Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS FANTOCHES DE MADAME DIABO VOLUME I / X.M.
OS FANTOCHES DE MADAME DIABO VOLUME I / X.M.

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS FANTOCHES DE MADAME DIABO

VOLUME I

Primeira Parte

 

O INFERNO NO CÉU

COMBOIO DE RECREIO PARA ALÉM-MUNDO

Onde é o inferno?!...

No centro da Terra, respondiam a esta pergunta os sábios dos bons tempos; — e, como prova, apresentavam a existência dos vulcões.

Na sua opinião, o Vesúvio e o Etna desempenhavam simplesmente o papel de chaminés da cozinha de "monsieur" Satanás.

É especiosa esta opinião, mas temos motivos para não nos conformarmos com ela.

O que nunca ninguém soube, sabemo-lo nós, e vamos dizê-lo.

O inferno ocupa na realidade aquela maravilhosa estrela chamada estrela de Vênus, e que brilha com um esplendor tão vivo e tão puro no cerúleo firmamento.

É aí que Satanás reina e governa.

É daí que ele desce à terra para desempenhar, com um zelo infatigável, as suas funções de tentador.

É ali, finalmente, que reside, num palácio de um estilo admirável e mobiliado muito convenientemente, a diabinha de meigos olhos, chamada Eloa, unida pelos laços do matrimônio a "monsieur" diabo...

Porque o diabo é casado.

— Sabias, leitor?

— Não.

Pois estimamos muito ter ocasião de te dizer.

Depressa voltaremos àquela importante e poderosa dama que, por mais de cem motivos, merece a nossa atenção.

Primeiro que tudo falemos um pouco do próprio diabo, corrigindo o melhor que pudermos a opinião do público a respeito do rei, como corrigimos, ou, pelo menos, tentamos corrigir, a sua opinião a respeito do reino que brevemente tencionamos explorar.

A poesia, a pintura e a escultura deram-nos do anjo caído uma imensa quantidade de retratos, notáveis de certo sob vários aspectos, mas todos defeituosos por absoluta falta de verdade.

O mármore, o verso, a tela têm quase invariavelmente reproduzido a imagem grandiosa e terrível de uma espécie de Titão fulminado, de rosto tristonho e fatal, com enormes asas de morcego armadas de agudas garras.

É belo, mas pura fantasia.

Satanás é melhor diabo do que isso. — A sua fisionomia apresenta uma expressão mais zombeteira que sinistra, — a sua cauda rojadora pode passar por uma espécie de invenção dos monges simplórios da Idade Média; e se consente em trazer na frente dois chavelhinhos gentis, é simplesmente porque não pode deixar de ser.

Que idade tem "monsieur" Satanás?

Esta questão deve ficar indecisa, e não se pode resolver matematicamente.

O anjo decaído já evidentemente, não é novo, porque o seu nascimento remonta a uma época muito anterior à da criação do mundo.

Parece-nos fácil provar isso...

Quando Adão e Eva se instalaram na terra, já Satanás tinha atingido a idade viril, e a prova foi comprometer a primeira mulher.

Suponhamos que tinha então mil e tantos anos, — o que é verossímil, — deve hoje ter uns sete mil, mas apresenta-se muito fresco, tão fresco que dar-lhe-ão, o muito, quarenta e cinco, — e quarenta nos dias em que faz a barba.

É alto, delgado, — magrito até, — mas a magreza realça-lhe a distinção.

Na parte superior da fronte elevada tem dois chavelhinhos de ouro virgem, que os seus cabelos, quando é preciso, ocultam sob os anéis abundantes e do mais belo negro.

Dos olhos grandes e expertos despede olhares que só têm o defeito de se parecerem bastante com relâmpagos, — mas este inconveniente só se dá de noite.

A boca, muito bonita, apesar de sardônica, mostra, num sorriso habitualmente zombeteiro, dentes cintilantes e que não são nem aguçados nem ralos, como certa gente tem espalhado por maldade pura.

A mão do demônio não apresenta o menor vestígio de garras, e, pelo contrário, recomenda-se por uma extrema flexibilidade e uma macieza toda especial.

Quando esta mão agarra uma pessoa é muito difícil, para não dizer impossível, fazer com que a largue, — não tanto por causa da sua força irresistível, mas por causa da suavidade da sua pressão.

Os pés de Satanás são compridos e de peito alto, nada fendidos, "C sempre calçados com irrepreensível elegância.

Esta elegância observa-se não menos completa no fato de Sua Majestade infernal, que é o primeiro a andar à moda e dá o tom aos elegantes do seu reino.

E como não há de ser assim?

O inferno está povoado de alfaiates e sapateiros, — e também de costureiras e modistas.

Satanás e a mulher têm sempre ao seu dispor todos os fornecedores, — e num certo prazo, os meus e os vosso, leitor, hão de ir engrossar o número.

O diabo usa sempre jóias em grande número e do melhor gosto.

Adora estas frioleiras brilhante se preciosas, — talvez por causa do grande resultado que lhe dão como meio de seduzir as almas femininas.

Os diamantes, sobretudo, têm sido, e serão sempre, seus fiéis e preciosos auxiliares.

E agora que traçamos do herói deste prólogo um rápido esboço, é chegado o momento de dizermos algumas palavras da formosa diabinha Eloa, de contarmos sucintamente as circunstâncias da sua união com o monarca infernal, e, finalmente, de introduzir os nossos leitores no palácio real do planeta Vênus.

 

A LENDA DE ELOA

Eis a lenda de Eloa, não tal como um poeta, Alfredo de Vigny, a escreveu, mas tal como a encontramos num manuscrito espanhol do século XVI.

A cena passa-se no paraíso, um pouco depois da revolta e do castigo dos anjos caídos sob o mundo de "monsieur" Satanás.

O Senhor, o Todo Poderoso, o Santo Deus, Jehovah, está sentado num trono de marfim, numa sala imensa, cujas colunas de diamantes sustentam uma cúpula de safira.

Ouve-se um toque de clarins, e o arcanjo Rafael aparece à frente de uma legião de serafins vestidos de branco, empunhando espadas flamejantes.

Rafael curva a cabeça e os serafins prostram-se.

Rafael ajoelha em seguida no último degrau do trono de marfim e profere:

— Senhor, Deus Poderoso, em que residem toda a luz e toda a glória, eis o vosso servo a vossos pés!...

— Arcanjo, ergue-te e responde-me...

— Interrogai, Senhor, disse Rafael erguendo-se.

— Donde vens com a tua legião?

— Da porta do paraíso onde estava de guarda, e onde o arcanjo Miguel, general dos vossos exércitos, como eu, acaba de me substituir com os querubins.

— Apresenta-me o teu relatório, ordenou o Senhor.

— Ontem, pela meia-noite, fomos atacados por um punhado de malditos que pretendiam transgredir as ordens que tínhamos, e penetrar, malgrado nosso, no sagrado recinto.

— Expulsaste-os e fizeste-os em pedaços?

— Sim, Senhor, mas não foi sem dificuldade.

— Quem comandava esses malditos?

— O rei dos anjos caídos... o mais terrível dos nossos perdidos irmãos... Satanás em pessoa... Leva a bravura até a temeridade. e não recua diante das nossas espadas de fogo... Felizmente, o general da nossa artilharia confiara-nos o seu raio... Foi preciso nada menos do que o fogo do céu para por em debandada Satanás e a sua corte.

—Hão de ser eternas as revoluções do arcanjo caído! exclamou o Senhor.

— Senhor, suplicou Rafael, o infeliz queria voltar para o céu.

— Não voltará. Está condenado para toda a eternidade! Arcanjo Rafael, estou satisfeito contigo... nomeio-te cavaleiro das minhas ordens... Cuidarei que a nomeação seja prontamente expedida pela nossa chancelaria, e recebas quanto antes as insígnias...

Rafael, prostrando-se, exclamou:

— Bendito seja o Senhor!... Clarins seráficos entoem a sua glória! Falanges melodiosas dos anjos femininos, unam as vossas vozes para entoar os seus louvores.

Soam clarins de prata, erguem-se vozes de cristal, o céu enche-se de harmonia, e, na sua carreira vagabunda, as estrelas e cometas param para escutar com arrebatamento

— Silêncio! exclamou o Senhor.

Os instrumentos e as vozes calam-se. Os astros errantes põem-se a vaguear na imensidade transparente.

— Senhor, perguntou respeitosamente Rafael, tendes ordens a dar ao vosso servidor?

— Senhor. Fazei que aqui compareça sem demora o anjo Ariel, Superintendente da minha música e diretor dos meus concertos.

Rafael brada:

— Ariel! Ariel! Ariel!

Ariel comparece e ajoelha aos pés do trono.

— Senhor, exclamou, o mais humilde dos vossos vassalos não ousa erguer os olhos para vós.

— Ariel, disse o Senhor, tenho que te censurar...

— o quê, Senhor, acaso alguma nota falsa ou melodia duvidosa feriram os vossos ouvidos divinos?

— Não é isso rigorosamente. A música é boa. Os teus instrumentistas sabem o seu ofício e os coros cantam em uníssono. Mas, faltava uma coisa essencial nos últimos concertos que me deste. Não adivinhas o que quero dizer, Ariel?

— Não, Senhor.

— Entre os anjos femininos que salmodiam com tão admirável perfeição, há um cuja voz, mais meiga e mais suave que todas as outras, tem modulações que me encantam.

— É a voz de Eloa, Senhor, não posso duvidar disso.

— Por que é que voz que eu gostava de ouvir emudeceu de repente?

— Senhor, Eloa já não quer cantar e obstina-se no seu silêncio.

— Quem se atreve a ter uma vontade no meu reino!

— Senhor, sede indulgente; é humildemente prostrado na vossa presença que suplico. A pobre Eloa, não pretende resistir ao vosso poder soberano... Chamai-a à vossa presença e dignai-vos interrogá-la... Está tão mudada, tão pálida, tão triste, que vos há de inspirar mais piedade que ira.

— Tristeza no meu reino! Que se passa, então, aqui? É preciso Sabê-lo quanto antes. Chamai Eloa.

Eloa aparece e exclama, mas sem se ajoelhar como fizeram Rafael e Ariel:

— Senhor, eis-me aqui!

— Participam-me uma coisa extraordinária, Eloa, e que me custa. A crer. Dizem-me que recusas cantar nos meus concertos.

— Disseram-vos a verdade, Senhor.

— Resistis, efetivamente?

— Sim, Senhor.

— Sabes em que terrível castigo incorres?

— Sei.

— E arrostas a minha cólera a esse castigo?

— Não, arrosto, Senhor, resigno-me e curvo a cabeça... Expulsai-me do vosso reino... que o mereço.

Movimento de terror entre os anjos, e os serafins Rafael e Ariel afastam-se de Eloa com assombro.

— Eloa, disse o Senhor, essa resignação é um castigo cuja simples idéia aterroriza as nossas legiões fiéis; encerra um mistério que eu quero conhecer. Estás triste, Eloa?

— Sim, Senhor, triste até a morte!...

— Tristeza então eterna, porque és imortal!...

— Sim, Senhor, tristeza eterna!...

— Não és feliz nesta mansão da perfeita felicidade?

— Não sou feliz.

— Por que?

— Porque amo... e o meu amor é sem esperança...

— Quem diz semelhante coisa? Ignoras que toda a esperança reside em mim, e que se eu quisesse dar-te aquele a quem amas,.ainda que fosse um dos meus arcanjos, um dos generais das minhas milícias, ainda que fosse o próprio Rafael, nada se oporia à tua felicidade?...

— Senhor, nunca me dareis aquele a quem amo...

— De onde te vem essa certeza?

— Entre mim e ele a vossa mão onipotente cavou abismos que nunca poderá preencher... Só expulsando-me dos vossos reinos me aproximareis dele, e é uma graça formidável que mal me atrevo a pedir-vos.

— Quem amas então?

— Aquele que lutou contra vós... o rei das legiões fulminadas... Satanás!

— Desgraçada!! exclamou o Senhor.

— Pune-me, Senhor, como o puniste a ele... Sou culpada como ele... O meu amor torna-me cúmplice!

— Eloa, tenho piedade de ti... Nunca pecaste contra mim... Não partilhaste nem o orgulho insensato nem a rebelião do maldito... Amaste-o quando ele ainda era o mais belo dos anjos fiéis! Isso era-te permitido. Não proíbo as ternuras castas, e aprovo o consórcio de querubins de sexos diferentes. Hoje, por desgraça, as circunstâncias mudaram, Satanás já não é digno de ti... Esquece esse funesto amor, recupera o teu bom humor e a tua bela voz de outrora, e prometo-te a mão de Rafael, o meu arcanjo favorito.

— Não é Rafael que eu quero, é Satanás!

— Satanás! exclamaram as estrelas errantes e os cometas fugitivos.

— Eloa, repito-te, recupera o teu coração!

— Dei-lhe, Senhor, e foi para sempre.

— Bem, mostra ao menos desejos de te curares do teu mal e eu te auxiliarei... Dar-te-ei a força que te falta, e se for preciso um milagre para isso, fá-lo-ei.

— Não me quero curar, quero sofrer. Este sofrimento constitui a minha única alegria!

— Eloa, disse o Senhor, toma Cuidado que eu não satisfaça os teus votos ímpios deixando-te ir procurar o maldito.

— Oh! Senhor Deus, se fizésseis isso toda a eternidade seria pequena para vos abençoar!...

— Eloa, não refletis que aquele que se revoltou contra o seu Senhor, nunca poderá submeter-se ao império de uma mulher, ainda que -essa mulher fosse um anjo. Satanás far-te-á desgraçada.

— Pois, antes desgraçada com ele, do que feliz sem ele.

— Conheço o maldito... conheço-o bem porque fui eu que o criei... É incapaz de afeição e de constância... As suas infidelidades far-te-ão sofrer cruelmente

— O amor não recua diante do sofrimento...

— Terás bem depressa tantos motivos de queixa contra ele que acabarás por odiá-lo.

— Quando se ama, perdoa-se, retorquiu Eloa.

— Lembra-te, Eloa, de que uma vez fora do meu reino nunca mais aqui voltarás!

— Como hei de eu desejar voltar para aqui se aquele cuja sorte eu quero partilhar foi daqui expulso para toda a eternidade?

— Eu devia irritar-me e maldizer-te, contudo, tanto amor comove-me de onde te vem esta imensa ternura pelo arcanjo caído?

— Dele ser desgraçado. Senhor.

—Eloa, és uma alma encantadora, e por comiseração por ti desejaria impedir-te esse sacrifício...

— Senhor, ponderou Eloa, uma alma como a minha encontra no sacrifício alegrias que nenhuma outra coisa lhe pode proporcionar.

— Vamos, tens resposta par tudo... Não quero constranger-te a ser feliz contra tua vontade... cedo.

— O quê. Senhor! exclamou Eloa, deixai-me livre.

— Livre de te perderes para sempre, pobre anjo de luz, voluntariamente perdido...

E elevando a voz prosseguiu:

— Legiões dos meus fiéis, milícias celestes, arcanjos e serafins, vós todos que preencheis os espaços, curvai a cabeça, velai a fronte e chorai... Uma das vossas irmãs deixa-nos para ir para o demônio.

Os anjos e os arcanjos exclamaram:

— Desgraça!... três vezes desgraça!...

— Felicidade! felicidade! pertenço-lhe.

— Portas, abri-vos, exclamou o Senhor, deixai sair a insensata que foge! Vigilantes sentinelas, arredai do seu caminho as espadas flamejantes... deixai passar a mulher de Satanás!

Os anjos e arcanjos exclamam com assombro:

— A mulher de Satanás!...

Os astros encontram-se no espaço, os anjos prostram-se aos pés do trono de marfim.

As trevas envolvem o mundo.

— Meu bem amado, eis-me, exclamou Eloa, abrindo as asas, pertenço-te... pertenço-te por toda a eternidade...

— Por toda a eternidade! repetem os ecos do céu!

— Demoraste-te muito, Eloa! Na verdade já não te esperava, supunha-te infiel.

— Infiel, eu! exclamou Eloa, eu, que sem pesar abandono o céu para vir ter contigo!... Oh! Satanás, eis aí uma palavra bem cruel que me despedaça o coração.

— Vamos, vamos, eu gracejava. Não se querem lágrimas! Chegaste, sede bem-vinda... Desposo-te, e se não fores feliz comigo, há de ser por muita falta de vontade da tua parte! E vós, meus vassalos, alegrai-vos, vosso rei casa-se! Viva a mulher de Satanás!...

Os ecos do inferno repetem: — Viva a mulher de Satanás! As trevas tornam-se mais espessas. As nuvens amontoam-se entre o céu e o inferno. O raio estala. Os anjos e arcanjos exclamam:

— Glória ao Senhor todo Poderoso: e desgraça, desgraça aos malditos!

— Pelo inferno que temos belas bodas... O Senhor faz ribombar os seus trovões em nossa honra!... Envia-nos os suas nuvens tempestuosas para servirem de cortinas à nossa alcova. Eloa, eis-te rainha do mundo!...

— Meu bem amado, amar-me-ás sempre?

— Quem sabe? disse Satanás consigo mesmo.

 

O TOUCADOR DA DIABINHA

Não tardou que a pobre Eloa deplorasse o seu louco arrebatamento e se lembrasse saudosa do paraíso que deixara pelo inferno,

Era, infelizmente, já tarde...

Uma vez fechadas as portas do céu, não podiam tornar-se a abrir para ela; tinha de viver eternamente em companhia de um esposo infinitivamente pouco recomendável...

Como bem se deve compreender, não vamos gastar tinta a dizer mal de Satanás...

É tão sólida e tão merecida a reputação do diabo, que nos parece supérfluo juntar a nossa pedra às pedras sem número que o têm lapidado desde que o mundo existe, e que hão de lapidar até a consumação dos séculos.

Demais, somos um historiador, não um panfletário.

Vamos contar resumidamente os fatos. Outros, se quiserem, que tirem deles as conseqüências.

A Terra saiu do nada, e Adão e Eva, de bíblica memória, estavam colocados no paraíso terrestre.

Satanás viu a nossa loura avó, e achou-a bonita.

Eloa era morena, e os diabos, como os homens, gostam de variar.

Satanás foi pela primeira vez infiel.

Eloa soube disso e chorou muito.

Pobre Eloa, aquelas lágrimas não deviam ser as últimas!...

A medida que decorriam os séculos e que Satanás se adiantava em anos, piorava na inconstância do gênio, e o ciúme da mulher legitima aumentava em desesperadoras proporções.

Sempre nova, sempre bela, e sempre amante, a ex-corista dos concertos celestes não podia, com sangue frio, ver-se abandonada e atraiçoada.

Cada nova rival que Satanás lhe dava, — e Deus sabe se essas rivais eram numerosas! — quase a enlouquecia de dor e de cólera.

Ela formava os mais belos projetos de vingança; depois, quando chegava o momento de realizar esses projetos, a sua bondade natural podia mais, enxugava as lágrimas, esquecia a sua cólera, e, à menor palavra de arrependimento murmurada pelo infiel, apressava-se a perdoar.

Demais, Satanás parecia-se com a maioria dos bons maridos deste mundo. Enganava a mulher o mais que podia, mas tinha atenções para com ela, e, de tempos a tempos, voltava com um afã e uma galanteria cuja moeda falsa Eloa tomava por dinheiro de boa lei.

Eis o ponto em que estavam as coisas no momento em que conduzimos os leitores ao planeta Vênus, isto é, pelos fins do século XVIII.

Este planeta é muito parecido com a Terra, tendo porém dimensões muito mais importantes, porque mede um diâmetro quase cinqüenta mil vezes maior que o do nosso globo.

É imensa a sua população, e nada parece mais fácil de compreender quando se reflete que noventa e nove centésimas parte.s dos habitantes do nosso mundo, vão habitar, por mandado de justiça, o astro infernal.

As águas são ali abundantes, mas sulfurosas, como as do mar Morto, e imensas florestas de mancenilheiras projetam para todos os lados a sua sombra peçonhenta sobre prados de cicuta, e sobre campinas onde pululam os cogumelos venenosos da mais bela espécie.

Tal é hoje a estréia de Vênus; tal era na época da nossa narrativa.

O palácio real, construído num estilo árabe, de mármore de diversas cores, elevava-se em meio de uma cidade tamanha que Paris Ou Londres, ao pé dela, teriam parecido simples aldeolas.

Guardava-lhe as portas um exército de frades, dissolutos e covardes sobre a Terra, e transformados, contra vontade, em soldados naquelas regiões.

Estas sentinelas tinham ordens rigorosas, e não deixavam entrar nem sair senão pessoas munidas de um passe perfeitamente em regra.

Felizmente tais ordens não se entendem conosco.

Transponhamos, pois, o limiar do palácio, atravessemos os vastos corredores do interior, sem deitar sequer um olhar para o luxo oriental das decorações e dos repuxos, percorramos a enfiada de salas onde Satanás, quando está de belo humor, dá feitas esplêndidas aos seus principais vassalos, e visitemos um recinto misterioso e encantador situado na parte mais recatada do edifício.

Este recinto, forrado e mobiliado por estofadores do inferno, no gosto rococó, o mais deliciosamente amaneirado e arrebicado, era o toucador de Eloa.

Para que descrevê-lo?

Parece-nos que todo o realismo descritivo ficaria aqui deslocado,. e preferimos abstermo-nos disso.

Doze velas, muito mais luminosas que as velas terrestres, iluminavam a giorno aquele toucador.

Eloa, deitada num sofá, tinha na mão um romance de Crebillon filho, que não lia.

De quando em quando, olhava para a pêndula, cujos ponteiros, indicavam que dali a pouco iam dar três horas, e soltava exclamações de impaciência.

Madame diabo parecia ter vinte e quatro ou vinte cinco anos. o muito. Sabemos que esta aparência era exata... com a diferença de uns sete mil anos...

Apesar da extrema palidez das faces, e da orla azulada que lhe circundava os grandes olhos negros, a sua beleza maravilhosa apresentava o que quer que fosse de angélico.

Compreendia-se que este olhar, ao mesmo tempo tão meigo, tão. puro ,e tão nobre, devia outrora ter contemplado o Senhor na sua glória. Compreendia-se que aqueles lábios tão risonhos, tão castos, deviam ter cantado com os coros dos anjos nos concertos celestes.

Pregos de diamantes seguravam-lhe os compridos cabelos de um. negro quase azul, dividido em trancas pesadas e sedosas.

A jovem rainha, — quem não deve e não pode nunca envelhecer, conserva-se eternamente jovem!... vestia um penteador flutuante de um estofo desconhecido e cor de chama de ponche.

Cor extraordinária! dirão talvez.

Decerto, mas as modas do inferno não são modas da Terra.

Chinelinhas vermelhas como lume de forja, calçavam-lhe os pezinhos.

Deram três horas.

— Ah! balbuciava a rainha, é demais! Onde estará ele, enquanto eu estou à sua espera, morta de impaciência e de ciúme?

Eloa abandonou a sua posição negligente, atirou o livro para o meio do toucador, e estendendo a mão para uma mesa pequena junto do sofá, bateu numa campainha de cristal com um martelo de prata.

Abriu-se uma porta, e entraram duas criadas.

Estas serviçais, apesar da humildade da sua posição, podiam rivalizar em beleza com a própria rainha.

Uma era Aspásia, a célebre cortesã, amante de Alcibíades.

A outra, a não menos bela, a não menos namorada, a não menos ilustre, Ninon de Lenclos.

Aspásia mal transpôs o limiar.

Ninon de Lenclos avançou até ao sofá.

— Vossa majestade tem precisão dos nossos serviços? perguntou ela esboçando uma mesura da boa escola.

Eloa fez um sinal afirmativo.

— Vossa majestade deseja, decerto, despir-se e deitar-se? continuou Ninon.

Eloa abaixou a cabeça.

— Contudo, já é muito tarde, e vossa majestade deve ter grande precisão de descanso... dorme tão pouco!... Vossa majestade amanhã deve estar mais pálida que de costume; permita-me vossa majestade que lho diga.

— Ora! Que importa? exclamou a rainha com amargura. Ninguém fará reparo na minha palidez!

Aspásia e Ninon trocaram um olhar significativo.

Depois, a francesa continuou, com a familiaridade de uma criadinha favorita que tem a certeza de não desagradar, diga e faça a que quiser.

— Ai! Tenho muito medo de que vossa majestade se ponha a quebrar a cabeça sem motivo, e arranje cuidados e inquietações sem fundamento, como muitas vezes lhe sucede.

— Ninon, interrompeu Eloa com vivacidade, tu bem sabes que os meus cuidados e inquietações têm muita razão de ser... tu bem sabes que quando um marido ainda não se recolheu às três horas da manhã, a sua mulher pode e deve tudo recear!

— Permita-me vossa majestade que formule a minha opinião na sua presença?

— Fala.

— Bem, senhora, parece-me que um marido, mesmo infiel, não é criatura por quem valha muito a pena uma pessoa inquietar-se tanto.

— Que estás a dizer?

— A verdade. Um amante que procede irregularmente, admito que seja caso para assustar. O pássaro cujas asas não se cortaram, larga o vôo e não torna a aparecer... mas o marido volta sempre... Isto é que é o essencial. O resto é pouca coisa.

— Ah! Ninon, bem se vê que nunca amastes! suspirou a rainha.

Ninon sorriu.

— Não é essa a reputação que me criaram na Terra, replicou ela. Em geral, supõe-se que eu amei muitas vezes, e por muito tempo...

— Amar muitas vezes, é não amar nunca! O verdadeiro amor, só uma vez entra num coração... Nunca mais de lá sai...

Aspásia e Ninon trocaram novo olhar.

— É preciso vir ao inferno para ouvir destas coisas na boca de uma mulher casada!... disseram ao mesmo tempo os duas cortesãs. Onde a virtude vem meter-se!

Eloa tornou:

— Mas o tempo passa... Quem sabe se o rei não terá já entrado! Talvez ele receasse perturbar o meu descanso apresentando-se tão tarde nos meus aposentos..., ou antes, tão cedo.

— É muito possível, murmurou Ninon num tom pouco convencido.

— Será bom verificar, continuou a rainha.

— Devo mandar aos aposentos do rei, senhora?

— Vai tu lá mesma, e volta depressa.

Ninon fez uma mesura de saída não menos correta que a reverência de entrada, e desapareceu.

— Aspásia, disse a rainha, aproxima-te.

A cortesã grega avançou, vestida da branca túnica de lã, cujo tecido flexível desenhava, como no século de Péricles, as formas esplêndidas do seu corpo.

— Eis-me, senhora, disse cumprimentando com uma graça voluptuosa.

— O que fazias tu, perguntou a rainha, para atrair e prender aqueles jovens e belos atenienses, aqueles grandes filósofos que formavam a tua corte, e que nunca se cansavam de te ver e adorar?

— Empregava para os prender um talismã cujo poder era infalível...

— Qual?

— Não me atreverei nunca a revelá-lo a vossa majestade.

— Fala, quero-o... Que talismã é esse?

— A infidelidade.

Eloa estremeceu.

— O quê! exclamou, uma pessoa afeiçoa-se a quem a engana?

— Sucedia pelo menos assim entre os homens do meu tempo.

— É possível! É crível?

— Sim, senhora, e eis porque... Um bem não tem tanto valor como quando uma pessoa receia ser dele privado! Ora, uma mulher é um bem como qualquer outro.

— Tens razão, murmurou a rainha, tens muita razão... Possuo a prova disso... Nunca amei tanto o rei como depois que ele me dá todos os dias novas rivais...

— Se vossa majestade se dignasse autorizar-me a dar-lhe um humilde conselho...

— Então?

— Eu dir-lhe-ei: Senhora, o talismã de que eu me servia está à disposição de vossa majestade... Que lhe impede que dele faça uso?

— Eu, enganar o rei!! exclamou Eloa com assombro e indignação.

— Por que não?... parece-me que bem o merece!... Demais. é a pena de Talião a mais justa de todas.

— Nunca!...

— Mal vossa majestade distinguisse algum dos seus vassalos, veria o rei voltar para junto de si, mais terno e mais amoroso do que nunca!

— Talvez... mas seria preciso pagar caro essa recrudescência de ternura... Prefiro sofrer durante a eternidade, a ver-me feliz por esse preço.

— Ora! O primeiro passo é que custa. Se vossa majestade quisesse dar-se apenas ao incômodo de experimentar hoje, recomeçaria amanhã muito naturalmente e sem esforço.

— Aspásia, é um conselho infernal que me estás a dar!...

— O quê! Vossa majestade esquece que estamos no inferno? Eloa curvou a cabeça e murmurou:

— É verdade.

Depois, passados alguns segundos, acrescentou:

— Sai... metes-me horror... Aspásia inclinou-se e deixou o toucador.

Mas antes de fechar a porta, voltou-se e disse:

— Que vossa majestade se digne refletir... Por infernal que pareça, o meu conselho não é realmente mau...

— Sai!... repetiu a rainha. Se não denuncio-te ao rei!... Aspásia mostrou nos lábios um sorriso zombeteiro.

Tinha bem pouco medo de Satanás, que nas horas vagas lhe fazia a corte, e não a encontrava nunca em algum corredor sombrio, sem a agarrar pela cintura e roubar-lhe uma dúzia de beijos.

Os demônios dos maridos são capazes de tudo, principalmente quando os maridos são o demônio.

— Ai de mim! murmurou a pobre rainha, o Senhor na sua bondade, oferecia-me por esposo o arcanjo Rafael... Rafael não era. capaz de me enganar assim!...

E suspirou levando o lenço aos olhos umedecidos Neste momento Ninon de Lenclos reapareceu.

 

O DIABO NO SEU LAR DOMÉSTICO

— Então? perguntou a rainha com vivacidade.

— Então, senhora, sua majestade não está no palácio...

— Tens a certeza disso?

— Infelizmente, certeza demais.

— Quem to disse?

— O primeiro criado de quarto do rei,

— Tibério?

— Sim, senhora.

Neste ponto, devemos informar aos nossos leitores de que o ex-imperador que desejava ao povo romano uma só cabeça para lha cortar de um golpe*, tinha sido elevado por Satanás às funções puramente de confiança de criado de sua majestade infernal, funções que ele desempenhava de um modo encantador.

* O autor crê lembrar-se de que o imperador em questão foi Nero e não Tibério; mas Tibério pôde dizê-lo e pensá-lo tão bem como Nero.

 

Eloa tornou:

— Tibério mostrava-se inquieto?

— Nem por sombra, senhora; dormitava na antecâmara esperando pelo amo... e censurando-lhe, eu, o sono, retorquiu-me com um ar chocarreiro: — O rei tem a sua chave... Quando entrar acorda-me...

— Está bem, Ninon, retira-te... murmurou a rainha tristemente; já não preciso dos teus serviços.

— Vossa majestade não se despe?

— Não.

— Vossa majestade não se deita?

— Deitar-me! Para quê? Pois eu podia dormir?

— Que tenciona então fazer sua majestade?

— Esperarei...

— O quê! Até pela manhã?

— Até pela manhã, se for preciso...

— Mas, senhora, vossa majestade assim mata-se.

— Ninon, replicou a rainha com um sorriso consternador, já não te lembras de que a minha majestade é imortal?

Ninon ia responder.

Não teve tempo para isso.

Soou um grande ruído nas antecâmaras. Ouviram-se as sentinelas trocar santos e senhas.

Ao mesmo tempo bateram à porta do toucador.

Ninon correu para esta porta, conversou baixinho, durante meio minuto, com um interlocutor invisível, e voltou apressadamente para junto da rainha, dizendo-lhe:

— Senhor, Tibério precede seu amo, e vem prevenir a rainha de que o rei estará aqui em poucos segundos, e que manda perguntar se vossa majestade pode receber?

Uma alegria delirante assomou logo ao rosto de Eloa, e a palidez do seu formoso rosto foi substituída pelas mais vivas cores.

— Que venha! exclamou, e fique certo de que a rainha o esperava com impaciência.

Mal acabava Eloa de proferir estas últimas palavras, abriu-se de par em par a porta do toucador, e apareceu Satanás.

Lembraremos aos nossos leitores o retrato que traçamos de sua majestade infernal no primeiro capítulo deste prólogo. Não temos nada a acrescentar a este retrato, e também nada a cortar-lhe.

Satanás estava vestido à última moda dos fidalgos mais elegantes da corte de França pelos fins do último quartel do século XVIII.

O seu traje recomendava-se ao mesmo tempo pelo apuro luxuoso, e pela simplicidade de um gosto delicado; problema difícil de resolver, que é a feliz união da simplicidade e da riqueza.

Nós somos aqueles que dão a César o que é de César, e quando o diabo tem de ser elogiado, nós elogiamos o diabo.

Sobre uma veste de cetim branco, bordada de prata e de pequenas pérolas, Satanás trazia uma sobrecasaca de tafetá cor de malva muito desvanecida, bordada de vidrilhos.

Seguravam-lhe as meias de seda branca fivelas de diamantes e de esmalte negro postas um pouco por cima do joelho, sobre o calção de seda "gris-perle".

Fivelas semelhantes enfeitavam-lhe os sapatos de tacões vermelhos, cujas Solas eram delgadas como folhas de papel.

Um chapéu de três bicos agaloado de ouro estava posto um pouco de lado, com um jeito garrido e coquete, sobre os cabelos empoados e dispostos de maneira que, completamente, ocultavam os dois chavelhinhos do diabo.

As mangas e os bofes eram de uma renda de Alençon da maior beleza.

Brilhava-lhe ao dedo anular da mão esquerda um diamante de cem mil escudos.

Três diamantes do mesmo valor cintilavam como estrelas no punho da espada.

Os botões da veste eram de diamantes. Cada um deles valia cem mil libras.

— São muitos diamantes! exclamou talvez os nossos leitores. De acordo, mas não deve causar admiração.

Satanás, (parece-me que já o dissemos), gostava apaixonadamente de jóias, principalmente dessas pedrinhas brilhantes cujo valor é incalculável, e tinha um meio muito simples de as obter.

O meio era este:

Comunicá-lo-emos, por benevolência, aos nossos leitores, com a consciência de que vamos tornar muito mais ricos que o Barão de Rothschild todos aqueles que o souberem por em prática.

Ninguém ignora que o diamante não é outra coisa senão carbônio vitrificado instantaneamente por um calor, difícil de obter até hoje nos cadinhos dos químicos mais hábeis.

Satanás tomava entre o dedo mínimo e o polegar da mão esquerda um pedaço de carvão do tamanho do Regente ou da Montanha de luz, aproximava-o dos lábios durante um décimo de segundo.

No fim deste tempo a transformação estava realizada e o pedaço de carvão tinha-se tornado num grande diamante.

Bem vêem, nada no mundo parece mais simples à primeira vista, e este processo de transformação parece ao alcance de toda a gente.

Basta, para o realizar, ter o fôlego aquecido a duzentos ou trezentos graus... Uma bagatela!

Por que não se há de lá chegar?

A telegrafia elétrica também se inventou!... O demônio cumprimentou com ar galante na sua qualidade de cavalheiro de boa estirpe; depois, com o olhar brilhante, boquinha arqueada, braços recurvos, chegou-se à esposa para a beijar.

Levada de um ímpeto irresistível, Eloa abriu os braços, pronta a devolver carícia por carícia, àquele esposo que ela adorava apesar dos seus agravos reiterados, j Mas, deteve-a naquele momento uma reflexão:

— Se o acolho assim, se vou mostrar-lhe quanto o amo, tornar-se-á impossível qualquer explicação... E eu quero uma explicação.

E a rainha recuando dois ou três passos com grandes ares de despeito, mostrou o amuo mais encantador que se pode imaginar.

Era um procedimento verdadeiramente de mulher, e se não, perguntem-no a todas as que lerem isto.

Satanás meteu o chapéu de três bicos debaixo do braço esquerdo, com esse gesto cheio de desenvoltura, cuja tradição ainda se conserva no teatro francês.

Tirou da algibeira direita do seu colete de cetim branco uma caixinha de rape com uma pintura um pouco fresca adornada de rubis e pérolas; amassou entre os dedos e fungou com delicadeza uma pitada, e com um piparote elegante, dispersou alguns grãos de rape que lhe tinham caído sobre as rendas dos bofes.

Girou sobre o tacão vermelho, compôs os punhos de renda depois de meter a caixa na algibeira, e exclamou finalmente comendo os r r:

— Oa muito bem, minha queida amiga, que demônio se passa nessa fomosa cabecinha? Que significa esse aspecto feoz? Tem po acaso vapoes?... É uma doença da moda agoa...

— Senhor, volveu Eloa com dignidade, peço-lhe que deixe esse tom ligeiro que não é próprio da situação.

— Fala da situação, terna amiga... será ela por acaso séria? Palavra de honra que não me passava semelhante coisa pela idéia!...

— Olhe para o relógio...

— É escusado, tenho o meu; são três horas e dez minutos... Que relação estabelece entre as horas que são e a pretendida gravidade da situação em que nos achamos?

— Acha próprio, senhor, para um marido que se presa, passar mais de metade da noite fora de casa?...

— Que dúvida, ora essa! É próprio quando o marido teve de andar por fora por causa de negócios importantes.

— Tinha então negócios?...

— Ah! Se tive... de me fazerem a cabeça em água!...

— Nos seus Estados...

— Na parte mais bela e mais importante dos meus Estados...

— Sobre a Terra, ia apostar?...

— E ganhava!...

— Em França, não é verdade?...

— Acertou.

— E em Paris, decerto?...

— Safa! Já é adivinhar!

— Não é grande façanha, e poderia falar com razão.

— O senhor passa três quartas partes da vida em Paris... É verdade, ou não?

— Não pretendo negar...

— O que tem então de irresistível essa cidade para o atrair?...

— Pois não é a cidade onde encontro melhor colheita?... onde me acolhem as mais entusiásticas homenagens?... onde sou adorado sob todas as formas?

— Por que não diz também, exclamou a rainha numa cólera surda, que é a cidade onde se encontram as mulheres mais sedutoras do universo?...

Satanás ouvindo Eloa formular esta acusação indireta, fez uma cara hipócrita e beatífica, de um efeito esplêndido.

— O quê, volveu ele num tom contrito pondo a mão sobre o coração, o quê, minha querida Eloa, suspeita por acaso de mim? Ah! Seria muito mal feito... Olhe, palavra de diabo, importo-me tanto com as mulheres, como isto!! (E deu um novo piparote nos bofes). Emendei-me, e há muito já, acredite minha bela amiga, de alguns erros do meu passado!... erros desculpáveis, a final, porque o coração nada tinha com isso. Hoje em todo o mundo, não existe senão uma mulher, e é a minha rainha, a minha Eloa!...

— São palavras bonitas e boas, murmurou madame Satanás meio convencida e lutando apenas por formalidade, mais quem me afiança que elas sejam sinceras?... Vossa majestade tem-me mentido tantas vezes...

— Quer provas da minha franqueza?...

— Sim... Oh! Sim...

— Vou dar-lhas...

— Verdade, verdade?

— Mas com uma condição...

— Qual?

— É que uma vez convencida de que as suspeitas de hoje eram mal fundadas, não terá outras para o futuro, não me apoquentará com essas injustas desconfianças que tanto mal lhe fazem, e tanto me incomodam... Promete, Eloa?...

— Prometo...

— Jura?...

— Juro, e de todo o meu coração.

— Bem, durante as horas da minha ausência, acusou-me, ou pelo menos suspeitou-me de infidelidade...

— Devo concordar...

— A minha justificação parecer-vos-á completa, não é verdade, quando se vos demonstrar que o emprego do meu tempo era não só inocente, como também muito conveniente aos interesses do nosso reino?...

— Decerto... Que mais poderia eu exigir?...

Satanás, com um ar de triunfo, tirou da algibeira uma grande bolsa de aço, fechada por um cadeado, feito de um só pedaço de diamante.

Por baixo das malhas desta trama metálica viam-se mexer formas pequeninas. Através do tecido saíam pequenos lamentos.

O diabo apresentou a bolsa à mulher.

— O que tem dentro? perguntou pegando na bolsa.

— A minha justificação.

— Mas esta bolsa está fechada...

— Eis a chave do cadeado.

Eloa fez girar a delicada fechadura, e não pode conter um movimento de surpresa e quase de terror ao ver sair pela abertura uma dúzia de figuras liliputianas que se puseram de joelhos diante dela erguendo as mãos suplicantes, do comprimento de algumas linhas.

— O que é isto? exclamou ela cheia de curiosidade. Que bonecos vivos são estes?

— A minha colheita de hoje, doze almas que eu apanhei com as minhas próprias mãos... e não dessas almas de vilões e de gente de pouco mais ou menos, mas almas escolhidas, das quais a menos preciosa não deixa de ter valor... Avaliai. Esta pertence a um fidalgo que se arruinou no jogo, entre onze e meia-noite, e que resolveu, no momento em que dava meia-noite, fazer saltar os miolos com um tiro de pistola! Eis as almas de dois amigos íntimos, um marquês e outro barão, que à meia-noite e cinco minutos se desavieram, graças aos meus conselhos, se bateram debaixo de um candeeiro à meia-noite e um quarto, e se espetaram reciprocamente... Esta é a alma de um enciclopedista que sentindo-se morrer, pediu um padre com grandes gritos... Eu tomei a figura e vesti a libré do seu lacaio, fechei a porta nas ventas do cura da freguesia, e o amigo de Diderot e de d'Alembert morreu sem confissão, à meia—noite e meia hora. Veja finalmente vossa majestade, as almas de dois procuradores, de um conselheiro juiz do parlamento, de uma dançarina, de uma fidalga, de um médico célebre, e de dois literatos de algum mérito, bem conhecidos em Garis pelos seus epigramas e os seus versinhos galantes. Julga que fazendo esta ampla colheita desde a meia-noite até às três horas da manhã, não dei provas de uma atividade verdadeiramente diabólica, e me sobejou muito tempo para pensar no mal?

— Meu marido, meu querido marido... volveu Eloa lançando os formosos braços ao pescoço de Satanás. Não tinha razão... não tinha sombras de razão... as minhas dúvidas eram ridículas, as minhas desconfianças mal fundadas. Convenho nisso sem hesitação, e dou-me por feliz em o reconhecer...

O diabo voltou um pouco a cabeça, e fez, sem ser visto pela mulher, uma careta chocarreira.

Acabara de apresentar a Eloa, decorando-as de pomposos títulos, várias almas de contrabando que um dos seus angariadores de ínfima categoria lhe havia fornecido momentos antes.

O emprego do seu tempo da meia-noite às três horas, estava longe de se justificar.

— Perdoas-me o ter duvidado do teu amor, meu bem amado? disse Eloa com ternura.

— Perdôo com entusiasmo, mas com a condição de que para o futuro Eloa não duvidará?

— Oh! Nunca! Nunca! Nunca!...

— Bem! Que a recordação de tudo isto se apague como uma nuvem que passa e desaparece. Já não penso nesta pequena discórdia... Esqueça-a também, e tudo correrá perfeitamente!... mas faz-se tarde, minha formosa rainha... Deve ter precisão de descanso. Não se recolhe?

— Não me vai fazer companhia? murmurou madame diabo em voz muito comovida e com um olhar irresistível.

— Oh! isso é que não! Irei fazer-lhe companhia, minha querida amiga, e, palavra de diabo amoroso! sinto-me tão novo, tão vivo, tão apaixonado, como nos dias já distantes da nossa lua de mel...

Enquanto desenrolava estas sensaborias sentimentais, o diabo deitou o braço esquerdo em roda da cinturinha de Eloa, e tomou com ela o caminho da alcova suntuosa onde se erguia sobre um estrado um leito magnífico de colunas em espiral e cortinas cor de fogo.

Por uma aluvião de razões, das quais as melhores são excelentes, e as piores muito boas, respeitaremos os mistérios da alcova infernal, qualquer que possa ser, aliás, a respeito da nossa discrição, o pensar dos nossos leitores, e talvez das nossas leitoras.

Assim que Satanás e Eloa deixaram o gabinete de toucar, Aspásia e Ninon de Lenclos tornaram a aparecer, e como cuidadosamente tinham escutado a conversa precedente, olharam uma para a outra às gargalhadas, nem mais nem menos que duas criadinhas parisienses que zombam dos amos.

Quando os acessos desta alegria pouco respeitosa se acalmaram, graças à sua própria violência, Aspásia pegou, delicadamente, com as pontas dos dedos, uma por uma, nas pobres almazinhas que Satanás trouxera, e atirou-as pela janela fora.

Entretanto, Ninon de Lenclos apanhava um papel dobrado em forma de carta que o diabo, sem dar por isso, deixara cair, quando tirara da algibeira a bolsa de aço.

 

O BILHETE DE ROSALINDA

— Um bilhete! exclamou Ninon.

— Para quem? perguntou Aspásia.

— Para o Visconde Lúcifer de Satanás, na sua casinha da Rua do Inferno, Paris... respondeu a princesa lendo o sobrescrito traçado por mão caprichosa.

— Parece, volveu a cortesã ateniense, que o poderoso senhor desta casa toma na Terra um nome de circunstância, e possui uma casinha.

— É bastante rico para poder ter esse luxo! retorquiu Ninon.

— A carta dá grandes ares de um bilhete amoroso, minha querida... Não te parece?...

— É evidente... Basta ver a letra ultra-feminina, e respirar o aroma que se exala do papel acetinado, para eu por as mãos no fogo jurando que esta carta fala de amor ou de alguma coisa contingente...

O meu grande conhecimento da sociedade duvidosa, permite-me acrescentar que a correspondência de sua majestade Satanás deve ser o que em França se chama uma impura...

— E o que na Grécia chamávamos uma hetaira...

— Demais, vamos ver já se as nossas suposições são fundadas. Ninon abriu o bilhete.

— A data? pergunto Aspásia.

— É a de ontem, quinta-feira.

— É conquista fresca!... A assinatura?...

— Rosalinda.

— Um bonito nome...

— Sim, uma nome da comédia italiana ou do corpo de baile da ópera...

— Agora, vejamos o estilo da Rosalinda em questão... L,ê, estou ouvindo...

Ninon começou :

"Decididamente, meu querido visconde, o senhor é um homem' muito perigoso, e cuja presença se deve evitar com extremo cuidado quando uma pessoa quer conservar-se tranqüila e revestida de indiferença..."

"Debalde se põe o coração ao abrigo dos entrincheiramentos da virtude, e se toca a rebate para chamar em socorro a prudência e a desconfiança, esses fiéis e valentes alados, o senhor é um conquistador tão terrível, que a pobre fortaleza a que põe cerco tem logo a certeza de se ver constrangida a tocar a chamada e a render-se à discrição..."

"Mas, ninguém ignora quão pouco discreta é a discrição dos triunfadores do seu gênero...

"A praça cercada, um vez submetida, é tratada como país conquistado...

"Mas qual o meio de resistir ao que é irresistível?...

"Portanto, logo que eu, com custo, ou sem custo, um pouco mais cedo, ou um pouco mais tarde, teria de lhe abrir a porta, prefiro tomar quanto antes uma resolução... Mas preciso de uma capitulação honrosa..."

"Eis os artigos:"

"Primeiro, mademoiselle Rosalinda, fazendo papel de Colombine em chefe e sem partilha da comédia italiana, consente em receber em sua casa à ceia o Visconde Lúcifer de Satanás, na noite de sexta para sábado, por volta da meia-noite."

"Segundo, o Visconde de Satanás não será posto desapiedadamente à porta depois da ceia, e ver-se-á o que a dita mademoiselle Rosalinda se resolve a fazer em seu favor..."

"Terceiro, o Visconde poderá vir a ser o amigo da casa, se se mostrar digno desse favor."

"Quarto, o Visconde oferecerá a mademoiselle Rosalinda um serviço de prata novo, suficiente para uma pequena ceia de dezoito talheres."

"Quinto, mademoiselle Rosalinda aceitará."

"Sexto, o Visconde oferecerá a mademoiselle Rosalinda uma carteira de absoluta simplicidade... Esta carteira conterá umas vinte e cinco mil libras em notas.

"Sétimo, mademoiselle Rosalinda aceitará."

"Oitavo e último, se o Visconde se acostumar à casa, pedirei a menina Rosalinda que aceite, no primeiro dia de cada mês, uma quantia mínima de dez mil libras, que mademoiselle Rosalinda se julgará cada vez mais no dever de aceitar, para não causar pena ao Visconde..."

"Eis, meu querido Visconde, as cláusulas da capitulação."

"O senhor é muito cavalheiro, e sobretudo muito amável, para não aprovar de boa vontade, e assiná-las pressurosamente."

"Espero-o, pois, à hora combinada, com a prata e as vinte e cinco mil libras, e dou-lhe de muito boa vontade a» pontas dos meus dedos rosados a beijar-lhe. = Rosalinda."

"Post Scriptum: Não se esqueça de trazer alguns diamantes." "Tem-nos muito bonitos, e bem sabe que sou doida por eles!..."

— Safa! exclamou Ninon depois de ler. Parece-me que a menina Rosalinda entende de negócios tão bem como um velho procurador! A boa da pequena não deixa os seus interesses em mãos alheias!

— Sim, retorquiu Aspásia, esta pequena transação parece-me muito bem combinada, e a dita menina deve ser rapariga de tino e juízo. Quando ela nos vier fazer companhia no inferno, far-lhe-ei os meus cumprimentos a este respeito, e terei relações com ela.

Ninon pôs-se a rir.

— Tu sabias contar nos teus tempos? perguntou.

— O bastante para juntar na minha vida uma fortuna de quinhentos mil sestércios.

— Os meus cumprimentos!

— E tu, Ninon, eras rica na Terra?

— O suficiente para viver muito a meu gosto, e mostrar-me liberal quando calhava, principalmente com os versejadores e foliculários, espécie de gente que não me desagradava... Assim, por exemplo, dei a minha biblioteca a certo macaquinho que é hoje muito falado, e que nos manda cotidianamente muita gente para o inferno,

— Como o chamas?

— Arouet... o Arouetzinho... Mas parece-me que ele é geralmente conhecido agora pelo nome de Voltaire.

— E, perguntou Aspásia, voltando, ao assunto que as ocupava um minuto antes, que vais fazer do bilhete de Rosalinda?

— Dá-lo amanhã à rainha logo que o rei partir.

— Para quê?

— Para fazer desordem em casa, ora essa! O que é sempre divertido... Demais, qualquer dia espero que a rainha acabará por se vingar tomando também um amante... Pois não é absurdo e desagradável vir para o inferno, para encontrar a única mulher completamente honesta que jamais encontramos? É preciso que isto mude, e há de mudar! Eu me encarrego disso!...

No dia seguinte, messire Satanás saiu muito cedo do aposento real que acabava de partilhar com Eloa.

Esta, pelo contrário, conservou-se na cama mais tempo que do costume, e só pelo dia adiante é que tocou chamando pelas camaristas.

Aspásia e Ninon levantaram-na e vestiram-na, depois, concluído o grande trabalho de toilette, a francesa apresentou-lhe a carta de Rosalinda numa bandeja de prata, e disse-lhe:

— Quando há pouco vinha ao chamamento de vossa majestade, achei este papel sobre o tapete do toucador... apresso-me a depô-lo nas mãos de vossa majestade.

Eloa pegou no bilhete, e assim que decifrou o sobrescrito, abriu-o com um gesto impetuoso, e leu rapidamente até o fim a estranha epístola que julgamos dever reproduzir.

Durante a leitura, o rosto tornou-se-lhe horrivelmente pálido.

Quando acabou, a carta escapou-lhe dos dedos contraídos e voou até os pés do leito.

Aniquilada, fulminada, pode-se assim dizer, deixara-se cair numa cadeira.

— Sabem o que este bilhete diz? perguntou ela com uma voz triste a Ninon e a Aspásia, após alguns minutos de silêncio.

As duas criadinhas fizeram ao mesmo tempo um gesto de negativa.

— Está bem... podem retirar-se. A francesa e a ateniense obedeceram.

Eloa, que ficara só, leu e releu repetidas vezes a prosa da menina Rosalinda; fazendo o que faz muita gente que encontra uma voluptuosidade amarga em revolver a faca na ferida sangrenta.

Chorou muito; depois limpou as lágrimas, e a cólera sucedeu rapidamente à dor, ou por outra, ligou-se-lhe intimamente.

A rainha levantou-se, com os olhos enxutos e ardentes, e as faces lívidas e manchadas de nódoas purpúreas.

Tocou uma campainha.

Ninon acudiu.

— Mande avisar o rei de que preciso falar-lhe quanto antes.

Mademoiselle de Lenclos voltou passados alguns minutos.

— Então? perguntou-lhe a rainha. O rei vem?

— Não, minha senhora.

— Por que não?

— Porque sua majestade não está nos seus aposentos.

— Mas no seu reino está de certo! É mandar correios em todas as direções, que lhe transmitam o meu recado. Ninon mostrou hesitação.

— Mademoiselle, exclamou a rainha, o que espera?

— Vossa majestade há de perdoar, murmurou a francesa, mas todas as pesquisas são inúteis...

— Como sabe isso?

— Tibério acaba de me afirmar que o rei seu senhor deixou neste momento o inferno sobre um raio de sol, para se transportar para outro mundo.

— Para a Terra, não é verdade?

— Tibério ignora isso, ou pelo menos recusou dizer-mo. Apesar da sua habitual doçura, e da sua resignação quase constante, Eloa bateu o pé como uma mulher encolerizada.

Já não era senhora de si.

Como sabemos, já perdoara muitas vezes, mas agora sentia-se incapaz de perdoar.

A própria infidelidade ofendeu-a menos cruelmente que o papel de enganada que o marido lhe impusera, e ela aceitara com uma ingenuidade tão cheia de confiança durante a noite precedente.

Os seus lábios balbuciavam palavras soltas, entre as quais soavam muitas vezes estas:

— Enganar-me... vá ainda... Infelizmente já estou muito acostumada... mas zombar assim de mim... Oh! é indigno!... Vingar-me-ei.

Por fim foi serenando, e readquiriu, senão o sangue frio, pelo menos alguma tranqüilidade.

— Ninon, perguntou de repente, és-me dedicada?

— Suplico a vossa majestade que não duvide disso...

(Conhecemos a dedicação de Ninon... excelente coraçãozinho!...)

— Posso pois contar contigo? retorquiu a rainha.

— Mais depressa me deitaria ao lago de betume inflamado que faz o ornamento do jardim, que atraiçoaria a confiança de vossa majestade.

— Está bem. Conheces Flor de Enxofre?... — Conheço, sim, minha senhora.

— Sabes onde ele se encontra?

— Parece-me que sim.

— Bem, vai buscá-lo e introduze-o aqui pelas escadas particulares e pelos corredores secretos, de modo que nenhum dos habitantes do palácio possa encontrá-lo e reconhecê-lo... Vai, minha filha, e apressa-te!...

Ninon, esfregando as mãos alegremente, saiu.

 

FLOR DE ENXOFRE

Ouvindo Eloa dar a Ninon ordem de ir buscar Flor de Enxofre € trazê-lo misteriosamente ao seu quarto por corredores secretos e escadas particulares, vendo a criada sair alegre e esfregando as mãos, alguns dos nosso leitores, estamos certos, entregam-se a suposições malévolas, e suspeitam que a triste rainha pense numa dessas vinganças imediatas que toda mulher bonita tem ao seu dispor, quando se trata de infligir a pena de Talião a um esposo infiel.

Tal acusação parece plausível, mas não deixa de ser caluniosa, vamos prová-la.

Flor de Enxofre era o mais bonito, o mais espirituoso, e talvez o mais pervertido de todos os diabinhos do inferno.

Eloa, apesar de não nutrir ilusões a respeito do velhaquete, protegia-o e sentia por ele essa ternura quase maternal que as mulheres virtuosas têm para com certas criaturas de muito má índole, quando essas criaturas são encantadoras...

Da sua parte, Flor de Enxofre votava à rainha uma dedicação a toda prova, em que havia talvez um pouco de amor.

Só a ela obedecia, e indócil porém com o próprio Satanás, estava sempre pronto a conformar-se às mais insignificantes virtudes de Eloa.

Todas as vezes que esta, num dos seus freqüentes acessos de ciúme, fazia seguir e vigiar o demônio, era sempre Flor de Enxofre o encarregado dessa missão perigosa e delicada.

Por mais de uma vez, surpreendido em flagrante delito de espionagem pelo irascível monarca, suportara sem se queixar severas correções...

Não lhe impedia isto que se reincidisse.

Louro e rosado, bonito como uma mulher, Flor de Enxofre não. parecia ter mais de dezesseis ou dezessete anos.

A verdade, porém, é que ele tinha três mil anos, o que é a extrema mocidade para um diabinho...

Era amante de quase todas as raparigas do palácio, e Ninon sabia tanto melhor onde o encontrar, que o tinha oculto no seu própria quarto.

No fim, pelo menos, de meia-hora, a camarista estava de volta.

— Flor de Enxofre está na antecâmara, disse ela, e espera as ordens de sua majestade.

— Manda-o entrar quanto antes, volveu Eloa, deixa-me só com; ele.

O diabinho, assim que entrou, pôs um joelho em terra diante da sua soberana, e gracioso como Querubim junto da condessa, beijou-lhe a mão terna e respeitosamente.

— Preciso de ti, meu filho, murmurou a rainha.

— Que felicidade!... exclamou Flor de Enxofre com entusiasmo.

— Estás então pronto a servir-me?...

— Ah! Eu de bom-grado passaria dez mil anos num lago de fogo, só para ouvir vossa majestade dizer-me com a sua voz meiga; Tenho precisão de ti...

— Tu foste contudo cruelmente castigado, por Ocasião da& últimas provas de dedicação que me destes!...

— Que importa, senhora?... Sofria por vossa causa e era feliz.

— Lembra-te de que se trata hoje de desempenhar uma missão do mesmo gênero... e se tu te deixas surpreender, meu marido mostrar-se-á mais severo pela infernal razão de seres reincidente...

— Redobrarei de zelo e habilidade, e se me apanharem, suceda o que suceder, facilmente me consolarei...

— Flor de Enxofre, recompensar-te-ei realmente.

— Se vossa majestade me fala em recompensa, vai-me tirar todo o prazer!...

— Bem, não te falarei senão do meu reconhecimento...

— Vossa majestade reconhecida para com um infeliz diabinho como eu!... exclamou Flor de Enxofre. É muito, é muitíssimo!... Em suma, senhora, que é preciso fazer?

— Lê esta carta.

Eloa apresentou ao seu fiel servidor a carta de Rosalinda.

— Compreendes? perguntou depois dele concluir.

— Compreendo que vossa majestade quer saber o que se vai passar no "rendez-vous" desta noite.

— Sim, e como a ordem soberana do Senhor me proíbe que deixe o inferno uma hora que seja, e vá à Terra, só por ti posso ser informada...

— Então que vossa majestade fique tranqüila, saberá tudo.

— Aparecerás esta noite em casa de indigna rival que o rei me dá?

— Decerto, senhora.

— Mas como o conseguirás?

— Ignoro, mas a verdade é que o conseguirei.

Eloa tirou de uma taça de ônix um pequeno apito de ouro.

— Olha, disse ela ao diabinho, guarda isto com cuidado.

— Para que, senhora?

— No momento precisamente em que meu marido consumar a sua infidelidade, (ouves-me e compreendes-me, não é assim?) exatamente neste mesmo momento, chegas este apito mágico aos lábios, e tirarás um som agudo que chegará até mim.

— Vossa majestade permite-me que lhe faça uma pergunta?

— Decerto, e prometo responder-te.

— Bem, senhora, o que sucederá então?

— Um raio... porque eu tenho também o meu raio, fulminará a minha rival nos braços do seu amante.

Flor de Enxofre tornou com ar alegre:

— Admirável! exclamou ele, mas o rei?

— Oh! Que posso eu contra ele? Não é imortal assim como eu?... E demais, se a sua vida estivesse entre as minhas mãos, respeitá-la-ia, juro! por infame que seja o seu procedimento, e por justa que seja a minha cólera... amei-o, infelizmente, e sinto que ainda o amo...

Flor de Enxofre curvou a cabeça.

Este diabinho padecia deveras, quando ouvia a rainha falar do seu amor pelo rei.

Por quê? Perguntem a Querubim.

Ele também, pobre querubim, detestava cordialmente as ternuras de Rosalinda pelo conde de Almaviva!

Flor de Enxofre beijou mais uma vez a formosa mão branca e delicada de madame diabo, saiu do aposento, depois do palácio, e abrindo as duas bonitas asas de um amarelo pálido que lhe tinham dado o nome, tomou o caminho da Terra.

Mademoiselle Rosalinda, podemos afiançar que era uma pessoa muito adorável.

Imaginem uma mulher de vinte e cinco para vinte e seis anos, mais alta que baixa, com uma elegância ao mesmo tempo espanhola e parisiense, isto é, reunindo a graça voluptuosa e a graça provocante.

Um rosto ao mesmo tempo correto e coquete, contudo mais bonito que formoso, iluminado por grandes olhos azuis, debaixo de sobrancelhas negras, e realçado por uma boca risonha e zombeteira, de sorrisos lascivos capazes de condenarem Santo Antônio, e de lábios brilhantes e irônicos, capazes de desnortearem um enciclopedista e um diplomata.

Uma cintura assaz delgada para caber entre as duas mãos, assente sobre quadris bastante desenvolvidos, um busto de contornos finos e delicados, e esses ombros opulentos, essa garganta provocante e facilmente descoberta, esses belos braços de mármore branco cheios de covinhas que o galante século XVIII sabia apreciar tão bem, e Boucher sabia pintar com tanta perfeição...

Finalmente, a perna da Diana caçadora, e o pezinho de Cendrillon, e tereis assim o retrato perfeitamente exato de mademoiselle Rosalinda que fazia andar a cabeça à roda a toda gente da corte e da cidade.

Quanto ao moral da interessante cômica, vamos falar dele um pouco.

A vaidade, o espírito de cálculo, a avareza unida à ostentação compunham o fundo do seu caráter.

O que diremos do seu coração?

Nada, e temos para isso motivos.

Onde nada há, perde o romancista completamente os seus direitos!...

Como é que mademoiselle Rosalinda tinha travado conhecimento -com o terrível monarca que usava do pseudônimo de Visconde de Lúcifer de Satanás?

É muito simples.

O diabo, que em todos os tempos foi um amador assíduo e ilustrado do espetáculo, assistia à primeira representação da arlequinada que servia à estréia de Rosalinda na comédia francesa.

Sentiu logo pela comediante um violento capricho, e não tendo ninguém que pudesse apresentá-lo, tomou a resolução dele próprio se apresentar.

Em ato contínuo, escreveu um bilhete em que lhe pedia uma entrevista.

Escrito o bilhete, faltava o lacre para o fechar.

Satanás tirou um alfinete do peito e fechou com ele a carta.

O diamante do alfinete valia uma dezena de mil libras.

Encarregou-se da mensagem uma mulher do teatro.

Talvez os nossos leitores achem, e não sem razão, que messire Satanás procedia exatamente como um simples mortal.

Nada mais verdadeiro, e acrescentaremos que da sua parte, nada mais lógico.

Não era na sua qualidade de rei dos infernos que o diabo queria agradar e seduzir.

Para ter probabilidades de êxito, era-lhe preciso rodear-se do mais absoluto incógnito.

Júpiter, de memória mitológica, despojava-se do raio e da auréola, quando fazia a corte às filhas da Terra. Ora, Júpiter não era senão o próprio Satanás. Quem não sabe semelhante coisa?

Voltemos à comédia italiana.

Rosalinda achou muito eloqüente a prosa de um gentil-homem que fechava as cartas com diamantes de dez mil libras, e como era natural, teve desejo de entabular com ele relações que se anunciavam em tão bons termos.

Mandou-lhe portanto responder imediatamente, que podia apresentar-se no seu palacete da rua de la Cerisaie, onde seria bem recebido.

O diabo, durante alguns dias, multiplicou as suas visitas sem avançar muito quanto ao resultado que desejava.

Rosalinda representava um papel de leviana no teatro, e outro de virtuosa fora do teatro.

Em ambos os papéis mostrava-se de primeira força.

Fazia-se fina com o seu adorador, a fim de obter dele melhores condições quando finalmente se decidisse a capitular. Reproduziremos de propósito uma das expressões da sua carta.

Depois, naquele momento, andava muito encantada com o arlequim da comédia.

Quase todas as noites ceava em sua companhia, e só o despedia pela manhã.

O demônio resignava-se o melhor que podia, freqüentando, à direita e à esquerda, fáceis amores.

Finalmente, Rosalinda supôs que tinha feito esperar o senhor visconde de Satanás o tempo suficiente para ter a certeza de que ele lhe concederia tudo quanto ela lhe pedisse, e escreveu-lhe a carta que sabemos, a qual, graças a Ninon, Eloa também conhecia.

Vamos conduzir Rosalinda ao palácio de satanás, durante a noite do rendez-vous.

 

UMA BOA FORTUNA DO DIABO

O cavalheiro Lúcifer de Satanás mostrara-se generoso, como era próprio de um personagem de tão elevada categoria.

De tarde, Rosalinda vira chegar vários criados com grandes cofres cheios de uma prata tão bela e tão bem cinzelada, que absolutamente eclipsava o famoso serviço dado por Luis XV à Condessa Dubarry.

Logo em seguida, quatro cavalos cor de leite curveteando doidamente sobre o pátio calçado, e sopeados com dificuldade por um cocheiro muito gordo de rabicho vermelho, empoado e agaloado, anunciavam a presença de uma carruagem cor de amaranto.

Nas almofadas deste maravilhoso trem, viam-se as iniciais de Rosalinda traçadas a incrustações de prata e ouro em meio de lagos de amor.

As rodas eram chapeadas de prata.

Três lacaios gigantescos e um heiduque colossal acompanhavam este presente digno de ser oferecido a uma rainha.

A comediante acabava apenas de exprimir a sua admiração, quando um pretinho da altura de dois pés e meio, o muito, e vestido de brocado de ouro, veio entregar-lhe uma carteira de cetim branco encerrada num estojo de sândalo.

Rosalinda abriu com precipitação a carteira.

Continha, não vinte mil libras em notas de banco, mas sim cinqüenta mil.

— Palavra de rapariga bonita! exclamou a jovem entusiasmada, o visconde é um cavalheiro que sabe viver... O próprio Príncipe de Soubise não seria mais generoso! Se eu deixasse de lhe manifestar um reconhecimento sem limites, seria a criatura mais ingrata da Terra! Ah! As minhas boas amigas vão emagrecer de inveja e de despeito!... Que felicidade!...

A meia-noite menos alguns minutos, o visconde Lúcifer de Satanás fez-se anunciar.

Rosalinda esperava-o ainda vestida com o costume com que acabava de representar.

Este admirável costume consistia num vestido cor-de-rosa desmaiada que quase não tinha corpete nem saia. Com grande alegria dos freqüentadores da comédia italiana, a alfaiate bem inspirada tinha economizado o tecido em proveito da carne, uma carne esplêndida tão branca e tão rosada que a vista mal distinguia o sítio onde começava a espádua e onde acabava a fazenda.

Os pés encantadores da comediante brincavam dentro de pequenas babuchas turcas consteladas de ouro.

Mal o diabo transpunha a porta da sala, Rosalinda levantou-se do sofá onde estava meio deitada e veio lançar-se-lhe ao pescoço.

Depois, quase no mesmo instante, com um movimento de pudor tão bem imitado que o próprio satanás quase se iludiu, ela recuou baixando a cabeça com ar confuso e murmurando:

— Ah! Visconde, querido visconde, que vai pensar de mim?...

— Vou pensar que é tão boa como encantadora, e que vou ser o mais feliz dos homens.

— Ama-me, pois, verdadeiramente, visconde?

— Que pergunta! Amá-la não seria nada!.. idolatrá-la, e sou capaz de lho provar... Quero torná-la a mais rica e mais invejada das mulheres... como é já a mais formosa...

— Ah visconde, em que bonito estilo que fala e como conhece bem o meu coração! Quando diz essas coisas, nunca me cansaria de o ouvir!

— Querida Rosalinda, recebeu as bagatelas que aqui chegaram antes de mim!

— Safa, bagatelas querido visconde, chama assim aos presentes os mais magníficos?...

— É pouca, coisa, mas deve desculpar, minha encantadora... faltava-me o tempo... lembre-se de que a sua carta só ontem me chegou... eu tirarei a minha desforra, e comprometo-me a fazer muito melhor do que isto... conte com o que digo, minha amiga...

— Ora essa, visconde, é então muito rico?

— Remediado.

— O que quer dizer com isso? As despesas que lhe vejo fazer supõem receitas enormes.

— Não lhe dê cuidado a importância da minha fortuna... contente-se com saber que essa fortuna é suficiente para eu poder satisfazer todas as suas fantasias e caprichos.

— Todas?

— Sim, todas.

— Visconde, previno-o de que tenho muitas fantasias e muitos caprichos.

— Tenha mais ainda.

— E se o arruinar?

O diabo sorriu.

— Não lhe dê cuidado, tenho muitas heranças em expectativa. Debalde me arruinaria, não me veria por isso em embaraços...

Rosalinda estava radiante.

— Na verdade, dizia ela consigo, este visconde é o Pactolo!... uma mina de ouro, oh! Abençoada seja a minha estrela, que me proporcionou tão boa fortuna!...

Abriu-se uma porta, e um dos grandes lacaios mandados pelo diabo com a carruagem, anunciou em voz retumbante:

— A ceia da senhora está na mesa...

O visconde ofereceu a mão à dona da casa, e ambos se dirigiram para a sala de jantar.

Iremos ter com eles dentro de um instante, mas precisamos de nos demorar alguns segundos no salão.

Um dos principais ornamentos do salão era um imenso espelho móvel, de forma oval, numa moldura maravilhosamente esculpida.

Dois negros de ébano, com lábios de coral, olhos de esmalte e colares de pérolas com um diadema e um cinto de penas douradas sustentavam um espelho diante do qual Rosalinda ensaiava os seus costumes de teatro e repetia os seus passos, porque o seu lugar exigia não só uma comediante mas uma dançarina.

Oh prodígio! Assim que a porta se fechou após o diabo e a sua futura amante, um dos negros mexeu a cabeça, depois um braço, depois todo o corpo.

Um negro de madeira! Será possível, será crível?

Possível e crível sim, quando se souber que este negro não era outro senão Flor de Enxofre disfarçado em estátua e desempenhando o seu papel com a mais conscienciosa imobilidade.

Não se tendo oferecido à sua imaginação diabólica outro meio melhor de exercer a sua oculta vigilância no palácio da comediante, adotara este que valia bem qualquer outro.

O salão estando situado entre a sala de jantar e o quarto da cama. Flor de Enxofre podia observar o que se passava em ambas estas duas casas.

Ocultava na palma da mão direita o pequeno apito de ouro que Eloa lhe dera, e que devia atrair o raio sobre a cabeça da infeliz e pouco inocente Rosalinda...

A baixela oferecida pelo visconde, ostentava os seus esplendores sobre a mesa da comediante.

O cozinheiro caprichando em se exceder, a ceia apresentava incomparáveis maravilhas culinárias.

Os vinhos mais generosos cintilavam como rubis, como topázios, e como âmbar líquido em grandes garrafas de cristal-da-boêmia.

Estes apuros de toda espécie, eram gratos à sensibilidade de messire Satanás, muito inclinado à gulodice como a todos os outros pecados capitais.

A ceia foi a princípio muito alegre.

O senhor visconde Lúcifer estava em veia báquica e galante, e Rosalinda mostrava-se tanto menos disposta ao pudor quanto o seu conviva, entre dois beijos, tirava das algibeiras inesgotáveis colares e braceletes de diamantes, e punha-as nos pulsos e no pescoço da comediante.

Não tardou que Rosalinda se levantasse, para ir sentar-se sobre os joelhos do diabo.

Passaram ambos a ter um só prato e um só copo, e a conversa tomou uma direção tão atrevida, que nos é impossível segui-la pelo caminho perigoso que ela tomou.

Para fazer perder de todo a cabeça ao visconde, mostrando-lhe todos os dotes e todos os talentos, Rosalinda cantou de um modo delicioso alguns "complets" libertinos de Collé.

Depois de cantar, dançou, e nunca bailadeira oriental ostentou mais lasciva flexibilidade, e realizou mais voluptuosas e provocantes atitudes.

Numa palavra, antes das duas horas da madrugada, os vinhos de Espanha, as canções, as danças, os atrativos de sereia tinham perfeitamente embriagado messire Satanás, apesar de monarca e de diabo.

— Com a fortuna, minha adorada, exclamou ele, com uma voz um pouco menos firme que de costume, emprazo-a a cumprir a sua palavra sem mais demora.

— De que palavra fala, visconde, perguntou Rosalinda.

— Do que diz respeito a um dos artigos da capitulação proposta pela menina e aceita por mim... meu ídolo.

— Lembre-me esse artigo, visconde, exclamou a dançarina que se lembrava dele maravilhosamente.

— Ei-lo, cito-o de memória, porque deixei o seu delicioso bilhete na algibeira da casaca que ontem trazia. Artigo 2º O senhor visconde de Satanás não será posto desapiedadamente à porta depois da ceia, e ver-se-á o que mademoiselle Rosalinda se resolverá a fazer em seu favor. Não é verdade?

— Oh! Perfeitamente exato.

— Não nega a sua assinatura?

— Juro-lhe que não tenho desejos disso...

Estas palavras foram acompanhadas de um olhar, ao que o próprio casto José teria sucumbido, se madame Putifar tivesse olhos tão meigos como os de Rosalinda.

O visconde de Satanás levantou-se, aproximou-se da comediante vacilando um pouco, e passando-lhe o braço em roda da cintura.

— Então minha huri, perguntou ele, ainda não chegou o momento de por em execução o segundo, o famoso artigo 2º?...

Rosalinda fez uma mesura e respondeu:

— Estou às vossas ordens, meu querido visconde... Ordene.

— Bem, ordeno...

— Caluda, murmurou a comediante sorrindo e pondo um dedo na boca do diabo, cale-se, há coisas que se devem fazer, mas não se devem dizer. Venha ao salão.

— É o caminho do seu quarto de dormir?

— Sim.

— Nesse caso vamos para o salão... esperando coisa melhor.

Rosalinda abriu a porta, e fez entrar o diabo adiante.

Flor de Enxofre já tinha tomado a sua imobilidade de estátua, e a vista mais sagaz não teria podido diferenciar o diabinho de carne e osso do pretinho de madeira esculpida.

Rosalinda conduziu o diabo para um sofá.

— Querido visconde, disse-lhe ela, vai sentar-se e esperar-me.

— Por que não a hei de seguir?

— Porque vou fazer a minha toilette de noite.

— É má razão!

— A mim parece-me excelente.

— Contudo, se eu absolutamente quisesse?

— Não esqueça, visconde, que não tem direito de mandar aqui.

— Infelizmente é muito justo isso! Mas não tarda que tenha esse direito... e usarei dele. Em suma estará muito tempo ausente?

— Apenas cinco minutos.

— E depois?

— Ora! Depois... veremos.

Rosalinda entrou no quarto de dormir, e receando ser surpreendida, correu o ferrolho.

 

CATÁSTROFE

Durante os cinco minutos que se seguiram à desaparição de Rosalinda, o diabo absorveu-se numa dessas meditações um pouco mais que anacreônticas que ele se compraz maliciosamente em enviar aos homens quando os quer induzir a pecar contra o sexto mandamento.

Com certeza que aquele inconstante marido não se lembrava sequer naquele momento, de que a pobre Eloa o esperava no inferno.

Finalmente, tendo decorrido os cinco minutos, ouviu-se o ruidozinho seco do delicado ferrolho. A comediante abriu a porta e apareceu no limiar.

Substituiu a doida toilette de teatro por um comprido penteador de cassa transparente como uma nuvem, que dava a perceber muito indiscretamente os encantos que tinha por missão ocultar.

Neste penteador quase diáfano, Rosalinda era tão vertiginosamente formosa que messire Satanás, apesar de já dever estar um pouco embotado depois dos tempos de Eva a loura, soltou um grito de admiração, e Flor de Enxofre sentiu-se comovida.

— A cidade sitiada rendeu-se à discrição disse a comediante, acompanhando estas palavras com um olhar mais incendiário ainda que todos os precedentes venha, irresistível vencedor.

O diabo correu.

Flor de Enxofre, fiel às ordens recebidas, chegou aos lábios o apito de ouro, e preparou-se para fazer ouvir o sinal que devia invocar o raio.

Mas a boa estréia de Rosalinda, decidira que naquela noite o raio não estalaria.

A cena que estamos contando, devia tornar-se cm comédia e não em drama.

O diabo, ardendo em desejos, ia precipitar-se naquele aposento coquete e perfumado onde moravam as voluptuosidades.

No momento em que tocava no solo, sentiu-se repelido para trás por um obstáculo invisível sim, mas invencível.

Por três vezes repetiu a tentativa, sem obter melhor resultado.

— O que será? perguntou ele de si para si.

Que poder mais forte que o seu se colocava assim entre ele e o fim tão impacientemente desejado?

Rosalinda nada compreendia daqueles ímpetos, nem daqueles recuos inesperados.

— Então, visconde, perguntou, por que não entra, e que significa essa dança desconhecida que executa diante da minha porta?

Satanás não respondeu, e tinha motivos para isso, — não sabia mais do que Rosalinda a esse respeito.

Mas queria saber!

Aproximou-se dela quarta vez daquele limiar, impossível de transpor, e metendo cautelosamente a cabeça, examinou com um olhar desconfiado o interior do quarto forrado de cetim da China, e alcochoado por mão de artista.

Algumas telas mitológicas de Boucher, e algumas bucólicas galantes de Watteau, estavam penduradas de distância em distância ao longo das paredes.

A princípio o visconde nada descobriu de suspeito.

Cupidinhos dourados sustentavam os cortinado.; vaporosos de um leito não menos dourado, cujos suportes também representavam figuras de amores.

Nada mais natural no quarto de uma comediante.

O diabo continuava a sua exploração enquanto Rosalinda estupefata, observava o que ele fazia.

De repente estremeceu.

Acabava de descobrir num pequeno vaso de Japão posto sobre um consolo, um ramo de buxo meio seco.

— Minha pombinha, perguntou apontando para o ramo, dize-me o que é aquilo?

— Aquilo, respondeu, é buxo da quaresma passada. Satanás estremeceu dos pés até a cabeça.

Rosalinda, como a maior parte das suas colegas na galanteria, que em nada acreditam, e não têm nem na cabeça nem no coração nenhuma idéia religiosa, tinha, contudo, certo número de superstições desarrazoadas e inconseqüentes, que ela com muita dificuldade explicaria.

Por exemplo, quando encontrava um enterro, fazia o sinal da cruz, sem saber explicar o sentido simbólico daquele sinal admirável

Observava o jejum de sexta-feira santa, ignorando porém as imperecíveis recordações de sacrifício e redenção que andam ligadas àquele dia.

Finalmente, sem suspeitar o que recorda ao mundo cristão a solenidade do domingo dos Ramos, punha todos os anos no seu quarto um ramo de buxo bento.

Devemos acrescentar que três quartas partes das pecadoras de Paris moderna acham-se exatamente no mesmo caso em que está a menina Rosalinda, e procedem pela mesma forma.

— Meu ídolo, tornou o diabo com uma voz pouco firme tire isso daí, peço-lhe...

— O meu ramo?

— Sim, minha formosa amiga... e depressa se tem alguns desejos de me ser agradável...

— Ora essa! visconde, está doido! Por que é que lhe desagrada a presença deste ramo bento no meu quarto de dormir?

Ouvindo proferir a palavra bento, Satanás teve um calafrio.

— É absurdo, bem sei, volveu ele, mas que quer?... É uma invencível fraqueza... a simples vista de um ramo de buxo ataca-me os nervos, e não entrarei enquanto não suprimir esse...

— É um fraco estranho na verdade, replicou Rosalinda, mas visto que parece desejar isso tanto, vou fazer-lhe a vontade...

Tirou o ramo do vaso de Japão e dirigiu-se para a porta da sala. O senhor Satanás recuou com terror manifesto, exclamando:

— Não se chegue, minha pombinha... Com a fortuna, não se chegue!

Rosalinda deteve-se:

— Ora esta! disse ela pondo-se a rir, sabe, visconde, que se fosse o diabo em pessoa, não teria mais medo deste triste ramo...

— Meu ídolo, balbuciou o visconde, cujos dentes batiam uns nos outros, não diga essas coisas, não as diga nunca, por amor de mim!...

— Meu Deus, como é original! Meu Deus! Meu Deus!...

O diabo pareceu que ia desmaiar, e com dificuldade murmurou: — Não pronuncie nunca essa palavra!... Nunca, ouve?... nunca!...

— O quê? Que palavra? Não o compreendo; que disse eu que não possa tomar a dizer? Pois não posso falar nem do bom Deus nem do diabo?

As pernas de Lúcifer vergavam, — cambaleou.

— Bem! exclamou Rosalinda, lá vai ele sentir-se incomodado... só faltava isto! Deus tenha piedade de nós!

E aproximou-se rapidamente dele, conservando na mão o ramo bento.

O diabo saltou para trás balbuciando:

— Não me toque, Rosalinda!... Afaste-se!... Não me toque!... A comediante parou.

— Este pobre visconde esta doido de todo! pensou ela, mas é o mesmo! Ê assaz rico para poder ter as maiores extravagâncias da Terra.

Depois em voz alta:

— Vamos, tranqüilize-se, não lhe tocarei, e levo o meu ramo para outra sala... Mas ao menos deixe-me passar, senhor visconde Lúcifer de Satanás...

Neste momento acudiu-lhe uma vaga recordação de infância, e acrescentou rindo, sem suspeitar o sentido místico da fórmula que proferia:

— Vade retro, satanás!

O diabo soltou um grande berro, e desfez-se em fumo.

Mal acabava de desaparecer, com profunda estupefação de Rosalinda, o espelho movediço sustentado pelos dois pretinhos, caiu sobre o tapete com grande estrondo, e fez-se em mil pedaços.

Faltara-lhe um dos suportes.

Flor de Enxofre deixara o soco sobre o qual parecia pregado, e pulava doidamente no meio da casa.

Estes dois lances teatrais sucessivos, o amante que se safa, o negro de ébano repentinamente animado e fazendo piruetas como um pião, todo este maravilhoso, finalmente, abalou o cérebro da comediante, que não estava costumada a viver em plena magia senão no teatro.

Largou o ramo bento que acabava de lhe salvar a vida, deixou-se cair sobre o sofá, e desmaiou.

Acordando no dia seguinte, a comediante achou-se só. Apenas tinha uma recordação confusa dos sucessos da noite precedente.

A desaparição do visconde Lúcifer, e as piruetas do preto, apenas lhe apareciam através de um nevoeiro, como as coisas estranhas que se vêem em sonhos...

— O próprio visconde me explicará o que se passou... disse consigo, dormi mal por certo, e as minhas idéias não são muito claras... não pensemos mais nisto...

Levantou-se e quis tornar a ver os presentes maravilhosos da véspera.

Oh! consternação!...

Os colares e os braceletes de diamantes tinham-se transformado num conjunto informe de pedacinhos de carvão, exalando um cheiro sulfúrico.

A carteira de cetim branco só continha folhas de papel pardacento.

Uma barrica velha e quatro bodes barbudos e fedorentos, substituíam a carruagem amaranto e os cavalos cor de leite...

O cocheiro gordo, os três lacaios e o heiduco tinham desaparecido...

Pobre Rosalinda!

Não prova isto, sem réplica, que não devemos nunca nos dar ao diabo?

 

OS FANTOCHES DA RAINHA

Quando, depois daquela noitada, voava para o planeta Vênus, Flor de Enxofre teve um pensamento bom.

— Os projetos amorosos de sua majestade Satanás, disse ele consigo, e a sua tentativa de infidelidade abortaram completamente. Visto que tenho de participar à rainha que o marido não foi culpado, para que lhe hei de revelar, ao mesmo tempo, as causas forçadas daquela inocência? Para que hei de fazer chorar aqueles formosos olhos, quando, pelo contrário, posso secar-lhe as lágrimas sem faltar à confiança que aquela soberana adorada deposita em mim? Os habitantes da Terra têm um provérbio que me parece aplicável à situação, e é este: Nem todas as verdades se dizem!

Contando o que se passou, apoquento a rainha e irrito o rei. Calando-me, pelo contrário, ou, pelo menos, apresentando os fatos de uma certa maneira que estou vendo, sirvo ao mesmo tempo os interesses de ambos, e bem mereço tanto de um como do outro. Não hesitemos.

Uma vez tomada a sua resolução no sentido que indicamos. Flor de Enxofre apresentou-se no palácio e foi introduzido por Ninon à presença de Eloa.

— O que vens participar-me? perguntou-lhe Eloa com vivacidade. Tenho esperado toda a noite o sinal, e o sinal não veio. Devo dai concluir que te foi impossível introduzir em casa dessa Rosalinda, ou que te deixaste surpreender pelo rei? Qual destas suposições é a mais bem fundada?

— Nem uma nem outra se aproximam da verdade, senhora... respondeu Flor de Enxofre.

— O quê! Pois meu marido não foi à entrevista?

— Foi.

— Então?

— Mas, senhora, prosseguiu Flor de Enxofre, as intenções do rei, ao solicitar da comediante uma entrevista, não eram as que vossa majestade supunha.

— Explica-te... O que queria meu marido com essa rapariga?

— Sua majestade o rei ama loucamente o teatro, e tem idéias de introduzir, nos seus estados, cenas para os seus prazeres e para os de vossa majestade, e pretendia consulta a menina Rosalinda a respeito da maneira de compor uma boa companhia dramática.

— Mais nada?

— Mais nada.

— Dizes-me a verdade. Flor de Enxofre? Não me ocultas nada?

— Eu nutria a esperança de que vossa majestade se dignasse reconhecer a minha dedicação.

— Tens razão, eu faria mal se duvidasse da tua franqueza. E o que respondeu a menina Rosalinda?

— Não respondeu coisa boa. Metera-se-lhe em cabeça que o rei queria inscrever-se na lista dos seus adoradores, e quando ele lhe falava em teatro, ela retorquia-lhe em amor.

— E meu marido não sucumbiu às seduções dessa intrigante?

— Tem a prova disso, senhora, visto que o apito não soou.

— Contudo, ela é bonita?

— Encantadora... Porém mil vezes menos bela que vossa majestade.

Eloa corou.

— Não me fales nunca da minha beleza, disse ela, é só a meu marido que desejo parecer formosa.

— Perdoe-me vossa majestade... Os meus lábios só obedeceram aos impulsos do meu coração.

Eloa tornou a corar, e murmurou em tom breve, mas sem cólera:

— É quanto basta, é demais. Flor de Enxofre. Não devo, não quero ouvir mais nada a esse respeito.

O diabinho inclinou-se respeitosamente. A rainha retorquiu:

— Estou reconhecida pelo serviço que acabas de me prestar, e enchestes-me de alegria justificando meu marido no meu conceito... Vai, vai, meu filho, não te ofereço nenhuma recompensa, mas no dia em que precisares da minha proteção, fica certo de que essa proteção não te há de faltar.

Flor de Enxofre beijou a mão de madame Satanás e saiu.

Ninon, que o esperava na antecâmara, interrogou-o sem lhe poder arrancar uma palavra. Estava triste e silencioso, tinha remorsos da boa ação que praticara!...

Eloa, que ficara só, entregou-se a um interminável monólogo que se pode resumir em poucas linhas:

— Meu marido aborrece-se e vai procurar distrações sobre a Terra. Para o prender junto de mim seria preciso dar-lhe as distrações de que ele gosta... Mas como conseguir isto?

Esteve a refletir até a noite; depois, de repente, exclamou como, Arquimedes:

— Achei!...

O que fez foi não o dizer em grego.

Mandou logo chamar um velho mágico, chegado recentemente ao inferno, depois de ter sido queimado vivo pelos seus malefícios e sortilégios.

Conversou muito tempo com ele, e depois de o deixar, pareceu encantada com a sua ciência e as suas promessas.

Passaram-se alguns dias sem se ouvir falar do mágico.

Depois, uma manhã, apareceu no palácio, escoltado por dois condenados de inferior condição, que traziam às costas uma caixa bastante grande que parecia muito pesada.

Ele mesmo trazia na mão dois óculos de ouro e de cristal de rocha, encerrados em estojos de veludo escarlate.

O grande cofre, sempre acompanhado pelo mágico, foi colocado nos aposentos da rainha.

— Sábio ancião, perguntou-lhe Eloa, conseguistes?...

— Parece-me que sim, e venho submeter a vossa majestade os resultados do meu trabalho...

A um sinal da rainha saíram todos, deixando-a só com o nigromante.

A sua conferência durou duas horas.

No fim deste tempo Eloa mandou prevenir o rei de que lhe pedia que fosse ter com ela.

Messire Satanás acudiu logo.

Depois da sua derrota terrestre, fazia profissão de galanteria para com a sua mulher, e antecipava os seus menores desejos. Não é só no inferno que se encontram maridos daquela tempera.

Conhecemos muitos que, em sendo mal sucedidos por fora, tornam-se verdadeiras pombinhas no seu lar doméstico e rolam de um modo encantador, até a sua primeira tentativa de infidelidade.

— Chamas por mim, querida Eloa, disse, eis-me aqui.

— Meu amigo, retorquiu a rainha sorrindo, preparo-lhe uma surpresa.

— Preparada por quem é, não pode deixar de ser encantadora! De que se trata?

— Disto.

Eloa pegou na mão do marido e conduziu-o a uma mesa redonda, coberta de uma grande porção de figurinhas executadas com prodigiosa arte, representando homens e mulheres de todas as idades, revestidos de trajes de todas as profissões e de todos os países do mundo.

O criador deste grande número de bonecas dera provas na sua confecção de um maravilhoso talento. Não eram enormes figurinhas grosseiramente talhadas num pedaço de pau, iluminadas de cores vivas e cruas, eram verdadeiros personagens em miniatura, exprimindo no rosto um sentimento ou uma paixão, e cujos olhos pareciam vivos.

— Olha! exclamou o diabo, ou muito me engano, ou são fantoches!

— Não se engana.

— E o que quer fazer com isto, querida amiga?

— Sei que gosta de teatro, respondeu Eloa, e quero dar-lhe espetáculos cômicos.

— Com estes fantoches?

— Exatamente... são os meus atores.

— Fala sério?

— Sério.

— Mas, minha formosa rainha, os seus espetáculos parecem-se muito, receio, com esses divertimentos de feira, em que irreverentemente me põem em cena com o polichinelo e o comissário!

— Que quer, meu amigo! Não posso dar-lhe a comédia italiana, mas faço o que posso para remediar essa falta.

Satanás olhou para Eloa, a fim de ver se estas palavras não ocultavam alguma alusão à menina Rosalinda.

O rosto risonho da bela exprimia a mais perfeita serenidade. O diabo sossegado, tornou:

— Não vejo o seu teatro. E onde está ele então?

— Não tarde que o veja... Neste momento, meu amigo, dê-me uma satisfação.

— Estou pronto... Fale, que obedeço.

— Escolha entre os atores desta companhia, ou antes desta multidão, certo número de personagens.

— Com todo o gosto; mas para que?

— Depois verá... Porém, primeiro que tudo, faça o que lhe peço.

Como dissemos, Satanás era de gênio galanteador.

Submeteu-se ao capricho da rainha, por muito absurdo que este capricho lhe parecesse, e tirou de cima da mesa muitos comediantes pequeninos de madeira.

Eloa meteu-os numa condessa forrada de cetim.

Na condessa foram instalados sucessivamente os seguintes fantoches :

1.° Um janota pretensioso.

2.º Um cavalheiro de rosto sombrio.

3.° Um sujeito magro empregado numa agência.

4.° Um ancião de bela presença e de cabelos brancos.

5.° Um grande número de mulheres muito formosas, de cabelos de todas as cores.

6.° Um grande número de homens pertencentes à alta categoria do janotismo.

7.º O Demônio Ouro representado pela figura de um sujeito cujo rosto consistia numa moeda de ouro esplêndida e enorme.

8.° O Diabo Amor, conhecido pelas asas, pela aljava, e pelas setas tradicionais.

— Será bastante? perguntou o diabo.

— Mais alguns... respondeu a rainha.

Então Satanás, tomou, sem os contar, punhados de fantoches e deitou-os na cesta.

— E agora o que vai fazer? perguntou messire Satanás.

— Sabê-lo-á num instante... dê-me o braço e subamos.

— Aonde?

— A grande torre do palácio.

— Que singular capricho é esse de subir tão alto, minha querida amiga?...

— Não pergunte e venha.

O diabo resignou-se. Ofereceu o braço à rainha, e ambos, seguidos pelo mágico, com os seus óculos metidos nos estojos de veludo, e por Ninon e Aspásia levando a condessa, subiram a espiral da escada interminável que conduzia à plataforma de uma torre alta como os cumes do Himalaia.

Do cume desta construção gigantesca dominava-se o mundo inteiro, e o globo terrestre desenhava-se no espaço, como a lua se desenha para nós no firmamento azul.

— Safa! exclamou o diabo subindo o último degrau. Depois tornou num tom de interrogação:

— E agora?...

— Agora, respondeu a rainha, vai ver se os meus pequeninos atores sabem desempenhar os seus papéis...

Satanás repetiu a pergunta que já formulara antes de subir à plataforma.

— Onde é então o teatro?

Eloa estendeu a mão para a Terra e disse:

— Ei-lo...

E ao mesmo tempo pegou num dos fantoches e atirou-o através do espaço. A figurinha, em vez de cair como lhe prescreviam as leis físicas, a uma pequena distância da base da torre, voou pelo espaço e desapareceu no fim de alguns segundos.

Todos os mais tiveram a mesma sorte. Satanás assistia a esta singular experiência, e não compreendia nada.

Quando já não havia figurinhas na condessa, exclamou:

— Por onde estão os seus atores dispersos! Onde estão, e como os tornará a encontrar?

— Entram em cena... replicou a rainha.

— Ora essa!...

— Olhe...

Ao mesmo tempo apresentou ao marido um dos óculos do mágico. Satanás aproximou-o do olho direito, assestou-o para os lados da Terra e soltou um grito de surpresa. Viam-se mover distintamente os pequenos personagens escolhidos por ele e atirados para os ares por Eloa. Estes personagens já não eram homúnculos ou pigmeus, mas verdadeiros homens e mulheres vivos e reais... E não só os via trabalhar, mas também, os via falar...

O que o diabo viu e ouviu, vamos contá-lo.

 

O DEMÔNIO OURO

O PALÁCIO DE LA TOUR-DU-ROY

Como os óculos eram de ver ao longe, a vista do diabo alcançou os nossos tempos.

No dia 20 de setembro de 1874, pelas onze horas da manhã, a boa cidade de Orleans, habitualmente tão sossegada e tão pouco buliçosa que parece quase adormecida, apresentava uma animação e um movimento desacostumados.

Um regimento de hussardos, que mudava de guarnição, acabava de chegar, com a música à frente.

Oficiais e soldados, depois de receberem os seus aboletamentos, percorriam as ruas, em busca das residências designadas pela "mairie"

Um jovem tenente, bem montado, seguido do seu camarada que trazia de rédea um cavalo de raça de bom preço, parou numa rua silenciosa, defronte do portão de uma residência evidentemente aristocrática.

O portão muito antigo, de carvalho maciço, guarnecido de ferragens artisticamente trabalhadas pelo serralheiro, apresentava, na meia-porta da esquerda, um postigo de abrir e fechar, pelo qual se podia conhecer os visitantes antes de entrarem.

O centro da outra meia-porta tinha uma aldrava de ferro polido, cinzelada como uma preciosidade, e cujos arabescos de metal emolduravam um escudo encimado por uma coroa de marquês.

Por cima do portão, via-se, em relevo, o mesmo escudo.

O oficial encaixou na arcada superciliar do olho direito o monóculo que lhe pendia ao peito na extremidade de um cordãozinho de seda, e olhou, alternadamente, para o seu boleto e para o número da casa.

— É isto perfeitamente... murmurou. Depois acrescentou: Bernard...

— Meu tenente? respondeu o camarada.

— Apeia-te e toca...

— Meu tenente, não há capainha...

— Bem, então bate em vez de tocar. Vejo uma aldraba, e por sinal que parece muito bonita...

— Sim, meu tenente.

A uma pancada, ecos longínquos acordaram no interior do palácio.

Uma portinha de serviço, ao lado do portão, girou, e entre os umbrais de pedra assomou a majestosa rotundidade de um guarda-portão todo vestido de luto, que perguntou:

— Que pretende, meu oficial?

O recém-chegado responde com a seguinte pergunta:

— Este é o palácio da la Tour-du-Roy, não é verdade?

— Sim, meu oficial.

— Então, abra, por favor.

— Abrir? murmurou o homem, para quê?

— Para nos deixar entrar a mim, ao meu camarada e aos meus cavalos.

— Entrar! repetiu o homem estupefato. Quer entrar no palácio de la Tour-du-Roy?

— Quero, então!... Quero e devo, visto que o meu boleto é para aqui...

— O quê! Deram-lhe um bilhete de aboletamento para nossa casa?!... exclamou o porteiro cujo espanto parecia aumentar.

— Se duvida, aqui o tem! redarguiu o tenente já impacientado. Olhe bem para ele, e, com a breca, abra quanto antes, porque já. vou achando esquisito o modo como recebe um oficial que lhe é recomendado pela administração municipal da cidade!

— Peço-lhe me desculpe, senhor tenente... Eu não sabia.., não julgava... vou já...

— É o que deve fazer!

O importante personagem desapareceu; ouviu-se girar a chave na fechadura do portão; os duas batentes descerraram-se, franqueando a passagem.

O mancebo deu de rédea ao cavalo, penetrou num vasto pátio-quadrangular de grande estilo, e parou olhando para todos os lados.

O palácio que estava admirando era edifício muito mais importante do que se podia suspeitar por fora.

A parte principal do palácio, contemporâneo de Luís XIII, contava treze janelas de frente em cada andar.

A direita e à esquerda, pavilhões mais modernos, mas do mesmo estilo, formavam dois dos lados do quadrilátero.

Uma entrada à italiana, com dois lances de escada e coberta de vasos de flores, conduzia a uma porta de vidraças que dava acesso pra o vestíbulo.

Fronteiro às janelas do rez-de-chaussée, cujas portas de madeira estavam cerradas, via-se um renque de laranjeiras tão belas como as das Tulherias.

Três varandas de pedra, com balaustres esculpidos, deitavam para o pátio.

As varandas do andar superior eram de ferro.

A cor azulada das ardósias do telhado casava-se harmoniosamente com a cor um pouco amarelada das paredes antigas. Águas-furtadas cobertas de zinco, coroavam o edifício.

O tenente, a cavalo e parado no meio do pátio, assestara novamente a luneta e admirava como apreciador e artista aquele conjunto imponente.

— Muito estilo! murmurou. Uma aparência senhorial! Amanhã pela manhã, se eu tiver tempo, e os proprietários acederem, hei de esboçar as frontarias.

Enquanto o tenente assim monologava, saíram das cavalariças dois criados para segurar os cavalos, e o porteiro tocou a sineta, anunciando visitas.

O oficial apeou-se. Ao mesmo tempo apareceu no vestíbulo um criado grave, velho, alto e calvo, muito circunspecto, de casaca, calções curtos e sapatos de fivela, desceu vagarosamente os degraus, dirigiu-se ao tenente, e depois de o cumprimentar, colocou-se diante dele em atitude de quem interroga.

O criado estava pálido. Tinha os olhos vermelhos como quem acaba de chorar.

— Que cara de desenterrado! pensou o moço oficial. Continua o singular acolhimento.

Depois em tom mais alto e breve:

— Venho aquartelar-me nesta casa... Aqui está o boleto: um tenente, o seu camarada e três cavalos...

O velho criado ergueu os olhos e as mãos ao céu, denotando no rosto o mesmo espanto que mostrara o porteiro, porém mais intenso ainda.

— Uma ordem de aboletamento para aqui! murmurou por entre dentes. Ah! meu Deus! Quem tal diria! É preciso que aquela gente da mairie esteja doida, ou nos queira muito mal!...

Em seguida, dirigindo-se ao tenente com uma delicadeza forçada e manifesto empertigamento, acrescentou:

— O senhor quer fazer a honra de me acompanhar? Estou às suas ordens. Deve-se obediência à lei...

Sem esperar resposta dirigiu-se para a escada, subiu os degraus, afastou-se para deixar passar o mancebo, e disse:

— Peço me desculpe... Sou obrigado a deixá-lo só por um instante neste vestíbulo... As portas da sala estão fechadas... ir procurar as chaves levaria muito tempo. A minha ausência não excederá cinco minutos...

Dito isto, inclinou-se por segunda vez, e a passo empertigado e automático saiu por uma porta lateral.

— Palavra de honra! pensou lá consigo o tenente olhando em roda, se não estivesse como estou, tão cansado, de boa vontade passava aqui não só cinco minutos, mas até uma hora! Tudo isto é muito curioso... este vestíbulo tem aparências de museu.

Efetivamente, os apainelados de carvalho negro emolduravam telas antigas de grande valor artístico, representando batalhas e cenas campestres.

Armaduras embutidas de um trabalho precioso, e troféus de armas de caça e de guerra, ocupavam os intervalos de quadro a quadro.

Debaixo destes troféus e destas armaduras, pedestais de porfiro sustentavam, então, bustos de mármore branco.

— Soberbo! Esplêndido! continuou o tenente passando revista. Os donos deste palácio são, com certeza, fabulosamente ricos e dotados de superior gosto artístico... Se o vestíbulo é de um tal aparato, o que não serão as salas?!...

O exame não se prolongou por muito mais tempo.

No fim de pouco menos de quatro minutos, tornou a aparecer o criado.

O seu empertigamento e a sua atitude quase agressiva estavam grandemente modificadas, e foi num tom meio gracioso que disse:

— Vou ter a honra de conduzir o senhor oficial ao seu aposento. O mancebo seguiu o seu guia subindo os degraus de uma escada grandiosa coberta de tapete escarlate.

Chegaram à galeria que comunicava com o segundo andar, e que recebia luz por oito janelas, as quais deitavam para um imenso jardim plantado de árvores seculares.

O criado abriu a porta, e o oficial entrou num vasto aposento «que satisfaria o gênio artístico mais difícil de contentar.

A decoração e a mobília eram puro estilo Luís XIII.

O teto era pintado a ouro e cores vivas. Revestiam as paredes panos de arras. Iguais tapeçarias emolduravam um leito de armação, e serviam de bambinelas e reposteiros.

Os baús, as mesas e cadeiras eram já antigas, como se diria num leilão, mas estavam perfeitamente conservadas.

O velho criado olhou para o interior do quarto com modo complacente e disse:

— Espero que não lhe fale aqui o que é essencial, posto que não fosse esperado.

— Ora essa! Tenho a certeza de que ficarei muito bem alojado! redarguiu o mancebo que, falando, tirou da carteira um bilhete de visita e deu-o ao criado, acrescentando:

— Peço-lhe que entregue este bilhete ao dono da casa, e diga-me depois a que horas poderei ir cumprimentá-lo.

O criado estremeceu ao ouvir aquelas tão simples palavras.

— O dono da casa? repetiu ele, então o senhor não sabe?

— Não! Não sei coisa alguma!... Que quer que eu saiba? Cheguei há pouco, e não conheço aqui ninguém... Então, que há?

— Acontece que o senhor está numa casa onde acaba de suceder uma enorme desgraça... Sofremos, há três dias apenas, o grande desgosto de perder, quase de repente, o Marquês de la Tour-du-Roy, meu venerado amo... Ontem, este palácio estava armado de luto... A senhora Marquesa, muito desgostosa, encerrou-se no seu quarto, e ainda não saiu de lá, não e visível para ninguém. Eu mesmo, só com grande custo, consegui há pouco falar-lhe... Não pode, portanto, convidar para a sua mesa o senhor tenente, a quem ela me encarregou de manifestar o seu pesar por tal motivo. Ordenou-me a senhora Marquesa que eu ficasse às suas ordens. Queira o senhor tenente ter a bondade de me informar dos seus hábitos, e dizer a que horas quer jantar.

— Estou bastante penalizado, afianço-lhe, disse o oficial com viveza, de ter vindo para uma casa onde tão grave desgosto acaba de ter lugar, e onde a presença de um estranho é importuna. A mairie de Orleans mandando-me para aqui, provou que esquecia todas as conveniências, e manifestou pouca delicadeza. Se eu tivesse sabido disto, teria, não digo recusado, mas inutilizado este boleto, e tomado alojamento em qualquer hospedaria. Agora é já tarde para remediar o mal. Ficarei, pois; mas Deus me livre de ser causa de incômodos.

— O senhor causa nenhum; o hóspede da senhora Marquesa pode julgar-se aqui como em sua casa... Espero as suas ordens.

— Não tenho ordens nenhumas a dar-lhe. Vou descansar um pouco, escrever algumas cartas, e sair depois. É possível que eu volte tarde.

— O senhor não janta cá?

— Não; eu e os meus camaradas fomos convidados pelos oficiais da guarnição... Já vê que para mim nada peço; recomendo-lhe, isso sim, o meu camarada, um bom rapaz, muito afável e condescendente, que não o há de importunar muito.

— Pode ficar descansado, senhor tenente... o soldado há de ser bem tratado. Levo o seu bilhete, meu senhor, para ser entregue antes da noite à senhora Marquesa, por intermédio de Mariette, a sua criada grave.

O velho criado dirigiu-se para a porta que conduzia à galeria, mas quando ali chegou parou, voltou para trás e disse:

— Naquele móvel encontrará papel, penas e tinta, enfim, o necessário para escrever.

Acrescentou, apontando para um reposteiro defronte do leito:

— O quarto de toilette é ali.

Depois saiu, mas, desta vez, definitivamente.

O tenente como ficasse só, correu o reposteiro de que lhe tinha falado o criado, e entrou no quarto vizinho.

Ali era tudo moderno, e, tudo quanto a comodidade pudera inventar, estava representado sob múltiplas formas... Graças a um engenhoso aparelho, era até possível fazer uma complicada lavagem sem derramar uma gota de água sobre o fino tapete macio como a relva.

— Quando me caírem do céu cento e cinqüenta mil libras de renda, murmurou o oficial rindo, hei de ter um palácio assim, e um quarto de toilette como este.

Ao fundo do quarto havia uma porta.

Supondo que conduzia para algum outro quarto do mesmo aposento, o curioso visitante diligenciou abri-la, mas não o conseguiu. Estava fechada pelo outro lado, e talvez dela não se fizesse uso.

Isso pouco importava ao mancebo.

Abriu uma das torneiras de prata colocadas por cima de duas grandes bacias assentes sobre um imenso lavatório de mármore branco. Lavou o rosto e as mãos na água pura, em seguida, bem refrescado, dirigiu-se para o quarto de dormir, e recostou-se num esplêndido fauteuil encimado por um dossel e forrado de veludo cor de púrpura realçado pelos galões de ouro.

Esta cadeira, como obra de arte, era já, sem dúvida, recomendável, mas como móvel de descanso, só muito imperfeitamente produzia o efeito dessas amplas poltronas que os estofadores do século XIX, homens práticos, inventaram.

Todavia, como o cansaço ajudava, o oficial adormeceu com um sono profundo.

Havia já meia hora que o tenente dormia, quando sucedeu um fato singular...

 

SURPRESA

Um volver de olhos lançado para o bilhete de visita entregue pelo tenente ao criado, bastar-nos-ia para ficarmos sabendo que ele se chamava Marcel Laugier.

Tinha vinte e cinco anos.

Era um bonito rapaz, mais alto do que baixo. As suas formas desenvolvidas anunciavam vigor excepcional que não destruía a elegância. O rosto um pouco crestado pelo tempo, e o cabelo preto naturalmente anelado compunham umas feições muito regulares e simpáticas. Revelavam inteligência e energia os seus olhos negros, sombreados por longas pestanas que imprimiam no olhar meiga expressão.

O pequeno bigode de um cabelo muito sedoso e mais claro que o da cabeça, era conquistador.

O conjunto daquela cabeça admirável, tinha tanto de soldado como de artista.

E, com efeito, o mancebo ocupava os seus ócios na pintura, e os mestres na matéria concordavam em reconhecer nos seus ensaios as promessas de um talento brilhante.

Marcel Laugier pertencia a uma muito honrada família normanda da velha burguesia. Era filho único, possuía seis ou sete mil libras de renda que herdara de sua mãe, e por morte do pai tinha a herdar uma fortuna relativamente considerável.

A guerra franco-alemã fizera revelar a sua vocação militar.

Alistado num regimento de cavalaria no momento em que era tão desastrosamente experimentada a sua Pátria, condecorado após um brilhante feito d'armas realizado no campo da batalha de Coulmiers, ficou ao serviço depois da paz, e os seus camaradas, longe de se mostrarem invejosos pelos seus adiantamentos rápidos e merecidos, afirmavam, pelo contrário, que não teria de esperar muito tempo pelas dragonas de capitão.

Deixamos o oficial que dormia profundamente havia meia hora, recostado no antigo fauteuil de carvalho esculpido.

A cabeça expressiva e delicada sobressaía fortemente no veludo vermelho escuro que lhe servia de travesseiro.

A farda desabotoada, deixava admirar a alvura do pescoço, semelhante à do Baco indiano.

Uma das mãos, de um desenho muito correto e nobremente modelada, pendia ao longo do móvel secular.

O pintor que tivesse de compor um quadro naquele gênero, não disporia o seu modelo de um modo mais natural nem mais elegante.

Foi então que se deu o fato singular, que mencionamos no fim do precedente capítulo.

O tenente estava mesmo na frente da porta do reposteiro que separava o quarto de dormir do quarto de toilette.

Sem que se ouvisse o menor ruído naquele quarto, viram-se mover as pesadas tapeçarias.

Uma mão delicada, de dedos afilados, cobertos de anéis brilhantes, afastou o reposteiro com uma lentidão e precaução infinitas, em seguida apareceram uns olhos de estranha beleza e que pareciam quase fantásticos, porque a parte superior e inferior do rosto, ocultas pelo reposteiro, pareciam como que cobertas por uma máscara.

Aqueles olhos dirigiram-se para o adormecido, e durante alguns momentos estiveram fitos nele.

Afirma-se que o olhar fito e demorado desenvolve certo fluido-magnético de um incontestável poder. Pela nossa parte, não duvidamos deste fenômeno, e poderíamos citar, em apoio da nossa, crença numerosos exemplos.

Ou fosse que o fluido dos olhares misteriosos atuasse no oficial, ou fosse efeito do acaso, Laugier fez um movimento.

Bateram-lhe as pálpebras, entreabriu a boca, mas estremeceu-lhe a mão. Dir-se-ia que ia acordar.

Os dedos constelados de diamantes largaram logo as tapeçarias, que caíram. O reposteiro cerrou-se ocultando os olhos mágicos. Tudo desapareceu.

O tenente tornou a ficar imóvel, e durante ainda uma hora dormiu.

Ao fim desse tempo, a sua cabeça, que se tinha pouco a pouco inclinado sobre o peito, ergueu-se, estendeu os braços, passou uma das mãos pelo rosto, como que para afugentar um resto de torpor, e sentiu-se reanimado e bem disposto.

Levantou-se, escreveu duas ou três cartas, entrou no quarto de toilette que achou deserto como no momento da sua primeira visita, fez novas ablusões, abriu a mala, vestiu o seu grande uniforme, tirou um par de luvas gris-perle de irrepreensível frescura, e pronto para sair, tocou a campainha.

Passados dois minutos apareceu o criado de quarto e perguntou:

— O senhor deseja alguma coisa?..........

— Nada absolutamente, Marcel, mas é possível, como já lhe disse, que a recepção dos oficiais se prolongue até tarde... Como entrar?

— É muito simples. O senhor bate à porta, e o guarda-portão abre.

— Bem, mas depois de entrar no pátio?...

— Não se inquiete. Encontrar-me-á no vestíbulo.

— É isso justamente o que eu não quero. Desejo não incomodar pessoa alguma. Antes iria dormir na primeira hospedaria que encontrasse, que obrigá-lo a esperar por mim.

— Era fazer injustiça à hospitalidade da senhora Marquesa.

— Então, procure um meio.

— Tem a certeza de não se enganar na escada e chegar facilmente a este quarto?

— Certeza absoluta... A porta é a terceira à esquerda, na galeria do segundo andar... Como me hei de enganar?

— Deixo uma vela acesa sobre uma mesa, no patamar da escada, e o guarda-portão encarregar-se-á de fechar o vestíbulo depois do senhor entrar.

— Perfeitamente!... bem combinado.

O tenente levou as cartas ao correio, passeou na cidade, e dirigiu-se, em seguida, ao local designado, onde os oficiais da guarnição ofereciam um banquete aos seus camaradas de passagem.

Se a fraternidade fosse excluída do resto do mundo, encontrá-la-íamos no exército. É com uma sinceridade cordial e tocante que os oficiais de um regimento acolhem os seus irmãos d'armas de outra regimento.

O banquete foi o que costumam ser todas as reuniões daquele gênero, animado, alegre, ruidoso. Evitaram com religioso escrúpulo falar em política. Levantaram-se brindes às recordações do passado, às esperanças do futuro.

Marcel Laugier estava à mesa ao lado de um mancebo da sua graduação de quem tinha sido camarada no exército do Loire. Encantados ambos com aquele inesperado encontro, renovaram em poucos minutos a intimidade dos desastrosos dias, fugiram às banalidades da conversação geral, e isolaram-se num colóquio inteiramente particular.

— O senhor como habita em Orleans há mais de um ano, deve por ali conhecer toda gente... disse o hussardo ao amigo.

— Sim, quase toda, redarguiu este. Por que pergunta isso?

— Porque me poderá dar informações que só ao senhor pedirei

— Estou ao seu dispor. De que se trata?

— Os acasos do aboletamento conduziram-me a uma casa muito aristocrática, mas de uma estranha e mortal tristeza. Sou hóspede de uma Marquesa.

— Que se chama?

— De la Tour-du-Roy... alguma viúva venerável, não é verdade?

— A senhora de la Tour-du-Roy uma velha!... exclamou o interlocutor de Marcel, está blasfemando meu amigo!... A Marquesa tem apenas vinte anos, e com razão passa por ser a mais linda mulher do departamento.

— Vinte anos só, redarguiu Marcel, e já viúva!

— Há três dias... sim... viúva de um velho marido bom e encantador; um perfeito fidalgo, mas como queria parecer mais rapaz do que realmente era, foi-se caindo do cavalo abaixo numa caçada!... Se sentiu a morte lastimo-o... Deve-se ter grande apego à vida quando se possuem não sei quantos milhões e uma mulher deslumbrante! No lugar do Marquês, com a breca! muito me desgostaria a morte!

— Resta saber se a Marquesa o fazia feliz...

— Inteiramente feliz, ninguém o ignora. A senhora de la Tour-du-Roy tinha, como todas as filhas de Eva, uma pequena dose de coquetterie, mas as más línguas nada diziam a respeito do seu proceder, e o Marquês, homem de espírito e conhecedor do mundo, não se desgostaria sem motivo... O seu único desgosto, afirmavam os seus amigos íntimos, era a falta de herdeiros diretos, mas apesar dos sessenta e seis anos bem puxados, não lhe perdia as esperanças.

— Realmente! disse Marcel sorrindo.

— Oh! querido amigo, não zombe! A quantos conheciam o senhor de la Tour-du-Roy a coisa não parecia impossível. Enfim, aí está a Marquesa agora viúva, livre, e com certeza muito rica, porque o defunto, que a adorava, devia dar-lhe como dote ou ceder-lhe em testamento, não direito toda a sua fortuna, mas pelo menos a melhor parte dela.

— Provavelmente, a Marquesa era pobre quando casou?

— Era menos milionária de que o marido, muito menos, mas bem dotada, a acreditar-se o que por aí se diz; o pai era um dos mais opulentos banqueiros de Paris, e possuía, não longe daqui, uma das melhores propriedades! Ah! Não faltará quem corteje a jovem viúva!... No dia que quiser mudar de nome, terá só a dificuldade da escolha.

— Por que diabo essa rapariga que, além de bonita, tinha um dote, foi casar com um velho?

— Oh! Chi lo sa? Supõe-se apenas, mas há toda a probabilidade de acerto... A vaidade, creio bem, cativou-a. O pai era um simples burguês, e a formosa menina desejava um título. Ela sonhava com brasões e coroas nas portinholas da carruagem. Agora que é Marquesa, há de ter maiores ambições. Se eu fosse Duque ou Príncipe, eu, que estou falando, pediria amanhã a minha demissão, e iria alistar-me nas fileiras dos seus adoradores.

— Que entusiasmo! exclamou Marcel rindo, então está apaixonado, meu amigo?

— Apaixonado sim, atoleimado não! redarguiu o oficial, ou antes, apaixonado como toda gente, porque é impossível encontrar a Marquesa uma vez, sem sentir logo por ela um afeto súbito e muito vivo. Esta mulher é a sedução personalizada... O senhor verá e julgará.

— Mas, como?

— O senhor está hospedado no palácio de la Tour-du-Roy... Manifeste o desejo muito natural de apresentar os seus respeitos à dona da casa.

— Pensa nisso? Uma viúva de três dias não recebe um estranho... Opõem-se a isso as mais estritas conveniências.

— É verdade! A não ser um acaso, o que é pouco provável, não conseguirá vê-la... mas, melhor para si!... a sua imagem sedutora e fascinante não irá inutilmente perturbar-lhe os sonhos! Digo inutilmente, porque não sendo príncipe nem duque, não terá probabilidade alguma de substituir o primeiro marido... É o senhor artista?

— Oh! Quando posso.

— Pois bem! Se não vir a Marquesa, terá ao menos uma compensação...

— Qual?

— Peça que lhe mostrem as salas de recepção do palácio... É uma coisa que não podem recusar-lhe.

— Que veria eu de curioso?

— Tudo absolutamente. Muitas gerações de la Tour-du-Roy têm acumulado naquelas salas maravilhas, primores. É uma coleção de objetos de arte como não possuem os museus de mais de uma capital...

— Aproveitarei a informação... se puder.

— Poderá, se quiser...

A conversação continuou, mas não trataram mais da Marquesa de la Tour-du-Roy.

Ao jantar, segundo o costume, que cremos variável, sucedeu um ponche monstro que se prolongou até depois da meia-noite.

Finalmente, só uma hora depois da meia-noite é que Marcel Laugier um pouco animado pelos vapores do champanha e do ponche se dirigiu para casa.

O seu jovem camarada quis acompanhá-lo, e não o deixou senão em frente do palácio.

O tenente bateu.

Abriu-se logo a porta.

O oficial atravessou o pátio.

No limiar do vestíbulo encontrou o criado com um castiçal na mão.

— Ora! Eu tinha-lhe pedido que não me esperasse, disse ele.

— Certamente, e agradeci-lhe, mas entendi que era mais atencioso não aceder neste ponto ao seu pedido. Vou ter a honra de o guiar...

 

O INESPERADO

Como tinha feito pela manhã, o velho criado precedeu cerimoniosamente Marcel nas escadas.

— Quer que acenda as velas dos candelabros? perguntou transpondo o limiar do quarto forrado de tapeçarias.

— Não é preciso, vou já deitar-me.

— Desejo que tenha uma boa noite.

— Obrigado.

O criado pôs o castiçal sobre o fogão e retirou-se.

O tenente volveu um olhar para o grande leito à Luís XIII, cujas cortinas alvas como a neve e o travesseiro de rendas pareciam convidar ao sono.

— Será bom dormir, murmurou ele despindo a farda. O vinho de champanha e o ponche fizeram-me a cabeça pesada. É admirável como estou quente...

E principiou a despir-se ficando em calças e mangas de camisa.

— E, contudo lá fora faz frio... continuou, vou abrir a janela que deita para a varanda e fumar um charuto. Estes antigos edifícios de um estilo severo, devem ser soberbos vistos à luz do luar.

Marcel tirou um regalia da charuteira, e dispunha-se a acendê-lo, quando a presença de uma aparição imprevista o fez deter-se.

As sanefas da tapeçaria que formavam o reposteiro do quarto de toilette afastaram-se, e o tenente viu com o maior espanto entrar uma mulher no quarto.

Aquela mulher, ou antes aquela rapariga, parecia ter apenas vinte anos.

Era bela de encantar e muito distinta, apesar da evidente humildade da sua condição.

Vestida modestamente como é costume das criadas de quarto nas velhas famílias da província, estava com certeza ao serviço da Marquesa, mas a elegância das suas maneiras formavam singular contraste com o seu vestuário de criada.

O corpete muito apertado do vestido de lã escura desenhava uma cintura airosa e delgada, quebrada e flexível, e fazia destacar os contornos esquisitos de um busto de estátua. O avental de percal branca atava-se-lhe de roda das anquinhas formadas para o espartilho couraça e os vestidos de grandes caudas de mulheres de alta classe.

Uma touca branca enfeitada com fitas pretas, mal continha os abundantes cabelos ondeados de um louro acinzentado. Sobre a testa brincavam-lhe irrequietos caracóis de cabelo solto, e cinco ou seis canudos sedosos e brilhantes caíam-lhe sobre os ombros descendo até a cintura.

Os traços corretos e finos das feições simpáticas e agradáveis não tinham a frieza da regularidade clássica, mas ofereciam a deslumbrante carnação das mulheres do norte. Os olhos grandes apresentavam vários cambiantes de um verde escuro. As sobrancelhas e as pestanas sobressaíam muito sobre as rosas das faces um pouco maceradas. Os lábios de vivo carmim entreabertos deixavam ver uns dentes muito claros que completavam um conjunto cuja irresistível atração, e cujo suave encanto era impossível exprimir.

Ao encanto da indefinível beleza juntava-se o atrativo de um enigma irritante.

Aquela criada sem igual, e mais sedutora que todas as lindas criadinhas de comédia, era um misto de audácia e de timidez. Nos olhos notava-se-lhe ao mesmo tempo certo atrevimento e uma quase candura. O assustado de uma gazela e a provocação ingênua fundiam-se em doses iguais na atitude constrangida e no sorriso indeciso.

Depois da meia-noite, entrava desembaraçadamente no quarto de um rapaz que estava meio despido junto de um leito descoberto; mas ao entrar mostrava achar-se possuída de um grande susto.

Adivinhava-se aquilo no leve tremor das mãos que seguravam uma bandeja contendo um cálice de prata, um açucareiro e dois frascos de cristal-de-veneza com estrelas de ouro.

O tenente agitado até a comoção, perturbado até o acanhamento por aquela aparição, primeiro ficou mudo, devorando com o olhar a recém-chegada, e procurando explicar a sua presença ali, em seguida, refletiu que o melhor meio de tudo saber era perguntar, e perguntou:

— Que me quer minha menina?

Ela já esperava, por certo, aquela pergunta, porque respondeu com um modo muito desembaraçado, mas num tom de voz inquieto.

— Venho reparar um esquecimento do velho Domingos. Trazer isto.

E pousou a bandeja na mesa. Marcel sorriu.

— E como sabia a menina, objetou ele, que o velho Domingos havia cometido tão importante esquecimento?

— Reparei, quando esta noite vim preparar o leito de vossa senhoria.

— Bem! Muito bem! disse consigo o mancebo, e esta rapariga teve o cuidado de esperar que todos em casa estivessem deitados. É original... Ah! Se eu fosse vaidoso...

E continuou:

— Como se chama, minha menina?

A visitante noturna fez uma reverência de criadinha de ópera-cômica e respondeu:

— Mariette, uma sua criada.

— Que atribuições são as suas nesta casa, menina Mariette?

— Sou a primeira criada do quarto da senhora Marquesa.

— E a senhora Marquesa sabe que está agora aqui?

— Ah! meu Deus, felizmente, não, senhor, porque se soubesse despedir-me-ia amanhã com certeza.

— Então, por quê?

— Porque compreendo agora que não deveria ter vindo.

— Realmente?

— Oh! sim, meu senhor... mas não pensei em coisa alguma... vim... e retiro-me já.

E Mariette dizendo que ia retirar-se, deixava-se ficar.

— Cada vez mais singular! disse consigo Marcel. Esta pérola de antecâmara é uma inocente ou uma dissoluta É necessário ver.

Marcel continuou:

— Fez bem em vir. A sua presença alegra-me a vista... Sabe que é admiravelmente bela... Já lho têm dito muitas vezes, não é verdade?

A criadinha não respondeu.

— Então, cala-se?

O mesmo silêncio.

— Os seus namorados tê-lo-ão repetido em todos os tons, continuou o tenente, e, à falta deles, bastaria um espelho para lho certificar...

Mariette fez um gesto de descontentamento.

— Palavra de honra, pensou o mancebo, sou prodigioso de vulgaridade! Tenho vergonha de mim mesmo... São galanteios de colégio o que estou dizendo a esta rapariga... mas para uma simples criada de quarto deve bastar. Juntemos à frase um pouco de gesto.

Pegou na mão da criadinha, olhou para ela surpreendido, e levou-a sofregamente aos lábios.

— Mas que lindas mãos que tem! exclamou o oficial. Que dedos tão delgados, que unhas tão rosadas, que pele tão transparente e perfumada! Uma Marquesa poderia invejar-lhas.

Mariette retirou a mão e ocultou-a na avental como que incomodada por aquele exame.

— Que quer dizer isto? perguntou a si mesmo o tenente. A minha eloqüência não agrada a esta estranha rapariga. Ah! Se eu me atrevesse a tentar a aventura. E por que não? O que arrisca eu?

Aproximou-se da criadinha, e sabendo já de antemão que ia ser repelido, lançou-lhe um dos braços de roda da cintura airosa.

Ela, com os olhos mais baixos do que até ali, não fez um movimento.

O segundo braço juntou-se ao primeiro, e ambos formando uma cadeia enlaçaram a criadinha, ao passo que os lábios de Marcel osculavam as madeixas sedosas e as faces aveludadas.

Silenciosa e imóvel, a jovem não tentava soltar-se daquela suave cadeia, mas o oficial sentia-a tremer e quase desmaiar nos braços.

Era impossível a ilusão. Aquele tremor e aquele desfalecimento não provinham da perturbação dos sentidos. Revelam qualquer angústia.

Marcel soltou um pouco os braços, sem contudo desmanchar completamente a cadeia por eles feita.

— Mariette, perguntou ele, tem medo de mim?

— Oh! não... balbuciou a jovem.

— Então, por que treme desse modo?

— Não sei...

— Isso é verdade?

— Sim, meu senhor.

— Mariette, tem algum amante?

A criada abanou a cabeça.

— Posso acreditá-la? perguntou o oficial inteiramente incrédulo.

Mariette fez um sinal afirmativo.

— E nunca teve namorados?...

— Nunca...

— Pois bem, agora tem um... Quer-me a mim para seu namorado Mariette?...

— O senhor está zombando... não creio que me ame.

— Mariette, eu a amo... sim, pela minha honra, juro-lhe que a amo...

O tenente não mentia, pelo menos naquela ocasião. A embriagante beleza do enigma vivo que estreitava contra o peito inebriava-o, perturbava-lhe o coração e entontecia-o.

— Jurei... redarguiu ele... acredita-me?... adoro-a.

E sem esperar resposta, estreitou mais a cadeia que tornava Mariette cativa, e cobriu-lhe o colo de ardentes beijos.

A jovem com um movimento imprevisto, irresistível, soltou-se-lhe dos braços e correu para o fogão.

— Vamos, pensou Marcel, andei muito depressa! Fugiu-me, e é capaz de não voltar. É pena! Mas não a perseguirei. Fazer alvoroço, promover escândalo... é impossível...

Mas julgue-se do espanto do mancebo.

Mariette, em lugar de fugir, soprou a única vela, depois, aproveitando-se das trevas profundas, lançou-se nos braços do tenente, abraçou-o muito estreitamente, e murmurou-lhe em voz baixa ao ouvido:

— Eu também o amo... Por isso vim... e por isso fico!

 

SONHO E REALIDADE

Quando o oficial despertou de um sonho profundo, um frouxo raio de luz se refletia no tapete, insinuando-se por entre as cortinas da janela mal fechada.

O pálido arrebol de uma manhã de outono alumiava debilmente o quarto.

Marcel voltou-se de repente.

Estava só.

Olhou para a mesa onde Mariette tinha posto a bandeja de prata.

A bandeja havia desaparecido.

— Ah! Foi um sonho... disse suspirando a seu pensar, mas tão belo e tão real que parecia... Oh! Não poder eu sonhar assim todas as noites!...

Neste momento ouviu no pátio a bulha de cavalos e de carruagens.

Saltou do leito, aproximou-se da janela, e ocultando-se com as cortinas, espreitou.

Um bonito landau saía do pátio, seguido de outro carro com bagagens.

Os cocheiros e os lacaios vestiam de luto pesado.

Fechou-se o portão após as duas carruagens, e tudo voltou ao primitivo silêncio.

Marcel, em lugar de se deitar dirigiu-se para o quarto de toilette.

O primeiro objeto que se lhe ofereceu à vista foi uma touca branca com fitas pretas, caída no tapete.

— Não sonhei! murmurou em voz alta. Mariette existe! não é um mito!...

Marcel Laugier apanhou a touquinha e contemplou-a durante alguns segundos presa da mais viva comoção.

Exalavam-se daquele enfeite feminino, e deleitavam o olfato do mancebo os vagos eflúvios do perfume sutil e penetrante das trancas de cabelo louro que havia ocultado.

O tenente aproximou do rosto aquele objeto, e uniu-o aos lábios, mas deteve-se com um modo brusco e sorrindo maliciosamente.

— Sou absurdo! murmurou ele. Uma criada grave, para que hei de tomar isto a sério?...

Após um segundo de reflexão, acrescentou:

— E por que não? Acaso tenho direito de mostrar desprezo ou indiferentismo? Há uma só das minhas aventuras de militar que valha esta? Mariette é a mais linda rapariga que tenho visto! É uma mulher esplêndida! É mister que a Marquesa muito confie na beleza própria para admitir junto de si um primor destes! Esta noite, sem semelhantes, terá o seu lugar entre as melhores recordações da minha vida.

Dito isto, o tenente embrulhou a touquinha em papel de seda e juntou-a a uma coleção de luvas desbotadas, de flores murchas, de madeixas de cabelos pretos e louros, fotografias, cartas amorosas, amontoadas no fundo da sua mala, dentro de um cofre elegante, e constituindo as relíquias sentimentais do seu passado; fechou depois o cofre, formulando este aforismo filosófico tornado lugar comum:

— Todas as mulheres são iguais perante o amor!

Uma hora depois apareceu o criado trazendo chocolate para Marcel.

— Vossa senhoria passou bem a noite? perguntou.

— Perfeitamente... respondeu o tenente. É provável que dormisse ainda, se não tivesse sido acordado ao romper do dia por uma bulha de trens e cavalos...

— Efetivamente, o landau e o carro de bagagens saíram de manhã cedo... A senhora Marquesa retirou-se do palácio...

— Ah! disse Marcel.

— Sim, senhor... continuou Domingos, a senhora foi para a sua propriedade de la Tour-du-Roy, e ali passará os primeiros meses do luto...

— A senhora Marquesa partiu só?

— Acompanhavam-na os seus serviçais... Além de que, quase todo o pessoal está na propriedade... Viemos a Orleans apenas por alguns dias e trouxemos pouca gente.

Após um momento de hesitação, o tenente redarguiu num tom que se esforçava por tornar indiferente:

— Suponho que as criadas de quarto acompanham a sua ama?

Domingos olhou para o seu interlocutor com manifesta surpresa.

— Com certeza... respondeu ele. Posso saber o motivo por que me faz a honra dessa pergunta?

— Em verdade, nem eu mesmo sei... balbuciou o mancebo que não pôde deixar de corar.

— Conheceria o senhor alguma delas, a Mariette ou a Jenny?

— Nada, não conheço... Como quer que eu as conheça? e redarguiu prontamente para não deixar perceber a sua perturbação: A propriedade de la Tour-du-Roy fica muito distante de Orleans?

— Trinta quilômetros aproximadamente... é negócio de duas horas para os nossos cavalos... O defunto Marquês, meu chorado amo, tinha uma cavalariça de primeira ardem... gostava imenso de cavalos... Foi isso a sua desgraça!

E o velho Domingos limpou os olhos soltando um grande suspiro.

— A casa é, sem dúvida, bela? continuou Marcel.

— Ah! senhor magnífica!... uma das mais belas do Loiret... Um palácio principesco construído por um arquiteto muito célebre da antigüidade... E o parque! Cinqüenta hectares de terreno plantado de árvores seculares e cercado de muros. Temos lá dentro veados e cabritos monteses como em plena floresta... E as herdades! E os prados! As propriedades de la Tour-du-Roy rendem, uns anos por outros, setenta mil francos livres de impostos...

— Então o Marquês possuía uma grande fortuna?

— Enorme, meu senhor. Mais de trezentas mil libras de renda.

— E filhos? Não havia?...

— Ai! Era esse o seu único desgosto! mas viria a tê-los, se Deus o não tivesse chamado para si. Apesar da sua idade, valia tanto como um rapaz.

— Sabe-se quem herda os seus bens?

— Leu-se o testamento à senhora antes-de-ontem. Mas ignoro o seu conteúdo. Suponho que a senhora Marquesa fica com o maior quinhão. O senhor Marquês era louco por sua mulher.

— Dizem que a senhora de la Tour-du-Roy é muito bela...

— Tem razão para o dizer... A senhora Marquesa não tem rival na formosura... Fica-se deslumbrado ao contemplá-la... O defunto meu amo, que até os sessenta e cinco anos não queria ouvir falar em casamento, casou com ela por amor.

A curiosidade do tenente estava satisfeita; terminou, pois, a conversa.

— Ordena alguma coisa? perguntou Domingos.

— Nada, tenho só a pedir-lhe um especial favor.

— Tenho muito gosto em obsequiá-lo... Que deseja?

— Dizem que as salas de recepção deste palácio estão cheias de objetos de arte do mais raro merecimento.

— É verdade. Eu não entendo, muito do gênero, mas avaliam—se os quadros e o mais acima dum milhão.

— Visto a senhora Marquesa ter saído do palácio, posso sem indiscrição, suponho eu, pedir-lhe que me deixe ver as salas.

— Nada mais fácil. Quase todas as pessoas de passagem nesta cidade fazem igual pedido. Gostam mais de vir aqui do que ir ao museu, e com razão... Não recusamos isso a ninguém, (falo de pessoas decentes já se vê) Na ausência dos donos, o guarda-portão tem autorização para deixar entrar os amadores. Quando quer vê-las?

— Tenho de ir esta manhã à casa do meu coronel. Às nove horas estou de volta.

— Pois bem, as portas estarão abertas às nove horas, e o senhor encontrar-me-á às suas ordens.

À hora indicada entrou Marcel.

Domingos estava à espera dele no vestíbulo e introduziu-o sem demora nas salas de recepção.

Estas salas, que recebiam luz do pátio e do jardim, ocupavam todo o "rez-de-chaussée".

Eram três em fileira, e terminando numa mais pequena de forma oval, a qual servia de sala de jogo nas noites de festa, e comunicava com uma estufa envidraçada, ou antes, um jardim de inverso de grandes dimensões, onde havia lustres de cristal de rocha que banhavam com a sua luz os ramos verdes das árvores dos trópicos.

Não apresentaremos uma nomenclatura minuciosa que seria enfadonha como o processo verbal de um avaliador.

Só o grande Balzac possuía o raro dom de conservar encantados os seus leitores, descrevendo-lhes por miúdo as maravilhas reunidas pela paciência de um colecionador na habitação do primo Pons.

Basta dizer que Marcel não só não experimentou decepção alguma, mas até a realidade excedeu muito que esperava.

Naquelas imensas salas era tudo absolutamente belo: as cadeiras de belas tapeçarias bordadas a petit-point de uma perfeição prodigiosa; os móveis antigos com embutidos de marfim; os lustres, as pêndulas» os quadros dos grandes mestres em formosas molduras, eram o palácio de um rei.

Os vasos de Sevres e do Japão, as majólicas, os grupos de Saxe, as estatuetas de marfim, de mármore e de prata, os esmaltados, as faianças do tempo de Henrique III, era tudo admirável.

Nem uma só obra medíocre destoava desta reunião de coisas perfeitas, raríssimas ou antes sem iguais.

Telas esplêndidas de Le Sueur, de Rubens, de Van-Dick, de Leonardo da Vinci, e outros de igual mérito, produziam uma sensação deslumbrante e bela.

Errariam muito as pessoas que avaliassem só num milhão tais riquezas.

Aquelas maravilhas artísticas, sob o pregão de Léon Pillet, valeriam o dobro.

Marcel passou duas horas nas três primeiras salas, extasiado, admirado ao ponto de não mais se lembrar da aventura da noite precedente, e não escutando uma única palavra das explicações ultra-ingênuas que Domingos, tomando a sério o seu papel de cicerone, se julgava obrigado a proporcionar-lhe.

Já não restava mais nada a visitar, à exceção da sala de forma oval que comunicava com o jardim de inverno.

O tenente transpôs o limiar.

Um retrato de homem, um retrato moderno, de tamanho natural e assinado por Carolus Duran, ocupava a parede à direita de um monumental fogão de mármore vermelho. , Marcel parou a admirar aquele retrato.

Era o de um homem alto, de boa aparência, em traje de montar a cavalo, calções de anta, grandes botas e chicote de caça na mão.

Aquele gentleman de feições regulares, de fisionomia artística e benévola, não parecia um velho, ainda que a cabeça e a barba tivessem a alvura da neve. Os olhos que brilhavam sob as sobrancelhas ainda escuras, pareciam de um mancebo.

A um canto superior do quadro via-se um brasão com a coroa de marquês.

Marcel voltou-se para Domingos.

— O retrato do senhor de la Tour-du-Roy, não é verdade?

O velho criado limpava as lágrimas. A voz abafou-se-lhe na garganta, e foi só com um meneio de cabeça que respondeu afirmativamente.

— Ah! Tem razão, redarguiu o oficial. O dono desta casa suportava tão bem o peso dos anos, como os seus antepassados o peso das armaduras. Podia com certeza viver vinte anos pelo menos! Compreendo agora que sua mulher pudesse amá-lo, apesar dos seus cabelos brancos. Há quanto tempo foi feito este retrato?

— Há apenas um ano... O retrato da senhora Marquesa devia fazer-lhe pendant.

Marcel voltou-se logo para a parede da esquerda. A parede estava nua.

— Falou no retrato da senhora de la Tour-du-Roy, redarguiu o mancebo. Ainda não está feito?

— Perdão, senhor... está ali.

Domingos apontava para um cavalete de ébano, sobre o qual estava um quadro coberto com um pano verde.

— Tencionavam pô-lo no lugar competente no dia em que sucedeu o triste acontecimento, continuou ele. Deus sabe agora quando sairá do cavalete.

— Pode-se ver?

— Pois não! Avaliará pessoalmente a grande beleza da senhora Marquesa, e concordará que não fui exagerado...

Ato contínuo Domingos tirou o pano.

Marcel tomou-se de uma palidez lívida e cambaleou como o homem que recebem cheio, no peito, uma pancada forte.

Todo o sangue lhe afluiu ao coração. A cabeça parecia-lhe estalar, e durante um ou dois segundos, julgou que endoidecia.

Havia razão para isso.

O seu primeiro olhar dava-lhe a estranha certeza de que a menina Mariette e a Marquesa de la Tour-du-Roy, a falsa criadinha e a verdadeira fidalga, eram a mesma mulher...

Tentou inda assim lutar contra a evidência, tão inverossímil ela lhe parecia. Diligenciou provar a si mesmo que era vítima de uma ilusão, que o enganava uma vaga semelhança, e que, finalmente, era falso o testemunho dos seus olhos.

A dúvida não podia subsistir por muito tempo.

A semelhança impunha-se por um modo impossível de repelir.

A marquesa de la Tour-du-Roy tinha podido mudar de vestuário, e adotar certos modos a propósito, o que não conseguira fora mudar de cara.

Retratada em traje de baile por Chaplin, decotada, o seio e os braços nus, no colo e por entre os cabelos refulgentes diamantes um cintilante brilho no olhar, o sorriso a brincar-lhe nos lábios, juntando aos encantos da mulher as graças da fidalga, parecia, não direi mais sedutora, porém mais majestosa e grave do que Mariette com a sua touca branca e o seu vestido de lã escura; mas os louros e abundantes cabelos, os olhos verde-escuros, as pestanas e as sobrancelhas negras, os lábios acarminados, a cintura delgada, eram tanto dela como de Mariette, ou, antes, constituíam a própria Mariette.

Era prodigioso, com certeza, incrível, inaudito, mas era verdadeiro.

Domingos reparou na perturbação de Marcel, mas não podia adivinhar-lhe a causa.

— Já vê que eu tinha razão, disse. O senhor está admirado, e realmente a senhora Marquesa causa admiração.

— A Marquesa de la Tour-du-Roy é efetivamente muito bela, balbuciou o tenente.

E, sem nada mais acrescentar, concentrou-se numa contemplação que a Domingos pareceu longa.

Quando o mancebo saiu dali, dominado pela mais viva exaltação, com a cabeça em fogo, achava-se em face de um problema que dai para o futuro ia perturbar a sua existência e que se formulava do seguinte modo:

— Que motivos houve para que aquele prodígio vivo, aquela aristocrática dama de vinte anos, viúva há três dias, que me não conhecia na véspera, se disfarçasse e se me entregasse?... Será uma Messalina?... Será uma louca?... Sob aquele incompreensível abandono, tão repentino e tão absoluto, que coisa nenhuma explica, que coisa nenhuma justifica, qual é pois o estranho mistério que se oculta naquela mulher?... É necessário evitá-la ou persegui-la?

E respondia a si mesmo:

— É preciso tornar a vê-la... adoro-a!...

 

UM PAI EXÓTICO

Dois anos pouco mais ou menos antes da singular aventura que acabamos de narrar, o banqueiro Júlio Leroux ocupava um lugar distinto entre os opulentos banqueiros de Paris.

Júlio Leroux negociava em grosso. Especulava com uma audácia, às vezes imprudente, mas que, quase sempre, coroada por um bom êxito, lhe granjeara a reputação de muito hábil.

O seu palácio edificado entre pátio e jardim, era um dos melhores do "boulevard" Haussman. Os escritórios e o gabinete ocupavam um pequeno palacete contíguo, que comunicava com a habitação principal por meio de uma galeria envidraçada.

A dar crédito aos boatos da Bolsa, a fortuna de Júlio Leroux excedia dez milhões, e crescia em proporções incríveis.

O banqueiro, cuja idade pairava entre os cinqüenta e quatro ou cinqüenta e cinco anos, não se parecia com esses especuladores para quem todos os meios são bons quando se trata, primeiro, de adquirir fortuna, depois, aumentá-la. Possuía, incontestavelmente, essa probidade vulgar que consiste em satisfazer honrosamente aos seus compromissos, e em considerar-se tão obrigado pela sua palavra, como pela sua assinatura, mas afora esta delicadeza, que poderíamos chamar comercial, faltava-lhe todo o senso moral, e os seus princípios eram dos mais ligeiros.

Viúvo há dez anos, e podendo viver muito à sua vontade, o argentário entregava-se a toda a qualidade de prazeres. Adorava o luxo sob todas as formas. Os seus cavalos e as suas carruagens eram apontadas como sendo das melhores. Viam-no em todos os divertimentos, consagrava finalmente a melhor parte do tempo, que os seus negócios lhe deixavam livre, às amáveis criaturas de frágil virtude.

Tinha três filhas este milionário, todas as três muito bonitas, mas de belezas inteiramente diferentes.

Lazarine, a mais velha, tinha dezoito anos, na época em que começa esta narrativa. Renée, a imediata, tinha menos um ano, e Joana, a mais nova, ia completar dezesseis.

O banqueiro amava as filhas, e amava-as muito, mas a seu modo, e coisa nenhuma no mundo se podia imaginar de mais fantasista do que o modo como ele compreendia e exercia os seus deveres de pai.

Nem sequer se lembrou de estabelecer as filhas como pensionistas, ou no convento des Oiseaux, ou no do Sacré-Coeur.

As pequenas Leroux recebiam em casa as lições de mestres de todos os gêneros, dos melhores e dos mais bem pagos; mas como ninguém as obrigava ao trabalho, nem se inquietava com os seus progressos, não aprendiam realmente senão aquilo que lhes servia de distração, como a equitação, a dança, o necessário de desenho para. poderem esboçar uma caricatura, e o que bastava de música para batucarem uma quadrilha ou fazerem o acompanhamento de uns couplets.

Não tratamos agora senão de Lazarine e de Renée. Logo veremos que, sob o ponto-de-vista do estudo, como de muitos outros, Joana em nada se parecia com as irmãs.

Quando por acaso Júlio Leroux atravessava a salinha metamorfoseada em gabinete de trabalho, raro deixava de dizer:

— Que zelo de trabalho, minhas meninas, isso é muito bonito, mas não se afadiguem tanto. Quando se é linda e se herdam milhões não é preciso saber muito... Os milhões é a ciência infusa, e hão de ter milhões, prometo-lhes eu, e tantos a ponto de não saberem o que hão de fazer deles...

As suas lições de moral formulavam-se pouco mais ou menos deste modo:

— A primeira das virtudes, minhas filhas, é a fortuna... Encerram-se nela todas as outras... Aquele que pode meter a mão no Pactolo é naturalmente honrado, e generoso sem o menor custo... É preciso acompanhar o caminhar dos tempo, e vivemos numa época em que o deus Metal é o único que não encontra incrédulo, e o único soberano que o mundo não pensa em destronar é o Demônio Ouro!...

Lazarine e Renée compreendiam isso melhor do que ninguém.

Joana era a única que estava menos convencida. Parecia-lhe que não era bom pensar e falar daquele modo, mas a meiga e tímida criança não se atrevia a apresentar nenhuma objeção. Sabia muito bem que seu pai conservaria, apesar de tudo, o seu modo de ver, e que as suas irmãs zombariam dela sempre, porque não a poupavam nunca.

Júlio Leroux, logo que as suas duas filhas mais velhas chegaram uma aos dezessete e outra aos dezesseis anos, e atendendo a que estavam suficientemente instruídas, despediu os mestres, e decidido partidário dos costumes americanos, deixou-as à solta, abriu-lhe um crédito ilimitado para as suas toilettes e caprichos, e concedeu-lhes uma liberdade sem restrições e sem preceitos.

Lazarine e Renée tiveram as suas equipagens particulares, as suas parelhas, os seus cavalos para cavalaria, os seus cocheiros e grooms.

Iam pela manhã ao Bosque, a cavalo, seguidas de uma troupe de adoradores e cortesãos que lhe haviam sido apresentados nos bailes das altas sumidades endinheiradas, aonde seu pai as conduzia e onde dançavam o cotillon com a máxima desenvoltura.

Entravam sem o menor constrangimento no Café de Madrid ou da Cascata, e tomavam um copo de xerez acompanhado de um biscoito.

À tarde, à hora do passeio no lago, regressavam ao Bosque, ou dirigindo os seus poneys fogosos, ou ostentando as suas excêntricas toilettes, nos coxins das suas vitórias.

Todos as conheciam, e elas conheciam a todos.

Se um provinciano, desgarrado no Percy, em companhia de um parisiense, perguntava ao seu cicerone:

— Quem são aquelas lindas raparigas, tão vistosas? O parisiense respondia:

— São as filhas de Leroux... Tal qual como diria:

— São as filhas de Drouard.

— Atrizes? Cocotes? continuava o provinciano.

— Não, meu caro, milionárias.

— Ah!

— Sim, é como lhe digo, são um bom partido. Aliste-se nas; fileiras dos seus adoradores se o coração lho pede, e se tem ao menos trezentas ou quatrocentas mil libras de renda...

Encontravam-se Lazarine e Renée no tiro aos pombos; viam-nas no Circo de patinagem; nos salões do palácio Drouot, disputando temerariamente um pequeno objeto à força de notas do banco oferecidas no louco entusiasmo dos lanços... Parecia, enfim, gozarem o dom da ubiqüidade.

Tinham o seu dia de recepção para os amigos de seu pai e para os cortesãos que mencionamos.

Tomavam o ponche entre amigos, fumavam e jogavam.

O banqueiro honrava algumas vezes com a sua presença, durante uma ou duas horas, estas pequeninas reuniões, mostrava-se de uma alegria louca, e realmente divertia-se muito.

— Palavra de honra, meu caro, disse ele um dia ao seu amigo, íntimo, o velho Príncipe Godefroy de Castel-Vivant, um tipo muito curioso que não tardará muito que apresentemos aos leitores, as minhas filhas são tão alegres como a Tatá!

Mademoiselle Tatá era então a favorita da época.

— Muito mais do que a Tatá! redarguiu o Príncipe. É um cumprimento merecido, e com todo o gosto lho tributo!

As duas irmãs era raro faltarem às primeiras representações, e não duvidavam freqüentar os teatros que não primavam pela moralidade e decência.

Eram assíduas no Palais-Royal, Variedades, Folies-Dramatiques e Buffos, apareciam tanto nas Folies Marigny como na Comédie-Française, Ginásio ou Ópera-Cômica.

Em todas as imprensas havia já este clichê pronto para uso dos cronistas mencionando as beldades das salas de espetáculo nas noites de primeiras representações: As duas encantadoras filhas de um dos nossos mais ricos banqueiros, J... L... abrilhantavam a sala com, o duplo esplendor das suas toilettes e da sua beleza.

Tal existência tinha feito naturalmente de Lazarine e de Renée perfeitas cortesãs que, juntando a excentricidade da linguagem ao. descomedido das maneiras, falavam correntemente o calão parisiense dos ateliers e dos bastidores, e sabiam as sutilezas e argúcias da linguagem livre. Desconheciam as noções das mais simples conveniências, e tratavam o pai com uma familiaridade revoltante, como camarada de prazer; o que todavia ele achava delicioso.

Parece lógico pensar que, em conseqüência do seu modo de proceder tão falto de bom senso e tão fora do comum, Renée e Lazarine se tivessem absoluta e irreparavelmente comprometido perante a sociedade.

O mal existia, isso não padece dúvida, todavia não tão grande como se podia supor.

Como era geralmente conhecido o sistema de educação adotado por Júlio Leroux, censuravam-no a ele muito mais do que às filhas, e diziam que em todo o caso não se deviam apedrejar aquelas crianças inconscientes, entregues a si mesmas na idade em que a ternura e os cuidados maternais são indispensáveis.

Passavam por inconseqüentes e estouvadas, mas supunham-nas mais sinceras e inocentes do que pareciam, e os cortesãos que lhes faziam roda, e cujos gracejos um pouco extravagantes elas autorizavam rindo, sabiam melhor do que ninguém que os resultados do sistema de educação à americana, não tinham tido gravidade real.

Coisa singular, o mundo, que quase sempre é para todos muito severo, era para elas de uma indulgência pasmosa.

O nosso juízo será porém mais severo do que o seu.

Lazarine e Renée tinham em si tudo quanto era necessário para as tornar perigosas criaturas.

Frívolas e levianas, sem crenças nem princípios, poderiam ter-se salvo pelo coração, este porém faltava-lhes. O seu único culto era o prazer, e o seu único deus, o dinheiro.

A moral do banqueiro produzia os seus frutos.

Lazarine, três ou quatro meses antes, tornara-se heroína de uma aventura que teve um inesperado desenlace, e a respeito da qual é mister que digamos algumas palavras pela influência que mais tarde exerceu na sua vida.

Júlio Leroux tinha mandado executar por um mestre do gênero certas pinturas de ornato em uma das salas do seu palácio.

Tinha aquele mestre um discípulo que preparava o trabalho, pintava os fundos e esboçava as figuras e os assessórios desenhados pelo artista da moda.

O discípulo chamava-se Heitor Bégourde. Era o mais folgazão rapaz que se podia imaginar.

Heitor Bégourde chamado Totor pelos seus camaradas, realizava o ideal do bonito. Vinte e três anos, esbelta figura, cabelo escuro e anelado, bigodes sedosos, olhar risonho, e sob o seu casaco de veludo preto e chapéu de feltro cinzento notava-se-lhe natural e cavalheiresca elegância; tinha o espírito e a alegria do estróina; um absoluto contentamento da sua pessoa, e as verdadeiras tradições da dança francesa ilustrada por Brididi, tornavam-no irresistível às fantasistas beldades do baile Bullier e de outros circos coreográficos e do galanteio. Como artista não lhe faltava nem originalidade nem talento.

— Totor iria longe se quisesse... diziam os seus camaradas, por desgraça é bonito... as mulheres perdem-no.

Sempre sem dinheiro na algibeira, e tão cheio de dívidas quantas lhe deixavam fazer os seus fornecedores, Totor imaginava ser republicano e radical; declarava contra a desigualdade das condições sociais, acusava o capital de explorar o trabalho, desenhava caricaturas políticas, e quando não tinha que fazer, ia para o Café Frontin, beber bocks à saúde dos homens do 93.

No íntimo, era o melhor rapaz do mundo, e incapaz de fazer mal a uma mosca.

Uma manhã, Lazarine apeando-se do cavalo, entrou na sala que Totor estava pintando, e de luneta encaixilhada no olho, chicote na mão, examinou, depois discutiu as pinturas, louvando, criticando, cortando a torto e a direito no fraseado dos ateliers e com admirável aprumo.

O rapaz, deslumbrado pela beleza da jovem, ficou a princípio tomado de espanto, mas depois mais à sua vontade pelo seu completo desembaraço, desenvolveu os seus galanteios dos bons tempos, foi esplêndido de verve e fez rir às gargalhadas a sua interlocutora.

Lazarine encantada com aquela nova excentricidade, habituou-se a ir todos os dias passar uma ou duas horas junto de Heitor, quando tinha a certeza de o encontrar só.

Os modos desenvoltos de mademoiselle Leroux não inspiravam respeito algum a Bégourde, que não tinha por costume ser muito respeitador, e cuja vaidade era ilimitada.

— A amável pequena está louquinha por mim... salta aos olhos, disse. Mostrar-me cruel seria um despropósito... Quem sabe o que daqui resultará... O pior é para madame Bobino!...

Madame Bobino, assim apelidada no bairro latino, em recordação do Teatro do Luxemburgo, onde ela brilhava nas espirituosas revistas de Santo Agnan Choler, era uma das rainhas da Closerie, e segundo constava a amante oficial de Heitor.

O juvenil-radical, esquecendo as suas ferozes declamações contra o capital explorador, considerava que um casamento com Lazarine seria, sob todos os pontos de vista, uma boa operação.

Por isso, e sem esperar por mais coisa nenhuma, fez à jovem uma espécie de declaração em que entravam por partes iguais o sério e o cômico, o que lhe devia permitir uma retirada em boa ordem, se, contra toda a expectativa, fosse repelido.

Nada disso sucedeu.

A declaração, alegremente retribuída, foi aceita sem a mais pequena sombra de indignação.

Com certeza que Lazarine não amava Heitor, mas achava-o simpático como um tenor de ópera-cômica, e a situação divertia-a.

Animado pelo primeiro resultado, e decidido a continuar, Bégourde escreveu cartas incendiárias, e a jovem não recusou recebê-las.

Em tão perigoso declive não se pára quando se quer.

Lazarine livre nas suas ações, entrando e saindo quando queria, não podia deixar de conceder a entrevista que o atrevido patife logo lhe pediu... E o que aconteceu?

Felizmente permitiu o acaso que Júlio Leroux que, por hábito e por sistema nada via, reparasse no caso.

Entendeu que a fantasia da filha excedia os limites do possível. Pôs na rua o tal Bégourde, e, pela primeira vez, repreendeu asperamente Lazarine.

A mimosa criança chorou durante duas horas, suspirou até a noite, e no dia seguinte não mais se lembrou do herói deste romance interrompido, ou, se nele pensou, foi para encolher os ombros ao recordar-se da sua própria loucura.

Este herói tão prontamente esquecido por ela, tinha, contudo, de representar um grande papel no seu futuro.

Lazarine e Renée, — precisamos dizê-lo, — sonhavam com casamentos esplêndidos.

Graças à sua deslumbrante beleza, e graças ao algarismo dos seus dotes que os boatos do público ainda aumentavam, parecia que elas não teriam senão que escolher; mas a sua ambição pelo dinheiro-era tal, que para a saciar não lhe bastavam as riquezas dos milionários do seu cortejo.

Joana em nada se parecia com as irmãs, que a denominavam a Gata, Borralheira. Era tão simples quanto elas se queriam tomar notáveis, tão séria quanto elas levianas; não gostava do luxo nem dos prazeres ruidosos. A meiga criança, que vivia a vida do coração, achara meio de, no suntuoso palácio, criar um modesto ninho. Quando pensava no casamento (é uma coisa em que todas as raparigas pensam) ela não desejava um marido possuidor de uma grande fortuna ou de um nome célebre, mas um marido digno de ser amado, que amasse com todo o afeto, e a quem ela amaria extremosamente.

 

O EX-BANQUEIRO

Ninguém ignora quanto é fértil em naufrágio o oceano financeiro, de Paris.

De repente, sem que nenhum indicio tenha feito prever a catástrofe, vêem-se soçobrar fortunas que pareciam ao abrigo de todo& os revezes.

De um dia para o outro desmoronam-se posições que parecem indestrutíveis.

Júlio Leroux, embriagado pelo bom êxito, contando com a. fortuna que nunca o abandonara, gozava uma vida de príncipe, gastava sem conta e animava o desperdício.

Por mais extraordinários que fossem os seus gastos de todos os gêneros, não teriam, contudo, produzido a ruína de uma casa tão poderosa como a sua, mas as falências sucessivas de um banqueiro inglês e de outro francês, arrebataram-lhe de repente mais de quatro milhões.

O desfalque, posto que grande, não era contudo irremediável.

Com muita ordem e reformas, Júlio Leroux podia ainda Salvar-se. Infelizmente não quis coibir-se, e pareceu-lhe do melhor gosto, após. tão enorme perda, não alterar os seus costumes nem o daqueles que o rodeavam.

— Verá esta gente que quatro milhões são nada para mim... O meu crédito, longe de diminuir, aumentará, e algumas operações atrevidas cobrirão o déficit.

Pelas palavras operações atrevidas, o banqueiro entendia aquelas operações dá Bolsa que lhe tinham dado tão bom resultado quando estava com sorte.

Esta sorte, imaginava tê-la ainda, mas engalanava-se.

A inconstante Fortuna de há muito que o não olhava com bons olhos.

As suas especulações falharam.

Teimou.

Os maus resultados continuaram.

Finalmente, uma bela manhã, na véspera de uns grandes pagamentos, Júlio Leroux viu-se perdido.

O banqueiro, sabemo-lo, era um homem honrado, e, à sua probidade comercial, juntava-se um imenso orgulho.

— É preciso liquidar! disse ele, e a liquidação é o desastre com todo o seu horror... Se a ruína fosse só minha, veríamos mais tarde que partido tomar, mas se arrasto na minha queda aquelas pessoas que confiaram na minha honra; se absorvo com o meu o dinheiro dos outros; se, finalmente, deve adicionar-se ao meu nome o epíteto de falido, dou um tiro na cabeça.

Sem hesitar; mas não foi preciso.

A liquidação bem preparada deu resultados que se não esperavam. Fez-se dinheiro de tudo. Venderam-se o palácio e o palacete do "boulevard" Hausseman, uma terra na Normandia, coleções de quadros e objetos de arte, cavalos e carruagens.

Era, pois, um passivo colossal, e colossais eram os expedientes.

Pagou-se tudo até o último cêntimo, e ficou ao banqueiro uma propriedade no Loiret, e vinte e cinco mil libras de renda.

— Pois bem, mas pensaram muitos dos nossos leitores, aquilo não era a ruína! Longe disso!

Depende do modo por que encaramos a questão.

Para quase todos, era a fortuna efetivamente.

Para um homem que gastava uns anos por outros perto de um milhão, era relativamente a miséria.

Júlio Leroux não quis ficar em Paris, onde a existência lhe parecia impossível, e onde a modéstia da sua nova situação seria para ele a fonte de contínuas humilhações.

Retirou-se com as filhas para a sua propriedade do Loiret.

É ali que vamos ter com ele, e que a nossa narrativa, até aqui interrompida por necessárias explicações, vai realmente começar.

Vertes-Feuilles (assim se chamava a propriedade do banqueiro), era de limitadas proporções e de pouco rendimento, mas estava numa posição deliciosa.

A habitação que, por política ou por hábito, se chamava castelo, consistia num edifício quadrangular de dois andares, construída no fim do último século, não tendo nada de senhorial, mas sendo espaçosa e bem dividida.

Esta casa, cujo alto telhado de ardósia se avistava de muito longe, ocupava o cume de uma colina rodeada de matas dominando um vale que deleitava a vista.

O parque de oito ou dez hectares, admiravelmente delineado, desdobrava-se pela encosta da colina e descia ao vale, onde um regato transparente, cristalino e rumoroso como que lhe servia de cinto natural.

O parque, visto do terraço do castelo, parecia não ter limites.

A um dos lados da habitação havia uma alameda disposta à antiga, e que formava uma como abóbada impenetrável.

Do outro lado, e separados do edifício por meio de uma mata fechada, eram as cavalariças e as cocheiras.

Em frente da entrada principal havia um grande tabuleiro de relva de forma circular, caixas de flores de cores vistosas matizavam o verde-esmeralda da relva.

Uma casa para banho, um pequenino pomar, e grandes estufas de vidro completavam a propriedade.

O "rez-de-chaussée" constava de duas salas, uma biblioteca, uma sala para fumar, uma casa de jantar muito grande e uma sala de bilhar.

Tudo estava, se não rica, muito comodamente mobiliado, e forrado de cretone de cores alegres.

Como se vê a propriedade das Vertes-Feuilles constituía uma residência mais que aceitável.

Por desgraça, Júlio Leroux, Lazarine e Renée, que não cuidavam senão do requinte do luxo, por hábito e por necessidade, achavam aquela residência horrivelmente mesquinha.

O banqueiro nascido nas Vertes-Feuilles, que era de seu pai, fora ali uma vez quando tinha dezesseis anos.

As suas filhas nunca lá tinham posto os pés.

Isto explica-se.

Júlio Leroux, entregue aos seus grandes negócios e aos seus prazeres inteiramente parisienses, não se afastava de bom-grado da grande cidade.

Poucas vezes visitava a importante propriedade comprada por ele na Normandia, que se mantinha perfeitamente com os grandes produtos do parque e dos jardins.

Todos os anos pelo verão alugava uma vila esplêndida, ora em Auteuil, ora em ville d'Avray, ora em Maisons-Laffite.

Ali ao menos podia receber os seus amigos, ter mesa franca, e a cavalo ou pelo caminho-de-ferro rapidamente se transportava a Paris.

No outono levava as filhas a Dieppe ou a Trouville por um mês, e, as mais das vezes, deixava-as ali sós; Lazarine e Renée davam-se bem, estimavam até aquele desprendimento.

Precisamos afirmar que as duas irmãs, cujos gostos e cuja caráter temos esboçado, muito se lamentavam ao verem-se privadas, e talvez para sempre do que constituía, segundo o seu medo de ver, as necessidades da existência: os prazeres ruidosos, as toilettes deslumbrantes e os cortesãos solícitos.

Não eram dadas à leitura; não gostavam de música senão nos Bufos e nas Variedades. Assentavam-se ao piano unicamente para se acompanharem a si mesmas no canto, imitando com um chic suprema Judie, Schneider ou Teresa.

Ora, não tendo os aplausos do seu público de crevés, abandonavam, completamente este clássico repertório.

Restava-lhes uma distração única: montar a cavalo e galopar durante muitas horas por aqueles sítios.

Mas, oh! desgraça! Uns pequenos poneys tinham vindo substituir os belos corredores de quinhentos luíses; os grooms impertigados, que sabiam conservar-se na distância que a moda determinava, apertados nos seus casaquinhos curtos, com os seus calções de anta e as suas botas de canhão, tinham desaparecido como os cavalos corredores,

O pitoresco do campo não distraía as jovens, mas como a equitação era movimento, e como o movimento, para quem se aborrece, é preferível à vida sedentária, elas usavam e abusavam até se estafarem a si próprias e aos pobres poneys.

Tinham-se tornado nervosas, lunáticas, irritáveis, insuportáveis enfim, e descarregavam o seu mau humor sobre a irmã mais nova, cuja fisionomia, tranqüila e satisfeita, as fazia exasperar.

Joana, efetivamente, não se lembrava de jamais ter sido tão feliz.

Gostava do sossego, do campo, das grandes árvores, das flores. e dos pássaros.

As tardes empregadas no parque a ler ou a desenhar pareciam-lhe muito curtas.

Tinha-se feito intendente, governanta da casa, dirigindo tudo com a máxima economia.

Apenas havia quinze dias nas Vertes-Feuilles, já conhecia e beneficiava os pobres e os doentes que lhe chamavam o seu anjo bom..

Às vezes dizia consigo:

— Ah! Se meu pai e minhas irmãs não tivessem tão grande desgosto pela riqueza que perderam, como eu agradeceria a Deus ter-nos tirado a fortuna...

Júlio Leroux, efetivamente, não aceitava de bom-grado a ruína em que se via.

Com cinqüenta e quatro ou cinqüenta e cinco anos, temo-lo dito, parecia antes da catástrofe, ter apenas quarenta e cinco o máximo.

Alto, delgado, muito moreno, nem feio, nem bonito, apresentava o rosto franco e risonho do homem a quem tudo corre à medida dos seus desejos.

A expressão dos olhos escuros, a cor viva das faces, e o desenvolvimento sensual do lábio inferior, manifestavam os seus instintos de homem amigo de gozar.

Os cabelos cortados à Capoul descobriam-lhe muito o alto da cabeça, apesar das heróicas tentativas do seu criado grave para fazer disfarçar aquele começa de calvície.

— Vou alargando um pouco a risca, dizia ele rindo aos seus amigos, que querem... fructus belli!...

Não usava bigode; as suíças muito compridas e lustrosas desciam-lhe até o peito.

Nunca houve dama alguma mais cuidadosa com a sua pessoa do que ele. Perfumava-se imenso. Das intermináveis conferências que entabulava com o seu alfaiate resultavam calças muito elegantes, coletes de alto estilo, e pardessus de um corte arrojado.

Tudo isto, de muito bom gosto, e de cores bastante sérias; mas o milionário amigo de belo sexo, o qüinquagenário que porfiava ainda em agradar, traia-se nas mais pequenas coisas.

Júlio Leroux, depois do desastre, parecia um homem que se levanta de uma longa e terrível enfermidade.

Parecia agora mais velho do que realmente era.

Despreza esses minuciosos cuidados de si mesmo, que, a despeito dos anos e do abuso dos prazeres, lhe faziam conservar a aparência de mocidade.

O alto da cabeça inteiramente calvo apresentava a cor e o polido do velho marfim. O resto do cabelo embranquecera por parte; inúmeros cabelos brancos matizavam as espessas e incultas barbas; já se não barbeava todas as manhãs!

Já não cuidava da elegância, e o que menos lhe importava era o modo como a calça caía sobre a bota.

Faltava-lhe agora tudo; o cuidado dos negócios, o bulício da Bolsa, os passeios no Bosque, os sorrisos e cumprimentos íntimos trocados com as altas celebridades, os fauteuils dos teatros, a partida do whist a um luís, os bacarats febricitantes, as orgias douradas e as comédias do amor!

Parecia um homem separado do mundo dos vivos. O spleen, em certas horas, apoderava-se dele. Viam-no então andar para um lado e para o outro como alma penada.

Para destruir este isolamento que lhe parecia tão horrível não precisava senão querer.

Nada haveria mais fácil do que travar relações de boa vizinhança com os habitantes dos muitos castelos situadas nos arredores das Vertes-Feuilles, nunca circunferência de quatro ou cinco léguas.

Mas o ex-banqueiro não queria.

— Todos eles são ainda ricos, dizia ele, e eu já não o sou... Esmagar-me-iam com o seu luxo como eu os esmaguei com o meu... Aparentemente seriam delicados, mas no íntimo desprezar-me-iam... Antes a solidão...

 

AS TRÊS FILHAS

Almoçava-se às onze horas nas Vertes-Feuilles, jantava-se às sete, e a sineta do palácio anunciava a hora da refeição.

Uma manhã, havia cinco minutos que a sineta tinha tocado, quando entrou na sala de jantar Júlio Leroux, em chinelas e camisola de flanela, barba crescida e cara aborrecida.

Fez um gesto de descontentamento ao ver a sala deserta, e aproximando-se de uma das janelas, pôs-se a tocar com os dedos nos vidros.

Ao fim de um instante daquele entretenimento, voltou-se para o criado que, de guardanapo no braço, estava de pé e imóvel com um modo constrangido, e perguntou-lhe de repente:

— Onde estão as meninas?

— Mademoiselle Lazarine saiu a cavalo, respondeu o criado, mademoiselle Joana foi a pé, e mademoiselle Renée anda passeando no parque.

— Parece que combinaram para me fazer perder a paciência!... murmurou o ex-banqueiro por entre os dentes, depois em voz alta disse:

— Toca de novo... mas rijo, e por tanto tempo que seja impossível não ouvirem... vai, vai o mais depressa possível!

— Vou já, senhor...

O criado saiu e a sineta, sacudida com toda a força, encheu os ares com uns sons por tal modo estrídulos que Júlio Leroux pôs as mãos nos ouvidos e bateu com o pé exclamando, ainda que o tocador estivesse fora do alcance da sua voz:

— Basta! Basta!... Não é preciso tanto!... Já é demais! Por Deus, acaba com esse estrondo! Não me ensurdeças!

Mas o carrilhão continuava, e com ele o desespero do dono da casa.

Neste momento abriu-se a porta, e uma jovem muito esbaforida transpôs o limiar exclamando:

— Papai, demorei-me, talvez demais, mas não fique zangado comigo, peço-lhe... Não foi culpa minha... Corri quanto pude...

Era Joana, a mais nova das três irmãs, aquela a quem elas chamavam Gata Borralheira.

Era impossível imaginar-se mais linda e mais galante criatura.

Tinha dezesseis anos e meio, um rosto de querubim, risonho,. uns grandes olhos em que transparecia a inocência, cheios de seriedade e de meiguice, e nos quais parecia refletir-se o azul profundo do céu.

Os seus formosos cabelos, de um louro acinzentado muito claro, brincavam-lhe sobre a testa em pequeninos anéis soltos, debaixo de um chapéu de palha ornado com flores do campo. Tendo se soltado na corrida, caiam-lhe sobre os ombros e desciam-lhe pelas costas em ondas parecendo seda dourada.

Alta e delgada como poucas, trajava um vestido de fazenda, azul-clara, de uma simplicidade que punha em relevo a elegância um pouco franzina da cintura, e fazia sobressair a pureza e a transparência ideais do rosto.

Trazia as mãos nuas, as pequeninas mãos de uma beleza notável, delicadas e nervosas ao mesmo tempo, que não enegreciam nem com os beijos do sol, nem com os afagos do vento.

Joana, como criança que ainda era, em três pulos atravessou a sala de jantar, e lançando os braços ao pescoço do pai, prosseguiu pousando-lhe os lábios nas faces:

— Prometo-lhe que de hoje para o futuro hei de estar aqui cinco minutos antes da hora. Diga-me que já não está zangado por o ter feito esperar, e dê-me um abraço.

Parecia difícil resistir a um pedido daqueles, mas Júlio Leroux estava por demais zangado, e era preciso que descarregasse sobre alguém o seu mau humor.

— Pois bem! Se estou zangado, redarguiu ele num tom acre, se estou zangado, não é por uma demora insignificante, mas sim por imitar as suas irmãs que esquecem todas as conveniências, e desprezam os respeitos e as atenções a que tenho direito.

— Oh! papai... murmurou a jovem.

— Eu gosto da exatidão, bem o sabem, continuou o ex-banqueiro, e desagrada-me que se esqueçam das horas das refeições... As suas irmãs procedem mal, e a menina vai seguindo-lhes os exemplos... Nem usam para comigo as pequenas atenções e os respeitos vulgares que não se negam a um estranho.

— Meu pai, não me diga isso... não use para comigo esse tratamento... não me fale assim...

— Se falo assim, é porque estou muito descontente, e tenho razões para isso...

— Meu pai, se soubesse quais foram as razões...

— Não quero sabê-las...

— Fui daqui a mais de uma légua de distância visitar um pobre doente.

— Devia ir mais cedo e demorar-se menos tempo! interrompeu Júlio Leroux com violência. As boas ações, a caridade, as virtudes, são cousas muito lindas, mas o respeito pelo chefe da família está primeiro do que tudo! De uma vez para sempre, fique sabendo, não quero ser sacrificado a esses mendigos do sítio de quem pouco me importa!!!

Joana levou o lenço aos olhos, enxugou as lágrimas e calou-se. Abriu-se novamente a porta.

— Olé! disse Renée transpondo o limiar da porta com um mau riso, o papai ralhou hoje com a Gata Borralheira. É muito divertido. Continuai, papai... não se incomode por minha causa... Que fez ela, a Gata Borralheira?

Renée Leroux tinha só um ano mais do que Joana. Ia fazer dezoito, mas davam-lhe vinte, tanto a sua precoce beleza atingira um completo desenvolvimento.

Alta bastante, cintura delgada, ombros e quadris largos, um busto soberbo cujos contornos pareciam esculpidos em mármore; Renée era tão morena, quanto Joana era loura.

Referimo-nos ao cabelo, de um negro escuro com reflexos azulados, porque a sua pele da cor do âmbar, lembrava a palidez mate das crioulas.

As grandes trancas do cabelo cobriam-lhe, como se fosse um capacete de ébano, a testa elevada que fazia sobressair os olhos imensos, cintilantes como diamantes negros. O nariz um pouco aquilino, cujas asas eram rosadas e móveis, constituíam um primor de delicadeza.

Por entre os lábios vermelhos apareciam os dentes pequeninos e brancos como pérolas em estojo. O talhe bonito do mento denotava energia. A covinha que o sulcava aparecia ali de propósito para suavizar os contornos um pouco rudes.

Um estatuário gravaria na memória para reproduzir mais tarde as linhas do pescoço e as dos ombros.

Ou não sabemos esboçar um retrato, ou então devia ser perfeita aquela beleza.

Era impossível negar que o fosse, mas a sua mesma perfeição oferecia alguma coisa de inquietante.

A conformação da testa não seria o sinal misterioso da obstinação em maus desígnios?

O olhar, dardejando como um punhal agudo por entre as compridas sobrancelhas arqueadas, tinha um não sei quê de cruel.

Nenhuma das linhas daquele rosto incomparável exprimia bondade. Sob aquela aparente indiferença, sob aquela volubilidade, podiam adivinhar-se instintos funestos e exigências insaciáveis.

Não há dúvida de que o brilho da mocidade não deixava ver aqueles indícios de mau agouro, mas um observador perspicaz e atento adivinhava-as tão facilmente, como o nauta experimentado adivinha a tempestade que se aproxima, ao contemplar o céu ainda puro.

Renée vestia um "robe-de-chambre" de faile amarelo, bordado a matiz, e que, o ano passado, custara duzentos luíses em casa de uma grande modista.

A frase zombeteira da jovem, forneceu um novo alimento ao mau humor de Júlio Leroux.

— De onde vem, menina? perguntou ele, deixando Joana para se ocupar de Renée.

— Ora essa, exclamou esta última, com um novo acesso do seu riso falso e constrangido, parece, papai, que vai sujeitar-me a um interrogatório em forma!

— De onde vem? repetiu o banqueiro batendo com o pé, quando interrogo, quero que se me responda.

— Acautele-se, papai, padece de ataques de nervos...

— Responda!

Renée fez uma reverência cômica.

— Senhor juiz de instrução, respondeu ela, eu estava no parque.

— Por que não entrou em casa quando tocou pela primeira vez?

— Porque não ouvi a sineta.

— Então é porque estava surda...

— Muito me admira isso, senhor juiz.

— Pois bem, então?

— Estou desculpada... Estava a dormir.

— Às onze horas da manhã! Em pleno campo! Como pode asso ser!...

— Possa ou não, é esta a verdade. Aborreço-me tanto de viver nesta casinhola, que me parece que enlouqueço. Já estou farta de tanto campo, e o azul do céu causa-me náuseas! O esplendor da natureza, os vastos horizontes, a poesia dos campos! Oh que insipidez! Por isso durmo para me distrair... durmo tanto quanto posso... por toda parte... é o meu único prazer! Ao menos tenho a probabilidade de sonhar que estou no bom tempo em que o pai não tinha ainda dado cabo da fortuna, que era nossa, deixando-nos depenadas como a esses simplórios, que lhe caíam nas mãos noutro tempo...

— Mana... mana... murmurou Joana em tom suplicante.

— A menina está esquecendo o respeito que se me deve, exclamou o banqueiro.

Renée encolheu os ombros.

— Então quer que o respeitem agora! redarguiu ela redobrando de insolência. Os meus cumprimentos, papai! O momento é dos melhores para essa vaidade! Noutro tempo, quando tinha fortuna, era um papai folgazão e divertido, não muito respeitável, porém bastante amável. Hoje está rabugento, insuportável, parece um porco espinho, e quer que o respeitem. Ah! Mas não! Não é preciso! Com quem tratou hoje? Por que esse rigor? Olhem o grande crime, fazê-lo esperar cinco minutos! E demais, parece-me que não sou eu a última a chegar...

— A inconveniência de Lazarine não atenua, pois, a sua!...

— Fraseado, sempre!... Acabou?... sim ou não, quer-me deixar em paz? Se sim, vamos para a mesa e comamos sem o menor apetite, um péssimo almoço... se não, diga-o já; faço-lhe os meus cumprimentos e retiro-me para os meus aposentos.

Júlio Leroux sabia muito bem que não levaria a melhor à filha mal educada, cuja familiaridade ofensiva e cujas excentricidades de linguagem lhe pareciam antigamente tão engraçadas.

Mostrou um gesto de zangado e assentou-se com mau modo.

— Mete a viola no saco... redarguiu a jovem, ainda bem... então fico.

Pela terceira vez abriu-se a porta, e Lazarine entrou de repente.

— Vem cá, gritou Renée, e recebe a tua parte; previno-te de que o nosso engraçado pai é um molho de urtigas! Quem lhe toca, pica-se! Acautela-te!...

— Que há de novo? perguntou a recém-chegada muito admirada. Por que estará o papai descontente?

Renée apontou para o relógio.

— Onze horas e um quarto! respondeu ela. Então o galhofeiro autor dos nossos dias pretende impor-nos daqui para o futuro uma exatidão militar... Cinco minutos de demora, pão seco; dez, calabouço; um quarto de hora, enxóvia, onde há cobras, lagartos!... E aqui está o regulamento.

— Pois bem, respondeu Lazarine, mande o papai entregar-me a minha querida Norah, que tão mal vendida foi no Tattersall com o resto dos nossos cavalos, para pagar aos seus credores, e eu estarei em casa às horas... Mas, enquanto tiver um poney tão lazarento que parece não ter sangue nas veias, que é mesmo uma azêmula como essas de aluguel da porta Maillot, então não respondo por coisa nenhuma... E dito isto, vamos para a mesa; por acaso, tenho hoje imensa vontade de comer!...

Temo-lo dito, Joana era perfeitamente linda e Renée estranhamente bela. , A filha mais velha de Júlio Leroux era deslumbrante.

o seu vestido de amazona azul-ferrete desenhava, ou antes, moldava os contornos da cintura bela, os ombros, os quadris, e as curvas sedutoras do colo.

Segurava com a mão esquerda a comprida cauda da saia, e com a mão direita o chicote.

Uma estreita fitinha cor de cereja enrolava-se-lhe de roda do colarinho, direito e engomado, da sua camisa à moda de homem.

Os compridos cabelos ondeados, de cor acobreada e soltos, flutuavam sob o seu chapéu de homem, e desciam-lhe até abaixo dos quadris.

O rosto, animado pela corrida, apresentava, naquele momento, o brilho quase inverossímil que Chaplin, o pintor das jovens de colos rosados e virginais, tem na sua mágica palheta.

As pestanas e as sobrancelhas escuras produziam singular contraste com a cor vermelha dos anéis flutuantes, e davam aos seus olhos a expressão quase oriental que hetairas e atrizes obtêm por meio da caracterização.

A boca era pequena, os lábios purpurinos, e os dentes um fio de pérolas.

Aquele rosto radiante, e aquele corpo de ninfa constituíam um conjunto de incomparável beleza.

Cada atitude, cada movimento revelavam uma nova graça. Coisa nenhuma poderia exprimir a sedução do olhar e o irresistível encanto do sorriso.

Júlio Leroux apesar de tudo, experimentou a influência deste encanto.

Em lugar de dar livre curso à sua irritação, que aumentava, como sucedeu por duas vezes, olhou para Lazarine e calou-se.

A admiração produz resultados mais singulares do que a cólera; é mais forte.

Renée notou-o.

Franziu a esta, e os seus olhos cintilaram de um modo pouco animador.

 

UMA VISÃO

O começo da refeição foi triste.

Júlio Leroux descontente consigo e com os demais, exasperado contra todo o mundo, não proferia uma palavra, e pouco comia.

Renée, amuada, também não dizia palavra, e depois de provar com modo desdenhoso os vários pratos, deixava-os quase intactos.

Joana, contristada pela atitude hostil das irmãs para com o pai, sentia oprimir-se-lhe o coração, e com grande custo conseguia reter as lágrimas.

Só Lazarine, indiferente na aparência, comia com bom apetite, e fazia as honras a um excelente vinho de Touraine que brilhava no copo € derramava grato aroma.

Foi ela quem rompeu o silêncio.

— Papai, começou ela, encontrei esta manhã um dos seus bons amigos...

O ex-banqueiro ergueu a cabeça.

— Um dos meus bons amigos... repetiu ele num tom melancólico, tive amigos noutro tempo... agora já não os tenho...

— Pois bem, um dos seus bons amigos de outro tempo, redarguiu a jovem, e ambos se ufanavam da recíproca estima que se tributavam... A vaidade dele provinha dos milhões do papai, e era o orgulho do papai o título dele... Enfim, pareciam inseparáveis... Adivinhe de quem eu falo?

— Não... e pouco me importa...

— Vou já dizê-lo. Trata-se de um, outrora o mais encantador rapaz, o Príncipe Godefroy de Castel-Vivant...

Júlio Leroux estremeceu a seu pesar. O nome proferido por Lazarine evocava tantas e tão alegres recordações!

— Godefroy! exclamou ele.

— O mesmo... mais rapaz do que nunca.

— Aqui, é incrível...

— Então, por quê? Bem sabe que o Príncipe tem conhecimentos por toda parte, que é procurado, em extremo desejado, e por todos convidado.

— Estás certa de tê-lo reconhecido?

— Certíssima.

— Onde o encontraste?

— A três léguas daqui.

— Falou-te?

— Não... passava a cavalo e não ia só... mas dirigiu-me um cumprimento muito atencioso com aquela cavalheiresca e antiga galanteria.

— Em casa de quem está ele? murmurou o ex-banqueiro.

— Direi a chave do enigma, se a quiser...

— Quem te disse?

— Um rachador a quem interroguei... O Príncipe é hóspede do Marquês de la Tour-du-Roy. Agora, papai, que já o informei, informe-me também... Quem é o Marquês de la Tour-du-Roy?

— Um fidalgo de boa linhagem, e um dos mais ricos proprietários do Loiret... respondeu Júlio Leroux. Visitei na minha mocidade o castelo que ele habita a cinco ou seis léguas da Vertes-Feuilles, e, se as minhas recordações não falham, é uma admirável residência... Mas não pode ser moço o Marquês... tinha pelo menos dez anos a mais do que eu. Era ele quem acompanhava o Príncipe?...

— Sim.

— Como soubeste isso?

— Ainda pelo rachador.

— O senhor de la Tour-du-Roy é um velho, não é?

— Sim e não... se não tivesse o bigode e a cabeça branca como a neve, pareceria mais velho do que o papai...

— Obrigado pelo cumprimento! disse Júlio Leroux amargamente.

— O pai já não tem pretensões, suponho eu, redarguiu Lazarine desapiedadamente, quando se cuida tão pouco da própria pessoa como o papai faz, é porque se abdica. Uma barba de dois dias, a roupa pouco asseada, quando o papai rivalizava com os janotas mais apurados! É repugnante, palavra de honra! Mudaram-no, papai?

O ex-banqueiro abaixou a cabeça sem responder.

Renée olhou muito atentamente para a irmã cujo febril entusiasmo e cuja nervosa alegria não lhe pareciam naturais e deviam ocultar alguma coisa. Mas o quê?

A amazona de cabelos acobreados redarguiu.

— Tem filhos, o Marquês?

— Não sei, respondeu Júlio Leroux, ignoro se ele é casado, pois nem sabia que ainda vivia... Há vinte e cinco ou trinta anos que não ouvia falar no seu nome...

— A que propósito vem essas loucas perguntas, menina? perguntou Renée no tom o mais agressivo. Em que te pode interessar que o senhor de la Tour-du-Roy, o mais rico proprietário do Loiret, tenha ou não filhos? Imaginas tu que algum marquesinho recheado de milhões vem pedir a tua mão? Isso podia admitir-se talvez, quando tínhamos dotes... mas os especuladores de mulheres, não é com boas intenções que fazem a corte às herdeiras de um banqueiro arruinado. Se contas com os teus olhos verdes e com as brilhantes trancas do teu cabelo para encontrar um esposo sério, preparas a ti mesma mais de uma desilusão, previno-te caridosamente, minha querida.

Lazarine volveu lentamente a sua esplêndida cabeça, fitou em Renée um olhar desdenhoso, e disse-lhe com voz zombeteira:

— Tu querias ser insolente, pobre amiga... foste simplesmente ridícula!... Lembra-te de que tudo é possível, mesmo o impossível para quem for como eu sou... um dia virá, que não está longe talvez, em que hei de ter mais milhões do que aqueles que foram absorvidos pelos credores do papai... Terás então a ventura de ser minha protegida, porque hei de te proteger, criança... prometo-te... sou tão bondosa...

Renée desatou a rir, mas as suas gargalhadas tinham o som falso das teclas de um piano desafinado.

— Palavra de honra, disse ela, enlouqueces à força de seres orgulhosa!...

— O orgulho da minha beleza... redarguiu Lazarine.

— Sou tão bela como tu, disse Renée num ímpeto.

— Julgas isso?

— Faço ainda mais... tenho a certeza...

— Talvez tenhas razão; a diferença é que a tua beleza repele e a minha atrai... Um dia terás a prova.

— Tens empenho em me ferir com as tuas insolências? então cedo-te o lugar.

E a jovem, levantando-se da cadeira e atirando com desespero o prato pela mesa fora, saiu furiosa da sala de jantar.

— Se vais consultar o teu espelho, gritou-lhe Lazarine, toma cuidado, porque ele pode mentir...

Aquele estado de excitação febril que não parecia natural em Renée tinha realmente uma causa, e ei-la.

Lazarine todas as manhãs, temo-lo dito, saía das Vertes-Feuilles montada no seu poney, cujo gênio sossegado e pacifico lhe fazia lembrar com saudades do modo de andar e do gênio da fogosa Norah.

O poney, contudo, não trotava mal, e passeios de sete e oito léguas não o fatigavam.

Três dias antes, a amazona caminhava, a doze quilômetros de distância do teto paternal, pela rua aberta no bosque entre dois renques de carvalhos seculares.

Absorta em seus devaneios, como fazia quase constantemente quando estava só, ela pensava no passado para deplorar a sua perda, e no futuro para construir os seus castelos no ar.

A mão distraída deixara o poney a vontade, e o inteligente animal, sentindo as rédeas caídas sobre o pescoço, aproveitava-se disso para ir a curtos passinhos apanhando a erva fresca que comia com o maior apetite, cobrindo de saliva esverdeada os freios desapiedados que não lhe deixavam engolir à vontade aquela suculenta alimentação.

Um ruído de cavalos despertou Lazarine.

Olhou, e a princípio não viu coisa alguma, mas, a vinte passos de distância, o caminho fazia um cotovelo e o mato espesso não deixava penetrar o olhar.

Certa de que ia encontrar-se com cavalheiros e querendo, como verdadeira filha de Eva, mostrar a sua superioridade, apanhou as rédeas, deu uma vigorosa chicotada no cavalo e meteu-o a meio galope.

Quando chegava ao ponto onde o caminho fazia um ângulo achou-se frente a frente com um gentleman muito distinto, montado num formoso cavalo baio.

O gentleman já não era novo, os cabelos dos bigodes, das barbas e da cabeça não deixavam dúvida, mas a estatura alta e delicada conservava-se muito direita, o resto das feições aristocráticas e bem desenhadas estavam perfeitamente conservadas, finalmente podia passar ainda por ser muito belo.

O seu traje constava de calções brancos, grandes botas de montar, um casaco de veludo preto, um chapéu pardo e luvas de anta.

Um botão de rosa na casa do casaco substituía uma condecoração, e não parecia ridículo.

Lazarine era entendedora de cavalos.

Avaliou em quatrocentos luíses o cavalo montado pela cavaleiro alto.

A quarenta passos de distância seguia-o um groom muito firme na sela, e cujo cavalo não era inferior ao do amo.

O gentleman ao ver a jovem descobriu-se, e exatamente no instante em que passavam um junto do outro, ele inclinou-se até tocar quase no pescoço do cavalo.

Lazarine correspondeu ao cumprimento com aquela dignidade a que se habituara no bosque de Bolonha, e seguiu o seu caminho aplicando o ouvido.

O seu instinto de mulher dizia-lhe que o passeante desconhecido ia parar que a seguir com o olhar.

Não a iludiu o instinto. Teve imediatamente a prova, porque a bulha dos passos cessou de repente.

Coisa nenhuma quis concluir daquela circunstância. Ela sabia, por experiência, que, na sua passagem, os homens quase sempre se detinham para a verem melhor e para a admirarem por mais tempo.

Quando regressou às Vertes-Feuilles nada disse do seu encontro, e até talvez não mais pensasse nele.

É possível, ainda que pouco verossímil; contudo, no dia seguinte, à mesma hora da véspera, percorreu a galope a distância que a separava dos bosques, e embrenhou-se no tal caminho.

O cavaleiro dos bigodes brancos já lá estava, e os seus olhos, apenas distinguiram ao longe a cavaleira, brilharam com um fulgor juvenil.

Cumprimentou-a como na véspera e parou de novo depois de ter passado junto dela.

Esta cena muda renovou-se no dia seguinte, mas (variante que não deixa de ter importância), a jovem, ao chegar às Vertes-Feuilles reparou que era seguida de muito longe, discreta, respeitosamente não há dúvida, mas o fato era evidente e bastante significativo.

O cavaleiro queria saber o nome da esplêndida amazona, e conhecer a sua casa.

Assim que ela passou a grade do pequeno parque das Vertes-Feuilles, voltou para trás.

— Também eu hei de saber quem ele é! disse consigo Lazarine. Quem sabe, pode ser aquele o ponto de partida de um bom futuro... É pouco provável, bem o sei, mas, muitas vezes o tenho dito a Renée, tudo é possível, mesmo o impossível... Veremos amanhã...

 

A CAÇADA

A jovem ficou muito surpreendida, e confessêmo-lo, singularmente admirada, quando, no dia seguinte, achou deserto o sítio onde os encontros se sucediam havia três dias.

Estes encontros que pela parte delia eram premeditados, pode ser que por parte do gentleman de cabelos brancos fossem o resultado dos acasos do passeio.

Também pode ser que o gentleman tendo sabido na véspera que a deslumbrante amazona era filha do banqueiro arruinado Júlio Leroux, julgasse inoportuno encontrar-se, dali para o futuro, com ela.

O campo das conjeturas era vasto, e Lazarine fazia a si mesma um número imenso de perguntas, as quais não podia responder, quando, de repente, o poney, que ela deixara andar à vontade, levantou a cabeça e abanou as orelhas.

A amazona aplicou o ouvido.

O ladrar de uma matilha e os sons estrídulos de uma trompa ouviam-se a uma fraca distância, numa longa vala que cortava o bosque na direção de norte a sul, e que a quinhentos passos de distância, encontrava-se o caminho da mata fechada.

Lazarine disse consigo:

Caçar na floresta... há de ser ele...

Fez avançar o poney, chegou à vala e deteve-se junto a uma pequena clareira atulhada de árvores cortadas de novo. Muito próximo dela estava um rachador de lenha, que, assobiando, amarrava um molho de cavacos.

Ainda se não via a peça de caça, mas os latidos dos cães, e os sons da trompa aproximaram-se rapidamente.

De repente apareceu o animal, um cabrito montes, fugindo numa carreira fantástica.

Atrás dele seguia a matilha; doze ou quatorze soberbos cães, tão unidos que poderiam cobrir-se todos com uma capa.

A pouca distância galopava um picador de trompa na boca.

Finalmente, a cem passos, dois cavaleiros perfeitamente montados,. corriam com uma rapidez vertiginosa.

Um deles era o gentleman de cabelos prateados.

O outro, que Lazarine reconheceu quando passou junto dela. era o Príncipe Godefroy de Castel-Vivant.

O Príncipe também reconheceu a jovem, mostrou-se surpreendido, e disse algumas palavras ao seu companheiro, mas não parou, nem afrouxou a carreira, e os dois cavaleiros desapareceram a toda a brida depois de terem cumprimentado.

Lazarine tinha visto o rachador tirar respeitosamente o chapéu e tomar uma atitude humilde.

— Este homem me dirá o que eu desejo saber... disse ela consigo.

E quando os dois cavaleiros desapareceram num como turbilhão, o que tão levou muito tempo, aproximou-se dele.

— Meu amigo, perguntou-lhe, conhece estes dois caçadores?

— Conheço só um, respondeu o rachador.

— Qual deles?

— Aquele que me faz ganhar a vida, porque desde o primeiro de janeiro até o dia de S. Silvestre trabalho por conta dele, e isto há mais de vinte anos. Sim, minha senhora... A floresta onde estamos é dele, e tem muitas mais... Os seus bosques vão até o outro lado de Orleans...

— Isso não é bastante para eu saber o seu nome...

— É por que então a menina não é cá dos sítios?

— Não sou, efetivamente.

— Pois bem, o nobre senhor, chama-se Marquês de la Tour-du-Roy. É um antigo fidalgo, muito bom para todos, e generoso como ninguém... Proíbe aos seus administradores que sejam muito severos. para conosco.

— Ele mora aqui por estes sítios?

— Em Tour-du-Roy, a três léguas daqui, é um castelo como não há muitos, creia na minha palavra. De muito longe vêem visitá-lo unicamente por curiosidade. Dizem que o castelo de Gordes é tão belo como o de meu amo, eu porém nunca o vi, e por isso não sei.

— O Marquês é com certeza casado...

— Não sei para que, ora essa, não senhora. E é realmente grande pena, porque os filhos deveriam valer tanto como o pai, e já não há gente daquela tempera! O senhor Marquês é rapaz... velho rapaz, porque somos ambos da mesma idade! Eu tenho sessenta e cinco anos... a mesma idade dele, ainda que pareça mais novo do que eu vinte anos. Isso provém talvez de que ele não é casado, e eu sou... É de crer, ajuntou o rachador rindo, que tenha achado mais cômodo contentar-se com as mulheres dos outros, porque creia, minha bela menina, um homem como é o senhor Marquês, devia agradar às damas no seu tempo, e também ainda hoje não me admira, pois é direito como um mastro, forte bastante e nunca o conheci doente... obriga o cavalo a saltar fossos de quatro metros; eu que lhe estou falando conheço rapazes, muitos rapazes, que não são para se comparar com ele.

— Aceite isto, meu amigo, para beber à minha saúde, disse Lazarine dando dinheiro ao rachador.

— Muito obrigado, minha menina... não recuso, está muito calor, e este trabalho de molhar cavacos faz sede.

A jovem tomou o caminho das Vertes-Feuilles, mas a espera e a conversação com o rachador tinham-lhe feito esquecer a hora, e vimos como ela chegou tarde ao almoço.

Mas por que motivo Lazarine sabendo que o senhor de la Tour-du-Roy não era casado, interrogava o pai a esse respeito?

Nem ela saberia dizê-lo, porque no fim de contas não tinha coisa alguma a ocultar; mas o fingimento, tanto nas pequenas como nas grandes coisas, é uma necessidade para certos entes a quem a franqueza espanta tanto como os raios do sol assustam os pássaros da noite.

Lazarine encerrou-se no seu quarto e entregou-se aos seus pensamentos.

Pela primeira vez, depois da quebra de seu pai, e depois do seu desterro nas Vertes-Feuilles, Lazarine quase que se sentia alegre e via o futuro sob menos sombrio aspecto.

Tinha no mais alto grau o orgulho da sua beleza, ouvimo-lo da sua própria boca, estava certa de ter produzido viva impressão no coração, ou pelo menos, na imaginação do senhor de la Tour-du-Roy.

Que resultaria daquela impressão?

Ninguém podia adivinhá-lo, mas sendo o Marquês solteiro, todos os sonhos eram admissíveis, e todas as esperanças legítimas.

Naquele mesmo dia, pelas quatro horas da tarde, estando ela preguiçosamente reclinada num fauteuil perto da janela, absorta num cálculo de probabilidades, ouviu surpreendida a bulha das rodas e das patas de cavalos nas pedras do pátio.

Levantou-se num pulo dizendo consigo: — "É talvez ele!" e olhou por entre as tabuinhas das persianas.

Uma grande vitória de oito rodas e de bonito estilo, parou em frente da porta da entrada.

Os lacaios vinham com as suas librés de gala. Os cavalos, de uma incomparável beleza, traziam as cabeças enfeitadas com rosetas.

Dentro da carruagem vinha só uma pessoa, e apeou-se muito desembaraçadamente.

Não era ele, mas sim o seu hóspede, o Príncipe de Castel-Vivant, isto é, uma linha de união entre o castelo de la Tour-du-Roy e a casa de Vertes-Feuilles.

Lazarine assim o compreendeu, e nos seus formosos lábios desabrochou um sorriso triunfante, e, sem mesmo olhar para o espelho, desceu.

O Príncipe, ágil como um rapaz, subiu as escadas e ia quase esbarrando com o provinciano do criado que veio abrir a porta envidraçada do vestíbulo e olhava estupefato para a esplêndida equipagem de la Tour-du-Roy.

— O senhor Júlio Leroux está em casa? perguntou o recém—chegado.

O criado tinha ordens severas a tal respeito.

— Não devia, sob pretexto algum, receber visitas, quem quer que elas fossem.

— O senhor saiu... respondeu ele com um modo acanhado, há de ter muita pena, realmente... e se o senhor quer ter a bondade de deixar ficar o seu bilhete...

— Saiu, diz vosmecê, interrompeu o Príncipe! Pois bem! Se saiu, há de voltar... esperá-lo-ei... Conduza-me para a sala...

— Meu senhor, tenho muita pena... mas...

— Mas, o quê?...

— Tenho ordem para não receber ninguém.

— Perfeitamente... compreendo... o dono da casa está, mas esconde-se... Está no seu direito... o meu é não me dar por vencido... Diga ao senhor Júlio Leroux que o seu amigo, o Príncipe de Castel-Vivant, deseja apertar-lhe a mão... Vá depressa.

Um príncipe! Fechar a porta a um príncipe!... era muito, mas assim se tornava necessário sob pena de perder o lugar.

— Senhor Príncipe, balbuciou o criado muito consternado, é impossível... impossível... completamente impossível! O senhor preveniu-me, seria despedido...

Godefroy de Castel-Vivant pôs-se a rir.

— Não perdoaria a mim mesmo comprometer o seu futuro por causa de uma sua boa ação como esta, meu rapaz, disse ele. A arte de interpretar as ordens que lhe dão é para vosmecê letra morta, bem se vê, e por isso abster-me-ei de qualquer tentativa de corrupção, mas recuso ir como vim... vou esperar no parque. Previna seu amo, ou, se efetivamente ele saiu, anuncie a minha visita às meninas Leroux.

Neste momento apareceu Lazarine de penteador e com os cabelos soltos.

— Querido Príncipe, disse ela, seja bem-vindo!... Que bondade e afabilidade as suas ter pensado em nós! Parece-me conhecê-lo bem, e desde esta manhã que o encontrei, que o esperava, por tal modo o considero um príncipe ideal...

O senhor de Castel-Vivant beijou a mão de jovem com a galanteria de um fidalgo do antigo regime, um pouco caduco talvez, mas enfim, de um gosto muito particular.

— Ah! Ainda bem! disse ele, muito estimo vê-la, minha amiguinha!... Com que então tenho uma aliada para me auxiliar! O' seu castelo é uma cidadela em estado de sítio! Não se entra aqui como se quer, sabe isso!... Safa, como se guardam bem!...

— Meu pai já não é o homem que o senhor conheceu...

— Tenho pena, porque ele era encantador.

— Tem-se tomado de um caráter muito sombrio depois das catástrofes que não esperava. Vive muito retirado, e não quer ver ninguém... Preciso mais dizer-lhe que a ordem geral não se entende com o senhor, e que meu pai estimará muito a sua visita.

— Conto com isso!... com que então o nosso querido amigo está muito transtornado! Felizmente a minha lindinha não lhe seguiu-o exemplo... É o prazer de quem a contempla. O seu fato de amazona muito bem lhe ficava, e esse galante negligé ainda melhor, se é possível... Ah! Que formosa feiticeira me saiu.

E o senhor de Castel-Vivant, pegando muito delicadamente num dos anéis do cabelo de Lazarine levou-o aos lábios.

O processo era leviano talvez, e mesmo um pouco arriscado, mas a idade do Príncipe legitimava aquelas familiaridades.

Enquanto se diziam as coisas que precedem, Lazarine encostada ao braço do visitante atravessou o vestíbulo e transpôs o limiar da sala.

Godefroy de Castel-Vivant aproximou-se de uma janela, colocou a luneta no nariz e olhou para a paisagem que se desenrolava ante seus olhos.

Mas, com a breca! disse ele, não compreendo de modo algum o spleen" do meu excelente amigo... Que soberbo horizonte, que maravilhoso parque, este retiro campestre é adorável.

— Se dissesse isso a meu pai, redarguiu Lazarine rindo, não seria da sua opinião...

— E a menina também não é da minha opinião?

— Sim e não... É pitoresco, concordo, mas é tão aborrecido.... é mortal...

— Tem saudades de Paris?

— De Paris e dos milhões desaparecidos... Oh! sim, tenho muitas saudades.

— Paciência e coragem... Voltará a Paris... há de ali ser rainha...

— E os milhões?

— Roubados por um lado, virão por outro.

— Príncipe, não diga loucuras... Teria medo de acreditá-lo, e a decepção custar-me-ía muito! Conceda-me licença por um instante... vou procurar papai...

E a jovem, esbelta e graciosa como uma ninfa de Jean Goujon, saiu da sala.

— É certo, murmurou o Príncipe, que aquele estouvado pássaro precisa de uma corrente de ouro... E essa corrente, se não me engano, trago-a eu...

 

O PRÍNCIPE

Aproveitêmo-nos da momentânea solidão do Príncipe, para fazer um rápido esboço da sua pessoa.

Qual era, ao certo, a idade do senhor de Castel-Vivant?

Muitas pessoas dirigiam a si mesmas esta pergunta, sem poderem responder de maneira satisfatória, pois o principal interessado envolvia com arte, nas sombras do mistério, a sua certidão de idade.

Os contemporâneos davam-lhe sessenta e oito ou setenta anos, mas não eram acreditados, porque não parecia septuagenário.

Alto, delgado, não tendo por assim dizer, perdido nada da sua elegância, outrora célebre, Godefroy-Aymar-Enguerrand, Príncipe de Castel-Vivant, era dotado de umas feições em que se notavam regularidade e nobreza.

Durante mais de um quarto de século lhe chamaram: o belo Godefroy. No momento em que o apresentamos aos nossos leitores, conservava ainda incontestáveis direitos a tão lisonjeiro epíteto.

Os cabelos da cabeça, dos bigodes e das suíças que eram louros, conservavam ainda a mesma cor, e até mais brilhantes, graças ao uso de uma boa tintura inglesa.

Para desconfiar do uso da restauração paciente e coroada de um bom resultado, a que o Príncipe se entregava todas as manhãs, era mister examinar de perto e muito atentamente o rosto. Só então apareciam sob as camadas múltiplas da pintura, as rugas profundas que sulcavam a epiderme. Afora isto, a ilusão era completa.

Na nossa época, quando, apesar da lei, o mundo aceita de bom-grado uma quantidade enorme de títulos, uns perfeitamente provados, outros de mera fantasia. Godefroy de Castel-Vivant era um verdadeira Príncipe, e o último representante de uma casa muito histórica.

Destinado, desde os mais verdes anos, à carreira diplomática prontamente fora elevado a segundo secretário de embaixada, mas diversas aventuras galantes, muito escandalosas, seguidas de alguns duelos desgraçados, ou antes muito felizes para ele, com maridos de elevada posição, obrigaram-no a sair da vida pública, porque daí para o futuro nenhum embaixador quis um adido tão comprometedor.

Da estada de Godefroy na diplomacia tinha resultado para ele o direito de usar uma roseta multicor das melhores, e poder prender no lado esquerdo das suas casacas de baile uma enfiada de cruzinhas muito lindas.

— Estas bijouterias nada significam... dizia Castel-Vivant rindo. Não provam coisa alguma, mas são um acessório superlativamente elegante, de que um homem de certa classe não pode prescindir...

O Príncipe tinha sido rico, havia embolsado quase milhão e meio da herança de seu pai. Pareciam-lhe mesquinhos os rendimentos daqueles quinze mil francos, e apressara-se a consumir o capital.

Tinha sido casado com uma mulher nova, bonita, filha de boa gente, ainda que pouco nobre, possuidora de um grande dote, e muito virtuosa. Há sujeitos de uma escola pervertida que têm, às vezes, fortunas incríveis.

A pobre senhora adorava Godefroy e forjava, para a ventura de ambos e para as castas alegrias do lar, todas as quimeras românticas filhas das imaginações provincianas, cuja nenhuma importância o Príncipe lhe demonstrou muito pronta e definitivamente.

— A senhora possui o meu título e o meu nome, é Princesa de Castel-Vivant, concedo-lhe uma liberdade sem limites. Que mais pode desejar? disse-lhe ele um dia respondendo assim a uma queixa como que feita a medo.

A juvenil Princesa, desditosa dela! achava insuficiente o título sem o marido.

Ela desejava que Godefroy se lhe consagrasse um pouco mais.

Via como seu marido tratava afavelmente todas as mulheres, exceto a sua. Logo que as notas do primeiro cotillon se ouviam entusiasmava-se todo. Para a sua mulher não tinha senão uma indiferença absoluta.

Ferida na sua afeição, abatida no seu amor próprio, humilhada na sua dignidade, a pobre Princesa tomou-se de um grande desgosto, adoeceu e morreu.

Godefroy procedeu muito convenientemente neste acontecimento, e mostrou-se realmente consternado.

Estava efetivamente consternado e muito, porque a fortuna da falecida era herdada toda, até o último soldo, por sua família.

Depressa se consolou, enfim, gastando sem contar as últimas notas, resto da sua fortuna.

Quando começa esta história, e já há muitos anos, possuía apenas uma pequena renda vitalícia de alguns milhares de francos que lhe dava um parente afastado.

Realizava o difícil problema de, com tão fracos recursos, viver como homem rico, sem nunca recorrer ao supérfluo, que era o de que necessitava.

Nunca recebia visitas, nem estava em casa; a pequena sobreloja mobiliada com o resto do seu antigo luxo, era de pequeno dispêndio; o seu único criado um rapazinho de dezesseis ou dezessete anos.

Convidado todos os dias quer para almoçar, quer para jantar, nas diferentes casas dos seus conhecimentos, nunca comia à sua custa.

Passava verões e outonos em nobres e elegantes mias.

Membro de três sociedades do high-life jogava muito o wisth, a grandes garadas, ganhava oito vezes em cada dez, e sabia deter-se quando a sorte se lhe mostrava adversa.

Sentia-se uma lacuna nas alegres reuniões quando ele não estava, Em noites de primeiras representações tinha sempre um lugar reservado nalgum camarote.

Finalmente, as amáveis pessoas do mundo aventureiro às quais pelas suas relações era muitas vezes útil, mostravam-se, em extremo, gratas.

Godefroy de Castel-Vivant provava, além disso, em todas as coisas, muito tacto devido à sua longa experiência.

Ninguém, embora ele vivesse à custa de todos, se lembrava de lhe chamar papa-jantares, e a razão é muito simples. Assentado sem constrangimento algum à mesa dos amos, mostrava-se para com os criados generoso como um Príncipe. Tinha mais o costume de, no dia de Ano-Bom, distribuir papeluchos de amêndoas. Era essa a sua mais avultada despesa.

Não se podia por em dúvida a honradez de Godefroy. Por mais leviano, por mais descuidado e falto de senso moral que fosse o velho fidalgo, sabia-se bem que ele era incapaz de transigir com a sua consciência quando a honra perigava.

Um dia, certo rapaz muito gordo e bastante rico, principal sócio de uma grande casa bancária de Paris, deu-lhe o braço, com um modo muito discreto, e conduziu-o à sala de fumar do club.

Godefroy não gostava do tal rapaz, cuja obesidade incomodava os seus nervos delicados, mas era diplomata muito fino para deixar perceber a sua antipatia.

— Meu Deus! exclamou rindo, que modos esses tão misteriosos!... Acaso vamos conspirar?

— Querido Príncipe, perguntou o ricaço, gostaria de apanhar cento e cinqüenta mil libras de rendimento de um dia para o outro?

— Gostaria imenso, e especialmente porque já as tive, e como hoje as não tenho, bastante penalizado estou... Quererá oferecer-mas?

— Ofereço-lhas.

— Sério?

— Palavra de honra.

— Presto-lhe toda a atenção. Para me tornar dono e senhor dessa pechincha, é preciso fazer alguma coisa, suponho...

— Com certeza.

— O quê?

— Casar...

— Já o antevia. Então por minha causa tornou-se casamenteiro como o senhor de Foy! Pois bem! Por que não? No fim de contas! Sou viúvo, e o casamento não tem coisa que me espante... Vamos ao caso... Fale francamente!...

— Muito bem. Uma senhora (repare, meu querido Príncipe, que é nova e bonita), possuidora de três milhões em boas propriedades, tendo-se-lhe metido em cabeça tornar-se Princesa, dirigiu-se a mim... Prometi falar em seu favor... Falo... Falei... está desempenhada a minha missão... que responde?

— Isso depende...

— De quê?

Do nome da pessoa que, como diz, se lhe meteu em cabeça tornar-se Princesa, e me faz a honra de contar comigo para satisfazer o seu capricho.

— Pois não adivinha? ' — Não! Conheço-a?

— Se conhece!

— Enfim, o nome?

— Laurence Tissier.

O senhor de Castel-Vivant empalideceu um pouco, mas não se lhe podia notar a palidez sob os preparados que lhe cobriam as faces, e muito tranqüilamente redarguiu:

— Diz a verdade... Laurence é encantadora... Eu julgava porém, meu caro senhor, que estava em boas relações com tão amável pessoa.

— Têm razão... Mas trata-se de um casamento riquíssimo para mim, e, compreende, liquido as minhas dívidas de coração...

— O senhor liquida, redarguiu o Príncipe no tom mais sossegado, e quer, liquidando, fazer uma Princesa verdadeira daquela que foi sua amante depois de o ter sido de toda a Paris. Engenhosa idéia!... É Richelieu, é tacão vermelho, admiro!... Só o que não era preciso era que, escolhendo-me para comparsa do seu gracejo à Luís XV, me obrigasse a dizer-lhe que é um traste...

O rapaz gordo estupefato olhou para ele.

— Então!... mas, balbuciou ele, parece que o senhor me insulta!

— Ora essa, pois não me insultou primeiro o senhor? redarguiu Godefroy, pago a minha dívida! O senhor é que principiou, e há de dar-me uma satisfação.

— O quê, querido Príncipe?... mas compreenda...

— Nada de baixezas nem de palinódias, interrompeu o senhor de Castel-Vivant, não admito desculpa alguma. Havia de me custar muito esbofeteá-lo. Fiquemos nisto. Dentro de duas horas as minhas testemunhas estarão em sua casa.

— Encontrarão as minhas! redarguiu o contratador de casamentos, fazendo das tripas coração.

O duelo teve lugar no dia seguinte, de manhã cedo, no bosque de Vincennes.

O Príncipe tinha sessenta e dois anos.

O seu adversário tinha apenas trinta, o que não obstou a que recebesse uma estocada no ombro que o prostrou na cama durante seis semanas.

Pareceu-nos necessário mostrar este rasgo de cavalheirismo de um caráter tão censurável por outros motivos.

Godefroy era falho de consciência e até imoral, mas não era vil.

Os nossos leitores conhecem-no agora tão bem como se tivessem vivido na sua intimidade; melhor o conhecerão quando souberem de uma última particularidade bastante original e perfeitamente típica.

O velho fidalgo não queria de modo algum traficar com o seu título de um modo desonroso; mas como o título representava um grande capital, procurava modo de tirar partido desse capital.

Um dia exclamou:

— Achei!...

Desde aquele dia começou a aparecer todos os três meses, na quarta página do Fígaro e outros jornais de grande tiragem, um anúncio assim concebido:

"Um fidalgo, já idoso, sem filhos, possuidor de um nome histórico e de um título de primeira ordem, que teria pena de vê-lo extinguir-se por sua morte, transmite tanto o nome como o título, por meio de adoção, a um rapaz com grande fortuna. Escrever, posta restante, a X. Y. Z. 2.° 113."

Ê escusado dizer que inúmeras cartas chegaram pela posta restante, com as iniciais designadas.

O Príncipe lia as cartas, tomava minuciosas informações a respeito dos candidatos, e como não encontrasse o seu desideratum, não ultimava o negócio.

Mas, sem nunca desanimar, três meses depois recomeçava com os anúncios, que prendiam por durante oito dias a atenção, ou antes a curiosidade pública, e cujo misterioso autor ninguém suspeitava quem fosse.

 

UMA VISITA

Parece quase superfluidade acrescentar que o Príncipe se vestia com irrepreensível elegância.

É possível que aquela elegância fosse um tanto verde, mas não provocava o ridículo.

Naquele dia, o senhor de Castel-Vivant trazia uma calça de cetim branco, sobrecasaca aberta na frente deixando ver um colete de pique, gravatinha de seda azul, e "um colarinho baixo que lhe deixava completamente livre o pescoço.

As luvas gris-perle, de três botões, desenhavam as mãos compridas e finas. A roseta multicor, do mais pequeno feitio, orava discretamente a casa do casaco; finalmente, uma fitinha de seda segurava a luneta com que tinha estado a olhar para a paisagem.

Lazarine saindo da sala subiu rapidamente aos aposentos do pai.

Encontrou-o deitado sobre um pequeno divãn, e fumando com modo aborrecido num cachimbo de tubo muito comprido.

Nesta atitude, e assim ocupado, passava os três quartos do dia.

Ergueu a cabeça quando a filha entrou.

— O que vem a ser essa bulha de carruagens que acabo de ouvir? perguntou com um modo sacudido.

— Uma visita para si, meu pai... respondeu Lazarine.

O ex-banqueiro fez um gesto de agastado.

— Pois sim, mas essa visita retirou-se, suponho eu?

— Não, senhor... está à sua espera... na sala.

— Hei de por ainda hoje na rua o tolo do criado que, apesar da minha formal proibição, recebe e introduz aqui estranhos... exclamou Júlio Leroux furioso.

— José está inocente, não tem culpa alguma, redarguiu a jovem, ele queria cumprir a ordem que tinha recebido... Fui eu que intervim para que o Príncipe entrasse e ficasse, porque já adivinhou que falo do Príncipe...

— Que me importa o Príncipe? Vai ter com ele, se queres... porque eu não vou.

— É impossível.

— Realmente?

— Completamente impossível. O senhor de Castel-Vivant sabe que o pai está em casa e que vim preveni-lo da sua chegada. Recusar falar-lhe seria uma grosseria condenável.

— Pouco me importa com a delicadeza.

— E já que se tem tomado um bicho do mato! não é mister novas provas, mas o senhor de Castel-Vivant é homem muito melindroso. Acharia o seu procedimento inconveniente e pedir-lhe-ía satisfação.

— Acaso julgas que tenho medo de algum duelo? exclamou o banqueiro erguendo-se.

— Ninguém pensa em contestar o seu ardor belicoso! É valente como a sua espada que brilha pela ausência! Mas os preliminares de um combate singular trazem consigo uma série imensa de pequenos inconvenientes que o pai vai evitar descendo já.

— Isso é obrigar-me ao que não quero... protesto...

— Ah! Proteste quanto quiser, contanto que desça...

— Posso eu apresentar-me com esta barba tão comprida, e o fato no maior estado de desalinho?

— Não precisa mais do que dez minutos para fazer a barba e compor o seu fato... volto para junto do Príncipe e vou anunciá-lo. Enquanto o esperamos, entabularemos conversação sobre qualquer coisa. Não demore, pois!

E, sem ouvir a resposta do pai muito furioso, mas obediente, saiu do quarto e desceu como um raio ao rez-de-chaussée.

A jovem a quem a solidão do viver no campo entorpecia grandemente, em poucos instantes readquiriu a sua vivacidade de parisiense, e o completo desembaraço das suas maneiras. A metamorfose era tão completa quanto repentina.

Conduziu o senhor de Castel-Vivant pela mão para um canapé, e sentou-se ao seu lado.

— O papai não tarda, querido Príncipe, disse ela. Não se admire dele manifestar muito imperfeitamente a viva alegria que lhe causa a sua visita... Repito, o papai está muito mudado, muito... já não é o folgazão do outro tempo! O senhor tinha muita influência sobre ele. Se quiser dar-se a esse trabalho, ainda poderá tê-la... Empregue-a para lhe despertar o gênio abatido. Faço-o voltar à vida ativa, e o senhor será um perfeito Príncipe...

— Esteja descansada, minha amiguinha, farei quanto puder.

— Assim tudo irá bem; e agora, caro Príncipe, se quer, falemos de coisas mais interessantes... Desde quando está no Loiret?

— Desde ontem à tarde. Já vê que não perdi tempo para vir cumprimentá-la.

— Já disse, o senhor é um Príncipe ideal. Tenciona demorar-se aqui muito?...

— Não tenho tenção de voltar a Paris antes de um mês.

— De que feliz proprietário é o senhor o hóspede cem vezes bem-vindo?

— Não conhece o fidalgo em companhia de quem eu andava esta manhã à caça?

— Já o conhecia de vista por tê-lo encontrado mais de uma vez na floresta, mas ignoro o seu nome.

— É o Marquês de la Tour-du-Roy.

— Ah! disse simplesmente Lazarine.

— Este nome não lhe diz nada?

— Coisa nenhuma, e parece-me que é esta a primeira vez que o ouço.

— Pois bem, o Marquês é um grande fidalgo, muito rico, e seu admirador apaixonado.

A jovem pôs-se a rir.

— Meu admirador apaixonado! repetiu. Dê-me licença, para que eu não creia na sua palavra. Conhece-me ele ao menos? Duvido.

— Conhece-a, sabe quem é, e o encontro desta manhã é o quarto, sempre quase no mesmo sitio... Há acolá em baixo, creio eu, certo caminho coberto de que parece gostar muito...

Lazarine, apesar do império que tinha sobre si mesmo corou imperceptivelmente.

— Deixo o meu poney ir à vontade, redarguiu ela, e conduz-me para onde quer.

— Ele faz bem em conduzi-la para ali... Os bosques do Marquês são soberbos... Não pode imaginar, minha galantinha feiticeira, a imensa satisfação do Marquês quando soube que eu tinha a honra de me contar entre os mais afeiçoados de seu pai...

Lazarine não se informou do motivo daquela satisfação.

Adivinhava-o, não precisava perguntá-lo.

A conversação tinha parado quando Júlio Leroux entrou na sala.

O ex-banqueiro vinha sofrivelmente barbeado, e vestido quase corretamente. A fisionomia não oferecia nada de agradável, mas para um homem que foi contrariado e anda aborrecido não era muito rude.

Apertou muito afavelmente a mão do visitante, e a filha, dando prova de tato e querendo deixar ao Príncipe toda a liberdade de ação, retirou-se silenciosamente.

O começo da conversação foi difícil. Júlio Leroux entrincheirava-se na sua frieza, e o senhor de Castel-Vivant, apesar da sua afetuosa lhaneza, não conseguia destruir aquela frieza.

Enfim o Príncipe, devido, sem dúvida, à sua qualidade de antigo diplomata, arrancou o banqueiro à sua reserva, e por gradações insensíveis conseguiu fazê-lo voltar àquela íntima camaradagem de outro tempo, e que a ruína interrompera.

— Agora, me velho amigo, disse o fidalgo quando obteve este resultado, tenho a fazer-lhe um pedido.

— Um pedido? repetiu o ex-banqueiro sorrindo, tão desacostumado andava disso há já muitos meses.

— Com certeza.

— Compreenderia isso noutro tempo, quando era dez vezes milionário, porque o milhão é uma alavanca muito forte, eu podia muito. Mas hoje estou arruinado, e portanto impotente. Que há a esperar de um homem pobre? Enfim, querido Príncipe, disponha de mim...

— Trata-se da coisa mais simples do mundo... Um dos meus bons amigos, o Marquês de la Tour-du-Roy, de quem sou agora hóspede, solicita a honra de lhe ser apresentado, e eu não lhe ocultarei, meu velho camarada, que prometi positivamente ao Marquês que lhe obteria esse favor.

Júlio Leroux deu um salto.

Fez mal em prometer, exclamou, muito mal!

— Por quê?

— Porque eu não acederei ao seu compromisso.

— Não creio. O senhor há de aceder.

— Recuso.

— Quais os motivos dessa recusa?

— São elementares. Caído de uma posição muito elevada numa mediocridade a que não estava costumado, resolvi acabar absolutamente com as minhas relações de outros tempo, e só por sua causa abri uma exceção, exceção que não lamento. Já vê, portanto, quanto me seria importuno qualquer novo conhecimento. Não quero receber, nem receberei pessoa alguma, especialmente um homem imensamente rico, a cuja fortuna a minha era igual noutro tempo, porém é hoje muito inferior.

— Inferioridade que eu contesto!...

— Basta que eu a admita... Não insista, pois. Tenho pena de não poder ser-lhe agradável, mas é esta a minha resolução.

— Encarrego-me de o convencer que faz mal.

Júlio Leroux abanou a cabeça.

— Enfim, redarguiu o Príncipe, consente em ouvir-me?

— O senhor está em minha casa... A cortesia obriga-me a atender a tudo quanto queira dizer... Mas já o previno, será bradar no deserto, e nada fará ante uma resolução inabalável.

— É o que vamos ver. O senhor ama as suas filhas, meu amigo.

O ex-banqueiro estremeceu involuntariamente.

— Amo-as com certeza, redarguiu ele, o meu amor é tão grande, quanto foi imenso o irreparável mal que lhes fiz ao lançá-las na ruína. É uma coisa que eu não perdoarei a mim mesmo, e para lhe falar francamente, elas também nunca me perdoarão, principalmente as duas mais velhas... muito bem o vejo.

— Pois bem, continuou o senhor de Castel-Vivant com o desembaraço de um homem que parece ir apresentar um argumento, irrefragável, quando se oferece a ocasião de reparar em parte esse mal que tanto lhe pesa e que diz irreparável, por que a não aceita?....

— Não o compreendo. Qual é essa ocasião de que me fala?

— A de um casamento para Lazarine, um casamento tão brilhante que mesmo na época da sua prosperidade, não poderia sonhar nenhum melhor... compreende?

— Cada vez menos.

— Vou por os ponto nos i i i. O Marquês de la Tour-du-Roy está apaixonado pela sua filha mais velha...

— Mas como! Ele não a conhece.

— Pelo contrário, conhece-a perfeitamente, encontrou-a esta manhã quando ele ia em minha companhia. Ora, este encontro é já o quarto há quatro dias...

— E o Marquês disse-lhe que amava Lazarine, que pensava em casar com ela?

— Não proferiu palavra a tal respeito, nem mesmo era preciso... Infelizmente estou já muito experimentado nestes incidentes para que me pareça precisa uma confissão em circunstâncias tão delicadas. Roberto de la Tour-du-Roy em questão de amor é a ingenuidade personalizada, e não sabe ocultar o que se passa em seu coração. O nobre fidalgo tinha jurado morrer livre alistado nas fileiras dos celibatários, como vivera. Apareceu Lazarine, e bastou a sua presença para deitar por terra tão sensata e prudente resolução. Um só olhar da loura menina falseou a rija couraça de que se achava. revestido. O Marquês perdeu completamente a cabeça. Vê-se nas mais pequenas coisas. Ontem seguiu de longe sua filha para saber o seu nome. Esta manhã, ao saber que nós éramos amigos íntimos, quase que me pegou ao colo.

"— Há de me apresentar ao senhor Júlio Leroux, exclamou ele. Apresente-me quanto antes... Vá hoje mesmo, peço-lhe, obter licença para me apresentar amanhã."

— Nem me queria dar tempo para almoçar. Para ele a minha demora era demasiada. fez com que a carruagem esperasse por num mais de uma hora, e o Marquês estava tão impaciente que não se imagina. Maldizia-me no seu íntimo, o que muito me divertia. Isto é muito claro, pois não é? Ora o Marquês, solicitando a honra de ser admitido em sua casa, pensa no casamento, é também bastante claro. Que diz da minha lógica? É irrefutável? Cala-se, então é da minha opinião e dou-me por satisfeito.

— Mas, querido Príncipe, redarguiu Júlio Leroux, admitindo que tudo isso assim seja, repare que Lazarine tem dezoito anos, e o Marquês...

— O Marquês tem sessenta e cinco, bem o sei, interrompeu o senhor de Castel-Vivant, mas isso dada a situação das partes contratantes é um pormenor de nenhuma importância. Aos quarenta anos que ele tem a mais do que a minha galante amiguinha, Roberto de la Tour-du-Roy junta trezentas mil libras de renda, um nome e um título históricos, um castelo principesco, e a saúde de um homem de trinta anos. Já vê que há compensação.

— Ainda seria mister consultar Lazarine.

— Queira consultá-la, e esteja certo de que ela não dirá que não... A formosa cavaleira, fique certo, sabe tão bem como eu, e melhor do que o senhor, o que há de fazer a este respeito. A única questão a resolver agora, é esta: Consegui convencê-lo e resolvê-lo' a receber o Marquês?

— Pois bem, respondeu Júlio Leroux após um momento de silêncio. Pois bem, recebê-lo-ei, visto que tanto o deseja, e já que faz de mim tudo quanto quer...

 

ESPERANÇAS

No rosto do Príncipe desabrochou um sorriso que fez ver os seus belos dentes.

— Muito bem! exclamou ele, ei-lo enfim razoável... Já tinha a certeza de que me atenderia... O senhor é bastante sensato para que despreze a boa fortuna que se lhe oferece. E agora, um conselho... Malhar no ferro enquanto está quente, diz o provérbio. Além de que, nada iguala a impaciência de um velho apaixonado, e eu que já não sou rapaz, devo saber alguma coisa a esse respeito... Não faça impacientar o Marquês. Fixe o dia da apresentação, e que seja breve...

— Meu Deus, redarguiu Júlio Leroux, isso pouco me importa... Cedi no primeiro ponto, em que me julgava inabalável, cederei fatalmente em todos os outros... Dou-lhe carta branca. Aceito antecipadamente o que resolver.

— Cada vez melhor! Não podia entregar em mãos mais dedicadas interesses tão caros, logo terá a prova disso... Amanhã às quatro horas aqui estaremos, Roberto de la Tour-du-Roy e eu...

— Como quiser... murmurou o banqueiro soltando um suspiro.

— Ah! querido Príncipe, faço-lhe uma concessão imensa. Tinha a mim mesmo prometido isolar-me neste casebre como o caracol na casca.

— Absurdo projeto! Há de agradecer-me o que faço. Chamam-•me egoísta. Uma calúnia!... Eu tomo muito a peito tudo quanto interessa aos meus bons amigos, e tenho-o ao senhor no número dos melhores... é, pois, grande a minha satisfação, porque a súbita paixão do Marquês é uma fortuna, não só para Lazarine, mas ainda para o senhor...

— Para mim...

— Com certeza, e vou prová-lo... Mas primeiro uma pergunta indiscreta: A quanto monta a sua ruína? Que lhe resta?

— Unicamente o necessário para viver.

— Insisto em conhecer o algarismo.

— Cinco ou seis mil francos apenas.

O Príncipe sorriu de novo.

— É modesto, continuou ele, contudo não é para morrer de fome. Eu continuo: Roberto de la Tour-du-Roy, seis vezes milionário, não aceitará o menor dote, afianço-lhe. Portanto, aquilo que poderia exigir um marido pobre vai aumentar o seu ativo. Ainda não é tudo, Lazarine, fidalga e muito rica, cuidará de suas irmãs... As grandes relações, resultado da sua nova situação, proporcionar-lhe-ão meio de adquirir para Renée e Joana maridos que são hoje impossível. A aliança, mesmo indireta, do Marquês vale um dote aos olhos de muita gente. Antes de um ano, vejo as suas duas filhas mais velhas muito bem casadas, sem que lhe seja preciso despender um soldo. Então começará para o senhor uma nova e boa vida. Um pai de família vive remediadamente com vinte e cinco mil libras de renda, mas para um rapaz que não tem encargos, é uma boa posição. Será este o seu caso. Terá casa em Paris elegantemente mobiliada, e ali desfrutaremos a alegre vida de que tem saudades. Então! meu velho camarada, que diz deste futuro? Não lhe parece agradável?

Júlio Leroux sorriu, em seguida suspirou.

— Ah! Seria efetivamente muito belo... O senhor arranja as coisas à medida do seu desejo, querido Príncipe, e vê o futuro de que fala através do prisma enganador da sua eterna mocidade.

— Eu vejo-o tal qual deve ser... tal qual será... Deixe-me obrar e tudo irá bem! Agora retiro-me. Roberto está à minha espera, febril, agitado, inquieto, digno enfim de compaixão, e compadeço-me do seu martírio... Não sou egoísta. Nunca o fui. Sou inteiramente dedicado aos meus amigos, e quando eles são felizes penso então nos meus prazeres, antes não! Adeus, meu amigo, adeus!

Os dois trocaram um cordial aperto de mão, e quando Júlio Leroux conduzia para a porta da sala o senhor de Castel-Vivant, Lazarine, que por certo não tinha estado longe durante a conversação que precede, apareceu de repente.

— Então, querido Príncipe, exclamou ela, já nos deixa?... é uma traição!... não o vi nem cinco minutos, e quero vê-lo, porque bem sabe que o amo. Fica ainda um bocadinho por minha causa... só um quarto de hora...

— É impossível, minha amiguinha, redarguiu Godefroy, hoje é impossível... mas há de me indenizar amanhã.

— Volta amanhã? Com certeza?

— E não virei só... O papai já me permitiu que apresentasse amanhã o meu amigo Roberto de la Tour-du-Roy, de quem sou nesta ocasião o procurador, e que pede esse favor com imensa instância.

Lazarine abaixou os olhos, mas não tão rapidamente que pudesse ocultar o brilho que lhe iluminou o olhar.

— Parece que o papai se humaniza! redarguiu ela rindo. Só o senhor podia realizar este milagre. Traz consigo o seu amigo, querido Príncipe, recebê-lo-emos o melhor que pudermos.

O senhor de Castel-Vivant inclinou-se para a jovem de modo a tocar com os lábios nos louros anéis do cabelo e proferiu-lhe ao ouvido estas palavras:

— A qualquer outra diria: Apresente-se bela... À menina digo-lhe: Apresente-se tal como é...

Lazarine respondeu por um pequeno meneio de cabeça gracioso e triunfante.

Os nossos três personagens estavam no patamar da escada.

O Príncipe fez um sinal.

O cocheiro fez andar a parelha, e a vitória que estacionava à sombra das tílias, descreveu uma bonita curva e veio postar-se junto dos degraus.

No seu conjunto e em todos os detalhes a equipagem desafiava toda a crítica.

O brasão do senhor de la Tour-du-Roy sobressaía perfeitamente sobre o azul escuro da caixa do trem. Via-se igualmente gravado no vidro das lanternas e no metal luzente dos arreios.

Os dois cavalos pretos, de raça, de bonitas formas e boa andadura e muito bem aparelhados, traziam na cabeçada laços de fita cor de cereja que brilhavam perfeitamente sobre o acetinado do pescoço.

— Que belos cavalos! disse com entusiasmo Lazarine, que era conhecedora do gênero como um contratador de gado.

— O meu amigo Roberto tem nas suas cavalariças trinta cavalos que não são nada inferiores a estes, volveu Godefroy de Castel-Vivant.

— Trinta cavalos... pensou a jovem. Que excelente fornecimento! Nós só tínhamos quinze quando éramos ricos... quase uma miséria... De que serviam os dez bilhões ao papai?

O Príncipe acendeu um charuto, subiu desembaraçadamente para a carruagem, fez um último cumprimento com a mão, e os steppers ingleses partiram a todo o trote.

— Como é belo o luxo! murmurou tristemente Júlio Leroux.

— Ainda há uma coisa mais bela, redarguiu Lazarine.

— O quê?

— O dinheiro que dá o luxo.

— É verdade... O Demônio Ouro!... O Deus da época!... O rei do mundo!... Tu tens dezoito anos e és linda... serás talvez rica.

— É essa a sua opinião, papai? perguntou Lazarine rindo.

— Francamente, sim.

— Pois bem, francamente, também é a minha.

A quatro quilômetros de Vertes-Feuilles o Príncipe viu ao longe na estrada dois cavaleiros separados um do outro por uma distância de cinqüenta ou sessenta passos e andando a toda a pressa.

— É o meu amigo Roberto, disse consigo Godefroy, que vem pessoalmente ao meu encontro... Não teve paciência para me esperar -em casa. Vamos, está grandemente apaixonado.

O Príncipe não se enganava.

Em poucos minutos o senhor de la Tour-du-Roy venceu a distância que o separava do seu embaixador oficioso, parou, apeou-se, passou as rédeas do cavalo ao groom que se tinha aproximado dele, e tomou lugar na carruagem.

— Então, caro Príncipe? perguntou com voz comovida.

— Querido Marquês, vai tudo perfeitamente. O meu amigo Júlio Leroux renuncia excepcionalmente em seu favor aos hábitos de absoluta solidão que adotou, e que tanta inquietação causavam ao amigo, em conseqüência do êxito da minha empresa. As portas de Vertes-Feuilles que, palavra de honra, estiveram quase a não se abrir para mim, hão de abrir-se completamente para o amigo.

— Daqui a pouco?

— Esperam-nos amanhã às quatro horas. Não podia ser mais cedo. Só se voltássemos já para trás, e nos fôssemos lá apresentar agora, o que não seria decente.

— Como lhe hei de testemunhar o meu reconhecimento? exclamou o Marquês estreitando com ternura as mãos de Godefroy.

— Nada mais fácil. Honre-me com a confiança ilimitada que eu mereço por todos os respeitos. Diga-me franca, clara e definitivamente por que deseja tanto esta visita?

— Não o adivinhou já?

— Adivinhei-o talvez, mas quero ouvi-lo da sua boca.

— Que se faça a sua vontade... Não terei segredos para com o senhor... mas parecer-lhe-ei ridículo.

— Ah! Francamente! Desafio-o a que prove isso! Então nós damos motivo ao ridículo? Nunca, Marquês! deixemos isso aos burgueses.

— Pois bem, murmurou o Marquês em voz baixa e perturbado, estou apaixonado... apaixonado como um louco... apaixonado na minha idade... e por quem? Por uma criança!

— Lazarine não é criança. Tem dezoito anos completos.

— E eu tenho sessenta e cinco feitos. Podia ser seu avô. Ah! Não me iludo a respeito do absurdo desta paixão que me esmaga rudemente no momento em que, com certeza, devia acreditar no eterno repouso do coração. Vejo que sou um louco, e falta-me a coragem para combater a loucura que me domina! Sei que caminho para um abismo, e coisa nenhuma será capaz de me deter à beira desse abismo para que me impele o destino. Vivi longos anos orgulhoso da minha absoluta independência, jurando conservá-la até o fim, e quando estou quase a atingir esse termo, quando sou velho, eis que o cérebro se me inflama sob a neve dos cabelos. Eis-me preso, amarrado, vencido escravo! Ah! Tenho vergonha de mim mesmo!

— Oh! meu amigo, redarguiu o senhor de Castel-Vivant, isso é que é absurdo! A idade não tem limites para os sentimentos ternos, e o coração pode pulsar enquanto se sentir novo. Para procurar a ventura nunca é tarde.

— A ventura!... repetiu melancolicamente o Marquês, nem ouso esperá-la. Acaso tenho uma única probabilidade de ver acolher bem o meu pedido? Mademoiselle Leroux sorrirá de desprezo ao pensar nesta união de Geronte e de Isabel!... Que me resta no mundo se for repelido?

— Não receie isso. Conheço Lazarine há muito tempo... é uma rapariga bastante sensata.

— Então casará comigo por cálculo. Será minha mulher sem me amar.

— Por que ela não o amaria? interrompeu o Príncipe. Realmente a sua modéstia excede os limites!... Tudo no senhor dá um desmentido à sua certidão de idade que lhe concebe sessenta e cinco anos! Possui vigor, energia, elegância. Olhe bem para si. O senhor é muito agradável. Que importa que os seus cabelos estejam brancos? No tempo da Regência usava-se o cabelo empoado. Creia na minha palavra, pode ainda agradar.

O Marquês abanou a cabeça.

— Sim, pode agradar, deve agradar, e agradará, redarguiu Godefroy precipitadamente. Pelo garbo e pelo olhar parece um homem de trinta anos. A estas vantagens naturais reúne o prestígio de um grande nome, de uma grande fortuna, e note que para uma rapariga cujo encanto e cuja distinção sou eu o primeiro a proclamar, mas que saiu da burguesia, o senhor é a ave azul, a fênix, o irresistível vencedor. E finalmente, sejamos coerentes. Para que pedir à vida mais do que ela pode dar?... A vida parecer-lhe-ia cheia de amarguras sem a posse de Lazarine. Pois bem, esposará Lazarine, e o casamento é a posse.

Godefroy continuou por muito tempo naquele tom, materializando cada vez mais o seu pensamento, a ponto tal que não podemos acompanhá-lo e o Marquês de la Tour-du-Roy acabou por se conformar um pouco e ver o futuro do seu amor menos sombrio.

 

BULHAS DOMÉSTICAS

Um pouco antes do fim do jantar de família tão fértil em tempestades, a segunda filha de Júlio Leroux, tinha-se, como sabemos, retirado para o seu quarto, furiosa contra Lazarine, a quem invejava instintivamente, e cujas pretensões ostentadas com altivez irritavam-na e feriam-na ao mesmo tempo.

Ali, para acalmar ou antes para esquecer a sua cólera, recorreu ao remédio heróico que lhe servia para combater o aborrecimento, este inimigo de todas as horas.

Estendeu-se numa chaise-longue, fechou os olhos e adormeceu, O seu sono foi tão profundo e durou tanto, que não teve conhecimento do acontecimento que se dera depois do meio dia, e cujas importantes conseqüências pouco deviam fazer-se esperar.

Quando se reuniu ao pai e ás irmãs à hora do jantar, Renée notou uma mudança na fisionomia do ex-banqueiro, e a expressão triunfante perfeitamente visível no rosto de Lazarine.

Teria sucedido alguma coisa enquanto ela estivera a dormir?

Muito orgulhosa para parecer interessar-se por outra coisa que não fosse a sua própria pessoa, Renée não perguntou, mas esperou a ocasião azada para saber tudo.

Não teve de esperar muito.

— Amanhã, disse Júlio Leroux dirigindo-se à filha mais velha, será preciso que tu mesma vigies os nossos estúpidos serviçais, e supras com os teus conselhos a sua absoluta indiferença. Salvaguarda o nosso amor próprio, tanto quanto se possa, com os insuficientes recursos de que dispomos.

Renée aplicou o ouvido.

— Descanse, papai... volveu Lazarine sorrindo, aceito, a seu pedido, as delicadas funções de decorador e pintor de cenário. Não lhe prometo um luxo asiático, oh! isso não 1 mas hei de fazer alguma coisa. A sala há de ficar que não a há de conhecer, e graças aos meus instintos de artista, o interior da nossa casa oferecerá um bonito aspecto...

— Será difícil oferecer um refresco qualquer?... prosseguiu o ex-banqueiro.

— Um pequenino lunch campestre... já pensei nisso... sanduíches, leite fresco, uns pastéis que a Marion faz muito asseadamente, morangos e vinho de Champanhe, não é preciso mais. Tem Champanhe, papai?

Júlio Leroux fez um sinal negativo.

— Então é pior que a jangada de Medusa! exclamou a jovem quase alegremente.

— Mas, redarguiu o ex-banqueiro, hei de mandar esta noite buscar a Orleans um cesto de garrafas.

— Estamos salvos!... Com uma grande profusão de flores na mesa, o pequeno lunch campestre ha de fazer vista.

Renée não" podia acreditar no que ouvia.

Por que motivo eram estes preparativos numa casa da qual, estava mais que determinado, nenhum estranho transporia o limiar? Não se pode conter mais.

— Mas, o que é isto, perguntou ela, recebe-se aqui alguém amanhã?

— Com certeza... redarguiu Lazarine fitando em Renée um olhar zombeteiro, recebemos, minha querida...

— Quem?

— Altos e poderosos senhores; sim, meu Deus, um Príncipe e um Marquês... simplesmente.

Renée estremeceu.

— O Príncipe de Castel-Vivant e o Marquês de la Tour-du-Roy, apostaria eu, disse ela.

— Ganharias a aposta...

— E, continuou a jovem, como sabes que estes octogenários devem honrar as Vertes-Feuilles com a sua nobre presença?

Lazarine franziu a testa.

— Sabemo-lo, redarguiu num tom áspero, porque um dos octogenários, e apoiou a palavra, veio hoje pedir licença para apresentar o outro amanhã.

— E o papai recebeu o antigo embaixador?

— Já se vê.

— Então, os belos projetos de retiro e solidão?...

— Dissiparam-se, minha querida, desapareceram, voaram.

— Desse modo, a nossa casa vai ser uma sucursal da Sainte-Périne?

— Por que não?

— E deve mandar afixar na grade do parque um letreiro com estas palavras: — O retiro dos velhos rapazes.

Pela segunda vez Lazarine franziu a testa.

— Estás engraçada esta manhã! disse com uma serenidade afetada, acontece apenas que o teu espírito te ilude. Esqueces que o Príncipe é viúvo, e ignoras se o Marquês é casado.

— Não é! exclamou Renée. Ignorava, é verdade, mas agora adquiri a certeza! A não ser assim, porque motivo viria ele?

Lazarine encolheu os ombros redargüindo com modo enfadado:

— Não te compreendo.

— Oh! que compreendes bem! redarguiu com violência Renée, incapaz de impor silêncio à sua raivosa inveja. Além de que, está muito claro. O marquês encontrando-te esta manhã, ficou apaixonado pelos teus encantos vencedores! Amanhã deporá a teus pés o seu coração, a sua cabeleira e o seu nome. Estava escrito. Os meus cumprimentos, marquesa.

Lazarine tomou-se cor de púrpura, mas conteve-se, e levantando-se a sua irmã uma mesura irônica.

— Aceito os teus cumprimentos, pequena, disse com um riso forçado, e desejo, especialmente por tua causa, que sejas profeta.

— Por minha causa? repetiu Renée fora de si. Como, especialmente por minha causa?

— Com certeza... A marquesa de la Tour-du-Roy, nobre dama, e seis vezes milionária, cumpria com o seu dever protegendo-te fica certa, e procurando-te, talvez, um marido.

— Um marido fóssil!... um antepassado! uma relíquia!... exclamou a jovem. Nunca! não quero.

— Estão verdes... murmurou Lazarine com modo zombeteiro.

Uma discussão assim começada podia tornar-se longa, e em vista do caráter das duas irmãs, podia terminar com uma cena escandalosa, mas Júlio Leroux pôs-lhe termo, declarando que Renée não tinha razão, e que a encerraria no seu quarto por quarenta e oito horas, se não se calasse imediatamente.

O ex-banqueiro parecia decidido a adotar tão rigorosa medida.

Ora, a jovem desejava sobretudo ser testemunha da entrevista do dia seguinte, esperando que daquela entrevista resultasse alguma decepção para Lazarine.

Por isso aquietou-se, pelo menos aparentemente, mas ao fim de um quarto de hora, pretextando achar-se incomodada, pediu muito humildemente licença para subir ao seu quarto e obteve-a sem dificuldade.

Quando se achou só deu largas ao seu desespero, e oferecia um triste espetáculo aquela jovem tão deslumbrante de beleza, des figurada agora pelo furor. Um verdadeiro ataque de nervos a prostrou de cama, ficou com o rosto lívido, os membros agitados por convulsões, e os olhos quase espasmódicos.

E nas frases incoerentes que passavam silvando por entre os seus dentes cerrados, poderiam ouvir-se estas palavras:

— Lazarine rica enquanto que eu serei pobre... Lazarine nobre, seis vezes milionária, e esmagando-me com a sua proteção insultante! Ora vamos! Isso é lá possível? Antes morrer, do que ver tal! Ah! mas o casamento ainda se não fez! ele não me viu, esse velho que se julga apaixonado por essa rapariga de cabelos vermelhos. Eu também sou bela, mais bela do que minha irmã... cem vezes mais bela! Ele há de me ver amanhã. Nada se perdeu... Tudo pode mudar.

Os janotas que faziam roda às duas filhas mais velhas do banqueiro, com certeza que muito se admirariam quando, no dia seguinte, vissem Lazarine em ação, e exclamariam cheios do maior espanto:

— É inaudito! admirável! surpreendente!... é de arromba! Ah! rapazes, que místico!

A jovem desde pela manhã parecia transformada.

Ela que, ou por incúria ou por orgulho, e talvez por ambos os motivos, nunca se dignara ocupar-se da direção e do governo da casa, demonstrou de repente as aptidões de uma dona de casa muito entendida.

De pé ao romper da alva, chamou o criado provinciano, a sua. boçal criada de quarto, e a filha do jardineiro, dirigiu-os como se durante a sua vida nunca tivesse feito outra coisa, e apesar da inexperiência e falta de jeito dos criados, eles tornaram-se para ela úteis auxiliares.

Os cuidados de um asseio escrupuloso, restituíram os móveis, um pouco velhos, o brilho dos primeiros tempos. Lazarine descobriu no fundo de um desvão uma quantidade grande de vasos de velha faiança de Rouen, que são hoje moda, e se pagam a peso de ouro.

Em vasos, em jarras, e nas jardineiras, foram colocados com um. gosto muito particular, ramos de flores. Graças às vivas cores daquela flora de tão suaves perfumes, a sala tomou o aspecto de uma vasta estufa embalsamada.

Estava muito melhor do que rico; estava agradável, bonito, ideal.

Júlio Leroux, quando viu, ficou deslumbrado, e não o ocultou:

— És uma fada! exclamou. Está realizada a tua promessa de ontem. Do nada fizeste alguma coisa. Desconheço este pardieiro.

Renée, calada, mordia os beiços. Não podendo negar o bom resultado do trabalho da irmã mais velha, irritava-se.

Joana deu livre curso à sua admiração.

Bateu as mãos, como uma criança que ainda era, depois, lançando os braços ao pescoço de Lazarine, disse-lhe:

— Bem vês, querida mana, como o dinheiro é quase inútil, ou pelo menos como se pode passar sem ele... Os nossos grandes salões dourados de Paris agradavam-me menos do que me agrada este, e muitas pessoas, certifico-te, seriam da minha opinião. O brilho dos mais belos quadros empalidece junto do brilho das flores, e Deus que é a bondade suma, deu flores a todos, tanto aos pobres como aos ricos...

Lazarine pôs-se a rir.

— O meu amor próprio lisonjeia-se como o teu elogio, maninha, redarguiu, mas não me convertes com os teus paradoxos... Para que desbotem os quadros de que desdenhas serão necessários anos, enquanto que aquelas flores estarão murchas amanhã. Perdoa-me se anteponho a minha prosa à tua poesia. Que queres? Sou positiva. A estes ramos que são a tua alegria, prefiro as grinaldas artificiais de bom fabricante. Elas tem pelo menos, à falta de outro mérito, o de serem caras. Emprego as flores por não ter coisa melhor, mas se tivesse à minha disposição todas as rosas, todos os lírios, e todas as camélias da terra, dá-las-ia por uma barra de ouro. Não tenho razão papai...

— Tens muita, toda! respondeu com convicção o ex-banqueiro. Tua irmã não sabe nada da vida. Ela verá mais tarde, quando for mulher, que o dinheiro é o rei do mundo. Não tardará muito.

A isto não havia que responder.

Joana curvou a cabeça e calou-se.

Lazarine, depois do almoço, fez passar a sala de jantar, onde devia, ser servido o pequeno lunch, por uma completa metamorfose, semelhante a da sala, e conseguiu-o igualmente bem.

Quando acabou de se aprontar tudo, eram duas horas depois do meio dia.

O príncipe havia de chegar às quatro horas em ponto com o Marquês de la Tour-du-Roy; não restava pois às jovens senão o» tempo necessário para bem disporem as suas toilettes.

Joana, que tencionava não despir o seu vestido de fazenda azul desmaiado, saiu de casa e internou-se nas ruas sombrias do parque.

Renée e Lazarine subiram aos seus quartos.

Após muito refletir, Renée resolveu vestir-se de preto. O vestido um pouco decotado e as mangas curtas deixavam apreciar as perfeições da sua carnadura. Uma mantilha e mangas de tule escuro, bordado de preto, velavam um pouco os ombros, o colo e os braços deixando adivinhar os contornos arredondados das suas formas e a alvura nacarada da carne.

Por único enfeite, nos cabelos de um negro azulado pregou, à moda espanhola, uma rosa encarnada.

Este traje, tão escuro e modesto, dava à sua elegante pessoa uma feição sedutora.

Viu-se a um espelho e disse consigo:

— Eu sou muito bela...

Lazarine, ao acaso, fez o contrário exatamente do que tinha feito a irmã.

Vestiu-se de cassa branca.

Entrançou no alto da cabeça, numa sábia desordem, as fartas trancas do seu cabelo cor de cobre, cujos tons ardentes mais sobressaiam por causa de uma fita de seda azul-celeste que lhes adicionou.

Atou em roda do pescoço uma estreita fitinha de veludo preto e duas iguais nos pulsos.

Só a pintura poderia dar idéia do encanto daquela esplendida criatura, vestida como uma colegial. Nunca as formas femininas tiveram seduções mais poderosas, mais irresistíveis, de mais magia.

Lazarine sorriu ao ver-se e pensou:

— Se o Marquês de la Tour-du-Roy não estivesse já vencido, creio bem que a vitória hoje pouco me seria disputada.

Em seguida a jovem pôs-se à janela, e protegida pelas gelosias meio cerradas, olhou para o lado da estrada.

Deram quatro horas.

A grade do parque abriu-se; um carrinho descoberto conduzido pelo próprio Marquês, trazendo o Príncipe à sua esquerda, dirigiu-se com toda a rapidez para a habitação.

— Tem realmente bonita aparência aquele homem, disse consigo Lazarine, e ficam-lhe bem os seus cabelos brancos.

Júlio Leroux foi ao encontro das visitas.

 

O TRIUNFO

Lazarine saiu do quarto.

No corredor encontrou Renée, que por certo tinha estado também à espreita como ela.

As duas irmãs não dirigiram uma à outra a palavra, e o olhar que travaram entre si exprimia coisa muito diferente de simpatia.

Desceram juntas à sala onde Júlio Leroux acabava de introduzir o Príncipe e o Marquês.

Este, ao ver de perto Lazarine, ficou completamente deslumbrado.

Custava-lhe reconhecer sob aquele branco e virginal adorno a intrépida amazona que tão vitoriosamente se apoderara do seu coração. Parecia-lhe agora cem vezes mais bela do que por ocasião dos seus precedentes encontros na floresta, agora que ele podia admirar a limpidez esplêndida do rosto, o delicado das feições, a vida e a animação do olhar, e o sedoso brilho dos cabelos dignos da palheta de Ticiano.

Durante alguns segundos a comoção fê-lo emudecer, mas, excitado pelo receio do ridículo, dominou a sua perturbação, e tornou-se o que era sempre: um homem de boa sociedade, um perfeito gentleman, um conversador agradável e fluente.

Teve o bom gosto de se mostrar não menos amável, não menos atencioso para com Renée do que para com Lazarine, salvo uma pequena diferença, essa porém importante; quando falava a mais velha das duas irmãs a voz tremia-lhe um pouco.

A graciosa simplicidade das suas maneiras, e a sua natural bondade, conquistaram Joana que o achou encantador, Joana que não amava muito o Príncipe.

O pequeno lunch sem pretensões obteve um completo êxito, e Júlio Leroux viu-se obrigado a confessar a si mesmo que o seu amor próprio tão sensível de homem arruinado nada tinha a sofrer.

Às seis horas os visitantes despediam-se.

O Marquês de la Tour-du-Roy partia contentíssimo, tendo pedido e obtido a autorização de voltar.

Quando subia para a carruagem, Godefroy apertou de um modo muito particular a mão do ex-banqueiro.

Aquele eloqüente aperto de mão queria dizer:

— Vai tudo muito bem... é seu o genro fênix!...

Para falar a verdade, Júlio Leroux não duvidava: o mesmo sucedia a Renée, tão visível era a paixão do Marquês ainda para os olhares menos experimentados.

A jovem não se iludia. Não tinha esperança alguma de disputar à sua irmã um triunfo certo, e este triunfo irritava-a tanto mais quanto era verdade que o senhor de la Tour-du-Roy, apesar de sua idade e dos seus cabelos brancos, e abstraindo mesmo os seus milhões, era um marido para desejar.

Godefroy de Castel-Vivant tinha tido razão de afirmar na véspera que o Marquês era magnífico, e coisa nenhuma (à exceção da sua certidão) podia impedir-lhe de ter pretensões amorosas.

O proceder de Lazarine, durante todo o tempo que durou a visita, podia passar por um primor de tato e habilidade.

Adivinhando bem com o seu instinto feminil, que as maneiras estouvadas e desenvoltas, e o abuso do calão, que tanto apreciava a sua roda de cortesãos parisienses, não seriam bem aceitos por aquele velho aristocrata, a grande estróina, que vimos não recuar ante qualquer excentricidade, tomara-se como por encanto uma jovem de irrepreensível educação, habituada ao mundo elegante, ingênua e espirituosa ao mesmo tempo, que não pecava nem por excesso de timidez nem por excesso de desembaraço.

Ao vê-la e ouvi-la, devia compreender-se que uma coroa de marquesa parecia feita de propósito para embelezar aquela encantadora cabeça, e que a metamorfose daquela adorável virgem em nobre dama, era a coisa mais natural deste mundo.

Nunca tinha visto Lazarine sob aquele aspecto, pensava Júlio Leroux maravilhado, não a julgava capaz de tal!

No dia seguinte o senhor de la Tour-du-Roy, a cavalo e seguido de um groom, chegou pelas três horas a Vertes-Feuilles.

Lazarine que já não passeava pelo campo de manhã, esperava-o a justos.

Àquela segunda visita sucederam-se outras a curtos intervalos.

O Marquês vinha umas vezes só, outras acompanhado pelo Príncipe.

Ao fim de quinze dias, este último tomou de parte Júlio Leroux e disse-lhe:

— Aproxima-se o momento solene, meu caro. Sou o confidente de Roberto. O pedido cedo virá... Ver-nos-á na quinta feira. Vimos jantar!...

— Mas...

— Não há mas... é preciso... Um jantar sem etiqueta. Nada de incômodos. Jantar de família. O Marquês ignora que o previno. Faça portanto...

— Seja... murmurou o ex-banqueiro suspirando, mas jantará mal...

— Em primeiro lugar não creio em tal, e depois o fato em si teria pouca importância. Fique certo de que o meu apaixonado amigo, fascinado pelos lindos olhos de Lazarine, não saberia distinguir a perna de um frango velho e magro da asa de um faisão gordo e saboroso.

— Ele, acredito eu, mas o senhor...

— Não lhe dê cuidado a minha pessoa... e demais o frango pode ser novo e gordo...

O programa foi pontualmente executado como o traçara o senhor de Castel-Vivant.

A visita anunciada teve lugar na quinta-feira seguinte. O convite feito com toda a vontade foi aceito com muito entusiasmo, e o simples jantar de família tornou-se por acaso, num belo jantar pela sua simplicidade.

Tomou-se o café na parque, ao luar.

— Tive uma idéia, querido senhor Leroux, disse então o Marquês com uma voz que diligenciava tomar firme; se ela alcançar a sua aprovação, serei o homem mais feliz do mundo todo...

— Para o tornar feliz, não duvidaria satisfazer-lhe a vontade, respondeu o dono da casa sorrindo. Então o que é?

— As senhoras suas filhas tendo quase sempre vivido em Paris nunca assistiram a uma caçada com galgos.

— Nunca, efetivamente.

— Ora, uma caçada bem organizada é coisa interessante. Por isso proponho organizar-se uma para o dia que lhe convier da próxima semana que vem, e depois conduzi-los a la Tour-du-Roy para me fazerem a honra de jantar... Está combinado?... Suplico-lhe, pense antes de responder. Uma recusa muito me penalizaria.

— Deus me livre de lhe causar desgosto, redarguiu o ex-banqueiro. Não recuso. Há todavia um obstáculo.

— Qual é? perguntou vivamente o Marquês.

— Faltam-se absolutamente os meios de seguir a caça.

— Sendo só isso, o obstáculo é fácil de vencer... Mademoiselle Lazarine, sei bem, é uma cavaleira completa.

Lazarine sorriu corando um pouco.

— As minhas duas filhas montam a cavalo, redarguiu Júlio Leroux, mas para galoparem atrás de uma matilha e transporem obstáculos, os seus poneys são de um uma insuficiência a toda a prova. Eu próprio sou um medíocre cavaleiro, e Joana nada sabe de equitação. Seria necessário uma carruagem, e não a tenho.

— Não se inquiete com essas minuciosidades! exclamou o senhor de la Tour-du-Roy. Há de vir uma vitória, e mandarei, para as suas duas filhas, cavalos de confiança cuja cordura e docilidade garanto.

— Ah! disse Lazarine cheia de entusiasmo, envie-me, senhor Marquês, o mais bravo dos cavalos da sua cavalariça, encarrego-me de o domar. Tenho uma vontade de ferro e um pulso de aço. A minha querida égua Norah era um belo animal, mas nervosa e caprichosa o mais que era possível. Montava-a todos os dias. A princípio queria desmontar-me, mas ao fim de algumas semanas estava mansa como um cordeiro. Ah! como eu gostava dela.

— E que foi feito então da sua égua Norah, mademoiselle?

— Foi vendida no Tatersal há seis meses com os outros cavalos de meu pai. Coitadinha! Em que mãos estará ela hoje! Muito me custou vê-la partir. De tudo quanto perdemos é do que tenho mais pena.

Um fugitivo clarão brilhou nos olhos do Marquês. Alguns segundos de silêncio se sucederam às últimas palavras de Lazarine.

O Príncipe rompeu o silêncio.

— A solução proposta pelo meu excelente amigo, disse ele, como € das mais práticas, ou eu me engano muito, ou tudo está combinado.

— O convite é muito gracioso e muito sedutor para ser desprezando... volveu Júlio Leroux. Por mim e por minhas filhas, senhor Marquês, aceito.

Roberto de la Tour-du-Roy apertou com ternura as mãos do ex-banqueiro.

— Então não me resta mais senão escolher o dia, redarguiu com voz comovida.

Escolha aquele que mais lhe convier.

Hoje é quinta-feira. Quer que seja terça-feira, próxima?

— Pois seja na terça-feira.

— As senhoras suas filhas são madrugadoras?

— Certamente, respondeu Lazarine, as manhãs no campo são tão belas neste tempo!

— Então, continuou o Marquês, se o quer estarei aqui às oito horas precisas com os cavalos e o carro. Uma hora será o bastante para nos dirigirmos ao local da caçada que fica a meio do caminho entre Vertes-Feuilles e la Tour-du-Roy. Almoçaremos em plena floresta pela hora do meio dia, em seguida dirigir-nos-emos ao castelo onde estas meninas descansarão até a hora do jantar.

Júlio Leroux não tinha objeção alguma a fazer; estas combinações foram logo aprovadas, e o Marquês tendo obtido o que tão vivamente desejava, mandou aparelhar.

Um quarto de hora depois subiu para a carruagem com o Príncipe.

— Então, meu amigo, perguntou este último quando a rápida equipagem transpôs a grade do parque, está contente?

— Sou o mais feliz dos homens, exclamou Roberto, e é ao senhor que eu devo a minha felicidade presente, e que deverei a minha felicidade futura, porque se não fosse a sua benévola intervenção, o pai de Lazarine com certeza que teria recusado receber-me. E demais, quem me apresentaria? Querido Príncipe, o senhor é o meu anjo bom.

— É tudo por melhor, e a sua alegria encanta-me, palavra de honra, tanto como se me tivesse sucedido alguma coisa de inesperado e de particular agradável. Quem se atreveria ainda a dizer que sou egoísta?

A uma légua das Vertes-Feuilles a estrada bifurcava-se. Tomando pela direita ia-se ter a la Tour-du-Roy. Seguindo pela esquerda era a estrada que conduzia a Orleans.

O Marquês tomou pela esquerda.

Godefroy tocou-lhe no braço, dizendo:

É certo que o meu excelente amigo conhece estes sítios melhor do que eu. Contudo, parece-me que o senhor se engana no caminho.

— Não me engano, não. Nós vamos a Orleans.

— Ah!... E para quê? Preciso telegrafar para Paris.

— Desse modo regressaremos muito tarde.

— Não se inquiete por causa do seu sono, querido Príncipe, redarguiu Roberto com um sorriso. Pernoitaremos na cidade, e aproveitar-nos-emos da fresquidão da manhã para regressar a la Tour-du-Roy.

— Muito bem!

Os trotadores, dirigidos por mão hábil, transpuseram quatro léguas em cinqüenta minutos, e não pararam senão à porta da estação telegráfica. Estava fechada, atento o adiantado da hora. O Marquês fê-la abrir, indenizou largamente o empregado cujo sono interrompeu, e entregou-lhe um despacho para ser expedido no dia seguinte de manhã cedo.

Naquele despacho o fidalgo encarregava o seu correspondente de se dirigir a Tattersall sem perda de um momento, de saber a quem tinha sido adjudicada uma égua de cavalaria, do nome de Norah, comprada seis meses antes na venda de cavalos de Júlio Leroux, reavê-las fosse por que preço fosse, embora tivesse de pagá-la por dez vezes o seu valor, e expedi-la imediatamente a la Tour-du-Roy, na grande velocidade, acompanhada por um homem de confiança.

— Lazarine disse-o... murmurou Roberto, de tudo o que ela perdeu no desmoronamento da fortuna paternal, foi Norah, o que sobretudo muito lhe custou... dando eu cem mil francos por ela, para lha entregar, não será caro.

— Aí está uma ação de transcendente galanteria, pensou o príncipe, mas se eu tivesse cem mil escudos de renda, faria outro tanto... já dei provas disso em tempo, na época feliz das minhas loucuras.

E suspirou.

 

A CAÇADA

Na terça-feira seguinte, alguns minutos antes das oito horas da manhã, os sons de uma formidável fanfarra anunciavam aos habitantes das Vertes-Feuilles a aproximação do senhor de la Tour-du-Roy.

Lazarine estava já vestida com o seu fato de amazona, tendo na cabeça o seu chapéu de homem; os compridos cabelos flutuavam-lhe livremente por sobre os ombros.

Iluminava-lhe o rosto delicioso uma expressão de triunfo reprimido que a tornava ainda mais sedutora do que de costume.

Pôs-se à janela para assistir à chegada dos caçadores.

O Marquês, trajando, segundo a moda inglesa, um jaquetão encarnado, calças brancas e grandes botas de montar, vinha à frente do verdadeiro cortejo eqüestre montado num cavalo de puro sangue, de grande marca e de um perfeita beleza.

O príncipe vinha à esquerda.

Atrás do fidalgo seguiam dois picadores, de trompas à Dampierre na boca, mais atrás dois grooms domando a custo o seus cavalos vigorosos, e segurando à mão os destinados a Lazarine e a sua irmã.

Uma vitória puxada a quatro steppers irlandeses conduzidos por dois postilhões, fechava a marcha. Dois lacaios ocupavam o assento de trás.

Ao todo, doze cavalos e oito criados.

— Eis ali o verdadeiro luxo! disse consigo a jovem. Oh! o dinheiro quanto pode!....

O ex-banqueiro esperava na escada com Joana.

Renée não aparecera ainda.

Lazarine desceu.

O Marquês e o Príncipe tinham-se já apeado.

— Dê-me licença, mademoiselle, que lhe apresente a égua que lhe destino... disse o senhor de la Tour-du-Roy depois de ter levado aos lábios a mãozinha enluvada da jovem.

— Pois não! Essa é boa! respondeu ela sorrindo, e terei o mais vivo prazer em fazer conhecimento com ela...

A um sinal o Marquês um dos grooms aproximou-se.

Segurava a rédea uma égua inglesa de uma elegância esquisita.

Era de marca mediana. A cabeça magra e esguia, de ventas rosadas e muito abertas, de orelhas móveis, prendia-se a um comprido pescoço graciosamente arredondado como um colo de cisne.

Os olhos brilhantes e muito saídos, que exprimiam mais malícia do que doçura, davam aquela bem feita cabeça uma expressão um tanto velhaca.

O peito amplo, os membros delgados e de uma incomparável nitidez, os jarretes nervosos e desenvolvidos prometiam uma velocidade de primeira ordem e um vigor excepcional.

O pêlo, de uma ,cor dourada, ou antes acobreada, que se parecia uma pouco com a cor dos cabelos de Lazarine, não tinha uma mancha. A rede móvel das veias desenhava-se ao menor estremecimento do pescoço, dos ilhais e dos flancos.

A filha mais velha de Júlio Leroux olhou durante alguns segundos para a linda égua com uma admiração sem igual.

— Que tal a acha? perguntou o Marquês sorrindo.

— Diria que é Norah! balbuciou Lazarine, uma tal semelhança... E calou-se.

— Não era possível encontrar mais perfeita, penso de igual modo, concluiu o senhor de la Tour-du-Roy. Não se engana, mademoiselle... É Norah...

A jovem reprimiu uma exclamação, desceu num pulo como uma gazela, os degraus, e afagando com ambas as mãos a bonita cabeça da sua favorita, abraçou-a com um verdadeiro excesso de ternura,

Norah soltou um rincho brando e prolongado.

— A querida reconhece-me! exclamou Lazarine. Ah! não esperava a alegria que ora experimento!...

— Mais feliz sou eu em lha ter proporcionado... murmurou o velho muito comovido.

Mas desde quando está Norah nas suas cavalariças, senhor Marquês? prosseguiu a jovem.

— Há quarenta e oito horas...

— Sabia que ela me tinha pertencido?...

— Com certeza, pois que foi unicamente por esse motivo que a comprei. Mademoiselle estimava-a muito, tinha saudades dela, era preciso entregar-lha, e o senhor Júlio Leroux há de permitir, assim o espero, que a ponha á sua disposição durante a sua estada nas Vertes-Feuilles.

— Ah! senhor Marquês, como é bom e amável, balbuciou Lazarine, depois, arrastada pelo seu primeiro impulso, pegou nas mãos do senhor de la Tour-du-Roy, e apertou-as nas suas.

— Aquela paixão é capaz de dar cabo do meu pobre Roberto, disse consigo o Príncipe de Castel-Vivant. O demônio são as apoplexias em véspera de bodas. Na sua e na minha idade, com a breca, é preciso um pouco mais de sangue frio.

O Marquês dominou prontamente a sua perturbação, e Júlio Leroux, a quem o casamento de Lazarine parecia dali para o futuro quase certo, concedeu de bom grado a autorização pedida.

Naquele momento apareceu Renée.

Estava esplendida de beleza com o seu fato de amazona escuro. O chapéu de feltro ornado com uma pluma encarnada, assente sobre os seus cabelos escuros, dava-lhe uma vaga semelhança às heroínas da Fronde.

Do primeiro relance viu a alegria da irmã, e reconheceu Norah. Este acontecimento foi para o seu gênio invejoso um novo e pungente golpe. Mordeu os beiços e empalideceu.

— É assombroso de galanteria! disse ela. Este velho milionário há de ser o ideal dos maridos!... Se ele me tivesse encontrado antes de Lazarine, seria a mim a quem teria talvez amado. Tudo para ela! Nada para mim!... É isto justo?

Tinha soado a hora da retirada.

Júlio Leroux e Joana tomaram lugar na vitória.

Renée montou num lindo cavalo baio trazido de propósito para «Ia, e que juntava à agilidade de uma corça a mansidão de um cordeiro.

As mãos do Marquês serviram de estribo a Lazarine, e a jovem, quase que sem lhes tocar, saltou para o selim com o desembaraço de uma cavaleira consumada, mas Norah, desde que sairá do domínio da sua juvenil dona, havia-se tornado bravia.

Desconhecendo, a princípio, a doce pressão do corpo da ninfa que tão pouco pesava sobre ela, e a leve mão que com tanta brandura a dirigia, deu um grande salto assim que o groom a largou, e voou como uma flecha pelos campos em frente da habitação.

O senhor de la Tour-du-Roy deu um grito.

Renée abaixou a cabeça para ocultar um lampejo de alegria que brilhava em seus olhos, ao passo que um odioso pensamento lhe cruzava o espírito.

Lazarine riu-se.

— Não tenham receio... disse ela de longe, não há o menor perigo.

Ao mesmo tempo, obrigava a égua a moderar a sua desenfreada corrida, a fazê-la parar de todo, e queria forçá-la a voltar para trás.

Foi então que se travou uma seria luta entre a intrépida jovem e o animal furioso.

Norah, não querendo dar-se por vencida, defendia-se como se sabem defender os cavalos de sangue dotados de um caráter irascível e teimoso.

Durante minutos, o formoso e malicioso animal esgotou o seu repertório de saltos para a frente, para os lados, e terríveis curvetas, galões vertiginosos, e coices insensatos.

Lazarine, rindo a bom rir, parecia transformada em centauro, tão estreitamente o seu corpo estava unido ao animal, e as peripécias desta fantasia terrível não a desviaram uma linha.

Ela não se zangava com a indócil Norah. Muito longe de a chicotear, falava-lhe com voz meiga, e afagava-lhe o pescoço com a sua mão enluvada.

Finalmente, Norah compreendeu, ou antes, lembrou-se. Amansou de repente, e de todo o seu grande desespero, o único sinal que ficou foi um pequeno tremor. Nem mais upas, nem mais saltos. Obedeceu a hábil pressão do freio, e veio a meio galope colocar-se ao lado do cavalo do senhor de la Tour-du-Roy e do de Renée.

— Veja, senhor Marquês, disse Lazarine contente e orgulhosa, não foi muito difícil. Aqui está a galantinha perfeitamente sossegada. Não continuará, respondo por isso!... No fim de contas, ela é dócil.

O Marquês e o Príncipe batiam palmas.

Renée franziu a testa e murmurou por entre dentes:

— Outro triunfo para ela! A fortuna! sempre a fortuna! O senhor de la Tour-du-Roy fez um sinal.

Os picadores puseram as trompas à boca; os cavalos escavaram o chão, os cavaleiros e escudeiros meteram a galope, e a vitória seguiu-os ao trote rasgado dos seus steppers. Os picadores e os grooms fecharam a marcha.

Dentro em pouco chegaram à floresta, o Marquês moderou o andar do seu cavalo e todos o imitaram.

Os grandes bosques cuja extremidade acabavam de transpor, eram verdadeiramente maravilhosos vistos aquela hora da manhã.

As folhas e os ramos secos caídos dos velhos carvalhos estalavam sob as ferraduras e sob as rodas do trem. Uma fresca brisa, perpassava por entre as árvores, carregada dos aromas sutis e agradáveis das flores silvestres e das emanações resinosas dos pinheiros.

Os pássaros gorjeavam nas balsas. De bocado a bocado, um faisão tomava com estrépito o vôo, e saltitava pelo campo.

Os coelhos fugiam pouco assustados, e, às vezes, atravessavam o caminho quase por entre as pernas dos cavalos, para se dirigirem aos estreitos atalhos onde brotava abundante a erva carregada ainda de orvalho.

Lazarine respirava a plenos pulmões, e sentia com indizível volúpia a sua Norah mover-se debaixo de si. Pela primeira vez, depois de seu pai se ter arruinado, tornava ela a ver-se no seu meio e achava prazer na vida.

O senhor de la Tour-du-Roy, galopava à sua esquerda, olhava para ela sem lhe falar, e esta muda contemplação extasiava-o.

O ponto destinado, precisamos dizê-lo? fora admiravelmente escolhido num dos sítios mais aprazíveis da floresta, onde abundava o pitoresco.

Oito caminhos iam dar à encruzilhada chamada a Encruzilhada dos cavaleiros, por causa de uma grande mesa de granito quase bruto, que havia no centro, e cuja origem se perdia na norte dos tempos. Vagas lendas ligavam a existência daquele majestoso pedaço de granito às tradições, não menos vagas, dos Cavaleiros da távola redondas

O monteiro-mór saiu do grupo, e, com as formalidades do costume, aproximou-se do Marquês para lhe dar parte do resultado das suas buscas. Tinha conhecimento da existência de um veado.

— Muito bem... disse o senhor de la Tour-du-Roy, a caminho... Soltaram os cães que se lançaram logo no mato.

— Avancem, meus totós! gritou o monteiro-mór.

Ouviu-se primeiro um latido isolado, incerto e como que tímido, depois dois mais acentuados, em seguida dez, finalmente toda a matilha em uníssono e formidável concerto.

O monteiro-mór tocou seguidamente a desencovar, a descobrir, a perseguir, e finalmente o sinal de aproximação.

Sessenta cães, do tamanho de três pés, todos brancos, com grandes manchas ruivas, corriam em seguimento do cão guia farejando a caça.

— Para a frente! ordenou o Marques.

— Para a frente! repetiu Lazarine! Away my girl! a juntou ela •dando de mão a égua que partiu como um raio, e a jovem, entregando-se ao gozo das rápidas correrias, esqueceu-se da música das trompas, dos latidos dos cães, e julgou ser levada por algum cavalo fantástico.

Não descreveremos a caçada, em que não teríamos a notar um qualquer incidente de importância.

Foi boa, muito bem dirigida, e começada às nove horas, terminou um pouco antes do meio dia pela morte do veado, que voltando ao ponto de partida, fez frente aos cães numa pequena lagoa a dois quilômetros apenas < Encruzilhada dos cavaleiros. Ali o senhor de la Tour-du-Roy matou-o com um tiro da carabina. Levantou-se o animal, enquanto as trompas tocavam o hino de vitória. Um dos picadores cortou o pé direito do animal, e o Marquês inclinou-se diante de Lazarine, segundo o uso das caçadas francesas, como diante da pessoa a quem queria particularmente honrar, e apresentou-lhe o pé.

A jovem aceitou corando, e Renée despeitada mordeu os beiços a ponto de fazer sangue como tinha sucedido nas Vertes-Feuilles quando reconheceu Norah.

Voltaram à encruzilhada.

Um grande carro, e uma coleção completa de cozinheiros e moços de cozinha substituíram as matilhas de cães e os homens de equipagem. Os barretes e mais fato branco casavam-se belamente com o verde dos campos.

O almoço esperava os convivas, e se apresentássemos a abundante lista, os nossos leitores veriam bem que, embora servido em plena floresta, apresentava os apuros do mais delicado sibaritismo.

Todos lhe fizeram muita honra, excepto Renée, que atribuiu ao incômodo de uma enxaqueca a falta de vontade de comer.

Lazarine foi encantadora, mas só o Príncipe de Castel-Vivant conversou com ela, por que o senhor de la Tour-du-Roy. entregue a sua paixão como um adolescente namorado, não tinha, é preciso dizê-lo, completa liberdade de espírito.

 

O REGRESSO

Partiram da Encruzilhada dos cavaleiros às duas horas, e tomaram o caminho da habitação do Marquês, distante oito ou novo quilômetros do local da caçada.

Sabemos já que o castelo de la Tour-du-Roy era uma residência cujas maravilhas arquitetônicas mereciam, com certeza, as honras de uma fotografia minuciosa, mas não queremos perder tempo em longas discrições, e contentar-nos-emos por isso com um rápido esboço, indispensável, além disso, porque o castelo servirá de teatro a algumas das importantes cenas do nosso drama.

Uma grande rua de tílias seculares de comprimento de mais de um quarto de légua, partia da estrada e conduzia para uma grande flanqueada de dois pequenos pavilhões elegantes que serviam de habitação, o da direita ao porteiro, o da esquerda ao chefe dos couteiros.

Do outro lado da grade, cuja entrada era encimada por um brasão de la Tour-du-Roy, começava uma larga rua sinuosa que se prolongava através os prados semeados de árvores gigantes e terminando no pátio de honra do castelo.

Quatro lances de escada à italiana ornados de estátuas, davam acesso para uma espaçosa varanda que rodeava a fachada do edifício e os seus dois lados. As janelas do rez-de-chaussée deitavam para aquela varanda, de onde o olhar podia abraçar um extenso panorama encantador de variedade e de pitoresco.

O castelo, edificado no reinado de Luiz XIII, apresentava, da mesmo modo que o palácio de Orleans, um admirável espécimem do mais puro estilo da época.

O vestíbulo imenso, coberto de lages de mármore brancas e pretas, alternadamente como o tabuleiro de um jogo de damas, era. forrado de tapeçarias Gobelins, que foram feitas expressamente para a casa de la Tour-du-Roy, cujo brasão bordado continham, e dadas por Luiz XIV a um antepassado do Marquês.

À esquerda do vestíbulo havia uma sala de jantar, comparável a do castelo de Maisons-Laffite ornada de quadros que representavam os trabalhos e os prazeres das quatro estações.

Uma sala de bilhar, uma sala de fumar, uma biblioteca e um teatro de dimensões restritas mas muito elegante, seguiam-se a casa de jantar.

Quatro salas seguidas, dignas dos palácios de Versailles ou de Fontaineblau, compunham, ao lado direito do corpo do edifício, os salões de gala, e a numerosa aristocracia da província podia, reunida, circular ali a vontade.

Uma escada monumental punha em comunicação o rez-de-chaussée com o primeiro e segundo andares, de cuja disposição não falaremos. Bastará dizer que o castelo de la Tour-du-Roy pode, em caso de necessidade, dar hospitalidade completa a mais de sessenta convidados.

A segunda fachada do castelo recebia luz do parque, o famoso parque de cinqüenta hectares, murado, abundante em cabritos monteses e veados, e de que o velho criado grave do Marquês tinha falado tão entusiàsticamente ao tenente Marcel Laugier.

A esquerda, separadas do castelo por grandes arrelvados, onde os poldros de pura raça e as éguas-mães pastavam e corriam em liberdade, viam-se as cavalariças menos grandiosas, mas não menos senhoriais do que as de Chantilly.

As cocheiras, as candelárias e casas de arreios ficavam anexas às cavalariças, e formavam como que uma pequena cité no parque.

Debaixo da janela, ou disposta em vasos de roda dos tabuleiros de relva, via-se uma prodigiosa variedade de plantas verdes, begônias de folhas de veludo prateadas, dracenas, formiuns tenax, araucárias pequenas de ramos eriçados de espinhos, caladiriuns, aruns, canas e cem outras, ostentavam as riquezas variadas daquela flora de que só os protegidos da fortuna podem gozar o luxo encantador.

Ao apear-se junto da escada que conduzia para a varanda, Lazarine experimentou uma passageira mas profunda comoção.

Aquela rapariga que se julgava conhecedora dos requintes da alta sociedade, nunca imaginara coisas iguais aquele castelo e aquele parque. A união de uma soberana majestade com uma requintada elegância, feriu pela primeira vez os seus sentimentos surpreendidos e a sua imaginação deslumbrada.

A grande existência das altas sumidades tinha sido até então letra morta para ela.

Naquele momento compreendeu instintivamente, ou antes, adivinhou o que nem suspeitava. Durante alguns segundos, Roberto de la Tour-du-Roy pareceu-lhe mais do que homem.

Apressemo-nos a acrescentar que nenhum sinal exterior traiu os •seus pensamentos, e o mais perspicaz observador não poderia em seus olhos ler o que lhe ia na alma.

O Marquês propôs conduzir as jovens aos aposentos onde, após as fadigas da caça, poderiam descansar um pouco esperando pelo jantar.

Lazarine que não sentia nenhum cansaço, preferiria visitar o castelo muito minuciosamente, mas não se atreveu a testemunhar esse seu desejo, e do mesmo modo que as irmãs, aceitou o oferecimento de Roberto.

O quarto de honra fora preparado para ela; este quarto ocupava, no primeiro andar, a parte central do principal corpo do edifício, e compunha-se de uma alcova com as suas dependências, de um boudoir e de uma sala.

As três janelas desta sala abriam para uma varanda sustentada por cariatides de grande estilo.

Lazarine tendo ficado só, foi encostar-se ao parapeito forrado de veludo da varanda.

Dali avistava-se o parque imenso com as suas árvores gigantescas, com as suas alamedas senhoriais, semeado de estátuas e de lagos em miniatura, onde nadavam cisnes.

Durante alguns minutos contemplou aqueles mágicos horizontes, após esta contemplação invadiu-lhe o rosto ardente rubor, ergueu a cabeça com um movimento de indomável orgulho e os seus lábios balbuciaram:

— Meu tudo isto!... Que sonho!... Ah! Renée, pobre irmã, compreendo bem a inveja que tão mal dissimulas e perdôo-te!

Enquanto o senhor de la Tour-du-Roy mandava preparar os aposentos para as meninas Leroux, o ex-banqueiro andava passeando com o príncipe no terraço do rez-de-chaussée.

Fumavam ambos.

— Então, meu velho e querido amigo, dizia Godefroy, que pensa desta residência?

— É realmente principesca, e bem merece a reputação que tem.

— O Marquês não lhe parece um perfeito gentleman?

— É em todos os sentidos o que deve ser um fidalgo apresentado pelo senhor.

— Portanto procedi comi um verdadeiro amigo, forçando a sua vontade, chamando absurdas às suas idéias de retiro e solidão, e obrigando-o a receber em Vertes-Feuilles o seu futuro genro.

Júlio Leroux abanou a cabeça.

— Meu genro! oh!... murmurou ele.

— Duvida ainda? perguntou vivamente o Príncipe.

— Com certeza duvido...

— E por quê?

— Porque seria demasiada fortuna.

Godefroy, encolhendo os ombros, ia encetar uma série de raciocínios para convencer o seu interlocutor, que aliás não desejava outra coisa senão ser convencido, quando um criado grave se aproximou respeitosamente dele e lhe falou em segredo.

— Pois sim... redarguiu o príncipe, já lá vou...

Em seguida, dirigindo-se a Júlio Leroux assim que o criado se afastou:

— O Marquês manda-me chamar, e eu adivinho já o que ele me quer. Dê-me licença. Dentro de cinco minutos estarei de volta e não virei só. Recolha-se consigo enquanto vai esperar-me e readquira o ar mais solenemente paternal que puder, porque vai ter lugar, creia, coisa de grande consideração.

E o velho rapaz, girando sobre os calcanhares muito agilmente, deixou o ex-banqueiro.

Roberto de la Tour-du-Roy, muito agitado, muito comovido, passeava febrilmente na sala grande.

O príncipe tomou-lhe o braço rindo e quis levá-lo consigo.

— Querido amigo, disse-lhe ele, venha depressa.

— Para onde me leva? perguntou o Marquês com uma espécie de resistência.

— Onde já quereria estar... junto de Júlio Leroux... Soou a hora do pedido... Tenho pressa de terminar com o meu papel de agente matrimonial que impôs a mim mesmo por dedicação. Venho pois...

— Um momento! redarguiu Roberto, é preciso esperar ainda. Godefroy olhou para o Marquês com um cômico espanto.

— Esperar ainda! repetiu. Por que? Que significa? Passou-se alguma coisa que eu ignoro? Há algum perigo oculto? Essa grande paixão o consumia extinguiu-se tão facilmente?

— Está blasfemando! exclamou o Marquês muito entusiasticamente. Amo agora Lazarine mais do que nunca! Morreria de paixão se ela não pudesse ser minha mulher! Amá-la-ei até o último instante!

— Pois bem! então venha pedi-la ao pai.

— Bem o desejava, Deus sabe! tanto ou mais do que o senhor tenho eu pressa de acabar com isto... Mas chegado ao último instante, tremo, receio...

— Receio!... que receia pois?

— Uma recusa.

O Príncipe encolheu os ombros como tinha feito um instante antes com Júlio Leroux, mas de um modo diferente e enérgico.

— Palavra de honra, querido Marquês, redarguiu ele, o amor faz-lhe perder o juízo, e eu desconheço-o! A antiga amizade que nos liga permite-me falar franco; conceda-me que lhe diga que se torna ridículo! Raios de Deus! como dizia um dos meus antepassados, quando, em um acesso de cólera, tinha necessidade de praguejar um pouco. Raios de Deus! como o senhor gosta de se amesquinhar! Ouvir o Marquês Roberto raciocinar desse modo é degradante, palavra de honra! É preciso repetir o que lhe tenho dito e tornado a dizer? Com certeza que o meu amigo Júlio Leroux é um homem de boa sociedade e a maneira como se tem portado abona bem essa qualidade; é certo que sua filha Lazarine é uma criatura adorável, e tem razão para a adorar... Não penso em destruir estas opiniões, mas o senhor é um la Tour-du-Roy, que diabo! é Marquês! seis ou sete vezes milionário, e embora tenha alguns anos a mais do que ela, faz a essa formosa burguesa, dignando-se por amor elevá-la até si, uma honra fabulosa, inaudita, inesperada, que a família lhe deve agradecer de joelhos! Ouviu? compreendeu? e basta de falsos raciocínios.

— Com que então, balbuciou Roberto, é sua opinião que eu não tenho coisa alguma a temer?

— Não!... não!... não!... cem vezes não!...

— E o meu pedido será bem recebido?

— Sim!... sim!... sim!... mil vezes sim!...

— O senhor anima-me!... Vamos falar ao pai.

— Ainda bem!

— Não me abandone...

— Descanse e conte comigo, velho rapaz.

O Príncipe deu o braço ao Marquês, e arrastou-o para a varanda, desta vez, porém, sem a menor resistência.

Júlio Leroux que continuava a passear, logo que os viu aproximarem-se, e compreendendo que era chegado o momento decisivo, atirou fora o charuto e esperou por eles.

 

UM PEDIDO

Na sua mocidade, e mesmo já em idade avançada, o Marquês de la Tour-du-Roy tinha obtido entre a nobreza muitas e brilhantes vitórias.

Além de que, muitas vezes, se havia manifestado sob a forma de uma chuva de ouro entre as Danaes da moda, a quem os seus milhões e a sua liberalidade fascinavam.

Mas nem fidalgos, nem cortesãs tinham conseguido tocar-lhe o coração de um modo sério e duradouro. Enleios dos sentidos em que o amor próprio supria o amor sincero, caprichos e fantasias de uma semana ou de uma hora, eram no que consistiam as suas aventuras galantes. Não concebia o que era paixão, porque não a tinha nunca experimentado.

E eis que aos sessenta e um anos, pela primeira vez, ele se sentia apaixonado! pela primeira vez amava!

Essa tardia estréia no amor explica, plenamente, a timidez de um homem a quem a sua elevada posição na sociedade e os seus costumes aristocráticos davam, de ordinário, um desembaraço e uma firmeza tão legítimas como naturais.

Debalde o Príncipe, muito mais prático, e vendo as coisas através o seu ceticismo de extravagante consumado, lhe repetia que o seu grande nome, e a sua imensa fortuna, tornavam certo o êxito, ele teimava em que a enorme diferença de idade cavava entre Lazarine e ele um abismo quase insuperável.

Por isso, seguindo o senhor de Castel-Vivant que o arrastava, diminuía o passo à medida que se aproximava de Júlio Leroux.

A distância foi contudo vencida, e o Marquês parou tão agitado, tão perturbado como pode estar uma virgem na hora da primeira entrevista.

O ex-banqueiro sorriu a seu pesar vendo este sexagenário imóvel, indeciso, com os olhos no chão.

O Príncipe mordia os beiços, e batia com o bico do pé nas pedras da varanda com tanta ironia como impaciência.

Restabeleceu-se o silêncio.

— Os diabos levem este absurdo namorado! pensou Godefroy. Ficaremos assim sempre, se eu não me intrometo. É preciso que fale por ele.

E muito alto dirigindo-se a Júlio Leroux:

— Meu querido e velho companheiro, disse, o Marquês de la Tour-du-Roy, nosso hospedeiro e amigo comum, tem um pedido a fazer-lhe, mas esse pedido é para ele de tão grande importância que, como vê, estava muito perturbado. Anime-o, peço-lhe...

— E como precisa o senhor Marquês de ser animado? redarguiu o outrora milionário. Pois não tem já a certeza do bom resultado do seu pedido, Seja ele qual for, se depender de mim só?

— Coragem! murmurou Godefroy ao ouvido de Roberto. À carga, vá!...

Era impossível recuar por mais tempo.

O Marquês compreendeu-o, e erguendo os olhos para o pai de Lazarine balbuciou:

— Mil vezes obrigado, querido senhor Leroux, pela simpática confiança que quer inspirar-me... Estou em extremo agradecido... Infelizmente o bom êxito do meu pedido não depende unicamente do senhor..

— Embora, mas enfim, visto que se dirige a mim, é porque eu posso fazer aí alguma coisa.

— O senhor pode muito...

— Queira pois dizer, porque eu sou incapaz de adivinhar, e afianço-lhe que muito me intriga.

O Senhor de la Tour-du-Roy sentiu neste momento alguma coisa de semelhante ao que deve experimentar o marinheiro prestes a por fogo aos paióis do navio cujo tombadilho treme sob seus pés; mas sem contudo hesitar, sem balbuciar, sem se deter, prosseguiu:

— Amo apaixonadamente mademoiselle Lazarine, e peço-lhe a honra de me conceder a sua mão.

Júlio Leroux mostrou-se um ator de primeira plana, e desempenhou maravilhosamente o seu papel.

— Ama Lazarine, senhor Marquês! exclamou ele.

— Amo-a loucamente! Amo-a o mais que é possível amar.

— Quem diria?... Eu que hão via nada! Ouço e custa-me a acreditá-lo!... Quando começou esse amor?...

— No dia em que, pela primeira vez, encontrei no bosque a adorável amazona... Um só olhar me tornou seu escravo... Mas não me responde?...

O ex-banqueiro tomou uma atitude ao mesmo tempo superiormente benévola e suficientemente solene.

— É coisa difícil, redarguiu ele, responder prontamente a um pedido que tão longe se estava de esperar. Posso e devo dizer-lhe, senhor Marquês, quanto me ufano de um pedido que partindo do senhor é uma grande honra para minha filha e para mim.

— Aceita o pedido? redarguiu o senhor de la Tour-du-Roy com angústia, porque tremia de descobrir, sob as frases confusas do banqueiro, uma espécie de não aceitação do pedido.

— Começa aí o meu enleio, redarguiu Júlio Leroux, o senhor disse-o há pouco, a solução desejada não depende de mim só. Com o senhor serei franco e sincero... Pela minha parte, não tem oposição nenhuma a temer. Vejo no senhor o gênio ideal, porque consigo Lazarine seria feliz, tenho essa convicção. Dá-la-ia pois com os olhos fechados, com muita vontade e de todo o coração, mas não faria nem diria coisa alguma para constranger a sua vontade, se essa vontade estivesse em desacordo com a minha. A minha situação para com minha família é particular e muito delicada. Por desgraça ou inépcia arruinei as pobres crianças. Elas estão! ai de mim! por minha causa, despojadas de uma fortuna considerável com a qual tinham o direito de contar. Reste-lhes ao menos a liberdade de disporem de si à sua vontade, e escolher o companheiro da sua vida.

— Mas, perguntou Roberto de la Tour-du-Roy com voz estrangulada, existe, que saiba, algum compromisso sério tomado por mademoiselle Lazarine?

— Nenhum.

— Julga que está livre o seu coração?

— Ousaria afirmá-lo. Estava, com certeza, quando saímos de Paris, e desde que estamos em Vertes-Feuilles não vemos ninguém.

— Julga, redarguiu o Marquês com uma voz cada vez mais agitada, julga, que estando livre o seu coração, aceitaria sem medo a idéia de se tornar minha mulher?...

— Como responder por uma rapariga?...

— Vê algum obstáculo?

— Um só.

— A minha idade, não é?

— Sim, a sua idade... parece-me uma garantia de felicidade para aquela a quem ama, mas Lazarine, olhando as coisas sob um ponto de vista diferente do meu, pode não pensar do mesmo modo.

— E esse obstáculo parece-lhe insuperável?... balbuciou Roberto cujo coração deixou de pulsar.

— Com certeza que não! Penso, pelo contrário, que o senhor tem o direito de esperar.

— Deus queira que não se engane! Ficar num tal suplício, é superior às forças humanas! Tenha piedade de minha fraqueza. Fale a mademoiselle Lazarine, fale-lhe sem demora, e diga-me se posso sonhar com o céu, ou se tudo acabou para mim.

— Estou às suas ordens, querido Marquês, respondeu Júlio Leroux sorrindo, mas se quer aceitar um bom conselho, há outro meio melhor...

— Qual é?

— Fale o senhor mesmo a Lazarine.

O senhor de la Tour-du-Roy estremeceu.

— Falar-lhe!... repetiu estupefato, falar-lhe, eu!... dizer-lhe que a amo e pedir-lhe para ser minha!... Nunca me atreveria a tanto.

Neste ponto, Godefroy de Castel-Vivant interveio. As delongas do diálogo que acabamos de referir, cansavam-no muito.

— Assim é preciso, contudo, meu bom Roberto, redarguiu ele encolhendo os ombros, é absolutamente preciso! Aumentarão as probabilidades advogando o senhor mesmo a sua causa...

— Verdade?

— Palavra de honra.

— Mas eu advogarei mal, tão perturbado como estou.

— Melhor ainda. Não há eloqüência superior a de uma perturbação amorosa bem visível, e toca o coração de uma mulher, enquanto que os bonitos discursos só se dirigem ao seu espírito.

— Será. Falarei, pois, mas tarde. Esta noite ou amanhã.

— Oh! isso é que não! Candeia que vai adiante... Vai já falar, sou eu que lho digo.

— Mas...

— Qual mas, nem meio mas. Venha daí!

E a Príncipe tornando a tomar o braço do Marquês, arrastou-o para o castelo, como um quarto de hora antes o arrastara para o palácio.

O Marquês de la Tour-du-Roy deixou-se conduzir com docilidade.

Júlio Leroux sorriu, esfregou as mãos ao ver os dois homens afastarem-se.

— Principio a crer, murmurou, que Godefroy não se enganava. O Príncipe arrastando o Marquês consigo, subiu rapidamente os degraus da escada monumental que conduzia ao primeiro andar, e sem deixar ao companheiro um momento de descanso, abriu a porta da sala onde deixamos Lazarine.

A jovem que continuava encostada à varanda do parapeito forrado de veludo, entregava-se a esses sonhos de grandeza ou de riqueza com que se deliciava a sua índole ambiciosa.

O ruído, perceptível apenas, da porta girando nos gonzos não lhe feriu o desatento ouvido. Não fez um movimento, e conservou a mesma atitude.

A linha dos ombros, a curva elegante da sua estatura, sobressaiam muito perfeitamente no fundo do céu cintilante.

Tinha tirado o seu chapéu de homem ornado com um véu de gaze verde, e às espessas madeixas do seu cabelo cor de fogo caíam-lhe até à cintura.

— Por Deus! compreendo a loucura de Roberto... disse consigo, o senhor de Castel-Vivant, o diabólico encanto daquela loura feiticeira bastaria para transtornar uma cabeça mais sólida do que a do meu pobre amigo.

E após este curto monólogo, prosseguiu a meia voz:

— Aqui está em presença do objeto amado, e antes de um quarto de hora, por menos bem que saiba haver-se, trocar-se-ão promessas de casamento entre o alto e poderoso senhor Roberto, Marquês de la Tour-du-Roy e a sedutora plebéia mademoiselle Lazarine Leroux...

Dito isto, impeliu o Marquês para a sala, fechou brandamente a porta, e retirou-se nos bicos dos pés a fim de não perturbar com a sua presença uma entrevista decisiva.

Durante dois ou três segundos o senhor de la Tour-du-Roy, novamente paralisado pela sua intempestiva timidez, hesitou, e esteve quase para bater em retirada, mas o receio do ridículo deu-lhe um pouco de energia, e vagarosamente dirigiu-se para a varanda.

Conservava ainda vestido o fato com que fora à caçada, e que lhe ficava muito bem; o jaquetão encarnado, o calção branco, e as botas de montar com esporas de prata.

O espesso tapete abafava o ruído dos seus passos, mas Lazarine ouviu o tilintar metálico das rosetas das esporas, e voltou-se com um movimento repentino.

Ao ver, de repente, a alguns passos distante de si, o senhor de la Tour-du-Roy no qual, sabemos, pensava, adivinhando com o seu instinto de mulher o fim da sua presença, a jovem sentiu o sangue subir-lhe ao rosto, e as suas longas pálpebras cerraram-se para velar o rápido brilho dos seus olhos.

— Ele trás-me os milhões e o título cobiçado! pensou ela. Realiza-se enfim o meu sonho!

Lazarine, voltando-se a meio para a varanda de onde se tinha para não saber ocultar as suas mais vivas impressões.

O rubor extinguiu-se; o rosto radiante tomou a expressão de indiferentismo e altivez que lhe era habitual. Dirigiu um atencioso cumprimento e sorriu ao senhor de la Tour-du-Roy.

 

A DECLARAÇÃO

— Em qualquer outra parte, senhor Marquês, murmurou a jovem sorrindo; em qualquer outra parte, dir-lhe-ia: Seja bem vindo!...

— Acaso não o sou eu aqui? perguntou Roberto surpreendido por aquela frase de sentido ambíguo.

— Com certeza que o é aqui, como em toda a parte, mas não me pertence a mim, há de concordar, não me pertence a mim fazer-lhe as honras do seu palácio...

— Bem vê, estava contemplando a sua propriedade e a minha afastado, apontou para as árvores dos bosque que se agitavam no horizonte como um mar de verdura, e prosseguiu:

— Bem vê, estava contemplando a sua propriedade e a minha admiração não tinha limites... Como isto é grande, como é belo!... Não julgava que fosse possível uma tão graciosa frescura junta a tão severa majestade!...

— Então, exclamou o Marquês em extremo contente, o castelo de la Tour-du-Roy tem a honra de lhe agradar?...

— Oh!... com certeza!... mais do que a ninguém... É o paraíso na terra...

— Não tem senão querer... balbuciou o fidalgo. Digne-se consentir, e será senhora e possuidora do que lhe parece um paraíso...

Lazarine fitou no seu interlocutor o sereno e firme olhar dos seus grandes olhos.

— Não compreendo... disse ela. Explique-me esse enigma, senhor Marquês, peço-lhe...

Vendo-se assim obrigado a falar, Roberto de la Tour-du-Roy empalideceu um pouco, mas encheu-se de coragem, e redarguiu com uma voz que procurava em vão tornar firme:

— O que deseja saber, mademoiselle, disse-o há pouco a seu pai... É portanto com o sentimento dele, devo acrescentar, é sob seus auspícios que vou repeti-lo... Não zombe de mim quando tiver ouvido, suplico-lhe!... Se achar que fui insensato, tenha piedade da minha, loucura!... Repare que a minha vida está nas suas mãos. Acaso sou culpado de não ter podido resistir ao encanto vitorioso que a envolve, e faria palpitar o mármore das estátuas. Ah! se eu tivesse vinte anos menos, acharia palavras verdadeiramente eloqüentes para. lhe pintar o que se passa em mim, para a comover e sensibilizar... Ai de mim! os meus cabelos começam a embranquecer, e a minha idade obriga-me a simplicidade... É, portanto simplesmente, que lhe digo: Lazarine, amo-a... amo-a com todas as forças do meu coração. Tive o sonho ambicioso de lhe chamar Marquesa de la Tour-du-Roy... É, minha senhora... a mais adorada de todas as mulheres, como é também a mais formosa, e tenho a certeza será a mais ditosa se consentir usar o meu nome. Consente?... Espero a minha, sentença...

Ao dizer o que precede num tom meio suplicante, meio apaixonado, o velho fidalgo tinha curvado o joelho diante da jovem, e o seu modo, a sua natural dignidade, a sinceridade evidente do seu imenso amor, salvaram o ridículo de uma postura, que, em mais de um rapaz, pareceria grotesca.

— Senhor Marquês, murmurou Lazarine, peço-lhe eu que se levante...

— Não, enquanto não tiver respondido...

— Isso é obrigar-me...

— Bem o sei... e perdoe-me incomodá-la. Falta-me a coragem e a força para sofrer por mais um minuto que fosse, o suplício da incerteza... or isso, tenha compaixão, responda-me...

Lazarine recuou um passo, e fitou os seus olhos com uma certa-bondade naquele velho alto e majestoso, naquele orgulhoso fidalgo, quase ajoelhado diante dela como um escravo na presença de uma rainha, e estendendo para ela as mãos suplicante em sinal de absoluta servidão.

E não era ela, efetivamente, rainha, rainha da beleza... e não podia aniquilar com uma palavra aquele que lhe pedia para que aceitasse um título e milhões?

— Falta-me a experiência da vida em muitos pontos, disse ela ao fim de dois segundos, contudo não ignoro, a conversação que se trava entre nós afasta-se dos usos comuns, e vai de encontro a certas conveniências... A resposta que exige de mim, senhor Marquês, é da boca de meu pai que deveria tê-la ouvido. A vontade paternal e a sua impaciência decidiram diferentemente. Eu não sou, graças a Deus, nem galanteadora, nem afeto uma gravidade e uma virtude desmedidas ,.. Não o farei esperar mais tempo. O senhor abriu-me lealmente o seu coração, deixar-lhe-ei que leia no meu com igual lealdade.

Lazarine interrompeu e pareceu procurar que forma daria ao seu pensamento.

O senhor de la Tour-du-Roy não respirava; a palavra prestes a ser pronunciada, iria causar-lhe uma alegria sobre-humana cm um incurável desespero.

A jovem redarguiu com um sorriso que parecia forçado:

— Não tenho até agora senão muito vagas noções a respeito desse sentimento a que se chama amor, e que representa um papel tão importante em romances e poesias. Conheço só de nome essas comoções, esses delírios que são, parece, os sintomas da paixão... Não experimento na sua presença, senhor Marquês, nem as perturbações do coração, nem as vivas comoções do amor, é, portanto, certo que o senhor não me inspira esse devorador sentimento tão bem descrito pelos bons autores...

— Ah! balbuciou Roberto, sobre quem cada palavra caía como uma gota de água gelada, bem o compreendo... a senhora sente por mim a indiferença mais profunda!...

— Mas quem lhe disse tal? redarguiu vivamente Lazarine. Porque me acusa de indiferença, quando não falei em semelhante coisa?... Julgava que amando-me, como o senhor diz amar-me, leria melhor no meu pensamento. Experimento pelo senhor Marquês uma grande admiração, um respeito sem limites, uma imensa simpatia que pode em breve transformar-se; em séria afeição. Se isto não é amor, não vale tanto como ele ou mais ainda? A sua escolha é uma honra que muito lisonjearia todas as raparigas, e pela qual me mostro possuída do maior orgulho e em extremo reconhecida. Enfim creio muito firmemente que a Marquesa de la Tour-du-Roy será a mais feliz de todas as mulheres...

A futura Marquesa de la Tour-du-Roy interrompeu-se novamente.

Roberto estava ofegante.

— E essa felicidade, exclamou, repele-a a senhora?

— Não, redarguiu mademoiselle Leroux com um embriagador sorriso. Só uma ingrata ou uma louca a repeliria... Aceito-a... e se a sua ventura depende de mim, como diz, espero que será feliz.

Roberto levantou-se com o desembaraço de um rapaz, e pegando nas mãos que Lazarine lhe abandonou amavelmente, levou-as aos lábios, estreitou-as contra o coração, cobriu-as de beijos, e de lágrimas de alegria, sem poder proferir uma palavra, tão violentos eram os seus transportes.

A filha do banqueiro também parecia comovida, mas não o estava senão aparentemente; conservava puro o seu sangue frio, e espectadora impassível da embriaguez amorosa do fidalgo, dizia para consigo em voz baixa:

— Realmente, este velho parece uma criança, será muito fácil dominá-lo absolutamente, e fazer dele o que quiser. Ah! nasci sob a influência de uma estrela propícia, e vou gozar uma vida como desejo! Durante seis meses de todos os anos, gozarei os esplendores do viver em castelo, e o resto do tempo deslumbrarei Paris com o meu luxo... Era a existência folgada e luxuosa que eu desejava. Há só uma sombra no quadro... uma marido velho!... Mas que importa?... Quando a viuvez me der a liberdade, serei Marquesa, milionária, ainda nova e sempre bela. Um segundo casamento duplicará a minha fortuna, se eu o quiser, e me trará talvez o amor... Ah! que enorme inveja terá a Renée da minha posição!...

 

O senhor de la Tour-du-Roy tinha pressa de participar a sua felicidade a Júlio Leroux e a Godefroy de Castel-Vivant.

— Não fale em coisa alguma às minhas manas, peço-lhe, disse Lazarine no momento em que ele se afastava, e peço a mesma discrição para com o pai e para com o Príncipe. Quero gozar da surpresa de Renée e de Joana quando souberem, de repente, que está decidido o nosso casamento...

— Roberto prometeu tudo quanto quis a futura Marquesa, e 3 jovem, após a sua partida, em lugar de se; recolher aos seus aposentos, entendeu dever explorar o castelo, estudando as menores particularidades, e vendo como estava distribuído, com o profundo interesse que inspiram as coisas cobiçadas, quando temos a certeza de dentro em pouco as possuir.

Embriagou-a aquele luxo; teve deslumbramentos de magnificência; tudo lhe pareceu harmônico, perfeito, irrepreensível, à exceção de uma certa galeria que punha os quartos de recepção do "rez-de-chaussée" em comunicação com as abóbadas envidraçadas de um vasto jardim de inverno de construção recente.

Esta galeria, de uma perfeita elegância arquitetônica, estava completa no ponto de vista decorativo. As esculturas e os mármores estavam nos seus lugares, mas uns doze quadros e outros tantos medalhões, metidos nas suas molduras, esperavam os pincéis do artista e destoavam muito pela sua nudez naquela coleção rica, elegante, e de bom gosto.

— Há de ser preciso concluir isto quanto antes... disse consigo Lazarine. Como sucede que o senhor de la Tour-du-Roy, que é com certeza um homem de gosto, pode consentir uma falta destas em meio de um conjunto tão perfeito?

Quando chegou a hora do jantar, tiveram algum trabalho em achar a jovem.

Depois de ter analisado bem as riquezas, quer das mobílias quer no gênero artístico da vivenda senhorial, e visitado detidamente as cavalariças, as selarias e as cocheiras, a futura castelã internou-se pelo parque imenso, e ali toda entregue aos seus sonhos de grandeza, não se lembrou do tempo.

Foi o próprio Marquês quem a encontrou assentada e absorta num banco rústico ao fim do parque. Deu-lhe o braço para a conduzir à sala de jantar do castelo.

Renée, encolhendo os ombros, disse ao Príncipe à meia voz, que reais ou fingidas, as distrações de sua mana lhe pareciam do pior gosto.

Lazarine ouviu ou adivinhou, e respondeu apenas por um sorriso zombeteiro.

O senhor de Castel-Vivant como profundo diplomata que era, contentou-se em abanar a cabeça de um modo que, não querendo «m absoluto dizer nada, podia traduzir-se à vontade de cada um.

O senhor de la Tour-du-Roy colocou Renée à sua direita, Joana a esquerda, e Lazarine em frente, colocação que causou alguma surpresa e a mais viva contrariedade à segunda filha de Júlio Leroux.

— Realmente, é absurdo e é ridículo! disse ela consigo. Trata-se aqui aquela vaidosa como se fosse dona da casa!... porque motivo?

O Marquês e os seus hóspedes estava muito distanciados um dos outros em redor daquela mesa servida com um luxo quase realengo.

Seis criados de mesa com as suas librés de gala dirigidos por um mordomo com ares do ministro, povoavam a enorme sala que podia muito bem conter oitenta convivas.

Godefroy de Castel-Vivant estava sentado à direita de Lazarine, e só eles davam alguma animação ao jantar, que na sua ausência teria sido, senão triste, pelo menos singularmente monótono.

O dono da casa todo entregue à sua alegria de velho apaixonado, devorava com o olhar a sua noiva e falava pouco.

Renée, desesperada, não proferia palavra.

A extrema mocidade de Joana obrigava-a a um mutismo quase absoluto.

Finalmente, Júlio Leroux estava também calado, calculando a soma de liberdade que o casamento de Lazarine lhe ia dar, e confessando a si próprio que, no dia em que se apresentassem maridos tão desinteressados como o Marquês para o desembaraçarem das outras suas duas filhas, entraria na posse de uma independência muito aceitável.

Um pouco antes do fim do jantar, no momento em que se ia servir a sobremesa, o senhor de Castel-Vivant inclinou-se para Lazarine e murmurou-lhe algumas palavras ao ouvido.

A jovem sorriu, corou e respondeu com um sinal afirmativo.

Cada um dos convivas tinha na sua frente uma dúzia de copos de diferentes dimensões, com as armas do Marquês, e de um cristal tão puro e transparente que não projetavam sombra alguma na toalha.

Godefroy pegou num dos copos, em forma de cálice de tulipa, encheu-o de vinho de Champanhe e disse:

— Embora me acusem de uma anglomania exagerada, aprecio o que certos usos dos nossos vizinhos de além Mancha têm de bom, e peço, licença para fazer um brinde...

Um murmúrio delicado, exprimindo a mais completa adesão, acolheu o pedido do príncipe.

O senhor do Castel-Vivant ergueu o seu copo e disse:

— A saúde da rainha da graça e da formosura que será, em poucos dias. Marquesa de la Tour-du-Roy!...

— Príncipe, respondeu Lazarine sorrindo vitoriosamente, a futura marquesa de la Tour-du-Roy agradece-lhe muito cordialmente.

Joana, admirada mais alegre, bateu palmas e correu a abraçar a irmã.

Renée tornou-se pálida como uma defunta, e apoderou-se dela um tal tremor nervoso, que lhe escapou o copo da mão e quebrou-se caindo sobre a mesa.

 

GORDES

Lazarine fingiu não compreender o que se passava na alma invejosa da irmã.

Levantou-se imediatamente, e fingindo uma grande inquietação, exclamou:

— Renée, querida Renée, que tens? parece que estás incomodada.

Efetivamente, a segunda filha de Júlio Leroux parecia prestes a desmaiar.

Fez sobre si mesmo esforço, e respondeu numa voz alterada, com um sorriso forçado.

— Não vale nada... foi o abalo da surpresa... não pude ser senhora de mim ao saber de repente a imensa ventura que vais gozar e de que és tão digna... Estimo de todo o coração... Acreditas, sim... não duvidas.

— Conheço bem a tua afeição para duvidar de ti... redarguiu Lazarine. Obrigada, querida mana... o meu reconhecimento é tão sincero como a tua alegria...

E apoiou os lábios na fronte de Renée.

O senhor de la Tour-du-Roy viu nesta cena muda a prova sem réplica de profunda ternura que experimentavam uma pela outra as filhas do ex-banqueiro, e realmente não podia ver nisso outra coisa.

O que é verdade é que Renée sofria muito.

A inveja despedaçava-lhe o coração como o abutre da mitologia esfacelava as entranhas de Prometeu.

A certeza de que Lazarine, cuja superioridade sabemos que ela recusava reconhecer, ia ter uma elevada posição, uma grande fortuna, um luxo deslumbrante, ao passo que ela ficaria sendo a filha sem dote de um banqueiro arruinado, e esperava do acaso apenas um marido problemático, esta certeza enlouquecia-a, e mesmo no momento em que os lábios da sua irmã mais velha lhe tocaram a fronte, toda ela estremeceu de ódio.

Respondeu aos beijos de Lazarine por um abraço que parecia afetuoso, mas ao estreitar a irmã contra o peito, pensava de si para si:

— Se eu pudesse esmagá-la com um abraço, com que gosto a abraçaria!...

Bastava só fixar a época do casamento.

O senhor de la Tour-du-Roy, na sua inquietação de velho loucamente apaixonado, (e os velhos são os mais impacientes de todos os namorados, o que é lógico, porque eles sabem que lhes vai faltar o tempo) queria quanto antes fruir a sua ventura.

Pela sua parte, Lazarine tinha pressa de converter em realidade o seu sonho e apoderar-se do futuro.

Por esse motivo, convencionou-se que, o mais tardar, três semanas depois, os futuros esposos, receberiam sem pompa a bênção nupcial na ermidinha do lugarejo de Vertes-Feuilles, e que logo depois da cerimônia nupcial, iriam para la Tour-du-Roy, onde Júlio Leroux e as suas outras duas filhas viriam passar quinze dias com eles.

O marquês não era de opinião de, ao sair da igreja, levar sua mulher, segundo a moda atual, para uma viagem mais ou menos longa, ir passear a sua lua de mel em caminho de ferro ou instalar-se em quartos de hospedarias.

Orgulhoso da beleza de Lazarine, queria que todos vissem a sua ventura, fazer invejosos, dar no castelo esplêndidas festas e apresentar a jovem marquesa à aristocracia da província reunida em sua casa.

As três semanas deviam ser bem empregadas.

Era preciso tratar do magnífico presente de noivado, e cuidar do contrato.

O tabelião do Marquês morava em Orleans, portanto, para a redação do documento não era preciso sair dali, mas o presente de noivado exigia de um modo imperioso uma viagem a Paris.

Ora, Roberto não podia decidir-se a afastar-se de Lazarine, embora fosse só por alguns dias.

Felizmente o Príncipe estava ali pronto para o livrar de dificuldades, propôs partir em lugar do seu amigo, e desempenhar bem, com o seu teto, de homem do mundo e a sua experiência de conhecedor consumado, as compras indispensáveis.

O Marquês aceitou reconhecido, e Godefroy pôs-se a caminho, levando uma carta de crédito ilimitado sobre o banqueiro do seu hóspede, e um verdadeiro fardo de jóias, cujos engastes precisavam ser reparados.

Na ausência do seu condescendente procurador, o senhor de la Tour-du-Roy quase que não saiu de Vertes-Feuilles.

Vinha logo pela manhã para almoçar. Só se retirava à noite, depois de ter jantado, o mais tarde possível.

Quando o tempo duvidoso não permitia passear, ia com a sua noiva para a sala,e passavam o tempo em intermináveis conversações, graças as quais a hábil rapariga aumentava cada vez mais o império que ia adquirindo sobre o velho.

Quando, pelo contrário, um sol agradável brilhava em meio de um firmamento puro. Lazarine montava a sua querida Norah, e, acompanhada pelo marquês, fazia excursões de cinco e seis horas.

Todos os dias Roberto perguntava a Renée, no momento da partida.

— Acompanha-me hoje, querida mana? Mas também todos os dias Renée respondia:

— Dê-me licença que eu fique... Sinto-me um pouco incomodada... Amanhã, espero hei de desforrar-me....

O senhor de la Tour-du-Roy manifestava um desgosto, mas não sincero, porque intimamente estimava-a presença importuna de um terceiro não viesse perturbar o seu "tête-à-tête" com o seu ídolo.

Para salvaguardar todas as conveniências, seguiam à distância de sessenta passos dois grooms.

Lazarine gostava muito de andar depressa. Bastará dizer que a amazona e o seu cavaleiro, correndo desde o meio dia ao trote ou ao galope dos seus finos cavalos, percorriam grandes espaços.

Pelo caminho, a jovem interrogava o marquês a respeito das habitações nobres que lhe despertavam a atenção.

E quase sempre o senhor de la Tour-du-Roy, depois de ter nomeado os donos das propriedades, e dado a respeito das suas famílias informações que poderiam interessar Lazarine, não deixava de acrescentar:

— Dentro em pouco ser-lhe-ão apresentados, porque tenciono convidá-los para as festas que hão de ter lugar por ocasião do nosso consórcio.

Um dia, a seis ou sete léguas de Vertes-Feuilles, o fidalgo e a jovem ao saírem de um bosque muito cerrado que atravessavam pela primeira vez, chegaram ao planalto de uma colina elevada de onde a vista alcançava uma grande extensão.

Ali pararam.

Lazarine reparou então nas massas arquitetônicas de um castelo do tempo de Henrique IH, situado à esquerda, em meio de um imenso parque, cujo alto telhado azulado e agulhas das suas torres ficavam sobranceiros aos bosques de cor verde-escuro.

Uma comprida rua de castanheiros seculares conduzia à grade cujos dourados rebrilhavam aos raios do sol.

A jovem perguntou:

— Que vivenda é aquela?

— É o castelo de Gordes... respondeu Roberto.

— De longe parece muito belo.

— Ê muito belo de longe, e não menos belo de perto... É um edifício histórico de uma magnificência rara...

— É comparável à la Tour-du-Roy?

— Sem dúvida. Os arqueólogos concordam em reconhecer que Gordes e la Tour-du-Roy são as duas mais notáveis habitações do Loiret.

— A quem pertence?

— Ao conde de Gordes.

— Um dos seus amigos?

— Meu amigo, porque experimento por ele uma seria e viva simpatia, mas a diferença das nossas idades é grande.

— É então muito rapaz esse conde?

— Tem apenas vinte e oito anos.

— Casado?

— Não.

— Rico?

— A sua fortuna é avaliada em oito ou nove milhões.

— Há de convidá-lo, certamente, para la Tour-du-Roy?

— Convidá-lo-ia, e teria muito gosto em lho apresentar, porque é um perfeito fidalgo, existe porém um obstáculo invencível.

— Qual é?

— Raul de Gordes saiu daqui há dois anos, e Deus sabe se voltará!

— Então onde está?

— Ninguém sabe dizê-lo com certeza; mas uns viajantes cujo testemunho faz fé, afirmaram-me tê-lo encontrado numa grande cidade de Itália, Nápoles ou Veneza... Parecia então evitar encontrar-se com eles, mas também pode ser que se enganassem.

— Mas por que é esse proceder aparentemente misterioso? Então o conde de Gordes oculta-se?

— Não se oculta, quer viver só...

— Por que motivo?

— Pelo mesmo que o obrigou a expatriar-se.

— E que motivo foi esse?

— Uma aventura romanesca.

— Vai contar-ma, não é verdade?

— Oh!! não! isso não! não me peça isso hoje. Quando formos casados, então...

— Contudo, se eu instasse...

— Seria inflexível...

— O senhor aumenta a minha curiosidade, não sabe! Duplica-a! centuplica-a! acaso será tão cruel que se negue a satisfazer-ma?

— Sim, com certeza! a aventura de que se trata não é própria para os ouvidos de uma menina.

— Oh! querido Marquês, então eu não sou quase uma mulher, pois que antes de oito dias hei de ser a sua?...

— Pois bem, adorada Lazarine, espere oito dias, redarguiu Roberto rindo.

— Não posso ter paciência para tanto, e desafio o senhor para que seja tão desapiedado que me faça impacientar... Se me desobedece antes de casar, que acontecerá depois? Tremo só de pensá-lo... Se me ama como diz, e como eu creio, dê provas disso pela sua fraqueza. Peço-lhe, suplico-lhe que me conte a aventura do senhor de Gordes... Tenho imenso empenho em conhecê-la, e amá-lo-ia muito se...

Roberto de la Tour-du-Roy ainda tentou, para descargo da sua consciência, resistir um pouco, mas sentia-se quase vencido.

O que a mulher quer, quer Deus! Lazarine foi ora tão sedutora, ora tão meiga pedindo, que o marquês fascinado pela voz, pelo olhar, pelo sorriso da sereia dos cabelos cor de fogo, teve de render.

— Eu cedo enfim... disse suspirando.

— De muito má vontade, bem vejo... redarguiu a jovem sorrindo. Mas finalmente cede, e isso é o principal... Vá, estou pronta para o ouvir.

— Deve compreender, começou Roberto, que o conde de Gordes, com o seu nome, título e fortuna era um partido muito desejado e bastante cobiçado... As principais famílias da terra desejavam-no para as suas filhas, e esforçavam-se em prendê-lo nas suas redes, ele porém escapava-se a todas as armadilhas, passava, como Salamandra, pelo meio dos fogos mais ou menos interessados que ardiam em redor dele, e conservava sempre a liberdade do coração... Diziam que era incapaz de amar.

— E era-o efetivamente? perguntou vivamente Lazarine.

— Era-o tão pouco, que de repente, há dois anos e meio, apaixonou-se...

 

UMA HISTÓRIA

— Apaixonou-se?... repetiu Lazarine. Seriamente, apaixonou-se?

— Doidamente, redarguiu o Marquês... Ia continuar.

A jovem não lhe deu tempo.

— Desculpa-me se o interrompo... disse ela, é para uma pergunta importante. Sei que o senhor de Gordes é rapaz e rico, mas não me disse se era bonito...

— Não direi que Raul de Gordes fosse positivamente bonito, no sentido absoluto da palavra, respondeu la Tour-du-Roy, mas parece-me difícil encontrar um fidalgo mais simpático. O conde é alto e magro, elegante e musculoso ao mesmo tempo, bem feito de corpo, e muito delicado de maneiras... O rosto irregular, mas muito sedutor, apesar da sua irregularidade, e de uma rara distinção, era embelezado por uns cabelos castanho-claro, naturalmente anelados. O nariz era um pouco comprido, talvez, e a boca um tanto larga sobressaía sob o bigode fino, mas os olhos iluminavam o rosto, e os lábios risonhos deixavam ver uns dentes admiráveis... A expressão geral era benévola e espirituosa... Aqui está, querida Lazarine, a fotografia de Raul de Gordes, não como será hoje, mas como era há dois anos, quando a partida do conde bruscamente quebrou as nossas relações de boa vizinhança... Que julga deste retrato cuja semelhança garanto?

— Penso também que o conde devia ser muito sedutor, disse Lazarine com um sorriso, e agora que já estou informada, peço-lhe que continue. Por quem se apaixonou o senhor de Gordes?

O Marquês e a jovem não tinham ainda saído da planície, de onde, a vista se estendia pela imponente paisagem, cujas linhas principais traçamos mais acima.

Norah e o cavalo do senhor de la Tour-du-Roy aproveitaram-se da sua liberdade para irem pastando na erva que despontava à beira do caminho.

O fidalgo apontou com o chicote para um ponto do horizonte:

— Vê, interrogou ele, vê aquela mancha um pouco à esquerda do parque de Gordes?

— Perfeitamente. Deve ser uma vivenda pequena, a julgar pela distância que nos separa, ou eu me engano?

— Não se engana. Aquela pequena vivenda que se denomina la Grangette, e as poucas terras contíguas, pertenciam a um rapaz de boa família, mas quase sem fortuna, o barão Henrique de Braines, capitão de cavalaria e camarada de infância de Raul de Gordes.

"O senhor de Braines, desgostoso do serviço em conseqüência de uma preterição injusta, segundo ele dizia, deu a demissão há três anos e veio estabelecer-se na Grangette, em companhia de sua mulher com quem tinha casado por amor, havia uma ano, na cidade, onde estava de guarnição. Julieta de Braines não tinha trazido a seu marido senão um dote insignificante, uma educação muito esmerada, e uns lindos olhos. Ela tinha vinte e dois ou vinte e três ano, uma beleza fina, fidalga, superior, e um espírito brilhante, pelo que o marido se mostrava grandemente orgulhoso, sem, contudo, muito bem compreendê-lo, porque o ex-capitão dotado de bom coração e boas qualidades, era de um inteligência muito vulgar. Esperava viver muito satisfatoriamente na Grangette, e fazer uma certa representação, aproveitando bem as suas quinze ou dezesseis mil libras de renda, e inculcando à senhora de Braines os princípios de uma séria economia."

Um gesto de característica ironia se desenhou nos lábios de Lazarine.

— Ali está, disse ela, uma pobre mulherzinha cuja sorte não invejaria.

Mas não expôs em voz alta esta reflexão. O senhor de la Tour-du-Roy continuou:

— A propriedade de Ia Grangette (vê-se daqui, mas não se pode precisar bem a distância), fica em uma das extremidades do parque de Gordes. Atravessando-se o parque, pode-se lá ir a pé em menos de meia hora partindo do castelo senhorial.

"Henrique de Braines logo que se estabeleceu de todo na terra apressou-se em renovar com o seu amigo do colégio as antigas relações, o que foi tanto mais fácil, por quanto tinham sido em tempo muito amigos, e nunca se haviam perdido de vista completamente. Às suas relações tornaram-se íntimas e quasi quotidianas.

"Raul de Gordes sentiu uma viva simpatia por aquela jovem tão encantadora, tão digna de brilhar num meio de elegância e de luxo, e condenada pela falta de fortuna de seu marido a uma existência insípida no seio de uma mediocridade muito inferior.

"Empreendeu caridosamente distraí-la, pôs à sua disposição os seus cavalos de cavalariça, organizou caçadas em sua honra, convidou-a sempre com o marido, e finalmente, ainda que rapaz solteiro, deu algumas festas, pedindo-lhe a ela para que fosse a rainha daqueles folguedos e que representasse na sua residência o papel de dona da casa.

"Raul de Gordes procedendo deste modo, teria segunda intenção? Não sei, e direi francamente, não creio. Henrique de Braines, pela sua muita lealdade, achava estas coisas simplicíssimas, e experimentava pelo moço conde um vivo sentimento de gratidão. Nenhuma suspeita vinha perturbar a absoluta confiança, que ele depositava tanto na mulher como no amigo."

— Parvo! disse consigo Lazarine.

Depois, em voz alta, num tom de profunda ingenuidade, perguntou :

— Pois não era natural essa confiança? Que motivos havia para suspeitas?

— Adorável candura! murmurou Roberto, é um anjo, Lazarine!

— Não respondeu? prosseguiu a jovem.

— Os fatos vão responder por mim!... Esta imprudente intimidade de todos os dias, de todas as horas, era muito perigosa. O acontecimento bem depressa o provou... Raul apaixonou-se por Julieta.

Lazarine fez um gesto de espanto.

— Apaixonar-se pela mulher do seu amigo! exclamou. — Infelizmente assim sucedeu.

— Mas isso era um crime...

— Queridinha, redarguiu o marquês, obrigou-me a esta narração, mesmo a meu pesar... Eu não queria iniciar o seu espírito tão puro nos erros lamentáveis de cuja existência nem sequer suspeitava... Desejava calar-me. Devo não continuar?

— Oh! isso não... Continue... quero saber tudo...

— Estou a terminar. Raul não pôde ocultar por muito tempo à Julieta a condenável paixão que por ela sentia, e a pobre senhora não tardou que não partilhasse igual sentimento... e tomaram-se culpados.

— Culpados, como? de que modo? perguntou Lazarine, mostrando uma tal inocência, que o senhor de la Tour-du-Roy abaixou os olhos a seu pesar, ao ver o modo desembaraçadamente interrogador da jovem.

— Culpados, balbuciou ele, por madame de Braines ter esquecido que não era livre para dar o seu coração, e que as leis de Deus e dos homens lhe proibiam que escutasse as confissões e os juramentos do Conde de Gordes, respondendo-lhe com iguais juramentos e confissões.

A filha de Júlio Leroux perguntou outra vez:

— São freqüentes, no mundo essas coisas tão repugnantes?

— Muito freqüentes, minha querida.

— Que horror, não lhe parece?

— É horroroso com certeza, redarguiu o Marquês muito exaltado, mas há almas escolhidas que voam imaculadas por sob o lodo da terra, e a sua é desse número... há anjos cujas brancas asas não podem manchar-se, e a minha Lazarine é um deles.

— Cuidado! disse ela, olhe que me torna vaidosa. Roberto encolheu os ombros como quem diz:

— Vaidosa, tu!... Não pode ser! És muito perfeita para teres um defeito!

— Isto durou assim algum tempo, mas não sem um vago es-cândido. Falava-se por toda a parte, a meia voz, em segredo, desamores do Conde de Gordes e de madame de Braines.

"Não havia provas, é certo, mas as muito numerosas desconfianças equivaliam à certeza.

"Só o marido não desconfiava de coisa alguma, e a sua cegueira parecia tão singular, tão inverossímil que alguns acusavam-no de condescendência com um vizinho dez vezes milionário, e afastavam-se do seu caminho para não terem de o cumprimentar.

Eram calúnias que o pobre não merecia.

"Uma manhã ia eu para almoçar, quando o meu criado anunciou Raul de Gordes.

"Corri para ele, inquieto por ver a sua palidez e a sombria expressão do seu olhar.

"— Sucedeu alguma desgraça, não é verdade exclamei.

Por única resposta, abaixou a cabeça com modo afirmativo.

"Efetivamente assim tinha sido.

"O conde vinha pedir-me para ser uma das suas testemunhas.

"O senhor de Braines, informado por uma carta anônima, fizera-se espião para surpreender os amantes, e tinha-os surpreendido.

"— Poderia matá-los a ambos, lhes disse ele, tinha direito para isso, mas não é desse modo que eu quero vingar-me da afronta recebida. São uns miseráveis, porque bem sabiam que os amava. A esta mulher, que usava o meu nome, expulso-a. Ai senhor, esbofeteá-lo-ei hoje para amanhã o matar.

"Madame de Braines, louca de vergonha, de desespero, e de horror, fugira, e o Conde, no momento em que me estava falando, não sabia o que era feito dela.

"Por muito culpado que me parecesse o senhor de Gordes, não podia recusar-lhe a minha presença no ato do duelo. Acompanhei-o... apresentou-me a sua segunda testemunha, e conferenciamos com as testemunhas de Henrique de Braines.

Concordou-se que o duelo se efetuaria no dia seguinte a florete, de madrugada, na clareira de um bosquezinho, a um quarto de légua de Ia Grangette.

"A hora determinada estavam todos reunidos no local aprazado, e entre nós achava-se um médico trazido pelo senhor de Gordes.

"Desempenhei um papel mais ou menos ativo, em grande número de duelos... nunca vi nenhum tão horrível como aquele.

"O senhor de Braines era tido na conta de uma boa espada, mas Raul de Gordes desde muito novo que freqüentava as salas de esgrima parisienses. A sua superioridade era grande. Que tinha portanto na sua mão a vida do seu adversário, viu-se logo aos primeiros golpes.

"Mas viu-se também que o moço conde, dominado por um sentimento de cavalheirismo fácil de compreender, não abusava da sua superioridade para vencer o homem a quem tinha ultrajado.

"Não se contentava em não atacar, descobria-se voluntariamente, e fazia prodígios para mostrar ao senhor de Braines o caminho do seu peito.

"Esta generosidade muito visível, deu em resultado exasperar mais o ex-capitão.

"— Acaso o senhor pretende poupar-me? exclamou ele soltando uma praga que não repetirei. É mais um insulto!... Defenda-se, se não é covarde!... Defenda-se, para que possa matá-lo!

"O Conde fingiu então defender-se, mas fê-lo com tão pouca atenção, que a cólera do senhor de Braines duplicou.

"— Ah! redarguiu com um tal transporte de raiva, saberei obrigá-lo a lutar seriamente!... Nas suas faces estão ainda impressos os sinais das minhas bofetadas de ontem! Vou de novo esbofeteá-las com esta espada.

Raul queria morrer, mas não ser ultrajado. Com um movimento repentino aparou o golpe para evitar a pancada do ferro no rosto.

"O Barão de Braines arremessou-se para a frente... encontrou estendido o ferro e feriu-se um pouco acima do ombro direito.

" Soltou-se-lhe da mão o florete e caiu balbuciando:

"— É esta pois a justiça de Deus?

"Uma onda de sangue lhe golfou da boca, depois ficou imóvel, de costas, com o rosto contraído, e os olhos abertos.

"— Desgraçado que eu sou.. exclamou Raul ajoelhando junto do corpo na relva tinta de sangue, queria morrer e matei!... Tenho horror de mim mesmo."

Lazarine empalideceu um pouco.

— O senhor de Braines estava realmente morto? perguntou ela.

 

O CONTRATO

— O cirurgião inclinou-se para o corpo inanimado, redarguiu o marquês, e após um exame que a todos nos pareceu longo, declarou que o Barão estava apenas desmaiado. A juntou que o ferimento lhe não parecia mortal, e que a não sobrevirem alguns acidentes imprevistos, a cura do senhor de Braines era possível e até provável, mas que a necessidade de cuidados imediatos e de grandes precauções se tornava urgente.

"Três ou quatro camponeses, curiosos de assistirem ao duelo, escondiam-se mal atrás do mato que rodeava a clareira.

"Raul de Gordes chamou-os.

"Vieram logo. Improvisou-se uma espécie de padiola com ramos de árvores. Estenderam o ferido naquela padiola, e os camponeses, muito rogados e bem pagos, transportaram-na para Ia Grangette, aonde o cirurgião o acompanhou.

"— Graças a Deus, não o matei! murmurou o mancebo apertando-me a mão com exaltação febril. Nem sei dizer-lhe quanto me consola esta idéia. Ainda há pouco me considerava um assassino!

"— Encontrou-se a desventurada Julieta? perguntei-lhe.

" — Sim, respondeu. Vieram prevenir-me ontem à tarde de que ela se tinha refugiado numa casa de camponeses, parecendo louca, não compreendendo o que se lhe dizia, nem respondendo ao que se lhe perguntava. Dirigi-me logo lá... Pobre mulher!... Via-a acocorada a um dos cantos de um quarto baixo e sombrio, a tremer muito e proferindo palavras sem nexo. Não me reconheceu. Contudo, à força de palavras meigas e suplicantes, pude decidi-la a seguir-me, e conduzi-a para o castelo onde ainda está.

"— Continua louca?

"— Continua... e Deus sabe se a sua inteligência despertará daquele estado... Contudo não quero desesperar. A comoção foi terrível, é verdade, mas Julieta é muito nova.

"Eu continuei:

"— Que tenciona agora fazer?

"— Partir, e deixar a França.

"— Só?

"— Isso não! Levarei comigo Julieta... Despedacei-lhe a vida... devo consagrar-lhe a minha... Não faltarei a tão sagrado dever...

"— Para onde vai?

"— Ainda não pensei nisso, e pouco cuidado me dá. Que importa lugar do exílio?

"— Tenciona voltar?

"— Não sei e duvido.

"Constou-me no dia seguinte que Raul na mesma noite tinha deixado o castelo de Gordes, levando na sua companhia madame de Braines. Há isto dois anos, e desde então nunca mais ouvi falar dele senão aos tais viajantes que diziam tê-lo visto na Itália... Aqui está, querida Lazarine, a romanesca e sombria aventura que exigiu lhe contasse."

— Agradeço o ter-me satisfeito a minha curiosidade, respondeu a jovem sorrindo. Mais uma pergunta: a senhora de Braines ainda estava doida quando encontraram o Conde?

— Ignoravam-no... o conde estava só.

— E o marido, que foi feito dele?

— Morreu seis meses depois do duelo.

— Em conseqüência do ferimento?

— Não. A cura foi completa. A solidão e o desgosto mataram o desgraçado. Então, que quer? Ele adorava sua mulher.

Lazarine voltou-se para o lado onde os telhados azulados de Gordes e a branca frontaria de Ia Grangette sobressaiam na verdura sombria.

— Assim, murmurou ela, as duas habitações vizinhas estão desertas tanto uma como outra, O exílio voluntário e a morte expulsaram os donos! É triste e faz estremecer! Brrr! A galope, senhor marquês! Desejo afastar-me daqui.

E a jovem, pegando repentinamente nas rédeas, fez voltar Norah a toda a brida pela descida que conduzia a Vertes-Feuilles. Correndo a todo o galope ia dizendo:

— Esta Julieta está com certeza mais louca do que nunca, Se assim não fosse, o senhor de Gordes casaria com ela, visto que está viúva,. Um marido moço e dez vezes milionário!... oh! seria uma mulher muito feliz!.., mais feliz do que eu, porque o Marquês ,e um velho, e possui apenas seis milhões!...

O senhor de la Tour-du-Roy teve de passar uma manhã com o seu tabelião, a quem já havia enviado notas para redigir o contrato do casamento.

O tabelião pertencia à espécie hoje quase extinta dos antigos tabeliães que tomavam pelos negócios dos seus clientes um interesse ainda maior do que os próprios clientes.

Nos tribunais ou em polícia correcional, é onde quase nunca se viam os tabeliães de então!

Não cuidavam só de se encher como estes de agora.

O do Marquês tinha a mesma idade que ele, chamava-se o senhor de Jomard e gostava de repetir, não sem orgulho:

— Meu bisavô, meu avô e meu pai foram tabeliães régios, e possuíam sempre a confiança da casa de la Tour-du-Roy! O último marquês fez-me a grande honra de me conceder a sua confiança, e ouso afirmar que a mereço!

E bem o provou o digno senhor Jomard, porque as suas primeiras palavras quando chegou foram estas:

— Tenho a honra de apresentar os meus mais respeitosos cumprimentos ao senhor Marquês... Recebi as notas que se dignou enviar-me; estudei-as com o cuidado que mereciam, e permita-me afirmar que não redigirei o contrato segundo as intenções expressas pelo senhor marquês! Ah! isso não! nunca!

— Então, por que, meu velho amigo? perguntou, então, o senhor de la Tour-du-Roy sorrindo e apertando a mão do recém-chegado. Explique-me o que parece tanto agitá-lo.

— Oh! sim, com certeza! eu me explico e sem rodeios. E explicou-se.

O marquês, instigado por um desses amores irresistíveis que fazem de um velho uma criança, resolvera casar-se adotando o sistema dos bens comuns, concedendo a sua mulher um dote de três milhões.

Isto tinha assustado o tabelião.

— O senhor não deve fazer isto! exclamou ele. — Por que?

— Porque se arrisca a ser despojado de um dia para o outro de metade da sua fortuna, e despojar seus filhos, se os houver.

— Como?

— É muito simples. Ocupemo-nos primeiro do que lhe diz respeito pessoalmente. Mademoiselle Leroux, futura marquesa de la Tour-du-Roy, não tem fortuna, não é verdade?

— Quase... e é mesmo por isso que eu desejo dotá-la com três milhões.

— É muito natural, mas suponhamos que ao fim de um certo tempo de casados se nota uma tal ou qual incompatibilidade de gênios entre o senhor Marquês e a senhora Marquesa, que torna a vida comum intolerável tanto para um como para o outro. O senhor de la Tour-du-Roy pôs-se a rir.

— Não posso admitir a sua suposição, meu velho amigo... interrompeu ele; mademoiselle Leroux é um anjo.

O tabelião deixou transparecer no semblante um gesto de impaciência que o respeito lhe fez conter, redarguiu:

— Sim, um anjo! Ninguém diz o contrário, e eu muito menos. Mas quantas jovens tenho eu visto em solteiras anjos, e depois de casadas perfeitos diabos... Sim, senhor, diabos e dos piores. Credo piamente que mademoiselle Lazarine não se parece nada com essas de que falei, mas convém prever tudo... mesmo o impossível.Permita-me, pois, que eu conclua. Ao querubim convertido em diabo, e às brancas asas daquele transformadas nas aduncas garras deste, segue-se a separação de pessoas e bens, intentada por um dos esposos, ou por ambos talvez. Realizada a separação, — pouco importa saber em proveito de quem, — o anjo que entrou em sua casa com as algibeiras vazias, retira-se muito tranqüilamente levando os seus bens, isto é, três milhões. Então, senhor Marquês, que diz a isto?

— Digo que o senhor tem toda a razão enquanto se tratar de tese geral, mas que é perfeitamente injusto no caso sujeito, respondeu o senhor de la Tour-du-Roy. Não sucederá o que diz. Sei bem quem é, meu velho amigo, atenda, sei bem quem é aquela que tenciono tornar minha mulher.

O senhor Jomard não encolheu os ombros, mas não foi por falta de vontade.

Conhecia que tinha a lutar com um adversário teimoso, e decidido a não se deixar. Ora, diz o provérbio, não há piores surdos do que aqueles que não querem ouvir!

Contudo, não se deu por vencido, e no fim de alguns minutos de silêncio redarguiu:

— Ainda outra coisa: não se casa unicamente para ter o direito legal e religioso de possuir uma mulher linda. O casamento conduz à paternidade. Se Deus quiser, o bom nome de la Tour-du-Roy não acabará com o senhor. Creio que conta com isso?

— Espero-o do íntimo d’alma!, exclamou Roberto.

— Muito bem... Ei-lo casado... esposo feliz, ditoso pai... tem dois, três quatro filhos... O número pouco importa! Lá vou ser brutal... dá-me licença?

— Dou... à sua vontade.

— Somos mortais... O senhor sucumbe a uma doença ou a qualquer acidente. A senhora Marquesa enviúva aos vinte e quatro ou vinte e cinco anos. Chora muito, e o seu luto é dos mais rigorosos; mas uma bela manhã, ou antes uma bela noite, nota que o aborrecimento da solidão se vai apoderando dela, e pensa em passar a segundas núpcias para repelir o aborrecimento. Dito e feito. A nova união é tão fecunda como a primeira, e os filhos do segundo marido roubam aos seus próprios filhos a melhor parte dos três milhões provenientes do senhor, e que fez a loucura de dar em dote a sua mãe.

O primeiro argumento do tabelião não demovera o senhor de la Tour-du-Roy. O segundo produziu-lhe uma certa impressão.

O tabelião ao ver o seu ouvinte quase vencido, duplicou as suas forças, e mostrou-se tão lógico, tão persuasivo, tão eloqüente, que após um combate enérgico de mais de duas horas, em que o Marquês perdeu o terreno a pouco e pouco, acabou por adquirir uma notável vantagem.

—Finalmente, que arrisca o senhor? disse para conseguir os seus fins. Isto não o obriga a restringir de modo algum as suas liberalidades. Aceite, no interesse dos seus futuros filhos, o contrato que lhe proponho, e se receia ser surpreendido pela morte sem ter podido realizar as suas primeiras intenções, institua, por um testamento em regra, a senhora de la Tour-du-Roy legatária universal da sua fortuna. O testamento fa-la-á mais rica do que a faria o dote, e o senhor tem a vantagem imensa de que um testamento é sempre irrevogável, enquanto que o dote não.

Repetimos, o Marquês não cedeu senão a muito custo, mas enfim cedeu, e era aquele o ponto capital para o senhor Jomard que regressou triunfante a Orleans.

A leitura do contrato devia ter lugar na noite do dia seguinte em Vertes-Feuilles.

O senhor Jomard veio para jantar, nesse dia vinha irrepreensivelmente vestido, e pareceu deslumbrado ao contemplar a admirável beleza de Lazarine.

— Ainda bem, disse em voz baixa ao Marquês levando-o para o vão de uma janela, ainda bem que não vi a futura antes de discutir com o senhor a redação do contrato. Mademoiselle Leroux faz compreender todas as loucuras... e servir-lhe-ia de desculpa em caso de necessidade.

 

O CONTRATO

A este madrigal do tabelião, o senhor de la Tour-du-Roy sorriu, mas não sem um certo embaraço.

A leitura do contrato redigido segundo os conselhos do senhor Jomard ia preparar-lhe um momento muito penoso, não o ignorava.

Debalde repetia a si mesmo que dando ouvidos ao tabelião tinha procedido sábia e prudentemente, e salvaguardado a fortuna; a sua violenta paixão por Lazarine e o seu orgulho de fidalgo revoltaram-se contra aquela prudência.

— Deve-se calcular quando se ama? dizia ele consigo. Não será a maior das venturas depormos toda a nossa fortuna aos pés da mulher adorada? Não será a mais agradável e suprema delicia.sacrificar o Demônio Ouro nos altares do Demônio Amor?

E do íntimo d’alma deplorava aquela fatal redação, aquelas cláusulas inspiradas pela desconfiança. Sentia-se humilhado, mesquinho, indigno de ser amado.

Mas era tarde para emendar o que já estava feito.

Com que pretexto se havia de demorar a leitura que tinha de se realizar depois do jantar?

Como explicar aos olhos do tabelião escandalizado um tal reviramento de opinião?

Além de que, o senhor Jomard, estava certo disso, recusaria obstinadamente prestar-se a redigir um novo contrato. Dali, que de complicações não resultariam? Seria forçoso demorar o casamento, e o senhor de la Tour-du-Roy não queria tal demora.

— Não pensemos mais nisso... murmurou soltando um profundo suspiro.

Só um estranho assistia à leitura do contrato, e esse era o Príncipe de Castel-Vivant, chegado de Paris havia duas horas, e trazendo consigo uma parte da carregação de maravilhas que haviam de compor o presente de núpcias.

O resto chegaria no dia seguinte.

Godefroy, fazendo estas compras por conta do marquês, mostrara um perfeito conhecimento das aspirações femininas, e um profundo conhecimento do que é elegante de alto gosto, que Lazarine encantada abraçou-o muito contente.

A orgulhosa rapariga sentia ainda maior alegria, porque não Ignorava nem lhe escapava a raiva invejosa de Renée, que juntava ao seu prazer uma espécie de apimentado delicioso.

Acabado o jantar e tomado o café, os convivas passaram à sala.

Havia sido colocado um "fauteuil" para o sr. Jomard em frente da mesa redonda, iluminada por um grande candieiro coberto com o seu competente abajur.

O tabelião sentou-se, abriu com um gesto imponente a sua pasta de chagrin escuro, tirou um caderno de papéis selados e todos escritos, e depois de ter cumprimentado os ouvintes sentados diante dele, começou com voz tranqüila e bem acentuada, a leitura que levou ao fim sem interrupção.

Por mais de uma vez, durante a leitura, Lazarine mostrou uma certa contração do nariz, e, num tremer das pálpebras, um tal ou qual desgosto.

Ela era muito esperta para não compreender aquilo como um procurador rábula; além de que tinha lido no código tudo o que podia interessar à sua situação.

— Dar-me só em dote um milhão quando possui seis, dizia ela lá consigo, é ser miserável! É a cláusula da separação de bens, isto é, a impossibilidade para mim de por mão nos outros milhões, é odioso! O sr. de la Tour-du-Roy não é o grande fidalgo apaixonado que eu julguei! Esquece ele totalmente a sua idade e não sabe fazê-la esquecer aos mais. Já não quero saber dele. Não quero casar!

Ia para se levantar e repetir em voz alta o que tinha acabado de pensar, mas refletiu.

— Não, murmurou ela, não farei isso. Renée ficaria muito contente! Quem sabe se eu encontraria noutra parte este insignificante milhão de que se me faz esmola? E demais, que importa a fórmula de um contrário? Desafio esse velho, quando eu for sua mulher, para que se subtraia à minha influência. Dominá-lo-ei por tal modo que a minha vontade há de ser a sua, e que o que me recusar por contrato de casamento, dar-mo-á por fórmula testamentárias.

Esta idéia sossegou Lazarine, e no momento em que o tabelião acabava a leitura, olhava para o Marquês maravilhado com um modo risonho.

— Realmente, meu amigo, disse ela estendendo-lhe a mão, faz muito em meu favor! Para que me serve esse milhão? Para que preciso riqueza própria, visto que o senhor a tem? Bem o sabe, é incomparável o meu desprezo pelo dinheiro.

O sr. de la Tour-du-Roy, depois de ter estreitado muito apaixonadamente entre as suas a mão delicada da jovem, apressou-se a ir repetir ao sr. Jomard as admiráveis palavras que ela tinha proferido, e acrescentou em forma de conclusão:

— Bem vê, é um anjo!

— Não direi o contrário, e tanto mais, sr. Marquês, redarguiu o tabelião, que, com certeza, rosto de anjo ela tem.

Chegou, finalmente, o dia do casamento.

Godefroy de Castel-Vivant devia ser a primeira testemunha de Lazarine. Júlio Leroux tinha escrito a um banqueiro de Paris, outrora um dos seus amigos Íntimos, para lhe pedir que fosse a segunda, e a resposta afirmativa não se demorou muito.

As testemunhas do Marquês chamavam-se o Conde de la Chesnaie, e o Visconde d'Aultremont, dois perfeitos fidalgos, que não têm de desempenhar papel algum nesta narração, e dos quais, por conseguinte, não temos que nos ocupar.

A aldeia, ou antes, o lugarejo de Vertes-Feuilles, era composto de choupanas disseminadas no fundo do vale, nas margens do regato que servia como que de cinto natural à propriedade do ex-banqueiro.

A igrejinha e a casa da câmara eram uma perto da outra, no extremo daquela sucessão de casinhas.

O casamento tinha sido indicado para as onze horas e a cerimônia religiosa devia ter lugar imediatamente depois.

O sr. de la Tour-du-Roy tinha mandado na véspera para Vertes-Feuilles carruagens para Júlio Leroux, suas filhas, e os raros convidados.

Ele foi com o Príncipe, às dez horas da manhã num grande coupé de gala de oito molas e assentos de veludo. O cocheiro, de cabeleira empoada, levava chapéu de três bicos, calções e sapatos de fivelas.

Os lacaios que iam na tábua vestiam as suas librés de gala.

O carrinho descoberto e o landau do Marquês esperavam preparados à porta formando em linha com o faeton e a vitória que tinham conduzido o Conde de la Chesnaie e o Visconde de d'Aultremont.

Júlio Leroux estava na sala, em companhia dos dois fidalgos e do agente de câmbios que tinha chegado de Paris.

Nem Lazarine, nem suas irmãs tinham ainda aparecido.

Renée e Joana estavam com certeza ultimando a toilette da noiva.

O senhor de la Tour-du-Roy, em extremo agitado pela aproximação do momento solene, chamou uma criada e mandou perguntar à futura esposa se podia recebê-lo.

A criada trouxe esta resposta:

— Diga ao senhor Marquês que não me demoro cinco minutos.

Estes cinco minutos duraram um quarto de hora, depois uma da portas da sala abriu-se; a futura marquesa apareceu entre os umbrais da porta e ergueu-se um murmúrio de admiração.

Júlio Leroux, que podia, na sua qualidade de pai, desfrutar uma absoluta quietação de espírito, confessou que nunca sua filha mais velha lhe havia parecido mais formosa.

A toilette de noiva dava um enorme realce às perfeições de Lazarine.

A brilhante alvura do rosto um pouco rosado, e o acetinado da sua cútis, pareciam agora mais puras e transparentes do que de costume, em conseqüência do confronto tão perigoso para uma carnadura menos brilhante e menos irrepreensível.

O corpete-couraça, atacado atrás e de uma extrema simplicidade, subia-lhe muito honestamente até ao pescoço, mas a fazenda flexível deixava adivinhar os contornos de uma garganta semelhante às das ninfas de Jean Goujon, desenhava os ombros bem feitos, os braços roliços, a cintura elegante e as formas esplêndidas dos quadris.

A grande cauda do vestido fazia-a parecer mais alta e delgada.

Os cabelos cor de fogo soltavam-se do véu e caíam-lhe sobre os ombros em compridos anéis.

Alguns botões de flor de laranjeira caíam-lhe sobre a testa em meio dos cabelos soltos. Outros, então, formavam uma grinalda que, passando por sobre o ombro, atravessava obliquamente o corpo, da direita para a esquerda e descia até a cintura como o cordão de uma ordem de cavalaria.

Nenhuma jóia, nem brincos nas orelhas, nem pulseiras, nem mesmo um anel

Assim vestida, sorrindo através do véu branco, Lazarine irradiava um mágico encanto, o inexplicável atrativo de um poder inaudito. Criatura complexa, absolutamente bela, e ainda mais sedutora do que bela, a jovem reunia o duplo tipo de uma Titania quase fantástica e de uma cocodette parisiense.

O banqueiro inclinou-se para Júlio Leroux e disse-lhe ao ouvido:

— Eu julgava conhecer muito bem a senhora sua filha, e, palavra de honra, desconheço-a!... Oh! que esplêndida mulher!... O senhor de la Tour-du-Roy por certo que se não há de aborrecer!...

Era essa exatamente a opinião do Marquês. Custava-lhe a acreditar na sua felicidade, tão grande ela lhe parecia, e a manifesta admiração de que a sua noiva era o alvo exaltava-lhe ainda mais o amor.

Renée e Joana entraram quase desapercebidamente enquanto todos estavam entretidos com a irmã.

Joana, vestida embora com simplicidade, mas graciosa, estava muito linda e radiante de contentamento. Posto que já tivesse dezesseis anos feitos, era ainda muito inocente.

Correu ao senhor de la Tour-du-Roy, a quem muito estimava, e lançou-lhe os dois braços cm redor do pescoço como costumava fazer ao pai.

O Marquês depôs-lhe um beijo na testa, tirou da algibeira um estojo de veludo azul, que abriu, pegou num colar de 'pérolas e pôs-lho ao pescoço, dizendo por entre um sorriso:

— Ê o meu presente de núpcias, maninha. Uma menina pode usar este adereço tão simples, estas pérolas de um brilho virginal encontrarão na sua possuidora uma irmã...

Joana corou, e pela segunda vez abraçou o cunhado.

Coisa singular e quase inverossímil, Renée, naquele dia, não mostrava um rosto muito carregado. O seu vestido de cor de palha, de um gosto esquisito mas muito elegante, dava relevo ao esplendor da sua beleza morena, tão dessemelhante da de Lazarine, mas bastante poderosa para admitir o confronto sem desvantagem.

A segunda filha de Júlio Leroux, refletindo que nas festas do castelo de la Tour-du-Roy tinha probabilidades de encontrar um marido, disse de si para si que era preciso aceitar de bom grado, pelo menos aparentemente, a grande fortuna de sua irmã mais velha.

Por isso, ainda que ralada pela inveja, sorria.

O Marquês acabava de oferecer a Joana um colar de pérolas.

— Querida e encantadora mana, disse ele a Renée, por amor de Lazarine, queira aceitar este modesto brinde.

O brinde modesto era um par de brincos de brilhantes muito lindos e do valor de dois mil escudos.

— Ah! exclamou a jovem possuída de sincera admiração. O senhor perde-me com o seu mimo! Que belos diamantes!

— O fulgor dos seus belos olhos ofusca o brilho dos mais finos diamantes, redarguiu o Marquês com extrema galanteria.

Soavam os três quartos antes das onze horas no relógio da sala.

Júlio Leroux interrompeu os galanteies do seu futuro genro.

— O "maire" está à nossa espera, disse ele, para não o fazer esperar, bom seria partir.

Ato contínuo, ofereceu o braço a Lazarine e o Marquês seguiu o exemplo apresentando o seu braço a Renée.

Após eles ia o Príncipe conduzindo Joana.

O banqueiro parisiense e as duas testemunhas do senhor de la Tour-du-Roy fechavam o cortejo.

 

O CASAMENTO

As carruagens partiram devagar, uma após outra, percorrendo a curva que conduzia à grade do parque.

Estava um tempo soberbo. O sol esplêndido das belas manhãs de verão dardejava sobre a relva ainda espessa, mas já amarelada, os seus raios vivificantes. Nem a menor brisa, nem a menor poeira, o sino um pouco desafinado da ermida tocava sem cessar e muito festivamente.

— O céu favorece o meu amigo Roberto, disse o Príncipe de Castel-Vivant sorrindo; é grande caçador, está loucamente apaixonado, e Deus presenteou-o no dia do seu casamento com um verdadeiro dia de caçada e de boda! Que feliz agoiro...

O pequeno cortejo que, graças às belas equipagens do Marquês, apresentava bonita aparência, parou.

Apearam-se.

Os cento e cinqüenta habitantes de Vertes-Feuilles apinhavam-se na pequena praça, levados mais pela curiosidade do que pela simpatia, porque mal conheciam o ex-banqueiro e Joana era a única das suas filhas que se tinha popularizado mais naqueles arredores.

Os homens, contudo, descobriram-se com a sua cortesia campesina no momento em que Lazarine descia da carruagem, e disseram uns para os outros, a meia voz:

— É com efeito uma bonita rapariga, a menina Leroux, apesar de ter o cabelo cor de cenoura...

O "maire", um campônio de sessenta anos, obeso como um tonel e calvo como um ovo, mostrou-se muito digno, e, ainda que passava por ser radical, não deixava de fazer uma pequena reverência sempre que proferia os nomes aristocráticos do noivo e das testemunhas.

Os títulos de marquês e de príncipe, de conde e de visconde, enchiam-lhe a boca. Saboreava-os.

Quando terminou a cerimônia, o senhor de la Tour-du-Roy chamou de parte o magistrado municipal e disse-lhe:

— Permita-me, senhor "maire", que lhe ofereça esta quantia para distribuir aos mais pobres dos seus administrados.

Em seguida passou-lhe para a mão uma bolsa contendo cem peças de ouro.

— Ah! senhor Marquês, murmurou o magistrado da aldeia, o senhor é realmente um belo homem. Se alguma vez se prepuser para deputado, digam o que disserem, façam o que fizerem, voto pelo senhor.

Roberto apertou-lhe a mão, ofereceu o seu braço a Lazarine e deu com ela os cinqüenta passos que separavam o "maire" da igreja.

Estava armada, como para as grande festividades, a igrejinha, muito humilde, muito pobre, mas admiravelmente tratada pelo digno cura, cujo coração naquele dia transbordava de reconhecimento e gratidão.

Na véspera, o senhor de la Tour-du-Roy tinha enviado, em nome de sua noiva, belos candelabros para o altar-mor, uma esplêndida custódia de prata dourada, vestes sacerdotais dignas de um templo rico.

Foi por isso que, possuído de uma visível comoção, o excelente padre celebrou o ofício divino, e que depois de ter deitado a benção nupcial unindo indissoluvelmente o Marquês e Lazarine, proferiu uma breve e tocante alocução.

Acabada a missa, e assinados os livros na sacristia, recebeu com espanto e cheio de enternecimento uma soma de cem luizes para os seus pobres, depois subiu para uma das carruagens porque ia almoçar a Vertes-Feuilles.

Logo depois da refeição, que se prolongou até perto das três horas, o Marquês e a sua jovem esposa meteram-se no coupé de gala e partiram para la Tour-du-Roy, para onde sabemos que Renée e Joana deviam ir no dia seguinte.

O carrinho descoberto, conduzindo o Príncipe, seguia o coupé.

O landau ficava em Vertes-Feuilles à disposição do ex-banqueiro e de suas filhas.

Quando a carruagem transpôs a grade do parque, o Marquês pegou na mão de Lazarine e apertando-a entre as suas, murmurou:

— Queridinha, é minha, pertence-me, a minha vida daqui para o futuro não tem outro fim senão a sua ventura... Mas é preciso que me ajude a construir o edifício da sua felicidade. Quer ajudar-me?

— Não desejo outra coisa, redarguiu Lazarine sorrindo, diga-me como hei de proceder...

— Testemunhando-me uma inteira e absoluta confiança. Não me oculte nenhum dos seus pensamentos, nem dos seus desejos. Será para mim uma alegria sem igual satisfazê-la em tudo. Não me prive dessa alegria!... não me dê o grande desgosto de descobrir um dia que teve um desejo e eu não soube adivinhá-lo!... Prometa-me isso.

— Prometo com todo o gosto. Será preciso, então, dizer-lhe tudo, até os meus caprichos? até as minhas fantasias?...

— Com certeza!... e, peço-lhe, tenha muitas fantasias, muitos caprichos...

Lazarine ameaçou muito galantemente o Marquês com a ponta do dedo,

— Tome cuidado! disse ela.

— Em que, queridinha?

— O senhor abdica muito completamente. Outra, no meu lugar, abusaria...

— Pois abuse! é o que eu desejo.

A jovem olhou de frente para o marido, com um ar muito sério, depois pondo-se a rir, exclamou:

— Está dito... abusarei.

Enquanto se diziam estas coisas, e se estabelecera uma familiaridade cheia de promessas entre os dois esposos, o grande coupé rodava rapidamente.

Chegou à avenida das tílias seculares, do comprimento de um quilômetro, que conduzia à grade flanqueada por dois pavilhões e encimada por um brasão de la Tour-du-Roy, timbrado com a coroa de Marquês.

Ali continuava a rua sinuosa e larga que corria através os vastos tabuleiros de relva muito arborizados e ia terminar no pátio de honra do palácio.

Chegando ali, Lazarine experimentou uma viva e profunda sensação que lisonjeou imenso o seu orgulho.

As propriedades do Marquês estendiam-se pelos terrenos de quatro ou cinco aldeias.

A família de la Tour-du-Roy que habitava as suas terras ha séculos, transmitindo de pais para filhos as mesmas tradições de imensa benevolência e ilimitada liberalidade, tinha na terra profundas raízes, e apesar da invasão progressiva das novas idéias, o Marquês Roberto gozava de uma popularidade que a muitos dos nossos leitores parecerá inverossímil, sabendo-se quanto é vulgar a ingratidão das multidões rurais.

A popularidade manifestou-se naquele dia de um modo que, por ser um pouco estrondoso, não era contudo menos tocante.

Não só todos os rendeiros do Marquês, as suas mulheres, os seus filhos, e os seus criados, mas também um número considerável de habitantes das aldeias vizinhas, oito a novecentas pessoas pelo menos, formavam uma dupla ala não interrompida do lado da rua sinuosa.

As mulheres e as riquezas traziam, quase todas, ramos.

Os rapazes agitavam no ar velhas espingardas de caça e pistolas velhas.

Logo que o coupé transpôs a grade, ouviram-se estes gritos cem e mil vezes repetidos:

— Viva o senhor Marquês! Seja muito bem vinda a senhora Marquesa!

E ao mesmo tempo choviam ramos na carruagem, e os tiros fuzilavam em toda a linha.

É sabido que para a gente do campo, do mesmo modo que para os árabes, não há verdadeira festa quando não estoura a pólvora.

— Como me estima esta pobre gente, e como ela a amará! disse Roberto muito comovido para Lazarine.

E, enquanto o cocheiro sopeava com grande custo os steppers, espantados pelos gritos e pelas detonações contínuas, o Marquês inclinava-se a portinhola, correspondendo muito entusiasmado aos cumprimentos feitos à nova Marquesa, e dirigia palavras afáveis aos rendeiros e homens do campo que conhecia de nome.

Lazarine cumprimentava a multidão com o modo risonho e a adorável gentileza de uma juvenil imperatriz aclamada pela primeira vez na capital da sua nova pátria.

O seu coração batia apressadamente, o sangue muito escandescente subia-lhe a cabeça como os fumos do vinho de Champanhe, e promovia-lhe uma espécie de pequena embriaguez.

— E não é isto um sonho!... pensava ela. Sou fidalga e recebo a legítima homenagem que me rendem os meus vassalos.

O coupé parou no pátio de honra.

Abriu-se a portinhola, e o Príncipe de Godefroy apeando-se do seu carrinho, veio com a ligeireza de um moço cortesão dar a mão a Lazarine para a ajudar a descer.

O orgulho exaltado da jovem teve então um novo motivo de regozijo.

Todos os homens que compunham a criadagem do castelo, criados graves, lacaios, picadores, etc., em libré de gala, formavam alas nos degraus da escada monumental que conduzia ao vestíbulo.

Não gritavam nem disparavam tiros como os aldeões, mas o seu todo exprimia o mais humilde respeito, e foi por entre duas linhas de cabeças curvadas que a senhora de la Tour-du-Roy encostada ao braço do príncipe, subiu os degraus, transpôs, o vestíbulo, chegou ao limiar do palácio senhorial, de que ia ser a encantadora castelã.

— Minha formosa amiga, disse a meia voz o senhor de Castel-Vivant, antes de entrar em sua casa volte-se para trás e saúde o povo. Será de muito bom gosto e de um belo efeito.

Lazarine seguiu o conselho do Príncipe.

Voltou-se com o sorriso dos lábios, o olhar radiante, e depois de ter apoiado a mão direita sobre o coração, inclinou-se duas vezes com um gesto de gratidão.

A velha experiência de Godefroy não o iludira.

O efeito produzido foi grande, excedeu mesmo a sua expectativa.

As aclamações passaram a um crescendo formidável. Os chapéus e os lenços agitaram-se no ar... As espingardas e as pistolas velhas carregadas de novo juntaram-se para uma última descarga de fuzilaria atroadora.

O Príncipe esfregou as mãos.

— Que entusiasmo! disse ele. Ê sincero, conheço! Há de ser popular, minha queridinha.

E lá consigo disse:

— A entrada dos Borbons, era exatamente o mesmo... mas em maior escala... No casamento de Napoleão III o mesmo... E ainda por ocasião do batizado do Príncipe imperial... Onde estão os Borbons? onde está o imperador? onde está o Príncipe imperial Oh! os entusiasmos das multidões!... São todos o mesmo...

O senhor de la Tour-du-Roy esperava que uma grande multidão viesse saudar a chegada da nova Marquesa e tinha por isso tomado as necessárias precauções.

Ergueram-se no parque em meio de um tabuleiro de relva rodeado de arvoredo, as mesas formadas de tábuas postas sobre cavaletes.

As mesas estavam carregadas de pão, de aves frias, quartos de vaca, presuntos e tortas.

Dez pipas, dispostas em sítios convenientes e munidas de torneiras de madeira, não esperavam senão que fizessem correr as ondas purpúreas do vinho de Beaugency que continham.

Centenas de lanternas à veneziana de vivas cores, penduradas dos troncos das árvores de roda da clareira, prometiam para a noite uma grande iluminação pitoresca.

Um mordomo vestido de gala teve ordem para prevenir os aldeões de que o Marquês e a Marquesa lhes pediam para considerarem o parque como propriedade sua, e os convidavam a utilizarem-se das coisas preparadas para eles.

Esta nova, já esperada, porque a hospitalidade grandiosa, como sabemos, era tradicional na família, propagou-se com a rapidez do raio, foi acolhida com ruidosas exclamações, e os vários grupos possuídos de um verdadeiro apetite, honravam bem a abundância e variedade do lunch que lhes fora oferecido.

Quando anoiteceu, acenderam-se as lanternas multicolores, grandes linhas luminosas desenhavam o risco da fachada do castelo, os criados trouxeram vinho de Champanhe em abundância, e os acordes de uma orquestra vinda de Orleans anunciaram que o baile ia começar.

O senhor de la Tour-du-Roy, a jovem Marquesa e o Príncipe juntaram-se então por alguns instantes à multidão.

Lazarine quis dançar a primeira contradança, e Godefroy serviu-lhe de par com a desenvoltura de um rapaz.

Às dez horas calou-se a orquestra.

Passou-se a queimar o fogo de artifício.

No mesmo momento em que os primeiros foguetes sibilavam rasgando o céu sombrio, o Marquês de la Tour-du-Roy possuído de uma sobre-humana comoção, transpunha com Lazarine o limiar da alcova nupcial.

 

O DIA SEGUINTE

Júlio Leroux e as filhas chegaram no dia seguinte à hora do almoço.

O Marquês e Lazarine, prevenidos por um picador que precedia o landau, foram ao seu encontro em companhia de Godefroy.

O senhor de la Tour-du-Roy, radiante como um esposo de vinte anos, e parecendo um rapaz, apesar da sua cabeleira branca, tinha só a ocultar a expressão triunfante do rosto.

Nos olhares que volvia para Lazarine, adivinhavam-se todas as gratas comoções de um amor feliz.

A menina, tornada agora senhora, era a mesma que dantes.

O seu rosto e as suas maneiras não revelavam nem a menor perturbação, nem o mais pequeno embaraço.

Quando muito, um estreito círculo azulado em volta das pálpebras, testemunhava alguma prostração.

O Príncipe deu o braço a Júlio Leroux, e afastando-se um pouco disse-lhe a meia voz apontando para o Marquês:

— Olhe para Roberto! está esplêndido, palavra de honra. Realmente, aquele maganão levaria a palma a um regimento de elegantes!... Enquanto a nossa adorável Lazarine, o modo como se apresenta no dia seguinte ao do noivado, é um primor. Faço-lhe os meus cumprimentos, meu velho amigo, sua filha é verdadeiramente uma mulher forte!

— Isso provém, primeiro da educação que lhe dei, e depois a pequena naturalmente não é tola.

— Sem contar que a proclamo a mais linda marquesa de França, onde as marquesas são geralmente bonitas! acrescentou em voz alta bastante para ser ouvida da senhora de la Tour-du-Roy, que agradeceu aquele cumprimento com um sorriso e uma inclinação de cabeça do mais sedutor efeito.

A primeira série de convidados apareceu no dia seguinte.

Sendo muitas as famílias nobres do Loiret, e devendo algumas delas passar dois ou três dias no castelo, o senhor de la Tour-du-Roy resolveu dividir os seus convites por séries, como outrora se fazia em Compiègne.

Não nos demoraremos a descrever as festas que duraram duas semanas e que foram esplêndidas.

Os prazeres à outrance do high-life sucederam-se sem interrupção; os bailes, as recitas, as caçadas, as corridas de cavalos, os grandes jantares no castelo, e as merendas no campo, não deixavam aos hóspedes do Marquês nem um momento de tédio, nem um minuto de inatividade.

Durante duas semanas, Lazarine embriagada, não deixou passar uma hora em que não se aplaudisse pelo seu casamento.

Em meio daquela existência de um luxo grandioso e de contínua agitação, rodeada cortejada, cheia de adulações como uma jovem rainha, achava-se no seu elemento.

Desembaraçada e infatigável parecia de ferro, substituindo o seu fato de amazona por um vestido de baile após uma tarde de galope desesperado, e dançando até pela manhã, sem que aparecesse em seu rosto radiante o menor sinal de cansaço.

Embora empregássemos os mais empolados ditirambos não poderíamos dar uma idéia aproximada do entusiasmo que causava.

Os homens que ficavam perdidos ao vê-la, invejavam grandemente o senhor de la Tour-du-Roy.

As mulheres menos entusiastas, não podiam deixar de gabar o grande atrativo, a adorável vivacidade, a incomparável graça da juvenil castelã, e sofriam a influência do seu irresistível encanto, mas ao mesmo tempo afetavam a respeito de Roberto uns modos de compaixão, de cuja sinceridade não nos é dado suspeitar.

— Na idade do Marquês!, diziam uma às outras em segredo, é perigoso ser marido de uma cocodette tão brilhante!... Fará dele o que quiser sem lhe custar muito. Uma sereia de dezoito anos não casa por amor com um homem a quem cinqüenta anos tem encanecido os cabelos!... Ela não viu no casamento mais do que um título e milhões... Já os possui... Que uso fará deles?...É fácil de supor!... Ai!... pobre Marquês!...

— Pobre Marquês!... responderam as alminhas caridosas, teria feito melhor se ficasse solteiro.

— Ou, se não gostava do celibato, casasse com uma senhora de certa idade, sensata e de boa casa.

Estas últimas palavras partiram de uma respeitável baronesa, mãe de filha maiores, a quem os rapazes se esqueciam de fazer a corte.

Entre a inveja de uns e a piedade dos outros, Roberto de la Tour-du-Roy, o único bom juiz na própria causa, julgar-se-ia ele feliz?

Sim e não.

É certo que os triunfos de Lazarine exaltavam o seu orgulho, a posse de tão esplêndida criatura causava-lhe uma alegria sem igual.

Sob o ponto de vista do amor próprio e do amor carnal, a sua felicidade excedia mesmo a sua expectativa, mas por momentos uma vaga inquietação, a seu pesar, se apoderava dele, anuviava a clara e radiante miragem do meio em que vivia.

Lazarine parecia-lhe agora muito diferente da virginal amazona que havia encontrado nos bosques, por uma bela manhã de outono tranqüilamente montada no seu pônei, e transformada ao fim de algumas semanas em Marquesa de la Tour-du-Roy... Com certeza que não era menos encantadora, mas não era a mesma mulher.

Dominado bruscamente por uma destas paixões que se apoderam tão depressa do coração dos velhos, Roberto tinha decidido casar-se sem conhecer, por assim dizer, a mulher com quem casava ou antes não conhecendo dela senão o ideal que o seu amor formara.

Tinha julgado Lazarine simples nos gostos, porque a via no meio simples de Vertes-Feuilles, imaginava que era muito modesta, para não dizer muito tímida, e antecipadamente contava gozar a sua admiração.

Ora, não somente a jovem não se mostrava admirada, mas revelava aspiração para um luxo ainda mais brilhante e sobretudo mais ruidoso.

A estróina parisiense educada, ou para melhor dizer, deixada em plena liberdade por um pai nada cauteloso, reaparecia na Marquesa, quando Lazarine esquecia por um instante o papel que a prudência lhe tinha imposto para conquistar um marido. Agora esse marido pertencia-lhe; coisa nenhuma podia tirar-lho... Parecia-lhe pois desnecessário um constrangimento constante. Cuidava menos de se disfarçar.

Por isso o senhor de la Tour-du-Roy se admirava de certas excentricidades que não esperava, assustava-o o ardor de Lazarine e perguntava a si mesmo, com aquela vaga inquietação de que já falamos, se seria sempre assim.

Mas a distinção nativa da jovem Marquesa e a sua beleza sem rival tornavam encantadoras aquelas excentricidades. A sua pouca idade explicava e desculpava os seus ímpetos quase febris. Cegava-o o êxito. Todavia, nada mais natural, nada mais inevitável!

O Marquês dizia de si para si estas coisas e conseguia animar-se. O casamento então readquiria o seu encanto, logo depois renasciam as inquietações que, de novo, se dissipavam para reaparecerem novamente.

No começo da segunda semana de festas no castelo, manifestou-se um sintoma mais grave.

Ao senhor de la Tour-du-Roy pareceu, não sem razão, que a nova Marquesa não sabia exigir e alcançar de alguns daqueles com quem dançava uma suficiente dose de respeito, não quer dizer com isto que Lazarine procedesse como verdadeira coquete ou pensasse no mal, mas mostrava-se muito familiar, e, permita-se a frase, muito sem cerimônia.

Não havia, com certeza, coisa alguma repreensível ou incompatível sob o ponto de vista das conveniências. Era, por exemplo, o corpo mais languidamente reclinado do que o necessário no braço do valsista; frases breves murmuradas em voz baixa e seguidas de grandes gargalhadas... Enfim, pouca coisa para estranhos, muito para um marido.

É que Lazarine, sem reparar, seguia os costumes dos divertimentos improvisados com os cortesãos do seu esquadrão volante na sala do palácio de Júlio Leroux, num tempo em que ela sem o mínimo rebuço falava ao seu cavaleiro de mademoiselle Tatá, a amiga intima de seu pai, vista na véspera num camarote da primeira ordem das Variedades ou dos Bufos, atraindo a atenção da platéia por causa da sua toilette destalar.

Roberto de la Tour-du-Roy, considerando como puras criancices os fatos que temos mencionado, não se tornara de certo ciumento, mas o ridículo assustava-o, e uma bela noite ou antes uma bela manhã, porque começava a romper o dia quando se recolheu aos seus aposentos com a mulher, depois de um interminável cotillon, fez de um modo discreto uma observação quase tímida.

A marquesinha olhou para ele admirada:

— Não o compreendo, meu amigo... respondeu ela. É uma censura o que me está fazendo?

— Não, mas...

— Fiz alguma coisa que lhe desagradasse? interrompeu a jovem; muito me penalizaria tal... se pequei, foi por ignorância. Explique-me então claramente as coisas para evitar uma reincidência involuntária.

Parecia iluminar-se o rosto de Lazarine com a expressão da verdadeira e máxima franqueza... tinha tal candura o seu olhar, que o Marquês muito embaraçado, já não sabia como formular as suas queixas.

Contudo fez com manifesta hesitação, como homem que não sabe se procede bem ou irá representar um papel de tolo, encolerizando-se sem motivo justo.

Lazarine, atenta e com os olhos fitos nele deixou-o explicar-se até ao fim.

Quando terminou, redarguiu com voz lenta, bem acentuada e com a mais angelical doçura:

— Ainda que o que diz é uma censura que por certo mereço, permita-me, meu amigo, advogue as circunstâncias atenuantes. Falta-me a necessária experiência. Nunca vivi na esfera aristocrática onde o seu amor acaba de me colocar. Todos os homens a quem faz a honra de admitir em sua casa não pessoas de boas qualidades e são seus amigos, julguei proceder convenientemente acolhendo-os bem... sendo afável tanto quanto pude. Sou quase uma criança, e divirto-me num baile como uma criança ébria de melodias. Acho tão grande a minha ventura que chego ao maior auge de contentamento e entusiasmo e a minha satisfação manifesta-se em pequenas loucuras... Não é conveniente isto, compreendo-o agora, agradeço-lhe do íntimo d’alma... Serei mais prudente, prometo-lhe. Serei daqui em diante séria como convém à Marquesa de la Tour-du-Roy. Serei comedida na minha alegria. Ocultá-la-ei. Recusarei valsar... hei de falar pouco.., não rir... farei conservar os meus pares a distância para acabar com familiaridades, e, por tal modo, que ficará contente comigo...

— Lazarine, querida Lazarine, exclamou o Marquês cheio de inquietação, ou me expliquei mal, ou não me compreendeu!... Não é isso! não! Não valsar mais! não falar, nem rir! É impossível, seria um absurdo.

— Pois sim! mas então o que é que me pede?

— Um pouco mais de reserva... oh! muito pouco... um quase nada.

— Não compreendendo esses quase nadas, é possível que um dia os compreenda, por enquanto ainda não. Ignorando onde começa o excesso, é melhor suprimir tudo para ter a certeza de não exagerar coisa alguma.

— Então, adeus alegria das nossas festas!

— O que as festas perderem em brilhantismo ganharão em conveniências...

— Pois bem, eu estava iludido. Deixe que o seu gênio se manifeste em plena liberdade. Conserve-se tal qual gostam de vê-la e tal qual a admiram... Não modifique as suas maneiras sedutoras. Como é adorável!

Lazarine sorriu, lançou os seus lindos braços nus em redor do pescoço do marido, inundando-lhe o rosto com as ondas perfumadas dos seus cabelos vermelhos, e murmurou:

— O senhor diz isso, Roberto, porque muito me ama... e eu sinto-me imensamente feliz pelo ouvir dizer, porque também o amo...

A jovem Marquesa, no baile do dia seguinte, foi desenvolta com os seus valsistas prediletos, e talvez um pouco mais do que tinha sido até ali. Pois não tinha ela autorização conjugal?

O senhor de Tour-du-Roy viu tudo aquilo e esforçou-se por achar agradável.

Admirar-se-ão os nossos leitores se lhe dissermos que não o conseguiu completamente?

 

UMA NOVIDADE

Quando expirou o último dia da quinzena tão cheia de brilhantes festas, quando a última série de convidados deixou o castelo de la Tour-du-Roy, quando o Príncipe tomou o caminho de Paris, quando finalmente Júlio Leroux regressou a Vertes-Feuilles com Renée e Joana, o Marquês experimentou uma grata sensação de alívio.

A fadiga física não o tinha incomodado, mas a fadiga moral esmagara-o, fora-lhe insuportável. A solidão produziu nele o efeito de um banho refrigerante após uma linda carreira aos raios de um sol ardente.

Entendeu então que ia ser sua, inteiramente sua, a mulher idolatrada que desde o dia do casamento só tinha vivido para os mais e não para ele. Acabada a agitação, o ruído das festas, começava a existência sossegada, um viver a duo, a sonhada ventura! Roberto respirava a plenos pulmões; todo ele se regozijava.

Por desgraça, Lazarine só muito incompletamente partilhava aquele modo de ver.

O senhor de la Tour-du-Roy, é mister dizê-lo, dera mostras de uma deplorável inexperiência, entregando a jovem Marquesa ao turbilhão dos prazeres ruidosos, logo após uma união mal pensada, visto a diferença de idades e de caracteres.

A filha de Júlio Leroux, arrastada durante duas semanas pela torrente das festas elegantes, tornara a ver-se na sua atmosfera. Sentia-se reviver, e não compreendia a existência sob outra forma.

Por isso, quando um profundo silêncio substituiu as músicas das orquestras, o ruído das gargalhadas; quando cessou aquele rodar contínuo das carruagens, desde pela manhã até à noite, e o escarvar dos cavalos no pátio de honra; quando não mais se viu do terraço o rojar das grandes caudas dos vestidos vistosos; quando as sombrinhas de vivas cores e os fatos vermelhos dos caçadores já não sobressaiam em meio do verde sombrio dos arvoredos; quando, finalmente, os jantares em que tomavam parte sessenta convivas, foram apenas uma recordação, uma miragem que havia desaparecido, o parque habitado só pelas estátuas brancas produzia em Lazarine o efeito de um imenso deserto, e o grande castelo ermo de visitas, chegou » parecer-lhe uma lúgubre Tebaida.

Ao percorrer as longas galerias, ao atravessar as vastas salas parecia-lhe que os seus leves passos soavam como sob as abóbadas de uma igreja.

Apoderou-se dela o aborrecimento, veio depois a tristeza, um quase desânimo.

Mas a jovem reagiu, e longe de se deixar vencer, preparou-se para a luta.

Muito hábil para deixar ver a seu marido o que se passava em sua alma, e assustá-lo revelando-lhe os instintos que a dominavam, queria apoderar-se dele tão bem e tão completamente que não tivesse outra vontade que não fosse a sua; obter que ele lhe comprasse no bairro dos Campos-Elíseos um palácio que custasse um milhão, e que a conduzisse para Paris todos os invernos.

Uma vez no centro da alta sociedade Lazarine, certa do seu poder, nada mais temeria e desafiaria o aborrecimento.

A realização do plano de ataque não sofreu demora alguma, A marquesinha começou imediatamente as suas operações, e mostrou-se exímia representando a comédia de uma ternura que não experimentava, e amimando o senhor de la Tour-du-Roy como o faria qualquer cortesã a um velho rico sem herdeiros.

O Marquês, tomando a sério aqueles modos, considerava-se o mais feliz dos homens, e era-o com efeito, porque em certos casos, e este é um deles, a ilusão vale tanto como a realidade.

O carteiro rural do serviço de la Tour-du-Roy chegava ao castelo pelas onze horas da manhã, e um criado trazia então para a sala de jantar a correspondência e os jornais.

— Leia as suas cartas, dizia invariavelmente a Marquesa ao marido, e dê-me o Fígaro, a Vida Parisiense, se há hoje, e os jornais de modas.

Uma manhã o Marquês, depois de ter lido uma das cartas que acabava de receber, ergueu a cabeça e sorriu.

— Lembra-se, minha querida, disse ele, de me ter censurado, com muita razão, aliás, por causa da decoração incompleta da pequena galeria?...

— Com certeza! até me prometeu cuidar disso o mais depressa possível. Há perto de um mês que tal foi, respondeu Lazarine rindo, e não vejo realizar-se a promessa.

— Não sou culpado dessa demora, creia-o. Escrevi sem perda de tempo... mas não recebi resposta.

— E hoje?

— Aqui estão três linhas que Laurent Vèdel se decidiu enfim a escrever-me.

— Laurent Vèdel! exclamou Lazarine. O artista da moda de quem ultimamente vi produções brilhantes na Exposição! Foi a ele que se dirigiu?

— Acaso podia escolher melhor?

— Com certeza que não... Mas consente ele em encarregar-se desse trabalho?

— Consente... Diz-no a sua carta.

— Bravo! a galeria decorada por ele ficará esplêndida. Quando começará?

— Dentro em pouco, deve chegar amanhã de manhã a Orleans no comboio das dez. Pediu-me para mandar uma carruagem buscá-lo à gare.

— Conhece pessoalmente Laurent Vèdel?

— Sim, vi-o há três anos no castelo de Gordes onde fazia importantes pinturas. Foi por isso que me lembrei dele.

— Que qualidade de homem é?

— Um bom e honrado sujeito de quarenta e oito ou cinqüenta anos, não é bonito, mas também não é tipo vulgar... um verdadeiro artista... homem sociável quando é preciso, instruído, espirituoso, celibatário, e que adquiriu com o seu pincel uma agradável mediania. Habita na rua Prony, um lindo palacete que é seu. Hei de lhe dar os aposentos do primeiro andar que comunicam com a galeria por uma escada de serviço, e se não vê nisso obstáculo, convidá-lo-ei, da sua parte, para tomar lugar à nossa mesa. No caso contrário servir-lhe-ão as refeições nos seus aposentos.

— Convide-o, exclamou Lazarine, não uma vez só, mas cem!... era desnecessário consultar-me a esse respeito... Um artista tem sempre lugar por toda a parte, mesmo em casa de uma notabilidade tal como o senhor

— Carlos V apanhando o pincel de Ticiano, ajuntou o Marquês, assunto de quadro muito bonito, mas já vulgar. Fique descansada, hei de convidá-lo.

O náufrago prestes a afogar-se, agarra-se à primeira tábua que se lhe depara.

A idéia de que um hóspede, quem quer que fosse, ia instalar-se em la Tour-du-Roy causava à jovem um prazer indizível.

Aquele hóspede vinha de Paris, tinha um nome quase célebre, andava em voga; ela poderia interessar-se nos seus trabalhos, com a presença dele à mesa acabava a insuportável monotonia dos "tête à tête" com o marido; enfim distrair-se-ía do enfado em que se sentia soçobrar.

Desde aquele dia Lazarine tornou-se singularmente alegre.

— Minha querida, perguntou-lhe o Marquês à noite, encomodar-se-ía muito se ficasse uma manhã completamente só?

— Porque me faz essa pergunta?

— Por isto: Seria conveniente, creio eu, tratar o nosso artista com particulares atenções, mostrando-lhe assim que os grandes senhores de agora não degeneraram... Lembrei-me de ir pessoalmente ao seu encontro. Hei de partir cedo para estar presente quando ele chegar. Almoçamos juntos em Orleans, e regresso com ele às duas horas, mas é claro que tudo isto depende essencialmente da sua aprovação. Que diz da minha tenção?

— Aprovo-a completamente.

— Agradeço e vou modificar neste sentido as ordens já dadas. No dia seguinte o tempo estava esplêndido.

O senhor de la Tour-du-Roy partiu às sete horas da manhã em carrinho descoberto.

Em seguimento do carrinho ia um pequeno "'break" que devia trazer as bagagens de Lourenço Vèdel.

Lazarine achando-se só ao almoço reparou que se sentia menos aborrecida do que quando o marido estava com ela.

— É um perfeito homem, disse ela, não o detesto, mas os seus galanteios fatigam-me, e o seu amor importuna-me.

Não está mais na minha mão. Um pouco depois do meio dia mandou selar a Norah e partiu, seguida de um grom, para o seu passeio quotidiano, cujo momento antecipou desejosa de passear à sua vontade, livre de importuna vigilância.

Quando recolheu, às três horas, estava o Marquês à espera dela.

— Pareceu-lhe longo o tempo, minha queridinha? perguntou-lhe ele.

— Alguma coisa, respondeu ela com a mais sedutora hipocrisia, aproximando a fronte dos lábios do marido; por isso saí, como vê, e busquei afastar o aborrecimento fatigando o corpo. E o senhor o que fez?

— Trouxe comigo Lourenço Vèdel.

— Onde está ele?

— Na galeria, trepado a uma escada... está trabalhando.

— Já?

— Meteu logo mãos á obra, apressa-se porque tem outros compromissos a satisfazer, e apenas pode dispensar-me alguns dias.

— Pois bem, vamos vê-lo já.

— Não... iria desgostá-lo muito.

— Ora essa! por que?

— O nosso artista tem o coquetismo de um homem sociável. O seu fato de trabalho parece-lhe pouco decente para uma primeira entrevista, e tem razão. A hora do jantar lhe apresentarei, assim é muito mais correto.

— Como for da sua vontade, ou antes da vontade dele.

— Mas ainda há outra coisa...

— O que é?

— Temos dois hóspedes em lugar de um.

A Marquesa olhou para o marido admirada.

— Dois hóspedes? repetiu ela com modo interrogador.

— Sim. Lourenço Vèdel resolveu, para desempenhar mais rapidamente o trabalho, fazer-se acompanhar por um dos seus discípulos, um mancebo, ao que parece, de talento, e que virá um dia a ter um belo futuro. Como se há de proceder com aquele rapaz a quem eu não queria desgostar?

— Diz o senhor que é um artista?

— Sim, mas um artista de segunda ordem por enquanto.

— Tem maus precedentes esse rapaz?

— Não, não tem, é um pouco boêmio. Pelo caminho pareceu-me bastante folgazão. Tem muito espírito, e os seus ditos são engraçados. Leu Balzac? Imagine Léon de Lora, quando este se chamava Mistigris. Não é feio, e a mim parece-me que ele o não ignora. Aqui para nós, creio que ele está encantado de si próprio.

— Ah! então é tolo! redarguiu Lazarine rindo. Pouco me importa esse ridículo. Não vejo ai motivo de exclusão. Sou de opinião que admitamos o discípulo à mesa do mesmo modo que admitimos o mestre.

— Tinha vontade de lhe fazer essa proposta, mas receava!... exclamou o senhor de la Tour-du-Roy. A sua resolução, minha querida, salvou-me de um grande embaraço, e causa um vivo prazer a Lourenço. Ele ignora que sou casado, e esta ignorância explica e justifica a franqueza da sua conduta. Vou preveni-lo e tudo se arranjará o melhor possível.

— E eu, redarguiu a jovem, vou despir este fato. E visto que não jantamos sós, quero apresentar-me bastante bela para lhe fazer muita honra.

E com um modo meio sério, meio gracioso, fez um lindo cumprimento ao marido, a quem aqueles modos tornavam louco, apanhando com a mão esquerda a longa cauda do seu vestido de amazona, retirou-se, e, permita-se-nos a expressão, voou para os seus aposentos com a ligeireza de um pássaro.

No castelo de la Tour-du-Roy três toques de sineta anunciavam o jantar.

O primeiro toque às seis horas e um quarto, prevenia os convivas dispersos pelo parque, de que era tempo que se aproximassem de casa.

Os outros dois sucediam-se com o intervalo de um quarto de hora, sendo o último cinco minutos antes da aparição imponente do mordomo.

 

VELHOS AMORES

Quando soou o terceiro toque, Lazarine desceu à sala do jantar

Ela tinha prometido ao marido apresentar-se muito bela, e cumpria amplamente a sua palavra.

Vinha vestida de maneira a mais simples e a mais deliciosa.

O vestido muito comprido era de foulard da Índia, cor de rosa, e tão brando e flexível que a vestia ou antes a despia para prazer dos olhos. Nunca vestido algum tão bem fechado foi mais indiscreto.

A seda muito flexível ajustava como uma segunda epiderme aos braços, à garganta e aos ombros. Não se notava o espartilho. O busto da jovem estátua mostrava livremente os seus contornos harmoniosos.

Uma estreita fitinha de veludo preto segurando uma volumosa pérola, era o único indício exato que mostrava onde acabava o vestido e começava a epiderme.

A saia estreita ajustava-se muito nos quadris, e descia sem fazer uma prega até aos pés elegantes, desenhando o torneado e delgado das pernas.

Os cabelos levantados, formando um chignon muito alto, amontoavam-se no alto da cabeça em uma desordem que aumentava a sua riqueza.

Por um capricho de excentricidade de mulher bonita, Lazarine, que era dotada de boa vista, encaixilhara no olho direito uma pequena luneta de tartaruga amarela que dava ao seu olhar uma adorável expressão de impertinência.

O senhor de la Tour-du-Roy estava na sala com os dois artistas. Levantaram-se todos três no momento da entrada de Lazarine.

O Marquês estremeceu.

Com aquele vestido que ele via pela primeira vez, e que todavia não se podia acusar de indecente, parecia-lhe que sua mulher estava descomposta.

Não o deixou perceber e disse:

— Minha querida, apresento-lhe o senhor Lourenço Vèdel, o artista da moda, cujas produções admirou em Paris, e que nos fez a grande honra de trazer para nossa casa as maravilhas do seu brilhante talento.

Lazarine inclinou-se.

— Ficamos por isso muito satisfeito e possuídos do maior orgulho, e o senhor Vèdel pode contar com o nosso mais vivo reconhecimento.

— Ah! senhora Marquesa, exclamou o artista, se é essa efetivamente a manifestação do apreço em que tem os meus humildes trabalhos, e tenho a vaidade de acreditá-lo, é-lhe muito fácil prová-lo.

— Como?

— Permitindo-me que pinte o seu retrato, e o ponha em exposição. Palavra de honra, é muito linda! É deslumbrante, é inacreditável! Comprometo-me, copiando a natureza, a produzir um primor que será o grande sucesso da próxima exposição.

— Se meu marido permitir, respondeu Lazarine rindo, eu, pela minha parte, muito o desejo.

Lourenço Vèdel voltou-se para o Marquês.

O artista não era bonito, ouvimos o senhor de la Tour-du-Roy afirmá-lo à sua mulher, mas a sua fealdade original e nada vulgar inspirava simpatia.

Era alto e delgado, tinha no rosto, iluminado por uns olhos belos e coroado por abundante cabelo, embora já grisalho, impressos os sinais do sofrimento. A barba estava inculta como a juba de um leão. A fita da Legião de Honra formava uma delgada linha encarnada na casa do casaco.

Enquanto Lourenço Vèdel solicitava o consentimento do senhor de la Tour-du-Roy, a atenção de Lazarine achava-se ocupada em analisar o companheiro do pintor.

Aquele rapaz, desde que a Marquesa entrara, parecia possuído de inexplicável embaraço, e procurava esconder-se atrás do mestre. Coisa nenhuma porém indicava que padecesse de timidez crônica.

Era um perfeito rapaz de vinte e cinco anos, bonito de rosto e de maneiras. Os cabelos castanhos anelados, os olhos pretos e muito vivos, os bigodes sedosos, a estatura franzina faziam dele um desses tipos que não sendo verdadeiramente distintos, são irrepreensível-mente lindos, e fazem perder a cabeça a muitas mulheres.

Mas nesse momento, repetimo-lo, o rapaz parecia constrangido, e como diz o bom de La Fontaine: "mais confundido do que uma raposa apanhada por uma galinha".

Lazarine, pela sua parte, experimentava uma estranha perturbação.

Empalideceu. Cerraram-lhe as pálpebras. Um leve tremor nervoso lhe agitou os lábios.

Mas rápido se dissipou aquele estado. As faces retingiram-se-lhe, descerraram-se-lhe os olhos, cessou o tremor, os lábios sorriram de novo.

A comoção, tão rapidamente dominada, não foi notada pelo Marquês a quem Lourenço Vèdel se tinha agarrado, e que, ainda que um pouco contra vontade, cedeu favoravelmente ao pedido do artista.

— Obrigado! mil vezes obrigado! exclamou este estreitando com ardor as mãos do Marquês, torna-me verdadeiramente ditoso! Ah! como o pressinto este retrato!... uma maravilha!... Uma dificuldade vencida! Hei de retratar a senhora Marquesa em branco! num fundo branco!... Não há nada como o branco! tom a tom! o triunfo do branco!... a escala dos brancos aparecerá ali toda, com os seus traços vigorosos e sutis a ficar um encanto! Note o mérito da dificuldade vencida!...

Após um segundo de silêncio, Vèdel prosseguiu:

— Mas, agora reparo, um pouco tarde já, ai de mim! Com o meu entusiasmo de amante do belo, falto aos mais elementares deveres da cortesia! Permita-me, senhora Marquesa, que eu tenha a honra de lhe apresentar o meu discípulo e amigo Heitor Bégourde, um moço pintor de grandes esperanças.

Heitor Bégourde, que os nossos leitores já tinham por certo reconhecido antes do seu nome ser anunciado, deu dois ou três passos para a frente, de má vontade, e cumprimentou com um modo constrangido, murmurando palavras incoerentes.

Lazarine, sem proferir palavra, retribuiu o cumprimento com uma delicadeza um pouco altiva e uma risonha indiferença que de modo nenhum se parecia com a quase afetuosa familiaridade que ela testemunhara alguns minutos antes a Lourenço Vèdel.

Este, estupefato por ver os modos do seu companheiro, olhou para ele rindo e perguntou-lhe:

— Que tens tu, Heitor?

— Nada! respondeu ele a modo descontente. Que havia eu de ter?

Lourenço Vèdel encolhendo os ombros inclinou-se ao ouvido do marquês, e disse-lhe a meia voz:

— É muito curioso! Note que este rapaz é tido como um Faublas de atelier, e é o predileto das atrizes dos teatros de terceira ordem e das rainhas dos bailes públicos! Caustica-me com a narração das suas proezas, e repete-me que as mulheres não o deixam... Repare o que a presença de uma senhora de elevada condição fez do seu desembaraço e da sua soberba desenvoltura! É coisa curiosa!

O senhor de la Tour-du-Roy não teve tempo de responder. O mordomo apareceu com modo solene no limiar da porta aberta de par em par pelos criados, e pronunciou a frase usual:

— Senhora Marquesa, o jantar está na mesa.

Lourenço Vèdel apressou-se a oferecer o braço a Lazarine, o que foi aceito com um sorriso, e conduziu triunfalmente à sala de jantar a dona da casa.

O Marquês seguiu-os, depois de ter feito passar para diante de si Bégourde, cujo inexplicável acanhamento muito lhe dava que pensar.

O acanhamento, por último, desapareceu tão repentinamente como se manifestara.

Antes de terminar o primeiro serviço, já não restava o menor vestígio.

Bégourde disse de si para si que havia representado um papel muito tolo, e que o havia feito sem motivo.

Ao encontrar casada e grande fidalga a jovem um pouco leviana com quem havia dezoito meses tinha esboçado um engraçado romance; ao lembrar-se do modo sumário e radical como Júlio Leroux se havia desembaraçado dele, admitindo como coisa se não provável, contudo possível, que a senhora de la Tour-du-Roy pensasse em fazê-lo despedir pelo marido, Heitor, ou antes Totor, como lhe chamavam os seus camaradas, experimentava uma destas comoções que paralisam momentaneamente as faculdades mentais.

Durante dez minutos, o naufrágio da sua inteligência, o desarranjo do seu espírito foram completos.

Depois, pouco a pouco, viera a lucidez moral reconduzindo a reflexão.

— É absurdo supor, pensou o mancebo, que a senhora de la Tour-du-Roy, a ex-Lazarine dos meus sonhos, queira denunciar-me a seu augusto esposo. Para realizar um tão negro projeto, ser-lhe-á necessário relatar miudamente os seus galanteios de outro tempo, o que podia não parecer muito natural àquela nobre fronte de velho, como diz na Torre de Nesle. Portanto não me arrisco muito e a prova é que a Marquesa fingiu não me conhecer. Com a breca, fui muito parvo há bocado! Lazarine estava no seu direito se me considerasse idiota. Enquanto ao dono da casa e ao ilustre Vèdel, julgar-me-iam por certo tomado de uma imbecilidade de primeira classe. É muito humilhante. Trata-se de me reabilitar illico!...

Por conseqüência, Bégourde tornou-se, como por encanto, o artista boêmio um pouco aventureiro, trivial muitas vezes, mas em suma espirituoso e engraçado, conhecido de todos.

Divertiu muito o Marquês com os seus "calembourgs" e quiproquós mais engraçados ainda pelo tom sério com que ele os proferia..

— Agora, exclamou Lourenço Vèdel, reconheço o meu Heitor! Há bocado estava um pouco inquieto.

O senhor de la Tour-du-Roy soltou duas gargalhadas francas.

Lazarine ficou séria, franzindo as sobrancelhas que destacavam de um modo provocante sobre a alvura de camélia da epiderme, e mordendo os lábios com uma expressão de desprezo.

Nem uma só vez Heitor se dirigiu diretamente a ela.

Os sintomas de desprezo de que falamos não escaparam ao mancebo. Parecia não reparar em tal, e aumentava de verve.

Ainda que o outono estivesse já bastante adiantado, a noite apresentava-se serena e bela como são as noites de setembro.

Serviu-se o café no terraço, depois do jantar; o Marquês e os seus hóspedes acenderam charutos, e Lazarine, dizendo achar-se um pouco fatigada, recolheu-se aos seus aposentos.

Dali a pouco o senhor de la Tour-du-Roy foi ter com Lazarine.

— Queridinha, perguntou-lhe, que tal acha os nossos artistas?

— Gosto de Lourenço Vèdel, respondeu ela; a mim parece-me simpático bastante.

— E o outro?

— Ah! o outro, desagrada-me imenso. Ê intolerável!...

— Não será severa de mais?

— Pede-me o meu voto, digo-lho francamente.

— Contudo, Heitor Bégourde é muito agradável.

— É possível, mas ignoro isso. Vi-o, mas não olhei para ele, e com certeza que não o reconheceria. No que ele me faz desesperar, causa repugnância, e desperta o nervoso, é naquele modo ora pretensioso, ora banal de commis-voyageur gracioso. Como o senhor se ria daquelas grosserias sem graça. Eu estava admirada da sua benevolência meu amigo, para com aquele deplorável farsante. Se os artistas da escola moderna são assim, lastimo a moderna escola!

O Marquês ficou triste.

— Realmente, murmurou, tenho pena de lhe haver apresentado aquele rapaz. Que desastrado que fui! Agora porém que o aceitamos por conviva, o que se há de fazer?

— Nada, redarguiu logo Lazarine. Deixemos as coisas como estão. Espero que aquele senhor compreendendo a sua derrota e reconheça o seu lugar.

— Quer que fale nesse sentido a Lourenço Vèdel? perguntou Roberto.

— Não, não, meu amigo, exclamou a Marquesa.

— Não o diga a ninguém, e nós mesmo não falemos mais nisso! Já nos ocupamos daquele sujeito mais do que ele merece.

O senhor de la Tour-du-Roy soltou um suspiro e calou-se.

 

CONFISSÃO MENTAL

Naquela noite a senhora de la Tour-du-Roy quase que não dormiu.

O profundo desprezo que ela apresenta acompanhado de uma tão grande abundância de palavras, não era sincero.

Longe de a indignar, a presença imprevista do cúmplice do seu primeiro romance de rapariga, perturbava-a de um modo estranho.

Era certo que não tinha experimentado um amor sério por aquele rapaz excêntrico, mas havia-lhe agradado, e agora que o acaso os colocava frente a frente, parecia-lhe encantador com os seus cabelos castanhos anelados, como os seus bigodes finos e o olhar risonho.

A violenta comoção por ele manifestada no momento do reconhecimento mútuo, sensibilizou-a profundamente. Ela via naquilo a prova de que um fogo mal extinto fermentava sob as coisas no fundo do coração de Heitor, e que bastaria um único olhar para atear de novo aquele fogo.

Estava reconhecida ao artista porque a amava ainda; além de que ele trazia para a sua existência monótona de mulher aborrecida e sem princípios, três coisas mais que tudo preciosas no mundo; o atrativo do mistério e da mentira, o primeiro do fruto proibido (tão querido às filhas de Eva desde o paraíso terreal), e, enfim, a distração tão desejada.

Com certeza que não era preciso tanto, para que Heitor fosse bem vindo no castelo de la Tour-du-Roy.

Quer isto dizer que Lazarine formasse logo desde aquele momento o projeto de iludir o marido?

Não pensava nisso, pelo menos no sentido absoluto da palavra enganar.

Aceitava a situação que lhe parecia dever ser fértil em complicações divertidas. Não calculava os perigos, não previa as conseqüências possíveis e prováveis.

A absoluta falta de senso moral não a deixava compreender que a simples presença de Heitor Bégourde em casa do Marquês era um ultraje para este último.

Ocultando a Roberto que conhecia o artista, Lazarine dera o primeiro passo no caminho da traição, e quando uma mulher escorrega nesta vereda, é raro que pare antes de chegar ao fim.

Enquanto que estes pensamentos cuja péssima natureza acabamos de indicar visitavam as insônias da Marquesa e se agitavam no seu cérebro febril, Heitor Bégourde, encostado à varanda da sua janela aberta, refletia sondando com o olhar as profundezas do parque iluminado pela lua.

— Palavra de honra, dizia ele consigo, está ainda mais bonita do que era noutro tempo esta Lazarine, mas não tão boa rapariga, isso não!.. pois se ela é marquesa!... Oh! as marquesas, raça maldita! Tinha contudo por mim, noutro tempo, uma forte afeição, quando era simplesmente filha do banqueiro, porém agora que é marquesa, olha para mim como não conhecendo-me!... Então de que servem as revoluções? Porque não sou eu igual a este velho marquês? O meu talento vale muito mais do que o seu título, e não trocaria a minha mocidade pelos seus milhões! Ah! se eu pudesse recomeçar o romance de outro tempo e transtornar novamente a cabeça desta fidalga!... Seria a desforra da democracia!.. La Tour-du-Roy suplantado por Bégourde! Que triunfo duplamente lisonjeiro para o namorado e para o republicano.

Heitor retirou-se da varanda, encheu o cachimbo às escuras, acendeu-o e tornou a ir fumar à janela, dirigindo a si mesmo esta pergunta:

— Terei probabilidades?...

Refletiu por muito tempo considerando os prós e os contras, e eis o que ele concluiu:

— Uma mulher consegue sempre o seu fim, sobretudo quando não é tola, e Lazarine tem muito espírito. Se a minha presença no castelo a incomoda deveras, achará amanhã ou depois um pretexto engenhoso para me por na rua sem se comprometer, e o seu velho esposo não desconfiará.

Se, pelo contrário, não disser nada, é porque sou bem tolerado, e então tudo será possível. Tolerar-me-á ela? A questão é esta... E com isto, como se faz tarde, meu bom Heitor, vai-te deitar...

O artista sacudiu a cinza do cachimbo, fechou a janela, meteu-se na cama, adormeceu profundamente, e sonhou que a Marquesa de la Tour-du-Roy vinha procurá-lo para lhe dizer:

— Recomecemos juntos o nosso romance de amor interrompido, e vamos desta vez até ao fim!

De manhã cedo Lourenço Vèdel acordou o companheiro.

— Vamos, em pé, preguiçoso! gritou-lhe ele rindo. Em pé e mãos à obra. Imaginas que estamos no campo para dormirmos a manhã na cama?

Às dez horas o Marquês apareceu na galeria onde estavam pintando os artistas.

— A situação começa a desenhar-se, disse consigo Bégourde. Este figurão, sem a menor dúvida, já conversou hoje com a mulher, admitindo mesmo que não durmam juntos, o que seria muito para admirar. Se já há alguma coisa, vai proceder por insinuações. Soberba cabeça de marido legendário e predestinado! É admirável como ele me recorda um outro antepassado do mesmo estilo, um certo Visconde de Grandilieu que encontrei no atelier de Jorge Trejan 1, que também tinha cometido a monumental mania de casar com uma franguinha. Sempre imprudentes e presunçosos estes velhos galos.

O senhor de la Tour-du-Roy parecia gozar de uma completa liberdade de espírito.

Gracejou tanto com o discípulo como com o mestre, discutiu espirituosamente, e como conhecedor consumado, diversos pontos da arte, e retirou-se depois de ter prevenido os hóspedes de que se almoçava às onze horas em ponto.

— Vai tudo muito bem, disse consigo Heitor, Lazarine não me deitou por terra!

— É encantador este Marquês! disse Lourenço Vèdel. É menos impostor do que qualquer burguês, e entende da arte. Agrada-me, que pensas dele?

— Penso que tem uma linda mulher!... murmurou Bégourde.

— Não serei eu quem te contradiga, redarguiu o pintor. A senhora de la Tour-du-Roy é um primor vivo.

— E o senhor que lho disse, com a breca, em todos os tons!

— Puro entusiasmo de artista! Então, rapazinho, nada de asneiras!... hein! Modera o teu coração! Domina as tuas paixões! A Marquesa é muito sedutora, mas não passarias dos suspiros...

— Julga então que sou algum parvo? redarguiu com modo indiferente Heitor. Sei tão bem como o senhor que não tenho ali nada que fazer! As minhas opiniões políticas nunca me permitiriam manter relações amorosas com uma titular. Não transijo com os meus princípios!...

Lourenço Vèdel encolheu os ombros sorrindo e repetiu:

— Acautela-te ainda assim, repara no que te digo! Os princípios nem sempre tolhem os sentimentos.

Às onze horas menos um quarto os dois artistas vestiram-se para irem almoçar, e Bégourde cuidou muito particularmente da sua toilette.....

Uma calça e um colete de extrema alvura, um casaco de veludo preto, uma gravata "groseílle" atada com estudada negligência sob um colarinho decolado à la Collin, e botas de cintilante polimento, pareceram-lhe devidamente realçar as vantagens do seu físico.

Lamentou não poder dar ao rosto um pouco rosado uma palidez interessante; resolveu modificar completamente as suas maneiras em presença de Lazarine; suprimir as manifestações ruidosas da sua vivacidade; representar a comédia de uma paixão infeliz; enfim, botar melancolia, como se diz no calão das cervejarias e dos ateliers.

Faltou-lhe a ocasião de experimentar logo a sua nova "mise-en-cene", porque a Marquesa, fatigada de uma noite de insônia ou desejosa de ganhar tempo para preparar um plano de conduta, não assistiu ao almoço, e a sua ausência abismou Bégourde em todas as espécies de vagas inquietações e contrariantes suposições.

Inquietações e suposições plausíveis, mas não justas.

Passou-se o dia, não sucedendo nada de extraordinário, e a senhora de la Tour-du-Roy apareceu à hora do jantar, fresca, risonha, deslumbrante, toda de branco, dando a Lourenço Vèdel um pequeno aperto de mão, e fazendo a Bégourde um cumprimento indiferente e quase protetor.

— Ocultará ela as suas intenções? perguntava a si mesmo o rapaz. Este desprezo parece-me muito exagerado para ser sincero! Hei de esclarecer isto! Em todo o caso Lazarine não pensa em pedir a minha expulsão. Ficar já é um êxito.

Heitor cumpriu religiosamente a sua palavra.

Esteve muito sério durante o jantar. Mostrou-se silencioso, pensativo, quase sombrio.

A Marquesa a princípio ficou muito admirada daquela metamorfose inesperada, por fim apiedou-se.

— Fui com certeza muito áspera para com este pobre rapaz... disse ela de si para si. É preciso que sofra realmente muito para se tornar tão triste!... A sua alegria de ontem era uma mentirosa alegria! Hoje já não tem coragem para continuar a comédia...

E por duas ou três vezes dirigiu a palavra com muita benevolência a Bégourde, que lhe respondeu de uma maneira breve e num tom de voz que revelava comoção.

Depois do jantar, como na véspera, tomou-se o café no terraço, e como na véspera, Lazarine retirou-se no momento em que o Marquês e os seus hóspedes acendiam os charutos, mas em lugar de subir para os seus aposentos, dirigiu-se para o parque.

A lua«ainda não tinha aparecido, mas nenhuma nuvem empanava o azul puríssimo do céu, e a pálida claridade das estrelas tornava pouco profundas as trevas.

Heitor de pé e encostado à caixa de uma laranjeira gigantesca, olhava para a sua frente de um modo maquinai, procurando adivinhar a natureza dos objetos longínquos que mal se divisavam em meio da obscuridade.

De repente estremeceu.

Uma forma branca, leve como um vapor ou como um espectro, desenhou-se por um segundo no fundo negro das árvores do outro lado dos imensos tabuleiros de relva que separavam o parque do castelo.

Instintivamente o mancebo adivinhou que a forma branca desaparecida era o vestido da Marquesa.

Aquele passeio noturno e solitário dava-lhe a probabilidade de um "tête-à-tête" de alguns minutos, e que talvez não se renovasse; era preciso aproveitar a ocasião.

Por esse motivo, deslizou por detrás das caixas das laranjeiras, muito aproximadas umas das outras, e andando no bico dos pés de;modo a não dar a conhecer a sua fuga ao Marquês e a Lourenço Vedei entretidos numa conversação a sério, chegou à escada de dois lances, e desceu também para o parque.

Mulher ou fantasma, a forma branca tinha desaparecido, mas Heitor conhecia bem o sítio onde ela tinha aparecido e a direção que tomara.

A fim de não lhe dar tempo de ganhar muita dianteira, atravessou o relvado em sentido diagonal, em vez de seguir a alameda circular, alcançou em poucos minutos os maciços de verdura, detrás dos quais estava a entrada de uma extensa alameda que a abóbada espessa da folhagem tornava escura como túnel aberto numa montanha.

O que quer que fosse de pálido produziu uma mancha menos escura sobre o fundo negro da alameda.

— Lá está ela, com certeza, pensou Bégourde.

E como não queria reunir-se a Lazarine, mas encontrá-la, embrenhou-se pelo mato que flanqueava a alameda, e deitou a correr por cima do musgo com as mãos estendidas para a frente, a fim de evitar os encontrões nas árvores muito novas, porque se achava em plena escuridão de túmulo, em meio de trevas absolutas.

Quando lhe pareceu ter encurtado bastante a distância que o separava do tal ponto branco, avançou de vagar e cautelosamente, não querendo despertar a atenção de Lazarine, se fosse Lazarine a pessoa em seguimento de quem ia.

De minuto a minuto aplicava o ouvido.

Ouvia então o frú frú cada vez mais distantes de uma grande cauda rojando sobre a areia da alameda coberta. Ao mesmo tempo o seu olhar mergulhava por entre o vulto, e apesar da espessura das trevas, a mancha branca tomava vagamente uma forma feminina.

Em pouco tempo Heitor chegou a estar de par com ela, depois passou-lhe adiante.

Caminhou ainda algum tempo em linha reta, para a frente; depois, atravessando para a avenida andou em sentido contrário.

 

A ENTREVISTA

O artista e a passeante noturna caminhando um ao encontro da outro, deviam encontrar-se no fim de vinte segundos.

Era já curta a distância que os separava, esbarravam um contra o outro com toda a certeza.

Foi Heitor quem parou primeiro.

Neste momento Lazarine, porque era ela efetivamente, notou que um importuno perturbava a sua solidão.

Parou soltando um grito de susto, e perguntou com voz agitada:.

— Quem está aí?

Notemos de passagem que se o vestido branco de Lazarine era visível nas trevas, a calça também branca de Heitor não o era menos, e portanto a Marquesa sabia já como havia de proceder.

— Não se assuste, minha senhora, respondeu o mancebo. É um amigo.

— Ah! é o senhor Heitor! disse Lazarine fingindo muito bem achar-se surpreendida.

— Digna-se reconhecer-me agora? murmurou o pintor, não sem amargura.

— Sou menos esquecida do que julga. Ontem à noite reconheci-o logo.

— Teve ânimo de ser tão cruel para comigo!...

— Que podia eu fazer, achando-me de improviso numa situação-difícil? Tinha sequer tempo para refletir? Tomei o partido que qualquer outra mulher tomaria em meu lugar, fiz que não o conhecia.

— Mas era necessário empregar tanto desprezo?

— Que quer?... quando representamos um papel, exageramos a nosso pesar.

— Então não me despreza?

— Preciso afirmar isso? Por que havia de desprezá-lo?

— Não baniu da sua memória as queridas recordações que constituem toda a alegria da minha vida?

— Conservo-as todas... Tanto hoje como nos tempos de que fala, o senhor tem sido um amigo para mim.

— Um amigo somente? balbuciou o artista num tom muito apaixonado, nada mais senão um amigo.

— O senhor não pode ser para mim outra coisa... bem o sabe... Já não pertenço a mim mesmo. Sou casada.

— Que importa isso?

— O quê, que importa? exclamou Lazarine.

— Com certeza! O Marquês de la Tour-du-Roy tem quatro vezes a sua idade! Não é um marido para a senhora, é um pai, ou antes um avô! logo a senhora não pode amá-lo! Tenho a certeza que a senhora o não ama...

— Senhor Heitor, o que diz é muito inconveniente! Não lhe permito que me fale desse modo.

— Noutro tempo a senhora não me dizia: Senhor!... Chamar-me-ia Heitor, e eu tratá-la-ia por Lazarine... Esqueceu já isto?

— Não... mas os tempos mudaram.

— É verdade! A senhora é hoje marquesa e seis vezes milionária, isto é, acha-se no ponto mais elevado da escala social!... E eu fiquei um artista obscuro e pobre, isto é, muito em baixo... nas últimas camadas! Sim, tem razão, minha senhora, os tempos mudaram. Em tempos que já lá vão possuía dois bens, eram a minha única riqueza; a falta de cuidado e a alegria!... Hoje perdi-os. Outrora a vida parecia-me alegre. Hoje parece-me pesada. A minha falsa alegria é a máscara do sofrimento, e se eu rio ainda é para não chorar!...

Heitor proferiu esta tirada pretensiosa com um tal calor e força de expressão, que muitos galãs dos nossos teatros dramáticos poderiam invejar-lhe.

Lazarine estava encantada. Experimentava uma como que vaga e fictícia comoção. Sentia-se viver.

— Por que esse sofrimento? perguntou ela. Por que são essas lágrimas reprimidas?

— Porque a amo, respondeu o mancebo com desplante, e porque toda a esperança de me aproximar um dia de vossa excelência me pareceria para sempre perdida.

A declaração era precisa.

A senhora de la Tour-du-Roy não se mostrou muito escandalizada, achou, contudo, que o artista caminhava a passos agigantados..

— Silêncio!!! ordenou ela. Não devo ouvir essas coisas! proíbo-lhe que mas repita!

— E, redarguiu Bégourde, se eu então desobedecesse?

— Seria esta a nossa última entrevista.

— Então que termine já! exclamou o artista. Para que nos havemos de reunir se me impõe silêncio! O meu coração só bate pela senhora! Os meus lábios, quando estou ao seu lado, apenas podem* proferir estas palavras: — Eu a amo! — Expulse-me ou escute-me!

— Nem uma nem outra coisa! respondeu Lazarine sorrindo. Quero tê-lo como amigo e pretendo torná-lo razoável.

As palavras precedentes foram trocadas em meio das trevas da avenida coberta.

A Marquesa e o artista iam a par e caminhando muito vagarosamente; as suas mãos quase que se ticavam; o hálito da jovem por vezes bafejava o rosto de Heitor; envolvia-o no perfume penetrante dos seus cabelos; respirava o aroma do charuto de que estava impregnado o casaco de veludo; mas os dois passeantes não podiam ver-se, tão profunda era a obscuridade.

Lazarine reparou de repente no movimento de luzes caminhando de um lado para o outro, por detrás da fachada do castelo.

— Andam à minha procura sem dúvida, disse ela muito vivamente. Retiro-me... adeus... Não entre senão daqui a meia hora.

— A senhora diz-me adeus! murmurou Bégourde detendo-a, oh! mas não é adeus, não? é até mais ver, sim?

— Pois sim, se for prudente.

— E quando tornarei a vê-la? Quando me concederá de novo alguns daqueles minutos, por cada um dos quais daria um ano da minha existência?

— Amanhã? se for possível... aqui... a mesma hora... Não afianço coisa alguma, bem vê, não sou senhora de dispor de mim como me apraz, enfim, hei de fazer a diligência.

E não dando mais atenção, ao seu adorador que não queria deixá-la partir sem lhe beijar pelo menos as mãos, Lazarine atirou para o braço esquerdo a longa cauda do vestido, como costumava fazer à sua saia de amazonas, e correu em direção do castelo.

Bégourde, a quem a Marquesa pedira para não entrar senão meia hora depois, tomou pela avenida coberta que formava uma espécie de túnel, e acendendo um charuto disse de si para si:

— Sou realmente muito forte!... represento perfeitamente os papéis de galã sério e sentimental de que não tinha o mais leve conhecimento. A marquesinha é bastante dengue. Fá-la-ei andar depressa e irá longe. Tenho a certeza. Não é folgazã a marquesinha, mas é tão linda, e além disso marquesa. Vou afidalgar-me de grande apesar da distinção das castas, é um pouco singular, mas enfim!...

A senhora de la Tour-du-Roy afrouxava o passo a medida que se aproximava de casa, e subiu tranqüilamente os degraus da escada. Encontrou o marido no terraço. Estava só.

— Saiba, minha querida, lhe disse ele, que começava já a estar inquieto por sua causa.

— Inquieto por minha causa! repetiu Lazarine, e por que motivo, meu Deus?

— Não sabia onde estava, debalde perguntava aos ecos, eles não me respondiam!...

— Andava passeando no parque.

— A estas horas da noite e só! E não tinha medo?

— Sou muito valente! respondeu a jovem sorrindo.

— Porque não pediu o meu braço? Teria muito gosto em lho oferecer.

— Estava conversando com o senhor Vèdel. Para que havia de eu ir incomodá-lo? E demais procurei a solidão e o silêncio. Começava a importunar-me um enxaqueca.

— E agora?

— O silêncio e a solidão fizeram-me bem. Estou muito melhor.

— Um sono reparador completará a cura.

— Assim o espero.

O Marquês reconduziu sua mulher para os seus aposentos, e no momento de se separar dela, porque a pretendida dor de enxaqueca exigia isolamento, perguntou-lhe:

— Já está mais modificada a sua opinião a respeito do pobre rapaz que tanto lhe incomodou os nervos?...

— Sim e não. Continuo a achá-lo importuno, mas de outro modo. Era inconveniente, agora é aborrecido. O seu pretensioso mutismo ao jantar, e os seus ares de chorão eram muito ridículos. Em todo o caso, progrediu, e os segundos modos são preferíveis aos primeiros. Desconfio que, apesar do que eu lhe pedi, o senhor fê-lo censurar por Lourenço.

— Não disse coisa alguma, afirmo-lhe.

— Então aquele rapaz compreendeu que, achando-se pela primeira vez admitido à mesa de gente da grande roda, era preciso deixar à porta os costumes das tabernas, e não sabendo a linguagem da boa gente, resolveu calar-se. É sensato e prudente.

O senhor de la Tour-du-Roy pôs-se a rir.

— Pobre Heitor, murmurou ele, decididamente detesta-o!

Lazarine encolheu os ombros.

— Detestá-lo, eu? repetiu ela com uma indiferença esmagadora. Ah! não, meu Deus! não faço essa honra. Indiferença é o que ele merece, e não lhe nego a minha.

No dia seguinte Bégourde teve uma decepção séria.

Um pouco antes de jantar começou a chover, tornando impossível a entrevista no parque; passou-se a noite numa saleta onde o Marquês e Lourenço Vèdel, muito fortes no jogo das damas, entabularam uma partida interminável, e nem uma palavra se trocou entre Heitor e Lazarine.

No outro dia o céu radiante permitiu aos jovens indenizarem-se.

O senhor de la Tour-du-Roy devia ao artista a desforra de uma partida ganha na véspera, e enquanto ele lhe dava a desforra, a Marquesa corria ao rendez-vous ajustado.

Durante meia hora Bégourde recitou com a sua mais indolente voz uma série completa de madrigais preparados com cuidado, e que ele julgava irresistíveis... depois afoitou-se e tentou conduzir Lazarine para um quiosque, cuja posição tinha estudado.

A Marquesa saboreou os madrigais, mas para o mais mostrou-se severa, não permitiu que se usurpassem os direitos do Marquês, e declarou do modo o mais claro que a menor alusão ao quiosque faria com que ela se retirasse para não mais voltar.

Este modo de proceder numa mulher que se comprometia tão loucamente, pode parecer inverossímil, e todavia explica-se facilmente.

Lazarine nestas entrevistas perigosas não via senão um divertimento de bom gosto, uma distração atrevida.

Queria ler o romance de princípio a fim, sem saltar uma página, sem cortar um parágrafo. Se fosse impossível suprimir o epílogo, pois bem, sofrê-lo-ia mas com custo e o mais tarde possível... numa época determinada e vaga que ela repelia para longe.

A sua organização ainda pouco ardente de rapariga muito nova, tinha-a quase sempre completamente ao abrigo de uma surpresa dos revelasse para ele, achava-se muito longe do fim que julgava atingir...

Esta firme crença alegrava-o, e durante três noites consecutivas, disse de si para si com comoção, ao separar-se de Lazarine que não lhe concedia nem mesmo o nado de um simples beijo:

— Será amanhã...

Deu-se um acontecimento imprevisto que modificou absolutamente a situação já tão tensa dos nossos personagens.

 

CATÁSTROFE

Uma manhã, oito dias pròximamente depois da chegada ao castelo de Lourenço Vèdel e de Heitor, o Marquês e Lazarine saíram para um passeio a cavalo.

Quando voltaram, pelas dez horas, encontraram Júlio Leroux fumando um charuto no terraço.

O ex-banqueiro, que se aborrecia muito de estar em Vertes-Feuilles, vinha almoçar com seu genro e sua filha.

A jovem Marquesa abraçou o pai não com muita ternura, pediu notícias de suas irmãs por descargo de consciência, e deixando juntos os dois, subiu aos seus aposentos a fim de mudar o seu vestido de amazonas por um penteador.

Muito naturalmente o senhor de la Tour-du-Roy falou dos trabalhos que mandara executar pelos dois artistas parisienses, e proferiu o nome de Lourenço Vèdel.

Não menos naturalmente Júlio Leroux testemunhou o desejo de ver esses trabalhos.

O Marquês conduziu-o para a galeria onde mestre e discípulo, empoleirados nas suas respectivas escadas, pintavam com toda a atividade.

Querido senhor Vèdel, disse ele, apresento-lhe o meu sogro o senhor Júlio Leroux... Senhor Júlio Leroux, aqui está o senhor Vèdel, cujo talento tão distinto aprecia como verdadeiro conhecedor.

Durante esta apresentação e os apertos de mão que se seguiram, Heitor trepado na sua escada apresentava a mais extravagante atitude.

— Pior! disse ele consigo, isto vai mal!... Se este tirano me reconhece, está tudo perdido! Ora, por que não me há de ele reconhecer? Isto é que é azar!...

E, parecendo todo entregue ao seu trabalho, voltara-se de costas para os visitantes, encobrindo a cara com a palheta.

Este manifesto embaraço despertou a atenção do senhor de la Tour-du-Roy que se dispunha a fazer a apresentação do rapaz. Supôs alguma nova crise de timidez e absteve-se de mais nada.

Mas o ex-banqueiro, depois de ter admirado as pinturas de Lourenço Vèdel, aproximou-se do quadro que Heitor pintava com extrema atividade.

— Realmente, disse ele, aí está o que me parece de um perfeito bom gosto, o senhor segue muito bem as pisadas do grande artista cujos trabalhos partilha!

Por única resposta aquele elogio, Júlio Leroux obteve apenas uma espécie de grunhido inarticulado.

Admirado daquela flagrante falta de política encarou Heitor que debalde se ocultava com a sua palheta, e exclamou:

— Oh! com certeza! é o senhor Bégourde, se não me engano, é o mesmo!

— Para o servir, senhor Leroux, balbuciou o artista desesperando de conservar o seu incógnito.

— Conhecem-se? perguntou o Marquês muito admirado.

— Sim... sim... conhecemo-nos e muito, redarguiu o pai de Lazarine ironicamente. O senhor Bégourde ajudou durante seis semanas a fazer as pinturas do meu palácio no boulevard Hausseman há hoje dezoito meses... nesse tempo tinha eu um palácio.

Heitor, para dizer alguma coisa e para ocultar a sua perturbação, murmurou:

— Então, era eu discípulo de Jawosky...

— E tem feito de então para cá grandes progressos, senhor Bégourde, redarguiu Júlio Leroux num tom cada vez mais sarcástico. Faço-lhe os meus cumprimentos!

— Que bondade a sua, senhor Leroux!... que bondade! balbuciou Heitor.

— É esta a minha opinião, senhor Bégourde! Não sei ser senão justo, muito justo, e o senhor bem sabe porque teve a prova.

Heitor abaixou a cabeça; foi tal a sua confusão que lhe caíram os pincéis, e que precisou descer da escada para ir apanhá-los.

O marquês escutava aquele singular diálogo, e sentiu o coração opresso por uma vaga angústia.

Ele que vivia muito lealmente e cujas ações podiam ser analisadas com toda a luz, via-se de repente transportado para um meio de assustadora obscuridade.

Pela primeira vez na sua vida, talvez, experimentava um sentimento doloroso que muito se assemelhava à dúvida, à desconfiança, à suspeita...

O moço artista havia freqüentado durante seis semanas o palácio de Júlio Leroux.

Por que era então que tanto Lazarine como ele pareciam não se conhecer?

Porque motivo Lazarine pergunta: "Heitor Bégourde é muito bonito, não é?" respondeu: "Pode ser... não sei nada disso... Vi-o, mas não olhei bem para ele, não o reconheci!..."

Como é que Heitor, pelo seu lado, fazia mistério dos seus trabalhos executados em casa do pai da Marquesa?

— Que significava aquilo, a que atribuir aquele silêncio? que motivos havia para aquela dupla mentira?

Roberto fazia a si mesmo estas perguntas, e não achava que lhe responder.

Deu o braço a Júlio Leroux. conduziu-o para fora da galeria, arrastou-o para o parque, e disse-lhe num tom de voz que revelava a sua perturbação interior:

— Permita-me que lhe dirija uma pergunta? — Com certeza!

— E promete-me responder sem hesitação e sem reticências?

— Prometo.

— Ou eu compreendi mal o tom de voz em que há pouco falou a Heitor Bégourde, ou então a passagem deste rapaz por sua casa deixou-lhe desagradáveis recordações.

— Meu caro Marquês não se engana.

— Deu-lhe razão de queixa?

— Não tenho que me lisonjear das nossas relações.

— Tenho o maior interesse, percebe, em conhecer a natureza das afrontas que recebeu de um rapaz que é meu hóspede, e que recebo à minha mesa. Tem a censurá-lo de alguma indelicadeza?

— Não... não... redarguiu vivamente o ex-banqueiro, não duvido da sua probidade.

— Então que fez ele?

— O que ele fez... começou Júlio Leroux, mas não concluiu. A idéia de que ia denunciar Lazarine a seu marido fê-lo deter-se de repente, e censurou-se acerbamente por ter se metido num labirinto donde não sabia como havia de sair.

— O que ele fez.. repetiu ao fim de um ou dois segundos, falando com extrema lentidão para achar palavras que substituíssem as idéias, não é possível bem explicar.

— Por que?

— Porque não posso apresentar acusações claras e positivas. A minha opinião desagradável a respeito de Heitor Bégourde resulta de um conjunto de circunstâncias que consideradas isoladamente não têm importância alguma, e só adquirem uma certa gravidade unidas. Os hábitos deste rapaz, os seus costumes, as suas opiniões, são pouco convenientes. Indaguei, colhi deploráveis informações, exceto, repito,no que diz respeito à sua probidade. Bégourde pertence a uma raça boêmia de que o senhor não tem conhecimento. A sua presença é comprometedora numa casa.

— Se essa casa o recebesse como amigo, compreendia-se, interrompeu o senhor de la Tour-du-Roy, mas quando admitido como artista?

— Compromete ainda assim, acredite-me! Não me pediu a minha opinião? apresento-a.

— Então, lamenta vê-lo aqui?

— Experimento uma viva contrariedade.

— Aconselha-me a despedi-lo?

— Por todos os modos.

— Desejaria fazê-lo, mas como? Deve concordar que as suas acusações não têm nada de preciso. Não posso pois apresentar uma qualquer razão em que me firme para despedir este rapaz. Sob que pretexto hei de despedi-lo?

— Causa-lhe isso embaraço?

— O maior de todos.

— Quer que eu me encarregue da questão?

— Não me atreveria a pedir-lho, mas ficaria eternamente grato.

— Bom, está tudo combinado. Hei de explicar-me com ele ao levantarmo-nos da mesa, e hoje mesmo desaparecerá... a propósito, há de ser necessário pagar-lhe o seu trabalho...

— E pagá-lo liberalmente. Há de entregar-lhe dois mil francos. É o algarismo estipulado para ele por Lourenço Vèdel, mas o trabalho devia durar um mês, e há apenas oito dias..

— Na verdade! o senhor é extremamente generoso, e tem toda a razão! Há de fazer-se tudo à medida do seu desejo.

Versou a conversação sobre diferente assunto, e ainda que Júlio Leroux tentava dar-lhe uma animação fictícia, deslizou feia e triste até o terceiro toque de sineta anunciando o jantar.

O Marquês estava convicto de que se sogro lhe ocultava alguma coisa, e que a única afronta que motivara na verdade a expulsão de Bégourde era exatamente aquela que ele não dizia.

Quando regressavam para o castelo, perguntou num tom de indiferença :

— Lazarine e sua irmã Renée, se não me engano, há um ano estavam como pensionistas num colégio?

Júlio Leroux não reparou na armadilha.

— Não, meu caro Marquês, está enganado, redarguiu ele. A fortuna que não soube conservar, permitia-me ter em casa mestres para minhas filhas... Nunca saíram da casa paterna.

O senhor de la Tour-du-Roy empalideceu um pouco. Sabia já o que queria.

Parecia-lhe materialmente impossível que Lazarine não conhecesse Heitor, pelo menos de vista, pois que ela habitava o "boulevard" Hausseman, na época em que todos os dias, durante seis semanas, ali ia trabalhar.

Por isso a jovem era colhida em flagrante delito de impostura.

Ter-se-íam então estabelecido entre ela e o excêntrico mancebo relações que fosse conveniente ocultar?

A possibilidade de uma dúvida a tal respeito, infligia ao senhor de la Tour-du-Roy um sofrer intolerável, que se esforçava por dissimular.

Se Júlio Leroux tinha concebido a esperança de ir respirar em casa de seu genro a atmosfera de alegria que não havia em Vertes-Feuilles, achava-se iludido.

O jantar foi de uma tristeza desoladora.

Lazarine assustada de ver seu pai e Bégourde em frente um do outro, encarava com terror as conseqüências daquele encontro, e não podia dominar a sua comoção.

Devorava-a a febre. Apoderara-se dela o nervoso e fazia-lhe tremer as mãos. Tinha distrações singulares; não ouvia, não compreendia, respondia ao acaso.

Nenhum destes sintomas, que todos constituíam a acusação da jovem, escapava ao olhar investigador, posto de atalaia, do Marquês de la Tour-du-Roy.

O ex-banqueiro deplorava cada vez mais a sua imprudência, e curvava a cabeça sob o peso das censuras que a si mesmo dirigia.

Quem lhe mandara fazer de D. Quixote nos negócios de seu genro?!

Se agradasse a Lazarine casada, continuar os pecadilhos de Lazarine solteira, que tinha com isso o sogro do senhor de la Tour-du-Roy?

Não lhe teria sido cem vezes melhor nada ver e nada saber?

Júlio Leroux dizia a si mesmo estas coisas, e abismava-se no seu arrependimento, aí dele! um pouco tardio.

A penosa situação de Bégourde adivinhava-se facilmente, sem que seja necessário descrevê-la.

O pobre rapaz estava o mais atribulado que é possível estar-se, e nem mesmo procurava simular sangue frio.

O Marquês, silencioso e sombrio apesar dos seus esforços para conservar o seu modo habitual, estudava aqueles rostos, desfigurados pelas diversas comoções que de cada um se apoderara, e procurava ler neles a solução do espantoso caso.

Lourenço Vèdel era o único que se conservava como de costume; mas como ninguém travava com ele conversação, sujeitava-se ao mutismo geral, bebendo bem, e comendo melhor, perguntando de si para si que catástrofe inexplicável cairá sobre o castelo e fulminara os seus moradores.

Em tais condições, a refeição não podia prolongar-se muito.

Os dois artistas voltaram para a galeria.

— Sinto-me um pouco incomodada, disse Lazarine ao marido e ao pai, o passeio desta manhã fatigou-me muito. Peço-lhes licença para ir descansar por uma hora.

E sem esperar resposta, desapareceu.

O Marquês propôs uma partida de xadrez a Júlio Leroux.

— Às suas ordens, respondeu este último, antes porém, bem o sabe, tenho um dever a cumprir, e vou, se me dá licença, cumpri-lo quanto antes. Faz favor, dá-me os dois mil francos.

E encaminhou-se para a galeria.

Heitor Bégourde ao vê-lo entrar e certificando-se que vinha só, teve um pressentimento de mau agouro.

 

O PASSADO

Sabemos já quão bem fundado era o ressentimento do mancebo.

— Senhor Vèdel, disse Júlio Leroux, dê-me licença que lhe roube por um momento o seu colaborador, preciso falar-lhe.

— Heitor está às suas ordens, e eu igualmente, redarguiu o artista.

O ex-banqueiro cumprimentou Vèdel e continuou:

— Ouviu, senhor Bégourde?

— Perfeitamente, senhor Leroux.

— Quer ter a bondade de me seguir?

— Pois não! grande prazer me dá, afirmo-lhe, senhor Leroux,

— Então, quando quiser...

— Pronto...

Heitor desceu da escada, mas o rosto penalizado e dolorido não exprimia o muito prazer que tinha afirmado. O pai de Lazarine abriu a porta da galeria.

— Passe... disse ele.

— Para onde vamos, senhor Leroux?

— Para o parque senhor Bégourde, ali estamos muito à nossa vontade para conversar.

Os dois homens, sem proferirem uma palavra, tomaram pela rua do parque abobadada de folhagem, onde a Marquesa e o pintor se haviam encontrado.

Chegados, ali, Júlio Leroux fez alto.

— Aqui ninguém nos ouve, começou ele, exporei, portanto, sem demora, o que tenho a dizer... Lembra-se com certeza do que se passou entre nós há dezoito meses...

Heitor balbuciou:

— Lembro-me que o senhor foi em extremo severo, senhor Leroux.

— Não tanto como o merecia, senhor Bégourde! O senhor portou-se como um canalha.

O rapaz, muito pálido até ali, ruborizou-se e cresceu para o ex-banqueiro:

— Senhor! exclamou ele, senhor!

— Fale menos alto! interrompeu o ex-banqueiro. Qualquer comédia de dignidade ofendida seria inútil comigo! Sustento o que disse. O homem pobre, de um passado duvidoso, e de um futuro-problemático, que se atreve a falar de amor a uma criança de dezesseis anos, filha de um banqueiro que tem milhões (tinha-os naquela época), é um canalha. Desafio-o a que me desminta! sabe bem que tenho razão!

Heitor, profundamente humilhado, baixou, pois, a cabeça.

— Pô-lo na rua, continuou Júlio Leroux; estava no meu direito, e cumpria o meu dever, e esperava não ter mais que me ocupar do senhor. Como sucede, pois, que venho encontrá-lo aqui?

— O senhor Vèdel propôs-me para o acompanhar, e vim... murmurou o mancebo. Onde está o mal?

— Sabia que minha filha era a Marquesa de la Tour-du-Roy?

— Dou-lhe a minha palavra de honra que o ignorava.

— Embora! mas quando chegou, reconheceu-a?

— Isso, sim.

— E fingiu não conhecê-la?

— Era natural, dava-me o exemplo, e parecia nunca me ter visto...

— Para com meu genro e para com o senhor Vèdel, compreendo isso... mas encontrou-se a sós com a senhora Marquesa, e conversou então como conhecido antigo?

— Nem uma só vez! afirmo que entre mim e a senhora Marquesa não se trocou nem uma palavra.

— Pois bem, quero crer, e de mais não é essa a questão. O senhor não pode ficar aqui, compreende?

— Mas! Por que? Que mal faço eu?

— A sua presença compromete minha filha, escusado é responder e discutir. Senhor Bégourde é preciso partir.

— E quando?

— Hoje mesmo.

— Que pretexto se há de dar a tão repentina retirada?

— Isso é consigo. Procure-o. Diz-se que os artistas têm boa imaginação e grande gênio criador. Prove que assim é!

— Então é uma ordem que me dá, senhor Leroux?

— Em absoluto, senhor Bégourde!

— E se eu recusasse obedecer?

— Preveniria simplesmente ao senhor de la Tour-du-Roy, de que o senhor no palácio do "boulevard" Haussmann tinha ousado erguer os olhos para aquela que é hoje sua esposa. O resto seria com ele.

Heitor pôs a mão na cintura na atitude de um espadachim consumado e exclamou:

— Se o senhor Marquês se julgar ofendido, achar-me-á pronto a dar-lhe satisfação.

Júlio Leroux encolheu os ombros.

— Decididamente, o senhor está doido! redarguiu ele. A suposição de um duelo entre o senhor e meu genro é uma fantasia de tal gênero que passa a ser loucura. O Marquês de la Tour-du-Roy fez muito bem em despedi-lo ao senhor para evitar o incômodo de o expulsar.

Bégourde por segundo vez reagiu.

— Senhor Leroux, redarguiu ele num tom empolado, nós já não estamos no tempo do feudalismo, em que os lacaios dos nobres ousavam levantar a mão contra qualquer que não tivesse brasão! Um artista hoje, senhor Leroux, é o igual seja de quem for! Fizemos um bom número de revoluções expressamente para isso! Sou pois um cidadão...

— De Charenton! concluiu o ex-banqueiro. É essa a minha opinião. Pais dirá essas bonitas coisas aos lacaios de meu genro quando eles vierem com os seus chicotes. Adeus, senhor Bégourde!

E Júlio Leroux fez gesto de afastar-se.

O mancebo plenamente convencido de que se provocasse um conflito, aquele conflito seria em sua desvantagem, não deixou o seu interlocutor retirar-se, e detendo-o, usou um subterfúgio para salvaguardar o seu amor próprio.

— Cedo, disse ele, não porque receie as conseqüências de uma repulsa, mas para evitar confundir nesta desagradável discussão o nome de uma pessoa pela qual professo o mais profundo respeito.

— Ainda bem, senhor Bégourde, redarguiu o pai de Lazarine, estimo ouvir-lhe essas palavras sensatas, as primeiras que proferiu desde o começo da nossa conversação... Procedendo assim, procede como cavalheiro! Uma carruagem de meu genro conduzi-lo-á a Orleans donde passará a Paris.

— Peço-lhe licença para acabar antes de partir um quadro começado há três dias.

— Quanto tempo precisa?

— Duas horas apenas... e pintando explicarei como puder a Lourenço Vèdel a minha partida repentina.

— Concedo! É meio dia e meia hora no meu relógio... A carruagem que tem de conduzi-lo há de estar pronta às quatro horas. E agora, senhor Bégourde, outra coisa.

— O que mais?

— Nada de desagradável. Meu genro, que não suspeita coisa alguma de um passado ridículo, mas a quem fiz compreender que por motivos só de mim sabidos, a sua presença nesta casa não me agradava, encarregou-me disto para o senhor.

E Júlio Leroux, tirando da algibeira do colete notas do banco dobradas, apresentou-as a Heitor que, sem tocar nelas, perguntou:

— O que é isso?

— São dois mil francos.

— Por que motivo me manda dar o senhor Marquês essa quantia?

— A título de pagamento ou de indenização, isso como quiser. É, além disso, como ele me disse, a remuneração fixada por Vèdel pelos seus trabalhos.

Heitor abanou a cabeça e recusou as notas.

— Perdão, senhor Leroux, disse ele, não estamos de acordo... há erro.

— Acha pouco.

— Acho de mais.

— Mas visto que estava combinado.

— Estava combinado que eu recebesse dois mil francos por um mês de trabalho. Não tendo trabalhado senão oito dias, ganhei apenas quinhentos francos, nem mais um real...

— Esquece a indenização?

— Qual indenização? Julga acaso que eu aceitaria dinheiro para ser posto na rua sem dizer palavra. Ah! então é que eu seria verdadeiramente canalha. Que linda opinião formou a meu respeito! Muito obrigado, senhor Leroux.

— Contudo, senhor Bégourde...

— Não insista! interrompeu o rapaz. Tudo quanto dissesse seria debalde. Devem-se-me quinhentos francos... dê-me quinhentos francos.

— Ei-los.

— Quer recibo?

— Não é preciso.

— Muito bem. Vou concluir o meu quadro. É provável que nunca mais nos tornemos a ver, então, adeus, senhor Leroux, e creia-me seu criado.

Em seguida, Bégourde, rodando sobre os calcanhares, dirigiu-se para o castelo, deixando o ex-banqueiro muito surpreendido daquela inesperada atitude e formulando a sua surpresa nos seguintes termos:

— É com certeza um libertino, mas, enfim, sempre é melhor que parece.

Júlio Leroux reuniu-se ao genro que não tinha ainda saído da sala e que lhe perguntou logo:

— Então?

— Está tudo arranjado, passou-se tudo na melhor ordem do mundo.

— Ele parte?

— Às quatro horas, num trem que há de mandar aprontar..

— Convenceu-se facilmente?

— Muito dificilmente, pelo contrário, mas o essencial foi o conseguir-se. Faz favor de guardar esses mil e quinhentos francos. Foi impossível fazer-lhos aceitar. No fim de contas o garoto tem bom coração. E agora, se é da sua vontade, vamos à partida do xadrez com que prometeu regalar-me.

O sogro e o genro havia uma hora que estavam sentados em frente do tabuleiro do jogo, quando o senhor de la Tour-du-Roy, recebeu a notícia de que um dos seus guardas acabava de ser assassinado por caçadores furtivos numa floresta a quatro léguas do castelo, no caminho para Orleans.

A gendarmeria do distrito procedia à averiguação.

— É necessário a minha presença! exclamou o Marquês deixando a partida interrompida. Depressa um cavalo! Quer acompanhar-me? ajuntou ele dirigindo-se a Júlio Leroux.

Este não aceitou.

— Fico fazendo companhia a Lazarine, que por certo não tardará muito que saia do quarto, respondeu ele, e quero assistir à partida do jovem Bégourde.

— Ainda o encontrarei ao senhor na volta?

— Não é provável. Ê possível que o senhor se demore muito, e eu às cinco horas regresse a Vertes-Feuilles, onde sou esperado por minhas filhas para jantar.

O senhor de la Tour-du-Roy apertou a mão do seu sogro, pedindo-lhe para voltar com Joana, e Renée, em seguida, montou a cavalo e partiu a galope.

Lazarine de uma das janelas do seu quarto viu-o afastar-se__

desceu logo.

— Ah! meu pai, murmurou ela, em que enorme dificuldade nos lançou a todos!...

— Ora, respondeu o ex-banqueiro, bem sei que foi uma tolice... era melhor que eu me calasse... enfim, não lamento muito a minha imprudência, porque acabo de prestar-te um assinalado serviço.

— A mim? exclamou a jovem. A mim?... um serviço?...

— Enorme!... indiscutível!... Mais cedo ou mais tarde, minha queridinha, Bégourde havia de comprometer-te. É certo que o Marquês te adora, mas vejo perfeitamente que se tivesse a menor suspeita seria um marido para temer!... Graças a mim o perigo deixou de existir. Cortei o mal pela raiz.

— De que modo?

— O tal Bégourde, às quatro horas da tarde levanta feira, e vai ver novos climas! Mas que tens, filha? Que é isso? Parece que estás incomodada?

Lazarine, com efeito, estava pálida.

 

— Que tens? repetiu Júlio Leroux apalpando as mãos da filha. Assustas-me!... Ao menos, responde-me!...

— Isto não vale nada, murmurou Lazarine, com voz fraca, um incômodo súbito, sem gravidade, e que se dissipou já.

Efetivamente as faces da jovem recobraram em parte as cores vivas.

O ex-milionário esperou alguns instantes, e quando a senhora de la Tour-du-Roy lhe pareceu de todo boa continuou abanando a cabeça.

— A coincidência singular deste começo de síncope, quando te dava parte da saída de Bégourde parece-me um desagradável sintoma! Por acaso este boêmio de ínfima escala produziria no teu coração uma impressão qualquer?

Lazarine tornou-se tão corado quanto pálida estava antes. Ah! meu pai, balbuciou ela ocultando o rosto entre as mãos, não julgue tal!...

— Sei que és inteligente, e sobretudo positiva, continuou Júlio Leroux; não te julgo capaz de tomares a sério um capricho tão mal empregado. Mas como te vês no campo, isolada num grande castelo, mulher de um marido que já não é rapaz, aborreces-te, e para te distraíres, comprometes-te, sem refletir, indo de noite a entrevista em que o romantismo e o platonismo entram por doses iguais. Não penso em interrogar-te, mas se quisesses ser franca...

O ex-banqueiro calou-se, esperando ouvir uma negativa e prometendo a si mesmo não acreditar nela.

A Marquesa de cabeça sempre baixa, não hesitou.

Aquele silêncio era uma confissão, por isso Júlio Leroux prosseguiu, paternalmente, com a sua cínica corrupção de velho licencioso.

— Nunca te preguei moral, minha querida, faz-me essa justiça; não começarei hoje, e de mais os teus negócios conjugais não me dizem respeito, mas tu és a minha muito querida filha, e vou dar-te um bom conselho; Bégourde era no teu caminho uma pedra de escândalo perigosa. Eis-te, graças a mim, livre dele; deixou de existir para ti. Se ele tentar algum dia transpor o abismo que separa a Marquesa de la Tour-du-Roy, arquimilionária, de um rapaz obscuro e pobre; se tentar envolver-se na tua vida, não tenhas dó nem compaixão. Despede-o logo dizendo-lhe: — Não o conheço. — Teu marido não tem suspeitas, e não pode tê-las, mas despertou a sua desconfiança. Pouco seria necessário para produzir uma explosão terrível. Se, por acaso, o marquês te perguntar como sucedeu que não reconhecesse Bégourde quando aqui entrou com Lourenço Vèdel, responde-lhe sem hesitar que julgavas realmente nunca tê-lo visto, e que, se, efetivamente, te encontraste com ele noutro tempo, não te lembras, porque nunca ligaste importância a tão ínfimo personagem sem nome e sem valia.

— Pois julga isso, meu pai? perguntou Lazarine, que não pode deixar de rir ao ouvir aquelas teorias.

— Crê no que te digo, e verás que te dou um bom conselho. A conversação continuou, mas o que para adiante disseram pai e filha, não nos parece que possa interessar aos nossos leitores.

Às quatro horas menos alguns minutos ouvira-se o tilintar de guizos e campainhas e o rodar de uma carruagem.

Júlio Leroux aproximou-se da janela, e viu no pátio um pequeno "breack"-ônibus, descoberto, puxado por dois fogosos normandos à espera de Bégourde e da sua bagagem.

Ato contínuo, apareceu um criado trazendo a mala do artista, em seguida, o artista acompanhado por Lourenço Vèdel, a quem achara meios de explicar a sua partida de uma maneira quase verossímil.

— Lourenço Vèdel apertou cordialmente a mão do discípulo. Heitor Bégourde tomou assento no "breack" ao lado da mala, e, volveu para a fachada do castelo um longo e melancólico olhar, enquanto o cocheiro ajustava as rédeas. Os cavalos partiram.

— Boa viagem! murmurou Júlio Leroux, ou antes, os diabos te levem.

Voltou para junto de Lazarine.

— Queria ver e vi! disse ele. Daqui para o futuro não há que temer de um inimigo que bate em retirada. Faze favor de mandar selar o meu cavalo... É o teu antigo poney... Monto-o quase todos os dias, e gosto do seu modo de andar.

Trouxeram o poney cujas crinas compridas e fartas Lazarine se dignou acariciar com a sua fina mão de fidalga.

O ex-banqueiro abraçou Lazarine e partiu a meio trote.

A jovem, involuntariamente perturbada e abatida, dirigiu-se para os seus aposentos.

Quando transpunha o limiar do seu quarto, uma carta posta, muito à vista, em cima do tapete azul que cobria a mesa do fogão, atraiu o seu olhar.

O sobrescrito tinha esta direção, escrita com letra disfarçada: Senhora Marquesa de la Tour-du-Roy,

E mais abaixo, estas duas palavras duplamente sublinhadas: Absolutamente pessoal.

Lazarine julgando ser algum pedido, abriu o sobrescrito com indiferença, mas ao desdobrar a carta estremeceu e franziu a testa. A carta continha esta assinatura: Heitor.

— Escreve-me!... atreve-se a escrever-me!... Que audácia e que imprudência!... É a mais rematada loucura! Como explicaria eu a existência desta carta a meu marido, se ele tivesse entrado aqui antes de mim?...

A jovem porém refletiu que não havia realmente esse perigo a temer, porque Bégourde quando trouxe a carta, sabia com certeza que o senhor de la Tour-du-Roy não estava no castelo.

Acalmou um pouco a sua excitação, e leu sossegadamente a entusiástica carta, para a qual reclamamos a indulgência dos nossos leitores. Heitor não era estilista.

"Senhora marquesa, ou antes Lazarine, adorada Lazarine, — porque me concedeu o direito de a tratar assim, e consagrar-lhe tão doce nome, não extinguindo a ardente paixão em que se abrasava minha alma de artista e de amante, — é este o grito de um coração desesperado.

"Lazarine, afastam-me do seu palácio, retiram-me da sua presença, condenam-me a uma tortura de todos os instantes, porque viver sem vê-la é morrer!... Faltar-me a sua presença é faltar-me o ar que se respira. O sangue paralisa-se-me nas veias geladas. E aquele que me impõe um tão cruel suplício, aquele que despedaço a minha existência, é um homem ao qual devo obediência completa, porque é seu pai.

"Parto, Lazarine, finjo partir, porque o seu sossego e a sua tranqüilidade de espírito são-me mil vezes mais caras do que a minha própria felicidade; há porém sacrifícios que se não deveriam exigir do homem a quem o amor consome e devora. Afastar-me de todo sem tornar a vê-la, sem proferir a seus pés um adeus que será talvez eterno, é um desses impossíveis sacrifícios.

"Volto à noite, Lazarine. Hei de transpor os muros do seu parque quando a noite baixa do céu, estendendo sobre os amantes loucamente apaixonados os véus protetores da sua escuridão profunda. Tenciono introduzir-me naquela rua sombria do parque, que foi testemunha dos meus juramentos e das minhas esperanças.

"Irá ali ter comigo, sim? embora só por alguns minutos, e deixará que lhe jure, pela última vez, um eterno e sincero amor que triunfará da ausência e do tempo, e só acabará quando eu acabar! Levá-lo-ei comigo para esses mundos desconhecidos, para onde breve descerei, apesar de ser tão moço ainda, porque quando se sente o coração ferido e já sem esperança, a mocidade nada consegue... é impotente!

"Até à noite, idolatrada Lazarine! até à noite, marquesa a mais formosa! Esperá-la-ei... — Seu, Heitor."

A senhora de la Tour-du-Roy releu duas vezes aquela prosa esquisita; a primeira vez deixando escapar um sorriso, a segunda mostrando-se zangada.

— Aquele rapaz era esperto noutro tempo, murmurou ela, era até o que mais me agradava nele! Não se parecia com o vulgar das gentes. Por que escreve ele tão tolamente?

Ao formular aquela reflexão, que Bégourde tinha todo o direito de julgar ofensiva, a jovem acendeu uma das velas dos candelabros, chegou a carta à luz, e deitando-a num vaso de prata dourada, viu-a arder, o que foi obra de um instante.

Depois de ter destruído a carta, queimou o sobrescrito, e deitou as cinza ao vento arremessando-as pela janela afora!

Em seguida a isto, deixou-se cair sobre uma cadeira, e perguntou a si mesmo muito indecisa:

— À noite, que partido hei de tomar? Devo ir à entrevista que me pede? Não seria grande o perigo desta suprema entrevistar por que não hei eu de conceder o que ele me pede? Tenho confiança em mim, e se Heitor se quisesse impor de novo, seguiria sem piedade o conselho de meu pai, e responderia ao importuno: Não o conheço!... Finalmente, irei? não irei? É questão esta muito difícil... Ora? tenho tempo para refletir. Quando anoitecer veremos o que hei de fazer.

 

Vamos ter com o senhor de la Tour-du-Roy que deixamos quando se despediu de Júlio Leroux, a galopar em direção a Orleans pela floresta onde tinha sido assassinado um dos seus guardas.

Dois tiros de espingarda tinham sido disparados sobre o desgraçado, um na cabeça, outro no ombro.

A arma homicida fora carregada com chumbo grosso; as feridas, ainda que muitas e graves, não pareciam, contudo, mortais

O guarda recobrou os sentidos quando o Marquês chegou, e o médico chamado a toda a pressa pode certificar a este último que não lhe parecia muito provável um caso fatal.

O ferido interrogado pelo chefe da escolta dos gendarmes, disse quem era o homem que parecia ter reconhecido, e desmaiou novamente.

Dois gendarmes improvisaram uma padiola, transportaram-no para casa, ao passo que o resto da força armada destacava em busca do malfeitor, sobre quem, já antes da declaração do preso, havia suspeitas.

Roberto deixou uma soma relativamente importante à infeliz mulher do guarda, recomendou ao médico para que multiplicasse as visitas, e montando de novo a cavalo, às cinco horas, dirigiu-se para o castelo.

Tinha apenas andado alguns quilômetros, quando viu ao longe o pequeno ônibus que os dois normandos faziam voar pela estrada, tilintando muito os guizos, e pôde verificar, não sem ficar muito admirado, que no ônibus não vinha pessoa alguma.

O cocheiro abrandou o passo dos cavalos, ao ver o amo, e a um sinal deste fez parar o trem.

— Aonde vais, Baptista? perguntou Roberto.

— Orleans, senhor Marquês.

— Quem te enviou?

— O mordomo veio dizer-me que o senhor Marquês mandara que tivesse o trem pronto às quatro horas para conduzir ao caminho de ferro o moço pintor e a sua bagagem.

— Então, porque é que vens só?

— A bagagem vem na carruagem.

— E o pintor? Onde está ele?

— A distância de uns quatro quilômetros do castelo, apeou-se.

— Era preciso esperar por ele.

— Disse-me isso. Ele pediu-me para não esperar, que conduzisse a sua bagagem à gare, e não me importasse com ele... "Não tenho pressa", ajuntou, "quero desembaraçar as pernas fazendo a jornada a pé, e como ando bem, chegarei antes da noite." Não podia teimar. Parti. O senhor Marquês vai com certeza encontrar-se com ele em menos de uma hora.

— Está bom. Continua.

Baptista cumprimentou-o; a carruagem abalou a todo o galope, e desapareceu envolta numa nuvem de pó.

 

UMA NOVIDADE

O senhor de la Tour-du-Roy durante alguns segundos conservou-se imóvel no meio da estrada.

A transtornada expressão do seu rosto indicava claramente quão :Sombrios pensamentos se debatiam naquele momento no seu espírito.

Não mentia aquela expressão.

A vaga desconfiança que vimos nascer aumentava, tomava corpo, transformava-se em suspeita.

O estranho procedimento de Heitor Bégourde fingindo partir •e não partindo, iluminava com um clarão funesto tudo quanto tinha.sabido pela manhã.

Parecia-lhe muito provável que Heitor e Lazarine se conheciam há dezoito meses.

Para que tinham então, de comum acordo, representado a comédia de serem estranhos um ao outro?

Júlio Leroux insistindo tão tenazmente pela partida de Bégourde, é porque sabia mais do que queria dizer...

Que enigma de vergonha velavam aquelas reticências?

Finalmente, o proceder do mancebo ficando nas proximidades do castelo em lugar de se dirigir a Paris, demonstravam uma combinação entre ele e a Marquesa. Se ele se escondia era para tornar a vê-la; era certo que naquela noite reunir-se-iam em entrevista.

A conclusão daquelas diferentes suspeitas desencadeavam no espírito do Marquês uma tempestade de cólera.

Esporeou o cavalo que saltou para frente, e lançou-o num galope desesperado, sem cuidar dele, sem o suster, não olhando aos perigos que corriam, cavaleiro e cavalo, naquela velocidade de locomotiva.

E galopando sempre como o espectro da balada de Burger, o senhor de la Tour-du-Roy repetia em altas vozes:

— Hei de matá-los!... hei de matá-los!...

Aquela excitação mental que parecia um delírio, durou pouco.

Sucedeu-lhe uma quietação relativa que permitiu ao Marquês refletir. Meteu a passo o cavalo coberto de suor, e murmurou:

— Para o fazer, é preciso surpreendê-los! Para surpreender é preciso lutar com eles! Luta de astúcia e de velhacaria! Dão-me o exemplo do jardim... vamos empregar o ardil! Ocultam-se... ocultar-me-ei!

Roberto consultou o relógio. Eram seis horas e meia.

Naquele momento estava à distância de oito quilômetros da castelo.

À direita e à esquerda estendiam-se, a perder de vista, grandes bosques de que era o proprietário.

Deixou de seguir a estrada distrital, e tomou por um atalho-que o conduziu em dez minutos a casa de um guarda.

— Lebineau! chamou, parando ao pé da porta.

Um rapazinho de doze anos, de rosto inteligente, saiu de casa e gritou:

— Mãe... mãe... olhe o senhor Marquês!

No mesmo instante uma mulher ainda nova, e que não era feia, trazendo ao colo uma criança de peito, apareceu no limiar da porta.

— Ah! senhor marquês, disse ela com uma profunda reverência, que pena há de ter meu marido!

— Lebineau está ausente?

— Anda no giro, senhor Marquês e não volta senão muita tarde. O senhor Marquês queria-lhe falar? Se for coisa que eu lhe possa dizer...

— Não tem dúvida, não te dê cuidado, boa Ursula... Não tenho nada de urgente para lhe dizer... Tens papel?

— Sim, senhor Marquês, e tinta também, e apenas, enfim todo o necessário para escrever. Tudo isto é preciso para Lebineau fazer os seus relatórios e formar os seus autos.

O senhor de la Tour-du-Roy apeou-se deu as rédeas ao pequeno, que ficou muito orgulhoso com aquele sinal de confiança, depois transpôs o limiar da casa disposta com um asseio à holandesa, assentou-se a uma mesinha de carvalho negra muito polida, e escreveu uma pequena carta.

Naquela carta destinada a Lazarine, Roberto dizia em estilo de telegrama, sem entrar em detalhes, que o acontecimento do guarda ferido o demoraria por muito tempo; portanto, que era preciso não esperar por ele para jantar, e que não lhe desse cuidado se a sua ausência se prolongasse por uma parte da noite.

Quando o senhor de la Tour-du-Roy fez o sobrescrito de tão lacônica carta, perguntou:

— O Pedrinho tem boas pernas, não é verdade, minha boa Ursula?

— Tem pernas de cabrito montes... redarguiu a mulher do guarda, era capaz de desafiar uma lebre a correr.

— Ele sabe o caminho daqui para o castelo?

— Conhece-o como os seus dedos, tem lá ido mais de cinqüenta vezes com o pai.

— Quanto tempo gastaria daqui até lá?

— Quase uma hora, sem cansar muito.

— Dás licença que o empregue num serviço por uma ou duas horas?

— Pois não! está às suas ordens, senhor Marquês, é grande honra para nós.

— Obrigado, boa Ursula.

O senhor de la Tour-du-Roy saiu de casa, pegou nas rédeas, deu a carta a Pedrinho acompanhada de uma moeda de cem soldos, e disse-lhe!

— Vais a toda a pressa daqui até ao castelo, meu pequeno. Conheces o criado grave, o Domingos?

— Conheço, sim, senhor Marquês.

— Pede para falar, e recomenda-lhe da minha parte que entregue imediatamente esta carta à senhora Marquesa.

— E depois?

— Depois?... Voltarás. Não tens mais nada a fazer.

— É quanto basta, senhor Marquês.

O rapaz meteu a carta na algibeira, embrulhou a peça de cem soldos numa das pontas do lenço, e abalou como um veado perseguido pela matilha.

O Marquês tornou a montar a cavalo; ia para se afastar, mas lembrou-se de repente:

— Ursula, prosseguiu ele, Lebineau tem revólveres, não é verdade?

— Tem, sim, senhor Marquês, dois, tem dois como todos os guardas. Poucas vezes os leva consigo. Estão pendurados ao pé do armário. O senhor Marquês havia de vê-los há pouco.

— Estão carregados?

— Lá isso não sei, mas tem cartuchos em casa.

— Tenho de andar até tarde pelo campo, é preciso cautela, não sabemos o que pode acontecer. Dá-me um dos revólveres, boa Ursula...

— Pronto, senhor marquês.

A mulher do guarda foi dentro de casa e voltou trazendo uma pistola pequena, de aço, muito polido, com coronha de ébano, muito simples, mas de excelente fábrica.

O senhor de la Tour-du-Roy certificou-se de que os seis cartuchos metálicos estavam no seu lugar, e meteu a pistola na algibeira do lado do casaco.

— Obrigado, e até mais ver, disse ele.

— Tenho a honra de cumprimentar o senhor Marquês, respondeu Ursula; depois acrescentou com uma visível hesitação: Mas... mas... o senhor Marquês está incomodado?

— Porque me perguntas isso?

— Porque o senhor está muito pálido... Parece-me que faria bem beber uma pinga de aguardente antes de ir embora.

Roberto disse que não com a cabeça.

— Temo-la muito boa! continuou a mulher do guarda. Não admira, veio do castelo. Deu-nos o intendente duas garrafas delas por ocasião do casamento do senhor, e nós guardamo-las para as festas de estrondo em recordação de um tão belo dia.

— Um belo dia, efetivamente; repetiu Roberto com uma voz abafada. Um dia muito belo!... Adeus, Úrsula... não preciso nada.

Depois chegando as esporas ao cavalo, partiu a galope.

— São singulares estes personagens... murmurou a senhora Ursula seguindo-o com o olhar. Iria jurar que o senhor marquês está transtornado de cabeça...

O senhor de la Tour-du-Roy andou pela floresta até ao momento em que escureceu de todo.

Dirigiu-se então a toda a pressa para o castelo, abriu uma das portas do muro que o rodeava, com o trinco que sempre o acompanhava, entrou no parque, prendeu o cavalo no meio de uma mata, e dirigiu-se para a avenida coberta, onde por duas ou três vezes de noite Lazarine tinha ido ter com o pintor.

Porque era que o Marquês, que não sabia nada de positivo, ia ali e não a outra parte? perguntar-nos-ão talvez. A resposta é simples.

Ia ali e não a outra parte, porque a razão que o impelia para aquele ponto era muito lógica.

A tal avenida, pelo doce mistério das suas sombras espessas e separada do edifício unicamente pela largura do tabuleiro de relva devia atrairá os namorados que de pouco tempo podiam dispor.

Mais perto do castelo ficariam muito expostos, e para encontrarem lugar semelhante ao verde túnel da avenida abobada, era mister ir procurar muito longe.

O senhor de la Tour-du-Roy lembrava-se também das fugas repentinas de Lazarine depois de jantar, exatamente na mesma ocasião em que Heitor desaparecera da sala, ou do terraço.

Estas fugas não se prolongavam. Ao fim de meia hora, quando muito, a Marquesa voltava; era pois muito verossímil que vinha da avenida coberta.

Roberto emboscou-se na mata, cuja espessura Bégourde conhecia bem, e contendo as palpitações do seu coração e o tremor dos seus nervos, esperou com toda a paciência.

Ouviram-se as oito horas ao longe.

O céu estava límpido como um cristal; miríades de estrelas constelavam o firmamento parecendo uma poeira de diamantes; as embriagantes emanações das flores do outono saturavam a atmosfera, e espalhavam no ar como que um sopro de volúpia.

O senhor de la Tour-du-Roy viu ao longe a fachada escura do castelo. Das janelas da sala de jantar e da sala de bilhar caíam sobre as laranjeiras do terraço uns reflexos luminosos branqueando a coma das árvores. O resto jazia na sombra. Um passo rápido e leve pisou a areia da avenida; logo depois passou por diante do Marquês uma forma pouco distinta, na qual lhe pareceu reconhecer o vulto de Heitor Bégourde.

— Então, disse ele consigo, não me enganei... É aqui que eles se encontram!...

A sua mão direita apertou febrilmente, sob o casaco, a coronha do revólver.

Ao fim de alguns segundos, a bulha dos passos cessou, em seguida um estalar de ramos agitados, um frêmito de folhas esmagadas, indicaram a Roberto que o passeante noturno procurava como ele um asilo no cerrado da mata.

O silêncio tornou-se completo.

Ouviram-se as oito horas e meia, depois as nove.

Iluminaram-se muitas janelas no primeiro andar, e entre elas, o senhor de la Tour-du-Roy reconheceu a do quarto de sua mulher.

— É inexplicável! disse ele. Está só... julga-se livre... que há então que a retenha?

Roberto fazia a si mesmo estas perguntas, e vinha uma como que viva sensação de alegria inundar-lhe o coração.

Esperava chegar a certificar-se de que as suas suspeitas assentavam em falsas aparências.

As luzes do "rez-de-chaussée" apagaram-se; pela segunda vez em passo rápido pisou a areia.

— Ei-la!... disse consigo o Marquês, caindo do alto das suas; esperanças.

E a mão crispada apertou de novo o revolver.

 

DESENLACE

Desta vez ainda o senhor de la Tour-du-Roy se enganara.

O ruído que se aproximava era pesado, desembaraçado e, segundo toda a verossimilhança, produzido por calçado masculino.

Dentro em pouco dissipou-se a dúvida; o passeante fumava, e o lume do charuto iluminou vagamente por um segundo o rosto de Lourenço Vèdel.

O artista deu quinhentos ou seiscentos passos pela avenida, depois retrocedeu e não voltou.

Roberto esperou ainda.

O relógio deu dez horas.

As hastes e as folhas da mata, sacudidas com força, agitaram-se. Heitor Bégourde, a quem denunciava a alvura das calças, reapareceu na avenida.

Ao passar pela frente do Marquês, o estróina ia murmurando!

— Ora esta! não estava zombando comigo? O diabo leve as mulheres. Não me torna a acontecer outra.

E, tomando pela rua lateral que conduzia aos muros do parque, afastou-se a toda a pressa.

As palavras de Bégourde produziram no senhor de la Tour-du-Roy o efeito de um bálsamo refrigerante sobre uma chaga.

O alívio foi repentino. O sossego substituiu a febre. A angústia que lhe oprimia o coração desapareceu.

A cólera do namorado logrado justificava implicitamente a Marquesa e destruía todo o pretexto para sérias acusações.

Lazarine zombava de Heitor! Ele mesmo o havia dito.

Portanto a jovem podia ter sido coquete, imprudente, (a sua muita mocidade pedia indulgência), mas não era culpada...

O Marquês, aliviado do grande suplício que o esmagava havia muitas horas, nem mesmo se deu ao trabalho de perseguir Bégourde •e exigir dele uma explicação.

Que lhe importava daí para o futuro um estróina que não mais tornaria a encontrar no seu caminho? e, além disso, como havia de puni-lo de erguer os olhos para Lazarine? Arrancar-lhe as orelhas faria escândalo. Desafiá-lo? a enorme diferença da idade e de posição social tornava absurdo e ridículo um duelo, que demais iria comprometer grandemente a marquesa...

Era melhor parecer que não tinha desconfiança daquela aventura sem desenlace.

O senhor de la Tour-du-Roy foi buscar o cavalo, conduziu-o à •cavalariça como tendo chegado naquele instante, em seguida dirigiu-se para casa.

O criado estava à espera e abriu-lhe a porta.

— Domingos, perguntou Roberto, trouxeram uma carta minha, não é verdade?

— Sim, senhor Marquês, eram sete horas... Pedro, o filho do guarda Lebineau, entregou-ma em mão para eu mesmo a apresentar à senhora Marquesa. Logo depois serviu-se o jantar. O senhor Marquês quer cear? A mesa está posta, e o cozinheiro espera...

— Estou cansado e não vou para a mesa. Trás-me numa mesinha, para o meu quarto de toilette, carne fria e vinho de Bordeaux. É quanto basta.

O senhor de la Tour-du-Roy subiu aos seus aposentos.

O seu quarto era contíguo ao da Marquesa; e uma porta oculta pelas tapeçarias punha em comunicação direta o quarto de dormir do marido com o da mulher.

Roberto quis abrir a porta. Estava fechada por dentro. Bateu devagar.

— É o senhor, Roberto? perguntou a voz de Lazarine. Imagine, meu amigo, que estou metida na cama e que corri o ferrolho.

— Então, deixá-la-ei dormir!

— Não! isso não! Espere um bocadinho, já me levantei... pronto...

O ferrolho correu, a porta abriu-se e Lazarine, descalça, embrulhada, no transparente véu da sua camisa, como uma ninfa mitológica vestida pelo vapor das águas, abraçou o Marquês com os seus braços deslumbrantes, colou as suas faces aos lábios dele e correu a meter-se na cama.

Um candieiro de abajur iluminava um romance novo aberto em cima de uma mesinha de cabeceira.

— Estava aborrecida, disse a jovem, deitei-me, e para matar o tempo enquanto o esperava, estive lendo.

— Então pareceu-lhe comprida a noite?

— Imensa! ah! eu lamentava deveras não ter pedido a meu pai para ficar... Após a chegada da carta pusemo-nos à mesa, o sr. Vèdel e eu. Jogamos depois uma partida de bilhar, mas eu estava de mau humor, falhavam-me as carambolas mais fáceis, e isso fazia-me zangar. Despedi-me do sr. Vèdel e vim-me deitar.

— Fazia-lhe talvez falta o jovem Bégourde? inquiriu o Marquês com modo indiferente.

Lazarine fitou no marido os seus olhos formosos, abanou a cabeça com um gesto de desprezo, encolheu um pouco os ombros, e redarguiu:

— Que falta me havia dele fazer, santo Deus? O pobre rapaz não tinha nada de engraçado! Não, não! não senhor, não sentia a sua falta!...

Isto foi dito num tom tão simples e tão natural que o senhor de la Tour-du-Roy sentiu-se desassombrado e cada vez mais se censurou e acusou de injuriosa a prova que havia tentado.

A Marquesa não suspeitava o perigo de que a sua boa estrela a tinha salvo.

Eis o que se passou:

Deixamos a jovem hesitante depois de ter recebido a ridícula missiva de Heitor pedindo-lhe uma última entrevista.

— Devo ir ou não? perguntava ela a si mesma. A pergunta é embaraçosa!

Depois concluía assim:

— Ora tenho ainda muito tempo para refletir. Quando anoitecer, verei o que devo fazer.

Anoiteceu. Chegou a hora da entrevista, Lazarine convencida da ausência do marido, sentia-se absolutamente livre; nenhuma vigilância importuna tinha a temer... Julgava-o pelo menos.

E, contudo, tomou resolutamente o partido de deixar Heitor enregelar-se à espera dela.

É que, no último minuto, os prudentes conselhos de Júlio Leroux, reproduzindo-se de um modo surpreendente, tinham-na feito refletir deste modo:

— Meu pai tem razão, é uma toleima. E demais, um amante tão pobre não me dá honra alguma! Cedo ou tarde seria necessário dizer-lhe: Não o conheço!... O meio de evitar esse incômodo no futuro aparece hoje. Abstendo-me de ir à entrevista, destruo um passado ridículo. A minha ausência é o ponto final destas relações, porque ela significa: — Já não o conheço!

E aqui está porque Lazarine em lugar de descer para o parque onde seu marido a estava esperando, louco de ciúme e de cólera, subiu para o seu quarto e meteu-se sossegadamente na cama.

Tudo sucedia do melhor modo no mais perfeito dos mundos!

 

Quem de uma vez teve ciúmes, tê-los-á sempre, pelo menos de quando em quando.

A desconfiança pode classificar-se entre as doenças incuráveis.

Quando um espírito se habitua à suspeita, desconfia com ou sem. motivo.

O senhor de la Tour-du-Roy, ao sair da rude prova porque acabava de passar, demonstrou a si mesmo sem o menor custo que a inocência de Lazarine era indiscutível.

Foram para ele momentos de inteira felicidade, muito curtos, porém.

Ao fim de alguns dias tornou-se de novo preocupado e triste. Lembrava-se, refletia, e as suas recordações não o tranqüilizavam.

O abandono ultra-familiar da jovem Marquesa com algum dos seus valsistas durante as festas do casamento deixava de lhe parecer inocente. Depois toda aquela história de Bégourde, incluindo a mal explicada intervenção de Júlio Leroux, pareceu-lhe envolta num mistério que perdera a esperança de esclarecer, mas que o inquietava de um modo estranho.

Não concluía por isso que Lazarine fosse infiel, não a julgava viciosa nem corrompida, mas julgava-a leviana, pronta para todos os desvarios, quase deserdada daquele senso moral que para a virtude feminina é a melhor égide.

Aquela opinião severa, e que, segundo sabemos, era justa, não o impedia de adorar sua mulher; talvez até a adorasse com maior ardor ainda, sentindo ameaçada a sua ventura.

Por mais violenta que seja a paixão, uma segurança muito completa a diminui.

Roberto, como homem sensato que era, resolveu tomar as suas medidas, e proteger contra si mesma a imprudente criança que não sabia defender-se.

Por isso, quando Lazarine, voltando de novo à carga, lhe manifestou mais uma vez que tinha desejos de o ver comprar para ela um palácio em Paris e instalá-la no centro do mundo elegante, respondeu que não tinha pressa, que mais tarde deliberaria sobre esse ponto, e que os seus projetos a por já em prática eram de outra natureza.

— Que projetos? perguntou a Marquesa assustada. Creio que não pensa em sepultar-me debaixo da neve, este inverno, em la Tour-du-Roy, nem mesmo em Orleans, onde morreria de aborrecimento... não gosto do campo senão no verão, e detesto as cidades de província.

— Não lhe hei de impor, creia, nem este palácio, nem o palácio de Orleans durante a estação triste, respondeu o Marquês sorrindo.

— Mas então, que havemos de fazer?

— Se assim o entende, minha queridinha, passaremos o inverno na Itália.

— Itália?

Aquele nome mágico tranqüilizou Lazarine, que nunca vira senão Trouville e Dieppe.

Na falta de Paris que ela preferia a tudo, uma viagem realizada em condições de grande luxo, parecia-lhe um mal muito aceitável.

— Na Itália? repetiu ela, em Florença? em Veneza?

— Sem contar Roma e Milão, redarguiu o Marquês. Iremos por toda a parte, e estabeleceremos em cada cidade uma residência, cuja duração será decidida pela senhora. Agradar-lhe-ia assim?

— Com certeza! respondeu a jovem, e o senhor é um marido encantador... Quando partiremos?

— Quando quer partir?

— O mais cedo possível.

— Era possível já, em rigor, mas como são precisos alguns preparativos faremos bem, creio eu, transferindo a nossa partida para a semana próxima.

— Seja, pois, na semana próxima.

— Cuide das suas bagagens... Leve bastantes e variadas toilettes... Os convites hão de ser muitos, e não podemos recusar todos... Uma das suas criadas graves e Domingos hão de acompanhar-nos, e tomaremos lá os outros criados de que tivermos necessidade.

Combinadas assim as coisas, Lazarine entregou-se de corpo e alma aos preparativos de viagem.

Roberto escreveu a Júlio Leroux pedindo-lhe para vir passar vinte e quatro horas em la Tour-du-Roy com Renée e Joana.

No dia indicado chegou o ex-banqueiro, acompanhado pelos filhas.

O Marquês pô-lo ao corrente do projeto, cuja realização estava próxima.

— A idéia é excelente, volveu Júlio Leroux, e aprovo-a de todo D coração. Não receia que Lazarine ao ver-se longe da família e da pátria, se sinta às vezes triste e isolada?

— Nunca a deixarei só.

— O senhor sabe como eu que um "tête-à-tête" interrompido torna-se monótono à força de ser duradouro... Seria preciso a Lazarine uma companhia.

— Tem razão... Mas aonde encontrar essa companhia?

— Ofereço-lhe a minha segunda filha.

— Consentiria em separar-se dela?

— Sem hesitar, ainda que com algum custo. Quando se trata de meus filhos, não há sacrifício que me custe. Está dito! Leva Renée?

— Sim, mil vezes sim, Levâmo-la, e Lazarine há de ficar muito contente.

— Então conceda-me o prazer de lhe anunciar esta felicidade. Júlio Leroux chamou de parte a jovem marquesa.

— Escuta, lhe disse ele, vou-te propor um encargo... procede como boa filha e aceita-o. Tu não gostas muito de Renée, que não é muito amável por ser de uma índole invejosa, exacerbada pela adversidade, mas enfim é tua irmã... O aborrecimento consome-a em Vertes-Feuilles... por enquanto não lhe vejo esperanças de nenhum marido. É triste! Tu podes tudo por ela. Leva-a para Itália... protege-a... patrocina-a... apresenta-a... no mundo... casa-a. Se quiseres, isso ser-te-á fácil. Tu és uma grande fidalga e Renée é bela... duplo motivo de um bom resultado certo. Farás isso, Lazarine?

A senhora de la Tour-du-Roy refletiu antes de responder.

É certo que ela não gostava da irmã, e a idéia de a ter por companheira não a seduzia muito, mas tratava-se de esmagá-la com a sua proteção, a rapariga altiva a quem revoltava toda a superioridade, e o orgulho de Lazarine achava nesta proteção um gozo acre e acerbo.

Renée não seria coisa alguma junto dela!

Renée dependeria dela absolutamente! Renée não existiria senão por influência dela. Não podia Lazarine sonhar uma mais brilhante desforra das insolências de outrora! Decidiu-se prontamente e respondeu :

— Sim, meu pai, farei o que deseja, com a condição porém de meu marido não por obstáculo.

— Então está combinado, exclamou Júlio Leroux esfregando as mãos, consultei meu genro e ele consente. Vou dizê-lo a Renée que te há de abraçar de alegria.

— Não o faça, meu pai, murmurou a marquesa sorrindo. Quando minha irmã me abraça, sei que o seu desejo é esmagar-me. Poupe-a a essa tentação... e sobretudo aos desgostos de não poder satisfazer O seu desejo...

 

JOANA

No começo da semana seguinte, o Marquês de la Tour-du-Roy, Lazarine e Renée, partiram para Itália, onde não tardaremos a ir ter com eles.

Júlio Leroux, que tinha ficado só em Vertes-Feuilles, pareceu de repente transformar-se.

Na dia seguinte seria difícil reconhecer nele o homem abatido, desanimado, triste, que não cuidava da sua pessoa nem da sua toillete.

De repente, como por encanto, recobrou a cara de outro tempo, os seus modos de egoísta a quem tudo sucede à medida dos seus desejos.

Sempre muito barbeado, enluvado a primor, o chapéu levemente inclinado para o lado, arqueava-se como na época feliz em que todos os dias era visto a subir os degraus da Bolsa, respondendo aos profundos cumprimentos dos corretores de câmbios, recebedores e outros, com um pequeno aceno de mão ao mesmo tempo bondoso e cheio de dignidade.

É porque Júlio achava-se de novo preso à vida. O futuro não se lhe apresentava sob cores muito sombrias. Tinha saudades de viver em Paris, e pensava de um modo muito sério em fortalecer-se durante algumas semanas na alegrias da grande cidade.

— Lazarine está muito bem casada, dizia ele consigo, e o dote que um marido menos rico teria de certo a exigir de mim ficou todo nas minhas mãos... O Marquês de la Tour-du-Roy achará meio, levado pelo seu orgulho, de casar Renée com algum milionário que não faça caso de umas centenas de mil francos, e que seria para ele um copo de água lançado no Oceano. Finalmente, Renée anda viajando com a irmã, e não tenho que me ocupar agora dela... Resta Joana. Esta porém é uma inocentinha, sem necessidades e sem desejos, contente com tudo, aprovando tudo, e por tudo risonha! Nunca vi criança menos incômoda. Estão, pois, minhas filhas felizes, ou em condições de o serem; tenho portanto o direito de cuidar também um pouco de mim. Não é na minha idade, que demônio (tenho apenas cinqüenta e seis anos) que se deva renunciar para sempre ao encanto da vida e clausurar-se como um monge. Morreria de tédio, palavra de honra! Preciso tornar a ver os "boulevards", apertar a mão a alguns velhos amigos, tomar lugar às mesas das casas de pasto da moda, e digerir alegremente as trufas e os foies-gras assentado num "fauteuil" de , orquestra das Variedades, dos Bufos ou do Palais-Royal... Concedo a mim mesmo Um mês de férias.

Tomada aquela resolução, Júlio Leroux escreveu ao seu alfaiate dando-lhe ordens, ao príncipe de Castel-Vivant anunciando-lhe a sua chegada, e pedindo-lhe para tomar dois quartos no Grand-Hotel.

Faltava prevenir Joana.

O ex-banqueiro fê-lo sem demora.

— Queridinha, disse-lhe ele à queima-roupa, deves estar aborrecida de viver aqui, não é verdade?

— Bem sabe, meu pai, respondeu a jovem, que não me aborreço em parte alguma... A palavra aborrecimento é vazia de sentido para mim... Além de que eu gosto muito do campo, e agrada-me este ponto mais do que qualquer outro.

— Mesmo depois de Lazarine partir, e Renée ir com Lazarine?... redarguiu Júlio Leroux.

— Sim, meu Deus!... As minhas irmãs, bem o sabe, são-me muito queridas... Mas ocupavam-se tão pouco da pobrezinha Gata Borralheira... que posso passar bem sem elas... de mais fica-me o pai, é quanto basta!

—E se eu me fosse também?

Joana olhou para ele com algum assombro.

— Se se fosse? repetiu ela. Então pensa em deixar-me?...

— Suponhamos que assim fosse necessário?

— Então ficaria eu inteiramente só!...

— E a solidão assusta-te?

— Inquietar-me-ia um pouco, confesso, se a sua ausência se prolongasse.

— Descansa... A minha viagem durará alguns dias, apenas.

— A sua viagem! É, então, sério?...

— Sim. Negócios urgentes me chamam a Paris.

— Julgava que já não tinha negócios.

— Sempre os temos, mesmo a pesar nosso.

— Muito bem! visto que é preciso, seja. Mas não se demore muito!

— O máximo será três semanas.

— Diligenciarei não estar triste, e esperá-lo-ei contando as horas •que me separam do momento do seu regresso.

— Dá cá um abraço, lindinha... és uma criatura angélica! Aquele com quem casares será um homem muito feliz!...

— E apresentar-se-á esse sujeito? perguntou Joana rindo.

— E por que não?... Então o marquês de la Tour-du-Roy, muito nobre e imensamente rico, não casou com Lazarine?

— E que prova isso? Lazarine merecia a felicidade de que gozava por todas as brilhantes qualidades que me faltam completamente. Lazarine é um lírio soberbo... eu sou a humilde e pobre violeta... Os lírios embelezam os jardins, e impõem-se à admiração... as violetas ocultam-se entre a relva. Arriscam-se a viver e a morrer ignoradas. E de mais, meu pai, é preciso dizê-lo? não tenho inveja da sorte de Lazarine.

— Terás tu ambições mais elevadas?...

— Não tenho ambição alguma; tenho um só desejo, ou antes uma só vontade, amar meu marido, se chegar a casar, e recusaria casar com um velho, embora ele fosse um príncipe e mais rico do que o banco de França.

— Lazarine ama o Marquês.

— Creio, eu é que não poderia amar o Marquês de la Tour-du-Roy senão como um pai, e a voz do coração brada-me que é mister experimentar pelo marido uma afeição mais terna e mais viva.

— Que santa inocência! murmurou Júlio Leroux sorrindo.

— Enfim, meu pai, quando parte? perguntou Joana afastando a questão do terreno em que se achava.

— Daqui a dois ou três dias... assim que receber as respostas que espero.

Chegaram as respostas.

O alfaiate anunciava que as ordens do seu freguês estavam executadas.

O Príncipe felicitava o seu amigo por ter sensatamente resolvido fugir do seu exílio, e enviava-lhe o número dos aposentos tomados por sua ordem no Grand Hotel.

Júlio Leroux, no dia seguinte, meteu dez notas de mil francos na sua carteira, depois abraçou Joana muito comovido, e comoção que foi tão penetrante que fez assomar uma lágrima nos olhos do estróina endurecido.

Uma linda vitória, presente de Lazarine, conduziu-o a Orleans; antes de chegar ao caminho de ferro dirigiu este telegrama ao senhor de Castel-Vivant:

"Chego aí hoje. Jantaremos juntos. Convida Tatá, se for possível; à falta desta, Nana."

 

Em um dos primeiros capítulos desta verídica narração, dissemos que Joana se sentia absolutamente feliz desde que seu pai e suas irmãs habitavam em Vertes-Feuilles por causa das catástrofes financeiras.

Ela gostava imenso da tranqüilidade, do campo, das grandes árvores, das flores e dos pássaros.

As tardes passadas no parque a ler ou a desenhar pareciam-lhe breves.

Tinha-se constituído intendente ou governante de casa, dirigindo' tudo com a mais estrita economia.

Apenas há quinze dias em Vertes-Feuilles, conhecia e beneficiava já os pobres e os enfermos que lhe chamavam o anjo bom.

Como dizíamos, Joana (denominada ainda por suas irmãs a Gata Borralheira) era a mais bonita e galante criatura que pode imaginar-se,

Na época do casamento de Lazarine, tinha ela dezesseis anos, um rosto rosado de querubim, sempre risonho, grandes olhos de uma candura, seriedade e doçura sem iguais, e nos quais parecia refletir-se o azul puríssimo dos céus.

Estavam muito tristes aqueles belos olhos no momento em que a jovem, de pé no mais alto degrau da escada, seguia com o olhar a carruagem que transportava seu pai a Orleans.

Quando a carruagem passou além da grade do parque, e desapareceu à vista, Joana, soltando um suspiro, enxugou com as costas da sua delicada mãozinha as pálpebras úmidas.

— Só! murmurou ela! eis-me só! É a primeira vez!... Mas daqui a quinze dias meu pai há de voltar. Prometeu-mo. Quinze dias passam depressa.

A jovem estava com a cabeça descoberta e os raios do sol batiam de chapa sobre a frontaria do palacete.

Uma espécie de vapor tênue e luminoso parecia desprender-se da relva e vibrar na atmosfera como nos dias mais quentes do verão..

Joana entrou em casa, assentou-se junto da janela, tirou da algibeira uma bolsa à antiga, e sacudindo-a fez tilintar as peças de ouro que continha.

— Deixou-me muito dinheiro, o meu bom pai, murmurou ela, muito dinheiro! quinhentos francos! não hei de gastar nada, e contudo não faço economias, é tudo para os meus pobrezinhos.

Sem lhe dar cuidado o calor abrasador, a filha mais nova de Júlio Leroux pôs sobre os louros cabelos o seu grande chapéu de palha ornado com um raminho de flores do campo, meteu na algibeira vinte francos em miúdos, pegou numa sombrinha da cor do vestido e preparou-se para sair.

No vestíbulo encontrou José, o boçal criado, chamado grave.

— Menina Joana, disse ele, a Mônica manda perguntar se durante a ausência do senhor seu pai quer que lhe sirvam as refeições às mesmas horas como até aqui?

— Diz à Mônica que lhe hei de dar pouco que fazer, redarguiu a jovem sorrindo. Coisa nenhuma será menos regular do que as minhas refeições durante a ausência de meu pai. Comerei a qualquer hora e não à mesa. Basta uma pequena coisa... pão, leite, frutas... uma pequena porção de carne fria durará para toda a semana.. Não é preciso cozinhar. Entendeste?

— Sim, menina Joana, entendi bem! felizmente não sou nenhum estúpido!

E o lapuz foi-se embora furioso, resmungando por entre os dentes:

— Não é preciso cozinhar! Olhem que lembrança! Oh! os amos! Se a menina Joana agraciar morrer à fome, isso é lá com ela! Mas a mim é que me não agrada trabalhar com a barriga a dar horas! Ah! isso é que não convém ao filho de meu pai! A Mônica há de comer comigo bem bons bocados, quando não levanto á feira e safo-me! Não dá muito honra servir em casa de um banqueiro falido.

Joana sem suspeitar a tempestade de cólera que fizera desencadear no acanhado cérebro do criado glutão, saiu de casa para dar o seu giro habitual pelas cabanas dos seus protegidos.

Apenas chegou fora do parque encontrou o cura da aldeia.

O digno eclesiástico correu muito solicito ao encontro da jovem.

Júlio Leroux, Lazarine e Renée, não faziam ostentação de impiedade, mas em matéria religiosa mostravam uma absoluta indiferença.

O ex-banqueiro, ao chegar a Vertes-Feuilles, fora deixar por civilidade um bilhete de visita ao presbítero e nunca mais lá tornara.

Nem o pai, nem as filhas mais velhas, punham nunca os pés na igreja.

Joana, ao contrário, religiosa, piedosa por instinto, ia à missa todos os domingos, e além disso estava relacionada com o bom cura. Ele dizia-lhe quais os enfermos a visitar, os infelizes a socorrer; era, numa palavra, o guia e o conselheiro da tocante e inesgotável caridade do bom anjo.

Os recursos, muito medíocres, da jovem tornavam bastante limitado o algarismo das suas esmolas, mas dava-as com tanta bondade, que os pobres sentiam-se quase ricos quando uma pequena esmola acompanhada de consoladoras palavras caia da mão dela para a mão deles.

— Bons dias, senhor cura, disse a jovem ao eclesiástico com um sorriso.

— Bons dias, menina Joana, não preciso perguntar-lhe aonde vai... sei de antemão onde a conduz o seu coração.

— Vou ver os pobres meus amigos... acompanha-me senhor cura?

— Hoje não posso ter esse prazer, mas vou comunicar-lhe uma feliz notícia.

 

O ANJO BOM

— Uma feliz notícia? repetiu Joana. Feliz para mim, senhor -cura?

— Feliz ao menos para aqueles a quem consagra um tão vivo interesse, e a quem chama os seus amigos os pobres, respondeu o padre.

— E essa notícia? Sou muito curiosa, senhor cura, peço-lhe -por isso que se explique depressa.

— Depois da morte do excelente doutor Gendron, que tivemos.a desgraça de perder há dezoito meses, e de quem lhe falei mais de uma vez, é preciso ir à capital do distrito daqui três léguas para encontrar um médico, e o doutor Verdier, um homem hábil de quem não quero dizer mal, não se incomoda de muito bom grado quando desconfia que não lhe será pago o seu trabalho.

— Bem sei isso, murmurou a jovem, e bastantes vezes o tenho -deplorado.

— Pois bem! menina Joana, acaba de se modificar muito favoravelmente a situação.

— Como?

— O doutor Gendron, viúvo e sem filhos, deixou por testamento a parentes afastados a modesta fortuna, resultado de quarenta.anos de trabalhos, a casinha bonita e elegante que fizera edificar em

Rancey, a cinco quilômetros de Vertes-Feuilles, onde habitava. A casa foi posta à venda completamente mobiliada ,mas não achou comprador ainda que o preço pedido pelos herdeiros fosse dos mais -módicos; oito mil francos, compreendendo a mobília. Ora, ela custou mais de quinze mil ao bom doutor, e o pomar rende hoje bem.

— Finalmente, a casa?

— Foi vendida, e recebi ontem a visita do seu novo proprietário.

— Aposto, interrompeu Joana, que o novo proprietário é um médico?

— Acertou... O médico é um rapaz de vinte e cinco anos... Estudou a faculdade em Paris, chama-se Máximo Giraud, e vive em companhia de sua mãe, a quem adora... O doutor Giraud produziu em mim a melhor de todas as impressões. Creio não me ter enganado afirmando que é um excelente coração. Parece instruído e inteligente. Não possui fortuna, segundo ele me disse; mas sim uma modesta mediania suficiente que lhe garante a ele e a sua mãe o pão de cada dia. O seu desejo, como é natural, é criar uma clientela, obter a justa remuneração do seu trabalho e das suas fadigas, mas ao lado desta ambição legítima, o doutor alimenta outra que tem a certeza de realizar sem dificuldade; propõe-se aplicar o seu tempo e a sua ciência ao serviço dos que sofrem, sem se importar de saber se poderão pagá-lo... quer ser, numa palavra, o médico dos pobres cá da terra.

Joana bateu palmas com uma alegria infantil.

— Mas isso é muito louvável, senhor cura! exclamou ela, é admirável!

— Admirável, efetivamente; e eu admiro, mas não me causa espanto. O doutor Gendron era assim. O senhor Máximo Giraud, pôs-se à minha disposição, pedindo-me para me dirigir a ele e mandá-lo chamar, ainda que fosse de noite, logo que um enfermo ou um ferido reclamasse imediatos cuidados. Pediu-me a lista dos velhos entrevados e dos enfermos de todas as idades por quem me interesso e que estão disseminados pelos arredores de Vertes-Feuilles e de Rancey.

— E deu-lhe a lista, senhor cura?

— Com certeza, minha menina. É a sua, pelo menos, nas proximidades de Vertes-Feuilles, e não tardará muito que não encontre •o doutor Giraud à cabeceira de algum doente.

— Assim o crê? exclamou Joana.

— É indubitável. Mais tarde ou mais cedo isso acontecerá. Amanhã talvez, ou talvez ainda hoje.

— Então volto para trás... murmurou a jovem.

— Porque?

— A idéia de me encontrar com um desconhecido, muito me inquieta e intimida.

— Essa inquietação não tem razão de ser. O doutor não tem nada de assustador, certifico-lhe. Bastará vê-lo e falar-lhe para se sentir com ele tanto à vontade como com um antigo conhecimento. Entre a menina e o mancebo, existe um traço de união muito forte! Caminham ambos em busca do mesmo fim, conduzidos por este guia divinal que se chama caridade!

— Essa palavra anima-me... já não tenho medo.

— E tem razão, porque Máximo Giraud, tenho a certeza, ser-lhe-á uma companhia simpática.

Algumas palavras se trocaram ainda entre o bom padre e Joana Leroux, a qual, em seguida, pôs-se a caminho para as choupanas dos seus protegidos, já não inquieta, tinha-o ela dito, mas muito preocupada com uma entrevista possível com o doutor recém-chegado.

A entrevista não se efetuou nesse dia nem no seguinte.

Máximo Giraud ocupava-se, de acordo com sua mãe, dos últimos detalhes da sua instalação na casinha de Rancey.

E faltara-lhe por isso o tempo para começar o seu projetado modo de vida.

No número dos doentes por quem Joana se interessava muito particularmente, havia uma viúva ainda nova, mãe de duas criancinhas.

Esta viúva, a quem a morte do seu marido, um rachador de lenha, bom trabalhador, reduzira à miséria, tinha vivido remediadamente fabricando cestos de vime que vendia por sua conta em Orleans.

Colhia de manhã cedo o vime nos vimeiros úmidos, trabalhava até à noite, e muitas vezes passava uma parte da noite no trabalho.

O excesso do trabalho, a falta de dormir, a privação de um sustento suficiente, debilitaram a pobre mulher cuja saúde até ali não tinha sido muito boa.

Genoveva, assim se chamava ela, lutou contra o mal com ferocidade, até ao dia em que, com desespero, se sentiu vencida.

O sangue que lhe corria nas veias estava enfraquecido pela anemia e queimado pela febre, tolhida, além disso, de terríveis dores reumáticas, incapaz de empregar com utilidade as suas magras e trêmulas mãos, deixou-se cair no seu pobre grabato, e disse que desejaria morrer, se não fosse a lembrança de que deixava após se umas pobres crianças abandonadas.

As duas criancinhas, das quais uma tinha nove anos, e a outra sete, sustentavam, então sua mãe que as havia sustentado até ali.

Mendigavam; porque na sua idade, compreende-se, era-lhes impossível o trabalharem.

Todas as manhãs, sem outra cobertura na cabeça que as resguardasse da chuva ou do sol mais do que os seus espessos e emaranhados cabelos; com os pés descalços enterrados na poeira ou na lama; partiam cada um para seu lado com um saquinho ao ombro, e enquanto era dia, paravam às portas das casas ou nos pátios das herdades, rezando um padre Nosso e pedindo esmola.

Com poucas exceções, — e as exceções aumentam o valor das regras, — os homens do campo não são generosos.

Severos para consigo, impondo-se a si mesmo privações de todo o gênero, aferrolhando todo o dinheiro que adquirem para comprar mais um pedaço de terreno, desprezando todos os gozos que o dinheiro pode dar, vivendo, finalmente, como miseráveis, não os comove o espetáculo da miséria dos estranhos.

Contudo, quando os dois rapazinhos regressavam à noite, após dez horas de caminhar, não traziam as mãos inteiramente vazias.

Alguns cêntimos, alguns liards, alguns esverdeados soldos até, tilintavam no fundo das suas algibeiras, e dentro dos saquinhos traziam sempre bocados de pão negro, ordinariamente tão duros que era preciso molhá-los em água morna para os amolecer antes de comer.

Ainda que fossem, inferior aquele alimento, obstava, todavia, a que Genoveva morresse de fome, e quando os cêntimos, os liards e os soldos formavam suficiente soma, uma das crianças ia à taberna mais próxima e comprava vinho para a mãe.

Aquela miséria ocultava-se no canto mais risonho que se pode imaginar. O canto da terra onde estava estabelecido o pobre casebre, deva fornecer um delicioso assunto aos pincéis de um aquarelista.

O defunto marido de Genoveva, já o dissemos, era rachador.

Dez anos antes tinha obtido do proprietário das grandes matas onde cortava lenha, a autorização de edificar uma casinha no extremo de um desses bosques.

Construída com troncos de árvores não desbastados, revestidos ainda da sua casca, ligados por meio de um cimento formado com terra argilosa e palha, a casinha cujo telhado era formado de colmo, estava situada a dois quilômetros das Vertes-Feuilles entre a estrada e a orla do bosque.

Algumas árvores seculares projetavam a sua sombra sobre o telhado musgoso e coberto de flores amarelas.

A hera que repontava nos flancos do frágil edifício abraçava-o e fortalecia-o com as suas hastes. Em volta no terreno que tinha sido outrora um cerrado cultivado, estavam plantas parasitas substituindo as couves, as cenouras e os nabos, e formando uma vegetação estranha de maravilhosa exuberância.

Quando um raio de sol caía sobre aquele pardieiro revestido de hera como as ruínas de vetusto solar, e sobre aquela flora selvagem e luxuriante, o conjunto destas coisas tão pobres formavam um quadro muito completo e de uma graça superior.

Se os exteriores da habitação eram risonhos, coisa nenhuma poderia imaginar-se de mais triste do que o interior.

As duas janelas muito pequenas, guarnecidas de vidros quase opacos, esverdinhados, da grossura do vidro de garrafa, mal permitiam que a hora do meio dia penetrasse uma luz pálida no único compartimento.

Defronte da porta, junto à parede do fundo, sobre um leito, ou antes um grabato construído como as paredes, isto é, de madeira não desbastada, assentava um enxergão esburacado, sem colchão nem lençóis.

Era a cama de Genoveva.

Ao pé daquela cama no chão da terra batida e pedregosa, viam-se dois feixes de palha e um montão de farrapos.

As crianças dormiam sobre esta palha e estes farrapos.

No meio da casa, existia um pequeno fogão cujo tubo subia pelo telhado.

Uma arca vazia, uma mesa coxa, dois ou três escabelos, constituíam a mobília.

De todas as traves do teto pendiam nojentas teias de aranha.. Em alguns cordéis estendidos viam-se dependurados vários trapos e farrapos.

Imagine-se, no leito que acabamos de descrever, a desventurada Genoveva, a tremer de febre, coberta com uma manta de cavalo furada em vinte partes, e formar-se-á uma idéia quase exata daquele interior sinistro, tal como existia antes da chegada de Júlio Leroux e de suas filhas a Vertes-Feuilles.

Desde esse momento, desde que Joana representava o papel de anjo bom dos pobres do país, as coisas tinham mudado um pouco.

A jovem que se interessava muito por Genoveva, cujo infortúnio lhe parecia imerecido, consagrava à pobre mulher uma grande parte das fracas somas de que podia dispor. A sua engenhosa caridade dava o meio quase milagroso de fazer muito com poucos recursos.

A boa criança tinha conseguido, afirmamo-lo, fazer do nada. alguma coisa.

A sordidez, a desordem inaudita da casa, forma substituídas por um asseio e por uma ordem relativa.

Todas as semanas, mediante uma retribuição módica, uma camponesa ia varrer e limpar as teias de aranha.

Genoveva pode repousar sobre um colchão os seus membros, magros, e deitar-se em lençóis de pano cru.

Teve caldo, uma pouca de carne e algumas gotas de vinho todos os dias. Os dois filhos, como já não tivessem necessidade de mendigar, conservavam-se ao pé de sua mãe.

Este melhoramento tão real do regimem da viúva, parecia não dar, contudo, sérios resultados, e Joana entristecia-se ao ver a sua protegida fraca e pálida como dantes. Com certeza que o mal, senhor absoluto daquele corpo exausto, era impossível de combater.

Triste, mas não desanimada, Joana não deixava de continuar a luta.

 

AS BOAS OBRAS DE JOANA

Três dias depois da sua conversação com o cura de Vertes-Feuilles, a jovem, à tarde, foi fazer à viúva sua visita quase cotidiana.

Um dos filhos, que brincava na estrada, entrou na choupana gritando:

— Minha mãe... minha mãe... aqui vem a menina.

Joana, com o sorriso nos lábios, dirigiu-se para a porta aberta; mas quando ia a transpor o limiar da porta parou comovida e hesitante.

Perto do leito de Genoveva, estava de pé um jovem tateando o pulso da doente.

O mancebo que estava de pé junto ao leito de Genoveva, e cuja inesperada presença fizera parar Joana no limiar, era de estatura média, muito trigueiro, nada belo, mas a irregularidade das suas feições inspirava, à primeira vista, simpatia.

A inteligência parecia irradiar-lhe na fronte arqueada e sombreada de cabelos escuros muito espessos.

Os olhos, negros como os cabelos, um pouco velados por longas pestanas muito escuras exprimiam uma infinita benevolência.

A boca, de lábios grossos, dizia bondade. O queixo quadrado, que modificava a expressão geral da fisionomia, indicava resolução e força de vontade.

O desconhecido largou a mão de Genoveva, deu alguns passos para a recém-chegada, cumprimentou-a com profundo respeito, e disse-lhe num tom de voz em que todas as notas graves vibravam com um timbre quase metálico:

— É mademoiselle Joana Leroux, suponho eu?

— Sim, senhor, respondeu a jovem sentindo o seu acanhamento dissipar-se como por encanto; em seguida ajuntou:

— O senhor doutor Giraud, não é verdade?

— Sim, minha senhora, respondeu por seu turno o médico. Já esperava este encontro, prosseguiu ele, desejava-o, porque sei todo' o bem que faz por estes sítios, e espero que vossa excelência não me recusará a alegria de tomar parte nas suas obras de caridade... Já teria tido a honra de apresentar-me no estado de Vertes-Feiuilles, mas tendo sabido, pelo excelente cura, da ausência do senhor seu pai., receei que a minha visita lhe parecesse inconveniente, e abstive-me.

Joana inclinou-se.

— Muito bem, senhor, perguntou ela em seguida, que pensa da nossa pobre Genoveva?

A palavra nossa, empregada pela jovem, concedia-lhe sem dúvida a parte de colaboração que ele tinha acabado de pedir.

— Vou dizer-lhe em voz alta e em presença da doente o que penso a seu respeito, redarguiu ele, porque não tenho nada de assustador a dizer. Genoveva e eu conversamos já. Sei tudo... O desgosto, o excesso de trabalho, as privações enfraqueceram de um modo singular a sua constituição já fraca, mas os seus bons cuidados começaram uma cura que é muito apreciável para mim, ainda que vossa excelência não possa talvez percebê-la. O resto é comigo. Alguns tônicos, e sobretudo alguns preparados ferruginosos, acabarão a sua obra, restituindo ao sangue enfraquecido os elementos que lhe faltam.

— E Genoveva curar-se-á?

— Assim o espero.

— Então, o senhor faz favor de escrever uma receita.

— Para quê?

— Para mandar vir da farmácia o que for necessário.

— Tenho a honra de lhe repetir, minha senhora, isso é comigo. Um pobre médico do campo deve ter à mão os medicamentos simples e baratos cujo uso é freqüente. A minha pequena farmácia, ainda que muito incompleta, tem o necessário para os casos que não apresentam gravidade. Queira continuar o que tem feito... já não é pouco... eu me encarrego do resto.

— Como lhe hei de agradecer, senhor?

— Agradecer-me? repetiu Máximo Giraud, e o quê? Eu é que estou reconhecido, minha senhora, pela parte que me quer conceder.

Joana inclinou-se de novo sem responder.

— O cura tinha muita razão, disse ela consigo, este rapaz é um "belo coração. Parece-me já que é um velho amigo.

— Agora, minha senhora, redarguiu o doutor, peço-lhe licença para retirar-me... Tenho ainda muitas visitas a fazer. Estou •com pressa de conhecer todos os seus protegidos, cuja relação me deu o cura de Vertes-Feuilles. Amanhã hei de trazer para Genoveva os remédios elementares de que ela precisa para se por de pé quanto antes, e hei de explicar-lhe as doses e o emprego... Adeus, minha senhora.

— Até outra ocasião, senhor doutor. Máximo Giraud cumprimentou Joana e saiu.

Quando ele saiu, a doente exclamou, erguendo as mãos descarnadas:

— Ah! Que bondoso e caritativo senhor! Um anjo como a senhora, e um médico como ele, ambos se interessam por mim! Deus é bom e nunca abandona os pobres!

Joana muito comovida deixou cair em cima da cama metade do «dinheiro que levava.

— Tanto dinheiro para mim! disse espantada Genoveva, a quem dez franco? pareciam uma soma considerável.

— Mande um dos seus filhos buscar um pouco de vinho... disse a jovem, e não poupe o dinheiro. Hei de renovar a quantia quando for preciso. Ouviu o que disse o doutor... Quero que se cure depressa, e quando estiver boa de todo, dar-lhe-ei algum trabalho fácil para que possa viver sem muito custo.

— Viver! murmurou a doente, sim, quero viver por gratidão, viver para amar, viver para a servir de joelhos.

— Sossegue, Genoveva...

— É possível sossegar, minha senhora, quando o coração transborda de dor? Via-me perdida... sentia-me morrer lentamente... e morria no desespero, por deixar, após mim, dois órfãos, duas crianças cheias de fome... a pedir esmola... sem amparo, contra as tentações da fome e os conselhos dos maus... mendigos agora, e depois quem sabe? Talvez ladrões. Veio... salvou-me... agora posso viver... hei de ver meus filhos crescerem, farei deles gente honrada, bons cidadãos e trabalhadores como seu pai. Ah! mademoiselle Joana, peçam-me para dar a vida pela menina! Verão se eu hesito!

Enquanto a pobre assim falava, lágrimas abundantes se soltavam de seus olhos e lhe sulcavam as faces.

— Genoveva, exclamou Joana, por que chora?

— Fazem-me bem estas lágrimas! Já não estou aflita, não se incomode mais por minha causa, pode-se retirar quando quiser, sinto-me feliz, quase forte.

As duas crianças tinham-se aproximado da cama.

A mais velha estreitou em seus braços a cabeça da mãe cuja comoção não sabiam compreender, cobriu-lhe de repetidos beijos as suas faces pálidas e os seus olhos úmidos.

O menor pegou numa das mãos de Joana, e sobre aquela mão colou os lábios.

 

Parece-nos indispensável dizer alguma coisa a respeito do pasmado de Máximo Giraud, e explicar, ainda que rapidamente, os motivos da sua instalação com sua mãe na aldeia de Rancey.

Madame Giraud era viúva de um capitão de infantaria reformado, sem fortuna, falecido dez anos antes.

No momento do falecimento do marido, possuía ela quatro mil libras de renda, a que juntava metade do ordenado de seu marido.

O oficial desejava que o filho seguisse a vida militar, e meteu-o na Escola de S. Cyr; o mancebo acedia ao desejo paternal, sem resistência, mas sem entusiasmo.

A sua vocação era outra, ele bem o sabia.

Os seus instintos impeliam-no para o estudo das ciências médicas, pelas quais seu pai manifestara injusto desprezo.

A morte do capitão modificou completamente a situação.

Máximo chegou à idade dos dezesseis anos, isto é, à idade em que se adota um modo de vida qualquer.

Em lugar de trabalhar para seguir a carreira militar, o mancebo trabalhou para seguir a medicina.

Os seus estudos foram muito sérios e incansáveis. Fez os exames de um modo brilhante, praticou como aluno interno nos hospitais de Paris, adquiriu o diploma de doutor, e para exercer a medicina só lhe faltavam os doentes.

Madame Giraud, orgulhosa de seu filho, convencida de que um belo futuro lhe estava reservado, e que não tardaria muito que não o visse entre aqueles a quem o mundo chama os príncipes da ciência, veio para Paris depois de ter vendido uma pequena propriedade que tinha no Juta, e resolveu viver com ele numa casinha do "faubourg"' Poissonière.

A maior parte do preço da venda da propriedade, foi empregada em mobiliar comodamente a casa. Não se tratava de deitar poeira nos olhos, mas de não afastar a clientela por aparências muito-modestas.

Só o aluguel de dois mil francos devorava metade do rendimento. Viver com o resto parecia impossível, e era com efeito, mas madame Giraud e seu filho contavam com os clientes futuros para estabelecer o necessário equilíbrio.

A decepção não se fez esperar.

Os clientes conservavam-se para Máximo no estado de mito, e ele cheio de respeito por si mesmo não tentou atraí-lo recorrendo ao charlatanismo de que alguns seus colegas lhe davam o ruidoso-exemplo.

Começou então para o nosso doutor a existência desanimadoras a que é votada fatalmente a maior parte dos médicos que começam. Sentiu-se digno, e ficou obscuro; via os doentes apinharem-se nas antecâmaras de certas nulides tornadas célebres à força de reclame, e nunca ouvia baterem-lhe à porta; estas coisas ferem profundamente o amor-próprio, não falando dos embaraços pecuniários, conseqüências inevitáveis de um tão triste estado.

Aqueles embaraços, bem o sabemos, eram menos para temer em Máximo do que em muitos outros.

Madame Giraud vendeu alguns rendimentos.

Graças a tão ruinoso expediente, foi fácil suprir a falta de receita e esperar ainda, confiando sempre.

Esta esperança e esta confiança prolongaram-se por três anos.

A situação melhorara um pouco, porém, de um modo inteiramente diferente. Alguns pequenos comerciantes do bairro reclamavam lá de tempos a tempos os cuidados de Máximo, e tratando-o como médico de terceira classe, entendiam ser generosos pagando-lhes as suas visitas por um preço muito ridículo.

Chegou enfim o momento em que caíram as ilusões da mãe e do filho.

O peso de um aluguel, apesar de muito modesto, a carestia do viver em Paris, não lhes permitiam continuar a permanecer naquele estado. Teimar em prosseguir a luta à sua custa, quer dizer, comer o capital, conduzi-los-ia, numa época determinada, a uma ruína completa e inevitável.

Era preciso evitá-la sem demora, e tomar um partido qualquer, mas qual?

O acaso veio em auxílio do pobre rapaz.

Olhou para um jornal de medicina que se lhe deparou, e viu na quarta página um artigo do maire de Rancey (Loiret) pedindo para a vila um doutor, que tinha certa uma honrosa clientela sem concorrência. Uma bonita casa mobiliada, em bom estado, com um bom pomar, estava disponível, a juntava o mesmo artigo, em conseqüência da morte do médico que a ocupava. Era vendável a dita casa pela módica quantia de oito mil francos, quantia inferior à metade do seu valor real.

Máximo mostrou o jornal a sua mãe, pediu-lhe que lesse o artigo que analisamos, e perguntou:

— Que diz, minha mãe?

— Na província vive-se mais barato, respondeu a viúva. É certo que lá poderíamos passar com os nossos pequenos rendimentos... Mas não te custaria a ti, cujas legítimas ambições eram tão elevadas, sepultares-te numa aldeia?

— De modo nenhum.

— Realmente?

— Afianço-lhe.

— Então vai ver a terra e visitar a casa. Se uma e outra coisa te convier, melhor. Ao menos ficaremos sossegados, e achar-me-ei bem em toda parte, contanto que estejamos juntos.

No dia seguinte, Máximo partiu para Orleans.

Uma carruagem particular conduziu-o a Rancey.

Terra, clima, casa, tudo lhe pareceu encantador. O "maire" deu-lhe as melhores informações a respeito da futura clientela, ajuntando que a falta de médico constituía uma calamidade pública em uma área de mais de três léguas.

O rapaz voltou muito satisfeito.

Madame Giraud, satisfeita também Por vê-lo contente, vendeu a maior parte da mobília de Paris, inútil daí em diante.

A casa foi comprada e paga logo. Em seguida a mãe e o filho instalaram-se em Rancey.

Os anos de decepção tinham custado caro; contudo, restavam à viúva, e por conseguinte a Máximo, três mil e quinhentas libras de rendimento.

 

OS DOIS PROTETORES

Ter sonhado a celebridade, e, talvez, também a fortuna conquistada pelo trabalho e pelo talento, e ver-se afinal reduzido à humilde posição de médico de aldeia, era cair de muito, e, contudo, Máximo não se sentia por isso infeliz.

O mancebo tinha sofrido tanto durante a sua estada em Paris; tão inúmeras tinham sido as decepções, tão pungentes as inquietações que a idéia de um porvir imutável, e que se não era brilhante, era pelo menos tranqüilo, causava-lhe intima satisfação.

Sucediam-se os dias uns aos outros, monótonos todos e todos semelhantes, mas livres de lutas e cuidados.

— Amo a ciência pelo que ela é, disse Máximo. Trabalharei e muito. Paris não é o único teatro onde o homem pode distingüir-se. Tomarei nota das observações que se me oferecerem. O acaso me fará encontrar fatos singulares para estudar. Quem sabe até se, qualquer dia, um livro, por longo tempo meditado, fruto da observação e de um estudo sossegado, tirará o meu nome da obscuridade à qual hoje parece estar condenado?

Às qualidades sérias cuja existência verificamos, o mancebo juntava uma alma generosa, um coração aberto à compaixão.

Resolveu converter-se em providência dos deserdados deste mundo, condenados pela miséria a um sofrimento sem tréguas.

— Eu que sou quase pobre, dizia ele consigo, dispensarei aos mais pobres do que eu os cuidados que muitos dos meus confrades vendem caro aos seus clientes ricos. E era este o meu único luxo.

Por isso, ainda antes de completar a sua instalação, foi visitar o cura de Rancey, o de Vertes-Feuilles, e os moradores de outras duas ou três aldeias mais próximas, e pediu-lhes informações a respeito dos doentes a quem a miséria tinha posto ao abandono.

O cura de Vertes-Feuilles ao dar-lhe a lista que ele desejava, falou-lhe detidamente da menina Leroux, o anjo bom.

O resto sabemo-lo nós.

Desde a primeira entrevista à cabeceira de Genoveva, Máximo e Joana encontravam-se daí para o futuro todas as tardes nas choupanas dos arredores.

Inocente como um criança, a filha do ex-banqueiro achava muito natural ter entrevistas com o doutor em casa dos enfermos para quem ela reclamava os seus cuidados.

— Hei de lá estar a tal hora, dizia-lhe ela, e lá o espero. À hora estabelecida, ele aparecia.

Antes de findar uma semana já uma intimidade de ideal pureza se estabelecera entre os dois mancebos.

Joana experimentava por Máximo uma afeição de irmã, uma confiança ilimitada.

Às vezes, dirigindo-se cada um por seu lado ao mesmo sítio encontravam-se no caminho e iam, um ao lado do outro, a passo vagaroso e conversando.

Ninguém se admirava ao vê-los juntos pelas estradas. Os seus contínuos "tête-à-tête" não davam lugar a malévolas suspeitas. Todos sabiam que a mais cordial caridade os reunia assim e os conduzia às mesmas obras de dedicação.

Os camponeses saudavam-nos com um respeito afetuoso.

Joana interrogava sinceramente o doutor a respeito do seu passado. Falava-lhe muitas vezes de sua mãe.

Todas as vezes que se tratava de madame Giraud, Máximo exprimia-se de modo que mostrava a mais profunda ternura. Pintava-a como a melhor das mães e a mais perfeita das mulheres.

— Oh! exclamou a jovem um dia, quanto desejava conhecê-la!... Máximo estremeceu.

— Não se deve admirar, minha senhora, respondeu ele, se lhe afirmar que é a senhora o objeto constante das conversações que tenho com minha mãe. O que acaba de dizer a respeito dela, muitas ,vezes ela mo diz a seu respeito. O desejo que ela tem de a ver é grande.

— Como há de ser? perguntou Joana.

— Quer que a conduza a sua casa de Vertes-Feuilles!

— Não! Não! redarguiu vivamente a jovem. Não consentirei que madame Giraud se incomode por minha causa. Mas, não posso eu ir a Rancey?

— Quem lho impedirá?

— Pois bem, está dito. Irei.

— Quando?

— Amanhã já, se quiser. Visitaremos, na herdade de l'Oseraie, à uma hora, aquela pobre criança que salvou de uma angina. É, aproximadamente, um quarto de légua de l'Oseraie a Rancey, levar-me-á e apresentar-me-á à senhora sua mãe.

— Ela estimará muito! exclamou Máximo cujo rosto trigueiro e pálido se ruborizou.

No dia seguinte, à hora combinada, depois de uma Pequena visita à criança convalescente cujo estado já não inspirava inquietação, Joana, em lugar de tomar, como de costume, o caminho de Vertes-Feuilles, dirigiu-se em companhia do doutor para Rancey, que ela não conhecia ainda.

Rancey é uma vila mais importante do que Vertes-Feuilles. Não contém menos de quinhentos e cinqüenta a seiscentos habitantes.

Situada numa planície, os seus arredores não têm nada de pitoresco, esta desvantagem, contudo, é compensada pelo grande número de jardinzinhos bem dispostos que a metamorfoseiam num verdadeiro ninho de verdura.

A casa do doutor ocupava o ponto mais belo da vila, defronte da igreja e próximo da "mairie", num sítio onde quatro fileiras de tílias vigorosas formavam um passeio cheio de sombra.

Era ali que as barracas de feira e os divertimentos de todos os gêneros se estabeleciam na época da festa da terra.

— Chegamos, minha senhora, disse Máximo parando, aqui está a casa de minha mãe.

Tinha realmente boa aparência a casa, e provava que o defunto senhor Gendron possuía certo bom gosto das comodidades.

Um portão de ferro com umbreiras de cantaria dava acesso para um pátio bastante extenso, onde se via um tabuleiro de relva circular, vasos de flores, algum mato e várias árvores.

Entre este pátio e o jardim de árvores frutíferas erguia-se a casa, de um único andar e, "rez-de-chaussée", oferecendo oito janelas de frente, bem edificada, coberta de ardósia, com persianas pintadas de cinzento, e de um poial de quatro degraus por onde se subia para o corredor que servia de vestíbulo, e dividia a casa em duas partes iguais.

Na parte da direita, eram a sala de jantar, a copa e a cozinha. Na da esquerda, a sala e o gabinete de trabalho do médico.

A senhora Giraud esperava já a chegada dos dois jovens, porque saiu de casa no momento em que Máximo abria o portão, desceu os degraus e correu a toda pressa ao encontro de Joana Leroux.

A viúva do oficial era uma excelente senhora na mais vasta acepção da palavra. Bastava vê-la para o compreender.

Estava próxima dos cinqüenta e cinco anos, e parecia ter já sessenta. Nunca tinha sido bela; mas refletia-se-lhe no rosto a bondade, o seu olhar era meigo, e tão franco os seus modos, que não deixavam achá-la nem velha, nem feia.

Vestida como uma provinciana, com um vestido de merino liso e um avental de seda; coberta a cabeça com uma touca muito simples que lhe segurava os cabelos ainda espessos mas já brancos, indicava, por aquele uso (muito próprio dá época), a ausência do gênio pretensioso.

Não representava de mulher da alta sociedade; era simplesmente uma boa dona de casa, e não queria ser outra coisa.

Joana, apenas a viu, simpatizou imediatamente com ela.

— Minha mãe, disse Máximo possuído de uma comoção cuja causa breve nos será revelada, apresento-lhe mademoiselle Joana Leroux, que tanto desejava conhecer... minha senhora, tenho a honra de lhe apresentar minha mãe.

— Seja muito benvinda, minha senhora, disse madame Giraud. Acolho-a com todo o afeto da minha alma. Estimo muito vê-la.

Ato contínuo estendeu a mão à jovem.

— Oh! minha senhora, exclamou esta com a sincera expansão que era o seu característico, dê-me licença para que eu a abrace.

E sem esperar a resposta de madame Giraud, lançou-lhe os brados em roda do pescoço e depôs-lhe dois beijos nas faces.

— Querida menina, murmurou em voz baixa a viúva, muito.sensibilizada por aquele inesperado afago, como bem se diz que é um anjo de graça, de beleza, de bondade! Deus deu-lhe tudo!

E em voz mais alta:

— Agora, minha menina, venha ver a minha humilde morada. Quando a tiver visto, prestando-lhe alguma coisa do seu poderoso encanto, agradar-nos-á muito mais.

Máximo, com os olhos úmidos de pranto, sorria em silêncio ao ouvir sua mãe.

Madame Giraud deu o braço a Joana, fê-la subir os degraus da escada e introduziu-a na sala de jantar, uma sala bastante vasta, forrada a papel de polimento, imitando o carvalho claro, e dizendo bem com os móveis comprados pelo doutor Gendron, constantes de um aparador, uma mesa e oito cadeiras de palha.

Um candieiro de suspensão com abajur, um relógio de parede e dois quadros litográficos completavam toda a mobília.

Em cima da mesa estava preparado um pequeno "lunch" composto de bolo-sovado, leite fresco e frutas.

— É longe de Vertes-Feuilles a Rancey, disse madame Giraud, e o calor incomoda ainda, posto que já estejamos no inverno, espero pois que nos fará a honra de aceitar tão insignificante coisa, eu mesmo é que fiz o bolo, e a fruta colhi-a no pomar.

— Com certeza que não recuso, redarguiu Joana com a sua franca alegria de criança; não me atrevia a dizê-lo, mas estava morta de fome e de sede!... Oh! sim, farei honra aos mimos que me preparam! Grande honra! Vão ver.

E a jovem, rindo às gargalhadas, enterrou os seus dentes de marfim no famoso bolo, umedeceu com o creme os rosados lábios, e sem fazer caso da faca, comeu com a mão uma pêra.

— Ah! Como tudo isto é agradável! exclamou ela enquanto comia. Que bela e engenhosa idéia teve, minha querida senhora!

A senhora Giraud estava radiante de satisfação.

Máximo olhava para Joana enternecido.

Terminado o "lunch", foram ver o "rez-de-chaussée" da casa; a sala muito polida, guarnecida de móveis vulgares de mogno e veludo carmesim, pêndula de bronze dourada, de um modelo muito usa-'do pelos médicos da província, imitado do famoso quadro: "Hipócrates recusando os presentes de Artaxerxes", e, em molduras ricas, duas aquarelas de Jazet, cópias de quadros de Vernet, os "Contrabandistas surpreendidos na montanha pelos Dragões do Papa", e a "Confissão de um salteador italiano".

A escolha da pêndula e dos quadros revelava a ingenuidade burguesa do defunto doutor Gendron, e natureza dos seus instintos artísticos.

Da sala passou-se ao gabinete de trabalho, com a sua mobília de um estilo severo, o seu "fauteil" de carneira verde, e os seus dois grandes armários de biblioteca cheios de obras especializadas muito encadernadas e adquiridas na compra do prédio.

Joana entretinha-se a ler nas lombadas de marroquim encarnado ou de chagrin escuro, os títulos daqueles preciosos livros que continham os tesouros da ciência, e davam o meio de prolongar tantas existências e aliviar tantas dores.

Faltava-lhe ver o pomar, situado atrás da casa, jardim de mais de dois mil metros, belamente situado, bem cultivado, fechado com muros, junto aos quais havia pessegueiros, damasqueiros e parreiras dispostas sucundum artem, e de um excelente rendimento.

Enquanto a senhora Giraud, educada no campo e muito experiente em horticultura, explicava e demonstrava a Joana os recursos e as riquezas daquele jardim, donde tencionava tirar no ano seguinte, maravilhosos produtos, Máximo, de canivete na mão, cortava as rosas de outono, as últimas, um pouco pálidas, mas ainda cheirosas, e formava com elas um ramo.

 

PRESSÁGIOS

Quando Joana ia para partir, Máximo timidamente apresentou-lhe o ramo.

A jovem aceitou-o sem hesitar, a sorrir. Não baixou os seus grandes olhos muito cândidos. Nem a mais leve palidez veio realçar o brilho da fronte.

— Obrigado, querido doutor, estas flores cheiram muito bem. Não as temos tão belas em Vertes-Feuilles.

— Dá-me licença que a acompanhe a casa, não é verdade? perguntou Máximo.

— Não, senhor, redarguiu. Para quê? Bem sabe que tenho o costume de andar pelas estradas inteiramente só.

— Nunca se afasta tanto de sua casa.

— Pois bem! Se quer, acompanhe-me, mas só até a herdade de 1'Oseraie... mais longe não! Ali estarei em território da minha aldeia e obrigá-lo-ei desapiedadamente a voltar para junto da senhora sua mãe.

Joana abraçou madame Giraud como ela lhe tinha feito à chegada, agradeceu-lhe o gracioso acolhimento, prometeu voltar, pediu-lhe que viesse pagar-lhe a visita a Vertes-Feuilles, e os dois jovens afastaram-se.

Quando ao fim de uma hora Máximo regressou, vinha agitado, comovido, quase triste.

As suas primeiras palavras foram estas:

— Minha mãe, o que julga de mademoiselle Leroux?

— É uma adorável criança! Respondeu entusiàsticamente a viúva do capitão. Tão sincera, tão bondosa e caritativa! As pessoas que vivem com ela têm razão em lhe chamarem o anjo bom!

Ao dizer isto, madame Giraud olhou para Máximo, e reparando' na alteração do rosto, perguntou-lhe:

— Mas que tens tu? pareces triste!

— Estou muito inquieto.

— Por que?

— Receio muito que o acaso que nos fez escolher esta terra de entre mil outras não fosse um acaso funesto...

— Não te compreendo... gostavas muito de Rancey... Pelo menos dizia-o. Por que essa reviravolta de gosto? Sucedeu-te alguma coisa que eu ignore?

— Minha mãe, pela primeira vez, esta tarde, li como um livro aberto o que se passa em minha alma... ameaça-me uma desgraça.

— Ameaça-te uma desgraça, a ti, meu filho! exclamou a viúva assustada, que desgraça?

— A maior de todas, porque é irremediável.

— Não digas isso! Procurarei afastá-la de ti! Uma mãe pode sempre defender seu filho!

— Não pode a mãe, nem pessoa alguma. Seria preciso lutar contra mim mesmo, e estou já vencido porque sinto que é impossível a luta.

— Explica-te, peço-te.

— Minha mãe, como disse há pouco, mademoiselle Leroux é uma adorável criança...

E Máximo calou-se.

— E então? perguntou madame Giraud.

— Adoro-a... murmurou o doutor desanimado.

— Mas onde está aí o mal? Também eu, ainda que a conheço há pouco, a amo já como se fosse minha filha.

— Eu porém não sinto por ela a amizade de irmão! exclamou Máximo. Ouve, minha mãe? Compreende? É amor o que sinto por ela! Amo-a loucamente!

Madame Giraud respirou mais livremente.

— É só isso? redarguiu ela. E eu que, pelas tuas palavras, receava uma catástrofe! Ai! meu pobre filho, que susto me causaste! Não vejo motivo para te desconsolares.

— Mas eu amo sem esperança!

— Como sabes isso?

— Ela nunca poderá amar-me!

— Quem to disse?... Tu tens a experiência das coisas da ciência, mas não das coisas da vida! Tu estudaste a medicina, e não o coração das raparigas... Que idade tem mademoiselle Leroux? Dezessete anos apenas, suponho eu.

— Dezesseis anos e meio...

— É uma criança!... Com dezesseis anos o amor é uma palavra vaga e sem sentido. És muito novo também, podes esperar. Deixa passar alguns meses, e as primeiras pulsações de um coração que desperta serão talvez por ti.

Máximo abanou a cabeça.

— Olhe para mim, minha querida mãe... redarguiu ele. Esquece de que não sou bonito.

— Acho-te soberbo!

— Porque sou seu filho!

— Iludí-me talvez um pouco... mas, enfim, tenho a certeza de que o teu rosto exprime a bondade, e que no teu olhar há eloqüência e doçura. Crê no que te digo, Máximo, se mademoiselle Leroux tem de amar-te, amarte-á tal como és.

— E quando, contra toda a probabilidade, se realizasse o que diz, para que me serviria isso?

— Para a esposares, me parece.

— Não me atreveria a pedir-lhe a sua mão.

— Que grande loucura a tua. Por que é tanta humildade? Teu pai, oficial condecorado, o homem mais honrado do mundo, valia bem o senhor Leroux! O nosso nome está imaculado. A profissão que exerces é uma das mais honrosas. Portanto, onde está o obstáculo?

— O senhor Leroux é rico.

— Eu julgava que ele estivesse arruinado.

— Embora! Mas os destroços da sua riqueza de algum tempo constituem hoje uma fortuna imponente à vista do pouco que possuímos. A confissão do meu amor pareceria uma especulação. E depois, repare que Joana foi educada em casa de um milionário, onde os seus caprichos de criança eram apenas manifestos e logo satisfeitos.

— É de modos tão simples como nós.

— Por causa do seu natural angélico, ela porém tem hábitos de luxo interior em desacordo completo com a nossa mediania mais do que modesta.

— Quando se ama o marido, não se tem saudade de coisa alguma.

— Não é só isso. A irmã mais velha de Joana fez há pouco um casamento esplêndido.

— Se tal se pode dizer de uma jovem casada com um velho! interrompeu madame Giraud.

— O velho é possuidor de um grande nome, dono do melhor castelo da província, e tem trezentas ou quatrocentas mil libras de rendimento. O senhor Júlio Leroux sonha certamente em adquirir para as suas duas outras filhas uniões não menos brilhantes.

— Todos os dias se sonham coisas que nunca se realizam.

— Como quer que seja, julga que ele ficará muito orgulhoso de ter por genro e dar por cunhado ao Marquês de la Tour-du-Roy um obscuro médico do campo, sem fortuna, e que tem o direito de julgar ignorante, visto que este médico nada pôde fazer em Paris. Bem vê, minha mãe, que tenho razão em não esperar coisa alguma e olhar o meu amor como a maior das desgraças que pode cair sobre mim.

— Se tal tu o julgas, é preciso combatê-lo.

— Oh Eu ignorava-o! Foi sem o saber que os encantos de Joana atuaram em mim! Foi sem o saber que a paixão me fez escravo do coração! Julgava experimentar sentimentos de profunda simpatia, de admiração e respeito sem limites! Despertei de repente, e vi... compreendi... que era tudo amor!

— E agora, que tencionas fazer? Lutar com certeza?

— Para quê? repito-lhe que me sinto já vencido.

— Mas podes ao menos afastar-te dessa menina e deixar de a ver.

— Isso seria privar-me da minha única felicidade, e não teria coragem para tanto. Não mudarei coisa alguma no meu modo de viver. Deixarei aumentar a minha afeição ocultando-a no mais íntimo da minha alma. Conter-me-ei por tal modo que Joana não suspeitará sequer o que sinto, e como os mártires morrendo alegres pela sua fé, acharei no meu sofrimento uma volúpia suprema sacrificando-me por amor dela.

— Faz o que quiseres, querido filho... Mas confia no que te digo, apesar de tudo, espera!

As coisas passaram-se como Máximo acabava de dizer.

Continuou a encontrar-se com Joana todos os dias, resultando destas entrevistas cotidianas mais aumentar-se a sua paixão, mas achando na sua lealdade a necessária força para não trair nem por uma palavra, nem por um olhar, o segredo do seu amor.

 

Júlio Leroux quando partiu de Vertes-Feuilles, os nossos leitores devem estar lembrados, tinha anunciado que a sua ausência duraria, no máximo, três semanas.

Decorridas as três semanas, escreveu a Joana, dizendo que uma circunstância imprevista cuja natureza não indicava, demorava a sua chegada, mas só por alguns dias.

Ao fim de quinze dias nova carta, desta vez não era do banqueiros, mas do seu companheiro de prazeres, o Príncipe de Castel-Vivant..

O pequeno bilhete de Godefroy dizia assim:

"Querida amiguinha: — Não se assuste por ver a minha feia letra em lugar da muito elegante de seu pai. Ele está um pouco incomodado, o seu excelente pai, mas muito fraco, e pediu-me que lhe servisse de secretário, o que faço com imenso prazer, porque tenho ocasião de me tornar lembrado.

"Este passageiro incômodo, que o bom ar de Vertes-Feuilles curará prontamente, obriga o meu querido amigo a partir de repente de Paris, ainda que os negócios de que se achava encarregado não estejam de todo terminados.

"Havemos de partir amanhã de manhã no trem das dez horas: digo: havemos, porque não quero que o meu amigo viaje só, tão fraco como está.

"Dê as suas ordens, minha encantadora amiguinha, para que uma carruagem esteja na gare de Orleans, alguns minutos antes da chegada do comboio.

"Terei a satisfação de ser seu hóspede durante uma semana. O meu amigo Júlio Leroux exigiu, e eu não sei recusar-lhe coisa alguma.

"Encarrega-me de a abraçar paternalmente da sua parte, agradável comissão da qual me desempenho o melhor que posso, e peço-lhe licença para, por minha conta, beijar, possuído do mais terna respeito, as suas duas lindas mãozinhas, as mais lindas que conheço. — Seu velho amigo, Godefroy de Castel-Vivant."

Ainda que o tom desta carta fosse mais galanteador do que triste, a jovem experimentou uma viva inquietação misturada de certo espanto.

O Príncipe falava, é certo, de um incômodo passageiro; mas afirmava ao mesmo tempo tão grande fraqueza, que se não podia sem imprudência deixar Júlio Leroux viajar só.

Joana não ignorava a extrema leviandade de Godefroy. Quem sabe se aquele velho rapaz se não iludia a respeito da gravidade do seu amigo.

Enfim, o resto daquele dia e toda a manhã do seguinte pareceram intermináveis à jovem, e foi com uma angústia sempre crescente que ficou esperando o regresso da carruagem enviada a Orleans para conduzir seu pai e o Príncipe.

Chegou a carruagem, parou em frente da escada, e o primeiro olhar de Joana deu-lhe prova de que a realidade excedia os seus mais tristes pressentimentos.

O ex-banqueiro, mais deitado do que assentado no fundo da vitória, e amparado por mantas de viagem empilhadas a modo de travesseiros, vinha tão transtornado a ponto de arrancar à sua filha uma exclamação de espanto.

As faces maceradas, flácidas, estavam pálidas; o olhar sem expressão parecia não ver; o beiço inferior, caído, tremia um pouco.

O conjunto da sua fisionomia tinha uma expressão de idiotismo.

O Príncipe, resolvido a nunca envelhecer, sorria de um modo satisfeito.

— Eis-nos, queridinha! disse apeando-se da vitória com a ligeireza de um rapaz e abraçando Joana.

"Chegamos a porto de salvação sem nenhum incidente desagradável, e seu excelente pai suportou perfeitamente a viajem. Vamos, Júlio, meu excelente amigo, o senhor está em sua casa... Apeie-se, se faz favor.

O excelente amigo pareceu não compreender muito bem que estava em sua casa e que era preciso apear-se.

Godefroy de Castel-Vivant amparou-o por debaixo dos braços, obrigou-o docemente a levantar-se, apear-se e subir, não sem custo, os degraus da escada.

— Meu pai, meu bom pai, exclamou Joana cujo rosto estava inundado de lágrimas, parece que não me reconhece! Abrace-me, peço-lhe, diga-me que me reconhece...

Um lampejo de inteligência brilhou nas pupilas dilatadas de Júlio Leroux. Alguma coisa semelhante a um sorriso contraiu-lhe o lábio caído e gaguejou:

— Reconheço-te perfeitamente... és uma boa filha... és a minha Gatinha Borralheira...

E, inclinando-se para Joana que lhe estendia os braços, depôs nas suas faces pálidas um beijo sem calor.

Cinco minutos depois, o ex-banqueiro que tinha subido a escada com dificuldade, graças à ajuda de Joana e de Godefroy que o ampararam um pela direita, outro pela esquerda, estendeu-se num dos "fauteils" do seu quarto de dormir, bastante agasalhado, posto que não estivesse o tempo frio, e ficou encostado a uma fofa pilha de travesseiros.

A cabeça inclinava-se-lhe sobre o peito, o beiço inferior estava mais caído do que nunca; o rosto tomara uma deplorável expressão de imbecilidade.

— Ah! murmurou o príncipe olhando para o amigo, com não equívoca satisfação, está aí muito bem acomodado... Tudo vai bem.

E esfregou as mãos.

Joana, muito menos animada do que parecia o senhor de Castel-Vivant, estava muito oprimida, e a custo continha as lágrimas.

Tomou a Godefroy por um braço e conduziu-o para junto da janela.

— Que posso fazer para lhe ser agradável, queridinha? perguntou o Príncipe com a sua habitual galanteria.

— Falar-me francamente.

— Pois não! De que se trata?

— Diga-me o que tem meu pai...

— Está muito fatigado... Não se poupou... tratou com muita assiduidade e brevidade dos negócios que o prendiam em Paris. Sofre agora o resultado desses excessos, mas repito-lhe, não tem de que se assustar.

— Isso é a pura verdade, é?...

— Palavra de fidalgo, minha galantinha.

— Mas, redarguiu a jovem, houve um tempo que não vai longe, em que meu pai consagrava a sua vida a grandes negócios mais importantes com certeza do que aqueles que o ocupam hoje, e, contudo, nunca o vi assim... Por que era isso?

— Por uma razão muito simples... respondeu o Príncipe sem hesitar.

— Qual?

— Perdeu o hábito do trabalho... Na sua idade é necessário moderação, ajuntou Godefroy sorrindo de certo equívoco. Porque não se iluda, minha queridinha, seu excelente pai é muito menos novo do que eu, ainda que eu tenha, a dar-se crédito a minha certidão de idade, mais anos do que ele.

— Havemos então de deixá-lo assim? Não podemos tentar alguma coisa para o melhorar? Devo procurar um médico?

— É inútil! redarguiu Godefroy. Temos a nossa receitazinha,. e vai ver como é simples... Tem cá Xerez ou Madeira, não é verdade?

— Tinha-se comprado uma porção para o almoço do casamento... e deverá ainda haver algumas garrafas.

— Muito bem, mande bater gemas de ovos em vinho da Madeira ou de xerez, junte-lhe canela em pó e açúcar, e que seu excelente pai tome algumas colheres desta mistura de duas em duas horas, acompanhe este medicamento com o uso constante de uma colher de caldo de sustância de quarto em quarto de hora, e depois me dirá o resultado... Antes de quarenta e oito horas o meu amigo estará de pé.

Joana saiu logo do quarto para proceder à preparação do tônico, e ordenar à cozinheira para por ao lume uma panela de truz com duas galinhas e uma formidável porção de carne de vaca.

 

UM VELHO QUE QUER PARECER MOÇO

Os nossos leitores adivinham sem custo o que o senhor de Castel-Vivant não podia explicar a Joana.

O ex-banqueiro, presa de um súbito ardor da mocidade, deitara-se às cegas, sem moderação alguma na torrente em que as duas que estava privado havia alguns meses, e aos quais parecia ter renunciado.

Para falar como Lazarine e Renée, na época em que as duas irmãs imitavam a linguagem um pouco livre dos lindos gommeux do seu esquadrão volante, dizemos:

Júlio Leroux, durante seis semanas, tinha levado vida dos demônios, folgando de mais com meia dúzia de lindas pecadoras cujo ofício e darem-nos a beber pela mesma taça o prazer e o fel; é serem; ao mesmo tempo sacerdotisas do gozo e gênios do mal.

Dai aquele atrofiamento inaudito, aquele queixo caído, acompanhado de acessos de sonolência, indícios certos de uma congestão em começo.

Isto não causará espanto a quem quiser recordar-se da verídica; história de certo marido, citado por Brillat-Savarin na Fisiologia do gozo, o qual marido, vítima de uma mulher ciumenta, e querendo refutar uma acusação de infidelidade, pôs-se em vinte e quatro horas num estado igual àquele a que Júlio Leroux só chegou no fim de seis semanas.

O doutor, consultado por Godefroy, disse após o seu exame:

— Não me parece que ele esteja em perigo, e pode suportar a viajem. Leve-o depressa. O ar de Paris neste momento não lhe pode fazer bem. O campo e a solidão é o de que ele precisa. Procure-sobretudo afastar todas as companhias do sexo frágil que lhe pareçam suspeitas. Uma recaída será coisa grave, e eu não me responsabilizaria.

Em seguida o médico indicou o regime a adotar, cujos preparativos Joana vigiava, e cujos resultados excederam toda a expectativa, porque Júlio Leroux, depois de uma noite sossegada, sentiu-se muito melhor no dia seguinte de manhã, quer física, quer moralmente falando.

A inteligência começava desempenhando as suas funções, os olhos readquiriram o perdido brilho, os lábios voltaram à sua posição natural, os membros moviam-se à vontade.

O ex-banqueiro pôde sair do quarto depois do meio-dia, desceu a escada sem ajuda de estranhos, e assentou-se ao ar livre, num "fauteuil" rústico, entre Joana e Godefroy que lhe faziam companhia.

À hora do jantar, sentiu-se tão bem que quis assistir à refeição e tornar à mesa, o seu lugar habitual. Mas, de repente, no meio da refeição, sem que nenhum sintoma inquietador fizesse prever uma crise, Júlio Leroux sentiu a língua presa, podendo apenas articular uns sons roucos; o rosto pálido tornou-se vermelho sombrio; os olhos injetaram-se-lhe; levou as duas mãos à cabeça, e perdendo o equilíbrio, caiu da cadeira e rolou no chão como uma massa inerte.

Joana, soltando um grito agudo, caiu de joelhos ao lado do corpo do pai, esforçando-se, mas debalde, em reanimá-lo com os seus chamamentos e as suas carícias.

Godefroy cheio de susto e admiração borrifou com água fresca o rosto do amigo, e colocou-lhe debaixo do nariz um lenço embebido em vinagre, sem obter o menor resultado.

— É impossível a ilusão... murmurou ele, é um ataque!... seria preciso um médico quanto antes.

Joana ouviu e mostrou uma coragem sobreumana.

Impondo silêncio à sua dor, contendo os gritos e as lágrimas, levantou-se e puxou pelo cordão da campainha com tanta força que o quebrou.

O criado correu logo assustado.

A jovem deu-lhe ordem para selar, sem perda de tempo, o poney do pai e o cavalo da vitória, em seguida foi ter com o Príncipe, e disse-lhe:

— Tem razão, é preciso um médico, e poderíamos, se o senhor quisesse, ter um aqui dentro de uma hora.

— Disponha de mim, redarguiu Godefroy, que hei de fazer?

— Sabe onde é Rancey?

— Vagamente.

Joana conduziu-o para a janela, e mostrou-lhe ao longe, do outro lado do bosque, o campanário da aldeia.

— É além... redarguiu a pobre criança. Em Rancey há um médico!... O senhor monta a cavalo, leva à arriata o poney, e vai a toda a pressa procurar o doutor. Chama-se Máximo Giraud... ele monta o poney e vem com o senhor. Vá, querido Príncipe, pelo amor de Deus, por o amor de meu pai, vá depressa!...

O senhor de Castel-Vivant, mesmo sem responder, pegou no chapéu, saiu, montou a cavalo, pegou na rédea do poney que tinha tido a honra de servir em tempo a Lazarine, e partiu a galope.

Em menos de meia hora de um galopar vertiginoso, chegou ao fim, e o primeiro camponês que encontrou na maior rua de Rancey indicou-lhe a casa que conhecemos, acrescentando:

— O médico é ali... entrou agora mesmo.

Sem se apear, Godefroy gritou em frente da casa:

— Doutor! Oh! doutor!

Máximo, admirando-se daquele chamado saiu, seguido pela mãe.

— O senhor é o doutor Giraud? perguntou o Príncipe.

— Sim, senhor. Que me quer?

— Que venha comigo.

— Aonde?

— Ao palácio de Vertes-Feuilles. Máximo quase que cambaleou.

— Mademoiselle Joana?... balbuciou ele.

— Não é ela, mas é seu pai... fulminado por uma congestão... Não há momento a perder... a sua vida depende da sua rápida chegada...

— Vou buscar o meu estojo e marcho já.

O mancebo entrou em casa, reapareceu no mesmo instante e montou o poney, cujas rédeas Godefroy largou partindo logo.

Máximo era um fraco cavaleiro, e pela primeira vez na sua vida lhe era preciso acompanhar a todo galope um sportman consumado.

Mas Júlio Leroux estava em perigo, a sua salvação podia depender da prontidão dos socorros, e Joana concederia ao salvador de seu pai um eterno reconhecimento

Amparado por aquela idéia, o doutor fez então prodígios.

Vinte vezes perdeu os estribos, vinte vezes lhe foi preciso agarrar-se, ao que os professores de equitação chamam gracejando a terceira rédea, isto é, às crinas do poney; movia-se de diante para trás na sela, deslocado pelos saltos do cavalo, sempre em risco de cair, mas segurando-se como podia.

De repente parou.

Chegaram a Vertes-Feuilles sem o mancebo dar por isso, tão preocupado ia com o trabalho de equilibrar-se.

— Cá estamos! disse o Príncipe olhando para o relógio. E a minha ausência durou apenas cinqüenta e cinco minutos!... É andar a vapor!

Os criados haviam transportado o ex-banqueiro para o seu quarto, onde jazia estendido no leito, parecendo mais um cadáver tio que um vivo.

Joana, com o rosto inundado de lágrimas, correu ao encontro do doutor, e movida por um impulso espontâneo, pegou-lhe em ambas as mãos, balbuciando:

— Só tenho esperança no senhor... Salve-o... salve-o!...

— Conte comigo, minha senhora, volveu Máximo. Tudo quanto for preciso fazer, fa-lo-ei... Bem sabe!...

Aproximou-se de Júlio Leroux, descobriu-lhe rapidamente o peito, aplicou o ouvido no coração, e tomou-lhe o pulso.

— Então? perguntou a jovem com uma voz tão fraca que parecia um sopro.

— Sinto palpitar... Não desespere... Uma bacia, de mãos e ataduras, depressa! Vou já sangrar o senhor seu pai...

Dois minutos depois estava tudo pronto. Máximo picou a veia.

Seguiram-se à operação alguns minutos de inexplicável angústia. O sangue não saia.

Finalmente apareceu no orifício da veia uma gotinha de sangue escuro, que deslizou ao longo do braço; em seguida correu um fio vermelho com força. Júlio Leroux soltou um suspiro e fez um leve movimento; uma profunda inspiração lhe moveu o peito; ao mesmo, tempo o rosto recuperou as cores naturais.

— Então? murmurou pela segunda vez a jovem.

— Está salvo! respondeu o doutor.

Joana deixou-se cair de joelhos, e numa ardente expansão de reconhecimento, ergueu o coração e os olhos para o céu.

O ex-banqueiro esta efetivamente livre de perigo. A vida voltava pouco a pouco, pôde balbuciar algumas palavras, depois, prostrado pelo choque, deixou-se cair sobre o travesseiro, fechou os olhos-e adormeceu profundamente.

Máximo e Joana passaram a noite à sua cabeceira.

 

No dia seguinte, pela manhã, Júlio Leroux, ao acordar, viu na sua frente a cara desconhecida do jovem médico, e perguntou com voz ainda fraca:

— Que sucedeu? Quem é este senhor? Joana avançou e respondeu abraçando o pai:

— O pai esteve ontem mal... muito mal. e este senhor é o doutor Máximo Giraud, nosso vizinho, que o salvou...

Júlio Leroux estendeu a mão ao mancebo, que sua filha acabava de lhe apresentar, e disse-lhe sorrindo:

— Devo-lhe muito, senhor, visto que lhe devo a vida... Creia que se o serviço que me prestou é grande, o meu reconhecimento não será menor

— Oh! senhor, não me deve favor algum, redarguiu Máximo. Não fiz mais do que o meu dever, e estimo muito ter conseguido o que desejava.

O ex-banqueiro, como não se lembrava de coisa alguma, quis saber detalhadamente o que ignorava.

— Veja a que eu devo a existência! disse sentenciosamente o doente, depois de ter ouvido tudo. Se a minha feliz estrela me não tivesse permitido que o senhor Máximo Giraud viesse há seis semanas estabelecer-se em Rancey, já não existiria! Doutor, tanto tempo quanto Deus me conceder de vida, serei seu cliente; conto com o senhor para ser centenário. Nomeio meu médico. Ouviu?

Máximo inclinou-se em sinal de respeitosa adesão. Uma profunda alegria lhe enchia a alma. O coração pulsava-lhe rapidamente.

Ia ter dali em diante entrada livre no palácio de Vertes-Feuilles!

Quem sabe se Júlio Leroux iria simpatizando com ele?

E quem sabe se madame Giraud teria razão, dizendo:

"— Espera!..."

O coração humano é assim.

Sempre entre a esperança e o desânimo.

Sempre a flutuar entre a alegria e a tristeza.

 

NA ITÁLIA

Prometemos que não tardaria muito que nos reuníssemos na Itália ao senhor de la Tour-du-Roy, a sua mulher e a sua cunhada.

É chegado o momento de cumprir o prometido.

Estava-se nos fins de fevereiro.

O Marquês, a Marquesa e Renée, percorrendo há quatro meses a terra clássica por excelência, tinham sucessivamente visitado Florença, Turim, Roma e Nápoles, demorando-se em cada uma destas cidades alguns dias ou algumas semanas, segundo o capricho de Lazarine, a quem seu marido dava inteira liberdade para dirigir as coisas a seu gosto.

Por toda parte se abriam os salões oficiais e aristocráticos para receber os viajantes. A elite da sociedade italiana tinha-lhe oferecido muitos jantares de gala, caçadas e bailes.

Este trote em contínuas festas, em movimento incessante, em distrações sempre novas, agradava a Lazarine, sem conseguir todavia fazer-lhe esquecer Paris, a rainha das cidades, a única do mundo, segundo a coquete Marquesa, onde uma mulher, superior pela sua beleza e pelo seu espírito, acha admiradores dignos dela.

O que, além. disso, não a impedia de acolher benèvolamente os madrigais hiperbólicos dos seus cortesãos italianos.

Mas como era a mesma para todos, e não reservava a nenhum mais ternos olhares ou mais animadores sorrisos, ao senhor de la Tour-du-Roy pouco cuidado lhe davam aqueles efêmeros galanteios.

Renée, tão rodeada e adulada como sua irmã, sentir-se-ia perfeitamente feliz naquela atmosfera ruidosa, se a sua incurável inveja lhe permitisse esquecer que devia a Lazarine os seus prazeres, os seus sucessos, e que teria passado quase desapercebida naquele mundo aristocrático sem a brilhante irmã que fazia refletir sobre ela um pouco do brilho dos seus raios.

— Que sou eu por mim mesma? dizia ela consigo às vezes possuída de grande cólera. Ao lado da Marquesa de la Tour-du-Roy, Renée Leroux era apenas um reflexo!

Convém a juntar que nenhum dos nobres e dos argentários de nomes célebres que lhe faziam a corte, pareciam dispostos a pedir a sua mão.

Ah! Se algum príncipe velho, algum Cresus desdentado, que vivesse no fundo de um velho palácio, quisesse fazê-la princesa e milionária, com que louco entusiasmo ela aceitaria!

Sem hesitar um minuto, era capaz de arriscar a vida e derramar o seu sangue, unicamente para dominar a irmã pelo título e igualá-la pela riqueza.

Mas ai dela! Já o dissemos, novos ou velhos, argentários ou príncipes, os maridos não apareciam, e Renée envolvia em seu ódio todos os habitantes de Itália.

Lazarine, cansada de Milão, manifestou desejos de ir acabar o inverno em Veneza.

Fecharam-se logo as malas, e partiu-se no dia seguinte para a cidade dos lagos, onde o silêncio melancólico das noites e dos dias é só interrompido pelo badalar dos sinos das inúmeras igrejas, pelo murmúrio da água corrente, e pelas canções dos gondoleiros vagueando pelas ruas líquidas.

Como a estada na cidade dos doges devia segundo todas as aparências prolongar-se por cinco ou seis semanas, o senhor de la Tour-du-Roy não quis instalar sua mulher numa hospedaria.

Alugou no "grande Canal", um palácio todo ele recordações, e cheio de cópias de quadros célebres, cujos originais tinham sido vendidos a judeus por um nobre em precárias circunstâncias.

Montou depois a casa, composta, além dos criados de ambos os sexos trazidos de França, de um cozinheiro, de dois lacaios, e finalmente de quatro gondoleiros para serviço das gôndolas amarradas ao último degrau da escada de mármore, de postes pintados e brasonados.

Veneza agradou muito a Lazarine.

Passava uma parte dos dias em gôndola, percorrendo aqueles misteriosos canais cujos nomes despertaram em seu ânimo as recordações dos romances ilustrados e dos velhos melodramas saboreados no "boulevard".

Ela gostava muito da Praça de São Marcos, da "piazzetta", da ponte dos Suspiros, do palácio dos doges...

Roberto de la Tour-du-Roy levava-a à noite ao teatro com Renée, para ouvir qualquer ópera excelentemente interpretada por cantores de grande fama.

No regresso ,tomava-se neve no imenso balcão construído à oriental, e de onde se viam os faróis das gôndolas deslizar nos canais como pequenas estrelas caídas do céu.

As relações sociais do Marquês eram menos em Veneza do que tias outras cidades, e Lazarine parecia não se importar muito com isso.

 

Uma bela manhã, porém, depois de ter visto tudo, a jovem começou a achar o seu viver um pouco monótono, e ia talvez propor a partida quando teve lugar um inesperado acontecimento.

O senhor de la Tour-du-Roy, a quem Lazarine não tinha querido acompanhar, voltou do seu passeio solitário, e entrou na sala onde estavam as duas irmãs.

Renée tocava por desfastio uma indolente valsa num piano desafinado.

A Marquesa, assentada junto de uma janela aberta, escutava bocejando.

Era tão viva a comoção que se lia no rosto expressivo de Roberto, que Lazarine perguntou-lhe:

— Que tem, meu amigo?

— Vive um encontro que me perturbou um pouco, respondeu o senhor de la Tour-du-Roy.

— Um encontro!... Que encontro foi?

— A minha gôndola cruzou-se há pouco, à esquina do canal Orfano, com outra gôndola tirada a toda a pressa. O passeante que ela conduzia inclinou-se e cumprimentou-me... Pareceu-me reconhecê-lo...

— E era?

—Um fidalgo cuja triste e terrível história lhe contei, e a quem consagro um grande interesse, o Conde de Gordes. Renée tinha já deixado o piano. Aproximou-se:

— O Conde de Gordes! repetiu ela, mas esse nome é do Loiret, não é?

— Certamente, falo do proprietário do castelo de Gordes, situado a igual distância de Vertes-Feuilles e de la Tour-du-Roy.

— O senhor julgou reconhecê-lo, redarguiu Lazarine, não tem a certeza?

— Completa, não.

— Nesse caso, o senhor de Gordes está muito mudado?...

— Está, se com efeito é ele, porque deixou crescer a barba, e isso basta para o transfigurar de todo.

— Era preciso segui-lo...

— Quis fazê-lo... Mas tinha dobrado a esquina do canal... Um grande concurso de gôndolas estorvou-me a passagem durante alguns segundos. Quando pude romper era já tarde...

— É pena! não imagina, meu amigo, quanto gosto de conhecei os heróis de romance.

Renée, clara e pálida, com a cabeça coroada pela grinalda dos seus cabelos negros, estava encostada a um antigo "fauteuil" de carvalho esculpido. Naquela postura fazia lembrar qualquer formosa mulher dos doges no tempo em que Veneza era rainha.

— Um herói de romance! exclamou ela, e há pouco o senhor falou de uma história terrível!... A febre da curiosidade apoderou-se de mim... Meu querido cunhado, conte-me isso depressa.

— Minha linda menina, respondeu Roberto, Lazarine sabe a história e pode contar-lha.

— O senhor sabe-a muito melhor do que eu, meu amigo, redarguiu Lazarine, é portanto ao senhor que pertence satisfazer o desejo de Renée.

— E a repetição de uma narração não a aborrecerá?

— De modo nenhum. Fale sem receio.

O senhor de la Tour-du-Roy acedeu de bom-grado, e repetiu palavra por palavra a narração que fizemos aos leitores.

— Terrível história, efetivamente, murmurou a jovem quando o Marquês concluiu, mas o desenlace sobretudo é o que eu mais desejava saber... Julieta não recobrou a razão? Raul de Gordes casou com a viúva do Barão de Braines?

— Só ele no-lo poderia dizer.

— Procure pois saber se realmente ele se acha em Veneza, redarguiu Lazarine, e por conseguinte se foi ele quem o senhor encontrou.

— Hei de informar-me, mas tenho pouca esperança de saber o que desejo... Veneza é uma grande cidade... a quem hei de pedir informações a respeito de um estranho perdido entre a multidão, e que por certo vive muito retirado? Prometo-lhe, no entanto, ir amanhã ao consulado de França.

O Marquês não teve necessidade de fazer o que havia prometido.

Às dez horas da manhã do dia seguinte, no momento em que terminava a sua toilette, o criado grave entregou-lhe um cartão tarjado de preto, no qual sob uma coroa de nove pérolas lia-se o nome de Raul de Gordes, e mais abaixo estas palavras escritas a lápis: "Teria muito gosto em apertar a mão ao senhor Marquês de la Tour-du-Roy."

— Então, o senhor de Gordes está aí? perguntou Roberto.

— Conduzi-o para a saleta, respondeu o criado grave.

— Vai trazê-lo já para aqui.

Dois minutos depois, o vizinho de campo do Marquês entrava no vasto aposento de teto em forma de cúpula, e cujas paredes pintadas a fresco por um rival de Trépolo, ou pelo próprio Trépolo, representavam episódios das vitórias navais da República.

O senhor de la Tour-du-Roy muito comovido, em lugar de estender a mão ao recém-chegado, abriu-lhe os braços.

Raul de Gordes correu para eles, e os dois abraçaram-se com a mais tocante expansão.

— Ah! querido Marquês, exclamou o Conde, se soubesse o bem que me fez este afetuoso acolhimento!

— Já deveria esperá-lo, redarguiu Roberto; sou fiel às minhas afeições, bem o sabe, e fui sempre seu amigo.

O Marquês ia falando e olhando para o visitante.

Os nossos leitores hão de recordar-se que o senhor de la Tour-du-Roy, interrogado por Lazarine a respeito do jovem Conde, alguns meses antes, respondeu aproximadamente isto:

— Não digo que Raul de Gordes seja bonito, no sentido absoluto da palavra, mas parece-me difícil encontrar um gentleman mais simpático... O Conde é alto e magro, esbelto e robusto ao mesmo tempo, elegante de formas e maneiras... Abundantes cabelos, castanho-claros, naturalmente anelados, coroam um rosto irregular, muito sedutor, apesar da sua irregularidade, e de uma rara distinção. O nariz um pouco comprido talvez, e a boca alguma coisa grande sob os finos "bigodes, mas os olhos iluminam o rosto, e os lábios risonhos, deixam ver uns dentes admiráveis... A expressão geral é benévola e espirituosa...

E ajuntava:

— Aí tem, querida Lazarine, o retrato do senhor de Gordes, não como será hoje, mas como era há dois anos, quando a partida do Conde repentinamente interrompeu relações de boa vizinhança.

Ora, o Marquês achava Raul singularmente mudado.

Sem falar da barba que transtornava a parte inferior do rosto, ocultando-lhe os contornos mais característicos, a expressão do rosto já não era a mesma...

Os olhos, outrora espelhos fiéis de um espírito alegre e descuidado, pareciam agora ensombrados por uma profunda melancolia.

Os seus lábios apenas sorriam, mas naquele sorriso havia o quer que fosse de amargo e doloroso.

Uma ruga transversal lhe sulcava a fronte noutro tempo tão lisa como um mármore.

Enfim, o Conde, que acabava de fazer vinte e cinco anos, parecia ter dois anos mais.

Trajava luto rigoroso.

— Reconheceu-me ontem? perguntou ele notando como estava sendo atentamente examinado.

— Com certeza! Devo porém fazer-lhe notar que a sua barba me deixava dúvida.

— Ignorava a sua presença em Veneza... redarguiu o senhor de Gordes. Depois do nosso casual encontro tratei de obter informações.

Com um nome tal como o seu, era impossível passar desapercebido em' qualquer parte, e soube facilmente que o senhor tinha alugado o palácio Cavello... Tinha pressa de vê-lo e abraçá-lo... Aqui estou.

— Seja muito bem-vindo, meu amigo, disse o senhor de la Tour-du-Roy apertando as mãos do mancebo, depois acrescentou: Por quem está de luto?

— Pela minha mocidade, e pelo meu amor, respondeu Raul com voz surda. De hoje em diante só no mundo... Julieta... morreu...

 

BATER EM RETIRADA

Um silêncio de alguns minutos se seguiu àquela resposta. Raul de Gordes, com a cabeça inclinada para o peito, estava todo: entregue a uma dor evidentemente sincera e profunda.

O senhor de la Tour-du-Roy foi quem primeiro tomou a palavra.

— Posso, sem aumentar-lhe a dor, falar-lhe a respeito daquela pobre senhora?... perguntou ele.

— Não só pode fazê-lo, como peço que o faça... murmurou o Visconde. A vida passa-se triste e solitária em meio de estranhos e indiferentes... Ser-me-ia agradável falar dela com o senhor que a conheceu.

— Há quanto tempo faleceu ela?

— Há seis meses. — Em Veneza?

— Não, em Florença.

— Havia já recobrado de todo a razão?

— Havia. A passageira loucura proveniente da catástrofe que o senhor sabe, dissipou-se gradualmente, logo após a nossa chegada à Itália...

— Então, viviam felizes ambos?

Raul suspirou, e a expressão do rosto tornou-se mais dolorosa ainda.

— O nosso viver, redarguiu ele, era um suplício constante... O senhor de la Tour-du-Roy olhou para ele espantado.

— Então já não se amavam? exclamou ele.

— Meu amigo, não blasfeme!... Eu adorava Julieta mais do que nunca, e Julieta amava-me tanto quanto é possível amar!...

— Mas então?...

— O senhor não pode compreender, interrompeu Raul, porque ignora quantos sentimentos desencontrados, inconciliáveis na aparência, e que são contudo lógicos, certas situações anormais fazem desenvolver numa alma feminina... Sim, Julieta amava-me com todo o entusiasmo da sua alma, mas à proporção que se iam dissipando as trevas da sua inteligência, desenvolvia-se nela a consciência da sua falta... A desventurada senhora não podia perdoar a si mesma o ter cedido à paixão... O remorso misturara-se ao seu amor para fazer dele um suplício... e se, às vezes, os arroubos da mocidade e da paixão impunham silêncio aos remorsos, expiava uma hora de prazer por dia de lágrimas e noites de desespero.

— Que resposta àqueles que pretendem que a moral é uma palavra vã! exclamou o Marquês. Para a Baronesa e para o senhor, meu querido, o castigo dos amores culpados quase que se não fez esperar!

— E que castigo! murmurou o senhor de Gordes. Os meus inimigos com certeza que não teriam a crueldade de me infligir um castigo igual... Contudo, eu esperava ainda... confiava no tempo... Um dia, uma carta de França trouxe-me a notícia de que Julieta estava viúva. Esperei pela primeira crise, e disse meigamente à minha triste companheira:

" — Enxugue as suas lágrimas, minha querida... a falta que tanto a afligia, que tão grande amargura lhe causava, já não existe.

Julieta fitou em mim o seu olhar de um modo estranho, e perguntou-me:

" — Que quer dizer?

" — A senhora tem já o direito e a liberdade de poder amar-me... Henrique de Braines morreu...

Raul calou-se, e os sulcos da sua fronte cavaram-se ainda mais...

— Peço-lhe que continue! disse o senhor de la Tour-du-Roy cujo coração se sentia opresso.

O Conde de Gordes redarguiu:

— Apenas proferi estas palavras, tornou-se assustadora a expressão do rosto de Julieta.

" — Ah! exclamou ela com a voz estrangulada torcendo as mãos. O senhor diz que a minha falta já não existe! É verdade, já não existe a falta porque ela se tornou um crime! Depois da traição, o homicídio, assim devia ser! Não foi a sua espada quem deu a morte a Henrique de Braines, foi a minha infâmia!... fui o seu assassino!...

— Que cena! balbuciou o Marquês, e tem razão, que castigo!

— Tentei sossegar Julieta, prosseguiu Raul, e não consegui senão ao fim de grandes esforços. Não queria ouvir coisa alguma, recusara-se a escutar-me, e repetia-me constantemente, presa de uma espécie de delírio: Digo-lhe que fui eu que o matei!

"A partir daquele momento, começou a definhar-se de um modo lento, mas continuo, como se uma dessas doenças de consumação, para curar as quais a ciência é improfícua, se, se tivesse apoderado dela, e durante um ano pude contar as horas que lhe restavam de vida, porque eu não me iludia... todos os dias, mais e mais, se acentuava no seu rosto resignado de jovem mártir o selo fatal da morte próxima.

"Três meses antes de falecer acudiu-me uma lembrança que me pareceu seria uma consolação para aquele ente que me era tão querido, destruir o vestígio de um passado que a vitimava...

"Tinham decorrido já dez meses depois do falecimento do senhor de Braines. Bastava ultimar no consulado de França os termos legais para que Julieta fosse minha perante Deus e perante os homens... " — Minha querida, disse-lhe eu, quer ser minha mulher?... " Ela abanou lentamente a cabeça. " — Não, não quero... respondeu ela. " — Por quê?

" — Porque não tenho direito para o querer!... Sou digna de usar o seu nome, eu que não tive forças para usar dignamente o nome de outro?... Acaso a mulher adúltera do Barão de Braines pode ser a mulher honesta do seu amante o Conde de Gordes? Seria usurpar a estima da gente honrada, bem o sabe!... Pois Deus seria justo, Raul, se me permitisse que eu fosse ainda feliz?... Preparei-me uma existência de vergonha e de desprezo de mim mesma e dos outros... Sofrerei a vergonha e o desprezo até final... Fico reconhecida à sua piedade, Raul, e ao seu generoso oferecimento... não aceito senão a piedade...

"Insisti, supliquei... Foi debalde... Julieta persistiu."

— Pobre senhora! murmurou o Marquês, era uma nobre alma, e um grande coração... Não podia o Deus de misericórdia deixar de lhe perdoar uma falta tão corajosamente expiada.

— Deus já a perdoou... respondeu Raul... Quando sentiu aproximar-se a hora extrema, fez sinal de me querer falar, pediu que me inclinasse para ela, e com uma voz já mal distinta murmurou a meus ouvidos:

" — Meu amigo, está chegada a hora derradeira, peço-lhe que me mande um padre."

"Obedeci.

"Uma hora depois o padre saia, levando consigo a confissão da falta e os remorsos.

"Julieta estendeu-me a mão...

"Um angélico sorriso desabrochou em seus lábios pálidos, donde se desprendeu a palavra adeus em um suspiro que foi o último.

"A alma purificada e abençoada da minha adorada Julieta voara para o seio do Criador.

"Julieta estava morta, deixando-me só no mundo... só para sempre."

 

Um soluço fez arquejar o peito de Raul de Gordes que ocultou nas suas mãos o rosto transtornado.

O senhor de la Tour-du-Roy tinha os olhos úmidos.

Pela segunda vez depois do começo da conversação se estabeleceu silêncio.

Ao fim de alguns minutos o Conde ergueu a cabeça e tomou a palavra.

— O seu corpo está em Florença, murmurou ele, num túmulo que tem o seu nome.

E ajuntou, apoiando uma das mãos no coração:

— A sua adorada imagem, a sua grata recordação, estão aqui e jamais me abandonarão.

— Há seis meses, perguntou o Marquês, o que tem feito?

— Tenho vagueado como uma alma penada, ora por aqui, ora por acolá, arrastando por toda parte o meu sofrimento cruciante, esmagado pelo meu incurável aborrecimento.

— Que tenciona fazer?

— Ainda não sei... não tenho projetos alguns.

— Tenciona voltar para França?

— Duvido... para que hei de voltar a Gordes? Não encontrarei senão tristes recordações.

— Meu amigo, não desespere da vida!

— É possível não desesperar quando não se espera coisa alguma?

— O tempo cicatriza todas as feridas, alivia todas as dores... há de aliviar também a sua...

— Nunca!

Depois de ter proferido a palavra nunca! com uma afirmação que não admitia réplica, o Conde de Gordes passou as mãos pela fronte como para afastar a idéia triste que o oprimia constantemente; em seguida, fazendo um esforço, modificou então a expressão do rosto e prosseguiu:

— Mas por demais temos tratado de mim. Falemos de si, meu querido Marquês. Quando ontem soube que esta hospedado no palácio Cavello, soube também que estava na sua companhia a Marquesa de la Tour-du-Roy... Então, casou?...

— No mês de setembro último, respondeu Roberto.

— Consinta que eu junte as minhas felicitações a todas as que já tem recebido, e permita-me lhe pergunte se a senhora Marquesa antes de casar tinha algum nome conhecido na nossa província?

A família de minha mulher faz parte da burguesia parisiense, redarguiu o velho fidalgo; não fiz um casamento de conveniência, mas sim de simpatia. A Marquesa de la Tour-du-Roy chamava-se mademoiselle Leroux, e Júlio Leroux, seu pai, possui e habita neste momento o palácio de Vertes-Feuilles, igualmente distante tanto das suas como das minhas propriedades.

— Júlio Leroux, repetiu Raul de Gordes, um dos mais ricos banqueiros de Paris. O feliz rival de Rothschilds.

— Já não o é... A sua estrela por muito tempo radiante, velou-se de repente, levando-lhe consigo os milhões...

— O senhor Júlio Leroux arruinado?

— Não de todo, felizmente para ele, mas em mais de três quartos da sua fortuna, felizmente para mim... disse o Marquês sorrindo.

— Como? Não o compreendo.

— Sou mais rico do que é necessário para dois, e não tendo meu sogro fortuna, ninguém pode deixar de supor que foi o amor o único móvel do meu casamento... Fiz de propósito o que muita gente denomina uma loucura.

— Uma loucura? Por que?

— Porque a Marquesa não tem ainda vinte anos, e concordam em achá-la muito bonita. Eis a resposta. O senhor julgará pelos seus próprios olhos, porque tenciono apresentá-lo hoje a minha mulher e a minha cunhada, uma encantadora menina de dezoito anos.

Raul quis recusar.

— Apresentar-me! exclamou ele, não pensa em tal, querido Marquês!

— Pelo contrário, já resolvi.

— Bem sabe que terminei as minhas relações com todo o mundo.

— Agora não se trata do mundo... trata-se da família de um vizinho de campo, de um velho amigo que podia ser seu pai...

— Repare na tristeza que se lê na minha fisionomia... Para que se há de mostrar a senhoras ainda novas um semblante tão sombrio como o meu?... Já não sei conversar... já não sei rir... Abandono-me ao meu isolamento...

— Voltará depois ao seu isolamento se quiser, mas primeiramente hei de apresentá-lo...

— Que motivo tão forte tem para tanto insistir?

— A Marquesa deseja conhecê-lo.

— Pois que, ela sabe que eu existo? Falou-lhe a meu respeito?

— Sim.

— Aqui ou lá?

— Lá, à vista do palácio de Gordes... Aqui, ontem de tarde, depois de o ter encontrado.

— E disse-lhe...

— Tudo o que sabia. Ela sente-se possuída de um vivo interesse pelo senhor, e nunca me perdoara que, tornando vê-lo, eu não o apresentasse a ela...

Raul refletiu um instante.

— Pois seja... murmurou, não terei o mau gosto de o contrariar recusando. São muitos os favores que lhe devo, e tem o direito de exigir... Virei pois, mais uma vez só... depois sairei de Veneza.

— Fará o que quiser... Comprometo-me a nada fazer para o obrigar a ficar... Quando volta?

— Ainda hoje, se quiser, às três horas.

— Está dito... Vou dar muito gosto à Marquesa e à irmã anunciando-lhes a sua visita.

O Conde despediu-se do senhor de la Tour-du-Roy, que quis acompanhá-lo até a gôndola, e apertou-lhe as mãos repetindo:

— Até as três horas! Não se esqueça.

 

UMA VISITA

Meia hora depois da partida de Raul de Gordes, o almoço reuniu o Marquês, Lazarine e Renée, na vasta sala de jantar que poderia conter cinqüenta convivas.

Era uma sala de grande estilo, lajeada de mármore branco e cor-de-rosa, ornada de antigas tapeçarias que representavam a Pesca Milagrosa, as Bodas de Canaan, o milagre da Multiplicação dos pães, e ornada de estátuas sustentando nas cabeças açafates cheios de espigas, de frutos, de peças de caça e de peixes.

— Queridinha, não me enganei ontem... disse o senhor de la Tour-du-Roy a Lazarine

— Foi com efeito o senhor de Gordes quem encontrou? perguntou esta.

— Foi.

— Tem a certeza?

— Completa... respondeu Roberto sorrindo.

— Foi ao consulado de França?

— Não, mas recebi uma visita esta manhã...

— De quem?

— Do próprio Conde... Há bocado que saiu daqui.

As duas irmãs soltaram ao mesmo tempo um pequeno grito, em seguida Lazarine voltou num tom de censura:

— Pois que, esteve aqui o senhor de Gordes, e sabendo que nós desejávamos vê-lo, não no-lo disse. Fez mal e fico muito zangada.

— A hora tão matinal era imprópria para uma apresentação, redarguiu o Marquês, mas não perderam nada...

— O Conde volta?

— Hoje mesmo, às três horas, de propósito para lhes ser apresentado.

— Então tudo se arranjou por melhor, e era injustamente que o acusava. O senhor de Gordes falou-lhe sem dúvida da senhora de Braines...

— A pobre senhora recobrou o uso da razão? Está aqui com o seu amigo?

— Raul está só. A senhora de Braines, cuja loucura foi de curta duração, morreu em Florença há seis meses.

Renée estremeceu.

— Morta! disse ela consigo. O Conde está livre!...

Lazarine redarguiu:

— Amava-o ainda?

— Como no primeiro dia.

— Então está profundamente triste?

— Afligiu-me o espetáculo da sua dor.

— A Baronesa estava viúva; por que não casou com ela?

— Ele ofereceu-lhe a sua mão... e ela recusou.

— Já o não amava?

— Adorava-o.

— Confesso que não compreendo.

— Eu me explico...

O senhor de la Tour-du-Roy, repetiu tal e qual o que Raul lhe tinha dito.

Renée escutava atentamente; dir-se-ia que o seu destino estava pendente dos lábios do seu cunhado, e o seu olhar oferecia o que quer que era de uma estranha expressão.

— É muito dramático!... exclamou Lazarine quando o Marquês terminou; imaginava eu muito ingenuamente que esses casos só se davam nos romances e nos dramas.

— Bem vê, minha amiguinha, que se encontram muitas vezes na vida real.

— Mano, perguntou René, parece-lhe incurável a dor do senhor de Gordes?...

— Disse-o e o crê, e com certeza é sincero; mas espero que ele se engane, e que não esteja para sempre perdida a sua vida... O Conde tem apenas vinte e oito anos... O futuro de um homem daquela idade é tão longo, e a mocidade oferece tantos recursos...

— Procuraremos distraí-lo... disse Lazarine.

— Não terão tempo para isso... redarguiu Roberto.

— Como?

— Esquecia-me de dizer-lhes que Raul, acedendo às minhas instâncias, me preveniu de que a sua visita não se renovaria... Ele vai sair de Veneza.

Renée fez um gesto de contrariedade.

— Uma visita só! disse ela consigo. Destruir uma recordação numa hora e triunfar de uma morta...é impossível...

Ela inclinou a sua formosa cabeça para o peito com uma expressão de profundo desânimo, mas ergueu-a imediatamente, ajuntando em voz baixa:

— Quem sabe?... o impossível às vezes realiza-se... Ninguém no mundo podia prever o casamento de minha irmã, mas Lazarine tinha a sua estrela... Talvez eu tenha também a minha...

Depois de almoçar, a Marquesa deu ordem aos gondoleiros para prepararem a gôndola e estarem prontos.

— Vou dar um passeio pelos canais, disse ela, vou apear-me na Praça de S. Marcos, e comprar na lojinha de um judeu de barba branca, certos adereços de coral que vi no outro dia e me pareceram lindos. É desnecessário dizer que dentro de três horas estarei de volta... Vens, Renée?

A jovem respondeu que não iria, e a Marquesa saiu da sala de jantar, deixando sua irmã em companhia do marido. Passaram ambos para a sala. Renée parecia preocupada e estava-o efetivamente muito.

— É curioso ver como tudo o que se parece com romance apaixona as filhas de Eva! disse o senhor de la Tour-du-Roy sorrindo. Aposto, minha linda mana, que está pensando em Raul de Gordes?

— Quase que adivinhou, redarguiu Renée, eu pensava naquela mulher tão amada e tão chorada... Pensava em Julieta de Braines.... Creio que a conheceu?

— Sim, conheci... Pelo menos via-a...

— Parecia-lhe digna de inspirar tão grande amor?

— Não ouso responder a essa pergunta... A Baronesa foi muito culpada, mas a sua morte heróica resgatou a sua falta...

— Não me compreendeu... disse Renée com uma mal contida impaciência, ponha de parte a questão moral que pouco me interessa... Pergunto se a senhora de Braines era bela...

— Oh! Sem dúvida, muito bela...

— Baixa ou alta? morena ou loura?

— Alta e morena. Tinha um gênero de beleza semelhante ao seu. Da sua estatura pouco mais ou menos, alta e elegante como a mana, parecia-se muito com a senhora por causa dos seus esplêndidos cabelos escuros, pelos seus olhos negros de pálpebras transparentes, e pela suave palidez da sua fronte. Ainda se parecia mais pela distinção e pela graça...

— Ó encantador cunhado, exclamou Renée rindo, a sua galanteria ilude-o... A senhora de Braines nada se parecia comigo, porque ela era loucamente amada, enquanto que de mim ninguém se lembra.

— Quem a há de amar ainda não veio, mas há de vir... não duvide! Tem apenas dezoito anos... são muitos os recursos do amor.

Renée, sem responder, fez um galante gesto de negativa, depois redarguiu:

— Já sabemos que a Baronesa era bela; seria também mulher de espírito?

— Não creio... respondeu Roberto. Parecia inteligente, mas não espirituosa... Em todo o caso o seu espírito nada tinha de brilhante, e neste ponto a mana excede-a muito.

— Obrigado, mano, agradeço tantos cumprimentos, nunca mais lhe pergunto coisa alguma.

E Renée sentando-se ao piano desafinado, recomeçou a valsa interrompida da véspera.

— Que se passa hoje naquela linda cabeça? perguntou de si para si o Marquês. Pensará ela em consolar Raul? Se ela o conseguisse, melhor para ambos. Grande pena tenho de que Raul esteja inconsolável.

 

Às três horas menos um quarto, o senhor de la Tour-du-Roy achava-se só na sala, lendo os jornais de França que o correio acabava de trazer.

A Marquesa que havia regressado há pouco com as suas compras de corais, ultimava no seu quarto uma dessas toilettes um pouco excêntricas e muito deslumbrantes, de que tanto gostava e que tão "bem vestia.

Renée entrou.

A jovem, contra o seu costume, vinha vestida de preto. O vestuário muito simples, mas muito justo ao corpo, desenhava perfeitamente os contornos do busto e as perfeições da cintura que parecia mais delgada agora. Um pente de tartaruga loura prendia no alto da cabeça os abundantes e lindos cabelos cuja sábia desordem mais aumentava q seu valor.

Aquele fato severo dava à sua aristocrática beleza alguma coisa de casto e de virginal, de um encanto poderoso, e de um atrativo irresistível.

A expressão de ordinário altiva e às vezes um pouco carregada do seu rosto tinha-se modificado. Um véu de melancolia cobria as suas feições tão delicadas. Nos seus olhos de sombrias pupilas havia agora a triste meditação.

O senhor de la Tour-du-Roy, pôs de parte os seus jornais, e olhou para Renée admirado e surpreendido.

— Então! Querido mano, perguntou ela, como me acha?...

— Bela como um anjo! respondeu Roberto. Não mais do que o costume, o que seria impossível, mas de um modo inteiramente diferente. Que mudança houve em si?...

— Nada que eu saiba, redarguiu a jovem.

— Sei-o eu, disse consigo o Marquês. Eram justas as minhas suposições... Renée pensa muito seriamente em substituir a morta no coração de Raul... A maneira por que se apresenta é hábil, e adivinho o seu plano de batalha. "O que a mulher quer, Deus o quer!" O provérbio terá razão desta vez?...

A porta da sala abriu-se no momento em que batiam as três horas no grande relógio do fogão e nas imensas torres de Veneza, e o criado grave anunciou:

— O senhor Conde de Gordes.

Roberto foi ao encontro do amigo e apertou-lhe as mãos.

Raul correspondeu àquela afetuosa recepção, sentia, a seu pesar, o seu olhar atraído para a jovem imóvel junto de uma janela aberta, e experimentava uma perturbação imensa, uma indizível comoção.

É que, a vaga semelhança notada pelo Marquês entre Renée e a Baronesa de Braines, existia realmente.

Não eram com certeza as mesmas feições, era porém a mesma estatura, os mesmos cabelos e a mesma palidez. A curva elegante do corpo de Renée fazia lembrar muito as formas esquisitas de Julieta.

O senhor de Gordes, ajudado pela sua imaginação, julgava ver viva, em todo o brilho da sua mocidade e beleza, a morta adorada que ele chorava.

Cerraram-se-lhe as pálpebras; uma nuvem obscureceu-lhe a vista; empalideceu e cambaleou.

— Que tem? perguntou-lhe o Marquês muito inquieto.

Raul, a quem a desordem do seu espírito fazia esquecer momentaneamente os seus hábitos de homem de boa sociedade, estendeu a mão direita para Renée e balbuciou:

— A senhora de la Tour-du-Roy, pois não é?

— Não, respondeu Roberto, a Marquesa ainda não está... e acrescentou — Renée, apresento-lhe o meu amigo o senhor Conde de Gordes. — Querido Conde, mademoiselle Renée Leroux, minha cunhada.

Durante esta curta apresentação, Raul tinha conseguido tornar-se senhor de si.

Inclinou-se respeitosamente ante a jovem e disse-lhe:

— Peço-lhe que me desculpe, minha senhora, devo ter-lhe parecido muito extravagante, e preciso da sua indulgência que, por certo, me não recusará. Ao vê-la, minha senhora, avivou-se em meu espírito uma triste recordação. A sua beleza, a sua graça, e sobretudo tão grande semelhança, recordaram-me de um modo vivo e pungente uma pessoa a quem muito amava e que a morte me arrebatou!... Em presença desta visão do passado, enlouqueci. Mais uma vez, queira perdoar-me, minha senhora.

— Não tenho que lhe perdoar, senhor... redarguiu Renée em voz baixa e comovida. O meu cunhado contou-nos, a minha mana e a mim, o profundo desgosto que tinha sofrido. É impossível suavizar as dores tão cruciantes. Só podemos compreendê-las e tomar parte nelas... Não se enxugam as lágrimas que correm... juntam-se-lhe as nossas.

A jovem ao proferir aquelas palavras tinha os olhos úmidos. Voltou a cabeça para o lado. A luz formosa do céu italiano fez brilhar em suas faces uma pérola liquida.

— Ah! Como é boa, minha senhora! exclamou o Conde. A sua tocante simpatia é um bálsamo para a minha chaga. Concede-me que lhe aperte a mão?...

— Com todo o gosto.

Raul de Gordes pegou na mão delicada de Renée, e durante um ou dois segundos sentiu-a tremer entre as suas.

 

O AMOR E A COMPAIXÃO

O senhor de la Tour-du-Roy assistia cheio de surpresa à curta, cena que fotografamos.

Não compreendia muito bem o que se passava.

Por um lado parecia-lhe impossível admitir que Renée fosse dotada de um talento de comediante, capaz de representar tão perfeitamente que iludisse.

Por outro lado admirava-se de descobrir de repente na jovem tesouros de sensibilidade de que não suspeitava, quando até ali a tinha julgado de um coração pouco terno, e em geral mais egoísta do que seria preciso.

Na alternativa de confessar a si mesmo que julgando egoísta essa mulher andava erradamente, ou de se ver forçado a reconhecê-la como capaz de uma hipocrisia profunda e precoce, não hesitou.

— Enganava-me, disse ele consigo, e estimo ter a prova... Renée vale cem vezes mais do que eu julgava.

A chegada de Lazarine pôs termo às reflexões de Roberto.

A Marquesa radiante de beleza, vestida muno esplendidamente, tomou a direção da conversação, como era do seu dever na dupla circunstância de senhora de alta aristocracia e dona da casa, obrigando, pelo único fato da sua presença, sua irmã mais nova a ocupar um lugar secundário.

Graças ao favorável acaso que lhe tinha permitido falar com o senhor de Gordes antes da entrada de Lazarine, ela sentia-se senhora do terreno, e estava certa de que nem os outros galanteios mundanos, nem a brilhante loquacidade de sua irmã destruiriam a profunda impressão produzida em Raul por palavras comovidas e por uma lágrima furtiva.

O rosto da jovem exprimia mais do que nunca a melancolia, os seus olhos grandes e penetrantes conservavam-se cismadores, ao passo que a senhora de la Tour-du-Roy sorria para o Conde, e diligenciava, com uma graça, às vezes esquisita e desastrada, arrancá-lo às suas dolorosas recordações.

Nunca se viu maior contraste.

O senhor de Gordes ouvia Lazarine e respondia-lhe cortesmente, mas o seu espírito e os seus olhares dirigiam-se para Renée, silenciosa e recolhida.

— Que diferença entre estas duas mulheres, dizia ele; uma toda luxo e frivolidades, espirituosa mas indiferente; a outra, alma celeste e coração angélico, nasceu para a ternura e para a dedicação...

A primeira incomoda-me com os seus modos e costumes de criança amimada... a segunda compreende-me e sofre comigo. Renée. furtivamente, observava Raul.

— Ali está o marido que eu esperava! disse ela de si para si. O Conde de Gordes é o meu ideal! Fidalgo e titular, jovem e simpático, e mais rico do que o Marquês!... Uma fortuna principesca! Oito milhões! Se consigo fazer-me amar, que triunfo! Esmagar Lazarine e torná-la invejosa, que sonho! Consegui-lo-ei eu?... É preciso que consiga, e conseguirei!...

Ai de mim! a decepção não se fez esperar...

Ao fim de uma hora, Raul de Gordes ergueu-se então.

Estou profundamente grato, senhora Marquesa, disse ele, pela benevolência do seu acolhimento. Conservarei, creia, inefável recordação destes momentos.

— Dar-nos-á a prova voltando breve, disse Lazarine.

— É infelizmente impossível, regressam à França, e eu fico na Itália.

— Estamos em Veneza por quinze dias ainda, redarguiu a Marquesa, e durante esse tempo teremos muito gosto em tornar a vê-lo.

— Lamento, minha senhora, redarguiu o Conde, não poder aceitar tão inestimável e precioso favor. Amanhã já não estarei em Veneza...

Renée empalideceu.

O seu edifício desmoronava-se. Os seus castelos no ar desfaziam-se como o fumo.

— Por que parte já? perguntou o senhor de la Tour-du-Roy. Preciso solidão...

— Digo-lhe que a solidão é perigosa, e que o isolamento mata! Fique conosco, Raul... Seremos para o senhor uma família.

— Agradeço a sua afeição, meu querido e velho amigo, agradeço-lhe de todo o meu coração, murmurou o mancebo estreitando entre as suas as mãos do Marquês, mas o senhor prometeu-me esta manhã que não insistiria para que eu ficasse.

— É justo, e não insisto mais. Aonde tenciona ir saindo de Veneza?

— Em primeiro lugar a Florença...

— E depois?

— Eu sei lá o que acontecerá!

— Então adeus, meu amigo, visto não querer que seja até mais ver...

Raul de Gordes aproximou-se de Renée e disse-lhe com voz trêmula:

— Nunca esquecerei, minha senhora, as palavras sentidas que partindo do seu coração vieram penetrar no meu. A recordação da sua piedade será, nas angústias da minha vida, o que é um raio de sol nas brumas de um longo dia de inverno...

A jovem inclinou-se sem responder.

O Conde cumprimentou Lazarine e a irmã, e retirou-se, sendo acompanhado até a gôndola pelo senhor de la Tour-du-Roy.

— Receio muito, disse este último quando voltou à sala, que a triste e desolada vida deste pobre Conde, tenha um desenlace funesto e próximo.

— Que desenlace? perguntou Renée.

— Aquele que, na nossa desgraçada época, se tornou vulgar, e de que tanto se abusa, um tiro na cabeça.

— Ele matar-se-ia! exclamou a jovem.

— Repito que receio muito... O desânimo sem limites, e o desgosto de todas as coisas conduzem fatalmente ao suicídio.

A palidez de Renée tornou-se lívida. Lazarine encolheu os ombros.

— O suicídio! repetiu ela. Matar-se na idade do senhor de Gordes, quando se possui um titulo, um nome e uma fortuna como ele tem!... Matar-se porque se ama ou crê se amar uma mulher, e porque essa mulher morre! Ora pois! Se o Conde fizer isso, é um doido, e eu não lamento os doidos...

— É muito cruel, minha queridinha, murmurou Roberto, não é o seu coração quem fala!...

— Talvez, redarguiu a jovem, mas é com certeza a minha razão. E demais, quer que lhe diga? Não me agrada nada este romântico e sombrio rapaz. Fazia dele, depois da sua descrição, uma idéia muito diferente... A sua atitude penalizada, e a sua fisionomia espectral, pareceram-me do maior mau gosto! Conversei com ele, como viu, do mais amigável modo... cheguei a tornar-me galanteadora!... mal me escutava e respondia-me coisas vagas. A pobre Julieta, um pouco leviana, é bem punida, por isso morreu, não de remorsos, mas do aborrecimento de uma longa convivência.

— Lazarine! Lazarine! disse o senhor de!a Tour-du-Roy mim tom de censura.

— Acha que fui injusta, volveu a Marquesa. Pois bem! seja! serei dócil e calar-me-ei, mas não mudo de modo algum as minhas opiniões.

— Tenho a certeza de que sua irmã não pensa de igual modo. Engano-me, Renée?

— Julgar os homens e as coisas seria realmente absurdo na minha idade, respondeu a jovem, por isso abstenho-me.

— Contudo... começou Roberto.

— Suplico-lhe que não me obrigue a discutir, interrompeu Renée, não tenho opinião e não quero tê-la...

Estas palavras encerraram a conversação.

O Marquês, contristado por aquele debate e sobretudo pelas sombrias resoluções que atribuía a Raul, recomeçou distraidamente a leitura interrompida dos seus jornais.

As duas irmãs dirigiram-se para os seus quartos, e Renée, encerrando-se no seu, não susteve por mais tempo as lágrimas de cólera que durante alguns minutos inundaram como uma chuva copiosa o seu formoso rosto transtornado.

Esta cólera pode, à primeira vista, parecer mal justificada; era contudo uma conseqüência lógica do caráter da jovem.

Pela primeira vez desde o casamento de Lazarine, que lhe causava, como sabemos, tão grande inveja, Renée tinha julgado achar a ocasião tão ardentemente desejada, e até então esperada debalde, de realizar os seus sonhos.

— Admite-se de boa vontade o que se deseja, e quando as forças vivas da alma se concentram num fim único, a crença no resultado final torna-se uma espécie de superstição. Renée, ao ouvir a história do Conde de Gordes, e ao saber no dia seguinte que o fim prematuro de Julieta de Braines tornara completamente livre o mancebo, disse de si para si:

— É o destino que mo envia!... Por mais difícil que seja a empresa, por mais impossível que pareça o resultado, arrancarei do coração de Raul a imagem da morte; no seu lugar colocar-me-ei eu, e serei Condessa de Gordes!...

As breves mas significativas palavras trocadas entre ele e Renée; a profunda e grata comoção manifestada por ele a propósito de um testemunho de simpatia; o seu modo pensativo, ao passo que Lazarine se mostrava muito espirituosa, e os olhares que com uma atração quase magnética Raul fitava na jovem; tudo aquilo parecia combinar-se para transformar as suas esperanças em certezas.

Durante meia hora, Renée não duvidou, e o seu coração opresso por muito tempo pela inveja, dilatou-se com as alegrias do triunfo.

E, de repente, sem transição, caiu do alto dos seus sonhos na realidade.

Enganara-se a si própria... fora o joguete das suas loucas ilusões!

O senhor de Gordes partia no dia seguinte; não tornaria vê-la, ela não mais o veria...

Esta partida, ou antes esta fuga, parecia a Renée uma traição do destino, ao mesmo tempo uma injúria do homem cujo nome e cuja fortuna ambicionava.

Por isso a sua cólera, por isso as suas lágrimas.

Durante o resto do dia, e a longa insônia da noite seguinte, julgava-se a mais desgraçada das mulheres; acusando o gênero humano inteiro das ofensas feitas ao seu orgulho; maldizendo a sua inútil beleza e desesperando do futuro.

— Antes morrer, do que viver assim!... balbuciou.

E inclinada na janela que dominava o grande canal, pensava quase seriamente em procurar sob as suas águas profundas o sono eterno e o repouso final.

Será fácil compreender o que se passou em sua alma, quando no dia seguinte, às três horas, estando na sala, triste e abatida, em companhia de Lazarine e Roberto, ouviu o criado anunciar:

— O senhor Conde de Gordes.

Lazarine fez um movimento de surpreendida.

O Marquês soltou uma exclamação alegre.

Renée estremeceu. — Ele volta, disse ela consigo, ele que não queria voltar!... volta a seu pesar, dominado por uma força superior à sua vontade... volta unicamente por minha causa!... Julgava-me vencida e era vencedora!...

Aquela rápida transição de um desânimo sem limites para uma confiança ilimitada, abalou profundamente a jovem. Sentiu-se empalidecer, e a sua mão direita, um pouco trêmula, apoiou-se no seu coração para lhe comprimir as pulsações.

A ambição e a cobiça produziram nela uma perturbação semelhante à que poderia fazer despertar um impetuoso amor.

Esta perturbação não atraiu nem a atenção do Marquês, nem a de Lazarine, mas não escapou a Raul.

— Meu caro, exclamou o senhor de la Tour-du-Roy, as suas palavras de ontem não deixavam entrever a esperança desta visita!... Ela alegra-me muito, afianço-lhe...

— Segui os seus conselhos, respondeu o Conde, e modifiquei os seus projetos de partida.

— O senhor não volta para França?

— Não voltarei pelo menos senão depois do amigo ter partido de Veneza com estas senhoras... Por isso enquanto durar a sua estada aqui, aproveitar-me-ei do bom acolhimento que tão graciosamente me prometeu...

— A minha casa será a sua... redarguiu o Marquês, e repito-lhe, seremos para o senhor uma família...

O meu prezado cunhado é profeta sem o saber... disse lá consigo Renée que tinha recobrado a sua presença de espírito, e em cujos lábios desabrochou um sorriso prontamente sufocado.

 

                                                                                 CONTINUA

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades