, como é evidente, quando fiquei sem um xelim, ela já não pôde casar comigo porque a mãe dela não consentiu que casasse com um pobretanas.

 

- Porque ela era pobre também? - inquiriu Sally.

 

- Pelo contrário. O pai dela prometera-lhe uma tença de seis mil por ano. O meu pai prometera-me ainda mais. Mas, claro, quando ficou falido ... - Sandman encolheu novamente os ombros.

 

Sally olhava para ele de olhos esbugalhados.

 

- Seis mil libras? Com um raio! E então agora trabalha para o ministro do Interior.

 

- É um trabalho muito temporário.

 

- Salvar gente da forca? Se quer a minha opinião, isso é um trabalho a tempo inteiro, co's diabos. - Rapou a carne de um osso de galinha com os dentes. - Mas vai conseguir tirar Charlie da Estalagem da Cabeça do Rei?

 

- Conhece-o?

 

- Vi-o uma vez, e o gordifanas de Sir George tem razão. Ele não sabia o que fazer com uma mulher, quanto mais violá-la! E quem quer que a tenha morto deu-lhe p'ra valer, e Charlie não tem força p'ra uma coisa dessas. O que é que diz aí? - Apontou para a folha volante que Sandman tirara entretanto do bolso e alisava em cima da mesa.

 

- Segundo diz aqui - explicou Sandman -, a condessa foi apunhalada doze vezes e tinha a faca de Corday espetada na garganta.

 

- Ele não podia tê-la apunhalado com isso - afirmou Sally, incrédula. - Não é afiada; serve para misturar as tintas, não para cortar.

 

- Era uma espátula de pintor, portanto - comentou Sandman.

 

- Não foi ele que cometeu o crime, pois não? - perguntou Sally após um momento de reflexão. Franziu a testa, e Sandman ficou com a sensação de que estaria a considerar se havia de lhe contar uma coisa. Por fim, ela encolheu os ombros e confidenciou-lhe em voz baixa:

 

- Sir George mentiu-lhe. Ouvi ele dizer-lhe qu'era o conde que queria o quadro, mas não foi assim.

 

- Não foi?

 

- Estavam a falar nisso ontem, ele e um amigo, só qu'ele pensa qu'eu não ouço nada - disse Sally em tom sério. - Eu 'tou ali quietinha a apanhar frio, e ele fala como s'eu não passasse d'um par de tetas. Ele contou ao amigo que não foi o conde quem encomendou o retrato.

 

- E disse quem foi que encomendou? Sally acenou afirmativamente com a cabeça.

 

- Foi um clube. Só qu'ele vai ficar furioso se souber que fui eu que lhe disse, porque tem um medo de morte desses malandros.

 

- Um clube encomendou o retrato?

- Um desses clubes de cavalheiros. Tem um nome um bocado esquisito. O Clube Semáforo? Não, não é isso. Tem a ver com anjos

 

- Serafim?

- Isso mesmo. O Clube Serafim.

- Nunca ouvi falar.

 

- É porqu'é um clube privado - explicou Sally. - Fica na St. James Square, por isso eles devem ter muito dinheiro. Convidaram-me uma vez para ir lá, mas não fui qu'eu não sou desse género de actrizes.

 

- Mas porque havia o Clube Serafim de querer um retrato da condessa? - inquiriu Sandman.

 

- Só Deus sabe.

 

- Vou ter de lhes perguntar. Ela ficou alarmada.

 

- Ouça, não lhes diga que fui eu que contei! Sir George matava-me! E eu preciso do trabalho, não é?

 

- Não lhes direi que me disse - prometeu ele. - E, de qualquer modo, não acredito que tenham sido eles que a mataram.

- Como é que vai então descobrir quem foi? - perguntou Sally.

- Não sei - admitiu Sandman com algum pesar. - Acho que vou fazendo perguntas. Falarei com toda a gente e espero vir a encontrar a tal criada. - Sandman falou-lhe de Meg e contou-lhe a sua deslocação à Mount Street, onde lhe tinham dito que todos os serviçais haviam sido dispensados. - Ou podem ter ido para a casa de campo do conde - rematou ele.

 

- Pergunte aos outros serviçais lá da rua e das outras ruas ali à volta - sugeriu Sally. - Algum deles deve saber. Sabe-se muita coisa pelo falatório dos criados. Oh, meu Deus, já são estas horas? - Um relógio do botequim acabara de dar duas badaladas. Sally pegou no casaco e deitou a correr.

 

PARARA DE CHOVER, e o pavimento da St. James Street cintilava. Duas vistosas carruagens subiam a rua enquanto uma mulher elegantemente vestida a descia em passo vagaroso, levando na mão uma sombrinha fechada. Ignorou as sugestões obscenas que lhe eram dirigidas, provenientes das janelas dos clubes de cavalheiros. Não seria nenhuma dama, conjecturou Sandman, pois uma mulher respeitável nunca poria os pés na St. James Street.

 

Não havia nada a assinalar as instalações do Clube Serafim, mas um varredor que atravessava a rua indicou a Sandman uma casa com as janelas cerradas do lado oriental da St. James Square. Sandman atravessou a praça e dirigiu-se à porta pintada de azul-brilhante, sem qualquer placa de identificação. Sob o alpendre baixo, encontrava-se uma corrente dourada que, ao ser puxada, fez soar uma campainha no interior do edifício. Sandman reparou que havia um ralo aberto na madeira pintada de azul e que alguém o observava através dele, pelo que retribuiu o olhar até sentir que esse alguém descerrava um ferrolho. Depois, uma chave rodou na fechadura, e a porta foi aberta com relutância por um criado de uniforme preto e amarelo que fazia lembrar uma vespa.

 

- É aqui o Clube Serafim?

 

O serviçal hesitou. Era um homem alto de rosto tisnado pelo sol, marcado de cicatrizes pela violência e endurecido pela experiência. "Um homem rude, mas de boa aparência", pensou Sandman.

 

- Esta é uma casa particular - respondeu o serviçal com firmeza.

 

- Que pertence, segundo creio, ao Clube Serafim, com quem venho tratar de assuntos governamentais - replicou Sandman bruscamente. Acenou com a carta do ministro do Interior e, sem esperar por qualquer reacção, passou diante do serviçal e entrou para o hall. O pavimento era um tabuleiro de xadrez de quadrados de mármore brilhante, brancos e negros. Mármore emoldurava também a zona da lareira, sobre a qual se desenrolava um friso dourado com querubins, ramos floridos e folhas de acanto.

 

- O Governo não tem nada a tratar aqui - disse o serviçal alto, mantendo a porta ostensivamente aberta, como que convidando Sandman a sair.

 

Sandman notou que a boa aparência do homem era um tanto desfigurada por umas pequenas cicatrizes negras na face direita. A maior parte das pessoas dificilmente repararia nessas cicatrizes, que pouco passavam de pequenas manchas negras sob a pele, mas Sandman adquirira o hábito de reparar nas queimaduras provocadas pela pólvora.

 

- Que regimento? - perguntou ao homem. O rosto do homem abriu-se num meio sorriso.

 

- O Primeiro dos Guardas de Infantaria.

 

- Combati a seu lado em Waterloo - disse Sandman. Enfiou a carta no bolso do casaco, após o que despiu a capa molhada, que, juntamente com o chapéu, atirou para cima de uma cadeira dourada. Peço desculpa, mas o Governo é como os dragões franceses: se não os sacudirmos bem da primeira vez que atacarem, voltam à carga com o dobro da força.

 

O serviçal estava dividido entre o seu dever para com o clube e o seu sentimento de camaradagem para com outro soldado, mas a sua lealdade ao Serafim prevaleceu.

 

- Lamento muito, meu senhor - insistiu ele. - Mas eles vão dizer-lhe que terá de marcar reunião.

 

- Nesse caso, vou esperar aqui até que me digam isso - retorquiu Sandman. - O meu nome é Sandman e estou aqui por incumbência de Lord Sidmouth.

 

- Senhor, eles não autorizam que espere aqui dentro - informou o serviçal. - Vai ter de retirar-se.

 

- Deixe, sargento Berrigan - interrompeu uma voz suave vinda de trás de Sandman. - A presença de Mister Sandman será tolerada.

 

- Capitão Sandman - corrigiu o próprio, voltando-se para o recém-chegado.

 

Tinha diante de si um dandy, um jovem alto e extraordinariamente bem-parecido, de casaco negro de botões de metal, calções brancos e botas altas negras e luzidias. Uma gravata branca e engomada destacava-se da camisa branca sem folhos, enquadrada pela gola alta do casaco. O cabelo preto, bastante curto, emoldurava-lhe o rosto alvo. Era um rosto zombeteiro e inteligente, e o homem empunhava uma luneta com um cabo fino de ouro, através da qual inspeccionou Sandman por um breve instante antes de o agraciar com uma pequena vénia.

 

- Capitão Sandman. Devia tê-lo reconhecido. Vi-o conquistar cinquenta pontos a Martingale e Bennett no ano passado. A propósito, o meu nome é Lord Skavadale. Por favor, queira passar à biblioteca.

 

Apontou a sala que ficava por detrás dele. - Posso oferecer-lhe uma bebida quente, capitão? Café? Chá? Vinho com especiarias?

 

- Café - disse Sandman. Sentiu o cheiro a loção de alfazema ao passar por Lord Skavadale a caminho da biblioteca: um salão amplo e bem proporcionado onde, numa grande lareira entre as estantes altas, ardia um lume generoso. Espalhada pela sala, encontrava-se uma dúzia de sofás, mas Skavadale e Sandman eram os seus únicos ocupantes.

 

- A maior parte dos membros encontra-se no campo nesta altura do ano - disse Skavadale, explicando assim o facto de a sala se encontrar vazia. - Mas eu tive de vir à cidade por razões de negócios. E a sua actividade qual é, capitão?

 

- Um nome invulgar, Clube Serafim - comentou Sandman, ignorando a pergunta. Espraiou o olhar pela biblioteca. O único quadro era um retraio de corpo inteiro, em tamanho natural, na parede por cima da lareira. Representava um homem magro de rosto simpático e jovial e cabelo abundante encaracolado que lhe passava dos ombros. Vestia um casaco cintado de seda às flores, com renda nos punhos e na gola, e, atravessado sobre o peito, tinha um boldrié largo de onde pendia uma espada de punho trabalhado.

 

- John Wilmot, segundo conde de Rochester - elucidou Lord Skavadale. - Conhece a sua obra?

 

- Sei que era poeta - respondeu Sandman. - E libertino.

 

- Foi, de facto - corroborou Skavadale. - Um poeta de enorme espírito e de raro talento que nós tomamos como exemplo. Os serafins são seres superiores, os mais categorizados de todos os anjos, aliás. É uma pequena presunção da nossa parte.

 

- Superiores aos simples mortais como nós? - indagou Sandman em tom ácido. Lord Skavadale era tão cortês, tão perfeito e tão presunçoso que irritava Sandman.

 

- Apenas perseguimos a excelência - retorquiu Skavadale delicadamente. - Tal como estou certo de que o senhor faz, capitão, quer no críquete, quer na profissão que exerce, qualquer que ela seja, e desleixo o meu, que ainda não lhe dei oportunidade de me dizer qual ela é.

 

A oportunidade teve de aguardar alguns momentos mais, já que entretanto chegou um criado com uma bandeja de prata com chávenas de porcelana e um recipiente com café. Nem Lord Skavadale nem Sandman falaram enquanto o café foi servido, e, durante esse período de silêncio, Sandman apercebeu-se de um ruído metálico vindo de uma sala próxima, e concluiu que alguém praticava esgrima.

 

- Sente-se, por favor - convidou Skavadale logo que o criado se retirou.

 

- Charles Corday - disse Sandman, sentando-se numa cadeira.

 

Lord Skavadale pareceu um pouco confundido.

 

- O jovem acusado do assassínio da condessa de Avebury. A que propósito está a citar o nome dele?

 

Sandman bebeu um gole do seu café. O pires tinha um emblema gravado que mostrava um anjo dourado voando nu sobre um escudo vermelho.

 

- O ministro do Interior encarregou-me de investigar alguns factos que levaram à condenação de Corday - explicou Sandman. Existem dúvidas sobre a sua culpabilidade.

 

Skavadale ergueu um sobrolho.

 

- E como é que isso o trouxe até nós, capitão?

 

- E que sabemos que o retraio da condessa de Avebury foi encomendado pelo Clube Serafim.

 

- Foi mesmo? - inquiriu Skavadale em voz baixa. - Acho isso verdadeiramente extraordinário. - Baixou-se para se apoiar no topo, forrado a couro, do guarda-fogo.

 

- E o que torna a coisa ainda mais interessante - prosseguiu Sandman - é que a encomenda do retraio requeria que a dama fosse pintada nua, embora ela não devesse saber de nada.

 

- Bem, eu lambem não - exclamou Skavadale; porém, a despeito do tom chocarreiro, os seus olhos escuros não revelavam qualquer surpresa. Bebeu o café. - Confesso que não sei nada a esse respeito. E possível que um dos nossos membros tenha encomendado o retrato, mas, enfim, se foi esse o caso, não me puseram ao corrente.

 

- O conde de Avebury é membro do clube? - indagou Sandman. Skavadale hesitou.

 

- Eu, de facto, não posso divulgar quem são os nossos membros, capitão. Este clube é privado. Mas acho que posso adiantar que não temos a honra de contar com a companhia do conde.

 

- Conhecia a condessa? Skavadale sorriu.

 

- Conhecia efectivamente. Muitos de nós queimámos incenso no seu aliar, pois era senhora de uma beleza divina e lamentamos extremamente a sua morte. Extremamente. - Levantou-se. - Lamento que a sua visita tenha sido em vão, capitão. Posso acompanhá-lo à porta?

 

Sandman levantou-se da cadeira. Nesse preciso momento, uma porta abriu-se ruidosamente atrás de si e, voltando-se, reparou que numa das estantes havia uma porta disfarçada sob uma fachada falsa de lombadas de couro e por ela assomara um jovem em calções e camisa com um florete na mão e uma expressão hostil, que disse a Skavadale:

 

- Julgava que linhas posto o lorpa na rua, Johnny. Skavadale fez um sorriso melífluo.

 

- Deixa-me que te apresente o capitão Sandman, o célebre jogador de críquete. Este é Lord Robin Holloway.

 

- Jogador de críquete? Pensava que fosse o lacaio de Sidmouth. Lord Robin Holloway não possuía nenhuma da cortesia de Skavadale. Andaria pelos vinte e poucos anos, calculou Sandman, e era tão alto e bem-parecido quanto o seu amigo; porém, onde Skavadale era moreno, Holloway era dourado. O seu cabelo era dourado, usava anéis de ouro nos dedos e uma corrente de ouro ao pescoço.

 

- Sou isso também - retorquiu Sandman. - E vim fazer perguntas acerca da condessa de Avebury.

 

- Ela está no túmulo, lorpa, no túmulo - disse Holloway. Um segundo homem surgiu por detrás dele, também com um florete na mão, embora Sandman deduzisse, pela camisa lisa e pelas calças que envergava, que devia tratar-se de um empregado do clube, talvez o mestre de armas. - Disse que se chamava Sandman? Filho de Ludovic Sandman?

 

Sandman inclinou ligeiramente a cabeça.

 

- Sim, esse mesmo.

 

- O patife que me ludibriou - exclamou Lord Robin. Os seus olhos, ligeiramente salientes, desafiavam Sandman. - Que me deve seis mil guinéus, com um raio. E o que é que você pensa fazer a esse respeito, seu lorpa?

 

- O capitão Sandman vai sair - exclamou Skavadale em tom firme, agarrando Sandman pelo cotovelo.

 

Sandman sacudiu-o.

 

- Comprometi-me a pagar algumas das dívidas do meu pai - disse a Lord Robin. Começava a sentir-se invadir pela cólera. - Estou a pagar aos comerciantes a quem o suicídio do meu pai deixou em má situação. Quanto à sua dívida ... - Sandman fez uma pausa -, não tenciono fazer absolutamente nada.

 

- Raios o partam, seu lorpa - exclamou Lord Robin, levando o florete atrás como se pretendesse golpear com ele a face de Sandman.

 

Lord Skavadale interpôs-se entre os dois.

 

- Basta! O capitão vai retirar-se.

 

- Ele não passa de um nojento espião do patife do Sidmouth! vociferou Lord Robin. - Utilize a porta de serviço dos fornecedores, nas traseiras, Sandman. A porta da frente é só para cavalheiros.

 

Sandman passou diante de Skavadale e Holloway e arrebatou bruscamente o florete da mão do mestre de armas. Voltando-se de novo para Holloway, exclamou:

 

- Vou utilizar a porta da frente. Ou será que Sua Senhoria faz tenção de me impedir?

 

- Robin! - gritou Skavadale, pedindo cautela ao amigo.

 

- Com um raio! - exclamou Holloway. Ergueu o florete, afastou a lâmina de Sandman e atacou.

 

Sandman aparou a estocada, desviando para o alto a lâmina de Halloway, depois apontou o seu florete à face de Sua Senhoria. A ponta da lâmina estava embotada, pelo que não podia perfurar, mas, mesmo assim, deixou um rasto vermelho na face direita de Holloway. Com um gesto rápido, Sandman voltou a atacar, desta vez marcando-lhe a face esquerda, após o que baixou o florete.

 

- Vai para o inferno! - Holloway estava agora fora de si, mas enquanto a fúria de Sandman era fria e cruel, a de Holloway era toda calor e insensatez. Brandiu o florete como um sabre, procurando atingir o rosto de Sandman, mas ele esquivou-se, deixou que a lâmina passasse a centímetros do seu nariz, depois investiu a fundo contra o ventre de Holloway. O botão da ponta impediu que a lâmina lhe trespassasse o vestuário ou a pele, e o florete dobrou-se como um arco. Sandman utilizou o efeito de mola para se projectar para trás no preciso momento em que Lord Robin Holloway procurava atingir-lhe o pescoço.

 

- Seu pirralho fracalhote! - bradou Sandman, deixando transvasar toda a sua cólera e disposto agora a lutar a sério. Caiu a fundo sobre o adversário, a lâmina silvando aterradoramente, e o botão arranhou a face de Lord Holloway, quase lhe arrancando um olho, após o que a lâmina lhe atingiu o nariz, rasgando-o de forma a fazer brotar sangue. Lord Holloway recuou com a dor e depois, subitamente, um par de braços robustos fechou-se sobre o peito de Sandman. O sargento Berrigan segurava-o enquanto Lord Skavadale arrancava o florete da mão de Lord Robin Holloway.

 

- Basta! - bradou Skavadale - Basta! - Atirou o florete de Holloway para o canto mais distante da sala, depois retirou o outro a Sandman. - Agora, saia, capitão.

 

Sandman sacudiu os braços de Berrigan e disse a Holloway:

 

- Ainda você mijava nos cueiros, já eu combatia homens a sério.

 

- Um bom dia, capitão - exclamou Skavadale friamente.

 

- Se acaso descobrir a pessoa que encomendou o retraio, agradecia que me informasse - disse ainda Sandman. Não alimentava nenhuma esperança de que isso viesse a acontecer, mas o simples facto de formular o pedido permitia que saísse do clube com um toque de dignidade.

- Pode deixar-me a mensagem na Wheatsheaf, na Drury Lane.

 

Lord Robin fuzilou Sandman com o olhar, mas não disse nada. Fora humilhado e tinha consciência disso.

 

Já no vestíbulo, trouxeram a Sandman a capa e o chapéu, e o sargento Berrigan abriu-lhe a porta da frente. Sandman passou diante dele, e Berrigan fechou a porta com força.

 

SANDMAN ENCAMINHOU-SE lentamente para norte. Sally tinha razão. A melhor maneira de encontrar a tal criada, Meg, e assim descobrir a verdade era interrogar os outros serviçais da zona. Era essa a razão da sua ida à Davies Street, sítio que evitara constantemente durante os últimos seis meses.

 

Contudo, quando bateu à porta, tudo lhe pareceu extremamente familiar, e até Hammond, o mordomo, nem sequer pestanejou.

 

- Capitão Rider - exclamou. - Que prazer em vê-lo. Quer dar-me a sua capa? - Hammond pendurou a capa e o chapéu de Sandman num cabide já repleto de outras peças de vestuário - Tem convite?

 

- Lady Forrest está a oferecer um espectáculo musical? Receio não ter sido convidado. Tinha esperança de encontrar Sir Henry em casa.

 

- Ele está em casa, capitão, e estou certo de que disposto a recebê-lo. Porque não espera ali na salinha?

 

A salinha tinha duas vezes o tamanho da sala da casa que Sandman arrendara para a mãe e a irmã em Winchester, facto que a sua mãe referia com frequência, mas que não valia a pena recordar naquele momento; por conseguinte, concentrou-se em escutar um tenor que cantava do outro lado das portas duplas que conduziam aos salões maiores da casa. Seguiram-se aplausos, após o que a porta se abriu.

 

- Meu caro Rider!

 

- Sir Henry.

 

- Um novo tenor francês que devia ter sido impedido de entrar em Dover - referiu Sir Henry com ar desconsolado. Sir Henry nunca apreciara muito os espectáculos musicais organizados por sua mulher e tinha habitualmente a preocupação de os evitar - Esqueci-me de que havia uma recepção esta tarde, de contrário teria permanecido no banco. Como é que você está, Rider?

 

- Estou bem, obrigado. E o senhor?

 

- Com muito trabalho, Rider, com muito trabalho. O Conselho de Vereadores ocupa-me muito tempo; por outro lado, a Europa necessita de dinheiro e nós emprestamos. - Sir Henry abriu a gaveta de um aparador e tirou de lá dois charutos. - Já que hoje não podemos fumar na sala de música, vamos fumigar aqui a sala de visitas. - Fez uma pausa para acender um isqueiro de pederneira e depois o charuto. A sua altura, cabelo prateado e rosto melancólico sempre tinham evocado em Sandman a figura de D. Quixote, contudo essa semelhança era enganadora, conforme dúzias de seus rivais no negócio tinham descoberto já demasiado tarde. Sir Henry tinha um jeito natural para lidar com dinheiro; para amealhá-lo e para fazer uso dele. Eram essas suas qualidades que haviam contribuído para construir os navios, alimentar os exércitos e forjar os canhões que tinham derrotado Napoleão e, em consequência, granjeado a Henry Forrest o grau de cavaleiro. Era, em suma, um homem de talento.

 

- É um grande prazer voltar a vê-lo, Rider - dizia ele agora, e estava a ser sincero. - Então, o que é que tem feito ultimamente?

 

- Tenho uma ocupação muito estranha, que me trouxe aqui para pedir um favor a Hammond.

 

- Um favor a Hammond, ha? - Sir Henry perscrutou o rosto de Sandman como se não tivesse entendido bem. - O meu mordomo? Sir Henry regressou ao aparador, onde serviu dois cálices de brandy.

- Decerto acompanha-me numa bebida. O que pretende de Hammond?

 

Porém, antes que Sandman pudesse explicar, as portas duplas que davam para o salão abriram-se, e surgiu Eleanor. A luz proveniente do enorme salão, incidindo por detrás dela, fazia que o seu cabelo parecesse um halo vermelho a emoldurar-lhe o rosto. Olhou para Sandman, depois respirou fundo antes de presentear o pai com um sorriso.

 

- A mãe estava com receio de que perdesse o dueto, paizinho.

 

- O dueto, ha?

 

- Há semanas que as irmãs Pearman andam a ensaiar - explicou Eleanor, após o que volveu de novo o olhar para Sandman. - Rider saudou em voz baixa.

 

- Miss Eleanor - correspondeu ele muito formalmente, fazendo uma vénia.

 

Ela olhou-o fixamente. Por detrás dela, no salão, os convidados estavam sentados em cadeiras douradas. Eleanor lançou-lhes um rápido olhar, após o que fechou resolutamente as portas.

 

- Acho que as irmãs Pearman passam bem sem mim. Como é que está, Rider?

 

- Estou bem, obrigado, muito bem. - Pensara não ser capaz de falar, pois ficara sem respiração e sentia as lágrimas chegarem-lhe aos olhos. Eleanor envergava um vestido de seda verde-pálido com rendas amarelas no peito e nos punhos. Trazia um colar de ouro e âmbar que Sandman nunca lhe vira. Ele sentia um ciúme estranho da vida que ela levara durante os últimos seis meses. Tinha presente que ela estava de casamento aprazado, e isso fazia-o sofrer imensamente. - E a menina?

 

- Perturbada por você se sentir bem - respondeu Eleanor com uma severidade fingida. - Pensar que pode estar bem sem mim? É intolerável, Rider.

 

- Eleanor - admoestou o pai.

 

- Estou a brincar, paizinho; é permitido, e há tão poucas coisas que o são ... - Voltou-se novamente para Sandman. - Resolveu vir passar um dia à cidade?

 

- Eu vivo aqui - disse Sandman.

 

- Não sabia. - Os seus olhos cinzentos, quase cor de fumo, raiados de verde, pareciam enormes. Só de olhar para eles Sandman sentia-se tonto. Não tirava os olhos dela, nem ela dele.

 

- Há muito tempo que está cá? - perguntou Eleanor, quebrando o silêncio.

 

- Três semanas - admitiu ele. - Talvez um pouco mais. Sandman teve a sensação de que ela reagiu como se tivesse sido esbofeteada.

 

- E não veio visitar-nos? - protestou. Sandman sentiu-se corar.

 

- Não me pareceu haver motivo para uma visita - respondeu. Pensei que preferisse que eu não aparecesse por cá.

 

- Rider veio cá especialmente para falar com Hammond, minha querida - esclareceu Sir Henry. - Não foi propriamente uma visita de carácter social.

 

- Que poderá querer de Hammond? - inquiriu Eleanor, com os olhos brilhando de curiosidade. Sentou-se numa cadeira e assumiu uma atitude expectante.

 

- Minha querida - começou o seu pai, sendo interrompido de

 

imediato.

 

- Paizinho - disse Eleanor em tom sério - Estou certa de que nada do que Rider possa querer de Hammond será impróprio para os ouvidos de uma jovem. Outro tanto talvez não possa dizer das efusões literárias das irmãs Pearman. Rider?

 

Sandman contou então a sua história, que causou grande surpresa, pois nem Eleanor nem o pai tinham alguma vez relacionado Charles Corday e Sir George Phillips. Já era suficientemente mau a condessa de Avebury ter sido assassinada na rua ao lado; pior era agora o facto de o presumível assassino ter passado algum tempo na companhia de

 

Eleanor.

 

- É melhor não contarmos nada disto à tua mãe - observou bir

 

Henry delicadamente.

 

- Duvido que ele seja assassino - acrescentou Sandman. E referiu o desaparecimento de Meg, a criada, e como necessitava de saber da boca dos criados o que se dizia acerca do destino do pessoal da casa dos Avebury. - Se Hammond pudesse interrogar as criadas acerca do que terão ouvido a esse respeito ...

 

- De certeza que ficava à mesma sem saber nada - interrompeu Eleanor. - Hammond é um excelente mordomo, mas as criadas têm todas medo dele. Não, a pessoa a interrogar é a minha aia, Lizzie.

 

- Não podemos envolver Lizzie nisto! - objectou Sir Henry.

 

- Ora essa, porque não?

 

- Não podemos simplesmente. Não seria justo.

 

- O que não é justo é Corday ser enforcado se estiver inocente! E o paizinho deve saber isso bem! Nunca o vi tão chocado!

 

Sandman olhou inquisitivamente para Sir Henry, que encolheu os ombros.

 

- O dever arrastou-me a Newgate - admitiu. - Oficialmente, nós, os vereadores da City, somos os patrões do carrasco, e ele solicitara-nos um assistente. Ninguém gosta de despender dinheiro sem necessidade, por conseguinte dois de nós resolvemos analisar quais as exigências do trabalho dele. Um enforcamento não é uma coisa agradável, Rider; alguma vez assistiu a um?

 

- Já vi homens depois de enforcados - disse Sandman, a pensar no caso de Badajoz. O Exército Britânico, entrando na cidade espanhola após uma defesa tenaz por parte dos Franceses, vingara-se terrivelmente nos seus habitantes, tendo Wellington dado ordem aos seus carrascos para aplacarem a ira dos casacas vermelhas. - Costumávamos enforcar os saqueadores - explicou a Sir Henry.

 

- Suponho que tivessem de o fazer - comentou Sir Henry. - É uma morte terrível, terrível. Espero nunca mais ter de assistir a nenhuma. - Encolheu os ombros, depois perguntou: - Acha então, Rider, que os meus criados possam ter ouvido alguma coisa acerca da sorte dessa tal Meg?

 

- Tenho essa esperança, sir. Ou que possam interrogar os serviçais que vivem na Mount Street. A casa dos Avebury fica muito perto daqui, e estou certo de que todos os serviçais das redondezas se conhecem uns aos outros.

 

- Tenho a certeza de que Lizzie conhece toda a gente aqui da área

- disse Eleanor. - Lizzie adora tagarelar.

 

- Não há nenhum perigo envolvido, ou há? - perguntou Sir Henry a Sandman.

 

- Não imagino nenhum, sir. Apenas pretendemos saber para onde foi essa tal Meg, e isso não passa de simples conversa de bairro.

 

- Lizzie pode justificar o seu interesse dizendo que um dos nossos cocheiros andava de amores por ela - alvitrou Eleanor, entusiasmada.

 

O pai não estava muito satisfeito com a ideia de envolver Eleanor no caso, mas era quase incapaz de lhe recusar alguma coisa. Era tal a afeição que nutria pela sua única filha que teria até consentido que ela desposasse Sandman, a despeito da sua pobreza e da desgraça que recaíra sobre a sua família; no entanto, Lady Forrest sempre considerara Sandman uma segunda escolha. Ele não possuía nenhum título e Lady Forrest sonhava que a filha um dia viesse a ser duquesa, marquesa, condessa ou, no mínimo, lady. O empobrecimento de Sandman fornecera-lhe o pretexto que lhe faltava, e o mando nada pudera fazer contra a determinação dela. Em conclusão, embora Eleanor não pudesse casar com quem queria, estava, pelo menos, autorizada a pedir à sua aia que auscultasse os rumores que comam na Mount Street.

 

- Eu escrevo-lhe - disse Eleanor a Sandman. - Se me disser

 

para onde.

 

- Ao cuidado da Wheatsheaf, na Drury Lane.

 

Eleanor ergueu-se da cadeira e, caminhando em bicos de pés, foi

 

beijar o pai. .

 

- Obrigada, paizinho, por me deixar fazer alguma coisa de útil. b obrigada também, Rider. - Pegou na mão dele. - Estou orgulhosa de si. O que está a fazer é uma coisa boa. - Tinha ainda a mão dele na sua quando a porta se abriu.

 

Lady Forrest surgiu na sala. Tinha o mesmo cabelo ruivo, a mesma beleza e a mesma força de carácter da filha; no entanto, os olhos cinzentos e a inteligência Eleanor fora buscá-los ao pai. Lady Forrest abriu muito os olhos ao ver a filha de mão dada com Sandman; no entanto, fez um sorriso forçado.

 

- Capitão Sandman - saudou-o com uma voz capaz de cortar vidro. - Que surpresa!

 

- Lady Forrest - Sandman fez uma vénia, não obstante ter a mão presa.

 

- Que estás tu aqui a fazer, Eleanor? - A voz de Lady Forrest estava agora apenas alguns graus acima do ponto de congelação.

 

- Estou a ler a palma da mão de Rider, mãezinha.

 

__ Ah! - Lady Forrest ficou imediatamente curiosa. Era fortemente atraída pela ideia da existência de forças sobrenaturais. - E oque é que vês?

 

Eleanor fingiu examinar a palma da mão de Sandman.

 

- Estou a ver uma viagem - exclamou com voz solene.

 

- A algum sítio agradável, espero - disse Lady Forrest.

 

- À Escócia - precisou Eleanor.

 

- Pode ser muito agradável nesta época do ano - observou Lady

 

Forrest. .

 

Sir Henry, mais arguto do que a mulher, descortinou ali uma alusão a Gretna Green, a aldeia escocesa onde era permitido o casamento de fugitivos, e disse em voz baixa:

 

- Basta, Eleanor.

 

- Sim, paizinho. - Eleanor largou a mão de Sandman e fez uma vénia a seu pai.

 

- O que o traz por cá, Rid ... - Lady Forrest quase se esquecia, mas ainda corrigiu a tempo - ... capitão?

 

- Rider veio muito gentilmente informar-me de que correm rumores de que os portugueses podem não conseguir satisfazer o pagamento dos seus empréstimos de curto prazo - respondeu Sir Henry por Sandman. - O que, de resto, não me surpreende, devo dizer. Nós demos parecer desfavorável à operação, como deves estar lembrada, minha querida.

 

- Claro que deste, querido, tenho a certeza. - Lady Forrest não tinha certeza nenhuma; no entanto, mostrou-se satisfeita com a explicação. - Agora, vem, Eleanor, estás a ignorar os nossos convidados. Temos Lord Eagleton connosco - anunciou orgulhosamente a Sandman.

 

Lord Eagleton era o homem com quem estava previsto Eleanor casar-se, e Sandman sentiu-se sobressaltado.

 

- Não conheço Sua Senhoria - retorquiu friamente.

 

- O que na realidade nada me surpreende - exclamou Lady Forrest -, uma vez que ele de facto apenas frequenta a melhor sociedade. Espero muito sinceramente que aprecie a sua viagem à Escócia, capitão. - E, em seguida, Lady Forrest conduziu a filha de regresso ao salão.

 

- Vai demorar um dia ou dois até obtermos resposta, estou certo mas esperemos que ela lhe seja útil - disse Sir Henry. - Tem de voltar cá mais vezes, Rider. - Acompanhou Rider até à porta e ajudou-o a vestir a capa.

 

- Foi muito prestável, Sir Henry, e estou-lhe muito grato por isso.

- Sandman saiu e afastou-se rapidamente, sem reparar sequer se chovia ou não. Ia a pensar em Lord Eagleton. Eleanor não dera mostras de estar apaixonada por Sua Senhoria; na verdade, até fizera uma expressão de desagrado quando o nome dele fora proferido, e isso dava-lhe alguma esperança. Mas, e daí, perguntou a si mesmo, o que é que o amor tinha a ver com o casamento? O casamento só tinha a ver com dinheiro e respeitabilidade.

 

Então, e o amor? O amor que o levasse o diabo, pensou, mas que estava apaixonado, estava.

 

JÁ NÃO CHOVIA; estava até um fim de tarde radioso. Carruagens abertas, puxadas por parelhas de pêlo lustroso e crinas enfeitadas rodavam velozmente a caminho do Hyde Park para o desfile diário Bandas de rua competiam umas com as outras, fazendo rufar os seus tambores e estendendo aos transeuntes as caixas do peditório. Sandman prosseguia o seu caminho, alheio a tudo aquilo que o rodeava.

 

Pensava em Eleanor, e quando, após passar mentalmente em revista cada um dos gestos e olhares dela, não lhe foi possível retirar mais conclusões acerca das suas intenções, pôs-se a meditar naquilo que conseguira apurar durante aquele dia. Ficara a saber que o que Corday lhe contara era, na sua maior parte, verdadeiro, porém continuava a não ter nada para comunicar ao visconde Sidmouth. Que fazer então?

 

Pensou nisso quando chegou à Wheatsheaf, onde entregou a sua roupa à lavadeira, que cobrava umpenny por camisa. Depois, dedicou-se a remendar as botas com a ajuda de uma agulha de fabricante de velas para navio e de um pedaço de luva de cabedal que o proprietário da estalagem lhe cedera e a escovar o casaco, procurando remover uma nódoa que tinha atrás. Concluiu que, de todos os inconvenientes de ser pobre, o facto de não ter quem lhe tratasse do vestuário era o que lhe ocasionava maior perda de tempo.

 

Decidiu, entretanto, que o melhor era ir ao Wiltshire. Não tinha qualquer garantia de encontrar Meg, mas se esperasse até receber notícias da parte de Eleanor, podia ser demasiado tarde. Dizia-se que o conde de Avebury vivia em reclusão, e Sandman receava ser sumariamente escorraçado da sua propriedade, mas era um risco que teria de correr. Se apanhasse a mala-posta da manhã, chegaria lá ao princípio da tarde. A mala-posta ia custar-lhe, pelo menos, o dobro da diligência, mas esta não o poria no Wiltshire antes da noite. Sandman dirigiu-se pois ao edifício dos Correios, em Charing Cross, onde pagou duas libras e sete xelins pelo último dos quatro lugares da mala-posta da manhã seguinte para Marlborough.

 

Regressou à Wheatsheaf, onde na dependência dos fundos, no meio dos barris de cerveja, se pôs a engraxar as botas que acabara de remendar. Ouviu entretanto o assobio desafinado de Dodds, e preparava-se para lhe dirigir uma saudação quando uma voz estranha se fez ouvir:

 

- Sandman não 'tá lá em cima. Encontraste alguma coisa? Sandman calçou as botas silenciosamente. A voz do desconhecido

 

era agreste, uma voz que não aconselhava Sandman a identificar-se, mas antes a procurar uma arma. A única coisa que tinha ali à mão era uma aduela de barril. Pegou nela como se fosse uma espada e dirigiu-se cautelosamente para a porta.

 

- Esta "cauda" e uma pá de críquete - respondeu outra voz, e Sandman, ainda escondido, viu um homem novo que trazia consigo a pá de críquete e a espada do Exército que lhe pertenciam. Os dois homens deviam ter-lhe revistado o quarto.

 

- Vou procurar na taberna - disse o primeiro homem.

 

- Trá-lo para aqui - retorquiu o outro.

 

O primeiro homem saiu pela porta de serviço. Sandman emergiu da dependência dos fundos e, com a aduela, golpeou com força os rins do segundo homem. Este saltou para a frente, arfando, e Sandman pegou-o pelos cabelos e puxou-o para trás, ao mesmo tempo que lhe pregava uma rasteira, fazendo-o estatelar-se no chão. De seguida, aplicou-lhe um violento pontapé nas virilhas. O homem soltou um berro de dor, dobrando-se sobre si próprio.

 

Sandman recuperou a pá e a espada, que tinham caído à entrada da porta. Receava que o homem tivesse consigo uma pistola, por isso, com a bainha da espada, afastou a aba do casaco do homem para o lado. Viu então que ele envergava um uniforme preto e amarelo.

 

- Es do Clube Serafim? - perguntou Sandman. O homem, gemendo de dor, deu uma resposta pouco esclarecedora. Sandman revistou-lhe os bolsos do casaco e descobriu uma pistola que tirou para si.

 

- Então, o que vieste aqui fazer?

 

- Eles queriam que o levássemos lá para o clube.

 

- Porquê?

 

- Não sei! Eles só nos mandaram vir cá buscá-lo.

 

- Põe-te daqui para fora - ordenou Sandman. - Pega no teu amigo e ponham-se a andar. - Sandman observou o homem a pôr-se em pé e seguiu atrás dele para a taberna, onde uma vintena de fregueses estava sentada às mesas. Ergueu a pistola, com o cano apontado para o tecto, e os dois homens largaram a correr. Sandman enfiou então a pistola no cinto, enquanto Sally atravessava a sala ao seu encontro.

 

- O que se passa? - perguntou.

 

- Está tudo bem, Sally - respondeu Sandman.

 

- Ai isso é que não está, c'os diabos. - Sally estava a olhar para trás dele, de olhos arregalados, e Sandman ouviu o barulho do engatilhar de uma pistola.

 

Então, voltou-se e viu que tinha uma pistola de cano comprido apontada ao meio da testa. O Clube Serafim não tinha enviado dois homens para o irem buscar, mas sim três. O terceiro era o sargento Berngan, que estava sentado num banco alto, sorrindo prazenteiramente.

 

- É como com os dragões franceses, capitão - disse o sargento Berngan. - Se não corremos com eles logo à primeira, é mais do que certo que voltam para nos encurralar.

 

E Sandman estava encurralado.

 

O SARGENTO BERRIGAN conservou a pistola apontada a Sandman por um breve instante, mas depois baixou o cão da arma, pousou-a sobre a mesa e acenou com a cabeça para o banco à sua frente.

 

- Acaba de me dar a ganhar uma libra, capitão.

 

- Quem diabo é que você pensa que é? - vociferou Sally, dirigindo-se a Berrigan.

 

- Sally! Sally! - acalmou-a Sandman. Fê-la sentar-se no banco, após o que se sentou a seu lado.

 

- Deixe-me apresentar-lhe o sargento Berrigan, que fez parte do 1.º Regimento de Guardas de Infantaria - disse ele. - Esta é Miss Sally Hood.

 

- Sam Berrigan - exclamou o sargento, divertido com a fúria de Sally. - É uma honra, miss.

 

- Pois para mim não é honra nenhuma, eu estou é furiosa - retorquiu ela, fuzilando-o com o olhar.

 

- Uma libra? - estranhou Sandman.

 

- Eu afirmei que aqueles dois mariolas idiotas não eram capazes de lhe deitar a mão. O capitão do 52.Q? Nunca. - Depois, Berrigan estalou dois dedos e uma das empregadas veio a correr.

 

Sandman não ficou particularmente impressionado com o facto de Berrigan conhecer o seu antigo regimento, mas já ficou verdadeiramente impressionado por um estranho chegar ali à Wheatsheaf e conseguir ser atendido com tamanha rapidez. Aquele Sam Berrigan tinha algo de dominador. O sargento voltou-se para Sally e perguntou:

 

- O que posso oferecer-lhe, Miss Hood?

 

Sally debateu-se consigo própria por um segundo, depois chegou à conclusão de que a vida era demasiado curta para rejeitar uma bebida e disse:

 

- Tomo um ponche de gin, Molly.

 

Berrigan meteu uma moeda na mão de Molly e fechou-lhe os dedos sobre ela.

 

- Um jarro de cerveja, Molly. E trata de que esse ponche de gin seja tão bom como os que servem no Limmer's. - Voltou-se para Sandman. - Lord Robin Holloway mandou aqueles dois para o obrigarem a regressar ao clube, e, por sua vez, Skavadale mandou-me a mim. Ele não queria que lhe acontecesse nada de mal. Lord Robin planeava desafiá-lo para um duelo.

 

- Para um duelo? - Sandman sorriu perante a ideia.

 

- À pistola, imagino eu. - Berrigan também exibia um ar divertido. - Não estou a vê-lo querer defrontar-se consigo novamente com uma espada. Mas eu disse ao marquês que aqueles dois nunca seriam capazes de o levar à força, que o senhor era um soldado extraordinário.

 

Sandman sorriu.

 

- Como é que sabe que espécie de soldado eu era, sargento?

 

- Sei exactamente que espécie de soldado o senhor era - retorquiu Berrigan.

 

Ele tinha um rosto honesto, pensou Sandman, um rosto largo, duro, de olhar confiante.

 

Berrigan voltou-se para Sally.

 

- Era o fim do dia em Waterloo, miss, e nós estávamos derrotados. Estávamos ali apenas para morrer. Não que tivéssemos desistido, não me interprete mal, miss, mas o raio dos Crapauds tinham-nos vencido. O dia estava no fim, e o último deles ainda vinha a subir a colina e eram quatro vezes mais numerosos que nós. Reparei nele então apontou com a cabeça para Sandman - e vi-o a percorrer a linha da frente p'ra um lado e p'ra outro como se não tivesse nenhuma preocupação neste mundo. Tinha perdido o seu chapéu, não tinha, capitão?

 

Sandman riu-se ao recordar o episódio.

 

- Tinha, sim. Tem razão. - O seu bicórnio fora-lhe arrancado da cabeça pela bala de um mosquete francês.

 

- Ali estava ele, andando p'ra um lado e p'ra outro - explicava Berrigan a Sally. - Os Crapauds, que tinham um grupo de atiradores ali a menos de cinquenta passos, não paravam de atirar sobre ele, mas ele nem sequer pestanejava. Continuou a andar como se estivesse a passear no Hyde Park num domingo.

 

Sandman sentia-se embaraçado.

 

- Eu estava apenas a cumprir o meu dever, sargento, tal como você, e encontrava-me perfeitamente aterrorizado, posso garantir-lhe.

 

- Depois, ele parou de caminhar - prosseguiu Berrigan -, e então vi-o levar os seus homens a rodear o flanco daqueles sacanas e dar-lhes uma coça dos diabos.

 

- Não fui eu - disse Sandman, rejeitando a afirmação. - Foi Johnny Colborne quem nos conduziu no ataque pelo flanco. Era o regimento dele.

 

- Mas o senhor é que ia à frente - insistiu Berrigan. Serviu duas canecas de cerveja, ergueu a sua e disse: - À sua saúde, capitão.

 

- Bebo a isso - disse Sandman. - Embora duvide de que os seus patrões partilhem desse sentimento.

 

- Lord Robin não gosta de si - corroborou Berrigan - porque o senhor o fez passar por um idiota chapado.

 

- Talvez não gostem de mim por não quererem que o assassínio da condessa seja investigado - observou Sandman. - Tenho-os sob

 

suspeita.

 

Berrigan encolheu os ombros. _

 

- Eles são o Clube Serafim, capitão, por conseguinte, sim, e verdade que já assassinaram, já roubaram, já subornaram. Mas matar a condessa? Não ouvi nada a esse respeito. Nós, os criados, sabemos de muita porcaria que eles fazem porque somos nós que a limpamos a seguir.

 

- Por que diabo é que eles hão-de querer portar-se como bandidos? _ perguntou Sally, indignada. - Eles já são ricos, não são/ Os seus amigos da Wheatsheaf serem criminosos era uma coisa, mas esses tinham nascido pobres.

 

Berrigan olhava para ela, e era evidente que lhe agradava o que via.

 

_ É exactamente por isso que fazem o que fazem, miss. São ricos, têm títulos e privilégios e, por isso, julgam-se melhores que os outros. O clube foi criado para eles fazerem o que lhes apetecer. O que eles querem agarram, destruindo tudo o que se lhes atravesse no caminho. Não se preocupam seja com o que for. - O modo como falava sugeria que estava a avisar Sandman. - E são uns refinados patifes, capitão.

 

_ Não obstante, você trabalha para eles - comentou Sandman com toda a delicadeza.

 

- Mas eu não sou nenhum santo, capitão - retorquiu Berrigan.

 

- E depois pagam-me bem.

 

- Porque é que está a contar-me tudo isso?

 

- Lord Robin Holloway quer vê-lo morto - explicou Berrigan.

- Mas eu não aceito isso, capitão, depois do que se passou em Waterloo - prosseguiu, olhando para Sally. - Estivemos às portas do inferno miss, e eu nunca pensei sobreviver a tudo aquilo, e a partir dai o Mundo nunca mais foi o mesmo. - O sargento tinha agora a voz rouca de emoção, e Sandman compreendia. Sam Berrigan parecia ser duro como uma pedra, e era-o certamente, mas era também um homem muito sentimental. - Quase não passa um dia em que eu não o reveja a si em pensamento - continuou Berrigan. - Ah na crista da colina, no meio do raio daquele fumo todo. Não tolerava vê-lo molestado por um qualquer parvo emproado.

 

Sandman sorriu.

 

- Sargento, eu acho que você está aqui porque quer deixar o Uu-

 

6 Benigan recostou-se no banco e contemplou Sandman, e depois, mais apreciativamente, Sally. Ela corou perante a insistência do olhar dele. Berrigan tirou um charuto do bolso interior do casaco e acendeu-o com o isqueiro.

 

- Não tenciono ser criado de ninguém por muito tempo - observou ele quando o charuto já ardia. - Mas quando eu sair, capitão, é para montar um negócio.

 

- Negócio de quê? - perguntou Sandman.

 

- Disto. - Berrigan bateu com um dedo ao de leve no charuto. Há muitos cavalheiros que aprenderam a apreciar um charuto durante a guerra em Espanha, só que, curiosamente, são muito difíceis de encontrar. Então, eu procuro-os para os membros do clube e, com isso, faço quase tanto dinheiro como o que ganho de soldo. Entende, capitão?

 

- Não tenho bem a certeza.

 

- Não preciso dos seus conselhos, não preciso dos seus sermões e não preciso da sua ajuda. Sam Berrigan sabe tomar conta de si próprio. Vim aqui apenas para o avisar, nada mais. Saia da cidade, capitão recomendou ele, levantando-se do banco.

 

Sandman sorriu.

 

- Vou sair de Londres amanhã, mas estarei de volta na quinta-feira à tarde.

 

- E bom que esteja mesmo - interrompeu Sally. - É o dia da representação privada. Vai lá a Covent Garden aplaudir-me, não vai?

 

- Claro que vou - respondeu Sandman. Depois, voltando-se para Berrigan, disse: - Dava-me jeito uma ajuda, sargento; portanto, quando decidir deixar o clube, venha ter comigo.

 

Berrigan ficou calado; instantes depois, fez um aceno de cabeça a Sally e saiu.

 

Sandman observou-o enquanto se afastava.

 

- Um jovem muito perturbado - comentou.

 

- A mim não me pareceu perturbado. E é bastante bem-parecido, não é?

 

- Não deixa de ser perturbado por causa disso - replicou Sandman. - Quer ser bom, mas acha mais fácil ser mau.

 

- Bem-vindo à vida real - disse Sally.

 

- Por conseguinte, nós vamos ter de o ajudar a encontrar o bom caminho, não vamos?

 

- Nós? - Ela pareceu ficar alarmada.

 

- Cheguei à conclusão de que não vou poder endireitar o Mundo sozinho. - explicou Sandman - Preciso de aliados, minha cara, e você já foi eleita como tal. Até agora, temos você, uma pessoa com quem estive esta tarde, talvez o sargento Berrigan e ... - Nesse momento, Sandman voltou-se porque alguém, recém-chegado à taberna, derrubara uma cadeira, pedia mil perdões e agitava desajeitadamente a bengala. Acabara de chegar o reverendo Lord Alexander. - ... e o seu admirador faz quatro - concluiu Sandman.

 

Talvez até cinco, porquanto Lord Alexander fazia-se acompanhar de um jovem de rosto franco e expressão perturbada.

 

- O senhor é que é o capitão Sandman? - perguntou o jovem, estendendo-lhe a mão.

 

- Ao seu dispor - respondeu Sandman cautelosamente.

 

- Graças a Deus que o encontro! - exclamou o jovem. - O meu nome é Christopher Carne. A condessa de Avebury era minha madrasta.

 

- Ah - fez Sandman. - Prazer em conhecê-lo.

 

- Temos de conversar - disse Carne. - Santo Deus, Sandman, você tem de evitar que se cometa uma grande injustiça. Por favor, temos de conversar.

 

Lord Alexander fazia uma vénia a Sally, todo ruborizado. Sandman sabia que o seu amigo ia ficar agradavelmente ocupado por algum tempo, pelo que conduziu Carne para o fundo da taberna, onde um reservado oferecia alguma privacidade.

 

LORD CHRISTOPHER era um jovem nervoso e hesitante e usava óculos de lentes grossas. Era baixo, tinha cabelo ralo e gaguejava muito ligeiramente. No geral, não era um homem atraente.

 

- O meu pai - contou ele a Sandman - é um homem terrível, simplesmente terrível. É como se os Dez Mandamentos tivessem sido escritos de p-p-propósito como um desafio para ele, Sandman. Especialmente o sétimo!

 

- Adultério?

 

- Claro. Sandman, ele ignora-o pura e simplesmente! - Por detrás dos óculos, os olhos de Lord Christopher arregalaram-se, como se a própria ideia de adultério fosse uma coisa horrenda. Vestia um fato de bom corte e uma boa camisa, mas os punhos, quer do fato, quer da camisa, encontravam-se manchados de tinta, revelando uma tendência livresca. - O p-problema é que, tal como outros habituais pecadores, o meu pai sente-se ofendido quando o pecado é cometido contra ele. Ele pecou com inúmeras mulheres casadas, capitão Sandman, mas ficou furioso quando a sua própria mulher lhe foi infiel.

 

- A sua madrasta?

 

- Precisamente. Ameaçou-a de morte! Eu ouvi.

 

- Ameaçar alguém de morte não é o mesmo que matar essa pessoa - observou Sandman.

 

- Estou informado da diferença - ripostou Lord Christopher com surpreendente aspereza. - Mas falei com Alexander e ele disse-me que o senhor está encarregado de uma missão com respeito a esse pintor, Corday. Eu não acredito que ele o tenha feito! Que motivo é que ele tinha? Mas o meu pai, Sandman, esse, sim, tinha um motivo.

 

Lord Christopher falava com uma veemência selvática. - Talvez compreenda melhor - prosseguiu ele em tom já mais suave - se eu lhe contar um pouco da história do meu pai.

 

Sandman escutou. A primeira mulher do conde, mãe de Lord Christopher, era oriunda de uma família nobre e uma verdadeira santa asseverou Lord Christopher.

 

- Ele tratava-a infamemente, Sandman, maltratava-a, insultava-a, mas tudo ela suportou com paciência cristã até falecer, que foi em nove. Deus guarde a sua alma. Ele praticamente nem pôs luto por ela

- observou, indignado. - O que fez foi continuar a levar mulheres para a cama, entre elas Célia Collett. Ela tinha apenas um terço da idade dele! Mas ele estava completamente enfeitiçado, e ela era esperta, Sandman, era muito esperta. - A agressividade transparecia novamente na sua voz. - Era dançarina de ópera no Sans Pareil. Conhece?

 

- Já ouvi falar - respondeu Sandman calmamente. O Sans Pareil, na Strand, era um desses teatros novos não licenciados que levavam à cena espectáculos onde abundavam as danças e as canções.

 

- Ela manteve-o longe da sua cama até ao casamento, depois fez-lhe a vida negra!

 

- Você, obviamente, não gostava dela? - observou Sandman. Lord Christopher corou. Via-se que estava pouco à vontade e respondeu:

 

- Eu mal a conhecia. Mas também como era possível gostar-se dela? A mulher não tinha religião, não tinha maneiras, praticamente nenhuma instrução.

 

- E o seu pai preocupa-se com essas coisas?

 

- O meu pai não se interessa por Deus, nem pela cultura, nem pelas regras de cortesia - disse Lord Christopher. - E odeia-me, Sandman, porque o património familiar me está consignado. - Sandman concluiu dali que o avô de Lord Christopher tinha em tão má conta o actual conde de Avebury que tratara de garantir que ele não pudesse herdar a fortuna da família. Assim, embora o actual conde pudesse usufruir do rendimento do património, tanto o capital como a terra e os investimentos permaneceriam intocáveis até à sua morte, passando depois para a posse de Lord Christopher. - Ele odeia-me - prosseguiu - não só pelo facto de o património estar em meu nome, mas também porque eu manifestei o desejo de tomar as ordens sagradas. E o meu pai sabe que, quando a fortuna da família passar para mim, será utilizada ao serviço de Deus. E isso irrita-o.

 

A conversa já se desviara bastante da asserção inicial de Lord Christopher de que fora seu pai quem cometera o crime, pensou Sandman.

- A sua madrasta mantinha um número considerável de pessoal ao seu serviço na Mount Street. O que aconteceu a esse pessoal? Terá passado para as propriedades de seu pai? - perguntou-lhe Sandman. Lord Christopher pestanejou ligeiramente.

 

- É possível. Porque pergunta?

 

Sandman encolheu os ombros, como se a pergunta que fizera não tivesse grande importância. A verdade é que não gostava de Lord Christopher e não desejava prolongar a conversa; por isso, em vez de referir a existência de Meg, limitou-se a admitir que gostaria de saber pela boca dos criados o que se passara no dia em que a condessa fora assassinada.

 

- Se eles forem leais a meu pai, não vão contar-lhe nada - retorquiu Lord Christopher.

 

- Por que razão essa lealdade tem de fazer deles mudos?

 

- Porque foi ele quem a matou! - bradou Lord Christopher. Ou, pelo menos, provocou a sua morte. Ele tem homens que lhe são leais, que fariam o que lhes mandasse. O senhor tem de dizer ao ministro do Interior que Corday está inocente.

 

- Duvido que isso fizesse alguma diferença. Para modificar o veredicto de culpado seria preciso que eu lhe apresentasse o verdadeiro culpado e a respectiva confissão, ou então que lhe apresentasse provas irrefutáveis da inocência de Corday. Um simples parecer não chega, infelizmente.

 

- Santo Deus! - Lord Christopher parecia surpreendido. Reclinou-se para trás com ar abatido. - E você só dispõe de cinco dias para encontrar o verdadeiro assassino? O rapaz está perdido, não está?

 

Sandman receava que aquilo fosse verdade, mas não ia admiti-lo. Pelo menos, por enquanto.

 

Às 4.30 DA MANHÃ, um par de lamparinas bruxuleava debilmente nas janelas do pátio da George Inn. Um cocheiro de capa e uniforme azul e vermelho do Royal Mail bocejou e brandiu o seu chicote a um terrier que lhe rosnava junto às pesadas portas da cocheira e que logo se escapuliu. As portas abriram-se, revelando uma diligência azul-escura reluzente. O veículo foi puxado à mão para o empedrado do pátio, onde um moço acendeu as suas duas lanternas a óleo e meia dúzia de homens começou a meter os sacos de correio no porta-bagagem. Do estábulo trouxeram os oito cavalos, frescos e vigorosos. Os dois cocheiros, ambos armados com bacamartes e pistolas, fecharam o porta-bagagem e observaram os cavalos a serem aparelhados.

 

- Um minuto! - gritou alguém. E Sandman acabou de engolir o café escaldante que a estalagem oferecera aos passageiros da diligência. O cocheiro principal trepou para a cabina.

 

- Todos para bordo!

 

Os passageiros eram quatro. Sandman e um eclesiástico de meia-idade ocuparam o banco da frente, de costas para os cavalos, enquanto um casal de idosos se sentou do lado oposto. As diligências postais eram leves e acanhadas, mas duas vezes mais velozes do que as outras, maiores. Os portões interiores do pátio foram abertos, os cocheiros chicotearam as parelhas e a carruagem arrancou, gingando, pela Tothill Street. Os cascos ressoavam e as rodas troavam no empedrado à medida que a carruagem ia ganhando velocidade, mas à passagem pela Knightsbridge já Sandman dormia a sono solto.

 

Acordou cerca das 6 horas, na altura em que a diligência sacolejava por uma paisagem de pequenos campos e bosques, disseminados um pouco por toda a parte. Sandman olhava pela janela, deleitado por se encontrar fora de Londres. O ar parecia incrivelmente puro. Nada daquele fedor permanente a fumo de carvão e excremento de cavalo, apenas o sol da manhã brilhando nas folhas de Verão e o cintilar de um ribeiro serpenteando por entre choupos e salgueiros à beira de um prado onde pastava gado.

 

A disposição de Sandman melhorava a cada quilómetro vencido. Apercebeu-se subitamente de que estava feliz, mas não sabia ao certo por que razão. Talvez fosse, pensou, porque a sua vida tinha agora novamente um objectivo ou talvez porque reencontrara Eleanor e nada na atitude dela deixara transparecer, segundo lhe pareceu, a iminência de um casamento com Lord Eagleton.

 

Lord Alexander Pleydell fora de opinião idêntica na noite anterior, a maior parte da qual passada a venerar Sally Hood, embora ela parecesse um pouco ausente, com o pensamento no sargento Berrigan. Não que Lord Alexander tivesse dado por isso. Ele, tal como Lord Christopher Carne, ficara sem fala diante de Sally, pelo que os dois aristocratas se tinham limitado a olhar para ela durante praticamente toda a noite, até que por fim Sandman tomara Lord Alexander de parte e o conduzira para a saleta do fundo.

 

- Preciso de falar contigo - dissera-lhe.

 

- Eu quero continuar a minha conversa com Miss Hood - reclamara Lord Alexander, rabugento.

 

- E vais continuar - tranquilizou-o Sandman. - Mas primeiro falas comigo. O que é que sabes acerca do marquês de Skavadale?

 

- Herdeiro do ducado de Ripon - respondeu Lord Alexander de pronto. - Oriundo de uma das velhas famílias católicas de Inglaterra. Não é um homem inteligente, e correm boatos de que a família está com problemas financeiros. Eram extremamente ricos outrora. Possuíam propriedades no Cumberland, Yorkshire, Cheshire, Kent, Hertfordshire e Sussex, mas tanto o pai como o filho são jogadores.

 


- Lord Robin Holloway?

 

- Filho mais novo do marquês de Bleasby e uma verdadeira peste. Tem muito dinheiro, mas é completamente desmiolado e matou um homem em duelo no ano passado. Vais interrogar-me acerca de toda a aristocracia?

 

- Lord Eagleton?

 

- Um peralvilho e um sensaborão sem qualquer interesse.

 

- O género de homem que podia agradar a Eleanor? Alexander olhou para Sandman, atónito.

 

- Não sejas absurdo, Rider - exclamou, acendendo novo cachimbo. - Ela não o suportaria dois minutos sequer! - Franziu a testa como quem tenta recordar-se de alguma coisa, mas, fosse lá o que fosse, não lhe ocorreu à memória.

 

- Conta-me o que sabes acerca do Clube Serafim.

 

- Nunca ouvi falar dele, mas soa a uma associação de virtuosos

 

membros do clero. .

 

- Mas não é, podes crer. A palavra "serafim" tem algum significado especial? .

 

- Os serafins, Rider, constituem a classe superior dos anjos. São também tidos como os patronos do amor. E agora achas que já posso regressar à minha conversa com Miss Hood?

 

Lord Alexander ficou até depois da meia-noite, embriagou-se, falou pelos cotovelos, depois partiu juntamente com Lord Christopher, que teve de amparar o amigo quando ele saiu, cambaleando, da Wheatsheaf, declarando o seu amor eterno a Sally. Sandman, entretanto, já recolhera à cama, a pensar se iria acordar a tempo de apanhar a diligência postal; no entanto, ali estava ele viajando num dia glorioso de Verão, daqueles com que toda a gente sonha.

 

ERA MEIO-DIA quando a mala-posta entrou com estrépito na larga rua principal de Marlborough. Uma pequena multidão aguardava a chegada do correio. Sandman abriu caminho pelo meio dela e perguntou a um carregador onde ficava a propriedade do conde de Avebury. O Solar Carne não ficava longe, disse o homem, era logo a seguir ao no, a meia hora de caminho. Sandman, de estômago atormentado pela fome, caminhou para sul até alcançar o grande muro de tijolo do Solar Carne. Seguiu ao longo do muro até que encontrou um pequeno pavilhão e um portão duplo de ferro. Desse portão partia um caminho de cascalho coberto de ervas altas.

 

Junto ao pavilhão havia uma sineta, mas, muito embora Sandman a tivesse puxado uma dúzia de vezes, ninguém atendeu. Os espigões que encimavam o portão tinham um aspecto ameaçador, pelo que Sandman retrocedeu pelo caminho por onde viera até chegar a um local onde um olmeiro, plantado junto do muro, tornava a ascensão mais fácil. Parou por um instante na copa da árvore, após o que saltou para o parque. Movimentou-se depois com cautela, meio receoso de vir a encontrar um guarda-caça ou outro qualquer serviçal que o impedisse de prosseguir, até que alcançou a alameda de cascalho.

 

Não avistou ninguém enquanto avançava pela alameda por entre renques de faias. Para lá das últimas árvores, entreviu, por fim, o Solar Carne. Era um magnífico edifício de pedra com uma fachada de três grandes empenas e janelas de caixilhos, por entre as quais crescia hera. A oeste ficavam os estábulos, as cocheiras e uma horta, anexa à cozinha, cercada por um muro de tijolo, enquanto por detrás da casa relvados desciam em socalcos até um curso de água lá ao fundo.

 

Atravessou o grande terreiro de gravilha, onde as carruagens podiam manobrar frente à casa, e trepou os degraus de entrada. Havia duas lanternas envidraçadas, uma de cada lado do alpendre, embora a uma faltasse uma das vidraças e o respectivo suporte de velas se encontrasse obscurecido por um ninho de pássaro. Puxou a corrente da sineta e esperou.

 

Um ruído estridente à sua direita fê-lo dar uns passos atrás. Viu então que um homem tentava abrir uma janela de caixilhos de chumbo na dependência mais próxima do alpendre. A janela encontrava-se obviamente emperrada, mas depois lá se abriu, e o homem debruçou-se para espreitar. Era já relativamente idoso e tinha um rosto macilento.

 

- A casa não está aberta a visitantes - exclamou em tom ríspido.

 

- Nem eu contava que estivesse - retorquiu Sandman. - O senhor é o dono da casa?

 

- Tenho ar disso? - perguntou o homem de mau humor.

 

- Tenho assuntos a tratar com Sua Senhoria - explicou Sandman.

 

- Assuntos? Assuntos? - O homem falava como se nunca tivesse ouvido semelhante coisa.

 

- São assuntos delicados - frisou Sandman, dando a entender que não eram da conta do criado. - E eu sou o capitão Sandman.

 

O homem retirou-se para dentro. Sandman aguardou. Uma janela do outro lado do alpendre abriu-se então, e a ela assomou o mesmo criado.

 

- Capitão de quê? - perguntou ele.

 

- Do 52.° de Infantaria - respondeu Sandman. E o criado desapareceu.

 

- Sua Senhoria deseja saber - disse o criado, surgindo de novo na primeira janela - se o senhor esteve no 52.° em Waterloo.

 

- Estive - confirmou Sandman.

 

O criado voltou para dentro, e Sandman ouviu o ruído de trancas a serem retiradas do outro lado da porta, até que esta, finalmente, se abriu.

 

O criado esboçou uma vénia.

 

- Capitão Sandman. Por aqui, por favor.

 

A porta dava para um hall apainelado de madeira escura. O criado conduziu Sandman por um corredor que desembocava numa longa galeria preenchida com janelas altas com cortinas de veludo de um lado e quadros do outro. Os quadros, tanto quanto lhe era dado observar à escassa luz coada pelas cortinas, eram de excepcional qualidade.

 

O criado abriu uma porta e anunciou Sandman. A sala onde acabara de entrar era ampla, e a claridade do dia, penetrando, iluminava uma mesa enorme decorada com fragmentos de algo que, à primeira vista, lhe pareceu serem flores ou pétalas. Depois, verificou que esses fragmentos coloridos eram, afinal, milhares de soldados de brincar. A mesa encontrava-se coberta por um pano verde, de forma a representar o vale onde fora travada a Batalha de Waterloo. Olhou, espantado, para o modelo, que tinha, pelo menos, nove metros de comprimento por seis de largura. Numa mesa lateral, estavam sentadas duas raparigas munidas de pincéis e tinta que aplicavam a soldados de chumbo. Um rangido levou-o a olhar para a claridade através de uma janela virada a sul, e foi então que avistou o conde. Sua Senhoria estava sentado numa cadeira de rodas, e o rangido fora provocado pelo rodar dos eixos quando um criado a empurrou para conduzir o conde à presença do seu visitante.

 

O conde estava vestido à moda antiga, a moda que prevalecera até os homens terem resolvido adoptar cores mais sóbrias, como o negro ou o azul-escuro. O casaco era de seda às flores, azul e vermelha, e tinha umas mangas enormes e uma ampla gola sobre a qual tombava uma cascata de rendas. Usava uma peruca comprida que lhe emoldurava o rosto velho e enrugado, incongruentemente cheio de pó-de-arroz e muge.

 

- Você está com certeza a pensar - disse ele, dirigindo-se a Sandman numa voz esganiçada - como é que se consegue colocar os modelos no centro da mesa, não está?

 

A questão nem sequer assomara à mente de Sandman, mas agora que ela fora levantada, achava-a realmente intrigante, pois a mesa era, de facto, demasiado extensa para que dos lados se conseguisse alcançar o centro.

 

- Como é que se consegue, Vossa Senhoria?

 

- Betty, minha querida, mostra-lhe - ordenou o conde. E uma das raparigas pousou o pincel e desapareceu debaixo da mesa. Ouviu-se um som arrastado, e então uma secção inteira do vale ergueu-se no ar, formando como que um chapéu enorme à sorridente Betty

- E um modelo de Waterloo - exclamou o conde, todo orgulhoso

 

- Estou a entender, Vossa Senhoria.

 

- Maddox disse-me que você fez parte do 52.°. Mostre-me onde estavam posicionados.

 

Sandman caminhou ao longo da borda da mesa e apontou para um dos batalhões de casacas vermelhas posicionado no cimo de um monte

- Estávamos aqui. - O modelo era realmente extraordinário Mostrava os dois exércitos no início da batalha. Sandman conseguia ate identificar a sua própria companhia e presumiu que a pequena figura a cavalo à frente das fileiras de soldados pintados seria ele próprio

 

- Porque sorri? - indagou o conde.

 

- Por nenhuma razão especial. - Sandman olhou novamente para o modelo. - Acontece que naquele dia eu não estava a cavalo

 

- Qual era a companhia?

- Granadeiros.

 

O conde fez um gesto afirmativo com a cabeça.

 

- Vou substituí-lo por um soldado a pé - disse. A cadeira chiou novamente; o conde seguia Sandman à roda da mesa. - Diga-me lá então: Bonaparte perdeu a batalha por ter atrasado o seu início?

 

- Não - respondeu Sandman bruscamente.

 

O conde encontrava-se agora junto de Sandman e podia pela primeira vez olhar bem para ele com os seus olhos escuros e cruéis orlados de vermelho.

 

- Quem diabo é você? - rosnou.

 

- Venho da parte de Lord Sidmouth, Vossa Senhoria, e ...

 

- Quem diabo é Lord Sidmouth? - interrompeu o conde.

 

- O ministro do Interior. - Exibiu a carta de Lord Sidmouth que o conde afastou de si com um gesto de mão. - Disseram-me que os criados da sua casa da cidade, na Mount Street, se encontravam agora aqui. - Não ouvira nada do género, mas talvez a afirmação feita assim de forma ousada suscitasse a confirmação por parte do conde Gostaria de falar com um deles.

 

- Está porventura a sugerir - inquiriu o conde num tom de voz ameaçador - que Bliicher podia ter acorrido mais rapidamente caso Bonaparte tivesse atacado mais cedo?

 

- Não, Vossa Senhoria.

- Então, se ele tivesse atacado mais cedo, teria ganho! - insistiu o conde.

 

Sandman observou o modelo. Era impressionante, completo mas estava tudo mal. Primeiro, estava limpo demais. Mesmo de manhã antes do ataque dos Franceses, todos os soldados estavam sujos, porque no dia anterior a maior parte do exército marchara desde Quatre Brás através de enormes lamaçais e depois passara a noite ao ar livre sob chuvadas contínuas. Sandman lembrava-se dos trovões e dos relâmpagos e do terror que se instalara quando alguns cavalos se libertaram durante a noite e irromperam a galope por entre as tropas encharcadas.

 

- Porque perdeu então Bonaparte? - inquiriu o conde com voz agastada.

 

- Porque permitiu que a sua cavalaria atacasse sem o apoio da infantaria nem da artilharia - respondeu Sandman laconicamente.

 

- E porque é que ele lançou então a sua cavalaria quando a lançou, hem? Diga-me lá.

 

- Foi um erro, Vossa Senhoria. Até os melhores generais cometem erros.

 

O conde bateu impacientemente nos braços de vime da sua cadeira.

 

- Bonaparte não cometia erros estúpidos! O homem pode ser um traste, mas é um traste inteligente. Porquê então?

 

Sandman soltou um suspiro.

 

- A nossa formação fora desfalcada de efectivos e encontrávamo-nos na vertente oposta à dos Franceses. Duvido sequer que estivéssemos visíveis. Do ponto de vista francês, devia ser como se nos tivéssemos evaporado. Os Franceses viram uma crista vazia e devem ter pensado que havíamos retirado, por isso carregaram. Posso perguntar a Vossa Senhoria o que aconteceu aos criados que a sua esposa tinha na Mount Street?

 

- Esposa? Eu não tenho esposa. Maddox!

 

- Vossa Senhoria? - O criado aproximou-se.

 

- A galinha fria, acho eu, e um pouco de champanhe - pediu, após o que fitou Sandman de mau humor. - Estava lá quando a Guarda Imperial atacou?

 

- Eu estive lá, Vossa Senhoria, desde o canhoneio que assinalou o primeiro ataque dos Franceses até ao último tiro do dia.

 

O conde pareceu encolher os ombros.

 

- Odeio os Franceses - exclamou de súbito. - Detesto-os. Enchemo-nos de glória em Waterloo, capitão!

 

Sandman já conhecera outros homens como o conde, homens que viviam obcecados por Waterloo e que queriam saber em detalhe o que se passara em cada um dos minutos daquele dia terrível. E todos eles tinham uma coisa em comum: nenhum lá estivera.

 

- Conte-me lá quantas vezes é que a cavalaria francesa carregou

- pediu o conde.

 

- Vossa Senhoria, eu só pretendo saber se uma criada chamada Meg veio de Londres para cá.

 

- Para que diabo é que me interessa o que aconteceu aos criados daquela cabra, hem? E porque é que está a perguntar-me isso?

 

- Está um homem preso a aguardar execução pelo homicídio da sua esposa, Vossa Senhoria, e há boas razões para crer que esteja inocente.

 

O conde pôs-se a rir. Um riso que provinha do fundo do peito magro e lhe trouxe lágrimas aos olhos. Tirou um lenço de dentro da manga rendada e enxugou-os.

 

- Até no último momento ela arruinou um homem, é? - inquiriu com voz áspera. - Oh, ela era mesmo boa a fazer mal, a minha Célia.

- Encarou Sandman com ar agreste. - Então, quantos batalhões da Guarda de Napoleão subiram o monte?

 

- Não foram suficientes. O que aconteceu aos criados da sua esposa?

 

O conde ignorou Sandman, porque entretanto a galinha fria e o champanhe tinham sido colocados na borda da mesa. Chamou Betty para lhe cortar a galinha e, enquanto ela o fazia, passou-lhe um braço à volta da cintura. Depois, volveu os olhos remelosos para Sandman.

 

- Sempre gostei de mulheres jovens. Jovens e tenras. Tu! - O chamamento foi então para a outra rapariga. - Serve-me o champanhe, filha. - A jovem veio colocar-se do outro lado do conde, e ele enfiou-lhe uma mão por debaixo da saia enquanto ela lhe enchia o copo. Sandman voltou-se e pôs-se a olhar pela janela.

 

O conde comeu sofregamente a galinha e sorveu ruidosamente o champanhe.

 

- Informaram-me que a cavalaria francesa carregou pelo menos vinte vezes - disse, despachando as duas raparigas com uma palmada no traseiro. - Foi assim?

 

Pela memória de Sandman, que continuava voltado para a janela, desfilava a visão, tantas vezes repetida, da cavalaria francesa galgando o monte em direcção à crista defendida pelos Britânicos, os seus cavalos avançando esforçadamente sobre o terreno mole. No meio de tanto calor e da fumarada densa, os cavaleiros franceses nunca tinham parado de atacar, massacrando os quadrados britânicos, sobre cujas bandeiras pairava o fumo dos mosquetes e dos canhões.

 

- Do que me recordo claramente - exclamou Sandman, voltando-se - é de me sentir agradecido aos Franceses, pois enquanto a cavalaria se mantivesse junto dos nossos quadrados, a artilharia deles não podia atirar sobre nós.

 

- Mas quantas cargas é que eles efectuaram?

 

- Dez? - arriscou Sandman. - Vinte? Eles estavam constantemente a atacar. E era difícil contá-las por causa da fumarada. E tinhamos que estar atentos à retaguarda também, porque depois de uma carga atravessar os quadrados tinha forçosamente que voltar para trás.

 

- Quer dizer então que eles atacavam por ambos os lados?

 

- Por todos os lados - esclareceu Sandman, recordando as hordas de cavaleiros, a lama e o relinchar dos cavalos moribundos.

 

- Quantos eram os efectivos da cavalaria? - perguntou o conde.

 

- Não os contei. Quantos criados tinha a sua mulher? O conde sorriu.

 

- Traz-me um cavaleiro, Betty - ordenou. E a rapariga, obedientemente, trouxe-lhe a miniatura de um dragão francês com a sua jaqueta verde.

 

- Muito bonito, minha querida - disse o conde. Depois, colocou o dragão em cima da mesa e sentou Betty no colo. - Sou um homem velho, capitão, e se pretender alguma coisa de mim, terá de me obsequiar de alguma forma. Betty sabe isso, não sabes, filha? - Lançou a Sandman um olhar pouco amistoso. - Portanto, vai contar-me tudo o que eu quero saber, capitão, e quando tiver terminado, talvez eu lhe conte então um pouco daquilo que quer saber.

 

Lá fora, no hall, um relógio bateu seis badaladas, e Sandman sentiu a angústia do tempo perdido. Afigurava-se-lhe que o conde iria iludi-lo durante toda a tarde e mandá-lo embora sem resposta às suas perguntas.

 

- Comecemos pelo princípio, capitão - disse o conde. - Comecemos pela alvorada, hem? Tinha chovido, não é assim?

 

Sandman deu a volta à mesa, colocou-se atrás do conde, dobrou-se sobre ele até ficar com o rosto quase colado aos cabelos ásperos da peruca e disse:

 

- Porque não falar antes sobre o final da batalha, Vossa Senhoria? Porque não falar do ataque da Guarda Imperial? Porque eu estava lá quando apanhámos os trastes pelo flanco. - Debruçou-se ainda mais e baixou o tom de voz até se converter num sussurro rouco. - Eles tinham já ganho a batalha; estava tudo consumado, excepto a perseguição, mas nós mudámos o curso da História num abrir e fechar de olhos. Saímos da formação e servimos-lhes várias saraivadas de tiros, Vossa Senhoria, depois fixámos baionetas e posso contar-lhe exactamente como tudo aconteceu. Posso dizer-lhe como foi que ganhámos.

 

- Sandman sentia agora o sangue a ferver. - Mas nunca vai ouvir essa história, Vossa Senhoria, nunca, porque eu vou tratar de me certificar de que nenhum oficial do 52.° alguma vez fale consigo a esse respeito! Está a compreender? Um bom dia para Vossa Senhoria. - E dirigiu-se para a porta.

 

- Capitão! - O conde enxotara já a rapariga do colo. - Espere!

 

- O seu rosto pintado crispou-se. Queria desesperadamente saber como é que a tão afamada Guarda de Napoleão fora derrotada, por isso ordenou rispidamente às duas raparigas e ao criado que abandonassem a sala.

 

Foi necessário ainda algum tempo mais para lhe arrancar a história Tempo e uma garrafa de champanhe francês de contrabando, mas por fim, o conde lá vomitou o triste relato do seu casamento.

 

- Pernas - exclamou o conde de olhos semicerrados. - Que pernas aquelas, capitão! Foi a primeira coisa em que eu reparei nela

 

- No Sans Pareil? - inquiriu Sandman.

 

O conde lançou a Sandman um olhar acutilante.

 

- Com quem é que andou a falar? Quem?

 

- E o que se diz por aí - retorquiu Sandman.

 

- O meu filho? - conjecturou o conde, dando uma risada Esse enfezado macilento? Devia tê-lo morto à nascença. A mãe dele era uma rata de sacristia, e o raio desse tarado pensa que saiu a ela Mas não saiu; tem muito de mim. Pode passar a vida a ajoelhar-se capitão, mas só pensa em tetas e nádegas, pernas e tetas outra vez 'oiz que quer ser padre! Mas não. O que ele quer, capitão, é ver-me morto!

- Esta ultima palavra foi proferida com grande ênfase. - O que lhe contou então o pequeno idiota pálido? Que eu matei Célia? Talvez o tenha feito, capitão, ou talvez Maddox o tenha feito por mim mas como e que vai provar isso, hem? - O conde esperou por uma resposta, mas Sandman nada disse.

 

- Céus, mas essa cabra roubou-me à grande. Nunca conheci outra mulher que gastasse dinheiro daquela maneira! Quando caí em mim ainda tentei cortar-lhe a mesada. Disse aos curadores do património' para a porem da casa para fora, mas os canalhas deixaram-na ficar lá quem sabe se ela não andava a fornicar com um deles? Foi assim que ela conseguiu a fortuna dela, capitão, a fornicar metodicamente.

 

- Está a querer dizer que ela era uma prostituta, Vossa Senhoria?

 

- Mas não uma prostituta qualquer - emendou o conde - Devo dizer isso em abono dela. Intitulava-se actriz e dançarina. - Volveu para Sandman os olhos remelosos. - Célia utilizava a chantagem capitão. Tomava um jovem por amante, induzia-o a escrever-lhe uma carta ou duas a solicitar-lhe os seus favores e depois, quando o jovem estava comprometido com alguma herdeira rica, ameaçava revelar essas cartas. Juntou assim uma bela maquia, isso é que juntou! Disse-mo ela cara a cara. Disse-me que não precisava do meu dinheiro porque tinha fortuna própria.

 

- Sabe quem eram os homens que ela tratou dessa forma?

 

O conde abanou a cabeça. Quedou-se a contemplar o modelo do campo de batalha, evitando olhar para Sandman.

 

- Eu não quis saber nomes - murmurou baixinho.

 

- E os criados, Vossa Senhoria? O que foi feito deles?

 

- Não estão aqui - respondeu com ar agressivo. - Disse aos curadores para se livrarem deles. Não sei que raio é que foi feito dos criados de Célia. Nem quero saber disso para nada. E agora, diabos o levem, conte-me o que aconteceu quando a Guarda do Imperador atacou.

 

E Sandman assim fez.

 

SANDMAN REGRESSOU a Londres ao fim da tarde de quinta-feira, após uma noite mal dormida sobre uma meda de palha no pátio da Cabeça do Rei, em Marlborough. Estava de mau humor porque chegara à conclusão de que a sua deslocação ao Wiltshire fora, em larga medida, tempo perdido. Duvidava que o conde de Avebury tivesse assassinado ou mandado assassinar a mulher. A única informação útil que obtivera fora a de que a defunta condessa se governara através de chantagem feita aos seus amantes, mas isso não o ajudara a descobrir quem tinham sido esses amantes.

 

Para entrar na Wheatsheaf utilizou a porta lateral, que dava para o terreiro da cavalariça da estalagem. Aí chegado, bombeou água para a caneca de estanho presa ao cabo. Bebeu-a de um trago, depois, ouvindo cascos na entrada para o estábulo, voltou-se. Jack Hood estava a pôr a sela no dorso de um lindo cavalo. Tal como o seu cavalo, Jack Hood era alto e todo ele escuro. Trazia botas pretas, calções pretos, um casaco preto cintado e o seu cabelo comprido preto preso na nuca por uma fita de seda preta. Fez um sorriso franco a Sandman.

 

- Está com ar cansado, capitão.

 

- Cansado, pobre, esfomeado e sedento - respondeu Sandman, voltando a accionar a bomba.

 

- É o que faz levar uma vida venturosa - retorquiu Hood alegremente, ao mesmo tempo que enfiava duas pistolas de cano comprido nos coldres da sela.

 

Sandman acabou de beber a água, pousou a caneca e perguntou:

 

- E o que é que vai fazer, Mr. Hood, quando um dia for apanhado?

 

- Quando for apanhado? Venho pedir-lhe ajuda, capitão. Sally diz que o senhor rouba clientes à forca.

 

- Só que até agora ainda não roubei ninguém ao cadafalso.

 

- E duvido de que alguma vez o faça - exclamou Hood em tom sombrio -, porque não é assim que o Mundo gira. Eles não querem saber quantos é que enforcam; querem é que a gente saiba que eles enforcam. - Hood apoiou o pé no estribo e içou-se para a sela. - Muito provavelmente, vou acabar os meus dias no palco do cadafalso, mas não perco o sono nem vou chorar por causa disso. A forca está lá, capitão, e nós temos de viver com ela até morrermos nela, e não vamos mudar nada porque os patifes não querem que nada mude. O Mundo é deles, não é nosso. - Calçou um par de luvas pretas de pele fina. Estão ali, na barraca dos fundos, uns sujeitos que querem falar consigo, capitão - disse ele, referindo-se à pequena sala das traseiras Mas, antes de ir lá falar com eles, quero que saiba que jantei no Dog and Duck e ouvi por lá uns boatos. A sua vida por cinquenta notas Ergueu um sobrolho. - O senhor meteu medo a alguém, capitão Já espalhei aqui na estalagem o aviso de que ninguém lhe deve tocar, porque o senhor tem sido bom para a minha Sal, mas não posso controlar todas as tabernas de má fama de Londres.

 

Sandman sentiu o coração cair-lhe aos pés. Cinquenta guinéus pela sua vida? Perguntou então:

 

- Suponho que não saiba quem é que está a oferecer o dinheiro?

 

- Perguntei, mas ninguém me soube dizer. Por isso, tenha cuidado consigo, capitão.

 

Sandman atalhou caminho pela adega, dirigindo-se para um corredor onde existia uma porta de serviço para a sala das traseiras O visconde Sidmouth dera a entender que aquela seria uma missão fácil o salário de um mês pelo trabalho de um dia, mas, de súbito, parecia ter-se transformado no salário de um mês pelo custo de uma vida. Entreabriu a porta com cuidado para não fazer ruído, depois debruçou-se para espreitar pela abertura.

 

Ouviu passos atrás de si, mas, antes de poder virar-se, já tinha o cano frio de uma pistola encostado a uma orelha.

 

- Um bom soldado faz sempre um reconhecimento prévio hem capitão? - exclamou o sargento Berrigan. - Bem me pareceu que ò senhor havia de vir aqui primeiro.

 

Sandman voltou-se.

 

- O que é que vai fazer, sargento? Dar-me um tiro?

 

- Apenas certificar-me de que não traz nada consigo, capitão retorquiu Berrigan, após o que, com o cano da pistola, abriu as bandas do casaco de Sandman e, verificando que ele não vinha armado, apontou com a cabeça para a porta da pequena sala.

 

- O senhor primeiro, capitão.

 

- Sargento ... - ia a dizer Sandman, tencionando apelar ao lado bom de Berrigan. Só que esse lado bom não veio ao de cima pois o sargento ergueu a pistola e apontou-a ao peito de Sandman. sandman rodou o manipulo e entrou na salinha.

 

O marquês de Skavadale e Lord Robin Holloway estavam sentados num banco de madeira de espaldar do outro lado da mesa comprida. Ambos envergavam casacos pretos de corte esplêndido, gravatas exuberantes e calções justos. Holloway fez uma expressão de desagrado ao ver Sandman. Ainda ostentava nas faces e no nariz as cicatrizes recentes feitas por Sandman com o florete. Mas Skavadale ergueu-se cortesmente.

 

- Meu caro capitão Sandman, foi muito gentil em ter vindo fazer-nos companhia. Sente-se, por favor.

 

Sandman sentou-se com relutância, não sem antes lançar um olhar a Berrigan, que baixou o cão da pistola, mas não a largou. Em vez disso, manteve-se junto da porta a observar Sandman. O marquês de Skavadale serviu um pouco de vinho.

 

- Um clarete ainda um tanto novo, capitão, mas provavelmente bem-vindo após a sua viagem.

 

Skavadale pareceu ficar contristado quando Sandman abanou a cabeça, recusando.

 

- Oh, vá lá, capitão, estamos aqui em ambiente de paz.

 

- E eu estou aqui sob a ameaça de uma pistola.

 

- Guarde isso, sargento - ordenou Skavadale, após o que ergueu a taça num brinde a Sandman. - Aprendi um pouco mais a seu respeito nestes dois últimos dias, capitão. Já sabia que era um formidável jogador de críquete, está claro, mas é célebre também por outra razão.

 

- Qual é? - perguntou Sandman friamente.

 

- Foi um bom soldado - disse Skavadale.

 

- E daí? - indagou Sandman com a mesma frieza.

 

- Mas infeliz com o seu pai - acrescentou Skavadale com delicadeza. - Sei agora que tem a sua mãe e uma irmã a cargo. Estou enganado? - Sandman não respondeu nem fez qualquer gesto. - Se não fosse o senhor, capitão, há muito tempo que a sua mãe estaria reduzida à situação de estender a mão à caridade, e quanto à sua irmã, seria o quê? Governanta? Dama de companhia?

 

Sandman mantinha-se silencioso, no entanto Lord Skavadale falara verdade. Belle, a irmã de Sandman, tinha dezanove anos e uma única perspectiva de escapar à pobreza, que era a de casar bem; contudo, sem dote, dificilmente poderia arranjar um marido respeitável. Antes da morte do pai, Belle poderia alimentar a esperança de atrair um aristocrata, e a verdade é que não se conformava com a perda dessa possibilidade e, por uma qualquer obscura razão, culpava Sandman por ela não se concretizar.

 

- Você está a procurar pagar algumas das dívidas do seu pai prosseguiu Skavadale. - Isso é muito louvável da sua parte. Contudo, tem uma mãe e uma irmã para sustentar e nenhuma ocupação remunerada salvo um esporádico jogo de críquete. O que é que vai fazer, capitão/ Tanto quanto sei, o serviço que o ministro do Interior lhe confiou e muito temporário.

 

- E você, o que vai fazer? - perguntou Sandman.

 

- Peço desculpa?

 

- Tanto quanto sei - disse Sandman, recordando-se do que Lord Alexander lhe contara acerca do marquês -, não está em situação diferente da minha. A sua família possuiu em tempos uma grande fortuna, mas também houve nela jogadores.

 

O marquês pareceu ficar irritado, mas deixou passar o insulto.

 

- Eu vou casar bem - retorquiu com ligeireza -, quer dizer vou casar rico. E você?

 

- Talvez também case bem - ripostou Sandman.

 

- A sério? - Skavadale fez um ar céptico. - Eu vou herdar um ducado, Sandman, e isso, para uma rapariga, é um grande atractivo E você, o que é que tem para oferecer? Perícia no críquete? Recordações fascinantes de Waterloo? - Era patente o tom irónico de Sua Senhoria. - As raparigas com dinheiro casam com quem tenha mais dinheiro ou então com quem possua um título, porque dinheiro e posição são as duas únicas coisas que contam neste mundo, capitão. - Skavadale esboçou um leve sorriso. - A si foi-lhe negado o seu quinhão de riqueza, capitão. Se nos permite - fez um gesto que abarcou Lord Robm Holloway, que até aí se mantivera calado -, e este nos quer dizer a totalidade dos membros do Clube Serafim, gostaríamos de remediar essa lacuna. - Tirou do bolso uma folha de papel, colocou-a em cima da mesa e fê-la deslizar na direcção de Sandman.

 

Sandman pegou no papel e viu que era uma ordem de pagamento a lavor de Rider Sandman, a sacar da conta de Lord Robin Holloway no Coutts Bank, no valor de vinte mil guinéus.

 

Vinte mil. Sandman teve de respirar fundo. Vinte mil guinéus chegavam para pagar as dívidas menores do seu pai, comprar uma bela casa para a mãe e a irmã e introduzi-las na fidalguia rural Mas o mais tentador de tudo era saber que vinte mil guinéus constituíam fortuna suficiente para ultrapassar as objecções de Lady Forrest ao seu casamento com Eleanor. Voltaria a ser um cavalheiro de boa família. Quedou-se a olhar para a ordem de pagamento. Aquilo tornava tudo possível.

 

Levantou os olhos para Lord Robin Holloway. O idiota que quisera desafiá-lo para um duelo estava agora a dar-lhe uma fortuna? Lord Robin ignorou o olhar de Sandman, mas Lord Skavadale sorria-lhe Era o sorriso de um homem que desfrutava do espectáculo da boa sorte de

 

outro, mas que, não obstante, encheu Sandman de vergonha. Vergonha porque se sentira tentado, verdadeiramente tentado.

 

- Não esperava tanta bondade da parte de Lord Robin - exclamou Sandman secamente.

 

- Todos os membros do Serafim contribuíram - explicou o marquês -, mas foi o meu amigo Robin quem reuniu os fundos. É uma oferta, claro está.

 

- Uma oferta? - Sandman repisou as palavras com azedume. Não é um suborno?

 

- Claro que não é um suborno - retorquiu Skavadale em tom sério. - Sinto-me ofendido, capitão Sandman, quando vejo um cavalheiro reduzido à penúria. E quando esse cavalheiro é um oficial que combateu galhardamente pelo seu país, a ofensa ainda é maior. Eu referi-lhe que o Clube Serafim era composto por homens que procuram a excelência. Que outra coisa são os anjos senão seres que praticam o bem? É por isso que gostaríamos de o ver a si e à sua família devolvidos ao lugar que lhes pertence na sociedade. Apenas isso.

 

Lord Skavadale falara num tom calmo e sereno, como se aquela transacção constituísse algo perfeitamente normal. Mas Sandman não se deixava enganar com aquela facilidade.

 

- E o que é que pretendem em troca? Lord Skavadale pôs um ar ofendido.

 

- Espero apenas, capitão - disse em tom formal -, que se comporte de modo cavalheiresco.

 

- Estou certo de que sempre me comportei dessa forma - respondeu Sandman com voz glacial.

 

- Nesse caso, deverá saber, capitão, que os cavalheiros não executam trabalhos pagos - exclamou Skavadale em tom crítico.

 

- Devo então escrever ao ministro do Interior resignando ao cargo de investigador?

 

- É isso que se espera de um cavalheiro - observou Skavadale.

 

- E também se espera de um cavalheiro que deixe enforcar um inocente? - perguntou Sandman.

 

- E estará mesmo inocente? - inquiriu Skavadale. - Você disse ao sargento que iria trazer provas da sua viagem ao campo. Trouxe? Fez um compasso de espera, mas, pela expressão de Sandman, era evidente que não havia qualquer prova. Skavadale encolheu os ombros, como que a sugerir que, bem vistas as coisas, Sandman devia aceitar o dinheiro. Mas Sandman ganhou coragem e rasgou a ordem de pagamento em pedaços. Viu Skavadale piscar os olhos quando fez o primeiro rasgão, depois Sua Senhoria ficar mesmo furioso, e ele começou a sentir algum receio.

 

O marquês de Skavadale e Lord Robin Holloway puseram-se de pé. Trocaram um olhar com o sargento Berrigan e foi como se tivesse havido uma combinação prévia entre eles. Sem olharem para Sandman uma vez sequer, saíram os dois da pequena sala. O som dos seus passos foi-se perdendo ao longo do corredor, ao mesmo tempo que Sandman sentia na nuca o toque frio do metal. Sabia que era a pistola e ficou tenso.

 

- Teve a sua oportunidade, capitão. - De seguida, o sargento debruçou-se para mais perto do ouvido de Sandman. - Tenha cuidado consigo. - Era exactamente o mesmo conselho que Jack Hood lhe dera. Sandman ouviu a porta a abrir-se e a fechar-se de novo e o som dos passos do sargento a desvanecer-se lentamente.

 

"Vinte mil guinéus perdidos", pensou.

 

O REVERENDO LORD Alexander Pleydell reservara um dos camarotes de primeira fila do Teatro Covent Garden para o espectáculo.

 

- Não posso dizer que esteja à espera de um grande nível artístico

- declarou ele enquanto seguia Sandman por entre a multidão. - Excepto da parte de Miss Hood. Tenho a certeza de que ela vai estar mais do que deslumbrante. - Sua Senhoria, tal como Sandman, levava os bolsos bem apertados, já que as entradas para os teatros eram reconhecidamente um terreno de caça ideal para os carteiristas.

 

Sandman aproximava-se já do frontispício fortemente iluminado do teatro.

 

- Achas que Miss Hood aceitará cear connosco depois do espectáculo? - Lord Alexander teve que gritar para ser ouvido, dado o ruído feito pela multidão.

 

- Estou certo de que ficará imensamente feliz por ser alvo das atenções de um dos seus admiradores.

 

- Um dos? - inquiriu Lord Alexander, ansioso. - Não estás com certeza a pensar em Kit Carne, pois não? - Lord Alexander parecia não estar de acordo. - Kit não é um homem a sério, Rider. É fraco. Na outra noite, não fazia senão olhar para Miss Hood de semblante vazio! Deus sabe o que ela terá pensado a seu respeito. Mas eu não quero ser demasiado duro para com Kit. Ele tem pouca experiência com mulheres, e receio que não tenha defesas contra os seus encantos.

 

Nesse momento, a multidão deu uma guinada inexplicável, e Sandman conseguiu finalmente atingir a porta de entrada. Se a multidão que ocasionava todo aquele aperto fora paga, então custara uma fortuna a Mister Spofforth, pensou Sandman. Spofforth era o homem que alugara o teatro naquela noite a favor da sua protegida, uma tal Miss Sacharissa Lasorda, anunciada em cartaz como a nova Vestris. A anterior Vestris fora uma deslumbrante actriz italiana, de quem se dizia acrescentar todas as noites trezentas libras às receitas do teatro só por mostrar as pernas, e Mister Spofforth tentava agora lançar Miss Lasorda numa carreira de idêntica rendibilidade.

 

Ocuparam os seus lugares, que ficavam logo por cima do palco. Lord Alexander trazia consigo um saco cheio de cachimbos de barro e acendeu o primeiro da noite. A casa encontrava-se cheia, tinha para cima de três mil espectadores e estava também extremamente barulhenta, porque grande parte deles já se apresentava embriagada, o que fazia pensar que os criados de Mister Spofforth deviam ter andado pelas tabernas a arrebanhar apoiantes. Um grupo de jornalistas estava a ser apaparicado com champanhe e ostras num camarote defronte do luxuoso ninho de águia de Lord Alexander. Mister Spofforth, um peralvilho altivo com uma gola que lhe subia acima das orelhas, encontrava-se num camarote próximo, de onde mantinha um olhar atento e ansioso sobre os jornalistas, cujo veredicto podia lançar ou matar a carreira da sua amante. Uma dúzia de músicos entrou em fila indiana no fosso da orquestra e começou a afinar os instrumentos.

 

- Ando a reunir um onze de cavalheiros para jogarem contra Hampshire no fim deste mês - disse Lord Alexander. - E espero sinceramente poder contar contigo.

 

- Gostava imenso, mas estou muito destreinado - declarou Sandman.

 

- Então, trata de treinares - retorquiu Lord Alexander, agastado, enquanto limpava as lentes dos seus binóculos de ópera com as abas do casaco.

 

Soou um aplauso quando um grupo de rapazes deu a volta ao teatro para apagar as luzes. O tambor deu um rufo portentoso, e um actor com uma capa irrompeu de entre as cortinas para recitar o prólogo:

 

Em África, lá tão longe,

 

Um rapazinho costumava vaguear.

 

Aladino era o nome do nosso herói...

 

Não conseguiu ir mais além, pois a audiência afogou-o num mar de gritos, apitos e assobios.

 

- Mostra-nos mas é as pernas da rapariga! - gritou um homem do camarote ao lado do de Sandman. - Queremos ver-lhe a tranca!

 

Mister Spofforth pareceu ficar nervoso, mas os músicos começaram a tocar, e isso acalmou um pouco a audiência, que aplaudiu quando o prólogo foi abandonado e as pesadas cortinas escarlates se abriram, mostrando a clareira de uma floresta em África. Carvalhos e rosas amarelas emolduravam um ídolo que guardava a entrada de uma caverna, onde uma dúzia de nativas de pele branca dormia. Sally era uma das nativas, as quais, inexplicavelmente, vestiam jaquetas de veludo preto, saias de xadrez muito curtas e meias brancas. Lord Alexander berrou de contentamento quando as doze raparigas se ergueram e começaram a dançar. Mas outros puseram-se a troçar.

 

- Tragam mas é a rapariga! - exigia o homem do camarote ao lado. Parte da multidão trazia consigo matracas, e o seu estralejar ecoava pela sala dourada, produzindo uma enorme chinfrineira.

 

- Oh, isto é esplêndido! - exclamou Lord Alexander, encantado. A gerência do teatro devia ter pensado que a aparição de Miss Sa-

 

charissa Lasorda acalmaria o tumulto, pois a rapariga foi empurrada para a cena prematuramente. Mister Spofforth ergueu-se e começou a aplaudir, e a sua claque seguiu-lhe o exemplo, batendo vigorosamente as palmas. Miss Lasorda, que fazia o papel de filha do sultão de África, tinha cabelo escuro e era bonita, sem dúvida, mas se as suas pernas mereciam ser tão famosas quanto as de Vestris, isso permanecia um mistério, já que trazia uma saia comprida, bordada com crescentes, camelos e cimitarras. Antes de começar a dançar, saudou os seus admiradores com uma vénia.

 

- Mostra-nos as coxas! - berrou o homem do camarote do lado.

 

- Tira a saia! Tira a saia! - começou a turba da plateia a entoar em coro.

 

Lord Alexander tinha lágrimas de alegria nas faces.

 

- Como eu adoro o teatro! - exclamou. - Meu Deus, como eu o adoro. Isto deve ter custado àquele jovem doido duas mil libras, no mínimo.

 

Sandman não ouviu o que o seu amigo dissera, por isso debruçou-se sobre ele.

 

- O quê? - perguntou.

 

Nesse momento, ouviu qualquer coisa a bater na parede ao fundo do camarote e entreviu, na penumbra reinante, um jacto de poeira. Olhou para cima e descortinou lá no alto, na galeria, uma mancha de fumo. Foi então que percebeu que tinham disparado um tiro contra si. Ficou de tal forma estupefacto que durante uns segundos não se mexeu. A audiência foi emudecendo a pouco e pouco. Algumas pessoas tinham ouvido o disparo sobrepondo-se ao ruído ambiente, enquanto outras sentiam no ar o cheiro a pólvora.

 

Sandman abriu a porta para o corredor e avistou dois homens que subiam as escadas a correr, cada um com uma pistola na mão. Voltou a fechar rapidamente a porta.

 

- Encontramo-nos na Wheatsheaf - disse a Lord Alexander, após o que alçou as pernas sobre o parapeito do camarote, fez uma breve pausa e de seguida saltou. Aterrou pesadamente, torcendo o tornozelo esquerdo.

 

- Capitão! - gritou Sally, apontando para os bastidores. Sandman dirigiu-se, coxeando, para o ídolo que guardava a entrada

 

da caverna. Sentia uma dor horrível no tornozelo.

 

Voltou-se e viu os dois homens no camarote, ambos apontando as pistolas. Todavia, nenhum deles ousou disparar para o palco cheio de gente. Então, um dos homens alçou a perna por cima do bordo dourado do camarote. Sandman, a coxear, seguiu na direcção dos bastidores, cambaleando por entre uma teia de cordas, depois descendo umas escadas e, no fim destas, virando para um corredor. Cada passo que dava era um pesadelo. Parou à entrada do corredor e espalmou-se de encontro à parede. Escutou os gritos das dançarinas no palco, depois o ruído de passos descendo os degraus de madeira, e, passado um segundo, surgia um homem na esquina. Sandman passou-lhe uma rasteira, após o que lhe pôs um pé em cima do pescoço. O homem soltou um grunhido, e Sandman tirou-lhe a pistola da mão, agora inerte, e virou-o de rosto para cima.

 

- Quem é você? - perguntou. Mas o homem cuspiu para Sandman, que o agrediu com o cano da pistola e depois seguiu corredor fora, coxeando, em direcção à porta de entrada do palco. Ouvindo novamente passos atrás de si, Sandman voltou-se, erguendo a pistola, mas desta vez era Sally, que corria para ele trazendo a capa na mão.

 

- Está bem? - perguntou-lhe ela.

 

- Torci o tornozelo. Creio que não esteja partido.

 

- Venha. Apoie-se em mim. - E conduziu-o para a rua. Um homem assobiou ao ver as suas longas pernas com meias brancas. Ela mostrou-lhe os dentes, depois pôs a capa sobre os ombros.

 

- Diabos me levem. O que foi que aconteceu?

 

- Alguém disparou sobre mim. Uma espingarda.

 

- Quem?

 

- Não sei - respondeu Sandman. Alguém do Clube Serafim? Era o que parecia mais provável, especialmente depois de Sandman ter recusado o generoso suborno, mas isso não explicava a afirmação de Jack Hood de que ele tinha a cabeça a prémio. - Não sei, a sério.

 

Caminhavam agora, Sandman coxeando, pela praça pública onde funcionava o mercado de Covent Garden. Era Verão, por isso o fim de tarde ainda possuía alguma claridade, embora as sombras já se alongassem sobre as lajes cobertas de restos de hortaliça e fruta pisada. As floristas compunham no pavimento os seus cestos de flores, prontas para os vender às multidões que sairiam dos dois teatros próximos.

 

Sandman olhava constantemente para trás, mas não se avistava qualquer inimigo óbvio.

 

- Devem estar à espera de que eu regresse à Wheatsheaf - disse a Sally.

 

- Mas não sabem por que raio de porta é que vai entrar, ou sabem? - comentou Sally. - E, uma vez lá dentro, está completamente a salvo, capitão, porque não há lá um único homem que não o proteja.

 

- Tem a certeza de que não devia estar lá no teatro?

 

- Eles não vão conseguir arrancar com o diabo daquele circo outra vez.

 

Chegaram a Drury Lane, e Sally abriu a porta da Wheatsheaf.

 

- A salinha do fundo está livre? - perguntou Sandman ao dono da estalagem, Jenks.

 

Jenks confirmou com um aceno de cabeça.

 

- Um cavalheiro disse que o senhor haveria de voltar, capitão, e reservou-a para si. E tem aqui uma carta também.

 

- Deve ser Lord Alexander, porque ele queria que eu e você jantássemos com ele - explicou Sandman a Sally. Pegou na carta que Mr. Jenks lhe estendia e fez um sorriso a Sally. - Não se importa?

 

- Eu importar-me de jantar com Lord Alexander? Ele vai passar o tempo todo apenas a olhar para mim embasbacado, não é assim? disse Sally. Depois, baixando os olhos para a curta saia de xadrez que trazia, rematou: - Será melhor que eu mude de traje, quando não os olhos vão saltar-lhe das órbitas.

 

Enquanto Sally subia as escadas a correr, Sandman empurrou com o ombro a porta da salinha dos fundos e afundou-se numa cadeira, aliviado. A sala encontrava-se escura porque as cortinas estavam corridas, e as velas, apagadas, por conseguinte puxou a cortina mais próxima e descobriu então que não fora Lord Alexander que reservara a sala, mas sim o sargento Berrigan.

 

O sargento ergueu a pistola e apontou-a à cabeça de Sandman.

 

- Eles querem-no morto, capitão - disse ele.

 

SANDMAN SABIA que devia reagir com rapidez, mas quando tirasse a pistola do bolso, já Berrigan teria disparado, por isso decidiu que o melhor era entreter o sargento com conversa até Sally chegar e poder dar o alarme. Descansou o pé esquerdo sobre uma cadeira.

 

- Torci-o ao saltar para o palco durante o espectáculo de Miss Hood - explicou Sandman. - Alguém tentou matar-me.

 

- Eles só me mandaram a mim, capitão, só a mim - disse Berrigan. - E eu não estive lá no teatro. Por conseguinte, além do Clube Serafim, há mais alguém a querer vê-lo morto, hem?

 

Sandman quedou-se a olhar para ele, tentando imaginar quem diabo é que estaria a oferecer um prémio pela sua cabeça.

 

- Deve ser um grande descanso ser-se desonesto - exclamou. Ninguém a tentar matar-nos, não sentir escrúpulos em aceitar milhares de guinéus?... O meu problema, sargento, é que tanto receei vir a ser igual ao meu pai que me obriguei a agir de maneira completamente diferente, a ser conscientemente recto. Foi uma atitude extraordinariamente penosa para mim e que o aborrecia solenemente. Suponho que foi por isso mesmo que a tomei.

 

Se Berrigan ficou surpreendido com aquela estranha confissão, não o mostrou. Pelo contrário, revelou alguma curiosidade.

 

- O seu pai era desonesto?

 

Sandman fez um gesto afirmativo com a cabeça.

 

- Se houvesse alguma justiça neste mundo, sargento, ele teria sido enforcado em Newgate. Não era propriamente um malfeitor, não assaltava diligências nem roubava carteiras; em vez disso, o que ele fazia era aplicar o dinheiro das pessoas em esquemas ilegais, e estaria ainda a fazer isso se não tivesse deparado com um fulano ainda mais esperto que lhe fez o mesmo a ele.

 

O sargento Berrigan desengatilhou a pistola, depois colocou-a sobre a mesa.

 

- O meu pai era uma pessoa honesta.

 

- Era? Já não é?

 

Berrigan acendeu duas velas, após o que ergueu um jarro de cerveja que mantivera escondido no chão.

 

- O meu pai faleceu há dois anos. Era ferrador e queria que eu aprendesse o ofício; mas claro que eu tinha outras ambições, não é verdade? - Parecia pesaroso. - Ambicionava coisa melhor do que passar a vida a ferrar cavalos.

 

- Alistou-se então no Exército para escapar à forja?

 

Berrigan serviu a cerveja e empurrou uma caneca na direcção de Sandman.

 

- Eu andava a saquear. - Designava-se saquear o roubo de bagagem das malas das carruagens. - Fui apanhado, e o togas deu-me a escolher entre ir a julgamento ou alistar-me no Exército. E, nove anos depois, era sargento.

 

- E dos bons, hem?

 

- Sabia manter a ordem - corroborou Berrigan com ar triste.

 

- Eu também - disse Sandman, que possuía o dom de se fazer obedecer facilmente e com naturalidade. Fora um excelente oficial, tinha consciência disso, e, para ser honesto consigo próprio, sentia saudades desse tempo. Saudades da guerra, da segurança dada pelo Exército, da excitação das campanhas e da camaradagem dos companheiros de armas. - Você esteve em Espanha?

 

- De doze a catorze - disse Berrigan.

 

- Bons tempos esses - comentou Sandman. - Waterloo é que eu detestei

 

- Foi mau, foi - concordou Berrigan.

 

- Nunca tive tanto medo na vida - confessou Sandman. - O ar estava quente, como se tivessem aberto uma fornalha. Lembra-se?

 

- Quente - confirmou Berrigan. Depois, franzindo a testa, acrescentou: - Há muita gente que o quer morto, capitão.

 

- É isso que me intriga - admitiu Sandman. - Quando Skavadale me ofereceu aquele dinheiro, convenci-me de que ou ele ou Lord Robin teriam assassinado a condessa. Mas agora? Agora, há mais alguém com quem contar. Talvez isto contenha a resposta. - Pegou na carta que o dono da estalagem lhe entregara. - Pode chegar uma vela aqui para junto de mim?

 

A carta estava escrita com uma letra que ele bem conhecia. Eleanor pedia a Sandman que se encontrasse com ela na manhã seguinte na Confeitaria Gunter's, na Berkeley Square. Depois, havia um post scriptum: "Julgo ter notícias para si", dizia.

 

Pousou a carta.

 

- Você não ia disparar contra mim?

 

- Tenho estado a pensar se Miss Hood alguma vez voltaria a falar comigo se eu o fizesse.

 

- Duvido - retorquiu Sandman com um sorriso.

 

- E da última vez que estive consigo, as coisas estavam feias, mas acabámos por ganhar - acrescentou Berrigan.

 

- E logo contra a Guarda do Imperador - concordou Sandman.

 

- Por conseguinte, aqui estou eu outra vez do seu lado, capitão.

 

Sandman sorriu e ergueu a caneca, como que brindando. Estava satisfeito mas não surpreendido, porque pressentira desde o princípio que Berrigan andava a procurar sair do Serafim.

 

- Está à espera de algum pagamento? - perguntou a Berrigan.

 

- Vamos dividir a recompensa, capitão.

 

- Ah! Há uma recompensa?

 

- Quarenta libras - informou Berrigan. - É quanto os magistrados pagam a qualquer pessoa que lhes leve um criminoso. - Sorriu de orelha a orelha. - Então, o que vamos fazer amanhã?

 

- Amanhã, começamos por ir a Newgate - disse Sandman. Voltou-se na cadeira ao sentir a porta abrir-se atrás de si.

 

- Com um raio! - exclamou Sally, franzindo o sobrolho ao reparar na pistola em cima da mesa. Depois, deparando com Berrigan: Que diabo é que está a fazer aqui?

 

- Vim cear consigo - respondeu Berrigan. E Sally corou.

 

CHOVIA NA MANHÃ seguinte, quando Sandman e Berrigan se dirigiam à Prisão de Newgate. Sandman ainda coxeava bastante. Ligara o pé, mas o tornozelo doía-lhe como se estivesse em brasa.

 

O sargento dormira na sala dos fundos da Wheatsheaf, após se ter tornado evidente que não ia ser convidado para partilhar o leito de Sally, embora Sandman, que observara os dois durante toda a noite, achasse que isso estivera por um fio.

 

Sandman passara metade da noite acordado, tentando imaginar quem, para além do Clube Serafim, poderia querer a sua morte, e só quando o sino da Catedral de S. Paulo bateu as 2 horas é que a resposta lhe ocorreu. Partilhou-a com Berrigan enquanto desciam Holborn em direcção à Newgate Street.

 

- O Clube Serafim resolveu comprar-me, mas o único membro com capital suficiente imediatamente disponível era Lord Robin Holloway, e esse detesta-me.

 

- Isso é verdade - corroborou Berrigan -, mas todos contribuíram.

 

- Não contribuíram nada - retorquiu Sandman. - A maior parte dos membros está fora, no campo, e não havia tempo para os aliciar a contribuir. Skavadale não tem dinheiro. Pode ser que um ou dois membros que se encontrassem em Londres tenham contribuído, mas apostava que a maior parte dos vinte mil veio de Lord Robin Holloway e que ele só fez isso porque Skavadale o persuadiu. E penso que depois tomou particularmente providências para que me matassem antes que eu aceitasse ou que, Deus me guarde, descontasse a ordem de pagamento.

 

Berrigan meditou no caso, depois, com alguma relutância, acenou com a cabeça, concordando.

 

- É bem capaz disso. Ele é uma boa peste, lá isso é.

 

- Mas talvez chame de volta os seus cães de fila, agora que sabe que eu não aceitei o dinheiro - admitiu Sandman.

 

- A não ser que tenha sido ele quem matou a condessa. Nesse caso, é provável que continue a querer despachá-lo - alvitrou Berrigan. Parou entretanto para observar a fachada de granito da Prisão de Newgate.

 

- É aqui que os enforcam? - inquiriu.

 

- Mesmo em frente à Porta dos Devedores, onde quer que seja que isso fique.

 

Berrigan sorria enquanto subia os degraus da prisão.

 

- Sempre pensei acabar aqui um dia.

 

Um carcereiro escoltou-os ao longo do túnel que conduzia ao Press Yard.

 

- Se quiser assistir a um enforcamento, venha cá na segunda-feira que vamos livrar a Inglaterra de dois bandidos - confidenciou o carcereiro a Sandman. - Não vai cá estar muita gente porque nenhum deles é aquilo que se chama uma personalidade. Para se ver uma grande multidão é enforcar uma personalidade ou então uma mulher. O Magpie and Stump esgotou a provisão de cerveja de uma quinzena na última segunda-feira, e isso porque enforcámos uma mulher. Foi enforcada por ter roubado um colar de pérolas, e já ouvi dizer que o dono, afinal, o encontrou na semana passada. - O homem riu em silêncio. - Caído atrás de um sofá! - Abanou a cabeça de pasmo. - É uma coisa estranha a vida, não é?

 

- A morte é que é - corrigiu Sandman com amargura.

 

A Sala de Convívio estava cheia porque a chuva arrastara as pessoas para debaixo de telha, pessoas que miravam Sandman e o seu companheiro com ressentimento enquanto eles abriam caminho por entre as mesas para chegar junto de Corday. O artista era agora manifestamente um homem diferente, pois em vez de fugir cobardemente aos seus perseguidores, montava corte na mesa mais próxima da lareira, onde, com uma pilha espessa de papel e um pau de carvão, desenhava um retrato. À sua volta, estava reunida uma pequena multidão admirando a sua arte. Corday teve um ligeiro estremecimento ao ver os visitantes, mas logo desviou o olhar.

 

- Preciso de lhe dar uma palavra - disse Sandman.

 

- Ele fala consigo quando tiver acabado - grunhiu um homem enorme, entroncado, de cabelo escuro e barba comprida, que estava sentado num banco ao lado de Corday. - Já não resta muito tempo aqui ao Charlie.

 

- E a sua vida, Corday - lembrou Sandman.

 

- Não lhe dês ouvidos, Charlie - disse o homem grande. - Eu sei o que é que ... - interrompeu-se abruptamente. O sargento Berrigan colocara-se por detrás dele e fizera o gigante guinchar de dor.

 

- Sargento! - exclamou Sandman, fingindo recriminá-lo.

 

- Estou só a ensinar boas maneiras aqui ao rapaz - disse Berrigan, socando-o pela segunda vez. - Quando o capitão quer falar, tu, seu monte de esterco, pões-te em sentido, não lhe dizes para esperar.

 

Corday olhou para o homem das barbas com ar ansioso.

 

- Você está bem?

 

- Vai ficar - respondeu Berrigan pela sua vítima. - E você fale com o capitão, rapaz, que ele anda a ver se salva a sua vida miserável.

 

Sandman desviou uma mulher para o lado a fim de ficar sentado diante de Corday.

 

- Preciso de falar consigo acerca da criada - disse Sandman em voz baixa. - Dessa tal Meg. Como é que ela é?

 

Corday pôs de lado o retrato inacabado e, sem proferir palavra, começou a fazer um esboço numa folha de papel.

 

- É jovem. Talvez vinte e quatro, vinte e cinco anos. Tem a pele marcada das bexigas e cabelo cor de rato. Os olhos dela são esverdeados e tem um sinal aqui. - Apôs uma marca na testa da rapariga. - E tem maus dentes. - Acabou o esboço e entregou-o a Sandman.

 

Sandman contemplou o retrato. A rapariga era mais do que feia. Já não era só a pele picada pela varíola, o queixo estreito, o cabelo ralo e os olhos pequenos, mas, pior do que isso, era a imagem que transmitia de dureza e astúcia calculadas. Se o retrato era fiel, então Meg não era apenas repugnante, era também maldosa.

 

- Por que razão a teria a condessa contratado? - perguntou.

 

- Trabalharam juntas no teatro - explicou Corday. - Meg era camareira. - Corday baixou os olhos para o retrato e pareceu ficar embaraçado. - Era mais do que camareira, acho eu. Era intermediária de prostitutas.

 

- Como é que sabe?

 

O pintor encolheu os ombros.

 

- As pessoas falam enquanto lhes pintamos o retrato. Esquecem-se de que estamos ali. É como se fizéssemos parte da mobília. A condessa e Meg falavam, eu escutava.

 

- Há possibilidade de virmos a encontrá-la - disse Sandman.

 

- Que grau de possibilidade? - Os olhos de Corday brilharam.

 

- Não sei - retorquiu Sandman. Viu a esperança desvanecer-se nos olhos de Corday. - Acaso tem aí tinta? E uma caneta?

 

Corday tinha ambas as coisas. Sandman mergulhou o aparo de metal na tinta e começou a escrever: Caro Wltherspoon, o portador desta carta, sargento Samuel Berrigan, é meu companheiro e deposito nele toda a confiança. Mergulhou novamente o aparo na tinta, consciente de que Corday estava a ler as palavras do outro lado da mesa. Existe a lamentável possibilidade de eu ter necessidade de comunicar com Sua Senhoria no próximo domingo e, na presunção de que Sua Senhoria possa não se encontrar no ministério nesse dia, solicito que me indique, por favor, onde poderei encontrá-lo. Posso ter notícias da máxima urgência a comunicar-lhe. Sandman releu a carta, assinou-a, depois soprou sobre a tinta para a secar, após o que dobrou a carta e se levantou do banco.

 

- Capitão! - Corday, com os olhos marejados de lágrimas, implorava o seu auxílio.

 

Sandman não podia dar-lhe nenhuma espécie de garantia.

 

- Eu estou a fazer o meu melhor, mas não posso prometer-lhe nada - disse. Enfiou o retrato dentro do casaco e, acompanhado de Berrigan, dirigiu-se para a saída da prisão.

 

Sandman abriu o portão exterior da prisão e retraiu-se ao ver a chuva, que caía com intensidade. Entregou a Berrigan a carta dobrada.

 

- Ministério do Interior. Peça para falar com um homem chamado Sebastian Witherspoon, entregue-lhe isso, depois vá ter comigo à Gunter's, na Berkeley Square.

 

Sandman, coxeando e com dores, encaminhou-se para a Berkeley Square, e, ao chegar à Gunter's, estava completamente encharcado Um empregado olhou-o de esguelha, depois, embora com relutância lá lhe abriu a porta. '

 

Para lá das duas montras enormes, viam-se balcões dourados cadeiras esguias, espelhos altos e lustres de vários braços. Uma dúzia de mulheres adquiria os famosos artigos de confeitaria da Gunter's: chocolates, suspiros e guloseimas diversas feitas com fios de açúcar, maçapão e frutas cristalizadas. Sandman dirigiu-se para o amplo salão do fundo, onde, sob grandes clarabóias de vidro colorido, se encontravam dispostas várias mesas. Eleanor não se encontrava em nenhuma da meia dúzia de mesas ocupadas, pelo que Sandman foi sentar-se numa cadeira ao fundo do salão. Pediu café e um exemplar do Morning Chmnicle.

 

Leu pachorrentamente o jornal. Houvera mais fardos de palha queimados no Sussex e três moinhos incendiados no Derbyshire. A milícia fora mobilizada para restabelecer a calma em Manchester, onde cada seis quilos de farinha estavam a ser vendidos a quatro xelins e nove. Ouviu-se então o som de passos, no ar evolou-se uma onda de perfume e uma sombra incidiu sobre o jornal.

 

- Está com um ar tristonho - disse a voz de Eleanor. Pondo-se de pé, Sandman olhou para ela e o seu coração começou

 

a bater com mais força, de tal forma que mal conseguia falar.

 

- E que, de facto, não há boas notícias em lado nenhum - exclamou por fim.

 

- Nesse caso, devemos nós fabricar algumas. Você e eu - disse ela, entregando o guarda-chuva e o casaco húmido a uma das empregadas e dando depois um beijo a Sandman. Olhou em redor para as outras mesas. - Estou a provocar escândalo, Rider, a mostrar-me assim sozinha com um homem todo molhado. - Beijou-o novamente, depois deu um passo atrás para que ele pudesse puxar uma cadeira para ela se sentar. - Deixemo-los, pois, gozar o escândalo. Eu, por mim, vou comer um gelado de baunilha com chocolate em pó e amêndoa ralada. E você também.

 

- Eu satisfaço-me com um café.

 

- Disparate, você come o que lhe puserem à frente. Está muito magro. - Sentou-se e tirou as luvas. Trazia o cabelo ruivo penteado ao alto e sobre ele um pequeno chapéu preto decorado com pequenas contas de azeviche e uma pluma discreta. O vestido era de um tom castanho-escuro suave, com um fundo quase invisível de flores bordadas a negro, e de gola subida, muito simples; todavia, por qualquer razão, o conjunto conferia-lhe um aspecto mais sedutor do que o das dançarinas escassamente vestidas que ele vira actuar na noite anterior.

 

- Vim com a minha aia Lizzie, mas subornei-a com dois xelins e ela foi até ao Lyceum. É impressão minha ou vi-o a coxear?

 

- Eu torci um tornozelo ontem - disse, e depois viu-se forçado a contar-lhe a história, a qual, obviamente, deixou Eleanor encantada.

 

- Nem imagina a inveja que tenho de si - exclamou quando ele acabou. - A minha vida é tão monótona! Nunca me aconteceu saltar para um palco perseguida por salteadores!

 

- Tem então notícias? - perguntou Sandman.

 

- Acho que sim. Sim, sem dúvida. - Eleanor voltou-se para a empregada e pediu chá e os gelados de baunilha. - Eles têm um depósito de gelo lá fora, nas traseiras - contou a Sandman quando a rapariga se afastou. - Há umas semanas atrás, pedi-lhes para mo mostrarem. Todos os invernos, trazem o gelo lá de cima da Escócia envolto em serradura e, dessa forma, conseguem mante-lo durante todo o Verão. Ainda tentei convencer o meu pai a construir também uma geladeira, mas ele invocou que era muito dispendioso; então, eu disse-lhe que o compensava, poupando-lhe a despesa de um casamento social.

 

Sandman perscrutou os seus olhos cinzento-esverdeados, procurando adivinhar qual a mensagem oculta por detrás daquela aparente loquacidade.

 

- De que forma é que lhe poupava essa despesa? Permanecendo solteira?

 

- Fugindo de casa para me casar - disse Eleanor, olhando-o com firmeza.

 

- Com Lord Eagleton?

 

A risada de Eleanor ecoou pelo salão, provocando um momentâneo silêncio nas outras mesas.

 

- Eagleton é um tamanho sensaborão! - exclamou Eleanor um pouco alto demais. - Não me diga que acreditou que eu estava comprometida com ele?

 

- Ouvi dizer que sim.

 

- Lord Eagleton quer casar comigo, e, tanto ele como a mãezinha, parecem acreditar que, se persistirem na ideia, eu acabarei por ceder ao fim de algum tempo; só que eu não o suporto. Ele funga antes de falar. - Deu uma pequena fungadela, imitando-o: - "Querida Eleanor", fungadela, "Como está encantadora", fungadela. "Vejo a Lua reflectida nos seus olhos", fungadela.

 

Sandman manteve-se imperturbável.

 

- Eu nunca lhe disse que via a Lua reflectida nos seus olhos. Receio ter cometido aí uma grosseira negligência.

 

Olharam um para o outro e não conseguiram conter o riso. Sempre se tinham rido um com o outro desde o dia em que se haviam conhecido, quando Sandman regressara a casa após ter sido ferido em Salamanca e Eleanor tinha vinte anos e estava apostada em não se deixar impressionar por um simples soldado. Mas ele conseguira fazê-la rir e continuava a conseguir, tal como ela o fazia rir a ele.

 

- Apercebi-me de que alguém espalhara a notícia do meu noivado com Eagleton - prosseguiu Eleanor. - Por isso, pedi intencionalmente a Alexander para o informar de que eu não ia casar com o nobre fungador. Alexander não lhe disse?

 

- Receio bem que não.

 

- Mas eu fui bem clara! - exclamou Eleanor com indignação. Encontrei-o no Salão Egípcio.

 

- Até aí ainda ele me contou - retorquiu Sandman. - Mas esqueceu-se completamente do recado. Esqueceu-se até do que tinha ido fazer ao Salão Egípcio.

 

- Assistir a uma palestra de um homem intitulado Professor Popkin acerca da recém-descoberta localização do Jardim do Paraíso. Pretende ele que acreditemos que o paraíso se situa na confluência entre os nos Ohio e Mississipi. Um dia, ele comeu lá uma maçã excelente. E encorajou-nos a segui-lo até esse paraíso de leite, mel e maçãs. Não gostaria de ir para lá, Rider?

 

- Consigo?

 

- Podíamos viver nus à beira dos rios - prosseguiu Eleanor, e Sandman reparou que ela tinha lágrimas nos olhos. - Inocentes como bebés e evitando as serpentes. - Baixou o rosto para que ele não visse as lágrimas que lhe deslizavam pela face. - Estou tão arrependida, Rider. Nunca devia ter consentido que a mãezinha me persuadisse a romper o nosso compromisso. Ela disse que a desgraça da sua família era total e completa, mas isso é um disparate.

 

- É uma desgraça extrema - admitiu Sandman.

 

- Mas foi o seu pai. Não foi você! - Eleanor enxugou os olhos com um lenço. A empregada trouxe entretanto os gelados, e Eleanor aguardou que ela se afastasse. - Há seis meses que os meus olhos parecem uma fonte - disse Eleanor, após o que ergueu de novo os olhos para ele. - Na noite passada, disse à mãezinha que ainda me considero comprometida consigo.

 

- Sinto-me muito honrado.

 

- Esperava que dissesse que sente o mesmo. Sandman esboçou um sorriso.

 

- Gostaria que assim fosse, sinceramente.

 

- Creio que o meu pai não se importa - disse Eleanor. - Mas quando revelei os meus sentimentos à mãezinha, ontem à noite, ela insistiu em que eu devia consultar o Dr. Harriman, especialista em histeria feminina. Mas eu não estou histérica, estou apenas, inconvenientemente, apaixonada por si. - Suspirou enquanto saboreava o gelado.

- Isto, sim, é o verdadeiro paraíso - exclamou. - Pobre Rider. Você não devia sequer estar a pensar em casar comigo. Devia era andar a cortejar Caroline Standish.

 

- Caroline Standish? Nunca ouvi falar dela.

 

- Caroline Standish é talvez a mais rica herdeira de toda a Inglaterra, Rider, e, além disso, uma rapariga extremamente bonita. Devo adverti-lo, porém, de que é metodista. O inconveniente que isso tem é que não podem beber-se bebidas alcoólicas na presença dela, nem fumar, nem blasfemar, quer dizer, ninguém pode divertir-se de maneira nenhuma. O pai fez fortuna na cerâmica, mas agora vivem em Londres e frequentam aquela capelinha simples de Spring Gardens. Estou certa de que você lhe atrairia a atenção.

 

- Estou certo que sim - disse Sandman, sorrindo.

 

- E estou crente em que ela concordaria com o críquete - continuou Eleanor. - Desde que você não jogasse ao sábado, claro. Note que ela já está comprometida, mas dizem que não está muito convencida de que o futuro duque de Ripon seja tão piedoso e justo como pretende fazer crer. Ele frequenta também a capela de Spring Gardens, mas, ao que parece, apenas para poder depená-la, uma vez casados.

 

- O futuro duque de Ripon? - Sandman ficou subitamente muito quieto. - Ripon?

 

- É uma cidade-catedral no Yorkshire, Rider.

 

- Marquês de Skavadale é o título actual do herdeiro do ducado de Ripon - disse Sandman.

 

- Esse mesmo! - Eleanor franziu a testa. - Eu disse alguma coisa de errado?

 

- Skavadale não é nada justo - exclamou Sandman, recordando-se do que o conde de Avebury lhe contara acerca da chantagem que a sua mulher exercera sobre uma quantidade de jovens amantes da boa vida. Teria Skavadale também sido chantageado pela condessa? Ele tinha, reconhecidamente, dificuldades financeiras e as propriedades de seu pai encontravam-se sem dúvida pesadamente hipotecadas; não obstante, conseguira ficar noivo da mais rica herdeira de Inglaterra, e, se andara a colher na horta da condessa de Avebury, ela decerto encontrara nele um alvo ideal para chantagem. A família dele podia ter perdido a maior parte da fortuna, mas ainda devia ter sobrado algum dinheiro, bem como porcelanas, pratas e quadros que pudessem ser vendidos; em resumo, sobrara o suficiente para contentar a condessa.

 

- Penso que o marquês de Skavadale é o assassino que eu procuro

- disse Sandman. - Ou ele ou algum dos seus amigos.

 

- Nesse caso, não precisa já de saber o que Lizzie descobriu? perguntou Eleanor, desapontada.

 

- A sua aia? Claro que quero saber. Preciso de saber.

 

- Lizzie descobriu que Meg foi levada da casa de cidade da condessa numa carruagem preta ou azul-escura com um brasão estranho: um escudo representando um campo vermelho decorado com um anjo dourado. Perguntei a Hammond se sabia o que significava, mas ele disse-me que não.

 

- Duvido que o Colégio de Heráldica alguma vez tenha atribuído esse brasão. Essa é a insígnia do Clube Serafim.

 

- E o marquês de Skavadale é membro desse clube? - perguntou Eleanor em voz baixa.

 

- É - confirmou Sandman. Ela franziu atesta.

 

- E ele, então, o assassino que procura? É tão fácil quanto isso?

 

- Os membros do Clube Serafim acham que a posição social, o dinheiro e os privilégios que detêm lhes conferem imunidade, os colocam acima da lei. E possivelmente têm razão; a menos que eu consiga encontrar Meg.

 

Eleanor fitou Sandman, e os seus olhos pareciam maiores e mais brilhantes.

 

- Não estou disposta a desistir de si, Rider. Tentei e não consegui. Ele pegou-lhe na mão e beijou-lhe os dedos.

 

- Eu nunca desisti de si e, na semana que vem, vou voltar a falar com o seu pai.

 

- E se ele disser que não? - perguntou-lhe, apertando-lhe os dedos na sua mão.

 

- Nesse caso, partimos para a Escócia.

 

Eleanor apertou-lhe a mão com força e sorriu.

 

- Rider? O meu prudente, bem comportado e honrado Rider? Era capaz de fugir para casar comigo?

 

Ele retribuiu-lhe o sorriso.

 

- Lembro-me de ter tomado uma decisão em Waterloo: prometi a mim mesmo que, se sobrevivesse àquele dia, não morreria com remorsos. Não morreria com anseios e desejos por cumprir. Por isso, a minha resposta é sim; se o seu pai se recusar a deixar-nos casar, levo-a comigo para a Escócia.

 

- Porque eu sou o seu anseio, o seu sonho, o seu desejo? - perguntou Eleanor com lágrimas nos olhos e um sorriso nos lábios.

 

- Porque é todas essas coisas e, para além de tudo isso, eu amo-a. E o sargento Berrigan, pingando água da chuva, sorriu, deliciado,

 

ao surpreender Sandman naquele momento tão íntimo.

 

O SARGENTO COMEÇOU a assobiar quando subiam Hay Hill a caminho da Old Bond Street. Era um assobio alegre, um assobio que dava a entender não estar ele minimamente interessado no que acabara de presenciar e um assobio que, no Exército, poderia ser considerado como insubordinação, mas não passível de castigo. Sandman riu-se.

 

- Já estive comprometido em tempos com Miss Forrest, sargento, e Miss Forrest quebrou entretanto o compromisso porque os pais não queriam que ela casasse com um homem pobre.

 

- Pois a mim não me pareceu lá muito um compromisso quebrado, meu capitão.

 

- Sim, bem. A vida é uma coisa complicada.

 

- Por falar em complicações - disse Berrigan -, Mister Sebastian Witherspoon não ficou muito satisfeito. De facto, e para ser mais preciso, ficou até muito agastado. Quis saber que raio é que o senhor andava a planear, capitão, e então eu disse-lhe que não sabia o raio de coisa nenhuma a esse respeito e que ele fosse para o inferno, mas tudo isto de maneira muito respeitosa, meu capitão.

 

- Mas ele disse-lhe onde é que o ministro do Interior vai estar no domingo?

 

- Sua Senhoria vai estar em sua casa, na Great George Street. Mister Witherspoon ainda acrescentou que Sua Senhoria não irá agradecer-lhe incomodá-lo a um domingo, e, de qualquer modo, Mister Witherspoon, tal como Sua Sagrada Senhoria, confia em que essa malfadada borboleta seja pendurada pelo pescoço tal como bem merece.

 

- Estou certo de que ele não disse essa última parte.

 

- Não exactamente - admitiu Berrigan, chocarreiro. - Então, aonde é que vamos agora?

 

- Vamos visitar Sir George Phillips porque quero ver se ele me diz exactamente quem foi que encomendou o retrato da condessa. Se soubermos o nome desse homem, sargento, teremos o nosso assassino.

 

- Pensa o senhor - comentou Berrigan, céptico.

 

- Miss Hood também lá está no estúdio de Sir George. Trabalha para ele como modelo.

 

- Ah! - Berrigan ficou mais animado.

 

- E mesmo que Sir George não nos queira dizer nada, estou ciente de que a minha única testemunha foi levada daqui na carruagem do Clube Serafim. Por conseguinte, presumo que um dos cocheiros do clube saiba dizer-nos para onde a levaram.

 

- Imagino que para isso seja necessária alguma persuasão - disse Berrigan.

 

- Uma perspectiva aliciante - comentou Sandman, chegando entretanto junto da porta ao lado da joalharia. Bateu à porta e, tal como anteriormente, foi Sammy quem veio abrir. - Diz a Sir George que estão aqui o capitão Rider Sandman e o sargento Samuel Berrigan para falarem com ele - declarou Sandman em voz de comando.

 

- Ele não quer falar consigo - retorquiu Sammy.

 

- Vai e diz-lhe isso, rapaz! - insistiu Sandman.

 

Em vez disso, o rapaz fez uma tentativa, mal calculada, de escapar a Sandman, fugindo para a rua, para logo ser apanhado pelo sargento Berrigan.

 

- Aonde é que tu ias, rapaz? - indagou Berrigan.

 

- A lado nenhum! - Berrigan torceu-lhe o pulso atrás das costas. O rapaz gritou de dor. - Ele disse-me que, se o capitão voltasse cá, eu devia sair logo a procurar ajuda - respondeu ele apressadamente.

 

- Ao Clube Serafim? - perguntou Sandman, e o rapaz acenou com a cabeça afirmativamente - Segure-o, sargento - disse Sandman, após o que principiou a subir as escadas. - Fi, fai, fó, fez! Cheira-me a sangue de inglês! - entoou ele o mais alto que pôde para avisar Sally, a fim de que Berrigan não a visse nua.

 

- Alto, capitão - ordenou Sir George em tom ameaçador e apontando uma pistola de cano comprido a Sandman do cimo das escadas.

 

Sandman continuou a subir e bradou, impaciente:

 

- Não seja idiota. Se disparar sobre mim, Sir George, vai ter de disparar também sobre o sargento Berrigan e depois vai ter ainda de calar Sally, o que significa que fica com três cadáveres nas mãos. Acabou de subir os últimos degraus e arrebatou a pistola da mão do pintor. - Deixe-me apresentar-lhe o sargento Berrigan. - Sandman notou, aliviado, que Sally entendera o aviso e tivera tempo de vestir um casaco. Tirou o chapéu e fez-lhe uma vénia.

 

- Miss Hood, os meus respeitos.

 

Berrigan cumprimentou Sally, baixando a cabeça.

 

- Miss Hood - disse ele; depois, reparando na tela exposta, abriu os olhos de espanto, e Sally corou.

 

- Ele está a magoar-me! - queixou-se Sammy.

 

- Pode largá-lo que ele já não vai buscar ajuda - disse Sandman a Berrigan.

 

- Ele faz o que eu lhe mandar! - disse Sir George em tom hostil.

 

- Se mandar Sammy buscar ajuda - avisou Sandman -, eu espalho por aí que o seu estúdio abusa das mulheres, que as pinta vestidas, mas depois de elas se irem embora as transforma em nus.

 

A gabarolice de Sir George pareceu esvaziar-se como uma bexiga cheia de ar picada com um alfinete. Gesticulou para Sammy com a mão cheia de tinta.

 

- Podes ir fazer o chá, Sammy. Berrigan largou o rapaz.

 

- Vou ajudar-te, Sammy - exclamou Sally, descendo as escadas atrás do rapaz. Sandman suspeitou de que ela ia mas era vestir-se.

 

Sandman voltou-se para Sir George.

 

- O senhor está velho, Sir George, e, além disso, gosta de beber. A mão treme-lhe. Por enquanto, ainda pinta, mas até quando? Está a viver da sua reputação, mas se eu quiser, provoco a sua ruína. Posso conseguir que pessoas como Sir Henry Forrest nunca mais o contratem para pintar as mulheres e as filhas. Sei que me mentiu; por isso, agora vai dizer-me a verdade.

 

- E se eu disser?

 

- Não conto a ninguém e deixamo-lo em paz.

 

Sir George sentou-se num banco alto. Ordenou em tom agreste aos aprendizes e aos dois homens que faziam de Lord Nelson e de Neptuno que fossem para baixo. Só depois de eles saírem é que se voltou para Sandman.

 

- Foi o Clube Serafim que encomendou o retraio.

 

- Isso eu já sei. O que eu quero saber, Sir George, é quem foi o membro do clube que o encomendou.

 

- Não sei. A sério! Não sei! Estavam dez ou onze sentados a uma mesa. Disseram que queriam o retraio para expor na sua galeria e prometeram encomendar mais.

 

- Mais retratos?

 

- De damas nobres, capitão, nuas. Para eles, ela representava um trofeu. Explicaram-me isso. Se uma mulher tivesse sido seduzida por mais de três membros do clube, tinha direito a ser exposta na galeria do clube.

 

- E o marquês de Skavadale foi um desses homens?

 

- Sim, Skavadale era um deles. Lord Pellmore foi outro, lembro-me eu. Mas eu não conhecia a maior parte deles. Eles não se apresentaram.

 

Sandman puxou o cão da pistola que tirara a Sir George e viu que ela não estava carregada.

 

- Acaso tem aí pólvora e balas? - perguntou. Depois, reparando na expressão de terror de Sir George, franziu o sobrolho.

 

- Não vou disparar contra si, seu idiota!

 

- Ali, ali naquele armário - disse Sir George, apontando com o queixo para o lado oposto da sala.

 

Sandman abriu a porta do armário e deparou com um pequeno arsenal, do qual a maior parte, ao que supunha, seria para utilizar nos quadros. Atirou a Berrigan uma pistola de cavalaria, depois pegou numa mancheia de cartuchos e meteu-os no bolso; seguidamente, dobrou-se para pegar numa faca.

 

- O senhor fez-me perder tempo - disse ele a Sir George. Mentiu-me. - Encaminhou-se novamente para o outro lado da sala com a faca na mão e viu o terror estampar-se no rosto de Sir George.

 

- Sally! - berrou Sandman. - Quanto é que Sir George lhe deve?

 

- Duas libras e cinco xelins - respondeu ela do fundo das escadas.

 

- Pague-lhe - disse Sandman.

- Só tenho comigo três guinéus - lamentou-se Sir George.

 

- Dê os três guinéus ao sargento - ordenou Sandman.

 

Sir George entregou os três guinéus ao sargento enquanto Sandman se dirigia para junto do quadro. Britannia estava praticamente terminada, sentada sobre um rochedo, de peitos nus e olhar altivo, num mar banhado pelo sol. A deusa era indubitavelmente Sally, conquanto Sir George lhe tivesse alterado a expressão, habitualmente alegre, para uma de serena superioridade.

 

- Você mentiu-me - repetiu Sandman a Sir George. - E pior do que isso: já suspeitava de que Charles Corday não tivesse cometido o crime e, no entanto, não fez nada para o ajudar.

 

Sir George pôs-se de pé de um salto e deu um grito de protesto:

 

- Não!

 

Berrigan reteve Sir George enquanto Sandman apontava a faca à Apoteose de Lord Nelson. Sammy acabara de assomar no topo das escadas com a bandeja do chá e observou, estarrecido, Sandman a rasgar a tela, primeiro na vertical, depois na horizontal.

- Um amigo meu vai casar em breve - disse Sandman enquanto mutilava o quadro. - Ele ainda não sabe nem a sua futura noiva, mas não há dúvida de que gostam um do outro, e eu vou querer dar-lhes um presente quando isso acontecer. - Recortou do grande quadro o retrato de Sally. Depois, atirou a faca para o chão, enrolou a figura de Britannia e sorriu a Sir George. - Obrigado pela sua ajuda. Sargento, acho que não temos mais nada a fazer aqui.

 

- Eu vou com vocês! - exclamou Sally do fundo das escadas. Só preciso que alguém me aperte o vestido.

 

- O dever chama-o - disse Sandman a Berrigan.

 

Sandman ia a rir quando chegou à rua, onde esperou por Berrigan e Sally.

 

Reuniram-se a ele logo que o vestido de Sally ficou apertado.

 

- Quem é que o senhor conhece que vai casar em breve? - inquiriu Berrigan.

 

- Dois amigos meus - respondeu Sandman despreocupadamente.

 

- Capitão! - admoestou-o Sally.

 

- Casado? - Berrigan parecia abalado.

 

- Sou um ardente defensor da moralidade cristã - disse Sandman.

 

- Por falar nisso - exclamou o sargento -, porque é que estamos armados com pistolas?

 

- Porque a nossa próxima visita, sargento, tem de ser ao Clube Serafim para falarmos com os cocheiros, e eu não gostaria de ir lá desarmado. Também preferia que eles não soubessem que nós estávamos lá dentro, por isso, diga-me, qual é a melhor altura para fazermos essa visita?

 

- Após o escurecer, porque assim será mais fácil entrarmos despercebidos e estará lá, pelo menos, um dos boleeiros - respondeu o sargento.

 

- Esperemos que seja o cocheiro certo - disse Sandman, abrindo a tampa do relógio. - Só depois de escurecer? Isso quer dizer que vou ter uma tarde livre. - Pensou por um momento. - Encontramo-nos então às nove horas, está bem? Nas traseiras do clube?

 

"BUNNY" BARNWELL, considerado o melhor lançador do Marylebone Cricket Club, não obstante ter um modo estranho de correr, uma passada larga que terminava com dois saltinhos antes de lançar a bola com um movimento lateral ao nível da cintura, bateu a bola para Rider Sandman, colocado numa das metas de treino, cercadas com rede, do novo campo de críquete de St. John's Wood.

 

Lord Alexander Pleydell estava de pé junto à rede, observando ansiosamente cada jogada.

 

- Será que Bunny vai atirá-la junto à relva? - perguntou ele A ideia era que ele a lançasse com efeito na direcção das tuas pernas

 

- Nada disso. - Sandman bateu a bola com força para a rede Barnwell alternava com Hughes, o criado de Lord Alexander na tareia de lançar bolas a Sandman. Hughes, frustrado por não conseguir lançar nenhuma bola que ultrapassasse a pá de Sandman, fez uma tentativa desesperada e acabou por lançar uma que saiu tão direita que Sandman a projectou para lá da rede e por cima da colina, onde três homens estavam a cortar ervas do campo. Construir um campo de críquete numa encosta como aquela era algo que não fazia sentido para Sandman; porém, Alexander tinha uma predilecção especial por aquele novo campo de Thomas Lord.

 

Barnwell tentou arremessar por debaixo do braço e ficou a ver a sua bola seguir o mesmo caminho da de Hughes, colina acima. Um dos rapazes, jogador de campo, tentou uma bola rápida às pernas de Sandman e Fi recompensado com uma resposta que quase lhe arrancava a cabeça. Sandman estava muito mal-humorado. Tentava imaginar como havia de honrar a promessa que fizera a Eleanor. Como podia desposar uma mulher quando não dispunha de meios para a sustentar? E que honra havia num casamento realizado num qualquer tugúrio escocês?

 

- Pensei em convidar Hammond, concordas? - inquiriu Lord Alexander. M

 

- Esta é a equipa que estás a formar para defrontar Hampshire?

 

- Não, Rider, é a minha proposta de um novo decano e de novos cónegos para a Catedral de S. Paulo. O que é que achas?

 

- Hammond é uma excelente escolha - respondeu Sandman

- Edward Budd disse que jogava por nós - informou Lord Alexander.

 

- Esplêndido! - exclamou Sandman com um entusiasmo genuíno, pois Edward Budd era o único batedor que ele reconhecia como superior a si próprio.

 

- E Simmons também está disponível.

 

- Então, eu não estou - retorquiu Sandman. - Ele recebeu dinheiro para perder um jogo no Sussex há dois anos.

 

A bola seguinte vinha apontada com força aos tornozelos de Sandman, mas ele enviou-a de caminho para o botequim por cima da vedação inferior.

 

- Simmons é um excelente batedor - insistiu Lord Alexander S o incluirmos, a nossa equipa ficará com um enorme poder de defesa, Rider. Tu, Budd e ele? Vamos estabelecer novos recordes!

 

- Eu não jogo com ele - declarou Sandman. - Alexander, eu adoro críquete, mas se vamos consentir que o estraguem com subornos, deixará de ser um desporto. A única forma de lidar com o suborno é puni-lo sem contemplações. - Falava com irritação. - Será surpresa para alguém que o jogo esteja a morrer? O jogo está em declínio, Alexander, porque anda a ser corrompido pelo dinheiro.

 

- Fica-te muito bem dizer isso - exclamou Lord Alexander, amuado -, mas Simmons tem mulher e dois filhos. Não sabes o que é a tentação?

 

- Acho que sei, sim - respondeu Sandman. - Ainda ontem me ofereceram vinte mil guinéus. - Fez um sinal afirmativo com a cabeça ao lançador.

 

- Vinte mil? - Lord Alexander parecia confundido. - Para perder um jogo de críquete?

 

- Para deixar que um inocente fosse enforcado - explicou Sandman, ao mesmo tempo que executava uma defesa simples. - Este lançamento intelectual é demasiado fácil - reclamou ele. O lançamento lateral, em que a bola era arremessada com o braço estendido na horizontal à altura do ombro, era curiosamente conhecido como o estilo intelectual. - Não tem precisão.

 

- Mas a bola leva mais força do que quando é lançada por debaixo do braço - afirmou Lord Alexander.

 

- Deve lançar-se com o braço ao alto.

 

- Nunca! Nunca! Isso dá cabo do jogo! Uma sugestão perfeitamente ridícula!

 

- Eu penso simplesmente que o lançamento com o braço ao alto combina a força com a precisão - opinou Sandman. - E, além disso, apresenta um desafio ao batedor. Não eras capaz de me emprestar a tua carruagem, ou eras?

 

Lord Alexander pareceu ficar intrigado.

 

- A minha carruagem?

 

- Aquela coisa com quatro rodas e com os cavalos à frente, Alexander. É por uma boa causa. Para salvar um inocente.

 

- Claro, claro - exclamou Lord Alexander com assinalável entusiasmo. - Tenho muita honra em ajudar-te.

 

Um jovem dirigiu-se-lhes vindo do botequim, e Sandman reconheceu nele Lord Christopher Carne, o herdeiro Avebury.

 

- Vem aí o teu amigo - disse ele a Lord Alexander.

 

- O meu amigo? Oh, Kit!

 

Lord Christopher acenou com a mão em resposta à saudação entusiástica de Lord Alexander; depois, reparando em Sandman, empalideceu, fez um ar aborrecido e dirigiu-se para ele em grandes passadas.

 

- Não me disse que ia visitar o meu pai - exclamou em tom acusatório. - Ele escreveu-me a dizer que você lhe tinha feito uma visita.

 

- E era necessário dizer-lhe?

 

- Teria sido cortês da sua parte - recriminou Lord Christopher.

 

- Se eu algum dia precisar de lições de cortesia, irei procurar aqueles que me tratam com delicadeza - retorquiu Sandman com aspereza.

 

Lord Christopher serenou. Sandman atravessou o terreno de jogo em passo acelerado e rebateu um lançamento com toda a força. A bola fez o primeiro ressalto mesmo junto à vedação e desapareceu entre os arbustos no cimo da colina. Sandman ouviu-a embater na vedação e, logo a seguir, o mugido de protesto de uma vaca no prado vizinho.

 

- Falei precipitadamente - disse Lord Christopher numa desculpa tosca. - Mas continuo a não perceber por que razão foi à Mansão Carne.

 

- Já lhe disse porquê - replicou Sandman. - Para verificar se algum dos criados da sua madrasta teria ido para lá.

 

- Claro que não foram - disse Lord Christopher.

 

- Da última vez que falámos, achava isso possível.

 

- Foi porque não tinha pensado bem no assunto. Esses criados deviam saber as coisas torpes que a minha madrasta fazia em Londres e dificilmente o meu pai quereria que espalhassem essas c-coisas no Wiltshire.

 

- Certo - admitiu Sandman. - Foi uma viagem em vão.

 

- Mas também há boas notícias, Rider - interveio Lord Alexander. - O curador de Newgate concordou em que tu e eu fizéssemos parte da assistência na segunda-feira! - Lord Alexander voltou-se para um Lord Christopher aturdido. - A mim ocorreu-me, Kit, que, sendo Rider o investigador oficial do ministro do Interior, devia ficar a conhecer exactamente a terrível brutalidade que espera gente como Corday. Por isso, escrevi ao curador e, muito cortesmente, ele convidou-me a mim e a Rider para o pequeno-almoço. - Volveu um olhar radioso para Sandman. - Não é esplêndido?

 

- Não tenho desejo nenhum de assistir a um enforcamento - respondeu Sandman.

 

- O que desejas ou não não interessa - comentou Lord Alexander despreocupadamente. - É uma questão de dever. Não concordo com a forca, mas, quanto mais não seja, trata-se de uma experiência pedagógica.

 

- Pedagógica, uma ova! Eu não vou, Alexander. Terei muito gosto em enviar para lá o verdadeiro assassino, mas não presenciarei o espectáculo de Newgate em caso algum.

 

- E sabe quem é o verdadeiro assassino? - inquiriu Lord Christopher.

 

- Espero vir a saber esta noite - afirmou Sandman. - Se eu mandar pedir a tua carruagem, Alexander, é porque descobri a minha testemunha. Se não, paciência.

 

- Testemunha? - estranhou Lord Christopher.

 

- Se Rider se mantiver obstinado, talvez tu queiras acompanhar-me na segunda-feira aos rins grelhados com mostarda do curador disse Lord Alexander a Lord Christopher.

 

- Testemunha? - insistiu Lord Christopher.

 

- Espero sinceramente que mandes pedir a carruagem - trovejou Lord Alexander. - Quero ver esse maldito Sidmouth atrapalhado. Faz que ele tenha de conceder o perdão, Rider. Fico à espera das tuas instruções na Wheatsheaf. - Sorriu a Lord Christopher Carne. - Anda daí tomar um chá. Rider? Tomas chá? Claro que tomas. E quero apresentar-te Lord Frederick, o secretário do nosso clube. Devias mesmo era inscrever-te aqui no clube. Fazem um chá muito aceitável.

 

E Sandman lá seguiu para um chá entre cavalheiros.

 

ESTAVA UM FIM DE TARDE nublado e o céu por cima de Londres apresentava-se ainda mais escuro porque não havia vento e o fumo do carvão pairava, imóvel e espesso, sobre os telhados e as torres. As ruas das imediações da Praça de St. James estavam tranquilas porque as casas não tinham lojas e muitos dos seus proprietários encontravam-se no campo. Sandman reparou que um guarda-nocturno estava a observá-lo, por isso atravessou a rua, disse boa noite ao homem e perguntou-lhe em que regimento tinha servido, após o que passou algum tempo a trocar com ele recordações de Salamanca. Surgiu então um acendedor de luzes com a sua escada, e os novos candeeiros a gás começaram a acender-se um após outro, a princípio com uma luz azul, que depois se ia tornando esbranquiçada.

 

Uma carruagem de aluguer entrou na rua, com o barulho dos cascos dos cavalos reverberando nas fachadas das casas, e parou junto a Sandman. O sargento Berrigan apeou-se, depois segurou a porta para Sally descer.

 

- Sargento! Você não pode ... - principiou Sandman.

 

- Eu bem lhe disse que o senhor ia dizer isso - vangloriou-se Berrigan perante Sally. - Não lhe garanti que ele ia dizer que não devia ter vindo?

 

- Vocês vão em busca de Meg, certo? - interveio Sally - E ela não vai deixar-se levar às boas por dois velhos, ou vai? Isto requer um toque feminino.

 

- Meg não está no Clube Serafim - disse Sandman. - Nós só lá vamos procurar o cocheiro para que ele nos diga para onde a levou.

 

- Pois talvez ele me diga a mim o que não lhes diz a vocês - declarou ela, dirigindo-se a Sandman com um sorriso deslumbrante.

 

O sargento Berrigan procurou e tirou do bolso do casaco uma chave.

 

- Entramos pelas traseiras, capitão - informou; depois, olhou para Sally e disse-lhe: - Escuta, meu amor, eu sei...

 

- Pára, Sam! Eu vou com vocês! Berrigan seguiu à frente, abanando a cabeça.

 

- Não sei o que se passa - resmungou -, mas parece que as damas não percebem metade do que se lhes diz. Já reparou nisso, capitão?

 

- E o amor -murmurou Sandman. Nesse momento, aproximavam-se de um portão largo para carruagens aberto numa parede branca, e Berrigan levou um dedo aos lábios.

 

Berrigan dirigiu-se a uma pequena porta a um dos lados do portão e utilizou a sua chave. Empurrou a porta, espreitou para o terreiro e não terá visto certamente nada que o alarmasse, já que transpôs a soleira e fez sinal a Sandman e a Sally para o seguirem.

 

O terreiro encontrava-se deserto, à excepção de uma carruagem pintada de azul com vivos dourados que acabara obviamente de ser lavada, pois toda ela reluzia ao crepúsculo, com a água ainda a pingar dos lados e uns baldes pousados junto das rodas. Pintado na porta tinha o emblema com o anjo dourado.

 

- Por aqui, rápido - disse Berrigan. E Sandman e Sally seguiram atrás do sargento para a sombra dos estábulos.

 

- Os cocheiros estão de certeza na cozinha das traseiras. - Apontou com o queixo uma janela iluminada, mas logo se voltou, alarmado ao ouvir uma porta a abrir-se no edifício principal.

 

- Aqui! - sussurrou Berrigan, e refugiaram-se os três numa vereda que corria ao lado dos estábulos. O som de passos ecoou no terreiro.

 

Sandman ouviu os passos a aproximarem-se e percebeu que dali a serem descobertos era apenas uma questão de segundos. Berrigan então espreitou para lá do extremo da vereda e atravessou a correr um terreiro mais pequeno em direcção a uma porta que abria para as traseiras da casa.

 

- Por aqui! - sussurrou.

 

Sandman e Sally seguiram-no, correndo, e depararam com um lanço de escadas de serviço que ia desde a cave até aos andares superiores.

 

- Vamos esconder-nos lá em cima até a costa estar livre - murmurou Sandman.

 

A meio da escada escura, Berrigan abriu com cautela uma porta que dava para um corredor atapetado com paredes forradas a papel escarlate. Estava demasiado escuro para se verem os quadros pendurados entre as portas polidas. Berrigan escolheu uma porta ao acaso, abriu-a e deparou com um quarto vazio.

- Aqui estamos seguros - disse.

 

Era um quarto de dormir; enorme, luxuoso e confortável. A cama era grande e alta, de colchão macio e coberta com uma colcha espessa, também escarlate, na qual voava o serafim nu. Berrigan dirigiu-se à janela e arredou a cortina para poder espreitar para o terreiro. Os olhos de Sandman foram-se adaptando lentamente à obscuridade; de repente, ouviu Sally a rir; voltou-se e viu que ela estava de olhos postos num quadro pendurado sobre a cabeceira da cama.

 

- Santo Deus! - exclamou Sandman.

 

- Como esse, há aqui muitos - comentou Berrigan secamente. O quadro representava um grupo alegre de homens e mulheres nus

 

numa arcada circular de pilares de mármore branco acasalando à luz da Lua, que iluminava a arcada com um brilho irreal.

 

- Oh, c'os diabos! - exclamou Sally respeitosamente. - Quem diria que uma rapariga era capaz de fazer aquilo com as pernas.

 

Sandman aproximou-se da janela e olhou lá para baixo. O terreiro parecia encontrar-se novamente deserto.

 

- Julgo que voltaram para dentro - comentou Berrigan.

 

- Acha que eles virão aqui? - indagou Sandman. Berrigan abanou a cabeça.

 

- Eles só utilizam estes quartos no Inverno.

 

Sally riu-se, zombeteira, diante de um quadro suspenso por cima da lareira vazia, após o que se voltou para Berrigan.

 

- Você trabalhava numa casa de deboche, Sam Berrigan.

 

- É um clube!

- O raio d'um bordel é que é - retorquiu Sally com desdém.

 

- Eu saí daqui, não saí? - protestou Berrigan. - Além disso, para nós, criados, não era casa de deboche nenhuma. Só para os membros.

 

- Que membros? - perguntou Sally, após o que rompeu a rir com a própria graça.

 

Berrigan mandou-a calar, não por estar a ser grosseira, mas porque se ouviram passos lá fora no corredor. Aproximaram-se da porta, prosseguiram, depois acabaram por desvanecer-se.

- De fato, não adianta muito estarmos aqui - exclamou Sandman. - Vamos procurar o nosso cocheiro?

 

Regressaram às escadas de serviço e atravessaram o terreiro. Berrigan dirigiu-se a uma porta lateral da cocheira. Chegado aí, apurou o ouvido, depois levantou dois dedos para indicar que pensava encontrarem-se dois homens do outro lado da porta. Sandman sacou a pistola do bolso do casaco, verificou se estava carregada, depois afastou Berrigan para o lado, abriu a porta e entrou.

 

A dependência era, ao mesmo tempo, cozinha, depósito de arreios e armazém. Um par de velas ardia na mesa, à qual estavam sentados dois homens, um ainda novo, outro de meia-idade, diante de canecas de cerveja e pratos de pão, queijo e carnes frias. Quando Sandman entrou na divisão, voltaram-se e ficaram a olhar, estarrecidos. O homem mais velho abriu a boca de espanto. Sally entrou a seguir a Sandman, depois foi a vez de Berrigan entrar, fechando a porta atrás de si.

 

- Apresente-me - pediu Sandman. Embora não estivesse a apontá-la a nenhum dos homens, eles não despegavam os olhos da pistola.

 

- O mais novo é moço de estrebaria, chama-se Billy. Mr. Michael Mackeson é um dos dois cocheiros do clube - elucidou Berrigan.

 

Mackeson era um homem entroncado, de rosto vermelho, belo bigode encerado e cabelo negro revolto, já esbranquiçado nas têmporas. Estava bem vestido e podia, sem dúvida, dar-se a esse luxo, já que os bons cocheiros eram regiamente pagos. Eram considerados detentores de uma perícia tão invejável que todos os jovens cavalheiros queriam ser como eles. Mackeson olhava embasbacado para Berrigan, que, tal como Sandman, empunhava uma pistola.

 

- Há umas semanas atrás - disse Sandman com rudeza -, um cocheiro deste clube foi recolher uma aia a casa da condessa de Avebury, na Mount Street. Foi você?

 

Mackeson engoliu em seco, depois, muito lentamente, fez um gesto afirmativo com a cabeça.

 

- Para onde a levou? - perguntou Sandman.

 

Mackeson voltou a engolir em seco, para logo estremecer ao ouvir o som metálico da pistola de Sandman a ser engatilhada.

 

- Nether Cross - respondeu apressadamente.

 

- Onde fica Nether Cross?

 

- Estradas bastante antigas - respondeu o cocheiro cautelosamente. - Sete horas? Oito horas? Lá para baixo, junto à costa, pela estrada do Kent.

 

- Quem é que mora aí? Em Nether Cross? - perguntou Sandman.

 

- Lord John de Sully Pearce-Tarrant - respondeu Berrigan pelo cocheiro -, visconde de Hurstwood, conde de Keymer, barão de Highbrook, lorde de Deus sabe mais o quê, herdeiro do ducado de Ripon e também conhecido por marquês de Skavadale, capitão.

 

Sandman tinha, por fim, a resposta que pretendia.

 

A CARRUAGEM IA chocalhando pelas ruas a sul do Tamisa. Levava as duas lanternas acesas, mas estas projectavam apenas um brilho ténue que em nada contribuía para alumiar o caminho, pelo que, chegados ao cimo de Shooters Hill, onde a estrada de Blackheath se estendia impenetravelmente negra à sua frente, pararam. Os cavalos foram presos a uns arbustos e os dois prisioneiros encerrados na carruagem, com as rédeas bem amarradas a toda a volta desta, cujas janelas foram solidamente entaipadas com ripas de madeira.

 

Fora ideia de Berrigan levarem a carruagem do Clube Serafim. A princípio, Sandman recusara, dizendo que já tinha pedido emprestada a carruagem de Lord Alexander e que duvidava ter o direito legal de se apoderar de uma das carruagens do Clube Serafim, mas Berrigan rira-se dos seus escrúpulos.

 

- Vai sempre ter de levar Mackeson, porque ele é que sabe o caminho para Nether Cross; por isso, e já agora, pode levar também um veículo que ele conhece bem. E se tivermos em consideração o mal que esses malandros têm espalhado por aí, não creio que Deus nem homem nenhum vão condenar que lhes leve a carruagem. - Billy, o moço de estrebaria, teve também de ser feito prisioneiro para evitar que contasse que Sandman andara a fazer perguntas sobre Meg.

 

Sandman e os seus companheiros tinham agora de esperar que a noite passasse. Berrigan levou Sally para uma estalagem, alugou um quarto e manteve-se junto dela enquanto Sandman ficava de guarda à carruagem. Os relógios já tinham batido as 2 horas quando Berrigan emergiu do negrume da noite e disse:

 

- Pode ir descansar que agora fico eu de sentinela.

 

- Daqui a pouco - retorquiu Sandman. Estava sentado na erva, encostado a uma roda da carruagem, e levantou a cabeça para contemplar as estrelas. - Lembra-se daquelas marchas nocturnas lá em Espanha? - perguntou. - As estrelas brilhavam de tal maneira que até parecia que conseguíamos tocar-lhes e apagá-las.

 

- Lembro-me das fogueiras do acampamento - disse Berrigan.

- Montes e vales de fogo. - Voltou-se e olhou para oeste. - Pouco mais ou menos como aquilo ali.

 

Sandman voltou a cabeça e viu Londres lá em baixo, qual manta de fogo desdobrada diante deles, apenas manchada pelo fumo avermelhado. Até conseguia sentir o cheiro a fumo de carvão da grande cidade, que estendia as suas luzes nubladas para oeste até à linha do horizonte.

 

- Tenho muitas saudades de Espanha - admitiu.

 

- Era estranha, ao princípio - disse Berrigan -, mas gostei de lá estar. O senhor falava a língua?

 

- Falava.

 

O sargento estendeu a Sandman uma garrafa de barro.

 

- Brandy. Tenho estado a pensar que, se eu começar a negociar em charutos, vou precisar de alguém que fale a língua. O senhor e eu? Podíamos ir juntos para lá, trabalhar juntos.

 

- Por mim, gostava - disse Sandman.

 

- E um negócio que tem forçosamente de dar dinheiro - prosseguiu Berrigan. - Pagámos uma ninharia por esses charutos em Espanha, e aqui custam uma fortuna, e é quando conseguimos arranjá-los.

 

- Acho que tem razão - concordou Sandman. Sorriu ao pensar que, afinal, talvez tivesse mesmo arranjado um trabalho. Berrigan e Sandman, Fornecedores dos Melhores Charutos? O pai de Eleanor apreciava um bom charuto e pagava bem por eles, tão bem que talvez não fosse difícil persuadi-lo de que a sua filha não iria desposar um homem pobre. Lady Forrest podia nunca vir a aceitar que Sandman fosse o marido adequado para Eleanor, mas Sandman tinha o pressentimento de que a vontade de Eleanor e de seu pai havia de prevalecer. Ele e Berrigan iam precisar de dinheiro, e quem melhor do que Sir Henry para lhes emprestar? Teriam de viajar por toda a Espanha, comprar espaço em navios de transporte e arrendar instalações numa zona elegante de Londres, mas a coisa podia resultar. Tinha a certeza disso - É uma ideia brilhante, sargento - rematou.

 

- Vamos então pô-la em prática quando isto acabar?

 

- Sim. Porque não? - Estendeu a mão a Berrigan e deram um aperto de mão.

 

- Nós, os velhos soldados, devíamos manter-nos unidos - exclamou Berrigan. - Porque éramos mesmo bons. Corremos com os Crapauds por meia Europa fora, mas quando voltámos para casa, nenhum destes sacanas daqui quis saber de nós para nada, não é verdade? Fez uma pausa para reflectir. - O Clube Serafim nem sequer deixa entrar ninguém que tenha sido soldado ou marinheiro.

 

Sandman bebeu da garrafa.

 

- Mas, apesar de tudo, deram-lhe emprego a si.

 

- Agradava-lhes terem um guarda à entrada. Fazia-os sentirem-se seguros. E depois era alguém a quem podiam dar ordens. Berrigan, faz isto, Berrigan, faz aquilo. - O sargento grunhiu um agradecimento quando Sandman lhe passou a garrafa. - Na maior parte das vezes, não era para fazer nada de mal. Mas de vez em quando apetecia-lhes uma coisa diferente. - Calou-se, e Sandman manteve-se na expectativa. Passado algum tempo, Berrigan prosseguiu: - Uma vez, um fulano queria levar um dos do Serafim a tribunal; então, nós demos-lhe uma lição. E as raparigas?... Claro que lhes pagavam ...

 

- Que espécie de raparigas?

 

- Raparigas normais, capitão, raparigas que lhes tinham despertado a atenção na rua. Eram raptadas, violadas e pagavam-lhes para se calarem.

 

- E todos os membros faziam isso?

 

- Havia uns piores que outros. Há um punhado deles sempre prontos para qualquer patifaria. E há também um ou dois mais sensatos. É por isso que fiquei surpreendido por ter sido Skavadale a liquidar a condessa. Ele não é mau. Parece ter engolido um garfo e tem a mania que cheira a violetas, mas não é maldoso.

 

- Eu tinha esperança de que tivesse sido antes Lord Robin - admitiu Sandman - Mas Skavadale tinha mais a perder. Está comprometido com uma rapariga muito rica. Desconfio de que andava envolvido com a condessa de Avebury, e ela tinha o mau hábito de utilizar a chantagem. Skavadale podia não ser muito rico, mas aposto que ainda conseguia desenterrar um milhar de libras para a condessa não escrever uma carta à sua futura noiva.

 

- E, por isso, ele matou-a? - inquiriu Berrigan.

 

- E, por isso, matou-a - respondeu Sandman. - O pobre Corday estava a retratá-la quando Skavadale apareceu para a visitar. Subiu pelas escadas das traseiras, o acesso privado, e Corday foi apressadamente posto fora da sala logo que a condessa se apercebeu de que acabara de chegar um dos seus amantes. - Sandman estava certo de que fora assim que tudo se passara.

 

Berrigan bebeu mais um gole e passou a garrafa a Sandman.

 

- Então, essa rapariga, essa tal Meg, leva a borboleta para baixo, põe-na lá fora e depois sobe novamente a escada e encontra o quê? A condessa já morta?

 

- Provavelmente, ou moribunda, e depara também com o marquês de Skavadale. Talvez o marquês tivesse lá ido pedir à condessa para desistir das suas exigências e ela, desesperada por dinheiro, se tivesse rido na cara dele. Fosse como fosse, ela deve ter feito que ele perdesse a cabeça. Talvez houvesse uma faca lá na sala, provavelmente uma faca de descascar, em que Skavadale pegou e com que a apunhalou; depois, com ela já morta, colocou a espátula de Corday numa das feridas. Meg regressa entretanto à sala. Ou talvez tivesse ouvido o ruído da luta e aguardasse fora da sala quando Skavadale apareceu.

 

- Nesse caso, porque é que ele não matou Meg também?

 

- Porque ela não constituía uma ameaça para ele - alvitrou Sandman. - A condessa punha em risco o seu noivado com uma rapariga que podia pagar todas as hipotecas que pendiam sobre as propriedades da família dele. A condessa podia pô-lo na sarjeta, por isso matou-a. Mas não matou a aia porque ela não representava uma ameaça.

 

- O que estão, então, a fazer com Meg?

 

- Talvez lhe tenham proporcionado um sítio para viver - sugeriu Sandman. - Um sítio confortável para que ela não revele aquilo que sabe. Talvez seja ela agora a chantagista, mas seja sensata e não peça muito, e, por essa razão, eles a deixem viver.

 

- Mas se ela anda a chantageá-lo, dificilmente nos contará a verdade. Tem Skavadale na mão, não tem? Então, por que diabo é que havia de salvar a vida ao raio daquela borboleta?

 

- Porque nós vamos apelar ao seu lado bom. Berrigan soltou uma risada irónica.

 

- Ah, bem, nesse caso está tudo resolvido!

 

- Resultou consigo, sargento - salientou Sandman delicadamente.

 

- Isso foi Sally, isso foi Sally - replicou Berrigan.

 

- Bom, sargento, eu considero que você é um homem cheio de sorte. Tal como eu. Mas também sou um homem fatigado. - Gatinhou para debaixo da carruagem, batendo com a cabeça no eixo da frente. Debaixo da carruagem, a erva estava seca e o vento sussurrava num renque de árvores ali próximo. Sandman pensou nas centenas de outras noites que dormira sob as estrelas, e então, quando já julgava que o sono nunca viria, ele surgiu.

 

DE MANHÃ CEDO, Sally trouxe-lhes uma cesta com presunto, ovos cozidos, pão e um jarro de chá frio, um pequeno-almoço que repartiram com os dois prisioneiros.

 

- Hora de partir - disse Sandman, observando o alvorecer. Pairava sobre a charneca uma fina neblina enquanto davam de beber aos quatro cavalos num bebedouro de pedra. Quando Mackeson e Billy acabaram de aparelhar os cavalos, Sandman obrigou o jovem a tirar os sapatos e o cinto. Descalço e com os calções a escorregarem-lhe para os joelhos, seria difícil ao rapaz fugir. Sandman e Sally sentaram-se na cabina juntamente com o embaraçado Billy. Mackeson e Berrigan treparam para o banco do condutor e, com uma guinada súbita, a carruagem arrancou aos solavancos pela erva fora em direcção à estrada.

 

Dirigiram-se para sueste por entre campos de lúpulo, pomares e imponentes casas senhoriais. Por volta do meio-dia, Sandman adormecera involuntariamente, tendo acordado estremunhado quando a carruagem estremeceu toda ao atravessar uma vala. Piscou os olhos e só depois reparou que Sally tomara conta da sua pistola e não tirava os olhos de um Billy completamente intimidado.

 

- Pode continuar a dormir, capitão - disse ela. - Ele não ousou fazer nada. Nem por uma vez tive de lhe dizer quem era o meu irmão.

 

- Pensei que pudéssemos encontrá-lo na noite passada.

 

- Ele só trabalha nas estradas do Norte e do Oeste. - Sally devolveu a pistola a Sandman. - O senhor acha que um homem pode andar no mau caminho e depois emendar-se?

 

Sandman ficou com a ideia de que a pergunta tinha mais a ver com Berrigan do que com o irmão dela. Como empregado do Clube Serafim, teria com certeza cometido a sua dose de pecados.

 

- Claro que pode - respondeu Sandman.

 

- Não acontece a muitos - insistiu Sally. Notava-se que gostava que a tranquilizassem.

 

- O seu irmão é capaz de assentar quando encontrar a mulher certa - alvitrou Sandman. - Acontece a muitos homens. Não têm conta os homens sob o meu comando que eram uns perfeitos trastes, autênticos loucos, e que acabaram por conhecer umas moças espanholas e, ao cabo de uma semana, se tornaram uns soldados exemplares. - Sorriu-lhe. - Não me parece que deva preocupar-se, Sally.

 

Ela retribuiu-lhe o sorriso.

 

- O senhor é um bom conhecedor de homens, capitão?

 

- Sim, Sally, sou.

 

Não podiam mudar de cavalos e, por conseguinte, Mackeson conduzia os animais quase a passo, o que significava que viajavam lentamente, situação agravada pelo mau estado da estrada e por terem de desviar-se para a berma sempre que uma buzina assinalava que uma diligência ou uma mala-posta se encontrava atrás deles. Sandman invejava-lhes a velocidade e estava preocupado com o pouco tempo de que dispunha, mas depois lembrava a si próprio que ainda era só sábado e que, desde que Meg se encontrasse realmente escondida em Nether Cross, estariam de regresso a Londres na noite de domingo, o que lhes deixava tempo suficiente para procurarem Lord Sidmouth e tratarem da libertação de Corday. Sandman estava-se nas tintas para as orações de Sua Senhoria. Era capaz de privar todo o Governo das suas devoções se isso significasse fazer-se justiça.

 

A meio do dia, Sandman trocou de posição com Berrigan. Mackeson conduzia a carruagem por estradas cada vez mais estreitas, sob árvores carregadas com a folhagem de Verão, de forma que tanto ele como Sandman tinham constantemente de baixar-se para não embaterem nos ramos. Pararam junto de um charco para dar de beber aos cavalos, depois Mackeson deu um estalo com a língua e a carruagem começou a subir por entre searas, onde homens e mulheres, munidos de foices, procediam à ceifa. Mais tarde, pararam à porta de um botequim, onde Sandman comprou cerveja, queijo e pão, que comeram enquanto a carruagem percorria, rangendo, os últimos quilómetros da viagem. Passaram por uma aldeia onde um grupo de homens jogava críquete num relvado. Então, Mackeson, com natural perícia, conduziu os cavalos por entre dois muros de tijolo e fê-los descer depois uma vereda estreita e íngreme ladeada por densos maciços de carvalhos.

 

- Já não estamos longe - informou.

 

- Foi bom ter-se lembrado do caminho - disse Sandman. Tinham seguido por uma estrada tortuosa, e Sandman interrogava-se se Mackeson não estaria a procurar dar-se como perdido, mas na última curva avistara uma placa a indicar Nether Cross.

 

- Já fiz este caminho meia dúzia de vezes com Sua Senhoria disse Mackeson. Agitou as rédeas dos cavalos da frente, que viraram na direcção de um portão alto incrustado em dois pilares de pedra.

 

Sandman abriu o portão, que se encontrava apenas no trinco, e fechou-o depois de a carruagem passar. Trepou novamente para o assento, e Mackeson conduziu os cavalos a passo pela longa alameda de acesso que serpenteava pelo meio de um parque frondoso até chegar a uma pequena ponte. Aí, entre sebes de buxo mal cuidadas de um jardim votado ao abandono, avistava-se uma pequena casa isabelina requintadamente bela, com as suas madeiras negras, as paredes de gesso branco, as chaminés de tijolo vermelho.

 

- Cross Hall, é assim que se chama - elucidou Mackeson. Pelo que ouvi dizer, foi obtida em tempos por via de casamento.

 

- Um magnífico dote - exclamou Sandman com uma ponta de inveja, pois a casa revelava-se extremamente perfeita, assim iluminada pelo sol da tarde.

 

A carruagem parou e Sandman saltou para o chão, fazendo um esgar de dor ao sentir o peso do corpo sobre o tornozelo magoado. Disse a Berrigan que esperasse e se certificasse de que Mackeson não iria simplesmente chicotear os cavalos de volta pelo caminho de acesso.

 

Sandman bateu à porta da frente. Não tinha o direito de se encontrar ali, pensou ele; por isso, procurou no bolso de trás a carta de autorização do Ministério do Interior. Bateu novamente à porta e recuou uns passos para ver se alguém assomava à janela. A hera crescia ao redor do alpendre, e sob as folhas, por cima da porta, distinguiu um escudo gravado no gesso. No escudo estavam incrustadas cinco conchas de vieira. Ninguém assomou a nenhuma das janelas, mas entretanto a porta abriu-se e um homem idoso e extremamente magro fitou-o, depois olhou para a carruagem com o emblema do Clube Serafim.

 

- Não estávamos à espera de visitas hoje - disse o homem, visivelmente intrigado.

 

- Viemos buscar Meg - declarou Sandman num impulso súbito.

 

O homem, um serviçal, a avaliar pelo vestuário, reconhecera claramente a carruagem. Sandman esperava, por conseguinte, que ele pensasse que fora o marquês que a enviara.

 

- Ninguém me informou de que ela devesse partir para algum lado. - O homem estava desconfiado. - Quem vem a ser o senhor?

- O homem era alto e tinha o cabelo branco em desalinho.

 

- Já lhe disse. Viemos buscar Meg. O sargento Berrigan e eu.

 

- Sargento? - O homem pareceu ficar alarmado. - Trouxe algum advogado?

 

- Ele é do clube - respondeu Sandman, consciente de que a conversa deslizava para um diálogo de surdos. - Sua Senhoria quere-a de regresso a Londres.

 

- Então, vou buscar a moça - disse o homem, e, antes que Sandman pudesse reagir, fechou a porta com força e correu os ferrolhos. Sandman ouviu o retinir de uma campainha dentro da casa e percebeu que era certamente um sinal para Meg. Soltou uma praga.

 

- Começámos bem como o diabo - exclamou Berrigan em tom sarcástico.

 

- Mas a mulher está aqui, e ele disse que ia buscá-la.

 

- Vai mesmo? Sandman abanou a cabeça.

 

- O mais provável é que vá escondê-la. O que significa que vamos ter de a procurar.

 

Levaram a carruagem para os estábulos, nas traseiras da casa, onde deram com um depósito de arreios provido de uma porta sólida e sem janelas. Aprisionaram aí Mackeson e o moço de estrebaria, deixando os cavalos no terreiro atrelados à carruagem.

 

- Cuidamos deles mais logo - disse Sandman.

 

- E dos ovos também - acrescentou Berrigan com um sorriso, pois o terreiro do estábulo tinha sido abandonado às galinhas, que eram às centenas, a maior parte delas debicando o milho espalhado por entre as pedras esbranquiçadas do pavimento, cobertas pelas ervas.

 

Sandman conduziu Berrigan e Sally para as traseiras de Cross Hall. Todas as portas estavam trancadas; porém, Sandman descobriu uma janela mal fechada e abanou-a com força, até que ela se abriu e lhe permitiu trepar para uma pequena sala cuja mobília estava coberta por panos brancos. Berrigan seguiu-o.

 

- Fique aí fora - disse Sandman a Sally. - Pode haver luta. Ela aquiesceu com um gesto de cabeça, mas instantes depois trepava também pela janela.

 

- Também vou - insistiu ela. - Odeio galinhas.

 

- A rapariga pode já ter saído da casa - exclamou Berrigan.

 

- Pode - concordou Sandman. Contudo, o instinto dizia-lhe que ela devia ter-se escondido algures lá dentro. - De qualquer forma, vamos procurá-la. - Abriu uma porta que dava para um extenso corredor apainelado. Toda a casa estava em silêncio. Sandman ia abrindo as portas que encontrava e só via mobílias cobertas. A meio do hall, erguia-se um pilar de madeira finamente trabalhada sustentando o corrimão de uma elegante escadaria. Sandman espreitou lá para cima, para o vão de escada escuro, após o que prosseguiu em direcção às traseiras da casa.

 

- Não vive aqui ninguém - exclamou Sally ao depararem com mais salas vazias. - A não ser as galinhas.

 

Subitamente, abriu-se uma porta ao fundo do corredor. O homem magro e alto de cabeleira branca desgrenhada surgiu entre portas com um bastão na mão.

 

- A rapariga que procuram não se encontra aqui - disse. Ergueu sem convicção o bastão quando Sandman se aproximou, para logo o deixar cair e se desviar para o lado. Sandman passou pela frente dele e achou-se numa cozinha. Uma mulher, talvez a mulher do homem magro, estava sentada a uma mesa comprida, mexendo uma massa numa grande taça de porcelana.

 

- Quem é você? - perguntou Sandman ao homem.

 

- Sou o mordomo da casa. - Depois, apontando com o queixo a mulher, acrescentou: - E a minha mulher é a governanta.

 

- Você não tem nada que estar aqui - disse a mulher com rudeza.

- Está a invadir propriedade alheia! Por isso é melhor desaparecer antes que seja preso.

 

- E quem é que vai prender-me? - indagou Sandman.

 

- Já mandámos chamar auxílio - respondeu a mulher em tom provocatório.

 

- Mas eu venho da parte do ministro do Interior - disse Sandman, seguro de si. - Tenho autoridade. E você, se quiser evitar problemas, é melhor dizer-me onde está a rapariga.

 

O homem olhou para a mulher com ar preocupado, mas ela não se deixou intimidar pelas palavras de Sandman.

 

- O senhor não tem o direito de estar aqui. Por isso, eu aconselho-o a ir-se embora - disse ela.

 

Sandman ignorou o aviso e disse a Berrigan:

 

- Acabe de procurar aqui. Eu vou procurar lá em cima. - Tinha a sensação de que tanto o mordomo como a mulher não estavam a dizer a verdade. O mordomo devia ter adoptado a mesma atitude de desafio da mulher, mas, em vez disso, comportava-se como quem tinha algo a esconder, e, por conseguinte, Sandman subiu as escadas a correr para descobrir o que era.

 

As divisões do andar de cima pareciam estar tão vazias quanto as de baixo, mas finalmente, mesmo ao fundo do corredor, junto de uma escada estreita que conduzia às águas-furtadas, Sandman foi encontrar um quarto amplo que, esse sim, era sem dúvida habitado. Tinha uma bela cama de dossel com um lençol em cima e cobertores amarrotados. Sobre uma cadeira encontravam-se diversas peças de roupa feminina. O quarto de Meg, pensou Sandman, quarto esse que, segundo lhe parecia, ela acabara de deixar. Dirigiu-se de novo para a porta e espreitou para o corredor, mas não viu nada, a não ser os grãos de poeira brilhando sob os raios de sol do fim de tarde nas frestas das portas que entreabrira.

 

Depois, nos locais onde as réstias de sol incidiam no soalho de tábuas irregulares, distinguiu as suas próprias pegadas marcadas na poeira. Retrocedeu então ao longo do corredor, revistando novamente cada quarto, até que no maior de todos eles, que ficava ao cimo da elegante escadaria e tinha uma grande lareira de pedra com um brasão representando seis pássaros, descobriu marcas de pés na poeira do chão. Alguém estivera recentemente naquele quarto e as suas pegadas conduziam à lareira, depois à janela mais próxima da lareira, mas não regressavam na direcção da porta. Sandman franziu o sobrolho. Não conseguiu abrir a janela porque o caixilho de ferro estava enferrujado. Portanto, Meg não escapara pela janela. "Diabos me levem, mas ela tem de estar aqui!", pensou para consigo.

 

Num impulso súbito, dirigiu-se à lareira, dobrou-se e espreitou pela chaminé, mas a negra abertura estreitava rapidamente e não podia esconder ninguém.

 

O som de passos na escada fê-lo endireitar-se e levar a mão à coronha da pistola, mas quem apareceu à entrada da porta foram Berrigan e Sally.

 

- Ela não está cá - exclamou Berrigan, descoroçoado.

 

Sandman observou bem a lareira. Seis pássaros dentro de um escudo ... Por que razão havia a casa de ostentar aquele brasão no interior e cinco conchas de vieira num escudo lá fora? Veio-lhe então à cabeça uma melodia, uma melodia e alguns versos desgarrados que ouvira cantar, pela última vez, à volta de uma fogueira em Espanha.

 

- Dar-te-ei um O - principiou ele.

 

Sally olhou fixamente para Sandman como se ele tivesse enlouquecido de repente.

 

- Sete pelas sete estrelas do céu - continuou Sandman - Seis pelos seis orgulhosos caminhantes.

 

- Cinco pelos símbolos à tua porta - completou Berrigan.

 

- E estão cinco vieiras gravadas sobre a porta principal desta casa

- disse Sandman baixinho, consciente de que podia estar alguém à escuta. A letra da canção persistia em grande parte um mistério, mas ele sabia bem o que significavam os cinco símbolos sobre a porta. Aprendera na escola que cinco conchas sobre a porta ou na empena de uma casa significavam que aí residiam católicos. As conchas tinham sido colocadas por altura das perseguições no reinado da rainha Isabel I, quando ser-se padre católico em Inglaterra implicava risco de prisão, tortura e morte. Alguns católicos, porém, não podiam viver sem a consolação da sua fé e, assim, tinham assinalado as suas casas para que os seus correligionários soubessem que podiam encontrar ali refúgio. Só que os homens da rainha conheciam o significado das cinco conchas tão bem como qualquer católico; por isso, se algum padre residisse dentro da casa, o seu proprietário construía o chamado buraco do padre, um esconderijo onde ele podia ser escondido eficazmente.

 

- Preciso de ramos secos, lenha e um isqueiro. E vejam se descobrem um caldeirão grande na cozinha.

 

Berrigan e Sally regressaram ao andar de baixo. Sandman bateu nos painéis que cobriam a parede de um lado e outro da lareira, mas nenhum deles soava a oco. A parede da janela e a parede junto do corredor pareciam demasiado finas, por conseguinte o buraco teria de ficar na parede da lareira ou na parede oposta, onde se encontrava um aparador fundo; só que Sandman não conseguia descobrir nada. Era esse, aliás, o objectivo dos buracos de padre: serem quase impossíveis de detectar.

 

- Isto pesa uma tonelada, com um raio - protestou Berrigan ao entrar no quarto ajoujado sob o peso de um caldeirão enorme, que logo pousou no chão.

 

Sally vinha alguns passos atrás com um braçado de lenha.

 

- O que é que vai fazer com isto? - perguntou.

 

- Vamos incendiar a casa - exclamou Sandman suficientemente alto para que quem estivesse dois quartos mais além poder ouvir. Puxou o caldeirão para junto da lareira. - Ninguém usa a casa e o telhado precisa de arranjo. Ora, sai mais barato atear-lhe fogo do que limpálo. - Pôs os raminhos secos no fundo do caldeirão, acendeu o isqueiro e soprou o pedaço de linho chamuscado até obter uma chama forte, que pegou aos ramos secos. Espevitou a chama durante uns segundos até crepitar, depois pôs-lhe em cima uns pedaços de lenha mais pequenos.

 

Os pedaços maiores ainda demoraram alguns minutos a pegar fogo, mas por essa altura já o caldeirão vomitava fumo, e como se encontrava apenas junto da borda da lareira e não directamente dentro dela, quase nenhum fumo era sugado pela chaminé. O plano de Sandman era fazer que o fumo obrigasse Meg a sair do esconderijo. Colocou Berrigan de guarda à porta do quarto, do lado de fora, enquanto ele e Sally se conservaram no interior com a porta fechada. O fumo começava a sufocá-los, pelo que Sally se agachou junto da cama. Sandman tinha os olhos a chorarem e a garganta áspera, mas, não obstante, lançou mais uma acha na fogueira.

 

Refugiou-se no local onde o fumo era menos denso e aguardou, esperançado em que o fumo estivesse a infiltrar-se no velho esconderijo de Meg e a assustasse. Sally colocara uma cobertura de mobília sobre a boca e Sandman sabia que não podiam ficar ali muito mais tempo, mas, de repente, ouviu-se um rangido, um grito e um estrondo, e uma secção inteira de painéis de parede abriu-se como uma porta. Só que não foi junto à lareira, mas entre as duas janelas, onde Sandman achara a parede demasiado fina para albergar um buraco de padre. Sandman puxou as mangas do casaco para lhe cobrirem as mãos e empurrou o caldeirão para debaixo da chaminé, enquanto Sally agarrava no pulso da mulher, que gritava, aterrada, e tentava a todo o custo desenvencilhar-se daquele espaço estreito e descer para o chão.

 

- ESTÁ TUDO BEM! - ia repetindo Sally enquanto conduzia Meg para a porta.

 

Sandman seguiu atrás das duas mulheres para o amplo patamar. Respirou com sofreguidão o ar puro e fresco e observou os olhos de Meg, orlados de vermelho. Reflectiu em como Charles Corday provara ser um excelente artista, pois a mulher era, na verdade, monstruosamente feia, ao ponto de ter um ar de malevolência.

 

E nesse instante, vindo do hall, ouviu-se um disparo.

 

Sally gritou e Sandman puxou-a para baixo, tirando-a do caminho. Meg, vendo ali uma oportunidade para se escapulir, correu para as escadas, mas Berrigan passou-lhe uma rasteira. Sandman pisou-a quando se dirigia, coxeando, para a balaustrada, de onde viu que a azeda governanta disparara um tiro de caçadeira para o cimo das escadas. Mas, tal como qualquer recruta inexperiente, fechara os olhos ao puxar o gatilho, pelo que o tiro saíra demasiado alto, perdendo-se no ar por cima da cabeça de Sandman. Por detrás dela, encontrava-se meia dúzia de homens, talvez caseiros que tivessem acorrido para proteger a propriedade do duque de Ripon, liderados por um gigante louro armado de mosquete. Os restantes traziam bastões e foices.

 

- Você não tem nada que fazer aqui! - gritou-lhe a governanta.

 

- Temos todo o direito de estar aqui! - mentiu Sandman. - O Governo pediu-nos para investigar um crime. - Manteve um tom de voz calmo enquanto tirava do bolso a carta do ministro do Interior, que, na realidade, não lhe concedia nenhuma espécie de direitos. Desceu as escadas lentamente, sempre de olhos postos no homem armado, que lhe parecia estranhamente familiar, e interrogou-se se ele não teria sido soldado. O seu mosquete era certamente um velho mosquete do Exército, mas estava limpo, estava engatilhado e o homem alto e musculado empunhava-o com à-vontade.

 

- Tenho aqui a autorização do ministro do Interior - exclamou Sandman, brandindo a carta com o selo impressionante. - Alguém quer ler a carta de Sua Senhoria? - inquiriu, estendendo o documento e sabendo que a simples referência a "Sua Senhoria" os faria deter.

 

O homem do mosquete mirou Sandman, franziu-se e baixou a arma.

 

- O senhor é o capitão Sandman? Sandman confirmou com um aceno de cabeça.

 

- Sou.

 

- Por Deus, mas eu vi-o tirar-nos setenta e seis pontos em Tunbridge Wells! - exclamou o homem. Já desengatilhara o mosquete e era agora todo sorrisos para Sandman. - Foi no ano passado, e eu jogava por Kent.

 

E, por graça de Deus, o nome do homem grande deslizou pela memória de Sandman.

 

- Mister Wainwright, certo?

 

- Isso mesmo, Ben Wainwright - confirmou o homem, levando a mão à testa.

 

- Você bateu uma bola para lá do monte de feno, lembro-me eu. Sozinho, quase nos batia a todos!

 

- Nada comparado consigo, capitão, nada comparado consigo. Os homens que o acompanhavam sorriam agora todos a Sandman.

 

Não interessava que ele estivesse ali ilegalmente; era jogador de críquete e era famoso.

 

- Agora, quero ter uma conversa com esta jovem. Talvez haja por aqui um botequim onde possamos falar? - Sandman achava mais sensato tirar Meg da propriedade do duque de Ripon antes que alguém com um rudimentar conhecimento de leis o acusasse de invadir propriedade alheia e explicasse a Meg que não era obrigada a falar com eles.

 

A confrontação terminara. Wainwright assegurou-lhes que o Castle and Bell era um excelente botequim, e Sandman atreveu-se a pensar que tudo iria correr bem. Uma conversa agora, uma corrida até Londres depois e seria feita justiça.

 

MEG ESTAVA AZEDA, taciturna e colérica. Sentada no jardim das traseiras do Castle and Bell, irritada com a intromissão de Sandman na sua vida, durante algum tempo recusou-se mesmo a falar com ele.

 

De olhar distante, bebeu um copo de gin, pediu outro em voz queixosa, depois insistiu com Sandman para a levar de regresso a Cross Hall.

 

- Os meus pipis precisam de que tomem conta deles - exclamou num tom seco.

 

- As suas galinhas? - inquiriu Sandman, surpreendido.

 

- Ele deixou-me tomar conta delas - retorquiu ela, arrogante. Sally saía entretanto do botequim e disse:

 

- Vem aí um criado com os jarros. - Afastou com a mão uma vespa irritante que esvoaçou para junto de Meg. Esta soltou um gritinho, mas depois, quando viu que o insecto não a largava, começou mesmo a gritar de medo. - Por que raio é que está pr'aí a gritar? exclamou Sally. - Não tem nenhuma razão p'ra gritar. Tem andado a pavonear-se por aí enquanto o pobrezinho daquele borboleta está à espera de ser enforcado.

 

O criado surgiu com um tabuleiro com canecas, copos e jarros. Sandman encheu de cerveja uma caneca de meio litro.

 

- Porque não leva essa aí ao sargento? - disse a Sally. - Eu falo com Meg.

 

Berrigan estava junto de um tanque a dar água aos cavalos. Sally pegou na caneca de cerveja, e Sandman ofereceu a Meg outro copo de gin, que ela lhe arrebatou da mão sofregamente.

 

- Gostava muito da condessa, não gostava? - perguntou-lhe ele.

 

- Não tenho nada a dizer-lhe - respondeu Meg. - Nada. - Emborcou o gin e estendeu a mão para o jarro.

 

Sandman afastou o jarro dela com um gesto brusco.

 

- Como é que se chama? - perguntou. Despejou uma porção de gin para a erva, e Meg ficou subitamente muito quieta, assumindo um ar desconfiado. - Vou levá-la para Londres - prosseguiu ele. - E tem duas formas de seguir viagem. Pode portar-se bem e, nesse caso, viajar confortavelmente ou pode preferir portar-se mal e, nesse caso, meto-a na prisão.

 

- Não pode fazer isso! - escarneceu ela.

 

- Posso fazer o que muito bem me der na gana! - retorquiu Sandman bruscamente, num acesso de cólera. - Está a sonegar provas num caso de homicídio!

 

Ela fitou-o, furibunda, depois, encolhendo os ombros, respondeu em tom ríspido:

 

- Chamo-me Hargood. Margaret Hargood. Sandman serviu-lhe outro copo de gin.

 

- Miss Hargood, o ministro do Interior ordenou-me que investigasse o assassínio da condessa de Avebury, porque receia que se esteja a ponto de cometer uma grande injustiça. - No dia em que o visconde Sidmouth se preocupasse com uma injustiça cometida sobre um membro das classes mais baixas, o Sol provavelmente nasceria a oeste, cogitou Sandman, no entanto não podia dar a entender isso. - Eu estou convencido de que não foi de todo Charles Corday quem matou a sua ama. E consideramos que podemos provar isso.

 

- Não sei nada a esse respeito - retorquiu ela. - Nada a respeito de crime nenhum. - Encarava Sandman com ar de desafio, de olhar duro como pedra.

 

Sandman soltou um suspiro.

 

- Quer deixar morrer um homem inocente?- A rapariga não respondeu. - Julga que o marquês vai protegê-la? - inquiriu. - Estou admirado em como ele não a matou já. - Esta afirmação produziu, finalmente, alguma reacção.

 

- Você não sabe nada de nada, pois não? - escarneceu Meg.

 

- Eu digo-lhe o que é que sei - respondeu Sandman, cuja ira atingia já quase as raias da violência. - Sei que você pode salvar da forca um homem inocente e não o quer fazer e sei que isso a torna cúmplice de um crime, miss, e que pode ser enforcada por isso. Sandman aguardou, mas ela não disse nada, e ele percebeu que falhara. Se a rapariga não falasse, Corday não podia ser salvo.

 

Queria levar Meg para Londres o mais rapidamente possível, mas Mackeson insistia em que os cavalos estavam demasiado cansados para empreender a caminhada. Isso significava que teriam de passar a noite na aldeia. Enfiaram Meg na carruagem e bloquearam-lhe as portas e as janelas. Berrigan, Sandman e Sally dormiram sobre a erva, vigiando Mackeson e Billy, embora nenhum deles demonstrasse qualquer animosidade.

 

- Então, o que é que acontece agora? - perguntara Berrigan a Sandman a certa altura da curta noite de Verão.

 

- Levamo-la à presença do ministro e deixamos que seja ele a resolver a questão com ela - respondera Sandman calmamente.

 

Não ia adiantar nada, pensou, mas que outra coisa podia fazer?

 

Ri LOGO A SEGUIR ao nascer do Sol que o portão principal da Prisão e Newgate se abriu lentamente e que as primeiras peças do cadafalso foram transportadas para Old Bailey. Parte da vedação que iria rodear o cadafalso, depois de concluído, foi colocada até meio da rua para desviar o pouco tráfego que circulava entre Ludgate Hill e Newgate Street àquela hora matutina de domingo. William Brown, o curador de Newgate, veio até ao portão principal, onde bocejou, acendeu um cachimbo e depois desviou-se para o lado para deixar passar as vigas que formavam a estrutura principal da plataforma do cadafalso.

 

- Vai estar um rico dia, Mister Pickering - disse ao capataz.

 

- Um dia quente, sir.

- Muita cerveja aí pelas ruas.

 

- Deus seja louvado por isso - disse Pickering. - Vai ser então um dia movimentado, não?

 

- Só dois - informou o curador. - Mas um deles é o fulano que apunhalou a condessa de Avebury. É natural que atraia bastante gente.

 

- E o bom tempo vai encorajar as pessoas a virem.

 

- Ah, isso vai - concordou o curador. - Se se mantiver assim.

- Sacudiu o cachimbo, depois foi para dentro mudar de roupa para o serviço religioso da manhã.

 

SANDMAN ESTAVA muito mal-humorado naquela manhã de domingo. Dormira mal, e os queixumes de Meg pelo facto de a levarem para Londres à força não contribuíam em nada para melhorar o seu estado de espírito. Berrigan e Sally também não se encontravam mais bem-dispostos, mas tinham o bom senso de não dizer nada.

Tinham deixado Billy, o moço de estrebaria, na aldeia. Dificilmente podia chegar antes da carruagem; não lhe era possível, por conseguinte, avisar o Clube Serafim, pelo que não havia perigo em abandoná-lo.

 

- Mas como é que vou regressar a casa? - perguntara, apreensivo.

 

- A pé - respondera Sandman secamente.

 

Os cavalos estavam cansados, mas respondiam com suficiente energia ao chicote de Mackeson, e assim, quando o Sol rompeu sobre as árvores, a leste, já eles se deslocavam para norte a boa velocidade.

 

Sandman partilhava o banco do condutor com Berrigan e Mackeson, deixando o interior da carruagem para Sally e Meg.

 

- Talvez com outra rapariga ela fale - dissera Sally.

 

Chegaram entretanto perto de um ribeiro, e Mackeson parou os cavalos. Enquanto eles bebiam, Sandman desdobrou os degraus da carruagem para que Sally e Meg pudessem estender um pouco as pernas. Fitou Sally, interrogando-a com o olhar, mas ela abanou a cabeça e murmurou:

- Casmurra.

 

Meg fuzilou Sandman com o olhar, sentou-se na margem e disse:

 

- Se as raposas comerem os meus pipis, eu mato-o.

 

- Você preocupa-se mais com as suas galinhas do que com a vida de um homem inocente?

 

- Que o enforquem, quero lá saber - retorquiu Meg.

 

- Vai ter de falar com outros homens lá em Londres - explicou Sandman. - E esses não vão ser nada gentis.

 

A rapariga não disse nada. Sandman suspirou e disse.

 

- Eu sei o que aconteceu. Você estava na sala onde Corday pintava a condessa e alguém surgiu pelas escadas das traseiras. Você despachou rapidamente Corday para a rua pelas escadas da frente, porque se tratava de um dos amantes da condessa, o marquês de Skavadale. Meg franziu a testa, pareceu ir dizer alguma coisa, mas depois limitou-se a olhar para longe. - E a condessa andava a fazer chantagem com ele. Era assim que ela fazia fortuna, não é verdade? E você era a intermediária dela, não era?

 

Meg volveu para Sandman os seus olhos pequenos e rancorosos.

 

- Eu era a protectora dela, seu lorpa, e ela bem precisava de uma. Devia ter sido mais dura para seu próprio bem, é o que ela devia.

 

- Mas a verdade é que não a defendeu, pois não? - exclamou Sandman com aspereza. - O marquês matou-a e você descobriu. Encontrou-o lá? Se calhar, até presenciou o crime! E depois ele escondeu-a e prometeu-lhe dinheiro.

 

Meg fez um meio sorriso.

 

- Então, porque é que ele não me matou logo ali, hem? - Fitava Sandman numa atitude de desafio. - Se ele matou a condessa, porque não havia de matar a aia? Vá, responda-me lá!

 

Sandman não foi capaz. Era, de facto, a única coisa para que não encontrava explicação, embora tudo o resto fizesse sentido.

 

- Capitão! - Berrigan, sentado no banco do cocheiro, estava a olhar para norte. Sandman olhou nessa direcção e avistou uma colina baixa densamente arborizada. E lá no alto, onde a estrada de Londres cruzava a linha do horizonte, abrindo uma brecha no arvoredo, estava um grupo de cavaleiros.

 

Os cavaleiros encontravam-se demasiado longe para serem claramente visíveis, mas Sandman ficou com a impressão de que observavam a carruagem e que, pelo menos um deles, estava de posse de um telescópio.

 

- Podem não ter nada a ver connosco - disse.

 

- Talvez - concordou Berrigan. - Mas acontece que Lord Robin Holloway gosta de vestir uma jaqueta de montar branca e tem um grande cavalo negro.

 

O homem que seguia ao centro do grupo envergava uma jaqueta branca e montava um grande cavalo negro.

 

- Raios! - exclamou Sandman baixinho. Teria o Clube Serafim ligado o seu nome ao desaparecimento da carruagem e ficado preocupado com a situação de Meg em Kent? Estava ele a cogitar nisto quando viu o grupo de cavaleiros arrancar, desaparecendo no arvoredo.

 

- Sargento! Enfie Meg na carruagem! Depressa!

 

Não havia espaço para virar a carruagem, por isso Sandman ordenou a Mackeson para meter pelo primeiro desvio que lhes aparecesse. Qualquer azinhaga ou caminho de quinta servia, mas, perversamente, nenhum aparecia. E então, quando Sandman já desesperava de alguma vez encontrar um desvio que lhes permitisse escaparem, surgiu-lhes à direita uma estreita vereda, e ele ordenou a Mackeson que metesse por lá. O veículo virou para a vereda e logo começou a guinar e oscilar assustadoramente, pois o trilho não era mais do que o rasto de velhos sulcos de rodas de carroça solidificados na lama seca. Mas cada metro percorrido afastava-os mais da estrada de Londres.

 

Sandman fez Mackeson parar ao fim de cerca de duzentos metros; depois, pôs-se de pé no tecto da carruagem e olhou para trás, mas não conseguiu avistar quaisquer cavaleiros na estrada. Então, Meg pôs-se a gritar, e Sandman, descendo precipitadamente do tecto, ouviu um estalo. Os gritos pararam, e ele saltou para a estrada. Berrigan baixou a janela.

 

- É só uma vespa - exclamou, lançando o insecto morto para a berma. - Pela gritaria infernal dela até parecia que era um crocodilo!

 

- Eu pensei que ela estivesse a matá-lo - disse Sandman. E começara a trepar de novo para a carruagem quando Berrigan o deteve, erguendo uma mão. Parou, escutou e ouviu o ruído de cascos.

 

O ruído passou. O grupo de cavaleiros estava na estrada principal, mas não virara para a vereda estreita onde se encontravam. Sandman içou-se para o banco do cocheiro e fez sinal com a cabeça a Mackeson.

 

- Devagar agora - disse. - Avance com cuidado.

 

- Não posso fazer outra coisa - retorquiu Mackeson em tom reprovador, apontando com o queixo para a frente, onde o trilho virava bruscamente para a esquerda.

 

A curva era extremamente apertada. A carruagem abanou toda quando as rodas subiram a berma e os cavalos, sentindo a resistência, afrouxaram a tracção. Nesse instante, a roda dianteira esquerda resvalou numa vala que as ervas dissimulavam, a carruagem inclinou-se toda para um lado, Mackeson agitou braços e pernas, tentando desesperadamente equilibrar-se, e Sandman lançou a mão ao balaústre do tecto. Depois, os raios da roda, sobre os quais recaiu todo o peso da carruagem na vala escondida, soltaram-se um a um e, como era inevitável, o aro da roda estilhaçou-se e o fundo da carruagem embateu com força no chão. Mackeson conseguira milagrosamente manter-se no lugar.

 

- Eu já lhe tinha dito que ela não fora feita para as estradas do campo - exclamou, indignado. - Isto é uma carruagem de cidade.

 

- Agora, não é carruagem de diabo de espécie nenhuma - disse Berrigan, que, entretanto, saíra da carruagem e ajudava as duas mulheres a descerem para o chão.

 

- E agora o que vai fazer? - perguntou Mackeson com um indisfarçável tom de triunfo na voz. A destruição da carruagem era como que uma espécie de vingança para ele pelas humilhações que lhe tinham sido infligidas durante um dia e duas noites.

 

- O que eu vou fazer, não é da sua conta - respondeu Sandman, saltando do banco. - Mas o que você vai fazer é ficar aqui junto da carruagem. Sargento? Liberte os cavalos dos tirantes. - Depois, voltando-se para Meg e Sally, disse: - Vocês vão montar em pêlo.

 

- Eu não sei montar - protestou Meg.

 

- Nesse caso, pode preparar-se para ir a pé para Londres! - exclamou Sandman, já a começar a ficar fora de si. - E eu tratarei de assegurar que vai mesmo! - Arrebatou o chicote das mãos de Mackeson.

 

- Ela vai montar, capitão - disse Sally, e, de facto, logo que as parelhas foram libertadas dos tirantes, Meg trepou obedientemente para o dorso de um dos cavalos, com ambas as pernas balouçando para o mesmo lado e agarrando com as mãos a correia que corria ao longo da espinha da égua.

 

Sandman e Berrigan conduziram os quatro animais pela vereda de regresso à estrada de Londres. Era arriscado utilizá-la, mas os cavaleiros, se de facto andavam à procura da carruagem, tinham ido procurá-la mais a sul. Sandman caminhava com cautela, mas não encontraram ninguém no caminho.

 

Um marco de estrada indicava que Londres distava dali precisamente sessenta e oito quilómetros.

 

Prosseguiram a caminhada. Estavam todos cansados, com os nervos à flor da pele, e o calor e a estrada interminável iam minando as forças de Sandman. As suas roupas estavam sujas e ásperas e sentia uma bolha a formar-se no calcanhar direito. Ainda coxeava, e Sally tentou persuadi-lo a montar, mas ele queria manter os cavalos de reserva frescos, por isso abanou a cabeça e prosseguiu naquele tipo de passada quase automática, característica da marcha dos soldados.

 

- O QUE É QUE ACONTECE quando chegarmos a Londres? - Berrigan quebrou assim o silêncio, após terem passado por mais uma aldeia.

 

Sandman piscou os olhos como se tivesse acabado de acordar. Reparou que o Sol já declinava e que os sinos das igrejas chamavam para a oração da tarde.

 

- Meg vai contar a verdade - respondeu. Ela bufou de escárnio, mas Sandman conteve a sua ira. - Meg - disse com toda a delicadeza -, você quer voltar para casa do marquês, para as suas galinhas, não é verdade?

 

- Sabe bem que sim - retorquiu ela.

 

- Pode voltar, mas, primeiro, vai ter de contar parte da verdade.

 

- Só parte? - inquiriu Sally, confusa.

 

- Parte da verdade - insistiu Sandman. Sem se dar conta, estivera a pensar no seu dilema e, de súbito, surgira-lhe claramente a solução. Afinal, fora contratado para averiguar se Corday era ou não culpado.

 

- Não interessa quem matou a condessa - explicou ele a Meg. O que interessa é que você sabe que não foi Corday. Você levou-o para fora da sala quando ela ainda estava viva, e é apenas isso que eu quero que diga ao ministro do Interior. Pode fazer o que quiser da sua vida, mas primeiro tem de contar essa pequena parte da verdade.

 

Finalmente, ela fez um aceno afirmativo com a cabeça.

 

- Eu acompanhei Charles Corday à porta da rua - disse baixinho. - A condessa disse-lhe para voltar no dia seguinte.

 

- E você está disposta a contar isso ao ministro do Interior?

 

- Estou - respondeu ela. - Mas só isso.

 

- Obrigado.

 

Outro marco miliário indicou-lhe que Charing Cross ficava a vinte e nove quilómetros. O cansaço de Sandman desvaneceu-se. Parte da verdade seria suficiente, e a sua missão, graças a Deus, estaria cumprida.

 

NA CELA DA MORTE da Prisão de Newgate, deram aos dois homens que iam morrer na manhã seguinte uma refeição de sopa de ervilhas, costeletas de porco e couves cozidas. Os dois homens eram profundamente diferentes um do outro, pensou o curador enquanto aguardava que os dois terminassem a refeição. Charles Corday era magro, pálido e nervoso, ao passo que Reginald Venables era um brutamontes de rosto sinistramente fechado; contudo, fora Corday que cometera um assassínio, enquanto Venables ia ser enforcado por ter roubado um relógio.

 

Corday mal tocou na comida, após o que, arrastando as grilhetas, se dirigiu para o beliche, onde se deitou a olhar para o tecto abobadado.

 

- Amanhã - principiou o curador logo que Venables acabou de comer -, serão levados daqui para a Sala de Convívio, onde vos tirarão as grilhetas e vos sujeitarão os braços. - Fez uma pausa. - Vão ver que o vosso castigo não será doloroso e depressa acabará.

 

- Mentiroso indecente - rosnou Venables.

 

- Silêncio! - rugiu o chefe dos carcereiros.

 

- Se derem luta - prosseguiu o curador -, serão enforcados dolorosamente. É melhor colaborarem. - Dirigiu-se para a porta. – Os carcereiros ficarão aqui toda a noite. Se pretenderem conforto espiritual, eles podem chamar o capelão. Desejo-vos uma boa noite.

 

- Eu estou inocente - exclamou Corday com a voz embargada.

 

- Sim - disse o curador, embaraçado. - Sim, claro. - Considerou que não tinha mais nada a dizer sobre o assunto, por isso limitou-se a acenar com a cabeça aos carcereiros. - Boa noite, meus senhores.

 

No Birdcage Walk, o corredor subterrâneo que da prisão conduzia às salas de tribunal da Sala das Sessões, dois prisioneiros trabalhavam com pás e picaretas. Tinham pendurado lanternas no tecto do corredor e removido e empilhado a um canto as grandes lajes de granito do chão. Um grande fedor invadia agora essa passagem: um fedor insuportável a gás, cal e carne podre.

 

- Cristo! - exclamou um dos prisioneiros, recuando instintivamente perante o mau cheiro.

 

- Não O vais encontrar aí em baixo - comentou um dos carcereiros. - Acaba lá o trabalho, Tom, se queres provar disto. - Exibiu uma garrafa de brandy.

 

- Deus nos ajude, com um raio! - exclamou Tom em tom lúgubre. Em seguida, respirou fundo e recomeçou a escavar.

 

Ele e o seu companheiro estavam a escavar as sepulturas para os dois homens que haviam de ser executados de manhã. Alguns dos corpos eram levados para ser dissecados, mas os anatomistas não podiam ocupar-se de todos eles, por conseguinte a maior parte era levada para ali e enterrada em campas sem identificação. Embora na prisão enterrassem os cadáveres em cal viva para apressar a sua decomposição e escavassem o chão seguindo uma rotação estrita para evitar escavarem uma secção demasiado cedo após um enterro, as pás e as picaretas continuavam a encontrar ossos pelo caminho.

 

Tom, enfiado no buraco até aos tornozelos, desenterrou um crânio amarelado que fez rolar pelo corredor.

 

- Este até parece estar de boa saúde, não parece? - disse. E os dois carcereiros, bem como o segundo prisioneiro, riram-se às gargalhadas.

 

No cadafalso, dois guardas montavam guarda. Logo após a meia-noite, o céu anuviou-se e um aguaceiro fresco surgiu dos lados de Ludgate Hill. Algumas pessoas, ansiosas por ocupar os melhores lugares junto ao cadafalso, dormiam sobre as pedras da calçada e foram acordadas pela chuva. Resmungaram, ajeitaram-se melhor debaixo dos cobertores e tentaram adormecer de novo.

 

A alvorada chegou cedo. As nuvens desvaneceram-se, revelando um céu branco-pérola raiado por pinceladas castanhas de fumo de carvão. Londres começava a despertar.

 

O CAVALO DE SALLY, um castrado, começara a coxear logo após a meia-noite de domingo, de seguida a bota de Berrigan perdera a sola. Amarraram então o castrado a uma árvore e Berrigan trepou para o dorso do terceiro cavalo. Sandman, cujas botas também estavam no limite, conduziu à rédea os cavalos das duas raparigas, tendo abandonado a alimária coxa. Os restantes três cavalos estavam tão cansados que Sandman acreditava poderem avançar mais rapidamente se os deixassem para trás, mas Meg já aceitara contar parte da verdade, e ele não queria que essa sua disposição se alterasse por ele sugerir que fosse a pé.

 

Lá prosseguiram, por conseguinte, até que, já bastante depois da meia-noite, atravessaram a Ponte de Londres e dirigiram-se para a Wheatsheaf, onde Sally levou Meg para o seu quarto e Sandman cedeu o seu a Berrigan, indo descansar para a sala das traseiras.

 

Quando os sinos de St. Giles bateram as 6 da manhã, ele acordou Berrigan, dizendo-lhe para ir tirar as raparigas da cama. Depois, barbeou-se, procurou a sua melhor camisa, escovou o casaco e limpou a lama das maltratadas botas, até que às 6.30, acompanhado por Berrigan, Sally e uma recalcitrante Meg, partiu para a Great George Street e, segundo esperava, para o final da sua investigação.

 

- VALHA-ME DEUS! - O carcereiro apurou o ouvido ao toque de um sino de igreja que batia o quarto de hora. - A Santo Sepulcro diz que já só falta um quarto para as sete! Se virarem à esquerda, Vossas Senhorias poderão juntar-se a Mister Brown e aos outros cavalheiros na Sala de Convívio.

 

- A Sala de Convívio? - perguntou Lord Alexander Pleydell.

 

- É onde os condenados se reúnem durante o dia - explicou o carcereiro. - E aquelas janelas à sua esquerda são as arcas de sal.

 

- As arcas de sal são o quê? - perguntou Lord Christopher Carne, que estava muito pálido nessa manhã.

 

- As salas de espera do Diabo - respondeu o carcereiro, abrindo a porta da Sala de Convívio e estendendo ostensivamente a mão com a palma para cima

 

Lord Alexander tirou à pressa do bolso uma moeda.

 

- Obrigado, bom homem.

 

- Muito obrigado a Vossa Senhoria - disse o homem, levando a mão à testa.

 

William Brown, o curador, apressou-se a vir receber os seus novos convidados. Reconheceu Lord Alexander pelo seu pé deformado e saudou-o, tirando o chapéu e fazendo uma vénia respeitosa.

 

- Vossa Senhoria é muito bem-vindo.

 

- Lord Christopher Carne - disse Lord Alexander, apresentando o seu amigo. - O assassino da sua madrasta vai ser enforcado hoje. O curador fez uma vénia a Lord Christopher.

 

- Espero sinceramente que Vossa Senhoria considere esta experiência uma vingança e, ao mesmo tempo, uma consolação. - Conduziu-os para onde um homem de sotaina, sobrepeliz e cabeleira antiquada aguardava com um sorriso no rosto roliço. - O reverendo Dr. Horace Cotton - informou o curador.

 

- Vossa Senhoria é muito bem-vindo. - Cotton fez uma vénia a Lord Alexander. - Eu creio que Vossa Senhoria, tal como eu, recebeu as ordens sacras.

 

- Recebi, sim - respondeu Lord Alexander. - Deixe-me apresentar-lhe Lord Alexander Carne.

 

- Ah! - Cotton juntou as mãos numa atitude de prece e voltou-se para Lord Christopher. - Penso que esta manhã irá ver ser feita justiça à sua família.

 

- Espero que sim - retorquiu Lord Christopher.

 

- Oh, francamente, Kit! - admoestou-o Lord Alexander. - A vingança que a tua família procura será obtida na eternidade pelos fogos do inferno ... e não é correcto nem civilizado da nossa parte empurrar as pessoas mais cedo para esse destino.

 

O curador pareceu ficar espantado.

 

- Vossa Senhoria decerto não defende a abolição da pena de enforcamento?

 

- Enforcar um homem - replicou Sir Alexander - é negar-lhe a possibilidade de arrependimento. É negar-lhe a possibilidade de ser atormentado, dia e noite, pela sua consciência. Bastaria, acho eu, desterrar simplesmente todos esses criminosos para a Austrália. Executando-os, negamos aos homens a possibilidade da sua salvação.

 

- E uma argumentação original - concedeu Cotton, embora muito pouco convictamente.

 

Lord Alexander olhou para o seu amigo de sobrolho franzido.

 

- Sentes-te bem, Kit?

 

- Oh, sim, sem dúvida, muito bem - respondeu apressadamente Lord Christopher. Mas parecia estar tudo menos bem. Tinha pingas de suor na testa e estava mais pálido do que era hábito. Tirou os óculos e limpou-os com um lenço. - O que acontece é que a percepção de que um homem vai ser arrastado para a eternidade nos conduz à reflexão explicou. - Não é uma experiência para ser encarada de ânimo leve.

 

- Também penso que não, de facto - concordou Lord Alexander, após o que lançou um olhar severo aos outros convidados para o pequeno-almoço, que pareciam aguardar os acontecimentos daquela manhã com uma alegria pecaminosa. Lord Alexander fitou-os, carrancudo.

 

- Pobre Corday! - exclamou. - Parece provável que esteja inocente, contudo não se conseguiu obter prova dessa inocência.

 

- Se ele estivesse inocente, Vossa Senhoria - observou o capelão -, tenho a certeza de que Deus no-lo revelaria.

 

- O melhor então seria Deus meter pés a caminho esta manhã comentou Lord Alexander; depois, voltou-se quando uma porta gradeada, no outro extremo da sala, se abriu com um súbito e estridente rangido. Um homem baixo e entroncado surgiu no limiar, transportando consigo uma volumosa mala de couro.

 

- Este é o carrasco, Botting - sussurrou o capelão.

 

Botting colocou quatro rolos de fio branco e de corda em cima da mesa, juntou-lhes dois sacos brancos de algodão, depois deu uns passos atrás.

 

- Bom dia - disse ao curador. - Sempre são só os dois clientes hoje?

 

- Só os dois, Botting.

 

- Botting! - interpelou Lord Alexander, aproximando-se, o seu pé-boto pisando com força as tábuas gastas do soalho - Diga-me, Botting, é verdade que enforca os membros da aristocracia com uma corda de seda? - Botting pareceu ficar espantado por um dos convidados do curador se lhe dirigir directamente.

 

- Uma corda de seda, sir? - inquiriu Botting baixinho.

 

- Vossa Senhoria - corrigiu-o o capelão.

 

- Vossa Senhoria! Ah! - exclamou Botting, divertido perante a ideia de que talvez Lord Alexander estivesse a pensar vir a ser executado um dia. - Custa-me desapontá-lo, Vossa Senhoria, mas eu não saberia onde pôr as mãos numa corda de seda. Agora isto - Botting acariciou um dos rolos colocados em cima da mesa -, isto é do melhor cânhamo de Bridport, Vossa Senhoria, do melhor que pode encontrar-se por aí. Mas seda? Não, Vossa Senhoria. Se eu alguma vez vier a ter o alto privilégio de enforcar um nobre, fá-lo-ei com cânhamo de Bridport, o mesmo que utilizo com qualquer outra pessoa.

 

- E tem toda a razão, bom homem. - Lord Alexander manifestou exuberantemente o seu apreço pelo instinto democrático do carrasco.

- Obrigado.

 

Depois, todos os convidados se descobriram porque acabavam de entrar na sala o xerife e o xerife-adjunto, trazendo os dois prisioneiros.

 

- Brandy, sir? - ofereceu um dos criados do curador, surgindo ao lado de Lord Christopher Carne.

 

- Obrigado. - Lord Christopher, mais pálido ainda do que antes, não conseguia despegar os olhos do jovem que primeiro transpusera a porta, com as pernas sujeitas pelas pesadas grilhetas de ferro.

 

- Aquele ali é que é Corday? - perguntou ao criado.

 

- É, sim, Vossa Senhoria.

 

Lord Christopher engolipou o brandy de um trago. E os dois sinos, o da prisão e o da Igreja do Santo Sepulcro, começaram a dobrar por aqueles que estavam prestes a morrer.

 

A PORTA DA CASA da Great George Street foi aberta por Witherspoon, o secretário particular do visconde Sidmouth, que arqueou o sobrolho de espanto.

 

- Uma hora muito imprópria, capitão - observou, após o que fez uma expressão de desagrado ao reparar no estado desalinhado de Sandman e na aparência andrajosa dos seus três companheiros.

 

- Esta mulher - Sandman não se preocupou com as gentilezas de um cumprimento - pode testemunhar que Charles Corday não é o assassino da condessa de Avebury.

 

Witherspoon lançou um olhar rápido a Meg.

 

- Que inconveniente - murmurou.

 

- O visconde Sidmouth está? - inquiriu Sandman.

 

- Nós estamos a trabalhar, Sandman - exclamou Witherspoon, agastado. - E Sua Senhoria não tolera interferências.

 

- Isto é trabalho - retorquiu Sandman.

 

- Será preciso recordar-lhe - disse Witherspoon - que o rapaz foi considerado culpado e que a justiça seguirá o seu curso dentro de uma hora? Realmente, não vejo o que possa fazer-se nesta situação.

 

Sandman recuou da entrada da porta.

 

- Os meus cumprimentos a Lord Sidmouth - disse. - Diga-lhe que vamos pedir uma audiência à rainha. - Não fazia ideia se a rainha o receberia, mas tinha a certeza de que o ministro do Interior não desejaria a animosidade da família real - Um bom dia para si, Witherspoon.

 

- Capitão! - Witherspoon abriu a porta de par em par. - Capitão! É melhor entrar.

 

Foram conduzidos para um gabinete vazio. A casa tinha ar de ser de utilização provisória. Era claramente arrendada por períodos curtos a políticos como Lord Sidmouth. O único mobiliário existente no gabinete era um par de cadeiras de braços estofadas e uma secretária pesada, tendo por trás uma cadeira que fazia lembrar um trono.

 

A porta abriu-se, e Witherspoon surgiu escoltando o ministro do Interior. O visconde Sidmouth trazia um roupão de seda lavrada por cima da camisa e das calças. O seu olhar era, como sempre, frio e reprovador.

 

- Parece-me, capitão Sandman, que o senhor decidiu criar-nos problemas - exclamou com azedume.

 

- Eu não decidi nada desse género - retorquiu Sandman em tom determinado.

 

Sidmouth franziu o sobrolho perante o tom de voz dele, depois olhou para Berrigan e as duas mulheres.

 

- Então, quem é que trouxe aqui?

 

- Os meus companheiros, sargento Berrigan e Miss Hood, e Miss Margaret Hargood - apresentou Sandman.

 

O ministro do Interior olhou para Meg e quase se encolheu perante a visão dos seus dentes horrorosos e da sua pele bexigosa.

 

- Miss Hargood era aia da condessa de Avebury e estava presente no quarto da condessa no dia em que foi assassinada. Ela acompanhou Charles Corday até à porta da rua e pode testemunhar que ele não voltou à casa. Resumindo, ela pode declarar que Corday está inocente. Sandman falou com um misto de orgulho e de satisfação. Estava cansado, esfomeado, doía-lhe o tornozelo, mas, por Deus, tinha descoberto a verdade.

 

Os lábios de Sidmouth, já de si finos, comprimiram-se numa linha sem cor ao olhar para Meg.

 

- Isto é verdade, mulher?

 

Meg endireitou-se, depois fungou. Não estava nem um pouco intimidada com Sua Senhoria.

- Eu não sei nada - disse ela.

 

- Como disse? - O ministro do Interior empalideceu perante a insolência patente na voz dela.

 

- Ele foi lá e raptou-me! - guinchou Meg, apontando para Sandman. - O que não tinha o raio do direito de fazer! E o que me interessa a mim quem a matou? Ou quem vai morrer por causa disso?

- Meg. - Sandman tentou apelar ao bom senso dela.

 

- Tire o raio das patas de cima de mim!

 

- Santo Deus! - exclamou o visconde Sidmouth com voz sofredora e recuando em direcção à porta. - Witherspoon, estamos aqui a perder o nosso tempo.

 

- Sempre há cada vespa grande na Austrália!... Com perdão de Vossa Senhoria - disse Sally.

 

Até mesmo o visconde Sidmouth, com a sua mente estreita e árida de jurista, não se mostrava indiferente aos encantos de Sally. No gabinete escuro, ela era um raio de sol, e ele, sorrindo, interpelou-a:

 

- Como é que disse?

 

- Austrália é onde esta amásia vai parar por não ter testemunhado no julgamento de Charlie. Tinha obrigação de o fazer e não fez. Para proteger o homem dela, está a ver? E Vossa Senhoria vai desterrá-la, não vai? - E Sally reforçou a sua retórica com uma graciosa vénia.

 

O ministro do Interior franziu a testa.

 

- Isso compete aos tribunais decidir, não a mim, minha cara ... A voz sumiu-se-lhe repentinamente, pois estava a olhar, espantado, para Meg, que tremia como varas verdes.

 

- Vespas enormes na Austrália, com ferrões do tamanho de ganchos de cabelo - insistiu Sally com evidente prazer.

 

- Aculeata gigantas - acrescentou Witherspoon com grande ênfase.

 

- Não foi ele! E eu não quero ir para a Austrália!

 

- Bom, está a querer dizer que não foi Charles Corday quem cometeu o crime? - perguntou Sidmouth num tom de voz frio e calmo.

 

- Não foi o marquês! E ele também não!

 

- Não foi o marquês? - perguntou Sidmouth, completamente aturdido agora.

 

- O marquês de Skavadale, em casa de quem ela obteve refúgio

- esclareceu Sandman.

 

- Ele chegou quando ela já estava morta. - Meg, com um pânico das abelhas míticas, estava agora ansiosa por esclarecer tudo. - E ele ainda lá estava!

 

- Quem é que ainda lá estava? - inquiriu Sidmouth. - Corday?

 

- Não! - respondeu Meg - O enteado dela, aquele que andava há meio ano a meter a foice na seara do pai.

 

- Lord Christopher Carne - esclareceu Sandman.

 

- Eu vi-o com a faca na mão - rosnou Meg. - E o marquês também viu. Lord Christopher! Ele odiava-a, sabe, mas não conseguia tirar-lhe as patas de cima. Oh, foi ele quem a matou, sim! Não foi esse pintor magrizela!

 

Fez-se silêncio por um segundo, durante o qual um sem-número de questões acorreu ao pensamento de Sandman, mas depois Lord Sidmouth ditou uma ordem seca a Witherspoon:

 

- Os meus cumprimentos à Esquadra de Polícia de Queen Square, e ficar-lhes-ia muito grato se pudessem dispensar-nos quatro agentes e seis cavalos de sela imediatamente. Mas primeiro dê-me papel e uma caneta, Witherspoon, o lacre e o selo. - Voltou-se e olhou para o relógio que estava em cima da consola da lareira. - E temos de agir depressa, homem. - O seu tom de voz era amargo, como se estivesse aborrecido por ter de fazer trabalho extraordinário, mas Sandman não podia criticá-lo. Ele estava a fazer o que devia e a fazê-lo com rapidez.

 

- O PÉ NO CEPO, rapaz! Anda, depressa! - ordenou secamente o carcereiro a Charles Corday, que engoliu em seco, depois colocou o pé direito no cepo de madeira. O carcereiro apontou o punção ao primeiro pino e, com a ajuda de um martelo, retirou-o. Corday sustinha a respiração a cada martelada, depois gemeu quando a grilheta se soltou.

 

- O outro pé, rapaz - ordenou o carcereiro.

 

Os convidados do curador mantinham-se em silêncio, apenas observando o rosto dos prisioneiros.

 

- Pronto, rapaz, agora vai ter com o carrasco! - disse o carcereiro, e Charles Corday cambaleou ao dar os primeiros passos sem as grilhetas de ferro.

 

- Não sei ... - exclamou Lord Christopher, calando-se logo em seguida.

 

- O quê, Kit? - perguntou Lord Alexander atenciosamente. Lord Christopher estremeceu, sem se dar conta sequer de ter falado, mas depois restabeleceu-se.

 

- Dizes que há dúvidas acerca da culpa dele?

 

- Oh, sim, há de facto. - Lord Alexander fez uma pausa para acender o cachimbo. - Sandman estava plenamente convencido da inocência do rapaz, mas acho que não há provas disso. Infelizmente, infelizmente.

 

- Mas se vierem a descobrir o verdadeiro assassino, poderá esse homem vir a ser condenado pelo crime, depois de Corday ter sido considerado culpado e enforcado? - perguntou Lord Christopher, de olhos postos em Corday, que tremia todo diante do carrasco.

 

- Uma boa pergunta! - retorquiu Lord Alexander com vigor. Confesso que não sei a resposta, mas imagino que, se o verdadeiro assassino for detido, deve ser concedido um perdão póstumo a Corday; depois, só nos resta esperar que esse perdão seja reconhecido no céu.

 

- Fica quieto, rapaz - rosnou Botting para Corday. - Bebe isso, se quiseres. - Apontou para um jarro de brandy, mas Corday abanou a cabeça. - Tu é que sabes, moço - comentou Botting, após o que lhe prendeu os cotovelos.

 

O reverendo Cotton aproximou-se.

 

- Deus é o nosso refúgio e a nossa força, meu jovem, e uma ajuda sempre presente nos momentos mais difíceis. Apela ao Senhor e Ele ouvir-te-á. Estás arrependido dos teus pecados, rapaz?

 

- Eu não fiz nada! - disse Corday, chorando.

 

- Silêncio, meu filho, silêncio - intimou Cotton.

 

- Mas certamente - insistiu Lord Christopher com Lord Alexander - o próprio facto de alguém já ter sido condenado e punido fará que as autoridades tenham maior relutância em reabrir o processo.

 

- A justiça tem sempre de ser feita - comentou vagamente Lord Alexander. - Mas suponho que, uma vez morto Corday, o verdadeiro criminoso poderá considerar-se bastante mais seguro. Pobre rapaz. O seu sacrifício é um atestado da nossa incompetência judicial.

 

NÃO ERA LONGE. Quatrocentos metros por Whitehall acima até à Strand, mais um quilómetro e pouco até Temple Bar, depois uns escassos quinhentos metros, descendo a Fleet Street e subindo Ludgate Hill. Uma pequena distância, de facto, e ainda mais fácil de vencer depois de a Esquadra de Polícia da Queen Square lhes ter dispensado cavalos da sua guarda montada. Sandman e Berrigan estavam já ambos a cavalo quando Witherspoon veio entregar a ordem de libertação a Sandman, que enfiou no bolso o precioso documento.

 

- Vemo-nos na estalagem, Sal - gritou Berrigan, que a sua égua projectou para trás na sela ao arrancar atrás do castrado montado por Sandman. A sua frente seguiam três patrulhas a cavalo, um soprando num apito, os outros dois levando os bastões na mão para abrirem caminho por entre as carroças, os vagões e as carruagens.

 

Passaram diante dos estábulos reais, depois seguiram pela Strand, passaram pela Botica Kidman's, obrigando dois transeuntes a refugiarem-se no seu amplo portal, depois pela Carrington's, uma cutelaria onde Sandman adquirira a sua primeira espada. Passaram a galope pelo Sans Pareil, o teatro onde Célia Collett, a actriz, enfeitiçara o conde de Avebury. Quando o seu amor eterno se revelara não passar de uma intensa mas efémera atracção física, ela regressara a Londres, onde, para manter a vida faustosa a que se julgava com direito, começara a engodar os homens que lhe interessavam e a fazer chantagem com eles. Depois, caíra-lhe na teia a mosca mais gorda de todas. Lord Christopher Carne, inocente e ingénuo, tomou-se de amores pela madrasta e ela seduziu-o, após o que ameaçou ir contar tudo ao pai dele e a toda a gente caso ele não lhe pagasse. E Lord Christopher, sabendo que, quando herdasse o património, a madrasta iria exigir-lhe cada vez mais dinheiro até que nada lhe sobrasse, matara-a.

 

Isto tudo ficara Sandman a saber enquanto o visconde Sidmouth escrevia a ordem de libertação pelo seu próprio punho.

 

- O que era correcto era ser o Conselho do Rei a emitir este documento - dissera o ministro do Interior.

 

- Não há tempo para isso - observara Sandman.

 

- Eu sei, capitão - replicara Sidmouth com acidez enquanto escrevinhava apressadamente a sua assinatura. - Apresente isto, com os meus cumprimentos, ao xerife de Londres, que se encontra lá no cadafalso - disse, espalhando areia sobre a tinta húmida.

 

Explique-lhe que não houve tempo para cumprir os procedimentos correctos.

 

Agora, cavalgando ao lado de Berrigan, com o selo ainda quente na ordem de libertação, Sandman ia a meditar em como o facto de matar a madrasta não trouxera a Lord Christopher qualquer tranquilidade, já que o marquês de Skavadale, cuja família estava na penúria, o surpreendera quase em flagrante, vendo assim os problemas da sua vida resolvidos de uma penada. Meg era a testemunha que podia identificar Lord Christopher como assassino. Enquanto ela vivesse e estivesse sob a protecção do marquês, Lord Christopher pagaria para comprar o silêncio dela. E quando Lord Christopher se tornasse conde e herdasse, dessa forma, a fortuna do avô, ver-se-ia forçado a pagar a Skavadale, enquanto o silêncio de Meg seria comprado simplesmente com galinhas.

 

Temple Bar era logo ali à frente, e o vão por debaixo do arco estava atravancado de carroças e peões. Os polícias berraram para que andassem com as carroças e gritaram aos cocheiros para usarem os chicotes. Um vagão carregado de flores ocupava quase toda a passagem, e um dos polícias começou a bater-lhe com o bastão.

 

- Deixe isso! - berrou Sandman. Entrevira uma abertura na estrada e conduziu para lá o seu cavalo. Berrigan seguiu atrás dele. Atravessaram o arco num ápice, depois Sandman pôs-se de pé nos estribos e o cavalo mergulhou em direcção à Fleet Street, com as ferraduras arrancando faíscas das pedras da calçada.

 

Os primeiros sinos de igreja começavam a bater as 8 horas. Sandman fustigou a garupa do cavalo e prosseguiu, veloz como o vento.

 

Ao PASSAR PELA Porta dos Devedores, Lord Alexander contemplou à sua frente o escuro e oco interior do cadafalso e pensou em como era parecido com a parte inferior de um palco de teatro. Visto da rua, o patíbulo tinha um aspecto pesado, permanente e sombrio, com os seus panos de baeta preta, mas, visto dali, Lord Alexander percebia que era uma ilusão sustentada por vigas toscas de madeira. Era um palco montado para uma tragédia que terminava em morte.

 

Lord Alexander foi o primeiro a subir a escada para o cadafalso e foi acolhido com um grande clamor. Tirou o chapéu e fez uma vénia à multidão, que riu e aplaudiu. Não era uma grande multidão, mas, mesmo assim, enchia a rua até cerca de cem metros para sul e quase bloqueava o cruzamento com a Newgate Street, imediatamente a norte.

 

- Pediram-nos que ocupássemos as cadeiras de trás - observou Lord Christopher quando viu que Lord Alexander se sentava na primeira fila da frente. Os outros convidados passaram por eles para ir ocupar lugares lá mais atrás.

 

- O que nos pediram foi para deixar dois lugares à frente para o xerife - emendou Lord Alexander. - E aí estão eles. Senta-te, Kit, senta-te. Que dia maravilhoso! Achas que este tempo vai durar? Budd no sábado, hem?

 

- Budd no sábado?

 

- Críquete, meu caro! Convenci Budd a jogar uma partida curta contra Jack Lambert, e Lambert concordou em desistir se Rider Sandman ocupar o lugar dele! Vai ser uma partida de sonho, hem? Budd contra Sandman. Vens assistir, não vens?

 

A conversa no cadafalso foi abafada pelo ruído da multidão aclamando a chegada dos xerifes, com os seus calções, meias de seda, sapatos de fivela de prata, mantos debruados a pele. Lord Christopher pareceu não dar pela sua chegada; tinha os olhos fixos na trave de onde iam pender os prisioneiros. Depois, baixou os olhos e vacilou ao reparar nos dois caixões que aguardavam os seus ocupantes.

 

- Ela era uma mulher má - disse baixinho.

 

- O que foi que disseste, meu caro amigo? - inquiriu Lord Alexander.

 

- A minha madrasta. Era má. - Lord Christopher parecia tremer, embora não estivesse frio.

 

- Estás a justificar o assassínio dela?

 

- Ela disse que ia reclamar a herança - prosseguiu Lord Christopher, agora com mais ênfase, aparentando não ter ouvido a pergunta do amigo. Fez um trejeito de repulsa ao recordar as longas cartas em que expressara toda a sua paixão pela madrasta. Não conhecera mulher nenhuma antes de ela o levar para a sua cama e, a partir desse momento, ficara totalmente fascinado por ela. Ela encorajara essa loucura, até que um dia, escarnecendo dele, lhe montara a armadilha: ou lhe dava dinheiro ou faria dele objecto de chacota pública. Ele dera-lhe o dinheiro, mas ela tornara a pedir-lhe mais, e ele sentiu que aquela chantagem jamais iria acabar.

 

Nunca pensara ser capaz de matar alguém, mas, ao pedir-lhe uma última vez que lhe devolvesse as cartas, ela rira-se dele, chamara-lhe tosco e dissera que ele não passava de um rapazinho impotente e estúpido. Então, ele puxara de uma faca que trazia no cinto, uma velha lâmina com que costumava abrir as páginas dos livros, apunhalara-a, depois rasgara e retalhara a sua pele bela e odiosa, por fim correra para o patamar, onde deparara com a aia da condessa e um homem a olhar para cima, para ele, do piso de baixo e retrocedera para o quarto. Esperara ouvir passos na escada, mas ninguém aparecera; então, esforçara-se por ficar calmo e pensar. Demorara-se no patamar apenas uma fracção de segundo, tempo demasiado curto para que pudesse ter sido reconhecido! Pegara numa faca que estava sobre a mesa do pintor e espetara-a no corpo ensanguentado, em seguida vasculhara o escritório da condessa em busca das cartas, que levara consigo pelas escadas das traseiras e queimara em casa. Depois, escondera-se no seu apartamento alugado, receando ser preso; no dia seguinte, soubera que o pintor fora levado pela Polícia.

 

Não era justo, evidentemente, que o pintor fosse executado, mas Lord Christopher pensava que ele próprio também não merecia a morte pelo assassínio da madrasta. Com a sua herança, ele espalharia o bem! Seria caridoso. Pagaria mil vezes o assassínio e a inocência de Corday. Sandman viera perturbar esse seu propósito de arrependimento, por isso Lord Christopher falara com o seu criado e prometera mil guinéus a quem conseguisse livrá-lo daquela ameaça. Lord Christopher recompensara os homens que o seu criado arregimentara a peso de ouro, apesar do atentado frustrado contra a vida de Sandman. Parecia agora desnecessário qualquer pagamento adicional, já que Sandman falhara obviamente a sua missão.

 

- Mas com certeza que a tua madrasta não tinha qualquer direito à herança. - Lord Alexander estivera a reflectir nas palavras do amigo.

- A não ser que o testamento nomeie especificamente a viúva do teu pai. É isso que acontece?

 

Lord Christopher fez um esforço para se concentrar no que o amigo acabara de dizer.

 

- Não - respondeu. - Todos os bens são legados ao herdeiro.

 

- Então, vais ser um homem prodigiosamente rico, Kit - concluiu Lord Alexander. - E eu desejo-te as maiores felicidades com a tua grande fortuna. - Voltou-se, pois entretanto um grande clamor acolhera a chegada do carrasco ao cadafalso.

 

- "Porei um freio à minha boca ... - a voz do reverendo Cotton tornava-se mais audível à medida que ia subindo as escadas atrás do primeiro prisioneiro -, enquanto o ímpio estiver diante de mim."

 

Corday tropeçou no último degrau e desequilibrou-se sobre Lord Alexander, que o susteve, agarrando-o pelo cotovelo.

 

- Vamos, coragem - disse Lord Alexander.

 

A multidão chegou-se à frente, aproximando-se do gradeamento baixo de madeira que circundava o cadafalso. Os homens encarregados de manter a ordem, postados logo a seguir ao gradeamento, ergueram os bastões e as lanças.

 

Lord Alexander sentiu-se incomodado por todo aquele barulho. Aquilo era o espelho do sistema vigente em Inglaterra, cogitou, dar li multidão o cheiro do sangue na esperança de que, depois daquilo, não pedisse mais nada. Corday chorava convulsivamente. A multidão apreciava que um homem, ou uma mulher, caminhasse para a morte com bravura, pelo que as lágrimas de Corday apenas lhe granjeava desprezo.

 

Logo depois, a multidão rompeu numa risada de troça porque Corday desfaleceu. Botting estava a meio da operação de içar a corda dos ombros dos prisioneiros para a prender num dos ganchos da trave quando as pernas de Corday se dobraram como geleia. O carcereiro correu em frente, mas Corday não conseguia ter-se de pé. Todo ele tremia e soluçava.

 

- Preciso de uma cadeira - rosnou Botting.

 

Um dos convidados ofereceu-se para ficar de pé, e a sua cadeira foi colocada sobre a porta do alçapão. A multidão, apercebendo-se de que aquela ia ser uma execução fora do vulgar, aplaudiu. Botting e um dos carcereiros içaram Corday para cima da cadeira e o carrasco amarrou-o a ela. Botting trepou a escada, prendeu a corda, depois desceu e apertou o baraço à volta do pescoço de Corday.

 

- Seu patifório choramingas - murmurou enquanto dava um sacão na corda para a esticar. - Morre como um homem. - Tirou do bolso um dos sacos brancos de algodão e enfiou-o pela cabeça de Corday.

 

Lord Alexander, aterrado com aqueles últimos momentos, apercebeu-se vagamente de um movimento anormal no extremo sul de Old Bailey.

 

- SE VAI PARA o enforcamento, não vale a pena apressar-se! - exclamou o condutor de um vagão. - A esta hora, já os tansos devem estar a dançar! - Todos os sinos da City tinham já badalado; não só aqueles que andavam sempre adiantados, mas também os mais vagarosos tinham batido as 8; contudo, o sino fúnebre da Santo Sepulcro dobrava ainda, e Sandman, ao sair do emaranhado do tráfego do cruzamento da Farrington Street com Ludgate Hill e esporear o cavalo em direcção à Catedral de S.Paulo, atrevia-se a pensar que Corday pudesse ainda estar vivo.

 

A meio da subida, virou para Old Bailey e durante os primeiros metros encontrou a estrada providencialmente vazia; porem, ao chegar ao grande pátio da Prisão de Newgate, deparou subitamente com uma multidão que enchia a rua de ponta a ponta, bloqueando-lhe a passagem. Avistava já a trave da forca, os homens sobre a plataforma negra do cadafalso, depois reparou que um deles parecia estar sentado, o que era estranho. Rompeu com o cavalo pelo meio da multidão, de pé nos estribos, gritando.

 

- Afastem-se! - berrava Sandman. - Afastem-se! - A multidão protestava contra a sua selvajaria, oferecia resistência, mas depois os polícias vieram colocar-se a seu lado e começaram a carregar sobre a mole de gente com os seus bastões compridos.

 

Então, um suspiro pareceu perpassar por entre a multidão, e Sandman já não viu mais ninguém, a não ser um padre, no palco negro do cadafalso.

 

O que significava que a porta do alçapão já se abrira.

 

- É RIDHR! - Lord Alexander estava agora de pé, apontando na direcção de Ludgate Hill, para aborrecimento dos convidados que estavam sentados por detrás dele.

 

A multidão começara finalmente a aperceber-se de que estava a passar-se algo de estranho. As pessoas voltaram-se e viram os cavaleiros, que tentavam abrir caminho por entre a multidão.

 

- Deixem passar! - gritavam algumas delas.

 

- Sente-se - disse o xerife a Lord Alexander, que o ignorou completamente.

 

Botting puxou a corda, a porta do alçapão abriu-se com uma pancada surda e os dois corpos caíram no poço do cadafalso. Venables balançava, sufocado, enquanto as pernas de Corday raspavam de encontro à cadeira.

 

- Xerife! Xerife! - Sandman estava já muito próximo do cadafalso. - Xerife!

 

- É um indulto? - berrou Sir Alexander. - É um indulto?

 

- Sim!

 

- Kit! Ajuda-me! - Lord Alexander avançou, coxeando do pé-boto, para o local de onde Corday estava suspenso, preso e amordaçado. - Ajuda-me a iça-lo!

 

- Largue-o - berrou o xerife quando Lord Alexander estendia a mão para a corda.

 

- Largue-o! - pediu o reverendo Cotton - Isso não é correcto.

 

- Desapareça daqui, seu idiota sanguinário! - rosnou Lord Alexander, empurrando Cotton para o lado. Depois, pegou na corda e tentou içar Corday de novo para a plataforma; porém, não tinha a força necessária e não conseguiu elevar o moribundo nem uma polegada sequer.

 

Sandman afastou para o lado os últimos espectadores e atirou o cavalo contra a barreira. Ergueu o indulto à altura do cadafalso, mas o xerife não veio buscá-lo.

 

- É um indulto! - bradou Sandman.

 

- Kit, ajuda-me! - exclamou Lord Alexander, voltando-se para Lord Christopher. - Kit! Ajuda-me!

 

Lord Christopher, de olhos esbugalhados por detrás das lentes grossas, levou ambas as mãos à boca. Mas não se mexeu.

 

- Que diabo é que está a fazer? - bradou Jemmy Botting lá do fundo do cadafalso, e depois, para se certificar de que não era espoliado de uma morte, pendurou-se nas pernas de Corday. - Não vai tê-lo

- gritou a Lord Alexander. - Ele é meu!

 

- Receba isto! - gritou Sandman ao xerife, que continuava a recusar-se a baixar-se e a receber o indulto, mas nesse preciso momento um homem todo vestido de negro abriu caminho decididamente e veio colocar-se ao lado de Sandman.

 

- Dê-mo cá - disse o recém-chegado. Pegou no papel, subiu para o gradeamento que protegia o cadafalso e, com um salto prodigioso, lançou-se para a borda daquele. As suas botas negras resvalaram em busca de apoio, mas depois conseguiu agarrar-se à extremidade exposta pela porta do alçapão ao cair e içou-se para a plataforma. Era o irmão de Sally, e os frequentadores assíduos do local, que o reconheceram e o admiravam, dispensaram-lhe um forte aplauso. Era Jack Hood, Robin Hood, o homem que todos os magistrados e polícias de Londres queriam ver dançar no palco de Jem Botting. Estendeu com força o braço com o indulto de Corday na direcção do xerife.

 

- Pegue nisto, com um raio! - rosnou Hood, e o xerife, perplexo, pegou finalmente no papel.

 

Hood colocou-se rapidamente ao lado de Lord Alexander e agarrou a corda, mas, entretanto, Jemmy Botting tinha trepado para o colo de Corday.

 

- Ele é meu - berrava. O resfolegar sibilante de Corday diluía-se na algazarra daquela manhã. Hood puxava, mas não conseguia alçar o peso combinado de Corday e Botting.

 

- Tu! - bradou Sandman para um dos lanceiros do xerife da City.

 

- Dá-me a tua adaga! Já!

 

O homem, amedrontado pelo tom de comando de Sandman, rapou nervosamente da espada curta e curva, que era mais decorativa do que útil. Sandman arrebatou-lha da mão, mas foi assaltado entretanto por outro guarda do cadafalso, que pensou que Sandman tencionasse atacar o xerife.

 

- Desaparece! - rosnou Sandman ao homem, após o que Berrigan lhe assentou com violência o punho no alto da cabeça.

 

- Hood! - chamou Sandman, pondo-se de pé nos estribos. Hood! - Sandman, obtida a atenção do salteador, atirou-lhe a adaga.

 

- Corte-lhe a corda, Hood! Corte-lhe a corda!

 

Hood apanhou a adaga no ar com destreza. Os polícias que tinham escoltado Sandman e Berrigan afastaram para o lado os homens do xerife. Lord Christopher Carne, ainda de olhos esbugalhados e boca muito aberta, fitava, horrorizado, Rider Sandman, que reparou finalmente em Sua Senhoria.

 

- Oficial - exclamou Sandman para o polícia que se encontrava mais próximo dele. - É esse o homem que devem prender. Aquele homem ali - disse, apontando.

 

Lord Christopher voltou-se como que para fugir, mas as escadas do pavilhão só tinham saída para a própria prisão. Jack Hood serrava a corda com a adaga.

 

- Não! - gritava Botting. - Não! - Mas a corda, embora feita do melhor cânhamo de Bridport, cedeu como um cordel vulgar e, de súbito, Corday e Botting tombaram no chão, as pernas da cadeira desfizeram-se em estilhas nas pedras da calçada e a ponta da corda ficou a balouçar, vazia, sob a brisa de Londres.

 

- Temos de cortar a corda - exclamou o xerife, após ter lido finalmente a ordem de libertação.

 

A turba, volúvel como sempre, aplaudia agora, porque a vítima que tinham desprezado acabara por levar a melhor sobre o carrasco. Viveria, estava livre.

 

Sandman desceu do cavalo, entregando as rédeas a um polícia. Outros polícias tomavam agora conta de Lord Christopher Carne. Sandman ouviu o estertor final do moribundo Venables e afastou-se, tentando, sem sucesso, encontrar consolação no facto de pelo menos uma alma ter sido roubada à forca.

 

- Missão cumprida, portanto - exclamou Berrigan, desmontando.

 

- Missão cumprida. Obrigado, sargento - disse Sandman.

 

- Rider! - gritou Lord Alexander do cadafalso. - Rider! Sandman voltou-se.

 

- Rider! Queres jogar uma partida curta? Este sábado? Sandman ficou a olhar para o amigo, momentaneamente atónito.

 

Depois, volveu o olhar para Hood.

 

- Obrigado - disse em voz alta. Mas as suas palavras perderam-se no meio do alarido. - Obrigado - repetiu, fazendo uma vénia.

 

Hood retribuiu a vénia, após o que ergueu um dedo.

 

- Foi apenas um, capitão - exclamou. - E eles hão-de enforcar mais um milhar antes que consiga roubar-lhes outro.

 

- É contra Budd! - gritava Lord Alexander. - Rider, estás a ouvir-me? Rider! Aonde é que vais?

 

Sandman voltara-se novamente e tinha agora um braço por cima do ombro de Berrigan.

 

- Se quiser ir tomar o pequeno-almoço à estalagem - disse ao sargento -, é melhor apressar-se antes que a multidão encha a taberna. E agradeça a Sally por mim, está bem? Sem ela, teríamos fracassado.

 

- Teríamos, sem dúvida - concordou Berrigan. - E o meu capitão? Para onde é que vai?

 

Sandman foi-se afastando do cadafalso.

 

- Eu, Sam? Vou falar com um homem acerca de um empréstimo para que você e eu possamos ir até Espanha comprar uns charutos.

 

- Vai pedir um empréstimo com essas botas? - indagou Berrigan. Sandman olhou para os pés e viu que ambas as solas estavam a despegar-se das gáspeas.

 

- Vou também pedir-lhe a mão da filha em casamento. E aposto consigo um novo par de botas em como ele diz que sim a ambas as coisas. Não vai herdar um genro rico, Sam, vai apenas herdar-me a mim.

 

- Sorte a dele - exclamou Berrigan.

 

Sandman sorriu, e seguiram ambos pela Old Bailey. Lá atrás, Corday piscava os olhos à luz de um novo dia. Sandman virou-se uma vez para trás, em Ludgate Hill, e olhou para a forca, negra como o coração do Diabo; depois, dobrou a esquina e desapareceu.

 

                                                                                            Bernard Cornwell  

 

                      

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