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OS FANTOCHES DE MADAME DIABO VOLUME II-2 / X.M.
OS FANTOCHES DE MADAME DIABO VOLUME II-2 / X.M.

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS FANTOCHES DE MADAME DIABO

VOLUME II

Segunda Parte

 

NOVOS MISTÉRIOS

Após um instante de reflexão, o quiromante continuou:

— Outra conjetura admissível se apresenta ao meu espírito... existem maníacos que escrevem semelhantes coisas, sem motivo e sem fim... a sua mania é a carta anônima... Tenho comigo numerosas, cartas emanando de alienados desta categoria, e em tais casos os caracteres da letra não podem servir de base a um estudo sério, € não fornecem nenhuma informação útil... Em resumo, este escrito é obra de um doido ou de um escrevente pago, reproduzindo o pensamento de outrem, e o instrumento de que lhe mostrei o retrato moral, não era menos infame que o denunciante. Sinto não poder esclarecê-lo melhor. Torne pois a guardar este documento imundo...

César de Fossaro, muito perplexo, e mais que nunca rodeado de trevas, levantou-se.

— Não quero tomar-lhe mais tempo, mestre... disse-lhe.

— Eu ia pedir-lhe licença para o deixar... volveu o quiromante, esperam por mim... Prometi ir ensinar um duelo no teatro de Belleville.

— O senhor vai ao teatro de Belleville? repetiu o Barão surpreendido.

— Vou. Os diretores estão montando uma peça de um moço autor, que segundo parece tem muito talento. Tem grandes esperanças nesta obra, em que há um passe de armas entre dezoito ou vinte personagens, e vieram aconselhar-se comigo. Folgo imenso de lhes prestar este serviço...

— O mestre gosta de tudo quanto diz respeito ao teatro?

— Loucamente... Lembra-me os bons tempos da minha mocidade, e os meus melhores dias que já não existem. Gosto de me ver entre os artistas, e quando acho entre eles alguns atiradores sofríveis, sinto prazer de lhes arranjar uma "mise-en-cene" pitoresca... E a propósito, exatamente na peça de que lhe falo, tenho à minha disposição um rapaz muito forte em esgrima, apesar de só ter dois anos de exercício. É um sujeito de um vigor excepcional, e de uma destreza acima do comum. Tem bom olho, um punho de aço... ataca com precisão, e apara como um professor. É rapazote que se algum dia figurar num duelo a sério e conservar o seu sangue frio, tornar-se-á bem perigoso para o adversário.

— Mesmo se o seu adversário for atirador experimentado?

— Mesmo nesse caso, afirmo-o com razão de causa...

— É jovem?

— Terá o muito vinte e três anos...

— Bonito rapaz?

— Esplêndido. Infelizmente sabe-o muito bem... e as mulheres demonstram-lho de sobejo. Isto acabará por perdê-lo tenho medo.

— Chama-se?

— Fernando Volnay.

O senhor de Fossaro estremeceu.

O hábil ensaiador dor dramas da espada, surpreendeu este movimento.

— Conhece-o? perguntou.

— Li o seu nome nos jornais de teatro, que lhe predizem um belo futuro.

— É inteligente, tem naturalidade e sentimento. A sua instrução parece-me um ponto superficial, mas é suficiente para lhe dar o verniz de que eu falava há pouco, e sem o qual um ator não poderia passar quando tem um emprego de Fernando Volnay.

— Irei à primeira representação da peça nova.

— Dou-lhe esse conselho, e creio que não se arrependerá de fazer uma viagem a Belleville.

— Resta-me manifestar-lhe a minha gratidão, e pagar o que devo, disse César pondo cinco peças de ouro em cima da secretária.

— Perdão, senhor, observou o dono da casa, só me deve um luis.

— A diferença será para os pobres.

— Aceito, e em nome dos pobres lhe agradeço. O senhor de Fossaro cumprimentou e saiu.

— Avenida de Vilan, disse ele a Benedetto, subindo para a carruagem.

O caixeiro italiano desceu o boulevard Saint-Michel, tomou pela rua Racine, rua do Odeon e rua Saint-Sulpice, a fim de alcançar o boulevard dos Inválidos pela rua do Vieux Colombier e a rua de Sèvres.

Enquanto o coupé corria, César recostado a um canto, pensava no que acabava de ouvir, e no singular acaso que trazia à conversa o nome do ator Fernando Volnay.

— É forte na espada, dizia ele consigo, e seria um temível adversário. É bom saber-se isso, e não o esquecerei.

Depois, passando a outra ordem de idéias, murmurava.

— Quem escreveria a carta anônima? É preciso que o descubra, se não o meu plano, minado pela base, cairá por terra. Mas eu o descobrirei.

No momento em que o coupé ia desembocar da rua de Saint-Sulpice sobre a praça do mesmo nome, Benedetto foi obrigado a moderar o andamento de Dick.

O caminho estava impedido por um agrupamento de ônibus, o que seja dito entre nós, acontece neste lugar cinco vezes por dia.

Os cocheiros praguejavam.

Benedetto teve de fazer para o cavalo; César meteu maquinal-mente a cabeça pela portinhola da esquerda.

Viu um trem particular que vinha da rua do Vieux Colombier parar junto ao adro do grande pontal de Saint-Sulpice, e reconheceu ao primeiro lance de vista as armas pintadas sobre as portinholas.

Eram as armas do Conde de Vergis.

A portinhola abriu-se, uma jovem vestida de preto, muito elegante e muito bem coberta com um véu, apeou-se, subiu rapidamente os degraus, e desapareceu sobre o pórtico.

— Tenho a certeza de que não me enganei, é a Condessa de Vergis, pensou o Barão, conheço-lhe tão bem o talhe e andar, como lhe conheço o rosto.

— Será a devoção só que a trás à igreja a estas horas?

— Tá, tá, tá! O que é que isto significa? Encontrarei aqui por acaso, sem o procurar, o ponto de partida, que eu debalde procuraria em outra parte?

O trem do Barão tinha-se posto outra vez a caminho.

César deixou-o seguir até ao ângulo da rua Bonaparte.

Ali desceu o vidro de diante, deu ordem a Benedetto que parasse, apeou-se e voltou para trás.

O cocheiro da Condessa tinha ido postar-se ao lado do seminário.

Os seus olhos fixos no portal, despediam sinistros fulgores, e o seu rosto apresentava uma expressão quase aterradora.

— É Jacques Sureau, disse o senhor de Fossaro, Jacques Sureau, o antigo escudeiro dos circos ambulantes, o antigo educador de cavalos, o primo do comediante Fernando Volnay... Aquele esquisito sujeito revela no olhar furor, desprezo, ódio... O que significa, aquilo? Será puramente casual? Um cocheiro, ora adeus! Ora, que admiração! Ruy Blas era lacaio e amava a rainha... É preciso esclarecer isto...

O Barão esfregou as mãos com ar prazenteiro, subiu os degraus e entrou na igreja.

A nave imensa, silenciosa, cheia ainda dos perfumes do incenso arrefecido, mergulhada numa meia claridade misteriosa, estava quase deserta.

Na sombra das capelas, e junto dos confissionários, oravam algumas mulheres ajoelhadas.

César deitou em volta um rápido olhar, e não viu a Condessa, mas isto nada provava.

Dando-se então ares de um estrangeiro que transpõe o limiar de uma igreja, muito menos por devoção que por curiosidade, seguiu lentamente os caminhos abertos por entre as cadeiras, explorou as telas, visitou as capelas, e observou cada uma das penitentes, que não eram em grande número, como já dissemos.

Foram objeto do seu exame os recantos mais escuros.

Em parte alguma descobriu a senhora de Vergis.

— Entraria ela para a sacristia?... É pouco provável... As portas estão abertas, e não se ouve ruído algum de vozes... Como explicar esta desaparição? Anda nisto um mistério de que eu hei de obter a explicação. Não foi um pensamento piedoso que trouxe aqui a Condessa.

Enquanto assim monologava, o senhor de Fossaro dera uma volta pela igreja; era, fora de dúvida, que a senhora de Vergis não Se achava ali.

— Esperarei, murmurou.

E sentou-se junto de um pilar que o abrigava dos olhares.

No fim de três ou quatro minutos, a senhora de Vergis reapareceu de repente.

Saía esbelta e graciosa do fundo da igreja à esquerda do coro, e caminhava rapidamente.

Atravessando a nave parou, fez uma profunda genuflexão em frente do tabernáculo, e veio ajoelhar-se numa das cadeiras colocadas na primeira fila.

César viu-a persignar-se devotamente, curvar a cabeça e por as mãos.

Os seus lábios moviam-se.

Nunca se vira atitude mais recolhida, mais humilde, mais edificante.

— Ora, pensou Fossaro, e parece sincera a sua piedade. Para quem está representando? A igreja está deserta... Isto, na minha opinião, não condiz muito com a acusação que fazem pesar sobre ela. E, contudo, têm-se visto mulheres dividirem-se com a melhor fé do mundo, entre Deus e o amor... Donde vem ela, e o que fez desde que a espero? É um enigma do qual quero a explicação...

A senhora de Vergis levantou-se no fim de alguns segundos. "Benzeu-se piedosamente por segunda vez, inclinou-se novamente diante do altar-mor, e seguiu a passo rápido a larga senda que ia ter à porta principal.

Fossaro torneando o pilar, detrás do qual se ocultava, seguiu-a com o olhar.

A fidalga, antes de chegar à porta, encurtou o passo, tirou da algibeira o "porte-monaie", pegou numa moeda de ouro, deitou-a no mealheiro dos pobres, molhou em água benta a ponta dos dedos, fez um terceiro sinal da cruz, e saiu.

Quando César, por teu turno, chegou ao degrau mais alto do adro, o coupé da Condessa dirigia-se a grande trote para a rua de Vieux Colombier.

— Agora para o palácio de Vergis! disse Fossaro consigo.

E tomou vagarosamente o caminho da carruagem, a fim de dar a Condessa um grande avanço no caso dela voltar para casa.

 

— Andara mal inspirado o Barão em abandonar tão depressa a igreja.

Se se conservasse mais um quarto de hora à sombra do seu pilar, teria assistido a uma coisa singular, e não se afastaria sem levar o fio de Ariana.

Quinze minutos depois de se ter retirado a senhora de Vergis, um mancebo de uns vinte e cinco anos, entrou na igreja pela porta que dá para a rua de Saint-Sulpice, ao canto da rua Féron, e veio ajoelhar-se com um recolhimento muito correto no genuflexório, onde vimos a Condessa reclinada.

A porta superior deste genuflexório, guarnecido de veludo escarlate, formava uma espécie de caixa com tampa que se podia fechar à chave, e destinada a conter livros de horas e pequenos objetos de devoção.

O mancebo olhou para todos os lados, e convencido de que não era espiado, levantou a tampa, meteu a mão na caixa, e tirou um bilhete que tratou de fazer desaparecer no fundo da algibeira.

Recaiu, em seguida na sua imobilidade durante alguns instantes.

A final levantou-se, dirigiu-se para a porta por onde viera, e meteu-se numa casa da rua Féron.

Deixemos o barão de Fossaro dirigir-se para o boulevard dos Inválidos, e voltemos à rua da Victoria, ao escritório de Malpertuis.

Depois de receber de César indicações numerosas e precisas sobre o modo como devia acolher o doutor Antonino Frébault, e sobre as respostas que teria ocasião de lhe dar, o agente procedeu, segundo o costume, à abertura da sua correspondência.

Fez em seguida comparecer os agentes do serviço exterior, deu-lhes ordens e encarregou-os das pesquisas a fazer, principalmente das que eram relativas a Lucilia Gonthier, filha de Amélia Gonthier, e segundo todas as aparências, única herdeira dos milhões de Edgard Sidney.

Industriados e despedidos os agentes, Malpertuis pôs-se à disposição dos clientes que naquela manhã atulhavam a antecâmara.

Os negócios que vinham tratar com os homens de leis não eram pela maior parte nem muito interessantes, nem muito complicados.

Malpertuis, que conhecia o seu próprio mérito, não gostava de gastar palavras inúteis, e aviava-os rapidamente.

Em menos de uma hora tinham despachado umas dez pessoas.

A décima primeira que Miguel, o homem de traje escuro, introduziu no gabinete, era o primo de Jacques Sureau, o comediante de Fernando Volnay, que fazia papéis de galã no teatro não subsidiado de Belleville, e de uma força excepcional na esgrima, a crer o que dizia o mestre de armas do boulevard Saint-Michel.

 

O SUPLÍCIO

Os modos do comediante, como na véspera, no momento da chegada, não eram de quem estava senhor de si e quase arrogante.

O seu rosto já não exprimia o humor alegre de um homem encantado consigo mesmo, e achando a existência uma coisa bela.

Fernando Volnay vinha de cabeça baixa; procurava sorrir, mas o sorriso não passava de uma careta, denunciando a dolorosa comoção que experimentava.

O seu primeiro olhar procurou o de Malpertuis, para ler nele a sua sentença.

Examinou a furto a fisionomia do agente.

Mas os olhos e o rosto daquele sujeito eram impenetráveis.

— O senhor ordenou-me ontem que viesse esta manhã, balbuciou o ator, eis-me!

— Sente-se, senhor Fernando, volveu Malpertuis.

O convite, formulado num tom quase benévolo, pareceu de bom agouro ao mancebo.

Puxou uma cadeira, e tremendo ainda, apesar de já um pouco mais sossegado, perguntou:

— O senhor teve a bondade de mandar um telegrama a Marselha, ao senhor Hirsch, a respeito?...

O comediante não se atreveu a concluir a frase. A palavra expirou-lhe nos lábios.

— A respeito do senhor? retorquiu Malpertuis.

— Sim.

— Teve resposta?

— Tive. Recebi há pouco um telegrama muito explícito. Fernando esperou durante o quarto de um segundo; mas como

O procurador não se explicava, retorquiu:

— Posso ter esperanças de que o senhor Hirsch não visse mais que uma loucura de rapaz na falta de que me tornei culpado? Compreenderá que eu cedi quase inconscientemente a maus conselhos, e aos arrastamentos de uma vida desregrada?

— O senhor Hirsch não quer á morte do pecador... disse Malpertuis num tom sentencioso.

Ao ouvir estas palavras, Fernando sentiu desvanecer-se o peso enorme, esmagador, que lhe carregava nos ombros.

Pela primeira vez depois da véspera respirou com desafogo. O homem de negócios continuou:

— O meu honrado correspondente de Marselha dar-lhe-á o tempo necessário para lhe pagar e reparar a sua falta... Todas as vezes que puder, há de entregar-me uma prestação de que eu lhe passarei recibo.

— Oh! eu hei de pagar, senhor, juro que hei de pagar.

— Espero que assim suceda.

— E para lhe provar a minha boa vontade, vou dar-lhe vinte trancos... É bem pouca coisa, bem sei, mas em suma sempre é um princípio, e por hoje não posso fazer mais.

Malpertuis abanou a cabeça.

— Não aceitarei, replicou, senão prestações de cem francos... É a verdade formal do senhor Hirsch... Demais, dar-lhe-á todo o tempo necessário, como já lhe disse...

A prodigiosa elasticidade desta latitude surpreendia em extremo Fernando, ao mesmo tempo que o punha à vontade.

— Esperarei pois que tenha reunido uma primeira soma de cem francos, e vou já hoje escrever ao senhor Hirsch para lhe agradecer.

Malpertuis mordeu os lábios, e retorquiu com vivacidade:

— Não lho aconselho...

— Por que?

— O senhor Hirsch, apesar da sua muita longanimidade está furioso contra o senhor. A lembrança do seu procedimento desleal está mais que nunca presente ao seu espírito, e se consente em guardar silêncio sobre um caso que o levará ao senhor direitinho ao banco dos réus, é com uma condição...

Fernando Volnay sentiu renascer as suas inquietações.

— Uma condição? repetiu. Qual? Na verdade estou pronto a tudo para ser agradável ao senhor Hirsch.

— O senhor vai reconhecer por escrito que as letras que passou são falsas, que pôs no montepio as jóias para obter o dinheiro necessário ao seu gosto pela dissipação, e acrescentará que se mudou de nome foi para se subtrair às perseguições de que se vê ameaçado...

Malpertuis falava lentamente, com uma voz repassada de um tom glacial.

Fernando Volnay escutava-o com um assombro progressivo.

— Reconhecer isso por escrito! balbuciou ele quando Malpertuis concluiu.

— É reconhecer a verdade.

— Mas isso não pode ser! O senhor Hirsch, visto que não quer a minha perda, não poderia exigir de mim semelhante coisa.

— Citei quase textualmente o parágrafo do despacho.

— Mas nesse caso, o seu simulacro de indulgência é apenas um refinamento de crueldade!

— Aproveita-se do seu direito.

— Para que me pede que escreva e assine uma semelhante declaração? Para que me impõe uma humilhação inútil, tendo senhor Hirsch em seu poder as duas letras que assinei com um nome falso? E na verdade será uma letra falsa, tomando eu o meu nome de teatro?

Malpertuis sorriu com uma expressão de maldade.

— Perdão, querido senhor... exclamou; o senhor ilude-se completamente... Uma letra à ordem tendo por fim um pagamento de valores recebidos é uma coisa comercial... A lei proíbe-lhe absolutamente que assine qualquer letra com outro nome que não seja o que lhe deu o seu batismo. O senhor devia ter assinado: Fernando Volnay, conhecido por: Júlio Marly, o que seria regular, e sujeitar-lo-ia apenas ao tribunal do comércio no caso de não pagar. O senhor Hirsch exige finalmente a sua declaração por escrito, porque isso lhe convém, e porque se julga com poder para lhe impor a sua vontade.

— É um laço que me arma... Malpertuis encolheu os ombros.

— Um laço! quando bastaria uma palavra para que lhe mandassem os gendarmes! Ora não diga tolices, meu querido senhor!

— É, em todo o caso, uma exigência monstruosa! continuou Fernando.

— O senhor, se não quiser, não aceita.

— E se eu não quiser, efetivamente?...

— São precisas as ordens que tenho... Hoje mesmo levarei este caso ao tribunal na qualidade de procurador do senhor Hirsch, e do possuidor das letras falsas, e a justiça fará o que deve.

— E foi para isto que me fez esperar até esta manhã? exclamou-o comediante furioso. Ontem propus-lhe que me deixasse procurar um parente meu, que provavelmente me teria emprestado a quantia necessária para lhe pagar. Não me deixou, e agora pede-me que lhe forneça uma arma contra mim...

— Disse a verdade, é efetivamente uma arma, interrompeu Malpertuis...

— Mas para que? tornou Fernando, com que fins?

— Com o fim de impedir que faça novas vítimas. A certeza de que sobre o senhor paira um perigo eminente em caso de reincidência, fá-lo-á andar direito, mesmo contra vontade, na senda da honra... Seja honrado e nada terá que temer. O que o senhor Hirsch exige é para seu bem.

O período de prostração sucedeu sem transição alguma, ao período da cólera. Fernando Volnay balbuciou:

— Estou à sua mercê, senhor. Tem-me seguro, e poderá fazer de mim tudo quanto lhe convier.

— Eu sou apenas um procurador, obrigado à obediência passiva, volveu Malpertuis: peço-lhe porém que note. que se o senhor Hirsch consente em não o entregar aos tribunais, é a meu pedido.

— E se eu escrever o que me pede, não terei nada a recear?

— Nada, repito, enquanto o senhor não se afastar da linha reta....

— Não serei inquietado por essas malfadadas letras?

— Garanto-lho... Deve ficar sossegado.

Aos lábios de Fernando Volnay acudiram estas palavras:

— Quem mo prova?

Não se atreveu a proferi-las.

Conhecia que não podia lutar com um homem tão formidavelmente armado, e que o esmagaria se não obedecesse.

Já se via preso e levado para a prisão.

Apareceu-lhe a visão do tribunal, que o fez estremecer.

Uma condenação, qualquer que ela fosse, destruir-lhe-ia o futuro... adeus teatro que ele amava, adeus vida alegre, adeus sonhos!

Se pelo contrário se submetia, se aceitava a dura condição que lhe impunham, via-se livre de cuidados, juravam-lho, e parecia-lhe verossímil o juramento.

Em tais condições, hesitar por mais tempo era impossível.

— Dê-me, pois, papel, senhor, balbuciou o comediante, e dite. Estou pronto a escrever e a assinar o que o senhor Hirsch pede. Malpertuis colocou numa das dobradiças da secretária, uma folha de papel, um tinteiro e uma pena.

Fernando pegou na pena.

O agente ditou:

"Reconheço que as duas letras de trezentos e cinqüenta francos cada uma, dadas por mim em pagamento ao senhor Hirsch, joalheiro em Marselha, eram assinadas por um nome que não me pertencia; confesso ter empenhado no montepio os diamantes entregues pelo senhor Hirsch, e vendido a cautela; — e acrescento que sentindo-me culpado, mudei de nome quando deixei Marselha, para fazer perder o meu rasto ao credor e evitar perseguições.

"Fernando Volnay, conhecido por Júlio Marly.

"Paris, 17 de setembro de 1879".

— Pronto! murmurou o comediante dando o papel a Malpertuis. Este pegou no papel, tornou a ler a declaração, meneou a cabeça com um ar satisfeito, e formulou sentenciosamente:

— Compreendo que lhe haja parecido duro exprimir a seu próprio respeito uma opinião severa, mas talvez acabe de assegurar a sua fortuna, e preparar a si mesmo um brilhante futuro.

— Está zombando? perguntou Fernando.

— Estou falando muito a sério... A vida é cheia de singularidades que desmentem todas as previsões... Queira informar-me do que fará de hoje em diante. Preciso de saber sempre onde mora...

— Trazê-lo-ei sempre ao fato do que deseja, senhor... retorquiu o comediante.

Cumprimentou Malpertuis, que o acompanhou até à porta do gabinete.

O agente, voltando para a sua cadeira, disse consigo:

— César tinha razão... Faremos deste patife tudo quanto quisermos...

Tocou a campainha. Miguel acudiu.

— Temos muita gente ainda? perguntou-lhe o patrão.

— Três pessoas, respondeu o empregado consultando um quarto de papel que tinha na mão. Eis os seus nomes: Landry, Javal, e o doutor Frébault, que foi o último a chegar.

— Introduza já o doutor.

O médico da Duquesa de Chaslin transpôs o limiar. Malpertuis levantou-se para lhe corresponder à saudação. Indicou-lhe junto da secretária uma grande poltrona, na qual Antonino se deixou cair.

— Venho pedir-lhe o seu auxílio, senhor. Principiou o doutor.

— Pode desde já contar com ele, replicou o agente, e sinto orgulho de receber pela primeira vez no meu escritório uma das ilustrações da ciência moderna.

Antonino Frébault inclinou-se e continuou:

— Uma pessoa com a qual tem estado em relações, autoriza-me a servir-me do seu nome como recomendação, porque foi essa pessoa que me sugeriu a idéia de me dirigir à sua bem conhecida casa.

— De quem se trata?

— Do meu bom amigo o Barão César de Fossaro.

— O Barão de Fossaro... perfeitamente... perfeitamente. Obtive-lhe um criado de quarto.

— Com quem está encantado... Fez-me do seu escritório o elogio mais entusiasta e mais merecido.

Malpertuis inclinou-se por sua vez e disse:

— Agora, senhor doutor, queria dizer-me qual é o fim da sua visita.

— Venho pedir-lhe que me alcance uma pessoa digna de ocupar um emprego de alta confiança numa família de tratamento...

— Queira especializar.

— A senhor Duquesa de Chaslin, uma das minhas clientes, encarregou-me de lhe obter uma menina bem educada, de boas maneiras, de uma moralidade irrepreensível, que pudesse servir-lhe de companhia. Tem à mão essa ave rara?

— A minha agência não mereceria a sua reputação, se me visse obrigado a responder negativamente... Posso por à sua disposição muitas meninas que satisfazem as condições requeridas... Recomendar-lhe-ei sobretudo uma delas como pessoa excepcional, e de um merecimento absolutamente fora do comum.

 

CONTINUAÇÃO

— Que idade tem essa menina? perguntou o doutor Frébault. — Dezenove anos... respondeu Malpertuis.

— Pertence a boa família?

— É órfã, e parece-me que o seu nascimento anda rodeado de mistério.

— Não a interrogou a esse respeito?

— Pouco... receei avivar um desgosto ainda mal extinto. A sua distinção natural, o seu ar de raça, a sua fisionomia quase altiva, apesar da brandura extrema do seu caráter, não permitem supor nem sequer admitir que ela seja de baixo nascimento.

— Que soube da sua infância e da sua primeira mocidade?

— Foi educada na Inglaterra, sob a direção de um homem que se arruinou no comércio dos algodões, e que por sua morte a confiou aos cuidados de uma velha criada francesa... Esta boa mulher, extremamente dedicada à órfã, trouxe-a para Paris, esperando arranjar-lhe aqui ocupação.

— É bonita?

— Encantadora.

— Sabe música?

— É uma pianista distinta, e dotada de uma bela voz de contralto.

— É escusado perguntar-lhe se fala inglês, visto ter sido educada em Londres.

— Além do francês, fala mais três línguas: inglês, espanhol, italiano.

— Responde pela sua moralidade?

— As informações que recebi de Londres habilitam-me a fazê-lo com absoluta certeza. Demais, basta vê-la para compreender a que ponto a pobre criança merece que se interessem por ela.

— Querido senhor Malpertuis, exclamou Frébault, tudo quanto me está dizendo entusiasma-me!

— Entusiasmo bem empregado, e de que não se arrependerá.

— Essa recomendável menina acha-se já livre?

— Já. Há mais de um ano que ela se acha em Paris, e tenho tido cem ocasiões de a colocar... Não o tenho querido... Para um tesouro excepcional, esperava uma ocasião excepcional como a que hoje se apresenta... A menina Adriana ficará no lugar que lhe compete no salão da Duquesa de Chaslin, e a senhora Duquesa não poderia encontrar coisa melhor.

— Tudo isso é maravilhoso... Contudo desejava vê-la, antes de falar dela à senhora de Chaslin...

— Nada mais fácil... Vou preveni-la imediatamente. A que horas quer que ela se apresente em sua casa?

— Esta tarde, às seis horas... A minha morada está no meu bilhete, rua de Verneuil, n.° 4.

— Às seis horas em ponto, bater-lhe-á à porta.

— Devo tratar com o senhor a questão dos honorários? perguntou o doutor.

— Tratá-la-á com a própria interessada.

— E ao senhor quanto lhe devo?

— Nada absolutamente por enquanto. Dois luíses se a jovem for aceita pela senhora Duquesa.

— Não poderei oferecê-los imediatamente?

— Não aceitarei.

— Terei então o ensejo de o tornar a ver. Às seis horas esperarei a menina Adriana.

— Conte com a minha exatidão...

Antonino Frebault despediu-se, e Malpertuis acompanhou-o até à antecâmara, o que poucas vezes sucedia com qualquer cliente fosse ele qual fosse.

Voltando ao gabinete, traçou numa folha de papel as seguintes palavras:

"A menina Adriana apresentar-se-á hoje, às seis horas em ponto, em casa do doutor Antonino Frebault, rua Verneuil, n.° 4. Negócio da Duquesa de Chaslin".

Depois de assinar com a inicial P, meteu estas três linhas num sobrescrito, pôs-lhe unicamente por direção o nome de Branca Renée, preveniu o seu empregado principal de que saía por espaço de uma hora, tomou um trem e fez-se conduzir a Belleville.

Malpertuis seguia exatamente as ordens de César.

— Ninguém na agência deve saber que Branca existe... dissera o Barão de Fossaro. De todas as vezes que se tratar dela, procede pessoalmente.

O agente assim fazia.

No ângulo da rua Compans achou um moço de recados, entregou-lhe o bilhete, e designou-lhe a portinha que nós conhecemos, e aonde devia bater.

— Espero aqui pelo seu regresso, acrescentou.

— Tem resposta? perguntou o moço de recados.

— Não. Dará simplesmente esta carta à pessoa que lhe vier abrir...

— Bem.

As coisas passaram-se como Malpertuis queria.

O agente voltou para a rua da Victoria.

Branca estremeceu, ao ler o bilhete lacônico do agente.

— Já, murmurou.

Após um momento de silêncio, acrescentou:

A final de contas, o que tem que se fazer faça-se. Um titulo de Duquesa e milhões, eis o bolo. É preciso jogar depressa e ganhar a partida. Às seis estarei em casa do doutor Frébault.

E preparou a sua toilette.

 

Enquanto se passavam estas coisas, Estanislau Picolet, a quem na véspera vimos receber as confidencias do Príncipe Heitor de Castel-Vivant, e do agente de segurança Daniel Gaillet, não se conservava na inação.

Na véspera, à noite, Malpertuis dera-lhe instruções relativas a certas pesquisas de que o encarregava, e que o deviam ocupar durante três ou quatro dias pelo menos.

Sta-Pi esfregou as mãos.

Permitia-lhe a sua boa sorte trabalhar ao mesmo tempo pelo escritório e pelo príncipe Totor.

O polícia secreto pôs-se quase imediatamente em campo.

Depois de ter oferecido a Palmyra, a dama complacente do balcão do pequeno botequim da rua da Victoria, o almoço de ostras prometido na véspera, Picolet dirigiu-se para o boulevard, e subiu o ônibus da Magdalena e da Bastilha.

Chegando ao boulevard das Filies du Calvaire, à estação que fica defronte do circo de inverno, apeou-se, meteu-se pela rua Oberkamp, e subiu-a até ao outro lado do boulevard Richard Lenoir.

Parou em frente de um mostrador de fotografias emolduradas luxuosamente, colocado à porta de um corredor de uma casa nova de boa aparência, entrou, e subiu ligeiramente até à oficina da fotografia.

Entrou na oficina.

Saiu-lhe ao encontro um jovem, o qual lhe perguntou com ares insinuantes:

— O senhor vem de certo para se fotografar?

— Isso é que não, respondeu Sta-Pi rindo. A minha carantonha não vale que se faça sacrifícios por ela...

— Então o que deseja? retorquiu o rapaz já muito frio.

— Um pequeno esclarecimento. Queria falar ao patrão...

— A ele mesmo?...

— Pessoalmente.

— É que ele agora está a operar.

— Esperarei. Entrou na sala.

— Virei preveni-lo quando o patrão estiver livre.

Sta-Pi entreteve-se a examinar os numerosos retratos que cobriam as paredes da sala.

Observava de preferência os retratos de mulheres.

Quando as mulheres eram bonitas, sorria.

Quando estavam decotadas, o sorriso acentuava-se, e um piscar de olhos muito anacreôntico não deixava de sublinhar o sorriso.

No fim de um quarto de hora que pareceu curto a Picolet, abriu-se uma porta, e apareceu o próprio patrão, vestido todo de veludo preto.

— É o senhor que me deseja falar? perguntou.

— Sim, senhor.

— De que se trata?

— De me ajudar a encontrar uma pessoa que deve neste momento estar bem inquieta a respeito dos objetos que perdeu... O senhor não compreende de certo, mais um minuto de paciência, e vou explicar-me.

— O mais brevemente que for possível, peço-lhe, disse o fotógrafo, tenho pressa.

— Não tenha receio, serei conciso. Ontem à noite, no "boulevard", encontrei uma carteira contendo papéis muito importantes, mas sem, sobrescritos, e por conseguinte sem "adresses".

— Então pode fazer anúncios nos jornais...

— De certo, e poderei também levar o meu achado ao comissário de polícia, mas não terei a certeza de conseguir o que quero, e preferi dirigir-me ao senhor.

— E como demônio posso eu servi-lo?

— Vai ver.

— Espero.

— Na carteira havia uma fotografia... A fotografia saiu da sua casa. Portanto o senhor conhece a pessoa que talvez não* seja a proprietária da carteira, mas que poderá de certo dar-me indicações.

— Tem razão, senhor, mostre-me a prova...

Picolet tirou da carteira o retrato da loura desconhecida que dava pelo nome de Lucilia e deu-a ao fotógrafo.

— Efetivamente, disse o artista, isto saiu daqui, e lembro-me às mil maravilhas dessa menina linda como uma flor, palavra! Tirei-lhe uma meia dúzia de retratos que vieram buscar há uns oito ou dez minutos; mas essa jovem não é das freqüentadoras habituais, do meu estabelecimento. Nunca a tinha visto; não a tornei a ver.

— Mas o senhor, retorquiu Sta-Pi com um enorme desapontamento, quando tem um trabalho a executar, não inscreve nos seus registros o "adresse" das pessoas?...

— Isso faz-se quando temos de mandar os retratos a casa; mas na maior parte dos casos pagam-nos adiantadamente e vêm buscá-los.

— Tem toda a certeza de que não tomou a morada dessa menina?

— Parece-me que tenho. Demais, para lhe ser agradável, vou consultar o meu livro...

— Ficar-lhe-ei muito reconhecido. O fotógrafo sorriu.

— Como, murmurou Sta-Pi fazendo uma careta, pois eu hei de perder a minha única probabilidade de encontrar a lourinha, e de apanhar as notas de mil francos do Príncipe de Castel-Vivant!... Isto é que seria azar, os demônios me levem!... Mas se a morada não está aqui, onde procurá-la? É para arrancar os cabelos!

Sta-Pi monologava desta forma, quando entrou o dono da casa. Tinha um registro na mão.

— Então, senhor? perguntou Picolet com vivacidade.

— Bem! não me enganava, eis a encomenda, mas sem a morada...

— Mas temos talvez aí algum nome?

— Sim, há um nome.

— Ah! exclamou Picolet muito alegre.

— Ou antes um simples apelido... volveu o fotógrafo. Veja: "Menina Lucília. Meia dúzia de retratos. — Pago. — Para entregar no dia 5".

— Isto não me conduz a nada, pensava Sta-Pi, cuja decepção aumentava. O príncipe Totor sabia que ela se chamava Lucília... não fica mais adiantado por isso... Nem eu tão pouco.

No fim de um segundo, tornou em voz alta:

— Supõe que esta jovem mora no seu bairro?

— Se me lembro, ela apareceu aqui sem chapéu, por conseguinte, como vizinha... Mas como era? com certeza uma costureirinha, uma, grisete, como se dizia em outros tempos, isto não prova grande coisa...

— Peço-lhe perdão de o ter assim incomodado.

— E eu sinto tê-lo informado tão mal. Picolet retirou-se de cara triste e queixo caído.

Na rua parou a refletir, deixou-se acotovelar pelos transeuntes.

— Muito bem! murmurou de repente saindo das suas reflexões e pondo-se a gesticular, sou um belo figurão! Prometi ao príncipe Totor descobrir-lhe a moça, e eis-me em frente de um problema que me parece insolúvel! Mas será na verdade insolúvel? Há porventura algum enigma de que não se possa obter a explicação? Até hoje nunca me pareceu... Vamos, meu velho Sta-Pi, tu que passas por bastante esperto, procura desembrulhar esta meada!...

A lourinha veio aqui de cabeça nua, e por grisete que ela seja (diga o que disse o fotógrafo), uma rapariga não vinha sem chapéu da rua de Notre Dame des Champs à rua Oberkampf...

Portanto, ela mora no bairro... Bem! explorarei o bairro... Tenho a minha idéia... Amanhã darei princípio ao meu pequeno trabalho, e será para admirar se não conseguir o que quero. Hoje trata-se de ser honrado, e de me ocupar dos trabalhos da agência Malpertuis.

E Sta-Pi, enterrando com um murro o chapéu sobre a orelha, tornou a tomar a direção do boulevard.

 

PESQUISAS

Além de Sta-Pi, a agência Malpertuis, como sabemos, ocupava um grande número de pseudo-polícias, encarregados de descobrir os indivíduos cujas moradas, costumes e relações, o agente queria conhecer.

Naquela manhã, um dos empregados recebeu a incumbência de procurar os vestígios da filha de Amélia Gothier, a herdeira dos milhões de Edgard Sidney.

O agente, um tal Bijou, munido das notas dadas pelo patrão, pusera-se logo em campo.

O êxito parecia-lhe certo.

Amélia Gonthier estivera por muito tempo no teatro Dejazet, em seguida na província, depois, no estrangeiro, e afinal viera morrer em Paris.

Nada mais simples do que dirigir-se ao próprio teatro, aos artistas contemporâneos da comédia, que haviam feito parte da mesma companhia, e finalmente aos correspondentes dramáticos.

Quando não se lembrassem exatamente da morada, poderiam pelo menos dizer em que bairro Amélia Gonthier morrera, e tirar-se-iam informações completas na mairie daquele bairro.

Bijou teve bem depressa a prova de que se iludia completamente acreditando no êxito fácil e pronto.

Girou toda a manhã sem resultado.

O teatro Dejazet ainda existia, sob outro nome, mas tinha devorado cinco ou seis diretores em dez anos, e já não existiam os livros das moradas do tempo de Amélia Gonthier.

Era isto uma primeira decepção.

O empregado de Malpertuis visitou muitos correspondentes.

Nenhum lhe podia dar indicação que lhe servisse.

Era pois preciso procurar os artistas contemporâneos da morta, tendo aparecido nas mesmas cenas.

Bijou falou a um, a dois, a dez, mas sem o menor resultado.

Somente, coisa singular, aqueles a quem interrogava a respeito -da filha da comediante, respondiam-lhe invariavelmente:

— Amélia Gonthier não tinha filha. O empregado dizia então consigo:

— Cairia o patrão em erro? Se a pessoa em questão tivesse tido uma criança, não importa de que sexo, esta gente havia com certeza de o saber.

Demais, pouco lhe importava.

Daria conta do que tinha feito, e Malpertuis que se arranjasse como pudesse.

Enfim, alguém indicou a Bijou o partido que lhe oferecia probabilidades de o conduzir a alguma solução.

Em todos os teatros existe um empregado especial, encarregado de levar ao domicílio dos atores os avisos dos ensaios.

Um rapaz dos acessórios do teatro Dejazet fora encarregado deste serviço durante muitos anos.

Tinha agora o mesmo emprego em outra administração.

Como era possível que ele não se lembrasse da rua, nem ao menos do bairro onde Amélia Gonthier morrera?

Bijou dirigiu-se ao teatro e encontrou o homem.

Era um velhinho de setenta anos, engelhado, enfezado, mas ainda ágil.

O empregado de Malpertuis explicou-lhe o fim da visita.

— Senhor, volveu o velhinho, posso satisfazê-lo até certo ponto. A senhora Gonthier morava no boulevard Voltaire. Já não me lembro do número. Só sei que era um pouco antes de chegar ao boulevard Richard Leonir.

Bastava isto; como o espaço a percorrer era restrito, as pesquisas não eram longas; tornava-se até inútil o mairie.

Bijou tomou a toda a pressa o caminho do boulevard Voltaire, e principiou pelo lado dos números pares. Esperava-o uma nova decepção.

Como quase todos os locatários se tinham mudado havia dez anos, nada sabiam dos locatórios dos seus predecessores.

Finalmente, chegando ao número 79, Bijou foi mais feliz.

— Senhora, perguntou a uma porteira que fazia à máquina peitilhos de camisa, pode dizer-me se uma artista, bem conhecida, chamada Amélia Gonthier, morou outrora nesta casa?

A boa da mulher interrompeu o seu trabalho e respondeu:

— Sim, senhor; morou, e até aqui morreu, há nove para dez. anos.

— Sei que ela já não existe. Mas tinha uma filha, não é verdade?

— Sim, senhor, uma garotinha, de uns oito anos, uma perfeição, com cabelos de ouro, olhos azuis muito grandes. Vinha ver a. mãe de tempos a tempos.

— Não vivia então com a mãe?

— Não senhor.

— Algum parente de certo a criava no campo?

— A senhora Gonthier não tinha parentes, pelo menos assim o creio.

— Onde estava então a criança?

— Num colégio.

— E depois o que foi feito dela?

— A isso, senhor, não posso responder. Nunca mais ouvi falar da pequena, que deve a estas horas ser uma bonita rapariga se correspondeu ao que prometia.

— Pode pelo menos indicar-me o nome do colégio onde a mãe a pôs?

— Só sei que era dos lados de Maisons Alfort.

— Obrigado, senhora.

Bijou achava-se novamente em face de dificuldades que desta. vez lhe pareciam invencíveis.

A senhora Gonthier deixara uma filha, mas como encontrar esta jovem?

Não entrevia modo algum de descobrir o que pretendia.

Por isso voltou para o escritório, o antigo procurador pôs os cotovelos em cima da mesa, descansou a cabeça entre as mãos e refletiu.

— Abandonar este negócio, pensou ele, seria loucura, mas é preciso proceder com a maior prudência. Um anúncio nos jornais por-nos-ia de certo sobre a pista, mas havia perigo de deitar tudo a perder. Quereriam saber com que interesse trabalhamos, desconfiariam, e tornar-se-ia depois difícil tratar em boas condições. Achemos, primeiro que tudo, o colégio onde foi encontrada a pequena.

Mandou chamar Bijou e deu-lhes novas instruções.

O colega de Sta-Pi recebeu ordem de visitar, um por um, todos os colégios situados na zona que fica entre Charenton e Maisons Alfort.

Deixemos provisoriamente entregues às suas pesquisas os dois empregados da agência Malpertuis, e voltemos ao Barão de Fossaro.

 

O Barão acaba de chegar ao palácio do Conde de Vergis, na avenida de Villars.

A Condessa já voltara.

César teve a prova disso vendo no pátio o coupé que ele notara na praça Saint-Sulpice.

Dois palafreneiros desatrelavam o trotador irlandês.

O primeiro cocheiro Jacques Sureau já ali não estava.

O senhor de Fossaro fez-se anunciar.

A senhora de Vergis, que só tivera tempo de tirar o chapéu e a peliça, conversava no salão com três ou quatro visitas, entre as quais devemos mencionar o Visconde de Chazary, cujo nome é já conhecido dos nossos leitores.

Maria de Vergis era cem vezes mais bonita do que se precisava, para justificar a ardente paixão do seu velho marido.

De vinte e três anos de idade apenas, parecia uma donzelinha, tanta candura quase virginal havia no olhar dos seus olhos escuros, e no sorriso dos seus lábios cor de púrpura.

Uns cabelos abundantes e macios, de um castanho dourado, coroava-lhe o rosto de feições puras, cuja epiderme aveludada se tornava de púrpura à menor comoção.

Alta, delgada, e maravilhosamente bem feita, fidalga tanto na figura como no rosto, uma a elegância e o encanto à graça, mais bela ainda de que a beleza.

A Condessa recebeu as mil maravilhas César de Fossaro, censurou-o cortesmente, e como ele pedisse notícias do conde, respondeu com um sorriso cheio de malícia ingênua:

— O senhor de Vergis está a rever as provas de uma obra horrivelmente repleta de ciência, cuja aparição, segundo suponho, o instituto, a França, o mundo inteiro, esperam com impaciência. Julgo que ele não tardará se as suas provas lho permitirem, mas não me atreveria a afirmá-lo.

Depois, a jovem continuando a conversa interrompida, disse a uma das suas visitas, homem grave e mais que maduro, cujo crânio absolutamente calvo, lembrava vagamente um ovo de avestruz:

— Não perco de vista o pedido que se dignou fazer-me, querido senhor de Valvillc. Dentro de poucos dias receberá cinqüenta fatinhos completos para as crianças pobres do seu bairro.

— Agradeço-lhe, senhora, em nome dos que sofrem, e não se dirige nunca debalde a sua inesgotável caridade, replicou o homem calvo.

— Senhor de Simiers, continuou a Condessa sorrindo para um segundo personagem não menos grave e quase tão calvo como o primeiro, mandei esta manhã entregar uma trouxa com roupa e fato ao asilo de beneficência de que o senhor é um dos protetores.

— Quantas ações de graças, senhora! A comoção sufoca-me, murmurou o senhor de Simiers com um ar comovido.

— Ah! senhora Condessa, exclamou o visconde de Chazary, rapaz de trinta anos, que não era feio, talvez um pouco vaidoso, como eu sinto não fazer parte de nenhuma sociedade filantrópica, a fim de solicitar a sua colaboração às minhas obras. Ser-me-ia trazer a seus pés as bênçãos que devem rodear o seu nome.

— Não faço senão o meu dever de mulher rica, meu querido Visconde, replicou Maria de Vergis. Ofereço aos que têm falta de tudo uma parte do meu supérfluo. É mais que natural, é quase insuficiente.

— Não reclamo nem bênção, nem gratidão, nem agradecimento.

— Talvez tenha razão em não os reclamar, apesar de os merecer, retorquiu sentenciosamente o senhor de Chazary, porque sucede

às vezes que, semeando benefícios, só se colhem ingratidões.

— Meu querido Visconde, o senhor calunia o gênero humano.

— Senhora Condessa, penso inteiramente o contrário, e afirmo que o fundo da natureza humana, com poucas exceções, é ingrato.

— Nego-o, disse Maria de Vergis com vivacidade, e apelo para o senhor de Fossaro.

— Eu, senhora, replicou César, acredito na gratidão, e afirmo até que é preciso fazer bem como a senhora faz, ainda que se tenha de encontrar só ingratidão. Admiro-a profundamente, senhora Condessa, e senão fossem hábitos absorventes de vida mundana, estou convencido que iria muito longe na senda de renúncia evangélica e da caridade cristã.

— O senhor Barão! exclamou a senhora de Vergis num tom de surpresa, com um sorriso quase zombeteiro.

— Sim, senhora, eu mesmo! replicou Fossaro. Tal qual me vê não seria para admirar que eu acabasse a vida sob um hábito de Dominicano, de Trapista, ou outro assim.

— Mas há de convir pelo menos que é inverossímil.

— Então por que? Há momentos em que eu, apesar de cético endurecido, inclino a fronte sob um raio de luz que vem de repente beijá-lo. Infelizmente a impressão desvanece-se depressa, mas não tarda a renascer.

César fixou no rosto quase virginal da Condessa um olhar de uma estranha fixidez, e continuou:

— Assim, há pouco voltando do bairro do Odeon, passava diante da igreja de Saint-Sulpice. Eu tinha sem saber porque, o ânimo abatido, a alma sombria, o coração magoado! uma dessas tristezas vagas, que aparecem em certas horas, e às quais não se pode dar uma explicação, apoderava-se de mim.

"Lembrei-me de que encontraria no lugar santo a tranqüilidade da alma, e o equilíbrio do espírito.

"Fiz parar a carruagem, subi os degraus, e transpus a porta da igreja.

— Isso passava-se há pouco? perguntou a jovem sem a menor perturbação aparente.

— Há pouco, sim, senhora, quando vinha para o seu palácio, respondeu César.

 

VIRTUDE OU HIPOCRISIA

— É singular não nos termos encontrado, disse então a senhora de Vergis no tom mais natural; eu achava-me também em Saint-Sulpice; estive ali quase dez minutos, e os fiéis eram em número muito limitado para não nos podermos reconhecer.

— Efetivamente, replicou César, só vi um pequeno número de pessoas piedosas à volta dos confissionários, e uma senhora distinta ajoelhada na nave, junto do santuário, defronte do altar-mor, orando com edificante fervor, e ocultando o rosto nas mãos.

— Essa mulher distinta, que o senhor se dignou achar edificante, observou a Condessa sorrindo, era eu.

— Quanto sinto não o ter adivinhado...

— Por que?

— Aproximar-me-ia da Condessa para lhe perguntar humildemente como se ora.

— Eu responder-lhe-ia que elevasse a sua alma, e a oração acudir-lhe-ia espontaneamente aos lábios.

— Após um breve silêncio, a Condessa acrescentou:

— Esteve muito tempo na igreja?

— Quase um quarto de hora... e quando saí, tinha-se realizado a minha esperança. O silêncio profundo que reinava nas altas abóbadas, e os vagos perfumes do incenso arrefecido flutuando na atmosfera, tinham-me restituído a paz.

Nem um músculo do rosto da senhora de Vergis estremecia. Nas suas feições encantadoras reinava profunda serenidade. Ela continuou:

— Essa solidão, cuja impressão solene experimentou, exerce sobre mim uma atenção irresistível. Prefiro o silêncio do lugar santo aos ruidosos esplendores das cerimônias do culto. Para falar a Deus, escolho os momentos em que não vem coisa alguma distrair-me.

— Como compreendo isso! exclamou Fossaro. Quando as igrejas estão cheias de ruído, quando milhares de círios inclinam as chamas sob o fumo dos turíbulos, e as grandes vozes dos órgãos se elevam, já ninguém vem à igreja para cumprir um piedoso dever... Vai-se lá como se vai ao teatro, para ouvir cantar. São em grande número as pessoas que, considerando o templo como um lugar profano, aí concorrem levadas pela curiosidade ou pela garridice, chegando a aprazar para aquele lugar entrevistas de amor.

— Entrevistas de amor! repetiu a Condessa com espanto e ao mesmo tempo com terror.

— Sim, minha senhora.

— Julga na verdade que isso seja possível?

— Mais do que isso, tenho a certeza de que se faz.

— Viu já?

— Não contesto, mas a simples idéia de um sacrilégio tal me aterra.

— Ora, minha senhora, replicou César sorrindo, os namorados não pensam em sacrilégios... Procedem sem reflexão, e não têm a consciência do que não seja amor. Encontram-se na igreja, porque a santidade do lugar não deixa suspeitar dos seus acordos secretos. Em todas as épocas se tem feito isto. Fazia-se na Idade Média, tanto ou mais talvez que no nosso século incrédulo.

— O mais ardente amor não pode servir de desculpa a tão odiosa profanação, disse a senhora de Vergis friamente. Lastimo profundamente os insensatos que recorrem a tais meios.

O senhor de Fossaro não cessara de observar a Condessa durante a conversa que acabamos de reproduzir.

— Esta mulher é caluniada, pensava ele. Se fosse adúltera, nenhuma criatura humana seria capaz de levar mais longe a dissimulação.

Duas das visitas que tinham precedido César, levantaram-se para se despedirem.

 

Abriu-se a porta da sala, e o criado de quarto anunciou:

— O senhor de Trois Monts.

Amoldo de Trois Monts era um belo rapaz de vinte e cinco ou vinte e seis anos, de uma elegância superlativa.

Os nossos leitores, sem o saberem, já o entreviram na igreja de Saint-Sulpice, onde o mostramos de joelhos no genuflexório que a Condessa acabava de deixar, e tirando do esconderijo preparado sob o recosto de veludo uma carta ali colocada para ele.

Cumprimentou a senhora de Vergis que o acolheu com uma delicadeza um pouco cerimoniosa, apertou a mão do Barão de Fossaro a quem conhecia, e inclinou-se friamente diante das outras pessoas presentes.

— Não poderei ter o prazer de ver o senhor de Vergis? perguntou.

— Meu marido está fechado no seu gabinete onde emenda as provas da sua grande obra... respondeu a Condessa. Tem alguma coisa de particular a dizer-lhe?

— Tenho que lhe entregar alguns apontamentos relativos à minha última viagem à Itália, apontamentos que ele teve a bondade de me pedir.

— Vou preveni-lo.

A conversa generalizou-se durante alguns minutos, depois César, convencido de que a senhora de Vergis era um anjo, e a carta anônima uma vil infâmia em torno da Condessa, despediu-se e partiu em companhia de outras visitas, deixando a senhora de Vergis só Com o senhor de Trois Monts.

Nos olhos dos dois personagens brilhou um clarão, mas a sua atitude não se modificou.

Não se aproximaram um do outro, e alguém que os visse, sem os ouvir, não poderia suspeitar que houvesse entre eles outra coisa senão troca de palavras banais.

E contudo a senhora de Vergis, ao mesmo tempo que manejava o leque, perguntava em voz baixa e febril:

— Encontrou o meu bilhete?

— Encontrei, e a prova é eu vir aqui; mas não compreendi esse bilhete urgente, obscuro, cheio de reticências inquietadoras... O que se passa?

— Amoldo, murmurou a Condessa, a falta que me fez cometer, trazer-me-á infelicidade. Estou perdida.

— Perdida! repetiu o senhor de Trois Monts estupefato.

— Sim.

— Explique-se, Maria, peço-lho. As suas palavras, como o seu bilhete, assustam-me sem me esclarecerem... Que perigo a ameaça?

— Aqui nada lhe posso dizer. Tenho medo de ser espiada...

— E contudo quero saber...

— Quando o verei?

— Esta noite.

— Onde?

— No lugar habitual das nossas entrevistas...

— A hora?

— Aquela em que eu puder sair...

— Depois das dez horas da noite esperá-la-ei...

— Está combinado... Silêncio!...

O criado de quarto entrava na sala...

— O senhor Conde, disse, rogava ao senhor de Trois Monts que fosse ter com ele ao seu gabinete...

Amoldo levantou-se e disse inclinando-se diante da Condessa.

— Perdoe-me, senhora, se a deixo tão depressa. Não posso fazer esperar o meu ilustre amigo, cujo tempo é precioso.

Maria cumprimentou cerimoniosamente sem responder, e o senhor de Trois Monts seguiu o criado de quarto.

O gabinete de trabalho do Conde estava situado no primeiro andar, numa vasta ala do edifício, e muito distante do vasto quarto da Condessa.

O senhor de Vergis levantou-se para receber Amoldo e exclamou, apertando-lhe a mão:

— Sê-de bem vindo, meu querido filho! Preciso, porém, de ralhar com você.

— A que propósito, senhor Conde? perguntou o jovem com um sorriso!

— A propósito da raridade das suas visitas.

— Se não venho mais vezes, tenho para isso uma desculpa.

— Que desculpa?

— Conhecendo a importância das ocupações que o absorvem, receio ser indiscreto...

— Nunca pode ser indiscreto... O meu gabinete está sempre aberto para o receber, interrompo de boa vontade trabalhos que o senhor é digno de compreender, e está no caso de partilhar. Amo-o, Amoldo, bem sabe, e considero-o até certo ponto como meu filho.

O senhor de Trois Monts não respondeu.

A simpatia confiada e fervorosa que aquele homem lhe dispensava, causava-lhe um grande mau estar. O Conde prosseguiu:

— Janta conosco, não é verdade?

— Impossível, com grande mágoa minha.

— Por que?

— Um convite anterior.

— É verdade isso?

— Afianço-lho. Vim expressamente entregar-lhe os apontamentos que me fez a honra de pedir. Ei-lo, e agora despeço-me do senhor.

— Deixa-me tão depressa?

— Assim é preciso. Uma entrevista...

— Para negócios?

— Não.

— Então entrevista de amores?

— Talvez.

— É próprio da sua idade...

— Não insisto, e terei escrúpulo em o demorar; mas veja se acha modo de vir mais vezes passar algumas horas conosco. Repito-lhe que sinto pelo senhor um afeto verdadeiramente paternal. Tinha pela sua santa mãe um culto respeitoso, e o seu pai era meu amigo. A afeição que eles me inspiravam passou para o senhor.

Amoldo sentia-se embaraçado.

O Conde continuou:

— Se o senhor fosse menos rico, provar-lhe-ía a minha amizade pondo a minha fortuna à sua disposição. Infelizmente o senhor não tem precisão de mim, mas eu tenho precisão do senhor. Quando se passa muito tempo sem lhe apertar a mão, parece-me que lhe falta alguma coisa, e se tivesse a prova de que o senhor vê em mim um indiferente, sofreria muito com isso. Não seja ingrato, querido filho, veja se não se esquece de que aqui estamos sempre à sua espera,, sempre a desejá-lo...

A confusão de Amoldo aumentava.

A profunda afeição do velho, expressa de uma maneira tão simples e tão tocante, punha o mancebo num suplício. Amoldo levantara-se.

— Adeus, senhor Conde, disse.

— Não diga assim; até à vista é que deve dizer, e bem cedo. O visitante deixou o palácio da avenida de Villars sem tornar a ver a Condessa, e esperando com uma impaciência febril a hora da entrevista, em que poderia finalmente saber que perigo ameaçava a sua felicidade.

O Conde tornou a entregar-se todo à revisão das provas da sua grande obra.

Procurava afugentar à força de trabalho, os tormentos e angústias que a carta anônima que expusemos aos nossos leitores, lhe havia despertado no fundo da alma.

 

Branca Renée, a filha de Pedro Carnot, tinha, como sabemos, recebido um bilhete de Malpertuis, no qual se lhe indicava a hora em que devia apresentar-se sob o nome de Adriana, em casa do doutor Antonino Frébault, comissionado pela Duquesa de Chaslin.

É grande a distância da rua de Belleville à rua de Verneuil; por isso pelas cinco horas a jovem, vestida muito modestamente, mas com irrepreensível gosto, deixou o chalet da rua Compans e tomou o ônibus que devia, por meio da correspondência, conduzi-la à ponte dos Saint-Pères, não longe da morada do médico.

Às seis horas em ponto batia à porta indicada.

Veio abrir um criado vestido muito corretamente.

— O senhor doutor Frébault?

Em lugar de responder o criado interrogou:

— É para uma consulta?

— Não, senhor... sou a pessoa por quem o doutor espera.

— Então é a menina Adriana, que vem da parte do senhor Malpertuis?

— Sim, senhor.

— Queira seguir-me.

O criado conduziu Branca ao gabinete do seu amo, e anunciou:

— Menina Adriana...

Antonino Frébault lia. Pôs o livro de banda, levantou-se, e deu alguns passos em direção à jovem, que muito comovida e compreendendo o seu destino, estava muito corada sem ter consciência disso.

Na sua qualidade de estróina noturno, lançado na sociedade galante, o médico da Duquesa de Chaslin conhecia todas as raparigas da moda.

Tinha, como o paladar, os olhos já gastos, e o rosto mais bonito, do mesmo modo que a mais saborosa sopa de marisco, deixavam-no, senão tranqüilo, pelo menos sem entusiasmo.

À vista de Branca, não pôde dominar a sua admiração que se manifestou por esta exclamação repetida três vezes:

— Safa! Safa! Safa!

 

O CONTRATO

Depois de ter assim pago o seu tributo à fraqueza humana, o doutor mordeu os lábios, e apressou-se a retomar o papel que impusera a si próprio, penalizado de o haver esquecido, embora por um instante apenas.

A experiência faltava à Branca de uma maneira absoluta, mas tinha a inteligência demasiadamente desenvolvida para não notar a impressão que acabava de produzir.

Sentia-se alegre e orgulhosa, e este primeiro triunfo restituiu-lhe o habitual aprumo.

Pareceu-lhe, contudo, oportuno não alterar a timidez do seu aspecto.

Levantou os belos olhos para o médico e esperou.

— Sinto-me feliz de a receber, minha senhora, disse para encetar a conversa.

Branca inclinou-se modestamente.

Antonino Frébault, prosseguiu, avançando a cadeira.

— Queira sentar-se e conversemos.

Branca sentou-se.

— O senhor de Malpertuis, que a envia, explicou-lhe de certo de que se trata?

— Sim, senhor, replicou a jovem. Trata-se de um lugar que o senhor de Malpertuis me procura, que eu espero impaciente, e que ele julga ter encontrado. Sei isto sem mais informações...

— A senhora deseja obter um emprego de dama de companhia?

— Efetivamente, senhor, mas é preciso que me convenha a casa em que me oferecem esse emprego.

— Que quer dizer com isso?

— Quero dizer que não me agradava entrar para uma casa burguesa, onde as idéias acanhadas e sem elevação não simpatizariam com as minhas. Quero subir e não descer.

— Basta vê-la, replicou o doutor com galanteria, para compreender que, em certos meios, não se sentiria no seu lugar. Mas sossegue, a família de quem sou procurador, é uma das primeiras da França. Vai ficar ao serviço da senhora Duquesa de Chaslin.

— Isto, senhor, preencheria os meus desejos. A convivência continuada com uma grande dama, não pode senão elevar a minha alma, e desenvolver a minha inteligência.

Antonino Frébault estava radiante ao ouvir Branca.

As respostas da jovem deviam parecer-lhe pretensiosas, mas eram feitas em tom tão simples, e em voz tão harmoniosa, e por uma boca tão bonita, que se contentava com admirar sem analisar.

Completamente encantado, dizia consigo:

— À primeira tentativa encontro uma pérola! Estas coisas só a mim sucedem!

E tornou:

— O senhor Malpertuis gabou-me os seus dotes, e estou convencido de que não exagerou.

— Que lhe disse ele? perguntou Branca sorrindo.

— Em primeiro lugar disse-me que era uma excelente pianista e dotada de encantadora voz?

— Canto e toco piano, é verdade.

— Que fala corretamente muitas línguas?

— O inglês, o espanhol e o italiano, mais nada...

— Safa! isso já não é feio!

— O meu protetor ainda não tinha perdido a fortuna, quando me recolheu, órfã e ainda muito criança... Contando sem dúvida garantir o meu futuro, fez-me dar a educação das meninas ricas da aristocracia inglesa. Por isso, obtive certos dotes bem pouco compatíveis com a modéstia da minha situação. Assim, por exemplo, sei 'montar a cavalo... o que me permitirá acompanhar a senhora Duquesa, se a equitação está nos seus gostos...

— É uma distração que infelizmente não lhe servirá de nada„ replicou o doutor. O estado de saúde da Duquesa não lhe permite* sair do palácio. Tem precisão de estar muito acompanhada, é por isso que ela deseja ter junto de si uma jovem que seja mais suai amiga, que sua dama de companhia... Esta jovem deve por isso reunir qualidades bem raras, e que eu acho em vós. Estou convencido que realizará o ideal da Duquesa.

— Só posso responder por uma coisa, pela minha boa vontade. Farei o que puder...

— Já foi dama de companhia?

— Não, senhor, e é a absoluta necessidade de ganhar a vida que me obriga a servir.

— Ah! exclamou o doutor, que palavra está empregando!

— Da palavra exata, porque exprime a situação de uma pessoa dependente e assalariada. Demais, não me envergonharei, acredite o senhor, nem da dependência, nem do salário.

— Vivia em Londres?

— Ali é que fui educada... Tenho ali conhecimentos, e posso-dar à senhora de Chaslin as referências que ela desejar.

— É inútil, minha senhora. Bastará ser apresentada por mim. para se tornarem escusadas quaisquer indagações. A Duquesa é um espírito superior, uma alma delicada, um coração de ouro; evitará cautelosamente avivar com quaisquer perguntas indiscretas o desgosto da perda de parentes amados, e de revezes de fortuna.

Branca não respondeu. Limitou-se a tomar uma fisionomia apropriada às circunstâncias, e duas belas lágrimas lhe umedeceram. as pálpebras.

Antonino Frébault, muito comovido, teria dado muito para ele próprio as enxugar.

Não se atreveu e continuou:

— Está completamente livre?

— Completamente, senhor.

— Por conseguinte, se a senhora de Chaslin a aceita, o que não> é duvidoso, poderá amanhã já tomar posse do seu lugar?

— Sim, senhor.

— Bem, quer vir agora comigo ao palácio de Chaslin, para ai apresentar já à Duquesa?

Branca, ao ouvir esta proposta, que ela devia prever, estremeceu como estremecera já ao ler o bilhete de Malpertuis, e durante a décima parte de um segundo, hesitou.

Ir tão depressa assustava-a, pois que a partida que tinha de jogar era tão séria.

Antonino Frébault compreendeu o que se passava nela, mas sem o poder explicar.

— Acaso hesita?

— Confesso...

— Por que?

— Não esperava dar hoje semelhante passo, e receio que a minha toilette não seja capaz para me apresentar à Duquesa de Chaslin.

O doutor sorriu.

— Sei que um pouquinho de coquetismo não fica mal a uma pessoa bonita, observou, mas permita-me lhe diga respeitosamente que está assim encantadora, e que essa toilette lhe fica o melhor do mundo.

Já vimos que Branca estava vestida com uma simplicidade de um gosto requintado.

— Se é assim, disse corando um pouco, e embora a sua benevolência o iluda, estou pronta a segui-lo.

— Muito bem, gosto dos negócios levados de assalto. O doutor trazia dois trens alugados.

Um que fazia o seu serviço de dia, o outro que o esperava à porta dos restaurantes de noite, dos teatros, das formosas pequenas, e geralmente de todos os lugares do prazer.

Antonino Frébault tocou uma campainha, e perguntou ao criado de quarto:

— Baptista está aí com o coupé?

— Sim, senhor doutor.

— Então venha.

Branca sentou-se ao lado do seu introdutor na carruagem, que tomou a grande trote a direção do palácio de Chaslin.

Durante o trajeto a jovem conservou-se silenciosa, recordando mentalmente o seu papel. O trem parou.

O doutor fez descer a companheira, e oferecendo-lhe o braço, atravessou com ela o pátio do palácio, cujas janelas estavam já iluminadas.

Introduziu-a no vestíbulo monumental forrado de tapeçarias dos Gobelins, e mobiliado de carvalho antigo, depois numa sala de espera onde a deixou, recomendando-lhe que se revestisse de paciência, e fez-se anunciar à Duquesa.

Transpondo o limiar desta residência, Branca sentiu como um calafrio correr-lhe a pele.

Lembrou-se das palavras de Pedro Redon, ou antes do Barão César de Fossaro.

Do mesmo modo que as feiticeiras tinham bradado outrora, nas selvas escocesas:

— Machbeth, serás rei!

Da mesma forma ele dissera a Branca:

— Serás Duquesa e milionária!

Parecia à jovem que um mundo novo se abria diante dela, e tomava posse de uma herança esperada há muito tempo.

O luxo grandioso que pela primeira vez lhe feria a vista, não a surpreendia.

Julgava reconhecê-lo.

Já o vira efetivamente.

Nos livros e em sonhos.

Branca sentou-se e apelou para todo o seu sangue frio.

O coração parecia que lhe saltava.

Invadia-a uma agonia intolerável, que aumentava de segundo em segundo.

Seria aceita?

Diante de quem tinha primeiramente que aparecer?

Iria falar com o Duque?

Que impressão produziria ela sobre aquele homem a quem devia prender a seus pés, conforme a missão que recebera?

Todas estas perguntas se lhe revolviam a um tempo na mente, e lhe causavam uma espécie de vertigem.

Os criados achavam pretexto para atravessarem a sala de espera, e deitavam olhares curiosos àquela jovem cuja beleza maravilhosa e aspecto ao mesmo tempo simples e quase altivo os admirava.

Uma mulher já idosa, a ama de Helena, desempenhava no palácio as funções de governanta e criada de quarto, criatura profundamente dedicada à Duquesa de Chaslin, passando na sala por acaso, viu Branca, e também cheia de assombro, parou diante da jovem.

— Deseja de certo uma audiência da senhora Duquesa, perguntou-lhe, e espera pela resposta?

— Não, senhora, respondeu Branca perturbando-se, apesar do seu aprumo, sob o olhar perscrutador fito nela, e parecendo querer descer até ao fundo da alma. Trouxe-me o senhor doutor Frébault...

— Bem, perdoe. E retirou-se.

E afastando-se murmurava:

— O doutor Frébault... Então esta boneca é a dama que ele procura para a Duquesa... É bonita de mais para uma dama de companhia... não gosto dos seus olhos. É mau numa casa uma rapariga tão bonita! É de mau agouro!

Antonino tinha sido logo introduzido à presença da Duquesa.

A senhora de Chaslin esperava a hora de jantar num boudoir contíguo ao salão, em companhia do marido e do visconde Armando de Logeryl, substituto do procurador da república e noivo de Helena.

— Perdoe-me o chegar tão tarde, senhora Duquesa, disse Antonino. Tenho desculpa. Estava com pressa de a ver.

— O senhor é sempre benévolo, replicou a senhora de Chaslin, e sê-lo-á particularmente esta tarde se vier jantar conosco.

— É impossível, minha senhora, é impossível infelizmente! Estou comprometido... Venho dar-lhe conta de uma missão que me fez a honra de me confiar, e retiro-me.

— Descobriu finalmente a ave rara que nos promete há alguns dias? perguntou o Duque com um sorriso afável.

— Positivamente, e no calor do meu entusiasmo não quis esperar até amanhã para lho anunciar.

— Como! Está tão entusiasmado com isso, o senhor, o homem fino por excelência? exclamou o duque.

— Palavra que sim, e mais do que isso.

— Seriamente?

— Senhor Duque, dou-lhe a minha palavra!

— Encontrou então uma maravilha?

— Melhor que uma maravilha.

— Olá!

— Sim, senhor Duque, a Fênix! As maravilhas são raras, mas finalmente há algumas. A Fênix não existe senão num só exemplar E foi esse exemplar que eu descobri!

 

A APRESENTAÇÃO

O doutor Frébault prosseguiu com crescente entusiasmo:

— Beleza, modéstia, distinção, educação irrepreensível para enumerar miudamente as qualidades daquela jovem.

— E os seus defeitos? perguntou o senhor de Logeryl rindo.

— Deve-os ter... Quem não os tem? Mas eu não os creio numerosos.

— Que idade tem ela? perguntou a Duquesa.

— Vinte anos.

— E diz que é bonita?

— Uma madona, senhora Duquesa... Nunca vi rosto mais simpático. Nunca ouvi voz mais harmoniosa. Nunca observei apresentação mais correta.

— Os seus pais?

— Já não os tem. A pobre criança é órfã. Existem no seu passado sofrimentos profundos, feridas mal cicatrizadas... Há pouco uma palavra imprudente a este respeito proferida por mim, foi bastante para lhe causar uma cruel comoção, e fazer-lhe acudir as lágrimas aos olhos...

— Teremos cuidado de lhe poupar essa sensibilidade tocante. A aia protegida sabe alguma coisa de inglês?

— Fala inglês, espanhol, italiano, tão bem como a sua língua materna. Toca piano como artista consumada, e canta como artista.

— Tudo isso, doutor, é a realização do meu sonho, disse a Duquesa com um sorriso. Quando verei essa jovem?

— Hoje mesmo, senhora, respondeu Antonino.

— Esta noite, então?

— Antes.

— Trouxe-a por acaso hoje?

— É verdade. Deixei-a na sala de espera, porque não quis apresentá-la sem a sua autorização.

— Devia ter dito logo isso, querido doutor. Vá já buscá-la. Vá buscá-la bem depressa.

Antonino Frébault, radiante, correu para fora da sala de espera com uma vivacidade de rapaz.

Branca esperava impaciente pelo seu regresso. Levantou-se vendo-o entrar.

— Então? perguntou.

— Bem, minha filha, a Duquesa e o Duque perguntam por si. Venha.

Um súbito tremor acometeu a jovem.

— Safa! nada de comoções! continuou o doutor. Que poderia recear? Tem tudo em seu favor. Não vá comprometer as suas vantagens com receios intempestivos! Dê-me o braço e venha... Não há nada mais tolo do que se fazer esperar...

Branca reagiu contra a perturbação que a invadiu.

Impôs a si mesma o preceito de serenidade, colocou a sua mãozinha no braço do doutor, e deixou-se conduzir.

O doutor abriu a porta do salão, e ambos transpuseram o limiar da porta.

 

Tinha anoitecido de todo.

As vinte velas de dois candelabros colocados em cima do fogão muito alto só alumiavam uma pequena parte da vasta casa.

Quando Branca, saindo da penumbra, entrou no círculo luminoso, o clarão iluminou-lhe o rosto, e incidindo-lhe nos cabelos louros, rodeou-lhe a fronte como uma auréola.

O Duque inclinou-se para o senhor de Logeryl, seu futuro genro, e disse-lhe ao ouvido estas palavras:

— O doutor tinha razão, é uma cabeça de madona!

A jovem deu mais alguns passos, depois parou tímida, cheia de rubor, incomparavelmente graciosa, e fez à Duquesa uma reverência -da boa escola, uma reverência de donzela de honor admitida à presença da rainha.

Depois, voltando-se para o Duque e para o senhor de Logeryl cumprimentou-os, mas curvando-se muito menos, com uma admirável gradação de humildade sem servilismo.

Sob as suas compridas pestanas castamente baixas, Branca via, ou antes sentia os olhares do senhor de Chaslin fitos nela com uma admiração manifesta, e o seu coração batia com muita força.

Antonino Frébault estava radiante por ver a sua protegida produzir o efeito com que contava.

De repente notou que o braço da jovem tremia outra vez no seu.

— Então, coragem! disse-lhe em voz baixa, tudo vai bem. Depois, dirigindo-se à senhora de Chaslin, continuou:

— Tenho a honra, senhora, de lhe apresentar a menina Adriana, que se daria por muito feliz se se dignasse admiti-la junto de si como dama de companhia.

— Aproxime-se, minha filha, exclamou a doente com o sorriso mais encantador. Apresentada pelo nosso querido doutor, já tinha seguras todas as nossas simpatias. Basta vê-la para se conhecer que as merece.

Branca levantou a cabeça, mas com um ar modesto, e a voz agitada, respondeu:

— Oh! minha senhora, preciso dessas boas palavras, para acalmar a minha comoção, e para ter a coragem de levantar os olhos para a senhora. Perdi todos os que me amavam. Estou só no mundo, senhora. É triste na minha idade, e é perigoso. Não sei se mereço o bem que o senhor doutor disse de mim, mas não tenho o coração de uma ingrata, e se se digna admitir-me na sua companhia, amá-la-ei com toda a minha alma, e por toda a minha vida lhe serei reconhecida.

Esta expansão admiravelmente representada, esta linguagem simples e tocante, causaram uma impressão profunda nas testemunhas desta cenazinha.

O doutor estava cada vez mais radiante.

Armando de Logeryl achava a jovem deliciosa.

O Duque sentia uma comoção cuja natureza ele não procurava analisar, e que lhe parecia embriagadora.

A senhora de Chaslin, com as pálpebras úmidas, fez sinal à recém-chegada para se sentar junto dela, e estendeu-lhe a mão.

Branca pegou naquela mão aristocrática, cheia de anéis, de uma forma encantadora, apesar de emagrecida a ponto de estar quase diáfana, e chegou-a aos lábios.

— Adriana, disse em seguida a Duquesa com uma voz comovida, se, como creio, encontrar na senhora uma filha terna e delicada, serei sua mãe. Ainda muito nova sofreu; nós diligenciaremos fazer-lhe esquecer os seus sofrimentos. Chorou, enxugar-lhe-emos as lágrimas. Não é verdade, Henrique?

Estas palavras dirigiam-se ao Duque.

Branca voltou para ele os grandes olhos umedecidos, nos quais sob a trama das compridas pestanas brilhava um fogo velado, e pareceu implorá-lo com o olhar.

Sob o irresistível fulgor que despediam aquelas pupilas mágicas, o Duque sentiu um calafrio percorrer-lhe a epiderme.

Todo o sangue afluiu ao coração.

Fez um esforço para se dominar, e, à pergunta da Duquesa, respondeu:

— Na verdade aplaudimos a escolha do nosso querido doutor, e faremos tudo quanto nos for possível para tornar agradável à menina Adriana a sua permanência neste palácio.

Eram banais estas palavras, mas o tom com que tinham sido proferidas dava-lhes um sentido muito particular.

Branca compreendeu-o tão bem que estremeceu de alegria.

— Então, volveu a Duquesa, fica entendido. Minha querida Adriana, ei-la dama de companhia, ou antes filha da casa.

Branca apoiou outra vez aos lábios a mão de Joana de Chaslin, balbuciando:

— Oh! senhora, como é boa! A Duquesa continuou:

— Falta-nos regular uma questão delicada, a do ordenado.

— Será o que quiser, minha senhora, retorquiu Branca. Não tenho nem pretensões nem ambições. Obtive o que desejava, pois que me conserva junto de si. O resto pouco me importa. Não ligo importância ao dinheiro.

— É preciso cuidar do futuro, minha filha, replicou a Duquesa com um sorriso. A pessoa que a precedeu, uma inglesa muito instruída, recebia três mil francos.

— É mais do que mereço, senhora Duquesa.

— Receberá seis mil.

— É muito, é muitíssimo.

— Não falemos mais nisso, a questão está resolvida.

Acrescento, por lembrança, que me incumbo da sua toilette.

Pode pois, pouco a pouco, obter um capital modesto. Farei diligência para que não sejam uma fadiga as suas ocupações. Conversará comigo. Lerá para eu ouvir. De quando em vez sentar-se-á ao piano, porque gosto muito de música, e terá duas ou três horas de liberdade por dia.

— Ah! senhora Duquesa, exclamou Branca, uma filha não seria mais feliz junto de sua mãe!

— Desejo que sempre assim pense.

— Sempre! sempre!

— Quando quer principiar no exercício das suas funções.

— Quando determinar; estou pronta.

— Então amanhã.

— Sim, senhora.

— Esperá-la-ei portanto às onze horas. Até amanhã, minha filha...

Branca levantara-se.

Ia inclinar-se diante da Duquesa.

A senhora de Chaslin, atraindo-a meigamente a si, beijou-a na fronte.

A falsa Adriana não disse palavra, mas chegou o lenço aos olhos como para enxugar uma lágrima.

Este gesto mudo era mais eloqüente que todas as palavras.

Branca seguiu o doutor até à carruagem que os trouxera.

Subiu para a carruagem com ele.

— Aonde quer que a deixe? perguntou o doutor.

— Apenas na mais próxima estação dos trens, senhor doutor. Antonino Frébault deu ordens ao seu cocheiro e retorquiu:

— Então, está contente?

— Mais que contente, feliz! bem feliz.

— E tem razão... a Duquesa de Chaslin é a melhor das mulheres.

— Assim me pareceu ao primeiro golpe de vista.

— O Duque, com quem aliás a senhora poucas relações há de ter, é um homem excelente, um pai de família modelo... Casa patriarcal, donde a senhora sairá quase independente, porque a senhora de Chaslin há de por certo contemplá-la no seu testamento. Era-lhe impossível encontrar coisa melhor. Abençoe a sua estrela... Eis-nos numa estação de trens. Vou deixá-la, menina, porque sou esperado, mas hei de tornar a vê-la amanhã junto da Duquesa.

— Até amanhã, senhor doutor, e obrigado.

A jovem apeou-se do coupé, subiu para um trem de praça, e disse ao cocheiro que a conduzisse a Belleville.

 

No momento de Branca sair do salão em companhia de Antonino Frébault, a senhora de Chaslin exclamara:

— Encantadora, criança, não é verdade?

— Encantadora, de certo, respondeu o senhor de Logeryl.

— Senti por ela uma súbita simpatia, inspirou-me à primeira vista o mais vivo interesse...

— Estou convencido de que o merece... apoiou o substituto. Um rosto assim não podia mentir.

O Duque de Chaslin guardava silêncio, e não ouvia sequer as palavras trocadas entre sua mulher e o sobrinho.

Aproximara-se de uma janela, e contemplava avidamente, à luz do gás, a forma esbelta e elegante da jovem, atravessando o pátio pelo braço do doutor.

— A senhora Duquesa está servida, disse o mordomo, abrindo de par em par a porta da casa de jantar.

Iam dar nove horas da noite, quando Branca chegou ao chalet da rua Compans.

A certeza de ter maravilhosamente desempenhado o seu papel, exaltava-lhe a vaidade natural, e o êxito obtido tornava-a triunfante.

Pedro Rédon esperava-a.

Contou-lhe o que se passara.

Deu-lhe parabéns entusiásticos, transmitiu-lhe novas instruções, e depois de traçar a seus olhos o caminho que devia seguir quando se instalasse no palácio de Chaslin, voltou aos seus aposentos da rua de Philippe le Grand, onde Pedro Rédon, o cego de um olho, se transformava no elegante Barão César de Fossaro.

Dali a uma hora metia-se na cama do seu luxuoso quarto de dormir da rua de Provence, e adormecia combinando os mais maquiavélicos planos.

 

A PECADORA

Rogamos agora aos nossos leitores que nos acompanhem ao palácio de Vergis, exatamente à hora em que na rua de Provence, o Barão César chamava o sono após um dia bem cheio.

O palácio tinha jardim e pátio de entrada.

A porta principal, a grade de honra, se assim quiserem, deitava para a avenida de Villars.

Os jardins, muito vastos e plantados de olmeiros e de tílias seculares, estendiam-se até ao boulevard dos Inválidos, do qual a separava um muro, quase da altura de três metros.

No muro havia uma porta de um só batente, quase oculta do lado do palácio sob a espessura das trepadeiras.

Este pequeno parque, encantadora redução do parque Monceaux, apresentava uma deliciosa rede de alamedas e caminhos delineados em volta de tabuleiros de relva cobertos de sombra.

O Conde e a Condessa quando estavam em Paris durante o estio, costumavam aí passar algumas horas da tarde.

Na época em que principia esta narrativa, as árvores não estavam ainda completamente despojadas da folhagem, mas o outono já avermelhava as folhas que as primeiras geadas de outubro deviam arrebatar.

No relógio dos Inválidos davam onze horas e meia.

O senhor de Vergis, deixando o seu gabinete de trabalho, e antes de voltar para o seu quarto de dormir, passou pelos aposentos da condessa.

Encontrou Maria encostada a uma janela que deitava para o jardim.

 

Ao ruído dos passos do Conde sobre o espesso tapete, a senhora de Vergis voltou-se repentinamente.

Tinha o rosto contraído. Via-se-lhe nos olhos uma espécie de desvario.

— Está doente, querida filha? perguntou o Conde com inquietação.

Maria esboçou um sorriso.

— Doente, não, mas muito fatigada. Tive visitas durante o dia, e não estava de humor para achar encantadoras as banalidades da conversa... Faz mal aos nervos ouvir sempre as mesmas coisas repetidas cem vezes de seguida, quase nos mesmos termos por gente indiferente.

— Mas há pouco recebeu a visita de Amoldo de Trois Monts. A jovem voltou a cabeça para ocultar o rubor que lhe subia às faces.

— O senhor de Trois Monts, apenas passou alguns minutos no salão... Não era para mim que vinha, era para o senhor.

— Pois classifica Amoldo na categoria dos indiferentes de que falava há pouco? exclamou o senhor de Vergis no tom mais natural.

Maria fez-se um pouco pálida.

— Pudera! murmurou diligenciando tornar a voz firme. Por que havia de fazer uma exceção em seu favor?

— Por que a faço eu? Trois Monts, embora seja rico, não é um inútil, um peralvilho, um bonifratezinho de cabeça oca; é um homem aplicado, um espírito observador, um rapaz sério, a quem tenho sempre amado, e amo ainda como um filho. Exprobei-lhe a raridade das suas visitas. Prometeu-me que viria mais vezes, mas creio que o não fará.

— Crê semelhante coisa? repetiu Maria maquinalmente.

— Sim.

— Por que?

— Pareceu-me que a senhora não mostrava simpatia ao senhor de Trois Monts, e que o seu acolhimento é dos mais frios... Se ele fez o mesmo reparo, e se conclui que lhe desagrada, o que é de uma lógica indiscutível, bastaria isso para o afastar da nossa casa.

— Parece-me que sou para com ele a mesma que sou para com todos, disse a Condessa.

— Afianço-lhe que se engana... Eu queria reter Amoldo para jantar... Recusou, sob um pretexto fútil. Peço-lhe, Maria, que lhe mostre uma benevolência particular da primeira vez que ele nos vier visitar. Fará isto?

— Farei quanto puder só para lhe obedecer.

— Obrigado... E agora devo lembrar-me que está fatigada. Deixo-a.

— Já!

— Falta quase um quarto para a meia noite... Vá descansar. Boa noite, Maria.

— Boa noite, meu amigo.

Proferindo estas palavras, a jovem apresentou sorrindo a fronte ao marido.

O Conde abraçou-a com um modo febril, e apertou-a com tanta violência contra o peito, que lhe arrancou um gritozinho.

— Fiz-lhe mal? perguntou com voz trêmula, desenlaçando-a imediatamente.

— Não, mas surpreendeu-me, e a respiração faltou-me.

— Fala a verdade, não está doente, não?

— Juro-lhe.

— Perdoe-me o meu pouco jeito, e até amanhã. O senhor de Vergis saiu do toucador.

Depois de se fechar a porta após ele, a Condessa caiu numa cadeira e curvou a cabeça. Ficou imóvel durante alguns segundos, e como que absorta; depois levantou-se repentinamente, limpando duas lágrimas suspensas nas suas sobrancelhas.

— É minha a culpa? balbuciou com voz apagada. Lutei com todas as minhas forças, Deus é testemunha disso, mas fiquei vencida. Pois resiste-se ao amor? Quando ele se impõe, que pode a vontade contra o amor? Oh! bem sei que sou covarde e criminosa. Bem sei que devia mais depressa ter-me deixado morrer, do que escutar a voz que me atraía, que me fascinava, que me fazia vertigens. Tudo esqueci... tornei-me falsa e mentirosa, hipócrita e per jura... O adultério apoderou-se de mim em corpo e alma, e achei que comprar pelo preço de um crime a embriaguez que ele me prodigalizava, não era pagá-las muito caro... Ah! Como hoje estou punida!

Maria chegou o lenço aos lábios para reprimir os soluços que a sufocavam.

As lágrimas jorraram com abundância, e diminuíram um pouco a irritação nervosa que a dominava.

Entrou no quarto de dormir, e tocou uma campainha.

A criada de quarto, uma jovem de uns vinte anos, acudiu com os olhos inchados de sono.

— Justina, disse-lhe Maria, apague as luzes do gabinete, e vá depois deitar-se.

— A senhora Condessa não quer que a dispa?

— Não, minha filha... despir-me-ei sozinha.

— A senhora já esta noite não precisa de mim? — Não, vá-se embora.

— Boas noites, senhora Condessa.

— Boas noites, minha filha.

A jovem executou as ordens que a ama acabava de lhe dar, e não tardou que se ouvisse corres os fechos.

A senhora de Vergis olhou para a pêndula do velho Saxe colocada sobre a lareira do quarto.

 

Os ponteiros indicavam meia noite menos cinco minutos.

Maria dirigiu-se a uma das janelas, arredou sucessivamente as pesadas cortinas de brocatel azul forradas de seda branca, e as cortinas pequenas de renda antifa, e olhou para as janelas do quarto do Conde.

Tinham ainda luz.

— Vela, disse a jovem, é preciso esperar.

Sentou-se ao pé das cortinas sempre entreabertas, com os olhos fitos nas janelas do quarto do marido.

Decorreram dez minutos.

Ao fim deste tempo, a frente do palácio mergulhou nas trevas.

A Condessa deixo as cortinas, passou ao gabinete de toilette, deitou sobre os ombros uma peliça negra, pôs na cabeça um chapéu munido de um veuzinho muito espesso, e em poucos minutos estava pronta para sair.

Depois de correr os fechos das principais saídas do seu quarto, meteu na algibeira uma chavinha, saiu pela porta do gabinete de toilette que fechou com duas voltas de chave, e achou-se no primeiro degrau de uma escada de serviço, numa completa escuridão.

Lentamente, com infinitas precauções, desceu a escada, guarnecida de uma passadeira de tapeçaria, e chegou a um corredor do "rez-de-chaussée" iluminado durante toda a noite por uma lamparina de vidro despolido.

Este corredor ia dar, de um lado ao vestíbulo principal, do outro conduzia ao jardim.

Foi para esta saída que Maria se dirigiu, redobrando de precauções.

Chegou à porta, fê-la girar sem ruído nos gonzos, e saiu.

Deu-lhe no rosto uma fresca lufada.

Sem hesitar, como mulher habituada a estas espécies de expedições noturnas, embrenhou-se por baixo das árvores.

Não havia lua, mas algumas estrelas brilhavam no céu, e permitiam à condessa dirigir-se para o jardim mergulhado em trevas, e cujos menores meandros ela conhecia.

O seu passo furtivo, apesar de muito ligeiro, fazia ranger a areia das alamedas.

Houve um momento em que lhe pareceu que a seguiam.

Parou ofegante, com o coração oprimido, a fronte inundada de suor, e voltou-se para deitar um olhar para a frente do palácio.

A frente do palácio estava negra e silenciosa.

— Ouvi mal... pensou Maria já sossegada; tudo dorme. Enganava-se.

 

Uma janela dos aposentos dos criados, pertencente às cavalariças e às cocheiras, e que ela não podia ver, coberta como estava por opulentas espessuras, estava aberta, e no momento em que Maria atravessava o espaço areado que separava o palácio dos maciços cuja existência acabamos de indicar, a essa janela encostava-se um homem, absorto nos seus pensamentos, com o olhar errante por sobre os tabuleiros de relva.

Ninguém ignora que, no meio do silêncio, o menor ruído aumenta consideravelmente.

Apesar das precauções tomadas pela senhora de Vergis, o homem ouvira a porta do corredor abrir-se e fechar)-se.

Entrevira um vulto deslizando por baixo das árvores, e percebeu o ruído de um passo ligeiro sobre a areia do passeio.

O homem deixou a janela exatamente no momento em que Maria de Vergis, julgando-se seguida, parava e voltava-se.

Desceu rapidamente, abriu uma porta fechada simplesmente por uma tranqueta, e parando no limiar desta, pôs-se à escuta, na direção do jardim.

A senhora de Vergis tornara-se a por a caminho; acabava de chegar à porta que deitava para o boulevard dos Inválidos.

Tirou da algibeira a chave em que pegara antes de sair do quanto, introduziu-a na fechadura, e fê-la girar lentamente.

A fechadura ferrugenta rangeu, a porta rodou sobre os gonzos.

Maria meteu a cabeça e olhou.

O "boulevard" estava deserto e silencioso como uma via de Herculano ou de Pompéia.

Os candeeiros de gás, colocados a distância uns dos outros, e dos quais só estava aceso um sim e outro não, alumiavam frouxamente as vastas solidões.

A Condessa saiu, fechou a porta com duas voltas, tirou a chave e meteu-se pelo "boulevard".

Um segundo depois, o homem a quem deixamos de observação, chegava, por seu turno, àquela porta.

Achando-a fechada, ouvindo os passos que se afastavam do outro lado do muro, fez um gesto feroz de cólera.

Serenou, porém, subitamente, descobriu uma árvore, cujo tronco nodoso parecia próprio para servir de escada, e cujos ramos inferiores tocavam no alto do muro, trepou com uma ligeireza de macaco ou de clown, e em muito menos tempo que levamos a contar, achava-se a cavalo no espigão.

Estava belo o tempo, a terra seca, nem um sopro agitava as folhas.

O homem tornou a ouvir de um modo perfeitamente distinto, os altos tacões da Condessa martelando ao longe o asfalto do passeio.

 

A CAÇADA NOTURNA

O homem agarrou-se com ambas as mãos à aresta do muro, deixou pender o corpo, depois, seguindo os princípios da ginástica elementar, largou o muro e caiu nas pontas dos pés.

Atravessou o "boulevard" dos Inválidos sem perda de um segundo, e tomou rapidamente o mesmo caminho que a Condessa seguia, mas do lado oposto da calçada.

A senhora de Vergis, caminhando muito depressa, tinha uma grande dianteira sobre o seu perseguidor.

Meteu-se pela rua de Verennes.

No momento em que passava por baixo de um bico de gás colocado à entrada da rua, o homem avistou o seu vulto.

— É ela, efetivamente, murmurou e continuou na sua perseguição, seguindo ao longo das casas, abafando o ruído dos passos, com o peito opresso, o olhar feroz.

A Condessa voltou à rua de Bellechasse.

O homem apressou o passo.

Ao chegar, porém, ao ponto de intersecção das duas ruas, achou-se em frente de uma ronda de guardas da paz.

Detrás deles ninguém.

A senhora de Vergis desaparecera.

Os guardas da paz olharam com alguma desconfiança para o passeante noturno.

Mas a sua aparência nada apresentava de suspeito.

Passaram sem lhe dizerem palavra.

O homem ainda deu alguns passos, olhando ao longe, escutando.

Foi debalde.

Nem os seus olhos, nem os seus ouvidos perceberam o menor indicio. /

Parou, cerrando os punhos.

 

Rompeu neste monólogo:

— Foi para uma destas casas que ela entrou, disse com uma voz que lhe sibilava por entre os dentes cerrados. Não me enganava, o que eu previa sucedeu. Tem um amante! Um homem que lhe segreda entre dois beijos: — Amo-te! Um homem a quem ela responde, desacolchetando o vestido, soltando os cabelos: — Adoro-te! E eu sei tudo... portanto é minha! Em lugar de sofrer como sofro, um sofrimento que mata, terei o direito de lhe bradar: "Eu também a amo, com um amor que me requeima as carnes e exaure o sangue! Visto que a senhora pertence a outro, pertença também a mim, ou deito-a a perder! Seria covarde, seria infame... Que me importa?" Sou por acaso algum homem fino? Se a Condessa me repele, o Conde saberá o que se passa... Verá que a carta anônima não mentia... Fará sentinela em meu lugar. Descobrirá quem é o amante... Surpreendê-los-á nos braços um do outro, e matá-los-á a ambos...

Proferindo estas últimas palavras,-o homem estremeceu.

— Ambos!... repetiu, não!... ele somente! Quero que ela viva! É demasiado bela para morrer. E quem sabe, talvez um dia! Entretanto eles agora estão juntos, com os lábios em contato, e as mãos agarradas mutuamente. Mas onde?

E os olhos cintilantes do espião pareciam querer atravessar os muros das casas próximas. Prosseguiu:

— Quem será então esse amante! Um desses peralvilhos que vêm ao palácio fazer seu pé de alferes e a quem detesto! É para lhe conceder entrevistas de amor que ela se faz conduzir à igreja. E ainda não pude adivinhar quem ele era! tenho-me fartado de procurar... nada consigo... Ah! se eu soubesse quem ele era!... matava-o. Como? Em duelo? Recusaria bater-se comigo. E depois, com que pretexto? Bem, darei cabo dele, uma noite, ao voltar da esquina... E se me guilhotinarem depois, tanto melhor, não sofrerei mais.

O espião passeava de um lado para o outro sobre o asfalto, com o passo desigual de um doido na célula ou de um animal feroz na jaula.

De repente parou.

— Não sofrerei mais, repetiu, e sofro demasiado. O ciúme rói-me o coração... Amo esta mulher como um louco. Ela, a Condessa de Vergis... Eu, Jacques Sureau, um criado seu, ouso amá-la. E não me atrevo a dizer-lho. Ela, tão altiva, tão desdenhosa. À primeira palavra denunciar-me-ía ao Conde, e seria expulso como um insolente e um patife. Quando penso nisto vejo tudo cor de sangue. Preciso' porém o meu quinhão de ventura! Quero esta mulher, e tê-la-ei... tê-la-ei viva ou morta!

 

César, Barão de Fossaro, acertara ao estudar a fisionomia sinistra de Jacques Sureau, sentado na sua almofada, na praça de Saint-Sulpice, e comparando-o a Ruy Blas.

Jacques Sureau, o antigo escudeiro dos carros ambulantes, o primeiro cocheiro do Conde de Vergis, amava a mulher do seu amo de uma maneira furiosa, selvagem, ou para melhor dizer, bestial!

Educado nas cavalariças, a princípio grooin, depois quase artista, belo rapaz, mas brutal, ou antes bruto, habituado às fáceis ternuras das artistas de circo, das raparigas sobre quem o fato de meia palhetado exerce irresistíveis seduções, Jacques Sureau acreditava que todas as mulheres são iguais perante o amor sensível.

Dominado por paixões excessivas, que às vezes o enlouqueciam, depois de ter tentado seduzir a amante de um dos seus camaradas, quase desancara esse camarada.

O diretor do circo não quis entregá-lo aos tribunais, mas pô-lo no meio da rua.

Como a aventura fizesse ruído, Jacques Sureau não pôde escriturar-se em outra companhia.

Era preciso viver.

Exerceu sucessivamente todas as profissões que dizem respeito ao cavalo.

Com bom tipo, foi caçador de primeira ordem, conhecendo admiravelmente os cavalos, entrou como picador em casa do Duque de La R., onde os seus costumes o impediram de permanecer.

O Duque despediu-o, mas como não tivesse nenhuma falta a ex-probrar-lhe, não lhe recusou nenhum atestado, comprovando as suas aptidões e os seus méritos em matéria hípica.

O Conde de Vergis tomou-o então parou o seu serviço na qualidade de primeiro cocheiro.

Jacques Sureau apaixonou-se logo pela Condessa, cujo coupé ele conduzia e a quem acompanhava ao Bosque quando montava a cavalo.

Em conseqüência do temperamento do personagem, aquela paixão fez rápidos progressos, e a sua intensidade tornou-se tanto mais terrível, que pela primeira vez da sua vida o ex-escudeiro, não se atrevendo a falar, concentrava tudo em si mesmo.

A senhora de Vergis parecia-lhe um ser de essência superior.

Um belo dia teve ciúmes.

As freqüentes visitas da Condessa a Saint-Sulpice pareceram-lhe suspeitas.

Espiou, e as suas suspeitas robusteceram-se, sem nunca chegarem a uma certeza absoluta.

Veio-lhe então á idéia escrever, ou antes fazer escrever por Fernando Volnay uma carta anônima ao Conde de Vergis.

Consumada esta ação vil, Jacques não tardou que se arrependesse.

A reflexão demonstrou-lhe que tinha totalmente obedecido às instigações do crime, má conselheira.

Compreendeu que pondo o Conde de aviso, acabava de aniquilar as três quartas partes das probabilidades que parecia ter.

Disse que devia ter explorado a situação unicamente em seu proveito, espiar dia e noite, saber o nome do amante, conhecer o lugar das entrevistas, e armado com os seus descobrimentos, ameaçar Maria que a perderia se não se lhe entregasse para lhe comprar o silêncio.

Jacques Sureau repetia estas coisas a si mesmo, e a sua paixão selvagem, o seu amor complicado com ódio, tomava então terríveis proporções, e ameaçava enlouquecê-lo.

Tinha ciúmes do Conde, ciúmes da Condessa, ciúme de todos os visitantes do palácio de Vergis.

Esta monomania do ciúme, fazia-lhe fugir o apetite e o sono.

Consumido por contínua febre, emagrecia a olhos vistos, e as suas pupilas brilhavam-lhe com um fulgor sombrio nas órbitas re-queimadas. -

A insônia que o afligia, havia tempo, acabava de o servir.

Achava-se finalmente no rasto das saídas noturnas, que deviam por lhe nas mãos a arma cobiçada.

Dominava-o uma esperança feroz.

Havia quase uma hora que o sinistro espião andava de um lado para o outro a passo incerto na rua de Rellechasse, furioso com a sua» inútil expectativa, mas esperando sempre que, de um momento para o outro, a Condessa aparecesse ao se retirar do "rendez-vous".

De repente ouviu atrás dele, a alguma distância, o ruído de uma porta que se fechava.

Logo em seguida, passos precipitados. Voltou-se.

Em meio das trevas indecisas, surgiu um vulto de mulher descendo a rua de Bellechasse.

— É dali que ela sai, disse ele deitando um olhar para uma casa de seis andares. Vai regressar ao palácio. Alcançá-la-ei antes que ela ali chegue. Falar-lhe-ei... terei a coragem que me tem faltado até hoje. Não pode impor-me silêncio, porque a apanho em flagrante delito de fuga adúltera. Saberá o que sinto, o que padeço, o que quero.

E tornou a pôr-se em perseguição, mas desta vez sem a menor cautela.

 

A mulher perseguida não tinha sobre ele mais que uns quarenta ou cinqüenta metros de dianteira.

Ao ruído dos passos de Jacques Sureau, voltou-se.

Vendo detraz de si um homem que queria segui-la. precipitou o passo.

Jacques Sureau fez outro tanto.

A mulher deitou a correr, e chegando ao ângulo da rua de Varennes, voltou rapidamente à direita.

O itinerário seguido por aquela a quem ele espiava, pareceu inexplicável ao primo de Fernando Volnay.

— Então ela não se mete pela avenida de Villars? perguntou ele mentalmente. Que significa isto? Aonde pode ela ir a estas horas, e o que se passa?

Voltando para a rua de Verennes, Jacques Sureau percebeu que a fugitiva ganhava terreno.

Corria como o animalzinho que sente a matilha atrás de si, e os seus pezinhos mal tocavam no passeio da rua deserta.

Jacques Sureau também partiu velozmente, e graças à sua agilidade prodigiosa, transpôs em poucos passos os dois terços da distância.

Então uma voz alterada, apenas distinta, bradou:

— Não fuja assim, senhora... Nada tem que recear de mim. Não sou um malfeitor, juro-lhe. Velo sobre si.

Como bem se pode imaginar, nenhuma resposta obteve.

A jovem quis redobrar de velocidade ouvindo o chamado daquela voz estranha, mas o terror paralizava-a, sufocavam-na as desordenadas pulsações do coração, a vertigem apoderava-se do seu cérebro.

Sentia que lhe faltavam as forças para ir mais longe, que as pernas lhe faltavam sob o peso do corpo, e que ia cair.

Saiu-lhe dos lábios um queixume abafado, ao mesmo tempo que se encostava à parede da casa mais próxima.

Arrancou-a àquela prostração dolorosa uma mão que lhe tocava no ombro.

— Deixe-me, deixe-me, balbuciou. Afaste-se, ou eu chamo por socorro...

Como a fugitiva parará perto de um bico de gás, dava-lhe em cheio a luz.

Jacques ao ver-lhe o rosto, não pôde conter um grito de cólera e surpresa.

Deu um passo atrás balbuciando:

— A menina Lucilia Gonthier! o quê, pois é a menina? Ouvindo proferir o seu nome, a jovem sentiu o medo desvanecer-se-lhe.

Levantou os olhos para o homem que estava em frente dela, reconheceu-o por seu turno e murmurou:

— O senhor Jacques aqui!

— É o meu bairro...

— E persegue-me! Ah! pode gabar-se de me haver metido um belo medo!

— Creia que tenho pena!

— Julguei que era um ladrão, ou talvez pior. Não admira, ouvindo correr atrás de mim. O senhor reconheceu-me e tinha alguma coisa a dizer-me?

— Não... respondeu Jacques Sureau com algum embaraço. Eu ia pela rua Bellechasse. Vi-a sair de uma casa e tomei-a por uma pessoa que esperava.

— Ora bem! tudo se explica. Não lhe quero mal por isso, e vou continuar o meu caminho. É muito tarde, e espero encontrar nos cais uma carruagem que me conduza a casa.

— Vou acompanhá-la por um pedaço, e encontraremos algum trem de retorno. Mas por que sucede estar a semelhante hora tão longe de Belleville

 

UMA DESILUSÃO

— Admira-se de me encontrar aqui só, muito depois da meia noite? perguntou Lucilia Gonthier sorrindo.

— Noutra não me causava admiração, na senhora, sim.

— Por que?

— Por que toda a gente afirma que é uma menina de juízo, que-não tem amante, e que há santas que são diabos ao pé da menina.

— Todos são muito bons, replicou Lucilia sorrindo novamente, aceito porém o cumprimento, porque o mereço um pouco. Tenho na rua Bellechasse, uma amiga muito doente, e velei esta noite junto dela, para que sua mãe, pobre mulher, extenuada pela fadiga e pelo pesar, pudesse descansar um pouco.

— Ah! sempre a mesma... sempre pronta a sacrificar-se pelos demais!... Mas devia ter dormido esta noite em casa da sua amiga, em lugar de sair a semelhante hora.

— Propuzeram-me isso, mas eu tinha trabalho a acabar em casa. Assim que entrar deitar-me-ei ao trabalho, e às oito da manhã

poderei ir para casa da minha mestra, segundo o costume.

— Com umas fadigas assim, dá cabo de si.

— Ora! sou mais forte que pareço, e quando não se têm rendimento é preciso ganhar a vida.

— Decerto, mas o que é de mais faz mal. Não tem visto meu primo há muito tempo?

— Vejo o senhor Fernando quase todos os dias, porque moramos na mesma casa.

— Continua a ser bem sucedido no teatro de Belleville?

— Cada vez melhor. Toda a gente fala de Fernando Volnay, como de um artista de verdadeiro talento.

— Infelizmente não lucra muito com isso.

— Há de lucrar mais tarde... quando estiver escriturado num teatro de Paris, e parece-me que isso não há de tardar muito, porque os jornais ocupam-se dele, e os diretores hão de fazer-lhe 'propostas. Depois vai ter uma ocasião esplêndida de se fazer ouvir.

— Qual?

— Depois de amanhã há de haver em Belleville uma primeira representação.

— Há muitas ocasiões, de quinze em quinze dias, creio...

— Sim, mas esta não é como as outras. É uma peça feita expressamente por um jovem autor, e que nunca foi representada em parte alguma.

— Uma peça inédita?

— Isso, acaba de lhe dar o nome próprio. Parece que é soberba a peça, e que podia fazer fortuna no Ambigu ou no teatro da Porte-Saint-Martin. Provavelmente o senhor Fernando representa o melhor papel, e há de ser uma primeira representação como em Paris, uma verdadeira primeira representação com jornalistas. Imagine se isto não fará ruído em Belleville. Adoro o teatro. Irei ver. E o senhor Jacques vai?

— Precisava de um lugar, e tudo deve estar tomado.

— O senhor Fernando pode alugar-lhe um, como me prometeu a fim e à senhora Verdier. Quer que lhe peça um "fauteuil"?

— Sim, quero. Pedirei licença no palácio.

— Será preciso que o senhor Fernando lhe mande a cadeira?

— Não, irei procurá-lo amanhã, ou depois de amanhã, e ele ma dará.

— É isso. Diga-me, senhor Jacques, não lhe parece que se ouve uma carruagem?

— Efetivamente, e é um trem de praça, pelo som. Resta saber se traz gente...

O trem aproximava-se, por um feliz acaso vinha sem gente, e por outro acaso não menos feliz, pertencia à estação de Belleville.

Sem rancor pelo medo que me meteu, disse Lucilia com um aperto de mão, e até à vista.

— Até à vista, menina.

A jovem subiu para a carruagem que rapidamente se afastou.

 

Jacques tornando a ver-se só, ficou um momento imóvel, e como que pregado no seu lugar, pensando no equívoco que acabava de frustrar todos os seus planos e destruir todas as suas esperanças.

Quem sabia se, enquanto ele se conservava na perseguição de Lucilia Gonthier, e trocava algumas palavras com ela, a senhora de Vergis não tinha deixado a rua da Bellechasse para voltar ao seu palácio?

De cabeça baixa, resmungando, voltou para trás, muito resolvido a continuar a sentinela desastradamente interrompida por um equívoco.

Abandoná-lo-emos a si mesmo, e voltaremos para trás até ao momento em que a Condessa, não sabendo que era espiada, entrava na rua Bellechasse, depois de deixar a rua de Varennes.

Assim que virou o ângulo das duas ruas, deu alguns passos quase a correr, e parou de repente defronte de um palacete de dois andares.

Através das portas de dentro.não, brilhava nenhuma luz.

Maria, ofegante, deitou a mão febrilmente à campainha e puxou duas vezes.

Era esperada, porque a porta do palácio abriu-se imediatamente, e fechou-se exatamente no momento em que Jacques Sureau, voltando por seu turno o ângulo da rua de Bellechasse, se achava em frente de uma ronda de guardas da paz, não vendo ninguém detrás dela.

A senhora de Vergis meio sufocada pelas pulsações impetuosas do seu coração, parou num corredor sombrio, na companhia de Arnoldo de Trois Monts, que os nossos leitores já adivinharam.

Durante alguns segundos, encostou silenciosamente a cabeça ao ombro do mancebo.

Amoldo pegando-lhe nas mãos, fez-lhe transpor o limiar de um pequeno toucador, iluminado pela luz viva de dois candelabros colocados em cima do fogão.

Aí desembaraçou-a da peliça, tirou-lhe o chapéu, cujo veuzinho lhe ocultava o rosto, e puxando-a para si, abraçou-a demoradamente.

A Condessa abandonava-se àquele abraço, mas de um modo puramente passivo, e sem quase ter consciência disso.

Bastava olhar para ela para se ter a certeza de que o seu pensamento não estava ali, e que, por muito loucamente apaixonada que ela estivesse pelo amante, não vinha àquela entrevista trocar beijos de amor.

Arnoldo assim o compreendeu.

— Maria, minha adorada Maria, disse, esperava-a com impaciência, mas ao mesmo tempo com medo! As suas palavras de há pouco transtornaram-me... Por que me disse que o nosso amor me faria infeliz?

— Por que? repetiu a Condessa soltando-se suavemente, e deixando-se cair numa cadeira, porque a infelicidade veio.

— Que infelicidade?

— Arnoldo, estou ou vou estar perdida.

— Como?

— Daqui a dois meses só me resta morrer, porque meu marido saberá que o traí... terá a prova disso.

— Explique-se, Maria, disse o mancebo, comovido até ao fundo das entranhas pela voz trêmula, e pelos olhos estranhos da amante, não a compreendo.

— Contudo é muito simples, balbuciou a Condessa. De que época data a nossa ligação?

— Há cinco meses que sou feliz.

— Há cinco meses que sou culpada... continuou Maria. Há seis meses estava o Conde na Inglaterra, voltou apenas há dois meses.

— Então? perguntou Arnoldo com vivacidade.

— Então, serei mãe daqui a quatro meses.

Trois Monts estremeceu ao ouvir aquelas palavras que lhe revelavam uma situação assustadora.

A senhora de Vergis continuou:

— Compreende agora que sejam quais forem a minha prudência e as precauções tomadas, há de chegar o dia em que já não poderei ocultar nada, porque a evidência se imporá. Compreende, Arnoldo, que nesse dia só um asilo me restará, a morte... e sou muito nova ainda para morrer.

Depois, a infeliz, deixando pender a fronte sobre o peito arque-jante, desfez-se em lágrimas, rompeu em soluços.

Trois Monts estava literalmente aterrado com aquela inesperada nova.

Os seus pensamentos flutuavam confusos.

— O que fazer? repetia ele à maneira das pessoas que procuram uma tábua de salvação, e a procuram debalde. O que fazer, meu Deus o que fazer?

De repente Maria ergueu a fronte.

— Escute... disse através das lágrimas, fomos ambos covardes, ambos cruéis. Manchamos a honra de um homem de bem, que o amava como se fosse seu próprio filho, e me deu a mim, pobre órfã, uma alta posição, uma grande fortuna, uma absoluta felicidade...

A partir da hora funesta em que a minha paixão, ou antes a minha loucura, me lançou nos seus braços, dissimulei, menti, eu que nasci com horror à dissimulação e à mentira! Afivelei ao rosto uma máscara de hipocrisia, insultei Deus como insultava o homem cujo nome tenho, e ao mesmo tempo que me tornava adúltera, tornava-me sacrílega, sim, sacrílega!

— Que estás dizendo?

— Há nada no mundo mais odioso e mais infame, que servir-se,, como eu o fiz, de uma igreja, para ocultar os seus amores? Agora acabou-se, não posso mentir mais, e depois já não quero. Há muito que parecia ter reconhecido os primeiros sintomas da maternidade. Fazia diligências para não crer nela... repelia com todas as minhas forças tão terrível pensamento. Hoje que a dúvida se tornou impossível, encaro a realidade frente a frente... estou perdida, bem sei, e conhecendo o meu crime, aceitaria sem hesitar um castigo que mereço. Se o conde me matasse, seria um ato de justiça...

— Ah! exclamou Trois Monts... Defendê-la-ei, bem sabe...

— Defender-me-ía contra ele? Contra meu marido? replicou a jovem... Com que direito? Ah! estaria pronta a morrer. Deus é testemunha! Mas trago no seio uma criatura inocente. Sou mãe pelo coração desde que senti estremecer o meu filho. E quero que viva. Quero que seja salvo.

A Condessa calou-se.

Por espaço de alguns segundos cravou no senhor de Trois Monts um olhar que parecia penetrar até ao fundo da sua alma.

Depois, repentinamente, sem transição, disse-lhe deitando-lhe os braços em volta do pescoço?

— Amas-me ainda, não é verdade?

— Sempre, e cada vez mais! replicou o mancebo com o arrebatamento da paixão sincera, enquanto que os seus lábios bebiam as lágrimas nas faces da Condessa. De todas a minha alma, de todo o meu coração, com todas as minhas forças, e cem vezes mais que a minha vida! É agora sobretudo que me pertences, Maria, agora que existe entre nós um laço novo e indissolúvel. Uma criança, a carne da minha carne... Uma criança que será meu filho. Maria, minha bem amada, adoro-te.

— Então o que te pedirei que faças, fá-lo-ías?

— Por acaso poderia eu recusar-te alguma coisa?

— Não quero tornar a entrar no palácio de Vergis...

Ao ouvir esta frase, pela qual estava tão longe de esperar. Arnoldo estremeceu.

— Que projetos? perguntou.

— Faltam-me a força e a coragem para mentir daqui em diante, já to disse, retorquiu a Condessa. Depois, não posso dar à luz o filho do adultério em casa do meu marido.

— Tenho medo de te compreender.

— Pois compreendes-me?

— Queres fugir?

— Assim é preciso. Partiremos juntos. Deixaremos Paris. Deixaremos a França e a Europa, e iremos para tão longe, ocultando o nosso rasto, que o conde, se nos procurar para se vingar, não nos encontrará.

— Mas é impossível! exclamou o senhor de Trois Monts.

— Por que?

— O Conde encontrar-nos-ía em toda a parte, por muito bem ocultos que nos julguemos, e seria para ti a vergonha, talvez a morte.

— Antes que ele nos encontre e nos mate, terá nascido o nosso filho, e eu já não recearei por ele.

— Tens confiança em mim, Maria?

— Infelizmente, tenho-te disso dado provas demasiadas.

— Escuta-me, pois, e acredita-me. A jovem fez um gesto de desânimo.

— Fala, disse em seguida, escutarei e farei por acreditar.

— Não penses em fugir, minha querida, prosseguiu Amoldo. A fuga seria mais uma falta... uma falta imperdoável, porque implica oculto, tanto no interesse de teu marido, como no teu interesse pessoal.

— Proibes-me que fuja! interrompeu Maria. Pois eu posso ficar?

— Podes. Tens sido forte e corajosa até hoje, sem saberes que trazias no seio um penhor do nosso amor. Torna-te forte e corajosa por amor da criança que deve nascer.

— É preciso, então, continuar a mentir? murmurou a jovem, torcendo as mãos com desespero.

— Assim é necessário.

— O que me pede é irrealizável...

— Por que?

— Porque os dias sucedem aos dias. Até hoje ainda não se percebeu, mas basta de hoje para o futuro deitar os olhos para tudo compreender e adivinhar. Aproxima-se o momento em que a dissimulação já não será possível...

— É verdade! confirmou o senhor de Trois Monts, com uma voz alterada apertando a fronte com mãos convulsas. Que fazer, meu Deus? Que fazer?

— Não sei... balbuciou a Condessa com a cabeça pendida. Amoldo, repentinamente, levantou a cabeça.

— Não podes tomar o pretexto de uma viagem? perguntou.

— Que pretexto? Depois não me deixariam viajar só.

— Se o Conde se ausentasse...

— Por que se havia ele de ausentar?

— Afasta-se muitas vezes para explorações científicas.

— Neste momento não projeta nenhuma.

— Pode sugerir-se-lhe a idéia.

— Como?

— Procuro um meio, e hei de achá-lo. Durante a sua ausência nada te impede o saíres do palácio por tua vez, e voltares quando nada já tiveres a recear...

— Se isso fosse possível! balbuciou Maria.

— Há de ser, respondo por isso... Sê prudente. Faze diligência para que ninguém surpreenda o nosso segredo... peço-te em nome do nosso amor... em nome do nosso filho... peço-te de joelhos, e quando se aproximar a hora da libertação, estarei junto de ti, não te deixarei. Depois, voltarás só para o palácio de Vergis, e cuidarei do entezinho, em que ambos reviveremos. Farás isso, Maria?

— Farei, porque assim o queres.

— E será a nossa felicidade futura, tornou Amoldo, será o sossego para ti.

À senhora de Vergis abanou a cabeça repetindo:

— O sossego? Poderei eu porventura tornar a tê-lo?

— Sim se me obedeceres cegamente, ou antes, como mulher amante e confiada. As nossas entrevistas serão menos amiudadas. Tomaremos cuidado com nossos olhares, para que não nos atraiçoem, e seremos ainda felizes.

A Condessa não respondeu e chorava...

Amoldo separou as duas mãozinhas de que ela se servia para ocultar o rosto, atraiu-a a si, e conservou-a muito tempo abraçada como no momento da sua chegada.

— A mulher é sempre uma mulher, mesmo na dor.

Com este amplexo apaixonado, Maria esqueceu, por um instante, enigmas e terrores, e afogou os olhos umedecidos nos olhos ardentes de Amoldo.

Depois, os seus lábios uniram-se, como se tinham unido os seus olhares.

Eram quase três horas da manhã quando a Condessa tornou a atar os compridos cabelos, e reparou a desordem da toilette para voltar ao palácio de Vergis.

O senhor de Trois Monts reconduziu-a até ao "boulevard" dos Inválidos.

Ali parou, para a deixar chegar só à porta do jardim do palácio; contudo não a perdeu de vista e só se afastou depois dela sei recolher.

 

Como sabemos, Jacques Sureau tornara a vir colocar-se de sentinela na rua de Bellechasse, dizendo, porém, consigo, que enquanto reconduzia Lucília, a Condessa poderia muito bem ter voltado para a avenida de Villars.

Teve a prova de que não se enganara, quando, depois de uma vigilância prolongada e inútil, viu os clarões da aurora sucederem-se às trevas.

— Vamos, pensou Jacques Sureau voltando por seu turno para o palácio, onde tinha intenção de entrar por escalamento como saíra. Quero a hei de saber.

O acaso que acabava de fazer falhar os projetos de Jacques Sureau, muito felizmente para a Condessa e para Amoldo, encarregara-se de apresentar aos nossos leitores um personagem de quem já têm ouvido falar, mas que não conhecem ainda, Lucilia Gonthier.

 

Lucilia Gonthier, era filha de Amélia Gonthier, a comediante falecida havia muitos anos.

Doze vezes milionária sem o saber, e a quem dois homens procuravam secretamente, sem saberem um do outro, — Sta-Pi, por conta do principezinho Heitor de Castel-Vivant; Bijou, por conta da agência Malpertuis & Companhia, vivia pobre e feliz.

A loura criança morava na rua Julien Lacroix, em Belleville.

Não mentira dizendo a Jacques Sureau que acabava de velar, na rua Bellechasse, à cabeceira de uma das suas amigas doente.

Esta amiga era a jovem que o príncipe Totor vira falar com Lucilia no teatro da Porte-Saint-Martin, e receber das suas mãos a fotografia perdida minutos depois, e com a qual Estanislau Picolet contava para o descobrimento da desconhecida.

Lucilia apeou-se da carruagem à porta da casa que habitava, pagou o trem, tocou a campainha, transpôs o limiar da porta, e passando pela frente do cubículo da porteira, lançou, a fim de se fazer reconhecer, este nome de que já vamos dar a explicação:

— Toutinegra!

Depois galgou com pé leve os cinco andares que a separavam da sua casinha composta de dois quartos mobiliados com a maior simplicidade, mas em que reinava um aceio de esmero puramente flamengo.

A jovem acendeu um candeeiro preparado de véspera, substituiu o seu fato de sair à rua por um penteador de flanela escura, sentou-se numa cadeira de palha em frente de uma pequenino mesa coberta de utensílios de costura, e pegou numa visita de cetim que guarnecia de vidrilhos.

Lucilia trabalhava para um grande "atelier" de modista.

Demonstrava grande habilidade, era dotada de muito bom gosto, e a mestra do estabelecimento dirigia-se a ela de preferência para quaisquer assuntos que reclamassem cuidados particulares.

Isto permitia-lhe ganhar quatro francos e cinqüenta cêntimos, e às vezes cinco francos por dia.

A loura criança sentia-se perfeitamente feliz com esta modesta existência, e não se privava, de tempos a tempos, de um passeio ao campo, ou de uma noite de teatro, sempre acompanhada de uma vizinha de respeitável idade, tendo alguns pequenos rendimentos, e na casa da qual tomava as suas refeições.

Redundava daí uma importante economia para ela, impedindo-lhe que perdesse tempo em preparar os alimentos, e a viúva da sua parte também tirava algum proveito.

Lucilia, à força de ordem, conseguia por de lado todos os meses uns quarenta francos que ela guardava cuidadosamente para fazer face às eventualidades tão terríveis da falta de trabalho e da doença, e para oferecer algumas gulodices à única parenta, uma tia velha e cega, asilada na Salpetriére.

A jovem atingia os seus dezoito anos.

Heitor não exagerara fazendo dela a Sta-Pi um retrato entusiasta, aliás rigorosamente conforme á fotografia perdida.

Lucilia era formosa acima de toda a expressão, e coisa singular, não se orgulhava da sua beleza.

A alma e o coração desta jovem, filha de uma comediante estróina, e de um pai casual, eram idealmente altivos, incomparavelmente honestos.

Na sua idade, e no meio popular em que vivia, Lucilia não podia ignorar certas coisas, mas nada igualava a sua castidade nativa.

Como o arminho simbólico dos Duques da Bretanha, teria podido tomar por divisa: Antes a morte, que a mancha!

Coisa singular, e que não procuraremos explicar; de dois entes unidos pelo acaso, pelo capricho, por aquilo que o amor tem de menos ideal, Deus fizera nascer um anjo.

Alegre na mediocridade da sua situação, e não sonhando sair «dela, a filha de Amélia Gonthier possuía uma voz encantadora, e uma memória musical prodigiosa.

Bastava-lhe assistir á representação de uma opereta para lhe ficarem de memória quase todas as árias.

Possuindo um repertório tão rico e alegre como um pássaro, cantava o dia todo.

A viúva, em casa da qual Lucilia tomava as suas refeições, a senhora Verdier, cuja residência era contigua à sua, tinha-a por isso chamado a Toutinegra.

Era por esta bonita alcunha, que aliás lhe ficava maravilhosamente, que geralmente a designavam no bairro.

 

O dia rompera havia muito, e o candieiro estava já apagado. Lucilia punha os enfeites sem levantar os olhos. Ia concluir o trabalho. Bateram de leve à porta.

— Entre, disse.

A porta entreabriu-se; uma mulher de cinqüenta a sessenta anos, de penteador de chita e touca de pano branco, entrou no quarto. A loura jovem levantou a cabeça, e disse sorrindo:

— Espera, é a senhora Verdier. Bons dias.

— Bons dias, pequena, volveu a recém-chegada. Sempre se recolheu esta noite? Julgava-a ainda na rua Bellechasse...

— Por que, tia Verdier?

— Porque são quase oito horas e não ouvi ainda o menor gorjeio, o que não está nos seus costumes de ave cantadora.

— É verdade, volveu Lucilia sorrindo de novo. Cheguei tarde. Passei o resto da noite a acabar uma obra com muita pressa, e trabalhava com tanta aplicação que a Toutinegra esquecia os seus gorjeios.

— O quê, pois passou a noite à cabeceira de uma doente e vem depois trabalhar?

— Vim, sim.

— Isso é uma vida para fazer perder a cor do rosto e transtornar a saúde, que é o que a gente tem de mais precioso! exclamou a senhora Verdier, e tudo isso por quatro francos e cinqüenta! Há de se estar a estragar a saúde por tão pouco dinheiro?

— Tem razão, minha boa vizinha, mas não ignora que poucas vezes me acontece velar assim.

— Era preciso que nunca lhe sucedesse! — O trabalho era com muita pressa.

— Qual pressa! Deixe-se disso; a patroa teria esperado.

— Tinha prometido e bem sabe que só tenho uma palavra. Mas está já pronto. Vou vestir-me e partir. O café está pronto?

— Com certeza. Bem sabe, pequena, que sou também muito exata... nunca falto ao que prometo.

— Bem, almocemos, e antes de ir ver minha tia à Salpétrière, irei ao "atelier" levar esta encomenda e trazer outra.

— A minha pobre Toutinegra faria muito melhor esposando um belo e excelente rapaz que tivesse alguma coisa e que lhe. impedisse matar o corpo e alma com trabalho.

— E onde está esse bom e belo rapaz que dispõe de meios? perguntou Lucilia rindo.

— Pode-se encontrar.

— A senhora conhece as minhas idéias a respeito de casamento, tia Verdier. Não faço caso do dinheiro. Ou não me caso, o que aqui para nós me parece coisa muito aceitável, ou caso por amor. O homem que me possuir há de fazer-me bater o coração, aliás não... Fico solteira!

— Essas coisas vêem-se nos romances e nas comédias...

— E também na vida real.

— Nova e bonita seria pena ficar solteira.

— A mocidade passa depressa e a beleza mais depressa ainda.

— Sim, a velhice chega depressa, não se economizou coisa alguma, só restam os olhos para chorar, e carpir-se as perfeições que tínhamos no passado.

 

O TENTADOR

Lucilia pôs-se a rir às gargalhadas quando ouviu a senhora Verdier mostrar saudades das perfeições.

— Não terei saudades, disse ela em seguida, e isto pela excelente razão de que aproveito a minha mocidade à minha moda. Estou sempre de bom humor, como com bastante apetite, trabalho e canto. Gosto do campo, e vou ao campo... Gosto do teatro, e vou ao teatro. Basta-me isto, e portanto sou feliz...

A matrona não respondeu, mas abanou a cabeça de um modo que significava claramente:

— Há de vir um dia em que a menina não pensará assim.

— Estou pronta, tornou Lucilia. Vamos almoçar, tenho uma fome desesperada.

A senhora Verdier era viúva, como dissemos, viúva de um hervanário que lhe deixara algumas notas de mil francos, e o fundo que ele explorava em vida.

Este fundo, bem vendido, produzia um capital equivalente ao rendimento de mil e duzentos francos.

Em outros tempos, tinha sido muito falada a "bela hervanária", porque era assim que chamavam a senhora Verdier, nas alturas de Belleville, falando-se também dos muitos rasgões que ela dera no seu contrato de casamento.

As primeiras rugas e os primeiros cabelos brancos, tinham posto em fuga os amores; mas restavam as recordações, e as recordações dispunham a matrona para uma grande indulgência para os pequenos pecados de outrem.

Excelente pessoa e dotada de um coração muito bondoso, desprovida porém de senso moral, não fazia diferença entre um amante e um marido.

Pertencia à escola das mulheres para as quais o casamento se torna supérfluo quando o coração fala. Corrupção ingênua, até certo ponto descuidada, e muito mais vulgar do que geralmente se julga.

A senhora Verdier gostava das pequenas intrigas galantes, e nada a divertia tanto do que servir de intermediária entre dois amantes tímidos.

Mais de um casamento legal, e infelizmente alguns outros a que faltavam as formalidades essenciais civis e religiosas, se tinham esboçado sob os seus auspícios.

Lucilia tinha um espírito muito reto para não compreender claramente os princípios insuficientes da ex-formosa hervanária.

E por isso lhe dava a entender, sorrindo, que queria dirigir-se a si mesma, e não permitia influência alguma.

A senhora Verdier gostava sinceramente da jovem, e declarava-a mais do que perfeita sob todos os aspectos, mas não lhe perdoava de bom grado o ter um coração invulnerável e princípios indestrutíveis..

 

O café com leite esperava por elas, muito quente, acompanhado' com uma pirâmide de torradas muito bem feitas.

A órfã pegou numa, cobriu-a de manteiga fresca, e trincou-a com os seus dentes brancos.

Neste momento soou uma voz vibrante e bem timbrada, entoando o estribilho de uma cançoneta em voga.

A senhora Verdier levantou a cabeça e disse rindo:

— Espera! Espera! lá desperta o nosso grande artista... hoje está em maré de gargantear... Haverá mudança de vento?

— O que quer dizer com isso? perguntou Lucilia.

— Há três dias que não o ouvia... Parecia que já cá não morava, ele que é de ordinário tão alegre. Anteontem encontrei-o... tinha uma cara de palmo e meio.

— Anda de certo preocupado com o seu papel.

— É muito possível.

— Sabe se ele nos arranjou os lugares que lhe tínhamos pedido?

— Não, mas pode-se-lhe pedir. Quer que o chame?

— Sim, principalmente porque tenho um recado para ele.

A viúva levantou-se imediatamente, e deu no tabique três ou quatro murros vigorosos.

O efeito produzido foi imediato.

A voz que cantava, calou-se.

Ouviu-se uma porta abrir-se e fechar-se, e em seguida bateram à porta da viúva.

— Entre, senhor Fernando, gritou ela rindo ao mesmo tempo ruidosamente. Entre, que meu marido não está em casa.

Fernando Volnay, o sobrinho de Jacques Sureau, todo muito galhofeiro, apesar de ser muito cedo, apareceu no limiar da porta, e tomou uma posição afetada.

— Bom apetite, formosas damas! exclamou inclinando-se com uns modos teatrais. Senhora Verdier, cumprimento respeitoso... menina Toutinegra, bom dia amigável.

— Bom dia, senhor Fernando, volveu Lucilia.

— Chamou-me, vizinha?

— Chamei, mas entre de vez... Temos que conversar consigo.

— Pronto, às ordens! Vão falar-me dos seus dois lugares para a primeira representação, não é verdade?

— Exatamente! Bem sabe que conto com eles.

— E tê-los-á. Estão reservados. Depois do ensaio vou buscar os bilhetes, e trazer-los-ei esta noite.

— O nosso vizinho é muito amável. Agora previno-o de que preciso de um terceiro...

— Oh! Demônio! exclamou o comediante cocando na orelha.

— Será difícil?

— Difícil e quase impossível. Está tudo dado à imprensa ou alugado. Mas as senhoras não tem precisão de três lugares.

— O terceiro lugar não é para nós. É para o seu primo Jacques Sureau.

— O meu primo! exclamou Fernando. Viu-o?

— Vi.

— Quando?

— Esta noite.

— Onde?

— Na rua de Varennes... e afianço-lhe que me meteu um medo de que me lembrarei por muito tempo.

Lucilia contou como fora perseguida pelo primo do ator. Fernando escutou com atenção a narrativa da jovem. Não pôde deixar de sorrir daquele singular qui-pro-quo, e perguntou:

— Que demônio fazia ele por ali?

— Ia para casa, pelo menos assim me disse.

— Ou andava correndo aventuras, acrescentou a senhora Verdier. — E quem julgava ele perseguir? continuou o comediante. Refletindo, prosseguiu:

— Ora, nada tenho com isso. Farei diligência para lhe obter o lugar, e entregar-lhe-ei o bilhete quando ele vier.

— Ora diga, senhor Fernando, é para amanhã a primeira representação? tornou Lucilia.

— Sim, menina Toutinegra.

— Certo, certo?

— O que há de mais certo... Nem o mais pequeno adiamento. A peça está pronta e mais que pronta. Hoje não há espetáculo, para acabar de se armarem as vistas. Amanhã, ao meio dia e um quarto, ensaios parciais, e à noite, às oito horas, ao sinal, pano acima. Só a idéia me entusiasma.

— Será bonito? senhor Fernando.

— Bem sabe, quem representa numa peça não se pode fazer juiz. Em todo o caso conta-se com um grande êxito.

— Há amores?

— Se há! amores em barda, e amores entusiásticos, respondo por isso! Equivale a um ponche a que se deita fogo.

— Há duelos?

— Um de vinte cavalheiros, dez de cada lada, e muito bem ensaiados, pode crer-me. Entendo disto, é verdade, coisa fina!

— Haverá lágrimas?

— Lágrimas em fio. As senhoras sensíveis farão bem levando lenços sobressalentes.

— É bom saber-se isto... murmurou a viúva.

— E coisas para rir? prosseguiu Lucilia.

— De escangalhar com riso. É muito boa a parte cômica...

— E o título dessa sublimidade?

— Os Beijos Mortais.

— Safa! exclamou a senhora Verdier, encolhendo-se toda. Os Beijos Mortais! Faz-me arrepios... mete-me pavor. Felizmente são palavreados de autor... Não se morre por isso... E passa-se?

— No tempo de Henrique IV... O gibão e gorro...

— Costumes do tempo de Henrique IV!... exclamou a viúva... Vejo isso daqui... Adoro os trajes dessa época! E o senhor faz nisso um grande papel, não é verdade?

Fernando Volnay empapuçou-se todo. — Faço o papel principal! retorquiu. O papel do senhor que dá os três beijos nas mulheres a quem ama.

— O senhor ama três mulheres na peça! disse Lucilia rindo.

— Sim, e de cada vez que beijo uma delas, o meu beijo, por efeito de uma série de circunstâncias muito dramáticas, dá-lhe a morte.

— É terrível, mas deve ser muito interessante. Três beijos, três agonias! O senhor há de ser magnífico, hein?

— Aqui para nós, parece-me que não irei mal, e conto com um efeito de arromba... Tenho cenas de amor surpreendentes e é pelo amor que vou brilhar. Em cada uma das cenas dos beijos há de haver uma chamada, e duas chamadas depois do passe de armas.

— O senhor há de causar-me comoções, senhor Fernando, disse a viúva. Há de fazer-me chorar. Chorar no teatro é o meu maior prazer. Quanto mais choro, mais me divirto. Ah! como eu gostava de ser atriz, com muito talento e não poucos diamantes! Se a Toutinegra me escutasse, há muito que ela teria deixado o trabalho de modista pelo teatro, e que entraria na comédia ou na opereta em lugar de por enfeites nos vestidos de outrem! Com os seus belos olhos, a sua bonita cara, e a voz que tem, ganharia bem bom dinheiro.

Lucilia franziu os sobrolhos.

— Esquece-se da minha pobre mãe que morreu miseravelmente, que deveu quase o enterro à caridade pública, murmurou. E contudo também foi célebre pelo talento e pela beleza.

A senhora Verdier não se deixava vencer com tão pouca coisa.

— É verdade, porque lhe faltava o gênio econômico... Se tivesse querido, teria sido rica e feliz. E a Toutinegra seria econômica...

— Não gosto de semelhante profissão...

— Porque não a conhece, menina Lucilia, observou Fernando.

— E não procurarei conhecê-la. Não tenho nenhum desejo de pisar o palco.

— Não gostava de casar com um ator?

— Com certeza que não! exclamou Lucilia.

— Por que?

— Seria muito infeliz meu marido feito alvo de todos os olhares, louvado, criticado, admirado, adorado...

— Quer dizer que teria ciúmes, exclamou a senhora Verdier rindo.

— Bem, sim, é verdade, teria ciúmes! Sem ter sido comediante, sei o que é a vida de teatro. Adivinho estes costumes levianos em que o capricho faz as vezes do amor, essa existência febril, em que os gozos da vaidade não deixam lugar aos sentimentos sinceros...

— Então, murmurou Fernando com a sua voz mais insinuante, e olhando amorosamente para Lucilia, então, se lhe dissesse um dia:

— "Minha Toutinegra amo-a ou antes, adoro-a! Quer pertencer-me como eu lhe pertenço? Quer ser minha, como eu serei seu? Quer ter o meu nome? Quer partilhar a glória e a fortuna que o futuro me reserva?" Que me responderia?

— Ah! Eu responderia logo que sim, e não só uma como muitas vezes! interrompeu a bela hervanária, deliciosamente impressionada pelas palavras, e sobretudo pela voz do comediante. Com uma voz como a sua, senhor Fernando, seduz-se a princesa odalisca do Grão Turco!

Lucilia sorriu.

— Pois eu responderia: Não, muito redondamente, disse ela. Demais, o senhor Fernando graceja... Está-nos dando uma amostra da maneira como desempenhará o seu papel amanhã à noite. Vai muito bem. Vaticino-lhe um grande êxito...

— Não acredita que a amo? perguntou o artista, a quem a senhora Verdier deitava olhadelas significando muito claramente:

— Ande, ande, não perca ânimo.

— Segundo me parece, cá fora, como no teatro, diverte-o fazer a corte às mulheres, replicou a órfã, e que multiplica as declarações de amor por amor à arte. Eu creio que o senhor não sente por mim nada mais que uma boa amizade, e estimo bastante, porque já o disse mais de uma vez, o meu coração é livre, e livre quer ficar.

— E se se enganasse? retorquiu Fernando com veemência, se sentisse pela senhora uma dessas paixões que matam, quando fazem enlouquecer, se são desprezadas?

 

EXPLORAÇÕES DESTA-PI

Lucilia acolheu estas últimas palavras com uma gargalhada muito franca.

— O senhor mostra tanto calor, que qualquer outra se enganaria, julgando que era tudo verdade. Decididamente há de vir a ser um grande artista, senhor Fernando; mas eu não gosto da vida das pessoas do teatro, e não poderia habituar-me... Um ator tem muitas ocasiões de enganar a mulher, e eu tinha a pretensão de que o meu mando fosse fiel... Ora os atores não o são nunca.

— Oh! nunca, interrompeu Fernando, seria dizer muito. Há exceções.

— Bem poucas, creio. Depois, o senhor não seria uma dessas.

— Decididamente não nos casaremos...

— Mas, com a fortuna! exclamou a senhora Verdier, mas a menina não pode ficar solteira toda a vida.

— Não tenho mais que dezoito anos. Resta-me muito tempo para pensar nisso. Todas estas coisas não passam de gracejos. Fiquemos bons vizinhos e bons amigos, senhor Fernando, e não esqueça nem os nossos lugares, nem o do seu primo. Vou para a modista. Até já, senhora Verdier.

— Até à noite, senhor Fernando.

E Lucilia tornou a entrar em casa, para ir buscar a obra que devia levar à mestra.

— Que linda mulherzinha não sairia dali!.murmurou o comediante vendo a jovem afastar-se.

— Ou que bonita amante, exclamou a ex-hervanária piscando o olho.

— Sim, mas é tão honesta, que impõe respeito.

— Sim, é com certeza, e creio-a não menos ambiciosa.

— O que quer dizer?

— Imagino que sonha com um casamento rico.

—E na verdade que tem razão, bem vê que não lhe convenho.

— Como marido, não; mas como amante...

— Ah! palavra, que lhe faria de boa vontade dois dedos de corte,, mas perderia o meu tempo, e sou de opinião que não se deve tentar o impossível, quando há tantas raparigas tão bonitas que não querem outra coisa.

— Ah! o senhor é um maganão! as mulheres estão doidas pelo senhor.

— É verdade, respondeu o primeiro galã com uma ingênua fatuidade. Se as escutássemos todas, seria um nunca acabar. Até à vista, senhora Verdier.

— Aonde vai tão cedo, tão puchado?

— Almoçar a toda a pressa, e depois para o ensaio. Mal tenho tempo. Esta noite receberá os seus bilhetes.

Os Beijos Mortais, o drama de que Fernando Volnay acabava de falar, devia, apesar de representado em Belleville, ocupar a atenção de toda a cidade de Paris, que por coisa nenhuma quereria faltar a uma primeira representação.

Eis o motivo deste fato, na aparência anormal.

O autor, um mancebo muito simpático agregado à redação de um jornal importante, como não pudera fazer receber a sua peça na Port-Saint-Martin, ou no Ambigu, aproveitava-se das suas relações na imprensa para fazer ruído a propósito da sua produção.

Trata-se, diziam os jornais todas as manhãs, de uma audaciosa tentativa de descentralização, e cobriam de elogios antecipados o drama ainda desconhecido, a sua "mise-en-cene" e os seus intérpretes, acrescentando que um jovem ator, chamado Fernando Volnay, ia revelar-se como estrela de primeira classe.

O resultado natural e previsto daquela publicidade inteligente e ruidosa, fora a evasão do cubículo do camaroteiro.

Em presença daqueles sintomas não equívocos de curiosidade, os diretores, que pela primeira vez se viam em semelhante festa, esfregavam as mãos, e faziam grandes festas ao autor e a Fernando Volnay.

 

Sta-Pi, sempre em busca de Lucilia, tinha ouvido falar daquela representação, e perguntava de si para si se não seria acertado assistir àquela representação.

— Tudo me leva a crer que a lourinha mora em Belleville... dizia ele consigo. O príncipe Totor viu-a no teatro, portanto, ela gosta de espetáculo... Pode-se logicamente supor que ela não há de querer faltar a uma primeira representação desta importância no seu bairro. Irei.

Em vista disto, tomou lugar no ônibus de Belleville, e apeou-se ao pé do teatro.

Ao tempo que ele chegava ao camaroteiro, situado debaixo do peristilo, Fernando Volnay aparecia do outro lado. Com a diferença, porém, que o ator entrou sem cerimônia no camaroteiro, enquanto que Sta-Pi ficava da banda de fora, ao postigo.

O empregado da agência Malpertuis, repara no ator.

O rosto não parecia desconhecido.

— Onde demônio encontrei este belo rapaz? perguntou ele. A memória voltou-lhe repentinamente.

— Foi na agência, respondeu ele a si mesmo. Saía quando eu chegava, e por sinal que vinha com um ar muito penalizado. Informei-me... um simples caloteiro, a quem o patrão mandara chamar.

Aproximou-se do postigo e escutou; por instinto e por hábito escutava sempre.

— Bons dias, senhora Lambert, dizia o ator à camaroteira; lembrou-se de mim?

— Sim, senhor Fernando, aqui estão os seus bilhetes. Uma friza de quatro lugares, quatro balcões e duas cadeiras.

— Muito bem, é isso. Agora, minha querida senhora Lambert,. e preciso ver se me arranja um cadeira mais.

— Mais uma infeliz que quer vir abrasar-se vendo-o em cena!

— Não, palavra, é para meu primo.

— Um primo de saias. Bem o conhecemos.

— Pois não sabe, minha querida Lambert, exclamou o ator rindo, que eu vou tomar juízo?

— Não me diga dessas a mim, porque não o acredito. Tenho ouvido falar bastante das suas extravagâncias! Quer que lhe diga para quem são todos os seus lugares?

— Oh! quanto a isso desafio-a.

— Então desminta-me se é capaz! A frisa é para a sua senhoria e as suas três filhas, a mais nova das quais, a moreninha, deu-lhe no goto. Será verdade ou não?

Fernando sorriu.

— Não é difícil de adivinhar, dou-lhes a mesma frisa em todas as minhas primeiras representações.

— Seria um bom partido para a moreninha, e creio que ela bebe os ares por si.

— Pois eu penso em casar!

— Ora adeus, se a mãe consentisse. Bem, vamos adiante. Os lugares de balcão separados, são para a pequena ruiva, que vem muitas vezes esperá-lo depois do espetáculo; para a grande Esteia, que quis uma noite arrancar os olhos à pequena ruiva; para a bonita vendedora de tabaco da rua de Paris, e para a mulher de um empregado das contribuições, que eu conheço bem, mas de que não sei o nome, será isto ou não?

O ator tornou a sorrir.

— É isso, é, replicou ele.

— Só me falta adivinhar o destino das cadeiras.

— E não adivinha, desafio-a a que adivinhe.

— Aposto que adivinho.

— O que aposta?

— Um bock.

— Vá feito.

— Pois as cadeiras são para a formosa hervanária e para a sua hóspeda, a rapariga mais bonita de Belleville, a lourinha a quem deu ultimamente dois lugares na Port-Saint-Martin, a menina Lucilia.

As palavras: "lourinha, Port-Saint-Martin, Lucilia", tinham feito sucessivamente estremecer Sta-Pi.

A jovem, cujo rasto ele procurava, era loura, chamava-se Lucilia, o Príncipe de Castel-Vivant tinha-a visto no teatro da Port-Saint-Martin.

A dúvida parecia impossível.

Com certeza que falavam da linda criatura cuja fotografia ele trazia na sua carteira. Sta-Pi pôs-se como um pimentão; a alegria sufocava-o.

Vinha em seu auxílio uma circunstância fortuita, impossível -de prever.

Que pechincha!

A recompensa prometida pelo príncipe Totor, radiava e cintilava aos seus olhos.

Parecia-lhe que já a tinha apanhado. Escutou mais atentamente.

— Então, já ganhei o meio bock? perguntou a senhora Lambert.

— Não posso deixar de concordar. Vou pagá-lo à cervejaria, e dizer que lha tragam.

— Ora! não há pressa. E as coisas correm bem a respeito da jovem Lucilia?

— Muito bem. Somos bons amigos.

— Só bons amigos?

— Palavra.

— Trocista!

— Eu que lho digo é porque é verdade... Não é delambida, nem se faz de manto de seda... Gosta de rir, mas tem princípios. Tem juízo e ambições...

— Ambições! repetiu a camaroteira com um modo sarcástico. Quer talvez algum príncipe!

Ao ouvir estas palavras, Sta-Pi sorriu de um modo estranho.

— Que quer! é suficientemente formosa para isso! Estava a pintar para mim a Toutinegra. É pena que ela seja tão arisca!

— Ah! se o senhor quisesse...

— Não! não! é impossível.

— Isso na boca de um galã! Palavra, que custa a crer. Se teu fosse um rapaz bonito como o senhor, parece-me que nada me resistiria!

— Então não me resista, querida senhora Lambert! Uma cadeira para meu primo.

Juntando o gesto às palavras, Fernando agarrou-a pela cintura e beijo-a em ambas as faces.

A senhora Lambert não se defendeu; tornou-se púrpura, a garganta latejou-lhe tumultuosamente, e voltando para o comediante uns olhos lânguidos e marejados, disse-lhe com voz desfalecida:

— O senhor faz de mim quanto quer. Aqui está um bilhete reservado há três dias. Tome-o.

— É um anjo! Quanto devo?

A bilheteira fez uma soma, e formulou uma conta.

Fernando pagou e guardou os bilhetes.

— Vai para o ensaio? perguntou a senhora Lambert.

— Devíamos ensaiar esta manhã o passe de armas, mas o grande mestre telegrafou que não poderia vir senão às três horas. Vou à cervejaria pagar uma partida e mandar-lhe a sua cerveja.

— Muito bem...

O ator saiu do cubículo da bilheteira.

Picolet entregava-se a profundas locubrações.

— Se interrogasse aquele rapaz? perguntava ele a si próprio. Se lhe mostrasse a fotografia? Saberia por ele positivamente se a Lucilia em questão é com efeito aquela a quem procuro...

Esta idéia, porém, não fez mais que atravessar-lhe o espírito.

— Não, respondeu logo no seu íntimo, seria perigoso. É um perseguidor de raparigas aquele sujeito. Velhaco como umas casas, cá na minha opinião. Adivinharia que não trabalho por minha conta,, e perceber-me-ia a idéia. Nada de tolices... cá tenho a minha gíria.

Passado um segundo acrescentou:

— A pequena tem princípios... é rapariga de juízo e de ambições. O que se chama uma verdadeira cidadela. Mas as cidadelas não são inexpugnáveis! Têm-se tomado muitas cidadelas.

O polícia de contrabando esperou que Fernando Volnay se achasse longe do teatro, depois, inclinando-se para o guichê da camaroteira que não desconfiava, perguntou-lhe:

— É efetivamente amanhã, minha senhora, que terá lugar a primeira representação dos Beijos Mortais?

— Sim, senhor, irrevogavelmente, como diz o cartaz.

— Dizem que há de ir muito bem essa peça?

— Ah! Esplêndida, senhor! Magnífica! É para meter a um canta os primeiros teatros de Paris... Se o senhor tivesse chegado dois minutos mais cedo, veria sair do meu cubículo o nosso galã, o senhor Fernando de Volnay, que há de substituir vantajosamente o chorado' Melingue.

— Na verdade?

— Senhor, afirmo-lho, e pode acreditar-me...

— Desejaria alugar uma cadeira.

— Não tenho já nenhuma.

— Ora adeus! exclamou Picolet com um ar incrédulo... já não haver cadeiras em Belleville!!!

— É o que lhe digo. O dobro que tivesse, tudo se alugaria T Posso, porém, oferecer-lhe uma dobradiça, na quarta fila, ao pé da saída, o n.° 71. Consulte o plano, veja se lhe convém, e resolva-se depressa, porque dentro de cinco minutos vêm com certeza pedir-ma.

— Fico com ela, fico com ela.

 

A DESCOBERTA

— Vou dar-lhe o bilhete, senhor, disse a vendedora de bilhetes. E a senhora Lambert, depois de escrever a palavra alugado na folha, em frente da dobradiça n.° 71, pegou num bilhete de cor verde, preencheu-o e assinou-o.

Durante este tempo, Estanislau Picolet exibira a sua carteira, e colocava-a aberta em cima do pequeno balcão defronte do guichê.

— Quanto lhe devo? perguntou.

— Cinco francos.

Sta-Pi tirou uma nota de cem francos de um bolso da carteira, estendeu-a à vendedora de bilhetes e com uma malta de jeito muito bem preparada, fez deslizar do balcão para o interior do cubículo algumas cartas, em meio das quais se achava o retrato que ele recebera do príncipe Totor, o qual por conseguinte apareceu à vista da senhora Lambert.

— Oh! Perdão, minha senhora, exclamou o polícia. Desastrado que eu sou! Deixei lentamente cair uns papéis...

— É uma fotografia... exclamou a vendedeira de bilhetes.

— A de uma artista de Paris.

A senhora Lambert pegara no retrato, e examinava-a cheia de curiosidade.

— Uma artista? repetiu.

— Sim, senhora...

— É singular!

— Então por que?

— Porque esta senhora parece-se de uma maneira surpreendente com uma jovem de Belleville de quem falava havia pouco,  vem aqui algumas vezes tomar lugares.

— Ah! sim?

— Sim, senhor. Duas gotas de água não são mais parecidas! Tem a certeza de que o original deste retrato se acha no teatro?

— No teatro do Ateneu, perfeitamente. Chama-se menina Formosa, e dá a réplica a Montrouge nas revistas. É talvez a mesma.

— Isso é impossível, senhor. A que eu conheço é uma jovem de dezoito anos, que trabalha de modista e se chama Toutinegra. Alguém acaba de lhe tomar dois lugares para amanhã.

— E mora em Belleville?

— Exatamente. Não muito longe do teatro, creio.

— Não é a mesma, disse Sta-Pi em voz alta, acrescentando mentalmente: É a mesma que eu procuro. — E estendeu a mão para tornar a pegar na fotografia e nos papéis, tornou a meter tudo na carteira.

— Aqui tem a sua dobradiça, senhor, vou dar-lhe o troco.

— Um instante, minha senhora! interrompeu Sta-Pi, por cujo cérebro perpassou uma idéia súbita. Poderia por um camarote por um instante à minha disposição para um dos meus amigos?

— Um camarote de frente, sim, senhor... Os da primeira ordem estão por alugar, e ainda me resta uma frisa de cinco lugares.

— Dê-me essa.

— É já, senhor.

Sta-Pi pagou a conta, guardou os bilhetes, saiu dali com o olhar radiante, e dirigiu-se à cervejaria do teatro onde mandou vir um bock e o necessário para escrever.

Depois de beber a cerveja, traçou as linhas seguintes:

 

"Boa notícia! Esta noite, às cinco haras, estarei no pequeno café da rua de la Victoire.

"Esperarei até às seis horas. "Respeito e dedicação.

"Sta-Pi"

 

Meteu este bilhete no envelope, escreveu o endereço do Príncipe Heitor de Castel-Vivant, no seu palácio, rua de Francisco I, saiu da cervejaria, e tomou um trem que passava.

— Corrida ou às horas, freguês? perguntou o cocheiro.

— Às horas, respondeu Estanislau, que segundo se vê não recuava diante de nenhuma despesa.

Recostou-se nas almofadas, dando-se ares de milionário, e fez-se transportar ao palácio do Príncipe Heitor, onde entregou a carta ao guarda-portão, depois ao escritório da rua de la Victoire, onde tinha de dar contas do resultado de certos passos ordenados por Malpertuis.

 

Rogamos aos leitores queiram acompanhar-nos naquele mesmo dia pelas onze horas da manhã, à rua Murillo, a casa da Marquesa de La Tour-du-Roy.

Lazarine acabava de almoçar em companhia de seu pai Júlio Leroux.

Júlio Leroux que se comprazia em declarar-se o melhor dos pais, vinha todos os dias ao palácio alugado por ele para a filha alguns anos antes, depois da morte do Marquês.

O ex-banqueiro, apesar de extraordinariamente arruinado pela freqüência muito assídua das meninas Tata, Nana, Flor de Candura e Pele de Cetim, estava contudo sólido ainda, e conservava os seus modos de estróina da boa escola.

Com a parte superior do corpo apoiado no recosto da cadeira, a cabeça um pouco deitada para trás, Júlio Leroux fumava um Rothschild, e seguia nas suas evoluções caprichosas as espirais brancas e perfumadas que subiam para o teto.

De tempos a tempos olhava para Lazarine, que, vago o olhar e as pupilas reviradas, batia o compasso a alguma orquestra invisível com uma colher de prata dourada, sem ter consciência do que fazia.

Júlio Leroux saboreou o seu copo de fina champanhe, sacudiu com a ponta do dedo a cinza do charuto, e disse de repente:

— Sabes, Lazarine, que não tens hoje muita graça? Lazarine não escutava.

Continuava a bater silenciosamente o compasso. O melhor dos pais encheu de chartreuse verte um segundo copo de Boêmia e tornou:

— Tens alguma coisa que te apoquenta? Não corre tudo à medida dos teus desejos? Desabafa no seio de seu pai. Eu arranjarei isso.

A voz de Júlio Leroux tirou a jovem da sua meditação. Ouviu a voz, mas não as palavras. Parecendo despertar, disse:

— Com quem estás falando, papai?

— Estamos a sós, portanto, com quem hei de falar senão contigo, lindinha?

— Papá, faço justiça ao teu velho fundo de lógica, é inesgotável! Falava-me pois?

— Sem o menor resultado...

— Que querias tu saber?

— Por que me mostras hoje uma cara do outro mundo... O que tens?

— Sempre o mesmo, papá, bem sabes. Tenho um aborrecimento de morte. O aborrecimento enerva-me e impele-me ao spleen...

— Faço contudo quanto posso para te distrair.

— Se o não consegues, é tua a culpa e não minha!

— Não, com a breca, não é minha, exclamou Júlio Leroux. Contesto isso energicamente. És inacessível ao divertimento como o falecido rei Sol quando a viúva Scarron perdia nisso o seu tempo. Mas isso explica-se quanto ao monarca... tinha-se cansado muito, e nos últimos tempos imagino que estava bastante derramado. O que te falta a ti, com o demo! Tens vinte e um anos, és rica, és livre, és linda como os amores, mais linda ainda que em outros tempos, se é possível. Caprichos, fantasias, leviandades, tudo podes satisfazer, sem que ninguém nada tenha a dizer-te. Tens o melhor dos pais... Sirvo-te de acólito. Levo-te aonde queres. Não me parece que seja cômodo o enfadar-se uma pessoa cm tais condições. Por que te enfadas? Acabarei por crer que estás doente.

— Tens razão para o acreditares, volveu Lazarine. Estou doente, muito doente.

— Com essa cara! Cantigas! Não tens aspecto de quem esteja doente. Em todo o caso, venha um médico depressa?

— Desafiarei um médico para que me cure. — Então por que?

— É o moral quem sofre. É o tédio que me mata. Júlio Leroux encolheu os ombros.

— Andamos no mesmo círculo, como os cavalos no circo, disse ele. Não vejo como isso há de acabar... Então, casa-te... Distrair-te-á.

— Tens a certeza disso? perguntou a Marquesa em tom de dúvida.

— Pelo menos mudar-te-ía... Terias um marido a dominar, a governar, a seringar. Entretem. O Príncipe de Brada anda doido por ti. Casa com ele.

— É mortalmente enfadonho, bem sabes!...

— É um partido soberbo. Parece autêntico... belo rapaz, riquíssimo, porque é mais rico que tu... muito mais rico. Julgava-te resolvida há uns dois ou três dias...

— Não gosto nada dele, murmurou Lazarine.

— Mas que importa? perguntou muito admirado. Parece-me que tu esposaste o defunto Marquês de La Tour-du-Roy sem o menor amor, e contudo não te fizeste muito rogada.

— Por certo. A ambição substituía suficientemente o amor. Estava fartinha de me chamarem a pequena Leroux, de viver nas Vertes-Feuilles, e de ser filha de um banqueiro arruinado. Já vai longe esse tempo, já vai longe!

— Espera lá, então agora queres amar?

— Ah! exclamou Lazarine com uma intensidade de ardor admirável, eis o meu sonho, se eu pudesse...

— Mas dize lá, Marquezinha, aqui para nós, seriamente, nunca amaste?

— Nunca.

— Estás caçoando com o melhor dos pais! Pois bem, e o Bégourde, Príncipe de Castel-Vivant? E o tenente Marcel Laugier? Não amaste a esses cavalheiros um pouquinho, ao menos um pouquinho?

Lazarine abanou a linda cabeça de cabelos cor de fogo.

— Não, não, cem vezes não! disse ela. Julguei talvez que os amava, mas vejo bem que me enganava, nada disso era amor!

— Então nada posso. Desembrulha-te. Por muito bom pai que eu seja, as mais elementares conveniências proíbem-me intervir em distrações desse gênero. Seria escandaloso. Quanto ao mais, dispõe de mim. Queres que te conduza a algum café concerto?

— Estou farta até aos olhos dos teus cafés concertos. Desejava coisa de mais novidade.

— E mais apimentada, não é assim? A Marquesa fez um sinal afirmativo.

— Não sei o que te proponha, volveu Júlio Leroux, contudo acode-me uma inspiração.

— Qual?

— Amanhã há uma primeira representação.

— Não falto nunca às primeiras representações, e isso já não me diverte.

— Esta não se parece com as pequenas festas da inteligência a que estás habituada. Falo-te de uma primeira representação no teatro de Belleville, um grande drama inédito.

Lazarine pôs-se a rir e retorquiu:

— Uma primeira representação em Belleville... um grande drama inédito... isso pode ser cômico efetivamente... Quem é que representa nesse teatro?

— O que há de mais reles, e quanto mais reles, porém, melhor. Agrada-te a minha idéia?

— Bem, agrada-me á falta de coisa melhor. Jantaremos nos arrabaldes... Deitaremos pândega. Vai alugar uma frisa.

— Está dito, e eu tratarei de saber qual é a casa de pasto mais em voga nessas paragens.

— Tu és uma jóia.

— Levaremos o Príncipe conosco?

— Isso é que nunca! Julgaria que faltamos às leis de restrito decoro, teria uma cara impossível, o que me faria mal aos nervos, e me tiraria todo o prazer...

Neste momento ouviu-se a campainha do palácio.

Lazarine deitou os olhos para a esplêndida pêndula de Boule, colocada sobre uma almofada de couro de Cordova do século XVI. Uma visita à meia hora depois do meio dia, é loucura, exclamou ela.

— Deve ser o Príncipe, replicou Júlio Leroux.

— Que tédio!

— Na verdade, a hora é imprópria, mas julga-se um pouco teu noivo, o que é uma circunstância muito atenuante.

Apareceu um criado de quarto que disse inclinando-se.

— O senhor de Brada manda perguntar, se a senhora Marquesa lhe quer fazer a honra de o receber?

A senhora de La Tour-du-Roy hesitava.

— Conduza o Príncipe à sala, respondeu Júlio Leroux com viva-cidade, e peça-lhe que espere.

O criado saiu.

— Como tu dispõe de mim, papai, exclamou a jovem. Sem o meu consentimento, é forte!

— Recebe-o, tolinha, e não o desanimes!

— Na verdade, é enfadonho; mas um marido nunca é divertido. Acredita-me, não encontrarás coisa melhor. Vou comprar a nossa frisa.

E o melhor dos pais desapareceu com uma ligeireza de rapaz.

 

O PRÍNCIPE E A MARQUESA

Saindo da sala de jantar, a senhora de La Tour-du-Roy dirigiu-se ao gabinete de toilette, deu uma olhadela ao seu espelho, pôs em desordem estudada as belas trancas cor de cobre vermelho, sorriu á sua imagem graciosa, confessou sem rodeios que era formosa e irresistível, e dirigiu-se para a sala, onde a esperava o Príncipe Brada.

O Príncipe era um homem de quase trinta e cinco anos, muito moreno, de estatura elevada, rosto regular, e de indiscutível distinção.

Apesar destas vantagens exteriores, não agradava á primeira vista, a sua fisionomia altiva e glacial, o empertigamento habitual da sua atitude, afastavam dele as simpatias, apesar do olhar dos seus grandes olhos de um negro azulado, ser franco e leal.

Para o apreciar devidamente, era preciso saber que um coração amorável, acessível a todos os impulsos generosos, a todas as dedicações, a todos os entusiasmos, pulsava sob aquele exterior glacial.

Quando se animava, quando uma comoção viva e terna se apoderava dele, modificava completamente o seu aspecto, via-se fundir o gelo, e as pupilas um pouco veladas tornavam-se cintilantes.

No momento em que apresentamos aos nossos leitores este novo personagem, o seu rosto exprimia tristeza e inquietação.

Quando vi entrar Lazarine, uma viva vermelhidão, que apenas teve a duração de um relâmpago, coloriu-lhe as faces trigueiras.

Deu dois passos para Marquesa que lhe estendeu sorrindo uma mãozinha perfumada.

O príncipe beijou aquela mão com respeito e os lábios agitados.

— Meu querido Príncipe, exclamou a filha de Júlio Leroux, com a sua liberdade de linguagem costumada, recebo-o porque é o senhor, mas é preciso que tenha que me dizer coisas bem interessantes para se justificar uma visita a esta hora imprópria.

— Tenho que lhe dizer coisas bem sérias, senhora, replicou o senhor de Brada, bem sérias e bem interessantes, para mim pelo menos, porque da conferência que se dignar conceder-me neste momento, vai depender o meu futuro.

— O senhor quase me mete medo, murmurou Lazarine. O senhor tem um aspecto muito grave.

— Que há no mundo de mais grave que o destino de um homem da sociedade? Ora a senhora vai decidir o meu...

— Como?

— Permite que me explique com franqueza?

— Peço-lhe que o faça... adoro a franqueza... Sou tão franca que chego às vezes a ofender... Mas não vamos conversar em pé, segundo me parece, como os atores no teatro quando estão perto da rampa. Sente-se, querido Príncipe, e conte com a minha mais simpática atenção.

Dizendo o que precede, Lazarine parecia uma esfinge indecifrável.

 

O Príncipe achava-se em presença de uma mulher zombeteira ou convicta?

Era impossível adivinhar.

— Abusar da sua impaciência seria uma falta imperdoável... principiou o senhor de Brada; para não cometer essa falta, vou direito ao meu fim, e serei muito breve.

Após um momento de hesitação, prosseguiu:

— Há três meses que tive a honra de lhe ser apresentado, há três meses que a amo, que me permitiu dizer-lho, e que o sonho da minha vida consiste em dar-lhe o meu nome; tenho passado por todas as alternativas da esperança e da decepção, da alegria e do terror.

Lazarine quis falar.

O Príncipe, detendo-a com a voz e com o gesto, prosseguiu:

— Quando lhe perguntei se consentiria em ser princesa, e em confiar-me o cuidado da sua fortuna, respondeu-me que viúva de um marido que a tornara perfeitamente feliz, apesar de ser um velho, quando a senhora era apenas uma criança, queria refletir antes de novamente se comprometer, mas que consentiria em me receber todos os dias...

— Parece-me que não se pode desejar melhor, exclamou a Marquesa num tom insinuante.

— O favor era grande, e eu apreciei-o, replicou b Príncipe; mas essa porta que eu julgava aberta sobre o paraíso, conduziu-me...

— Ao purgatório?... interrompeu Lazarine.

— Ao inferno!...

— Oh! Querido Príncipe, o senhor exagera!...

— Não, minha senhora! O que tenho sofrido por sua causa é indizível!

— Mas o que lhe fiz eu? Sou então má sem o saber.

— Não é má, mas caprichosa! Se é coquetismo ou leviandade não sei: mas a senhora tortura sem piedade um coração que se lhe entregou sem reserva. Por momentos pude julgar que tinha dado um passo na sua afeição... Nessas ocasiões deixava-a ébrio de esperanças, e no dia seguinte a indiferença manifesta do seu acolhimento provava-me até à evidência que eu na véspera me tinha enganado. Há três dias pareciam feitas todas as suas reflexões... Julgava que tinha consentido na nossa união. Ontem recebeu-me como um estranho, e quando quis tornar a falar-lhe da minha imensa ternura, a expressão zombeteira do seu rosto gelou-me a palavra nos lábios... É cair de muito alto. Quedas tais são para despedaçar... Estou já sem forças, sem coragem, e é para lho dizer que venho aqui esta manhã.

O senhor de Brada calou-se.

Lazarine já não sorria.

Entre as suas sobrancelhas bem arqueadas desenhava-se uma ruga.

— Mas, finalmente, que quer? perguntou com voz febril.

— Uma solução... o termo de um martírio que já não posso suportar... peço-lhe que tome para comigo um compromisso formal, irrevogável... peço-lhe que fixe uma data para o nosso casamento, e me conceda oficialmente autorização para o anunciar oficialmente.

— E, murmurou a jovem, se eu recusar?...

— Sabendo que estou vencido, sem esperar, abandonarei o campo da batalha. Deixarei Paris e a França... Irei procurar o esquecimento numa dessas viagens, donde nunca mais se volta.

— E não me amará mais? prosseguiu Lazarine.

— Farei diligência para isso.

— E conseguirá?

O príncipe não pôde reprimir um movimento nervoso.

— Tenha alguma piedade! Não revolva o ferro na ferida! Responda-me antes, visto que se tornou em árbitro da minha sorte. Devo ficar? Devo partir?

A senhora de La Tour-du-Roy aproximou-se do seu interlocutor, e disse-lhe com uma voz meiga, com o mais irresistível dos seus olhares, e o mais provocante dos seus sorrisos:

— Seja razoável, quer? E conversaremos como dois bons amigos.

— Isso não é responder!

— A resposta virá depois... Peço-lhe cinco minutos de confiança e de atenção... Não é muito! não é de mais! Não lhe disse que antes de contrair uma segunda união, queria conhecer o homem destinado a ser meu senhor e árbitro?

— Disse-mo. E hoje conhece-me. Tem confiança em mim? — Decerto.

— E então?

— Então, querido Príncipe, estou pronta a fazer-lhe o sacrifício da minha liberdade.

— Ah! Não devo então retirar-me?

— Com certeza.

Uma alegria sobre-humana, cuja expressão só um pincel poderia produzir, iluminou o rosto do príncipe.

— Consente? exclamou. Dentro de quinze dias será minha mulher?

— Consinto em ser Princesa de Brada, respondeu Lazarine. Serei sua mulher... Sossegue o espírito, e deixe-me continuar... Pode mais de uma vez lhe tenho dito que antes de me casar por segunda vez, desejava conhecer a sorte do filho que me raptaram, e fiz-lhe compreender a razão... Possuidor de uma fortuna que lhe pertence quase toda, se ainda é vivo, suporto o fardo de uma responsabilidade muito pesada...

— Mas há seis anos faz tudo quanto lhe é humanamente possível para encontrar essa criança! interrompeu o príncipe. Uma responsabilidade qualquer que ela seja não pode impor viúva eterna! Que importa a fortuna de seu filho? Restituir-lha-á se ele existe, e não ficará por isso mais pobre; pois sou imensamente rico, e todos os meus milhões vão pertencer-lhe. Portanto, para retardar a minha felicidade não se baseie numa razão cuja importância nego.

A verdade, que Lazarine não queria revelar ao Príncipe, conhecemo-la nós.

Se a Marquesa de La Tour-du-Roy hesitava, é porque tinha medo de Marcel Laugier, o verdadeiro pai de seu filho.

No dia que Paris ouvisse o boato da próxima e principesca união, não interviria o ex-tenente à última hora para transtornar aquele casamento, como transtornara o de Lazarine com Heitor Bégourde, Príncipe de Castel-Vivant?

Se, pelo contrário, a criança já não existia, estava despedaçada a arma nas mãos de Marcel Laugier.

Se Marcel Laugier já não existia, a Marquesa podia respirar livremente.

Ora, Malpertuis tinha-se obrigado positivamente a informar dentro de um mês a senhora de La Tour-du-Roy.

Era pois preciso ganhar tempo. Lazarine pensando estas coisas calava-se.

— Por que se cala? continuou o senhor de Brada. Que significa essa nova hesitação? Devo concluir que não me ama?

— Amo-o, respondeu a jovem com uma voz de sereia, que fez correr ardente lava nas veias do Príncipe.

— Então pertença-me completamente. Pertença-me quanto antes.

— Bem depressa lhe pertencerei completamente.

— Quando?

— Peço-lhe ainda um mês.

— Um mês! Quer dizer, um século! Se soubesse quanto eu sofro!

— Bem sei, e suplico-lhe que acrescente um último sacrifício aos que já tem praticado.

— Mas por que?

— Por uma razão, honesta entre as que o são, que não desejo comunicar-lhe antes do nosso casamento.

— Finalmente, jura-me?...

— Juro-lhe cumprir a minha palavra, e pagar a minha dívida.

— Vamos, murmurou o Príncipe, é um mês de tortura.

— Não, volveu Lazarine sorrindo, são trinta dias de esperança. O senhor de Brada ficou ainda alguns minutos, depois retirou-se ébrio de amor.

Meu pai tinha razão, pensou a filha de Júlio Leroux que ficara só, não acharei melhor, está decidida a sorte! Dentro de um mês serei princesa!

 

César de Fossaro, como dissemos, deitara-se na véspera formando planos maquiavélicos.

Quando no outro dia acordou, reinava ainda certa confusão nos seus projetos; mas sabia por experiência que se desfaria o caos, e a luz não tardaria a brilhar.

O negócio mais madurecido, o negócio que lhe parecia possível, senão fácil, de realizar imediatamente, era o de Heitor de Castel-Vivant.

O principezinho fizera o seu último testamento em favor de Genoveva.

O Barão tinha disso a prova.

O que era preciso para que Genoveva herdasse?

A coisa mais simples do mundo, que o Príncipe morresse antes de ter tempo ou idéia de revogar as suas disposições supremas.

César de Fossaro resolvera a morte do Príncipe.

Era porém demasiado esperto para projetar um desses crimes ^vulgares que provocam a intervenção imediata da justiça, e não aproveitam a ninguém.

Tratava-se de suprimir o Heitor de tal maneira, que a sua morte prematura fosse aparentemente o resultado de circunstâncias muito naturais, não dando motivo a suspeitas.

Quais poderiam ser essas circunstâncias, e como fazê-las sugerir?

O Barão formulou este duplo problema bastante difícil de resolver, e fez logo tensão de não dar descanso ao espírito, enquanto não lhe descobrisse a solução.

Acabando de se vestir, passou aos aposentos de Malpertuis, com quem conversou largamente. Saiu, em seguida, a pé, foi almoçar ao café Riché, acendeu um charuto depois de almoçar, e começou pelo "boulevard" um passeio interminável.

Mas os passeios de Fossaro não se pareciam com os dos pacatos freqüentadores do "boulevard" que não têm nada de negro na consciência.

Enquanto olhava para as lojas, parecendo admirar os objetos de arte, e sorrindo para as mulheres bonitas, o barão dava voltas ao seu problema.

 

O ENSAIO

As reflexões do Barão César de Fossaro, raras vezes deixavam de dar um resultado útil sobre um ponto de vista dos seus interesses, de repente estremeceu.

O esperado clarão brilhava no seu espírito.

Acabava de pensar no famoso quiromante, mestre de esgrima, do boulevard Saint-Michel; na peça em ensaios no teatro de Belleville, e finalmente no passe de armas de que se diziam maravilhas, e no qual o comediante Fernando Volnay devia segundo seu professor mostrar-se incomparável.

Fossaro consultou o relógio.

Indicava duas horas e alguns minutos.

Alugou um trem, e disse ao cocheiro que o conduzisse ao teatro de Belleville, aonde chegava um pouco antes das três horas.

Quando se dirigia para o bilheteiro, parou ao ver apear-se do ônibus um personagem que nós já conhecemos.

— Bravo, disse César consigo. Eis justamente o homem que eu desejava encontrar.

E estendendo a mão para o recém-chegado, exclamou com ar de admiração:

— O senhor Barão por aqui?

— Por que não?

— E que demônio vem fazer aqui a Belleville?

— Tomar lugares para a representação de amanhã.

— Ah! Ah! Temos curiosidade!

— Confesso que sim. Tenho grandes desejos de ver esse passe de armas de que o senhor me falou com tanto entusiasmo.

— E ao qual vou dar o último ensaio, disse o professor rindo.

— Tem um ensaio?

— Tenho. Deveria ter sido esta manhã, mas um negócio sério e imprevisto obrigou-me a adiá-lo para as três horas... com grande mágoa minha, porque não gosto de fazer esperar os artistas.

— Deve ser muito interessante, disse César.

— Nunca viu um ensaio destes, senhor Barão?

— Nunca. Sou absolutamente estranho aos mistérios do teatro.

— Há um começo para tudo. Quer ver ensaiar o passe de armas?

— Não seria indiscrição?

— De forma alguma. Tenho o direito de levar quem muito bem quero.

— Aceito com entusiasmo e reconhecimento.

— Gosta da esgrima?

— Sou apaixonado por ela, e de alguma força nesse exercício.

— Ser-lhe-á fácil então convencer-se de que eu não exagerava, nada quando lhe falava da habilidade do meu galã.

— Fernando Volnay?

— Exatamente. Queira seguir-me. Vou fazer-lhe passar pela sala, é o caminho mais curto, e deixá-lo-ei na platéia.

Enquanto assim falava, o mestre de armas saltara para o peristilo do teatro, e voltando à esquerda metia,-se por um corredor sombrio que ia dar à porta de ferro regulamentar, que separa a sala do palco.

A entrada da platéia estava aberta de par em par.

O professor fez alto, e voltando-se para o barão que o seguira tateando a parede com as mãos estendidas para evitar um choque ou uma queda, disse-lhe:

— Eis as "fauteuils". Entre, e escolha um lugar à sua vontade, vou fazer dar o sinal para o ensaio.

César de Fossaro instalou-se, e o seu guia desapareceu.

Uma poeira esbranquiçada, impalpável, enchia a sala onde penetrava apenas uma meia claridade pelas portas abertas das primeiras e segundas galerias.

No palco reinava uma confusão impossível de descrever.

O mestre maquinista com o martelo na mão, cravava alguns pregos à direita e à esquerda, e dava as suas ordens.

Um dos diretores, em pé, junto do buraco do ponto, com as mãos nas algibeiras, e de costas para a sala, vigiava os trabalhos que se concluíam a toda a pressa.

Consultou o relógio à luz pálida de uma candeia, e exclamou com o tom rude de um capitão de navio comandando a tripulação.

— Vamos! Vamos! É aviar! Três horas menos cinco minutos!' Está a chegar para o ensaio do passe de armas, e bem sabem que ele não gosta de estar à espera! Limpem-me a cena, e quanto mais depressa melhor.

Acabava de aparecer o mestre de esgrima.

— Tem razão, como vê... exclamou avançando para o diretor que lhe apertou a mão e respondeu:

— O senhor tem a regularidade de um pêndula, querido mestre. Vai-se limpar o palco e principiaremos...

E dirigindo-se a um empregado que limpava o pó das poltronas góticas de madeira branca, e de pano pintado, que havia no quarto plano, disse-lhe:

— Augusto, tocará logo que estiver desembaraçada a cena.

— Sim, senhor.

— Colocar-se-á a vista para o ensaio, senhor? perguntou o maquinista-chefe aproximando-se.

— Será conveniente? perguntou o diretor ao ensaiador.

— Indispensável...

— Então, avie-se, Augusto... Vamos, senão vai haver atraso.

Desenvolveu-se uma grande atividade, e dali a pouco estava colocado um cenário que se devia representar o quarto ato dos Beijos Mortais.

Era uma paisagem coberta de arvoredo, por entre as quais se perdiam vários caminhos praticáveis.

Ao fundo grandes massas de rochedos pintados para um efeito de luar ligavam-se entre si por uma ponte de madeira, por baixo da qual gazes listrados de palhas brancas simulavam uma torrente impetuosa despenhando-se num abismo.

Chegava-se à borda do abismo por um declive bastante íngreme que partia do primeiro plano.

Na orla do abismo, havia um salgueiro preparado para um lance teatral.

Os longes da paisagem figuravam os cumes de um íngreme montanha coroada por um castelo feudal com as suas ameias, torres, torrinhas, guaritas e agulhas.

O mestre de armas e o diretor conversavam no primeiro andar.

César de Fossaro absolutamente invisível na sua "fauteuil", esperava.

— Pode-se tocar? perguntou o empregado.

— Preciso ainda de três minutos, respondeu o maquinista-chefe.

— Toque sempre, ordenou o diretor.

— Não, não, peço-lhe, replicou Augusto com vivacidade, tenho ainda algumas decorações a por. Se se toca, os artistas vão embaraçar-nos, e não poderemos fazer mais nada. Só se tocará quando estivermos prontos.

— Bem, bem, não se zangue, e avie-se. Concluída a tarefa, tocaram.

Os artistas esperavam.

Apareceram logo, como também os comparsas que deviam figurar no passe de armas.

O empregado trouxe um feixe de espadas ligeira e sòlidamente embotadas.

Atores e coristas distribuíram-nas entre si, e puseram-se às espadeiradas por todos os cantos, procurando recordar-se dos botes e das paradas que lhes ensinavam havia alguns dias.

— Fernando ainda aí não está? perguntou o diretor.

— Pronto, disse uma voz dos bastidores.

— Há duas horas que eu estou à espera na cervejaria. O galã apareceu, e veio apertar a mão ao professor.

O diretor continuou:

— Estamos em número?

— Não, senhor, respondeu o contra-regra, que contava a sua gente. O senhor Volanges ainda não chegou, e creio que não virá.

— Como, como! Não virá! exclamou Fernando Volnay. É com ele que eu combato todo o tempo, e é principalmente por ele que há ensaio.

— Ontem estava muito fatigado, não podia consigo. Disse-me que descansaria hoje para estar fresco e disposto para a primeira recita.

— Com mil raios! É demais! berrou Fernando batendo com o pé. Inábil como ele é, prejudicar-me-á os efeitos. É uma armadilha contra mim.

— Não julgue isso, exclamou o diretor. Volanges é um bom rapaz, incapaz de pregar uma peça a um companheiro. Amanhã se arranjará tudo. Ensaiemos sem ele.

— Como não tem adversário, eu o substituirei, disse o mestre.

— Não é a mesma coisa. Amanhã à noite não estará o senhor no trampolim!

O diretor manifestava a mais viva impaciência. Então começamos ou não, disse ele. A cena de Maria. Onde está a Maria?

— Presente, respondeu, avançando, uma rapariga alta, loira, assaz bonita, e muito pintada, com um grande vestido de cauda, um corpo couraça muito carregado de jóias, e exibindo nas orelhas diamantes de mil escudos.

— Laurier, tornou o diretor, leia em lugar de Volanges; o grande mestre vai colocar-se no seu número.

O ensaiador abriu o manuscrito do quarto ato, e instalou-se no primeiro plano, ao pé da luz, enquanto o professor, com uma espada na mão, tomava lugar no centro de um grupo de nove constas, tomando o lado do jardim do teatro.

Maria, a mulher dos diamantes, ocupou o meio da cena.

Fernando Volnay subiu por um caminho que conduzia à pequena ponte, e desapareceu por detrás de um rochedo de tela pintada.

— Vamos, ordenou o diretor. Pondo a luneta e lendo o papel -de Volanges ausente, o ensaiador começou num tom monótono.

"— Assim recusa dizer-nos, senhora, qual foi o homem que se introduziu esta noite no parque do castelo?"

A mulher dos diamantes replicou com uma voz baixa, ligeiramente roufenha:

"— Para me interrogar assim, deve desprezar-me bastante!!! As suas perguntas são injúrias! Responder seria indigno de mim! Calar-me-ei!"

O ensaiador continuou:

"— Responder-me-á, senhora, ou sem piedade, ou sem misericórdia, matá-la-ei!"

"— Fira-me, pois, se se atreve!"

Fernando Volnay ergueu-se sobre a ponte.

— Mas, valha-os Deus! exclamou, não falem com a boca dentro de um saco! Têm uma maneira de dizer as coisas que me tira o ânimo.

— Nunca está contente este sujeitinho! exclamou Maria desdenhosamente. Não tenho precisão de apanhar uma intenção de voz pelos seus belos olhos.

Ia principiar uma discussão que não podia deixar de se tornar tempestuosa.

O diretor pôs-lhe termo com estas palavras imperiosas:

— Maria, dê-me a réplica como ma dará amanhã. Laurier, tire isto para preparar a entrada de Fernando.

A loura pintada berrou desta vez com toda a força:

"— Fira-me, pois, se se atreve!"

E o ensaiador pondo-se no seu diapasão, declamou:

"— Sim, ferir-te-ei, mulher indigna! Teu sangue lavará a nódoa lançada na minha honra! Sem respeito pela fé jurada, atraiçoaste-me! Covardemente instalaste o adultério no lar conjugai, e quererias hoje salvar o teu cúmplice! De joelhos, miserável! De joelhos, porque vais morrer!"

Fernando Volnay apareceu então no cume de uma rocha, brandindo a espada nua:

"— Ela não morrerá! exclamou, tu, caluniador, tu é que serás castigado!"

De um salto achou-se em meio da cena, e colocou-se entre a loura atriz e o professor representando o personagem cujo papel se lia:

"— A mim! tornou o ensaiador pondo outra vez a luneta. Este homem e esta mulher não devem sair vivos dos rochedos negros!"

Todos os coristas desembainharam as espadas que pendiam dos cinturões afivelados sobre o fato usual, paletós ou blusas, o que produzia um efeito de um cômico irresistível, e deram um passo à frente.

Fernando erguia-se como uma trincheira entre eles e a mulher dos diamantes.

 

UM HOMICIDA EM PERSPECTIVA

O mestre de esgrima arremeteu para Fernando Volnay, o qual,, empurrando Maria para os bastidores para não embaraçar a cena, exclamou com uma voz vibrante:

"— A mim, companheiros do facho!"

A esse apelo, nove comparsas se reuniram em cena, desembocando de todos os lados, e vieram tomar posição em frente dos coristas, á testa dos quais se achava o contra-regra.

"— Avante!" berrou o ensaiador.

Começou então uma refrega geral, numa desordem habilmente ensaiada.

De repente cada adversário, cessando de brandir o ferro, pôs-se em guarda de espada em punho; depois, sem proferir uma só palavra, e com um movimento circulatório muito original dos combatentes, de costas para o público, vieram postar-se no primeiro plano, enquanto que por um movimento semelhante, mas em sentido inverso, os 'outros dez lhes faziam frente.

Os vinte personagens imóveis observaram-se durante um instante.

O diretor aplaudia com os pés e com as mãos, e batia com a sua bengala no chão.

— Muito bem! Muito bem! exclamou, admiravelmente imaginado! Magnífico! de um efeito esplêndido! Há de ser o salvaterio da peça!

Começou então o passe de armas, grupo por grupo, um a um, dois a dois.

Muitos homens ficaram sucessivamente fora do combate e caíram; outros desapareceram nos bastidores, continuando a espadeirar.

O professor de esgrima e Fernando Volnay, continuaram numa luta encarniçada.

Os constas fizeram semblante de vir em auxílio do personagem, no qual se encarnava o ator.

"— Para trás, companheiros! disse Fernando, deixem-me só contra ele! É no abismo das Rochas Negras que o quero precipitar".

Imediatamente os comparsas baixaram as espadas, e ficaram simples espectadores do combate mais comovente a que se podia assistir.

Deixou então aquilo de ser um duelo ensaiado entre o mestre e o discípulo.

Foi um brilhante assalto de armas entre dois atiradores de mérito rivais em habilidade e talento.

Fernando Volnay combatia então com uma graça incomparável, e ao mesmo tempo com uma indomável energia.

Tocou duas vezes o mestre.

César de Fossaro, sempre sentado no canto sombrio da "fauteuil" onde ninguém suspeitava da sua presença, esperara esta frase do assalto com impaciência.

Estava com uma prodigiosa atenção, e avaliava os botes como conhecedor.

— Efetivamente, dizia, este comediante é de uma bonita força! O que ele faz não é do teatro, é esgrima a valer!

O duelo continuava.

Segundo as exigências da "mise-en-cene", Fernando Volnay devia constranger o adversário a recuar diante dele, e rompendo sempre, a subir o caminho que conduzia ao salgueiro sobrejacente ao abismo.

As coisas passaram-se assim com prodígios de habilidade de parte a parte.

O mestre de armas, ou por outra, o personagem que ele representava, perseguido até ao tronco do salgueiro, e ferido em cheio no peito, largava a espada, e agarrava-se aos ramos, que despedaçando-se debaixo das suas mãos, deixavam-no deslizar até o abismo.

Esta "mise-en-cene", extremamente notável, foi executada a preceito.

Comparsas e maquinistas, muito entusiasmados, aplaudiam com todas as forças.

— Maravilhoso! Maravilhoso! berrava o diretor, há de ser um acontecimento.

— Sim, mas eu teria mais certeza disso, se amanhã me visse com o mesmo adversário de hoje, observou Fernando Volnay.

César esperava-o no corredor, à porta das "fauteuils", estendeu-lhe a mão exclamando:

— Muito bem!

— Na verdade, senhor Barão, está contente?

— Estou maravilhado! Devo dar ao mestre e ao discípulo os meus parabéns mais sinceros. Os senhores fizeram-me presenciar um assalto esplêndido, e assim como o seu diretor, vaticino-lhe um êxito brilhante ao senhor Fernando Volnay. Fernando inclinou-se.

— Vou alugar um camarote... tornou o barão. Fazem-me a honra, meus senhores, de me esperar três minutos, e de aceitar um copo de Xerez ou de Scotch Ale?

— Sinto muito não me ser possível, disse o professor. Estão à minha espera...

— Mas o senhor Volnay está livre?

— Sim, senhor, e aceito de muito boa vontade.

— Ainda bem.

 

Enquanto se trocavam estas palavras no corredor escuro, tinham chegado ao peristilo do teatro.

César de Fossaro dirigiu,-se ao bilheteiro.

— Tem uma frisa de boca disponível para amanhã? perguntou à vendedora dos bilhetes.

— Uma e de cinco lugares, sim, senhor. Só me restam duas, uma da direita, e outra da esquerda.

— Qual prefere?

— Para mim é absolutamente indiferente.

— Então vou dar-lhe o bilhete da frisa da direita.

O barão pagou, meteu o bilhete na carteira, e voltou para junto de Fernando Volnay.

— Guie-me, senhor, disse ele. Onde é que seremos mais bem servidos?

— Na cervejaria do teatro. Aí o vou conduzir.

Nos degraus que conduziam ao peristilo, o Barão de Fossaro parou muito surpreendido em frente de um personagem que subia; e que soltou esta exclamação:

— O Barão aqui?

— Em pessoa, querido senhor Leroux. — Que demônio faz por estas paragens?

— O mesmo que o senhor vem fazer...

— Venho arranjar um camarote...

— E eu acabo de arranjar um.

— Talvez o último?

— Não, o penúltimo...

— Ah! Ah! então não deixa de ser tempo.

— As meninas Tata ou Nana, têm por acaso a fantasia de ver os Beijos Mortais?

— Nem Tata, nem Nana, Barão.

— Então quem? se não lhe parece indiscreta a minha pergunta...

— De modo algum! A curiosa é minha filha... César fez um gesto de surpresa.

— A senhora Marquesa de La Tour-du-Roy! exclamou.

— Sim, que quer? Lazarine é fantasista, como sabe... Teve o capricho de assistir a uma primeira representação em Belleville...

— Capricho bem inocente, e de que a senhora Marquesa não se arrependerá, porque o espetáculo de amanhã não há de ser falto de interesse.

— Tanto melhor! Volta já para Paris?

— Ainda não.

— Então, até amanhã, meu querido Fossaro...

— Até amanhã, e queira ser junto de sua filha o intérprete dos meus respeitos.

Fernando Volnay dizia in petto:

— A Marquesa de La Tour-du-Roy... o Barão de Fossaro. Todo o arrabalde de Saint-Germain estará amanhã em Belleville! Isto é que me vai dar alguma importância!!!

Da sua parte, César pensava:

— Lazarine aqui amanhã! Ah! Como tinha razão de contar com o imprevisto!

E acrescentou olhando dissimuladamente para Fernando Volnay:

— Agora é preciso ter esse sujeito seguro... Não há de ser difícil.

— Para este lado, senhor Barão, disse o comediante designando a porta da cervejaria.

Entraram.

Havia grande afluência.

Comerciantes do bairro, artistas de ambos os sexos ocupavam mesas por grupos de dois, três e quatro, jogando aqui a bisca, além a imperial, uns aos centos, outros ao gamão.

Ao aspecto desta multidão heteróclita, Fossaro teve um momento de hesitação.

Fernando reparou nisso.

Observava.

— Ao fundo da cervejaria há uma pequena sala, onde estaremos sós e longe do ruído, senhor Barão, exclamou ele.

E introduziu César numa espécie de gabinete separado do estabelecimento por uma vidraça.

O Barão pediu uma garrafa de Scotch Ale, encheu dois copos, e disse levando o seu aos lábios:

— Ao seu êxito, senhor Volnay... e receba novamente as minhas felicitações... O senhor aproveitou admiravelmente as lições do mestre... Quem o vir em cena, há de julgar que tem o hábito da esgrima.

— Não se enganam; tenho dois anos de sala de armas. — Então acho explicação à sua força...

— É real... estou pronto a bater-me seja com quem for.

— Já teve algum duelo?

— Sim, senhor Barão, duas vezes, e tive até a fortuna de ferir os meus dois adversários.

— Rivais em amor, naturalmente?

— Sim, senhor Barão... questões de mulheres.

— Eram da sua força esses rivais?

— Talvez mais fortes, porque isto já foi há um ano, e eu tenho feito progressos enormes, mas ele entusiasmavam-se...

— E o senhor tem tanto sangue frio na cena como no campo?

— Mais...

— Como se explica isso?

— De maneira muito simples... Na cena preocupo-me com o meu papel; com o público, procuro o efeito; enquanto que no campo, só penso em preservar a pele, e furar a do sujeito que está diante de mim.

— Então está muito seguro dos seus golpes?

— Quase.

— Ô demônio! exclamou César rindo, farei diligência para não ter questões com o senhor.

— Se o motivo do encontro fosse sério, replicou Fernando Volnay rindo também, não o pouparia...

— Está há muito tempo no teatro de Belleville?

— Desde que voltei da província, há uns dois meses.

— Nunca procurou escriturar-se em Paris?

— Já, mas sem resultado... Hoje é muito difícil conseguir uma grande posição, quando se tem a minha ocupação... O drama está um pouco fora de moda, a opereta está no galarim. Não perco porém a esperança... Os diretores a quem me tenho dirigido têm-me respondido: — "Trate de fazer uma criação... represente um belo papel... prove o seu talento... Iremos ouvi-lo..." O papel já o tenho... é um começo...

— Então a representação de amanhã vai decidir seu futuro... As suas brilhantes qualidades não podem deixar de impressionar aos diretores.

— Veremos, mas virão? Não é fácil incomodar estes potentados.

— O senhor precisava de protetores...

— São preciosos no teatro como em tudo... mais ainda que em muitas outras coisas... e eu não tenho proteções.

— O que? Nem o mínimo?

— Infelizmente, não.

— Nem por parte dos homens, nem por parte das mulheres?

A esta pergunta feita no tom mais ingênuo, Fernando Volnay corou involuntariamente.

— Ora adeus! continuou o Barão, estamos entre homens... Pode-se dizer tudo...

O senhor conhece tão bem como eu o poder das saias! Resistir à mulher verdadeiramente mulher, é impossível... Concede-se a uma protetora, o que se recusa a um protetor...

— Oh! senhor Barão, bem sei! Mas nem de Um lado, nem do outro, tenho probabilidades de ser apoiado.

— O senhor está-me causando muita admiração.

— Por que?

— Ora essa! Rapaz, bem feito, elegante, e artista de talento ainda por cima, não tem protetora influente? Queria ver-lhe uma meia dúzia...

— Infelizmente, senhor Barão, não é no teatro de Belleville que as pessoas influentes de que fala vêm procurar protegidos!

— Em tese geral é verdade, mas basta às vezes um acaso, um encontro fortuito...

— Ah! se certa dama que eu conheço muito bem, se interesse pelo senhor, dentro de um mês estaria em Paris, num grande teatro, fazendo os principais papéis... e escreveriam até papéis expressamente para o senhor.

Fernando Volnay era todo ouvidos.

 

O MEFISTÓFELES

O senhor de Fossaro puxou da charuteira, e disse apresentando-a aberta ao comediante:

— Escolha um destes plantadores; não são maus...

Fernando Volnay aceitou, manifestou a sua gratidão, acendeu o plantador, depois, instigado por uma curiosidade muito viva, tornou:

— Seria indiscrição, senhor Barão, perguntar-lhe, de que pessoa me fazia a honra de falar?

— Indiscrição?... Nem por sombras! retorquiu César. Essa pessoa é uma grande dama, uma dama de categoria muito elevada, que disputa de uma fortuna muito considerável, de uma liberdade sem limites, e que seria para o senhor um ponto de apoio sólido, uma alavanca muito poderosa, se tivesse o feliz acaso de lhe inspirar algum interesse. Fernando Volnay soltou um suspiro.

— Não terei esse feliz acaso, murmurou.

— Por que?

— Porque é muito provável que essa protetora esclarecida das artes e dos artistas não me veja nunca.

— Vê-lo-á o mais tardar amanhã à noite.

— Aqui?

— Aqui.

— Será a pessoa cujo nome ouvi proferir há pouco no local da venda dos bilhetes?

— Por seu pai. É a Marquesa de La Tour-du-Roy. Os olhos de Fernando cintilaram.

— E julga, senhor Barão, que uma marquesa, uma verdadeira marquesa, se poderia interessar por mim?

— Por que não, querido senhor? respondeu Fossaro, tinham-me afirmado que os comediantes em geral pecavam por excesso de amor próprio, e eu acho-o na verdade muito modesto. O senhor tem bastante talento, e é sofrivelmente bonito, elegante, distinto, para que uma grande dama de interesse por si, e lhe prove o seu interesse de mais de um modo. Por ser marquesa, uma mulher não está menos sujeita, e todas têm o mesmo coração, esse coração (como dizia Murger), muda de lugar às mesmas horas. A Marquesa de La Tour-du-Roy é essencialmente mulher. Disse-lhe que ela era livre, a sua liberdade vem da sua viuvez. Sei que ela se apaixona facilmente. O homem que encontrasse meio de lhe agradar, tornar-se-ia seu senhor. Suportaria com a melhor boa vontade o domínio de um amante que habilmente lhe lisonjeasse as vaidades, as grandezas, e os instintos.

Fernando fez um gesto de surpresa.

— Isto causa-lhe admiração? acrescentou César sorrindo. Talvez imaginasse que as grandes damas eram impecáveis?

— Sabia o contrário, senhor Barão.

— Por experiência?

— Não, e tenho bastante pena, porque a tal pessoa ê bem bonita. Não é uma marquesa como a senhora de La Tour-du-Roy, é uma condessa.

Foi agora o Barão quem pôs o ouvido à escuta. Lembrou-se imediatamente de Jacques Sureau, o primo de Fernando, o da carta anônima ao Conde de Vergis.

— Uma condessa! repetiu ele. Visto que a conhece, não poderia ter feito dela uma protetora?

— Impossível. Não me conhece, e demais, só teria por um comediante uma desdenhosa indiferença; é uma mulher muito nova casada com um velho, e que não podendo amar o marido, ama naturalmente outro.

César já não tinha dúvida alguma.

 

Era efetivamente da Condessa Maria de Vergis que Fernando falava.

— Surpreendeu-lhe os amores, perguntou, tem a prova da sua infidelidade?

— Eu não.

— Então quem?

— Um dos meus parentes. Um pobre doido, tolo, e perdidamente apaixonado por essa jovem, junto da qual ocupa uma posição subalterna. Morre de amores por ela. Sabe que ela é culpada, o que lhe dá, na minha opinião, uma grande vantagem, e não se atreve a aproveitar essa vantagem, para arriscar uma confissão.

— É um tolo!

— Um doido, sim, mas não um tolo! Impõe muito uma mulher da sociedade, e eu, Fernando de Volnay, chego a perguntar a mim mesmo se me atreveria a fazer a corte à senhora de La Tour-du-Roy...

— Oh! Quanto a isso, não tenha a menor dúvida. A Marquesa é de uma índole muito afável e animadora, embora ache as pessoas pouco simpáticas.

— E eu ser-lhe-ei simpático?

— Não sei, mas por que não? Parece-me que o senhor é homem para agradar à primeira vista.

— O senhor é muito indulgente, senhor Barão,..

— Sou justo e tenho bom olho, ai está.

— Ora, supondo que ela me ache a seu gosto, existe algum meio de me aproximar dela?

— Existe de certo...

— Que meio?

— Não sei, e não posso dar-lhe nenhum conselho útil; tudo depende do acaso... Espreite o inesperado, espie o imprevisto, e se a ocasião passar ao seu alcance, apresse-se a deitar-lhe a mão...

— Se puder...

— A senhora de La Tour-du-Roy há de amanhã aparecer neste teatro para assistir à primeira representação de uma peça em que o senhor vai revelar-se. Esta circunstância põe no seu jogo bem bons trunfos... Saiba servir-se deles, e ganhe a partida... Se tem de amar a marquesa, ou principia amanhã, ou nunca a domina.

Fernando que se tornara pensativo, ficou calado por um momento; depois continuou:

— É bonita a tal marquesa?

— Beleza estranha, capitosa, inolvidável, beleza que se impõe, assombra e perturba...

— É moça?

— Tem vinte e cinco ou vinte e seis anos.

— Disse-me que era viúva?

— Sim, de um marido velho, que lhe deixou não sei quantos milhões.

— Deve pensar em casar novamente...

— Pensa talvez, mas não fala nisso. Em todo o caso, se se trata de algum casamento, é de Um modo vago, e nada está resolvido... Um amor, ou ainda um capricho, que repentinamente sobreviesse, transtornaria tudo. Trate de inspirar à Marquesa esse amor, ou esse capricho.

— Onde é que a senhora de La Tour-du-Roy estará amanhã? perguntou Fernando Volnay a César, que acabava de se levantar para se retirar.

— Há de ocupar uma frisa de boca. Eu estarei noutra. Há de reconhecê-la sem dificuldade, pela assombrosa beleza, e pelos cabelos cor de fogo...

— Então até amanhã, senhor Barão.

— Até amanhã. Poderia em qualquer entreato, ir vê-lo ao camarim, ou aos bastidores?

— De certo, e far-me-á a honra de dizer se está satisfeito comigo.

— Aviso-o de que serei severo.

— Tratarei de merecer alguma indulgência...

— Deixo-o... Não sonhe muito com a Marquesa de La Tour-du-Roy.

— É impossível prometê-lo, replicou o comediante sorrindo. O que o senhor me disse, preocupa-me muito. Estou quase apaixonado por essa mulher que não conheço.

— Então, fortuna nos seus amores.

— Muito obrigado, senhor Barão.

Os dois deram um aperto de mão, e Fossaro saiu da cervejaria.

O comediante que ficara só, mandou vir um absinto, e pôs-se a refletir na singular conversa que acabara de ter.

Entrevia, como através de uma gaze, a miragem brilhante que por um capricho de mulher se poderia tornar numa realidade embriagadora.

A Marquesa de La Tour-du-Roy, aquela milionária caprichosa, de perturbadora formosura, exercia no seu espírito uma irresistível fascinação.

Teria sem hesitação dado um ano de vida para se transportar ao dia seguinte, e ver aquela mulher que se ia tornar talvez o degrau da sua fortuna.

Fernando nem se dava ao trabalho de perguntar a si próprio, porque lhe indicara o barão a Marquesa, e não outra mulher.

Era tão completa a sua falta de senso moral, que não se admirava de que um homem da sociedade, ou considerado como tal, admitisse sem desgosto a probabilidade de vergonhosos amores, em que a mulher franqueia a bolsa e o coração ao primeiro ator reles, sem prejuízos.

A leviandade do seu caráter não lhe permitiu sequer supor que o barão tivera um fim.

As suas reflexões foram interrompidas por um novo personagem transpondo o limiar da cervejaria.

Fernando levantou-se para ir ao seu encontro.

Era Jacques Sureau.

— Vens jantar comigo? perguntou o comediante.

— Venho. Hoje há visitas no palácio, e, por conseguinte, estou livre. Obtive a certeza de que o estaria também à noite, e venho buscar o lugar que te pedi por intermédio de Lucilia.

— Ah! sim, encontraste-a esta noite na senda del-rei! como se diz nos Beijos Mortais! Andavas a vadiar?

— Eu te contarei isso... Tens o meu lugar?

— Já se vê.

— Jantamos hoje aqui?

— Não. Estou farto até aos olhos da sopa de cebola e das eternas hortaliças de conserva. Iremos ao Elyseu.

— Bem, então a caminho.

Fernando e Jacques Sureau deixaram a 'cervejaria, tomaram a rua Julien Lacroix, e chegaram ao Elyseu Menilmontant.

O comediante era conhecido no estabelecimento, aonde vinha de tempos a tempos, quando estava em maré de dinheiro.

Puseram um gabinete à sua disposição, e instalou em frente do primo.

— Sabes que já ninguém te vê, disse Fernando. Aposto que se não encontrasses Lucilia a noite passada, não teria hoje a tua visita?

— Enganas-te, replicou Jacques Sureau. Sempre viria. Tinha precisão de conversar contigo...

— A respeito do mesmo assunto?

— Sim...

— É preciso escrever outra vez?

— Oh! isso não.

— Ainda bem. Confesso-te que o que me repugnou a primeira vez, ainda me repugnaria hoje mais. Cometemos ambos uma má ação sem proveito; tu com a idéia de destruir a felicidade de um homem a quem, não tens nada a exprobar, eu, prestando-me ao teu desejo.

— Tens razão... e lamento o que fizemos...

— Esperas ser amado?

— Tenho tanta esperança disso como tinha há um mês...

— Então, és doido em embirrares numa paixão que não pode dar nenhum resultado...

— Bem sei que sou doido!... murmurou Jacques Sureau com uma voz abafada; mas é culpa minha se amo e não posso cessar de amar? A febre seca-me o sangue, escalda-me as carnes... e o amor embrutece-me... Penso naquela mulher, quero tê-la, ou farei uma desgraça...

— Matá-la-ás?

—— Não sei... Mas com certeza que matarei o amante...

— Oh! Não digas tolices! Em primeiro lugar, tens a certeza de que ela tenha um amante? Há um mês já que te fiz a mesma pergunta... Não pudeste responder-me de uma maneira absolutamente afirmativa... Duvidavas... julgavas... supunhas... e na realidade não tinhas uma prova...

Querias, não podendo forçá-la a amar-te, impedir que ela amasse outrem. Incutiste a suspeita no espírito do marido... Que te rendeu isto? Nada... Sofres mais que nunca, perdes a cabeça, e vês o que não existe.

— Desta vez tenho a certeza...

— A certeza de que a Condessa de Vergis engana o marido?

— Sim.

— Tens provas disso?

— Tenho.

— Conheces o amante?

— Não.

— Então em que demônio assenta a tua pretendida certeza? Explica-te. Tudo isso é escuro como breu... Não percebo nada...

— Escuta.

— Põe por aí tudo; sou todo ouvidos.

 

Jacques Sureau contou por miúdo, ao primo, o que se passara.

Como vira a Condessa sair à meia noite do jardim do palácio, como a seguira até à rua Bellechasse, onde desaparecera, e como tinha, por engano, dado caça a Lucília.

Fernando, em resultado do seu gênero de vida e das suas predisposições morais, não tomava o amor a sério.

Não pôde deixar de rir da derrota do prima.

— Havias de ficar com uma bonita cara, quando reconheceu Lucilia julgando que tinhas a Condessa! exclamou Fernando.

 

CONTINUAÇÃO

Jacques Sureau franziu as negras sobrancelhas que formavam, aproximando-se, a ferradura legendária dos Redgauntel, e davam ao seu rosto uma expressão sinistra.

Exclamou com voz sombria:

— Comediante sem alma, bem vê que não amas nada no mundo! Sofres como Um condenado, e ris-te.

— Não riu de ti... replicou Fernando. Mas que queres, meu caro, a situação é esquisita! Esse logro noturno teria um grande êxito no teatro. É puro "vaudeville".

— Vaudeville que se poderia tornar num drama.

— Esperemos que não. E não pudesse encontrar a casa onde a Condessa entrou?

O ex-escudeiro abanou a cabeça e respondeu:

— A senhora de Vergis deve ter voltado para o palácio, enquanto eu perseguia Lucília... e mais nada sei senão que tem um amante... Duvidava ainda... e agora tenho a certeza... Não tardará que conheça esse amante... Ficarei tendo a Condessa na minha dependência, e obrigá-la-ei a ouvir-me quando lhe disser que a amo.

— E se ela se revoltar, se te expulsar?

— Não se atreverá...

— Mas supõe que se atreva.

— Então, repito-te, matarei o amante!

— Guilhotinar-te-ão.

— Ora, e depois? Prefiro morrer, a viver como vivo, com um braseiro no coração, e chumbo fundido nas veias...

— "Verme da terra apaixonado por uma estrelai" declamou Fernando Volnay; vejo-te prestes a fazer bem boas tolices, e receio muito que a tua loucura não acarrete a desgraça sobre ti.

— Não posso ser mais desgraçado do que sou, portanto nada tenho a recear.

— A intensidade desse amor assusta-me... É uma paixão de fera..

— É, confirmou Jacques Sureau com simplicidade.

— Nessas condições foi uma estupidez escrever ao conde uma carta pondo de aviso... Diligenciei quanto pude tirar-te da cabeça essa tolice, mas o teu furor cioso resistiu a tudo. Supões que a Condessa tivesse conhecimento da carta pelo marido?

— É impossível que assim sucedesse.

— Por que?

— A senhora de Vergis, se soubesse que o Conde estava de prevenção, não se atreveria a sair do palácio naquela noite.

Fernando encolheu os ombros.

— Ah! Pobre primo, como és ingênuo! exclamou. Julgava-te com mais cabeça... Não sabes que a audácia das mulheres aumenta com o perigo? A senhora de Vergis não andou a vadiar na noite passada, senão para avisar o amante de que era preciso cessar momentaneamente todas as relações. Conheço os fios da malícia feminina, e afirmo-te que são diabólicos!

Jacques Sureau tinha um copo na mão.

Uma contração repentina dos dedos fez o copo em pedaços; o vinho e os pedaços do vidro caíram em cima da toalha.

O ex-saltimbanco limpou a mão, de cujos talhos gotejavam sangue, e murmurou com voz sibilante:

— Quebrarei esses fios, como acabo de quebrar este copo! Quando tiver a prova do que preciso, impor-me-ei, e se a Condessa se revoltar, tanto pior para ela. Há pouco, disse-te que talvez hesitasse... Agora não, não hesitarei! Viva para mim, ou morta.

 

Fernando Volnay olhou para o primo com inquietação.

Aquela idéia fixa de violência e de assassinato, principiava a causar-lhe um verdadeiro medo, tanto mais que a fisionomia feroz e ameaçadora de Jacques Sureau confirmava as suas palavras.

Durante a conversa que acabamos ,de apresentar aos leitores, as garrafas tinham-se sucedido.

As faces pálidas do ex-saltimbanco faziam-se rubras.

Fernando Volnay compreendeu que novas libações lhe excitavam cada vez mais o cérebro desequilibrado do Ruy Blas da avenida de Villars.

Para por termo àquela exaltação sempre crescente, atirou o guardanapo para cima da mesa, e disse levantando-se:

— Perdoa-me, meu querido Jacques, sou obrigado a deixar-te. -Já!

— Já. Não contando hoje com a tua visita, aceitei muitos "rendez-vous", e preciso, além disso, falar com o guarda-roupa do teatro, a quem tenho de fazer importantes recomendações.

— Então, dá-me o meu bilhete. Amanhã virei te aplaudir...

— Aqui o tens. Conto contigo, e daqui até lá, tem juízo.

— Farei por isso.

Jacques pagou a conta, apesar da fingida resistência de Fernando,. e ambos desceram até ao boulevard Ménilmontant, onde se separaram.

 

Como dissemos, Estanislau Picolet entregara ao guarda-portão do palácio do príncipe Totor um bilhete, em que lhe anunciava «ma boa nova.

Em seguida voltou para o escritório de Malpertuis, cujo serviço tinha todo o cuidado de não despertar, apesar das investigações clandestinas de que se encarregara.

Como Heitor estivesse em casa, a carta de Picolet foi-lhe imediatamente trazida.

Apressou-se a rasgar o envelope, e estas duas palavras: Boa notícia chamaram-lhe um sorriso aos lábios, e fizeram-lhe bater o coração na razão de cem pulsações por minuto.

Sta-Pi que anunciava uma boa notícia, é que de certo tinha encontrado vestígios de Lucilia, a adorável criança loura entrevista no teatro da Porta de Saint-Martin.

O principezinho, louco de alegria, não podia sossegar.

Às quatro e meia transpôs o limiar do gabinete, onde figurava a senhora Palmira, a ex-bonita criatura cada vez mais absorta na leitura comovente de um romance do Petit-Journal.

Sta-Pi não chegara ainda.

Para matar o tempo, Heitor fez-se servir um absinto, e tomou sobre si a tarefa de o preparar segundo todas as regras.

Quando se abriu a porta, davam cinco horas.

Picolet apareceu, e de chapéu na mão, com o rosto radiante, veio sentar-se defronte do Príncipe.

— As suas três linhas fizeram-me febre, porque me permitiam tudo esperar... disse o Príncipe com vivacidade, Achou o rasto?

— Parece-me, senhor.

Heitor fez-se pálido e balbuciou:

— Não tem então a certeza disso?

— Não sei ainda o nome da rua, e o número da casa onde ela reside, mas posso prometer-lhe que amanhã terá o prazer de ver a lourinha com os seus próprios olhos.

As pupilas do príncipe brilharam, e as suas faces tornaram a fazer-se rubras.

— Vê-la-ei? repetiu.

— Sim, senhor.

— Onde?

— No teatro de Belleville. na representação de um grande drama inédito: Os Beijos Mortais.

— Explique-se, senhor Sta-Pi.

— A menina Lucilia é doida pelo teatro, e graças à galanteria de um autor da província, um belo rapaz por sinal, que me parece ter por ela um grande fraco, assistirá muito bem instalada numa "fauteuil", a essa pequena festa da inteligência, como dizem os jornalistas da escola velha.

— Sabe isso, e não sabe a sua morada! murmurou o príncipe estupefato.

— Compreendo que isto lhe cause admiração, e contudo a coisa é muito simples, replicou Picolet rindo. Aqui está como se passaram as coisas.

Contou brevemente o que se passara no cubículo da venda dos bilhetes, e acrescentou terminando:

— Estarei lá amanhã, não perderei de vista a menina Lucilia, à saída segui-la-ei até a casa, e ficaremos assim sabendo onde ela mora.

— Perfeitamente! disse Heitor entusiasmado; a combinação é de um chic monumental! Mas amanhã como é que eu verei Lucilia? É preciso correr ao teatro e alugar-me um camarote...

— É escusado... Aqui está uma frisa. O senhor dará aí menos nas vistas que na primeira ordem.

— Lembrou-se disso? O senhor então lembra-se de tudo!

— O Príncipe bem vê.

— Ah! bravo ,senhor Picolet! Bravo! Bravíssimo! Que arreganho! Como tinha razão de contar consigo! A sua inteligência é de arromba! O seu zelo monumental! As suas combinações são de se lhes tirar o chapéu! Amanhã, bem oculto na frisa, onde estarei só, poderei olhar com o óculo para Lucilia do princípio ao fim do espetáculo, e regalar os olhos à minha vontade.

— Sem contar que se a lourinha sair no intervalo, o que é provável, talvez tenha maneira de lhe segredar uma palavra ou duas.

— Senhor Sta-Pi, proclamo-o o mais fino dos sabujos, o mais engenhoso dos despertadores, o desninhador incomparável... e peço--lhe que aceite esta bagatela como prova da minha alegria.

E enquanto assim falava, metia na mão do policia fingido uma nota de mil francos.

O contato do papel do banco, macio como seda, fez correr um calafrio de alegria pela epiderme apergaminhada de Picolet.

— Oh! meu senhor... balbuciou.

— Gratificação, senhor Sta-Pi, simples gratificação...

— A generosidade do Príncipe enche-me de favores a mais não ser!

Ainda não chegou ao fim! Mas, acrescentou o Príncipe, tornando--se para a circunstância o Heitor Bégourde do tempo passado, há alguma coisa que me intriga.

— O que?

— No leite que bebo há uma mosca.

— Que mosca?

— O senhor falou de um ator do teatro de Belleville... um comediante, bonito rapaz...

— O chamado Fernando Volnay, sim, senhor.

— E acrescentou que lhe parecia que ele tinha um grande fraco por Lucilia...

— Com certeza, mas é coisa sem importância... o fraco não é partilhado.

— Como sabe isso?

— Da conversa que ouvi, resulta que o coração da jovem não propende completamente para o lado do belo ator.

Heitor respirou.

— O que faz esse anjo de cabelos de ouro? perguntou.

— O anjo dos cabelos de ouro trabalha para as modistas.

— O que lhe rende?

— Não sei ao certo, mas deve andar entre quarenta sous e três francos por dia.

— Três francos por dia, quando só o seu cabelo vale um milhão! Que chic! E porta-se bem?

— Como uma santa, segundo afirmam.

— Estupefuante! Obeliscal! Catapultuoso! como disse o Príncipe de Chypre.

— Mas, concluiu Picolet, dizem que ela é ambiciosa.

— Tanto melhor. Palácio, cavalos, carruagens, crédito ilimitado em casa de grande modista, sem contar com os papéis de crédito, tudo ela terá.

— Uma praça tão bem atacada, não se defenderá por muito tempo. O Príncipe permite-me que lhe faça uma pergunta?

— Se permito! Sobre que?

— A propósito de uma pessoa que o Príncipe chama a sua carraça, e que parece criatura muito incomodativa. O Príncipe tem a certeza de que essa pessoa lhe deixará o campo livre?

— Genoveva! Está transformada, cheia de confiança, desconhecível em suma. Faço dela o que quero. Está mansinha como um cordeirinho que bale!

— Na minha humilde opinião, isso oculta um laço. As mulheres ciumentas, ou seja por amor, ou por cálculo, têm o ciúme na massa do sangue, e não são por isso menos perigosas quando recolhem as garras. Desconfie do cordeirinho, meu Príncipe... Desconfie!

— Aproveitarei o conselho... Genoveva não desconfiará de coisa alguma.

— Nem de que irá amanhã ao teatro de Belleville?

— Já se vê... Dir-lhe-ei que vou fazer visitas.

— E ela acreditá-lo-á?

— Que remédio! E depois que me importa?

— É se ela o for espiar? Heitor cocou a orelha.

— Ah! Demônio! mumurou. Ah! Demônio!

— Desconfie, Príncipe! repetiu Picolet.

— Deixe estar! tomarei as minhas precauções, e tudo irá bem. A que horas sobe o pano?

— Às oito horas.

— Estarei lá às sete horas e meia... Tenha sempre os olhos na minha frisa. Se tiver precisão do senhor, far-lhe-ei sinal...

— Conte comigo, Príncipe.

— O príncipe Totor atirou para cima da mesa uma peça de der francos e saiu do café.

Sta-Pi pediu o troco e guardou-o cuidadosamente. Era um rapaz muito organizado.

 

CONTRARIEDADES

Deixando a cervejaria do teatro, César de Fossaro deu ordem ao» cocheiro para o conduzir à rua Francisco I.

— Não me tinha enganado... dizia ele consigo esfregando as mãos. Este Fernando é um amigo do gozo, tem o vício e a ambição no sangue. Para ele hão de ser bons todos os meios de satisfazer os seus instintos e vícios. Fiz-lhe crescer a água na boca... Já se vê favorita de uma grande dama milionária inundando-o de amor e de ouro. Quando me parecer conveniente meter-lhe o ferro na mão... Bastará um incidente que eu fizer surgir, e como ele é de primeira força em atirar, está muito arriscada a pele do príncipe... Eis Mm dia rudemente empregado! A estas horas tenho a explicação da carta anônima escrita ao conde de Vergis... Jacques Sureau está apaixonado como um louco, ou antes como um bruto. Ditava, e o comediante tinha a pena na mão... Vingança ignóbil de um amante desprezado!... A jovem, apesar do seu tipo de madona, tem um amante? Saint-Sulpice será para ela um lugar de entrevista? Ignoro, mas sabê-lo-ei por Fernando Volnay, que fará falar o primo. Aquele excelente Fernando! Como eu tinha razão em dizer a Malpertuis que o poupasse... Ele está à minha discrição, e farei dele, sem o menor custo, um instrumento flexível e dócil.

Mal concluía o Barão este monólogo, parava a carruagem diante do palácio do Bégourde de outros tempos.

Davam cinco horas.

O portão estava aberto.

César transpôs o limiar, entrou no pátio, e perguntou ao guarda-portão que respeitosamente o cumprimentava:

— O Príncipe recebe?

— O Príncipe não está no palácio, respondeu o guarda-portão. Saiu há meia hora, e deve sentir muito não estar em casa.

— Sabe se ele virá jantar?

— Os criados do senhor Príncipe não receberam ordens em contrário, esperam-no para as sete horas segundo o costume.

— Obrigado...

— O senhor Barão volta?

— É provável.

César subiu para a carruagem, e deu a morada de Genoveva, boulevard Mallesherbes.

Chegou ao seu destino dentro de um quarto de hora, e subiu ao aposento da jovem.

Genoveva saltou-lhe ao pescoço, exclamando:

— Ora até que enfim, Barão, és tu. Mais vale tarde que nunca!

— Não te havia dito que viria, retorquiu César.

— É verdade, mas eu sempre te esperava. Depois da tua visita a Heitor, devias-me dar informações.

— Não saí para te receber.

— Já vês que fiz bem.

— Sim, fizeste. Porque temos seriamente que conversar.

— Será coisa desagradável?

— Pelo contrário.

— Então conversemos; sou toda ouvidos.

— Viste Heitor ontem?

— Vi.

— Como se passou a entrevista?

— Às mil maravilhas. Fui mansa como um cordeiro, retratei-me nobremente, pedi perdão.

— O Príncipe perdoou?

— Desejaria ver que assim não fosse. E confirmou esta manhã o seu patrão de ontem, mandando-me um cheque de uma quantia muito bonita. Numa palavra, tudo corre pelo melhor no melhor dos mundos possíveis.

— A remessa do cheque, prova-me que o senhor de Castel-Vivant não veio hoje.

— Efetivamente.

— Tu não sabes então se ele projetou algum divertimento para amanhã à noite.

— Ignoro absolutamente.

— Será preciso sabê-lo, e se assim for, torna-se indispensável fazê-lo mudar de opinião.

— Heitor tornará a gritar que o tiranizam.

— É possível, é até provável, mas cederá, e é o essencial.

— Então queres apoderar-te dele para amanhã?

— Quero.

— Com que fim?

— Com o fim de o conduzir à primeira representação de um drama intitulado: Os Beijos Mortais.

— Onde se representa esse drama? Na Porte-Saint-Martin, ou no Ambigu, ou Chateau-d'Eau?

— No teatro de Belleville.

Genoveva olhou para César com um ar espantado, perguntando se ele não gracejava.

Parecia que estava sério, e estava-o efetivamente.

— Ao teatro de Belleville! repetiu ela.

— Perfeitamente.

— Barão, tu zombas de mim?

— Nem por sombras.

— E o que vai ele fazer para tão longe do mundo civilizado?

— Tá to disse, ver os Beijos Mortais.

— Só?

— Contigo, minha querida, e eu farei parte do rancho:

— Pois bem, e o camarote?

César puxou da sua carteira, abriu-a, e tirou de dentro um papel rosado que estendeu a Genoveva.

— O caso está previsto. Eis uma frisa.

— Barão, tudo isso é um enigma. — Queres a chave do enigma? — Se quero!

— O Príncipe escreveu um testamento.

— Tens a certeza disso?

— Vi-o, li-o.

— E o testamento?...

—Ê todo em teu favor, és herdeira universal. Genoveva levantou-se de um pulo, os olhos cintilantes de cobiça, as narinas trêmulas de comoção.

E, perguntou ela com uma voz sufocada:

— A quanto se eleva essa fortuna?

— A uma dúzia de milhões líquidos, sem contar o petróleo de um valor incalculável.

— E tudo isso pertence-me?

— Sim, menos a minha parte.

A jovem deixou-se cair numa cadeira, agitada por um tremor nervoso.

— Doze milhões, repetia ela com a cabeça perdida; doze milhões e o petróleo... Não te enganaste, Barão? Tudo isso é para mim? Para nós?

— É.

Genoveva readquiriu subitamente o seu sangue frio.

— Continua, exclamou, é muito interessante.

— É preciso que o Príncipe Heitor não tenha tempo de destruir ou modificar um documento que nos enriquece. Compreendes?

— Nem por sombras. Que relação tem a supressão do Príncipe com o teatro de Belleville? Não é lá que ele deve soltar o último suspiro, imagino.

— Não tens necessidade de compreender, minha querida, trata-se somente de obedecer. Conduz o Príncipe ao teatro... Eu me encarrego do resto...

— Que projetas então?

— A Marquesa de La Tour-du-Roy há de assistir.

— A bela das belas! A antiga grande paixão de Heitor.

— Paixão transformada há muito em ódio e desprezo. O Príncipe e a Marquesa detestam-se. Por que? Ignoro e é coisa que pouco me importa. Basta que isso nos sirva, e há de servir-nos...

— Como?

— Heitor há de sair do teatro com um duelo às costas...

— A que propósito esse duelo?

— Propósito da Marquesa.

— Com quem?

— Com um sujeito que o há de sangrar como um frangão...

— E quem é esse sujeito? Fossaro sorriu.

— És curiosa como Eva, a tua avó, minha querida! replicou. É um grande defeito a curiosidade; contudo sempre te quero dizer...

Um toque de campainha soando à porta da antecâmara, interrompeu a frase do barão.

— Quem pode vir aí? murmurou Genoveva zangada.

— O Príncipe talvez...

— Se fosse ele melhor seria. Ajudar-me-ias a resolvê-lo.

A porta da sala abriu-se.

Heitor apareceu.

Chegava da taberna da rua da Vitória.

Genoveva saltou-lhe ao pescoço, como saltara ao pescoço de César meia hora antes.

O Príncipe suportou o abraço da amante com resignação, e estendeu a mão a Fossaro.

— Vens jantar comigo, queridinho? exclamou a jovem, porque o barão fica, visto que tu vieste. Aqui janta-se bem, como sabes... Vamos, anda, um risinho ao teu bebe, e diz que sim!

— Pois bem, seja o jantar... volveu Heitor. Hão de esperar-me em casa; tanto pior! Dou-te a minha noite de hoje, e com tanta mais vontade, que amanhã à noite não te verei...

— Não me verás? murmurou Genoveva deitando um olhar a Fossaro. Então, por que? tens alguma pândega projetada?

— Exato!

— E eu não posso?

— Não.

— Por que?

— Porque assistirei a um jantar de homens...

— Um jantar sério, onde não são admitidas mulheres bonitas... César de Fossaro interveio.

— Eis aí uma coisa que não vem nada a propósito! disse.

— Por que, Barão?

— Imagine que lhes tinha preparado ao senhor e a Genoveva... "uma noite divertidíssima...

— Então, Barão, adiaremos a surpresa e a gargalhada para outra noite... Dei a minha palavra...

— Infelizmente é coisa que se não pode adiar... Trata-se de uma primeira representação...

Heitor estremeceu.

— Ah! exclamou com inquietação. Onde?

— No teatro de Belleville... tornou Fossaro. O príncipe perdia ânimo.

— Uma peça inédita... Um grande drama com muitas espaneiradas... Os Beijos Mortais... continuou César... Devem imaginar como não há de ser engraçado por autores de arredores, por cômicos reles.

— O Barão alugou uma frisa expressamente para o senhor, apoiou Genoveva. Como não riríamos! É tão bom rir! E se lá for só, estarei triste, não rirei.

O suor gotejava da fronte de Heitor. Desmoronavam-se os seus planos.

Via-se na necessidade, ou de renunciar a Belleville, ou de consentir em lá ir em companhia de Genoveva.

Neste último caso, não poderia falar a Lucilia, mas pelo menos vê-la-ei; Picolet faria o resto.

Tomou de repente a sua resolução, e fingindo o melhor que pôde uma gargalhada, exclamou:

— Esta é muito boa! Tem uma graça de rachar!

— Mas o que? perguntaram ao mesmo tempo Genoveva e César.

— O jantar de amanhã era uma pura e simples caçoada, e eu é que queria fazer-lhe uma surpresa, a mesma surpresa! Ora vejam se não tem graça! Chego de Belleville onde aluguei um camarote para os conduzir amanhã, à primeira recita dos Beijos Mortais.

— Como a gente se encontra quando tem boas idéias! Que reinação!

O Barão e a jovem olharam um para o outro estupefatos.

— Não estão com cara de que me acreditem, continuou o Príncipe... Querem uma prova disso? Pois aí têm a prova, ou antes aí têm o camarote. Uma frisa de boca!...

— Nesse caso estamos de acordo, e és uma jóia! exclamou Genoveva rindo. Lembraste-te de mim, queridinho! é bonito, e verás como te saberei recompensar! Iremos para o teu camarote, e o barão guardará o seu, que ele guarnecerá á sua vontade. Olha, Totor, não posso senão adorar-te! deixa-me novamente beijar-te! Olha! até rimei! Ouves, queridinho, sem saber faço versos em tua honra...

E Genoveva devorou com beijos o Príncipe, que dizia baixinho, enquanto aquela aluvião de beijos caía sobre ele:

— Que a levem os demônios!

César acreditava também como Genoveva, na pretendida surpresa preparada para a noite seguinte por Heitor.

Procuravam ambos, sem o poder encontrar, qual era o motivo da mentira do Príncipe, mas os projetos de Fossaro deviam realizar-se, não era preciso mais...

 

ESCLARECIMENTOS RETROSPECTIVOS

Chegou o momento de dizer aos nossos leitores o que era ao certo o Barão César de Fossaro, o misterioso sócio de Malpertuis e o notável ensaiador dos sombrios dramas que estamos contando.

Em 1860 um pequeno e modesto aposento situado em Batignolles, num terceiro andar da rua das Damas, era ocupado por um mancebo chamado Daniel Gaillet, de dezesseis anos.

Já conhecemos Daniel Gaillet.

Sabemos que pertencia à brigada de segurança, e vimo-lo em conferência com Estanislau Picolet no pequeno café da rua de la Victoire.

No quarto andar da casa da rua des Dames, exatamente por cima do polícia, morava um mancebo de vinte e um anos.

Chamava-se Pedro Carnot.

Pedro Carnot estava ainda no berço quando o seu pai, arquiteto de algum merecimento, morreu em resultado de um acidente, deixando à viúva uma pequena fortuna a que lhe permitiu viver desafogadamente, e dar ao filho uma educação muito completa.

Desde criança, Pedro dava prova de um espírito muito claro, de uma inteligência rara; mas um ardor precoce pelo prazer, uma sede de independência, certos instintos mais, que a fraqueza maternal não sabia reprimir, podiam inspirar sérias inquietações pelo futuro.

Aos dezoito anos Pedro acabava os estudos com êxito, apesar de haver dedicado mais tempo à distração do que ao trabalho.

Naquela época sua mãe morreu, deixando-lhe intacta a fortuna economizada pelo pai.

Só, sem família, sem conselheiro, sem amigo sincero, pôde dar livre curso aos seus gostos de dissipação, e entregou-se cegamente á existência ruidosa e desbragada da sua predileção.

Não deixou, contudo, o pequeno emprego que desempenhava em casa de um advogado, lugar cujo ordenado era pequeno, e lhe dava também pouco trabalho.

Era unicamente por respeito para consigo mesmo que ele conservava aquele lugar, a fim de poder responder:

— Apesar de ter bastantes meios para não fazer nada, entendo que a honra me impõe o dever de não me conservar ocioso...

E dava a perceber que mais tarde compraria o cartório do patrão, e se tornaria completamente um homem sério.

Ali travou relações muito íntimas com o primeiro escriturário João Malpertuis, vim rapaz instruído, inteligente, mas de costumes dissolutos, e de uma conduta mais que irregular que ele ocultava à força de hipocrisia.

Não tendo outros recursos mais que os escassos emolumentos do seu emprego, e sabendo que Pedro Carnot dispunha de alguns meios, Malpertuis ligara-se com ele e explorava-o com a maior sem cerimônia.

Pedro Carnot deixara-se explorar com indiferença, o que não impedia que ele tivesse influência sobre o companheiro, mais velho que ele uns sete ou oito anos.

Na sua qualidade de empregado-chefe, Malpertuis ocultou ao patrão a maior parte das rapaziadas do seu jovem colega.

As repetidas ausências de Pedro Carnot, eram explicadas por grandes demoras no tribunal, e várias comissões a casa dos advogados dos tabeliães.

Pedro Carnot era um belo rapaz.

Apesar de um pouco pálido, tinha um rosto agradável à primeira vista.

Os seus olhos eram encantadores, e dotados de um verdadeiro poder de fascinação.

Devia à natureza, tanto pelo menos como à educação, uma grande facilidade de linguagem.

Freqüentando os bailes públicos, obtinha grandes fortunas junto das freqüentadoras do Chateau-Rouge, da Reine Blanche, do Elyseu Montmartre, do Casino Cadet e do Valentino.

Entregava-se a estas ternuras passageiras com todo o ímpeto de um temperamento de fogo; mas, se conhecia o capricho e a fantasia, não conhecia o amor.

João Malpertuis, o empregado em chefe, residia não longe de Pedro Carnot, numa pequena casa da rua Levis em Batignolles.

Voltemos a Daniel Gaillet.

O agente da segurança, tendo por única riqueza os seus ordenados, dos quais não economizava grande coisa, dera à filha uma educação muito superficial antes de a colocar, aos doze anos. como aprendiz em casa de uma costureira.

Aos quatorze anos a jovem Clara voltava para a casa paterna, a fim de se ocupar dos cuidados domésticos, e trabalhava para um armazém de roupa branca.

Na maior parte do tempo Clara ficava só em casa.

Daniel Gaillet, como ia muito cedo para o seu serviço, nunca vinha almoçar a Batignolles.

Habitualmente, voltava às seis horas para jantar.

Muitas vezes depois de comer, ausentava-se por toda a tarde, e às vezes por toda a noite.

Havia dez anos que Daniel Gaillet morava na mesma casa.

Muito pacífico, muito afável, pouco conversador, gozava da consideração que se costuma votar aos mais antigos moradores de uma casa.

Todos o estimavam, e ninguém se lembrava de perguntar que profissão ele exercia na realidade.

Assim entregue a si mesma, Clara Gaillet levava a vida mais triste do mundo.

Absolutamente privada de distrações, o seu espírito trabalhava sem cessar, e a sua imaginação em extremo sobre-excitada pelo tédio,, edificava continuamente castelos no ar.

Encantadora e sazonada pelo solidão, era já mulher aos quinze anos.

Desejos inconscientes faziam-lhe percorrer calafrios pelas carnes.

A sua alma ardente exaltava-se sem motivo.

Tinha o coração disposto a palpitar às primeiras palavras de amor que uma voz esperada lhe murmurasse ao ouvido.

Pedro Carnot conhecia Clara de vista.

A princípio dissera, sem lhe ligar a menor importância:

— Fazia-se desta rapariguita uma amante bem bonita.

Pouco a pouco fora pensando nela mais a miúdo, mais demoradamente, mais a sério, e o germe da paixão ainda ignorada ia aumentando sem que ele desse por isso.

Quando os dois jovens se encontravam na escada ou na rua, Clara correspondia ao cumprimento de Pedro, e não pensava nele senão como num vizinho muito delicado, elegantemente vestido e de agradável aparência.

Por espaço de muitos meses, as relações entre Clara Gaillet e Pedro Carnot limitaram-se a olhares tímidos e cumprimentos modestos.

Não se trocara palavra alguma.

Pedro, audacioso até à imprudência para com as mulheres com quem habitualmente se dava, pronto a fazer-lhe a corte em termos muito precisos, e a precipitar os preliminares substituindo o galanteio por uma pantomima animada, sentia-se acanhado e inábil diante de Clara.

Da sua desenvoltura habitual não lhe restava nada.

Quem não o conhecesse bem, devia tomá-lo por um ingênuo.

A mocidade, a candura, e a auréola de virgindade que irradiava «obre o meigo rosto de Clara, impunha-se-lhe.

Contudo, dissemo-lo, a paixão crescente ia pouco a pouco aumentando, e a idéia de que ele não poderia viver sem ser amado pela vizinha, e sem se tornar seu amante, principiava a apoderar-se dele.

Da sua parte, Clara dava, sem o saber, à imagem do mancebo o lugar que até ali ficara vazio nas suas meditações e devaneios.

Por coisa alguma no mundo ela seria a primeira a falar-lhe.

Não obstante, vendo-o afastar-se, depois do cumprimento habitual, pensava:

— Era-lhe tão fácil parar e dizer-me uma palavra... Por que não o faz?

Em tais condições a faísca não podia deixar de brilhar, e de incendiar a pólvora.

Para nos servirmos de uma expressão muito à moda, estava próximo o momento psicológico.

 

Uma tarde do mês de junho de 1860, por volta das sete horas, Daniel Gaillet acabava de jantar.

Dirigia-se à prefeitura aonde o chamava um serviço suplementar.

Naquela época as barreiras de Paris não tinham ainda por limite o recinto fortificado.

Clara obtivera a permissão de acompanhar o pai até à barreira de Clichy.

Quando acabavam de descer juntos a escala, passou por eles um mancebo que se descobriu e se inclinou respeitosamente, deitando ao mesmo tempo à Clara um olhar ardente e furtivo.

A filha do polícia tornou-se cor de púrpura.

Daniel Gaillet fez com alguma rudeza a continência militar, e continuou o seu caminho na companhia de Clara.

— Senhor Carnot, bradou a porteira, porque vai assim tão senhor de si? Está aqui uma carta para o senhor...

O mancebo voltou para trás, pegou na carta que a porteira lhe dava pelo postigo do seu cubículo, e abriu-a para ler.

Ao mesmo tempo Daniel Gaillet perguntava à filha:

— Esse sujeito que acaba de nos cumprimentar, não é o vizinho que mora por cima de nós?

— É, meu pai, respondeu a jovem cujo rubor aumentava.

— Na verdade, o rapaz tem boas maneiras, e parece-me pessoa muito decente. És desta opinião, pequena?

— Sim.

Clara sentiu-se bem com a reflexão formulada pelo pai, mas nada acrescentou à sua breve resposta, e continuou o seu caminho silenciosamente.

Pedro Carnot lia a carta ao fulgor do bico de gás do cubículo.

Esta carta apenas continha algumas linhas.

Lendo-as, Pedro sorriu.

A porteira, muito familiar com os seus locatários, como geralmente sucede nas casas habitadas pela classe média, vira aquele sorriso. Por isso perguntou piscando o olho:

— Alguma notícia boa?

— Não, senhora Sergent.

— Talvez uma herança?

— Infelizmente, não.

— É então alguma cartinha de amor?

— Ora, senhora Sergent, simples maganeira.

E sem se explicar mais, com grande descorçoamento da porteira, para quem a palavra maganeira não oferecia sentido algum exato, subiu a escada rapidamente, procurando na algibeira da jaqueta a carta que acabava de receber.

Esta algibeira estava tão cheia de papelada, que faltava o lugar,, não para a carta, mas para os dedos que a queriam introduzir.

Pedro Carnot tirou os papéis em desordem, e conservou-os seguros na mão.

Chegava ao segundo andar, e segundo o seu costume subia com uma velocidade extravagante, galgando os degraus a três e três.

Escorregou-lhe um dos pés.

Caiu quase.

— Levou as mãos adiante.

Levantou-se rapidamente, e continuou a subir, sem reparar que pelo fato do tropeção a carta lhe escapara dos dedos.

Entrou em casa, e depois de se desembaraçar do que levava, atirando-o para cima de uma mesa, dispôs-se a fazer uma dessas toilettes que pareciam o nec-plus-ultra da elegância às trapalhonas do Chateau-Rouge.

 

Clara deixara o pai na barreira de Clichy, para voltar para os trabalhos domésticos de que estava incumbida.

Subiu ligeiramente a escada.

Chegando à altura do segundo andar, descobriu uma carta em cima dos degraus.

Apanhou, e leu maquinalmente o sobrescrito assim concebido:

Senhor Pedro Carnot.

Rua das Damas n.°....

Em Batignolles.

A letra fina e ligeira denunciava punho de mulher.

Clara fez-se pálida sem ter consciência disso, e pôs-se a tremer.

Durante alguns segundos, trêmula, assustada, viu-se constrangida a agarrar-se ao corrimão; depois, dominando repentinamente a comoção, galgou ao terceiro andar, abriu a porta do quarto onde morava, tornou a fechá-la após si, e correu à pequena sala que servia de sala de jantar.

A mesa estava ainda posta.

Clara deixou-se cair numa cadeira, procurou conter com a mão as pulsações do coração, e murmurou quase em voz alta:

— É a carta que lhe deram há pouco, e que ele perdeu... É uma carta de mulher! Uma carta de mulher, a quem ama, e por quem é amado!...

 

CONTINUAÇÃO

— Uma mulher a quem ama, por quem é amado... repetiu a filha de Daniel Gaillet com uma espécie de consternação; depois deixou pender a cabeça, e conservou-se calada, com os olhos sempre fitos naquele sobrescrito que a fascinava, e dos seus olhos avermelhados jorraram lágrimas.

Como descrever o que neste momento se passava na alma de Clara?

Por que era aquela dor?

O que significava aquelas lágrimas?

Ela própria não sabia explicar a si própria os pensamentos confusos que a assaltavam, e lhe transtornavam o coração.

Com que direito se preocupava com as relações de Pedro Carnot?

O que importava os sentimentos ternos que o seu vizinho podia inspirar e sentir.

O mancebo não lhe dirigira a palavra, portanto não era, não devia ser senão um estranho para ela.

Repentinamente a luz fez-se.

— Amo-o, meu Deus, amo-o! balbuciou a jovem.

E os soluços, a princípio comprimidos, estalaram por fim. Após um instante de prostração, volveu:

— Mas quem sabe se é ou não mulher? talvez me engane... Oh! se me atrevesse...

A sua mão febril fez um movimento para tirar do sobrescrito a folha de papel dobrada em quatro que tanto lhe despertava a curiosidade, mas não concluiu o gesto esboçado.

— Não, disse ela, seria feio... Uma carta é coisa sagrada! "Violar o segredo que ela tem, é uma ação criminosa que ia minha consciência proíbe. Não sucumbirei à tentação. Vou levar esta carta à porteira, que a entregará ao senhor Carnot.

Levantou-se para sair, e dar seguimento á resolução heróica que acabava de exprimir.

Mas uma força misteriosa, mais poderosa que a sua vontade, pregava-lhe os pés no chão.

— Aí vou, murmurou, aí vou...

E com a carta na mão, os olhos sempre fitos no sobrescrito entreaberto, não se mexia.

 

De repente percorreu-lhe todo o corpo um abalo nervoso.

Finalmente, o desejo de saber, excitado pelo ciúme, levou-a de vencida.

Clara tirou a folha do envelope, desdobrou-a e leu-a.

"Decididamente, meu querido Pedro, os rapazes como o senhor, são bem distraídos ou bem esquecidos.

"Há quinze dias jurava-se um amor eterno... Como aquilo não me desagradava, mais nada queria... O senhor parece sincero, mas,, há uma semana que não aparece no baile da Reine Blanche, onde sabe que o espero.

"Foge de mim?

"Lá estarei esta noite, às nove horas.

"Se não aparecer, ficarei sabendo que o senhor é um mentiroso,. e eu sou uma tola...

"Mas virá, não é assim?

                                                                                  "Diana."

 

Clara soltou um suspiro de alívio.

A carta vinha de uma mulher, e essa mulher amava Pedro Carnot.

Porém ele, ou nunca a amara, ou já não a amava, porque a desprezava, e não se dava ao incômodo de ir aos "rendez-vous" indicado por ela.

A jovem sentiu o coração dilatar-se, a tranqüilidade volveu à sua alma, e o sorriso assomou-lhe aos lábios.

Este apaziguamento durou apenas um segundo.

A fronte de Clara contraiu-se novamente.

Um pensamento doloroso acabava de lhe perpassar pelo cérebro* em ebulição.

— Esta noite, disse ela consigo, esta noite dá-lhe ainda um "rendez-vous"... O que não fez, pode fazê-lo ainda... Vai talvez correr àquele baile, encontrar-se com aquela mulher...

E agitava por um tremor convulso, Clara acrescentou com voz apagada:

— Ela é por certo formosa... Afeiçoa-se-lhe, e quem sabe? acaba talvez por amá-la...

Calou-se, e pôs- o ouvido à escuta.

Um ruído de passos martelava o sobrado por cima da cabeça de Clara.

Pedro Carnot andava de um lado para o outro no andar superior.

— Ele está lá em cima... pensou a jovem, ainda não saiu, mas vai sair.

Interrogou com os olhos o relógio do cuco, pendurado da parede da casa de jantar.

O mostrador indicava oito horas e dez minutos.

— O encontro é às nove horas... prepara-se para correr lá... continuou Clara.

Os olhos brilharam-lhe repentinamente.

Ergueu-se, com o rosto sereno, a fronte altiva, e continuou:

— Ora! a final, que me importa? Nada tenho com o procedimento de senhor Pedro Carnot, nas suas amizades, nos seus amores!.... Há pouco, quando disse, de mim para mim, que o amava, estava louca, e mentia a mim mesma... A curiosidade fez-me cometer uma ação má... Morro de vergonha por ter lido esta carta... Vou dá-la à porteira, dizendo-lhe que a achei na escada...

Clara tornou a meter a folha de papel no sobrescrito... Por cima os passos tornavam-se mais precipitados. Os passos dirigiam-se para a porta da saída. Instintivamente, Clara dirigiu-se para a antecâmara, e pôs o ouvido à escuta.

A porta do quarto de Pedro Carnot acabava de se fechar.

 

Desciam a escada.

A filha do polícia obedecendo a um irresistível impulso, e sem sequer ter a consciência do que fazia, pôs a mão no fecho da porta, abriu e transpôs o limiar.

Pedro Carnot descia a escada.

Ia chegar ao patamar do terceiro andar.

Vendo Clara, parou, surpreendido e perturbado.

Era a primeira vez que se achava imóveis em frente um do outro.

Desejaria falar, mas debalde procurou uma palavra.

Apoderava-se dele uma incomensurável timidez em frente daquela virgem.

Muito comovido, cumprimentou Clara, e dispunha-se a continuar o caminho.

A jovem, pálida de morte, segurava-se á ombreira da porta. Calada e trêmula estendeu a mão direita e deu a carta. Pedro viu o gesto, mas como não dera pela perda, não compreendeu.

— Essa carta, minha senhora?... balbuciou ele...

— Há pouco, senhor, quando eu subia, respondeu Clara com uma voz muito baixa, e quase indistinta, achei-a na escada...Como vi pelo sobrescrito que era para o senhor, saía de casa para a levar:ao porteiro, e pedir-lhe que lha entregasse. Abri a porta, e aqui estou... Tome, senhor...

Por seu turno, Pedro Carnot tornou-se muito pálido.

— Leu essa carta, menina? balbuciou. Clara não teve forças para responder.

Pedro considerou o seu silêncio como uma afirmação. Repetiu lenta, dolorosamente se se pode assim dizer:

— Leu?

Clara balbuciou:

— Não, senhor.

— Ah! retorquiu Pedro, leu... estou certo de que leu...

— Bem, senhor, é verdade, confirmou Clara com uma voz soluçante.

— E detesta-me... despreza-me, não é verdade?

— Eu, senhor?

— Sim, minha senhora.

— E por que?

— Por que? Porque julga que vou à entrevista concedida por uma mulher cujo nome esqueci.

— Estes negócios são seus, só ao senhor interessam... murmurou Clara fazendo um movimento para se retirar.

Pedro deteve-a.

— Esta suposição enganadora impressionou-a, continuou; oh! não negue, senhora... sofreu com isso...

— O que o leva a semelhante suposição?

— A sua palidez... a sua comoção... A maneira mesmo com que me apresentou a carta...

O mancebo readquiriu rapidamente o seu sangue frio, a sua presença de espírito.

A ocasião favorecia-o, resolveu aproveitá-la.

— Olhe, menina Clara, continuou com uma voz sempre baixa, mas vibrante, apaixonada, há muito que esperava o acaso que hoje me favorece, e me permite finalmente dirigir-lhe a palavra. Este acaso, abençôo... Bastar-me-á um instante para me desculpar a seus olhos.

— O senhor não tem nada de que se desculpar.

— Digne-se escutar-me.

— Mas, senhor.

— Peço-lhe, suplico-lhe...

— Finalmente, senhor, que quer?

— Quero que me perdoe, se sofreu por minha causa. Quero que não me odeie... Quero que me ame...

Clara vivia como num sonho.

O sentimento da realidade já não existia para ela.

A voz de Pedro Carnot vibrava aos seus ouvidos como uma música, como uma harmonia do paraíso.

Escutava.

Não tinha a certeza de bem compreender, mas sentia-se feliz, inebriada.

Quase sem saber recuou um passo, e achou-se na pequena antecâmara que precedia à sala de jantar.

Pedro Carnot seguiu-a.

Assim que entrou fechou a porta.

A jovem assustou-se.

— Senhor, balbuciou... se meu pai entrasse, a sua presença aqui...

— Explicar-lhe-ei...

— Como?

— Da maneira a mais simples: contando-lhe o que se passou, dizendo-lhe que quis desculpar-me a seus olhos, e protestar contra falsas aparências...

— Responder-lhe-ía, como lhe respondo agora, que o senhor é livre, e que não temos nada com o seu procedimento. Não temos o direito de ser seus juízes.

— Mas eu é que tenho o direito de querer a sua estima... tenho o direito de aspirar á sua confiança, mereço-a, reclamo-a...

A filha de Daniel Gaillet ia sossegando, então, pouco a pouco.

A voz de Daniel Gaillet era meiga e persuasiva, as suas palavras tentadoras, a sua sinceridade absoluta, pelo menos na aparência.

Clara, sob o império da febre de amor que lhe consumia o coração e requeimava o sangue nas veias, abriu a porta da sala de jantar.

Pedro seguiu-a.

— Na verdade, senhor, disse ela com um pálido sorriso, acabamos de nos apresentar um ao outro de uma maneira bem singular.

— Esta apresentação, menina, ou antes este encontro, desejava-o ardentemente.

— Por que?

— Não adivinha?

Clara baixando os olhos e corando até á raiz dos cabelos, respondeu:

— Não, na verdade.

— Eu lhe digo, minha senhora; é porque desde o dia em que vim morar para esta casa, e onde pela primeira vez a vi, desde esse dia, amo-a...

A jovem ocultou o rosto angélico nas mãos pequeninas, balbuciando:

— Oh! senhor... senhor... peço-lhe, cale-se.

Pedro Carnot, em vez de se calar, continuou com ardor:

— Amo-a, como só se ama uma vez na vida... com todo o meu coração... com toda a minha alma... com todas as minhas forças... Toda a minha felicidade depende da senhora, como na senhora está sempre o meu pensamento. Não amo mais ninguém no mundo...

Clara ergueu repentinamente a cabeça, e sem proferir uma palavra fitou o mancebo.

Compreendeu a significação daquele olhar, e perguntou um pouco perturbado:

— Não me acredita, senhora?

— Não, senhor, não o acredito... respondeu Clara.

 

BRINCAR COM FOGO

Pedro Carnot ficou por alguns instantes estupefato ante aquela nitidez agressiva de uma tal resposta.

— Duvida da minha palavra, balbuciou; por que?

Clara designou com o gesto o sobrescrito que acabava de lhe entregar e que ele tinha nas mãos.

— Esta carta, tornou ele, esta carta maldita é a causa das suas suspeitas.

A filha de Daniel Gaillet fez um gesto afirmativo.

— Não amei nunca a pessoa que a escreveu, juro-lhe! continuou Pedro.

— Nunca?

— Nunca!

— Contudo, há quinze dias jurava-lhe eterno amor. Ela mesma o disse.

— Ora! minha senhora, posso por acaso impedir uma louca de tomar a sério as frases de galanteria banal de que os homens são pródigos com todas as mulheres, e que saem dos lábios mas não do coração? O meu coração estava livre quando lho dei, e não mais o recuperarei, juro-lhe aos seus pés.

A resposta de Pedro Carnot fora, extremamente inepta. Clara replicou, não sem amargura, servindo-se das próprias palavras que ele acabava de proferir.

— Graças ao senhor conheço o valor das frases de galanteria banal de que os homens são pródigos com todas as mulheres... Poupe-me a essas frases, peço-lhe... Tem uma entrevista para esta noite, não se esqueça... e a hora está chegada...

— Ah! murmurou Pedro com uma tristeza que não era fingida, é mau e cruel o que me está dizendo.

—Mau e cruel? repetiu a jovem. Em que? Lembro-lhe uma entrevista... Há algo mais simples?...

— Está zangada comigo?...

Clara modelou uma gargalhada horrivelmente falsa.

— Irritada contra o senhor!... exclamou em seguida. Eu! e a que propósito, santo Deus?

— Vou dizer-lho, se o não sabe... Está zangada comigo por causa dessa carta que lhe causou um desgosto... que lhe fez deslizar lágrimas dos olhos, das quais se vêm vestígios nas suas faces... Por que chora? Por que se zanga? Porque Deus quis que os nossos olhos se compreendam, que as nossas almas se entendam e que os nossos corações batam em uníssono. Porque a final a senhora ama-me, tanto como eu a amo...

Pedro agarrou numa das mãos da jovem, apesar da fraca resistência que ela lhe opunha.

Continuou em tom apaixonado:

— Clara, minha muito adorada, não me diga que menti!.....

E deixando-se cair de joelhos e cobrindo de beijos a mãozinha que apertava nas suas, acrescentou:

— Clara! Diga-me que compreendi... que adivinhei... que me pertence, como eu lhe pertenço, e que não pertencerá, senão a mim, como eu não pertencerei senão a si!...

— Oh! Cale-se!Cale-se! balbuciou Clara, desfalecida. Está-me matando. O senhor está aqui, a meus pés, beijando-me as mãos, e pergunta-me se o amo!...

— Ah! como sou feliz! É o céu!...

 

Pedro Carnot proferiu estas palavras com um tal tom de embriaguez que a jovem recebeu em cheio no coração uma espécie de comoção elétrica.

E desviou os olhos que mergulhavam nos do amante.

Retirou as mãos e disse com uma voz expirante:

— Parta!

— Partir já!

— Parta, peço-lhe...

— Bem, vou então obedecer... Mas antes de me afastar, repita-me que me ama...

Um murmúrio, ou antes um sopro escapou dos lábios de Clara. O sopro ou o murmúrio significava:

— Amo-o.

Depois, tornou em voz alta:

— Deixe-me... Mas não saia hoje... É uma súplica que lhe dirijo...

— Receia então que eu vá a essa entrevista? Clara tornou-se cor de púrpura.

— Não receio nada, volveu ela, e contudo peço-lhe que não saia.

— Não sairei... vou voltar para casa... por-se-á à janela, não é verdade? Adivinhando as suas formas na escuridão, sentir-me-ei mais perto de si.

— Prometo-lhe... vá.

— Parto... Mas pelo menos diga-me que nos tornaremos a ver.

— Parece-me que vos vemos todos os dias.

— Isto é, que nos encontramos sem nos falarmos... agora não terei mais a força nem a coragem de esperar pelo acaso.

— Se meu pai soubesse que o recebi esta noite!...

— Como o havia ele de saber?

— Às vezes volta de repente... se voltasse agora, ficaríamos separados para sempre... Parta, tenho medo...

Pedro segurava ainda a mão de Clara. Procurou atrair a jovem para si. Defendeu-se daquela vez.

— Não, não, exclamou como desvairada, repito-lhe tenho medo, retire-se.

E impeliu o mancebo para a porta que fechou após si.

Obedecendo como todo o amante bem apaixonado, Pedro tornou a subir para casa.

Clara escutara os passos do amante subindo os degraus.

Quando ouviu a porta do quarto andar fechar-se, voltou para a sala de jantar, e prostrada pelas comoções de uma tal entrevista, caiu numa cadeira, murmurando:

— Oh! sim, amo-o!

 

Clara acabava de dar o primeiro passo na senda funesta.

Bastaria uma palavra do pai, para salvar a filha.

Ele não disse aquela palavra.

Ela era honesta, absolutamente honesta; mas a frieza habitual de Daniel Gaillet, a sua taciturnidade, a sua aparência severa, assustavam-na.

Ele proibir-lhe-ía, que amasse, julgava ela, levá-la-ia para longe daquela casa, não a deixaria tornar a ver Pedro Carnot.

Mas, tudo lhe parecia preferível àquela separação, e conservava-se calada.

Os dois amantes encontravam-se, como era natural, o maior número de vezes possível, e trocavam, quando se encontravam, uma palavra, um olhar, um aperto de mão.

A estas entrevistas tão curtas e tão platônicas, se limitaram as suas relações durante os dois primeiros meses que se seguiram à cena que fizemos assistir os nossos leitores.

Não tinham podido achar meio de se verem uma só vez em intimidade, e de poderem livremente trocar os seus juramentos.

Provinha isto de uma circunstância muito particular.

Daniel Gaillet encarregado pela prefeitura de um trabalho de estatística importante, mal saía de casa, ou pelo menos já não fazia ausências regulares, sem grande zanga da pobre Clara, cujo amor aumentava em razão dos obstáculos.

Daniel, como dissemos apesar do seu aspecto um pouco rude, e da sua severidade toda aparente, adorava a filha.

Notara efetivamente que alguma coisa se modificava nas disposições de Clara.

Via às vezes a criança pensativa e triste sem motivos, outras vezes de uma alegria louca para que não achava explicação.

O velho polícia era mais hábil em seguir o rasto de um criminoso, do que em sondar o coração de uma jovem.

Interrogou-a sem habilidade.

Clara estava acautelada, — dissimulou.

Nada veio esclarecer Daniel Gaillet, que atribuiu a um temperamento precoce e caprichoso as intermitências de luz e sombra de caráter da loura criança.

Atacado fortemente, pela primeira vez, pelo amor, Pedro Carnot passava da febre ao delírio.

O coração falara primeiro, os sentidos falavam agora, com furiosa energia.

A mocidade e a beleza de Clara inflamavam-no, e para aquele corrupto, a candura e virgindade que a princípio o intimidavam, deitavam agora petróleo no fogo.

A paixão de Pedro Carnot mudava de forma.

As aspirações materiais desvaneciam-se, cedendo o lugar à imperioso necessidade das realidades sensuais.

O amante platônico esperaria ainda muito tempo pacientemente.

O debochado aguardava impacientemente o momento da queda.

Haviam decorrido dois meses.

Daniel Gaillet terminou o seu trabalho.

No dia em que o levou à prefeitura de polícia, voltou para casa preocupado.

Clara notou as nuvens acumuladas na fronte de seu pai.

Inquietou-se.

Acudiu-lhe a idéia de que um indício ou uma denúncia o tinham posto ao fato do seu amor por Pedro Carnot.

De todos os suplícios, a incerteza era o pior.

A jovem quis subtrair-se a ele, e com risco de fazer rebentar uma tempestade, interrogou:

— Por que estás com ar triste, meu pai? perguntou ela beijando Daniel. Estás zangado por alguma coisa?

O polícia fez um sinal afirmativo.

— E verdade, respondeu, estou triste e por tua causa. Estas palavras aumentaram o terror de Clara.

— Por minha causa? balbuciou ela toda trêmula.

— Sim.

— Por que?

— Porque vou ver-me obrigado a deixar-te só durante muitos dias.

A jovem não compreendia ainda, mas já estava sossegada.

Desde que não se tratava do seu amor, pouco lhe importava a causa dos cuidados paternos.

Repetiu:

— Só? durante muitos dias?

— Infelizmente.

— O que significa isso?

— Significa que acabo de receber ordem de partir para a Bélgica!

— O que vais fazer na Bélgica?

— Obter informações, e tirar apontamentos relativos aos mercados parisienses.

Bastará esta resposta para fazer compreender aos nossos leitores que Daniel ocultava à filha o verdadeiro gênero da comissão de que estava incumbido.

Sabia que ele pertencia à prefeitura, mas julgava-o somente ocupado na secretaria, e não supunha que pertencesse à brigada de segurança.

O polícia continuou:

— Como é natural, receio a solidão e o tédio por causa de uma rapariga da tua idade... Sinto muito ter de te deixar só, e desejava que durante a minha ausência não te sentisses muito triste.

Clara saltando ao pescoço do pai, abraçou-o com um entusiasmo desacostumado.

Não podia o pobre homem suspeitar qual a causa daquele entusiasmo.

Clara respondeu-lhe:

— Sossegue, querido pai... Nada mudarei na minha vida habitual... Trabalharei, e à parte o pesar de não o ver, resignar-me-ei ao isolamento.

— Sairás o menos possível.

— Só para ir fazer as minhas compras.

— Não te darás com os vizinhos. Bem sabe que tenho nisso especial interesse.

Clara tornou-se púrpura, mas o polícia muito preocupado, não notou o seu rubor.

— Já me proibiu que me desse com os vizinhos, retorquiu ela. Tenho por costume obedecer. Demais, bem sabe o pai, não conheço ninguém na vizinhança.

O polícia ponderou:

— Posso contar com a tua promessa?

— Pode contar absolutamente com ela.

— Abreviarei a minha ausência o mais que me for possível.

— Quanto tempo dura?

— Eu sei lá! Uns oito ou dez dias talvez...

— É muito... Mas em suma, como é preciso...

— Fiz todo o possível para declinar esta maçada num colega, mas não o consegui.

— Quando deve chegar a Bruxelas?.

— Esperam-me lá amanhã pela manhã.

— Então é preciso partir esta noite?

— É, e tomarei lugar no comboio das oito horas e quinze minutos...

 

A OCASIÃO FAZ O LADRÃO

— Às oito e quinze minutos! repetiu Clara, são seis e um quarto! O muito que lhe resta a passar aqui é uma hora. Felizmente, o jantar está pronto.

— Não tenho fome... volveu Daniel Gaillet.

— Tome alguma coisa.

— Tomarei um caldo e comerei alguma coisa, e se depois o apetite me vier esta noite, descerei no bufet de Quievrain. Enquanto pões a mesa, vou meter no meu saco de viagem o fato e a roupa indispensável...

— Sim, sim, meu pai. Em menos de cinco minutos serás servido.

Clara pôs-se logo em atividade.

Daniel dirigia-se ao mesmo tempo ao seu quarto de dormir, que também servia de gabinete de trabalho.

Ali fechava à chave todos os papéis que não queria deixar à vista, dispunha a sua pequena bagagem, e tirava do fundo de uma gaveta uma sofrível quantia.

A jovem abriu a porta.

— Meu pai, podes vir; tudo está pronto.

O polícia sentou-se à mesa.

A jovem não estava nem mais triste nem mais alegre do que costumava.

Manifestava no rosto uma absoluta tranqüilidade.

Este suave aspecto, porém, não passava de um disfarce destinado a ocultar uma imensa alegria interior.

A jornada de Daniel Gaillet, dava-lhe na verdade uma absoluta liberdade.

Podia durante alguns dias receber Pedro Carnot sem constrangimento.

A este pensamento o coração batia-lhe com uma espantosa violência, e a febre do amor ateava-se-lhe nas veias.

Teria dado muito para poder anunciar ao jovem, imediatamente, a boa nova.

Os seus olhos fitos no mostrador do relógio, contavam os minutos e os segundos, e a marcha do ponteiro grande parecia-lhe muito lenta.

— Por índole e por hábito, Daniel era observador.

Em qualquer outra ocasião, teria por certo notado a atitude indiferente de Clara.

Em outras ocasiões, quando tinha apenas de se afastar por quarenta e oito horas. Clara não podia ocultar a tristeza, e lágrimas deslizavam-lhe dos olhos.

Mas, repetimo-lo, a missão difícil que ele ia desempenhar na Bélgica, causava-lhe uma Constante preocupação, e não lhe deixava a sua liberdade de espírito.

Deram sete horas.

Era preciso partir.

— Queres que te acompanhe à gare, meu pai? perguntou a jovem.

— Não, minha filha.

— Por que?

— Seria preciso voltares só, e eu ficaria inquieto se soubesse que andavas por fora até tão tarde.

Clara não insistiu.

O polícia continuou:

— Vou deixar-te duzentos francos. É escusado recomendar-te economia.

— Pai, bem sabes...

— Aqui estão dez luizes. Será suficiente, ainda que a minha, ausência tenha de durar quinze dias...

— Não gastarei metade deste dinheiro.

— Amanhã é domingo... que farás?

— O que faço todos os domingos. Irei à missa muito cedo. Arrumarei a casa. Tirarei um livro da tua pequena biblioteca, e lerei.

— Não podias ir ao cemitério?

— Orar sobre o túmulo da minha mãe? Irei, prometo.

— Dá-me um beijo, e pensa em mim.

— Todos os dias, e a cada momento.

— Bem.

— O pai escrever-me-á?

— Sim, para te dar notícias minhas, e para te anunciar o meu: regresso.

Daniel abraçou a filha, apertou-a contra o coração com a imensa ternura que sentia por ela, e partiu com os olhos umedecidos.

 

Clara ficara só, foi para a janela ver afastar seu pai. Tinha já desaparecido havia muito, e ainda ela se conservava encostada ao parapeito interrogando a rua.

Era a hora a que Pedro Carnot voltava todas as tardes.

Nessa ocasião os dois amantes trocavam um demorado olhar, e falavam com os olhos, por não poderem falar com os lábios.

Naquela tarde poderia falar-lhe, não com os olhos, mas com os lábios, e dizer-lhe que estava livre.

O tempo passava. O relógio dava oito horas. Clara não deixava a janela, e Pedro Carnot não aparecia.

A pobre pequena sentia o coração oprimir-se-lhe.

A noite sobreviera.

Os bicos de gás marcavam com laivos brancos as trevas da rua das Damas.

A obstinada expectativa de Clara era baldada.

A inexplicável ausência daquele a quem ela amava, enchia-lhe a alma de angústias, e o coração de ciúmes.

Sucederia alguma coisa a Pedro, ou olvidando os seus juramentos demorava-se ao pé de alguma mulher?

As raras lojas fecharam-se uma após outra.

A rua tornou-se silenciosa, depois completamente deserta.

À meia noite, completamente desvairada, ainda esperava escutando o menor ruído, e não notando sequer que as lágrimas lhe corriam pelas faces.

Balbuciou:

— O que faz ele, meu Deus? Onde está? Não se recolherá esta noite? E é no momento em que a ausência de meu pai ia permitir que nos víssemos sem constrangimento, e disséssemos que nos amávamos, é nesse momento que me atraiçoa! É horrível! Desejava morrer.

E a filha de Daniel Gaillet torcia as mãos, ao mesmo tempo que mil pensamentos confusos e delirantes se debatiam no seu cérebro. De repente estremeceu, e com perigo de perder o equilíbrio debruçou metade do corpo sobre o parapeito, esforçando-se por sondar as trevas.

Acabava de ouvir um passo precipitado sobre o passeio da rua; pareceu-lhe reconhecer o andar elástico e rápido de Pedro Carnot.

Logo em seguida apareceu e tornou-se distinto um vulto.

Clara soltou um pequeno grito. Levou a mão ao peito, e as per>-nas fraquejaram-lhe.

Era Pedro!

A porta da rua abriu-se, fechando-se no mesmo instante.

A jovem, deixou a janela e correu à porta.

 

Chegou-lhe aos ouvidos o ruído de passos na escada.

Entreabriu a porta e esperou.

Pedro subia sem luz segurando-se ao corrimão, e procurando os degraus com o pé. Chegou ao terceiro andar, e dispunha-se a continuar a sua ascensão.

Clara não o viu, adivinhou-o.

— Pedro, murmurou ela com uma voz fraca com um sopro. O jovem estupefato parou.

O som daquela querida voz acabava de lhe fazer vibrar todas as cordas do seu coração.

— É a minha Clara adorada? perguntou, aproximando-se da jovem cuja mão procurou nas trevas.

— Sou eu.

— Que faz aqui a estas horas? Que se passa, se o seu pai acordasse, se a ouvisse?

— Meu pai está ausente.

— Ausente! repetiu Pedro.

E não podia acreditar o que ouvia.

— Sim, confirmou Clara.

— Por toda a noite?

— Por muitos dias... E eu esperava-o, Deus sabe com que impaciência, para lhe notificar esta nova.

Como por ocasião da primeira entrevista, dois meses antes, Clara recuara um passo.

Pedro, cujos olhos se habituavam ás trevas, vendo livre a entrada, aproveitara-se para entrar na antecâmara.

Fechou a porta após si.

Todo o sangue das suas veias lhe afluía ao coração, e do coração subia-lhe ao cérebro.

— Ah! minha querida, murmurou apertando contra o coração a jovem que depois fingiu alguma resistência, vou pois livremente dizer-lhe e repetir-lhe cem vezes, mil vezes, o quanto a amo?

— É verdade, o senhor ama-me?

— Pois duvida disso?

— Por que é que hoje se recolhe tão tarde?

— Porque tive que prestar um serviço ao patrão, o qual tendo que concluir um trabalho urgente, fez apelo aos nossos bons desejos.

— Então esteve no escritório?

— Dou-lhe a minha palavra que estive. — Não me engana?

— Será preciso jurá-lo?

— Não esteve com outra mulher?

— Existe para mim outra mulher?

 

Enquanto falava, Clara tinha ido levando consigo Pedro para a sala de jantar, e não se lembrava sequer de acender uma luz. O jovem cingia-lhe a cintura, e deixava-se conduzir.

A filha de Daniel Gaillet soltou-se repentinamente.

— É impróprio o que estou fazendo! disse ela. Sou culpada recebendo-o assim de noite em casa de meu pai.

— Culpada! repetiu Pedro Carnot, culpada por que? Amamo-nos há dois meses, e apenas podemos trocar algumas palavras durante esse tempo... É crime aproveitar o primeiro momento feliz que a nossa boa estrela nos concede?

— Era preciso ao menos uma luz...

— Para que?... A sua imagem está tão gravada no meu coração, que para a ver tal qual é, basta olhar para dentro de mim mesmo.

Pela janela completamente aberta entrava alguma claridade que tornava as trevas menos opacas.

Pedro divisou junto da parede um amplo canapé.

Dirigiu-se para aquele movei e sentou-se.

Obrigou Clara a sentar-se ao lado dele.

As pupilas cintilavam-lhe nas trevas.

Em meio do silêncio profundo ouvia-se-lhe o coração bater, precipitadamente nas cavidades do peito.

O seu braço esquerdo tornara a cingir a jovem.

Fez descansar no seu ombro a cabeça da jovem e ficou silencioso por um instante.

Os seus cabelos tocavam-se; os seus bafos confundiam-se.

A jovem perdera toda a noção da realidade.

Como os fumadores de ópio vivia num sonho, e o mundo exterior já não existia para ela.

De repente Pedro Carnot murmurou:

— Como te amo!

Clara já não ouvia.

Pedro debruçou-se para a cabeça reclinada da jovem.

Nos seus lábios entreabertos apoiou os lábios.

A este beijo respondeu um suspiro da virgem extática.

Tornou a estabelecer-se o silêncio.

Foi rápido o despertar.

A filha de Daniel Gaillet tudo compreendeu.

Horrorizou-a a sua fraqueza inconsciente.

Rebentaram-lhe então dos olhos lágrimas repassadas de amargura.

Os beijos de Pedro Carnot secaram-nas.

Tinha vergonha de si mesma.

Pedro Carnot demonstrou-lhe que era muito tarde para se arrepender, e persuadia-lhe que todas as filhas de Eva a loura sucumbiam como ela ao desejo de morder a maçã.

Em vista disto, como era que se havia de corar de um pecadilho cometido em tão boa e numerosa companhia?

Clara não teve grande dificuldade em se deixar convencer.

Não tardou que só visse do amor os sorrisos, as esperanças, as alegrias...

O jovem devasso aproveitou a viagem de Daniel Gaillet para ensinar a Clara a mentir com aprumo, e a ocultar a sua falta sob a capa da hipocrisia.

A discípula aproveitou as lições do mestre.

Quando o polícia voltou, Clara acolheu-o com o rubor na fronte e o sorriso nos lábios.

O pobre pai não soube ler no rosto da filha que na sua ausência a desonra lhe invadira o lar doméstico.

 

O RAPTO

Pedro Carnot e Clara mal se viam depois do regresso de Daniel Gaillet, e as suas entrevistas limitavam-se a pequenos encontros na escada, a troca rápida de algumas palavras e de um beijo.

A jovem não ousava, nem entrar na casa do amante, nem recebê-lo em sua casa, onde o pai podia aparecer repentinamente.

Em questões de amor a abstinência forçada é o mais poderoso dos excitantes, e a paixão de Pedro atingia o seu paroxismo.

Haviam decorrido quatro meses.

Uma noite, Clara, pálida e com os olhos avermelhados, aproveitando um momento de solidão, subiu como uma louca ao andar superior, entrou no quarto de Pedro Carnot, deixou-se cair numa caldeira desfez-se em lágrimas.

O jovem perguntou-lhe espantado:

— Meu Deus, que tens? Que há de novo?

— Estou perdida...

— Teu pai sabe tudo?

— Ainda não, mas vai sabê-lo.

— Quem atraiçoará o nosso segredo?

Clara não respondeu senão por um gesto, e o seu amante compreendeu.

A desventurada sentira estremecer no seio a prova viva da sua falta.

— Meu pai não me perdoará, balbuciou, matar-me-á...

— Livrar-te-ei dele, minha queridinha, retorquiu Pedro.

— Como?

— Não nos tornaremos a separar.

— Explica-te.

— Não voltarás amanhã para casa de teu pai.

Pedro estava violentamente apaixonado pela jovem. A idéia de que ela ia dar à luz um filho seu embriagava-o. No dia seguinte estava já tudo preparado para a fuga. Pedro ainda tinha uns restos da herança da mãe.

Alugou num bairro afastado um pequeno quarto modesto, mobiliou-o de um modo muito simples mas decente e, quando a noite sobreveio, Clara saindo de casa com a cabeça baixa e o coração opresso, foi ter com o amante que a esperava num trem de praça, a> um canto da rua, e que a conduziu ao novo domicílio que ela dali em diante tinha de habitar com ele.

Daniel Gaillet, ao voltar para casa, achou em cima da mesa um: bilhete de três linhas dizendo a verdade.

Por pouco não o matou aquele inesperado golpe; tinha porém a alma enérgica e a constituição vigorosa.

Vendo o desespero, amaldiçoou a filha, e ocultou a vergonha.

— Não me amava, disse. Se me amasse, compreenderia facilmente que eu perdoava. Um pai perdoa sempre. Já não tenho filha. A minha filha morreu. Vou deitar luto por ela.

Entregue às alegrias da vida íntima com o amante. Clara esqueceu depressa o pobre abandonado da rua das Damas.

Amava, sentia-se amada, considerava-se feliz.

Parecia-lhe que a sua felicidade era a absolvição da sua falta.

Teve uma filha, e quis ela própria sustentá-la.

Este nascimento pareceu estreitar ainda mais os laços dos dois amantes.

Foi, porém, um por de sol esplêndido precedendo negros dias.

Depois de ter amamentado a filha, Clara caiu doente, e a sua doença foi, senão perigosa, pelo menos de longa duração.

Havia já muito que Pedro Carnot, absorto pelo seu fingido lar doméstico, tinha abandonado o escritório, onde trabalhava desde que esse estabelecimento se fundara.

Mas ficara sendo amigo de Malpertuis, o escriturário hipócrita e debochado, e via-o com intermitências.

Quando a doença da amante tornou enfadonho o lar, aproximou-se novamente do seu ex-colega, e tornou a partilhar a sua existência de jogador e libertino.

Pedro tomou amantes.

Clara chorou.

O dinheiro principiava a escassear.

Viviam de empréstimos.

A miséria era iminente, — a fria miséria, o lar sem fogo e o bufet sem pão.

A filha, que se chamava Branca — crescia, prometendo tornar-se maravilhosamente bela.

Um belo dia Malpertuis viu-se na rua.

Como o patrão o tivesse apanhado em flagrante delito de infidelidade, dissera-lhe:

— Você é um patife, mas não queria perdê-lo. Explique como bem lhe parecer a sua retirada aos companheiros, mas desapareça. Não quererei saber de você para nada; somente, se eu souber que procura obter colocação em algum cartório de Paris, a minha consciência obrigar-me-ía a falar.

Malpertuis deu-se por muito feliz, por lhe sair o negócio tão barato, e para subsistir recorreu a expedientes de toda a espécie, menos aos que eram decentes.

Pedro Carnot seguiu-lhe o exemplo.

Na casa da rua de Reuilly onde o casal clandestino residia, morava um mancebo de vinte e um ou vinte e dois anos, operário em papéis pintados, chamado Paulo Joubert.

Joubert ligara-se logo com Carnot e Malpertuis; mas tinha instintos honestos, hábitos regulares de trabalho, princípios de absoluta retidão.

Depois conheceu que não tinha nada a ganhar com o contato dos seus novos amigos, e separou-se deles sem afetação; mas sentia uma verdadeira simpatia pela pobre Clara, e mais de uma vez a socorreu secretamente quando a morte lhe batia à porta.

Pedro Carnot conheceu a origem do pouco bem estar de que faziam esmola à amante e à filha.

Sentiu, não reconhecimentos, mas irritação.

Acusou Clara de atrair o jovem com as suas garridices, e fechou a porta ao único amigo verdadeiro que ainda lhe podia estender a mão.

Diz o adágio: casa onde não há pão todos ralham e ninguém tem razão.

A miséria crescente ocasionava cenas violentas e censuras recíprocas.

Pedro Carnot levantava às vezes a mão para a filha de Daniel Gaillet.

Malpertuis intervinha para restabelecer a paz, levava consigo o seu inseparável e durante dias inteiros, cobertos de andrajos, esfarrapados, palmilhavam um com o outro o asfalto dos "boulevard" em busca de algum ingênuo, enquanto em casa a mãe e a filha tremiam de frio e choravam.

Com raros intervalos Pedro sentia vagos remorsos.

Arrependia-se do seu procedimento lembrando-se da infeliz a quem seduzira para a arrastar consigo ao abismo.

Pensava sobretudo na filha, pobre criança abandonada, à qual não tinha dado sequer o seu nome.

Triste dádiva!

Reaparecia então em casa, trazendo um pouco de dinheiro, produto do jogo, da escamotagem, ou do roubo... porque chegara ao roubo.

Freqüentava em companhia de Malpertuis os mais sinistros antros, os covis mais imundos.

Aprendia o calão dos bandidos e as manhas dos malfeitores para transviar a gente da polícia.

Fez-se guarda-costas de raparigas perdidas, estendeu a mão aos condenados soltos, solicitou as suas lições e embriagou-se na companhia deles com vinho e absinto.

Este meio abjeto parecia-lhe o seu verdadeiro elemento.

Respirava a plenos pulmões.

Esqueceu então a filha e a mãe, e não importava saber se estavam vivas ou mortas.

Apareceu um dia em casa.

Levava as mãos vazias.

Vinha ver se encontraria algum objeto esquecido, que se pudesse vender fosse por que preço fosse.

Baldada esperança!

Tudo se tinha ido sucessivamente, até a lã do colchão...

— Pedro, disse-lhe a vítima, há quarenta e oito horas que eu e a tua filha não comemos. Nada peço para mim... mereci a minha sorte... o castigo, por cruel que seja, é justo; mas peço pão para a sua filha.

— Não tenho nada, murmurou Pedro.

— O que, nem um sou?

— Não, nem um sou.

— Então Branca vai morrer!

Pedro Carnot baixou a cabeça e partiu, ou antes, fugiu sem responder.

Era terrível a posição.

Clara lembrou-se de Paulo Joubert.

Foi à casa dele para lhe implorar, porque a todo o custo era -preciso salvar Branca!

O jovem operário estava ausente, e só muito tarde devia voltar.

Não restava recurso algum.

Mais uma vez nem pão nem esperança.

 

Clara lembrou-se de Daniel Gaillet.

Só ele no mundo poderia ter piedade dela.

Percorreu-lhe o corpo um calafrio, enquanto os seus lábios murmuravam o nome do pai.

Deixara-o e esquecera-o havia tanto tempo!

Viveria ainda?

Como a acolheria, quando o tinha abandonado sem lhe dizer adeus, deixando-lhe a vergonha, a dor, a solidão?

Mas Clara murmurou com uma resolução feroz:

— Ora, que importa? Afinal de contas Branca é sua neta, e não tem culpa da minha falta. Irei pedir-lhe pão... não o recusará para ela...

Tomando a criança nos braços, depois de deitar sobre os ombros uma capa de peles remendada com muitos pontos, partiu para a rua das Damas.

A noite caía, e o caminho era longo.

Enquanto a infeliz mãe se punha a caminho, Pedro Carnot descia a passo rápido a rua de Reuilly e dirigia-se para a rua de Santo Antônio.

— Vai morrer! A pequena vai morrer! repetia maquinalmente; é preciso pão...

Numa das bifurcações da grande artéria achava-se nesta época um botequim de triste aspecto, freqüentado por pessoas sem crédito e bem conhecidas da justiça.

Pedro entrou e dirigiu-se para Malpertuis.

O ex-empregado estava sentado a um canto, com os cotovelos apoiados a uma mesa ensebada, em frente de um copo de aguardente.

O amigo tocou-lhe no ombro.

Estremeceu.

Levantando a cabeça, disse ao reconhecer o recém-chegado, e designando um lugar ao lado dele:

— Senta-te e bebe.

— Não, paga e vem, replicou Pedro. Tenho que te falar.

— Não podes falar-me aqui?

— Não... vem, e avia-te. É urgente.

Como sabemos, Pedro Carnot dominava Malpertuis. Este, apesar de descontente por o haverem incomodado e encolhendo os ombros, levantou-se, pagou, e saiu da tasca. No passeio da rua parou.

— Fala agora, disse ele.

— Já vai. Primeiro segue-me.

Dirigiram-se silenciosamente para a praça da Bastilha. Pedro encaminhou-se para uma das escadas que conduziam ao canal de Saint-Martin, e dispôs-se a descer a escada. Malpertuis tornou a parar quase assustado.

— Mas espera, decididamente, perguntou, aonde vamos?

— A um lugar muito perto, por que hesitas? Parece-me que não terás medo de mim?

Desceram juntos à praia.

Pedro Carnot pegou na mão do companheiro, levou-o para baixo <ia abóbada, e sentou-se no parapeito com as pernas pendentes.

— Aqui estaremos bem. Ninguém virá incomodar-nos. Ninguém nos poderá ouvir.

— Estou ouvindo, mas sempre te digo que escolheste um lugar bem esquisito para conversar. Estás hoje com uma cara muito singular! Se não te tivesse visto caminhar muito direito há pouco, julgar-te-ia bêbado.

— Pois não estou.

— O que temos então?

— O que temos? respondeu Pedro com uma voz sombria. A vida abominável que levamos pesa-me. A miséria sufoca-me. Já basta de farrapos. Na nossa idade e com a nossa inteligência, ou antes apesar da nossa inteligência, somos idiotas se não conseguirmos erguer-nos, refazer-nos, transformar-nos.

— E o meio? murmurou Malpertuis com uma voz arrastada, Eu, por mim não tenho coragem, nem energia. Pertencemos presentemente à classe dos vadios, dos perdidos. A nossa sorte está clara... vamos de queda em queda, famintos esfarrapados, trânsidos, sem encontrar uma tábua de salvação, até ao trambolhão final, a vala comum.

— Alma de cachorro!... exclamou Pedro Carnot num tom desprezativo. Dizes isso porque não tens ânimo de por tudo numa carta. Obstinas-te em pairar em volta da polícia correcional, e o tribunal mete-te medo. Esta manhã ainda pensava como tu. Mas agora mudei de opinião.

— Ah! sim!

— Precisamos de dinheiro! continuou o amante de Clara. Precisamos dele para deitarmos à margem os nossos andrajos de Roberto Macário e de Bertrand! Precisamos de alguns fundos para tentar uma partida decisiva contra a fortuna, baralhar as cartas e ganhar! Precisamos de dinheiro para não sermos constrangidos a deitarmo-nos à água como quaisquer parvos, e para salvar a pequena que há dois dias não come e morre de fome!...

 

OS CONSPIRADORES

João Malpertuis estremeceu dos pés até à cabeça. As palavras sinistras e a voz sombria de Pedro oprimiam-lhe o coração.

— Branca morre de fome! repetiu. — Sim, Branca e sua mãe.

— E eu, eu bebi esta noite! Mil raios! se tivesse sabido...

— Portanto, mais uma vez, precisamos de dinheiro, continuou Pedro Carnot. Precisamos esta noite, precisamos já.

— Mas aonde o queres ir buscar?

— Não te parece que cem mil francos nos endireitavam a vida?

— Cem mil francos! exclamou Malpertuis. Isso era uma fortuna...

—E o que faríamos com esse dinheiro?

— Eu to digo. O meu antigo patrão acaba de morrer... Não falou de mim a ninguém. Ninguém tem nada a dizer de mim... O meu cadastro na justiça está virgem, e estou puro como a neve... Podia-se comprar em meu nome um cartório de advogado, ou pelo menos por um, porque os estabelecimentos afreguezados são caros... Ativo como sou, e experimentado nos negócios, em menos de um ano obteria uma grande freguesia. Tu intitular-te-ias meu fornecedor de fundos, e por conseqüência meu sócio, e repartiríamos entre nós os lucros. Mas onde estão os cem mil francos, sabes?

— Sei.

— Onde? dize lá.

— Numa casa da rua de Amsterdam... no "rez-de-chaussée" os fundos da casa dão para grandes jardins, onde se pode penetrar sem a menor dificuldade.

— Ah! ah! murmurou João Malpertuis. Um "rez-de-chaussée"... grandes jardins...

— Mas espera lá tornou Pedro, não disse tudo... Os cem mil francos estão no cofre de um escritório, cuja chave está aqui.

Tirou da algibeira um molho de chaves.

— Essas chaves? exclamou o ex-empregado de escritório completamente desvairado.

— Uma das chaves abre a porta de casa, e a outra o cofre.

— Como sabes tu isso? Como apanhaste esse molho de chaves?

— Por um acaso... Eu tinha ido passear pela a gare do Havre, esperando a ocasião de roubar uma mala ou um saco de viagem, porque a tanto chegamos nós, rapazes finos, filhos famílias!

"Não se apresentava a ocasião procurada.

"Algumas palavras proferidas a meu lado fizeram-me por o ouvido à escuta.

"Ouvi o diálogo dos dois, um dos quais podia ter sessenta e cinco anos, e o outro vinte e cinco.

"O moço era o genro do velho.

"O sogro dizia ao genro:

"— Fica entendido, meu querido Maurício, amanhã pela manhã irá levar ao banco os cem mil francos em bilhetes de mil francos que guardei na secretária do meu gabinete do "rez-de-chaussée", cujas chaves o senhor tem como eu.

"E dizendo isto mostrava um molho de chaves que fazia saltitar na ponta dos dedos, e que arrecadou na algibeira do sobretudo.

"Estava a dois passos dele, ao pé do guichê, onde se entregam os bilhetes para o Havre.

"Não perdia a algibeira de vista.

"— Sossegue, retorquiu o genro. Seguirei religiosamente a sua recomendação, querido sogro.

"Sei que se pode contar consigo. Eis o momento de nos separarmos. Vou comprar o meu bilhete.

"Apertou a mão do mancebo e aproximou-se do postigo.

"Rodeava-nos a multidão... houve alguns empurrões.

"O bom do homem subiu a escada que conduzia às salas de espera.

"Tinha as chaves."

— Bravo! disse Malpertuis, és um hábil maganão. Pedro Carnot continuou:

— O genro deixou-se ficar para dizer um último adeus ao sogro, depois rodou sobre os calcanhares, e retirou-se da gare.

"Como era natural seguiu-o.

"Era preciso saber onde ficavam a casa, o gabinete, e a secretária, cujas chaves eu tinha na algibeira.

"Não tive que ir muito longe.

"O jovem tornou a subir a rua de Amsterdam, e um pouco acima da rua de Londres, entrou num grande barracão de madeira, fechado por uma paliçada e uma grade.

"A caixa e o escritório ocupam uma espécie de chalé, ao lado do edifício principal, detrás do qual se acham os jardins principais.

"Sabia quanto queria.

"Bastara-me um simples relancear de olhos.

"Os cem mil francos dormem neste momento numa gaveta da secretária de M. Rouvenay, comerciante de madeiras, mas não ficam lá se quiseres acompanhar-me.

— Não haverá efração?

— Simples escalamento.

— É negócio para trabalhos forçados; mas quem não arriscou não perdeu nem ganhou.

— Então sempre vais?

— Sim.

— Quando? -Já.

— É muito cedo para tentar qualquer coisa.

— É verdade, mas precisamos de saber a que horas apagam as luzes, e se algum guarda dorme no escritório contíguo à casa da habitação.

— Ê justo! Então a caminho!

 

Malpertuis e Pedro Carnot deixaram a borda do canal.

Acabavam de dar nove horas da noite.

Os dois bandidos seguiram até à Magdalena pelos "boulevards" ruidosos e resplandecentes, e chegaram à praça do Havre pela rua de Amsterdam.

Eram quase dez horas quando pararam em frente da grade que fechava o barracão.

As tabuinhas da caixa e do escritório estavam fechadas; pelos interstícios via-se brilhar a luz.

— É ali, mas há gente.

— O genro, ou talvez o caixa, pondo em ordem a sua contabilidade.

— Se a final alguém dormisse no escritório, disse o amante de Clara com uma voz abafada, não haveria sorte!

— Seria preciso manejar o ferro, acrescentou Malpertuis. Guilhotina em vez da galé! Mudaria a tese, tanto mais que o genro deu pelo roubo das chaves, e pode ter prevenido o sogro...

— Veremos, replicou Pedro; é preciso esperar.

E puseram-se a passear silenciosos por diante da grade, de um lado para o outro, mas tendo sempre o cuidado de não perderem de vista o edifício.

A porta abriu-se repentinamente; apareceu um rapaz com um castiçal na mão.

A luz do castiçal iluminava-lhe o rosto.

— É o genro... segredou Pedro ao seu cúmplice.

— Atenção!

Maurício, o genro do negociante de madeiras, fechava com duas voltas de chave a porta do escritório.

Tornou a meter a chave na algibeira, dirigiu-se para a casa principal, entrou e desapareceu.

Ouviram-no de um modo muito distinto fazer girar a chave na fechadura, e correr os fechos; depois, decorreram alguns segundos, e iluminou-se uma janela do primeiro andar.

Malpertuis disse baixinho a Pedro:

— Vai deitar-se...

— É provável. Encaminhemo-nos para o passeio da frente, e não percamos a janela de vista...

 

Na época em que se passavam os fatos que estamos narrando, a rua de Amsterdam, na sua parte superior tinha muito menos edificações que hoje.

No lugar onde hoje se elevam soberbas casas, viam-se numerosos depósitos de madeira, e modestos pavilhões, por trás dos quais se estendiam ou jardins ou terrenos desocupados.

Pedro e Malpertuis observavam a janela.

De repente a luz apagou-se.

— Lá faz ó-ó o menino, exclamou Malpertuis.

— Ainda não, mas não tardará. Ocupemo-nos agora dos fundos da casa.

— Conheces o caminho?

— Conheço, examinei, há pouco, tudo. Vem.

Pedro Carnot tomou pela rua de Berlin, depois pela rua de Turin, ocupada quase completamente por barracões, e fez alto defronte de uma parede da altura de dois metros e meio, ensombrada por algumas árvores antigas.

— É aqui que será preciso subir? perguntou Malpertuis.

— É, mas não te parece prudente esperar ainda um pouco?

— Para que? Ninguém passa... Do outro lado poderemos esperar tão bem como daqui. Em outros tempos fizeste ginástica, não é verdade?

— Era até um pouco pimpão na arte.

— Bem, eu sirvo-te de escada... Uma vez no espigão do muro dar-me-ás a mão... não preciso de mais...

E dizendo isto, Malpertuis encostava-se ao muro.

Pedro serviu-se das mãos cruzadas, depois dos ombros do companheiro, e chegou ao alto do muro.

Assim que se viu sòlidamente instalado, debruçou-se, estendeu as mãos, e Malpertuis agarrando-se a elas, estava dali a pouco ao lado dele.

Dali saltaram para uma caixa, cuja terra revolvida de fresco, amorteceu o ruído da queda.

O jardim tinha muito arvoredo.

Embrenharam-se por ele e armaram-se de paciência.

No relógio da gare do Havre deu meia noite.

— Eis o momento... disse Malpertuis.

— Mas espera! murmurou Pedro Carnot, a gente não se lembra de tudo... Não teremos luz.

— Tenho na algibeira uma caixa de fósforos... Havemos, de certo, de achar alguma vela por cima de algum móvel, mas se pudéssemos operar às escuras, melhor seria Vamos...

Malpertuis deu alguns passos e parou.

— Demônio! exclamou ele cocando na orelha, há talvez algum cão...

— Certifiquei-me de que não havia...

— Então tudo vai bem. Estudaste o terreno de dia. Guia-me.

— Existe de certo alguma porta que comunica o jardim com o barracão.

— De que lado?

— Deve existir à direita.

— Alcancemos o muro e sigamos.

Os dois patifes atravessaram a relva e os arbustos, e meteram-se por uma alameda paralela ao muro.

— Caminhemos sobre os tabuleiros do jardim, observou Malpertuis; a areia range.

Passado um instante acharam-se defronte de uma porta de clara-bóia, que não estava fechada; deslizaram para dentro do barracão, meteram-se por detrás das pilhas de madeira, e contendo a respiração puseram o ouvido à escuta.

Tudo estava silencioso.

Em frente erguia-se a casa de habitação como uma sombra mole.

Pedro disse então em voz baixa:

— Contornemos as pilhas de madeira, alcançaremos o pavilhão onde está a caixa, sem nos mostrarmos. É preciso cautela, a noite está clara.

A dez passos do pavilhão pararam.

Malpertuis inclinou-se então para o cúmplice, e segredou-lhe estas palavras:

— Atravessa só, e serve-te das chaves. Quando a porta estiver aberta irei ter contigo.

Pedro Carnot pegou no molho das chaves.

Transpôs a distância com precaução.

Caminhava nas pontas dos pés.

Experimentou uma chave.

Era a que servia.

A porta girou sem ruído nos gonzos.

Malpertuis afastou-se da pilha de madeira que o abrigava, foi ter com Pedro e entrou atrás dele.

Empurrou a porta, tendo o cuidado de não a fechar completamente.

— Podes andar sem luz? perguntou.

— É impossível. Acende um fósforo. O outro obedeceu.

O fósforo chamejou.

Ao seu clarão pode-se ver uma porta com uma chapa de cobre tendo as seguintes palavras gravadas:

GABINETE E CAIXA

— É aqui, apaga.

Pedro experimentou três chaves sem resultado.

A quarta chave fez girar a lingüeta, e a porta do escritório abriu-se escancarando um espaço escuro.

— Depressa, um segundo fósforo.

A chama vacilante iluminou a casa.

Uma grande secretária-cofre ocupava o meio da casa.

Em cima do cofre havia um castiçal.

— Acende a vela, tornou Pedro, é impossível passarmos adiante.

— Pronto. Agora à caixa!

— É atacar! Dizer que dentro de meio minuto seremos ricos! Olha que faz perder a cabeça!

 

A SORTE GRANDE

Pedro Carnot tinha já posto mãos à obra.

A chave girou, e a gaveta abriu-se.

Uns cem luíses e alguns miúdos brilhavam nos compartimentos..

— É preciso não desperdiçar nada, murmurou Pedro, e despejando sobre uma pasta a gaveta superior, meteu o dinheiro na algibeira.

Passou em seguida a explorar as profundezas da caixa. As suas mãos encontraram uma carteira muito cheia. Entreabriu-a e estremeceu de alegria à vista das notas do banco.

— Cá está a pechincha, disse ele.

— Ponhamos tudo em ordem e safemo-nos. A gaveta tornou-se a fechar.

Malpertuis tornou a por o castiçal em cima da mesa e apagou-o.

Fecharam cuidadosamente a porta do gabinete, como também a do pavilhão, e dez minutos depois tinham transposto novamente o muro que costeava a rua de Turim, e achavam-se em segurança.

Pedro apoiava a mão direita na carteira, colocada entre a camisa e a carne, debaixo do colete e do paletó abotoado.

Os dois homens subiram para a barreira do Clichy; caminhavam rápido sem falar.

Quando chegaram ao muro da circunvalação, Malpertuis parou.

— Respiremos um pouco, disse ele, e resolvamos o que se há de fazer.

— Vamos para casa, respondeu Pedro Carnot, no Faubourg ainda encontraremos tabernas abertas. Compraremos alimento para a pequena.

Malpertuis voltou-lhe:

— Desejava saber se há ao certo cem mil francos na carteira.

— Lá em casa verificaremos. — Diante de Clara?

— Ora, o que importa Clara? Temos dinheiro, é o essencial. Clara não se ocupará do resto.

— Tomemos então uma carruagem na barreira. Far-nos-emos-conduzir até ao arrabalde. De lá partiremos para a rua de Reuilly e para o teu domicílio.

Tens razão... A pé não chegaríamos nunca. E os dois bandidos fizeram-se a caminho.

 

Deixá-los-emos seguir o seu destino.

Vamos ter novamente com Clara Gaillet e a filha.

Como dissemos, a noite caía no momento em que a desventurada deixava a rua de Reuilly na companhia de Branca, para implorar a caridade do pai.

Enfraquecida por longas privações e pela fome que lhe torturava as entranhas, com dificuldade podia caminhar.

Contudo, a vontade amparava-a, e ela impunha-lhe ao corpo desfalecido.

Pelo caminho, Clara repelia o melhor que podia os pensamentos desanimadores que a preocupavam.

Mas no seu espírito surgiam terríveis pontos de interrogações.

Acharia o pai?

Habitaria ainda a mesma casa?

Não lhe teriam os desgostos e a vergonha abreviado a existência.

No momento preciso em que Pedro Carnot e Malpertuis faziam alto na rua de Amsterdam, defronte do depósito de madeiras do senhor Rommenay, combinando os meios de execução do projetado roubo, Clara, chegava em frente da casa da rua das Damas onde fora criada, onde tinha conhecido Pedro Carnot, onde fora culpada, onde tinha sido amaldiçoada.

Ao ver aquela casa foi acometida de um tremor nervoso e dos olhos brotaram-lhe torrentes de lágrimas.

Nas vidraças não brilhava nenhuma luz.

Clara fez um violento esforço sobre si mesma, invocou toda a sua coragem e atravessou a calçada.

— Já é tarde, disse ela consigo mesma. Se meu pai mora ainda aqui já se deve ter recolhido... Bato e ele abre-me.

Aproximou-se da porta da rua.

A parte superior da porta tinha um vidro protegido por uma grade de ferro.

Clara viu luz no cubículo da porteira e na escada através da grade.

A porteira não apagara o gás e não estava deitada.

Clara pôs a criança no chão e puxou com mão febril.

A porta abriu-se.

Entrou e dirigiu-se para o cubículo da porteira.

Esta trabalhava numa obra de costura.

Durante um instante a vergonha fizera hesitar a filha do polícia.

Receava ser conhecida.

Tranqüilizou-se quando viu uma cara nova.

Esta mulher entrara para a casa depois da sua fuga.

Não a conhecia portanto.

Avançou então resolutamente.

A porteira olhou para ela com um modo compassivo, porque.a viu muito pálida e mal parecia ter-se de pé.

— Que deseja? perguntou-lhe.

— Saber se o senhor Daniel Gaillet ainda aqui mora, balbuciou Clara.

— Ainda, sim senhora.

— A recém-chegada sentiu a esperança invadir-lhe o coração. Seu pai vivia ainda.

Não recusaria, de certo, salvar Branca. Tornou:

— O senhor Gaillet está ainda em casa?

— Não, senhora, ainda não entrou. Queria falar-lhe ainda esta noite?

— Sim, senhora.

— Trata-se pois de uma coisa urgente?

— Muito urgente, sim senhora. Eu e minha filha vimos de muito longe. Mandaram-me procurá-lo.

A porteira tornou a olhar para a pobre criatura cujas faces lívidas apresentavam vestígios de grandes sofrimentos.

Sentia-se comovida e perguntava a si própria o que aquela jovem mãe e aquela enfezada criança poderiam querer a Daniel Gaillet, e donde vinham quebradas de fadiga.

— Não sei a que horas voltará o senhor Gaillet, mas por certo que não se demorará muito. Tem por força de lhe falar hoje?

— Oh! absolutamente. É urgente.

— Então sente-se para esperar um pouco. Estará melhor aqui que na rua.

O oferecimento foi feito com uma benevolência que impressionou Clara.

Entendeu, contudo, que não devia aceitar.

A sua coragem não chegava a ponto de lhe permitir afrontar o primeiro olhar de seu pai na presença de uma estranha.

 

— Agradeço-lhe, senhora, disse, agradeço-lhe de todo o meu coração.

— E aceita?

— Não. Prefiro passear um instante pela rua. Tenho precisão de ar.

— Mas parece fatigada, senhora, e a criança também.

— Não é nada.

— À vontade. Tenciona então voltar? — Sim, senhora.

— É que se o senhor Gaillet voltar tarde estarei deitada e terei apagado o gás.

— Não será preciso incomodar-se. O senhor Gaillet mora no terceiro andar... conhece-me... Irei bater à sua porta.

A porteira olhou para a sua interlocutora com uma surpresa que ia em aumentando e perguntou:

— Devo prevenir o senhor Daniel Gaillet de que vai voltar? — Se faz favor...

— Então diga-me como se chama. Clara acudiu com vivacidade:

— Diga-lhe somente que alguém veio pedir para lhe falar, e mil vezes obrigada...

Saiu do cubículo, depois da casa, fechando a porta após si.

— Temos um mistério, pensou a porteira intrigada com aquela visita singular, e sobretudo com as reticências da jovem. Quem poderá ser esta sujeita! Ela vem na verdade de longe, com a sua pálida sirigaita, porque ambas têm cara de morrer de fadiga. Proponho-lhe que se assente, recusa... Pergunto-lhe se devo prevenir o locatário... Diz que sim, mas não quer dizer o nome. Sabe que ele mora no terceiro andar, portanto ela já cá veio. Coisa singular! Por acaso o senhor Gaillet, que aliás parece pessoa de muito juízo, fez alguma partida à pequena? Valha-me Deus, os homens são tão pouco escrupulosos! Em todo o caso interessam-me tanto a pobre mulher como a garotita, com as suas caras engoiadas... Devem ser umas pobres de Cristo!

E a porteira deitou-se novamente ao trabalho.

 

Ao saber da nova fatal da fuga de Clara, amaldiçoara Daniel Gaillet, a filha (repetimo-lo), e ocultara a sua vergonha.

Ferido por um golpe tanto mais terrível quanto era inesperado,, entregara-se a princípio a um desespero repassado de furor.

Nos primeiros transportes da sua raiva lembrou-se de se queixar aos chefes, e de reclamar o seu auxílio para tornar a encontrar a filha e o miserável que a seduzira... após uma noite de reflexão não deu seguimento ao seu projeto.

Considerou que a partir daquele momento Clara ficara perdida para ele, que se a encontrasse não lhe seria restituída a honra, e que ia cobrir o seu próprio nome de opróbrio, divulgando o que acabava de se passar.

— Já não tenho filhos, disse.

Uma história inventada por ele pôs termo a todos os comentários que forçosamente se haviam de produzir.

Contou que a filha fora viver no campo, junto de uma das suas parentes de idade muito avançada.

Alguns acreditaram de boa fé esta narrativa.

Outros duvidaram, mas, respeitando a dor que se manifestava no rosto do pobre homem, lastimaram-no e guardaram silêncio.

Daniel Gaillet desejava esquecer que tinha uma filha.

Não o conseguiu, e apoderou-se dele o desejo imperioso, não' de a ir buscar, mas de saber o que fora feito dela.

Polícia hábil, procedeu a um inquérito, sem confiar a ninguém o seu segredo, e adquiriu a certeza de que Clara tinha partido com o jovem que morava no quarto andar do prédio, e se chamava Pedro Carnot.

Pôs-se então em busca de Pedro Carnot.

Não foi possível encontrá-lo.

No fim de alguns meses interrompeu as suas pesquisas inúteis, e persuadiu-se de que já não pensava em Clara.

Ilusão ou mentira!

A ferida do seu coração, profunda e dolorosa, não cessava de sangrar.

 

Voltemos a Clara.

A filha de Pedro Gaillet, com a pequena Branca nos braços,, passeava lentamente no passeio da rua, extenuada, sem poder mais, fazendo apelo a tudo o que lhe restava de forças, pensando, aterrada, alucinada, na entrevista que se preparava...

— Mamãezinha, balbuciou de repente a criança com voz trêmula, doi-me aqui!

E Branca punha a mão diáfana no peito emagrecido. Clara conservou-se calada.

Mas o rosto contraiu-se-lhe, enquanto uma lágrima grande lhe deslizava pela face.

— Não me respondes, mamãezinha? tornou Branca.

— Sim, minha filha, daqui a pouco não te doerá nada. Vê se tens juizinho.

A criança encostou a cabeça ao peito ofegante da mãe.

De repente, chegou aos ouvidos de Clara um ruído de passos.

Voltou-se, e à luz de um bico de gás, avistou um homem que seguia o passeio oposto, e se dirigia para o seu lado.

Ao pé dela havia uma porta.

Quase sem tino, mal se tendo de pé, encostou-se ao vão da porta, por forma que desapareceu nas trevas.

Acabava de reconhecer Daniel Gaillet, seu pai.

 

PAI E FILHA

Clara murmurou então com profundo desânimo:

— É ele! ali! não terei nunca a coragem de arrostar a sua presença, nem a força de lhe falar.

Daniel acabava de passar por diante da filha sem a ver, e parava alguns passos mais adiante.

Tocou.

A porta abriu-se para o deixar entrar, e fechou-se no mesmo instante.

A porteira ia subir para apagar o gás na escada.

— É o senhor Gaillet? perguntou reconhecendo o polícia.

— Sim, boa mulher, eu hoje volto tarde, e fi-la esperar.

— Não importa, senhor Gaillet... Encontrou alguém na rua?

— Se encontrei alguém na rua? retorquiu Daniel, admirado da pergunta.

— Sim, muito próximo daqui.

— Não vi ninguém. Por que me pergunta isso? Devia por acaso encontrar alguém?

— Devia.

— Quem?

— Uma rapariga, com uma criança nos braços, e que veio perguntar pelo senhor...

— Eu? Tem a certeza de que é por mim que ela procura?

— Oh! toda a certeza, senhor Gaillet. Ela também o conhece ao senhor. Vem de longe, e tinha precisão de lhe falar esta noite mesmo para negócio urgente.

— O nome?

— Não o quis dizer. A pobre mulher tinha uma cara apoquentada, e não se podia ter em pé. Propus-lhe que esperasse aqui, mas preferiu tomar ar na rua.

Daniel, muito intrigado, cogitava debalde quem podia ser aquela visita noturna.

— Há quanto tempo se passou isso?

— Há uns vinte ou vinte e cinco minutos...

— Pareceu que a rua estava solitária.

— A tal pessoa mostrou, contudo, desejos de lhe falar hoje.

— Mudou talvez de opinião, e vem amanhã. Deu-lhe a entender qual o fim da sua visita?

— Oh! isso não.

— Então não sei o que possa ser. Obrigado, minha senhora, e boa noite.

Enquanto falava, Daniel ia subindo pela escada. A porteira tornou:

— Se a tal pessoa voltar, devo deixá-la subir?

— Sim, mas se não passar da meia noite, porque à meia noite já hei de estar deitado...

— Basta, senhor Gaillet.

— E a porteira subiu atrás do polícia, para apagar o gás aos andares superiores.

Daniel entrou.

Apoderava-se do seu espírito uma vaga inquietação.

Perguntava a si mesmo:

— Uma rapariga com uma criança a semelhante hora! Quem' poderá ser? Será alguém que me mandam da prefeitura para que eu proceda a investigações particulares? É uma coisa que tem sucedido por mais de uma vez. Veremos. Ainda não são onze horas... Tenho certos apontamentos a por em ordem. Só me deitarei à meia noite.

Depois de ter acendido o candieiro, e de haver tirado o chapéu e o paletó, Gaillet entrou no seu quarto, e sentou-se à sua secretária.

Depois da época em que a filha fugira, o pobre homem envelhecera de uma maneira terrível e quase inacreditável.

Tinha os cabelos brancos.

As rugas profundas da sua fronte, revelaram pungentes dores e longas noites de insônia.

Ao avistar aquele a quem tanto fizera sofrer, Clara cambaleara, como sabemos, e tinham-lhe escapado dos lábios estas palavras:

— Ah! Nunca terei coragem para arrostar a sua presença, nem força para lhe falar.

Ia arrastada, voltar pelo interminável caminho da rua de Reuilly, quando Branca murmurou como um sopro:

— Mãe, mãezinha, tenho muita fome.

Ao ouvir este queixume infantil, Clara sentiu-se abalada no mais profundo do seu ser.

O amor maternal sobre-excitado, restituiu-lhe um simulacro de forças, e galvanizou-lhe a desfalecida energia.

Reagiu contra a vergonha e contra o medo.

Branca padecia...

Ia talvez morrer, à falta de um pedaço de pão.

Que lhe importavam agora a cólera e as merecidas repreensões do pai?

— Que meu pai me mate, se quiser, pensou, mas que a minha filha se salve!...

E apertou a filha contra o peito com uma febre, ou antes com um ímpeto de ternura, e correu para a casa donde fugira numa noite sombria como aquela.

Tocou.

A porteira, que tornara a descer e se dispunha a ir para a cama, por já estarem recolhidos todos os locatários, puxou logo a corda.

Clara entrou no corredor.

— Ah! está aí! exclamou a porteira; já não a esperava esta. noite...

— O senhor Gaillet? balbuciou com uma voz trêmula.

— Entrou há cinco minutos.

— Disse-lhe que o tinham vindo procurar e que voltariam?

— Disse.

— E então?

— Espera-a...

— Obrigado, senhora; subo depressa.

— Espere, deixe-me alumiá-la.

— É escusado. É no terceiro andar, na porta em frente... bem sei.

E Clara, recuperando um vigor inexplicável, subiu rapidamente a escada.

Chegando ao patamar do terceiro andar, fez alto.

A febre apoderava-se dela novamente.

A sua mão prestes a puxar pela campainha, hesitava.

— Mamãezinha, tenho fome... repetiu Branca. Um soluço convulsivo sufocou Clara.

Não hesitou, e o toque da campainha ressoou lugubremente no silêncio da noite.

A pobre mulher tremia toda.

Ouviu um ruído de passos, e a porta abriu-se repentinamente.

Seu pai estava diante dela com uma luz na mão.

Daniel Gaillet reconheceu a filha.

Soltou um grito abafado, cambaleou como um homem ébrio, e recuou alguns passos.

Clara entrou, fechou a porta após si, caiu de joelhos, erguendo a filha nos braços, desatou a soluçar.

O polícia encostava-se à parede para não cair.

Tinha os olhos espantados, os cabelos eriçados, os lábios descorados e trêmulos.

Durante alguns segundos poder-se-ia supor que ia cair fulminado pela apoplexia.

O abalo foi terrível.

Todo o passado surgiu perante Daniel Gaillet.

No seu íntimo, a cólera desencadeava-se como formidável tempestade.

De súbito, sem transição, aquela terrível cólera cedeu o lugar a uma tranqüilidade mais terrível ainda.

De lívido tornou-se-lhe então avermelhado o rosto, os olhos deixaram de estar espantados, e os lábios de tremer.

Proferiu então com voz sibilante:

— Ah! é a senhora! A senhora nesta casa que abandonou deixando nela a solidão, o desespero, a vergonha. Que vem aqui procurar?

Clara estava ofegante.

As suas lágrimas secavam-se ao tocarem na pele queimada pela febre, ao mesmo tempo que a voz do pai lhe produzia um calafrio nas fibras interiores.

Balbuciou:

— Venho procurar pão para minha filha, que há dois dias não come...

Branca deslizando das mãos da mãe, tinha também caído de joelhos e murmurava:

— Tenho fome... tenho muita fome...

Daniel Gaillet como que sentiu um ferro em brasa atravessar-lhe o coração.

Estas duas vozes suplicantes faziam-lhe um mal terrível, mas lembrou-se do que tinha sofrido.

Disse consigo que a compaixão seria uma cobardia. Resolveu ser inflexível.

 

— A sua filha tem fome, murmurou. Que me importa? Que vá pedir pão ao pai. Porque vem ter comigo? Não a conheço.

Clara diligenciou responder; foi debalde.

Nenhum som lhe saiu da garganta contraída e dos lábios secos.

Daniel continuou:

— Tinha uma filha que sua mãe, minha santa mulher, me deixara... Via-a crescer meiga, submissa, casta, parecia-me rever nela todas as virtudes daquela por quem au ainda chorava... Não lhe faltava nada para ser feliz, porque era ternamente amada, gozando de uma completa liberdade, e possuindo toda a minha confiança... Julgava-me um pai feliz, não passava de um triste iludido. A filha em quem via um anjo, enganava-me! Aos dezesseis anos excedir em impudor a última das perdidas! Manchava a casa onde a mãe vivera amando-a, onde morrera abençoando-a! Coroava a obra fugindo do teto paterno pelo braço de um miserável que me era preferido. Partira sem me conceder sequer a esmola de um último beijo!... Que foi feito dela? Não sei! Creio e espero que esteja morta, porque prefiro vê-la no túmulo, do que viva no lodaçal... Se conheceu minha filha, sabe que é verdade tudo quanto acabo de lhe dizer. Por que se dirige a mim, e o que há de comum entre nós?

Clara torceu as mãos, e bradou com uma voz dilacerante:

— Piedade! Piedade! não para mim, mas para minha filha... Branca, abatida pelo febre, agachara-se.

Olhava sem compreender e tremia. Daniel Gaillet encolheu os ombros.

— Repito, exclamou com uma voz cortante como o gume da guilhotina, que me importa sua filha? Não conheço esses filhos sem nome, esses filhos bastardos, cujo nascimento é uma mancha, e cuja existência é uma vergonha... Se fosse minha filha, dir-lhe-ia: Amaldiçoei-a no dia em que soube da sua infâmia!... Acrescentaria: — Tomo a amaldiçoá-la, à senhora e ao filho das suas entranhas! Saia e não volte nunca aqui! Nunca! Ouve! Nunca! Dir-lhe-ia isto se fosse minha filha... mas já não tenho filha.

— Pão murmurou Clara, pão para ela!

— Não tenho pão, nem para a senhora, nem para ela! retorquiu Daniel Gaillet. Não a conheço... Saia!

E com a mão estendida, indicava a porta.

Clara erguera-se fria como um cadáver.

Tremiam-lhe os membros.

Os dentes batiam-lhe.

Tomou nos braços Branca quase desmaiada, e curvando a cabeça sob o gesto terrível do pai, saiu de recuo.

Parecia uma sonâmbula caminhando, sem ter consciência disso, num acesso de sono magnético.

Nem um soluço, nem um gemido, nem um grito, nem uma lágrima...

Tinha os olhos secos e brilhantes, a respiração opressa, o peito sibilante, os movimentos automáticos.

Assim que saiu, a porta fechou-se.

Atravessou o patamar.

Desceu a escada às escuras, sem se segurar ao corrimão, e sem dar um passo em falso.

A final bateu na vidraça do cubículo.

A porta da rua abriu-se no mesmo instante, e ela saiu para a rua.

Assim que se viu na rua deserta, as forças fictícias que a sustentavam abandonaram-na imediatamente.

Caiu, ou antes vergou de joelhos sobre a calçada.

Levantou os olhos ao céu, e exclamou mais com o coração, que com os lábios:

— Oh! Meu Deus... meu Deus... vós sois desapiedado, mas justo! Com o meu abandono, mergulhei no desespero a velhice de meu pai. Sofreu por minha causa, e vós castigais-me ferindo-me a filha! Branca vai morrer de fome nos meus braços.

Proferindo estas palavras, Clara levantou-se em delírio.

— Não! exclamou quase em voz alta. Não há de morrer! Não quero que morra! Pedirei esmola! Se preciso for, vender-me-ei por causa dela!

 

A PROVIDÊNCIA

Com um supremo esforço, Clara ergueu a filha, e tornou a subir a rua das Damas até à avenida de Clichy.

No trajeto não encontrou um transeunte a quem pudesse pedir esmola.

Finalmente, ouviu o rumor de um passo rápido, e viu um homem que se dirigia para o seu lado.

Parou.

— Meu Deus, dai-me forças! murmurou apertando Branca contra o coração.

Depois, como se aproximasse o transeunte, estendeu a mão balbuciando com uma voz alterada e quase indistinta:

— Uma esmola pelo amor de Deus!

Apesar de ser muito fraca a voz, o desconhecido parou, olhou para Clara com atenção, e exclamou:

— Será possível? Estarei mal da vista? Parece loucura, e contudo eu estou no meu juízo. A senhora Carnot aqui! a estas horas! Na companhia de Branca, e a pedir esmola!

Clara levantara a cabeça. Reconheceu o seu interlocutor.

— Senhor Joubert! disse ela com alegria. É Deus que me permite encontrá-lo. Fui esta noite a sua casa, pedir-lhe de comer para a pequena que morre de fome.

— Valha-me Deus! e eu que estava ausente! Ah! pobre criança! replicou o operário, vizinho de Clara na rua de Reuilly, e de quem sabemos que Pedro Carnot tivera ciúmes... Venha, venha, senhora. As tabernas não estão ainda fechadas, compraremos pão e uma pouca de carne fria... A pequena fica logo restabelecida. Tome o meu braço... encoste-se à vontade... mal se sustem. Pobre mulher! Pobre pequena! Mas Pedro? Ele não sabe que estão com fome?

Clara murmurou:

— Sabe. Veio esta noite à casa. Há dois dias que não aparecia. Disse-lhe que Branca morreria de fome.

— E então?

— Então! partiu sem responder.

— Ah! Patife! exclamou o operário cheio de raiva, e cerrando os punhos. E lembramo-nos de que não mandam para as galés marotos desta força! Não o teriam roubado...

— Oh! senhor Paulo.

— Ora! bem sei que o vai defender a todo o transe. É tão boa. Mas ele é um vadio, um mandirão, um homem sem préstimo! Bem o conhece! É sujeito capaz de tudo... Passe para cá a pequena, senhora Carnot... já pesa muito... fatiga-a.

Paulo Joubert tomou a criança nos braços e continuou:

— Ora ainda bem! Assim poderá a senhora andar melhor. Olhe, aí está uma taberna aberta. Entremos. Vai tomar o que lhe for preciso, e seja o que for, enquanto se aquece alguma coisa para a pequena. Uma gota de vinho quente com açúcar restabelecê-la-á logo! Não há nada melhor para o estômago. Depois tomaremos um trem, e conduzi-la-ei a Reuilly. Estou habilitado. Tenho um parente em Clichy que me devia uns cem francos... Venho de casa dele... pagou-me... Quis que ficasse para jantar, e tratou-me bem. Foi o que me fez demorar, e ainda bem, porque se me tivesse recolhido mais cedo, não teria a fortuna de a encontrar.

 

Chegaram à taberna.

Paulo Joubert, com a criança ainda nos braços, fez entrar Clara.

Sentou-se, ou por outra, deixou-se cair junto de uma mesa, e tomou a pequena nos braços.

— Tem caldo? perguntou o operário ao dono da casa.

— O que quiser. A dona da casa pôs esta manhã panela ao lume... Bem há de ver que o caldo está frio; mas no fogão de gás aquece num instante.

— Então, depressa, se faz favor, duas tigelas com caldo, uma garrafa do seu melhor bordeaux, açúcar, pão, e um bocado de carne fria.

O taberneiro era um bom homem que se multiplicou.

Compreendera a urgência da situação.

Cinco minutos depois, Clara comia, e Paulo Joubert fazia Branca tomar um caldo, seguido de um copo de vinho com açúcar.

Mãe e filha sentiam voltar as forças.

Clara agradecia a Deus, abençoando o operário que Branca cobria de beijos.

Contudo a hora ia avançando.

Era preciso voltar à rua de Reuilly.

 

Paulo Joubert pagou a despesa, tornou a pegar na criança, e tratou de procurar uma carruagem que não levou muito tempo a encontrar.

Levava metade de um pão, um pedaço de carne, uma garrafa de vinho e açúcar.

Dava uma hora da manhã no momento em que parava o trem à porta da casa habitada pelo casal Carnot e pelo operário de papéis pintados.

Esta casa compunha-se de três corpos, uma que deitava para a Tua, e as outras duas formavam alas que se entendiam até um vasto jardim fechado por um muro.

Paulo vivia com a mãe num quarto do terceiro andar do corpo do edifício que deitava para a rua.

A morada de Pedro Carnot era igualmente no terceiro andar, mas na ala direita.

Chegando, o operário ajudou a jovem a pear-se da carruagem e disse:

— Está em sua casa, menina Clara. Agora faça tomar um copo de vinho à pequena antes que ela adormeça, e aqui tem para amanhã.

E ao mesmo tempo que entregava a Clara o embrulho com as provisões, metia-lhe na mão uma moeda de ouro.

— Oh! Não, não, isso não, balbuciou ela, é muito, senhor Paulo.

— Não é bastante. Ah! se eu fosse rico... Finalmente faz-se o que se pode, aceite por amizade por mim, senhora Carnot. E dentro de dois ou três dias venha ver a minha mãe, não quero que passe fome, nem tão pouco a pequena.

Perante uma tão cordial insistência, Clara não podia recusar. Aceitou por isso a moeda de ouro, e apertou com a ternura de um coração agradecido as mãos de Paulo Joubert, que lhe disse:

— Até à vista.

Beijou Branca em ambas as faces, e subiu para casa.

Clara achou-se dali a pouco no seu quarto.

Triste quarto, que todo ele respirava miséria.

Que mobília!

Uma cômoda muito ordinária, três cadeiras com falta de pés, uma mesa de pinho, um leito sem colchão, um único enxergão, e um cobertor que parecia uma rede de pardais.

Branca dormia num berço, em que um farrapo de pano cru servia de lençol.

A jovem acendeu um pedaço de vela metido num castiçal de folha, depois preparou meio copo de vinho com açúcar, e deu-o a beber à criança, que não tardou a adormecer.

Só, naquele miserável quarto, entre aquelas paredes nuas, a infeliz Clara pôs-se a refletir no que acabava de se passar, no acolhimento do pai, na terrível situação em que se achava.

Desatou a soluçar.

Não tardou que a crise da dor se acalmasse, mas para dar lugar a uma irritação terrível.

Remontou aos dias do passado.

Viu-se inocente, sossegada, feliz, até ao dia em que pela primeira vez encontrara aquele que devia conduzi-la à sua perda.

Lembrou-se de todas as lágrimas derramadas desde aquele dia, das privações sem número, das brutalidades, dos maus tratos que Pedro Carnot lhe fizera sofrer.

Pelos seus hábitos de preguiça e de deboche, mergulhara-a na mais abjeta miséria.

Os seus olhares baixaram sobre o meigo rosto de Branca adormecida. As palavras de Daniel Gaillet volveram-lhe ao espírito.

— Que me importa uma criança sem nome? Uma bastarda? Dissera aquele pai irritado.

Era verdade, uma criança sem nome, uma bastarda.

Pedro Carnot nem sequer se lembrara de reconhecer Branca.

Esta idéia exasperou Clara.

— Enquanto eu vou mendigar pela sua filha, murmurou ela com raiva e desespero, que faz ele? Está para aí nalguma tasca, aquele miserável, sem coração e sem entranhas; bebe com dinheiro roubado! Sim, roubado! Porque não trabalhando, não pode ganhar! Ah! como meu pai teve razão em me repelir, em me renegar! Sou infame! Infame por ter esquecido os meus deveres de filha honrada! Infame por ter seguido este homem! Infame por ter admitido a sua autoridade degradante! Infame por não o ter deixado quando conheci os seus vícios! Oh! aquele homem! Aquele bandido! Aquele covarde!

Naquele momento um encontrão na porta fez estremecer a desgraçada, levantou-se toda trêmula.

— Quem está aí? perguntou.

— Eu, respondeu uma voz conhecida. Abre. Clara puxou o fecho.

Pedro entrou seguido de Malpertuis, que trazia pão, vinho, e metade de uma perna de carneiro fria.

— Fecha a porta, ordenou Pedro, e põe tudo isso em cima da mesa. Vamos cear, e dizendo isto olhou para o movei que acabava de designar, e que estava coberto com as provisões compradas em casa do taverneiro da rua de Clichy.

Carregou o sobrolho, e o seu rosto tomou uma expressão dura e ameaçadora.

— Donde veio isto? perguntou cem sequidão. Há pouco quando dizias que a pequena tinha fome, mentias!

A irritação nervosa, resultado das reflexões cheias de amargura da pobre mulher, não se tinha dissipado, foi com uma violência muito diferente da sua brandura habitual que ela respondeu:

— Não mentia! Nunca minto!

Pedro admirado olhou para ela.

Clara não baixou os olhos e suportou corajosamente o olhar.

— Repito, tornou Pedro, donde vem isto? Não tinhas dinheiro, dizias?

— É verdade, bem sabes.

— Onde foi que arranjaste dinheiro?

— Onde? Queres que to diga? exclamou a filha de Daniel Gaillet, chamejando-lhe os olhos.

— Quero.

— Pois bem! mendiguei!

— Mendigaste? balbuciou Pedro estupefato. Pois tu mendigaste?

— Sim, mendiguei. Fui primeiramente com Branca procurar meu pai... Esperava, não o seu perdão, porque sei muito bem que ele não pode perdoar, mas a sua compaixão pela criatura inocente que não tem culpa de se achar neste mundo... Meu pai recusou reconhecer-me e socorrer-me... disse-me que já não tinha filha... expulsou-me!...

— Fez isso! bradou Pedro Carnot cheio de furor.

— Estava no seu direito, e nada lhe censuro. Proíbo-te que o insultes!

O patife com os dentes cerrados, a voz sibilante, perguntou:

— Depois?

— Depois? Ora essa, depois? Parece-me que se adivinha... A pequena morria de fome, e eu não quero que ela morra... Estendi a mão... mendiguei.

— Mentes!

— Digo a verdade!

— E foi com o dinheiro da esmola que compraste este pão, este vinho, esta carne, este açúcar?

— Foi com o dinheiro da esmola...

Pedro pegava a um e um nos objetos que acabava de mencionar, -e atirava-os violentamente para cima da mesa. Viu a moeda de vinte francos.

— E este ouro, exclamou, é também uma esmola?

— É uma esmola, respondeu Clara friamente.

— Mentes! repetiu o mancebo cheio de furor. Este ouro provém de Paulo Joubert, que eu expulsei daqui, e a quem tu te vendeste!

Malpertuis quis interromper o seu cúmplice, cujos cegos arrebatamentos conhecia, sabendo além disso que tinha ciúmes do operário.

— Pedro! disse-lhe, Pedro... toma cuidado.

Mas o amante de Clara bradou:

— Cala-te! O que se passa em minha casa não te diz respeito. E tornando a dirigir-se à amante, continuou num tom de cólera terrível:

— Atrever-te-ás a negar que Pedro Joubert te fez a corte há muito tempo, que te entregaste a ele esta noite, e que ele te pagou.

Sob a chicotada deste insulto, Clara ergueu-se trêmula.

— Ah! exclamou num tom de supremo desprezo, sabia que eras muito covarde e muito infame, mas ainda o és mais do que eu julgava.

 

O CRIME

Pedro vociferou fora de si:

— Calar-te-ás!

— Não! replicou a filha de Daniel Gaillet. Não! não me calarei! Já estou farta da vida que me tens feito passar! Já tenho sofrido bastante em silêncio, e o meu coração transborda finalmente!! Sim, é de Paulo Joubert que tudo isto me vem! de Paulo Joubert, o melhor dos homens!! teve dó desta criança que morria... deu-me com. que a fazer viver, pois que seu pai, seu verdadeiro pai, é muito covarde para lhe ganhar pão.

O cúmplice de Malpertuis estava com um aspecto horroroso.

— Ah! mulher miserável, uivou, eu te farei engolir os insultos. E lançando mão de uma faca que estava em cima da mesa, investiu para Clara.

Esta porém, conservou-se impassível e imóvel.

— Fere! disse-lhe com uma voz abafada cruzando os braços sobre o peito. Mata-me o corpo como me mataste a honra, como me mataste a alma! Morrerei, repetindo-te, que és um covarde, entendes! um covarde! És tão covarde, quando Paulo Joubert é um homem digno!

Pedro Carnot soltou um grito selvagem, um grito de fera.

Baixou o braço, como se o impelisse mola de aço, e a faca entrou até ao cabo no peito de Clara.

Dos lábios da infeliz saiu apenas um gemido.

O sangue espirrou até no berço, onde Branca, assustada, já não dormia.

— Em seguida caiu de chofre no chão.

— Desgraçado! que fizeste? balbuciou Malpertuis recuando com horror.

Pedro, também horrorizado, tremia como varas verdes. À vista do sangue acalmara-lhe, instantaneamente, a cólera. Passou a mão pela fronte banhada de suor, e gaguejou com um ar idiota, deixando-se cair sobre uma cadeira.

— Imbecil! Matei-a! Estou perdido! Pobre rapariga! Dá-me essa faca! Vou também matar-me... Sempre será preferível à guilhotina!...

E fez o gesto de um homem cuja razão desvaira.

— Espera... espera... tornou Malpertuis, não percamos a cabeça... Clara está apenas ferida... Podemo-la salvar de certo... Os seus tolos ciúmes, a respeito de uma mulher a quem já não amas, e a quem aliás nada tinhas que dizer, foi o que te fez tão estupidamente um assassino!

 

Malpertuis aproximou-se de Clara.

Um pouco reanimado, Pedro levantou-se e esperou ofegante. Malpertuis inclinou-se, encostou a mão ao lado esquerdo do peito e levantou-se muito pálido.

— O coração já não bate... disse. Feres como um carniceiro... A infeliz está morta...

O assassino tornou a estremecer.

— Ah! estou perdido... disse com voz entrecortada. Perdido!' Perdido! Perdido! Vão acusar-me, prender-me, condenar-me... E isto no momento em que estamos ricos! Em que íamos ser felizes!' E a pequena levá-la-ão... Que será feito dela?

O abatimento completo, o absoluto desânimo de Pedro, pareceram restituir a Malpertuis toda a sua energia.

— Vamos, disse, nada de desespero estúpido! É preciso sair disto se for possível; ora, se perderes o ânimo, não sairás desta situação. O que está feito, está feito, infelizmente. Tens cóleras perigosas... Toma cuidado nelas, e não falemos nisto. É preciso pormo-nos em ação. Acusar-te-ão, perseguir-te-ão, não resta dúvida; mas antes de ser conhecida a morte de Clara, podes ir para longe... ocultares-te no estrangeiro sob um nome suposto... esperando os acontecimentos. O mais urgente é partir.

— Sim, exclamou Pedro Carnot, partirei, mas a pequena...

— Sim, a pequena?

— É impossível levá-la. Faria com que me prendessem chamando pela mãe...

— É exato... Ah! Demônio! murmurou Malpertuis.

Pedro teve uma idéia súbita.

— Espera... disse.

— Achaste?

— Sim, mas vejamos primeiro quanto encerra a carteira do negociante de madeiras.

E puxou pela carteira que ocultara entre a camisa e a pele; abriu-a, e despejou o conteúdo em cima da mesa.

Os bilhetes de banco juntos em maço formavam, como dissera M. Rouvenay, um total de cem mil francos.

— Havia também uma bolsa que continha sete mil francos.

Afirmavas-me esta noite, tornou Pedro, que te poderias estabelecer com cem mil francos, comprar um cartório, e fazermos uma. fortuna...

— Ora essa! e torno a afirmá-lo.

— Juras-me velar sobre Branca, e cuidar dela até ao dia em que eu puder vir buscá-la?

— Juro-o! respondeu Malpertuis com uma certa comoção que nada tinha de fingida. Faço-te o juramento de velar sobre Branca,, como se fosse minha filha... E não terei grande mérito nisso. Sou; afeiçoado a esta pequena.

— Ninguém, senão nós, saberá jamais o que foi feito dela?

— Ninguém...

— Acredito o que tu dizes, e vou provar-to... metade deste dinheiro pertence-me, não é verdade?

— Indiscutivelmente.

— Bem, só guardo para mim os sete mil francos, mais o dinheiro encontrado na gaveta, e deixo-te cem mil francos. Arranja quanto antes uma posição, e trabalha para nós dois, ou antes para nós três... Pega na criança... leva-a... oculta-a bem...

— Sossega.

— Vou partir.

— Para onde?

— Para a fronteira mais próxima...

— Para a Bélgica, então?

— Sim.

— Para onde deverei te escrever?

— Serei eu o primeiro a dar-te notícias minhas...

— Sim, mas para que morada? Ao romper do dia deixarei o meu domicílio, e não sei para onde irei morar...

— Eis que se torna embaraçoso... Mas agora me lembro, posso escrever-te para aposta-restante.

— É exato. Dirigir-me-ás as tuas cartas sob as iniciais A. Z. De amanhã em diante, irei de dois em dois dias à rua Jean Jacques Rousseau...

— Fica entendido... Agora guarda os cem mil francos na algibeira. A pequena tornou a dormir. Vistamo-la com toda a cautela para não a açodarmos e partamos.

 

Cinco minutos depois, Pedro Carnot deitava um último olhar ao cadáver da amante, enxugava os olhos umedecidos, apagava a luz, e descia com Malpertuis que levava Branca nos braços.

Fechara com duas voltas a porta do quarto, e levava a chave.

Na rua, a cem passos da casa, parou.

— Juraste-me que cuidarias da criança... disse ele ao seu cúmplice. Lembras-te?

— Não me esquecerei; repito-te, fica sossegado!

— Estou sossegado... agora separemo-nos...

O assassino de Clara inclinou-se sobre Branca que dormia sossegadamente nos braços de Malpertuis, e abraçou-a meigamente por duas ou três vezes.

Depois, arrancando-se a esta afeição tardia, apertou a mão do seu futuro sócio, e afastou-se sem voltar a cabeça.

Malpertuis ocupava um miserável casebre da rua Traversière.

Dirigiu-se para ali, depôs a criança no leito, e estendeu-se numa -velha cadeira, não para dormir, mas para refletir.

Quando a alvorada raiou, tinha tomado uma resolução.

Saiu muito cedo, deixando no quarto a filha adormecida.

Voltou dali a pouco, trazendo fato novo para si e para a criança.

Branca, quando despertou, chamou pela mãe, e não a vendo pôs-se a chorar.

Malpertuis secou-lhe as lágrimas, mostrando-lhe o fato e os brinquedos que para ela comprara.

Vestiu-a com apuro; vestiu-se ele também com uma correção que lhe deu o aspecto de um homem de lei, cheio de respeitabilidade, tomou diferentes papéis, saiu na companhia de Branca, deu-lhe de almoçar numa vacaria, e dirigiu-se para a gare de Paris-Lyon-Mediterrâneo.

Ia partir um comboio.

Malpertuis pedia dois bilhetes para Ivigny, aonde chegou três horas depois, quase no momento em que Pedro Carnot desembarcava em Bruxelas, sem ter sido inquietado.

Naquela mesma noite Malpertuis voltava a Paris, depois de confiar Branca aos cuidados de uma aldeã que ele conhecia numa aldeia nos arredores de Ivigny.

Pagara àquela mulher seis meses adiantados, e prometera-lhe uma gratificação se, no fim de seis meses, reconhecesse que ela conscienciosamente desempenhara a sua tarefa.

Devemos voltar à morada de Daniel Gaillet, na rua das Damas, «m Batignolles, antes de dizermos aos nossos leitores o que se passara na rua de Reuilly, após a retirada do assassino.

O polícia fora duro com a filha, duro até à crueldade, mas a cólera sombria, implacável, do infeliz pai, tinha causas infelizmente muito legítimas.

Depois de haver expulsado Clara desapiedadamente, vimos fechar após ela a porta de casa, proibindo-lhe que jamais tentasse ali entrar outra vez.

É que à vista da filha culpada despertando no coração de Daniel Gaillet todas as dores que o torturavam havia quatro anos, a piedade, a misericórdia, já ali não podiam achar guarida.

Quando o policia se achou só, deu-se nele uma reação repentina e inevitável.

Caiu prostrado numa cadeira, escondeu a cabeça entre as mãos. e pôs-se a chorar.

As lágrimas abrandaram-lhe a alma, onde despontou a idéia de perdão.

Tornou a ver Clara a seus pés, pálida, as feições contraídas, as faces cavadas, os olhos espantados e requeimados de febre, tornou a vê-la com as mãos suplicantes, e pedindo-lhe pela inocente criatura, de quem ela era mãe.

Os ecos do quarto repetiam sem cessar estas palavras dilacerantes: Piedade, piedade, meu pai, para minha filha que morre de fome!

E a esta invocação suprema respondera:

— Vai-te! Não te conheço!

Um estremecimento agito« Daniel da cabeça até aos pés.

— E eu ouvia a voz de milha filha, murmurou levantando-se alucinado, e não tive piedade!... Ela pedia pão, e recusei ao sangue do meu sangue, à carne da minha carne, o que se concede ao primeiro mendigo que passa! Eu estava então louco! Mas não, é impossível! Não fiz isso!

Daniel curvou a cabeça e tornou:

— Fiz isto! Fiz isto! Pai desnaturado, cometi este crime! Clara fora culpada, mas que importava a sua culpa. Ela sofria... tinha fome... e eu expulsei-a! E talvez a estas horas, ela esteja estendida sobre a calçada, moribunda, e sua filha agoniza nos seus braços! Ah! É horrível! é horrível!

O rosto do polícia contraíra-se.

Passou-lhe pelos olhos o fulvo fulgor da demência... Pegou no chapéu e partiu pela escada abaixo, saltou para a rua, gritando como um louco:

— Clara, minha filha, escuta-me... perdôo-te.

A pobre mulher estava já longe, não podia ouvi-lo.

 

Daniel Gaillet ignorando que direção ela devia tomar saindo de casa, não sabia onde a procurasse.

Seguiu uma rua, depois outra.

Voltou para trás com a angústia no coração.

Tomou por uma direção diferente.

Penetrou em plena Paris.

Andou até ao romper do dia; e incomodado, desanimado, desesperado, voltou para casa.

O seu serviço chamava-o às dez horas da manhã à prefeitura, e a seu pesar, fosse qual fosse a sua violência, não podia fazer-lhe esquecer o dever.

Saiu.

Logo às nove horas da manhã havia multidão na rua de Reuilly, diante da casa habitada pelos falsos cônjuges Carnot.

Tinham-se formado grupos.

Dizia-se que na casa fora assassinada uma jovem, na noite precedente, e que tinham roubado a filha.

O assassino designado pela voz popular era Pedro Carnot, que toda a gente julgava marido da vítima.

Vários polícias não deixavam entrar os curiosos.

Devemos agora dizer aos leitores como fora descoberto o crime do miserável.

 

CONTINUAÇÃO

Paulo Joubert, em pé logo ao romper do dia, segundo o seu costume, apressara-se a contar à mãe, como na véspera, à noite, encontrara Clara mendigando com Branca, em Batignolles, próximo dos "boulevards" exteriores, e o que ele tinha feito para as duas pobres criaturas.

— Queres ser boa como sempre costumas ser, perguntou em seguida.

— Por que não? respondeu a anciã.

— Bem, antes de eu ir para a oficina, sobe a casa da senhora Carnot e dá-me notícias da mãe e da filha.

— Por que não vais tu mesmo?

— É muito cedo. Se o vadio do marido estiver em casa, achará a minha visita muito singular, enquanto que não se poderá admirar da tua.

— Lá vou.

A senhora Joubert, sem acrescentar palavra, desceu os seus três andares, e subiu a escada que conduzia a um outro corpo do edifício.

Chegando ao terceiro andar, bateu, a princípio de vagar, depois mais forte, mas sem resultado.

Um pouco inquieta com este silêncio que lhe pareceu inexplicável, e perdendo a esperança de obter uma resposta, ela ia retirar-se.

Abriu-se então uma porta que deitava para o mesmo corredor, e apareceu uma vizinha com o seu jarro de leite na mão.

— Espera, é a senhora Joubert? perguntou a mulher.

— Sou. Sabia que a senhora Carnot estava um pouco incomodada, como também a pequena, e eu vinha saber dela.

— Ah! não deve levar boas informações.

— Por que?

— Houve esta noite uma algazarra infernal. Ah! minha querida vizinha, que desordem! Ralharam muito! O marido, o Carnot,. reconheci-lhe a voz, gritava que parecia deitar as casas abaixo! É um formidável maroto aquele homem!

— Acha?

— Afianço-lho. Sempre na pândega o figurão, deixando estalar de fome a mulher e a pequena. Depois da barulhada, desandaram pela escada abaixo, e não ouvi mais nada. A senhora acabou de bater?

— Sim, bati muitas vezes. Não abriram. Por acaso terá a vizinha Carnot já saído?

— Isso seria para admirar, exclamou a vizinha. Ai, valha-me Deus! valha-me Deus! balbuciou fazendo-se muito pálida, e com os olhos dilatados pelo horror.

— O que é?

— Olhe!

— Onde?

— Aí, em sua frente, a seus pés.

A senhora Joubert baixou os olhos por seu turno, e viu uma grande nódoa de um vermelho sombrio, principiando debaixo da porta, e continuando sobre o patamar.

— Misericórdia! exclamou tremendo. O que é isso?

— É sangue.

— Mas então sucedeu alguma desgraça com certeza.

— Desgraça! repetiu a vizinha, diga antes um crime... é preciso ir a casa do comissário... mora daqui a dois passos. É um instante. Corro lá.

E precipitou-se pelas escadas abaixo.

Passando por diante do cubículo da porteira, gritou-lhe:

— A senhora Carnot foi assassinada esta noite... O sangue corre por baixo da porta... Vou dar parte ao comissário.

 

A sinistra nova espalhou-se pelo prédio com a rapidez da eletricidade.

Quando no fim de dez minutos chegou o magistrado, acompanhado por dois agentes e um serralheiro, a escada estava atulhada de curiosos discorrendo largamente sobre o crime cometido, ou antes sobre a probabilidade do crime.

Na primeira fila estava Paulo Joubert aterrado.

A porta foi aberta pelo serralheiro.

Já se sabe que espetáculo se lhes deparou.

O magistrado fez evacuar o patamar, só deixou estar junto de si Paulo Joubert, a mãe e a vizinha, de quem talvez se pudessem obter úteis informações.

Antes de dar começo ao auto do corpo de delito, mandou um agente à prefeitura.

Este agente apresentou-se pelas nove e meia no gabinete do chefe de segurança, e cumpriu a sua missão.

O chefe de segurança deu ordem para se prevenir sem demora o procurador imperial, o comissário das delegações judiciárias, e um dos médicos de serviço.

— Que agentes temos agora à nossa disposição? perguntou.

— Os inspetores Thefer e Daniel Gaillet esperam ordens.

— Mande-me Daniel Gaillet... A presença de Thefer é precisa em outra parte esta manhã.

Tinham sido requisitadas duas carruagens.

Meia hora depois traziam à rua Reuilly os magistrados e os seus imediatos.

Já sabemos que um cordão de sergents de ville mantinha a distância a multidão ali atraída pela notícia do assassinato.

Como também sabemos que a voz pública designava Pedro Carnot como assassino.

O porteiro conduziu logo os recém-chegados ao terceiro andar.

— Senhor procurador imperial, disse o comissário do bairro de Reuilly, não quis tocar no corpo desta desgraçada sem o senhor chegar. Só vi que ela foi ferida em pleno peito. Na minha opinião a morte deve ter sido instantânea.

Neste momento Daniel Gaillet, seguindo os chefes, transpôs o limiar do sinistro aposento.

Avistou o pálido rosto da vítima.

Saiu-lhe da garganta uma espécie de ronquido.

Depois, dando um salto para o cadáver, bradou com uma voz terrível:

— Clara! Clara! É Clara!

Os espectadores desta cena olhavam para Daniel com uma espécie de espanto misturado de terror.

O grito lúgubre daquele homem oprimira todos os peitos.

O polícia, lívido, abalado por um tremor nervoso, sem proferir uma palavra, sem derramar uma lágrima, contemplava a morta com os olhos espantados.

Parecia doido ou quase doido.

O procurador imperial aproximando-se dele, perguntou:

— Conhece aquela jovem?

A voz que lhe falava não tirou Daniel da estupefação que se apoderava dele. De certo que não o ouviu.

O magistrado pôs-lhe então a mão sobre o ombro, e renovou a pergunta.

A este contato o polícia estremeceu.

Levantando os olhos, puderam-se ver duas lágrimas deslizarem-lhe pelas faces até aos lábios.

Nunca houve comoção interior que se manifestasse por uma forma mais imponente.

Estas duas lágrimas faziam calafrios.

O procurador imperial, muito comovido, repetiu pela terceira vez:

— Conhece esta jovem? Daniel não pôde responder.

Fez um sinal afirmativo com a cabeça.

— Por conseguinte, continuou o magistrado, pode dar-nos esclarecimentos a respeito dela.

Novo sinal afirmativo.

— Sossegue, readquira forças, e diga-nos o que sabe...

Um soluço fez arfar o peito do polícia, que ocultou a fronte nas mãos.

Durante um ou dois segundos reinou profundo silêncio.

Depois, repentinamente, o infeliz descobriu o rosto que por um instante se tornara quase desconhecível e respondeu:

— É minha filha!

O efeito produzido por estas três palavras, foi indescritível. Todos compreenderam que se ia desvendar um dos mais sombrios mistérios da vida parisiense.

— Sua filha? retorquiu o procurador imperial, estupefato do que ouvia e quase incrédulo.

— Minha filha seduzida... raptada por um miserável... minha filha... a minha pobre Clara!...

O chefe da segurança entreviu logo, sob o crime, um drama de amor.

Por isso acudiu com vivacidade:

— Então guiar-nos-á nas pesquisas. Designar-nos-á o assassino. Deve ser o miserável de quem fala.

— Eu sei! respondeu Daniel. Houve um homem que a raptou há quatro anos. Ele deixou-a. Que fez ela depois disso? Eu amaldiçoara a filha, e não queria saber dela, nem viva, nem morta. Ignoro, portanto, se a primeira falta deu origem a outras faltas. Oh! se fosse o infame que me roubou a filha para a arremessar à infâmia... se fosse ele o assassino... se fosse ele...

E nas pupilas do polícia brilhou um fogo sombrio.

— O nome do raptor? perguntou o procurador imperial.

— Pedro Carnot...

Até àquele momento Paulo Joubert escutara silenciosamente.

— Pedro Carnot! exclamou. Mas é o homem que vivia com esta pobre mulher... Julgavam-nos casados! Uma má peça, asseguro-lhe... Deixava a mãe e a filha morrerem de fome... Foi ele que fez isto, ia jurá-lo.

Daniel soluçava.

— Até hoje ocultara a minha vergonha... a vergonha de minha filha. É preciso vingá-la.

Se Pedro Carnot é o assassino, é preciso que pague com o sangue, o sangue de minha filha.

— Sente-se, Gaillet... disse com bondade o procurador imperial. Tomamos parte na sua dor; lastimo-o, tudo faremos para vingar a vítima que tão intimamente lhe pertence, mas auxilie, o senhor a justiça.

O polícia contou em breves palavras o que os nossos leitores já sabem.

Quando acabou, o procurador imperial interrogou Paulo Joubert.

O rapaz contou como travara relações com Pedro Carnot e Clara, quando eles tinham vindo morar na rua de Reuilly e como o ciúme infundado de Pedro quebrara as suas relações amigáveis.

Referiu o procedimento escandaloso, e as incessantes brutalidades do miserável amante, apesar da resignação angélica e tocante da pobre mulher.

Concluiu pela narrativa do que se passara na noite precedente, e manifestou a convicção de que Pedro matara a amante numa fúria de ciúme, e fugira levando a filha.

A vizinha declarou que ouvira os gritos de furor na noite precedente.

De todos estes fatos, os magistrados tiraram as mesmas conclusões que tirara Paulo Joubert, e atribuíram o assassinato ao ciúme.

Não era natural que Malpertuis figurasse naquilo. O seu nome não foi sequer proferido.

 

— Senhor chefe de segurança, concluiu o procurador imperial, é preciso descobrir o assassino o mais depressa possível. Estimule o zelo dos seus agentes...

Daniel Gaillet já não chorava. Ergueu-se muito sereno e muito glacial. Proferiu as seguintes palavras:

— Solicito do senhor chefe de segurança um grande favor.

— Qual?

— O de ser encarregado das pesquisas. É a mim que me pertence deitar a mão ao celerado, e saber o que fez à filha depois de matar a mãe.

— Essa incumbência não lhe originará profundos dissabores?

— Quanto mais dolorosas forem as comoções, tanta mais força e coragem eu terei.

— Veja lá.

— Suplico, senhor, não repila o meu pedido.

— Faça então o que quiser, deixamo-lo livre.

— Obrigado, senhor.

Daniel, ajoelhando junto do cadáver que tinham levantado e colocado sobre a cama, absorveu-se numa sombria meditação, e tornou-se estranho a tudo quanto passava em volta dele.

 

Terminadas as primeiras investigações, os magistrados retiraram-se.

O polícia orou ainda por alguns minutos.

Afinal levantou-se, e estendendo a mão para o cadáver ensangüentado, murmurou:

— Oh! Minha filha! Amaldiçoei-te! Expulsei-te, mas perdoa-me! Não soube guardar-te viva, vingar-te-ei morta!

Dobrou o joelho, apoiou os lábios na fronte glacial da filha, e dirigiu-se para a porta entreaberta.

No patamar achavam-se Paulo Joubert, a mãe e a vizinha.

O mancebo estava muito pálido, e tinha os olhos arrasados de lágrimas.

— Velaremos, senhor, disse a Daniel Gaillet, não deixaremos a pobre mulher...

O polícia não teve forças para agradecer...

— Pegou nas mãos do operário, apertou-as nas suas, e afastou-se para ir à mairie fazer as declarações legais.

 

O ASSASSINO

O infeliz Daniel jurara vingar a filha, e queria cumprir o juramento.

Impôs silêncio à por do pai, para tornar a ser polícia.

— Pedro Carnot, disse consigo, estava ontem numa miséria-abjeta; portanto não pode ter deixado Paris, e ocultar-se nas camadas inferiores da grande cidade, salvo se um segundo crime lhe tiver fornecido dinheiro para fugir. São admissíveis as suposições... Portanto, é preciso tomar medidas tanto para um caso como para outro...

Após este pequeno monólogo, dirigiu-se à prefeitura.

O chefe da segurança e o comissário deram-lhe carta branca, e puseram às suas ordens toda a brigada.

Dividiu o trabalho pelos agentes.

Em seguida dirigiu-se às gares pelas quais o assassino tinha podido sair de França.

Adquiriu quase a certeza de que um homem com os sinais de Pedro Carnot se dirigira para a Bélgica pelo primeiro comboio da manhã.

O tempo que já tinha decorrido não permitia fazer deter na fronteira o viajante suspeito.

— Alcançá-lo-ei em Bruxelas, pensou Daniel Gaillet, senão seguir-lhe-ei o rasto até ao fim do mundo. Amanhã conduzirei minha filha até à última morada, e depois vingá-la-ei!

No dia seguinte, com efeito, depois de ter acompanhado ao cemitério o corpo de Clara, tomava o comboio da Bélgica, onde chegava de noite.

Pedro Carnot, apeando-se do caminho de ferro em Bruxelas, estava perfeitamente decidido a não habitar num país onde a sua extradição não poderia ser facilmente obtida.

Queria abordar à América, e tentar ali fortuna.

Bastar-lhe-ia uma hora para chegar a Amiens.

Dali passaria a Inglaterra, e embarcaria num paquete transatlântico.

Hospedando-se em Bruxelas no hotel Saxe, onde dera o nome de Júlio Courtois, viajante de comércio, informou-se de quando partiam os paquetes.

Tinha quarenta e oito horas à sua disposição... aproveitou-as para fazer diversas compras indispensáveis.

Faltavam os objetos de primeira necessidade.

— Amanhã, disse consigo, partirei para Amiens, e aí embarcarei no paquete.

Logo ao romper do dia, Daniel Gaillet apresentara-se munido de um documento em regra na repartição da polícia, onde o precedera um telegrama de Paris.

Ali reclamou o auxílio dos seus colegas de Bruxelas.

O chefe de polícia da Bélgica apressara-se a por à sua disposição os seus melhores agentes, aqueles que pelo seu faro e experiência, estavam mais nos casos de descobrir os malfeitores que transpunham a fronteira.

Procedeu-se a um inquérito hábil e rápido.

Averiguou-se que um francês em que se notavam os sinais de Daniel Gaillet, tinha na véspera tomado um quarto no hotel Saxe, sob o nome de Júlio Courtois, e que o tal francês, muito modestamente vestido, fizera na véspera aquisição de roupa e fato.

Sabia-se, além disso, que ele contava partir para Anvers de um momento para o outro.

O pseudônimo tomado pelo assassino não desnorteou Daniel Gaillet.

Advertia-o um misterioso instinto de que ele achara a pista.

Por volta das seis horas, escoltado por quatro agentes belgas, dirigiu-se ao hotel Saxe.

Chegando ali, disse aos colegas:

— Pedia-lhes que não me acompanhassem no encontro com o homem a quem tenho missão de prender. Se este homem é o celerado que eu procuro, desejo apresentar-me só diante dele. Esperem-me, pois, no vestíbulo do palácio, onde reclamarei o seu auxílio no caso de necessidade.

Os agentes belgas inclinaram-se.

— Faça o que quiser, disse o chefe, mas deve tomar as suas precauções, bem sabe.

— Nada receio.

— Está ao menos armado?

— Estou.

— Bem.

Daniel entrou seguido dos policias belgas.

O dono do hotel, como os conhecia há muito, veio logo ter com eles cheio de interesse, e perguntou ao chefe:

— Que posso fazer em seu serviço, senhor Voog? O brigadeiro designou Daniel, e respondeu:

— Este senhor vai dizer-lho. Nós estamos aqui só para o auxiliar. Trata-se da prisão de um súdito francês.

— Estou às ordens da administração, exclamou o proprietário fazendo uma careta. Mas espero que não se fará grande escândalo, para crédito da casa.

— Sossegue, retorquiu Daniel, prometo evitar o escândalo tanto quanto estiver na minha mão. O senhor tem no seu estabelecimento um francês chegado há quarenta e oito horas?

— Tenho, sim, senhor.

— Que se fez inscrever no seu registro sob o nome de Júlio Courtois.

Igual resposta afirmativa. Daniel tornou:

— Deu-lhe alguns papéis comprovando a sua identidade?

— Um simples sobrescrito com a qualificação de viajante de comércio! Disse que perdera o seu passaporte. Pareceu-me que não devia pedir mais nada... tanto mais que ele tencionava demorar-se pouco tempo em Bruxelas. Preveniu-me de que partiria esta noite,

— E esse Júlio Courtois esta neste momento no palácio?

— Acaba de subir há pouco ao quarto.

— Que número tem o quarto?

— O número 7, no segundo andar; esta escada vai lá ter.

— Obrigado, senhor... vou subir, e torno a pedir a estes senhores que me esperem aqui, e vigiem a escada, a fim de tornar impossível a fuga do malfeitor, se por acaso ele escapasse.

— Esperaremos, replicou o brigadeiro... e conte conosco... Daniel subiu pela escada.

Enquanto subia, tirou da algibeira um revólver, examinou-o minuciosamente, armou-o, e fê-lo desaparecer por baixo do paletó.

O polícia parecia impassível.

Contudo, no seu cérebro desencandeava-se uma tempestade.

Chegando ao segundo andar, olhou para as portas, e numa delas seu o número 7.

Aproximou-se da porta.

No quarto número 7, Pedro Carnot acabava de arrumar no fundo de uma mala de que se munira, a roupa e o fato que tinha comprado.

Preparava-se para descer a jantar no restaurante do hotel.

Em seguida tomaria o caminho de ferro para Anvers.

Acabava a sua tarefa, afivelou a mala, pôs o chapéu e dirigiu-se para a porta.

Já estava perto dela.

A porta abriu-se repentinamente, e Daniel Gaillet apareceu.

Pedro Carnot reconheceu ao primeiro relance o pai da sua vítima.

Espalhou-se-lhe pelo rosto uma palidez lívida, mas paralisado até certo ponto pelo assombro, não pôde soltar um grito, nem proferir uma palavra.

Recuou até à janela.

O polícia puxou do revólver e apontou para o assassino.

Disse-lhe com uma voz baixa e rouca:

— Se tentar fugir, mato-o como um cão! Pedro não fez um movimento. Decompôs-lhe as feições uma contração nervosa.

— Matei sua filha. Mate-me, portanto, é o seu direito.

— Sim, seria o meu direito! replicou friamente Daniel. O meu direito de pai ultrajado, desonrado, desesperado! Se o derribasse a meus pés com uma bala no ventre ou na cabeça, satisfaria a minha justa vingança, mas violaria a lei de que sou o mandatário. Assassino de minha filha, o cadafalso reclama-te; e é ao cadafalso que te entregarei! Em nome da lei, Pedro Carnot, prendo-te!

 

Enquanto o polícia proferia estas palavras que acabamos de reproduzir, o assassino de Clara refletia na sua situação.

A fuga era impossível, do mesmo modo que a resistência.

Ao primeiro movimento suspeito, Daniel Gaillet faria fogo sem hesitar, e não erraria o alvo.

Via-se preso. Sentia-se perdido, mas restar-lhe-ia a esperança de salvar a cabeça.

Como um acesso de furor ciumento tinha sido o móvel do seu crime, obteria de certo circunstâncias atenuantes.

As galés substituiriam então a guilhotina, e das galés sai-se.

Por isso disse:

— Rendo-me, faça de mim o que quiser.

Daniel baixou o revólver mas sem o desarmar e tornou:

— Está bom. Mais uma palavra, e depois entregá-lo-ei à justiça belga a qual ficará pertencendo até à hora da extradição.

— Fale, senhor, estou às suas ordens.

— Junto do cadáver da sua vítima achava-se um berço vazia. Que fez da filha de Clara?

A pergunta de Daniel fez compreender a Pedro que Malpertuis não estava preso, nem sob suspeita.

— Deixei a minha filhinha no berço, respondeu, na esperança de que alguma alma caridosa recolhesse a órfã.

— Mente! exclamou o polícia, o senhor matou a criança, como matou a mãe!

— Por que o havia de fazer?... Juro-lhe que digo a verdade. Não sei explicar melhor que o senhor a desaparição da criança, se, como diz, a criança desapareceu.

Daniel cerrou os punhos com raiva.

— Portanto, recusa responder? perguntou.

— Como nada sei, nada posso dizer.

— A justiça indagará. Saia, vá adiante de mim, siga ao longe do corredor e desça a escada.

Pedro obedeceu passivamente.

Daniel, de revólver em punho, seguiu-o.

No vestíbulo esperavam o chefe Voog e os três agentes.

Cercaram o preso, e puseram-lhe algemas.

Vinte minutos depois o assassino de Clara era metido na prisão da cidade, e Gaillet expedia ao chefe da segurança um despacho assim concebido:

"Pedro Carnot, apanhado. — Confessa. — Peço imediatamente extradição."

 

Oito dias depois, sendo concedida a extradição, o assassino tornava a passar a fronteira debaixo de boa escolta e metiam-no em Mazas.

A instrução do processo foi das mais simples e rapidamente conduzida.

Pedro não negava ter ferido a amante num momento de raiva cega pelo ciúme.

Mas, acrescentava, sem intenção de lhe dar a morte.

Quanto à criança, afirmava não saber o que fora feito dela, e por inverossímil que esta asserção parecesse, ninguém podia demonstrar a sua falsidade.

O juiz instrutor fez subir o processo, e o julgamento foi marcado para o mês seguinte.

Não se tratara de Malpertuis e a justiça não suspeitava que existissem laços misteriosos entre o roubo da rua de Amsterdam e o crime da rua de Reuilly.

Enquanto estas coisas se passavam Malpertuis fiel, a promessa feita a Pedro Carnot, velava de longe sobre a pequena Branca e aplicara-se novamente ao trabalho.

Tendo achado meio de entrar para um escritório de advogado quase sem clientela, entrou em ajustes com o patrão para a aquisição do escritório.

Como toda a gente, Malpertuis conhecia pelos jornais a prisão de Pedro Carnot.

Parece-nos supérfluo acrescentar que ele tinha todo o cuidado em não dar notícias suas ao preso.

A razão disto bem o sabemos nós.

Chegou o dia do julgamento.

A causa prometia ser de sensação.

Atraía um enorme número de curiosos.

João Malpertuis foi um deles.

As suas relações no tribunal permitiram-lhe penetrar no recinto reservado: e sentou-se não longe do banco onde o seu cúmplice se devia sentar.

Por meio de um olhar expressivo queria dar-lhe a segurança de uma dedicação sem reserva e de uma absoluta fidelidade.

Pactos desta natureza concluídos numa hora de perigo supremo e rigorosamente observados, não são raros entre bandidos.

Pedro Carnot fez a sua entrada sob a escolta de dois gendarmes.

Tinha então vinte e cinco anos.

Já dissemos que era bonito rapaz.

Naquele momento uma expressão de profunda mágoa manifestava-se no seu rosto e parecia demonstrar o seu arrependimento.

As mulheres chegaram a achá-lo simpático.

E a razão era por a paixão ser o móvel do crime.

O assassino avistou Malpertuis. Trocou com ele um olhar furtivo.

Naquele olhar renovou-se o pacto.

 

O DESENLACE

Após a leitura da acusação, principiou o interrogatório.

Como já fizera na instrução, Pedro Carnot confessou a morte,. mas sustentou mais do que nunca que a cólera, filha do ciúme, o cegara; que não era sua idéia matar, e que jamais se consolaria de ter cometido aquele crime involuntariamente.

Daniel Gaillet referiu de um modo muito sereno, quase frio, como a filha, uma criança de dezesseis anos, fora seduzida e perdida pelo homem que devia coroar a sua obra infame assassinando-a.

Este depoimento foi esmagador na sua simplicidade.

Depois de o ouvirem, ninguém duvidava de que Pedro Carnot fosse condenado à morte.

Interrogado em seguida, Paulo Joubert declarou que mostrara,, sem razão alguma, ciúmes dele.

Não hesitou em atribuir a morte a esses ciúmes repentinamente excitados pelas circunstâncias que se sabe.

O procurador imperial proferiu o seu libelo.

Rejeitou a premeditação e admitiu as circunstâncias atenuantes.

O defensor, cuja tarefa se tornava extremamente fácil em vista da moderação do libelo, pediu a absolvição.

O júri, não admitindo que o furor dos ciúmes desse o direito de matar uma mulher, declarou o acusado culpado de assassinato, mas com circunstâncias atenuantes de sem premeditação.

Por isso o tribunal aplicou o mínimo da pena.

Pedro Carnot foi condenado a cinco anos de trabalhos forçados e à vigilância da alta polícia por dez anos.

Daniel Gaillet, ouvindo proferir uma sentença que lhe parecia irrisória, sentiu-se ferido no coração.

— Era a vida daquele miserável que eu precisava, murmurou. A minha filha não está vingada! Mas paciência!

 

Depois do julgamento, Pedro Carnot foi conduzido à Grande Roquette, onde devia esperar que qualquer transporte o levasse a alguma das galés que ainda existiam naquela época.

Internaram-no provisoriamente numa oficina onde trabalhava em sapatos de ourelo.

Os presos ocupados neste fabrico dispunham de cutelos e de ganchos de ferro, do comprimento de vinte e cinco centímetros e que serviam para puxar as tiras já cortadas com que se faziam os sapatos.

Pedro conservara o mesmo gênio, altivo, indomável, sujeito a súbitas cóleras.

Teve por um motivo fútil, uma altercação violenta com um dos companheiros de oficina.

Das injúrias passaram a vias de fato.

Debalde os guardas se apressaram a intervir.

O preso, com o seu gancho de ferro, feriu no rosto Pedro Carnot, e o golpe penetrou no olho esquerdo que foi arrancado da sua órbita.

Prostrado por uma dor atroz, o assassino de Clara desmaiou.

Levaram-no todo ensangüentado para a enfermaria donde só saiu no fim de quatro meses, zarolho e quase irreconhecível.

Poucos dias depois foi transferido para as galés de Toulon, aonde o vamos seguir.

Durante a longa doença resultado do seu ferimento, o condenado tomara a resolução de domar para o futuro os ímpetos do seu temperamento.

Dali em diante seria tranqüilo e refletido.

Pensava no futuro.

Sabemos já que, graças à pequena fortuna da mãe, recebera uma educação muito completa.

Falava inglês, espanhol e um pouco de italiano.

Nas galés aceitou, ou antes, solicitou as funções de escritor público, e encarregou-se gratuitamente da correspondência dos forçados, de quem se tornou amigo, confidente e conselheiro.

Em troca dos serviços prestados, os seus companheiros de cadeia iniciaram-no em todos os segredos da velhacaria mais refinada.

Profundamente hipócrita e comediante de primeira ordem, conduziu-se de maneira irrepreensível, e não tardou em passar aos olhos da administração por um forçado modelo.

Recompensaram-no com um lugar de enfermeiro no hospital das galés.

Era uma melhoria notável na sua posição, e que o isentava dos trabalhos terríveis, e muitas vezes perigoso das galés.

Na sala onde Pedro Carnot era empregado, achava-se um forçado atacado de uma doença incurável, que o devia levar para a outra vida depois de longos sofrimentos.

A doença era uma paralisia das partes inferiores do corpo, que lhe ia subindo para o peito.

Quando aquela paralisia lhe chegasse ao coração, ele morreria.

Chamava-se Júlio Baldoni o forçado.

Era de origem italiana.

Condenado aos trabalhos forçados públicos por falsificação em prejuízo de um banco em Nimes, onde ele era empregado, e mandado para Toulon, onde sentira os primeiros ameaços do mal de que falamos, sabia que estava perdido.

Um pouco mais velho que Pedro Carnot, e falando como ele muitas línguas, residira em Gênova antes de vir para França.

O assassino de Clara Gaillet possuíra-se de uma espécie de afeição por aquele desgraçado, cuja inteligência estava à altura da sua, e com quem podia conversar.

Um dia Pedro lia-lhe em voz alta, para o distrair, um dos livros que fazia parte da biblioteca das galés.

O italiano, sofrendo mais do que era costume, não o escutava.

O excesso da dor física, causava-lhe uma violenta irritação moral.

Revoltava-se contra toda a sociedade, por causa do castigo merecido que estava sofrendo.

— Ah! murmurou de repente cheio de raiva, com os dentes cerrados, interrompendo a leitura, morrer sem me poder vingar... sem ter gozado o que se pagou tão caro, é para endoidecer!

Pedro Carnot fechou o livro e disse ao doente:

— Vamos, Júlio, sossego... Bem sabe que essas cóleras abafadas agravam-lhe o mal agitando-lhe os nervos.

— Oh! replicou o italiano, se ao menos vivesse o suficiente para sair livre, e executar o que tinha concebido... que sonho!

— Sim, mas não passava de sonho... — Devia ser a realidade.

— Explique-se, Júlio...

— Ouça-me e compreenda-me. O senhor tem vinte e cinco anos, eu tenho vinte e sete... O senhor é inteligente, eu também o sou. Ambos tivemos o direito de acreditar na fortuna, no futuro... Acreditou nela, não é verdade?

Pedro Carnot fez um sinal afirmativo.

Baldoni continuou:

— O que somos hoje? Grilhetas! miseráveis aos quais a polícia designará uma residência quando chegar o dia da liberdade! Seremos encurralados, vigiados como animais ferozes, o número da galé seguir-nos-ão todas as portas, incluindo as do trabalho. Será também verdade ou não?

— É verdade.

— Que fazer então? continuou o italiano. Rastejar no mais profundo de um abismo de miséria e de vergonha, ou voltar à sociedade, enganando-a para melhor a explorar, e principiar em nosso proveito a grande luta dos burladores contra os burlados.

— Sim, replicou Pedro! mas será possível? Como se há de enganar o mundo, quando os nomes de Pedro Carnot e Júlio Baldoni dizem a quem os quer ouvir: Desconfiem! estes homens são grilhetas soltos!

O italiano sorriu de um modo singular.

— Refleti muito nisso, quando estava em Nimes, lembrando-me de que algum dia seria preso, julgado, condenado.

— O que! exclamou Pedro. O senhor previa nessa época o julgamento e a condenação?

— Sim, por certo! Forjava documentos falsos... juntava dinheiro que não me pertencia de modo algum... fatalmente devia ser preso um dia ou outro. Não tinha ilusões a esse respeito.

— E isso não o assustava?

— De modo algum. Continuava com o mesmo sangue frio o mesmo trabalho de falsário...

— Por que?

— Pela melhor de todas as razões. Nada tinha e queria ter... Simples empregado com mil e oitocentos francos de ordenado, podia algum dia esperar ver-me à testa de cem mil francos ganhos pelo meu trabalho honrado? Nunca! Ora! eu tinha grande interesse em possuir esses cento e cinqüenta mil francos. Era portanto preciso roubá-los. Não acha?

— Já se vê.

— Depois, roubando-os,. que risco corria?

— O das galés, segundo me parece...

— Com certeza!... Oh! eu sabia o que devia pensar. Estudara o código... Dez anos, o muito; cinco anos, o menos.

"Qual era o negócio que poderia, sem empregar nenhum capital, render-me sete mil e quinhentos francos de renda em cinco anos, e mesmo em dez? Nenhum... Não havia portanto que hesitar, e não hesitei. O meu cálculo será justo?

— Sim. Com a condição de obter os primeiros cento e cinqüenta mil francos, e depois guardá-los.

Baldoni sorriu outra vez.

— Obtive-os e guardei-os, disse.

Pedro deslumbrado e estupefato murmurou:

— Tem essa quantia?

— Tenho, e se eu saísse vivo daqui, torná-la-ia a achar, e graças a ela, revolveria o mundo! Ganharia milhões!

O enfermeiro apressou-se a responder:

— Você há de sair vivo e bom...

— Isso entra-me por um ouvido, sabe! replicou.

— Não sei por que?

— Eu lho digo.

— Explique-se.

— A paralisia sobe! Dentro de seis meses, num ano, em dois. o muito, isto estará pronto! Mas ainda que obtivesse a liberdade, não teria outra vantagem senão trocar o meu leito da enfermaria por um leito do hospital... Triste vantagem! e depois não o teria ao pé de mim, e portanto, não perderia na troca! A doença mostrou-se para mim mais desapiedade que o júri! Condena-me perpetuamente! Vendo-me neste estado, não tenho o direito de amaldiçoar o dia em que nasci, e de me revoltar contra a sorte?

— Tem esse direito efetivamente! disse Pedro com uma voz sombria.

Após alguns minutos de silêncio, Baldoni tornou:

— Quanto tempo lhe falta ainda para cumprir a sentença?

— Vinte e um meses.

— Nem sequer dois anos?

— Não.

— E espera comutação de pena?

— Não.

— Não sei porque, pois que tem boas notas.

— Ninguém se ocupa de mim em Paris.

— Isso não quer dizer nada.

— Só recuperarei a liberdade no último minuto da última hora..

— Que tenciona fazer quando se vir solto?

— Eu sei lá! respondeu Pedro com uma expressão de imenso desânimo. Obrigado a residir no lugar que a polícia me designar, sob pena de ser novamente preso por transgressão de sentença, quem sabe se poderei ganhar a vida? Morro talvez de fome.

— Não tem recurso algum?

Pedro hesitou sem responder.

Um secreto instinto aconselhou-o a que não divulgasse a existência de Malpertuis e murmurou:

— Nenhum.

E o italiano continuou:

— E depois que está nas galés, não procurou armar-se contra a sociedade?

— Procurei, mas debalde... Edificava planos, e depois conhecia bem depressa que eles pecavam pela base, e que a falta absoluta de dinheiro os faria desabar...

— Compreendo, mas apesar disso é muito inteligente, para não tentar resolver alguma coisa.

Pedro perguntava de si para si aonde queria Baldoni chegar com as suas perguntas.

Parecia-lhe adivinhar que o italiano se interessava por ele.

Guardou, contudo, segredo a respeito dos seus planos do futuro e respondeu:

— Resolvi tentar um golpe, não importa qual, o que a ocasião me sugerir... Se me sair bem, ficarei por algum tempo à vontade... Se não suceder assim... farei saltar os miolos.

Baldoni encolheu os ombros. Depois fez a seguinte observação:

— Contar com o acaso, é correr o risco de um grave choque, e fazer saltar a mioleira quando se é forte e bem disposto, como você, é tolice! Depois que você pertence ao serviço da enfermaria, tenho-o estudado, e parece-me conhecê-lo bem... Parece-me que o senhor está talhado para um homem forte, para um homem dominador, mas falta-lhe o sangue frio, a reflexão, a madureza. Se ainda viver algum tempo, educá-lo-ei na minha escola. Acautelá-lo-ei contra todos e contra si mesmo. O senhor teve por mim, por um pobre diabo de quem nada podia esperar, muitas atenções e muitos cuidados. Mostrou amizade por mim. Lembro-me. Sou grato e vou mostrar-lhe a minha gratidão. Chegue-se, encoste o cotovelo ao travesseiro, e falemos mais baixo...

Pedro assim fez.

— Assim, bem, exclamou o italiano com uma voz abafada. Agora, escute-me.

— Escuto...

 

CONFIDENCIAS

Baldoni principiou:

— Já lhe disse que não nutria ilusões a respeito do meu estado. A morte pode-se fazer esperar um pouco mais ou um pouco menos, mas a verdade é que não sairei daqui vivo, e os médicos sabem isso tão bem como eu.

"Portanto, nem agora, nem depois, terei precisão de coisa alguma.

"Possuo cento e cinqüenta mil francos, repito-lhe.

"São meus, muito meus, visto que os paguei, não só com a minha liberdade, mas com a vida, porque as galés é que me matam.

"Não quero que fiquem perdidos, lego-lhos.

Pedro murmurou agitado por uma profunda comoção.

— Para mim essa quantia?

— Sim, para si, é de semelhante modo que quero pagar a minha dívida de gratidão.

Pedro fez um movimento.

— Não me agradeça... É pequeno o meu merecimento em dar o que para mim é inútil. Agora preciso de lhe explicar onde está o dinheiro.

Pedro pôs-se à escuta atentamente.

— Conhece Nimes?

— Não, respondeu Pedro.

— Tanto pior; mas no fundo pouco importa... Vou dar-lhe indicações tão precisas, que não poderá hesitar, quando livre finalmente, for procurar a sua fortuna. Compõe-se essa fortuna de notas de banco,, e de moedas de ouro. O ouro é em pequena quantidade. Apenas vinte mil francos.

"Encerrei tudo num pequeno cofre de aço cinzelado e gravado, outrora destinado, segundo suponho, a conter jóias.

"Quando o tiver em seu poder, ver-se-á obrigado a quebrar a fechadura, porque no momento em que me prenderam tiraram-me a. chave.

— Onde está o cofre?

— Em Nimes...

— E em que lugar de Nimes?

— Num lugar que acharás sem custo, com a condição de me escutar atentamente, e de não esquecer nada do que lhe vou dizer...

— Tranqüilize-se que não me esquecerei...

— A cidade de Nimes possui um teatro... Por trás desse teatro, exatamente defronte da entrada dos artistas, existe um pavilhãozinho, em meio de um jardim.

"Quando eu era empregado em Nimes, morava nesse pavilhão tão arruinado que ninguém fazia caso dele; enterrei na adega o cofrezinho de que se trata, e que escapou às investigações da polícia...

Pedro fez a seguinte observação:

— Mas, como se há de penetrar na adega? O pavilhão está por certo habitado, e não poderei confiar aos seus moradores as pesquisas, que eu hei de precisar de fazer.

— A entrada da adega não fica no interior da casa... replicou Baldoni.

— Então onde fica?

— Detrás da casinha que fica situada, repito-lhe, em meio de um jardim...

"Os muros do jardim são tão baixos que um homem desembaraçado e vigoroso pode transpô-los sem custo, e costeiam em parte um beco habitualmente deserto. Ah! eu tinha calculado muito bem a minha empresa.

"O cofre está no fundo da adega, no ângulo que fica à sua esquerda, voltando as costas à porta da entrada.

"Está enterrado a sessenta centímetros de profundidade.

"A terra que o cobre, cuidadosamente calcada por muito tempo, apresenta uma superfície muito compacta e muito resistente.

— A adega pode estar fechada? observou Pedro.

— É possível e até provável.

— O ruído que há de ser preciso fazer ao forçar a fechadura deverá necessariamente atrair a atenção.

— Pois tem tão pouca habilidade, que não possa abrir uma fechadura à surdina?

— Hei de fazer o que for possível; só uma coisa me preocupa.

— O que?

— Não terá sido demolido o pavilhão depois que o meu amigo se acha nas galés?

— Não.

— Tem a certeza disso?

— Absolutamente. Eu era sub-locatário de uma pessoa que a tinha arrendado por oito anos ainda. Tenho porém mais alguma coisa a dizer-lhe.

— O que?

— Sabe que ao sair daqui será possuidor de uma fortuna de cento e cinqüenta mil francos. Mas, com os seus apetites, os seus gestos, as suas tendências, uma tal quantia será apenas uma gota de água, bem depressa evaporada, se não a fizer frutificar.

— Como?

— Nas minhas mãos esses poucos bilhetes de banco teriam produzido milhões. Ah! eu tinha planos gigantescos! Ora bem! assim como lhe lego uma fortuna, legar-lhe-ei as minhas idéias. Estas servir-lhe-ão para desmedidamente aumentar aquela.

"As minhas idéias são sólidas, não práticas; devia aos cinqüenta anos achar-me não sei quantas vezes milionário...

— Mas como?

— Eis o que eu sonhara: Uma vez fora das galés, e possuidor de meu tesouro, partiria para Paris...

— Para Paris! repetiu Pedro Carnot.

— Decerto.

— Esquece-se que colocado sob a vigilância da alta polícia, é-lhe proibida a residência no departamento do Sena. Seria preso dentro de vinte e quatro horas.

— Chegava a Paris virgem de toda a condenação com um estado civil muito em regra e muito respeitável, volveu o italiano.

— Ora essa!

— Já vamos falar nisso. Deixe-me continuar. Em Paris dei-me com um vadio qualquer, com um desses advogados famélicos, azedado pelo infortúnio, muito forte em direito, mas sem clientela, sem dinheiro, sem esperanças, com o ventre vazio, a consciência larga, e a habilidade suficiente para costear às margens da lei, sem nenhum grave comprometimento...

Baldoni interrompeu-se.

Pedro, em que despertavam grande interesse as palavras do companheiro, perguntou:

— E depois?

— Ora essa! depois untava as mãos e engordava o meu pobre diabo de jurisconsulto esfomeado, e à sombra do seu nome fundava um consultório, uma agência, para buscar heranças vagas, e sobretudo uma espécie de sucursal da prefeitura de polícia, tendo ao seu serviço polícias não oficiais para andarem na pista de todo o escândalo, de todo o mistério, vindo trazer todos os dias os seus relatórios ao meu associado. Faria deste escritório um centro de informações, onde qualquer pudesse, a peso de ouro, comprar algum dos segredos donde dependem a vida, a fortuna, a honra, ou o amor, e servir-se dele a seu sabor...

"Veria tudo, escutaria tudo, compulsaria tudo, registraria tudo, e depois sem o meu sócio, e independente dele, faria uso de todos os materiais de que fosse depositário, enriquecendo-me à custa daqueles que não me conhecem, que poderiam em caso de infortúnio, acusar o indivíduo de cujo nome eu me servia...

"Não existia nem para a agência, nem para os clientes...

"Passaria publicamente uma vida de cavalheiro, em que o polícia mais hábil não poderia descobrir o que quer que fosse de suspeito.

"Gastaria dinheiro, muito dinheiro, e veria abrirem-se portas diante de mim, como se abrem para quem tem um nome aristocrático, e prodigaliza o ouro às mãos cheias.

 

Pedro Carnot escutava com prodigiosa atenção.

As palavras do italiano traziam-lhe à memória as teorias formuladas por Malpertuis na noite em que os dois cúmplices tinham roubado os cem mil francos na rua de Amsterdam.

Malpertuis falava de um cartório de advogado, mas Baldoni tinha razão, um gabinete de negócios valeria muito mais.

— Compreendeu-me? perguntou o italiano.

— Sim; o que porém era possível para o senhor, não o é para mim...

— Como?

— Não vejo meio algum de chegar a Paris virgem de toda a condenação, com um estado civil perfeitamente em regra e muito digno.

— É isso que o inquieta?

— Mas parece-me que há motivos para isso...

— Não tem razão interrompeu Baldoni. Que pensaria de um nome fidalgo e de um título perfeitamente autêntico, que não lhe poderiam ser contestados?

— Penso que nem uma nem outra coisa jamais me pertencerão.

— Ofereço-lhos.

— Seriamente?

— Sim, per Bacco, seriamente! Chegando a Paris, não mais me chamaria Júlio Baldoni, mas César, Barão de Fossaro.

— Como assim!

— E o senhor tomando o meu lugar, é que vem a ser barão, um barão autêntico, repito-lhe, e indiscutível...

— Estou-o ouvindo sem o compreender.

— Paciência! Vou explicar-me.

E Júlio Baldoni, recostando-se, principiou a sua explicação, ou antes a sua lição:

— Tive na Itália grande intimidade com um jovem fidalgo genovês. o Barão César de Fossaro.

"Era dois anos mais velho do que ele... Tínhamos feito ambos os nossos estudos.

"Quando vim estabelecer-me em França, entabulou-se entre nós uma correspondência bastante ativa.

"Escreveu-me um dia que o pai acabava de morrer, absolutamente arruinado, e perguntou-me se podia obter-lhe em França um emprego qualquer que lhe permitisse viver, ou antes vegetar, conforme lhe fosse possível.

"Por este tempo já eu pensava em arranjar uma nova individualidade.

"Atravessou-me o espírito uma idéia luminosa.

"Respondi a César que tinha para ele um lugar disponível em Nimes, no escritório do banco onde eu era empregado, que lhe era preciso portanto vir ter comigo sem demora, munido de todos os seus. papéis de família, e de um passaporte.

"Acrescentei que podia, enquanto não houvesse coisa melhor, oferecer-lhe uma hospitalidade provisória que nada lhe custasse...

"Na volta do correio anunciou-me a sua chegada para uma data fixa e muito próxima.

"No dia e hora indicadas, César de Fossaro transpunha o limiar do pavilhão em que eu habitava.

"Não devia dali sair.

A voz do italiano tornara-se soturna.

Porém no seu rosto não se manifestava nenhuma comoção enquanto contava estas coisas terríveis.

Pedro Carnot, menos endurecido que ele, escutava-o com terror.

Baldoni prossegui passado um instante:

"Ninguém em Nimes conhecia César... Ninguém sabia em Nimes que este viajante tivesse ido hospedar-se em minha casa... Ninguém, nem na França, nem na Itália, devia inquietar-se com o seu desaparecimento, porque já não tinha família.

"Estava preparada uma refeição.

"Fiz beber a César vinhos capitosos.

"Ele adormeceu profundamente, e levei-o para a minha cama.

"Durante o seu sono, revistei-lhe a mala.

"Achei nela o passaporte de César e os títulos de nobreza da antiga casa de Fossaro.

"Tornava-se possível a realização dos mais audaciosos dos meus sonhos.

"Italiano como o genovês, e quase da sua idade, ser-me-á fácil, chegado o momento, de me substituir a ele, de entrar literalmente na. sua pele.

"Quando tomo uma resolução, não hesito nunca em executá-la.

"César de Fossaro não despertou.

"Gastei quase três horas em abrir junto da escada que conduzia à adega um fosso profundo em que estendi o corpo.

"Meti os papéis no cofrezinho que já continha a minha fortuna, e que também enterrei.

"Depois queimei a mala, e confiado a respeito do futuro, esperei com o espírito muito sossegado.

Pedro Carnot, o assassino de Clara, passou a mão pela fronte banhada de suor.

A narrativa de Júlio Baldoni desvairava-o imensamente.

O paralítico continuou:

— Portanto, encontrará os papéis com os cento e cinqüenta mil francos.

"Por um feliz acaso, o senhor fala um pouco italiano, e eu proponho-me ensinar-lhe esta língua a fundo; por conseguinte nada impedirá que torne a aparecer no mundo sob o nome de César de Fossaro.

— Esquece-se, replicou Pedro com desânimo, que o meu rosto apresenta um estigma impossível de ocultar... A cavidade repelente que substitui o olho esquerdo, dar-me-á a conhecer, e toda a gendarmeria teria os meus sinais.

— Tenho pensado nisso, e a sua enfermidade em lugar de o prejudicar, servir-lhe-á, permitindo-lhe tomar à vontade duas fisionomias diferentes, que o tornarão num intangível Proteu.

— De que modo?

— Nada mais simples. O senhor, suponho, usa o nome de seu pai?

— Uso.

— Como se chamava sua mãe?

— Henriqueta Rédon.

— Muito bem, pudera ser Pedro Rédon, o cego de um olho para os parisienses, que tendo-o conhecido bonito rapaz nem por sombras o reconhecerão. Demais, as feições mudam de cinco em cinco anos, e o senhor será o barão César de Fossaro, quando a arte lhe houver restituído na aparência o olho que lhe falta. Compreende?

— Sei que se fabricam olhos de esmalte, mas para isso é precisa ir ter com hábeis operários, com especialistas.

— Anda em liberdade pela cidade, creio?

— Sim.

— Nunca o acompanha nenhum guarda?

— Nunca... Têm confiança em mim. Demais, que interesse posso eu ter em me evadir, quando se aproxima a época da minha libertação?

— É exato. Pode dispor de uma certa quantia?

— De um milhar de francos que pude esconder.

— É mais do que precisa. Amanhã irá já ao cais... Verá lá a loja de um naturalista que se ocupa em empalhar animais. Tem por tabuleta uma pintura a óleo, representando um leão, com esse letreiro: — Rei do Deserto.

— Conheço a loja.

— Entrará... Perguntará por Urbano Speroni, e dir-lher-á que o vai procurar da parte de Júlio Baldoni. Urbano é um talento acima do comum, cuja especialidade consiste em fabricar olhos de esmalte... Far-lhe-á a sua encomenda, pagando-a adiantado.

— E o preço?

— Há de ser carinho, porque pagará o trabalho e o segredo.

 

COMOÇÕES SOBRE COMOÇÕES

— Ah! murmurou Pedro Carnot, não regatearei.

— E não esquecerá nada? tornou Baldoni.

— As suas palavras estão gravadas na minha memória.

— Só tenho uma recomendação a fazer-lhe: Se é grato, continue a ser para mim o que tem sido até hoje... um amigo.

— A minha amizade aumentará o meu reconhecimento.

— Assim o desejo... Arranje uma gramática italiana, um dicionário, e de amanhã em diante estudaremos juntos.

Acabava de soar a hora da refeição.

Pedro levantou-se para ir fazer o seu serviço.

No seu cérebro reinava uma grande desordem, e uma grande confusão.

O futuro inesperado que Baldoni acabava de fazer cintilar diante dos seus olhos, deslumbrava-o.

Custava-lhe a crer, e não obstante parecia impossível a dúvida.

Logo no dia seguinte o assassino de Clara Gaillet, aproveitando a liberdade relativa que desfrutava, dirigiu-se a casa do naturalista designado, e em cuja tabuleta se lia o Rei do Deserto.

Disse a Urbano Speroni que o vinha procurar da parte de Júlio Baldoni, depois explicou-lhe o fim da sua visita.

Speroni pediu quinhentos francos, recebeu-os imediatamente, e prometeu entregar prontamente um olho de esmalte que imitasse a natureza com verdade inexcedível, e completamente dissimulasse a cicatriz da fronte.

Pedro comprou em seguida a gramática e o dicionário italianos, e voltou para o seu posto na enfermaria da galé, onde Baldoni lhe deu a primeira lição.

 

Decorreram um ano depois do conciliábulo a que fizemos assistir os nossos leitores.

Pedro falava agora italiano como um genovês puro sangue.

Compenetrado das doutrinas de Júlio Baldoni, imbuído das suas idéias, senhor dos seus planos mais maquiavélicos, preparava-se para ser um temível adversário para a sociedade no dia em que, sob uma nova forma, ele voltasse para o seio dela.

Mantinha com Malpertuis, sob pretexto de solicitar a sua proteção no ministério da justiça, junto do diretor das graças, uma correspondência muito assídua, que não podia comprometer o advogado.

Branca crescia, escrevia-lhe o seu antigo cúmplice.

Tornava-se inteligente e formosa, mas a sua índole parecia indomável.

Sete meses separavam ainda Pedro Carnot da hora da sua libertação, e o forçado aguardava essa hora com uma febre sempre em aumento.

Com grande espanto dos médicos, o estado de João Baldoni conservava-se estacionário.

Nenhumas melhoras se manifestavam, é verdade, mas como a paralisia não fazia progressos, aquele status quo podia permitir que a vida do doente se prolongasse por muito tempo.

Para o italiano também se aproximava a hora da liberdade, o que despertava vagas inquietações no espírito do seu herdeiro futuro.

Baldoni acabava o seu tempo em cinco meses.

Quando ele deixasse as galés, Pedro Carnot ainda lá ficaria uns sessenta dias.

Quem sabe se o ar da liberdade não ocasionaria uma cura que se julgava impossível?

Quem sabe se Baldoni, curado contra toda a expectativa, e senhor das suas ações, não pretenderia gozar sem partilha da sua fortuna, e realizar sozinho os seus projetos futuros?

Numa palavra, as angústias de Pedro aumentavam à medida que decorriam as semanas e os meses.

Quando Urbano Speroni concluiu o seu trabalho, o cego experimentou o olho fictício que lhe devia restituir à fisionomia o aspecto de outrora.

Este olho era uma perfeita obra prima.

Podia rivalizar em brilho e transparência com os olhos naturais.

Faz supor um olho verdadeiro e simplesmente imobilizado por um capricho da natureza.

O mês de agosto tinha principiado.

Todos os anos, nesta época, à medida que se aproximava o dia 15 de agosto, os hóspedes das galés sentiam uma vaga esperança despertar no fundo do coração.

O soberano não deixava nunca de celebrar a sua festa po meio de atos de clemência e de perdões.

Na manhã de 15, o diretor das galés tendo recebido aviso dos perdões concedidos, e das comutações de pena, dirigiu-se em pessoa à enfermaria.

Era a hora da visita.

O médico em chefe, seguido dos seus discípulos e dos enfermeiros, aproximava-se dos doentes, informava-se do seu estado, e ordenava que se continuasse ou modificasse o tratamento.

A entrada do comissário, acompanhado do seu escrivão, interrompeu a visita.

Os condenados que estavam de cama, compreenderam o que significava a presença do representante da autoridade, e quase todos os corações bateram com violência.

Cala qual esperava por si.

Só o italiano não experimentava nenhuma comoção.

Julgando-se só ,sem protetor, achava impossível que um raio de luz pudesse iluminar-lhe a existência sombria cujo termo estava próximo.

O comissário, parando no meio da primeira sala, tomou um papel das mãos do escrivão, e disse em voz alta:

— Júlio Baldoni.

Ouvindo proferir o seu nome, o paralítico estremeceu.

Passou-lhe pelos membros inertes um calafrio repentino.

A mais terrível comoção se apoderou dele.

Iriam iluminar-se as trevas que o rodeavam?

Em menos de um segundo, aquele homem que não esperava outro livramento senão a morte, tornou a esperar.

Estava ainda vivo, e contudo traziam-lhe o perdão.

O passado, o presente, a doença implacável, e o fim próximo, esqueceu tudo, e o futuro apareceu-lhe com uma auréola.

Repentinamente, com uma força de que ninguém o julgava capaz, ergueu-se na cama e respondeu:

— Júlio Baldoni sou eu...

Um dos enfermeiros presentes à visita tornou-se lívido.

As mãos contraíram-se-lhe.

Escapou-lhe dos lábios um gemido abafado.

O enfermeiro era Pedro Carnot.

Desfazia-se em fumo o seu sonho.

Adeus fortuna... Adeus existência nova... Adeus tudo...

Em lugar de um nome virgem, em lugar de um título, em lugar da vida livre e folgada no Paris conquistado, o passaporte amarelo de forçado liberto, a vigilância, a miséria, a vergonha.

— Que queda!

O comissário aproximou-se do leito.

— Chama-se Júlio Baldoni? perguntou.

— Sim, senhor comissário.

— Condenado a sete anos de trabalhos forçados pelo tribunal do departamento do Gard, por falsificações em papéis de comércio, e metido na galé de Toulon sob o número 1:317?

— Sim, senhor comissário, repetiu o italiano.

— Trago-lhe uma feliz notícia, o chefe de estado dignou-se perdoar-lhe.

Após o primeiro movimento de alegria, Baldoni tinha refletido. Acudiu-lhe aos lábios um triste sorriso.

— Estou grato como devo, murmurou; mas ai de mim! a clemência do imperador chegou muito tarde... Estou paralisado de ambas as pernas. Sem nenhuma probabilidade de cura... A liberdade vai valer para mim tanto como a galé e esta enfermaria onde eu tencionava morrer em paz?

O comissário voltou-se para o médico em chefe e perguntou-lhe:

— Doutor, o estado deste homem é tão grave como ele diz?

— De certo que é... respondeu o médico... Contudo já notei um statu quo que eu não esperava... Não me parece impossível que a liberdade determine uma reação, e triunfe do mal que a ciência não pode curar.

— Numa palavra, há esperança?

— De certo... Os recursos da natureza num corpo jovem, são infinitos.

— Bem ouve, tornou o comissário, não há motivo para desesperar. Portanto aproveitará a misericórdia do soberano... É-lhe perdoado o resto do castigo. Está livre. Esta noite sairá da enfermaria.

Baldoni exclamou com uma expressão de terror:

— Não posso nem andar, nem suster-me.

— Levá-lo-ão para o hospital civil de Toulon, onde esperará o seu restabelecimento.

— Ou a minha morte! replicou o italiano não sem amargura. O senhor devia guardar-me aqui.

— Não tenho o direito de o fazer. Compreende...

— Compreendo. Mas conceder-me o perdão, é infligir-me um novo castigo. A liberdade para mim não passa de um suplício.

— Tem algum parente?

— Nenhum.

— Deseja ser transferido para o seu país?

— Não, senhor comissário, mas visto que tenho absolutamente de me retirar, poderei escolher o lugar do meu retiro?

— Sim, contanto que seja uma cidade onde os galerianos vigiados têm direito de residir. Para onde deseja ser conduzido?

— Para Nimes.

Pedro Carnot estremeceu. O comissário tornou:

— Nada impede que se lhe conceda Nimes. Mas como viverá ali?

— Tenho algum dinheiro na caixa da prisão... o bastante para socorrer às minhas primeiras necessidades... é como o doutor acaba de me dizer, a liberdade será talvez mais poderosa que todos os medicamentos... Pagarei ao homem que me acompanhar até Nimes, e peço-lhe que mo indique. Ali...

 

Júlio Baldoni calou-se.

O seu rosto pálido tornou-se cor de púrpura, os olhos injetaram-se-lhe, e um gemido abafado escapou-lhe dos lábios.

Levando ambas as mãos à fronte, depois ao peito, caiu para trás no travesseiro, e pareceu ficar inanimado.

O médico em chefe correu para ele.

— Que temos? perguntou o comissário com vivacidade. — A comoção mata este desgraçado...

E depois de um rápido exame, o doutor acrescentou:

— Acaba de ser atacado de uma congestão, que pode muito bem ocasionar-lhe a paralisia da face.

Depois, voltando-se para os discípulos que acompanhavam a visita, acrescentou:

— Senhores, sem perda de um segundo, vou fazer uma sangria...

— Deixo-o, disse o comissário das galés, e continuo o meu serviço. Faça com que este pobre diabo possa sair daqui.

O médico em chefe inclinou-se sem responder.

Depois, descobriu um dos braços do italiano, preparou ligaduras, pegou na lanceta e picou a veia.

O sangue rebentou com violência.

Pedro Carnot, devorado por uma ansiedade aterradora, esperava o resultado dos cuidados que estavam empregando em Baldoni.

De repente o bandido reanimou-se.

Soltou um prolongado suspiro, e volveu os olhos em roda.

A final murmurou com uma voz extinta:

— Julguei que ia morrer...

— Está salvo... replicou o doutor. Vai tomar agora algum repouso, e não falará seja a quem for... e ainda que lhe falem não responderá, e de hora em hora dar-lhe-ão uma colher da poção cuja fórmula vou indicar.

O médico em chefe ditou a receita e perguntou:

— Quem é o enfermeiro de serviço?

Pedro Carnot respondeu logo:

— Eu, senhor doutor.

— Pode-se contar com a sua exatidão, não é verdade?

— Com a minha exatidão e o meu zelo, senhor doutor.

— Vai-se preparar a poção e trazer-lha... Não se esqueça que o doente deve beber uma colher de hora em hora... Depende disto a vida desse homem. Compreende bem?

— Fique descansado, senhor doutor.

Um dos discípulos separou-se do grupo para ir à farmácia com a receita; o médico em chefe continuou a sua visita.

Acudiu aos lábios de Pedro Carnot um estranho sorriso, enquanto que um sinistro fulgor se ateava na pupila do seu único olho.

Júlio Baldoni, após o violento abalo que acabava de experimentar, cairá num estado de prostração completa.

Tinha os olhos abertos, mas sem expressão alguma. Parecia dormir.

O discípulo voltou da farmácia com um frasco, fez tomar ao doente a primeira colher, e disse a Pedro Carnot:

— É preciso que a colher seja bem cheia, e as doses devam ser tomadas de hora em hora. Não esqueça que é indispensável a mais escrupulosa exatidão. Se este homem dormir, acorde-o. A vida dele está nas suas mãos.

Despertá-lo-ei, replicou Pedro.

Passados sessenta minutos terá a sua dose. Se ele morrer não será por culpa minha.

E instalou-se na cabeceira da cama.

 

PARA GRANDES MALES GRANDES REMÉDIOS

Júlio Baldoni mergulhara num sono febril, agitado, povoado de sonhos sinistros.

Pedro despertava-o de hora em hora regularmente, e fazia-lhe beber uma colher de remédio.

O italiano tornava logo a adormecer.

Próximo da noite, o sossego voltou.

Tornou a brilhar a luz no espírito do paralítico.

Levantou-se, encostou-se a um dos cotovelos, e tocando com o dedo num ombro de Pedro Carnot, disse-lhe com uma voz baixa,, mas distinta:

— Muito bem, estou livre... Amanhã irei melhor, sinto, e poderei partir. Conduzir-me-ão a Nimes, onde o esperarei. Assim que acabar o seu tempo venha ter comigo, porque o que está combinado, está combinado, somente será repartido como irmãos, e não perderá nada, porque me encarrego, com o seu auxílio, de nos fazermos milionários. Para isto é preciso que eu viva, viverei?

— Sim, murmurou o assassino de Clara Gaillet. Viverá, não há dúvida nisso...

Sobreveio a noite, trazendo consigo a prostração um instante dissipada, de Júlio Baldoni.

O enfermeiro de serviço parou junto do doente, a fim de lembrar ao enfermeiro a recomendação feita pela manhã pelo médico em chefe.

— Sossegue... tornou Pedro.

— Tome cuidado não adormeça.

— Em mim a vontade pode mais que o sono... Quando tenho de velar não durmo nunca.

 

Pela meia noite passou uma ronda de vigilantes.

Pedro Carnot, em pé, fazia o seu serviço, ou pelo menos fingia fazê-lo, porque havia duas horas que já não despertava o italiano.

Tinha contudo tirado duas colheres do líquido contido no frasco, mas para o deitar nas cinzas frias do fogão da enfermaria.

O sono de Baldoni tornava-se comatoso...

Dos lábios saía-lhe uma respiração penosa e sibilante.

Sacudiam-lhe os ombros, e o peito estremecimentos intermitentes.

Decorreu uma hora.

Pedro deitou fora terceira colher de remédio.

De repente o moribundo soltou um prolongado suspiro, e sentou-se na cama, com as fáceis injetadas, os olhos espantados, os membros torcidos.

Deitou em roda um olhar vago, incerto, e ao fulgor de um candieiro suspenso no meio da casa, descobriu Pedro sentado a quatro passos de distância, e contemplando-o, com sinistra tranqüilidade.

Júlio estendeu os braços para ele.

O enfermeiro não se mexeu e sorriu.

O italiano quis chamar; os seus lábios agitaram-se, não soltou porém nenhum som perceptível.

No rosto contraído do miserável manifestou-se então um profundo desespero.

Abriu desmedidamente a boca, levou as mãos às fontes, depois a cabeça caiu-lhe para trás, arrastando o corpo, que não se mexeu mais.

Pedro Carnot, sempre sentado, conservava em presença daquele espetáculo terrível completa impassibilidade.

Durante uns dez minutos, conservou os olhos fitos no italiano, que não dava sinal de vida.

Em seguida aproximou-se da cama, e afastando a roupa, pôs a mão sobre o coração do bandido.

O coração cessara de bater.

Uma cor violácea, quase negra, espalhara-se-lhe pelo rosto.

Pedro fez desaparecer outra colher de bebida, esperou mais uma hora, foi despertar o guarda de serviço, e disse-lhe que no memento em que ia deitar uma dose de remédio ao paralítico, achara-o morto.

— Tanto melhor para ele, replicou o outro; isso quer dizer que obteve perdão duas vezes!

E tornou logo a adormecer.

O enfermeiro voltou para a cama mortuária, muito convencido de que dora em diante ninguém viria disputar-lhe a posse do tesouro de Nimes, ou não pretenderia partilhá-lo.

Semanas e meses sucederam-se com uma lentidão desesperadora.

 

Chegou finalmente o dia tão ardentemente esperado pelo galeriano.

Na véspera tinham-no chamado ao cartório, a fim de se ajustarem as contas, e se proceder às formalidades indispensáveis para ele poder sair.

Achou-se senhor de uma quantia suficiente para poder regressar a Paris quando saísse das galés.

Além disso sabemos que tinha algum dinheiro escondido.

— O senhor está sob a vigilância da alta polícia por dez anos, disse-lhe o escrivão. Por conseguinte, a administração pode designar a cidade em que fixar a sua residência.

Pedro Carnot replicou:

— Não ignoro isso, senhor, e obedecerei às ordens que me forem dadas.

— O senhor portou-se bem aqui, e para o recompensar, permi-te-se-lhe escolher entre as cidades, já se vê, onde se pode receber os forçados que receberam a liberdade...

O assassino de Clara Gaillet estremeceu de alegria, mas não deu nada a conhecer, e perguntou com um ar muito sossegado:

— A cidade de Nimes é desse número?

— Exatamente. Deseja ir para Nimes?

— Sim, senhor.

— Amanhã receberá o seu passaporte, que logo à sua chegada fará visar na prefeitura de Gard, onde lhe darão licença de residência.

— Muito bem, senhor...

No dia seguinte Pedro Carnot era livre.

Quarenta e oito horas antes de recuperar a liberdade, um empregado das galés comprara por sua conta, com autorização do escrivão, um traje de operário. Além disso, havia algum tempo, permitiram-lhe deixar crescer a barba e o cabelo.

Nada na sua aparência denunciava o galeriano.

Dirigiu-se a um armazém de fato feito e comprou um vestuário simples, mas não destituído de elegância, e alguma roupa branca.

Meteram-lhe tudo numa mala que foi levada a um pequeno palácio, onde, sob um nome de fantasia, reteve um quarto para a noite, e no dia seguinte ao romper da manhã, meteu-se no comboio e partiu para Marselha, donde alcançou Nimes.

Partiu pela cidade a pé.

O estômago gritava-lhe com fome.

Tomou uma refeição copiosa, regada com uma garrafa de vinho de Lamalga.

Acendeu um charuto, e perguntou ao dono do restaurante onde era a praça do teatro.

Indicaram-lhe o caminho.

Dali a cinco minutos parava em frente do edifício municipal.

Os cartazes anunciavam para a noite uma verdadeira solenidade musical e dramática.

Devia-se representar a Judia com o concurso de um cantor da ópera de Paris.

O galeriano deitou apenas para a fachada do teatro um olhar indiferente, e torneou o teatro.

Um cartaz fixado num quadro ao lado de uma portinha, indicava a entrada dos artistas.

O pavilhão de que falara Júlio Baldoni existia ainda.

Por cima da muralha do jardim avistava-se o telhado.

Pedro Carnot disse consigo:

— Tudo vai bem; os muros não são altos... a escalada há de ser mais fácil que foi em outros tempos na rua de Amsterdam. Ainda bem, porque aqui estou só e lá tinha Malpertuis. É preciso saber se o pavilhão é habitado.

Do corredor que dava ingresso ao interior do teatro saía uma mulher.

— Cumprimentou a mulher e disse-lhe:

— Senhora, sou estrangeiro nesta cidade, e creio que me deram uma informação inexata... Devo apresentar-me numa casa, que segundo esta informação, se acha em frente da entrada dos artistas; ora eu não vejo senão um muro e nenhuma casa.

A mulher, porém, explicou logo:

— Detrás do muro há um pavilhão; mas atualmente está deserto. O locatário viaja há seis meses.

— Não deixou ninguém em casa?

— Ninguém. É um solteirão que vive só. Um urso, senhor, um selvagem...

— Muito obrigado, senhora; é claro que me induziram em erro, muito involuntário de certo.

Pedro cumprimentou e pôs-se novamente a caminho.

Sabia o que precisava de saber.

A informação obtida era a mais satisfatória possível.

 

No mês de janeiro, o dia finda às cinco horas da tarde. Sobrevinha a noite, e o gás principiava a brilhar nas ruas da cidade.

O forçado voltou para a estrada de ferro.

— A que horas parte o primeiro comboio para Paris?

— Às sete horas e vinte minutos, responderam-lhe.

— Não há comboio da noite?

— Não, senhor.

— E o primeiro comboio amanhã pela manhã?

— Às cinco e cinco.

Pedro afastou-se muito desapontado.

— Isto é que me transtorna um pouco os meus planos, pensou... Não desejava dormir aqui. Tenho interesse em transviar a polícia. Não tem dúvida! Em tempo de guerra não se limpam armas! Encontrarei um abrigo na adega do pavilhão, e quando eu sair do jardim, o dia ainda virá longe. Não corro portanto o risco de ser visto... É preciso tomarmos agora as nossas medidas.

Pedro Carnot passava por diante da loja de um cuteleiro.

As luzes de gás faziam cintilar as lâminas de toda a espécie.

Entrou, e dando-se como amador de jardinagem, comprou uma faca munida de uma pequena serra de aço temperado.

Um pouco mais adiante comprou duas velas e uma caixa de fósforos.

Um quincalheiro forneceu-lhe um trado e uma pequena foice para jardim.

Todos estes objetos formavam um pequeno embrulho, que pouco incomodava.

Por volta das dez horas, Pedro tornou para as proximidades do teatro.

A frontaria estava brilhantemente iluminada.

Por isto mesmo, os fundos pareciam ainda mais sombrios.

Naquela noite, enevoada e fria, apesar da doçura habitual do clima, a rua que costeava o muro do jardim apresentava um aspecto essencialmente lúgubre.

Pedro certificou-se de que era absoluta a escuridão, e transpôs o muro.

Graças às informações dadas pelo italiano, achou facilmente a porta da adega.

A pouca resistência da porta fez-lhe supor que não teria necessidade nem do trado, nem da serra de que se munira.

Efetivamente, apoiando-se nas robustas pernas, e encostando-se à batente, exerceu grande pressão, mas sem abalar a porta.

Ouviu-se um rangido; a fechadura acabava de ceder, e a batente girava sobre os gonzos.

O ex-forçado quase caiu de costas.

Conservou-se de pé agarrando-se à ombreira.

Recuperando o equilíbrio, entrou, empurrou a porta após si, e acendeu uma das velas que trouxera.

A adega, relativamente vasta, só continha umas cem garrafas vazias, e um tonel sobre um estrado.

A um canto estava um monte de batatas cobertas de uma camada de palha bastante espessa.

 

Este ângulo era o que Júlio Baldoni precisamente designara.

— Se o italiano não me enganou, é ali que está a minha fortuna... murmurou Pedro Carnot, portanto, mãos à obra.

E dispôs-se a tirar a palha, depois as batatas.

Dali a pouco via-se o solo.

O bandido conservara-se muito sossegado até àquele momento.

Um tremor nervoso agitou-lhe repentinamente os membros.

Sentiu uma estranha opressão, ao mesmo tempo que um suor frio lhe molhava as fontes.

A dúvida, por conseguinte a angústia, apoderava-se do seu espírito.

— Se eu não achasse nada, que decepção! que catástrofe! Ser-me-ia impossível ir ter com Malpertuis, e principiar uma nova existência, se não posso mudar de pele ao mesmo tempo que de nome, e apresentar aos curiosos um estado civil indiscutível! Cairiam por terra todos os meus planos! Ser-me-á preciso vegetar aqui sob a vigilância da polícia, ou fazer-me prender de novo, e retomar o meu lugar nas galés. Mais valeria a morte que uma tal vida. Mas por que é que Júlio me havia de ter mentido? Vamos, coragem, e esperança!

Lançou mão da enxada, e pôs-se a cavar com ardor o solo.

Era duro e compacto.

A terra batida por muito tempo resistia como se fosse barro, e tornava a tarefa longa e penosa.

Júlio Baldoni falara de uma profundidade de cerca de sessenta centímetros.

Pedro trabalhava com ardor, esperando a cada enxadada sentir sob o ferro uma resistência de natureza a dissipar os receios que a seu pesar vinham preocupá-lo.

— Cá está! disse Pedro consigo, ébrio de alegria.

Largou a enxada, estendeu-se no chão, debruçou-se para a cova, sentiu o cofre debaixo das mãos, e quis tirá-lo para fora.

Os anos tinham-no porém como que chumbado na terra.

O ex-forçado foi obrigado a retomar a enxada, e a alargar extraordinariamente a cova.

Então ajoelhou-se outra vez, e o cofre não resistiu.

 

MILAGRES DO DINHEIRO

— Ei-lo! murmurou o bandido tremendo. Júlio Baldoni disse a verdade! Estou salvo! estou rico! Tenho um nome virgem! uma posição social! É meu o futuro!

Chegou-se à vela e examinou o cofre.

A ferrugem cobria-o de todos os lados como uma lepra, corroendo o metal e ocultando as linhas por onde fechava.

O orifício da fechadura aparecia de modo quase distinto.

— Quero abri-lo imediatamente, disse Pedro, ainda que tenha de o fazer em mil bocados. O pavilhão fica longe da rua. A profundidade desta adega ensurdecendo o ruído das pancadas, não deixa ouvir nada da banda de fora.

Pegando então na enxada, introduziu a extremidade aguda no orifício da fechadura, enterrou-a o mais possível, e operou um repentino movimento de vai-vem, tendo o cuidado de por o pé em cima da tampa.

Não obteve nenhum resultado, e quando quis recomeçar não conseguiu soltar a ponta do ferro.

Fez então do cofre o que o cortador de lenha faz do madeiro que adere ao ferro da enxada, e levantando-a acima da cabeça, deixou-a cair no solo com violência.

A fechadura resistiu, mas as charneiras já corroídas cederam.

O cofre abriu-se.

Encerrava uma caixa de cartão, uma carteira velha de marroquim vermelha com a cifra e a coroa de barão, e quatro saquinhos.de tela escura.

Pedro examinou logo o conteúdo dos sacos.

Cada um deles encerrava então cinco mil francos em ouro.

A caixa estava cheia de notas de banco de mil francos.

O ex-galeriano pegou nas notas.

Contou cento e trinta. Os vinte mil francos de ouro completavam a soma de cento e cinqüenta mil francos anunciada por Baldoni.

A carteira continha papéis de família, cartas, um passaporte, a certidão de nascimento do Barão César de Fossaro, as certidões de óbito do pai e da mãe, uma árvore genealógica, e finalmente os títulos de propriedade de uma pequena vila sem valor, situada às portas de Gênova.

Havia além disso muitos apontamentos escritos pelo defunto Barão César, e várias notas, graças às quais, seria fácil qualquer tornar-se senhor do passado de vida de Baldoni, do fidalgo genovês de quem Pedro Carnot pisava o túmulo desconhecido, e cujo nome ia usurpar.

Aumentando a cada descoberta, a alegria do miserável atingia as proporções do delírio.

Esforçou-se por serenar um pouco, e tornou a meter no cofre a caixa de papelão, os sacos de pano, e a carteira.

O trabalho a que vimos de assistir, e o exame minucioso do seu achado tinham tomado muito tempo ao ex-galeriano, mas não sabia ao certo que horas podiam ser.

 

Enxugou a fronte alagada de suor, e abriu a porta da adega para olhar e escutar para fora.

Era profunda a noite, e a cidade jazia em silêncio.

Pedro lembrou-se de ter ouvido um relógio dar onze horas no momento em que transpunha o muro.

Pôs-se à escuta.

Dali a pouco o mesmo relógio soava quatro vezes de seguida.

Pedro fez a seguinte reflexão:

— Quatro horas, é preciso partir. Tenho exatamente o tempo de chegar ao caminho de ferro antes de partir o comboio.

Tomando o cofre debaixo do braço, saiu da adega que fechou após si conforme pôde e atravessou o jardim.

Parou ao pé do muro.

O cofre escangalhado, embaraçava no momento da escalada.

— Para que me hei de estorvar com este objeto comprometedor? perguntou o bandido. Levá-lo comigo seria absurdo.

Meteu nas diferentes algibeiras do fato as notas de banco, o dinheiro em ouro, e a carteira, atirou o cofre vazio para meio de um maciço, e depois, livres os movimentos, transpôs o muro e parou na rua deserta.

Quando chegou à estação abria-se o guichê para a venda dos bilhetes.

Àquela hora matinal, os viajantes eram em muito pequeno número.

Pedro pediu um lugar de primeira classe para Lyon, dirigiu-se com o seu bilhete ao depósito onde deixara a mala, e instalou-se num compartimento onde se achou só.

Enchia-lhe as medidas esta solidão.

O comboio partiu.

Antes de chegar à primeira paragem, devia percorrer uma distância de quarenta e oito quilômetros.

Tinha pois uma hora diante de si.

Sem perda de um minuto abriu a mala, arrumou dentro dela os objetos que lhe enchiam as algibeiras, e tirou de dentro duas coisas, um espelho portátil, e um objeto de um volume muito pequeno embrulhado em papel de seda.

Este objeto era o olho de vidro fabricado em Toulon pelo esmaltador italiano.

Colocando então diante de si o espelho, Pedro, ao frouxo clarão da lâmpada do vagon, abriu as pálpebras, e na órbita vazia meteu o olho fictício, como Urbano lhe ensinara.

Concluída esta operação, acudiu-lhe aos lábios um sorriso de triunfo.

Ficava tendo a certeza de que nenhum dos seus companheiros o poderia reconhecer, pois que ele próprio não se podia reconhecer a si mesmo.

E refastelando-se num ângulo do vagon com elegante abandono, disse quase em voz alta:

— A partir deste momento, Pedro Carnot está morto e enterrado. O Barão César de Fossaro substitui-o. Viva o Barão César de Fossaro

Às três da tarde chegavam a Lyon.

Apeando-se do caminho de ferro, Pedro fez-se conduzir ao grande hotel Bellecour.

Dali escreveu a Malpertuis este bilhete lacônico:

 

"Não tardo e levo boas notícias,

"Pedro".

 

O ex-forçado passou oito dias em Lyon, ficando todas as tardes, durante muitas horas, fechado no quarto que ocupara.

Consagrava estas horas a um trabalho de paciência.

Como o passaporte do Barão César de Fossaro era já antigo, precisava de mudar-lhe as datas.

Júlio Baldoni, hábil falsificador, ensinara-lhe teoricamente a grande arte de fazer desaparecer as letras antigas com o emprego de certos ácidos que não deixavam vestígios.

Passou da teoria à prática, e depois de grande número de indicações e de longas experiências em papéis sem valor, atacou o próprio passaporte e obteve um resultado irrepreensível.

Munido de um documento que, de um instante para o outro, podia tornar-se para ele de grande importância, partiu para Paris, hospedou-se no Hotel Maurice, sob o nome de Barão de Fossaro, e dirigiu-se ao cartório de Malpertuis.

Este, apesar de prevenido da sua visita aquela manhã, por um bilhete que o não comprometia, com alguma dificuldade o reconheceu, tanto lhe tinham bronzeado a epiderme os cinco anos passados nas galés, tanto lhe tinham mudado a expressão do rosto.

Rendeu-se contudo à evidência e abriu os braços ao seu ex-cúmplice, que se tornara seu sócio.

Três meses depois Malpertuis vendia o seu emprego; fundava o estabelecimento da rua da Victoria, aonde conduzimos os nossos leitores no princípio da nossa narrativa.

César de Fossaro alugava o palacete da rua de Provence, fazia abrir a misteriosa porta de comunicação, e estabelecia um telefone entre o gabinete do ex-advogado e o seu próprio gabinete de trabalho.

Certas particularidades retrospectivas, esclarecendo alguns fatos, ainda obscuros, virão a seu tempo.

 

Reatemos agora a narrativa que julgamos dever interromper para esclarecer o passado de Pedro Carnot.

Esperamos que não hajam esquecido que uma grande parte dos personagens desta verídica história se dispunha a assistir no dia seguinte, no teatro de Belleville, à primeira representação dos Beijos Mortais, grande drama inédito de um jornalista parisiense.

Sabemos que na manhã mesmo daquele dia Branca, filha de Pedro Carnot, e de Clara Gaillet, devia entrar como dama de companhia para casa da Duquesa Joana de Chaslin, sob o nome de Adriana e deixamos a formosa Lucilia Gonthier, no momento em que a loura jovem, cuja pista Sta-Pi acabava de descobrir por conta do Príncipe Totor deixava o seu pequeno aposento de Belleville para ir, primeiramente, levar o seu trabalho ao estabelecimento das confecções, e em seguida visitar a sua velha tia, pensionista do hospício de Salpetrière.

A pobre mulher, cega e septuagenária, solicitara da Assistência Pública a sua admissão no hospital, por não ter nenhum meio de subsistência e por não chegar o trabalho da sobrinha, sua única parente, para sustentar a ambas.

Efetivamente, o encargo seria muito pesado para Lucilia; mas, todas as semanas, a simpática jovem, ia ver a irmã de sua mãe e sempre lhe levava uma pequena quantia para as suas despesas miúdas, ou alguma gulodice predileta da cega.

O hospício da Salpetrière, um dos mais belos da Europa, data do reinado de Luiz XIV.

Chamava-se então o Hospital geral.

A regularidade destes edifícios imensos, a amplidão dos seus pátios plantados de árvores seculares e dos seus passeios cobertos, fazem dele, ao mesmo tempo, um modelo e um monumento.

Hoje o seu destino é duplo.

Serve de asilo para as mulheres indigentes de idade de setenta anos pelo menos, e para as mulheres de menos idade, atacadas de afecções nervosas ou de cegueira completa.

Além disso recebe indigentes, alienados, idiotas, epilépticos ou histéricos.

Isto constitui na mesma casa dois estabelecimentos bem diferentes, tendo cada um o seu regulamento especial e o seu serviço médico à parte.

Os parentes podem visitar os asilados duas vezes por semana, às quintas e aos domingos, do meio dia às quatro horas da tarde.

Lucilia Gonthier escolhia um destes dois dias e não deixava nunca de fazer à tia uma visita.

Naquele dia, uma quinta-feira, ao meio dia em ponto, a loura Toutinegra transpôs o limiar do hospício e dirigiu-se à sala de Sant'Ana.

Não descreveremos a extensa sala na qual se estendiam duas fileiras de alvas camas, de singular aceio.

Iremos direito à cama que tinha o n.° 32.

Entre este leito e a janela, uma velha, sentada numa cadeira de palha, numa imobilidade de estátua, prestava atenção ao menor dos passos que soavam no sobrado encerado, brilhante como gelo.

Assim que Lucili penetrou na sala Sant'Ana a cega estremeceu e guiada por aquele instinto misterioso que Deus concede quase sempre às pessoas privadas de vista, voltou a cabeça para o lado pelo qual chegava a jovem.

Sem a ver, adivinhava-a, e convencida de que não se enganava, estendeu as mãos para ela.

Lucília, apressando o passo, deixou-se cair os braços que a estreitavam.

A cega principiou a apertá-la contra o peito, depois as suas mãos trêmulas apalparam-lhe o rosto e os cabelos.

Atraindo-lhe a fronte encantadora ao nível dos lábios, cobriu-lha de beijos.

Lucilia pegando nas mãos da anciã, e sentando-se junto dela, disse-lhe:

— Hoje é quinta-feira... Esperava-me, não é verdade?

— Sim, minha flor, com impaciência maior do que era costume.

— Por que?

— Por três razões...

— Três razões, querida tia!...

— Sim.

— Pois compreendendo a primeira... tardava-lhe beijar-me. Mas não posso adivinhar as outras duas... Faltava-lhe alguma coisa?

— Nada absolutamente... Tenho aqui tudo quanto preciso, e até, graças a ti, minha flor, dinheiro para as minhas fantasias.

— E então?

— O motivo da minha grande pressa é perguntar-te se não te esqueceste do que me prometeste?

Obter licença para a levar consigo por uns quinze dias. Será isto, minha querida tia?

— É sim, pequena. Seria tão feliz se te ouvisse falar e cantar desde manhã até à noite, de afagar o teu lindo rosto, que me padece ver com as mãos, como se tivesse olhos nas pontas dos dedos... Estou muito velha... Pouco me resta de vida... Será a minha última felicidade.

— Tenho boa memória, querida tia... volveu Lucilia com vivacidade. Quando me retirar irei fazer o pedido... Antes de a receber em minha casa, como vê, é preciso tomar algumas medidas...

— Que medidas, minha flor?

— Precisava de fazer aquisição de uma cama completa.

— É verdade... não me lembrava disso... Quantas despesas! E o leito?

— Comprá-lo-ei quando for preciso... Tenho trabalhado com grande aplicação pensando na tia, e pude realizar algumas economiazinhas...

— És um anjo!

— Está combinado... disse Lucilia rindo... E agora qual é a terceira razão?

— Um sonho que tive.

 

CASTELOS NO AR

— Um sonho! repetiu a jovem estupefata... Acredita em sonhos, tia?

A cega respondeu sorrindo:

— Às vezes.

— Sabe, porém, que os sonhos mentem geralmente?

— Não mentem sempre, minha lindeza; e muitas vezes na vida tenho sonhado com certas coisas, que mais tarde me sucediam.

— Em suma, o seu sonho era de bom agouro?

— Era um sonho tão triste e tão sombrio, que ainda não me passou completamente o medo que me meteu.

— E dizia-me respeito?

— Sim.

— Querida tia, conte depressa. O sonho faz-me cismar.

— Ora, imagina, que um personagem poderoso, um príncipe, via-te, achava-te bonita, como o és de fato, e namorava-se de ti, a ponto de perder a cabeça, e te queria esposar...

Lucilia pôs-se a rir e ponderou:

— Mas isso é um conto de fadas, do tempo em que os reis de opereta esposavam pastorinhas de mágica.

A cega insistiu:

— Mas pequena, afirmo-te que é o meu sonho.

— Pois digo-lhe, tia, que não é triste, e desejava que ele se realizasse. Veja que se eu fosse mulher de um príncipe, seria princesa.

— Naturalmente.

— Também naturalmente seria rica, muito rica... poderia portanto tirá-la daqui e conservá-la sempre junto de mim.

— Que estás dizendo!

— Então adeus vida monótona de hospício, apesar de se dar bem com ela! adeus alimentação medíocre e grande sala onde estão reunidas cinqüenta pessoas... A tia teria um belo quarto só para si, com um belo tapete; um criado que a serviria estando sempre às suas ordens; uma mesa excelente com os petiscos de que gosta, e um nunca acabar de gulodices... bom vinho de Bordeaux, um copinho de anilete, depois do café ,uma carruagem para passear, (não uma carruagem de aluguel, mas um trem particular), a felicidade em suma. Seria bem bom, não é verdade?

— Nem me deixaste concluir, repetiu a cega. O seguimento é que é lúgubre. Um malvado perseguia-os com o seu ódio, a ti e ao príncipe que te amava, e o tal malvado acabava por matá-los a ambos.

 

Lucilia fez beicinho.

— O desenlace tem falta de graça, na verdade, disse ela; mas não deve preocupá-la, querida tia. Não conheço nenhum príncipe que esteja apaixonado por mim ,e queira casar comigo. Estou até convencida de que não conhecerei nenhum. Moro numa casinha que não tem parecenças nenhumas com um palácio. Ninguém no mundo pode odiar-me e desejar a minha morte, e espero viver ainda muito tempo para a amar, querida tia...

— Ah! também espero. Mas desconfia sempre.

— De quem? Do príncipe encantador que me adora, e que pensa em me tomar por mulher?

— Ah! disso é que não desconfio. De quem eu desconfio e tenho medo, é do malvado que os ameaça a ambos.

Lucilia replicou com muita graça:

— Muito bem, querida tia, assim que eu conhecer o tal príncipe, dar-lhe-ei da sua parte o conselho de se acautelar.

— Estás zombando de mim, minha louquinha?

— Não zombo; mas a verdade, a pura verdade, é que não consigo ter medo. Agora, falemos de si. O apetite continua a ser bom?

— Continua.

— Muito bem! O sono?

— Durmo como pedra em poço.

— Isso é muito bem. Está já gasta a sua provisão de rape?

— Não. Ainda tenho metade, pelo menos, e também bolos e bolachas.

— E o seu café?

— O café, esse é que se gasta muito depressa. Por mais que queira ter juízo... não tenho coragem de me privar dele pela manhã e à noite. Ah! que mau hábito!...

— Muito bom hábito, pelo contrário! Aqui tem com que se fornecer de novo.

Lucilia meteu na mão da cega uma moeda de prata. A cega tateou a moeda.

— Mas isto são cinco francos, disse ela.

— Sim, querida tia.

— É muito bonito isso, muito bonito... Mas assim privas-te. Quarenta sons bastavam, e até sobejavam.

— Não me priva de nada, querida tia, e as minhas economias não estão esgotadas... Guarde isso sem escrúpulo, peço-lhe.

Na fronte da cega acabava de se vincar uma ruga.

— Pois tu ganhas tanto dinheiro?

E isto foi proferido com uma voz já alterada.

— Sim, minha tia, respondeu Lucilia; sou muito hábil, e faço num dia o que outras fariam, o muito, em dois.

A velha tornou, apalpando o vestido de Lucilia.

— E o teu trabalho permite-te usar semelhante fazenda, porque eu entendo, isto é cachemira pura, e da mais fina...

A jovem compreendeu, e tornou-se purpúrea.

— Por que me pergunta isso, querida tia? balbuciou.

— Por coisa alguma, minha filha. A gente velha é curiosa. Dos olhos de Lucilia deslizaram lágrimas que lhe correram pelas faces!

— Oh! minha tia, minha tia, disse ela ajuntando as mãos, que má idéia teve! Faz tão má opinião de mim?

— Não, minha pobre pequena. Conheço o mundo... sei o que sucede. És jovem, bonita, vives só. Há em Paris tantas tentações... É tão difícil resistir...

— Minha tia, interrompeu Lucilia em tom grave, só aquelas que odeiam o trabalho, é que sucumbem às tentações de que fala. Eu sou laboriosa, e nunca, entenda bem, nunca aceitarei coisa alguma senão do trabalho...

A enferma, muito comovida, puxou a loura jovem para si e cobriu-a de beijos.

— Oh! perdoa-me, minha querida, exclamou ela abraçando-a com ternura, perdoa-me!... Não queria incomodar-te, Deus seja testemunha do que digo... amo-te tanto... e é porque te amo mais que tudo neste mundo que tenho medo...

— Não receie, tia. Estou muito bem guardada.

— Por quem?

— Pela minha vontade... Tenho vontade de me conservar honesta, e coisa alguma, mesmo a necessidade, me faria faltar à honra. Se tanto fosse preciso, morreria de fome, mas morreria sem nódoa.

— Acredito-te... acredito-te... e as tuas palavras tornam-me bem feliz.

A jovem levantou-se.

— Retiras-te? exclamou a cega.

— Assim é preciso, minha tia.

— Já?

— Tenho trabalho urgente... e depois tenho que pedir licença para a tia.

— E mesmo de um mês, se quiserem conceder-ma.

— Oh! como és bonita! um mês, junto de ti, que alegria! Dá-me o meu bordão... Vou acompanhar-te até à secretaria. Isto far-me-á andar alguma coisa...

Lucilia pegou num bordão rústico e sólido, que estava ao pé da cabeceira, deu-o à tia, depois a septuagenária enfiou o braço direito no da jovem, e ambas saíram da enfermaria de SantaAna.

Chegando à secretaria a Toutinegra expôs o seu pedido em termos urgentes.

Tomaram logo nota do pedido, prometeram-lhe uma decisão para a semana seguinte, dando-lhe esperanças de que a resolução havia de ser próxima.

A cega, muito alegre, beijou a sobrinha por última vez, e com o auxílio de uma enfermeira, regressou ao dormitório onde se achava o seu leito.

Lucilia, também muito alegre, tornava o caminho da sua casinha de Belleville.

 

Na véspera do dia em que vimos César de Fossaro, Júlio Leroux, Estanislau Picolet e Fernando Volnay tomar lugares no teatro Belleville para a primeira representação dos Beijos mortais. Branca, apresentada no palácio de Chaslin sob o nome de Adriana,. pelo doutor Antônio Frebault, dissera à Duquesa:

— Amanhã, senhora, estarei às suas ordens.

Voltando para o chalé da rua Compans a filha de Clara Gaillet recebera a visita e as últimas instruções do homem que para ela era Pedro Rédon.

Depois da retirada do cego, meteu-se na cama e passou a noite muito agitada.

Pensava constantemente no papel de certo terrível, uma grande situação no mundo.

Ao romper do dia estava ela de pé, tendo dormido, o muito, duas horas.

Entre os seus vestidos escolheu aqueles que, pela sua elegância simples, melhor se harmonizavam com a sua situação.

Arrumou, cuidadosamente, numa mala, a roupa e as suas modestas toilettes.

Afinal pediu a Margarida Vernant que lhe fosse buscar um trem.

Dali a uma hora o trem parava à porta do suntuoso palácio do Faubourg Saint Honoré.

A menina Adriana, — pois que era assim que se devia- chamar dali em diante, — era impacientemente esperada.

A Duquesa Joana, apesar de lhe ser prescrito um repouso quase absoluto, quis levantar-se mais cedo do que era costume e dar-lhe ordens relativas à instalação da sua dama de companhia.

Visitou o aposento perto do seu, e certificou-se de visu que lhe não faltava coisa alguma que pudesse tornar agradável a permanência ali.

Os criados mostravam muito zelo, mas sentiam íntima irritação contra uma pessoa, assalariada como eles, a quem o capricho dos amos ia dar uma importância absurda a seus olhos.

A velha governante, que servia também de criada de quarto à senhora de Chaslin, associava-se em silêncio ao descontentamento geral, e julgava de mau agouro o entusiasmo inexplicável da senhora por aquela desconhecida que um vago instinto de dedicação lhe apontava como perigosa.

Mariana Gilberto, estava há trinta anos ao serviço dos Chaslin e viúva de um cocheiro do Duque Henrique tinha sido, como sabemos a ama de Helena.

Esta situação, como também a sua dedicação absoluta de que ninguém desconfiava, davam-lhe no palácio o privilégio de um falar muito franco, do qual, seja dito entre nós, se servia raramente.

Servia-se contudo de certas formas de linguagem, que por não terem sido reprimidas, se haviam tornado em hábitos.

Às vezes a Duquesa tolerava-lhe as familiaridades excessivas, apesar de pouco respeitosas, ou por outra, não reparava nelas.

Mariana Gilberto chamava à Helena sua filha.

Sem hesitar teria dado por ela o sangue.

Houve um momento em que teve idéia de dizer à sua ama:

— "Senhora, tome cuidado... pressinto um grande perigo...

Mas desconfiou que lhe seria impossível explicar a sua desconfiança ou pelo menos firmá-la numa razão valiosa; calou-se.

Quando se retirara a jovem inglesa que servia de dama de companhia à Duquesa de Chaslin, Mariana Gilberto experimentara viva alegria.

Parecia-lhe que aquela estrangeira, vestida como uma rapariga da sociedade, vivendo na intimidade dos amos, lhe roubava uma parte da sua influência e da sua autoridade na casa, e como era natural regozijava-se porque reconquistava uma e outra coisa.

Quando soube que uma segunda intrigante, segundo a sua expressão, ia substituir a primeira, sentiu-se muito escandalizada.

A recém-chegada parecia-lhe ainda mais antipática do que a que se retirara, e resolveu não lhe ocultar a sua hostilidade.

Assistimos na sala de espera, ao primeiro encontro de Branca Adriana e de Mariana Gilberto, e conhecemos a impressão que esta experimentou ao ver a jovem.

O Duque Henrique dormira mui pouco, e nos seus curtos instantes de sono uma imagem, sempre a mesma, viera visitar os seu.9 sonhos.

A estranha beleza da falsa Adriana impunha-se-lhe como a túnica de Dejanire nos ombros do Centauro, e queimava-lhe as carnes, depois de na véspera lhe haver deslumbrado os olhos.

Levantara-se também muito cedo, e com o rosto encostado a vidraça de uma janela do seu quarto de dormir, que deitava para o pátio do palácio, esperava febrilmente.

Foi longa a sua expectativa.

Finalmente, um pouco antes das dez horas, o rodar de uma carruagem que parou em frente de uma das duas portas monumentais fê-lo estremecer.

A campainha soou.

Abriu-se a porta.

Branca, à qual conservaremos este nome para os nossos leitores, vestida como no dia precedente e velada, transpôs o limiar da porta.

Henrique de Chaslin chegou a crer durante um segundo, que as pulsações do seu coração iam sufocá-lo.

 

O PRIMEIRO ALVOROÇO

O Duque apressou-se a deixar o seu posto de observação, desceu apressadamente, e achou-se no limiar do vestíbulo, no momento em que a jovem subia os degraus da entrada.

Com uma perturbação visível, com uma comoção que não podia dominar, dirigiu-lhe algumas palavras de cumprimento, e ofereceu-lhe o braço para a conduzir junto à Duquesa.

Joana de Chaslin recebeu Branca Adriana com tanta benevolência e talvez mais simpatia que na véspera, e quis ela própria conduzi-la ao quarto que lhe destinara.

Beijou-a e disse-lhe:

— Querida filha, há de ser feliz aqui, espero, porque há de ser muito amada.

A jovem, dobrando o joelho diante da fidalga, em sinal de profundo respeito, murmurou:

— A dor mais pungente de minha mãe, ao abandonar este mundo, era deixar-me órfã. Agora, com certeza que se dá por feliz ao ver lá do céu o acolhimento que a sua filha encontra, e eu, do fundo da minha alma, agradeço-lho.

A senhora de Chaslin estava absolutamente encantada.

O rosto angélico, e a voz de cristal da sua nova companheira exerciam sobre ela verdadeira fascinação.

Soou a hora do almoço.

A Duquesa quis que Branca tomasse lugar ao lado dela, o que nunca sucedera com a jovem inglesa, que era servida à parte no seu quarto.

A refeição da manhã era absolutamente íntima.

Nenhum conviva assistia.

Mariana Gilberto, com desprezo a toda etiqueta, achou meio de atravessar duas vezes a sala de jantar, e deitou olhares odientos à desconhecida que o senhor de Chaslin devorava com os olhos dissimuladamente.

A hostilidade manifesta da governante não podia escapar a Branca.

Notou-a.

Mas não lhe causou admiração, nem a assustou.

Ia dizendo consigo:

— Que me importa o ciúme de uma criada? Serei a mais forte.

 

Depois do almoço a Duquesa voltou para o seu quarto, seguida de Branca, cujo serviço principiava.

A um desejo manifestado pela senhora de Chaslin, a jovem sentou-se ao piano, e Joana ficou entusiasmada com o seu talento gracioso e flexível.

Depois cantou uma velha canção bretã, repassada de melancolia.

A sua voz penetrante fez deslizar doces lágrimas pelas faces da Duquesa.

À música sucedeu a conversação.

Branca revelou uma instrução sólida e variada, e o mais delicada tato.

O entusiasmo da senhora de Chaslin aumentava, e não causaremos a admiração aos nossos leitores afirmando-lhes que não lhe custou nada, naquela mesma tarde, comunicá-la ao marido.

O Duque Henrique conhecia que alguma coisa extraordinária se passava nele.

Ainda não achava explicação suficiente ao que sentia, mas não podia dissimular que mulher alguma produzira nele semelhante impressão.

Branca Adriana, voltando para o quarto depois de assistir ao deitar da Duquesa, passou em revista os pequenos fatos realizados no palácio desde a manhã daquele dia, e, como lhe recomendara Pedro Rédon, analisou os fatos, deduziu as conseqüências, e inscreveu-as na memória.

Foram estas as conclusões do exame:

A senhora de Chaslin adorava-a cegamente, o Duque ia amá-la, Mariana Gilberto odiava-a.

Tratava-se dali em diante de tornar cada vez mais espessa a venda nos olhos da Duquesa, de excitar o amor do Duque, e perder Mariana no espírito dos amos...

— Tudo isto se fará pensou Branca.

Depois de se mirar por muito tempo num espelho de Veneza, a fim de mais uma vez verificar o brilho da sua beleza virginal, foi deitar-se e adormeceu muito sossegadamente.

 

Acabavam de dar sete horas.

Uma multidão compacta, que lembrava as afluências legendárias do antigo "boulevard" do Templo, embaraçava, havia muito, as proximidades do teatro Belleville.

Duas intermináveis filas, que principiavam debaixo do peristilo, serpenteavam, contidas por barreiras móveis ao longo da fachada, e nos lados do edifício.

Destas duas filas, inquietas e ruidosas, saíam gargalhadas, cantos interrompidos, gritos, graçolas, e um bom número de frases de um naturalismo feroz.

Era claro como o dia, que toda aquela gente não poderia conter-se onde cabia, o muito, mil e quinhentas pessoas, e da qual uma grande parte estava alugada ou dada.

Mas o bom do público sequioso do espetáculo, e que espera arranjar no camaroteiro um bilhete bom ou mau, não desanima com tão pouco, e revolta-se contra a evidência.

Numa palavra a dupla fileira ia crescendo.

Os cartazes anunciavam o levantar do pano para as oito horas, o que queria dizer que era para as oito e um quarto, se não fosse para as oito e meia.

Um pouco depois das sete horas, abriu-se a venda dos bilhetes, e não foi sem custo que os guardas da paz mantiveram a ordem junto do postigo.

Às oito horas fechava a venda dos lugares inferiores.

Os espectadores estavam empilhados uns sobre os outros, nas galerias superiores, como sardinha em tigela.

Onde caberiam, o muito, dez pessoas, tinham metido quinze.

Os espectadores meticulosos formulavam algumas queixas tímidas, às quais respondiam os otimistas;

— Ora! deixem lá! isto sempre se arrumará...

No fim de cinco minutos, a venda dos lugares superiores fechava também.

Era uma enchente real.

Só havia entradas pagas.

Recusavam desapiedadamente lugares a duzentas ou trezentas pessoas, depois de longa espera à porta do paraíso.

Esta multidão descoroçoada, não sabendo o que fizesse da noite, e não tendo, como no centro de Paris, o recurso de correr a outros teatros, espalhou-se, para matar o tempo, pelos cafés e pelas cervejarias dos arredores.

Sucediam-se as carruagens, conduzindo jornalistas que por simpatia pelo jovem autor, não tinham recuado diante da inverossímil extensão de uma viagem a Belleville.

Misturavam-se com os trens de aluguel alguns trens de particulares.

Em roda do teatro, do mesmo modo que na sala, onde era suficiente o calor, fazia-se grande ruído.

 

Para lá do pano não era menor o ruído.

Os maquinistas acabavam de colocar as vistas do primeiro ato.

O chefe dos acessórios gritava como um possesso.

Também em altos berros os artistas chamavam, uns o alfaiate, outros o cabeleireiro.

Era uma confusão inexprimível, uma algazarra em que ninguém se entendia.

Fernando Volnay sentado num banco no camarim que ocupava só, junto da cena, confiava a cabeça ao cabeleireiro que lhe metia o cabelo em papéis.

Fumava um cigarro e pensava.

Em quê? no seu papel!

Nisso é que não.

Pensava no Barão de Fossaro, e na Marquesa de La Tour-du-Roy.

Tinha pressa de se vestir, para olhar para a sala pelo buraco do paraíso.

Batia-lhe o coração como o de um colegial ao lembrar-se de que ia ver aquela mulher de quem o Barão lhe traçara um retrato tão estranho e tão sedutor, aquela grande fidalga, tão bonita, tão rica, tão caprichosa, que talvez o notasse e o conduzisse pelos caminhos floridos do amor, à celebridade e à fortuna.

Atirando fora o cigarro, disse ao cabeleireiro:

— Avie-se, Luiz. Entro na cena segunda.

— Senhor Fernando, estou a acabar.

E Luiz apressou-se a arranjar o cabelo com um ferro de frisar que aquecia a um bico de gás.

— Eu o chamarei daqui a pouco para me desmanchar isto, volveu o comediante.

— É escusado chamar-me, senhor Fernando... voltarei daqui a cinco minutos.

Em seguida o cabeleireiro correu a outro camarim. A sala ia-se enchendo pouco a pouco, porque os portadores de bilhetes numerados iam tomando os seus lugares.

Ainda estavam desocupados alguns fauteuils. Nas frisas de boca já apareciam algumas caras desconhecidas, o resto estava desocupado.

Estanislau Picolet, em pé à entrada da platéia, e armado de um antigo óculo de um só tubo, comprado em algum ferro-velho, tratava de ver se a bonita lourinha, cujo retrato tinha na algibeira, se achava entre os espectadores.

De repente avistou-a na quinta fila dos fauteuils, ao lado de uma robusta mulher de aparência respeitável, isto é, a ex-formosa hervanária, a senhora Verdier.

Sta-Pi esfregou as mãos, dirigiu-se para a sua dobradiça, e para se distrair, pôs-se a olhar para as acriatides humanas, cujos ombros pareciam sustentar os tetos baixos das terceiras e quartas galerias.

O camarote situado por cima do que devia ocupar Heitor de Castel-Vivant abriu-se.

Apareceu César de Fossaro, em companhia do doutor Antonino-Frebault a quem ofereceu um lugar, ao encontrá-lo no "boulevard".

De repente, e com muito ruído, a porta do camarote do príncipe Totor girou sobre os gonzos e apareceu Genoveva, de toilette clara,, decotada como para uma primeira recita num teatro de Paris.

Heitor seguia-a, assim como o Visconde de Cussy, jovem janota seu amigo, e da menina Manolia, pequerrucha sem importância, a. quem o Visconde honrava com a sua proteção.

Genoveva apoiava no recanto do camarote as mãos calçadas de luvas até ao cotovelo, e debruçando-se para olhar para a sala, fez ostentação dos ombros e da garganta talhadas em pleno mármore.

O público do galinheiro avistou-a.

Soou uma trovoada de palmas, umas sérias, outras zombeteiras.

 

CONTINUAÇÃO

Genoveva retirou-se para trás.

— Ah! rapazes, exclamou ela soltando uma gargalhada sonora, não perdi o efeito. Vejam como o público me fez uma ovação!

Depois instalou-se junto da companheira, a tal pequerrucha sem importância, e colocou diante de si o ramalhete, o leque, o binóculo, e um saco de bolos.

Como sabemos, César de Fossaro ocupava a frisa de boca.

Ouviu a voz de Genoveva e sorriu.

O príncipe Totor, estendendo o corpo por entre as duas mulheres, examinou a sala por seu turno.

Procurava Lucilia e Picolet, mas um grande número de espectadores que se conservavam de pé na platéia, embaraçavam a vista.

O seu exame ficou improfícuo.

Havia já vinte minutos que decorrera à hora designada para subir o pano.

Os mais impacientes principiaram a bater com os pés em cadência, no ritmo de uma música popular.

Pouco a pouco o ruído foi aumentando, e tornou-se geral.

Toda a sala tremia, as pancadas com os calcanhares levantavam nuvens de poeira, que produziam uma espécie de nevoeiro em volta das chamas do lustre.

O camarote da senhora de La Tour-du-Roy conservava-se vazio, com grande dissabor do Barão de Fossaro.

Não vindo Lazarine, o edifício laboriosamente construído por ele desabava como castelo de cartas.

No palco, os artistas passeavam de um lado para o outro, febricitantes, preocupados, resmungando os seus papéis.

Fernando Volnay, com o olho no buraco do pano, tinha visto César instalar-se, mas a Marquesa de áureos cabelos não aparecia.

Uma comoção nervosa, uma inquietação febril, abalavam o comediante.

O mestre da orquestra, — de casaca preta e de gravata branca. para o caso, — tomou posse do seu lugar.

Aplausos gerais acolheram a sua entrada.

O ruído, que até aquele momento fora crescendo, sossegou como por encanto.

Sucedeu-lhe um fraco rumor que dali a pouco também se apagava. Soaram as três pancadas regulamentares, e o arco do mestre de orquestra dava o sinal da abertura.

Fernando continuava a olhar para o camarote vazio. Apoderava-se dele uma profunda decepção.

César de Fossaro com os olhos fitos no mesmo ponto, mordia os lábios.

Terminada a abertura, estabeleceu-se um grande silêncio.

Erguia-se o pano, e aparecia uma vista de sala de sofrível estilo.

O público pouca atenção prestou à primeira cena.

Esperava-se o futuro Melingue com tal curiosidade, que tudo quanto precedia à sua entrada parecia longo.

Finalmente, fez-se ouvir um tremulo na orquestra, e Fernando Volnay apareceu.

Trajava o costume da época com tanto arreganho, o herói legendário dos dramas de capa e espada encarnava-se tão bem nele, reunia-se nele tanta graça felina e tanto orgulho varonil, finalmente era tão belo, que se ouviu na sala um pequeno murmúrio de admiração.

A claque aplaudiu, e nenhum protesto se fez ouvir.

 

UMA REPRESENTAÇÃO MEMORÁVEL

Fernando falou, e a sua voz bem timbrada pareceu simpática como a sua pessoa.

O comediante, animado por um acolhimento cuja benevolência não podia pôr-se em dúvida, e todo entregue ao seu papel, não perdia, apesar disso, de vista o camarote onde Lazarine brilhava pela sua ausência.

A cena continuou.

Só, com uma das mulheres amadas (devia amar três, como devem estar lembrados), o ator caiu de joelhos para lhe fazer uma declaração.

Fez este movimento com tanta espontaneidade, havia tanto fulgor no seu olhar, tão meigas entonações na sua voz, que um aplauso de toda a sala lhe cortou a palavra durante alguns segundos.

Neste momento, o camarote de boca da primeira ordem abriu-se, e a Marquesa entrou sem ruído, acompanhada de Júlio Leroux.

César de Fossaro viu-a, e o rosto iluminou-se-lhe.

Genoveva, glutona por excelência, como todas as raparigas da sua qualidade, que fazem troça no teatro para darem nas vistas, e porque julgam muito chic mostrarem-se desdenhosas, estava toda entregue ao que se representava, e não tinha dado pela presença da Lazarine.

Heitor, com as duas lentes do seu binóculo assestados para Lucilia, também não suspeitava da presença da Marquesa.

Fernando Volnay, deslumbrado com a vista daquela deliciosa criatura, cem vezes mais encantadora do que ele a imaginara, estremeceu.

Cessavam os aplausos.

Era preciso continuar a cena interrompida.

O comediante, a quem a beleza da Marquesa embriagava, ou para melhor dizer eletrizava, desempenhou o seu papel de amante com um tom de verdade, uma intensidade de paixão, que produziram um frêmito no auditório.

Falava com a atriz encarregada de lhe dar a réplica, mas os seus olhos não se despregavam de Lazarine, e era para ela que voavam as suas palavras inflamadas.

O fim da sua tirada foi proferido com um tal brio, com tão irresistível entusiasmo, que por segunda vez os aplausos rebentaram.

A senhora de La Tour-du-Roy escutava muito surpreendida.

Aquela voz, ora metálica, ora branda, sempre cariciosa, agitava-a profundamente, a ela que havia tanto tempo se julgava inacessível às comoções que o teatro dá.

Causavam-lhe estranha sensação os olhos ardentes e aveludados que se fixavam nela.

Parecia-lhe sentir o choque.

 

O primeiro quadro concluiu triunfalmente.

Era um grande êxito para o ator... Toda a sala falava dele.

Estava em todos os lábios o seu nome.

— Sabes, menina, que não representam aqui muito mal? disse Júlio à filha.

Em lugar de responder, Lazarine replicou:

— Pede o programa à ouvreuse.

O melhor dos pais, dócil segundo o seu costume, saiu do camarote para se por em busca do programa desejado.

A senhora de La Tour-du-Roy, mulher muito da sociedade para. querer atrair a atenção num teatro dos arredores, estava vestida com uma simplicidade de um gosto muito seguro.

Toda de preto, de luvas iguais, um corpete-couraça moldava-lhe o talhe delicioso e as perfeições do busto.

Um chapéu Rembrandt de pelúcia negra, rodeada de uma pluma também negra, cobria sem lho ocultar o cabelo esplêndido com. reflexos de cobre.

Nem uma só jóia, exceto em cada orelha um diamante de quinze mil francos.

Tendo ficado só, muito pensativa, deitou lentamente em roda o olhar vago de uma mulher que julga impossível encontrar um rosto conhecido em meio de um público tão variado.

De repente estremeceu, como estremecera Fernando ao vê-la entrar, e pareceu-lhe sentir uma espécie de comoção elétrica.

Através do buraco do ponto, olhava para ela fixamente uma pupila.

Era o mesmo olhar que acabava de agitar de um modo tão' singular o olhar cintilante do cômico.

Assim que o pano caiu, Heitor dirigindo-se a Genoveva e a Malvina, a bonita pequerrucha sem importância, exclamou:

— Sabem que se morre aqui sufocado! Vou ao café mais próximo dar ordem para que tragam sorvetes... se estas paragens os' produzirem...

— Tens razão, vai, meu bebê, replicou Genoveva. Ficarás sendo muito bonito.

O principezinho vira Picolet fazer-lhe um sinal. E saltou para fora da frisa.

 

Sta. Pi esperava-o ao pé da porta dos fauteuils. Heitor, passando ao lado dele, disse-lhe a meia voz:

— Siga-me.

O ex-empregado do cartório Malpertuis obedeceu passivamente, atravessou a multidão atrás do Príncipe, e acompanhou-o até a porta da cervejaria, onde deu ordem para levarem sorvetes à frisa de Genoveva.

— Agora, tornou o mancebo, juntando-se na rua ao polícia fingido, estou em ordem, podemos conversar.

— O Príncipe não está só no teatro, murmurou Picolet.

— Não, infelizmente, e deve crer que a coisa não é nada agradável! Mas não me serviram de nada as diligências empregadas. Foi-me impossível desembaraçar da carraça. Já foi ter azar!

— Devia ter-se negado a acompanhar tal pessoa.

— Ela viria de motu próprio, e não ganharia nada com isso...

— Sabe que a menina Lucilia está na platéia?

— Vi-a... acho-a ainda mais adorável que da primeira vez, e o meu amor vai-se tornando catapultuoso, como diz o príncipe de Chypre!

— Esta noite o Príncipe deverá limitar-se a admirá-la de longe; eu, à saída do teatro, irei atrás dela, para saber onde mora.

— E dir-me-á a morada?

— Com certeza, Príncipe. Onde e quando, se faz favor?

— Amanhã, pela manhã, em minha casa, se eu não o tiver visto antes do fim do espetáculo, e se o acaso não me houver permitido falar a Lucilia...

— Falar-lhe! repetiu Sta-Pi, Não faça tal, Príncipe! Seria de uma imprudência louca! O senhor é vigiado, tenha a certeza disso. A carraça deve ter reparado nas olhadelas incendiárias que atira: faça ao menos que ela não perceba para quem se dirigem essas chispas ardentes. Uma explosão poderia tudo comprometer... Tenha alguma paciência, senhor. Em todo o caso não morrerá por isso!

— Tem razão, senhor Picolet, mas a carraça faz-me mal aos nervos de uma maneira espantosa. Estou como uma bicha! Esta noite pespegava dois estalos, fosse em quem fosse, com uma voluptuosidade mirífica! Parece que me consolaria...

— Acalme os nervos, senhor, e até amanhã.

— Até amanhã, senhor Picolet...

E o principezinho, voltando para a sala, dirigiu-se para a frisa, onde o tinham precedido os sorvetes.

Durante a ausência de Heitor, Genoveva, como já não estava absorta pelo interesse do drama, e se lembrava do papel que o barão de Fossaro lhe impunha, voltara novamente os olhos para o camarote que lhe ficava em frente, e que era agora ocupado pela Marquesa de La Tour-du-Roy.

— Ele lá está, disse consigo. Está bom... César ficará satisfeito.

Davam sinal para o segundo quadro exatamente no momento em que Totor retomava o seu lugar.

Maquinalmente o seu olhar fixou-se no camarote de primeira ordem.

Conheceu, por seu turno Lazarine, e fez-se muito pálido.

Haviam decorrido perto de seis anos depois do seu rompimento com a Marquesa; durante este lapso de tempo encontrara-a mais de uma vez, e sempre com uma comoção profunda e dolorosa.

A vista daquela mulher, o primeiro e único amor verdadeiro da sua mocidade, transtornava-o e agitava-lhe o coração.

Não podia esquecer que estivera quase a fazer Lazarine Princesa de Castel-Vivant.

Acudia-lhe à memória a intensidade do seu sofrimento no momento em que tinha ouvido as revelações terríveis de Marcelo Laugier.

Os crimes da Marquesa passavam-lhe por diante dos olhos como visões sinistras.

Percorreu-lhe as carnes um calafrio.

Ao mesmo tempo atravessava-lhe o espírito um sombrio pressentimento.

— Esta mulher há de ser nefasta ao meu amor, disse consigo. O pano subiu.

Fernando tinha o principal papel, e logo à primeira cena do segundo quadro, — cena que parecia feita para o Melingue, — o jovem comediante demonstrou que sabia mostrar-se irônico e mordaz tão bem como sabia mostrar-se apaixonado.

Lazarine tinha na mão, inteiramente aberto, o programa trazido pelo pai.

Olhou para o papel, para saber o nome do autor, quando ouviu nomear o personagem que ele representava.

Fernando, cujo olhar não a abandonava, compreendeu que acabava de atrair a sua atenção.

Apoderou-se dele imensa alegria; o sangue subiu-lhe do coração às faces, cobrindo-lhe o belo rosto moreno.

A Marquesa viu este rubor e mordeu os lábios para não sorrir.

O enredo do drama mudou repentinamente.

O comediante, encetando nova cena de amor com outra mulher, excedeu-se a si próprio e conquistou cada vez mais os espectadores pela veemência e o calor comunicativo do seu acionado.

De repente, Genoveva, em meio do silêncio da sala suspenso dos lábios de Fernando Volnay, pareceu reprimir com grande custo uma gargalhada.

— Que bicho te mordeu? perguntou-lhe em voz muito baixa a formosa pequena, sem importância. A peça não é má.

— Não é a peça que me faz rir, volveu Genoveva no mesmo tom, é o ator.

— Por quê? o rapaz não vai mal.

— Mas é de uma originalidade incrível! Em lugar de fazer a sua declaração à atriz que lhe dá a réplica dirige-se à mulher da frisa... a mulher de negro com os cabelos vermelhos. É ratão!

Heitor tocou no braço da amante, e disse num tom imperioso:

— Cala-te.

— Calar-me! replicou Genoveva. Será por se tratar de uma das tuas antigas amantes? porque a conheço muito bem, aquela dama. Perdeste a cabeça por causa dela em outros tempos, meu pobre bebê. É a Marquesa de La Tour-du-Roy.

O nome foi proferido à socapa; mas Fernando que se achava à esquerda do teatro, muito próximo da frisa, ouviu-o.

Voltou-se e deitou um olhar fulminador a Genoveva que se pôs a rir muito ruidosamente, com uma insolência de dissoluta.

Lazarine, sem desconfiar que se tratava dela, seguia a direção do olhar de Fernando.

Fez-se pálida por seu turno, e deitando-se para trás, serviu-se do leque para ocultar o rosto.

Genoveva prosseguiu quase em voz alta:

— Produzes efeito, meu caro. A formosa Marquesa reconheceu-te logo.

— Cala-te, repito! disse o principezinho.

— Isso é que não! Hei de falar quanto quiser.

Alguns schius! ouviram-se na platéia.

Fernando Volnay muito enervado, vendo a cena interrompida e os efeitos comprometidos, voltou-se novamente e despediu um olhar cheio de ameaça.

Um riso zombeteiro de Genoveva, respondeu-lhe.

O comediante vira a Marquesa empalidecer e velar o rosto.

Concluiu que compreendera o insulto.

Apoderou-se dele uma cólera súbita.

Interrompeu abruptamente a frase principiada, e olhando para Heitor muito fito, disse num tom imperioso:

— Silêncio no camarote!

— Sim, sim! repetiram cem vozes na platéia, nas galerias e no galinheiro. Silêncio no camarote! para a rua os perturbadores da ordem.

Até aquele momento o principezinho não dera razão a Genoveva, mas tomando muito a sério a sua posição de herdeiro de um velho nome e de um título sonoro, tornara-se meticuloso e brigão.

O simples indicio de uma falta de atenção punha-o fora de si.

De um ímpeto afastou as duas mulheres, e de pé, doido de raiva, com os olhos cravados nos de Fernando Volnay, perguntou no meio do tumulto e da maior confusão:

— Quem teve o atrevimento de me impor silêncio?

— Eu! respondeu o comediante.

— O senhor é um insolente!

— E o senhor é um garoto!

— Patife, ver-nos-emos depois do espetáculo.

— Assim o espero.

Uma explosão formidável e prevista ressoou na sala.

— Calem-se seus janotas! Silêncio! A troça para a rua. Onde está a polícia! Onde está o comissário?

Envergonhado do barulho infernal que acabava de se desencadear pela sua imprudência, o príncipe Totor desapareceu no fundo do camarote como um títere na sua caixa.

Assim que deixaram de o ver, soaram entre a multidão aplausos irônicos e gritaram aos atores:

— Continuem! Continuem! Bravo!

 

PRELIMINARES DO DUELO

A cena, um instante interrompida pelo ruidoso episódio a que acabamos de assistir, continuou.

Fernando Volnay, excitado pela cólera que nele fervia, foi esplêndido.

Findo o ato, uma chamada entusiástica fez subir o pano.

A Marquesa de La Tour-du-Roy aplaudiu como toda a gente, e Fernando inclinou-se diante dela lançando-lhe um olhar cuja expressão penetrante e apaixonada, não há frases que a possam pintar.

Na frisa de boca já não se dava sinal de vida.

O comissário de polícia, homem de bom senso e de experiência, entendeu coisa completamente inútil renovar o escândalo com a sua intervenção e proceder à expulsão do janotinha, cuja culpa, pensava ele, consistia apenas em ter jantado muito bem.

Stanislau Picolet tudo vira, tudo ouvira mas sem nada compreender procurava explicar a questão que se levantara entre o principezinho e o comediante.

As coisas caminhavam à vontade do Barão de Fossaro.

Saiu radiante do teatro e dirigiu-se para a entrada dos artistas.

Heitor, sentado bem para o fundo da sua frisa, muito pálido, de cabeça baixa, profundamente irritado com o insulto que acabava de receber na presença da Marquesa de La Tour-du-Roy, cerrava os punhos e murmurava em voz baixa e sibilante:

— Este garoto! Este ator reles! Um semelhante escândalo! Comigo! Hei de cortar-lhe as orelhas!

— Pois pensa nisso, meu caro! replicava o Visconde de Cussy, Não deve ter um duelo com semelhante pelintra! Ele terá cuidado de se eclipsar depois de cair o pano. Essa gente não se bate senão em cena, com espadas de folha. Só não tendo o juízo no seu lugar é que tomaria a sério.

— O senhor é que não o tem, Visconde! disse Genoveva num tom de birra. Por que dá a Heitor um conselho que o senhor não seria capaz de seguir? De muito baixo que venha um insulto o Príncipe não o pode deixar impune.

— Não, com certeza, exclamou o mancebo com vivacidade. Hei de esbofetear aquele troca-tintas! Hei de quebrar-lhe a bengala nas costas; em suma, hei de obrigá-lo a dar-me uma satisfação!

— Um duelo?

— Exatamente.

— Isso seria muita honra para ele!

— Não se trata dele, mas de mim. Aquele velhaco chamou-me garoto. Garoto! eu o Príncipe de Castel-Vivant! É uma palavra que pede sangue. Hei de ter sangue.

— Aprovo, meu bebê, tornou Genoveva. Um homem da tua classe deve saber fazer-se respeitar; mas não tens precisão de levar as coisas até ao duelo. O garoto dar-lhe-á desculpas.

— Isso é comigo, volveu Heitor com mau humor. Visconde, fica comigo depois do espetáculo, estas senhoras vão-se embora sozinhas.

— Às suas ordens, querido Príncipe.

Lazarine não perdia de vista a frisa, e adivinhando as causas do incidente que acabava de ter lugar, mostrava-se reconhecida a Fernando por se ter posto do lado dela.

— Mas, espera, observou Júlio Leroux muito intrigado, este rapaz desordeiro é o ex-Bégourde, se não me engano!

— Sim, respondeu laconicamente a Marquesa.

— Então o que é que se passa?

— Não sei, e não me importa.

O melhor dos pais abanou a cabeça com ar de dúvida, e não fez perguntas.

 

César de Fossaro, como dissemos, apresentou-se à entrada dos.artistas.

O porteiro deteve-o com estas palavras:

— Onde vai, senhor?

— Cumprimentar o senhor Fernando Volnay.

— Bem, senhor, entre.

O Barão subiu para o palco, onde se achou em meio dos maquinistas que mudavam o cenário.

O contra-regra vendo um estranho, veio ter com ele.

— O que é que o senhor, quer? perguntou.

— O senhor Fernando Volnay.

— Está no foyer, acolá à direita. Este corredor vai ter lá. César seguiu a indicação do ensaiador, e achou Fernando Volnay dispondo-se a orar no meio de um grupo de artistas.

O comediante avistou-o, interrompeu o seu discurso, e disse-apertando a mão de César:

— Venha ao meu camarim, senhor Barão, se faz favor. E levou-o consigo.

Achando-se no compartimento estreito e baixo onde os bicos de gás mantinham um calor sufocante, o senhor de Fossaro, que parecia não saber, ou pelo menos não explicar coisa nenhuma, perguntou:

— Vamos a saber, querido artista, — e permita-me acrescentar, grande artista, porque a partir deste momento o senhor é uma notabilidade. Que é isto? Que significa a altercação que acabo de observar?

— Não adivinhou? exclamou Fernando.

— Com certeza que não.

— Contudo a coisa é simples, segui os seus conselhos.

— Os meus conselhos?

— De certo, e julgo ter merecido a atenção, e talvez mesmo a simpatia da Marquesa de La Tour-du-Roy.

— Continuo a não compreender.

— Na frisa, exatamente por baixo da sua, estão um janota e duas cocotes.

— Sim! Este janota é meu amigo intimo.

— Muito bem, exclamou Fernando rindo, o seu amigo íntimo é um bonito tipo, a quem eu deverei de certo a fortuna de ter a Marquesa de La Tour-du-Roy por protetora.

O comediante serviu-se da palavra protetora, não se atreveu a dizer amante.

— Mas como?

Nesse camarote troçava-se em voz muito alta da Marquesa,

— Mas quem, ele?

— Sim, ele ou as mulheres que o acompanham.

— Em todo o caso, ele deixava fazer o que queriam. É portanto, a esse senhor que eu devo pedir explicações. Impus-lhe silêncio com toda a sem-cerimônia.

— Tem razão, e a Marquesa gostará porque detesta o Príncipe.

— O Príncipe, repetiu Fernando, é um Príncipe?

— Se é! O Príncipe Heitor de Castel-Vivant, um dos mais velhos nomes da França, e rapaz doze ou quinze vezes milionário.

Fernando empertigou-se.

Ia ter um duelo com um príncipe, um príncipe ia provocá-lo e bater-se com ele!

A sua importância aumentava extraordinariamente aos seus olhos.

César continuou:

— O pequeno Castel-Vivant, outrora muito apaixonado pela Marquesa, pediu a sua mão, mas foi repelido desastrosamente, por motivos que me são desconhecidos; depois deste cheque humilhante, o seu amor despeitado transformou-se em ódio; não perde nenhuma ocasião de ofender esta mulher encantadora, pondo nisso uma insistência indigna de um fidalgo e de um homem da sociedade.

— Pois tanto melhor, replicou o golpe que lhe destino terá duas razões de ser.

Fossaro fingia-se estupefato.

— Deve-se bater? exclamou.

— Um duelo é inevitável, exclamou, esperarei o meu adversário depois do espetáculo.

— Oh! demônio, é que o Príncipe é de primeira força.

— E o que tenho eu com isso?

— O negócio não se pode arranjar?

— Como se há de arranjar, toda a vez que esse sujeito não> seja um grande covarde? Chamei-lhe garoto!

— É verdade que a palavra é de difícil digestão! O duelo parece-me inevitável, mas receio uma coisa.

— O quê?

— Como Heitor é meu amigo, vai de certo pedir-me para servir de padrinho.

— E então?

— Então contrariar-me-ia muito o ser-lhe desagradável.

— Aceite, e verá que tenho tanto sangue frio no campo como no palco.

— Talvez mais algum.

— Supõe que a Marquesa conhece o motivo desta desordem?

— Tenho toda a certeza de que conhece, porque se fez pálida ao ver a amante do tal figurãozinho indicá-lo com o dedo, e ao cair do pano, os seus olhos agradeceram-me o eu me ter posto do seu lado, impondo silêncio aos que a ofendiam.

— Sendo assim, meu caro, replicou Fossaro, vejo-o em muito boa situação junto da senhora de La Tour-du-Roy. Ela já o distinguiu. Se tiver a fortuna de matar Castel-Vivant, a quem ela detesta, é mulher para o adorar.

— Ah! disse Fernando Volnay com exaltação, matá-lo-ei ou ele me matará!

O diálogo do Barão e do comediante foi interrompido pelo ensaiador que gritava nos corredores:

— Em cena para o quarto quadro! Fossaro levantou-se.

— Poderei falar-lhe no fim do espetáculo? perguntou-lhe o ator

— Não sei... Vou conversar com o Príncipe.

— Em todo o caso não faça diligência para compor o negócio...

— Prometo-lho...

— Se o janota lhe pedir para ser seu padrinho, aceite...

— Bem, mas com a condição de que fingirá não me conhecer. A minha atitude será mais franca.

— Fica entendido...

O ensaiador abriu a porta do camarim.

— Para a cena, Fernando! disse ele; pertence-lhe agora. Sobe o pano.

— Aí vou...

O comediante apertou com vivacidade a mão de César, e correu para o teatro.

O senhor de Fossaro voltou para a sala, mas em lugar de subir para o seu camarote, foi bater à porta da frisa de boca.

O Visconde abriu-lha.

— Chegou muito a propósito, Barão, proferiu Heitor a meia voz. Ia procurá-lo...

— Tem alguma coisa a pedir-me?

— Tenho a pedir-lhe que seja meu segundo padrinho.

— Seu segundo padrinho? repetiu Fossaro fingindo-se surpreendido... O senhor casa-se?

— Não me caso, bato-me.

— E por que, santo Deus?

— Assistiu ao precedente quadro?

— Assisti. Ouvi até um comediante interpelá-lo com insolência, mas não suponho que o senhor tencione fazer a esse patife a honra de se bater com ele.

— Pois far-lhe-ei essa honra. Saiamos daqui... lá fora conversaremos melhor... Já estão a preludiar na orquestra.

Os três saíram.

Heitor contou por miúdo ao Barão, que o sabia tão bem como ele, o que se passara, e acrescentou:

— Não procure desviar-me do meu duelo sob o pretexto da desigualdade das condições sociais. O homem que me atirou à cara o epíteto de garoto, seja ele quem for, deve receber uma lição, e dar-lha-ei severa se puder. Portanto, vá de minha parte ter com esse sujeito durante o próximo entreato, e regule com ele este pequeno assunto. Apraze um encontro para depois de amanhã, lugar, hora, tudo aceito, e deixo ao meu adversário a escolha das armas. Parece que isto assim é muito chic.

César e o Visconde inclinaram-se.

O doutor Antonino Frébault não está com o senhor? continuou Heitor.

— Está.

— Tenho mais confiança nele do que em qualquer outro médico, e depois sempre é um amigo. Não se sabe o que pode suceder. Peça-lhe que assista.

— Pedir-se-á.

Neste momento o público saía do teatro, por ser um intervalo.

Fossaro levou o Visconde para o lado da entrada dos artistas.

No palco, fingindo a mais completa ignorância, pediu a um comparsa que lhe indicasse o camarote de Fernando Volnay, e bateu devagarinho à porta.

— Entre, disse de dentro o comediante, que vendo Fossaro em companhia do segundo elegante da frisa, compreendeu logo de que se tratava, e perguntou com ares muito dignos:

— A quem tenho a honra de falar, senhores, e o que desejam de mim?

César principiou?

— Senhor Volnay, este senhor é o Visconde de Cussy, e eu sou o Barão de Fossaro. O senhor insultou há pouco, de um modo muito grave, o nosso amigo o Príncipe de Castel-Vivant...

— Isto é, interrompeu Fernando, recebi severamente a injúria que me dirigiu há pouco esse príncipe, visto que figura um príncipe neste negócio. Depois?

— O senhor de Castel-Vivant pede uma satisfação.

— Uma satisfação! Por favor não falemos nisso, senhores... interrompeu novamente Fernando.

— Ou uma reparação pelas armas, concluiu César.

— Ora ainda bem! O que ele quiser... Até me quadra isso! Estou às suas ordens...

— Resta-nos portanto regular, na qualidade de testemunhas do Príncipe, as condições do duelo, com as testemunhas que peço nos indique.

 

PREPARATIVOS DE SANGUE

Fernando Volnay principiou:

— Dois dos meus camaradas do teatro, dos quais um foi soldado e tem a medalha militar, por-se-ão ao meu dispor com toda a vontade, estou disso certo; mas preciso tempo para os prevenir, o que não posso já fazer, porque dentro de cinco minutos levantar-se-á o pano. Se quiserem ter a bondade de voltar depois do último ato, encontrarão esses senhores, e por-se-ão de acordo com eles imediatamente.

— Está combinado, voltaremos... replicou Fossaro.

Os dois cavalheiros trocaram um cumprimento muito correto com o comediante, e retiraram-se.

Enquanto este colóquio se dava no camarim de Fernando, eis o que se passava entre Totor e Picolet.

Este, vendo novamente sair o Príncipe, introduzia-se no corredor, e esperava debaixo do peristilo.

Heitor passou por diante dele na companhia de Fossaro e do Visconde, e parou para conversar com eles a dez passos do teatro.

Quando César e o Senhor de Cussy deixaram o mancebo para ir ter com Fernando, Sta-Pi aproximou-se.

— Apareceu! exclamou o Príncipe. Melhor! Ia procurá-lo...

— Tem novas ordens a dar-me?

— Tenho. Não é amanhã que preciso da morada de Lucilia... é já esta noite, entenda bem, esta noite.

— Tê-la-á, meu Príncipe. Onde deverei levá-la?

— A minha casa, na rua de Francisco I. Quando me recolher dar-lhe-ei as minhas ordens, e seja qual for a hora a que chegue, será imediatamente introduzido.

— Muito bem, meu senhor.

— Não poderá saber ao mesmo tempo o nome da família de Lucilia?

— Será difícil, ou antes impossível... Já sei, como o senhor também sabe, que a chamam a Toutinegra na casa onde ela mora; mas lembre-se de que o espetáculo há de acabar por certo, muito tempo depois da meia noite... Os porteiros dormirão a sua soneca... A quem hei de pedir informações?

— Tem razão. Contentemo-nos pois com a morada.

— Será o mais prudente... Tomo porém, a liberdade de observar ao príncipe que não poderá conservar o incógnito para com essa jovem, porque no momento em que esse impertinente comediante teve a ousadia de fazer aquele escarcéu, todos os olhares compreendendo os da loura Lucilia, -voltaram-se para o camarote do Príncipe!

— Isso para mim é indiferente, retorquiu Heitor rindo. Não tenho idéia de ocultar quem sou, e de me fazer passar por um estudante de medicina, ou por algum caixeiro dos armazéns do Louvre. Isso já não é moda, é do tempo do Gaiato de Paris! São notas antigas, já gastas. Disse-me que a pequena era ambiciosa. O meu título, portanto, não poderá senão ser-me favorável.

— O Príncipe tem sempre razão.

 

O regresso de César e do Visconde interrompeu a conversa, e os três homens puseram-se a passear de um lado para o outro, pela frente do teatro, discorrendo ao mesmo tempo que Sta-Pi voltava para o teatro.

A representação dos Beijos Mortais continuava com um êxito sempre em aumento.

O pano acabava de cair sobre o sexto quadro, o do passe de armas, a cujo ensaio os nossos leitores assistiram.

O efeito fora prodigioso.

A mise-en-cene bem combinada e pitoresca, e a mestria de Fernando Volnay despertavam um entusiasmo geral.

Todos os artistas foram chamados.

Vitoriaram Fernando, que teve de aparecer duas vezes.

Algumas espectadoras entusiasmadas, atiraram-lhe ramos.

Genoveva sentia uma alegria doida.

Dizia consigo:

— Um sujeitinho que maneja a espada de um modo tão triunfante, dará conta de Heitor num ápice! Dentro de quarenta e oito horas o testamento será aberto em meu favor. Este Fernando faz-me andar a cabeça à hora! Nunca vi tão belo rapaz como ele! Se não fosse o receio de me comprometer, aplaudi-lo-ia com todo o furor! Depois dele suprimir Totor, não lhe regatearei o meu reconhecimento...

O principezinho, ausente durante todo o tempo do passe de armas, não suspeitava a enorme superioridade do seu adversário.

No seu camarote, a Marquesa de La Tour-du-Roy pensava:

— Heitor de Castel-Vivant, hoje meu inimigo, não soube outrora desembaraçar-me de Marcel Laugier! Amanhã Fernando Volnay desembaraçar-me-á de Heitor, e com certeza que não serei ingrata! É esplêndido aquele Fernando! Arrogância, graça e força, reúne tudo!! Aquilo é que é um homem!!

Graças a uma mudança de vista, os dois últimos quadros da peça só formavam um ato muito pequeno e de muito movimento.

O espetáculo acabou à uma hora, em meio dos bravos.

Fernando Volnay veio dizer o nome do autor que se estreava, o qual foi calorosamente aplaudido.

O público gritou:

— Todos! Todos!

Os artistas tornaram a aparecer e a serem saudados.

No momento em que o pano ia cair pela última vez, Fernando, com os olhos na Marquesa de La Tour-du-Roy, apoiou então a mão nos lábios como para enviar um beijo.

Lazarine compreendeu o gesto, mas não se lembrou de zangar-se com a audácia do comediante.

Experimentava uma estranha sensação, uma espécie de queimadura no coração, mas sem sofrimento.

Invadira-lhe o rosto uma vermelhidão ardente.

Baixou o véu e tornou o braço do melhor dos pais, para se dirigir para a sua carruagem que a esperava na rua Belleville.

Genoveva e Malvina, a pequerrucha sem importância, tinham-se retirado um pouco antes de descer o pano para se conformarem com o desejo expresso por Heitor.

O Príncipe deixou deslizar a multidão, depois saiu da sala com o Barão de Fossaro e o Visconde de Cussy, que tornaram a tomar o caminho da entrada dos artistas.

O Príncipe esperava-os fumando um charuto no peristilo, que se tornara sombrio e deserto.

O camarim de Fernando estava cheio de gente.

O autor e os diretores, abraçavam-no e agradeciam-lhe.

Jaques Sureau apertava-lhe as mãos, murmurando-lhe ao ouvido:

— És feliz! hás de vir a ser um grande artista! hão de amar-te. Uma turba de indiferentes cumprimentavam-no.

O ator não podia ocultar uma violenta agitação que todos atribuíam à embriaguez do êxito.

Na verdade, esta agitação tinha uma tríplice causa: o seu 'triunfo, Lazarine, e finalmente o duelo cujas condições se iam regular dentro de alguns minutos.

Fernando despediu os seus numerosos visitantes dando como pretexto uma irresistível fadiga.

Quando César de Fossaro e o Visconde de Cussy chegaram, acharam-no só com as suas duas testemunhas, ainda em costume de teatro, que ele lhes apresentou.

Eram indivíduos de certa idade e rigorosamente respeitáveis.

Chamavam-se Lombard e Parrot.

— Senhores, disse Fossaro, após troca de cumprimentos, a escolha das armas poderia dar motivo a discussão, pois que o senhor de Castel-Vivant tem tanto ou talvez mais que o senhor Volnay direito de se considerar ofendido, mas o Príncipe incumbiu-me de dizer que aceitava as da escolha do seu adversário, sejam elas quais forem.

— Então o florete, replicou Fernando. — E em que dia?

— Amanhã, porque já é hora e meia da noite, e para chegar de madrugada ao terreno do duelo seria preciso não dormir.

— O local? continuou Fossaro.

— Os senhores compreendem que não posso afastar-me de Paris. Estou comprometido para com o meu diretor, e se a sorte me favorecer, representarei à noite.

— Escolha o lugar... Aceitá-lo-emos como aceitamos as armas...

— Proponho um terreno pouco conhecido, onde temos a certeza de não sermos incomodados, é a comporta do Marne, não longe da aldeia de la Pie, a duzentos metros por cima da comporta de Creteil.

Fossaro entendido.. a hora?

— Eu e as minhas testemunhas chegaremos à comporta às oito em ponto, se o senhor não tiver objeção alguma a fazer...

— Não tenho nenhuma...

— O duelo, continuou o ator num tom de indizível ódio, o duelo continuará até ao momento em que algum dos adversários ficar fora do combate...

— É também assim que o Príncipe o entende... Está de acordo sobre todos os pontos, e temos, senhores, a honra de os cumprimentar.

César e o Visconde procuraram Heitor para o informarem do que se decidira.

— Depressa, mudem de traje, disse o comediante às testemunhas. Ofereço-lhes bocks e um pedaço de choucroute na cervejaria do teatro. Sobretudo, nem uma palavra do duelo!... É muito essencial... Os diretores teriam um desastre monstro! e depois, a coisa compreende-se... Se fosse preciso substituir-me na terceira representação, seria coisa pouco cômoda...

— Seria um verdadeiro desastre! murmuravam Lombard e Parrot cheios de convicção.

Logo depois da última chamada, Stanislau Picolet pusera-se de sentinela junto do peristilo, espreitando a saída de Lucilia.

Não tardou que a visse em meio da multidão compacta, dando o braço a mamãe Verdier.

O polícia seguiu as duas mulheres. Disse consigo:

— Daqui a dez minutos saberei então o que hei de fazer. Mas de repente a formosa hervanária de outros tempos parou.

— Olhe, nini, disse ela à jovem, lá dentro fazia muito calor, e enguli poeira por um louvor a Deus, a cervejaria está aberta. Pagou-me o teatro. Ofereço-lhe uma soda.

— Aceito de muito boa vontade, mama Verdier, retorquiu Lucilia, morro de sede.

A Toutinegra e a sua companheira instalaram-se debaixo de um caramanchão, diante de uma mesa pequenina, mandaram vir copos, um sifão de água de Seltz, e xarope de groselhas.

Muito aborrecido desta demora, Sta-Pi resignou-se a beber uma cerveja, o mais perto possível de Lucilia e da matrona, escutando com toda a atenção, na esperança de apanhar de passagem alguma informação útil.

Mas a conversa versava unicamente sobre as peripécias do drama, e sobre o grande talento de que Fernando Volnay acabava de dar provas.

A senhora Verdier ponderava:

— Ah! aquele rapaz há de ir longe. Eu no seu lugar, pequena, refletia.

— Em que? replicou Lucilia sorrindo.

— No que lhe dizia no outro dia. Fernando pode vir a ser um bonito partido!

— As minhas reflexões estão feitas e mais que feitas! Um marido comediante seria um homem pertencente a todas as mulheres, e eu quero que o meu marido só pertença a mim.

— O meu defunto marido também queria ter a sua mulher só para si, e contudo o pobre do homem, em suma, basta! Pobre Toutinegra, arranjas um bom futuro.

Lucilia amuou-se um pouco, e depois exclamou com uma franca gargalhada:

— Bem, ficarei solteira!

A senhora Verdier e a lourinha, levantaram-se.

Sta-Pi tinha pago a sua cerveja adiantadamente.

Pôs-se novamente à caça.

No fim de cinco minutos de marcha as duas mulheres fizeram alto em frente de uma portinha, e Lucilia puxou repetidas vezes, e com um modo nervoso, a campainha.

A porta abriu-se, fechou-se novamente, e Picolet achou-se só no passeio deserto.

Aproximou também da porta, leu à luz do gás o número, retendo-o de memória.

Voltando em seguida para trás, dirigiu-se para o ângulo da rua, cujo letreiro indicava: — Rua Julien Lacroix.

— Hoje não é possível saber mais, pensou ele tornando a descer com toda a velocidade para a banda do "boulevard" em busca de uma carruagem. Conseguiu-a, mas não sem custo, e mediante a soma de dez francos pagos adiantados, fez-se conduzir ao palácio -da rua Francisco I.

Heitor, que tinha voltado para casa havia muito tempo, graças à velocidade dos seus cavalos, esperava-o com impaciência.

O principezinho preocupava-se um pouco com o duelo iminente.

Só pensava em Lucilia, e arquitetava no espírito milhares de projetos futuros, entre os quais figurava a jovem.

Finalmente, ouviu a campainha do vestíbulo, e no fim de alguns segundos Picolet foi introduzido.

A entrevista não podia ser demorada, porque o polícia poucas coisas tinha a dizer.

Heitor com a mão trêmula de alegria escreveu a morada da lourinha, e Picolet retirou-se radiante, levando um rolo de cinqüenta luizes.

Julgava positivamente sonhar, aquele bom Picolet, a ver-se feito capitalista, ele que sempre toda a vida tivera precisão de vinte francos.

Tinha medo de despertar no seu garabato, pobre como dantes.

Acabavam de dar três horas da manhã.

O principezinho, em lugar de ir para a cama, dirigiu-se para o seu gabinete, abriu o móvel florentino de ébano, incrustado de marfim e de uma gaveta deste móvel, tirou o testamento, cujo segredo vimos o Barão César de Fossaro violar impudentemente.

 

O PRÍNCIPE TOTOR

Heitor tirou o testamento de dentro do invólucro, que, segundo sabemos, não estava fechado, e tornou a lê-lo de um extremo a outro, com um sorriso um pouco zombeteiro.

Acabada a leitura, dobrou a espessa folha de papel selado, e fez um movimento para a rasgar.

Deteve-se, porém.

— Não, ainda não... murmurou, quero ver primeiramente Lucilia.

Tornou a sorrir, tornou a meter o documento no envelope, e este na gaveta donde o tirara, a qual fechou cuidadosamente.

Feito isto, voltou para o seu quarto de dormir, despiu-se num abrir e fechar de olhos, e meteu-se na cama.

Apesar de preocupações de mais de um gênero lhe dominarem o espírito, não tardou que a fadiga lhe fechasse os olhos.

Adormeceu, mas com um sono febril, agitado, povoado de maus sonhos.

César de Fossaro saiu muito cedo do seu palacete da rua de Provence, e dirigiu-se para o boulevard Malesherbes, para casa de Genoveva, que esperando aquela visita matutina, se levantara.

— Os meus cumprimentos, minha querida, disse-lhe. Ontem desempenhaste o teu pequeno papel às mil maravilhas. Tudo caminha à medida dos nossos desejos. O duelo efetuar-se-á amanhã, loga ao romper do dia, na comporta de Créteil.

— Se a sorte viesse a voltar-se contra nós... atreveu-se a observar Genoveva.

— Não é para recear... Bem viste Fernando Volnay com o ferro na mão...

— Sim, e até o achei soberbo, mas não entendo de esgrima, parece-me que um combate de teatro não deve ter parecenças com um verdadeiro duelo em que os adversários visam à pele um do outro.

— Em tese geral tens razão. Mas não a tens neste caso particular. Afianço-te que Fernando é ótimo atirador. O principezinho-passa desta para melhor.

— Então vamos ficar doze vezes milionários...

— Conto absolutamente com isso, e a perspectiva não deixa deter seus encantos.

— Devo ir visitar Heitor esta manhã?

— Não faltes, toma cuidado! Aparece lá, dentro de uma hora,, muito pálida, penteada à moda de mil demônios, com os olhos vermelhos. Dize-lhe que não dormiste em toda a noite, que a perspectiva deste duelo te enlouquece, que se lhe sucedesse desgraça, não lhe sobreviverias. Sê muito patética, muito comovente, chora lágrimas verdadeiras, perde a cabeça, caia aos pés de Heitor, beija-lhe as mãos, conjura-o a que não arrisque a vida.

— E se eu à força de eloqüência o convencesse?...

— Não é possível. Toma muito a sério o seu título de fresca, data, para digerir o epíteto de garoto...

— Bem!... Vou à rua de Francisco I, e hão de ser tão patéticas as minhas súplicas, que abalarei um rochedo.

 

Deixando Genoveva, Fossaro fez-se conduzir à praça da Bastilha, onde chegou perto das nove horas.

Ali deixou a carruagem, e tornou a subir a pé a rua da Roquete até à rua de Cappe.

Deu uns vinte passos, olhando- para os números das casas, e transpôs o limiar da sórdida loja de um ferro-velho, onde havia coisas cobertas de poeira e sem valor. (

Um homenzinho repleto, cuja cabeça redonda assentava em: largos ombros, e cujo rosto era emoldurado por uma larga barba grisalha, ergueu-se detrás do balcão em mau estado, como um demônio de uma caixa de surpresas.

Este homem, com uma pronúncia muito acentuada de alemão,, perguntou ao recém-chegado o que ele desejava.

César tirou da algibeira uma pequena caixa de prata que já. conhecemos, abriu-a, tirou uma bola de cera vermelha de modelar,. e apresentando a bola ao ferro-velho, disse-lhe:

— Vê o que é isto.

O adelo examinou o objeto, sorriu, olhou fito para Fossaro, e respondeu com a sua pronúncia germânica que perdoaremos aos nossos leitores:

— Isto é o modelo de uma fechadura, e de um chave de um pequeno móvel... Bonito trabalho... Oe meus cumprimentos, porque sou entendedor, der Teufel!

— Em quanto tempo poderei ter a chave? volveu Fossaro. — É com muita pressa?

— Sim.

— Bem sabe que a obra com pressa se paga cara.

— Não regatearei.

— Amanhã será bastante? — Perfeitamente.

— Então poderá levar o objeto amanhã às dez horas.

— Quanto custará?

— Duzentos francos, metade dos quais adiantados para o operário que fizer o trabalho. Mas diga-me primeiro, quem lhe deu a minha morada?

— Pedro Rédon.

— Ah! um belo rapaz! aquele é que é dos bons. Ha já muito tempo que não o vejo. Que é feito dele?

— Opera na província.

— E anda contente?

— Ah! sim, não se queixa.

— Tanto melhor. Quando o vir, diga-lhe que os amigos são sempre amigos.

— Será dado o recado. Eis cinco luizes. Amanhã quando vier buscar a chave, dar-lhe-ei o resto.

Em seguida, César Fossaro, deixando o molde e a caixa ao ferro-velho, voltou para a carruagem.

 

A Marquesa de La Tour-du-Roy não pregara olho em toda a noite.

Fernando Volnay apoderara-se da sua imaginação, do seu cérebro, de todos os seus pensamentos.

Estava sempre a ver a imagem do comediante.

— Bater-se-á por mim, dizia ela, por mim, a quem nunca vira! Tomou a minha defesa. Vai arriscar a vida contra esse Príncipe Heitor, a quem não conhece. É belo o seu procedimento, é nobre! é a galanteria cavalheiresca de um fidalgo do tempo passado!

Lazarine, depois de ter proferido muito baixinho estas últimas palavras, ficou pensativa durante alguns segundos, ao mesmo tempo que o coração lhe batia precipitadamente, e que a febre do seu cérebro aumentava.

— É só a galanteria que lhe arma o braço? murmurou. Teria ele do mesmo modo tomado a defesa de qualquer outra desconhecida? Os seus olhos fitos em mim, diziam-me o contrário. Ao ver-me entrar no camarote estremeceu, e era a mim que dirigia as palavras de amor que lhe saíam dos lábios.

A Marquesa absorveu-se novamente numa meditação profunda.

E semi-cerrou as pálpebras sobre as pupilas cor de esmeralda que despediam cintilações sombrias; as narinas palpitavam-lhe, o rosto exprimia uma espécie de embriaguez, um sorriso lascivo entreabria-lhe os lábios purpúreos deixando ver no seu estojo de coral os dentes deslumbrantes.

De repente avincou-se-se-lhe entre as sobrancelhas uma ruga profunda, ao mesmo tempo que lhe passava uma nuvem pela fronte.

— O que é então que sinto? perguntou? Que novo sentimento me domina e perturba? Eu, Lazarine de La Tour-du-Roy amar um comediante! É impossível, e seria uma loucura!

Aonde me levaria este amor absurdo, e o que me daria em troca da minha liberdade perdida, e do meu futuro comprometido? Não, não, não o amo! não quero amá-lo!

Após um momento de silêncio, tornou:

— Então por que hei de estar a pensar incessantemente nesse Fernando Volnay? Por que me hei de sentir incapaz de o afugentar do meu espírito? Por que cessou o meu coração de bater no momento em que várias palavras provocantes se trocavam entre ele e Heitor? Por que foi que, ao cair do pano, enviando-me ele disfarçadamente um beijo, me pareceu viver durante um segundo numa atmosfera de fogo? O seu olhar e a sua voz encantavam-me! Eu, costumada a dominar, sinto-me dominada!... Para que mentir? Amo-o, e talvez esta manhã ele vá morrer por mim!

Comovida até ao fundo dalma por aquela previsão sinistra, Lazarine ocultou o rosto pálido nas rendas do travesseiro, e chorou por muito tempo.

As nove horas da manhã a jovem fez-se vestir de uma maneira muito simples, almoçou uma costeleta e uma chávena de chá, pôs na cabeça um chapéu preto, cujo véu de renda espessa lhe ocultava absolutamente as feições, saiu a pé, subiu a rua Murillo, e tomou um trem na estação da avenida de Messina.

— Tomo o trem às... horas, disse ao cocheiro. Para Belleville, estrada dos artistas do teatro.

O trem rodou, e fez alto no fim de três quartos de hora no lugar indicado.

Lazarine apeou-se, entrou no cubículo do porteiro, e murmurou com voz pouco firme, sentindo-se fazer muito corada debaixo das suas rendas:

— Senhora, desejo saber a morada do senhor Fernando Volnay. A porteira deitou para a visitante velada um olhar chocarreiro, acompanhado de um sorriso sofrivelmente cínico, e exclamou:

— A morada do senhor Fernando Volnay, minha pequena!... Deu-lhe no gosto o rapazote? Que quer, não lhe escapa nenhuma. Aquilo é que é um garanhão!

— Se faz favor, senhora, a morada? tornou Lazarine com impaciência.

— Ah! minha senhora, o senhor Fernando proibiu-me que lha desse.

— Por que?

— Posso dizê-lo, porque ele não o oculta. Tem credores, o pobre rapaz, um exército de credores, e gosta mais de saber que eles estão muito descansados em sua casa, do que tê-los pendurados ao cordão da campainha. Não acha que ele tem razão?

— Não sou uma credora.

E Lazarine abrindo o porte-monaie, pôs os dois luizes em cima da mesa, diante da porteira, que tratou logo de responder com uma reverência de teatro:

— Ah! minha senhora, bem se vê logo com quem uma pessoa trata. O senhor Fernando mora a cinco minutos daqui, na rua de Julien Lacroix, n.°...

A Marquesa voltou para o trem.

— Onde vamos? perguntou o cocheiro.

— À rua Julien Lacroix... Há de parar defronte do n.°... mas do outro lado da rua. Quando ali chegar dir-lhe-ei o que e preciso fazer. Basta!

O cocheiro fustigou o cavalo com ar alegre.

Cheirava-lhe a amor encoberto, a intriga, a aventuras, e sabia por experiência que os amantes têm a bolsa larga, e a gorjeta fácil.

Chegando à rua Julien Lacroix, conformou-se rigorosamente com a recomendação da cliente, apeou-se e veio receber ordens.

— O que hei de fazer agora? disse.

— É muito simples. Vai entrar na casa em frente, e perguntará à porteira se o senhor Fernando Volnay está em casa.

— Fernando Volnay?

— Sim.

— Não tem que dizer mais nada?

— Mais nada. Virá trazer-me a resposta...

— Fica entendido. Fernando Volnay... Lembro-me do nome... O cocheiro atravessou a rua e desapareceu no corredor da entrada.

— Neste instante preciso ouviu-se o ruído de uma carruagem que vinha a grande galope pela rua Belleville, e um pequeno coupé preto, puxado por dois cobs irlandeses castanhos parou exatamente defronte da porta que o cocheiro do trem acabava de transpor.

Lazarine, cheia de curiosidade, levantou o store, inclinando-se para ver quem ia apear-se daquele tão correto, reconheceu, com surpresa fácil de compreender, o principezinho de Castel-Vivant.

Heitor entrava no corredor no momento em que o emissário de Lazarine dela saía.

Uma palidez mortal espalhou-se pelo rosto da senhora de La Tour-du-Roy.

— O Príncipe aqui! murmurou com as feições transtornadas, os dentes cerrados. Que virá ele aqui fazer? Que haverá de novo?

O cocheiro aproximou-se do trem e tossiu discretamente, para advertir a sua cliente do seu regresso. Lazarine voltou-se para o seu lado.

— Então? perguntou-lhe.

— Então, minha menina, o tal sujeito não saiu esta manhã, está ainda em casa...

— Tem a certeza disso?

— O porteiro jurou-mo.

— Suba então novamente para a almofada, e fiquemos onde estamos.

— Sendo assim, vou dar a ração a Bibi... Bibi é a perua cá do meu trem.

A senhora de La Tour-du-Roy, recostada no fundo do seu trem tinha os olhos fitos na porta da casa onde morava Fernando. Dominava-a uma comoção indizível.

 

Na sua opinião, a presença de Heitor ali, só tinha uma explicação.

— Os dois ter-se-ão encontrado ontem, depois do espetáculo, por causa da sua querela, dizia Lazarine consigo. O meu nome foi por certo proferido, e neste momento o Príncipe perde-me aos olhos de Fernando Volnay, como Marcel Laugier me perdia aos olhos do Príncipe há seis anos!

Sob as compridas pestanas da jovem, brilhou um lampejo de ódio feroz.

— Eis o que se passa, com toda a certeza! tornou ela impetuosamente. Não se batem, tenho a certeza! Supondo que o duelo fosse adiado para amanhã, não seria o Príncipe que entraria agora aqui, mas as suas testemunhas, o Visconde de Cussy e o Barão de Fossaro, com os quais conferenciava ontem à minha vista. Calou-se, teve um estremecimento e tornou:

— Mas, agora, reflito, pelo Barão de Fossaro posso saber o que se disse, o que se faz, o que prepara. Assim que o Príncipe de Castel-Vivant se retirar, irei a casa do Barão.

E recostou-se outra vez num ângulo do trem, e armou-se de paciência.

 

UMA VISITA

Deixemos Lazarine esperar, e sigamos Heitor.

O principezinho a quem as vicissitudes da sua antiga vida de artista boêmio, e os esplendores da sua nova posição davam imperturbável aprumo, dirigiu-se para o cubículo cujo postigo o cocheiro do trem de aluguel deixara aberto, e disse à porteira num tom desembaraçado:

— Bons dias, minha senhora. Não é aqui que mora a menina Lucilia?

A porteira, interrompida nos seus arranjos domésticos, apoiou as mãos no cabo da vassoura, e olhou para o mancebo com ares chocarreiros.

Achou Heitor rapaz muito bonito e muito elegante. Farejava nele um amador de aventuras.

— O que diz? perguntou.

— A menina Lucilia? repetiu o Príncipe.

— Lucilia de que?

— Só conheço este nome, senhora... a menina Lucilia é uma rapariguinha loura, que no sítio tem a alcunha da Toutinegra.

— E o senhor é cá do sitio?

A pergunta foi feita num tom tão zombeteiro, que Heitor adivinhou o que se passava no espírito da sua interlocutora.

— Não, senhora, respondeu. Não sou do bairro, mas tenho precisão de falar à menina Lucilia... Peço-lhe me diga em que andar ela mora, e aqui tem como sinal do meu reconhecimento.

Ao mesmo tempo punha um bilhete de cem francos no ângulo do bufete.

Esta liberalidade inesperada, e de uma amplitude inverossímil, produziu um mágico efeito.

Foi súbito e completo a mudança que se operou nas disposições da porteira.

— Um mancebo tão bem fornecido de papel do estado, devia estar animado das melhores intenções, disse consigo a boa da mulher, cujos princípios se deviam parecer muito com os da mamãe Verdier, e não podia deixar de cobrir de seda, de veludo, de jóias verdadeiras, uma jovem encantadora como Lucilia.

— O cavalheiro é muito amável... muito amável... volveu ela guardando o papelinho. Temos efetivamente a vantagem de morar no prédio da menina de quem fala... uma bonita pequena que tem por alcunha a Toutinegra, em conseqüência de ter uma voz de passarinho, e de estar sempre a cantar desde pela manhã até à noite, ao mesmo tempo que trabalha.

Heitor compreendeu que dali em diante podia interrogar. — Ah! exclamou, ela trabalha?

— Ah! se trabalha, meu bom senhor... pobre menina! E tem uma habilidade! e trabalha todo o dia, e às vezes toda a noite quando há pressa.

— E em que trabalha?

— Cose para uma grande modista... e é preciso dar à, unha,, quando se quer pagar a casa, comer, vestir, e calçar, e não dever nada a ninguém. A menina Lucilia, como vê, tem juízo como uma santa. De um juízo assim não se encontra em Belleville, em Menilmontant, nem em qualquer outra parte. É como um relógio dos melhores... não faz diferença nem de um minuto.

O príncipe escutava aquele palavreado com uma comoção que ele dissimulava o melhor que podia.

A porteira, sem quase tomar fôlego, continuou:

— E depois é muito trabalhadeira e muito corajosa, a pobre menina! Não tem cuidado em si. Fraquinha, delicada e muito moça, há de acabar por perder o que uma pessoa tem de mais precioso neste mundo, a saúde! Precisava de um amigo sério, de um protetor respeitável e rico que não a deixasse estragar com a costura... e se ela só tivesse que pensar na sua, pessoa...

— Tem ainda mãe? perguntou Heitor com vivacidade.

— A mãe morreu há muito, mas tem uma tia velha, pobre mulher de setenta anos, cega.

— Vive com a filha?

— Não, senhor. Foi admitida na Salpetriére, onde a menina. Lucilia vai vê-la todas as quintas-feiras e domingos... A tia é uma pobre mulher, oh! não digo o contrário, mas bem sabe, as pessoas velhas e doentes, têm muitas fantasias, muitas manias e exigências. Pois, senhor, a pobre Toutinegra priva-se muitas vezes do necessário, e faz-se de fel e vinagre para satisfazer a cega.

— Mas isso é muito bonito, ponderou o mancebo, cujos olhos se umedeciam.

— Sim, senhor, é magnífico, e os grandes sábios do instituto distribuem prêmios de virtude a certos sujeitos que o não merecem tanto como a menina Lucilia, a quem não dão nada.

— Em que andar mora esse anjinho?

— No primeiro vindo do céu, o que quer dizer no quinto andar. A cima da sua cabeça só há o telhado. Ora bem deve ver que a sua casa não é grande, e os móveis não são brilhantes, mas está tudo tão bem arranjado, e tão limpo, que é uma graça e uma alegria.

— A menina Lucilia está em casa?

— Sim, senhor, a segunda porta à esquerda, no patamar superior.

Com certeza que ela não saiu. Vai encontrá-la a trabalhar e a cantar...

— Obrigado, senhora, volveu o Príncipe. E partiu pela escada acima.

— Mas, não se engane, meu caro senhor, a segunda porta, à esquerda.

Heitor subiu rapidamente, estimulado pela paixão, exaltado pelos elogios que acabava de ouvir.

— Vou aparecer lá em cima como um procurador da Providência, o que prova muito claramente que a virtude, cedo ou tarde, é recompensada! murmurou ele, Compro e mobílio à Lucilia um palacete muito bonito, com pátio e jardim, cavalariças e cocheiras, e uma sobreloja para a tia cega, que vai ficar como peixinho nágua!

Como se vê, o mancebo não admitia a possibilidade de uma resistência ou de um obstáculo.

Namorado e milionário, parecia-lhe muito natural tomar a divisa de César: Vini, vidi vinci!

Além disso esquecia-se absolutamente do duelo.

Chegando ao quinto andar, parou ofegante, mas deliciados os ouvidos.

Uma voz pura e fresca cantava com uma alegria comunicativa um estribilho de opereta em voga.

— Timbre de cristal! disse Heitor consigo. Se quisesse, Lucilia teria uma fortuna na garganta.

E esforçou-se por impor silêncio às palpitações do coração para escutar melhor.

Concluindo o couplet, a cantora calou-se.

O príncipe, dominado pelo encanto, continuava a escutar.

— Vamos! pensou passados dois segundos, dirigindo-se para a segunda porta à esquerda.

No momento de ali chegar, tornou a parar indeciso, acometido de uma espécie de timidez que não estava nos seus hábitos.

— Irra! isto é muito estupendo e não tem graça nenhuma! exclamou sorrindo da sua fraqueza passageira. Aqui estou eu, Príncipe de Castel-Vivant, mais comovido que um colegial que bate pela primeira vez à porta de uma cocote! É piramidal! Se soubessem isto no clube, os colegas ririam à minha custa, e teriam muita razão. Só tenho que me apresentar, e dizer o que aqui me traz. Fortaleza sitiada, fortaleza conquistada!

Totor bateu duas pancadas ao de leve na porta.

— Entre! disse a voz de cristal. Heitor olhou para a fechadura.

 

A chave, tocante confiança, achava-se da banda de fora.

Deu-lhe volta, a porta abriu-se, e o visitante inesperado entrou, de sorriso nos lábios e chapéu na mão.

À vista do mancebo, Lucilia, um pouco surpreendida, mas não perturbada, deitou a sua obra para cima da maquina de costura, levantou-se e deu dois passos em frente.

Apesar de ter reconquistado o seu aprumo, o Príncipe, vendo a órfã dirigir-se ao seu encontro, sentiu o sangue afluir-lhe ao coração.

Lucilia vestida com simplicidade, no seu pequeno quarto forrado de um papel azul e branco de quinze sons a peça, com o seu pequeno leito de ferro envolvido em cortinados de percale branca enfeitada de laços azuis, fez-lhe o efeito de uma deslumbrante aparição, em meio de uma decoração de mágica.

A confusão e embaraço do mancebo não passavam desapercebidos à Toutinegra.

Demais interrogava a memória, perguntando onde tinha visto aquele rosto que parecia reconhecer.

— Engana-se por certo, senhor, disse. Não é à minha porta que julgava bater.

Enquanto falava brilhou um clarão no seu espírito.

Lembrou-se da cena da noite precedente, e acrescentou:

— O senhor vem a casa do senhor Fernando Volnay, com quem ontem teve uma questão no teatro, não é verdade?

Heitor olhou para a jovem com ar espantado.

— O senhor Fernando Volnay mora aqui? murmurou.

— Sim, senhor, no fundo do corredor à direita. Não sabia?

— Ignorava completamente.

— Então que pretende, senhor?

— Falar-lhe, minha senhora.

— Era à minha casa que vinha? — Sim, minha senhora.

— Mas eu não o conheço, senhor; não pode ter coisa alguma a dizer-me.

— Pois tenho muito que lhe dizer.

Heitor, não se iludindo a respeito da maneira deplorável como entrara, tinha empenho em reconquistar as suas vantagens, e de se mostrar o mais depressa possível, sob favorável aspecto, ou pelo menos que tal parecesse.

Fechou a porta, e por seu turno avançou para a jovem.

Lucilia um pouco admirada daquele repentino movimento, recuou murmurando:

— Senhor...

— Oh! não tenha receio, menina, replicou o príncipe com vivacidade, se algum perigo a ameaçasse, não partiria de mim, e eu estaria aqui para a defender.

— Nada receio, retorquiu a órfã; não tenho medo de ninguém, porque no mundo só conto pessoas dedicadas. Mas repito, senhor, não sei quem o senhor é, e peço-lhe que se explique.

— É o que já teria feito se não me tivesse cortado a palavra, porque não estou aqui senão para isso. Tenho que lhe dizer coisas enormemente sérias. Trata-se dos seus interesses, do seu futuro, da sua felicidade, da felicidade dessa mulher a quem ama, e a quem rodeia de tantos desvelos; falo da sua tia cega.

Sem saber, Heitor acabava de proceder com incomparável perícia.

Ao falar da septuagenária cega, fizera vibrar em Lucilia a fibra da curiosidade, e conquistara a atenção da jovem.

— Minha tia! exclamou. É da minha tia que se trata?

— Dela e da menina, mas da menina primeiro que tudo, que anda numa lida constante, sofrendo contínuas privações para valer à pobre criatura, da menina que só teria uma palavra a proferir, para ser a mais feliz, a mais invejada das criaturas, e proporcionar a sua tia uma existência toda rodeada de mimos, toda preenchida de gulodices.

Lucilia não percebia aquela linguagem, e por inverossímil que uma tal afirmativa pareça, não adivinhava ainda aonde o seu interlocutor queria chegar.

Por isso disse, sorrindo:

— Peço a explicação do enigma.

— E tem razão, exclamou Heitor completamente animado. Estou a falar como um patetinha... principio pelo fim... Devo parecer-lhe um maníaco, e de fato tenho a cabeça transtornada.

A jovem retorquiu com um gesto que significava claramente:

— Isso bem se vê!

O principezinho prosseguiu:

— A explicação do enigma ei-la: — Era uma noite... faz: hoje exatamente oito dias. A menina estava no balcão do teatro da Porte de Saint-Martin... Lembra-se!

— Perfeitamente... mas...

— Espere lá... Deitei-lhe o binóculo... casualmente... Chamam a isto acaso, e eu chamo destino. Quando os cilindros do meu binóculo encontraram os seus olhos, recebi duas marteladas, uma na cabeça, e outra em pleno coração. Pan! pan! toe! toe! Estava soldada a cadeia... Amava-a.

Lucilia soltou uma gargalhada adorável.

— Não entendo muito dessas coisas, mas parece-me que o senhor acaba de me fazer uma declaração.

— E não se engana; é uma declaração sem frases, com toda. a franqueza, muito simples e muito sincera. Pertencem-lhe o meu coração, a minha alma, toda a minha vida, todos os meus pensamentos...

"Amo-a e amá-la-ei todos os dias um pouco mais que na véspera... Devo dizer-lhe que sou rico, muito rico, formidavelmente rico... Resulta deste amor e desta fortuna, que eu o que quero e colocá-la no lugar de que a sua beleza é merecedora. Acabou-se o quarto modesto, acabou-se o trabalho, acabaram-se as privações! Terá palácio, criados, cavalos, cem mil francos por ano para os seus alfinetes, se achar isso suficiente, e a sua tia idosa irá viver para a sobre-loja de mimos e gulodices. Ora aqui está.

A órfã, escutando o Príncipe, fizera-se a princípio muito corada, depois muito pálida.

Franziu as sobrancelhas, o azul das suas pupilas tornara-se quase negro.

Respondeu contudo sossegadamente, mas com uma voz um pouco trêmula que ela debalde se esforçava por tornar firme:

— Para me fazer semelhante proposta, é preciso, senhor, que esteja doido, ou que eu lhe inspire desprezo bem profundo. Se é a loucura que lhe dita essas palavras, saia, peço-lhe, os doidos metem-me medo. Se é o desprezo, que fiz eu para o merecer, e porque toma a liberdade de me insultar assim em minha casa?

 

RETRATAÇÃO

Heitor esboçou um gesto de protesto.

Ia falar.

Lucilia não lhe deu tempo.

— Oh! não se justifique! continuou ela sem cólera, mas com tristeza. Falo-lhe assim, porque compreendi muito bem. Sou muito nova, mas vivo num meio onde se aprende muito depressa a conhecer, a compreender tudo. O senhor confessou-me que era muito rico, portanto, não tem outra coisa a fazer a não ser contentar os seus caprichos, e procurar os seus prazeres onde supõe que os achará... O senhor viu-me, eu pareci-lhe bonita, o que muito me lisonjeia, e o senhor disse: — "Esta rapariga pobre deve sonhar com o luxo e o prazer, e depois ela tem uma parenta, uma velha parenta enferma de quem é muito amiga (porque o senhor anda bem informado), e vou oferecer-lhe em troca de um simulacro de amor, que ela não me regateará, a fortuna para ela, e o bem estar para a sua parente". E então, sem saber quem eu era, sem suspeitar da humilhação que as suas palavras podiam infligir-me, veio oferecer-me um palácio, cavalos, carruagens, formosas toilettes e cem mil francos por ano! O senhor é generoso, muito generoso, mas enganou-se. Sou pobre, muito alegre, não me faço de manto de seda, sou muito honrada, e perfeitamente feliz. Livre, graças ao trabalho, não cessarei de viver como vivo, pelo trabalho e rejeito sem hesitar as propostas honrosas que outras aceitariam sem dúvidas. Eis a minha resposta; ela é muito simples. E agora, adeus, senhor. O senhor não tem mais nada a dizer-me, e eu nada mais quero ouvir.

— Menina Lucilia, balbuciou o principezinho, terrivelmente descoroçoado com uma linguagem tão decisiva, e cuja sinceridade se impunha, a menina não pode imaginar que eu tivesse intenção de a ofender. Disse-lhe que a amava, e é verdade, adoro-a e respeito-a.

— E é para me provar o seu respeito, de certo, que me propõe seja sua amante, interrompeu a Toutinegra com amargura; o processo é pelo menos singular...

— Suplico-lhe, menina, escute-me.

— Pela segunda vez, senhor, peço-lhe que se retire, aliás retiro-me eu.

— Oh! não será tão cruel como isso, e há de conceder-me pelo menos o direito de advogar a minha causa. Conheço o meu erro...

Falei-lhe numa linguagem imprópria da menina... Usei da linguagem de um patife, ou melhor dizendo de um tolo, o que não foi nada chic; mas há circunstâncias atenuantes. Fez-me andar a cabeça à roda, e vim dizer-lho, como o diria a outra mulher, por ainda não saber que era um anjo... Vamos, já estou castigado! Há pouco, fazendo sobressair tão frisantemente a minha inconveniência e a minha grosseria, infligiu-me o castigo que merecia... Quando a escutava, o coração oprimia-se-me, acudiam-me as lágrimas aos olhos... tinha vergonha de mim mesmo, e veja, agora... sufoco... choro...

Uma violenta opressão cortava efetivamente a respiração a Heitor, e duas lágrimas deslizaram-lhe pelas faces.

— Ofendi-a sem querer, continuou. Peço-lhe humildemente perdão... Perdoa-me, Lucilia?

Lucilia, impressionada pela comoção do Príncipe, apenas pode balbuciar algumas palavras ininteligíveis.

Heitor tornou, de mãos postas e dobrando o joelho:

— Oh! diga que me perdoa!

— Senhor, magoa-me... balbuciou ingenuamente a órfã aterrada com a agitação febril do seu interlocutor. Não sou absolutamente falta de misericórdia. Arrepende-se, perdôo-lhe.

O mancebo apoderou-se de uma das mãos de Lucilia, e chegou-a aos lábios.

A Toutinegra, toda trêmula, retirou apressadamente a mão, e muito inquieta recuou.

— Agora estou tranqüilo, exclamou o principezinho... perdoou-me. Se a sorte for contra mim, morrerei sem remorsos de ter praticado uma ação má.

Lucilia tornou a aproximar-se rapidamente de Heitor.

— Morrer! balbuciou. Por que fala em morrer?

— Porque amanhã pela manhã bato-me em duelo, e por conseguinte posso morrer. Se morrer, o meu último pensamento será para si. Terá a prova disso. Se escapar, virei buscar a seus pés o meio de expiar a minha falta... Menina Lucilia, tenho um pedido a fazer-lhe. Talvez não torne a vê-la... Neste caso obedeça às últimas vontades daquele que a ama... do Príncipe Heitor de Castel-Vivant.

— O Príncipe Heitor de Castel-Vivant! repetiu Lucilia estupefata.

— Sim, meu Deus, sou ou. Eu, o inútil, o corrupto, de quem uma palavra sua acaba de fazer um homem... Acreditava na onipotência do Demônio ouro t e compreendo agora que o dinheiro não é nada, e o coração é tudo! Não deixará de ter a felicidade, a riqueza que eu lhe prometia, mas não há de corar por isso, aceitará, juro-lhe, Lucilia, prometa-me que a aceitará.

A jovem fez um movimento, que Heitor interpretou como uma adesão.

— Não acrescente nada, exclamou tornando a pegar nas mãos de Lucilia, que desta vez, quase desvairada por uma situação tão imprevista, nem procurou retirá-las. Deus é bom, Deus é justo. Ele me protegerá... voltarei... Não lhe digo adeus, Lucilia, digo-lhe até a volta... até à volta... Amo-a!

Chegou as mãos da órfã aos lábios, e depois ao coração.

Afinal, saiu do quarto impetuosamente, partiu de escantilhão pela escada abaixo, saiu do prédio e saltou para a carruagem, dizendo ao cocheiro estas simples palavras:

— Para o palácio.

Lazarine vira-o sair, com o rosto animado, e o sorriso nos lábios. Essa expressão alegre parecia-lhe inquietadora no mais alto grau.

— O que se passaria lá em cima? perguntou ela com angústia, qual seria o resultado da explicação que acaba de se trocar entre estes dois homens? É preciso que o saiba, é preciso sabê-lo, hei de sabê-lo.

E debruçou-se para seguir com o olhar o coupé do Príncipe, que virará a grande velocidade o ângulo da rua Julien Lacroix.

Em seguida, deu ordem para a conduzirem à rua de Provence, à morada do Barão de Fossaro.

Como sabemos, César não estava em casa.

O criado de quarto ignorava quando ele devia voltar, e mesmo se voltaria em todo o dia.

Lazarine, ardendo em febre, já não discorria. Queria saber a verdade a todo o custo.

Num dos seus cartões de visita traçou a lápis as seguintes linhas:

"Estimaria muito conversar um instante com o Barão de Fossaro, hoje em minha casa, às cinco horas."

Depois, deixando este bilhete ao criado de quarto, Fritz voltou para o palácio da rua Murillo, aborrecida, nervosa, agitada, por uma perturbação que não sabia explicar, dominada por uma angústia cujos motivos ela não explicava precisamente.

 

O príncipe Totor já voltara para casa.

— Seja para o que for, não estou em casa para ninguém, disse ele aos seus criados, salvo para o Barão de Fossaro e Visconde de Cussy no caso de se apresentarem.

E foi fechar-se no gabinete de trabalho.

Pondo-se a passear de um lado para o outro, ora devagar, ora precipitadamente, o Príncipe que naquele momento não tinha o juízo muito são, entregou-se às doçuras de um monólogo inesgotável que era fácil resumir assim:

— De uma criança pura e casta, queria fazer uma rapariga perdida! Queria comprar o amor, como se o amor se vendesse! Era uma coisa nojenta e tola! Ultrajei um anjo! O anjo perdoou-me, mas não basta! Se viver, apagarei a minha culpa. Se morrer, resgatá-la-ei!

O monólogo durou três quartos de hora.

No fim deste tempo o ex-Bégourde foi direito ao móvel florentino, abriu a gaveta superior, tirou duas folhas de papel selado e trouxe-as para a sua secretária, sentou-se, molhou a pena, e no alto de uma das folhas escreveu a fórmula sacramentai de que tantas vezes abusara.

 

Isto é o meu testamento.

Em seguida escreveu estas frases:

"Hoje, vinte e três de setembro de mil oitocentos e setenta e nove, são de corpo e de espírito, lego toda a minha fortuna, bens móveis e imóveis, compreendendo o meu palácio da rua Francisco I* e o meu domínio de Vezelay, fortuna representando uma soma de quase doze milhões, cuja discrição se acha em casa de Emilio Pinguet, meu tabelião, mais os meus poços de petróleo na Pensylvania, rendendo anualmente um milhão, à menina Lucilia, por alcunha a Toutinegra, moradora em Belleville, na rua Julien Lacroix, n.°***, no quinto andar, e sobrinha de uma cega asilada na Salpetrière.

"Estas particularidades têm por fim tornar indiscutível a identidade da menina Lucilia, cuja família ignoro o nome, e a quem peço aceite esta fortuna em testemunho de admiração profunda e infinito respeito. Dedico-lhe ao mesmo tempo o meu último pensamento.

Heitor Bégourde, , Príncipe de Castel-Vivant."

Pegou então na segunda folha de papel selado, fez uma cópia literal, devidamente assinada e rubricada do testamento que acabamos de reproduzir.

Cada um dos documentos foi metido num envelope, e subscritou um deles pela seguinte forma:

"À menina Lucilia, de alcunha a "Toutinegra", para ser aberto for ela, amanhã 24 de setembro de 1879, se ela não me vir ou não tiver notícias minhas até às cinco horas da tarde."

Fez a sua assinatura por baixo destas linhas, meteu o envelope noutro maior subscritado com o nome e a morada de Lucilia, e metera tudo na carteira que habitualmente trazia consigo.

Terminado isto, Heitor aproximou-se do móvel de ébano, guardou nele o duplicado das suas últimas disposições, e dispunha-se a rasgar o testamento em favor de Genoveva, e substituí-lo por um maço de notas de banco, destinadas a consolar a jovem, quando bateram à porta do gabinete.

— Entre, disse ele.

O criado de quarto apresentou-se.

— Que quer? perguntou o ex-Bégourde.

— O senhor Barão de Fossaro e o senhor Visconde de Cussy esperam o senhor Príncipe no salão.

Heitor foi logo ter com os seus dois padrinhos, e apertou-lhes a mão.

— Têm alguma novidade a dar-me? perguntou.

— Nada absolutamente, querido Príncipe, vimos saber notícias suas, e combinarmos algumas particularidades.

— Passo o melhor que é possível, e afirmo-lhes que me sinto em excelente disposição.

— Foi hoje à sala de armas?

— Para que me havia de estar a fatigar inutilmente? Tenho atirado nestes últimos dias, e não estou enferrujado... Reservo-me para amanhã.

— Falou com Genoveva? tornou o Barão.

— Não... tive que sair esta manhã... Na minha ausência esteve aqui, segundo me disseram.

— Há de voltar por certo...

— Fará mal, e há de achar a porta fechada, replicou o Príncipe rindo.

— Então por que?

— Porque é preciso evitar com cuidado, na véspera do duelo, as lágrimas das mulheres, as cenas comoventes, e tudo quanto pode influir no sistema nervoso. É higiene, Barão, e da melhor...

A pobre pequena, depois do que ontem se passou, deve estar sobre brasas.

— Ora adeus! Amanhã, depois do encontro, e suceda o que suceder, a pobre pequena, como diz, terá notícias minhas.

César estranhou o tom quase zombeteiro de Heitor, e a sem-cerimônia com que ele falava de Genoveva; mas como a esse respeito não podia pedir explicações, teve de mudar de conversa.

— A que horas tenciona partir amanhã? perguntou.

— Às seis em ponto, pois que o encontro é às oito. Mandarei por um landau e irei buscá-lo, como também ao Visconde e Antonino Frebault. Os meus cavalos hão de recuperar o tempo perdido... Querem dar-me o prazer de jantarem esta noite comigo?

— Perfeitamente.

— Sabem onde se encontra o doutor?

— É certo às seis horas no café de la Paix.

— Bem, traga-o, se ele estiver livre... Iremos para a mesa. às sete em ponto..Permitam-me que me despeça dos senhores, porque tenho que dar uns passos que não se podem adiar.

Fossaro retirou-se com o Visconde.

 

No pátio de entrada esperava-o um coupé atrelado. Heitor subiu para o coupé, e como pela manhã fez-se conduzir a Belleville, rua Julien Lacroix.

Penetrou no corredor, e entrou no cubículo.

— O senhor outra vez! exclamou a porteira cujo rosto se tornou radiante.

— Eu, outra vez, minha querida senhora.

— Que manda em seu serviço?

— A menina Lucilia saiu?

— Longe disso. Sempre em casa, a querida menina, a trabalhar. Vai lá acima?

— Não, a senhora é a que há de subir, se faz favor, para entregar este papel fechado à menina Lucilia, em mão própria, e como todo o incômodo merece recompensa, aceite isto, minha querida senhora.

Um segundo bilhete de cem francos caiu na mão da porteira,, não menos deslumbrada que estupefata.

— Ah! senhor, exclamou, na verdade que é muito amável. Por gosto se pode uma pessoa incomodar para o servir. Mil vezes agradecida. Tem resposta?

— Não, minha senhora. Esperarei contudo, para saber se essa carta chegou às mãos da locatária.

— Bem, senhor, vou e volto num pulo. É obra de quatro minutos. Guarde-me a casa entretanto.

Depois a porteira partiu com toda a velocidade para as alturas do quarto andar.

 

CONTINUAÇÃO

Depois de Heitor se retirar, Lucilia, dominada por uma agitação febril mais fácil de compreender que de descrever, perguntava a si própria se acabava de ver, ali, no seu pequeno quarto, quase a seus pés, um louco ou um verdadeiro príncipe, e se o que se passava era real ou fictício.

Mas recordando-se logo de uma multidão de coisas, reconheceu que a dúvida àquele respeito era inadmissível; então o sonho da tia reproduziu-se nítido e distinto na sua memória, ao mesmo tempo um calafrio de terror lhe perpassou pela epiderme.

O sonho da septuagenária cega tomava no seu espírito as proporções de uma advertência de Deus.

A órfã, pensativa, quis aplicar-se ao trabalho; mas o pedaço da fazenda escapou-lhe das mãos.

Ficou a cismar, com a cabeça inclinada, as pálpebras meio fechadas.

Na verdade, aquele rapaz podia ter-se apaixonado por ela.

Uma mulher admite sempre a paixão que inspira, e até, quando não a partilha, a perdoa.

Heitor parecia sincero.

Se na verdade ele o era, a sua visita tornava-se natural, e mesmo desculpável.

Por que?

Tornou a ver o Príncipe curvando o joelho diante dela, beijando-lhe as mãos, pedindo-lhe perdão de um insulto inconsciente.

Lembrou-se da sua palidez súbita, no momento em que ela lhe pedia que se retirasse.

Confessou no seu íntimo que o rosto formoso daquele manceba exprimia franqueza e lealdade.

De repente ela também empalideceu.

Heitor falara em morrer... Sobre a sua cabeça pairava um perigo.

No dia seguinte devia bater-se em duelo.

— Meu Deus! murmurou a pobre criança, se o matassem! Sentiu oprimir-lhe o coração, e duas lágrimas deslizaram-lhe pelas faces.

De repente sacudindo o seu torpor, e tornando a pegar um pedaço de fazenda que lhe cairá aos pés, exclamou:

— Ora, esta! mas estou doida! Querem ver que vou transtornar o juízo com estas quimeras? Mas isto é tudo um romance, verdadeiro ou falso, este príncipe não passa de um simples conquistador que a todas as raparigas canta igual cantiga. O sonho de minha tia não tem pés nem. cabeça! Olha, minha querida Lucilia, a realidade é o teu pequeno quarto, o teu riso, o teu trabalho, e as tuas cantigas! Portanto, vive alegre, trabalha e contarola, já que te chamam a Toutinegra.

E a pequena pôs-se a coser com ardor, dando princípio ao mais alegre dos seus estribilhos. Mas a sua voz era de uma tristeza que fazia chorar.

Não concluiu o estribilho principiado... o tic-tac monótono da maquina de costura foi afrouxando, e acabou por totalmente parar.

O pensamento de Lucilia volvia ao princípio. A tia Verdier, a ex-formosa hervanária, saíra logo de manhã e não voltava tão cedo, o que raras vezes sucedia.

A órfã bendizia aquele acaso, e dava-se bem com aquela solidão.

Bateram.

Lucilia estremeceu, e o seu coração cessou de bater.

Perguntou com voz comovida:

— Quem está aí?

— Eu, menina Lucilia, a sua porteira.

— Ah! é a senhora! Entre... retorquiu a jovem esforçando-se por ocultar a sua perturbação sob um sorriso. Tem precisão de mim?

— Não, menina... É que lhe trago uma carta.

— Uma carta?

— Sim, senhora! E o sobrescrito é tão grande, que lhe há de levar tempo a ler.

E a porteira deu a Lucilia a volumosa missiva, cujo conteúdo conhecemos.

A órfã pegou nela e perguntou: v.

— Quem lhe entregou isto?

— Um sujeito, menina Lucilia.

— Um mancebo?

— Sim, senhora.

— De certo aquele que esta manhã veio cá acima? perguntou a Toutinegra com vivacidade.

— Quer que lhe diga a verdade?

— Já se vê!

— Pois então é o mesmo, o rapazote desta manhã, um bonito tipo, a que não há que dizer. Vem na sua carruagem, uma carruagem com um brilho que faz mal à vista, e um cavalo que se emproa todo. Está lá em baixo.

— Ele está lá em baixo? repetiu a jovem acometida de um novo temor.

— Está, mas não sobe. Espera que eu lhe vá dizer que lhe entreguei pessoalmente a carta... está de guarda ao meu cubículo. Não é nada imposto, o belo rapaz e deve ser filho de algum príncipe, ou algum banqueiro. Em suma, a menina aí está no caminho do fortuna! Bem o merecia! O meu recado está dado, safo-me!

E a porteira abalou.

A Toutinegra, com a carta de Heitor na mão, conservara-se imóvel e pensativa.

Passado um instante, tirou-a da sua meditação o ruído de uma carruagem.

Correu à janela, entreabriu-a, e debruçou-se para olhar para a rua.

O coupé afastava-se, mas Heitor, debruçado à portinhola, e com os olhos levantados, vira-a e levara os dedos aos lábios para lhe mandar um beijo.

Lucilia, muito corada, retirou-se da janela.

Mas tornou a aparecer no mesmo instante.

A carruagem tinha desaparecido.

— O que será este grande papel? murmurou a órfã tornando a sentar-se à maquina. Dir-se-á que encerra coisa triste. Escreve-me... que pode escrever-me? Repete-me, de certo, o que me dizia esta manhã. Fiz mal em aceitar esta carta? Não, porque lhe perdoei, e talvez torne a pedir desculpa de me haver ofendido... Não se atreveu a subir... é a prova do seu arrependimento. Vejamos...

Lucilia rasgou o primeiro envelope, e o segundo apareceu. Neste leu ela:

"A menina Lucilia, de alcunha a "Toutinegra, para ser aberto por ela, amanhã, 27 de setembro de 1879, se ela não me tiver visto ou não houver recebido notícias minhas até às cinco horas da tarde"'

E por baixo:

"Heitor, Príncipe de Castel-Vivant."

— O que quer isto dizer? balbuciou a Toutinegra, muito pálida e a garganta embargada... Se não houver recebido notícias minhas até às cinco da tarde... E é amanhã que ele se bate! Compreendo,, meu Deus? Compreendo demais! Se não o vir à hora indicada,. é que ele morreu!

A órfã deixou-se cair numa cadeira.

Agitava-lhe os membros um tremor nervoso; fazia-lhe arfar o peito uma espécie de sufocação, os soluços que pretendia reprimir, abafavam-na...

— Ah! a minha tia tinha razão! disse ela de repente levantando-se. O seu sonho era um aviso do céu! Para que me havia de ver este rapaz? Para que havia de aparecer aqui? Eu era feliz... vivia em paz. Não esperava nada, não desejava nada... e agora?

Calou-se.

Afinal disse com ar de decisão: É uma franqueza imperdoável! Sou ainda senhora de mim! Que me importa o Príncipe? Não quero pensar mais nele... nem quero saber o que ele me escreve...

E dizendo o que precede, fez um movimento para rasgar ao mesmo tempo o papel fechado, mas conteve-se.

— Não, disse, seria mal feito. É talvez o último voto de um moribundo. Esperarei.

Lucilia fechou na cômoda a carta do Príncipe, depois, tornou a pôr-se ao trabalho.

Com certeza que o seu pensamento estava algures, mas desta vez o tic-tac da máquina de costura não tornou a parar.

 

O senhor Fossaro, ao deixar o palácio da rua Francisco I, voltou para casa, na rua de Provence.

O criado de quarto entregou-lhe a carta que algumas horas antes a Marquesa de La Tour-du-Roy ali deixara.

O único olho do Barão fulgurou de um modo estranho ao ler as três linhas escritas naquela carta.

— O senhor Barão tem algumas ordens a dar-me? perguntou o criado.

— Diga a Benedito que ponha o trem às quatro horas e meia, respondeu César.

E em voz baixa acrescentou:

— Fernando Volnay não deve ser estranho à vista de Lazarine. Tudo corre bem.

Às cinco em ponto, com uma exatidão de galante cavalheiro esperado por uma mulher amada, chegada à rua Murillo.

A Marquesa mandara fechar a porta para todos, exceto para ele.

Quando anunciaram César, levantou-se e deu dois passos ao seu encontro.

Estendendo-lhe a mão, disse-lhe:

— Seja benvindo, meu querido Barão, e mil vezes obrigado pela sua amável solicitude.

O senhor de Fossaro beijou a linda mão perfumada de Lazarine, e respondeu:

— A minha solicitude, senhora, é mais um prazer que um dever. Terei tido a fortuna de poder ser-lhe útil em alguma coisa?

— Tem efetivamente essa fortuna,- respondeu Lazarine rindo.

— Então disponha depressa do seu apaixonado servidor.

— Barão, vou testemunhar-lhe uma confiança enorme.

— Saberei tornar-me digno dela...

— É inútil, não é verdade, recomendar-lhe discrição?

— Ah! minha senhora, exclamou César, espero que não duvidará disso.

— Assistia ontem, no teatro de Belleville, à primeira representação desta peça onde toda Paris parecia ter querido reunir-se. Meu pai quis por força lá conduzir-me...

— Tive a honra de a ver lá e de a cumprimentar de longe.

— Por que não veio dar-me as boas noites no meu camarote?

— Como não me fez sinal para lá ir, não me atrevi a apresentar-me.

— Fez muito mal, porque logo me teria dado a explicação que hoje lhe peço...

— Uma explicação? repetiu. A que propósito, minha senhora?

— Meu querido Barão, sabe-o tão bem como eu.

— Refere-se à altercação que houve entre o Príncipe de Castel-Vivant e o comediante Fernando Volnay?

— Exatamente.

— Que deseja então saber?

— O motivo verdadeiro daquela bulha escandalosa. — Coloca-me num embaraço muito sério.

— Então por que?

— Porque a verdade rigorosa pode desagradar-lhe.

— Não lhe importe, e responda-me com franqueza.

— Ordena-me que fale e falarei. Ordeno-lhe... peço-lhe...

— Vou fazê-lo para lhe obedecer. O Príncipe Heitor achava-se defronte da senhora na friza de boca.

— Em companhia de uma rapariga de beleza incontestável, mas de um descaramento raro... interrompeu Lazarine.

Fossaro aprovou com um gesto e tornou:

— Ninguém ignora que se tratou de casamento entre a senhora e o Príncipe.

— Casamento que meu pai desejava por causa da grande fortuna de Castel-Vivant, e que eu à última hora rompi, porque vim a saber coisas singulares a respeito do passado desse príncipe improvisado.

— Todos sabem disso... A amante de Heitor, como reconheceu a senhora Marquesa, nomeou-a em voz alta, e aqui pana nós é incrível e escandaloso que tais criaturas se atrevam a ocupar-se das senhoras da sociedade! e, segundo parece, proferiu a respeito da Marquesa gracejos inconvenientes. Digo parece, porque eu não estava presente. Diante de mim, creia, a velhaca teria mostrado mais alguma reserva... Devo afirmar com pesar, que nesta ocorrência o Príncipe, que por desgraça tinha jantado bem, conduzira-se de um modo indigno de um cavalheiro... Em lugar de impor silêncio a essa rapariga, o que era o seu restrito dever, fez coro com ela e tomou a liberdade de falar muito alto... Um simples comediante, o ator Fernando Volnay, portando-se esse, como cavalheiro, pôs-se do lado da senhora Marquesa, € fechou violentamente a boca ao senhor de Castel-Vivant.

— Foi assim que eu compreendi o que se passava, disse a senhora de La Tour-du-Roy, mas as conseqüências são naturais e previstas... Uma provocação trocada entre dois homens sérios, tem por força de terminar por um encontro...

— Portanto o Príncipe?...

— Deve bater-se amanhã com o campeão da Marquesa. Lazarine tornou-se purpúrea.

— O meu campeão... murmurou ela em tom de censura.

— Vejamos, senhora Marquesa, posso eu porventura designar de outra forma o cavalheiro que há de talvez combater pela senhora? Demais, não se poderia arriscar uma vida por uma causa mais bela.

— Com que então esse duelo é sério?

— O que há de mais sério, e um dos adversários há de com certeza ficar no campo.

— Onde se efetua o encontro?

— À beira do Marne, acima da comporta de Créteil, junto da aldeia da Pie.

 

A ISCA DO AMOR

— Na verdade, murmurou a senhora de La Tour-du-Roy, que soube dar a sua fisionomia móvel uma expressão de profunda tristeza, isso é extremamente desolador! Não me consolarei se suceder alguma catástrofe, e esse mancebo cujo futuro artístico poderia ser tão belo, e que sem me conhecer, por cavalheirismo puro, corre a uma catástrofe quase inevitável ,porque o Príncipe de Castel-Vivant deve ser um atirador de primeira força...

— O Príncipe é uma fina lâmina, replicou Fossaro, mas Fernando Volnay maneja muito bem a espada, defender-se-á com vigor...

— Nada poderá impedir esse duelo?

— Nada.

— Tem a certeza de que o príncipe não fez nenhuma tentativa de conciliação?

— Tenho toda a certeza... Apesar de toda a culpa estar do seu lado, consentem servir-lhe de testemunha... Entre pessoas da mesma sociedade há coisas que não se devem recusar... Vi o Príncipe de Castel-Vivant há duas horas, mais animado que nunca, e repelindo toda a idéia de conciliação. O seu amor próprio está em jogo; depois é valente, deve-se-lhe fazer esta justiça. Tem-se batido por mais de uma vez, e com todo o arreganho.

Lazarine bem o sabia.

— Conhece o senhor Fernando Volnay? perguntou.

— Vi-o e falei-lhe ontem pela primeira vez... respondeu César.

— Qual é a sua opinião a respeito dele?

— Achei-o encantador. É rapaz de coração e de espírito, hem educado e instruído, e como lhe disse há pouco, senhora, cheio de futuro.

— Queria mostrar a minha gratidão a esse rapaz que se sacrifica por mim, mas como? O mais insignificante passo é, muitas vezes, quase sempre, tão mal interpretado...

— Nada mais fácil... Conhece por certo algum autor dramático em voga?

— Conheço mais de um.

— Muito bem, pois se Fernando Volnay sair vencedor do duelo, peça a algum desses senhores que o imponha ao diretor de algum grande teatro de drama, e de lhe arranjar um papel para o seu merecimento em alguma peça nova. Assim mostrará o seu reconhecimento, porque ele deseja a todo o transe abrir caminho.

— É ambicioso?

— Se o não, fosse, não seria artista.

— Satisfazer-lhe-ei a ambição o melhor que puder. Agora outra coisa: Disse que tinha visto o Príncipe de Castel-Vivant há duas horas?

— Vi.

— Sabe e pode-me dizer o que ele foi fazer esta manhã, por volta das dez horas, à rua de Julien Lacroix, n.°..., em Belleville?

César sobressaltou-se, e olhou para Lazarine com um espanto que não era fingido.

— O Príncipe foi esta manhã à rua Julien Lacroix? exclamou.

— Foi.

— Número...?

— Sim.

— Mas é aí que mora Fernando Volnay?

— Bem sei.

— E o senhor de Castel-Vivant entrou?

— Entrou, e esteve lá mais de uma hora.

— Não pôde ser! a pessoa que lhe disse isso enganou-se. — Ninguém mo disse, vi eu.

— Viu? repetiu César, cujo assombro ia em aumento.

— Com os meus próprios olhos, e vai compreender o que lhe parece fazer tanta confusão. Pressentia um duelo... Suponha que ele se realizasse esta manhã. Como era natural, interessava-me pelo homem que tão nobremente procedera.

"Deus sabe o que devia pensar. Fiz-me conduzir a Belleville, e dava ordem ao cocheiro do trem que perguntasse ao guarda-portão se o senhor Fernando Volnay estava vivo ou morto, quando um trem particular parou à porta, o Príncipe apeou-se, e entrou na casa onde, repito-lhe, ficou mais de uma hora... Só me retirei depois dele.

— Ignorava isso, disse César. O Príncipe não me disse palavra ,a tal respeito.

— Como explica essa visita matutina?

— Não a posso explicar, nem a compreendo.

— Talvez o senhor de Castel-Vivant quisesse tirar informações a respeito do homem com quem se ia bater, insinuou Lazarine.

— É inadmissível.

— Por quê?

— Para que se havia de informar, visto que o duelo estava aprazado? Depois o príncipe teria encarregado os padrinhos de ir tirar informações por sua conta.

— Mas se ele quisesse falar pessoalmente ao seu adversário.

— Seria contra todas as regras... Não se passou isso, afirmo-lhe, não se fez nenhuma tentativa de conciliação, a pendência há de seguir o seu curso.

— E julga que a sorte favorecerá o comediante? tornou a Marquesa?

— Julgo que as probabilidades serão pelo menos iguais.

Pelas pupilas de esmeralda de Lazarine passou um fulgor, como um relâmpago em escuras nuvens.

— Quer que depois do combate venha dizer-lhe qual foi o resultado? perguntou Fossaro.

— Não se dê a esse incômodo, amanhã estou ausente de Paris todo o dia.

— Nesse caso escrever-lhe-ei um bilhetinho que encontrará no regresso, e depois de amanhã virei dar-lhe informações.

— Isso, o senhor é um homem encantador.

O Barão despediu-se, beijou a mão à Marquesa e retirou-se. Enquanto voltava para a carruagem, dizia consigo:

— Isto vai perfeitamente, parece-me!... A formosa Lazarine está ferida no coração, e o seu capricho poderia muito bem transformar-se em paixão!... O amor indigno.oferece tantos atrativos a estas caprichosas! O comediante é um espertalhão... Se a sua boa estrela lhe permite matar amanhã Heitor, arranjará os seus negócios, e ao mesmo tempo os nossos.

A entrevista que acabamos de reproduzir, abreviando-a, tinha-se prolongado muito tempo.

Já passava das sete horas.

— Onde vai, senhor Barão? perguntou o cocheiro.

— Rua de François I, respondeu César.

 

Lazarine ficou só, jantou rapidamente, chamou a criada de quarto, e fez uma destas toilettes cujas cores neutras e elegante simplicidade, não atraem a atenção.

A criada informou-se da hora em que era preciso preparar o trem.

— Não preciso, saio a pé.

— Se o senhor Leroux procurar a senhora Marquesa, que lhe direi?

— Que estou ausente, mais nada.

— E se o senhor Príncipe de Brada se apresentasse?

— Não veio ele durante o dia?

— Veio, e a senhora Marquesa respondeu que estava incomodada. O Príncipe disse então que voltaria esta noite para saber pessoalmente da senhora Marquesa.

Lazarine respondeu, sorrindo de um modo singular:

— Dir-lhe-ão que estou cada vez mais incomodada, e que continuo a não receber...

A senhora de La Tour-du-Roy tinha a mesma criada de quarto havia cinco anos.

Esta rapariga, absolutamente discreta e seriamente dedicada, estava já costumada às freqüentes excentricidades da ama.

Não se admirava de nada, abstinha-se de todos os comentários, e perante os outros criados protegia a Marquesa com o sou silêncio.

Lazarine continuou:

— É possível que eu entre tarde... não me esperara...

— Muito bem, minha senhora...

— Estou, para todos, deitada e descanso. Compreende?

— Sim, senhora.

— Dê-me a chave do jardim...

A criada de quarto tirou de um cofrezinho uma chave pequenina suspensa de uma fita azul, deu-a à Marquesa e retirou-se.

A senhora de La Tour-du-Roy deixou o seu quarto por uma escada de serviço pertencente ao gabinete de toilette, atravessou o jardim de inverno, onde parou para colher uma rosa quasi aberta que pôs no peito, passou em seguida a um jardim muito pequenino fechado por uma grade, abriu esta grade com uma chavinha, saiu, pisou resolutamente o passeio deserto, chegou ao boulevard de Courcelles, entrou numa estação de trens, depois de ter baixado o véu sobre o rosto, e disse ao chefe da estação:

— Preciso de uma carruagem para toda a noite.

— Tenho um coupé muito limpo e com bons cavalos... Por quanto tempo é?

— Até à uma hora da manhã.

— Vinte francos, então.

— Ei-los. Amanhã pela manhã, muito cedo, preciso de uma carruagem.

— Posso por às ordens da senhora Marquesa a carruagem de que se vai servir... com um cavalo folgado, já se vê. A que horas?

Em lugar de responder, Lazarine interrogou:

— Conhece a comporta de Creteil, junto da aldeia da Pie?

— Sim, senhora.

— Quanto tempo é preciso para ir a este lugar?

— Duas horas, caminhando bem...

— Partirei às seis horas em ponto...

— Vai-se buscar a senhora a casa?

— Não, virei aqui.

— Virá achar a carruagem pronta, e o cocheiro na almofada.. Serão quarenta francos...

— Ei-los.

— E mais a gorjeta, segundo o costume.

— Sossegue, que o cocheiro não se queixará.

— O coupé saia da cocheira.

Lazarine subiu para o trem, e deu ordem para que a conduzissem ao teatro de Belleville.

Chegou ali em menos de três quartos de hora.

Dirigiu-se à camaroteira com uma violenta palpitação do coração,. e pediu uma frisa de boca.

A camaroteira respondeu:

— Só tenho um camarote de primeira ordem, à direita do ator... cinco lugares...

Era precisamente o camarote que a senhora de La Tour-du-Roy ocupara na véspera com o pai.

— Dê-mo... disse ela.

— Com todos os lugares?

— Com todos.

Lazarine recebeu cinco bilhetes, pagou-os e apresentou-se a. entrada.

Alguns jornais já tinham falado dos Beijos Mortais, mencionando o grade êxito da primeira representação, e o triunfo de Fernando Volnay que passava a ser uma celebridade.

Estas notícias ultra-favoráveis, atraiam a concorrência do público.

Como na véspera, a sala estava a deitar fora, Fernando Volnay achava-se em cena.

Principiava o segundo quadro.

A senhora de La Tour-du-Roy introduziu-se sem ruído no camarote, exatamente no momento em que o comediante dirigiu o olhar para o camarote vazio, esperando a cada momento ver aparecer a radiosa espectadora da véspera.

Cruzaram-se o seu olhar e o de Lazarine.

Uma vermelhidão ardente purpureou o rosto de Fernando sob o bronzeado claro da sua epiderme.

Levou a mão ao lado esquerdo do peito, e esteve quase a esquecer-se do papel.

Agitada nas profundezas do seu ser, por aquela comoção tão visível e tão comunicativa, Lazarine respondeu com um sorriso inconsciente à pantomima do ator ébrio de alegria.

Depois sentou-se vacilante, ou antes deixou-se cair numa cadeira no ângulo mais recôndito do camarote.

Aí fechou os olhos como para se recolher, e os lábios moveram-se-lhe.

Balbuciava quasi sem saber:

— Que venho fazer aqui? Quem me impeliu a este teatro? Hesitava... não queria vir... lutei contra mim mesma e fui vencida... Em minha casa estava inquieta, oprimida... Faltava-me o ar... Tinha febre. Aqui sinto-me feliz e respiro desafogadamente. Desconheço-me! Que se passa em mim? Ontem, lembro-me, dizia a meu pai que queria amar... Será isto amor? Estarei dominada? Serei escrava?

E acrescentou:

— O amor? o rei do mundo? O demônio! Será ele?

Na sala rebentou de repente uma trovoada de aplausos, a qual arrancou Lazarine à sua meditação, e obrigou-a a abrir os olhos.

Fernando Volnay acabava de representar a sua grande cena de amor, com o primor da véspera, e o público aplaudia-o.

Lazarine sentiu-se numa atmosfera de fogo, o seu coração dilatava-se, parecia-lhe que uma parte daqueles bravos se dirigiam a ela.

O triunfo do artista, era por assim dizer o seu triunfo.

 

AS DUAS RIVAIS

Numa frisa, em frente do camarote de Lazarine, achavam-se duas mulheres que tinham chegado logo no começo do espetáculo.

Os seus rostos bonitos, e principalmente as suas toilettes de efeito, faziam sensação.

Uma era Genoveva Leivei, a outra a amiga de Genoveva, a menina Malvina, a bonita pequena sem importância, que o Visconde de Cussy honrava os seus favores.

De súbito a amante de Heitor pegou num grande ramo de camélias vermelhas, violetas de Parma, e lilases brancos, que estava em cima de uma cadeira ao lado dela, e debruçando-se do parapeito do camarote, atirou o ramo ao palco, aos pés de Fernando Volnay.

Lazarine sentiu uma violenta opressão, e tornou-se muito pálida

Ao ver cair o ramo, Fernando ergueu instintivamente os olhos para a Marquesa, e compreendeu, pela sua palidez e pela expressão do seu rosto, o que se passava na sua alma.

Continuou a representar, sem parecer dar ao ramo a menor atenção, e no momento de sair deixou-o abandonado no palco com verdadeiro desdém.

Lazarine soltou um suspiro de alívio, o seu coração oprimido dilatou-se, invadiu-lhe a alma um profundo reconhecimento.

Na frisa, Genoveva murmurava:

— Eis um personagem bem insolente!

— Ficas a olhar ao sinal, minha querida... volveu Malvina ao ouvido da amiga. Aquele rapaz não pensa em ti! A quem ele está agarrado é a Marquesa de cabelos vermelhos, e visto que aquela dama voltou hoje, é porque tem por ele um grande fraco... Aquele, afinal, não passa de um artista reles, e aconselho-te que desistas...

— Nunca! replicou Genoveva. Ainda não disse a última palavra.

— Teimas?

— Ora essa! Sou como as crianças! É sobretudo o que me recusam, que me desperta o apetite...

— Bonita coisa! Vais então ficar para aí a comê-lo com os olhos depois dele haver publicamente desprezado o teu ramo?

— Sim! mas por quem me tomas tu! Safemo-nos... Eu me desforrarei...

— Como?

— Ainda não sei, mas quero que seja, e há de ser...

As duas mulheres deixaram a frisa, que ficou vazia o resto da noite, com grande alegria de Lazarine.

O que fica dito, pode-se dizer que não precisa de explicações.

Genoveva entusiasmara-se na véspera pelo comediante.

Depois da sua visita inútil ao palácio de Francisco I, correu a casa da amiga e propôs-lhe que voltassem à noite a Belleville para entusiasmarem Fernando Volnay.

Foi aceite a proposta.

Efetuou-se a excursão.

Sabemos qual foi o resultado.

O ramo de Genoveva não entusiasmou o ator, e lançou petróleo no fogo de Lazarine.

Saindo do teatro, Malvina disse a Genoveva:

— Aonde vais?

E Genoveva respondeu dando uma gargalhada com espantoso cinismo:

— Para casa do Príncipe, pois então! Como aquele que o há de matar amanhã não me quer esta noite!...

No entretanto, Fernando como não tinha que mudar de trajo, passeava pelos corredores, muito agitado, cheio de febre.

As testemunhas aproximaram-se dele.

— Não há nada de novo? perguntou-lhe um deles em voz baixa.

— Nada.

— Como iremos?

— Tomei um trem. Esperar-nos-á defronte do teatro, às seis menos um quarto em ponto. Não apareçam tarde. Queria oferecer-lhes uma ceia esta noite, mas preciso de descansar alguma coisa. Almoçaremos amanhã em Créteil, se não receber alguma estocada no ventre.

A conversa foi interrompida pela voz do ensaiador.

— Acima o pano!

 

Lazarine esperava este momento com impaciência.

Fernando apareceu.

Sentiu-se feliz, embriagada.

Porém uma vaga inquietação se juntava com a sua alegria, quando notou a preocupação muito visível do mancebo.

Em que pensaria ele? Porque se observava no seu rosto aquela nuvem de tristeza?

Começaria a arrepender-se da ação generosa que no dia seguinte ia pô-lo em perigo de vida?

O comediante disse a sua tirada, e acolheu com um ar sombrio a salva de palmas, e voltou para o seu camarim.

Em cima da pequenina mesa, onde estavam os seus ingredientes de caracterização, havia uma agenda de couro da Rússia, — presente de amor, — munida de uma caneta de prata para lápis.

Fernando pegou no lápis e rasgou uma folha da agenda.

— Saberá ao menos, disse, que se vou bater-me é por causa dela! O Barão de Fossaro tinha razão, esta mulher é uma maga, uma Circe! Fascina-me... embriaga-me... Feriram-me no coração como nunca fui ferido, como não julgava nunca poder sê-lo. É soberba coisa o amor, mas não basta! é preciso cuidar do que é sério. Todo o meu futuro depende do dia de amanhã. Se morrer, boa viagem... acaba-se o prazer, mas também se acabam os cuidados. É muito simples! Se a sorte pelo contrário me sorrir, posso aspirar a tudo. Lazarine tem recursos. É Marquesa, é viúva, é rica, e está embeiçada! Estou em muito bom caminho!

Após este pequeno monólogo, o comediante escreveu a lápis as seguintes palavras:

"Senhora.

"Amanhã arriscarei a vida em frente do homem que teve a ousadia de a ofender...

"Está na sua mão, minha senhora, centuplicar a minha coragem e tornar-me bem feliz.

"Diga-me num olhar que se eu sucumbir, pensará algumas vezes naquele que a amava... que a ama, e que morre pela senhora com alegria.

"Fernando de Volnay."

O ator releu as poucas palavras que acabava de traçar.

— É atrevimento, murmurou, e a declaração é franca! Ela escandalizar-se-á? Parece-me que não tem direito de se irritar, pois que esta confissão pode ser in extremis! Demais, quem não se arriscou não perdeu nem ganhou. As mulheres e as cenas difíceis, vencem-se a força de aprumo!

Fernando meteu o seu bilhete lacônico num sobrescrito, e foi ter com a porteira.

Esta, como todas as porteiras de teatro (e se existem exceções, não raras), gostava muito de figurar como intermediária em intrigas de amor, visto que nesse gênero de serviços tinha uma bonita fonte de receita.

— Tenho precisão da senhora, minha querida, disse-lhe o comediante.

— Tanto melhor, e pronta para o servir, senhor Fernando. De que se trata?

— É preciso pedir à ouvreuse das primeiras galerias que entregue isto à dama que está só no camarote n.° 2.

— Ah! seu grandíssimo maroto! exclamou a porteira com uma formidável gargalhada. Temos mais vítimas suas!

— Encarrega-se da comissão?

— Com muito gosto, senhor Fernando. A molhadura!

— Aqui tem para si, e aqui tem para a ouvreuse, acrescentou o comediante, metendo duas moedas na mão da porteira.

— Tem resposta?

— Talvez, mas não conte com isso. Se ela lha der, traga-ma.

— Já se vê. Pôde contar com isso.

 

Fernando voltou para o seu camarim, ao mesmo tempo que a porteira ia à sala, e dizia à mulher que servia na primeira ordem:

— Olhe, menina, isto é para a senhora que está no camarote n.° 2, e isto é para si.

— Bom, da parte de quem?

— Da parte do senhor Fernando.

— Que garoto! Sempre inflamado! A dama é bonita! Já lá -estava ontem com um sujeito idoso... O marido, com certeza... Pobre homem! Em suma, isso não é comigo... Lá vou.

Um segundo depois, Lazarine voltava a cabeça ao ouvir a porta abrir-se:

— Que quer? perguntou à criada toda risonha.

— Uma carta para a senhora.

A Marquesa de La Tour-du-Roy, por muito fantasista que eia fosse, não tinha a experiência de certos costumes, aparentemente incompatíveis com a sua alta situação.

Corou até à menina dos olhos e murmurou:

— Uma carta para mim! Engana-se, de certo.

— Isso é que me admira muito, volveu a criada. A carta é para a senhora do camarote n.° 2, da parte do senhor Fernando Volnay.

O tom rosado que invadira as faces de Lazarine, tornara-se purpúreo.

Estendeu a mão e pegou no papel que lhe apresentavam.

A mensageira de amor retirou-se logo, com a satisfação de ter cumprido o seu dever.

A mão da jovem tremia, a carta de Fernando queimava-lhe os dedos através da luva.

— Escreve-me, atreve-se a escrever-me! balbuciou, dominada por uma perturbação inexprimível. Um comediante escrever à Marquesa de La Tour-du-Roy! Que audácia! É verdade que este comediante vai bater-se por minha causa! Devo ler ou rasgar este bilhete? Rasgá-lo! por que? Teria feito talvez melhor em não o aceitar. Recebi-o, é preciso lê-lo.

Abriu-o, e à luz de uma serpentina que havia numa ombreira do camarote, devorou a prosa do ator.

O coração oprimiu-se-lhe novamente.

Repetiu em voz baixa as últimas linhas:

Diga-me num olhar que se eu sucumbir, pensará algumas vezes naquele que a amava... que a ama, e que morre pela senhora com alegria."

— Morrer! exclamou ela num ímpeto de indizível cólera. Não quero que ele morra! Ah! se amanhã o Príncipe o matar, que ódio e que vingança!

Após um instante de meditação, acrescentou:

— Centuplicar a. sua coragem... Bem o quisera. Mas para isso seria preciso dizer-lho.

Calou-se, não ousando traduzir o pensamento que lhe ocorria, por estas palavras: — Seria preciso dizer-lhe que o amo—

— Não, tornou ela, não me, atreverei... E contudo...

Desta vez ainda não concluiu a frase, principiada.

Na alma da Marquesa de La Tour-du-Roy, travava-se um terrível combate.

A sua altiva dignidade de mulher da boa roda (filha de um banqueiro arruinado, é verdade, mas viúva de um grande senhor), e o pouco que restava nela de pudor feminino, lutavam contra a paixão insalubre, aviltante, inconfessável, que se apoderava dela.

A idéia de responder por uma confissão de amor ao desconhecido da véspera, ao comediante estróina de um teatro de ínfima ordem, despertava nela surda revolta.

Neste momento Fernando Volnay tornava a entrar em cena, admirável de mocidade, de gentileza, e de força, no seu elegante trajo de gentil-homem.

A sua voz tinha entoações inebriantes.

Os seus olhares, dirigidos para a Marquesa, pareciam implorar-lhe, mergulhando-a numa espécie de êxtase magnético.

Quando chegou o fim do ato, e quando o artista, aclamado por toda a sala, tornou a aparecer depois de descer o pano, Lazarine sentiu-se tão completamente vencida, que nem procurou lutar.

Recuando até ao ângulo mais sombrio do camarote, tirou do peito a rosa colhida por ela no jardim de inverno do seu palácio; depois, rasgando um bocado ao programa do espetáculo, embrulhou nele a flor, entreabriu a porta do camarote, e mais com o gesto do que com a voz, chamou a criada.

A criada acudiu ao chamamento, tendo nos lábios um sorriso banal e interrogador, e perguntou:

— O que deseja a senhora?

A Marquesa deu-lhe um luís, e disse dando-lhe a rosa embrulhada:

— Para o senhor Fernando Volnay...

— Bem, minha senhora. O senhor Fernando receberá isto em dois minutos.

Lazarine, comovida, opressa, envergonhada, e ao mesmo tempo-alegre, pelo que acabava de fazer, veio novamente para o seu lugar. ' O ator, imóvel detrás do pano, e espreitando pelo buraco, tudo virá, e por conseguinte tudo compreendera.

Deixou o seu observatório, e correu ao camarote da porteira.

A criado, a quem a moeda de vinte francos dava asas, chegava ali ao mesmo tempo que ele.

— Senhor Fernando, disse-lhe com uma expressão jovial, esperava uma resposta à sua carta, não é verdade?

— E traz-ma?

— Ei-la... O senhor Fernando tem bom gosto. A dama ruiva do camarote de boca é um peixão.

O comediante desdobrou o papel com toda a cautela.

— Uma rosa! exclamou a porteira. A dama manda-lhe a sua rosa? Ah! minha flor, pôde dizer que toda a roseira lhe pertence!

Ébrio de alegria, de orgulho, e de esperança, Fernando pôs a flor numa casa do seu gibão de veludo, e voltou para o camarim.

 

O LANCE FATAL

Assim que a empregada do teatro se afastou, levando a resposta muito significativa ao bilhete do comediante, Lazarine quis detê-la.

Acabava de cometer uma imprudência extremamente comprometedora, e de se por ao nível dessas criaturas que no calão parisiense se chamam mulheres dos camarotes de boca.

Compreendia isto, tinha vergonha de si mesma, mas já era muito tarde.

Durante alguns segundos, a Marquesa teve a vontade firme de deixar o teatro, mas Fernando tornou a aparecer em cena; quando ela o viu, radiante, transfigurado, com a sua rosa na botoeira, desvaneceu-se-lhe o pesar do que havia feito, o desvario foi-se gradualmente apoderando dela, e as palpitações tumultuosas do seu coração impuseram silêncio aos tímidos conselhos da razão.

O resto da noite foi para ela unicamente uma longa embriaguez.

Um pouco antes de terminar o espetáculo, dirigiu-se à carruagem que a esperava, e deu ordem ao cocheiro para que a conduzisse imediatamente ao ângulo da avenida de Messina.

Dali regressou ao seu palácio a pé.

Quando se achou novamente no seu quarto de dormir, deixou-se cair numa cadeira, dominada por uma terrível exaltação nervosa.

— Amo-o, balbuciou ela, amo-o... e dentro de algumas horas talvez vai morrer... morrer por mim.

A crise, em razão mesmo da sua violência, passou depressa.

Sucedeu-lhe um torpor irresistível.

A Marquesa meio despida atirou-se para cima da cama, e mergulhou num pesado sono provado de sonhos sinistros, o último dos quais se revestiu de um estranho cunho de realidade...

A senhora de La Tour-du-Roy julgava sentir a seu lado um corpo imóvel e frio.

Olhava e reconhecia Fernando Volnay, ensangüentado, o peito trespassado.

Despertou soltando um grito de terror.

— Era apenas um sonho, disse ela. Mas que presságio! o fulgor pardacento do alvorecer branqueava os vidros. Davam cinco horas da manhã.

— É tempo, pensou Lazarine.

 

Levantou-se, vestiu-se rapidamente, saiu do palácio como na véspera à noite pela portinha do jardim, e dirigiu-se para a estação de Courcelles.

A carruagem estava pronta.

Subiu.

— Sabe que vamos a Creteil, disse ela ao cocheiro, bata bem, ficará contente.

O cavalo estava folgado e tinha gênio.

O cocheiro conhecia os arredores de Paris tão bem como a própria Paris.

Tomou sem hesitar os caminhos mais curtos, e chegou a Saint-Maur-les-Fossés em hora e meia.

Na ponte de Creteil parou.

— É aqui? perguntou Lazarine metendo a cabeça pela portinhola.

— Não, minha senhora. A aldeia de la Pie fica ainda a uns dez ou quinze minutos pouco mais ou menos.

— E a comporta?

— Defronte da aldeia, a qual se compõe de algumas casas espalhadas pelo campo em meio das árvores.

— É à comporta que me deve conduzir.

— Não pode ser, minha senhora.

— Por que?

— Não há caminho para trens ao longo do Marne. Aconselhava à senhora a que fosse a pé até lá. Será apenas um quarto de hora de caminho, e com o tempo que está é um bonito passeio.

Lazarine apeou-se. O cocheiro tornou:

— Esperarei a senhora no restaurante, além, na extremidade da ponte, e vou dar uma pouca de cevada a Garibaldi. Garibaldi é o meu cavalo.

— E por onde posso ir para a borda dágua?

— A senhora apenas tem que descer estes degraus que conduzem ao caminho do reboque.

E com a ponta do chicote o cocheiro designava uma escada de pedra encravada na riba, que naquele lugar tinha uma cultura de uns quinze metros.

A senhora de La Tour-du-Roy consultou o relógio.

Era, o muito, sete horas e meia, nada portanto o obrigava a apressar-se.

Desceu a escada e chegou à praia, atapetada por uma erva espessa umedecida pelo orvalho da manhã.

Uma adorável paisagem, desafiava-lhe o olhar distraído.

As massas de verdura e os altos olmeiros espalhados pelas ilhotas do Marne, e sobre as margens do rio, estremeciam sob as carícias de uma brisa suave.

A água marulhava brandamente, entre os canaviais agitados pela onda límpida.

O sol nascente espalhava no horizonte uma neblina dourada.

Os passarinhos, que não tardariam a emudecer com os primeiros frios, cantavam por entre as moitas já avermelhadas as suas mais alegres canções.

Lazarine caminhava depressa, isolada na sua preocupação, nada vendo das belezas da natureza, nem ouvindo o canto dos pássaros.

Procurava a comporta com a vista, e o seu pensamento estava todo com Fernando Volnay.

Chegou a uma casinha, perdida como um ninho no meio dos salgueiros e dos sabugueiros.

Um letreiro pregado por cima da porta, indicava que o morador da casa era barqueiro.

Defronte, estavam amarrados dois barcos de fundo chato.

Um pouco mais longe a comporta.

— Eis-me... pensou a Marquesa. É ali de certo que o duelo deve efetuar-se.

E deitou um olhar em roda de si.

Uma sebe espessa, donde a espaços emergiam grandes árvores, orlava o caminho de reboque.

Lazarine tornou:

— Daí verei tudo, e ninguém me verá.

Na sebe havia uma abertura, à qual ia dar um caminho.

A Marquesa desapareceu nos grupos de arbustos.

Decorreu quase um quarto de hora.

Ao fim deste tempo ouviu-se um ruído de passos e de vozes.

A senhora de La Tour-du-Roy afastou os ramos e reconheceu o príncipe Totor, o Barão de Fossaro, o Visconde Cussy e Antonino Frébault.

— Ah! príncipe maldito, murmurou ela acompanhando as suas palavras com um gesto de ameaça, se me matas Fernando, matar-te-ei eu a ti!

O Barão falava.

— É muito pitoresco este lugar, dizia ele. Este comediante é homem de bom gosto. Parece-me, senhores, que chegamos com muita antecipação.

— Pouca, retorquiu Heitor. Eis o meu adversário, e as suas testemunhas.

 

Fernando e os seus dois camaradas chegavam efetivamente.

Os dois grupos cumprimentaram-se.

O primeiro galã, vestido todo de preto, trazia como na véspera, a rosa enviada por Lazarine.

A pobre flor estava agora murcha. V

A Marquesa viu-a e sentiu perder as forças.

Teve de se agarrar aos ramos de uma sebe para não cair.

O senhor de Cussy e um dos companheiros de Fernando, tinham ambos debaixo do braço esquerdo um embrulho comprido e delgado metido em pano verde.

Eram os ferros de combate.

Os padrinhos de ambos os lados conferenciaram.

Tratava-se de tirar a sorte para saber de que floretes se serviriam.

Fossaro atirou ao ar uma moeda de cinco francos.

— Cruzes! disse Heitor.

— Cunhos! replicou Fernando. A moeda caiu.

A cabeça laureada do imperador cintilava aos raios do sol.

O acaso favorecia ao Príncipe.

Lazarine compreendeu-o, e apesar da pouca importância desta vantagem, não deixou de estremecer de cólera.

Os dois despiram sobrecasaca e colete.

Fernando tirou a rosa e colocou-a muito perto do coração entre a camisa e a carne.

A comoção sufocava a senhora de La Tour-du-Roy.

— Ah! balbuciou ela com delírio, que ele ma possa restituir, aquela flor querida, aquela flor murcha, exalando o seu último perfume, e em troca dar-lhe-ei os meus lábios.

Heitor e o comediante tomaram posição.

Fossaro com uma bengala na mão, conservou-se imóvel a igual distância de um e outro.

— Vamos, senhores... disse.

Os dois acabavam de cruzar o ferro, e estudavam-se com o olhar, antes de atirarem o primeiro golpe.

— Atenção, senhores! atenção! gritou de repente o doutor Frébault. Os gendarmes! estarão aqui dentro de cinco minutos.

 

Olharam todos para o ponto do horizonte, designado por Antonino.

Dois gendarmes desciam uma pequena colina situada a meio quilômetro pouco mais ou menos do teatro do duelo, e dirigiam-se para os combatentes.

Estes dignos representantes da força pública, vendo dois grupos de homens imóveis, não tiveram dificuldade em adivinhar o que se passava, e partiram logo a correr.

— Depressa! disse o Príncipe com impaciência, e teremos talvez concluído antes deles chegarem.

— Não é provável, replicou Fossaro, bem vêem que se apressam. Levantarão auto de corpo de delito, e apoderar-se-ão das armas.

Fernando Volnay interveio.

— Tenho uma idéia, disse.

— Que idéia? perguntou César.

— Jantar requentado nunca presta, e os duelos são como os jantares. Aqui estão dois barcos de fundo chato, eu e o senhor de Castel-Vivant meter-nos-emos num deles, as testemunhas seguir-nos-ão no outro, e cruzaremos o ferro mesmo no meio do Mame, nas barbas da polícia.

As testemunhas, salvo o Barão, quiseram protestar, mas Heitor pôs termo ao protesto exclamando:

— Bravo! Agrada-me a idéia! Adoto-a com entusiasmo. Este duelo ao ar livre há de ser muito picante e de um pitoresco de arromba! Teremos tanto lugar quanto nos for preciso, exceto para cair a fundo, o que não será um mal. Embarquemos, senhores, e depressa.

E dizendo isto Heitor saltou para um dos barcos amarrado com cordas a uma estaca, e munido dos seus remos presos nos toletes.

Fernando seguiu-o.

O doutor Frébault, o Visconde de Cussy e as duas testemunhas do comediante, subiram para o segundo barco.

— Algum dos senhores sabe remar; peço-lhes... perguntou Fossaro que desprendeu as cordas.

— Eu, respondeu Lombard.

— Então, senhores, continuou o Barão, peguem nos remos e dirijam-se para o meio do rio. Eu conduzirei os combatentes a fim de lhes evitar toda a fadiga.

César pegou um dos remos, instalou-se detrás do principezinho,. e pôs-se a remar vigorosamente.

Exatamente neste momento os gendarmes chegavam à praia, mas como os carabineiros de Offenbach, chegavam muito tarde.

O cabo, rigoroso observador dos deveres profissionais, emprazou. os dois duelistas em termos muito dignos para que desembarcassem,, sob pena de os autuar, e serem perseguidos na conformidade da lei.

Esta citação apenas obteve como resultado um acesso de hilaridade reprimida.

O principezinho, sempre um pouco aprendiz de pintor, e em quem de tempos a tempos reaparecia o ex-Bégourde, pôs-se a canta-, rolar a ária dos Bandidos.

Lazarine não perdera nada do que se passava.

Viu os barcos afastarem-se da praia, e subindo ao longo da sebe sem que ninguém a visse, seguiu a sua marcha de modo que ficasse sempre na mesma altura.

Chegaram ao largo e pararam ao lado um do outro.

A senhora de La Tour-du-Roy fez alto.

— Ficam bem aqui, parece-me. Que acham?

— Perfeitamente.

— Então, senhores, deixo-os.

E o barão saltou de um barco para o outro.

— Esperem o sinal.

Heitor e Fernando Volnay não tinham largado os floretes.

Tomaram ambos posição numa das extremidades do chão movediço, sobre o qual se iam bater; puseram-se em guarda, sérios e frios, com os olhos fitos um no outro.

O seu barco, como estava menos carregado, e já não estava seguro, afastava-se muito depressa do das testemunhas.

— Vamos, senhores! disse César.

 

O DUELO

Travou-se o duelo.

Frederico Soulié, num dos seus belos romances a Confissão Geral, parece-me, pôs em cena o duelo de dois estudantes, num café, em cima de uma mesa de bilhar.

O duelo de Heitor e de Fernando, não devia ser menos singular.

Os dois adversários encurralados, um na proa outro na popa do barco, não podiam recuar um passo que fosse sem caírem de costas nas águas profundas, e a falta absoluta de equilíbrio aumentava ainda o perigo, porque todos os movimentos inesperados faziam oscilar a embarcação sob os pés dos combatentes, e comprometiam a segurança do jogo.

Os dois barcos, separados por um intervalo de três ou quatro metros, iam derivando pela água abaixo, arrastados pela corrente.

Lazarine seguia-os por trás da sebe, trêmula de terror, afastando os ramos a fim de melhor observar as peripécias do combate.

O príncipe e o comediante mantiveram-se em defesa mutuamente.

Os seus primeiros golpes foram hesitantes; no fim de alguns segundos o aspecto da luta tornou-se mais definido.

Heitor atirava bem, mas o seu jogo pecava pela violência, pelo ímpeto.

Fernando Volnay, pelo contrário, opunha a frieza à impetuosidade, e cobria-se com o seu florete como com um escudo.

Enervado por esta atitude expectante, o ex-Bégourde mudou de tática, e aparando unicamente os golpes, obrigou o ator a atacá-lo por seu turno.

Seguro da sua superioridade, Fernando tomou logo a ofensiva, e depois de dois golpes simulados, atirou uma estocada que apanhou Heitor na coxa.

— Não é nada! exclamou o Príncipe, sentindo-se tocado. Continuemos...

Ao mesmo tempo caía a fundo, atacando com tanta violência e tão inesperadamente, que o ator não podendo chegar com bastante tempo à parada, deu um salto atrás e caiu sobre a popa do barco, onde escanchou as pernas, para não perder o equilíbrio.

A sua nova posição dava-lhe uma grande vantagem sobre o Príncipe, obrigado a atacar de baixo para cima.

Heitor compreendeu-o, e recuou dois ou três passos.

O seu ferimento, aliás muito ligeiro, não o fazia sofrer, mas deitava muito sangue.

Para ir até ele, Fernando saltou para o fundo do barco.

Escorregou porém no sangue.

Caiu pesadamente de joelhos, deixando durante um quarto de hora o peito a descoberto.

Nada impedia que a espada de Heitor lhe fosse direita ao coração.

— Era uma vez um ator! pensou o Barão de Fossaro.

— Nesse momento ouviu-se um grito na praia, um grito de mulher, agudo, dilacerante, repassado de angústia e desespero.

O comediante ouviu-o, e repentinamente galvanizado, endireitando-se como se o impelisse uma mola de ação, achou-se no mesmo tempo de pé e em guarda, aparou o golpe que o havia de trespassar, e tornou a atacar com fúria.

César sorria.

— Aquele grito, murmurava ele, veio muito a propósito. Foi a Marquesa que o soltou. Onde demônio pode ela estar?

Sondou com o olhar as margens do Marne, entreviu ou pareceu-lhe entrever uma forma feminina deslizar por trás da sebe de que falamos, e disse consigo:

— Está acolá! Suspeitava desde ontem que ela queria assistir ao combate. Está muito embeiçada a Marquesa!

O duelo continuava.

Os lutadores encarniçados, cujos olhos despediam fulvos lampejos, atraiam excessivamente a atenção das testemunhas, que supunham próximo o desenlace.

Agora os barcos desciam com muita rapidez, arrastados pela corrente cada vez mais rápida.

Achavam-se, o muito, a cinqüenta metros da barragem, donde o lençol de água, com a velocidade de uma bala, se despenhava sobre o plano inferior formando grandes novelos de escuma e soltando rugidos abafados.

Uma das testemunhas do comediante deu pela iminência do perigo.

— Tomem muitíssimo cuidado! disse, a corrente arrasta-os.

— Silêncio! ordenou Fossaro. A situação tornava-se terrível.

O barco dos combatentes, muito mais próximo da barragem que o das testemunhas, oscilava e girava sobre si mesmo impelido pelo redemoinho.

Pareceu de repente a César que o Príncipe fraquejava, não era uma ilusão.

Heitor tinha perdido muito sangue, passavam-lhe pelos olhos grandes borboletas negras, os ouvidos enchiam-se-lhe de zumbidos...

Fernando também observava o desfalecimento progressivo do adversário, e quis tirar quanto antes partido dessa circunstância.

Com um prodigioso sangue frio prendeu o florete que os dedos hirtos do Príncipe mal seguravam, e fê-lo saltar no Marne.

Ao mesmo tempo Heitor ferido em cheio no peito, caiu no fundo do barco soltando um gemido abafado.

— Tomem cuidado na barragem! bradou Fossaro com uma voz trovejante assim que viu a tarefa feita e bem feita.

O comediante, voltando-se, notou o perigo que até àquele momento não suspeitava, mas não pareceu impressionar-se com isso.

Três ou quatro metros, o muito, separavam-no ainda do ponto preciso, onde a força de atração da queda de água se tornava irresistível.

Deitou a mão aos remos deitados na amurada, colocou-os nos toletes, fez girar o barco, e remou de uma maneira tão magistral, que o arrancou vigorosamente à ação da corrente, e lançou-o nas águas tranqüilas, onde a embarcação das testemunhas se lhe veio reunir.

 

O doutor Antonino Frébault saltou para o primeiro barco, e enquanto se dirigiam para a praia, ajoelhou junto do corpo do Príncipe, abriu-lhe a camisa e examinou o ferimento.

Heitor não dava sinal de vida.

O rosto do médico tornava-se sombrio.

— Então? perguntou César.

Por única resposta, Antonino abanou a cabeça.

— Morreu? continuou o Barão.

— Ainda não, mas pouco lhe falta.

— Ora adeus! Enquanto uma pessoa vive, há sempre probabilidades de salvação.

— É verdade, em tese geral; mas o caso presente, com muita mágoa minha, são pequenas tais probabilidades.

— Que havemos de fazer?

— O cocheiro recebeu ordem de dar volta pela aldeia da Pie, e não tardará a chegar. Será possível transportar o Príncipe? ignoro. Em todos os casos, e provisoriamente, depô-lo-emos num leito, na casinha que vejo além.

— A do barqueiro, disse o senhor de Cussy.

— Seria bom prevenir...

— Aí vou... retorquiu o Visconde saltando para terra, porque os barcos tinham voltado para o ponto de partida.

Os gendarmes esperavam na praia para tomar os nomes dos combatentes e das testemunhas, e lavrar auto do duelo, que não tinham podido impedir.

Foi obra de alguns minutos.

Depois os representantes da autoridade afastaram-se, e Fossaro, pondo a mão no ombro de Fernando Volnay, fê-lo afastar um pouco. — Ouviu aquele grito, há pouco? perguntou-lhe.

— Ouvi.

— E compreendeu?

— Parece-me que sim.

— As suas conjeturas referem-se à Marquesa de La Tour-du-Roy?

— Referem-se.

— Pois tenho a firme convicção de que não se engana. Lazarine quis assistir ao duelo em que o senhor figurava. Vendo-o a dois dedos da morte, soltou o grito que o devia salvar. Aquela mulher adora-o, meu querido artista, e cumprimento-o por uma conquista de que o senhor deve ter orgulho.

— Mil vezes obrigado, senhor barão, como foi porém que a senhora de La Tour-du-Roy soube que o encontro devia ter lugar aqui?

— Fui eu que lho disse ontem. Mandou-me ir a sua casa para me interrogar à sua vontade.

— Onde estava ela oculta?

— Detrás desta sebe. Talvez ela ainda aqui esteja, e faria bem em se certificar...

Fernando aproximou-se das suas testemunhas.

— Meus amigos, disse-lhes, vão esperar-me na ponte de Creteil, no restaurante, defronte do qual deixamos a nossa carruagem, e encomende o almoço. Em menos de um quarto de hora irei ter com os senhores.

Os dois afastaram-se muito intrigados com todo este mistério, e o comediante meteu-se pelo caminho por onde Lazarine, meia hora antes, se dirigira para a sebe.

Com um rápido golpe de vista esquadrinhou o campo, e não viu nada.

Muito agitado, muito nervoso, costeou a parede da verdura.

— Contudo, o grito partiu daqui, murmurou, e como o Barão, estou convencido de que só a Marquesa o podia ter dado.

Atravessando um pedaço de terra lavrado de fresco, ao longo da sebe, avistou de repente sobre o solo úmido as pegadas de um pé estreito, calçado de botinhas elegantes, de altos tacões à Luiz XV.

— Lazarine passou por aqui, volveu. E continuou nas suas investigações.

Um pouco mais adiante as pegadas cessavam, a terra estava calcada, espezinhada, ramos partidos juncavam o solo. Fernando parou e disse:

— Deste lugar é que ela observava o que se passava. Foi daqui que partiu o seu grito de terror... Uma vez sossegada a respeito dos resultados do duelo, e não querendo correr o risco de ser descoberta voltou talvez para o trem. Decididamente, a partida é maravilhosamente prometedora, e tenho todos os trunfos no jogo...

Voltou para trás, e dirigiu-se para a casa do barqueiro. Quando ali chegou, também acabava de chegar o landau do Príncipe.

O cocheiro alteava-se na sua almofada, com as guias apanhadas na. mão esquerda, o cabo do chicote na coxa direita, a atitude empertigada e correta de um cocheiro inglês que se respeita, e a quem o decoro torna inacessível à comoção.

O trintanário, em pé junto à porta, olhava cheio de curiosidade para muitos homens inclinados para um corpo inanimado, o do Príncipe.

Fernando cumprimentou, e passou adiante.

Deixá-lo-emos continuar o seu caminho, e entraremos em casa do barqueiro.

 

Com infinitas precauções, improvisando uma espécie de padiola, graças aos remos dos dois barcos, tinham transportado o ferido, sem sentidos, desde a praia até à casinhola do porteiro, e acabavam de o deitar no leito do único quarto.

No rosto de Heitor havia a palidez da morte.

Dir-se-ia que não restava nas suas veias uma gota de sangue.

Tinha entreabertas as pálpebras orladas de uma cor lívida, deixando ver o globo do olho, mas ocultando quasi as pupilas, o que dava ao seu rosto um aspeto sinistro.

Saia-lhe dos lábios uma escuma avermelhada.

A perna direita das calças e toda a frente da camisa pareciam ter sido ensopadas em sangue.

Antonino Frébault procedia a um novo e mais atento exame dos ferimentos.

Levantara os bordos do estreito ferimento, e apoiou o ouvido ao lado esquerdo do peito.

Quando se ergueu tinha ainda o rosto sombrio.

— Então? perguntou Fossaro pela segunda vez.

— Meu querido Barão, respondeu o médico, se o meu pobre amigo escapa desta, é porque tem sete fôlegos.

— O coração foi ofendido?

— Não; neste caso a morte seria fulminante. E tenho todos os motivos para recear uma hemorragia interna. Barão, dê para cá o meu estojo.

— Ei-lo.

O médico abriu o estojo que continha, além dos instrumentos de.cirurgia, muitos frasquinhos com letreiros.

— Precisava de uma chávena ou de um copo meio de água fresca... tornou Antonino.

O barqueiro apressou-se a trazer uma taça.

Frébault abriu dois frascos, e deitou cinco ou seis gotas do seus conteúdo na água que se tornou numa cor de rosa pálida.

— Agora uma colher, continuou, e o Barão faça-me o favor de levantar um pouco a cabeça do príncipe.

Fossaro mostrou a maior diligência em fazer o que lhe pedia o doutor.

O seu rosto manifestava dó e pesar, as suas pálpebras pareciam úmidas, enquanto que diziam consigo:

— Não escapa desta, mas este desajeitado Fernando devia ter ferido três centímetros mais acima, e evitar-nos esta massada.

 

CONTINUAÇÃO

Antonino Frébault, com o auxílio de uma colher de estanho, introduziu por três ou quatro vezes entre os dentes de Heitor alguns goles da bebida preparada por ele.

Esta bebida devia ser enérgica, porque passado um instante, o corpo do Príncipe agitou-se, e as suas pálpebras estremeceram.

Isto, entretanto, teve apenas a duração de um relâmpago, e a imobilidade tornou-se completa.

— Bem, murmurou o doutor, cujo rosto parecia um pouco menos sombrio. Vou agora fazer um curativo sério.

E dispôs-se a por um aparelho na ferida. Quando acabou, Fossaro disse-lhe: — Bem sabe que a carruagem está aí. Frébault abanou a cabeça, replicando:

— Não devemos pensar nela... O menor abalo produziria uma. morte imediata... Por fracas que me pareçam as probabilidades de salvação, nada devo comprometer.

César franziu o sobrolho.

Que tenciona então fazer? perguntou.

— O melhor seria deixar aqui o Príncipe... Mandar-se-ia um enxoval completo de cama, e o bom do barqueiro, graças a uma boa recompensa, dar-nos-ia o completo usufruto da sua casinha.

— A sua disposição, senhor, e sem indenização... acudiu o barqueiro. Neste mundo devemos ajudar-nos uns aos outros.

O barão, cujos projetos eram transtornados pela idéia de Antonino, franziu os sobrolhos.

— Não pensa em semelhante coisa, querido doutor! exclamou em voz baixa, é impraticável!

— Então por quê?

— O Príncipe terá necessidade de contínuos cuidados que lhe faltariam aqui.

— Virei todos os dias...

— Quem velará sobre ele?

— Virão um criado e um enfermeiro.

— Não há espaço, e depois aqui está-se longe de todos os recursos...

— Muito obrigado, disse o doutor com impaciência, o senhor fala de cadeira! Descubra alguma coisa, visto que a minha proposta não tem a forma de lhe agradar.

— Eu sou de opinião que se transporte o Príncipe a Paris...

— Faz favor de me dizer como se há de evitar qualquer solavanco?

— Parece-me que indo-se a passo...

— Parece-lhe mal! interrompeu Antonino. Que demônio! Tenho uma responsabilidade... muito grave! Não consentirei que o senhor de Castel-Vivant seja transportado em carruagem, não consentirei sob pretexto algum! Até nova ordem, o Príncipe deve conservar a posição horizontal.

Contradizer o doutor seria falta de tato.

Apesar da sua irritação interior, Fossaro teve todo o cuidado em não o fazer.

Calou-se, procurando um meio.

O barqueiro escutara com muita atenção o diálogo precedente.

— Senhor doutor, exclamou ele de repente, permite-me que lhe dê um conselho?

— De muito bom grado, e segui-lo-ei se for bom.

— É bom ou mau... Ê conforme o lugar onde mora em Paris esse pobre senhor.

— Mora na rua Francisco I.

— Fica longe do Sena essa rua?

— A cinco minutos do rio.

— Creio então a minha idéia famosa...

— Fale depressa.

— Eis o plano. Em Port-Créteil pode-se alugar um barco de recreio guarnecido de um toldo. No fundo do barco colocar-se-ão dois colchões, e sobre os colchões deitar-se-á o mancebo... ficará ali como no seu leito. Desceremos, remando lentamente, o Mame até ao Sena, e o Sena até ao lugar mais próximo da morada do ferido. Aí, desembarcá-lo-emos muito facilmente, colocando colchões sobre uma padiola, e levá-lo-emos para casa.

— Mas isso é muito prático! exclamou César, cujo único olho cintilou. O que pensa, doutor?

— Penso que a idéia é excelente, e dirijo ao seu autor todos os meus cumprimentos.

— Trata-se então de a por em execução?

— É o que faremos mais depressa possível, É preciso um barco nas condições requeridas.

— Eu me encarrego disso, tornou o barqueiro. Sou conhecido em Port-Créteil; obterei o barco, os colchões, cobertores, travesseiros, e um remador. Eu vou tratar de arranjar tudo isso. Quanto ao custo...

— Ajuste-o o senhor mesmo, interrompeu Antonino, e não regateie...

— Pode-se almoçar em Port-Créteil? perguntou César.

— Sim, senhor, e muito bem, em casa do alugador dos barcos, que tem ao mesmo tempo restaurante e uma ilhota no Marne, aonde os parisienses vêem divertir-se ao domingo, e comer peixe frito e caldeiradas.

— Previna-o de que paramos em casa dele, se o doutor não vir nisso inconveniente algum.

— Não vejo nenhum, replicou Frébault, até almoçarei com muito apetite... Há algum farmacêutico junto do restaurante? acrescentou.

— Não muito longe, em Saint-Maur-les-Fossés.

— Aproveitarei portanto a nossa paragem, para mandar preparar uma poção, cujo emprego me parece urgente. Vá depressa, meu amigo.

— Corro, mas seria preciso que um dos senhores tivesse a bondade de me substituir se alguém viesse pedir para atravessar o rio.

— Eu me encarrego disso, disse Fossaro.

O barqueiro partiu em direção à ponte de Créteil.

— Meu querido Visconde, continuou César dirigindo-se ao senhor de Cussy, peço-lhe que dê ordem ao cocheiro do Príncipe para tornar a pôr-se a caminho, pois que o trem já não nos é preciso. Convém, quando chegarmos a Paris, que os homens e a maça estejam à nossa espera na praia, junto da ponte de l'Alma. Demais, tenciono acompanhá-los até Port-Créteil, e depois do almoço, precedê-los em Paris, onde eu próprio cuidarei dos indispensáveis preparativos.

— Isso é muito bem pensado, replicou Frébault, mas que a carruagem parta sempre adiante.

O visconde de Cussy deu ordem ao cocheiro e ao trintanário que tornassem para Paris, e aí tomassem as medidas necessárias enquanto não chegasse o Barão de Fossaro.

Terminou recomendando-lhes a maior circunspeção perante as interrogações dos curiosos.

O landau afastou-se, e o Visconde tornou a entrar na casinha do barqueiro.

Antonino sentou-se à cabeceira do leito, e com os dedos na artéria do ferido, contava as pancadas fracas e irregulares do pulso.

César e o senhor de Cussy em pé e silenciosos, contemplavam o rosto lívido do Príncipe de Castel-Vivant.

Decorreu meia hora.

 

No fim deste tempo, o barqueiro tornou a aparecer, trazendo o barco que esperava.

Tudo o que pedira o doutor achava-se amontoado no fundo do barco.

Fizeram uma cama debaixo do toldo, e para lá transportaram o Príncipe.

O barqueiro recebeu a ampla gratificação que ele merecia, depois os três homens subiram para o barco, que impelido por um só remador, alcançou o largo, e seguiu sem oscilações a corrente.

 

César de Fossaro e Fernando Volnay tinham acertado, atribuindo à Marquesa o grito que se ouvira detrás da sebe.

O comediante enganara-se apenas em supor que Lazarine não deixara o seu posto de observação senão depois da queda do principezinho.

Com as mãos crispadas, o peito ofegante, os olhos espantados, a senhora de La Tour-du-Roy, como sabemos, seguia as peripécias do duelo, desejando com indizível ardor o triunfo do seu campeão.

Ao ver Fernando romper primeiro, e saltar depois para a popa do barco, sentira-se desfalecer.

Quando o viu investir, escorregar e cair de joelhos, expondo à espada do Príncipe o peito descoberto, soltou dos lábios um grito de terrível angústia; depois, julgando-o irremediavelmente perdido, tapou os olhos, e possuída de uma verdadeira loucura, deitou a correr pelos campos afora, sem saber para onde ia, tropeçando nos sulcos, sem olhar para trás.

Chegou deste modo ao caminho de reboque, continuando a fugir como uma pessoa perseguida.

Achando-se a final no cais da ponte de Créteil, de uma investida galgou os degraus.

Este último esforço esgotou-lhe as forças. Atravessou a calçada,. e veio cair sem sentidos à porta do restaurante, diante do qual estacionavam duas carruagens, a que a trouxera, e a de Fernando de Volnay, e das suas testemunhas.

Ao ouvir o ruído de uma queda sucedendo ao de uma rápida carreira, os dois cocheiros instalados junto do balcão onde bebiam de rancho fraternal, e o próprio dono da casa, saíram apressadamente, e viram com espanto uma mulher elegante estendida no chão, e sem. dar sinais de vida.

Aproximaram-se do corpo para a levantarem.

— Espera lá! exclamou o cocheiro do boulevard de Courcelles, é a pequena que eu conduzi ontem à noite a Belleville, e trouxe para aqui esta manhã. Que lhe sucederia? Estará morta?

O dono do restaurante inclinara-se para Lazarine.

— Não, não, respondeu, está apenas desmaiada.

— Olha a brincadeira!! Depressa, é preciso socorrê-la.

— Sabe quem é ela, e onde mora?

— Só o que sei é que ela dá bem boas gorjetas...

— A mulher do patrão prevenida do que se passava, acudiu muito comovida.

— Levem esta pobre senhora para o meu quarto, disse ela, trata-se de a despir e de a deitar...

— Sossegue, tornou o cocheiro, ela pagar-lhe-á muito bem o incômodo. É pessoa graúda e que tem bago, respondo por isso.

Os três levantaram a senhora de La Tour-du-Roy, e levaram-na; para o primeiro andar.

Deitaram-na numa cama, num quarto decentemente mobiliado.

— Agora, deixem-me a sós com ela, disse a dona da casa. Se isto não melhorar quanto antes, manda-se buscar um médico.

Num abrir e fechar de olhos, com habilidade e destreza incomparáveis, Lazarine foi despida.

O espartilho de alto estilo, as saias guarnecidas de rendas, a prodigiosa finura da roupa, arrancavam exclamações de surpresa à boa dama.

Deste luxo íntimo, tão completo, concluiu ela que a pessoa desmaiada devia ser mulher da grande roda que tivera no seu lar grandes contrariedades; depois, sem se absorver mais do que era razoável nas suas conjeturas, banhou as fontes da Marquesa com água fria.

O efeito deste tratamento tão simples, foi quase imediato.

Lazarine abriu os olhos; um fraco tom rosado tornou a colorir-lhe as faces.

Levantou-se e deitou em roda de si um olhar perscrutador.

Ao ver-se num quarto alheio, diante de uma pessoa desconhecida que a examinava com uma curiosidade benévola, compreendeu o que se passara.

— Onde estou? perguntou ela.

— No restaurante da ponte de Créteil, minha querida senhora... respondeu a dona da casa. A senhora perdeu os sentidos à nossa porta, ao pé da carruagem que a trouxe há uma hora, e que a esperava.

— Lembro-me, murmurou Lazarine.

— Como se acha agora?

— Muito melhor, apesar de prostrada.

— Deu talvez alguma grande caminhada?

— Sim, dei uma grande caminhada. Mas não foi isso, foi o susto.

— O susto! repetiu a dona do estabelecimento, estupefata da expressão estranha e quase espantada dos olhos da sua interlocutora..

— Sim!

— Correu então algum perigo?

— Não.

— Então viu alguma coisa que lhe meteu medo?

A senhora de La Tour-du-Roy, fez um sinal afirmativo.

— Presenciou algum crime? continuou a boa da mulher.

— Não, mas um duelo.

— Misericórdia! um duelo nestes sítios?

— Sim, na barragem.

— E viu cair algum homem? viu-o morrer?

— Vi-o cair, e não tive forças para mais. Perdi a cabeça—_

Deitei a fugir...

— É horrível! E por que foi esse duelo, sabe?

Em lugar de responder, Lazarine interrogou.

— À sua porta não há outra carruagem além da minha? exclamou.

— Sim, senhora... Uma carruagem alugada por três sujeitos que se dirigiram para os lados da barragem.

— E esses três sujeitos voltaram?

— Ainda não.

— Tem a certeza disso?

— Oh! tenho toda.

— Ah! exclamou Lazarine com uma voz entrecortada, as suas testemunhas estão além... ao pé dele, procurando de certo chamá-lo' à vida... e eu fugi, no momento em que a arma estava prestes a tocar-lhe no peito.

 

UMA BOA NOVA

— Sossegue, senhora, sossegue... balbuciou a dona da casa assustada com a exaltação de Lazarine; isso vai fazer-lhe mal.

A Marquesa continuou:

— Bateram-se... Um mancebo foi perigosamente ferido, morto talvez, repito-lhe... Vão trazê-lo para aqui, visto que a sua carruagem a espera... Vá lá abaixo, senhora, peço-lhe... espere, interrogue, venha dizer-me se ele morreu.

A senhora de La Tour-du-Roy parecia atacada de loucura... Os seus olhos espantados exprimiam o desvario.

— Farei tudo o que quiser, replicou a estalajadeira... Vou lá embaixo, indagarei e virei repetir-lhe o que me houverem dito, mas como se chama o mancebo por quem se interessa?

— Chama-se Fernando Volnay. A mulher desceu toda açodada.

— Então? perguntou-lhe o marido.

— Vai melhor. Tornou a si, mas tem a cabeça transtornada. Meteu-me medo.

— Que lhe sucedeu?

— Parece que viu um duelo.

— Um duelo! repetiram os cocheiros.

— Sim, um duelo terrível, junto da barragem... e pessoa por quem ela se interessava muito, recebeu um golpe muito grave.

— Oh! oh! exclamou o dono da casa. Temos história de amores! Foi provavelmente por causa dessa dama que esgrimiram! O diabo do amor! pode-se muito bem dizer que esse brejeiro nos faz fazer asneiras.

 

Neste momento os padrinhos do comediante apareceram.

— São os nossos fregueses? exclamou o cocheiro que os trouxera. Mas os senhores eram três... Sucedeu alguma coisa ao seu camarada?

— Não, felizmente.

— Vamos sem ele?

— Não nos retiramos ainda. Pode-se almoçar aqui?

— Como em Paris, meus senhores, respondeu o homem do restaurante.

— Então prepare-nos almoço para três, porque o nosso amigo há de chegar dentro de três minutos.

— Perfeitamente. Num quarto de hora servir-se-á uma caldeirada, costeletas, uma omeleta, um frangão assado, uma salada, queijo, fruta. Quanto aos vinhos, só terá a escolher... a adega está bem fornecida.

O cocheiro do boulevard de Courcelles perguntou:

— A janota lá de cima tem idéias de ir já de batida por aí afora?

— Não creio, respondeu a dona da casa.

— Então eu e o meu camarada comeremos alguma coisa, enquanto estes sujeitos almoçarem.

A mulher ardia em desejos de desempenhar a comissão de que a encarregara Lazarine, e satisfazer a sua própria curiosidade.

— Senhores, disse ela dirigindo-se às testemunhas do comediante, visto que vem da banda do rio, dos lados da barragem, devem então saber o que ali acaba de se passar.

— Porque, passou-se alguma coisa? retorquiu Lombard deitando uma olhadela a Parrot, para lhe recomendar discrição.

— Dizem que houve um duelo, e mataram um homem.

— Quem disse semelhante coisa?

— Foi uma senhora...

— Uma senhora? exclamaram os dois artistas muito admirados.

— Sim, uma senhora muito bem vestida e linda como os amores! Tem talvez os cabelos ruivos de mais, mas ficam-lhe tão bem, que parece que assim é que devem ser. Viu tudo.

Os atores de Belleville trocaram um olhar.

— E, tornou Lombard, essa bonita dama contou-lhe que acabava de ver matar um homem?

— Sim, e por sinal que isso lhe fez dar volta ao sangue! Quando chegou aqui desmaiou... levaram-na para um quarto, e quando tornou a si, contou-me a coisa, revirando os olhos de um modo que me metia medo.

— Isso deve ser a formosa mulher do camarote de boca, por causa da qual se bateu Fernando... pensavam os artistas.

— E ela disse-lhe quem tinha sido a pessoa que apanhara um golpe de florete?

— Sim, senhor, mas ainda lhe restam dúvidas, porque não teve a coragem de ficar até ao fim. Pediu-me que viesse cá abaixo, indagasse e tornasse a cima a dizer-lhe se o senhor Fernando não morreu.

— Fernando Volnay morto! exclamou à entrada da porta uma voz alegre e bem timbrada. Safa! Nem por pensamentos! A prova é que ele vai dar famosos botes com o garfo quando o almoço estiver pronto!

E o ator entrou na sala.

 

A mulher do restaurante esboçou uma bonita mesura e disse!

— Meu marido está ao fogão. Dentro de dez minutos estes senhores serão servidos; mas se o senhor, como suponho, é o próprio senhor Volnay, fará bem antes de se por à mesa, em ir tranqüilizar a jovem que se interessa tanto pelo senhor, que perdeu a cabeça só por supor que o senhor estava já na outra vida.

— Uma jovem repetiu Fernando Volnay, possuído de uma (Comoção violenta.

— Que trouxe do boulevard de Courcelles, disse o cocheiro de Lazarine.

— E que está no primeiro andar no meu quarto.

— No primeiro andar, no seu quarto! Mas como? Bastaram poucas palavras para esclarecer o ator. — Não há já dúvida, murmurou. É ela! Conduza-me, senhora, eu não acertarei com o caminho.

E Fernando correu para a escada, situada no fundo da sala.

— Mas espere... espere... senhor, disse a boa da mulher seguindo o artista. Não sei com certeza se o senhor, pode entrar.

Fernando, arrebatado por um violento amor, composto de sensualidade, de orgulho, e de ambição, nada escutava, e continuava a subir.

Lazarine, esperando a dona da casa com uma impaciência repassada de angústia, o cotovelo apoiado no travesseiro, e a cabeça apoiada na mão esquerda, escutava os menores rumores.

Ouviu de repente vozes, mas indistintas, e que só confusamente lhe chegavam aos ouvidos.

O coração pôs-se a bater-lhe impetuosamente.

Que ia ela saber?

Fernando Volnay teria realmente, morrido?

De repente, ouviram-se passos rápidos na escada.

Lazarine nem respirava.

Os passos aproximaram-se.

A Marquesa sentia calafrios.

Ao pé da porta os passos pararam, e uma voz feminina bradou:

— É aí efetivamente, senhor, mas bata antes de entrar.

A despeito desta recomendação, a porta abriu-se com violência, e o ator correu para a cama.

A senhora de La Tour-du-Roy, ao reconhecê-lo, soltou um suspiro de alívio, e estendeu os braços.

Mas ao mesmo tempo as forças atraiçoaram-lhe a vontade.

Espalhou-se-lhe pelo rosto uma extrema palidez.

A cabeça caiu-lhe para trás.

— Valha-me Deus! balbuciou Fernando com terror. Valha-me Deus! Desmaia!

A dona da casa entrara atrás dele.

— De alegria, senhor! de alegria, e não será nada! Pobre menina! Deu-lhe grande abalo vê-lo vivo, quando ela o supunha defunto! Há bocado já esteve assim, quando ela o julgava defunto. Um pouco de água fresca nas frontes, e eu lhe afianço que ela tornará a si depressa.

A boa mulher deu ao ator um guardanapo molhado, e tornou:

— Vou abaixo buscar vinagre, e já lho trago. Saiu.

Fernando não a ouvia sequer.

Só via aquele rosto de uma alvura de cera, com as pálpebras fechadas, aquele corpo incomparável que sustentava inerte nos braços. Lazarine fez um movimento.

— Oh! volte a si, murmurou o ator com uma paixão delirante, abra os olhos, senhora. Estou aqui, junto de si. Olhe para mim, fale comigo.

Aquela voz terna e cariciosa pareceu animar a senhora de La Tour—du-Roy.

As suas pálpebras entreabriram e palpitaram, levantou-se e fez um movimento para agarrar com ambas as mãos, e para atrair sobre O ombro a cabeça de Fernando, inclinada para ela, mas um último instinto do pudor, uma suprema revolta do respeito de si mesma, detiveram o movimento principiado.

— É o senhor! balbuciou. Eu tinha-o visto cair... julguei-o morto... pareceu-me que ia morrer. Se soubesse como tenho sofrido.

Por única resposta o comediante agarrou e devorou com beijos as mãos da Marquesa, cujo corpo tremia todo ao contato ardente dos seus lábios.

A dona da casa tornou a aparecer.

— Ah! exclamou ela alegremente, bem vejo que isso vai melhor... Não tinha necessidade de trazer vinagre.

— Na verdade, senhora, sinto-me muito bem, volveu Lazarine, -e agradeço-lhe os seus bons cuidados...

Depois, dirigindo-se a Fernando, acrescentou:

— Deixe-me, meu amigo, eu o chamarei daqui a pouco.

O comediante deitou um olhar inflamado à Marquesa, e afastou-se ébrio de amor.

— A senhora sempre se quer vestir? perguntou a dona do restaurante.

— Sim, e não vejo o meu fato.

— A senhora rasgou o vestido ao pé da porta. Mandei concertá-lo pela criada. Está em cima de uma cadeira no corredor; vou dar-lho. Tem precisão de alguma coisa mais?

— Tenho uma pergunta fazer-lhe. Em que quarto estou aqui?

— No meu, minha senhora.

— É o único quarto da casa?

— Oh! de certo que não. Os quartos não faltam. — Quereria alugar-me este por uns dez dias?

— Ora essa! por que não? Há de ser um pouco incomodativo; mas os negócios não correm muito bem, e...

— E o preço do aluguel decidi-lo-á? concluiu Lazarine.

— Isso já se sabe.

A senhora de La Tour-du-Roy pegou no seu "porte-monaie" que estava em cima da mesa da cabeceira, abriu-o e tirou um bilhete de mil francos que deu à mulher do restaurante, perguntando-lhe:

— Será suficiente para pagamento do quarto e do alimento durante dez dias?

— Ê muito, minha senhora, muitíssimo...

— Não é essa a minha opinião... Aceite sem escrúpulo... sou rica.

— Então, muito obrigada, minha senhora! Está em sua casa...

 

Enquanto se trocavam as réplicas precedentes, a dona da casa ajudava Lazarine a enfiar o vestido.

— Agora, senhora, tornou ela quando a toilette ficou em ordem, é preciso pensar no seu almoço.

— Almoçarei com o senhor Fernando Volnay; previna-o, peço-lhe, e faça-nos servir neste quarto.

— Nada mais fácil... Vai-se por a mesa, e não se poupará coisa alguma para a satisfazer.

A boa da mulher embolsou o bilhete de mil francos que lhe caía do céu, tanto mais a propósito que tinha uma letra a pagar no fim do mês, e desceu à sala do "rez-de-chaussée", onde Fernando muito satisfeito por todas as razões, saboreava com os padrinhos um copo de absinto.

— Senhor, disse ela ao ouvido do comediante, pediram-me lhe dissesse que vá almoçar no primeiro andar em "tête-à-tête" com a bonita dama.

Fernando esfregou as mãos, e preveniu os amigos que ia deixá-los por causa de uma entrevista, mas que a despesa era só com ele, e não deviam privar-se de coisa alguma.

Depois dirigiu-se para a escada que ia ter ao primeiro andar.

Por triste que seja reconhecer a absoluta decadência de uma mulher da boa sociedade, descendo por efeito de um amor insalubre ao nível das cocotes e das raparigas perdidas, que adoram o amante que as rouba e lhes bate, devemos aos nossos leitores toda a verdade, e já lhes afirmamos que a moralidade desta narrativa nada perderá com isso.

A senhora de La Tour-du-Roy já não tinha consciência dos seus atos.

Pela primeira vez na sua vida arrastava-a a paixão.

Como lhe faltavam os princípios, graças ao sistema de educação adotado por Júlio Leroux, o melhor dos pais, como o senso moral nunca existira nela senão em proporções infinitamente restritas, abandonava-se.

Assim que a hospedeira saiu, Lazarine aproximou-se do guarda-roupa com porta de espelho, tirou o pente de tartaruga que lhe segurava os compridos cabelos, deixou-os flutuar sobre os ombros, achou-se maravilhosamente bela, e sorriu à sua imagem.

Decorreram alguns minutos.

Bateram de manso à porta.

— É ele, pensou Lazarine. Entre, acrescentou em voz alta. A porta abriu-se.

Fernando apareceu.

A senhora de La Tour-du-Roy deu dois passos para ele estendendo as mãos...

Fernando Volnay muito comovido, e um pouco perturbado, apesar do seu habitual aprumo, deteve-se à entrada da porta.

— Venha, meu cavalheiro, disse-lhe Lazarine, levando-o para o canapé, onde o fez sentar junto dela. Bateu-se por minha causa... Não sou ingrata, e tenho pressa de lhe manifestar o meu reconhecimento...

— Reconhecimento, minha senhora! repetiu o comediante, deitando um braço em roda do corpo flexível da jovem, cujo corpo cedeu sob a pressão.

— De certo...

— Essa palavra é muito fria, e era outro sentimento que esperava ouvir confessar.

A senhora de La Tour-du-Roy pareceu hesitar, mas a sua hesitação não passava de um bem estudado coquetismo.

— Não me responde? tornou o artista em tom suplicante. Lazarine ergueu para ele os grandes olhos banhados de languidez.

— Que posso eu responder-lhe murmurou ela. Disse que não era ingrata. Pois o homem que há pouco arriscou a vida por amor de mim, não pôde ler no meu coração?

— Ser-me-ia lícito ler nele que me ama tanto como eu a amo?

— Talvez...

— Então, exclamou Fernando com umas reminiscências teatrais que a qualquer mulher menos desvairada que Lazarine, teriam parecido soberanamente ridículas, então permita-me que me lance a seus pés... Deixe-me adorá-la de joelhos, senhora Marquesa.

— Ó! esse título não... disse a senhora de La Tour-du-Roy com toda a vivacidade. Para si não sou, não quero ser senão Lazarine.

O comediante ajoelhara-se, beijava novamente as mãos de Lazarine, e enquanto desfiava o rosário dos beijos, balbuciava:

— Sim, ama-me, sinto-o, conheço-o, creio-o, tenho a certeza disso, e já mo provou duas vezes. Ontem à noite, respondendo com uma flor à confissão do meu amor; esta manhã, soltando aquele grito que me revelou a sua presença e me salvou a vida... Se não fosse a minha querida Lazarine, estava perdida... a espada do Príncipe já me tocava no peito, quando a senhora me galvanizou.

— Castigou esse espadachim, não é verdade?

— Neste momento em que estou falando, deve estar morto.

E depois de pensar um pouco, continuou:

— Mas por que a odiava, quando a senhora não deve inspirar senão amor?

— Amou-me em outros tempos... O seu amor desprezado mudou-se em ódio! Não pensemos mais nele... Esqueçamos o passado, e pensemos só em nós!

Fernando tornara a sentar-se no canapé.

— Ah só penso na senhora, só penso em ti... murmurou atraindo Lazarine a si.

Ela repeliu-o brandamente.

— Tenha juízo... disse ela com um sorriso. Responda-me a verdade em rigor. Promete-me?'

— Juro!

— Bem, que pensa então de mim?

— Que é a mais adorável, a mais adorada das mulheres!

— E também a mais leviana, não é verdade?

— Pois é leviandade ceder sem pudor afetado ao sentimento irresistível que a arrasta? Não, por certo!! Demais, é livre, é senhora de si.

— Sim, sou livre... Não dependo de ninguém no mundo, o que é uma desculpa a meus próprios olhos...

— Desculpa, porque? Pois é culpada amando-me?

— Culpada de imprudência, principalmente se um dia deixar de me amar.

— Ó! nunca! nunca! exclamou Fernando com um ardor comunicativo e por momentos sincero. O meu amor é a minha vida; durará até ao meu último suspiro!

— Se pudesse acreditar o que me diz!

— E não a acredita, Lazarine?

— Como não me há de acreditar, quando estou aqui, junto do senhor, a sós consigo, quase nos seus braços?

Por única resposta o comediante puxou a jovem para o peito.

Ouviu-se tossir com afetação no corredor, a chave girou por muito tempo na fechadura, e a dona da casa apareceu, trazendo em equilíbrio uma bandeja carregada de louça.

— Não é ninguém, disse ela rindo. Desculpem, meu senhor e minha senhora, Venho por a mesa.

Lazarine levantara-se do canapé.

— Então ponha... disse a marquesa aproximando-se da janela.aberta onde Fernando se lhe reuniu.

Através da folhagem amarelecida, via-se sob os pálidos raios do sol do outono, deslizar lentamente as águas esverdeadas do Marne por entre as suas ribas arrelvadas.

O artista encostou-se à janela ao pé da marquesa, que toda agitada por uma voluptuosidade reprimida, devorava-o com os olhos, e não dava atenção à paisagem, cujas grandes linhas esboçamos.

Fernando, de repente, tornou-se um pouco pálido e mau grado.seu, carregou o sobrolho.

— O que tem? perguntou-lhe Lazarine. Que sombrio pensamento lhe atravessa o espírito?

— Olhe, disse ele estendendo a mão para o rio. Por diante da janela passava um barco.

As cortinas da tolda, apesar de meio fechadas, deixavam entrever uma forma humana estendida em lençóis manchados de sangue. Em pé, à popa, estavam três homens.

— O barão de Fossaro... o visconde de Cussy, e um terceiro personagem que não conheço, disse a Marquesa. Aonde vai este barco?

— Transporta de certo a Paris o cadáver do Príncipe.

— É isso que o faz empalidecer? Que lhe importa o Príncipe?

— Sempre incomoda matar um homem...

— Aquele merecia o castigo que teve... Deve estar alegre, deve ter orgulho por haver vencido por minha causa... No campo da batalha, depois da vitória, julga que os vencedores se divertem em pensar nos mortos?

E nos lábios de Lazarine pairava um mau sorriso.

Dizia consigo:

— Graças a Fernando, estou vingada do príncipe que não soube livrar-me de Marcel Laugier!

Aproximou os lábios do ouvido do comediante, e murmurou com, uma expressão de ternura feroz:

— Se ele te matasse, matava-o eu. A mesa estava posta.

— Uma pouca de paciência, meu senhor e minha senhora... disse a dona do restaurante saindo do quarto. Dentro de cinco minutos servir-lhes-ei uma boa refeiçãozinha.

A senhora de La Tour-du-Roy, apoiando os braços no ombro de Fernando, tornou:

— Aqui está-se bem, não é verdade?

— Este quarto é o céu, visto que aqui me acho com você! replicou. o artista.

— Desejava podermos passar aqui alguns dias. continuou Lazarine.

— Nesta casa?

— Sim, porque foi nesta casa que pela primeira vez se uniram as nossas mãos, como se uniram os nossos corações.

— Infelizmente é impossível...

— Por que?

— Porque todas as noites um imperioso dever me chama a Paris.. — Onde está a dificuldade? Todas as noites iria representar, e

depois do espetáculo uma carruagem rápida, reconduzi-lo-ia aqui,, onde eu o esperaria como se espera o amor, depois, quando a manhã rompesse, passaríamos compridas horas à sombra das grandes árvores, ou num barco sobre esta água límpida. Não queria?

— Ó! se queria, principiou Fernando, mas... Lazarine interrompeu-o tapando-lhe a boca com a mão.

— Vai falar de dificuldades materiais, bem sei... acudiu ela> com vivacidade.

— É exato.

— Pois bem, não fale nisso e não se preocupe com coisa alguma... Eu me encarrego de tudo... E agora diga-me o que quer... Dize-me tu o que queres...

A resposta do comediante adivinha-se.

No fim de cinco minutos, a dona do restaurante trouxe a comida, e retirou-se, deixando os amantes em "tête-à-tête". Seguiremos o seu exemplo.

 

O barco que transportava a Paris o Príncipe de Castel-Vivant fez escala pela ilha de que falamos.

Amarraram-no à sombra de um velho salgueiro; o barqueiro recebeu ordem de se instalar junto do ferido e de dar o sinal de alarme, se algum sintoma particularmente inquietador se manifestasse.

Depois, enquanto o Barão de Fossaro encomendava ao dono do restaurante um almoço confortável, Frébault corria à casa de um farmacêutico, e passava a receita de uma bebida de que ele esperava bons resultados, e que foi ministrada assim que ele voltou.

O almoço, durou pouco tempo.

Parece-nos supérfluo acrescentar que foi inteiramente falto de alegria.

Levantando-se da mesa, César separou-se dos seus dois companheiros, a quem queria preceder no palácio da rua de Francisco I, e o barco tornou-se a por a caminho.

O Barão de Fossaro, que tinha tomado o comboio em Saint-Maur-les-Fossés, apeou-se na gare de Paris, um pouco antes do meio dia.

Dirigiu-se logo à rua de Lappe, à tal loja de sórdido aspecto, atulhada de ferragens corroídas pela ferrugem, e de coisas velhas cobertas de poeira, da qual já fizemos a discrição.

A chave prometida na véspera estava pronta.

César pagou o preço combinado, chegou à praça da Bastilha, tomou uma carruagem, e, em lugar de ir direito ao palácio da rua Francisco I, fez-se conduzir ao boulevard Malesherbes, a casa de Genoveva.

Esta esperava-o acometida de uma violenta febre nervosa, causada pela impaciência e pela inquietação.

— Até que enfim! exclamou ao ver Fossaro. Barão, depressa! Desde ontem que estou sobre brasas! O testamento esta aberto?

— Ainda não...

— Como assim?

— O príncipe apenas ficou ferido.

— Ferido apenas! exclamou a infame criatura com uma violenta decepção. E tu que contavas com esse parvo do Fernando Volnay!

— E tinha razão em contar... Bateu-se que foi uma perfeição! a ferida é com certeza mortal. Heitor com certeza que não torna a si. Portanto, minha filha, sossegue e paciência!! Esqueceste de que se trata de doze milhões...

— De seis, visto que os dividimos ao meio.

— De doze, porque nos casamos.

Fossaro sorriu.

— É justo, já não pensava nisso.

— Pois eu penso... Tenho o capricho de ser baronesa. O Príncipe está no seu palácio?

— Não está, mas estará dentro de duas horas...

— Por que há de ser só dentro de duas horas?

César disse à sua cúmplice o que os nossos leitores já sabem.

— Tens a certeza de que o testamento ainda lá está? perguntou Genoveva.

— Tenho, e não tardará que esteja em nosso poder.

— Não será melhor deixá-lo onde ele se acha? O essencial é que exista... Como explicar, porém, a razão por que o possui?

— Dir-se-á que o Príncipe mo entregou antes de se bater. Deixa-me fazer o que entendo, cá tenho a minha idéia...

— Quem trata de Heitor?

— Antonino Frébault.

— E se ele se pusesse bom?

— Eu poria as coisas na ordem...

— Devo ir ao palácio?

— Não faltes, toma cuidado!

— Mas para que? Hão de lá receber-me hoje tanto, como me recebiam ontem...

— Isso é exato.

— E então?

— É um passo indispensável, minha querida... É preciso que os criados não te achem indiferente e falem de ti... Revolta-te contra as ordens... insiste por simples formalidade, e chora ruidosamente, enxugando os olhos... Produzirá o melhor efeito... Agora,, formosa milionária, adeus...

— Quando voltarás?

— Ainda esta noite, se houver novidade.

 

Dali César dirigiu-se à rua Francisco I.

O cocheiro do Príncipe, que tinha chegado havia muito, desempenhara estritamente a sua missão.

Fernando apenas teve que dar ordem para o transporte de uma maça guarnecida de colchões às margens do Sena.

Eram quase quatro horas da tarde quando o barco, vindo de Créteil, chegou ao lugar onde o Barão e os criados esperavam.

Graças à poção ministrada em Saint-Maur-les-Fossés por cuidado de Antonino Frébault, não parecia que a viagem tivesse exercido nefasta influência no estado geral do ferido, que, entretanto, não tinha recuperado a palavra, e jazia imerso naquela sonolência pesada resultante da febre.

O trasbordo efetuou-se sem novidade, sob a vigilância do doutor.

Vinte minutos depois Heitor estava deitado na sua cama.

Frébault pôs-lhe novas ligaduras, escreveu uma receita, e deu ao primeiro criado de quarto as seguintes ordens:

— A partir deste momento, ninguém, exceto o senhor e o enfermeiro que eu hei de trazer, transporá sem minha autorização, seja sob que pretexto for, a entrada deste quarto. Em roda do Príncipe, é necessário o silêncio; nem uma palavra se deverá proferir junto dele. Se, por acaso, tornar a si antes de eu voltar, será conveniente fazer-lhe compreender que não deve falar, e que a sua vida depende do seu mutismo.

Fossaro carregou o sobrolho.

— Meu querido, disse ele, suponho que esse preceito não se entenderá comigo?

 

UMA SURPRESA

— Meu querido barão, replicou Frébault, a ordem é para todos. Não pode haver exceção alguma, nem para o senhor, porque as probabilidades de salvação para o nosso amigo dependem da pontual execução das minhas ordens. O meu amigo não ficará privado de informações; todos os dias porei na sala um boletim minucioso de que poderá tomar conhecimento. Demais falará comigo.

— A final, perguntou César, sempre espera?...

— Não posso dizer que espero, mas também não desespero. O ferimento é muito perigoso para que me seja possível emitir a minha opinião tão depressa. Não pouparei esforços para salvar o Príncipe que me inspira simpatia muito viva, e cuja cura me fará grande honra...

A resolução tomada pelo doutor, e a ordem dada ao criado de quarto embaraçavam os planos de César, mas não podia sem imprudência revoltar-se contra elas.

Revestiu-se de filosofia.

— Frébault tem ilusões! disse consigo. Cega-o a vaidade de sábio. Faz bem em se incomodar, não conseguirá por bom Heitor. A final, pouco importa que se prolongue a situação. O estado do príncipe não lhe permitiria fazer novo testamento, ainda que o capricho lhe desse para aí. Só me resta um partido a tomar, deixar caminhar.as coisas, e ficar de prevenção...

O primeiro criado do quarto foi instalado junto do leito do patrão pelo doutor, que lhe fez recomendações minuciosas, prometeu trazer quanto antes um enfermeiro, e saiu do palácio na companhia do Barão de Fossaro e do Visconde de Sussy.

 

Lucilia Gonthier, a Toutinegra, tinha passado uma noite muito agitada.

A visita do Príncipe de Castel-Vivant, as suas excentricidades ao começo da entrevista, resgatadas, porém, minutos depois, por um arrependimento tão completo, a carta que ele escrevera, o perigo que ia correr num duelo, preocupavam a jovem.

O sonho de sua tia cega voltava-lhe ao mesmo tempo à memória.

Perguntava a si própria se a partir daquele momento a sua existência não estaria ligada à de Heitor, e se ela não sentia uma espécie de terror vago e supersticioso.

Ao romper do dia, apesar de prostrada por uma noite de insônia, Lucilia levantou-se para se deitar ao trabalho.

A pobre criança tinha a alma tão sombria, que nenhum estribilho lhe acudia à memória.

A Toutinegra já não cantava.

À hora do costume, a ex-formosa hervanária, entrando em casa para a prevenir de que o almoço a esperava, reparou na sua tristeza e interrogou-a.

Lucilia teve todo o cuidado em não confiar à tia Verdier o verdadeiro motivo da sua tristeza e preocupação.

— Não estou triste, redarguiu ela; sinto-me esta manhã um pouco incomodada, mas este mal estar nada tem de grave e há de passar.

Como a explicação era plausível, a velhota teve de se contentar com ela.

Após uma refeição frugal a órfã tornou a entregar-se ao trabalho.

Mas a sua ansiedade e as suas inquietações aumentavam, ao mesmo tempo que via correr os ponteiros sobre o mostrador do cuco pendurado na parede, e cujo tic contínuo lhe alegrava a solidão.

Pela primeira vez na sua vida. talvez, achava o tempo longe, e dizia consigo que os ponteiros caminhavam muito lentamente.

Deram duas horas, depois três, depois quatro...

A inquietação de Lucilia ia-se tornando em angústia.

Esperava o visitante da véspera, ou notícias dele, e o coração oprimia-se-lhe dolorosamente à medida que o ponteiro pequeno avançava para o algarismo cinco.

Negras idéias lhe afluíam ao espírito agitado pela febre.

O Príncipe devia bater-se.

Ele dissera-lho.

Pelos romances e pelas peças de teatros sabia o que era um duelo.

Parecia-lhe ver o mancebo estendido no solo e ensangüentado, morto, com os olhos fechados, e com uma ferida no peito.

Percorria-lhe, então, as carnes um calafrio; um frio suor, umedecia-lhe as fontes e a raiz dos cabelos.

Deram cinco horas.

No momento em que soava a primeira pancada, pareceu-lhe receber em cheio, no peito, um choque doloroso.

Deixou cair a obra em que trabalhava, e levantou-se como que alucinada.

Deram cinco horas.

— Cinco horas! balbuciou ela, com voz apenas distinta. Deve ter morrido, senão teria vindo. Está escrito no invólucro, da carta. "À menina Lucilia, de alcunha a Toutinegra, para ser aberto por ela amanhã, 24 de setembro, de 1879, se ela não me tiver visto ou não receber noticias minhas às cinco horas da tarde. Deu a hora... não vem e não me mandou dizer nada!... Morreu! morreu...

Neste momento ouviu-se na escada um ruído de passos rápidos.

Lucilia sentiu que o seu coração cessava de bater.

Correu para a porta do quarto e encostando o ouvido à madeira, pôs-se à escuta.

Foi rápida a decepção.

Em lugar de bater à porta da órfã a pessoa que subia atravessou o corredor, e os seus passos perderam-se.

— Fazia mal em esperar, murmurou a Toutinegra com indizível amargura, não virá... Sucederia a desgraça que eu receava? Em todo o caso, esta carta sempre me dirá alguma coisa, e talvez diminua os meus receios... Não devo estar mais tempo sem a abrir...

A jovem aproximou-se do móvel onde, na véspera, fechara a carta do Príncipe.

Pegou no papel com mão trêmula, mas quando ia abri-lo deteve-se.

— Não me atrevo... disse ela, ao mesmo tempo que um novo estremecimento lhe sacudiu o corpo. Não me atrevo.

De repente fez um gesto decidido.

— Porque hei de hesitar? tornou. Porque hei de tremer? Quero saber o que esta carta encerra... É o meu dever e o meu direito..

Os seus pequenos dedos trêmulos rasgaram o envelope acetinado e selado com umas armas.

Uma folha de papel grosso saindo de dentro, caiu no sobrado do pequenino quarto.

Lucilia baixou-se para apanhar a folha e abriu-a.

— Um papel selado! exclamou ela com um assombro fácil de compreender. Que significa isto?

Para o saber era preciso ler o papel.

As quatro palavras escritas no alto da folha causaram-lhe uma. comoção tão profunda que ela se viu obrigada a sentar-se. As pernas não podiam já sustê-la. Balbuciou com voz estrangulada:

 

ISTO É O MEU TESTAMENTO

 

— O seu testamento! é então verdade? Morreu ou está para morrer!

Depois continuou, lendo como através de uma nuvem:

 

"Hoje, 23 de setembro de 1879, são de corpo e de espírito, lego toda a minha fortuna, bens móveis e imóveis, compreendendo o meu palácio da rua Francisco I, e o meu castelo de Vezelay, representando uma soma de quase doze milhões, cuja descrição se acha em casa de Emilio Pinguet, meu tabelião, mais os meus poços de petróleo na Pensylvania, rendendo anualmente um milhão, à menina Lucilia, de alcunha a Toutinegra, morando em Belleville, na rua de Julien Lacroix, n.°... no quarto andar, e sobrinha de uma tia cega, admitida na Salpetrière. Estas particularidades têm por fim tornar indiscutível a identidade da menina Lucilia, cujo nome de família ignoro, rogando-lhe que aceite esta fortuna em testemunho de admiração profunda e infinito respeito, dou-lhe ao mesmo tempo o último pensamento.

"Heitor Bégourde

"Príncipe de Castel-Vivant."

 

Lucilia lera até ao fim sem parar.

Quando acabou, ficou por alguns minutos calada, e por assim' dizer transformada em estátua, com os olhos fixos nas linhas que a nuvem condensada deles tornava, de minuto para minuto, muito indistintas.

De repente o seu peito arquejou, as lágrimas rebentaram-lhe.

— O seu último pensamento! exclamou com um gemido abafado' e soluços reprimidos. E é a mim que ele deixa toda a sua fortuna! Era pois sincero o seu amor? Amava-me do fundo dalma!... e mataram-no! Como duvidar da sua morte, visto que ele não veio... passou a hora e abri esta carta!... A sua fortuna! Mas tenho eu por acaso necessidade de uma fortuna? Milhões... O que hei de eu fazer deles? Devo porventura aceitar?

A jovem deixou-se cair de joelhos, e continuou pondo as mãos:

— Não... não... nunca! Com que direito, a que título. Aceito o seu último pensamento, de todo o meu coração, do fundo da minha alma! Aceito este adeus supremo que me revela tanto amor, mas só isto aceito. Ó! querido Príncipe, apenas entrevisto! até ao meu último suspiro conservarei a tua recordação... até ao meu último suspiro orarei por ti que me amavas... que eu teria amado... que eu amo.

 

A órfã ergueu-se repentinamente. Acudiu-lhe ao espírito nova recordação.

— Mas se ele ainda vivesse, disse ela com voz ofegante... se estivesse apenas ferido... poderia tornar a vê-lo... velar sobre ele... salvá-lo talvez... Ah! conheço bem que o salvaria! Mas aonde ir? Quem me dirá a sua morada?

Olhou maquinalmente para o testamento que não tinha largado. As palavras: "compreendendo o meu palácio na rua Francisco I", atraíram-lhe a atenção.

— Rua Francisco I! exclamou com um lampejo de alegria nos olhos. É aí que ele mora com toda a certeza. É aí que devo ir... Aí saberei se está perdida toda a esperança, e se devo chorar sobre um túmulo.

Animada pela súbita resolução que acabava de tomar, Lucília vestiu-se a toda a pressa, tornou a meter o testamento no envelope, e tudo isto no seio.

Saiu sem prevenir a senhora Verdier, e sem dizer nada à porteira; deixou a rua Julien Lacroix, tomou um trem na estação mais próxima, e disse ao cocheiro:

— Rua Francisco I.

— Que número?

— Não sei... Informar-se-á... Perguntará onde se acha o palácio do Príncipe de Castel-Vivant.

— Muito bem... Um príncipe é pessoa que deve ser conhecida no sítio.

 

O trem principiou a rodar.

Durante o trajeto a exaltação febril da jovem serenou.

Lucília refletiu na empresa em que ia se meter.

Se o Príncipe tivesse morrido, não lhe restaria senão chorar e rezar...

Mas se vivesse, que pensariam, que pensaria ele próprio de um passo tão comprometedor, tão atrevido? Não atribuiriam a sua visita a um cálculo, a um pensamento ambicioso ou interesseiro?

A órfã tornou-se purpúrea.

Esteve a ponto de ordenar ao cocheiro que voltasse e a reconduzisse a Belleville.

Uma voz interior bradou-lhe:

— Não te detenhas... Que te importam os juízos do mundo? Vai sem receio aonde o amor e o dever te conduzem...

Era quase noite.

O trem fez alto à porta de uma taberna da rua Francisco I, e o cocheiro saltou da almofada para procurar informações que logo lhe foram dadas.

A carruagem partiu, e tornou logo a parar no fim de alguns minutos.

Tinham chegado ao seu destino.

Lucilia apeou-se, deu ordem para a esperarem, viu na sua frente uma entrada monumental, e tocou com mão febril.

O coração da pobre pequena batia com muita força, mas a sua vontade sustentava-a.

A porta do palácio abriu-se.

Um guarda-portão de libré, muito mais imponente que um guarda-portão de ministério, apareceu e deitou à visitante, modestamente vestida, um olhar ao mesmo tempo curioso e impertinente.

A órfã sentiu subir a cor ao rosto.

— Que deseja, menina? perguntou o porteiro com um tom cheio de importância.

— É aqui que mora efetivamente o Príncipe de Castel-Vivant? balbuciou a jovem.

— Sim, menina, é aqui efetivamente. Mas repito, que quer? A Toutinegra enchendo-se de coragem, respondeu:

— Senhor, queria falar ao Príncipe.

Se o nosso amigo Heitor de Castel-Vivant não estivesse entre a vida e a morte, e mais perto da morte que da vida, o que não permitia aos criados mostrarem-se folgazãos sem dar um golpe no estrito decoro, o guarda-portão, com certeza, que acolheria a pretensão de Lucilia com um longo acesso de riso.

Limitou-se a fazer uma careta significativa, e fiel às ordens dadas, replicou:

— O senhor Príncipe está ausente, menina.

Ao mesmo tempo manifestava a intenção de fechar a porta.

— Ausente, murmurou a jovem; sim, sei que devia ausentar-se esta manhã, mas também sei que devia estar de volta...

— Tá! tá! tá! pensou o guarda-portão, a pequena sabe muito... É um antigo capricho do Príncipe. De fato, ela é bonita.

— Responda-me, senhor, rogo-lhe, continuou Lucilia.

— Respondi-lhe a verdade, menina; o Príncipe está ausente.

— Então, não sabe nada?

— Não sei nada! o que quer dizer com isso?

— Sim, exclamou Lucilia com veemência, o senhor de Castel-Vivant bateu-se em duelo esta manhã, e com certeza que a estas horas está morto...

— Morto! repetiu o guarda-portão. Quem lhe disse isso?

— Pouco me importa quem mo disse. É ou não verdade? Bem vê o que sofro. Rogo-lhe, peço-lhe de mãos postas que não me deixe nesta horrível incerteza. Se sucedeu alguma desgraça ao Príncipe não mo oculte! se, pelo contrário, ainda vive, dê-me esperanças...

— Nada lhe posso dizer, menina, e peço-lhe que se retire.

— Esperem um momento! exclamou de repente a voz de um recém-chegado. Porque despede assim esta pequena?

O recém-chegado era o doutor Antonino Frébault.

 

ANSIEDADE E AMOR

A jovem, com os olhos banhados de lágrimas, voltou-se com vivacidade para o doutor.

— Ah! senhor, disse-lhe com um gesto suplicante, responda-me, rogo-lhe...

— Sossegue, menina! replicou Frébault, a quem a presença de uma rapariga bonita e chorosa dispunha para uma extrema benevolência. Se compreendi as suas últimas palavras, deseja notícias do Príncipe...

— Sim, senhor... exclamou Lucilia com ímpeto. Bateu-se em duelo esta manhã, e quero saber se ele está perigosamente enfermo...

— E a que título, minha querida menina, se interessa tanto pelo Príncipe? perguntou o médico.

Lucilia compreendeu o sentido daquela pergunta. Corou até à menina dos olhos. Respondeu, não obstante, com dignidade:

— Não sou nada do senhor de Castel-Vivant, que mal me conhece, e só uma vez na sua vida me falou, mas que adquiriu direitos a toda a minha gratidão, com uma ação que devo calar, e a gratidão é que explica o interesse profundo que me inspira...

Uma auréola de castidade radiava na cabeça loura de Lucilia, iluminando-lhe o rosto encantador.

Antonino não se iludia.

Disse de si para si:

— Esta pequena adora o Príncipe sem o saber, talvez, mas ia jurar que ela não é sua amante.

Depois em voz alta:

— Acredito, menina, e vou responder-lhe: O senhor de Castel-Vivant bateu-se e ficou ferido.

A Toutinegra já não respirava.

— Ferido! balbuciou ela, de uma maneira muito grave?...

— De uma maneira muito grave...

— Mas não mortal?

— Espero salvá-lo.

— O senhor é o seu médico?

— Sim, menina.

— Ó! há de salvá-lo... Sim, há de salvá-lo, tenho a certeza disso... Nada está perdido, porque o senhor ainda tem esperanças... Ó! senhor doutor, no meio do meu grande pesar as suas palavras fizeram-me bem... Se me atrevesse...

— A que?

— A dirigir-lhe uma súplica...

— Que súplica?

— Permita-me falar com o Príncipe.

Frébault teve um sobressalto.

— Isso, minha menina, é que não pode ser!

— Por que?

— Nenhum visitante deve entrar, até nova ordem, no quarto do príncipe. A ordem é rigorosa, e não admite exceções.

— É preciso, contudo, alguém junto do doente para velar, para tratar dele.

Antonino sorriu.

— O Príncipe, disse, está rodeado de servos muito dedicados.

— Não duvido, senhor, murmurou Lucilia... Mas, muitas vezes os cuidados de uma mulher...

Calou-se.

— Os cuidados de uma mulher não lhe faltarão, disse o doutor. Uma enfermeira cheia de zelo e de experiência estará sempre no seu quarto dia e noite.

A órfã compreendeu que seria baldada toda a teima.

— Submeto-me, senhor... volveu ela, pondo as mãos. Contudo, para me dar coragem, repita-me que o salvará...

— Farei, pelo menos, tudo o que depender de mim, e Deus de certo há de vir em meu auxílio...

— Poderei saber do enfermo?

— Todos os dias, se quiser.

— Como?

— Mandarei colocar, todos os dias, no vestíbulo do palácio, um boletim, por onde poderá receber informações. Nada impedirá que escreva, ao mesmo tempo, o seu nome num registro, que, mostrado mais tarde ao Príncipe, lhe fará conhecer os seus verdadeiros amigos.

— Ó! eu virei, senhor... Eu virei todos os dias, mas eu dar-me-ia por muito feliz, e por muito grata, se tivesse a bondade de dizer ao senhor de Castel-Vivant que vim aqui esta noite, e que oro por ele com todo o meu coração, com toda a minha alma. Fará isto, senhor?

— Farei, minha filha... Como se chama?

— Lucilia, senhor.

— Lucilia, simplesmente?

— O Príncipe só de mim sabe este nome. Dir-lhe-á Lucilia, a Toutinegra, que tem uma tia velha e cega... saberá...

 

As lágrimas sufocavam a voz da órfã.

O doutor estava muito comovido, e o majestoso guarda-portão que de longe assistia ao diálogo, também sentia uma espécie de formigueiro no nariz.

— Até à vista, minha filha, tornou Frébault, não a esquecerei, e a sua comissão será desempenhada o mais depressa possível.

— Ó! senhor, obrigada. Teve muita bondade comigo... Repito-lhe, agradeço-lhe. Salve-o! Salve-o!

Depois, a jovem, esforçando-se, mas debalde, por conter os soluços, voltou ao trem, e tornou a tomar o caminho de Belleville.

 

César tinha tornado a falar com Genoveva, para a por ao fato do que se passava.

— Tinha todos os motivos para esperar que as coisas iriam mais depressa, disse-lhe ele, mas, em suma, repito-te, é apenas um adiamento. Enche-te de paciência, e vai todos os dias com uma cara bem apoquentada, saber notícias do Príncipe, como eu mesmo o farei...

Genoveva prometeu não faltar.

Quando a deixou, o Barão ia pensando:

— Por muito hábil que seja o doutor Frébault, não salvará Heitor. Por este lado, portanto, tudo vai bem. Fernando Volnay deve levar as coisas a toda a pressa com a La Tour-du-Roy. É preciso agora pensar nas famílias de Vergis e de Chaslin... Quando funcionarem todas as rodas da máquina, e bastar deixar ir as coisas até ao seu desenlace, irei, em pessoa, dar uma volta pela Suíça, e ocupar-me-ei do ex-tenente Marcel Laugier, e do filho de Lazarine.

 

Depois da sua entrevista noturna com Amoldo de Trois-Monts,. na rua Bellechasse, a condessa de Vergis, num estado de agitação bem fácil de imaginar, voltara para o seu palácio da avenida de Villars.

Assistimos à entrevista dos dois amantes.

Ouvimos Maria suplicar ao mancebo que a levasse ao fim do mundo, e Amoldo provar-lhe com especiosos raciocínios, que era preciso tanto no interesse do seu amor, como no da criança que devia dentro em pouco nascer, continuar a mentir, continuar a dissimular.

Esta dissimulação, esta mentira, não o ignoram os nossos leitores, punham em suplício o caráter franco e reto da Condessa.

Além disto, a idéia de que uma circunstância fortuita podia de um instante para o outro fazer cair a máscara, denunciar tudo ao Conde, e que um raio imprevisto a despedaçaria (porque ela não queria sobreviver à sua vergonha), tornava a sua existência numa série de constantes angústias.

Como sorrir, com a alma cheia de inquietação e de terrores? Não seria uma tarefa superior às suas forças?

Demais, como acabava de dizer a Amoldo, estava próxima a época em que, por várias razões muito materiais, deixaria de ser possível a dissimulação.

— Uma ausência do Conde salvaria a situação, permitindo-lhe deixar o palácio no momento decisivo, respondera o senhor de Trois-Monts.

Efetivamente era só nisto que estava a salvação.

Mas como decidir o Conde a afastar-se?

Como havia ela, sem fazer nascer inevitáveis suspeitas, de mostrar desejos de ficar só?

Maria de Vergis procurava debalde a solução deste enigma.

Durante dois ou três dias seguiu o melhor que pôde os conselhos do amante, ostentando, exagerando até uma alegria artificial.

Exauria-se em representar esta comédia terrível, e, sobretudo, em a representar sem resultado possível, por conseguinte, sem esperanças.

Juntava-se às suas angústias um absoluto desânimo.

A pobre mulher, bem culpada, e ao mesmo tempo bem infeliz, sentia a morte deitar-lhe as garras inexoráveis.

Arnold viera duas vezes ao palácio.

Mas como o senhor de Vergis não se afastara da mulher, os amantes só tinham podido trocar palavras banais.

No dia seguinte àquele em que Heitor caíra sob o ferro de Fernando de Volnay, a Condessa saíra do seu quarto dominada por uma tristeza mais profunda do que de costume, tristeza que apesar dos seus esforços, se lia no seu rosto pálido.

O senhor de Vergis, obrigado a sair muito cedo, prevenira a mulher de que só voltaria de tarde.

Maria almoçou só, ou antes pôs-se só à mesa, porque lhe faltavam tanto o apetite como o sono.

Depois deste simulacro de refeição, dirigiu-se para um gabinete contíguo às salas de recepção, deixou-se cair numa cadeira, e ocultando o rosto nas mãos, pôs-se a chorar, pensando no seu passado cheio de amor, no presente cheio de horrores, no futuro cheio de trevas.

As lágrimas consolaram-na um pouco. A crise nervosa serenou, e a jovem sentiu-se menos opressa.

O tempo passou sem quase ter consciência disso.

 

Ouviu-se no pátio o rodar de uma carruagem, anunciando uma visita.

Maria deitou a vista para um espelho de Veneza, certificou-se de que tinha os olhos enxutos, de que as suas faces não conservavam vestígios de lágrimas, e que as suas pálpebras avermelhadas não a podiam trair.

Depois pegou num livro, sentou-se e fingiu que lia.

No fim de um minuto, o senhor de Vergis entrou no gabinete em companhia do Barão de Fossaro, a quem acabava de encontrar nos degraus do vestíbulo.

César, ao primeiro golpe de vista, notou a alteração do rosto da Condessa.

— É importuna a minha visita, minha senhora? perguntou ele olhando bem fito para ela, depois de lhe beijar a mão. Está hoje incomodada?

A senhora de Vergis estremeceu de um modo visível, esforçou-se por sorrir, e perguntou:

— Por que me faz semelhante pergunta?

— Porque, respondeu o Barão com uma galanteria um pouco madrigalesca, e um tanto antiga, costuma ter lírios e rosas nas faces, e hoje só tem lírios.

— O senhor de Fossaro tem razão, disse o Conde com vivacidade. Maria, olhe que está pálida... Tem alguma coisa?

— Algumas dores de cabeça. Não é nada.

— Sente só isso?

— Só, afianço-lhe... e isto passa.

— Talvez se aborrecesse por estar só esta manhã? continuou o senhor de Vergis.

— É verdade que senti a sua ausência, meu amigo, respondeu Maria sorrindo, mas nunca me aborreço, bem sabe; demais, apesar de um pouco amiga da sociedade, não me aborreço nunca.

— Nada mais encantador do que a solidão de dois, quando os dois se amam! replicou o Barão com o ar mais natural do mundo, deitando à senhora de Vergis um olhar que, de certo modo, sublinhava a frase, e lhe dava um sentido particular.

Apesar do seu império sobre si mesma, Maria perturbou-se sob aquele olhar e o seu rosto contraiu-se.

O senhor de Vergis tinha os olhos fitos na mulher; aquela contração não podia passar-lhe desapercebida, mas não podia adivinhar a causa.

— Querida filha, murmurou muito inquieto, agarrando nas mãos da Condessa, sofre realmente... Agora está mais pálida que estava há pouco, e tem as mãos trêmulas...

— Repito, meu amigo, não é nada... disse Maria.

— Não será! Mas o nada pode tornar-se alguma coisa. Vou mandar chamar o médico...

A senhora de Vergis fez um movimento de terror, depois chamou aos lábios um sorriso constrangido.

— O médico! repetiu ela, não faça semelhante coisa..,

— Tranquilizar-me-ia a sua visita...

— Pelo contrário, a mim causar-me-ia grande contrariedade. Rir-se-ia dos seus sustos, e, na verdade, teria muita razão. Mas isto já é ocuparem-se demasiado de mim, acrescentou a jovem, falemos do senhor. O senhor de Fossaro há de permitir-me que lhe dirija algumas palavras a respeito de um assunto que muito me interessa.

— É tratar-me como amigo, e fico-lhe muito reconhecido, disse o Barão, espectador mudo e muito atento desta pequena cena.

— O senhor saiu esta manhã por causa da sua grande obra, não é verdade? tornou a Condessa.

— Sim, querida Maria.

— Quando aparece o primeiro volume?

— Dentro de um mês.

— O ministro dos negócios estrangeiros tinha-lhe pedido amigavelmente, que lhe deixasse ver as provas.

— Cedi ao seu pedido, e fui procurá-lo esta manhã. Conversamos muito... Tinha lido tudo quanto trata na minha obra da questão dos consulados, e o meu modo de ver casava-se tão bem como o seu, que lhe acudiu uma idéia singular.

— Que idéia?

— Pretendia fazer-me aceitar uma missão diplomática junto do conselho federal suíço!

Ouvindo estas últimas palavras, Maria que havia pouco só falava para se atordoar, ergueu a cabeça com vivacidade e olhou pra o Conde.

— Tá! tá! tá! pensou Fossaro.

 

NOVAS ANGÚSTIAS

O senhor de Vergis, continuou:

— Tratava-se de questões delicadas, muito interessantes na sua resolução, e de importantes estudos a fazer conjuntamente com o conselho federal.

— E recusou? perguntou a Condessa com vivacidade.

— Pudera!

— Mas, por que recusou? Ninguém mais do que o meu amigo é digno da honra que o ministro lhe queria fazer, e essa missão agradava-lhe, creio.

— Com certeza, mas eu pensava em você, querida Maria... Berne é uma cidade muito triste, e a vida ali havia de parecer-lhe "muito enfadonha, principalmente em pleno inverno, porque a minha estadia na Suíça podia durar alguns meses...

— Era por acaso obrigado a levar-me?

— Não, de certo, mas não admitia a idéia de uma nova separação, depois de ultimamente havermos estado separados por tanto tempo.

— O senhor é a bondade em pessoa, mas, graças a Deus, não sou egoísta e tudo quanto engrandece o seu nome torna-me feliz e altiva... Era preciso aceitar... Eu ficaria em Paris e escrever-lhe-ia todos os dias.

— A minha ausência não a deixaria nem freqüentar a sociedade nem receber como de costume.

— Que me importaria isso? posso muito bem passar sem prazeres mundanos. Demais, ninguém me impediria que fosse instalar-me nas Epines Blanches...

— A solidão no campo e na neve! Isso seria para si tão triste pelo menos como Berne...

— Solidão relativa, meu amigo, porque sei que a Marquesa de La Tour-du-Roy tenciona passar nas suas terras uma parte da estação da caça, e conviveríamos muito em qualidade de vizinhas... Gosto muito de o ter ao pé de mim, bem sabe, mas importa-me a sua glória que se reflete um pouco em mim.

O senhor de Vergis escutava Maria, e o seu olhar fixava-se nela com fixidez, quase com angústia.

Um pensamento doloroso germinava e desenvolvia-se no espírito do Conde ao mesmo tempo que a jovem falava.

— Por que será, perguntou ele, que ela insiste tanto em me afastar? Parece desejar a viagem e tudo me propõe menos acompanhar-me... De que liberdades sem limites e sem vigilância tem ela necessidade.

E confessava no seu íntimo que, se declinara o oferecimento muito lisonjeiro do ministro, era porque não lhe deixavam tréguas nem repouso as suspeitas despertadas pela carta anônima conhecida dos nossos leitores.

— É muita coisa do que chama a minha glória, e fico-lhe reconhecido por isso, querida Maria, respondeu-lhe com involuntária amargura, mas a minha resolução está tomada. Não desistirei da minha recusa decisiva e categórica... A paz do meu lar primeiro que tudo... Não, não partirei.

 

A senhora de Vergis suportou sem desânimo o olhar inquisidor que parecia querer descer-lhe até ao fundo da alma.

Compreendeu que a sua desistência havia sido desastrada.

Adivinhou vagamente no marido uma desconfiança fora do costume, e querendo reparar a sua imprudência, apressou-se a responder estendendo a mão ao conde, e obrigando os seus lábios a sorrir:

— Muito bem, visto ser irrevogável a sua resolução, nada já me impede confessar a minha satisfação. Obrigada, mil vezes obrigada do fundo da alma, por ter recusado o sacrifício que eu queria impor-lhe. Para mim nada vale tanto como a sua presença, e na falta de glória, terei a felicidade... o que vale muito mais...

O senhor de Vergis, ao ouvir palavras tão ternas e que pareciam sinceras, ao ver o sorriso de Maria, ao apertar nas suas as mãos da jovem, sentiu as suas suspeitas desvanecerem-se, como se desvanecem os nevoeiros da manhã aos primeiros raios do sol, e o rosto iluminou-se-lhe ao mesmo tempo que o seu coração se dilatava.

César de Fossaro, testemunha atenta da conversa, não perdera nem uma palavra do diálogo, nem um movimento da fisionomia dos dois interlocutores.

Dizia consigo:

— A Condessa queria afastar o Conde, salta aos olhos. Por que será esta necessidade de solidão? Sabê-lo-ei...

A senhora de Vergis tornou:

— Agora, meu amigo, deixo-o com o senhor Barão... Creio que o melhor meio de dissipar um resto de dor de cabeça, é tomar algum ar. Vou mandar por o trem.

— Para ir ao bosque? perguntou o Conde.

— Não... tenho algumas visitas a fazer no bairro do Luxembourg... Estou em dívida com a Viscondessa de Ernesty, e com a senhora de Presles, cujo dia é hoje.

— Aprovo-a, absolutamente, minha senhora... disse Fossaro. Todos os médicos do mundo lhe dirão, como eu, que a distração é o infalível antídoto da dor da cabeça.

A senhora de Vergis agradeceu-lhe com o gesto e com o sorriso, e deixou o gabinete.

O Conde seguiu-a amorosamente com o olhar.

No fim de alguns minutos, o senhor de Fossaro despediu-se, e o Conde reconduziu-o até ao vestíbulo do palácio.

No pátio, dois palafreneiros punham um coupé.

César tornou a subir para o trem, e disse a Benedito:

— Praça de Saint-Sulpice, no ângulo da rua Buonaparte... e rápido...

Passados dez minutos, o cavalo irlandês parava no lugar indicado, Fossaro apeou-se, dirigiu-se para a igreja, subiu os degraus, transpôs o portal, ocultou-se nas sombras de uma capela, de maneira a não perder de vista a entrada, ajoelhou, tomou uma atitude recolhida e esperou.

— Dizem-me os meus pressentimentos, que a Condessa está a chegar, pensou. Desta vez saberei o que devo pensar.

Assim que se viu no seu quarto, depois de deixar o marido e o Barão, deu livre curso às lágrimas que a sufocavam.

— Meu Deus! meu Deus! balbuciou ela torcendo os braços com desespero, tudo me esmaga! Quanto maior é a bondade do meu marido, mais a minha falta me aterra, e mais vergonha tenho de mim mesma!

"Sinto-me irremediavelmente perdida!

"A missão de meu marido que seria a minha salvação... surgiu por um instante como um brilhante clarão em meio das trevas, e o clarão extinguiu-se... as trevas voltaram.

"Deus amaldiçoou-me... Deus castigou-me... É justiça. Curve a cabeça e aceito o castigo; mas a frágil criatura que trago no seio, a criança que não pediu para nascer, poupai-a, meu Deus... Que seja só castigada a culpada!... Tende dó da inocente!

Novos soluços fizeram arfar o peito da senhora de Vergis meio louca.

Decorreram alguns minutos.

A jovem então pareceu readquirir um pouco de sangue frio.

Levantou-se, aproximou-se de uma secretariazinha em que havia o necessário para escrever, e rapidamente traçou as linhas seguintes numa folha de papel sem cifra e sem armas:

"Meu querido, meu muito querido, a última esperança desfez-se... Um acaso inesperado podia ter-nos salvo; desapareceu essa única probabilidade. Uma missão oferecida ao homem generoso que devia, segundo todas as aparências, afastá-lo por muitos meses. Com receio de me deixar só, recusa. Os dias correm; está próxima a hora em que já não será possível guardar o meu segredo. Bem vê que não nos resta mais do que uma saída... Bem vê que é preciso fugirmos juntos, e. se me amou, se me ama ainda, não hesitará em me! libertar."

Por baixo da última linha, à maneira de assinatura, traçou um pequeno risco sobrepujado de três pontos, depois dobrou o papel em oito e meteu-o no seio.

Feito isto, pegou num "porte-monaie" e numa carteira que estava escondida no fundo de uma gavetinha e que encerrava muitos bilhetes de visita, um dos quais tinha, em lugar de nome, a última palavra proferida pelo rei Carlos I no cadafalso de White-Hall: Remember!

Esta palavra quer dizer: lembra-te!

Uma criada de quarto veio prevenir a senhora de Vergis de que a carruagem a esperava.

Maria estava pronta e desceu logo.

Jacques Sureau ocupava o seu posto na almofada, as rédeas apanhadas na mão esquerda, e o chicote apoiado na coxa direita.

Quando apareceu a Condessa, brilhou um clarão nos seus olhos' amortecidos, e um ardente colorido incendiou-lhe as faces pálidas.

Todas as vezes que se achava em presença de Maria, a paixão feroz que o dominava fazia-lhe subir ao rosto todo o sangue das veias.

— Aonde vai a senhora Condessa? perguntou ele com uma voz cuja alteração a Condessa não notou.

— A Saint-Sulpice... respondeu ela subindo para a carruagem. Jacques Sureau ao ouvir a resposta da senhora de Vergis, foi acometido de um tal tremor, que a sua mão contraída apertou as rédeas e fez empinar o cavalo.

Foi de curta duração esta agitação violenta.

Estava aberto o portão. O trotador partiu.

— Sempre para a mesma igreja! É ali que eles se devem encontrar. Ah! desta vez hei de saber quem ele é... disse o escudeiro consigo.

O coupé parou na parte inferior da escadaria.

Mal a Condessa acabava-a de subir, e de desaparecer, que Jacques Sureau avistando um moço de recados que estacionava ao pé do seminário, chamou-o.

— Coloque-se ao pé do meu cavalo e não se mexa, disse-lhe Jacques, ganha dois francos.

O moço de recados obedeceu logo, e Jacques partiu no encalço da senhora de Vergis.

Segundo o costume, àquela hora, a igreja estava deserta.

Alguns velhos e algumas mulheres espalhadas de um e outro lado, povoavam a solidão.

César de Fossaro, sempre de joelhos, parecia absorver-se com indizível fervor na sua piedosa meditação.

Segurava a cabeça nas mãos, mas através dos dedos abertos não perdia de vista a porta da igreja.

 

De súbito estremeceu.

Entrava a Condessa.

A senhora de Vergis molhou em água benta a ponta dos dedos-finos, bem calçados, e fez o sinal da cruz; depois, deslizando ligeira pela teia do lado esquerdo, alcançou uma das saídas e desapareceu, não tendo feito mais que literalmente atravessar a nave.

— Ah! ah! disse consigo o senhor de Fossaro, torna a sair... Não é aqui que tem lugar o "rendez-vous".

E levantou-se sem fazer ruído e dispôs-se também a alcançar a porta.

Mas quase no mesmo instante parou. Jacques Sureau seguindo a teia da igreja, como fizera a Condessa, passava por diante dele sem o ver.

— Ruy Blas esperando a rainha! murmurou o Barão.

Este homem torna-se incomodativo; veremos o que se há de fazer. Não posso seguir a caça; reconhecer-me-ia. Esperemos.

Entrou numa das filas de cadeiras, ajoelhou-se outra vez e tornou logo a ocultar o rosto entre as mãos.

O Ruy Blas da avenida de Villars, — como lhe chamava o senhor de Fossaro, — vira-a desaparecer ao longe, exatamente no momento em que ele entrava na igreja, e, como César, dissera consigo.

— As entrevistas são noutro lugar. Mais uma vez fiquei ludibriado.

Mas ia sempre andando.

Seguiu até à porta lateral, abriu-a e desapareceu a vista.

Chegando ao mais alto dos degraus, deitou um olhar rápido para a direita e para a esquerda, mas inutilmente.

Como já uma vez lhe sucedera, de noite, no ângulo da rua de Bellechasse, não viu ninguém.

César de Fossaro teve o cuidado de não se mexer.

— Ela vai voltar, como da outra vez, dentro de poucos minutos, pensou. Fará oração, ou fingirá que a faz, depois retira-se, e está pregada a peça. Tenho de estabelecer vigilância da banda fora, do lado da porta, em lugar de ficar da banda de dentro. Hoje falhou... Mas não importa, nada urge e quero ver o fim da comédia...

Deixando a igreja, com o rosto absolutamente oculto pelo véuzinho espesso de renda, a Condessa meteu-se apressadamente pela rua Ferou.

Parou defronte de uma casa velha de aparência aristocrática, mas sombria e tristonha como todas as desta antiga rua.

Depois de tirar a carteira do bolso, e da carteira o bilhete de visito com a palavra: Remember, entrou, aproximou-se do cubículo do porteiro, e perguntou:

— O senhor de Trois-Monts está em casa?

— Está, sim, senhora.

— Só?

— Não, minha senhora. Dois amigos seus subiram há pouco.

— Faça entregar-lhe isto, sem demora, e tome lá.

E deu ao guarda-portão o bilhete, acompanhado de uma moeda de cinco francos.

 

UMA CILADA

Apesar dos seus ciúmes selváticos, Jacques Sureau conservava certa dose de sangue frio.

Por isso, depois de se haver certificado de que a Condessa tinha desaparecido, murmurou:

— Hoje não saberei nada, e se me deixar surpreender aqui, perco-me.

Voltou para trás, atravessou a igreja, tornou para o trem, e sentou-se novamente na almofada.

O senhor de Fossaro, vendo-o passar e afastar-se, formulou esta conclusão:

— Ruy Blas perdeu o rasto!

E continuou a esperar.

No fim de alguns minutos, a porta que dava para a rua Ferou, abriu-se vagarosamente para deixar entrar a senhora de Vergis, que veio tomar lugar em meio da nave, e quase em frente do coro, no mesmo genuflexório em que já a vimos orar.

A atenção de César redobrava.

Maria deitou disfarçadamente em roda um olhar perscrutador.

Só avistou fiéis absortos nas suas orações.

Absolutamente tranqüilizada, tirou do seio um papel muito dobrado, levantou a tampa do receptáculo contíguo ao genuflexório, e deixou ali cair o bilhete. Depois, inchando a cabeça, pareceu entregar-se completamente à sua meditação.

— Como fiz bem em esperar disse consigo Fossaro, a quem não escapara o movimento da Condessa. Ali é que deve estar a chave do mistério.

A senhora de Vergis não tardou a levantar-se.

Inclinou-se profundamente diante do santuário, e dirigiu-se para o grade portal.

César seguiu-a com o olhar.

Depois de ter a certeza de que ela acabava de sair da igreja, foi ajoelhar-se no genuflexório ocupado por ela um minuto antes, levantou a tampa como ela fizera, meteu a mão no receptáculo, pegou no bilhete, abriu-o e leu-o, tornou a pô-lo no seu lugar, e fechou o receptáculo.

No seu único olho brilhava então um fulgor vivo e alegre.

Pensava:

— Adivinhara e achei o filão. É preciso saber quem é o amante e depois proceder...

O senhor de Fossaro foi sentar-se à sombra, ao abrigo de um pilar.

Dali viu tudo, e conservou-se invisível.

Teve de se armar de paciência.

Amoldo de Trois-Monts, tendo visitas em casa, não poderá deixá-las exatamente no momento em que o bilhete com a palavra Remember lhe revelava que o esperava uma carta em Saint-Sulpice.

Finalmente, vendo-se livre, dirigiu-se para a igreja.

Ao vê-lo, o Barão estremeceu.

— Será ele? perguntou a si próprio.

A resposta a esta pergunta não se fez esperar.

O amante da Condessa foi direito ao genuflexório, pôs-se de joelhos como sucessivamente o tinham feito a jovem e o Barão, tomou uma atitude recolhida, depois, por uma série de movimentos bem combinados, esquadrinhou o esconderijo e tomou o bilhete.

Fossaro sabia o suficiente.

Voltou para o trem e disse a Benedito:

— Para o palácio...

Davam cinco horas no momento em que o coupé virava a rua dela Provence.

César subiu ao primeiro andar ,abriu a casa, sempre fechada, onde era a biblioteca, e onde ninguém penetrava na sua ausência.

Chegando ali, carregou no botão da campanhia elétrica, que soava no gabinete de Malpertuis.

Respondeu-lhe um toque idêntico.

Fossaro deixou decorrer um minuto, e depois servindo-se do telefone, formulou esta pergunta:

— Estás só?

— Sim, respondeu o ex-advogado.

— Não deixes entrar ninguém, que eu lá vou.

O jogo de mola secreta pôs uma porta oculta em movimento, e o Barão depois de tirar alguns papéis da secretária, entrou no compartimento do seu sócio.

— Tens algumas novas a dar-me? perguntou Malpertuis.

— Novas muito sérias e muito curiosas.

— A que respeito?

— A respeito do Conde de Vergis, ou antes, da sua mulher.

— São fundadas as suspeitas do marido? A Condessa tem algum amante?

— Tem um.

— Sabes quem ele é?

— Sei. Conheço-o muito bem, quase intimamente. É uma das minhas melhores relações.

— Chama-se?

— Amoldo de Trois-Monts.

— Rico?

— Duas ou três vezes milionário.

— Isso é bem bom.

— O meu amigo Trois-Monts deixará nas nossas mãos algumas penas das asas, e a Condessa uma parte da fortuna que o Conde lhe concedeu por meio de contrato, e da qual pôde dispor em vida do marido.

— Onde é que esses amantes se encontram.

— Ainda não o pude descobrir, mas conheço o lugar onde trocam a correspondência.

— Tens talvez alguma carta?

— Melhor do que isso.

— Então o que?

— A certeza de uma prenhês que não se pode atribuir ao marido. A senhora de Vergis aterrada pela sua situação, que efetivamente peca por não ser alegre, desejaria que uma ausência do Conde a tornasse livre até ao dia do seu livramento. Mas o Conde que já desconfia por causa da carta anônima, não se afastará e a pobre mulher ficará perdida, uma vez que nós não a auxiliemos.

— E podemos auxiliá-la?

— Perfeitamente.

— Como?

— Dentro em pouco te explicarei tudo isso.

— Mas parece-me que auxiliando-a, prejudicaremos os nossos interesses.

— Pelo contrário, servi-los-emos.

— A senhora de Vergis ocultará a sua prenhês.

— É o que fará a nossa força... Depois compreenderás porque... O meu plano está formado, e não deixará de ser bem sucedido. Há, porém, alguém que nos estorva.

— Quem?

— Um homem que vigia a Condessa com um ciúme feroz, e que há de querer conhecer o amante.

— Algum namorado?

— Sim, o autor da carta anônima que o Conde te entregou. É uma fera aquele homem. Como não pode possuir aquela a quem ama, pensa em perdê-la para se vingar. Se o faz, fica tudo perdido, porque a sua ação, precedendo a nossa, paralisá-la-a.

— É preciso inutilizar este homem. Quem é ele então?

— Jacques Sureau. Malpertuis encolheu os ombros.

— Jacques Sureau! exclamou, o primo de Fernando Volnay?

— Em pessoa...

— Um criado! e ele ama a Condessa?

— Furiosa, louca, brutalmente...

— Como nos havemos de desembaraçar dele?

— É preciso achar e havemos de achar. O mais urgente neste momento, é impedir que a senhora de Vergis faça a tolice de abandonar o domicilio conjugai, para fugir com o senhor de Trois--Monts.

— E podes impedir isso?

— Parece-me que sim.

— Explica-te.

César sentou-se defronte do seu sócio, e, após alguns segundos de reflexão, desenvolveu, de um modo muito nítido e claro, um plano completo de ação.

Malpertuis escutava Fossaro com uma admiração manifesta, tão engenhosas e arrojadas lhe pareciam as suas combinações.

— Bem, compreendeste? perguntou César em conclusão.

— Compreendi que por meio da criança tê-los-emos todos seguros. Mas é preciso que a criança venha ao mundo.

— Virá se quisermos. Escreva, pois, ao Conde sem perda de um minuto.

Malpertuis instalou-se à secretária, pegou numa folha de papel com a divisa do estabelecimento, e traçou as seguintes linhas:

"Senhor Conde.

"Pedia-lhe a honra de passar amanhã pelo meu escritório. Comunicação importante.

"Digne-se aceitar, senhor Conde, os meus respeitos.

"Malpertuis "Antigo advogado."

— Muito bem, tornou Fossaro, depois de ler.

— Tens as minhas instruções, só te resta caminhar.

— Caminhar-se-á. Nada de novo quanto ao negócio Chaslin?'

— Compadre ,queres ir muito depressa. Branca acha-se no coração da praça, dá-lhe tempo... É um bom cão de caça. Por ela respondo eu.

— E a rua Francisco I?

O boletim do meu doutor amigo Frébault não indicava melhoras nenhumas no estado do ferido.

— Estás senhor do testamento?

— Sim, por esse lado não há nada a recear.

 

A conversa findara.

César deixou o seu sócio, e este mandou ao palácio da avenida de Villars a carta que acabava de escrever para o Conde de Vergis.

Ouvimos o Barão de Fossaro responder a Genoveva, depois a Malpertuis, que não receava nada a respeito do testamento do Príncipe Totor.

Nem por isso deixava de estar preocupado, porque na sua opinião tudo na vida era possível, mesmo o impossível.

Pelas seis horas da noite deixou o palácio e dirigiu-se ao café da Paz, onde tinha quase a certeza de encontrar Antonino saboreando, à maneira de absinto, um líquido qualquer predileto da elegância.

O doutor estava efetivamente instalado _ no seu lugar habitual, a escrever uma carta, e interrompendo-se de tempos a tempos para absorver um gole da insípida beberagem.

— Venho de casa do Príncipe... disse estendendo a mão a Fossaro, que se sentara ao lado dele.

— Então que notícias temos?

— Não há modificação no meu último boletim, que o senhor leu com certeza. Febre violenta... grande prostração... estado comatoso.

— E tem ainda esperanças?

— Estou muito inquieto, mas na idade, do Príncipe, a natureza proporciona grandes recursos. Recuso-me a crer que esteja condenado sem apelo.

— Salve-o, querido doutor, todos os seus amigos lhe ficarão reconhecidos pelo milagre que fizer. Fale-me de outra doente sua, não menos interessante, da Duquesa de Chaslin...

Antonino Frébault meneou a cabeça.

— Pobre Duquesa.. disse. Para ela a ciência nada pôde, é tão pouco a natureza. O mal segue fatalmente o seu curso... A senhora de Chaslin pouco tempo tem de vida... alguns meses apenas...

— Achou a dama de companhia que lhe procurava?

— Sim, devido ao seu auxilio, Barão... Esse Malpertuis a quem me dirigi da sua parte, é um homem precioso... mandou-me pessoa muito competente, excepcional, uma maravilha!! A menina Adriana, — assim se chama a jovem — reúne a distinção, a modéstia, a beleza, o espírito, uma instrução séria e variada, finalmente, é a fênix, como dizia ao Duque.

— E a fênix está instalada? perguntou César rindo.

— Há já alguns dias. A Duquesa não pôde passar sem ela, e creio, palavra, que o Duque anda doido por ela...

— Como? como? o Duque anda doido por ela! exclamou Fossaro.

— Mas não há más intenções! não nos enganemos.

— Mas se a Duquesa tem ciúmes?

— Não há perigo... A jovem é muito honrada... Uma vestal, uma madona! pode-se amá-la, mas não lhe dizer. A sua dignidade casta, a sua altivez cândida, conservariam à distância os mais ousados... Sou um cético, bem sabe; não acredito nada na virtude das mulheres. Mas pela menina Adriana respondo! É um anjo, Barão, positivamente um anjo!...

— Vai tudo pelo melhor, portanto, e faço-lhe os meus cumprimentos sinceros pelo achado.

Fossaro sabia o que queria saber.

Despediu-se do doutor, voltou para o palácio, e disse a Malpertuis que escrevesse a carta seguinte:

 

"Menina.

"A senhora Duquesa de Chaslin dar-lhe-á, por certo, licença que venha ao meu escritório depois de amanhã, a uma hora qualquer da manhã... mas de preferência, entre nove e dez horas.

"Desejo regular consigo a questão dos honorários que me são devidos relativamente ao emprego de alta confiança que tive a honra de lhe obter.

"Malpertuis"

"Antigo advogado."

E no sobrescrito escreveu o seguinte:

"No palácio Chaslin. "Faubourg Saint-Honoré."

César Fossaro pegou nesta carta antes que Malpertuis a metesse no envelope, e por baixo das duas palavras, antigo advogado, fez a tinta uma pequena cruz.

 

                                                                                            Xavier de Montépin  

 

                      

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