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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CRIME NA VIA ÁPIA / Steven Saylor
CRIME NA VIA ÁPIA / Steven Saylor

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CRIME NA VIA ÁPIA

 

Papá! Acorda!

 

Uma mão apertou-me o ombro e abanou-me suavemente. Eu afastei-me e senti o ar frio na nuca, quando a manta resvalou. Voltei a puxá-la para cima e enrolei-a à minha volta, aninhando-me para me aquecer. Estendi a mão na direcção de Betesda, mas apenas encontrei um vazio quente no sítio onde ela devia estar.

 

Era melhor levantares-te, papá. Eco voltou a abanar-me, já não com a mesma suavidade.

 

Sim, marido disse Betesda. Levanta-te!

 

Não há sono tão profundo como o sono de uma fria noite de Janeiro, em que o céu é um manto de nuvens baixas e a terra estremece sob ele. Mesmo com o meu filho e a minha mulher a chamarem por mim, voltei a deslizar para os braços de Morfeu com a mesma facilidade com que um rapaz desliza para dentro de uma cama comprida e macia, de penas de ganso. Parecia-me estar a ouvir duas gralhas a pairar de forma absurda numa árvore próxima, chamando-me "papá" e "marido". As gralhas investiram sobre mim, abanando as asas e picando-me com os bicos. Eu gemi e agitei os braços para as afastar. Depois de uma curta batalha, elas retiraram para as nuvens geladas, deixando-me sonhar em paz.

 

As nuvens geladas abriram-se de repente. Senti um jacto de água fria na cara.

 

Sentei-me muito direito, cuspindo e pestanejando. Com um aceno de satisfação, Betesda colocou um copo vazio ao lado de uma lamparina trémula, em cima de uma mesinha encostada à parede. Eco estava aos pés da cama, a enrolar a manta que tinha puxado de cima de mim. Comecei a tremer de frio e pus os braços à volta do corpo.

 

Ladrão de mantas! resmunguei atordoado. Naquele momento, este parecia-me o mais grave de todos os crimes imagináveis. Roubar o descanso de um velho!

 

Eco mostrou-se insensível. Betesda cruzou os braços e ergueu uma sobrancelha. À luz vacilante da lamparina, os dois continuavam muito parecidos com duas gralhas.

 

Fechei os olhos.

 

Tenham piedade! suspirei, pensando que, com um apelo à misericórdia, talvez conseguisse mais uns momentos de sono abençoado.

 

Mas, antes que a minha cabeça voltasse a pousar na almofada, Eco agarrou-me no ombro e voltou a endireitar-me.

 

Não, papá! Isto é grave.

 

O que é que é grave? Fiz uma tentativa pouco empenhada de o afastar. A casa está a arder? Já estava irrecuperavelmente acordado e sentia-me rabujento, até me aperceber quem era a pessoa ausente daquela conspiração para me acordar. Olhei à volta do quarto, pestanejando, e senti um súbito arrepio de pânico. Diana! Onde está Diana?

 

Estou aqui, papá. Ela entrou no quarto e avançou para o círculo de luz. O seu cabelo comprido, que soltara para dormir, dava-lhe pelos ombros, brilhante como água preta à luz das estrelas. Os seus olhos aqueles olhos egípcios em forma de amêndoa que herdara da mãe estavam ligeiramente inchados com o sono.

 

O que se passa? perguntou ela, bocejando. O que estás aqui a fazer, Eco? Por que está toda a gente acordada? E que barulho é aquele lá fora nas ruas?

 

Barulho? disse eu.

 

Ela inclinou um pouco a cabeça.

 

Calculo que não oiças assim muito bem, aqui nas traseiras. Mas do meu quarto ouve-se nitidamente. Foram eles que me acordaram.

 

Quem?

 

- Os que andam na rua. A correr. Com tochas acesas. A gritar qualquer coisa. Franziu o nariz, como costuma fazer quando se sente intrigada. Ao ver a minha cara desprovida de expressão, voltou-se para a mãe, que avançou para ela com os braços abertos. Aos 17 anos, Diana ainda é suficientemente criança para apreciar esses confortos. Entretanto, Eco mantinha-se afastado, com aquela expressão carregada do mensageiro de uma peça que vem trazer más-notícias.

 

Apercebi-me finalmente de que devia estar a acontecer qualquer coisa terrível.

 

Pouco depois, já me tinha vestido e avançava a passos largos pelas ruas escuras, ao lado de Eco, e acompanhado pelos seus quatro guarda-costas.

 

Voltei a cabeça, ansiosamente, quando um grupo de jovens de olhar sombrio se aproximou por trás, a correr. Quando passaram por nós, as suas tochas atravessaram o ar com um silvo. As nossas sombras dançaram como loucas na rua, aumentando enormemente quando as tochas nos passaram ao lado e diluindo-se em seguida na escuridão, como espectros, quando os que as transportavam nos deixaram para trás.

 

Tropecei numa pedra irregular.

 

Bolas de Numa! Também devíamos ter trazido umas tochas.

 

Prefiro que os meus guarda-costas tenham as mãos desocupadas disse Eco.

 

Pois, bem, pelo menos esses são suficientes disse eu, lançando um olhar aos quatro formidáveis jovens escravos que nos rodeavam, um à frente, um atrás e um de cada lado. Tinham o aspecto de gladiadores treinados maxilares apertados, olhar impiedoso, atentos a todos os movimentos da rua.

 

Os guarda-costas de boa qualidade são caros e custam a alimentar. A minha nora Menénia queixava-se sempre que Eco comprava mais um, afirmando que valia mais gastar o dinheiro em escravos para a cozinha ou num tutor melhor para os gémeos. Primeiro a segurança respondia-lhe Eco. São estes tempos em que vivemos. Infelizmente, eu tinha de concordar com ele.

 

Os meus pensamentos concentraram-se na mulher e nos filhos de Eco, que ele deixara em casa, no Monte Esquilino.

 

Menénia e os gémeos... disse eu, acelerando o passo para poder acompanhá-lo. A minha respiração formava nuvens no ar, mas pelo menos aquela velocidade mantinha-me aquecido. Embora fôssemos bastante depressa, houve outro grupo de homens que se aproximou por trás de nós e nos ultrapassou, e as suas tochas puseram em fuga as nossas sombras.

 

Estão seguros. Mandei pôr uma porta nova em casa no mês passado. Seria necessário um exército para derrubá-la. E deixei os dois guarda-costas mais corpulentos que tenho a cuidar deles.

 

Mas afinal quantos guarda-costas é que tu tens actualmente?

 

Só seis, os dois que ficaram em casa e estes quatro.

 

Só seis? Eu continuava a ter apenas Belbo, que tinha ficado em casa a cuidar de Betesda e Diana. Infelizmente, Belbo já estava demasiadamente velho para ser um guarda-costas em condições. E não era de esperar que os restantes escravos de minha casa oferecessem grande resistência se acontecesse alguma coisa verdadeiramente terrível...

 

Tentei afastar esses pensamentos do espírito.

 

Aproximou-se outro grupo de homens a correr. Também não traziam tochas. Quando passaram por nós, na escuridão, reparei que os guarda-costas de Eco ficaram tensos e meteram as mãos dentro das capas. Homens desconhecidos sem tochas nas mãos podiam ter consigo objectos mais perigosos como punhais.

 

Mas o grupo passou sem incidentes. Por cima de nós, alguém abriu as portadas da janela de um andar superior, inclinando-se para baixo.

 

Em nome do Hades, o que se passa esta noite?

 

Mataram-no! gritou um dos homens que iam à nossa frente. Assassinaram-no a sangue-frio, os cobardes degenerados!

 

Mataram quem?

 

Clódio! Clódio morreu!

 

A figura sombria que estava à janela calou-se por momentos, depois soltou uma longa e sonora gargalhada, que ecoou no ar frio. O grupo que ia à nossa frente estacou abruptamente.

 

Problemas! disse Eco. Eu acenei com a cabeça, e depois apercebi-me de que essa observação sussurrada era um sinal para os guarda-costas. Eles cerraram fileiras à nossa volta. Apressámos o passo.

 

Mas então para onde... arquejou o homem que estava à janela, que tinha dificuldade em falar por causa do riso, para onde é que vai toda a gente com tanta pressa? Vão comemorar?

 

O grupo da rua irrompeu em berros irados. Alguns ergueram os punhos. Outros inclinaram-se, para pegar em pedras. Até no Monte Palatino, com as suas ruas imaculadas e as suas casas elegantes, se encontram pedras soltas. O homem que estava à janela continuou a rir, depois, subitamente, guinchou.

 

A minha cabeça! Oh, a minha cabeça! Malandros imundos! Fechou as portadas com estrondo, para evitar uma chuva de pedras.

 

Nós continuámos em boa velocidade e dobrámos uma esquina.

 

Achas que é verdade, Eco?

 

Que Clódio foi morto? Em breve saberemos. Não é aquela casa, ali adiante? Olha para aquelas tochas todas reunidas na rua! Foi isso que me fez sair de casa esta noite via-se o brilho reflectido nas nuvens. Menénia chamou-me ao telhado para ver. Pensei que o Monte Palatino estava a arder.

 

E então achaste melhor vir verificar se o teu paizinho se teria queimado?

 

Eco sorriu, depois ficou com uma expressão sombria. Quando vinha a descer a Subura, vi imensa gente na rua. Pessoas reunidas nas esquinas, a ouvir oradores. Acotovelando-se à entrada das casas, a falar em voz baixa. Umas discursavam, outras choravam. Havia centenas de homens que se dirigiam ao Palatino, como um rio a correr colina acima. E todos diziam a mesma coisa: Clódio morreu.

 

A casa de Públio Clódio a sua nova casa, que ele tinha comprado e para onde se mudara apenas uns meses antes era uma das maravilhas arquitectónicas da cidade, ou um dos seus monstros, conforme o ponto de vista. As casas dos ricos no Monte Palatino estavam cada ano maiores e mais ostentatórias, como grandes animais ataviados devorando as casas pequenas à sua volta e exibindo penugens sempre mais sumptuosas. A penugem deste animal concreto era de mármore multicolor. À luz das tochas da rua, podia-se ver o reflexo brilhante das superfícies e das colunas de mármore que adornavam os terraços exteriores porfírio verde polido da Lacedemónia, mármore vermelho do Egipto, salpicado de pontos brancos como a pele de uma corça, mármore amarelo da Numídia, com veios vermelhos. Estes terraços, instalados na encosta da colina e plantados de rosas despidas das pétalas por ser Inverno, rodeavam o pátio da entrada, pavimentado a cascalho. O portão de ferro que normalmente barrava o acesso ao pátio estava aberto, mas a passagem estava completamente impedida pela massa de amigos enlutados, que enchiam o pátio e já ocupavam a rua.

 

Algures para além da multidão, na extremidade do pátio, ficava a entrada para a casa propriamente dita, que se estendia pela colina como uma espécie de aldeia, com as diversas alas rodeadas por novos terraços e ligadas entre si por meio de pórticos, onde se alinhavam ainda mais colunas de mármore multicolor. A casa erguia-se acima de nós, como uma montanha em miniatura de sombras profundas e mármore brilhante, iluminada por dentro e por fora, suspensa como um sonho entre as nuvens baixas e o fumo esbatido provocado pelas tochas.

 

E agora? disse eu. Nem sequer conseguimos chegar ao pátio de entrada. A multidão é demasiadamente compacta. O boato deve ser verdadeiro, olha para todos estes homens adultos a chorar. Anda, é melhor voltarmos para casa e irmos cuidar das nossas famílias. Quem sabe o que acontecerá em seguida?

 

Eco acenou com a cabeça, mas parecia não ter ouvido. Pôs-se em bicos de pés, esforçando-se por ver para dentro do pátio de entrada.

 

As portas da casa estão fechadas. Ninguém parece entrar nem sair. Está toda a gente ali reunida...

 

Houve um súbito movimento de excitação entre a multidão.

 

Deixem-na passar! Deixem-na passar! gritou alguém. A multidão tornou-se ainda mais compacta quando as pessoas recuaram para dar passagem a uma espécie de veículo que chegava da rua. Surgiu primeiro uma falange de gladiadores, empurrando e acotovelando as pessoas com brusquidão para abrirem caminho. As pessoas faziam o possível por se afastar. Os gladiadores eram enormes, pareciam gigantes; em comparação com eles, os guarda-costas de Eco não passavam de rapazes. Dizem que há umas ilhas, situadas para além da extremidade norte da Gália, onde os homens crescem assim. Estes tinham as faces pálidas e os cabelos ásperos e avermelhados.

 

À nossa frente, a multidão comprimiu-se. Eco e eu fomos apertados um contra o outro; os guarda-costas dele continuavam a formar um anel à nossa volta. Fui pisado. Fiquei com os braços imobilizados ao longo do corpo. Captei um vislumbre da liteira que se aproximava, sustentada aos ombros dos carregadores, que chegavam a ser maiores do que os gigantescos gladiadores. Suspenso acima da multidão, o pavilhão de seda às listas vermelhas e brancas brilhava à luz vacilante das tochas.

 

Por momentos, o meu coração parou de bater. Eu já andara naquela liteira. Claro que ela devia seguir lá dentro.

 

A liteira aproximou-se. Ia com as cortinas fechadas, como seria de esperar. Ela não devia ter qualquer desejo de ver a multidão, nem de ser vista por ela. Mas, por breves momentos, quando o pavilhão passou por mim, pareceu-me que as cortinas se tinham afastado ligeiramente. Esforcei-me por ver por cima das cabeças dos carregadores, mas fui confundido pelo jogo de luz e sombras na ondulação da seda vermelha e branca. Talvez eu tivesse visto apenas uma sombra, e não uma abertura.

 

A mão que Eco me poisou no ombro fez-me recuar subitamente, afastando-me do caminho dos gladiadores que acompanhavam o pavilhão. Ele falou-me ao ouvido:

 

Achas...?

 

Claro. Tem de ser ela. As listas vermelhas e brancas, quem havia de ser?

 

Não fui exactamente o único homem de entre a multidão a reconhecer a liteira e a saber quem devia ir lá dentro. Afinal, esta era a gente de Clódio, os pobres da Subura que armavam tumultos por sua ordem, os ex-escravos que esperavam dele a protecção do seu direito de voto, a multidão faminta que tinha engordado com a sua legislação de distribuição gratuita de cereais. Sempre tinham apoiado Clódio, da mesma maneira que ele sempre os tinha apoiado a eles. Tinham seguido a sua carreira, comentado as suas leviandades sexuais e os seus assuntos de família, programado destinos terríveis para os seus inimigos. Adoravam Clódio. Podiam adorar ou não a sua escandalosa irmã mais velha, mas sabiam reconhecer a sua liteira. Subitamente, ouvi sussurrar o nome dela entre a multidão. Depois, houve outros que o repetiram, juntando-se num coro até o nome se transformar num canto suave que seguia a passagem do seu pavilhão:

 

Clódia... Clódia... Clódia...

 

A liteira passou pela entrada estreita, e chegou ao pátio da frente. Os gladiadores podiam ter aberto caminho à força, mas a violência foi desnecessária. Ao ouvirem o nome dela, os amigos enlutados recuaram com uma espécie de temor. Começou a formar-se diante da liteira um espaço vazio, que voltava a fechar-se atrás dela, de tal maneira que o veículo avançou rapidamente e sem incidentes até à extremidade do pátio, subindo o pequeno lanço de escadas que ia dar à entrada. As altas portas de bronze abriam para dentro. O pavilhão foi voltado ao contrário, de forma a que os seus ocupantes não pudessem ser vistos, quando descessem e entrassem em casa. As portas fecharam-se atrás deles com um ruído metálico abafado.

 

O canto desvaneceu-se. Um silêncio inquieto desceu sobre a multidão.

 

Clódio morto disse Eco baixinho. Parece impossível.

 

Ainda não viveste o suficiente respondi eu pesarosamente.

 

Morrem todos, os grandes e os pequenos, e a maioria morre cedo demais.

 

Claro, eu apenas queria dizer...

 

Eu sei o que tu querias dizer. Quando alguns homens morrem, é como um grão de areia lançado a um rio nem sequer forma uma onda. Mas há outros que parecem seixos enormes. As ondas expandem-se até à margem. E, com muito poucos...

 

É como um meteoro caído do céu disse Eco. Eu inspirei profundamente.

 

Esperemos que não seja tão horrível como isso. Mas qualquer coisa me dizia que seria.

 

Esperámos algum tempo, apanhados pela inércia que se abate sobre uma multidão quando se aproxima um momento importante. Ouvimos aos que nos rodeavam numerosos e contraditórios rumores relativos ao que se passara. Tinha havido um incidente na Via Ápia, mesmo à saída de Roma não, a vinte quilómetros de Roma, em Bovilas não, mais para sul. Clódio seguia sozinho a cavalo não, com um pequeno grupo de guarda-costas não, numa liteira com a mulher e a sua habitual comitiva de escravos e acompanhantes. Tinha havido uma emboscada

 

não, tratara-se de um assassino isolado não, fora um traidor alojado entre os homens de Clódio...

 

E assim prosseguia a história, sem que fosse possível encontrar uma verdade segura, para além de um simples ponto, objecto de acordo unânime: Clódio estava morto.

 

As nuvens baixas foram-se afastando gradualmente, revelando um firmamento nu sem lua, preto de breu, incrustado de estrelas que brilhavam como cristais de gelo. O curto e veloz percurso que fizera desde minha casa tinha-me aquecido o sangue. A amálgama de corpos e de tochas acesas mantivera-me aquecido mas, com o progressivo arrefecimento da noite, eu também fui ficando mais frio. Encolhi os dedos dos pés, esfreguei as mãos, vi a minha respiração misturar-se com o fumo que havia no ar.

 

Isto é absurdo disse por fim. Estou gelado. Não trouxe uma capa suficientemente quente. Reparei que Eco parecia bastante aquecido, metido dentro de uma capa que não era mais pesada do que a minha, mas o sangue de um homem de 58 anos é menos espesso que o de outro homem 20 anos mais novo. De qualquer maneira, estamos à espera de quê? Já descobrimos a que se devia o pânico. Clódio morreu.

 

Sim, mas como?

 

Não pude impedir-me de sorrir. Ele tinha aprendido o seu ofício comigo. A curiosidade transforma-se num hábito. Mesmo quando não há menção de dinheiro, um Descobridor não consegue deixar de se sentir curioso, especialmente quando se trata de um crime. Não é com esta multidão que vamos descobrir disse eu.

 

Também acho que não.

 

Então, vem daí. Ele hesitou.

 

Calculo que vão mandar alguém cá fora falar com a multidão. Certamente que mandarão alguém, mais cedo ou mais tarde... Viu-me tremer. Bem, vamos embora.

 

Não precisas de vir comigo.

 

Não te vou deixar regressar a casa sozinho, papá. Pelo menos numa noite como esta.

 

Então manda os teus guarda-costas acompanharem-me.

 

Não sou suficientemente doido para ficar sozinho no meio desta multidão.

 

Podemos dividi-los, dois para ti e dois para mim.

 

Não. Não estou interessado em correr riscos. Vou levar-te a casa. Depois volto cá, se ainda for caso disso.

 

Podíamos ter ficado a regatear aqueles pormenores de logística durante mais algum tempo, mas naquele momento Eco ergueu os olhos para fixar alguém que se encontrava por trás de mim. Os guarda-costas retesaram-se.

 

Ando à procura de um homem chamado Gordiano disse uma voz ribombante por cima da minha cabeça. Voltei-me e dei com o nariz num peito extremamente largo. Algures por cima dele, havia uma cara rosada, encimada por uma franja de caracóis ruivos. O Latim do homem era atroz.

 

Eu chamo-me Gordiano disse eu.

 

Óptimo. Vem comigo.

 

Vou contigo para onde? Ele inclinou a cabeça.

 

Para dentro da casa, evidentemente.

 

A convite de quem? perguntei, embora já soubesse.

 

Por ordem da senhora Clódia. Afinal, ela tinha-me visto da liteira.

 

Mesmo com o gigante de cabelo ruivo a conduzir-nos, eu senti-me hesitante perante a perspectiva de avançar pela entrada cheia de gente e atravessar o pátio. Mas ele partiu noutra direcção. Seguimo-lo pela rua abaixo, deixámos a multidão para trás, e chegámos à base de uma escada estreita metida na encosta da colina, para além do anel exterior de terraços de mármore. A escada era flanqueada por figueiras, cujos ramos densos formavam um dossel por cima das nossas cabeças.

 

Tens a certeza de que isto vai dar à casa? perguntou Eco, desconfiado.

 

Venham comigo sem receio disse o gigante asperamente, apontando para cima, para uma lamparina distante colocada no topo das escadas. Sem uma tocha para nos orientar, o caminho era escuro e os degraus estavam perdidos na sombra. Subimo-los cuidadosamente, atrás do gigante, até chegarmos a um estreito patamar. A lamparina estava pendurada ao lado de uma porta de madeira. Diante da porta, estava outro gladiador, que nos ordenou que deixássemos a escolta lá fora e que tirássemos as armas. Eco apresentou um punhal e entregou-o a um dos seus guarda-costas. Apesar dos meus protestos de que nada trazia, o gigante ruivo insistiu em me revistar. Finalmente satisfeito, abriu a porta e convidou-nos a entrar.

 

Atravessámos um corredor comprido e mal iluminado, descemos um lanço de escadas, e chegámos finalmente a uma sala estreita. Estávamos no átrio da casa, do lado de dentro das altas portas de bronze, barradas no interior por uma robusta viga de madeira. Através das portas, chegava até mim, proveniente do pátio, o ruído da multidão inquieta.

 

Esperem aqui disse o gigante, e atravessou umas cortinas.

 

O átrio era iluminado por uma lamparina de tecto, cujas chamas se reflectiam no mármore polido das paredes e do chão. Aproximei-me das cortinas vermelhas, que brilhavam com uma luz difusa que me fascinava.

 

Sabes o que é isto, Eco? Devem ser os famosos drapejados atálicos. São feitos com fio de ouro genuíno. Quando se vêem à luz do fogo, parece que são tecidos de chamas!

 

Devo explicar que a casa de Públio Clódio, bem como o seu recheio, tinha uma história curta mas digna de nota. O proprietário original fora Marco Escauro, que começara a construir a casa seis anos antes, no ano em que fora eleito edil, estando por isso obrigado, durante as festividades do Outono, a entreter as massas à sua própria custa com produções teatrais. Seguindo uma tradição antiga, Escauro mandou construir um teatro temporário no Campo de Marte, à saída das muralhas da cidade. Dois anos mais tarde, Pompeu construiria o primeiro teatro permanente em Roma as crianças romanas cresceriam sem conhecer a decadência grega, mas o teatro de Escauro fora construído para durar apenas uma época.

 

Já estive em muitas cidades e vi muitos edifícios notáveis, mas nunca vi nada como o teatro de Escauro. Tinha lugar para 80 000 pessoas. O enorme palco tinha três níveis, e era suportado por 360 colunas de mármore. Entre estas colunas, e metidas em diversos nichos, ao longo de todo o edifício, havia 3 000 estátuas de bronze. Estes espantosos números foram comentados até não haver ninguém que não os conhecesse de cor, e não eram exagerados; nos momentos mortos das peças, os patetas contavam as colunas e as estátuas em voz alta, enquanto os actores evoluíam no palco sem conseguirem prender-lhes a atenção, completamente ultrapassados pela decoração.

 

O nível inferior do palco era decorado com mármore, o nível superior com madeira dourada, e o nível intermédio com extraordinárias construções de vidro colorido não se tratava apenas de janelas pequeninas, mas de paredes inteiras de vidro, uma extravagância nunca vista e que certamente não mais seria repetida. Decoravam o palco enormes cenários, pintados por alguns dos melhores artistas do mundo e enquadrados por sumptuosos drapejados atálicos de tecido vermelho e cor de laranja, entretecidos com fio de ouro, como os lendários fatos dourados do Rei Atalo da Ásia; sob a luz dourada do meio-dia, pareciam tecidos com o próprio Sol.

 

Quando as festividades terminaram e o teatro foi derrubado, Escauro vendeu alguns dos objectos decorativos e fez de outros presentes sumptuosos. Mas guardou a maior parte das coisas, com que decorou a sua casa nova no Palatino. As coberturas e as colunas de mármore transformaram-se em terraços e pórticos. As paredes de vidro colorido, em clarabóias. Enormes cestas cheias de estátuas, pinturas e panos fabulosos foram armazenadas no pátio da entrada, e gradualmente levadas para dentro. Escauro decidiu instalar no átrio reprojectado as maiores colunas do teatro, feitas de mármore preto luculeano e oito vezes mais altas que um homem. As colunas eram tão pesadas, e seria tão difícil rebocá-las, que um adjudicatário dos esgotos obrigou Escauro a depositar uma soma em dinheiro, prevenindo possíveis danos causados às canalizações aquando do transporte das colunas pela cidade, até ao Palatino.

 

A casa de Escauro suscitou quase tantos comentários como o seu teatro. As pessoas que tinham aberto a boca de espanto no teatro vieram abri-la diante da casa. Os seus vizinhos, mais conservadores (e menos abastados), consideraram-na uma afronta ao bom gosto, uma monstruosidade de desperdício e excesso, uma difamação das austeras virtudes romanas. Aqueles que se queixavam deviam ter-se recordado do antigo axioma troiano: por muito má que seja uma situação, pode sempre piorar como aconteceu quando começou a correr o boato de que Escauro tencionava mudar-se e tinha vendido a casa a Clódio, o agitador da ralé. Clódio, o patrício de nascimento que prescindira da sua linhagem para se tornar plebeu; Clódio, o veneno da Gente de Bem; Clódio, o Senhor da Plebe.

 

Clódio tinha pago quase 15 milhões de sestércios pela casa e o respectivo recheio. Se o boato era verdadeiro que Clódio tinha morrido, tivera pouco tempo para usufruir dela. Não chegaria a ver as rosas desabrochar nos terraços de mármore, na Primavera.

 

Meti a cabeça pelos drapejados atálicos para espreitar para o átrio que ficava para além deles, onde o tecto se erguia subitamente à altura de três andares.

 

As colunas de mármore luculeano! murmurei a Eco, atravessando as cortinas e fazendo-lhe sinal para que me seguisse, pois ali estavam elas, em todo o seu esplendor preto de azeviche, elevando-se até ao tecto,

12 metros mais acima.

 

No centro do átrio, havia uma piscina pouco funda, decorada com mosaicos brilhantes em preto-azulado e prateado, que retratavam o céu nocturno e as constelações. Por cima da piscina, estava recortado no tecto um quadrado correspondente mas, em vez de estar aberta para o céu, a clarabóia parecia estar coberta por uma enorme chapa de vidro, através da qual as estrelas vacilavam como se estivessem dentro de água. Era uma sensação estonteante: a clarabóia parecia uma piscina, reflectindo as estrelas que tínhamos aos pés.

 

Percorri lentamente o perímetro do átrio. Instaladas em nichos, nas paredes, viam-se as máscaras de cera dos antepassados da família. Públio Clódio Pulcher pertencia a uma linhagem muito antiga e muito nobre. Um por um, os rostos dos seus antepassados olharam impassíveis para mim. A maioria tinha sido capturada na maturidade ou na velhice, mas percebia-se que, de uma forma geral, eram belos. Afinal, Pulcher o nome deste ramo da família significa belo.

 

Eco deu-me uma pancadinha no ombro. O nosso acompanhante tinha voltado. Fez-nos um gesto com o queixo e nós seguimo-lo, penetrando nas profundezas da casa.

 

Enquanto avançávamos pelos corredores, fui espreitando para dentro dos compartimentos por onde passávamos. Vi em toda a parte sinais de que nos encontrávamos numa casa para onde houvera uma mudança recente e que ainda não estava completamente arrumada. Havia caixas e cestas amontoadas em algumas salas, enquanto outras estavam completamente vazias. Em certos sítios, viam-se andaimes e cheirava a pintura recente. Até os compartimentos que pareciam acabados davam a impressão de não serem definitivos as mobílias estavam colocadas em ângulos invulgares, os quadros pendurados em espaços invulgares, as estátuas muito juntas umas das outras.

 

O que esperava eu encontrar dentro da casa? Mulheres a chorar, escravos a correr de um lado para o outro, confusos, uma sensação de pânico? Em vez disso, a casa estava silenciosa e quase não se via ninguém. A vastidão do local fazia com que o silêncio parecesse ainda mais pronunciado e inquietante, como um templo deserto. Ocasionalmente, um escravo atravessava-se no nosso caminho, afastando-se com deferência e mantendo o rosto desviado.

 

Quando o corpo morre, disse-me um filósofo certo dia, toda a vida que existe dentro dele se contrai num único ponto, antes de expirar por completo. Era o que parecia ter acontecido em casa de Clódio, toda a vida reunida num mesmo sítio, porque subitamente voltámos uma esquina e entrámos numa sala iluminada por muitas lamparinas e cheia de vozes sussurradas. Homens de toga e de aspecto nervoso passeavam agitadamente de um lado para o outro, conversando em grupos, fazendo gestos de mãos, abanando a cabeça, discutindo em voz baixa. Havia escravos encostados aos cantos, silenciosos mas atentos, à espera de instruções.

 

Chegámos à porta fechada existente na outra extremidade da sala. Ali perto, estava sentado um homem pesadão, com o queixo apoiado nas mãos e uma expressão de profunda infelicidade. Tinha na cabeça uma ligadura manchada de sangue e um torniquete à volta de um braço. Um jovem belo, vestindo uma túnica elegante, inclinava-se sobre ele repreendendo-o severamente e mal dando oportunidade ao brutamontes de responder com resmoneios.

 

Não consigo compreender como pudeste abandoná-lo. Para começar, por que foram tão poucos com ele? Em nome do Hades, o que vos passou pela cabeça para o acompanharem à taberna, em vez de o levarem para a villã?

 

O nosso acompanhante bateu suavemente à porta com o lado do pé; alguém lhe tinha ensinado boas maneiras. O jovem e o homem ferido ergueram os olhos e olharam desconfiados para Eco e para mim.

 

O homem ferido franziu o sobrolho.

 

Em nome do Hades...

 

O jovem olhou para nós com uma expressão carregada.

 

Deve ser aquele sujeito que a minha tia Clódia mandou chamar. A porta abriu-se. Dois olhos femininos espreitaram para fora. O nosso acompanhante pigarreou.

 

Aquele que se chama Gordiano e o seu filho, Eco.

 

A jovem escrava acenou com a cabeça e abriu a porta. Eco e eu entrámos. O nosso acompanhante ficou do lado de fora quando a rapariga fechou a porta.

 

A sala parecia um santuário. O chão estava coberto por tapetes espessos, e as paredes por tapeçarias, que abafavam o suave crepitar da única braseira que aquecia a sala, criando sombras compridas nos cantos. Encostada a uma das paredes, via-se uma mesa comprida que mais parecia um altar, e algumas mulheres reunidas diante dela, de costas voltadas para nós. As mulheres estavam vestidas de preto e tinham o cabelo solto sobre os ombros. Não pareciam ter-se apercebido da nossa chegada. A jovem escrava foi até junto de uma delas e tocou-lhe suavemente no cotovelo. Clódia voltou-se e olhou para nós do outro lado da sala.

 

Há quase quatro anos que não a via, desde o julgamento de Marco Célio. Nessa altura, Clódia tinha-me contratado para auxiliar a acusação; as coisas não tinham corrido de acordo com os seus planos e o resultado não fora dos melhores para ela. Desde então, mantivera uma existência bem mais discreta e privada, pelo menos era o que se ouvia dizer nas raras ocasiões em que o seu nome era mencionado. Mas eu não me tinha esquecido dela. Não é possível esquecer uma mulher como Clódia.

 

Ela aproximou-se lentamente, com a orla do vestido preto a arrastar pelo chão. O seu perfume chegou até nós um momento antes de ela própria chegar, enchendo o ar com uma essência de açafrão e nardo. Eu sempre a tinha visto com o cabelo puxado para trás e seguro com ganchos. Nesta altura, tinha-o solto em sinal de luto, dando um contorno preto lustroso aos ângulos marcados dos seus malares e à linha orgulhosa do nariz. Já tinha passado os 40, mas a sua pele ainda se assemelhava a pétalas de rosa branca. As suas faces suaves e a sua testa pareciam brilhar à luz bruxuleante da braseira. Tinha os olhos aqueles famosos olhos verdes e luminosos vermelhos de choro, mas a voz continuava firme.

 

Gordiano! Pareceu-me ter-te avistado entre a multidão. É o teu filho?

 

O meu filho mais velho, Eco.

 

Ela acenou com a cabeça, pestanejando para afastar as lágrimas.

 

Venham sentar-se ao pé de mim. Levou-nos para um canto e indicou-nos com um gesto que nos sentássemos num dos canapés, enquanto ela se sentava no outro. Encostou uma mão à testa e fechou os olhos. Parecia prestes a começar a soluçar mas, passado um momento, inspirou fundo e sentou-se direita, juntando as mãos no regaço.

 

A luz que vinha da braseira foi interrompida por uma sombra. Uma das outras mulheres atravessou a sala para se juntar a nós. Sentou-se ao lado de Clódia e estendeu as mãos para as dela.

 

A minha filha Metela disse Clódia, embora não fosse propriamente necessário apresentá-la. A jovem era inequivocamente filha daquela mulher. Talvez chegasse mesmo a ser tão bela como a mãe, com o passar do tempo. Uma beleza como a de Clódia não era coisa com que uma mulher nascesse. Era mais do que aquilo que os olhos viam, um mistério que se escondia por trás da carne, e que apenas se aprofunda com a passagem do tempo.

 

Julgo recordar que tens uma filha com a mesma idade disse Clódia suavemente.

 

Diana disse eu. Tem 17 anos.

 

Clódia acenou com a cabeça. Subitamente, Metela começou a chorar. A mãe abraçou-a por momentos, depois soltou-a e disse-lhe que fosse ter com as outras mulheres.

 

Ela gostava muito do tio disse Clódia.

 

O que aconteceu?

 

A sua voz estava cheia de tensão e desprovida de cor, como se a mais pequena manifestação de emoção a impedisse de falar.

 

Não temos a certeza. Ele estava no Sul, na villa que fica depois de Bovilas. Aconteceu qualquer coisa na estrada. Dizem que foi Milo, ou os homens de Milo. Houve uma escaramuça. Públio não foi o único a morrer. A voz faltou-lhe. Fez uma pausa para se recompor. Uma pessoa que ia a passar por ali viu o corpo dele na estrada nem sequer havia alguém a guardá-lo! Foi trazido para a cidade por uns desconhecidos. O corpo chegou pouco depois do pôr do Sol. Desde então, têm estado a chegar alguns dos guarda-costas dele. Os que sobreviveram. Ainda estamos a tentar perceber o que aconteceu.

 

Vi um homem com uma ligadura a ser interrogado na sala ao lado.

 

Era um dos guarda-costas. Um homem que acompanhava Públio há anos. Como é que ele permitiu que isto acontecesse?

 

E o jovem que está a interrogá-lo?

 

Calculo que seja o meu sobrinho. O filho mais velho do nosso irmão Ápio. Veio comigo e com Metela na liteira. Amava Públio como a um segundo pai. Abanou a cabeça. O filho pequeno de Públio estava com ele em Bovilas. Não sabemos o que aconteceu ao miúdo. Nem sequer sabemos onde está! Subitamente, isto foi de mais para ela. Começou a chorar. Eco desviou os olhos. Era um espectáculo difícil de ver.

 

O choro acalmou.

 

Clódia, disse eu suavemente, por que me mandaste chamar? A pergunta pareceu intrigá-la. Franziu a testa e pestanejou para afastar as lágrimas.

 

Não tenho bem a certeza. Vi-te no meio da multidão, por isso... Encolheu os ombros. Na verdade, não sei. Mas é necessário fazer qualquer coisa. Tu sabes dessas coisas, não sabes? Perguntas. Investigações. Como é que isso se faz. Públio sabia tratar dessas coisas, naturalmente. Mas agora que Públio...

 

Inspirou profundamente e exalou lentamente. As lágrimas tinham-se-lhe acabado.

 

Na verdade, não sei por que te mandei chamar. Talvez fosse para ver uma velha cara conhecida. Separámo-nos como amigos, não foi? Tocou-me no braço e conseguiu fazer um sorriso triste. O esforço produziu apenas uma pequena fracção do encanto de que eu sabia que ela era capaz. A fragilidade da tentativa tornava-a ainda mais pungente. Quem sabe o que vai acontecer? O mundo está virado ao contrário. Mas vai ser preciso fazer alguma coisa para o endireitar. Os filhos de Públio são excessivamente jovens para tratarem disso. Terão de ser outros membros da família a fazê-lo. Podemos precisar de ti. Podemos chegar a isso, compreendes? Suspirou pesadamente. Neste momento, não há nada a fazer, excepto procurarmos todo o consolo que pudermos. Metela precisa de mim. Levantou-se e olhou tristemente para as mulheres que se encontravam do outro lado da sala.

 

A entrevista parecia ter acabado. Eu fiz um sinal de cabeça a Eco. Levantámo-nos simultaneamente do canapé.

 

A jovem escrava aproximou-se para nos acompanhar à porta. Clódia afastou-se e depois voltou-se para trás.

 

Espera. Deves vê-lo. Quero que vejas o que lhe fizeram.

 

Conduziu-nos até ao outro lado da sala, à mesa que servia de altar, ao lado da qual se encontrava Metela, juntamente com mais duas mulheres e uma criança. Ao sentir-nos aproximar, a mulher mais velha voltou-se e franziu o sobrolho. Tinha um rosto descarnado e macilento e o cabelo, quase completamente grisalho, chegava-lhe à cintura. Não tinha lágrimas nos olhos, mas apenas raiva e ressentimento.

 

Quem são estes homens?

 

São meus amigos disse Clódia, com uma voz tensa.

 

E há homem que não o seja? A mulher lançou a Clódia um olhar de desprezo. O que estão eles a fazer aqui? Deviam esperar na sala de fora, com o resto das pessoas.

 

Fui eu que lhes pedi que viessem, Semprónia.

 

Esta casa não é tua disse a mulher secamente.

 

Metela colocou-se ao lado da mãe e deu-lhe a mão. A mulher mais velha olhou para elas. A quarta mulher, cujo rosto eu ainda não tinha visto, manteve as costas voltadas. Estendeu a mão para tocar na cabeça da rapariguinha que estava encostada a ela. A criança inclinou o pescoço para trás e olhou para nós com os seus olhos grandes e inocentes.

 

Semprónia, por favor... disse Clódia num murmúrio tenso.

 

Sim, mãe, vamos tentar manter a calma. Mesmo com a nossa querida Clódia. A quarta mulher acabou por se voltar. Nos seus olhos, não vi lágrimas nem raiva. Havia cansaço na sua voz, mas era um cansaço de exaustão, e não de resignação. Não havia qualquer emoção detectável na sua voz ou no seu rosto, apenas uma espécie de firme determinação. Seria de esperar uma reacção mais forte na viúva do morto. Talvez estivesse simplesmente entorpecida com o choque, mas avaliou-nos com um olhar vivo e resoluto.

 

Fúlvia não era uma grande beleza, como Clódia, mas a sua aparência não deixava de impressionar. Era pelo menos dez anos mais nova; calculei que não tivesse mais do que trinta anos. Ao ver a filhinha apoiar-se nela, percebi qual era a origem dos curiosos e luminosos olhos castanhos da criança; havia no olhar de Fúlvia uma argúcia que indicava uma inteligência formidável. Não tinha a rudeza azeda da mãe, mas era possível detectar as sementes dessa característica nas linhas duras que lhe rodeavam a boca, especialmente quando voltava o olhar para Clódia.

 

Percebi imediatamente que não havia amor entre as duas cunhadas. Há muito que Clódia e o irmão eram famosos (ou difamados) pela sua devoção mútua; havia quem pensasse que as suas relações estavam mais próximas das de um casal do que propriamente de dois irmãos. Que papel teria a mulher de Clódio no meio disso tudo? O que pensaria Fúlvia da intimidade que havia entre o seu marido e a irmã deste? Pelo olhar que circulou entre ambas, presumi que as mulheres tinham aprendido a tolerar-se uma à outra, mas não mais do que isso. Clódio fora o elo de ligação entre elas, o objecto do afecto de ambas, bem como a causa da sua animosidade mútua; e é possível que também conseguisse manter a paz entre elas. Mas agora Clódio estava morto.

 

E bem morto, pensei, ao avistar o seu corpo atrás de Fúlvia, deitado na mesa comprida e alta. Ainda trazia vestidas as suas roupas de Inverno de andar a cavalo uma túnica pesada de mangas compridas, apertada à cintura com um cinto, perneiras de lã e botas de couro. A túnica, nojenta e ensopada em sangue, estava rasgada à altura do peito e desfeita em farrapos, como as flâmulas de uma bandeira vermelha.

 

Anda murmurou Clódia, ignorando as outras mulheres e agarrando-me no braço. Quero que o vejas. Levou-me até à mesa. Eco vinha atrás de mim.

 

O rosto não fora tocado. Tinha os olhos fechados, e os lábios e as faces exangues tinham apenas umas manchas de lama e sangue, e formavam uma ligeira careta, como a de um homem que sofre de uma dor de dentes ou que está a ter um pesadelo. Era estranhamente parecido com a irmã, com os mesmos malares finamente moldados e o nariz comprido e orgulhoso. Era um rosto que fazia derreter o coração das mulheres e picava os homens de inveja, um rosto que troçava da seriedade dos seus colegas patrícios no senado e conquistava a adoração da ralé. Clódio fora extraordinariamente belo, com uma expressão quase excessivamente jovem para um homem já perto dos 40 anos. Os únicos sinais de idade eram uns quantos fios prateados que tinha nas têmporas; e até esses quase se perdiam na espessa juba do seu cabelo preto.

 

Abaixo do pescoço, o seu corpo esguio e forte era elegantemente proporcionado, com ombros quadrados e um peito largo de nadador. Tinha uma ferida aberta no ombro direito, duas pequenas punhaladas no peito, e os membros marcados por numerosas lacerações, pequenas cicatrizes e nódoas negras. Também tinha feridas no pescoço, como se lhe tivessem apertado uma corda fina à volta da garganta; na verdade, se não tivesse mais feridas, eu teria afirmado que fora estrangulado.

 

Ao meu lado, Eco estremeceu. Tal como eu, já tinha visto muitos corpos mortos, mas as vítimas de veneno ou de um punhal nas costas constituem um espectáculo menos sangrento do que o proporcionado pelo cadáver que tínhamos diante de nós. Este corpo não era o de um homem que tinha morrido em consequência de um crime rápido e furtivo. Era o corpo de um homem que morrera no decorrer de uma batalha.

 

Clódia pegou numa das mãos do cadáver, apertando-a entre as suas como se pudesse aquecê-la. Passou os dedos pelos dele e franziu a testa.

 

O anel. O anel com o sinete de ouro! Foste tu que lho tiraste, Fúlvia? Fúlvia abanou a cabeça.

 

O anel já tinha desaparecido quando o trouxeram. Os homens que o mataram devem ter ficado com ele, como um troféu. Uma vez mais, não dava sinais de emoção.

 

Alguém bateu suavemente à porta. Entrou um grupo de jovens escravas, com panos dobrados nos braços. Traziam pentes, frascos de unguentos e jarros de água quente que deixavam no ar um rasto de vapor.

 

Dá-me um pente disse Clódia, estendendo a mão para uma das escravas.

 

Fúlvia franziu o sobrolho.

 

Quem mandou vir estas coisas?

 

Fui eu. Clódia aproximou-se da outra extremidade da mesa e começou a pentear o cabelo do irmão. Os dentes do pente ficaram presos numa mancha de sangue seco. O rosto dela tornou-se rígido. Ela puxou o pente, mas tinha as mãos a tremer.

 

Foste tu que as mandaste vir? Então podes mandá-las outra vez embora disse Fúlvia.

 

Por quê?

 

O corpo dele não precisa de ser lavado.

 

Claro que precisa. As pessoas que estão lá fora querem vê-lo.

 

E vê-lo-ão.

 

Mas não assim!

 

Exactamente assim. Querias que os teus amigos vissem as feridas. Pois bem, eu quero a mesma coisa. Todos os habitantes de Roma as verão.

 

Mas este sangue todo, e as roupas em farrapos...

 

Então tiramos-lhe a roupa. Deixemos que as pessoas o vejam tal como é.

 

Clódia continuou a pentear, mantendo os olhos fixos no que estava a fazer. Fúlvia aproximou-se dela. Agarrou no pulso de Clódia, apoderou-se do pente e atirou-o ao chão. O gesto foi súbito e violento, mas a sua voz permaneceu tão impassiva como o seu rosto.

 

A mãe tem razão. Esta casa não é tua, Clódia. E ele não era teu marido.

 

Eco puxou-me pela manga. Eu acenei com a cabeça. Era altura de nos irmos embora. Inclinei a cabeça, num gesto de deferência para com o cadáver, mas o gesto passou despercebido; Clódia e Fúlvia olhavam fixamente uma para a outra, como duas fêmeas de tigre com as orelhas para trás. As jovens escravas dispersaram nervosamente enquanto nós nos dirigíamos à porta. Antes de sairmos da sala, voltei-me para olhar pela última vez para as mulheres, e fiquei impressionado com o quadro: Clódio morto em cima da mesa, rodeado pelas cinco mulheres que lhe tinham sido mais íntimas, e cujas idades alcançavam uma vida. A pequena filha, a sobrinha, Metela, a mulher, Fúlvia, a irmã, Clódia e a sogra, Semprónia. Pensei nas mulheres de Tróia, de luto por Heitor, com as jovens escravas a fazer de coro.

 

A sala exterior, mais iluminada, parecia pertencer a outro mundo, com os homens de toga circulando impacientemente de um lado para o outro, e as conversas em vozes masculinas sussurradas. A atmosfera era igualmente tensa, mas a tensão era de uma natureza diferente não era uma tensão de luto, mas de crise e confusão, como um campo militar sujeito a um cerco, ou uma reunião de conspiradores desesperados. A sala estava agora mais cheia. Tinham chegado algumas pessoas importantes, com as respectivas comitivas de libertos e escravos. Reconheci diversos senadores e magistrados bem famosos, de tendência populista. Alguns estavam aos pares, conversando em voz baixa. E havia outros reunidos em círculo, ouvindo um homem de olhos grandes com o cabelo em desalinho, que não cessava de dar murros na palma da mão.

 

Proponho que organizemos um assalto a casa de Milo esta noite dizia ele. Estamos à espera de quê? É aqui mesmo ao lado. Arrastamo-lo para a rua, incendiamos-lhe a casa e damos cabo dele.

 

Murmurei ao ouvido de Eco:

 

Sexto Clélio?

 

Eco acenou com a cabeça e respondeu-me, noutro murmúrio:

 

A mão direita de Clódio. Organiza as multidões, encena tumultos, parte braços, quebra narizes. Não tem receio de sujar as mãos.

 

Alguns dos políticos acenavam com a cabeça, aprovando a sugestão de Clélio. Outros troçavam:

 

O que te leva a pensar que Milo se atreveria a regressar à cidade, depois do que fez? perguntou um deles. Por esta altura, já deve ir a meio caminho de Massília.

 

Nem pensar disse Clélio. Milo não faria isso. Há anos que se andava a gabar de que um dia matava Públio Clódio. Ouve bem o que eu digo, amanhã estará no Fórum a vangloriar-se de tê-lo feito. E, quando mostrar a cara, damos cabo dele ali mesmo!

 

Não vale a pena dar cabo dele disse o jovem elegante e bem-vestido em que eu tinha reparado ao entrar, Ápio, o sobrinho de Clódio.

 

Vamos antes reclamar um julgamento.

 

Um julgamento! exclamou Clélio exasperado. Ouviu-se uma gargalhada colectiva.

 

Sim, um julgamento insistiu Ápio. É a única maneira de denunciar o patife juntamente com os amigos dele. Acham que Milo esteve sozinho por trás disto? Ele não tem inteligência para encenar uma emboscada. Cheira-me à maldita pança de Cícero! Os inimigos do tio Públio não o mataram por capricho. Foi um crime frio e calculado! A vingança não me chega, para isso bastava um punhal nas costas. Quero ver esses homens desacreditados, humilhados, expulsos de Roma! Quero que a cidade inteira os repudie, a eles e às famílias. Para isso, é preciso um julgamento.

 

Não me parece que a questão seja escolher se se dá cabo dele ou não disse um jovem calmo de olhar astuto que se encontrava na orla da multidão.

 

Gaio Salusto murmurou Eco ao meu ouvido. Um dos tribunos radicais eleitos o ano passado.

 

As cabeças voltaram-se. Tendo conquistado a atenção concentrada do grupo, Salusto encolheu os ombros.

 

O que vos faz pensar que seremos capazes de controlar a multidão, para um lado ou para o outro? Clódio era capaz, mas Clódio está morto. Não podemos saber o que acontecerá amanhã, ou já agora o que se vai passar hoje. Dar cabo dele? Por que não um banho de sangue? Teremos sorte se houver suficiente organização em Roma para se poder fazer um julgamento.

 

Nesta altura, ouviu-se outra rodada de risos e troças, mas ninguém pôs directamente em causa o que Salusto dissera. Em vez disso, afastaram-se pouco à-vontade e retomaram a discussão sem ele.

 

Um julgamento! insistia Ápio.

 

Primeiro um tumulto! dizia Sexto Clélio. A plebe não aceitará menos do que isso. E, se Milo se atrever a mostrar a cara, cortamos-lhe a cabeça e exibimo-la no Fórum espetada numa estaca.

 

Se fizermos isso, a cidade voltar-se-á contra nós argumentou Ápio. Não. O Tio Públio sabia bem como se deve usar a multidão como um punhal, e não como uma moca. Estás enervado, Sexto. Precisas de dormir.

 

Não me digas como é que Públio utilizava a plebe disse Clélio. Metade das vezes era eu que planeava as estratégias.

 

Os olhos de Ápio faiscaram. Fizeram-me lembrar os olhos de Clódia, brilhantes e verdes como esmeraldas.

 

Não tentes elevar-te acima da tua posição, Sexto Clélio. Guarda essa retórica vulgar para a ralé. Os homens que estão nesta sala são sofisticados de mais para as tuas fanfarronadas.

 

Clélio abriu a boca para responder, depois voltou-se e afastou-se. Houve um silêncio tenso, quebrado por Salusto.

 

Acho que estamos todos um pouco enervados disse ele. Por mim, vou para casa dormir um bocado. Saiu da sala com uma comitiva enorme atrás, deixando mais espaço para os que ficaram continuarem a passear e a gesticular.

 

E nós devíamos fazer o mesmo disse eu, empurrando Eco ligeiramente. Preciso de dormir. Além disso, Salusto tem razão: ninguém sabe o que pode acontecer nas ruas esta noite. Devíamos estar em casa, com as nossas famílias, metidos atrás de portas trancadas.

 

O gladiador que nos tinha acompanhado estivera a vigiar-nos. Quando nos dirigimos à porta, juntou-se a nós e insistiu em acompanhar-nos à saída. Só voltou para trás depois de nos entregar à protecção dos guarda-costas de Eco, no patamar à saída da porta discreta por onde tínhamos entrado.

 

Descemos os degraus até à rua. A multidão reunida à saída do pátio da frente da casa de Clódio tinha agora aumentado. À semelhança do que faziam os seus chefes dentro da casa, os homens mantinham-se em grupos, a discutir o que haviam de fazer, só que em voz mais sonora e usando uma linguagem mais crua. Havia outros homens que se mantinham sozinhos e soluçavam abertamente, como se tivessem perdido um pai ou um irmão.

 

Eu gostaria de ter avançado a direito, mas a multidão era uma espécie de força, uma corrente subterrânea que me impedia de prosseguir. Eco não se importava de permanecer por ali, a observar, por isso fomo-nos deixando estar, fascinados pela luz das tochas, pelos fragmentos flutuantes de conversas, por aquela massa móvel que era a multidão, pelo ambiente de incerteza e de terror.

 

Subitamente, as grandes portas de bronze da casa de Clódio abriram-se para trás com um duplo ruído metálico. Um sussurro de antecipação atravessou a multidão. Primeiro, apareceram uns homens armados. Desceram os degraus em cordão, precedendo e flanqueando os homens de toga que transportavam o corpo de Clódio sobre uma padiola comprida e plana.

 

Um gemido percorreu a multidão ao primeiro vislumbre do corpo, seguido de uma súbita corrida para diante. A padiola foi poisada nos degraus e erguida na vertical, para que Clódio pudesse ser visto. Nós fomos apanhados na confusão. A multidão que se encontrava no pátio comprimiu-se, e os que estavam na rua foram empurrados para diante atrás deles, como que sugados para um vórtice. Eco agarrou-me na mão, enquanto éramos transportados através dos portões, para o pátio, como destroços numa enxurrada. Os guarda-costas tentaram não se afastar, empurrando e encostando-se a nós. A ponta da lâmina do punhal que o guarda-costas que estava atrás de mim tinha guardado dentro da túnica espetou-me as costelas, e eu pensei como seria irónico ser acidentalmente ferido pelo próprio homem que estava ali para me proteger.

 

Houve uma pausa no movimento. A multidão estava comprimida no pátio da frente como grãos de areia dentro de um frasco. Por entre o fumo das tochas, pude avistar Clódio com grande clareza, erguido na padiola, rodeado de guardas armados na morte, como estivera em vida. De cada um dos lados da padiola, encontravam-se os homens que a tinham transportado. Entre eles, reconheci Ápio e Sexto Clélio.

 

Clódio tinha sido despido das roupas ensanguentadas e mantinha apenas uma espécie de tanga à volta das ancas. A chaga do ombro e as feridas do peito tinham sido limpas, mas apenas para se tornarem mais visíveis; ainda havia muito sangue coalhado espalhado sobre a sua carne pálida e cerosa. Reparei que lhe tinham penteado e desenvencilhado amorosamente os cabelos. Tinham-lhos puxado para trás, como ele os usava em vida, mas uma madeixa solta caíra-lhe para cima de um dos olhos. Se apenas olhássemos para o seu rosto, podíamos pensar que estava a dormir, e a franzir o nariz porque a madeixa de cabelo lhe fazia cócegas, e que a qualquer momento ergueria a mão para afastá-la. Vê-lo nu debaixo das estrelas numa noite fria como aquela fez-me estremecer.

 

À nossa volta, os homens lamentavam-se, praguejavam, choravam, batiam os pés, abanavam os punhos cerrados, enterravam a cara nas mãos. Outro tremor de apreensão varreu a multidão quando Fúlvia apareceu no alto das escadas.

 

Tinha os braços cruzados diante do peito e a cabeça inclinada. Trazia solto o comprido cabelo negro, que se misturava com a longa linha preta do vestido. A multidão ergueu as mãos na sua direcção, mas ela pareceu ignorar estes gestos de consolo. Deixou-se estar durante um longo momento ao lado do corpo do marido, olhando para ele. Depois, ergueu o rosto para o céu e lançou um grito de angústia que me fez gelar o sangue. Era um grito semelhante ao de um animal selvagem rasgando o ar frio da noite; se ainda havia alguém a dormir no Palatino, terá certamente acordado com ele. Fúlvia puxou os cabelos, ergueu os braços ao céu e lançou-se para cima do corpo do marido. O sobrinho e Sexto Clélio fizeram uma tentativa desajeitada de a impedir, e depois recuaram atemorizados quando ela começou a guinchar e a bater com os punhos na padiola. Tomou a cara do cadáver com as mãos a tremer e encostou o seu rosto ao do marido, cobrindo os seus lábios frios com um beijo.

 

À nossa volta, a multidão bramiu como um oceano agitado. Eu pensei naquilo que o tribuno Salusto tinha dito: ninguém consegue controlar uma multidão assim. Ela pode estropiar ou matar um homem sem querer e sem qualquer finalidade, esmagando-o ou pisando-o aos pés. Agarrei em Eco e, por um acto de vontade, conseguimos recuar e passar pelo portão. A multidão que não cabia no pátio enchia agora as ruas, até onde a vista alcançava. Em todo o quarteirão, para um lado e para o outro, viam-se as casas iluminadas como se fosse de dia, com guardas de expressões ansiosas postados nos telhados. Eu fui andando, abrindo caminho por entre a multidão, enquanto Eco e os seus guarda-costas se esforçavam por me acompanhar.

 

Finalmente, ultrapassámos a multidão. Não abrandei o passo enquanto não dobrámos uma esquina e nos encontrámos numa rua vazia e escura. Parei para recuperar o fôlego, e Eco imitou-me. Ele tinha as mãos a tremer. Apercebi-me de que o mesmo acontecia comigo.

 

Ouvindo apenas a minha própria respiração e o meu pulso, nas têmporas, não dei conta de passos que se aproximavam. Mas os guarda-costas deram. Tornaram-se rígidos e colocaram-se à nossa volta. Um grupo de homens subia a rua, dirigindo-se a casa de Clódio. Ao passarem, o chefe fez-lhes sinal para que parassem. Olhou para nós à luz esbatida das estrelas. Tinha o rosto mergulhado na sombra, mas eu percebi que tinha o cabelo encaracolado, o nariz proeminente, e um corpo sólido por baixo da capa. Momentos depois, afastou-se dos seus guarda-costas e aproximou-se de nós.

 

Vêm de casa de Clódio?

 

Sim respondi eu.

 

É verdade o que se diz?

 

O que é que se diz?

 

Que Clódio está morto.

 

É verdade.

 

O homem suspirou. Foi um suspiro breve e ligeiro, muito diferente dos ruidosos lamentos que acabávamos de deixar para trás.

 

Pobre Públio! Quer dizer que foi o fim dele, para o bem ou para o mal. Acabou tudo. Empertigou a cabeça. Eu não te conheço?

 

Conheces?

 

Julgo que sim. Sim, tenho a certeza.

 

Consegues ver no escuro, cidadão?

 

O suficiente. E nunca me esqueço de uma voz. Murmurou qualquer coisa e depois resmungou. És o pai de Meto, não és? E este é o irmão de Meto, Eco.

 

Sim. Tentei observá-lo melhor. Consegui distinguir-lhe as feições toscas a testa decidida, o nariz achatado de pugilista, mas nem por isso o reconheci.

 

Conhecemo-nos o ano passado disse ele, brevemente, quando foste visitar Meto a Ravena. Eu também sirvo no exército de César. Fez uma pausa. Vendo que eu não dava sinais de o reconhecer, encolheu os ombros. Bem, o que se passa ali do outro lado da esquina? Aquele brilho no céu, não é uma casa em chamas?

 

Não. São muitas tochas acesas.

 

Há uma grande multidão reunida em casa dele?

 

Sim. Vieram ver o corpo. A mulher, Fúlvia...

 

Fúlvia? Ele pronunciou o nome com uma estranha intensidade, como se tivesse um significado secreto para ele.

 

Está a lamentar-se. Talvez consigas ouvi-la.

 

Ele voltou a suspirar, um suspiro fundo e expressivo.

 

Acho que é melhor ir ver. Então adeus, Gordiano. Adeus, Eco. Voltou a juntar-se aos seus companheiros, e afastou-se rapidamente.

 

Adeus... respondi eu, ainda incapaz de me recordar do nome dele. Voltei-me para Eco.

 

Tal como ele disse, papá, conhecemo-lo o ano passado, no quartel-general de Inverno de César, em Ravena. É um pouco modesta a maneira como diz que "também serve no exército de César". Segundo Meto, ele é um dos principais homens do general. Fomos rapidamente apresentados. Eu também já me tinha esquecido dele. Espanta-me que se recorde de nós. Bem, mas ele é um político. Voltou a Roma há vários meses, vai candidatar-se a um cargo. Tenho-o visto no Fórum, a angariar votos. Tu também deves tê-lo visto.

 

Vi? Como é que ele se chama?

 

Marco António.

 

Ao pequeno-almoço, Betesda e Diana exigiram saber tudo. Eu tentei suavizar a descrição do cadáver de Clódio por uma questão de deferência para com o apetite de ambas, mas elas insistiram em conhecer todos os pormenores macabros. Não manifestaram grande interesse pelas querelas dos políticos, mas escutaram atentamente as minhas impressões da famosa casa e da sua decoração, e mostraram-se especialmente curiosas relativamente a Clódia.

 

Já passaram quatro anos desde o julgamento de Marco Célio? Betesda soprou suavemente uma colher cheia de farinha quente.

 

Quase.

 

E pensar que, durante todo esse tempo, não tivemos sequer um vislumbre de Clódia.

 

Não é propriamente muito surpreendente; não nos movemos nos mesmos círculos elevados que ela. Mas julgo que ninguém a viu assim muito. O julgamento tirou-lhe qualquer coisa. Pareceu-me uma mulher diferente.

 

A sério? A ideia que fica é que ela fez uma grande cena, convidando-te para o coração da imponente casa do irmão, fazendo-te sentir privilegiado e especial. Ela pretende qualquer coisa.

 

Francamente, Betesda, a mulher estava perturbada.

 

Estava?

 

Já te disse que ela tinha dificuldade em evitar chorar.

 

Chorar é uma coisa. Estar perturbada é outra.

 

Não estou a perceber.

 

Não? Betesda encostou-se na cadeira. Tem cuidado com a farinha, Diana. Vais queimar a língua.

 

Diana acenou com a cabeça, distraída, e meteu na boca uma colher cheia.

 

O que queres dizer, Betesda? Com essa observação sobre Clódia?

 

Bem, não tenho dúvidas de que ela estava transtornada com a morte do irmão. Todos sabemos que eles eram muito íntimos, ou pelo menos sabemos o que as pessoas diziam sobre eles. E foi uma morte tão sangrenta, pela maneira como descreveste o corpo. Que horror! Mexeu a farinha. Ergueram-se da taça nuvenzinhas de vapor.

 

Mas?

 

Diana pigarreou.

 

Acho que o que a mãe está a tentar dizer é...

 

Bem, é óbvio, não é? Betesda olhou para Diana, e acenaram com a cabeça em uníssono. A liteira, o guarda-costas...

 

E a utilização da entrada principal. Sim. Diana franziu os lábios, pensativamente.

 

Em nome do Hades, de que estão vocês a falar?

 

Bem... Betesda experimentou outra colher de farinha, e por fim achou que estava à temperatura ideal. Pela tua descrição, pareceu-me que existe a entrada principal da casa, e também a portinha lateral escondida por onde vocês entraram.

 

Sim...

 

E ambas vão dar ao mesmo sítio.

 

Sim, ao átrio principal.

 

Bem, eu não posso falar por Clódia, mas se eu estivesse perturbada, não teria estômago para encarar uma enorme multidão. Preferia evitá-la, se pudesse. E Clódia podia tê-lo feito com grande facilidade, entrando por essa porta lateral. Podia ter evitado completamente a multidão. Não tenho razão? A liteira podia tê-la depositado, a ela, a Metela e ao sobrinho Ápio, ao fundo dos degraus, e eles subiam e entravam em casa sem ninguém chegar a saber que lá estavam.

 

Acho que sim...

 

Diana pegou no fio do argumento.

 

Mas ela preferiu passar pelo meio da multidão naquela liteira enorme, com aquele pavilhão às listas vermelhas e brancas que toda a gente conhece, acompanhada por um verdadeiro exército de enormes gladiadores ruivos.

 

Betesda acenou com a cabeça.

 

Para ter a certeza de que toda a gente sabia que ela tinha chegado.

 

E continuaria a falar disso muito tempo depois.

 

Qual é a vossa ideia? perguntei eu, olhando de uma para a outra.

 

Bem, papá, que o desgosto não era a única coisa que ocupava a mente de Clódia.

 

Exactamente disse Betesda. O seu objectivo era fazer uma entrada.

 

Oh, francamente! Abanei a cabeça. Se vocês tivessem lá estado, se tivessem sentido o estado de espírito que se vivia naquela casa, o desespero, a angústia...

 

O que só contribuía para aumentar o drama disse Betesda. Não duvido da dor de Clódia. Mas tens de perceber que ela deve ter considerado antecipadamente as circunstâncias. Deve ter percebido que não lhe permitiriam aparecer em público ao lado do corpo do irmão, quando ele fosse exibido à multidão. Esse privilégio estava reservado a Fúlvia.

 

Por isso, Clódia deixou a sua impressão como pôde, fazendo uma entrada grandiosa disse Diana.

 

Estou a ver. Querem vocês dizer que ela pretendia desviar as atenções da cunhada para si própria.

 

Nada disso. Betesda franziu o sobrolho perante a minha compreensão lenta. Ela apenas queria o que lhe era devido.

 

Queria reclamar a parte de sofrimento público que acha que lhe pertence explicou Diana.

 

Estou a ver disse eu, sem ter a certeza de estar. Bem, falando de coisas feitas para chamar a atenção, claro que eu fiquei espantado com a inconsistência do comportamento de Fúlvia...

 

Inconsistência? disse Betesda.

 

O que queres dizer com isso, papá?

 

Já vos disse como ela se mostrou rígida dentro de casa, sem dar mostras de praticamente emoção nenhuma, mesmo ao pôr Clódia no seu lugar relativamente à limpeza do corpo. E depois, aqueles gritos histéricos diante daquela gente toda, quando vieram exibir Clódio à multidão!

 

Qual é a inconsistência, papá? Diana olhou para mim com curiosidade, no que foi imitada pela mãe. Quase me convenci de que estavam a fazer troça de mim.

 

Parece-me que uma mulher deve sofrer em privado e mostrar alguma descrição em público, e não o contrário disse eu.

 

Betesda e Diana olharam uma para a outra e franziram o sobrolho.

 

Que sentido teria tal coisa? disse Betesda.

 

Não se trata de ter sentido...

 

Marido! Betesda abanava a cabeça. Claro que Fúlvia não estava interessada em exibir a sua dor diante de ti, que eras um estranho, na intimidade da sua casa, especialmente na presença de Clódia. Comportou-se com dignidade para que a mãe se sentisse orgulhosa dela, para ensinar à filha que devia ser forte, para confundir a chorosa cunhada. E também pelo marido, uma vez que vocês, os Romanos, acreditam que os lémures de um morto podem demorar-se algum tempo nas proximidades do seu corpo desabitado. Por isso, na tua presença ela assumiu uma atitude digna. Mas a multidão que estava no exterior era outra coisa. Fúlvia pretendia inflamá-la o mais que pudesse, da mesma maneira que o marido a tinha inflamado tantas vezes. E não o conseguiria, se se comportasse como uma estátua ao lado do seu cadáver coberto de sangue, não te parece?

 

Achas então que a exibição pública do seu desgosto foi calculada e pouco sincera?

 

Calculada, foi com certeza. Pouco sincera? De maneira nenhuma. Ela limitou-se a escolher o momento e o local mais adequados para libertar o sofrimento que tinha dentro de si.

 

Abanei a cabeça.

 

Não sei bem se estás a dizer coisa com coisa. Preferia tentar perceber em que esquemas estavam metidos os políticos que se encontravam na antessala.

 

Betesda e Diana encolheram os ombros em uníssono, evidenciando que o assunto as entediava.

 

De uma forma geral, os políticos são demasiadamente óbvios para serem interessantes disse Betesda. Claro que eu posso ter julgado mal Clódia e Fúlvia. Não estava lá, não vi o que se passou. Apenas posso adivinhar pelo que tu me disseste.

 

E eu sou um observador assim tão pouco fiável? Ergui uma sobrancelha. Há quem me trate por Descobridor, sabiam?

 

O que se passa prosseguiu Betesda, ignorando o que eu dissera, é que nunca podemos ter a certeza absoluta do que pretendem realmente as pessoas. Especialmente quando se trata de mulheres tão complicadas como Clódia ou Fúlvia. Como é que a pessoa pode saber o que elas realmente pensam ou sentem? O que elas realmente pretendem? Betesda trocou um olhar pensativo com Diana. Levaram ambas colheres cheias de papa de aveia simultaneamente à boca, baixando-as abruptamente quando Belbo entrou na sala.

 

Este gigante de cabelo cor de palha era desde há muito o meu guarda-costas, e salvara-me a vida em diversas ocasiões. Ainda era forte como um touro, mas também se tornara pesado como esses animais; leal como um perdigueiro, mas já pouco apto para a caça. Eu continuava a confiar-lhe a minha vida todos os dias era ele que me barbeava, mas já não podia estar certo de que ele me protegeria dos punhais que abundavam no Fórum. O que se faz a um guarda-costas leal que ultrapassou o seu prazo de utilidade? Belbo lia muito mal e apenas possuía uns conhecimentos básicos de aritmética. Não tinha quaisquer talentos especiais para a carpintaria ou a jardinagem. Para além de realizar ocasionalmente um feito de força prodigiosa como erguer sozinho uma saca pesada de cereais ou um armário maciço, era-me útil como porteiro, uma tarefa que, basicamente, o obrigava a estar sentado ao sol no átrio durante todo o dia. A letargia combinava com a sua natureza bovina, e realçava o temperamento calmo que as pessoas que não o conheciam tomavam frequentemente por estupidez. Belbo talvez fosse um tanto lento, mas não era imbecil. Costumava sorrir de uma anedota depois de toda a gente ter terminado de rir. Raramente se irritava, mesmo quando era provocado. Ainda mais raramente se mostrava temeroso. No entanto, ao entrar na sala de jantar, os seus olhos bovinos estavam escancarados de susto.

 

Belbo, o que se passa?

 

Lá fora na rua, senhor. Diante da casa. Acho que é melhor vires ver.

 

Logo que saí para o jardim do centro da casa, ouvi o barulho que provinha da rua uma combinação indistinta de gritos e batidos de pés. Parecia um tumulto. Atravessei rapidamente o jardim e o átrio e cheguei à entrada da casa. Belbo abriu o pequeno painel existente na porta e afastou-se para o lado, para me permitir ver pelo olho de segurança.

 

Eu avistei uma confusão de movimento da esquerda para a direita uma multidão a correr, vestida de preto. Ouvi o rugido da turba, mas não consegui perceber o que diziam.

 

Quem são eles, Belbo? O que se passa? Estava a olhar pelo olho de segurança. Subitamente, uma figura destacou-se da multidão e correu até à porta. Aplicou a boca ao olho de segurança e começou a gritar. Vamos pegar-lhe fogo! Pegar-lhe fogo! Bateu com os punhos na porta. Eu recuei, com o coração aos pulos. Pelo olho de segurança, vi o homem recuar, com o rosto cristalizado numa careta maníaca. Apesar de ter a porta entre nós, estremeci. Depois, tão subitamente como se aproximara, o homem voltou costas e afastou-se, desaparecendo entre a multidão.

 

Em nome do Hades, o que se passa?

 

Eu aconselhava-te a não saíres para investigar disse Belbo, muito sério.

 

Pensei por momentos.

 

Vamos até ao telhado. Vai buscar o escadote, Belbo, e trá-lo para o jardim!

 

Momentos mais tarde, dei por mim precariamente equilibrado nas telhas inclinadas da parte da frente de minha casa. Daí, conseguia ver a rua, mas também o Fórum, ao fundo, com os templos e os espaços públicos amontoados no vale situado entre o Palatino e o Capitólio. Mesmo abaixo de mim, a multidão continuava a correr pela rua. Alguns homens prosseguiam em frente. Outros desviavam-se, tomando o atalho a que chamavam a Rampa, que desce para o Fórum e vai dar a um espaço estreito, entre a Casa das Vestais e o Templo de Castor e Pólux. Alguns dos tumultuosos levavam paus e mocas. Outros brandiam punhais, em aberto desafio às leis que proíbem a utilização desse tipo de armas dentro da cidade. E, embora o dia tivesse clareado há muito, havia quem levasse tochas na mão. As chamas chicoteavam o ar frio.

 

A multidão acabou por se tornar menos compacta, mas foi rapidamente seguida por um grupo ainda mais numeroso, e mais lento, de pessoas enlutadas. Se se tratava de um cortejo fúnebre, era um cortejo muito estranho. Onde estavam os actores a fazer paródias ao morto, para alegrar os espíritos? Onde estavam as efígies de cera dos antepassados do morto, retiradas dos seus lugares de honra no átrio de sua casa, para assistirem à sua passagem para o outro mundo, ao encontro deles? Onde estavam as acompanhantes contratadas, chorando e puxando os cabelos eriçados na verdade, onde estavam as mulheres?

 

Mas ouvia-se música trompas de luto, lamentos de flautas e tamborins, que produziam um ruído que me fazia arrepiar. E havia um corpo, o cadáver de Clódio, transportado sobre uma padiola de madeira, engrinaldada com um pano negro. Continuava nu, à excepção da tanga à volta das ancas, e sujo e coberto de sangue seco.

 

Alguns dos acompanhantes desviaram-se para descerem a Rampa até ao Fórum, mas o grosso da procissão que acompanhava o cadáver de Clódio prosseguiu pela rua que passava diante de minha casa, e que percorre a crista do Palatino. Apercebi-me de que estavam a fazer um circuito lento e deliberado pela colina, passando diante das casas dos ricos e poderosos em procissão sombria, permitindo a amigos e inimigos que lançassem um olhar derradeiro ao homem que tanta perturbação tinha introduzido na vida ordenada da República.

 

Algumas casas mais adiante, o percurso fá-los-ia passar directamente diante da casa do homem que fora o mais implacável inimigo de Clódio, no senado e nos tribunais. Clódio guindara-se a campeão dos humildes, dos soldados de infantaria e dos libertos; contra ele, estivera sempre Cícero, o leal porta-voz daqueles que a si próprios se chamavam os Melhores. A procissão funerária parecia ordeira, mas na multidão que a precedera eu vira punhais e tochas. Sustive a respiração, perguntando a mim próprio o que aconteceria quando chegassem a casa de Cícero.

 

Quando olhei na direcção da casa de Cícero, vi que não estava sozinho na minha apreensão. As casas e árvores que havia de permeio bloqueavam-me a visão da rua, mas da casa propriamente dita conseguia ver algumas janelas do andar de cima, com as portadas fechadas, e uma parte do telhado. Aí estavam empoleiradas duas figuras, como Belbo e eu estávamos empoleirados no telhado de minha casa, a espreitarem por cima do beiral, para baixo, para a rua. Ao brilho da manhã que nascia, discerni imediatamente a silhueta de Cícero, o seu pescoço largo, o seu maxilar severo. Acocorado atrás dele, com a mão estendida para ter a certeza de que o seu senhor não se debruçava excessivamente, encontrava-se a silhueta mais esguia de Tiro, o seu secretário de toda a vida. Mantiveram-se imóveis durante um longo momento, como que gelados pelo frio ar da manhã; depois, Cícero estendeu a mão para trás, e tocou no ombro de Tiro. Juntaram as cabeças, e conferenciaram angustiadamente. Pela maneira como recuaram e estenderam o pescoço, tentando ver sem serem vistos, calculei que o bizarro cortejo funerário estivesse a passar directamente por baixo deles. O som das trompas e das flautas tornou-se mais agudo, o dos tamborins mais maníaco. Concentrados no espectáculo que tinha lugar por baixo deles, Cícero e Tiro não se aperceberam do meu escrutínio.

 

Pareceu-me que a procissão estacava diante da casa de Cícero. Cícero balançava a cabeça para baixo e para trás, como uma codorniz nervosa. Eu imaginava o seu dilema tinha medo de afastar os olhos da turba, mas o menor vislumbre da sua pessoa poderia incitá-la à violência. As trompas soaram, as flautas trinaram, os tamborins matraquearam.

 

Por fim, o cortejo prosseguiu e o som diluiu-se.

 

Cícero e Tiro encostaram-se, suspirando de alívio. Então, Cícero estremeceu e agarrou-se ao estômago. Como o calcanhar é para Aquiles, assim é o estômago para Cícero; o pequeno-almoço voltara-se contra ele. Pôs-se de pé, ainda agachado, e subiu ao alto do telhado como um caranguejo, com Tiro atrás. Tiro voltou a cabeça e viu que nós estávamos a observá-los. Tocou na manga do seu senhor e disse-lhe qualquer coisa. Eu ergui a mão, numa saudação de vizinho. Tiro correspondeu. Cícero deixou-se estar imóvel por momentos, depois apertou o estômago e avançou apressadamente, desaparecendo do outro lado do telhado.

 

Entretanto, lá em baixo na rua, continuavam a passar homens vestidos de preto, aos grupos de dois ou três, retardatários que se apressavam para apanhar a procissão. A maioria tomava a Rampa. Eu tentei ver para onde se dirigiam, mas a minha visão do Fórum era sobretudo de telhados de cobre já gastos, brilhando à luz do Sol; de vez em quando, captava um vislumbre de umas figurinhas movendo-se nos espaços intermédios. Pareciam estar a reunir se diante do Senado, na extremidade do Fórum, onde a face rochosa do Capitólio forma uma parede natural.

 

Desde a posição onde me encontrava, eu tinha uma visão clara da parte da frente do Senado. Uns degraus largos de mármore iam dar às maciças portas de bronze, que estavam fechadas. Só conseguia ver uma parte muito reduzida do espaço que se abria diante do Senado, mas que incluía uma visão clara da Rostra, a plataforma elevada de onde os oradores se dirigiam à populaça. O espaço entre a Rostra e o Senado já estava cheio de homens vestidos de preto.

 

Os cânticos funerários, que durante algum tempo se tinham diluído com a distância, regressaram, subindo até nós vindos do Fórum. Ecoando a partir do vale, aquela música desagradável parecia mais confusa e dissonante do que nunca. De repente, sobrepôs-se-lhe o enorme brado da multidão. Tinha chegado o corpo de Clódio. Pouco depois, a padiola foi elevada até à Rostra e colocada na vertical para que a multidão pudesse vê-la, tal como fora exibida nos degraus da casa de Clódio, na noite anterior. Parecia uma coisinha minúscula mas, mesmo àquela distância, havia algo de chocante no vislumbre da carne nua no meio de tantos acompanhantes vestidos de preto e de toda aquela pedra fria e cinzelada.

 

Um orador subiu à Rostra. Chegaram até mim ecos distantes da sua voz. Enquanto ele andava de um lado para o outro pela Rostra, agitando os braços, apontando para o cadáver de Clódio e erguendo os punhos, a multidão irrompeu num urro atroador. A partir desse momento, o ruído da multidão foi aumentando e diminuindo, mas sem nunca se desvanecer por completo.

 

O que se passa? Voltei a cabeça, alarmado.

 

Diana, desce imediatamente!

 

Por quê? É perigoso estar aqui?

 

Muito. A tua mãe tinha um ataque.

 

Oh, não me parece. Foi ela que me segurou o escadote. Mas acho que ela está com medo de subir.

 

E tem razões para isso.

 

E tu, papá? Tenho a impressão de que um velhote como tu tem mais probabilidades de perder o equilíbrio do que eu.

 

Como se explica que eu tenha uma filha tão impertinente?

 

Não sou impertinente. Sou apenas curiosa. Parece o cerco de Tróia, não parece?

 

O quê?

 

Nós somos como Júpiter no Monte Ida a observar o campo de batalha, lá em baixo. São todos tão pequeninos. A pessoa sente-se... divina.

 

Sente? Júpiter podia enviar raios ou mensageiros alados. E ouvia o que estavam a dizer. Esta perspectiva não me faz sentir nada divino. Bem pelo contrário. Faz-me sentir impotente, observando as coisas a esta distância.

 

Podias descer e ir juntar-te a eles.

 

Pôr-me à mercê daquela multidão? Ninguém sabe o que farão a seguir...

 

Papá, olha!

 

Como uma corrente de água agitada por uma tempestade, a multidão pareceu subitamente extravasar da ampla praça em frente da Rostra, avançando em onda após onda para os degraus e os terraços dos templos e edifícios públicos que a rodeavam.

 

Papá, olha! O Senado!

 

Os amplos degraus estavam a ser inundados pela multidão, que os subia como se fosse uma maré negra, precipitando-se para as altas portas de bronze. Fechadas do lado de dentro, elas opuseram-se à multidão, mas não tardei a ouvir um ruído baixo, surdo e repetitivo. Era difícil perceber o que estava exactamente a acontecer, mas parecia que a multidão estava a assaltar as portas do Senado com uma espécie de aríete improvisado.

 

Impossível! disse eu. Incrível! O que lhes terá passado pela cabeça? O que é que eles querem?

 

Subitamente, as portas cederam. Momentos depois, ergueu-se da multidão um grito de triunfo. Voltei a olhar para a Rostra. O orador continuava a arengar, andando de um lado para o outro e exortando a populaça com gestos amplos, mas o corpo de Clódio tinha desaparecido. Franzi o sobrolho, intrigado, depois consegui vislumbrar o cadáver nu, deitado na padiola forrada de preto, avançando com movimentos incertos na direcção dos degraus do Senado. Parecia que a turba passava a padiola de mão em mão, por cima das suas cabeças. Subitamente, tive uma visão: a multidão era uma colónia de insectos, e o cadáver de Clódio a sua rainha. Estremeci e senti uma ameaça de vertigem. Estendi uma mão para Diana, pondo-lhe o braço à volta dos ombros, e com a outra agarrei-me com mais firmeza às telhas.

 

A padiola chegou à base dos degraus do Senado, ficou parada por momentos e depois começou a subi-los. A massa da multidão, que conseguia ver novamente o corpo, emitiu outro rugido poderoso, que era um misto de triunfo e desespero. A padiola chegou ao alto das escadas e foi colocada na vertical. Um homem avançou para o lado dela, acenando com uma tocha acesa. Parecia estar a fazer um discurso, embora fosse difícil imaginar que a multidão ululante conseguisse ouvi-lo melhor do que eu. Mesmo àquela distância, tive quase a certeza de que o orador era Sexto Clélio, o lugar-tenente de Clódio, o homem de olhar selvagem que na noite anterior falara de tumultos e de vingança contra Milo.

 

Passado algum tempo, ainda a acenar com a tocha, voltou-se e entrou no Senado. A padiola foi levada para dentro atrás dele.

 

O que lhes terá passado pela cabeça? disse eu.

 

Pegar fogo à Casa do Senado disse Belbo. Não foi isso que disse o sujeito que bateu aqui à porta?

 

Eu abanei a cabeça.

 

Ele estava a delirar. Além disso, devia estar a referir-se à casa de Milo, ou talvez de Cícero. Não podia de maneira nenhuma estar a pensar...

 

Por vezes, pronunciar o impossível pode fazer com que ele nos pareça possível. Olhei fixamente para o telhado do Senado como se, concentrando-me intensamente, pudesse ver através dele e perceber o que estava Sexto Clélio a preparar. Certamente não era...

 

Nessa altura, avistei as primeiras espirais de fumo, erguendo-se espectrais das janelas com as portadas cerradas do andar de cima da Casa do Senado.

 

Papá...

 

Sim, Diana, estou a ver. Devem estar a cremar o corpo, dentro do edifício. Idiotas! Se não têm cuidado...

 

Não me parece nada que eles sejam do género de terem cuidado disse Belbo, inclinando a cabeça para o lado com ar sério.

 

Um pouco mais tarde, saíram de uma das janelas as primeiras línguas vacilantes de fogo. Uma após outra, as portadas incendiaram-se. Um fumo preto e pesado começou a sair das janelas, e depois da porta aberta. Sexto Clélio saiu a correr do edifício, erguendo a tocha em triunfo acima da cabeça. A multidão ficou silenciosa por momentos, provavelmente tão assustada como eu pela enormidade do que tinha acontecido. Depois, soltou um rugido que deve ter sido escutado em Bovilas.

 

Foi escutado em casa de Cícero, pelo menos. Pelo canto do olho, vi um movimento no seu telhado. Ele tinha regressado, acompanhado de Tiro. Estavam ambos de pé e observavam o espectáculo que tinha lugar em baixo, no Fórum. Tiro agarrava a cara. Estava a chorar. Quantas horas felizes tinha ele passado naquele edifício, copiando os discursos do seu senhor na estenografia que ele próprio tinha inventado, dando ordens a um exército de funcionários, assistindo à construção da importante carreira para a qual tanto tinha contribuído! Os escravos são por vezes muito sentimentais!

 

Cícero não chorava. Tinha os braços cruzados, o maxilar tenso e olhava sombriamente para a orgia de destruição que tinha lugar diante de si.

 

Olha! disse Diana. Apontava para Cícero. Olha! Devia ser aquele o aspecto de Júpiter, a olhar para Tróia.

 

Conhecendo Cícero bem melhor do que a minha filha o conhecia, e certo de que não havia nele nada que fosse remotamente divino, eu preparava-me para corrigi-la, quando Belbo interveio.

 

Tens razão disse ele. Devia ser exactamente assim!

 

A certeza que ambos partilhavam obrigou-me a olhar de novo. Diana tinha razão. Tive de lho conceder. Tal como Cícero se mostrava naquele momento, olhando para a destruição do Senado pela turba de Clódio, assim devia ter-se mostrado o grande Júpiter quando cismava no Monte Ida, observando os loucos choques dos mortais, em baixo, na planície.

 

Empurradas pelo vento frio, as chamas foram subindo cada vez mais alto, até o Senado ser completamente engolido pelo fogo. A plebe dançava nos degraus de mármore, apupando e rindo, ao mesmo tempo que se esquivava à cascata de escórias e cinzas.

 

O incêndio começou a espalhar-se, primeiro para o complexo de escritórios senatoriais, a sul do edifício. A ameaça da multidão já fizera esvaziar a maior parte dos compartimentos mas, depois de pegado o incêndio, alguns funcionários saíram a correr, em pânico, levando consigo mãos-cheias de documentos. Alguns tropeçavam e caíam, outros ziguezagueavam loucamente, esquivando-se à turba que os tratava com sarcasmo, deixando cair os fardos. As tabuinhas de cera espalhavam-se pelo chão como dados lançados por jogadores. Os rolos de pergaminho desenrolavam-se e ondulavam como flâmulas na brisa.

 

Depois, o vento mudou. As chamas começaram a soprar para oeste do Senado, na direcção da Basílica Porciana. Tratava-se de um edifício com 130 anos de antiguidade, um dos grandes edifícios do Fórum e a primeira basílica jamais construída. As suas características distintivas a comprida nave, terminando numa ábside, com alas colunadas de cada um dos lados são actualmente imitadas em edifícios construídos por todo o império. Muitos dos banqueiros mais abastados do mundo tinham as suas sedes na Basílica Porciana. O fogo não demorou mais de uma hora a reduzir a sua venerável majestade a uma pilha fumegante de pedras.

 

Soube mais tarde que foram os banqueiros, desesperados por salvar o que restava dos seus registos, que finalmente organizaram um vasto contingente de libertos e escravos, para combaterem as chamas. Agindo por puro egoísmo, poderão ter salvo uma grande parte de Roma de se desvanecer em fumo. Os combatentes do fogo formavam longas e sinuosas filas, que atravessavam o Fórum e passavam pelo mercado do gado, indo dar às margens do Tibre, onde enchiam baldes de água, que passavam de mão em mão, eram deitados às chamas e regressavam vazios à água. De vez em quando, alguns arruaceiros destacavam-se do frenético cortejo fúnebre e iam perturbar os que apagavam o fogo, atirando-lhes pedras e cuspindo-lhes em cima. Desencadeavam-se rixas. Um cordão de guarda-costas, igualmente enviados pelos banqueiros, veio proteger os transportadores dos baldes.

 

Foi um dia de loucura. Roma parecia tomada pela febre, delirante. Depois de consignarem Clódio às chamas purificadoras, e com ele o Senado, os acompanhantes do cortejo prosseguiram a sua pouco convencional celebração fúnebre. Teriam planeado esta loucura previamente, ou iriam improvisando à medida que avançavam, inspirados pela dança das chamas e pelas vagas de fumo, revigorados pelo cheiro a queimado que pairava no ar? A meio da tarde, organizaram um banquete fúnebre. Colocaram mesas diante do Senado fumegante, cobriram-nas com panos pretos e dispuseram sobre elas os alimentos.

 

Enquanto uns prosseguiam o combate ao fogo em esforços frenéticos, os Clodianos bebiam e comiam em honra do seu chefe morto. Os pobres e os famintos da cidade vieram juntar-se a eles, a princípio timidamente, depois, vendo que eram bem recebidos, em júbilo. Chegavam continuamente grandes quantidades de alimentos urnas cheias de enchidos de sangue, potes de feijão preto, fatias de pão escuro, tudo adequadamente carregado, neste festim em honra de um morto, e regado com vinho tinto. Entretanto, os cidadãos de Roma, confusos, assustados e curiosos - aqueles que não dispunham da vantagem segura de um telhado no Palatino, de onde pudessem observar o que se estava a passar, calcorreavam a orla do Fórum, espreitando cautelosamente por trás das esquinas e por cima dos muros, olhando com expressões diversas, de ultraje, deleite, descrença e consternação.

 

Eu passei grande parte do dia no telhado de minha casa, a assistir. O mesmo fez Cícero. Desaparecia durante algum tempo, depois regressava com diversos visitantes, muitos deles senadores, que eu identificava pelo debrum roxo das togas. Eles contemplavam a vista, abanavam a cabeça desgostosos ou arfavam de horror, e voltavam a desaparecer, falando e gesticulando. Parecia haver uma espécie de reunião de dia inteiro em casa de Cícero.

 

Eco veio visitar-me e esteve comigo algum tempo. Disse-lhe que era uma loucura aventurar-se pelas ruas num dia como aquele. Ele mantivera-se afastado do Fórum e, embora tivesse ouvido o boato de que o Senado fora destruído, convencera-se de que se tratava apenas disso, de um boato. Levei-o até ao telhado para que pudesse apreciar o espectáculo. Pouco depois, ele regressou para junto de Menénia e dos gémeos.

 

Até Betesda ultrapassou a sua desconfiança do escadote e se aventurou a subir ao telhado para ver que confusão era aquela. Eu arreliei-a, dizendo-lhe que a contemplação de todos aqueles tumultos devia ter-lhe provocado saudades da sua cidade natal de Alexandria, já que os alexandrinos são famosos pelos seus tumultos. Ela não se riu da piada. Eu também não.

 

O festim e o combate ao fogo prolongaram-se no Fórum até muito depois de a noite ter caído. Para a tarde, Belbo trouxe-me uma taça de sopa quente e voltou a descer. Pouco depois, Diana veio ter comigo, trazendo uma taça de sopa a fumegar para si própria. Enquanto estávamos os dois sentados no telhado, o céu foi tomando tons cada vez mais escuros de azul, já próximos do preto. O lusco-fusco é, em todas as estações, a hora mais bela de Roma. As estrelas começaram a aparecer no firmamento, brilhantes como pedacinhos de gelo. Até as luzes que brilhavam no Fórum tinham uma espécie de beleza, agora que a escuridão escondia a fealdade da madeira queimada e da pedra escurecida. Os incêndios tinham-se apagado quase por completo, mas as trevas cada vez mais profundas revelavam ainda zonas fumegantes de chamas nas ruínas na Basílica Porciana e dos edifícios dos escritórios senatoriais.

 

Diana terminou a sopa. Pousou a taça e puxou uma manta para cima dos ombros.

 

Como foi que Clódio morreu, papá?

 

Por causa das feridas, suponho eu. Certamente não queres que volte a descrever-tas.

 

Não. Mas quer dizer, como foi que aquilo aconteceu?

 

Não sei bem. Julgo mesmo que ninguém sabe, à excepção daqueles que o mataram, claro. Parecia haver uma certa confusão relativamente ao assunto em casa dele, a noite passada. Clódia dizia que tinha havido uma escaramuça qualquer na Via Ápia, perto de um sítio chamado Bovilas, onde Clódio tinha uma villa. Clódio e alguns dos seus homens tiveram uma altercação com Milo e alguns dos seus homens. Clódio foi derrotado.

 

Mas qual foi o motivo da luta?

 

Há muito tempo que Clódio e Milo são inimigos, Diana.

 

Por quê?

 

Por que costumam dois homens ser inimigos? Porque querem a mesma coisa.

 

Uma mulher?

 

Às vezes. Ou um rapaz. Ou o amor de um pai. Ou uma herança, ou uma leira de terra. Neste caso, tanto Clódio como Milo queriam o poder.

 

E não podiam partilhá-lo?

 

Aparentemente, não. Por vezes, quando dois homens ambiciosos são inimigos um do outro, um deles tem de morrer para que o outro continue vivo. Pelo menos é esse o resultado habitual, mais cedo ou mais tarde. É a isso que os Romanos chamam política. Sorri sem alegria.

 

Tu detestas a política, não detestas, papá?

 

Gosto de dizer que sim.

 

Mas eu pensei...

 

Sou como aqueles homens que dizem que detestam o teatro, mas não perdem uma peça. Afirmam que são os amigos que os arrastam para os espectáculos. Apesar disso, são capazes de citar Terêncio linha a linha. Quer dizer que, secretamente, tu adoras a política.

 

Não! Mas ela povoa o ar que eu respiro, e eu não estou interessado em parar de respirar. Dito de outra maneira: a política é uma doença dos Romanos, e eu sou tão-pouco imune a ela como qualquer outra pessoa.

 

Ela franziu a testa.

 

O que queres dizer com isso?

 

Algumas doenças são peculiares a determinadas tribos ou nações. O teu irmão Meto diz que, na Gália, há uma tribo em que todas as pessoas nascem surdas de um dos ouvidos. Já ouviste a tua mãe dizer que há uma aldeia no Nilo em que as pessoas ficam com urticária quando vêem um gato. E eu li uma vez que os Espanhóis sofrem de uma inflamação nos dentes que apenas pode ser curada se beberem a sua própria urina.

 

Papá! Diana franziu o nariz.

 

Nem todas as doenças são declaradamente físicas. Os atenienses são viciados em arte; sem ela, sofrem de irritação e obstipação. Os alexandrinos vivem para o comércio; venderiam o suspiro de uma virgem se conseguissem arranjar maneira de o engarrafar. Ouvi dizer que os Partos sofrem de hipomania; há clãs inteiros que partem para a guerra para reclamarem a posse de um garanhão de qualidade.

 

Pois bem, a política é a doença romana. Todos os habitantes da cidade apanham a doença, mais cedo ou mais tarde, ultimamente até as mulheres. Ninguém recupera. Trata-se de uma doença insidiosa, com sintomas perversos. As diferentes pessoas sofrem de maneiras diferentes, e algumas não sofrem de todo; estropia um homem, mata outro, e faz com que um terceiro engorde e se torne mais forte.

 

Nesse caso, é uma coisa boa ou uma coisa má?

 

É uma coisa romana, Diana. Não te sei dizer se é boa ou má para Roma. Fez de nós os governantes do mundo. Mas começo a perguntar a mim próprio se não será ela o nosso fim. Baixei os olhos para o Fórum, já não no papel de Júpiter observando a planície do Ida, mas como Plutão observando os fossos ardentes do Hades.

 

Diana encostou-se para trás. O seu cabelo preto de azeviche formava uma almofada, onde ela apoiava a cabeça. Pôs-se a estudar o céu. Os seus olhos escuros reflectiam a luz fria das estrelas.

 

Gosto que fales comigo desta maneira, papá.

 

Gostas?

 

Era assim que costumavas falar com Meto, antes de ele partir para a vida militar.

 

Talvez.

 

Ela voltou-se de lado, apoiou a cabeça nas mãos e olhou para mim, muito séria.

 

Vai acontecer alguma coisa má, papá?

 

Presumo que as pessoas que rodeavam Clódio acham que já aconteceu uma coisa má.

 

A nós, quero eu dizer. Corremos perigo, papá?

 

Se eu puder evitar, não. Passei-lhe a mão pelo rosto e afaguei-lhe o cabelo.

 

Mas as coisas estão a piorar, não estão? É isso que tu e Eco costumam dizer um ao outro quando falam de política. E agora estão piores do que nunca Clódio morreu, o Senado foi incendiado. Está para acontecer alguma coisa horrível?

 

Está sempre para acontecer alguma coisa horrível a alguém, algures. A única alternativa é sermos amigos da Fortuna, se ela quiser ser nossa amiga, e fugirmos quando vemos um político aproximar-se de nós.

 

Falo a sério, papá. As coisas estão prestes, não sei, prestes a desmoronar-se? Para nós, para toda a gente?

 

O que podia eu responder-lhe? Lembrei-me subitamente de uma cena a que assistira no Fórum, quando era jovem, depois de Sula ter vencido a guerra civil: filas e filas de cabeças espetadas em estacas, os inimigos do ditador em homenagem diante do seu triunfo. Depois disso, as pessoas juraram que tal coisa não voltaria a acontecer. Isso fora há 30 anos.

 

Não posso adivinhar o futuro, Diana.

 

Mas conheces o passado, o suficiente para saberes o que se passava com Clódio e Milo. Explica-me. Se eu conseguisse compreender o que se está a passar, talvez não me sentisse tão preocupada.

 

Muito bem, Diana. Clódio e Milo: por onde começar? Bem, teremos de começar em César e Pompeu. Sabes quem são.

 

Claro que sei. Gaio Júlio César é o homem sob cujas ordens Meto serve, na Gália. É o maior general desde Alexandre, o Grande.

 

Eu sorri.

 

- E o que diz Meto. Não sei se Pompeu concordaria.

 

Pompeu expulsou os piratas dos mares e conquistou o Oriente. Eu acenei com a cabeça.

 

E deu a si próprio o cognome de Magno, o Grande, tal como Alexandre. Como te disse há bocado, por vezes, quando dois homens querem a mesma coisa...

 

- Ou seja, César e Pompeu querem ambos ser Alexandre, o Grande?

 

Sim, exactamente, já que pões as coisas dessa maneira. E não pode haver dois Alexandres ao mesmo tempo. O mundo não é suficientemente grande para isso.

 

Mas César e Pompeu não servem ambos o Senado e o povo de Roma?

 

Nominalmente, sim. É o Senado quem lhes dá as ordens e a licença para convocarem os seus exércitos, e entre eles conquistaram o mundo em nome do Senado. Mas, às vezes, os servos sobrepõem-se aos seus senhores. Tanto César como Pompeu se tornaram grandes de mais para o Senado. Até agora, a salvação da República tem sido o facto de os dois generais se controlarem um ao outro nenhum deles se pode tornar excessivamente poderoso, com receio de enervar o outro. E tem havido outros factores a pesar na balança.

 

Pompeu casou-se com a filha de César, não foi?

 

Sim: Júlia. Aparentemente, foi um genuíno casamento de amor. Essa ligação matrimonial fez abrandar as diferenças entre os dois homens. As relações familiares são tudo, especialmente para patrícios como César. E há outro factor: os dois rivais já foram três. Havia ainda Marco Crasso.

 

O homem que era proprietário de Meto quando ele era um rapazinho. Aquele que derrotou Espártaco e dominou a rebelião dos escravos.

 

Sim, mas apesar dessa vitória, Crasso nunca foi um grande general. Mas soube guindar-se à posição de homem mais rico do mundo. Crasso, César e Pompeu formaram aquilo a que se chamou o Triunvirato, e partilharam o poder entre si. A coisa pareceu funcionar durante algum tempo. Uma mesa com três pernas é sólida.

 

Mas uma mesa só com duas pernas...

 

Mais cedo ou mais tarde, acabará por cair. Na Primavera passada, Crasso foi morto na Partia, na extremidade oriental do mundo, numa tentativa de provar de uma vez por todas as suas capacidades militares conquistando algumas das terras que Alexandre também conquistara. Mas a cavalaria parta derrotou-o. Mataram-lhe o filho, juntamente com 40 000 soldados romanos. Cortaram a cabeça a Crasso e usaram-na como adereço de cena, para divertimento do rei. Fim de Crasso.

 

O que deixou o Triunvirato apenas com dois pés.

 

Mas, pelo menos, esses dois pés continuavam ligados pelo laço matrimonial existente entre Pompeu e César até Júlia morrer de parto. Agora, nada liga esses dois, e nada os impedirá de chegarem a vias de facto, mais cedo ou mais tarde. Roma sustém a respiração, como um ouriço-cacheiro observando duas águias a voar em círculo sobre a sua cabeça, preparadas para travarem combate e decidirem qual delas comerá o ouriço-cacheiro.

 

Acho que deves ser o primeiro homem que se lembra de comparar Roma a um ouriço-cacheiro, papá! Diana estudou as estrelas. Há alguma constelação do ouriço-cacheiro?

 

Não creio.

 

Muito bem, já me contaste a história de César e de Pompeu, o Grande. E quanto a Clódio e a Milo?

 

César e Pompeu são águias que voam nos céus, pairando sobre montanhas e mares. Aqui em baixo, em terreno sólido, têm sido Clódio e Milo a combater-se um ao outro pela própria Roma pela cidade, e não pelo império. Em vez de lutarem com exércitos, fazem-no com bandos. Em vez de disputarem serranias e mares, disputam as setes colinas e os mercados da beira-rio. Em vez de organizarem batalhas, encenam tumultos no Fórum. Em vez de fazerem campanha contra os Bárbaros, fazem campanha um contra o outro por diferentes cargos ameaçando e subornando os votantes, servindo de proxenetas aos seus eleitores, adiando eleições, recorrendo a todos os truques possíveis para levarem a melhor um sobre o outro.

 

Milo representa aqueles que se chamam a si próprios os Melhores, as famílias mais antigas, a tradição do dinheiro, os elementos mais conservadores do Senado. O género de pessoas a que Pompeu gosta de estar ligado, pelo que não é de admirar que, uma vez ou outra, Milo tenha funcionado mais ou menos como homem de mão de Pompeu, aqui em Roma.

 

Clódio é... era um radical, apesar do sangue patrício que lhe corria nas veias. Apelava à populaça. Quando estava no exército, organizou um levantamento de soldados comuns contra o comandante, que por acaso era o seu próprio cunhado. No ano em que os plebeus o elegeram tribuno, prometeu estabelecer uma distribuição gratuita de cereais, e cumpriu, anexando Chipre para financiar o esquema. Clódio estava sempre disponível para melhorar o destino dos soldados comuns de infantaria, dos camponeses e dos pobres da cidade e, em troca, eles estavam sempre disponíveis para votar nele quando era necessário. Umas vezes nas urnas, mais frequentemente com os punhos. A populaça adorava-o. E os Melhores odiavam-no.

 

De vez em quando, Clódio estava do mesmo lado que César, outro patrício com tendências populistas, por isso ajudavam-se mutuamente, em especial nos bastidores. As pessoas consideravam-nos aliados César e Clódio contra Pompeu e Milo. Os dois grandes homens moviam-se pelo mundo, e cada um deles estava aliado a um homem menor, com um bando à sua disposição aqui em Roma, disposto a lutar pelo controlo da cidade.

 

Como os heróis da Ilíada, disse Diana. Os deuses aliados aos mortais: um deus olhava por Heitor, outro deus estava do lado de Aquiles. E Heitor e Aquiles dispunham cada um de um exército.

 

Essas referências a Tróia, presumo que tenhas andado a ler Homero?

 

Tenho de treinar o Grego. A Mãe ajuda-me.

 

A tua mãe não sabe ler.

 

Pois não, mas fala Grego. Ajuda-me na pronúncia.

 

Estou a ver. Bem, uma pequena alusão literária fica sempre bem. Mas, se eu posso comparar Roma com um ouriço-cacheiro, acho que tu também podes comparar os nossos chefes de bandos locais com Heitor e Aquiles. De qualquer maneira, é adequado. Os deuses acabaram por deixar de beneficiar Heitor, não foi? E foi assim que a Casa de Príamo caiu, e com ela Tróia inteira. Os deuses também podem ser inconstantes, como qualquer aliado; no final, são tudo questões políticas. As alianças mudam como a areia debaixo dos nossos pés. A lealdade passa-nos por entre os dedos.

 

E um homem morre.

 

Sim. E depois, em geral, morrem mais homens.

 

E os edifícios ardem.

 

Observámos o Fórum em silêncio, durante algum tempo.

 

César e Pompeu, Clódio e Milo disse Diana. Mas afinal como é que chegámos a isto, papá? O Senado destruído pelas chamas...

 

Eu suspirei. Os jovens acham que tem de haver sempre uma explicação simples para as coisas.

 

Sabes como são organizadas as eleições, Diana, ou pelo menos como deviam ser: os cidadãos reúnem-se no Campo de Marte para votarem nos diversos magistrados que formam o governo. Há diversas votações, em dias separados, para os vários magistrados. A maioria das eleições tem lugar no Verão; o bom tempo ajuda às reuniões ao ar livre. Os votantes elegem dois cônsules, que são os homens com maior poder. Depois dos cônsules, vêm os pretores, e depois os edis e os questores, e por aí adiante, todos com diferentes poderes e deveres.

 

Termina o ano. No princípio de Janeiro, os magistrados eleitos assumem os seus cargos. Mantêm-nos durante um ano, e depois afastam-se ou vão para o governo das províncias estrangeiras. Assim tem sido, há centenas e centenas de anos, desde a queda dos reis e a fundação da República.

 

Ou, pelo menos, era assim que as coisas deviam funcionar. Mas Roma é hoje uma cidade sem magistrados. Estamos a meio de Janeiro e continuamos a não ter magistrados no governo da cidade.

 

E os tribunos? perguntou Diana.

 

Eu hesitei, fazendo tempo enquanto pensava na resposta. A constituição romana é tão complicada!

 

Tecnicamente, os tribunos não são magistrados. O tribunato foi estabelecido há muito tempo, numa altura em que apenas os patrícios podiam ser magistrados e os plebeus exigiam ter os seus próprios representantes. Hoje em dia, as magistraturas estão abertas a ambas as classes, mas os tribunos continuam a ter de ser plebeus. São dez por ano, escolhidos por uma assembleia especial, constituída exclusivamente por plebeus. Tendem a representar os interesses dos mais fracos, contra os mais fortes, dos pobres contra os ricos. O próprio Clódio foi tribuno foi nesse ano que conseguiu mandar Cícero para o exílio e estabelecer a distribuição gratuita de cereais.

 

Mas Clódio e a irmã são patrícios.

 

Ah, mas Clódio tratou disso; fez-se adoptar por um plebeu, praticamente com idade para ser seu filho, por forma a poder concorrer ao tribunato. Até os seus inimigos tiveram de admitir que foi engenhoso! É um cargo natural para um agitador de multidões. Atrevo-me a dizer que alguns dos nossos tribunos mais ambiciosos estão neste momento no Fórum, a arengar à multidão. De qualquer maneira, o ano passado foi constituída a habitual selecção de tribunos, sem perturbações. Mas o mesmo não se passou com os magistrados regulares.

 

O que foi que aconteceu?

 

O ano passado, Milo decidiu concorrer a cônsul. Clódio concorreu a pretor. Se ambos tivessem ganho, ter-se-iam cancelado mutuamente. Milo teria vetado os esquemas radicais de Clódio e Clódio teria impedido os esforços de Milo em benefício dos Melhores.

 

Ambos teriam sido um espinho cravado no flanco do outro disse Diana.

 

Exactamente. Por isso, ambos estavam decididos a impedir que o outro ganhasse. Mas ambos eram candidatos formidáveis, com fortes probabilidades de vencer. E assim, de cada vez que se marcavam eleições, surgia qualquer coisa que as adiava. Um augure lia os sinais no céu e dizia que os presságios eram maus e as eleições eram canceladas. Escolhia-se outro dia mas, na véspera das eleições, um membro do Senado invocava um ponto obscuro da Lei para mostrar que afinal não era permitido marcar eleições para esse dia. Grande discussão e finalmente, era escolhida uma nova data. Chegava o dia e os tumultos irrompiam no Campo de Marte. E assim sucessivamente. Nas eleições do ano passado, tinha havido irregularidades grosseiras votantes subornados ou intimidados, utilização de processos judiciais para impedir que os homens concorressem a cargos ou levassem os mandatos até ao fim, todo o género de manobras destinadas a enquinar e enviesar o processo. Mas nunca houve um ano como o último foi o caos, puro e simples. Uma república que nem sequer consegue organizar eleições é uma república que está muito doente.

 

Como que para pontuar esse sentimento, surgiu de repente uma nova bolsa de chamas fumegantes na Basílica Porciana. O fogo devia ter penetrado num armazém de óleo para lamparinas, incendiando-o. O abalo atingiu o Palatino momentos depois, como o som abafado de um tambor. À luz das chamas que se erguiam ao céu, vi dispersarem-se as figurinhas minúsculas dos assustados combatentes do fogo. Do lado dos Clodianos, ergueu-se ao ar um aplauso. A fila sinuosa de transportadores de baldes alterou o seu curso para dirigir a água à nova zona em chamas, que respondeu com fumos e línguas de fogo. Na escuridão que aumentava, a luta entre o fogo e aqueles que o combatiam começou a tomar formas fantásticas.

 

Por isso, não é de surpreender prossegui que Milo tenha morto Clódio. A única coisa menos surpreendente seria que Clódio tivesse morto Milo.

 

Diana acenou com a cabeça, pensativa.

 

Pouco depois, Betesda chamou-nos do jardim. Eram quase horas de jantar. Diana desceu para ir ajudar a mãe. Parecia satisfeita com as respostas que eu lhe tinha dado, embora eu estivesse perfeitamente consciente de que não tinha respondido às suas perguntas mais importantes.

 

Corremos perigo, papá?

 

Está para acontecer alguma coisa horrível?

 

A explosão de fogo que teve lugar no Fórum parecia ter provocado uma nova erupção de entusiasmo entre os Clodianos. Terminaram o banquete. Os oradores voltaram a subir à Rostra. A multidão entoou cânticos.

 

Iniciou-se uma estranha cerimónia. Os homens subiam em fila até às ruínas fumegantes do Senado, e voltavam a descer os degraus enegrecidos, erguendo ao alto tochas acesas. Passado algum tempo, percebi o que se estava a passar: estavam a acender as tochas no fogo purificador que tinha consumido os restos mortais de Clódio. Por piedade e devoção, levá-lo-iam para suas casas, para acenderem as suas próprias lareiras. Pelo menos foi o que eu pensei, até me aperceber de que a populaça estava a pensar em dar outra utilização ao fogo sagrado.

 

Dos degraus do Senado, os portadores de tochas dirigiram-se ao Palatino. Não era difícil seguir o seu progresso; moviam-se como rios ondulantes de chamas por entre os templos e através das praças pavimentadas. Regressavam pelos caminhos por onde tinham ido, subindo a rampa, outros desaparecendo da minha vista ao contornarem a orla da colina, tomando as ruas que os conduziriam ao flanco ocidental do Palatino. A luz das tochas que avançavam nessa direcção tinha um brilho tal, que eu conseguia ver as figuras de Cícero e Tiro recortadas em silhueta no telhado da casa de Cícero, de costas voltadas para mim e com as cabeças juntas.

 

Aqueles que subiram a Rampa voltaram para oeste, afastando-se de minha casa, e correndo em direcção à casa de Cícero. Sustive a respiração. Vi a silhueta de Cícero tornar-se rígida. Mas os portadores de tochas continuaram. Seguindo a rua e contornando a crista da colina, encontrar-se-iam com o resto da multidão, em determinado ponto do lado mais distante.

 

Quem tinha uma casa nessa zona?

 

Milo.

 

Com o mesmo fogo purificador que tinha transformado em cinzas os restos sangrentos de Clódio, tencionava a turba incendiar a casa de Milo, e Milo com ela, se se tivesse atrevido a regressar à cidade.

 

Diana chamou-me do jardim.

 

Papá! A mãe está a dizer que são horas de jantar.

 

Sim, Diana. Dá-me um momento.

 

A casa de Milo era longe, se medida pela distância a que se lança uma pedra; ou nem tanto, se medida pela velocidade das chamas que cavalgam a brisa fria, saltando de telhado em telhado. Se a multidão pegasse fogo à casa de Milo, o incêndio propagar-se-ia sem grandes dificuldades por todo o Palatino...

 

Talvez a decisão mais segura fosse levar a família para casa de Eco, no Esquilino. Mas, nesse caso, o que aconteceria se a minha casa ardesse? Quem combateria as chamas? E que razões tinha eu para pensar que poderíamos atravessar a Subura e chegar a casa de Eco em segurança numa noite como esta, com semelhante ralé à solta?

 

Papá, vais descer ou não? Estás a ver alguma coisa?

 

Alguns retardatários subiam agora a Rampa. As suas tochas estalavam no ar como flâmulas agitadas pelo vento, quando eles deram a curva apertada que os levava a casa de Cícero e mais para diante.

 

Vou já disse eu. Olhei pela última vez na direcção da casa de Milo. Pareceu-me ouvir sons de conflito, gritos, ruídos metálicos, mas os ecos eram confusos e distantes.

 

Papá?

 

Voltei-me e poisei o pé no degrau de cima do escadote. Foi uma refeição sombria. A comida não me soube a nada. Mais tarde, depois de Diana e Betesda se terem retirado para os quartos, voltei a subir ao telhado. Olhei na direcção da casa de Milo, mas não vi sinal de chamas. Ainda assim, quando decidi descer, chamei Belbo para me substituir. Fizemos turnos durante a noite, um a dormitar irregularmente debaixo de uma pilha de mantas num canapé instalado no jardim, o outro no telhado, vigiando o céu à procura de algum brilho cor de laranja e revelador. Mas, quando finalmente surgiu, o brilho vinha da direcção oposta. Era o Sol que nascia, e a minha casa continuava intacta.

 

Subi ao telhado para contemplar o panorama pela última vez. No ar frio e enublado da manhã, o Fórum parecia uma pintura manchada. Mal consegui distinguir os pormenores. Mas, quando inspirei profundamente, chegou até mim o odor da madeira ardida e da pedra queimada, o cheiro daquela que fora a Casa do Senado, transformada no crematório do derrotado campeão da populaça.

 

Expulsos com setas! disse Eco, esticando os braços por cima da cabeça e bocejando; dormira tão pouco como eu. O nevoeiro tinha levantado. O Sol brilhava no jardim. Estávamos sentados em cadeiras dobráveis diante da estátua de Minerva, a deixar-nos embeber pelo ténue calor do meio-dia.

 

Pelo menos é o que se diz nas ruas continuou. Os Clodianos não previam uma tão grande resistência. Calculo que estavam à espera de encontrar a casa de Milo mais ou menos deserta. Presumiram que podiam entrar por ali dentro, matar uns quantos escravos, pilhar aquilo, e depois pegar fogo à casa. Em vez disso, tinham à sua espera um destacamento de archeiros, postados no telhado. Aparentemente, eram atiradores experimentados. A batalha não durou muito. Houve algumas baixas, e os Clodianos voltaram costas e fugiram.

 

De qualquer modo, por essa altura já tinham feito o suficiente incendiaram o Senado, encheram-se até à boca, ouviram uma série de discursos. Seria de esperar que estivessem prontos a recolher.

 

Seria de esperar, realmente. Mas, segundo se diz, depois de ter sido expulsa de casa de Milo, a plebe abandonou o Palatino, correu pela Subura, passou os muros da cidade e foi até à necrópole.

 

À cidade dos mortos? À noite? Pensei que tivessem tanto medo dos lémures como das setas.

 

Não se aproximaram dos sepulcros nem dos fossos de enterramento. Foram à mata sagrada de Libitina.

 

A deusa dos mortos. Eco acenou com a cabeça.

 

Irromperam pelo templo dentro.

 

A meio da noite? Mas por quê? Certamente que o dever de registar Clódio entre os mortos compete à família, e não à plebe. E não é provável que estivessem interessados em arrendar objectos funerários já tinham cremado o corpo de Clódio, sem se importarem muito com pormenores religiosos.

 

Não teve nada a ver com isso, papá. Por qualquer razão, é no templo de Libitina que se guardam os fasces quando não há cônsules. Sabes, aqueles feixes de paus com um machado saliente, que os cônsules usam nas cerimónias e nas procissões.

 

Os objectos distintivos do seu cargo.

 

- Exactamente. Na ausência dos cônsules, os fasces têm de ficar arrumados em algum sítio, e parece que o local oficial é o Templo de Libitina. Por isso, a populaça irrompeu pelo templo, apoderou-se dos fasces, e regressou à cidade, para ir levá-los aos candidatos a cônsul que concorrem com Milo.

 

Públio Hipseu e Quinto Cipião.

 

Sim. Ambos apoiados por Clódio, evidentemente. A plebe vai direita a casa de Cipião e grita-lhe que saia à rua e venha tomar os fasces.

 

Esquecendo por completo as eleições? Tornando-se cônsul por nomeação da multidão.

 

Devia ser essa a ideia. Mas Cipião recusou-se a mostrar o rosto.

 

Provavelmente morto de medo, como qualquer habitante de Roma, a noite passada.

 

Depois aconteceu a mesma coisa em casa de Hipseu. Gritos de aclamação, mas o candidato manteve a porta fechada. Depois, alguém teve a ideia de ir oferecer os fasces a Pompeu.

 

A Pompeu! Mas ele nem sequer é elegível. Continua a ser pró-cônsul, encarregado do governo de Espanha. Comanda um exército; legalmente, nem sequer pode entrar dentro dos muros da cidade. É por isso que tem estado a viver na villa da Colina Pinciana.

 

A populaça não estava disposta a deixar-se deter por esse género de pormenores. Saíram pela Porta Fontinal e subiram a Via Flamínia em direcção à villa de Pompeu. Acenaram com as tochas e ergueram os fasces. Alguns apelavam a Pompeu para que se tornasse cônsul. Outros pediam-lhe que aceitasse ser ditador.

 

Eu abanei a cabeça.

 

Em nome do Hades, que ideia será a deles? Provavelmente, a maioria nem sequer era nascida da última vez que Roma teve um ditador.

 

Há muita gente nas ruas que acha que chegou o momento de voltarmos a ter um ditador, para pôr fim a todo este caos.

 

São loucos. Uma ditadura só contribuiria para piorar as coisas. Seja como for, não acredito que a ideia fosse dos chefes da populaça Clodiana. Clódio e Pompeu detestavam-se, e Pompeu nunca foi adepto das causas populistas.

 

Mas é popular entre as massas. O poderoso general, conquistador do Oriente. O Grande, Pompeu Magno.

 

Eu abanei a cabeça.

 

Mesmo assim, não me parece adequado. Não é provável que as pessoas que levaram a turba a pegar fogo ao Senado estejam interessados em que um reaccionário como Pompeu seja seu ditador. Talvez não fosse a mesma turba. Ou talvez ela tenha sido tomada, a certa altura, por infiltrados do campo de Pompeu.

 

Eco ergueu uma sobrancelha.

 

Achas então que o incidente poderá ter sido encenado pelo próprio Pompeu? Achas que ele quer ser ditador?

 

Parece-me mais provável que ele quisesse ter a oportunidade de recusar publicamente o pedido. Há muitos senadores, principalmente amigos de César, que acham que Pompeu poderá estar a conspirar para dar um golpe de Estado. Que melhor maneira de os sossegar do que recusar uma turba de cidadãos que fossem oferecer-lhe os fasces?

 

Ele não os recusou propriamente. À semelhança de Cipião e Hipseu, também não se mostrou.

 

Movi a cadeira um pouco, para acompanhar o Sol. À sombra, o ar estava frio.

 

E notícias de Milo?

 

Há quem pense que ele regressou discretamente à cidade a noite passada, e está escondido em casa. Dizem que foi por isso que, ontem à noite, os archeiros lá estavam para expulsar os clodianos, porque faziam parte da guarda pessoal de Milo. Mas também é possível que ele os tenha deixado a guardar a casa na sua ausência, especialmente se tinha planeado matar Clódio. Sabia que a turba havia de reagir com violência, por isso deixou a casa fortificada. Outros dizem que ele partiu para um exílio voluntário, em Massília ou noutro sítio qualquer.

 

É possível disse eu. Não é previsível que venha a ser eleito cônsul, depois de tudo o que aconteceu, se e quando o Estado conseguir finalmente organizar eleições. E, se não conseguir ser eleito cônsul, Milo está acabado. Gastou uma fortuna a organizar espectáculos e jogos, tentando impressionar os eleitores. Não dispõe dos recursos de César e Pompeu, ou mesmo de Clódio. Apostou tudo na corrida a cônsul, e agora perdeu subitamente qualquer possibilidade de vencer. O exílio poderá ter-lhe parecido a única solução honrosa.

 

Subitamente, ouvimos uma voz proveniente da direcção da estátua de Minerva.

 

Mas então, o que teria levado Milo a matar Clódio, se isso significava arruinar o seu futuro?

 

Olhei na direcção da estátua. A deusa virgem erguia-se diante de nós, pintada com cores tão vivas, que quase parecia respirar. Numa das mãos, segurava uma lança na vertical, e na outra um escudo. Tinha um mocho encarrapitado no ombro e uma serpente enrolada aos pés. Sob o sol do meio-dia, os seus olhos eram sombreados pela viseira do capacete emplumado. Por um instante, tive a impressão de que fora Minerva quem falara. Depois, Diana surgiu de trás da sombra do pórtico, e encostou-se ao pedestal, apoiando uma mão na serpente esculpida.

 

Boa pergunta, Diana disse eu. Por que havia Milo de assassinar Clódio, se sabia que provocaria tão grande fúria? Por que havia de matar o seu inimigo, se isso implicava matar também as suas hipóteses de ser eleito?

 

Talvez não tenha previsto esta reacção disse Eco. Ou talvez tenha morto Clódio por acaso. Ou em autodefesa.

 

Importam-se que me junte a vocês? disse Diana. Sem esperar pela resposta, puxou uma pequena cadeira dobrável e sentou-se. Estremeceu, apesar da capa. Está frio, aqui fora!

 

Deixa-te embeber pelo sol disse eu.

 

E ainda corre um terceiro boato disse Eco. Há quem diga que Milo conspira para organizar uma revolução, e que o assassínio de Clódio foi apenas o primeiro golpe. Dizem que ele tem armazenado armas por toda a cidade devia haver um arsenal de setas em sua casa ontem à noite, para impedir a aproximação daquela multidão e que neste momento percorre as zonas rurais de um lado para o outro, reunindo tropas para marchar sobre Roma.

 

Quer apresentar-se como um novo Catilina? Eu ergui uma sobrancelha.

 

Só que, desta vez, os revolucionários teriam do seu lado homens como Cícero, em vez de os terem contra si.

 

Cícero será o último homem a apoiar qualquer coisa que se assemelhe, ainda que remotamente, a uma revolução, mesmo que seja dirigida pelo seu amigo Milo. Mas quem sabe, hoje em dia? Acho que tudo é possível.

 

Oh, e há outra novidade, papá. Isto deve ter acontecido ontem, enquanto a populaça fazia aqueles tumultos no Fórum. Uma comissão de patrícios do Senado reuniu-se algures aqui no Palatino. Nomearam finalmente um inter-rei.

 

Diana pareceu confusa.

 

Vejamos se consigo explicar adequadamente do que se trata, Eco disse eu. Numa situação em que não há cônsules digamos, porque ambos morreram num campo de batalha...

 

Ou porque passou um ano inteiro sem haver eleições acrescentou Eco.

 

Eu acenei com a cabeça.

 

Nesse caso, não havendo magistrados à cabeça do Estado, o Senado nomeia um magistrado temporário chamado inter-rei, para dirigir o governo e organizar novas eleições. Cada inter-rei detém o cargo apenas durante cinco dias, e depois é nomeado um novo; dessa maneira, não ficam excessivamente agarrados ao poder. E assim sucessivamente, até um deles conseguir fazer eleger os novos cônsules. O Senado devia ter nomeado um inter-rei no começo do ano, uma vez que não havia novos cônsules quando os antigos terminaram o seu prazo no cargo, mas os amigos de Hipseu e de Cipião conseguiram adiar a nomeação, considerando que Milo estava na mó de cima e querendo por isso adiar as eleições um pouco mais. Sem inter-rei, não há eleições. Bem, talvez agora marquem finalmente as eleições e se ponha fim a esta conversa absurda de resolver a crise com um ditador.

 

Pelo menos durante os próximos cinco dias, isso não acontecerá disse Eco. Esqueceste-te de um pormenor técnico, papá: o primeiro inter-rei não pode organizar eleições. Elas só podem ser organizadas por um inter-rei posterior.

 

Não podem ser organizadas pelo primeiro inter-rei? disse eu.

 

Durante os primeiros cinco dias, ele limita-se a supervisionar uma espécie de período de acalmia.

 

Diana acenou com a cabeça.

 

A Casa do Senado deve precisar pelo menos desse tempo para arrefecer.

 

O primeiro inter-rei não tinha autoridade para convocar eleições, como Eco salientara inteligentemente. Mas os apoiantes de Cipião e de Hipseu, apercebendo-se de que a candidatura de Milo dera o que tinha a dar, decidiram que chegara a hora de organizar as eleições. No próprio momento em que Eco e eu conversávamos, cercavam eles a casa de Marco Lépido, o recém-nomeado inter-rei, no Palatino. A mulher de Lépido, uma senhora de carácter irrepreensível chamada Cornélia, estava ocupada a instalar no átrio os teares cerimoniais, respeitando um antigo costume relativo às mulheres dos inter-reis. (Não se conhece a origem deste costume; talvez esteja relacionado com o papel do inter-rei na tecedura dos fios do futuro da República.)

 

Quando Lépido apareceu à porta de sua casa, os chefes da multidão exigiram que ele convocasse imediatamente as eleições. Ele explicou-lhes que lhe era impossível fazê-lo. Eles repetiram as suas exigências. Lépido, que é um patrício muito convencional, explicou-lhes exactamente o que podiam fazer com aquela ideia radical, em termos que lhes fizeram arder as orelhas. Depois, fechou-lhes a porta na cara.

 

A multidão não irrompeu num tumulto, mas apertou o cordão à volta da casa, impedindo quem quer que fosse de sair ou entrar. Fizeram fogueiras na rua, para se aquecerem. Para se divertirem, passaram à volta odres de vinho, e entoaram os seus cantos eleitorais, muitos dos quais eram poemas obscenos acerca de Fausta, a mulher de Milo, uma mulher notória pela sua infidelidade. Quando o vinho tornou excessivamente complicada a recitação das convolutas letras, recorreram a um canto mais simples: Eleições já! Eleições já!

 

O inter-rei, que era ostensivamente a cabeça do Estado romano (pelo menos durante os próximos dias), fora feito prisioneiro na sua própria casa.

 

Evidentemente, todos os homens são prisioneiros em sua casa quando as ruas são inseguras e as atrocidades têm lugar à luz do dia. O que pode um homem fazer? Fechar-se à chave como um surdo-mudo cobarde? Ou avançar para a luta, procurando maneira de pôr fim à violência que o rodeia?

 

Eu já assistira a tempos piores em Roma à guerra civil que conduzira à ditadura de Sula, por exemplo, mas nessa altura era jovem. Vivia essas crises seguindo o instinto dos jovens, que preferem a aventura à sobrevivência. Olhando agora para trás, sinto-me chocado com a pouca importância que parecia conferir aos riscos que corria. Não era especialmente corajoso ou louco, era simplesmente novo.

 

Agora, deixara de ser novo. Era bastante mais consciente e mais respeitador da morte e da dor, que vira e experienciara em razoável quantidade nos anos intermédios. A cada ano que passava, o tecido da existência parecia-me sempre mais frágil. A vida parecia-me mais preciosa. Estava menos disposto a correr riscos, com a minha própria vida ou com a vida dos outros.

 

Mas vivia em tempos que exigiam que corresse riscos. A ideia de me fechar em casa e recusar toda e qualquer responsabilidade não me proporcionava qualquer satisfação. À semelhança do que aconteceu com muitos outros habitantes de Roma naquele Inverno, o tumulto nas ruas provocou um tumulto dentro do meu coração.

 

A República estava muito doente, talvez estivesse mesmo doente de morte. Os seus violentos espasmos constituíam um espectáculo que eu tinha dificuldade em contemplar, mas percebi que era ainda mais difícil desviar os olhos.

 

Alguns anos antes, tentara afastar-me completamente da arena da política. Farto de traições e falsas promessas, da vaidade pomposa dos políticos e credulidade ingénua dos seus apoiantes, da arrogância vingativa dos vencedores e do sórdido rebaixamento dos vencidos, declarei que não aguentava mais. Mudei-me para uma quinta na Etrúria, decidido a voltar as costas a Roma.

 

A tentativa não me trouxe qualquer vantagem. Envolvi-me em intrigas políticas mais profundamente do que teria alguma vez imaginado. Parecia um navegador aflito, que se esforça desesperadamente por evitar um remoinho, acabando por perceber que, ao fazê-lo, se meteu por um caminho que o leva directamente ao vórtice. O episódio de Catilina e do seu enigma fizeram-me reconhecer a natureza inexorável do Destino.

 

Roma é o meu destino. E o destino de Roma estava, uma vez mais, nas mãos dos seus políticos.

 

Por isso, retrospectivamente, justifico perante mim próprio a reacção que tive quando, nesse mesmo dia, depois de Eco ter regressado a casa, recebi uma visita. Tratava-se de um conhecido de muito longa data.

 

De tão longa data que, ao olhar discretamente pelo olho de segurança da porta da frente, Belbo não o reconheceu. Eu tinha dito a Belbo que não deixasse entrar ninguém que não conhecesse de vista, por isso ele foi chamar-me ao escritório para que fosse eu a decidir.

 

Eu vi um homem que já ultrapassara a meia-idade, de altura mediana, um rosto belo e aberto, e um toque de cinzento nas têmporas. Tinha os lábios bem moldados, o nariz direito e o cabelo encaracolado típico dos Gregos. Apresentava-se com uma auto-importância quase arrogante, como se fosse um filósofo ou um erudito. O jovem escravo que eu conhecera há quase 30 anos transformara-se num homem de aspecto distinto. Há muito tempo que eu não o via tão ao pé. Normalmente, quando o via, era à distância, como acontecera na noite anterior, em que ele aproximava a cabeça da de Cícero, no alto do telhado da casa deste. Era quase a última pessoa que eu estava à espera de que viesse visitar-me.

 

Fechei o olho de segurança e fiz sinal a Belbo para abrir a porta.

 

Tiro! exclamei.

 

Gordiano. Inclinou a cabeça e fez um vago sorriso. Atrás dele, estava parada uma companhia de guarda-costas. Contei pelo menos dez homens, o que me pareceu um pouco excessivo para quem percorrera apenas a curta distância que nos separava da casa de Cícero. Por outro lado, quem quer que saísse da casa de Cícero era um alvo provável da turba Clodiana. Com um gesto de mão, ele indicou-lhes que se deixassem ficar lá fora. Belbo fechou a porta atrás dele.

 

Levei-o para o meu escritório e indiquei-lhe que se sentasse na cadeira colocada ao lado da braseira acesa. Mas ele preferiu dar uma lenta volta à sala, examinando os rolos de pergaminho colocados nos respectivos orifícios e a pintura decorativa de um jardim numa das paredes.

 

Vejo que prosperaste, Gordiano.

 

Em alguns aspectos.

 

Lembro-me da tua antiga casa, no Esquilino. Era um sítio enorme e desconexo, com o jardim abandonado.

 

Pertence agora ao meu filho Eco. A mulher dele recuperou o jardim, que está imaculado.

 

O tempo passa tão depressa! Quem diria que alguma vez terias um filho com idade suficiente para ter a sua própria casa?

 

E que já fez de mim avô.

 

É o que se diz.

 

Diz-se?

 

Os cantos da sua boca vacilaram num sorriso.

 

Continuas a ser mencionado, de tempos a tempos, em casa de Cícero, Gordiano.

 

Mas não com demasiada apreciação, calculo.

 

Oh, talvez te surpreendesses.

 

Certamente que ficaria surpreendido se Cícero tivesse coisas boas a dizer a meu respeito. Seria de esperar que o julgamento de Marco Célio tivesse sido a última gota.

 

Tiro encolheu os ombros.

 

Cícero não tem qualquer má vontade contra ti. Não é um homem que guarde rancores.

 

Ah!

 

Tiro inclinou a cabeça pensativamente.

 

É um facto que Cícero pode ser um inimigo formidável, daqueles que se tornam seus inimigos pelo seu rancor e as suas fraudes, ou pelo perigo que constituem para a República. Mas isso nunca foi o teu caso, Gordiano. Cícero compreende que tu és um homem complicado, que ele nem sempre tem facilidade em compreender, mas que no fundo és um homem honesto e honrado. Honrado. Honesto repetiu, acentuando as palavras. Tal como o próprio Cícero. Se os dois estiveram ocasionalmente em conflito, foi porque vêem as coisas de maneira diferente. Não se pode esperar que os homens honrados estejam sempre de acordo.

 

Eu suspirei. Tiro continuava obviamente tão dedicado a Cícero como sempre fora. Seria inútil apontar-lhe os defeitos de carácter do seu senhor o seu comportamento totalmente desprovido de escrúpulos como advogado, a sua pomposa auto-importância, o seu total desprezo pela verdade (a não ser que, por acaso, servisse os seus objectivos), a longa cadeia de vítimas que ele tinha destruído para defender os privilégios e o poder dos Melhores.

 

Tens a certeza de que não te queres sentar, Tiro? Belbo pode ficar com a tua capa; parece-me bastante pesada, mesmo para este tempo.

 

Vou sentar-me, sim. Ultimamente, canso-me com muita facilidade. E sim, acho que posso dispensar a capa. A sala parece-me estar suficientemente quente. Tenho de ter cuidado para não apanhar uma constipação...

 

Nem ouvi bem o que ele estava a dizer porque, quando afastou a pesada capa dos ombros, vi o que ele trazia vestido por baixo e não era uma túnica de escravo, mas uma toga. Tiro estava vestido como um cidadão! Olhei para a sua mão e vi que, evidentemente, ele usava o anel de ferro dos cidadãos, tal como eu.

 

Mas, Tiro, quando foi que isto aconteceu?

 

O quê? Ele detectou a direcção do meu olhar e sorriu. Agitou os dedos, como se ainda não estivesse bem habituado ao anel. Oh, isto. Sim, foi uma mudança de estatuto. Pouco mais do que uma formalidade, em muitos aspectos. Faço o mesmo trabalho, sirvo o mesmo homem. Agora, tenho mais facilidade em ter propriedades, evidentemente...

 

Tiro, deixaste de ser escravo! És livre!

 

Pois foi. Parecia quase embaraçado.

 

Bem, Cícero demorou o seu tempo. Tu e eu falámos dessa possibilidade quando nos conhecemos. Lembras-te?

 

Nem por isso. Corou ligeiramente, e eu apercebi-me como estivera pálido, anteriormente.

 

O que foi que acabaste de dizer que não podes apanhar uma constipação e que te cansas facilmente? Passa-se alguma coisa, Tiro?

 

Ele abanou a cabeça.

 

Claro que não. Já não.

 

Eu olhei para ele cepticamente.

 

Estive doente admitiu ele, mas isso foi no ano passado. Estive muito doente, para ser franco. A minha saúde tem sido... um tanto inconstante... nos últimos anos. Sorriu. Suponho que essa foi uma das razões por que Cícero me libertou, o ano passado; nessa altura, parecia um caso de agora ou nunca. Mas já estou muito melhor. Podia ter recuperado mais depressa, mas pelo menos já não ando de bengala. Os médicos dizem que não há qualquer razão para não recuperar por completo as minhas forças e voltar a ser tão saudável como antigamente.

 

Olhei para ele com novos olhos. Aquilo que me parecera arrogância devia-se apenas à magreza do seu rosto. Fiz mentalmente as contas e calculei que ele devia andar pelos 50 anos. Subitamente, parecia ter a idade que tinha; havia entre os abundantes caracóis mais cabelos cinzentos do que me parecera, e tinha uma pequena zona de calvície no alto da cabeça. Nos seus olhos, brilhava ainda uma espécie de entusiasmo infantil, mas a luz da braseira captava igualmente o brilho assustado de um homem que conhecera uma doença grave. No entanto, ele também me parecia um homem à-vontade consigo próprio e com o lugar que ocupava no mundo; as suas maneiras francas e simples exsudavam um ar de sofisticação e autocontentamento. E por que não? O jovem escravo que me tinha vindo bater à porta há já tantos anos, na qualidade de mensageiro de um senhor obscuro, era actualmente um cidadão livre e a inestimável mão direita do mais famoso orador vivo. Tiro conhecera grandes homens e viajara pelo mundo ao lado de Cícero. Ajudara a gerir o governo quando Cícero era cônsul. Era famoso por direito próprio, já que tinha inventado uma forma de estenografia através da qual um copista podia recolher um discurso de forma literal, à velocidade a que ele era pronunciado; todos os funcionários do Senado tinham agora de aprender o método tironiano.

 

Porque vieste visitar-me, Tiro?

 

Vim em nome de Cícero, evidentemente.

 

Ele podia ter vindo pessoalmente.

 

Cícero evita sair de casa disse ele, insistindo muito ligeiramente nas últimas palavras.

 

Eu também. O que pode ele querer de mim?

 

Ele próprio to dirá.

 

Não pode passar-lhe pela cabeça que eu concordarei em ajudá-lo.

 

Mas tu não sabes o que ele pretende.

 

Isso não importa. Há anos que lhe paguei o favor que lhe devia por me ter ajudado a ficar com a propriedade etrusca, e com juros. Desde então deixa-me ser perfeitamente honesto contigo, Tiro, desde então, a cada ano que passa, Cícero foi caindo sempre mais baixo na minha estima, não que eu julgue que a minha estima tem qualquer significado para Cícero. Mas eu tenho os meus padrões, por muito humildes que eles possam ser. Não tenciono sair a correr só porque Cícero está convencido que pode utilizar-me uma vez mais.

 

Tiro manteve uma expressão impassível, o que me desapontou. Acho que esperava que ele estremecesse, ou suspirasse, ou abanasse a cabeça. Mas ele limitou-se a replicar, numa voz desapaixonada:

 

Estás enganado, evidentemente, na opinião que tens de Cícero. Julga-lo mal. Muitos homens o fazem. Isso sempre me confundiu. Mas eu trabalho com ele todos os dias. Compreendo todos os matizes do seu pensamento. Os outros não têm esse privilégio. Olhou para mim firmemente. Vamos, então?

 

Por pouco não me ri. Tiro, ouviste o que eu disse? A sua expressão tornou-se mais severa.

 

Vi-te ontem, Gordiano, a observar os incêndios do Fórum do telhado de tua casa. O que pensaste de tudo aquilo? Ficaste aterrado, naturalmente. Mas nem toda a gente ficou aterrada. Aqueles que comandaram a destruição estavam deliciados. Diz o que entenderes sobre Cícero mas, quando se trata de determinadas questões fundamentais, tu e ele estão do mesmo lado. Sabias que, ontem à noite, tentaram incendiar a casa de Milo?

 

Ouvi dizer.

 

Esse incêndio podia ter-se espalhado por todo o Palatino. Esta sala onde estamos sentados podia ser, neste momento, uma pilha de pedras fumegantes. Tiveste essa noção, não tiveste?

 

Olhei para ele por momentos, e suspirei.

 

Tu já não és mesmo um escravo, pois não, Tiro? Falas como um homem livre. Ameaças com as palavras como um verdadeiro Romano.

 

O seu rosto tornou-se rígido. Estava a tentar não sorrir.

 

Eu sou um Romano, em todos os sentidos da palavra. Tanto como tu, Gordiano.

 

Tanto como Cícero?

 

Ele riu-se.

 

Talvez não.

 

O que quer ele de mim?

 

Há um incêndio, Gordiano. Não, não é o incêndio do Fórum, é um incêndio maior, que ameaça consumir tudo aquilo por que vale a pena lutar. Cícero quer que tu ajudes a passar os baldes de água, por assim dizer. Inclinou-se na minha direcção com uma expressão séria. Há homens que provocam incêndios. Há outros homens que os apagam. Acho que ambos sabemos a qual dos dois tipos tu pertences. Importa realmente se gostas ou não do cidadão que está ao teu lado na fila de transmissão dos baldes? O objectivo é apagar o incêndio, Gordiano. Vem, deixa que Cícero fale contigo.

 

Eu deixei-me estar sentado por momentos, observando as chamas da braseira. Fiz um sinal de mão a Belbo, que ficara de pé, silenciosamente, no canto do escritório.

 

Vai buscar a capa de Tiro disse eu. As chamas dançavam e agitavam-se. E traz também uma para mim. Diz a Betesda que vou sair um bocado.

 

Tiro sorriu.

 

O passeio foi breve. O ar era estimulante. Os guarda-costas talvez fossem desnecessários; não nos cruzámos com uma única pessoa na rua. Todas as casas por que passámos estavam bem fechadas.

 

Eu nunca tinha estado dentro da casa reconstruída de Cícero. Alguns anos antes, quando Clódio tinha conseguido que Cícero fosse exilado de Roma, a turba Clodiana celebrara o seu triunfo pegando fogo à casa de Cícero; eu tinha observado o incêndio da varanda de minha casa. Quando o Senado voltou a chamar Cícero do exílio, 16 meses mais tarde, ele reconstruiu-a. Clódio perseguiu-o passo-a-passo, bloqueando-lhe o progresso por meio de manobras legais. A propriedade tinha sido confiscada pelo Estado e consagrada a uma utilização religiosa, afirmou. Cícero retorquiu que a confiscação fora ilegal e que os seus direitos como cidadão romano tinham sido grosseiramente violados. Foi uma das trocas de palavras mais vivas e desagradáveis que tiveram lugar entre ambos.

 

Cícero ganhou o caso. A casa foi reconstruída. Bem, pensei quando chegámos, Clódio não mais voltaria a ameaçá-la.

 

Tiro conduziu-me através da entrada, em direcção ao átrio. O compartimento estava gelado. Tinham-se formado nuvens altas, que bloqueavam a passagem do Sol.

 

Espera aqui um momento disse-me Tiro, e retirou-se pela minha esquerda.

 

Passada apenas uma breve pausa, ouvi vozes provenientes do corredor situado à minha direita.

 

A primeira voz era abafada e indistinta, mas reconheci imediatamente a segunda. Era Cícero.

 

Bem dizia ele, e se dissermos às pessoas que foi Clódio quem encenou a emboscada, e não o contrário?

 

Também reconheci a terceira voz. Era a voz do belo e fogoso protegido de Cícero, Marco Célio.

 

Bolas de Júpiter! Ninguém acreditaria nisso, dadas as circunstâncias. Talvez seja melhor dizermos que...

 

Os três homens entraram no átrio. Célio viu-me e calou-se.

 

Nesse momento, Tiro regressou da direcção oposta. Apercebeu-se da situação, e mostrou-se pesaroso. Cícero lançou-lhe um olhar breve e cortante, de censura por ter deixado uma visita sozinha. Teria eu ouvido alguma coisa que não se destinava aos meus ouvidos?

 

Gordiano concordou em vir visitar-te disse Tiro rapidamente. Fui ao escritório anunciá-lo, mas...

 

Mas eu não estava lá disse Cícero. A sua rica entoação oratória encheu o átrio. Um sorriso untuoso iluminou-lhe o rosto carnudo.

 

Costumo pensar melhor a andar. E, quanto mais expansivos são os pensamentos, maior é o circuito o escritório não era suficientemente grande! Andámos quilómetro e meio desde que tu saíste, Tiro, dando voltas à casa. Bem, Gordiano... Avançou para mim. É uma honra voltar a receber-te em minha casa. Conheces Marco Célio, evidentemente.

 

Conhecia, de facto. Célio cruzou os braços e lançou-me um olhar sardónico. Era uma criatura inquieta, e sempre assim fora. Começara por ser aluno de Cícero. Depois aliara-se, ou aparentara fazê-lo, ao arqui-inimigo de Cícero, Catilina; foi nessa altura que o conheci. Acabara por derivar para o campo de Clódio e para os braços alguns chamavam-lhe as garras de Clódia. Ao distanciar-se deles tivera algumas dificuldades, um julgamento por assassínio no qual eu ajudara a acusação a reunir provas. Fora salvo por Cícero, que acorrera em defesa do seu errático aluno com uma oratória arrebatada. Agora, segundo todas as aparências, Célio voltara a ser o fiel protegido. Não aparentava qualquer má vontade contra mim por

ter como aliado o outro lado durante o julgamento; a sua ambição era do género desbragado, que não tem lugar para rancores. Era famoso pela sua língua afiada, mas igualmente famoso pelo seu encanto e a sua extraordinária beleza. Presentemente, ocupava um cargo de tribuno, o que significava que era um dos poucos funcionários do Estado actualmente operativos.

 

Mas não tenho a certeza de que conheças o meu outro amigo disse Cícero. Fez um gesto na direcção do terceiro homem, que se mantinha um pouco afastado, olhando para mim com um ar desconfiado. Era um sujeito baixo e entroncado, com aquele género de corpo musculado em forma de barril que ainda parece mais corpulento dentro de uma toga. Tinha os dedos curtos e embotados, o mesmo se podendo dizer acerca do nariz. A sua cara era redonda, com uma boca pequena e olhos profundos, sob umas sobrancelhas hirsutas. A sombra da sua barba era tão acentuada, que conferia ao seu queixo um ar escuro e untuoso. Não era de espantar que fosse o inimigo natural de Clódio, o ágil Clódio, com os seus membros compridos e a sua elegância natural. Fisicamente, era difícil dois homens serem mais claramente o oposto um do outro.

 

Afinal, Milo sempre tinha regressado à cidade.

 

Claro que reconheço Tito Ânio Milo disse eu. Mas tens razão, Cícero. Nunca fomos apresentados.

 

Bem, já não era sem tempo. Milo, este é Gordiano, chamado o Descobridor, um homem de grandes talentos. Conhecemo-nos há muitos anos, quando eu aceitei o meu primeiro caso de assassínio. Leste a minha defesa de Sexto Róscio, evidentemente; toda a gente leu. Mas não são muitos os que sabem do papel que Gordiano desempenhou no caso. Foi há trinta anos!

 

Desde essa altura, os nossos caminhos têm-se cruzado ocasionalmente disse eu com frieza.

 

E a nossa relação sempre foi... O grande orador procurou a palavra mais adequada.

 

Interessante? sugeri eu.

 

Exactamente. Anda, vamos até ao escritório. Este átrio está gelado.

 

Retirámo-nos para um pequeno compartimento bem aquecido situado nas traseiras da casa. O percurso pelo corredor e através do jardim permitiu-me observar o ambiente. O mobiliário, as tapeçarias, as pinturas e os mosaicos eram todos da melhor qualidade; eu nunca vira nada tão impressionante, nem em casa de Clódio. A escala da casa de Cícero era mais modesta, é certo, mas isso tornava-a, em certo sentido, mais agradável. Cícero sempre tivera um gosto impecável.

 

E sempre tivera dinheiro suficiente para sustentar os seus gostos, mas agora parecia ter prosperado muito para além da simples manutenção das aparências. É necessário ser-se verdadeiramente rico para se possuir uma fonte decorada com mosaicos cobertos a ouro, ou para se ter na parede do escritório um quadro assinado por laia de Cízico, ou para se exibir  numa mesa coberta por uma espessa placa de vidro perfeitamente transparente (que, só por si, já devia ter custado uma soma simpática) um fragmento de um rolo original de pergaminho de um diálogo com correcções autografadas de Platão. A Lei romana proíbe aos advogados receberem honorários pelos seus serviços; todos os casos têm de ser pró bono. Apesar disso, porém, os advogados bem sucedidos conseguem enriquecer. Em vez de o serem com meros sacos de prata, são recompensados com presentes generosos ou oportunidades exclusivas de investimento. Cícero era um dos mais competentes advogados de Roma, e sempre soubera cultivar os Melhores. A sua casa estava cheia de coisas belas, raras e dispendiosas. E eu só podia imaginar os tesouros que tinham sido destruídos ou saqueados quando a populaça de Clódio lhe incendiara a casa.

 

Por indicação de Cícero, um escravo aproximou um círculo de cadeiras da braseira acesa. Antes de nos sentarmos, outro escravo trouxe umas taças de prata e um jarro de vinho aquecido. Em vez de rondar por ali, Tiro juntou-se a nós. Era agora um cidadão, um confederado de Cícero, e já não seu escravo. Apesar disso, reparei que mantinha no regaço uma tabuinha de cera e um estilete, para tirar notas.

 

Cícero beberricou graciosamente do seu copo. Tiro imitou-o. O vinho estava bem aguado; Cícero não era homem que se permitisse prazeres fortes. O mesmo não se poderia dizer de Marco Célio, ou pelo menos do Célio que eu tinha conhecido antes de Cícero o ter reformado. Ele percebeu que eu estava a observá-lo e seguiu ostensivamente o exemplo do seu mentor, apertando os lábios e mal tocando com eles na borda do cálice. A expressão conferia-lhe um ar tão afectado, que eu decidi que ele estava a troçar deliberadamente de Cícero.

 

Milo não fez qualquer esforço para ser delicado. Esvaziou o copo de uma vez só, e estendeu-o ao escravo, pedindo mais.

 

Gordiano, terá sido surpresa que li no teu rosto quando reconheceste Milo? Cícero inclinou a cabeça. Não estavas à espera de o encontrar aqui, pois não?

 

Francamente, estava convencido de que, por esta altura, ele iria a caminho de Massília.

 

Ah! Que tinha virado as costas e fugido como um coelho? Não conheces o meu amigo Milo, se pensas que ele é esse género de cobarde.

 

Não estou certo de que se trate de uma questão de cobardia; seria mais prudência. De qualquer maneira, o boato da sua fuga para Massília está bem difundido.

 

Milo franziu o sobrolho, mas nada disse.

 

Estás a ver, eu bem te disse comentou Célio, participando finalmente na conversa. Gordiano e o filho ouvem tudo. Aqueles quatro ouvidos apanham todos os sussurros que atravessam Roma.

 

Cícero acenou com a cabeça.

 

Sim, continua, Gordiano. Que mais dizem as pessoas?

 

Alguns dizem que Milo regressou sorrateiramente à cidade a noite passada e se barricou em sua casa, e que estava lá quando a populaça quis incendiá-la.

 

Quer dizer que acham que ele não é um cobarde, mas um louco! Não, Milo passou a noite cá em casa, debaixo do meu tecto, a salvo. Que mais se diz?

 

Que ele planeia incitar a uma revolução. Começou por assassinar Clódio e está neste momento a reunir um exército para marchar sobre Roma. Os confederados de que dispõe dentro de muros juntaram armas e material incendiário por toda a cidade...

 

Bem, podes verificar pessoalmente que esse boato é absurdo! Milo encontra-se aqui, em minha casa, e não anda por aí a provocar tumultos. A minha casa cheira a piche e a enxofre? Claro que não. Com que então, uma revolução! Não existe em Roma homem mais dedicado à preservação da República do que Tito Ânio Milo, nem sequer eu próprio! Quando penso nos insultos de que foi alvo, e nos riscos terríveis que correu...

 

Esses sacrifícios pareciam pesar sobre Milo, que terminou o segundo copo de vinho e olhou para mim com uma expressão sombria.

 

Eu olhei à volta da sala, para os muitos rolos de pergaminho metidos nos respectivos orifícios, para a pintura de laia, uma cena da Odisseia, para o fragmento de Platão metido debaixo do vidro.

 

Tu também corres um risco terrível, Cícero. Se a multidão soubesse que Milo estava aqui...

 

Sim, sei o que estás a pensar. Esta casa já uma vez foi incendiada. Mas isso foi porque Clódio tinha conseguido expulsar-me da cidade. Nunca teria acontecido se eu cá estivesse para o impedir. E não voltará a acontecer, desde que eu esteja presente para defender até ao último suspiro aquilo que me pertence. E o mesmo pode acontecer-te a ti, Gordiano, antes de esta crise terminar. Tu também possuis actualmente uma excelente casa. Tens uma família a proteger. Pensa nisso, e depois pensa naquela multidão ululante que vimos ontem, a correr de um lado para o outro como um bando de cães, lá em baixo no Fórum. Sabes como foi que Sexto Clélio acendeu a fogueira que incendiou o Senado? Esmagou as cadeiras dos cônsules e do tribunal sagrado e utilizou essa madeira para construir uma pira funerária para o monstro. Rasgou rolos de pergaminhos para ajudar a pegar. Foi uma profanação inominável! Tal como acontecia com o seu chefe morto, estes libertos inúteis e estes pedintes não têm ponta de respeito pela majestade do Senado, nem pela simples decência. São uma ameaça para qualquer homem que se lhes atravesse no caminho.

 

Cícero encostou-se e inspirou fundo.

 

O importante é que os clodianos foram suficientemente loucos para pegar fogo ao Senado. Até esse momento, estavam em vantagem as pessoas estalavam a língua por causa do pobre e infeliz Clódio. Foi um golpe de génio, transportar o seu corpo em parada pelas ruas, despido e com as feridas à mostra. Como advogado, não posso deixar de admirar o panache. Se eu pudesse arrastar um cadáver malcheiroso para tribunal e metê-lo por baixo dos narizes dos membros do júri, acredita em mim, nem pensava duas vezes! O choque e a simpatia são dois terços da vitória. Mas eles perderam essa vantagem.

 

Célio fez girar a taça de vinho.

 

Usaram o calor que irradiava de Milo para acenderem uma fogueira debaixo dos próprios pés.

 

Cícero ergueu o copo na direcção de Célio.

 

Precisamente! Oh, Célio, que frase requintada! Uma metáfora que também é literalmente verdadeira. "Usaram o calor que irradiava de Milo para acenderem uma fogueira debaixo dos próprios pés." Bravo!

 

Até Milo sorriu, embora de má vontade, erguendo o copo. Afinal, também era um orador, e sabia apreciar a retórica.

 

Dizes que Milo passou a noite aqui em casa? perguntei eu. Cícero acenou com a cabeça.

 

Sim. Enquanto os clodianos transportavam o corpo nu de Clódio em parada pelo Palatino, Milo esperou no exterior da cidade. Não porque tivesse medo de regressar, atenção, mas por cautela, por sensatez, estava a testar os ventos, como um general que verifica a inclinação do terreno antes de avançar. Quando eu vi que aqueles loucos dos clodianos estavam a pegar fogo a tudo, mandei um mensageiro informá-lo. Se ele quisesse regressar à cidade, devia fazê-lo sub-repticiamente, disse-lhe, e manter-se afastado de sua casa. Ofereci-lhe a minha hospitalidade, mas a decisão de regressar foi sua. Não o aconselhei num sentido nem no outro. Milo avaliou o caminho que se lhe oferecia, e decidiu tomá-lo. Tito Ânio Milo, não conheço homem mais corajoso do que tu. Cícero olhou para o alvo das suas palavras com uma intensidade que teria feito corar um homem mais modesto, mas a única reacção de Milo foi apertar o maxilar e erguer um pouco mais a cabeça. As suas feições não me pareciam, sequer, remotamente heróicas, como estamos habituados a ver nos heróis retratados em mármore ou bronze, mas ele sabia assumir uma pose de desafio.

 

Nunca teria abandonado Roma no seu momento de necessidade disse ele, com um requebro retórico na voz. Regressei para salvá-la!

 

Excelente! disse Célio. Tiro, copia o que ele disse, por favor. Não podemos esquecer-nos de usar esta frase.

 

Pareceu-me que ele estava a ser indelicado ou brincalhão, mas Milo não se ofendeu. Em vez disso, inclinou-se na direcção de Célio com uma expressão intrigada.

 

"Achas que seria melhor: Nunca abandonei Roma, nem um só dia..."

 

Não, não, estava perfeito da primeira vez. Tiro, apanhaste a frase? Tiro estava a escrever e acenou com a cabeça.

 

Apercebi-me de que a discussão estava a ter lugar a mais do que um nível, e com mais do que um objectivo.

 

Estás a escrever um discurso, não estás? perguntei.

 

Por enquanto não disse Cícero. Ainda estamos a trabalhar as ideias básicas. Tu podes ajudar-nos enormemente, Gordiano.

 

Não tenho a certeza de estar interessado em fazê-lo.

 

Acho que estás disse ele, lançando-me um olhar que devia ser familiar a Célio e a todos os outros que tinham sido seus alunos e seus protegidos. Era um olhar que dizia: Não me desiludas. Olha para nós aqui trancados no meu escritório, impossibilitados de sair sem a protecção de um destacamento de gladiadores. Estamos cegos e surdos. Dispomos de um coração feroz e corajoso Milo. De uma língua eloquente Célio. De uma mão capaz de escrever Tiro. E, atrevo-me a dizer, de uma cabeça fria eu próprio. Mas não dispomos de olhos nem de ouvidos. É uma tarefa delicada, avaliar a disposição das pessoas nas ruas. É preciso observar. É preciso ouvir. Um cálculo mal-feito, em momentos de crise como o presente, pode ser...

 

Não pronunciou a palavra desastroso. Falar de desastres seria um convite a maus presságios. Além disso, todos os presentes compreendiam exactamente o que ele queria dizer. Cícero sabia perfeitamente, por amarga experiência, o que podia acontecer quando a turba se voltava contra um homem.

 

Só pretendo conhecer a tua opinião sobre umas quantas coisas, Gordiano. Sobre a corrida ao consulado, por exemplo. Parece que será finalmente possível organizar eleições. Como avalias o estado de espírito das pessoas relativamente à candidatura de Milo?

 

Eu olhei para ele, estupefacto.

 

Pois, achas que ele tem mais ou menos hipóteses do que anteriormente? É uma pergunta bastante simples.

 

Sim, mas não consigo acreditar que estejas à espera de uma resposta séria.

 

Milo bateu nervosamente com o copo vazio no braço da cadeira.

 

Ele quer dizer que não há hipótese nenhuma.

 

É isso que pretendes dizer, Gordiano? Cícero observava-me muito sério.

 

Eu pigarreei.

 

Clódio morreu. Alguém o matou, com grande violência eu próprio vi o corpo.

 

Viste-o? Onde? saltou Milo.

 

Enquanto eu hesitava, ponderando se devia falar-lhes da minha visita a casa de Clódia, Cícero poupou-me a necessidade de decidir, interrompendo-me.

 

Gordiano viu o corpo do telhado de sua casa, tal como eu o vi da minha. Já te disse, Milo, que eles percorreram o Palatino em procissão funerária.

 

Sim, vi-o do telhado de minha casa disse eu. Afinal, não era mentira. E qualquer romano que não o tenha visto, terá certamente ouvido falar dele.

 

E o que dizem exactamente as pessoas acerca do assunto? disse Cícero.

 

Não percebo a pergunta.

 

Como é que elas acham que Clódio morreu? Quem lhes parece que foi o responsável?

 

Se Cícero estava interessado em fingir que era obtuso, eu não me importava de lhe fazer a vontade.

 

Aquilo que toda a gente diz é que foi Milo que o matou. Ou os homens de Milo.

 

Onde?

 

Na Via Ápia. Algures perto de Bovilas. Cícero acenou com a cabeça, pensativo.

 

Como?

 

Eu fiz uma pausa.

 

A avaliar pelas feridas, eu diria que foram utilizados punhais. Pensei na chaga do ombro. E talvez também uma lança. E é possível que ele tenha sido estrangulado.

 

Deves ter tido uma percepção mais clara do corpo do que eu tive comentou Cícero.

 

Talvez seja porque tenho os olhos treinados para esses pormenores.

 

Mas não ouviste pormenores acerca do... incidente fatal... e da forma como ele ocorreu?

 

Não.

 

Célio acenou vigorosamente com a cabeça.

 

E aposto que quase ninguém ouviu. Como é possível que tenham ouvido pormenores? Quem poderia tê-los fornecido?

 

Milo mexia o maxilar atarracado de um lado para o outro e tamborilava com os dedos no copo.

 

Ainda assim, os boatos nascem como ervas numa racha. Se uma história tiver um buraco, as pessoas enchem-no com o que lá couber, seja o que for.

 

Ouviste algum boato, Gordiano? disse Cícero. Acerca de uma batalha, de uma emboscada, de um acidente?

 

Ouvi todo o género de boatos. Uma emboscada, uma batalha, um único assassino, um traidor entre os homens de Clódio...

 

Acho que isso nos permite ter alguma esperança observou Célio, encostando-se na cadeira e erguendo uma sobrancelha. Estendeu o copo de vinho e um escravo acorreu a enchê-lo. As pessoas ainda não decidiram. Ainda temos algumas hipóteses de lhes contarmos o nosso lado da história. Mas teremos de o fazer rapidamente. Os boatos fixam-se como argamassa na cabeça das pessoas. Depois de endurecida, só sai à força de escopro. O melhor é despejar-lhes primeiro os nossos próprios boatos pelos ouvidos.

 

E, claro, há o incêndio disse Cícero. Certamente que isso abriu muitas cabeças duras à força. As pessoas que eram hostis a Milo devem estar dispostas a escutar a voz da razão. Só os radicais mais lunáticos podem tomar o partido daquela multidão de piromaníacos contra Milo. Suspirou, exasperado. De qualquer maneira, não compreendo por que há-de a morte de Clódio suscitar tanta controvérsia, excepto entre o reduzido número dos seus mais exaltados seguidores. Qualquer homem sensato percebe que Roma está muito melhor sem aquele patife. É tão óbvio! Se fôssemos ter com as pessoas e lhes disséssemos: "Sim, Milo matou Clódio", não estaríamos simplesmente a dizer que Milo é um herói? Estaríamos essencialmente a proclamá-lo o salvador da República!

 

Cícero olhou para mim, à espera de uma reacção. Eu respondi cautelosamente:

 

Não posso falar pela maioria das pessoas, mas parece-me que há muitos romanos que estão simplesmente cansados do caos e da desordem...

 

Exactamente disse Cícero, e era Clódio quem estava por trás de toda essa desordem, fomentando a inquietação entre a plebe, abalando a ordem natural das coisas. Livrando-nos de Clódio, estamos a meio caminho de nos livrarmos do caos. Tiro, assenta isso: "Livrando-nos de Clódio..."

 

És capaz de estar a ir depressa demais disse Célio, abanando a cabeça. Começa a parecer regozijo. Mesmo as pessoas que estão satisfeitas com o desaparecimento de Clódio poderão sentir-se fortemente incomodadas com as circunstâncias da sua morte. Não podes transformar Milo no campeão da lei e da ordem ao mesmo tempo que declaras orgulhosamente que ele infringiu a lei, matando um homem.

 

Ah, mas as coisas terão outra aparência se mostrares que Milo foi vítima de uma emboscada e se limitou a defender-se disse Cícero, acenando com um dedo.

 

Foi realmente uma emboscada? disse eu, olhando-os sucessivamente. Era realmente Milo o homem visado?

 

Tiro continuou a escrevinhar na sua tabuinha, sem erguer a cabeça. Os outros olharam para mim com curiosidade. Cícero animou-se.

 

Bem, o que te parece, Gordiano? Será credível que Clódio tenha armado uma emboscada a Milo na Via Ápia?

 

Eu encolhi os ombros.

 

O seu ódio mútuo era conhecido.

 

Célio olhou para mim cepticamente. Eu senti-me como uma testemunha a ser contra-interrogada.

 

Mas não é igualmente provável que tenha sido Milo a armar uma cilada a Clódio? O que dirias tu dessa ideia, Gordiano?

 

Certamente não podem ter sido as duas coisas. Ou foi uma coisa, ou foi outra.

 

Achas? disse Cícero. E se não tiver havido emboscada nenhuma? E se os dois grupos se tiverem encontrado na Via Ápia por puro acaso? Essa possibilidade parece-te credível?

 

Talvez. Mas as pessoas estão sempre a cruzar-se na estrada sem que alguém acabe morto.

 

Célio riu-se.

 

Ele tem razão!

 

Cícero juntou as pontas dos dedos de ambas as mãos.

 

Mas os acidentes acontecem. Um homem nem sempre é capaz de controlar os seus escravos, especialmente quando se trata de gladiadores treinados para o protegerem e reagirem à primeira sugestão de perigo.

 

Tiro, anota isto: Milo tem de libertar alguns dos seus escravos, que de outra maneira poderiam ser obrigados a testemunhar sob tortura. Os escravos podem ser torturados, mas os libertos não. Se acontecer o pior...

 

Se ele for a tribunal, queres tu dizer disse eu.

 

Milo resmungou. Cícero tamborilou com os dedos uns contra os outros.

 

É minha convicção que Milo acabará por ser eleito cônsul. Não merece menos do que isso pelos serviços que prestou ao Estado! Ainda assim, temos de estar preparados para eventualidades menos agradáveis.

 

Para um julgamento por assassínio? O que poderá Milo ter a recear do testemunho dos seus escravos?

 

Cícero considerou a pergunta.

 

Gordiano tem razão. Se Milo esperar e libertar os escravos num momento menos oportuno, isso pode parecer suspeito. Quanto mais cedo, melhor, parece-me a mim.

 

Podes sempre dizer que os alforriaste por gratidão, como recompensa sugeriu Célio. Afinal, salvaram-te a vida.

 

Salvaram mesmo? disse eu.

 

Bem, isso é o que nós vamos dizer observou Célio, olhando para mim como se eu fosse uma alma simples. Eu abanei a cabeça, em sinal de desagrado.

 

Vocês estão a falar das aparências, não é verdade, e de mais nada? Desta ou daquela versão hipotética daquilo que poderá, ou não, ter acontecido, e se as pessoas acreditarão nela. É como se estivessem a escrever uma comédia.

 

É preferível escrever uma comédia do que uma tragédia comentou Célio com sarcasmo.

 

Cícero olhou para mim com um ar pensativo.

 

Somos advogados, Gordiano. É isto que nós fazemos. Eu abanei a cabeça.

 

Cícero percebeu que eu não estava satisfeito.

 

Como posso explicar-te melhor? disse ele. A tua natureza é diferente da minha. A verdade tem um significado diferente para ti; aparentemente, tu estás convencido de que ela é importante em si mesma e por si mesma. Mas a verdade que tu buscas é uma ilusão! Buscar a verdade é um excelente passatempo para os filósofos gregos, que não têm nada melhor para fazer, mas nós somos romanos, Gordiano. Nós temos de governar o mundo.

 

Estudou-me por longos momentos, e percebeu que eu continuava a resistir.

 

Gordiano! Os próximos dias e os próximos meses são absolutamente críticos para a sobrevivência de tudo aquilo que é bom e honroso nesta cidade. Viste o que aconteceu ontem a loucura, a destruição, as profanações injustificadas. Consegues imaginar-te como parte daquela turba? Certamente que não! Consegues imaginar o que seria Roma se fosse governada por aquele género de pessoas? Seria um pesadelo! Certamente percebes de que lado estão os teus interesses.

 

Eu estudei cada um daqueles rostos à vez, o de Cícero, radiante pelo facto de ter um objectivo, o de Tiro, ocupado com o estilete, o de Célio, com um ar sombrio mas pronto para soltar uma gargalhada, e o de Milo, que apertava o maxilar como um rapazinho teimoso preparando-se para uma luta.

 

Mas afinal, o que foi que aconteceu na Via Ápia? disse eu. Como única resposta, tive olhares desprovidos de expressão, antes de Cícero passar suavemente a outro assunto, deixando em seguida claro, de forma rápida, graciosa, mas firme, que a minha visita tinha chegado ao fim.

 

Saí de casa de Cícero sem uma resposta satisfatória à minha pergunta e, na verdade, sem uma ideia clara da razão que o levara a convocar-me. O próprio Cícero aparentava não saber exactamente o que pretendia de mim, parecendo estar simplesmente a sondar-me. Eu fiquei com a vaga sensação de existirem forças opostas, medindo o respectivo poder, e perguntei a mim próprio qual seria exactamente o meu lugar no esquema das coisas.

 

O cerco à casa do inter-rei Marco Lépido prosseguiu no dia seguinte, e no seguinte, e no seguinte, com os partidários de Cipião e de Hipseu a exigirem eleições consulares imediatas.

 

No Fórum, os templos e os negócios fecharam as suas portas. Todos os dias grandes multidões vinham olhar de boca aberta para as ruínas chamuscadas do Senado. Uns choravam, outros aplaudiam; as rixas e os debates aos gritos eram frequentes. Alguns visitantes depunham flores nos degraus, como se se tratasse de um sepulcro, em honra do homem que ali fora cremado. Outros espalhavam as flores e pisavam-nas.

 

Os assuntos de Estado paralisaram.

 

Mas a vida continuava. Betesda mandava as jovens escravas aos mercados comprar as coisas de que precisava para o jantar. Elas demoravam mais tempo do que o habitual, porque tinham de procurar mais, mas regressavam com os cestos cheios. Belbo foi buscar-me um par de sapatos que eu tinha posto a arranjar, e contou-me que, na rua dos sapateiros, se trabalhava mais ou menos como habitualmente. As pessoas prosseguiam as suas actividades diárias, ganhavam a vida e alimentavam-se, mas com um tremendo sentimento de expectativa. Roma tinha o ar perturbado de um homem que percorre um caminho desconhecido e mal iluminado, avançando obstinadamente, mas olhando por cima do ombro à espera de ver acontecer qualquer coisa terrível.

 

Eco vinha visitar-nos todos os dias.

 

Estão os três loucos, se pensam que o sujeito ainda tem hipóteses de ser eleito cônsul disse ele, quando lhe contei a minha peculiar entrevista com Cícero, Clódio e Milo. Mas Cícero tem razão numa coisa: os clodianos foram longe de mais quando pegaram fogo ao Senado. Perderam a simpatia das pessoas intermédias. O crime é um ultraje, mas o fogo aterroriza as pessoas.

 

O fogo é um símbolo de purificação sugeri eu.

 

Talvez seja, num funeral, ou num poema. Mas quando se começam a incendiar edifícios, o fogo representa a destruição indiscriminada. Purificar o Estado pode parecer uma ideia grandiosa num discurso, mas deixa de o ser quando as pessoas começam a ficar queimadas. Quando se tornam violentos, os reformadores assustam as pessoas.

 

Quer dizer que quem tenha alguma coisa a perder prefere que as coisas permaneçam como estão.

 

Essa é uma consequência.

 

Nesse caso, talvez Milo tenha possibilidades de ser eleito cônsul.

 

Nunca. Ficou manchado pela morte de Clódio.

 

Acerca da qual continuamos a não dispor de pormenores concretos disse eu, esfregando o queixo num gesto de preocupação. Achas, pois, que os eleitores vão votar em Hipseu e Cipião para cônsules? Mas eles não estão igualmente manchados? Tiveram o apoio de Clódio, e agora as pessoas estão assustadas com os clodianos.

 

Sim, mas Hipseu e Cipião são vistos como homens independentes. Não estiveram associados ao incêndio do Senado.

 

Mas não deixam de ser agitadores! Olha para o bloqueio que os seus apoiantes fizeram à volta da casa de Lépido! Certamente não serão mais aceitáveis para as pessoas da classe intermédia do que era Clódio.

 

Eco olhou para mim, pensativo.

 

Se Milo está de fora... e se Hipseu e Cipião também estão de fora...

 

Não digas! Mas ele disse:

 

As pessoas vão voltar-se para Pompeu.

 

Naqueles dias, Pompeu ocupava intensamente o espírito de muitas pessoas, incluindo o do seu velho aliado, Milo.

 

No quinto e último dia do período de Lépido como inter-rei, um trio de tribunos radicais organizou um contio no Fórum. Eco e eu fomos assistir.

 

Um contio é um encontro ao ar livre. Embora possa ter uma aparência informal, trata-se de uma função do Estado, e obedece a regras específicas.

 

Só algumas pessoas podem usar da palavra, têm de tratar um assunto específico, e por aí fora. O mais importante de tudo é que apenas os detentores de determinados cargos podem convocar um contio. Os cônsules podem fazê-lo, por exemplo. Bem como os tribunos.

 

Roma estava sem cônsules. Mas havia dez tribunos, como habitualmente. E alguns deles andavam muito ocupados.

 

O funeral de Clódio, ou antes, a reunião no Fórum para se ouvir o elogio fúnebre de Clódio e se cremar o seu cadáver, tinha sido um contio, ou pelo menos tinha começado por sê-lo. Fora convocado pelos tribunos Pompeo e Planco. Eu tinha visto estes dois homens em casa de Clódio na noite do seu assassinato, na antessala onde os políticos se tinham reunido para avaliar a dimensão do desastre. No dia seguinte, estes dois homens tinham conduzido a procissão pelo Palatino e até ao Fórum. Tinham inflamado a multidão com os seus discursos. Pompeo e Planco eram os mesmos tribunos que tinham bloqueado a nomeação de um inter-rei no começo do novo ano, fazendo assim recuar a marcação das eleições numa altura em que Milo se sentia confiante da vitória.

 

No contio que convocaram para o último dia do período de Lépido como inter-rei, esteve presente uma grande multidão. Quando Eco veio a minha casa, nessa manhã, anunciar-me a sua intenção de estar presente, eu comecei por me recusar a acompanhá-lo. Seria uma loucura participar em coisas públicas num momento como este, argumentei, mesmo acompanhados de guarda-costas. Mas o apelo do Fórum era demasiadamente forte. Durante quatro dias, à excepção da visita que fizera a Cícero, tinha estado praticamente fechado em casa. Começava a sentir-me inquieto. Em tempos de crise ou de júbilo, há qualquer coisa no sangue de um romano que o empurra inexoravelmente a juntar-se aos seus concidadãos para ouvir outros cidadãos fazerem discursos ao ar livre, onde tanto homens como deuses podem vê-los e ouvi-los.

 

Eco insistiu em que avançássemos para a frente da multidão. Vínhamos vestidos de togas, como exigia a situação; os guarda-costas de Eco vinham de túnicas e capas. Desta maneira, é fácil detectar imediatamente, no meio de uma multidão, quem são os cidadãos, e quem são os escravos que acompanham os cidadãos.

 

Na plataforma, estavam Planco e Pompeo, e também Salusto, outro tribuno. Fora Salusto que eu tinha ouvido falar em casa de Clódio, argumentando que Clódio era o único que conseguia controlar a multidão.; Ele avisara que podia haver um banho de sangue. Mas, aparentemente,' reconciliara-se com os esforços dos outros dois tribunos para instigara ralé, e decidira juntar-se a eles. Os três dirigiram-se à multidão, não com discursos formais, mas falando alternadamente, como se estivessem a ter uma conversa ou uma discussão uns com os outros, e solicitando as reacções dos seus concidadãos.

 

Não se discutiram as circunstâncias exactas do incidente na Via Ápia. Eu começava a achar esta escassez de pormenores enlouquecedora, mas mais nenhum dos presentes aparentava sentir-se incomodado, ou sequer aperceber-se disso. Que Milo e os seus homens tinham assassinado Clódio a sangue-frio era uma coisa que era simplesmente tomada como óbvia. A questão era o que fazer com isso. O principal, concordavam todos os oradores, era organizar imediatamente as eleições consulares. Quando Hipseu e Cipião ocupassem os seus cargos, o problema de Milo seria adequadamente solucionado.

 

E quanto aos boatos de que Milo está a reunir um exército? gritou alguém, de entre a multidão.

 

Se ele está interessado numa insurreição disse Salusto, então é ainda mais importante que elejamos rapidamente os cônsules, a fim de reunirmos uma força capaz de defender a cidade.

 

E os aliados de Milo aqui na cidade? gritou outro. Dizem que ele armazenou secretamente uma enorme quantidade de armas. Eles podem cortar-nos o pescoço enquanto dormimos. Podem incendiar-nos as casas...

 

Ah! Vocês, os incendiários clodianos não deviam falar de fogo! disse outro homem. Ouviram-se palavras ásperas. Rebentou uma rixa. Embora a coisa se passasse a uma certa distância, os guarda-costas de Eco tornaram-se tensos e apertaram o círculo à nossa volta. Os oradores da plataforma ignoraram a interrupção.

 

O facto é que disse Salusto, Milo voltou a Roma. Essa notícia provocou um murmúrio entre a multidão.

 

Um homem que se encontrava por trás de mim, suficientemente perto para que eu sentisse o seu hálito a alho, pôs as mãos em concha à volta da boca.

 

Esse porco sem vergonha voltou a Roma no próprio dia em que matou Clódio! gritou ele. Milo devia estar em casa na noite em que fomos visitá-lo com as tochas na mão. Eu sei porque apanhei com uma seta num ombro! O homem abriu a toga no pescoço, para mostrar as ligaduras.

 

Cidadão corajoso! gritou Salusto. Ergueu os braços numa saudação, que provocou um coro de aplausos, juntamente com alguns assobios. Mas, qualquer que tenha sido o paradeiro de Milo nos últimos dias, sabemos que ele está na cidade desde ontem, porque ontem Milo saiu do seu esconderijo para ir fazer uma visita a Pompeu Magno, na sua vila da Colina Pinciana.

 

A notícia provocou novo murmúrio entre a multidão. Na corrida ao consulado, Pompeu dera a sua bênção a Hipseu, que servira sob as suas ordens no Oriente. Mas Pompeu e Milo já tinham sido aliados, e Pompeu e Clódio tinham sido muitas vezes inimigos. Teria o Grande sido induzido a sancionar o crime de Milo e a apoiar o assassino? O envolvimento de Pompeu podia desequilibrar conclusivamente a balança, quer a favor, quer contra Milo.

 

Salusto sorriu, apercebendo-se da ansiedade e da incerteza da multidão, e prolongando a expectativa com aquele sorriso.

 

Gostareis certamente de saber disse por fim que Pompeu Magno, para seu próprio crédito, se recusou, sequer, a receber o vilão!

 

A expectativa transformou-se em aplausos.

 

E, mais do que isso, enviou ao patife uma mensagem em que lhe pedia gentilmente que evitasse voltar lá, a fim de lhe poupar o embaraço de se recusar novamente a recebê-lo. A perfídia de Milo é tão profunda, que até o Grande teme ser contaminado por ela.

 

O tribuno Planco avançou. Falou como se estivesse a conversar com Salusto, mas as palavras saíram-lhe como só saem as de um orador treinado.

 

Imagino que Milo tenha ficado profundamente ofendido com a recusa de Pompeu.

 

Imagino que sim concordou Salusto. Sabemos queMilo é um homem que se ofende com facilidade. E já vimos quão letais podem ser os seus ressentimentos.

 

Planco fez uma expressão de consternação fingida. Estávamos tão perto da plataforma, que eu conseguia perceber o exagero com que ele desempenhava o seu papel.

 

O que queres dizer com isso, Salusto? Achas que o próprio Pompeu poderá estar... em perigo?

 

Salusto encolheu os ombros como o faz um homem fatigado com o mundo, exagerando o suficiente para que o gesto pudesse ser visto ao fundo da praça.

 

Já vimos que nada detém o monstro no seu afã para se apoderar do Estado. Clódio foi vítima da sua ânsia de sangue. Se agora Pompeu se atravessa no seu caminho...

 

Ouviram-se gritos entre a multidão:

 

Não!

 

Nunca!

 

Impossível!

 

Milo não se atreveria!

 

Não? O tribuno Pompeo, que tinha estado mais recuado, avançou. Como membro do clã de Pompeu, reclamou a atenção da multidão. Foi Milo quem produziu o cadáver que foi queimado no Senado. E será Milo a produzir outro cadáver, para ser queimado no Capitólio! O sentido das suas palavras era claro, pois nenhum outro, para além de Pompeu, era digno de ser sepultado na colina que albergava os templos mais sagrados de Roma.

 

A multidão ergueu os punhos e começou a gritar, não deixando ouvir os oradores, que pareciam não se importar nada com o silêncio a que tinham sido reduzidos, e cediam aos rugidos da ralé. Estaria Milo a conspirar para matar Pompeu? Os tribunos não tinham apresentado o menor vestígio de prova, mas a mera sugestão conduzira a multidão a um estado de frenesim.

 

O Fórum parecia uma grande concha de som. Os gritos individuais eram uma espécie de seixos que ondulavam pela multidão e ecoavam das suas extremidades. Todos coalesciam num rugido ensurdecedor e indistinto, até que alguém começou a cantar. Juntaram-se-lhe mais e mais vozes, e finalmente o canto sobrepôs-se ao rugido:

 

Eleições... já! Eleições.. Já! Era o mesmo grito que tinha ecoado durante dias à volta da casa do inter-rei Marco Lépido.

 

A multidão começou a mover-se. Nunca percebi exactamente como se iniciou este movimento. Não detectei qualquer sinal por parte dos tribunos que se encontravam no palco. Não ouvi nenhum grito da multidão instigando toda a gente a dirigir-se a casa de Lépido. Se estivesse a observar do alto do telhado de minha casa, em vez de estar ali, metido no meio dos acontecimentos, talvez tivesse compreendido a dinâmica da multidão ou talvez não. Devia ser tão fácil como entender o estranho uníssono de um enxame de abelhas.

 

Fosse como fosse, o certo é que a multidão se transformou numa turba, e a turba começou a mover-se como um só corpo, em direcção ao Palatino. Eco e eu acompanhámo-los durante algum tempo, incapazes de nos separarmos, como pedaços de madeira numa corrente. Eu fui empurrado e acotovelado para diante contra a minha vontade. Cerrei os dentes e resmunguei. Mas aquela experiência, que fora para mim tão desagradável, parecia revigorar os que me rodeavam, que se riam e lançavam gritos estonteantes de excitação, como se tivessem bebido de mais.

 

A pouco e pouco, fomos conseguindo desviar-nos da multidão, até chegarmos aos seus limites e podermos voltar para trás. Até Eco parecia contaminado pela excitação.

 

O que se passa, papá? disse ele, sorrindo e recuperando o fôlego. Não queres juntar-te à marcha até casa do inter-rei?

 

Não brinques, Eco. Ninguém sabe o que vai acontecer. Vou para casa. E tu devias fazer o mesmo.

 

Passei a tarde em cima do telhado de minha casa, tentando ansiosamente descortinar sinais de fogo ou de fumo. Nada vi, mas ouvi os ecos ribombantes de uma espécie de batalha, que tinha lugar na direcção da casa de Lépido.

 

Do norte, começou a soprar um vento cortante, seguido de nuvens escuras. Quando as primeiras gotas de chuva fria me atingiam no rosto, Betesda veio ao jardim.

 

Desce daí! ordenou, com as mãos nas ancas.

 

Eu obedeci. Mas, quando ia a meio da escada, imobilizei-me, eu e tudo o que me rodeava. Um relâmpago de luz abriu os céus. Júpiter tinha piscado o olho, como dizem os augures. O raio brilhante de luz branca foi seguido pelo estrondo de um trovão, tão forte, que a própria terra pareceu estremecer. A chuva começou a cair sobre o jardim. Apressei-me a descer o resto da escada, a tremer, e disse a Belbo que me acendesse a braseira no escritório.

 

Não cheguei a ter tempo de aquecer as mãos diante do fogo, antes de Belbo regressar, anunciando um visitante.

 

O mesmo da outra vez disse ele. O homem de Cícero.

 

Tiro?

 

Belbo acenou com a cabeça.

 

Bem, manda-o entrar.

 

E os guarda-costas?

 

Podem ficar lá fora, à chuva.

 

Momentos depois, Tiro entrou no compartimento, afastando o capuz da cabeça. A sua espessa capa de lã estava molhada. Ele pôs a mão diante da boca e tossiu.

 

Cícero nunca te mandaria sair com chuva, Tiro. Havia de preocupar-se com a tua saúde.

 

É muito perto. Além disso, ele acha que tu gostas de mim.

 

E que poderia recusar-me a ir se ele mandasse outra pessoa buscar-me?

 

Tiro sorriu.

 

Vens, então?

 

Não seria adequado tu e eu termos primeiro uma conversa, breve e polida, sobre o tempo?

 

Relâmpagos e trovões disse Tiro, fazendo rolar os olhos em direcção aos céus. Presságios e portentos.

 

Para quem acredita nessas coisas.

 

E há quem não acredite?

 

Não sejas dissimulado, Tiro. Não te fica bem. Lá porque o teu senhor o teu antigo senhor, quero eu dizer finge acreditar nessas ideias supersticiosas por razões políticas...

 

Tu desprezas mesmo Cícero, não desprezas?

 

Eu suspirei.

 

Nem mais nem menos do que desprezo os da sua laia, julgo eu.

 

A sua laia?

 

Os políticos.

 

Não, acho que o desprezas mais do que aos outros. Porque houve uma altura em que pensaste que, de alguma maneira, ele era diferente, e ele desiludiu-te.

 

Talvez.

 

Enquanto esperas apenas o pior dos restantes, por isso eles nunca te desapontaram.

 

Encolhi os ombros.

 

Mas não terão sido apenas as tuas falsas expectativas que te desapontaram, Gordiano? Achas que um homem pode atravessar uma rua enlameada sem sujar os pés? Cícero não pode andar pelo ar. Ninguém pode.

 

Cícero não se limita a atravessar uma rua enlameada, Tiro. Baixa-se e atira mãos cheias de lama a quem quer que se lhe atravesse no caminho. Estende o pé e prega rasteiras às pessoas e aplaude quando elas caem de cara no chão! Depois lava as mãos na fonte mais próxima e pretende jovialmente que elas nunca chegaram a estar sujas.

 

Tiro sorriu de má vontade.

 

É verdade que, às vezes, Cícero é um bocado hipócrita.

 

Eu diria mais enfatuado.

 

Sim. Bem, eu tento mitigar essas partes dos discursos dele. Mas é uma coisa engraçada. As pessoas podem dizer que a modéstia é uma virtude, mas respeitam um homem que canta os seus próprios louvores. Acham que, se é vaidoso, deve ter alguma razão para isso. E, quando um tipo brilhante começa a atirar lama, prestam-lhe atenção. Acham que também deve ter uma boa razão para o fazer.

 

Não precisas de me convencer de que Cícero sabe manipular uma audiência.

 

Gordiano, isto são simples questões de estilo, e não de substância. Há certas coisas relativas a Cícero que te afectam de maneira desadequada. Achas que eu não me canso das suas maneiras, de passar tantas horas do dia na sua companhia? Ele às vezes enlouquece-me. E, no entanto, não conheci em toda a minha vida homem mais admirável ou ilustre. Fundamentalmente, tu e Cícero estão do mesmo lado...

 

Tiro, não precisas de tentar convencer-me a ir contigo. Só tenho estado à espera de uma interrupção nesta conversa para mandar Belbo buscar-me a capa. Mas olha, aqui está ele, já prevendo as minhas necessidades. Belbo pôs-me a capa por cima dos ombros. Eu apertei-a à minha volta. Está a ficar mais frio.

 

Apesar disso, esperemos que a chuva continue disse Tiro. Assim, é mais difícil pegar fogo às coisas. Evita que as chamas se propaguem. Pronto, já falámos sobre o tempo. Vamos andando?

 

Encontrei Cícero no seu escritório, em animada conversa com Marco Célio.

 

Cícero ergueu os olhos e viu que eu estava a observar o compartimento.

 

Milo não está cá disse. Regressou a sua casa. Foi uma demonstração de autoconfiança. Afinal, o que tem Milo a temer em sua casa, se o povo de Roma o ama profundamente?

 

Ama?

 

Como é possível que não o amem, depois do favor que ele lhes fez, libertando o mundo daquele incrível malandro? "Prendeu o tirano com barras de ferro..."

 

"E matou-o com as suas próprias mãos" disse eu, terminando a citação de Énio. Quer dizer que foi ele?

 

Que foi ele o quê?

 

Que foi Milo que matou Clódio com as suas próprias mãos? Lembrei-me das marcas que tinha visto no pescoço de Clódio. Tinham-lhe enrolado alguma coisa à volta da garganta antes de ele morrer, fosse para o prender, para o sufocar ou para o arrastar.

 

Cícero encolheu os ombros.

 

Não estava lá, por isso não vi nada. Mas a imagem parece-me atraente. Tal como o seu homónimo, o lutador da fábula de Crotona, Milo é forte. Acho que ele podia estrangular um homem até à morte. O que te parece, Célio?

 

Célio mostrou-se pensativo.

 

Estrangulamento? Podia fazer com que as pessoas esquecessem o sangue... distraí-las daquelas feridas horríveis. A ideia de Clódio ter sido estrangulado agrada-me. É mais limpo; mete menos sangue. As pessoas  sentem-se arrepiadas quando pensam em punhais. O estrangulamento é uma coisa mais viril, mais heróica. Sugere a morte de um animal com as próprias mãos. Faz com que Clódio se assemelhe a um animal selvagem. Seria preferível contornar estes pormenores gráficos, na verdade, mas se temos mesmo de discutir as circunstâncias do crime...

 

Não vim aqui para ouvir dois oradores atirar ideias para o ar disse eu.

 

Célio sorriu.

 

Não temos outra maneira de perceber quais são as ideias que flutuam e as que caem ao chão como pedras.

 

Podem fazer isso quando eu me for embora.

 

Tiro fez uma careta de desaprovação pela minha rudeza.

 

Por que concordaste em vir aqui, Gordiano? perguntou Cícero.

 

Pensei que talvez Tiro tivesse conseguido converter-te com a sua eloquência.

 

Converter-me? Mas eu pensei que já estávamos no mesmo campo, Cícero.

 

E estamos. Só que tu ainda não te apercebeste. Enlaçou os dedos por trás da cabeça e sorriu.

 

Não sejas tão presumido, Cícero. Pediste-me que viesse. Aqui estou. Por que vim eu? Aproximei-me da braseira e estendi as mãos por cima das chamas. Porque está uma noite fria sobre Roma, e lá fora está escuro. Como qualquer outra pessoa, anseio pelo calor e pela luz. Em especial pela luz. As minhas motivações são inteiramente egoístas. Quero ser iluminado quanto à via a percorrer, quero que alguém me mostre o caminho. O conhecimento é como um fogo. E arde nesta casa. Mas nesta altura parece-me estar a produzir bastante mais fumo do que luz.

 

Cícero encolheu os ombros, bem-disposto.

 

Bem, nesse caso, talvez tu possas fazer brilhar alguma luz em meu benefício, Gordiano.

 

Talvez.

 

Creio que foste hoje ao Fórum, ao contio.

 

Fui, de facto. Como é que sabias?

 

Ele fez um gesto com a mão, como quem retira importância ao assunto.

 

Vejo coisas, oiço coisas.

 

Como?

 

Tenho olhos e ouvidos.

 

Espiões, queres tu dizer. Ele encolheu os ombros.

 

Digamos que são muito poucas as coisas que acontecem aqui no Palatino que escapam ao meu conhecimento. Mas há sítios onde os meus olhos e os meus ouvidos não podem ir. Pelo menos em segurança. Sem serem notados.

 

Tal como um contio convocado por três tribunos radicais para instigar a multidão?

 

Três?

 

Pompeo, Planco e Salusto.

 

Salusto também lá estava? Pensei que, por esta altura, já tivesse recuperado o bom senso. Cícero deu umas pancadinhas no queixo, pensativo.

 

Não é bom sinal disse Célio. Salusto é o cauteloso. Se ele decidiu começar a instigar tumultos com os outros...

 

Eles não instigaram nenhum tumulto disse eu. Aquilo terminou com uma marcha em direcção à casa de Lépido.

 

Uma marcha? disse Cícero. Pode ter começado assim mas, quando lá chegaram, era um perfeito assalto! Pôs-se de pé e começou a andar de um lado para o outro. Subitamente, mostrou-se cansado. Não assististe ao ataque, Gordiano?

 

Claro que não. Fui para casa e tranquei as portas.

 

Então eu conto-te o que aconteceu. A ralé subiu o Palatino em passo de marcha e foi juntar-se aos parceiros que já formavam uma barricada, e todos juntos investiram em direcção à casa de Lépido e arrombaram a porta. Usaram pedras do pavimento que arrancaram das ruas. Destruíram a fechadura e esmagaram a tranca. Pensa nisto, Gordiano, da próxima vez que trancares a tua porta à noite para te ires deitar, julgando que estás seguro: não há casa que esteja segura quando há uma multidão decidida a entrar nela. Saquearam a casa. Deitaram abaixo os bustos dos antepassados de Lépido, esmagaram a mobília, destruíram os teares cerimoniais que tinham sido montados na entrada para mal das senhoras patrícias que andavam a fiar um padrão ordenado para o futuro de Roma. As pobres mulheres fugiram a correr, assustadas.

 

Provavelmente, a multidão queria apoderar-se de Lépido e obrigá-lo a organizar uma espécie de eleições simuladas ali mesmo. Não há grandes dúvidas quanto aos candidatos que a plebe teria escolhido, pois não? Hipseu e Cipião, os antigos aliados de Clódio. Como se esse género de procedimento tivesse algum valor legal! Os deuses ajudem Roma quando chegar o dia em que os homens forem escolhidos para dirigir o Estado pelo capricho de uma multidão irada!

 

Felizmente, Milo estava preparado. Cícero deu umas pancadinhas no crâneo. Sempre a pensar, permanentemente vigilante! Milo esperava que se passasse qualquer coisa semelhante no último dia do inter-reinado de Lépido, por isso dispôs os seus homens numa rua lateral, fora da vista. Quando se iniciou o ataque à casa, eles acorreram e montaram um contra-ataque a partir da rectaguarda. Houve uma batalha e tanto, e não pouco derramamento de sangue. Mas nem vale a pena dizer que a populaça clodiana dispersou rapidamente, fugindo. São inúteis no combate corpo-a-corpo. Os homens de Milo encontraram Lépido fechado num compartimento do andar de cima, com a mulher e as filhas, todos preparados para cortar os pulsos. Consegues imaginar? Um inter-rei de Roma estava prestes a suicidar-se, de preferência a ser despedaçado por uma multidão de escravos e libertos, e as mulheres de sua casa preparavam-se para morrer, a fim de evitarem ser violadas pelos mesmos homens. Digo-te que nem nos dias mais negros da guerra civil a República viveu tal vergonha! Uma vez mais, foi Milo quem veio em seu auxílio. Mas que possibilidades há de que a sua capacidade de previsão e a sua vigilância sejam reconhecidas, quanto mais recompensadas como deviam? Se algum homem mereceu ser cônsul...

 

Cícero parecia sinceramente ultrajado pelo ataque a Lépido, sinceramente admirado pelo zelo patriótico do seu amigo. Mas, evidentemente, recordei a mim próprio, fazia parte da sua profissão ser capaz de falar sem aparência de artifício, como se o fizesse do coração, suscitar a emoção dos seus ouvintes contra a vontade destes.

 

Pigarreei.

 

É verdade o que se diz acerca de Milo e de Pompeu?

 

Cícero franziu o sobrolho e mostrou-se confuso com a súbita mudança de assunto. Célio ergueu um sobrolho curioso.

 

Pompeu também se transformou numa ameaça para o Estado? inquiri. É por isso que Milo conspira para se livrar dele, como se livrou de Clódio para o bem de Roma? Também tenciona estrangular o general "com as suas próprias mãos"? Não é de espantar que Pompeu não o deixe entrar na sua villa.

 

Cícero franziu mais profundamente o sobrolho.

 

Foi isso que disseram hoje no contio? Eu acenei com a cabeça.

 

Foi isso que realmente agitou a multidão. Dizem que Milo foi visitar Pompeu e que Pompeu se recusou a recebê-lo. A sugestão era que Pompeu teme pela vida, e tem razões para isso.

 

O quê? Cícero estava horrorizado, ou fingia estar.

 

Cito o tribuno Pompeo: "Foi Milo quem produziu o cadáver que foi queimado no Senado. E será Milo a produzir outro cadáver, para ser queimado no Capitólio!"

 

Absurdo! Não parecia haver mesmo nada de teatral ou premeditado na forma como Cícero cuspiu a palavra. Aqueles agitadores estão dispostos a dizer seja o que for e os idiotas acreditam neles! A audiência do contio, Gordiano, pareceu-te ser constituída por apoiantes escolhidos, agrupados com simpatizantes clodianos?

 

Nem por isso. Ouviam-se vozes discordantes entre a multidão. Era um conjunto misturado. Muitas pessoas de todos os géneros estavam interessadas em ouvir o que os tribunos tinham a dizer. Eu próprio assisti.

 

E, apesar disso, a multidão deixou-se influenciar por esse disparate?

 

Por aquilo que me disseste acerca do ataque a casa de Lépido, não se deixou apenas influenciar, Cícero. É então completamente falso o que se disse acerca de Milo e de Pompeu?

 

Evidentemente!

 

Sim, bem, talvez não seja completamente falso disse Marco Célio, erguendo uma sobrancelha na minha direcção, e lançando depois um olhar imperturbável e felino ao seu agitado mentor. Ora, Cícero, Gordiano tem sido totalmente honesto connosco. Merece que o sejamos com ele. É um facto que Milo tentou fazer uma visita a Pompeu e que Pompeu o mandou embora. Foi um erro de cálculo de Milo, se queres a minha opinião. Sentiu-se obrigado a solicitar a bênção do Grande. Devia ter pensado melhor. Mas o nosso Milo é um homem simples; simples no sentido virtuoso, como se supõe que eram os nossos antepassados. Tendo já feito tantos favores a Pompeu, Milo presumiu que o Grande se sentiria obrigado a devolver esses favores, agora que Milo está numa situação complicada. Nem pensar! Quer dizer que os tribunos radicais sabiam desta recusa?

 

Eu acenei com a cabeça.

 

Como foi que Salusto a apresentou? "Pompeu enviou ao patife uma mensagem em que lhe pedia gentilmente que evitasse voltar lá, a fim de lhe poupar o embaraço de se recusar novamente a recebê-lo".

 

Sempre tiveste excelente memória para as palavras observou Cícero suavemente.

 

Na verdade comentou Célio, podias tornar obsoleta a estenografia de Tiro! Voltou-se para Cícero. Mas como é que Salusto e os outros descobriram a mensagem de Pompeu? Ela foi enviada em segredo a esta casa, e não directamente a Milo.

 

Talvez Pompeu não tenha sido tão discreto como queria que nós pensássemos disse Cícero. É bastante fácil soprar as notícias de ouvido em ouvido, até chegarem aos ouvidos dos tribunos. Neste momento, Pompeu está na mesma situação que toda a gente. Está a experimentar as águas.

 

Célio voltou-se novamente para mim.

 

E o que disseram Salusto e os restantes tribunos acerca da subsequente troca de mensagens entre Milo e Pompeu?

 

Eu abanei a cabeça.

 

Limitaram-se a mencionar a visita e a recusa de Pompeu.

 

Pois, bem, nesse caso, talvez Pompeu esteja afinal a ser discreto disse Célio. Estás a ver, Gordiano, Milo ficou bastante abalado quando Pompeu se recusou a recebê-lo. Quando a mensagem de Pompeu, declinando visitas futuras, lhe foi entregue, Milo enviou a Pompeu uma mensagem de resposta, pedindo-lhe que reconsiderasse e oferecendo-se...

 

Célio, disse Cícero.

 

O melhor é contarmos tudo a Gordiano insistiu Célio. Pois bem, Milo ofereceu-se para se retirar da corrida a cônsul, se Pompeu o desejasse. "Uma palavra tua, Pompeu Magno, e, para o bem de Roma, estou disposto a abandonar as minhas ambições de a servir." Claro que, na realidade, estava à procura de algum encorajamento indirecto... "Não, não, caro amigo, é só por razões políticas que não posso receber a tua visita, mas claro que deves candidatar-te!" Mas não foi isso que aconteceu.

 

O que disse Pompeu?

 

Aparentemente, o Grande está demasiadamente acima da refrega para se incomodar com as mesquinhas ambições de Milo. Mandou-lhe uma resposta seca: "Não me compete dizer quem deve, ou não, concorrer aos diversos cargos. Não me passa pela cabeça impor a minha opinião ao povo romano, que é perfeitamente capaz de fazer os seus próprios juizos sem os meus conselhos." Frio, frio! Tão gelado como a chuva que cai lá fora.

 

Cícero abanou a cabeça.

 

Não foram pequenos favores, os sacrifícios que Milo fez por Pompeu ao longo dos anos. Mas, agora que Milo está com problemas e que Clódio deixou de ser uma ameaça, Pompeu anseia ardentemente afastar-se de Milo!

 

Pompeu ainda pode mudar de atitude, se lhe fizerem ver que é do seu interesse disse Célio.

 

Não podemos contar com isso replicou Cícero. Milo terá de tomar as suas decisões sem o apoio de Pompeu.

 

Célio acenou com a cabeça.

 

Concordo. Esta noite propagar-se-á a notícia da salvação de Lépido. Isso contará a favor de Milo; Milo representa a ordem e a tradição, contra a plebe sem lei. E não devemos subestimar o ressentimento que as pessoas equilibradas têm contra os Clodianos por terem pegado fogo ao Senado. Penso que podemos contar com uma multidão favorável amanhã.

 

Amanhã? disse eu. Célio sorriu.

 

Vai ser convocado novo chino contio, desta vez por mim. Não deixes de estar presente, Gordiano. Vamos combater o fogo com o fogo.

 

Espero que essa declaração não deva ser tomada literalmente. Célio riu-se.

 

Na manhã seguinte, Eco foi bater-me à porta bem cedo, carregado de notícias.

 

Papá, não ouviste falar do que aconteceu em casa de Lépido ontem, depois do contio?

 

Ouvi.

 

Parece que foi uma batalha e tanto. Sangue pela casa toda, segundo ouvi dizer. Os bustos ancestrais destruídos para sempre. O fio dos teares cerimoniais todo enredado. Mas ele ficará conhecido como o inter-rei que soube manter-se firme diante da multidão já teve os seus cinco dias de fama!

 

Tivemos uma sorte incrível pelo facto de a violência não ter começado logo no Fórum, enquanto nós estávamos metidos no meio daquela multidão. E se o pequeno exército de Milo tivesse aparecido por ali, em vez de esperar emboscado em casa de Lépido? Eu estou velho, Eco. Não sou capaz de fugir a uma turba.

 

Ninguém te obrigou a ir ao contio, papá. Eu resmunguei.

 

Não confias nos meus novos guarda-costas? Voltei a resmungar.

 

Presumo que a comissão senatorial escolha hoje um novo inter-rei.

 

É o que se diz por aí. Ninguém sabe onde vão reunir-se, provavelmente, será fora dos muros da cidade. Guardaram segredo acerca do local, com receio de outro bloqueio ou de mais uma batalha. O novo inter-rei terá autoridade para convocar eleições, mas estando as coisas confusas como estão, não me parece provável que tenhamos novos cônsules nos próximos cinco dias. Oh, e por falar de confusão, vai haver outro contio hoje, desta vez...

 

Convocado por um tribuno menos radical, Marco Célio.

 

Sim, e diz-se...

 

Que o próprio Milo poderá tomar a palavra. Eco olhou para mim maliciosamente.

 

Papá, estás muito bem informado, para quem não põe os pés no Fórum, a não ser arrastado por mim. Alguma coisa me diz que estiveste novamente em contacto com Cícero. Conta-me tudo.

 

Forneci-lhe os pormenores da minha visita a casa de Cícero, no dia anterior.

 

Eco tirou as suas próprias conclusões.

 

Pompeu está a comportar-se como um patife, não está?

 

Oh, não sei.

 

Que traidor! Milo foi seu aliado durante anos, e agora...

 

Ah, mas pormenores como o assassínio podem azedar as relações mais sinceras. Se Milo matou Clódio, até onde se estendem as obrigações de amizade de Pompeu.

 

Eco olhou para mim, zombeteiro.

 

Por que dizes "se"?

 

O que queres dizer com isso?

 

Disseste "Se Milo matou Clódio".

 

Oh, suponho que disse...

 

Bem, não percebo por que razão defendes Pompeu. Esse "pormenor", este assassínio, parece ter servido para aumentar o apoio de Cícero a Milo.

 

Sim, não podemos criticar a lealdade de Cícero.

 

Acho que é por serem tão parecidos.

 

Cícero e Milo? Pensei em Cícero frágil na juventude, dispéptico na idade adulta, astuto, calculista, um modelo de bom gosto e refinamento e depois em Milo, que parecia ser o contrário, com o seu físico robusto e bovino, as suas maneiras dissimuladas e uma dureza de carácter que nem o dinheiro nem a educação tinham conseguido suavizar. Parecidos em que aspecto, Eco?

 

Bem, são os dois mais brilhantes Homens Novos, não são, as duas estrelas mais luminosas do firmamento? Ou seriam, se Milo conseguisse fazer-se eleger cônsul.

 

O evento atraiu uma multidão considerável ainda maior do que a multidão que na véspera tinha participado no contio dos tribunos radicais. A notícia da batalha em casa de Lépido tornara as pessoas ainda mais inquietas e ansiosas. Como já disse, em tempos de dificuldade, os Romanos têm o instinto de se reunir em grandes grupos para ouvir discursos.

 

Abrindo caminho com a ajuda dos guarda-costas de Eco, e apesar da confusão, conseguimos encontrar um bom lugar, diante da plataforma dos oradores. Observei o mar de rostos que nos rodeavam, tentando avaliar o estado de espírito da multidão. Reparei em diversos sujeitos enfadonhos e conservadores, homens de meios acompanhados por grandes comitivas de guarda-costas e criados, vestindo togas imaculadas em lã de qualidade superior. Eco apontou para um espécime desse género, que se encontrava perto de nós.

 

Homem de negócios disse ele.

 

Banqueiro contrapus eu, só pelo prazer de o contradizer.

 

Pró-Milo.

 

É mais natural que seja antiClódio. E provavelmente está mais irritado com o incêndio da Basílica Porciana do que com a perda do Senado.

 

Eco acenou com a cabeça.

 

Provavelmente, ficou impressionado com o facto de os homens de Milo terem salvo Marco Lépido.

 

Provavelmente espera que alguém faça o mesmo por ele quando a multidão lhe atacar a casa.

 

Mas será Milo homem para ele?

 

Talvez seja isso que ele veio decidir.

 

Mais numerosos do que os comerciantes e os banqueiros abastados, eram os cidadãos de aparência mais modesta, porventura donos de pequenas lojas ou trabalhadores livres. Eco acenou na direcção de um desses homens, que se encontrava ali perto, um sujeito de aspecto carregado acompanhado por um único escravo, que vestia uma toga com a orla já gasta.

 

Aquele ali parece ter menos a perder do que o nosso amigo banqueiro.

 

E menos com que recomeçar. Um incêndio no seu bloco de apartamentos podia dar completamente cabo

dele.

 

Bem, se o pior acontecer, Milo passará fome. Pode sempre recorrer à distribuição gratuita de cereais que Clódio instituiu.

 

Eu abanei a cabeça.

 

As pessoas do género dele querem que o Estado mantenha ordem, e não que faça uma distribuição gratuita de cereais. Ele não anseia menos pela estabilidade do que o nosso amigo banqueiro.

 

Achas que é por isso que está aqui? Que veio à procura da Lei e da Ordem?

 

Por que não?

 

Vamos investigar. Pegou-me no braço e deslizámos por entre a multidão, para consternação dos guarda-costas de Eco, que tiveram alguma dificuldade em nos seguir.

 

Cidadão disse Eco, eu não te conheço? O homem olhou para ele, avaliando-o.

 

Não me parece.

 

Sim, tenho quase a certeza de que frequentamos a mesma taberna. Sabes, aquele sítiozinho...

 

Os Três Golfinhos?

 

Exactamente! Sim, tenho a certeza de que já conversámos um com o outro.

 

Talvez. A expressão carregada do homem aligeirou-se um pouco.

 

Oh, lembras-te de que uma vez nos rimos bastante com aquele tipo divertido que lá trabalha...

 

Estás a falar de Gaio? Sim, é um sujeito estranho. O homem soltou uma pequena gargalhada.

 

E, claro... Eco fez um gesto de mãos, sugerindo um estômago avantajado.

 

O homem fez um sorriso de esguelha e acenou com a cabeça.

 

Ah, a filha do velhote. Aquela que ele afirma que ainda é virgem. Ah!

 

Eco deu-me uma pancadinha discreta com o pé, como que a dizer: Já o apanhei. Ganhar a confiança de um indivíduo totalmente desconhecido foi um dos truques que Eco aprendeu comigo, e que gosta de exibir ao seu mestre. Vi-o olhar rapidamente para as mãos do homem, avaliando os dedos gretados e as manchas vermelhas por baixo das unhas.

 

Ainda trabalhas como tintureiro?

 

Claro. Lavar e tingir, lavar e tingir. Ali na Rua dos Pisoeiros. Todos os dias, já há mais de 20 anos.

 

A sério? Eco baixou a voz para um tom de confidência. Diz lá, quanto é que eles te deram?

 

O quê?

 

Esta manhã. Estás a perceber-me. Quanto é que os homens de Milo te deram?

 

O tintureiro olhou para Eco, e depois lançou-me um olhar cauteloso.

 

- Não há problema disse Eco. O tipo está comigo. É um mudo inofensivo.

 

Eu dei-lhe um discreto pontapé no tornozelo. Aquilo era uma piada nossa, era Eco quem tinha sido mudo, e não eu. Agora, ele impedira-me eficazmente de pronunciar palavra.

 

Então, quanto é que eles te deram? perguntou Eco de novo.

 

- O mesmo que aos outros, imagino eu, disse o tintureiro.

 

Sim, mas quanto?

 

Bem, não gosto de referir as quantias exactas. Mas foi o suficiente. O homem deu umas palmadinhas numa bolsa que tinha metida dentro da toga, produzindo um ruído metálico abafado. E a promessa de um pouco mais se eu votar nele quando chegar o momento. E a ti?

 

Cem sestércios disse Eco.

 

O quê? Cem? A mim só me deram metade!

 

Ah, mas eles deram-nos cem para os dois. Eco indicou-me com o dedo.

 

O homem acenou com a cabeça, apaziguado pela explicação de Eco. Depois franziu o sobrolho.

 

Mas, se o teu amigo é mudo e nem sequer pode gritar em apoio dele, não me parece justo pagar-lhe o mesmo...

 

Ah, mas como podes ver, cada um de nós tem dois escravos, homens de pulmões saudáveis, e parece-me que tu só tens um. Apesar de o meu amigo ser mudo, nós somos cinco vozes, contra as tuas duas.

 

Pois, bem, suponho que sim...

 

Então, cidadão, o que te parece tudo isto? Com um gesto expansivo, Eco indicou o Fórum, e por extensão a crise que afectava Roma.

 

O tintureiro encolheu os ombros.

 

O mesmo de sempre, mais pior. Só que agora eles passaram da difamação ao assassínio puro e simples. A nossa sorte era que se matassem uns aos outros, a começar pelos de cima. Limpavam-se todos! Mas sabes o que acontece quando os grandes começam a cair caem por cima de nós, os pequenos, e esmagam-nos.

 

Eco acenou com a cabeça, compreensivamente.

 

Quer dizer que não és um apoiante particularmente entusiasta de Milo?

 

Fah! O homem enrolou o lábio com desdém. Oh, ele é melhor que alguns outros, disso não há dúvida, de outra maneira eu não teria vindo. Nem que me pagassem muito bem iria a um contio convocado pelos Clodianos. Esse sujeito, o Clódio, era pior do que um animal com o cio. Fazia a própria irmã! E dizem que, quando era miúdo, se vendia a velhos ricos. Conheces a canção "Para progredir, ia com eles, e depois levava a irmã para a cama". E...

 

Então e a distribuição de cereais?

 

O homem ficou subitamente inflamado.

 

Outro esquema para se tornar mais poderoso! Sim, Clódio estabeleceu a distribuição de cereais mas quem foi o encarregado de organizar as listas dos cidadãos elegíveis? Sexto Clélio! Pois é, o principal homem de mão de Clódio, aquele que pegou fogo ao Senado. Corrupto como não há outro! Não me fales da distribuição de cereais. Foi um regabofe!

 

Um regabofe? perguntou Eco.

 

Claro. Não me digas que não sabes como aquilo funciona.

 

Esclarece-me.

 

Muito bem: Sexto Clélio convence um homem a libertar metade dos seus escravos domésticos. Os escravos passam a libertos, mas para onde vão eles? Continuam a trabalhar para o antigo senhor, continuam a viver em sua casa. No entanto, como libertos, podem recorrer à distribuição de cereais, de maneira que o senhor não tem de continuar a alimentá-los. É o Estado que os alimenta! Por sua vez, Sexto Clélio integra estes novos libertos no bando dos clodianos, e manda-os circular pelas ruas à noite, com um ar importante, e participar nos contios afim de aterrorizar a oposição. Além disso, podem votar. A distribuição de cereais! Clódio apresentou o negócio como um grande favor que tinha feito ao homem comum de Roma, a pessoas como eu, proporcionando-nos uma maneira de nos alimentarmos em tempos de escassez. Mas aquilo foi apenas uma maneira de ele arranjar novos eleitores e membros para o seu bando alimentando-os à custa do Estado! Digo-te uma coisa, eu nasci cidadão, e enfurece-me ver os ex-escravos do bando de Clódio terem os mesmos privilégios que eu. Esse Clódio sempre se meteu em esquemas, até ao fim dizem que andava a planear conceder ainda mais poder aos libertos. Se tivesse conseguido o que queria, teria destruído o Estado e colocado o seu bando a gerir as coisas. Depois teríamos o Rei Clódio a cortar cabeças à direita e à esquerda, e uma data de ex-escravos a perseguir-nos a todos. Estamos bem melhor com ele morto, isso te garanto. Milo fez muito bem. Não me importo de vir aqui gritar-lhe umas palavras de encorajamento.

 

E se, além disso, ficares com a bolsa um bocadinho mais pesada... disse Eco.

 

E por que não?

 

Claro, por que não? Bem, depois volto a falar contigo, cidadão. Talvez nos encontremos de novo no Três Patos.

 

No Três Golfinhos? disse o tintureiro.

 

Exactamente! Eco sorriu e retirou-se, tomando-me o braço.

 

Bem, papá, eu tinha ou não razão sobre o sujeito?

 

Pelo contrário, Eco. Era eu que tinha razão. Tal como eu supunha, o nosso amigo tintureiro veio hoje aqui apoiar a Lei e a Ordem.

 

Claro que não! Papá, o homem foi subornado, provavelmente como três quartos, ou mais, dos presentes. Eu sabia que tinha visto alguns dos homens de Milo a distribuir dinheiro quando passei pelo Fórum esta manhã, a caminho de tua casa. Calculo que devamos sentir-nos insultados com o facto de a nós não nos terem oferecido nada.

 

Por esta altura, os distribuidores de subornos já nos conhecem, Eco.

 

Acho que é isso. Esta pequena reunião está a custar a Milo uma somazinha simpática.

 

É.

 

Sim, mas eu tinha razão.

 

Sobre quê?

 

Sobre o motivo por que o nosso amigo tintureiro está aqui. Veio atrás da Lei e da Ordem.

 

E de um suborno disse Eco.

 

E de um suborno concedi eu.

 

Célio e Milo não tardaram a chegar, rodeados por uma grande comitiva. Enquanto abriam caminho por entre a multidão, as pessoas estendiam o pescoço para conseguir ver Milo e, quando o avistaram, muitos começaram a aplaudir. A animação parecia genuína, e por que não? Para o melhor e para o pior, Milo era o homem do momento, e esta era a sua primeira aparição em público desde o incidente na Via Ápia. Todos os olhares estavam fixados nele. Todos os ouvidos estavam ansiosos por ouvi-lo falar.

 

Com ou sem subornos, Milo tinha muitos apoiantes. Há muito tempo que fazia campanha para o consulado e, num esforço para alargar os seus apoiantes para além dos Melhores, tinha gasto uma fortuna em jogos e espectáculos extravagantes. Roma adora os políticos que sabem encenar espectáculos. Há magistrados que têm como incumbência própria dos seus cargos organizar espectáculos em diversas festas anuais, à sua própria custa. Outros homens organizam-nas na qualidade de cidadãos privados, à laia de jogos funerários. Seja qual for o pretexto, todos os políticos que sobem os degraus da magistratura são obrigados a ultrapassar os seus rivais na produção das mais memoráveis corridas, comédias e combates entre gladiadores. A prática está de tal maneira estabelecida, que ninguém parece aperceber-se de que oferecer ao público este género de entretenimentos é um suborno eleitoral tão efectivo como depositar moedas directamente na bolsa dos eleitores. Hoje em dia, as pessoas parecem ter perdido a vontade de objectar, mesmo a isso.

 

Marco Célio subiu à plataforma e pediu ordem ao contio.

 

Célio fora treinado em oratória desde a juventude, tanto por Cícero, como pelo falecido Marco Crasso. Era o mais brilhante aluno de ambos. Dominava os aspectos formais da construção de um discurso, bem como as técnicas de modulação da voz e do seu lançamento a grandes distâncias, mas o mais notável era o facto de, ao longo dos anos, ter construído um estilo sarcástico e perverso que estabelecia o tom de toda a sua geração. Quando os oradores mais velhos, ansiosos por alcançarem novos efeitos, tentavam emular o seu estilo, o resultado era frequentemente banal e estridente, mas isso nunca acontecia quando era o próprio Célio a praticá-lo. Era essa a sua genialidade, ser capaz de enfeitiçar uma grande multidão com o mesmo encanto que dele emanava em situações mais íntimas, mas sem os recortes irónicos que muitas vezes sentíamos na sua presença imediata. Ele era capaz de pronunciar as mais horríveis insinuações e as mais obscenas frases de duplo sentido numa reunião pública sem parecer vingativo nem vulgar. Parecia apenas naturalmente inteligente e espirituoso, e perfeitamente sincero. Isto dava-lhe um poder tremendo como orador.

 

Célio não estava verdadeiramente no seu elemento a desempenhar o papel de instigador das multidões num contio. Saía-se melhor em tribunal, especialmente na posição de acusador, derramando o seu fel sobre uma vítima profundamente embaraçada, diante de um público composto por juizes cultos e capazes de o apreciar, homens educados como ele próprio, que gostavam de jogos de palavras rápidos e convolutos. Apesar disso, Célio iniciou o seu contio com a autoconfiança que o tornara famoso, uma atitude que era impossível de simular.

 

Caros cidadãos de Roma! Vedes hoje ao meu lado, aqui na plataforma, um homem que bem conheceis Tito Ânio Milo. O seu nome tem estado ultimamente nos lábios de todos vós. Fostes deitar-vos a meditar nele, perguntando a vós próprios afinal que género de homem é este Milo. Acordastes de manhã pensando onde estaria ele. E considerastes, a todas as horas do vosso dia, a mesma interrogação terrível com que certamente vos confrontais neste momento: Quando terminará esta loucura?

 

Bem, estamos aqui à procura de respostas. Não será amanhã, nem noutro sítio qualquer, mas aqui e agora. Primeiro, podeis deixar de vos interrogar acerca do paradeiro de Milo ele está aqui, na vossa frente, com a cabeça bem levantada, apresentando-se orgulhosamente no coração da cidade que tem servido, há tanto tempo e tão fielmente. Talvez tenhais ouvido boatos de que Milo deixara Roma para sempre, e não tencionava regressar. Sim, vejo alguns de vós acenar com a cabeça. Ridículo!

 

Pensai no que mais profundamente amais em todo o mundo. Poderíeis separar-vos disso, ou abandoná-lo, fosse por que razão fosse? Não! Nem que tivésseis de morrer. Nem, e aqui baixou a voz que tivésseis de matar. É esse o amor que Milo tem por Roma. Ele nunca abandonará a cidade.

 

O que nos conduz novamente à primeira questão. Que género de pessoa é Milo, que carácter é o seu? Isso é algo que cada um de vós terá de decidir pessoalmente, quando tiver oportunidade de o ouvir. Sim, Milo falar-vos-á hoje. As regras permitem-lhe falar, já que é Milo o objecto deste contio, e eu exijo que ele fale, na minha qualidade de tribuno que o convocou. Exijo-lhe que fale, dizia, porque Milo não está connosco voluntariamente. Oh não! Eu tive de o arrastar para aqui, contra a sua vontade. Parece-vos que estaria interessado em abandonar a segurança de sua casa para se passear por uma cidade onde vivem loucos que organizam tumultos, ameaçando-o de morte? Milo é extraordinariamente corajoso, mas não é tolo. Não, ele só veio porque eu insisti em que viesse, porque eu, como vosso tribuno, lho exigi.

 

O que nos conduz à terceira questão, que pesa como uma pedra em todos nós, e nos enche a cabeça como o fedor das ruínas fumegantes do Senado: Quando terminará esta loucura? Receio que ela só termine quando se fizer alguma coisa relativamente à morte de Clódio. Quando esse desagradável incidente encontrar descanso, como a sombra do próprio Clódio terá supostamente encontrado descanso quando os amigos o incendiaram como um feixe no Senado. Como morreu Clódio, por quê, e quem o matou? Os amigos de Clódio afirmam que foi cruelmente atacado e morto sem razão. Apontam o dedo da culpa a Milo. Chamam-lhe assassino. Insinuam que ele tenciona matar de novo, e que da próxima vez a sua vítima será um homem bem mais reverenciado, bem maior do que Clódio alguma vez foi.

 

Levemos, pois, Tito Ânio Milo a julgamento. Sim! Aqui mesmo, agora mesmo, levemo-lo a julgamento por assassínio. Não será um julgamento como o dos magistrados, com jurados escolhidos entre os membros do Senado e as ordens superiores. Fostes vós, o povo, os cidadãos de Roma, que sofrestes o caos dos últimos dias, por isso trago o assunto directamente à vossa presença, à presença do povo, e solicito o vosso juízo com toda a seriedade. Como vedes, não vim tecer elogios a Mllo; vim julgá-lo! E, se vós determinardes que ele é um assassino vicioso, que planeia novos assassínios, então que abandone a nossa companhia. Sim! Que seja banido, mandemo-lo para o exílio e tornemos verdadeiro esse boato vicioso. Expulsemos Milo do coração da cidade que ele ama, para o deserto!

 

Nesta altura, ouviram-se entre a multidão gritos dispersos de indignação, como se a ideia do exílio de Milo os escandalizasse. Apercebi-me de que o nosso amigo, o tintureiro, foi dos primeiros a erguer a sua voz em protesto. Não tardou a juntar-se a ele um coro arrebatado. Alguém tinha feito um excelente trabalho, semeando os seus apoiantes entre a multidão. Mas também reparei que o homem a quem eu chamara banqueiro gritava igualmente o seu protesto, indicando por gestos aos membros da sua comitiva que o imitassem; certamente que um homem abastado como ele não tinha sido comprado por uns meros 50 sestércios.

 

Célio ergueu as mãos, pedindo silêncio, e fez uma expressão de consternação.

 

Cidadãos! Por favor, contende-vos! Amais Milo, como Milo ama Roma; compreendo-o. Apesar disso, temos de chamá-lo à pedra. Ele deve ser julgado, e temos de ser prudentes no nosso veredicto. Chega de aplausos e de gritos, peço-vos. Isto não é um comício de candidatura. É um contio, convocado em tempos de terrível emergência, uma inquirição solene a uma questão que estropiou a nossa cidade com tumultos e incêndios. Aquilo que fizermos aqui hoje será discutido nas sete colinas e para além dos muros da cidade. Os que não podem estar connosco, grandes e pequenos, saberão do vosso juízo. Recordai-vos disso!

 

Eco falou-me ao ouvido:

 

Outra referência a Pompeu?

 

Célio afastou-se para um dos lados da plataforma.

 

Milo, avança!

 

Orgulhoso, de cabeça bem erguida eis como Célio descrevera Milo. É verdade que ele não tinha o passo incerto e o olhar furtivo de um homem assolado pela culpa. Avançou sem hesitar e com um ar de grandiosa, quase insolente, autoconfiança. A toga ficava-lhe melhor ao tamanho do que aquela com que eu o tinha visto em casa de Cícero, e estava pregueada e dobrada de forma a transmitir a melhor impressão possível do seu físico baixo e atarracado. O seu queixo, habitualmente sombreado de barba, estava tão pálido, que eu perguntei a mim próprio se ele teria aplicado algum cosmético.

 

Num tribunal a sério, esperar-se-ia dele que vestisse a toga mais velha, que arrastasse os pés como um velho, que viesse por pentear e que trouxesse a barba por fazer; os jurados esperam que um homem acusado explore a sua simpatia. Era óbvio que Milo não estava para aí voltado. Apresentar-se a julgamento, mesmo que fosse um julgamento fingido, mais com aspecto de candidato orgulhoso, do que de acusado ansioso, era um acto de puro desafio. E a multidão, que estava do seu lado, adorou aquela atitude. Apesar das advertências de Célio, ecoou pelo Fórum um aplauso sonoro e aparentemente espontâneo. Os lábios de Milo contorceram-se num sorriso de esguelha e ele ergueu ainda mais o queixo.

 

Célio fez uma expressão severa e ergueu os braços, pedindo silêncio.

 

Cidadãos, tenho de recordar-vos para que estamos aqui? Procedamos. Que Tito Ânio Milo faça um relato das suas acções.

 

Célio recuou para conceder a Milo o total domínio da plataforma; Milo pertencia à escola gestual de oratória, que exige uma actuação expansiva, e que era, em muitos sentidos, o oposto da de Célio. O seu forte não era a pequena graça que só mais adiante desabrocha em hilariedade, nem a sugestão elegante que esconde um punhal afiado. Milo representava aquilo a que Cícero certa vez ridicularizara como a escola de oratória do martelo e da canga: Acentuam todos os pontos com um martelo pesado, põem-nos sob o jugo da canga das metáforas, e depois levam-nos até ao mercado.

 

Mas nem todos os oradores podem ser como Cícero ou Célio; cada um tem de encontrar o estilo que mais se lhe adequa, e a seriedade obstinada, próxima do desafio estólido, era o que se adequava a Milo. Nessa manhã, agitando os braços enquanto andava de um lado para o outro na plataforma, ele parecia totalmente honesto e ingénuo, embora eu soubesse que todas as suas palavras e os seus gestos deviam ter sido cuidadosamente trabalhados e ensaiados, uma vez e outra, no escritório de Cícero.

 

Caros concidadãos desta amada cidade! O meu amigo Marco Célio tem razão a loucura que nos ameaça a todos não será afastada enquanto não forem conhecidas as verdadeiras circunstâncias da morte de Públio Clódio. Não sei o que ouvistes dizer acerca da sua morte apenas posso imaginar os horríveis boatos que têm circulado e as calúnias perversas que têm sido lançadas contra mim e contra os meus leais servidores, que arriscaram corajosamente as suas vidas para salvar a minha.

 

Não sou do género de fazer discursos agradáveis. Serei breve e preciso. Apenas vos posso falar daquilo que sei.

 

Há nove dias, saí de Roma para uma curta viagem pela Via Ápia. Alguns de vós saberão que tenho um cargo local na minha cidade natal, Lanúvio. O ano passado, os meus concidadãos lanuvianos elegeram-me "ditador" uma maneira exótica de referir o principal magistrado. O cargo não é exigente, mas tenho de lá ir de vez em quando, cumprir as minhas obrigações. Foi o caso. Fui convocado para nomear um sacerdote do culto local de Juno, que presidirá ao festival da deusa no próximo mês. O patrocínio de Juno a Lanúvio remonta aos tempos antigos, antes de os Lanuvianos terem sido conquistados por Roma. O seu festival é o dia mais importante do ano em Lanúvio. É tradicional os cônsules romanos assistirem. Por isso, tenciono regressar a Lanúvio no próximo mês, nessa qualidade porque vai haver eleições, e eu vou ser eleito cônsul!

 

Houve uma explosão de aplausos. Milo esperou que eles abrandassem.

 

Nessa manhã, assisti à reunião habitual do Senado, que acabou por volta da quarta hora do dia. Depois, voltei a casa para vestir roupas de viagem. A minha mulher ia comigo. Eu teria preferido partir imediatamente daqui até Lanúvio são cerca de 25 quilómetros, uma viagem que se faz com toda a facilidade num só dia quando se sai suficientemente cedo. Mas, com todos os preparativos de última hora dela, sabeis como são as mulheres, só saímos de Roma depois do meio-dia. Para conforto dela, viajámos numa carruagem aberta, embrulhados em capas pesadas. Eu teria preferido viajar de forma mais ligeira, mas a minha mulher insistiu em levar as suas criadas e os seus criados, por isso tínhamos uma comitiva bastante comprida.

 

Como sabeis, a Via Ápia dá para o Sul, direita como uma seta e plana como uma mesa. Só nas proximidades do Monte Alba é que a estrada dá umas voltas e começa a subir um pouco. Há umas casas grandiosas nessa zona. Pompeu tem uma villa nos bosques, não muito longe da estrada. Públio Clódio também tinha. Quem me dera ter-me recordado disso, e ter sido mais cauteloso.

 

Clódio devia estar a par do meu plano de ir nesse dia a Lanúvio não era segredo. Talvez soubesse também que eu iria acompanhado pela minha mulher e pelos criados dela, embaraçado com uma comitiva muito pouco bélica. Disseram-me que Clódio tinha declarado em público, poucos dias antes, que tencionava matar-me num prazo de dias. "Não podemos tirar o consulado a Milo, mas podemos tirar-lhe a vida!" Foi o que ele disse. E era nesse dia que ele tencionava cumprir essa ameaça, naquele ponto isolado da Via Ápia.

 

Descobri posteriormente que Clódio tinha partido de Roma súbita e discretamente no dia anterior. Para se preparar para a minha chegada, para se pôr à minha espera. Devia ter batedores colocados ao longo do caminho, que avançariam mais depressa para lhe comunicarem que eu estava a chegar. Escolheu um local em que uma elevação do terreno lhe conferia vantagem. Eu ia numa carruagem, acompanhado por uma série de mulheres e jovens criados, e Clódio estava a cavalo, acompanhado pelo seu bando de assassinos treinados, escondidos atrás das árvores à beira da estrada, à espera que eu chegasse.

 

A emboscada teve lugar por volta da décima primeira hora do dia. O Sol começava a esconder-se por trás das árvores mais altas. E depois foi o ataque, confusão, gritos, sangue. Se fosse um pássaro que na altura voasse por cima das nossas cabeças, talvez pudesse contar-vos exactamente o que se passou. Mas para mim, que ia sentado na carruagem com a minha mulher, tudo começou num piscar de olhos. De repente, vi uma série de homens com espadas na mão a bloquear a nossa passagem. O meu condutor deu-lhes um grito. Eles correram para ele, puxaram-no da carruagem abaixo e esfaquearam-no até à morte diante dos meus olhos! Eu atirei fora a capa. Peguei na espada e saltei do veículo. Por Hércules, os gritos da minha mulher ainda ecoam nos meus ouvidos! Os homens que tinham morto o meu condutor dirigiram-se a mim, mas no fundo eram uns cobardes. Uns movimentos da minha espada e fugiram como coelhos! Quando Milo imitou a acção com uns golpes amplos pelo ar, não foi difícil imaginar os homens a fugirem dele.

 

Nessa altura, apercebi-me de que havia mais homens a atacar a comitiva, atrás de mim. No meio da confusão, vi Clódio em pessoa, escarranchado em cima de um cavalo. Voltou-se e viu a minha amada Fausta. Ouviu-a gritar. Não me viu, a carruagem bloqueava-lhe a visão. Mas deve ter visto a minha capa amarfanhada e pensou que eu ainda estava dentro da carruagem com Fausta, abatido, morto porque gritou aos companheiros: "Apanhámo-lo! Milo está morto! Está finalmente morto!"

 

Deixem-me dizer-vos, cidadãos, que é uma coisa verdadeiramente estranha, ouvir alguém proclamar a nossa morte num tom jubiloso. Lá atrás, na comitiva, os meus guarda-costas tentavam abrir caminho até junto da carruagem para me ajudar, quando ouviram Clódio regozijar-se com a minha morte. Podereis censurá-los pelo que aconteceu a seguir? Lutaram para se defender, é certo, mas também lutaram porque estavam furiosos, porque pensaram que o seu senhor fora assassinado e que a sua senhora corria um perigo terrível. No meio da escaramuça, aproximaram-se de Clódio e, quando a escaramuça acabou, Clódio estava morto. Eu não lhes ordenei que o matassem. Aconteceu sem meu conhecimento e fora da minha presença. Serão os meus escravos dignos de censura? Não! Fizeram exactamente o que qualquer homem teria gostado que os seus escravos fizessem em situação idêntica. Não tenho razão?

 

Ouviu-se um rugido de concordância proveniente da multidão. Reparei que o banqueiro se mostrava particularmente entusiasta.

 

Milo pareceu retirar forças da multidão. Continuou a gritar por cima do rugido. As veias do seu pescoço aumentaram de volume e ficou com a cara muito vermelha.

 

Se a emboscada de Clódio tivesse sido bem sucedida, quem estaria hoje morto seria eu! Espetou repetidamente o pescoço com o indicador, o suficiente para deixar marcas. Seria para Clódio que todos estariam a apontar. Toda a gente estaria a acusar Clódio de assassínio, e a dizer que Clódio era uma ameaça para... Milo conteve-se. Era preferível não dizer o nome do Grande em voz alta. Mas Clódio fracassou! Clódio perdeu! Pagou o preço da sua maldade. Foi ele a causa da sua própria morte, e eu não estou disposto a ser responsabilizado por ela!

 

Isto provocou aclamações ainda mais ruidosas. Milo pôs-se nas pontas dos pés, apertando os punhos com os braços estendidos ao longo do corpo e gritando para se fazer ouvir. Tinha uns pulmões extraordinariamente fortes.

 

Nada lamento! De nada peço perdão! E recuso-me a pronunciar palavras vazias de consolo à sua viúva e aos seus filhos, e ainda menos àquela torpe irmã dele. A sua morte foi o maior presente que os deuses poderiam dar a Roma. Se o tivesse estrangulado com as minhas próprias mãos, não me sentiria envergonhado de o dizer! Se o tivesse morto a sangue-frio, se o tivesse apanhado de surpresa e esfaqueado nas costas, ainda me sentiria orgulhoso!

 

Célio avançou apressadamente, com uma expressão de rigidez no rosto. Inclinei-me na direcção de Eco.

 

Acho que Milo foi para além do que tinha sido combinado. Célio ergueu a mão esquerda, pedindo silêncio. Estendeu a mão direita para o ombro de Milo. Milo tentou sacudi-lo, mas Célio acentuou a pressão, até Milo se retrair e lhe lançar um olhar irritado.

 

A multidão ignorou o pedido de silêncio, e começou a cantar como se estivesse num comício eleitoral. Iniciaram-se imediatamente diversos cantos diferentes. O resultado era ensurdecedor. O tintureiro juntou-se àqueles que recitavam uns antigos versos macarrónicos sobre Clódio e a irmã:

 

Clódio fazia de menina quando era um rapazinho! E Clódia fez do rapazinho o seu brinquedo!

 

Este canto foi repetido uma vez e outra, pontuado por vaias de risos e entoado cada vez mais alto, para competir com outro canto, ao qual aderiram o banqueiro e a sua comitiva:

 

Cereais de graça, cereais de graça,

 

são apenas trampa

 

do olho de Clódio!

 

Paus grandes, paus pequenos

 

todos eles desaparecem pelo olho de Clódio acima!

 

No alto da plataforma, Milo desatou a rir. O seu rosto assumiu um tom apoplético de vermelho. Ria-se tanto, que começou a chorar. Parecia um homem que durante horas e horas mantivera uma pose torturada, forçando todos os seus tendões até à agonia, e que subitamente não consegue continuar a manter a mesma pose. Agitava-se de uma forma tão convulsiva, que quase parecia incapaz de se manter de pé.

 

Célio desistiu de acalmar a multidão. Tinha no rosto uma expressão divertida e vagamente preocupada, como quem diz: Não era exactamente isto que eu tinha em mente, mas acho que também serve...

 

Voltei-me para Eco, curioso de ver qual seria a reacção do meu inabalável filho, mas ele remetera-se ao silêncio, sentindo-se tão confuso como eu próprio me sentia. Ridicularizar os mortos é troçar dos deuses. Havia qualquer coisa de assustador na súbita hilariedade de mofa da multidão, uma sensação vertiginosa de quem vacila à beira de um precipício.

 

Os cantos roufenhos prosseguiam, mas começaram de repente a ser acompanhados por um ruído mais semelhante a gritos do que a gargalhadas. A multidão foi atravessada por um frémito invisível mas palpável, um arrepio de ansiedade. As cabeças voltaram-se confusas, tentando discernir a sua origem. Ao sussurro de apreensão seguiu-se rapidamente uma onda de pânico.

 

Como é que Milo tinha descrito a emboscada na Via Ápia? Confusão, gritos, sangue se fosse um pássaro que na altura voasse por cima das nossas cabeças, talvez pudesse contar-vos exactamente o que se passou mas tudo começou num piscar de olhos.

 

Foi o que aconteceu no Fórum, naquele dia, quando os Clodianos desceram sobre o contio de Célio e de Milo empunhando espadas faiscantes, como um exército de vingança.

 

Nunca fui militar, mas as batalhas não são uma novidade para mim. No ano em que Cícero foi cônsul, estava com o meu filho Meto quando ele combateu do lado de Catilina na batalha de Pistória. Tive uma espada na mão. Vi Romanos matarem Romanos.

 

Já assisti a batalhas. Sei qual é o seu aspecto, o som que produzem, ao que cheiram. O que aconteceu no Fórum, nesse dia, em nada se assemelhou a uma batalha. Foi um massacre.

 

Durante o massacre propriamente dito, não tivemos tempo para pensar em nada, para além da fuga. Só mais tarde é que eu consegui meditar no que tinha acontecido.

 

Houve quem dissesse que o ataque dos Clodianos foi espontâneo, instigado pelos relatos daquilo que Milo e Célio estavam a dizer no contio. Furiosos com a alegação de que Clódio tinha encenado uma emboscada, os seus adeptos, ainda enlutados, decidiram mostrar à multidão reunida no contio o que era uma emboscada. Outros afirmaram que o ataque foi premeditado, como o fora a emboscada de Clódio na Via Ápia, e que os Clodianos só estavam à espera de que Milo aparecesse e que os seus apoiantes se reunissem, para atacarem.

 

Premeditado ou não, o ataque foi bem organizado. Os Clodianos vinham fortemente armados. Não fizeram qualquer tentativa para esconder as armas. Traziam espadas curtas, punhais e mocas. Alguns traziam sacos de pedras. Outros, tochas. Pareciam chegar de todos os lados ao mesmo tempo. Em pânico, a multidão contraiu-se para o interior de si própria, de tal maneira que, inicialmente, o perigo de ser esmagado e pisado por amigos era tão grande como o de ser cortado ao meio ou espancado até à morte por inimigos.

 

Evidentemente que, apesar da lei que proíbe os habitantes da cidade de andarem armados dentro dos seus muros, muitos dos presentes no contio estavam secretamente armados, ou tinham guarda-costas armados, e muitos deles (especialmente os que pertenciam ao bando de Milo) tinham tanta experiência em combates de rua como os Clodianos, de maneira que o recontro não foi totalmente unilateral. Mas os Clodianos dispunham da vantagem estratégica da surpresa e da vantagem táctica de terem cercado a multidão. Também é possível que tivessem uma considerável vantagem numérica como reclamaram posteriormente os partidários de Milo, feridos e derrotados, mas eu duvido de que, na altura, alguém se tivesse incomodado a contar as cabeças.

 

Os adeptos de Milo também alegaram posteriormente que a força de ataque era constituída, em grande medida, por escravos. Os lugares-tenentes de Clódio, declararam, comandavam agora exércitos inteiros de ex-escravos, que lhes eram leais graças às inovações radicais de Clódio, como a distribuição gratuita de cereais. Foi esse o verdadeiro crime que teve lugar naquele dia, disseram as gentes de Milo: o facto de escravos e ex-escravos terem perturbado uma reunião pública e pacífica de cidadãos que tratavam de assuntos de Estado. Em que se tinha transformado a República quando esta ralé de baixa extracção comandava as ruas?

 

Mas, como eu dizia, estas considerações só foram feitas depois. Na altura, reinava o pânico.

 

Eco e eu sentimos o perigo ao mesmo tempo, embora ainda não houvesse nada para ver. Ele agarrou-me no braço e eu agarrei no dele. Os guarda-costas do meu filho voltaram-se para o exterior, formando um anel à nossa volta e meteram as mãos dentro das túnicas, à procura dos punhais.

 

Eco encostou a boca ao meu ouvido.

 

Aconteça o que acontecer, papá, não te afastes de mim!

 

Era mais fácil dizer do que fazer, pensei eu, porque os corpos empurravam-se uns aos outros e eram puxados para um lado e para o outro, como elos de uma armadura testados por um ferreiro. A sensação de ser apanhado numa multidão como esta deve ser igual à de ser arrastado em águas violentas. Um mar de corpos é uma coisa sólida e ondulante, que nos empurra, lutando, como nós, para se manter viva.

 

O ruído tornou-se ensurdecedor juras, pragas, gritos, grunhidos, súbitos queixumes agudos e sons guturais. De repente, vi ao meu lado o tintureiro e o seu escravo. Ele gritava, para ninguém em particular:

 

Eu já sabia que isto ia acontecer! Eu já sabia! Subitamente, abriu-se junto a nós um intervalo na multidão, uma espécie de rasgão num pedaço de tecido. Os Clodianos entraram por ali. Homens de olhos desvairados correram para mim com os punhais erguidos. Tinham os lábios repuxados para trás e os dentes cerrados. Rosnavam como cães.

 

Os guarda-costas de Eco pareciam ter desaparecido, juntamente com o próprio Eco. Eu tinha a multidão em pânico nas costas, como um muro inamovível; misturar-me com ela seria tão fácil como misturar-me com uma pedra.

 

Aquele! gritou um dos atacantes, apontando na minha direcção com o punhal. Apanhem o patife! E correu em direcção a mim.

 

Eu preparei-me para o ataque, lutando contra o impulso de fugir. Sempre prometi a mim próprio que não acabaria como um desses cadáveres que são descobertos com feridas nas costas. Olhei para o rosto do homem, tentando fixá-lo nos olhos, mas o seu olhar desvairado estava concentrado em qualquer coisa situada atrás de mim. Ele desviou-se de mim, e o seu punhal assobiou uma nota aguda ao passar a um dedo da minha orelha. Pelo canto do olho, vi o brilho dos punhais erguendo-se no ar, um após outro, como pássaros de pescoços longos estendendo-os para o céu.

 

Encostei-me à multidão em fuga, tentando voltar a misturar-me no seu anonimato, tentando não ver. Um impulso ainda mais forte compeliu-me a olhar de novo.

 

Os punhais erguiam-se e desciam, erguiam-se e desciam. Iam ao seu encontro outros punhais. Rios de sangue saltavam na vertical, como gritos imobilizando-se no ar gelado. No meio da confusão, detectei o homem que tinha tomado por banqueiro. Era ele que os Clodianos tinham atacado. O seu cordão de guarda-costas fora quebrado e dizimado. Os escravos que tinham caído para o defenderem amontoavam-se à sua volta numa massa informe, os seus corpos manchados de sangue prendendo-lhe as pernas, de tal maneira que ele não conseguia fugir. Os Clodianos rodearam-no como abutres, os seus punhais semelhantes a bicos ameaçadores. Esfaquearam-no uma vez e outra. Enquanto ele se retorcia e agitava, com a boca escancarada num grito silencioso, mãos gananciosas estenderam-se para lhe arrancarem do pescoço o colar de prata e lhe tirarem a saca das moedas do interior da túnica.

 

Os atacantes rodearam-no uma vez mais, e depois avançaram, como um furacão. Por um estranho milagre, o banqueiro mantinha-se de pé. Tinha os olhos e a boca muito abertos de espanto, a toga coberta de sangue. Subitamente, um dos atacantes voltou atrás e, num gesto rápido e competente, como um escravo cioso do seu dever preocupado com os atavios do seu senhor, pegou na mão do homem e tirou-lhe do dedo o anel de ouro com o sinete.

 

O ladrão podia ter ficado por ali mas, tendo voltado atrás para acabar o que começara, pareceu decidido a dar o golpe final. Colocou-se por trás do estupefacto banqueiro e ergueu o punhal ao alto, agarrando-o com ambas as mãos. Eu encolhi-me, como se o golpe fosse para mim.

 

Mas não cheguei a vê-lo cair. Uma mão forte poisou-me no ombro e obrigou-me a voltar. Fiquei a olhar de frente para um jovem maciço, de olhos brilhantes e sorriso ameaçador. Na extremidade do meu campo de visão, vi o brilho do aço e percebi que ele tinha um punhal na mão.

 

Ao longo dos meus quase 60 anos, tenho-me confrontado por diversas ocasiões com a perspectiva da morte iminente. A cadeia de pensamentos que ela provoca é sempre a mesma. Seu idiota, costumo pensar porque me parece sempre que essas situações poderiam ter sido evitadas, ou pelo menos adiadas, seu idiota, chegou então o teu fim. Os deuses perderam o interesse na pequena história da tua vida. Deixaste de os divertir. Vais ser apagado como uma lamparina no fim...

 

É sempre a mesma coisa: os nomes daqueles que amo ecoam dentro da minha cabeça. Recordo o doce som da voz do meu pai, que não oiço há muitos, muitos anos. E, por vezes, em momentos desses, e este foi um desses momentos, vejo o rosto da minha mãe, que morreu quando eu era muito jovem, e cujo rosto não consigo recordar noutras circunstâncias. Naquele instante, recordei-o vivamente, e soube que o meu pai tinha razão quando me repetia, como fazia com frequência, que ela era bela, muito bela...

 

Mas claro que uma parte de mim sabia que eu ainda não estava destinado a morrer, e compreendeu-o imediatamente quando o jovem maciço me disse, num tom de voz impaciente e desesperado:

 

Graças a Júpiter que te encontro! O senhor está furioso! Anda! Tratava-se, evidentemente, de um dos guarda-costas de Eco. Na minha confusão, não o tinha reconhecido.

 

Eco tinha-se retirado para trás de um templo próximo, onde um barraco encostado ao muro liso das traseiras criava um vago esconderijo. É verdade que continuávamos visíveis de duas direcções, dado que o barraco era aberto em ambas as extremidades, mas tratava-se pelo menos de um lugar mais defensável do que o terreno aberto.

 

Papá! Graças aos deuses que Davo te encontrou!

 

Deixa lá os deuses. Graças a Davo. Sorri para o jovem robusto, que me respondeu com outro sorriso. E agora?

 

Eco espreitou para fora, sombriamente. Não se via nada nem ninguém à excepção das paredes brancas, que ecoavam os ruídos da multidão.

 

Talvez pudéssemos ficar por aqui. Não é mau como refúgio transitório, embora ninguém saiba o que teremos de enfrentar a seguir.

 

E que tal se déssemos uma corrida?

 

Talvez seja preferível. Para tua casa ou para a minha?

 

A minha é mais perto disse eu. Mas teríamos de atravessar o Fórum, e calculo que haja mais hipóteses de o tumulto se estender para esse lado, na direcção da casa de Milo. - Senti um arrepio ao pensar na minha mulher e na minha filha, sozinhas em casa, tendo como única protecção uma porta trancada e Belbo.

 

Então vamos para minha casa, papá?

 

Não. Tenho de voltar para junto de Betesda e de Diana.

 

Ele acenou com a cabeça. O ruído do tumulto parecia estar a aumentar, embora pudesse tratar-se apenas de um efeito da acústica. Subitamente, vimos surgir duas figuras do outro lado da esquina do templo. Recuámos para a sombra.

 

Pelas túnicas simples, parecia tratar-se de escravos. Deram a volta à esquina tão depressa, que chocaram um com o outro e quase caíram. O mais alto viu o barraco e apontou.

 

Olha! Podíamos esconder-nos ali!

 

O mais baixo e possante viu o barraco e correu na sua direcção, afastando o companheiro do caminho. Pareciam aqueles escravos cómicos de Flauto, só que, se fosse uma peça, estariam a fugir de uma tareia merecida do seu senhor, e não de um tumulto sangrento.

 

Bolas de Júpiter! disse o mais alto, apressando-se a ir atrás dele. Não precisas de empurrar, Milo!

 

E tu não precisas de dizer o meu nome em voz alta, seu idiota! Anda embora, antes que alguém nos veja

 

Milo entrou dentro do barraco antes de se aperceber de que estava ocupado. A primeira coisa que viu foram quatro punhais, apontados na sua direcção pelos guarda-costas de Eco. Célio, vindo de trás, chocou com ele e empurrou-o para diante. Milo ergueu as sobrancelhas e mostrou os dentes numa careta ao tropeçar para a frente, quase se espetando no punhal mais próximo. Célio, entrevendo o aço, recuou e espreitou para dentro do barraco com os olhos muito abertos.

 

Para trás! disse Eco, chamando os seus guarda-costas. Estes não nos fazem mal.

 

Milo observou os rostos que tinha na sua frente e parou ao ver o meu.

 

Gordiano? És tu? O homem de Cícero?

 

Gordiano, sim. O homem de Cícero não. E tu és Milo, embora ninguém o dissesse, ao olhar para ti. O que fizeste à toga?

 

Estás a brincar? A plebe anda atrás de quem quer que use uma toga. São todos uma raça de escravos e ladrões talha-pescoços, dispostos a matar e a roubar qualquer cidadão que se lhes apresente. Despi a toga logo que tive oportunidade. Graças a Júpiter que trazia esta túnica por baixo.

 

Vejo que também tiraste o anel de cidadão disse eu, olhando para o seu dedo nu.

 

Sim, pois...

 

E vejo que Marco Célio seguiu a tua inspiração. Abanei a cabeça. Dois dos homens mais poderosos de Roma faziam-se passar por escravos e comportavam-se como escravos. Subitamente, não pude impedir-me de rir.

 

Pára com isso! disse Milo.

 

Desculpa. É da tensão. Mas recomecei a rir-me, e não tardou que Eco, e depois os escravos de Eco, se juntassem a mim. Até Célio, sempre pronto a ver o absurdo de qualquer situação, desatou a rir.

 

Mas onde está a tua comitiva, os teus guarda-costas? perguntei.

 

Foram massacrados. Dispersaram. Quem sabe? respondeu Milo.

 

Calculo que não sejam eles? disse eu, com o riso a morrer-me na garganta. Um grupo de homens de punhais na mão surgira de trás da esquina.

 

Oh, bolas de Júpiter! gemeu Célio. Ele e Milo abriram caminho pelo meio do barraco e fugiram pela outra extremidade. Eu segui atrás deles, com Eco e os seus guarda-costas a cobrirem a rectaguarda. Atrás de nós, ouvi o choque do aço e, quando me voltei, vi um dos atacantes tropeçar e cair, agarrado ao peito, no ponto onde Davo o tinha ferido. À visão do sangue jorrando de um dos seus, os outros perderam a coragem e recuaram.

 

Célio e Milo tinham desaparecido. Demos por nós na orla do tumulto, entre os corpos dispersos dos mortos e dos feridos. As pedras da calçada estavam escorregadias por causa do sangue. Da entrada do Templo de Castor e Pólux saíam golfadas de fumo. Na porta ao lado, no alto da Casa das Vestais, a Virgo Máxima e as suas sacerdotisas tinham-se juntado no telhado e observavam a cena com expressões de horror e ultraje.

 

Venham! Por aqui! disse eu, apontando para uma passagem pavimentada entre dois edifícios, que ia dar à base do Palatino e à Rampa. Outros seguiam à nossa frente, subindo a correr o atalho comprido e íngreme como refugiados de uma cidade saqueada. Pareceu-me detectar Célio e Milo mais adiante, progredindo a grande velocidade, e afastando as pessoas do seu caminho à esquerda e à direita.

 

Eu fiquei completamente ofegante antes de chegar ao alto da Rampa. Eco percebeu que eu estava em dificuldades e fez sinal aos guarda-costas para que me ajudassem. Eles agarraram-me nos braços e levaram-me praticamente ao colo nos últimos passos. Atravessámos apressadamente a rua, em direcção a minha casa.

 

De repente, um pouco mais adiante, saiu de uma das casas dos meus vizinhos um grupo de homens armados. O chefe do bando agarrava uma mão-cheia de jóias fieiras de pérolas e correntes de prata pendiam dos seus dedos sujos. Na outra mão, levava um punhal a pingar sangue. A porta da casa tinha sido arrancada dos gonzos.

 

Vocês aí! gritou para nós. Embora estivesse a alguma distância, cheirou-me a vinho e a alho. O alho dava energia, era um antigo truque dos gladiadores; o vinho dava coragem. Ele tinha o rosto vermelho e olhos de um azul gelado. Viram-no?

 

Vimos quem? Fiz sinal aos guarda-costas para que evitassem o grupo mas continuassem a avançar.

 

Milo, claro! Andamos de casa em casa à procura dele. Quando o encontrarmos, vamos crucificá-lo pela morte de Clódio.

 

Andam à procura de Milo, é? disse Eco. Olhava para a mão-cheia de jóias roubadas; o sarcasmo que tinha na voz fez-me encolher de medo. O ladrão ergueu a mão e agitou-a.

 

O quê, isto? Quem é que disse que a justiça deve ser gratuita, hem? Também merecemos ser pagos, ou não? Tal como estes ricaços merecem as suas coisinhas. Fez uma cara tão feia, que eu pensei que se preparava para nos atacar com o punhal. Mas, em vez disso, atirou as jóias ao chão. A prata tilintou contra as pedras da calçada e a fieira de pérolas rebentou. As bolinhas brancas e cor-de-rosa saltitaram pelo chão como pedras de granizo. Os homens que estavam atrás dele gritaram e praguejaram.

 

O que é que interessa? gritou ele. Há muito mais de onde essas vieram. Voltou-se e conduziu o bando pela rua abaixo, para longe de nós, em direcção à casa seguinte.

 

O coração começou a bater-me com toda a força dentro do peito. Se eles iam na direcção oposta, isso queria dizer que já tinham estado em minha casa...

 

Tinha a cabeça a andar à roda. Pestanejei ao sentir os olhos húmidos. Confrontado com a possibilidade da minha própria morte, há uma parte de mim que reage com resignação céptica. Mas, ao encarar a possibilidade de qualquer coisa terrível ter acontecido a Betesda ou a Diana, senti um terror esmagador.

 

Eco compreendeu. Agarrou-me na mão e apertou-ma. Quando nos aproximávamos da casa, procurei sinais de fogo ou de fumo, mas não os detectei. Depois vi as duplas portas da entrada. Estavam abertas para trás. A fechadura tinha sido arrombada. O mesmo acontecera à barra de madeira, que estava caída no limiar, partida ao meio.

 

Entrei no átrio, que me pareceu muito escuro, depois da luminosidade exterior. Andando apressadamente, tropecei em qualquer coisa grande e sólida. Eco e Davo ajudaram-me a levantar.

 

Papá... disse Eco.

 

Eu continuei apressadamente.

 

Betesda! Diana!

 

Ninguém respondeu. Corri um quarto após outro, só vagamente consciente de que Eco e os seus homens me seguiam. As camas e as cadeiras tinham sido deitadas ao chão. Os armários estavam tombados, com as portas abertas.

 

No meu quarto, a minha cama tinha sido insensivelmente rasgada e o enchimento espalhado pelo chão. Havia uma poça de uma coisa escura e pegajosa no chão, diante do toucador de Betesda. Sangue? Estremeci, já perto das lágrimas, mas depois apercebi-me de que se tratava apenas de um unguento que escorrera de um frasco partido que tinha sido atirado ao chão.

 

Não havia ninguém nas cozinhas, ninguém nos quartos de dormir. Onde estavam os escravos?

 

Fui a correr ao quarto de Diana. A porta do guarda-fatos estava escancarada e as suas roupas espalhadas pelo chão. A caixinha de prata onde ela guardava as suas pequenas jóias tinha desaparecido. Chamei-a. Ninguém respondeu.

 

Fui ao meu escritório. Os orifícios dos rolinhos de papiro estavam vazios. Tinham-nos deitado todos ao chão, provavelmente à procura de objectos de valor. Não os tendo encontrado, tinham pelo menos deixado intactos os meus livros e os instrumentos de escrita. Que utilidade podiam semelhantes coisas ter para os ladrões? Estava tudo empilhado no chão, espalhado mas não estragado, os pergaminhos ainda muito bem enrolados e atados com fitas.

 

Depois chegou até mim um cheiro desagradável. Franzi o nariz e segui-o até ao canto do compartimento. Alguém tinha defecado no chão, e depois utilizara um pedaço rasgado de um pergaminho para se limpar.

 

Peguei cuidadosamente no pedaço pelo canto, para ver o que estava escrito naquelas linhas:

 

Pai, que infelicidade caiu sobre nós! Lamento-te ainda mais do que lamento os mortos.

 

Pobre Antígona! Pobre Eurípides!

 

Saí do escritório para o jardim do centro da casa. A estátua de Minerva, que eu herdara do meu querido amigo Lúcio Cláudio juntamente com a casa, que fora o seu e meu orgulho e alegria, e que suscitara a cobiça do próprio Cícero, tinha sido atirada abaixo do seu pedestal. Estariam convencidos de que iam encontrar algum tesouro no compartimento que havia por baixo, ou tê-lo-iam feito por puro e gratuito espírito destrutivo? Seria de esperar que o bronze tivesse sobrevivido à queda, mas devia haver uma falha escondida no molde. A deusa virgem da sabedoria estava partida em duas.

 

Papá!

 

O que foi, Eco? Encontraste-as?

 

Não, papá. Nem Betesda, nem Diana. Mas no átrio devias vir ver com os teus próprios olhos...

 

Ver o quê?

 

Antes que eu pudesse responder-lhe, uma voz chamou-nos do alto. Ergui os olhos e vi Diana espreitar por cima da beira do telhado. Fiquei com a garganta apertada e quase solucei de alívio.

 

Diana! Oh, Diana! Mas o que, como é que subiste para aí?

 

Pelo escadote, claro. Depois, puxámo-lo para cima. E depois escondemo-nos e deixámo-nos estar em silêncio. Os ladrões nem chegaram a saber que nós estávamos aqui.

 

A tua mãe também?

 

Sim. Ela não teve medo nenhum de subir o escadote! E os escravos também. A ideia foi minha.

 

E foi uma excelente ideia. Fiquei com os olhos inundados de lágrimas, até Diana se transformar numa mancha embaciada.

 

E olha, papá! Até me lembrei de trazer o meu guarda-jóias. Estendeu-o orgulhosamente diante de si.

 

Sim, óptimo. Agora vai chamar a mãe disse eu, impaciente por verificar pessoalmente que Betesda estava bem. E diz a Belbo que venha também.

 

Eco falou-me suavemente ao ouvido.

 

Papá, vem até ao átrio.

 

O quê?

 

Vem comigo. Pegou-me no braço e levou-me até lá.

 

Ao entrar apressadamente em casa, eu tinha tropeçado numa coisa grande e pesada. A coisa em que eu tinha tropeçado era um corpo. Os homens de Eco tinham-no voltado para cima e puxado para a luz.

 

O rosto de Belbo, normalmente tão bovino e submisso, ficara cristalizado numa careta de feroz determinação. Na mão direita, tinha um punhal sujo de sangue. A parte da frente da sua túnica clara estava manchada com grandes zonas de vermelho.

 

Tinha morrido à entrada da casa, defendendo a brecha aberta na porta, tentando impedi-los de entrar. O punhal mostrava que infligira pelo menos um ferimento, mas recebera muitos mais.

 

As lágrimas que eu tinha contido, e que deixara correr de má vontade com o alívio de ter visto Diana, soltaram-se agora numa corrente que me cegou. O homem simples e alegre que fora meu companheiro durante 25 anos e o protector daqueles que eu amava, que me tinha salvo a vida mais do que uma vez, que sempre parecera iluminado a partir de dentro por uma chama constante que nada podia extinguir, estava inerte a meus pés. Belbo tinha morrido.

 

As pilhagens e os incêndios prolongaram-se por vários dias.

 

Roma era presa da desordem. Havia incêndios por toda a cidade, alguns deles deliberadamente provocados. Uma névoa de fumo instalou-se nos vales entre as sete colinas. Equipas de soldados e de libertos, com o rosto e o vestuário cobertos de fuligem, acorriam de crise em crise.

 

Ouviam-se mulheres a gritar durante a noite, pedidos roucos de socorro, o tinir do aço contra o aço. Havia boatos loucos que relatavam todo o género de ultrajes violações, assassínios, raptos, crianças fechadas dentro de casas e queimadas vivas, homens pendurados de pernas para o ar nas esquinas, espancados até à morte com mocas, e para ali deixados, como troféus.

 

No dia seguinte à morte de Belbo, Eco e eu enfrentámos as ruas para ir depositar o seu corpo na necrópole situada fora dos muros da cidade. Dois dos meus escravos domésticos puxaram a carroça que levava o seu cadáver. Os guarda-costas de Eco flanqueavam a nossa procissão. Embora tivéssemos passado por diversos bandos de saqueadores, ninguém nos incomodou. Estavam demasiadamente ocupados a assaltar os vivos, para se preocuparem com os mortos.

 

Na mata de Libitina, inscrevemos Belbo no registo dos mortos. Nesse dia, os crematórios estavam cheios. Belbo foi queimado juntamente com vários outros corpos numa pira funerária, e as suas cinzas foram levadas para uma sepultura comum. Pareceu-me um final demasiadamente insignificante para uma vida tão robusta.

 

Eco e eu discutimos se a minha família devia ir para sua casa ou a sua família vir para minha casa, para juntarmos as nossas defesas. Acabámos por decidir deixar os escravos domésticos dele a guardar a casa do Esquilino, e trazer Menénia e os gémeos para minha casa que, depois de reparada e reforçada a porta, parecia mais defensável. O Palatino era perigoso, mas também tinha havido notícia de diversas atrocidades no Esquilino, e não havia qualquer aparência de ordem na Subura. Além disso, a minha casa já tinha sido pilhada. Não havia qualquer razão para que eles voltassem uma segunda vez.

 

Como normalmente acontece nestas circunstâncias, o ambiente de crise emprestou uma confortável solidariedade à vida doméstica. Betesda, Menénia e Diana trabalhavam em conjunto, assistindo às reparações do mobiliário danificado, fazendo listas das coisas que precisavam de ser substituídas, descobrindo maneiras de nos alimentar quando a maioria dos mercados tinha fechado e os restantes só estavam abertos algumas horas por dia, e mesmo essas eram imprevisíveis. Os gémeos, Tito e Titânia, apercebendo-se da gravidade da situação, andavam ansiosos por ajudar e portaram-se com uma maturidade que em muito ultrapassava os seus sete anos. Eu sentia-me mais seguro na companhia de Davo e dos outros guarda-costas, e era agradável ter Eco ao meu lado. Mas a casa pilhada era, em si mesma, uma recordação constante da nossa vulnerabilidade. Sempre que passava pelo jardim, via a Minerva caída no chão, partida em duas. Sempre que passava pelo átrio, lembrava-me de Belbo, como o encontrara ali. Sentia imensamente a sua ausência. Às vezes chamava-o alto pelo nome, antes de me fazer calar. Ele estivera diariamente ao meu lado durante tanto tempo, que eu acabara por tomá-lo como uma evidência, como o ar que respiro; e, tal como aconteceria com o ar que respiro, quando ele desapareceu, apercebi-me da profunda necessidade que tinha dele.

 

Um inter-rei deu lugar ao seguinte, e ao seguinte, e continuámos sem eleições, ou sequer a perspectiva de elas virem a ser marcadas. Não era possível fazê-lo, num estado de caos como o que se vivia. Dia a dia, hora a hora, parecia aumentar o sentimento de que Roma precisava de um ditador. Ocasionalmente, o nome de César era mencionado. Mais frequente e veementemente, era Pompeu o invocado, como se o nome do Grande fosse uma espécie de encantamento mágico que pudesse endireitar todos os males.

 

Todos os dias eu pensava que podia voltar a ser contactado por Cícero, mas não recebi novas convocatórias de Tiro, nem tive mais encontros sussurrados com Milo e Célio. Eu quase desejava que Cícero me mandasse chamar, para ter uma ideia daquilo que ele e o seu círculo andavam a preparar, no meio daquela desordem.

 

Mas foi outro quem veio procurar-me.

 

Foi numa manhã fria e luminosa de Februarius. Eco tinha ido ver como estavam as coisas em sua casa, por isso eu encontrava-me sozinho no escritório. Apesar do frio, tinha aberto as portadas para deixar entrar a luz do sol e o ar fresco. Talvez os muitos incêndios que havia na cidade se tivessem finalmente extinguido; só me apercebi de um leve cheiro a fumo. Davo entrou-me no escritório para me dizer que tinha parado diante da minha porta uma liteira acompanhada por um comboio de escravos, e que um dos escravos tinha uma mensagem para mim.

 

Uma liteira?

 

Sim. Um veículo bastante grandioso. Com... Listas vermelhas e brancas disse eu, num golpe de intuição.

 

Isso mesmo. Ele ergueu as sobrancelhas, e eu tive um movimento interior de tristeza, ao recordar Belbo. O jovem Davo não era nada parecido com ele, já que era moreno e consideravelmente mais bonito do que Belbo alguma vez fora, mas tinha o mesmo tamanho e a mesma expressão bovina. Ele franziu a testa. Parece-me conhecida.

 

Será a mesma liteira que vimos chegar a casa de Clódio na noite da sua morte?

 

Acho que sim.

 

Estou a ver. E dizes que há um escravo com uma mensagem? Manda-o entrar.

 

O homem era um exemplo típico dos escravos masculinos de Clódia, jovem e impecavelmente treinado, com um perfil notável e um pescoço musculado. Eu teria adivinhado quem o enviara mesmo que Davo não me tivesse falado da liteira, porque havia uma sugestão do perfume dela nas suas roupas. Nunca me tinha esquecido daquele odor, uma mistura de nardo com um dispendioso óleo de açafrão. Ele devia ser um dos seus escravos preferidos, para cheirar tanto à sua senhora.

 

O seu estatuto foi confirmado pelas suas maneiras altivas. Ele farejou e espreitou o meu escritório como se estivesse a pensar em comprar a casa, e não viesse apenas entregar uma mensagem.

 

Bem, jovem disse eu por fim, o que pretende Clódia de mim? Ele lançou-me um olhar de dúvida, como quem diz: Não consigo imaginar e depois sorriu:

 

Ela solicita ao prazer da tua companhia na sua liteira.

 

Na sua liteira? Ela estará realmente à espera que eu vá passear de liteira pelas ruas de Roma numa altura destas, com tudo o que se está a passar?

 

Se é na tua segurança que estás a pensar, não te preocupes. Em que outro sítio estarias mais seguro?

 

Aqui não, certamente, pareceu sugerir, olhando por cima do meu ombro e pelas portadas abertas na direcção da Minerva partida. E provavelmente tinha razão. Eram os Clodianos que andavam a provocar distúrbios; todos eles conheciam a liteira de Clódia; não era provável que atacassem a irmã do seu ídolo. Além disso, a comitiva dela devia incluir alguns dos maiores e mais ferozes gladiadores da cidade. Na verdade, em que outro sítio estaria mais seguro do que atravessando o Palatino dentro da liteira de Clódia a não ser, evidentemente, que nos cruzássemos com um bando de homens de Milo que andassem à procura de sarilhos...

 

Por outro lado, tendo em conta as circunstâncias a anarquia que grassava pelas ruas, a virtual guerra civil entre bandos rivais, a perspectiva de uma ditadura e de um futuro incerto, se calhar não era muito boa ideia conviver com Clódia neste momento. Eco ter-me-ia certamente aconselhado a não o fazer, mas Eco não estava aqui e eu estava cansado de me esconder dentro de minha casa, fazendo o papel de espectador passivo de uma cidade que estava a ficar fora de controlo. Enquanto Cícero me tomara como seu confidente, por muito suspeitas que fossem as circunstâncias, eu sentira que tinha acesso a revelações especiais. O privilégio de saber mais do que os outros homens descansava-me; dava-me uma sensação de poder e de controlo, fosse ela real ou não. Agora, sentia-me posto de parte e à deriva, mais ansioso do que me sentiria se estivesse a enfrentar deliberadamente um perigo que começava finalmente a abarcar. Um encontro com Clódia era uma promessa de um vislumbre de informação privilegiada. Não consegui resistir.

 

Disse a mim próprio que a oportunidade de rever Clódia nada tinha a ver com a minha decisão. A possibilidade de me reclinar a seu lado na sua liteira, fechado no casulo criado pela aura do seu perfume, suficientemente perto dela para sentir o calor do seu corpo...

 

Davo, diz à tua senhora que eu fui convocado para uma pequena missão. Não espero estar ausente durante muito tempo, mas se isso acontecer mando-lhe um mensageiro.

 

Vais sair, senhor?

 

Vou.

 

Eu devia ir contigo.

 

Não é necessário disse o escravo de Clódia, lançando a Davo um olhar depreciativo. Calculo que Davo lhe parecesse franzino, em comparação com os gigantes ruivos de Clódia.

 

Suspeito de que este amigo tem razão, Davo. Preferia que ficasses por cá, a vigiar a casa.

 

Segui atrás do escravo, pelo átrio e para fora da casa. O pavilhão vermelho e branco da liteira tinha um aspecto deslumbrante à luz do Sol frio. O ar estava quase parado, apenas com a sugestão de uma brisa, mas o tecido era de tal maneira delicado, que as listas vacilavam e roçavam umas nas outras como serpentes oscilantes. Os gladiadores ruivos que cercavam a liteira colocaram-se em posição de alerta. Um dos carregadores acorreu, colocando um bloco de madeira diante da entrada da liteira, para me servir de degrau. Antes que eu próprio pudesse fazê-lo, as cortinas foram separadas do lado de dentro. Depois, a jovem escrava que as abrira afastou-se para o lado e acenou com a cabeça em direcção ao local onde eu deveria sentar-me, ao lado da sua senhora, mas eu apenas pude ver os olhos de Clódia. Os seus famosos olhos: num dos seus poemas de amor, Catulo afirmara que eles brilhavam como esmeraldas; no discurso em que quase a destruíra, Cícero tinha dito que os seus olhos brilhavam como chispas de uma lâmina afiada. Aqueles olhos podiam seduzir ou escandalizar; mas também podiam chorar. Neste momento, brilhavam por efeito das lágrimas. Perguntei a mim próprio se ela já teria parado de chorar, desde a morte do irmão.

 

Ela desviou o rosto. Noutras circunstâncias, eu poderia ter considerado que o movimento fora propositado, e se destinava a mostrar o extraordinário  perfil da sua testa e a linha do seu nariz. Tinha o lustroso cabelo preto solto, em sinal de luto. Trazia um vestido preto, da mesma cor das almofadas que a rodeavam. O canto onde se aninhara parecia engoli-la na escuridão, à excepção do rosto e do pescoço, que eram de um branco macio e luminoso.

 

Eu subi para a liteira e sentei-me a seu lado. Ela estendeu a mão para a minha, ainda com os olhos desviados.

 

Obrigada por teres vindo, Gordiano. Tive medo de que não o fizesses.

 

Por quê, com receio das ruas?

 

Não, com receio da tua mulher de Alexandria. Os seus lábios comprimiram-se num sorriso breve.

 

Onde vamos?

 

A casa de Clódio. O sorriso tornou-se rígido. Acho que devia dizer antes a casa de Fúlvia.

 

Fazer o quê?

 

Deves lembrar-te de que te convidei a entrar na noite em que ele morreu tive uma premonição de que viríamos a precisar de ti, mais cedo ou mais tarde. E tinha razão. É Fúlvia quem precisa de ti.

 

A sério? Julgo recordar que a tua cunhada ficou muito pouco satisfeita com a minha presença na sala onde se encontrava o corpo.

 

As coisas mudam. Fúlvia é uma mulher pragmática. Neste momento, tu és o homem de quem ela precisa.

 

Para quê?

 

Ela explica-te pessoalmente do que se trata. Por mim, peço-te o seguinte: tudo aquilo que descobrires acerca da morte do meu irmão conta-mo, por favor. Voltou os olhos para mim, e apertou-me a mão. Sei que és um defensor da verdade, Gordiano. Sei como ela é importante para ti. Também é importante para mim. Se eu pudesse ter a certeza acerca da forma como Clódio morreu, de quem o matou e por quê, talvez pudesse finalmente parar de chorar. Conseguiu lançar-me outro sorriso débil e soltou-me a mão. Chegámos.

 

Já? A volta fora tão suave que eu quase nem me apercebera de que tínhamos estado em movimento.

 

Eu espero aqui por ti, e depois levo-te novamente a casa.

 

A jovem escrava abriu as cortinas para me deixar passar. O bloco de madeira estava à espera do meu pé. O enorme pátio da entrada da casa de Clódio estava vazio, à excepção dos diversos homens que guardavam os terraços e o portão. Um dos gladiadores de Clódia subiu os degraus comigo. As portas maciças abriram-se a partir de dentro como se uma aragem de vento divino me precedesse.

 

Um escravo acompanhou-me ao longo dos corredores e das galerias e subiu comigo um lanço de escadas, até uma sala que eu nunca tinha visto. Era num dos cantos da casa, e tinha janelas amplas com vista para os telhados do Palatino e os grandes templos do Capitólio, para além dele. As paredes estavam pintadas com uma aguada verde clara e decoradas com remates azuis e brancos de configuração grega. Era uma sala brilhante e alegre, arejada e luminosa.

 

A primeira pessoa que avistei foi Semprónia. Estava sentada numa cadeira ao pé das janelas, embrulhada numa manta vermelha por causa do frio. Mantinha o comprido cabelo grisalho caído, em sinal de luto, preso com um gancho na nuca e solto pelas costas, até ao chão. O olhar que me lançou era quase tão frio como o ar da rua.

 

Fúlvia avançou para diante das janelas. A luz que entrava era de tal maneira intensa, que eu apenas conseguia vê-la como uma silhueta alta e esguia. À medida que se ia aproximando, o véu de sombra que lhe cobria as feições foi-se dissolvendo lentamente. Era exactamente como eu me recordava, menos bonita do que Clódia, mas notável, à sua maneira, mais jovem e com uma astúcia qualquer nos olhos. Sentou-se numa cadeira ao lado da mãe. Como não havia mais cadeiras na sala, eu deixei-me estar de pé.

 

Fúlvia olhou para mim, avaliando-me.

 

Clódia diz que tu és inteligente. Calculo que ela deve saber.

 

Eu encolhi os ombros, sem saber bem se devia reagir ao elogio ou à insinuação.

 

Soube que ultimamente tens feito algumas visitas a Cícero. Ela fixou-me nos olhos.

 

Nos últimos dias não.

 

Mas desde o assassínio do meu marido fizeste.

 

Sim, num par de ocasiões. Como soubeste?

 

Digamos que herdei os olhos e os ouvidos do meu marido.

 

Bem como os seus hábitos calculistas, pensei. Estava de preto, é certo, mas não detectei mais nenhum sinal de luto. Teria aquela explosão histérica que eu a vira ter diante da multidão, no pátio, sido apenas pelo espectáculo, ou fora uma libertação genuína de uma angústia que normalmente ela mantinha dominada? Neste momento, aparentava estar efectivamente controlada. Clódia parecia mais a viúva enlutada, pensei, e Fúlvia a herdeira impassível, que não desperdiça as lágrimas quando toma sobre os ombros o manto do marido.

 

Estás a tentar perceber-me disse ela. Não te incomodes. Eu também não vou tentar perceber-te. Os teus assuntos com Cícero são teus. Não te vou pedir coisa alguma que ponha em causa a relação que tens com ele, seja ela qual for. Ou com Milo, já agora. Eu ergui a mão, num gesto de protesto, mas ela prosseguiu. Toda a gente sabe que Milo foi responsável pela morte do meu marido. Não é isso que pretendo que descubras.

 

Então o que é?

 

Pela primeira vez, detectei no seu rosto um brilho de desconforto na única ruga na testa, uma tremura dos lábios.

 

Há um certo homem, um amigo do meu marido. Que também é um velho amigo meu, devo dizê-lo. Ele abordou-me, oferecendo-me os seus serviços para quando chegar o momento de levar Milo a tribunal. A sua ajuda e o seu apoio podiam ser-me úteis. Mas...

 

Sim?

 

Não tenho a certeza de poder confiar nele.

- Podes dizer-me como se chama?

 

Marco António. Ergueu uma sobrancelha. Conhece-lo?

 

Não.

 

Mas a tua expressão...

 

Conheço o nome. É um dos homens de César oh, sim, já me lembro. Os nossos caminhos cruzaram-se nessa mesma noite. Quando eu saía de tua casa, ele dirigia-se para aqui. Acontece que ele conhece um dos meus filhos. Trocámos algumas palavras.

 

Só algumas?

 

Deixa-me pensar. Ele perguntou-me se era verdade o que se dizia. Acerca de Públio Clódio. Eu disse-lhe que era.

 

Semprónia remexeu na manta. A filha viria alguma vez a ter um rosto tão endurecido?

 

E como reagiu António? disse Fúlvia.

 

Estava escuro. Eu quase não lhe via o rosto. Mas lembro-me de que a sua voz me pareceu um tanto ansiosa. Disse qualquer coisa do género: "Ah, quer dizer que acabou tudo. É o fim de Públio, para bem ou para mal." Depois, seguiu o seu caminho.

 

Fúlvia olhou pela janela, para o longínquo Capitólio. Foi Semprónia quem respondeu.

 

Que acabou aqui em casa. Mas Fúlvia não estava em condições de o receber, a ele ou fosse a quem fosse. António esteve algum tempo a falar com os outros homens na antessala e depois foi-se embora. É por isso que nós sabemos que António estava em Roma nessa noite.

 

Sim disse Fúlvia, mantendo os olhos fixos em qualquer coisa distante. Mas onde estava ele no princípio desse dia?

 

Queres dizer que estás convencida de que ele teve alguma coisa a ver com a morte do teu marido?

 

Fúlvia não respondeu. Semprónia apertou a manta vermelha.

 

O homem tentou matar Clódio a sangue-frio há apenas um ano. Fúlvia regressou do sítio para onde os pensamentos a tinham transportado.

 

A minha mãe exagera.

 

Achas?

 

O que foi isso? perguntei eu.

 

Nunca ouviste essa história? perguntou Fúlvia. Pensei que tinha corrido as capelinhas, era uma coscuvilhice tão sumarenta. Se calhar, por uma vez, os implicados conseguiram manter o silêncio. Não houve motivo para escândalo, foi apenas uma discussão entre dois velhos amigos, e nada mais.

 

Teria sido consideravelmente mais, se António tivesse conseguido o que queria! disse Semprónia.

 

Mas não conseguiu insistiu Fúlvia.

 

Talvez devesses explicar-me o que se passou. Fúlvia acenou com a cabeça.

 

Foi no Campo de Marte, no ano passado, num dos dias de eleições que acabaram por ser canceladas. Todos os candidatos estavam presentes, a arengar aos seus apoiantes. Segundo me disseram, o movimento era o habitual, alguns arrastavam os pés, havia homens com sacas de moedas oferecendo subornos de última hora, algumas escaramuças com pouca importância. Sabes como é. Isto é, sendo homem, já deves ter participado em eleições e assistido pessoalmente a tudo isto. Talvez até lá estivesses nesse dia.

 

Não. A última vez que votei em eleições consulares foi há dez anos, quando Catilina se candidatou.

 

Semprónia mostrou-se subitamente interessada.

 

Votaste em Catilina?

 

Não. Na verdade, votei num sujeito sem cabeça chamado Nemo. As duas mulheres olharam para mim com curiosidade.

 

É uma história muito comprida. Deixem lá. Não, não estava lá no dia a que te referes. Mas consigo imaginar a cena. O que se passou?

 

António e o meu marido trocaram algumas palavras disse Fúlvia. Pelo que pude perceber, a coisa começou de forma amigável, mas não acabou da mesma maneira. Públio nunca me contou exactamente quem disse o quê a quem.

 

Mas sabemos qual foi o resultado disse Semprónia, com partes iguais de desdém e divertimento na voz. António desembainhou a espada e perseguiu Públio de uma ponta à outra do Campo de Marte.

 

Onde estavam os guarda-costas do teu marido? perguntei eu.

 

Aqueles guarda-costas específicos? disse Fúlvia. Não sei onde se encontravam nesse dia, mas sei onde estão agora a trabalhar nas minas. Houve um brilho nos seus olhos que fez com que ela parecesse, por um breve instante, tão dura como a sua mãe. De qualquer maneira, Públio saiu ileso.

 

Excepto na sua dignidade! comentou Semprónia. Meteu-se num armário debaixo de uma escada, num armazém infestado de ratos, à beira-rio como um escravo cobarde fugindo ao chicote do seu senhor numa comédia de segunda categoria.

 

Chega, mãe. Fúlvia voltou os seus olhos impiedosos para a mãe. O confronto de vontades entre ambas foi quase palpável, parecido com o som do aço contra uma pedra de amolar. Semprónia recuou visivelmente, voltando a afundar-se dentro da manta vermelha. Fúlvia, a protectora da dignidade do marido morto, pôs-se muito direita. Que género de homem teria Clódio sido, para lidar diariamente com as duas, e ainda com a intervenção da irmã para ajudar? Não era de espantar que se considerasse capaz de gerir a cidade, se tinha aprendido a controlar a sua própria casa.

 

Qual foi a natureza dessa discussão entre o teu marido e António?

 

Já te disse que nunca cheguei a perceber exactamente o que despoletou o incidente.

 

Mas tens certamente alguma ideia.

 

Fúlvia mostrou-se novamente distante, voltando a olhar pela janela.

 

Esta oscilação entre clareza cruel e distanciamento teria sido pensada para me fazer sentir instável, seria apenas a sua natureza, ou seria uma espécie de doença induzida pelo choque da morte do marido?

 

Não precisas de te preocupar com coisas tão específicas, Gordiano. O que eu quero saber é se Marco António teve alguma participação naquilo que aconteceu a Públio na Via Ápia.

 

Primeiro, julgo que preciso de determinar, para minha satisfação pessoal, o que aconteceu na Via Ápia.

 

Isso significa que aceitas a incumbência?

 

Não. Primeiro tenho de pensar no assunto.

 

Quando podes dar-me uma resposta. Eu esfreguei o queixo.

 

Amanhã.

 

Fúlvia acenou com a cabeça.

 

Entretanto disse eu, quero que me contes exactamente o que se passou nesse dia, tanto quanto sabes. Quero saber o que fazia Clódio fora de Roma, quem poderia estar informado dos seus movimentos, quem trouxe o corpo para Roma, e como se iniciou a escaramuça.

 

Fúlvia inspirou profundamente.

 

Em primeiro lugar, essa conversa da emboscada é um disparate completo, a não ser que tenha sido Milo a emboscar Clódio. Não há dúvida de que foram os homens de Milo que iniciaram o confronto, sem qualquer provocação. O meu marido estava completamente inocente.

 

E as atrocidades que os homens de Milo cometeram em seguida na nossa villa do campo, aterrorizando os criados...

 

Uma hora mais tarde, a entrevista terminou.

 

Eu ainda não tinha decidido se queria ajudar Fúlvia, embora tivesse sido mencionada uma remuneração em prata tremendamente tentadora, especialmente tendo em conta os prejuízos que a minha casa tinha sofrido e o facto de eu precisar de mais guarda-costas. Parecia que, quando mais próspero me tornava, mais dispendiosa era a minha vida literalmente, a defesa da minha vida. A simples necessidade tornava a oferta de Fúlvia atraente; mas ela também me daria uma desculpa para ir meter o nariz no incidente que tinha posto Roma ao rubro e acabara com a morte de um homem que me era muito chegado. Por outro lado, como sempre, era necessário considerar o grau de perigo em que ia envolver-me. Betesda diria que eu era louco. E Eco provavelmente diria o mesmo, antes de insistir em partilhar o perigo comigo.

 

Tinha a cabeça cheia destes pensamentos enquanto voltava para casa ao lado de Clódia, na sua liteira, mas não tão cheia que não tenha reparado no seu perfume e no calor da sua perna, encostada à minha.

 

Aceitaste a incumbência da minha cunhada? perguntou ela.

 

Ainda não.

 

Chegámos a minha casa. Quando eu ia a sair da liteira, Clódia agarrou-me no braço.

 

Se chegares a aceitar, Gordiano, espero que partilhes comigo tudo o que descobrires. É muito importante para mim saber tudo o que puder acerca da morte do meu irmão.

 

Era a sexta hora do dia e eu estava com fome. Ia dirigir-me à cozinha, mas Davo aproximou-se de mim no corredor e disse-me que Eco estava à minha espera. Pela expressão do rosto de Davo, presumi que alguém o tinha repreendido severamente por me ter deixado sair sem ele.

 

Encontrei Eco no meu escritório, na companhia de Betesda.

 

Marido, onde estiveste?

 

Davo não te disse? Fui chamado em serviço.

 

As narinas de Betesda estremeceram. Ela inclinou a cabeça. Um pouco embaraçado, eu levei a ponta da manga ao nariz e inspirei um leve odor a nardo e óleo de açafrão.

 

Clódia declarou Betesda. Oh, eu já sabia. Davo disse-me que tinha visto a liteira dela.

 

O que queria ela, papá? Eco mostrava-se quase tão desaprovador como Betesda.

 

Na verdade comecei eu, mas fui interrompido pelo reaparecimento de Davo à porta.

 

Outra visita, Senhor.

 

Sim?

 

Diz que se chama Tiro... Era a concretização do velho adágio etrusco, pensei eu. Não chovia durante um mês, e depois vinha uma carga de água. Diz ele que estás convidado a ir partilhar a refeição do meio-dia com Marco Túlio Cícero.

 

E Eco também está convidado, evidentemente disse Tiro, aparecendo de repente por trás de Davo. O que acontecera ao escravo discreto e bem-comportado, que nunca teria pensado em tomar a liberdade de circular sozinho pela casa de um cidadão? Tiro parecia ter-se transformado num liberto impertinente, e numa prova viva do consenso geral de que as boas maneiras da República tinham ido para o Hades.

 

Eu tenho fome concedeu Eco, dando umas pancadinhas no estômago.

 

E eu estou faminto disse eu.

 

Betesda cruzou os braços e nada disse. Por muito imperiosa que fosse, não era Semprónia nem Fúlvia. Graças a Júpiter por isso.

 

Havia homens armados de guarda à porta da casa de Cícero e patrulhando o telhado. E mais homens dentro do átrio. Senti-me como se estivesse a entrar no campo de um general.

 

As portadas da sala de jantar tinham sido fechadas, para proteger o compartimento do frio. Do jardim, chegava uma pálida luz de Inverno, aquecida pelo brilho das lamparinas suspensas. Cícero já se encontrava instalado num canapé de jantar, com Marco Célio ao seu lado. Tiro indicou-nos com um gesto que tomássemos o nosso lugar no canapé fronteiro, que era suficientemente comprido para ser partilhado por nós três.

 

Célio estava com um ar presumido por causa de qualquer coisa, como habitualmente, o que me irritou, como habitualmente.

 

Marco Célio, subiste na vida desde a última vez que te vi. Ele ergueu preguiçosamente uma sobrancelha.

 

Quer dizer, pareces ser agora um cidadão livre. Quando os nossos caminhos se cruzaram no Fórum naquele barraco por trás do templo, tomei-te, e a Tito Ânio Milo, por escravos em fuga.

 

Cícero e Tiro franziram o sobrolho. Eco lançou-me um olhar hesitante. O rosto de Célio transformou-se por momentos numa máscara desprovida de expressão, e depois ele desatou a rir.

 

Oh, Gordiano, quem me dera ter sido eu a lembrar-me dessa! "Célio subiu na vida". Agitou um dedo. Se um dos tribunos meus rivais a usar contra mim, fico a saber que te dedicaste a escrever discursos para o inimigo.

 

Certamente que Gordiano nunca se lembraria de semelhante coisa disse Cícero, fixando os olhos em mim. Avançamos já com a refeição? Oiço daqui os vossos estômagos a roncar. Receio só poder servir-vos coisas simples. O cozinheiro disse-me que é impossível encontrar provisões nos mercados. De qualquer maneira, o melhor é um homem manter uma dieta simples. Cícero sofria de dispepsia crónica desde que eu o conhecia.

 

Mas a comida estava soberba. A uma sopa de peixe com torta seguiram-se pedaços de galinha assada envolvidos em folhas de parra de vinagrete, com um molho aromático de cominhos. Cícero tinha aprendido a apreciar prazeres mais refinados, que se adequavam a um homem com o seu estatuto.

 

Apesar de tudo, comia cautelosamente, analisando o conteúdo de cada colher antes de o meter na boca, como se fosse capaz de dizer, com um simples olhar, que porção lhe provocaria indigestão.

 

Por falar de subir na vida, ou de descer, Gordiano, tenho a impressão de que aceitar uma boleia na liteira de uma certa dama levaria muitas pessoas a pensar que o passageiro se tinha rebaixado consideravelmente.

 

Como é que isso pode ser, Cícero? Uma liteira anda para trás e para diante, e não para cima e para baixo.

 

Célio riu-se.

 

Depende de quem vai na liteira com ela. Cícero olhou manhosamente para Célio.

 

Não foi um comentário prudente, meu amigo, tendo em conta a tua própria história com a dama em questão. Ou o papel que desempenhaste na sua... Ascensão! disse Célio, quase se engasgando com um bocado de galinha na pressa de dizer a palavra antes de Cícero. Calculei que se tratasse de uma espécie de jogo entre eles, dizer piadas à custa dos inimigos de ambos, em particular dos Clódios.

 

Presumo que estejas a referir-te a uma visita que tive hoje de manhã disse eu.

 

À dama que te raptou disse Célio.

 

Como se explica que estejas informado das minhas visitas, Cícero? Nem quero pensar que a minha casa está a ser vigiada.

 

Cícero poisou a colher.

 

Francamente, Gordiano! Vivemos na mesma rua. Nesta casa, estão constantemente a entrar e a sair escravos e visitas. Todos eles conhecem a liteira da senhora em questão. Toda a gente a conhece. Não estavas certamente à espera de que ela parasse a coisa diante da tua porta sem que as pessoas reparassem no facto. Voltou a pegar na colher e brincou com ela. Mas o mais curioso é teres partido com ela. Não sei onde foste, estás a ver, não tenho ninguém a vigiar-te, senão ter-te-iam seguido.

 

Mas gostarias de saber?

 

Só se tu quiseres dizer-me.

 

Na verdade, não foi a senhora em questão quem bem, ela tem nome, não tem, por isso é melhor usá-lo. Sim, fui na liteira de Clódia, mas não era Clódia que me queria.

 

Que pena comentou Célio.

 

Será? Não sei. O tom ligeiramente irritado da minha voz surpreendeu-me. Clódia estava apenas a servir de intermediária. Levou-me a casa da cunhada, já que queres saber.

 

Estou a ver. Cícero não se mostrou surpreendido. Teria afinal mandado um espião seguir a liteira? Seria trair uma confidência se nos dissesses o que queria Fúlvia de ti?

 

Queria a minha ajuda num assunto pessoal. Nada de estranho.

 

Oh, duvido muito.

 

A sério? Calculo que julgues que ela queria a minha ajuda em qualquer coisa relacionada com a morte do marido. Mas já todos sabemos como isso aconteceu, não é verdade? O próprio Milo tornou públicos os factos no contio de Célio, diante de Roma inteira. Clódio organizou uma emboscada maldosa, as coisas correram-lhe mal, e um dos escravos de Milo deu cabo dele. Pergunta a Célio. Ele estava presente. Ouviu a história, tal como Eco e eu, embora Milo tenha sido interrompido antes de acabar o que tinha a dizer. Célio devolveu-me o olhar, sem pestanejar e pouco divertido. Não, Fúlvia quase nem se referiu a Milo, se é nisso que estás a pensar. E também não tinha grande coisa a dizer sobre o amigo de Milo, Marco António.

 

Cícero mostrou-se genuinamente confuso.

 

António? Amigo de Milo? Duvido de que se conheçam, sequer.

 

Olhei para Célio, que parecia tão perdido como Cícero sem aquele sorriso intrigante, sem um estremecimento dos lábios de secreto divertimento.

 

Nesse caso, devo estar enganado. Talvez tenha confundido os nomes. Isso acontece-me cada vez mais, com a idade. Tu só és um pouco mais jovem do que eu, Cícero. Não tens dificuldade em reter os nomes? Um homem aprende tantos nomes ao longo da vida. Para onde vão eles? São como as palavras que se escrevem numa tabuinha, só conseguimos encaixar uns quantos, e depois temos de escrever em letras cada vez mais pequenas, até se tornarem ilegíveis e os gatafunhos se misturarem uns com os outros. Acho que algumas pessoas são dotadas para nomes, e até há escravos especialmente preparados para essa tarefa.

 

Cícero acenou com a cabeça.

 

Tiro sempre teve habilidade para os nomes. Salvou-me de cometer muitas gaffes todos aqueles eleitores das cidades pequenas do interior, que ficam muito ofendidos quando não conseguimos recordar-nos da sua árvore genealógica, que remonta sempre ao Rei Numa! Tratava-se de uma piada política! Rimo-nos todos, mas a Célio só faltou zurrar.

 

Mas este assunto com Marco António... disse Cícero.

 

Eu encolhi os ombros.

 

Como te disse, praticamente não se falou nele. Dizes que não é amigo de Milo. E é teu amigo, Cícero?

 

Ele olhou para mim, pensativo.

 

Não somos inimigos, se é isso que queres dizer. Foi a minha vez de me mostrar espantado.

 

Não há qualquer má vontade entre Marco António e eu disse ele, pelo menos da minha parte.

 

Vá lá, Cícero disse Célio, revirando os olhos. É óbvio que Gordiano está à procura de informações sobre António. Não consigo imaginar para quê. Mas não tens razões para ser acanhado. Gordiano é teu convidado, partilha a tua comida. Sugiro que lhe digamos aquilo que ele quer saber. E talvez que, noutra ocasião, ele nos pague esse favor dizendo-nos alguma coisa que saiba.

 

Cícero mostrou-se hesitante por momentos, depois abriu as mãos num gesto de aquiescência. O que é que sabes acerca de Marco António?

 

Quase nada. Sei que é um dos lugares-tenentes de César, e ouvi dizer que regressou da Gália para se candidatar a um cargo.

 

De questor disse Célio, e o mais provável é ganhar, se e quando houver eleições.

 

Quais são as suas tendências políticas?

 

É aliado de César, claro disse Cícero. Para além disso, o seu único programa, tanto quanto consigo perceber, é a sua autopromoção.

 

Quer dizer que é um original, único entre os políticos romanos disse eu. Nem Cícero nem Célio reagiram à piada. Tiro franziu o sobrolho, como seria de prever, ofendendo-se em nome do seu antigo senhor. Eco manteve a seriedade mas abanou a cabeça quase imperceptivelmente, espantado com a impertinência do pai.

 

Ouvi dizer que é muito querido pelas suas tropas disse eu. Foi o que me disse o meu filho Meto.

 

E por que não? António nunca se deu mal com o povo. O tom de Cícero não era elogioso. É nobre de nascimento, mas dizem que bebe e faz patuscadas nas casernas com os soldados. Sempre foi assim. Quando era adolescente, costumava andar na companhia dos escravos e libertos de casa de sua mãe. Sempre foi o género de rapazinho que gosta de meter as mãos na lama. Sempre se sentiu atraído por prazeres ruidosos e vulgares. Bem, começou mal.

 

Por quê?

 

Teríamos de recuar, pelo menos, ao avô dele... Claro, pensei eu; a carreira de um romano de boas famílias nunca poderia ser descrita simplesmente a partir do seu próprio nascimento. Na minha juventude, o velhote era uma potência e tanto, na verdade, foi meu professor de retórica, e era um dos melhores. Excelentes discursos! Palavras que ressoavam como trovões! Mas recusou-se sempre a publicá-los; dizia que só um louco faria semelhante coisa, porque isso era uma maneira de conceder aos nossos inimigos a possibilidade de salientarem as nossas inconsistências. Cícero, que publicara e divulgara todos os seus discursos, riu-se com ar pesaroso.

 

Célio sorriu.

 

Não houve um escândalo qualquer com o avô de António e uma Virgem Vestal?

 

Célio, tens de te lembrar sempre de um escândalo qualquer?

 

Pois tenho! E, quando não há escândalo nenhum, invento!

 

Bem, por acaso tens razão. Algures, no passado distante, ele foi levado a tribunal por ter atentado contra uma Vestal, mas foi ilibado, e em seguida teve uma carreira verdadeiramente distinta. Acabou como cônsul, depois censor, e por fim foi eleito membro vitalício do Colégio dos Augures. Mas a sua ascensão começou de facto com o serviço militar. Foi um dos primeiros a organizar uma campanha contra os piratas na Cicília. Foi tão bem sucedido, que lhe concederam uma procissão triunfal em Roma. O Senado permitiu-lhe decorar a Rostra com os bicos dos navios que tinha capturado, e chegou mesmo a votar a erecção de uma estátua em sua honra.

 

De uma estátua? perguntou Eco. Não me lembro de ter visto nenhuma.

 

Foi deitada abaixo pouco depois da sua execução, durante a guerra civil. Lembro-me de ver a cabeça dele num espeto, no Fórum; tive pesadelos durante meses. Foi um choque e tanto, ver um antigo professor em semelhante situação. Naquela época, nem os políticos mais hábeis estavam livres de cometer erros fatais.

 

Tal como nesta época murmurou Célio.

 

Reparei que Eco tinha poisado um pedaço de galinha que se preparava para meter na boca.

 

Seja como for prosseguiu Cícero, o avô de António teve uma carreira extraordinária, apesar de ter terminado de forma tão inglória. António não chegou a conhecê-lo, evidentemente, o velhote foi morto uns anos antes de ele nascer.

 

Já o pai de António é um caso completamente diferente. Bonito, bem-amado, generoso para os seus amigos, mas terrivelmente desajeitado. Tal como o pai, foi encarregado de dominar os piratas. Juntou um orçamento maciço, reuniu uma formidável armada e depois malbaratou-a em escaramuças isoladas, desde Espanha até Creta. Ter negociado uma paz humilhante com os piratas foi a última gota. O Senado rejeitou o tratado como injurioso. O pai de António morreu em Creta, dizem alguns que de vergonha. António devia ter apenas que idade, Célio? 11 ou 12 anos?

 

Célio acenou com a cabeça.

 

E todos conhecemos um dos resultados do fracasso do pai. O Senado procurou outra pessoa que acabasse com o problema dos piratas. Pompeu conseguiu que o encargo lhe fosse atribuído e atirou-se aos piratas como um maremoto. Desde então, a sua importância não mais parou de aumentar.

 

Estás a desviar-te comentou Cícero. Gordiano não está interessado em Pompeu. Está interessado em Marco António. Bem, ele não será um Pompeu, mas César parece estar convencido de que é competente. Como vês, se Marco António tem alguma perspicácia militar, deve tê-la herdado do avô. Mas também há nele uma forte marca do pai. António é encantador, afável, alegre e completamente temerário. Claro que isso deve ser atribuído, pelo menos em parte, à lamentável influência do padrasto.

 

Do padrasto? perguntei eu. Cícero mostrou-se entristecido.

 

Sim, António não tem propriamente a culpa de que a mãe tenha feito um segundo casamento tão desastroso, ligando o seu destino a um derrotado como aquele. Presumo que Júlia tenha achado que o casamento a faria ascender socialmente, uma vez que Lentulo tinha sido cônsul, era patrício, tal como ela...

 

Lentulo? Quer dizer que o padrasto de António era...

 

Sim, Lentulo Pernas disse Cícero em tom de desprezo, assim chamado por ter arregaçado a toga e desnudado as pernas como um rapazinho que se preparasse para receber uns açoites quando os seus colegas do Senado o levaram a tribunal por ter desviado dinheiros públicos. Um homem tão flagrantemente corrupto, que acabou por ser expulso do Senado e de tal maneira persistente, que conseguiu recuperar o seu lugar. E supersticioso; uma vidente charlatã convenceu-o de que estava destinado a tornar-se ditador por causa de uns versos macarrónicos dos Livros Sibilinos. Foi por isso que Lentulo se envolveu com Catilina e a sua claque de traidores. Todos sabemos como isso terminou.

 

Sabíamos, de facto. Tinha acontecido no ano de consulado de Cícero. A chamada conspiração de Catilina fora implacavelmente eliminada; sob a autoridade de Cícero, Lentulo e vários outros tinham sido executados sem julgamento formal. Os Melhores tinham louvado Cícero pela sua decisão, por meio da qual salvara a República; entre os populistas, tinham sido muitos os que o tinham condenado, chamando-lhe tirano assassino. Seguira-se uma revolta popular, que culminara na legislação vingativa congeminada por Clódio com o fito de exilar Cícero. O Senado acabara por revogar o exílio; Cícero voltara a ser um actor de peso no palco de Roma; e Clódio tinha morrido...

 

Passaram dez anos desde Catilina disse eu baixinho.

 

Sim, e há dez anos que Marco António está ressentido comigo comentou Cícero. Nunca conseguiu aceitar o facto de que o padrasto tinha de morrer. Na altura, António tinha apenas 20 anos. Nem sempre é possível chegar pela razão a um jovem apaixonado. Eles guardam ressentimentos durante muito tempo. Cícero suspirou, mas não percebi se era da emoção ou da dispepsia. Ouvi dizer que ele até afirma que eu me recusei a entregar o corpo à mãe depois de Lentulo ter sido estrangulado, e que Júlia teve de ir suplicar à minha mulher que intercedesse. Que disparate! É uma mentira obscena! Eu preocupei-me que os corpos de todos os conspiradores fossem adequadamente sepultados. Cícero estremeceu e encostou as mãos ao estômago. Avaliou o que restava da refeição, como que para identificar o prato responsável pela sua indigestão.

 

O avô de António, o pai, o padrasto todos eles tinham ascendido em glória e terminado em ruína. O mundo é uma espécie de disco rotativo, que conduz os homens e as mulheres para as suas extremidades e depois os lança violentamente em várias direcções, para o vazio que está para além do arco giratório. Muitos deles nunca mais são vistos, mas alguns conseguem agarrar-se à borda e trepar à força para o centro, não uma vez, mas muitas. Cícero era um deles. Célio era outro.

 

Já me explicaste a sua linhagem disse eu. E quanto ao próprio António?

 

Juntou-se aos maus, a Clódio e ao seu bando de jovens aristocratas incorrigíveis disse Cícero. A fórmula habitual de dissipação: um estilo de vida dispendioso, opiniões políticas radicais, esquemas loucos para o futuro. E sem dinheiro para financiarem tudo isso. O pai de António deixou-lhe uma propriedade tão sobrecarregada de dívidas, que António recusou a herança. Tecnicamente, começou a sua carreira na bancarrota. Foi o jovem Gaio Curió quem lhe pagou as dívidas. Ele e António eram como ervilhas dentro da mesma vagem. Companheiros de deboche. Inseparáveis. Tão íntimos, que a sua relação deu origem a todo o género de... rumores desagradáveis. Bem, quando o pai de Curió recebeu a conta das dívidas de António, subiu ao céu. Veio pedir-me conselho. Eu disse-lhe que cerrasse os dentes, entregasse a prata, e proibisse o filho de voltar a encontrar-se com António. Da vez seguinte que António foi bater à porta de Curió, os guardas impediram-no de entrar. Então o que fez António? Escalou um muro e entrou por um buraco do telhado, directamente no quarto de Curió, como um pretendente decidido!

 

Cícero e Célio soltaram uma gargalhada, interrompida por outro estremecimento de Cícero, que voltou a agarrar-se vivamente ao estômago.

 

Seja como for, António resolveu os seus problemas de dinheiro quando se casou com uma mulher chamada Fádia, filha de um liberto rico. Um liberto! Quando eu era novo, qualquer aristocrata que se casasse tão abaixo do seu estatuto provocaria um escândalo que lhe arruinaria para sempre a carreira, mas calculo que os incorrigíveis do círculo de António o tenham aplaudido por ter ignorado as convenções e conseguido apoderar-se de um grande dote. Pelo menos o casamento parece ter distraído António de Curió; segundo me disseram, António teve vários filhos antes da morte de Fádia. Entretanto, passou algum tempo na Grécia a estudar oratória, fez umas comissões militares na Judeia e na Síria, ajudou a dominar uma revolta contra o Rei Ptolemeu, no Egipto, e acabou por se atrelar a César, partindo para a Gália. Oh, e há uns anos, ainda encontrou tempo para voltar a casar-se desta vez com a sua prima Antónia.

 

E agora, Marco António é um dos lugares-tenentes de maior confiança de César. Calculo que seja competente, dado que César andou a prepará-lo para um cargo político e o mandou regressar a Roma para se candidatar a questor.

 

Enquanto os escravos voltavam a encher os nossos copos com água e vinho, e levavam os pratos, eu meditei nas informações que Cícero acabava de me fornecer. Semprónia tinha-me dito que António perseguira Clódio com uma espada no Campo de Marte, tentando matá-lo. Mas, de acordo com o relato de Cícero, António fora membro do círculo íntimo de Clódio.

 

Quer dizer que António e Clódio eram bons amigos arrisquei.

 

Eram disse Célio, cuja idade e cujas alianças de oportunidade o tornavam mais conhecedor dos assuntos íntimos da geração radical do que Cícero, até terem tido um pequeno desentendimento por causa de Fúlvia.

 

Um desentendimento?

 

Aparentemente, António não percebeu que Fúlvia era mulher de Clódio e pensou que ela estava livre. Célio pôs a língua de fora para apanhar uma gota de vinho que lhe tinha ficado no canto da boca.

 

Ou seja...

 

Oh, provavelmente o caso não teve qualquer significado para António. Entre Curió, o amante dos primeiros anos, as duas mulheres legítimas, e todas as prostitutas da sua juventude, o que poderia significar uma pequena dança com Fúlvia? Mas Clódio ficou furioso quando descobriu. Ele e Fúlvia ainda eram mais ou menos recém-casados. E Clódio costumava reagir violentamente à mais pequena provocação, não era? Isto deve ter sido há uns seis anos. Depois disso, instalou-se uma certa frieza entre António e Clódio. E a seguir um mar inteiro, quando António partiu para a Grécia e para a Judeia. E diversas cordilheiras de montanhas, quando António foi para a Gália. Ele e Clódio não voltaram a ver-se frente-a-frente. Nunca mais estiveram suficientemente próximos um do outro.

 

Excepto no Campo de Marte? sugeri eu. Célio atirou a cabeça para trás e riu-se.

 

Oh, essa! Como é que eu pude esquecer-me dessa? Cícero, deves lembrar-te de eu te ter contado a história. O ano passado, durante umas eleições que depois foram canceladas, António e Clódio encontraram-se, presumo que por acaso. Trocaram umas palavras. António puxou da espada, feroz assassino de 1000 gauleses e Clódio soltou um guincho e desatou a fugir como um coelho assustado. Calculo que isso faz de António o perdigueiro; que alternativa tinha ele, senão perseguir Clódio? Claro que, se o tivesse apanhado, podia ter sido mais um caso do cão perseguido pelo furão, com o pateta a ser mordido no nariz e a fugir aos uivos para a Gália.

 

O que foi que provocou a rixa? Foi a antiga questão com Fúlvia? Mas tu dizes que isso foi há seis anos...

 

Célio encolheu os ombros.

 

Quem sabe? Clódio e António são ambos famosos por terem memórias compridas e paciências curtas.

 

Mas afinal como é que começámos a falar de Marco António? perguntou Cícero.

 

Fúlvia devia sentir-se nostálgica quando Gordiano foi visitá-la, esta manhã comentou Célio. Ela discutiu contigo todos os amantes anteriores?

 

Não respondi eu. E Clódia também não. O sorriso gelou nos lábios de Célio. Cícero lançou-lhe um olhar desprovido de compaixão. Eu endireitei-me para me levantar. A refeição estava excelente, Marco Cícero. Perfeita para uma refeição do meio-dia nem leve demais nem excessivamente pesada. O mesmo posso dizer da conversa. E agora creio que o meu filho e eu temos de nos ir embora.

 

Por que falaste de Marco António? perguntou Eco na curta viagem de regresso a nossa casa.

 

Era por causa de António que Fúlvia queria falar comigo. Ele ofereceu-se para levar Milo a tribunal. Ela não tem a certeza de poder confiar nele. Desconfia de que ele esteja, de alguma maneira, envolvido na morte de Clódio. Ou talvez seja a mãe dela que suspeita de António, e Fúlvia pretende provar que ele está inocente.

 

Ela disse-te que foi amante de António?

 

Não. E o simples facto de Cícero e Célio o afirmarem não faz com que seja verdade.

 

Mas falou-te da perseguição pelo Campo de Marte, no ano passado?

 

Falou.

 

Eco acenou com a cabeça. Momentos depois, riu-se.

 

Foi espantosa, a maneira como lidaste com eles.

 

Com quem?

 

Com Cícero e Célio.

 

Achaste? Tenho a certeza de que eles ficaram convencidos que foram eles que lidaram bem comigo. Provavelmente, disse-lhes mais do que devia. E agora, em troca de umas migalhas de informação acerca de Marco António, vão comportar-se como se eu tivesse ficado a dever-lhes o mundo inteiro.

 

Mas a maneira como às vezes falas com eles, praticamente, insulta-los na cara!

 

Pois é, é uma coisa estranha, mas as pessoas como Célio e Cícero gostam de ser insultadas.

 

Gostam?

 

É o que me diz a minha experiência. Eu pico-as e elas picam-me. Sabem que nada têm a recear de mim; nada do que eu possa dizer poderá realmente magoá-las. Gostam que eu as pique, como às vezes nós gostamos que um mosquito nos pique a comichão dá-nos alguma coisa que coçar. Não é como o ferrão de uma abelha; não é como as chagas sangrentas que vi Cícero infligir aos seus inimigos com uma ou outra palavra que mais pareciam um espeto em brasa.

 

Foi Davo quem nos abriu a porta. Pela sua expressão, percebi que se passava qualquer coisa. Antes de Davo poder falar, uma voz trovejou atrás dele.

 

Chegou finalmente o dono da casa!

 

Tratava-se de um homem grande, devia ser um gladiador ou um soldado, apesar do tecido ricamente bordado da sua túnica cinzenta e da capa verde-escura. Tinha partido o nariz, talvez mais do que uma vez, e as suas mãos eram do tamanho da cabeça de um bebé. Era calvo como um bebé e quase tão feio como eles costumam ser. Tinha a aparência de um homem que podia atravessar um lugar perigoso sem se incomodar com isso.

 

Uma visita disse Davo, desnecessariamente.

 

Bem vejo. E quem te enviou... cidadão? perguntei eu, reparando no anel de ferro que ele usava no dedo. Devia ser um liberto de alguém.

 

O Grande disse ele rudemente. A sua voz era como cascalho num dique.

 

Queres dizer...

 

Eu nunca o trato de outra maneira. É assim que ele gosta de ser tratado.

 

Calculo que sim. E o que quer o Grande...

 

A honra da tua presença, assim que te for conveniente.

 

Agora?

 

A não ser que possas ir mais cedo.

 

Davo...

 

Sim, Senhor?

 

Diz à tua senhora que eu ainda tenho de ir tratar de outro assunto. Desta vez, calculo que terei de sair dos muros da cidade.

 

Queres que eu te acompanhe?

 

Olhei para o homem a quem tinha decidido chamar Cara de Bebé, que sorriu e disse:

 

Eu trouxe comigo um destacamento inteiro de guarda-costas.

 

Onde estão eles?

 

Disse-lhes que esperassem do outro lado da rua, ao pé da Rampa. Pareceu-me que não valia a pena perturbar os teus vizinhos com o movimento.

 

És mais discreto do que algumas das pessoas que já vieram visitar-me hoje.

 

Obrigado.

 

Eco, vens comigo?

 

Claro, papá. Eco também não conhecia o Grande. Reparei que o meu estômago começava subitamente a agitar-se. Mas a culpa não era do cozinheiro de Cícero.

 

Por isso saí, pela terceira vez naquele dia, recordando novamente o velho provérbio etrusco. Mas isto não era bem uma carga de água. Era mais um dilúvio.

 

A lei proíbe um homem que comande um exército de entrar dentro dos muros da cidade. Tecnicamente, Pompeu era um comandante, embora o seu exército estivesse em Espanha; ele considerara adequado delegar a sua condução nos seus lugares-tenentes, enquanto permanecia perto de Roma para vigiar a crise eleitoral. Estava por isso a residir na sua villa da Colina Pinciana, do lado de fora dos muros, mas perto da cidade. Como Pompeu não podia entrar em Roma, era Roma que ia ter com Pompeu, como tinha feito a plebe quando acorrera à sua villa para lhe oferecer os machados consulares, ou como tinha feito Milo, quando procurara, sem êxito, conseguir uma audiência, ou como Eco e eu demos por nós a fazer naquela tarde.

 

O Cara de Bebé e o seu destacamento de gladiadores cerraram fileiras à nossa volta como uma tartaruga em armas durante todo o percurso; descemos a Rampa, cruzámos o Fórum e passámos pela Porta Fontinal. Ao sairmos por essa porta, atravessámos a fronteira tradicional da cidade, mas havia tantos edifícios na extensão da Via Flamínia que ficava dentro da cidade, como na que ficava fora dos seus muros. Depois, os edifícios foram-se tornando gradualmente mais pequenos e menos numerosos, até chegarmos a uma zona de campo aberto. Os quiosques públicos destinados às eleições ficavam para a nossa esquerda. À nossa frente e para a direita, havia um portão alto e guardado, que se abriu quando nos aproximámos.

 

O caminho pavimentado passava por jardins em socalcos, umas vezes em taludes, outras em degraus, curvando para a direita e para a esquerda à medida que ia subindo. Os terrenos de ambos os lados estavam cobertos pelo manto cinzento e castanho do Inverno, e a tristeza das árvores nuas era aliviada, aqui e ali, por estátuas de mármore e de bronze. Um cisne real, que até podia ser Júpiter fazendo a corte a Leda, passeava graciosamente num pequeno lago circular. Passámos por um muro baixo onde estava sentado um jovem escravo tirando um espinho do pé, pintado com cores tão naturais, que eu o teria confundido com um ser de carne e osso se ele não estivesse nu debaixo de um sol quente. Não vi deuses nem deusas no jardim, até nos cruzarmos com o indispensável Príapo, guardião e motor das coisas que crescem, que ocupava uma alcova de pedra colocada em lugar elevado, sorrindo lascivamente e exibindo uma erecção quase do seu próprio tamanho. A coroa do seu falo de mármore fora amaciada pelas mãos que nela tocavam, e tinha um polimento brilhante.

 

Finalmente, chegámos à villa, onde mais gladiadores guardavam um par de portas altas de madeira com guarnições de bronze. O Cara de Bebé disse-nos para esperarmos ali enquanto ele ia lá dentro.

 

Eco puxou-me pela manga. Quando me voltei, não precisei de lhe perguntar o que queria ele mostrar-me. A vista era espectacular. Ramos entrelaçados e topos de árvores escondiam o caminho que tínhamos acabado de percorrer, bem como a Via Flamínia e os quiosques das eleições, situados imediatamente abaixo de nós; mas, por cima e para além dos topos das árvores, o Campo de Marte abria-se por inteiro à nossa frente. As antigas carreiras de marcha e de treino equestre tinham desaparecido quase por completo durante o meu tempo de vida, substituídas por edifícios de habitações baratas e armazéns amontoados. Dominando tudo o resto, via-se o enorme complexo construído por Pompeu no seu consulado, dois anos antes, um corpo alongado de salas de reunião, galerias, fontes, jardins e o primeiro teatro permanente da cidade. Mais adiante, como um grande braço em curva à volta do Campo de Marte, ficava o Tibre, cujo curso era marcado por um manto baixo e espesso de nevoeiro do rio que só possibilitava uns vislumbres dos jardins e das villas situados na outra margem. A villa ribeirinha de Clódia, diante da qual os jovens elegantes de Roma costumavam ir nadar nus, para divertimento da proprietária, ficava situada algures nessa margem mais distante. O cenário mais parecia uma pintura em tonalidades suaves de Inverno, vermelho-ferrugem e verde-acinzentado, branco de osso e azul-ferro.

 

Eco voltou a puxar-me pelo cotovelo e acenou com a cabeça em direcção ao sul. O volume da villa bloqueava a visão da maior parte da cidade, à excepção de uma tira estreita, com os templos, o Capitólio, e a confusão urbana para lá dele. Ao longe, talvez no Monte Aventino, uma pluma de fumo erguia-se no ar parado como um vasto pilar de mármore. Fosse qual fosse o caos que reinava na base desse pilar, ficava demasiadamente longe para que pudéssemos vê-lo ou ouvi-lo. Um homem começaria a sentir-se distanciado e indiferente olhando para Roma de um lugar elevado como este? Ou tornar-se-ia ainda mais agudamente consciente dos edifícios a arder sem controlo e do caos nas ruas quando vigiava Roma de um tal ponto de vantagem divino?

 

Atrás de nós, as portas abriram-se com um som metálico. O Cara de Bebé emergiu, sorrindo com ar severo. O Grande vai receber-vos.

 

Eu devia estar bastante nervoso quando o Cara de Bebé nos conduziu através da entrada, depois do átrio, e subiu connosco um lanço de escadas em curva, porque mais tarde, quando Betesda me perguntou, não me consegui lembrar de nada do que dizia respeito ao mobiliário ou à decoração, embora me recordasse vivamente de que tinha a boca seca como velino, e que o meu coração parecia ter aumentado para o dobro do seu tamanho normal.

 

Fomos levados até uma sala com muitas janelas, situada no canto sudoeste da casa. As cortinas e as portadas tinham sido abertas, proporcionando uma perspectiva ampla da cidade. A coluna de fumo que se erguia no ar a sul, e que tínhamos avistado da entrada, encontrava-se no centro desta perspectiva, e juntavam-se-lhe outros dois pilares de fumo, mais perto e mais para a esquerda, provavelmente produzidos por incêndios no Monte Esquilino ou na Subura. Pompeu estava ao pé das janelas, de costas para nós. A princípio, era apenas uma silhueta, uma coroa de caracóis revoltos por cima de uns ombros largos e de um tronco robusto e bem almofadado. Quando os meus olhos se adaptaram à luz, vi que ele trazia uma túnica de lã verde-esmeralda, comprida e larga. Tinha as mãos atrás das costas, e fazia tamborilar nervosamente os dedos uns contra os outros. Ouviu-nos entrar e voltou-se lentamente para nós. O Cara de Bebé afastou-se discretamente para um canto. Eu detectei a sombra de outro guarda na varanda.

 

Pompeu tinha a mesma idade que Cícero, ou seja, era uns anos mais novo do que eu. Eu gostaria de ter tão poucas rugas como ele, mas preferia não dispor do mesmo número de queixos. Ocorreu-me que Pompeu podia ser do género de homem que, em momentos de crise, se refugia na comida. A actividade de comandar exércitos em movimento mantinha-o ocupado e em forma. Porém, ali metido na sua villa pinciana, aumentara de peso com o peso do mundo.

 

Neste momento, porém, o meu espírito não estava capaz de se concentrar em trocadilhos. Este homem não era Fúlvia nem Clódia, misteriosas e sinistramente decididas, mas vulneráveis em consequência do sexo a que pertenciam. Nem era Cícero ou Célio, um par meu conhecido, com quem podia trocar gracejos descuidados. Este homem era Pompeu.

 

Quando era jovem, os poetas tinham desfalecido diante da sua beleza. Contemplando os seus caracóis luxuriantes e sacudidos pelo vento, a testa suave e o nariz cinzelado, as pessoas já chamavam ao jovem general o novo Alexandre antes de as suas proezas militares provarem que havia razões para isso. A expressão típica do jovem Pompeu fora um meio sorriso plácido e sonhador, como se a contemplação da sua própria grandeza futura o mantivesse perpetuamente satisfeito, mas também um pouco distanciado. Se o seu rosto tinha algum defeito, era a sua tendência para a rotundidade e a opulência dos seus lábios e das suas faces, que podiam parecer maduramente sensuais ou agradavelmente roliças, dependendo do ângulo e da luz.

 

À medida que se foi tornando adulto, o seu rosto pareceu achatar um pouco e tornar-se ainda mais redondo. O nariz cinzelado tornou-se carnudo, os caracóis bravios foram aparados em deferência pela maturidade. O sorriso tornou-se menos sensual e mais complacente. Era como se, enquanto o seu prestígio e o seu poder aumentavam, Pompeu fosse tendo menos necessidade da beleza física, pondo assim de parte o agradável ornamento da sua juventude.

 

Tudo isto vira eu à distância enquanto Pompeu ia construindo a sua carreira, orando nos tribunais, fazendo campanha no Campo de Marte, mostrando-se no Fórum acompanhado pela sua vasta comitiva de ajudantes militares e políticos, cada um deles seguido por uma roda pessoal de acompanhantes, que procuravam obter do Grande, favores em segunda-mão. Mas aquilo que não se vê à distância são os olhos de um homem, como eu agora via os olhos de Pompeu, que se fixaram nos meus com desconcertante intensidade. Por qualquer razão, recordei uma famosa citação da sua juventude. Quando fora enviado para a Sicília, a fim de expulsar os inimigos de Sula, o povo da cidade libertada queixara-se de que Pompeu não possuía jurisdição sobre ele, com base em antigos acordos estabelecidos com Roma. Ao que Pompeu replicara: Parem de citar as leis. Nós trazemos espadas na mão.

 

Gordiano, o Descobridor disse ele e o seu filho adoptivo, Eco.

 

Sorriu para si próprio e fez um aceno de cabeça, como quem se sente satisfeito por ser capaz de se lembrar de pormenores tão insignificantes sem que um escravo lhos recorde. Não nos conhecemos, pois não?

 

Não, Grande.

 

Também me pareceu.

 

O silêncio que se seguiu foi desconfortável para mim, mas aparentemente não o foi para Pompeu, que andava silenciosamente de um lado para o outro diante de nós, sempre com as mãos atrás das costas.

 

Tiveste um dia atarefado disse ele por fim.

 

Perdão, Grande?

 

Clódia passou por tua casa e levou-te na sua liteira. Foste fazer uma visita a Fúlvia. Presumo que Semprónia também estivesse presente. Logo que chegaste a casa, o liberto de Cícero foi bater-te à porta, e tu e o teu filho saíram para conferenciar com Cícero e Célio. Milo não estava lá hoje, pois não?

 

Eu ia responder, mas depois apercebi-me de que Pompeu não estava a olhar para mim, mas para o Cara de Bebé, que abanou a cabeça e respondeu:

 

Não, Grande, Milo não saiu de casa o dia todo.

 

Pompeu acenou com a cabeça e voltou a pousar o seu olhar em mim. Mas já te encontraste com Milo, debaixo do tecto de Cícero. Não se tratava de uma pergunta, mas parecia pedir uma resposta

 

ou antes, uma confissão.

 

Sim.

 

Há algum tempo que não vejo Tito ânio Milo. Como está ele?

 

Como está ele, Grande?

 

Sempre foi tão orgulhoso do seu físico, de ter o mesmo nome que Milo, o lendário lutador de Crotona, e tudo isso. Está a aguentar-se?

 

Parece estar numa forma bastante razoável.

 

E de cabeça?

 

Isso já não sei, Grande.

 

Não? Mas tu costumas ler sinais, não costumas? Certamente leste alguma coisa na sua voz, no seu rosto.

 

Milo sente-se ansioso, irritado, hesitante. Mas certamente não precisas que eu te diga estas coisas.

 

Pois não. O seu sorriso parecia desprovido de ironia, um simples gesto de apreciação pelo facto de eu não o fazer perder tempo. O que te queria Clódia esta manhã? Ao ver-me hesitar, Pompeu franziu o sobrolho. Não me digas que não tenho nada a ver com isso. Tenho. Tenho a ver com tudo o que acontece actualmente em Roma. O que te queria Clódia?

 

Levar-me até Fúlvia. Nada mais. E o que queria Fúlvia?

 

Grande, certamente que palavras ditas em confidência por uma viúva enlutada...

 

Descobridor, estás a impacientar-me. Pensei na melhor maneira de lhe responder.

 

Um certo homem abordou-a. Ela não sabe se deve confiar nele.

 

Não me digas que os pretendentes já começaram a bater-lhe à porta!

 

Não era exactamente um pretendente disse eu, embora na realidade, e a acreditar em Célio, António tivesse sido amante de Fúlvia.

 

Pompeu mostrou-se profundamente desinteressado.

 

Bem, não insistirei nos pormenores; os assuntos pessoais de Fúlvia não têm importância imediata para mim. Concordaste em ajudá-la?

 

Ainda não tomei uma decisão.

 

Talvez eu possa ajudar-te. Quem sabe? Talvez eu possua a informação que tu procuras.

 

Não me parecia provável. Marco António era um homem de César, e não de Pompeu.

 

Estás a oferecer-me ajuda, Grande?

 

- Talvez. Sou um homem razoável. Se puder oferecer-te alguma coisa de valor, presumo que fiques mais disponível para me dar aquilo que eu quero.

 

E o que queres tu de mim, Grande?

 

Já lá vamos. Tens alguma pergunta a fazer-me? Pensei cuidadosamente, e pareceu-me que não havia perigo em perguntar:

 

O que podes dizer-me acerca de Marco António?

 

Do lugar-tenente de César? Sei que o pai dele enrolou as coisas quando o mandaram tratar dos piratas, antes de o Senado me encarregar da mesma tarefa. E que o padrasto foi executado por traição por ordem de Cícero. E recordo que o jovem António andou a fazer de soldado nos meus antigos territórios durante uns anos, antes de se passar para o lado de César. Há mais alguma coisa para saber?

 

Talvez não.

 

Por Hércules, não é ele que anda a fazer a corte a Fúlvia, pois não? Não percebo como. Já é casado com a prima Antónia, e não é o género de casamento ao qual seja possível escapar. Mas, se é ele o pretendente, Fúlvia fará melhor em evitá-lo; seria esse o meu conselho. Clódio pode ter sido um extorsionista e um agitador da ralé, mas pelo menos sabia levar a prata para casa; basta pensar na mansão que lhe deixou. Mas o jovem António é completamente diferente. Tal como César e o resto desse círculo, está cada vez mais afundado em dívidas, sempre a vender-se para obter o empréstimo seguinte. Vão acabar mal, todos eles. Só espero que, pelo caminho, não levem a República à bancarrota.

 

Calou-se e ergueu uma sobrancelha num gesto de surpresa ligeira consigo próprio, percebi então, por ter dito mais do que tencionava.

 

E qual foi a reacção de Cícero à tua visita a Fúlvia? disse Pompeu, insistindo.

 

Eu pigarreei.

 

Mostrou-se curioso, tal como tu, Grande.

 

Ele não estava, de alguma maneira por trás dessa visita a Fúlvia, pois não? Não? Pensei que talvez ele tivesse conseguido contratar-te como seu espião. Seria tão típico de Cícero. Redes escondidas, cartas anónimas, mensagens num código secreto inventado por Tiro, informadores pagos, cada espião a espiar o seguinte. É como uma aranha a construir teias em todas as direcções. Seria um homem diferente se tivesse algum talento como militar. Mais acção e menos palavras.

 

És espião de Cícero, Descobridor? Voltou a desconcertar-me com o seu olhar.

 

Não, Grande.

 

Talvez sejas, e nem sequer te apercebas.

 

A sugestão surpreendeu-me, e depois deixou-me um tanto constrangido.

 

Acho que, por esta altura, já conheço todos os truques de Cícero. Pompeu ergueu uma sobrancelha.

 

A sério? Nem eu faria semelhante afirmação! E que te parece o comportamento de Célio? Por que razão defende Milo? O que pretende ele ganhar com isso?

 

Célio está do lado de Cícero; Cícero está do lado de Milo.

 

Por isso, e por extensão, Célio é um homem de Milo?

 

Não tenho a certeza de que Célio seja homem seja de quem for.

 

Aí tens razão, Descobridor. E que te parece o próprio Milo?

 

Como já te disse, Grande...

 

Sim, já sei: "ansioso, irritado, hesitante". Mas o que te parece a tí?

 

Só o conheci recentemente depois da morte de Clódio.

 

A sério? Não tinham tido qualquer contacto antes disso?

 

Não.

 

Mas tu tinhas uma relação antiga com Clódio.

 

Não. Fiz um certo trabalho para a irmã de Clódio, há uns anos... Ele acenou com a cabeça.

 

Quando ela ajudou a acusar Célio de assassínio. Talvez te recordes que eu falei em defesa de Célio.

 

Sim. Receio não ter ouvido o teu discurso.

 

Não foi muito bom. Ainda bem; um bom discurso teria sido um desperdício. Ninguém se teria recordado dele, depois do discurso que Cícero fez nesse dia em defesa de Célio ou contra Clódia. Então, Descobridor, alguma vez estiveste do lado de Clódio?

 

Não estive nem estou.

 

E também não estás do lado de Milo.

 

Não.

 

Ele avaliou-me durante longos momentos, depois voltou-se para Eco.

 

E tu? Tal pai, tal filho? Eco pigarreou.

 

Ajudei o meu pai quando ele trabalhou para Clódia, mas não cheguei a conhecer o irmão. Fui hoje a casa de Cícero na companhia do meu pai, mas nunca me encontrei pessoalmente com Milo.

 

E de que lado estão as tuas lealdades?

 

Do lado do meu pai. Pompeu sorriu.

 

Um filho leal é o melhor de todos os aliados, hem, Descobridor? E o teu outro filho, aquele que anda pela Gália? Não atraiu os restantes Gordianos para a órbita de César?

 

O meu filho Meto é um soldado leal, mas a minha família não tem qualquer lealdade especial a César.

 

Pompeu olhou para mim com curiosidade.

 

Como consegues navegar com uma rota tão independente, Descobridor, sem te esmagares nas rochas?

 

Parece-me, Grande, que, se deixasse outro homem navegar por mim, há muito que me teria esmagado nas rochas.

 

Costumas decidir a tua própria rota, Descobridor? Mas como? Tens algum conhecimento especial das estrelas? Ou avanças às cegas em direcção ao futuro?

 

Tão às cegas como outra pessoa qualquer, suponho eu. Talvez sejam as estrelas que traçam o nosso caminho.

 

Ah, sim, conheço esse sentimento. Estás convencido de que tens um destino, não é?

 

Um destino muito pequeno, talvez.

 

Suponho que é melhor do que não ter destino nenhum. O Grande abanou a cabeça, como se a ideia de não ter destino nenhum, ou de ter um destino muito pequeno, fosse demasiado difícil de conceber para ele. O destino é uma coisa estranha. Olha para Clódio, terminou como um cadáver coberto de sangue na grande estrada construída pelo seu antepassado; é quase excessivamente adequado, mais parece uma tragédia grega. Pensa em Milo. Calculo que o fim mais adequado para ele seria ser apanhado numa cilada qualquer, e ser comido vivo pelos seus inimigos.

 

Não estou a perceber bem, Grande.

 

- Não estás a perceber? Como o lendário Milo de Crotona.

 

Há uma história relacionada com a sua morte? Nunca me interessei muito por atletas famosos.

 

Não? Mas nunca compreenderás verdadeiramente o nosso Milo, a não ser que conheças o seu homónimo. O nome com que um homem se apresenta é um sinal daquilo que pensa sobre si próprio, e por vezes dos seus objectivos. Com certeza não preciso de chamar a atenção desse facto a um homem que se chama a si próprio "Descobridor".

 

Compreendo... Grande. Pompeu nem sequer pestanejou.

 

Nesse caso, vou-vos contar a história de Milo de Crotona disse ele. Venham, estamos melhor na varanda. Podemos sentar-nos ao sol. Vou mandar vir um pouco de vinho aquecido. Albano ou Falerniano? Por mim prefiro o Albano, é mais seco...

 

Sentámo-nos, pois, na varanda de sudoeste da villa pinciana de Pompeu, beberricando um vinho com dez anos e contemplando a cidade. Aparentemente, o incêndio do Monte Aventino tinha sido extinguido. A enorme coluna de fumo fora cortada pela base e parecia flutuar acima dos telhados das casas como uma coisa saída de um pesadelo. Nas proximidades da Porta Colina, à nossa esquerda e ao longe, surgira um novo pilar de fumo, mais espesso e preto como azeviche.

 

Pompeu fez girar o vinho no copo.

 

Quando era jovem, o nosso Milo era um atleta e tanto. Pelo menos é isso que ele diz; depois do terceiro copo de vinho, começa a gabar-se dos seus tempos de glória como atleta como um soldado se gaba de batalhas antigas. Ganhou muitas competições, especialmente como lutador. Não sei que género de adversários tem um rapaz que cresce numa cidadezinha como Lanúvio, mas Milo sempre foi o mais forte, o mais veloz, o mais decidido. Possante como um touro. E teimoso como um touro é assim, o nosso Milo.

 

Continua a ser vaidoso como um grego relativamente ao seu físico, sabem? Não é exactamente o ideal grego é demasiadamente baixo e encorpado, mas não há dúvida de que se manteve em forma. Já o vi nu, nas termas. Tem um estômago que mais parece um tijolo, e ombros como pedras de catapulta. Seria capaz de partir uma noz entre as nádegas! Pompeu soltou uma gargalhada rouca, discretamente ecoada pelo soldado que montava guarda na ponta da varanda, e que não podia deixar de ouvir a conversa. Apercebi-me de que Eco e eu tínhamos sido admitidos numa certa intimidade com o Grande. Ele estava a ter connosco o género de conversa de homens que um comandante tem com os seus subordinados em momentos de lazer.

 

Por isso, quando Tito Ânio andava à procura de um nome para si próprio, decidiu-se por Milo. Lembram-se daquele antigo exercício escolar sobre Milo?

 

Eu não reagi mas Eco, cuja formação irregular tinha, ainda assim, sido mais formal do que a minha, aventurou-se a responder:

 

Compõe uma oração com base no seguinte tema e mostra que lições podemos retirar dele para o conjunto da nossa vida: Tendo-se acostumado a exercitar-se diariamente carregando um vitelo, Milo de Crotona continuou a carregá-lo até ele se transformar num touro.

 

Pompeu e Eco partilharam uma gargalhada nostálgica.

 

Moral da história: à medida que um rapaz se vai tornando um homem, também vão aumentando os fardos que carrega - disse Pompeu, e quando se é um tipo como Milo de Crotona, não se foge deles, continua-se a sorrir de dentes cerrados, arrastando os fardos para diante, gemendo e grunhindo. Tenho a certeza de que o nosso Milo teve de escrever sobre o mesmo tema. Aparentemente, não se esqueceu da lição.

 

Bebeu um gole de vinho, franziu um sobrolho, e chamou o criado.

 

Este é mesmo o nosso melhor Albano? Já não está bom. Não serve. Traz o Falerniano. Muito bem, onde é que eu ia? Oh, pois. Proezas de força. Dizem que Milo de Crotona era capaz de apertar numa mão uma romã madura, com tanta firmeza que ninguém conseguia abrir-lhe os dedos, mas com tanto cuidado que a romã não escorria sumo. Era capaz de subir para um disco coberto de gordura e equilibrar-se de modo tão perfeito, que ninguém conseguia empurrá-lo dali. Era capaz de atar uma corda à volta da cabeça, suster a respiração, e fazer aumentar as veias da testa até a corda rebentar, a isso gostava eu de ter assistido!

 

Mas Milo de Crotona nem sempre era gracioso. Certa vez, nos jogos de Olímpia, quando se preparava para ir receber a coroa de folhas de louro da luta, escorregou e caiu de costas no chão. Enquanto tentava pôr-se de pé, alguns palermas que estavam entre a multidão começaram a dizer que ele não devia ser coroado, depois de ter dado mostras de uma tal falta de jeito. Milo respondeu: "Não foi a terceira queda! Só caí uma vez. Vamos lá ver qual de vocês me atira ao chão mais duas vezes!" Eles calaram-se imediatamente.

 

Ganhou ao todo, 12 coroas, seis em Olímpia e seis em Delfos. Quando Crotona entrou em guerra com os Sibaritas, Milo colocou na cabeça as seis coroas de louros à laia de capacete eram suficientes para aparar os golpes e vestiu-se como Hércules, o seu herói, com uma pele de leão, levando uma moca na mão. Conduziu o povo de Crotona à vitória. E quando num gesto de gratidão, eles decidiram erguer-lhe uma estátua, Milo transportou a sua própria estátua até à praça e colocou-a no pedestal.

 

Quando Pitágoras, o filósofo, vivia em Crotona, ele e Milo tornaram-se grandes amigos. Os opostos atraíram-se: o pensador e o homem da força. Foi uma sorte para Pitágoras, porque Milo salvou-lhe a vida. Houve um tremor de terra, e um pilar da sala de jantar da escola dos filósofos cedeu. Milo segurou o tecto, evitando que ele se desmoronasse, enquanto Pitágoras e os alunos se escapavam, acabando por conseguir salvar-se também.

 

Começas a perceber, Descobridor, a relação alegórica que estas façanhas lendárias podem ter com a forma como o nosso Milo se conduz e aprecia o seu próprio destino? O herói lendário cujo punho fechado não pode ser aberto contra a sua vontade; que não se deixa derrubar, por muito escorregadio que seja o chão que pisa; que transporta um grande fardo sem se queixar; que consegue suster a respiração até as veias da testa lhe saltarem; que é o melhor amigo de um sábio famoso; que está disposto a perder-se para salvar os seus amigos; que parte para uma batalha levando aos ombros o manto ou, neste caso, o nome do seu herói de infância; que não se importa de colocar a sua própria estátua no respectivo pedestal; que ninguém consegue derrubar... mas que é capaz de cair de costas no chão, sem ser empurrado e à vista do mundo.

 

Pensei naquilo enquanto bebia uns goles do Falerniano que me tinham servido. Uma brisa de final da tarde começava a agitar o céu de Roma, fazendo inclinar os pilares de fumo e desfazendo em farrapos as suas extremidades superiores.

 

E como morreu Milo de Crotona, Grande?

 

O que diz o adágio? "É inútil ter muita força, se um homem não souber usá-la." Foi esse o mal de Milo de Crotona. Certo dia, partiu de viagem, a pé, e perdeu-se numa floresta densa. Já longe da estrada, chegou a uma zona de clareira onde tinham estado a trabalhar alguns lenhadores, mas já era tarde e os lenhadores tinham-se ido embora. Viu um grande tronco. Havia uma comprida racha ao longo do tronco, dentro da qual estavam metidas diversas cunhas de metal. Aparentemente, os lenhadores tinham tentado dividir o tronco em dois mas, não o conseguindo, tinham deixado a tarefa para o dia seguinte. Milo pensou: Vou eu dividir o tronco. Eles vão ficar completamente surpreendidos quando virem que houve um homem que conseguiu fazè-lo só com as duas mãos! Vão achar que eu sou muito inteligente! Vão sentir-se muito gratos! Outro famoso acto de força de Milo de Crotona! Meteu os dedos pela racha estreita e encostou as palmas das mãos aos dois lados. Afastou-os com toda a sua força. As cunhas de ferro soltaram-se e caíram e o tronco fechou-se imediatamente. Milo ficou com as mãos presas. Tinha os braços dobrados. O tronco era demasiadamente pesado e ele não conseguiu voltá-lo. Ficou imobilizado.

 

Caiu a noite. Ouviu-se um uivo nos bosques. A clareira foi invadida por animais selvagens, provenientes da floresta. Eles sentiram o medo de Milo, aperceberam-se da sua impotência. A princípio, limitaram-se a mordê-lo mas, ao verem que ele não era capaz de se defender, atiraram-se a ele, com os dentes a faiscar. Rasgaram-no de cima a baixo e comeram-no vivo.

 

Na manhã seguinte, os horrorizados lenhadores encontraram aquilo que restara de Milo de Crotona. Pompeu bebeu uns goles de vinho. Não preciso de elaborar os óbvios paralelos com o perigo em que se encontra o nosso Milo, pois não?

 

Não, Grande. Pareces estar muito bem informado sobre os dois Milos.

 

O meu pai costumava contar-me histórias sobre Milo de Crotona, quando eu era miúdo. Quanto a Tito Ânio Milo, temos sido ocasionalmente aliados.

 

Mas deixaram de ser?

 

Clódio e eu também fomos aliados disse ele, evitando a pergunta, tal como César e eu fomos aliados, e continuamos a ser, tanto quanto sei.

 

Não compreendo, Grande.

 

Há coisas que só as Parcas parecem conhecer. Não importa. E tu, Descobridor? Quem são os teus aliados? Quem serves tu? Pareces ser um homem que se move em todos os campos sem pertencer a nenhum.

 

Parece-me que é mesmo assim, Grande.

 

O que faz de ti um sujeito um tanto invulgar, Descobridor. Um amigo valioso.

 

Não percebo bem como, Grande.

 

Quero que me faças um pequeno trabalho.

 

Senti diversas coisas ao mesmo tempo excitação, cautela, uma sensação de afundamento.

 

Talvez, Grande. Se eu puder.

 

Quero que faças uma viagem pela Via Ápia, até ao local onde Clódio foi morto. Leva o teu filho contigo, se quiseres. Fala com as pessoas. Vê o que consegues descobrir. Se fores tão bom como o teu nome indica, talvez descubras algumas coisas que passaram despercebidas a outros.

 

Por quê eu, Grande? Certamente que há outros homens a quem podias recorrer.

 

Não conheço mais ninguém que se mova com a liberdade com que tu pareces mover-te entre a casa de Fúlvia e a de Cícero. Como já disse, és um sujeito invulgar.

 

As Parcas parecem ter-me colocado num local curioso.

 

Não foste o único. Todos temos de nos submeter às Parcas. Acabou de beber o vinho lentamente, sem tirar os olhos de mim. Deixa-me explicar-te uma coisa, Descobridor. Como general, tenho sido quase infalível. Tenho avançado de triunfo em triunfo sem dar um passo em falso, raramente me concedendo um momento de hesitação. Tenho instinto para isso, compreendes? É um génio peculiar, muito próprio. Podia fazê-lo de olhos fechados. Mas a política a política é uma coisa diferente. Eu aproximo-me do Fórum da mesma maneira que me aproximo de um campo de batalha. Reúno as minhas forças, concebo um plano mas as coisas nunca saem exactamente como eu quero. Penso que estou a caminhar em direcção ao prémio, sem desvios, e subitamente apercebo-me de que não faço ideia de onde estou, ou de como lá cheguei. Perco por completo o sentido de orientação.

 

Júlia costumava dizer que eu tinha maus conselheiros. Talvez tivesse razão. Num campo de batalha, as nossas tropas estão aqui, o inimigo está ali, e se um homem não nos dá a informação correcta, no dia seguinte está morto. Mas, nesta escuridão nebulosa, alguém pode espetar-te um punhal no coração sem tu te aperceberes, e os chamados conselheiros têm o costume de te dizer aquilo que acham que tu queres ouvir, sem se incomodarem com os factos. Não imaginas a quantidade de vezes que percorri um caminho com a ajuda de um mapa, e fui parar diante de uma parede. Desta vez, isso não pode acontecer! Não poderá haver maus conselhos, mentiras aduladoras, enganos. Tenho de conhecer o chão que piso, a disposição do inimigo, os movimentos precisos de todas as forças que me cercam. Primeiro que tudo, e antes de mais, quero saber exactamente o que aconteceu na Via Ápia. Compreendes?

 

Julgo que sim, Grande.

 

Posso confiar em ti, Descobridor?

 

Eu olhei para ele por longos momentos, perguntando a mim próprio se poderia confiar em Pompeu.

 

Não precisas de responder disse ele por fim. O meu instinto de general sente que não há falsidade em ti. Estás disposto a fazer o que te pedi?

 

Fúlvia já me tinha pedido que investigasse as circunstâncias da morte do marido. Agora, Pompeu fazia a mesma coisa. Senti os olhos de Eco pousados em mim. Inspirei profundamente.

 

Percorrerei a Via Ápia. E descobrirei tudo o que puder acerca da morte de Clódio.

 

Pompeu acenou com a cabeça.

 

Óptimo. Estou certo de que estaremos de acordo quanto às condições; nunca pedi a nenhum homem que marchasse por mim sem o remunerar adequadamente. Quanto ao alojamento, podes ficar instalado na minha villa. Não é longe de casa de Clódio. E deve ser muito perto do sítio onde ele foi morto.

 

Bebeu um gole do Falerniano e olhou para a cidade.

 

Sairei de Roma dentro de um ou dois dias. Quando voltar, porei fim a estes disparates todos.

 

Disparates, Grande?

 

Com um movimento da mão, indicou os pilares de fumo.

 

Esta desordem infernal.

 

Mas como, Grande?

 

Pompeu olhou para mim com astúcia.

 

Julgo que não fará mal dizer-to. Amanhã, o Senado vai reunir-se no pórtico do meu teatro, no Campo de Marte.

 

Fora dos muros da cidade?

 

Sim. Desse modo, eu também posso participar na reuniãolegalmente. Que nenhum homem possa dizer que Pompeu acha que está acima da lei! Têm-se acumulado diversos assuntos, como podes imaginar. Serão apresentadas várias propostas. Uma delas, relativa à reconstrução do Senado. Aí, não haverá controvérsias. Vou sugerir que o contrato seja entregue ao cunhado de Milo, Fausto Sula. Que nenhum homem possa dizer que Pompeu não foi justo com os parentes de Milo! Além disso, é perfeitamente adequado, dado que foi Sula, o pai de Fausto, quem remodelou o antigo Senado. O Senado prestará assim homenagem à memória do ditador Sula e dos seus feitos. Muitos romanos estremecem ao ouvir essa palavra, ditador. Esquecem-se de como é importante dispor de mecanismos por meio dos quais o poder supremo possa ser colocado nas mãos de um único homem, quando as circunstâncias o exigem.

 

Bebeu outro gole de vinho e contemplou os pilares de fumo como se pudesse dispersá-los pela simples força da sua vontade.

 

E haverá ainda outra proposta, mais importante do que essa: que o Senado declare o estado de emergência e promulgue o Decreto Final. Sabes o que significa isso, Descobridor?

 

Sei respondi eu, recordando-me da última vez em que esse decreto fora promulgado, quando Cícero era cônsul e exigira poderes extraordinários para lidar com Catilina e o seu círculo. O Decreto Final solicita aos cônsules que façam "tudo o que for necessário para salvar o Estado".

 

É a lei marcial disse Pompeu sem mais rodeios.

 

Mas nós não temos cônsules.

 

Pois não, isso é um problema. Não é possível requisitar as tropas que estão fora da cidade, porque não dispomos de um cônsul que as requisite. Bem, na verdade, trata-se apenas de um pormenor técnico. É um papel que terá de ser assumido por outra pessoa, e pronto. Felizmente, como homem que já foi eleito cônsul por duas vezes e é o actual comandante das tropas romanas em Espanha, eu possuo, tanto os necessários conhecimentos militares para criar uma milícia aqui em Itália, como a capacidade de a organizar da forma mais eficaz para trazer de novo a ordem à cidade.

 

E o Senado vai concordar com isso?

 

Estou certo de que sim. É apenas uma questão de se contarem os votos antecipadamente. Oh, alguns apoiantes de César vão protestar, e o mesmo farão provavelmente os conservadores mais preconceituosos, como Catão. É um precedente terrível, dirão eles, mas que outra solução propõem? Não poderão protestar com demasiada veemência. Eu arranjo maneira de os aplacar. O importante é que a ordem seja restabelecida. Se tivermos de recorrer a determinadas inovações para obter esse fim, se tivermos de vergar um pouco a lei, que assim seja.

 

Desviou finalmente os olhos dos pilares de fumo que, pelo menos de momento, se recusavam a dispersar.

 

Muito bem, vamos então discutir os teus honorários, Descobridor?

 

Um homem inicia uma viagem pela Via Ápia com o cheiro a peixe nas narinas e o som da água a pingar nos ouvidos.

 

O cheiro provém dos mercados de peixe situados mesmo à entrada da Porta Capena, na extremidade sul da cidade. Os pescadores do Tibre, desde Roma até Ostia, exibem a sua pescaria em fileiras sucessivas de peixes pendurados pelas bocas abertas, alternando aqui e ali com um cesto cheio de moluscos, polvos ou lulas. Num dia normal, a uma hora normal, ressoa no local a tagarelice dos escravos das cozinhas, das mães de família e dos mercadores. Nós partimos àquela hora cinzenta que antecede a aurora, antes da hora habitual de abertura dos mercados, mas apesar disso o local estava estranhamente silencioso e deserto. De acordo com Betesda, há vários dias que não havia mercado à entrada da Porta Capena. Como vairões assustados, os pescadores tinham debandado. Ainda assim, o odor a peixe era forte, como se o mar tivesse penetrado nas próprias pedras que pisávamos.

 

O som da água a pingar provém de uma falha no aqueduto apiano, construído pelo mesmo Ápio Cláudio Ceco que construiu a Via Ápia, há 260 anos. Quando chega à cidade, o aqueduto insere-se na muralha e corre no seu interior durante uma distância considerável, um rio dentro de uma parede, uma maravilha de concepção e engenharia prejudicada por um único defeito: na Porta Capena, o aqueduto verte. Nos meses de calor, os grandes blocos de pedra que formam o arco acima das nossas cabeças cobrem-se de um musgo que pinga, como se fosse o tecto de uma gruta. No pico do Inverno, o musgo morre e, por vezes, a água congela, transformando-se num lençol de gelo brilhante. Nesta manhã, não estava assim tanto frio. A água corria, lenta mas livremente. Quando passámos pela porta, houve uma gota em particular, uma gota especialmente grande e especialmente fria, que me atingiu na parte de trás do pescoço, serpenteando em seguida pelas minhas costas abaixo. Eu sacudi-me, e devo ter emitido um ruído curioso, porque Eco me agarrou no braço e Davo olhou para mim alarmado.

 

Eu sabia o que Davo devia estar a pensar: que era um mau presságio começar uma viagem com um estremecimento e uma praga do seu senhor. Eco, que era menos supersticioso, deve ter receado que eu estivesse a ter um ataque. Depois, uma gota resvalou-lhe pela ponta do nariz, obrigando-o a pestanejar, confuso. Quando Davo inclinou a cabeça para trás e abriu a boca para se rir, houve outra gota que o atingiu em cheio entre os olhos.

 

Pronto, já fomos todos ungidos pela Porta Capena. Isto é um excelente presságio disse eu, para benefício de Davo.

 

Eco ergueu uma sobrancelha, num gesto de dúvida.

 

Onde é o tal estábulo a que Pompeu se referiu? Nunca reparei nele. Olhei à volta. Para a esquerda, mesmo a seguir ao mercado, havia uma densa mata de árvores que rodeavam o santuário de Egera, com as suas torrentes calcárias. Não podia ser naquela direcção. Olhei para a direita. Deve ser aquilo ali. Parece um estábulo, não parece? Normalmente, ficaria oculto por trás dos peixes pendurados. A porta está aberta e há luz no interior. Já deve haver gente a pé.

 

Um caminho estreito flanqueado de ciprestes conduzia ao edifício comprido e baixo aninhado à sombra dos muros da cidade. Dei um passo para o interior, e fui recebido por um odor a feno e a estrume de cavalo, que foi um alívio bem-vindo relativamente ao fedor a peixe, e por uma forquilha apontada ao meu pescoço.

 

Quem és tu? O que pretendes? O homem tinha na outra mão uma lamparina, cujo brilho lhe iluminava o rosto magro e desconfiado.

 

Vimos da parte do teu senhor disse eu. Pensei que estavas à nossa espera.

 

Talvez esteja. Como te chamas?

 

Descobridor.

 

Muito bem. O homem baixou a forquilha. Tenho de ter cuidado. Ultimamente, tem havido muitos problemas. Homens desesperados, excelentes cavalos, e eu no meio de uns e de outros e serei eu a pagar se algum deles for roubado. Compreendes? E digo-te uma coisa, o senhor tem aqui uns belos cavalos. Belos cavalos! Só um militar é realmente capaz de apreciar o valor de um cavalo. Mantém-nos aqui por comodidade, para quando lhe apetece ir dar uma volta até à villa que tem a Sul. Venham ver. Cuidado, sigam a luz da lamparina. Ele disse que vos deixasse escolher. Quantos são? Três? Olhem, tenho aqui três pretos, sem uma única mancha de branco. Se fosse a vocês, era estes que levava.

 

Vi os três cavalos a que ele se referia e aproximei-me do que estava mais próximo. O animal tinha um pescoço comprido e forte e uns olhos brilhantes.

 

Porquê? Estes são os mais velozes? Ele encolheu os ombros.

 

Talvez sejam, talvez não. Mas serão com certeza os mais difíceis de detectar se viajarem de noite. É um factor importante nestes tempos, não nos deixarmos ver quando andamos de noite.

 

Os três cavalos pareciam suficientemente fortes e em forma, e eram de facto muito pretos; apesar do brilho da lamparina do homem, tendiam a desaparecer nas sombras da cocheira. Aceitei o conselho dele.

 

Davo teve alguma dificuldade em montar o cavalo que lhe coube. Ficámos então a saber que nunca tinha montado.

 

Eco parecia completamente desgostoso não tanto irritado com Davo, mas consigo próprio por não se ter lembrado de um pormenor tão elementar antes da partida. De que servia um guarda-costas que não era capaz de controlar a sua montada? Davo era agora o meu guarda-costas pessoal; era eu que lhe devia ter perguntado se ele sabia montar, mas estava tão habituado a Belbo que nem pensei nisso.

 

Quer dizer que nunca montaste? perguntei-lhe.

 

Não, senhor.

 

Não sabes nada sobre cavalos?

 

Nada, senhor. Davo olhava nervosamente para o chão, de um lado para o outro, como um homem empoleirado numa mesa instável.

 

Nesse caso, hoje vais aprender a montar disse eu. E amanhã terás imensa dificuldade em te manter de pé, pensei. De que serviria um guarda-costas com fendas causadas pela sela e as pernas rígidas como madeira?

 

O cavalo resfolegou. Davo teve um sobressalto e agarrou nas rédeas com toda a força. O homem do estábulo estava muito divertido.

 

Não te preocupes! Já te disse que estes cavalos são do melhor que há. Foram treinados para pensar sozinhos. São cavalos de batalha, mantêm a perspicácia, aconteça o que acontecer. São mais espertos do que o escravo mediano, disso não tenho dúvida nenhuma. O Grande até autoriza que sejam montados por mulheres!

 

Davo tomou esta afirmação como um desafio. Franziu a testa, expulsou do rosto o ar enjoado e sentou-se muito direito.

 

Afastámo-nos lentamente dos estábulos, deixando as montadas sentir-nos. Eco estava maldisposto, mas não era por causa de Davo.

 

Parece-te que foi boa ideia meter estrangeiros dentro de casa?

 

São homens de Pompeu. Achas que não devíamos ter confiado neles?

 

Acho que tinha de ser...

 

Era a única maneira. Bem, talvez não fosse a única maneira... Na verdade, Pompeu tinha-se oferecido para permitir que Betesda, Menénia e Diana, e os criados de que elas precisassem, fossem viver para a sua antiga casa de família, dentro dos muros da cidade, no bairro de Carina, na encosta ocidental do Esquilino, enquanto nós estávamos fora. Fazia sentido; aí, estariam certamente seguras, e a casa ficava situada a meio caminho entre a casa de Eco e a minha. Mas eu não quis ir tão longe, passar tão depressa para o campo de Pompeu. Colocar a minha família totalmente ao seu cuidado significava colocá-la por completo sob o seu poder, de uma maneira que seria com certeza detectada pelas outras pessoas. Por outro lado, estava fora de questão eu sair de Roma durante uns dias sem fazer alguma coisa para salvaguardar as casas da família, especialmente tendo em conta que Eco ia comigo, coisa em que ele insistiu. A solução era pedir emprestado a Pompeu um destacamento de guarda-costas, como parte dos meus honorários, os suficientes para proteger a casa do Esquilino e a casa do Palatino na nossa ausência. Pompeu concordou. Os seus homens tinham chegado a minha casa ao princípio daquela manhã, antes de Eco e eu partirmos.

 

Não gostei do aspecto de alguns daqueles tipos cismou Eco.

 

Acho que a ideia é essa. São assustadores.

 

Mas poderemos confiar neles?

 

Pompeu diz que sim. Duvido de que haja ao cimo da terra outro homem tão capaz de manter a disciplina nas suas fileiras como Pompeu.

 

Betesda não ficou satisfeita.

 

Betesda não ficou satisfeita com nada disto. Tem a casa num caos, o marido foi novamente meter-se em situações perigosas, e os gladiadores de outro homem enchem-lhe a casa de lama. Mas eu descontio de que, no fundo, estava satisfeita por dispor daquela protecção. Aqueles homens que pilharam a casa e mataram Belbo, abalaram-na mais do que ela gostaria de admitir. E presta atenção ao que eu te digo, quando voltarmos, ela terá treinado todos os brutamontes de Pompeu para tirarem os sapatos antes de pisarem as carpetes e pedirem autorização para ir à retrete.

 

Eco riu-se.

 

Talvez Pompeu a contrate como instrutora! Avançámos mais um bocado. Menénia mostrou-se bastante razoável com tudo aquilo observou ele. O tom de desejo que pressenti na sua voz fez-me pensar que teriam chegado a mais do que um entendimento mental durante a noite.

 

Menénia é a essência da razão disse eu.

 

E Diana...

 

Não fales nisso. Vi a maneira como ela olhava para alguns daqueles tipos. Prefiro não pensar nisso.

 

Davo mexeu-se pouco à-vontade, e pigarreou, mas Eco insistiu.

 

Ela tem 17 anos, Papá. Provavelmente, casar-se-á em breve.

 

Talvez, mas como? Um casamento decente implica negociações entre as duas famílias, um plano, anúncios aos amigos, todas as coisas por que passámos quando tu te casaste com Menénia. Consegues imaginar-nos a fazer isso tudo, no estado em que as coisas estão actualmente?

 

Os tumultos hão-de acabar, papá. As coisas não tardarão a regressar ao normal.

 

Achas que sim?

 

A vida continua, papá. As coisas vão mesmo ter de melhorar.

 

Achas? Desta vez não tenho assim tanta certeza...

 

Não se via ninguém na estrada, pelo menos pessoas vivas. Alinhada ao longo do caminho, como sempre acontecia ao longo dos percursos importantes fora das cidades, via-se uma sucessão de túmulos e sepulcros, grandes e pequenos. Era ilegal enterrar os mortos dentro das cidades, por isso as zonas de enterramento iniciavam-se logo à saída dos muros. Cenotáfios torcidos com inscrições gastas pelo tempo erguiam-se ao lado de retratos de família recém-esculpidos, em mármore e calcário. Entre os túmulos mais grandiosos, contavam-se os dos Cipiões, a família cuja glória dominara Roma na época anterior ao nascimento do meu pai. Tinham conquistado Cartago e iniciado a formação do império; agora, eram pó.

 

Igualmente grandiosos eram os túmulos dos Cláudios. A Via Ápia era a sua estrada, ou pelo menos eles assim a consideravam, dado que fora construída por um dos seus antepassados. Os Cláudios já falecidos e depositados nos seus túmulos de pedra ornamentada estavam agrupados ao longo do percurso, como espectadores apinhados para assistir a uma parada. Os Cláudios continuavam a imprimir a sua marca em Roma; Públio Cláudio, que assumira a variante plebeia do nome, era o mais recente membro influente da família. Como Pompeu observara, o facto de ter sido assassinado na estrada construída pelos seus antepassados fora uma volta do destino do género adorado pelos dramaturgos melodramáticos e os retóricos sentimentais. No futuro, a ironia da situação poderia proporcionar um tema de composição aos alunos das escolas: ápio Cláudio Ceco construiu a Via Ápia. Duzentos e 60 anos mais tarde, o seu descendente Públio Clódiofoi assassinado no mesmo local. Compara e contrasta os feitos dos dois homens.

 

Para além dos túmulos, viam-se grande montes de lixo e despejos, fragmentos de cerâmica e sapatos rotos, cacos de vidro e pedaços de metal e de gesso. Uma cidade com a dimensão de Roma produz uma grande quantidade de lixo, e ele tem de ser colocado em algum sítio. Era melhor transportá-lo em carretas para fora das muralhas e atirá-lo para a cidade dos mortos, do que deixá-lo acumular-se no meio dos vivos. Na extremidade da cidade, onde os túmulos e os montes de lixo eram menores e mais escassos, e se iniciava a zona rural, passámos pelo Monumento de Basílio. Eu nunca soube quem era Basílio, nem por que razão era o seu túmulo, que tinha a forma de um templo grego em miniatura e fora colocado no alto de uma pequena colina, tão grandioso como os dos Cláudios ou dos Cipiões. As inscrições são tão antigas, que já não se conseguem ler. Mas a proeminência e a localização do monumento fazem dele uma espécie de marco territorial. O Monumento de Basílio marca o limite dos vícios da cidade ou da incursão da ameaça das zonas rurais, dependendo do ponto de vista. Aqui se congrega todo o tipo de personagens pouco aconselháveis. O local é conhecido pelos roubos e violações que nele ocorrem. Daí a advertência amigável a quem faz caminho pela Via Ápia: "Tem cuidado quando passares pelo Monumento de Basílio!" Nessa manhã, tinham sido essas as últimas palavras que Betesda me dirigira. De momento, os únicos vagabundos que se avistavam eram umas figuras miseráveis, amontoadas na base do monumento debaixo de mantas grosseiras, e rodeadas de recipientes de vinho vazios. Provavelmente, eram tão inofensivos e desgraçados como pareciam; por outro lado, os bandidos são conhecidos por assumirem disfarces destes.

 

Esporeei a montada, incitando-a ao trote, ansioso por deixar para trás aquele local. Mas, enquanto avançávamos, a minha intuição disse-me que estávamos a aproximar-nos, e não a afastar-nos, do perigo. Quando insisti com Pompeu para que mandasse guardar a minha família na minha ausência, ele ofereceu-se para também mandar uns guardas com Eco e comigo. Eu recusei. Era provável que os seus homens fossem reconhecidos. Não valia de nada mandar-me procurar aquilo que os homens de Pompeu não tinham conseguido descobrir, se as pessoas percebessem imediatamente que eu vinha da parte de Pompeu. Além disso, tinha eu raciocinado, três homens saudáveis e armados a cavalo, sem constituírem perigo para ninguém, não deviam ter muito com que se preocupar.

 

As últimas palavras que Betesda me dirigira naquela manhã com o que me pareceu uma lágrima ao canto do olho tinham sido:

 

És um louco. Eu esperava que ela não tivesse razão.

 

Passado o Monumento de Basílio, a Via Ápia estende-se como uma fita comprida e direita em direcção ao Monte Alba, que se perfila no horizonte. A terra de ambos os lados é plana como uma mesa, pontuada aqui e ali, à distância, de árvores e cavalos. Para além de nós, não se via mais ninguém na estrada, naquela manhã, nem escravos a trabalhar nos campos, que estavam de pousio. À excepção de uma quantas plumas de fumo, provenientes das lareiras de casas dispersas, não havia qualquer sinal de vida. Esta é uma das passagens mais seguras da Via Ápia, já que a topografia não proporciona locais para emboscadas. O ar fresco, o cheiro a terra, o vasto espaço vazio, o Sol a nascer por cima da longa crista das colinas, para Oeste, todas estas coisas me faziam sentir feliz, satisfeito por ter deixado atrás de mim, durante algum tempo, a cidade e a sua loucura. Mas havia um de nós que não tinha um ar nada satisfeito.

 

Passa-se alguma coisa, Davo? Pareces estar a apanhar o jeito.

 

Senhor? Não, o cavalo é excelente. Ao falar, apertou as rédeas, como se o animal pudesse ouvi-lo e dar um solavanco, só para contrariar.

 

Então o que é?

 

Nada, senhor. É que... Observou os campos de ambos os lados da estrada com um olhar tão desconcertado, que eu segui a direcção desse olhar, pensando que talvez houvesse alguma coisa ameaçadora escondida nos maciços de terra frígida e erva castanha.

 

Em nome de Júpiter, o que estás tu a ver, Davo?

 

Nada, senhor.

 

Pára de dizer isso! Deves ver qualquer coisa.

 

Não, senhor, é exactamente isso. Não vejo nada. Nada de nada. E parece-me que nunca mais acaba.

 

Estás a ficar cego?

 

Não! Vejo bem. Só que não há nada para ver! Subitamente, compreendi. Não pude deixar de me rir do absurdo da situação. Eco franziu o sobrolho e aproximou a montada.

 

O que se passa, papá?

 

Davo nunca saiu da cidade em toda a sua vida disse eu. Pois não, Davo?

 

Não, senhor.

 

Que idade tens tu, Davo?

 

19 anos, Senhor.

 

Davo tem 19 anos, Eco, e nunca montou a cavalo, e nunca saiu de Roma.

 

Eco soltou uma praga, ergueu os olhos ao céu e fez avançar o cavalo.

 

Ele está irritado comigo, senhor.

 

Não está não, Davo. Tem saudades da mulher e está preocupado com ela.

 

Então és tu que estás zangado comigo.

 

Não, Davo. Esquece-te de que me viste rir. Não penses mais nisso. Vais precisar de toda a tua concentração para te manteres direito nesse cavalo sem te desviares de todo este nada por onde vamos passando.

 

Prosseguimos durante mais algum tempo, com o silêncio apenas quebrado pelo som dos cascos dos cavalos na estrada. Das narinas dos animais saíam tufos de vapor. Eu inspirei profundamente, com vontade de sentir o ar frio dentro dos pulmões. A taça vazia e azul do céu da manhã parecia cristal. A terra castanha de Inverno parecia um gigante adormecido, sobre o qual avançávamos lentamente. Eu sentia-me indescritivelmente feliz por estar longe de Roma.

 

Ele era um escravo óptimo, não era? disse Davo, com uma expressão tão carregada, que lhe empurrava o queixo contra o peito.

 

Quem?

 

O guarda-costas que tinhas antes de mim. Aquele que foi morto. Eu suspirei.

 

Chamava-se Belbo. Sim, era um óptimo escravo. Um bom homem.

 

Calculo que fosse mais forte do que eu. E mais esperto do que eu. Olhei para os braços e os ombros volumosos de Davo e observei a infeliz confusão estampada no seu rosto.

 

Não me parece provável respondi.

 

- Mas aposto que sabia andar a cavalo. E aposto que não tinha medo de um campo vazio.

 

Não te preocupes com isso disse eu, com toda a simpatia de que fui capaz. Afinal, ele não tinha culpa de nada disto.

 

O Sol vai alto, Eco. O ar está frio e limpo. Não se vê ninguém na estrada, não há ninguém à vista. Ah! ouviste aquilo?

 

Não ouvi nada, papá.

 

Exactamente. Nem um pássaro nem um grilo. Silêncio, parece-me que começo a recuperar as faculdades. Talvez volte mesmo a ser capaz de pensar.

 

Eco riu-se.

 

Tinhas perdido essa capacidade?

 

Não era uma piada. Não sentes? Quanto mais nos afastamos da cidade, mais limpo fica o meu cérebro. É como se tivesse estado mergulhado num nevoeiro, que agora se levantasse.

 

A névoa que ficou para trás, na cidade, era fumo, papá.

 

A névoa que é visível era. Mas há outra névoa que poisou sobre Roma. Pânico, confusão e fraude não se consegue pensar adequadamente. As pessoas comportam-se como loucas, correndo de um lado para o outro, escondendo-se em buracos, fugindo da própria sombra. Parece um pesadelo que nunca mais acaba. Mas agora sinto que estou a acordar. Não sentes o mesmo?

 

Ele olhou à volta, inspirou fundo e riu-se.

 

Sinto!

 

Óptimo! Talvez possamos então começar a perceber algumas coisas.

 

Por onde queres começar, papá?

 

Por aqui mesmo. Mas vamos recuar 21 dias.

 

Por quê?

 

Porque foi há exactamente 21 dias que Clódio partiu de viagem pela Via Ápia. Fiz este cálculo ontem à noite.

 

E Milo?

 

Milo partiu no dia seguinte, no dia do fatal encontro de ambos mas já lá vamos. Comecemos por Clódio, e vamos reconstruir os acontecimentos tal como se deram, tanto quanto sabemos, por Milo e por Fúlvia. Ainda não contara a Eco todos os pormenores da entrevista que tivera com Fúlvia no dia anterior. Para começar, Fúlvia disse-me que Clódio partiu da casa de ambos, no Palatino, por volta da terceira hora. Mais tarde do que nós nós saímos antes de nascer o Sol, antes da primeira hora. Mas a terceira hora já era bem cedo para um homem como Clódio.

 

Por quê, por ser tão dissoluto como Cícero pretende?

 

Não, porque quando um homem tão poderoso como Clódio sai da cidade, mesmo que seja numa viagem curta, há sempre muitos fios soltos e pormenores de última hora a tratar. Soube por Fúlvia que foi isso que aconteceu com Clódio naquela manhã, notas a escrever à pressa, mensageiros a despachar, e por aí adiante. Por fim, Clódio partiu. Pelo caminho, ainda antes de sair do Monte Palatino, fez uma paragem para visitar um amigo que estava muito doente: Ciro, o arquitecto.

 

O nome não me é desconhecido. Vamos ter de o interrogar?

 

Receio que não possamos. Ciro morreu nesse mesmo dia, pouco depois de Clódio o ter deixado. Era um arquitecto dos ricos e famosos, muito solicitado. Parece ter estado acima das controvérsias políticas. Cícero contratou-o para reconstruir a sua casa do Palatino depois de ter sido incendiada pela multidão. Clódio contratou-o quando comprou aquela casa monstruosa a Escauro, e foi ele que planeou todas as alterações. Presumo que Ciro passasse muito tempo em casa de Clódio nos últimos meses, vigiando os trabalhadores, tomando refeições com a família.

 

Quer dizer que Ciro trabalhou para Cícero e para Clódio?

 

Presumo que tivesse um temperamento artístico do tipo que tem demasiado talento para ter opções políticas. Não só tanto Clódio como Cícero usaram os seus serviços, como ambos o aconselharam legalmente. Parece que Ciro os consultou ambos, em separado, quando adoeceu e quis fazer testamento, incluindo ambos entre os seus herdeiros. Depois da visita de despedida que Clódio lhe fez nessa manhã, Cícero foi visitar Ciro e estava junto dele no momento da sua morte.

 

Um arquitecto com sentido de simetria observou Eco. Dizes que ele estava acima da política, mas eu pergunto a mim próprio se seria bem assim. Passando tanto tempo em casa de Clódio, tomando refeições com a família, com liberdade de andar por ali à sua vontade que esplêndido informador não teria constituído para Cícero.

 

Também pensei nisso. Mesmo que não fosse um espião deliberado, é natural que, no contexto de uma conversa normal, Ciro tivesse inadvertidamente fornecido a Cícero muitas informações sobre a casa e a família de Clódio, e os respectivos movimentos. E Cícero saberia muito bem extrair as informações que lhe interessavam. Mas isto são meras suposições. Não temos qualquer motivo para pensar que Ciro fosse, em qualquer sentido, um espião. Ciro é apenas uma ligação curiosa entre Cícero e Clódio mais outro exemplo do que é verdadeiramente uma cidade pequena como Roma. O nome de Ciro voltará a aparecer mais adiante, e foi por isso que o referi agora, mas a sua participação na história é provavelmente insignificante.

 

Já percebi. Eco olhou para mim com argúcia. Ainda assim, tenho algumas suspeitas desse tal Ciro. Vou vigiá-lo de perto, esteja morto ou vivo.

 

É esse o espírito!

 

Ugh! Papá, não é teu costume fazer trocadilhos.

 

Não era minha intenção. Continuemos: Clódio fez uma última visita ao agonizante Ciro e em seguida tomou a Via Ápia. O objectivo da sua viagem era ir tratar de uns negócios que tinha na cidade de Arícia, a cerca de 25 quilómetros de Roma. A cavalo, é uma viagem que se faz num dia, o tradicional ponto de paragem durante a noite quando se vai para Sul, um sítio onde há estalagens e tabernas para os viajantes.

 

Clódio tinha negócios aí?

 

Ia fazer um discurso no Senado da cidade, na manhã seguinte. Fúlvia disse-me que não sabia bem do que se tratava, ou por que fora solicitada a presença de Clódio. Talvez houvesse alguma festa anual do porco em Arícia, ou uma celebração de uma divindade local. Os políticos andam sempre a fazer viagens a cidades vizinhas para fazerem a corte aos seus eleitores. Clódio tinha uma propriedade importante nas redondezas; ele e Fúlvia possuem uma villa mesmo à saída de Arícia. Há um pormenor digno de nota: Fúlvia não foi com ele. Isso é um bocado estranho. Tanto quanto ouvi dizer, Fúlvia desempenhava com todo o cuidado o seu papel de esposa de um político e, de uma maneira geral, as esposas acompanham os maridos neste género de viagens. Enquanto os políticos conversam amigavelmente com os magistrados locais, as mulheres irradiam virtudes de matrona e trocam receitas com as mulheres dos magistrados, ou coisa assim. Mas Fúlvia ficou em casa.

 

Perguntaste-lhe por quê?

 

Ela disse-me que estava preocupada com o estado de saúde de Ciro.

 

Era assim tão íntima de Ciro?

 

Viste a casa dela, imagina morrer-te o arquitecto a meio da reconstrução daquela monstruosidade!

 

Percebo o que queres dizer. Mas é assim tão importante que Fúlvia tenha, ou não, ido com Clódio?

 

Talvez seja, talvez não. Considera o seguinte: se um homem planeava emboscar o inimigo como Milo afirma que Clódio planeava, deixaria a mulher em casa, não te parece? Mas há uma coisa curiosa: Clódio levou o filho mais novo consigo. O rapaz não passa de uma criança tem oito anos. Isto parece contradizer a ideia de que Clódio deixou Fúlvia em casa porque planeava levar a cabo uma acção violenta. Se assim fosse, também teria deixado o filho em segurança.

 

Fúlvia disse-te por que razão ele levou o rapaz?

 

Disse-me que Clódio queria apresentar o filho aos chefes da cidade de Arícia. O que me parece uma atitude típica de um político romano nunca é cedo demais para começar a educar o herdeiro! E, evidentemente, na ausência de mulher, a melhor maneira de exibir as virtudes de um homem de família é exibir o filho. Os inimigos de Clódio...

 

Ou seja, Cícero e Milo.

 

... passaram anos a retratá-lo como um incestuoso traficante deprostitutas e antigo prostituto, que dedica a sua vida a seduzir as mulheres e os filhos dos outros homens o que pode, ou não, ser verdade. Esse género de conversa não destrói necessariamente a reputação de um homem numa Roma entediada e sofisticada, mas é veneno nas zonas rurais, onde as pessoas continuam a levar a sério as antigas virtudes. Por isso, quando vai discursar diante dos cidadãos de Arícia, Clódio deseja apresentar-se como um marido e um pai íntegro. E não há melhor maneira de o fazer do que pronunciar o seu discurso tendo ao lado Públio Júnior, o seu filho de oito anos. Eco franziu o sobrolho.

 

Mas o rapaz não estava presente no dia seguinte, durante a escaramuça entre Clódio e Milo na Via Ápia, pois não?

 

Não. Mas já lá vamos. Há outra coisa a ter em conta, quando falamos da partida de Clódio para Arícia: nessa manhã, houve um grande contio no Fórum, convocado pelos mesmos tribunos radicais que têm instigado os tumultos desde a morte de Clódio. Normalmente, Clódio teria feito questão de estar presente nesse condo, para ter a certeza de que as coisas corriam conforme o planeado. Em vez disso, partiu para Arícia.

 

Eco encolheu os ombros.

 

Um homem não pode estar em dois sítios ao mesmo tempo.

 

Pois não, por isso tem de optar. Alguns diriam que é difícil imaginar Clódio a perder um contio destinado a instigar a multidão, só para ir ganhar a benevolência dos chefes locais de uma paragem de repouso na Via Ápia, a não ser que tivesse outra motivação.

 

Como uma emboscada a um inimigo mortal?

 

É o que poderão sugerir os seus inimigos. É simplesmente mais um ponto a reter.

 

Que género de comitiva levou Clódio consigo?

 

Três amigos e diversos escravos Fúlvia diz que eram 25 ou

30, a maioria dos quais a pé e todos armados.

 

Tantos?

 

Um destacamento numeroso, é certo, mas não propriamente exagerado. De que outra maneira poderia um homem como Clódio viajar com segurança pelo campo? E a verdade é que nem o destacamento conseguiu salvá-lo. Mas também há quem sugira que grupo tão formidável devia ter como objectivo o ataque, e não a defesa. Outro pormenor a ter em conta.

 

E assim, temos finalmente Clódio na estrada.

 

Temos. Resolve uns assuntos de última hora em casa, dá um beijo a Fúlvia, pára em casa do arquitecto moribundo. Ele e os seus cerca de 30 homens passam pela Porta Capena talvez uma gota de água gelada lhe caia pelo pescoço abaixo, como caiu pelo meu, sobressaltando-o. A manhã vai a meio o mercado está cheio de vendedores e fede a peixe. Os escravos e os cidadãos da classe baixa reconhecem-no e aclamam-no. Aqueles que o desprezam limitam-se a franzir o sobrolho e a morder a língua seriam dominados pela multidão. Ele e os amigos vão buscar cavalos a um sítio qualquer o estábulo de Pompeu não será o único naquela zona, e tomam a Via Ápia, com a comitiva atrás. É provável que Clódio faça uma paragem para prestar as suas homenagens nos túmulos dos seus ilustres antepassados, leva o filho consigo, e qual é o pai patrício que dispensa a oportunidade de deixar impresso num rapaz o estatuto da sua família?

 

Passam pelo conhecido Monumento de Basílio e Clódio nem pensa no assunto o local só é perigoso à noite, e marcha atrás de si, um destacamento de homens armados. A estrada é larga, por isso Clódio e os seus três amigos avançam lado-a-lado, com o filho à direita do pai, ouvindo a conversa dos adultos. O miúdo devia sentir-se bastante impressionado com ele tantos homens às ordens do papá, as multidões que se reúnem quando o papá fala, crescer numa casa grandiosa como aquela. Pensar que tudo isso estará em ruínas no dia seguinte.

 

Clódio e a sua comitiva chegaram ao mesmo trecho longo e monótono de estrada onde nós nos encontramos. Clódio mantém uma conversa animada com os amigos, e vai apontando ao filho diversos santuários e túmulos que continuam a pontuar o percurso, aqui e ali. Quando a conversa morre, pode gabar-se da própria estrada, como têm feito todos os Claudianos, desde que ela foi construída. É uma estrada espantosa, não é? Os blocos de pedra estão cortados e ligados na perfeição, a superfície é tão lisa e regular, o caminho tão largo, que dois carros de bois que circulem em direcções opostas podem passar um pelo outro sem terem sequer necessidade de abrandar. Até parece que foram os deuses que fizeram esta estrada, mas não, foi Ápio Cláudio Ceco, um avô muito recuado do nosso Públio Clódio. Mais uma coisa de que aquele rapazinho pode sentir-se orgulhoso.

 

Arícia fica situada adiante, no final da jornada, a cerca de quatro horas daqui. Um cavaleiro apressado poderia lá chegar mais cedo mas, dado que os guarda-costas vão a pé, Clódio e os seus amigos, que seguem a cavalo, são obrigados a manter um ritmo lento e constante. E por onde passam eles, a caminho de Arícia?

 

Por uma data de coisa nenhuma! disse Davo, afirmando a sua presença depois de um longo silêncio. Parecia estar a controlar o cavalo e mais bem-disposto, preparado para se rir de si próprio.

 

Uma data de terrenos de cultura vazios, para sermos mais precisos, intercalados com bosques, aqui e ali, e uns charcos nos pontos mais baixos, tudo muito plano e não especialmente panorâmico. À esquerda, montanhas longínquas no horizonte. À direita, uma inclinação suave e gradual, em direcção ao mar. E, diante deles, aumentando regularmente de tamanho à medida que se aproximam, o Monte Alba. O que te parece, Davo?

 

Ele olhou atentamente para a massa de terra baixa e pontiaguda que tinha no seu horizonte.

 

Deve ser enorme!

 

Eu sorri.

 

Nem tanto. É apenas uma pequena montanha, mas é um ponto de referência importante nestes territórios planos. Há várias cidadezinhas nas cumeeiras e nos vales. Arícia é uma delas. Mas a primeira a que chegaremos, e que fica mesmo no início da encosta, é Bovilas. Já percorreste esta estrada por diversas vezes, a caminho de Neápolis, Eco a que distância fica Bovilas de Roma?

 

Fica um bocadinho depois do décimo primeiro marco.

 

E como é a cidade?

 

Tenho passado por lá, papá. Mas não tenho a certeza de ter alguma vez parado.

 

Pensa!

 

Ele semicerrou os olhos e fixou os valados que se estendiam à sua frente, como se dessa maneira pudesse distinguir todos os pormenores à distância.

 

Julgo recordar que há uma estalagem na estrada. E um estábulo.

 

Sim, o estábulo deve existir, de uma forma ou de outra, há bem uns 200 anos, desde que foi pavimentada a primeira extensão da Via Ápia, entre Roma e Bovilas. Ápio Cláudio Ceco construiu a estrada como via militar para as legiões, e é por isso que ela é tão larga e direita. Bovilas era a primeira estação de muda dos mensageiros militares, um sítio onde podiam trocar de cavalos. E onde quer que haja um estábulo, há evidentemente uma estalagem. Como é a estalagem de Bovilas?

 

É um edifício de pedra. Com dois andares.

 

Sim, deve haver um compartimento comunal para dormidas no andar de cima, uma taberna em baixo, e uma cozinha na parte de trás. Um estábulo e uma estalagem; e que mais?

 

Eco encolheu os ombros.

 

Mais umas casas aqui e ali, longe da estrada. Oh, e um altar a Júpiter, erguido debaixo de um círculo de carvalhos, com um pequeno riacho ao pé. Um sítio muito simpático.

 

Exacto, carvalhos. Quando a estrada começa a subir, acompanhando o terreno, o arvoredo torna-se mais denso. O alto da montanha é uma verdadeira floresta. Calculo que nunca tenhas visto uma floresta, Davo?

 

Já vi aquilo a que chamam matas, à volta dos templos, na cidade.

 

Não é bem a mesma coisa. Bem, assim é Bovilas. Não tem muito que se lhe diga, pois não? Não é um sítio especialmente interessante para um homem soltar o último suspiro, mas foi aí que Clódio morreu, no dia seguinte. A escaramuça começou um pouco adiante, na estrada, mas aparentemente os homens de Milo perseguiram Clódio até à estalagem, onde ele tentou resistir. De acordo com Fúlvia, foi um senador chamado Sexto Tédio, que por ali passou mais tarde, quem encontrou o corpo caído na estrada. Ordenou aos escravos que colocassem o cadáver na sua própria liteira e o levassem para Roma. Nós vimos o estado em que ele estava quando chegou a casa de Fúlvia, esfaqueado e estrangulado. E depois de Bovilas, Eco? Qual é a etapa seguinte na estrada?

 

O terreno começa a subir, como disseste. Encostas arborizadas, onde ficam as propriedades dos ricos pilones flanqueando entradas para caminhos privados, que vão dar a grandes casas, que mal se avistam ao longe. Inclinou a cabeça e semicerrou os olhos. Há uma coisa recente, mais perto da estrada um templo qualquer...

 

Não é um templo, é uma residência: a Casa das Virgens Vestais. Tens razão, é recente, foi construída nos últimos anos. Antes disso, as Vestais viviam algures mais para o alto das montanhas. Há um templo de Vesta algures por ali. Não é um sítio onde nós, os homens, gostemos de entrar. Continua, viajante imaginário. O que vem a seguir?

 

Do outro lado da estrada... há outra coisa religiosa... tem a ver com as mulheres. Não é um templo, é um santuário... um santuário a Fauna, a Boa Deusa.

 

Excelente! Um sítio onde as mulheres que veneram Fauna vão deixar oferendas e fazer orações, outro sítio onde nós não seríamos particularmente bem recebidos. Mas, segundo Fúlvia, foi diante do santuário da Boa Deusa que se iniciou a escaramuça entre Clódio e Milo. Por isso, analisaremos cuidadosamente o local, para ver se será adequado a uma emboscada. Mas voltemos a Clódio e ao dia que antecedeu a sua morte, quando se dirigia de Roma para Arícia. Terá passado por todos estes sítios, talvez sem parar, desejoso de chegar ao seu destino, já tão próximo. O que vem a seguir, Eco?

 

Hmm. Julgo recordar-me de uns pilones monumentais à esquerda e de uma estrada que vai dar a uma villa situada numa cumeeira.

 

Sim. E, se a minha hipótese estiver correcta, é aí que vamos passar a noite.

 

É a villa de Pompeu?

 

Pelas indicações que o Cara de Bebé me deu, acho que deve ser essa. Eco soltou um assobio.

 

A vista deve ser extraordinária.

 

Sim. Pompeu parece gostar de viver em sítios de onde pode olhar de cima para o mundo que o rodeia. Mas continuemos. O que vem a seguir?

 

Mais propriedades particulares. Uma delas deve pertencer a Clódio.

 

Sim, a dele é aquela coisa enorme que parece estar escarranchada na encosta da colina.

 

Aquele sítio onde derrubaram uma série de árvores e fizeram aquelas escavações?

 

Exacto. Parece que uma grande parte do espaço interior é subterrâneo, como se fosse uma adega, defensável como uma fortaleza, segundo me disse Fúlvia. Pelo que ela me contou, pareceu-me que Clódio se sentia especialmente orgulhoso da casa, ainda mais satisfeito do que com o palácio que comprou no Palatino. Teremos oportunidade de a ver mais de perto. Foi aí que terminou a jornada de Clódio naquele dia, a pouco mais de um quilómetro de Arícia. Ainda devia haver umas horas de sol. Clódio terá inspeccionado a propriedade, falado com o encarregado, tratado daquelas coisas de que todos os proprietários têm de tratar quando chegam a uma das suas propriedades. Nessa noite, o cozinheiro preparou uma refeição para a qual foram convidados alguns membros da elite local. Parece tudo muito respeitável, muito aborrecido. Depois de uma viagem tão longa como aquela, calculo que o jovem Públio tenha adormecido à mesa. Na manhã seguinte, Clódio fez o seu discurso no senado da cidade, em Arícia, e seguiu-se uma breve recepção. Voltou à sua propriedade pouco depois do meio-dia ou ao princípio da tarde. Fúlvia afirma que ele tencionava lá dormir pelo menos mais uma noite.

 

Tinha mais assuntos a tratar na zona?

 

Não sei. Sejamos um pouco sentimentais, e pensemos que queria dedicar algum tempo ao filho, passear com ele pelos terrenos arborizados que rodeiam a villa. Mas foi então que chegou um mensageiro.

 

- Um mensageiro?

 

O mensageiro que Fúlvia lhe enviara nessa manhã, comunicando ao marido a triste notícia da morte de Ciro, o arquitecto. Ela pedia a Clódio que regressasse imediatamente a Roma.

 

Era mesmo necessário Clódio voltar para casa a correr?

 

Fúlvia parece ter achado que sim. Ciro era um amigo suficientemente íntimo para ter incluído Clódio entre os seus herdeiros, e Fúlvia confiava nele para terminar a casa do Palatino. Sentiu-se devastada pela sua morte. Queria que o marido regressasse a casa.

 

E Clódio largou tudo para responder ao apelo?

 

Essa hipótese não te parece credível, Eco?

 

Não sei, papá. Tu tiveste mais contacto com a mulher do que eu.

 

Pois foi, bem, eu diria que, quando Fúlvia diz a um homem para fazer qualquer coisa, há grandes probabilidades de que o homem faça aquilo que Fúlvia lhe mandou fazer.

 

Mesmo que se trate de Clódio?

 

Mesmo que se trate de Clódio. O que significa que aquilo que Fúlvia me disse me pareceu credível, ainda que não necessariamente convicente: que Clódio tencionava dormir mais uma noite na villa, mas acabou por se meter inesperadamente ao caminho, regressando a Roma pela Via Ápia, em consequência da mensagem que recebeu de Fúlvia. Se tiver sido assim, não houve nenhuma emboscada premeditada, pois não? Quando Milo e a sua comitiva passaram por ali, Clódio previra andar a passear pelos bosques com o filho; é certo que, na realidade, andava pela Via Ápia, mas isso foi um acaso.

 

Mas onde estava o filho, se não estava com ele quando teve lugar a escaramuça?

 

Fúlvia diz que Clódio tinha prometido ao miúdo uma estadia no campo, e o deixou na villa, na companhia do tutor.

 

Parece-te credível que ele não tenha levado o rapaz consigo, papá?

 

Talvez. Podes pensar que Fúlvia teria querido que lhe levassem o filho, mas os ricos vêem estas coisas de outra maneira. Calculo que, se eu tivesse uma villa enorme no campo, com um exército de escravos a cuidarem dela, talvez não me importasse de deixar o meu filho de oito anos à sua guarda. Ou talvez o rapaz seja um fedelho insuportável que se porte mal durante as viagens. Talvez tivesse sido uma peste no dia anterior, e Clódio não estivesse disposto a suportar outra viagem comprida com o monstro, e quisesse livrar-se dele.

 

Eco riu-se.

 

Prefiro essa hipótese! Esquece o sentimentalismo.

 

Claro que pode parecer suspeito que Clódio tenha partido da sua villa com uma comitiva armada exactamente na altura em que Milo se aproximava pela Via Ápia, e tenha casualmente deixado o filho em casa, fora de perigo. É outro pormenor a ter em conta.

 

Quer dizer que chegamos finalmente a Milo. O que estava ele a fazer na Via Ápia?

 

Ouviste o discurso que ele pronunciou no outro dia, no Fórum. Estavam à espera dele para uma cerimónia religiosa em Lanúvio, que é a cidade que fica a seguir a Arícia, a pouca distância, para sul. Pelo que pude perceber, os factos que Milo apresentou no contio de Célio são verdadeiros: nessa manhã, esteve presente numa reunião do Senado, em Roma, e em seguida partiu, à cabeça de uma comitiva numerosa, viajando de carruagem na companhia da mulher. Milo afirma que saíram tarde e só pararam em Bovilas depois da décima primeira hora, a última hora de luz. Se isso for verdade, parece contradizer a história de Fúlvia relativamente ao regresso de Clódio a casa, porque ninguém com um mínimo de bom senso partiria à décima primeira hora de um dia de Inverno para uma viagem de várias horas com um destacamento de homens a pé. Clódio só teria chegado a Roma muito depois de anoitecer, e é perigoso viajar à noite, quanto mais não seja porque um homem ou um animal podem tropeçar no escuro e partir uma perna. Por isso, terá o incidente realmente ocorrido assim tão tarde? Fúlvia afirma que o corpo de Clódio, transportado numa liteira, chegou a sua casa, no Palatino, à primeira hora da noite apenas uma ou duas horas depois do momento em que Milo afirma ter a escaramuça começado, o que é impossível.

 

Ou seja, há uma discrepância quanto ao momento em que ocorreu o incidente. Fúlvia diz que foi ao princípio da tarde; Milo diz que foi pouco antes do pôr do Sol. Isso é importante, papá?

 

Significa que um deles tem de estar enganado, ou então, que está a mentir deliberadamente.

 

Vou tentar moderar o meu espanto!

 

Sim, mas para quê mentir acerca do tempo, Eco? E, se Fúlvia ou Milo mentiram acerca disso, sobre que outras coisas terá um deles mentido igualmente?

 

Achas que é provável que venhamos a descobrir pelo simples facto de irmos a estes sítios fazer umas perguntas?

 

Podemos tentar respondi eu.

 

O Monte Alba erguia-se agora à nossa frente, aumentando progressivamente de tamanho. O seu cume estava tapado pelas nuvens, que lançavam na sombra os declives mais elevados, fazendo com que a montanha parecesse irromper das planícies iluminadas pelo sol que a rodeavam, como uma massa pensativa e cheia de dúvidas. Davo franziu a testa, contemplando o panorama com maus pressentimentos. Não era o único.

 

Embora tivéssemos chegado a Bovilas antes da quarta hora, a refeição do meio-dia já estava a ser preparada. Saía fumo da cozinha situada na parte de trás da estalagem, transportando consigo os odores a pão cozido e a carne assada.

 

Estou cheio de fome! disse Eco. O estômago de Davo roncou solidariamente.

 

Óptimo disse eu. Não teremos de inventar desculpas para parar na estalagem.

 

Tratava-se de um edifício de dois andares, de uma pedra já muito gasta. O terreno à volta estava limpo, e fora pisado por muitos pés, ao longo de muitos anos. Fora para este sítio que, de acordo com Fúlvia, Clódio fugira quando os homens de Milo o tinham dominado. Refugiara-se na taberna. Os homens de Milo tinham invadido o local. Fúlvia não conhecia os pormenores da batalha, mas apenas que um senador que se dirigia para Roma tinha acabado por tropeçar no corpo de Clódio, caído na estrada à porta da taberna, e o mandara transportar para Roma na sua própria liteira.

 

Davo foi prender os cavalos ali perto, ao lado de um maciço de árvores, onde havia um regato de água para os cavalos, e um banco para ele se sentar a vigiá-los.

 

Antes de entrarmos, Eco e eu observámos rapidamente os quatro cantos do edifício, tentando perceber se seria fácil de defender. No andar superior, havia janelas grandes com portadas, inacessíveis pelo facto de não haver maneira de trepar até elas. As janelas de portadas das traseiras e das paredes laterais do andar de baixo eram pequenas e tinham sido rasgadas a uma altura razoável. Um homem poderia esgueirar-se por elas, mas só se lhe dessem uma ajuda, e se não houvesse ninguém da parte de dentro a impedi-lo de entrar. A porta de trás, feita de madeira compacta, dava para um corredor coberto, que ia ter à cozinha. A porta da frente, que naquele momento estava aberta, também era feita de madeira sólida. A passagem era de tal maneira estreita, que Eco e eu tivemos de nos voltar de lado e entrar à vez. As janelas dos dois lados da porta da frente eram ligeiramente maiores e estavam situadas um pouco mais abaixo do que as restantes janelas do andar térreo mas, mesmo assim, não seria fácil entrar nem sair por elas.

 

De uma maneira geral, a estalagem parecia um edifício defensável. Apesar de tudo, detectei vestígios de uma batalha recente.

 

E Eco também.

 

Reparaste na diferença das portadas, papá?

 

Reparei.

 

As das janelas do andar de cima são todas de madeira antiga e gasta...

 

... enquanto as portadas de todas as janelas do andar inferior são evidentemente novas, como o são as portas da frente e de trás. E também há bastante reboco recente à volta do umbral. Tu e eu sabemos muito bem que as portas podem ser arrombadas e têm de ser substituídas.

 

Onde te parece que está toda a gente, papá?

 

Quem esperavas encontrar? Não vimos mais ninguém na estrada, esta manhã. Devemos ter chegado antes da habitual clientela do meio-dia. À medida que os meus olhos se iam adaptando à luz mortiça, vi um compartimento simples e rústico, com umas quantas mesas e uns bancos. Do canto esquerdo mais distante, subia uma escada íngreme e angulosa, que ia dar ao andar superior. Por baixo da escada, um balcão bloqueava a parte de trás do compartimento. Na parede por trás do balcão, havia um pequeno arco com uma cortina corrida, que deixava ver um armazém mergulhado na sombra, que ia dar à porta das traseiras. Momentos depois, a porta estalou e abriu-se, dando a ver a silhueta de uma mulher possante, delineada pela luz brilhante do sol. Ela fechou a porta atrás de si e bamboleou-se até ao bar, limpando as mãos à parte da frente do vestido grosseiro. Cheirava a pão cozido e a carne assada.

 

Pareceu-me ter visto entrar alguém. Observou-nos com os olhos semicerrados, que me pareceram quase hostis até ter percebido que ela estava à espera de que se adaptassem à obscuridade. Era uma mulher com um ar forte, braços carnudos e um rosto circular e aberto, rodeado por um emaranhado de cabelo ruivo que começava a ficar grisalho.

 

O sujeito que está com os cavalos ao pé do regato é vosso?

 

É disse eu.

 

São três ao todo?

 

Sim, vimos de viagem.

 

E estamos com fome acrescentou Eco, encostando-se ao bar. Ela mostrou uma sugestão de sorriso.

 

Podemos tratar disso, desde que tenham alguma coisa que tilinte. Eco apresentou a bolsa das moedas.

 

Ela acenou com a cabeça.

 

Tenho um par de coelhos a assar. Ainda demoram um bocadinho, mas entretanto posso trazer-vos um pouco de pão e queijo. Meteu a mão por baixo do bar e tirou dois copos, depois voltou ao armazém e regressou com um cântaro de vinho e um cântaro de água.

 

Não te importas de levar alguma comida ao sujeito que está por trás das árvores? pedi eu. Consigo ouvir daqui o estômago dele a roncar.

 

Com certeza. Vou mandar um dos meus rapazes tratar dele. Estão ali atrás, na cozinha, a vigiar o fogo. Com o meu marido acrescentou, como se quisesse deixar claro que não era uma mulher sozinha. Vêm de viagem, é? Vão para Norte ou para Sul?

 

Para Sul?

 

Quer dizer que vêm de Roma? Serviu-nos porções generosas de vinho, ao qual acrescentou umas gotas de água.

 

Partimos de manhã cedo.

 

E como vão as coisas na cidade?

 

Uma confusão terrível. Foi agradável sair de lá.

 

Bem, as coisas também têm andado terrivelmente confusas por aqui, se querem que vos diga. Desde aquele dia maldito... Suspirou e abanou a cabeça.

 

Ah, sim, deve ter sido aqui perto, a escaramuça na estrada. Ela resfolegou.

 

Chamem-lhe escaramuça, se quiserem, mas eu chamar-lhe-ia uma batalha campal, tendo em conta os danos que causou e os corpos mortos que sobejaram. E talvez tenha começado na estrada, mas foi aqui mesmo que acabou. Deu uma palmada em cima do balcão.

 

O que queres dizer com isso?

 

Não estamos a falar da mesma coisa? Milo e Clódio e todo aquele sangue derramado?

 

Eu acenei com a cabeça.

 

Em Roma não se fala de outra coisa. Mas é tudo tão confuso e disperso. Cada versão contradiz a anterior. Aconteceu qualquer coisa na Via Ápia e no fim Clódio estava morto é praticamente a única coisa em que todas as histórias estão de acordo. Onde, quando e como, ninguém sabe ao certo.

 

Ela fez rolar os olhos.

 

Com tanto sofrimento e destruição, seria de pensar que as pessoas se preocupassem, ao menos, em saber o que se tinha realmente passado, quanto mais não fosse para se sentirem satisfeitas por não ter sido com elas. Mas vocês disseram que tinham fome. Vou buscar-vos um pão, quente a sair do forno.

 

Eco abriu a boca para a chamar, mas eu apertei-lhe o braço e abanei a cabeça.

 

A mulher está ansiosa por nos contar o que sabe disse-lhe em voz baixa. Deixa-a fazer as coisas ao seu ritmo.

 

Ela voltou com um pão fumegante dentro de um cesto e um pedaço de queijo do tamanho de um tijolo, depois regressou ao armazém e voltou com uma taça cheia de azeitonas pretas e verdes. Apoiou os cotovelos no bar, inclinou-se para nós e recomeçou a história sem mais demoras.

 

Esta taberna era do meu cunhado, o irmão da minha irmã mais nova. Era um homem trabalhador, pertencente a uma antiga família de trabalhadores. Herdou este sítio do pai; há várias gerações que esta estalagem pertence à família. Chorou de alegria no dia em que a minha irmã lhe deu um filho a quem a transmitir. Suspirou. Quem poderia adivinhar que ele não tardaria a deixar-lhe a casa? O rapaz é bebé, e agora que o pai morreu não há mais nenhum homem adulto de nenhum dos lados da família que possa gerir isto. Por isso, ficámos nós com ela, o meu marido e eu, e os nossos rapazes ajudam-nos, enquanto a minha pobre irmã cuida do bebé. Ah, pobre Marco' Era o nome do marido dela. Ter um sítio como este ao pé da estrada implica sempre alguns riscos, podemos ser atacados por bandidos ou por escravos em fuga, que nos cortam o pescoço sem pestanejar. Mas Marco era um sujeito grande e entroncado, que não tinha medo de nada, e esta estalagem era a menina dos seus olhos. Sempre tinha sido, desde criança. Acho que ele nem se apercebeu do perigo no dia em que os homens de Clódio entraram por aí a correr, cobertos de sangue e arquejantes. Não os mandou embora, limitou-se a perguntar o que podia fazer para os ajudar. Clódio entrou a cambalear, ferido e a sangrar, e disse-lhe que trancasse as portas. Depois, deitaram Clódio aqui mesmo, de costas. Deu uma palmada no balcão, suficientemente forte para provocar ondulações nos nossos copos. À luz mortiça, estudei a superfície manchada da madeira velha. Ao longo dos anos, devia ter sido derramado muito vinho em cima daquele balcão, pensei eu, mas também havia manchas que podiam ser de outra coisa.

 

Marco devia tê-lo mandado imediatamente embora, diz o meu marido. Mas o que sabe ele? Não estava cá. Mas estava a pobre da minha irmã. Foi ela que lhe contou tudo. Nesse dia, tinha deixado o bebé comigo. Oh, ela adorava trabalhar nesta taberna, tanto como Marco; era impossível mantê-la afastada daqui. Quando Clódio apareceu com os seus homens, ela estava lá em cima a sacudir os cobertores e a varrer o chão. Se ao menos o miúdo estivesse doente; se ao menos alguma coisa, fosse o que fosse, a tivesse obrigado a ficar em casa nesse dia. O choque do que aconteceu a Marco já foi muito mau, mas ter estado aqui, ter assistido a tudo, fez-lhe muito mal. Pois, é por isso que nós temos de fazer todo o possível por manter a estalagem, até o jovem Marco ter idade suficiente para tomar o lugar do pai.

 

Eu acenei com a cabeça.

 

Quer dizer que a escaramuça a batalha começou ali na estrada, mas Clódio acabou aqui. Ele já tinha estado nesta taberna? Conhecia o teu cunhado, Marco?

 

Oh, claro que sim. Públio Clódio parava aqui muitas vezes, quando se dirigia para aquela villa que ele tem no alto da montanha. Eu própria o conheci e encontrei por diversas vezes, ao longo dos anos. Era um homem encantador, percebia-se imediatamente que era de boa estirpe, não era possível esconder esse facto. Tinha uma certa maneira de se apresentar, e usava sempre umas roupas muito finas e excelentes cavalos, e tinha o cabelo e as unhas sempre muito bem cuidados. Não é frequente um homem manter as unhas tão bem tratadas. Mas não era distante. Lembrava-se sempre do nome de Marco, perguntava como ia andando o pequeno. Ele próprio tinha um filho.

 

Também ouvi dizer isso.

 

Claro, nem toda a gente gostava de Públio Clódio. Ele suscitou alguns ressentimentos por aqui, quando começou a construir a villa.

 

Ressentimentos?

 

Pois, alguns diziam que a maneira como ele se tinha apoderado das terras em redor não fora completamente honesta, e havia outros que se queixavam do facto de ele ter derrubado algumas árvores que pertenciam ao bosque sagrado de Júpiter. E as Vestais tiveram de sair da sua antiga casa. Mas Clódio deu-lhes dinheiro para construírem a nova casa, que é só um bocadinho mais afastada do Templo de Vesta do que a antiga, por isso eu nunca percebi por que se queixavam. Abanou a cabeça. Mas não quero falar mal dos mortos, especialmente quando o lémure do pobre homem abandonou o seu corpo aqui mesmo.

 

Quer dizer que o teu cunhado era amigo de Clódio, apesar dos ressentimentos que alguns vizinhos pudessem ter?

 

Oh, sim. Acho que foi por isso que Clódio fugiu para aqui quando viu que estava metido em sarilhos. Se ao menos não tivesse trazido os sarilhos consigo! Mas não censuro o morto. Censuro o outro.

 

O outro?

 

Ela pegou num trapo que tinha atrás do bar e começou a torcê-lo, apertando os punhos até ficar com os nós dos dedos brancos.

 

Aquele cujos homens perseguiram Clódio nesse dia. É ele o patife que tem a culpa do que aconteceu nesta sala.

 

Estás a falar de Tito Ânio Milo, não?

 

Ela fez um ruído na garganta, como se fosse cuspir.

 

Se querem chamar-lhe assim. Milo! Foi ele que escolheu esse nome, não foi? Que sujeito presunçoso, pensa que é parecido com um grande herói do Olimpo. Bem, por aqui ninguém se sente atemorizado com esse tal Milo. É mais um tipo do outro lado da montanha que foi para Roma fazer fortuna. É natural de Lanúvio, sabiam?

 

Sim, acho que já ouvi dizer.

 

Tito Ânio Milo, chamaste-lhe tu. Esse também não é um nome de nascença. Nem sequer o Tito! O nome do homem era simplesmente Gaio Pápio, como o pai, e deixem-me dizer-vos que os Pápios de Lanúvio nunca fizeram nada digno de nota. Por nascimento, é tão vulgar como a lama. Mas, quando o pai morreu, foi adoptado pelo avô. Era o pai da mãe, Tito Ânio, que tinha antepassados nobres. Por isso, Milo ficou com os nomes do velhote, acrescentou mais um por sua conta, e Gaio Pápio transformou-se em Tito Ânio Milo. Assim, já toda a gente ouviu falar dele. Também herdou o dinheiro do avô, quando o velhote morreu, mas dizem que tem andado a esbanjá-lo naqueles jogos funerários elegantes que organizou para impressionar os eleitores de Roma. As coisas que um homem faz para ser eleito para um cargo importante! Bem, nenhum homem que eu conheça estaria disposto a votar nele. Anda sempre com uns grandes ares, tão falsos como aqueles três nomes. Não, esse Milo nunca nos agradou.

 

Fez uma pausa para respirar e começou a limpar o balcão com o trapo, como se pudesse apagar as manchas de sangue.

 

Oh, Milo passava por aqui de vez em quando, quando ia para Lanúvio, pagava uma rodada de vinho a toda a gente, dizia umas palavras simpáticas, para ter a certeza de que toda a gente reparava nele. O rapaz da zona que se tinha tornado muito importante em Roma, amigo de Cícero, aliado de Pompeu, que certamente viria a ser cônsul um destes dias! Mas, se querem saber a minha opinião, Milo não tem um fragmento do encanto de Clódio. Clódio entrava nesta casa, e era como se alguém tivesse acendido velas a toda a volta subitamente, as coisas começavam todas a brilhar. Milo entrava, a fazer barulho e a rir, e parecia uma pessoa com mau hálito a respirar-nos para cima. O encanto dele era só para dar nas vistas. Quase se conseguia vê-lo ranger os dentes, por ser obrigado a misturar-se com as pessoas vulgares que trocara pela sua nova vida. Quanto àquela mulher dele, como é que ela se chama...

 

Acho que é Fausta disse Eco.

 

Pois, é isso, Fausta Cornélia bem, é um caso típico de um homem que sobe na vida através do casamento! Como é que a filha do velho ditador Sula acabou nos braços de Gaio Pápio, de Lanúvio? Calculo que sejam tudo jogos de dinheiro e de poder. Os casamentos entre esse género de pessoas nunca passam de contas feitas a frio, não é? Segundo dizem, não foi isso que a impediu de ter todos os amantes que quis. Dizem que Fausta é mais vadia agora do que era com o primeiro marido. Mas, apesar disso, deixem-me dizer-vos, ela nunca fingiu que se sentia bem entre o povo. Quando ela e Milo passavam aí pela Via Ápia em grande parada, e ele entrava para pagar bebidas a toda a gente, a grande Fausta Cornélia deixava-se ficar aninhada na sua elegante carruagem, rígida como uma estátua, a olhar em frente, como se ficasse com gases pelo simples facto de olhar para uma pessoa como eu. Bem, posso compreender que ela não quisesse entrar na taberna, uma senhora como ela a mulher de Clódio, Fúlvia, era a mesma coisa, ela e as mulheres que a acompanhavam nunca entravam quando Clódio parava aqui, mas ia passear debaixo das árvores, brincava com o rapazinho ou tomava conta da miúda, comportava-se como uma pessoa normal. Não era como Fausta Cornélia, que nem se dignava trocar um olhar com pessoas como eu. Mas houve uma vez, uma vez...

 

Subitamente, a mulher começou a abanar-se e engasgou-se de riso.

 

A natureza acaba sempre por ser mais forte do que as pessoas, não é? conseguiu dizer, controlando-se. Lembro-me dessa vez oh, ela devia precisar mesmo de se aliviar, porque mandou uma escrava perguntar-me onde era a sanita. Por isso, eu indiquei à rapariga aquele pequeno edifício ao pé do ribeiro, do lado de lá dos estábulos. E a rapariga voltou, dizendo que Fausta Cornélia não tinha gostado da retrete e se tinha recusado a utilizá-la. Como devem calcular, Milo saiu da taberna e partiu de caminho sem grandes demoras. Calculo que ela se tenha aguentado daqui até Lanúvio! Mas como? Até a Via Ápia tem alguns buracos. Todos falámos disso, perguntando-nos se ela teria tido algum acidente na carruagem, e como teria Milo reagido. Oh, imagino a expressão do homem...

 

Desatou novamente a rir, até as lágrimas começarem a rolar-lhe pela cara abaixo. Por fim, recompôs-se e começou a limpar as lágrimas com as costas das mãos.

 

Ah! O coelho! A esta hora, já deve estar pronto.

 

E com isso voltou a desaparecer pela porta das traseiras. Eco ergueu uma sobrancelha.

 

Parece que tanto Clódio como Milo eram bastante conhecidos por estas paragens.

 

Sim, o rapaz ambicioso, natural da terra, e o forasteiro aristocrata, com dinheiro e encanto. Dois tipos destinados a suscitar reacções fortes nas pessoas. Admiração, respeito...

 

Inveja, ódio...

 

Sim disse eu, e ambos políticos, sem vergonha de se autopromoverem. Sabemos como o habilidoso Clódio se sentia à-vontade entre as camadas populares; fazia disso uma arte. Milo, que realmente tinha raízes populares, parece ter tido pouco talento para o mesmo.

 

Pelo menos é o que diz a nossa anfitriã, papá, mas é óbvio que ela é parcial. E que história é essa de Clódio ter derrubado árvores sagradas, deslocado as Virgens Vestais...

 

Abrindo a porta com o pé, a nossa anfitriã regressou com uma travessa fumegante. Atrás dela, entrou uma figura alta e entroncada, trazendo uma taça igualmente fumegante. O homem era tão grande, que eu me senti apreensivo, até me aperceber de quem se tratava.

 

Davo! O que estás tu aqui a fazer? Devias estar a guardar os cavalos. Seria excelente se, ao acabarmos de comer, descobríssemos que eles tinham desaparecido. Não estou interessado em percorrer a pé os quase 20 quilómetros que nos separam de Roma.

 

Não se preocupem disse a mulher. Mandei um dos meus rapazes substituí-lo. Os vossos cavalos ficam a salvo, confiem em mim. Importam-se que o vosso escravo entre? As nuvens começam a descer do alto da montanha, e um tipo pode constipar-se, ali sentado ao ar livre. Deixem-no aquecer-se um bocado. Lançou a Davo um olhar que, infelizmente, poucas mulheres me lançaram. Lá porque um tipo tem 19 anos, cabelo preto ondulado, ombros de touro e um perfil de estátua grega...

 

Ela mandou-o entrar para poder olhar para ele! disse Eco do canto da boca.

 

Obviamente concordei eu. Esta é a mulher que prefere Clódio a Milo, não te esqueças.

 

A mulher colocou diante de nós, pratos e talheres e encheu-nos os copos. A travessa fumegante era o coelho assado. A carne de coelho não é das minhas preferidas é muito gorda e tem ossos a mais, mas estava bem cozinhada, e eu tinha demasiada fome para discutir. A taça fumegante estava cheia de nabos lustrosos. Elogiei a nossa anfitriã pelo molho.

 

Oh, é bastante simples. Um pouco de cominhos, um pouco de alho, mel, vinagre e azeite, uma pontinha de ruda. Um vegetal de raiz pede um molho picante, costumava dizer a minha mãe.

 

É mesmo excelente disse eu, e estava a ser sincero. Mas era tempo de a conduzir de novo para o dia da morte de Clódio. Costumavas cozinhar muito aqui na taberna, antes daquele dia infeliz?

 

Oh, de vez em quando, especialmente depois de a minha irmã ter tido o bebé.

 

Mas não estavas cá quando aquilo aconteceu?

 

Não, como vos disse, só cá estava a minha irmã, a trabalhar lá em cima, e Marco.

 

Clódio tinha passado por Bovilas na véspera?

 

Segundo me disse a minha irmã, sim, mas não tinha parado. Ela viu chegar a comitiva, mas passaram tão depressa, que só conseguiu vislumbrar Clódio, que seguia a cavalo à frente, com o filhito ao lado e mais um par de amigos.

 

E, no dia do incidente, Milo deve ter passado por aqui pouco tempo antes da batalha.

 

Oh, sim, a minha irmã lembra-se muito bem disso lembra-se de tudo o que aconteceu nesse dia, como um pesadelo de que não se consegue esquecer. Milo parou algum tempo, para dar de beber aos cavalos, mas nenhum dos seus homens entrou na taberna. Ainda assim, diz ela que era impossível deixar de reparar na comitiva. Nunca mais acabava, parecia uma daquelas procissões triunfais que se fazem na cidade. Era assim que ele costumava viajar, pelo menos quando ela vinha com ele.

 

Estás a falar de Fausta Cornélia.

 

Sim. Parece que não podia sair de casa sem levar dez escravas para lhe tratarem da pele de manhã, e mais dez para lhe aconchegarem a roupa à noite. E calculo que Gaio Pápio Milo, se preferirem, gostava de exibir todos aqueles escravos e guarda-costas aos seus amigos e à sua família, em Lanúvio. "Olhem para mim! Parece que não consigo sair de casa sem trazer comigo uma centena de criados!"

 

Uma centena? Eram assim tantos, naquele dia? Ela encolheu os ombros.

 

Oh, não sei quantos eram. Como já vos disse, não fui eu que os vi, foi a minha irmã. Mas ela diz que, enquanto Milo dava de beber aos cavalos no estábulo, a gente dele girava por aí enchendo a estrada, como uma multidão no Fórum de Roma, e quando finalmente se meteram de novo ao caminho, a procissão parecia nunca mais acabar. Se ao menos Milo tivesse dado de beber aos escravos, como tinha dado aos cavalos, podiam ter vendido o vinho todo que tinham em armazém e mandado colocar um telhado novo!

 

Quer dizer que a comitiva de Milo era maior do que o grupo com que Clódio passara no dia anterior?

 

És pouco inteligente, ou apenas distraído? Sim, sem dúvida nenhuma. Muito, muito maior.

 

Mas o grupo de Clódio era composto exclusivamente por homens armados segundo me contaram, enquanto que, pelo que tu dizes, Milo viajava na companhia de cabeleireiros e massagistas.

 

Os escravos de Fausta também faziam parte da comitiva, de facto, mas Milo viajava sempre com muitos gladiadores, alguns dos quais bastante famosos. Já ouviste falar de Eudamo e de Birria?

 

Claro que sim. Faziam parte da comitiva de Milo?

 

Eram ambos dele. Não é mesmo típico do homem comprar um par de gladiadores famosos, só para os exibir? Até eu ouvi falar de Eudamo e de Birria, e tenho tanto interesse em ver homens a matarem-se uns aos outros numa arena, como em ver um escaravelho a fazer rolar um pedaço de estrume pela estrada fora. Embora alguns desses gladiadores não sejam nada desagradáveis à vista... Lançou um olhar a Davo, que estava ocupado a separar um bocado de carne de coelho do respectivo osso. Eudamo e Birria, por seu lado bem, são tão bonitos como o traseiro de um burro, e igualmente difíceis de ignorar. Vêm sempre na rectaguarda da comitiva de Milo. São enormes, parecem umas árvores ambulantes. Nunca se separam. O meu marido diz que eles lutavam juntos na arena.

 

Sim, dois contra dois, e às vezes dois contra quatro disse Davo, tirando um osso de coelho da boca. Eco e eu olhámos para ele, surpreendidos.

 

E que mais, Davo? Ele pigarreou.

 

É que, quando eu era miúdo, o meu antigo senhor levava-nos a ver os combates explicou ele. Ele próprio tinha alguns gladiadores. Pensou em treinar-me para a arena, mas acabou por decidir que eu era pequeno demais e que faria melhor negócio vendendo-me como guarda-costas. Costumava dizer que quem apostasse em Eudamo e Birria nunca perderia o seu dinheiro. Fosse qual fosse a arma que usassem, ou a combinação de armas tridente e rede, espada curta, machado, com ou sem escudo. Elas eram capazes de paralisar um homem de medo, só de olharem para ele. São os dois homens mais assustadores que jamais viveram, era o que dizia o meu antigo senhor.

 

Eu espetei um nabo com o garfo e mergulhei-o no molho.

 

E esses gladiadores vinham com Milo naquele dia? A mulher acenou com a cabeça.

 

Oh, disso tenho a certeza, porque foram os primeiros a correr atrás de Clódio. A minha irmã viu-os de uma janela do andar de cima.

 

Foi aí que ela ficou durante o ataque, no andar de cima?

 

Pelo menos foi assim que ela contou a história: ouviu o barulho que Clódio e os seus homens fizeram ao entrar, e começou a descer as escadas. Viu-os de raspão, mas Marco gritou-lhe que voltasse para cima.

 

Quantos homens viu ela?

 

Não eram muitos. Uns cinco ou seis, disse-me ela, e Clódio deitado neste balcão, agarrado ao ombro e a ranger os dentes, dando ordens aos restantes.

 

Dando ordens?

 

Sim, dizia-lhes para fecharem as portadas, e por aí fora.

 

Quer dizer que ele estava ferido, mas continuava consciente.

 

Perfeitamente. Decidido, é a expressão da minha irmã. Os homens dele esperavam as suas ordens. Mas as expressões desses homens...

 

Como eram elas?

 

Parecia que tinham a morte às canelas, e se preparavam para se voltar e olhar para ela. Foi mesmo assim que ela disse. Cheios de pânico e ofegantes. Quando a ouviram nas escadas, apanharam um susto e olharam para ela como coelhos assustados. Todos excepto Clódio, disse ela. Ele sorriu-lhe. Sorriu-lhe! Depois Marco gritou-lhe que voltasse para cima, e ela subiu as escadas a correr.

 

E depois?

 

Correu para uma janela, para ver de que fugiam eles. Viu um homem caído na estrada. Tinha sobre ele dois homens, que o espetavam com as espadas o sangue espirrava por todo o lado. O homem caído devia ser dos de Clódio. Os outros dois eram Eudamo e Birria. Ela reconheceu-os imediatamente pareciam demónios saídos do Hades, disse ela, monstros de uma história antiga. Mais adiante, viu mais homens caídos na estrada, e o que parecia um exército inteiro de gladiadores a dirigir-se à taberna. Podem imaginar como ela se sentiu! Eudamo e Birria tinham acabado de espetar o homem caído, e deslocavam-se pesadamente na direcção da taberna. Os outros corriam atrás deles. Oh, que impressão que me faz pensar nisso. A minha irmãzinha... Abanou a cabeça e deu umas palmadinhas no peito.

 

Eco afastou o prato da frente, com uma expressão ligeiramente agoniada. Davo olhou fixamente para a mulher e, com os dentes, rasgou um pedaço de carne de coelho.

 

E depois? perguntei eu.

 

- Marco tinha barrado as portas e as portadas lá em baixo. Os atacantes estavam cada vez mais próximos, e chegaram à porta. Bang, bang, bang. Batiam à porta, às portadas, com os punhos, com os copos das espadas. O ruído era aterrador. Ela tapou os ouvidos, mas continuava a ouvi-los, os homens a gritarem, a madeira e as dobradiças a estalarem, brados e gritos, o ruído metálico do aço. A mulher ergueu os olhos ao alto. Às vezes, nem consigo dormir, ponho-me a imaginar aquilo por que ela deve ter passado, ali metida, sozinha e impotente. Finalmente, juntou as mantas todas, aninhou-se num canto e empilhou os cobertores por cima dela. Diz que nem sequer se lembra de o fazer, mas que deve ter sido assim, porque finalmente percebeu que o ruído tinha passado, e ali estava ela, a suar por baixo das mantas, mas a tremer como se estivesse nua.

 

Quanto tempo tinha passado?

 

Quem sabe? Alguns momentos, uma hora? Ela não foi capaz de dizer. Por fim, arranjou coragem para espreitar por entre as mantas. Continuava sozinha no andar de cima, e do andar de baixo apenas lhe chegava o silêncio. Foi à janela e olhou para fora. Viu corpos espalhados pela estrada, e uma coisa estranhíssima, mesmo em frente da taberna, uma liteira com um grupo de pessoas à volta.

 

Uma liteira?

 

Sim, não era uma carruagem nem uma carroça, era uma liteira, daquelas que são transportadas por escravos, com cortinas para manter a privacidade. A liteira tinha sido poisada no chão e os carregadores andavam por ali. Um velhote com uma toga de senador e uma mulher estavam debruçados sobre o homem caído na estrada, com as cabeças juntas, a conversar.

 

A tua irmã reconheceu o senador?

 

Não, mas conhecia a liteira. Há anos que a vemos passar, na direcção de Roma, e novamente para baixo. Pertence a um velho senador, que tem uma villa na montanha, Sexto Tédio. Não é do género de frequentar um sítio como este.

 

E o homem sobre quem estavam debruçados?

 

Era Clódio.

 

A tua irmã conseguiu reconhecê-lo, mesmo à distância?

 

Suponho que sim. Foi o que ela disse, que era Clódio.

 

Como é que ele saiu da taberna para a estrada?

 

Quem sabe? Provavelmente, foram Eudamo e Birria que o arrastaram, como os cães fazem com os coelhos. Pensei nas marcas que Clódio tinha no pescoço. Talvez tivesse sido literalmente arrastado pelo pescoço.

 

A mulher olhou para os nossos pratos.

 

Olha, vocês não acabaram a carne! Num dia frio como o de hoje, um homem precisa de muita comida quente no estômago, para manter as forças. Este sabe comer! Atirou um sorriso a Davo, que acabou de chupar o último bocado do tutano de um osso e lançou um olhar demorado à carne que nós tínhamos deixado nos pratos. Não estava bom?

 

Estava excelente garanti-lhe. Assado na perfeição. Receio que tenhamos comido demasiado pão e queijo, que também eram óptimos. Fiz deslizar o meu prato e o de Eco na direcção de Davo.

 

Dizias que a tua irmã viu uma série de corpos espalhados pela estrada e o Senador Tédio e a mulher...

 

Não era a mulher dele, o Senador Tédio é viúvo. Calculo que fosse a filha. É a sua única filha; não se casou e é-lhe muito dedicada.

 

Estou a ver. Então ela viu o Senador Tédio e a filha, com a liteira ao lado, a discutirem o que haviam de fazer com Clódio. Onde estavam os homens de Milo?

 

Tinham desaparecido. Tinham ganho a batalha, não é verdade? Não havia razão nenhuma para se deixarem estar. A minha pobre irmã conseguiu finalmente arranjar coragem para descer as escadas. Sei o que ela viu, porque eu própria vi o mesmo, mais tarde tudo virado ao contrário e partido, a porta fora das dobradiças, as portadas destruídas. Parecia que as próprias Fúrias tinham andado à solta nesta sala. E o pior de tudo foi ver o pobre Marco, mesmo ao fundo das escadas, coberto de feridas e sem um alento de vida no corpo. Ao fundo das escadas, estão a perceber, defendendo-a. Ela deve ter perdido os sentidos durante algum tempo porque, depois disso, só se lembra de chegar a minha casa, que é no alto da colina. Chorava tanto, que quase não conseguia falar. Oh, chorava imenso!

 

E as pessoas que estavam do lado de fora da taberna? perguntei eu, suavemente. O senador Tédio e a sua comitiva.

 

Ela encolheu os ombros.

 

Já tinham desaparecido quando o meu marido e eu cá chegámos. E Clódio, ou o que restava dele, também. Mais tarde, ouvimos dizer que Tédio tinha mandado o corpo para Roma na sua liteira, e que nessa noite centenas de pessoas se reuniram à volta da casa de Clódio, em Roma, e acenderam fogueiras. Pobre viúva! Mas o desgosto de Fúlvia não deve ter sido maior do que o da minha irmã. Aqui, não houve reuniões, nem fogueiras, ficou apenas uma grande confusão para limpar. No dia seguinte, o meu marido mandou reunir os cadáveres e colocá-los em fila ao pé do estábulo. Veio um homem da villa de Clódio com uma carroça, e levou-os. Mas não limparam o sangue da Via Ápia ainda se vêem grandes manchas, daqui até ao santuário da Boa Deusa. E ninguém se ofereceu para pagar um único sestércio das reparações que tivemos de fazer aqui na estalagem. Eu disse ao meu marido que ele devia levar Milo a tribunal por causa dos prejuízos, mas ele respondeu-me que devíamos esperar para ver como as coisas se resolvem em Roma antes de nos metermos em mais sarilhos. O que achas disto? As pessoas honestas sofrem em silêncio, enquanto um homem como Milo é candidato a cônsul. É uma vergonha!

 

Eu acenei com a cabeça, num gesto de compreensão.

 

Quer dizer que tu e o teu marido chegaram depois de toda a gente ter dispersado?

 

Sim. Já só vimos os cadáveres.

 

Em que altura do dia é que isso aconteceu?

 

A batalha? Bem, considerando a hora a que nós chegámos, e por tudo aquilo que a minha irmã me contou, acho que deve ter sido a meio da tarde. Eu diria que Milo chegou a Bovilas à nona hora, deu de beber aos cavalos, reuniu a comitiva e marchou, e depois os gladiadores dele perseguiram Clódio até aqui pela décima hora.

 

Não terá sido mais tarde? Mais perto do pôr do Sol? Ela abanou a cabeça.

 

Por que perguntas? Eu encolhi os ombros.

 

Em Roma, circulam tantas versões diferentes da história... Chegou até nós um ruído proveniente da porta aberta. Eu tornei-me rígido, mas a mulher sorriu aos homens que entravam.

 

Pelo cheiro, hoje deve haver coelho assado disse um deles.

 

E nabos com o molho especial da nossa anfitriã! disse um dos companheiros, cheirando o ar. Instalaram-se nuns bancos, num canto.

 

Quanto é que nós te devemos? perguntei à mulher. Enquanto contava as moedas da bolsa de Eco, inclinei-me na direcção dela, por cima do balcão. A tua irmã, como está ela?

 

Ela abanou a cabeça.

 

Está desfeita, como vos disse. Nem sei se alguma vez recuperará.

 

Poderá receber uma visita?

 

Uma visita? A mulher franziu o sobrolho.

 

Eu baixei ainda mais a voz.

 

Perdoa-me: receio não ter sido totalmente honesto contigo. Mas, depois de te ouvir falar, sei que posso confiar em ti. Não foi por acaso que passei hoje por aqui.

 

Não? A mulher olhou para mim com um ar desconfiado, mas com um interesse crescente.

 

Não. Venho em representação de Fúlvia.

 

A viúva de Clódio? Ela ergueu as sobrancelhas.

 

Sim, por favor, não fales alto. Não tinha a certeza de poder confiar em ti, mas agora que te ouvi expressar o que sentes por Clódio, e por Milo e pela mulher dele...

 

Coelho assado! Coelho assado! Os recém-chegados começaram a cantarolar e a bater com os punhos nas mesas, rindo bem-dispostos.

 

Esperem a vossa vez! disse a nossa anfitriã, com uma expressão que eles tomaram por graça. Riram-se e começaram outro canto, que se transformou rapidamente numa série de gargalhadas. Na-bos! Na-bos! Na...

 

Ela inclinou-se para mim e falou quase num murmúrio.

 

Estou a ver! Quer dizer que vieste cá para ajudar a dar cabo dos esquemas de Milo?

 

Eu cerrei os lábios.

 

Não posso dizer-te qual é exactamente o meu objectivo, mas posso dizer-te que Fúlvia me pediu que descobrisse o que pudesse acerca da morte do marido.

 

Ah! Ela acenou com a cabeça, com um ar entendido.

 

Já percebes por que razão gostaria de falar com a tua irmã, se pudesse ser.

 

Claro. Acenou gravemente com a cabeça e depois franziu o sobrolho. Mas isso não é possível.

 

Compreendo que ela se encontre num estado muito frágil...

 

Não é apenas isso. Ela não está cá.

 

Não?

 

Foi com o filho para casa de uma tia nossa, em Régio. Toda a gente achou que, durante algum tempo, era melhor ela afastar-se o mais que pudesse daqui.

 

Eu acenei com a cabeça. De facto, não era possível ir para muito mais longe do que Régio, que ficava mesmo na extremidade da península itálica.

 

Coelho assado e nabos e molho! Coelho assado e nabos e molho! A mulher encolheu os ombros.

 

Agora tenho mesmo de ir atender os outros. Mas boa sorte! Tudo o que puder contribuir para fazer Milo recuar um ou dois degraus...

 

Oh, só mais uma pergunta...

 

Coelho assado e nabos e molho...

 

Sim?

 

Marco António, esse nome tem algum significado para ti? Ela pensou por momentos, depois abanou a cabeça.

 

Tens a certeza?

 

Nunca ouvi falar dele. Não deve ser destes lados.

 

Coelho assado e nabos e molho... A nossa anfitriã resmungou.

 

Tenho de ir dar de comer àqueles rapidamente, antes que haja outro tumulto aqui dentro! Fez rolar os olhos, lançou um último sorriso a Davo, e afastou-se apressadamente.

 

E agora, para onde? disse Eco quando saímos da estalagem. Sabia-me bem uma sesta, depois daquela refeição.

 

Davo bocejou e espreguiçou-se, num gesto de concordância.

 

Que disparate! Ainda é cedo, e temos muito que fazer. Davo, vai buscar os cavalos.

 

Metemo-nos pela Via Ápia e passámos pelo estábulo e pelo edifício exterior, cujas retretes tinham ficado aquém das exigências de Fausta Cornélia.

 

Eco riu-se.

 

Achas que a mulher de Milo será tão desagradável como parecia pensar a nossa anfitriã?

 

Nunca tive o prazer de conhecer a senhora em questão, mas não há dúvida de que foi objecto de vários boatos. Não é que eu me interesse por essas histórias; mas Betesda conta-as a Diana, e eu oiço sem querer.

 

Claro, papá, compreendo. Acontece o mesmo com Menénia, que está sempre a sujeitar-me a bisbilhotices desagradáveis. Mas seria falta de educação tapar os ouvidos, não achas? Vá lá, conta-me o que ouviste dizer, que eu conto-te o que ouvi!

 

Eu ri-me. Davo, imune à ironia, olhou para nós como se fôssemos loucos.

 

A maior parte tem a ver com os hábitos sexuais dela disse eu. Quando o anterior marido, Gaio Mémio, foi para fora, como governador de uma província qualquer, ela decidiu ficar em Roma, e portou-se de forma tão escandalosa que, quando Mémio regressou, se divorciou. Foi nessa altura que ela se casou com Milo.

 

Têm filhos?

 

Ainda não. Casaram-se há poucos anos. Mas, pelo que oiço dizer, ela anda demasiadamente ocupada com os amantes para ter tempo para procriar com o marido.

 

Pobre Milo!

 

Poupa a tua simpatia. Suspeito de que o casamento foi como a nossa anfitriã o descreveu: por razões de poder e de lucro. Independentemente do resto, Fausta é a filha do ditador Sula, e isso tem um grande peso, especialmente para os chamados Melhores, cujos favores Milo toda a vida tem procurado conquistar.

 

Como seria, ser filho de Sula?

 

Duvido de que qualquer de nós possa sequer imaginar, Eco. Ela e o irmão gémeo, Fausto, já nasceram para o fim da vida do ditador, e aparentemente ele ficou muito satisfeito consigo próprio imagina, amaldiçoar um filho com um nome que significa Mau Presságio. Se Fausta é uma garota mimada, o culpado é o monstro do pai dela, que foi quem a mimou.

 

Percebo que casar com ela foi um passo ascendente para Milo.

 

Mas que ganhou Fausta com o casamento?

 

Podia não ter grandes alternativas. Mémio tinha-se divorciado dela, deixando-lhe a reputação manchada. Milo parecia uma estrela em ascensão, não parecia? Tinha acabado de herdar um monte de dinheiro do avô; mesmo que tivesse começado logo a esbanjá-lo nos jogos funerários do velhote. Aparentemente, ela não se casou com Milo pelos seus atributos de amante, porque parece que vai procurá-los noutro sítio.

 

Eco acenou com a cabeça.

 

Calculo que tenhas ouvido dizer que Milo apanhou Salusto, o tribuno radical, na cama com ela, no dia a seguir ao casamento! Ele e os escravos deram uma tareia tão grande a Salusto, que o puseram azul, e confiscaram-lhe a bolsa do dinheiro à laia de multa.

 

Pois foi. O que me faz perguntar a mim próprio até que ponto a actual aliança de Salusto com os Clodianos provirá de sinceridade política ou do desejo de se vingar de Milo. E também se conta que Milo apanhou o seu velho amigo Sexto Vílio na cama com Fausta. Milo ficou furioso e arrastou Vílio do quarto, aos gritos. Mas, na verdade, Fausta estava com dois amantes, e o outro tinha conseguido esconder-se dentro de um armário. Enquanto Milo expulsava Vílio, o segundo amante voltou a meter-se na cama com Fausta e deu-lhe a cavalgada da vida dela!

 

A dama parece ter tendência para ser apanhada observou Eco.

 

Ou talvez aprecie a crueldade e goste de ver os amantes serem arrastados pelo chão.

 

Davo olhou para nós e fez uma careta. Descontio de que nunca tinha ouvido dois homens especularem acerca do comportamento de outras pessoas de forma tão lúbrica.

 

Eco abanou a cabeça.

 

Digo-o de novo: pobre Milo. Casou-se com Fausta por razões de prestígio, e só conseguiu vergonhas. Até o irmão gémeo diz piadas sobre ela.

 

Sim, conheço a história. Enquanto o primeiro marido estava ausente de Roma, ela alternava entre dois amantes, um dos quais era um tintureiro que possuía um estabelecimento de limpeza de lãs, e o outro, um sujeito chamado Mácula, por causa de um sinal de nascença que tinha na cara e que parecia uma mancha. Por isso, Fausto observou: "Não percebo como é que a minha irmã não se livra daquela Nódoa afinal, dispõe dos serviços pessoais de um tintureiro!"

 

Até Davo se riu.

 

Eu apontei para um círculo de carvalhos um pouco distanciados da estrada.

 

A tua memória é perfeita, Eco. Lá está o altar a Júpiter a que fizeste referência.

 

Talvez devêssemos parar e fazer um acto piedoso, para compensar toda esta coscuvilhice. Eco, que é absolutamente céptico, gosta de escarnecer da minha sensibilidade religiosa, por reduzida que ela seja.

 

Não nos faria nada mal dizer uma oração e deixar umas moedas, meu filho. Fizemos boa viagem e, até agora, as coisas correram-nos bem. Quando desmontámos à sombra dos carvalhos, surgiu de trás do altar de pedra um homem com uma veste branca em desalinho. Tinha o queixo coberto de uma barba por fazer e cheirava a vinho. Apresentou-se como Félix, explicou-nos que era o sacerdote local e ofereceu-se para recitar uma invocação a Júpiter em nosso favor, em troca de uma pequena quantia. Eco rolou os olhos, mas eu indiquei-lhe com um gesto que abrisse a bolsa. A oração era uma fórmula simples, e foi resmungada com tanta velocidade, que eu quase não a ouvi. Preferi contemplar os recessos sombrios das árvores que nos rodeavam e ouvir o balbuciar do riacho que corria ali perto e o sussurro dos ramos das árvores. Este antigo local de culto, situado mesmo ao pé da Via Ápia, uma estrada larga, geralmente movimentada e imensamente civilizada, transmitia um forte sentimento de inefabilidade e ocultação. Há boas razões para se erigirem altares e templos em determinados locais, e não noutros. São os lugares que escolhem os altares, por assim dizer, e não o inverso. Este era um local assim e, independentemente do género de sacerdote que o mantivesse, o seu carácter especial era tão palpável, ainda que esquivo, como o vapor da respiração no ar frio.

 

Quando a oração terminou, voltámo-nos para nos irmos embora, mas o sacerdote estendeu a mão e tocou-me no braço.

 

Estão de passagem? perguntou Félix. Tinha um rosto estreito de furão e os dentes amarelos.

 

Vamos daqui para ali.

 

Sabem o que aconteceu ali na estrada, não sabem?

 

Calculo que tenham acontecido diversas coisas, ao longo dos anos.

 

Não, refiro-me àquela coisa com Milo e Clódio.

 

Oh, a isso. Foi perto daqui?

 

Perto? Não ouvem os lémures dos mortos, abanando as folhas das árvores à nossa volta? A batalha terminou mesmo ali em baixo, naquela estalagem velha.

 

Sim, comemos lá agora mesmo. A proprietária disse-nos qualquer coisa.

 

Félix mostrou-se desiludido, depois voltou a animar-se.

- Ah, mas não acredito que ela vos tenha mostrado onde começou a batalha.

 

Pois não. É um sítio interessante?

 

Interessante? Quando voltarem para Roma, poderão contar aos vossos parceiros de copos que viram o sítio onde começou a matança.

 

Como é que sabes que nós somos de Roma?

 

Ele ergueu uma sobrancelha, como que para dizer que as nossas origens eram demasiadamente óbvias para um camponês como ele.

 

Então, querem ver o local, ou não?

 

Estás a oferecer-te para no-lo mostrar?

 

Por que não? Há 20 anos que sou sacerdote neste altar e tenho conhecimento de tudo o que se passa por aqui. Claro que solicito uma pequena gratificação, para a manutenção do altar...

 

Eu semicerrei os olhos e voltei-me para Eco.

 

O que te parece? Eco esticou o queixo.

 

Acho que talvez seja interessante. E não estamos assim com muita pressa.

 

Oh, não demora muito disse Félix. Não posso afastar-me do altar durante muito tempo.

 

Eu fingi pensar no assunto, e acabei por acenar com a cabeça.

 

Muito bem. Vem connosco.

 

Davo, Eco e eu mantivemos os cavalos em passo lento, de maneira que o sacerdote, que seguia a pé, pudesse acompanhar-nos. A seguir a Bovilas, a estrada iniciava uma ascensão regular. O terreno arborizado era inclinado para cima à nossa esquerda e para baixo à nossa direita. Apesar da paisagem crescentemente diversa, a estrada que Ápio Cláudio tinha construído mantinha um curso regular, larga e plana como até então.

 

Quer dizer que já estiveram na estalagem disse o nosso guia. Repararam nas portas e nas portadas novas? Deviam ter visto como aquilo ficou depois da batalha, parecia uma velha com os olhos e os dentes para fora. E aqueles corpos todos espalhados!

 

Assististe à batalha?

 

Ouvi o barulho, quando ela começou no cimo da colina, e percebi que se passava qualquer coisa. Depois, vi-os passarem a correr vê-se uma nesga da estrada dali do altar, aquele sujeito, Clódio, a cambalear e a tropeçar, praticamente transportado em peso pelos seus homens, eram uns cinco ou seis, e pouco depois os dois monstros arrastando-se pesadamente atrás deles, Eudamo e Birria.

 

Reconheceste-os?

 

Quem não reconheceria? Nunca perco um espectáculo de gladiadores quando tenho oportunidade de assistir. Por motivos religiosos, compreendes? Os jogos começaram por ser ritos funerários, como sabes. Ainda são uma instituição sagrada.

 

Não me incomodei a discutir o assunto com um sacerdote.

- Eudamo e Birria eram os únicos que corriam atrás de Clódio e dos seus homens?

 

Félix resfolegou.

 

Que lenda isso não dava, os dois gladiadores que montaram cerco à estalagem de Bovilas e a conquistaram sozinhos! Não, não eram os únicos. Vinha um exército inteiro atrás deles.

 

Um exército?

 

Talvez seja um pouco exagerado.

 

Quantos homens eram? Dez, 20?

 

Deviam ser mais.

 

Quer dizer que eram muito mais do que os de Clódio?

 

Eu diria que sim.

 

E o cerco à estalagem, também assististe a isso?

 

Bem, não propriamente. Enquanto estava a acontecer, não. Deixei-me ficar ao pé do altar, evidentemente, para o proteger.

 

Evidentemente.

 

Mas toda a gente sabe qual foi o resultado. Marco, o estalajadeiro, foi massacrado, e o malandro do Clódio, mais os seus homens, ficaram mortos na estrada.

 

Malandro?

 

O sacerdote olhou para mim de esguelha e cerrou os dentes.

 

Não pretendi ser ofensivo, cidadão. Eras adepto do homem?

 

Não. Mas a nossa anfitriã na estalagem tinha uma opinião diferente de Clódio. Podes dizer o que te apetecer sobre ele.

 

Então vou continuar a chamar-lhe malandro, se não pões objecções.

 

Preferias Milo?

 

Félix ergueu uma sobrancelha.

 

Sou um sacerdote do grande Júpiter. Concentro os meus pensamentos em coisas mais elevadas do que as guerrinhas que políticos insignificantes travam em Roma. Mas, quando um homem comete um sacrilégio de forma tão notória como Clódio o fez, os deuses acabam por destruí-lo, mais cedo ou mais tarde.

 

Sacrilégio? Estás a falar daquela vez em que ele se disfarçou de mulher para conseguir entrar nos ritos da Boa Deusa em Roma, a fim de poder fazer amor com a mulher de César no próprio momento em que os ritos estivessem a decorrer? Esta fora uma das mais infames escapadas de Clódio.

 

Esse foi de facto um sacrilégio terrível comentou o sacerdote.

 

Clódio devia ter sido lapidado por isso, mas conseguiu subornar o júri.

 

Foi uma falha na justiça terrena disse Eco, acenando com a cabeça em sinal de concordância, mas piscando maliciosamente o olho.

 

E um lapso na justiça celeste. Quando eu era miúdo, toda a gente me dizia que um homem que se atrevesse a violar os ritos da Boa Deusa ficaria surdo, cego e mudo. Mas Clódio saiu dos ritos como tinha entrado. Pergunto a mim mesmo por que motivo o terá poupado a Boa Deusa. Ter-se-á deixado enganar pelo vestido e a maquilhagem que ele levava? Ou terá ficado tão encantada com Clódio como a mulher de César?

 

O sacerdote recusou-se a deixar-se provocar.

 

Claro que ela o poupou, para que ele pudesse conhecer um destino bem mais terrível dez anos depois, aqui em Bovilas! Achas que o facto de a batalha se ter iniciado mesmo diante do santuário da Boa Deusa, na Via Ápia, foi apenas uma coincidência? Podes ter a certeza de que Fauna teve influência no seu destino. O sacerdote acenou gravemente com a cabeça, desafiando Eco a refutar a sua lógica.

 

Mas esse não foi o único sacrilégio do homem, nem sequer o pior. Calculo que, em Roma, não tereis ouvido contar o que Clódio fez no pomar de Júpiter, aqui no Monte Alba, nem a maneira como tratou as Virgens Vestais.

 

A nossa anfitriã da hospedaria falou nisso disse eu, mas eu não conhecia a história.

 

Félix abanou a cabeça.

 

Seria de crer que esse género de crimes se tornasse conhecido quando um homem concorre a um cargo público, mas suponho que as pessoas estavam dispostas a votar em Clódio para pretor sem pensarem nos delitos religiosos que ele praticou por estes lados. Então vou-vos contar. Esteve tudo relacionado com aquela villa gigantesca que ele construiu na colina. Começou por ser uma casa simples, mas isso não era suficiente. Ele tinha de continuar a expandi-la, transformando-a numa fortaleza privada. A propriedade estava encostada a algumas das zonas mais sagradas da montanha o bosque de Júpiter, o Templo de Vesta, a Casa das Virgens Vestais, Quando precisou de mais terra, Clódio refez os contornos da propriedade. Reclamou uma parte importante do bosque sagrado a cujo derrube procedeu em seguida, utilizando a madeira das árvores como lenha! E expulsou as Vestais de sua casa, que depois desmantelou pedra a pedra, para acrescentar uma ala à sua própria villa utilizando os antigos mosaicos e a estatuária como objectos decorativos! Olhem, a nova Casa das Vestais é ali, à esquerda; consegue-se avistar por entre as árvores. Pelo menos evitou mexer no Templo de Vesta, mas isso foi uma pequena compensação por aquilo que fez ao bosque. Para mim, não há acto mais ímpio do que fazer mal a uma árvore sagrada, e Clódio mandou-as cortar às dezenas!

 

Mas como é que ele conseguiu pôr a mão nessas propriedades sagradas?

 

Como queres que eu saiba? Não passo de um simples sacerdote, a quem foi atribuído um altar isolado. Quem sabe a que género de ameaças e subornos terá ele recorrido? Aquele tipo de homens não se deixa deter por coisa alguma para conseguir o que pretende. Olhou para Eco. Ainda duvidas de mim, jovem, quando te digo que foi pela mão dos deuses que Clódio foi derrubado?

 

A mão dos deuses está presente em todas as coisas disse eu, para o apaziguar, incluindo este nosso encontro casual, e esta conversa. Quer dizer que tu assististe à fuga para a estalagem, mas não à batalha.

 

Mas ouvi-a, do altar! Berros e coisas a serem partidas!

 

Quanto tempo é que isso durou?

 

É difícil dizer. Não foi assim muito tempo. Depois, houve uma série de gritos, e as coisas ficaram silenciosas durante algum tempo. Em seguida, o velho senador e a filha desceram a colina na liteira.

 

Ou seja, depois de Eudamo e Birria e os homens de Milo terem voltado a subir a colina disse eu.

 

Não. O senador passou, e só um bocado depois é que os homens de Milo começaram a subir a colina, levando os prisioneiros.

 

Prisioneiros? Franzi o sobrolho.

 

Uns cinco ou seis, pareceu-me.

 

Como é que sabes que eram prisioneiros?

 

Porque levavam as mãos atadas! Iam todos presos uns aos outros, com um ar assustadíssimo, com os homens de Milo à volta deles e Eudamo e Birria a picarem-nos e a darem-lhes pontapés no traseiro.

 

Mas quem eram esses prisioneiros? Eram homens de Clódio? Félix encolheu os ombros.

 

Quem haviam de ser?

 

Mas eu pensei que os cinco ou seis homens que estavam na estalagem a defender Clódio tinham sido todos mortos.

 

Sim, suponho que foram. Talvez fossem alguns homens seus que tinham fugido para os bosques.

 

Esses prisioneiros estavam feridos? Sangravam? Ele mostrou-se confuso.

 

Agora que perguntas, não, não me parece que estivessem.

 

Eu abanei a cabeça. De acordo com Fúlvia, pelo menos metade dos homens de Clódio tinham dispersado e fugido para os bosques no começo da batalha eram os poucos sobreviventes que tinham acabado por regressar para junto dela, com relatos fragmentados do desastre, e os restantes tinham morrido todos, quer na estrada, quer protegendo Clódio, dentro da estalagem. Segundo ela me informara, não faltava nenhum dos elementos da comitiva de Clódio. Então, quem eram esses prisioneiros de que falava o sacerdote? E, se o senador Tédio tinha passado por ali na sua liteira antes de os homens de Milo partirem, e não depois, como se explicava que, quando se atreveu a olhar pela janela, depois da batalha, a mulher do estalajadeiro tivesse visto apenas o senador Tédio e a filha deste debruçados sobre Clódio com a respectiva comitiva, e não avistasse vestígios dos homens de Milo? Subitamente, a sequência dos acontecimentos tornou-se confusa dentro da minha cabeça. O que teria exactamente visto a mulher do estalajadeiro? A cunhada não passava de uma testemunha em segunda-mão, e podia ter alterado inadvertidamente algum pormenor, ou esquecido alguma coisa. Se a mulher não tivesse partido para tão longe, para Régio...

 

Pronto, foi aqui! anunciou o sacerdote, um pouco ofegante por causa da subida da colina. Ah é o santuário da Boa Deusa, em cima e à direita. Apontou para um templo em miniatura com o telhado redondo, rodeado de carvalhos, mesmo à beira da estrada. Foi aqui que começou a batalha. Clódio e os seus homens vinham a descer a colina, e Milo e os seus vinham a subir.

 

Teria sido assim que as coisas tinham acontecido os dois grupos cruzando-se casualmente na estrada e, fosse como fosse, passando a vias de facto? Ou teria efectivamente havido uma emboscada, ainda que mal concebida por parte de Clódio, cuja força era numericamente inferior? O local era perfeito para isso; as árvores de ambos os lados eram suficientemente densas para funcionarem como esconderijos, e a inclinação do terreno teria favorecido um atacante que viesse de cima.

 

Mas, para além das partes envolvidas, quem teria assistido ao evento?

 

Felícia! gritou o sacerdote a uma figura alta e esguia, com uma veste branca, que emergia dos bosques que rodeavam o santuário da Boa Deusa. Quando se aproximou de nós, erguendo a mão num gesto de saudação e sorrindo, e eu percebi que era mais velha do que inicialmente me parecera. Havia qualquer coisa de luminoso no seu rosto pálido e uma graciosidade no seu andar que, ao longe, projectava a ilusão de juventude. Era óbvio que fora uma mulher lindíssima. Ainda era muito agradável à vista.

 

O sacerdote avançou para ela e pôs as mãos nas coxas.

 

Se não te importas, espera pela tua vez, Felícia. De momento, eu vim acompanhar estes homens.

 

Claro, claro! Ela fez troça dele fingindo sentir-se intimidada, agitando as pálpebras e torcendo as mãos. Eu conheço as regras. Tu apanhas os viajantes que vêm do Norte, eu apanho os que vêm do Sul.

 

Além disso, Felícia, não há aqui ninguém que possa ir ao teu santuário. São todos homens!

 

Bem vejo! Ela avaliou-nos à vez, sorriu a Eco, deixou que os seus olhos se detivessem em Davo, e por último olhou para mim.

 

Oh, pronto, Felícia, são teus, de qualquer maneira tenho de voltar para junto do altar. O sacerdote olhou para mim e estendeu descaradamente a palma da mão.

 

Ah, sim disse eu. A gratificação para a manutenção do altar de Júpiter. Fiz um sinal de cabeça a Eco, que tirou da bolsa uma soma que, como habitualmente, era um pouco mesquinha. Eu franzi o sobrolho e ele acrescentou mais uma moeda. Eu acenei com a cabeça, peguei no dinheiro e depositei-o na palma da mão do sacerdote, de onde ele desapareceu com velocidade quase mágica.

 

Sem dizer mais uma palavra, o sacerdote fez o mesmo.

 

Bem, Felícia disse eu, e pareceu-me impossível não corresponder ao sorriso radioso da mulher, tu deves ser a servidora do santuário da Boa Deusa.

 

Atendo às necessidades dos viajantes femininos que desejam parar aqui para prestar culto, sim.

 

Em troca de uma gratificação.

 

Só um mortal ímpio pode esperar obter alguma coisa dos deuses em troca de nada.

 

Eu acenei com a cabeça.

 

Tu e o teu irmão parecem ter transformado esta actividade de mostrar as vistas a quem passa num negócio muito razoável.

 

As pessoas querem saber o que aconteceu aqui na Via Ápia.

 

E querem mesmo.

 

Mas como é que sabias que nós éramos irmãos? Foi Félix que te disse?

 

Eu tinha-me referido ao sacerdote como irmão no sentido religioso, sem suspeitar de que os dois eram de facto parentes. Tratava-se, pois, de um negócio de família, cuidar dos santuários e lucrar com os turistas que passavam por esta parcela da Via Ápia. E também parecia haver alguma rivalidade adélfica.

 

Calculo que o meu irmão também vos tenha dito que, quando era jovem, eu fui prostituta do templo, ao serviço de Isís observou Felícia. Sem esperar por uma resposta, ergueu o queixo, fazendo aumentar ainda mais a sua figura, já de si alta e esguia. Sim, é verdade. Fui prostituta do templo. Mas hoje em dia apenas sirvo Fauna, a Boa Deusa. Parecia bastante orgulhosa de ambos os factos.

 

Isso é fascinante disse eu. E estavas de guarda naquele dia?

 

No dia da batalha? Estava, pois.

 

E viste o que aconteceu?

 

Vi, pois! Pareceu-me que ela tinha os olhos abertos de uma maneira artificial, como fazem as pessoas quando lutam contra o sono ou tentam assustar as crianças. Apontou para Bovilas. O grupo de Milo subiu a colina, vindo de Bovilas, eram imensos!

 

Eu ergui uma sobrancelha.

 

Todos cabeleireiros e massagistas, segundo ouvi dizer.

 

De maneira nenhuma. Bem, sim, parecia haver bastantes escravos domésticos havias de ver como eles guinchavam quando começou a luta! Mas também havia muitos homens armados. À frente, atrás, de um lado e do outro. Parecia um pequeno exército marchando para uma batalha.

 

Onde estava Milo?

 

Perto da frente da procissão, dentro de uma carruagem, com a mulher.

 

Pararam aqui?

 

No santuário? Não. Fausta Cornélia nunca parava aqui.

 

Não? Pensei que a filha de Sula, uma mulher de posição superior, desempenhasse um papel de relevo no culto da Boa Deusa.

 

Em Roma, talvez. Mas eu cheguei à conclusão de que a maior parte das mulheres que param neste santuário provém de terras mais pequenas e vive em circunstâncias mais humildes. As mulheres da cidade parecem considerar que parar num lugar humilde como este para apresentar os seus respeitos à deusa está um bocadinho abaixo do seu nível. Calculo que prefiram prestar-lhe culto num ambiente mais sumptuoso.

 

Isso não me parece uma atitude muito piedosa.

 

Eu não faço juízos. O sorriso dela não se alterou. Os seus olhos continuavam muito abertos. Mas vocês queriam que vos falasse da escaramuça. Pois bem, começou aqui mesmo, precisamente diante do santuário. Eu estava sentada nos degraus, a aquecer-me ao sol. Vi tudo.

 

A que horas foi?

 

Por volta da nona hora.

 

Até agora, todas as testemunhas tinham confirmado o relato de Fúlvia e refutado Milo, que situava a escaramuça duas horas mais tarde.

 

Tens a certeza?

 

Tenho. Há um relógio de sol na clareira que fica por trás do santuário. Eu tinha olhado para ele pouco tempo antes.

 

Como começou a escaramuça?

 

Milo e a sua comitiva subiam a colina, Clódio e os seus homens iam a descer.

 

Clódio seguia então pela estrada? Não apareceu subitamente, vindo dos bosques?

 

Não.

 

Não preparou uma emboscada?

 

De modo nenhum.

 

Seguia a cavalo?

 

Ele e mais um par de companheiros. Os restantes iam a pé.

 

Havia mulheres e crianças na sua companhia?

 

Não. Só homens adultos.

 

Quantos?

 

Uns 20 ou 25.

 

Armados?

 

Pareciam lutadores treinados, se é a isso que te referes. Pareces mais curioso relativamente a esses pormenores do que a maioria dos viajantes com quem falei.

 

Pareço? Contemplei a extensão vazia da estrada. Quer dizer que, quando se encontraram, os dois grupos começaram a lutar, sem mais?

 

Não, não foi assim.

 

Trocaram insultos?

 

Não, a princípio não. Na verdade, aconteceu o contrário. Logo que os dois grupos se avistaram, fez-se silêncio. Todos se tornaram um bocadinho rígidos. Fui-me apercebendo dessa reacção à medida que ela percorria os dois grupos, como ondas gémeas geradas no ponto de contacto. Os pescoços tensos, os dentes cerrados, os olhos fixos num ponto adiante aquela postura que os homens tomam diante uns dos outros. Houve alguma confusão quando passaram. A estrada é larga, mas ambos os grupos tiveram de se encolher e desviar um bocadinho.

 

Os homens de Clódio tomaram mais espaço que os de Milo. Nessa altura, houve uns empurrões e uns resmungos. Havia no ar uma tensão que me fez pele-de-galinha como é que eu hei-de explicar isto? era como passar as unhas por uma chapa de ardósia. Lembro-me de ter arquejado subitamente e percebido que tinha estado a conter a respiração, observando e esperando que acontecesse qualquer coisa horrível.

 

Quando os dois grupos ainda estavam a passar um pelo outro, Clódio e os amigos que seguiam com ele a cavalo afastaram-se da estrada, mesmo em frente ao ponto onde eu estava sentada, para deixarem passar os seus homens à frente. Milo e a mulher prosseguiram a subida da colina na sua carruagem, afastando-se cada vez mais. Finalmente, o grupo de Milo e o grupo de Clódio acabaram de passar um pelo outro, mesmo diante de mim. Clódio apertou as rédeas e avançou atrás dos seus homens. Eu soltei um suspiro de alívio. Murmurei uma oração à Boa Deusa, agradecendo-lhe o facto de nada ter acontecido. Mas Clódio não podia ficar quieto. Um demónio deve ter-lhe dado uma cotovelada. Voltou-se para trás e gritou qualquer coisa por cima do ombro aos dois gladiadores que seguiam na rectaguarda do comboio de Milo.

 

Dois gladiadores? -

 

Sim, deviam ir a guardar a rectaguarda. São famosos, pelo menos segundo o meu irmão...

 

Eudamo e Birria?

 

Sim, esses dois.

 

E o que foi que Clódio lhes disse? Ela pestanejou.

 

Se ainda fosse uma prostituta do templo, e não uma servidora da Boa Deusa, citava-te as palavras exactas.

 

Que tal dares-me uma aproximação modesta?

 

Foi uma coisa parecida com: "Por quê esse ar mal-humorado, Birria? Eudamo não te tem deixado limpar a espada tantas vezes quantas gostarias?"

 

Estou a ver. E depois, o que aconteceu?

 

Aquele que se chama Birria voltou-se, com a rapidez de um raio, como se alguém tivesse estalado os dedos, e atirou a lança a Clódio. Aconteceu tão depressa, que eu nem me teria apercebido se não estivesse a olhar directamente para ele. Clódio ainda estava a olhar para trás, a rir-se da sua própria piada. A lança atingiu-o com toda a força.

 

Onde?

 

Ela levou a mão ao ombro.

 

Acho que foi aqui. Nem cheguei a ver bem a lança voou mais depressa do que os meus olhos, e atingiu Clódio com tanta violência, que o derrubou do cavalo. Depois, houve um momento de total confusão com os homens a gritar, a virar-se para trás, a chocar uns com os outros. Eu levantei-me dos degraus e corri para o santuário, mas continuei a espreitar como podia, metida na sombra. Aconteceu tudo muito depressa. Eu nunca tinha assistido a uma batalha. Calculo que todas as batalhas tenham aquele aspecto um cacho de homens a correr de um lado para o outro, apontando as armas entre si, gritando o mais que podem. Tudo aquilo parecia um tanto ridículo, para te dizer a verdade, mas ao mesmo tempo era bastante horrível. Eu só me conseguia lembrar de ser muito nova e observar desconhecidos a copular, ocultos nas sombras do Templo de Isís. Era difícil conter o riso, mas ao mesmo tempo era assustador. Fascinante, revoltante e absurdo ao mesmo tempo.

 

O que aconteceu a Clódio?

 

Alguém lhe puxou a lança do ombro e ele conseguiu pôr-se de pé. Alguns homens de Milo atacaram...

 

Onde estava Milo?

 

Ela pensou por momentos.

 

Não estava visível, pelo menos naquele momento.

 

Pelo que tu dizes, a batalha iniciou-se espontaneamente e sem o conhecimento de Milo, quando ele já ia longe, à frente da comitiva. Os dois grupos cruzaram-se por acaso e passaram um pelo outro em silêncio e sem incidentes, até Clódio berrar um insulto de despedida e Birria lhe atirar impulsivamente a lança.

 

Felícia acenou com a cabeça, num gesto de concordância, com o mesmo sorriso imperturbável e o mesmo olhar vítreo. Teria sido apenas isso?

 

Ainda assim, papá, um cidadão é responsável pelo comportamento dos seus escravos recordou-me Eco. Milo poderá não ter apoiado o crime de Birria, mas até certo ponto é legalmente culpado.

 

E um homem também é responsável pelos boatos falsos que põe a circular disse eu, pensando na descrição do incidente que Milo apresentara no contio de Célio, igualmente viva, mas muito diferente desta. Até agora, tudo o que Felícia tinha dito estava de acordo com a versão do incidente que Fúlvia me transmitira, depois de a inferir dos relatos dos sobreviventes que pertenciam à comitiva de Clódio, à excepção do insulto de despedida de Clódio, que Fúlvia omitira; sem esse pormenor, o ataque de Birria aparentava ser inteiramente gratuito, e talvez mesmo premeditado. Mas o pormenor do insulto parecia perfeitamente genuíno, e era difícil imaginar que Felícia estivesse enganada, ou a mentir. Era compreensível que Fúlvia tivesse omitido um facto que punha em causa a memória do marido. As suas fontes poderiam ter-lho ocultado, ou talvez nem tivessem ouvido o insulto. Mas tornava-se óbvio que a elaborada história de Milo, de uma emboscada a sangue-frio, era uma invenção.

 

Como decorreu a batalha?

 

Mal, para Clódio e os seus homens disse Felícia. Os outros eram muito mais numerosos, claro. Alguns foram imediatamente mortos. Vários fugiram para os bosques, com os homens de Milo atrás deles. Um dos amigos de Clódio, que seguia a cavalo, gritou que ia pedir ajuda e dirigiu-se ao alto da colina, tentando passar pelas fileiras de Milo. Calculo que se dirigisse à villa de Clódio.

 

E conseguiu passar?

 

Não sei. Não vi.

 

E o outro amigo de Clódio que seguia a cavalo?

 

Acho que deve ter sido deitado abaixo do cavalo porque, quando voltei a olhar, todos os homens de Clódio aqueles que ainda estavam com ele e que não tinham sido mortos estavam a pé. Os cavalos tinham desaparecido.

 

O que explica por que razão Clódio fugiu a pé.

 

E por que foi refugiar-se em Bovilas comentou Eco. Os homens de Milo bloqueavam o caminho de regresso à villa dele. Ou recuava para a estalagem, ou tomava posição na estrada.

 

E Clódio estava gravemente ferido disse eu. O teu irmão diz que ele tropeçava e que teve de ser ajudado. Mas chegou à estalagem muito antes dos seus perseguidores. Pergunto a mim próprio como terá conseguido antecipar-se.

 

Os homens de Milo não foram logo atrás dele disse Felícia. Deu-me a impressão de que não sabiam bem se deviam segui-lo ou não. Pareciam perdigueiros, a correr de um lado para o outro, sem conseguirem decidir-se por um cheiro definido. Até Milo chegar.

 

E depois?

 

Milo ficou furioso. Bateu com os pés no chão, agitou os punhos, pôs-se diante de Birria e gritou com ele parecia um louco a insultar um urso selvagem. Eu encolhi-me quando vi aquilo. Mas depois Milo acalmou-se e organizou uma espécie de reunião, conferenciando em círculo com alguns dos seus homens. Aparentemente, tomaram uma decisão, e Milo enviou Eudamo e Birria, com um grupo numeroso de homens, para Bovilas. Os restantes cerraram fileiras à volta de Milo. Ele tirou a espada e espreitava constantemente para os bosques.

 

Eu também comecei a ficar com medo. Alguns homens de Clódio tinham fugido para os bosques, com os homens de Milo atrás deles;

 

pensei que podiam emergir na clareira que fica por trás do santuário, ou tentar refugiar-se no próprio santuário. Por isso, deixei-me estar quieta e escondi-me entre as sombras. Ninguém reparou em mim.

 

Quando passou por aqui o senador Tédio? perguntei eu.

 

Isso foi o evento seguinte. Uma liteira elegante começou a descer a colina com uma pequena comitiva. Eu sabia quem era, porque a filha do senador Tédio pára muitas vezes aqui no santuário.

 

Ao contrário de Fausta Cornélia?

 

Tédia é uma mulher muito antiquada. Muito piedosa, muito virtuosa. Não é orgulhosa nem vaidosa, como tantas jovens pertencentes a famílias importantes. Mas, nesse dia, não veio ao santuário. Quando os homens de Milo mandaram parar a liteira, deixou-se ficar lá dentro. Tédio saiu e falou com Milo. Pelos seus gestos, presumi que Milo tentava convencê-lo a voltar para trás. Mas o senador é um homem obstinado. Insistiu em prosseguir, voltou para a liteira e continuou a descer a colina na direcção de Bovilas. Passou mais algum tempo, não sei quanto. Milo andava de um lado para o outro, agitado. Por fim, Fausta Cornélia saiu da carruagem e começou a andar atrás dele. Tiveram uma espécie de discussão, mas sem gritarem. Por fim, Eudamo e Birria regressaram, trazendo consigo os prisioneiros.

 

Os prisioneiros... Abanei a cabeça. O teu irmão também falou neles. Mas quem seriam?

 

Alguns dos homens de Clódio? Eu abanei a cabeça.

 

Não me parece.

 

Porquê?

 

Porque, pensei, Fúlvia disse-me especificamente que não dera pela falta de nenhum dos homens de Clódio. Felícia olhou para mim com um ar astuto, pelo menos com um ar tão astuto quanto o que pode ter uma pessoa com os olhos vidrados e aquele sorriso decidido.

 

Parece que já estás muito informado acerca do que se passou naquele dia.

 

E tu parece que já contaste esta história muitas vezes. Ela encolheu os ombros.

 

A Via Ápia é uma estrada com muito movimento, mesmo nos tempos conturbados que vivemos. E as pessoas são naturalmente curiosas.

 

Contas o que viste a todos os que passam por aqui?

 

Desde que dêem qualquer coisa para o santuário. Nunca fui do género de me recusar a fazer favores, quer na minha antiga profissão, quer na nova.

 

Eu olhei-a e abanei a cabeça. Não encontrava nela nada que pudesse admirar, mas também nada via de desprezível. Quando pensei no perigo que corria, involuntária, e mesmo estupidamente, com o único objectivo de conseguir obter algumas moedas aos forasteiros, senti-me gelar.

 

Felícia, fazes alguma ideia do risco que corres? É espantoso como ainda estás viva, tu e o teu irmão.

 

O sorriso dela vacilou. Pestanejou, como se só agora começasse a focar o olhar.

 

Por que dizes isso?

 

Não fazes ideia nenhuma da magnitude daquilo a que assististe? Pela maneira como te comportas, parece que se trata apenas de uma curiosidade, de uma história divertida que se conta aos viajantes em troca de umas moedas. Mas, neste preciso momento, há em Roma um homem muito poderoso e implacável que luta pela sobrevivência. Milo anda a contar a toda a gente que, naquele dia, Clódio lhe preparou uma emboscada.

 

Ela encolheu os ombros.

 

- Bem, tanto me faz o que ele diz. Eu sei o que vi e as coisas que te contei...

 

Se forem pronunciadas num tribunal, poderão mandar Milo para o exílio, desacreditar os seus adeptos e provocar um grande embaraço a alguns dos homens mais poderosos de Roma. Homens que têm espiões por toda a parte, e assassinos, e estrebarias inteiras cheias de sujeitos como Eudamo e Birria. É provável que os esbirros de Milo já tenham andado por aqui a bisbilhotar. Se te ignoraram, e ao teu irmão, foi apenas porque os deuses os fizeram desviar o olhar. Ou já falaste com eles, com a mesma liberdade com que falaste comigo? Se calhar, já sabem quem tu és e o que andas a dizer. Nesse caso, só a sua incompetência pode explicar que ainda estejas viva e possas contar-me essa história. Ou estarei a falar com o teu lémure?

 

Ela apertou os lábios e semicerrou os olhos. Momentos depois, voltou a animar-se e conseguiu apresentar uma semelhança da suave serenidade anterior, mas não foi capaz de controlar uma tremura na voz.

 

Eu sirvo a Boa Deusa...

 

Achas que isso pode proteger-te? Que significa alguma coisa para estes homens, isso ou o sacerdócio do teu irmão?

 

Então achas que...

 

Que corres um grande perigo, ou correrás em breve.

 

O sorriso desapareceu-lhe finalmente do rosto e, pela primeira vez, os seus olhos pareceram ver-me de facto.

 

Quem és tu?

 

Um homem que ficou satisfeito por ouvir a verdade e não te deseja mal.

 

Ela fixou-me por momentos.

 

O que sugeres que eu faça?

 

No mínimo, deixa de contar aquilo que sabes a todos os viajantes, e diz ao teu irmão para fazer a mesma coisa. Mantenham-se calados! Melhor do que isso, sugiro que ambos aprendam umas coisas com os pássaros.

 

O quê?

 

Voem daqui até ao fim do Inverno.

 

Como a viúva do estalajadeiro, pensei. Talvez não tivesse sido o desgosto a fazê-la partir para Régio, mas o simples bom senso. Voa para Sul, ou então vai com o teu irmão até Roma e pede protecção à viúva Fúlvia. Ela esperará qualquer coisa em troca, especialmente se chegar a haver julgamento, e com isso poderás estar a colocar o teu destino do lado dos derrotados. Mas, faças o que fizeres, sai daqui.

 

Mas quem tratará do santuário? E eu vou viver de quê?

 

Descontio de que ainda tens atributos suficientes para te manteres, de uma maneira ou de outra.

 

O sorriso dela vacilou.

 

Vou pensar nisso. Entretanto, vou aceitar o teu conselho, e nada mais direi. Com a mesma desfaçatez do irmão, estendeu a mão aberta. Vendo Eco olhar para a bolsa com a testa franzida e uma expressão de parcimónia, eu tirei-lha da mão e extraí uma das moedas de maior valor.

 

Ao vê-la na sua mão, ela recuperou o anterior olhar vidrado.

 

És um homem generoso, desconhecido, tanto com os teus conselhos como com o teu dinheiro.

 

Usa-o para te alojares noutro sítio.

 

Talvez o faça. Mas julgo que me pagaste mais do que aquilo que eu te dei. Queres que te diga outra coisa? Uma coisa que não disse a todos os viajantes curiosos que passavam por aqui? Viu a minha reacção e riu-se. Adoro ver essa expressão na cara de um homem, ansiosa e atenta. Muito bem; lembras-te de ter passado pela Casa das Vestais quando vinhas de Bovilas?

 

Lembro-me. O teu irmão indicou-no-la.

 

Mas não paraste para falar com nenhuma das Vestais?

 

Não.

 

Já que pareces tão ansioso por saber tudo quanto se passou nesse dia, talvez te seja proveitoso conversar com a Virgo Máxima. Pede-lhe que te fale do visitante que recebeu a seguir à batalha. Pergunta-lhe que oferenda foi feita e recusada.

 

Não podes dizer-me tu?

 

As virgens da deusa Vesta não se intrometem na minha vida, e eu não me intrometo na vida delas. Pergunta à Virgo Máxima, se conseguires penetrar na sua altivez. Aconteça o que acontecer, não lhe digas que fui eu que te enviei. Ela pode confiar em ti ou não, mas isso é com ela. Pronto, já mereci a tua moeda. Começou a dirigir-se novamente para o santuário.

 

Felícia... Ela voltou-se.

 

Sim?

 

Só mais uma pergunta. Queria ter perguntado ao teu irmão, mas esqueci-me. Um nome: Marco António. Tem algum significado para ti?

 

Ela abanou a cabeça, depois voltou-se e recomeçou a andar.

 

E Felícia...

 

Sim?

 

Que a Boa Deusa te proteja do mal.

 

Seguindo o conselho de Felícia, voltámos para trás e regressámos à Casa das Vestais.

 

Da Via Ápia, subia uma vereda estreita e sinuosa que ia dar ao pátio da frente e à entrada principal. Tanto a vereda como o edifício eram obviamente de construção recente; os caminhos estavam ladeados por terra revolta e tocos de árvores, e as arestas cortantes e as paredes coloridas da casa ainda não tinham sido suavizadas pelo tempo. Tratava-se de um edifício modesto, em comparação com a grande Casa das Vestais de Roma, mas não era propriamente um casebre; muitos habitantes do Palatino gostariam de viver numa habitação assim. Pelo menos era o que parecia do exterior.

 

Não é verdade, como muitos pensam, que os homens estejam total e permanentemente proibidos de entrar em todas as zonas de um edifício santificado onde habitem as Vestais. Eu próprio chegara certa vez a penetrar nos cubículos onde dormem as Virgens na Casa das Vestais de Roma, quando fui chamado a investigar o escândalo que levou aos julgamentos de Catilina e de Crasso por terem profanado a pureza de uma das Vestais. O castigo por esse crime é a morte para o homem, e um destino ainda pior para a Vestal: ser enterrada viva.

 

O incidente ocorrera há 20 anos, e as circunstâncias tinham sido muito invulgares. Porém, ao recordá-lo, ocorreu-me que Clódio também tinha estado envolvido nele. Fora uma das suas primeiras leviandades. O consenso geral acabara por estabelecer que Clódio tentara incriminar falsamente as partes acusadas por motivações obscuras, e a reacção foi de tal maneira hostil, que ele teve de desaparecer durante algum tempo. No princípio da sua carreira, Clódio decidira atacar homens poderosos e instituições respeitadas, e ocasionalmente tivera de pagar o preço da sua insolência.

 

Eu não tinha qualquer expectativa de que me fosse permitido entrar nas zonas privadas da Casa das Vestais do Monte Alba mas, se as regras da habitação fossem idênticas às de Roma, durante as horas do dia o átrio, e talvez uma ou duas salas públicas, estariam abertos a visitantes masculinos. Afinal, as Vestais não estão totalmente impedidas de contactar com o mundo dos homens, e têm de dispor de meios práticos de comunicar e lidar com os comerciantes que atendem às suas necessidades e com os sacerdotes do Estado, que vigiam as suas actividades.

 

Ainda assim, a escrava mirrada que veio abrir a porta olhou para Eco e para mim como se nunca tivesse visto um homem; pelo menos foi o que me pareceu até me aperceber de que ela semicerrava os olhos porque via mal. E também parecia ter o sentido da audição já debilitado. Dei por mim a repetir a minha solicitação de ver a Virgo Máxima num tom de voz cada vez mais forte, até que por fim surgiu atrás da escrava uma mulher entroncada trajando o vestido de lã branco e liso das Vestais, que lhe dicou suavemente que se desviasse.

 

A Vestal usava o penteado tradicional da sua ordem, um lenço oblongo contornado a roxo à volta do cabelo curto, preso na testa com um gancho de metal. O seu rosto simples e redondo não estava adornado com cosméticos, mas a sua pele tinha a suavidade das mulheres que passaram a vida dentro de casa e nunca tiveram de fazer trabalhos manuais. Calculei que já andasse pelos 60 anos, o que significava que tinha há muito completado o período original de 30 anos de serviço à deusa, e decidira voluntariamente permanecer virgem o resto da vida.

 

Queiram desculpar a escrava disse ela. É um pouco surda.

 

Eu percebi, mas parece que não teve grande dificuldade em te ouvir, embora estivesse de costas voltadas.

 

Só tem dificuldades em ouvir tons mais graves vozes masculinas. Ouve sem problemas a maior parte das mulheres que aqui vivem. Debaixo deste tecto, o seu género de surdez não é uma incapacidade. Muito bem, disseste que querias falar com a Virgo Máxima. Qual é o assunto?

 

É uma questão um tanto delicada. Preferia falar dela apenas com a Virgo Máxima.

 

Ela atirou-me um sorriso rígido, que não estava muito de acordo com a suavidade do seu rosto.

 

Receio que tenhas de me dizer mais alguma coisa. Para começar, quem são vocês e de onde vêm?

 

O meu nome é Gordiano. Este é o meu filho Eco. Também veio connosco um escravo, que está no pátio a tomar conta dos cavalos. Vimos de Roma.

 

E que foi que vos trouxe aqui?

 

Uma vez mais, preferia falar apenas com...

 

Como deves saber, Gordiano de Roma, houve recentemente bastante violência e perturbações nesta zona. Alguns homens foram mortos em pleno dia a pouca distância da nossa porta. O estalajadeiro local foi horrivelmente assassinado, a sua jovem mulher ficou viúva. E os problemas desta casa começaram muito antes da violência recente. Fomos expulsas de nossa casa, obrigadas a assistir, impotentes, à profanação de bosques sagrados não entrarei nestes assuntos, excepto para te dizer que, nos melhores tempos, as mulheres que habitam nesta casa estão habituadas a ser desconfiadas relativamente ao mundo exterior, quanto mais não seja a fim de preservarem a sua pureza. Dadas as nossas experiências recentes, temos ainda mais razões para sermos cautelosas. E devo dizer que, olhando para ti, Gordiano de Roma, não consigo imaginar que assunto poderás ter a tratar com a Virgo Máxima.

 

Não é vulgar encontrar uma mulher habituada a ditar as regras nas suas relações com os homens. Era óbvio que a Vestal não tinha qualquer intenção de me admitir à presença da Virgo Máxima sem um motivo pertinente, e igualmente óbvio que não era do género de deixar escapar inconfidências à revelia da sua superior. Como haveria eu de conquistar a sua confiança? Fora Felícia quem me mandara aqui, mas ela também me tinha proibido de invocar o seu nome. Havia outro nome que eu podia invocar e, embora não me agradasse revelar o encargo que Pompeu me tinha confiado, nem sequer dentro destas paredes, começava a parecer-me que era a única maneira. Nessa altura, a Vestal voltou a pronunciar o meu nome, num sussurro.

 

Gordiano de Roma... Franziu a testa carnuda e olhou pensativamente para o espaço. Gordiano de Roma... não é um nome vulgar.

 

Não somos assim muitos.

 

Calculo que não. E são ainda menos os que têm aproximadamente a tua idade. Olhou para mim com atenção. Foste tu que acorreste em auxílio de Licínia, há muitos anos?

 

Se estás a perguntar se fui eu que ajudei a Virgo Máxima de Roma a chegar à verdade de uma certa inconveniência, a resposta é sim.

 

Uma "certa inconveniência"? Eu chamaria à descoberta de um morto

 

no quarto de dormir de uma jovem Vestal um pouco mais do que isso.

 

Não quis ser eu a mencionar os pormenores.

 

Óptimo; és discreto. E se calhar também és modesto. Não és um homem típico.

 

Como é que sabes desse incidente? Os julgamentos de Catilina, de Crasso e das Vestais foram do conhecimento público, claro, mas a existência do cadáver não foi divulgada.

 

Mas eu sei tudo, incluindo o facto de ter sido Clódio a contratar o assassino, numa vã tentativa de implicar Catilina. Já nesses tempos o odioso patife andava a tentar arranjar-nos problemas, e conseguiu.

 

Estavas lá por essa altura? Servias a deusa em Roma?

 

Não. Sempre a servi aqui, no Templo de Vesta do Monte Alba.

 

Mas conheces os mais íntimos pormenores do que se passa na casa-mãe de Roma?

 

Na casa-mãe? Ela fez dilatar as narinas.

 

No quartel-general da vossa ordem, quero eu dizer...

 

Quartel-general? Se pretendes dizer que a Casa das Vestais de Roma é superior a esta Casa, estás muito enganado, mesmo que sejas Gordiano, chamado o Descobridor. A ordem das Virgens Vestais foi fundada aqui, no Monte Alba, em tempos muito recuados; Sílvia, a mãe de Rómulo, pertencia à irmandade local a ajudou a preservar a chama eterna do Templo de Vesta. A ordem de Roma só foi fundada muito depois, nos dias do Rei Numa, e a chama eterna do Templo de Vesta, em Roma, foi acesa a partir da chama original que está aqui no Monte Alba. Oh, sim, hoje em dia Roma tem proeminência; homens importantes deixam os seus bens em testamento à guarda das Vestais de Roma, e as Vestais de Roma têm a honra de proteger as sagradas relíquias que Eneias trouxe de Tróia. Mas nós, as do Monte Alba, somos a irmandade original. "Casa-mãe"!

 

Não pretendia ser ofensivo, Virgo Máxima. Ela olhou para mim astutamente.

 

Por que me tratas dessa maneira?

 

Porque tu és a Virgo Máxima, não és?

 

Ela inclinou a cabeça para trás e, embora fosse demasiadamente baixa para poder olhar de cima para mim, fez os possíveis.

 

Claro que sou. Sorriu debilmente. E é por isso que conheço determinados segredos da Virgo Máxima de Roma, e que honro o nome de Gordiano, o Descobridor, que ajudou secretamente a salvar a honra da irmandade, já para não falar da vida de uma jovem Vestal. Querias então falar comigo em privado? Entra, e traz o teu filho. Podemos conversar na saleta à entrada do meu quarto. A escrava porteira acompanhar-nos-á. Se eu falar num tom de voz suficientemente grave, não ouvirá uma palavra da nossa conversa.

 

O que mais me impressionou no pouco que vi do interior da Casa das Vestais naquele dia foi a notória má qualidade da construção. Ao longe, a fachada de tijolo e madeira parecia pelo menos sólida, se não muito distinta, mas todo o trabalho que fora investido no edifício fora-o no exterior, por razões de ostentação. Tanto o átrio, como o corredor pelo qual a Virgo Máxima me conduziu, como a antessala onde me concedeu uma audiência, estavam marcados por uma dolorosamente óbvia falta de cuidado por parte dos carpinteiros. As esquinas encontravam-se em ângulos estranhos, com remendos de reboco para compensar as diferenças, o chão não era direito, a massa de estuque parecia ter sido colocada com a habilidade de uma criança entediada. A Virgo Máxima seguiu a direcção do meu olhar e leu-me os pensamentos.

 

Não é nada como a nossa antiga casa. Essa era um local grandioso, cheio de recordações. Já não era a casa original onde Sílvia viveu, claro, era muito mais recente. Mas, ainda assim, era uma casa muito antiga, cheia de história. Ali tinham vivido e morrido gerações de Vestais. Era um sítio com um ambiente sagrado como só o tempo pode criar. Ah, mas como podiam as antigas irmãs que escolheram a sua localização adivinhar que um dia, muito depois de elas terem morrido, apareceria um sujeito como Clódio, que não ficaria satisfeito enquanto não metesse as suas mãos gananciosas na terra e na própria casa.

 

Ouvi falar um pouco disso aos habitantes aqui da zona disse eu.

 

Todos os habitantes do Monte Alba sabem o que Clódio fez expulsou-nos de nossa casa, derrubou matas que tinham sido consagradas a Júpiter desde o começo dos tempos. O mais vergonhoso é ver tantas pessoas daqui apoiarem-no entusiasticamente, e não são apenas os homens ricos e poderosos de Roma, que têm casas de campo ao longo da estrada, mas também alguns camponeses locais, que servem nos senados municipais. As objecções religiosas não têm qualquer significado para eles; é tudo uma questão de poder e de ganância. Clódio deu dinheiro e fez promessas às pessoas indicadas e, no final, nós nada pudemos fazer. Nem as nossas irmãs de Roma, da "casa-mãe", como lhe chamaste, puderam ajudar-nos. E também não quiseram! Quem sabe que género de influência exercem a mulher e a sogra de Clódio sobre as Vestais da cidade. Ah, mas estou a dizer mais do que devia. Fico tão irritada e envergonhada com o facto de um visitante observar a situação em que nos encontramos.

 

Foi Clódio que vos construiu esta casa, em substituição da propriedade de que se apoderou?

 

Foi, e depois de ouvir as suas palavrinhas mansas, quase cheguei a confiar nele. Não tínhamos alternativa, por isso mais valia olhar para o futuro com esperança, e tentar ser optimista. "A casa velha já não está habitável; qualquer dia cai-vos em cima", disse-me ele. "Tem imensa personalidade e encanto, é certo, mas, vista com atenção e à luz do Sol, não passa de uma casa velha e suja tem manchas no chão, buracos nas paredes, escadas velhas que rangem. Pensa como estarão mais confortáveis numa casa nova, brilhante e limpa. E tudo à minha custa, para compensar os inconvenientes que vos farei sofrer." Não referiu que ela seria construída por escravos, mais habituados a espalhar esterco com uma pá do que a aplicar argamassa, e desenhada por um arquitecto que não distingue um plinto de um pórtico. Esta casa é um desastre! E a nossa antiga casa... Suspirou. A nossa antiga casa, apesar de ser velha e bizarra, era de pedra e tinha um telhado que não deixou entrar água uma só vez, em todos os anos em que eu lá vivi. Manchados ou não, alguns dos soalhos tinham mosaicos lindíssimos, pretos e brancos, em desenhos e modelos que faziam conter a respiração calculo que, actualmente, decorem as casas de banho daquela villa enorme que ele construiu no alto da colina.

 

Ainda não percebo bem como é que ele conseguiu obter o direito legal de se apoderar da propriedade.

 

É uma coisa que remonta aos tempos em que a Via Ápia foi construída. Ápio Cláudio Ceco conseguiu reservar, para si e para a sua família, o direito a uma grande parte dos terrenos localizados ao longo da estrada. A villa de Clódio, que está situada no coração dessas propriedades, pertencia à família há gerações, desde o tempo em que a estrada foi construída. A Casa das Vestais estava a uma distância tal dessa propriedade, que ele pôde declarar uma necessidade especial quando decidiu expandir a villa, e reclamou a nossa casa, bem como uma parte dos bosques de Júpiter. Clódio era um especialista em apresentar documentos saídos do ar. Por fim, conseguiu o que pretendia, legalmente e sem recorrer à violência, e nós não pudemos fazer nada.

 

Mas os ressentimentos ficaram? Ela fulminou-me com o olhar.

 

Gordiano, não me insultes com declarações eufemísticas, que eu tentarei tratar-te com a mesma cortesia. Mas ainda não parei de falar de assuntos que são com certeza mais importantes para mim do que para ti. Perdoa-me se não vos ofereço de comer ou de beber; não seria adequado receber dois homens de maneira tão cortês. Também não nos sentaremos, evidentemente, embora a nossa acompanhante possa fazê-lo. Fez um sinal de cabeça à velha escrava, que se sentou num canto da sala, numa cadeira sem costas. Disseste que tinhas uma coisa para discutir comigo, Gordiano.

 

E tenho. Obrigado, Virgo Máxima, por me teres agraciado com...

 

Tratemos do assunto rapidamente. Quanto menos tempo permanecerem debaixo deste tecto, melhor. Estou certa de que compreendes.

 

Serei tão directo quanto puder. Soube que, pouco depois de Clódio ter sido morto em Bovilas, esta casa recebeu um visitante.

 

Ela olhou intensamente para mim, mas não respondeu.

 

Soube que esse visitante fez uma espécie de oferenda.

 

Quem te disse isso?

 

Pediram-me que não o revelasse.

 

Guardas o teu segredo, mas achas que eu devia revelar-te coisas que dizem respeito a esta casa?

 

Virgo Máxima, nunca te pediria que revelasses uma confidência. Se o que te peço é impróprio, perdoa-me.

 

Ela olhou para mim por longos momentos.

 

Tu ajudaste as Vestais de Roma, por isso vou dizer-te aquilo que queres saber. Sim, nesse dia recebemos a visita de uma mulher.

 

A que horas?

 

Mesmo ao fim da tarde. As sombras começavam a cair.

 

De quem se tratava?

 

Não posso dizer-to, não porque deseje esconder-to, mas porque não sei. O dia estava frio; ela trazia um traje com capuz que lhe ocultava o rosto e, como já disse, a luz já era pouca.

 

Mas ouviste a sua voz?

 

Ela falou numa voz baixa e rouca, que pouco mais era que um sussurro.

 

Como se quisesse ocultar a voz, da mesma maneira que ocultava o rosto?

 

Essa ideia ocorreu-me.

 

O que pretendia ela?

 

Vinha trazer-me uma notícia. Comunicou-me que tinha havido uma batalha na estrada, entre os homens de Clódio e os homens de Milo, batalha essa que terminara em Bovilas. Disse-me que Milo não ficara ferido, mas que Clódio tinha morrido.

 

Quer dizer que se limitou a trazer-te essa notícia?

 

Não, fez-me uma oferenda uma oferenda bastante generosa, e pediu-me que fizesse uma oração a Vesta em seu nome.

 

Uma oração?

 

Sim. Uma oração de acção de graças.

 

De agradecimento pelo facto de Milo ter sido poupado?

 

Não foi isso que ela disse. A Virgo Máxima baixou os olhos. Pediu-me que fizesse uma oração de acção de graças por Clódio ter morrido.

 

Não é invulgar, agradecer à deusa a morte de um homem?

 

É invulgar, mas não é totalmente inaudito. Há mortes com as quais até os deuses se alegram.

 

Aceitaste a oferenda?

 

Aceitei.

 

E fizeste a oração de acção de graças?

 

A deusa recebeu-a com o mesmo calor com que recebe as outras orações.

 

Tentei recordar-me exactamente do que Felícia me dissera. Pergunta-lhe que oferenda foi feita e recusada...

 

Disseste-me que ela tinha feito uma oferenda generosa e que tu a aceitaste.

 

Claro que aceitei. Se esta irmandade do Monte Alba fosse suficientemente abastada para poder recusar oferendas, teríamos sido nós a financiar a nossa casa nova, quando Clódio nos expulsou da antiga.

 

Mas ela ofereceu-te alguma coisa que tu tenhas recusado? A Virgo Máxima olhou-me com um ar circunspecto.

 

Se já sabes tanta coisa, por que perguntas?

 

Para descobrir aquilo que não sei.

 

Ela pensou durante uns momentos, antes de responder.

 

Sim, ofereceu-me uma coisa que eu não aceitei. Ofereceu-ma como prova de que Clódio estava morto e também como forma de pagar a oração. Tratava-se do anel de ouro de sinete de Clódio, que lhe tinha sido tirado do dedo depois de morto. Aceitei a prova. Mas o anel não era muito apropriado como forma de pagamento. Disse-lhe que a deusa ficaria mais satisfeita com umas moedas.

 

Onde está o anel?

 

É a mulher que o tem, tanto quanto sei. E agora, Gordiano, creio que chegou o momento...

 

Só mais duas perguntas, Virgo Máxima, por favor.

 

Muito bem. Qual é a primeira?

 

A mulher de Milo, Fausta Cornélia, reconhecê-la-ias de vista, ou pela voz?

 

Ela sorriu a uma pergunta tão óbvia.

 

Talvez sim, talvez não. Tenho conhecido diversas mulheres de senadores e de magistrados. Se me pedisses que a reconhecesse no meio de uma multidão, não seria capaz, mas descontio que havia de parecer-me familiar. Se a reconheceria com um capuz na cabeça, e se ela falasse num sussurro? Quase de certeza que não. E qual era a última pergunta, Gordiano?

 

Podes dizer-me alguma coisa de interesse sobre Marco António? Ela riu-se.

 

Uma pergunta muito transparente e outra muito peculiar. Passámos a um assunto completamente diferente, Gordiano?

 

Tenho as minhas razões.

 

Ela abanou a cabeça.

 

Marco António? O filho daquele António que não conseguiu expulsar os piratas?

 

Sim.

 

Anda a combater na Gália, não anda? Na verdade, nada sei sobre esse jovem.

 

Aparentemente, ninguém sabe. Virgo Máxima, agradeço-te a tua benevolência.

 

Ela olhou para mim com simpatia.

 

As pessoas devem recordar-se do passado e dos favores passados.

 

Pois devem; e suspeito de que o fariam com maior frequência se passassem menos tempo preocupadas com o futuro.

 

Uma mulher misteriosa! disse Eco quando nos afastávamos a cavalo.

 

A Virgo Máxima?

 

Não, papá! A mulher que veio ter com ela, trazendo-lhe o anel de Clódio.

 

Não me parece assim muito misteriosa.

 

Achas que se tratava de Fausta Cornélia?

 

Quem mais poderia ser? Parece-me um tanto ordinário por parte de Clódio, mandar a mulher ao estabelecimento religioso mais próximo gabar-se do que tinha feito. A não ser que a ideia tenha sido de Fausta, o que me parece mais provável. As mulheres da sua condição social têm noções estranhas quanto à forma de marcar o carácter auspicioso de determinadas ocasiões. É provável que ela fosse sincera na sua gratidão a Vesta por ter cuidado da sua família, e aproveitou para um certo regozijo blasfemo.

 

Mas por que escondeu a sua identidade? Aparentemente, não costuma preocupar-se em esconder outras coisas.

 

Estás a referir-te aos casos que mantém?

 

Já o disse: a mulher tem tendência para ser apanhada. Não é do género discreto por natureza.

 

Talvez tenha ocultado a sua identidade para não revelar o papel desempenhado pelo marido no incidente.

 

Achas credível? No dia seguinte, o mundo inteiro falaria da participação de Milo no que aconteceu.

 

Ah, mas isto foi logo a seguir à batalha, Eco. As coisas ainda deviam parecer muito no ar. Tinha acontecido uma coisa terrível, devastadora, mas também maravilhosa. Clódio estava finalmente morto! O que era motivo de júbilo mas também de receios. Como reagirá o mundo? Haverá um castigo terrível? Será possível ocultar o crime? É aconselhável manter a discrição, mas terá de haver um acto de piedosa gratidão por uma coisa tão extraordinária. Por isso, enquanto o marido reorganiza o grupo, Fausta escapa-se para a Casa das Vestais. Regozija-se com a morte de Clódio mas disfarçada. Qual é o mistério?

 

Talvez tenhas razão, papá...

 

Só pergunto a mim próprio o que terá afinal acontecido ao anel de Clódio. O mais razoável seria devolverem-no à viúva por correio anónimo. Imagino-o em cima de uma prateleira, no meio dos antigos prémios de luta de Milo, onde ele poderá pegar-lhe para o acariciar e se alegrar sempre que tenha bebido uma gota a mais.

 

A posse do anel seria uma prova altamente incriminatória.

 

Como o seria a história da Virgo Máxima, se ela pudesse dizer que foi Fausta quem veio falar com ela. Mas o anel desapareceu, e tudo o que a Virgo Máxima sabe dizer-nos com segurança é que uma mulher desconhecida foi à Casa das Vestais, uma mulher misteriosa, como tu disseste. Acho que Fausta Cornélia deve ser mais esperta do que o marido.

 

Pensava que já tínhamos chegado a essa conclusão. Ela continua a enganá-lo, uma vez e outra.

 

Ou pelo menos a fazer dele tolo. E cá estamos nós outra vez ao pé do santuário da Boa Deusa. Não vejo Felícia por aqui, e tu? Talvez tenha aceite o meu conselho e já tenha partido para Sul.

 

O mais provável é que tenha ido para casa. O Sol está a baixar, papá. O que fazemos em seguida?

 

Tinha esperanças de ainda ir hoje à villa de Clódio, mas provavelmente não teremos tempo.

 

Acho que já fizemos bastante para um só dia, papá.

 

Descobrimos mais coisas do que eu estava à espera. Sim, acho que é altura de irmos descansar para a villa de Pompeu.

 

Não foi difícil encontrar o caminho para casa de Pompeu. Um par de pilones de pedra, com a letra M (de Marco) gravada, marcava a saída da estrada. Uma vereda comprida e sinuosa ia dar ao topo da cumeeira. Não era pavimentada, mas estava em excelente estado, e ficava à sombra de um dossel de carvalhos gigantes. Aqui e ali, estátuas de animais do bosque decoravam o percurso, ou podiam ser vislumbradas em campo aberto. Tive a sensação, não tanto de entrar nos bosques, como de atravessar um parque.

 

A villa propriamente dita era um edifício comprido, de dois andares, que se estendia ao longo da cumeeira, e cujas telhas vermelhas a tornavam visível de uma grande distância, por entre a paisagem de Inverno, ocre e verde-acinzentado e pedregoso. Quando entrámos no pátio, acorreu quase imediatamente um escravo, que nos ajudou a desmontar e nos levou os cavalos. Outro escravo deve ter ido alertar o encarregado porque, ainda o cavalo de Davo não tinha desaparecido no interior do estábulo, e já se abria a porta da entrada principal, de onde saiu um homem alto de ar robusto, com o cabelo grisalho e uma expressão de autoridade, que veio receber-nos. Quando eu lhe entreguei a carta de apresentação que Pompeu me tinha dado, o homem quase nem olhou para ela.

 

Sim, temos estado à vossa espera disse.

 

Como é que isso pode ser?

 

O senhor tinha mandado um mensageiro há uns dias, dizendo que vocês deviam chegar.

 

Mas nós só estivemos com o teu senhor ontem à noite. O homem olhou-me de esguelha.

 

O senhor costuma saber o que as pessoas farão antes de elas próprias saberem.

 

O teu senhor estava muito certo da minha cooperação.

 

Calculo que sim disse o encarregado, com uma expressão que dizia: e por que não? São os teus companheiros?

 

O meu filho e o meu guarda-costas.

 

Mais ninguém? São só vocês? Ele olhou para a estrada.

 

Prefiro viajar discretamente.

 

A quantidade produz segurança.

 

Nem sempre disse eu, pensando em Clódio.

 

Bem, eu preparei a villa para um grupo numeroso suspirou o encarregado, evidentemente desiludido com o facto de a capacidade de previsão do seu senhor ter falhado nos pormenores. Bateu as palmas. Muito bem, assim a vossa estadia será mais confortável. Poderão dormir num quarto diferente todas as noites e comer várias refeições por dia. A ideia parece agradar a este. Ergueu uma sobrancelha na direcção de Davo, que lhe respondeu com um sorriso retorcido, levando a mão às costas para massajar o traseiro dorido da sela.

 

Na cidade, Pompeu era conhecido pela sua ausência de ostentação, como um homem que não se preocupava com os berrantes ornamentos da riqueza, mas a sua villa do Monte Alba nada tinha de espartano. Talvez mantivesse um estilo severo e sóbrio na cidade, como fazem muitos políticos, mas se permitisse um rosto mais festivo e amante do prazer no isolamento do campo. Ou talvez os luxos instalados nesta casa se destinassem apenas aos visitantes, como eu. Muitos ricos têm nas suas villas de província, não tanto lugares de descanso, mas acomodações para alojamento e entretenimento de outros.

 

Os compartimentos dos banhos da nossa ala eram iluminados por clarabóias e uma fila de pequenas janelas abertas ao nível dos olhos, através das quais se avistava a espaços o mar do lusco-fusco, no horizonte distante; tínhamos subido suficientemente a montanha para conseguirmos divisar a costa. As paredes e o chão estavam decorados com azulejos de padrões ornamentais, cujos subtis verdes-musgo e azuis-acinzentados repetiam as cores do mar distante, já a escurecer. As três piscinas estavam à temperatura ideal para os banhos frio, morno e quente; passei pelas três por diversas vezes, sentindo o meu corpo cansado da sela cada vez mais descontraído. Quando a luz natural começou a faltar, os servos entraram com lamparinas; o reflexo das suas chamas cor de laranja dançava nas águas. Um escravo velho, mirrado e sem dentes, com umas mãos espantosamente fortes, fez-nos as massagens. Eu insisti em que Davo também recebesse uma massagem completa, considerando que provavelmente se sentiria ainda pior do que eu no dia seguinte. Até as toalhas que nos deram eram invulgarmente espessas e luxuosas. O dia não podia ter tido um final mais doce.

 

O jantar foi-nos servido num compartimento aquecido junto dos banhos, onde as mesmas fornalhas que aqueciam a água também aqueciam os canos que corriam por baixo do chão. A qualidade e variedade da refeição eram dignas de nota, com especial relevo para um prato de pequenas tartes recheadas de caça e cebolas.

 

Os nossos quartos estavam localizados por cima dos banhos, outra maneira inteligente de aproveitar o calor gerado pelas fornalhas e pelo vapor. O mobiliário era quase todo de estilo e produção oriental; as cadeiras pintadas a ouro com almofadas vermelhas decoradas com borlas eram um pouco elaboradas para os meus gostos simples, como o eram os pendentes com padrões exuberantes que tapavam as passagens. Pompeu passara muitos anos no Oriente, e tinha aparentemente desenvolvido o gosto pelos estilos floridos e o trabalho delicado que se encontram nessas terras que ele conquistara ou pacificara, e de onde trouxera este saque.

 

A cama era uma coisa magnífica, de uma madeira escura e exótica, juncada de almofadas macias de seda e mantas de lã suave, e coberta com um dossel transparente. Betesda tê-la-ia considerado demasiado elegante para conseguir dormir nela. Diana teria adorado. Embora eu tivesse planeado manter-me acordado durante algum tempo, para discutir com Eco tudo aquilo que tínhamos ficado a saber durante o dia, e tencionasse apenas experimentar a cama, para ver se era mole ou dura, devo ter adormecido logo que poisei a cabeça numa almofada e fechei os olhos. Quando voltei a abri-los, o quarto estava iluminado com a luz fria da manhã.

 

Levantei-me, afundando os dedos dos pés no tapete de lã, espreguicei-me, sorri ao perceber que, surpreendentemente, não tinha as nádegas nem as pernas doridas, bebi de um jarro cheio de água fresca, aliviei-me no recipiente colocado ao lado da cama, vesti a capa e calcei os sapatos e finalmente aproximei-me da luz. Ela entrava por entre as portadas, que tapavam uma ampla passagem recortada na parte sul do quarto. Abri-as, avancei para a espaçosa varanda e ali fiquei, olhando atónito para a paisagem. De todos os luxos existentes na villa de Pompeu este era, com toda a certeza, o mais invulgar e o que proporcionava o deleite mais duradouro.

 

Para oeste, via-se a encosta arborizada que se sobrepunha à Via Ápia, e detectavam-se, a espaços, extensões da larga tira de estrada, mais abaixo. Para além da estrada, ficavam as

faldas da colina, onde ainda se avistavam farrapos de nevoeiro presos aos topos das árvores, e, para além das faldas, uma vasta extensão de planícies verdes e terras de cultivo prolongava-se até ao longínquo mar verde-azulado. Acima de tudo aquilo, ficava a taça azul-escura do céu sem nuvens. Se o dia continuasse limpo, assistir ao pôr de Sol deste ponto seria extraordinário.

 

Voltei-me e avancei para o lado oposto da varanda, com a luz da manhã no rosto, e baixei os olhos para um lago rodeado de árvores e oculto do mundo inferior. A sua plácida superfície, lisa como prata polida, reflectia o cone arborizado do Monte Alba. O Sol acabava de nascer atrás da montanha e, por momentos, parecia equilibrar-se no seu ponto mais alto.

 

Que vista! disse Eco, juntando-se a mim na varanda. Eu tive um sobressalto, e ele riu-se. Acalma-te, papá! Se não estivéssemos em segurança nesta casa, não estávamos em mais lado nenhum. Que vista repetiu, voltando a cabeça de um lado para o outro para poder abarcá-la por completo. Pompeu parece ter tendência para casas com vista, como Fausta Cornélia tem tendência para ser apanhada...

 

Eu prossegui com o mesmo tema.

 

Como Clódio tinha tendência para arranjar problemas e aumentar as suas propriedades...

 

E, muitas vezes, as duas coisas simultaneamente.

 

E como Milo tem tendência para ascender socialmente continuei, e Cícero, para ganhar casos impossíveis. Cada homem age de acordo com a sua natureza e avança pelo seu caminho próprio em direcção ao seu destino.

 

E qual é a tua tendência, papá?

 

É para tentar perceber as outras pessoas! Nem sempre é compensadora, ou agradável.

 

Eco suspirou.

 

Era difícil as coisas serem mais agradáveis do que isto.

- Sim, os homens do género de Pompeu sabem viver.

 

Eu acho que me habituava.

 

É melhor não, Eco. Vamos sair daqui o mais depressa possível. Não tens saudades de Menénia e de Tito e Titânia?

 

Ele mostrou-se tristonho.

 

Menénia nunca me serviu uma refeição como a que o cozinheiro preparou a noite passada. Nem me deu uma massagem como a daquele velho criado coberto de rugas!

 

Os homens do género de Pompeu têm sempre os melhores escravos.

 

Por falar nisso, papá, tive de arrancar Davo da cama antes de vir ter contigo. Está praticamente paralisado.

 

Quantos mais músculos um homem tem, mais lhe doem.

 

Isso é da autoria de algum Etrusco velho e sábio?

 

Duvido de que tenha havido algum Etrusco que não soubesse andar a cavalo. Mas Davo é jovem e flexível. Trataremos de que ele volte a receber mais uma boa dose hoje, para lhe passar a rigidez.

 

Papá, tu nunca foste do género de torturar os escravos.

 

Toma-o como uma vingança da velhice sobre a juventude. Mas são horas de partirmos. Primeiro, vamos comer. Que tal irmos ver o que nos preparou o cozinheiro esta manhã, para tu deixares de ter saudades de Menénia?

 

Os nossos estômagos foram reconfortados com pão acabado de cozer e coberto de sementes de sésamo, uma papa de aveia e mel e uma compota aquecida de maçãs condimentadas. Davo comeu connosco. Embora o simples acto de caminhar e de se sentar parecesse colocá-lo num estado de agonia (que ele manifestava por meio de gemidos e caretas), isso em nada lhe diminuiu o apetite. Consumiu tanto como Eco e eu juntos.

 

Eu tencionava montar a cavalo e dirigir-me de novo à Via Ápia mas, quando o encarregado descobriu onde tencionávamos ir, sugeriu-nos que fôssemos antes a pé. Aparentemente, havia uma vereda antiga que atravessava a cumeeira e nos levaria directamente à villa de Clódio.

 

É consideravelmente mais perto explicou-nos e, claro, é mais discreta do que a estrada. Além disso, hoje está bastante mais quente, porque há Sol, e o percurso é muito agradável. Vão passar pelo bosque.

 

O bosque?

 

O bosque sagrado, dedicado a Júpiter... ou o que resta dele.

 

Sim, acho que gostava de o ver. Vamos, Eco. Bem, Davo, parece que te vai ser poupada a agonia de voltares a montar a cavalo, pelo menos para já.

 

O sorriso de gratidão que se espalhou no seu rosto transformou-se numa careta quando ele se pôs de pé.

 

Tal como nos prometera o capataz de Pompeu, o percurso proporcionava umas vistas esplêndidas, especialmente num dia em que não se via uma única nuvem no céu e a visibilidade era ilimitada. Por cima de nós, erguia-se o pico da montanha, e em baixo a planície brilhava, ambos igualmente distantes. O lago escondido nada revelava de si próprio, mas apenas um reflexo perfeito do céu. O mar ficava demasiadamente longe para podermos ouvi-lo, sequer num murmúrio. Ao passarmos para a sua sombra, o bosque taciturno bloqueou por completo a nossa visão do resto do mundo, à excepção de vislumbres passageiros de luz do Sol.

 

Dei por mim encantado com os seixos sarapintados de sombras espalhados ao longo do caminho, o estalar das últimas folhas de Outono por baixo dos nossos pés, o dossel de galhos retorcidos acima de nós. Sempre me deliciei com a beleza do campo, embora a minha única tentativa de habitar nele, na minha quinta da Etrúria, tenha sido um fracasso completo. Esse capítulo da minha vida, tal como muitos dos que participaram nele, pertencia agora a um passado morto.

 

O caminho continuava a descer, e levou-nos até um lugar aberto e às fundações de uma casa. Por entre os detritos de pedras e madeira velha, detectava-se o contorno dos diversos compartimentos. Pouco ou nada restava dos elementos decorativos, à excepção de alguns fragmentos de mosaicos do chão que tinham sido danificados ao serem retirados, e por isso abandonados. Também se via uma estátua de mármore de contornos femininos, sem cabeça e tombada no chão em fragmentos. Recordei-me, com um calafrio, da Minerva de bronze caída no meu jardim. Desconfiei de que esta deusa tinha sido atirada ao chão por trabalhadores descuidados, e não tanto por saqueadores enfurecidos, embora o homem a quem trabalhadores e saqueadores deviam a sua lealdade fosse quase de certeza o mesmo. Tanto em vida como na morte, Clódio deixara atrás de si um rasto de destruição.

 

Demorei-me a vaguear pelas ruínas, reconstruindo os contornos das paredes e dos cubículos onde nunca me teria sido permitido entrar quando a casa estava de pé, tentando imaginar os sons, os cheiros e as sombras daquele local. A Virgo Máxima chorara o seu encanto rústico, desaparecido para sempre. Senti a sua presença naquele local, o seu humor um pouco rígido e a sua amargura franca, bem mais do que a presença da deusa, que tinha seguramente abandonado o lugar profanado, tão certo como faltar a cabeça à sua estátua partida.

 

Mais para cima, avistei por entre as árvores as colunas brancas e o telhado redondo do templo circular de Vesta o templo original, como acentuara firmemente a Virgo Máxima. Mesmo à luz do dia e àquela distância, era possível distinguir a chama que ardia eternamente no seu interior pelo brilho pálido que emitia para as suaves curvas interiores das colunas que a rodeavam. O templo estava incólume e as terras que o cercavam não tinham sido tocadas. Nem Clódio era tão ímpio, que perturbasse a chama sagrada.

 

Regressámos à vereda e seguimos caminho.

 

As características do bosque começaram a alterar-se de forma subtil. Até o meu filho, que era muito pouco religioso, se apercebeu disso, e mencionou o facto antes de mim. É possível que, como Eco sugeriu, sendo abatidas e voltando a crescer ao longo de várias gerações, as árvores que se desenvolvem no exterior de um bosque sagrado tenham características um tanto diferentes das que crescem no interior de um recinto sagrado, que nunca foram derrubadas por mão de mortal, nem afectadas pelas chamas, à excepção do fogo enviado dos céus pelo próprio Júpiter. Estes bosques sagrados são diferentes em muitos pormenores a distância entre as árvores e a qualidade da luz que perpassa por elas, as suas idades relativas, o género e a qualidade da folhagem que tomba aos seus pés. Seja como for, passado algum tempo, tornou-se claro para todos nós, incluindo Davo, o rapaz da cidade, que tínhamos penetrado num sítio que era especial para o deus.

 

Por isso, a súbita devastação com que deparámos no próprio coração deste bosque foi ainda mais chocante. Contornámos uma curva da vereda, curvámo-nos sob um ramo baixo e demos por nós numa clareira onde apenas restavam cepos. Não se tratava de uma clareira pequena, mas de toda uma encosta, que tinha sido desnudada como se um rapace devorador de árvores se tivesse empanturrado neste sítio. Devia ser disto que falava o sacerdote Félix disse eu.

 

"Mandou-as cortar às dezenas", disse ele. Mas a mim parece-me ainda pior. Eco abanou a cabeça. Que género de madeireiro infligiria tal cicatriz a um bosque sagrado?

 

Que género de trabalhadores derrubariam descuidadamente uma estátua de Vesta, deixando-a em pedaços no mesmo sítio onde tinha caído? Clódio era famoso por recrutar muitos dos seus trabalhadores livres entre a ralé faminta de Roma. Calculo que não fossem assim muito competentes, mas eram leais.

 

E também não eram muito piedosos, pela forma como profanaram estes locais sagrados.

 

Ah, mas estes locais já tinham deixado de ser sagrados quando Clódio tomou conta deles. Tenho a certeza de que ele se preocupou com todas as formalidades legais para dessantificar a Casa das Vestais e esta secção do bosque, antes de os pilhar.

 

Papá, um local é sagrado ou não é sagrado.

 

Não pude deixar de sorrir perante a súbita paixão do meu filho pelas coisas sagradas.

 

Eco, sabes bem que não é assim. O facto de um local ser ou não sagrado depende da apreciação das autoridades competentes. É certo que algumas dessas autoridades são sensíveis aos sinais misteriosos dos deuses, e profundamente piedosas. Mas há outras que não serão tão piedosas, e que têm mais tendência para ver auspícios no brilho de uma moeda do que num relâmpago. É esse o estilo romano, Eco, ou pelo menos tem sido durante toda a minha vida, e tenho a impressão de que essa é uma das razões por que tantos homens da tua geração tendem a possuir um sentimento religioso tão reduzido. Continuámos a andar enquanto conversávamos, porque eu não tinha qualquer desejo de parar para contemplar a devastação.

 

Finalmente, atingimos a extremidade da clareira. A vereda prosseguia por um denso maciço de árvores, onde por breves momentos a natureza sagrada do bosque pareceu reafirmar-se entre a quietude das sombras. Mas tínhamos chegado à orla da floresta e, depois de darmos mais uns passos, estávamos novamente ao sol. A faixa de bosque por onde acabávamos de passar era apenas uma espécie de biombo, destinado a esconder a encosta devastada. Chegáramos à villa albana de Clódio, o destino da madeira de todas aquelas árvores derrubadas.

 

Tal como a sua casa da cidade, a villa de Clódio tinha um aspecto inacabado em alguns pontos, o trabalho de decoração da pedra só estava parcialmente concluído, havia andaimes encostados a diversas secções da fachada, e a paisagem era interrompida, aqui e ali, por pilhas de pedra partida e montes de tijolos e de madeira. Mas a villa fora construída a uma escala tão maciça, que já era impressionante, mesmo neste estado semiacabado. O bosque de Júpiter impressionava de certa maneira um homem; mas um edifício como este era impressionante por direito próprio.

 

A encosta onde estava situado era tão inclinada, que me teria parecido desadequada a receber construções. Clódio apresentara ao arquitecto Ciro um local de trabalho difícil, e Ciro propusera-lhe um edifício ousadamente inovador. Era óbvio que a estrutura estava fixada na terra por meio de uma espécie de estacas, mas esses suportes tinham ficado ocultos por trás de paredes sólidas. Vista do lado, a villa parecia estar precariamente empoleirada na encosta da colina. Do lado da falda, uma comprida galeria coberta abarcava todo o comprimento do andar superior. A vista para o mar que ela proporcionava devia rivalizar com a da villa de Pompeu. Não era certamente por coincidência que não havia janelas ou outros meios de ingresso nos andares inferiores, o que tornava o edifício praticamente inexpugnável a quem se aproximasse dele pelo lado de baixo. A comprida galeria não só proporcionaria uma vista espectacular, como também podia ser utilizada para defender a casa contra possíveis atacantes, como se fosse o parapeito de uma fortaleza.

 

A entrada na villa estava localizada do lado oposto do andar superior, que era a única parte do edifício que era visível do lado oriental. Uma grande massa de terra tinha sido retirada da encosta da colina, para abrir um pátio nivelado diante da entrada. Havia materiais destinados à construção de um muro empilhados à volta do perímetro do pátio, mas o muro ainda não tinha sido erigido. Clódio e o seu arquitecto deviam ter-se apercebido da natureza vulnerável da entrada na villa, e teriam pensado na melhor forma de resolver essa dificuldade. Já nenhum deles completaria o trabalho.

 

Chegámos à entrada, uma porta dupla feita de carvalho compacto, ornamentada e escurecida pela acção do tempo. Perguntei a mim próprio se teria vindo da Casa das Vestais. Bati nela polidamente com o pé. Não ouvindo resposta, voltei a bater.

 

Pergunto a mim mesmo que género de recepção devemos esperar disse Eco, lançando um olhar desconfiado ao estábulo próximo e ao pátio silencioso. Não se via vivalma, nem pessoas nem animais. Onde anda toda a gente?

 

Fúlvia disse-me que tinha encerrado a villa.

 

Quer dizer que não está cá ninguém?

 

Uma casa deste tamanho não pode ter sido completamente abandonada; tem de haver algum pessoal na residência. Não, presumi que ela quisesse dizer que tinha cancelado a construção, encerrado a cozinha e fechado a zona das visitas. Tenho a certeza de que vamos encontrar alguém.

 

Mal acabara de falar, quando a porta do estábulo se abriu e saiu lá de dentro um rapaz, carregando um cesto com as duas mãos. Viu-nos, soltou um grito, e recuou a correr para dentro do estábulo, largando a carga. O cesto voltou-se ao contrário, derramando o seu conteúdo. Tentei perceber se era milho-miúdo ou aveia...

 

Depois, uma vespa gigante passou-me ao lado da cabeça. Pelo menos foi o que me pareceu, por um breve e paralisador instante: um repentino zumbido maligno diante da minha cara, tão perto que a deslocação de ar provocada pela sua passagem me fez cócegas no nariz e me deixou nos ouvidos um som intenso. Depois, senti um baque de colisão e a música da madeira a vibrar, e vi na minha frente uma lança arrepiante, espetada na porta.

 

Não sei o que me surpreendeu mais se a lança atirada de um ponto desconhecido que só por pouco me não atingiu no nariz, se a espantosa rapidez com que Davo reagiu.

 

Por muito rígido de músculos e lento de espírito que parecesse, Davo tinha reflexos de um perdigueiro. Ainda eu não tinha tido tempo de pestanejar, já ele estava do outro lado do pátio, a trepar a uma pilha de tijolos. Até Eco, que era rápido e ágil como eu fora na minha juventude, ficou a olhar para ele como um corredor aturdido que perde o sinal de partida.

 

Davo chegou ao cimo da pilha de tijolos e projectou-se no espaço de braços abertos. Instantes depois, ouviram-se os ruídos de dois corpos colidindo um com o outro, e uma exalação aguda, que se transformou num ganido de dor. Depois Davo gritou:

 

Senhor! Vem depressa, não consigo segurá-lo!

 

Eco atravessou o pátio a correr. Eu segui-o. Ele contornou a pilha de tijolos por um lado e eu pelo outro. Ouvi mais um choque, um resmungo, um esguicho de cascalho a voar. Cheguei junto de Davo, que estava do outro lado da pilha, a pôr-se de pé. Fomos ter com Eco, que estava agarrado à barriga, incapaz de respirar. Deitado de costas diante de Eco, de pálpebras vacilantes, estava um rapaz que não podia ter mais de dez anos.

 

Eu não lhe toquei disse Eco, recuperando o fôlego. Ele veio a correr em direcção a mim e quase me deitou ao chão. Caiu para trás e deve ter batido com a cabeça...

 

O rapaz estava tonto, mas não estava gravemente ferido. Foi voltando gradualmente a si, e teve um sobressalto quando nos viu aos três debruçados sobre ele. A sua primeira reacção foi uma tentativa para se levantar, gorada pelo facto de Davo ter um pé assente em cada uma das mangas da sua túnica, prendendo-o ao chão.

 

Não vale a pena esforçares-te, jovem disse Eco. Parece-me que não vais a lado nenhum.

 

O rapaz esticou o queixo e semicerrou os olhos, mas não era difícil perceber o que estava por trás daquela máscara de desafio. Tremia-lhe o queixo e os seus olhos passavam constantemente de um de nós para outro.

 

Não temos qualquer vontade de te fazer mal disse eu, num tom mais amável do que aquele que Eco utilizara. Como te chamas?

 

O rapaz estreitou os olhos para mim. Do ponto de vista dele, que estava deitado no chão, nós devíamos parecer gigantes, especialmente Davo. Era óbvio que estreitava os olhos para se mostrar, era outra maneira de disfarçar o medo; uma pessoa que atirava uma lança com aquela precisão tinha de ver muito bem.

 

Chamo-me Mopso disse por fim. A voz tremia-lhe.

 

E o teu amigo? O rapaz que está no estábulo, aquele que gritou quando nos viu. Foi por isso que atiraste a lança, não foi, porque ele gritou e tu pensaste que ele corria perigo?

 

O rapaz começou a mostrar-se um pouco mais calmo.

 

É o meu irmão mais novo, Androcles.

 

Ah, é o teu irmão. Não é de espantar que estivesses preocupado com ele. Olhei na direcção do estábulo. A porta, que estava quase fechada, moveu-se ligeiramente. Neste momento, Androcles deve estar bastante preocupado contigo. Mas não é necessário. Como te disse, não temos qualquer vontade de fazer mal a nenhum de vocês.

 

Nesse caso, o que estão aqui a fazer? A sua voz rude transformou-se num guincho. Davo riu-se. O rapaz ficou vermelho de raiva. Agitou-se impotentemente no chão, o que fez com que Davo voltasse a rir-se.

 

Diz a este elefante que me largue! A irritação acabou por substituir o medo, emprestando uma surpreendente autoridade à sua voz.

 

Certamente, logo que tu respondas a uma ou duas perguntas. Por que razão não vieram abrir a porta? Onde está toda a gente?

 

O rapaz contorceu-se e meneou-se, tentando libertar-se. Mas não tinha qualquer hipótese de escapar da túnica de mangas compridas enquanto Davo estivesse a pisar-lhe as mangas. E também não conseguia atingi-lo com os pés.

 

Receio que estejas mesmo preso disse eu.

 

Podíamos amarrá-lo, papá. E talvez acender uma fogueira por baixo dele, assá-lo como a um porco...

 

Eco, não brinques! Ele é capaz de te levar a sério. Qualquer coisa me diz que o nosso jovem amigo viu fazer coisas terríveis a homens incapazes de se defenderem. É por isso que tem medo de nós. Não tenho razão, Mopso?

 

O rapaz não respondeu, mas a sua expressão respondeu por ele.

 

Eu chamo-me Gordiano. Este é o meu filho Eco. E aquele elefante, como tu lhe chamaste, é Davo, o meu guarda-costas. Vimos a esta casa em paz, só os três. Não fizemos nada ao teu irmão. Ele viu-nos da porta do estábulo, gritou e voltou para dentro a correr.

 

Mopso contorceu-se, num paroxismo de irritação.

 

Androcles é um estúpido! Chora por tudo e por nada, tem medo da própria sombra.

 

Não tenho nada! guinchou uma voz da fresta da porta do estábulo.

 

Androcles, seu idiota! Sai daí! Vai até ao moinho! Acorda-os, diz-lhes... Mopso mordeu a língua.

 

Davo e Eco olharam para mim. Eu poisei um dedo nos lábios. Contornei a pilha de tijolos, voltando por onde tinha ido, e aproximei-me da porta do estábulo de uma direcção que não podia ser detectada da fresta. Abri a porta com um safanão, estendi o braço e apoiei a mão, com suavidade e firmeza, no ombro de um rapaz, que ergueu para mim uns olhos que pareciam luas.

 

Não tenhas medo, Androcles. Tu não choras por tudo e por nada, como diz o teu irmão, pois não?

 

O miúdo olhou solenemente para mim e abanou a cabeça.

 

Bem me parecia. Anda, dá-me a mão. Óptimo. Agora vamos pôr algum juízo na cabeça do tolo do teu irmão mais velho.

 

Mopso contorceu-se de irritação.

 

Androcles, seu idiota! Deixaste-te capturar.

 

Androcles ergueu os olhos para mim, solenemente, e depois fez o mesmo com Eco e Davo.

 

Acho que estes não têm problema, Mopso. Não são maus, como os outros.

 

Provavelmente foram os outros que os mandaram, seu estúpido, para nos armarem uma emboscada e darem cabo de nós! Mopso voltou a guinchar, perdendo novamente o controlo da voz. Davo riu-se.

 

O elefante é engraçado. Androcles ergueu para Davo uns olhos cheios de respeito e temor.

 

Quando eles nos esfolarem vivos, como fizeram a Halicor, já não vais achar tão engraçado! disse Mopso.

 

Androcles encolheu-se ao pensar naquilo, mas eu apertei-lhe a mão e ele pareceu mais descansado.

 

Halicor era o tutor do jovem Públio Clódio, não era? perguntei eu.

 

Como é que tu podias saber isso, se não tivessem sido eles a manipular-te? Mopso quase cuspia as palavras. A presença do irmão dava-lhe coragem para continuar a fingir-se forte.

 

Eles são os homens que mataram Halicor?

 

Quem havia de ser? Os homens de Milo! Talvez tenha sido o próprio Milo a mandar-te...

 

Não foi! A firmeza da minha voz calou-o. Olha para mim, Mopso, e tu também Androcles, juro-vos pela sombra do meu pai que não foi Milo que me enviou e que não estou aqui em seu nome.

 

Então quem foi que te mandou? perguntou Mopso cautelosamente.

 

Na véspera de sair de Roma, tive uma grande conversa com a vossa senhora. Fúlvia encarregou-me de determinado trabalho. Afinal, aquilo era verdade, embora não fosse toda a verdade. Não vi necessidade de complicar as coisas mencionando o Grande.

 

Mopso amaciou um pouco.

 

Foi a senhora que te mandou cá?

 

Fúlvia pediu-me que investigasse determinado aspecto da morte do vosso senhor. Chamam-me Descobridor. Tenho alguma experiência dessas coisas.

 

Talvez ele descubra os homens que mataram Halicor! sugeriu Androcles, olhando para o irmão com os olhos muito abertos.

 

Não sejas ridículo, choramingas, nós sabemos quem o matou. Assistimos a tudo.

 

Assistiram mesmo? A vossa senhora não me disse isso, só referiu que Halicor tinha sido morto, ele e o encarregado e mais dois escravos. Não me disse que havia testemunhas.

 

É que ninguém sabe que nós assistimos disse Mopso.

 

Agora já sabem! O pequeno Androcles pôs as mãos nas ancas e olhou acusadoramente para o irmão mais velho, como se perguntasse qual dos dois era afinal o estúpido choramingas.

 

Quero que me contem tudo disse eu, mas primeiro vais-me dizer o que era isso de Androcles ir ao moinho acordar os outros. Quem são os outros?

 

Mopso ergueu os olhos para mim, mordendo os lábios, e pensando se devia ou não colaborar. Eu quase podia ver o fio dos seus pensamentos. O irmão mais novo não parecia correr perigo, e ninguém os tinha propriamente ameaçado; os seus captores tinham declarado não ter qualquer lealdade para com Milo, e tinham mesmo invocado o nome da sua senhora que, para um rapaz como ele, devia ser uma pessoa tão remota e exótica como uma deusa do Olimpo. E talvez começasse a ficar cansado de estar preso ao chão, o que devia ser um factor ainda mais importante.

 

Deixa-me levantar, que eu digo-te propôs.

 

E não desatas a fugir? É que, se fugires, Davo corre atrás de ti eu não consigo impedi-lo, ele é como um cão sem trela e, quando te apanhar, nunca mais pára de rir.

 

Androcles tapou a boca e deu uma gargalhadinha. Mopso ficou muito vermelho.

 

Não fujo. Mas manda o elefante sair de cima de mim.

 

Davo, recua.

 

Davo assim fez, mas permaneceu em posição de correr atrás do rapaz, as pernas compridas e musculadas prontas a disparar. Parecia um daqueles magníficos gatos gigantes que se costumam ver nas arenas, nos espectáculos de animais exóticos, à excepção do sorriso, porque esses animais nunca sorriem. Onde estava a rigidez que de manhã o impedia de se mover com agilidade? Ah, voltar a ser novo como ele, invulnerável como Aquiles.

 

Mopso pôs-se de pé e sacudiu o pó de cima de si. Lançou um olhar amargo na direcção de Davo, que teve o bom senso de parar de rir.

 

O que estavas a dizer?

 

Estava a falar dos outros a que te referiste os que estão no moinho...

 

Provavelmente a dormir. Como é costume a esta hora da manhã, depois de terem bebido na noite anterior, como têm feito desde que assaltaram a casinha onde o senhor guardava o vinho.

 

Mopso! O rapazinho mais novo olhou para ele de sobrolho franzido, abanando a cabeça.

 

O que é que me interessa? É verdade. Eles deviam estar a guardar a casa enquanto nós tomamos conta do estábulo. Mas tinham de arranjar problemas.

 

Quer dizer que não está absolutamente ninguém dentro da casa? perguntei eu.

 

Não. Está tudo fechado. Depois do que aconteceu, a senhora chamou todos os escravos para Roma, à excepção dos homens que ficaram a guardar o edifício.

 

E de nós, que ficámos a cuidar dos animais acrescentou o irmão. Digam-lhe que nós estamos a fazer o que nos compete.

 

Assim farei prometi eu.

 

Mas não lhe fales dos outros disse Androcles, pondo-se de repente muito sério. Se não, eles vão ser castigados. Subitamente, começou a chorar.

 

Oh, cala-te lá disse Mopso. Está-se a lembrar daquilo que os homens de Milo fizeram a Halicor e ao encarregado. Não é assim que a senhora castiga os guardas embriagados, estúpido. Manda-os açoitar um bocado. Não lhes vai cortar os braços e as pernas.

 

Como é que sabes? O miúdo fungou.

 

Porque não sou estúpido, como tu.

 

Androcles não me parece nada estúpidodisse Eco, pondo as mãos nas ancas. Não foi ele que atirou uma lança a três desconhecidos perfeitamente pacíficos. Era mesmo dele, defender o que estava por baixo, pensei eu; seria assim que mantinha a paz entre os gémeos, em sua casa? Mas ocorreu-me que a pequena briga dos rapazes também era uma maneira de evitarem falar de Halicor e do que lhe tinha acontecido, embora se referissem constante mente ao assunto. O que teriam eles presenciado, exactamente?

 

Vocês estavam cá no dia da batalha, não foi? Lembram-se bem do que se passou?

 

Claro que estávamos cá, a cuidar do estábulo, como sempre disse Mopso. E foi um dia de muito trabalho, com o senhor e os seus homens a arrumarem as coisas e a prepararem-se para a viagem.

 

Em que altura do dia é que o vosso senhor partiu para Roma?

 

À tarde.

 

A que horas?

 

O rapaz encolheu os ombros.

 

Mais perto da nona hora, ou mais tarde, por volta da décima primeira hora?

 

Androcles apertou-me a mão.

 

Da nona hora.

 

Tens a certeza?

 

Há um relógio de sol atrás do estábulo. Depois de o senhor partir, fui até lá, porque tinha fome e queria saber quanto tempo faltava para o jantar.

 

E, quando o vosso senhor partiu, parecia que tinha planeado sair àquela hora?

 

Nem pensar disse Mopso, antecipando-se ao irmão. Ele tencionava ficar por cá mais um dia ou dois. Foi-se embora porque chegou um mensageiro.

 

E que notícia trazia o mensageiro?

 

Era sobre o velho arquitecto, Ciro. Ele tinha morrido e a senhora queria que o senhor voltasse para Roma.

 

Para um rapaz dos estábulos, pareces saber muito acerca da vida do teu senhor comentou Eco, que parecia decidido a apanhá-lo.

 

Tenho olhos e ouvidos. Além disso, quem te parece que é a primeira pessoa que um mensageiro a cavalo vê ao chegar à villa? Sou eu, porque sou a pessoa que lhe toma conta do cavalo.

 

Eco mostrou-se céptico.

 

E esse mensageiro sentiu vontade de te contar a notícia, mesmo antes de a comunicar a Clódio?

 

Ele disse: "É melhor preparares os cavalos para o teu senhor e os amigos dele", e eu disse: "Por quê?" E ele disse: "Porque a senhora quer que ele volte para Roma!", e eu disse...

 

Está bem, acho que já percebi disse Eco.

 

Quer dizer que o teu senhor recebeu a mensagem disse eu, decidiu regressar a Roma e reuniu a comitiva. Mas o filho não estava com ele, Públio Clódio? Calculo que ele tenha mais ou menos a tua idade, Androcles.

 

Claro que Públio estava cá disse Androcles. Estava com o tutor, Halicor. Halicor entretinha-o a maior parte do tempo, mas de vez em quando Públio escapava-se e vinha ter connosco. Nós dizíamos-lhe que tínhamos de trabalhar, mas ele dizia que, enquanto estivesse connosco, nós podíamos largar o trabalho. Por isso, íamos brincar para os bosques, ou nas ruínas da casa das bruxas?

 

Das bruxas?

 

Acho que ele se refere às Vestais, Eco. Nesse dia, depois de vir o mensageiro, Públio partiu com o pai?

 

Não, ficou cá com Halicor. Mopso e eu ficámos contentes, porque ele havia de querer brincar connosco e nós não teríamos de trabalhar tanto, e Halicor e o capataz podiam ficar irritados, mas paciência, porque Públio andava sempre a meter-se em sarilhos, e a resolvê-los.

 

Saía ao pai murmurou Eco.

 

E, logo que o senhor e os seus homens se foram embora, Públio veio ao estábulo à nossa procura...

 

Nós tínhamos muito que fazer disse Mopso, tínhamos de limpar tudo. Alguns homens tinham dormido no estábulo, e os homens sujam mais do que os animais.

 

Mas Públio queria brincar connosco. Mopso disse-lhe que nós tínhamos trabalho, mas Públio respondeu que tinha fugido a Halicor e que nós tínhamos de o ajudar a esconder-se. Por isso, Mopso e eu fomos conversar para um canto, e decidimos revelar-lhe a passagem secreta. Imagina que nem Públio a conhecia, e é o filho do senhor!

 

Uma passagem secreta? disse Eco. Acho que estes miúdos estão a intrujar-nos, papá.

 

Não estamos, é verdade! insistiu Androcles.

 

É verdade disse Mopso, cruzando os braços e falando como um adulto. Nós devemos ser as únicas pessoas vivas que sabem onde ela fica, à excepção de Públio, agora que o senhor e Ciro morreram, porque mais ninguém devia saber, para além dos escravos que a construíram, claro, mas quem sabe onde eles estarão neste momento? Nem sequer Halicor e o capataz a conheciam. Aposto que nem a senhora sabe onde é.

 

O irmão escarneceu, mas eu pensei que o jovem Mopso devia ter razão. Fúlvia não me falara em nenhuma passagem secreta, nem fizera referência a estes dois rapazes; dissera-me apenas que o seu filho tinha conseguido escapar aos homens de Milo quando estes tinham ido à villa e aterrorizado os escravos. É possível que o filho não lhe tivesse revelado muitos pormenores, e que ela não tivesse querido insistir; ou talvez o jovem Públio fosse tão bom como o pai a guardar segredos.

 

Quer dizer que vocês levaram Públio até à passagem secreta, para ele se esconder de Halicor. Gostava que ma mostrassem. Mas, claro, se a casa está fechada...

 

Oh, mas é isso que é maravilhoso disse Androcles. A passagem secreta pode ser usada sem se entrar em casa, pode-se entrar nela de fora. Venham, vou-vos mostrar onde é. Pegou-me na mão. O irmão mais velho mostrou-se hesitante e lançou um olhar desconfiado a Eco, mas veio connosco, persuadido por uma confiança recém-adquirida, ou então pelo receio de ser perseguido e apanhado de novo pelo risonho Davo.

 

Seguindo atrás de Androcles, contornámos a esquina da casa e descemos a colina escarpada até ao bosque situado na base da casa. Ao longe, este lado da casa parecia quase incaracterístico, à excepção do comprido pórtico que percorria todo o andar superior. Vendo-o mais de perto, detectei numerosas aberturas agrupadas em filas, que não eram tanto janelas como orifícios de luz e ventilação, altos demais para se chegar a eles, e muito estreitos, mesmo para uma criança. As fundações estavam praticamente escondidas pelas árvores e por densos matagais. Foi no meio deste arvoredo que Androcles nos apontou um caminho e, no final do caminho, naquilo que à primeira vista parecia uma parede incaracterística, uma abertura disfarçada. Havia uma secção entre dois pilares verticais que parecia fixa, mas era na realidade um painel móvel, que apenas abria o suficiente para dar passagem a um homem. Ao longo da vida, e especialmente nas viagens que fiz na minha juventude, conheci diversos exemplos de portas ocultas, mas poucas vezes vi uma tão bem escondida. Na sua maioria, as passagens secretas não estão realmente escondidas, é a maneira de as abrir que é secreta. Esta porta era simples de abrir, mas quase impossível de detectar, a não ser que a pessoa soubesse da sua existência.

 

A abertura dava para umas escadas, ao cimo das quais havia um corredor muito estreito e mal iluminado, que parecia atravessar o coração dos andares inferiores da villa, aquelas secções subterrâneas que tinham sido construídas na encosta escavada. O percurso era iluminado por umas aberturas minúsculas, que permitiam observar os diversos compartimentos por onde íamos passando. Esses compartimentos estavam quase todos vazios, à excepção de alguns cestos e de umas peças dispersas de mobiliário. Alguns estavam mergulhados na escuridão. Outros ainda não tinham sido totalmente acabados pelos carpinteiros. À semelhança da casa de Clódio na cidade, a villa estava em processo de expansão no momento da morte do seu proprietário, prenhe com a promessa dos seus grandiosos planos de futuro.

 

Estes sombrios compartimentos subterrâneos o que quereria Clódio fazer deles? observou Eco.

 

É óbvio que isto não era uma simples villa no campo disse eu. Parece mais uma fortaleza, um sítio onde ele poderia armazenar os seus tesouros, acumular armas, albergar um exército privado de gladiadores...

 

Ou manter prisioneiros?

 

Não tinha pensado nisso. Mas sim, não é difícil imaginar estes compartimentos transformados em celas ou câmaras de tortura.

 

Se calhar, na casa que ele tem na cidade também há passagens secretas por trás das paredes.

 

Não me surpreenderia. Mais trabalho para Ciro, o arquitecto!

 

Subimos novos lanços de escadas, iluminados por aberturas minúsculas que deixavam entrar a luz do Sol, e que indicavam que as escadas estavam localizadas numa das extremidades do edifício. Descemos vários corredores estreitos, observámos mais compartimentos cavernosos, sombrios e inacabados. Por fim, houve uma alteração no padrão e demos por nós dentro de uma passagem labiríntica, com muitas curvas e contracurvas. Estávamos agora algures na zona superior e mais antiga da villa, onde a necessidade de acrescentar uma passagem oculta entre as paredes exigira ao arquitecto Ciro um considerável exercício de engenho. Os compartimentos que os orifícios agora revelavam estavam opulentamente decorados e mobilados, cheios daquelas coisas que fazem de uma casa um lar à excepção de habitantes. Os compartimentos estavam tranquilos e silenciosos. Apesar do sol brilhante, que trazia consigo a primeira sugestão de uma Primavera antecipada, as portadas estavam todas fechadas, lançando a casa numa escuridão profunda. Por fim, Mopso fez-nos sinal para pararmos.

 

Aqui, era aqui que nós estávamos quando aquilo aconteceu.

 

Quem estava aqui?

 

Androcles e eu. E Públio, claro, que estava escondido de Halicor. Públio achou que seria muito divertido espiar os adultos. Não conseguia parar de rir quando olhava pelo orifício.

 

O orifício mais próximo estava colocado ao nível dos olhos de um rapaz, mais perto da cintura de um homem, por isso tive de me inclinar para olhar por ele. O chão da passagem secreta era substancialmente mais elevado do que o das passagens adjacentes, de maneira que eu dei por mim a olhar para baixo, para o compartimento que ficava do outro lado. Parecia tratar-se de um escritório para fazer negócios e armazenar registos. Numa das paredes, estava alinhada uma série de orifícios para pergaminhos, na sua maioria vazios, cujos conteúdos estavam espalhados pelo chão, juntamente com diversos materiais de escrita tabuinhas de cera, estiletes, frascos de tinta e folhas de pergaminho espalhadas, misturadas com uma coisa que se parecia mais com sangue do que com tinta. O compartimento recordou-me o meu próprio escritório, depois de ter sido saqueado.

 

Quer dizer que vocês estavam os três aqui disse eu. E o que viram?

 

Halicor e o capataz, a falarem sobre Públio respondeu Mopso.

 

E não falavam bem! acrescentou Androcles.

 

O que disseram eles?

 

Uma série de coisas disse Mopso. Diziam que seria impossível controlar Públio, especialmente depois de o pai se ter ido embora. Estavam a discutir. O capataz dizia que Halicor tinha culpa de o ter deixado escapar da sua vista. Halicor respondeu que era um tutor, e não um guarda-costas, e que não lhe competia preocupar-se com a segurança de Públio, e que isso era a única coisa que verdadeiramente preocupava o senhor. Esse género de coisas. Gritavam muito. Conversa de adultos.

 

E depois?

 

Nas sombras profundas do corredor, vi os olhos de Androcles brilhantes de lágrimas quando ele se colocou por trás do irmão mais velho, agarrando-se a ele como a um escudo. Mopso endireitou as costas e fez uma cara séria.

 

Depois ouviram-se berros, vindos de outra zona da casa. Julgo que, a princípio, Halicor e o capataz não os ouviram, porque estavam a gritar um com o outro. Depois, a porta abriu-se para trás, com tanta força que bateu contra uma parede, deitando algumas coisas ao chão. Entraram a correr muitos homens. Traziam espadas na mão...

 

E as espadas já estavam cheias de sangue! disse Androcles, espreitando por trás do ombro do irmão. Mopso franziu o sobrolho.

 

Nessa altura, entrou Milo...

 

Como é que sabias que era Milo?

 

Porque foi assim que Halicor o tratou. "Milo!" Gritou o nome como se o próprio Hades tivesse subido pelo chão. Eu murmurei a Públio: "Quem é Milo?" e ele respondeu-me, também num murmúrio: "É o homem mais horrível do mundo, à excepção de Cícero!"

 

Clódio já andava a ensinar o rapaz a reconhecer os seus inimigos comentou Eco.

 

Eu acenei com a cabeça.

 

E o que aconteceu a seguir?

 

Milo e os seus homens invadiram o compartimento como abelhas. Empurraram Halicor e o capataz contra a parede e espetaram-nos com as espadas. Milo estava irritado. "Onde está ele?" gritava. "Onde está Públio Clódio?" E o capataz disse: "Não está aqui, não sabemos onde está", mas isso só serviu para irritar Milo ainda mais. "Tu!" disse ele a Halicor.

 

"Quem és tu?" E Halicor disse: "Sou apenas o tutor, o tutor do rapaz, mas o rapaz fugiu, escondeu-se de mim." E Milo gritou-lhe que se calasse, atirou-o ao chão e continuou a gritar: "Onde está Públio Clódio?" E depois começaram a esfaquear o capataz e a cortar pedaços dos dedos de Halicor...

 

Foi horrível disse Androcles. Eu pensei que ia vomitar, mas tinha a barriga vazia. Fiquei satisfeito quando arrastaram Halicor e o capataz para o corredor. Pelo menos, não podíamos ver o que eles estavam a fazer.

 

Mas ouvíamos os gritos disse Mopso. Tapámos todos os ouvidos. Pobre Públio. Ele podia ter falado, percebem, ter gritado: "Estou aqui!" Talvez pudesse ter salvo Halicor.

 

Eu abanei a cabeça.

 

Se os homens que vieram à procura de Públio o tivessem encontrado, não teriam qualquer motivo para poupar a vida a Halicor.

 

O que teriam feito a Públio? perguntou Androcles.

 

Provavelmente, tinham-no levado como refém disse Eco com ar sinistro. Ou então, tinham acabado com ele, como acabaram com o pai.

 

Dois dos homens eram tão grandes disse Mopso, estremecendo ao recordar-se. Ainda eram maiores do que este elefante. Foram os que mais se entretiveram a cortar.

 

Eco olhou para mim.

 

Eudamo...

 

... e Birria. Sempre juntos.

 

Halicor não parava de gritar disse Mopso. Aposto que lhes tinha dito onde estava Públio, se soubesse! Mas não sabia, por isso eles continuaram a cortá-los aos bocados.

 

O irmão mais novo começou a chorar. Eu abracei-o.

 

Nem sequer podíamos fugir, senão eles ouviam-nos disse Mopso. Tínhamos de ficar muito quietos. Finalmente, os gritos pararam. Mopso estremeceu. Nós deixámo-nos ficar aqui os três, cheios de medo, até de falar baixinho. De vez em quando, eu olhava pelo orifício, pensando que Halicor e o capataz podiam regressar, mas isso não aconteceu. Androcles começou a lamuriar-se, dizendo que tinha de mijar...

 

Não foi nada! Foi Públio que disse isso!

 

Tanto faz. Sim, talvez tenha sido Públio. Mas eu disse-lhe que ele era doido se saísse, porque Milo e os seus homens deviam andar à procura dele por toda a parte. Depois, acho que começámos todos a pensar o que teria acontecido ao senhor, porque não percebíamos como é que Milo se tinha atrevido a assaltar a casa, sem que o senhor o tivesse impedido. Acho que começámos todos a perceber que se tinha passado qualquer coisa mesmo horrível, mas eu não queria dizer nada, e acho que Públio também não, porque estava muito calado. Nessa altura, já era noite, e parecia que a casa estava completamente vazia. Estávamos cheios de fome. Finalmente, mandei Androcles esgueirar-se até à cozinha para ir buscar qualquer coisa de comer...

 

Porque tiveste medo de ir tu!

 

Não, porque tinha de ficar a proteger Públio. Por fim, Androcles voltou e disse que alguns dos escravos estavam escondidos no estábulo, e que pelo menos dois tinham sido mortos, para além de Halicor e do capataz, e que alguns dos guarda-costas que tinham partido com o senhor nessa tarde tinham regressado e estavam feridos, porque tinha havido uma batalha terrível com Milo, e disseram que não sabiam onde estava o senhor, mas que ele tinha sido ferido e tinha ido para Bovilas, mas já lá não estava, e que todos os homens que tinham ido com ele estavam mortos...

 

Eu acho que Públio foi muito corajoso disse Androcles suavemente. Nem sequer chorou. E não quis comer nada. Disse que Mopso e eu podíamos comer tudo o que eu tinha trazido.

 

Por isso, passámos a noite escondidos na passagem, embora estivesse horrivelmente frio e escuro. No dia seguinte, a senhora mandou uns homens de Roma para virem buscar Públio, e mais tarde fechou a casa. Toda a gente se foi embora, excepto nós.

 

E aqueles guardas preguiçosos disse Androcles. Por esta altura, já devem estar acordados. Devem estar a pensar onde nós estaremos.

 

Que pensem disse o irmão. Talvez se convençam de que as bruxas vieram buscar-nos. Imagina se isso acontecesse, e se fosse por culpa deles, que estavam a dormir quando deviam estar de guarda. Vão ficar preocupados de morte.

 

Digam-me uma coisa disse eu, sabem se Milo fez prisioneiros?

 

Prisioneiros? disse Mopso. Abanou a cabeça. Que nós tenhamos ouvido falar, não. Milo matou alguns homens do senhor, mas todos aqueles que não foram mortos voltaram, mais cedo ou mais tarde, pelo menos os homens que pertenciam a esta villa.

 

A passagem, escura e apertada, começava a incomodar-me. Estava com vontade de sair dali. Os rapazes seguiram à nossa frente pelos corredores sinuosos e pelas escadas. Quando finalmente atravessámos a porta escondida e emergimos para a luz brilhante do Sol, ouvi vozes distantes a chamar do alto da colina:

 

Mopso! Àndrocles!

 

Estão a ver, bem vos disse que eles haviam de estar preocupados disse Mopso.

 

Esses ditos guardas estavam cá no dia em que Milo aqui veio? perguntei eu.

 

Não. São todos novos, vieram da cidade. Odeiam estar aqui. Estão sempre a queixar-se, a dizer que se sentem aborrecidos e que não há mulheres por aqui, à excepção das bruxas da casa do fundo da colina, e elas não querem ter nada a ver com homens.

 

Nesse caso, não preciso de falar com eles. Tu e o teu irmão ficam bem? Eles não vão irritar-se convosco?

 

Achas que nós temos medo daquele grupo de bêbedos e cobardes? disse Mopso. Tinha recuperado a sua bravata. Digo-lhes que ouvimos um barulho estranho nos bosques e fomos investigar, e eles voltam a correr para o moinho, cheios de medo.

 

Muito bem. Nesse caso, vou pedir-vos uma coisa: que não lhes falem da nossa visita...

 

Com certeza que não vou falar-lhes da entrada secreta!

 

Exactamente. E, quando eu regressar a Roma, não me esquecerei de dizer à vossa senhora que tem aqui na sua villa albana um belo par de rapazes, espertos e valiosos.

 

Deixámos Mopso e Àndrocles e voltámos a subir a colina, contornando o pátio da frente da villa para evitar os guardas. Quando demos a volta a uma pilha de pedras e cascalho, tropecei em qualquer coisa e, quando baixei os olhos, vi com surpresa o rosto de uma deusa a olhar para mim.

 

Tratava-se da cabeça de mármore de Vesta, que fora separada do resto da estátua que tínhamos visto nas ruínas da Casa das Vestais. Tinha uma expressão serena e calorosa, como convém à protectora dos lares de família, mas, quando a olhei mais atentamente, não pude deixar de pensar que havia um vestígio de malevolência nos seus olhos de lápis-lazúli, e nos seus lábios uma sugestão de satisfação pela maneira como o Destino tinha lidado com o mortal que a tratara, e às suas servas, de forma tão miserável.

 

Regressámos à villa de Pompeu pelo mesmo caminho. Depois da refeição do meio-dia, montámos a cavalo para irmos fazer uma

visita ao senador Sexto Tédio, o homem que encontrara Clódio e enviara o corpo para Roma na sua liteira.

 

Bem, Davo disse eu, parece que afinal sempre vais dar uma volta a cavalo hoje.

 

O passeio desta manhã devolveu-me por completo a agilidade, senhor. Davo sorriu, mas quando o seu traseiro entrou em contacto com o cavalo, ouvi um gemido abafado.

 

Para chegarmos à villa do Senador Tédio, passámos por Arícia, a cidade onde Clódio tinha dirigido um discurso aos magistrados locais no dia da sua morte. Embora a cidade seja maior e mais hospitaleira do que Bovilas, já que é o local onde costumam fazer a primeira paragem os viajantes que circulam de Roma para o sul, ainda assim é possível passar por lá sem ter dado muito conta de que se lá esteve.

 

O capataz de Pompeu tinha-nos dado indicações relativas ao nosso destino, que se revelou uma habitação bem mais rústica e humilde do que as de Clódio ou do Grande. Sexto Tédio era claramente um homem abastado, como testemunhava a extensão da propriedade que rodeava a sua casa, mas a habitação nada tinha de ostensiva. Parecia suficientemente grande para servir os objectivos de uma villa no campo, com quartos para convidados e reuniões, mas sem estatuária alinhada na estrada de acesso, sem mosaicos a decorar o alpendre, sem lamparinas elaboradas penduradas à porta. A avaliar pela sua casa, suspeitei de que o dinheiro de Tédio fosse muito antigo, o seu gosto em arte e literatura austero, e as suas tendências políticas solidamente conservadoras.

 

Ao dar-me as indicações, o capataz de Pompeu informara-me que o senador era há muito apoiante e admirador do Grande. Tendo em conta a personalidade sugerida pela casa e o facto de ele ser adepto de Pompeu, decidi que o melhor seria fazer uma abordagem directa e formal. Quando o porteiro me perguntou ao que ia, entreguei-lhe a carta em que Pompeu me escrevera as suas instruções e disse-lhe que desejava falar com o senhor da casa.

 

Depois de uma curta espera, o escravo mandou-me entrar, e a Eco, para o escritório privado do senador, cujas portadas tinham sido abertas, proporcionando uma visão da cidade de Arícia, mais abaixo. O Sol cobria a paisagem, mas o ar era tonificante. O nosso anfitrião estava sentado numa cadeira antiga, sem costas, mantendo-se muito direito para um homem da sua idade. A única concessão ao conforto era a manta que tinha sobre os joelhos, destinada a manter as pernas aquecidas. Tinha o cabelo branco, com uma leve coloração amarelada que dava a entender que fora louro. Tinha o rosto e as mãos morenos e curtidos, o que sugeria que passara a maior parte da sua vida ao ar livre, e as rugas à volta da sua boca eram profundas; apesar disso, ocorreu-me que talvez ainda fosse um homem interessante, se se descontraísse um pouco, abandonando a severidade que marcava a sua atitude.

 

És um dos homens de Pompeu? perguntou-me.

 

Chamo-me Gordiano. Venho em nome do Grande.

 

Nesta casa, tratamos o nosso caro vizinho, o general, pelo seu nome próprio disse Tédio, sem rispidez mas com firmeza. A grandeza de um homem, ou a sua pequenez, devem ser determinadas pela posteridade. Enquanto vive, os actos de um homem falam por si. Olhou-me astutamente, e permitiu que uma espécie de sorriso lhe atravessasse os lábios. Mas o homem que te enviou conhece suficientemente os meus sentimentos;

Gneu Pompeu e eu discutimos muitas vezes estas questões diante de uma taça de vinho, nesta mesma sala. Ele sabe que eu sou profundamente republicano, e que prefiro acreditar na grandiosa instituição que é o Senado, do que em grandes homens. Se não estivesse convencido de que também ele é, em última análise, leal ao Senado, sentir-me-ia muito perturbado com a maneira como se eleva acima dos restantes membros desse corpo através da utilização do nome Magno. Diz-me, acabas de chegar de Roma?

 

Partimos ontem, antes do amanhecer.

 

Quer dizer que partiram antes da reunião do Senado marcada para o Teatro de Pompeu. Eu próprio pretendia estar presente, mas a minha perna não mo permitiu. Olhou severamente para a perna esquerda, como se pretendesse comunicar-lhe o seu desapontamento. Ouvi dizer que seria apresentada uma proposta para a reconstrução da Casa do Senado, e que o contrato seria entregue ao filho de Sula, Fausto.

 

Creio que é assim disse eu, recordando o que Pompeu me tinha contado.

 

E também ouvi dizer que haverá uma proposta para a promulgação do Decreto Final, que dará a Pompeu o poder de reunir tropas para reprimir a desordem que varre a cidade.

 

Talvez. Como te disse, partimos antes da madrugada.

 

Nesse caso, não têm notícias para me dar. Mas dizes que foi Pompeu quem te enviou.

 

Venho em representação de Pompeu, é um facto, mas não como seu mensageiro. Venho recolher informações, e não transmiti-las.

 

Tédio ergueu uma sobrancelha.

 

Estou a ver.

 

O Grande Gneu Pompeu encarregou-me de descobrir tudo o que puder acerca da morte de Públio Clódio.

 

Certamente que em Roma não se tem falado de outra coisa nos últimos dias.

 

Pois não, mas a conversa e a verdade nem sempre coincidem. Pompeu deseja conhecer a verdade.

 

E tenciona administrar pessoalmente a justiça? Tédio parecia continuar interessado em obter informações.

 

Julgo que ele deseja ver com clareza. Um general não pode avançar por uma paisagem obscurecida pelo nevoeiro. É verdade que tu e a tua filha encontraram Clódio caído na Via Ápia?

 

Já toda a gente sabe isso. Enviei o corpo para Roma na minha liteira.

 

Gostaria de compreender claramente a sequência dos acontecimentos. Quando partiste desta casa?

 

O senador olhou fixamente para mim por longos momentos, com o rosto tão fechado como uma máscara de couro. Creio que não estava habituado a ser interrogado fosse por quem fosse, e ainda menos por um homem tão abaixo da sua categoria, mas acabou por falar.

 

A minha filha e eu e a nossa comitiva partimos desta casa por volta da nona hora do dia. Tinha planeado estar em Roma ao cair da tarde.

 

Quando te apercebeste de que se passava qualquer coisa estranha na Via Ápia?

 

Quando íamos perto do santuário da Boa Deusa. A minha filha é uma mulher piedosa; quando vamos a caminho de Roma, costuma deixar uma oferenda no santuário. Mas nesse dia deparámos com um grupo enorme em grande desatino, com os escravos muito agitados e os guarda-costas aos berros e a correr de um lado para o outro. Era óbvio que se passava qualquer coisa estranha, como tu disseste. Apercebi-me de que Milo devia andar por ali quando avistei aquela mulher dele, Fausta Cornélia. Estava dentro de uma carruagem, à beira da estrada, muito enrolada numa capa. Estava pálida como a lua e não era devido aos cosméticos e tinha um bando de escravos atarefados à sua volta, abanando-a com leques e mimando-a. Enquanto eu estava a observá-la, subitamente, pareceu fartar-se deles e começou a bater-lhes. Os palermas dos escravos dispersaram como pombos.

 

E Milo?

 

Encontrei-o rodeado por alguns dos seus homens, todos de espada na mão. Algumas das espadas estavam sujas de sangue. Também vi diversos corpos no chão.

Disse à minha filha que se encostasse, fechasse a cortina do seu lado da liteira e não se mostrasse. Os homens de Milo ergueram as espadas quando me viram aproximar mas, ao ouvir-me anunciar o meu nome, ele chamou-os à ordem.

 

És amigo de Milo?

 

O senador Tédio fez uma expressão entre a repulsa e a chacota.

 

Calculo que o homem tenha alguma utilidade. Dificilmente lhe chamaria um amigo. Que género de homem suporta uma conduta tão embaraçosa por parte da mulher? Tanto me faz que ela seja a filha do ditador. E não gosto de indivíduos que dão a si próprios nomes mais heróicos do que eles chamar-se como Milo de Crotona, francamente!

 

Perguntei-lhe o que se passava. Ele disse-me que tinha sido atacado por bandidos.

 

Por bandidos?

 

Suponho que não estava preparado para me contar o que realmente se passara, e aquela foi a primeira mentira que lhe veio à cabeça. Disse-me que tinha sido atacado por bandidos e que alguns dos seus homens tinham perseguido os malandros na direcção de Bovilas. Sugeriu-me que voltasse para trás, para minha própria segurança. "Quantos bandidos?" perguntei eu. "Oh, eram muitos, e bem-armados", disse ele. Mas eu desconfiei de que estava a exagerar e, quando repetiu a advertência, disse-lhe que não fosse ridículo, que tinha coisas a tratar na cidade na manhã seguinte e que tencionava prosseguir. "Então espera aqui comigo", disse ele, "até os meus homens regressarem e termos a certeza de que o perigo passou". Aquilo pareceu-me razoável; mas nessa altura vi Fausta Cornélia aproximar-se com a sua comitiva de escravos, que rodopiavam à volta dela como pombos. Não estava interessado em passar nem um momento na companhia daquela meretriz. Disse a Milo que me sentia perfeitamente seguro sob a protecção dos meus próprios guarda-costas. E prossegui.

 

Descendo a colina na direcção de Bovilas?

 

Sim. Lembro-me de que a minha filha...

 

Sim?

 

É um pormenor que nada tem a ver com o incidente.

 

Por favor, dá-me todos os pormenores de que te recordes. Sexto Tédio inclinou a cabeça para trás e abriu ligeiramente a boca.

 

Estudou-me por momentos com os olhos semicerrados. Não consegui interpretar a sua expressão.

 

Muito bem disse por fim. A minha filha apercebeu-se subitamente de que se tinha esquecido de fazer uma oferenda à Boa Deusa. Tédia é muito piedosa, como já te disse. Pareceu-lhe um mau presságio, iniciar a viagem sem parar no santuário, especialmente quando tínhamos sido avisados de que havia perigo. Quis voltar para trás, mas eu estava decidido a prosseguir. Acho que me sentia curioso; percebi que Milo estava a mentir. Mas Tédia mostrava-se apreensiva. Quando passámos pela Casa das Vestais a nova, suplicou-me que nos refugiássemos ali até termos a certeza de que o perigo tinha passado. A minha filha tem tanta devoção a Vesta como à Boa Deusa. Eu disse-lhe que não fazia tenções de me ir esconder no meio de virgens mas que, se ela insistisse, a deixaria com as Vestais e iria buscá-la quando me certificasse de que tudo corria bem em Bovilas. Mas Tédia recusou-se a ficar para trás. Disse-me que não era com a sua segurança que estava preocupada, mas com a minha. Tédia é a minha única filha; é-me profundamente leal. Uma vez que eu estava decidido a prosseguir, ela manteve-se na liteira, ao meu lado.

 

Quando chegámos a Bovilas, passámos por um corpo morto, caído na estrada. O cadáver estava coberto de sangue, tinha muitas feridas. Proibi Tédia de olhar para ele, mas apesar disso ela começou a ficar assustada e insistiu comigo para que voltássemos para trás. Eu não lhe prestei atenção; indiquei aos carregadores da liteira que prosseguissem. Quando nos aproximámos da estalagem, percebi que tinha havido uma batalha. A porta da frente e as portadas das janelas estavam todas partidas e abertas; e havia mais homens mortos por ali. Tenho de admitir que comecei a sentir uma certa trepidação, e murmurei uma oração a Mercúrio. Milo tinha falado de bandidos, e agora parecia que estes bandidos tinham descido a Bovilas, saqueado a estalagem e assassinado os clientes! Onde estavam os homens de Milo, que tinham supostamente perseguido esses bandidos? Teriam sido todos mortos, ou teriam fugido para os bosques? E onde estavam os bandidos? Disse aos carregadores que parassem. Tédia ajudou-me a descer da liteira. Andámos por entre os homens caídos, na esperança de que algum deles ainda estivesse vivo. E o primeiro com que deparámos foi Públio Clódio!

 

Reconheceste-o imediatamente? O senador não estava à espera de encontrar Clódio, raciocinei, e o rosto de um homem morto, de cujas feições desapareceu toda a vivacidade, nem sempre é fácil de identificar.

 

Não podia deixar de o reconhecer disse Tédio. Se tu tivesses tido de ouvir tantos discursos empolados no Senado como eu... Abanou a cabeça. Mais outro sujeito que atribuiu a si próprio um nome diferente, mudando o seu orgulhoso Cláudio patrício para um plebeu Clódio só para captar as boas graças da plebe! E que até se registou como plebeu, desistindo do seu estatuto de patrício! Os antepassados devem tê-lo amaldiçoado do Hades. É perfeitamente adequado que tenha morrido na estrada que tem o nome de um daqueles de cujo nome ele troçou. O senador apertou severamente os lábios. Voltou o olhar para a janela e pareceu perdido nos seus pensamentos.

 

Mas tu não o deixaste ali caído na estrada sugeri eu. Tédio suspirou.

 

Públio Clódio constituía uma ameaça para o Estado. A sua morte foi uma bênção para Roma, e uma bênção ainda maior para esta montanha, que ele tanto contribuiu para pilhar e desfigurar. Mas também era senador, era um colega. E era um Claudiano pelo sangue, independentemente da ortografia e das ficções legais que inventou. E, morto um homem, de que vale desprezá-lo? Não, não podia deixá-lo ali caído na estrada, como um cão morto. Mandei o seu corpo para Roma na minha liteira, dando instruções aos carregadores para que o entregasssem com o maior respeito ao cuidado da mulher.

 

Mas Clódio tinha uma villa mesmo aqui. Por que não mandaste entregar o corpo na villa?

 

Pareceu-me mais adequado mandá-lo para a cidade.

 

E tu e a tua filha voltaram para trás?

 

Como deves calcular, não seria agradável ir sentado numa liteira ao lado de um cadáver coberto de sangue durante três horas! lançou Tédio. Além disso, por essa altura, Tédia já estava bastante perturbada, e eu começara a temer pela nossa segurança. Não percebes, eu pensei que Clódio e os seus companheiros tinham sido atacados pelos mesmos bandidos a quem Milo se referira. Agora, parece uma tolice, mas na altura não compreendi que a batalha tinha sido entre Milo e Clódio. Pronto, foi assim: acreditei em Milo, quando ele me disse que tinha encontrado uns bandidos na Via Ápia, e presumi que esses mesmos bandidos também tinham atacado Clódio e os seus homens na estalagem de Bovilas, antes ou depois do seu recontro com Milo. Era óbvio que a estrada não era segura para mim e para a minha filha. Tédia, eu e os meus guardacostas voltámos para casa a pé.

 

Foram a pé até casa?

 

Não tínhamos cavalos. O estábulo de Bovilas estava fechado e todos os escravos do estábulo tinham fugido. E eu com problemas na perna esquerda! Acho que nesse dia dei mesmo cabo dela. Suspirou e passou as mãos pela manta que lhe cobria as pernas. Avançámos lentamente, como poderás imaginar. Passado algum tempo, fomos ultrapassados por um destacamento de homens armados, que vinham da direcção de Bovilas, chefiados pelos famosos gladiadores de Milo, Eudamo e Birria. No meio deles, vinham cinco ou seis homens de mãos atadas. Os mesmos prisioneiros a que Félix e Felícia se tinham referido, pensei.

 

Quem eram esses presos? Tédio ergueu uma sobrancelha.

 

É uma coisa que ainda não foi completamente esclarecida, pois não? Na altura, pensei que deviam ser os bandidos fictícios de quem Milo me tinha falado, que teriam acabado por ser capturados pelos gladiadores. Cheguei mesmo a cumprimentar Eudamo e Birria quando passaram por mim.

 

Falaste com eles?

 

Essas criaturas falam? Para ser franco, estava demasiadamente ofegante para conseguir falar, e a perna tinha começado a doer-me. Tinha parado para descansar, mesmo abaixo da Casa das Vestais. Pouco depois, Tédia e eu prosseguimos. Quando chegámos diante do santuário da Boa Deusa, Eudamo e Birria já se tinham, aparentemente, juntado a Milo, e a comitiva deste seguira caminho.

 

Milo e os seus gladiadores tinham ido à villa de Clódio, na encosta da montanha, pensei, onde mataram Halicor, estrangularam o capataz e se puseram à procura do jovem Públio, enquanto o desafortunado rapaz assistia a tudo. E Fausta...

 

Diz-me uma coisa, senador, passaste pela mulher de Milo na estrada, quando ela regressava a Bovilas, a caminho da Casa das Vestais?

 

Por Fausta? Não, não voltei a vê-la nesse dia. E o que iria essa mulher ímpia fazer à Casa das Vestais? Duvido de que se lembre do tempo em que era virgem!

 

Não vi qualquer razão para mencionar a visita que a Virgo Máxima recebera, a "mulher misteriosa" de Eco. Teria Fausta ido à Casa das Vestais antes de Tédio passar por ela, a caminho de casa? Não, isso era impossível, porque deviam ter sido os triunfantes Eudamo e Birria a levar o anel de Clódio a Fausta, como troféu, e os gladiadores tinham passado por Tédio quando ele estava a descansar diante da Casa das Vestais; se Fausta tivesse voltado à casa para fazer a sua oferenda, teria certamente passado por Sexto Tédio. E como explicar o exasperante pormenor dos prisioneiros desconhecidos? Depois dos diferentes relatos que tinha ouvido dos acontecimentos daquele dia, e de todos os pormenores que tinha recolhido, parecia-me que as partes do quebra-cabeças não se adaptavam bem umas às outras, e que ainda faltava uma peça vital.

 

Os meus pensamentos foram interrompidos por uma voz de mulher, que chamava do corredor.

 

Papá, não tens frio? Momentos depois, apareceu à porta. Ao ver-me, e a Eco, tornou-se rígida e baixou os olhos. Papá, não tinha percebido...

 

São dois visitantes da cidade, filha explicou Sexto Tédio. Vêm da parte de Pompeu. Não é nada que te diga respeito.

 

Tédia era uma mulher alta e forte de meia-idade, tão simples e desprovida de adornos como a casa onde morava. Não usava jóias nem maquilhagem. Tinha na cabeça um manto branco de linho, seguro com uma fita azul, atada nas costas. Por que razão não se teria casado? Não seria propriamente bela mas, na classe a que pertencia, os casamentos têm por base o dinheiro e as conveniências políticas. Talvez o pai nunca tivesse feito as alianças que devia; ou talvez tivesse ficado decidido que sendo ela filha única e o pai viúvo, lhe competia cuidar dele. Era óbvio que o papel da filha atenciosa se lhe adaptava; Tédio insistira muito na sua piedade e devoção para com ele.

 

Vim ver se estavas confortável, pai disse ela, mantendo os olhos desviados.

 

Não preciso de nada, filha. Podes ir. Ela saiu da sala.

 

Mais alguma pergunta? disse Tédio. A perna começou a doer-me e gostaria de ficar sozinho.

 

Pensei por momentos.

 

Só mais uma pergunta. Por acaso viste Marco António nesse dia? Tédio ergueu uma sobrancelha.

 

O jovem António? Nem sei se o reconheceria, se o visse. Ele não estava na Gália, com César? Ah, não, regressou a Roma, não foi, anda a fazer campanha para uma coisa qualquer para questor? É de boas famílias, mas é muito radical para o meu gosto. Não estava com Clódio nesse dia, pois não? António pertencia a esse ciclo de degenerados antes de iniciar a carreira militar. Seja como for, não, não o vi nem ouvi nesse dia. Agora, espero que digas ao general que eu fui totalmente cooperante. Dá cumprimentos meus a Gneu Pompeu quando lhe fizeres o teu relatório.

 

Um escravo acompanhou-nos à porta. Na entrada, Tédia veio subitamente ter connosco. Tinha um ar tão sério como o pai, mas não parava de esfregar as mãos, nervosamente.

 

Não tinham o direito de vir incomodar o meu pai.

 

O teu pai concordou em receber-nos, viemos em nome de...

 

Eu sei quem vos enviou. Ouvi tudo.

 

Tudo?

 

O meu pai e eu não temos segredos um para o outro.

 

E o teu pai sabe disso?

 

A minha implicância fortaleceu a sua determinação. Ela parou de esfregar as mãos, e estendeu os braços ao longo do corpo, fechando os punhos. Erguida em toda a sua altura, era uma mulher formidável.

 

Se Pompeu tenciona chamar o meu pai a Roma para ser testemunha contra Milo, isso está fora de questão. A saúde dele é bastante mais delicada do que parece. A perna...

 

Ninguém falou em julgamentos nem em testemunhas. Pelo menos por enquanto. Queres dizer que o teu pai se recusaria a comparecer em tribunal?

 

Quero dizer que devias deixar-nos em paz. É o único desejo das pessoas que habitam por aqui. Que nos deixem em paz. Vocês, as pessoas da cidade, estão sempre a vir cá arranjar problemas...

 

O teu pai pareceu-me um homem capaz de cuidar de si.

 

Julgas todas as coisas pelas aparências? disse Tédia, empurrando-nos para fora de casa e fechando a porta atrás de nós.

 

Quando, nessa tarde, regressámos à villa de Pompeu, parecia-me que o nosso trabalho nas proximidades do Monte Alba tinha terminado. O essencial do que tinha acontecido naquele dia na Via Ápia parecia óbvio e, embora algumas perguntas tivessem ficado sem resposta, esses enigmas tinham maiores probabilidades de serem decifrados em Roma, se pudessem sê-lo de todo. Sugeri a Eco que voltássemos à cidade na manhã seguinte. Ele discordou.

 

Mas, papá, não me disseste que não consegues pensar adequadamente na cidade? Que sentes a cabeça mais lúcida aqui no campo. Fiquemos mais algum tempo.

 

Mas Betesda, e Diana, e Menénia, e os gémeos...

 

Estão todas perfeitamente seguras, com Pompeu a olhar por elas, provavelmente mais seguras do que estarão depois de nós regressarmos e de Pompeu chamar os seus guardas. Ainda não falámos com ninguém em Arícia, onde Clódio discursou no Senado, nem em Lanúvio, onde Milo ia supostamente nomear um sacerdote. Pompeu é um militar; está com certeza à espera de um relato completo.

 

Eco, se não te conhecesse, pensaria que só queres prolongar a estadia na villa de Pompeu para usufruíres da boa comida, dos banhos e das massagens.

 

E daquela vista fabulosa, papá. Não te esqueças da vista.

 

Eco!

 

Bem, não percebo por que não havemos de aproveitar a hospitalidade do Grande enquanto pudermos. Precisas de te descontrair, papá; o tumulto da cidade pôs-te os nervos em franja. E, se continuarmos a escavar, há sempre a possibilidade de descobrirmos qualquer coisa completamente inesperada...

 

E foi assim que eu permiti que Eco me convencesse a ficar mais alguns dias na villa albana de Pompeu. As refeições eram sumptuosas, os banhos quentes, as camas faustosas, os criados obsequiosos. E as vistas do lago escondido espelhando as estrelas à noite, do cume do Monte Alba aureolado pelo Sol nascente, da neblina matinal movendo-se como fumo por entre os bosques, do Sol afundando-se como um disco vermelho de sangue no mar longínquo eram um fascínio interminável. Mas o tempo acabou por nos parecer mal empregue porque, embora tivéssemos feito numerosas perguntas a numerosas pessoas, fazendo razias a Arícia e a Lanúvio, e novamente a Bovilas, nada descobrimos de novo acerca das circunstâncias da morte de Clódio, e nada que contradissesse ou preenchesse as falhas daquilo que já sabíamos.

 

No decurso das nossas viagens para cima e para baixo na Via Ápia, reparei que Felícia parecia ter abandonado o seu santuário, e o irmão, Félix, o seu altar. Tinham, pura e simplesmente, desaparecido. Ou tinham seguido o meu conselho, pensei, ou então eu tinha-lho dado tarde de mais.

 

Cansei-me dos luxos da villa de Pompeu. Comecei a sentir-me impaciente por regressar a Roma. Tinha saudades da minha família, e estava preocupado com a sua segurança. Queria saber se Pompeu teria conseguido levar o Senado a invocar o Decreto Final, concedendo-lhe a autoridade necessária para restabelecer a ordem. Os viajantes e os mensageiros traziam novidades ao Monte Alba, mas era difícil confiar nas suas histórias, especialmente porque se contradiziam umas às outras. O controlo militar da Itália tinha sido atribuído a Pompeu? Ele tinha partido para chamar as tropas? Tinham sido finalmente convocadas as eleições? Tinha havido novos tumultos? Tinha sido apresentada queixa formal contra Milo, por assassínio? Ouvi contar estas coisas, todas bastante credíveis, mas já não sabia que dizer da história de que César fora visto no Fórum, mal disfarçado, ou de que Milo se tinha suicidado, ou de que Pompeu tinha sido assassinado por um grupo de senadores radicais, numa reunião convocada para o seu teatro. Tinha-me queixado de que não se conseguia pensar na cidade mas, passado algum tempo, a confusão e a ignorância que havia no campo eram ainda mais exasperantes.

 

E foi assim que Eco, Davo e eu partimos, numa manhã decididamente mais primaveril do que invernal, tão suave que íamos sem as capas. Teríamos chegado à cidade pouco depois do meio-dia, mas as nuvens de chuva que se juntaram subitamente abriram-se sobre as nossas cabeças, e tivemos de nos refugiar na estalagem de Bovilas até ao fim da tarde. Partimos de novo quando o dia começava a decair. As sombras já iam compridas, próximas do lusco-fusco, quando finalmente nos aproximámos dos arredores da cidade.

 

Tem cuidado quando passares pelo Monumento de Basílio, costumam dizer as pessoas. Nós não tivemos suficiente cuidado.

 

É possível que a simples vigilância não chegue para salvar um homem, mas pode pelo menos permitir-lhe entrever o rosto dos seus adversários. Isso teria contado bastante, nos dias que se seguiram; mas também podia ter sido o meu fim, se os tivesse visto melhor.

 

Quando passámos pelo monumento, reparei nuns quantos bêbedos a dormitar encostados ao muro, com os chapéus de abas largas puxados para os olhos. Pela inclinação da sua cabeça, apercebi-me de que Eco também tinha reparado neles. Sem trocarmos palavra, ambos os considerámos inofensivos. Mas eles deviam estar à espera para saltar. Devia haver um batedor na estrada, que os teria alertado para a nossa passagem. Eles podiam estar à espreita e à espera há horas, ou há dias.

 

Ouvi passos pesados atrás de nós, e depois um grito de Davo. Quando me voltei para ver o que se passava, uma coisa pesada mas macia, como uma moca envolvida num tecido acolchoado, atingiu-me na parte de trás da cabeça. Perdi o equilíbrio e apertei as rédeas. Alguém me agarrou numa perna e a puxou. Caí. A terra e o céu trocaram de lugar. Na confusão, avistei vagamente Davo a voar do cavalo, com os braços abertos e malhando como se estivesse a subir uma escada invisível. Tinha o punhal numa das mãos. Devia ter percebido o que estava a acontecer, e teve tempo de o empunhar antes de sermos atacados. Mas o cavalo onde ele ia montado começou a escoicear violentamente, sem que ele conseguisse controlá-lo. Se fosse melhor cavaleiro...

 

Quando eu atingi a superfície de pedra dura da Via Ápia, ouvi-o clamar:

 

Papá! Onde estava ele? Rolei na vertical, protegendo a cara com as mãos. Eco ainda estava montado, mas vários homens de capas pretas pareciam trepar por ele acima, como se cavalo e homem fossem uma torre que tivessem de escalar. Pelo canto do olho, vi aproximar-se uma forma escura. Afastei-me, rolando sobre mim próprio, e colidi com uma coisa quente e imóvel. Era Davo, deitado de costas nas pedras da calçada, de olhos fechados, muito pálido e quieto como a morte. Ainda tinha o punhal na mão. O meu espírito foi atravessado por uma imagem do corpo sem vida de Belbo...

 

Papá! gritou Eco novamente. Depois emitiu outro ruído, desta vez abafado, como se a sua boca tivesse sido tapada.

 

Eu estendi a mão para o punhal de Davo. Ele tinha umas mãos enormes! Fui-lhe abrindo os dedos até o punhal se soltar. Tinha-o quase na mão...

 

Nessa altura, fez-se escuro de repente, quando me enfiaram a saca na cabeça. Ela engoliu-me os ombros, depois os braços. Senti uma corda cingir-me o peito, como uma serpente. Outra corda apertou-me os tornozelos. O interior da saca cheirava a cebolas e a porcaria. Tossi e cuspi. Passaram-me pelo pescoço outro pedaço de corda, e começaram a apertá-lo. Que fim o meu, morto por estrangulamento dentro de uma saca nojenta na Via Ápia!

 

Alguém vociferou.

 

Estás a apertar-lhe o pescoço, seu idiota!

 

A corda soltou-se, depois voltou a apertar-se à volta do meu queixo, abrindo caminho entre os meus lábios e amordaçando-me.

 

Não apertes demasiado. O objectivo não é estrangulá-lo.

 

E por que não? Dizíamos que tinha sido um acidente, que ele tinha morrido de susto. Poupava-nos uma data de trabalhos.

 

Cala-te e faz o que te mandam! E o outro, apertaram-no bem? Óptimo.

 

E o escravo?

 

Dá-me a impressão de que está morto.

 

A mim também. Ouvi o som de um pontapé violento.

 

Então deixa-o ficar. De qualquer maneira, ninguém pediu que o levássemos. Tem ar de fortalhaço, ainda bem que o cavalo o atirou ao chão, senão tinha-nos dado que fazer. Chega de conversa! Vai buscar a carroça.

 

Ouvi o som de cascos de cavalo e de rodas nas pedras do pavimento. Fui erguido e atirado para cima de qualquer coisa sólida mas clemente. A voz que tinha dado ordens aos restantes falou ao pé do meu ouvido.

 

Quanto a ti, vais ficar agora muito calado e muito quieto. És uma saca cheia de cebolas, compreendes? Deitada no fundo de uma carroça na companhia de outras sacas cheias de cebolas. Vais fazer uma longa viagem, portanto torce-te um bocado para ficares tão confortável quanto possível. Se tiveres de esvaziar a bexiga ou os intestinos, não hesites, se aguentares ficar depois deitado na tua própria porcaria. E depois não te mexas. Compreendes? Se não...! Uma coisa afiada espetou-me o fundo das costas.

 

Eu gemi. O punhal espetou-me com mais força.

 

Nem sequer faças esse ruído, senão da próxima vez espeto-o até ao cabo! Vamos embora daqui.

 

O condutor mandou andar. Um burro zurrou. A carroça começou a rolar. Os sulcos e os buracos de uma estrada menos importante tê-la-iam feito oscilar, mas na Via Ápia, que era uma estrada larga e plana, a carroça quase não balançava. Tentei manter-me muito, muito quieto.

 

 

40 anunciou Eco. Depois voltou a contar, pousando o dedo, à vez, em cada uma das marcas que fizera na parede de terra, e movendo os lábios à medida que ia pronunciando os números. Para o final, começou a contar em voz alta. 37, 38, 39, 40. Exactamente 40 dias.

 

Talvez. Estás a presumir que eles demoraram quatro dias a trazer-nos até aqui queixei-me eu. Como é que sabes? Foi tudo tão horrível e confuso. Quase não nos deram de comer nem de beber, e mantiveram-nos de olhos vendados, por isso não era possível distinguir o dia da noite. Podem ter sido três dias, ou cinco, ou seis.

 

Podem ter sido, mas não foram disse Eco com naturalidade. A viagem desde o Monumento de Basílio até este sítio, seja ele em que Hades for, demorou quatro dias.

 

Como podes estar assim tão certo, se eu não estou?

 

Eles bateram-te na cabeça, papá. Acho que ficaste mais tonto do que imaginas.

 

Estava suficientemente acordado para me ter apercebido de que passámos por Roma. Nessa altura é que devíamos ter-nos arriscado a fazer barulho.

 

Arriscado? Papá, já falámos sobre isto centenas de vezes. Não tivemos qualquer hipótese. Eu tinha a ponta de um punhal encostada ao corpo, e tu também, e depois saímos da cidade.

 

Tens a certeza de que foi pela Porta Fontinal que passámos?

 

Tenho. Ouvi...

 

Sim, já sei. Ouviste alguém perguntar onde ficava a Rua dos Ourives de Prata, e outra pessoa responder que fosse sempre em frente e voltasse à direita.

 

Exactamente. Por isso, nesse momento, tínhamos que estar a passar pela Porta Fontinal, dirigindo-nos para o norte da cidade pela Via Flamínia.

 

Passámos pelo Campo de Marte meditei e pelos quiosques de votação. Por esta altura, devem estar cobertos de ervas daninhas.

 

Passámos mesmo em frente da villa de Pompeu, na Colina Pinciana disse Eco pesarosamente. Se calhar, o Grande olhou do seu jardim lá para baixo e pensou: "Onde irá aquela carroça cheia de sacas de cebolas? E quando é que o tal Descobridor e o filho me darão notícias?"

 

Se Pompeu tiver tido um momento para pensar em nós. Se não foi o próprio Pompeu que nos fechou aqui! Comecei a andar de um lado para o outro, tanto quanto o reduzido espaço do fosso mo permitia. E depois, viemos até ao campo, avançando para norte e para oeste durante uma eternidade miserável.

 

Só que não foi uma eternidade, papá. Foram quatro dias. Lembro-me perfeitamente.

 

Ainda assim, insisto em que ponhamos uns parêntesis à volta dos teus primeiros quatro dias, uma vez que não podemos ter a certeza absoluta.

 

Uma vez que tu não podes ter a certeza. Se voltares a pôr esses parêntesis, eu volto a apagá-los.

 

Estávamos ambos, de certa maneira, envolvidos numa discussão fictícia, uma vez que já tínhamos tido a mesma conversa centenas de vezes. O número dos temas de conversa é limitado, para quem está metido durante 40 dias ou teriam sido 47? dentro de um fosso com a entrada vedada por barras de ferro. Por vezes, perguntava a mim próprio se já teríamos ambos enlouquecido. E teríamos maneira de saber? Peguei no pauzinho que Eco utilizava para fazer as suas marcas diárias e coloquei parêntesis à volta das três primeiras marcas.

 

Muito bem, se contarmos as restantes marcas, o número de dias com que ambos concordamos serão...

 

Malditos ratos! Uma dessas criaturas voltara a entrar na cela e cheirava o bocadinho de pão que tínhamos posto de lado no dia anterior. Os nossos guardas costumavam trazer-nos pão fresco todas as manhãs, mas isso nem sempre acontecia; às vezes, esqueciam-se de nós durante um ou dois dias, por isso tínhamos aprendido a guardar uma parte da ração para os dias de jejum. Os ratos eram um fenómeno recente, e só tinham aparecido nos últimos dias. Eco atravessou a correr a pequena cela e pisou a criatura, que guinchou e se refugiou numa fenda da rocha que não tínhamos conseguido encher de terra.

 

Acreditas nisto, papá? Agora, os monstrinhos entram em pleno dia!

 

Não há propriamente muita luz. Ergui os olhos para o céu, para o tecto que ficava para além das barras de ferro, cujas aberturas entre as tabuínhas deixavam passar alguns raios de sol. O fosso tinha sido aberto no andar térreo de um edifício fora de uso. As paredes irregulares que nos rodeavam eram feitas de terra comprimida e de pedras. Cobria o fosso (não sabíamos bem até onde, porque tínhamos tentado escavar à volta, mas sem êxito) uma grade feita de barras de ferro. Conseguíamos chegar às barras com um salto; o que nos permitia, pelo menos, exercitar diariamente os braços. Eu tinha conseguido meter a cabeça por entre as barras, mas não havia grande coisa que ver; o edifício parecia ser um estábulo fora de uso. Por cima da grade, ao alto, ficava o tecto, que precisava urgentemente de ser reparado. Era um local sombrio e cheio de correntes de ar, mas os nossos guardas tinham-nos fornecido várias mantas mal-cheirosas, debaixo das quais podíamos comprimir-nos à noite.

 

Prefiro que os ratos venham durante o dia do que durante a noite disse eu lugubremente. As noites no fosso eram escuras como breu, à excepção das poucas estrelas que de vez em quando brilhavam por entre os orifícios do tecto. Naquela escuridão absoluta, as corridas e os guinchos dos ratos eram quase insuportáveis.

 

Os ratos não são os únicos que têm fome comentou Eco.

 

Eu sei. Oiço o teu estômago roncar, filho. Talvez devesses comer aquela côdea de pão bolorento, antes que os ratos dêem cabo dela.

 

Não sei. Que horas achas que são?

 

É difícil dizer. Deve ser depois do meio-dia, a avaliar pela luz. Se calhar, hoje não nos vêem dar comida. Se calhar nem voltavam mais, pensei, mas não o disse em voz alta, embora o mesmo pensamento mórbido devesse ocorrer de vez em quando a Eco. Se fôssemos totalmente abandonados, teríamos a possibilidade de tentar escavar uma saída sem sermos detidos; mas, sem água nem comida, quanto tempo aguentaríamos? Estávamos à mercê de homens que nunca víamos, que nem sequer nos tinham revelado as suas intenções. Eles cuidavam de nós de uma forma desorganizada, deitando-nos comida a maior parte dos dias, içando e despejando ocasionalmente o balde que usávamos para nos aliviar, e fornecendo-nos suficiente água fresca para bebermos e nos lavarmos. Por que motivo não nos tinham morto e abandonado na Via Ápia como tinham feito a Davo? Porque nos teriam trazido para tão longe de Roma se é que estávamos realmente a uma grande distância da cidade. Talvez os quatro dias de viagem de que Eco afirmava recordar-se tão claramente tivessem sido passados a andar em círculos, para nos confundir. Por que se incomodariam em manter-nos vivos, e durante quanto mais tempo isso aconteceria? O que tencionariam, em última análise, fazer connosco? Quem eram eles?

 

40 dias! disse eu. Sabes aquela história que Betesda costuma contar... Fiquei com a garganta embargada, só por dizer o nome dela em voz alta. O que teria acontecido a Betesda e a Diana na minha ausência? A partir de certa altura, eu tentara simplesmente evitar pensar nelas, porque isso me fazia sofrer demasiado. Mas a verdade é que pouco mais tinha em que pensar que de alguma maneira me consolasse. Ela costuma contar aquela antiga lenda hebraica que o pai lhe ensinou, sobre o homem virtuoso e o grande dilúvio. Ele construiu um barco enorme, onde meteu espécimes de todas as criaturas, e depois choveu durante 40 dias e 40 noites, sem parar. Imagina ter de aguentar 40 dias num barco pequeno, com o fedor daqueles animais todos, ensopados e enjoados, e com a chuva a cair.

 

Pelo menos não passava fome comentou Eco, cujo estômago roncava. Podia comer os animais.

 

Acho que a ideia era salvá-los disse eu. De qualquer maneira, temos sorte por quase não ter chovido. Durante a única tempestade significativa que tinha ocorrido desde o início do nosso cativeiro, a chuva entrara pelo telhado cheio de falhas, e formara uma piscina no fundo do fosso. Temos muita sorte por nenhum de nós ter adoecido gravemente.

 

Não necessariamente, papá.

 

Por que dizes isso?

 

Se eles nos mantiveram vivos este tempo todo, deve ser porque receberam ordens para isso. Se um de nós adoecesse, talvez nos soltassem, ou pelo menos nos tirassem deste sítio horrível.

 

Pois, talvez...

 

Oh, isto é de enlouquecer! Subitamente, Eco girou sobre si próprio e deu um murro na parede de terra, num ponto que já tinha atingido várias vezes. Pelo menos duas vezes por dia, e ocasionalmente a meio da noite, era tomado por uma súbita fúria, que apenas podia ser aliviada se batesse em alguma coisa.

 

Eu invejava o alívio que aquela acção lhe proporcionava. O nosso cativeiro era realmente de enlouquecer, a pior coisa que eu jamais tivera de sofrer. Há no espírito de um romano qualquer coisa que o impede de aquiescer com uma situação tão antinatural. Noutras terras, governadas por reis, a prisão é uma punição vulgar. É que os reis gostam de ver sofrer os seus inimigos. E não há melhor maneira de o conseguirem do que fechando-os numa jaula ou atirando-os a um fosso, e ficando a observar o seu inevitável declínio físico e mental, falando-lhes do sofrimento por que passam os que eles amam, ouvindo os seus apelos de misericórdia e torturando-os com falsas promessas de libertação. Na nossa República, porém, as punições não visam dar prazer a determinado governante, mas afastar de forma permanente o infractor da comunidade, quer matando-o (por vezes, é certo, por meios bastante macabros, especialmente quando se trata de crimes religiosos), quer permitindo-lhe escolher entre o exílio e a morte. A ideia de uma pessoa ser fechada por tempo indefinido, ainda que o seu crime seja o mais horrível de todos os crimes, é demasiado cruel, mesmo para a mentalidade romana.

 

Lembro-me do debate que teve lugar no Senado quando Cícero era cônsul e anunciou que tinha descoberto uma conspiração do círculo de Catilina, que visava derrubar o Estado. Cícero queria que eles fossem imediatamente executados. Outros discordaram, e foi César quem sugeriu que os implicados fossem reunidos e colocados sob prisão permanente. Esta ideia inovadora implicava, porém, resolver um problema prático: onde encarcerar estes alegados criminosos, uma vez que Roma não dispõe de nenhuma prisão digna desse nome, mas apenas de umas quantas celas pequenas onde se encerram os malfeitores que esperam o dia da sua execução. Além disso, havia o perigo de se estabelecer um precedente para uma prisão prolongada porque, autorizado o Estado a retirar a um cidadão a sua liberdade de movimentos, onde terminaria o processo? É que no próprio conceito de cidadania estava implícito o direito dos indivíduos a movimentarem-se como desejassem, ao contrário do que acontecia aos escravos; se um indivíduo tivesse feito alguma coisa de tal maneira terrível, que devesse ser privado do seu mais básico direito de cidadão, nesse caso, merecia o exílio ou a morte.

 

Claro que a opinião de Cícero acabou por prevalecer. Os alegados conspiradores (incluindo o padrasto de Marco António) tinham sido mortos por estrangulamento, sem serem previamente julgados. Muitos discordaram, se não na altura, pelo menos depois, e a sua ira, aproveitada por Clódio, acabou por conduzir ao exílio de Cícero, que durou 16 meses. Mas nem os seus piores inimigos tinham proposto que Cícero fosse metido numa prisão, como um cortesão abjecto que tivesse ofendidp um monarca.

 

Estas meditações repetitivas e circulares eram a minha forma de lidar com a loucura provocada pela nossa situação. Elas tinham aberto um sulco no meu espírito, tão certo como o punho de Eco tinha impresso a sua forma na parede de terra que nos mantinha prisioneiros.

 

Eco parou de esmurrar a parede. Do mundo invisível chegou até nós o som familiar de uma porta grande e vacilante a ser aberta e fechada. Senti o aroma do pão fresco, tão impreciso que podia ser apenas fruto da minha imaginação. A barriga de Eco grunhiu mais alto do que nunca, e eu comecei a salivar, como fazem os cães quando sabem que vão ser alimentados. Com que impiedade a prisão despoja um homem da sua dignidade. Com que rapidez o reduz ao estatuto de animal.

 

O dia seguinte era o quadragésimo primeiro do nosso cativeiro, de acordo com os cálculos de Eco. Eu decidi calcular a data exacta, mas a interposição do mês suplente do Intercalado complicava as coisas. Eu sabia que o mês de Februarius já tinha passado tínhamos sido capturados dois dias depois dos Idos, que em Februarius calhavam a 13 e que o Intercalário também já tinha passado, por isso devíamos estar algures no princípio de Martius.

 

Claro que o mês suplente do Intercalário nem sempre tem o mesmo número de dias disse eu. Só o inserem no calendário ano sim, ano não, e mesmo assim nem sempre, e os sacerdotes têm de o ajustar de acordo com o número de dias necessários ao preenchimento do ano.

 

Eco franziu o sobrolho.

 

Nesse caso, quantos dias tem o mês suplente do Intercalário este ano?

 

27, julgo eu.

 

Eco abanou a cabeça com ar de dúvida.

 

Isso não me soa bem. Pensei que o Intercalário tinha sempre o mesmo número de dias que Februarius.

 

Não.

 

Mas...

 

Além disso, este ano, Februarius só teve 24 dias.

 

Não foram 28?

 

Não. Este ano januarius teve 29 dias, como sempre, Februarius teve 24, o Intercalário teve 27, e Martius terá os habituais 31. Eco, esta informação tem estado afixada no Fórum desde o princípio do ano. Como é possível que não a tenhas visto?

 

Nunca presto atenção a essas coisas, papá. Já tenho suficiente lixo dentro da minha cabeça.

 

Então como é que sabes em que dias é que o Senado se reúne, e quando são os feriados, e quando é que os bancos estão abertos?

 

Pergunto a Menénia. As mulheres sabem sempre essas coisas. Têm um instinto especial. Sabem quais são os mercados que estão abertos em cada dia, quando têm de comprar mais comida porque vai ser feriado, e por aí adiante.

 

Perguntas a Menénia sempre que tens de saber a data?

 

Pergunto.

 

Digamos que estás a escrever uma carta importante, e que tens de saber em que dia do mês estás...

 

Pergunto a Menénia.

 

E ela sabe?

 

Sempre. Betesda não costuma saber as datas?

 

Agora que falas nisso...

 

Experimenta. Da próxima vez que precisares de saber, pergunta-lhe.

 

Em vez de me preocupar com os avisos afixados no Fórum e fazer os meus próprios cálculos, queres tu dizer...

 

Pergunta a Betesda.

 

Não pode ser assim tão simples. Quando penso nas horas e nos dias que tenho desperdiçado ao longo dos anos...

 

Rimo-nos ambos.

 

Voltei aos meus pensamentos.

 

Quer dizer então que, se este é realmente o quadragésimo primeiro dia...

 

Mas afinal como é que os sacerdotes calculam os dias que têm de pôr no Intercalado? E por que andam sempre a alterar Februarius?

 

Procuram nos céus, Eco. Tem a ver com o movimento das estrelas, as fases da Lua, a duração das estações e por aí fora. Os anos passam um após outro, e são muito semelhantes, mas não são bem iguais. Há ciclos que têm mais dias do que outros, e não há um sistema perfeito que permita suprimir as discrepâncias. Por isso, o calendário tem de ser ajustado de dois em dois anos.

 

Excepto quando não é.

 

Há outros povos que têm outro género de calendários, como sabes...

 

Da mesma maneira que há países que têm reis.

 

Coisa que Roma não mais voltará a ter...

 

A não ser que volte.

 

Cala-te! O calendário romano é o mais perfeito de todos. Tem 12 meses.

 

Excepto quando tem 13, como este ano.

 

E estes meses têm 31 ou 29 dias.

 

 excepção de Februarius, que tem 28. Só que este ano, segundo dizes, tem apenas 24.

 

Acaba tudo por se ajustar.

 

Sim? Quero eu dizer, o calendário anda tão desencaixado, que às vezes as estações não coincidem com os feriados tradicionais.

 

Sim, e eu tenho visto as coisas piorarem ao longo da vida. Calculo que ainda seria pior se não se cortasse em Februarius, inserindo o Intercalário conforme as necessidades.

 

Isso é outra coisa, papá "conforme as necessidades". Parece que os sacerdotes decidem inserir o mês à última hora. Não podem dizer se vão precisar dele com um ano de antecedência?

 

Aparentemente não.

 

Eu diria que o calendário romano precisa de ser reformado.

 

É interessante que digas isso. Recentemente, o teu irmão mencionou numa carta que César é da mesma opinião. É outro dos seus projectos favoritos. Quando tem tempo, entre chacinar uns gauleses e ditar as suas memórias montado a cavalo, o general gosta de pensar em formas de compor o calendário.

 

Um novo calendário para Roma? Seria necessário um rei para o impor. Tratava-se de uma piada, mas eu franzi o sobrolho.

 

Não devias dizer essas coisas, Eco. Nem sequer a brincar.

 

Desculpa, papá.

 

De qualquer maneira disse eu, se César é capaz de compor o calendário, certamente que tu e eu seremos capazes de, ao menos, perceber que dia é hoje.

 

Sem recorrermos a Menénia ou a Betesda?

 

Completamente sozinhos! Muito bem, se passaram... Suspendi a respiração, ao ouvir o ruído familiar da porta a abrir e fechar. Soltei um gemido abafado e encostei-me à parede, inclinando a cabeça e apertando o estômago.

 

A portinha da grade abriu-se com um rangido. Vi uma corda deslizar com movimentos incertos, e percebi que estavam a baixar um cesto com pão fresco. Eco tirou-o do gancho e fixou nele o cesto vazio do dia anterior.

 

Eu voltei a gemer, tentando fingir que estava a abafar o som e não a produzi-lo à força. Um cidadão orgulhoso não gosta de mostrar as suas fraquezas ao escravo do seu inimigo.

 

O que se passa com ele? perguntou uma voz do alto.

 

O que te interessa isso? respondeu Eco.

 

Mantive a cabeça baixa, resistindo à vontade de olhar para cima. De qualquer maneira, nunca tinha conseguido distinguir a cara dos nossos captores. Devido à luz mortiça e à distância, eles não passavam de silhuetas avantajadas.

 

Não te importas de nos despejar o balde? pediu Eco.

 

Outra vez? Ainda ontem o despejei.

 

Por favor.

 

O homem emitiu um grunhido de desagrado.

 

Pronto, está bem. Aí vai a corda.

 

Eco prendeu o balde. Ouviu-se o chocalhar do líquido à medida que o homem o ia puxando, alternando uma mão e outra. Quando se afastou, ouvi-o resmungar:

 

O que é isto? Houve uma pausa, e eu imaginei-o a olhar intrigado, cerrando os dentes e franzindo o nariz enquanto estudava o conteúdo aguado. Depois, voltou a encaminhar-se para a porta e abriu-a. De um pouco mais longe, chegou até mim o fantasma de uma conversa sussurrada, seguida de uma pancada de água, quando esvaziaram o conteúdo do balde.

 

Pouco depois, o homem regresssou e voltou a descer o balde para o fosso.

 

Ele está bem? perguntou.

 

Eu asfixiei um gemido e tirei as mãos do estômago.

 

Vai-te embora disse Eco friamente.

 

Os passos afastaram-se. A porta abriu-se e fechou-se. Algum tempo depois, perguntei a Eco:

 

Como achas que correu?

 

Pareceste-me bastante convincente.

 

Eu acenei com a cabeça. Olhámos ambos para o pequeno monte de terra que cobria o corpo do rato que Eco tinha morto naquela manhã, e cujo sangue tínhamos copiosamente acrescentado à nossa urina.

 

Achas que conseguimos apanhar outro rato com a mesma facilidade? perguntei eu.

 

À luz do dia, se for preciso garantiu-me Eco.

 

Abri os olhos para uma escuridão profunda. O ar estava frio e húmido, bafiento e malcheiroso.

 

Onde estava eu? No fosso, evidentemente, já me lembrava. Onde cada dia era igual ao anterior, onde nada mudava só que havia uma diferença. Não estávamos sozinhos.

 

Eu sentia isso. Como? Não com os olhos, certamente. Seria um ruído? O som de outra respiração, para além da de Eco? Ou um vago movimento? Um cheiro...?

 

Sim: o cheiro a alho, suado dos poros, exalado na respiração. Outro fedor, acrescentado ao miasma que se instalava no fosso durante a noite, empurrado para baixo pelo ar húmido. A cabeça andava-me à roda por causa dele.

 

Quem come alho? Os gladiadores. Afirmam que dá energia. Nesse caso, por que não derrubam os seus opositores com o bafo, diz uma velha piada. Desatei a transpirar, apesar do frio. O suor corria-me pela testa numa torrente tal, que tive de o limpar com a manga, a manga nojenta de uma túnica que não era mudada há mais de 40 dias seguidos. Ouvia-os respirar, com um ruído que se elevava por cima do violento bater do meu coração. Quem, ou que coisa, estava no fosso connosco?

 

Ninguém podia certamente ter entrado pela grelha sem nos acordar. A tampa era demasiadamente pequena para deixar passar um homem; para isso, havia outra porta, que estava fechada com uma grande corrente. A corrente teria feito barulho. A dobradiça da porta (que nunca mais tinha sido usada desde que Eco e eu passáramos por ela) teria guinchado e resmungado. Subitamente, tive uma horrível intuição sobre a forma como os intrusos tinham entrado e de onde tinham vindo...

 

No fundo da terra, acendeu-se uma chama, e um brilho vermelho iluminou a fissura em ziguezague que tinha sido aberta na parede do fosso. Tinham escavado a terra. O brilho permitia-me vê-los aos dois, eram silhuetas enormes, pesados, monstruosos, cada vez maiores à medida que se iam aproximando. Deviam vir directamente do Hades.

 

Eco agitou-se e acordou.

 

Papá... o que...?

 

Eu toquei-lhe nos lábios, pedindo-lhe silêncio, mas os dois intrusos já nos tinham avistado. Eu também os via claramente, porque o brilho do fogo tinha inundado todos os recantos do fosso. Reflectia-se nas espadas incrustadas de sangue que eles traziam na mão. Iluminava-lhes as caras hediondas. Com que se parecem homens que mataram centenas de homens sem remorso, que têm prazer na crueldade, que se alimentam do prazer selvagem de extinguir a vida dos outros? Parecem-se com Eudamo e Birria, evidentemente. E eles estavam diante de nós, quase cómicos na maneira como olhavam de esguelha, como sorriam afectadamente, como alargavam as narinas. Que vil fatalidade, pensei, que estas tivessem de ser as duas últimas caras que eu via deste lado do Hades.

 

Ou então...

 

Não, nem penses nisso!; Mas porque não? Esperança até ao último momento! Agarra-te à esperança, aperta os braços com força à volta dela, estrangula-a! Os deuses têm-se divertido com a tua vidinha durante estes 50 e tal anos. Por que haviam de desistir de ti neste momento ? Pensa: entre os restantes mortais, ninguém sabe quem são os amigos e quem são os inimigos. Talvez... talvez apenas... Eudamo e Birria não tenham vindo para te matar, mas para te salvar, sim, para te libertar deste lugar maldito!

 

Gordiano! Não dispões de armas, mas tens a tua dignidade. Levanta-te! Não te encolhas como uma vítima. Endireita a espinha. És um cidadão romano. Eles são os escravos de outro homem. Inclina ligeiramente a cabeça em sinal de reconhecimento. Evita olhar para as espadas. Olha-os nos olhos. Obriga-os a baixar os seus. Não te preocupes com o facto de eles serem muito mais altos do que tu, e de o fedor a alho te fazer murchar como uma folha no Outono. Não penses no brilho do metal que vislumbras pelo canto do olho quando eles erguem as espadas não vaciles!

 

Como será ser decapitado?

 

Tremes como uma folha! "Tentas parar, mas tremes, e tremes, e tremes, até...

 

Abri os olhos para a luz suave que era a manhã dentro do fosso. Eco estava inclinado sobre mim, com um ar preocupado, abanando-me. Papá, estás bem?

 

O quê?

 

Primeiro, parecia que estavas a ter um pesadelo horrível. Depois, parecia que te tinhas descontraído. Depois, soltaste um ruído tão horrível, que achei melhor acordar-te.

 

Foi um sonho. Foi só um pesadelo...

 

Foi o pesadelo sobre Eudamo e Birria?

 

Sim. Tentei engolir. Tinha a boca seca como pergaminho. Ainda temos alguma água de ontem?

 

Um bocadinho. Toma. Meteu a mão em concha dentro do balde e levou-ma aos lábios.

 

Eu bebi com avidez.

 

Às vezes gostava que o sonho se realizasse, para melhor ou para pior. Se ao menos aparecesse alguém, para pôr fim a este horror, fosse de que maneira fosse.

 

Shhh, papá. Vais sentir-te melhor depois de te levantares e te esticares um pouco.

 

E foi assim que começou, pelos cálculos de Eco, o nosso quadragésimo segundo dia de cativeiro, o quinto dia do mês de Martios, nove dias antes dos Idos, do ano sem cônsules.

 

O que achas que se estará a passar em Roma neste momento, papá? disse Eco, com uma nota de melancolia na voz.

 

Eu pigarreei.

 

Quem sabe? Ouvimos tantos boatos no Monte Alba, antes de sermos capturados. Alguns faziam mais sentido do que outros. Não acredito que Milo se suicidasse, por exemplo. É demasiadamente teimoso. Poderá ter-se deixado apanhar numa armadilha da qual não consegue sair, como o seu homónimo de Crotona, mas acabará por se libertar, à força de gritos e pontapés. Claro, podem ter acontecido coisas imprevisíveis por Hércules, 42 dias é uma eternidade!

 

Tempo suficiente para esse tal deus hebraico ter inundado a terra inteira disse Eco retorcidamente.

 

E para o Estado romano se ter afundado em sangue, calculo eu. Mas, se tivesse de apostar, apostava mais na ordem do que no caos, pelo menos no curto prazo. Sabemos que Pompeu tencionava conseguir que o Senado o autorizasse a reunir tropas para dominar a desordem que reinava na cidade. E aposto que conseguiu o que queria. Pompeu à cabeça de um exército é uma força praticamente imparável.

 

Eco mostrava-se céptico.

 

Talvez seja excelente para a conquista de tropas estrangeiras num campo de batalha, mas sê-lo-á igualmente com pessoas que atiram pedras nas vielas de Roma?

 

- Não estou a ver a ralé clodiana a enfrentar as tropas de Pompeu.

 

Os soldados não podem estar em toda a parte ao mesmo tempo. Podem surgir constantemente pequenos tumultos, incêndios aqui e ali.

 

Sim, podia continuar a haver desordem, mesmo com as tropas de Pompeu na cidade, mas apenas a uma escala menor. O Fórum estaria a salvo.

 

O suficiente para se organizarem eleições? Eu abanei a cabeça.

 

Primeiro, vai ser preciso resolver este assunto de Milo e Clódio. Consegues imaginar o que aconteceria se houvesse eleições e Milo vencesse? Calculo que ainda seja possível, mas o resultado inevitável seria outra ronda de tumultos, e isso significaria guerra aberta com as tropas de Pompeu nas ruas, não estou a ver o Senado a permitir que isso acontecesse.

 

Nesse caso, quem estará à frente do Estado? Achas que nomearam Pompeu ditador?

 

Certamente que não, com César na Gália, à cabeça do seu próprio exército. César podia achar que não lhe restava alternativa, senão marchar ele próprio sobre Roma. Estremeci perante a ideia de Meto ser arrastado para uma guerra civil.

 

Tenho a certeza de que isso não aconteceria.

 

Eu sei que parece impensável, mas quem teria imaginado ver o Senado a arder em pleno dia? Abanei a cabeça. Já tínhamos tido esta conversa centenas de vezes. Umas vezes, Eco assumia a voz da razão, outras vezes, eu era o céptico insidioso. Era impossível deixar de especular quanto ao que estaria a acontecer na nossa ausência, tal como era impossível sabê-lo.

 

Depois de uma longa pausa, Eco comentou suavemente.

 

Não era isso que eu queria dizer, sabes?

 

O quê?

 

Quando disse "O que achas que se estará a passar em Roma neste momento?" Não estava a falar de política, nem das eleições, nem de nada disso. Estava a falar...

 

Eu sei do que estavas a falar. Percebi pelo teu tom de voz.

 

Então por que mudaste de assunto? Não querias falar sobre isso? Sobre elas...

 

Pensar nelas faz-me sentir bem, a princípio, reconfortado. Mas depois, começo a sentir-me arrepiado, a ficar com um nó na garganta, frio e duro como gelo.

 

Eu sei, papá. Eu também tenho medo por elas.

 

Já passou tanto tempo. Devem pensar que nós morremos. Imaginas Betesda de luto? Não consigo suportar a ideia.

 

Percebo isso. Imagino Menénia a chorar e corta-se-me o coração. As mulheres de luto lembras-te de Fúlvia e de Clódia, naquela noite em que fomos ver o corpo de Clódio? Ele era mesmo um tipo bastante horrível, não era, papá?

 

Encolhi os ombros.

 

Depende da pessoa a quem perguntares. Era implacável para com os seus inimigos, disso não há dúvida. Provocou bastante sofrimento neste mundo. Mas também deu grandes esperanças e algum poder real a muitas pessoas que não dispunham de nenhuma dessas coisas, já para não falar da garantia de poderem comer o suficiente. Para essas pessoas, é um herói.

 

Mas não deixa de ser um homem vaidoso, louco pelo poder e ganancioso. Basta olhar para as casas que construiu.

 

Pois é.

 

Apesar disso, quando ele morreu, a irmã chorou. E Fúlvia lembras-te da maneira como ela tentou esconder as suas emoções quando nós estávamos na sala? Mas depois, diante da multidão, guinchou e pranteou. Na altura, pensei que era tudo fingido, mas agora acho que ela estava mesmo a sofrer, que se sentia perdida, impotente. Penso em Menénia e em' Betesda, de luto por nossa causa, assustadas com o futuro, e penso em Clódia e em Fúlvia, e sinto uma grande tristeza por todas elas.

 

Franziu o sobrolho e ergueu os olhos para as manchas de sol que se viam por entre as barras do telhado. Mas não estamos a falar do que realmente nos preocupa, pois não? Estamos a imaginá-las a chorarem a nossa morte. O que eu queria realmente dizer era...

 

E se lhes aconteceu alguma coisa?

 

Pois.

 

Eu suspirei.

 

Tudo depende do que Pompeu tenha decidido. Ele prometeu cuidar da segurança delas enquanto nós estivéssemos ausentes. Pompeu é um homem de palavra.

 

Mas nós temos estado ausentes muito mais tempo do que ele poderia supor. Por esta altura, deve pensar que morremos.

 

Sim, é o mais provável. Se é que pensa em nós de todo.

 

E se não é Pompeu quem controla a cidade? E se ele foi assassinado? Ou se aconteceu uma loucura total, uma guerra civil com César, e Pompeu partiu para Espanha para reunir um exército?

 

Não temos maneira de saber, Eco. Não temos maneira de saber...

 

Escondi o rosto nas mãos.

 

A porta do estábulo rangeu e abriu-se. Eco inspirou profundamente.

 

O cesto do pão foi erguido e descido, juntamente com um balde de água fresca.

 

O que se passa com esse?

 

Com o meu pai, queres tu dizer. Incomodava-te muito dizer "O que se passa com o teu pai?" Eco parecia-me genuinamente irritado. Eu mantive a cabeça baixa e os braços à volta do corpo. Sentia-me desesperado; não tinha dificuldade em fingir sofrimento.

 

Muito bem, o que se passa com o teu pai?

 

Não se sente bem.

 

Não parece ter perdido o apetite.

 

Não tem comido nada.

 

Nesse caso, o que aconteceu ao pão que eu vos trouxe ontem? foste tu que o comeste sozinho? Estás a tirar o pão da boca do teu pai, com ele doente?

 

- Comi o que precisava. Os ratos roubaram o resto a noite passada, se queres saber.

 

O homem resmungou.

 

Então, precisas que te despeje o balde outra vez?

 

Não.

 

Tens a certeza.

 

Vai-te lá embora, se não te importas. Acho que estás a fazer com que o meu pai se sinta pior.

 

Por que não me deixas despejá-lo? Livras-te do cheiro.

 

Vai-te embora!

 

Eco inclinou-se sobre mim, como se tinha inclinado naquela manhã, para me acordar do pesadelo. Houve uma longa pausa, e depois os passos afastaram-se, e a porta abriu-se e fechou-se. Esforcei-me por escutar, e pareceu-me ouvir um murmúrio de discussão à entrada do estábulo.

 

Não tínhamos conseguido apanhar outro rato nesse dia.

 

No dia seguinte, porém, a Fortuna sorriu-nos, a nós e não a um certo co-habitante do fosso, especialmente rechonchudo, especialmente curioso e (um aspecto muito importante para nós) especialmente lento. O que foi bom, porque nessa tarde o guarda insistiu em despejar-nos o balde. Eco garantiu-me que ele fez uma expressão de profundo desagrado ao ver tanto sangue misturado com a urina. Houve nova discussão à saída do estábulo. As vozes ergueram-se bastante mais do que na vez anterior, cada uma delas com um tom diferente de recriminação. O companheiro do guarda, que nós raramente víamos, veio observar-me pessoalmente.

 

Onde é que te dói? perguntou com brusquidão. Eu gemi.

 

É na barriga, seu idiota disse Eco, conseguindo fingir que estava simultaneamente irritado e ansioso, mas não queria mostrar.

 

Os nossos guardas retiraram-se em silêncio, mas houve outra discussão acesa à entrada da porta, que foi recuando progressivamente para uma distância que nós não podíamos ver nem ouvir.

 

Já que vamos sair daqui em breve... comecei eu.

 

Por que não ser loucamente optimista? Estávamos no quadragésimo quarto dia de cativeiro, sete dias antes dos Idos de Martios, quarto dia da minha doença fingida. Eco tinha conseguido, uma vez mais, capturar matar e sangrar um rato. A sua ânsia por uma migalha de pão sobrepôs-se à sua capacidade de avaliação da situação para citar o solene elogio fúnebre que Eco pronunciou quando enterrámos a criatura num recanto escondido, na esperança de abafar o cheiro.

 

Sim? respondeu Eco.

 

Já que vamos sair daqui em breve, acho que devíamos tentar perceber quem teria razões para nos meter aqui.

 

Talvez consigamos descobri-lo pelos guardas.

 

Se tudo correr bem, seremos nós a fugir dos guardas, ou eles a fugir de nós. Duvido de que haja grandes conversas. De qualquer maneira, percorrer os factos conhecidos do nosso dilema proporcionar-nos-á alguma coisa sobre que pensar durante uma hora ou duas.

 

Outra vez?

 

Faz-me a vontade. A não ser que tenhas algum encontro marcado noutro sítio. Bem me parecia que não. Muito bem, o que foi que descobrimos na Via Ápia? Ou melhor, o que foi que não descobrimos?

 

Essa pergunta faria dores de cabeça a Aristóteles, papá! É o mesmo que pedires-me que prove uma negativa.

 

Tens razão. Vamos então passo-a-passo. A fazer fé no relato da sacerdotisa Felícia, Milo e Clódio encontraram-se na Via Ápia por acaso. Não houve emboscada nenhuma. Os dois grupos passaram um pelo outro sem incidentes. Quando iam a afastar-se, Clódio lançou um insulto de despedida a Birria. Birria reagiu impulsivamente e atirou a lança a Clódio. Foi tão premeditado como uma rixa numa taberna.

 

Mas também é possível, papá, que Birria já tencionasse atirar a lança, por ordem do seu senhor. Talvez Birria tivesse sido o primeiro a insultar Clódio, embora Felícia não o tenha ouvido; Clódio reagiu, e Birria usou isso como pretexto para dar início ao ataque. Pode ter sido premeditado, ou então Milo terá dado uma ordem a Birria no momento, quando os dois grupos se encontraram. A força de que Milo dispunha era numericamente superior. Talvez ele tenha percebido que chegara a sua oportunidade de matar Clódio, e tenha decidido aproveitá-la.

 

Tens alguma razão, Eco. Seja como for, não temos qualquer prova de que Clódio tenha planeado ou instigado a escaramuça, a não ser berrando o insulto a Birria. É provável que o conflito tenha ocorrido de forma espontânea, ou possivelmente por instigação de Milo. O que se segue? Os homens de Clódio, em número inferior, são rapidamente dominados. Alguns deles são mortos ali mesmo, outros fogem para os bosques. Clódio, ferido, privado do cavalo e com o caminho para a sua villa obstruído pela comitiva de Milo, é ajudado por cinco ou seis homens seus a descer a colina em direcção a Bovilas. Refugia-se na estalagem, cujo dono o conhece e gosta dele.

 

Esfreguei as mãos para as aquecer. O fosso parecia-me especialmente húmido nesse dia.

 

Os homens de Milo não o perseguiram imediatamente. Felícia disse-nos que eles começaram a correr de um lado para o outro como perdigueiros que tivessem perdido um rasto, até Milo chegar. A princípio, ele ficou furioso, especialmente com Birria.

 

Porque Birria tinha atacado Clódio por sua própria iniciativa ou porque não tinha concluído o trabalho? disse Eco.

 

Suspeito de que tenha sido pela primeira razão. Quando se acalmou, Milo organizou uma espécie de conferência, e foi só nessa altura que mandou Eudamo e Birria e vários outros atrás de Clódio. Isto parece-me altamente significativo; se Milo tivesse planeado assassinar Clódio, julgo que os seus homens estariam preparados para persegui-lo imediatamente, e que o teriam feito, especialmente tendo em conta que ele estava ferido e se deslocava devagar e a pé. Por que esperaram? Acho que foi porque precisavam de instruções do seu senhor, que tinha sido completamente apanhado de surpresa pelos acontecimentos. Por que foi que ele repreendeu Birria? Porque o gladiador agira impetuosa e estupidamente, e sem o seu consentimento. É verdade que Milo também podia estar irritado com os seus homens por não terem morto Clódio de forma limpa, mas eu prefiro a tese de que o incidente foi espontâneo e não planeado e de que, quando Clódio fugiu a pé, ninguém sabia bem o que fazer a seguir.

 

Mas sempre foram atrás dele.

 

Sim, porque Milo tomou a decisão de acabar aquilo que os seus homens tinham começado sem o seu consentimento. O que seria mais perigoso para ele, Clódio ferido ou Clódio morto? Ferido, Clódio podia regressar a Roma, reunir as suas forças, levar Milo a tribunal por tentativa de assassínio, e lá se iam as possibilidades de Milo vencer a eleição para cônsul. Se Clódio morresse, Milo poderia ser acusado de assassínio, mas pelo menos os apoiantes de Clódio ficariam paralisados com a confusão, e ele não poderia ser acusado pelo próprio Clódio. Fosse como fosse, Milo estava confrontado com a ruína de tudo aquilo por que trabalhara. Essa é outra razão por que não me parece que o incidente tenha sido premeditado. Assassinar Clódio com veneno ou pela calada era uma coisa, mas fazê-lo de maneira tão desajeitada só podia acabar por se virar contra ele. Pergunto a mim próprio se terá pensado no seu homónimo, Milo de Crotona, quando tentou partir aquele tronco gigantesco na floresta e ficou com as mãos inapelavelmente presas. Terá divido o uivo dos lobos famintos, enquanto andava de um lado para o outro na Via Ápia, tentando decidir o que fazer a seguir? Devia ter sido uma ocasião de triunfo para Milo ter à mão o fim definitivo de Clódio, mas eu julgo que deve ter sido um momento de profunda infelicidade para ele.

 

Mas acabou por decidir mandar os seus homens atrás de Clódio disse Eco.

 

Quando se fere um animal perigoso, é sempre preferível matá-lo. Não tenho dúvidas de que era isso que Milo de Crotona teria feito.

 

Por isso, despachou os homens e ficou à espera de notícias. Foi uma atitude um tanto cobarde, não ter participado na batalha.

 

Se lhe perguntares, imagino que ele responderá que ficou para trás para guardar a mulher e o pessoal.

 

Eco fungou ironicamente, mas depois o seu rosto ficou coberto de sombras. Eu pronunciara aquelas palavras sarcasticamente mas, logo que me saíram da boca, tornou-se difícil não pensar nos nossos entes queridos, e na situação vulnerável em que se encontravam, sem nós.

 

De qualquer maneira disse eu, pouco depois, chega o senador Tédio, com a filha, numa liteira, com a sua própria comitiva de escravos domésticos e guarda-costas. Tédio e Milo reconhecem-se um ao outro. Milo diz uma mentira descarada que fora emboscado por bandidos e aconselha Tédio a voltar para trás. O senador, que é velho e teimoso, insiste em prosseguir, apesar das objecções da filha.

 

Entretanto, mais abaixo, em Bovilas, inicia-se a batalha. A mulher do estalajadeiro cujo relato nos chegou em segunda-mão, por via da irmã vê Eudamo e Birria matarem um dos homens de Clódio enquanto se aproximam da estalagem. Dá-se um violento assalto, em que são destruídas todas as portadas e portas do andar de baixo. O estalajadeiro é morto, e com ele os defensores de Clódio. Clódio acaba por ir parar à estrada. Presumimos que Eudamo e Birria lhe tenham tirado o anel de ouro como troféu, e para provarem ao seu senhor que o tinham morto. Depois, por qualquer razão, Eudamo e Birria e os seus homens desaparecem dali, porque um pouco mais tarde, quando Tédio chega, a batalha terminou e os vencedores não estão à vista. Tédio encontra a estalagem destruída. Vê sangue e corpos espalhados por toda a parte, incluindo o de Clódio. A mulher do estalajadeiro emerge do seu esconderijo, no andar superior. Olha pela janela e vê Tédio e a filha debruçados sobre Clódio. Desce as escadas, encontra o marido morto e perde os sentidos.

 

Apesar de não gostar do homem nem das suas opções políticas, Tédio toma a atitude mais honrosa e manda meter Clódio na sua liteira, enviando-o em seguida para Roma. Ainda está convencido de que a matança foi obra de bandidos, e decide regressar a Arícia a pé. Volta-se e começa a subir a colina. Enquanto está sentado a descansar à beira da estrada, diante da Casa das Vestais, Eudamo e Birria passam por ele, regressando para junto de Milo. Como se explica que ele ainda não os tivesse visto? Eudamo e Birria trazem prisioneiros. Felícia espreita por trás do santuário da Boa Deusa e também avista os prisioneiros. Quem são eles? Não são os homens de Clódio; os que fugiram com Clódio foram todos mortos, e Fúlvia disse-me que nenhum dos homens do marido tinha desaparecido. Então, de onde vieram Eudamo e Birria e quem eram os prisioneiros?

 

Os gladiadores regressam para junto de Milo e entregam-lhe o anel de Clódio, como prova de que ele está morto. Milo deposita-o nas mãos de Fausta, que desce a estrada para ir fazer uma oferenda à Casa das Vestais.

 

Mas, por qualquer razão, Sexto Tédio não chega a vê-la. Tédio põe-se novamente a caminho e, quando chega ao santuário da Boa Deusa, já Milo e os seus acompanhantes desapareceram.

 

Sabemos que Milo e os seus gladiadores se dirigiram à villa, onde mataram o encarregado e Halicor, o tutor, por não conseguirem encontrar o jovem Públio Clódio. Por que andava Milo à procura do rapaz?

 

Sentir-se-á assim tão despeitado e sedento de sangue, que queria assassinar o filho de Clódio? Ou tencionaria usar o rapaz como refém? E como é que sabia que o jovem Públio estava na villa?

 

Essas são, portanto, as perguntas para as quais não temos resposta. Peguei no pauzinho de Eco e desenhei na parede um número para cada pergunta.

 

Primeira: Onde estavam Eudamo e Birria quando Sexto Tédio chegou à estalagem?

 

Segunda: Quem eram os prisioneiros que Eudamo e Birria escoltaram estrada fora?

 

Terceira: Como é que Fausta desceu a estrada para ir fazer a sua oferenda à Casa das Vestais sem passar por Sexto Tédio?

 

Quarta: Quando Milo entrou à força na villa de Clódio, perguntou a Halicor e ao encarregado: "Onde está Públio Clódio?" mas como é que ele sabia que o rapaz estava na villa, e o que tencionava fazer com ele?

 

Recuei e estudei as marcas II, III, IV. Elas nada elucidavam.

 

Quanto mais olhava para elas, mais me pareciam uma simples junção de linhas verticais e oblíquas, desprovidas de qualquer significado, sequer como números dentro da minha cabeça. Eram linhas ao acaso, traçadas por um idiota. Por um breve e arrepiante momento, pensei que devia estar a ficar completamente louco. O cativeiro, a escuridão, o fedor, os pesadelos e os ratos coalesciam como um nevoeiro escuro à volta da minha cabeça. Nada fazia sentido; nada era real. Todo o drama do crime na Via Ápia mais não era do que uma fantasia elaborada que eu tinha concebido para me divertir, o poema épico de um louco. Milo e Clódio eram invenções da minha imaginação. Nada mais existia, para além do fosso.

 

Papá? Estás bem?

 

O quê?

 

Tens a mão a tremer. Deixaste cair o pauzinho. Eco baixou-se e apanhou-mo.

 

O som da sua voz devolveu-me a consciência. Agarrei no pauzinho, com mais firmeza do que seria necessário. Estendi a mão e, lentamente, tracei outro numeral na parede, mantendo a mão e a voz tão firmes quanto podia.

 

E agora, as questões mais imediatas, que certamente estarão relacionadas, de uma maneira ou de outra, com estas primeiras quatro.

 

Quinta: Quem nos atacou de surpresa quando regressávamos a Roma? Acho que podemos estar certos de que não se tratou de um vulgar rapto, destinado a obter um resgate. Se assim fosse, ter-me-iam exigido que escrevesse qualquer coisa num pedaço de pergaminho, para provar que estava vivo. E, por esta altura, já teriam percebido que não há resgate nenhum. Já estaríamos mortos. Os numerais escritos na parede começaram novamente a perder o sentido e eu desviei os olhos, para a elevação húmida onde Eco tinha enterrado o mais recente rato, naquela manhã. A não ser que já tenhamos morrido.

 

Claro que não se tratou de um rapto vulgar disse Eco, fingindo não ter ouvido o meu sussurro. Eles agiram em nome de alguém que não gostou do que nós tínhamos ido fazer à Via Ápia.

 

Mais precisamente, alguém que receava as informações que nós pudéssemos estar a levar para Roma. Portanto, sexto: Para quem nos teremos tornado perigosos com as investigações que fizemos na Via Ápia?

 

Mas isso não é óbvio, papá? Para Milo, evidentemente. Sabemos que ele mentiu escandalosamente no contio de Célio, com aquela história da emboscada, e podemos prová-lo. Tu próprio o disseste a Felícia, quando a aconselhaste a rumar para Sul. Milo encontra-se numa situação desesperada, está disposto a cometer actos desesperados.

 

O que nos conduz à última pergunta. Risquei na parede o numeral Vii. Por que razão fomos raptados, e não mortos? Se Milo ou seja lá quem for queria apenas afastar-nos, como se explica que os seus homens não nos tenham assassinado e roubado os nossos haveres, fazendo com que o incidente parecesse mais um roubo por bandidos anónimos, junto ao Monumento a Basílio? Se ele queria ser o primeiro a saber o que nós tínhamos descoberto, por que não nos interrogou, para depois nos matar? Como se explica que Milo não tenha acabado connosco, como acabou com Clódio? Terá algum destino em mente para nós? Não consigo imaginar qual seja. O que me faz perguntar a mim próprio se terá sido Milo a meter-nos aqui.

 

Quem mais poderia ter sido? Para além dele, a única pessoa sobre quem fizemos perguntas foi...

 

Marco António disse eu.

 

A porta do estábulo rangeu e abriu-se.

 

Talvez tenha chegado o momento de o descobrirmos murmurou Eco. Eu atirei-me para o chão do fosso, com os braços à volta do corpo.

 

A inspecção da urina ensanguentada procedeu como um ritual, com os nossos guardas que tinham entrado juntos a observarem atentamente o balde, como augures estudando as entranhas de um pobre galináceo.

 

O teu pai não parece estar muito bem disse aquele que costumava ficar lá fora.

 

Só agora é que percebeste? Eco mostrava-se escandalizado, assustado, frustrado. Havia um requebro na sua voz. Em parte, era representação, mas eu percebi que esse requebro não provinha do desespero, mas do oposto, de uma súbita felicidade, tão intensa que o fazia tremer como a corda tensa de um instrumento. Teria finalmente chegado o momento? Tinha! Eu também o senti. Uma raiva assustadora e maravilhosa crescia dentro de nós, uma fúria jubilosa que fora suprimida durante os longos dias passados na escuridão, mas que estava finalmente, pronta para ser libertada naquele mesmo instante.

 

Era melhor o teu pai vir connosco disse aquele que costumava ficar de fora. Inclinou-se para abrir a corrente que mantinha fechada a porta da grade. Os dois puxaram a pesada porta de ferro, e deixaram-na cair para trás com estrondo.

 

A porta da jaula estava aberta.

 

Acho que ele não consegue ter-se de pé. A voz de Eco quebrou como a de um rapazinho, enquanto ele se atarefava à minha volta, fingindo-se impotente.

 

Como é que vamos tirá-lo daqui? queixou-se o nosso guarda habitual.

 

Vê se consegues pôr o teu pai de pé disse o outro. Isso mesmo. Levanta-lhe os braços. Se ele não consegue levantá-los, levanta-lhos tu! Por Hércules, o homem está vivo, ou não? Pronto, agora agarramo-lo pelo antebraço. Cuidado, não te inclines demasiado, seu idiota!

 

O maior erro que um general pode cometer, como César e Pompeu concordariam, é subestimar a força do seu inimigo. Eu tinha-os convencido de que estava fraco, cheio de dores e muito doente. Eles pegaram-me pelos antebraços, para me porem de pé, e estavam à espera de encontrar um corpo fragilizado, que não oferecesse resistência. Imediatamente antes de eles se elevarem, eu puxei-os para baixo com toda a força. Eco ajudou, saltando para lhes agarrar nos braços acima dos cotovelos.

 

Tudo podia ter-se gorado naquele instante. Eles podiam ter mantido o equilíbrio, e ter-se soltado, fazendo-me cair de costas e ficar com cara-de-parvo. A porta teria sido rapidamente fechada, os nossos guardas ter-nos-iam rogado pragas e ter-se-iam rido de nós, e nós voltaríamos a ficar sozinhos no fosso, concentrados nos mesmos pensamentos exasperantes, nos mesmos círculos persistentes, dormindo entre os ratos, desesperando por aqueles que amávamos, angustiados, perguntando a nós próprios quanto tempo seríamos capazes de suportar aquilo.

 

Mas não foi isso que aconteceu.

 

Primeiro, as cabeças de ambos colidiram com um choque ruidoso. O som foi mais grave do que o de duas pedras, mas mais agudo do que o de duas cabaças ocas. Foi um dos sons mais agradáveis que eu já ouvi.

 

O que se seguiu aconteceu muito depressa.

 

Um deles, o que normalmente ficava de fora, mergulhou de cabeça no fosso. Eu caí imediatamente sobre ele. Ainda tinha na mão o pauzinho de Eco. Nos últimos dias, tinha conseguido aguçá-lo, amolando-o contra umas pedras do fosso. Esfaqueei-o pelo menos uma vez, antes de perceber que não era necessário. Ele tinha partido o pescoço na queda.

 

Voltei-me e vi que estava sozinho no fosso com o seu corpo sem vida. Eco já tinha conseguido içar-se e sair. Ouvi o som de uma luta por cima de mim, no estábulo.

 

Pus o punhal improvisado entre os dentes, sentindo o sabor a sangue, e dei um salto por baixo da abertura. Agarrei numa das barras de ferro e icei-me. Tínhamos praticado este movimento diariamente, saltando e içando-nos, para esticarmos os braços. Ainda assim, eu tinha pensado que içar-me pela abertura seria mais difícil do que na realidade foi. Pelo contrário, quase me pareceu que voava, como se uma mão invisível me empurrasse de baixo. Era a fúria fria que me propelia, e o conhecimento seguro de que a Fortuna começara a voltar-se a nosso favor.

 

Eco e o guarda rolavam pelo chão, sovando-se um ao outro. Eco era, de longe, o mais pequeno, mas era movido pela mesma fúria que me movia a mim, e estava a conseguir aguentar-se. Eu corri para eles, erguendo o rude punhal de madeira. O homem já tinha uma mancha de sangue na testa. Quando eu lhe enterrei o punhal no pescoço, vi mais sangue, e ouvi um berro sonoro. Ele escapou das garras de Eco e correu para a porta, com o sangue a correr por entre os dedos com que apertava o pescoço.

 

Seguimo-lo para o exterior, estonteados pela luz do Sol. Eu estava preparado para continuar a lutar, mas não se via ninguém. Estávamos sozinhos num pedaço de terra coberto de ervas, diante de um estábulo fora de uso, rodeado de árvores e terras aráveis com abundância de vegetação.

 

O outro ainda está no fosso! disse Eco. Correu para dentro, levantou a porta da grade só com uma mão e deixou-a cair com um grande estrondo. Ha! Vê se gostas! Agora vais-nos dizer quem são vocês e para quem trabalham, seu filho de uma cabra!

 

Eu fui atrás dele, ainda excitado, mas subitamente muito cansado.

 

Anda, Eco. É melhor despacharmo-nos. Quem sabe para onde fugiu o outro, ou se tem mais amigos por aqui? Ainda não estamos fora de perigo.

 

Mas, papá...

 

Eco, o sujeito está morto.

 

Não! Eco espreitou para dentro do fosso mal iluminado. O homem estava caído numa pilha convoluta, numa posição que nenhuma pessoa viva conseguiria aguentar. Ainda assim, Eco só se convenceu quando viu um grande rato correr-lhe por cima da cabeça.

 

Papá, mataste-o?

 

Não. Ele partiu o pescoço na queda. Aconteceu tudo num piscar de olhos.

 

Foi uma pena. Devia ter sofrido!

 

Eu abanei a cabeça, incapaz de concordar. O sujeito nunca fora cruel connosco, como muitos homens teriam sido, se tivessem idêntico poder sobre outros. Na verdade, fora nosso criado, trouxera-nos comida e despejara-nos os detritos. Os nossos problemas não eram com ele.

 

O facto de eu ser capaz de pensar tão calmamente era um sinal de perigo. A fúria fria começava a desvanecer-se. O pau coberto de sangue que tinha na mão encheu-me de repugnância. O momento de fuga em função do qual tudo fora construído tinha chegado e passado. Caso surgissem novos adversários, encontrariam embotado o meu gume de violência. A parte verdadeiramente perigosa da nossa fuga começava agora.

 

Estávamos sozinhos e sem amigos em território desconhecido. Não tínhamos dinheiro. Dispúnhamos de uma ração diária de pão aquele que os nossos guardas nos tinham levado nessa manhã.

 

Estávamos algures no campo. O que só piorava as coisas. Numa cidade, podíamos ter roubado aquilo de que precisávamos roupas novas para substituir os farrapos nojentos que trazíamos vestidos, suficientes moedas pequenas para fazermos uma visita aos banhos locais e a um barbeiro, e voltarmos a ter um ar respeitável, podendo depois fazer perguntas às pessoas e circular de um lado para o outro sem atrair atenções indesejadas. Numa cidade, talvez encontrássemos alguém conhecido, ou que conhecesse um amigo comum, e que por essa razão concordasse em nos emprestar dinheiro ou em nos fazer regressar a Roma. Mas o campo era outra coisa. Se andássemos pelas estradas rurais, dificilmente deixaríamos de ser notados. Os inimigos que fossem à nossa procura estariam em franca vantagem. Dada a nossa aparência desprezível, quem não nos conhecesse poderia tomar-nos por escravos em fuga, apesar de termos no dedo os anéis de cidadãos. É mais fácil passar despercebido numa viela cheia de gente do que atravessando campo aberto.

 

Onde estávamos? As colinas e as quintas que nos rodeavam não nos porporcionavam qualquer informação. Eu sabia orientar-me pelo sol, mas não sabia se Roma ficava para norte, sul, este ou oeste. Se era longe ou perto. A única maneira de iniciarmos a nossa viagem de regresso a casa era mantermo-nos o mais escondidos possível. Tentei fixar o nosso percurso, para poder regressar posteriormente ao celeiro, mas sentia-me tonto e exausto, e os campos pareciam-me todos iguais.

 

Nessa noite, dormimos ao ar livre. Tínhamos frio e aconchegámo-nos um ao outro para nos aquecermos, e eu acordei antes do amanhecer com um ronco no estômago e os pés gelados. Mas era a primeira noite em muitas que não sonhava com Eudamo e Birria, e foi decididamente agradável abrir os olhos para céu aberto.

 

Chegámos a uma estrada pavimentada, que era evidentemente uma estrada importante, mas qual? Todos os caminhos vão dar a Roma, mas só se a pessoa seguir na direcção correcta.

 

Para norte ou para sul? perguntei.

 

Eco estudou a estrada durante um longo momento.

 

Para Sul.

 

Concordo. Achas que somos como os cães, e descobriremos o caminho para casa por simples instinto?

 

Não respondeu ele bruscamente. Estava a ficar com fome. Eu também.

 

Avançámos para sul, evitando o melhor que podíamos outros viajantes.

 

"Mesmo quando a Fortuna sorri, as Parcas ainda podem pregar as suas partidas", diz um velho ditado etrusco.

 

Com os estômagos a roncar e os pés a doer, caminhámos hora após hora, pensando que, mais cedo ou mais tarde, a estrada iria dar a algum sítio que finalmente nos permitiria determinar o nosso paradeiro. Chegámos a uma região onde a estrada percorria uma série de colinas baixas, de maneira que nos era possível avistar intermitentemente, mas a considerável distância, o que tínhamos diante de nós. Vimos a comitiva que se aproximava pela primeira vez a três colinas de distância, depois a duas. É provável que algum membro do grupo nos tenha visto primeiro, uma vez que eram muitos e alguns dispunham do ponto de vantagem mais elevado que era a garupa de um cavalo. Seria quase mais suspeito tentarmos esconder-nos à beira da estrada do que limitarmo-nos a prosseguir de cabeça baixa. Não podiam ser propriamente um grupo de busca, dado que vinham em direcção a nós, e não de trás. Ainda assim...

 

Chegámos ao alto da colina seguinte. Ali estavam eles, ocupando a colina à nossa frente, com um pequeno vale entre nós.

 

Se eles nos interrogarem disse eu, não lhes concedas quaisquer Liberdades. Afinal, somos cidadãos. Temos todo o direito de andar por esta estrada... mesmo que não saibamos onde estamos. Além disso...

 

Papá...

 

E, se eles falarem primeiro, já agora podemos perguntar a que distância fica a próxima cidade, e como se chama...

 

Papá!

 

Diz, Eco?

 

Não estás a ver?

 

Parei e olhei fixamente para o grupo de homens que se aproximavam. Pareciam viajantes sérios que iam tratar de assuntos sérios, de caras graves e cobertas de pó, em virtude da cavalgada. Alguns deles eram obviamente guarda-costas. Outros...

 

Por Júpiter, Eco! Poderá ser?

 

Eco acenou com a cabeça e ergueu a mão num gesto de saudação. Depois de um último momento de dúvida, eu fiz o mesmo. Ainda assim, os cavaleiros mal olharam para nós. Não havia dúvida de que nos tomavam por um par de vagabundos barbados. Foi Tiro quem teve um sobressalto, murmurou uma exclamação de surpresa, e estendeu a mão, poisando-a na manga do seu antigo senhor. A comitiva parou.

 

Por todos os deuses! Cícero inclinou-se para diante e observou-me como se eu fosse uma curiosidade extravagante que estivesse a ser exibida na arena. Será mesmo Gordiano, debaixo de tanto pêlo e tanta porcaria? E Eco?

 

Estão vivos! Estão ambos vivos! Tiro tinha a voz embargada. Saltou da montada e correu a abraçar-nos, chorando de alegria.

 

Cícero conseguiu controlar os seus sentimentos e não desmontou. O nosso cheiro chegou-lhe às narinas e ele franziu o nariz. Olhou para mim e abanou lentamente a cabeça.

 

Gordiano, estás com um aspecto assustador! Em que história andaste tu metido?

 

O vosso desaparecimento foi muito comentado em Roma disse Cícero nessa noite, enquanto jantávamos numa sala privada de uma estalagem, à saída da cidade de Arimino.

 

Espanta-me que alguém tenha reparado na minha ausência.

 

Oh, muito pelo contrário. És mais conhecido do que possas pensar. As especulações têm sido intermináveis. Até os vendedores do mercado de peixe falam acerca do inexplicável desaparecimento do Descobridor e do seu filho; pelo menos é o que me contam os meus escravos. Claro que, no último mês, Roma tem presenciado todo o género de acontecimentos estranhos e boatos curiosos. O vosso desaparecimento foi apenas mais um.

 

Mas a minha família encontra-se bem? Eu já tinha feito a mesma pergunta, mais do que uma vez.

 

Tiro sossegou-me pacientemente.

 

Muito bem. Ainda antes de sairmos de Roma fui fazer-lhes uma visita, para saber se havia novidades vossas. Estavam todos de boa saúde a tua mulher e a tua filha e a mulher e os filhos do teu filho. Estavam bastante preocupadas convosco, evidentemente...

 

Eco abanou a cabeça.

 

Devíamos voltar imediatamente para Roma, papá, em vez de estarmos aqui a encher a barriga!

 

Que disparate disse Cícero. Com um gesto, indicou a um escravo que voltasse a encher-me o copo de vinho aguado e trouxesse mais comida. Acho que vocês não fazem ideia do terrível aspecto que tinham quando eu vos encontrei, esta tarde. Felizmente que a cidade de Arimino dispõe de uns banhos de qualidade, por isso não foi difícil lavar-vos e barbear-vos decentemente. E esta estalagem serve comida decente, por isso também temos esperança de conseguir começar a engordar-vos um pouco. Já quase começam a parecer outra vez seres humanos. Quanto à ideia de regressarem a Roma a mata-cavalos, não vo-lo aconselho. Precisam de repousar e de recuperar, de boa comida, de ar e sol, e acima de tudo da segurança de viajarem na companhia de homens armados. Oh, não, insisto em que permaneçam comigo, pelo menos até chegarmos a Ravena, amanhã.

 

Cícero tinha-nos explicado que ia visitar Júlio César ao quartel-general de Inverno do comandante, em Ravena. Mas eu ainda não descobrira por quê. Ele e Tiro tinham saído de Roma quatro dias antes uma informação que Eco recebera com algum regozijo, citando-a como prova de que a sua recordação de uma viagem de quatro dias no início do nosso cativeiro era precisa. Na verdade, o seu cálculo dos dias e o meu cálculo da data estavam ambos correctos: estávamos a seis dias dos Idos de Martius, tinham passado 72 dias desde a morte de Públio Clódio. Tínhamos estado presos durante 44 dias, algures nas proximidade de Arimino, a cidade onde termina a extensão mais a norte da Via Flarínia e se inicia a mais recente Via Popília, que segue para norte, nadirecção de Ravena.

 

E de que mais se fala em Roma? perguntei eu. Refiro-me aos vendedores dos mercados de peixe. Tomo o facto de os mercados estarem abertos como um sinal positivo.

 

Sim, as coisas acalmaram consideravelmente em Rena desde o vosso... infortúnio. O Senado autorizou Pompeu a reunir tropas para manter a ordem, e elas portaram-se bastante bem. Tem havido alguns confrontos entre soldados e civis, e pequenos incidentes defogo posto mas, de uma maneira geral, a ordem foi restabelecida.

 

E houve eleições?

 

Cícero estremeceu. Seria da dispepsia ou da política?

 

A questão das eleições tem-se tornado crescentemente... problemática. Insustentável, em última análise. Imagina só, tivemos inter-reis desde Lépido, e ainda não houve eleições. Mas agora isso acabou. Poucos dias antes de Tiro e eu sairmos de Roma, o Senado votoufavoravelmente uma proposta de fazer de Pompeu o cônsul exclusivodurante o resto do ano. A sua voz transformou-se num murmúrio fino. Tossiu e estendeu a mão para o copo de vinho. O cancelamento das eleições consulares constituía uma grande derrota pessoal e política para ele. O que aconteceria agora ao seu campeão, Milo? O processo eletoral voltaria alguma vez ao normal?

 

Cícero pigarreou e prosseguiu.

 

Tem havido muitas altercações e manobras no Senado, como podes imaginar. Fez este comentário sem o habitual deleit;. Cícero insistira muito na minha aparência terrível, mas eu começava a perceber que ele também estava bastante cansado e esgotado. Primeiro, os Clodianos tentaram obrigar Milo a entregar os seus escravos para serem interrogados. Milo antecipou-se-lhes aí, não foi, Tiro? Libertou antecipadamente os escravos em questão, para que o Senado não pudesse convocá-los e torturá-los. Nós respondemos com a exigência de que Fúlvia entregasse os escravos de Clódio para serem um bocadinho torturados e interrogados. Ela e a família não apreciaram assim muito a ideia. Cícero sorriu com ar triste ao recordar esse pequeno triunfo. Desde que Pompeu se tornou cônsul, os Clodianos têm andado a tentar impor uma investigação especial à morte de Clódio. O que eles queriam era um julgamento espectacular, com Milo a ser crucificado como um escravo, uma coisa chamativa e dramática. Depois, afirmaram que o crime de Milo foi de tal maneira relevante, que o Senado tinha de aprovar uma lei especial para lidar com ele. Propuseram essa investigação, e nós respondemos adicionando a esse pedido uma legislação que condenava especificamente o incêndio do Senado e o ataque à casa do inter-rei Lépido. Dessa maneira, os três incidentes seriam igualmente condenados aos olhos da lei, e os malfeitores sujeitos a igual penalização. Oh, os Clodianos não gostaram disso! Não, não, não! Esperam que alguém seja destruído pela morte do seu precioso chefe, mas acham que podem pegar fogo a metade do Fórum sem pagar por esse crime! Muito bem, veremos, veremos... Cícero lançou a cabeça para trás e estreitou os olhos. Ocorreu-me que teria bebido demais. Eu nunca, mas nunca, tinha visto Cícero embriagado.

 

Ele franziu o nariz.

 

Entretanto, Pompeu tem ideias muito próprias sobre a maneira de endireitar as coisas. Apresentou um pacote de novas leis que, segundo afirma, vão acelerar os julgamentos e acabar com a sedição. A ideia que Pompeu tem da lei e da ordem é ser mais fácil condenar um homem e impor-lhes castigos mais severos, quer ele seja culpado, quer não! Algumas das coisas a que ele chama reformas são positivamente ridículas. Julgamentos mais curtos, diz ele; é a solução. Não podemos dar-nos ao luxo de conceder a um orador todo o tempo de que ele precisa para construir um argumento irrefutável. Chega desses disparates de a acusação e a defesa disporem ambas de um dia inteiro para pronunciarem os seus discursos! A acusação terá direito a duas horas, e a defesa a três. Calculo que, se um advogado for a meio de um discurso quando terminar o seu tempo, lhe fechem a boca. E testemunhas! As testemunhas aparecem em primeiro, e não em último lugar. O que transforma as testemunhas no centro do julgamento, e os discursos numa mera adenda! Pompeu nunca foi grande orador, é verdade. Desconfia da oratória, por isso quer despromovê-la, eliminá-la. Mas conceder esse género de proeminência às testemunhas é simplesmente uma loucura qualquer pessoa com um mínimo de bom senso sabe que as testemunhas estão quase sempre enganadas, ou não são fiáveis, ou foram subornadas. E acabaram as testemunhas abonatórias! Pompeu proibiu as testemunhas abonatórias. Tanto faz que um homem possa conseguir que metade do Senado corrobore o seu bom carácter, esse testemunho é irrelevante. Os júris são agora escolhidos de uma lista de nomes elegíveis, seleccionados pessoalmente por Pompeu. Seleccionados por um só homem, nem sequer por dois, porque temos apenas um cônsul, e que nem sequer foi eleito pelos cidadãos!

 

Tiro poisou uma mão no ombro do seu antigo senhor, a fim de o acalmar, mas Cícero enxotou-o.

 

Sei o que estou a dizer. E não estou embriagado. Estou apenas cansado, muito cansado. Não gosto de viajar. Além disso, Gordiano aprecia a sinceridade. Não é verdade, Gordiano? Ah, mas já me esquecia que agora és um homem de Pompeu, não és?

 

O que queres dizer com isso?

 

Era difícil não reparar em todos aqueles guardas que vigiaram a tua casa no último mês. Foi Pompeu que os enviou, não foi?

 

Talvez respondi eu, pouco à-vontade sob o escrutínio de Cícero, mas satisfeito por saber que Pompeu cumprira a sua palavra. Isso não significa que eu seja um homem de Pompeu.

 

Cícero olhou fixamente para o copo e pestanejou.

 

Gordiano, eu nunca fingi compreender as tuas caóticas lealdades. Tanto quanto sei, tu espias Pompeu, e não em nome dele, e seja como for conseguiste convencê-lo a guardar a tua família enquanto o fazes.

 

Estavas a falar das reformas de Pompeu disse eu, para mudar de assunto.

 

Cícero soltou uma gargalhada. Que quantidade de vinho tinha ele bebido?

 

Estava, pois. Sabes qual é a minha favorita? A brilhante inovação do Grande para eliminar os subornos. Se um homem for condenado por suborno, poderá obter um perdão, desde que consiga condenar outros dois homens por suborno! Não tarda que todos os habitantes de Roma formem um círculo, apontando o dedo ao homem que está ao seu lado. É uma boa maneira de manter as pessoas ocupadas, enquanto a República nos escorre por entre os dedos. É ridículo, é fazer troça da Lei. Mas Pompeu nunca compreendeu as leis, nunca teve verdadeiro respeito por elas, tal como não respeita a oratória. Respeita as instituições, como o Senado, mas apenas de uma forma vaga, abstracta e sentimental. Não tem qualquer consideração pela Lei. Não percebe que é bela, que é terrível, que nos cerca e nos une, como um fio de ouro. Abre caminho por ela adiante, como um homem que se liberta de teias de aranha. Tem o espírito vulgar e pragmático de um autocrata.

 

Cícero poisou as mãos sobre o estômago e retraiu-se.

 

Graças aos deuses que Célio é tribuno este ano e tem poder de veto sobre qualquer legislação que infrinja os direitos individuais. Célio advertiu Pompeu de que vetará as novas leis. Sabes o que respondeu Pompeu? Disse ele, muito calmamente: "Faz o que tens de fazer, que eu farei o que for necessário para defender o Estado". Típico! Por que não se limita a sacar da espada e a brandi-la diante da cara de Célio? Vão acabar por chegar a um compromisso, evidentemente; é sempre assim. Vamos ter de deixar Pompeu levar a sua avante, pois de outra maneira ele queixar-se-á de que não tem poder suficiente para manter a ordem e exigirá ainda mais poder. E até onde nos conduzirá isso? Cícero encolheu elaboradamente os ombros, num gesto de desagrado. Ah, mas Gordiano, tu quase não falaste dos teus sofrimentos.

 

Tu também não perguntaste.

 

Foi terrível, não? Raptado, empurrado para um sítio qualquer longe de Roma, fechado num fosso. Quem terá perpetrado semelhante atrocidade?

 

Tenho-me perguntado frequentemente o mesmo. Tive muito tempo para pensar nisso.

 

Estou certo de que sim! E chegaste a alguma conclusão? Terá olhado para mim com astúcia, ou teria apenas as pálpebras pesadas, por causa da fadiga e do excesso de bebida?

 

Ainda não.

 

Ah, Gordiano, sempre à espera da tua hora, a examinar minuciosamente todas as provas, à procura de novas revelações, adiando a apreciação final. Serias um péssimo advogado. Não dispões do dom de compor as coisas. Quer dizer que não fazes a menor ideia de quem te raptou, nem por quê?

 

Nunca chegámos a ver bem os nossos captores, e eles nunca nos deram qualquer pista que nos permitisse identificar os seus empregadores ou, já agora, perceber por que razão não nos mataram.

 

Ah, trata-se então de um mistério! Mas aqui estás tu, novamente livre e finalmente a salvo.

 

Sim, a salvo. Mas evidentemente que me importa bastante saber quem me tratou, e ao meu filho, com tal desprezo. Estamos ambos vivos e bem...

 

Espantosamente bem, considerando o que se passou!

 

Mas também podíamos não estar. Se um de nós tivesse sido ferido no ataque, ou adoecido naquele lugar terrível...

 

Cícero acenou vagamente com a cabeça. Tiro estremeceu.

 

Mas eu vou descobrir quem esteve por trás disto. Suponho que o mais prudente seria, neste momento, voltarmos atrás à procura do estábulo onde estivemos fechados. Mas duvido de que consigamos encontrá-lo. O que te parece, Eco?

 

Acho que estávamos fazer um esforço tão grande para não sermos vistos, que não conseguimos memorizar uma paisagem desconhecida. Além disso, papá, um estábulo fora de uso numa leira de terra abandonada pode pertencer seja a quem for. Encontrar o sítio não nos conduziria necessariamente aos homens que nos capturaram. Há muito que eles devem ter desaparecido.

 

Mas podíamos fazer a busca na mesma disse eu. Vamos precisar de guarda-costas, evidentemente. Voltei-me para Cícero, que se mostrou pouco à-vontade por instantes e depois sorriu mansamente.

 

Gostaria imenso de te agradar, claro, Gordiano, mas não posso dispensar-te nenhum homem. Provavelmente, a protecção de que disponho nem sequer é suficiente o teu exemplo ilustrou bem de mais o lamentável perigo que as estradas constituem nestes dias terríveis.

 

Podias desviar-te do teu caminho por um dia ou dois, Cícero. Vem connosco procurar aquele estábulo e os homens que nos mantiveram cativos.

 

Isso é impossível, Gordiano. A minha missão é demasiadamente importante e não pode esperar. Amanhã, prossigo para Ravena.

 

Ah, pois, a tua missão, Cícero. O que vais conversar com César? Ou é segredo de Estado?

 

Não é segredo nenhum. Trata-se novamente de Marco Célio. Ele é um tribuno tão ocupado! César quer poder concorrer a cônsul no próximo ano, mas isso não será possível enquanto comandar as suas tropas e estiver impedido de entrar na cidade. Por isso, os seus apoiantes conceberam uma isenção especial, que permite a César concorrer a cônsul in absentia. Seria um mau precedente, é claro, mas os apoiantes de César acham que, se Pompeu pode ser nomeado cônsul exclusivo, é justo que César possa concorrer enquanto está ocupado na Gália. O essencial é preservar a concórdia ou seja, o equilíbrio entre o Grande e César. Mas Célio ameaçou bloquear esta isenção especial, da mesma maneira que ameaçou bloquear as reformas de Pompeu.

 

E qual é o teu papel, Cícero? Ele encolheu os ombros.

 

Algumas pessoas convenceram-me a utilizar a minha influência junto de Célio para o dissuadir de atormentar César. Célio está disposto a recuar, mas tanto ele como eu gostaríamos de estar certos de que conhecemos clara e completamente os objectivos e as atitudes de César. Por isso, eu vou a Ravena ter uma discussão amigável com César. Vou limpar a atmosfera, por assim dizer.

 

Rodas dentadas resmungou Eco.

 

É melhor do que uma só roda a conduzir o motor do mundo, como algumas pessoas gostariam disse Cícero. Mas eu estou pressionado, em termos de tempo. César tenciona partir de Ravena a qualquer momento, para regressar ao campo de batalha. Há boatos de um novo levantamento, dirigido por um gaulês com um nome tipicamente impronunciável. Como é que ele se chama, Tiro?

 

Vercingetorix disse Tiro secamente. Era evidente que não se sentia feliz.

 

Isso concordou Cícero. Portanto, como vês, não tenho tempo para ir procurar como foi que tu lhe chamaste, Eco? "Um estábulo fora de uso numa leira de terra abandonada". E tu também não devias ir, Gordiano. Não tentes as Parcas. Acompanha-me até Ravena amanhã, e depois volta comigo para Roma.

 

Devíamos regressar imediatamente a Roma disse Eco, carrancudo. Pensar que Betesda e Menénia continuam a sofrer, mesmo que seja só mais um dia do que o necessário, por não saberem o que nos aconteceu...

 

Ah, mas tu não tens um irmão que deve estar com César em Ravena? perguntou Cícero. Sim, o teu filho, Gordiano aquele que se chama Meto. Tenho a certeza de que a vossa família lhe escreveu a contar o vosso desaparecimento. Há-de estar tão preocupado como elas. Aproveitem a oportunidade para o verem antes de ele voltar para o norte, com César. Estão a ver, têm de ir comigo até Ravena. Mas agora, parece-me que são horas de nos retirarmos todos. Estás com um ar esgotado, Gordiano, e Eco está a bocejar. Esta noite, vocês ficam com as melhores acomodações que o nosso anfitrião tiver para oferecer, uma cama macia num quarto privado. Tratei disso pessoalmente. Prevejo que vão dormir como pedras.

 

E assim aconteceu.

 

A residência de César em Ravena era uma grande villa nos arredores da cidade, com numerosas tendas, estábulos e edifícios improvisados à volta. Tal como os campos militares, assemelhava-se a uma pequena cidade, onde podiam ser diariamente satisfeitas as necessidades de uma população vigorosa e predominantemente masculina, com apetites fortes. Nestes sítios, encontram-se sempre três coisas: prostitutas, um constante cheiro a comida e uma linguagem incrivelmente rude.

 

Chegámos pouco depois do meio-dia. Cícero e Tiro foram solicitar uma audiência a César. Eco e eu fomos à procura de Meto. Não foi difícil encontrá-lo. Um soldado de infantaria apontou-nos o caminho para uma tenda cheia de jovens oficiais. Quando entrámos, fez-se subitamente um silêncio que nada tinha a ver connosco, seguido de um ruído chocalhado, e depois de uma explosão de risos roucos e de imprecações. Estavam a jogar aos dados.

 

Utilizavam um conjunto antiquado de quatro dados feitos de ossos, pontiagudos nas extremidades e com os numerais pintados nos quatro lados lisos. Um jovem salientou-se do grupo e inclinou-se para diante para os apanhar, e eu vi, com um aperto de garganta, que se tratava de Meto.

 

Desde que ele iniciara a sua carreira no exército de César que só nos víamos umas quantas vezes por ano, no máximo; e nunca durante tempo suficiente. Quando ia encontrar-me com o meu filho mais novo, costumava preparar-me para alguma surpresa desagradável vê-lo coxear, com um dedo a menos ou com uma cicatriz recente na cara, a acrescentar à outra, já pouco nítida, que lhe tinha ficado da sua primeira batalha. Até este momento, ele tinha-se mantido intacto, ainda que já estivesse marcado.

 

Sempre que o via, voltava a surpreender-me com o seu aspecto jovem. Tinha actualmente 26 anos, alguns cabelos brancos nas têmporas e aquela rugosidade de feições que resulta de anos de exposição ao sol intenso e aos ventos frios, mas, quando sorriu ao apanhar os dados, não pude deixar de entrever a criança que tinha resgatado da escravatura e adoptado 20 anos antes. Ele sempre fora um rapaz calmo, afectuoso, risonho, traquinas mas de temperamento estável. Era difícil imaginá-lo ganhando a vida a matar desconhecidos.

 

Meto tornou-se soldado aos 16 anos, quando fugiu de casa para combater por Catilina. Foi na batalha de Pistória que adquiriu a cicatriz no rosto de que ainda se sentia profundamente orgulhoso. Eu tinha julgado e tido esperança que isso poria fim a uma loucura de juventude, mas Meto continuara à procura daquilo que tinha encontrado com Catilina. E voltou a encontrá-lo junto de César. E César, felizmente, encontrara Meto, descobrindo o seu talento para as palavras e tomando-o ao seu serviço de forma pessoal, como uma espécie de adjunto literário. (O César político andava sempre ocupado a escrever e publicar as memórias do César general, e comandava um exército privado de forjadores de palavras.) Nos últimos anos, Meto também encontrara trabalho como tradutor, já que mostrara uma aptidão para aprender os dialectos gauleses. Para além destas ocupações sedentárias, ainda participava em muitas batalhas e corria muitos perigos, frequentemente ao lado do próprio general. Eu nunca conseguia deixar de me preocupar com ele.

 

Ainda não nos tinha avistado, do outro lado da tenda cheia de gente. Ao fazer chocalhar os quatro dados dentro de uma taça, estreitou os olhos e pareceu murmurar uma invocação a um deus, a uma amante? Quem seriam actualmente os seus deuses? Quem seriam as suas amantes? Já não falávamos dessas coisas. Ele imprimiu um movimento final ao copo e deixou voar os dados.

 

Um silêncio, o matraquear dos dados, e depois mais risos e pragas. Meto era o mais ruidoso de todos, erguendo os braços em triunfo enquanto anunciava no meio de gargalhadas:

 

Lance de Vénus! Um de cada número o Lance de Vénus bate todos! Vamos a pagar, vamos a pagar! As mangas compridas da túnica deslizaram, deixando-lhe os braços a descoberto, e eu reparei numa cicatriz nova, vermelha e contorcida, que lhe atravessava o bicípite do braço esquerdo. Era feia, mas aparentemente não lhe causava embaraço nem dor. Ele meteu a mão no interior da túnica, tirou uma saquinha e abriu-a bem, para que os outros metessem as moedas lá dentro.

 

Depois viu-nos, a Eco e a mim.

 

Acho que nessa altura percebi qual devia ser a expressão do meu rosto, naquelas ocasiões em que tinha estado separado dele por grandes distâncias, preocupando-me com ele, sem saber se estaria vivo ou morto, e tinha finalmente voltado a vê-lo, muitas vezes de surpresa, quando ele aparecia em Roma sem se fazer anunciar. Era a expressão de um homem cujos olhos discernem num instante aquilo que o seu coração passou longas horas a desejar.

 

O vosso comandante não se opõe a que vocês joguem aos dados? perguntei eu.

 

Não, desde que apostemos com moedas que tenham a sua efígie.

 

Meto riu-se da sua própria piada. As moedas romanas não têm imagens de homens vivos, só de mortos. Nem César se atrevera a cunhar moedas com o seu retrato.

 

Tínhamo-nos retirado para um sítio mais calmo, uma salinha da villa a abarrotar de rolos de pergaminho e de mapas. Quase não havia lugar para nós os três. Era aqui que Meto fazia a maior parte do seu trabalho, que consistia em ler e emendar o último volume das memórias de César. Pelo que percebi, as decisões relativas à correcta ortografia dos nomes gauleses originavam crises constantes.

 

Perguntei-lhe como é que ele sabia que Eco e eu tínhamos desaparecido.

 

Diana escreveu-me. Ainda bem que a ensinaste a escrever, estás a ver? Embora ela tenha uma sintaxe atroz. Devias passar mais tempo a exercitá-la, papá, ou então contratar um tutor decente. Percebi que ela estava muito preocupada. Tremia-lhe a mão. Olha, vou-te mostrar.

 

Procurou por entre a pilha de documentos e puxou de uma tabuinha de madeira fina e dobrada. Eu desatei a fita que a mantinha fechada. As letras traçadas na camada de cera da superfície interior eram efectivamente incertas e vacilantes.

 

Irmão:

 

Estamos muito preocupadas e tristes. O papá foi fazer uma viagem de alguns dias e, no regresso, ele e Eco foram atacados e raptados.

 

Mas talvez tenhamos razões para ter esperança. Esta manhã, muito cedo, um homem que trazia o rosto oculto entregou uma mensagem ao soldado que estava de guarda à nossa porta. A mensagem era dirigida à mãe, mas claro que tive de ser eu a ler-lha. Dizia o seguinte: "Não temas por Gordiano e pelo seu filho. Não lhes aconteceu mal nenhum. Ser-te-ão devolvidos no devido tempo." Mas quem sabe de onde veio a mensagem? Ou se devemos acreditar nela? Quase me faz sentir mais preocupada do que antes.

 

A cidade está mais calma, mas continua perigosa, especialmente à noite. A mãe e eu, e Menénia, Tito e Titânia, estamos todos bem. Temos connosco muitos guardas do grande homem, que cuidam da nossa segurança. Não te preocupes. Mas quem me dera que o papá e Eco regressassem! Oh, Cibele, que voltem depressa!

 

Escrever-te-ei quando isso acontecer. Ou então será o próprio papá a escrever-te! Tem cuidado contigo, meu irmão.

 

Fechei a carta.

 

A gramática da minha irmã não é grande coisa, mas também não é tão atroz que faça chorar comentou Meto maliciosamente.

 

Eu pigarreei.

 

Só com dificuldade consigo pensar nelas, à nossa espera, preocupadas...

 

Só cheguei a Ravena há uns dias, vindo do norte. A carta de Diana estava à minha espera. Podes imaginar como fiquei assustado. Pedi a César que me deixasse partir imediatamente, para ir a casa tentar resolver as coisas. Planeava partir amanhã. Entretanto, chegam vocês! Parece que os deuses gostam da nossa família, não é?

 

É porque a nossa família é diferente das outras todas respondeu Eco, a rir-se. Um de cada! É como o Lance de Vénus. Acho que eles se divertem connosco.

 

Bem, ainda bem que acabaram por se aborrecer de nos ver aos dois naquele fosso disse eu.

 

Meto franziu o sobrolho.

 

Na carta, Diana menciona uns guardas. "Temos connosco muitos guardas do grande homem, que cuidam da nossa segurança." O que quer ela dizer? E, em nome do Hades, onde estiveram vocês este tempo todo?

 

Por isso, contámos-lhe a história, ou grande parte da história, com a maior brevidade possível. O Sol caía antes de termos terminado.

 

Abri a carta de Diana e voltei a lê-la, com mais calma. Quem teria enviado a mensagem a Betesda, aconselhando-a a não se preocupar? Que rapto tão peculiar!

 

A minha inteligência devia ter ficado embrutecida com o cativeiro, porque só quando reli a carta pela terceira vez é que me ocorreu uma pergunta igualmente óbvia. Como é que Diana tinha sabido que Eco e eu tínhamos sido atacados e raptados quando regressávamos a casa? "No regresso, foram atacados e raptados", escrevia ela. Quem teria assistido aos acontecimentos e lhos teria narrado?

 

Meto instalou-nos na villa, num compartimento minúsculo, ainda mais pequeno do que o escritório dele, que me recordou desagradavelmente o fosso. Antes de adormecer, agitei-me e virei-me de um lado para o outro durante algum tempo. Quando Eco começou a ressonar, apercebi-me de que estava tão farto de estar metido com ele em sítios apertados, que tinha vontade de o estrangular. Por isso, peguei num cobertor e fui à procura de Meto, que ainda estava acordado e a conversar com os seus camaradas. Ele descobriu uma cama de campanha vazia e levou-a para o exterior, para um sítio onde eu poderia adormecer contemplando as estrelas. Apetecia-me olhar para elas durante horas, respirar o ar limpo e frio, mas caí quase imediatamente num sono desprovido de sonhos.

 

Na manhã seguinte, Meto levou-nos à presença de César.

 

Um guarda escoltou-nos até um pátio no interior da villa. Ele e Meto pareciam conhecer-se bastante bem. Sentámo-nos num banco, à espera. Momentos depois, surgiram Tiro e Cícero, formalmente ataviados nas suas togas, e acompanhados pelo mesmo guarda.

 

Tenho de vos advertir de que ele está hoje muito ocupado disse o guarda a Cícero. Mas farei o possível por conseguir que vos receba.

 

Cícero e Tiro sentaram-se num banco diante do nosso. Pareceu-me que Cícero estava com um ar bastante irritado.

 

Falaste com César ontem? perguntei.

 

Não. Chegámos à tarde, evidentemente, a altura em que ele está mais ocupado. Sabes como são estes generais. Pompeu é a mesma coisa. Às vezes, temos de esperar vários dias para nos receberem. Considerando que eu vim aplanar-lhe o caminho para a sua próxima candidatura a cônsul, seria de esperar que me recebesse imediatamente. Mas claro que um homem como César tem muitos assuntos importantes a tratar. Todas as suas horas estão tomadas.

 

Eu acenei com a cabeça.

 

Momentos depois, o guarda regressou. Cícero pôs-se rapidamente de pé e começou a endireitar as pregas da toga. O guarda ignorou-o e fez-nos um gesto de cabeça. Ele vai receber-vos.

 

Quando passámos por Cícero, eu tive uma grande dificuldade em não sorrir. A sua expressão era absolutamente impagável.

 

Meto tinha-me apresentado a Gaio Júlio César há uns anos. Em subsequentes ocasiões, eu nunca estava à espera de que ele se recordasse de mim, mas ele recordava-se sempre. A mente de César era como a rede de um pescador. Não havia facto nem rosto que, uma vez apreendido, voltasse a escapar-lhe.

 

O seu escritório era um compartimento espaçoso, com janelas altas, que tinham sido abertas para deixar entrar a luz da manhã. Uma das paredes estava coberta por um enorme mapa, feito de peles de ovelhas cosidas umas às outras e tingidas de cores variadas, representando as diversas tribos dos gauleses, com desenhos das suas cidades e praças-fortes. Que género de local seria Lutécia? Ou Alésia? Ou Cénabo, que por qualquer razão tinha um círculo a vermelho à volta? Seria a ilha da Britânia realmente tão grande como parecia pelos mapas? Meto já tinha estado em todos estes sítios, incluindo a Britânia, onde os bárbaros se pintam de azul. Tinha aprendido a língua dos Bitúriges e dos Helvécios, cujos nomes próprios eu tinha dificuldade em pronunciar. Eu tinha viajado bastante no Oriente, mas nunca fora à Gália. Meto entrara num mundo e numa existência com os quais eu apenas podia maravilhar-me.

 

E caíra na órbita de um homem com cuja força e personalidade eu também não podia deixar de me espantar. Gaio Júlio César era um homem totalmente fora do comum. Nunca conheci ninguém cujo vigor físico e intelectual fosse tão evidente, a um simples olhar ou com a troca de umas breves palavras. Eu nunca mantivera relações de trabalho com César, como as tivera com Crasso ou com Catilina, e agora com Pompeu, mas era óbvio que ele tinha em abundância um elemento de personalidade que eles também possuíam, o impulso para o poder e para aquilo a que os homens chamam grandeza. Mas César parecia de certa maneira acessível, de uma forma que os outros não eram; não era assustadoramente obsessivo como Crasso, nem indefinivelmente sedutor como Catilina, nem intimidativo como Pompeu. Parecia, simultaneamente, mais do que humano, e no entanto vulnerável, um homem que podia inspirar de forma divina os seus homens, ao mesmo tempo que os fazia sentirem-se protectores relativamente a ele. E era bastante humano, pelo menos na sua vaidade; começara a ficar calvo muito cedo (tinha agora 40 e muitos anos) e, de acordo com Meto, a falta de cabelo continuava a incomodá-lo.

 

Quando nós entrámos, estava a ditar a um secretário, mas levantou-se e abriu os braços ao ver Meto. Abraçou-o calorosamente e beijou-o nos lábios.

 

Então, Meto, quer dizer que já não me abandonas?

 

Já não preciso de ir a Roma, se é a isso que te referes. O meu pai e o meu irmão estão bem, como podes ver.

 

Ah, Gordiano! E... César hesitou apenas um momento. E Eco. Vocês são os três tão pouco parecidos. Fico sempre um tanto confuso quando vos vejo juntos. Mas claro, os filhos foram escolhidos e adoptados pelo pai, por isso assemelham-se a ele em espírito, e não na carne. Tratou-se então de um falso alarme, esse boato de que tinham sido raptados?

 

Não foi nada falso disse Meto. Só conseguiram fugir há uns dias, e de um local a poucos quilómetros daqui.

 

Deve ser uma história e tanto. Gostava de a ouvir. César indicou que nos sentássemos.

 

Mas tu deves estar muito ocupado, General disse eu, pensando em Cícero, que estava à espera no pátio.

 

Nem por isso. Tenciono regressar à Gália dentro de poucos dias, mas os preparativos fazem-se sem mim. Preencho o tempo ditando um novo capítulo das minhas memórias. Aquela escaramuça sem importância com os Eburões, no ano passado deves lembrar-te dela, Meto. Estendeu a mão para tocar no rosto de Meto. Meto correspondeu ao seu sorriso. O momento pareceu-me desconcertantemente íntimo, até me aperceber de que César passara os dedos por uma leve cicatriz que Meto tinha no rosto.

 

O meu pai e o meu irmão foram atacados de surpresa na Via Ápia disse Meto. Ele andava a fazer um trabalho de que Pompeu o tinha encarregado, a investigar o assassínio de Públio Clódio.

 

A sério? Ora, isso é muito interessante. E o que foi que descobriste, Gordiano?

 

Olhei para Meto, incomodado com o facto de ele ter chamado a atenção de César de uma forma tão notória para os meus assuntos. Mas eu não tinha segredos para Meto, e era óbvio que Meto não tinha segredos para César.

 

Apenas pude confirmar aquilo que já toda a gente sabia em Roma

 

que Clódio foi morto pelos escravos de Milo na sequência de uma altercação na Via Ápia.

 

Foi tão simples como isso? Presumo que farás um relato mais pormenorizado a Pompeu. Mas vejo que ficaste pouco à-vontade, Gordiano. Não tencionava interrogar-te. Compete a Pompeu, e não a mim, resolver a questão da culpa e da punição de Milo, e é perfeitamente adequado que assim seja. Afinal, Milo era seu aliado, antes de se tornar aliado de Cícero. Que seja Pompeu a arcar com a dor de cabeça de decidir o que fazer a Milo e de restabelecer a ordem na cidade. Eu tenho uma tarefa importante à minha espera: restabelecer a ordem na Gália. O caos provocado pelo assassínio de Públio Clódio também teve os seus efeitos na província. É espantoso, não achas, as repercussões que uma única morte pode ter.

 

Explica-te, por favor disse eu.

 

Alguns elementos rebeldes das tribos, ao ouvirem falar dos problemas que se vivem em Roma, concluíram que eu ficaria indefinidamente retido em Ravena, impossibilitado de me juntar às minhas tropas. Por isso, aproveitaram a oportunidade para instigar uma revolta, que se propagou rapidamente. O primeiro golpe foi dado em Cénabo podes vê-la aqui no mapa. O homem que eu nomeei pessoalmente para gerir o posto comercial romano foi assassinado e as suas propriedades foram saqueadas. Um jovem averniano chamado Vercingetorix parece estar convencido de que este é o momento ideal de se tornar rei dos Gauleses. Já conseguiu unir diversas tribos sob o seu comando. O pior de tudo foi ter-me cortado o acesso ao corpo principal das minhas tropas. Não sei muito bem como vou poder chegar aos meus homens. César estudou o mapa, e pareceu subitamente muito longe de nós. Como vêem, um simples crime na Via Ápia já teve consequências profundas, que ultrapassam em muito a morte de um só homem. Na morte, Públio Clódio provocou ainda mais estragos do que tinha provocado em vida, e a maior influência de Milo no curso do mundo foi como assassino, e não como cônsul. César desviou os olhos do mapa. Mas ainda não me contaste a história do teu infortúnio, Gordiano.

 

Não há grande coisa para contar. Fomos atacados nas proximidades do Monumento de Basílio por homens cujo rosto não chegámos a ver bem, amarrados dentro de sacas e transportados para um local que viemos a verificar situar-se algures perto de Arimino. Não fomos especialmente maltratados. Quando conseguimos fugir, um dos nossos guardas foi morto, e o outro fugiu. Infelizmente, duvido de que consigamos voltar a encontrar o local.

 

Houve algum pedido de resgate?

 

Aparentemente não, embora alguém tenha mandado uma mensagem anónima à minha mulher, em que lhe dizia que não nos fariam mal, e que acabaríamos por ser libertados.

 

Muito curioso. Achas que esse episódio esteve relacionado com as investigações que fizeste por encomenda de Pompeu?

 

Talvez. César riu-se.

 

És um sujeito reticente, Gordiano. Respeito um homem que consegue não dizer mais do que devia é uma coisa rara. É óbvio que nunca recebeste formação em oratória! Gostaria de pensar que poderia recorrer um dia aos teus serviços, se precisar de um homem com os teus talentos e a tua discrição.

 

Seria uma honra, César.

 

Ele sorriu por momentos, e depois voltou a fixar os olhos no mapa,

 

com uma expressão abstracta. A narração das minhas desventuras tinha-o distraído por momentos, mas a sua atenção voltara a concentrar-se nos desgastantes problemas da Gália.

 

Queres que te deixemos, César? perguntou Meto.

 

Sim, tenho de voltar ao trabalho. Fico satisfeito por saber que ficas comigo, Meto, especialmente nos dias que se aproximam. Gostei de te rever, Gordiano, e a ti também, Eco. Desejo-vos uma viagem segura e desprovida de acontecimentos no regresso a Roma. E, Gordiano...

 

Sim, César?

 

Quando falares com Pompeu, diz-lhe que estiveste comigo, e por favor transmite-lhe os meus mais calorosos cumprimentos. Ele foi meu genro, como sabes, e ainda seria se não fosse a intervenção de um destino desfavorável. Devia ter tido um filho de Júlia, e eu um neto. Mas as Fúrias decidiram outra coisa, privando-nos a ambos disso.

 

Farei o que me pedes, César.

 

O secretário chamou o guarda, para nos acompanhar à saída. O homem fez uma pausa.

 

Queres que mande entrar os outros, César?

 

Quem são os outros?

 

Cícero e o seu homem. Estão à espera no pátio. Ele insiste em que o seu assunto é da maior importância.

 

César juntou as pontas dos dedos de ambas as mãos e estudou o mapa da Gália.

 

Por enquanto, não. Primeiro, vou acabar de ditar este capítulo. Talvez tenha tempo para receber Marco Tulio Cícero depois da refeição do meio-dia.

 

O guarda acompanhou-nos ao longo de um corredor e de regresso ao pátio. Ao ver-nos aproximar, Cícero levantou-se. Antes que ele pudesse falar, o guarda silenciou-o abanando a cabeça.. Cícero cruzou os braços e voltou a sentar-se. Não olhou para nós quando passámos, fingindo ter descoberto um lúgubre fascínio na fonte que havia no centro do pátio. Eu fiz um esforço enorme para não sorrir.

 

Comemos com Meto, numa grande tenda cheia de soldados. Em circunstâncias normais, eu teria considerado a comida vagamente aceitável e a companhia não mais do que tolerável. No entanto, depois dos longos dias de cativeiro por que tinha passado, e da total privação de variedade nos companheiros de mesa, a refeição simples e a conversa ruidosa e vulgar pareceram-me um tratamento digno do Rei Numa.

 

No meio da conversa, alguém mencionou Marco António.

 

Meto viu a minha reacção, reparou que Eco tivera uma reacção idêntica, e ergueu uma sobrancelha.

 

Conhece-lo, papá? Ah, mas claro, eu apresentei-te a Marco António no ano passado. Foi aqui em Ravena, não foi?

 

Foi.

 

Ele está com um aspecto lustroso disse um dos homens. Adora aquela vida refastelada de Roma.

 

Eu diria que, hoje em dia, Roma não é lugar muito saudável comentou outro.

 

Ele mantém-se em forma com treinos diários...

 

Em casa da viúva Fúlvia!

 

Houve uma ronda de resmungos sugestivos e gargalhadas. Voltei-me para Meto.

 

Quer dizer que António está aqui em Ravena?

 

Está. Há vários dias que está no acampamento, conferenciando com César sobre a situação em Roma. Julgo que regressa amanhã à cidade. Que cara é essa, papá?

 

Oh, não é nada. Vendo que isto não o satisfazia, sugeri-lhe por meio de gestos que saíssemos dali para podermos conversar mais à-vontade.

 

Então, papá? perguntou, enquanto vagueávamos os três por entre as tendas.

 

Provavelmente não é nada, mas quando ontem te falei das nossas investigações na Via Ápia, esqueci-me de fazer referência a Marco António.

 

A António? Mas que relação...

 

Ele ameaçou matar Clódio o ano passado, no Campo de Marte perseguiu-o até um armazém junto ao rio, onde Clódio se escondeu dentro de um armário debaixo de uma escada.

 

Meto riu-se.

 

Oh, essa história!

 

Ouviste falar dela?

 

Claro. António adora contá-la, especialmente quando está um bocadinho embriagado. Afirma que não teve qualquer intenção de matar Clódio. Queria apenas transformá-lo em eunuco.

 

E sobre que foi a discussão?

 

Quem sabe? Papá, eles conheciam-se há imenso tempo. Tinham estado apaixonados pela mesma mulher, Fúlvia. Tanto quanto sei, também terão estado apaixonados um pelo outro. Provavelmente, encontraram-se no Campo de Marte, trocaram uns insultos amigáveis, Clódio disse qualquer coisa que fez titilar as bolas a António, e António rapou da espada. Mas ninguém ficou ferido.

 

Eco gemeu.

 

Meto, esses trocadilhos!

 

Meto sorriu e encolheu os ombros.

 

Posso continuar o dia todo. Mas o que tem isto a ver com... No dia anterior, tinha falado a Meto do encargo de Pompeu, mas não mencionara Fúlvia. O meu encontro com ela acabara por me parecer pouco relevante.

 

Fúlvia pediu-me que descobrisse se António estava envolvido na morte do marido.

 

Mas ele é uma das pessoas que querem levar Milo a tribunal.

 

Isso nada prova.

 

Descobriste alguma prova que o implicasse? Considerei cuidadosamente a pergunta.

 

Nenhum daqueles que assistiram ao acontecimento ou àquilo que se seguiu tinha fosse o que fosse a dizer sobre António.

 

Então, aí tens.

 

Talvez.

 

Francamente, papá, António é um excelente soldado, e é meu amigo. Não posso ficar aqui a ouvir-te dizer que ele é um assassino.

 

Ninguém disse que ele era um assassino, Meto.

 

Mas até parece que tu achas que pode ser.

 

O que dissera Cícero sobre mim? Sempre à espera da tua hora, a examinar minuciosamente todas as provas, à procura de novas revelações, adiando a apreciação final.

 

Se Fúlvia estivesse aqui connosco, não poderia, em boa consciência, dizer que tinha provado o contrário.

 

Então vamos perguntar-lhe.

 

O quê?

 

Vamos perguntar-lhe.

 

Assim, sem mais?

 

Por que não? António não será propriamente um homem simples, mas é tão claro e fácil de ler como o Latim de César. Venham comigo.

 

Vamos contigo aonde?

 

Às instalações de António. São na outra extremidade da villa. Por aqui.

 

Eco e eu fomos atrás dele.

 

Mas, Meto, isto é uma loucura! O que esperas que eu faça? Que diga: "Olá, lembras-te de mim, sou o pai de Meto, a propósito, participaste no assassínio de Públio Clódio?"

 

Calculo que saibas ser mais subtil do que isso, papá.

 

E se ele decidir rapar da espada e correr atrás de mim, como correu atrás de Clódio no Campo de Marte?

 

Ouviste o que disseram aqueles tipos na tenda António engordou um bocado, com todos os jantares a que foi em Roma. Talvez consigas escapar-lhe. Venham, a porta é esta.

 

Tal como acontecera com César, tivemos de falar com um guarda antes de chegarmos junto do homem. A minha esperança era que António estivesse demasiado ocupado para poder receber-nos mas, ao ouvir a voz de Meto, a sua cabeça espreitou pelas cortinas do escritório onde ele se encontrava, exibindo um grande sorriso.

 

Meto! Já comeste?

 

Já engoli a minha ração diária de comida de porcos, se é a isso que te referes.

 

Vem juntar-te a mim na mesma. Consegui recuperar algumas coisas comestíveis da panela. Quem são os teus amigos? Ah, é o teu irmão, não é, e o teu pai, o famoso Descobridor.

 

Famoso? perguntei eu enquanto atravessávamos as cortinas.

 

Ou infame. Tanto faz. Entrem. Sentem-se. Mânio, vai arranjar qualquer coisa que fazer. António fez um gesto na direcção de um secretário, que pegou rapidamente na tabuinha e no estilete, e saiu da sala.

 

Vinho? Naturalmente. Sei como tu gostas dele, Meto: simples. Meto é como eu, tem uma alergia terrível à água. Gostas do teu aguado, Gordiano? E tu, Eco?

 

Para mim, mais água do que vinho disse eu. Há algum tempo que não bebo. Tenho de voltar a habituar-me. Além disso acrescentei baixinho, talvez tenha de desatar a correr a qualquer momento.

 

Para mim a mesma coisa disse Eco, erguendo uma sobrancelha. Fisicamente, António tinha potencial para ser intimidante. Tinha um físico de lutador, um pescoço musculoso e os ombros e o peito largos

 

parecia uma versão mais jovem e mais alta de Milo, pensei. Era poucos anos mais velho do que Meto, teria uns 30 ou 31. De perfil, as sobrancelhas e o queixo protuberantes e o nariz amolgado de lutador conferiam-lhe uma aparência pouco delicada mas, quando me olhou de frente, esta impressão desvaneceu-se, graças à doçura dos seus olhos e da sua boca e ao volume das faces. António era belo, de uma forma um tanto grosseira, para usar uma das frases de Betesda. Tinha aquela espécie de olhar que muitas mulheres consideram irresistível e em que muitos homens confiam instintivamente, como parecia acontecer com Meto.

 

Quando chegaste, Gordiano? António olhou para mim com uma expressão que não parecia propriamente a de um assassino astucioso ou, já agora, de um raptor.

 

Ontem mesmo.

 

Oh? Ele acenou com a cabeça e depois franziu o sobrolho. Não me digas que vieste com Cícero?

 

Chegámos juntos, sim. Mas só me juntei a ele na última parte da viagem, e perfeitamente por acaso.

 

Ainda bem. Quer dizer que não participas na sua pequena missão junto de César?

 

Certamente que não.

 

O papá e Eco estão aqui em missão pessoal disse Meto.

 

A sério? E qual é ela? perguntou António.

 

Vieram investigar-te.

 

Meto! Isto era demais. António estreitou os olhos.

 

A mim? Isto não tem nada a ver com aquela antiga questão da filha do Rei Ptolomeu do Egipto, pois não? Juro que nunca toquei na criança! António e Meto riram-se do que parecia ser uma piada antiga.

 

Não disse Meto, tem a ver com...

 

Com um boato desagradável que foi lançado em Roma disse eu. O meu filho parece decidido a aligeirar a situação, mas ela é tremendamente grave. Meto já tinha controlado a conversa tempo suficiente. Dado que ele insistira em discutir o assunto, eu decidi tirar o melhor partido possível da situação. Começarei por te dizer o mesmo que disse a César esta manhã: por solicitação de Gneu Pompeu, Eco e eu andámos a investigar as circunstâncias da morte de Públio Clódio. Por muito chocante que possa parecer, deparámos com um boato e se to digo, Marco António, é porque tu és amigo do meu filho e parece-me que deves saber uma coisa que se diz acerca de ti, deparámos com um boato segundo o qual tu estarás, de alguma maneira, envolvido no caso.

 

Ridículo! disse António, que não parecia nada divertido. Encolhi os ombros.

 

Trata-se de um boato chocante, como te disse. Estou certo de que nenhuma pessoa com um mínimo de bom senso lhe dará crédito.

 

Mas quem se lembraria de dizer semelhante coisa sobre mim? Subitamente, António pôs-se de pé e começou a andar de um lado para o outro, no pequeno espaço. Que disparate completo, que eu possa ter tido alguma coisa a ver com o que aconteceu a Clódio! A vileza das pessoas não tem limites, pois não? Não há mentira demasiadamente repugnante para as pessoas se vergarem diante dela. Cícero! Foi Cícero quem te contou isto durante a viagem, não foi?

 

Não.

 

Diz-me a verdade, Gordiano. Oh, é mesmo dele, dizer uma mentira tão desvairada que as pessoas comecem a pensar que deve ter algum fundo de verdade! Digo-te uma coisa, é a última vez, é mesmo a última vez que o velho galo me mija em cima da cabeça. Vou apanhá-lo enquanto ele estiver a choramingar diante de César e atirá-lo a um poço. Vou-lhe torcer o pescoço até lhe fazer estalar a cabeça! Vai aprender a não dizer mais mentiras sobre mim! Naquele momento, António parecia perfeitamente capaz de cumprir aquelas ameaças.

 

Marco António, juro-te que o boato não partiu de Cícero.

 

Então, onde foi que o ouviste? Quem anda a dizer semelhante coisa sobre mim? A irritação de António era palpável e parecia aquecer o compartimento como uma braseira. Mas eu senti que esta fúria não era dirigida a mim. Era devida ao facto de eu ser o pai de Meto, e portanto merecer a sua confiança e o seu respeito. António não era um homem simples, tinha dito Meto, mas era claro e fácil de ler. Tinha motivos para estar irritado, mas era suficientemente disciplinado para conter a sua ira enquanto procurava saber quem o tinha realmente ofendido.

 

Foi um vendedor de peixe, não foi, papá? disse Eco subitamente.

 

O quê?

 

Tanto quanto me consigo lembrar, foi um vendedor de peixe que nos contou o boato. O meu filho mais velho não era tão simples e claro como António.

 

Ah, foi? disse eu,

 

Por Hércules, quer dizer que eles até andam a espalhar essa mentira nos mercados? António parecia pronto a esmagar qualquer coisa, mas em vez disso voltou a encher o copo.

 

Sim, lembro-me disso disse eu. Mas foi só uma pessoa que me falou no assunto não, na verdade, foram duas pessoas, e se calhar estavam apenas confusas, porque também falaram de uma história que teve lugar o ano passado, sobre uma altercação entre ti e Públio Clódio...

 

O quê, aquela tolice no Campo de Marte?

 

Estas pessoas pareciam convencidas de que tu querias mesmo fazer mal a Clódio.

 

Se o tivesse apanhado, sabes o que teria feito? Tinha usado o lado da lâmina da espada para o espancar! Isso teria sido bastante humilhante.

 

Qual foi a ofensa? perguntou Meto.

 

A habitual, ele não sabia estar calado. Não teve nada a ver com política. Foi uma coisa pessoal, que ele foi buscar ao passado. António hesitou. Já que foste tão honesto comigo, Gordiano, vou-te contar. Clódio fez uma sugestão indelicada sobre a minha amizade com Gaio Curió. Curió estava ausente na Ásia, num lugar de questor, e o pai dele acabava de morrer. Bem, toda a gente sabe que o velho Curió fez o que pôde para se meter entre Gaio e eu quando éramos novos - seguindo o conselho de Cícero, devo acrescentar! E estávamos nós no Campo de Marte, quando Clódio disse: "Agora que o velhote dele morreu e desapareceu, calculo que tu e Gaio Curió possam finalmente casar-se. Qual de vós vai ser a noiva?" Normalmente, ter-me-ia rido, mas ele apanhou-me num dia em que eu não estava com disposição para ser arreliado, por isso saquei da espada. Calculo que tenha parecido mais irritado do que realmente estava é um problema que eu tenho e Clódio entrou em pânico. Desatou a guinchar e a correr! António deu uma gargalhada, ao recordar-se do que se tinha passado. E eu corri atrás dele! Não consegui evitar! António pôs os braços à volta do corpo, rindo. Se o tivesse apanhado, juro que lhe arrancava a toga e o espancava no traseiro obrigava-o a regressar ao Campo de Marte nu em pêlo, com as bochechas vermelhas a brilhar. Isso tinha-o calado definitivamente! Já imaginaste? A ralé abandonava-o. Tinha de se retirar da vida pública. Mas ainda estaria vivo!

 

O riso morreu na garganta de António. Suspirou e fez uma careta difícil de interpretar. Serviu-se de mais vinho, bebeu-o todo e olhou para mim com firmeza.

 

Gordiano, juro-te pela sombra do meu pai que não tive nada a ver com a morte de Clódio. Por isso, espero que, quando voltares a Roma, descubras quem foram esses caluniadores e os ponhas na ordem.

 

Devolvi-lhe o olhar com outro de igual firmeza. Não é frequente eu sentir-me o menos honesto de dois participantes numa conversa.

 

Tenciono fazê-lo, Marco António.

 

Óptimo! Esse boato deve ser morto pela raiz, antes que um malandro qualquer como Cícero o use em benefício próprio. Oh, Mercúrio e Minerva! Deu uma palmada na testa.

 

O que se passa? perguntou Meto.

 

E se esse boato horrível chegar aos ouvidos de Fúlvia? Desde que Clódio morreu que me tenho esforçado tanto por ser forte por causa dela, para que ela tenha alguém em quem possa apoiar-se, alguém em quem confie absolutamente. Não poderia suportar que alguma coisa envenenasse isso. Mas o que estou eu a dizer? Fúlvia nunca acreditaria em semelhante boato, nem por um momento. Ela conhece-me bem.

 

Eu encolhi os ombros e fiz um sorriso de apoio.

 

Nessa noite, Tiro informou-nos de que, depois de ter passado o dia inteiro à espera no pátio de César, Cícero vira novamente ser-lhe negada uma entrevista com o general. Teria de pedir nova audiência no dia seguinte, pelo que só regressaria a Roma, no mínimo, no dia a seguir. Isto pareceu uma eternidade a Eco e a mim, ansiosos como estávamos por regressar para junto da nossa família.

 

Mas papá, António parte para Roma amanhã de manhã cedo disse Meto. Por que não vão com ele?

 

Não nos atrevíamos...

 

Não seria atrevimento nenhum, papá. Anda, eu peço-lhe, se quiseres.

 

Fica quieto, Meto! Já hoje me deixaste numa situação bem desagradável na presença de António.

 

Papá, tens de regressar a casa, e precisas de uma escolta segura. De qualquer maneira, não estás interessado em viajar na companhia de Cícero, pois não? Ele deixa-te doido. E viaja mais devagar. Vai com António. Ele gosta de ti, não percebeste? Gostará da tua companhia. E poderás conhecê-lo melhor, e formar uma opinião sobre ele, se ainda não o fizeste. É uma combinação tão perfeita, que deve ter sido organizada pelos próprios deuses.

 

O que achas, Eco? perguntei eu.

 

Acho que quero voltar a Roma logo que possível, e que César parece decidido a obrigar Cícero a esperar enquanto puder.

 

Nesse caso, se achas realmente que António não se importa, Meto...

 

Vamos perguntar-lhe imediatamente.

 

Presumi que fosse assim que as coisas se faziam no acampamento de César. Tinha vivido tanto tempo na tortuosa Roma, que tinha dificuldade em me adaptar a toda esta franqueza.

 

Partimos de Roma antes do amanhecer.

 

A viagem durou quatro dias e decorreu sem incidentes. António parecia tão transparente como Meto referira. Bebia mais do que devia e, quando bebia, exibia as suas emoções com mais franqueza do que a maioria dos homens. Eu imaginava-o a matar por dor ou por raiva, ou profissionalmente, como um soldado, mas era-me difícil vê-lo a participar numa conspiração duvidosa. Era tão franco relativamente àqueles que odiava (Cícero, principalmente), como relativamente aos que amava (Curió, Fúlvia, César e Antónia, sua mulher e sua prima, por esta ordem, tanto quanto pude perceber). A sua falta de encanto era, em si mesma, encantadora, da mesma maneira que a sua rusticidade fazia com que fosse estranhamente belo. Senti-me muito descontraído na sua companhia, e comecei a perceber por que razão Meto gostava tanto dele.

 

No último dia, falámos um pouco acerca da sua campanha militar no Egipto. Tinham passado quatro anos desde que António auxiliara o governador romano da Síria a devolver ao Rei Ptolemeu Auletes o trono que tinha sido usurpado pela filha deste, Berenice.

 

Adorei Alexandria disse-me António, e os alexandrinos adoraram-me. Conheces a cidade?

 

Oh, sim, foi lá que encontrei a minha mulher. Lembrei-me de uma coisa que ele nos tinha dito em Ravena. O que querias dizer quando te referiste àquela "antiga questão da filha do Rei Ptolemeu"?

 

Quando foi isso? Activa-me a memória, Gordiano.

 

Tu disseste: "Juro que nunca toquei na criança!" Foi uma espécie de piada. Pelo menos, tu e Meto riram-se.

 

Ah, isso não foi sobre Berenice. Referia-me à outra filha de Ptolemeu.

 

E...? Eco ergueu uma sugestiva sobrancelha.

 

Não aconteceu nada! Ela tinha apenas 14 anos, era nova demais para o meu gosto. Isto parecia ser verdade. Fúlvia era mais velha do que António. Oh, alguns dos meus oficiais afirmaram que eu tinha ficado enfeitiçado com a rapariga, confuso depois de tê-la conhecido. Ainda me picam com isso. Um disparate! Embora tenha de admitir que, criança ou não, ela era impressionante.

 

Espantosamente bela? Pensei na minha própria Diana, que estava apenas a algumas horas de distância.

 

Bela? Não, nada disso. Muitas mulheres são belas, e alguns rapazes também, mas ela não. A beleza é uma coisa vulgar, comparada com o que ela possuía. Uma certa qualidade, que eu não sou capaz de explicar. Nunca conheci ninguém assim, talvez à excepção de César.

 

Eco riu-se.

 

Uma rapariguinha de 14 anos recordou-te César?

 

Parece absurdo, eu sei. Se ela fosse um bocadinho mais velha...

 

Se isso foi há quatro anos observei eu, ela deve ter agora 18. A ideia provocou uma expressão estranha no rosto de António. Confuso, tinham dito os oficiais. Enfeitiçado.

 

Talvez volte ao Egipto um dia destes, para ver como está ela.

 

E como se chama essa mulher invulgar? António sorriu.

 

Cleópatra.

 

Atravessámos o Tibre quando a luz do dia começava a esmorecer e aproximámo-nos da cidade. O Campo de Marte estendia-se à nossa direita. À nossa esquerda, as antigas muralhas da cidade contornavam colinas cobertas de edifícios. A Via Flamínia alongava-se, muito direita, em direcção ao Capitólio, com os templos agrupados em cacho no alto. Nunca na minha vida me sentira tão feliz por chegar a um sítio.

 

À saída da Porta Fontinal, desmontámos e despedimo-nos de António. Mal reparei nos soldados armados que flanqueavam a entrada. Tinha-me habituado aos soldados no acampamento de César e durante a viagem com António.

 

Eco e eu percorremos apressadamente as ruas estreitas e atravessámos o Fórum, não muito longe das ruínas queimadas da Casa do Senado. Aí, vimos mais soldados, de armas na mão em público, como se fossem um exército ocupante. Roma já conhecera guerras civis e tivera soldados armados dentro das suas portas, mas nunca um exército fora utilizado para policiar a população com o consentimento do Senado. As pessoas pareciam andar normalmente entretidas com a sua vida, mas a mim tudo aquilo me parecia estranho. Vimos uma multidão diante da Rostra, reunida no que parecia ser uma espécie de contio. Demos uma grande volta para o evitar.

 

Passámos por trás do templo de Castor e Pólux e chegámos à Rampa, que também estava guardada pelos soldados. O meu coração batia velozmente quando nos aproximámos do alto, não de cansaço, mas de comoção. Atravessei a rua e bati à porta de minha casa.

 

A porta abriu-se. Um rosto feio e desconhecido olhou para mim. Por instantes, senti-me confuso. Esta não era a minha casa. A minha família não vivia aqui. Nem sequer nos encontrávamos em Roma, ou pelo menos na Roma que eu conhecia. Sentia-me como devem sentir-se os lémures dos mortos quando andam sobre a terra, reduzidos a sombras e sem reconhecerem nada do que deixaram.

 

Mas claro que era a minha casa. A cara feia do guarda era-me desconhecida, porque ele viera da casa de Pompeu. Ele também não me reconheceu e parecia disposto a partir-me ao meio se eu tentasse passar por ele. Afinal, a família devia estarem segurança, pensei. Senti um desejo vertiginoso de o abraçar, mas não me atrevi.

 

Quem és tu e o que pretendes? rosnou ele.

 

Seu estúpido imbecil respondeu Eco. É Gordiano, o dono desta casa, e eu sou o filho dele, Eco. Agora, vai mas é dizer...

 

Foi interrompido por um grito de pura alegria. O guarda compreendeu imediatamente e afastou-se, com um súbito sorriso que lhe alterou a expressão por completo. Subitamente, Diana estava na minha frente, e depois encostada a mim com os meus braços à sua volta. Betesda e Menénia apareceram, e os gémeos sorridentes, mas eu só conseguia vê-los de forma indistinta, como imagens na água, os seus rostos extáticos, radiosos e insuportavelmente belos luzindo do outro lado de um véu de lágrimas.

 

Depois, vi outro rosto familiar. Estava um pouco afastado, de maneira que eu só conseguia avistá-lo por entre barragens de abraços e de beijos. A sua expressão não era tanto de alegria, mas de alívio intenso, enevoado pelo embaraço.

 

Afinal, Davo não tinha morrido.

 

Pensei que Davo devia estar vivo, tinha esperança de que assim fosse dizia eu, reclinado no meu canapé preferido, com o braço direito à volta de Betesda, que estava reclinada ao meu lado. Tínhamos comido dentro de casa, e em seguida levado cadeiras e canapés para o jardim, para usufruirmos todos dos últimos momentos do dia. O tempo estava suave para os Idos de Martius, que evidentemente já mais pareciam Aprilis por causa do mês suplente. As borboletas esvoaçavam por entre as colunas do peristilo. As plantas a toda a volta animavam-se e agitavam-se com a Primavera. Observei com pesar que a estátua de Minerva continuava partida e prostrada no sítio onde tinha caído.

 

Pois eu pensei que ele estava morto dizia Eco, olhando atentamente para Davo, como se ainda não tivesse bem a certeza daquilo que os seus olhos lhe diziam. Davo corou ao sentir-se observado.

 

Até há poucos dias, eu pensava a mesma coisa observei eu. O meu último vislumbre de Davo na Via Ápia foi de um homem morto, pelo menos assim me pareceu. Os nossos captores convenceram-se do mesmo, e foi por isso que o deixaram ali.

 

Bati com a cabeça disse Davo quase num murmúrio, baixando os olhos. Devem ter-me arrastado para fora da estrada, e deixaram-me atrás de um túmulo. Acordei várias horas depois, com um alto horrível na cabeça.

 

E quando foi que te apercebeste do que se tinha passado? perguntou Betesda, passando lentamente os dedos pelo lóbulo da minha orelha e pelo meu pescoço.

 

Quando voltei a ler a carta que Diana escreveu a Meto. Ela não se referia a Davo, mas sabia que tínhamos sido atacados e raptados ao regressar à cidade. Como? Era possível que algum transeunte tivesse testemunhado o ataque, tivesse reconhecido um de nós, e se sentisse obrigado a informar a família. Era possível, mas não era provável. Também era possível que quem tivesse descoberto o cadáver de Davo, se de facto os nossos raptores o tivessem deixado no meio da estrada, o reconhecesse como meu escravo e viesse devolvê-lo à família e que, a partir do estado e do local onde ele tinha sido encontrado, e do facto de nós termos desaparecido, Diana tivesse inferido que tínhamos sido atacados e raptados. Essa cadeia de possibilidades parecia-me improvável. As coisas mais simples são quase sempre as verdadeiras. Davo devia ter sobrevivido, pensei, e ter vindo contar que tínhamos sido atacados. Isso também me parecia improvável, mas tinha vontade de acreditar que assim fora, por isso acreditei, embora em silêncio. Sinto-me muito satisfeito por verificar que tive razão. Depois de ter perdido Belbo, perder-te a ti...

 

Davo continuou a corar, e não se atrevia a olhar-me de frente.

 

Mas agora estamos todos bem, todos juntos prossegui eu, apertando Betesda contra mim. O calor e a firmeza do seu corpo a simples e sólida realidade desse corpo proporcionavam-me um prazer incrível. Estendi a outra mão para Diana, que estava sentada ao meu lado numa cadeira baixa. Ela sorriu e ergueu o queixo quando lhe afaguei o cabelo preto e sedoso. Não havia coisa melhor nem mais bela em toda a criação do que o cabelo de Diana, pensei. Contudo, apesar do sorriso, o seu rosto parecia toldado por uma espécie de ansiedade que não se desvanecia. Talvez não acreditasse por completo que todas as coisas estavam novamente bem, depois de tantos dias de preocupações.

 

Eco estava reclinado num canapé à minha frente, com Menénia ao seu lado e Tito e Titânia à sua esquerda. Conversámos durante mais algum tempo, sobre o nosso cativeiro, sobre o estado das coisas em Roma, sobre a forma como Betesda conseguira vergar os guardas de Pompeu aos seus desejos. O céu escureceu e as estrelas começaram a aparecer. Passado algum tempo, Eco e Menénia mandaram os gémeos para a cama e retiraram-se para o seu quarto. Davo também se retirou e, poucos momentos depois, foi Diana quem saiu do jardim, ainda com um ar intranquilo. Betesda e eu ficámos sós.

 

Ela aproximou o seu rosto do meu.

 

Tive saudades tuas murmurou.

 

Oh, Betesda, preocupei-me tanto contigo.

 

Eu também me preocupei contigo, marido, mas não foi isso que eu disse. Disse que tinha tido saudades tuas. Pousou a mão no meu peito e desceu-a em direcção às minhas pernas, terminando num ponto que tornou o seu objectivo inconfundivelmente óbvio.

 

Betesda!

 

Marido, deves estar voraz depois deste tempo todo.

 

Era curioso mas, durante o tempo que tínhamos passado no fosso, eu quase não tinha tido impulsos ou fantasias amorosas. Algumas vezes, por simples alívio físico, cuidara de mim enquanto Eco dormia. Calculei que ele fizesse a mesma coisa, embora provavelmente com maior frequência. E, numa ou outra ocasião, recorrera a uma certa fantasia em que participava uma certa senhora de boas famílias, com a sua liteira às listas vermelhas e brancas. Mas, de uma maneira geral, afastara-me o mais possível do meu corpo. Talvez a negação do prazer fosse outra maneira de me negar as iminentes perspectivas da dor e da morte. Era como se tivesse sido enterrado vivo o que não estava muito longe da verdade.

 

Agora estava finalmente livre e novamente em Roma, a salvo, bem alimentado e rodeado por aqueles que amava. Mas também estava cansado, exausto pelos quatro dias a cavalo, e ainda não completamente recuperado dos efeitos debilitantes do nosso cativeiro. Muito, muito cansado para aquilo que Betesda pretendia, pensei... mas os movimentos da sua mão começaram a excitar-me, e o seu calor parecia comunicar uma espécie de vitalidade ao meu corpo, devolvendo-me a vida. Senti-me afundar num estado que estava para além das palavras ou da preocupação, como uma pedra que se dissolvesse em água.

 

Mas não aqui murmurei. Devíamos ir... lá para dentro...

 

Por quê?

 

Betesda...!

 

E foi no jardim que o fizemos, como jovens amantes, não uma, mas duas vezes, com a Lua por lamparina. O ar da noite arrefeceu, mas isso apenas fez com que os pontos em que a nossa carne se tocava parecessem mais quentes.

 

Só uma vez tive a sensação de que estávamos a ser observados mas, quando olhei à volta, era apenas a cabeça de Minerva que olhava para mim, deitada de lado na relva. Ignorei-a até terminarmos a segunda vez. Quando voltei a olhar, ela parecia continuar a observar-me, com uma expressão de dor nos seus olhos de lápis-lazúli. E quando vais atender às minhas necessidades? parecia dizer como se eu pudesse, sozinho, voltar a unir as partes da deusa da sabedoria e repô-la no pedestal.

 

Betesda e eu acabámos por nos retirar para o quarto mas, a determinada altura da noite, eu levantei-me para me aliviar. A princípio, assustei-me com a sombra volumosa que avistei do outro lado do jardim, mas depois apercebi-me de quem se tratava.

 

Davo! sussurrei. O que estás tu aqui a fazer? Os guardas de Pompeu fazem a vigília da noite.

 

Não conseguia dormir.

 

Mas devias. Amanhã, vou precisar de ti fresco e alerta.

 

Eu sei. Vou tentar dormir. Começou a afastar-se, com os ombros caídos. Eu toquei-lhe no braço.

 

Davo, estava a falar a sério esta noite. Pensei que te tínhamos perdido para sempre. Fiquei muito satisfeito por não ter sido assim.

 

Obrigado, senhor. Pigarreou e desviou os olhos. O que se passaria com ele? Por que se sentiria tão culpado?

 

Davo, ninguém te responsabiliza pelo que aconteceu.

 

Mas se eu soubesse montar...

 

Eu toda a vida montei e eles não tiveram qualquer dificuldade em me puxar do cavalo abaixo

 

Mas a mim, ninguém me puxou. Fui atirado ao chão! Se não tivesse caído, podia ter ido buscar ajuda.

 

Que disparate. Terias lá ficado e terias lutado, e eles tinham-te morto de certeza. Fizeste o melhor que podias, Davo.

 

Mas não foi suficiente.

 

De onde lhe vinha uma natureza tão conscienciosa, ele que fora escravo toda a vida?

 

Davo, a Fortuna sorriu-te. O cavalo atirou-te ao chão, ficaste como morto, e hoje estás vivo. A Fortuna sorriu a todos nós. Ainda aqui estamos, não é verdade? Devias permitir que isso fosse suficiente.

 

Finalmente, ele olhou-me de frente.

 

Senhor, quero dizer-te uma coisa. Disseste que tinhas ficado satisfeito ao ver que eu estava vivo, mas não podes imaginar como eu fiquei satisfeito hoje, quando te vi chegar! Porque pronto, não sei explicar. Quem me dera saber, mas não sei. Posso ir-me embora?

 

Claro, Davo. Vai dormir. Ele afastou-se pesadamente, com a língua presa e quase a chorar. Pareceu-me que compreendia. Minerva, que assistira a tudo do ponto onde tinha caído, deve ter-se rido bastante de mim naquela noite.

 

Na manhã seguinte, pedi a Diana que me mostrasse a mensagem anónima a que tinha feito referência na carta que escrevera a Meto, a nota que tinha vindo endereçada à mãe dela. Era exactamente como ela a transcrevera:

 

Não temas por Gordiano e pelo seu filho. Não lhes aconteceu mal nenhum. Ser-te-ão devolvidos no devido tempo.

 

Mostrei-a a Eco.

 

Reconheces a caligrafia?

 

Não.

 

Nem eu. Ainda assim, podemos deduzir algumas coisas. Tanto o pergaminho como a tinta são de boa qualidade; não foi enviada de uma casa pobre. Além disso, não tem erros de ortografia, e as letras estão bem-feitas, por isso podemos concluir que a pessoa que a escreveu era culta.

 

Provavelmente um escravo, a ouvir um ditado.

 

Achas? Tenho a impressão de que um homem que manda uma mensagem como esta a escreve pessoalmente. Talvez ganhemos alguma coisa em procurar entre os meus registos e a correspondência, para ver se encontramos mais algum exemplo desta caligrafia.

 

Não tenho assim tantos exemplares, e tu também não, papá. As cartas são quase sempre escritas em tabuinhas de cera, para se poder escrever a resposta por cima.

 

Sim, mas talvez encontremos qualquer coisa uma conta, uma receita, qualquer coisa. Vês como ele desenhou a letra G do meu nome? Parece-me bastante peculiar. Se descobríssemos o homem que desenha os G desta maneira...

 

Teríamos descoberto um homem que sabe alguma coisa acerca do nosso cativeiro.

 

Exactamente.

 

Eco sorriu.

 

De qualquer maneira, tenho de arrumar o escritório e separar a correspondência. Começamos aqui ou em minha casa, no Esquilino?

 

Aqui, não? A não ser que queiras passar por tua casa para ver como está, depois desta longa ausência. Claro que, mais cedo ou mais tarde, teremos de ir dar notícias nossas ao Grande...

 

Como se estivesse a responder a uma deixa numa peça, Davo apareceu à porta.

 

Uma visita, senhor.

 

Alguém que eu conheça?

 

Acho que lhe deste um diminutivo qualquer. Uma coisa tonta... Davo mostrou-se pensativo. Já me lembro. Cara de Bebé!

 

Voltei-me para Eco.

 

Afinal, parece que vamos ver o Grande mais cedo, e não mais tarde. Será melhor levarmos as capas, Davo?

 

Não está frio, senhor, e o céu está limpo. Queres que... queres que vá convosco?

 

Duvido de que seja necessário, Davo. O Cara de Bebé e os seus homens cuidam de nós. Fica por cá. Saiste-te bem a guardar as mulheres na nossa ausência.

 

Pensei que isto o animasse, mas o meu elogio pareceu mergulhá-lo numa melancolia ainda mais profunda.

 

Na sua qualidade de cônsul, e apesar de ter mantido o comando das legiões de Espanha, Pompeu podia agora entrar legalmente na cidade, e poderia ter fixado residência na sua antiga casa de família, no bairro de Carinas. Em vez disso, decidiu permanecer na villa da Colina Pinciana, provavelmente por ser mais fácil de defender, pensei eu, enquanto subíamos pelos jardins em socalcos povoados de soldados, que faziam a guarda por entre as estátuas. Seria assim que viveria um rei, se Roma tivesse rei?

 

O Grande recebeu-nos na mesma sala da vez anterior. Estava sentado a um canto, com uma pilha de documentos ao colo, ditando a um secretário, mas quando entrámos pôs os documentos de lado e mandou embora o secretário. Levou-nos até à varanda, brilhante com o Sol da manhã. Não havia colunas de fumo a manchar a linha do horizonte da cidade. Pompeu prometera restabelecer a ordem e cumprira a sua promessa.

 

Estiveste ausente durante muito tempo, Descobridor. Tenho de confessar que já quase me tinha convencido de que não voltaria a ver-te. Foi uma surpresa agradável ter recebido ontem a notícia do teu regresso. Estão ambos com bom aspecto, embora um pouco mais magros do que da última vez que vos vi. Consegui manter-me informado das vossas dificuldades graças à tua mulher. Soube que foram atacados junto ao Monumento de Basílio. E, há uns dias, ela recebeu uma espécie de mensagem, dizendo-lhe que não se preocupasse, e prometendo-lhe que vocês acabariam por ser libertados. E aqui estão.

 

Só que não foram os nosso raptores que nos libertaram, Grande. Fomos nós que fugimos.

 

A sério? Pompeu ergueu uma sobrancelha, em sinal de apreço. Quer dizer que tiveram uma aventura. Venham sentar-se. Sabia-me bem ouvir uma história, para me distrair dos meus próprios problemas. Comecem pelo princípio.

 

Se Pompeu preferia chamar-lhe história, e não relatório, eu nada tinha a objectar, embora fosse claro, pelas suas frequentes interrupções, que ele estava interessado em todos os pormenores daquilo que tínhamos visto, ouvido e feito na Via Ápia. Não chamou o secretário para tirar notas, preferindo aparentemente reter os pormenores relevantes na memória, sem partilhar aquelas informações. Não lhe escondi quase nada. Afinal, tínhamos feito um acordo. É certo que o salário que ele me oferecera nunca poderia pagar os dias que eu tinha perdido no cativeiro, mas ele cumprira a sua palavra e guardara a minha família na minha ausência.

 

Questionou-nos com intensidade relativamente a determinados pontos, em particular o encontro entre Milo e Clódio. Eco e eu tínhamos discutido o assunto tantas vezes durante o nosso cativeiro, que podíamos ter-lhe respondido a dormir. Na verdade, eu estava farto de falar e de pensar sobre aquilo, e Pompeu deve ter percebido que assim era, porque de vez em quando encostava-se e começava a conversar sobre coisas sem importância, perguntando-nos se tínhamos gostado das instalações da sua villa albana e dos talentos do cozinheiro, antes de voltar a mergulhar nas descobertas que tínhamos feito na Via Ápia. A conversa adquiriu um certo ritmo, intenso durante algum tempo, depois mais repousante, e, antes que eu me tivesse apercebido do facto, a manhã tinha passado.

 

Pompeu não seria grande orador, mas era competente a interrogar. Uma longa experiência como general tinha-o ensinado a dar instruções e a recolher informações dos seus homens. Não era de espantar que as suas reformas judiciais tivessem enfatizado os interrogatórios das testemunhas, em detrimento dos resumos retóricos. Se eu relatei alguma coisa que o tivesse espantado ou assustado, incluindo os pormenores do nosso encarceramento, teve controlo suficiente para não o mostrar.

 

Terminei o relato com uma breve descrição da nossa fuga e algumas palavras sobre a nossa estadia no quartel-general de César, em Ravena. Pompeu mostrou-se impressionado com o facto de termos falado pessoalmente com o comandante.

 

Ele pediu-me que te transmitisse os seus mais calorosos cumprimentos disse eu.

 

Pediu? Pompeu pareceu-me vagamente divertido. E diz-me, como foi que tratou Cícero?

 

Enquanto eu pensava na melhor maneira de responder a esta pergunta, Pompeu notou o sorriso de Eco e fez um aceno de cabeça de reconhecimento.

 

Miseravelmente, não foi?

 

César parecia estar muito ocupado, e adiava sucessivamente o encontro disse eu cautelosamente.

 

Ah! Queres tu dizer que fez todos os possíveis para fazer com que Cícero se sentisse um idiota. Foi por ter sido eu a enviar-lho, claro.

 

Perdão, Grande?

 

Cícero foi lá em minha representação. Não te apercebeste disso, Descobridor.

 

O quê, ele disse-te que fora por decisão própria?

 

Não foi bem...

 

Nesse caso, enganou-te. Admite-o! Bem, Cícero tem-nos enganado a todos uma vez ou outra, por que não havia de te enganar a ti também? Que raposa. Tenho a certeza de que se pôs com aqueles ares, comportando-se como o grande salvador do Estado, que tem de andar de um lado para o outro, a resolver as batalhas e a ligar todas as coisas. O facto é que fui eu que enviei Cícero a Ravena, para negociar com César em meu nome. Neste momento, como vês, disponho do poder necessário para fazer determinadas coisas que têm de ser feitas. Mas a facção de César no Senado ainda pode provocar-me muitas dores de cabeça. Têm receio de mim. Andam incomodados com este consulado exclusivo. Para equilibrar as coisas, insistem em que César tenha a possibilidade de se candidatar a cônsul no próximo ano, embora esteja ausente na Gália. Pois por que não? Célio era o principal problema, porque ameaçava vetar a isenção especial de César. O que tornava as coisas interessantes. Depois, surgiu aquele levantamento entre os Gauleses; César está ansioso por resolver as coisas em Roma antes de partir para o norte. O que torna as coisas ainda mais interessantes. Oh, eu darei a César o que ele pretende, é claro, mas é sempre necessário negociar um bocadinho. Por isso, pensei, não há melhor enviado pessoal do que Cícero. César anda atormentado e pressionado, prepara-se para partir para uma campanha perigosa, e quem lhe aparece à frente, solicitando-lhe uma audiência? Um homem que ele não suporta: Marco Cícero! César descarregará a sua irritação no pobre Cícero, mas ao mesmo tempo terá de reconhecer que eu lhe fiz um favor. Entretanto, Cícero tem a possibilidade de sentir que é poderoso e importante, uma vez que é a única pessoa que pode meter alguma sensatez dentro daquela cabeça dura, Célio, e sentir-se-á absolutamente reconhecido para comigo por lhe ter atribuído tão grave responsabilidade deixá-lo participar no jogo, fazer dele mediador entre César e eu próprio. E, quanto mais não seja, esta viagem afastou Cícero de mim durante algum tempo!

 

Eu pestanejei e acenei com a cabeça, pensando que não percebia mesmo nada de política e dos políticos.

 

Muito bem, Descobridor, aprecio a tua honestidade e meticulosidade. Também aprecio o sofrimento por que passaste às mãos dos teus captores. Se fosses um militar, diria que desempenhaste as tuas funções para além do que te exigia o dever. Serás recompensado. Eu não me esqueço dessas coisas.

 

Obrigado, Grande.

 

Se quiseres, posso manter os meus guardas em tua casa.

 

Ficar-te-ia agradecido, Grande. Durante quanto tempo?

 

Enquanto durar a crise actual. Calculo que ela fique resolvida em breve. Bebeu um longo trago de vinho. Sabes, Descobridor, tu e o teu filho não foram os únicos a confrontar-se com o perigo no último mês. Eu também tive as minhas pequenas aventuras, ao tentar manter a cabeça em cima dos ombros. Atrevo-me a dizer que um homem com as tuas capacidades me teria sido muito útil aqui em Roma, para me ajudar a compreender uma série de coisas.

 

Aventuras, Grande?

 

Há quem diga que Milo está completamente decidido a dar cabo de mim.

 

A sério?

 

Não empalideças, Descobridor.

 

Não tenciono pedir-te que investigues as intenções de Milo. Já tenho suficientes pessoas a tratar disso, e tu mereces descansar. Ainda assim, gostaria que tivesses cá estado para me ajudares a lidar com o episódio de Licínio, o sacerdote-carniceiro.

 

Perdão, Grande?

 

Licínio; o homem é um carniceiro e é sacerdote. É um popa, aquele que corta o pescoço dos animais quando os sacerdotes fazem os sacrifícios; este Licínio mexe no sangue enquanto os outros atendem aos cantos e ao incenso. Mas, nos seus tempos livres, tem um talho nas arcadas do Circo Máximo. Bastante conveniente, não achas? Atrevo-me a dizer que alguma da carne que é sacrificada aos deuses acaba por ser vendida a seguir a simples mortais famintos. Mas o sujeito parece bastante respeitável, para sacerdote. As minhas relações com ele começaram alguns dias antes de eu ter sido nomeado cônsul exclusivo pelo Senado. Licínio veio bater-me à porta certa noite, explicando quem era e pedindo para ser recebido por mim, para minha própria segurança, segundo disse. Pensei duas vezes antes de admitir um carniceiro profissional à minha presença!

 

Bebeu um gole de vinho.

 

Aparentemente, Licínio tem uma clientela regular de guarda-costas e gladiadores do Circo a sua loja é uma espécie de local de reunião para os consumidores de carne. Nesse dia, tinha lá ido um grupo empanturrar-se de chouriços de sangue e de vinho. Ficaram muito embriagados, tanto com o sangue, como com o vinho, segundo disse Licínio, e deixaram escapar que faziam parte de um grupo organizado por Milo, que conspirava para me assassinar. Quando se aperceberam de que o carniceiro estava a ouvir, encostaram-no à parede, espetaram-lhe uma faca nas costelas, e disseram-lhe que o matavam se ele contasse a alguém.

 

Depois de fechar a loja, à noite, ele veio até cá, bastante perturbado. Eu ouvi-o e mandei chamar Cícero, para ver o que teria a dizer em defesa de Milo. Antes de Licínio ir a meio da história, Cícero lançou-se num ataque empoladíssimo ao carácter do homem. Chamou-lhe carniceiro disfarçado de sacerdote, disse que ele já tinha feito correr mais sangue com o seu punhal do que os homens que acusava, disse que muito provavelmente ele próprio era um assassino a soldo, porque estava na bancarrota e desesperado por dinheiro, e por aí adiante.

 

Estás a ver o lapso na lógica, Descobridor? Como é que Cícero estava tão informado acerca de um carniceiro obscuro que tem uma loja no Circo Máximo? Como se explica que tivesse chegado a minha casa já armado com argumentos contra ele a não ser que houvesse mesmo uma conspiração e que Cícero já tivesse sido posto ao corrente desse facto? Não acuso Cícero; não acredito que ele tomasse parte activa numa conspiração para me assassinar. Mas acho que os gladiadores de Milo devem tê-lo advertido de que o carniceiro os tinha ouvido, e Milo deve ter mencionado o facto a Cícero, de maneira que Cícero não terá ficado inteiramente surpreendido ao ver Licínio. Quando o carniceiro levantou a túnica, para mostrar o sítio onde os gladiadores lhe tinham encostado o punhal às costelas, Cícero zurrou como um burro. "Essa feridinha? Esperas que fiquemos impressionados com isso? Queres que acreditemos que um gladiador grande e forte te fez essa ferida minúscula? É óbvio que pegaste num gancho de cabelo da tua mulher e te esfolaste a ti próprio, e mesmo assim não muito. Para carniceiro, és tremendamente susceptível quanto à possibilidade de verter um pouco do teu próprio sangue."

 

Depois, enquanto Cícero continuava a perorar, apareceu um homem que afirmava ser amigo do carniceiro, e que queria vê-lo. Autorizei Licínio a falar com o sujeito na antessala, mas mandei-a vigiar, evidentemente, e momentos depois entrou um guarda que me disse que o dito amigo de Licínio estava a tentar suborná-lo para que não falasse mais. Aqui mesmo, debaixo do meu tecto! Foram muitos acontecimentos para um dia só. Mandei Licínio para casa acompanhado, mandei prender o sujeito que tinha tentado suborná-lo e que não passava de um mensageiro, estando por isso totalmente às escuras e disse a Cícero que desaparecesse da minha vista antes que eu o estrangulasse.

 

E qual foi o resultado de tudo isso? perguntei eu.

 

Mais tarde, apresentei as provas ao Senado. Quando Milo falou, declarou não conhecer a maioria dos gladiadores em questão. Admitiu ter possuído alguns deles, mas disse que os tinha libertado há muito e que deixara de ser responsável por eles. E claro que, enquanto cidadãos, eles não podiam ser torturados para fornecerem provas, e recusaram-se a falar. Milo sugeriu que Licínio, o carniceiro, teria tido uma fantasia resultante da embriaguez, e compreendido mal a maior parte do que fora dito. Eu não tinha provas do contrário. E é esse o resultado... por enquanto. Pompeu voltou os olhos para a cidade, abaixo de si. Talvez tivesses podido ajudar-me a chegar à verdade, Descobridor, mas não estavas cá.

 

Acredita em mim, Grande, teria preferido cá estar do que onde estava.

 

Sim, sim, sei que passaste muitas dificuldades. Não diminuo os teus sofrimentos. Mas digo-te que há dias em que não é fácil ser Pompeu, O Grande.

 

Passei os dias seguintes descansado. Eco e eu ocupámos o tempo a analisar todos os rolos e fragmentos de pergaminho que tínhamos em nossas casas, tentando encontrar uma caligrafia que fosse idêntica à da mensagem enviada a Betesda. Não fomos bem sucedidos mas, passado algum tempo, rever recordações e correspondência antiga transformou-se num fim em si mesmo, num distanciamento nostálgico do mundo. Eu precisava deste período de distracção. Estava a recuperar a minha vida. Tinha pensado que, uma vez regressado a Roma, poderia prosseguir as minhas actividades sem tropeços, mas enganara-me, já que a experiência no fosso me tinha assustado e perturbado mais do que então pudera aperceber-me. Dei por mim numa espécie de estado intermédio, em que não me sentia completamente preparado para prosseguir.

 

Betesda proporcionou-me todo o conforto e apoio imagináveis. Não pronunciou uma única palavra de censura por eu me ter colocado em semelhante situação de perigo. Nunca me disse que eu era um idiota vaidoso e insensato, como eu próprio me chamara tantas vezes durante o tempo em que estivera no fosso. Percebeu que eu tinha necessidade de toda a sua atenção e do seu afecto incondicional, e deu-mos. Comecei a pensar que me tinha casado com uma deusa.

 

Diana era mais problemática. Se ela estivesse zangada comigo por tê-la feito passar tantas preocupações, por tê-la feito sentir-se desolada e abandonada, talvez eu tivesse compreendido, mas o seu comportamento era mais intrigante do que isso. Ela sempre fora um tanto incompreensível para mim, ainda mais do que a mãe. A experiência passada tinha-me ensinado, por vezes à custa de choques brutais, que ela era capaz de pensamentos e acções que eu não tinha a menor possibilidade de prever. Por isso, tentei não me preocupar em excesso com a sua aparente frieza, a sua melancolia pensativa, o seu hábito recém-adquirido de olhar para meia distância.

 

Davo era igualmente intrigante. Eu tivera esperança de que a conversa sussurrada que mantivera com ele no jardim tivesse resolvido as coisas e que ele parasse de amuar pelos cantos e de evitar o meu olhar. Mas este comportamento culposo mais não fez do que acentuar-se. O que se passaria com ele?

 

No preciso momento em que eu começava a sentir-me novamente instalado, e perfeitamente envolvido nestas preocupações familiares, chegou uma distracção, sob a forma de uma liteira às listas vermelhas e brancas.

 

Era inevitável que Clódia viesse visitar-me, mais cedo ou mais tarde, da mesma maneira que fora inevitável que Pompeu me mandasse chamar. Até havia uma parte de mim que antecipava a sua chegada com alguma impaciência. Quando Davo trouxe à minha presença o mesmo escravo altivo que me tinha convocado anteriormente para a sua liteira, eu tentei reprimir um sorriso. Nesse dia, Eco andava a tratar dos seus próprios negócios; que alternativa me restava, senão ir sozinho? Quando ia a passar pela entrada, cruzei-me com Betesda, que vinha a chegar. Certamente teria visto a liteira, e sabia onde eu ia. Contive a respiração, mas ela limitou-se a sorrir quando passámos um pelo outro, e a dizer:

 

Tem cuidado contigo, marido. Depois parou, aproximou a minha face da sua e deu-me um beijo longo e profundo. Ia a rir-se quando se afastou. Os jogos políticos de Pompeu, o sentido de humor de Betesda e os estados de espírito da minha filha de 17 anos: que mais me faltaria acrescentar à lista das coisas que nunca, mas nunca, seria capaz de compreender?

 

Momentos depois, estava sentado na liteira ao lado de Clódia, atravessando as ruas do Palatino. Ela pegou-me na mão e lançou-me um sentido olhar de esguelha.

 

Gordiano, os boatos que ouvi acerca de ti, terríveis! Que provação para a tua família! Conta-me tudo.

 

Eu abanei a cabeça.

 

Não. Estou demasiadamente bem-disposto para estragar essa disposição com uma conversa desagradável.

 

A recordação é assim tão dolorosa? Ela uniu as sobrancelhas.

 

O facto de não haver uma única ruga no seu rosto tinha de ser um truque da luz suave e filtrada. Gordiano, de que estás tu a rir?

 

Da luz do interior desta liteira. Do calor do teu corpo. Desse perfume fugidio e inesquecível que tu usas. Os homens nascem e morrem, as nações ascendem e são destruídas, mas há coisas que nunca mudam.

 

Gordiano...

 

És uma mulher extraordinária, Clódia. Terei de viver e morrer sem nunca fazer amor contigo?

 

Gordiano! Ela teria realmente corado? Não, era impossível; Clódia estava acima disso. Tinha de ser um truque da luz, tal como a perfeição da sua pele. Gordiano, vim falar-te em nome de Fúlvia; deves sabê-lo. Tentou dar à voz um tom prático, mas não conseguiu deixar de sorrir.

 

Foi isso que disseste à minha mulher quando ela meteu a cabeça dentro da liteira para te cumprimentar?

 

Claro. E depois falámos acerca do tempo. Não adoras esta Primavera antecipada?

 

A minha mulher é uma deusa, sabias? Qualquer mortal teria uns ciúmes loucos de ti.

 

Ela inclinou a cabeça.

 

Concordo, ela tem de ser divina; qualquer homem casado com uma simples mortal teria há muito sucumbido aos meus encantos. Mas eu pensei que tu me considerasses divina.

 

Oh, não, Clódia, considero-te definitivamente uma mulher. Sobre isso não há qualquer dúvida...

 

Sorrimo-nos. Depois parámos de sorrir. Uma nuvem obscureceu o Sol, alterando a luz do interior da liteira. Nenhum de nós desviou os olhos.

 

Vai acontecer alguma coisa, Gordiano? disse Clódia. Tive dificuldade em lhe reconhecer a voz.

 

Eu inspirei profundamente e apertei-lhe a mão. Momentos depois, ela afastou-a, tendo percebido o significado do meu gesto. Eu encolhi os ombros.

 

Se alguma coisa acontecesse entre nós, Clódia, tudo mudaria. O jogo da luz dentro desta liteira, o calor do teu corpo, esse perfume fugidio e inesquecível. Nunca mais voltariam a ser os mesmos, e eu não quero que eles mudem.

 

Ela pareceu estremecer, e depois riu-se de mansinho.

 

Homens! disse ela, num tom depreciativo mas amigável. Por momentos, pensei que a tinha magoado, e senti uma estranha excitação. Depois percebi que estava a ser absurdo. Uns momentos a sós com Clódia podiam trazer a lume o pavão que se esconde em todos os homens.

 

Então o que foi que descobriste na Via Ápia? A sua voz recuperara o tom de conversa. Alguma novidade importante?

 

Nem sei bem por onde começar. Estamos quase a chegar a casa de Fúlvia, não estamos? E se viesses comigo e me ouvisses contar a Fúlvia?

 

A sua expressão deu-me a entender que aquilo não era possível.

 

Talvez depois, de regresso a casa, possas fazer-me um relato privado disse ela.

 

Pois sim, se o desejares.

 

A liteira depositou-me nos degraus que iam dar à entrada. Um guarda acompanhou-me ao interior. Os majestosos compartimentos continuavam por acabar, e mobilados de forma casual. Com a morte do dono e do arquitecto, a casa de Clódio ficara parada no tempo.

 

A sala onde Fúlvia e a mãe esperavam por mim estava mais iluminada e mais quente do que na vez anterior, mas Semprónia continuava com a manta em cima dos joelhos e lançou-me um olhar gelado. Eu senti que havia outras pessoas na sala e tive um inesperado frémito de alívio quando Fúlvia mas apresentou.

 

Gordiano, julgo que já conheces Felícia, a guardiã do santuário da Boa Deusa na Via Ápia, e o irmão, Félix, que cuida do altar de Júpiter, em Bovilas.

 

Quer dizer que seguiste o meu conselho disse eu a Felícia.

 

O meu irmão e eu discutimos o assunto durante uma hora, depois juntámos aquilo de que precisávamos e partimos para Roma no dia seguinte, antes de amanhecer. Desde então, praticamente não saímos desta casa. Felícia continuava tão impressionante como sempre. Embora estivesse a viver como suplicante em casa de outra pessoa, exibia a mesma descontracção intrigante e irritante.

 

- Eu não os deixo sair disse Fúlvia. São demasiadamente preciosos como testemunhas. E demasiado vulneráveis; por esta altura, Milo já deve ter ouvido dizer que houve testemunhas dos seus crimes. Félix e Felícia estão a salvo comigo, e bastante confortáveis.

 

Muito, muito confortáveis concordou Félix, cuja cara parecia mais cheia do que na vez anterior.

 

Testemunhas? perguntei eu. Quer dizer que vai haver um julgamento?

 

Oh, sim disse Fúlvia. Tem havido atrasos. Pompeu andou a reorganizar os tribunais a seu gosto, e Milo tem andado a dar um espectáculo como os seus gladiadores nunca deram, a protelar as coisas e a fazer muito barulho e a usar todo o género de manobras legais para escapar ao inevitável. Mas o meu sobrinho Ápio está finalmente preparado para apresentar o caso. Quando a acusação for oficialmente entregue, em poucos dias damos cabo do patife para sempre.

 

Semprónia rangeu os dentes e cuspiu no chão.

 

Ouvimos falar dos teus infortúnios disse Fúlvia.

 

Por favor, como acabo de dizer à tua cunhada, não consigo voltar a falar desse assunto.

 

Óptimo respondeu Fúlvia sem cerimónias. Eu também estou farta de cogitar sobre infortúnios. Quero falar sobre o futuro. Félix, Felícia, saiam por favor. Félix afastou-se cerimoniosamente. A irmã seguiu-o, lançando-me um sorriso muito pouco próprio.

 

Fúlvia fez uma careta.

 

Que canalha! Tenho formigueiros sempre que eles se aproximam de mim.

 

O homem come como um porco disse Semprónia, e a mulher mete o nariz em toda a parte, e quando eu a apanho finge ser meia tola.

 

Verdadeira canalha! declarou Fúlvia.

 

Pensei que o vasto círculo de amigos do teu falecido marido te tivesse feito conhecer muitas pessoas nem melhores nem piores do que eles comentei eu.

 

Cuidado com a língua, Descobridor, atirou Semprónia. Fúlvia fez um gesto de mão para advertir a mãe.

 

Gordiano é nosso convidado. E ainda temos algumas coisas a resolver com ele.

 

Temos? disse eu.

 

Sei que não chegaste a concordar formalmente com a proposta que eu te fiz. Mas nem por isso deixaste de investigar a morte do meu marido. Suspeito de que deves ter sido enviado por uma certa pessoa; não há outra maneira de explicar a presença dos seus guarda-costas em tua casa. Mas, tendo em conta que enviaste testemunhas presenciais para minha casa, a fim de serem protegidas...

 

Se o fiz, foi tanto por elas como por ti repliquei eu. Ela fez uma pausa, surpreendida com a minha rudeza.

 

Talvez, mas essa acção continua a fazer de ti um amigo da nossa causa. Aceitaste a minha proposta ou não? Tens alguma coisa a relatar-me?

 

Referes-te a Marco António?

 

Refiro.

 

Hesitei.

 

Qual foi a soma que me prometeste? Ela disse um número.

 

Aceito metade dessa quantia disse eu. Para compensar a diferença, quero que me dês dois dos teus escravos.

 

Ela mostrou-se hesitante.

 

Se andas à procura de guarda-costas, devo dizer-te que cada um dos meus melhores homens vale consideravelmente mais do que a soma que mencionei.

 

Não, Fúlvia, não é de protectores que estou à procura. Só quero dois rapazinhos que residem na tua villa albana. São irmãos; chamam-se Mopso e Androcles.

 

O quê, os miúdos dos estábulos? Semprónia fez um sorriso trocista.

 

São esses os teus gostos, Descobridor? Clódia devia estar a falar verdade quando disse que nunca tentaste tocar-lhe, apesar de ela se encostar a ti.

 

Mordi a língua. Suspirei e encolhi os ombros.

 

Só posso dizer que tenciono aproveitar os rapazes melhor do que tu, Fúlvia. Estás consciente de que eles salvaram a vida do teu filho quando Milo e os seus homens invadiram a villa?

 

O quê, por estarem casualmente escondidos com ele na passagem secreta, e terem sido capazes de não desatar a chorar?

 

Foi assim que o teu filho te narrou os factos? Acho que nenhum de vocês aprecia suficientemente os rapazes.

 

São apenas os miúdos que tratam dos estábulos, Gordiano.

 

Talvez, mas aposto que se tornarão duas vezes mais espertos e desembaraçados do que qualquer outro escravo teu.

 

Fúlvia ergueu uma sobrancelha.

 

Se estás interessado nos dois escravos como parte do teu pagamento, Gordiano, podes ficar com eles.

 

Óptimo. Queres que faça o meu relatório?

 

Quero.

 

Marco António não teve absolutamente nada a ver com a morte do teu marido.

 

É assim tão simples?

 

Tens a minha palavra.

 

A tua palavra? comentou Semprónia friamente. Fúlvia começou a andar de um lado para o outro diante das janelas abertas.

 

Que mais posso eu oferecer-te? A certeza é uma coisa estranha. Aristóteles mostrou que um homem não pode provar que determinada coisa não aconteceu. Levei a tua pergunta a todos os pontos da Via Ápia onde estive, Fúlvia, e para o fosso onde residi durante 40 dias, e até interroguei o próprio António, em Ravena. Regressei a Roma na sua companhia, fiz o meu próprio juízo. António está completamente inocente do derramamento do sangue do teu marido, apesar dos sentimentos que tem por ti.

 

Semprónia mostrou-se desgostosa.

 

Quer dizer que o patife também te seduziu! Fúlvia olhou para ela.

 

Sai, mãe.

 

Semprónia pegou na manta com gestos lentos e endireitou os seus membros fatigados. Não se dignou olhar para mim ao sair.

 

Fiquei sozinho com Fúlvia pela primeira vez. Senti imediatamente uma diferença nela. Quando parou de andar de um lado para o outro e se voltou para mim, o seu rosto parecia pertencer a uma mulher diferente, mais jovem e mais vulnerável.

 

Tens a certeza disto, Descobridor?

 

António está inocente, pelo menos deste crime.

 

Ela sorriu, mas também tinha lágrimas nos olhos. Que emoções a não devastariam, constantemente controladas para que os outros não pudessem apercebere-se delas?

 

Quer dizer que há esperança de que eu possa vir a ter futuro?

 

Com António? Mas ele é casado, com a prima. Ele tenciona divorciar-se de Antónia?

 

Não, isso é impossível. Um divórcio nesta altura destruí-lo-ia. Sugeriu-me que considerasse a hipótese de me casar com Curió.

 

O seu amigo de juventude?

 

O seu amante de juventude. Podes dizer a palavra. Penso neles como dois guerreiros gregos lendários, como Aqiles e Pátroclo.

 

E estás disposta a ser Briseida?

 

Ela olhou para mim com uma cara desprovida de expressão. A alusão pareceu escapar-lhe, por isso não se sentiu insultada. Fúlvia não era do tipo literário.

 

Pensas voltar a casar-te tão depressa? perguntei eu.

 

Curió e eu esperaremos o tempo que for adequado.

 

Mas um casamento assim...

 

Por que não? Ambos amamos António e sempre amámos. E António ama-nos aos dois, mais do que tudo. Certamente mais do que Antónia.

 

Mas Clódio...

 

Clódio morreu disse ela sombriamente, e eu tenciono fazer com que seja vingado. Mas António está vivo. E Curió está vivo, e não é casado. E eu tenho de pensar no futuro. Quem sabe o que me trará o futuro? O sorriso tinha desaparecido. As lágrimas também. Queres que te pague?

 

Sim, obrigado.

 

Vou mandar trazer e contar a prata. E os dois miúdos?

 

Eu vou buscá-los quando tiver oportunidade.

 

Saí de casa de Fúlvia muito bem-disposto. Era a exuberância de me sentir novamente livre, depois de ter estado preso, de regressar à cidade onde era conhecido e havia outros que precisavam de mim. O peso e o som da prata nova que levava na bolsa também ajudavam, bem como a satisfação de ter agido por impulso ao pedir a Fúlvia os dois rapazes. Sentia-me bastante satisfeito comigo e com o lugar que ocupava no mundo naquele momento.

 

O meu estado de espírito alterou-se bruscamente quando percebi que a liteira de Clódia tinha desaparecido.

 

O seu jovem, belo e altivo escravo continuava ali, juntamente com um número suficiente de guarda-costas para me acompanharem a casa em segurança.

 

Espero que não te importes de ir a pé disse ele, quase com sarcasmo.

 

Mas onde está Clódia?

 

Lembrou-se de que tinha uns assuntos mais urgentes a tratar.

 

Mas eu tinha coisas para lhe contar. Coisas que ela tinha uma grande vontade de ouvir.

 

Presumo que ela tenha decidido que essas coisas não eram assim tão importantes. O escravo era absurdamente paternalista. Vamos? Consegues fazer o percurso a pé, não? Ou será melhor mandar vir uma liteira? Agora, estava a ser deliberamente insultuoso.

 

Considerei a possibilidade de lhe dar uma lição de moral. Ele era jovem e belo e era o objecto dos favores da sua senhora. Mas durante quanto tempo o seria? Saberia o que tinha acontecido à longa lista dos homens que tinham agradado à sua senhora antes dele?

 

Mas para quê? O escravo estava simplesmente iludido. Aquilo que lhe parecia uma humilhação para mim, a súbita partida de Clódia, era na verdade o contrário. Afinal, eu tinha-a magoado, tanto, que ela fugira. Eu, Gordiano, tinha ferido Clódia. Era um triunfo, pensei; e respondi-me: pois era, do género daqueles que tornavam Pirro famoso. Ali no interior da liteira, o calor do seu corpo, aquele perfume fugidio e inesquecível algo me disse que nunca mais voltaria a experienciar essas coisas.

 

Durante os dias seguintes, e tal como acontecera em todo o período da nossa ausência de Roma, houve no Fórum sucessivos contios, onde os tribunos radicais se pronunciavam contra Milo. Por mim, não abandonava a segurança de minha casa, mas Eco, que nunca deixava de assistir a esses contios, garantiu-me que se tratava de reuniões pacíficas, assim mantidas pela presença das tropas de Pompeu.

 

Não sei qual das coisas me perturbaria mais, disse-lhe eu, se ver um contio transformar-se num tumulto, ou ver cidadãos romanos intimidados por soldados romanos.

 

Papá, era preciso resolver o problema da violência.

 

Já agora, por que não um rei. É a sensação que dá, com os soldados nas ruas parece que estamos em Alexandria, com os homens do Rei Ptolemeu a atravessarem-se constantemente no nosso caminho.

 

Bem, esperemos que os soldados de Pompeu se saiam melhor na manutenção da paz disse Eco. Francamente, papá., pareces quase nostálgico dos bons velhos tempos do sangue nas ruas.

 

Não sou sentimental quanto ao passado, Eco, mas temo o futuro.

 

Entretanto, papá, nós vivemos no presente. Mais ninguém objecta à presença dos soldados no Fórum.

 

Por enquanto.

 

Quando falei a Betesda da minha aquisição de Mopso e Androcles, ela aceitou a notícia de que em breve haveria mais duas bocas para alimentar de crianças, nada menos, e ainda por cima rapazes! com mais equanimidade do que eu esperava. Estaria eu com uma aparência de fragilidade tal, que ela se sentia obrigada a fazer-me todas as vontades, fosse qual fosse a loucura de que eu me lembrasse a cada momento? Teria o espírito de Minerva entrado nela quando a estátua caiu e se partiu, tornando-a permanentemente serena?

 

A explicação dela era mais simples. Sempre tinha gostado de Eco e de Meto quando eram miúdos, disse. Se as Parcas nos tinham trazido mais dois rapazes, ela faria todos os possíveis por recebê-los da melhor maneira. Conseguir alimentar os habitantes de nossa casa sempre fora um desafio especialmente no momento presente, porque Davo parecia comer mais do que Belbo, mas ela havia de sair-se bem.

 

A reacção de Diana foi ainda mais surpreendente. Ela tinha detestado o facto de os gémeos de Eco e Menénia a terem suplantado como bebé da família, mas desde então amadureceera muito, e eu não tinha qualquer intenção de a obrigar a aceitar Mopso e Androcles como irmãos mais novos; eles seriam, muito simplesmente, criados da casa. Ainda assim, pareceu-me que Diana poderia sentir-se hesitante, ou mesmo adversa, perante a ideia. Mas não fazia ideia de que desataria a chorar e a sair a correr da sala.

 

Em nome de Júpiter, o que foi aquilo? perguntei a Eco.

 

Parece que a ideia não lhe agradou.

 

Mas por que desatou a chorar?

 

Ela tem 17 anos. Chora por tudo e por nada.

 

Betesda disse-me que Diana não chorou uma lágrima durante a nossa ausência.

 

Nesse caso, eu devia ter dito: ela tem 17 anos, chora sem motivo. Sabes uma coisa, papá, é altura de ela se casar. Provavelmente, é disso que se trata. A ideia de ter em casa mais crianças fê-la aperceber-se de que provavelmente ela própria não viverá aqui muito mais tempo.

 

Achas mesmo que é isso?

 

Não faço ideia. Tens pensado em lhe arranjar marido?

 

Eco, achas que tenho tido tempo? Tu é que tens andado por aí, em todos esses contios.

 

Não me parece que encontre um bom marido para a minha irmãzinha entre aquela ralé.

 

Talvez Menénia tenha algum primo em boa idade sugeri.

 

Ou talvez Meto conheça algum oficial interessante.

 

Acho que temos mesmo de começar a pensar nisso admiti. Mas sabes o que eu preciso realmente de fazer? De mandar arranjar a estátua de Minerva...

 

Alguns dias mais tarde, um dos guarda-costas de Eco regressou a casa num estado de grande excitação. Davo trouxe-o ao meu escritório.

 

Vai começar um contio no Fórum disse ele, um pouco ofegante por ter subido a Rampa a correr, e o senhor mandou-te chamar.

 

Mas por quê?

 

Ele só disse que tens de ir. Está lá à tua espera.

 

Davo e eu seguimos o homem até ao Fórum. O tribuno Planco já estava a falar. A pouca distância da Rostra, um esquadrão de soldados armados estava postado nos degraus do Senado em ruínas. Tive de admitir que a sua presença conferia uma certa gravidade aos acontecimentos.

 

Encontrámos Eco no meio da multidão.

 

O que se passa? murmurei eu.

 

Se o boato for verdadeiro, Planco vai apresentar mas olha, acaba de os chamar à plataforma. Quatro homens subiram à Rostra, todos com um ar nervoso e deslocado.

 

Planco estendeu a mão para o chefe e puxou-o para o centro da plataforma.

 

Cidadão, diz a estes homens bons como te chamas.

 

O homem respondeu com um resmungo inaudível. A multidão riu-se e fez pouco dele.

 

Cidadão disse Planco bem-disposto, tens de falar mais alto. Estás a ver aqueles soldados ali de sentinela nos degraus do Senado? Fazes de conta que estás a falar para eles.

 

Chamo-me Marco Emílio Filémon! gritou o homem. Ouviu-se uma ronda de aclamações e aplausos.

 

Diz-nos uma coisa, Filémon prosseguiu Planco, lembras-te onde estavas no dia em que Públio Clódio foi assassinado?

 

Lembro-me, sim. Ia com estes quatro homens pela Via Ápia. Dirigíamo-nos a Neápoles a pé.

 

E até onde tinham chegado nesse dia?

 

A Bovilas.

 

O que aconteceu aí?

 

Deparámos com o que parecia uma batalha.

 

Onde?

 

Na estalagem. A multidão ouvia agora com profunda atenção, Filémon pigarreou e prosseguiu. Parecia haver um grupo dentro da estalagem e outro grupo no exterior, e os que se encontravam do lado de fora queriam atacar os que estavam no interior. Tinham arrombado a porta. Continuavam a tentar entrar à força, arrastando os homens à vez para fora e apunhalando-os até à morte, ali mesmo na estrada. Estava tudo cheio de sangue.

 

Calculo que fosse uma visão horrível disse Planco. O que fizeram vocês?

 

Gritámos-lhes: "O que estão a fazer?" E eles disseram: "Conseguimos apanhar Públio Clódio numa armadilha, como um rato, e vamos cortar-lhe a cauda!" Riam-se bastante, e estavam a divertir-se.

 

"Eles", dizes tu. Reconheceste algum desses homens?

 

Reconheci imediatamente dois deles. Todos os reconhecemos. Eram os dois famosos gladiadores de Milo, Eudamo e Birria. Eram os que pareciam estar a matar a maior parte dos homens. Estavam cobertos de sangue.

 

Nessa altura, o que fizeram vocês?

 

Gritámos-lhes que parassem com aquilo. Posso não passar de um liberto, mas não estava disposto a assistir calmamente à matança de um cidadão por um bando de escravos!

 

Isto suscitou ruídos de aprovação por parte da multidão.

 

Poderás ser um liberto disse Planco, mas só um cidadão digno desse nome está disposto a defender outro romano. Quer dizer que tentaste pôr fim a semelhante atrocidade?

 

Os meus amigos e eu investimos contra eles, mas digo-vos que nenhum de nós foi jamais soldado ou gladiador. Eles reagiram. Depois vieram atrás de nós. Nós tínhamos uns punhais, mas estes sujeitos eram gladiadores e estavam armados com espadas. Não vou dizer que foi um acto de grande coragem, ter-lhes voltado as costas e fugido, mas desafio qualquer dos presentes a enfrentar-se com Eudamo e Birria sem vacilar. Isto suscitou novos murmúrios de simpatia.

 

De qualquer maneira, foste corajoso, cidadão, tu e estes teus excelentes amigos. Espero que, se algum dia um malandro como Milo mandar os seus gladiadores atacar-me, a mim ou aos meus, haja cidadãos como tu que venham defender-me! Planco conduziu a multidão a uma explosão de aclamações e aplausos.

 

Mas Filémon, prosseguiu Planco, como se explica que só agora oiçamos esta história? Por que não te apresentaste mais cedo, quando andávamos todos confusos relativamente ao que se passou na Via Ápia?

 

Porque só agora houve a possibilidade de me apresentar. Há dois meses que somos prisioneiros de Milo na sua villa de Lanúvio.

 

Isto provocou uma grande agitação entre a multidão.

 

Explica-te, Filémon disse Planco.

 

Quando Eudamo e Birria e os seus homens vieram atrás de nós, separámo-nos e fugimos da estrada. Pensámos que talvez conseguíssemos despistá-los nos bosques e nas colinas. Mas eles eram muitos e apanharam-nos, um por um, reunindo-nos aos cinco. Amarraram-nos e levaram-nos prisioneiros para Bovilas e depois pela Via Ápia acima.

 

Os escravos fizeram isso? A cidadãos? Entre a multidão, alguns homens agitaram os punhos cerrados e gritaram maldições a Milo.

 

Queimem-lhe a casa! gritou alguém. Incendeiem a casa do malandro! Eu olhei para os soldados, que se puseram rigidamente em posição de alerta nos degraus do Senado. Sentia-me pouco à-vontade.

 

Planco acalmou a multidão, para que Filémon pudesse prosseguir.

 

Levaram-nos colina acima, até junto de Milo. Ele estava no meio da estrada, com uma série de homens à sua volta. Quando nos viu, bateu com os pés no chão, e teve uma birra, parecia uma criança. Pensei que fosse o nosso fim, e que eles nos iam matar ali mesmo, na estrada. Mas Milo ordenou aos seus homens que nos amordaçassem e nos metessem umas sacas pela cabeça abaixo. Depois, fomos arrastados para uma espécie de carroça ou carruagem, e levaram-nos para um local pouco distante a villa do próprio Milo, em Lanúvio. Fecharam-nos numa despensa subterrânea. E ali ficámos durante dois longos meses, alimentados a restos da cozinha e a pão bolorento. Depois, um dos homens que nos guardava disse-nos que Milo tinha finalmente decidido matar-nos.

 

Não quero falar muito

acerca da maneira como fugimos, porque houve quem nos ajudasse na villa de Milo.

 

Disseste que estiveram presos durante dois meses gritou alguém entre a multidão. Mas Clódio já foi morto há mais de três meses. O que estiveram a fazer no mês que passou desde que fugiram? Como se explica que não tenhamos ouvido falar de vocês há mais tempo?

 

Eu posso responder a isso disse Planco. Estes homens têm estado escondidos. O facto surpreende-vos? Milo poupou-lhes a vida uma vez, mas nada o impediria de os matar se conseguisse apanhá-los segunda vez. Agora, parece que Milo vai finalmente ser levado a tribunal, por isso estes homens apresentaram-se. A verdade esperou a sua hora.

 

Mas será essa a verdade? gritou outro homem do meio da turba. Toda essa história me parece muito suspeita. Vocês, os Clodianos, fartaram-se de procurar e não conseguiram encontrar ninguém que tivesse assistido às mortes, e agora aparecem subitamente com cinco testemunhas que afirmam que estavam no local! E, quando parece um bocado estranho ninguém ter ouvido falar de nada disso este tempo todo, oh, foi apenas porque eles estiveram presos um par de meses! Tudo isto

 

é um bocado inacreditável, se querem saber. Eles têm alguma prova de que Milo os teve em cativeiro?

 

Um dos quatro homens avançou para a frente da plataforma e agitou o punho.

 

Prova? Querem provas? Sou capaz de me lembrar de uma maneira de provar se vocês têm sangue nas veias!

 

Ouviram-se mais gritos e ameaças. O ambiente começou a ficar feio. Olhei para os soldados. Seria imaginação minha, ou eles tinham-se aproximado alguns passos? Planco abanou a cabeça e fez um gesto a pedir calma, mas ouviam-se cada vez mais intervenções. Eu dei uma cotovelada a Eco, que acenou com a cabeça, e começámos a afastar-nos da multidão.

 

Pronto, papá, o mistério dos prisioneiros na estrada ficou resolvido. Eu acenei com a cabeça.

 

Afinal, não eram homens de Clódio, eram apenas uns viajantes desafortunados que tropeçaram na confusão.

 

Percebo por que razão Eudamo e Birria foram atrás deles, mas não percebo por que não os mataram logo ali. Por que motivo os terão poupado?

 

A sua temeridade já tinha irritado suficientemente o seu senhor. Eles não sabiam quem eram os cinco sujeitos, nem se ofenderiam algum patrono poderoso com a sua morte. Milo deve ter pensado que era preferível mantê-los prisioneiros até passar a tempestade. Mas a tempestade continuou a aumentar. Ouviste o que disse Filémon: imediatamente antes de eles fugirem, Milo tinha finalmente decidido livrar-se deles. O mais provável é algum escravo da villa de Milo ter tido piedade deles e tê-los ajudado a fugir.

 

Havia alguns cépticos entre a multidão. De facto, é uma história um bocado incrível.

 

Mas a nós parece-nos bastante crível, não é verdade, Eco?

 

Na manhã seguinte, a legislação proposta um mês antes por Pompeu para reformar os tribunais foi oficialmente votada e aprovada pelo Senado. Ápio Cláudio apresentou imediatamente uma queixa formal contra Milo, acusando-o do crime de violência política no assassínio do seu tio. De acordo com as novas regras estabelecidas por Pompeu, cada lado tinha dez dias para se preparar para o julgamento. Roma susteve a respiração.

 

Se fosse considerado culpado, Milo seria sujeito ao exílio imediato e permanente e à confiscação de quase todos os seus bens. Ficaria desonrado e desapossado. Seria o seu fim em Roma.

 

E se fosse absolvido? Tentei imaginar a reacção na cidade. Apenas pude visionar chamas intermináveis, violência e derramamento de sangue. Perguntei-me se o próprio Pompeu seria capaz de conter semelhante turbilhão. A razão, a moralidade e o simples pragmatismo estabeleciam que não era possível outro veredicto, que não o de culpado, a não ser que...

 

A não ser que Milo tivesse Cícero do seu lado, como tinha. E, como eu aprendera à custa de uma longa e ocasionalmente amarga experiência, com Cícero na defesa, tudo era possível.

 

O julgamento de Tito Ânio Milo teve início na manhã do quarto dia do mês de Aprilis, com o interrogatório das testemunhas no pátio do Templo da Liberdade. Presidia ao tribunal, de uma bancada elevada, o antigo cônsul Lúcio Domício Aenobarbo, um antigo cônsul de expressão severa e desprovido de sentido de humor, escolhido pessoalmente por Pompeu e aprovado, por simples formalidade, pela assembleia do povo. Os testemunhos foram apresentados diante de um painel de 360 potenciais jurados, sentados em bancadas montadas de ambos os lados do pátio. O painel tinha sido seleccionado de uma lista de homens de propriedade e senadores elegíveis, coligida por Pompeu. Destes, seriam finalmente escolhidos à sorte 81, que constituiriam o júri.

 

Milo e os seus advogados, Cícero e Marco Cláudio Marcelo, estavam sentados com os respectivos secretários em bancos erguidos diante da tribuna, como estavam os acusadores, o sobrinho de Clódio, Ápio Cláudio, Públio Valério Nepo e Marco António. Estavam igualmente presentes numerosos funcionários do tribunal, incluindo uma bateria de secretários que registariam os testemunhos na estenografia de Tiro.

 

Na extremidade aberta do pátio, juntou-se uma grande multidão, interessada em assistir aos procedimentos. Os mais previdentes tinham mandado os seus escravos à frente, para lhes guardarem lugar. Eco e eu, que tínhamos uma longa experiência de tribunais, conseguimos arranjar uns lugares excelentes na décima fila; Davo e um dos outros guarda-costas tinham para lá ido muito antes de amanhecer com as nossas cadeiras dobráveis, e por ali ficaram a dormitar até à nossa chegada. Os mais atrasados amontoavam-se de pé em todos os recantos, e tentavam constantemente abrir caminho aos empurrões a partir do Fórum.

 

Pompeu não estava presente. Como não estavam os soldados de Pompeu, que pareciam omnipresentes em todos os outros pontos da cidade. Nem Pompeu se atrevia a postar soldados armados num tribunal romano. Com certeza não seriam necessários; nem os Clodianos se atreveriam a perturbar a ordem de um tribunal romano. Um comício político era uma coisa. Mas um julgamento público, a mais sagrada das instituições romanas, a pedra de toque da justiça romana, era outra coisa completamente diferente.

 

A primeira testemunha a ser chamada foi Gaio Causínio Escola, um dos homens que acompanhavam Clódio a cavalo naquele dia, na viagem pela Via Ápia. Ele testemunhou que o grupo de Clódio tinha passado pelo grupo de Milo, que era mais numeroso, por volta da décima hora do dia; que tinha rebentado uma briga entre a guarda recuada dos dois grupos, por razões que ele desconhecia, embora suspeitasse de que tinham sido os homens de Milo a começar; que, quando Clódio se voltou para lançar um olhar pesado a Birria, o gladiador lhe tinha atirado a lança, ferindo-o e derrubando-o do cavalo. A luta começou e o próprio Escola foi atirado abaixo do seu cavalo e empurrado para os bosques pelos escravos de Milo. Deixou-se estar escondido até muito depois de escurecer, voltando mais tarde à villa de Clódio, que encontrou de pernas para o ar, com o capataz e o tutor Halicor assassinados. No dia seguinte, regressou a Roma.

 

No essencial, a história de Escola estava de acordo com aquilo que Felícia me tinha contado, embora nos pormenores ele apresentasse Clódio a uma luz ainda mais inocente.

 

Quando chegou o momento de contra-interrogar, um arrepio de expectativa percorreu a multidão enquanto Milo, Cícero e Marcelo conferenciavam. Milo e Cícero deixaram-se estar sentados. Foi o colega de ambos, Marcelo, quem avançou.

 

Entre a multidão, alguém gritou.

 

Queremos Cícero!

 

Não, queremos Milo, com a cabeça espetada num pau! Marcelo ignorou-os. Era um orador experiente, habituado às trocas de palavras nos debates do Senado e aos guinchos da multidão nos julgamentos.

 

Então, Escola, começou, afirmas que o incidente na Via Ápia teve lugar à décima hora do dia. E, no entanto...

 

A multidão soltou um coro de gargalhadas de escárnio, que se abateu sobre ele. Marcelo franziu o sobrolho, esperando que o ruído passasse mas, logo que voltou a abrir a boca, os risos recomeçaram, ainda com mais força. Ele abriu os braços, num apelo a Domício, e depois teve um sobressalto quando uma pedra do tamanho do punho de uma criança atravessou o ar e foi acertar-lhe nas costas. Voltou-se e ficou a olhar para a multidão com uma expressão de puro choque.

 

A ralé, que continuava a gritar e a escarnecer, começou a avançar em direcção à tribuna, derrubando os espectadores e pisando as cadeiras dobráveis, já partidas. Eco e eu parecíamos estar a salvo, uma vez que estávamos ao centro do grupo de espectadores sentados, com muitas cadeiras ocupadas à nossa volta. Nessa altura, um grupo de homens começou a avançar à força pelo meio dos assistentes que estavam sentados, trepando por eles com os pés apoiados no seu regaço e nos seus ombros.

 

Domício ergueu-se e gritou furiosamente aos acusadores. Eles encolheram os ombros num gesto de impotência, comunicando-lhe numa mímica elaborada que não conseguiam ouvi-lo, e que também nada podiam fazer para acalmar a multidão. O painel de potenciais jurados sentados nos bancos corridos, homens de substância que não se deixavam intimidar com facilidade, abanaram a cabeça e mostraram-se completamente escandalizados. Milo, Cícero e Marcelo, e os respectivos secretários, pegaram em braçados de rolos de pergaminho e tabuinhas de cera e correram a juntar-se a Domício na tribuna. Vendo que a multidão se aproximava cada vez mais e não dava sinais de se deixar deter, Milo e o seu grupo retiraram-se para o Templo da Liberdade, deixando Domício enfrentar a multidão de mãos nas ancas, desafiando-a a violar um templo sagrado. Mas a ralé pareceu contentar-se com o facto de ter silenciado Marcelo e obrigado Milo a fugir. Ocuparam a tribuna e, numa disposição jubilosa, começaram a bater com os pés no chão e a entoar cantos obscenos sobre Fausta, a mulher de Milo. Quando se tornou evidente que a ordem não seria restabelecida, os jurados e os espectadores pacíficos que ainda não tinham fugido começaram a dispersar. Finalmente, correu o boato de que Pompeu estava a chegar com um destacamento de soldados armados. Isto levou a multidão a abandonar a tribuna e a dispersar em todas as direcções.

 

E assim terminou o primeiro dia do julgamento de Milo.

 

O dia seguinte começou de maneira bastante semelhante ao primeiro, se exceptuarmos o facto de o espaço para os espectadores ter sido limitado, graças aos soldados que agora flanqueavam o pátio de ambos os lados. Por insistência de Domício, Pompeu enviara tropas para manter a ordem durante o julgamento. A justiça romana seria levada a cabo com o auxílio do aço romano.

 

A audição das testemunhas prosseguiu com os depoimentos de diversas pessoas dos arredores de Bovilas, a começar por Felícia. À semelhança de um actor a quem é finalmente atribuído um papel importante, ela parecia decidida a aproveitar da melhor maneira o seu tempo como testemunha. Produziu o sorriso incongruente que eu já lhe conhecia e projectou a sua atitude maliciosa enquanto os advogados lhe faziam perguntas e a contra-interrogavam; entretanto, muitos espectadores pareciam estar a examiná-la de outra maneira. O dia teve um começo adequadamente bizarro.

 

Em seguida, foi o seu irmão, Félix, a testemunhar, acerca das idas e vindas das vítimas e dos seus perseguidores, incluindo os prisioneiros amarrados, que agora se sabia serem Filémon e os seus companheiros. Filémon testemunhou igualmente, reiterando a história que tinha revelado no contio. A mulher do estalajadeiro morto em Bovilas não apareceu; presumi que continuasse retirada em Régio. A irmã e o cunhado dela, que agora tomavam conta da estalagem, forneceram um testemunho em segunda-mão do que a viúva lhes tinha contado e descreveram a macabra sequência.

 

A Virgo Máxima falou da visita de uma mulher desconhecida, que fora agradecer à deusa a morte de Públio Clódio. Este relato inflamou de tal maneira os Clodianos, que durante algum tempo pareceu-me que poderia haver novo tumulto. Os soldados de Pompeu acabaram por avançar, removendo à força alguns agitadores mais expressivos. A ordem foi restabelecida, mas por esta altura Domício decidiu terminar a sessão.

 

O terceiro dia de testemunhos começou com a última das testemunhas da região de Bovilas. Foi chamado o senador Sexto Tédio, que se encontrava na fila da frente, entre os espectadores. Ele ergueu-se, coxeando diante da tribuna e arrastando a perna aleijada com o auxílio de uma bengala. Nesse dia, eu estava na segunda fila dos espectadores, suficientemente perto para ver Tédia, a filha do senador, que ficou sentada ao lado da cadeira que ele deixara vaga, a olhar para ele com uma expressão de preocupação. Normalmente, tê-lo-ia ajudado pensei. Mas ele não devia querer que o vissem aceitar a ajuda de uma mulher em pleno tribunal.

 

O senador Tédio repetiu a história que me tinha contado: que partira para Roma na sua liteira, acompanhado pela filha e alguns escravos, que encontrara Milo, que o advertira contra bandidos fictícios, mas prosseguira na direcção de Bovilas, onde encontrara o corpo abandonado de Clódio no meio da estrada, aparentemente arrastado para aquele local pelos seus assassinos, e o enviara para Roma na sua liteira. Era agora evidente que Tédio devia ter chegado enquanto Eudamo e Birria e os seus homens andavam pelos bosques à procura de Filémon e dos seus companheiros. Depois de enviar Clódio para Roma, Tédio regressara a pé a Arícia, e vira os prisioneiros serem conduzidos estrada acima enquanto descansava num local perto da nova Casa das Vestais.

 

Um homem chamado Quinto Arrio, colega de Clódio, testemunhou que tinha ajudado a interrogar os escravos de Clódio depois do incidente. Um deles, um secretário pessoal, tinha confessado sob tortura que durante meses fornecera informações sobre os movimentos de Clódio a um agente de Milo. Portanto, sugeriu Arrio, Milo era regularmente mantido a par das idas e vindas de Clódio, e poderia ter premeditado aquele encontro aparentemente casual na Via Ápia. Durante o contra-interrogatório, Cícero troçou desta ideia, salientando que, no primeiro dia, Escola tinha testemunhado que Clódio partira para Roma inesperadamente, ao saber da morte de Ciro, o arquitecto; por isso, como poderia Milo ter premeditado o encontro, mesmo que tivesse uma fonte infiltrada?

 

Depois, Cícero também chamou uma testemunha: Marco Catão, que desceu das bancadas onde estavam sentados os potenciais jurados. Catão, que era talvez a única pessoa presente ainda mais séria e conservadora do que Domício, o juiz, apresentou um testemunho em segunda-mão de acordo com o qual um certo Marco Favónio lhe transmitira uma observação que Clódio teria feito alguns dias antes do incidente fatal.

 

E que observação, que jóia, que peça de sabedoria, saída dos lábios de Públio Clódio, foi essa? perguntou Cícero.

 

Catão olhou para Domício e para o painel de jurados.

 

Clódio disse a Favónio que Tito Ânio Milo estaria morto dentro de três dias.

 

Houve um arrepio de excitação no tribunal.

 

Catão é um bêbedo e um mentiroso! gritou alguém. O que está ele a fazer entre o júri se é testemunha?

 

Cícero olhou à volta.

 

Quem impugna o júri de Pompeu? Foi o próprio Grande quem seleccionou pessoalmente Marco Catão para se sentar entre os jurados, e por quê? Porque a integridade e a honestidade de Catão são absolutamente intocáveis. Qualquer homem que diga o contrário mostra que é um louco.

 

Era verdade. O que quer que se pensasse das suas opiniões políticas, Catão não era homem que mentisse. Mas a história que ele contou era apenas em segunda-mão; supostamente, Clódio tinha dito qualquer coisa a Favónio, que tinha dito qualquer coisa a Catão. E eu reparei que Cícero não refutou a acusação de que Catão era um bêbedo. Os olhos remelosos do estadista eram a prova de uma vida inteira dedicada à bebida.

 

Mas o efeito que Cícero tivera esperança de obter com o testemunho de Catão foi completamente anulado por aquilo que se seguiu.

 

As últimas testemunhas a serem ouvidas foram Semprónia e Fúlvia. Ambas narraram que o corpo de Clódio chegara à sua casa do Palatino trazido na liteira de um desconhecido, sem amigos ou qualquer género de explicação a acompanhá-lo. Descreveram o estado chocante do cadáver. Explicaram que os amigos e os escravos que estavam com ele e que tinha sobrevivido tinham regressado a Roma um por um, e que todos eles tinham acrescentado um novo pormenor de horror à catástrofe que tivera lugar na Via Ápia. Falaram do jovem filho de Clódio, Públio, que tinha estado desaparecido toda a noite, e do sofrimento e preocupação que tinham sentido ao serem informadas da carnificina que tivera lugar na villa albana de Clódio. Semprónia a presumida e obstinada Semprónia desatou a chorar, parecendo transformar-se na própria imagem já avó ansiosa e consumida. Fúlvia, que começou por uma recitação rígida e desprovida de emoções dos factos, acabou num lamento estridente, que chegou a eclipsar a sua própria agonia na noite da morte do marido. Chorou, puxou os cabelos e rasgou a estola.

 

Também ouvi chorar perto de mim, e vi a filha de Sexto Tédio tapar a cara com as mãos. O pai olhava fixamente em frente, aparentemente embaraçado por tal manifestação emocional.

 

Mas Tédia não foi a única a derramar lágrimas. Pensei que só um milagre impedia os Clodianos de irromperem noutro tumulto, até que olhei à volta e me apercebi de que muitos deles choravam descontroladamente.

 

Cícero não se atreveu a contra-interrogar as mulheres. A sessão terminou à décima hora.

 

E assim acabou o terceiro dia do julgamento de Milo, e o último dia da audição das testemunhas. Tinham passado 100 dias desde a morte de Públio Clódio. Um dia mais, e o destino de Tito Ânio Milo ficaria decidido.

 

Mais tarde, o tribuno Planco convocou um último contio sobre a morte de Clódio. Incitou os apoiantes de Clódio a comparecerem em força na manhã seguinte, para ouvirem as argumentações. Os discursos da acusação e da defesa seriam pronunciados ao ar livre, no Fórum, que acomodava um número de espectadores muito superior ao daqueles que cabiam no pátio do Templo da Liberdade. Os que tinham amado Clódio deviam fazer-se ver e ouvir, dizia Planco, para que os jurados conhecessem a vontade do povo, e deviam cercar por completo o tribunal, para que, quando o resultado fosse conhecido, o traiçoeiro e cobarde Milo não tivesse oportunidade de escapar antes de o veredicto ser anunciado.

 

Nessa noite, ao jantar, Eco e eu fizemos um relato completo dos acontecimentos do dia a Betesda. Ela pareceu aprovar o desempenho de Fúlvia.

 

Por vezes, o desgosto de uma mulher é a única arma de que ela dispõe. Pensem em Hécuba e nas mulheres troianas. Fúlvia utilizou o seu desgosto onde ele terá maior efeito.

 

Pergunto a mim própria por que não terão chamado Clódia a testemunhar disse Diana, que tinha estado tão apática durante toda a refeição, que eu pensei que nem sequer estava a ouvir.

 

Isso apenas teria contribuído para diminuir o efeito do desgosto de Fúlvia disse Eco. E teria distraído os jurados, recordando-lhes determinados rumores acerca do que se passava entre Clódia e o irmão.

 

E, depois do que Cícero lhe fez da última vez que ela compareceu em tribunal, ficaria muito admirada se ela voltasse a aparecer num julgamento acrescentou Betesda. Ela esteve lá?

 

Não a vi disse eu, e mudei de assunto.

 

Imagino que à semelhança de muitos outros habitantes de Roma, nessa noite tive dificuldade em adormecer. Mexi-me e voltei-me várias vezes, e acabei por me levantar. Fui ao escritório, à procura de qualquer coisa para ler. Passei os olhos pelas pequenas etiquetas penduradas dos rolos de papiro, onde estava escrito o título de cada livro, murmurando sozinho.

 

Qual é a peça onde vem a famosa citação acerca dos finais inesperados que os deuses produzem? E Eurípides, não é? Mas por que a tenho eu na cabeça? Oh, pois, já sei. Porque me recorda o julgamento de Sexto Róscio, da primeira vez que trabalhei para Cícero; foi o seu primeiro grande triunfo nos tribunais. E, depois de tudo acabado ou quase acabado, lembro-me de citar aquele bocadinho de Eurípides, a Tiro. Nessa altura, Tiro era tão jovem, não passava de um rapaz! Nessa altura, eu também era jovem...

 

Mas qual é a peça? Não é As Troianas, nem Hécuba, foi Betesda que mencionou Hécuba esta noite, ao jantar. Não, é... as Bacantes.

 

 

E ali estava ela, diante dos meus dedos. Puxei o pergaminho do orifício, fui procurar uns pesos e desenrolei-o em cima da mesa.

 

Era um dos meus livros mais antigos, mas ainda estava em bom estado. A passagem em que eu estava a pensar era mesmo no final, e era pronunciada por um coro de frenéticas bacantes dionisíacas:

 

O final previsto

 

não foi consumado.

 

Mas os deuses encontraram um caminho

 

para aquilo que nenhum homem esperava.

 

E assim termina a peça

 

Para aquilo que nenhum homem esperava...

 

Seria Cícero capaz? Seria ele capaz de pronunciar um discurso, um daqueles famosos e hilariantes discursos em que ele retorcia a lógica e punha em causa todas as dúvidas que de facto convencesse os jurados a declararem Milo inocente?

 

Enquanto voltava a enrolar o pergaminho, rasguei uma pontinha no alto. Soltei uma praga. Era um rolo tão antigo. Quando e onde tinha vindo parar às minhas mãos? Ah, sim: fora Cícero quem mo oferecera, como me oferecera muitos livros desde então. Este tinha sido o primeiro. E eu lembrava-me de que ele me tinha posto uma dedicatória.

 

Desenrolei-o o suficiente para poder ler a mensagem, escrita no alto pelo seu próprio punho:

 

Para Gordiano, com amizade, e os melhores desejos para o futuro.

 

O sangue gelou-se-me nas veias. Eu sempre tinha sabido, evidentemente. Ainda assim, ter a prova diante dos meus olhos...

 

Procurei a mensagem que tinha sido enviada a Betesda e coloquei-a ao lado do rolo de pergaminho.

 

Não temas por Gordiano e pelo seu filho. Não lhes aconteceu mal nenhum. Ser-te-ão devolvidos no devido tempo.

 

Não havia qualquer dúvida. A prova estava ali, na peculiar forma do G na verdade, estava na maneira como o meu nome fora escrito em ambos os casos.

 

Eu tinha observado outras mensagens de Cícero que tinha na minha posse, mas nenhuma delas fora escrita pelo seu próprio punho. Tinham sido todas escritas por Tiro ou por outro secretário qualquer. Mas a dedicatória de As Bacantes fora seguramente escrita por ele, porque eu estava presente no momento em que ele o fizera.

 

Davo murmurou adormecido quando o abanei. Os outros guarda-costas agitaram-se.

 

Davo, acorda.

 

Ele

pestanejou, depois teve um sobressalto e afastou-se de mim como se eu fosse um monstro. Senhor, por favor! A sua voz quebrou como a de um rapazinho. Em nome do Hades, o que se passaria com ele?

 

Davo, sou eu. Acorda. Preciso de ti.

 

Vou sair.

 

O caminho até casa de Cícero nunca me tinha parecido tão longo. O sangue martelava-me nos ouvidos. Não acordei Eco para vir comigo, embora ele tivesse tanta razão de queixa de Cícero como eu. Aquilo que tinha a dizer a Cícero, dir-lho-ia a sós.

 

O porteiro de Cícero observou-me pelo orifício de segurança. Pouco depois, abriu-me a porta, permitindo que Davo entrasse e esperasse no átrio. O interior da casa estava resplandecente de luzes. Esta noite, ninguém se deitaria cedo em casa de Cícero.

 

Ao ser conduzido ao escritório, ouvi a voz de Cícero ecoando no corredor, e depois Tiro a rir alto.

 

Entrei no compartimento. Cícero e Tiro acolheram-me com um sorriso.

 

Gordiano! Cícero avançou e abraçou-me antes que eu pudesse impedi-lo. Foi um abraço de político; pareceu-me que ele me rodeava por completo, sem no entanto me tocar. Recuou e olhou para mim como um pastor olha para uma ovelha tresmalhada. Quer dizer que, no último momento, vieste ter comigo. Ousarei esperar, Gordiano, que isto queira dizer que caíste finalmente em ti?

 

Oh, sim, Cícero. Não há dúvida de que caí em mim. Subitamente, senti a boca seca e tive dificuldade em falar.

 

Tenho a impressão de que precisas de beber qualquer coisa. Cícero fez um sinal de cabeça ao porteiro, que desapareceu. Devo dizer-te que o discurso já está praticamente pronto. Mas ainda não foi posto em pedra. Mais vale tarde do que nunca.

 

O quê?

 

Pois, com essas tuas corridas para trás e para diante a casa de Fúlvia e o tempo que passaste com Marco António na estrada, deves ter uma ideia muito clara daquilo que a acusação tem em mente para amanhã. É uma informação que me fazia jeito, para ter a certeza de que as minhas réplicas são todas adequadas. Quanto menos surpresas tiver, melhor.

 

Oh, Gordiano, desta vez pregaste-me um susto. Pensei que te tinha perdido para sempre. Mas aqui estás tu, de volta ao lugar onde pertences!

 

Olhei à volta da sala. Tiro estava sentado entre pilhas de pergaminhos enrolados e amachucados.

 

Célio está cá? Onde está Milo? O mero facto de dizer o seu nome fazia-me cerrar os punhos. Inspirei profundamente.

 

Célio está em casa, em casa do pai, provavelmente a dormir como um bebé.

 

Não devia estar aqui contigo, a trabalhar no discurso?

 

Na verdade... ah, aí tens com que molhar a garganta! Tiro, também tomas um copo?

 

Pensei em recusar, mas precisava da bebida. Ergui uma sobrancelha quando ela me passou pelos lábios. Devia ser o melhor vinho que ele tinha em casa.

 

Não será um pouco cedo para comemorar, Cícero?

 

Ah, apreciaste o Falerniano. Óptimo. O facto de teres aparecido em minha casa é suficiente motivo de comemoração, Gordiano.

 

Onde está Milo? perguntei eu.

 

Não está aqui, como podes ver. Imagino que esteja em sua casa, com Fausta, a sonhar os doces sonhos do consulado que será seu no próximo ano. Tinhas algum interesse especial em falar com ele?

 

Era uma pergunta difícil.

 

Não respondi. Queria manter a cabeça fria, e talvez não o conseguisse na presença de Milo. Terminei o vinho.

 

Gordiano, estás com um aspecto assustador! Vamos terminar a nossa conversa o mais depressa possível, para tu poderes voltar para casa e dormir um bocado. Muito bem, perguntaste se Célio não ia fazer um discurso. Na verdade, só um advogado falará amanhã em defesa de Milo: eu próprio.

 

Quer dizer que todos os outros fugiram assustados? Incluindo Célio?

 

Tinha finalmente conseguido fazer diminuir a sua exuberância.

 

Nada disso. Essa ideia de que todos os seus amigos abandonaram Milo é um boato maldoso posto a circular pelos Clodianos, os mesmos que não param de afirmar que Milo pretende assassinar Pompeu e apoderar-se das rédeas do Estado. Esperam que eu faça figura de parvo e que todos os outros se sintam suficientemente intimidados para abandonarem Milo. Mas eu devo dizer-te que os melhores homens de Roma continuam solidamente por trás de Milo e teriam todo o gosto em ser testemunhas abonatórias. Só que as reformas de Pompeu eliminaram as testemunhas abonatórias! Eu podia organizar uma fila de antigos magistrados e cônsules à volta do Fórum, que recitariam as virtudes de Milo durante horas. Mas Pompeu só quer testemunhas materiais como aquela parada de personagens vergonhosas que tivemos de aturar nos últimos três dias.

 

Se os amigos de Milo continuam a apoiá-lo, como se explica que sejas o único a discursar em seu favor?

 

Uma vez mais, devido às reformas de Pompeu! À defesa são concedidas apenas três horas para defender o seu caso. Sabes como as coisas se passavam anteriormente: em geral, um homem dispunha de dois ou três advogados, que podiam falar o tempo que quisessem. E também não preciso de te dizer que, ao fim de três horas, eu mal comecei a aquecer. A verdade é que eu não tinha qualquer desejo de partilhar o meu tempo com outra pessoa. A acusação ainda está em pior situação; dispõe de apenas duas horas. Bem, vamos ouvir os três advogados a tropeçar uns nos outros, lendo as suas notas a correr. Farão discursos confusos e apressados, e depois eu usarei o meu tempo para trazer os jurados lenta, segura e irresistivelmente para o nosso campo.

 

Serviu-se de um copo de Falerniano sem água. Quando é que Cícero tinha começado a beber como os outros homens?

 

Achas que não sou capaz prosseguiu. Espera até ouvires o discurso. É a minha obra-prima, Gordiano. Estou a gabar-me, Tiro, ou apenas a dizer a verdade?

 

Tiro sorriu.

 

É um excelente discurso.

 

O meu melhor discurso! E os meus poderes de elocução estão melhores do que nunca. Vou apanhar os jurados desde as primeiras palavras, vou prendê-los a mim como um amante, até nada mais ter a dizer e, depois de acabar, desafio qualquer homem a tomar posição contra Milo.

 

O vinho e a curiosidade tinham feito abrandar a minha irritação. Decidi escutar durante algum tempo, esperar a minha hora e ouvi-lo. Seria a última vez que o faria. Quando dissesse o que tinha vindo dizer-lhe, não haveria mais palavras entre nós.

 

Como vais fazer, Cícero? Como vais seduzir os jurados?

 

Bem, não posso descrever-te o discurso do princípio ao fim agora aqui; não há tempo para isso. Sorriu de esguelha. Além disso, tu ainda podes ser um espião do inimigo, Gordiano. Vieste descobrir que trocadilhos e palavras de duplo sentido usarei, antes de eu as ter decidido? Recuso-me a permitir que prevejas as metáforas e alusões históricas que vou utilizar e as reveles aos acusadores! Mas vou apresentar-te os contornos gerais. Talvez te lembres de alguma coisa que possa ajudar-me.

 

Ajudar-te?

 

Talvez haja algum ponto fraco na acusação que me tenha escapado, alguma coisa que tu saibas e eu ignore; algum ponto que eles tencionem salientar e que eu não tenha previsto. Deves estar a par de informações que falharam aos meus espiões. Aquelas viagens todas na liteira de Clódia, os acampamentos na companhia de António és um homem valioso, Gordiano! Sempre o disse. E nunca te voltei as costas, por muito que tu te tenhas ocasionalmente desviado do bom caminho. Não imaginas como fiquei satisfeito quando o criado me veio dizer que estavas à porta. Não consigo pensar em mais ninguém que preferisse ver esta noite. Gordiano, o Descobridor, um homem sempre cheio de surpresas. "Ele vai ajudar-me a dar os últimos retoques na minha obra-prima", não foi exactamente o que eu disse, Tiro?

 

Foi, de facto. Tiro parecia muito cansado. Dada a sua constituição delicada, já devia estar na cama, pensei eu. Ou teria pestanejado e baixado os olhos para evitar olhar para mim? Seria possível que Tiro tivesse participado na conspiração contra mim? A ideia provocou-me náuseas, mas a lealdade de Tiro para com Cícero sempre eclipsara tudo o resto.

 

O elemento principal do meu discurso prosseguiu Cícero, muito animado, será a tese de que foi Clódio quem planeou emboscar Milo, e que Milo não teve alternativa senão defender-se. Tratou-se de um homicídio justificável!

 

E os factos, Cícero? perguntei eu.

 

Oh, recordarei ao júri determinados factos como o facto de Clódio ter um longo passado de comportamento criminoso contra os deuses e contra o Estado. E o facto de, no próprio momento em que percorria a Via Ápia, se preparar para fazer aprovar legislação destinada a reorganizar o sistema eleitoral por forma a conferir, a si próprio e à ralé de libertos que o seguia, ainda mais poder. E certamente não permitirei que alguém esqueça o facto de Clódio ter sido um dos homens mais libertinos e debochados que jamais empestaram esta cidade.

 

Mas Clódio não emboscou Milo. Queres que diga mais devagar? Clódio... não... emboscou Milo.

 

Cícero fez uma pausa.

 

Essa história da emboscada, de quem conspirou contra quem, de quem estava à espera de certa maneira, tudo isso é académico, não percebes? Pensa nela como um dispositivo literário. O meu jovem amigo Marco Bruto afirma que eu devia argumentar com base no pressuposto de que Milo assassinou Clódio intencionalmente, com consciência e previsão, e declarar que o homicídio foi justificado porque Milo libertou o Estado de um homem perigoso. Bem, Bruto talvez conseguisse impor esse argumento, mas eu não. Ele apenas serviria para recordar aos ouvintes a maneira como eu lidei com Catilina e os seus apoiantes. Milo não deve sofrer por causa das controvérsias do meu próprio consulado. Portanto, essa linha de defesa está-nos vedada. Por outro lado, eu podia argumentar que nem Milo nem os seus homens foram, em última análise, responsáveis pela morte de Clódio, pelo menos tecnicamente. Pode muito bem ter sido assim, como certamente terás descoberto durante as tuas investigações...

 

Não percebo de que estás a falar.

 

Não sejas acanhado comigo, Gordiano. É tarde demais para isso. No entanto, para defender abertamente a inocência de Milo, eu teria de introduzir raciocínios antigos, além de que essa abordagem não faria grande sentido temático; esqueceria o mais persuasivo de todos os argumentos, que Clódio constituía um perigo imediato para Milo e um perigo constante para o Estado. Não, usarei o argumento da emboscada...

 

Cícero, não houve emboscada nenhuma, de nenhum dos lados.

 

Está bem, mas como é que sabes isso, Gordiano?

 

- Porque estive lá. Vi o sítio. Falei com as testemunhas.

 

Ah, foste, viste, falaste mas os jurados não fizeram nenhuma dessas coisas. Compete-me a mim dar forma às suas percepções.

 

Mas os jurados já ouviram as testemunhas.

 

Pois já, o que é uma pena. Estas inovações de Pompeu! A sequência tradicional era os advogados apresentarem primeiro os seus argumentos e darem forma às opiniões dos jurados antes de eles ouvirem as testemunhas. Mas deixa lá. Achas que os jurados ainda estarão a pensar naquela prostituta daquela sacerdotisa e no patético irmão dela, ou naquela mulher incrivelmente vulgar da estalagem, depois de me terem ouvido defender Milo durante três horas? Não me parece. Viu a minha expressão de consternação e sorriu. Vejo que não compreendes. Duvidas de que um discurso possa ser persuasivo a esse ponto. Mas acredita em mim, este é o meu melhor discurso, é de longe a melhor peça de oratória que eu já concebi. Não imaginas o trabalho que me deu.

 

A astúcia que te exigiu, queres tu dizer.

 

Gordiano! Abanou a cabeça, não tanto num gesto de desagrado estava demasiadamente exuberante para isso, mas de desânimo. Muito bem, seja a astúcia. Composição, habilidade, astúcia, chama-lhe o que quiseres! Onde foste tu descobrir essa reverência ingénua a presunçosa pela verdade absoluta e completa? Essa peculiar obsessão como se apoderou de ti? Se a simples verdade pudesse, por si só, enviar exércitos para as batalhas e fazer oscilar jurados, se pudéssemos fazer com que os homens reagissem como deviam pelo simples facto de lhes dizermos a verdade, achas que eu utilizava outro instrumento? Seria tão fácil. Mas a verdade não é suficiente; muitas vezes, é mesmo o pior inimigo de um homem que defende uma causa! Por isso dispomos da oratória. Utilizamos a beleza e o poder das palavras! Graças aos deuses pelo dom da oratória, e graças aos deuses pelos homens que são suficientemente inteligentes, e suficientemente sensatos, para de vez em quando alterarem ligeiramente a verdade a fim de manterem o Estado livre e unido. O importante na audiência de amanhã não é determinar quem fez o quê a quem, na Via Ápia. O importante, a coisa que é absolutamente vital, é que no final do dia Milo parta em liberdade. Se a verdade levantar obstáculos a esse objectivo, devemos dispensá-la. Não serve qualquer finalidade. Não percebes isso, Gordiano? É uma questão tão elementar.

 

Eu já tinha ouvido o suficiente.

 

E o meu cativeiro? Também foi uma questão elementar? O rosto de Cícero perdeu a expressão.

 

O que queres dizer com isso?

 

Enquanto eu estive fechado naquele fosso fedorento, alguém mandou uma mensagem anónima à minha mulher, dizendo-lhe que não se preocupasse. Eu encontrei outra frase uma inscrição muito antiga, num rolo de pergaminho cuja caligrafia coincidia exactamente com a da mensagem. Foste tu que a escreveste, Cícero. Negas que assim foi?

 

Ele juntou as mãos atrás das costas e começou a andar de um lado para o outro. Olhou rapidamente para Tiro, que o observava na expectativa, com o sobrolho franzido.

 

Sim, fui eu que escrevi essa mensagem para a tua mulher.

 

E qual foi a tua participação no caso? Sabias de tudo desde o princípio? Foste tu que planeaste o ataque de que eu fui vítima?

 

Ele fez uma careta, como faz um homem que vai ser obrigado a pisar uma coisa macia e malcheirosa.

 

Quando soubemos que tu tinhas partido para Bovilas, Milo convenceu-se de que te tinhas tornado um perigo para ele. Durante dias, não falou de outra coisa. Quem sabe o que descobririas? Para quem estavas realmente a trabalhar? Tentei dissuadi-lo, mas Milo é um homem obstinado. Estava decidido a afastar-te...

 

A matar-me, queres tu dizer?

 

A evitar que regressasses a Roma. Sim, a sua intenção inicial era mandar-te matar. Eu proibi-lho. Estás a ouvir, Gordiano? Proibi-o de vos matar, a ti e ao teu filho. Recordei-lhe os homens que mantinha prisioneiros na sua villa de Lanúvio, as testemunhas que os seus homens tinham capturado na Via Ápia. Se ele podia manter prisioneiros aqueles homens, por que não havia de fazer o mesmo convosco? Insisti em que fosses poupado, compreendes? Milo cedeu, e concordou em se limitar a deter-te, e só até a crise terminar. Depois, tu e Eco seriam libertados ilesos.

 

Os homens que fugiram de Lanúvio disseram que Milo tinha decidido matá-los.

 

Tratou-se apenas de um boato. E, mesmo que fosse verdade, nada tinha a ver contigo. Milo tinha-me dado a sua palavra de que nenhum mal vos aconteceria.

 

Milo tinha dado a sua palavra!

 

Aconteceu-vos algum mal? Foram maltratados? Aí tens! Ele cumpriu a sua palavra. Apesar disso, eu estava muito preocupado com a tua família, sabendo como lhes és precioso, como sentiriam a tua falta e se preocupariam contigo. Não sou tão duro nem tão frio que seja capaz de ignorar esses factos! Por isso escrevi aquela mensagem à tua mulher, para suavizar os seus receios. Escrevi-a pelo meu próprio punho e mandei-a entregar por um escravo analfabeto. Devia ter advinhado que tu acabarias por me descobrir, Gordiano. Nada te escapa! Mas fiz o que devia. Não o lamento, nem mesmo agora.

 

Estava muito direito, com o queixo levantado, como um oficial cuja honra tivesse sido impugnada na sequência de um acto de coragem. Eu sentia-me verdadeiramente pasmado com ele.

 

Estás mesmo orgulhoso do que fizeste, não estás? Orgulhoso por teres forçado Milo a raptar-me em vez de me assassinar...

 

Salvei-te a vida, Gordiano!

 

E orgulhoso por teres escrito duas linhas à minha mulher em vez de me libertares.

 

Ele suspirou perante a minha obstinação.

 

Gordiano, quando se trata da defesa da liberdade, há determinadas acções que noutras situações seriam repreensíveis, mas que se tornam, não só justificadas, como inevitáveis.

 

Eu abanei a cabeça.

 

Tiro, ouviste o que ele disse? Estás a copiar? Certamente que o teu senhor poderá usar esta frase no discurso de amanhã!

 

Cícero juntou as pontas dos dedos.

 

Gordiano, um dia reflectirás sobre este episódio e aperceber-te-ás de que te foi pedido que fizesses um sacrifício pelo bem do Estado. Milo poderá ter avaliado mal a situação, quando considerou que tinha necessidade de te afastar do seu caminho durante algum tempo. Devias sentir-te lisonjeado por ele te ter considerado tão perigoso! Mas considera o quadro mais amplo. Em última análise, o facto de Clódio ter morrido foi uma coisa positiva extraordinariamente positiva e seria um imenso desastre se os inimigos de Milo conseguissem que ele fosse exilado.

 

Um desastre para Milo, queres tu dizer.

 

Sim! E um desastre para mim e para todos aqueles que estão interessados em preservar a república de Roma. Precisamos de homens como Milo, e Catão e, sim, como eu próprio. Nenhum de nós se pode perder! Já lidaste com Pompeu. Conheceste César. Queres realmente deixar as coisas nas mãos deles? Se chegarmos a isso, se todos os homens bons forem sendo expulsos um por um e o poder do Senado degenerar em nada, e César e Pompeu forem os únicos homens a ficar de pé, quanto tempo julgas que durará a sua parceria? Imaginas outra guerra civil, Gordiano? Tens idade suficiente para te recordares de Mário e de Sula. Quão mais terrível seria desta vez, com o mundo inteiro em chamas! Quem ficaria, para juntar os restos?

 

Inclinou a cabeça, como se o adiantado da hora tivesse começado subitamente a pesar-lhe.

 

Tudo o que eu faço, tudo, destina-se a evitar esse curso de acontecimentos. Considera essa realidade, Gordiano, e depois considera essa pequena coisa, esta pequena injustiça que Milo te fez, o facto de teres estado preso durante alguns dias da tua vida. Desejas ser compensado? É uma indemnização, o que pretendes? Isso satisfazer-te-ia? Ou serás capaz de fazer um esforço para ver o quadro mais amplo e ganhar algum sentido das proporções relativamente ao papel que desempenhaste nele? Este julgamento não diz respeito apenas a Milo e a Clódio. Diz respeito ao futuro da República. Se a verdade tem de ser ligeiramente alterada, se tu e a tua família têm de sofrer um pouco em nome dessa causa, pois seja!

 

Ergueu a cabeça e olhou firmemente para mim, à espera da minha reacção.

 

"A beleza e o poder das palavras!" disse eu por fim, troçando dele. Malditos sejam os deuses, que nos deram a oratória! E malditos sejam os homens inteligentes como tu, que fazem uma caricatura de palavras como liberdade e justiça! Esta questão entre nós fica em suspenso, Marco Cícero. Quanto a Milo, tenho esperanças de que as minhas razões de queixa contra ele sejam resolvidas por outros, quando amanhã o tribunal decidir o seu destino.

 

Voltei-me para me ir embora, mas ainda olhei para Tiro. Ele tinha permanecido em silêncio e de olhos desviados durante toda a conversa.

 

Tu sabias do que se passava? perguntei. Tiro hesitou, e Cícero respondeu por ele.

 

Tiro ignorava por completo o rapto. Milo e eu nunca discutimos o assunto na sua presença. Na verdade, eu não confiava na sua capacidade de manter o silêncio. Tiro sempre teve um fraco por ti, Gordiano. Até eu fraquejei, e escrevi aquela mensagem à tua mulher. Tiro talvez fosse mais insensato. Ele nada sabia.

 

Eu olhei para Tiro, que continuava a recusar-se a olhar-me de frente.

 

Quer dizer que também enganaste Tiro. Não me custa a acreditar. Ele não é tão bom actor como tu, Cícero; a sua surpresa e alívio quando nos encontrámos na Via Flamínia eram demasiadamente genuínas para serem fingidas. Mas, Tiro, olha para mim! Deves ter suspeitado de qualquer coisa. Quem mais tinha motivos para nos raptar, senão Milo? Como era possível que Cícero não soubesse?

 

Tiro mordeu o lábio inferior.

 

Essa ideia ocorreu-me. Mas não fiz nenhuma pergunta. Acho que não queria realmente saber. Tenho andado muito ocupado com outras coisas...

 

Nesse caso, diz-me só uma coisa, Tiro. Só uma, mas que seja a verdade absoluta. Fazes-me isso?

 

Tiro olhou para mim com um ar desamparado.

 

Esse discurso em defesa de Milo é tão bom como Cícero afirma? Ou é apenas a sua vaidade a falar? Diz-me o que pensas realmente.

 

Queres a verdade, Gordiano?

 

Nada mais do que a verdade.

 

O discurso de Cícero em defesa de Milo é... Tiro suspirou. É o melhor que Cícero já escreveu. O melhor que alguém jamais escreveu. É a minha opinião honesta. Se alguma coisa pode salvar Milo, é este discurso, Os jurados vão chorar. Será a maior hora de glória de Cícero.

 

Não era isto que eu queria ouvir. Que os deuses nos ajudem a todos, pensei, enquanto saía apressadamente da sala, deixando-os a trabalhar.

 

No regresso a casa, ressoavam-me aos ouvidos algumas frases de Cícero, por muito que tentasse silenciá-las. Fora tudo um disparate, evidentemente, mas havia algumas que tinham sido mais disparatadas do que as restantes: "Eu podia argumentar que nem Milo nem os seus homens foram, em última análise, responsáveis pela morte de Clódio, pelo menos tecnicamente. Pode muito bem ter sido assim, como certamente terás descoberto durante as tuas investigações... No entanto, para defender abertamente a inocência de Milo, eu teria de introduzir raciocínios antigos..."

 

Em nome do Hades, o que quereria ele dizer com aquilo? Quase desejei ter mantido um estado de espírito menos apaixonado, e ter-lhe perguntado; mas agora não era possível voltar atrás. O mais provável era que não tivesse querido dizer nada de especial, e estivesse apenas a fazer girar as palavras, enchendo-me de dúvidas, lançando-me areia para os olhos, como tentaria fazer com os jurados na manhã seguinte.

 

No quarto e último dia do julgamento de Milo, eu acordei com o canto dos pássaros no meu jardim. Durante a noite, tinham florescido algumas plantas. As abelhas e as borboletas já andavam a trabalhar, espalhadas sobre as flores. Senti-me tentado a esquecer o julgamento e a ficar em casa. E se passasse o dia no jardim, a usufruir do sol quente de Aprilis? Mas os olhos fixos e queixosos da Minerva quebrada não me permitiriam esquecer o que estava para acontecer no Fórum.

 

Davo e outro guarda-costas tinham-se levantado muito antes de o galo cantar, para irem reservar-nos lugares. E ainda bem que assim foi, porque eu nunca tinha visto o Fórum tão cheio de espectadores. Por ordem de Pompeu, todas as tabernas estariam fechadas. Era óbvio que ele pretendia evitar a potencial ameaça dos desordeiros embriagados, mas os tribunos radicais também tinham razões para ficar satisfeitos com essa decisão; com as tabernas fechadas, até os seus apoiantes com menos preocupações cívicas estariam no Fórum, a assistir ao julgamento, por falta de sítio melhor para onde irem. Apesar dos apertos, Davo tinha-se agarrado teimosamente aos nossos lugares, que eram perto da frente.

 

As tropas de Pompeu dominavam o ambiente. Na noite anterior, os soldados tinham ocupado todos os lugares elevados fossem eles os degraus do templo, um pedaço de muro, uma rampa ou um pedestal. Um cordão de tropa cercava por completo o Fórum. Em diversos pontos de entrada, chamavam aparte cidadãos perfeitamente pacíficos, procurando armas escondidas. Dizia-se que o próprio Pompeu se encontrava no seu baluarte, no edifício do tesouro, do qual não sairia enquanto não fosse anunciado o veredicto. Parecia-me que tinha acordado de manhã numa cidade diferente, governada por um autocrata militarse exceptuarmos o facto de os autocratas não permitirem julgamentos públicos. Pairava no ar uma sensação de confusão e incerteza, de quase irrealidade.

 

E, contudo, as coisas correram sem dificuldades. Milo e Cícero tinham chegado antes da maior parte das pessoas, numa liteira simples e fechada, de forma a passarem despercebidos, como certamente desejavam. Permaneceram ocultos na liteira, rodeados de guarda-costas, quase até à hora prevista para o começo do julgamento. Os três acusadores chegaram a pé, com uma comitiva de secretários e guarda-costas, e foram objecto de grandes aclamações. Os funcionários do tribunal trouxeram três urnas enormes, que continham as bolas de madeira onde cada potencial jurado tinha escrito o seu nome. As bolas foram tiradas à sorte, até serem seleccionados 81 jurados, entre os quais Marco Catão. Depois dos discursos da acusação e da defesa, cada lado faria retirar mais 15 jurados, deixando a decisão do veredicto a cargo de 51 homens.

 

Domício pediu ordem no tribunal. Os acusadores iniciaram imediatamente a sua argumentação.

 

Tal como Cícero tinha previsto, as três orações pareceram estranhamente curtas, mais semelhantes a sinopses do que a discursos propriamente ditos. Os acusadores dividiram entre si diversos aspectos do caso, de acordo com as suas capacidades e disposições pessoais.

 

Eu pouco sabia acerca de Valério Nepo, mas tinha ouvido dizer que o seu forte era a narrativa, por isso não fiquei admirado por ser ele a pronunciar o discurso de abertura. Descreveu o incidente com floreados dramáticos, utilizando toda a gama de entoações da sua voz sonora e detendo-se em pormenores macabros a fim de suscitar gemidos e gritos de indignação por parte dos espectadores. O seu lamento final foi tão repleto de dor, que ele parecia estar prestes a arrancar os cabelos. Nepo teria sido um excelente actor, pensei eu, trazendo à vida o cego Edipo ou o atormentado Ajax.

 

Marco António, o táctico, pronunciou o discurso do meio. Defendeu que Milo tinha planeado deliberadamente assassinar Clódio, citando provas de que Milo possuía espiões entre os escravos de Clódio e revendo uma vez e outra a complicada cronologia dos movimentos de Milo e de Clódio no dia do crime. António era o homem indicado para um discurso que exigia necessariamente uma grande concentração nos pormenores.

 

Ouvir um orador mais emocional como Nepo lamentar-se relativament a horários teria parecido absurdo. Um orador grave como Pompeu teria feito adormecer a audiência. A combinação de brusquidão militar de uma inata sinceridade de propósitos que António exibia atraiu a atenção indivisa dos jurados.

 

Ápio Cláudio, o sobrinho do morto, pronunciou uma conclusão emocionada, um elogio fúnebre cheio de sentimento. Aparentemente dominado pelo sofrimento, deixou-se comover até às lágrimas e teve de se esforçar, uma vez e outra, por recuperar a compostura. Num resumo inflamado, referiu orgulhosamente a grandeza dos antepassados de Clódio e a pungente ironia de ele ter encontrado morte tão brutal na famosa estrada que fora construída por Ápio Cláudio Ceco, e ao longo da qual se erguiam os túmulos e santuários de tantos membros da sua família.

 

Durante estes discursos, olhei para Milo e para Cícero, para ver qual era a sua reacção. A maioria dos acusados leva para o tribunal hordas de membros da sua família, que se amontoam à sua volta durante os julgamentos, mas Milo estava sentado sozinho, de braços firmemente cruzados. É certo que os seus pais já tinham morrido, mas onde estava a sua mulher? O facto de Fausta Cornélia não acompanhar o marido durante a sua prova podia voltar-se contra ele. Dada a reputação que ela tinha, era fácil imaginar o género de piadas que os Clodianos inventariam para explicar a sua ausência.

 

E o que teria passado pela cabeça a Milo, para se apresentar no tribunal vestindo uma toga imaculadamente branca, sem um ponto solto, quanto mais um rasgão? O seu cabelo parecia ter sido recentemente aparado e penteado, e ele estava tão bem barbeado, que devia ter-se entregue nas mãos do barbeiro naquela mesma manhã, antes de sair de casa. Não pude deixar de abanar a cabeça ao ver semelhante audácia. Até Célio, sempre sardónico, tinha tido o bom senso (instigado por Cícero) de comparecer ao seu próprio julgamento vestindo uma toga velha e puída e com um aspecto pelo menos ligeiramente desgrenhado, e os pais de Célio tinham-se apresentado com roupas rasgadas e os olhos vermelhos de choro e inchados pelas horas de vigília. Espera-se que um acusado romano pareça tão miserável quanto puder, a fim de suscitar a simpatia dos jurados. De uma maneira geral, isto é apenas uma formalidade, mas toda a gente a cumpre por uma questão de respeito para com a tradição legal. Ao apresentar-se como se fosse fazer a corte a uma viúva ou posar para um retrato, Milo estava deliberadamente a levantar o nariz, não apenas aos jurados, mas a todo o processo judicial.

 

Talvez essa fosse uma das coisas que o seu advogado tinha em mente nesse dia. Cícero mostrava-se estranhamente distraído, e numa disposição completamente diferente da da noite anterior. O que acontecera à sua animação, à sua exuberância? Mostrava o olhar inquieto e o maxilar apertado, e tinha um sobressalto sempre que ouvia um ruído inesperado entre a multidão. Remexia em fragmentos de pergaminho, escrevinhava anotações numa tabuinha de cera, estava constantemente a murmurar a Tiro, e nem parecia ouvir os acusadores. Só uma vez me pareceu regressar à vida, durante o discurso de António. Este estava a tentar sugerir que Milo teria parado em Bovilas para dar de beber aos cavalos a fim de matar o tempo enquanto esperava pela informação de que Clódio já tinha saído da sua villa a caminho de Roma, para poder ter a certeza de que passaria por Clódio na estrada, e poderia organizar um ataque deliberado. Para enquadrar a sua acusação, António tinha necessidade de estabelecer a hora exacta a que o incidente tivera lugar, e insistia nesse ponto perguntando repetidamente:

 

Quando foi Clódio morto? Quando, pergunto-vos quando foi Clódio morto?

 

Cícero observou sarcasticamente, em voz alta:

 

Bem mais tarde do que devia!

 

No silêncio que se seguiu, ouviram-se algumas gargalhadas dispersas, mas também expressões de choque por parte dos jurados, e depois uma súbita irupção de indignação entre os espectadores. O sorriso gelado de Cícero desvaneceu-se. Milo tornou-se rígido. Até António, que enfrentara bárbaros no campo de batalha, e não tinha qualquer razão para se sentir ameaçado pela multidão, recuou da Rostra e empalideceu. Eu olhei para trás, para ver o que eles estavam a ver: um mar de punhos erguidos e rostos furiosos, gritando. A ira que se lia naquelas caras não era do género ocasional que se pode apreciar em saqueadores ou soldados; continha uma espécie de pureza inflamada, semelhante à loucura do êxtase religioso. Era uma coisa assustadora; até alguns dos soldados de Pompeu se encolheram visivelmente ao verem aquilo. Esta era a gente de Clódio, os irados e desapossados, os degradados, os impotentes, eram uma força a ter em conta.

 

Naquele momento, pensei que o julgamento estava prestes a conhecer um final abrupto. Haveria um tumulto, mortes, mutilações, derramamento generalizado de sangue, não obstante a presença generalizada das tropas de Pompeu; a multidão engoliria os soldados, juntamente com todos os outros. Porém, embora praguejassem e acenassem com os punhos, os Clodianos contiveram a sua violência. O clímax do dia prometia-lhes uma satisfação maior: a vingança da morte do seu chefe e a destruição definitiva de Milo. Os soldados bateram com as lanças nas pedras da calçada e fizeram ressoar as espadas contra as caneleiras até a multidão finalmente se acalmar. António conseguiu sorrir.

 

Na verdade, Cícero, foi à décima hora do dia. A multidão ribombou de riso. O rosto de Cícero parecia de cera.

 

António terminou o seu discurso. Ápio Cláudio pronunciou o seu encómio, que levou grande parte da multidão, e mesmo alguns jurados, às lágrimas. Era preferível que chorassem a que provocassem distúrbios, pensei eu. Foi então a vez de Cícero falar.

 

Era certamente uma espécie de artimanha, pensei, quando vi Cícero atirar ao chão a tabuinha de cera e deixar-se cair na cadeira. Estaria a simular falta de jeito numa tentativa de suscitar a simpatia de uma audiência hostil? As mesmas pessoas que tinham chorado momentos antes começaram a rir e a assobiar. Milo franziu o sobrolho, cruzou firmemente os braços diante do peito e elevou os olhos ao céu. Tiro mordeu o lábio inferior e encostou as mãos às faces, depois pareceu aperceber-se do que estava a fazer, recolheu as mãos e ficou imóvel como uma estátua.

 

A voz de Cícero tremia quando ele iniciou o seu discurso. Tivera um requebro semelhante da primeira vez que eu o ouvira falar em público, no julgamento de Sexto Róscio; mas isso acontecera várias décadas antes, e desde então Cícero transformara-se no principal orador do seu tempo, progredindo de triunfo em triunfo. Mesmo nos seus dias mais negros, quando Clódio trabalhava para conseguir que ele fosse exilado, o seu estilo desafiante e a sua noção da justeza das suas posições sempre lhe tinham proporcionado uma voz segura, ainda que nem sempre amigos seguros.

 

Mas neste momento a sua voz tremia.

 

Distintos jurados! Distintos... que oportunidade vos foi conferida hoje! Que decisão vital vos compete fazer... a vós, e apenas a vós. Deverá um homem bom, um cidadão notável, um servidor incansável do Estado... deverá ser forçado a ir definhar em miseráveis privações... na verdade, será a própria Roma obrigada a sofrer continuadas e intermináveis humilhações... ou poreis vós fim... isto é, através de uma decidida, corajosa e sensata decisão, poreis fim à longa perseguição de que o homem e a sua cidade têm sido objecto por rufias sem lei?

 

Ouviu-se outra explosão entre a multidão. O ruído foi quase um ataque físico. Cícero pareceu vacilar, recuando na Rostra. Onde estava o galo empertigado que tendia a inchar, de preferência a deixar-se perturbar por uma multidão hostil? Eu continuava disposto a pensar que a sua timidez era uma espécie de pose. Que outra possibilidade haveria?

 

Por fim, o furor acalmou-se o suficiente para ele poder prosseguir.

 

Quando o meu cliente... e eu próprio... quando começámos a dedicar-nos à política...

 

Sim, mas quando é que vão afastar-se? gritou alguém de entre a multidão.

 

Será sempre mais tarde do que deviam! respondeu um coro de vozes, que suscitou gargalhadas roucas.

 

Quando nós começámos a dedicar-nos à política prosseguiu Cícero num tom mais agudo, tínhamos grandes esperanças de vir a ter uma recompensa honrosa por serviços honrosos. Em vez disso, sofremos o fardo constante do medo. Milo sempre foi especialmente vulnerável, porque se colocou deliberadamente... deliberada e corajosamente... em primeiro... isto é, na frente... na luta dos verdadeiros patriotas contra os inimigos do Estado...

 

Houve nova explosão, tão violenta que me feriu os ouvidos. Milo tinha-se afundado de tal maneira na cadeira e apertado os braços à volta do corpo com tanta firmeza, que parecia ter-se derretido. A sua expressão era de total desagrado. Tiro vacilava sempre que Cícero tartamudeava e começou a roer as unhas.

 

A partir desse momento, o rugido da multidão foi quase constante. Sempre que conseguia fazer-se ouvir, Cícero parecia pronunciar fragmentos confusos de mais do que um discurso. Em diversas ocasiões perdeu claramente o pé, murmurou sozinho, e lançou-se a um ponto a que já se referira. A sua voz tremia constantemente. Embora conhecendo a sua intenção geral acusar Clódio de ter montado uma emboscada e exonerar Milo por completo, era-me impossível perceber a sua argumentação. E, pelas suas expressões, pareceu-me que os jurados estavam igualmente confusos.

 

Ao longo dos anos, as orações de Cícero tinham suscitado muitas reacções afronta por causa da sua disposição para retorcer a verdade, admiração próxima do temor pela sua capacidade de construir argumentos lógicos, simples espanto pelo seu ego prodigioso, respeito ressentido pela sua lealdade aos seus amigos, consumação pela sua desavergonhada demagogia, porque Cícero sempre se mostrara disposto a explorar os sentimentos religiosos e os preconceitos sexuais dos seus ouvintes para conseguir os seus objectivos. Agora, eu começava a sentir uma coisa que nunca tinha sentido, uma coisa que teria considerado impossível: comecei a sentir-me envergonhado por Cícero.

 

Esta devia ser a sua maior hora de glória. Quando defendera Sexto Róscio, arriscando-se a ofender o ditador Sula, era demasiadamente jovem para ter consciência do que não devia fazer; incitar as pessoas contra Catilina fora quase fácil demais; destruir Clódia no seu discurso em defesa de Marco Célio fora um acto de vingança pessoal. Esta era uma situação que exigia verdadeira coragem e um vigor heróico. Se ele tivesse enfrentado a multidão irada, se os tivesse olhado de cima, obrigando-os a ouvi-lo pelo simples poder da sua oratória, que feito soberano isso não seria, quer ganhasse o caso, quer não. Poderia ter atingido uma certa espécie de glória, mesmo na derrota.

 

Mas, em vez disso, ele era a imagem de um homem encolhido pelo medo. Gaguejava, desviava os olhos, suava, tropeçava nas suas próprias deixas. Parecia um actor a quem o medo do palco impede de desempenhar o seu papel. Nenhum homem poderia ser censurado por se deixar intimidar por aquela multidão, mas era difícil aceitar tal reacção por parte de Cícero. O carácter deplorável do seu desempenho retirava às suas palavras todo o peso que elas pudessem ter. As poucas partes audíveis do seu discurso pareciam desconectadas, forçadas, artificiais, fingidas. Parecia-me que estava a ouvir um actor de segunda categoria, fazendo uma paródia de má qualidade do próprio Cícero. Mais do que sentir-me envergonhado, eu quase tinha piedade dele.

 

Milo mostrava-se cada vez mais agitado, a tal ponto que parecia não caber dentro da sua pele. Saltava constantemente na direcção de Tiro, envolvendo-se com ele em discussões sussurradas. Pareceu-me que Milo estava com vontade de chamar Cícero da Rostra e falar extemporaneamente em sua própria defesa; Tiro conseguiu convencê-lo a mudar de ideias.

 

A multidão não tardou a aprender a fazer das suas explosões um jogo. Raramente vi uma massa de pessoas agir com tal aparência de unanimidade. Ficavam suficientemente silenciosos para permitir que Cícero se fizesse ouvir, depois riam-se quando ele gaguejava ou se enganava nas palavras, e a seguir esperavam por um momento crítico da tese que ele pretendia defender e lançavam um rugido ensurdecedor. Este desenho era inquietante, porque parecia orquestrado por uma mão invisível. Dava ideia que era o espírito do próprio Clódio que estava a conduzi-los.

 

O colapso parecia prosseguir interminavelmente. Na verdade, durou bastante menos do que as três horas destinadas à defesa. Cícero aproximou-se do final do seu discurso.

 

Milo nasceu para servir o seu país. Certamente não será justo que seja proibido de morrer dentro das suas fronteiras...

 

Então que se suicide, agora mesmo! gritou alguém.

 

Distintos jurados, como podem achar adequado bani-lo do nosso solo? Mandar para o exílio um homem como Milo, que seria recebido de braços abertos por qualquer outra cidade do mundo...

 

Então que vá! Que vá! Exílio! Exílio! A palavra transformou-se num canto, que ecoou por todo o Fórum.

 

Cícero não esperou que o canto morresse para terminar o seu discurso. Prosseguiu, numa voz rouca, por entre os rugidos cada vez mais fortes da multidão. Eu fiz um esforço para ouvi-lo.

 

Solicito-vos com premência, ilustres jurados, quando votardes, sede suficientemente valentes para fazer o que verdadeiramente vos parecer melhor. Fazei-o e, crede em mim, a vossa integridade... e coragem... e sentido de justiça serão com certeza agradáveis àquele que escolheu este júri entre os melhores, os mais corajosos e os mais sábios homens de Roma.

 

Era aquele o argumento final? Que um voto que permitisse ilibar Milo seria agradável ao Grande, ao cônsul exclusivo, ao homem que seleccionava juizes e jurados? Se esse era o argumento final, ainda bem que a voz de Cícero fora abafada pela multidão.

 

Terminados os discursos, cada lado estava autorizado a dispensar 15 jurados. Esta parte foi rápida, porque tanto a acusação como a defesa já tinham feito as suas listas daqueles que consideravam indesejáveis.

 

Só faltava os restantes 51 jurados lançarem o seu voto. Cada um deles recebeu uma tabuinha com cera, com a letra A de (absolvição) estampada de um dos lados e a letra C (de condenação) estampada do outro. O jurado tinha de apagar uma das letras, dando a conhecer a sua opinião com a outra. As tabuinhas seriam recolhidas antes de serem contadas, de maneira que o voto de cada jurado permanecia secreto. Domício presidiu à contagem das tabuinhas, à medida que eram separadas em dois grupos. Do ponto onde me encontrava sentado, pude aperceber-me que um dos grupos tinha aproximadamente o triplo das tabuinhas do outro.

 

Domício anunciou os resultados. Os votos a favor da condenação eram 38. Os votos a favor da absolvição eram 13.

 

A derrota foi esmagadora. Mesmo assim, Milo suscitara mais apoios do júri do que eu esperava. Estranhamente, tive um súbito movimento de simpatia por ele. Ele era responsável por alguns dos dias mais negros da minha vida; tinha-me separado deliberadamente da minha família e tratado como a um animal. Contudo, o tempo que eu tinha passado em cativeiro também me fizera considerar a dura realidade da existência exilada, em que a pessoa é definitivamente separada da sua terra, dos locais onde passou a sua infância e daqueles que ama, da única vida que conheceu, e fica proibida de regressar, mesmo depois da morte. Eu tivera um vislumbre dessa infelicidade, às mãos de Milo. E agora, o mundo de Milo estava a acabar. Da mesma maneira que quase sentira piedade de Cícero, quase a senti também por Milo.

 

Ouviu-se um grito de triunfo por parte da multidão. Com o rosto desprovido de expressão, Milo ergueu-se rigidamente da sua cadeira, e dirigiu-se à liteira fechada em que tinha chegado. Cícero seguiu-o, com ar aturdido. Para além dos guarda-costas de ambos, os soldados de Pompeu formaram um cordão à volta da liteira, para garantir que abandonaria o Fórum em segurança.

 

Pompeu devia estar satisfeito, pensei. Depois de um começo tremido, no primeiro dia do julgamento, tinha conseguido estabelecer a ordem e, de certa maneira, a ordem prevalecera até ao fim. O problema de Milo fora resolvido; Milo não voltaria a incomodá-lo, e Cícero também não, pelo menos durante algum tempo. Agora, o Grande podia voltar a sua atenção para os Clodianos radicais. Que castigos seriam adequados para os que tinham instigado ao incêndio do Senado? Roma necessitava desesperadamente de Lei e Ordem, e Roma preparava-se para viver com elas pelo menos no curto prazo.

 

As tabernas reabriram logo que o julgamento terminou. Os Clodianos foram beber para comemorar. Os apoiantes de Milo foram beber para afogarem a sua infelicidade. Eu decidi fechar-me em casa.

 

Ao jantar, revelei à família o que tinha descoberto na noite anterior acerca da responsabilidade de Milo no meu rapto e de Eco, e do conhecimento que Cícero tinha do assunto. Betesda e Menénia mostraram-se indignadas. Diana começou a chorar e saiu da sala.

 

Discutimos o julgamento, que nos fizera o favor de castigar Milo; ele já estava a ser penalizado com o castigo mais duro previsto na lei, e nós nada mais podíamos fazer contra ele. Quanto a Cícero, Betesda declarou que tencionava rogar-lhe uma praga egípcia. Por mim, sentia-me menos seguro quanto à forma de lidar com ele. Era óbvio que nunca mais haveria relações amigáveis entre nós. Já de outras vezes eu estivera a ponto de cortar totalmente com Cícero; agora, estava feito. Mas, para além disso, era difícil perceber que género de reparação poderíamos obter dele, pelo menos de momento.

 

Conversámos e discutimos durante muito tempo. As lamparinas perderam o brilho e os escravos voltaram a enchê-las. Tínhamos comido bem, mas fomos começando a ficar novamente com fome. Betesda apresentou outro prato. Conversámos e discutimos um pouco mais. A determinada altura, apercebi-me de que me sentia inexplicavelmente feliz Estava a salvo, em minha casa, no coração da cidade, satisfeito com a minha família, finalmente fora de perigo. Estariam todos os habitantes de Roma no mesmo estado de espírito que eu, soltando um suspiro de alívio?

 

O mundo tinha sido voltado de pernas para o ar e recebera um violento abanão. Fora conferido aos soldados o controlo de um tribunal romano, um homem que se autodesignava cônsul exclusivo tinha atitudes equivocamente semelhantes às de um ditador, e Cícero não conseguira resistir durante o mais importante discurso da sua vida. Estes eram presságios graves, certamente mais significativos e ameaçadores do que os presságios habituais, os fogos dúbios e as estranhas formações nebulosas que os místicos profissionais avistavam nos céus. Mas eu sentia que o mundo estava novamente do lado de que devia estar, e os meus pés voltavam a pisar terreno firme. O problema imediato e absorvente que Milo constituía tinha sido resolvido, ainda que de forma pouco clara. As coisas só podiam melhorar.

 

Até Betesda parecia especialmente bela nessa noite. Talvez fosse devido, em parte, à incandescência do vinho, ou mesmo à incandescência dos seus cozinhados quentes, que eu tinha no estômago. Ao olhar para ela à luz da lamparina, pensei em Diana. Onde estava Diana?

 

Vou mandar Davo à procura dela, pensei, mas Davo também não estava na sala. Tenho de ser eu a ir à procura dela.

 

Bati na parede, ao lado da cortina que cobria a entrada no seu quarto. Não houve resposta. Pensei que ela devia estar a dormir ou então noutro sítio qualquer mas, quando afastei a cortina, ouvi um ruído abafado. O quarto estava fracamente iluminado por uma única lamparina. Diana parecia estar ocupada a tirar uma colcha de cima da cama. Voltou a sentar-se na cama, encostando-se à parede.

 

Papá, o que estás aqui a fazer?

 

Filha, ainda há poucos minutos estavas a chorar por tudo aquilo que Eco e eu tivemos de sofrer. Sentes-te assim tão infeliz por me ver?

 

Oh, papá, não é isso.

 

Então o que é, Diana? Pareces tão infeliz, desde que eu regressei. Quase chego a pensar que não ficaste nada satisfeita por me ver. Disse aquilo como uma piada, mas a sua expressão obrigou-me a fazer uma pausa. O que se passa, Diana? Eco está convencido que é porque te queres casar e sair de casa, ou não te queres casar e sair de casa...

 

Oh, papá! Ela desviou o rosto.

 

Falaste ao menos com a tua mãe sobre o assunto, seja lá o que for? Ela abanou a cabeça.

 

Diana, eu sei que estive fora, e que desde que regressei tenho andado mais ocupado do que devia, mas estes não são tempos normais. Espero que, daqui para o futuro, as coisas melhorem. Mas a tua mãe está sempre presente, e eu sei que ela se preocupa...

 

A mãe matava-me! murmurou Diana roucamente. Oh, ela é a última pessoa a quem eu posso contar!

 

Isto espantou-me. Seria o problema de facto assim tão grande como Diana imaginava, ou tratar-se-ia de uma insignificância que ganhara proporções absurdas pelo facto de ela ser uma rapariguinha? Enquanto perguntava a mim próprio o que havia de fazer, dei a volta à cama dela e olhei vagamente para o bacio. Embora tivesse desviado os olhos quase logo, a luz mortiça da lamparina incidia sobre ele de tal forma, que me apercebi imediatamente do seu conteúdo.

 

Diana! Estás doente? Estiveste a vomitar?

 

Ela apercebeu-se do que eu tinha visto e tentou desviar o bacio com o pé, mas era tarde demais. Ao mesmo tempo, fui surpreendido por outro ruído atrás de mim e, ao voltar-me, vi Davo. Como teria ele entrado no quarto de forma tão discreta?

 

Davo, o que estás aqui a fazer? Ninguém te chamou. Vai-te embora. Não tens nada a ver com isto.

 

Tem sim disse Diana.

 

Não tem, não, Diana...

 

Isto tem a ver com Davo, papá. Tem mesmo!

 

Foi nessa altura que percebi o óbvio. Eu e Betesda, suponho, que estava à porta com uma expressão capaz de transformar um homem em pedra.

 

Eu precisava de uma bebida.

 

Mais do que isso, precisava de me afastar de minha casa. Já chegava de ouvir Diana a chorar, de ver Betesda a bater com os pés no chão, de sentir sobre mim o olhar da Minerva quebrada. Não queria ouvir os murmúrios dos meus escravos, que diziam: "O que irá ele fazer com ela?", ou "O que irá fazer com ele?", ou "Eu bem desconfiava!"

 

Onde pode ir um homem a meio da noite, quando deseja esquecer as suas preocupações.

 

Desde o final de outro julgamento, no caso o de Marco Célio, há quase exactamente quatro anos, que eu não punha os pés no local a que o poeta Catulo chamava a Taberna Salaz. Eco e eu não tivemos grande dificuldade em a encontrar; palmilhámos o bairro dos armazéns até à zona noroeste do Monte Palatino, acompanhados pelos guarda-costas dele (sem Davo, evidentemente), até chegarmos junto ao pilar vertical que tinha a forma de um falo, e à porta iluminada por uma lamparina com o mesmo formato.

 

O sítio não tinha mudado nem um bocadinho. Tresandava ao fumo do óleo barato para lamparinas e aos vapores do vinho barato. O ruído geral era pontuado, aqui e ali, pelo matraquear dos dados e pelos brados de vencedores e vencidos. As poucas mulheres que ali se encontravam estavam nitidamente à venda. Os homens pareciam estar, na sua maioria, bem-dispostos. Na medida em que a clientela da Taberna Salaz tinha] algum interesse pela política, deviam ser simpatizantes de Clódio.

 

Enquanto Eco e eu procurávamos um banco onde nos acomodássemos, e aos nossos guarda-costas, ouvi diversos fragmentos de conversa.

 

O melhor seria cortarem a língua a Cícero talvez seja essa a próxima medida, se Pompeu vier a ter coragem de se tornar ditador e de começar a fazer justiça a sério!

 

A ideia de Milo partir para Massília, onde se vai encher de salmonetes e chafurdar com prostitutas gaulesas que raio de castigo é esse?

 

Percebeste alguma coisa do discurso de António?

 

Ligeiramente mais do que do de Cícero!

 

Eu chorei, digo-te, chorei naquela parte em que o sobrinho referiu que ele tinha morrido sozinho, esvaindo-se em sangue na Via Ápia. Era um grande homem...

 

Finalmente, encontrámos lugar. Um criadito veio imediatamente trazer-nos vinho. A bebida era tão má quanto o serviço era rápido.

 

Eco, o que vou eu fazer com eles?

 

Boa pergunta, papá.

 

Como é que aquilo aconteceu?

 

Acho que tu sabes como é que se faz, papá.

 

Tu percebeste muito bem o que queria dizer!

 

Ela tem a certeza absoluta sobre... o seu estado?

 

Parece ter. E Betesda também, depois de a ter interrogado.

 

Quando é que a coisa aconteceu, papá? Refiro-me à primeira vez... presumindo que tenha acontecido em mais do que uma ocasião...

 

Lembras-te daquele dia em que o contio se transformou num tumulto, e Belbo foi morto, e de no dia seguinte tu e eu termos decidido juntar as nossas famílias? Tu trouxeste contigo os teus guarda-costas, e deste-me Davo para substituir Belbo. Aparentemente, nessa primeira noite em que ele dormiu debaixo do meu tecto...

 

Oh, não!

 

Sim! Em nome do Hades, por que estás a sorrir?

 

Estou? Bem, é que pelo menos, Davo já não era, tecnicamente, meu escravo quando aquilo aconteceu. Graças aos deuses. Já to tinha dado, como teu guarda-costas pessoal.

 

Estás a dizer que nada disto te diz respeito?

 

Não, papá, não era isso que eu queria dizer. Diz-me respeito, claro. Mas é exclusivamente a ti que compete decidir o que fazer com Davo.

 

Muito obrigado!

 

O rapazito surgiu fortuitamente ao nosso lado para nos encher de novo os copos.

 

Nesse dia, ele salvou-me a vida, sabias? disse eu.

 

Como?

 

O tumulto, o massacre no Fórum. Quando Milo e Célio fugiram vestidos de escravos. Eu estive muito perto de ser morto. Foi Davo que me puxou do meio da multidão. Não é cobarde nenhum, disso não há dúvida.

 

Pois não. Só um homem corajoso se meteria com a filha do seu senhor, mesmo debaixo do seu tecto, e no primeiro dia que passa em sua casa. Em que estaria ele a pensar?

 

Com que estaria ele a pensar, queres tu dizer. Não era certamente com a cabeça! Diana afirma que não foi culpa dele, evidentemente.

 

Acho que deve ter sido, em parte, culpa dele, papá.

 

Eu sei o que ela pretende dizer, e tu também. Ela afirma que foi ela quem... deu início à função.

 

Falas como se se tratasse de um contrato legal! Pode ter sido ela a "dar início", mas ele devia ter recusado. Eu bem te disse que Diana começava a olhar para os rapazes. Eu bem te disse que era altura de ela se casar.

 

A olhar para os rapazes... Fiz um aceno de cabeça. Tens de admitir que Davo é mesmo o género de homem de que elas gostam. Grande como Hércules. Belo como Apolo.

 

E estúpido como um boi. Um boi com cio, já agora! Em nome do Hades, onde estará o rapazito com o vinho? Apetece-te jogar um bocado, papá?

 

Não pude deixar de soltar uma gargalhada.

 

Eco, eu tenho a impressão de que há meses a esta parte que não faço outra coisa senão jogar. Acho que preferia parar de jogar durante algum tempo.

 

E beber apenas!

 

Exacto! Beber apenas!

 

O rapazito chegou. Queixámo-nos do facto de os copos da taberna serem absurdamente pequenos. Ele fez uma careta, como quem diz que não éramos os primeiros a fazer aquela observação.

 

Quer dizer que Diana tem a certeza absoluta? disse Eco. Começava a ficar com a voz enrolada.

 

Tem. Não lhe pedi pormenores específicos, Eco, mas já passaram mais de três meses desde que eles se encontraram, e Betesda afirma que o calendário de Diana é consideravelmente mais fiável do que o calendário romano...

 

Não tem meses suplentes! Por qualquer razão, Eco achou aquilo hilariante. Eu esperei que ele acabasse de grasnar.

 

Seja como for, é uma grande confusão.

 

Quer dizer que durante todo o tempo em que Davo esteve connosco na Via Ápia...

 

Estava certamente a pensar em Diana! Tal como tu sentias a falta de Menénia e eu...

 

E depois, quando nós fomos raptados e ele foi atirado abaixo do cavalo, e depois recuperou os sentidos e regressou a casa...

 

Sim, Eco. Têm estado os dois debaixo do mesmo tecto, todos os dias, todo o dia, e acreditas que Betesda nem reparou? Claro, Betesda andava preocupada connosco, e ocupada a lidar com os guardas de Pompeu e a tentar manter a casa a funcionar. Diana devia ser a menor das suas preocupações.

 

Apesar disso, como é possível que não lhe tenha cheirado a esturro? Acho que o que isto significa, papá, é que Diana mostrou ser mais esperta e discreta do que a mãe!

 

Na verdade, tenho a impressão de que já sabia disso. Sim, Diana foi mais esperta do que Betesda. Manteve os seus encontros com Davo...

 

Durante todo o tempo em que nós estivemos fora... e desde que nós voltámos!

 

Por favor, Eco, não quero pensar nisso. E também conseguiu esconder a Betesda a sua condição, o que foi um feito e tanto. Claro, a coisa não podia continuar assim para sempre. Durante todo este tempo, ela tem-se sentido cada vez mais infeliz...

 

E Davo tem andado a comportar-se como um escravo do tesouro apanhado com a mão dentro do cofre... por assim dizer.

 

Sim, era óbvio que ele se sentia culpado por qualquer razão. É uma traição horrível, não é? Ele devia guardar-me, e à minha família, e afinal...

 

Papá, Davo é um homem. E Diana, quer queiras, quer não, é uma mulher.

 

Davo é meu escravo e Diana é minha filha!

 

Meto também era escravo, antes de tu o adoptares. E Betesda era uma escrava, antes de tu a alforriares e te casares com ela.

 

Mas Eco era apenas um rapazinho, e Betesda estava grávida de Diana. O que havia eu de fazer, permitir que a minha filha nascesse escrava?

 

Podes libertar Davo. Fazer dele um cidadão. Depois, ele podia...

 

Está fora de questão! Como recompensa por aquilo que ele fez?

 

A única alternativa, para além de o mandares matar, será vendê-lo, de preferência a um novo senhor que viva muito, muito longe. Ou então podes vendê-lo para as galeras ou para as minas, se realmente desejares castigá-lo; ele é bastante jovem e forte, pelo que é provável que sobreviva alguns anos. A maioria dos homens mandá-lo-ia açoitar violentamente e acorrentar quando descobrisse, e teria feito uma coisa quase tão má, ou pior, à filha em questão. Nos velhos tempos, um bom pai romano tê-los-ia morto a ambos imediatamente, sem pestanejar...

 

Eco, pára com isso! Oh, estou a ficar com dores de cabeça por causa deste fumo todo. Não quero pensar mais nisso. Olha, aquele não é...? Espreitei por entre a névoa cor de laranja da luz enublada das lamparinas. Ali ao canto é mesmo! Quem diria?

 

Levantei-me e atravessei a sala, não completamente a direito. Tiro estava sentado sozinho num canto.

 

Estás a exercer os teus direitos de liberto para vir beber e frequentar as prostitutas a meio da noite? perguntei. Tens a certeza de que Cícero aprovaria?

 

Tiro olhou tristemente para mim, mas não respondeu.

 

A atmosfera deste sítio não pode fazer-te bem à saúde disse eu. E este vinho dá cabo do estômago de qualquer pessoa. Posso sentar-me no teu banco?

 

Não posso impedir-te de te sentares onde quiseres, cidadão. Tiro, não guardemos rancores entre nós. Pus o braço à volta dele.

 

Gordiano, estás embriagado.

 

E tu também vais ficar, dentro de pouco tempo. Vens aqui muitas vezes?

 

Ele acabou por sorrir um pouco.

 

De vez em quando. Às vezes, preciso mesmo de sair. Outras vezes... Vi que ele olhava para uma das mulheres que estavam à venda.

 

Tiro, seu cão. Estás a dizer-me que tens uma vida secreta, que Cícero não aprovaria?

 

Por que não? Ele também fez nas minhas costas coisas que eu não aprovo, não fez? Gordiano, se eu tivesse sabido na altura, se eu tivesse tido maneira de o impedir...

 

Não, Tiro, não voltemos a falar nisso. Pelo menos hoje! Tenho outras coisas no pensamento, que estou a tentar esquecer. Chamei o rapazito, para que enchesse novamente o copo de Tiro. Nem queria acreditar no espectáculo que o teu senhor deu hoje.

 

Ele já não é meu senhor. Sabes isso perfeitamente.

 

Desculpa; é do hábito. Em nome do Hades, o que se passava com ele? Ontem à noite, parecia tão seguro, tão confiante. Era Cícero do mais puro. Apeteceu-me estrangulá-lo!

 

Quando tu o viste, sim. Mas há dias que tem andado com altos e baixos. Frívolo e cheio de autoconfiança, e logo a seguir cego de desespero. Não fazes ideia do efeito que esta crise teve sobre ele. Quantos amigos o abandonaram por causa de Milo. Quão miseravelmente Pompeu e César o têm tratado. Conheces o seu calcanhar de Aquiles, a digestão; há dias em que quase não consegue comer. Acorda a meio da noite com cãimbras. Tem sido uma provação horrível, um fardo esmagador. Aquilo que ele permitiu que Milo te fizesse sei que me disseste para não falar nisso, mas tenho de o fazer está completamente em desacordo com o seu carácter. Como está em desacordo com o seu carácter o que se passou hoje. Graças aos deuses que acabou, ao menos isso!

 

Já vi Cícero sob pressão, mas nunca tinha visto nenhum orador perder por completo o controlo, como ele perdeu hoje. Que espectáculo.

 

Até parece que gostaste, Gordiano.

 

Estranhamente, até tive alguma pena dele. Mas houve muitas pessoas que pareceram adorar.

 

Aquela ralé! Cícero teve razão em ter medo deles.

 

As tropas de Pompeu estavam lá para manter a ordem.

 

Estavam mesmo? E achas que teriam protegido Cícero, se alguém tivesse começado a atirar-lhe pedras? que queres dizer com isso?

 

Quem sabe que ordens secretas terá Pompeu dado aos seus homens?

 

Não acredito...

 

Pompeu estava ansioso por se libertar de Milo. E também não hesitaria em libertar-se de Cícero, se dispusesse de uma maneira limpa de o fazer. Achas que os soldados dele teriam defendido Cícero, se a coisa tivesse chegado a esse ponto? Ou teriam desviado os olhos, apenas por uns momentos? Consegues pensar numa forma mais conveniente de ele se libertar de Cícero, sem qualquer responsabilidade pessoal para o Grande? Abanas a cabeça, Gordiano, mas acredita em mim, Cícero tinha boas razões para temer pela vida, hoje.

 

Quer dizer que ele entrou simplesmente em pânico?

 

Mais ou menos. Oh, foi um horror.

 

Sim, eu vi como tu te contorcias durante todo o discurso.

 

E Milo estava praticamente a espumar! Agora fala como se tivesse sido condenado por culpa de Cícero.

 

Isso é um disparate.

 

Afirma que eles deviam ter explicado as circunstâncias e argumentado a favor da sua inocência técnica, por muito embaraçoso ou improvável que tivesse parecido.

 

Eu tinha a cabeça enublada por causa do vinho. Parecia-me que Tiro repetia uma coisa que Cícero tinha dito na noite anterior. E eu também não tinha compreendido o que Cícero afirmara.

 

O que é isso da inocência técnica...?

 

E já sei qual é a tua próxima pergunta: o discurso era assim tão bom? É isso que é verdadeiramente doloroso. As horas que investimos naquele discurso, e depois vê-lo desvanecer-se, como poeira levada pelo vento. Podíamos ter conseguido ilibar Milo. Quem sabe? Julgarás por ti próprio quando o publicarmos. Terá de ser revisto, claro. Mas nessa altura o mundo poderá conhecer a defesa de Milo por Cícero em toda a sua perfeição, sem as distracções daquela multidão ululante!

 

Infelizmente, será tarde de mais para Milo. Tiro, o que foi que disseste sobre...

 

Por Hércules! Está ali uma pessoa que não estou nada interessado em ver! Gostei de falar contigo, Gordiano. Quando ele se levantava do banco, eu espreitei por entre a névoa cor de laranja para ver quem tinha chegado. A princípio não o reconheci, mas depois ouvi alguém chamá-lo:

 

Filémon!

 

Senti o impulso de me apresentar. Olhei à volta, à procura de Eco, mas não consegui distingui-lo no meio da névoa. Estaria assim tão embriagado? Por fim, detectei-o numa pequena antessala, a jogar aos dados. Por cima da algazarra, ouvi-o vagamente gritar o nome de Menénia para lhe dar sorte.

 

Filémon procurava um lugar para se sentar. Eu acenei-lhe para que se aproximasse.

 

Eu conheço-te, cidadão? Era natural que fosse cauteloso.

 

Ainda não, mas temos uma coisa em comum.

 

Ambos gostamos de prostitutas baratas e vinho rançoso?

 

Um pouco mais do que isso. Senta-te. Ofereço-te um copo.

 

Preferia que me oferecesses uma prostituta.

 

Talvez o faça! Calculo que não tenha sido fácil passar sem elas aquele tempo todo.

 

O quê, enquanto estive preso na villa de Milo? Pelo menos, aquele porco não volta a passar férias lá!

 

Suponho que não. Já acabaste esse copo? Tens de beber outro. Filémon estava mais sóbrio do que eu, mas pôs-se rapidamente ao mesmo nível de embriaguez. Parecia divertir-se com a repetição da história que fizera dele uma das principais testemunhas da acusação. Lançou-se na narrativa sem qualquer solicitação da minha parte. O vinho parecia soltar-lhe os lábios.

 

Muito bem disse a certa altura, da maneira como a contei em tribunal, fiz-nos parecer um bocadinho mais heróicos do que na realidade fomos, tenho de confessar.

 

O que queres dizer com isso?

 

Bem, é verdade que quando chegámos junto de Eudamo e de Birria, e nos apercebemos do que eles estavam a fazer, a alardearem por ali e a tentarem matar Clódio, lhes gritámos que parassem com aquilo.

 

Sim, e depois disseste que tu e os teus amigos tinham investido sobre eles, mas que eles vos fizeram recuar e vos perseguiram.

 

Ele riu-se acanhadamente.

 

Pois! Só que nós nunca chegámos a investir sobre eles. Quer dizer, estamos a falar de Eudamo e de Birria, muito risonhos e cobertos de sangue! Investir sobre eles? Não me parece. Virámos costas e desatámos a correr, e eles vieram atrás de nós.

 

Não tens nada de que te envergonhar garanti-lhe.

 

Pois não, mas tenta dizer isso diante de uma multidão de uns quantos milhares de pessoas!

 

Também douraste a pílula relativamente a outras coisas? Ele abanou a cabeça, e depois estremeceu.

 

Não imaginas o que foi, estar preso à mercê de criaturas como aquelas. O meu sangue parecia água gelada. Durante a primeira grande discussão que eles tiveram, quando nos obrigaram a marchar até Bovilas, eu pensei que ficava com as entranhas vazias.

 

Uma discussão? Como foi isso?

 

Foi uma discussão entre eles. Bastante violenta. Tive esperanças de que se matassem um ao outro e nos deixassem em paz. Estavam a tentar decidir para onde haviam de ir em seguida e que haviam de fazer com Clódio. Calculo que estivessem a discutir o que haviam de fazer com o corpo.

 

Mas o corpo já tinha saído dali. O senador Tédio tinha entrado em cena, tinha-o metido na sua liteira e tinha-o enviado para Roma.

 

Ah, pois, foi isso. Então, se calhar era sobre isso que eles estavam a discutir sem saberem para onde teria ido o corpo. Calculo que tenham apanhado um susto! Sim, calculo que tenha sido por isso que Milo ficou tão furioso quando eles lhe contaram o que se tinha passado. O quê, achas que ele queria levar a cabeça de Clódio como troféu?

 

Parece que ele ficou com o anel de Clódio. Em minha opinião, isso devia ser suficiente. Imaginei Eudamo ou Birria a tirarem o anel do dedo do cadáver. Engoli com dificuldade. Gostava de saber se Milo tenciona levar o anel para Massília como uma espécie de consolo pelo seu exílio.

 

Filémon não estava a ouvir-me.

 

Sim, o senador Tédio. Vi-o testemunhar no tribunal. Passámos por ele na estrada, sabias, entre Bovilas e o sítio onde Milo nos esperava. Estava sentado à beira da estrada com os seus guarda-costas, parecendo muito satisfeito com o mundo. Podia ter-nos ajudado!

 

Pensou que vocês eram os bandidos que tinham morto Clódio, e que os homens de Milo vos tinham simplesmente conseguido apanhar!

 

Ha! Isso foi uma piada dos deuses, não foi?

 

Pediram-lhe ajuda?

 

Teria valido de muito. Pouco faltou para ele saudar os dois monstruosos gladiadores quando passámos. Eu senti-me um gaulês apertado num feixe na parada de triunfo de um general.

 

Talvez devesses ter apelado à filha dele.

 

À filha? Filémon olhou para mim com uma expressão confusa e abanou a cabeça. Presumi que se tivesse sentido ofendido com a minha sugestão de que podia ter pedido ajuda a uma mulher.

 

Até os pais de filhas que pecam e os maridos de mulheres imperiosas têm de acabar por regressar a casa, mais cedo ou mais tarde; por isso, Eco e eu abandonámos o abrigo da Taberna Salaz antes da primeira hora do dia e subimos o Monte Palatino. Lembro-me muito mal desse passeio, a não ser do facto de grande parte do percurso ser demasiadamente íngreme. Tal como o velho Sexto Tédio subindo esforçadamente a Via Ápia, eu estava constantemente a sentir necessidade de me sentar para recuperar o fôlego. Envelhecer é um tormento, e estar embriagado um conforto apenas até certo ponto, depois do qual se transforma igualmente num tormento.

 

Com o nascer do Sol, chegaria um novo dia. Todas as coisas voltariam ao seu lugar. Eco, Menénia e os gémeos regressariam ao Esquilino. Eu mandaria os guardas de Pompeu para casa, com gratidão sentida e um suspiro de alívio. Claro que algumas coisas não poderiam ser desfeitas com tanta facilidade...

 

Pelo menos a crise dos últimos meses tinha terminado. Eu lavava as minhas mãos de todos os implicados! Milo, Clódia, Fúlvia, Cícero e os respectivos satélites podiam ir todos juntar-se a Clódio no Hades. A história acabara em definitivo.

 

Foi o que eu pensei, enquanto subia o Palatino. Era àquela hora do dia em que se vê muito mal, embora a aurora esteja próxima; porém, no estado confuso em que me encontrava, nem sequer me apercebi de que ainda estava às escuras, ou de que em breve nasceria uma luz.

 

Pode ser arranjada, evidentemente dizia o artesão. Mas...

 

Mas vai-me custar bom dinheiro disse eu.

 

Isso é evidente. Os materiais, a mão-de-obra altamente especializada, tenho de te recordar, são tudo coisas que implicam despesas consideráveis.

 

Então por que hesitas? Ele abanou a cabeça.

 

Não posso garantir-te que o resultado dure eternamente. Na verdade, para ser honesto contigo, não me parece que as fracturas da estátua possam ser reparadas de maneira... totalmente satisfatória.

 

Satisfatória.

 

De maneira artisticamente agradável e estruturalmente sólida. Estás a ver, se olhares para aqui, para o ponto onde começou a fractura, verás vestígios de uma fissura minúscula, que já lá estava...

 

Estás a dizer-me que a estátua sempre teve uma falha?

 

Oh, sim. Aqui, onde o metal é mais fino. Vês como o lábio da rotura se quebrou num padrão diferente? Isso prova que já havia um ponto de fraqueza com uma racha finíssima. Claro que, do exterior, não se notava. Parecia perfeitamente sólida. Mas era óbvio que tinha uma falha. As estátuas não são para serem deitadas abaixo dos pedestais, isso já sabemos, mas, dado um evento tão infeliz, este era o ponto mais fraco, e foi aqui que a fractura inevitavelmente ocorreu. Depois, avançou por esta zona, o ponto mais fino das pregas do fato da deusa, passou por cima das coxas...

 

Considerando a quantidade de sangue derramado que eu já vira na minha vida, parecia uma tolice ser sensível com uma estátua. Mas havia qualquer coisa de macabro nas lascas e cicatrizes do metal que se viam ao longo da fenda que a dividia ao meio, e uma espécie de falta de tacto neste exame íntimo das suas entranhas. À superfície, ela era tão serena e perfeita, tão brilhante, aparentemente indestrutível. Mas, na superfície interior e oca, não era mais do que uma massa de espigões protuberantes zonas rugosas e falhas. E, durante todo o tempo em que ocupara o seu majestoso pedestal, protegendo o meu jardim, irradiando sabedoria houvera sempre uma falha terrível no seu interior. Uma ralé assassina derrubara-a do pedestal, e a falha dividira-a em duas. Agora, o artesão dizia-me que não havia maneira de a reconstruir satisfatoriamente.

 

Mas não posso deixá-la aqui tombada no jardim, a olhar para cima sempre que eu passo. A sabedoria em duas peças, com ervas daninhas a crescer à sua volta!

 

A estátua pode ser derretida. Claro que apenas recuperarias uma pequena fracção do seu valor...

 

Eu abanei a cabeça.

 

Isso está fora de questão. A estátua, tal como a casa, tinha sido um legado do meu antigo patrono patrício, Lúcio Cláudio. O próprio Cícero a invejara. Derretê-la? Nunca! Mas o que havia eu de fazer? Só dormira algumas horas depois de regressar da taberna, mas no momento em que acordei, o meu espírito concentrou-se na Minerva, excluindo todos os outros problemas. Nada me pareceria verdadeiramente resolvido enquanto ela não tivesse regressado ao seu pedestal.

 

O artesão esfregou o queixo, pensativo. Dizia-se que não havia em Roma outro homem que soubesse tanto como ele sobre o trabalho do bronze. Era um sujeitinho barbudo, um grego, propriedade do dono de uma fundição a quem eu tinha resolvido um problema que envolvia um escravo desaparecido e uma estátua que parecia excessivamente pesada.,'

 

Talvez pudesses fazer dela um busto sugeriu o grego.

 

O quê?

 

Se mandasses fazer um corte limpo, mesmo por baixo dos seios... Era claro que o sujeito podia ser um artesão de grande qualidade, mas

 

de artista não tinha nada. Nem parecia ter qualquer respeito religioso pela estátua. Calculo que fosse um dos riscos da sua profissão: lidava tanto com a maleabilidade e a força tênsil de diversas ligas, que perdia a noção do mistério que se escondia no interior do metal.

 

O que eu quero é voltar a pô-la inteira. Isso pode fazer-se ou não?

 

Oh, poder, pode. O grego voltou-se para o lado por momentos. Eu sabia que ele estava a erguer os olhos ao céu face à minha teimosia. Mas vai-se ficar a ver a cicatriz, e não vai durar para sempre. Um encontrão mais forte, um tremor de terra...

 

Vamos a isso.

 

Como já disse, vai ficar-te caro.

 

Estás autorizado a negociar pelo teu senhor?

 

Estou.

 

Então façamos contas.

 

O valor mais baixo a que consegui que o homem descesse era ainda demasiado para os cofres da família. Mas eu havia de arranjar o dinheiro, de uma maneira ou de outra. Mandei-o embora e entrei no meu escritório. Qual era a tarefa seguinte? Sentia-me surpreendentemente cheio de energia para quem tinha passado tantas horas de ausência e embriaguez na noite anterior, e particularmente optimista, tendo em conta as nuvens de tempestade que se tinham formado sobre a minha casa. Quando este género de disposição alegre toma conta de um homem com a minha idade, parece-me que o melhor é usufruir dela sem grandes perguntas.

 

Os guardas de Pompeu já se tinham ido embora, enquanto eu dormia. Eco e Menénia andavam ocupados a transportar as suas coisas de volta para o Esquilino; era espantosa a quantidade de objectos que tinham sido transferidos da casa deles para a minha durante a sua estadia. Eu ia ter saudades de ver os brinquedos dos gémeos os barquinhos pintados, os carrinhos trabalhados e os jogos de tabuleiro egípcios, com seixos de cores garridas, mas não teria saudades de tropeçar neles. Betesda sentira-se na obrigação de orientar a mudança. Aparentemente, dissera o que tinha a dizer a Diana na noite anterior. Diana estava recolhida. Aparentemente, Davo tinha decidido que havia uma necessidade urgente de vigiar do telhado, e aí se postara, convenientemente fora da nossa vista.

 

Eu bati as palmas. Um dos escravos que estavam a ajudar Eco parou e olhou para dentro do compartimento.

 

Sabes onde está a minha filha? perguntei.

 

No quarto dela... julgo eu... senhor. Mostrava-se pouco à-vontade. Por esta altura, já todos sabiam o que se passava com Diana, evidentemente.

 

Vai dizer-lhe que eu quero falar com ela.

 

Sim, senhor!

 

O coração caiu-me aos pés quando ela entrou no escritório. Estava com um ar demasiadamente alterado para uma rapariga, de 17 anos que trazia uma criança dentro de si. Senti muitas coisas ira, apreensão, remorso, mas nenhuma outra foi tão forte como o impulso de pôr os braços à sua volta e me deixar estar assim por momentos, encostando-a a mim. Foi Diana quem dissolveu o abraço e se afastou, desviando os olhos.

 

Foi horrível, depois de eu me ter ido embora, a noite passada?

 

Com a mãe? Ela conseguiu fazer um pequeno sorriso. Não foi tão horrível como eu esperava. A princípio, soprou e gritou. Mas, depois de se acalmar, mostrou-se mais desiludida do que irritada. Não a compreendo. Ela própria era uma escrava. Agora comporta-se como se eu tivesse nascido para me casar com um patrício e tivesse estragado tudo.

 

É precisamente pelo facto de a tua mãe ter sido escrava que quer que tu te cases bem.

 

Suponho que é isso. Hoje, decidiu simplesmente ignorar-me. Eu suspirei.

 

Eu sei o que isso é. Bem de mais. Mas Diana, como estás de saúde? Sei menos do que devia acerca do que se deve esperar nestas situações. A tua mãe deve saber...

 

Essa foi a primeira preocupação dela a noite passada, depois do ataque de cólera. Fez-me uma série de perguntas. Aparentemente, está tudo bem, embora eu me sinta miserável a maior parte do tempo. Tem sido o pior de tudo andar preocupada e com vontade de lhe falar nisto, e querer falar contigo, papá, e ter receio de o fazer. Pelo menos, essa parte acabou.

 

Eu brinquei com um estilete.

 

Talvez esta gravidez não seja adequada para ti. Uma vez mais, sou tremendamente ignorante quanto aos pormenores, mas tenho a certeza de que a tua mãe conhece formas de...

 

Não, papá. Eu não quero pôr-lhe fim.

 

O que queres tu, Diana?

 

Papá, não compreendes? Eu estou apaixonada pelo Davo. Ela estremeceu e pestanejou. Tremeram-lhe os lábios.

 

Diana, por favor, não chores mais. Já tens os olhos suficientemente vermelhos. Mas, seja qual for a ideia que tens em mente relativamente ao Davo, põe-na de parte.

 

Mas o Davo e eu...

 

É impossível, Diana!

 

Mas por quê? A mãe foi escrava. Tu casaste-te com ela, não casaste? E foi por ela estar grávida de mim, não foi? Meto foi escravo, quando era miúdo, e Eco não era muito melhor, era um garoto das ruas, mas tu adoptaste-o. Por que razão há-de ser diferente...

 

Diana, não!

 

As lágrimas começaram a correr abundantemente.

 

Oh, tu não és melhor do que ela. São ambos uns hipócritas. Muito bem, eu não sou uma Virgem Vestal! Não me podem enterrar viva pelo simples facto de amar um homem! Não tenho vergonha de estar grávida dele!

 

Por que não falas um bocadinho mais alto, para poderem ouvir-te em casa de Cícero? Agora, calculo que vás sair da sala a correr.

 

Não. Para quê? Tanto faz estar aqui como noutro sítio qualquer. Sinto-me infeliz! Tu és um homem, não podes saber como eu me sinto infeliz. Quem me dera morrer, se não fosse o bebé...

 

Lá se ia a minha disposição optimista.

 

Diana, voltaremos a falar disto quando eu voltar.

 

Onde vais?

 

O dia ainda agora começou. Tenho uma tarefa a cumprir, na Via Ápia. Quanto mais não seja, será uma desculpa para passar mais uma noite longe desta casa.

 

Diana voltou para o seu quarto. Eu saí para o jardim, evitei o olhar acusador de Minerva e trepei ao telhado. Encontrei Davo na parte da frente da casa, sentado com os braços à volta dos joelhos. Quando me ouviu, apanhou um susto tal, que eu pensei que fosse cair à rua.

 

Por Hércules, Belbo, tem cuidado!

 

Davo, resmungou ele, recuperando rapidamente o equilíbrio e pondo-se de pé.

 

O quê?

 

Sou o Davo, senhor, não sou o Belbo.

 

Oh. Claro. Que disparate o meu. Belbo tinha o bom senso de ter cuidado quando estava em cima de um telhado. E nunca abusou de um membro da minha família.

 

Oh, senhor! Davo caiu de joelhos. Aqueles que se encontravam no compartimento por baixo daquele ponto do telhado devem ter-se encolhido com o embate. Ele inclinou a cabeça e juntou as mãos. Tem piedade de mim! Não me tortures, senhor mata-me já, se é isso que queres fazer. A tortura é muito pior para tipos grandes e fortes como eu. Qualquer escravo sabe disso. Os pequenos e débeis são torturados durante algum tempo, e depois morrem. Mas, com um homem como eu, a coisa pode durar dias e dias. Não tenho medo de morrer, senhor, mas suplico-te...

 

E como preferes ser executado, Davo? Ele empalideceu e engoliu em seco.

 

Corta-me a cabeça, senhor.

 

Não foi essa a parte do teu corpo que me ofendeu.

 

Ele estremeceu e ergueu para mim uns olhos muito abertos.

 

Não me castres, senhor! Não suportaria ser eunuco! Oh, tem piedade de mim!

 

Pára com isso, Davo! Pára já com isso. O que vou eu fazer contigo? Achas realmente que pensaria em te mandar matar?

 

Que outra esperança posso eu ter, senhor? É o melhor castigo que posso esperar.

 

Nesse caso, o que fazes aqui?

 

Senhor?

 

Por que continuas aqui, à espera do teu destino? Por que não saltaste do telhado, e não fugiste? Não terias grandes possibilidades de escapar, mas sempre seria melhor do que a morte. Escapavas-te num barco que partisse de Ostia. Exilavas-te, como Milo. Por que não fugiste a noite passada?

 

Porque...

 

Sim?

 

Por causa da...

 

De quê, Davo? O que te manteve aqui, a aguardar o castigo?

 

Senhor, tens de me obrigar a dizê-lo? Foi por causa dela. De Diana. Não me posso ir embora enquanto ela aqui estiver. Para onde iria? Para quê? Sem ela, morria.

 

Oh, Davo! Abanei a cabeça. Minerva estava desfeita em pedaços em minha casa, e Vénus reinava como deusa suprema.

 

Tomámos a Via Ápia à sexta hora do dia, ia o Sol a pique. O guarda do estábulo de Pompeu acedeu a emprestar-me dois cavalos, depois de eu lhe ter recordado quem era e lhe ter dito que ainda tinha umas coisas a resolver por incumbência do seu senhor. Tratava-se de uma mentirinha inofensiva, uma vez que as minhas relações com Pompeu tinham terminado. Pelo menos era o que eu pensava na altura.

 

Com um grande sorriso, o guarda do estábulo trouxe-nos três cavalos. Fiquei espantado ao ver que eram os mesmos que tínhamos usado na vez anterior. Acontece que as três montadas tinham regressado ao estábulo, juntas e sem cavaleiros, no dia em que fomos atacados. Senti-me simultaneamente descansado e um tanto apreensivo ao partir de Roma escarranchado no mesmo animal que da vez anterior. Não sabia bem o que pensar deste presságio, mas estava decidido a avançar.

 

O objectivo da viagem era simples: ir buscar Mopso e Androcles, os dois rapazinhos dos estábulos que tinha adquirido a Fúlvia. Deixei Eco em Roma, e apenas levei Davo comigo. O terceiro cavalo era para trazer os rapazes de volta. Esperava que pudéssemos passar a noite na estalagem de Bovilas.

 

Davo ia tão calado como um mudo quando passámos pelo Monumento a Basílio. Levava o sobrolho franzido e estava cada vez mais agitado.

 

Senhor, senhor, tens a certeza...?

 

A certeza de quê, Davo?

 

Tens a certeza de que queres que eu vá contigo? Por que não levas um dos outros guarda-costas?

 

Estás com medo do cavalo, Davo? Agora, já não podes afirmar que não tens experiência de montar. É a segunda viagem que fazes no mesmo cavalo! É verdade que esse animal te deitou ao chão mas, quando um homem é atirado ao chão, a única coisa a fazer é voltar a montar.

 

Não se trata do cavalo, senhor. Na verdade, gosto desta égua. Acho que ela confia em mim.

 

Então esperemos que não lhe dês motivos para lamentar esse facto. Davo franziu o sobrolho.

 

Além disso prossegui eu, não podias propriamente ficar lá em casa na minha ausência, dadas as circunstâncias, pois não?

 

Quer dizer... por causa da tua filha...

 

Não, por causa da minha mulher. Não gostaria de voltar a casa e descobrir que Betesda te matara na minha ausência.

 

Davo engoliu com dificuldade.

 

Ainda assim, senhor, não percebo por que me levas contigo, só nós os dois.

 

Eu próprio também não percebo bem. A razão fugiu; entreguei-me aos impulsos. Veremos onde nos leva este caminho.

 

Mas, Mestre, isso já nós sabemos.

 

Sabemos?

 

Leva-nos ao alto do Monte Alba. Eu dei uma gargalhada.

 

És um rapaz mesmo esperto, Davo.

 

Davo também se riu, mas com pouca vontade. Teria sido por ter medo de mim, ou por não ter percebido a piada?

 

A Primavera na Via Ápia. A temperatura era suave, e ouviam-se pássaros no ar. A erva ao longo da estrada estava muito verde e juncada de flores. Nos campos, trabalhavam escravos e bois. O trânsito era intenso, em ambas as direcções carneiros e vacas a serem transportados para o mercado, mensageiros a cavalo, as liteiras e carruagens dos ricos. O mundo parecia ter acordado do sonho frio do Inverno.

 

Eu estava com fome quando passámos por Bovilas, mas decidi seguir até à villa de Clódio. Quando passámos pelo altar de Júpiter, vi Félix sentado contra um carvalho, a dormitar na sombra pintalgada. Passámos pela estrada que ia dar à Casa das Vestais, e mais adiante, do outro lado da estrada, pelo santuário da Boa Deusa. Parecia haver uma reunião de mulheres no seu interior, a avaliar pelas liteiras, as carruagens e os acompanhantes ociosos que se viam cá fora. Quando passámos, ouvi cantos vindos do interior, e reconheci a extravagante toada monótona de Felícia. Talvez não tivesse havido grandes mudanças no seu mundo, apesar da cena sangrenta que tivera lugar diante dos seus olhos e de toda a agitação que ela provocara.

 

Desta vez, aproximámo-nos da villa de Clódio pela estrada que conduzia ao local, e fomos vistos e interceptados muito antes de chegarmos lá acima. Quando um grupo de escravos de aspecto muito grosseiro nos barrou a passagem, eu apresentei o documento escrito por Fúlvia, com a transferência de propriedade dos dois rapazitos. Felizmente, um dos escravos sabia ler, ainda que mal. Soletrou lentamente cada palavra, e depois devolveu-me o quadrado de pergaminho.

 

Que alívio, digo eu! Aqueles dois só causam problemas. Estão sempre a querer ser mais do que são. Vais levá-los para a cidade, não?

 

É essa a minha intenção. Ele abanou a cabeça.

 

Aí, nunca mais acabam de se meter em sarilhos. Bem, anda daí. Calculo que estejam no estábulo.

 

Os rapazes recordaram-se imediatamente de nós. Pareciam especialmente encantados por ver Davo (ou o elefante, como lhe chamou Mopso). Quando lhes disse que já não pertenciam à sua senhora, começaram por olhar para mim espantados, mas não tardaram a montar o terceiro cavalo. Ao partirmos, pareceram aperceber-se subitamente de que era para sempre. Mopso voltou-se e meteu a unha do polegar por baixo dos dentes da frente, emitindo um ruído seco na direcção dos escravos mais velhos que ficavam para trás.

 

Adeus, seus bêbedos sem préstimo! O irmãozinho imitou-o, e os insultos degeneraram em referências a diversas funções corporais. Os escravos que ficaram na estrada a observar a partida fingiram-se ofendidos e simularam andar à procura de pedras para lhes atirar. Alguns riram-se a bom rir.

 

Como é que eu tinha descrito a Betesda as novas aquisições? "Dois rapazes bem-dispostos e muito espertos. Vão trazer uma vida nova a esta casa." Isso foi antes de saber que já estava a caminho uma vida nova, graças a Diana e a Davo. E eu tinha presumido que a mulher que domesticara os guardas de Pompeu não teria dificuldade em controlar dois rapazes. Agora, começava a não estar assim tão certo.

 

Davo pareceu finalmente descontrair-se um pouco. Percebi que ele se sentia mais seguro na companhia de Mopso e Androcles; com certeza que eu não tentaria assassiná-lo diante de dois alegres rapazinhos.

 

A tarde chegava ao fim quando regressámos a Bovilas. Eu nada mais queria do que saborear os excelentes cozinhados da dona da estalagem, e dispor de um sítio razoavelmente limpo onde pudesse dormir. Deitar-nos-íamos cedo, para estarmos prontos para partir antes do amanhecer.

 

A princípio, pensei que a estalajadeira tivesse perdido peso e mudado de penteado, mas depois apercebi-me de que a mulher que estava por trás do balcão não era a mesma. Tinha os mesmos olhos, mas era mais magra e mais bonita, ou teria sido, se não fosse aquela expressão cansada. Disse-lhe que precisávamos de acomodações para passar a noite.

 

Vieram cedo disse ela, fazendo um sorriso triste. São os primeiros. Por isso, podem escolher.

 

Há muito por onde escolher?

 

Nem por isso. Só temos um compartimento, mas algumas pessoas preferem dormir encostadas à parede, em vez de ficarem no meio, ou mais perto das escadas ou da janela. Venham cá acima, vou-vos mostrar o local. Depois, podem trazer as vossas coisas para marcar os lugares.

 

Eu segui-a escada acima. O andar superior da estalagem era mais ou menos como eu esperava um único compartimento, com umas janelinhas e umas enxergas.

 

Serve perfeitamente disse eu. Davo, leva os rapazes e vê se os cavalos ficam bem cuidados no estábulo.

 

Sim, senhor. Ele desceu pesadamente as escadas. Mopso e Androcles passaram por ele e voaram pelos degraus abaixo, como se estivessem a fazer uma corrida.

 

A mulher aproximou-se da parte superior das escadas e sorriu com um ar melancólico, a observá-los.

 

Eu também tenho um rapazinho disse ela. Mas ainda é bebé. Bem, se estás satisfeito, eu vou...

 

Deve ter sido desta janela que observaste o que se passou disse eu, aproximando-me das portadas abertas e olhando para fora.

 

O quê?

 

Depois de a batalha ter terminado e te teres atrevido a sair de baixo da roupa de cama. A tua irmã disse-me que te aproximaste da janela e viste que já se tinham ido todos embora, à excepção de Sexto Tédio, que devia ter acabado de chegar. Espreitei pela janela, imaginando a cena: corpos mortos e poças de sangue por toda a parte, a liteira e os seus acompanhantes, Sexto Tédio e a filha descobrindo o corpo de Clódio.

 

Quem és tu? Havia um tremor na sua voz.

 

Chamo-me Gordiano. Estive cá em Februarius, pois fora encarregue de uma missão pela viúva Fúlvia. Conversei com a tua irmã. Ela relatou-me o que tu lhe tinhas contado, acerca da batalha entre Milo e Clódio. Tu és a viúva do estalajadeiro, não és?

 

Ela descontraiu-se um pouco.

 

Sou. A minha irmã falou-me de ti. E do teu jovem e belo guarda-costas devia ser aquele que estava contigo agora mesmo.

 

Eu sorri.

 

Sim, lembro-me de que ela gostou de Davo. Parece que não é a única...

 

O quê?

 

Deixa lá. Diz-me uma coisa, foste mesmo até Régio, passar uns dias com uma tia?

 

A mulher olhou para mim cautelosamente.

 

Não. Mas decidimos dizer isso às pessoas.

 

Quer dizer que a tua irmã não foi completamente sincera quando eu lhe perguntei se podia falar contigo.

 

Eu andei desnorteada durante muito tempo. A minha irmã queria proteger-me. Se ela te disse que não podias ver-me, estava a dizer a verdade.

 

Tinha uma grande vontade de te perguntar o que foi que viste naquela tarde.

 

Tu e vários outros. A minha irmã manteve-os a todos à distância. Ela não teve medo de testemunhar em tribunal. Dizia que alguém tinha de se apresentar. Mas protegeu-me.

 

E agora o julgamento terminou, e tu voltaste. Regressaste de Régio, por assim dizer.

 

Sim. Regressei de Régio. Lançou-me um débil sorriso agradável estar de volta, estar de novo a trabalhar. Sempre gostei disto De trabalhar com Marco...

 

Aquilo que viste naquele dia... Ela abanou a cabeça.

 

Ainda não consigo falar sobre isso.

 

Sobre nada?

 

Ela apertou o corrimão da escada e inspirou várias vezes.

 

Nunca falo sobre isso. Só contei à minha irmã o que se passou uma vez, logo a seguir aos acontecimentos. Depois, nenhuma de nós conseguiu voltar a falar sobre o assunto.

 

Compreendo. A avaliação da irmã fora correcta; a mulher teria sido inútil em tribunal, como testemunha. Era difícil imaginá-la a testemunhar no ambiente acalorado que conseguira prender a língua do próprio Cícero.

 

Ela olhou para as escadas.

 

Mesmo agora, sempre que desço estas escadas, penso que vou encontrá-lo, como o encontrei naquele dia...

 

Ao teu marido?

 

Sim! Coberto de sangue e ainda...

 

Precisas que eu te ajude a descer as escadas?

 

Talvez. Mas espera um bocadinho. Prefiro não me mexer.

 

Queres que vá chamar a tua irmã, ou o marido?

 

Não! Eles já devem estar fartos de mim, mas não estão tão fartos de mim como eu deles disse ela, com súbita veemência. A maneira como se mudaram para cá e tomaram conta da estalagem tudo por causa do meu rapazinho, dizem eles, estão a guardá-la para ele. Mas agem como se fosse deles. Como se Marco nunca tivesse existido. Nem sequer pronunciam o nome dele, com receio de me perturbar. Oh, se ao menos as coisas pudessem voltar a ser como dantes! Malditos sejam Milo e Clódio! Malditos sejam os deuses!

 

Pensei que ela ia começar a chorar, mas os seus olhos permaneceram secos. Endireitou-se e inspirou profundamente.

 

O que era que querias saber? Eu franzi a testa.

 

Consegues falar sobre aquele dia ou não?

 

Pergunta o que quiseres, e logo verás.

 

Eu olhei pela janela. Na estrada, Davo e os rapazes tinham acabado de instalar os cavalos no estábulo e estavam a jogar uma espécie de jogo com uma bola de couro, os três a rir como crianças. Que género de pai daria Davo?

 

Voltei a olhar para a viúva. O que poderia eu perguntar-lhe? Parecia-me que os pormenores em falta já tinham sido todos fornecidos. Os acontecimentos daquele dia haviam sido revelados, um por um, e colocados na ordem devida. O incidente da Via Ápia fora completamente documentado, e tinha-se feito justiça. O testemunho dela acabara por não ser necessário. No entanto...

 

O que foi que viste desta janela, depois da batalha? Ela baixou os olhos.

 

Corpos. Sangue. O senador e a filha e a comitiva de ambos. A liteira do senador.

 

Eudamo e Birria? Os homens de Milo?

 

Não. Esses tinham desaparecido todos. Não sei para onde.

 

Andavam a perseguir um sujeito chamado Filémon e uns amigos dele, que tinham tido o azar de dar de caras com a cena.

 

Oh? Nunca tinha ouvido falar nisso.

 

A tua irmã não te contou? Filémon testemunhou, no mesmo dia que ela.

 

A viúva abanou a cabeça.

 

Deve ter tido receio de me perturbar. Continua. Que mais queres saber? Estava com uma expressão severa e determinada.

 

Olhaste por esta janela. Viste Tédio e a filha, a liteira e a comitiva. E Clódio?

 

Sim. Estavam inclinados sobre ele.

 

E percebeste que era Clódio?

 

Percebi.

 

Como?

 

Ela encolheu os ombros.

 

Pela cara dele.

 

Vias-lhe a cara? Quer dizer que ele estava deitado de costas.

 

Estava. De costas, a olhar para eles.

 

Tive um arrepio na nuca.

 

O que foi que disseste?

 

Clódio estava deitado de costas, a olhar para o senador e para a filha.

 

Quer dizer que, apesar de morto, tinha os olhos abertos?

 

Não. Quero dizer o que disse. Ele estava a olhar para eles e eles estavam a olhar para ele. Franziu o sobrolho, tentando recordar-se.

 

Falaram um bocadinho, um e outros. Depois Tédio e a filha ajudaram Clódio a pôr-se de pé e a meter-se na liteira.

 

Eu olhei para a estrada, imaginando a cena, depois voltei-me para a viúva. Era possível que o sofrimento a tivesse enlouquecido, claro.

 

Estás a dizer-me que Clódio estava vivo?

 

Sim. Mas bastante mal, suponho eu.

 

Mas a tua irmã deu a entender que Clódio estava morto quando Tédio o encontrou. Foi assim que ela contou a história, tanto a mim como ao tribunal. Disse que tu tinhas visto o senador e a filha meterem Clódio na liteira, mas nada referiu que indicasse que Clódio ainda estava vivo.

 

Tentei recordar-me exactamente do que ela tinha dito.

 

Ele estava vivo disse a viúva. Provavelmente, ela compreendeu-me mal. Eu estava a delirar quando lhe contei o que tinha acontecido, o que tinha visto. Nem sabia bem o que estava a dizer. Talvez não tivesse ficado claro, pela maneira como lhe contei.

 

Talvez. Tu e a tua irmã parecem estar com algumas dificuldades de comunicação. Mas Sexto Tédio contou a história da mesma maneira. Não fez qualquer menção ao facto de Clódio ainda estar vivo quando ele o encontrou.

 

Mas Clódio estava vivo. Coxeava, tinha dificuldade em se mexer e estava coberto de sangue, e eles tiveram de o ajudar a entrar na liteira mas estava vivo, garanto-te, a não ser que os mortos possam andar e falar. Ele ainda estava vivo! E o meu marido estava morto, deitado ao fundo destas escadas. Por que estás a fazer-me isto? Subitamente, voltou-se e desceu as escadas a correr, chorando finalmente.

 

Eu olhei pela janela, fixando intensamente a estrada vazia, como se pelo simples poder da concentração pudesse conjurar os lémures dos mortos, e reconstituir os momentos finais das suas vidas. Oh, que grande, que terrível poder seria esse!

 

Começava a escurecer quando chegámos a casa de Sexto Tédio. Eu estava cheio de fome e muito cansado de andar a cavalo. Disse aos rapazes que ficassem a vigiar os cavalos, e mandei Davo à frente, bater à porta.

 

O porteiro demorou muito tempo a responder, e ainda mais a conferenciar com o seu senhor e a regressar. Finalmente, fui convidado a entrar.

 

Sexto Tédio recebeu-me na mesma sala da vez anterior. As janelas estavam abertas, e avistava-se em baixo a cidade de Arícia, uma poça de sombras azul-pálido coroadas de telhados que brilhavam sob as últimas résteas de sol. Tédio estava sentado muito direito na sua antiquada cadeira sem costas. Apesar de o dia estar quente, tinha uma manta a tapar-lhe as pernas. Eu lembrava-me de que era a esquerda que estava aleijada. Ele passou uma mão escura e calejada pelo cabelo branco e avaliou-me atentamente.

 

Lembro-me de ti disse ele. És o homem de Pompeu. Aquele que cá veio fazer-me uma série de perguntas.

 

Aparentemente, não fiz tantas como devia.

 

Voltaste "em nome do Grande", como julgo que disseste da primeira vez?

 

De certa maneira, sim. Pompeu contratou-me para descobrir tudo o que pudesse sobre o incidente da Via Ápia. Eu pensei que assim tinha feito, mas parece que me enganei.

 

Fala com clareza.

 

Tenciono fazê-lo. E espero que tu faças a mesma coisa, Sexto Tédio. Ele ergueu uma sobrancelha ao ouvir isto, mas nada disse. A tua filha está cá? perguntei.

 

Não consigo perceber como é que o paradeiro da minha filha pode dizer-te respeito.

 

Ainda assim, gostaria muito de falar com ambos ao mesmo tempo. Ele baixou as suas brancas sobrancelhas e estudou-me por momentos.

 

Sabes qualquer coisa, não sabes?

 

Sei mais do que sabia há uma hora. Gostaria de saber tudo.

 

Ah, saber tudo! Que maldição seria para um mortal. Tédia! Ergueu a voz. Tédia, entra, vem juntar-te a nós.

 

A filha emergiu do corredor. Vinha vestida como da vez anterior, sem jóias nem maquilhagem e com um manto de linho branco na cabeça, preso atrás com uma fita azul. Deixou-se estar de pé, muito rígida e com uma expressão severa.

 

Tédia costuma ouvir as minhas conversas disse Sexto Tédio.

 

Facilita-me muito a tarefa de me recordar de todos os pormenores mais tarde.

 

O meu pai e eu não temos segredos um para o outro. Colocou-se por trás dele e poisou-lhe as mãos nos ombros.

 

Vi o teu pai testemunhar em tribunal, repetindo a mesma história que me tinha contado. Pensei que estavas decidida a impedir que ele fosse a tribunal, Tédia.

 

Acabou por parecer preferível que ele comparecesse disse ela.

 

Afinal, Clódio foi mandado para Roma na nossa liteira. Termo-nos recusado a explicar como isso tinha acontecido podia ter suscitado... comentários.

 

Estou a ver. E afinal, a história que tu contaste, Tédio, era totalmente credível. Limitaste-te a omitir determinados pormenores, como o facto de Clódio estar vivo quando chegaram junto dele.

 

Como é que sabes? disse Tédia. Começou a apertar o ombro de Tédio, da mesma maneira que torcera nervosamente as mãos no nosso primeiro encontro. Se algum dos nossos escravos falou...

 

Os vossos escravos são leais. Houve outra testemunha.

 

Mas não em tribunal.

 

Não, a testemunha estava longe de Roma, nesse dia em Régio, ao que me disseram.

 

Sexto Tédio estremeceu, quase imperceptivelmente. A filha tinha-lhe apertado o ombro com demasiada força.

 

Clódio merecia morrer disse ela.

 

Talvez. Mas eu vi-te chorar quando Fúlvia testemunhou.

 

Uma mulher pode sentir piedade por uma viúva sem lamentar que o marido tenha morrido.

 

Estou a ver. E como foi exactamente que Clódio morreu? Sustive a respiração. Não tinha maneira de a obrigar a falar, se ela decidisse não o fazer. O pai estendeu o braço e apertou-lhe uma das mãos, num gesto destinado a contê-la, mas ela pareceu não reparar. O seu rosto estava inflexível.

 

Fui eu que o matei.

 

Mas como? Por quê?

 

Por quê? A sua voz elevou-se. Porque nunca a terra foi manchada por homem mais ímpio. Deves ter ouvido falar dos seus crimes quando andaste a importunar toda a gente nesta montanha. Derrubou o bosque sagrado de Júpiter, com o simples propósito de acrescentar mais uns quartos à sua casa. Imagina, expulsar um deus para arranjar espaço para si! E o que ele fez às Vestais foi inqualificável, expulsou-as da sua antiga casa, defraudou-as, tratou-as como simples rivais comerciais, a quem podia enganar e lançar na lama. Terá achado que podia cometer semelhantes crimes sem ser castigado? -

 

Públio Clódio cometia muitos crimes há muitos anos sem ser castigado disse eu.

 

Razão mais do que suficiente para ter chegado a sua hora respondeu ela severamente.

 

Ainda estava vivo quando vocês o encontrarm, na estalagem...

 

Perfeitamente vivo.

 

Mas quase morto, certamente.

 

Como é que sabes? Estavas lá? Eu digo-te como foi...

 

Filha! Sexto Tédio franziu o sobrolho e abanou a cabeça.

 

Pai, nada tenho de que me envergonhar, e nada tenho a temer. Tudo começou como o meu pai te disse íamos a caminho de Roma, encontrámos Milo na sequência da escaramuça, ele mentiu e disse-nos que havia por ali bandidos. Eu tive medo e quis voltar para casa, mas o meu pai insistiu em que prosseguíssemos, e assim fizemos. Era a deusa Vesta quem nos guiava nesse dia, não tenho qualquer dúvida sobre isso. Chegámos à estalagem de Bovilas e vimos a carnificina. Pensei que desmaiava de susto, tal o pavor e o frio que senti dentro de mim. Agora sei que era apenas a deusa a animar-me, a preparar-me para a tarefa que se seguiria.

 

Havia corpos espalhados na estrada, sangue por toda a parte. Era estranho, chegar a um sítio que se viu toda a vida e por onde normalmente se passa sem reparar um sítio tão comum, familiar e vulgar e testemunhar semelhante horror e devastação. Todas as coisas pareciam irreais, como se eu estivesse a delirar de febre. Ajudei o meu pai a sair da liteira e andámos por entre os corpos. Não havia ninguém que pudéssemos ajudar; estavam todos mortos.

 

Depois, ouvimos uma voz no interior da taberna, um pedido de ajuda, débil e longínquo. Clódio apareceu à porta. Tinha as roupas rasgadas. Estava ferido. Apertava um trapo ensopado em sangue contra o ombro. Falava por entre os dentes cerrados. "Ajudem-me", disse ele.

 

Todos os outros tinham morrido a defendê-lo, compreendes? disse Sexto Tédio. Os seus homens eram-lhe leais, ninguém pode negá-lo.

 

Ele saiu da taberna a cambalear prosseguiu Tédia. Tropeçou e caiu de joelhos, depois deitou-se de costas, gemendo e evitando que o ombro tocasse no chão. Parecia sentir-se confortável naquela posição, deitado de costas. Inclinámo-nos sobre ele. A sua voz estava rouca e fatigada, pouco mais era do que um sussurro. "Levem-me para casa", disse ele. "Não me levem para a villa eles vão procurar-me lá. Levem-me para Roma na vossa liteira. Escondam-me deles!" "Dos bandidos?" perguntou o meu pai. Clódio riu-se! Um riso sibilante e odioso tinha uns dentes brancos perfeitos! "Os únicos bandidos presentes nesta estrada são os gladiadores de Milo", disse ele. "Perseguiram-me e tentaram matar-me, mas houve qualquer coisa que os assustou e eles fugiram. Depressa, escondam-me na vossa liteira!" Por isso, ajudámo-lo a pôr-se de pé e depois a meter-se na liteira. Percebi que o meu pai estava hesitante quanto ao que fazer a seguir. Chamei-o à parte, para que os escravos não pudessem ouvir-nos.

 

Tédio resmungou.

 

Eu tinha-o mandado para a villa, quer ele quisesse, quer não, mas Milo estava na estrada. E eu não tinha qualquer intenção de tentar passar despercebidamente por Milo, fazendo o papel de espião ao serviço daquele chacal do Clódio. Nem desejava entregar Clódio àquele mentiroso do Milo. Talvez que, se o tivéssemos deixado ali, ele se tivesse simplesmente esvaído em sangue, e morrido, ou então os homens de Milo regressavam e acabavam com ele. Mas estava dentro da nossa liteira, a ensopar as almofadas de sangue...

 

Fui eu que tomei a decisão disse Tédia. A sua voz parecia um ferro frio. Foi uma coisa súbita. Ergui os olhos para a estalagem, e vi-a à janela do andar superior. O rosto dela parecia estar suspenso, como um retrato numa moldura. Vi o rosto de Vesta e soube o que devia fazer.

 

Eu abanei a cabeça.

 

O rosto que tu viste foi o da pobre e aterrorizada viúva do estalajadeiro.

 

Tédia olhou para mim cheia de desprezo.

 

Como é que tu sabes o que eu vi? Estavas lá? Não vi razões para contradizê-la.

 

Como foi que o mataste?

 

Ela tirou as mãos dos ombros do pai e ergueu os braços para desatar a fita azul que segurava o manto branco na parte de trás da cabeça. Enrolou as extremidades da fita à volta das mãos fortes e flexíveis e esticou-a.

 

Matei-o com isto. Gostaria que a deusa tivesse assistido, mas tive de o fazer dentro da liteira, para ninguém ver. Estavam lá os escravos; eles não tinham nada que assistir. Trepei para dentro da liteira e pus-me por trás dele. O pai subiu atrás de mim e deixámos cair as cortinas. Eu passei-lhe a fita pelo pescoço. O pai segurou-o.

 

Nunca teríamos conseguido se ele não estivesse já muito ferido disse Tédio com grande naturalidade. Olha para nós um velho aleijado e uma mulher. Mas conseguimos.

 

Eu vi o corpo disse eu. A ferida no ombro era profunda. De qualquer maneira, o mais provável era que tivesse morrido.

 

Não estou assim tão certo disse Tédio. Tenho assistido a muitas batalhas, e vi muitos soldados que pareciam estar em piores condições do que Clódio, e que apesar disso recuperaram. Ainda havia uma surpreendente quantidade de vida naquele chacal. Posso dizê-lo, porque assisti ao momento em que ela o abandonou. Se não lhe tivesse acontecido mais nada, é natural que tivesse sobrevivido à viagem de regresso a Roma. E ainda estaria vivo.

 

Quer dizer que reclamas a autoria da sua morte. Pareces orgulhoso do facto.

 

Estou orgulhoso da minha filha, sim! Também tens um filho, não tens, Gordiano? Eu lembro-me de que ele estava contigo da última vez que por cá passaste. Pois bem, eu sou como os outros homens gostaria de ter tido um filho, de tê-lo visto crescer, de o ver provar a sua coragem no campo de batalha, e mostrar as suas convicções no Fórum. Mas não tive filhos. Só tive uma filha. Mas esta filha sempre me foi fiel, nunca me desiludiu e, quando a mãe morreu, dispôs-se a tomar o seu lugar. Nenhum homem poderia querer melhor filha. E agora vê o que ela fez! Realizou aquilo que nenhum homem conseguira, quer no campo de batalha, quer através da lei: pôs fim a Públio Clódio. Um inimigo do Estado, uma ameaça à decência, uma praga para a República, uma vergonha para os seus antepassados. E foi a minha filha quem finalmente deu cabo dele! Os deuses e as deusas manifestam as suas vontades de formas misteriosas, Gordiano. Estavam fartos de Públio Clódio e destruíram-no. Quem sou eu, um senador velho e coxo, para questionar o instrumento que eles escolheram?

 

Eu estudei-os ambos, tão severamente satisfeitos consigo próprios, modelos da austera virtude romana.

 

Nesse caso, por que não atiraram o seu corpo da liteira, e o deixaram à beira da estrada? Por que razão o enviaram para Roma?

 

A liteira estava poluída pelo seu sangue e pela sua carne putrefacta

 

disse Tédia. Eu não conseguiria voltar a entrar nela.

 

Foi o último pedido que ele nos fez, que o enviássemos para casa

 

disse o pai. Como já te disse, morto um homem, de que vale desprezá-lo? Não, não podia deixá-lo ali na estrada, como um cão morto. Mandei o seu corpo para Roma e disse aos carregadores que o entregassem com o maior respeito ao cuidado da viúva.

 

O anel disse eu, recordando-me. O corpo chegou sem o anel. Foram vocês que lho tiraram?

 

Tédia baixou os olhos.

 

Isso foi um erro. Pensei que agradaria à deusa.

 

Foste tu a mulher que foi à Casa das Vestais oferecer o anel de Clódio como prece de acção de graças?

 

Fui.

 

Subitamente, compreendi o estranho olhar que tinha detectado no rosto de Filémon, na Taberna Salaz. Eu tinha-lhe perguntado por que razão não pedira auxílio à filha de Tédio quando estava a ser conduzido pela Via Ápia, já preso, e passara em frente à Casa das Vestais, o local onde Tédio estava a descansar. Aquilo que eu tomara por ofensa era simples espanto. Filémon não chegara a ver Tédia, porque nessa altura Tédia estava na Casa das Vestais.

 

Escondeste o rosto da Virgo Máxima disse eu. Disfarçaste a voz.

 

Sim. De outra maneira, as Vestais ter-me-iam reconhecido.

 

Não estavas orgulhosa do que tinhas feito?

 

Mas não vi necessidade de me gabar, nem de mostrar a cara. Eu fora apenas um instrumento da deusa, e era à deusa que desejava oferecer o anel. Mas a Virgo Máxima recusou-se a aceitá-lo. Disse-me que a oferta seria impiedosa.

 

Eu abanei a cabeça.

 

Toda a gente pensa que foi a mulher de Milo que... Tédia riu-se. Percebi que não estava habituada a rir-se.

 

Fausta Cornélia? Essa vaca blasfema? Não é fácil imaginá-la a fazer uma prece seja pelo que for, a não ser talvez para que os deuses lhe tragam um amante novo todos os dias. Que grande anedota, que alguém me tenha confundido com ela.

 

Onde está o anel?

 

Por que perguntas?

 

Porque gostaria de o devolver à família. Admites que foi um erro ficar com ele. A deusa não o quer para nada. Guardá-lo como troféu seria com certeza uma manifestação de hubrís, uma maldição para a tua casa.

 

Tédia considerou o que eu acabava de dizer e parecia prestes a falar, mas o pai abanou a cabeça.

 

O anel é a única prova real contra nós. Aquilo que te contámos é apenas uma história. A tua testemunha da taberna calculo que seja a rapariga que estava à janela apercebeu-se de que Clódio ainda estava vivo, mas não pode ter visto o que se passou no interior da liteira. Ninguém assistiu ao momento da sua morte, para além da minha filha e de mim. As Vestais sabem que uma mulher foi levar-lhes o anel de Clódio, mas não chegaram a ver a cara da mulher. Só o facto de termos o anel em nosso poder pode constituir uma prova daquilo que fizemos. Por que motivo havemos de to entregar, Gordiano? O que vais dizer à família de Clódio, que recuperaste o anel aos verdadeiros assassinos do seu ente querido, uma mulher e um velho coxo? Teremos de sofrer a sua vingança?

 

O que hei-de dizer-lhes, que o encontrei por acaso à beira da estrada? Pensa, Tédia, nas lágrimas que derramaste quando ouviste o testemunho de Fúlvia. Queres mesmo guardar o anel?

 

Ela suspirou e começou a mover-se, mas o pai agarrou-lhe no braço.

 

Só se fizeres um juramento, Gordiano disse Tédio.

 

Não faço promessa nenhuma!

 

Tens de fazer, se quiseres o anel. Jura que nunca repetirás o que ouviste aqui hoje e em troca nós entregamos-to. Pensa, Gordiano, de que serviria incitar os Clodianos contra a nós? A ralé foi finalmente acalmada com a condenação de Milo; vais apenas mostrar-lhes que fizeram figura de parvos, e suscitar novos tumultos. Pensa como Pompeu ficará irritado ao verificar que o seu tribunal não conseguiu descobrir toda a verdade e que a condenação de Milo é imperfeita! Roma tem sido devastada em consequência do que se passou aqui na Via Ápia. Mas agora, as pessoas foram pacificadas e os maus de ambos os lados foram castigados Clódio morreu e Milo foi exilado. Que objectivo poderá servir a produção de uma revelação final, excepto como massagem à tua vaidade, como exibição da tua perseverança e esperteza? Faz o juramento que te pedi; devolve o anel a quem mais tiver amado Clódio, e deixa o resto ao cuidado dos deuses.

 

Eu avancei em direcção à janela. Em baixo, a cidade de Arícia, onde Clódio pronunciara o seu último discurso, transformara-se num amontoado de sombras azuis-escuras. Pensei durante muito tempo. O que devia eu a Milo, que tinha cometido uma ofensa tão gravosa contra mim, e me teria morto sem mais se Cícero o não tivesse impedido? O que devia eu a Cícero, que aquiescera no meu rapto? Ou aos amigos e herdeiros de Clódio, que tinham instigado os tumultos que tinham resultado no saque de minha casa e na morte de Belbo? O que devia eu a Roma pois quem podia dizer o que era Roma, ou o que seria dentro de poucos anos? Tudo estava em fluxo constante, tudo era caos e confusão. Vi-me confrontado com aquilo por que mais ansiava, a verdade, mas também percebi que estava completamente sozinho; nem sequer tinha Eco ao meu lado, para partilhar com ele a descoberta, ou receber os seus conselhos. Ainda bem; duvidava de que ele tivesse dado a sua aprovação à decisão que tomei. Voltei-me para Sexto Tédio

 

Tens a minha palavra; juro pela sombra do meu pai que guardarei o teu segredo. Vai buscar o anel.

 

Tédia saiu da sala. Entrou um escravo com um pavio aceso e acendeu as lamparinas, tornando mais visível a escuridão crescente. Tédia regressou e deixou cair o anel na palma da minha mão aberta, parecendo satisfeita por se livrar dele.

 

Era pesado, feito de ouro puro. Vi que tinha gravado o nome P. CLóDio PULCHER, mas fiquei admirado por não descobrir outro ornamento. Não era natural que houvesse alguma referência às glórias dos seus ilustres antepassados? Depois aproximei-o da luz e detectei o desenho em favo de mel traçado na superfície brilhante do metal, no interior e no exterior, pequenos polígonos contínuos que eram como as pedras da Via Ápia, ajustadas de forma perfeita. O anel era a própria imagem da grandiosa estrada, um círculo sem princípio nem fim, uma homenagem ao local onde o homem que o usava tombara às mãos dos seus inimigos e respirara pela última vez com uma fita azul fortemente apertada à volta do seu pescoço.

 

Nessa noite, dormimos numa estalagem em Arícia. A taberna do andar de baixo era ruidosa e cheia de fumo e as acomodações tinham carraças, mas eu dormi melhor ali do que teria dormido em Bovilas, com todos os seus fantasmas, vivos e mortos.

 

Levantei-me antes de amanhecer, e acordei os rapazes. Tivemos de abanar Davo para conseguir acordá-lo. Estávamos na estrada antes da primeira hora, e progredimos rapidamente. Chegámos à cidade antes do meio-dia. Ainda me faltava fazer três visitas, mas depois podia virar definitivamente as costas a tudo aquilo que tinha acontecido na Via Ápia.

 

Mopso e Androcles começaram a ficar cada vez mais excitados à medida que íamos atravessando o Fórum e subindo a Rampa em direcção ao Palatino. Estavam ambos de olhos muito abertos com tantos edifícios e tanta gente. Davo assumiu um ar ligeiramente superior de escravo da cidade condescendente com os escravos do campo. Lembrei-me da consternação dele ao ver-se no campo pela primeira vez na sua vida, mas nada disse.

 

Foram ficando os três mais calados quando nos aproximámos de minha casa. Davo ficou muito sério. Os rapazes apertaram-se um contra o outro. Mal tínhamos entrado no átrio quando Betesda apareceu.

 

Então estes são os novos escravos disse ela, ignorando Davo.

 

Sim, este é Mopso, e este é o irmão dele, Androcles. Rapazes, esta é a vossa nova senhora.

 

Os rapazes baixaram a cabeça e olharam de esguelha para ela. Androcles murmurou ao ouvido do irmão:

 

É linda!

 

Os lábios de Betesda quase formaram um sorriso. Estava resplandecente, com uma estola cor de açafrão e um colar de prata muito simples, com o cabelo todo puxado para cima, de tal maneira que os fios cinzentos pareciam veios brancos atravessando um mármore preto brilhante. Eu sentia-me quase tão fascinado como os rapazes.

 

Parecem ambos ágeis e enérgicos disse ela, dando às palavras um tom mais de avaliação do que de elogio. Acho que vamos encontrar maneira de vos manter ocupados. Calculo que sejam competentes a levar mensagens, mas não conhecem a cidade. Farão muitas explorações nos próximos dias, para se familiarizarem com as sete colinas. Por agora, devem estar cheios de fome por causa da viagem. Davo mostra-vos onde é a cozinha, está bem, Davo?

 

Sim, senhora. Davo era o mais fascinado. Era espantoso como um sujeito tão grande parecia ocupar um espaço tão pequeno, e com que velocidade conseguiu sair da sala.

 

Betesda e eu ficámos sós.

 

Marido, estive a pensar muito durante o dia de ontem.

 

Eu também.

 

Tu e eu temos de ter uma conversa.

 

Não pode ser mais tarde? Ainda tenho umas coisas a fazer hoje, e depois...

 

Acho que pode. Mas hoje no final do dia, quero uma decisão sobre esta história de Diana e do teu... e de Davo.

 

Concordo. Falamos então esta noite?

 

Sim. Os nossos olhos encontraram-se, e pareceu-me que não teríamos de falar muito. Estávamos de acordo sobre o que se faria. Eu já vivia com ela há tempo suficiente para ser capaz de ler isso nos seus olhos.

 

Fiz uma refeição rápida de azeitonas, queijo e pão fresco, e voltei a sair. Levei Davo comigo, embora não me parecesse necessária grande protecção. As ruas pareciam quase preternaturalmente calmas, depois do furor dos últimos dias.

 

Tal como eu esperava, o Grande tinha-se mudado para a cidade, e residia em sua casa, no bairro de Carinas. Acedeu quase imediatamente a receber-me.

 

A casa de Carinas era uma villa grande e antiga, rodeada por outros edifícios, mais altos e mais recentes. Pertencia à família de Pompeu há várias gerações. Havia um cheiro a mofo por toda a casa, e a sala onde Pompeu concedia as audiências não tinha uma vista fabulosa, mas apenas um vislumbre de um pátio interior com uma fonte modesta. Estava cheia de troféus antigos, provenientes de diversas campanhas militares, uns trazidos por Pompeu do Oriente, outros adquiridos pelo seu pai, armas exóticas e pedaços de armaduras, estatuetas de deuses obscuros, fantoches partos das terras de fronteira e antigas máscaras de teatro da Grécia. Postados discretamente nos cantos e nas sombras estavam, como sempre, os soldados responsáveis pela sua segurança.

 

Pompeu estava sentado ao lado de uma mesinha cheia de rolos de pergaminho. Quando me viu chegar, poisou o documento que estava a ler.

 

Descobridor! Fiquei admirado quando o porteiro te anunciou. Não esperava voltar a ver-te.

 

E eu não esperava ser recebido tão depressa.

 

Vieste à única hora do dia em que não tenho nenhum compromisso. Ainda temos alguma coisa a resolver?

 

Vim pedir-te um favor, Grande.

 

Óptimo. Gosto que me peçam favores, quer os conceda, quer não. Dá-me a possibilidade de fazer honras ao meu nome. O que pretendes, Descobridor?

 

Soube que uma parte da penalização de Milo será a confiscação dos seus bens.

 

Não lhe serão confiscados todos os bens. Acho que podemos autorizá-lo a levar alguns escravos pessoais é o suficiente para começar uma nova vida em Massília. Primeiro, será necessário liquidar as propriedades, para pagar aos seus credores, que são uma legião. Depois disso, veremos o que sobra para o tesouro. Os bens serão cuidadosamente depurados antes de terminar a limpeza.

 

Gostaria de ser contado entre os seus credores.

 

Oh? Tenho dificuldade em imaginar que lhe tenhas emprestado dinheiro, Descobridor. Ou prestaste-lhe algum serviço que nunca foi remunerado?

 

Nenhuma dessas coisas. Tenho uma queixa contra Milo. Foi ele o responsável pelo meu rapto, e do meu filho, e por termos sido prisioneiros durante mais de um mês. Desde a última vez que falei contigo, consegui obter provas desse facto.

 

Estou a ver. De um ponto de vista prático, não tens qualquer hipótese de agir legalmente contra ele. O homem foi condenado e em breve partirá para sempre. Não estaria cá para responder em julgamento, se apresentasses queixa.

 

Bem sei, e foi por isso que vim ter contigo, Grande.

 

Percebo. E o que pretendes?

 

Desejo ser reconhecido pelo Estado como um dos credores de Milo. Quero uma compensação proveniente dos seus bens.

 

E qual é o preço para aquilo que tu e o teu filho sofreram às suas mãos?

 

Isso é algo que não pode ser avaliado. Mas contentar-me-ei com determinada quantia. E enunciei-a.

 

É uma soma bastante precisa comentou Pompeu. Como chegaste a ela?

 

Durante o período mais violento dos tumultos provocados pelos Clodianos, a minha casa foi saqueada. Uma estátua de Minerva que tinha no jardim foi deitada ao chão e ficou deteriorada. Esse é o preço da reparação.

 

Estou a ver. Será justo, pedir a Milo que pague o preço das deteriorações provocadas pelos seus inimigos?

 

Não será justo em sentido legal, concordo. Mas talvez eu possa parafrasear uma coisa que te ouvi dizer em certa ocasião, Grande.

 

E o que foi?

 

"Parem de citar as leis. Nós trazemos contas por saldar na mão." Pompeu achou muita graça a isto.

 

Gosto de ti, Descobridor. Em anos futuros, gostaria de te ter do meu lado.

 

Não compreendo, Grande.

 

Oh, eu acho que compreendes. Muito bem, vamos então tratar disto? Mandou chamar um secretário, que compôs um memorando em duplicado. Uma das cópias foi alisada e acrescentada a uma pilha de dimensões consideráveis que estava arrumada numa estante, encostada à parede. Pompeu assinou a outra. O secretário enrolou-a cuidadosamente e aplicou-lhe uns pingos de cera vermelha, onde Pompeu imprimiu o seu anel. Pronto, vai com isso a casa de Milo. E boa sorte. Tens à tua frente algumas pessoas bastante importantes. Por outro lado, é provável que a tua conta seja a mais pequena. Talvez te paguem primeiro, só para não pensarem mais nisso.

 

Obrigado, Grande.

 

Certamente. Ele sorriu, fez um gesto de despedida e afastou-se de mim. Momentos depois voltou-se, admirado com o facto de eu ainda estar ali. O que se passa agora, Descobridor?

 

Estou a viver um conflito, Grande. Entre um juramento que fiz e uma obrigação anterior que tinha para contigo.

 

Sim?

 

Agora que o julgamento de Milo terminou, tens algum interesse em descobrir o que aconteceu na Via Ápia?

 

Não percebo bem o que queres dizer.

 

Se eu te disser que os homens de Milo feriram Clódio grave, e talvez fatalmente, mas que foi outra pessoa uma pessoa totalmente distanciada da esfera de inimizades entre ambos quem acabou com ele...

 

Estás a dizer-me que o golpe final foi dado por uma terceira pessoa?

 

Fiz um juramento que me impede de entrar em pormenores.

 

Estou a ver. Pompeu considerou o assunto. Então, sugiro que mantenhas o silêncio.

 

A sério, Grande?

 

A sério. Por favor, não quebres um juramento por minha causa. Clódio morreu e foi reduzido a cinzas. Milo foi arruinado e prepara-se para deixar Roma. Esses dois estão arrumados. A minha tarefa seguinte será punir os responsáveis pelo incêndio do Senado. O Estado deve tratar de forma equitativa todos aqueles que perturbam a paz, compreendes, pois de outra maneira não haverá lei nem ordem. Essa revelação terá algum efeito nisso?

 

Não me parece, Grande.

 

Então é irrelevante, e não tem qualquer interesse para mim. O assassínio de Clódio já passou. Compreendes, Descobridor? Havia na sua voz uma nota de quase ameaça.

 

Sim, Grande. Parece-me que compreendo.

 

O interior da casa de Milo pareceu-me estranhamente familiar, embora eu nunca lá tivesse entrado. Os mosaicos no chão, a cor ocre-pálido das paredes, bem como os diversos objectos do átrio e tudo aquilo que pude vislumbrar dos compartimentos anexos, recordaram-me imediatamente a casa de Cícero. Não tendo qualquer sensibilidade para este género de coisas, Milo emulara o gosto impecável do seu grande amigo.

 

Mas a casa também me recordou, de forma estranha, a imponente mansão de Clódio, no Palatino, porque se encontrava claramente num estado caótico. Porém, se a casa de Clódio estava a ser decorada e mobilada, a casa de Milo sofria o processo inverso, estava a ser desmantelada. Os quadros tinham sido tirados das paredes e empilhados na vertical. Os objectos preciosos estavam a ser arrumados em caixas. As cortinas tinham sido tiradas das portas e cuidadosamente dobradas sobre mesinhas.

 

Tal como na mansão de Clódio na noite do seu assassinato, havia em casa de Milo uma atmosfera de distracção e abandono. Ocasionalmente, passava um escravo que ia fazer algum recado, com um ar infeliz e quase sem olhar para mim. Comecei a sentir que fora esquecido. Por fim, o escravo que me tinha mandado entrar regressou e indicou-me com um gesto que o seguisse para o interior da casa.

 

Seria uma loucura deixar Davo lá fora e ir sozinho ao encontro de Milo? Preparei-me para o confronto. Não sabia bem como me sentiria quando o visse. Ele tinha-me feito muito mal e eu tinha todas as razões para o desprezar, e no entanto, estranhamente, a experiência do meu encarceramento fazia-me sentir uma espécie de simpatia por ele. É uma coisa terrível para um homem, perder todos os seus sonhos, ver serem-lhe retirados todos os seus pertences, à excepção dos simples meios de subsistência. Milo ascendera da obscuridade a uma posição de grande poder. Até o consulado estivera ao seu alcance mas esse mundo fora destruído num momento, e o seu destino entrara numa espiral que ele era incapaz de controlar. Jogara um jogo perigoso e acabara por perder tudo. Quer merecesse o seu destino, quer não, a totalidade da sua ruína comovia-me. Apesar disso, tencionava dizer-lhe o que pensava da forma como me tinha tratado, e exigir-lhe uma compensação.

 

O escravo conduziu-me a um compartimento com uma atmosfera decididamente feminina. Nas paredes estavam pintadas cenas de pavões com a cauda toda aberta, caminhando empertigados no meio de jardins floridos. Havia um aparador baixo, coberto de caixinhas de cosméticos, cofres de jóias, escovas e espelhos de mão embaciados, todos feitos de madeiras de qualidade e metais entalhados com pedras preciosas. Do outro lado da sala, um tumulto de vestidos e estolas coloridas transbordava de um armário aberto. Dominava o quarto um grande canapé com um dossel vermelho diáfano. O ar cheirava a jasmim e a almíscar.

 

De uma porta situada na extremidade do quarto, que dava evidentemente para uma casa de banhos privada, chegaram até mim risos e sons chapinhados. Ouviam-se vozes masculinas e femininas. Para onde me trouxera o porteiro, e por que se tinha afastado sem me anunciar? Pigarreei o mais alto que pude.

 

O riso e os sons chapinhados suspenderam-se. Fez-se um silêncio de morte. Voltei a pigarrear e chamei:

 

Milo? A resposta foi o silêncio, e depois uma explosão de risos e de chapinhar na água ainda mais sonoros do que anteriormente.

 

Esperem aqui disse uma voz feminina. Ouvi uma conversa sussurrada e depois novos risos. Finalmente, ela apareceu à porta, com um vestido solto e aberto, que não escondia assim muito os contornos roliços e voluptuosos do seu corpo. Tinha massas de cabelo cor de gengibre puxadas para cima e presas com ganchos no alto da cabeça. Fosse o que fosse que tivesse estado a fazer no banho, tinha conseguido não molhar o cabelo.

 

Eu conhecera o pai dela, há muito tempo. O ditador Sula estava então a chegar ao fim da sua vida e Fausta Cornélia não devia passar de uma criança. 30 anos mais tarde, ainda era demasiadamente jovem para exibir as marcas de dissipação tempestuosa que tinham estragado as feições ao seu pai, mas havia decididamente uma semelhança de família, a mesma compleição clara, o mesmo sorriso carnívoro, o mesmo fogo voluntarioso por trás dos olhos. Não era graciosa; quando se movia, havia sempre uma parte do seu corpo que parecia agitar-se ou oscilar. Em vez de graça, ela exsudava uma sensualidade madura e, mesmo a uma distância considerável, pude sentir o calor radiante do seu corpo, avermelhado e congestionado por causa do banho quente. A sua elevada condição atraíra dois maridos prometedores; outros atributos tinham atraído uma cadeia permanente de amantes, e estava a ser-me permitido contemplá-los.

 

És então o Descobridor disse ela.

 

Sou. Vim falar de negócios com o teu marido.

 

O meu marido não está.

 

Não? Olhei na direcção da porta dos banhos. Ainda se ouvia um ou outro chapinhar, e o som das vozes.

 

Achas que, se Milo cá estivesse, eu estava tomar banho com dois dos seus gladiadores?

 

Olhou para mim, para ver se a sua franqueza me tinha chocado. Eu fiz o possível por manter uma cara desprovida de expressão.

 

Compreendo que Milo esteja ocupado durante os últimos dias da sua permanência em Roma disse eu. Não tenho uma necessidade absoluta de falar com ele directamente, mas quero estar certo de que ele recebe isto. Estendi o pequeno rolo de pergaminho com o selo de Pompeu.

 

Ela ergueu os olhos ao céu.

 

Oh, mais outra conta? Graças aos deuses que eu disponho de um rendimento pessoal, ainda que esteja em nome do meu irmão. Tirou-me o rolo das mãos e desceu um pequeno corredor. Reparei que também se agitava bastante atrás. Chegámos a um compartimento todo desarrumado e cheio de documentos. O escritório do meu marido anunciou ela, com uma expressão de desagrado. Era a partir daqui que ele tencionava governar a República. Em que anedota se transformou esse plano! Acho que nunca mais haverá outro como o meu pai, um homem a sério, capaz de dominar uma cidade rebelde.

 

Não tenho bem a certeza disso respondi eu, pensando em Pompeu e em César.

 

Ela não me ouviu.

 

Esta é a pilha mais recente de contas disse ela, apontando para uma caixa alta a abarrotar de rolos e fragmentos de pergaminho. Queres que ponha a tua por cima? Pronto. Mas não fiques admirado se ela for transferida para o fundo, ou se acabar por se perder.

 

Quem está a rever estas contas todas? É o teu marido que está a fazer isso pessoalmente?

 

Deuses, não! O Milo está um caco; tem dificuldade em decidir que sapatos deve calçar de manhã. Basta olhar para dentro deste compartimento, e começa a chorar como um bebé. Não, tudo isto será tratado depois da sua partida. É Cícero quem vai tomar conta do assunto. Ou antes, Tiro; Tiro é maravilhoso a organizar coisas.

 

Estou a ver. Olha, vamos pôr o meu pedido à parte. Se não te importas, diz a Cícero para tratar dele em primeiro lugar. Diz-lhe que Gordiano, o Descobridor, insistiu nesse ponto. Cícero sabe por quê. E Tiro também.

 

Ela olhou para mim de esguelha.

 

E achas que eu não sei? Sei quem tu és, Descobridor. Estou mais informada dos assuntos do meu marido do que tu pareces pensar. Ele estava bastante inclinado para te matar, sabias? Não falou de outra coisa durante dias.

 

A sério? A franqueza com que ela referia os seus amantes não era, nem de longe, tão espantosa como a franqueza com que referia as conspirações do marido.

 

Sim, sim. Milo considerava-te uma verdadeira ameaça. Calculo que devas sentir-te honrado com o facto. Claro que, já para o final, ele via um assassino em cada armário e um espião atrás de cada arbusto. Cícero estava sempre a dizer-lhe que ele exagerava extraordinariamente quanto à ameaça que tu podias constituir. Dizia ele que a tua reputação estava altamente inflaccionada, que na verdade tu eras apenas vagamente competente, e que Milo devia deixar de se preocupar contigo.

 

Que amabilidade da parte de Cícero.

 

Estava a tentar proteger-te, seu palerma. Mas Milo estava decidido a mandar-te matar, andava obcecado com a ideia. Para o final, Cícero obrigou-o a aceitar uma solução de compromisso, e Milo mandou simplesmente que te raptassem. Mas tu deves ser tão inteligente e perseverante como ele pensava fugiste antes de começar o julgamento. Por Hércules, o susto que deves ter pregado a Cícero quando apareceste na estrada, diante dele! Emitiu uma gargalhada curta e sonora.

 

Quem me dera ter conseguido perceber a piada naquela altura.

 

Não é o que todos nós dizemos, retrospectivamente? Se eu soubesse que o meu casamento com Milo se transformaria nesta anedota! E aquele dia horrível, na Via Ápia, quando pensei que estava a viver um pesadelo, foi tudo uma farsa grotesca, desde o princípio até ao fim. A mais cruel de todas as ironias é. que Milo não tinha a menor intenção de matar Clódio. A batalha começou sozinha e, quando Milo mandou os seus homens atrás de Clódio, ordenou-lhes que o poupassem! Os gladiadores continuam a jurar que não tocaram em Clódio dentro da estalagem.

 

Ai sim?

 

Duvidas? Vem comigo. Eu peço-lhes que te contem a história. Levou-me de volta ao seu quarto. Rapazes! Saiam do banho. O meu visitante prometeu não vos morder.

 

Primeiro apareceu um, depois o outro; nunca teriam conseguido passar pela porta ao mesmo tempo. Traziam umas tangas, mas à parte isso estavam nus e ainda húmidos do banho, duas grandes massas fumegantes de carne peluda, cada uma delas com o dobro do tamanho de uma pessoa normal. Reparei que, à excepção de pequenas cicatrizes aqui e ali, não apresentavam grandes marcas, como seria de esperar de dois gladiadores que nunca tinham perdido um combate. Moviam-se com surpreendente agilidade e graça, tendo em conta o seu tamanho. Ao contrário do que acontecia com Fausta, não havia nada que se agitasse quando caminhavam; apesar da sua corpulência, tinham músculos sólidos como mármore.

 

Estremeci ao ver aqueles rostos feios e famosos tão perto de mim.

 

Eudamo e Birria sussurrei.

 

Eles atravessaram o compartimento com um desprendimento superior, afastaram o manto diáfano e sentaram-se lado-a-lado no canapé de Fausta. O suporte gemeu e afundou-se sob o seu peso.

 

O meu marido tenciona levá-los consigo para Massília disse Fausta melancolicamente. Vai precisar de protecção, evidentemente. Mas, deuses, as saudades que eu vou ter deles!

 

Presumo que não tencionas acompanhar o teu marido para o exílio?

 

Ir com Milo para Massília, viver entre gregos e gauleses e sacos de ar romanos? Preferia acabar os meus dias na quinta que Milo tem em Lanúvio, entre os porcos.

 

Olhei circunspectamente para Eudamo e Birria.

 

Tens a certeza de que eles sabem falar?

 

Parece quase demais, não é, dados os seus restantes talentos? Mas sabem embora seja Birria a falar quase sempre. Eudamo é o tímido, calculo que por ser muito mais bonito. O menos repulsivo dos dois fez um sorriso afectado e até corou. O mais feio franziu o nariz e resmungou. Rapazes, este é Gordiano. Estava a contar-lhe umas coisas sobre o dia em que Clódio morreu, e ele não acreditou em mim.

 

Queres que lhe arranquemos a cabeça?

 

Não, Birria. Talvez noutra altura. Lembram-se como é que a batalha começou, naquele dia?

 

Claro. Birria cruzou os braços na nuca, exibindo uns bicípites tão grandes como a sua cabeça. Encontrámos aquele idiota do Clódio na estrada, o que poderia ter originado logo problemas, mas cruzámo-nos com ele sem dificuldades, tudo suave como a seda. Mas o idiota não quis deixar passar a oportunidade de nos gritar um insulto no último momento.

 

E vocês perderam a cabeça, não foi? disse Fausta com um ar solidário.

 

Eu perdi. Atirei-lhe a lança. Pretendia fazê-la silvar ao lado da cabeça dele, mas ele moveu-se e a lança acertou-lhe no ombro. Birria riu-se. Atirou-o logo do cavalo abaixo, e eu nem sequer tinha essa intenção. Depois, Marte reinou, e foi cada um por si. Nós suplantámo-los. Não tardou que eles começassem a correr como coelhos, para os bosques e pela estrada fora. -

 

Nessa altura, o senhor mandou-vos ir atrás deles sugeriu Fausta.

 

Depois de ter tido um ataque de raiva concordou Birria.

 

E que instruções vos deu?

 

Birria estendeu-se no canapé. As suas pernas ultrapassavam de tal maneira a borda, que ele quase conseguia tocar com os dedos no chão.

 

O senhor disse-nos: "Matem os outros todos, se for necessário, mas tragam-me Clódio vivo. Não lhe toquem num só cabelo, senão mando-vos todos para as minas." Por isso, fomos atrás do idiota até Bovilas, onde ele se tinha metido dentro da estalagem. Tivemos de entrar e arrastar os homens dele para fora, um por um. O estúpido do estalajadeiro decidiu interferir; Eudamo tomou conta dele. Tínhamos a situação controlada, e só nos faltava arrastar Clódio para fora da estalagem pelo toutiço. Foi então que apareceu aquele sujeito, Filémon, e os amigos dele. Teve um ataque, gritou umas ameaças e agitou o punho mas, logo que nós demos dois passos em direcção a ele, deu um guincho e desatou a fugir. Ele e os amigos espalharam-se por ali. Por isso, fomos atrás deles. O que havíamos de fazer? Eudamo foi atrás de um, eu fui atrás de outro, e os nossos homens seguiram-nos. Alguém devia ter tido o bom senso de ficar a vigiar Clódio, mas ninguém pensou nisso. Encolheu os ombros, juntando uma imponente massa de músculos à volta do seu pescoço bovino. Nesse dia, estava tudo louco. Eu abanei a cabeça perante a patetice.

 

E, quando finalmente reuniram as testemunhas e regressaram...

 

Clódio tinha desaparecido. Eu acenei com a cabeça.

 

Porque Sexto Tédio já tinha passado por ali e tinha-o despachado para Roma, enquanto vocês andavam a perseguir Filémon.

 

Sim, mas nós não sabíamos disso protestou Birria. Quando regressámos à estalagem, não percebemos o que tinha acontecido a Clódio.

 

Por isso, discutiram durante algum tempo; foi essa a discussão sussurrada de que Filémon apenas ouviu metade, sem perceber o que se passava.

 

Birria encolheu os ombros.

 

Decidimos regressar e perguntar ao senhor o que havíamos de fazer. Clódio estava ferido. Calculámos que não conseguisse ir longe.

 

E, pelo caminho, passaram por Sexto Tédio, que estava a descansar ao pé da Casa das Vestais, e ele saudou-vos, enquanto a filha...

 

Ignorámos o velho senador e despachámo-nos a regressar para junto do senhor. Ele olhou para os prisioneiros, viu que não trazíamos Clódio, e teve outro ataque de fúria. Enquanto ele andava de um lado para o outro, nós metemos os prisioneiros numa carroça e mandámo-los para a villa do senhor, em Lanúvio, juntamente com a senhora. Depois, o senhor decidiu que Clódio tentaria regressar à sua villa, na montanha, por isso foi para aí que nos dirigimos.

 

Mas, quando lá chegaram, não encontraram Clódio.

 

Procurámos por toda a parte no estábulo, atrás dos montes de pedra, por toda a casa. Começámos a ameaçar os escravos, o encarregado e aquele sujeito, Halicor. "Onde está Públio Clódio?" gritava o senhor.

 

Andavam à procura de Clódio e não do filho!

 

Isso foi uma mentira porca que os Clodianos disseram depois, que o senhor tinha ido à procura do rapazinho de Clódio. O que é que ele havia de fazer com o miúdo? Nem sequer sabíamos que ele lá estava, e não chegámos a vê-lo. Era de Clódio que estávamos à procura. O senhor estava frenético por não conseguir encontrá-lo. Estava constantemente a perguntar-nos se Clódio tinha ficado muito ferido. Calculou que se tivesse escondido nas colinas...

 

E o meu querido marido receava o que pudesse acontecer em seguida acrescentou Fausta; o sangue fora derramado e Clódio estaria louco por vingança. Milo só soube que Clódio tinha morrido no dia seguinte, quando voltou à cidade em segredo. Depois, claro, ouvimos a história de que Sexto Tédio tinha encontrado o corpo, e presumimos o que teria acontecido.

 

Presumiram mesmo? disse eu. E o passo seguinte foi Milo inventar uma versão simpática do incidente aquele disparate todo de Clódio lhe ter armado uma emboscada.

 

Foi uma boa tentativa disse Fausta melancolicamente. Mas ele não tinha nenhuma hipótese de escapar, pois não? Nem com Cícero a defendê-lo e que mal que ele se saiu! Estás a ver, o mais irónico de tudo é que Milo não tencionava matar Clódio, nem fazer mal ao rapazinho. Quando Clódio ficou ferido e foste tu que o feriste, Birria, menino feio, muito feio, Milo apenas pretendia que lho levassem com vida, para o manter em silêncio e a salvo enquanto decidia o que fazer em seguida. Mas Filémon afastou os homens da estalagem. Ou os ferimentos de Clódio eram mais graves do que se pensava, ou então...

 

Sim?

 

Milo sugeriu a Cícero que ele podia ter sido morto por outra pessoa.

 

Como é que isso podia ter acontecido?

 

Clódio tinha muitos inimigos no Monte Alba. Causou muitos problemas. Qualquer habitante local que tivesse passado por ali, e tivesse visto Clódio ferido e sozinho, podia ter-se sentido tentado a aproveitar-se da situação. E houve notícia de que Clódio tinha marcas de estrangulamento no pescoço tu próprio falaste nisso a Cícero. Eudamo e Birria juram ambos que não lhe tocaram no pescoço, qual era então a origem dessas marcas, a não ser que um desconhecido tivesse estrangulado Clódio enquanto eles andavam em perseguição de Filémon? Isso explicaria por que motivo Sexto Tédio o encontrara morto no meio da estrada, estando ele vivo e dentro da taberna quando Birria e Eudamo correram atrás de Filémon. Suspirou, parecendo mais entediada do que deprimida. Pelo menos essa foi a teoria que Milo propôs, mas Cícero disse-lhe que não valia a pena ir por aí. "Para quê tentar convencer o júri de que és tecnicamente inocente, utilizando um raciocínio complicado para mostrar que os teus homens se limitaram a ferir Clódio e que outra pessoa acabou com ele? Eles nunca acreditarão, quer seja verdade, quer não. Vamos antes pôr de lado as desculpas, e argumentar que foi em autodefesa!" Se Filémon não tivesse aparecido, podíamos ter retirado Clódio de lá com vida. Mas Sexto Tédio passou num momento inconveniente, e depois mandou o corpo para Roma sem nós sabermos. Compreendes a ironia, Gordiano?

 

Oh, sim respondi eu. Melhor do que tu pensas. Fausta suspirou.

 

Esta conversa sobre o passado está a deprimir-me. É melhor ires-te embora, Gordiano. Estava a acabar o banho quando tu chegaste, e vou agora receber a minha massagem. Animou-se. A não ser que queiras fazer-me companhia...

 

Não me parece.

 

Tens a certeza? Eudamo e Birria fazem umas massagens excelentes. Entre os dois, somam 20 dedos na verdade, são 19, porque Eudamo perdeu um dedo numa batalha e têm uma força! Podiam partir-me em duas como se fosse um ramo seco, mas deixam-me leve e arejada como uma nuvem. Tratavam de nós os dois com a mesma facilidade com que tratam só de mim. Até podia ser bastante interessante. A sua expressão não deixava qualquer dúvida quanto às suas intenções.

 

E o teu marido?

 

Ele vai estar ausente durante horas.

 

Tens a certeza?

 

Uma certeza razoável...

 

Lembrei-me da tendência de Fausta Cornélia para ser apanhada em situações comprometedoras, e imaginei Milo a entrar, descobrindo-nos aos quatro. Não era o género de confronto que me interessasse ter com Milo na véspera da sua partida para o exílio, embora Fausta Cornélia se tivesse certamente divertido muito com ele.

 

Infelizmente, tenho de ir tratar de um último assunto antes do final do dia.

 

Ela fez beicinho e encolheu os ombros.

 

É uma pena, Gordiano. Queres que diga ao meu marido que vieste despedir-te dele?

 

Por favor.

 

Numa tarde de Primavera esplendorosa como esta, com as flores em botão e o Sol emitindo o seu calor de um céu sem nuvens, eu sabia onde podia encontrá-la.

 

Avançámos pelo mercado de gado, a oeste do Palatino, e atravessámos a velha ponte de madeira.

 

Onde vamos, senhor? perguntou Davo.

 

Ao outro lado do Tibre. Pensei que fosse óbvio.

 

Davo franziu o sobrolho. Tinha deparar de arreliá-lo, pensei. Não continuaria a ser o seu senhor durante muito mais tempo. Mas havia de sentir a falta da peculiar relação que se estabelecera entre nós.

 

Na verdade, Davo, vamos a uma villa ribeirinha situada na margem oeste do Tibre, do outro lado do Campo de Marte. A um sítio lindo, com uma pequena villa rústica, um prado verde rodeado de árvores altas e uma tira de terra na margem do rio, que é excelente para se dar uns mergulhos. Preferia que não falasses a ninguém nesta visita, incluindo Eco. E muito menos a Betesda. És capaz de guardar um segredo?

 

Pensei que isso fosse óbvio, senhor respondeu ele com um suspiro.

 

Algum tempo depois, saímos da estrada. Passámos por baixo de um dossel de arbustos de bagas sarapintado de sombras e emergimos num amplo prado verde, sobrevoado por dezenas de insectos e borboletas. A comprida villa era à esquerda, tal como eu me recordava. Mas era impossível que ela estivesse lá dentro, num dia como este. Disse a Davo que procurasse um lugar aprazível onde esperar por mim e atravessei o prado, com a erva alta a opor-me resistência debaixo dos pés. Por entre um pequeno maciço de árvores altas, avistei manchas fugazes de sol, reflectido no rio.

 

Também vi a tenda montada na margem, com as listas brancas e vermelhas estremecendo em consequência da brisa, e ao pé as listas vermelhas e brancas da liteira, que tinha sido colocada num ponto alto do campo. Se a liteira estava aqui, ela também estava.

 

Ninguém se apercebeu da minha chegada, não havia ninguém de guarda. Os carregadores da liteira e os guarda-costas estavam todos dentro do rio, nadando e atirando água uns aos outros, e jogando um jogo qualquer com uma bola de couro. Aproximei-me da tenda e contornei-a até ao lado que dava para o rio e para os nadadores. As abas tinham sido enroladas para cima, para deixar entrar a brisa e a paisagem. Ela estava semi-sentada, semi-reclinada num canapé alto e forrado de almofadas, envolta num vestido feito de um tecido dourado e diáfano, com um copo de vinho na mão e uma expressão de desamparo no rosto. Parecia mais estar a assistir a uma peça trágica do que a observar um grupo de escravos nus fazendo cabriolas dentro de água.

 

Viu-me e teve um sobressalto, depois reconheceu-me e conseguiu produzir um pálido sorriso.

 

A criada que estava sentada num tapete, aos pés do canapé, pôs-se rapidamente em pé quando eu me aproximei, e em seguida olhou para a sua senhora, pedindo instruções. A uma inclinação de cabeça de Clódia, a rapariga saiu da tenda.

 

Gordiano disse Clódia. A sua voz era semelhante à música lânguida do rio. O seu perfume, de nardo e óleo de açafrão, enchia o ar quente do interior da tenda. A sua carne parecia brilhar sob a luz suave e filtrada.

 

No outro dia, ofendi-te disse eu.

 

Ofendeste? Ela voltou os olhos para os banhistas.

 

Acho que sim. E peço-te desculpa por isso.

 

Não é necessário. Já me tinha esquecido. As dores e os prazeres perderam a sua intensidade desde...

 

Desde que o teu irmão morreu? Ela baixou os olhos.

 

É a única dor que nunca diminui.

 

Presumo que tenhas retirado algum conforto daquilo que aconteceu no julgamento.

 

Já não aprecio julgamentos.

 

Mas Milo foi punido, e Cícero só com grande dificuldade conseguiu pronunciar o seu discurso.

 

Ela riu suavemente e acenou com a cabeça.

 

Sim, gostaria de ter assistido a isso. Mas nenhuma dessas coisas mo trará de volta.

 

Pois não. Mas às vezes as pessoas estão dispostas a contentar-se com a justiça, ou com a vingança.

 

Aprendi a minha lição quando tentei vingar-me de Marco Célio. De que serve tudo isso, em última análise?

 

Eu falei cautelosamente.

 

Vingar-te daqueles que o mataram não te daria qualquer satisfação?

 

Por que estás sempre a falar do mesmo, Gordiano? Não tenho qualquer desejo de vingança. Inspirou profundamente e depois exalou o ar. O meu irmão deu a muitas pessoas muitas razões para quererem vê-lo morto. Não sou estúpida, nem sou cega; sei o que ele era e a vida que levava. Eu amava Públio, amava-o acima de tudo. Não gostaria que ele fosse diferente em nada. Mas, mais cedo ou mais tarde, tendo em conta os jogos que jogava e as regras que infringia, ele tinha à sua espera um final infeliz. Todos eles jogam o mesmo jogo, e eu suspeito de que terão todos um final violento Pompeu e César, Célio e António... e até Cícero. Enquanto Públio era um dos jogadores, eu tinha algum interesse no concurso. Mas agora... Suspirou. Deixo-me estar aqui deitada, a ver os meus belos jovens divertirem-se dentro de água. Já nem sequer vejo os jovens; observo a água, a forma como brilha e desliza sobre eles. Como avança para o mar, sem parar, sem voltar para trás. Tudo isto tinha algum sentido para mim, julgo eu, mas não me lembro qual era.

 

Sentes-te assim tão infeliz, Clódia?

 

Infeliz? Parece-me uma palavra muito forte. Já é raro chorar ou acordar de pesadelos sobre a morte dele. Sinto-me apenas muito cansada. Sorriu de esguelha. Devo estar com um aspecto assustador.

 

Não, Clódia. Estás linda. Indescritivelmente bonita.

 

Ela estendeu a mão para a minha. Eu olhei para os seus olhos por momentos, mas depois tive de desviar os meus. Observei os banhistas, como ela os observava, de forma abstracta e sem realmente os ver, mas apenas aos seus movimentos e ao jogo da luz na sua carne molhada. Depois, o abstracto tornou-se concreto. Subitamente, reconheci um deles.

 

Por Hércules!

 

O que foi, Gordiano?

 

Um dos teus homens, aquele que tem a cara vermelha... e olhos de um azul-gelado... O homem tinha mergulhado atrás da bola de couro. Ergueu o rosto, como tinha feito na noite em que me enfrentara no Monte Palatino, depois de me ter saqueado a casa.

 

Conhece-lo? perguntou Clódia.

 

Foi um dos que me pilharam a casa e me deram cabo da minha estátua de Minerva. Um dos que assassinaram o meu escravo, Belbo.

 

Não me surpreenderia. O sujeito é um antigo gladiador. Pertencia a Clódio, que o libertou para que ele pudesse candidatar-se à distribuição de cereais. Desde então, tem sido passado entre a família, como guarda-costas. Provocou alguns desacatos com os escravos do meu sobrinho. Só o tenho comigo há uns dias. Devem ter achado que eu gostaria de olhar para ele. Mas disseste que ele te destruiu a casa?

 

E matou um homem que me era muito querido.

 

Estou a ver. O que sugeres que façamos quanto a isso?

 

Não disponho de provas. Ninguém o viu fazer isso, à excepção dos seus amigos. Talvez tenha sido um dos seus amigos a matar Belbo. Talvez ele esteja inocente, embora me parecesse ser o chefe.

 

Por que te preocupas com pormenores? Isto não é um tribunal. Ambos conhecemos o género a que ele pertence. Tenho a certeza de que já fez qualquer coisa pela qual mereça morrer. Queres que trate dele, Gordiano?

 

O que queres dizer com isso?

 

Posso mandar afogá-lo, aqui mesmo e agora mesmo. Basta-me dizer uma palavra ao chefe dos meus guarda-costas. Calculo que um homem como ele ofereceria bastante resistência mas, entre os guarda-costas e os carregadores da liteira, há suficientes homens com força para o aguentarem debaixo de água o tempo que for necessário. Podias ter o prazer de assistir. Queres que dê a ordem?

 

Estás a falar a sério, não estás?

 

Estou. Mas só se tu quiseres. Queres que dê a ordem?

 

Considerei tudo aquilo. Na mesma tarde, tinha sido convidado por Fausta Cornélia para participar numa orgia e por Clódia para ver um homem morrer por ordem minha. Estas oportunidades eram prerrogativas de reis e imperadores; por que haveria eu de recusar? Talvez nunca tivesse conhecido o verdadeiro significado da justiça ou da verdade, mas houve uma altura em que pensei que tinha, e essa ilusão reconfortou-me. Agora, tudo tinha mudado. Todos os meus arrimos tinham desaparecido. Sentia-me tonto e desorientado. Estaria o mundo a girar sem controlo, ou seria de mim?

 

Não, disse por fim. O teu irmão morreu, e Belbo também, e nenhuma morte os trará de volta. O rio só corre para a frente.

 

Clódia sorriu pesarosamente.

 

Muito bem. O sujeito nunca saberá quão perto esteve de ser afogado como um cão. Mas recordar-me-ei do que me disseste. A partir de agora, hei-de vigiá-lo de perto.

 

Clódia...

 

Sim.

 

Estende a mão.

 

Ela assim fez, erguendo as sobrancelhas, à espera de um truque qualquer. Eu coloquei-lhe o anel do irmão na palma aberta.

 

Ela suspirou, estremeceu, soluçou e inspirou fundo para se controlar.

 

Onde o encontraste?

 

Se eu te disser que o encontrei caído à beira da Via Ápia, ficas satisfeita?

 

Ela contemplou o anel durante muito tempo, com uma tão grande expressão de ternura, que eu me apercebi como tinha sido tolo pensar que podia magoá-la. O que poderia ela sentir por mim, ou por qualquer homem, em comparação com o que sentia pelo irmão?

 

Por que mo trouxeste a mim? Por que não o levaste a Fúlvia? É ela a viúva.

 

Sim, mas Fúlvia já deixou isso para trás. Já está a fazer planos para o próximo casamento e talvez também para o seguinte. Está voltada para o futuro, e não para o passado.

 

Mas o filho de Públio, o rapazinho...

 

Se achares que deves dar o anel ao teu sobrinho, isso é contigo. Eu decidi devolvê-lo à pessoa que mais o amava.

 

                                                                                            Steven Saylor  

 

                      

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